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GUIA DE ESTUDOS

INTRODUÇÃO AO
NOVO TESTAMENTO
MARCELO DA SILVA CARNEIRO

“Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas


maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias,
nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as
coisas, pelo qual também fez o universo” (Hebreus 1.1-2).

1a Edição
São Paulo – 2020
PRESIDENTE DA ASSEMBLEIA GERAL DA IPIB:
João Luiz Furtado

PRESIDENTE DA FECP:
Assir Pereira

MINISTRO DE EDUCAÇÃO DA IPIB:


Silas de Oliveira

SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO TEOLÓGICA:


Clayton Leal da Silva

DIRETOR DA FATIPI:
Reginaldo von Zuben

COORDENADOR DO EAD:
César Marques Lopes

AUTOR:
Marcelo da Silva Carneiro

CAPA E PROJETO GRÁFICO:


Ana Paula Pires

REVISÃO:
Dorothy Maia

EDIÇÃO:
Reginaldo von Zuben e César Marques Lopes

Reservados todos os direitos desta edição. É proibida a reprodução total ou parcial dos textos e do
projeto gráfico desta obra sem autorização expressa de autores, organizadores e editores.
APRESENTAÇÃO

É muito interessante o texto bíblico em que o apóstolo Paulo, mesmo


preso em Roma, pede para que Timóteo traga a sua capa e os livros, prin-
cipalmente pergaminhos, a fim de estudar (2Timóteo 4.13). Até no final da
sua vida e ministério, o apóstolo dos gentios não deixa de se dedicar aos
estudos e de se preparar para conhecer e ensinar com zelo e presteza a
Palavra do Senhor.
O Curso de Teologia EAD da Faculdade de Teologia de São Paulo
surge para abençoar muitos irmãos e irmãs com interesse em, por meio
do estudo da teologia, servir a Deus com mais zelo, segurança e presteza.
Nosso desejo é que, de fato, este Curso seja meio pelo qual a ação pode-
rosa de Deus se manifeste na vida de todos os estudantes, irmãos e irmãs
em Cristo. Com isto, a FATIPI atende aos anseios da IPI do Brasil em ga-
rantir acesso ao curso de Teologia não só aos candidatos e candidatas ao
sagrado ministério, mas também a oficiais, liderança, membros e outros
interessados, tanto da IPI do Brasil como de outras denominações cristãs.
Como cristãos, cremos que o Espírito Santo desperta, chama e capa-
cita pessoas para atuarem nos diversos ministérios da Igreja. Isto ocorre
por causa da necessidade de edificação e orientação do povo de Deus no
mundo, bem como para o cumprimento da missão de Deus em meio aos
desafios do nosso contexto. Deus faz a parte dele e nós temos a nossa.
Temos responsabilidades no que se refere à busca de excelência na vida
cristã, ao cumprimento da vontade de Deus em nossa vida e à vitalidade
da igreja no testemunho da graça e do amor divinos.

Deus abençõe a todos nós.


SUMÁRIO

Módulo 1
O CONTEXTO DO NOVO TESTAMENto

1. A matriz do Novo Testamento ................................................................7


2. Influências no Novo Testamento ..........................................................12
3. O mundo do Novo Testamento em quatro dimensões .........................17

Módulo 2
JESUS, O EVANGELHO E OS EVANGELHOS

1. O ministério de Jesus ...........................................................................36


2. O Evangelho e os evangelhos .............................................................47
3. Os Evangelhos canônicos ....................................................................55

Módulo 3
PAULO E A MISSÃO AOS GENTIOS

1. Paulo: missionário e apóstolo ...............................................................71


2. A comunicação entre Paulo e as igrejas ..............................................81
Módulo 4
AS ESCOLAS APOSTÓLICAS

1. A escola paulina ..................................................................................108


2. As epístolas apostólicas gerais ...........................................................123
3. A escola joanina ..................................................................................130

Módulo 5
O APOCALIPSE E O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO

1. O Apocalipse de João..........................................................................146
2. A canonização do Novo Testamento ..................................................163
Módulo 1

O CONTEXTO DO NOVO TESTAMENTO


BÍBLIA Introdução ao NT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Seja bem-vindo e bem-vinda ao curso de Introdução ao Novo Tes-


tamento. Neste curso você terá um panorama sobre o contexto em que
nasceu o Novo Testamento, as principais informações sobre os livros,
suas circunstâncias e mensagens, com destaque para duas figuras muito
importantes: Jesus e o apóstolo Paulo. Vamos tratar também da canoniza-
ção do Novo Testamento, para entender de que forma se optou pelos vinte
e sete livros que temos hoje.
Neste módulo em especial, iniciaremos nossa jornada procurando en-
tender o pano de fundo no qual nasceu o Novo Testamento. Afinal de con-
tas, os livros falam de várias coisas que eram comuns para os judeus na
época, mas que não fazem parte do nosso cotidiano, por isso podem nos
confundir ou passarem despercebidas. De modo objetivo, esperamos que
ao final deste módulo você seja capaz de: a) identificar as fontes literárias
e de pensamento que inspiraram os autores do Novo Testamento; b) expli-
car como os autores do Novo Testamento utilizaram o Antigo Testamen-
to; c) conceituar e diferenciar helenismo, apocalíptica e moral judaica; d)
indicar o modo de organização das sociedades que viviam sob o império
romano, em quatro dimensões: política, econômica, social e religiosa.
Desejo um início de curso muito proveitoso e cheio de novidades para
você em sua nova caminhada de conhecimento. Paz.

1. A MATRIZ DO NOVO TESTAMENTO

O primeiro aspecto que é importante entender em relação ao Novo Tes-


tamento é que ele nasceu a partir da experiência de homens e mulheres
com Jesus. Jesus era judeu, profundamente vinculado às tradições israe-
litas, logo, seus discípulos e discípulas eram todos ligados ao judaísmo da
época. Por isso, devemos ler o Novo Testamento não como a expressão

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de uma nova religião, mas a manifestação da interpretação de fé funda-


mentada na religião que eles seguiam, afinal os judeus faziam isso desde
muito tempo antes de Cristo, no que passou a ser chamada de Torá Oral.

curiosidade

Torá Oral é a forma como se denominam os comentários


feitos por mestres judeus à Torá e aos Profetas.
Considerando que muitas vezes a Lei de Moisés tinha
lacunas para o cotidiano, em seus comentários eles
analisavam aspectos práticos que deveriam ser seguidos
pelas pessoas. Na tradição judaica, de acordo com a
Mixná Abot 1,1-2, afirma-se o seguinte sobre a origem da
Torá Oral: “Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu
a Josué. Josué transmitiu-a aos Anciãos e os Anciãos a
transmitiram aos Profetas. Os Profetas transmitiram-na aos
homens da Grande Assembleia. Estes disseram três coisas:
‘Sede ponderados no exercício da justiça; suscitai muitos
discípulos; fazei uma cerca ao redor da Torá’” (Collin, 1997,
p. 14). Esses comentários dos mestres foram reunidos na
obra conhecida como Mixná, que passou a ser divulgada a
partir do ano 200 d.C.

Na prática, percebermos essa relação quando comparamos o Novo


Testamento e o Antigo Testamento em vários aspectos: a) Diversas ve-
zes, os autores do Novo Testamento citam profetas e outros textos. Exem-
plos: Mc 1.2-3 citando Ml 3.1 e Is 40.3 de forma combinada; At 15.15-18
citando Am 9.11-12; Rm 10.18-21, em que cada afirmação é baseada num
texto do AT (ex: Sl 19.4/ Dt 32.21/ Is 65.1-2); Hb 1.5 citando Sl 2.7; Tg 4.6
citando Pv 3 etc; b) A partir de textos do Antigo Testamento, os autores do

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BÍBLIA Introdução ao NT

Novo Testamento identificaram o Messias em Jesus. Exemplos: Mt 1.23


citando Is 7.14 sobre o nascimento virginal; Mc 12.35-37, em que Jesus
cita Sl 110.1 no debate sobre a identidade do Messias etc.
Desse modo, podemos afirmar que o Antigo Testamento é a matriz de
onde os autores do Novo Testamento tiraram sua fundamentação de fé.

1.1. Como os autores do Novo Testamento interpretaram o Antigo Testamento


Segundo a abordagem de C. A. Evans (Rosner, 2009), as formas como
os autores do Novo Testamento usaram e interpretaram o Antigo Testamento
são três: interpretação legal, interpretação profética e interpretação analógica.
Na interpretação legal os autores utilizam textos para determinar o que
se requer de alguém que tem fé em Deus ou em Jesus. Nos Evangelhos
encontramos os seguintes exemplos: a) o embate de Jesus na tentação
(Mt 4.1-11; par.); b) o ensino sobre o amor (Mc 12.29-30); c) a condenação
da hipocrisia pelo mau uso da Lei (Mc 7.1-23).
Também se percebe nesse tipo de interpretação uma relação com a
forma como os mestres (rabis) daquela época usavam as Escrituras. Je-
sus realizava debates desse tipo, que podem ser percebidos em vários
momentos dos Evangelhos. Vemos essa situação quando os discípulos
foram questionados a respeito de “comer espigas num sábado” (Mc 2.23-
28; 3.1-6). Esse debate de Jesus com os adversários, em que ele faz uso
do Antigo Testamento para argumentar, é típico do modo rabínico de ensi-
no, pois, no fim das contas, é uma discussão sobre Êx 31.13. Nesse caso,
a grande questão era a interpretação sobre o sábado (shabat).
A interpretação legal também era utilizada como reforço de temas tra-
dicionais para conduzir a comunidade: a) Em Mt 18.16, fala-se da impor-
tância de haver duas ou três testemunhas para um depoimento válido,
seguindo a ordem de Dt 19.15; b) Em Mc 10.7, Jesus valoriza o casamento
como meio de coibir a prática do divórcio, apoiado em Gn 2.24.
A interpretação profética ocorre sempre quando autores fazem cita-
ções ou alusões que tratam de profecias que foram cumpridas na vida de

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Cristo ou que se espera cumprir no futuro. Em geral, podem ser divididas


em textos de cumprimento (passado) e textos escatológicos (futuro). Al-
guns exemplos: a) a fórmula típica de Mateus – “Tudo isso aconteceu para
que se cumprisse o que o Senhor havia anunciado por meio do profeta”
(Mt 1.22; 2.15,17; 4.14 etc.) – é um bom exemplo de interpretação profé-
tica como cumprimento; b) vários profetas são citados nas falas de Jesus
(em parênteses o profeta do Antigo Testamento citado no texto indicado):
Lc 4.18,19 (Is 61.1,2); Mt 7.23 (Sl 6.8); Mt 3.3 e 11.10 (Ml 3.1); Mt 13.14,15
(Is 6.9,10); Mc 7.6,7 (Is 29.13); Lc 23.30 (Os 10.8); Mc 14.27 (Zc 13.7); c)
alguns textos especialmente escatológicos aparecem em Mc 13.26, no
sermão em que Jesus cita o “Filho do Homem” de Dn 7.13; em Mc 9.48
Jesus fala do lugar onde “não lhes morre o verme, nem o fogo se apaga”,
que é um targum (tradução do hebraico para o aramaico) de Is 66.24; em
Mt 16.27, ao falar da retribuição de cada um segundo suas obras, Jesus
faz uma citação de Sl 62.12 numa perspectiva escatológica.
O terceiro tipo, a interpretação analógica, está relacionado ao uso feito
pelos autores do Novo Testamento para comparar situações e ilustrar o
ensino com imagens. Dentre os tipos de analogias preferidos estão a tipo-
logia e a alusão temática. Há diversas comparações no Novo Testamento
em que o Antigo Testamento é a fonte para que as pessoas entendam o
significado de algo que está acontecendo. Essas comparações podem ser
diretas e indiretas. Nos Evangelhos encontramos as seguintes analogias:
a) Jesus compara seu ministério com o de Elias e Eliseu (Lc 4.25-27 = 1Rs
17.1-16); b) Jesus compara a situação de Jonas com a sua própria após
a morte (Mt 12.40 = Jn 1.17); c) Na parábola da semente, em Mc 4.26-29,
Jesus apresenta a situação da lavoura no v.29 a partir de Jl 3.13, que fala
do juízo sobre as nações. Aqui a analogia tem sentido escatológico, ainda
que não declarado; d) Na parábola da vinha, em Mc 12.1, Jesus se utiliza
de Is 5.1-2 numa analogia sutil. No entanto, no fim da parábola, Jesus
faz uma citação ao Sl 118.22-23, comparando de forma direta a si mes-
mo com a pedra indicada no Salmo. Nas cartas de Paulo temos algumas

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BÍBLIA Introdução ao NT

analogias bem interessantes: a) A alegoria que ele faz sobre lei e graça
a partir da história de Abraão, Sara e Agar (Gl 4.21-31; Rm 4.1-12); b)
Falando da situação do povo judeu em relação aos gentios, em Rm 11.1-
10, Paulo cita vários textos do Antigo Testamento, aplicando-os a esta
situação de forma analógica; c) Em sua argumentação sobre o pecado,
em Rm 3.10-18, Paulo faz uma combinação de Salmos, para elaborar um
retrato da situação do pecador. Em outros textos do NT também encon-
tramos analogias interessantes: a) Em Hebreus há vários casos. Ao tratar
do descanso final escatológico, o autor faz uma analogia com o descanso
sabático apresentado no Êxodo (3.7-4.11); b) A analogia entre Jesus e o
sumo sacerdote (5.1-10); c) Melquisedeque e Jesus (7.1-28); d) O santuá-
rio e o sacrifício de Cristo (capítulo 9). No livro do Apocalipse, os 144 mil
são uma analogia às 12 tribos de Israel, numa nova perspectiva (7.1-8).

em síntese

A primeira questão que precisamos ter clara sobre o


Novo Testamento é que ele não surgiu do nada, ou que
os autores escreveram sem se basear em nada escrito
anteriormente. Pelo contrário, estamos diante de um texto
construído a partir da interpretação de outro, mais antigo e
que tinha muito valor espiritual para a comunidade. Não se
falava ainda em Bíblia ou na categoria Antigo Testamento,
isto é muito recente. Mas eles já reconheciam que aquele
conjunto de textos redigidos pela tradição israelita tinha
um rico patrimônio espiritual, tanto que eram usados para
oração, ensino e alimento espiritual. Era um grupo de
textos com algumas diferenças em relação ao nosso Antigo
Testamento, mesmo assim fundamentados nos mesmos
ensinamentos, em especial o Pentateuco (Torá).

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2. INFLUÊNCIAS NO NOVO TESTAMENTO

Dentro do contexto histórico no qual viviam Jesus e os apóstolos, no


século I d.C., podemos afirmar que havia três expressões religiosas e cul-
turais que ajudaram a definir a maneira como o movimento de Jesus e a
igreja dos apóstolos tomaram forma. Essas expressões são: o helenismo,
a apocalíptica e a moral judaica. Cada uma delas influenciou em algum
aspecto o Novo Testamento, conforme veremos a seguir.

2.1. O helenismo
O helenismo pode ser definido como um fenômeno que afetou todos
os povos conquistados pelo macedônio Alexandre, o Grande, cuja domi-
nação direta foi de curta duração (334-323 a.C.), mas que permitiu a seus
sucessores governar em diferentes províncias por séculos, até a ascensão
do império romano, no século I a.C.
O termo “helenismo” vem de Hélade, forma como a Grécia era deno-
minada na época. Indica a influência que os gregos tiveram no modo de
vida dos povos conquistados no Oriente. Quando Alexandre executou sua
campanha de conquista, construiu cidades no estilo grego, difundindo a
língua, a arquitetura e o modo de vida grego. Depois de uma geração de
dominação, de forma impressionante os povos orientais viviam de modo
bastante similar aos gregos.
Para a história dos judeus, e posteriormente dos cristãos, a princi-
pal marca que o helenismo deixou foi a tradução do Antigo Testamento
hebraico para o grego, que ficou conhecida como Septuaginta (LXX). A
comunidade judaica em Alexandria, Egito, solicitou ao rei Ptolomeu II Fi-
ladelfo (284-247 a.C.) ajuda para realizar a tradução dos livros hebraicos,
posto que muitos judeus já tinham dificuldade em entender a língua dos
antepassados. Segundo a tradição, setenta e dois sábios de Israel (daí o
nome Septuaginta, também conhecida como Versão dos Setenta) foram

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BÍBLIA Introdução ao NT

até Alexandria e traduziram a Bíblia Hebraica para o grego. A pesquisa


tem indicado que, no século III a.C., apenas o Pentateuco foi traduzido;
nos séculos II e I a.C. é que as demais partes foram traduzidas, inclusive
materiais que não constavam da Bíblia Hebraica, mas eram bem conheci-
dos. A partir dessa tradução foram reunidos os sete livros deuterocanôni-
cos que ainda constam das bíblicas católicas romanas (Tobias, Judite,
Eclesiástico, Sabedoria de Salomão, Baruc e 1 e 2 Macabeus).

curiosidade

Além de a tradição afirmar que foram setenta e dois sábios


– dado que não se pode confirmar –, há uma lenda muito
curiosa com relação a essa tradução. Afirma-se que os
sábios foram separados em doze grupos de seis, em doze
salas diferentes e produziram versões iguais em setenta e
dois dias. A tradição ainda afirma que uma cópia foi guardada
na lendária biblioteca de Alexandria, local conhecido por ser
um centro de conhecimento e sabedoria e que estava no auge
nos séculos III a I a.C. Outros afirmam que a LXX não existiu
até o século III d.C., sendo resultado do trabalho de Orígenes,
importante Pai da Igreja. De acordo com esta tendência, os
textos da LXX teriam sido copiados das citações presentes no
Novo Testamento. Porém, as pesquisas mostram o inverso,
afinal, as citações do Antigo Testamento presentes no Novo
Testamento são um percentual pequeno comparado com o
Antigo Testamento completo.

A LXX era a Bíblia utilizada nas sinagogas fora da Palestina e conhecida


também dentro das províncias palestinenses, porque muitos prosélitos fre-
quentavam as sinagogas, ou seja, a Bíblia dos cristãos do século I d.C. era,

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em maior proporção, a LXX, em língua grega. Diversas citações do Antigo


Testamento em Mateus, nas cartas de Paulo e em outros livros são idênticos
à Septuaginta. Pode ser que este seja um dos motivos de o Novo Testamen-
to ter sido escrito em grego, em vez de aramaico, por exemplo. Lembremos
que o grego utilizado na LXX era o grego do tipo koiné, o mesmo que depois
foi usado no Novo Testamento, pois era o grego mais utilizado na banda
oriental do império romano, também resultado do helenismo.

2.2. A apocalíptica
A apocalíptica foi um movimento que surgiu por volta do século IV a
III a.C. e reinterpretou as profecias e a sabedoria a partir do momento
histórico em que os judeus estavam vivendo, em especial na Palestina e
no Egito. Ela surgiu como resposta a crises sociais decorrentes de difíceis
momentos políticos pelos quais passavam o povo judeu na Palestina e
até fora dela. O prof. Júlio Zabatiero sintetiza a mentalidade apocalíptica
judaica em três aspectos: a) um dualismo anômalo (fora de padrão), pois
o mundo material e espiritual convivem de forma conflituosa; b) expecta-
tiva pela chegada do reino de Deus; c) a presença e o papel do Messias,
que podem ser sintetizados na figura do “Filho do Homem” escatológico.
Observação: vale a pena reler a exposição sobre apocalíptica do Guia
“Introdução ao Antigo Testamento” (Zabatiero, p. 113-137).
Entre os cristãos o único Apocalipse que foi canonizado é o de João.
Mas existem diversos outros apocalipses, como de Paulo, de Pedro e de
Tomé. Um estudo mais aprofundado, no entanto, demonstra que pratica-
mente todos os livros do Novo Testamento contêm ideias apocalípticas,
como nas concepções sobre o “Filho do Homem”, presentes no sermão
“profético” de Jesus (Mc 13.1-37 e paralelos). Retomaremos esse tema no
Módulo 5, de forma mais profunda.

2.3. A moral judaica


Os seguidores de Jesus eram judeus, logo, observavam todas as

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BÍBLIA Introdução ao NT

práticas judaicas, incluindo a guarda do sábado (com certas liberdades),


a circuncisão etc. Com a adesão de um número cada vez maior de não
judeus à sua fé, ficou complicado exigir a guarda dessas coisas, sob o
risco de continuarem o judaísmo comum. Em At 15 e Gl 2 vemos como
esse problema foi tratado pelos apóstolos e pela igreja primitiva. A so-
lução encontrada por Tiago (At 15.20) foi aceita por todos e divulgada
numa carta aberta. Essa decisão marcou ao menos três aspectos que
mostram como, desde o início do movimento, a moral judaica fundamen-
tou os cristãos primitivos.
Foram estabelecidas as normas mínimas que deviam ser seguidas por
todos da comunidade, fossem judeus ou gentios. São elas: a) proibição de
participar de cultos politeístas; b) proibição de comer sangue ou carne de
animais sufocados; c) proibição de relações sexuais ilícitas.
A respeito dos cultos, fica claro que, mesmo crendo na divindade de
Jesus (ainda não totalmente definida), os cristãos estabeleceram o mono-
teísmo como princípio de adoração. Neste caso, a proibição de participar
dos cultos aos deuses era focada nos não judeus, considerando que os
judeus já não faziam isso, pois tinham autorização das autoridades roma-
nas para se abster, por exemplo, de participar do culto ao imperador, pela
natureza de sua religião. Aliás, um dado curioso é que o crescimento do
cristianismo nos séculos seguintes foi responsável pela decadência dos
cultos politeístas.
A segunda questão proibitiva, relativa à alimentação, mostra que os
cristãos não precisavam seguir as rígidas normas dietéticas dos judeus.
Mesmo assim algumas restrições foram impostas, provavelmente pensan-
do em termos de tipos de comidas oferecidas em festas politeístas e que
poderiam enfraquecer a fé de novos convertidos, ainda não firmados nos
costumes das comunidades (cf. Rm 14). De alguma forma, porém, mesmo
esses critérios mínimos logo foram abandonados e esquecidos, não se
tornando uma real tradição entre os cristãos. Tanto é que a cultura cristã
medieval e moderna adotou alimentos como o chouriço, a galinha ou a

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FATIPI EAD Guia de Estudos

carne malpassada sem nenhuma crise de consciência.


Finalmente, com relação ao sexo, é necessário tentar entender o
que de fato são “relações sexuais ilícitas” (grego porneia). Se o parâ-
metro para os seguidores de Jesus era a Torá e as tradições judaicas,
então o padrão sexual lícito estaria dentro das normas estabelecidas
por essas fontes. Por isso, a participação em orgias, o envolvimento
com prostitutas, o adultério e outras práticas eram severamente com-
batidos, conforme podemos perceber nas epístolas (1Co 5.1; 6.13; 2Co
12.21; Gl 5.19; Ef 5.3). Em Ap 19.2, o termos porneia é utilizado para
mostrar a degradação da “Babilônia” (Roma ou Jerusalém, dependendo
de como se interpreta a passagem). Ao mesmo tempo, o casamento é
muito valorizado, seguindo a tradição judaica. No século I, o padrão de
matrimônio era a monogamia, tanto entre judeus quanto entre os não
judeus. No Evangelho de João, o primeiro sinal (milagre) de Jesus é
feito num casamento. Além disso, ele se envolve numa polêmica sobre
o divórcio, afirmando que apenas a porneia seria motivo condizente para
que ocorresse um divórcio.

em síntese

Assim como o Antigo Testamento foi a matriz espiritual para


os primeiros cristãos, outros fatores foram importantes para
a imaginação dos autores. O mundo deles era marcado por
três fatores que dominaram o mundo judaico nos séculos
II e I a.C.: o helenismo, a apocalíptica e a moral judaica
baseada na Torá e nos comentários rabínicos. Esses fatores
juntos ajudaram a elaborar diversas ideias e crenças dos
seguidores de Jesus, que foram registradas nas páginas do
Novo Testamento.

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BÍBLIA Introdução ao NT

3. O MUNDO DO NOVO TESTAMENTO EM QUATRO DIMENSÕES

Para entender melhor o contexto no qual nasceram Jesus, os após-


tolos e as comunidades cristãs iniciais, precisamos ter em mente certos
aspectos do século I d.C., tanto na Palestina, onde Jesus viveu e morreu,
quanto nas regiões mediterrâneas da Ásia Menor, Grécia, Macedônia e
Itália, onde Paulo e outros apóstolos atuaram. Sem esquecer que povos
vizinhos, como egípcios, etíopes e de nações orientais, são citados em
alguns livros. A partir desses aspectos podemos compreender melhor a
mensagem dos livros do Novo Testamento.
Essas dimensões são: política, social, econômica e religiosa. Elas são
associadas à leitura sociológica da Bíblia, que procura entender como a
vida se estruturava nesses campos, permitindo que tenhamos um quadro
geral do cotidiano das pessoas naquela época. Ao mesmo tempo, vere-
mos como essas dimensões afetavam a vida dos judeus que viviam na
Palestina, seja na província da Galileia ou da Judeia, ou seja, no território
onde viveram Jesus e seus discípulos.

3.1. Dimensão política


A primeira e grande verdade sobre o mundo dos textos que gera-
ram o Novo Testamento é que, politicamente, todos nasceram dentro
do império romano. Significa dizer que, consciente ou inconsciente-
mente, os textos estão relacionados de alguma forma com o domínio
de César sobre a vida das pessoas. Daí ser muito importante entender
o significado desse governo para a população. A extensão do império
romano não ia para muito longe de sua cidade central, Roma. Mas cir-
culava todo o Mediterrâneo, o que fazia que o mar ganhasse o apelido
de Mare Nostrum.

Imagem: Mapa do império romano no tempo de Cristo.

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FATIPI EAD Guia de Estudos

Apesar de o império romano ter o formato de um círculo, Roma con-


siderava os territórios – chamados de províncias – ao Leste (Palestina,
Síria e os países orientais) e a Oeste (Gália, atual França, Ibéria, atuais
Portugal e Espanha), além do Norte da África, como regiões primitivas,
com povos estranhos, que precisavam de sua interferência para serem
civilizados. Por isso, a presença das legiões nesses territórios era maior
do que em regiões como a Grécia, que Roma considerava mais sofistica-
da culturalmente. Assim, fazia diferença viver nas províncias da Palesti-
na (Judeia, Galileia e Samaria) em relação às províncias da Ásia Menor
(Galácia, Panfília, Bitínia, Ásia etc.) e mais ainda para quem era vizinho,
nas províncias de Macedônia, Acaia e Dalmácia. Aqui, política e geografia
meio que se misturam; dependendo do território, a organização interna era
diferente. Roma não interferia na estrutura local, a não ser em casos de
rebeliões e insubmissão do rei local. Também a religião gozava de autono-
mia, desde que não ameaçasse o poder romano. Mesmo assim, o Senado

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BÍBLIA Introdução ao NT

romano tinha alguns tipos de supervisores ou representantes, com o fim


de garantir os interesses de Roma, especialmente o envio de tributos.
No caso da Palestina, especialmente a Judeia, os nobres e o grupo
sacerdotal eram colaboradores dos romanos, tanto pela dimensão econô-
mica quanto política. A representação romana se dava por um “procura-
dor” ou “prefeito”, como foi o caso de Pôncio Pilatos, o que implicava di-
retamente sobre a situação social, conforme veremos a seguir. Os judeus
tinham sua própria organização nos territórios da Judeia e da Galileia,
inclusive com conselhos jurídicos locais denominados Sinédrios. Neles,
questões relacionadas aos costumes judaicos eram julgadas, desde que
não envolvessem pena de morte, caso fosse um homem livre. Nesse caso
teria que obrigatoriamente passar pelo procurador.
O César exercia o papel de princeps, não um monarca absoluto, mas
um chefe executivo com mais poderes. Isto porque ele respondia ao Se-
nado, que representava o povo romano por meio de prepostos das duas
principais classes: os patrícios e os equestres (veja a seguir, na dimensão
social, como eles se caracterizavam). A relação entre o Senado de Roma
e os reis das cidades provinciais era muitas vezes fundada em laços de
amicitia, vínculos estabelecidos por meio de casamentos e ações similares
entre pessoas do mesmo status social, para estreitar relações e fortalecer
o poder do império em cidades distantes. Assim, filhas e filhos de famílias
tradicionais de Roma casavam-se com herdeiros de tronos em cidades do
império em pontos bastante diversos.
Um aspecto importante da política romana era a pax romana. Trata-
va-se do uso do exército de modo enérgico para manter a paz nas pro-
víncias. Era a paz do medo, o silêncio dos oprimidos que não podiam
reclamar nem lamentar sua situação. Qualquer ato de desobediência ou
revolta era duramente reprimido pelas legiões que ficavam estacionadas
em áreas estratégicas. Flavio Josefo reporta diversos exemplos, em espe-
cial a guerra entre judeus e Roma que ocorreu entre 63-74 d.C., da qual
foi testemunha ocular. Este conflito teve como uma de suas principais con-

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FATIPI EAD Guia de Estudos

sequências a destruição de Jerusalém no ano 70, bem como a de várias


cidades da Galileia. Curiosamente, os legionários não podiam entrar na
cidade de Roma, porque em seus muros a ordem era garantida por outros
meios. Havia, por outro lado, forte vinculação entre o exército e o serviço
civil. Muitos senadores e até Césares tinham sido generais e comandantes
de legiões em diferentes regiões do império.

Política na Palestina
A política romana na Palestina, no período do século I d.C., foi bas-
tante tumultuada, com muitos impostos e pressão sobre as camadas mais
pobres da sociedade. Apesar disso, os judeus gozavam de liberdade para
praticar sua religião e não eram molestados pelos governantes do alto es-
calão. Entretanto, os soldados de nível inferior tendiam a ser intolerantes
com as práticas judaicas de prescrição alimentar e de pureza, o que trazia
conflitos pontuais entre os romanos e as autoridades judaicas. Entre altos
e baixos, houve várias mudanças na forma de governo no território da
Palestina, que demandaria espaço para um estudo mais profundo. Ainda
assim, podemos resumir alguns pontos importantes.
Herodes Magno foi rei de todo o território israelita, sob as benesses
de Roma, com quem sabia lidar politicamente. Após sua morte, em IV
a.C., os romanos dividiram o território em quatro províncias ou tetrarquias
(quatro reinos). A Judeia ficou sob o governo direto de Roma, exceto no
curto período de Agripa I, neto de Herodes, que unificou a Palestina sob
seu reinado. A Galileia, que compunha outra área com a Pereia, ficou sob
controle de herdeiros de Herodes Antipas, o que mais tempo dominou,
de 4 a.C. a 39 d.C. A partir do ano 48 d.C., Agripa II torna-se inspetor do
Templo, até porque as províncias passaram a ter mais controle de Roma,
para evitar possíveis rebeliões.
Após a guerra judaico-romana de 66-74 d.C. (falaremos mais sobre
ela no Módulo 2), com a queda do Templo e o fim do governo sacerdotal,
a Palestina passou a ter status similar ao de outras províncias, e o judeus

20
BÍBLIA Introdução ao NT

tinham que responder a Roma como os judeus da Diáspora. Seja como


for, as províncias que mais complicaram a vida dos romanos no século I
foram a Gália, no Ocidente, e a Judeia e arredores, no Oriente.

3.2. Dimensão econômica


O mundo romano pode ser descrito como uma economia agrária de-
senvolvida, ou seja, a agricultura tinha um grande peso na economia do
império. Havia uma série de características que marcavam esse sistema:
tecnologia avançada, com o uso do arado de ferro, que possibilitou maior
produtividade com menor presença de mão de obra humana. Além disso,
a grande produção permitiu estabelecer o sistema de dominação por exér-
cito profissional e consequentemente permitiu a ampliação dos domínios
do império, cada vez maiores. Por outro lado, houve consequência demo-
gráfica e urbanística importante: a população cresceu consideravelmente,
apesar da alta taxa de mortalidade infantil e da baixa expectativa de vida.
Estima-se em 70 milhões de pessoas o número de habitantes dentro das
fronteiras do império romano.
Ao mesmo tempo, cresceu o número de cidades com grande concen-
tração populacional e boa estrutura de vida. Quanto ao trabalho, nessas
sociedades predominava a divisão especializada das atividades, artífices
se organizavam em corporações para manter o grupo coeso e permitir
ganhos mínimos para todos. Havia especialização de produção, tanto
agrícola quanto manufaturada. A África do Norte e a Espanha eram co-
nhecidas no império romano como fornecedores de figos secos e óleo de
oliva; a Gália, a Dalmácia, a Ásia Menor e a Síria eram fornecedoras de
vinho; a Espanha e o Egito supriam o mercado com carne salgada; o Egi-
to, a África do Norte e a Cilícia eram os principais fornecedores de cereais.
Havia forte comércio que vinculava todo o império e funcionava tanto
pelo sistema monetário quanto pelo escambo, a troca de mercadorias. A
princípio, a robustez comercial ocorria por causa do domínio marítimo,
mas logo os romanos construíram rotas comerciais por terra que liga-

21
FATIPI EAD Guia de Estudos

vam as principais regiões do império e até além. Com o sustento básico


garantido, a elite romana desejou alimentos e itens exóticos, como pedras
e metais preciosos da África, especiarias, algodão e seda da Índia. Um
mapa rodoviário do século III d.C. foi encontrado numa tábua copiada no
século XIII. Chama-se Tabula Peutingeriana e tem esse nome por causa
do homem (Konrad Peutinger) que conservou esse objeto e que está pre-
servado até hoje na Biblioteca Nacional de Viena.

Acima – O mapa denominado Tabula Peutingeriana. Ele mostra as


rotas viárias de Roma, para auxiliar os viajantes. Fonte: wikipedia.org/wiki/
Tabula_Peutingeriana

22
BÍBLIA Introdução ao NT

A Tabula Peutingeriana mostra a existência de boa estrutura de si-


nalização e organização de vias no império. Segundo as evidências, a
cada determinada quilometragem havia hospedarias e pedágios controla-
dos por soldados, com o fim de evitar assaltos e garantir o progresso dos
mercadores. Além disso, o império comandava uma máquina de tributos
e impostos que funcionava muito bem: os povos conquistados tinham que
enviar alimentos, pessoas e dinheiro para Roma. O principal imposto era
o de César, cobrado por habitante. A cunhagem de moedas, atividade
muito relevante, era usada mais nas cidades que no campo. A moeda
básica para pagar os trabalhadores era o denário, equivalente ao dracma
grego, ambos cunhados em prata. O áureo era a moeda mais importante,
em ouro, equivalente a 25 denários. Do mundo grego era conhecido o
talento, que equivalia a 6000 dracmas, ou 60 minas. Os césares e os reis
mandavam cunhar nas moedas programas governamentais, a imagem do
imperador ou de alguma divindade e até vitórias em batalhas.

curiosidade

O estudo de moedas e dinheiro em geral é chamado


numismática e permite acessar diversos conteúdos
políticos e religiosos de várias épocas. Veja por exemplo
uma figura com diversas moedas antigas, algumas da era
romana: https://pethistoriaufpr.wordpress.com/2015/07/02/
divulgacao-das-exposicao-e-catalogo-moedas-romanas/.
No site você tem acesso a uma visita virtual para analisar
moeda por moeda.

Também é preciso dizer que, apesar da grande quantidade de dinhei-


ro que circulava em todo império, a sociedade romana se estruturava eco-
nomicamente pelo sistema escravagista. O escravo e a escrava não eram

23
FATIPI EAD Guia de Estudos

exatamente um grupo social, mas meio de produção, representando cerca


de 30% da população. Todos os homens e mulheres livres que tinham um
pouco mais de recursos mantinham escravos para o trabalho doméstico e
profissional. Uma pessoa se tornava escrava por nascimento, dívida, es-
pólio de guerra, pirataria ou ainda por mau comportamento civil. Escravos
exerciam desde as funções mais baixas, como enterrar cadáveres e coisas
semelhantes, quanto administrar as casas dos ricos, escrever documentos
ou gerenciar o tesouro público. Escravos que trabalhavam em minas e no
campo eram mais explorados, enquanto escravos domésticos e do serviço
público tendiam a ser melhor tratados. Isso porque um escravo custava mui-
to dinheiro e precisava ser mantido de forma básica para prestar um bom
serviço. Por isso tinha comida, vestimentas e alojamento. Se ele atendia
senadores e imperadores, tinha muito mais regalias e acesso a bens do que
os escravos de rua e minas. Filhos de mulheres escravas também eram
escravos, mas era comum a prática de liberar um escravo após determinado
tempo de serviço. Os libertos só poderiam se tornar cidadãos romanos caso
fossem escravos de cidadãos de Roma, e assim mesmo com alguma difi-
culdade, ou seja, escravos eram extremamente limitados na estrutura social.

24
BÍBLIA Introdução ao NT

Ao lado – mosaico romano mostrando quatro escravos servindo aos


senhores. Detalhe para a perspectiva, que os coloca em primeiro nível,
talvez mostrando a importância dos escravos no sistema romano.
Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Slavery_in_ancient_Rome.

Economia na Palestina
Além do imposto do César, para quem vivia na Palestina havia outros
tributos e situações que mexiam com a economia: o templo, o dízimo e as
taxas, além da exigência dos exércitos de ocupação por alimentos, faziam
com que muitas pessoas não tivessem o básico para viver e se escravi-
zassem ou mendigassem por comida. É fácil compreender que a situação
econômica afetava diretamente a social.
A maior parte da população era camponesa, poucas famílias domina-
vam as cidades e se mantinham com status e poder graças a boas rela-
ções com Roma. Esse foi, sem dúvida, um dos fatores de maior desgaste
na Palestina, e acabou por provocar a revolta de 66 d.C.

