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AULA 6
Há duas dimensões que marcam a nossa vida humana e que também são
perpassadas, no mistério da liturgia, pela dinâmica da sacramentalidade: o
tempo e o espaço. Quando falamos do calendário litúrgico ou do espaço
celebrativo, não estamos nos referindo em primeiro lugar a aspectos funcionais,
que ajudam a organizar o nosso cotidiano como comunidade. Estamos
realmente falando de realidades sacramentais, isto é, estamos falando de como
também o tempo e o espaço são penetrados pelo mistério pascal de Cristo e de
como esse mistério se manifesta também na nossa experiência temporal e
espacial.
Outra coisa importante a notar é que se falamos da liturgia como rito,
então fica claro que ela está associada à ideia de movimento, de ação, o que já
implica uma relação muito íntima com o tempo e com o espaço. Nesta aula,
vamos falar dos grandes traços que estruturam o tempo e o espaço litúrgicos,
mas é bom ter em mente que também no microcosmo de cada ação litúrgica,
precisamente a partir do próprio gesto ritual, essas duas dimensões estão bem
presentes — e isso implica um cuidado com a forma como as experimentamos.
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reinterpreta à luz do evento de Cristo. Adolf Adam (2019, p. 17) afirma o seguinte
em relação a isso:
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início do cristianismo como o dia da reunião da assembleia litúrgica para a fração
do pão. Devido à influência cristã é que o domingo, entre os dias da semana, se
consolidou como dia de festa e de repouso.
O domingo, portanto, confere um ritmo ao nosso cotidiano, colocando-o à
luz do dia da ressurreição. Justamente “o encontro do dia da ressurreição e de
nosso velho tempo, do tempo novo oferecido pelo Espírito e do tempo vivido pelo
fiel, é o que faz de nosso tempo um tempo sacramental”, como afirma Corbon
(1981, p. 137). Trata-se de uma “irradiação do dia da ressurreição”, que “não nos
atinge como uma lembrança ou um ideal abstrato”, mas como “energia constante
do Espírito Santo em nosso tempo mortal” — com um poder “não exterior
àqueles que o acolhem, mas dentro deles”, diz Corbon (191, p. 137).
O domingo é também acolhido pelos cristãos como o oitavo dia, “o
começo de uma nova e mais grandiosa criação, que vai desembocar no repouso
sabático eterno da consumação de tudo”, como afirma Adam (2019, p. 27). A
ressurreição se identifica com a criação e a supera, renovando todas as coisas
em Cristo.
A partir do domingo e da celebração anual da Páscoa, que a Igreja passou
a observar já no fim do século I, estrutura-se o ano litúrgico. Com a sequência
dos tempos litúrgicos, centrados nos dois grandes eixos da Páscoa e do Natal,
o decorrer do nosso ano se inscreve no mistério de Cristo. Nesse sentido,
Corbon (1981, p. 137-138) afirma:
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do mistério de Cristo, em que tudo flui a partir da Páscoa e, também, da
encarnação.
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A liturgia das horas assume, acima de tudo, a voz dos salmos para elevar
o seu louvor ao longo do dia — e a assume como voz de Cristo. Desde a Igreja
antiga, difundiu-se o uso de determinados títulos e epígrafes que sublinhassem
a dimensão cristológica de cada salmo. Para os monges do deserto, o ofício
divino consistia quase que somente na recitação contínua e melodiosa dos
salmos, nas horas tradicionais de oração ao longo da jornada — falamos dessas
horas anteriormente. Com o tempo, porém, novas composições hínicas —
fenômeno originado nas comunidades urbanas, nas catedrais —, inicialmente
rejeitadas pelos monges, que preferiam se ater ao texto bíblico, foram
introduzidas também nos mosteiros, bem como usos rituais mais elaborados.
São essas liturgias das catedrais, de fato, que configuraram o modelo de
ofício divino que perdurou pelos séculos. Robert Taft (2004, p. 174-175, tradução
nossa) descreve os traços dessas celebrações em boa parte do primeiro milênio,
no Oriente e no Ocidente:
Com esse desenvolvimento, a liturgia das horas permitiu ainda que cada
mistério celebrado ao longo do ano litúrgico fosse degustado de modo mais
detido. Com relação a isso, Adam (2019, p. 213) afirma:
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compendiado num volume só, chamado por isso de “breviário”. Por esse fator,
entre outros, o ofício acabou cada vez mais identificado como uma oração
privada, individual.
