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ARQUIDIOCESE DE NATAL

SEMINÁRIO DE SÃO PEDRO

CURSO DE TEOLOGIA – 2022.2


Disciplina: Bíblia VI: Escritos Joaninos
SEMINARISTA JOSÉ CARLOS ARCELINO DA SILVA

RESUMO
LIVRO: O DISCÍPULO AMADO
GILSON LUIZ MAIA

Trabalho apresentado ao Seminário de São Pedro


para a disciplina de Bíblia VI: Escritos Joaninos
ministrada pelo Professor Ms. Pe. Ednaldo Virgílio
da Cruz.

2022.2
INTRODUÇÃO

O quatro Evangelho, também conhecido como Evangelho de João, não é uma


biografia de Jesus, mas testemunho e interpretação de sua pessoa e de sua obra, memória
e meditação amadurecida no seio da comunidade joanina, discípula do Bom Pastor, a
“porta” pela qual devemos passar para chegar à plena comunhão com o Pai (cf. Jo 10, 7).
No prólogo do Evangelho de João, o Discípulo Amado, nos deixou a primeira pista para
encontrarmos o Pai: “A Deus, ninguém jamais viu. O Filho unigênito, que está no seio do
Pai, foi quem o revelou” (cf. Jo 1, 18). Jesus Cristo é Deus visível, o Verbo encarnado, o
Senhor próximo e ao alcance de todos. Neste Evangelho, a ênfase não está na Igreja,
termo inexistente em João, e tampouco nos doze apóstolos ou na figura de Pedro, mas no
encontro, no seguimento e na fidelidade à pessoa de Jesus, o Cristo de Deus, o único
apóstolo enviado do Pai, o “Salvador do mundo” (cf. Jo 4,42).

