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Missionariedade Bíblica

Com Padre André Luiz


Método jesuíta da Leitura Orante da Bíblia

Ajudará muito a ruminar, meditar e transformar em oração e práxis


a Palavra de Deus.

❖ Leia o texto do Evangelho, após fazer um silêncio interior


acalmando-se;
❖ Leia o comentário bíblico enviado;
❖ Releia o texto bíblico, anotando palavras e trechos não
conhecidos (poderemos juntos tirar as dúvidas);
❖ Relembre (pode ser relendo) o texto imaginando a cena;
❖ Se tiver algo diferente ou vc entrou na cena, anote-a (também
poderemos falar sobre se lhe for oportuno);
❖ Encerre com uma oração;
EG 13
Evangelho Jo 13, 31-33a.34-35

O Evangelho desta celebração tem uma aparência sapiencial em


algumas de suas construções. Ele começa pela indicação da saída de
Judas do cenáculo, referência velada à traição desse discípulo ao, até
então, seu mestre. Até esse momento, não há nada de novo ou de
intrigante. A sequência do texto, porém, traz uma mudança na
expressão e no conteúdo.
A fala de Jesus parece um enigma. O texto é construído com base
nestas palavras: glorificar, Filho do Homem e Deus. A primeira frase
está construída com o tempo passado, e a segunda com o futuro. O
tema da glória, no Evangelho de João, ocupa praticamente toda a
segunda parte e indica que, para o evangelista, a glorificação é uma
exaltação “às avessas”, pois remete à paixão do Cristo.
A frase no passado indica que o primeiro ato – no caso, a traição de
Judas – já iniciou o processo de glorificação do Filho do Homem e,
nele, a do próprio Deus que o enviou. A segunda, no futuro, aponta
para o ápice dessa glorificação, que ainda será narrada: a cruz.
Novamente, a glorificação do Filho é também a de Deus. Deus e seu
enviado estão juntos no momento da exaltação na cruz.
O texto continua e mostra que o Senhor, sabendo que lhe resta
pouco tempo com os seus, se despede deles, deixando a seus filhinhos
uma “herança espiritual”: o novo mandamento do amor. O amor com
que eles deverão amar-se está alicerçado no amor com que o Cristo
os amou, e esse amor será também o critério para que se saiba que
eles são discípulos de Cristo.
Dicionário:
- Sapiencial: Diz-se do ou cada um dos livros da Sagrada
Escritura que contêm sobretudo sentenças morais (Provérbios,
Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Sabedoria, Eclesiástico).

Anotações:
● Jesus amou a Cruz.
● Viver o mandamento do amor no mundo intolerante de hoje.
● A igreja além de catequizar, tem que viver os ensinamentos.
● Único mandamento de Cristo.
EG 16
Evangelho Jo 20, 19-23

O evangelho proposto pela liturgia na solenidade de Pentecostes é Jo


20, 19-23, texto que relata a primeira manifestação do Senhor
Ressuscitado aos discípulos, ao anoitecer do primeiro dia da semana,
ou seja, o domingo mesmo da páscoa. Esse texto já foi lido na liturgia
dominical deste tempo pascal, como parte do evangelho do segundo
domingo: Jo 20, 19-31. Embora estejamos de fato há cinquenta dias
da páscoa, o evangelho de hoje nos remete ao dia mesmo da
ressurreição.
Pentecostes era uma das três maiores festas do calendário litúrgico
judaico, juntamente com as festas da páscoa e das tendas. Era
celebrada cinquenta dias após a páscoa. Na Bíblia hebraica é chamada
de “festa das semanas”, pois contavam-se sete semanas após a
páscoa, mais um dia, o que totalizava cinquenta dias. Por isso, ganhou
o nome de “pentecostes” (em grego: πεντηκοστή – pentecoste) a
partir da dominação grega, cujo significado é simplesmente
quinquagésimo dia (cf. Tb 2,1; 2Mc 12,32). Como todas as festas
judaicas, também Pentecostes tem suas origens ligadas à vida
agrícola do povo; era a festa da colheita. Os peregrinos iam a
Jerusalém agradecer pela colheita, levando os melhores grãos e
frutos da terra como oferta, em gratidão a Deus.
Com o passar do tempo, essa festa foi perdendo sua relação com a
agricultura, e foi ganhando um novo significado, com uma conotação
mais religiosa. O motivo da celebração passou, então, a ser o
agradecimento a Deus pelo dom da Lei ao seu povo. Na época de
Jesus e dos apóstolos, esse novo sentido já estava consolidado: os
judeus de todas as partes do mundo, conforme as condições, iam a
Jerusalém, para agradecer a Deus pelo dom da Lei dada através de
Moisés. Lucas, autor dos Atos dos Apóstolos, se serve desse
contexto e faz coincidir o envio do Espírito Santo com a festa
judaica de pentecostes, como artifício literário e teológico, para
ensinar às suas comunidades que a nova lei é o Espírito Santo. Para
permanecer fiel a Jesus e ao seu Evangelho, a comunidade cristã já
não necessita das prescrições da Lei de Moisés, deve apenas estar
sensível e aberta aos dons do Espírito Santo.
Ao contrário de Lucas, João faz de tudo para que os referenciais da
sua comunidade não coincidam com os esquemas litúrgicos judaicos.
Para João, inclusive, as festas dos judeus em Jerusalém sempre
foram muito conflituosas para Jesus; eram sempre momentos de
confronto e ameaça (cf. 2,13ss; 5,1.18; 7,1ss; 10,31; 11,56). Por isso,
João situa a transmissão do Espírito Santo por Jesus aos discípulos,
no mesmo dia da ressurreição. Embora a Igreja tenha adotado o
esquema de Lucas, a perspectiva da comunidade joanina tem mais
sentido e responde melhor às necessidades dos discípulos, como
mostra o Evangelho de hoje: “Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da
semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar
onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio
deles, disse: A paz esteja convosco!” (v. 19). Ora, amedrontada e sem
poder de ação, essa comunidade não teria condições de esperar
cinquenta dias para receber o Espírito Santo. É somente pela força
do Espírito Santo que as portas são abertas e os dons comunicados
pelo Ressuscitado podem ser experimentados por todos.
A comunidade dos discípulos estava em crise, profundamente
abalada. Até aquele momento, somente Maria Madalena e o Discípulo
Amado tinham convicção da ressurreição (cf. Jo 20, 8.16-18). A
morte de Jesus na cruz foi um alerta para os discípulos: quem
continuasse propagando ideias como as dele, poderia terminar da
mesma forma. Por isso, estavam as portas trancadas, devido ao medo.
Por “medo dos judeus” entende-se o medo das autoridades, e não de
todo o povo; é típico de João usar o termo “judeus” referindo-se às
autoridades de Jerusalém (cf. Jo 9,22; 12,42; 16,16). Apesar do
medo, o fato de estarem reunidos é um sinal de esperança. Porém,
não poderiam continuar naquela situação. O medo impede a missão, as
portas fechadas bloqueiam o anúncio da Boa Nova.
Ao medo dos discípulos, o Ressuscitado responde com o dom da sua
paz, não como mera saudação, mas como plenitude de vida e
equilíbrio, o bem-estar da pessoa em todas as suas dimensões,
condição indispensável para a felicidade. Jesus comunica a sua paz
estando no meio, quer dizer, no centro da comunidade. Para que os
dons do Ressuscitado sejam realmente acolhidos, é necessário que a
sua centralidade na comunidade seja respeitada; isso vale para todos
os tempos e lugares. Para uma comunidade viver realmente os
propósitos do Evangelho é necessário, antes de tudo, que no centro
do seu existir esteja o Ressuscitado e somente Ele, pois é Ele o único
ponto de referência e fator de unidade. Por isso, ao se manifestar, o
Ressuscitado aparece sempre no meio.
Na continuidade da experiência, diz o texto que Jesus “mostrou-lhes
as mãos e o lado” (v. 20a). Ao mostrar as mãos e o lado, Jesus mostra
a continuidade entre o Ressuscitado e o Crucificado; se trata da
mesma pessoa. O Ressuscitado traz as marcas do Crucificado, porque
cruz e glória não se separam. Nas mãos e no lado de Jesus está a sua
identidade de quem viveu para servir e amar. As mãos são símbolo e
recordação do serviço e de todo o bem que Jesus fez: são as mãos
que tocaram em leprosos, mesmo sendo proibido (cf. Mc 1,40), mãos
que acariciaram crianças, gerando revolta nos discípulos (cf. Lc
18,15-16; Mt 19,13-15), mãos que abriram olhos de cegos (cf. Jo 9,6),
mãos que curaram enfermos e expulsaram demônios (cf. Lc 4,40;
13,13), mãos que lavaram os pés dos discípulos (cf. Jo 13,1-12); enfim,
são mãos que promoveram a vida e combateram o mal.
As marcas da cruz não apagaram a força das mãos de Jesus. Essas
mãos continuam à disposição da comunidade, e a comunidade, por sua
vez, tem a missão de fazer no mundo o mesmo que aquelas mãos do
Ressuscitado fizeram, ou seja, servir infinitamente e sem distinção.
Também o lado, ou seja, o peito aberto, tem o mesmo significado de
continuidade: é o mesmo coração com o qual Ele amou-os
infinitamente (cf. Jo 13,1), e continua amando da mesma forma. As
mãos e o lado de Jesus são a síntese da sua vida, da sua mensagem e
da sua práxis. Ele doa o Espírito Santo aos discípulos para que suas
mãos e o seu coração continuem presentes no mundo servindo e
amando de modo ainda mais eficaz. Por isso, “os discípulos se
alegraram por verem o Senhor” (v. 20b). Como fruto da paz
transmitida pelo Ressuscitado, a alegria deve ser também uma das
características da comunidade que deve viver para amar e servir.
A paz como bem-estar do ser humano é novamente oferecida:
“novamente Jesus disse: A paz esteja convosco” (v. 21a) A passagem
do medo à alegria poderia tornar-se uma simples euforia, por isso a
paz é doada novamente para equilibrar a comunidade. Aqui, a paz não
significa alívio ou tranquilidade, mas sinal de liberdade e vida plena; é
a capacidade de assumir livremente as consequências das opções
feitas. Tendo plenamente comunicado a paz como seu primeiro dom, o
Ressuscitado os envia, como fora ele mesmo enviado pelo Pai: “Como o
Pai me enviou, também eu vos envio” (v. 21b). Ao contrário de Mateus
e Lucas que determinam as nações e até os confins da terra como
destinos da missão (cf. Mt 28,19; Lc 24,47; At 1, 8), em João isso
não é determinado. Jesus simplesmente envia. Sem diminuir a
importância da missão em sua dimensão universal, o mais importante
para o Quarto Evangelho é a comunidade. É essa a primeira instância
da missão, porque é nessa onde estão as situações de medo, de
desconfiança, de falta de entusiasmo, por isso é a primeira a
necessitar da paz e do Espírito do Ressuscitado.
Jesus tinha prometido o Espírito Santo aos discípulos na última ceia
(cf. Jo 14,16.26; 15,26). Agora, a promessa é cumprida: “E depois de
ter dito isso, soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (v.
22). Aqui, o evangelista usa o mesmo verbo empregado no relato da
primeira criação do ser humano: “O Senhor modelou o ser humano
com a argila do solo, soprou-lhe nas narinas um sopro de vida, e o ser
humano tornou-se vivente” (Gn 2,7). Com isso, o evangelista quer
dizer que está sendo realizada uma nova criação. O verbo soprar (em
grego: έμφυσάω – emfysáo) significa doação de vida. Assim, podemos
dizer que Jesus recria a comunidade e, nessa, a humanidade inteira.
Ao receber o Espírito, a comunidade se torna também comunicadora
dessa força de vida. É o Espírito quem mantém a comunidade alinhada
ao projeto de Jesus, porque é Ele quem faz a comunidade sentir,
viver e prolongar a presença do Ressuscitado como seu único centro e
fundamento, colocando à disposição da humanidade mãos e coração
para servir e amar continuamente.
O Espírito Santo garante responsabilidade à comunidade, e não
propriamente poder: “A quem perdoardes os pecados eles lhes serão
perdoados; a quem não perdoardes, eles lhes serão retidos” (v. 23). A
responsabilidade da comunidade cristã é reconciliar o mundo com
Deus, levar a paz e o amor do Ressuscitado a todas as pessoas, de
todos os lugares e em todos os tempos, fazendo o bem como Ele
mesmo fez. A comunidade cristã tem essa grande missão: fazer-se
presente em todas as situações para, assim, tornar presente também
o Ressuscitado com a sua paz, suas mãos e seu coração; e é o Espírito
Santo quem a habilita a fazer isso. Não se trata, portanto, de poder
para determinar se um pecado pode ou não pode ser perdoado. É a
responsabilidade da obrigatoriedade da presença cristã para que, de
fato, o mundo seja reconciliado com Deus.
Movida pelo Espírito Santo, a comunidade tem a responsabilidade de
levar misericórdia de Deus a todas as realidades, para que toda a
humanidade seja recriada e, assim, o pecado seja definitivamente
retirado do mundo (cf. Jo 1,29). João, o batista, apontou para Jesus
como o responsável por fazer o pecado desaparecer do mundo. Agora,
é Jesus quem confia à sua comunidade de discípulos essa
responsabilidade. Os pecados são perdoados à medida em que o amor
de Jesus vai se espalhando pelo mundo, quando seus discípulos se
deixam conduzir pelo Espírito Santo. O que perdoa mesmo os pecados
é o amor; logo, ficam pecados sem perdão quando os discípulos e
discípulas de Jesus deixam de comunicar esse amor. Em outras
palavras, os pecados ficarão retidos quando houver omissão da
comunidade.
Deixando-se conduzir pelo Espírito Santo, a comunidade atualiza e
prolonga, no tempo e no espaço, a missão única de Jesus de revelar o
amor de Deus a todas as pessoas. O Espírito Santo torna as mãos e o
coração de Jesus sempre presentes no mundo, através dos seus
seguidores.
Dicionário:
- Práxis: prática; ação concreta.