A forma do ofício adotada com o Concílio de Trento trazia muitas
dificuldades, entre outros motivos porque tentava fazer caber no espaço de uma
oração individual ou de uma pequena comunidade religiosa um rito preparado
para as catedrais. No século XX, os papas Pio X, Pio XII e João XXIII chegaram
a efetuar reformas importantes no ofício divino. Mas uma reforma profunda, “não
somente rubrical e formal”, como diz Adrien Nocent (1986, p. 202), é
empreendida apenas com o Concílio Vaticano II, com o objetivo de, ainda
segundo Nocent (1986, p. 202), “reencontrar as verdadeiras linhas da oração
litúrgica da Igreja”. Ainda temos muito a caminhar, como comunidade eclesial,
para acolher esse grande legado da reforma litúrgica de modo efetivo.
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os dois grandes polos em que se desenrola a celebração da eucaristia. “Um é
incompreensível sem o outro e vice-versa. O ambão é o lugar da proclamação
da palavra de Deus e a palavra se torna carne sobre o altar”, explica
Chengalikavil (1993, p. 118).
Nos dias de hoje, em que a Igreja finalmente se liberta de uma condição
paraestatal e em que se reafirma a liberdade de adesão ou não à fé, é importante
revalorizar outro espaço do edifício eclesial comum no primeiro milênio: o átrio.
É o espaço em que a comunidade se encontra de braços abertos com quem não
é membro dela. “É o lugar da acolhida, do receber o outro, o hóspede”, aponta
Pastro (2014, p. 32). Ao mesmo tempo, é o espaço que manifesta a transição,
tanto para cada fiel que aí prepara seu corpo e sua interioridade para entrar no
espaço litúrgico, quanto como lugar dos simpatizantes, dos catecúmenos, dos
que desejam se aproximar da experiência eclesial. Pelas mesmas razões,
renova-se a consciência da importância do batistério, “o lugar do novo
nascimento, porta de entrada para se fazer parte do corpo místico”, como diz
Pastro (2017, p. 74).
“O espaço determina muitas coisas”, afirma Rupnik (2019, p. 102). Isso
vale para todo o nosso cotidiano: nossos quartos, escritórios, salas de aula,
bairros — o modo como o espaço está configurado influi muito mais em nós do
que possamos perceber. Isso vale também para o espaço litúrgico, lugar que se
propõe a hospedar experiências tão profundas e determinantes. Não podemos
subestimar o papel sacramental desempenhado pela configuração do espaço na
experiência ritual.
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Corbon (1981, p. 145-146) diz que “o espaço iconográfico de nossas
igrejas é um espaço aberto ao Senhor que vem, espaço em expectativa e
cumulado, espaço portador do mundo e atraído pelo Reino, lugar de epiclese do
Espírito Santo e da transformação de toda oferenda no corpo de Cristo”. É uma
arte que revela uma presença, que a sacramentaliza, não à parte ou
paralelamente aos sinais sacramentais centrais da liturgia, mas reconhecendo
aí a sua fonte. Por isso, não basta que seja tematizada por assuntos religiosos,
retratando cenas bíblicas ou da vida dos santos. Como em tudo o que tem a ver
com a liturgia, a forma dessa arte é indissociável do seu conteúdo. É uma arte
conatural à liturgia.
Desse modo, ela exige “uma linguagem e uma expressão artística por
meio da qual os mistérios teológicos possam fluir e os mistérios celebrados na
liturgia se fazerem próximos”, sem que haja “um desencontro das estéticas”, diz
Marko Ivan Rupnik (2005, p. 584, tradução nossa). Se olhamos para as formas
litúrgicas básicas, veremos algo de muito simples e sóbrio, mas também denso
e envolvente: o pão e o vinho, o gesto de impor as mãos ou de persignar-se, o
banho batismal, os santos óleos, o caminhar em procissão, o estilo literário das
fórmulas eucológicas — nada disso é complicado, exagerado, empetecado. E
precisamente assim se dá a dinâmica da sacramentalidade, porque esses
elementos são tão simples que se permitem atravessar por uma presença e
manifestá-la. Neles não há nada de artificial ou de ilusório — o pão eucarístico
não precisa se disfarçar para manifestar a presença de Cristo: manifesta-a como
pão, com a beleza simples do pão.
