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Master in Theological Studies

Exposição Bíblica – Dr Alan Amorim


Aluno: Álvaro Ramon Ramos Oliveira

TRABALHO DE EXEGESE NO QUARTO EVANGELHO: JO 13: 18-30.

JESUS APONTA O TRAIDOR

Um trabalho entregue em cumprimento parcial


dos requisitos da Exposição Bíblica I,
Professor Dr. Allan P. Amorim.

Rio de Janeiro, 2023


2

TRABALHO DE EXEGESE NO QUARTO EVANGELHO: JO 13: 18-30.

JESUS APONTA O TRAIDOR

1. INTRODUÇÃO:

Segundo o teólogo Uwe Wegner, o termo exegese pode ser definido como
“comentário ou dissertação para o esclarecimento ou minuciosa interpretação de um
texto ou de uma palavra” 1. Sua etimologia deriva-se da expressão grega exegis, isto é,
uma apresentação, descrição ou narração como explicação. A partir disso,
compreendemos que “exegese bíblica” é a ação de interpretar os textos sagrados. Logo,
sublinhamos que exegese é o trabalho de explicação e interpretação de um ou mais
fragmentos bíblicos.

Visto isto, pretendemos elaborar alguns apontamentos exegéticos sobre a perícope


contida no evangelho de João 13: 18-30. Para cumprir esse objetivo utilizaremos
comentários, livros de introdução ao novo testamento, dicionários teológicos e
dicionários de grego. Através desses recursos queremos investigar e levantar pontos
fundamentais desse texto, contribuindo assim com o surgimento de novos horizontes
para a interpretação e aplicação pastoral dessa passagem.

2. TEXTO DE JO 13:18-21
 Versão: Nova Versão Internacional.
 Texto principal: Nestle Aland Novum Testamentum Graece 28ª Edição.

2.1 O texto em português (Nvi)

18 Não estou me referindo a todos vocês; conheço os que escolhi. Mas isto
acontece para que se cumpra a Escritura: ‘Aquele que partilhava do meu pão voltou-se
contra mim’.
19 Estou lhes dizendo antes que aconteça, a fim de que, quando acontecer, vocês
creiam que Eu Sou.
1
WEGNER, UWE. Exegese do Novo Testamento – Manual de Metodologia. 7. Ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2012. p. 21.
3

20 Eu lhes garanto: Quem receber aquele que eu enviar, estará me recebendo; e
quem me recebe, recebe aquele que me enviou.
21 Depois de dizer isso, Jesus perturbou-se em espírito e declarou: "Digo-lhes que
certamente um de vocês me trairá".
22 Seus discípulos olharam uns para os outros, sem saber a quem ele se referia.
23 Um deles, o discípulo a quem Jesus amava, estava reclinado ao lado dele.
24 Simão Pedro fez sinais para esse discípulo, como a dizer: "Pergunte-lhe a quem
ele está se referindo".
25 Inclinando-se para Jesus, perguntou-lhe: "Senhor, quem é?”
26 Respondeu Jesus: "Aquele a quem eu der este pedaço de pão molhado no
prato". Então, molhando o pedaço de pão, deu-o a Judas Iscariotes, filho de Simão.
27 Tão logo Judas comeu o pão, Satanás entrou nele. "O que você está para fazer,
faça depressa", disse-lhe Jesus.
28 Mas ninguém à mesa entendeu por que Jesus lhe disse isso.
29 Visto que Judas era o encarregado do dinheiro, alguns pensaram que Jesus
estava lhe dizendo que comprasse o necessário para a festa, ou que desse algo aos
pobres.
30 Assim que comeu o pão, Judas saiu. E era noite.

2.2. Texto em grego (Nestle Aland Novum Testamentum Graece 28ª Edição)

18 Οὐ περὶ πάντων ὑμῶν λέγω· ἐγὼ οἶδα τίνας ἐξελεξάμην· ἀλλ’ ἵνα ἡ γραφὴ
πληρωθῇ· ὁ τρώγων μου τὸν ἄρτον ἐπῆρεν ἐπ’ ἐμὲ τὴν πτέρναν αὐτοῦ.

19 ἀπ’ ἄρτι λέγω ὑμῖν πρὸ τοῦ γενέσθαι, ἵνα πιστεύσητε ὅταν γένηται ὅτι ἐγώ
εἰμι.

