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ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 13.

18-32

Jonathas Lopes Pereira

Rio de Janeiro
2019.2
Jonathas Lopes Pereira

ANÁLISE EXEGÉTICA DE JOÃO 13.18-32

Trabalho exigido como


requisito para a avaliação na
disciplina Exegese do Novo
Testamento, sob a docência do
Professor Dr. Dionísio Oliveira
Soares.

Rio de Janeiro
2019.2
1- INTRODUÇÃO

A presente análise tem por objetivo conhecer exegeticamente a perícope do Evangelho


de João 13.18-32. A tarefa exegética é indispensável na comunicação da mensagem bíblica,
pois um bom expositor bíblico se constitui através de uma boa tarefa exegética.
A tarefa exegética visa levar o exegeta a compreender o sentido da perícope bíblica a
qual se propõe a estudar. Trata-se de um processo diligente onde o estudante se propõe a analisar
o texto em sua forma original, promovendo o exame do contexto de formação do texto,
significados das palavras, formas e estruturas do texto, como também o seu gênero literário e
as características que o compõe.
Por este caminho seguiremos nesta análise, recorrendo a pesquisadores que realizaram
exíguo trabalho sobre o Evangelho de João e seguindo as orientações metodológicas trabalhadas
durante as aulas deste curso sob a docência do professor titular.

2- TEXTO
2.1 – TEXTO EM GREGO

Texto Grego Novum Testamentum Graece, 28ª edição de Nestle-Aland

18 Οὐ περὶ πάντων ὑµῶν λέγω· ἐγὼ οἶδα τίνας ἐξελεξάµην· ἀλλ’ ἵνα ἡ γραφὴ
πληρωθῇ·19ἀπ’ ἄρτι λέγω ὑµῖν πρὸ τοῦ γενέσθαι, ἵνα πιστεύσητε ὅταν γένηται ὅτι ἐγώ
εἰµι. 20ἀµὴν ἀµὴν λέγω ὑµῖν, ὁ λαµβάνων ἄν τινα πέµψω ἐµὲ λαµβάνει, ὁ δὲ ἐµὲ
λαµβάνων λαµβάνει τὸν πέµψαντά µε.
21Ταῦτα εἰπὼν [ὁ] Ἰησοῦς ἐταράχθη τῷ πνεύµατι καὶ ἐµαρτύρησεν καὶ εἶπεν·

ἀµὴν ἀµὴν λέγω ὑµῖν ὅτι εἷς ἐξ ὑµῶν παραδώσει µε. 22ἔβλεπον εἰς ἀλλήλους οἱ µαθηταὶ
ἀπορούµενοι περὶ τίνος λέγει. 23ἦν ἀνακείµενος εἷς ἐκ τῶν µαθητῶν αὐτοῦ ἐν τῷ κόλπῳ
τοῦ Ἰησοῦ, ὃν ἠγάπα ὁ Ἰησοῦς. 24νεύει οὖν τούτῳ Σίµων Πέτρος πυθέσθαι τίς ἂν εἴη
περὶ οὗ λέγει. 25ἀναπεσὼν οὖν ἐκεῖνος οὕτως ἐπὶ τὸ στῆθος τοῦ Ἰησοῦ λέγει αὐτῷ· κύριε,
τίς ἐστιν; 26ἀποκρίνεται [ὁ] Ἰησοῦς· ἐκεῖνός ἐστιν ᾧ ἐγὼ βάψω τὸ ψωµίον καὶ δώσω
αὐτῷ. βάψας οὖν τὸ ψωµίον [λαµβάνει καὶ] δίδωσιν Ἰούδᾳ Σίµωνος Ἰσκαριώτου. 27καὶ
µετὰ τὸ ψωµίον τότε εἰσῆλθεν εἰς ἐκεῖνον ὁ σατανᾶς. λέγει οὖν αὐτῷ ὁ Ἰησοῦς· ὃ ποιεῖς
ποίησον τάχιον.28τοῦτο [δὲ] οὐδεὶς ἔγνω τῶν ἀνακειµένων πρὸς τί εἶπεν αὐτῷ·29τινὲς γὰρ
ἐδόκουν, ἐπεὶ τὸ γλωσσόκοµον εἶχεν Ἰούδας, ὅτι λέγει αὐτῷ [ὁ] Ἰησοῦς· ἀγόρασον ὧν
χρείαν ἔχοµεν εἰς τὴν ἑορτήν, ἢ τοῖς πτωχοῖς ἵνα τι δῷ. 30λαβὼν οὖν τὸ ψωµίον ἐκεῖνος
ἐξῆλθεν εὐθύς. ἦν δὲ νύξ.
Ὅτε οὖν ἐξῆλθεν, λέγει Ἰησοῦς· νῦν ἐδοξάσθη ὁ υἱὸς τοῦ ἀνθρώπου καὶ ὁ θεὸς
31

ἐδοξάσθη ἐν αὐτῷ· 32[εἰ ὁ θεὸς ἐδοξάσθη ἐν αὐτῷ], καὶ ὁ θεὸς δοξάσει αὐτὸν ἐν αὐτῷ,
καὶ εὐθὺς δοξάσει αὐτόν.1

2.2 – TEXTO EM LINGUA PORTUGUESA

Versão Almeida Revista e Corrigida, da Imprensa Bíblica Brasileira.

18 Não falo de todos vós; eu bem sei os que tenho escolhido; mas para que se cumpra a
Escritura: O que come o pão comigo levantou contra mim o seu calcanhar.

19Desde agora, vo-lo digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, acrediteis que eu
sou.

20Na verdade, na verdade vos digo que se alguém receber o que eu enviar, me recebe a mim,
e quem me recebe a mim recebe aquele que me enviou.

21 Tendo Jesus dito isso, turbou-se em espírito e afirmou, dizendo: Na verdade, na verdade vos
digo que um de vós me há de trair.

22 Então, os discípulos olhavam uns para os outros, sem saberem de quem ele falava.

23 Ora, um de seus discípulos, aquele a quem Jesus amava, estava reclinado no seio de Jesus.

24 Então, Simão Pedro fez sinal a este, para que perguntasse quem era aquele de quem ele
falava.

25 E, inclinando-se ele sobre o peito de Jesus, disse-lhe: Senhor, quem é?


26 Jesusrespondeu: É aquele a quem eu der o bocado molhado. E, molhando o bocado, o deu a
Judas Iscariotes, filho de Simão.

