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CURSO DE ESCATOLOGIA

Juízo final, Cremona (Itália).

MARÍLIA
2017

______________________________________________________________________
FAJOPA - Faculdade João Paulo II, 41TD6 – ESCATOLOGIA.
Direitos autorais: Dr. Pe. Hugues A. O. E. d‟ANS - Marília / SP, 2º semestre de 2017.
UNIDADE 2 - A ressurreição
1. INTRODUÇÃO

Desde as origens, a Igreja sempre proclamou o querigma da ressurreição: “Se não há


ressurreição de mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, logo é
vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1Cor 15,13-14).

Nossa época caracteriza-se por uma dupla vertente contraditória. Reagindo contra uma fé
demasiadamente dolorista, centrada sobre a paixão e a cruz, desde a renovação do concílio
Vaticano II, a catequese e a liturgia dão um grande relevo à imagem do Cristo glorioso...
embora falem muito pouco sobre o significado da ressurreição em si mesma. Entretanto o
querigma da ressurreição é o coração da nossa fé. Por outro lado, os homens de hoje
recusam tudo o que ultrapassa o empírico, ou seja a metafísica e o sobrenatural: só existe
aquilo que se pode comprovar. Reagem como os filósofos atenienses ao discurso de Paulo
em Atenas: “Às palavras „ressurreição dos mortos‟, uns zombavam, outros declararam:
„Nós te ouviremos sobre isso noutra ocasião‟” (At 17,32).

Tentaremos responder a este duplo desafio através dum estudo rápido das concepções
relativas à morte e à sobrevivência no mundo grego. Em seguida, veremos como surgiu,
aos poucos, a fé na doutrina da ressurreição no Primeiro Testamento e, sobretudo a
resposta decisiva e definitiva dada pela própria ressurreição de Jesus Cristo. Terminaremos
com uma breve exposição do Espiritismo, tão influente entre nós, porque muitos cristãos
falam da Ressurreição em termos de reencarnação, o que constitui uma contradição
absoluta.

2. CONCEPÇÕES RELATIVAS À MORTE E À SOBREVIVÊNCIA NA


ANTGUIDADE GREGA

2.1. A MITOLOGIA
A mitologia grega surgiu da curiosidade que os gregos tinham para explicar a origem da vida
e os problemas existenciais, entre eles a morte e o além. Assim, imaginaram uma infinidade
de deuses imortais (politeísmo) semelhantes aos seres humanos, com suas intrigas, suas
qualidades mas também seus defeitos.

2
Segundo esta mitologia, após a morte do homem só permanece uma “sombra” que desce para
o Hades, termo que, às vezes, se traduz erroneamente por “inferno”. Hades (equivalente de
Plutão na mitologia romana) era o deus do submundo e dos mortos, porém designava
frequentemente tanto o deus quanto o reino que governava. Quando chegava às portas do
submundo, o morto era recebido pelo barqueiro Caronte que o conduzia através dos rios
Estige e Aqueronte até a entrada do mundo inferior. Só transportava aqueles que tinham tido
sepultura e lhe pagavam um pedágio. Por isso, os parentes punham uma moeda na boca dos
defuntos. Após terem sido julgados por três juízes (Eaco, Minos e Radamanto), os absolvidos
eram levados para os Campos Elíseos e os condenados iam para o Tártaro, lugar de eterno
tormento e sofrimento que ficava abaixo do Hades, onde recebiam penas específicas
conforme os erros cometidos durante a sua vida.

2.2. A FILOSOFIA
Na Grécia Antiga, a relação entre corpo e alma foi um assunto amplamente debatido entre os
filósofos. Os mais importantes deles são Sócrates, Platão e Aristóteles. Os três vão exercer
uma grande influência no cristianismo.

SÓCRATES (470 - 399) Possuía uma visão integral do homem, julgando como importante
tanto o corpo quanto a alma para o processo de interação do homem com o mundo.
Considerado culpado de corromper a juventude ateniense e de não acreditar nos deuses do
estado, foi condenado a ingerir cicuta1 que ele tomou dignamente. Muita gente compara a sua
morte à de Cristo.

PLATÃO (427 A 347), apesar de ter sido discípulo de Sócrates, tinha uma visão dualista
do ser humano. Para ele, há uma separação nítida entre corpo e alma (dicotomia), sendo o
homem um misto, e não uma unidade desses dois elementos. O corpo é mortal, mutável e
ininteligível. A alma, por sua vez, é divina, imutável, inteligível (dotada de inteligência) e
eterna: existe antes do nascimento e depois da morte. Ela ocupa um corpo físico e mortal
apenas de maneira provisória. A alma já existia antes de “cair” no corpo, o seu “cárcere”.
O aparente (corpo) se altera e morre; o inteligível (alma) permanece, pois é uma realidade
estável. Platão considerava o corpo como sendo o “túmulo” da alma e a morte como o dia
de sua libertação. Nos seus escritos, o filósofo defende o conceito de “metempsicose”, isto
é a transmigração de uma alma em vários corpos (vegetais e animais, não apenas humanos)
através de várias existências. Por ter renascido repetidas vezes e ter contemplado todas as
1
A cicuta é uma planta altamente tóxica encontrada na Europa e África do Sul. Os gregos antigos a usavam
para matar seus prisioneiros.

3
coisas existentes na terra como no Hades, não há nada que ela não conheça. A alma pensa
até melhor quando, dispensando a companhia do corpo, fica concentrada em si mesma para
tentar apreender a verdade.

A filosofia de Platão, por causa de sua dimensão espiritualista, exercerá uma enorme
influência na teologia cristã que vai “batizá-la”, harmonizando-a com a mensagem cristã,
dando assim nascimento aos vários Platonismos. SANTO AGOSTINHO (354 – 430)
defenderá que o ser humano é a união perfeita de duas substâncias metafisicamente
distintas, o corpo e a alma, sendo a alma superior ao corpo. O Platonismo reinará sozinho
até o século XIII quando S. Tomás introduzirá na sua teologia a filosofia de Aristóteles
sem, entretanto, deixar de lado S. Agostinho que ele cita abundantemente. Inclusive, o
Neo-Platonismo continuará tendo seus fervorosos discípulos até hoje.