Anotações:
● O Espírito Santo é soprado no dia da Páscoa, já a festa de
Pentecostes ocorre 50 dias após o Domingo da Ressurreição.
● Atos dos Apóstolos: “Evangelho” do Espírito Santo.
● Papa Francisco nomeia cardeal dalit/intocável (termo usado
para designar as pessoas que, dentro dos costumes hindus
baseados nas leis de Manu, foram expulsos de sua casta. Isto é,
pessoas que cometeram algum delito grave, como roubo,
estupro, assassinato… Filhos e netos de dalits também são
dalits, pois o karma de pais e filhos é interligado).
● Comunidade Eclesial de Base - Como viver de modo missionário?
● Batismo do Espírito Santo.
EG 17
Evangelho Jo 16, 12-15

O texto evangélico proposto para a liturgia da solenidade da


Santíssima Trindade, neste ano C, é Jo 16, 12-15. Como de costume, a
nossa reflexão se concentra exclusivamente no texto bíblico, sem
entrar nas questões relativas ao dogma trinitário propriamente. Hoje
é a última vez em que lemos um trecho do Evangelho segundo João na
liturgia dominical deste ano litúrgico, após uma sequência de leituras
durante todo o tempo pascal, com exceção da solenidade da
Ascensão, quando lemos um texto de Lucas (cf. Lc 24,46-53).
Portanto, já estamos familiarizados com o Quarto Evangelho, embora
os enigmas que lhe são próprios continuem indecifráveis.
O contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia,
ambientada no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com
seus discípulos, às vésperas da páscoa. Como já afirmamos em outras
ocasiões, a ceia no Quarto Evangelho não é apenas o consumo de
alimentos e nem a vivência de um rito, tampouco uma mera
confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é a auto revelação
de Jesus, é o momento mais forte da sua catequese. Foi na ceia que
Jesus apresentou o seu “testamento”, como é chamado o seu longo
discurso de despedida. A centralidade da ceia em João é evidenciada
pelo espaço que ocupa: são cinco capítulos (13 – 17), totalizando cento
e cinquenta e cinco versículos, o que corresponde a um quarto de
todo o Evangelho. Esse momento foi iniciado com o lava-pés (cf.
13,1-15), e continuado pelo discurso de Jesus, com algumas
interrupções dos discípulos (cf. 13,36-38; 14,5.8.22).
Jesus sabia do que estava para acontecer: em pouco tempo, seria
condenado à morte; os discípulos também imaginavam o que estava
para acontecer, embora não tivessem ainda tanta clareza. Havia um
clima de tensão e medo entre os discípulos, o que era inevitável para
as circunstâncias, por isso Jesus procurou acalmá-los em diversos
momentos (cf. 14,1.27; 16,6.22). Por cinco vezes, durante o discurso,
Jesus promete enviar o Espírito Santo quando retornar para o mundo
do Pai (cf. 14,16-17.26; 15,26; 16,7-8.13), de modo que os discípulos
não permanecerão sozinhos, pois através do Espírito, a presença de
Jesus se eternizará no meio deles. O Evangelho de hoje contém a
quinta e última promessa.
Durante o seu ministério, Jesus apresentou todo o seu programa aos
discípulos, o seu “Evangelho”, compreendendo palavras e sinais; não
escondeu nada, conforme Ele disse nesse mesmo discurso: “já não vos
chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu Senhor, mas
vos chamo de amigos, porque tudo o que ouvi de meu Pai vos dei a
conhecer” (cf. Jo 15,15). Ser discípulo(a) de Jesus é entrar no seu
círculo de profunda intimidade, é ser contado entre os seus amigos,
de quem Ele nada esconde. A princípio, o primeiro versículo de hoje
parece contradizer a afirmação acima: “Tenho ainda muitas coisas a
dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender agora” (v. 12).
Jesus já disse tudo; não há novas coisas para dizer. Aqui, Ele se
refere à capacidade de compreensão dos discípulos.
Muita coisa da vida e da mensagem de Jesus ainda não tinha sido
assimilada pelos discípulos, porque a chave de interpretação da sua
vida é a ressurreição. Na verdade, aqui o evangelista nem usa o verbo
compreender, empregado equivocadamente pela tradução litúrgica,
mas o verbo “suportar” (em grego: βαστάζω – bastázo); a tradução
mais justa, portanto seria: “não sois capazes de suportar agora”.
Antes da ressurreição e sem o dom maior do Ressuscitado, o Espírito
Santo, os discípulos não tem força para suportar a sua mensagem de
libertação e vida em plenitude, sobretudo porque essa compreende a
passagem pela cruz, como consequência de um amor incondicional.
Para compreender e suportar o peso da mensagem de Jesus,
sobretudo a cruz, os discípulos necessitam de uma força especial, de
uma energia que os tire do medo e do comodismo, e Jesus garante
que eles receberão essa força: “Quando porém, vier o Espírito da
Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade. Pois ele não falará por si
mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido; e até as coisas futuras vos
anunciará” (v. 13). A Verdade é o próprio Jesus, como Ele mesmo se
auto intitulara antes: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (14,6).
A “Verdade plena”, portanto, é o Cristo glorificado no mundo do Pai,
realidade que só pode ser alcançada por quem se deixa conduzir pelo
Espírito; é o “conjunto da obra”: da preexistência do Verbo (cf. Jo
1,1) à encarnação (cf. Jo 1,14), passando pela cruz, até o retorno para
o mundo do Pai.
A função do Espírito é manter a comunidade alinhada ao projeto de
Jesus, que é a Verdade em pessoa. As “coisas futuras” que serão
anunciadas não são novas revelações ou visões; significa a capacidade
de ler os eventos futuros à luz da mensagem de Jesus. A comunidade
cristã – Igreja – sempre encontrará situações novas e
surpreendentes ao longo da história. Independente da época, deverá
interpretar tais circunstâncias à luz de tudo o que Jesus ensinou. Só
é possível fazer isso deixando-se conduzir pelo Espírito da Verdade.
Guiada pelo Espírito Santo, a comunidade mantém a atualidade da
mensagem de Jesus em qualquer que seja a situação e a época
histórica. Continuando, Ele afirma: “Ele me glorificará, porque
receberá do que é meu e vo-lo anunciará” (v. 14). Ora, o Espírito irá
iluminar os discípulos para compreenderem e viverem o que Jesus já
disse. Assim como Jesus glorificou o Pai fazendo a sua vontade,
também o Espírito glorifica Jesus conduzindo a comunidade em
conformidade com o Evangelho. Ao contrário dos sinóticos, que
prevêem uma vinda gloriosa de Jesus no último dia, João não segue
essa linha. Para o autor do Quarto Evangelho, a glória de Jesus é que
Ele mesmo esteja permanentemente presente na comunidade através
do Espírito.
A promessa do Espírito é concluída com uma afirmação muito
profunda que enfatiza a sua comunhão de Jesus com o Pai: “Tudo o
que o Pai possui é meu. Por isso, disse que o que ele receberá e vos
anunciará, é meu” (v. 15). O Pai é a fonte originária de tudo. O que
Jesus tem a oferecer ao mundo, o amor ilimitado, pertence ao Pai;
mas como Ele e o Pai são Um (cf. Jo 10,30), tudo o que é do Pai é
também seu. Logo, o que o Espírito recebe de Jesus, recebe também
do Pai. Aqui, neste último versículo temos, de fato, um eco trinitário
bastante evidente, pois revela a comunhão dos três: o Espírito
comunica à comunidade tudo o que recebe de Jesus, e tudo o que
Jesus concede ao Espírito recebeu do Pai.
A presença perene de Jesus na comunidade, através do Espírito, é
também presença do Pai. É essa relação que torna sempre novo e
atual tudo o que Jesus viveu e ensinou. Deixar-se conduzir pelo
Espírito Santo é entrar também nessa comunhão profunda com o Pai
e o Filho.
- Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues (Diocese de Mossoró, RN)
Dicionário:
- Dogmas trinitário : Deus como três pessoas consubstanciais,
expressões ou hipóstases: o Pai, o Filho e o Espírito Santo; um
Deus em três pessoas. As três pessoas são distintas, mas são
uma “substância, essência ou natureza”.
- Sinóticos: Evangelhos sinópticos de Mateus, Marcos e Lucas por
conterem uma grande quantidade de histórias em comum, na
mesma sequência, e algumas vezes utilizando exatamente a
mesma estrutura de palavras.
EG 18
Evangelho Lucas 9, 18-24