27 E, após o bocado, entrou nele Satanás. Disse, pois, Jesus: O que fazes, faze-o depressa.

28 Enenhum dos que estavam assentados à mesa compreendeu a que propósito lhe
dissera isso,

29 porque,como Judas tinha a bolsa, pensavam alguns que Jesus lhe tinha dito: Compra o que
nos é necessário para a festa ou que desse alguma coisa aos pobres.

30 E, tendo Judas tomado o bocado, saiu logo. E era já noite.

1 NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece 28 ed. Disponível em: https://www.nestle-

aland.com/en/read-na28-online/text/bibeltext/lesen/stelle/53/130001/139999/. Acesso em 19 de novembro de


2019
31Tendo ele, pois, saído, disse Jesus: Agora, é glorificado o Filho do Homem, e Deus é
glorificado nele.

32Se Deus é glorificado nele, também Deus o glorificará em si mesmo e logo o há de


glorificar.

3 - DELIMITAÇÃO E JUSTIFICAÇÃO

Delimitarei a perícope em questão do verso 18 ao verso 32 pelo seguinte motivo: o verso


18 inicia uma nova unidade temática identificável e diferente dos versos anteriores, que se
ocupam em descrever uma instrução sobre o serviço cristão através do exemplo dado pelo
Mestre ao lavar os pés de seus discípulos (Jo 13. 1-17). Entre os versos 18 a 32 temos um
conjunto orgânico e coeso identificado sobre o tema da traição e desenvolvido em três partes:
1) Discurso 1 (18-20): nesta primeira parte Jesus introduz o novo assunto, faz citação do Salmo
41,10 e apresenta a finalidade de haver a traição. 2) Narrativa (21-30): neste trecho é
apresentada a cena do anúncio do traidor, o enigma e a incompreensão dos discípulos com a
saída de Judas. 3) Discurso 2 (31-32): após a saída do traidor, Jesus explica aos discípulos o
ocorrido.
Sobre a inclusão dos versos 18 a 20, numa pesquisa comparativa entre versões bíblicas
de língua portuguesa encontramos a concordância sobre esta delimitação em três versões: Bíblia
Edição Pastoral, Nova Versão Internacional e Nova Versão Transformadora. A perícope nestas
versões compreende dos versos 18 a 30 sob os títulos: "Jesus prediz a traição de Judas" (NVT),
"Jesus prediz que será traído” (NVI) e "Jesus é traído por um discípulo" (BEP).
De acordo com Leon-Dufour2, o verso 18, com a citação do Salmo 41.10 tem uma
função essencial com relação ao que vem em seguida, pois não apenas orienta para a traição
como também situa esta última na perspectiva do cumprimento da escritura.
Quanto a inclusão dos versos 31 e 32 para composição da perícope, não encontramos
em nenhuma delimitação das versões em língua portuguesa. Esta delimitação está presente em
comentários bíblicos como o comentário o Evangelho de São João de autoria de Juan Mateos
Juan Barreto, publicado pelas edições Paulinas 3.
De acordo com este comentário, os discípulos estavam desorientados e desconcertados
após a saída de Judas, por isso Jesus interpreta o ocorrido nos versos 31 e 32, da mesma forma

2 LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (III). São Paulo: Edições Loyola,
1993.p.32
3 MATEOS, Juan, S.J. O Evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético; (Tradução

Alberto Costa). São Paulo: Paulinas, 1989.p.576


como explicou o episódio do lava pés nos versos 12-17. Após a saída de Judas, Jesus explica a
aceitação de sua morte em termos de manifestação da sua glória e do Pai. Essa conclusão sobre
a glorificação se une ao início da perícope, quando após citar o Salmo 41.10 diz que essas coisas
aconteceriam para que os seus discípulos cressem.

4 - TEXTO E CONTEXTO

Escrito para apresentar Jesus aos crentes da segunda geração, o Evangelho de João se
propõe a deixar claro quem é Jesus e a salvação que ele oferece. O Evangelho procurar encorajar
e fortalecer os crentes em sua fé em Jesus como o Messias e Filho de Deus (Jo 20.31).
O Evangelho está dividido em 5 partes: 1ª) Prólogo (1.1-18); 2ª) O Livro dos Sinais
(1.19-12.50); 3ª) O Livro da Comunidade (13.1-17.26); 4ª) O Livro da Realização (18.1-20.31);
5ª) Epílogo (21.1-25). Todos os sinais e milagres são narrados na segunda parte, enquanto a
terceira começa com a cena da última ceia e se concentra nos discursos. A quarta parte ocupa-
se em relatar o processo da morte, ressurreição e ascensão de Jesus.
Os capítulos 13-17 formam uma unidade, como indica o cenário da ceia, em que se
desenvolve uma série de repetições, formando uma inclusão literária. Com poucas ações,
apenas a cena do lava-pés e a saída de Judas, o bloco é farto de discursos, com alguns diálogos.
A Páscoa Judaica e a Páscoa instituída por Jesus formam a moldura desta unidade. Há o
elemento do testamento espiritual, bem presente na literatura bíblica do AT. Um personagem
ilustre, antes de morrer, reúne os filhos e pronuncia as últimas palavras, à maneira de
testamento, como Jacó (Gn 49), Moisés (Dt 32-33), Samuel (1 Sm 12), Davi (2 Sm 23), entre
outros. Não é inusitado que evangelista coloque na boca de Jesus um testamento espiritual.