3.3. Dimensão social


A sociedade romana era formada por camadas sociais bem definidas,
com alto grau de hierarquia. Havia alguma possibilidade de ascensão so-
cial. O que determinava a pertença a uma ou outra camada era principal-
mente o poder e o prestígio. Por isso fala-se em estamento, em vez de
classes sociais. Nesse sistema, chamado patronagem, uma pessoa rica e
poderosa ajudava pessoas abaixo dela, denominadas clientes, num pro-
cesso de troca mútua e favorecimentos. Podemos dividir essas camadas
sociais em dois grandes grupos: a elite e a não-elite.
Na elite estava a aristocracia imperial (casa imperial, senatorial e os
cavaleiros ou equestres), provincial e citadina. Na cidade de Roma essa
elite também era conhecida como patrícios (descendentes das antigas fa-
mílias fundadoras de Roma). Todos estes estavam no estrato superior da

25
FATIPI EAD Guia de Estudos

sociedade. No estrato inferior estava a não-elite – pobres e abastados


livres ou libertos, escravos que conseguiam obter alforria. Escravos alfor-
riados viviam em condições mínimas e eram denominados por plebeus em
Roma. Entre a elite e a não-elite estava o séquito, que era formado pelos
escravos em funções administrativas, cultuais e militares, libertos e livres.
Na base da pirâmide havia uma grande maioria de pessoas extremamente
pobres e escravos, que trabalhavam em condições sub-humanas em mi-
nas ou no campo. Em grego são chamados de ptôchoi.
Fica bem claro como a estrutura econômica e social causava imensa
desigualdade de classe no império. Enquanto uma minoria tinha acesso
a todas as variedades de alimento, especiarias e iguarias, uma grande
maioria mal tinha o necessário para comer por dia. O pão, alimento básico
no império, não era barato, custava quase o pagamento diário de 1 dená-
rio (cerca de 315 por ano, descontado um dia de descanso semanal). Só
de pão, uma família de quatro pessoas consumia no ano 270 denários.
Logo se percebe como a cobrança de impostos e a necessidade de ter
dinheiro para outros itens, como roupas e calçados, tornava a vida mise-
rável para os trabalhadores comuns. A ironia é que essas famílias empo-
brecidas e totalmente sem condições trabalhavam e viviam, na maior parte
das vezes, no campo, onde produziam a riqueza da elite. Para mitigar
esta situação e produzir sensação de igualdade, Roma oferecia um forte
sistema de entretenimento, que sustentava a estratificação e enfraquecia
as tentativas de revolta. Ao mesmo tempo, havia intensa política de do-
nativos em prol dos mais pobres, num sistema de troca de favores entre
ricos e pobres chamado patronato, em que a principal força estava na prá-
tica do evergetismo (benfeitoria) por parte dos ricos. Estes alimentavam
os necessitados, investiam em praças e melhorias nas residências, tendo
como contrapartida o apoio em várias questões, inclusive nas eleições
para cargos públicos. As principais atividades recreativas eram as lutas de
gladiadores em arenas, o teatro e outros espetáculos semelhantes. Nas
grandes cidades havia hipódromos, para corrida de bigas, e as lutas acon-

26
BÍBLIA Introdução ao NT

teciam em grandes coliseus, que comportavam até 50 mil pessoas. As


classes baixas não pagavam para entrar, pois os espetáculos eram finan-
ciados pela elite que, em contrapartida, ficava nos melhores lugares, onde
podiam ser vistos por todos e assim ser celebrados como benfeitores.
É importante situar a condição da mulher na sociedade romana. Per-
tencer ao gênero feminino na Roma Antiga era por si só uma condição de
inferioridade, ainda que estivesse nas classes mais altas e ricas. Mulheres
não podiam votar, ter nenhum cargo político ou administrativo; da mes-
ma forma, todas eram excluídas do serviço militar. Os dois meios mais
comuns de ascensão social estavam vetados a elas. Por isso, além da
família à qual a mulher pertencia por nascimento, o que determinava sua
possibilidade de ter uma boa vida era o casamento. Assim, as mulheres
participavam de seu estrato social via marido ou pai. Escravas podiam
ascender, caso o senhor as libertasse e de acordo com o modo de viver
do marido. Curiosamente, a mulher que gerasse três ou quatro filhos que
sobrevivessem à mortandade infantil passava a ter mais prestígio social.

O modo de vida judaico na Palestina


A sociedade judaica no século I d.C. tinha mudado um pouco, mas
numa coisa ainda estava muito arraigada: no patriarcalismo. Devido ao
contato com os povos ocidentais, no século I d.C., os judeus tinham dei-
xado a prática da poligamia. Por isso, as famílias judaicas eram mono-
gâmicas. Porém, o marido tinha pleno poder sobre a mulher e, caso não
quisesse mais o casamento, a despedia com apenas uma carta de divór-
cio, para que ela não fosse apedrejada como adúltera. Por isso, muitas
mulheres precisavam se prostituir para sobreviver ou sujeitarem-se a rela-
ções abusivas para ter um teto. Além disso, mulheres e crianças não eram
contadas socialmente para os judeus, apenas os homens adultos.
Como visto, havia forte estratificação social que também afetava os ju-
deus. Os de origem nobre, seja das famílias sacerdotais ou da realeza, só
se casavam com pessoas do mesmo grupo. Aliás, é bom reforçar que na

27
FATIPI EAD Guia de Estudos

estrutura social judaica havia dois tipos de nobreza: os ligados às famílias


sacerdotais mais importantes e os ligados às famílias tradicionais da rea-
leza, tanto em Jerusalém quanto nas demais capitais de províncias, como
Tiberíades, na Galileia. Abaixo deles, o séquito trabalhava para manter
a estrutura funcionando; havia menos ênfase em ter escravos, mas não
significa que eles não estivessem também na terra de Israel.
A maioria da população, no entanto, era camponesa, pobre e depen-
dente da capacidade de trabalho para se manter. As famílias camponesas
procuravam ter filhos como força de trabalho, por isso o tamanho da prole
era proporcional ao tamanho da terra para cultivar. No caso de endivida-
mento por causa dos tributos, muitas vezes os filhos eram vendidos como
escravos, ainda que temporariamente. Por outro lado, quando se tornava
impossível manter a terra, ela era cedida ao cobrador, e a família, antes
proprietária, passava a trabalhar como arrendatária.
Porém, para muitas pessoas, nem mesmo esta situação era possível.
Nestes casos, as pessoas recorriam à mendicância e até ao banditismo
social, roubando para subsistir. Aqueles que ainda tentavam trabalhar ho-
nestamente tinham a opção de fazer parte de sociedades coletivas, como
a de pescadores, ou trabalhar como diaristas, ganhando o salário do dia,
mas sem garantia de que teria trabalho no dia seguinte. Portanto, social-
mente a Palestina era uma “bomba-relógio”, o que ficou demonstrado na
revolta de 66 d.C.

3.4. Dimensão religiosa


O mundo religioso do império romano era multiforme, amplo, politeísta
em sua maioria e, como em todo o mundo antigo, não se separava de
fato da política. A cidade de Roma era uma notável exceção: o Senado
romano não permitia o culto ao imperador nos limites da cidade e a religião
adotada pelo indivíduo não era determinante na hierarquia social. Para os
romanos, a piedade era o mais importante em termos religiosos. Essa pie-
dade era entendida como o cumprimento dos rituais em diversos momen-

28
BÍBLIA Introdução ao NT

tos da vida, como forma de expressar respeito aos deuses e aos poderes
sobrenaturais. Havia os augures, sacerdotes que observavam o clima e
os sinais no movimento das aves (daí augúrio, como pressentimento) e
haruspices que liam as entranhas dos animais (daí auspícios). Entretanto,
os romanos suspeitavam da magia e de práticas religiosas místicas, as
quais consideravam como superstição.
O maior fenômeno religioso do mundo romano, porém, era o sincretis-
mo, a possibilidade de elementos de uma religião também fazerem parte
de outra. Um exemplo é o da devoção da deusa Diana ou Ártemis em
Éfeso, cujo templo é considerado uma das sete maravilhas do Mundo An-
tigo. Originalmente, Diana era uma deusa virgem, caçadora e guerreira.
Na versão efésia, ela tinha dezenas de seios e estava associada ao culto
da fertilidade das culturas orientais, inclusive cananeia. Essa liberdade e
fluidez nas representações religiosas pode ter sido responsável, inclusive,
pelo rápido crescimento do cristianismo no mundo romano.
Podem ser citadas como religiões que existiram e tiveram grande força
no mundo romano o Mitraísmo, advindo de Mitra, uma divindade que veio
da Pérsia; o Neopitagorismo, oriunda das ideias simbólicas do filósofo Pi-
tágoras; a Astrologia e a Magia; o Gnosticismo e o Hermetismo, todos as-
sociados a culto de mistério. Não tinham muito prestígio, mas mantiveram
forte influência no império até o século IV, quando Constantino tomou
posição favorável ao Cristianismo, afastando-se dessas outras vertentes.
Na Palestina, por sua vez, o culto a Javé e a sacralidade do Templo
eram tolerados até certo ponto. Os sacerdotes tinham um lugar especial
na sociedade, sendo considerados elite junto aos membros das cortes
herodianas. Depois da revolta judaica de 66-74, porém, o Templo foi des-
truído e os sacerdotes judaicos perderam prestígio e poder.
A religião com mais influência e que mais crescia era o culto imperial.
É muito complexo reportar a forma e as condições em que ele acontecia,
mas em resumo, o que se pode afirmar é que o culto ao imperador nasceu
de forma simbólica com Júlio César e se desenvolveu com Augusto, que

29
FATIPI EAD Guia de Estudos

assumiu o título de imperator divi filius (filho de deus imperador). O Se-


nado romano não admitia o culto ao imperador como divindade ainda em
vida, apenas após sua morte. Mas as cidades do Oriente, que já tinham
o culto aos seus reis como epifanias (manifestações) divinas, assumiram
muito rápido o culto aos imperadores, construindo santuários e templos.
Apenas como exemplo, Atenas construiu o templo Roma-Augusto e na
Galácia havia dois santuários para o culto ao imperador, um no Norte e
outro no Sul.

Ao lado – Estátua de Augusto como Pontífi-


ce Máximo, usando vestimenta sacerdotal.
Fonte: https://www.flickr.com/photos/mmarftrejo/4368503830.

Roma nunca exigiu exclusividade ou


que se deixasse de adorar outros deuses
por causa do imperador, senão certamen-
te haveria muitos problemas. Mesmo os
judeus viviam sob regulação especial,
que não os obrigava a participar desses
cultos. No caso dos cristãos, porém, a
questão era mais complexa: por anunciarem o Filho de Deus que viria
instaurar o reino de Deus – uma nova ordem mundial – a fé cristã foi
considerada subversiva e competia com o culto ao imperador. Certamen-
te essa concepção foi reforçada em épocas de perseguição e prisão de
cristãos. Por isso mesmo e como contraponto a essa oposição, os cristãos
eram instados a ser excelentes cidadãos, honestos em tudo e exemplo de
uma moral superior. Dessa forma ficavam menos afeitos a acusações de
rebeldia e conspiração, especialmente se fossem dos estratos superiores.

A religião judaica na Palestina


A vida religiosa judaica, no século I d.C., estava vinculada a três espa-
ços: templo, sinagoga e casa. No Templo de Jerusalém, estava o cerne

30
BÍBLIA Introdução ao NT

da religião sacerdotal, o espaço para realização de sacrifícios e adoração


nacional. Mas ele também representava um espaço econômico por conta
do dízimo e o sustento das famílias sacerdotais. Como nem todos podiam
ir ao Templo frequentemente, a sinagoga tornou-se o segundo espaço de
adoração judaica mais importante.
Desde o pós-exílio, as sinagogas surgiram como alternativa ao judaís-
mo sem templo. Mesmo depois que o Templo foi reconstruído por Zoro-
babel, em 520 a.C., os judeus da Diáspora continuaram a exercitar sua
piedade nas sinagogas, palavra que vem do grego synagoguê (literalmen-
te, “lugar de reunião”). Construídos, a princípio, como espaços básicos de
reunião, séculos depois os judeus definiram arquitetura diferenciada para
as sinagogas. As mais antigas são encontradas no século III a.C. em ins-
crições gregas. Ali, as pessoas se reuniam para orar, estudar as Escrituras
judaicas, bem como para conselhos coletivos que tratavam das questões
da comunidade. O momento mais importante nas sinagogas era o sábado
pela manhã, tempo de estudar a Torá.
A casa, mesmo não sendo um espaço oficial de vivência religiosa, era
tida como o núcleo mais importante para os judeus: era o lugar da de-
voção pessoal, onde a mulher tinha a incumbência de ensinar aos filhos
os mandamentos das leis e as principais histórias do povo de Israel, e o
marido era responsável pela boa ordem do lar, em termos de observância
dos preceitos, especialmente de pureza e endogamia, isto é, não casar os
filhos com pessoas não judias. Era na casa que se faziam as orações de
abertura do sábado, ao anoitecer da sexta-feira, pois para os judeus o dia
começava no cair da noite e ia até o entardecer do dia seguinte.

síntese

Mediante essas quatro dimensões (política, econômica,


social e religiosa), é possível ter um breve quadro da

31
FATIPI EAD Guia de Estudos

vida cotidiana dos povos dominados por Roma no século


I d.C., em especial os judeus. Esse era o mundo no qual
viveram Jesus e os apóstolos. Ao entender esse mundo,
podemos compreender melhor diversas passagens do
Novo Testamento, pois ao escrever, muitas vezes os
autores tinham essas informações como pano de fundo de
seus textos. Eles não estavam apenas transmitindo uma
mensagem de fé, mas procuravam questionar a realidade
onde viviam, reconhecendo que, em muitos aspectos, ela
era tomada por imposições violentas e iam no sentido
oposto aos princípios do reino de Deus pregado por Jesus.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Foi um esforço bastante grande reunir tanta informação em tão poucas


páginas. Mas são informações relevantes para entender o pano de fundo
do Novo Testamento. Muitas vezes lemos textos sem entender o contexto
no qual se encontram. Vimos aqui diversos pontos em que se percebe
uma segunda possibilidade de leitura de várias passagens. Por exemplo,
quando lemos em João a afirmação de Jesus: “Deixo com vocês a paz, a
minha paz lhes dou; não lhes dou a paz como o mundo a dá” (Jo 14.27a),
ao pensarmos na pax romana, logo percebemos que o texto está mos-
trando claramente que Jesus é um rei diferente daqueles governantes que
dominavam na base do medo e da ameaça. Não é apenas uma questão
de paz interior, mas de um relacionamento baseado no amor e na justiça,
sem violência e coerção.
Por outro lado, veja o significado de um texto como o de Paulo, em 1Co
4.9, quando ele diz “Porque me parece que Deus pôs a nós, os apóstolos,
em último lugar, como se fôssemos condenados à morte. Porque nos tor-
namos espetáculo para o mundo, tanto para os anjos como para os seres

32
BÍBLIA Introdução ao NT

humanos”. A palavra “espetáculo”, em grego, é theatron, e aqui indica que


os sofrimentos de Paulo e dos demais apóstolos eram como uma apre-
sentação do sistema de pão e circo, para manter a audiência cativa. Sem
saber, Paulo estava prevendo o que seria uma dura rotina para muitos
cristãos nas décadas seguintes, inclusive para ele mesmo e para Pedro
que, segundo a tradição, foram mortos em arenas. Assim, perceber esses
aspectos tão próprios do mundo em que os autores do Novo Testamento
viviam poderá nos ajudar a compreendê-lo melhor.

33
Módulo 2

JESUS, O EVANGELHO E OS EVANGELHOS


BÍBLIA Introdução ao NT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Olá, que bom que você voltou. Continuamos nossa caminhada em tor-
no do Novo Testamento, agora focando na pessoa mais importante do
cânon bíblico: Jesus Cristo. Neste módulo iremos analisar o significado
de Jesus e seu ministério, que jamais poderá ser subestimado. É um dos
acontecimentos mais importantes da humanidade, a ponto de o Ocidente
estabelecer a cronologia em Antes de Cristo e Depois de Cristo (Ainda que
hoje se use Era Comum em livros acadêmicos, para tirar o foco da pessoa
de Jesus, permanece a datação baseada no nascimento dele.).
Para nós, cristãos, nada é superior a nascimento, vida, morte e res-
surreição de Jesus. É sobre isto que falaremos neste módulo, levando em
conta os livros que foram escritos sobre ele: os Evangelhos canônicos.
Faço esta distinção porque muitos outros Evangelhos foram escritos, mas
ficaram de fora do cânon por diversos motivos. Mas isto é assunto para
outro Módulo. Vamos focar aqui a origem e a mensagem de cada Evange-
lho que já bem conhecemos.
Então, tendo em mente estas questões e considerando um bom apro-
veitamento do conteúdo que será apresentado, podemos dizer que nosso
objetivo é que você seja capaz de: a) explicar como foi o ministério de
Jesus, suas características e seu impacto na sociedade em que ele viveu;
b) diferenciar os conceitos de evangelho como mensagem em relação ao
gênero literário; c) explicar como o gênero literário evangelho ganhou nova
dimensão quando passou a falar de Jesus Cristo; d) conceituar a Tradição
de Jesus, a partir do fenômeno da tradição oral; e) explicar a origem dos
Evangelhos escritos e a singularidade de cada um, mesmo todos falando
dos mesmos fatos.
Espero que seja uma aula rica em crescimento intelectual, mas tam-
bém no aprofundamento deste assunto tão especial para nós. Afinal, falar
de Jesus nunca pode se tornar um assunto esgotado. Deus nos abençoe
nesta tarefa.

35
FATIPI EAD Guia de Estudos

1. O MINISTÉRIO DE JESUS

Ao pensarmos em Jesus, logo nos vem à mente o Filho de Deus, o


Salvador, Jesus Cristo. Ainda que pensemos na natureza humana dele, há
certa tendência de vê-lo perfeito, acima de toda a humanidade. Ignoramos
aspectos práticos, como seu aprendizado na infância, o tempo em que
trabalhou com o pai José e outras atividades comuns. Neste momento
vamos inverter nosso foco. Deixemos para depois uma descrição de fé
sobre Jesus e busquemos os aspectos sociais, religiosos e humanos que
o envolveram, bem como as características do seu ministério, tão peculiar
e ao mesmo tempo tão simples para as pessoas daquele tempo. Faremos
isto pensando em cinco ângulos: quem era Jesus; a região onde ele atuou;
as características mais marcantes de seu ministério, a pregação que ele
disseminou e finalmente o discipulado que ele desenvolveu.

1.1. Quem era Jesus?


Nossa primeira afirmação parece óbvia: Jesus era um judeu da Galileia,
portanto, um galileu. Porém, há muito o que dizer a respeito disso. Um judeu
que nascesse na Judeia tinha status de tradição superior, pois podia afirmar
que era herdeiro do povo judaíta que vivia no reino do Sul. A tradição bíblica,
por exemplo, considera que o povo de Judá foi fiel por mais tempo a Deus
do que o povo do Norte, onde ficava o reino de Samaria. O Sul é vincula-
do à família real davídica, cuja dinastia durou cerca de quatro séculos. O
mesmo não se pode dizer da Galileia. Ela ficava exatamente na parte que
antes fora o Norte, junto com Samaria. Enquanto Samaria desenvolveu sua
história própria, a Galileia tornou-se um espaço multinacional, com muitos
estrangeiros vivendo na região. Além disso, a Galileia era uma região de
periferia, se comparada com a Judeia, justamente por causa de Jerusalém.
Ou seja, considerar Jesus como galileu é dizer que ele vivia numa terra
misturada, onde os judeus não eram a maioria; era como se ele fosse um
judeu de segunda categoria. Não só isso: Jesus foi camponês, pois viveu

36
BÍBLIA Introdução ao NT

sua vida até o início do ministério na pequena aldeia de Nazaré, com apro-
ximadamente 200 moradores.

curiosidade

Jesus era galileu ou judeu? Os Evangelhos de Mateus e


Lucas informam que Jesus nasceu em Belém da Judeia, mas
cada um de uma forma diferente. Em Mateus, o nascimento
de Jesus foi em Belém para cumprir uma profecia (Mt 2.1-6),
enquanto em Lucas, ele nasceu ali por causa da convocação
do censo por parte de Augusto César (Lc 2.17). Entretanto,
mesmo tendo nascido em Belém, Jesus viveu a vida inteira
em Nazaré, pequena aldeia da Galileia. Logo, para todos os
efeitos, ele era galileu e não judeu.

E como ele se mantinha junto a sua família, se vivia num lugar tão
pequeno? Os Evangelhos indicam que ele era um tekton (conf. Mc 6.3; Mt
13.55), palavra grega traduzida como carpinteiro. Isso fazia dele um dia-
rista, pois essa profissão não tinha emprego fixo. Por esta razão, além do
aramaico, língua materna dos judeus da Palestina, Jesus também devia
falar o grego koiné, a língua comercial e política do seu tempo.
Em alguns momentos, é provável que ele tenha trabalhado na terra
para ajudar na produção agrícola familiar, garantindo o mínimo para sub-
sistência. Segundo as pesquisas arqueológicas, Nazaré tinha uma peque-
na produção agrícola, incluindo vinho e cereais. Assim, podemos afirmar
que Jesus fazia parte da classe pobre no mundo imperial romano, pessoas
que viviam com o mínimo, cujo trabalho era explorado de forma injusta, às
vezes parecido com a escravidão.
A terceira questão sobre a identidade de Jesus é relativa à sua forma-
ção. Não se pode afirmar que Jesus tinha instrução formal, como também

37
FATIPI EAD Guia de Estudos

fica difícil garantir que era totalmente desprovido de instrução. Afinal, ele
citava tanto o Antigo Testamento que só podia ser um leitor assíduo. Mas
na cultura oral do tempo de Jesus, muitas passagens do Antigo Testa-
mento eram memorizadas apenas pela repetição delas, sem que a pessoa
precisasse ler a passagem. Por outro lado, é possível que Jesus tenha
aprendido a ler com alguém da aldeia de Nazaré, sem que frequentasse
uma escola rabínica, pois nada sugere nos Evangelhos que ele tenha sido
discípulo de algum mestre daquela época.
Nos Evangelhos, Jesus é mostrado como alguém que estava no Tem-
plo, aos doze anos, discutindo com os doutores da Lei (Lc 2.41-52), mas
também é apresentado como alguém sem estudo (de acordo com Jo
7.15). Há a passagem que o mostra lendo Isaías na sinagoga (Lc 4.18),
em que parece ser um dirigente da reunião. O pesquisador David Flusser
(2002, p. 12) comenta o seguinte a este respeito:

O relato sobre o menino, feito por Lucas, não contradiz o que


sabemos a respeito da educação judaica de Jesus. [...] Quan-
do os pronunciamentos de Jesus são examinados tendo como
pano de fundo o estudo judaico contemporâneo, é fácil obser-
var que ele estava longe de ser iletrado. Jesus era muito versa-
do tanto nas Escrituras Sagradas como na tradição oral e sabia
como aplicar esta herança erudita.

Independentemente de podermos reconstruir a história da formação de


Jesus, o fato é que ele mostrou, com sua pregação e vida, ser profundo
conhecedor da Lei e dos Profetas, e foi reconhecido como mestre e senhor.

1.2. A região de atuação de Jesus


É muito importante conhecer a geografia da região onde Jesus atuou,
seja na própria Galileia quanto em outras localidades. Dependendo do
Evangelho que você ler, vai perceber uma peregrinação diferente, sendo

38
BÍBLIA Introdução ao NT

que alguns lugares são citados em todos.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Judeia_(prov%-
C3%ADncia_romana)#/media/Ficheiro:First_cen-
tury_palestine-pt.svg

O local mais falado é a Galileia,


cujo nome vem do hebraico galil, que
pode ser traduzido por “distrito”. Era
espaço de muitos grupos de diferen-
tes nacionalidades e etnias. No perío-
do de Azarias, rei de Judá, e Peca,
rei de Samaria, Tiglate-Pileser, rei da
Assíria, tomou a região e levou para
lá povos de outras regiões, em 752 a.C. Daí o apelido de distrito das na-
ções ou “Galileia dos gentios”, que aparece em Is 9.1.
A Galileia era dividida em Alta Galileia, mais ao Norte da província,
cercada de montanhas que podem alcançar até 1200 metros e menos po-
voada, e em Baixa Galileia, mais ao Sul. Corresponde à área em torno do
mar da Galileia, que também pode ser chamado de Mar de Quineret, Lago
de Genesaré, Mar de Tiberíades, dependendo da fonte e da época. Nessa
região estão as maiores concentrações populacionais, inclusive a antiga ca-
pital Séforis e a capital posterior, Tiberíades. Ali também ficam as cidades
de Cafarnaum, Caná e a aldeia onde Jesus foi criado, Nazaré. Cafarnaum
merece destaque porque lá moravam Pedro e seus sócios da pequena em-
presa de pesca, e parece ter sido uma base missionária para Jesus.
Também na região Norte, porém mais a Oeste, fica Samaria, espaço
de muitos conflitos porque o povo dessa região originalmente descende
dos grupos que romperam com Jerusalém na época de Roboão, no século
X a.C. Nessa época, o reino passou ser chamado de Israel e a cidade de
Samaria servia como sua capital. Depois da conquista pelos assírios, em
722 a.C., povos de diferentes nacionalidades passaram a viver ali.

39
FATIPI EAD Guia de Estudos

A partir do tempo de Neemias, durante o domínio persa, a região vol-


tou a ter certa autonomia, inclusive com o repovoamento de cidades e o
retorno de israelitas samaritanos. No ano 300 a.C. eles chegaram a re-
construir o santuário de Garizim, onde faziam culto a Javé, em concorrên-
cia com Jerusalém. Certamente esse foi um dos fatores de conflito com
os judeus, sempre marcado por violência, a ponto de os Asmoneus, grupo
judaico que governou a Judeia depois da revolta dos macabeus, destruir o
santuário samaritano em 128 a.C., por ordem de João Sicrano. Esse fato
é indicado de forma indireta no diálogo entre a mulher samaritana e Jesus
no Evangelho de João (cap. 4). Mesmo depois de destruído o santuário,
os samaritanos continuaram fazendo seus ritos em Garizim.
Segundo os Evangelhos de Mateus e Lucas, Jesus percorreu essa
região de passagem, indo em direção a Jerusalém. Já o Evangelho de
João mostra que ele passava por Samaria constantemente. Marcos é
o Evangelho em que Jesus não entra em Samaria, uma omissão que
merece análise.
Mudando o cenário, no Leste estava uma província que não tinha rela-
ção direta com os judeus, mas que Jesus percorreu em alguns momentos,
de acordo com os Evangelhos. É a província de Decápolis, formada por
dez cidades da Transjordânia, que foram construídas segundo o modelo
helenístico, e que no tempo romano ficaram sob o governo do procurador
da Síria. Por isso, eram desligadas administrativamente das províncias
da Palestina. Em Decápolis ficavam cidades onde Jesus realizou curas e
milagres – Gadara e Gerasa são citadas nos Evangelhos (Mc 5.1-14; Mt
8.28-33; Lc 8.26-34).
Descendo para o Sul, temos a Judeia, marcada como lugar de nas-
cimento de Jesus em Mateus e Lucas. Ali há algumas cidades que se
destacaram no ministério dele; as mais importantes são Betânia, Jericó e
a própria Jerusalém. Jericó é a cidade cuja história está ligada à tradição
da conquista da terra de Canaã pelos israelitas, liderados por Josué. Ali,
Jesus fez sua passagem rumo à derradeira visita a Jerusalém.

40
BÍBLIA Introdução ao NT

Mais próxima de Jerusalém, Betânia era uma pequena aldeia, algo


como uma cidade satélite da capital. Moravam ali o amigo Lázaro, só ci-
tado por João (cap.11), e as amigas Maria e Marta, citadas por Lucas
(10.38-42) e João (cap.11), e de forma indireta por Marcos (11.11-12) e
Mateus (21.17). Tudo indica que Jesus conhecia bem essas pessoas e es-
teve com elas mais de uma vez, o que reforça a ideia de que Jesus não foi
a Jerusalém apenas uma vez, como apontam os sinóticos, mas diversas
vezes, de acordo com a narrativa do quarto Evangelho.
Jerusalém é a cidade mais importante para os judeus, desde séculos
antes de Cristo. Não podia ser diferente na história de Jesus, pois lá ele foi
condenado, crucificado e ressuscitou. Conforme comentado antes, a gran-
de questão é se, durante seu ministério, ele esteve lá apenas na jornada
derradeira, como mostram os três primeiros evangelistas, ou se diversas
vezes, ao menos uma por ano, de acordo com João. Independente dessa
questão, que mais à frente voltaremos a abordar, Jerusalém é a cidade da
morte de Jesus, tradição na qual os quatro Evangelhos concordam.
No tempo de Jesus, a população de Jerusalém girava em torno de
700 mil habitantes e aumentava para 1 milhão e 200 mil habitantes em
períodos de festa, especialmente na Páscoa. Ou seja, era uma das maio-
res cidades do império romano, abaixo apenas de Roma e Éfeso, o que
demandava atenção por parte das autoridades. Assim, não foi à toa que
Jesus escolheu a Páscoa para ser a época de entregar sua vida para
morte. O número de testemunhas seria bem grande. Além, é claro, de todo
simbolismo que giraria em torno dessa situação, como veremos a seguir.

em síntese

Jesus foi um pregador galileu que percorreu diversas regiões


da Palestina, nunca saiu de lá e mesmo assim dialogava com

41
FATIPI EAD Guia de Estudos

pessoas de outras nacionalidades que circulavam na região.


Porém, ele mesmo deixou claro que sua missão pessoal tinha
como foco as “ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15.24).

1.3. Características do ministério de Jesus


O ministério de Jesus foi marcado por diversas qualidades próprias,
algumas podiam ser encontradas em outros líderes espirituais da tradição
israelita, mas, na maioria dos casos, havia novidades que o tornaram úni-
co. Vejamos quais são essas características.

• Itinerante: Jesus não tinha lugar para repouso, se hospedava nas


casas das pessoas ou ao ar livre, como aparece bem em Lc 9.58: “As
raposas têm seus covis, e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do Homem
não tem onde reclinar a cabeça”. Essa itinerância permitiu a Jesus estar
em contato com pessoas de diferentes regiões, em aldeias e pequenas ci-
dades, atraindo para si número considerável de seguidores, tanto homens
quanto mulheres, e com elas as crianças.

• Carismático: Um dos motivos de o movimento de Jesus ter agregado


tanta gente é o fato de ele ter despertado simpatia nas pessoas. Ele atraía a
multidão com seu ensino e realizava milagres com visibilidade, o que fazia sua
fama chegar longe. Muitas vezes, pelo que os Evangelhos mostram, a fama
antecedia sua chegada, daí a dificuldade de as pessoas poderem se aproxi-
mar dele ou da casa onde ele estava. Muitas pessoas simples e abastadas o
procuravam, até esposas de autoridades o seguiam (cf. Lc 8).

• Pneumático: A base central do ministério de Jesus estava na


realização de atos extraordinários, movido pelo Espírito Santo. Em todos
os Evangelhos fica bem claro que suas ações eram poderosas porque o
Espírito de Deus estava com ele. Em Lc 4 essa realidade é ainda mais

42
BÍBLIA Introdução ao NT

marcante, pois ali Jesus leu Is 61, que trata exatamente da unção do Espí-
rito. Como ungido, Jesus cumpriu o programa dessa profecia. Daí a virtude
para realizar curas e exorcismos.

• Crítico ao sistema: Jesus não criticava abertamente o império ro-


mano nem falava contra o César. Sua crítica era feita de forma indireta,
afirmando, por exemplo, que seus seguidores não revidassem violência
com violência. Por outro lado, seu julgamento das autoridades judaicas
também era sutil (exceção para Herodes Antipas, a quem chamou de ra-
posa). Em suas atitudes, Jesus condenava a corrupção das instituições
e das funções, como os mestres da Lei (sábado) ou os sacerdotes no
Templo, afirmando que a casa de oração foi transformada em covil de
salteadores, ou seja, ele censurava o desvio da vocação destas institui-
ções. As críticas aos fariseus eram de outra natureza. Para muitos, o foco
nos fariseus tinha mais a ver com as comunidades do que com o próprio
Jesus, tendo em vista a proximidade dos grupos e as tentativas de conver-
são de ambas as partes.

curiosidade

As pesquisas sobre os fariseus perceberam que a forma


como são retratados nos Evangelhos é exagerada e foge do
retrato histórico deles, ou seja, nas narrativas evangélicas,
os fariseus são mostrados mais legalistas do que realmente
eram. Se considerarmos que vários fariseus importantes se
aproximaram do movimento de Jesus, como Nicodemos e
José de Arimateia, podemos concluir que nem todos lhes eram
contrários ou tão legalistas como pintados. Acredita-se que
as narrativas tenham exagerado para mostrar à comunidade
o que não se deve fazer como discípulo de Jesus.

43
FATIPI EAD Guia de Estudos

1.4. A pregação de Jesus


Qual era o conteúdo da mensagem de Jesus? Como se dava essa
pregação? Estas questões são importantes para entendermos o cerne do
seu ministério, já que nossa fé em Jesus depende em parte de seguir seus
ensinamentos. Afinal, tendo o judaísmo como matriz, é natural que o cris-
tianismo seja uma religião da palavra, da meditação e do estudo. Vamos
ver as principais marcas da mensagem:

• Pregação profético-apocalíptica. A pregação de Jesus asseme-


lhava-se à dos profetas, anunciava o reino de Deus, ao mesmo tempo
futuro e presente. Por isso era profética. Tinha também importante dimen-
são apocalíptica, na linha do que foi estudado no Módulo 1. O Reino, para
Jesus, estava próximo, tanto no aspecto temporal (estava para chegar)
quanto espacial (perto do coração dos que desejam alcançá-lo).

• Pregação sapiencial. Jesus não era conceitual, muito menos


concreto, no sentido de apenas dizer o que as pessoas deviam fazer.
Sua linguagem era quase sempre metafórica, utilizando a poética sa-
piencial para transmitir suas ideias, pois sabia que isso capturava a
mente de sua audiência. Neste sentido, Jesus bebia da rica tradição sa-
piencial de Provérbios, Jó e Eclesiastes. Observando o mundo, ele podia
ensinar sobre o reino de Deus. Nesse contexto, mostrava de forma con-
creta esse simbolismo sapiencial: a) valorizava a corporeidade: gestos
e toques, como no caso do leproso (Mt 8.2) e dos doentes em geral (Mc
3.10); b) incentivava a comensalidade festiva não por honra e prestígio,
mas pela fraternidade que isso promovia (compare Mc 2.15-17 com Lc
14.7-14); c) apresentou seu próprio corpo como símbolo do elemento
de celebração (Mc 14.22-25), inclusive como desafio do discipulado (Mc
8.33-34), o que para os judeus era um escândalo (Jo 6.52); d) certos
aspectos mostram a predileção pelo simbólico: a instituição dos Doze,
que dividiram com ele a autoridade do Reino (Mc 3.13-15). Não havia

44
BÍBLIA Introdução ao NT

apenas doze apóstolos ou discípulos próximos de Jesus, sejam homens


ou mulheres, mas, ao eleger doze, ele realizou um ato simbólico de ini-
ciar o novo Israel. A entrada em Jerusalém num jumentinho, como se
fosse um rei (Mc 11.1-11; ver Jz 10,4; 12,14; 1Rs 1.38). De acordo com
os costumes antigos, um rei no jumento significava tempo de paz, num
cavalo (como em Ap 19.1ss), tempo de guerra.

• Uso de metáforas, como parábolas (Mc 4.33-34). Como disse-


mos, Jesus fazia amplo uso do método sapiencial de ensino. Assim, ele
escondia do grande público o que queria dizer, mas que chamava a aten-
ção. Nas parábolas o cotidiano era mostrado de forma diferente, meio in-
vertida, para prender a concentração dos ouvintes.

• Debates legais. Já comentamos o domínio que Jesus tinha em


questões da lei, segundo os Evangelhos. Seja provocando ou sendo
provocado, ele dava interpretação ética às leis, tendo como eixo os dois
mandamentos mais importantes: amar a Deus sobre todas as coisas e
ao próximo como a si mesmo (cf. Mc 12.28-31 e Mt 22.34-40). Aliás,
essa era uma questão amplamente debatida no judaísmo do tempo de
Jesus, o que significa que ele também foi envolvido nesse debate, res-
pondendo de forma coerente com outras escolas rabínicas. No entanto,
quando vemos a aplicação dessas leis no Sermão do Monte, por exem-
plo, percebe-se que Jesus foi mais radical que os demais mestres de
seu tempo.

1.5. O discipulado em Jesus


O último aspecto que veremos é muito importante, quando se trata de
Jesus. Ele não foi um pregador isolado, mas pela própria característica de
seu ministério, foi cercado de discípulos e discípulas, pessoas que o segui-
ram até o fim, ainda que tenham se escondido das autoridades romanas em
Jerusalém. Vejamos os principais aspectos do discipulado de Jesus:

45
FATIPI EAD Guia de Estudos

• Mestre que chama. Na época de Jesus, os mestres tinham es-


cola fixa e eram buscados, podendo ou não aceitar os candidatos a dis-
cípulos. Faziam perguntas testes e só aceitavam aqueles que demons-
travam capacidade mínima para serem como eles. Jesus era um mestre
itinerante, que buscava os seus discípulos. Estes, na verdade, nem eram
qualificados para a tarefa, como podemos perceber nos Evangelhos, pois
demonstravam medo (Mt 14.26), dúvida (Mt 14.31), falta de fé (Mc 5.40-
41) e até covardia (Jo 20.19). Mesmo assim, Jesus os escolheu e com eles
formou uma nova comunidade.

• Desapego material e familiar. Ao contrário do que determinavam


as convenções, Jesus iniciou uma nova comunidade com seus discípulos,
tão diferente a ponto de exigir que renunciassem a família e posses. O
próprio Jesus se afastou de sua família, por ter rejeitado seu ministério (cf.
Mc 3.21 e 6.2-6). Os ricos que desejavam mostrar religiosidade a fim de se
justificar eram confrontados com a dura imposição de renúncia aos seus
bens (como o rico de Mc 10.17-22 e paralelos).

• Entrega radical. A radicalidade na questão da família e de rique-


zas estava fundamentada no caráter do reino de Deus que, segundo Je-
sus, não podia ser conquistado com bens materiais, mas com a ética e a
fé. Por isso, seu discipulado era mais do que pregado, era vivido. A sua
entrega pela causa foi tão radical que o levou para o caminho da cruz. Ele
mesmo afirmou mais de uma vez aos discípulos que iria para Jerusalém
cumprir as Escrituras, morreria, mas ressuscitaria. Ele exigiu esse cami-
nho dos seus discípulos (Mt 16.24-28), deixando no ar se estava sendo
metafórico ou literal. Eles deviam também rumar para a morte, como o
mestre? Esta dúvida foi a premissa para uma teologia do martírio, muito
valorizada no século II.