ARISTÓTELES (384 - 322) Dizia que o homem é um ser racional que sabe que vai morrer
um dia. O filósofo se aproxima mais das ideias de Sócrates do que as de Platão, pois parte do
princípio de que, as ações humanas são executadas em conjunto, corpo e alma, todas num
processo contínuo de realização. Para ele, a alma e o corpo coincidem de tal modo que um
não sobrevive sem o outro; formam uma unidade substancial perfeita de tal maneira que a
alma perece ao mesmo tempo que o corpo.

S. TOMÁS (1225 – 1274) conseguirá, a partir dos dados bíblicos, construir uma síntese
original juntando a intuição espiritualista de Platão sobre imortalidade da alma com a
metafísica materialista de Aristóteles.
“Não mais, como Aristóteles, uma forma que perece com o corpo. Mas uma forma
espiritual que não se destrói na morte, mas também que não se espiritualiza
totalmente. Manterá uma relação transcendental com a matéria. A alma garantirá a
continuidade do ser humano e a unicidade de seu corpo, já que ela é a sua forma. Ela
organiza-o, faz da „matéria prima‟ um corpo humano. A alma racional é a única
forma do homem. Ela só recebe seu ser de Deus já como forma do corpo, não
anterior a ele. Tomás chegará mesmo a afirmar que a alma é mais perfeita
quando unida ao corpo do que quando separada. A vinculação entre a alma e o
corpo para Tomás se faz na ordem do existir e do conhecer. Por isso a alma separada
diz relação profunda ao seu corpo. Nunca se transformará em „puro espírito‟” 2

3. A DOUTRINA DA RESSURREIÇÃO NA BÍBLIA

3.1. ANTROPOLOGIA BÍBLICA E SOBREVIVÊNCIA

2
LIBÂNIO, João Batista; BINGEMER, Maria Clara L. Escatologia Cristã: O Novo Céu e a Nova Terra.
Petrópolis: Vozes, 1985, p. 183-184. (Os destaques são nossos).

4
A doutrina bíblica de ressurreição não se compara com a ideia grega de sobrevivência, nem
com a das demais mitologias dos povos circunvizinhos.

Em primeiro lugar, desde o princípio, a Bíblia afirma categoricamente que “o Senhor, nosso
Deus é UM” (Dt 6,4) em ruptura total com as outras religiões politeístas.

Por outro lado, segundo as Escrituras, o homem constitui uma unidade perfeita; desconhecem
totalmente a separação corpo - espírito. Quando alguém morre, morre na sua totalidade e
quando ressuscita, ressuscita totalmente. No começo, ainda não existe a doutrina da
ressurreição. Os mortos, maus e justos, descem para o Sheol,3 “a mansão dos mortos”, um
lugar de trevas e de pó, o país do esquecimento e do silêncio. Gozam duma relativa existência,
porém inferior porque nem podem mais orar nem louvar a Deus: “Não são os mortos que
louvam o Senhor, eles que descem todos ao Sheol” (Sl 115,17).

O Deus Único é Senhor da vida e da morte: “O Senhor faz morrer e faz viver, faz descer ao
Sheol e de lá voltar” (1S 2,6; Dt 32;39). Os milagres realizados pelo profeta Elias (1R 17,17-
23: “ressurreição” do filho da viúva de Sarepta) e pelo seu discípulo Eliseu (2R 4,32-36:
“ressurreição” do filho da Sunamita; 2R 13,21b: “ressurreição” póstuma dum homem no
sepulcro de Eliseu) não são bem ressurreições, no sentido pleno do termo, mas sim
revivificações4 mostrando que Jahweh tem o poder de chamar de volta os que tinham descido
no scheol: “Ele resgata tua vida do sheol” (Sl 103, 4). Ele não abandona seus amigos ao sheol
nem deixa seus fiéis ver a corrupção (Sl 16,10).

3.2. ESBOÇOS DUMA DOUTRINA DA RESSURREIÇÃO NO PRIMEIRO


TESTAMENTO

3.2.1. A RESSURREIÇÃO DO POVO ELEITO

Em Israel, o sentimento de pertencer ao Povo eleito é muito forte. A preocupação primeira


não é individual, mas coletiva: por causa de sua Aliança e de sua fidelidade, Deus não pode

3
Sheol é um termo hebraico citado 65 vezes no Primeiro Testamento; no Segundo Testamento, escrito em
grego, é traduzido por hades e aparece 10 vezes. Embora seja traduzido às vezes como “inferno”, o termo não é
muito feliz porque o sentido é bem diferente do atual.
4
A mesma observação vale por Lázaro (Jo 11) e o filho da viúva de Naim (Lc 7,11-17). Com efeito, todas essas
pessoas voltaram a morrer. Realmente, Jesus Cristo é o “PRIMOGÊNITO dentre os mortos” (Col 1,18).

5
abandonar seu povo. Israel não pode morrer. Após a provação do exílio, Deus ressuscitará seu
povo (Ez 37, 1-14) assim como ossos ressequidos podem voltar à vida: “Pronunciei o oráculo
(...), o sopro entrou neles (os mortos) e eles reviveram; puseram-se de pé: era um exército
numeroso” (Ez 37, 10). Através dessa metáfora, Ezequiel prevê a volta do Povo para a Terra
Prometida.

Teremos que esperar o livro de Jó para que comece a aparecer a preocupação com a
retribuição pessoal: “Eu sei que meu defensor está vivo e que no fim se levantará do pó. E
mesmo que me tenham destruído a pele, na minha carne contemplarei a Deus. Eu, sim, hei de
contemplá-lo! Meus olhos o verão, ele não será um estranho!” (Jó 19,25-27).5.