4.1 - ANTECENDENTE E POSTERIOR

A última ceia é inaugurada na cena de Jesus lavando os pés de seus discípulos (13.1-
17), oferecendo-os um exemplo para ser imitado em comunidade. O gesto de Jesus é um
ensinamento: a autoridade só pode ser entendida como função de serviço aos outros. Pedro, um
dos doze, resiste, por não entender o que o Mestre estava a lhes ensinar. O diálogo de Jesus e
Pedro (13.6-10) tem um realismo: a reação impetuosa de Pedro diante do ato do Mestre e o não
menos impetuoso desejo de não se afastar dele. O gesto de Jesus é uma condição inevitável para
ter comunhão com ele (v.8b). Em seguida, após lavar os pés, Jesus se põe a discursar,
explicando-lhes o valor exemplar do gesto, o sentido do serviço cristão. O que Jesus fez no
contexto imediato foi lavar os pés. Logo depois será o de dar a sua vida pelos outros.
A partir de Jo 13.33, tem início um grande discurso que será interrompido por diálogos
e questões pontuais. Temos um testamento espiritual, uma instrução de despedida.
Encontraremos exortações sobre a vida comunitária, ensinos sobre o papel do Espírito Santo na
direção da comunidade, advertências sobre os perigos e problemas e o encorajamento a
fidelidade.

5 - SITZ IN LEBEM

O lugar vivencial tem o objetivo de identificar em que situação e com que finalidade
foram transmitidos o texto. Segundo Wegner4, os pesquisadores fazem questão de ressaltar que
o lugar vivencial é uma categoria social e comunitária, sempre é uma situação representativa
dentro do cenário do cristianismo primevo.
Gehard Dautzenberg em seu capítulo “A História de Jesus no Evangelho de João” da
obra Formas e Exigências do Novo Testamento 5, propõe algumas considerações sobre o lugar
vivencial do quarto evangelho. Para o autor é uma tarefa extenuante situar o quarto evangelho
e a sua tradição no ambiente da Igreja Primitiva. Em primeiro lugar, é bastante reveladora a sua
posição a respeito do judaísmo. O evangelista trai o conhecimento das tradições judaicas a
medida de sua importância. Os paralelos mais próximos do título de Logos encontram-se no
âmbito do judaísmo-helenístico. Em passagens como 6.31-58, percebe-se a influência da
interpretação escriturística originariamente judaica. Tudo isso evidencia um contato da tradição
e teologia joanina com o judaísmo.
Em contrapartida, o evangelista se separa do judaísmo com muita decisão. A separação
entre os cristãos e os judeus já está firmada, dado que o evangelho exproba ao judaísmo o ter
excluído das sinagogas os seguidores de Jesus (9.22, 12.42, 16.2). Já que esta exclusão se
generalizou após o ano 70, este dado permite supor que esta ruptura total das comunidades
joaninas com o judaísmo se tenha dado após um longo período de tensões, depois da destruição
da cidade de Jerusalém. Desta ruptura resultaram as polêmicas antijudaicas.

4 WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 8ªed.revista e ampliada. São
Leopoldo: Sinodal, 2016.p.210.
5 DAUTZENBER, Gehard. A História de Jesus no Evangelho de João. In: SCHREINER, Josef,

DAUTZENBERG, Gehard. Forma e Exigências do Novo Testamento; Tradução: Benôni Lemos. 1ª ed. São Paulo:
Hagnos, 2008.
Em segundo lugar, Dautzenberg situa ao lado deste elemento judaico, no pano de fundo
do evangelho, o helenismo oriental. A linguagem do evangelista é de colorido semítico num
grego correto. O título “Logos”, as ideias de “luz” e “vida”, características da esfera divina,
“verdade”, “conhecer” e “ver” têm paralelos na literatura helenística e nos textos tardios de
masdeísmo gnóstico. O evangelista conhece o ambiente espiritual e o problema salvífico da
gnose sobre a “origem” e o “destino” do homem. Estes problemas influenciam a sua teologia,
mas a sua orientação é determinante, pois é antignóstica: o Redentor não é uma figura mítica,
mas o Logos encarnado (1.14)
O testemunho interno do evangelho torna muito improvável que o seu autor seja
testemunha ocular da atividade ministerial de Jesus. O seu modo de ordenar e desenvolver as
tradições, sua estrutura e a maneira de descrever os discursos de Jesus podem se explicar
somente quando se leva em consideração que este autor estava distante da história de Jesus. A
data tardia de 150 a 200 d.C foi abandonada após a descoberta do papiro P52, escrito em 130 6.
Com isso a datação entre 90 e 120 d.C, majoritariamente aceita entre os estudiosos, considera
a ligação do evangelho e de sua comunidade com a produção evangélica primitiva.
Segundo o Dicionário Teológico do Novo Testamento7, o Evangelho está interessado
em comunicar-se com a segunda geração de crentes, os que não foram testemunhas oculares
dos fatos (Jo 20.26-31). Pode-se especular que a comunidade, cuja vida se reflete nas lutas do
Evangelho, era composta por cristãos judeus e gentios. Esta comunidade após a cisão entre
judeus e cristãos experimenta as pressões de existência no mundo, e por este motivo precisa ser
lembrada das palavras de Jesus à cerca da vida e da missão que os crentes e a Igreja têm.
É válido ainda ressaltar que as polêmicas identificadas no evangelho são
instrumentalizadas, possuindo caráter identitário (quem somos) e de alteridade (quem não
somos). O Evangelho foi escrito principalmente para consolidar a tradição da comunidade cristã
em particular e dirigi-la na caminhada dolorosa e de confronto com o mundo judaico.

6 - ANÁLISE LITERÁRIA

6.1 - ESTRUTURA DO TEXTO

Podemos esquematizar a estrutura da perícope da seguinte maneira:

6 Ibid.,p.308
7 JOÃO, O EVANGELHO. In: Dicionário Teológico do Novo Testamento. Editor Daniel G. Reid. São
Paulo: Edições Loyola e Edições Vida Nova, 2012.p.743-760
1- Discurso 1: A traição anunciada é motivação a fé (18-20)
• O traidor é escolhido para cumprimento das Escrituras (v.18)
• O aviso da traição antecipada visa evitar o escândalo e a surpresa da comunidade e
reforçar a fé no Eu Sou (v.19)
• A confirmação da fé dos enviados após os acontecimentos (v.20)
2- Narrativa: Á mesa com o traidor (21-30)
• O anúncio da traição (v.21)
• A incompreensão dos discípulos (v.22)
• A curiosidade dos discípulos sobre a identidade do traidor (v.23-25)
• A resposta enigmática de Jesus (v.26a)
• O gesto enigmático de Jesus (v26b)
• A ação de Satanás (v.27a)
• A ordem de Jesus (v.27b)
• A incompreensão dos discípulos (v.28-29)
• A saída de Judas (v.30)
3- Discurso 2: A interpretação de Jesus (31-32)
• O filho do Homem é glorificado nisso (v.31a)
• O Deus é glorificado no Filho do Homem (v.31b-32)