Com a retomada do tempo comum, também retomamos a leitura do


Evangelho segundo Lucas, como prescreve a liturgia para o ano C,
embora no próximo domingo já tenhamos uma nova interrupção,
devido à solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo. Neste domingo, o
texto proposto é Lc 9,18-24. Embora curto, esse texto possui uma
riqueza extraordinária; concentra muitos ensinamentos importantes
para a compreensão de todo o Evangelho segundo Lucas e para o
discipulado de Jesus em todos os tempos. Podemos dividi-lo em três
pequenas unidades temáticas, embora interligadas: a) a pergunta de
Jesus sobre a sua própria identidade, cuja resposta mais completa é
a confissão de Pedro (vv. 18-21); b) o primeiro anúncio da paixão (v.
22); as exigências para o discipulado (vv. 23-24).
A nível de contexto, é necessário recordar alguns elementos
fundamentais para uma boa compreensão do texto. O capítulo nono
de Lucas tem uma importância singular no conjunto da obra, pois
marca a transição entre as duas grandes seções do Evangelho, que
são, respectivamente, o ministério de Jesus na Galileia (Lc 4,14 –
9,50) e o longo caminho em direção a Jerusalém (Lc 9,51 – 19,44).
Esse capítulo foi iniciado com o envio missionário dos Doze, de
povoado em povoado para proclamar o Reino de Deus e libertar
(curar) as pessoas (cf. 9,1-6); a repercussão da missão foi tanta que
chegou aos ouvidos de Herodes, deixando-o confuso (cf. 9,7-9). O
retorno dos discípulos foi marcado pelo entusiasmo, fazendo
aumentar ainda mais a multidão que seguia Jesus, culminando com o
episódio da partilha dos pães (cf. 9,10ss).
A situação criada desde o envio dos Doze até a partilha dos pães
levou Jesus à reflexão. Ele não estava preocupado com a sua imagem
ou reputação, porém se preocupava se a sua mensagem estava sendo
bem compreendida, sobretudo pelos discípulos. Os momentos de
reflexão de Jesus, em Lucas, são marcados pela oração, quando Ele
expressa a sua intimidade e confiança no Pai. Para o autor do terceiro
Evangelho, todos os momentos marcantes da vida de Jesus são
precedidos pela oração (cf. 6,12; 9,28; 11,1-2; 22,40ss). A primeira
afirmação do texto de hoje, portanto, é um indicativo da importância
que esse episódio tem: “Jesus estava rezando num lugar retirado, e
os discípulos estavam com ele. Então Jesus perguntou-lhes: “Quem
diz o povo que eu sou?” (v. 18). A oração é o meio para cultivar a
intimidade com o Pai. Para Jesus, as relações com Deus e com o
próximo são inseparáveis. Por isso, da oração, que é intimidade com o
Pai, Ele passa a um diálogo confidencial, sincero e transparente com
os discípulos, seus amigos.
Como os discípulos já tinham feito um longo percurso com Ele, é de se
esperar que tivessem uma visão mais aprofundada do que o povo. Por
isso, “Jesus perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Pedro
respondeu: “O Cristo de Deus” (v. 20). Da resposta dos discípulos,
Jesus sabia como tinha sido o anúncio deles. Pedro responde em nome
de todo o grupo; a sua resposta é coletiva e sintetiza a opinião dos
Doze. Que o povo conhecesse Jesus apenas superficialmente, seria
tolerável, mas dos discípulos espera-se que o conheçam
verdadeiramente. A resposta de Pedro é correta, mas também não é
suficiente; Jesus é, de fato, o Cristo; confessá-lo assim é
reconhecê-lo como o messias esperado. Ele é o messias sim, mas não
conforme as expectativas do seu povo. O messias esperado pelos
judeus era um personagem glorioso, um guerreiro nacionalista, alguém
que iria restaurar o reino davídico-salomônico com o uso da força e
da violência. Jesus não veio para restaurar a realeza em Israel, mas
para instaurar o Reino de Deus. Sua mensagem não é direcionada a
um povo apenas, mas a toda a humanidade.
Conhecendo a mentalidade dos discípulos, “Jesus proibiu-lhes
severamente que contassem isso a alguém” (v. 21). É importante
reconhecer a relevância dessa “proibição” para o discipulado de
outrora e de hoje. Jesus não manda somente anunciar; manda
também calar. A comunidade deve procurar todos os meios eficientes
para o anúncio do Reino chegar a todas as pessoas e em todos os
lugares, deve até pregar sobre os telhados (cf. Lc 12,3), mas quando
o anúncio é distorcido, quando há proselitismo, quando há pretensões
de glória e poder, é necessário calar-se. O desejo de glória e poder
estava implícito na resposta de Pedro. Por isso, Jesus proibiu de
anuncia-lo daquela forma. A urgência da evangelização, em qualquer
época, não pode levar a comunidade a anunciar o Evangelho de
qualquer forma, sem antes conhecê-lo em profundidade. Anunciar
Jesus distorcendo ou omitindo a essência libertadora da sua
mensagem é mais danoso do que o silêncio.
Diante da compreensão ainda não muito clara que os discípulos tinham
do seu messianismo, Jesus acrescentou, alertando-os: “O Filho do
Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos
sacerdotes e doutores da Lei, deve ser morto e ressuscitar no
terceiro dia” (v. 22). A expressão “Filho do Homem” nos evangelhos
sinóticos (Mt; Mc; Lc) significa a humanidade autêntica de Jesus;
mesmo sendo o Filho de Deus, Ele viveu intensamente a condição
humana, inclusive o sofrimento e a morte. Aqui, Jesus antecipa o seu
destino dramático, fazendo o primeiro dos três anúncios da paixão
(cf. 9,22; 9,43-45; 18,31-34). Esses anúncios são formas de dizer que
Ele não é um Messias conforme as expectativas do povo e da religião.
Um messias sofredor era inadmissível para a tradição. Ele deve
morrer porque levará a cumprimento o projeto do Pai. Não é a
vontade do Pai que seu Filho seja assassinado; a vontade de Deus é
que seu Reino se instaure na terra, mesmo que isso custe o sangue do
seu Filho. A morte de Jesus na cruz, portanto, é fruto da cobiça e da
maldade humana, sobretudo das lideranças religiosas; mas o Pai
reverterá essa situação em salvação para a humanidade, com a
ressurreição. Para Lucas, os responsáveis pela morte de Jesus são as
autoridades religiosas.
Tendo esclarecido que não é um messias conforme as expectativas do
povo, Jesus esclarece as exigências para o seu seguimento. Ele está
terminando o seu ministério na Galileia; em pouco tempo irá iniciar o
caminho para Jerusalém, onde viverá o drama da paixão. Para
continuar no seu seguimento, é necessário que os discípulos tenham
clareza do destino e dos riscos que estão correndo, como discípulos
de um messias ao revés. Por isso, o esclarecimento: “Depois Jesus
disse a todos: “Se alguém me quer seguir, renuncie a si mesmo, tome
sua cruz a cada dia, e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, vai
perde-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, esse a salvará”
(vv. 23-24). Antes de tudo, Jesus deixa claro que o discipulado é uma
adesão pessoal e livre: “se alguém me quer seguir”; Ele não obriga e
nem impõe; apenas propõe.
Seguir Jesus exige rupturas. A primeira ruptura é com a própria
pessoa. Renunciar a si mesmo não significa odiar-se, mas é deixar de
lado o egoísmo e todas as convicções pessoais que não estão em
sintonia com a mensagem libertadora do Evangelho; pretensões de
poder, conquista e bem-estar pessoal, devem ser deixadas de lado. A
cruz de cada dia corresponde às consequências de tal escolha. A
cruz, como a mais temida das penas na época, era sinal de perigo; com
essa afirmação, Jesus deixa claro que os seus discípulos, à medida
em que viverem o Evangelho com fidelidade, estarão em perigo
constante, pois as opções do Evangelho contradizem os pretensões
dos detentores de poder deste mundo.
Somos convidados hoje, de modo especial, a procurar conhecer cada
vez mais a identidade autêntica de Jesus, para poder continuar no
seu seguimento. Segui-lo é confrontar-se com as estruturas do
mundo que impedem a realização, desde já, do Reino de Deus. O
seguimento e o anúncio devem ser frutos de uma relação de
intimidade com Ele e com o Pai. Sem convicção e conhecimento da sua
pessoa, o anúncio tende a ser distorcido. É preciso romper com
estruturas e mentalidades para continuar o seu seguimento.
● Gênesis - Deus Criador; Êxodo - Deus Libertador; Messias -
Guerreiro, libertador;
● Proposta de amor transformador e a perseguição;
● Mentalidade diferente dos discípulos;
● Religioso com fé x sem fé; Jesus é proposta de vida, não ideias.
● El Salvador - Dom Oscar Romero
● Chamado da Cruz e as consequências
● Vocação é única: seguir Jesus, cada um com seus dons e
carismas.
● São Francisco de Assis
● O testemunho precisa ser visto, e não o mérito de quem o viveu.
EG 19
Evangelho de Lucas 9, 51-62

O texto situa o exato momento em que Jesus toma a firme resolução


de ir a Jerusalém. Inicia-se o “êxodo” de Jesus, cujo principal
objetivo é educar seus discípulos, abrindo-lhes os olhos a respeito
das condições e consequências do seu seguimento. No texto do
domingo passado (Lc 9,18-24), os discípulos, por meio de Pedro,
haviam declarado a Jesus que ele era o “Messias de Deus”. Não
sabiam, porém, o verdadeiro significado dessas palavras. A concepção
triunfalista de messianismo predominava em sua mente. Isso já havia
ficado evidente pelo tipo de discussão que tiveram logo depois da
confissão de Pedro: quem deles seria o maior? (9,46-48). Fica
evidente também pela atitude de Tiago e João diante da hostilidade
dos samaritanos. Estes são inimigos ferrenhos dos judeus.
Certamente os dois mensageiros que Jesus havia enviado à sua
frente deviam ter preparado os ânimos dos samaritanos. Parece,
todavia, que fracassaram. O que disseram e como fizeram? O fato é
que sua missão não foi eficaz. Jesus repreende a Tiago e João e
dirige-se para outro lugar (v. 51-56).
No caminho, são descritas três espécies de vocações. Nelas os
discípulos devem reconhecer-se. Em cada uma delas, Jesus define
quais devem ser as verdadeiras atitudes dos seus seguidores e
seguidoras. O texto é elaborado de tal modo, que situa no centro um
chamado feito diretamente por Jesus. A primeira e a terceira
personagens desejam seguir Jesus por iniciativa própria. As três são
personagens sem nome e, portanto, representativas de todas as
pessoas discípulas de Jesus. Lucas quer enfatizar as exigentes
condições para o seguimento.
A primeira demonstra disposição incomum: “Eu te seguirei para onde
quer que tu fores” (v. 57). A expressão faz lembrar as palavras de
Pedro um pouco antes de negar Jesus: "Senhor, estou pronto para ir
contigo à prisão e à morte” (Lc 22,33). A resposta de Jesus à
primeira personagem alerta para a necessidade de ruptura com as
seguranças e confortos que impedem a prontidão permanente. As
“tocas” e os “ninhos” estão ligados à acomodação do poder em suas
instituições. Nesse sentido, não é por acaso que Jesus vai chamar
Herodes de “raposa” (Lc 13,32).
A terceira personagem também se oferece espontaneamente para
seguir Jesus, com a condição de despedir-se primeiro do pessoal de
sua casa. A expressão grega denota o sentido de desvencilhar-se de
uma incumbência. A personagem demonstra indecisão, própria de
quem tem dificuldades de desapegar-se dos seus negócios e de quem
ainda está amarrado a laços afetivos prejudiciais à liberdade e à
autonomia necessárias para responder ao chamado divino.
A personagem central é convidada por Jesus. Está, porém, ligada às
tradições paternas. Jesus pede-lhe que deixe o passado para entrar
na nova dinâmica do Reino de Deus. Lembra a dificuldade manifestada
pelos discípulos de desatrelar-se da ideologia judaica.
Os três tipos de vocações sintetizam as atitudes que devem
caracterizar o verdadeiro discipulado. A liberdade deve ser radical,
para que a opção pelo Reino seja feita com inteireza.
● Samaria - Povo desprezado, não tinham Templo;
● Proposta de testemunho;
● Jesus não responde ao discípulo que cogita vingança.
● Enterrar o pai - Abandonar a lei e o passado.
● Casa de Israel
● Elias pediu para Deus jogar fogo do céu
● Conversão radical;
● Lucas 22, 36
"Não comprou uma pistola porque não tinha naquela época”
Presidente Bolsonaro, 2022.
● Clericalismo - Cardeal da bicicleta.
EG 20
Evangelho de Mateus 16, 13-19