3.2.2. A RESSURREIÇÃO INDIVIDUAL

Um passo significativo vai ser dado na época de Antíoco IV Epifânio. Em 164 aC, quis
helenizar à força seu território proibindo o culto e os costumes judaicos tais como as lei
sagradas do sábado e da circuncisão. Colocou no templo uma estátua do deus grego Zeus ao
qual se sacrificam porcos, supremas profanações para os Judeus! Quem desobedecia era
perseguido. Tudo isso provocou a revolta de Matatias e de seus filhos, os irmãos Macabeus.

Surge então a seguinte interrogação: “o que acontece com os santos mártires que deram a vida
pela fé”? O apocalipse do livro de Daniel responde: “"Muitos daqueles que dormem no pó da
terra despertarão, uns para uma vida eterna, outros para a ignomínia, a infâmia
eterna." (Dn 12, 2). Esse texto, de inspiração farisaica, professa de repente a fé na
ressurreição, sem dar nenhuma explicação. Notemos que a morte é comparada a um sono, mas
que nem todos ressuscitarão. Subentende-se que haverá um juízo porque alguns serão
destinados à vida eterna e outros ao opróbrio eterno.

No segundo livro dos Macabeus, também de redação farisaica, escrito um pouco antes da
ocupação romana (63 aC), o segundo filho martirizado proclama corajosamente a sua fé na
ressurreição: “Maldito, tu nos arrebatas a vida presente, mas " o Rei do universo nos
ressuscitará para a vida eterna, se morrermos por fidelidade às suas leis". Aqui a fé na
ressurreição é justificada pelo fato que Deus é o Senhor de todo o universo, isto é o criador de
todas as coisas. Entretanto, o quarto filho restringe a ressurreição aos justos quando declara ao
rei: “É uma sorte desejável perecer pela mão humana com a esperança de que Deus nos
ressuscite; mas, para ti, certamente não haverá ressurreição para a vida." (2Mac 7,14). Se
Deus pode dar a vida, Ele também pode devolvê-la àqueles que morrem na justiça, em pura

5
A Vulgata traduz: “Pois eu sei que o meu redentor vive e que, no último dia, eu ressuscitarei da terra e, de
novo, serei revestido da minha pele; e, na minha carne, eu verei o meu Deus”. No epílogo (Jó 42,16s), o texto
grego acrescenta: “Está escrito que ele (Jó) ressuscitará de novo com aqueles que o Senhor ressuscitará”. Citado
por A BÍBLIA - Tradução Ecumênica, Ed. Loyola: S. Paulo, 1994, p. 1196 e 1226.

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gratuidade. Por fim, merece destaque o sacrifício pelos pecados pedido por Judas Macabeu
que

"fez uma coleta, enviando a Jerusalém cerca de dez mil dracmas, para que se
oferecesse um sacrifício pelos pecados: belo e santo modo de agir, decorrente de
sua crença na ressurreição, mas, se ele acreditava que uma bela recompensa
aguarda os que morrem piedosamente, era esse um bom e religioso pensamento; eis
por que ele pediu um sacrifício expiatório para que os mortos fossem livres de suas
faltas" (2 Mc 12,43-45).

Essa passagem é a única que sugere a ideia de purgatório como veremos na unidade 5.

Terminando essa parte, podemos observar que a ideia de ressurreição surgiu lentamente nos
livros do Primeiro Testamento e que foi crescendo a partir do terceiro século antes de Cristo.
Podemos até ficar decepcionados, ainda mais se deixamos de lado o secundo livro dos
Macabeus, considerado apócrifo pelas comunidades evangélicas. Falando em apócrifo, nessa
linha temos ainda uma série de desenvolvimentos nos livros de Enoque e dos Jubileus para
citar os mais importantes.

3.3. A DOUTRINA DA RESSURREIÇÃO NO NOVO TESTAMENTO

Na época de Jesus, os fariseus e os saduceus representavam o povo judeu perante a


autoridade romana. Ocupavam as 71 cadeiras do Sinédrio (Sanhedrim), a Corte Suprema de
Israel, com a missão de administrar a justiça, interpretando e aplicando a Torá, tanto oral
como escrita. Há muitas semelhanças entre os dois grupos, assim como diferenças
importantes.

Os saduceus eram aristocratas ricos e poderosos; ocupavam o cargo de sumo sacerdote e a


maioria dos lugares do Sinédrio. Eram mais conservadores do que os Fariseus. Aceitando
unicamente o Pentateuco, julgavam não encontrar nele a afirmação da ressurreição dos mortos
(Mt 22,23; At 23:8) e qualquer tipo de vida depois da morte. Também não acreditavam nos
anjos e demônios (Atos 23:8). A discussão que tiveram com Jesus a respeito da mulher que
teve sete maridos (Mc 12,18-27; Mt 22,23-33 e Lc 20,27-38) tinha como objetivo ridicularizar
a fé na ressurreição da qual tinham uma visão grosseira (como muita gente hoje!). Jesus
respondeu citando uma passagem do Pentateuco: o Deus de Abraão, Isaac e Jacó é o Deus dos
Vivos e não dos mortos (Ex 3,6). A citação evoca a eleição divina e a fidelidade de Deus em
relação aos seus eleitos: a morte é incapaz de rompê-la.

Os fariseus pertenciam em sua maioria à classe média e eram muito mais estimados pelo povo
do que os saduceus. Consideravam a tradição oral com a mesma autoridade do que a tradição
escrita; procuravam obedecer rigorosamente a estas tradições juntamente com a Torá.

7
Acreditavam na ressurreição dos mortos (At 23,6) e numa vida após a morte, com a
recompensa para os justos e a condenação para os injustos. Acreditavam na existência dos
anjos e demônios (At 23,8).