20 ἀμὴν ἀμὴν λέγω ὑμῖν, ὁ λαμβάνων ἄν τινα πέμψω ἐμὲ λαμβάνει, ὁ δὲ ἐμὲ
λαμβάνων λαμβάνει τὸν πέμψαντά με.

21 Ταῦτα εἰπὼν [ὁ] Ἰησοῦς ἐταράχθη τῷ πνεύματι καὶ ἐμαρτύρησεν καὶ εἶπεν·
ἀμὴν ἀμὴν λέγω ὑμῖν ὅτι εἷς ἐξ ὑμῶν παραδώσει με.

22 ἔβλεπον εἰς ἀλλήλους οἱ μαθηταὶ ἀπορούμενοι περὶ τίνος λέγει.

23 ἦν ἀνακείμενος εἷς ἐκ τῶν μαθητῶν αὐτοῦ ἐν τῷ κόλπῳ τοῦ Ἰησοῦ, ὃν ἠγάπα ὁ


Ἰησοῦς.

24 νεύει οὖν τούτῳ Σίμων Πέτρος πυθέσθαι τίς ἂν εἴη περὶ οὗ λέγει.
4

25 ἀναπεσὼν οὖν ἐκεῖνος οὕτως ἐπὶ τὸ στῆθος τοῦ Ἰησοῦ λέγει αὐτῷ· κύριε, τίς
ἐστιν;

26 ἀποκρίνεται [ὁ] Ἰησοῦς· ἐκεῖνός ἐστιν ᾧ ἐγὼ βάψω τὸ ψωμίον καὶ δώσω αὐτῷ.
βάψας οὖν τὸ ψωμίον [λαμβάνει καὶ] δίδωσιν Ἰούδᾳ Σίμωνος Ἰσκαριώτου.

27 καὶ μετὰ τὸ ψωμίον τότε εἰσῆλθεν εἰς ἐκεῖνον ὁ σατανᾶς. λέγει οὖν αὐτῷ ὁ
Ἰησοῦς· ὃ ποιεῖς ποίησον τάχιον.

28 τοῦτο [δὲ] οὐδεὶς ἔγνω τῶν ἀνακειμένων πρὸς τί εἶπεν αὐτῷ·

29 τινὲς γὰρ ἐδόκουν, ἐπεὶ τὸ γλωσσόκομον εἶχεν Ἰούδας, ὅτι λέγει αὐτῷ [ὁ]
Ἰησοῦς· ἀγόρασον ὧν χρείαν ἔχομεν εἰς τὴν ἑορτήν, ἢ τοῖς πτωχοῖς ἵνα τι δῷ. 

30 λαβὼν οὖν τὸ ψωμίον ἐκεῖνος ἐξῆλθεν εὐθύς. ἦν δὲ νύξ.

3.0 - TEXTO E CONTEXTO

A tradição da Igreja primitiva, Irineu em particular, atribuiu a autoria de cinco


livros do Novo Testamento ao apóstolo João. O quarto evangelho, as três epístolas que
carregam o seu nome (1 joão, 2 joão e 3 joão) e apocalipse são obras que podem ser
enquadras dentro dessa categoria. Contudo, independente da precisão histórica imanente
nessas afirmações, esses cinco documentos são, desde o século II d.C., relacionados um
ao outro na história da Bíblia cristã e, juntos, constituem o que se convencionou chamar
de tradição joanina2.

Se por um lado a tradição delimita uma posição acerca da autoria do evangelho


segundo João, por outro, dentro das academias teológicas não há consenso. Conforme
observamos no livro Os Evangelhos II de Reinaldo Fabris e Bruno Maggioni, existe
uma corrente que desloca a compilação do livro para as mãos de João, presbítero de
Jerusalém, ao invés do filho de Zebedeu 3. Além dessa, existem outros intelectuais,
assim como Kummel, que compreendem a inexistência de testemunhos internos do
livro4. Contudo, sublinho que dentro dos círculos acadêmicos também observamos
aqueles que escolhem a narrativa tradicional. Para F. F. Bruce, sobre a autoria do quarto
evangelho, podemos afirmar que este documento foi escrito por: 1- um judeu palestino;

2
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Sociedade Religiosa Vida Nova e
Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1987. p.11.
3
MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 264.
4
KUMMEL, W. Introdução ao Novo Testamento. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 1997. p.299.
5

2- por uma testemunha ocular; 3- pelo discípulo que Jesus amava; d- por João o filho de
Zebedeu5.