46
BÍBLIA Introdução ao NT


em síntese

Jesus não fundou uma religião, nem mesmo iniciou a igreja,


mas teve um ministério muito especial que apresentou
diversos aspectos, seja na forma de agir, no conteúdo de sua
mensagem, na postura que tinha perante a sociedade e na
formação de seu próprio movimento. Os diferentes aspectos
do seu ministério formam um quadro complexo e muito rico,
confirmando que estava cumprindo a plena vontade de Deus,
trazendo às pessoas a boa nova da misericórdia divina, que
passamos a conhecer como evangelho.

2. O EVANGELHO E OS EVANGELHOS

A palavra evangelho significa para nós tanto a mensagem que anuncia-


mos sobre a salvação em Cristo, como os livros que falam dele. De onde
vem essa dupla dimensão de significados? A resposta tem a ver com dois
aspectos: o evangelho como conceito e o Evangelho como gênero literário.

2.1. O evangelho como conceito


Antes de os Evangelhos existirem como conhecemos, a palavra e o
conceito já eram usados em diferentes situações, influenciando as nar-
rativas sobre Jesus. Mas é preciso entender em que contextos a palavra
evangelho foi utilizada. Evangelho vem da palavra grega euangelion, lite-
ralmente “boa notícia” ou “boa mensagem”. Tornou-se sinônimo da men-
sagem e dos relatos sobre Jesus Cristo.
No mundo grego, euangelion estava relacionado ao sentido em si da
palavra. Para quem recebia, eram notícias boas que chegavam; já quem
dava a boa notícia tinha expectativa de receber um pagamento por ela.

47
FATIPI EAD Guia de Estudos

Evangelho também designava “notícias de vitória”. A própria postura do


mensageiro – gestos, sorriso – indicava que trazia boas novas.
No âmbito religioso havia cuidado no uso da palavra. Mas houve um
tempo em que era empregada para indicar um oráculo divino ou vitórias
decorrentes de sacrifícios. A partir da década de 50 d.C., com o desenvol-
vimento do culto ao imperador, euangelion passou a significar:

A notícia de vitória no campo de batalha, a resposta da divinda-


de por meio de oráculos como qualquer acontecimento impor-
tante, concernente ao imperador: o nascimento, a maioridade,
a ascensão ao trono, as suas mensagens e decretos, com o
intuito de instaurar a paz sobre a terra (Marconcini, 2001, p. 6).

Na tradução judaica do Antigo Testamento hebraico para a língua gre-


ga, a chamada Septuaginta (LXX), euangelion é a tradução da palavra
bessar (“notícia” ou “boa notícia”). Em 2Rs 18.20, o portador da boa notícia
(euangelías) é proibido de dá-la, porque o filho do rei morreu. No verso 22,
ele questiona se não receberá a recompensa. Isso mostra que o mundo
oriental compartilhava com o mundo grego a ideia de que o mensageiro
esperava receber uma recompensa. Na verdade, o uso da palavra euan-
gelion na LXX está restrito a este sentido secular.
O sentido religioso só é encontrado na forma do verbo euangelizô
(evangelizar, ou seja, “dar boas notícias”). Vemos esse uso em Sl 68.11
e mais especificamente em Is 52.7. Em Sl 96.2 o grego utiliza euangelizô
para falar da proclamação da salvação [soterían] de Deus.

O uso de euangelion entre os cristãos


Se a noção de evangelizar como ato de anunciar a salvação foi adotada
na LXX, o mesmo não se pode dizer da palavra euangelion. Para Gerhard
Friedrich (1995), os cristãos não se basearam na LXX para usá-la, mas no
contexto do culto imperial, numa inversão entre o kyrios (Senhor) César e
Jesus. No entanto, ele considera que foi o judaísmo rabínico palestinense

48
BÍBLIA Introdução ao NT

que definiu o sentido que os cristãos deram para euangelion. O aramaico


bessarah era entendido no mesmo sentido do termo grego.

Euangelion em Paulo
Na literatura cristã, o primeiro registro da palavra euangelion veio de
Paulo, que também é quem mais usa o termo. Ele entende que o evange-
lho de Cristo é o que precisa ser contado ao mundo, o motivo de sua mis-
são, pois fala da salvação que temos em Cristo (1Co 9.16-18; 2Co 2.12;
Ef 1.13). Para Paulo, o evangelho está no contexto de proclamar (1Co
15.1; 2Co 11.7; Gl 1.11) e ouvir (Gl 1.12; Cl 1.23; 2Co 11.4). Faz parte
da dinâmica de Deus falar à humanidade por meio de seus mensageiros.
Entretanto, em Paulo, o conteúdo dessa revelação não se resume a fatos
históricos sobre a vida de Jesus (2Co 5.16), nem especificamente sobre sua
morte na cruz e posterior ressurreição. Paulo dá um conteúdo teológico a
esse fato, pois ele morreu “pelos nossos pecados” (1Co 15.3). O apóstolo
assumiu de tal maneira essa mensagem que, por diversas vezes, o chama
de “meu evangelho” (Rm 2.16; 16.25; 2Co 4.3; 1Ts 1.5; 2Ts 2.14) ou indica
que o evangelho que ele proclama é o verdadeiro (Gl 1.6; 2Co 11.4).

2.2. Evangelho como gênero literário


Depois que Paulo pregou o evangelho de Cristo sem dar-lhe base his-
tórica, podemos dizer que houve uma tendência inversa. Nas comunidades
orientais, desde a Ásia Menor até a Galileia e Decápolis, começaram a surgir
relatos que tratavam justamente de aspectos históricos da vida de Jesus.
Considerados por alguns como um tipo de biografia no estilo greco-
-romano, por outros como um estilo de novela judaica, os Evangelhos, na
verdade, foram uma inovação.

Marcos e a origem do gênero Evangelho


No Evangelho de Marcos, logo no início já é informado o conteúdo
que será tratado: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo” (Mc 1.1). Ali

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FATIPI EAD Guia de Estudos

evangelho serve como título da obra e faz uma inversão com os evange-
lhos dos Césares, já que Jesus nunca conquistou nada pela força, mas
foi vítima da violência do império e dos poderosos. Por outro lado, traz
ensinamentos para a vida dos crentes, seja pela sabedoria das falas de
Jesus, seja pelo poder de Deus que ele demonstra, culminando no relato
de sua morte e ressurreição.
Dentro do texto dos Evangelhos encontramos a locução “evangelho
do reino” (Mt 4.23; Lc 8.1) e “evangelho de Deus” (Mc 1.14). No entanto,
com algumas poucas exceções – como no relatório de Jesus a João
Batista (Mt 11.5 e Lc 7.22) –, na boca de Jesus essa palavra está su-
bentendida no anúncio do reino de Deus que está chegando, ou seja,
forma e conteúdo trabalham em paralelo. Tudo indica que o Evangelho
de Marcos, considerado o primeiro a ser escrito, logo se tornou conheci-
do e inspirou o gênero Evangelho.

O reconhecimento do gênero Evangelho


Os textos que chamamos de Evangelho não traziam em seu cabeçalho
o título “Evangelho segundo [...]”. Foram os Pais da Igreja no século II d.C.
que adotaram esse título, além de indicar a autoria dos livros. As obras
passaram a circular entre as comunidades, tornando-se muito populares.
Muito cedo tornaram-se referência, a ponto de Papias, Irineu, Inácio e pos-
teriormente Eusébio (em História Eclesiástica) reconhecerem-nas como
autênticas e indicarem os autores que dão os nomes até hoje.
Papias, citado por Eusébio de Cesareia, comentou sobre os livros,
chamando-os pelos nomes dos evangelistas. Falou de Marcos como intér-
prete de Pedro, e que Mateus teria escrito seu Evangelho primeiro numa
versão em hebraico. Citou o nome de Lucas como autor do terceiro Evan-
gelho; o autor ficou conhecido como médico e companheiro de viagens de
Paulo. Sobre João, as evidências vêm de Irineu, que detalhou ser ele o
discípulo amado citado no Evangelho, além de ser o presbítero da Igreja
de Éfeso, local indicado como o da origem do texto.

50
BÍBLIA Introdução ao NT

Seja como for, a partir daí é quase automático vincular Evangelho


como a mensagem sobre Jesus e os livros sobre ele.

A tradição de Jesus
No início era o querigma – palavra grega que quer dizer “mensagem”:
a pregação da igreja estava centrada em torno do ressuscitado. Paralela-
mente, os ensinos e os feitos de Jesus, sempre no âmbito da tradição oral,
foram chamados de Tradição dos Apóstolos ou Doutrina dos Apóstolos (At
2.42). Como informa Carneiro (2019, p. 68):

Enquanto Jesus pregou o reino de Deus, a igreja pregou a res-


surreição de Jesus (cf. Mc 16.19-20; At 2.32-33). Esse foi o cen-
tro do querigma – mensagem em grego – que a Igreja assumiu
a partir daí. O querigma se tornou a boa nova – euangelion/ boa
nova – para todas as pessoas.

Tecnicamente é o que se pode chamar de Tradição de Jesus, cons-


tituída da memória coletiva em torno de Jesus, suas palavras, obras e
Paixão. Foi a Tradição de Jesus, consignada pelas lideranças da igreja,
que estabeleceu o controle sobre o que era adequado e o que era inade-
quado, ou seja, os limites entre o que poderia ser considerado verdade e
o que deveria ser repudiado como mentira, em relação aos ditos e feitos
de Jesus.
Deve-se levar em conta que a tradição oral é rica e nem sempre pode
ser controlada, permitindo variações nos detalhes, ainda que no geral tudo
se mantenha igual. No mundo da oralidade do século I d.C., as narrativas
declamadas por via oral tinham tanto peso quanto os textos lidos em pú-
blico, pois considerava-se que ambos estavam vinculados a uma tradição
comum, no caso, dos apóstolos.
Mas o que determinou o registro dos Evangelhos? Por que eles
foram escritos?

51
FATIPI EAD Guia de Estudos

2.3. O surgimento dos Evangelhos – O contexto histórico


A pesquisa tem apontado que um dos fatores que gerou os Evange-
lhos escritos foi a guerra judaico-romana que começou em 66, quando os
judeus tomaram Jerusalém e posteriormente toda a Galileia. Os registros
mostram que foram os zelotes e os fariseus que tomaram a frente na guer-
ra. Os cristãos se omitiram, não participaram ativamente, ainda que tives-
sem muitas críticas ao império romano e às autoridades judaicas. Como
afirma Carneiro (2016, p. 65):

A ausência de citações referentes às comunidades protocris-


tãs parece mostrar que elas se mantiveram neutras no conflito,
especialmente a comunidade de Jerusalém, que deve ter se
afastado da cidade anos antes da guerra se intensificar, indo
para além do Jordão, na cidade de Pela (Koester, II, p. 217s).
Outros grupos cristãos devem ter permanecido em algumas
cidades, afastando-se para regiões da Síria, menos atingidas
pelo conflito. Entretanto, a falta de fontes mais precisas só per-
mite conjeturar esse fato [...].

No ano 70, após dois anos de cerco, Jerusalém caiu sob as mãos dos
romanos, com milhares de vidas perdidas e a desastrosa destruição do
Templo por incêndio (intencional ou não). Sem o Templo, cessaram os
sacrifícios e o serviço sacerdotal, situação que continua até hoje. Foi o fim
de um modo de ser do judaísmo, que também afetou os cristãos.
Outro fator que deve ser considerado nesse período é a morte de gran-
de parte dos apóstolos, sendo que os mais proeminentes – Pedro e Paulo
– foram executados por Nero nos anos 67 e 68, respectivamente. Em meio
à crise provocada pela guerra e a morte dos apóstolos, a comunidade de
Jerusalém, deslocada para Pela (uma das dez cidades que ficaram conhe-
cidas como Decápolis), iniciou um levantamento das memórias segundo
a Tradição de Jesus.
Testemunhas oculares, materiais que eram reproduzidos constante-

52
BÍBLIA Introdução ao NT

mente nas pregações e, talvez, fragmentos de informações sobre Jesus


foram reunidos como fontes. Tendo esse material em mãos, a comunidade
elaborou o texto coletivamente, tendo um escriba responsável pela tarefa.
Nasceu assim o Evangelho de Marcos. Com que objetivo o escreveram?
De acordo com pesquisas recentes, considerando o ambiente de in-
certezas em que a comunidade vivia, deve ter havido o desejo de difundir
para mais longe a mensagem de Cristo, utilizando o texto escrito como
veículo do legado da comunidade. A mensagem de Jesus aqui se refe-
re aos fatos que envolveram o ministério dele, sua morte e ressurreição.
A elaboração desses materiais gerou quatro narrativas sobre Jesus, as
três primeiras, segundo a ordem canônica, são chamadas de Evangelhos
Sinóticos, e o Quarto Evangelho, associado a João, costuma ser estudado
em separado.

2.4. Os Evangelhos sinóticos


Denominam-se Evangelhos sinóticos os três primeiros Evangelhos
canônicos: Mateus, Marcos e Lucas, pela proximidade que têm na forma
de contar a história de Jesus. O nome veio a partir do século XVIII, com
o estudo realizado por J.J. Griesbach, comparando os três em colunas.
Essa análise em paralelo é chamada de comparação sinótica. Os pontos
em comum dos Evangelhos sinóticos são: a) estrutura geral: começo na
Galileia; viagem a Jerusalém (uma única vez); prisão, crucificação e res-
surreição. O ministério de Jesus seria, assim, linear geograficamente. Em
João, Jesus vai a Jerusalém várias vezes; b) sequência das diferentes
perícopes: mesma sequência da cura do paralítico, vocação do publica-
no, ceia com publicanos e o diálogo sobre jejum etc.; c) incidência de
termos iguais dentro das frases; d) citações do Antigo Testamento muitas
vezes são literalmente iguais, mesmo quando diferem do texto da Bíblia
Hebraica ou da Septuaginta. Os pontos de divergência nos Evangelhos
sinóticos são: a) estrutura específica: Mateus e Lucas apresentam história
da infância, que Marcos ignora; b) as genealogias de Lucas e Mateus

53
FATIPI EAD Guia de Estudos

são diferentes; c) as ordens das parábolas diferem, e mesmo algumas


estão ausentes, quando comparamos os três; d) diferença na sequência
de perícopes, bem como nas falas dentro delas; e) acréscimos, omissões,
alterações na ordem da narrativa.
Tudo isso fez com que os acadêmicos se debruçassem sobre o que
passaram a chamar de “o problema sinótico”. O que gerou essas dife-
renças? Como eles ficaram diferentes e, ao mesmo tempo, guardam tan-
ta semelhança? Várias soluções foram propostas, mas a que ficou mais
conhecida é a chamada “Teoria das Duas Fontes”. De uma forma bem
simplista, a teoria afirma que Mateus e Lucas, por serem posteriores a
Marcos, usaram o primeiro Evangelho como uma de suas fontes princi-
pais. Além disso, o material comum a Mateus e Lucas que não aparece
em Marcos é considerado proveniente de uma segunda fonte, que ficou
conhecida como “Fonte Q” (do alemão Quelle, que significa Fonte). Por
fim, materiais exclusivos de Mateus e Lucas parecem ter vindo de fonte
própria, mas aí a teoria deveria se chamar Quatro Fontes e não duas, mas
isto é outra história.
Abaixo, um diagrama mostrando como funciona essa teoria:

teolria das duas fontes

Marcos Q

Mateus Lucas

54
BÍBLIA Introdução ao NT

Hoje, no entanto, há outras vertentes para explicar essas diferenças


e semelhanças. Segundo o que se pode apurar da Tradição de Jesus,
que foi comentada antes, é bastante plausível que, mesmo conhecendo
o Evangelho de Marcos, as comunidades de Mateus e Lucas possam ter
adaptado às narrativas as memórias que tinham sobre os mesmos fatos,
em que alguns elementos eram diferentes. Ou seja, o fato de terem em
mãos o texto escrito não invalidava as versões que eles, por tanto tempo,
divulgaram a partir da memória oral. Esta perspectiva permite, inclusive,
inserir o Evangelho de João na mesma dinâmica, visto que ele também
tem certa relação de narrativas com os sinóticos, em especial nos relatos
da Paixão de Cristo.

síntese

Falar de Jesus e da tradição que gerou os Evangelhos é


falar da memória das comunidades da Palestina, que viram
de perto os fatos envolvendo Jesus de Nazaré e foram
as primeiras a anunciar a ressurreição do Senhor. Esse
processo, que durou algumas décadas, permitiu surgir os
livros que hoje temos como fonte sobre Jesus de Nazaré,
os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. Importa
agora analisar cada um separadamente.

3. OS EVANGELHOS CANÔNICOS

3.1. Marcos e as comunidades em meio à guerra


A origem do Evangelho de Marcos já foi mencionada: o contexto da
guerra dos judeus, em que a comunidade cristã de Jerusalém se deslocou
para fora da Judeia e elaborou por escrito as memórias em torno de Jesus
Cristo, escrevendo seu evangelho. Acredita-se que, por isso, a datação de

55
FATIPI EAD Guia de Estudos

Marcos ficaria, entre 66-70 d.C.

Aspectos literários
Não há relato de infância. O Evangelho começa com Jesus indo até
João Batista para ser batizado. Ele é dividido em duas partes. Na pri-
meira, Jesus atua em Galileia, Decápolis, Síria, Transjordânia e Jericó
(1.1-10.52). Jesus não passa pela Samaria. Na segunda parte: Jesus em
Jerusalém; tradição da Paixão com entrada triunfal, conflitos, ceia com
os discípulos, jardim (Getsêmani), prisão, julgamento, condenação, cru-
cificação, morte, sepultamento e ressurreição (11.1-16.8). Em tempo: Mc
16.9-20 é considerado um acréscimo posterior, que resume os finais dos
demais Evangelhos.

Mensagem do evangelho
O título já indica o teor do texto: contraposição ao imperador. É o
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus, aquele que age de forma in-
versa ao imperador, de quem tanto se escrevem evangelhos. O subtexto
político está imerso em conteúdo apocalíptico: anjos, demônios, Filho do
Homem, consumação escatológica pelo juízo de Deus.
O reino de Deus é o conteúdo da mensagem de Jesus e a meta
a ser alcançada. Na verdade, é o motivo do ensino. Este ensino tem
forte teor judaico, com afirmações sapienciais, metáforas (parábolas) e
outros elementos que aproximam Jesus dos mestres rabínicos de seu
tempo. Esse teor judaico do evangelho está relacionado ao seu con-
texto, de uma comunidade inserida no mundo dos judeus que viviam
na Palestina.

Autoria
A opinião tradicional sobre a autoria do texto começou com Papias,
que escreveu, por volta de 110: “Marcos, intérprete de Pedro, escre-
veu cuidadosa, mas não ordenadamente, as recordações das palavras

56
BÍBLIA Introdução ao NT

ou ações do Senhor”; “Mateus escreveu os oráculos divinos na língua


hebraica; cada qual os interpretou como pôde” (Papias apud Cesareia,
2000, p. 169). Marcos seria, na verdade, João Marcos, citado em 1Pd
5.13, bem como em At 12.12,25. Esse Marcos teria andado com Paulo
e Barnabé e posteriormente se associado a Pedro, como um filho ado-
tado. Por isso se considera que o Evangelho de Marcos foi escrito em
Roma. Entretanto, não se pode provar estas alegações, por isso con-
sidera-se hoje, na academia, que o autor na verdade era um escriba a
serviço da comunidade.

As possíveis localizações da comunidade que escreveu o evangelho


de Marcos. (Fonte: Sociedade Bíblica do Brasil)

3.2. Mateus e o debate judaico sobre o Messias


O fim do Templo significou uma mudança drástica, porém já prevista
nos anos anteriores: a religião da sinagoga e dos mestres da lei. Logo
surgiu o debate: como ser fiel a Deus nessa nova condição? Para muitos

57
FATIPI EAD Guia de Estudos

a resposta estava em seguir a Lei de forma mais rígida, exigir completo


afastamento dos gentios e rigorosas prescrições alimentares e de purifi-
cação. Parece que os fariseus seguiram essa ideia. Outros grupos eram
menos rigorosos, porém a vertente mais rigorosa foi ganhando força entre
os judeus. Entre os grupos mais abertos podemos citar a escola de Hillel.
Já a escola de Shammai defendia uma postura mais fechada e rígida na
observância da Lei.
Em meio aos debates, a comunidade de Mateus se levanta para
se posicionar: Jesus é o Messias esperado, o novo Moisés. Logo, a
fé centrada no Templo é substituída pela fé em Jesus. A comunidade
não está centrada no rigor da Lei, mas na nova interpretação dada
por Jesus, que não veio “para destruir a Lei, mas para cumpri-la” (Mt
5.17). Cumprir aqui significa dar pleno sentido à Lei, de acordo com a
interpretação de Jesus.

A estrutura literária e a mensagem de Mateus


No Evangelho de Mateus, Jesus é mostrado como o novo Moisés: seja
na história da fuga para o Egito (2.13-23), que lembra a história de Moi-
sés, especialmente no caso da matança dos inocentes; seja no discurso
no Sermão do Monte (5-7), que faz alusão à subida de Moisés ao Monte
Sinai; ou ainda no fato de o evangelista indicar que Jesus se despediu dos
discípulos num monte (capítulo 28).
Além disso, o escritor pode ter sido um escriba com formação rabínica,
que idealizou no Evangelho uma estrutura com cinco discursos, interca-
lados por blocos narrativos: é o novo Pentateuco de Jesus. Isso reforça a
ideia de Jesus como novo Moisés. Abaixo, uma exposição dessa estrutu-
ra, tendo como tema central o reino de Deus.
Capítulos 1-4 – Narrativas: nascimento e início do ministério de Jesus
Capítulos 5-7 - Discurso: A ética do Reino
Capítulos 8-9 - Narrativa: Autoridade e convite
Capítulo 10 - Discurso: A missão do Reino

58
BÍBLIA Introdução ao NT

Capítulos 11-12 - Narrativa: Rejeição pela sua geração


Capítulo 13- Discurso: O ensino do Reino pelas parábolas
Capítulos 14-17 - Narrativa: Reconhecimento pelos discípulos
Capítulo 18 - Discurso: A comunidade do Reino
Capítulos 19-22 - Narrativa: Autoridade e convite
Capítulo 23-25 - Discurso: Nas aflições, a chegada do Reino
Capítulos 26-28 - Narrativa da Paixão: Morte e Ressurreição

Não à toa, há no texto um reforço do papel do escriba, como alguém


importante na comunidade, indicando que provavelmente foi um escriba
quem efetivamente escreveu o Evangelho. Pode-se ver o exemplo posi-
tivo sobre o escriba em Mt 13.51-52, que está praticamente no centro do
Evangelho. Mas, se o escriba atua de forma abusiva e contrária aos ideais
do Reino é duramente advertido, junto aos fariseus (cf. o capítulo 23). Não
basta conhecer a Lei, é preciso compreendê-la a partir da interpretação de
Jesus, o mestre messias.

Autoria e Datação
No caso de Mateus, o fator de identificação do autor foi o forte teor
judaico do texto, considerado uma tradução do hebraico (aramaico?) para
o grego, o que nunca ficou demonstrado nem provado.
Internamente, o indício do autor está em Mt 9.9, no apelo a ele, um
publicano que em Marcos e Lucas é chamado de Levi. Mateus pode ser
um nome fictício derivado da palavra mathetês (discípulo). Porém, é um
dos Doze citado em Mt 10.3; Mc 3.18; Lc 6.15.
Talvez por isso ficou com o nome do autor do primeiro Evangelho na
ordem canônica. A comunidade de Mateus está situada na Galileia em
reconstrução ou alguma cidade ao Sul da Síria, na fronteira com a Galileia,
nos anos pós-guerra. Afirma-se, com isso, o surgimento do Evangelho de
Mateus nos anos entre 75-85 d.C.

59
FATIPI EAD Guia de Estudos

Possível localização das comunidades de Marcos e Mateus.


(Fonte: Sociedade Bíblica do Brasil)

3.3. Lucas, Atos dos Apóstolos e o Evangelho de fronteiras


Lucas e Atos dos Apóstolos têm relação entre si e formam uma obra
dupla. Por exemplo, ambas são dedicadas a Teófilo. Atos começa do
ponto onde Lucas termina. De acordo com alguns estudiosos, houve um
proto-Lucas com partes próprias, que vai até a conversão de Paulo, e
mais os trechos das viagens missionárias, em que o autor participa como
testemunha ocular (uso do “nós” em At 16.10-16; 20.5-6). A obra única foi
depois acrescida de elementos de fontes secundárias (Marcos, Tradição
oral de diferentes fontes) e o autor decidiu separar em duas, inserindo um
epílogo e uma introdução que amarram as narrativas.

Origem e contexto de surgimento


O mesmo contexto que gerou Mateus (o tempo posterior à guerra) ge-
rou a obra lucana (Lucas e Atos dos Apóstolos). A diferença está no objeti-

60
BÍBLIA Introdução ao NT

vo. Lucas deve ter surgido num ambiente helênico, mas com boa presença
de judeus, onde havia uma comunidade cristã ligada aos apóstolos Pedro
e Paulo. Uma cidade que encaixa nesta descrição é Antioquia da Síria,
cidade de fronteira entre o mundo oriental e o ocidental. Indício: Antioquia
é sede missionária em Atos dos Apóstolos e era espaço de encontro de
apóstolos, como mostra Gl 2. A comunidade judaica na cidade era forte,
mas Antioquia era essencialmente uma cidade helenística. Alguns afir-
mam que Mateus era conhecido da comunidade de Antioquia, porém isso
não significa que o Evangelho tenha sido escrito lá, mas há possibilidade
de Lucas e Atos dos Apóstolos terem surgido ali.

Aspectos literários
A obra lucana deve ser vista como um trabalho historiográfico, como
bem mostra o prólogo do Evangelho de Lucas (1.1-4):

Visto que muitos já empreenderam uma narração coordenada


dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmiti-
ram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares
e ministros da palavra, igualmente a mim pareceu bem, depois
de cuidadosa investigação de tudo desde a sua origem, dar-lhe
por escrito, excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem,
para que você tenha plena certeza das verdades em que foi
instruído.

Mas o Evangelho é história de fé, não relato jornalístico moderno, o


autor não escreveu de forma neutra e objetiva. Lucas não é historiador
moderno, que tenta refazer os passos; sua intenção é repassar as tra-
dições (“conforme nos transmitiram”), com o claro objetivo catequético
(“para que tenhas plena certeza das verdades em que fostes instruído”).
Lucas transita entre o gênero biografia, novela grega (especialmente
em Atos) e hagiografia (história sagrada), dando um novo estilo ao gê-
nero Evangelho. No Evangelho de Lucas, a trajetória de Jesus é monta-

61
FATIPI EAD Guia de Estudos

da em torno do caminho para Jerusalém. A peregrinação vai de 9.51 ao


19.40. Esse grande bloco mostra diversas situações de Jesus na Samaria
e arredores. Já em Atos dos Apóstolos, a jornada da igreja começa em
Jerusalém, depois segue pela Judeia e Samaria, e vai pela Ásia Menor,
Macedônia, até chegar à cidade de Roma.

A mensagem da obra lucana


O tema central em Atos dos Apóstolos e no Evangelho de Lucas é o tes-
temunho, do grego martyria, de onde vem a palavra mártir. Por isso a Paixão
é vista na perspectiva do martírio. Em Lucas, Jesus é a testemunha do evan-
gelho. Em Atos dos Apóstolos, Estevão é o primeiro mártir e sua narrativa é
similar à da crucificação de Jesus. Temos ali a continuação do testemunho
do evangelho, agora pela igreja, conhecida como “os do Caminho”.
Lucas tem uma organização programática nos dois livros. No Evan-
gelho (Lc 4.18-19), ao ler Is 61 dentro da sinagoga, Jesus apresenta o
programa de seu ministério, que vai sendo cumprido no decorrer da trama.
Em Atos (1.8), o programa missionário aponta para a difusão do evange-
lho a partir de Jerusalém, passando por Judeia e Samaria, até os confins
da terra (Roma).
Além disso, temas como a ação do Espírito Santo e o agir dos anjos
como mensageiros e interventores dão à obra lucana um caráter pneuma-
tológico e espiritual.

Autoria e datação
A obra Lucas-Atos parece ter sido escrita por um cristão gentílico, ori-
ginado da cultura grega, e que por isso dá ao texto de Marcos – sua fonte
principal – um tratamento linguístico mais rebuscado, mas em nenhum
momento o nome do autor é claramente citado. Foi a tradição eclesiástica
que estabeleceu o nome dele como autor de ambas as obras, a partir da
citação de Fm 24, como um dos colaboradores de Paulo, que em três
ocasiões (Cl 4.14; Fl 24; 2Tm 4.11) fala de um companheiro chamado

62
BÍBLIA Introdução ao NT

Lucas, o médico.
Alguns pesquisadores consideram que o autor é originário de Antioquia
da Síria. As testemunhas externas de Lucas como autor da obra são:
Cânon Muratoriano, Eusébio de Cesárea e também Irineu, Tertuliano e
Orígenes, pais da Igreja no século II. Outros sustentam que Lucas seria
autor apenas de um núcleo central, que trata de passagens exclusivas no
Evangelho de Lucas e da parte “nós” de Atos (At 16.10-18; 20.4-21.26;
27.1-28.15, por ex.), o que seria um diário de viagem, o qual deve ter sido
parâmetro para o estilo do restante das narrativas contendo as viagens de
Paulo. Porém, essa tese não pode ser comprovada.
De forma objetiva, o que temos é um texto grego mais refinado e di-
versas informações sobre o mundo extrapalestinense que indicam alguém
que conhece o mundo da Ásia Menor e Grécia. Nossa hipótese é que
Lucas-Atos tenha uma autoria mais personalizada que Marcos e Mateus,
mesmo sendo uma obra anônima, que surgiu entre 85-95 (Lucas) e 90-
100 (Atos dos Apóstolos).

síntese

Os Evangelhos sinóticos representam para nós uma forte


convicção do quanto a mensagem de Jesus e o exemplo
de sua vida foram poderosos nas décadas seguintes à
sua morte e ressurreição. Diversas comunidades, em
circunstâncias diferentes, decidiram compor uma narrativa
sobre o Mestre e Senhor, o que gerou multiplicidade de
informações. Apesar de serem parecidos na estrutura geral
e em diversas partes terem as mesmas narrativas, percebe-
se liberdade para compor segundo as próprias memórias
da comunidade e a interpretação que ela tinha de seus

63
FATIPI EAD Guia de Estudos

ensinos e realizações. Esta é a riqueza dos sinóticos. A eles


acresceremos agora o Evangelho de João, outra grande
contribuição para conhecer Jesus.

3.4. João e o evangelho místico


O Evangelho de João, também conhecido como o Quarto Evangelho,
difere dos sinóticos, pois é o mais recente dos Evangelhos. Algumas dife-
renças importantes: a) em João, Jesus purifica o Templo no início de seu
ministério, enquanto nos demais, somente no fim, quando já está para
morrer; b) o evangelista mostra Jesus indo diversas vezes a Jerusalém
ao longo do seu ministério, sempre durante alguma festa; c) João registra
muito menos relatos de curas e nenhum de exorcismo. Em contrapartida,
há longos diálogos e discursos, em vez de pequenas frases e parábolas,
como ocorre nos sinóticos.

As etapas de redação
João mostra muitas rupturas na narrativa que têm sido interpretadas
como diferentes camadas redacionais. Isso não significa que o quarto
Evangelho ignorasse as fontes e a própria narrativa dos anteriores. Pelo
contrário, é indício da juventude do texto, em que já se pensa em rever
temas que foram pouco trabalhados e resgatar discursos esquecidos de
Jesus. Há muitas hipóteses sobre a formação do Evangelho e hoje uma
das mais aceitas fala em três fases.
A primeira fase, na Palestina, no período anterior à Guerra de 66. É
uma comunidade ligada aos judeus da elite. Há presença de seguidores
do Batista, por isso a comunidade deve estar em algum lugar ao longo do
Jordão. Eles pregam Jesus como o Messias esperado, um profeta escato-
lógico, com uma visão escatológica tradicional. Foco na disputa teológica
com os demais grupos judaicos.
A segunda fase, no período pós-guerra, quando o conflito com os ju-

64
BÍBLIA Introdução ao NT

deus se acirra e a comunidade se afasta dos ideais judaicos, alimentando


uma reflexão mais transcendente e mística. Uso da linguagem dualista:
luz-trevas; morte-vida; carnal-espiritual. Jesus passa a ser visto como “Fi-
lho de Deus” e sua morte na cruz é vista como glorificação. A escatologia
deixa de ser futura e torna-se presente. Os indícios apontam para uma
saída da Palestina, rumo à Ásia Menor, e uma ruptura na comunidade,
indicada em 1Jo, texto que tem relação com o Evangelho.
A terceira fase, na virada do século I, quando ocorrem a revisão do
texto e a inserção do prólogo e do epílogo, para corrigir problemas dou-
trinários e de percepção da comunidade. O local deve ser Éfeso. Jesus
torna-se Deus encarnado e o restante do Evangelho é harmonizado nesta
concepção; estabelecimento da alta cristologia joanina; aproximação com
os sinóticos, na tradição da Paixão, em que sua morte e ressurreição pas-
sam a ser vistas na perspectiva soteriológica.

Deslocamento da comunidade joanina, que geraram as etapas da redação.


Fonte: https://visualunit.me/2010/03/

65
FATIPI EAD Guia de Estudos

Aspectos literários
O Evangelho de João faz importante relação entre as festas judai-
cas e o ministério de Jesus. Por exemplo, em Jo 7, Jesus afirma ser
a água da vida na festa que celebrava o tempo no deserto, chamada
Sucôt. João mostra Jesus indo celebrar a Páscoa em Jerusalém em
três ocasiões (2.13; 6.4; 12.1), o que levou a se considerar que o mi-
nistério de Jesus durou três anos, sendo que, diferente dos sinóticos,
Jesus ia bastante a Jerusalém. Há, inclusive, o caso de uma festa não
identificada (5.1: “uma festa dos judeus”), apenas para justificar a pre-
sença dele em Jerusalém, ocasião em que curou o paralítico no tanque
de Betesda.
Em relação aos feitos de Jesus, o Evangelho registra apenas sete
curas e milagres, chamados de “sinais”. No final do livro, o autor justifica
por que foram tão poucos registrados: “Na verdade, Jesus fez diante dos
seus discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram registrados para que vocês creiam que Jesus é o
Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenham vida em seu nome”
(Jo 20.30-31). De fato, há um valor simbólico na quantidade e nos tipos
de sinais registrados ali: sete é um número muito importante na tradição
judaica e cristã, representando a perfeição e a totalidade divina (sete dias
da criação, setenta anciãos auxiliares de Moisés etc.). Além disso, vemos
que os sinais mostram diferentes aspectos das curas, indicando que cada
uma tinha um propósito teológico, para além do simples testemunho do
poder de Jesus, começando pelo milagre de transformar água em vinho
(Jo 2.1-12) e culminando com a ressurreição de Lázaro (11.1-46). Por
isso, a primeira parte do Evangelho, capítulos 1-11, é chamado de “Livro
dos Sinais”.
A partir do capítulo 12 até o 21, o evangelista passa a enfatizar a en-
trada e os fatos da Paixão em Jerusalém. Esta parte é chamada de “Livro
da Glória”, que segue de modo mais aproximado aos eventos mostrados
pelos sinóticos, em diversos momentos.

66
BÍBLIA Introdução ao NT

A crise gnóstica
Como visto, houve rupturas internas na comunidade, nas fases 2 e 3.
Foi o momento em que a linguagem e as crenças se tornaram mais mís-
ticas e dualistas. Acredita-se que algumas lideranças exacerbaram nesta
tendência e passaram a afirmar que Jesus não encarnou, apenas tomou
forma humana, já que o carnal é pecaminoso. Surgiram daí os docetistas
e os gnósticos. Parece ter havido uma reação da parte da liderança mais
tradicional, rompendo com este grupo e reafirmando a encarnação.
Por causa disso, na fase final do Evangelho, o autor elaborou um pró-
logo que estabelecia de forma absoluta a crença na encarnação e, ao
mesmo tempo, na divindade de Jesus. Acredita-se que originalmente o
Evangelho iniciava em Jo 1.6-9 e continuava no verso 15 em diante, ou
seja, o início original se referia tão somente a João Batista, mais ou menos
como no Evangelho de Marcos. Esse acréscimo foi inserido de forma du-
pla: em 1.1-5 fala da plena divindade de Cristo, enquanto em 1.10-14 trata
da plena humanidade dele.
O capítulo 21 também segue essa tendência: mostra Jesus comendo
pão e peixe, para indicar que, mesmo após a ressurreição, Jesus ainda
tinha um aspecto físico. É um indício de que ele é um acréscimo deste
período final, paralelo ao prólogo. Outro aspecto importante dessa etapa
final é o diálogo entre Jesus e Pedro, não só para confirmar a autoridade
dele perante as igrejas, como para mostrar que o fato de João ter vivido
mais que os demais apóstolos não significava que ele viveria até a vinda
de Cristo.
A mensagem do Evangelho de João é a de que Jesus é o Salvador,
Filho de Deus, Senhor e o próprio Deus. Os sinais servem para provocar
a fé, não como resultado dela; para João, quem vê e ouve Jesus e o
rejeita não tem salvação, pois Deus fez todo o possível. O tema do amor
[agápê] é central, mas ao contrário do que parece, a exigência não é
amar “ao próximo”, mas “uns aos outros”. Há o sentido de comunidade
fechada em si mesma para não perder membros; o mundo é mau, por

67
FATIPI EAD Guia de Estudos

isso deve ser evitado, especialmente levando em conta os cristãos que


circulam pela comunidade.

conceito

Docetistas e Gnósticos são designações para duas vertentes


cristãs que passaram a negar a encarnação de Jesus,
entendendo que ele seria uma manifestação do espírito em
forma humana, já que Deus não poderia se misturar com a
carne. Ou seja, para eles as coisas espirituais, bastantes
superiores, não poderiam se conectar com as carnais
(naturais), o que gerou um dualismo radical e excludente.
Além disso, os gnósticos afirmavam que a salvação não se
dava pela fé no sacrifício de Cristo, mas no conhecimento
(gnose) das coisas ocultas de Deus, reveladas por Jesus.
Por isso, os gnósticos escreveram diversos evangelhos, a
partir do século II, enfatizando esses aspectos, mostrando
o conhecimento secreto que Jesus passava a alguns
apóstolos. A reação da igreja a esses movimentos foi dupla:
por um lado, condenou os líderes e declarou-os fora da
comunhão da fé (excomungados). Por outro, reforçaram
o uso dos textos apostólicos que afirmavam a encarnação
de Cristo e a salvação pela fé. Esse reforço contribuiu para
o processo de canonização do Novo Testamento, como
veremos no Módulo 5.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Foi muito importante considerar neste Módulo apenas os Evangelhos


canônicos, pois eles têm retratos profundos acerca de Jesus e seu minis-

68
BÍBLIA Introdução ao NT

tério. Cada Evangelho tem sua personalidade e forma própria de contar a


história de Jesus. Então vale a pena conhecer cada um de forma separada
para entender melhor a mensagem específica que está passando sobre
Jesus. Ao mesmo tempo, ler os Evangelhos de forma harmonizada nos
ajuda a perceber a diversidade das comunidades cristãs, o quanto elas
compreenderam a tradição de Jesus e o quanto elas influenciaram os de-
mais autores do Novo Testamento. Lembrando que, apesar de serem os
primeiros textos do Novo Testamento, eles foram compostos bem depois
dos escritos de Paulo, esses sim, os primeiros escritos cristãos. Paulo,
aliás, que é o tema de nosso próximo módulo.
Esperamos você. Até lá e um grande abraço.