Se Jesus entrou em conflito com os fariseus, foi por causa de seu formalismo religioso e da
sua autossuficiência; doutrinalmente compartilhava com eles a fé na ressurreição à qual
dará uma dimensão nunca imaginada até então, identificando-se com ela: “Eu sou a
ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo
aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá.” (Jo 11,25-26). A ressurreição de Cristo é a
garantia da nossa própria ressurreição e o coração da nossa fé. A antiga esperança tornou-
se certeza e Boa Nova: “Ressurexit sicut dixit, alleluia! Ressuscitou como disse, Aleluia!”6

Saulo de Tarso, era um intelectual fariseu formado na escola de Gamaliel (At 22,3), o
mesmo que defenderá os apóstolos julgados pelo Sinédrio por causa de sua fé na
ressurreição (At 5,30.34-39). No caminho de Damasco, de repente, Saulo fez a experiência
do ressuscitado: “Eu sou Jesus a quem persegues” (At 9,5). Cristo, Cabeça do corpo
místico, é atingido pessoalmente quando alguns de seus membros são perseguidos. O
caminho percorrido por Saulo não o levava somente para Damasco mas sobretudo para o
encontro com o Ressuscitado. Foi uma experiência mística tão intensa, que todas as suas
antigas certezas transformaram-se em trevas até que a Luz da Vida Nova resplandeça no
dia do seu batismo (At 9,6-19) e imprima nele uma marca indelével. Daqui para a frente,
ele se tornará o apóstolo das Nações.

3.4. A DOUTRINA DA RESSURREIÇÃO EM 1 CORÍNTIOS 15

No decorrer de sua segunda viagem missionária, Paulo visitou o famoso porto de Corinto (At
18,1-18) onde permanecerá durante 18 meses, desde o final de 50 até os meados de 52.
Fundou uma comunidade florescente composta principalmente por uma população humilde.
Alguns anos mais tarde, por volta da Páscoa de 57, durante a temporada de três anos que ele
passou em Éfeso por ocasião de sua terceira viagem missionária, Paulo recebe uma delegação
de três pessoas levando uma carta da comunidade de Corinto (1Cor 16,17) contendo
6
Citação do hino mariano “Regina caeli” que substitui o tradicional “Angelus” durante o tempo pascal:
V. :Rainha do céu, alegrai-vos! Aleluia!
R.: Porque quem merecestes trazer em vosso seio. Aleluia!
V. :Ressuscitou como disse! Aleluia!
R.: Rogai a Deus por nós! Aleluia!
V.: Exultai e alegrai-Vos, ó Virgem Maria! Aleluia!
R.: Porque o Senhor ressuscitou verdadeiramente! Aleluia.

8
provavelmente, entre outras, algumas interrogações sobre a ressurreição dos mortos. Em
resposta a estas interrogações, o Apóstolo redigiu a chamada “primeira carta aos Coríntios”7.
Todo o capítulo 15 merece ser lido, comentado e meditado até de joelhos porque faz uma
explanação completa acerca da doutrina cristã da ressurreição. Lembro que foi redigido por
alguém que não conheceu o Jesus terrestre, mas por alguém que foi beneficiado por uma
aparição do Ressuscitado (v. 8-9): isso é fundamental. Paulo não transmite uma teoria nova,
mas uma revelação que ele recebeu do próprio Jesus Ressuscitado e, posteriormente, dos
primeiros discípulos de Cristo. A fé não nasce conosco: nós a recebemos de nossos pais, da
comunidade cristã e devemos testemunhá-la. Isso se chama a tradição (vem do latim traditio
que significa “transmissão”). Temos aqui um testemunho de primeira mão, levando em conta
que, naquela época, nenhum evangelho tinha ainda sido escrito.

3.3.1. O FATO DA RESSURREIÇÃO


1.Eu vos lembro, irmãos, o Evangelho que vos preguei, e que tendes acolhido, no
qual estais firmes. 2.Por ele sereis salvos, se o conservardes como vo-lo preguei. De
outra forma, em vão teríeis abraçado a fé.

Paulo recorda a Boa Notícia que ele anunciou aos Coríntios, inicialmente muito bem recebida
(v. 1-2). Em seguida, explicita o conteúdo de sua pregação citando uma antiga profissão de fé
(v. 3b-8), escrita em grego arcaico8, datada por volta dos anos de 35 a 45, que ele mesmo
recebeu, provavelmente da comunidade primitiva. É o mais antigo texto cristão citado no
Novo Testamento:

3.Eu vos transmiti primeiramente o que eu mesmo havia recebido: que Cristo
morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; 4.foi sepultado, e ressurgiu ao
terceiro dia, segundo as Escrituras; 5.apareceu a Cefas, e em seguida aos Doze.
6.Depois apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, dos quais a maior
parte ainda vive (e alguns já são mortos); 7.depois apareceu a Tiago, em seguida a
todos os apóstolos. 8.E, por último de todos, apareceu também a mim, como a um
abortivo.

Há um sincronismo voluntário insistindo sobre o fato que a morte e a ressurreição de Cristo se


cumpriram segundo as Escrituras. São as chamadas “provas das Escrituras”, isto é são
citações do Primeiro Testamento, aqui não especificadas, predizendo tudo o que ia acontecer.
Há uma insistência sobre o fato que Cristo morreu por nossos pecados realmente, não
aparentemente como os docetas afirmavam, tanto é que foi sepultado. A ressurreição não é
uma simples sobrevivência. O verbo grego “ressurgiu” é um neologismo que pode também
ser traduzido por “erguer-se outra vez”, ou ainda “despertar”, visto que a morte era

7
Paulo já tinha enviado uma carta “pré-canônica” (1Cor 5,9-11) que foi perdida. De tal modo que a “primeira
carta aos Coríntios”, na realidade é a segunda, e a “segunda carta aos Coríntios” a terceira!
8
O exegeta Joaquim JEREMIAS estima que o original deva ter sido escrito em aramaico.