Todos os anos, na solenidade dos apóstolos Pedro e Paulo, a liturgia


propõe Mateus 16,13-19 para o Evangelho, texto que contém a
famosa confissão de fé de Pedro na região de Cesaréia de Filipe.
Esse é um relato comum aos três Evangelhos Sinóticos (cf. Mt
16,13-19; Mc 8,27-30; Lc 9,18-21), embora a versão de Mateus
apresente mais elementos próprios, o que lhe rendeu uma maior
valorização na reflexão teológica ao longo dos séculos, sobretudo, no
cristianismo católico.
A recordação dos apóstolos é sempre importante para a vida da
Igreja, porque a ajuda a manter-se alinhada às suas origens, não
obstante os desgastes históricos. Pedro e Paulo foram
imprescindíveis para o cristianismo das origens conservar os
ensinamentos de Jesus e, ao mesmo tempo, para se espalhar e
crescer, extrapolando os limites culturais e geográficos do judaísmo
e da Palestina. Olhando para o exemplo dos dois, a Igreja, de hoje e
de sempre, é interpelada, cada vez mais, a renovar-se e edificar-se
somente pela fé em Jesus Cristo, sem tomar como parâmetro
nenhuma instituição terrena.
Antes de entrarmos na reflexão do texto em si, é necessário fazer
algumas considerações a respeito do contexto do relato no conjunto
do Evangelho. Esse trecho abre uma série de acontecimentos
importantes da vida de Jesus e dos seus seguidores, como a
transfiguração (cf. 17,1-7) e os dois primeiros anúncios da paixão (cf.
16,21-23; 17,22). Na verdade, podemos dizer que tais acontecimentos
são consequência do episódio narrado no Evangelho de hoje, pois
tanto a transfiguração quanto os anúncios da paixão são tentativas
de Jesus revelar a sua verdadeira identidade, tendo em vista que os
discípulos ainda não tinham tanta clareza dessa.
Recordamos o que sucede ao nosso texto no conjunto do Evangelho,
mas também não podemos deixar de recordar o que lhe antecede:
uma controvérsia com os fariseus, os quais pediam sinais a Jesus (cf.
16,1-4), e uma séria advertência aos discípulos para não se deixarem
contaminar pelo fermento dos fariseus e saduceus (cf. 16,5-12). Esse
fermento era a mentalidade equivocada sobre Deus e o futuro
messias e, principalmente, a hipocrisia em que viviam. Mateus recorda
tudo isso porque, certamente, a sua comunidade passava por uma
crise de identidade: por falta de clareza da identidade de Jesus e
falta de experiência autêntica com o Crucificado-Ressuscitado, o
“fermento dos fariseus”, quer dizer a influência da sinagoga, estava
atrapalhando a vivência das bem-aventuranças, e impedindo a
realização do Reino dos céus naquela comunidade.
Agora podemos, portanto, direcionar nosso olhar para o texto que a
liturgia nos oferece: “Jesus foi à região de Cesaréia de Filipe e ali
perguntou aos seus discípulos: ‘Quem dizem os homens ser o Filho do
homem?’” (v. 13). O texto começa com um indicativo espacial:
Cesaréia de Filipe estava localizada no extremo norte de Israel,
portanto, muito longe de Jerusalém. Como o próprio nome indica
(homenagem a César), era um centro do poder imperial e, portanto,
lugar de culto ao imperador romano. Certamente o evangelista e sua
comunidade tinham um propósito muito claro ao narrar esse episódio
e recordar a sua localização.
Longe de Jerusalém, os discípulos estariam isentos de qualquer
influência da tradição religiosa judaica, ou seja, livres do fermento
dos fariseus e, portanto, aptos a confessarem e professarem
livremente a fé em Jesus, fora dos esquemas tradicionais da religião.
Ao mesmo tempo, estando em uma região de culto ao imperador, a
confissão da fé em Jesus seria um sinal de convicção e adesão ao
projeto do Reino dos céus e uma demonstração da coragem que deve
marcar a vida da comunidade cristã, chamada a testemunhar a Boa
Nova e continuar a obra de Jesus, mesmo em meio às hostilidades
impostas pelo poder imperial. Podemos dizer que professar a fé em
Jesus é distanciar-se dos esquemas religiosos do judaísmo e, ao
mesmo tempo, desafiar qualquer sistema que não coloque a vida e o
bem do ser humano em primeiro lugar, como o império romano.
pergunta de Jesus sobre o que dizem a respeito de si, ou seja, do
Filho do Homem, não é demonstração de preocupação com sua imagem
pessoal, mas com a eficácia do anúncio da comunidade. Até então,
Jesus já tinha realizado muitos sinais entre o povo e ensinado
bastante, mas pouca gente o conhecia verdadeiramente. Muitos o
seguiam pela novidade que Ele trazia, uns pelo seu jeito diferente de
acolher os mais necessitados e excluídos, outros para
aproveitarem-se dos sinais que Ele realizava. Ele percebia tudo isso
e, por causa disso, fez essa pergunta: “Que dizem os homens ser o
Filho do Homem?” (v. 13b).
A resposta dos discípulos à pergunta de Jesus revela a falta de
clareza que se tinha a respeito da sua identidade e, ao mesmo tempo,
a boa reputação da qual ele já gozava diante do povo, certamente o
povo simples, com quem Ele interagia e por quem lutava. Eis a
resposta: “alguns dizem que é João Batista; outros, que é Elias,
outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas” (v. 14). Sem
dúvidas, Jesus estava bem-conceituado pelo povo, pois era
reconhecido como um grande profeta. Mas Jesus é muito mais.
Embora continuem sempre atuais, os profetas de Israel são
personagens do passado. A comunidade cristã não pode ver Jesus
como um personagem do passado que deixou um grande legado a ser
lembrado. Isso impede a comunidade de fazer sua experiência com o
Ressuscitado, presente e atuante na história.
resposta é complexa e profunda: Jesus é Messias e Filho e do Deus
vivo. É muito significativo que Ele seja reconhecido e acolhido como o
Messias esperado, ou seja, o Cristo, o enviado de Deus para libertar
o seu povo e a humanidade inteira. Como circulavam muitas imagens
de messias entre o povo, principalmente a de um messias guerreiro e
glorioso, o segundo elemento da resposta de Pedro é de extrema
profundidade e importância: “o Filho do Deus vivo” (em grego: ό υίός
τού Θεού τού ζώντος – hó hiós tú Theú tú zontos). Além de definir a
qualidade e especificidade do messianismo de Jesus, essa expressão
serve também para denunciar a falsidade do culto ao imperador
romano, o qual exigia ser reverenciado como filho de uma divindade.
Com a resposta de Pedro, a comunidade cristã é chamada a proclamar
que Jesus é, de fato, o Cristo (termo mais fiel ao texto grego do que
Messias), é o Filho do Deus vivo, ou seja, seu Deus é o Deus da vida,
enquanto os deuses pagãos cultuados no império romano e até mesmo
o Deus oferecido pelo templo de Jerusalém eram privados de vida,
eram agentes de morte, sobretudo para o povo simples e excluído. A
convicção de que Jesus é o Filho do Deus vivo compromete a
comunidade a denunciar e desafiar todos os sistemas religiosos e
políticos que não favoreçam a promoção da liberdade e da vida plena
e abundante para todos.
Jesus se alegra com a resposta de Pedro e o proclama
bem-aventurado: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi
um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu” (v.
17). Não se trata de um elogio por um mérito particular de Pedro,
até porque o conhecimento não é dele, mas do Pai que lhe revelou. O
que Jesus faz é uma constatação: as coisas começam a funcionar na
comunidade, pois a voz do Pai está sendo ouvida; como o Pai só revela
seus desígnios aos pequeninos (cf. 10,21), e Pedro está falando a
partir do que o Pai lhe sugere, ele está demonstrando adesão plena ao
projeto do Reino, inserindo-se no mundo dos pequeninos! O Reino de
Deus ou dos céus, como Mateus prefere, é um projeto alternativo de
mundo que só tem espaço para quem aceita a condição pertencer ao
mundo dos pequeninos. A bem-aventurança de Pedro consiste em
abrir-se à vontade do Pai e deixar-se conduzir por essa.
Na continuidade, Jesus declara: “Por isso eu te digo que tu és Pedro
e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (v. 18a). Jesus está
declarando que Pedro está apto a participar da construção da sua
comunidade, por estar aberto às intuições do Pai. Ao contrário da
antiga religião judaica que precisava de um templo de pedras, a
comunidade cristã é uma construção sim, mas pela sua coesão e
unidade, por isso, na sua construção são necessárias pedras vivas.
Pedro é uma destas pedras escolhidas por Jesus, a primeira, sem
dúvidas. A pedra fundamental da construção é a fé da comunidade. A
força, o equilíbrio e a perseverança da comunidade dependem da
solidez da sua fé. Por isso, é necessário que essa fé seja forte como
uma rocha, comparável a fé que Pedro tinha acabado de professar.
É importante esclarecer que Mateus usa duas palavras gregas muito
parecidas para designar Pedro e pedra: Πέτρος– Petros e πέτρα -
petra. Embora muito próximas, é possível distingui-las: “Petros”, que
foi transformada no nome próprio Pedro, designa pedra, pedregulho
ou tijolo, uma pedra pequena e removível, uma pedra de construção;
“petra”, por sua vez, designa a superfície rochosa, base ideal para os
fundamentos de uma construção segura. São estas as bases
necessárias para a edificação da Igreja enquanto comunidade do
Reino. Portanto, Jesus diz que Pedro (petros) é uma pedra-tijolo da
construção, e a pedra-rocha (petra) é a fé que ele professou, a
superfície rochosa sobre a qual a Igreja é edificada.
Ao contrário do templo de Jerusalém e dos templos pagãos que
haviam na região de Cesaréia de Filipe, construídos sobre pedras
concretas e visíveis e, portanto, passíveis de destruição, a
comunidade cristã não correrá esse risco se for edificada conforme
Jesus pensou, ou seja, tendo a fé por fundamento. Por isso, Ele
declara: “e o poder do inferno nunca poderá vencê-la” (v. 18b). Aqui
Ele se refere às hostilidades que a comunidade irá enfrentar em seu
longo percurso até a realização plena do Reino aqui na terra. São as
forças de morte manifestadas nos diversos sistemas de dominação,
tanto políticos quanto religiosos. A comunidade precisa de uma fé
muito consistente para resistir a tudo isso.
No último versículo temos mais uma declaração significativa de Jesus
a Pedro e à comunidade dos discípulos: “Eu te darei as chaves do
Reino dos céus: tudo o que ligares na terra será desligado nos céus;
tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (v. 19). Mais
que delegando poderes, Jesus está responsabilizando a comunidade
para fazer o Reino dos céus acontecer já aqui na terra. A comunidade
recebe “as chaves do Reino dos céus” porque é nela que se faz a
experiência da fé e da comunhão profunda com Deus, através da
prática das bem-aventuranças (cf. 5,1-12), e é isso que torna alguém
apto para entrar nos céus. Qualquer um que professa convictamente
a fé em Jesus e vive seu programa de vida expresso nas
bem-aventuranças tem a chave de acesso ao Reino. “Ligar e desligar”
é, portanto, responsabilidade, e não poder.
Com essas imagens tão fortes (chaves – ligar – desligar) Jesus
convida a sua Igreja, comunidade do Reino, a viver sempre em
perfeita sintonia com Ele mesmo e com o Pai, de modo que tudo aquilo
que a comunidade experimentar será referendado pelos céus! Ele dá
as chaves para a sua comunidade abrir a todos o Reino que os
escribas e fariseus tinham trancado (cf. 23,13). Todo cristão e cristã
possui as chaves do Reino, porque o seu testemunho pode abrir ou
fechar o Reino para alguém! Que a memória dos apóstolos Pedro e
Paulo renove na Igreja a fé autêntica no Crucificado-Ressuscitado, e
a sua índole missionária.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
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evangelho proposto para esta festa é Jo 16,12-15. Como de costume,
a nossa reflexão se concentra exclusivamente no texto bíblico, sem
adentrar em questões relativas ao dogma trinitário propriamente. O
contexto do Evangelho de hoje ainda é o da última ceia, ambientada
no cenáculo em Jerusalém, e vivenciada por Jesus com seus
discípulos, às vésperas da Páscoa. Como já afirmamos em outras
ocasiões, a ceia no Quarto Evangelho não significa apenas o consumo
de alimentos, nem a vivência de um rito, tampouco uma mera
confraternização. Para a comunidade joanina a ceia é autorrevelação
de Jesus, sendo o momento mais forte da sua catequese. Foi na ceia
que Jesus apresentou o seu “testamento”, como é chamado o seu
longo discurso de despedida, do qual faz parte o evangelho de hoje. A
centralidade da ceia em João já é evidenciada pelo amplo espaço
narrativo.
Todos os direitos reservados. Edições: Iliérve Guypson Oliveira
FRANCISCO CORNELIO F. RODRIGUESMossoró, RN, Brazil
Presbítero da Diocese de Mossoró-RN, é mestre e doutorando em
Teologia Bíblica pela Pontifícia Universidade Santo Tomás de Aquino
– Angelicum (Roma). Possui licenciatura em Filosofia pelo Instituto
Salesiano de Filosofia – INSAF (Recife), e bacharelado em Teologia
pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL (Salvador). É
professor de Antigo e Novo Testamento na Faculdade Católica do Rio
Grande do Norte (Mossoró). Na pesquisa bíblica, tem interesse
especial pela literatura profética, com ênfase no profeta Amós, e
pela obra lucana (Evangelho segundo Lucas)