69
Módulo 3

PAULO E A MISSÃO AOS GENTIOS


BÍBLIA Introdução ao NT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Quem foi o apóstolo Paulo? Nietzsche o considerou traidor dos princí-


pios do evangelho. Os judeus dialogam com Jesus, mas não com Paulo.
Sua biografia tem sido revisitada e polêmicas vêm à tona: misógino?, con-
servador?, liberal? Ao mesmo tempo, tem sido exaltado como verdadeiro
intérprete da mensagem cristã e muitos estudam mais suas cartas do que
os Evangelhos. Alguns chegam a radicalizar: o tempo atual é paulino, pois
os evangelhos tratam de questões que não nos afetam mais.
Seja como for, é certo que Paulo não tinha a dimensão do quanto ia
suscitar debate nos círculos acadêmicos e de estudos bíblicos. Tampouco
imaginava que suas cartas se tornariam o primeiro motor literário a ser
divulgado nas igrejas como texto inspirado, no mesmo nível das Escrituras
hebraicas. Mas foi o que aconteceu e por isso é importante estudar sua
vida e obra, tentando verificar a proximidade e a distância com o movimen-
to de Jesus anterior e as comunidades advindas dessa fé inicial.
O objetivo da aula é que ao término do módulo você seja capaz de: a)
identificar as diferentes fases da vida do apóstolo Paulo, de acordo com as
descrições em Atos dos Apóstolos e nas cartas escritas por ele; b) enten-
der o papel das cartas no mundo greco-romano antigo e na interação entre
Paulo e as comunidades com quem ele mantinha contato; c) descrever a
cronologia das cartas paulinas, relacionando-as às viagens missionárias;
d) ter conhecimento básico de temas, situação e pontos mais relevantes
das cartas autênticas de Paulo.
Embarque nesta viagem missionária com Paulo e tenha uma exce-
lente aula.

1. PAULO: MISSIONÁRIO E APÓSTOLO

1.1. Formação e vocação de Paulo


A biografia de Paulo é complexa: aparentemente sua ficha biográfica

71
FATIPI EAD Guia de Estudos

transcrita em Fp 3.5-6 (como também em 2Co 11.22; Gl 1.14; 2.15) parece


nos dar algumas informações importantes. Tomemos como referência o
texto de Fp 3.5-6 para destacar aspectos importantes da sua biografia.

• “Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel”. Paulo nasceu


num lar judeu que observava a prática ortodoxa da circuncisão. Mas é im-
portante considerar que ele era um judeu da Diáspora, natural de Tarso, na
Cilícia, vizinha da Galácia. Isso certamente influenciou sua proximidade com
os gentios, posto que ele devia interagir com não judeus em diversas situa-
ções. Mesmo assim, podemos entender que Paulo mantinha as fronteiras
próprias dos judeus da época, em termos de alimentação, guarda de dias e
festas. Certamente frequentava a sinagoga e estudava com afinco a Torá.

• “Da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus”. Paulo foi educado


rigorosamente no conhecimento das tradições de Israel e se orgulha de
saber a qual tribo pertencia. Além disso, evoca para si a declaração de que
é hebreu e, como tal, está ligado às antigas tradições mosaicas. Saber de
sua linhagem tribal indica o quanto a família de Paulo estava vinculada ao
sentido de pertença ao povo de Israel.

• “Quanto à lei, fariseu”. Paulo se autodeclara fariseu, cuja formação,


de acordo com At 22.3, foi “aos pés de Gamaliel”, em Jerusalém. Porém,
considerando que nas cartas Paulo nunca cita esses dois fatos, acredita-se
que não é um dado historicamente confiável. Mas é certo que ele teve boa
formação rabínica e bastante capacidade de argumentação. Sem dúvida
isso foi motivo de controvérsia no processo do seu apostolado.

• “Quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há


na lei, irrepreensível”. Por outro lado, Paulo mesmo afirma que perseguiu
a igreja. At 9.13-14 registra a preocupação de Ananias em ir até Paulo
para batizá-lo, tendo em vista a fama deste. Resta saber onde e em que

72
BÍBLIA Introdução ao NT

nível ele o fez. Na morte de Estevão, por exemplo, Paulo ainda não tinha a
posição de autoridade plena, sendo ali um executor de ordens superiores.
Mas, em sua consciência, ele reconhecia a gravidade da sua condição, a
ponto de se considerar “o menor dos apóstolos” (1Co 15.9).

Além disso, as cartas de Paulo demonstram que ele tinha formação


na cultura helenística, não só por escrever fluentemente em grego (ainda
que de forma limitada), como por demonstrar conhecimento de estruturas
filosóficas e certa habilidade retórica, especialmente na diatribe estoico-cí-
nica. Não por coincidência, a cidade de Tarso tinha uma importante escola
filosófica, onde se aprendia a arte da retórica, similar à que Paulo usava.

curiosidade

Diatribe é um termo de origem grega (lit. “esfregar através


de”, dando o sentido de “perturbar”, “fazer pensar”)
que, inicialmente, se refere aos discursos preambulares
moralistas dos filósofos estoicos e cínicos na Grécia antiga.
Deste tipo de discurso, possuímos hoje as Diatribai, de
Epiteto. O principal método utilizado na diatribe, muito
aplicado por Paulo, é o uso de perguntas e respostas, numa
estrutura retórica que obriga o leitor-ouvinte a concordar
com a argumentação proposta pelo escritor. Exemplo: em
Rm 6.1 Paulo pergunta: “Permaneceremos no pecado, para
que seja a graça mais abundante?” Sabendo a resposta
que os ouvintes dariam, ele mesmo completa: “De modo
nenhum!”. Dessa forma, Paulo captava a atenção da
audiência e a conduzia pela sua argumentação. Na literatura
apócrifa existem a troca de correspondência entre Paulo e

73
FATIPI EAD Guia de Estudos

Sêneca, o maior estoico do século I. Ainda que não tenha


ocorrido tal correspondência, isso mostra o quanto Paulo
era relacionado ao estilo de pensamento dessa escola
filosófica, famosa por dar ênfase à moral como meio de
melhorar a vida na sociedade.

1.2. O apostolado aos gentios


Desde o início de seu chamado, no caminho de Damasco, as narrativas
apontam para um ministério entre os gentios. Segundo o relato de Atos,
quando Cristo chamou Ananias para batizar Paulo, ele ficou bastante reti-
cente. Diante da resistência dele em ir ao encontro do perseguidor da igreja,
Cristo expõe a missão de Paulo: “Vai, porque este é para mim um instrumen-
to escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como pe-
rante os filhos de Israel” (At 9.15). Mas é o próprio Paulo quem nos fornece
a confirmação dessa missão, em várias das suas cartas:

“Pois sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sá-


bios como a ignorantes” (Rm 1.14); “Entretanto, eu lhes escrevi,
em parte mais ousadamente, como para fazer com que vocês
se lembrem disso outra vez, por causa da graça que me foi
dada por Deus, para que eu seja ministro de Cristo Jesus en-
tre os gentios, no sagrado encargo de anunciar o evangelho
de Deus, de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez
santificada pelo Espírito Santo” (Rm 15.15,16) e “Mas, quando
Deus, que me separou antes de eu nascer e me chamou pela
sua graça, achou por bem revelar seu Filho em mim, para que
eu o pregasse entre os gentios, não fui imediatamente consultar
outras pessoas” (Gl 1.15-16).

Paulo foi comissionado para essa missão, enviado aos gentios, daí o
termo “apóstolo”, ao qual ele refere a si mesmo em todas as introduções
de suas cartas (por ex: Rm 1.1; 1Co 1.1; 2Co 1.1; Gl 1.1 - com ênfase no

74
BÍBLIA Introdução ao NT

chamado feito diretamente por Deus). Isso não aconteceu sem controvér-
sia. Paulo foi questionado como apóstolo legítimo e por diversas vezes
precisou defender sua posição como tal (1Co 9; 2Co 4; 5.11-17; 6.4-12;
10-11). Uma das questões centrais era o fato dele não ter convivido com
Jesus, mas, em seu testemunho, Paulo afirma que Cristo apareceu para
ele e o fato de ter ou não andado com Jesus em sua missão terrena era
menos importante (cf. 2Co 5.16). Uma das possibilidades de interpretação
de Atos 9.1-9 se dá na perspectiva da vocação em vez da conversão do
apóstolo Paulo, como explica Marcelo Carneiro (2019, p. 70):

A experiência de Paulo na estrada de Damasco deve ser en-


tendida como vocação, e não conversão, até porque Paulo
não se considerava pecador no sentido amplo do termo, mas
cumpridor da Lei (cf. Fp 3.5-6). O que acontece com Paulo é a
convicção de que ele não precisava mais buscar a justiça pela
Lei, pois agora tinha sido iniciada a era da fé em Jesus, a partir
da ressurreição – que é o cerne da experiência em Damasco.

O que movia Paulo certamente era essa convicção de que o próprio


Deus o tinha chamado e enviado como apóstolo aos gentios, bem como
aos judeus da Diáspora. Era uma missão que ele sabia ser muito grande
e na qual investia todo o seu esforço (cf. 1Co 9.16-20). Ele assumiu essa
causa de tal forma que nem mesmo se importava quando outros prega-
dores entravam em cena, mesmo por motivos escusos (Fp 1.18). O que
ele não admitia era que mudassem a essência da mensagem, pregando
“outro evangelho” que não fosse o da graça e da fé (cf. sua denúncia em
Gl 1.6-9). Esse era o ponto que Paulo não admitia discussão, motivo pelo
qual enfrentou Pedro em Antioquia.
Por conta da natureza de sua missão, Paulo enfrentou até o líder Pedro
na controvérsia entre judeus e gentios (Gl 2.11-20) e colocou-se de modo di-
ferente dos pregadores que circulavam nas regiões helênicas (filósofos, ma-
gos etc.), como é demonstrado em 1Ts. Seu ministério foi marcado por uma

75
FATIPI EAD Guia de Estudos

pregação encarnada na cultura gentílica, mas também pelo confronto aberto


com os demais grupos. Cothenet (1984, p. 19) comenta essa questão:

Em Chipre, Paulo terá um atrito com um mago de origem ju-


daica, Bar-Jesus, cognominado Elimas (At 13,6.8); em Éfeso,
exorcistas judeus tentarão rivalizar com ele, mas ver-se-ão em
difícil situação (At 19,11-17). Em Atenas, será considerado um
propagador de divindades estrangeiras (At 17,18). Adversários
mal-intencionados farão dele um agitador político (At 17,6-7).

Essa dimensão de “combatente” do evangelho que, inclusive, aparece


em 2Tm 4.7, mostra o quanto Paulo se entregou na execução de sua tarefa.
Ele era apóstolo, não como dominador da fé da comunidade, mas coopera-
dor do evangelho (cf. 2Co 1.24), e por isso também se tornou missionário da
causa. Para ele, essas duas funções eram intimamente vinculadas.

1.3. As viagens missionárias


De acordo com o relato de Atos dos Apóstolos, Paulo fez três grandes
viagens missionárias e uma viagem que o levou de Jerusalém a Roma,
quando se encerra o livro. A pesquisa crítica adotou certa desconfiança
sobre a historicidade dessas viagens, a partir da comparação de Atos 15
com Gálatas 2, por causa das divergências cronológicas e contextuais.
Mas, a despeito dessas divergências, ainda assim é possível combinar
Atos com as cartas de Paulo para verificar que o apóstolo viajou a diversos
lugares para pregar o evangelho.
O caminho percorrido pelo apóstolo foi bastante extenso, mesmo para
nossos dias (média de 1200 km em cada viagem). Parte das viagens era
feita de barco e outra parte por terra. Mas em ambas as situações havia
muitos perigos que o próprio Paulo cita em 2Co 11.22-27. Segundo re-
latos da época, nas estradas as pessoas costumavam viajar a pé, com
jumentos ou burros carregando sua bagagem; cavalos eram transporte de
mensageiros oficiais e soldados. Entre os perigos enfrentados estavam

76
BÍBLIA Introdução ao NT

salteadores ou donos de estabelecimentos que hospedavam as pessoas


em espaços destinados a escravos e, em alguns casos, as vendiam, por
meio de esquemas corruptos de tráfico de pessoas. Outras hospedagens
eram fachadas para casas de prostituição na estrada. Além disso, ani-
mais como lobos, em alcateias, representavam insegurança e medo para
os viajantes. No caso das viagens marítimas, a situação não era muito
melhor, pois os barcos dependiam das condições meteorológicas, em es-
pecial os ventos apropriados. Uma viagem básica podia durar cinco dias,
mas se o vento fosse desfavorável, ampliava para quinze. Isso quando
não ocorria um naufrágio, como o que o próprio Paulo enfrentou indo para
Roma, ou seja, só uma pessoa com disposição pessoal muito grande se
arriscaria a enfrentar essa situação. Podemos sintetizar as viagens de
Paulo da seguinte forma:

• 1ª viagem. Durou cerca de um ano, entre 47-48, Paulo viajou


com Barnabé e João Marcos. Foi uma viagem relativamente curta, saindo
de Antioquia por mar, passando pela ilha de Chipre, e de lá para Panfília,
Pisídia e Frígia, na região onde atualmente fica a Turquia. Após isso, vol-
taram para Antioquia, provavelmente para prestar relatório de sua missão.
Neste período, na cidade, deve ter ocorrido o fato narrado por Paulo em
Gl 2, em que confrontou Pedro por causa da exclusão dos gentios, relato
que não aparece em Atos. Depois, foram para Jerusalém, onde aconteceu
o importante concílio que definiu a situação dos gentios na igreja (At 15),
comentada no Módulo 1.

• 2ª viagem. Foi mais longa que a primeira. Deve ter se iniciado


em 49 e se estendido até 52. Nesta, Paulo viajou sozinho, devido a um
desentendimento com Barnabé por causa de Marcos (cf. At 15.39). Silas e
Timóteo se juntam a ele e se tornam importantes colaboradores no minis-
tério. O relato de Atos mostra que Paulo queria subir a região da Galácia,
continuando o caminho que fizera antes, mas foi “impedido pelo Espírito

77
FATIPI EAD Guia de Estudos

Santo” (At 16.6), indo então para a Macedônia, em função de uma visão
que teve. Na região, passou por várias cidades, chegando até Atenas,
importante centro cultural daquela época. Das cidades por onde passou,
temos registro nas cartas de Filipos, Tessalônica, Corinto e Éfeso. Nesse
período, ele começou a escrever cartas às igrejas, fato que Atos dos Após-
tolos ignora, por motivo desconhecido. Uma delas foi 1Tessalonicenses, o
primeiro documento cristão de que temos registro.

• 3ª viagem. Similar à segunda, iniciou-se em 52 e encerrou-se em


56, já em Jerusalém. Nesta viagem, Paulo passou três anos em Éfeso,
onde permaneceu para firmar uma comunidade, utilizando a escola de
Tirano (sobre a qual só se sabe o nome do proprietário) como espaço
de ensino. Durante esse tempo, acredita-se que escreveu diversas cartas
(1Coríntios, Gálatas, Filipenses, Filemon e parte de 2Coríntios). De Éfeso
ele voltou às igrejas da Macedônia, especialmente para ver se tudo corria
bem. No retorno, escreveu outras partes de 2Coríntios, bem como a carta
aos Romanos e Colossenses. Chegando em Jerusalém, ele acabou sendo
preso e solicitou audiência em Roma, para onde foi enviado.


Imagem: Mapa das viagens de Paulo

78
BÍBLIA Introdução ao NT

curiosidade

Depois de ser preso em Jerusalém, Paulo seguiu para Roma,


enfrentando naufrágio e ficando um período na ilha de Malta
(cf. At 27-28). Chegando em Roma, ficou em prisão domiciliar
durante dois anos, durante os quais pregava às pessoas.
Assim termina o livro de Atos dos Apóstolos, pelos idos do
ano 58. Depois disso, nada sabemos das fontes canônicas, ou
quase nada. Em Rm 15.28 o apóstolo comenta sua intenção
de ir à Espanha anunciar o evangelho, após ter passado
por Roma, pois ainda não conhecia a igreja. Se juntarmos
a informação de Atos dos Apóstolos, podemos pensar que
Paulo conheceu a igreja de Roma no período em que esteve
cativo ali, para depois ir à Espanha. Os dados extracanônicos
e da Tradição afirmam que depois ele foi novamente a Roma,
sendo preso no período de Nero, que o condenou à morte em
68 d.C. Com isso, temos um período de oito anos desde o fim
da prisão em Roma até sua efetiva morte. Daí a pergunta: se
Atos dos Apóstolos foi escrito depois disso, por que não falou
da morte de Paulo? Uma hipótese bastante aceita atualmente
entende que foi objetivo do autor de Atos dos Apóstolos
mostrar Paulo chegando em Roma para pregar (os confins
da terra, tendo Jerusalém como ponto de partida) e deixou
o final aberto, para indicar que o evangelho continua sendo
pregado em todos os lugares.

1.4. Paulo e as igrejas urbanas


Nas suas viagens, Paulo não tinha apenas a intenção de pregar o
evangelho em diferentes lugares. Ele iniciou comunidades de fé e inves-

79
FATIPI EAD Guia de Estudos

tiu em pessoas para que se tornassem lideranças nessas igrejas. Uma


das principais características de Paulo, e diferença em relação a Jesus,
era a penetração no ambiente urbano. Paulo basicamente evangelizou
em cidades, algumas importantes, enquanto Jesus era mais rural, fre-
quentando muito mais aldeias e pequenas cidades. As igrejas paulinas,
em geral, eram localizadas em casas de pessoas mais ou menos abas-
tadas, chamadas domus. Ali era possível reunir dezenas de pessoas,
pois eram casas com espaços amplos para jantares e festas. Rm 16.3-
15 mostra Paulo saudando diversas pessoas que formavam igrejas em
suas casas, como Priscila e Áquila, além das pessoas citadas nos ver-
sos 14 e 15.
Tudo indica que, nas igrejas paulinas, a congregação era formada por
homens, mulheres e crianças, livres e escravos, ricos e pobres, judeus
e gentios; por isso a importante afirmação presente em Gl 3.28: “Assim
sendo, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem
homem nem mulher; porque todos vocês são um em Cristo Jesus”. Ain-
da que as igrejas não tenham confrontado nem alterado o sistema social
vigente, tudo indica que internamente havia organização e princípios que
atuavam em sentido inverso ao da sociedade greco-romana, onde esta-
vam as igrejas.
Em alguns casos, como em Éfeso, Paulo permaneceu três anos, pre-
gando e ensinando. É possível que ele tenha não só firmado a igreja
dos efésios, como formado lideranças para iniciar trabalhos em cidades
próximas. Algumas versões de At 18 afirmam que Paulo usava a escola
de Tirano no horário entre 11 e 16 horas, sendo um tempo bastante
amplo para realizar diferentes atividades. A relação de Paulo com as co-
munidades que tinha iniciado era muito intensa, ao ponto de estabelecer
um meio de contato com elas e que acabou por se tornar uma de suas
marcas: as epístolas.

80
BÍBLIA Introdução ao NT

Ilustração de um domus romano.


Fonte: https://i.pinimg.com/originals/12/41/3d/12413d6bf2f311f62bf42e0d6ed0120d.jpg

2. A COMUNICAÇÃO ENTRE PAULO E AS IGREJAS

2.1. O método paulino de comunicação


Paulo utilizou o meio mais eficaz de comunicação de seu tempo: as
cartas. O império romano criou as condições ideais para que esse método
tivesse amplo sucesso. As estradas romanas eram muito bem-feitas, facili-
tando o fluxo de pessoas e cargas (como explicado no Módulo 1), por isso,
o correio foi o meio de aproximar legionários de suas famílias, bem como
comerciantes e religiosos. Com Paulo não foi diferente.
Escritas em pergaminhos, as cartas tinham um preâmbulo inicial indi-
cando remetente e destinatário. Seguia uma saudação e votos de saúde,
para então explicitar o conteúdo desejado. Ao fim, havia renovação de
votos e despedida. Em linhas gerais, era assim que Paulo compunha as
cartas que escrevia. Mas havia casos diferentes, como de 2Coríntios, con-
forme veremos a seguir.

81
FATIPI EAD Guia de Estudos

Acredita-se que Paulo desenvolveu problemas de visão, de acordo com


Gl 6.11, e que por isso usava os serviços de seus cooperadores para escre-
ver as cartas, ditando diretamente o conteúdo que desejava. Esses coopera-
dores atuavam como amanuenses, isto é, pessoas que escreviam o que era
ditado, sem interferir no conteúdo. Isso não era nem de longe incomum no
tempo deles, visto que poucas pessoas eram letradas na sociedade.
Algumas das cartas deixam claro quem foi o amanuense: Tércio escre-
veu a epístola aos Romanos (Rm 16.22); 1 e 2Tessalonicenses têm sau-
dação de Paulo, Silvano e Timóteo, que podem ter escrito efetivamente.
Do mesmo modo, no preâmbulo de Filipenses, 2Coríntios e Colossenses,
Timóteo é apontado como remetente, o que pode ser indício de que ele foi
o amanuense. Nesta lógica, a citação a Sóstenes como remetente de 1Co-
ríntios pode ser um indício de que tenha sido ele quem escreveu a epístola.

curiosidade

Carta ou epístola? Tecnicamente há quem afirme ter


uma diferença entre essas duas formas de comunicação,
ainda que em grego tudo venha da palavra epistolê, que
significa tanto carta quanto epístola. Porém, para fins
de diferenciação, afirma-se que carta é uma mensagem
entre duas pessoas particulares, enquanto epístola seria a
mensagem de uma pessoa para um grupo ou comunidade.
Daí falarmos em epístola de Paulo aos Romanos, mas carta
de Paulo a Filemon. Entretanto, há quem afirme que os
escritos paulinos nem são cartas no sentido específico, nem
epístolas, pois estas contêm explanações mais amplas, em
geral, de cunho teológico. Na verdade, são mensagens
pessoais para tratar de questões teológicas e eclesiais,

82
BÍBLIA Introdução ao NT

ou seja, de cunho pastoral, dependendo das situações


pelas quais as comunidades estavam passando. Daí a
especificidade de cada carta ou epístola. No fim, qualquer
um dos termos é válido para a produção paulina.

As epístolas de Paulo estão entre os escritos mais importantes do Novo


Testamento, não só por serem o maior número de escritos de um só autor,
mas principalmente pela sua importância doutrinal e documental com re-
lação ao cristianismo de primeira e segunda gerações (anos 40-60 d.C.).
Paulo representou e representa, sob muitos aspectos, aquele ministro que
deu forma ao cristianismo que conhecemos hoje, em questões como espe-
rança escatológica, salvação pela fé, pré-existência de Cristo, a Igreja como
corpo místico de Cristo, além de certos aspectos éticos dos quais a igreja
ainda hoje se serve para estabelecer sua doutrina. No entanto, é um erro
achar que Paulo escreveu suas cartas tendo em mente toda a globalidade
dos cristãos e suas situações particulares, em tempos e épocas diferentes.
Para Paulo, de fato, as cartas que ele escrevia eram o elo entre ele e
as comunidades com as quais tinha envolvimento, antes que Cristo retor-
nasse e se findasse o tempo para a proclamação do evangelho. O senso
de urgência dele, aliás, é o que mais caracteriza seu chamado como após-
tolo e, não à toa, foi o motivo de ter escrito tantas cartas. Essa atividade
complementar mostra um missionário não apenas envolvido com a prega-
ção prática do evangelho, mas que desejava estruturar de alguma forma
as comunidades com as quais tinha esse relacionamento. Isso demandou
organização, relatórios e intensa comunicação, formalizada pelas cartas.
Por outro lado, muitos pensam que esse fato tira de Paulo o caráter
de teólogo, afinal escrevia sob a pressão do momento. Para Bultmann,
no entanto, não é correto afirmar isso. Mesmo considerando o fato de os
escritos paulinos não sistematizarem os temas que ele deseja abordar,
colocando-os muitas vezes de modo fragmentário:

83
FATIPI EAD Guia de Estudos

[...] a maneira com que deduz questões atuais de uma questão


fundamentalmente teológica, como toma decisões concretas a
partir de reflexões fundamentalmente teológicas, mostra que
seu pensar e falar emanam de sua posição teológica funda-
mental, que, aliás, se explicita em Rm de modo mais ou menos
completo (Bultmann, 2004, p. 245, grifo do autor).

Paulo escreveu suas cartas com um estilo simples, mas profundo. Em


poucas palavras transmitiu a essência do que pensava e compreendia teo-
logicamente. A forma de Paulo escrever cartas mudou o gênero epistolar
clássico, pois adotou nelas o discurso missionário oral, contendo prega-
ção, oração, parênese, exposição doutrinária, hinos e palavras proféticas.
Seu estilo foi admirado e imitado de tal maneira que logo se tornou fonte
para que outras cartas surgissem no ambiente eclesiástico, gerando epís-
tolas que foram canonizadas e outras tantas que não foram.
Para alguns autores, um dos principais fatores que tornaram as car-
tas de Paulo tão especiais e que as fizeram suportar o passar dos anos
foi o fato de serem resultado de situações concretas das comunidades.
As dúvidas, as controvérsias, as discussões, foram todas colocadas nas
cartas por meio de princípios gerais que, curiosamente, não se esgotaram
naquelas situações, mas foram aplicadas por outras comunidades.
Ao escrever para as igrejas helenísticas, Paulo deu a dimensão e o
perfil do cristianismo não judaico, chamado cristianismo mediterrâneo, que
não estava diretamente relacionado aos apóstolos do movimento de Je-
sus. Por isso, alguns afirmam que o cristianismo atual é, em termos gerais,
o cristianismo de Paulo.

2.2. Cronologia das cartas de Paulo


Quando analisamos as cartas paulinas de uma forma um pouco mais
profunda, percebermos diferenças relevantes entre elas, tanto no estilo
quanto na teologia. Isso se deve, muito provavelmente, ao próprio proces-
so de amadurecimento da compreensão paulina sobre a fé em Cristo e as

84
BÍBLIA Introdução ao NT

implicações desse fato. Ao mesmo tempo, deve ter havido necessidade de


aprofundar tais temas para as comunidades. Afinal, alguma sistematiza-
ção foi necessária para haver melhor compreensão. Por isso, adotaremos
aqui o princípio de que as cartas podem ser analisadas tendo em vista sua
cronologia, que ajuda a identificar esse amadurecimento.
Para nossa organização, consideramos aqui que as cartas foram ela-
boradas na segunda e no início da terceira viagem de Paulo e represen-
tam uma etapa inicial de elaboração de pensamento e da teologia pauli-
na. Uma etapa intermediária pode ser reconhecida nas cartas de prisão,
quando ele escreve textos com bastante profundidade teológica, em car-
tas curtas e objetivas. A fase dos escritos mais amadurecidos de Paulo,
com ideias mais precisas, aparece até o fim da terceira viagem, antes de
chegar em Jerusalém, ainda que continue não fazendo teologia de forma
mais sistematizada, com exceção, talvez, de Romanos, como veremos
adiante. Nesta etapa, Paulo reforça os temas que realmente considera
fundamentais. Depois, temos algumas cartas que a pesquisa crítica tem
entendido que não pertencem ao apóstolo em si, mas representam um
pensamento posterior, vindo do que chamaremos aqui de escola paulina,
conhecida nas obras de introdução de cartas deuteropaulinas. Temos, en-
tão, a seguinte ordem:

Primeiras cartas
1Tessalonicenses (cerca de 50) – durante a 2ª viagem
Gálatas (c. 51) – durante a 2ª viagem
1Coríntios (c. 52-53) – ao final da 2ª viagem ou início da 3ª
Cartas da prisão
Filemon (c. 54) – durante a 3ª viagem – de Éfeso
Filipenses (c. 54-55) – em diversos momentos da 3ª viagem
Colossenses (c. 55) – de Éfeso

85
FATIPI EAD Guia de Estudos

Cartas da maturidade
2Coríntios (c. 55-56) – em diversos momentos da 3ª viagem
Romanos (c. 56) – ao fim da 3ª viagem
Cartas deuteropaulinas ou da escola paulina
Éfesios
2Tessalonicenses
1 e 2Timóteo
Tito

Analisaremos as cartas de forma sucinta. No Material Complementar


(MC) você terá um quadro das epístolas, no qual discutiremos autenticida-
de e integridade das cartas, bem como indicaremos propostas de estrutura
literária, como guia de leitura para cada uma.

2.3. As cartas do primeiro estágio


1Tessalonicenses
Tessalônica era, na época, capital e cidade mais importante da Ma-
cedônia, pois funcionava como porto e centro comercial, ligando várias
regiões do Leste e do Oeste. Paulo evangelizou a cidade de Tessalônica
em sua segunda viagem (At 17.1-10), e ali houve forte resistência ao seu
trabalho. Parece ter escrito esta epístola de Corinto, cidade para onde foi
em sua jornada missionária, após passar por Bereia e Atenas, ou seja,
parece ser uma carta de fortalecimento pastoral, para a comunidade re-
cém-iniciada. De acordo com 1Ts 3.1ss, Paulo enviou Timóteo de volta a
Tessalônica e seguiu sozinho para Atenas. Depois, Timóteo voltou a Pau-
lo, encontrando-o em Corinto, e o informou como a comunidade estava.
Isso significa pelo menos um período de alguns meses entre a passagem
de Paulo em Tessalônica e a redação da carta.

86
BÍBLIA Introdução ao NT

No preâmbulo, Paulo cita Silvano e Timóteo, o que quer dizer que eles
tiveram participação na redação da carta e ajuda a entender a motivação
na redação do texto. Paulo tinha advertido a comunidade sobre possíveis
ataques, tanto a ele quanto à igreja. Ao saber que os tessalonicenses
estavam firmes na fé, demonstra sua alegria e gratidão pela firmeza da
comunidade. Tessalônica era um dos centros do culto ao imperador, in-
clusive com cunhagem de moedas em homenagem a ele. Ao se tornarem
cristãos, os tessalonicenses automaticamente renunciavam à sua posição
política e social, gerando, quase certamente, animosidades e um clima de
pressão para abandonar essa nova fé. Paulo elogia a comunidade, justa-
mente por perseverar na fé, apesar da situação.
O principal tema teológico da carta aparece na segunda parte (cap. 4
em diante), trata da vinda de Cristo, ou ainda, da ressurreição dos mortos
no sentido escatológico, assunto que parece ter levantado dúvidas na co-
munidade. O trecho de 4.13-5.11 é especialmente dedicado a esse tema,
a começar pela advertência: “não sejam ignorantes, como os que não têm
esperança” (v.13). Essa menção à esperança pode ser uma referência a
grupos que não criam na vida pós-morte, como judeus saduceus ou helê-
nicos que só criam no mundo inferior dos mortos, pois o mundo superior
era restrito a heróis e deuses.
A situação concreta por trás da questão pode ser o fato de pessoas da
comunidade estarem morrendo e, sem sinal da volta de Jesus, algumas
começarem a ter dúvida sobre o que acontece após a morte e como expli-
car a esperança. O apóstolo procurou, então, esclarecer a questão para
não deixar a ansiedade tomar conta do grupo. Teologicamente, é o único
tema de fato da carta, e a testemunha mais antiga da crença de Paulo
sobre a vinda de Cristo, a ressurreição dos mortos e o arrebatamento. Até
porque parece que a pregação de Paulo na época enfatizava muito a volta
iminente de Cristo, algo a ser esperado naquela geração, como se pode
perceber em 4.17: “e nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados
juntamente com eles”.

87
FATIPI EAD Guia de Estudos

1Ts não tem citação clara ao Antigo Testamento, traço das cartas pauli-
nas. Mas, ainda assim, marca o início de um estilo bem característico: fazer
uma série de exortações éticas – chamados também de parênese – na parte
final da carta, para reforçar orientações pastorais, visando ao comportamen-
to da comunidade. Isso acontece em 5.12-23. Após isso, o encerramento do
capítulo 5 é composto por saudações finais e uma bênção.

Gálatas
Paulo iniciou comunidades na Galácia desde sua primeira viagem mis-
sionária. Por isso, não há certeza de onde ficava a igreja dos gálatas.
Alguns acham, inclusive, que poderia ser um grupo de comunidades que
estavam sob a supervisão do apóstolo. Essa Galácia paulina poderia estar
mais ao Norte, na região que hoje é a Anatólia, ou mais ao Sul, compreen-
dendo as províncias da Cilícia, Panfília, Frígia, Pisídia e arredores. Mas
não se pode comprovar essas teses, por isso trataremos como se fosse
uma comunidade.
A carta expressa um grave problema para Paulo: a incursão de pre-
gadores judaizantes na comunidade. As notícias desses pregadores che-
garam a Paulo que, durante seu período em Éfeso, pelo ano 51, precisou
escrever esta que é uma de suas cartas mais duras. O tom forte e de gra-
vidade é estabelecido logo após o proêmio, em que ele nem mesmo utiliza
do recurso das ações de graças para agradar os ouvintes. Pelo contrário,
mostra a decepção do apóstolo com a comunidade (1.6-9).
Para rebater certas acusações de que ele não teria as credenciais ne-
cessárias para ser um apóstolo (acusações recorrentes no ministério de
Paulo), passa a dar um testemunho pessoal de sua vocação. Fala tam-
bém de como conheceu Pedro e os demais apóstolos, sua participação
no concílio de Jerusalém (relatado em At 15) e como confrontou Pedro em
Antioquia, por causa de questões judaizantes (1.10-2.14).
A partir daí, Paulo insere elementos que utilizou com bastante frequência
nas demais epístolas, em especial o uso do Antigo Testamento para funda-

88
BÍBLIA Introdução ao NT

mentar sua argumentação. Como tema de fundo, contrapôs a graça à lei,


para combater ideias judaizantes. A pesquisa tem entendido que a questão
não está em Paulo querer se afastar do judaísmo como religião legalista e
fria, mas que ele combate a ideia de que os gentios precisam obedecer à Lei
para serem salvos. Quanto a isso, Paulo tem uma resposta simples e clara:
a salvação se dá pela fé, e fé em Cristo Jesus (2.19-21; 3.26-29).
Os judaizantes estavam impondo ritos, como a circuncisão, além de or-
denanças legais, como requisito para salvação. É onde Paulo se revolta,
mostrando que ninguém entendeu o cerne do evangelho. A Lei não é má,
mas quem salva é Cristo. Assim ele vai expondo a questão até o trecho de
5.12. A partir daí, num breve texto de transição (5.13-15), ele passa para a
parte parenética, indicando aspectos práticos da vida cristã que a comunida-
de precisa viver. Ao final da carta, uma advertência (“ninguém me moleste;
porque eu trago no corpo as marcas de Jesus”) antecede uma curta benção,
que encerra a carta de forma abrupta e sem saudações particulares.
Na perspectiva literária, o amplo uso do Antigo Testamento para me-
táforas e tipologias faz com que tenhamos na carta aos gálatas um exem-
plo de teologia bíblica, pela conexão que faz entre Cristo e a tradição de
Israel. Provavelmente, foi o primeiro material cristão que estabeleceu a
vinculação entre nós e Abraão, não pela descendência, mas pela fé.

1Coríntios
Corinto era não apenas uma cidade portuária, mas importante passa-
gem de navios no encontro da Grécia continental com o Peloponeso. Si-
tuada entre o mar Adriático e o mar Egeu, a cidade tinha dois importantes
portos, um mais a Leste e outro a Oeste. O grande fluxo de navios fazia
girar um forte comércio na cidade, além de muitas atividades recreativas,
o que lhe deu a fama de ser imoral. Na época, o termo “corintianizar”
significa viver de forma imoral. Em parte era devido ao templo de Afrodite,
em que se narram ter mil hierodulas (escravas do templo, para serviços
sexuais) naquela época.