9
comparada a um sono. A expressão “no terceiro dia” significa que a ressurreição não é um
mito mas sim um fato histórico porque é datada de modo preciso. A sua historicidade é
comprovada por uma série de seis aparições que seguem uma ordem cronológica e não de
dignidade (Tiago é citado após os 500 irmãos). Surge entretanto um problema hermenêutico
porque a aparição às mulheres não é mencionada. Alguns exegetas pensam que se tratando
duma lista oficial, é provável que, segundo a mentalidade antiga, não foi citada porque o
testemunho da mulher não tinha valor jurídico. Porém, por ser muito próxima aos eventos, é
possível também que não tinham conhecimento dela assim como de outras aparições
mencionadas nos sinóticos.

1) CEFAS é o nome arameu de Pedro. Ele goza dum estatuto privilegiado porque foi
designado por Jesus para ser seu sucessor (Mt 16,18). No evangelho de Lucas, os discípulos
de Emaús, ao voltarem para Jerusalém para relatar o que tinha acontecido, foram informados
que o Senhor tinha ressurgido e aparecido a Simão (Cf. Lc 24,33-34). Quando João chega
primeiro ao túmulo, por deferência, deixa Simão Pedro entrar primeiro (cf. Jo 20,4-6).
2) OS DOZE. Alguns manuscritos corrigem: “os Onze” porque Judas tinha morrido. Na
realidade, a fórmula é consagrada pelo seu uso histórico. Não se trata duma contagem
matemática, mas designa o grupo dos apóstolos assim como outrora designava o número das
tribos de Israel. (Cf. Mc 3,14). “Esse número será restabelecido depois da deserção de Judas
(At 1,26) para ser conservado eternamente no céu (Mt 19,28p; Ap 21,12-14+)9.
3) OS 500 IRMÃOS. Essa aparição não é mencionada nos evangelhos. A sua menção é
importante porque significa que as aparições não são alucinações de alguns iluminados. Com
tanta gente reunida, de uma só vez, não se pode afirmar que todos se enganaram ou foram
enganados. O fato de que “alguns ainda estão em vida” reforça a historicidade da ressurreição
porque são testemunhas oculares que ainda podem ser interrogadas.
4) TIAGO. Provavelmente trata-se de S. Tiago, o Justo, responsável da Igreja de
Jerusalém. A seu respeito, Paulo escreveu: “Passados três anos, fui a Jerusalém para ver a
Pedro, e fiquei com ele quinze dias. E não vi a nenhum outro dos apóstolos, senão a Tiago,
irmão do Senhor.” (Ga, 1,18-19). Alguns exegetas pensam que “irmão” designa uma filiação
espiritual; outros acham que Tiago era mesmo parente de Jesus.
5) OS APÓSTOLOS são os “enviados”. No começo, este título não se limitava ao grupo
dos Doze. Foi S. Lucas que vai restringir essa apelação ao grupo dos Doze escrevendo que
Jesus “ chamou os discípulos e, dentre eles, escolheu doze aos quais deu o nome de

9
Nota da BÍBLIA DE JERUSALÉM, Ed. Paulinas:S. Paulo, 1981, p.1326.

10
apóstolos” (Lc 6,13). Silvano e Timóteo (1Ts 2,7) assim como Barnabé compartilham este
título com Paulo. Existe também o “carisma do apostolado” (1Cor 12,28; Ef 4,11).
6) PAULO se considera como “abortivo” (a gente diria hoje “prematuro”) não tanto pelo
fato de ser o último da lista, mas sobretudo por não ter conhecido o Jesus histórico. Ora, uma
das condições para ser apóstolo, era de ter acompanhado Jesus durante a sua vida terrestre,
desde o batismo de João, e ser testemunha de sua ressurreição (Cf. At 1,21-22).

9.Porque eu sou o menor dos apóstolos, e não sou digno de ser chamado apóstolo,
porque persegui a Igreja de Deus. 10.Mas, pela graça de Deus, sou o que sou, e a
graça que ele me deu não tem sido inútil. Ao contrário, tenho trabalhado mais do que
todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo. 11.Portanto, seja eu ou
sejam eles, assim pregamos, e assim crestes.

Entretanto, apesar de sua indignidade por ter perseguido a assembleia de Deus, Paulo
reivindica o título de “apóstolo”. Entretanto, ninguém pode atribuir esse título a sim mesmo:
precisa ter recebido um mandato por parte dos apóstolos. É por causa disso que Paulo tem o
cuidado de mencionar sua visita a Jerusalém onde encontrou as colunas da Igreja, Pedro e
Tiago (ver citação acima: Ga, 1,18-19).
Por outro lado, Paulo está convicto que sua experiência é da mesma ordem que a dos demais
apóstolos: “Não sou eu apóstolo? Não sou livre? Não vi eu a Jesus Cristo Senhor nosso? Não
sois vós a minha obra no Senhor? Se eu não sou apóstolo para os outros, ao menos o sou para
vós; porque vós sois o selo do meu apostolado no Senhor.” (1Cor 9,1-2).
“O evangelho que por mim foi anunciado não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem
aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo.” (Ga 1,11-12). “Não nos
pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus, o Senhor. (...) Deus, que disse que das trevas
resplandecesse a luz, é quem resplandeceu em nossos corações, para iluminação do
conhecimento da glória de Deus, na face de Jesus Cristo” (2Cor 4,5-6).
A gente percebe que a carta foi ditada quando Paulo se exalta: “Trabalho mais do que todos
eles!”... Porém, humildemente, atribui o fruto de seu apostolado, não a si mesmo, mas à obra
da graça agindo nele. Em seguida, proclama a centralidade da ressurreição:

12.Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de
vós que não há ressurreição de mortos? 13.Se não há ressurreição dos mortos,
nem Cristo ressuscitou. 14.Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e
também é vã a vossa fé. 15.Além disso, seríamos convencidos de ser falsas
testemunhas de Deus, por termos dado testemunho contra Deus, afirmando que ele
ressuscitou a Cristo, ao qual não ressuscitou (se os mortos não ressuscitam). 16.Pois,
se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. 17.E se Cristo
não ressuscitou, é inútil a vossa fé, e ainda estais em vossos pecados. 18.Também
estão perdidos os que morreram em Cristo. 19.Se é só para esta vida que temos
colocado a nossa esperança em Cristo, somos, de todos os homens, os mais dignos
de lástima. Mas não! Cristo ressuscitou dentre os mortos, como primícias dos
que morreram!