Os primeiros vestígios sobre o quarto evangelho apontam para os últimos anos do


século II. Contudo, o único contexto histórico claramente nítido em João é confronto
entre os discípulos e a Sinagoga e, em particular, exclusão dela (9:22; 12:42; 16:2).
Segundo Zumstein, a indicação desse contexto polêmico permite apontar a sua datação.
Para o mesmo, o quarto evangelho foi compilado após a ruptura com a Sinagoga dos
fariseus, isto é, após 85 d.C6. Raymond Brown, por sua vez, diz em sua obra A
comunidade do discípulo amado, defende que a sua compilação se deu na Ásia Menor.
Para ser mais exato, nas proximidades de Éfeso7.

Sobre a intenção teológica do livro, o quarto evangelho deixa claro, nos discursos
de despedida (14-16), o ambiente teológico a partir do qual a história de Cristo é
narrada. Esses discursos são empreendidos na perspectiva da fé pascal (2:17; 12:16;
13:7; 20:9) e o agente desse trabalho é o Paráclito. Desse modo, somente o Paráclito é a
testemunha fiel e o hermeneuta qualificado da vida e da obra do Cristo joanino. Assim,
somente a retrospectiva pascal, operada pelo Espírito, permite descobrir o sentido
completo da encarnação, do ministério terrestre, da Paixão e da elevação do Filho.
Portanto, o evangelho é, por excelência, um testemunho do Cristo encarnado, na força
do Espírito que, ao mesmo tempo, conserva a lembrança do Cristo terrestre e manifesta
sua atualidade para o hoje da fé. Nas palavras de Zumstein:

Essa descrição da atividade do Paráclito deixa logo prever que o relato


joanino é fundamentalmente um relato cristológico: a pessoa de
Cristo, sua história e sua significação são o objeto central do
evangelho. Qual é, então, a concepção cristológica defendida por
João? O Cristo joanino é fundamentalmente apresentado como o
Revelador de Deus no mundo. Essa função reveladora é
desenvolvida8.

5
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Sociedade Religiosa Vida Nova e
Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1987. p.15.
6
ZUMSTEIN, Jean. O Evangelho Segundo João. In: MARGUERAT, Daniel (Org.). Novo Testamento:
história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2015, p. 437-470.
7
BROWN, Raymond Edward. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulus, 1999.
8
ZUMSTEIN, Jean. O Evangelho Segundo João. In: MARGUERAT, Daniel (Org.). Novo Testamento:
história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2015, p. 454.
6

2.2 Delimitação

Após apresentar o texto que será analisado no decorrer deste trabalho e discutir o
contexto histórico do quarto evangelho, cabe agora apontar os recortes que delimitam a
perícope em questão. Destaco que diferentes organizadores atribuíram diversos limites
para o capítulo 13 de João, especialmente naquilo que se refere ao momento em que
Jesus aponta o traidor. Desse modo, é preciso evidenciar que neste trabalho seguiremos
as delimitações apontadas pela a Bíblia NVI, a Bíblia Arqueológica e a Bíblia NVT, isto
é, Jo 13: 18-30.

Diferentemente dessas versões, a Bíblia do Peregrino, A Bíblia Almeida Corrigida


Fiel e a Bíblia de Jerusalém definem essa passagem entre os versos 21-30. No entanto,
no decorrer da nossa análise nos distanciaremos dessas segundas delimitações, uma vez
que entendemos que a partir do versículo 18 observamos uma quebra da narrativa. Em
outros termos, a traição que é aludida nos versículos anteriores, agora é abertamente
anunciada. Logo, temos uma nova temática central. O anúncio da traição interrompe o
tema central dos diálogos presentes no fenômeno do lava-pés. Desse modo, em Jo 13:18
lemos: Não estou me referindo a todos vocês; conheço os que escolhi. Mas isto
acontece para que se cumpra a Escritura: “Aquele que partilhava do meu pão voltou-
se contra mim” 9. Visto isto, o último versículo desse texto é marcado por outra ruptura.
Nele, visualizamos que Jesus sai do seu ambiente geográfico. Segundo Jo 13:30: Ele
tendo recebido o bocado, saiu imediatamente; e era noite 10. Em síntese, entendemos
que nossa perícope se inicia no versículo 18 e se encerra no versículo 30 por conta das
quebras textuais contidas nesses versos.