A IDENTIDADE E O AMBIENTE DO DISCÍPULO AMADO


Segundo a Tradição da Igreja, o personagem misterioso do Discípulo Amado
aponta para a figura de um jovem seguidor de Jesus, identificado como João – nome
hebraico que significa “o Senhor dá a graça/misericórdia” – filho de Zebedeu e Salomé.
Sendo ele, autor do quarto Evangelho, de três Cartas e do Apocalipse. De acordo com a
tradição, João, o Discípulo Amado de Jesus, apóstolo evangelista, nasceu na pequena vila
de Betsaida, de uma família de pescadores, junto ao mar da Galileia, e foi testemunha
ocular dos fatos que narrou. Ele e seu irmão Tiago eram amigos, talvez até sócios, de
outros dois irmãos, Pedro e André, proprietários de uma pequena empresa pesqueira e os
primeiros discípulos de Jesus (cf. Jo 1,35-51). João faleceu na cidade de Éfeso (Turquia)
com aproximadamente 91 anos de idade e foi o único apóstolo de Jesus poupado da coroa
do martírio.
O ambiente do Quarto Evangelho foi a cosmopolita cidade de Éfeso, na Ásia
Menor, marcada pela riqueza de múltiplas culturas e com uma significativa presença de
judeus. A comunidade joanina, inicialmente formada por judeus, convertidos à fé em
Jesus Cristo, migrou para Éfeso devido às crescentes dificuldades com os fariseus, que
rejeitaram o messianismo de Jesus, e, também por causa da perseguição romana, que
culminou com a destruição de Jerusalém no ano 70. No Quarto Evangelho, a palavra
“apóstolo” aparece apenas uma vez e no sentido comum de “enviado”. O termo “Doze”
também é pouco utilizado pelo evangelista. João não apresenta a lista dos Doze apóstolos
conforme os sinóticos (cf. Mt 10,1-4; Mc 3,13-19; Lc 6,12-16), mas destaca a figura do
Discípulo Amado, que quase sempre aparece junto e em contraste com Pedro, o porta-
voz das Igrejas apostólicas.
O personagem designado com a expressão “Discípulo Amado” é uma
exclusividade do Quarto Evangelho. Dá-se a impressão, que Jesus privilegiava um
discípulo deixando os demais em segundo plano. Na realidade, o autor do Quarto
Evangelho encontra no Discípulo Amado não uma pessoa específica, mas todos que
conservam a memória do apóstolo João, seu testemunho e seus ensinamentos. A
expressão “Discípulo Amado” é uma clara referência ao personagem exemplar do
Evangelho de João, que testemunhou a paixão, morte e ressurreição do Filho de Deus.
O NT reserva o termo “discípulo” às pessoas que seguem Jesus e o reconhecem
como Filho de Deus, Messias e Mestre de Israel. O autor do Quarto Evangelho deixa claro
que Jesus é o verdadeiro Mestre de Israel e sua mensagem impressiona a todos, inclusive
as autoridades do povo (cf. Jo 7, 14-16). Diferentemente das escolas e dos mestres do
judaísmo, Deus é quem dá a Jesus os seus discípulos: “Ninguém pode vir a mim, se o Pai,
que me enviou, não o atrair” (cf. Jo 6, 39.44). Para ser discípulo de Jesus, a pessoa deveria
ter a coragem de moldar a própria vida à conduta do Mestre, a romper como passado –
“nascer de novo”, testemunhar e anunciar o Evangelho com liberdade e desapego de si
mesmo, dos bens e de tantas outras realidades (cf. Jo 3,3). O que caracteriza e identifica
os discípulos de Jesus é a vivência cotidiana do mandamento do amor (cf. Jo 13,35). À
luz do Espírito Santo, o discípulo encontra, segue, escuta e acolhe a palavra de Jesus, e,
no amor do Mestre, reconhece o amor e a presença do Pai. Em todo o NT os seguidores
de Jesus aparecem como discípulos missionários. O Discípulo Amado e os demais
seguidores de Jesus são assistidos pelo Espírito Santo. No Evangelho do Discípulo
Amado, o nome próprio do Espírito Santo é “Paráclito”. Dessa maneira, o Espírito
abandona a esfera do abstrato para se aproximar e se relacionar com o Discípulo Amado
– conosco – e com a comunidade joanina inteira, em uma relação interpessoal (pessoa -
pessoa).
O Discípulo Amado, e com ele cada um de nós, continua a missão de Jesus ao
sopro e à luz do Espírito Santo de Deus. O evangelista assinala que a missão à luz do
Paráclito comporta o perdão dos pecados. O Espírito Santo é a harmonia de Deus que tece
e garante a unidade e a comunhão na comunidade “perdoada e perdoadora”. O Espírito
Santo atua em cada um de nós e me toda a Igreja. Ele é o “mestre interior” do discípulo e
das comunidades.
DO TESTEMUNHO DE JOÃO BATISTA AO SEGUIMENTO DE JESUS
O autor do Quarto Evangelho deu um grande espaço à figura do Batista, que viu
e apontou para o “Cordeiro de Deus” (cf. Jo 1, 29.36). Nesse diálogo inicial dos dois
discípulos com o novo Mestre, temos a primeira fala de Jesus no Quarto Evangelho: “Que
procurais?” Trata-se de uma pergunta que assinala a busca do coração humano pelo
sentido da vida e da história. Importa observar o papel de João Batista, que nos inspira a
apontar para Jesus, a mostrar o Cristo que passa e nos convida a estar com ele – “Vinde
e vereis” –, mesmo quando a hora parece um pouco avançada.
O que qualifica o testemunho do Discípulo Amado é a fidelidade a Jesus, que veio
ao mundo “para dar testemunho da verdade” (Jo 18,37). Em Jesus, encontramos o sentido
da vida e o seu autor: Deus. No Mestre de Nazaré, Verbo feito carne, enviado como
homem ao encontro da humanidade, podemos nos encontrar e reconhecer em nós a
presença do Discípulo Amado de Jesus: o discípulo interior. A imagem da videira nos
ensina que não é possível ser discípulo de Jesus sem a comunidade de vida com o Mestre
e com a comunidade missionária, “casa e escola de comunhão”. Para João, o Filho de
Deus é o próprio Deus feito carne, que fala as palavras de Deus em uma eterna relação de
amor, na qual o Filho é submisso ao Pai e o Pai está em Jesus. De tal modo, acolher o
Filho é acolher o Pai e rejeitá-lo significa rejeitar o Pai.

O AMIGO DO PEITO DE JESUS


A cena do lava-pés durante a “última ceia” é exclusiva do Quarto Evangelho, ao
passo que nos Evangelhos sinóticos temos a instituição da Eucaristia (cf. Mt 26, 17-29;
Mc 14, 12-25; Lc 22, 7-20). Inclinar-se sobre o peito – “seio” – de Jesus equivale a
aproximar-se do coração do Mestre, lugar do afeto e dos sentimentos mais profundos. O
Discípulo Amado se movimenta com liberdade na direção do coração de Jesus, e tal
intimidade e ternura com o Mestre é o que sustenta o seguimento do Ressuscitado e a
missão de testemunhar e anunciar o Evangelho. A liberdade e a confiança do Discípulo
Amado com a pessoa de Jesus contrasta com as atitudes de Pedro e Judas, que se opõem
ao Mestre. Pedro, que representa os Doze e deles se faz porta-voz, não concorda em ter
os pés lavados pelo Senhor.
O lava-pés, mais que um gesto de purificação e serviço humilde, sinaliza para a
entrega total de Jesus, o Verbo que está à disposição de Pedro e da humanidade para servi-
la. Jesus é o servo que lava os pés da humanidade e na cruz, como o servo sofredor, se
entrega para a salvação do mundo. A grande questão não é lavar os pés do ponto de vista
físico, mas deixar-se lavar por Jesus, que antecipa a sua “hora” para nos salvar. A
liberdade, a ternura e a intimidade do Discípulo Amado com Jesus, na última ceia, são
reconhecidas por Pedro, que lhe pede para indagar o Mestre sobre quem seria o traidor
(cf. Jo 13,24).