EG 21
Evangelho de Lucas 10, 25-37

A liturgia deste XV Domingo do Tempo Comum coloca-nos em contato


com um dos textos mais belos e conhecidos de todo o Novo
Testamento, a chamada “parábola do bom samaritano”. Trata-se de
um texto próprio de Lucas, inserido na dinâmica do longo caminho
empreendido por Jesus rumo a Jerusalém. É um daqueles episódios
em que Jesus esbanja misericórdia, o que é muito comum no
Evangelho segundo Lucas.
A parábola é usada como uma das respostas de Jesus em um
interessante diálogo com um mestre da lei, assumindo a centralidade
de todo o colóquio e constituindo-se como uma das principais páginas
do terceiro Evangelho. É importante considerar isso: as parábolas de
Jesus, sobretudo em Lucas, não surgem do nada, mas das situações
concretas, a partir das interpelações dos seus interlocutores. Nesse
caso específico, a parábola ilustra a resposta de Jesus a um mestre
da lei que, embora fosse um grande conhecedor das Escrituras, lhe
faltava a vivência do essencial, ou seja, a prática do amor ao próximo.
Diz o texto que "um mestre da lei se levantou e, para tentar Jesus,
fez-lhe uma pergunta" (v 25a). Lucas apresenta aqui o mesmo verbo
usado no episódio das tentações (cf. Lc 4,1-13): εκπειραζω
(ekpeirazô), cujo significado é tentar, pôr alguém à prova. Esse
indicativo é importante porque já confere um caráter diabólico às
intenções do mestre lei, pois, tentar Jesus, pondo-o à prova é a
atitude de satanás, conforme a linguagem bíblica e lucana,
principalmente.
Após apresentar a intenção e a atitude do mestre da lei, tentar
Jesus perguntando, temos, então, o conteúdo da pergunta: "Mestre,
que devo fazer para receber em herança a vida eterna?" (v. 25b). Se
trata de uma pergunta muito profunda e bem elaborada, própria de
um bom conhecedor da Escritura, como, de fato ele era.
Como era próprio da cultura dos rabinos responder a uma pergunta
com outra pergunta, Jesus assim o faz, e responde perguntando
exatamente o que a lei dizia a propósito da observação do
interlocutor. Como bom conhecedor, o mestre da lei responde
prontamente com duas citações da Escritura: “Amarás o Senhor teu
Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua
força e com toda a tua inteligência (cf. Dt 6,5); e ao teu próximo
como a ti mesmo” (cf. Lv 19,18). Resposta própria de quem examinava
a Lei dia e noite, como era próprio do seu ofício.
A continuidade do diálogo mostra a exterioridade e superficialidade
daquele mestre da lei. Teoricamente, seu conhecimento era perfeito,
tanto que o próprio Jesus reconheceu: “Tu respondeste
corretamente. Faze isso e viverás” (v. 28). Mas, sua tentativa de
justificar-se demonstrava o quanto era limitada sua vivência
religiosa. Ele conhecia todas as passagens da Escritura, era um
intérprete oficial e, no entanto, não sabia quem era seu próximo. E,
percebendo o vazio de sentido naquela religião estéril defendida e
praticada pelo mestre da lei, Jesus aproveita a oportunidade para
apresentar um dos seus mais célebres ensinamentos, com a parábola
do samaritano, como resposta.
Disse Jesus que “certo homem descia de Jerusalém para Jericó e
caiu nas mãos de assaltantes” (v. 30a). Ora, embora a distância entre
as duas cidades não fosse tão grande, apenas 27 km, grandes
obstáculos componham aquele caminho. A começar pelo desnível entre
as duas cidades. Enquanto Jerusalém estava a mais de 700 metros
acima do nível do mar, Jericó estava a aproximadamente 300 metros
sob o nível do mar. Além disso, tinha de atravessar o deserto de
Judá. Era uma estrada tão perigosa, que somente se andava em
grupo, considerando tanto os obstáculos da natureza quanto o perigo
dos assaltantes. Logo, com esse primeiro dado Jesus não apresenta
nenhuma novidade, uma vez que eram comuns os assaltos naquela
estrada.
Na descrição do assalto, Jesus acrescenta detalhes, enfatizando que
os assaltantes, além de espancar o homem, levaram tudo e o
deixaram “quase morto” (v. 30b). Claro que há, nisso tudo, uma clara
intenção teológico-literária de Lucas visando supervalorizar a atitude
do samaritano e contrapô-la à indiferença do sacerdote e do levita.
Por isso, na continuidade, Ele diz: “Por acaso, um sacerdote estava
descendo por aquele caminho” (v. 31a), ou seja, estava voltando de
Jerusalém após uma semana inteira de serviço no templo, conforme a
distribuição das classes sacerdotais durante o ano litúrgico judaico.
Portanto, estava em seu grau máximo de pureza. Por isso, “quando viu
o homem, seguiu adiante pelo outro lado” (v. 30b), exatamente porque
o contato com um homem quase morto o tornaria impuro também,
conforme determinava a lei. A lei estava acima da vida para a religião
judaica do tempo de Jesus. O sacerdote cumpre rigorosamente a lei,
assim como o mestre interlocutor de Jesus tinha dificuldade em
reconhecer quem é o seu próximo porque vivia uma religiosidade
meramente ritualista e vazia de amor.
A mesma indiferença do sacerdote é repetida por um levita, que era
uma espécie de “sacristão”, o auxiliar dos sacerdotes no serviço
litúrgico do templo: “chegou ao lugar, viu o homem e seguiu pelo outro
lado” (v. 32). Como bom sacristão, o levita não poderia ter outro
exemplo a seguir senão o do sacerdote, por isso, imita seus gestos,
inclusive a indiferença diante do sofrimento do outro. Como voltava
do serviço litúrgico, também não queria contaminar-se com um quase
morto, certamente ensanguentado do espancamento.
A verdadeira afronta de Jesus ao mestre da lei vem colocada a
partir do versículo 33, quando ele diz na parábola que “um samaritano
que estava viajando, chegou perto dele, viu e sentiu compaixão”. Como
sabemos, os samaritanos eram mal vistos pelos judeus; havia uma
rivalidade secular entre eles. Quando a Assíria conquistou Samaria, a
capital do Reino do Norte, em 722 a.C., deportou a população local e
trouxe povos estrangeiros para habitar na cidade (cf. 2 Rs
17,24-28). Os novos habitantes levaram seus costumes e tradições
religiosas, o que levou a Samaria a ser conhecida como terra de
sincretismo, de heresias e povo impuro. É essa a origem histórica da
relação conflituosa. Inclusive, quando os judeus retornaram do exílio
e começaram a reconstruir o tempo e a cidade de Jerusalém, mesmo
em meio às dificuldades, rejeitaram a ajuda oferecida pelos
samaritanos, como atesta o livro histórico de Esdras (cf. Es 4,3). A
maior ofensa que um judeu poderia receber era ser chamado de
samaritano. Era o mesmo que dizer herege, pecador, impuro... alguém
da pior qualidade possível.
Os próprios Jesus com seus discípulos tinham sido rejeitados pelos
samaritanos no início do caminho (cf. Lc 9,53), e hoje Jesus
apresenta um samaritano como alguém que age como Deus. De fato,
ver e ter compaixão, são atitudes próprios de Deus. E, infelizmente,
os homens que pareciam conhecer a Deus, o sacerdote e o levita, não
conheciam seus sentimentos, mas um infiel aos olhos da religião.
O sacerdote e o levita viram o estado miserável em que se
encontrava o homem, mas foram para o outro lado do caminho. O
samaritano viu, sentiu compaixão e aproximou-se. Duas atitudes
completamente opostas. A compaixão do samaritano fez com que ele
se aproximasse e cuidasse do homem. Quase dez verbos são usados
na sequência do texto, e todos eles são verbos de ação. Assim, Jesus
contrapõe a omissão dos praticantes da religião à ação movida de
compaixão da parte do herege, comovendo ainda mais o mestre da lei.

