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LITURGIA I

AULA 6

Prof. Felipe Sérgio Koller


CONVERSA INICIAL

Há duas dimensões que marcam a nossa vida humana e que também são
perpassadas, no mistério da liturgia, pela dinâmica da sacramentalidade: o
tempo e o espaço. Quando falamos do calendário litúrgico ou do espaço
celebrativo, não estamos nos referindo em primeiro lugar a aspectos funcionais,
que ajudam a organizar o nosso cotidiano como comunidade. Estamos
realmente falando de realidades sacramentais, isto é, estamos falando de como
também o tempo e o espaço são penetrados pelo mistério pascal de Cristo e de
como esse mistério se manifesta também na nossa experiência temporal e
espacial.
Outra coisa importante a notar é que se falamos da liturgia como rito,
então fica claro que ela está associada à ideia de movimento, de ação, o que já
implica uma relação muito íntima com o tempo e com o espaço. Nesta aula,
vamos falar dos grandes traços que estruturam o tempo e o espaço litúrgicos,
mas é bom ter em mente que também no microcosmo de cada ação litúrgica,
precisamente a partir do próprio gesto ritual, essas duas dimensões estão bem
presentes — e isso implica um cuidado com a forma como as experimentamos.

TEMA 1 – TEMPO E LITURGIA

Falar de tempo na liturgia é, em grande medida, falar de festa. São as


festas que marcam o tempo, porque de fato o diferenciam em nossa experiência
— um calendário por si mesmo é apenas uma sequência de dias iguais. “As
festas são o tempo. Uma vida sem festas é uma linha reta de coisas
indiferenciadas”, diz Fabio Rosini (2021, p. 107).
Nas experiências primitivas, as festas que marcavam o ritmo do tempo
mantinham um vínculo profundo e vivo com os ritmos do universo e do planeta:
as estações, os tempos de plantio e de colheita, a posição das estrelas, as fases
da lua e as marés e assim por diante. No fim das contas, tempo e espaço não
são realidades tão fáceis de serem separadas: o nosso tempo é percebido pelo
percurso no espaço dos astros celestes e é sobre esse substrato cósmico que
os povos estabelecem as suas festas e seus marcos.
Demos um passo adiante e olhemos para a experiência do povo da antiga
aliança e, em seguida, para como a comunidade cristã recebe essa tradição e a

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reinterpreta à luz do evento de Cristo. Adolf Adam (2019, p. 17) afirma o seguinte
em relação a isso:

As festas primitivas da natureza foram cada vez mais sobrepostas e


mesmo absorvidas pela comemoração de acontecimentos da história
salvífica de Israel, das suas experiências e dos seus contatos salvíficos
com Javé, o Deus da Aliança. Os cristãos, por sua origem e ligação
com o povo judeu e sua religião, conheceram estas festas
comemorativas das ações salvíficas de Deus. Depois da experiência
do acontecimento de Cristo nada mais lógico que a obra salvífica da
Páscoa cristã projetasse sua luz sobre todas as festas do judaísmo, e
se tornasse, por sua vez, o objeto central das festas e celebrações do
cristianismo.

Desse modo, a comunidade eclesial reconhece que o mistério de Cristo


ocupa o centro da história: o Filho nos foi enviado na plenitude do tempo. Nada
pode ser mais determinante na história do que a encarnação do Verbo, do que
a vida daquele que, fazendo-se totalmente dom, entra na morte com o poder da
Vida. O Ressuscitado é o critério — o juiz, na linguagem bíblica — de toda a
história. Quando fazemos memória dele, entramos no seu hoje: essa memória é
vivificada pelo Espírito, que nos acolhe na eternidade de Cristo, em quem o
passado, o presente e o futuro são simultâneos.
“Esse ‘hoje’ do Deus vivo em que o homem pode entrar é a hora de Jesus.
Sua Páscoa é o evento que transpassa e carrega toda a história”, afirma Jean
Corbon (1981, p. 136). Transpassados pela experiência de Cristo, também o
tempo se torna para nós um símbolo, um sacramento, um lugar de encontro com
o Senhor. Corbon (1981, p. 137) diz que “quando celebramos Cristo, nossa
Páscoa, nosso tempo é penetrado por este dia, transfigura-se, torna-se
sacramental”. A essa luz, o tempo é a história de um relacionamento. Nós
aprendemos a “apontar a bússola da nossa existência não conforme o
calendário, mas conforme os encontros com Deus”, indica Rosini (2021, p. 105).
Bem antes de saber identificar os tempos litúrgicos, as semanas do
saltério e as festas do martirológio, é importante se dar conta dessa urdidura
sacramental que a experiência do tempo adquire quando perpassada pelo
mistério de Cristo.