Os critérios utilizados para essa delimitação foram anunciados pelo teólogo Uwe
Wegner. Em seu livro, Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia, o autor
nos lembra que, originalmente, os livros neotestamentários foram redigidos em escrita
contínua, sem espaço entre as palavras e sem subdivisões de versículos, perícopes e
capítulos. Desse modo, ele afirma que os parâmetros para a divisão de perícopes
encontram-se nas mudanças de temática central, gênero literário, temporalidade,
espacialidade e personalidades11. Algo notório no início e no final de Jo 13: 18-30.

9
Bíblia Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: SBB, 2000.
10
Ibidem.
11
WEGNER, UWE. Exegese do Novo Testamento – Manual de Metodologia. 7. Ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2012. p. 21.
7

Reinaldo Fabris e Bruno Maggioni, ao comentar a passagem em que Jesus aponta


o traidor, também seguem essa delimitação. Na perspectiva dos autores, esse texto se
descola do seu antecessor, uma vez que o evangelista retoma o assunto contido em Jo
13: 2-11. Se em um primeiro momento temos o motivo da traição de Judas,
posteriormente o evangelista o desenvolve de forma mais ampla. Cabe ressaltar que
esses teólogos assumem o v. 18 como orações transicionais. Em suas palavras esse
versículo constitui uma conexão eficaz com a perícope precedente. O que Jesus afirma
(13:17) não se pode referir a todos presentes: um deles não merece a bem
aventurança12.

A partir disso, cabe destacar que a perícope de Jo 13: 18-30 é precedida pelo
episódio do lava-pés (Jo 13: 1-17) e sucedida pelo discurso da glorificação (Jo 13: 31-
38). Esse primeiro episódio desempenha na trama do quarto evangelho um papel muito
semelhante à ceia nos sinóticos. Em outras palavras, ele revela o sentido da Paixão e
traça o caminho da igreja em seu lugar de existência. Já no segundo, ele apresenta um
novo mandamento (vs.34-35) ao iniciar o seu discurso de despedida. Em síntese, em
nossa perícope, o evangelista aponta o traidor através da boca de Jesus. Ele não o expõe
para os outros personagens do texto, mas nós, leitores, tomamos ciência do ocorrido.
Desse modo, cabe aqui abordar o seu pano de fundo.

3.2 - Sitz im Leben

Segundo Uwe Wegner, o conceito alemão sitz im leben é uma expressão


designada para apontar o “lugar vivencial” do texto bíblico. Em outros termos, sitz
significa “lugar/assento” e im leben que dizer “na vida”. Desse modo, Wegner nos
lembra que sitz im leben significa “lugar de vida” ou “lugar vivencial” da perícope.
Visto isto, pretendemos agora discutir a “situação geratriz”, o “ambiente vital” ou
“contexto histórico” empregado como pano de fundo do texto central deste trabalho13.

Os discursos de Jo 13-17 trazem em si o ensinamento privado de Jesus aos seus


discípulos. Segundo Reinaldo Fabris e Bruno Maggioni, essa série de capítulos é
iniciada através de um episódio que une diálogo e ação (lava-pés). Depois desse evento,
seguem-se passagens que contêm somente diálogos. Nesses episódios, as narrativas

12
MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 416.
13
WEGNER, UWE. Exegese do Novo Testamento – Manual de Metodologia. 7. Ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2012. p. 115.
8

atribuídas a Jesus se tornam gradativamente maior, de modo que a sequencia termina


praticamente em um monólogo. Em suas palavras:

Apontemos brevemente que os discursos de adeus não dizem respeito


apenas aos presentes no cenáculo e ao tempo entre a ceia e a cruz.
Dizem respeito aos discípulos de depois e ao tempo entre a
ressurreição e a parusia. Dizem respeito não propriamente aos
discípulos no sentido de sucessores dos apóstolos, e sim à comunidade
toda. Estes capítulos são na verdade uma decrição antcipada da
existência Cristã no mundo. É óbvio que aí se reflete de modo
particular a condição da comunidade de Jo e do seu tempo 14.