Uma vez que a parábola foi contada como resposta à pergunta “E


quem é o meu próximo?” (v. 29), Jesus devolve novamente uma
pergunta ao mestre: “Na tua opinião qual dos três foi o próximo do
homem que caiu nas mãos dos assaltantes?” (v. 36). Da pergunta de
Jesus emerge um dado muito importante: o próximo não é, o próximo
faz-se. Para os judeus, o próximo era o parente, o companheiro de
religião e, no máximo, o estrangeiro radicado entre eles. Portanto,
era uma categoria estática. Jesus diz, com a parábola e a pergunta
final, que o próximo se faz, ou seja, são as circunstâncias que tornam
alguém próximo.
A resposta do mestre à pergunta de Jesus é correta, embora ele
mesmo não a aceite: “Aquele que usou de misericórdia para com ele”
(v. 36a) foi o próximo. Dois aspectos chamam a atenção nessa
resposta: primeiro, o mestre evita mencionar “o samaritano”, o que
para ele era uma espécie de palavrão, por isso, diz apenas “aquele”,
quer dizer que o judeu fiel continuava fechado em sua mentalidade
mesquinha e cheio de rancor; segundo, o uso da misericórdia que é
atribuído somente a Deus em todo o Antigo Testamento e apenas a
Jesus no Novo, é agora atribuído também a um homem e da pior
qualidade possível, conforme tinha ensinado a religião dos judeus.
A única vez em que se atribui a um homem o uso da misericórdia é
aqui. E não se atribui a um homem da religião, mas a um herege. Essa
é uma das grandes novidades de Jesus e de Lucas em seu Evangelho.
De todos os envolvidos na parábola, o único que foi considerado um
exemplo e parecido com Deus foi um homem que a religião condenava.
Ao mestre da lei, Jesus aconselha: “Vai e faze a mesma coisa” (v. 37),
ou seja, pede que seja como um samaritano, um excluído e tratado
como herege.
Com isso, Jesus aconselha o mestre da lei e a todos, de ontem e de
hoje, a abrir mão de todos os preceitos impostos pela religião e
perceber que o amor a Deus e ao próximo são inseparáveis.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN

EG 22
Evangelho de Lucas 10, 38-42

O Evangelho deste décimo sexto domingo do tempo comum continua a


nos situar no longo caminho de Jesus para Jerusalém. Como temos
afirmado nos últimos domingos, o caminho que Lucas apresenta é,
mais do que um percurso físico, um itinerário teológico e catequético,
no qual Jesus revela sua identidade messiânica e forma o seu
discipulado, ao mesmo tempo em que antecipa a natureza missionária
da comunidade cristã. O texto proposto para hoje é exclusivo de
Lucas (Lc 10,38-42). Trata-se do relato da visita de Jesus às irmãs
Marta e Maria. Embora simples do ponto de vista narrativo, esse
texto é altamente rico e revolucionário, no qual diversos paradigmas
são quebrados. Como já estamos bastante familiarizados com o
contexto do caminho, ao invés de contextualizar o texto,
recordaremos inicialmente alguns aspectos relacionados à sua
interpretação ao longo da história.
Por muito tempo, esse texto foi usado simplesmente para
fundamentar a distinção entre duas formas de vida caras ao
cristianismo: a vida ativa e a contemplativa, com uma clara
superioridade da vida contemplativa, reservada a pessoas
criteriosamente escolhidas por Deus para viver separadas do mundo,
preservadas em mosteiros e conventos. Nessa linha, a personagem
Marta representa a vida ativa, enquanto Maria é o ícone da vida
contemplativa. Manter o texto nesta perspectiva é aprisioná-lo e
deixar de perceber a sua riqueza ímpar no conjunto da obra de Lucas,
o autor do Novo Testamento que mais valoriza a participação das
mulheres na vida de Jesus e das comunidades cristãs. Por sinal, uma
outra recomendação importante para uma compreensão adequada
deste relato é mantê-lo separado da passagem do Evangelho segundo
João (cf. Jo 11,1-43) em que Jesus também aparece em relação com
as mesmas irmãs Marta e Maria, por ocasião da morte e reanimação
de Lázaro, também irmão das duas. Há uma tendência quase
automática de relacionar os dois relatos, o que prejudica a
compreensão da perspectiva de Lucas que, para evidenciar a
importância do encontro de Jesus com as duas mulheres, faz de
conta que Lázaro não existe. É nessa linha que devemos fazer a
leitura.
Olhemos, portanto, atentamente para o texto, para perceber as
novidades que Lucas apresenta nele: “Jesus entrou num povoado, e
certa mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa” (v. 38).
Naquele contexto, a mulher não tinha autonomia para receber um
homem em casa. Esse era papel do homem. Enquanto o homem dava
atenção ao hóspede, as mulheres da casa permaneciam na cozinha,
preparando o alimento e não ousavam, sequer, saudar o hóspede. Por
isso, trata-se de algo novo. A atitude de Marta foi revolucionária. Ao
acolher Jesus, ela rompeu barreiras. Revolucionária também foi a
atitude de Jesus: no seu tempo, não era conveniente para um homem
aceitar a acolhida de mulheres. Temos logo no primeiro versículo,
portanto, uma dupla transgressão: de Marta e de Jesus; ambos
fizeram o que era proibido. Com isso, o evangelista ensina que homem
e mulher possuem a mesma dignidade e, consequentemente, os
mesmos direitos. Por onde Jesus passa, Ele quebra barreiras, rompe
condicionamentos e promove libertação.
Na sequência, o evangelista introduz mais uma personagem, e com
uma atitude ainda mais revolucionária que a de Marta: “Sua irmã,
chamada Maria, sentou-se aos pés do Senhor, e escutava a sua
palavra” (v. 39). A posição de Maria é muito importante e
significativa, pois é a posição do discípulo, de acordo com o método
rabínico de ensinamento. O gesto de sentar aos pés não quer dizer
adoração nem devoção, como muitas interpretações afirmavam.
Sentar aos pés para escutar quer dizer ser discípulo ou discípula; é
aceitar o outro como mestre, como recordou Paulo em relação a
Gamaliel, o seu mestre, ao defender-se dos judeus de Jerusalém: “Eu
sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas criei-me nesta cidade. Fui
educado aos pés de Gamaliel” (At 22,3). Portanto, Maria se torna
discípula com essa atitude. Assim, também ela rompe muitas
barreiras. Esse papel não era permitido às mulheres. Temos aqui,
novamente, uma dupla transgressão: a de Maria, que exerce um papel
inconcebível para uma mulher da sua época, e a de Jesus que, ao
aceitar mulheres no seu discipulado, põe cada vez mais em xeque a
sua condição de mestre. Inclusive, na época circulava o seguinte
ditado: “é melhor queimar a Torá do que colocá-la nas mãos de uma
mulher”. Com isso, Jesus rompe com todos os padrões de mestre da
sua época. Rabino algum do seu tempo aceitava mulheres no
discipulado.
Apesar de ter recebido um homem em casa, atitude revolucionária
para uma mulher da sua época, Marta ainda estava condicionada, pelo
menos em partes, aos padrões e normas do seu tempo, imaginando
que a mulher não poderia fazer outra além dos cuidados do lar:
“Marta, porém, estava ocupada com muitos afazeres. Ela
aproximou-se e disse: ‘Senhor, não te importas que minha irmã me
deixe sozinha, com todo o serviço? Manda que ela me venha ajudar!”
(v. 40). Temos aqui a descrição de uma situação normal para uma dona
de casa, principalmente tendo que preparar refeição para uma visita
importante. É a imagem da dona de casa disciplinada que não perde
tempo para manter a casa em ordem e servir da melhor maneira
possível aos hóspedes. Por isso, ela pede que Jesus intervenha, pois,
fazendo tudo sozinha, talvez, não conseguisse preparar a refeição a
tempo. Embora normal para uma dona de casa, o pedido de Marta é
absurdo para Jesus: tirar Maria dos seus pés seria fazê-la renunciar
à condição de discípula e privá-la de um direito conquistado, um ato
de emancipação feminina.
Com serenidade, Jesus responde à solicitação de Marta, sem, no
entanto, atender ao seu pleito, ou seja, sem tirar Maria dos seus pés:
“O Senhor, porém, lhe respondeu: “Marta, Marta! Tu te preocupas e
andas agitada por muitas coisas” (v. 41). Antes de tudo, é necessário
recordar que Jesus não está repreendendo Marta, como tem sido
interpretado esse versículo. De fato, ver essa passagem como uma
repreensão é um dos maiores equívocos das interpretações
tradicionais. É inegável que Jesus vê o ativismo desenfreado, no qual
Marta estava envolvida, como um empecilho à escuta da sua Palavra.
Diante disso Ele não repreende, mas dá uma oportunidade, faz um
convite ao discipulado. Na linguagem bíblica, a dupla invocação de um
nome por Deus ou por um mensageiro seu, como aqui – “Marta,
Marta!” – é sinal de um chamado vocacional; recordemos alguns casos:
“E Deus o chamou do meio da sarça, dizendo: ‘Moisés, Moisés!’ Este
respondeu: ‘Eis-me aqui!” (Ex 3,4); “Veio o Senhor e chamou como das
outras vezes: ‘Samuel, Samuel!’ e Samuel respondeu: “Fala, pois teu
servo te escuta” (1Sm 3,10); “Saulo, Saulo, porque me persegues?”
(At 9,4b). Como Maria já tinha abraçado o discipulado, o que foi
demonstrado pelo gesto de sentar-se aos seus pés, Jesus chama
também Marta a essa condição, ao invés de repreendê-la pelas suas
preocupações. Esse chamado pode ser visto também como uma
maneira de equilibrar a comunidade, pois já havia duas duplas de
irmãos entre os discípulos: Simão e André, João e Tiago (cf. Lc
5,1-11; 6,14); é chegado também o momento de ter uma dupla de
irmãs: Marta e Maria.
Assim como os discípulos pescadores foram chamados a deixar as
redes para segui-lo, Marta é chamada a deixar certas preocupações
e, assim como sua irmã, optar pela “parte boa”: “Porém, uma só coisa
é necessária. Maria escolheu a melhor parte e esta não lhe será
tirada” (v. 42). Embora a tradução litúrgica use a expressão “a
melhor parte”, o correto é “a parte boa” (em grego: τήν άγαθήν
μερίδα), pois é a única que realmente importa, e é incomparável. Essa
“parte boa” é o Evangelho, o conjunto do ensinamento de Jesus e a
sua própria pessoa. É escolhendo a “parte boa” que o ser humano
encontra vida em plenitude e, por isso, se torna uma pessoa livre.
Ser discípulo ou discípula de Jesus é optar pela liberdade, abrir mão
de todas as formas de prisão existentes. Esse chamado é aberto a
todos e todas. Foi compreendido por Maria e Jesus o estende
também à sua irmã. A própria Marta já tinha dado um grande passo
de emancipação ao atrever-se a acolher um homem em sua casa.
Faltava mais um, sentar-se aos pés do mestre para ouvi-lo. Fazendo
isso, ela estaria escolhendo a “parte boa” e, logo, conquistando a
liberdade plena. Esse chamado é dirigido a todas as pessoas, de
todos os tempos e lugares. Com isso, Jesus declara que mulher não
foi criada simplesmente para os cuidados do lar, mas para ser o que
ela quiser ser, e estar onde quiser, inclusive discípula de um nazareno
pobre e mal afamado, um mestre ao revés, como era Ele.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues
http://porcausadeumcertoreino.blogspot.com/2019/07/reflexao-par
a-o-xvi-domingo-do-tempo_20.html?m=1