TEMA 2 – O DOMINGO E O ANO LITÚRGICO

A própria palavra portuguesa “domingo” tem a sua origem na expressão


latina para “dia do Senhor”, dies dominica, ou simplesmente dominicum. É o dia
em que o Ressuscitado se manifestou e que, por isso, foi observado desde o

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início do cristianismo como o dia da reunião da assembleia litúrgica para a fração
do pão. Devido à influência cristã é que o domingo, entre os dias da semana, se
consolidou como dia de festa e de repouso.
O domingo, portanto, confere um ritmo ao nosso cotidiano, colocando-o à
luz do dia da ressurreição. Justamente “o encontro do dia da ressurreição e de
nosso velho tempo, do tempo novo oferecido pelo Espírito e do tempo vivido pelo
fiel, é o que faz de nosso tempo um tempo sacramental”, como afirma Corbon
(1981, p. 137). Trata-se de uma “irradiação do dia da ressurreição”, que “não nos
atinge como uma lembrança ou um ideal abstrato”, mas como “energia constante
do Espírito Santo em nosso tempo mortal” — com um poder “não exterior
àqueles que o acolhem, mas dentro deles”, diz Corbon (191, p. 137).
O domingo é também acolhido pelos cristãos como o oitavo dia, “o
começo de uma nova e mais grandiosa criação, que vai desembocar no repouso
sabático eterno da consumação de tudo”, como afirma Adam (2019, p. 27). A
ressurreição se identifica com a criação e a supera, renovando todas as coisas
em Cristo.
A partir do domingo e da celebração anual da Páscoa, que a Igreja passou
a observar já no fim do século I, estrutura-se o ano litúrgico. Com a sequência
dos tempos litúrgicos, centrados nos dois grandes eixos da Páscoa e do Natal,
o decorrer do nosso ano se inscreve no mistério de Cristo. Nesse sentido,
Corbon (1981, p. 137-138) afirma:

Quando a luz da vida incorruptível jorra do sepulcro, leva o nosso ano


cíclico para além do círculo da morte. A repetição era uma prova de
incapacidade na soleira da plenitude. Mas para aqueles que já
ressuscitaram com Cristo, o ano é atraído para a sinergia da liturgia
eterna: torna-se “litúrgico”, se quisermos compreender a expressão
não como um calendário de festas, mas como a manifestação do
mistério, desposando os ritmos de nosso tempo. Emanando da
Páscoa, avançando gradativamente, de um lado e de outro do centro,
o ano é transfigurado pela liturgia, torna-se sacramental. Sinal
transparente do dia da ressurreição, cada parcela do seu processo
refrata a plenitude da liturgia.

É à luz do ciclo pascal, centro gravitacional do ano litúrgico, que se celebra


também na Igreja a memória dos santos. O calendário santoral é “celebração do
santo corpo de Cristo”, fruto do mistério pascal: celebramos a comunhão de
todos os santos justamente próximos do fim do tempo comum, como uma
aguardada “realização de Pentecostes”, nas palavras de Corbon (1981, p. 140).
É importante, portanto, notar a organicidade do ano litúrgico, não considerando-
o como um amontoado de festividades desagregadas, mas como manifestação

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do mistério de Cristo, em que tudo flui a partir da Páscoa e, também, da
encarnação.