6.2 - GENERO LITERÁRIO

O que é um evangelho? Marcos anuncia em seu texto inicial que o seu livro é sobre o
"Evangelho de Jesus Cristo" (Mc. 1.1). O termo grego "to evangelion" significa boas novas e
era utilizando em declarações imperiais. Antes dos Evangelhos terem sido escritos, o evangelho
era uma proclamação oral dos ensinos e da mensagem de Jesus. Depois de Marcos escrever o
seu livro a palavra ganhou outro significado, pois o próprio livro tornou-se um evangelho.
Kermod8, em Guia Literário da Bíblia, afirma que muitas explicações foram
apresentadas como os antecedentes dos evangelhos. Algumas dizem que eles são formas
helenísticas como a aretologia9, ou a vida de um homem divinamente dotado, ou a bios, sobre
grandes homens mais em geral e outros propõe um arquétipo judaico.

8 KERMOD, Frank. Introdução ao Novo Testamento, In: ALTER, Robert, KERMOD, Frank. (org.) Guia

Literário da Bíblia. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.p.404


9 Doutrina que versa sobre a virtude; estudo filosófico a respeito da perfeição moral.
Segundo Kermod, o que parece claro é que os evangelhos foram inspirados pela
necessidade de registrar por escrito algo da vida e dos ensinos de Jesus. Os meios existentes de
escrever biografia afetariam os meios pelos quais isso poderia ser feito sem forçá-los a ser
biografias em nenhum sentido formal. Misturas de narrativas e legislação eram familiares ao
Antigo Testamento, cujos evangelhos remetem constantemente.
Tradicionalmente, os quatro exemplos canônicos do gênero foram conhecidos como
Evangelho segundo..., mas no século II a palavra evangelho é encontrada no plural indicando
que já não se pensava como versões diferentes de um evangelho, mas como quatro Evangelhos.
Certamente não havia só quatro, mas apenas os quatro foram acolhidos e a partir deles que
extraímos a nossa concepção de um evangelho.
Apesar de diferenças entre os quatro evangelhos canônicos, eles constituem uma
literatura a respeito de Jesus, convergindo na proposta de uma narrativa conexa do seu
ministério, morte e ressurreição, compostas com base na tradição de Jesus, refletindo e servindo
a proclamação cristã primitiva e endereçada a leitores cristãos. Essas características fazem com
que este gênero se distinga na produção literária grego-romana e do cristianismo primitivo10.
A força motriz dos Evangelhos tem sua origem na necessidade do cristianismo em seu
nascedouro, em suas pressuposições e conteúdo diretamente influenciados pela situação
contextual imediata. O contexto imediato que moldou os Evangelhos não foi o das atividades
literárias greco-romanas, e sim as necessidades e indagações religiosas e sociais do cristianismo
primitivo. O seu propósito é o ensino público nas comunidades cristãs, que posteriormente
serviram as atividades litúrgicas11.

6.3 - A NARRATIVA

Josef Blank, em seu comentário do Evangelho de João, afirma que a importância da


narrativa do Evangelho de João está na maneira como o evangelista resume a dramaticidade da
traição. O que no Evangelho de Marcos aparece bem reduzido, em João é explano de modo
incisivo e artístico, onde as dramaticidades internas e externas são confrontadas de tal modo
que o leitor se sente de imediato atingido.12

10 EVANGELHO. In: Dicionário Teológico do Novo Testamento. Editor Daniel G. Reid. São Paulo:
Edições Loyola e Edições Vida Nova, 2012.p.535-542
11 Ibid.,p.538-539
12 BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João. Comentário e Mensagem nº4, parte 2. Petrópolis: Editora

Vozes, 1988.p.59-60.
De acordo com Frank Kermod13, podemos perceber o cuidado que João dá ao ambiente
da alimentação, imprimindo formato e cor e adaptando aos seus padrões temáticos. É o
evangelista que escolhe esse momento para introduzir o tema da traição. É durante o episódio
da multiplicação dos pães e seus desdobramentos que João lança o tema da traição. Qualquer
um dos discípulos pode, como os outros, ouvir o discurso e partir (6.67), mas a acusação de
deserção é configurada como traição (6.70-71). Há uma sugestão de que Judas foi escolhido
com pleno conhecimento de que era do demônio. Quando se pensa nisso, não há alternativa,
pois Jesus escolhe a partir do entendimento completo e o evangelista escreve sem conhecer.
Quando Judas é acusado diretamente a acusação é acompanhada por um pedaço de pão,
evidência da composição do evangelista. Ponderemos como essas ligações foram efetuadas:
primeiro o testemunho dos Salmos, depois a incorporação desse testemunho à narrativa, mas
como uma citação adequada a situação, depois, a dramatização impecável da citação com a
entrega do pedação de pão molhado, e finalmente os ecos do capítulo 6.67-71.
As aparições de Judas antes da Última Ceia são esmaecidas. Sempre é o último na lista
dos Doze e rotulado como o traidor. Porém o autor do Evangelho de João põe Judas em ação,
da mesma maneira que obtém tudo do “pedaço de pão” e da expressão “Eu sou”. O modo como
o evangelista organiza essas repetições de ideia pode muito bem-estar ligado a prática litúrgica
judaica.
A partir de uma estrutura básica comum as narrativas, podemos identificá-la na perícope
da seguinte maneira:
a) Ponto de Partida: É o ponto de onde parte a narrativa. É o início da história, de onde
ela surge. Na perícope em questão, o ponto de partida é o discurso de Jesus após a cena do lava-
pés, onde ele citando o Salmo 41.10, afirma a necessidade de um traidor para reforçar a fé dos
que creem no “Eu Sou”. (18-20)
b) Problema: O problema compreende algum evento que muda a dinâmica da história,
promovendo a quebra de normalidade e apontando para outra direção. Na perícope em questão,
o problema aparece quando Jesus, perturbado em espírito, afirma que um traidor o entregaria
(v.21). Isso causa alvoroço entre os discípulos, a ponto de Simão Pedro pedir que o discípulo
amado questionasse a Jesus sobre a identidade do traidor.
c) Clímax: É o ponto auge da história, a partir do qual ela não tem mais para onde
caminhar do ponto de vista de complicações e tensões, a não ser para a resolução. Na perícope
em questão, Jesus diz ao discípulo amado que o traidor era aquele a quem ele daria um pedaço