11
Vimos que para os gregos, a doutrina da ressurreição não era nada evidente. Mergulhados
num ambiente marcado pela cultura helenística, alguns membros da Igreja de Corinto
começaram a negá-la. O próprio Paulo, em Atenas, sofreu a mesma oposição ao expor sua fé
aos areopagitas (At 17,32).

21.Com efeito, se por um homem veio a morte, por um homem vem a ressurreição
dos mortos. 22.Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos
reviverão. 23.Cada qual, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; em
seguida, os que forem de Cristo, na ocasião de sua vinda. 24.Depois, virá o fim,
quando entregar o Reino a Deus, ao Pai, depois de haver destruído todo principado,
toda potestade e toda dominação. 25.Porque é necessário que ele reine, até que
ponha todos os inimigos debaixo de seus pés. 26.O último inimigo a derrotar será
a morte, porque Deus sujeitou tudo debaixo dos seus pés. 27.Mas, quando ele
disser que tudo lhe está sujeito, claro é que se excetua aquele que lhe sujeitou todas
as coisas. 28.E, quando tudo lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho
renderá homenagem àquele que lhe sujeitou todas as coisas, a fim de que Deus
seja tudo em todos.

Colocando Adão e Cristo em paralelismo, Paulo quer demonstrar a superioridade de Jesus,


vitorioso do pecado e do “último inimigo”, a morte. É uma visão otimista da história,
contrariamente á filosofia de Filão que tinha uma visão pessimista do mundo. Segundo ele, no
começo existia o Homem perfeito; quanto mais a gente se afasta dele, tanto mais aumenta a
imperfeição da humanidade. O ideal consiste em voltar para trás para reencontrar a perfeição
original. Paulo tem um pensamento progressista e cheio de otimismo: estamos caminhando
para a nossa perfeição absoluta. Sto. Agostinho, baseando-se nesta passagem, elaborará a
doutrina do pecado original, mas o pensamento de Paulo é outro.

29.De outra maneira, que intentam aqueles que se batizam em favor dos mortos? Se
os mortos realmente não ressuscitam, por que se batizam por eles? 30.E nós, por que
nos expomos a perigos a toda hora? 31.Cada dia, irmãos, expondo-me à morte, tão
certo como vós sois a minha glória em Jesus Cristo nosso Senhor. 32.Se foi por
intenção humana que combati com as feras em Éfeso, que me aproveita isso? Se os
mortos não ressuscitam, comamos e bebamos, porque amanhã morreremos.
33.Não vos deixeis enganar: Más companhias corrompem bons costumes.
34.Despertai, como convém, e não pequeis! Porque alguns vivem na total ignorância
de Deus - para vergonha vossa o digo.

O “comer e beber”, embora sem excesso, era um lema do epicurismo, um sistema criado pelo
filósofo ateniense Epicuro de Samos (século IV a.C). Para ele e seus discípulos, a felicidade
reside no prazer da vida presente, considerando sem sentido as angústias em relação à morte e
a preocupação com o destino.

3.3.2. O MODO DA RESSURREIÇÃO


35.Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? E com que corpo vêm?
36.Insensato! O que semeias não recobra vida, sem antes morrer. 37.E, quando
semeias, não semeias o corpo da planta que há de nascer, mas o simples grão, como,
por exemplo, de trigo ou de alguma outra planta. 38.Deus, porém, lhe dá o corpo
como lhe apraz, e a cada uma das sementes o corpo da planta que lhe é própria.

12
39.Nem todas as carnes são iguais: uma é a dos homens e outra a dos animais; a das
aves difere da dos peixes. 40.Também há corpos celestes e corpos terrestres, mas
o brilho dos celestes difere do brilho dos terrestres. 41.Uma é a claridade do sol,
outra a claridade da lua e outra a claridade das estrelas; e ainda uma estrela difere da
outra na claridade.

Esse “como” da ressurreição nos perturba até hoje. Como só conhecemos o ponto de partida,
só podemos entrever o final através da analogia, de comparações. Primeiro, Paulo parte da
imagem da semente que é bastante óbvia: planta-se um grão que apodrece e nasce uma planta
diferente, porém não totalmente: uma semente de arroz dá arroz e nunca feijão. Há um
elemento de continuidade que é dado por Deus. Uma morte aparente dá lugar a uma vida mais
ampla e intensa. Assim o homem terrestre é semente de outro homem espiritual, diferente do
primeiro, mas em continuidade com ele. Para o Budismo, no Nirvana nos dissolveremos como
uma gota d‟água no oceano. Nós, cristãos, acreditamos que não perderemos a nossa
identidade, o nosso “eu”.10

Em seguida, o Apóstolo parte do nosso entendimento que é limitado. Só conhecemos uma


ínfima parte da realidade. Existem mil e umas formas diferentes de ser: há corpos terrestres e
corpos celestes, e mesmo entre eles existem claridades diferentes. No Credo afirmamos que
Deus criou não somente as coisas visíveis, mas também as invisíveis.