TEMA 3 – A LITURGIA DAS HORAS

O mistério celebrado na liturgia atravessa também as menores unidades


de nossa experiência do tempo com a liturgia das horas, ou ofício divino. Ainda
pouco difundida entre as comunidades, apesar da insistência da reforma litúrgica
em desvincular dela a pecha de oração própria das ordens religiosas ou dos
ministros ordenados, a liturgia das horas faz com que o decorrer de cada dia se
transpareça em símbolo do Senhor que vem. “Por ela, o mistério da liturgia
celebrado no domingo penetra e transfigura o tempo de cada dia”, diz Corbon
(1981, p. 141).
É verdade que a liturgia das horas é a oração oficial da Igreja, mas não
custa relembrar que a ekklesía é a realidade divino-humana em que Cristo nos
insere em sua vida e que participa do exercício do seu sacerdócio. Na liturgia
das horas, portanto, a nossa oração mergulha no fluxo da oração que o Filho
dirige ao Pai em toda a eternidade. “O ofício é nossa penetração encarnada na
própria oração de Jesus. A oração do Verbo dirigida ao Pai expande-se e ganha
corpo em nós, em sinergia com o Espírito Santo, no enlevo do louvor”, afirma
Corbon (1981, p. 141).
Dessa maneira, “toda atividade encontra o seu ponto de referência no
louvor prestado a Deus”, como diz Bento XVI, na exortação apostólica pós-
sinodal Verbum Domini (n. 62). É a nossa experiência mais imediata do tempo,
do amanhecer ao repouso, que é eucaristizada, ou seja, ofertada como ação de
graças ao Pai. Assim, segundo Corbon (1981, p. 141), “esse tempo atual e mortal
é transformado em oferenda no orvalho do Espírito”.
Nesse sentido, é importante notar que a natureza sacramental do ofício
divino acolhe o próprio decorrer do dia como símbolo do Senhor — e o
desenvolvimento da jornada não é uma abstração matemática, mas é algo que
se experimenta com o ritmo do sono e da vigília, do nascer e do pôr do sol, das
mudanças de temperatura e de luminosidade. As horas da liturgia das horas são
vistas não olhando para o relógio, mas para o céu. É claro que aqui também
temos uma dificuldade em relação às nossas formas de vida contemporâneas,
em que perdemos em enorme medida a sensibilidade para os ritmos do planeta.

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A liturgia das horas assume, acima de tudo, a voz dos salmos para elevar
o seu louvor ao longo do dia — e a assume como voz de Cristo. Desde a Igreja
antiga, difundiu-se o uso de determinados títulos e epígrafes que sublinhassem
a dimensão cristológica de cada salmo. Para os monges do deserto, o ofício
divino consistia quase que somente na recitação contínua e melodiosa dos
salmos, nas horas tradicionais de oração ao longo da jornada — falamos dessas
horas anteriormente. Com o tempo, porém, novas composições hínicas —
fenômeno originado nas comunidades urbanas, nas catedrais —, inicialmente
rejeitadas pelos monges, que preferiam se ater ao texto bíblico, foram
introduzidas também nos mosteiros, bem como usos rituais mais elaborados.
São essas liturgias das catedrais, de fato, que configuraram o modelo de
ofício divino que perdurou pelos séculos. Robert Taft (2004, p. 174-175, tradução
nossa) descreve os traços dessas celebrações em boa parte do primeiro milênio,
no Oriente e no Ocidente:

Centrados no mistério pascal, os ofícios das catedrais eram ofícios de


latreia, culto, destinados a louvar e a adorar a Deus em ação de graças
pela sua salvação em Jesus Cristo e para suplicar a sua ajuda e o seu
favor. [...] Esses ofícios populares eram caracterizados por símbolos e
cerimoniais (candelabros, incenso, procissões, etc.), por cantos da
assembleia (salmodia responsorial e antifonal, refrões populares e
hinos), celebrados sob a guia de um presidente da assembleia (bispos,
presbíteros) e com a participação de todos os ministros ordenados
menores (diáconos, leitores, salmistas, etc.). Além disso, destinavam-
se à participação popular dos “amadores”. A sua estrutura era simples
e quase invariável. A oração de súplica pelas necessidades do povo
ocupava grande parte dos ofícios. E [...] a salmodia era limitada e
selecionada, em vez de contínua e completa.

Com esse desenvolvimento, a liturgia das horas permitiu ainda que cada
mistério celebrado ao longo do ano litúrgico fosse degustado de modo mais
detido. Com relação a isso, Adam (2019, p. 213) afirma:

No decurso dos séculos, a liturgia das horas se transformou numa


imagem singular do ano litúrgico, num documento eucológico com
grande força de expressão, verdadeira obra de arte literária capaz de
exprimir tanto a alegria festiva pela obra salvífica de Cristo quanto a
oração de súplica que brota dos variados e múltiplos anseios e
padecimentos do povo peregrino de Deus.