13 KERMOD, Frank. João, In: ALTER, Robert, KERMOD, Frank. (org.) Guia Literário da Bíblia. São

Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997.p.487-488


de pão molhado (v.26). Jesus dá o pão a Judas e o diz para fazer depressa o que estava tramando.
Nenhum dos discípulos entendeu a situação.
d) Resolução: Esse é o ponto da narrativa em que se verifica uma solução, uma
conclusão, um desfecho. Na perícope em questão, Judas sai no meio da noite (v.30). Após sua
saída, Jesus profere palavras a respeito de sua glorificação (v.31-32)
e) Nova normalidade: É o início de outra narrativa. Na perícope em questão, Jesus
inicia um novo discurso, a respeito de um mandamento novo: amai-vos uns aos outros (v.33-
35).
Esta estrutura permite identificar o problema na narrativa e a sua resolução, pois ambos
devem ser pontos de contato que o autor queria estabelecer entre a história passada e a realidade
da geração para qual o evangelho foi escrito.

6.4 - PERSONAGENS

Os personagens que compõe esta narrativa são apresentados a seguir:

a) Jesus

Diante de Judas e dos discípulos, na última ceia, Jesus toma a iniciativa: desde a citação
da escritura (Jo 13.18) até o momento que Judas sai do ambiente e então se põe a explicar aos
seus discípulos sobre a sua glorificação (Jo 13.31-32). Ficando na presença dos que creem, fará
seu testamento de despedida.

b) Os discípulos

Destacadas algumas exceções, como os discípulos de Moisés (Jo 9.28) e de João Batista
(Jo 1.35), tanto no NT quanto no Evangelho, a expressão refere-se aos que reconheceram Jesus,
como Messias e seu Mestre. Nos textos dos evangelhos encontramos o relato dos Doze
discípulos escolhidos pelo Senhor Jesus (Mt 10.1) e depois para além deste círculo íntimo, os
que seguem Jesus (Mt 8.21) e também notoriamente os setenta e dois que ele envia em missão
(Lc 10.1). Tais discípulos foram muito numerosos (Jo 6.60), mas muitos o abandonaram (Jo
6.66)14

14 LEON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.p.242


c) O discípulo a quem Jesus amava

Essa personagem é característica do Evangelho de João e é apresentada pela primeira


vez no episódio da última ceia. Recebe esta denominação: “o discípulo a quem Jesus amava”,
e só é designado por ela a partir de então (Jo19.25-27, 20.2, 21.7-24). Ele é, e representa o
discípulo perfeito na fé, que se tornou íntimo de Jesus. É muito provável que este discípulo não
seja uma figura fictícia, destinada a representar um discípulo ideal, pois o Evangelho o
apresenta como o fundamento da tradição (Jo 21.24)15.
Na ceia, este discípulo em contraste a Pedro, aparece como confidente de Jesus e usufrui
de intimidade tal que o permite reclinar sobre o peito de Jesus, um gesto de total familiaridade.
Esta posição em relação a Jesus faz certo paralelo com a posição de Jesus e o Pai (Jo 1.18), em
ambos os casos indica a imediatez do conhecimento e intimidade da acolhida.16
Pedro pede que este discípulo interrogue a Jesus sobre quem era o traidor. Jesus então
responde ao discípulo, não designando Judas pelo nome, mas sim descrevendo o ato que ele
próprio fará com relação ao traidor e em seguida o faz. O segredo é confiado ao discípulo
amado, que não transmite a Pedro. 17
Numa visão panorâmica pelo Evangelho de João, podemos identificar que este discípulo
a quem Jesus amava, rompeu com a instituição judaica (1.35) e compreende a natureza de Jesus
como Messias (1.36-40), seguindo-o passa a viver com ele (1.39). É por isso seu amigo e
confidente (13.23), o que ama os outros como Jesus amou (13.34, 15.12), está disposto a arriscar
a vida (12.25) e de fato vai com Jesus até a sua morte (18.15). Como representante da nova
comunidade, recebe a mãe de Jesus (19.27), dá testemunho da glória (19.35), reconhece a
ressurreição (20.38) e percebe a presença do Senhor no trabalho (21.7).
De acordo com o Dicionário Teológico do Novo Testamento, há um entendimento
costumeiro sobre este “discípulo a quem Jesus amava”. Em lugar algum o Evangelho identifica
o discípulo amado pelo nome. O Evangelho também não se refere explicitamente a João, filho
de Zebedeu. É objeto de debates se o discípulo amado é um dos doze. Se presumirmos que só
estavam na ceia os doze, ele então seria um deles. Mas essa suposição não é apoiada nem

15 LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (III). São Paulo: Edições Loyola,
1993.p.35
16 MATEOS, Juan, BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. São Paulo:
Paulinas, 1989.p.68
17 LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (III). São Paulo: Edições Loyola,