42.Assim também é a ressurreição dos mortos. Semeado na corrupção, o corpo


ressuscita incorruptível; 43.semeado no desprezo, ressuscita glorioso; semeado na
fraqueza, ressuscita vigoroso; 44.semeado corpo animal, ressuscita corpo
espiritual. Se há um corpo animal, também há um espiritual. 45.Como está escrito:
O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente (Gn 2,7); o segundo Adão é espírito
vivificante. 46.Mas não é o espiritual que vem primeiro, e sim o animal; o espiritual
vem depois. 47.O primeiro homem, tirado da terra, é terreno; o segundo veio do
céu. 48.Qual o homem terreno, tais os homens terrenos; e qual o homem celestial,
tais os homens celestiais. 49.Assim como reproduzimos em nós as feições do
homem terreno, precisamos reproduzir as feições do homem celestial. 50.O que
afirmo, irmãos, é que nem a carne nem o sangue podem participar do Reino de
Deus; e que a corrupção não participará da incorruptibilidade. 51.Eis que vos
revelo um mistério: nem todos morreremos, mas todos seremos transformados,
52.num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta (porque a
trombeta soará). Os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos
transformados. 53.É necessário que este corpo corruptível se revista da
incorruptibilidade, e que este corpo mortal se revista da imortalidade.

Aplicando o raciocínio anterior á doutrina da ressurreição, Paulo destaca 6 elementos


contários; corrupção e incorruptibilade, desprezo e glória, fraqueza e força, corpo animal e
corpo espiritual, alma vivente e espírito vivificante, homem terreno e homem celestial. O que
aparece em primeiro lugar é aquilo que é corruptível. Uma certeza é que “a corrupção não
participará da incorruptibilidade” (v.50). Segue então a revelação dum mistério: “Nem todos

10
A título de ilustração, coloquei uma linda reflexão “Voltarei a abraçar meu ente querido depois da morte?”
no final desta unidade.

13
morreremos, mas todos seremos transformados” (v.52). Assim como muito cristãos, Paulo
pensava que a Parusia seria iminente, ainda no decorrer de sua vida. Era mais uma esperança
do que uma certeza. Nesse ponto, ele errou, mas isso não prejudica a sua afirmação de fé:
todos nós seremos TRANS-FORMADOS num piscar de olho e não aniquilados! Existe um
elemento de discontinuidade (o apodrecimento de nosso corpo mortal) e, ao mesmo tempo, a
afirmação de um elemento de continuidade: o nosso “EU” que perdura, já através das
transformações que sofre nosso corpo no mundo presente, e que perdurará para sempre no
mundo futuro. Essa certeza culmina, como não poderia deixar de ser, com um hino de júbilo e
de gratidão a Deus:

3.3.3. HINO TRIUNFAL E CONCLUSÃO


54.Quando este corpo corruptível estiver revestido da incorruptibilidade, e quando
este corpo mortal estiver revestido da imortalidade, então se cumprirá a palavra da
Escritura: 55.A morte foi tragada pela vitória (Is 25,8). Onde está, ó morte, a tua
vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão (Os 13,14)? 57.Graças, porém, sejam
dadas a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo! 58.Por
consequência, meus amados irmãos, sede firmes e inabaláveis, aplicando-vos cada
vez mais à obra do Senhor. Sabeis que o vosso trabalho no Senhor não é em vão."

Em conclusão, temos que evitar de falar da ressurreição em termos meramente humanos. Só


podemos vislumbrar o que ela significa através da via da analogia (utilizando imagens,
símbolos e comparações) ou da antítese (opondo contrários). Não podemos “dizer” realmente
o que é a ressurreição porque ela escapa ao nosso empirismo; só podemos evocá-la e sugeri-
la. Entretanto, não é uma ilusão nem uma alucinação: fundamenta-se sobre um acontecimento
histórico comprovado por várias testemunhas oculares, porém que só pode ser alcançado na
sua plenitude através duma atitude de fé correspondente. “Nesta fé quero viver e morrer!”11.

4. DADOS FUNDAMENTAIS DA FÉ NA RESSURREIÇÃO12


Ao falar da vida eterna, temos que distinguir um elemento de continuidade e, ao mesmo
tempo, um elemento de descontinuidade. Continuidade no sentido de que essa nossa vida não
se perde no nada e prossegue na vida eterna. Descontinuidade, no sentido de que são situações
diferentes.
Com o dogma da ressurreição da carne queremos dizer que:
a) o homem todo chega à sua plenitude de perfeição, na sua dupla dimensão de ser
espiritual e material, corpo e alma;
b) há identidade de pessoa entre o ser humano que viveu a história terrestre e o que
ressuscitará;

11
François VILLON, Balada para Nossa Senhora, 1461.
12
Retomamos aqui a síntese feita pelo Pe. LIBÂNIO, op. cit. p.199.

14
c) a plenitude do homem se alcança no final dos tempos;
d) a vida eterna é um dom de Deus;
e) o mundo material participará da glorificação plena do homem;
f) já imediatamente depois da morte, o ser humano pode estar vivo com Deus, com seu
“eu” pessoal.

Dois fatos centrais da Revelação afetam diretamente a antropologia: a criação do homem por
Deus e o mistério da Encarnação do Verbo divino. Esse duplo fato revelado postula para o ser
humano:
a) um núcleo pessoal indestrutível na sua consciência e liberdade;
b) uma relação intrínseca, essencial entre matéria e espírito, de modo que um espírito
desencarnado já não é um ser humano;13
c) o destino do homem está ligado ao destino dos outros homens e do mundo; o homem é
um ser individual e social.14
Qualquer esquema teológico-interpretativo deve levar em consideração tais elementos e dar
conta de todos eles. Do contrário, não se trata de verdadeira interpretação do dogma, mas de
deturpação.

5) IRREPETIBILIDADE E UNICIDADE DA VIDA HUMANA. OS PROBLEMAS


DA REENCARNAÇÃO15
A reencarnação é uma concepção nascida no paganismo e que contradiz absolutamente a
bíblia e a tradição da Igreja. Com efeito, pretende que:
1) Existem muitas existências terrestres;
2) Há uma lei na natureza que impele a um contínuo progresso para a perfeição;
3) A meta final é atingida pelos próprios méritos;
4) Através de suas sucessivas reencarnações, a alma chegará a um estado definitivo em
que, finalmente, viverá sempre livre do corpo e independente da matéria (negação da
ressurreição).