3.2.1 - Aspecto Social e Econômico

Pensando o contexto sócio-econômico do quarto evangelho, a primeira coisa que


precisamos apontar é que a sua linguagem encontra-se voltada para ambientes urbanos.
Visto isto, diferentemente dos evangelhos sinóticos (textos que retratavam narrativas
voltadas para o mundo pobre e camponês) no decorrer da leitura do evangelho de João
identificamos a forte presença de figuras como João Batista (oriundo de família
sacerdotal) e Nicodemos (um fariseu e chefe dos judeus), isto é, sujeitos proeminentes
em sua sociedade. Em linhas gerais, isso evidencia o fato do evangelho de João ter sido
compilado entre um público mais abastado que os autores dos demais evangelhos.

Cabe ressaltar que segundo Konigs, a pobreza e o uso do dinheiro não são a
preocupação primordial do evangelho de João. Os únicos textos que mencionam o
dinheiro também são apresentados pela tradição sinóptica (6:7 e 12:5) ou representam o
estereótipo de que Judas era ladrão (12:6, 13:26). Tendo em vista o teor da nossa
perícope, talvez podemos identificá-la como um indício de que João considera o amor
ao dinheiro como algo típico do traidor, dominado pelo diabo (13:2)15.

3.2.2 – Aspecto Cultural e Religioso

Outro pano de fundo importante para a compreensão do sitz im leben é o contexto


cultural e religioso do evangelho de João. Reinaldo Fabris e Bruno Maggioni apontaram
que no último século, diversos pesquisadores discutiram esses aspectos. Enquanto
alguns têm identificado o quarto evangelho com o universo cultural do helenismo,

14
MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 415.
15
KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João: Amor e Fidelidade. São Paulo: Edições Loyola, 2005,
p. 36.
9

outros o associam com a gnose. Além disso, uma terceira corrente pensa as suas
relações mais aproximadas com o judaísmo. Para esses autores, antíteses presentes no
texto como “carne/ espírito”, “coisas celestes/ coisas terrenas”, “de cima/ de baixo”,
como também o adjetivo “verdadeiro” em oposição “aparente”, são motivos que
parecem ecoar um relativo platonismo popular, que segundo os mesmos, estavam
presentes nos ambientes judaicos da época16.

Além dessas informações, a ênfase no conhecimento como via de salvação e a


apresentação de Deus como luz evidenciaram que os conceitos centrais do evangelho de
João parecem um sincretismo entre platonismo e estoicismo. Visto isto, As antíteses
luz/trevas, verdade/mentira, vida/morte, os grandes símbolos da luz da vida, a
concepção da salvação como conhecimento e diversos outros aspectos apontam para o
gnosticismo. Contudo, os mesmos motivos refletem os conceitos dos judeus
heterodoxos que se opunham ao judaísmo oficial e se retiraram ao deserto na margem
do mar morto. Enfim, os símbolos da luz, da água e da vida, a oposição aos conceitos
messiânicos do judaísmo, a frequente polêmica em torno da Lei e o modo de interpretar
as Escrituras nos faz pensar no judaísmo rabínico.

3. ANÁLISE LITERÁRIA

4.1 – Estrutura do Texto

Conforme enxergamos nos comentários exegéticos de Juan Barreto e Juan Mateo


em sua obra, O evangelho de João17, nossa perícope encontra-se organizada dento da
seguinte configuração:

 13. 18-20 introdução: alusão a traição


 13.21-22: anúncio da traição
 13. 23-26a: pergunta a Jesus sobre a identidade do traidor
 13. 26a-30gesto de Jesus e saída de Judas

16
MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 210.
17
BARRETO, Juan; MATEO, Juan. O Evangelho de São João: grande comentário bíblico. São Paulo:
Paulus, 1998.
10

Compreendendo essa divisão de forma muito semelhante, São Jerônimo diz que
os versos 18 e 20 retomam a possibilidade da traição. Para o teólogo, esta cena aponta
para o cumprimento da palavra de Jesus na crucificação (cf. 8:28). Cabe destacar que o
autor entende o anúncio da traição como uma narrativa muito próxima as histórias
presentes nos evangelhos sinóticos (Mc 14:18; Mt 26:21). Além disso, vale lembrar que
essa é a terceira vez em que vemos Jesus “perturbar-se” à medida que os
acontecimentos da paixão começaram a se desdobrar (11:33; 12:27).