NA CASA DO SUMO SACERDOTE


No Quarto Evangelho, o Discípulo Amado ocupa um lugar relevante na narrativa
da paixão do Senhor. Ele aparece junto a Simão Pedro, no momento da prisão de Jesus, e
ao pé da Cruz. Foi o Discípulo Amado quem pediu à serva do sumo sacerdote para deixar
Pedro entrar no pátio da casa para onde os soldados levaram Jesus após a prisão.
No Quarto Evangelho, o Discípulo Amado e Pedro representam dois modelos de
Igreja com certas diferenças, porém, jamais com rivalidade, e não há sequer um único
incidente, disputa ou choque entre eles. No último capítulo, considerado um suplemento
do Quarto Evangelho, também percebemos o contraste entre a comunidade do Discípulo
Amado e as Igrejas apostólicas. Se o Discípulo Amado foi o primeiro a reconhecer o
“Senhor” na cena da pesca milagrosa, junto ao mar de Tiberíades, Pedro, por sua vez, foi
por três vezes indagado pelo Mestre sobre o seu amor, antes de ser confirmado na missão
de pastorear o rebanho (cf. Jo 21,15-170). A comunidade do Discípulo Amado reconhecia
a autoridade de Pedro, na medida em que ele dava testemunho de sua adesão a Jesus como
autêntico discípulo do Mestre, que lhe deu o nome de “Cefas – pedra/rocha” (cf. Jo 1,42;
Mt 16,18).

O DISCÍPULO AMADO AO PÉ DA CRUZ


Ao pé da cruz, temos a belíssima, exclusiva e comovedora cena do diálogo de
Jesus com a sua mãe, chamada a receber o Discípulo Amado como filho, e este acolheu
em sua casa. Jesus expõe a maternidade espiritual de Maria, e “o discípulo a quem amava”
a acolheu em sua casa como sua nova família, dom e indicativo da comunidade eclesial,
a Igreja. João é o único discípulo a ficar junto ao Mestre crucificado com a Mãe do
Senhor, Maria de Cleofas e Maria Madalena. Ao pé da cruz, Maria ganhou um novo filho,
o Discípulo Amado: irmão de Jesus, nosso irmão. Maria ama e estende a sua maternidade
a todos os seguidores do Filho. Cabe a Maria reunir o novo povo de Deus representado
pelo Discípulo Amado. O que une Maria a Jesus não é o sangue, mas a fé que ela nutre
no Verbo de Deus, que armou a sua tendo no meio de nós por meio dela.
A presença de Maria Madalena junto à cruz e sua coragem de sair para ir ao túmulo
do Senhor, quando ainda estava escuro, atitude pouco recomendável para uma mulher,
assinalam a sua e a nossa sede e busca de encontrar o Cristo Ressuscitado. Nas
profundezas silenciosas de cada pessoa, há um discípulo sedento com “saudade do
infinito”.

DOM DA FÉ, “VIU E CREU”