EG 23
Evangelho de Lucas 11, 1-13
Após a acolhida de Jesus na casa das irmãs Marta e Maria, texto lido
refletido no domingo passado, o evangelista Lucas nos apresenta uma
verdadeira catequese sobre a oração, ainda no contexto do longo
caminho para Jerusalém. O texto evangélico que a liturgia deste
décimo sétimo domingo do tempo Comum nos oferece é, exatamente,
essa catequese: Lc 11,1-13. É muito importante recordar que o
caminho proposto por Jesus e evidenciado por Lucas, não se resume a
um movimento físico, mas é uma metáfora da própria vida e,
especialmente, da vida cristã. Por isso, além do movimento, o
evangelista faz questão de mostrar momentos estáveis de paradas,
nas quais Jesus ensina, visita pessoas e pára para rezar.
Convém mencionar que, além de Lucas, também Mateus apresenta a
oração ensinada por Jesus aos seus discípulos, transmitida pelas
tradições cristãs com o título de “Pai Nosso”. Há uma pequena
diferença entre as duas versões, como são diferentes também os
contextos em que cada um a apresenta. Porém, a essência é a mesma
em ambas as versões. A de Lucas é um pouco mais breve, por isso,
considerada pela maioria dos estudiosos, a que corresponde melhor
às palavras de Jesus. Supõe-se que Mateus adaptou-a às
necessidades de suas comunidades, enquanto Lucas a conservou em
sua forma mais original.
Ainda a nível de contexto, convém recordar que Lucas é, por
excelência, o evangelho da oração; ele faz referência a Jesus
rezando/orando sete vezes, do batismo à paixão, o que corresponde
exatamente à totalidade do seu ministério (cf. 3,21; 5,16; 6,12; 9,18;
9,28-29; 11,1; 22,41). Obviamente, o evangelista quer mostrar que a
oração foi o grande alimento de Jesus em sua vida pública. Foi pela
força da oração que Ele levou a cumprimento o projeto do Pai em sua
vida. Outro dado, não menos importante, é o fato de ser Lucas aquele
que mais apresenta Jesus em relação de acolhida e atenção para com
os pobres, as mulheres e os pecadores; constituindo como o
Evangelho da misericórdia, por excelência. Certamente, a explicação
para tudo isso está no fato de Jesus rezar constantemente, e claro,
a oração era determinante para o seu agir, como deve ser para cada
cristão e cristã. Podemos dizer, então, que Lucas apresenta com o
exemplo de Jesus, a oração conjugada às suas implicações concretas,
principalmente à atenção aos mais necessitados. É comum, portanto,
Lucas afirmar que “Jesus estava rezando num certo lugar” (v. 1a).
Independente das circunstâncias, Jesus reservava sempre uma parte
do seu tempo para a oração, seu colóquio com o Pai. Sabemos que o
contexto em questão é o da viagem para Jerusalém. É muito
interessante que “Quando terminou, um de seus discípulos pediu-lhe:
Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus
discípulos” (v. 1b). Certamente, era bonito seu jeito de rezar. Pelas
entrelinhas do texto, podemos afirmar que os discípulos estavam
olhando-o, admirados. Tanto que não ousaram interrompê-lo, mas
esperaram que terminasse. Impressionados, tiveram vontade de
fazer o mesmo. Talvez, e muito provavelmente, estavam angustiados
porque conviviam com Ele há tanto tempo e ainda não tinham
aprendido muita coisa, nem mesmo a rezar como Ele. E, o discípulo
tem o dever de tornar-se parecido com o mestre, portanto, deve agir
como ele, inclusive no jeito de rezar.
Todo mestre ou rabino tinha um jeito próprio de conduzir o seu
grupo, com seus ensinamentos e fórmulas, inclusive, de oração.
Geralmente, essas orações eram síntese da espiritualidade do grupo
ou movimento. Parece que Jesus tinha deixado seu grupo muito à
vontade, nesse sentido, o que poderia deixar seus discípulos até
inseguros, pois não tinham regras estabelecidas a cumprir. A regra
de Jesus era apenas o seu jeito de viver. Diante disso, seus
discípulos usam o exemplo de João Batista, cujo movimento tinha
características semelhantes ao de Jesus, até certo ponto,
obviamente, entre os tantos existentes na época. Assim como outros
mestres, João Batista tinha ensinado seus seguidores a rezar,
embora não tenhamos conhecimento do seu conteúdo. A
particularidade do jeito de Jesus exercer sua liderança era
exclusivamente pelo exemplo. Por isso, não tinha preocupação de
ensinar fórmulas para serem repetidas.
Do jeito pessoal de Jesus rezar nasce a curiosidade e, da
curiosidade, a necessidade nos seus discípulos. Por isso, pediram que
lhes ensinasse. Ao pedido dos discípulos, Jesus responde. Mas, não dá
uma fórmula, como davam os rabinos do seu tempo. Pelo contrário,
dá-lhes uma “anti-fórmula”, pois as primeiras palavras da sua oração
sugerem exatamente uma quebra de protocolos e paradigmas. Os
judeus, ao rezar, faziam longas introduções, exaltando a grandeza de
Deus, antes de fazer as suas súplicas; utilizavam termos como
“Altíssimo, Todo-Poderoso, Onipotente, Senhor, Santo dos Santos”;
esses termos ajudam a reconhecer a grandeza de Deus, mas como
alguém distante, em um grau infinitamente superior e alheio à
realidade das pessoas. Jesus quer abolir essa mentalidade, e ensina
seus discípulos a fazer o mesmo. Por isso, introduz a sua oração
ensinando a chamar Deus de Pai, ou seja, como uma pessoa íntima e
próxima de quem o invoca. Seu jeito de rezar causa impacto,
sobretudo porque ele ensina na oração a chamar a Deus de Pai. Para
nós, hoje, parece não ser algo impactante. Mas, para a sua época foi,
de fato, algo revolucionário.
Com o imperativo “Quando rezardes, dizei: Pai, santificado seja o teu
nome” (v. 2), Jesus quer dizer, antes de tudo, que o primeiro
elemento necessário para uma oração autêntica é ter clareza do seu
destinatário. É claro que é a Deus que deve ser direcionada toda
oração. E, esse Deus é, antes de tudo, um Pai! Logo, Jesus não apenas
inaugura uma nova fórmula de oração, mas propõe um novo jeito de se
relacionar com Deus. Dessa maneira nova de se relacionar com Deus,
emerge a certeza de que Ele está próximo de nós, como se fosse um
amigo e, portanto, pode ser invocado a qualquer hora e em qualquer
lugar. A “santificação do nome de Deus” (v. 2) e o “advento de seu
Reino” (v. 2) estão intrinsecamente relacionados, a ponto de
confundirem-se. Ora, o nome de Deus já é santificado, porque Ele é,
essencialmente, santo. O pedido diz respeito ao reconhecimento
dessa santidade. Reconhecer a santidade de Deus é saber que Ele é
Pai, é aceitar a condição de filhos e filhas e, portanto, viver como
irmãos e irmãs. Isso é permitir que o seu Reino seja instaurado entre
nós. O Reino que já fora inaugurado por Jesus (cf. Lc 4,16-22),
precisa ser difundido pelos discípulos até chegar a todos os lugares e
épocas. A construção do Reino é, pois, a constatação se o nome de
Deus está sendo santificado ou não, ou seja, se Ele está sendo
reconhecido como realmente é: um Pai.
Na sequência da oração, Jesus vai recomendando o que é necessário
pedir, ou seja, quais são as reais necessidades do ser humano. O
pedido pelo “pão necessário para cada dia” (v. 3), além de expressar
uma necessidade concreta, a alimentação, exprime, sobretudo, a
condição existencial do ser humano: ele não pode ser autossuficiente
por um dia sequer, mas em tudo depende de Deus, até mesmo no que
é mais básico, como o alimento de cada dia. Um elemento
indispensável para que uma comunidade viva efetivamente segundo as
características do Reino é a confiança e a solidariedade. Obviamente,
Jesus alude ao antigo maná (cf. Ex 16) com essa petição. Há, aqui, um
verdadeiro combate e denúncia à cultura do acúmulo, tema que será
desenvolvido na sequência da viagem, principalmente com as
parábolas do rico insensato (cf. 11,13-21) e do rico avarento com o
pobre Lázaro (cf. 16,19-31).

A menção ao perdão não poderia faltar na oração que deve


caracterizar a comunidade cristã. Por isso, Jesus recomenda que
este pedido na sua oração: “Perdoa-nos os nossos pecados, pois nós
perdoamos também a todos os nossos devedores” (v. 4). O pedido de
perdão a Deus era comum nas orações dos diversos movimentos
religiosos, daquela época e de todos os tempos. Realmente, é somente
Deus quem pode perdoar pecados. Assim como o pedido do pão
cotidiano, também esse visa conscientizar o ser humano de sua
necessidade diante de Deus. A grande novidade apresentada por
Jesus é a condição para buscar o perdão de Deus: “nós também
perdoamos aos nossos devedores” (v. 4). Com isso, Ele ensina que o
perdão de Deus deve ser mediado pelo perdão fraterno; não porque a
misericórdia de Deus esteja condicionada ao agir humano, mas porque
a relação com Deus exige uma coerência de vida. A abertura total a
Deus deve traduzir-se em uma relação nova com o próximo, tema tão
caro a Lucas. Isso implica que, mais que ser perdoado, é necessário
viver reconciliado. Por isso, o perdão deve ser mútuo.
A última das petições da oração de Jesus é “não nos deixes cair em
tentação” (v. 4). A palavra tentação (em grego: πειρασμός –
peirasmós), quando aplicada em relação aos discípulos, e aos cristãos
em geral, significa desistir, abandonar. Assim, a comunidade é
convidada a pedir ao Pai o dom da perseverança. Em outras palavras,
é um pedido de coragem para levar adiante um projeto tão audacioso
como o de Jesus. É necessário resistência para lutar pelo Reino,
contentar-se apenas com o necessário para cada dia e perdoar aos
devedores. Por isso, deve-se pedir constantemente para não
abandonar essa proposta de vida tão revolucionária e desafiadora.
Isso significa ainda que a nossa continuação no seguimento de Jesus
não depende apenas da nossa força ou vontade, mas da graça de
Deus, pois é Ele quem dá a força da perseverança.

Na mentalidade hebraica, o filho é aquele que é parecido com o pai.