Partindo desse ponto, entre os versos 23-26a, São Jerônimo identifica que a figura
de Judas, o traidor, é contraposta com o aparecimento da figura de João, aquele que é
classificado como “o discípulo amado”. É aqui que o nome de Judas é inserido como o
tomado por satanás. Contudo, o último fragmento do texto é tratado por São Jerônimo
como um acréscimo explicativo que indica o fato dos outros discípulos ainda não
encontrarem-se conscientes do propósito por detrás das ações de Judas

4.2 - Gênero Literário

Segundo Reinaldo Fabris e Bruno Maggioni, existe nesses discursos uma


atmosfera esotérica. Para eles, estas palavras retratam discursos direcionados
exclusivamente aos iniciados, isto é, discursos íntimos. Em outras palavras, são
discursos dirigidos aos que crêem, aos discípulos, não ao mundo. Desse modo, o
objetivo desse recurso é tornar os fiéis (aos quais os discursos se dirigem) conscientes
de sua eleição. Além disso, também nos mostra que os temas aqui desenvolvidos
pertencem ao cerne do ministério cristão (que somente os fiéis são capazes de
compreender), e não à temática periférica aberta a todos e que qualquer um pode
compreender. Todavia, segundo os autores, o eventual parentesco destes discursos
joaneus com os discursos de iniciação da literatura religiosa helenista não é definidor.
Muito mais pesa o parentesco com os discursos da literatura bíblica e judaica que
podemos atribuir ao gênero testamento. Em suas palavras:

J. Munck definiu a presença do gênero “testemunho” no A.T. Este


gênero parece tornar-se mais freqüente na literatura judaica tardia. Eis
os elementos principais que o definem: um personagem a ponto de
morrer reúne toda a família ou o povo e pronuncia um ensinamento
definitivo; grande parte desses ensinamentos consiste em exortações a
observar a Lei, mostrando a vantagem da fidelidade e as desvantagens
da desobediência; mais raramente, o que vai morrer evoca sua própria
vida, tirando dela modelos para o proceder dos seus; e há também,
11

embora não sempre, palavras que predizem o destino do povo nos


últimos dias. O gênero se encontra também no N.T: At 20,17-38; 2Pd;
1Tm 1,12-17;2 Tm18.

5.0 – VOCABULÁRIO

5.1 – Personagens

5.1.1 – Jesus

Nesta perícope Jesus se comove profundamente, pois sabe que será traído por um
dos seus discípulos íntimos (13:21). Destaco que a traição não é obra dos inimigos de
Jesus. Ela se deu justamente entre os mais próximos. Todavia, olhando para o evangelho
joanino percebemos que Jesus recebe dois títulos cristológicos. Em um primeiro
momento Ele é tratado como o “Messias”. Já em um segundo plano ele é intitulado de
“Filho de Deus”. Sublinho que as duas categorias retratam as origens históricas do
cristianismo joanino em círculos judeus-cristãos.

Além disso, no início do evangelho segundo João Jesus é referenciado como


“logos” e “luz”. Dessa forma, o autor informa que Jesus consistia divino antes mesmo
da criação do universo. Em outros termos, antes mesmo de existir Jesus já era Deus na
eternidade.

5.1.2- Judas

Nas refeições festivas, o ato de entregar um pedaço de pão umedecido a alguém


era um sinal especial de carinho. Desse modo, Jesus fornece o pedaço de pão molhado a
Judas Iscariotes, o traidor. Partindo deste ponto, o evangelho dá a entender que Jesus
amou extraordinariamente aquele que o trairá. Judas, porém, recusa o amor sem limites
de Jesus.

É verdade que nesta narrativa não existem dados que revelam se Judas comeu ou
não aquele pão. Simplesmente ele o pegou e saiu. O evangelho segundo João, ao
afirmar que era noite, mostra que Judas se lança inteiramente nas “trevas” que irão
matar Jesus. Nesta perícope Jesus provocou Judas. Conforme diz o evangelista Ele diz:

18
MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 417.
12

“O que você pretende fazer, faça-o logo”. Em síntese, Judas, fazendo a opção pelas
trevas, é classificado como amante do dinheiro, ladrão e traidor19.