No Domingo de Páscoa, meditamos esta passagem do Quarto Evangelho, na qual
encontramos três personagens: Maria Madalena, Simão Pedro e “o outro discípulo”. Se
para Pedro o túmulo vazio é sinal de que algo estranho aconteceu, para o Discípulo
Amado indica a ressurreição do Senhor. João acreditou porque amou e aceitou o amor de
Jesus. Observa-se, ainda, que a presença de Pedro e do outro discípulo no túmulo vazio
corresponde perfeitamente às exigências das leis judaicas, que só considerava válido o
testemunho confirmado por pelo menos dois homens (cf. Dt 19,15).
No Evangelho, quem vê primeiro Jesus ressuscitado não é o Discípulo Amado,
nem Pedro, o representante das Igrejas apostólicas, mas sim uma mulher, Maria
Madalena. Tal realidade lhe deu o privilégio de ser reconhecida como “a apóstola dos
apóstolos”. Diante do túmulo vazio, cada discípulo e discípula vive uma experiência única
de amadurecimento na fé, até confessar com Tomé: “Meu Senhor e meu Deus” (cf. Jo
20,28). A ressurreição de Jesus é o alicerce da fé cristã e fonte de onde jorra a esperança
da vitória da vida sobre a morte. A fé provoca a conversão, implica uma mudança radical
na vida da pessoa e um compromisso que se reduz no testemunho de Jesus, desde o seio
da comunidade. Para João, crer significa tornar-se discípulo de Jesus, amá-lo e ser no
mundo sinal desse amor.
No Quarto Evangelho, amar significa entregar-se até às últimas consequências,
como fez Jesus, que, “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim”
(cf. Jo 13,1). O Mestre nos ensina que o amor não é uma poesia nem simples retórica,
mas é atitude que se manifesta ao longo do caminho, como no exemplo dado nos lava-
pés e, de modo supremo, na cruz, no esplendor de sua glória. No interior da comunidade,
esse amor se manifesta na harmonia da vida fraterna, nas situações de perdão e na busca
constante de comunhão entre os discípulos.
OS PESCADORES DA GALILEIA, TESTEMUNHAS DO RESSUSCITADO
O último capítulo do Quarto Evangelho apresenta a cena da pesca milagrosa, que
aponta para uma atividade corriqueira do Discípulo Amado e de seus companheiros
acostumados aos barcos e às redes. Logo, o lugar do trabalho desses pescadores, assinala
a missão dos seguidores de Jesus. A rede é um instrumento que exige um grupo de
pescadores. Trata-se de uma atividade comunitária envolvendo várias pessoas, na qual
cada uma é chamada a colaborar e todas dependem de todas, quer na preparação e cuidado
antes da pescaria, quer no momento de puxar para as barcas as redes cheias de peixes. O
Senhor é o centro da comunidade.
Um dos traços do Discípulo Amado é a sua comunhão com a comunidade, a Igreja
consolada e animada pelo Espírito Santo, que procede do Pai pelo Filho. A comunhão
entre os discípulos, reflexo da comunhão com Deus, é enfatizada mediante vários
símbolos que aparecem no Quarto Evangelho, tais como: o rebanho, a vinha, a túnica sem
costura, a barca e a rede que não se rompe (cf. Jo 10,1-21; 15, 1-17; 19,23-24; 21,1-14).

A COMUNIDADE DO DISCÍPULO AMADO


Segundo o autor do Quarto Evangelho, é o amor que qualifica o pescador da
Galileia no serviço junto ao rebanho do Senhor: “Apascenta minhas ovelhas” (cf. Jo
21,15-17). Se “crer” era o pressuposto do discipulado, amar foi o seu cumprimento e
concretude no serviço.
Os discípulos de Jesus perseveravam fiéis à sua memória, acolhiam os samaritanos
que abraçavam a fé cristã e se distanciavam do grande Sinédrio e das sinagogas de onde
tinham sido expulsos. A comunidade enfrentou muitos conflitos no período que vai dos
anos 30 d.C. – início da caminhada – até por volta do ano 120 d.C. Além dos fortes
conflitos com os romanos, da presença de seitas e de outros grupos religiosos, da
hostilidade dos judeus, havia ainda as dificuldades de alguns discípulos que tinham medo
de confessar publicamente a fé em Jesus, os que desistiam no meio do caminho, por causa
das palavras radicais do Evangelho, os frágeis na fé e os conflitos com o “mundo” que os
odiava.
No Quarto Evangelho, Jesus é a porteira, é o bom pastor e é o cordeiro. Ele é o
princípio de unidade do rebanho que assinala a comunidade do Discípulo Amado reunida
em torno do “Messias pastor”. O Discípulo Amado não é perfeito nem pertence a uma
comunidade de perfeitos. A relação com o Mestre, o “Bom Pastor”, a “Videira
verdadeira”, mesmo se profunda, não nos isenta das fraquezas humanas. No Discípulo
Amado, amigo de Jesus, encontramos o discípulo que está no interior de cada um de nós
como semente que germina nas comunidades. No mais profundo do ser humano há um
Discípulo Amado com muita sede de Deus. Graças à ação do Espírito Santo que trabalha
em nós e nas comunidades, podemos interiorizar em nós a palavra do Senhor ressuscitado.

CONCLUSÃO
Se nos Evangelhos sinóticos – Mateus, Marcos e Lucas – o tema principal é o
Reino de Deus, no Evangelho do Discípulo Amado o tema central é o próprio Jesus, o
Verbo preexistente, que nos revela o rosto do Pai. A Igreja joanina, em meio a conflitos
internos e a perseguições externas, perseverou fiel ao Verbo feito carne e, em contínuo
discernimento, deu testemunho de sua adesão ao Evangelho. Dentro de cada um de nós,
há um discípulo, amado e enviado como profeta, que aponta para o “Cordeiro de Deus”
presente no meio do mundo.

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