89
FATIPI EAD Guia de Estudos

Mas era apenas um aspecto da cidade cosmopolita, capital da Acaia,


cuja população, segundo cálculos, chegava a 500 mil, metade da popula-
ção de Roma. Havia vários outros templos, que davam a Corinto a fama de
ser um centro politeísta muito importante, por isso toda a carne consumida
na cidade era consagrada aos deuses, pois os animais eram abatidos nos
templos, antes de a carne ser oferecida no mercado.
Paulo evangelizou Corinto entre 50 e 51, formando uma comunida-
de especialmente de pessoas das camadas mais baixas. Diante de uma
cidade tão pujante, foi natural que ele ficasse preocupado com diversas
questões. De forma mais concreta, os da casa de Cloé levaram a Paulo
relatos de contendas internas na comunidade (1Co 1.11), além de outro
grupo que reportou dúvidas, passadas para Paulo por meio de Estéfanas
e outros (cf. At 16.17). Assim, surgiu a primeira carta aos Coríntios, escrita
entre 52 a 53, de Éfeso, onde ele estava vivendo naquele momento.
Nesta carta, quem assina com Paulo é Sóstenes, indicando que Ti-
móteo não estava com ele. O problema ali não era a influência externa de
outras lideranças, apesar de citar nomes como Apolo, Cefas e outros. Na
verdade, os coríntios estão se confrontando em busca de prestígio e po-
der. Os nomes dos grupos são apenas simbólicos, para indicar a força que
teriam perante os demais (há um grupo de Cristo!). O questionamento do
apóstolo será, então, em torno da unidade e da aceitação uns dos outros,
como um corpo em formação. Para enfrentar o problema, Paulo faz uso de
imagens metafóricas, como a da plantação (3.6-9), do edifício (3.10-17) e
a mais conhecida e importante, do corpo (cap. 12).
Nas questões que Paulo responde estão: a) o casamento e a família
(cap.7); b) sobre as coisas sacrificadas aos ídolos (cap.8); c) algumas po-
lêmicas, como a questão do uso do véu pelas mulheres que ministram na
igreja (11.2-16); d) o problema na comunhão da ceia (11.17-34), e) diver-
sos aspectos relacionados aos dons do Espírito e ao culto, que indicam ter
havido certa perda de controle na comunidade (caps.12-14).
Mas 1Coríntios também tem alguns dos capítulos mais importantes a

90
BÍBLIA Introdução ao NT

respeito de temas explorados por Paulo pela primeira vez: suas credenciais
como apóstolo (cap. 9), o hino ao amor [agápê], que está estrategicamente
posicionado entre a metáfora do corpo e os dons e as normas para o culto
público (cap. 13) e a longa explanação sobre a ressurreição (cap.15).
No final, Paulo faz exortações, recomenda Timóteo à comunidade, faz
elogios ao grupo de Estéfanas e as saudações finais, seguidas da bênção
que encerra a epístola.

curiosidade

As cartas aos coríntios. A pesquisa crítica percebeu


algumas questões textuais nas duas cartas aos coríntios,
indicando que elas não foram escritas originalmente como
estão hoje, e nem que esgotam a correspondência entre
Paulo e a comunidade. Vejamos: a) em 1Co 5.9-13, Paulo
afirma: “já em carta vos escrevi...” e fala de pessoas que
estão se comportando de forma inadequada, ou seja,
parece que havia uma carta “pré-canônica”, que não foi
preservada; b) já o trecho de 1Co 14.33b-36 tem sido
percebido por diversos autores como uma interpolação –
acréscimo posterior – feita em algum momento após o tempo
de Paulo, quando a liderança e a participação das mulheres
passam a ser questionadas. Compare com 1Tm 2.11-15.
Outros acrescentam a esta lista o trecho de 1Co 11.7-9,
pois Paulo subordina a mulher ao homem. Porém, neste
caso, o contexto é outro; c) quanto a 2Co, tudo indica que
sejam diversas cartas – alguns falam em cinco – compostas
em momentos diferentes, mas próximos, que depois foram
compiladas e reunidas numa única carta. Um dos indícios
para isso é a quebra de assunto em 2Co 2.13, onde Paulo

91
FATIPI EAD Guia de Estudos

fala que foi à Macedônia, e só é retomado em 7.5. Essas


quebras, longe de invalidar o texto, mostram apenas que
o processo de comunicação de Paulo com a comunidade
de Corinto foi intensa e de grande dificuldade. Corinto será
sempre a igreja mais difícil do ministério de Paulo.

2.4. As cartas da prisão


Filemom
A carta a Filemom é a mais curta e simples de Paulo, indicando ser
mais uma carta pessoal. Diferente das cartas pastorais a Timóteo e Tito,
ela tem um objetivo bem específico. Paulo estava na prisão em Éfeso e lá
teve contato com Onésimo, escravo fugido de Filemom. Escravos captura-
dos em fuga eram severamente punidos e podiam ser mortos pelos seus
senhores ou mutilados para ficarem marcados e dificultar novas fugas.
A carta é assinada conjuntamente por Paulo e Timóteo e os destina-
tários são Filemom, Áfia e Arquipo. Por isso, alguns pesquisadores falam
que a carta não é apenas a Filemom. A igreja na casa de Filemom a que
Paulo envia saudação pode ser a de Colossos, pois o destinatário da carta
morava nessa cidade. Inclusive Arquipo é citado em Cl 4.17, o que não é
mera coincidência.
No conteúdo da carta, Paulo comenta como Onésimo se tornou impor-
tante para ele, uma pessoa útil, que o apóstolo considera agora como filho
(na fé). Significa que, até aquele momento, Onésimo ainda não tinha se
convertido, o que pode explicar, em parte, sua fuga. O v. 18 dá indícios de
que ele pode ter roubado alguma coisa antes de fugir, o que agravaria sua
situação. Esses dados mostram que Filemom era abastado, morava num
domus e devia ter muitos escravos. Se a igreja de Colossos funcionava
em sua casa, era importante que Paulo tratasse da situação da melhor
maneira possível.

92
BÍBLIA Introdução ao NT

Seguindo a lógica do patronato do mundo romano, Paulo assume as


dívidas de Onésimo e pede que Filemom coloque qualquer dano ou pre-
juízo na conta dele (v. 18). Tanto que Paulo escreve de próprio punho que
irá pagar a dívida, pois não quer dever a Filemom (v.19). Pelo contrário,
Paulo quer ser o patrono na questão e estabelecer com ele uma relação
de cliente. Para isso, usa a prerrogativa de apóstolo e afirma que Filemom
não deve receber a Onésimo como escravo, mas “muito acima de escravo,
como irmão caríssimo, [...], quer na carne, quer no Senhor” (v.16). Cl 4.9
indica que a carta foi levada por Onésimo.
A interpretação de teólogos brancos nos séculos passados sempre
procurou minimizar essa afirmação de Paulo, afinal ele não afirma cla-
ramente que era para Filemom libertar Onésimo. No entanto, as novas
leituras indicam que no contexto do patronato Paulo se coloca como pa-
trono, ao indicar a ordem de Filemom libertar seu escravo. Ou seja, a
prerrogativa de apóstolo dava-lhe condições de fazer essa demanda sem
ter que expressar uma ordem; a forma como ele colocou a questão já era o
suficiente. O fato de não ser exatamente uma carta particular reforça isso:
ao endereçar a outras pessoas, Paulo as toma como testemunhas de seu
pedido e recomendação, tirando, de certa maneira, de Filemom, a possibi-
lidade de negar o pedido. Ainda assim não sabemos como se desenrolou
essa situação, podendo apenas conjeturar.
Ao fim da carta, Paulo faz uma saudação coletiva: da parte dele enviam
saudações Epafras, que também estava preso, Marcos, Aristarco, Demas
e Lucas, todos cooperadores. Encerra com uma bênção, seu típico final.

Filipenses
Filipos se tornou colônia romana em 146 a.C., mas já existia desde o
século 4 a.C. como um ponto estratégico de ligação entre a Macedônia e a
Ásia. Pela sua importância, os romanos deram à cidade elementos típicos
das cidades da Itália, como a troca de guarda pretoriana (citada em Fp
1.13) e um centro administrativo com pessoal direto de Roma, indicando

93
FATIPI EAD Guia de Estudos

que ali tinha uma “casa de César” (4.22).


Foi a primeira cidade em que Paulo entrou quando chegou a Macedô-
nia durante sua segunda viagem missionária. Ali conheceu Lídia, mulher
negociante de púrpura, importante tintura de roupa da época, quando ia
ao espaço de encontro dos judeus, que em At 16.13 é chamado de “lugar
de oração”. A relação de Paulo com a comunidade era forte, marcada pela
prisão dele quando esteve na cidade (cf. At 16.16-40).
As pesquisas em torno da carta mostram que, na verdade, ela é com-
posta de três cartas que foram juntadas, indicando uma intensa correspon-
dência entre Paulo e a comunidade (veja no Material Complementar essa
questão, na integridade da carta). Os indícios apontam que ele escreveu
essas cartas de Éfeso entre 54-55. Analisaremos a carta como está no
cânon, considerando que é assim que a encontramos.
Apesar de curta, Filipenses é profunda na exposição dos temas que
Paulo deseja compartilhar. A carta é uma longa sucessão de parêneses
com fundamentação teológica. Ele inicia com o tema da própria prisão
(1.12-26), de como ela o ajuda a dar perspectiva do que é realmente im-
portante. Paulo percebe que não adianta lutar contra outros pregadores,
desde que Cristo seja pregado, “de qualquer modo” (1.18), ele se alegra,
pois o importante é proclamar. Por outro lado, o apóstolo revela que não
tem certeza se prefere estar vivo ou morto. Ele diz: “para mim, o viver é
Cristo, e o morrer é lucro”. Longe de ser uma afirmação de alguém depri-
mido ou com ideias suicidas, o que temos aqui é o autêntico espírito do
mártir, do cristão que está disposto a dar a vida pela causa do evangelho.
Este trecho talvez tenha relação com a experiência de quase morte que
ele cita em 2Co 1.8-9.
O segundo importante tema da carta é uma longa parênese em que
Paulo declara a preocupação de que a comunidade viva “por modo
digno do evangelho” (1.27-2.11). Ele trata da humildade, no sentido da
auto-humilhação, do esvaziamento do ego, tendo Jesus como exemplo
máximo. Para ilustrar essa verdade, ele toma emprestado um hino cris-

94
BÍBLIA Introdução ao NT

tológico refinado, que mostra o processo de esvaziamento de Cristo e


sua glorificação. Esse hino, de cunho helenístico, deve ter influenciado
também a composição do prólogo de João que, por sua vez, parece
também ser um hino. O exemplo de humildade de Cristo é o modelo para
todos os cristãos.
A partir daí, sucedem-se as parêneses sobre a ética da comunidade no
mundo, primeiro como expressão do desenvolvimento da salvação (2.12-
18), depois como expressão de alegria (3.1) e desejo de aperfeiçoar-se
em Cristo (3.12-16). Em meio a essas considerações, o trecho de 2.19-30
relata a situação de Timóteo e Epafrodito, que a comunidade parece co-
nhecer. Paulo também faz considerações sobre os maus obreiros que ron-
dam a comunidade, colocando seu exemplo de humildade em evidência
(3.2-11). A esses ele chama de cães e deixa a comunidade alerta (3.17-
21). O último trecho é cercado de saudações, recomendações e gratidão
de Paulo por receber apoio financeiro da comunidade (cap. 4). No fim, a
saudação e as bênçãos de praxe encerram a carta.

Colossenses
Na época de Paulo, Colossos era pequena em relação às cidades vizi-
nhas, inclusive Éfeso. Ela ficava próxima a Laodiceia, que naquele tempo
já era bem mais importante. Paulo não fundou essa comunidade, quem o
fez foi o colaborador Epafras, que era da localidade (cf. Cl 1.7; 4.12-13), o
que indica a rede de pregação que havia na região, liderada pelo apóstolo.
Há uma boa discussão sobre qual data deve ser considerada para a
carta. Levamos em conta que ela foi levada à comunidade por Tíquico,
que estava acompanhado de Onésimo, a essas alturas, libertado da pri-
são (cf. 4.7-9). Além disso, Paulo manda saudações da parte de “Aris-
tarco, prisioneiro comigo” (4.10). Esse Aristarco é citado em Fm (v.24),
e em At 19 aparece como companheiro de Paulo em Éfeso. Juntando
essas informações, consideramos que Paulo a escreveu de Éfeso, por
volta de 55.

95
FATIPI EAD Guia de Estudos

O preâmbulo da carta tem a indicação de Paulo e Timóteo como auto-


res, como em outras cartas. Parece que havia duas casas que funciona-
vam como igrejas (cf. 4.15,17; Fm 2), que eram compostas predominante-
mente de cristãos gentílicos (cf. 2.13; 1.21,27). Uma delas provavelmente
funcionava na casa de Filemom, como visto antes.
A carta fala da preocupação de Paulo com falsos mestres que ron-
davam a comunidade, mas que não tinham conseguido êxito em sua
abordagem (cf. 2.4,8,20). Paulo mostra-se agradecido por isso (1.3ss;
2.5), mas sente a necessidade de fortalecimento da comunidade (1.9ss;
2.6s). O que os falsos mestres ensinam: observância de dias especiais
(2.16), prescrições alimentares (2.16,21), busca de um ascetismo rigoroso
(2.20ss). Isto parece ter fundo pré-gnóstico ou helenístico, pois se fala em
culto aos anjos (2.18), dos elementos do mundo (2.8; Gl 4.9).
Neste caso, o ascetismo e o culto da humildade (2.18,23) preparam
o encontro com os anjos. Paulo condena o modo como eles se portam
(2.18,22s). Isto poderia ter levado o culto em Colossos se tornar um culto
de mistério de cunho sincrético, o que explica o porquê de Paulo exortar
a comunidade em conhecer (epignosen) o mistério de Deus, no caso o
próprio Cristo, fonte de todo conhecimento e sabedoria (2.2,3).
O final da carta (4.10-17) tem saudação de várias pessoas, come-
çando por Aristarco, já citado acima. Também são citados João Mar-
cos, Jesus, o justo, Epafras, que parece ter sido da comunidade por um
tempo, Lucas, o médico, Demas, e algumas pessoas de Laodicéia, em
especial Ninfa, que hospedava uma igreja em sua casa. Paulo pede que
esta carta seja lida em Laodicéia, assim como a carta enviada a eles fos-
se lida pelos colossenses. Acredita-se que esta carta aos laodicenses
fosse a que conhecemos como carta aos Efésios, que estudaremos no
próximo módulo.
Ao final (4.18), Paulo faz saudação de próprio punho, fala das alge-
mas, lembrando de sua condição de prisioneiro e envia uma bênção curta,
sem a formulação que tinha usado nas epístolas anteriores.

96
BÍBLIA Introdução ao NT

curiosidade

Os cultos de mistério ou cultos mistéricos são a expressão


religiosa mais viva e dinâmica do grande encontro das
diferentes culturas da Antiguidade: grega, persa, judaica,
egípcia, romana e outras mais. Adotadas por adoradores de
diferentes divindades, tinham como principal característica
o acesso somente aos iniciados, com ritos secretos e
estranhos não podiam comparecer. Além disso, algumas
vertentes criam na transmigração das almas (reencarnação),
dado o caráter altamente platônico de seus ensinamentos.
Exemplos de cultos mistéricos são o orfismo, o pitagorismo,
o culto a Ísis e a Mitra, este com certa expressão no império.
Marcados por não ter cultos públicos nem sacerdotes,
apenas mestres iniciados, parece que os cristãos como
Paulo sentiam-se ameaçados por esta expressão, em
especial em sua versão cristã, o gnosticismo.

2.5. As cartas da maturidade


2Coríntios
2Coríntios é o resultado de uma reunião de pequenas cartas, com di-
versos assuntos, por isso não é de admirar que tenha variação no teor
teológico (diferente de 1Coríntios). Mesmo assim, considera-se que em
2Coríntios vários temas estão mais amadurecidos e desenvolvidos em re-
lação à teologia paulina. Se 1Coríntios aponta para as bases dos diversos
temas que comporão as cartas posteriores, 2Coríntios aponta para a teo-
diceia cristã, especialmente a perseguição.
Há duas longas listas de sofrimento vividas pelo apóstolo (6.4-10 e
11.23-29), e a base teológica de Paulo para o sofrimento cristão está em

97
FATIPI EAD Guia de Estudos

1.3-11: o sofrimento aprofunda a relação com Deus (1.3,4); leva a confiar


nele (1.9); permite a identificação com Cristo (1.5); no sofrimento, o con-
solo divino nos habilita a consolar outros (1.5); o sofrimento não é eterno,
mas passageiro (1.6,7).
Em sua argumentação sobre o sofrer com Cristo, em 12.1-10, Paulo
faz uso de uma experiência extática de visão e revelações [apokalipseis]
num contexto de polêmica (cap. 10-13) para demonstrar a autoridade de
seu ministério. Apoiado na tradição apocalíptica, ele fala de uma viagem
ao terceiro céu, ao qual denomina paraíso, onde contemplou a Deus e ou-
viu palavras inefáveis [arreta rêmata]. Desse modo, ele estaria qualificado
para ensinar a comunidade.
Paulo conta sua experiência de quase morte (1.8,9) e isso o faz refle-
tir sobre a ressurreição. Aqui, Paulo usa imagens que reforçam o senso
platônico do tema: a morte significa a destruição da tenda terrena (5.1);
neste trecho, o corpo é apresentado como moradia terrena, que cederá
espaço à moradia celeste (5.6-9). Paulo usa uma expressão idiomática
com sabor platônico, que significa “estar vivo ou morto” (em casa ou fora
de casa). Como em Filipenses, vemos o apóstolo mostrar uma perspectiva
mais ampla da vida, sem apego ao mundo presente.
Acredita-se que a expressão “antiga aliança” tenha sido criada por
Paulo a partir da ideia de “nova aliança” em Jr 31.31, bem como da nova
aliança na tradição eucarística em Cristo (1Co 11.25). Em 3.7-11, ele faz
comparação entre as duas alianças. Em seguida, em 3.12-18, Paulo faz
uma midrash (ensinamento no estilo rabínico) sobre Moisés e a tenda do
encontro de Êx 34.29-35.
Em 5.11-21, Paulo aponta para o profundo sentido teológico da evan-
gelização: ela acontece por causa do novo relacionamento com Cristo e
não para alcançar esse relacionamento. Por isso, o conteúdo da evange-
lização só poder ser o tema da reconciliação com Deus, para que todos
possam desfrutar dessa nova relação.
Os cap. 8 e 9 reúnem o tema da coleta para Jerusalém e levanta a

98
BÍBLIA Introdução ao NT

importância da mordomia cristã, o bom uso dos bens terrenos. Paulo fun-
damenta sua ideia na visão de Cristo, que se fez pobre na encarnação e,
segundo se sabe, na condição de vida na Terra. A mordomia verdadeira é
caracterizada como voluntária e generosa (8.2; 9.5,7).
O final da carta (13.11-14) é genérico, sem citação de nomes, com
uma saudação vaga, apelando para o ósculo (beijo) entre os irmãos da co-
munidade. Paulo fecha com uma bênção final, cuja fórmula passou a ser
utilizada como “bênção apostólica”, e se refere à concepção de Trindade
que o cristianismo definiu em seus dogmas.

Romanos
A carta aos Romanos é considerada pela Igreja Cristã como um dos
livros mais importantes do Novo Testamento. Lutero a tratava como o
Evangelho em seu estado mais puro. Para outros, ela pode ser conside-
rada um compêndio de teologia cristã. Entretanto, ao estudar a carta na
perspectiva da teologia bíblica, percebe-se que há mais complexidade do
que aparenta ter.
A igreja em Roma não foi fundada por Paulo e ele não a conhecida
pessoalmente. Há diferentes explicações para o fato de Paulo ter escrito
Romanos: a) ele aproveita para resumir sua própria teologia. Seria como
um testamento teológico; b) sabendo que havia uma discórdia na igreja
entre judeus e gentios, desenvolve uma teologia da concórdia; c) ele apro-
veita que está para ir à Judeia levar dinheiro de coleta para esboçar o dis-
curso que deseja fazer; d) pensando na evangelização da Espanha, envia
a carta como forma de ganhar simpatia e angariar fundos para a viagem.
Considerando o que ele mesmo registra na carta sobre a intenção de
ir à Espanha (15.24;28), pode-se pensar que a igreja em Roma seria um
bom momento para descanso da parte do apóstolo. Por isso, a última mo-
tivação é que teria mais peso.
Sabe-se que, depois, Paulo se tornou prisioneiro em Roma, sendo ne-
cessário contextualizar essa declaração num momento anterior à viagem

99
FATIPI EAD Guia de Estudos

de retorno a Jerusalém e subsequente prisão, posto que a partir daí o


apóstolo não teria como estabelecer planos maiores de viagem. Por outro
lado, Romanos omite por completo qualquer situação de prisão, ao con-
trário das cartas da prisão já estudadas, o que mostra que ele devia estar
solto e sem perspectiva de ser preso. Por isso, acredita-se que foi escrita
no tempo final do apóstolo em Éfeso ou início da viagem de retorno, ainda
na Ásia Menor, por volta de 56.
Nesta carta, Paulo não insere o nome de nenhum colaborador como
corremetente, ou seja, é autor único do conteúdo. A carta foi escrita por
Tércio, que agiu como amanuense (16.22). Isso mostra que Paulo preten-
de mostrar seu pensamento sobre assuntos que considera essenciais. A
escolha sobre o tema da Lei e da Graça pode estar relacionada a alguns
fatores: primeiro, a comunidade de Roma devia ser, a exemplo de outras,
composta por gentios e judeus. Logo, questões sobre a forma de relacio-
nar a Lei de Moisés com a fé em Jesus Cristo deviam ser evidentes. Além
disso, considerando a semelhança de Romanos com Gálatas, há quem
afirme que Paulo queria esclarecer sua posição a respeito do assunto,
posto que ele pode ter sido considerado anomista (defender a vida sem
lei). Assim, ele reforça o aspecto positivo da Lei, mesmo que ela não seja
capaz de auxiliar na salvação da pessoa.
Paulo começa a carta falando da situação humana. Ele trata da univer-
salidade do pecado e da condição decaída da humanidade, tendo como
ponto de partida a existência do ser humano na carne (sarx): em si a sarx
é neutra (cf. Rm 1.3; cf. Gl 1.16); é a vivência do ser humano na sarx,
quando está em oposição a Deus, que leva ao pecado (Rm 7.5; 8.6,13).
Em contraste, o apóstolo incentiva a uma entrega do corpo para a vivência
no espírito, ainda que na sarx (Rm 8.13). O pecado é universal a partir
de Adão por dois motivos: pelo pecado dele a morte veio ao mundo; por-
que todos pecam como ele pecou (Rm 5.12). A universalidade é posta
de forma bem clara: “pois todos pecaram e estão privados da glória de
Deus” (3.22). Todos pecam, a exemplo de Adão (concepção judaica), por

100
BÍBLIA Introdução ao NT

isso todos estão condenados. A exemplificação concreta do pecado na


sociedade romana é uma forma de Paulo demonstrar na prática como isso
acontece entre os pagãos (1.18-32) e os judeus (2.1-9).
Daí o apóstolo passa a tratar da Lei, fazendo avaliação de seu papel
na vida humana, como algo bom que mostra o mal, mas é ineficaz para
mudar o ser humano. A Lei exige cumprimento, logo, ela evidencia nossa
falta, porque não a conseguimos cumprir (Rm 3.9,12,20). Interiormente, no
entanto, o ser humano considera a Lei boa (Rm 7.22), mas ela é incapaz
de transformar alguém (Rm 8.3). Para Paulo, os que se vangloriam nela e
não a cumprem são os piores (Rm 2.23).
A solução para o pecado e a Lei é Cristo, através de quem unicamente
é possível alcançar a salvação. A afirmação de Paulo sobre salvação está
em contraste com o pecado:

Mas, agora, sem lei, a justiça de Deus se manifestou, sendo


testemunhada pela Lei e pelos Profetas. É a justiça de Deus
mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os
que creem. Porque não há distinção, pois todos pecaram e ca-
recem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por
sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus [...]
(3.21-24).

Paulo indica o instrumento pelo qual tomamos conhecimento da sal-


vação: o evangelho (Rm 1.16; 10.9). A salvação acontece agora, mas
se concretizará no futuro (Rm 13.11s). Agora, alimentamos a esperança
da salvação (Rm 8.23s), pois a participação nela está fundamentada na
morte e na ressurreição de Jesus (Rm 5.9s). Neste raciocínio, o apóstolo
projeta uma dimensão apocalíptica da salvação: a libertação dos poderes
da morte (Rm 6.16; 8.21; comparar com 1Co 8.5; 10.20; Gl 4.9).
A salvação também representa a libertação da Lei (Rm 6.14; 7.24ss;
10.4; cf. Gl 3.13), bem como libertação da culpa (Rm 6.14,22; Rm 8.2,34).
Essa verdade já tinha sido exposta, de forma resumida, em Cl 2.13s. Este

101
FATIPI EAD Guia de Estudos

é o cerne da mensagem paulina:

O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aque-


le que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a
justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está
escrito: o justo viverá por fé (Rm 1.16s).

Na argumentação sobre a superação do pecado e a busca da salva-


ção, Paulo trata da “justiça de Deus” e a “justificação” que, mesmo não
sendo o tema central da carta, apesar da ênfase que se dá a ele, é muito
importante para compreender a soteriologia paulina. Paulo mostra argu-
mentos jurídicos bem como legais (sacerdotais) para explicar a obra de
Cristo pelo ser humano. A justificação é entendida por Paulo como o meio
pelo qual Deus processa a salvação que alcançamos em Cristo. Rm 3.21-
30 é a expressão mais importante desta consciência paulina: “Mas agora,
sem lei, se manifestou a justiça de Deus [...]. Justiça mediante a fé em Je-
sus Cristo, para todos os que creem”. O que é a justiça de Deus? Kümmel
explica assim: “A locução ‘justiça de Deus’ é utilizada no judaísmo apoca-
líptico [...] para designar a fidelidade de Deus, que preserva benignamente
a sua aliança” (Kümmel, 2003, p. 246). Logo, não se trata da natureza de
Deus, mas do seu agir, no caso, pela humanidade. Bultmann (2004, p.
340) identifica também um equívoco na interpretação da expressão:

Porque a dikaiosyne não é entendida em seu sentido


escatológico-forense, e sim é mal-entendida como perfeição
ética. Se Deus justifica o pecador, “torna-o justo” (Rm 4.5), o
ser humano não é apenas “considerado como” se fosse justo, e
sim ele é realmente justo, isto é, inocentado de seu pecado por
meio da sentença de Deus.

Ou seja, Paulo crê e afirma que todos os que creem são justos por causa
do mérito de Cristo, e que a Lei serve para mostrar o quanto necessita-
mos dele para a salvação. Essa exposição de Paulo continua sendo alvo de

102
BÍBLIA Introdução ao NT

análises e interpretações, pois, na prática, Paulo nunca propôs o abandono


efetivo da Lei. Pelo contrário, quando lemos os capítulos 13 a 15, vemos
a tradicional parte parenética do apóstolo, com diversas orientações, tanto
sobre a conduta dos crentes no mundo imperial de Roma (13.1-7), quanto
no núcleo mais fundamental da vida cristã, que é o amor (13.8-10), a partir
do qual tudo o mais se concretiza: a esperança escatológica (13.11-14); a
tolerância para com o fraco e a liberdade cristã autêntica (cap. 14); e a vida
de testemunho coletivo da igreja, tendo Cristo como exemplo (15.1-13).
Para Paulo, é a ética da atualidade na ação do Espírito. A consequên-
cia da realidade da salvação por meio da justificação pela fé em Cristo
é a vida nova, que se vive para glorificar a Deus (Rm 6.13). Esta vida
se realiza na direção do Espírito Santo na existência dos crentes (Rm
8.1-17). O Espírito, por isso mesmo, nos ajuda em nossa fraqueza (verbo
synantilanbanomai) (Rm 8.26). Mas que não haja dúvidas: a ética não nos
aprimora, pois ela é reflexo da nova vida (Rm 12.1s). Segundo Raniero
Cantalamessa (1998, p.10), o mais importante é a “ordem em que são
ditas” as coisas que Paulo escreve:

O Apóstolo não trata antes dos “deveres” cristãos (caridade,


humildade, obediência, serviço etc.) e depois da “graça”, como
se esta fosse uma consequência daqueles, mas, pelo contrário,
trata primeiro da graça (a justificação mediante a fé) e, depois,
dos deveres que dela derivam e por ela se tornam possíveis.

Em meio a toda essa questão, Paulo insere na epístola sua visão so-
bre a história da salvação. Vista na perspectiva da apocalíptica judaica, ele
compreende que há duas eras, sendo que a segunda era acontece a partir
de Cristo. Rm 5.12,18-19 fala da era anterior, que começou com Adão e
se encerra em Cristo. Nele se inicia a era da salvação e os que vivem pela
fé já estão nela (Rm 14.17). Com isso, Paulo anuncia o reino de Deus
agora. No tempo presente já estamos livres da condenação, pois vivemos
a plenitude dos tempos (Rm 3.21; 5.11; 8.1).

103
FATIPI EAD Guia de Estudos

Ele aponta para uma escatologia apocalíptica. Isso quer dizer: apoca-
lipticamente, o tempo (aion) presente pode ser visto como um tempo de
ameaça, em contraste com a era vindoura de plena salvação (Rm 12.2).
Em epístolas anteriores, Paulo tratou disso como sendo a luta com as
forças espirituais (1Co 2.6,8; Gl 4.3,9; 2Co 4.4). Escatologicamente, Paulo
aguarda um juízo futuro, que também é a manifestação plena da salvação.
É o reino de Deus que ainda virá (Rm 2.5; 13.11-12). Assim, a teologia
aprendeu com Paulo a ideia do já e o ainda não, que percorre vários de-
bates em torno da soteriologia e da escatologia.
Mas Romanos também tem importante tema, que apresenta o papel
de Israel na história da salvação. Para Paulo, Israel foi o instrumento para
que a humanidade conhecesse a Cristo. Abraão, pai de Israel, é o exem-
plo do crente que vive pela fé (cap. 4). A lei e os profetas anunciaram a
vinda de Cristo (Rm 3.21; 1.2). A partir de Moisés, Israel traz uma nota
negativa: a Lei. A recusa parcial de Israel a Cristo serviu para que os gen-
tios possam entrar na promessa (9). Por isso, a situação de Israel não é
definitiva; Deus fará que o povo seja restaurado (Cap.11). Temos aqui um
depoimento do Paulo judeu.
Assim, Romanos é a carta da graça por excelência, do amor revelado
de Deus, para uma nova humanidade remida por Cristo. Longe de ser um
teólogo sistemático que utiliza argumentos filosóficos, Paulo usa de retó-
rica, argumentação escriturística e muitas afirmações da fé para sustentar
seu raciocínio que, em síntese, faz o seguinte caminho:

Pecado/morte Lei/pecado Cristo justificação


salvação vida nova esperança escatológica da salvação

Na parte final da carta, Paulo expõe seu desejo de conhecer a comu-


nidade, apresentando suas credenciais de apóstolo (15.14-29), e pede
oração à comunidade (15.30-33). No capítulo 16, ele faz uma série de
saudações (16.1-24), as quais a crítica tem entendido que não faziam par-

104
BÍBLIA Introdução ao NT

te da carta original, tendo em vista que Paulo não conhecia ninguém, com
exceção de Priscila e Áquila. Não é à toa que 16.20 é uma bênção e o v.21
faz novas saudações, ou seja, 16.1-20 foi inserido posteriormente. Pode
ter sido um bilhete de Paulo enviado, quem sabe, da Espanha.
Chama a atenção neste trecho o grande número de mulheres menciona-
das, algumas como Febe, recomendada como diaconisa (16.1-2), outras como
lideranças ativas (16.6,12) e até mesmo uma apóstola, de nome Júnia (16.7).
Além disso, ele mostra que havia vários núcleos eclesiais em Roma, igrejas
funcionando ativamente, provavelmente em quadrantes diferentes da cidade,
tendo em vista a limitação de número de pessoas em se reunir num único lugar.
No encerramento da carta (16.21-27) tem a saudação de Timóteo e
outros cooperadores, além de Tércio, o amanuense, Gaio e outros da igre-
ja dele. Ao final, Paulo elabora uma doxologia (16.25-27), a segunda na
carta (a primeira está em 11.33-36), reforçando o caráter teológico dela.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Estudar as cartas de Paulo não é tarefa fácil, assim mesmo consegui-


mos comprimir as principais ideias de cada uma, deixando para Romanos
um maior espaço, dada sua importância no cânon (que comentaremos no
último Módulo). Depois de tudo que vimos, não tem como menosprezar a
grande influência e o valor de Paulo para o cristianismo nascente. Ele não
andou com Jesus, não tinha um relacionamento muito profundo com os
apóstolos originais, mas foi, sem dúvida, um apaixonado pela causa do
evangelho, no melhor sentido do termo. Entretanto, como já deu para per-
ceber, Paulo foi além de seu tempo e de seus escritos, já naquela época.
Como veremos no próximo Módulo, ele abriu uma grande trilha pela qual
os demais apóstolos e comunidades seguiram, a de escrever epístolas e
cartas para difundir ideias e crenças. Com isso surgiram as escolas apos-
tólicas, que serão o nosso tema no próximo Módulo.
Continue conosco e até a próxima aula.

105
Módulo 4

AS ESCOLAS APOSTÓLICAS
BÍBLIA Introdução ao NT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Nas últimas décadas do século I, a maioria dos apóstolos havia mor-


rido, inclusive Paulo, mas a igreja como um todo ainda não era uma ins-
tituição sólida e bem estruturada. Havia lacunas, muitas coisas eram re-
solvidas no nível local, sem uma direção maior. Além disso, os judeus
começaram a se distanciar cada vez mais dos cristãos após o ano 70, ini-
ciando um processo que culminou com a expulsão efetiva dos seguidores
de Jesus das sinagogas e a separação entre os dois grupos. Ao mesmo
tempo, denúncias e má vontade por parte de alguns governantes levavam
os cristãos à prisão e até à morte (Cf. Ap 2.13).
É bem possível que existisse um cenário de desânimo e desistência,
o que teria levado as lideranças a elaborar documentos para reforçar a fé
das comunidades. Agora a questão não era mais os problemas específi-
cos desta ou daquela igreja, mas uma visão global, que procurava atender
o máximo de pessoas possível. Dentro do contexto da tradição judaica,
tornou-se quase natural que os cristãos adotassem o sistema judaico da
pseudonimia. Este é o nome que explica o fenômeno de textos que surgi-
ram em determinada época e são atribuídos a pessoas importantes que já
haviam morrido até mesmo há muito tempo.
Esse tipo de produção textual era combatido no mundo greco-romano.
pois considerava-se que ia contra o pensamento original do autor atribuí-
do. Ainda não havia discussão sobre “direitos autorais”. Entretanto, com o
advento da literatura apocalíptica no mundo judaico (século II a.C.), esse
fenômeno se tornou não só frequente como tolerado. Um dos motivos é
a autoridade do escrito atribuído a essas pessoas. Os primeiros livros
apocalípticos foram imputados a Daniel e Enoque. Nem por isso foram
rechaçados. Os judeus podem ter feito um acordo tácito de não questionar
a autenticidade dos textos.
Neste módulo veremos como esse processo ocorreu entre os cristãos.
Esperamos que ao fim dele, você seja capaz de: a) discernir o fenômeno

107
FATIPI EAD Guia de Estudos

da pseudonimia como processo de ampliação da tradição, não falsificação;


b) estabelecer a diferença entre textos paulinos autênticos e pseudoními-
cos; c) analisar os escritos associados aos apóstolos como tendências de
diferentes vertentes da igreja inicial.
Esperamos que seja uma aula bastante edificante e esclarecedora.
Grande abraço.

1. A ESCOLA PAULINA

A tradição cristã acolheu como cartas paulinas treze escritos que,


dentro do cânon atual, vão de Romanos a Hebreus. Destes treze, sete
são indiscutivelmente paulinas: Romanos, 1 e 2Coríntios, Gálatas,
Filipenses, 1Tessalonicenses e Filemon. As demais foram amplamente
discutidas, sendo que Hebreus desde muito cedo teve a autoria paulina
questionada. As outras têm sido apontadas como não paulinas, sendo
que Colossenses é a única que recentemente foi recolocada como au-
têntica por alguns autores.
Em nosso curso assumimos, então, que Efésios, 2Tessalonicenses, 1
e 2Timóteo, Tito e Hebreus não são de autoria do apóstolo. Independente
dos motivos para chegar a essa conclusão, fato é que os discípulos de
Paulo elaboraram escritos na lógica da tradição apocalíptica, utilizando
Paulo como referência dos documentos. Antes, porém, vamos rever como
a coisa se deu.
Quando Paulo começou a escrever às igrejas, logo suas cartas se torna-
ram famosas, circulando cópias em diversas regiões. Até os anos 60, ape-
nas Paulo tinha elaborado textos completos. Se havia outros textos escritos,
seriam fragmentos ou materiais anônimos, outra característica dos escritos
cristãos do primeiro século. Com a morte de Paulo, as comunidades que ele
tinha criado ficaram sob a supervisão de seus discípulos, como Timóteo,
Tito, Silvano, Tíquico, Epafrodito e outros, que continuaram a se comunicar
com as igrejas. Daí surgirem esses materiais, emulando o processo judaico.

108
BÍBLIA Introdução ao NT

Eduard Lohse (1985, p. 46) comenta o seguinte a respeito:

Remetendo-se ao apóstolo, o autor tentava realizar o confronto


com a heresia e firmar a ordem das comunidades. Desse modo
a palavra do apóstolo, entendida como compromissiva, devia
ser anunciada para a situação modificada em que as comuni-
dades da segunda e terceira geração se encontravam. [...] de-
ve-se medir as deuteropaulinas e outros escritos pseudônimos
no NT pelo critério de conteúdo, a saber, se eles conseguiram
preservar e simultaneamente dar nova expressão ao querigma
da cristandade primitiva.

É a esse processo de elaboração de textos posteriores à morte


de Paulo que chamamos de escola paulina. De certo modo, uma ho-
menagem ao apóstolo, reforçando seu caráter de orientador das co-
munidades. Não foi, porém, uma tendência uniforme, pois se percebe
mudanças temáticas e de abordagem, de acordo com novas situações.
No fim, parece que eles querem responder ao seguinte dilema: “O
que Paulo diria sobre este tema?”. Podemos destacar três vertentes,
atestadas no Novo Testamento: a) cartas endereçadas a comunidades
(denominadas deuteropaulinas), muito similares a algumas que Paulo
tinha escrito. No caso: 2Tessalonicenses e Efésios; b) cartas voltadas
para lideranças próximas a Paulo (denominadas cartas pastorais): 1 e
2Timóteo e Tito; c) um ensaio teológico sobre a Cristologia e a Nova
Aliança: Hebreus.
Se compararmos esses três conjuntos, veremos diferenças marcantes
de estilo, linguagem e objetivo teológico. Por isso devem ser compreen-
didas de forma separada. O que isso indica? Indica que os discípulos de
Paulo, ou pessoas que dialogaram com o estilo paulino, nem sempre pen-
savam da mesma forma, por isso escreveram de maneira diferente, além
de focar em questões diferentes. Veremos agora os principais aspectos
deste material.