1993.p.35
refutada pelo Evangelho. Os participantes da ceia eram “os seus” (Jo 13.1) e os “discípulos”
(Jo 13.35), termos que no Evangelho não se referem aos doze. O discípulo amado goza de
prestígio social, muito diferente da situação dos doze, pois ele é conhecido do sumo sacerdote
(Jo 18:14-15). Este discípulo exerceu papel de liderança num grupo de comunidades cristãs,
reunindo um grupo de discípulos ao seu redor. Esta comunidade registrou o evangelho, mas a
identificação do seu autor continuou como mistério 18.
Já Raymond Brown, em A Comunidade do Discípulo Amado, afirma que ao contrapor
o discípulo amado a Pedro, o quarto evangelho dá a impressão de que este discípulo era um
estranho ao grupo dos discípulos que eram conhecidos, o qual incluía João filho de Zebedeu. A
evidência externa, que aponta João como discípulo amado, é um passo posterior numa direção,
já reconhecida no Novo Testamento, como uma tendência de simplificar as origens cristãs aos
doze apóstolos de Jesus. O discípulo amado, como aponta em sua obra, é um antigo discípulo
de João Batista, que começou a andar com Jesus na Judeia. Viveu próximo de Jesus em sua
atividade ministerial e última estada em Jerusalém. Era conhecido do sumo sacerdote e sua
ligação com Jesus era diferente da de Pedro, que é o representante do colégio apostólico.19

d) Simão Pedro

Simão Pedro aparece 17 vezes no Evangelho de João, com a mesma frequência do que
Pedro, que aparece 18 vezes. De acordo com o texto do Evangelho, Jesus sempre se refere a
este discípulo pela alcunha composta, não omitindo o sobrenome.
Sua primeira menção no texto do Evangelista aparece no capítulo 1, mencionado como
o irmão mais novo de André (1.40). Depois é mencionado no episódio da multiplicação dos
pães (Jo 6). Pedro não torna a aparecer mais até o episódio do lava-pés (Jo 13.6). Jesus
aproxima-se para lavar os seus pés e Pedro se opõe ao gesto de Jesus. Após a repreensão,
permite-se lavar pelo Senhor. Na última ceia, é ele quem tem o desejo de descobrir a identidade
do traidor (Jo 13.24), pedindo que o “discípulo a quem Jesus amava” obtivesse esta informação
do Mestre20.

e) Judas Iscariotes

18 JOÃO, EVANGELHO DE. In: Dicionário Teológico do Novo Testamento. Editor Daniel G. Reid. São
Paulo: Edições Loyola e Edições Vida Nova, 2012.p.744-745
19 BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo: Paulus, 1999.p.34-35
20 MATEOS, Juan, BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. São Paulo:

Paulinas, 1989.p.240-245
A denominação “Judas Iscariotes” o distingue do outro Judas, “não Iscariotes” (Jo
14.22). Quando a identificação do traidor é clara, chama-o simplesmente de Judas (Jo13.26,
29). Judas é um dos doze discípulos (Jo 6.71). É também designado como “um de seus
discípulos” (Jo 12,4). Desde a primeira vez que aparece no Evangelho, já aflora a traição (Jo
6.70): é inimigo. Essa designação o coloca em relação com “o Inimigo”, o qual ele tem por pai,
adotando-o como princípio regulador de sua vida. O evangelista parece estabelecer um paralelo
entre Judas e Simão Pedro em certos momentos da narrativa (Jo 6.68-71/13.2-6/24-26),
relacionando o discípulo que trai ao discípulo que nega.
Na cena da última ceia, Judas está sob a influência do “Inimigo”, que o leva a trair Jesus,
Judas então apressa-se em cumprir os desejos de seu pai. Jesus então evoca a traição que se
aproxima. Mesmo depois de lhe ter lavado os pés, Judas não estava limpo, pois não aceitou a
mensagem de Jesus. A hipocrisia de Judas ao comer o pão e trair, o excluiu da bem-aventurança
que Jesus prometera (Jo 13.17). Jesus, ao invés de denunciá-lo, oferece o pedaço de pão
molhado, em sinal de amizade e deferência. Esta é a última opção de Judas: assimilar-se a Jesus
ou a Satanás. A decisão de Judas é tomada: recebe o pão, converte a vontade de Satanás, o nome
teológico do Inimigo, e sai para a noite.
Judas é o protótipo de “os que vão à perdição” (Jo 17.12), por ter rejeitado Jesus até o
último momento. Judas escolhe as trevas (Jo 13.30), porque suas ações eram más, afastando-se
definitivamente da luz do Senhor21.

f) Satanás

O termo grego “diabolos”, traduz o termo hebraico “satan” (Jo 13.27). Sua designação
original é o adversário que acusa em juízo. Este termo aparece em João três ocasiões: a primeira
vez quando Jesus se refere a Judas Iscariotes (6.70), na segunda vez como pai dos líderes judeus
(8.44) e a terceira no episódio da última ceia (13.2,27). 22
Satanás toma o lugar de ator, reduzindo Judas a um instrumento para destruir Jesus e
sua obra. Jesus, por meio de seu gesto, desencadeia o momento em que o Inimigo deveria sair
para a sua ação. Segundo o relato do Evangelista, o inimigo, cuja derrota já estava anunciada

21 Ibid, p.143-146
22 Ibid, p.134
por Jesus (Jo 12.31), se ergue contra ele no momento da Paixão. Isso não devido ao poder que
dispõe, mas devido a determinação de Jesus (Jo 13.26-27). 23

6.5 – NOTAS EXPLICATIVAS


De acordo com Leon-Dufour, os versos 28 e 29 são um comentário do narrador e
interrompem o ritmo acelerado assumido pelo relato. Nenhum dos discípulos compreendeu o
sentido da ordem dada por Jesus a Judas, com isso o evangelista quer enfatizar os dois
personagens protagonistas desta trama: Jesus e Satanás. A incompreensão dos discípulos deixa
Jesus sozinho com Satanás. O verso 29 é a justificativa para a maneira inadequada dos
discípulos, alertados sobre a presença de um traidor. Por que uma compra para a ceia a se
realizar ou uma doação exigiriam de Judas a rápida execução? Essas ideias confirmam que a
narrativa nada tem de exposição de um evento, mas sim quer comunicar um confronto entre
Jesus e o Inimigo24.

7 – ANÁLISE SEMÂNTICA

7.1 - Eu Sou
As declarações “Eu sou” são peculiares ao Evangelho de João. Quando acompanhadas
de um predicado (pão da vida, luz do mundo, videira, etc), Jesus está falando da salvação que
ele oferece aos homens. Os casos sem predicado são de difícil interpretação.
No AT, a expressão “Eu sou” é encontrada em situações em que YHWH se revela a
Israel. Também ocorre notoriamente como o nome de Deus (Ex 3.14).
As declarações absolutas “eu sou” tem neste Evangelho o claro propósito de revelar algo
acerca da pessoa de Jesus e se constituem como uma fórmula veterotestamentária de revelação
divina. Tais declarações de Jesus, especialmente as de João 8, indicam a sua natureza divina,
partilhada a existência eterna de Deus. Neste texto, a disputa com os judeus sobre o contraste
como o tipo de vida de Abraão, a qual veio a existir, a sua afirmação de existir antes de Abraão
(Jo 8.58) mostra que seu tipo de vida é simplesmente “ser”. Essas afirmações ecoam o que
talvez seja um dos temas centrais do Evangelho de João: Jesus possui e medeia a vida eterna.