5.1.3 – Satanás

Satanás aparece nos evangelhos como o opositor do ministério de Jesus. Nesta


passagem ele se apodera de Judas e o encoraja a atentar contra o Messias.

5.1.4 – Discípulo Amado

Na cena da última ceia, surge um discípulo jamais mencionado pelo nome no


evangelho de João, isto é, o “discípulo que Jesus amava”. Em outros termos, o iniciador
da comunidade do Discípulo Amado (mesma comunidade que gerou os livros de
apocalipse e as cartas de João). Segundo José Bertolini, na época em que o evangelho
foi escrito, essa personagem representou um autêntico discípulo de Jesus: aquele que
ama como Jesus amou20. Cabe ressaltar que, conforme o narrador, o verdadeiro lugar de
quem ama é à direita de Jesus.

5.1.5 – Simão Pedro

Se por um lado o discípulo que Jesus amava aparece ao lado de Jesus, por outro,
Simão Pedro encontra-se longe do seu mestre. Por não amar, Pedro se distancia não só
fisicamente (a ponto de precisar da mediação do Discípulo Amado), mas, sobretudo, do
ponto de vista da solidariedade. Nesse sentido, Simão Pedro está infinitamente longe de
Jesus, pois não é capaz de amar como deveria21.

5.1.6 – Discípulos

O ministério de Jesus foi marcado pelo ato de fazer discípulos. Diferentemente


das escolas rabínicas de seu tempo, Jesus chamava os discípulos independentemente das
suas qualificações. Vale ressaltar que no judaísmo antigo os discípulos que procuravam
seus mestres. Em contrapelo, nos evangelhos é Jesus que vai até os seus. Além disso,
conforme nos lembra o teólogo alemão Joseph Ratzinger, os 12 discípulos
simbolizavam também, em sua numerologia, as 12 tribos de Israel22.

19
BERTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João: o caminho da vida. São Paulo: Paulus Editora,
1994. p. 129.
20
Ibidem, 130.
21
Ibidem, 131.
22
RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: a infância. São Paulo: Editora Platena, 2018.
13

5.2 – Análise Semântica

5.2.1 – pão molhado

Assim como já foi dito acima, Jesus revela o traidor oferecendo um pedaço de pão
molhado. Também já falamos que o pão umedecido era uma sinalização de carinho nos
atos solenes de judeus. Contudo, é preciso saber que o pão molhado também
representava aceitação. Isso significa que Jesus não supõe nenhuma delação. Para
revelar a identidade do traidor, Jesus faz um gesto de amor para com ele, que não só o
não delata, mas também o protege da atitude inquisidora dos discípulos. Em suma, esta
atitude de Jesus para com o traidor constitui-se em norma para a comunidade. Nas
palavras de Juan Barreto e Juan Mateo:

A resposta de Jesus não revela o nome do traidor nem o aponta; não


quer denunciá-lo na presença de todos. Revela quem é somente a este
discípulo por meio de um gesto que significará ao mesmo tempo
aceitação. Jesus continua a sua lição; dissera que é preciso aceitar-se
mutuamente (13,14) e agora indica até que ponto. Não rompe com
aquele que o trairá, fazendo-se instrumento da sua morte: não veio
para julgar, mas para salvar (12:47). Com o pão, oferece sua acolhida
até ao último momento, oferta-se a si mesmo; brinda-lhe sua amizade
até o fim. Oferecer a um comensal um pedaço de pão molhado na
salsa ou um pedaço de alimento era sinal de deferência 23.

5.2.2 – noite

A expressão “era noite” não possui somente um sentido dramático. Na realidade


ela se liga a todo simbolismo de luz e trevas no livro dos sinais (cf. 9:4: Vem à noite). O
responsável da morte que vai embora na noite é um que prefere as trevas à luz, porque
suas obras são malignas (3:19). Volta assim ao terreno também o tema da krisis, que é
subjecente a todo o Livro dos Sinais. É a krisis que sempre tem provocado a divisão
entre os homens com base na atitude assumida diante das palavras e ações de Jesus24.