109
FATIPI EAD Guia de Estudos

conceito

Cartas autênticas e deuteropaulinas. A tradição


recebeu as epístolas de Paulo com facilidade. Treze, que
têm o nome do apóstolo como autor, foram canonizadas. A
Epístola aos Hebreus foi considerada paulina pela igreja na
Alexandria, e a partir do séc. IV, no Ocidente. Mas, depois
do advento da crítica literária, pesam sérias dúvidas sobre
a autoria paulina da carta. No início do século XIX, com o
estudo da crítica literária aplicada aos escritos paulinos, a
autoria paulina sobre algumas epístolas também foi posta
em dúvida. Alguns só consideravam autênticas as “grandes
cartas” (Gálatas, Romanos, 1 e 2Coríntios), porque só elas
atestam a controvérsia de Paulo com os judaizantes. Uma
análise posterior, porém, considerou que essa posição
colocou o cristianismo primitivo numa concepção muito
estreita. A crítica radical, então, decidiu por considerar
todas as cartas paulinas como construção da igreja,
por achar que demonstram posições cristalizadas da
comunidade do segundo século. Atualmente uma posição
moderada considera que é possível afirmar a autenticidade
de Gálatas, 1Tessalonicenses, Romanos, 1 e 2Coríntios,
Filipenses e Filemon. Discutível é a autenticidade de
2Tessalonicenses, Colossenses e Efésios. Quanto às
cartas pastorais, a crítica dá como certa que não foram
escritas por Paulo. Além disso, há forte debate sobre a
integridade das cartas, ou seja, se foram escritas de uma
vez só ou se são junções de pequenas cartas em uma.

110
BÍBLIA Introdução ao NT

1.1. As cartas deuteropaulinas

2Tessalonicenses
Há grande discussão em torno da autenticidade de 2Tessalonicenses,
por conta de sua clara dependência de 1Tessalonicenses. Paulo imprimia
conteúdo diferenciado nas cartas (como é possível ver nas duas cartas
autênticas aos Coríntios). Um aspecto importante a ser considerado é
que um terço de 1 Tessalonicenses está em 2 Tessalonicenses, como no
exemplo de 2 Tessalonicenses 3.5, comparado a 1 Tessalonicenses 3.11.

1Ts 3.11 2Ts 3.5


Αὐτὸς δὲ ὁ θεὸς καὶ πατὴρ Ὁ δὲ κύριος κατευθύναι
ἡμῶν καὶ ὁ κύριος ἡμῶν ὑμῶν τὰς καρδίας εἰς τὴν
Ἰησοῦς κατευθύναι τὴν ὁδὸν ἀγάπην τοῦ θεοῦ καὶ εἰς τὴν
ἡμῶν πρὸς ὑμᾶς· ὑπομονὴν τοῦ Χριστοῦ.
Ora, o nosso mesmo Deus e Pai, Ora, o Senhor conduza o vosso
e Jesus, nosso Senhor, dirijam- coração ao amor de Deus e à
-nos o caminho até vós, constância de Cristo.

Esta coincidência de terminologias, que não costuma ocorrer nas pri-


meiras cartas de Paulo, aponta para o uso da primeira carta como modelo
para a segunda. Boa parte dos estudiosos, por isso mesmo, entende ser
uma carta da escola paulina, que foi escrita com o único objetivo de corrigir
um equívoco doutrinário sobre escatologia, em função de 1 Tessalonicen-
ses, sobre a demora da parusia.
Na primeira carta, Paulo deixa transparecer um aspecto de urgência
em relação à manifestação de Cristo, que deve ter deixado as pessoas da
comunidade totalmente mobilizadas. Porém, os anos passaram e nada
grandioso ocorreu, gerando frustração e confusão. Assim, 2 Tessaloni-
censes tenta resolver esse problema. Primeiro, ele escreve que nunca

111
FATIPI EAD Guia de Estudos

afirmou que Jesus estava ou já tinha vindo (2.1-2). Depois, apresenta um


argumento de mistério: “isto não acontecerá sem que primeiro venha a
apostasia e seja revelado o homem da iniquidade, o filho da perdição”
(2.3). Ninguém, até hoje, conseguiu definir exatamente a que este trecho
se refere. De um modo geral, parece um reflexo do que a epístola de João
vai chamar depois de anticristo ou o que no Apocalipse aparece como
a Besta. Ou seja, mostra que, antes da vinda de Cristo, terríveis males
serão executados por um governante impiedoso e cruel, reflexo de situa-
ções anteriores, como as mortes de Paulo e Pedro sob o mando de Nero,
provavelmente. Fica então no ar uma expectativa que é projetada para o
futuro, evitando assim o desânimo da comunidade.
Tendo em vista o fato de ser da escola paulina e a polêmica sobre
escatologia ter chegado ao ponto de necessitar de correção escrita – e
como a parusia não tinha acontecido ainda –, podemos pensar nas últimas
décadas do século I, já que no século II 2Tessalonicenses já constava das
citações como obra paulina incontestável.
Kümmel, no entanto, enxerga razões para que a epístola seja autênti-
ca e aponta para a linguagem paulina como evidência, o que na verdade
não resolve o problema, como veremos na questão da datação da carta.
Por isso, aponta o ano 50/51 como provável época de redação. Vemos aí
dois problemas: se 1Tessalonicenses foi escrita em 49, teria passado mui-
to pouco tempo para Paulo sentir a necessidade de correção doutrinária.
O outro aspecto, mais relevante, é que na linguagem que Kümmel indica
como prova da autenticidade está o uso do termo epiphaneia (2Ts 2.8),
que só acontece nas pastorais (ex. 1Tm 6.14; 2Tm 4.1,8; Tt 2.13), textos
cuja autenticidade há muito tem sido questionada. Neste caso prevalece
a maior parte dos pesquisadores, que afirmam 2Tessalonicenses como
produção da escola paulina, escrita décadas depois da morte de Paulo.

Efésios
Efésios tem a forma de uma epístola suplementar e o autor parece

112
BÍBLIA Introdução ao NT

conhecer ou até depender da carta aos Colossenses. A expressão “aos


Efésios” não aparece nos manuscritos mais antigos. Alguns até conside-
raram que pudesse se tratar da carta aos laodicenses, citada em Cl 4.16.
Mas também não há como confirmar. A tradição considerou ser endere-
çada a Éfeso.
Cerca de um terço de Efésios está em Colossenses, caso nunca ocorri-
do com as cartas paulinas autênticas. Ao mesmo tempo, no entanto, a car-
ta tem diferenças substanciais. A cristologia de Efésios é exclusivamente
ligada à igreja, enquanto em Colossenses é universal. O estilo faz lembrar
mais um tratado do que uma carta ou epístola. Faltam-lhe questões pes-
soais de Paulo, o que reforça tratar-se de texto escrito por um discípulo.
Sobre a datação, a dependência de Colossenses, além dos temas que
aparecem igualmente em escritos do fim do século I, mostra que Efésios
deve ser datada entre 80-100 d.C. Apesar disso, a tradição associou-a a
Paulo, o que acabou se tornando um problema, porque da forma como a
epístola foi elaborada deu à teologia paulina um sabor gnóstico, por causa
de seu universalismo.
Éfeso é importante cidade no cenário paulino. Segundo Atos dos Após-
tolos, Paulo chegou a Éfeso no caminho de volta em sua segunda viagem
missionária (At 18.19-21), por volta de 52. Retornou à cidade em seguida,
após a passagem de Apolo, e discipulou a comunidade, que recebeu o
batismo em nome do Senhor Jesus e também o Espírito Santo (At 19.1-7).
Depois de uma tentativa fracassada de ensinar na sinagoga, Paulo alu-
gou a escola de Tirano e liderou a igreja por dois anos (At 19.8-10). Pu-
blicamente, o ministério de Paulo foi marcado por confronto com magos e
exorcistas da cidade, com grande sucesso para o evangelho. Também ali
Paulo foi preso e escreveu diversas cartas, dentre elas Filipenses e Filemon.
A carta aos Efésios apresenta uma visão universalista do cristianismo,
que atinge judeus e gentios. A lei, no caso, representa o muro de separa-
ção, por causa das fronteiras étnicas, que é quebrada pelo ato salvífico de
Deus em prol de todos (2.14-15). A unidade da igreja, segundo Efésios, é

113
FATIPI EAD Guia de Estudos

feita de maneira mística, pela condição de amor que envolve a igreja, bem
como pelos ministérios principais que cuidam de sua saúde (4.11-16). Não
há tentativa de interferir na vivência da igreja, nem se analisou nenhum
tema específico, como o batismo, por exemplo.
Por outro lado, há combate ao gnosticismo, com uma moral que
valoriza o corpo, mas é contra atitudes éticas malignas e vícios morais. A
separação entre a ortodoxia e o gnosticismo se dá pela moral (4.17-32). As
obras (2.8-10) indicam que somos o povo alcançado pela graça de Deus
e que pertencemos a ele, justamente para boas obras. O relacionamento
conjugal é espelho do relacionamento espiritual da igreja com Cristo (5.21-
33). Isso quebra uma ideia que estava crescendo, a qual considerava o
matrimônio indesejado, tanto no gnosticismo quanto no encratismo.

curiosidade

O que era o encratismo? Segundo afirmações de Irineu e


depois de Eusébio, os encratistas eram grupos alinhados
aos gnósticos, que proibiam o casamento e aconselhavam
o consumo das carnes. Diversos escritos apócrifos do
segundo século e posteriores retratam Jesus como um
encratista, ordenando até mesmo casais casados a se
absterem das relações sexuais (como em Atos de Tomé).
Foram considerados apócrifos e hereges e suas doutrinas
banidas do cristianismo ortodoxo.

1.2. As cartas pastorais


As cartas pastorais só foram chamadas assim a partir do século XIX.
No entanto, foi uma designação acertada, tendo em vista seu conteúdo.
Em geral, os autores tratam as três em conjunto, justamente por causa da

114
BÍBLIA Introdução ao NT

proximidade temática, estilo de texto e estrutura textual. Segundo Koester


(2005, p. 317): “formam uma unidade em sua linguagem, conceitos teoló-
gicos e intenção, e que foram redigidas pelo mesmo autor, diferem acen-
tuadamente de todas as outras cartas do corpus paulino”. O Paulo dessas
cartas está mais vinculado à tradição do martírio do que propriamente ao
apostólico, refletindo a memória de Paulo dos últimos anos, prisioneiro em
Roma, e morto pelas ordens de Nero.
Apesar de destinadas a leitores individuais, o objetivo delas não é tratar
de questões particulares e sim da liderança como um todo. Koester (2005,
p.317) reforça essa ideia: “são documentos oficiais relacionados com a
estruturação das igrejas, adequadamente introduzidas por apresentações
do remetente como, por exemplo, ‘Paulo, apóstolo de Jesus Cristo
[...]’(1Tm 1.1)”.
Alguns trechos das pastorais, no entanto, parecem refletir o Paulo
histórico. Isto porque citam nomes, situações e problemas concretos que
não fariam sentido se inventados décadas depois. Exemplo: 1Tm 1.18-
20; 2Tm 1.15-18; 3.10-13; 4.9-15,19-22; Tt 3.12-15. Esses trechos têm
sido usados para configurar autenticidade; no entanto, diversos aspectos
apontam para o inverso: o alto grau de institucionalização da igreja (bis-
pos, presbíteros e diáconos), a linguagem e a tendência mais apologética
que apocalíptica.
Como solucionar esta questão? Com a hipótese dos bilhetes autênti-
cos. Os trechos refletem as trocas constantes de comunicação entre Paulo
e os seus discípulos, inclusive mandando saudações e informações sobre
outras pessoas. As elaborações posteriores da reflexão pastoral entre as
lideranças foram reunidas em pequenos tratados que, juntados aos bilhe-
tes, formaram as cartas que conhecemos.
Um dado interessante é que as pastorais não foram incluídas no cânon
de Marcião (como veremos no Módulo 5). Elas também não constam do
manuscrito mais antigo das cartas paulinas, o papiro 46 (cerca de 200).
Irineu e Tertuliano, no entanto, as conheciam como cartas paulinas e o

115
FATIPI EAD Guia de Estudos

cânon Muratoriano também as menciona. Estes fatores podem indicar, por


um lado, datação tardia para esses materiais e, por outro, pouca aceita-
ção no período em que surgiram, por falta de tradição. Considerando tais
aspectos, mais o conteúdo das cartas, a hipótese mais defendida é que
tenham surgido no início do século II (entre 100-120).
No conjunto, estas cartas podem ser descritas como gênero testamen-
to. Nelas há orientações de conduta para o momento em que os discípu-
los estão vivendo. Elas mostram ameaças futuras não especificadas, ao
mesmo tempo em que fazem advertência sobre condutas inadequadas
nos “últimos tempos”, em especial os falsos mestres e suas doutrinas
enganadoras. Pensando no conjunto das cartas, acredita-se que a mais
importante seja 2Timóteo que, inclusive, pode ter figurado como a última
carta das três na ordem original em que foram escritas. Vamos ver agora
alguns aspectos específicos de cada uma.

1Timóteo
1Timóteo é a carta mais longa das pastorais, e estabelece, de certo
modo, a forma como as demais serão escritas. Dos bilhetes autênticos,
temos a menção de que Paulo mandou Timóteo ficar em Éfeso (1.3), o que
é confirmado pela tradição, que afirma o discípulo como bispo da igreja na
cidade. Mas, a localização do próprio Paulo, de onde enviou a carta, não
é informada.
O maior destaque para 1Timóteo está nas orientações para diferentes
tipos de serviço prestado pelas pessoas. Fala-se nas qualificações para bis-
pos e diáconos (3.1-13), bem como a respeito dos presbíteros (5.17-25), e
como devem ser tratados pela igreja. Lendo os dois trechos, dá-se a enten-
der que a escolha de bispos e diáconos ainda era algo em definição. Já os
presbíteros tinham atividade reconhecida, provavelmente porque não eram
eleitos, mas um grupo de pessoas mais experientes na comunidade.
Por isso mesmo, outro grupo que não costuma ser indicado como lide-
rança, mas que tem destaque nesse texto, é o das viúvas. Mulheres mais

116
BÍBLIA Introdução ao NT

velhas, que já não tinham que lidar com os afazeres domésticos, passa-
vam a ter papel de liderança na comunidade. Deviam ter mais de sessenta
anos e sido esposa de um marido só (5.9). Numa leitura superficial, o texto
dá a entender que elas deviam ser cuidadas pela igreja, mas se lermos
com atenção, o que o texto está mostrando é que estas mulheres passa-
riam a ser sustentadas pela igreja mediante o serviço que prestavam aos
santos. São as “verdadeiramente viúvas”, expressão usada em 5.3 e 5.16.
O trecho de 2.8-15 é considerado o mais patriarcal e fechado dos tex-
tos paulinos, podendo inclusive ter influenciado a inserção do trecho de
1Co 14.33b-35. Nos dois textos fala-se da proibição de a mulher ensinar
na igreja. Utilizando argumentos judaicos, como comparar as mulheres a
Eva (2.13-14) ou criticando a conduta das mulheres romanas da elite, de
se adornar com “cabeleira frisada, ouro ou pérolas, ou vestuário dispen-
dioso” (2.9), o texto conclui que à mulher cabe o papel de ser mãe, ou
seja, gerar filhos. Considerando a trajetória de Paulo, tanto em Atos dos
Apóstolos como nas cartas, a menção a mulheres de forma entusiástica e
o trecho de 1Co 11.2-16, em que trata de mulheres que profetizam em Co-
rinto, este trecho só se explica exatamente por não ser de Paulo, indican-
do uma tendência conservadora da escola paulina, apontando inclinação
para a liderança masculina que vai ser reforçada nos séculos seguintes.
Como em Colossenses e Efésios, aparece aqui orientações sobre as
relações entre senhores e escravos (6.1-2), reforçando a ideia de que
Paulo e seus discípulos se preocupavam em mostrar como a igreja repre-
sentava uma nova comunidade no seio do império.
A famosa frase de Paulo “combati o bom combate” aparece em 6.12,
como parte de um trecho maior que se assemelha ao testamento (no
estilo judaico) do apóstolo ao discípulo Timóteo (6.3-16), e que pode ter
sido adotado como uma espécie de texto litúrgico para a consagração da
liderança. Na primeira parte, ele faz advertências sobre o ensino de fal-
sos mestres, com ênfase no fato de que provocam contendas e buscam
enriquecimento (6.3-10), mas sem indicar claramente o que ensinavam,

117
FATIPI EAD Guia de Estudos

até porque algumas doutrinas falsas já tinham sido destacadas em 4.1-


5. Na segunda parte, fala de qualidades e crenças que o “homem de
Deus” deve ter (6.11-14) e encerra com uma doxologia de glorificação a
Cristo (6.15-16).

2Timóteo
A segunda carta a Timóteo se inicia com uma nota pessoal de sua
biografia: são citadas avó e mãe (1.5), indicando um tom mais individual
e que reforça a ideia de testamento. Outro indício forte desse gênero é o
início de 2.1: “Tu, pois, filho meu [...]”. Esta fórmula é muito comum nos
materiais judaicos relacionados ao gênero testamento. Dos bilhetes au-
tênticos, temos menções de Paulo como prisioneiro, que podem ter sido
enviados de Roma, pouco antes de sua execução. Por isso, Paulo pede
que Timóteo leve diversos itens pessoais para ele (2Tm 4.13), além de
recomendar saudações a outras pessoas.
O conteúdo é marcado por uma série de recomendações a Timóteo
e aos liderados, utilizando vários verbos no imperativo, num sentido de
compromisso de conduta obrigatória da parte da liderança.
Em relação às falsas doutrinas, o texto de 2Tm 2.14-18 mostra si-
tuações mais concretas, inclusive cita os nomes de Himeneu e Fileto, já
mencionados em 1Tm 1.20, em que são acusados de afirmar que a res-
surreição já tinha ocorrido. Essa crença tinha raízes no helenismo, que
separava o corpo do espírito, por isso alguns consideravam que a ressur-
reição era apenas espiritual.
Dos textos mais comentados de 2Timóteo temos 2.1, que mostra a
dinâmica de formação de lideranças naquele momento: “E o que de mi-
nha parte ouviste através de muitas testemunhas, isso mesmo transmite
a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros”. O texto fala da
cadeia de transmissão das doutrinas, que formou a tradição apostólica.
Outro texto muito lembrado desta epístola é 2.15, que recomenda uma
postura pessoal de aprovação diante de Deus e do discernimento da “pa-

118
BÍBLIA Introdução ao NT

lavra da verdade”.
A ideia de “manejar a palavra da verdade” em 2Tm dialoga com a
posição cristã e judaica da virada do século I de que os textos utilizados
das Escrituras Hebraicas (Antigo Testamento) são inspirados por Deus.
Em 2Tm 3.16 ele afirma: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para
o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça
[...]”. Aparentemente, esse critério foi adotado pela igreja nascente para
diferenciar os textos que deveriam ser regra e os que não poderiam ser
considerados assim. É a gênese de um processo de canonização, como
veremos no Módulo 5.

conceito

“Toda a Escritura é inspirada por Deus.” No grego, a locução


“inspirada por Deus” vem de “theopneustos”, que literalmente
significa “soprada por Deus”. Até hoje se debate de que
forma a inspiração divina se deu entre os autores da Bíblia.
Os judeus ortodoxos defendiam que é inspiração mecânica
e verbal, ou seja, as palavras foram ditadas diretamente por
Deus. A tendência oposta afirma que a Bíblia é resultado
do desejo pessoal de homens e mulheres de testemunhar
os feitos de Deus por Israel (Antigo Testamento) e pela
humanidade, em Jesus (Novo Testamento), sem nenhuma
interferência divina. Uma posição intermediária entende
que Deus colocou o impulso de motivação e do conteúdo
na mente de pessoas separadas para isso, mas elas
tinham seu próprio estilo, ou seguiam o estilo de outros,
daí o surgimento de gêneros literários diferentes na mesma
Bíblia. Assim, Deus está por trás do processo, mas o ser
humano colabora nele com sua criatividade.

119
FATIPI EAD Guia de Estudos

Tito
É a carta mais curta das pastorais e praticamente repete diversos tó-
picos das duas cartas a Timóteo. Faz menção histórica de que Tito teria
ficado em Creta para trabalhar nas comunidades fundadas por Paulo e
organizá-las segundo as orientações do apóstolo.
Tito tem orientações a respeito de presbíteros e bispos (1.5-9), acusa-
ções aos falsos mestres (1.10-16), recomendações sobre a devida con-
duta de diferentes grupos na igreja (2.1-10), além de um trecho referente
às autoridades (3.1-2) que se assemelha a Rm 13, mas sem o caráter de
crítica velada ao império que o texto de Romanos apresenta.
Na parte final, onde aparece o bilhete de saudação, Paulo afirma sua
intenção de passar o inverno em Nicópolis, cidade a Oeste da Grécia,
logo, parece estar num contexto bem diferente daquele de 2Timóteo por-
que mostra o apóstolo livre.

1.3. Hebreus
Hebreus tem muito mais caráter de um sermão teológico do que de
uma epístola formal. A introdução (1.1-4) foi cuidadosamente elaborada
para mostrar o tema central: a superioridade de Cristo em relação a toda
criação, inclusive aos anjos.
Pela ausência de um proêmio adequado, não sabemos quem eram os
destinatários da carta, por isso ela tem sido considerada uma das epísto-
las universais do Novo Testamento (cartas que não têm endereçamento
definido). Ainda assim, a igreja entendia que os ouvintes deviam ser ju-
deus cristãos.
Diferentemente das cartas de Paulo, Hebreus não separa a parte
doutrinária da exortativa (parênese). Assim, no decorrer do escrito há
diversos apelos para o leitor por meio da parênese. É o único texto do
Novo Testamento em que Jesus é identificado como sumo-sacerdote (cf.
4.14-16; 8.1-3), o que a coloca realmente próxima da lógica judaica de
compreensão da fé e da religião.

120
BÍBLIA Introdução ao NT

Sobre a autoria, somente no ano 350 é que Hebreus foi admitida ofi-
cialmente como sendo de Paulo. Porém, a crítica moderna derrubou os
frágeis argumentos que defendiam essa posição (Lutero colocou Hebreus
à parte em sua tradução). A relação de Hebreus com Paulo foi indicada
a partir de alguns aspectos: a) saudações ao final, citando colaboradores
de Paulo; b) o tema da nova aliança, similar a 2Co; c) a cristologia, que
aponta para a glorificação do ser humano (como em Fp 2); d) o fim da lei
cerimonial, similar à declaração do fim do predomínio da lei em Romanos.
Porém, mesmo com todos estes aspectos, as diferenças de estilo, a
abordagem e a estrutura formal da carta apontam muito mais para outro
autor do que para o próprio Paulo. Nas tentativas de definir esse autor, a
pesquisa indicou as seguintes possibilidades: a) Lucas. Posição defendida
por Clemente (séculos II e III), que entendia que Hebreus foi escrita em
hebraico e Lucas o traduziu. O problema é que Hebreus não é tradução,
além disso, quando comparamos com Atos dos Apóstolos, vemos um esti-
lo bem diferente entre os textos; b) Apolo. Tese aceita por Lutero. Ele tem
o perfil adequado, mas não há como comparar com algum texto dele, pois
Apolo não deixou nada escrito, por isso essa hipótese não tem como ser
confirmada; c) Barnabé. Hipótese defendida por Tertuliano (séculos 2-3),
também pode ser uma boa opção, mas a aparente proximidade dele com
Paulo dificulta essa ideia, já que ele deve ter se afastado do convívio com
os judeus para pregar aos gentios. Curiosamente, o texto apócrifo “Epísto-
la de Barnabé” tem muitas similaridades com Hebreus, mas isso não con-
firma a autoria de Barnabé; d) Além disso, hoje se defende a possibilidade
de uma autoria feminina, talvez uma colaboradora de Paulo.
Resultado a que se pode chegar: não há como concluir a autoria do livro,
apenas que desde cedo circulou entre os cristãos como texto originado da
tradição paulina. Por isso o consideramos como parte da escola paulina,
ainda que tenha diferenças marcantes em relação aos escritos do apóstolo.
Da mesma forma, é muito difícil datar a epístola aos Hebreus. A men-
ção ao culto judaico e o fim da antiga aliança não dependem do tempo

121
FATIPI EAD Guia de Estudos

histórico, por isso o texto tanto pode ter sido escrito antes de 70 quanto
depois. Certo é, apenas, que foi escrito antes de 96, porque é citado em
1Clemente, texto considerado desse período.
A mensagem de Hebreus sobre a cristologia aborda a preexistência de
Cristo sobre a criação (1.3); por sua vez, a morte redentora de Cristo cons-
titui a mensagem central da salvação (9.11-22). Hebreus também assume
a ideia da Nova Aliança de Deus (8.8-13), da forma como Paulo havia en-
sinado nas epístolas autênticas. Assim, a epístola estabelece uma relação
com a teologia paulina, mas difere dela, pois o sumo sacerdócio de Cristo
está ausente em Paulo. A respeito da Lei, Hebreus trata do tema a partir
do culto, de forma diferente dos demais autores do Novo Testamento, pois
está sempre comparando aspectos rituais da Lei com a ação de Cristo
pela humanidade.
Hebreus é marcada por uma visão da história mais alegórica e menos
concreta. É desinteressada do sentido histórico das palavras da Escritura,
dedica sua atenção à descoberta e à explicação do sentido verdadeiro
mais profundo. Há várias indicações alegóricas, como Melquisedeque (Hb
7), os elementos do tabernáculo (Hb 8-9), em que afirma serem as coi-
sas do presente apenas sombra das futuras (8.5), como se fossem uma
parábola para a época atual (9.9). Nisso Hebreus tem familiaridade com
Fílon de Alexandria, por isso pode ser situado mais próximo do judaísmo
helenístico, já integrado ao projeto de Jesus Cristo.

curiosidade

Fílon de Alexandria (20 a.C.-50 d.C.) foi um filósofo judeu,


dentro do ambiente helenístico, que aproximou a teologia
bíblica do Antigo Testamento com a filosofia de Platão. Ele
desenvolveu o método alegórico para explicar as histórias

122
BÍBLIA Introdução ao NT

do antigo Israel em uma interpretação voltada para a vida


espiritual dos judeus. A alegoria tem como premissa uma
explicação do texto, desconsiderando seu sentido histórico
e aplicando sua mensagem para um novo momento. Este
método se tornou popular entre os cristãos, sendo adotado
como uma das quatro maneiras de interpretar a Bíblia
durante a Idade Média.

2. AS EPÍSTOLAS APOSTÓLICAS GERAIS

Paralelamente às epístolas paulinas, surgiram cartas associadas a


outros apóstolos. Diferente das epístolas autênticas de Paulo, elas não
são escritas para comunidades específicas, nem mostram situações con-
cretas. Pela universalidade de sua mensagem, são chamadas de epís-
tolas universais ou católicas. Aqui iremos designá-las como epístolas
apostólicas gerais.
Alguns autores situam Hebreus entre elas, mas, como visto anterior-
mente, em nosso curso inserimos esta epístola na escola paulina. Outros
colocam as epístolas de João também neste grupo, mas preferimos es-
tudá-las à parte, como fruto de uma tradição específica, ligada a João.
No conjunto das epístolas gerais, temos Tiago, 1 e 2 Pedro e Judas, que
analisaremos a seguir.

Tiago
A epístola de Tiago é uma das mais polêmicas do Novo Testamento,
especialmente por causa de seu reforço em torno de uma religião prática,
no estilo judaico. A cristologia não é desenvolvida no texto e não há nenhu-
ma menção a algum fato histórico que possa situá-la cronologicamente.
Aliás, uma das dificuldades em Tiago é justamente não parecer uma

123
FATIPI EAD Guia de Estudos

epístola e sim uma circular geral em forma de parênese. Podemos dizer


que, essencialmente, se trata de uma compilação de ditos tradicionais,
admoestações, instruções e normas proverbiais de conduta reunidos livre-
mente. Quase não há ligação com a doutrina cristã, o que deu à carta a
fama de ser um texto judaico adaptado para o cristianismo (Tg 2.7-8 e 5.7).
Há semelhanças com a tradição de Jesus que aparece nos evange-
lhos de Mateus e Lucas (Tradição Q). Por exemplo: Tg 2.5 tem paralelo
com Mt 5.3 e Lc 6.20, assim como Tg 4.10 tem paralelo com Mt 23.12 e Lc
14.11. Inclusive Tg 5.12 registra uma fórmula mais antiga sobre a proibi-
ção de jurar que a de Mt 5.33-37. Aparentemente, o autor não conhecia os
Evangelhos canônicos, mas devia conhecer materiais isolados que faziam
parte da tradição sinótica. Mas nenhuma vez Tiago cita os ditos como
palavra de Jesus, o que pode indicar que é uma tradição bem definida,
conhecida e divulgada como vindo do Senhor.
De acordo com Tg 1.1, a epístola foi endereçada para líderes de co-
munidades da Diáspora; mas, se é um texto cristão, não pode estar se
referindo apenas aos judeus espalhados no império. Poderia haver aí uma
insinuação de que a igreja iniciada em Jerusalém também se dispersou
no império romano, a exemplo dos judeus. Desta forma, Tiago faz um
paralelo entre a situação judaica e a cristã.
Estranhamente, a epístola está ausente no Cânon Muratoriano, im-
portante testemunha do ano 200 (conforme veremos no Módulo 5), nem é
citada por Tertuliano, Cipriano, Irineu e Hipólito, pais da igreja dos séculos
II e III, que ajudaram a consolidar a tradição canônica. A tradição no Orien-
te (igreja grega), porém, reconheceu a epístola como canônica a partir da
época dos sínodos de Laodicéia (360) e do tempo de Atanásio (296-373).
No Ocidente, ela foi reconhecida como canônica após a influência
de Hilário, Jerônimo e Agostinho, a partir de 382, em Roma, e 397, em
Cartago. Na Idade Média a polêmica sobre a carta retornou. A discussão
continuou pelos séculos seguintes e apenas recentemente a epístola de
Tiago foi aceita como uma primeira colagem de ensinamentos retirados

124
BÍBLIA Introdução ao NT

do Sermão do Monte ou da tradição de ensinamentos de Jesus que foram


utilizados em Mt 5-7. A questão Lei versus Obras, presente na epístola, foi
tomada como um conflito entre Paulo e Tiago, desde que Lutero analisou
a epístola, chamando-a de “epístola de palha”. Alguns consideram que ela
é posterior ao período de Paulo, por isso não serve como testemunha de
nenhum conflito. Levando em conta as divergências demonstradas por
Paulo em Gl 2, além do “concílio de Jerusalém” em Atos 15, se conside-
rarmos uma datação antiga, teremos uma polêmica bastante considerável
do assunto.
O grego da carta tem estilo fluente, o que afasta a possibilidade de um
texto traduzido do aramaico. O autor da epístola alega ser Tiago, sem dar
maiores detalhes, a não ser que é servo de Deus e do Senhor Jesus Cris-
to. Mas, qual Tiago? No Novo Testamento são citados: a) Tiago, filho de
Zebedeu, que é irmão de João (Mc 1.19; 3.17; Mc 10.35ss); b) Tiago, filho
de Alfeu (Mc 3.18); c) Tiago, irmão de Jesus, filho de Maria (Mc 6.3; Jd 1),
que parece ser também o líder de Jerusalém (1Co 15.7; Gl 1.19; 2.9-12;
At 12.17; 15.13; 21.18); d) Tiago, o Menor (Mc 15.40), que poderia ser o
irmão de Jesus; e) Tiago, pai de Judas (Lc 6.16; At 1.13).
Se considerarmos a situação da letra “e” (Tiago, pai de Judas), pode-
mos eliminar esse nome. Sobram três reais possibilidades (as letras a, b
ou c). A pista para a resposta está na definição de quem é o Tiago Menor.
Tiago, filho de Zebedeu, foi martirizado antes do início do ministério efetivo
de Paulo, em 44 d.C., aproximadamente. Quanto ao filho de Alfeu, nada
mais se fala dele.
Alguns consideram que o líder de Jerusalém é o irmão de Jesus, por
causa das citações de Paulo em suas cartas autênticas, como em Gl 2.9.
Sendo assim, Tiago, irmão de Jesus e líder em Jerusalém, é o que mais
se aproxima da identidade de autor da carta, até mesmo por causa da
polêmica do grupo dele com Paulo (cf. Gl 2.11-14). Tiago foi martirizado
em 62 d.C., por isso sua epístola tanto pode ser uma compilação ditada
diretamente como uma reunião dos principais ensinos da comunidade de

125
FATIPI EAD Guia de Estudos

Jerusalém, onde ele tinha base. Assim, a datação deve se dar entre 60
(quando o ministério de Paulo já tinha sido bastante divulgado) até 80
(pouco antes dos Evangelhos de Mateus e Lucas, por causa da forma
como eles trabalharam a tradição dos ditos de Jesus). Quanto ao local de
redação, se for antes de 70, pode ser Jerusalém, mas se for depois, o me-
lhor lugar para localizar o texto seria Antioquia da Síria, palco de debates
e divergências entre judaizantes e universalistas, como visto em Gálatas.
Atualmente, a epístola é entendida como uma busca de correção
contra tendência liberal de grupos que acharam que Paulo ensinava a
extinção da Lei, por causa da fé em Jesus. Ao mesmo tempo, é um freio
à tentação de individualizar demais a salvação, tornando-a apenas uma
experiência mística, outra tendência forte no cristianismo primitivo.
A base para essa correção é sempre o evangelho, tanto de Jesus
quanto de Paulo. Se a epístola de Tiago for considerada como funda-
mento doutrinário, o cristianismo retorna ao ciclo judaizante que esteve
presente em seu início. Mas numa perspectiva mais global do cristianismo
primitivo, é necessário olhar a epístola a partir da fé. Aí sim, a exortação
das obras faz sentido, para que a fé não seja infrutífera, mas operante na
própria significação da vocação cristã como testemunha de Cristo.

curiosidade

Epístola de Palha? Lutero, ao ver a ênfase no cumprimento


de obras, pensou que Tiago estava em contradição com
Paulo, ou seja, pregava a justificação pelas obras. Segundo
o reformador, epístola de Tiago não prega Cristo, mas a Lei
e uma fé generalizada em Deus, por isso a epístola não pode
figurar na Bíblia ao lado dos principais livros específicos
do Novo Testamento. Lutero escreveu no prefácio da

126
BÍBLIA Introdução ao NT

tradução do Novo Testamento de 1522: “comparada a estes


[evangelhos e livros escritos por Paulo], não passa de uma
simples epístola de palha, pois que não traz em si nenhuma
qualidade de evangelho”. Ainda mais, para Lutero, trata-se
de um escrito desorganizado e judaico, por conseguinte
não apostólico, ainda que nele existam algumas boas
afirmações. Porém, logo depois, no prefácio à carta em si, o
próprio Lutero retirou essa expressão (“epístola de palha”) e
fez considerações positivas a respeito dela.

1Pedro
A epístola de 1Pedro é um texto de caráter parenético. Ela é dirigida
“aos estrangeiros da Dispersão: do Ponto, da Galácia, da Capadócia, da
Ásia e da Bitínia, eleitos segundo a presciência de Deus Pai, pela santifi-
cação do Espírito, para obedecer a Jesus Cristo” (1Pd 1.1). Talvez o ob-
jetivo tenha sido endereçar o texto às províncias romanas, mas a epístola
acabou atingindo os cristãos na Ásia Menor, deixando alguns lugares de
fora. Todavia, ela poderia estar mais preocupada em atingir aos cristãos
gentios (cf. 1.14-18; 2.9-10; 4.3-4), mesmo havendo alguns cristãos oriun-
dos do judaísmo naquela região. De qualquer modo, a epístola parece
enfocar regiões que não estavam na agenda territorial do apóstolo Paulo.
Os cristãos ali são conhecidos por pertencerem a uma pátria superior,
como povo de Deus espalhado pelo mundo (1Pd 1.17; 2.11).
O local de redação deve ter sido Roma (Babilônia no Apocalipse re-
presenta a cidade imperial), mas, mesmo recebendo o nome de Pedro,
dificilmente foi escrita por ele. Ao falar de uma perseguição generalizada
em 4.12-19, o autor aponta para o período de Domiciano, décadas depois
da morte de Pedro. Além disso, a carta, além de ter excelente grego, está
repleta da teologia paulina. Por isso, dificilmente Pedro poderia ser o autor

127
FATIPI EAD Guia de Estudos

dela, mas sim um cristão ligado ao círculo petrino, que utiliza a autoridade
do nome dele para consolar, exortar e edificar os cristãos de diferentes
localidades. A data da escrita deve ter sido entre 90 e 95 d.C., período pa-
ralelo ao Evangelho de João e outros textos com o mesmo teor, inclusive
o Apocalipse.
Em termos de conteúdo, há diversas formas de pensar a estrutura da
epístola. Uma possibilidade é dividi-la em duas grandes partes: a primeira
(1.1-2.10) trata da vocação cristã, enquanto a segunda (2.11-5.11) aborda
as consequências concretas dessa vocação para a vida dos crentes, que
parecem estar vivendo dias de perseguição.
Uma segunda forma de organizar a epístola é pelo tema recorrente
da perseguição, que mostra dois momentos diferentes: na primeira par-
te fala-se da possibilidade de os cristãos sofrerem em algum momento
(1.6; 2.20; 3.14,17). Já os trechos de 4.12, 14, 19 e 5.6-9 apontam para
dificuldades que os cristãos estão vivendo quando enquanto a epístola
era escrita. Alguns afirmam que é uma divisão redacional, com a primeira
parte de 1.1-4.10 e a segunda de 4.11-5.14.
Uma terceira possibilidade é a de pensar que a primeira parte da
epístola (1.1-4.10) seja um sermão batismal (por causa de 1.3,12,23;
2.2,10,25), enquanto a segunda é uma exortação escrita pelo autor. Na
verdade, pode ser que vários hinos tenham sido inseridos. Nesse sentido,
1Pedro aproxima-se da temática apocalíptica, com escatologia e consolo
nas perseguições, como ocorre no Apocalipse.

Judas e 2Pedro
Judas e 2Pedro são duas epístolas que devem ter sido elaboradas
na mesma época, e sua relação temática é tão próxima que iremos ana-
lisá-las em conjunto. Provavelmente, surgiram no século II, após o ano
110. A forma como 2Pedro utiliza o material de Judas, tratando dos falsos
mestres na mesma linha de argumentação, indica que foi escrita posterior-
mente, ou seja, na ordem cronológica, Judas vem primeiro que 2Pedro.