Da mesma maneira, também a arte sacra é chamada a se deixar acolher
nessa linguagem, expressando “a sobriedade e a robustez doutrinal, dogmática,
dos mistérios”, nas palavras de Rupnik (2005, p. 585, tradução nossa). É
precisamente por isso que os iconógrafos, segundo a tradição, precisam
percorrer a via da ascese: “O iconógrafo poderia cair na tentação de inebriar-se
da abundância de belas formas que um símbolo concreto lhe oferece. Toma,
portanto, consciência da necessidade de um ‘jejum dos olhos’, graças ao qual
se torna capaz de rejeitar as formas inúteis”, explica Rupnik, com Tomáš Špidlík
(2000, p. 14, tradução nossa). É Rupnik (2005, p. 584, tradução nossa) também
quem afirma:
Essa é uma característica da arte pagã, que busca neste mundo uma
forma da perfeição que se apresente como modelo absoluto. Aquilo
que a arte cristã representa não é um ideal formal, mas parte da
realidade criatural, que é algo de frágil, vulnerável à tentação, exposto
ao pecado, à morte, à imperfeição. [...] Consequentemente, essa arte,
junto à incompletude, faz ver a obra de Cristo por meio do Espírito
Santo no homem, na criação. A sua beleza é o homem junto àquilo que
Deus realiza nele. A beleza está na dinâmica divino-humana, que é
uma dinâmica salvífica e transfigurante. E essa dinâmica é Cristo,
porque Cristo é a humanidade junto à obra que Deus realizou nela.
Apenas a unidade dessas duas dimensões mostra a totalidade da vida,
a sua verdade. E dessa verdade se faz testemunha a arte dos cristãos.
Por causa de tal unidade orgânica entre o frágil e a glória, é evidente
que essa arte está estruturada à maneira do símbolo. [...] Quando, ao
contrário, a arte dos cristãos alcança a perfeição formal da arte pagã e
a importa diretamente ao âmbito eclesial, não suscita mais nos crentes
a oração, a devoção, não constitui mais um todo coerente com a
liturgia, organizado de tal modo a dispor os fiéis a receber os divinos
mistérios, porque não exprime mais a obra de Deus, a dinâmica divino-
humana. E se alguém pudesse pensar que a perfeição formal pertence
ao homem redimido, essa visão não considera que a redenção não é
uma realidade estática, mas uma dinâmica permanente. O homem
redimido não é um modelo fixo de perfeição, mas uma vida de
comunhão, e, portanto, toda tentativa de perfeição formal leva para
longe da verdade, da vida, porque uma perfeição assim só é possível
fora da vida, em um mundo pensado idealmente.
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A beleza da arte sacra, como a beleza do anúncio cristão, só pode ser “a
beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e
ressuscitado”, o “núcleo fundamental” que está “no coração do Evangelho”,
como afirma o Papa Francisco na exortação apostólica Evangelii gaudium (n.
36). “O espaço cristão é belo, pois é o lugar da criação renovada em Jesus”,
lugar da “epifania do reino”, diz Pastro (2014, p. 32-33). Precisamente assim é
que, também nas palavras da exortação Evangelii gaudium (n. 24), “a Igreja
evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia”.
NA PRÁTICA
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FINALIZANDO
Falar sobre o tempo e o espaço em sua relação com a liturgia nos torna
ainda mais conscientes de como na ritualidade está em jogo tudo o que somos,
com o nosso corpo, com as nossas relações e com a nossa percepção do tempo
e do espaço. Trata-se das nossas experiências mais tangíveis, e ao mesmo
tempo mais profundas: podemos não perceber, mas elas marcam as
coordenadas do modo como vivemos, dão forma a quem nós somos. Porque são
dinâmicas simbólicas: unem, integram, manifestam uma coisa na outra.
Por isso, Rupnik (2019, p. 80) diz: “Aquilo que acontece na eucaristia,
acontece também depois da liturgia. Nós aprendemos a comer da eucaristia, a
vestir-nos da eucaristia, a arrumar a casa a partir da eucaristia”. O rito nos forja
para um modo novo de nos relacionarmos com a matéria, com a comida, com o
estudo, com o trabalho — e, sobretudo, com o outro. A liturgia é a escola de uma
arte espiritual, que “permite fazer emergir o nexo entre qualquer situação
humana e Cristo”, que nos educa a “dar espaço à vida no Espírito, é fazer viver
em nós o dom”, ainda segundo Rupnik (2017, p. 187, tradução nossa), que
continua:
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REFERÊNCIAS
NOCENT, A. História dos livros litúrgicos romanos. In: MARSILI, S.; PINELL, J.;
TRIACCA, A. M. et al. Panorama histórico geral da liturgia. São Paulo:
Paulinas, 1986, p. 161-202.
RUPNIK, M. I. Applicazione del concilio: quale arte per la liturgia? Notitiae, v. 41,
2005, p. 579-587.
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SILVA, J. A. Os elementos fundamentais do espaço litúrgico para a
celebração da missa: sentido teológico e orientações pastorais. São Paulo:
Paulus, 2006.
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