Originalmente, o material que compõe o ofício divino no rito romano


incluía, em primeiro lugar, o próprio saltério, e um hinário e um homiliário — com
os textos patrísticos adotados no ofício de leituras. As primeiras compilações de
hinos e de homilias patrísticas que conhecemos na liturgia do Ocidente são do
século VIII. Só mais tarde, no começo do segundo milênio, todo esse material foi

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compendiado num volume só, chamado por isso de “breviário”. Por esse fator,
entre outros, o ofício acabou cada vez mais identificado como uma oração
privada, individual.
A forma do ofício adotada com o Concílio de Trento trazia muitas
dificuldades, entre outros motivos porque tentava fazer caber no espaço de uma
oração individual ou de uma pequena comunidade religiosa um rito preparado
para as catedrais. No século XX, os papas Pio X, Pio XII e João XXIII chegaram
a efetuar reformas importantes no ofício divino. Mas uma reforma profunda, “não
somente rubrical e formal”, como diz Adrien Nocent (1986, p. 202), é
empreendida apenas com o Concílio Vaticano II, com o objetivo de, ainda
segundo Nocent (1986, p. 202), “reencontrar as verdadeiras linhas da oração
litúrgica da Igreja”. Ainda temos muito a caminhar, como comunidade eclesial,
para acolher esse grande legado da reforma litúrgica de modo efetivo.

TEMA 4 – O ESPAÇO LITÚRGICO

A comunidade cristã não tem uma noção de espaço litúrgico como


habitação divina, sagrado por oposição aos outros espaços, que seriam profanos
e desprovidos da presença de Deus. O edifício eclesial não é para nós um
templo, no estilo dos judeus ou dos pagãos, mas, em primeiro lugar, um espaço
para celebrar — perceba que os templos pagãos tinham na verdade uma área
muito diminuta, onde se abrigava a representação da divindade, mas as pessoas
ficavam do lado de fora, no peristilo. O edifício cristão é outra coisa: é a casa da
Igreja, a domus ecclesiae, como foi chamado pelos cristãos dos primeiros
séculos. Ser um espaço apropriado para a ação ritual que a assembleia realiza
é a sua primeira destinação.
Uma vez que aí se celebre a liturgia, porém, nos damos conta de que o
espaço em que celebramos não é o prédio, mas é o próprio Cristo, o único templo
da nova aliança, “o lugar misterioso, ‘oculto no Pai’, onde celebramos
sacramentalmente a liturgia eterna”, “nosso espaço de vida, nosso ‘novo
universo’ (Ap 21,5)”: é “nele que celebramos os mistérios da fé até que tudo se
tenha tornado ‘um novo céu e uma nova terra’, ‘morada de Deus com os homens’
(Ap 21,1ss)”, diz Corbon (1981, p. 143). Nós celebramos no “‘não-lugar’ de Cristo
ressuscitado”: o espaço “não está mais fechado em si mesmo, libertou-se da
morte, é invadido por aquele que tudo contém em seu próprio corpo”, continua
Corbon (1981, p. 144).
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Assim, o espaço que abriga a celebração litúrgica também é chamado a
se transfigurar à luz do mistério celebrado. Se Cristo está presente na liturgia,
“tal presença deve ser percebida, sentida, como que de maneira palpável, já
quando alguém entra num local preparado para uma celebração litúrgica, seja
numa igreja, seja em outro espaço”, de modo que o próprio espaço “deve nos
comunicar essa presença”, afirma José Ariovaldo da Silva (2006, p. 9). E o
espaço no-la comunica precisamente enquanto expressão sacramental do corpo
de Cristo que aí se reúne. “Que vem a ser a Igreja, como espaço sacramental,
senão o ícone do corpo de Cristo, do Cristo ‘total’?”, questiona Corbon (1981, p.
145). Silva (2006, p. 11-12) desenvolve esse ponto da seguinte forma:

Uma vez constituída, mais que um mero ajuntamento de pessoas, ela


é uma comunhão de cristãos e cristãs, dispostos a ouvir atentamente
a palavra de Deus, e celebrar dignamente a Eucaristia. Melhor ainda:
é o próprio corpo de Cristo, cujos membros somos cada um de nós. E
isto significa que, como tal, deve tratar-se de uma assembleia
altamente participativa. Assim sendo, também o espaço da assembleia
deve aparecer como um “espaço de Cristo” enquanto corpo feito de
muitos membros. E que todos os fiéis reunidos possam senti-lo como
tal, tanto pela disposição arquitetônica geral do espaço como pela
disposição dos bancos ou cadeiras, em que todos os membros da
assembleia possam sentir-se realmente como corpo bem unido, na
escuta atenta da Palavra e na participação digna da liturgia eucarística.