Portanto, chamar a Deus de Pai era bastante comprometedor, pois
exigia muitas implicações concretas. Era muito mais cômodo chamá-lo
de Altíssimo, Onipotente ou Santíssimo, pois estas expressões
evocam a alguém distante e inacessível, aquele não está presente no
cotidiano da comunidade para relacionar-se com ela. O Deus de
Jesus, que é Pai, está presente. Os discípulos deveriam, assim como
Jesus, viver como filhos. Diante das exigências, a tendência à
desistência era muito comum. Por isso, Jesus pede que eles peçam,
constantemente, a graça de não abandonarem o seu projeto.
Como explicação para o conteúdo da oração ensinada, Jesus conta
duas pequenas parábolas: a do amigo inoportuno (vv. 5-8) e a do pai
terreno (v. 11). Ambas têm a função didática de explicitar a
proximidade do Deus-Pai e a necessidade da perseverança da
comunidade na oração. Esse Deus é muito mais disponível que um
amigo, e muito melhor que um pai terreno. Desse modo, Ele ressalta
que a qualquer momento se pode invocar esse Deus-Pai e, pedindo o
que é justo, jamais Ele deixará de atender.
Mas, qual o critério para fazer o pedido justo? É exatamente
pedindo, antes de tudo, o elemento imprescindível da oração, e este
só pode ser dado pelo Pai: O Espírito Santo! (v.13). A comunidade que
se deixa guiar pelo Espírito Santo, saberá discernir para pedir ao Pai
o que é, de fato, essencial. E, pedindo o essencial, é claro que o Pai
concederá, desde que em consonância com a sua vontade.
Pe. Francisco Cornelio Freire Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Questão para pensar: quando recitamos o Pai Nosso, lembramos da
práxis de Jesus e nos comprometemos com ela? Ou repetimos para
nos apaziguar e alcançar algo do "Pai Meu"?
EG 24
Evangelho de Lucas 12, 13-21

O evangelho proposto para este décimo oitavo domingo do tempo


comum é Lc 12,13-21, um texto que faz parte do contexto do longo
caminho de Jesus com seus discípulos para Jerusalém, onde viverá a
consumação da sua missão, com os eventos da paixão, morte e
ressurreição. Como temos enfatizado há alguns domingos, esse
caminho constitui a seção narrativa mais longa de todo o Evangelho
segundo Lucas, totalizando dez capítulos (cc. 9 – 19); inclusive, do
décimo terceiro ao trigésimo primeiro domingo do tempo comum,
neste ano C, o evangelho é tirado dessa seção. É importante recordar
também que, mais do que um percurso físico/geográfico, esse
caminho é, acima de tudo, um itinerário formativo, teológico e
catequético, através do qual Jesus apresenta os principais elementos
do seu ensinamento aos discípulos/a. Podemos dizer que Lucas juntou
os principais ensinamentos de toda a vida de Jesus e distribui-os na
seção do caminho, mesclando textos exclusivos seus com outros
comuns aos demais evangelhos sinóticos (Mateus e Marcos). Mesmo
que entrem em cena outros personagens durante o caminho, como no
episódio de hoje, os destinatários principais da mensagem são sempre
os discípulos. Assim, neste itinerário são abordados os temas
fundamentais para a formação do discipulado: a partilha, a
importância da oração, o universalismo da salvação e da missão, a
misericórdia para com os pecadores, a necessidade de fazer
renúncias e o perigo do apego aos bens materiais, tema do evangelho
de hoje.
Uma vez contextualizados, olhemos para o evangelho de hoje, um
texto exclusivo de Lucas, que compreende um pedido de intervenção
de Jesus por um homem desconhecido (v. 13), cuja resposta (vv.
14-15) é seguida de uma parábola que denuncia o perigo do apego aos
bens e a confiança nas riquezas (vv. 16-21). Eis o texto: “Alguém, do
meio da multidão, disse a Jesus: “Mestre, dize ao meu irmão que
reparta a herança comigo” (v. 13). Esse pedido reflete um costume da
época. Provavelmente, Jesus estava passando por um povoado, onde
as opiniões dos rabinos – como Jesus era considerado – eram
bastante requisitadas, sobretudo para ajudar a resolver questões
que envolvessem a interpretação da Lei, como casos de herança, por
exemplo. Inclusive, os rabinos eram muito interessados por questões
desse tipo e se sentiam honrados quando solicitados, pois, além de
ser uma oportunidade para exibir conhecimento, ainda recebiam uma
recompensa financeira quando conseguiam promover o acordo.
Provavelmente, o homem que pede a intervenção de Jesus era um
filho mais novo, já que era o mais velho quem tinha controle sobre
toda a herança da família, de acordo com a Lei. Enquanto o
primogênito tinha direito a dois terços da herança, o outro terço era
distribuído com os demais filhos (cf. Dt 21,16-17). Em compensação, o
primogênito tinha também o dever de cuidar da viúva e das irmãs
solteiras.
Geralmente, quando um filho mais novo pedia a divisão dos bens havia
conflitos, sendo necessária a intervenção de rabinos, os quais
exerciam papel de advogado e juiz, sobretudo, nos pequenos
povoados, onde quase ninguém conhecia a Lei em profundidade. Por
isso, na passagem de um rabino por um povoado, era comum aparecer
questões desse tipo. Ao pedido de intervenção, “Jesus respondeu:
“Homem, quem me encarregou de julgar ou de dividir vossos bens?”
(v. 14). Antes de tudo, Jesus se nega a agir como os rabinos do seu
tempo. A princípio, parece estranha a recusa, uma vez que, segundo a
Lei, alguém estava sendo injustiçado naquele caso. Como promotor da
fraternidade, é claro que Ele tinha interesse na resolução de
conflitos entre irmãos; portanto, Ele não está lavando as mãos, como
aparenta. Seria lógico que Jesus intervisse e ajudasse na resolução
do problema, deixando cada um com o percentual justo da herança,
conforme a Lei.
Com sua aparente omissão, Jesus estaria ajudando a prolongar a
discórdia entre os irmãos. Porém, Jesus conhecia as intenções
daquele homem e a mentalidade vigente; sabia que sua reclamação
não era motivada apenas por sentir-se injustiçado, mas pela ganância,
ou seja, por ter depositado toda a confiança naquela herança. E,
ajudando a resolver o problema, estaria ao mesmo tempo alimentando
a ganância e o desejo de acúmulo, enquanto o problema era muito
mais profundo. Resolvendo um caso a mais, não mudaria uma
mentalidade tão impregnada naquela cultura. Assim, Ele vai à raiz do
problema. Ora, aquela herança um dia passaria por nova divisão,
quando aquele homem morresse e a deixasse para seus filhos. Poderia
ser causa de discórdia novamente. Jesus quer mostrar que no seu
Reino as heranças não devem ser divididas, pois não devem existir,
uma vez que tudo deve ser partilhado. Isso Ele deixará claro com a
parábola que segue. Ao invés de legalmente divididos, os bens devem
ser partilhados conforme a necessidade de cada pessoa, e não de
acordo com normas legais.
A parábola vai sendo preparada aos poucos. Do caso específico do
homem que lhe pede intervenção, Jesus aproveita para chamar a
atenção dos discípulos: “E disse-lhes: Tomai cuidado contra todo tipo
de ganância, porque, mesmo que alguém tenha muitas coisas, a vida do
homem não consiste na abundância de bens” (v. 15). A expressão
“disse-lhes” sinaliza que não é mais a um indivíduo, mas ao grupo dos
discípulos que Ele está direcionando o ensinamento. É uma dura
advertência. Certamente, Ele sentia muita resistência nos seus
seguidores no processo de assimilação de seus ensinamentos. Assim,
Ele vai de encontro à mentalidade hebraica que via no acúmulo de
bens, ou seja, na riqueza, um sinal da bênção de Deus. Jesus
contraria esse princípio. O acúmulo de bens é, na verdade, a prova
maior da falta de sentido para a vida e, inclusive, causa de discórdias.
Portanto, é urgente para seus seguidores e seguidoras libertarem-se
dos bens que aprisionam e escravizam. Provavelmente, os discípulos
ainda não tinham aprendido a rezar como Ele e estavam pedindo,
ainda, mais que o pão necessário para cada dia (cf. Lc 11,2-4).
Finalmente, chegamos na parábola. Recordamos que, em Lucas,
especialmente, as parábolas não surgem do nada, mas são
aprofundamento ou ilustração de um ensinamento já começado e
visam responder a questão concretas da existência, como acontece
neste episódio: “E contou-lhes uma parábola: “A terra de um homem
rico deu uma grande colheita” (v. 16). A expressão “contou-lhes”
evidencia, mais uma vez, que o destinatário já não é mais o homem
anônimo, mas os discípulos. A parábola apresenta a figura de um
homem rico, grande latifundiário, o qual fora surpreendido com uma
grande colheita. A atitude e o pensamento do personagem da
parábola com a colheita abundante são descritos a partir de um
monólogo interior, através do qual é revelado, sobretudo, o seu
caráter: “Ele pensava consigo mesmo: ‘O que vou fazer? Não tenho
onde guardar minha colheita’. Então resolveu: ‘Já sei o que fazer! Vou
derrubar meus celeiros e construir maiores; neles vou guardar todo o
meu trigo, junto com os meus bens. Então poderei dizer a mim
mesmo: Meu caro, tu tens uma boa reserva para muitos anos.
Descansa, come, bebe, aproveita!’” (vv. 17-19). Convém mencionar que,
como escritor refinado que é, Lucas é o único autor do Novo
Testamento a empregar o recurso do monólogo interior.
Como se vê, o personagem da parábola é um homem voltado somente
para si mesmo. Quase todas as suas falas são em primeira pessoa
singular (vou fazer; vou derrubar; vou guardar; poderei), além de um
uso excessivo de pronomes possessivos (minha; meus), o que revela
um egoísmo profundo. Toda a sua confiança é depositada na
abundância dos bens. Em seu pensamento não há espaço para Deus e
nem para o próximo; ele pensa somente em si e nos bens que possui, e
esse é o seu grande pecado. Esse homem representa o
“anti-discípulo”: apegado aos bens, ganancioso, egocêntrico,
autossuficiente e insensato. Tudo o que os discípulo e discípulas de
Jesus não podem ser, esse homem era.
A vida de uma pessoa perde o sentido quando não contempla Deus e o
próximo. Por isso, a intervenção divina: “Mas Deus lhe disse: ‘Louco!
Ainda nesta noite, pedirão de volta a tua vida. E para quem ficará o
que tu acumulaste?’” (v. 20). Aqui, não se trata de um ato vingativo de
Deus, mas de um alerta, um convite à reflexão que é feita a cada
pessoa, independente da quantidade dos bens acumulados. Quer dizer
que é Deus a fonte da vida. É o sinal de contraposição à falsa
segurança depositada, na riqueza, pelo homem (cf. v. 19). Enquanto
ele julgava ter vida longa pelo que havia acumulado, Deus entra na
história para mostrar o que, de fato, tem valor. A pergunta final: “E
para quem ficará o que tu acumulaste?” (v. 20b) é apenas uma ponte
com o que gerou toda a discussão e a parábola: o pedido de
intervenção daquele homem anônimo na divisão da herança. Além de
não garantir vida verdadeira, os bens acumulados ainda são causa de
discórdia, tirando a harmonia e a paz das pessoas.
Com a frase final, Jesus completa o sentido da parábola e reforça a
chamada de atenção nos discípulos: “Assim acontece com quem ajunta
tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (v. 21). O
acúmulo para si, como do personagem da parábola, leva o ser humano
a deixar de refletir sobre a vida e o seu sentido, tirando Deus e o
próximo do seu horizonte. Isso é, consequentemente, empobrecer-se
diante de Deus. Ser rico diante de Deus é, por outro lado, estar à
disposição do seu projeto, cuja manifestação mais clara é a partilha e
o serviço ao próximo. É isso que dá sentido à vida e torna a pessoa
rica diante de Deus. Sendo a vida dom de Deus, essa só tem sentido
quando o ser humano também se faz dom para o próximo. Jesus
ensina, assim, a partir do pedido que o homem desconhecido lhe fez,
aos seus discípulos a conscientizarem-se da incompatibilidade entre o
seu seguimento e as riquezas deste mundo. Para isso, rompe,
inclusive, com um princípio sagrado para o povo judeu, a herança. Se
alguém deixou herança, foi porque acumulou. Se acumulou, foi porque
não partilhou e, quem não partilha, não está apto a fazer parte do seu
Reino.
Pe. Francisco Cornelio F. Rodrigues – Diocese de Mossoró-RN
Para pensar e refletir:
Deus do acúmulo ou Deus da vida. Deus abençoa com o acúmulo de
bens?

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