23 LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (III). São Paulo: Edições Loyola,
1993.p.36
24 Ibid, p.37
Em João essas declarações associam, no relacionamento mais íntimo, a obra e a pessoa de Jesus
com a pessoa e a obra de Deus.25

7.2 - Noite
A ausência de luz, que constitui a noite, significa a ausência de Jesus, que é a luz do
mundo (Jo 9.4). Com relação ao homem, a “noite” indica que ele não se deixa iluminar por
Jesus, ou seja, que não percebe o esplendor da glória-amor ou não o recebe em si. A causa da
“noite” é uma ideologia contrária ao amor (trevas), que se faz insensível a ele.26
Enquanto era dia, Jesus fazia brilhar a luz das suas obras (Jo 9.4). Chegada a hora, ele
se entrega aos embuços da noite, daquela noite em que mergulhou o traidor Judas, em que os
seus discípulos irão se escandalizar: ele quis enfrentar essa hora e o reino das trevas. A liturgia
primitiva conserva para sempre esta lembrança: “na noite em que ele foi entregue” (1 Co 11.23).
E o dia da sua morte se transforma, ele próprio em trevas sobre toda a terra (Mt 27.45).27

7.3 - Filho do Homem


A expressão “ho huios tou anthrôpou” é a expressão utilizada com mais frequência para
se referir a Jesus, com exceção do próprio nome. Nos Evangelhos a declaração é encontrada
apenas em declarações atribuídas a Jesus. Isso mostra que “o Filho do Homem” funciona como
autodesignação de algum tipo: jamais se tornou uma forma das outras pessoas se referirem a
Jesus. Por este motivo não designou nenhum papel nas declarações confessionais e doutrinárias
da Igreja Primitiva.
No Evangelho de João obtemos um quadro com semelhanças e diferenças. A expressão
é utilizada 13 vezes. Podemos prontamente encontrar referências que correspondem à Paixão e
a à ressurreição de Jesus nos Evangelhos.
Nos Evangelhos, a expressão indica para o leitor o personagem de Dn7, alguém com
autoridade soberana, a figura messiânica que 1Enoque e 4Esdras identificaram como o Messias,
Filho de Deus e Eleito. Pelo fato de proceder dos céus, em algum sentido tal figura seria vista
como divina, e sua descrição em Dn7 poderia ser interpretada como deificação.
Essa autodesignação de Jesus se torna o veículo para o ensino acerca da atividade e do
destino de Jesus. Ele aparece nos Evangelhos Sinóticos com alguém de autoridade sobre a terra,

25 JOÃO, O EVANGELHO. In: Dicionário Teológico do Novo Testamento. Editor Daniel G. Reid. São
Paulo: Edições Loyola e Edições Vida Nova, 2012.p.753
26 MATEOS, Juan, BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. São Paulo:

Paulinas, 1989.p.171
27 LEON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.p.648
mas não aceito por muitos. Ele tem um destino ordenado pelas Escrituras e por Deus, que
envolve traição, rejeição, sofrimento, morte e ressurreição. No Evangelho de João o enfoque é
maior a sua origem vinda de Deus e que retorna para estar com ele.
Pode-se concluir que, em aramaico, Filho do Homem não era um título, mas uma
autodesignação empregada em certos contextos e Jesus a usou desta maneira. Em Daniel 7, a
expressão usada é de forma informal para designar alguém parecido com “um filho de homem”
e, por seguinte, a expressão veio a ser um meio de se referir à pessoa assim descrita. Jesus se
apropriou desse sentido da expressão e identificou seu papel com o personagem de Daniel 7. A
expressão veio a ser usada como título de dignidade de Jesus, embora a lembrança de que a
expressão foi usada como autodesignação tenha impedido que seus seguidores viessem a
utilizá-la.28

7.4 - Glorificado
No Evangelho de João, a revelação da glória na vida e na morte de Jesus aparecem
explicitas. Jesus é o Verbo encarnado. Na sua carne habita e se revela a glória do Filho único
de Deus (Jo 1.14-18). Esta se manifesta desde o primeiro sinal (Jo 2.11). Ela aparece na união
transcendente de Jesus com o Pai que o envia, melhor ainda na unidade de ambos (Jo 10.30).
As obras de Jesus são obras do Pai, que, no Filho, as “realiza” (Jo 14.10) e nelas revela a sua
glória (Jo 11.40), luz e vida para este mundo.
Esta glória resplende sobre tudo na Paixão. Esta é a hora de Jesus, a mais alta das
teofanias. Jesus se consagra à sua morte em toda a sua lucidez, por obediência ao Pai e para a
glória de seu nome. Pela ressurreição e ascensão, Cristo já entrou na glória divina que o Pai em
seu amor lhe deu antes da fundação do mundo (Jo 17.24) e que lhe pertence, como Filho, assim
como o Pai. Essa glória, como a glória de Javé no AT, é esfera da pureza transcendente, de
santidade, de luz, de poder, de vida. Jesus ressuscitado irradia esta glória, em todo o seu ser.29

7.5 - Agora

“Agora” (v.31) rege toda a frase. Marca a chegada da hora. Posto na presença dos
gregos, Jesus define a hora como aquela em que o Filho do Homem seria glorificado. Aqui a

28 JOÃO, EVANGELHO DE. In: Dicionário Teológico do Novo Testamento. Editor Daniel G. Reid. São
Paulo: Edições Loyola e Edições Vida Nova, 2012.p.578-585
29 LEON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Editora Vozes, 1972.p.383-

384
glória resplandece. Por esse “Agora” o evangelista afirma a fé primitiva: a Páscoa determinou
o começo de uma nova era. Jesus, que virtualmente transpôs as portas da morte, chega no
“agora”, para além da condição dos homens comuns. O presente de Jesus é a partir de então a
presença da glória eterna. 30