Por isso, como vimos em conteúdo anterior, os cristãos do primeiro


milênio — permanente inspiração para nós — costumavam representar na parte
superior da abside o Cristo em glória, elevado aos céus, que preside a ação
litúrgica. Corbon (1981, p. 43-44) comenta:

Temos de admirar, para nos enriquecer, a intuição dos primeiros


séculos cristãos, até o início do segundo milênio: é o Cristo da
ascensão que está no centro da abóbada das igrejas. Quando o povo
de Deus se reúne para manifestar e tornar-se o corpo de Cristo, seu
Senhor ali se encontra, e ele vem. É a Cabeça e atrai seu corpo para
o Pai, vivificando-o pelo seu Espírito. A iconografia das igrejas do
Oriente e do Ocidente, durante este período, é como que o desvendar
do mistério da ascensão à dimensão de toda a Igreja. O Cristo, o
“Senhor de tudo” (pantocrator) é “a pedra angular que fora rejeitada
pelos construtores”: levantado sobre a cruz ergue-se para o Pai com
quem se torna, na sua humanidade vivificante fonte do rio da vida. Na
abóbada da abside, vemos a Mulher e seu Filho (Ap 12): na mesma
visão, a Virgem que dá à luz e a Igreja no deserto. No santuário, anjos
da ascensão ou outras expressões das teofanias do Espírito Santo.
Enfim, nas paredes da igreja, as pedras vivas, a multidão dos santos,
“a nuvem das testemunhas”, a Igreja dos “primogênitos” (Hb 12,23). A
ascensão do Senhor é realmente o espaço novo da liturgia dos últimos
tempos e a iconografia do templo de pedra é-lhe o símbolo
transparente.

Já estamos falando aqui das caracterizações do espaço litúrgico no seu


todo, marcado pela nave, o lugar da assembleia, em sua relação com o lugar em
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que se desenrola as ações centrais da celebração. A nave recebeu esse nome
por sua configuração na arquitetura cristã dos primeiros séculos: mais
precisamente, “por causa da estrutura interna, em madeira, do telhado central
da basílica, que, diga-se de passagem, em muito se assemelha ao cavername
invertido de um barco”, ainda mais que “a imagem do navio foi inúmeras vezes
utilizada pelos Padres da Igreja para designar [...] a imagem da Igreja”, como
explica Gabriel Frade (2007, p. 148).
Nas basílicas da antiguidade cristã, sobretudo na tradição romana,
configurou-se também o presbitério. “Era a área destinada ao bispo e em torno
dessa, num semicírculo, [...] os assentos para os presbíteros. Portanto, era a
área destinada somente ao clero, sem a presença do altar, já que este último se
encontrava normalmente em direção da nave ou no centro do transepto em um
espaço próprio”, diz Frade (2007, p. 149). Com o tempo, porém, o altar recuou
para mais perto do presbitério, até que o espaço do altar se identificou com ele,
como na maioria das igrejas de hoje.
O altar: é esse o grande centro do espaço litúrgico. “É o ponto de
convergência de todas as linhas deste espaço”, o sinal do “não-lugar” de Cristo:
“Partindo daí é que o espaço da igreja vem a ser sacramental”, diz Corbon (1981,
p. 145). É a ele que todos os olhares devem se voltar, tanto ao entrar no espaço
litúrgico quanto durante o rito, sobretudo na liturgia eucarística. “A mesa
eucarística é o centrum laudis et gratiarum actionis [centro do louvor e da ação
de graças] da comunidade cristã. Lugar da presença do Senhor, aí se constrói e
se exprime a unidade da Igreja”, diz Luke Chengalikavil (1993, p. 116). Nas
palavras de Cláudio Pastro (2014, p. 31), “só uma assembleia que tem uma
orientação para onde se voltar será modelada e permitirá modelar o edifício”.
Como símbolo de Cristo, o altar é gravado com cinco cruzes e ungido no dia de
sua dedicação. Nele, interagimos com Cristo mediante gestos de veneração,
como o inclinar do corpo, o beijo e a incensação.
Mas há outra mesa que também marca as coordenadas do espaço
litúrgico: a mesa da Palavra, o ambão. “Lugar alto do anúncio da ressurreição do
Senhor, o ambão ocupa o lugar da ‘pedra removida do túmulo’ (Lc 24,2) de
Cristo”, é “o ícone espacial da ressurreição”, diz Chengalikavil (1993, p. 119). Na
Igreja antiga, “enfatizando essa simbologia da Ressurreição, junto do ambão era
geralmente colocada uma coluna trabalhada onde era posto o círio pascal”,
afirma Frade (2007, p. 164). O ambão está em estreita relação com o altar, como