128
BÍBLIA Introdução ao NT

O tema central de Judas é a polêmica contra os gnósticos, que não


são citados, mas combatidos. As ideias gnósticas de negar a ressurreição
futura são combatidas pelos argumentos apocalípticos que Judas reforça.
A epístola de Judas não tem nenhum destinatário definido, assim como as
demais epístolas gerais, mas indica contra quem o texto está elaborado: o
verso 19 fala que é o grupo que está causando divisões, que são psiquikoi,
ou seja, pessoas naturais, que não têm o Espírito (pneuma). Essa era
uma das formas de falar de grupos como os gnósticos. Mas, como parece
que eles ainda rondam a comunidade, acredita-se que Judas tenha sido
escrita no final do século I, entre os anos 95 e 100.
O autor da epístola utiliza diversos exemplos bíblicos, todos ligados à
tradição judaica apocalíptica, para falar da condenação dos que vivem no
erro: Sodoma e Gomorra (v.7), Caim (v.11), os anjos caídos (v.6), referên-
cia a Gn 6. Além disso, no verso 9, cita declaradamente a assunção de
Moisés, que já tinha ampliado a visão de Zacarias 3.2, e nos versos 14-15
cita o Primeiro Livro de Enoque, que aborda mais detalhadamente a queda
dos anjos a partir de Gn 6.
No horizonte do autor está o juízo de Deus sobre os maus, por isso
orienta aos crentes a se manterem longe desse grupo, para não caírem
juntamente com eles.
A segunda epístola de Pedro, o texto mais tardio do Novo Testamento,
reelabora as teses de Judas, aprofundando e reforçando o tema da vigi-
lância frente aos falsos mestres e às falsas doutrinas. Mas, o cenário de
2Pedro mostra que a polêmica se aprofundou e é necessário reforçar a
advertência contra os opositores. A estrutura da epístola é muito parecida
com a de Judas, seguindo inclusive seus exemplos bíblicos: anjos caídos
(2.4), acrescenta a figura de Noé (2.5), Sodoma e Gomorra (2.6), inclui
a figura de Ló (2.7), mas omite as citações dos textos judaicos que não
foram canonizados. Isso é um sinal de que, na época em que 2Pedro foi
escrito, o cânon judaico já tinha sido definido e amplamente divulgado. Os
livros usados por Judas agora eram considerados apócrifos.

129
FATIPI EAD Guia de Estudos

Outro aspecto importante em 2Pedro é a resposta aos que acham que


a vinda do Senhor está demorando. Pedro assume a ideia do Sl 90.4 e
afirma: “para o Senhor, um dia é como mil anos, e mil anos, como um dia”
(2Pd 3.8). O cenário apresentado por ele para a manifestação de Cristo é
apocalíptico radical: fala em destruição dos céus e da terra, para dar lugar
aos novos céus e nova terra (2Pd 3.10-13). Não há afirmação nenhuma
que nos informe de onde e para quem a carta está escrita, indicando ape-
nas o conteúdo polêmico para combater as heresias.

3. A ESCOLA JOANINA

Desde o estudo de Raymond Brown que se fala numa escola joanina. As


epístolas associadas a João realmente têm muito em comum com o Evan-
gelho de João. Tanto podem ser da mão do mesmo autor original, como
podem – o que a maioria dos críticos prefere – ter sido escritas pelo redator
final do Evangelho. Transparece uma relação por causa da terminologia,
mas principalmente por causa da polêmica com relação aos gnósticos.
O que muda bastante é a conformação com a teologia eclesiástica,
que aproxima a comunidade de João das demais igrejas, principalmen-
te daquelas iniciadas por Paulo. Mesmo assim, não há, na alta crítica
literária, nada que separe as epístolas do Evangelho, a não ser naquilo
que cada um tem de particular. Portanto, pode-se afirmar que existe um
corpus joaninus no Novo Testamento, pelo conjunto de escritos que nos
foram legados. A esse corpus denominamos de escola joanina, um termo
que já foi consagrado entre os pesquisadores.

1João
Os especialistas são unânimes em afirmar que 1João não tem caráter
de epístola ou carta, antes se apresenta como um tratado de polêmicas,
com muitas associações ao Evangelho de João. Logo na introdução da
epístola vemos a relação com o prólogo joanino:

130
BÍBLIA Introdução ao NT

João 1.1-5 1 João 1.1-5


No princípio era o Verbo, e o Ver- O que era desde o princípio, o que
bo estava com Deus, e o Verbo ouvimos, o que vimos com os nos-
era Deus. Ele estava no princípio sos próprios olhos, o que contem-
com Deus. Todas as coisas foram plamos e as nossas mãos apalpa-
feitas por ele, e, sem ele, nada do ram, a respeito do Verbo da vida
que foi feito se fez. A vida estava - e a vida se manifestou, e nós a
nele e a vida era a luz dos ho- vimos e dela damos testemunho,
mens. A luz resplandece nas tre- e anunciamos a vocês a vida eter-
vas, e as trevas não prevaleceram na, que estava com o Pai e nos
contra ela. foi manifestada -, o que vimos e
ouvimos anunciamos também a
vocês, para que também vocês
tenham comunhão conosco. Ora,
a nossa comunhão é com o Pai e
com o seu Filho, Jesus Cristo.
E escrevemos estas coisas para
que a nossa alegria seja comple-
ta. A mensagem que dele ouvi-
mos e que anunciamos a vocês
é esta: Deus é luz, e não há nele
treva nenhuma.

Percebe-se que nas duas introduções a linguagem é aproximada: fa-


la-se do princípio, Cristo é citado como o Verbo (logos), a vida se mani-
festa por meio dele e ele é a luz. Considerando que somente nestes
dois escritos aparecem a referência ao Verbo, há forte tendência de o
texto ser realmente do mesmo autor.
Há uma polêmica contra heresias que não pode ser associada a ne-
nhum caso concreto que se tenha registro. Mas percebe-se a evidência

131
FATIPI EAD Guia de Estudos

de pessoas que estavam quebrando a harmonia da comunidade com


doutrinas diferentes ou com interpretação diferente a respeito do Cristo.
Ou seja, transparece no texto que alguns leram o evangelho de maneira
equivocada e teriam uma interpretação gnóstica dele. Assim, 1João seria
uma resposta interna a esse mal-entendido.
As principais críticas do autor se referem à negação dessas pessoas
ao credo da comunidade (1Jo 4.2-3), de como entendem o conhecimento
de Deus (2.4; 4.8), do seu amor a Deus (4.20), da sua isenção do pecado
(1.8-10) e do seu caminhar na luz (2.9). Como o próprio Jesus, eles diziam
proceder “de Deus” e falar na voz do espírito (4.2-6), mas negavam a
vinda de Jesus na carne (4.2) e a identidade do Cristo celeste e do Jesus
terreno (2.22).
Em sua argumentação, o autor parafraseia o prólogo joanino em sua
introdução, como visto. Helmut Koester (2005, p. 212) comenta o seguinte:
“Em conformidade com o evangelho, ele argumenta que o amor a Deus
sem o amor aos irmãos é impossível (1Jo 4,16-17.20)”. A escatologia rea-
lizada de João se expressa nesse amor, no qual a pessoa passa da morte
para a vida (3.14). Mas a aproximação com a teologia das demais igrejas
introduz o tema da vinda de Cristo, que muda o foco do presente para
o futuro, inclusive na aparição do anticristo, que faz referência aos que
saíram da comunidade (2.18-19).
Além disso, 1João introduz temas novos para a escola joanina, como
“a compreensão da morte de Jesus como sacrifício pela expiação do pe-
cado (2.2; 4.10) e o conceito da purificação por meio do seu sangue (1,7)”
(Koester, 2005, p. 213). Por tudo isso, e por sua abordagem próxima de
uma teologia católica primitiva, 1João teve boa aceitação muito rápido.
Surgiu no início do século II ou mesmo no final do século I, provavelmente
na Ásia Menor, sendo que a tradição atribui a Éfeso o lugar do apóstolo
João. De qualquer modo, teria surgido paralelamente à última etapa do
Evangelho e necessitou do tempo de reação a ele para que houvesse
motivação em escrever.

132
BÍBLIA Introdução ao NT

2João
Segundo a pesquisa a respeito dos escritos joaninos, 2João foi escrita
depois de 3João. O que indica isso é o fato de ter elementos desta e de
1João. Não é uma carta de fato, mas um documento com compilações su-
perficiais das sentenças joaninas em forma de epístola. A “senhora eleita”
(v. 1) é a igreja em geral. De 3João o autor aproveita o título de Ancião e de
1João copia a confissão da encarnação de Cristo (v. 7), que ele afirma como
doutrina (didaquê) de Cristo, que já traz a ideia de doutrina consolidada e de-
terminante para saber quem é, de fato, seguidor de Cristo na comunidade.
No entanto, há quem argumente que a dependência que 2João
mostra de 3João dificilmente pode ser sustentada. A justificativa é que
2João apresenta temas que não estão presentes em nenhuma parte
dos escritos joaninos. Podemos listar três: misericórdia (éleos) (v. 3),
recompensa (misthon) (v. 8) e a proibição de saudar dando boas-vindas
a essas pessoas (chaírein légein) (v. 10), que indica uma ruptura radical
com o grupo antagônico.
Ainda assim, conclui-se que o autor parece ser o mesmo de 1João.
A identificação como presbítero [ho presbyteros] pode ser uma tentativa
de igualar sua autoridade aos demais pastores das comunidades cris-
tãs. Mas o mais correto em termos de tradução seria o Ancião, o que se
confirma pelo fato de Papias ter citado o autor como “o ancião João” [ho
presbyteros Ioánnes].

3João
Considerando o que foi afirmado anteriormente, devemos considerar
uma data anterior para a elaboração de 3João, em relação a 2João.
É uma carta autêntica, dirigida a Gaio, que parece ser o mesmo de At
19.29, Rm 16.23 e 1Co 1.14. Porém, apesar de muitos esforços em
contextualizar a situação da carta, saber o motivo de sua composição
continua um mistério.

133
FATIPI EAD Guia de Estudos

Não há certeza sobre os personagens citados na carta (mesmo no


caso de Gaio, porque faltam outras indicações), mas tudo indica que Dió-
trefes poderia ser alguém importante, que se deixou seduzir pelo poder.
Aí não está nenhuma questão doutrinária, mas de cunho eclesiástico, pois
esse líder parece não aceitar os missionários itinerantes. Talvez, como
pano de fundo, possa ser entendido que, quando a carta foi escrita, os
gnósticos ainda rondassem a comunidade.
Georg Kümmel (1982, p. 588), apesar de afirmar a carta como a mais
jovem da “trilogia”, concorda que “tratar-se-ia de um conflito entre uma
organização eclesiástica mais rígida e os anciãos, que seguiam atitudes
carismáticas mais livres, mas mesmo o fato de o Ancião representar os
carismáticos mais livres não se acha expresso claramente”.
Pensando nas três cartas joaninas, apesar de poucas certezas sobre
esse material, quando analisado individualmente, temos o testemunho dos
pais da igreja que indicavam esse material em conjunto, sempre asso-
ciando-o ao apóstolo João. Não havendo indícios fortes o suficiente para
contrapor essa ideia, no mínimo é recomendável considerar que é fruto
de reflexões em torno de comunidades ligadas a João, que formaram um
círculo denominado escola joanina.

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Encerramos aqui a maioria dos textos apostólicos, que utilizaram o


gênero epístola para propagar e reforçar a doutrina apostólica. Vimos que
tanto a tradição em torno de Paulo, quanto a tradição de João gerou um
fluxo de textos para atualizar as orientações dos apóstolos, em especial
com relação a doutrinas estranhas e falsos mestres. Ao mesmo tempo,
vimos textos relacionados a outros apóstolos, mostrando que Tiago, Pedro
e Judas mantiveram discípulos dispostos a produzir materiais doutrinários.
Falta entender como esse material foi acolhido pela igreja e canoniza-
do, considerando os debates sobre autoria. Antes disso, porém, veremos

134
BÍBLIA Introdução ao NT

a apocalíptica cristã e o texto diretamente ligado a ele, o Apocalipse de


João. Até o próximo Módulo, que encerra nossa disciplina.

135
Módulo 5

O APOCALIPSE E O CÂNON DO NOVO TESTAMENTO


BÍBLIA Introdução ao NT

PARA INÍCIO DE CONVERSA

Olá, retornamos para o último Módulo de nosso curso para tratar de


dois assuntos importantes que, de certo modo, abrem e fecham a com-
preensão sobre o Novo Testamento: a apocalíptica e a canonização dos
livros cristãos. Falamos em abrir e fechar por alguns motivos: a apoca-
líptica é um movimento anterior ao tempo de Jesus – como você já pôde
ver na disciplina Introdução ao Antigo Testamento – que está presente no
Novo Testamento em diversos momentos, mas em especial no livro do
Apocalipse de João, o único apocalipse cristão canonizado.
Por outro lado, só podemos estudar o Novo Testamento porque já
pressupomos a canonização como algo sacramentado; estudamos em
nossa disciplina os livros que já foram canonizados, porém, de forma pa-
radoxal, somente séculos depois de escritos. Esse paradoxo se encerra
aqui, quando estudaremos ambas as questões.
Nosso objetivo nesta unidade é que, após os estudos, você seja ca-
paz de: a) explicar como a apocalíptica chegou ao judaísmo do século I
d.C. e influenciou diferentes grupos; b) identificar elementos apocalípticos
nos livros do Novo Testamento; c) expor as principais chaves de leitura e
compreensão do Apocalipse de João; d) explicar de que modo se deu a
canonização do Novo Testamento, tanto em termos cronológicos quanto
do processo de critérios.
Desejo assim que você possa encerrar a disciplina do melhor modo
possível, solidificando o conhecimento sobre o Novo Testamento.
Excelente aula e bons estudos.

1. A APOCALÍPTICA NAS ORIGENS DO CRISTIANISMO


Já comentamos no Módulo 1 que a apocalíptica tem origem no mundo
judaico, conteúdo, aliás, que vocês iniciaram na disciplina Introdução ao
Antigo Testamento. Vamos lembrar aqui algumas características impor-
tantes do gênero apocalíptico, de acordo com a exposição do prof. Julio

137
FATIPI EAD Guia de Estudos

Zabatiero (cf. 2018, p. 114-117): a) é uma literatura de revelação, no


sentido de Deus dar a conhecer algum segredo importante. Essa re-
velação, em geral, é dada por um intermediário, seja um anjo ou uma
pessoa; b) recorrente uso de temas como juízo dos mortos e a crença
na ressurreição, sendo que alguns são premiados e outros, punidos; c)
presença de anjos e demônios, em luta ou como emissários da mensa-
gem. Curiosamente, a palavra angelos, do grego, significa mensageiro
e, a princípio, não tinha nenhuma relação com seres celestiais; d) dua-
lismo divergente, em que céu e terra, espiritual e material, não estão em
oposição, mas em paralelo. Por isso existem anjos bons e maus, assim
como governos terrestres bons e maus; d) divisão expressa do tempo,
indicando o agora e uma ruptura que irá iniciar o depois. Essa ruptura
é prevista com eventos cósmicos e universais. Daí o termo escatologia
apocalíptica; e) expectativa da chegada iminente do juízo ou do reino
de Deus, anunciado por eventos que serão profetizados. Só que essa
profecia é ex eventu, ou seja, ela é declarada após os fatos ocorridos,
porém escrita como se fosse anterior; f) a centralidade de uma figura
escatológica, identificada em geral com o Messias, que governará na
nova ordem, segundo o mandato de Deus.
Nesta breve introdução, vamos lembrar as palavras do prof. Zabatiero
(2018, p. 117):

É importante destacar que o modo de pensar dos escritores do


Novo Testamento era, predominantemente, apocalíptico. Pau-
lo e os demais autores reinterpretaram a apocalíptica à luz da
pessoa e da obra do Messias Jesus, e usaram especialmente a
ideia da vitória do reino de Deus contra os reinos deste mundo
para enfrentar o Império Romano e sua noção de que o César
(Imperador) é o Senhor e Salvador do mundo.

Nos subtópicos a seguir iremos desenvolver as ideias apontadas


na citação.

138
BÍBLIA Introdução ao NT

conceito

Literalmente, a palavra “apocalipse” vem de duas palavras


gregas: “apo” e “kalypto” que, unidas, querem dizer:
“desvelar”, “tirar o véu”, e daí “revelação”.

1.1. A apocalíptica nos grupos judaicos do primeiro século


Diversas vertentes do judaísmo no século I d.C. tinham discursos e
práticas apocalípticas. Algumas talvez nem tenham deixado registro pró-
prio, apenas alimentado suas crenças a partir das obras apocalípticas
judaicas já existentes. Dos grupos que temos conhecimento estão os es-
sênios, os fariseus, o grupo de João Batista e o movimento de Jesus como
herdeiros da apocalíptica. Todos desenvolveram ideias que se alinham
com as características mencionadas anteriormente.
Os essênios e os fariseus já existiam antes da era cristã e compartilha-
vam as ideias de ressurreição e do juízo iminente, ainda que de forma um
pouco diferente. Ambos se preocupavam em guardar os preceitos legais
como forma de pureza, tendo em vista a promessa da salvação para os
fiéis do povo de Israel. Aliás, uma forte implicação na mentalidade apoca-
líptica é justamente o binômio observância e promessa para conceituar
a aliança do povo de Israel com Deus. No caso, o verdadeiro Israel é
aquele que observa os preceitos, é fiel em tudo e vive na expectativa do
cumprimento das promessas de Deus, em especial a salvação para o seu
povo. Por isso, são grupos sectários (fechados e que se consideram mais
corretos que os demais) e que se tornam alvo de críticas da parte de ou-
tros grupos.
Os essênios, identificados como a comunidade de Qumran, deixaram
diversos escritos sobre essas crenças, mostrando fortemente a necessi-
dade de contínuo arrependimento e busca de pureza para serem dignos

139
FATIPI EAD Guia de Estudos

de alcançar a promessa de Deus. Os rolos do Mar Morto são preciosa e


rica fonte de documentação a respeito disso.
Em paralelo a esses grupos encontramos, nos Evangelhos, a figura
de João Batista, cuja pregação tinha como foco a chegada iminente do
Reino e, com ela, o juízo de Deus que viria sobre a nação de Israel. Alguns
acreditam que o Batista tinha alguma relação com os essênios. Como
nada escreveu, sabemos apenas aquilo que os evangelistas mostram a
seu respeito, em parte, ou seja, apenas o anunciador do Messias, que se
manifestou na pessoa de Jesus.
O batismo de Jesus por João Batista é a “ponta do iceberg” sobre a
influência entre os dois grupos. Fato é que diversos aspectos da pregação
de Jesus, e da igreja depois dele, tinham forte relação com as ideias do
Batista. É possível enxergar em diversos textos os elementos que caracte-
rizam a apocalíptica, como: a) a iminência da vinda do Reino (Mc 1.14-15)
e depois a vinda de Cristo (1Ts 1.10); b) a afirmação de Jesus como Filho
do Homem Escatológico (Mc 13.26s); c) a ruptura do tempo presente com
o porvir (Ap 6.14); d) recompensa e punição pós-morte (Lc 16.19-31); e)
visão do trono de Deus (Ap 4).
A maior parte dessas ideias certamente foi compartilhada pelo próprio
Jesus, cujo estilo de pregação e ministério indicam alguém com uma cren-
ça apocalíptica de que o fim está próximo. Mas não só ele, afinal, Paulo
era fariseu e, como tal, comungava dessas ideias.

curiosidade

Os Rolos do Mar Morto foram encontrados em 1947


por acaso por um pastor de cabras dentro de cavernas
na região de Qumran. Esses escritos, pertencentes à
comunidade dos essênios, estavam guardados em jarros de
cerâmica em forma de rolos, o que facilitou a preservação

140
BÍBLIA Introdução ao NT

do material por séculos, pois aquela região é altamente


seca. O conteúdo dos manuscritos, que foram sendo
analisados no decorrer de mais de uma década, incluem
os livros do Antigo Testamento, materiais apócrifos e textos
relacionados à própria comunidade, como o Rolo da Guerra
ou As Regras da Comunidade. Esse material ajudou a
compreender como eles se organizavam e quais eram suas
crenças. Curiosamente, em nenhum lugar dos textos eles
se denominam como “essênios”. Essa designação vem
do relato de Flavio Josefo na obra “Guerra dos Judeus”.
A descrição desse “partido” se encaixa muito bem no
que foi observado nos escritos de Qumran. Em relação
ao Antigo Testamento, a maior importância de localizar
esses escritos é que, até essa época, os manuscritos mais
antigos do Antigo Testamento eram datados do século
IX e X da era cristã. Ao comparar, por exemplo, o rolo de
Isaías encontrado em Qumran com os que já existiam, os
especialistas perceberam que houve forte fidelidade dos
copistas, fazendo com que o texto hebraico quase não
fosse alterado durante séculos.

1.2. Paulo, o apocalíptico visionário


A faceta de Paulo como apocalíptico é pouco explorada, pois nor-
malmente o foco está nele como pregador e autor e, neste caso, perce-
be-se mais nos grandes temas que trata (como visto no Módulo 3). No
entanto, diversas afirmações de Paulo mostram como ele pensava de
forma apocalíptica.
Em seu primeiro escrito, Paulo já deixa clara essa relação com a apo-
calíptica. Aliás, 1Tessalonicenses tem muito de apocalíptica e nada de

141
FATIPI EAD Guia de Estudos

soteriologia ou de temas que aparecerão em outras cartas. No trecho de


1Ts 5.1-11 ele trata da vinda do Senhor (grego parusia). Ali as ideias apo-
calípticas estão claras, nas expressões “Dia do Senhor”, “dores de parto”,
“esse Dia vem como ladrão de noite”. No trecho anterior (4.13-18), ele já
havia descrito a parusia como um evento universal, que definiria o fim de
tudo, os mortos ressuscitariam e os vivos seriam arrebatados. Esse ensino
muito alimentou a imaginação da igreja, a ponto de terem que escrever a
carta de 2Tessalonicenses para apaziguar os ânimos, afirmando que não
seria tão imediatamente como foi afirmado antes. O que indica mentalida-
de e crença apocalíptica na comunidade, tanto quanto no apóstolo.
Depois, em 1Co 15, ao tratar do tema da ressurreição, Paulo está
falando de um assunto altamente ligado à apocalíptica. Mas nos versos
20-28, em especial, ele retrata a quebra do tempo presente: “então, virá
o fim, quando ele entregar o reino ao Deus e Pai, quando houver des-
truído todo principado, bem como toda potestade e poder. [...] O último
inimigo a ser destruído é a morte” (v. 24,26). A escatologia de Paulo é
essencialmente apocalíptica.
Já em Romanos, Paulo fala da renovação de toda a criação, associan-
do-a à redenção dos crentes, no trecho de 8.18-25. No v. 21 ele afirma: “na
esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrup-
ção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”. A relação entre os dois
elementos mostra a ideia de uma escatologia radical, em que há quebra
do tempo e renovação de tudo.
Há dois textos que, de modo especial, mostram o quanto Paulo estava
envolvido com o pensamento apocalíptico. No primeiro, em 1Co 11.10,
ele afirma: “Portanto, deve a mulher, por causa dos anjos, trazer véu na
cabeça, como sinal de autoridade”. O uso do véu está associado, segundo
Paulo, à influência que as mulheres exercem sobre os anjos. Há um certo
sexismo neste discurso, mas não foi Paulo quem o inventou. A tradição
judaica consagrou a interpretação do Livro de 1Enoque a respeito de
Gn 6, que fala dos filhos de Deus que se relacionaram com as filhas dos

142
BÍBLIA Introdução ao NT

homens. Na interpretação revelada a Enoque, trata-se de anjos que des-


ceram do céu por sentirem-se seduzidos pela beleza das mulheres, por
isso foram castigados. Tendo esse pano de fundo em mente, Paulo sugere
que mulheres que falam em público precisam se resguardar, pois, se anjos
se sentem atraídos por elas, que dirá homens! Uma compreensão apoca-
líptica dos problemas da vida, que hoje seria questionada, sem dúvida.
No segundo texto, em 2Co 12.1-6, ele fala de uma experiência pessoal
de viagem celestial, faz o relato como se fosse outra pessoa, mas os co-
mentaristas desta passagem concordam que se trata dele mesmo. Paulo
comenta que foi ao terceiro céu e ouviu palavras inefáveis (maravilhosas)
que não podem ser faladas. A ideia de terceiro céu tem sua origem nos
textos judaicos apocalípticos, inclusive no já citado 1Enoque. Nesse tre-
cho, o que motiva Paulo a contar a experiência é o “motivo pelo qual posso
me orgulhar”, um debate em que ele defende seu apostolado como ver-
dadeiro perante a comunidade de Corinto, outra questão que tratamos no
Módulo 3. Utilizar uma experiência de viagem ao céu num debate desses
demonstra o quanto esse fato foi importante para ele.
Podemos concluir, então, que Paulo era apocalíptico, tanto pela forma-
ção farisaica quanto pelo seu seguimento a Jesus.

curiosidade

O Livro de 1Enoque é uma obra judaica, considerada


apócrifa por judeus e cristãos a partir do século III d.C.
Ela retrata histórias e profecias envolvendo o personagem
Enoque, “sétimo depois de Adão”, que andou com Deus
e depois foi arrebatado. Explica com mais detalhes os
acontecimentos de Gn 6, sobre a queda dos anjos e o
dilúvio, e tem profecias a respeito do tempo dos judeus sob

143
FATIPI EAD Guia de Estudos

o domínio helenístico (séc. II a.C.). Mas, além disso, retrata


a viagem celestial de Enoque, quando ele viu pessoalmente
o trono de Deus, que acabou sendo modelo para outros
Apocalipses, como o de João, por exemplo. Esta obra,
preservada apenas na versão etíope, tem aproximadamente
49 manuscritos. Existem alguns manuscritos em aramaico
encontrados na biblioteca de Qumran, além de outros
trechos em grego. Os pesquisadores concordam que a obra
foi composta em camadas que totalizam cinco livros, sem
ordem cronológica. Esta composição durou ao menos 400
anos. Os livros que compõem 1Enoque são os seguintes:
a) Livro dos Vigilantes (fala dos fatos narrados em Gn 6
com mais detalhes); b) Parábolas de Enoque; c) Livro
Astronômico; d) Livro dos Sonhos; e) Epístola de Enoque
(onde está contido o Apocalipse das Semanas).

1.3. Os Evangelhos e os elementos apocalípticos


Os Evangelhos registram palavras e atitudes apocalípticas de Jesus,
mas eles mesmos compartilham esse pensamento. Isso significa que as
ideias apocalípticas presentes no Novo Testamento não eram exclusivas
de Paulo ou do próprio Jesus, mas que os primeiros cristãos criam e pen-
savam de forma apocalíptica. Vejamos nos Evangelhos onde essas ideias
estão presentes de forma mais clara. Em algumas passagens dos sinóti-
cos há narrativas apocalípticas compartilhadas pelos três.
Comecemos pelo chamado sermão profético, que consta em Mc
13.1-37, além dos paralelos em Mateus e Lucas. Na verdade, trata-se de
um discurso apocalíptico, dadas suas características. Inicia comentando
as “dores do parto”, indicando um tempo de sofrimento que antecede a
salvação (Mc 13.8). Depois fala da destruição do Santo Lugar, no caso o
templo de Jerusalém (13.14). Neste trecho, Jesus afirma: “haverá mais

144
BÍBLIA Introdução ao NT

angústia naqueles dias que em qualquer outra ocasião desde que Deus
criou o mundo” (v.19). A partir do verso 21 ele adverte sobre falsos pro-
fetas e falsos cristos que depois serão chamados de anticristos. E no
trecho de 24-27 há um clímax, mostrando a transformação de tudo e a
vinda do Filho do Homem. Ao fim, Jesus conta duas parábolas exortan-
do à vigilância (28-31 e 34-37), intercaladas pela seguinte advertência:
“Contudo, ninguém sabe o dia nem a hora em que essas coisas aconte-
cerão, nem mesmo os anjos no céu, nem o Filho. Somente o Pai sabe. E
uma vez que vocês não sabem quando virá esse tempo, vigiem! Fiquem
atentos!” (13.32-33).
Este trecho não é profecia no sentido específico, mas profecia apoca-
líptica, pois utiliza imagens de destruição do mundo para chamar a aten-
ção da plateia. Quando comparamos Mateus e Marcos, vemos que têm
um conteúdo similar, mas o evangelista Mateus acrescenta quatro parábo-
las exortativas, além de uma descrição do julgamento final: 24.31-25.30.
Já Lucas segue a estrutura de Marcos, modificando a parábola de acordo
com a atualização da memória histórica de sua comunidade.
Na cena da Transfiguração (Mc 9.2-8 par), a aparição de Moisés e
Elias pode ser compreendida como a continuidade da tradição apocalípti-
ca em Jesus. Moisés e Elias eram figuras com enorme popularidade nos
ambientes apocalípticos, ao lado de Enoque. Os sinóticos seguem essa
tradição de forma similar.
A crucificação em Mateus (Mt 27.50-54), na descrição de Mateus so-
bre a morte de Jesus, mostra uma quebra na narrativa que, longe de ser
uma exposição de fatos, é uma construção com elementos apocalípticos.
Nem Marcos nem Lucas narram a cena de 52-53.
Nas cenas de exorcismo e enfrentamento contra Satanás, a atuação
de Jesus contra os demônios tem um pano de fundo apocalíptico, influen-
ciado pelos textos pseudoepígrafos. Ex: Mc 1.21-28; 3.10-12, 20-30; 5.1-
20; 7.24-30; 9.14-29. O uso de pnêuma akátharton e daimonion são ex-
pressões de entidades malignas e opostas a Deus.

145
FATIPI EAD Guia de Estudos

1.4. Apocalíptica nos demais escritos do Novo Testamento


O pensamento apocalíptico que se percebe em Paulo e nos Evan-
gelhos, a partir de Jesus, está presente também nos demais escritos do
Novo Testamento. Nas epístolas deuteropaulinas encontramos as seguin-
tes referências: a) Em Efésios. Nos textos de 1.15-21 e 5-3-21 há descri-
ção do combate contra as trevas e os cuidados com a luz, algo bastante
próximo das batalhas angelicais apocalípticas. Em 6.10-20 também é feita
referência ao combate espiritual contra as trevas, e a metáfora da arma-
dura é utilizada justamente para falar de como o crente deve enfrentar as
forças espirituais; b) Em 2Tessalonicenses. O autor faz uma previsão apo-
calíptica, corrigindo a iminência da parusia, como visto no módulo anterior
(2Ts 4.13-18); c) Em 1Timóteo. Em 2.9-15 há preocupação com forma de
a mulher se vestir, que não seja extravagante, o que faz eco a 1Co 11.10;
d) Nas cartas petrinas. Em 1Pd 3.3 também se fala do cuidado com os
adornos nas mulheres, a exemplo de 1Tm. Já em 1Pd 5.8-9, vemos o dia-
bo como leão para devorar o povo, uma imagem muito próxima de Daniel
e Apocalipse. E o texto já comentado de 2Pd 2.1-3.13, que é totalmente
devedor de Jd 14, em que há uma citação direta de 1 Enoque, sobre a
condenação dos espíritos maus.
Considerando a datação tardia desses materiais, fica evidente a rela-
ção deles com o Apocalipse de João, mostrando que no fim do século I a
escatologia foi gradualmente deixada de lado, abrindo mais e mais espaço
para o pensamento apocalíptico.

2. O APOCALIPSE DE JOÃO

2.1. Aspectos gerais


O Apocalipse de João é um texto de gênero literário híbrido. Começa
aparentemente em forma de epístola (cap. 1-4) e termina nesse formato
(22.18-21). No entanto, a maior parte dele relata as visões do presbítero

146
BÍBLIA Introdução ao NT

João, que estava na ilha de Patmos, as quais foram transmitidas por um


anjo (5.1 a 22.17). No início do livro, Cristo aparece para ele com uma des-
crição gloriosa, lembrando as exposições do Filho do Homem em Daniel e
outros trechos do Antigo Testamento referentes a Deus.
Desde o início, percebe-se no livro um forte teor simbólico na linguagem.
A figura do Cristo glorificado, por exemplo, tem uma espada saindo de sua
boca (1.16), imagem que, por si só, é absurda na perspectiva da lógica hu-
mana. Esses absurdos e exageros na imagem vão se repetir em diversos
momentos, para enfatizar o caráter onírico da narrativa, ou seja, relacionado
a visões resultantes de um êxtase visionário ou mesmo um sonho.
Diferente dos apocalipses judaicos, que normalmente eram associa-
dos a importantes figuras de um passado longínquo, como o Livro de Eno-
que, por exemplo, o Apocalipse é relacionado a um ancião chamado João
(1.1), que tem sido identificado como o apóstolo de Jesus, que pode ter
escrito o Evangelho e as epístolas. Ainda que o autor não seja João em si,
o livro está ligado a alguém que provavelmente ainda estava vivo quando
foi escrito.
O texto do Apocalipse é permeado pela ideia de culto, por isso tem
sido considerado um texto de caráter litúrgico. Como pano de fundo es-
tão os cultos realizados pelos cristãos da Ásia Menor, e que o próprio
João devia realizar também em Patmos. A primeira referência a essa
questão está em 1.10: “No Dia do Senhor, achei-me em espírito [...]”. No
final do século I já era comum entre os cristãos chamar o primeiro dia
da semana, ocasião em que Jesus ressuscitou, como Dia do Senhor. A
palavra domingo só foi aparecer séculos mais tarde. De forma indireta,
João está dizendo que a visão apocalíptica se deu num domingo, prova-
velmente durante um culto.
A mensagem do Apocalipse expressa, de maneiras diferentes, a ideia
de que o centro da história é Jesus Cristo e não uma figura misteriosa,
como acontece em Daniel. O ponto de partida dessa compreensão é o
evento da salvação de Deus em Jesus.

147
FATIPI EAD Guia de Estudos

A origem do livro
A opinião tradicional com respeito ao Apocalipse é a de um texto para
consolo diante de uma grande perseguição promovida pelo império roma-
no, seja no fim do século I, por Domiciano, ou no século II, por Trajano. O
autor então escreve para consolar os cristãos, para que mantenham firme
sua fé e esperança, pois Deus e o Cristo estão acima do poder do império
romano. Essa opinião é aceita por europeus, norte-americanos e pela lei-
tura latino-americana, com bastante unanimidade.
Porém, a partir dos anos 1990, começou-se a discutir qual persegui-
ção teria dado origem ao livro. A pesquisa concluiu que não há evidên-
cias de uma perseguição generalizada, mas casos isolados (como o de
Antipas), o que levou a uma expectativa de perseguição generalizada
iminente, seja no tempo de Domiciano ou Trajano. Em ambos os casos,
o livro é um suporte para a fé, para tempos de perseguição, acontecendo
ou por acontecer, a diferença está na percepção sobre a perseguição:
em andamento e envolvendo a todos os cristãos ou iminente em função
de alguns casos específicos.
O autor do texto, já indicado como sendo João, pode ou não ser o após-
tolo que andou com Jesus. Já no século III, Dionísio de Alexandria (190-265)
mostrou, com bases linguísticas e estilísticas, que o Apocalipse não podia
ter sido escrito pelo mesmo autor do Evangelho de João e 1João. Há diver-
sas teorias a respeito, mas o fato é que há uma boa possibilidade de ser ele
mesmo, pois há indícios de Pais da Igreja de que João teria migrado para
Éfeso na velhice, onde o evangelho foi concluído, e exilado para Patmos na
virada do século I, de onde escreveu para as igrejas da Ásia Menor. A data-
ção gira em torno de 95 a 115, sendo difícil dar uma data mais aproximada.
Opiniões mais conservadoras acham que foi escrito antes do ano 70 d.C.,
mas não há evidências que reforcem essa tese.

2.2. A estrutura do Apocalipse


O livro do Apocalipse tem sido analisado sobre diversas formas, por

148
BÍBLIA Introdução ao NT

isso há várias propostas de como dividi-lo, tendo como objetivo estabele-


cer a melhor forma de compreender a mensagem do livro. Uma estrutura
básica, definida pelos gêneros literários de epístola e narrativa visionária,
fica assim: a) Prólogo epistolar: 1.4-3.22: As sete cartas como introdução
geral; b) Narrativa visionária (capítulos 4 a 22.7): apresenta uma estrutura
litúrgica, típica do ambiente de culto. Na narrativa, uma mesma história é
contada quatro vezes. Cada vez que é recontada aprofunda-se o desafio
de fé e a crítica à realidade; c) Epílogo epistolar (22.8-21): advertências às
igrejas sobre a perseverança e a fidelidade.
Nessa estrutura percebemos que a parte epistolar do texto funciona
como moldura para todo o trecho visionário. Outra proposta do livro apon-
ta para uma estrutura elíptica, ou seja, uma narrativa que avança, mas
ao mesmo tempo retoma temas já apresentados, num paralelo contínuo.
Essa estrutura é organizada pela narrativa e mostra sete grupos de sete
elementos, intercalados por cenas de culto, todas no céu (que representa
o culto na Terra). Ela pode ser indicada da seguinte forma:

Introdução (1.1-8)
O primeiro grupo - Sete cartas às igrejas (1.9-3.22)
Cena de culto no céu (4.1-5.14)
O segundo grupo - Sete selos (6.1-8.1)
Cena de culto no céu (7.9-12)
O terceiro grupo - Sete trombetas (8.2-11.15)
Cena de culto no céu (11.16-19)
O quarto grupo - Seis sinais e vozes no céu (12.1-15.1)
Louvor no céu pela vitória contra o dragão (12.10-12)
O quinto grupo - Sete taças da cólera (15.1-16.21)
Cena de culto no céu (15.2-4)

149
FATIPI EAD Guia de Estudos

O sexto grupo - Sete vozes celestes (16.17-19.2)


Cena de culto no céu (19.3-10)
O sétimo grupo - Sete visões do fim (19.6-21.8)
A nova Jerusalém – não há mais culto (21.9-22.5)
Epílogo (22.6-21)

Pode-se visualizar esta estrutura da seguinte forma:

As séries de septenários (selos, trombetas, taças) sempre retomam


o tema central (“sê fiel até a morte”), mas vão afunilando rumo ao final
apoteótico, no qual a vitória do Cordeiro se concretiza em definitivo (cap.
20) e a Nova Jerusalém desce do céu (cap. 21).

2.3. As cartas às sete igrejas


O primeiro dos grupos de septenários começa, na verdade, com as
sete igrejas da Ásia Menor, às quais João envia o conteúdo do Apocalipse.
Quando lemos o texto, podemos ter a falsa impressão de que cada igreja
recebeu apenas sua parte e depois todas foram juntadas. Mas tudo indica
que o conteúdo do Apocalipse foi enviado no todo, e cada igreja leu o texto
inteiro. Não se sabe se foi um único manuscrito que teria circulado ou se
havia desde o início várias cópias, mas em pouco tempo o texto já era

150
BÍBLIA Introdução ao NT

conhecido em muitos lugares, para além daquela região.