6.0 – HERMENÊUTICA

6.1 – Ideia Central do Texto

A ideia central deste texto encontra-se disponível em várias etapas desse trabalho.
Visto isto, podemos discerni-la a partir de alguns aspectos gerais. Em Jo 13: 18-30,
23
BARRETO, Juan; MATEO, Juan. O Evangelho de São João: grande comentário bíblico. São Paulo:
Paulus, 1998. p. 582.
24
MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola, 1998. p. 416.
14

vimos que, para se cumprir a profecia, Jesus é traído por um dos doze. Logo, em
resposta a essa traição, Ele não delata o traidor aos seus companheiros. Na realidade,
diante da possibilidade da vingança, Jesus oferece a sua amizade. Desse modo, podemos
perceber que a traição de Judas terá para Jesus a ocasião de demonstrar que o seu amor
é mais forte do que o ódio dos seus inimigos. Em linhas gerais, pessoalmente, entendo
essas afirmações como a ideia central do texto.

6.2 – Aplicação Pastoral

Nós, brasileiros, atualmente atravessamos um dos períodos mais complexos da


nossa história. Cientistas Sociais, Psicólogos e outros dizem que nossa sociedade
encontra-se adoecida pela polarização. Em linhas gerais, famílias, ambientes de
trabalho, escola e igreja tornaram espaços de conflitos morais e ideológicos.

Na esteira desse mal contemporâneo, vimos o nascimento daquilo que se


convencionou chamar de “cultura do cancelamento”. Um comportamento social
expresso através do embate e da anulação do outro. Partindo disso, aprendemos que o
inimigo é aquele que enxergamos como o “outro”, ou seja, aquele que pensa, se
comporta e fala a contrapelo de nós mesmos.

Esse quadro nos afeta, uma vez que todos nós ou cancelamos os outros ou somos
cancelados. Afinal, somos fruto do nosso tempo. Contudo, como cristãos
contemporâneos precisamos responder uma pergunta: como refletir Jesus numa
sociedade de canceladores? Em resumo, acredito que essa passagem contida em Jo
13:18-30 é imprescindível para apontar a nossa forma de ser neste tempo.

No texto que estudamos, Jesus aponta o traidor. Ele não o expõe. Ele não o agride.
Ele não o anula. Na realidade, Jesus responde a traição com cumprindo o seu propósito
(não somente dando mais alguns passos para a Cruz, como também respondendo as
ofensas com vida e esperança). Neste texto, vimos que Jesus ama na iminência do ódio.
Visto isto, entendo que o escândalo do amor estendido na relação entre Jesus e Judas é
imprescindível para manifestação da nossa fé no tempo presente.

7.0 – CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho discutimos os aspectos gerais do evangelho segundo


João. Vimos um debate acerca da sua autoria, datação e origem. A partir disso, fomos
ao contexto vital do texto, isto é, o stiz in leben. Ao levantar dados acerca do
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vocabulário teológico e dos personagens compreendemos o chão da passagem que nos


possibilitou uma aplicação pastoral coerente com a sua mensagem. Em linhas gerais,
elaborar um comentário exegético sobre Jo 13: 18-30 foi muito importante para a
compreensão das possibilidades inauguradas pelas regras exegéticas.

8.0 - REFERÊNCIAS

BARRETO, Juan; MATEO, Juan. O Evangelho de São João: grande comentário


bíblico. São Paulo: Paulus, 1998.

BERTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João: o caminho da vida. São Paulo:
Paulus Editora, 1994.

BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Sociedade Religiosa Vida


Nova e Associação Religiosa Editora Mundo Cristão, 1987.

KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João: Amor e Fidelidade. São Paulo: Edições
Loyola, 2005.

KUMMEL, W. Introdução ao Novo Testamento. 2. Ed. São Paulo: Paulus, 1997.

MAGGIONI, Bruno; FABRIS, Reinaldo. Os Evangelhos (II). 3. ed. São Paulo: Loyola,
1998

RATZINGER, Joseph. Jesus de Nazaré: a infância. São Paulo: Editora Platena, 2018.

ZUMSTEIN, Jean. O Evangelho Segundo João. In: MARGUERAT, Daniel (Org.).


Novo Testamento: história, escritura e teologia. São Paulo: Loyola, 2015,

WEGNER, UWE. Exegese do Novo Testamento – Manual de Metodologia. 7. Ed.


São Leopoldo: Sinodal, 2012.

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