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os dois grandes polos em que se desenrola a celebração da eucaristia. “Um é
incompreensível sem o outro e vice-versa. O ambão é o lugar da proclamação
da palavra de Deus e a palavra se torna carne sobre o altar”, explica
Chengalikavil (1993, p. 118).
Nos dias de hoje, em que a Igreja finalmente se liberta de uma condição
paraestatal e em que se reafirma a liberdade de adesão ou não à fé, é importante
revalorizar outro espaço do edifício eclesial comum no primeiro milênio: o átrio.
É o espaço em que a comunidade se encontra de braços abertos com quem não
é membro dela. “É o lugar da acolhida, do receber o outro, o hóspede”, aponta
Pastro (2014, p. 32). Ao mesmo tempo, é o espaço que manifesta a transição,
tanto para cada fiel que aí prepara seu corpo e sua interioridade para entrar no
espaço litúrgico, quanto como lugar dos simpatizantes, dos catecúmenos, dos
que desejam se aproximar da experiência eclesial. Pelas mesmas razões,
renova-se a consciência da importância do batistério, “o lugar do novo
nascimento, porta de entrada para se fazer parte do corpo místico”, como diz
Pastro (2017, p. 74).
“O espaço determina muitas coisas”, afirma Rupnik (2019, p. 102). Isso
vale para todo o nosso cotidiano: nossos quartos, escritórios, salas de aula,
bairros — o modo como o espaço está configurado influi muito mais em nós do
que possamos perceber. Isso vale também para o espaço litúrgico, lugar que se
propõe a hospedar experiências tão profundas e determinantes. Não podemos
subestimar o papel sacramental desempenhado pela configuração do espaço na
experiência ritual.

TEMA 5 – A ARTE SACRA

A arte sacra, isto é, a arte litúrgica, está intimamente ligada ao mistério


celebrado na liturgia e à concepção do espaço celebrativo. É que “na tradição
cristã, a arte é litúrgica, faz parte integrante da celebração e não pode ser isolada
do contexto eclesial”, afirma Pastro (2014, p. 80). O isolamento, aliás, deve ser
recusado não só em relação ao contexto eclesial, mas também na interação
entre os diversos elementos do espaço litúrgico — altar, ambão e cadeira, os
espaços da nave, do presbitério, do coro, do átrio, do batistério e do
confessionário e todo o projeto iconográfico. Nada está separado, porque tudo é
manifestação de um só corpo.

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Corbon (1981, p. 145-146) diz que “o espaço iconográfico de nossas
igrejas é um espaço aberto ao Senhor que vem, espaço em expectativa e
cumulado, espaço portador do mundo e atraído pelo Reino, lugar de epiclese do
Espírito Santo e da transformação de toda oferenda no corpo de Cristo”. É uma
arte que revela uma presença, que a sacramentaliza, não à parte ou
paralelamente aos sinais sacramentais centrais da liturgia, mas reconhecendo
aí a sua fonte. Por isso, não basta que seja tematizada por assuntos religiosos,
retratando cenas bíblicas ou da vida dos santos. Como em tudo o que tem a ver
com a liturgia, a forma dessa arte é indissociável do seu conteúdo. É uma arte
conatural à liturgia.
Desse modo, ela exige “uma linguagem e uma expressão artística por
meio da qual os mistérios teológicos possam fluir e os mistérios celebrados na
liturgia se fazerem próximos”, sem que haja “um desencontro das estéticas”, diz
Marko Ivan Rupnik (2005, p. 584, tradução nossa). Se olhamos para as formas
litúrgicas básicas, veremos algo de muito simples e sóbrio, mas também denso
e envolvente: o pão e o vinho, o gesto de impor as mãos ou de persignar-se, o
banho batismal, os santos óleos, o caminhar em procissão, o estilo literário das
fórmulas eucológicas — nada disso é complicado, exagerado, empetecado. E
precisamente assim se dá a dinâmica da sacramentalidade, porque esses
elementos são tão simples que se permitem atravessar por uma presença e
manifestá-la. Neles não há nada de artificial ou de ilusório — o pão eucarístico
não precisa se disfarçar para manifestar a presença de Cristo: manifesta-a como
pão, com a beleza simples do pão.
Da mesma maneira, também a arte sacra é chamada a se deixar acolher
nessa linguagem, expressando “a sobriedade e a robustez doutrinal, dogmática,
dos mistérios”, nas palavras de Rupnik (2005, p. 585, tradução nossa). É
precisamente por isso que os iconógrafos, segundo a tradição, precisam
percorrer a via da ascese: “O iconógrafo poderia cair na tentação de inebriar-se
da abundância de belas formas que um símbolo concreto lhe oferece. Toma,
portanto, consciência da necessidade de um ‘jejum dos olhos’, graças ao qual
se torna capaz de rejeitar as formas inúteis”, explica Rupnik, com Tomáš Špidlík
(2000, p. 14, tradução nossa). É Rupnik (2005, p. 584, tradução nossa) também
quem afirma:

É necessário aprender a simplicidade à qual se chega por meio de um


diligente estudo e da oração. A simplicidade pertence à sabedoria, [...]
as figuras na arte litúrgica são elaboradas com uma simplicidade
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sagrada. O gesto, o olhar, a posição do corpo são limpos de modo a
poder portar um conteúdo do qual não nos distraímos por causa de
detalhes inúteis. A simplicidade da figura corresponde ao equilíbrio do
conjunto de uma obra artística litúrgica, porque comunica e evoca os
nexos orgânicos, o conteúdo teológico e espiritual.

Isso implica também a recusa a se pôr em evidência pela exibição do


próprio virtuosismo. O artista sacro realiza o seu trabalho de modo
verdadeiramente “‘sacerdotal’, isto é, como serviço, como ministerialidade”, diz
Rupnik (2005, p. 580, tradução nossa), inserido na comunhão eclesial. Assim,
expressa no trabalho artístico aquilo que vive no corpo de Cristo. Afinal, como
linguagem litúrgica, simbólica, a arte sacra “é por um lado aberta ao supra-
individual, ao comunitário, ou até mesmo ao universal, e por outro acessível ao
sujeito”, afirma Rupnik (2005, p. 580, tradução nossa). Por isso, ainda segundo
Rupnik (2005, p. 584, tradução nossa), na arte litúrgica “o conteúdo da teologia
e da liturgia, que em suma é o amor salvífico do Deus trino, não pode ser
distorcido e submerso pelos gostos subjetivos e pelas modas momentâneas”.
Essa é a beleza que se toca na arte litúrgica. É uma beleza que está em
unidade com a beleza do próprio rito, com a beleza dos sacramentos do Senhor.
E é uma beleza que, como explica Rupnik (2010, p. 254-256, tradução nossa),
não se confunde com a perfeição formal:

Essa é uma característica da arte pagã, que busca neste mundo uma
forma da perfeição que se apresente como modelo absoluto. Aquilo
que a arte cristã representa não é um ideal formal, mas parte da
realidade criatural, que é algo de frágil, vulnerável à tentação, exposto
ao pecado, à morte, à imperfeição. [...] Consequentemente, essa arte,
junto à incompletude, faz ver a obra de Cristo por meio do Espírito
Santo no homem, na criação. A sua beleza é o homem junto àquilo que
Deus realiza nele. A beleza está na dinâmica divino-humana, que é
uma dinâmica salvífica e transfigurante. E essa dinâmica é Cristo,
porque Cristo é a humanidade junto à obra que Deus realizou nela.
Apenas a unidade dessas duas dimensões mostra a totalidade da vida,
a sua verdade. E dessa verdade se faz testemunha a arte dos cristãos.
Por causa de tal unidade orgânica entre o frágil e a glória, é evidente
que essa arte está estruturada à maneira do símbolo. [...] Quando, ao
contrário, a arte dos cristãos alcança a perfeição formal da arte pagã e
a importa diretamente ao âmbito eclesial, não suscita mais nos crentes
a oração, a devoção, não constitui mais um todo coerente com a
liturgia, organizado de tal modo a dispor os fiéis a receber os divinos
mistérios, porque não exprime mais a obra de Deus, a dinâmica divino-
humana. E se alguém pudesse pensar que a perfeição formal pertence
ao homem redimido, essa visão não considera que a redenção não é
uma realidade estática, mas uma dinâmica permanente. O homem
redimido não é um modelo fixo de perfeição, mas uma vida de
comunhão, e, portanto, toda tentativa de perfeição formal leva para
longe da verdade, da vida, porque uma perfeição assim só é possível
fora da vida, em um mundo pensado idealmente.