8 - HERMENÊUTICA
8.1 – IDEIA CENTRAL DO TEXTO

No relato da paixão, este trecho alcança ponto decisivo. Jesus sabe muito bem o que está
acontecendo e o que virá acontecer. Judas também sabe ao seu modo. Dentro do desenrolar dos
fatos uma coisa ressalta: o inimigo de Jesus não é Judas, mas Satanás, que o usa como um
instrumento. Nesta cena, em que Jesus está no centro, ele “turbou-se em espírito” (v.21) diante
da presença do ódio do Inimigo contra as suas obras e do seu Reino.
A crescente incapacidade dos discípulos de entender Jesus e a sua missão culminaram
com a traição. Nesta última oportunidade antes da paixão, na comunhão à mesa, Jesus
demonstrou mais uma vez o perdão, o amor e a graça que caracterizam a sua missão entre os
homens.
A traição não o deve desconcertar, pois ele a anuncia de antemão, como estava predita
nas Escrituras. Jesus recorre ao Salmo 41 para aplicar a si mesmo a oração de um inocente que
sofre perseguição e traição. O que impressiona nesta passagem é que a traição servirá de
fortalecimento da fé na pessoa do “Eu Sou” (v.19) e na glorificação do Filho do Homem e do
Pai (v.31-32). Essa fé é a base da missão dos escolhidos. A glorificação do Filho do Homem
tem a sua realização não somente no presente, mas no futuro também, após o cumprimento da
missão.
Judas executa o que o texto bíblico enunciava, ele se dispõe a trair e sai da comunidade.
Voltando-se para o pano de fundo do texto, o autor quer comunicar com isso o embate entre os
que creem na obra de Jesus e partilham de sua comunhão e aqueles que saem da comunidade,
porque são do Inimigo e recusam o perdão oferecido por Jesus. Ao abandonar Jesus, Judas
prefere a noite, o lugar de domínio das trevas e da morte.

30 LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (III). São Paulo: Edições Loyola,
1993.p.39
8.2 – APLICAÇÃO

1) A associação a coisas espirituais não é a garantia de regeneração.


Mesmo estando entre os doze, seguindo Jesus e presenciando a sua obra e ministério,
Judas deixou-se levar sob o domínio de Satanás, a fim de lhe servir como instrumento. Judas
foi chamado para ser um apóstolo do Senhor Jesus, um privilégio sem igual! Mas desperdiçou
esta grande oportunidade devido as más inclinações de seu coração.
Seguir a Jesus não é uma simples tarefa de adesão nominal, mas uma mudança radical
na mentalidade e no procedimento. Um fascinante projeto de vida que altera radicalmente as
nossas convicções, motivações, sentimentos e reações, pois nos submetemos ao seu senhorio,
que nos liberta de toda a dominação do inimigo.
2) O maior fracasso na vida humana é rejeitar o perdão misericordioso do Senhor
Frente a frente com Jesus e os outros discípulos, Judas teve uma oportunidade de
retroceder na sua inclinação. Jesus lhe oferece o pão molhado, Judas prefere não comer o pão
e sair para a noite, rumo as trevas. Jesus oferece ao pecador a oportunidade de arrependimento,
de abandonar o pecado e aceita-lo como Senhor e Mestre. E quando o pecador toma a decisão
de aceitar a oferta de Jesus, encontrará sempre perdão misericordioso e gracioso do Senhor
nosso Deus.
3) As situações tortuosas e difíceis da caminhada devem servir como combustível
para a fé em Jesus.
Jesus, recorrendo as escrituras, anuncia o tema da traição e aponta que essa situação não
deveria servir como desagregador da fé, pelo contrário, os crentes deveriam crer mais ainda no
“Eu Sou”, pois por meio destas coisas ele seria glorificado.
As situações ruins e tortuosas da vida não devem esmorecer nossa fé, por mais cruéis
ou escandalosas que sejam. Precisamos olhar para essas situações a partir da perspectiva de
Jesus, sabendo que essas situações estão concordando com um propósito maior, que é a nossa
maturidade na fé e a glória de Deus.

9 – CONCLUSÃO

Ao chegar no fim desta tarefa exegética, conclui-se com o entendimento, já exposto no


decorrer da análise, que o texto produzido se desenvolve em dois níveis: o do tempo de Jesus,
reconstruindo um episódio de sua vida ministerial, mas também o tempo da comunidade que
produz e difunde o relato do Evangelho.
Com vistas a fé da comunidade, o relato do Evangelista cumpre o seu papel dogmático,
nos apresentando Jesus, como o Messias, Filho de Deus e toda a sua obra redentiva, como
também cumpre o seu papel kerigmático, de proclamação desta mensagem a fim de que outros
creiam em Jesus.

10 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece 28 ed. Disponível em: https://www.nestle-


aland.com/en/read-na28-online/text/bibeltext/lesen/stelle/53/130001/139999/. Acesso em 19
de novembro de 2019

LEON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho Segundo João (III). São Paulo: Edições
Loyola, 1993.

Dicionário Teológico do Novo Testamento. Editor Daniel G. Reid. São Paulo: Edições Loyola
e Edições Vida Nova, 2012

LEON-DUFOUR, Xavier. Vocabulário de Teologia Bíblica. Petrópolis: Editora Vozes,


1972.p.383-384

MATEOS, Juan, BARRETO, Juan. Vocabulário Teológico do Evangelho de São João. São
Paulo: Paulinas, 1989.

BROWN, Raymond E. A Comunidade do Discípulo Amado. São Paulo: Paulus, 1999.

ALTER, Robert, KERMOD, Frank. (org.) Guia Literário da Bíblia. São Paulo: Fundação
Editora da UNESP, 1997.

BLANK, Josef. O Evangelho Segundo João. Comentário e Mensagem nº4, parte 2. Petrópolis:
Editora Vozes, 1988.

SCHREINER, Josef, DAUTZENBERG, Gehard. Forma e Exigências do Novo Testamento;


Tradução: Benôni Lemos. 1ª ed. São Paulo: Hagnos, 2008.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. 8ªed.revista e
ampliada. São Leopoldo: Sinodal, 2016.p.210.

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