As igrejas são comparadas com candelabros ou candeeiros logo na
primeira visão (1.20), e Jesus diz que anda entre elas, ou seja, formam
uma espécie de círculo na Ásia Menor. Também poderíamos chamar de
“distrito” ou “presbitério” do Candelabro, sendo cada igreja um candeeiro
em si. Curiosamente, uma visão do mapa mostra, de forma irregular, a
figura de um candelabro de sete braços, a menorá utilizada como símbo-
lo nas sinagogas, relembrando a menorá do tabernáculo. Percebe-se, já
aqui, a interrelação das imagens do Apocalipse com as do Antigo Testa-
mento, como veremos melhor mais à frente.

Figura: O Distrito do Candelabro. A base do candelabro é a ilha de Pat-


mos, e a ordem das cartas segue a ordem das igrejas no sentido horário,
começando por Éfeso.

A estrutura das cartas é semelhante em todas, no aspecto geral, mas


com diferenças nas questões mais específicas, como as exortações de
Jesus às igrejas. Pode ser percebida assim: a) Destinatário: “Ao anjo da
Igreja de [...]”; b) Ordem de escrever: “escreve [...]”; c) Quem escreve: “isto

151
FATIPI EAD Guia de Estudos

disse ele que [...]”. Retoma algum elemento da visão inicial do capítulo
1; d) Corpo da carta: em geral com os seguintes elementos: descrição
da situação, seguido de elogio (“Conheço tuas obras [...]”); repreensão
(“Tenho, porém, contra ti [...]”; ordem para arrependimento (“arrepende-te
[...]”); revelação profética (“se não, venho a ti e [...]”); exortação (“Sê fiel até
a morte [...]”; “Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta [...]”; “Conserva
o que tens [...]” etc.); e) Promessa escatológica ao vencedor (“Ao vencedor
darei [...]”). Remete em vários casos ao final do livro (19.11-22.5); f) Cha-
mamento para a escuta (“O que tem ouvidos, ouça [...]”).
Alguns comentários necessários sobre as cartas: cada igreja retém um
aspecto da visão do Cristo, seja porque assim há ênfase da situação pela
qual a igreja passa, seja porque mostra que a visão completa do Cristo
glorificado só se dá pela totalidade das igrejas. Assim, as cartas apontam
para a totalidade da Igreja em todos os tempos, bem como mostram como
as comunidades ou “denominações” não podem expressar o Cristo todo
sozinhas, mas precisam umas das outras. Uma boa reflexão para a ques-
tão ecumênica.
Em relação às igrejas Esmirna e Filadélfia, não há advertência (ambas
enfrentaram perseguição e foram perseverantes); Sardes começa com a
advertência e o elogio ameniza a ameaça; Laodiceia não tem elogio. Nas
primeiras cartas, os itens “e” e “f” estão invertidos, começando pelo cha-
mamento e depois a promessa escatológica, e continua seguindo a ordem
que apontamos.
Conhecer um pouco das cidades para as quais as cartas foram en-
dereçadas ajuda a entender mais cada carta. É o que veremos agora,
conforme mostra Ap 2.1-3.22.

Éfeso (Ap 2.1-7)


Éfeso era a cidade mais importante da região Oeste da Ásia Menor,
com forte comércio marítimo e terrestre. Ali ficava o centro de adoração
da deusa Diana ou Artémis Efésia, em função da forte estrutura de culto

152
BÍBLIA Introdução ao NT

que girava em torno do templo de Diana, uma das sete maravilhas do


mundo antigo.
A igreja nessa cidade foi fundada por Paulo, em sua segunda viagem,
numa passagem rápida. Depois, na terceira viagem, permaneceu nela du-
rante três anos. Os pais da igreja também associam Éfeso como a cidade
onde o apóstolo João passou seus últimos dias, de onde escreveu as
epístolas e o Evangelho foi finalizado.
A carta indica que a igreja era bem vista pela capacidade de se manter
firme contra doutrinas estranhas e o paganismo, porém aponta para uma
igreja sem o ágape, sem o amor como fundamento de suas atitudes. A
firmeza na resistência contra falsas doutrinas, incluindo a dos nicolaítas,
esfriou o coração da igreja. Daí ela passou a ficar fechada em si mesma,
sem abrir a possibilidade de novos membros, o que contraria a vontade de
Jesus, por isso a ameaça: “ [...] arrepende-te, se não, venho a ti e moverei
do seu lugar o teu candeeiro” (2.5), ou seja, ela deixaria de ser igreja.

curiosidade

Os nicolaítas só são referidos nas cartas do Apocalipse e


parece tratar-se de um grupo de cunho gnóstico com práticas
libertinas que envolveu as comunidades da região. O nome
está ligado a Nicolau, que não se sabe quem é, apesar de os
pais da igreja, no século II, o associarem ao Nicolau da lista
de Atos 6. Essa relação, no entanto, é totalmente descabida
de fundamentação. A citação aos nicolaítas acaba dando
um rosto a grupos dissidentes, de diversas matizes, que
atuaram nas comunidades apostólicas e são citados em
outros textos, como Colossenses, Gálatas, 2Pedro e Judas,
1 João, dentre outros.

153
FATIPI EAD Guia de Estudos

Esmirna (Ap 2.8-11)


A cidade de Esmirna era rival de Éfeso no comércio, tendo também
um porto próspero. Lá havia um templo em homenagem à deusa Roma e
outro em homenagem a Tibério, para o culto ao imperador.
Fundada por Paulo, tornou-se importante igreja no século II d.C., onde
atuou o bispo Policarpo, martirizado em 155. Como ele morreu aos 86
anos, certamente já estava na igreja nessa época e era uma das impor-
tantes lideranças.
Não há nenhuma recriminação de Jesus contra a igreja, pois ela su-
porta a tribulação e a pobreza, provavelmente consequência da perse-
guição. Afinal, para prosperar em cidades assim, os cidadãos tinham que
participar dos eventos cívicos-religiosos, no caso, o culto ao imperador.
É possível que os cristãos não tivessem espaço para atuar no mercado
local por conta de sua ausência do culto a César. Um preço que o próprio
Apocalipse fará menção em 13.16-18. Diante do perigo de prisão e morte,
Jesus promete vida e anima a igreja a perseverar.

Pérgamo (Ap 2.12-17)


Pérgamo era a capital da Ásia Menor, logo, uma cidade importante. Ali
funcionou o centro do culto imperial da região. Ela tinha diversos templos,
inclusive os dedicados a Zeus e a Asclépio (deus da cura). Nela também
ficava o templo de Augusto, o primeiro construído em homenagem a um
imperador. Pérgamo foi a cidade que consagrou o uso do couro animal
para utilizar como material de escrita, que ganhou o nome de pergaminho
em homenagem à cidade.
Apesar de ser uma igreja que enfrentou a perseguição por sua firmeza,
parece que a igreja de Pérgamo tornou-se tolerante com os da “doutrina
de Balaão” (v.14). Esse grupo mantinha as práticas politeístas condenadas
pelos apóstolos, diferentemente da igreja de Éfeso. Nessa igreja também
os nicolaítas tinham certa liberdade. A principal exortação, então, é resistir
a essas práticas e manter-se firmes na doutrina correta. Interessante é

154
BÍBLIA Introdução ao NT

que a promessa do maná contrasta com o fato de eles participarem de


banquetes onde havia comidas sacrificadas aos deuses pagãos (ídolos).
Ou seja, se deixarem a comida promovida por cultos estranhos, serão
alimentados diretamente por Deus.

Tiatira (Ap 2.18-29)


Tiatira foi uma cidade reconstruída pelos romanos depois de um gra-
ve terremoto, por isso tinha forte vinculação com o império. Mas não
era uma cidade importante, antes era conhecida por suas guildas de
artesãos e comerciantes.
A igreja em Tiatira tinha diversas qualidades: o amor, a fé, o serviço e
a perseverança (resistência), e suas últimas obras eram melhores que as
primeiras, numa direção inversa à que Éfeso estava vivendo. Porém, ali
havia tolerância a “Jezabel”, cuja influência estava próxima ao que os gru-
pos de Balaão exerciam em Pérgamo. A nota positiva aqui é a confirma-
ção de que mulheres também exerciam liderança nas igrejas, ainda que,
infelizmente, o exemplo citado seja negativo. Cristo está atento à situação
(“olhos como chama de fogo”) e exorta a igreja a permanecer nas boas
obras, conservando assim sua posição, e promete a autoridade sobre as
nações, ou seja, que os crentes não são insignificantes, mas poderosos
espiritualmente se mantiverem a firmeza. Essa promessa é escatológica e
não se realizará no tempo presente.

Sardes (Ap 3.1-6)


Sardes era uma cidade decadente, que já tinha sido grandiosa, mas
naquele momento da virada do século I estava perdendo sua força. No
passado, havia sido capital da província de Lídia, mas perdeu o seu status
e aos poucos, o prestígio. Além disso, esta cidade sofreu terremotos e
invasões devido à falta de vigias nos muros. No seu tempo de esplendor,
tinha forte agricultura, inclusive de produção de têxteis e tinturas.
A carta indica que a igreja que existia nessa cidade refletia a mesma

155
FATIPI EAD Guia de Estudos

situação. A igreja, aos olhos de Jesus, estava morta e precisava ser revivi-
da, para isso devia restaurar suas obras iniciais pela vigilância e empenho,
caso contrário Jesus agiria como um invasor. A advertência é positiva,
pois algumas pessoas da comunidade “não contaminaram suas vestimen-
tas”, indicando pureza espiritual e busca constante. Por isso a promessa
de roupas brancas iguais às de Jesus, assim como o nome no “livro da
Vida”, a fim de que não percam a salvação.

Filadélfia (Ap 3.7-13)


A cidade de Filadélfia foi fundada por Eumenes II de Pérgamo, cons-
truída em homenagem ao seu irmão Átalo II, daí o nome (em grego, Fi-
ladelfos significa “amor ao irmão”). Ela foi destruída e reconstruída várias
vezes por causa de terremotos e teve outros nomes, como Neocesareia
(no tempo de Tibério) e Flávia (sob o domínio de Vespasiano).
Filadélfia e Sardes estão em situação muito semelhante, sendo que
não há nenhuma repreensão a fazer. É uma comunidade sem poder que
também enfrenta uma “sinagoga de Satanás”, designação para uma sina-
goga que se colocou como adversária da igreja. Talvez a igreja em Fila-
délfia tenha funcionado ali por um tempo, mas as portas se fecharam para
ela, por isso Jesus indica outra porta, que está aberta, cujo significado
pode ser de outro espaço para realizar a missão. Deve-se entender que
não é uma expressão antijudaica ou antissemita, mas o texto está contex-
tualizando judeus que estão integrados ao império, beneficiando-se inclu-
sive do culto ao imperador, sendo minoria dentro da religião.
O trecho de 3.10 tem sido entendido como uma promessa para os cristãos
que não passarão pela grande tribulação, mas em nenhum momento dessas
cartas se fala de uma tribulação final e sim relacionada com o momento das
igrejas. Logo, refere-se a uma perseguição específica que a igreja irá sofrer.

Laodiceia (Ap 3.14-22)


Laodiceia era a cidade mais rica da Frígia, conhecida por seus bancos,

156
BÍBLIA Introdução ao NT

indústria de linho e algodão e por sua escola de medicina e farmácias.


Aqui também se percebe um paralelo entre a situação da igreja e da cida-
de. A cidade era tão orgulhosa que não aceitou ajuda de Roma quando
enfrentou um terremoto e foi reconstruída apenas com os recursos dos
seus cidadãos.
A igreja em Laodiceia foi resultado da missão de Epafras, sendo que
alguns acham que a carta aos efésios seria, na verdade, a carta aos lao-
dicenses, citada em Colossenses 4.16. Ao contrário de Esmirna e Filadé-
lfia, Laodiceia é totalmente negativa, não havendo nada de bom em sua
realidade no momento da carta. Há muitas interpretações sobre o “quente
e frio” a que se refere a carta, originado do complexo sistema de água da
cidade, que saía nas fontes com gosto estranho e não podia ser bebida de
imediato. A interpretação geral indica que os crentes de Laodiceia não se
posicionavam claramente entre o mundo cristão ou pagão. Assim, assu-
miam uma postura orgulhosa e dúbia, que lhes dava status no ambiente
politeísta, bem como na igreja. Jesus condena tal atitude, chamando-os
de mornos.
Nesta situação, Jesus está de fora da igreja, por isso a comunidade é
exortada a deixá-lo entrar para que possam retomar a verdadeira comu-
nhão. Mesmo com tantas críticas, Jesus promete o verdadeiro poder à
igreja, que é junto dele, no trono espiritual.

curiosidade

As cartas mostram a situação das sete igrejas, algumas


em bom momento, outras nem tanto. Nada adianta a igreja
ser firme contra falsas doutrinas e relegar o amor, como
em Éfeso, porém o inverso também é verdade, pois ser
amorosa e tolerar todo tipo de erro torna a comunidade

157
FATIPI EAD Guia de Estudos

fraca, como mostram Pérgamo e Tiatira. É preciso um


meio-termo, identificado nas comunidades de Esmirna e
Filadélfia, com obras que mostrem o amor a Cristo e firmeza
doutrinária que sofra até perseguição, em alguns casos.
Por sua vez, Sardes e Laodiceia são os casos mais tristes,
igrejas orgulhosas que vivem do passado e da fachada, mas
espiritualmente estão mortas, porque não mostram nem o
amor nem a firmeza em torno do evangelho, pois não são
“nem quentes, nem frias”. Ainda assim, Cristo investe nelas,
pois deseja seu arrependimento para que possa restaurar a
posição de ambas. No fim, prevalece o amor de Cristo pelo
seu povo e sua sempre longânima misericórdia.

2.4. Aspectos literários e chaves de leitura


2.4.1. Forte apelo imagético e com narrativa quebrada
O Apocalipse é uma narrativa construída em torno das visões que
João teve sobre eventos e lugares revelados a ele por Cristo. Logo, é
natural que seja uma obra focada em descrição de visões, muitas delas
simbólicas e enigmáticas. Pouca coisa ali é literal ou pode ser descrita
como real; em geral, o visionário trabalha com imagens muito fortes e
marcantes. Estas imagens representam o contraste entre o fraco e o forte,
o derrotado e o vitorioso – próprias do estilo joanino, como acontece no
Evangelho. As descrições do céu (cap. 4 e 5), do dragão (cap. 12) e das
bestas (cap. 13) nos colocam em cenários e situações-limite, que fazem o
leitor se sentir no lugar do próprio visionário.
O momento máximo da narrativa chega nos capítulos 19 em diante,
quando são descritas a batalha final de Cristo contra as forças do mal, o
reinado de Cristo e a descida da nova Jerusalém. A descrição da cidade,
similar à descrição do templo ideal por Ezequiel (cap. 40-44), nos leva a
um ambiente altamente simbólico, visualmente sofisticado.

158
BÍBLIA Introdução ao NT

2.4.2. Intertextualidade
Outro aspecto importante no Apocalipse é sua relação com a literatura
judaica e cristã, em especial os livros que passaram a figurar no cânon. Se
olharmos a Bíblia como um grande conjunto de livros, de forma sincrônica
(sem levar em conta os tempos históricos e as diferenças de contexto), o
Apocalipse tem o papel inverso ao Gênesis. Enquanto este abre todo o
projeto salvífico com a criação dos céus e da terra, o Apocalipse revela o
ápice da redenção, com novos céus e nova terra.
Entre os temas recorrentes que têm relação com o restante da Bí-
blia estão: as cartas como forma de comunicação com as comunidades;
a perseverança dos fiéis e a lealdade ao projeto de Deus; a ameaça de
perseguição pelos adversários, a ponto de colocar suas vidas em risco.
Um dos livros mais relacionados com o Apocalipse é Daniel. Se com-
pararmos as duas obras, veremos diversos pontos de contato, como mos-
tra o quadro abaixo:

DANIEL APOCALIPSE
O Ancião de Dias - 7.9-10 Jesus glorificado - 1.14-17; 14.14
Os animais bestiais - 7.3-8 As bestas - 12.3,13; 13.1-18
O Filho do Homem (junto com o O Filho do Homem – 14.14
Ancião de Dias) – 7.13
Os animais vencem os santos do A besta vence as duas testemu-
Altíssimo por pouco tempo – 7.21- nhas por pouco tempo – 11.7,11.
22
Hino de adoração – doxologia – Hino de adoração – doxologia –
7.14,27 11.15
O animal que derruba uma parte O dragão derruba a terça parte
das estrelas do céu – 8.10 das estrelas – 12.4
O tempo do domínio do mal – 7.25 O tempo da mulher no deserto –
12.14

159
FATIPI EAD Guia de Estudos

A interpretação dos dez chifres – A interpretação dos dez chifres –


7.24 17.12
O grande julgamento – 7.9-10 O grande julgamento – 20.4, 11-
12
Afirmação da perseverança futura Exortação à perseverança – 22.11
– 12.10

Além disso, no Apocalipse há alusões a praticamente todos os profe-


tas, como Isaías, Jeremias, Ezequiel, Zacarias, Joel, bem como ao Penta-
teuco. Veja alguns exemplos no quadro a seguir:

Apocalipse AT Tema relacionado


1.17 Is 44.6 Jesus associado a Javé como primeiro
e último
4.5 Êx 19.16 Relâmpagos e trovões na manifestação
de Deus
7.9-10 Lv 23.40-43 Celebração do povo salvo por Deus
7.13 Ez 37.3 O visionário pergunta o significado da
visão
9.9 Jl 2.5 Descrição do exército destruidor
10.6 Gn 14.19 O Deus Altíssimo criou os céus e a terra
10.9 Ez 2.8-9 Visão do livrinho que o visionário deve
comer
10.11 Jr 1.10 Vocação do visionário para pregar às
nações

2.4.3. O tempo no Apocalipse


A narrativa apocalíptica antecipa a salvação escatológica, na qual a
comunidade ouve, aprende e aplica as verdades da Palavra. Mas as coi-
sas não ocorrem de forma linear, ou ainda, numa velocidade contínua.

160
BÍBLIA Introdução ao NT

Certas pausas são utilizadas para retardar a narrativa (por exemplo, 8.1-
6; 11.15-19; 15.2-8) e podem representar momentos de oração ou jejum
na vida da Igreja, preparando-se para o agir de Deus.
Na verdade, o uso do tempo no Apocalipse é quase ilógico. O livro não
trabalha numa cronologia [cronos] linear, mas a partir de um tempo cícli-
co, ideal, focado nas coisas mais importantes [kairos]. Tanto a dimensão
temporal quanto a espacial são transcendentes, quer dizer, ultrapassam
os limites humanos. Por isso as dimensões estão relacionadas, de uma
forma invertida: a) através do temporal, o céu encontra-se com a terra; b)
através do espacial, o futuro encontra-se com o presente, quebrando a ló-
gica linear do aqui e depois. Tanto o momento atual quanto o futuro estão
relacionados. Resumindo, o Apocalipse nos situa dentro da eternidade,
por meio de um paradoxo espaço-temporal.

conceito

Apocalíptica e escatologia – quando se pensa nessas


duas categorias, costuma haver certa confusão. Ocorre
que nem tudo que é apocalíptico é escatológico e nem
todo texto escatológico é apocalíptico. Escatologia vem
do grego “eschatos” e quer dizer “o último, o restante, as
últimas coisas”. Ou seja, tem a ver com tratar das coisas
finais, no caso teológico, o tempo final. Isso significa que
só é escatológico aquilo que está se referindo ao futuro.
Já a apocalíptica, como temos visto, é um gênero literário
próprio, que tem diferentes temas dentro dele e também
pode fazer uso da escatologia. Quando a escatologia
se encontra com a apocalíptica, utilizamos a expressão
escatologia apocalíptica para indicar uma escatologia que
está inserida no contexto literário de um texto apocalíptico.

161
FATIPI EAD Guia de Estudos

2.4.4. Culto e liturgia no Apocalipse


Diante de um mundo tomado pelo poder do mal, o culto é o lugar de
estabelecer o senhorio de Deus na terra, o Reino entre nós. Esta é uma
das principais mensagens passadas pelo Apocalipse. A primeira visão de
João tem a adoração de Deus no céu como foco (Ap 4), seguida pela
adoração ao Cordeiro (Cap. 5).
Em diversos momentos da narrativa são inseridos hinos e cânticos que
provavelmente eram cantados nos cultos das comunidades da Ásia (Ap
7.10,12; 11.15,17-18; 12.10-12; 15.3-4; 16.5-7; 19.1-8). Em geral, esses hi-
nos abrem seções importantes da narrativa ou fazem transição entre uma
seção e outra. Além disso, fala-se em incensário, santuário, tabernáculo,
hino de Moisés e outros elementos que estão diretamente relacionados ao
ambiente do culto judaico, ao qual a igreja cristã era devedora em seu início.

curiosidade

Hoje em dia há diferentes propostas de interpretação


do Apocalipse, que geraram até mesmo escolas de
interpretação. Muitos pesquisadores adotam essas
tendências e seus trabalhos acabam sendo guiados por
essas linhas. Veja a seguir as principais: Interpretação
historicista: o Apocalipse descreve os eventos que
ocorreram na história, desde o início da Igreja até os dias do
leitor atual. Interpretação idealista: afirma que o conteúdo
do Apocalipse não se relaciona com nenhum evento histórico
conhecido, ou seja, é simbólico. Interpretação preterista:
entende que os símbolos e o conteúdo do livro referem-
se somente a eventos e situações da época do autor.
Interpretação futurista ou escatológica: compreende

162
BÍBLIA Introdução ao NT

o Apocalipse como um “mapa do futuro”, entendendo que


alguns eventos preditos ocorrerão da forma como estão
escritos, de maneira literal. A interpretação do capítulo 20, a
respeito do milênio, também recebe diferentes abordagens,
especialmente quando se tenta interpretar esse capítulo em
conexão com 1Ts, Mt 24 (e os paralelos de Marcos e Lucas)
e outros textos escatológicos. As principais linhas são: a)
Amilenista: para esta linha, a segunda vinda de Cristo se
dará no fim da época da Igreja e não existe um Milênio na
Terra; b) Pré-milenista: nessa linha de interpretação, a
segunda vinda de Cristo acontecerá antes do Milênio; c)
Pós-milenista: essa linha de interpretação entende que a
segunda vinda de Cristo se dará depois do milênio.

3. A CANONIZAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO

A produção de textos cristãos na virada do séculos I para o II foi tão grande


e intensa que os pais da igreja começaram a estabelecer critérios de leitura e
seleção desse material. Ao lado dos textos que passaram a ser considerados
canônicos (ou seja, o cânon a ser adotado), outros escritos surgiram, com in-
terpretações diferentes daquelas que lemos no atual Novo Testamento. Mas,
como se deu esse processo? O que motivou a seleção e a definição de um
cânon? Tudo tem início com um líder cristão chamado Marcião.

curiosidade
CONCEITO

Em grego cânon indicava uma régua de caniço usada para


medir e estabelecer uma medida padrão. Passou a significar
“padrão”, “medida” e indicar os livros que seriam definidos

163
FATIPI EAD Guia de Estudos

como oficiais para a igreja, com autoridade apostólica e


inspirados por Deus.

3.1. O impulso inicial com Marcião


Marcião era cristão e após o ano 135 foi para Roma, onde aprofun-
dou suas pesquisas. Tomando Gálatas como ponto de partida, elaborou
um questionamento a respeito da oposição radical entre lei e evangelho.
Marcião considerou que a igreja falsificou a doutrina paulina para manter a
harmonia com a tradição israelita da Lei. Assim, ele trabalhou na recons-
tituição do material que considerava autenticamente paulino, elaborando
um cânon que superasse o utilizado pelos cristãos naquele momento: a
Bíblia Hebraica (talvez uma versão da Septuaginta).
Marcião não era gnóstico, mas conhecia pessoas do círculo gnóstico.
Daí sua consideração de que o Deus da antiga aliança (Israel) não é o
mesmo da nova aliança (cristãos). Mas Marcião preferiu assumir a autoria
desta concepção como um teólogo cristão que entendia ter chegado o mo-
mento de assumir uma posição, até porque os judeus já não reconheciam
os cristãos como parte de seu grupo. Essa decisão o colocou em confronto
direto com as autoridades cristãs que harmonizavam a tradição judaica
com a nova visão.
Em seu cânon, Marcião adotou Paulo e o Evangelho de Lucas como
base canônica. Ele rejeitou Mateus, por causa da forma como este Evan-
gelho mostra a Lei; o Evangelho de João não foi adotado porque nesse
momento parecia não ser conhecido em Roma. Considerando, então,
apenas o Evangelho de Lucas, Marcião organizou os textos de Paulo da
seguinte ordem (cf. Koester, 2005, p. 352): Gálatas, 1 e 2Coríntios, Roma-
nos, 1 e 2Tessalonicenses, Efésios (que ele chamava de “Laodicenses”),
Colossenses, Filipenses e Filemon. As epístolas pastorais estão ausen-
tes, talvez porque ele desconhecesse esses livros. Não há vestígio de
Hebreus. Os demais textos ficaram de fora. A versão adotada por Marcião

164
BÍBLIA Introdução ao NT

difere bastante dos manuscritos das versões mais conservadoras, com


diversas mudanças, retirando toda citação ao Antigo Testamento ou tex-
tos que eram favoráveis a uma harmonia entre a tradição de Jesus e dos
apóstolos com as normas judaicas.
Num primeiro momento, a igreja cristã não soube reagir a Marcião.
Se ele apenas tivesse elaborado esse material de forma particular, talvez
nem seria considerado uma ameaça. Porém, a partir de suas convicções,
ele elaborou uma doutrina similar ao docetismo (Jesus foi uma manifes-
tação de Deus na Terra, mas só foi humano na forma, não na essência,
para que não se contaminasse). Mais que isso, ele iniciou diversas co-
munidades em várias regiões, conseguindo a adesão de muitas pessoas
pelo discurso novo e práticas diferentes. Em suas igrejas havia ênfase na
santificação e renúncia ao mundo, inclusive com proibição de casamento;
homens e mulheres tinham atuação e liderança iguais, como presbíteros,
bispos e diáconos, seguindo o modelo das igrejas apostólicas. Junto ao
discurso, a novidade que agradou muita gente: um cânon próprio, uma
coleção de textos sagrados especificamente cristãos, sem interferência do
pensamento judaico. Em função desse problema, Marcião, pessoalmente,
foi excomungado em 144 (alguns acreditam que ele mesmo se afastou da
igreja apostólica). Pela primeira vez o cristianismo estava dividido em dois
tipos bem diferentes de igrejas, antagônicas entre si.

curiosidade

Nenhum dos textos escritos por Marcião foi preservado;


todos os materiais que temos dele são citações de Irineu
e outros pais da igreja, que o mencionavam com o fim de
combater suas ideias. Em 1920, Adolf von Harnack publicou
uma edição que reuniu esses fragmentos e analisou de forma

165
FATIPI EAD Guia de Estudos

crítica as citações, procurando reconstruir o pensamento


e a carreira de Marcião. Nosso roteiro foi elaborado com
base em Helmut Koester, que teve como base o material
de Harnack.

3.2. A reação da igreja e os primeiros cânones


Diante da situação criada por Marcião, a igreja apostólica teve que ela-
borar seu próprio cânon, com seus critérios para definir que textos seriam
considerados norma padrão para a fé. Quem começou esse movimento
foram Irineu e Tertuliano, décadas após a iniciativa de Marcião, como ve-
remos a seguir.
Por outro lado, paralelamente ao fato de Marcião definir um cânon pró-
prio, os Evangelhos de Marcos e Lucas já eram considerados “memórias
dos apóstolos” por Justino Mártir (100-165). Em suas homilias, ele citava
trechos dos Evangelhos ao lado do Antigo Testamento, dando a entender
que considerava esse material no mesmo nível de inspiração e autoridade.
Isto mostra que Marcião não foi o primeiro a pensar nos escritos apostóli-
cos como textos canônicos (no sentido de texto de regra, padrão), mas foi
o primeiro a definir uma coleção de textos. Estava chegando o momento
de a igreja de cunho apostólico também elaborar a sua coleção. De forma
irônica, os escritos de Paulo foram colocados de lado neste período, como
uma reação a Marcião.
A partir do fim do século II, diversos cânones surgiram, mostrando
várias tendências e divergências que infelizmente não podemos detalhar
aqui. Vamos apontar os principais cânones que foram identificados nas
décadas e nos séculos após Marcião: a) Irineu (130-202) se colocou contra
Marcião, mas constatou a injustiça da situação relativa aos textos paulinos
e os incluiu numa coleção que continha os quatro Evangelhos (como ex-
pressão da universalidade do evangelho – quatro pontos cardeais), Atos,
as treze epístolas de Paulo, além do “Pastor de Hermas”; b) Tertuliano

166
BÍBLIA Introdução ao NT

(155-240), por sua vez, confirmou os quatro evangelhos, chamando-os de


Escrituras. Dos textos apostólicos, ele acolheu as treze cartas de Paulo,
Atos, Apocalipse, 1Pedro, Judas, além de citar Hebreus, como epístola
de Barnabé; c) Clemente de Alexandria (150-215) identificava os quatro
Evangelhos como primeira parte do cânon e na segunda parte, catorze
epístolas de Paulo (Hebreus incluída), seguidas de Atos e Apocalipse. Ele
elaborou comentários também a 1Pedro, 1João e Judas. Além disso, Cle-
mente de Alexandria colocou como apêndice, mas sem a mesma autorida-
de dos anteriores, os Evangelho dos Hebreus e o Evangelho dos Egípcios.
Como escritos apostólicos, ele considerava Apocalipse de Pedro, Querig-
ma de Pedro, Barnabé, 1Clemente, a Didaquê e “Pastor de Hermas”, ou
seja, um cânon bastante aberto; d) Uma “testemunha” desse processo é
o chamado Cânon Muratoriano, nome dado em homenagem a Muratori,
bibliotecário que encontrou esse material na Biblioteca Ambrosiana de Mi-
lão. É um fragmento, traduzido do grego para o latim vulgar, que indica os
textos autorizados pela igreja católica (as igrejas apostólicas espalhadas
nas regiões da Europa, Ásia, Norte da África e Oriente Médio). Este Cânon
também faz advertência contra textos de hereges, como os marcionitas e
gnósticos. Em relação ao cânon cristão, ele parece indicar os Evangelhos
na ordem que nós temos (Mateus, Marcos, Lucas e João). Para o Cânon
Muratoriano, importante é que os autores sejam testemunhas oculares ou,
pelo menos, tenham entrevistado as testemunhas (como no caso de Lu-
cas). Por isso, Atos dos Apóstolos foi acolhido, por situar-se ao lado do
Evangelho de Lucas. O Cânon Muratoriano acolhe todas as cartas pauli-
nas, menos Hebreus, e todas as universais, menos 3João e 2Pedro, mas
com a inserção do Livro da Sabedoria. Ele se encerra com os Apocalipses
de João e Pedro, este com a observação de que muitos não desejam que
seja lido na igreja.
Com essas propostas, alguns critérios começaram a ficar bem delimi-
tados: os escritos tinham que ser apostólicos ou ao menos redigidos por
pessoas que tinham ligação com os apóstolos (como Marcos e Lucas).

167
FATIPI EAD Guia de Estudos

Esse foi um dos motivos para que o “Pastor de Hermas”, a princípio lido e
aceito, fosse depois excluído das coleções.

curiosidade

A obra O Pastor de Hermas é um texto cristão anônimo de


cunho judaico-apocalíptico. Alguns afirmam que foi escrito
para complementar as exortações das cartas de João às
sete igrejas do Apocalipse, pois ali o visionário faz apelo ao
arrependimento e diversas outras exortações, mas não deixa
claro que comportamento as comunidades deveriam ter para
estarem debaixo da vontade do Cordeiro. Por isso, o texto se
afasta do cunho político no qual o Apocalipse foi escrito para
um cunho mais moral e eclesiológico, dando maior ênfase
à atitude individual dos membros da comunidade. O sentido
judaico está exatamente pela busca pessoal de elevação
espiritual, característica dos ensinos rabínicos da Diáspora
judaica no século 2 d.C., época em que o Pastor de Hermas
foi escrito. Parece que teve bastante aceitação naquele
período, devido à sua relação com o texto do Apocalipse, que
tinha sido escrito há pouco tempo.

3.3. A definição do cânon do NT


Os indícios apontam que, a partir do século II, diversas propostas de
cânon começaram a surgir, mas uma foi de grande importância para a defi-
nição do Novo Testamento. Orígenes de Alexandria (182-254) não apenas
trabalhou por uma definição canônica, como observou de que forma esses
textos eram utilizados pelas igrejas em diversas regiões. Considerando a
autoridade diferenciada que uns textos tinham em comparação com ou-

168
BÍBLIA Introdução ao NT

tros, ele elaborou uma classificação para os escritos que mais circulavam
entre os cristãos das regiões percorridas: a) Primeira classe, os incontes-
táveis: quatro Evangelhos, as treze epístolas de Paulo, 1Pedro, 1João,
Atos dos Apóstolos e Apocalipse; b) Segunda classe, os textos duvidosos:
2Pedro, 2 e 3João, Hebreus, Tiago e Judas; c) Terceira classe, os falsos
escritos: Evangelho dos Egípcios, Evangelho de Tomé, Evangelho dos
Basilidas e o Evangelho de Matias.
Com isto, Orígenes teve em mente o critério apostólico, mas também
o critério de aceitação das comunidades pelos escritos. Aqueles que eram
aceitos sem reservas em todas as comunidades foram considerados su-
periores do que aqueles que enfrentavam reservas ou só eram acolhidos
em algumas comunidades. Ainda assim, os limites do cânon ainda não
estavam determinados e escritos, pois Hebreus e Apocalipse ainda pro-
vocavam intensas discussões se eram escritos apostólicos ou não. Só
para ter um exemplo, Metódio de Olimpo, adversário de Orígenes na Ásia
Menor, considerava todos os livros do Novo Testamento como canônicos,
mais o Apocalipse de Pedro, Barnabé e a Didaquê.
Iniciando o século IV, Eusébio de Cesareia (263-339) debateu o tema
em sua obra “História Eclesiástica” e também estabeleceu três tipos de
textos: a) Os incontestáveis: quatro Evangelhos, Atos, catorze epístolas
de Paulo (incluindo Hebreus), 1Pedro, 1João e, não obrigatoriamente, o
Apocalipse de João; b) Os controversos: Tiago, Judas, 2Pedro, 2 e 3João;
c) Os textos espúrios, que deviam ser rejeitados: Atos de Paulo, Apocalip-
se de Pedro, “Pastor de Hermas”, Barnabé, Didaquê, bem como o Apoca-
lipse de João, caso alguém não o aceitasse como incontestável.
Nas décadas seguintes, vinte e seis livros do Novo Testamento já eram
considerados canônicos, menos Apocalipse de João. Isso se deveu ao
texto de Dionísio de Alexandria que questionava a autoria joanina, como
mostrado anteriormente. No ano de 367, no entanto, o bispo Atanásio, em
sua 39ª carta comemorativa da Páscoa, apresentou de forma convicta o
cânon do Antigo e do Novo Testamentos, sendo que, para o Novo Testa-

169
FATIPI EAD Guia de Estudos

mento, ele designou os vinte e sete livros que temos agora, com a seguin-
te ordem: Evangelhos (os quatro), Atos dos Apóstolos, as sete epístolas
universais (Tiago, 1 e 2Pedro, 1, 2 e 3João, Judas ), as catorze paulinas
(na ordem, apenas mudando Hebreus depois de 2Tessaloninceses e an-
tes das pastorais e Filemom) e Apocalipse. Esses foram definidos como
os únicos inspirados e que serviam como autoridade diante da igreja. Essa
definição passou a vigorar na igreja oriental, ainda que nos séculos se-
guintes houvesse divergência entre manter ou não o Apocalipse de João.
Para a igreja latina, no entanto, essa definição já estava valendo desde
o ano 200, a partir do Cânon Muratoriano e sua premissa da autoridade
apostólica dos textos. Em compensação, a inserção de Hebreus e cinco
das epístolas universais levou bastante tempo e discussões. Nos sécu-
los seguintes, a discussão continuou, mas quando Jerônimo (347-420)
admitiu que o cânon de Atanásio seria o correto, um sínodo romano em
382, presidido pelo papa Dâmaso, o definiu também para a igreja latina.
Agostinho de Hipona (354-430) seguiu Jerônimo e também defendeu o
cânon de Atanásio. Ainda assim, em certos círculos do Ocidente, o livro de
Hebreus não constava do cânon, assim como o Apocalipse ficava ausente
em círculos orientais. Apesar disso, esses dois livros passaram a vigorar
no cânon oficial e permanecem até os nossos dias.

curiosidade

A ordem que temos dos livros do Novo Testamento


atualmente foi fixada com a publicação da Bíblia impressa.
Destaca-se principalmente o fato de as epístolas de Paulo
começarem com Romanos e terminarem com Filemon,
ordenadas da maior até a menor, enquanto Hebreus fica na
“divisa” entre as cartas paulinas e as universais.

170
BÍBLIA Introdução ao NT

ANTES DE VIRAR A PÁGINA

Encerramos aqui nossa jornada pelo Novo Testamento, mas não sua
jornada pelos estudos destes textos tão fundamentais para nossa fé. Es-
peramos que, a partir dos conhecimentos adquiridos nesta disciplina, você
consiga mergulhar de forma mais profunda no estudo dos evangelhos e
epístolas, para entender melhor o processo de formação inicial do cristia-
nismo. Uma disciplina futura, em especial, necessita muito dos conheci-
mentos adquiridos nessa: a exegese do Novo Testamento, onde você es-
tudará com maior profundidade determinado livro, em que as informações
obtidas aqui serão essenciais para compreender melhor a mensagem do
texto. Além disso, você terá uma compreensão melhor de textos que ex-
ploram temas de teologia bíblica, pois os autores dessas obras partem
dos dados que foram expostos aqui. Por fim, e não menos importante,
entender o contexto e os diversos aspectos que cercaram a elaboração
do Novo Testamento é fundamental na prática pastoral, seja na pregação,
estudos, ou mesmo na orientação aos membros, tendo em vista as muitas
interpretações bíblicas na atualidade, muitas delas fundamentadas em ba-
ses equivocadas. Esperamos, assim, que esta disciplina seja um ponto de
partida para uma longa jornada de conhecimento e fundamentação de sua
fé sobre bases sólidas, a partir das Escrituras. Boa viagem.

171
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