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A beleza da arte sacra, como a beleza do anúncio cristão, só pode ser “a
beleza do amor salvífico de Deus manifestado em Jesus Cristo morto e
ressuscitado”, o “núcleo fundamental” que está “no coração do Evangelho”,
como afirma o Papa Francisco na exortação apostólica Evangelii gaudium (n.
36). “O espaço cristão é belo, pois é o lugar da criação renovada em Jesus”,
lugar da “epifania do reino”, diz Pastro (2014, p. 32-33). Precisamente assim é
que, também nas palavras da exortação Evangelii gaudium (n. 24), “a Igreja
evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia”.

NA PRÁTICA

Certamente o conteúdo desta aula pode proporcionar muitos pontos para


discernir em nossas comunidades. O aprofundamento que o movimento litúrgico
realizou, e a reforma do concílio acolheu, em relação à valorização do domingo
e à reestruturação do calendário litúrgico foram em boa parte assimilados por
nossas comunidades — o que não significa que não exista o que aprofundar. A
liturgia das horas ainda é um tema bastante cru que, no âmbito da comunidade
local, é de difícil resolução. Mas, entre os temas que vimos, o do espaço litúrgico
é aquele que está em ponto de colheita.
Após o concílio, deram-se os passos básicos nesse sentido. Houve
também direcionamentos que manifestaram uma compreensão equivocada da
reforma litúrgica quanto ao espaço e à arte litúrgica. Nas últimas décadas,
porém, aconteceram amadurecimentos nesse sentido. Então, em nossas
comunidades, precisamos nos perguntar sobre o modo como experimentamos o
espaço litúrgico, ou melhor, sobre o modo como, por meio dele, experimentamos
a liturgia. Precisamos nos questionar sobre a transparência simbólica dos
nossos espaços enquanto manifestações do corpo de Cristo que ali se reúne. E
precisamos discernir se as grandes linhas que compõem um espaço litúrgico se
fazem concretas em nossas comunidades: a centralidade do altar, a valorização
do ambão, o resgate do batistério, a dignidade da cadeira da presidência e a
disposição da nave de modo a favorecer a participação ativa, para citar alguns
pontos de reflexão.

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FINALIZANDO

Falar sobre o tempo e o espaço em sua relação com a liturgia nos torna
ainda mais conscientes de como na ritualidade está em jogo tudo o que somos,
com o nosso corpo, com as nossas relações e com a nossa percepção do tempo
e do espaço. Trata-se das nossas experiências mais tangíveis, e ao mesmo
tempo mais profundas: podemos não perceber, mas elas marcam as
coordenadas do modo como vivemos, dão forma a quem nós somos. Porque são
dinâmicas simbólicas: unem, integram, manifestam uma coisa na outra.
Por isso, Rupnik (2019, p. 80) diz: “Aquilo que acontece na eucaristia,
acontece também depois da liturgia. Nós aprendemos a comer da eucaristia, a
vestir-nos da eucaristia, a arrumar a casa a partir da eucaristia”. O rito nos forja
para um modo novo de nos relacionarmos com a matéria, com a comida, com o
estudo, com o trabalho — e, sobretudo, com o outro. A liturgia é a escola de uma
arte espiritual, que “permite fazer emergir o nexo entre qualquer situação
humana e Cristo”, que nos educa a “dar espaço à vida no Espírito, é fazer viver
em nós o dom”, ainda segundo Rupnik (2017, p. 187, tradução nossa), que
continua:

E o dom acolhido, por si mesmo, liberta a pessoa do apego a si.


Quando o comer, o beber, o estar juntos, o trabalhar, o vestir-se, o
arrumar a casa, o festejar, o estudar, o caminhar, o esquiar, o patinar,
o nadar deixam entrever a liberdade de si mesmos e fazem crescer
uma relação livre, uma vida como comunhão, então contemplo a
beleza, porque me sinto envolvido em uma vida livre de si que, por isso,
cria a unidade.

Assim, a nossa vida se torna uma liturgia, um sacrifício de louvor ao Pai,


vivido em Cristo como comunhão com nossos irmãos e irmãs no Espírito Santo.

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REFERÊNCIAS

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