Estes quatro elementos que constituem a antropologia reencarcionista contradizem as


afirmações centrais da fé cristã. O cristianismo defende uma dualidade, a reencarnação um

13
Retomada do pensamento de S. Tomás de Aquino: “a alma é mais perfeita quando unida ao corpo do que
quando separada” (cf. citação na p. 4 desta unidade).
14
Cf. “ a comunhão dos santos” na unidade anterior.
15
Síntese das reflexões feitas pela COMISSÃO INTERNACIONAL DE TEOLOGIA. A esperança cristã na
ressurreição. Algumas questões atuais de escatologia. Vozes: Petrópolis, 1994, p. 52-55.

15
dualismo no qual o corpo é mero instrumento da alma. O reencarnacionismo nega o inferno e
a ressurreição da carne.

Porém o erro mais grave consiste na negação da soteriologia cristã: a alma se salva pelo seu
próprio esforço, reduzindo assim a nada o sacrifício expiatório do Cristo. O ponto central da
soteriologia do Novo Testamento é resumido nestes termos: Deus “nos agraciou em seu Bem-
Amado. Nele temos a redenção por virtude de seu sangue, a remissão dos pecados, segundo a
riqueza de sua graça que derramou profundamente em nós” (Ef 1,6-8). Somos salvos
gratuitamente por pura graça divina, não pelos nossos esforços individuais.

O segundo erro é a repetibilidade da vida defendida pelos reencarcionistas. Contrapõe-se à


afirmação da carta aos Hebreus 9,27: “É um fato que os homens devem morrer uma só vez”.
O curso da vida humana é único e o modo como nela agimos tem conseqüências irrevogáveis,
benéficas ou maléficas. Somos responsáveis de nossos atos que têm valor de eternidade.

RESUMINDO

CEC 1015. «Caro salutis est cardo – A carne é o eixo da salvação» (TERTULIANO). Nós
cremos em Deus, que é o Criador da carne; cremos no Verbo que Se fez carne para remir a
carne; cremos na ressurreição da carne, acabamento da criação e da redenção da carne.

CEC 1016. Pela morte, a alma é separada do corpo; mas, na ressurreição, Deus restituirá a
vida incorruptível ao nosso corpo transformado, reunindo-o à nossa alma. Tal como Cristo
ressuscitou e vive para sempre, todos nós ressuscitaremos no último dia.

CEC 1017. «Nós cremos na verdadeira ressurreição desta carne que possuímos
agora» (602). No entanto, semeia-se no túmulo um corpo corruptível e ressuscita um corpo
incorruptível (1Cor 15,42), um «corpo espiritual» (1Cor 15,44).

CEC 1018. Em consequência do pecado original, o homem deve sofrer a morte corporal, «de
que estaria isento, se não tivesse pecado».

CEC 1019. Jesus, Filho de Deus, sofreu livremente a morte por nós, numa submissão total e
livre à vontade de Deus seu Pai. Pela sua morte, Ele venceu a morte, abrindo assim a todos
os homens a possibilidade da salvação.

++++++++++++

16
APROFUNDANDO

VOLTAREI A ABRAÇAR MEU ENTE QUERIDO DEPOIS DA MORTE?16

© Maridav / Shutterstock
MORRER É UMA BÊNÇÃO,
É O BEIJO DE DEUS QUE NOS DESPERTA PARA UMA NOVA EXISTÊNCIA.

Álvaro continua ferido por causa da ausência de sua esposa, que morreu há dois anos, depois
de uma breve e dura doença. Ele veio a mim com estas perguntas: “Sonho com frequência
com ela. Será que voltarei a encontrá-la depois da morte? Eu a reconhecerei? Poderei abraçá-
la?”

Tento esclarecer suas questões: Deus não contempla a morte de longe. Jesus a experimentou
em sua carne. A morte de Cristo não pressupõe uma aniquilação: é um morrer para
submergir em Deus.

Os discípulos de Jesus sofreram uma dura prova e se sentiram imersos em um redemoinho de


ventos que os levou da morte cruel do Mestre até as aparições do Ressuscitado. Foi difícil
para eles reconhecerem Jesus. Queriam tocar suas chagas transfiguradas, mas não podiam,
porque ele já pertencia à plenitude de Deus Pai.

16
Por Jesús GARCÍA HERRERO, capelão do velório M-30 Madri. Artigo publicado
originalmente por Alfa y Omega, traduzido e adaptado ao português. Fonte:
https://pt.aleteia.org/2017/04/04/voltarei-a-abracar-meu-ente-querido-depois-da-morte/ .
Acesso em 22.09.2017.

17
No momento da Ascensão, Jesus se separou deles, deixando aberto o caminho até o lugar
definitivo de onde o corpo seria transformado pela mesma glória do Cristo ressuscitado.

Os primeiros cristãos também tinham dificuldades para entender a ideia da ressurreição que os
esperava. Eles se perguntavam: “Como ressuscitarão os mortos? Com que corpo voltarão à
vida?” Paulo dá a resposta: “o que tu semeias não é vivificado, se primeiro não morrer.
Assim acontecerá com a ressurreição dos mortos. A corporeidade de nossa ressurreição
transcende o que o olho jamais viu e o ouvido jamais ouviu, o que mente humana jamais se
atreveu a pensar”.

Morrer é uma benção, é o beijo de Deus que nos desperta para uma nova existência. A
ressurreição não é voltar à vida nem a reanimação de um cadáver. Mas é viver a mesma vida
de Deus, que não é o Deus dos mortos, mas o Deus dos vivos.

Precisamos aprender a pensar nos mortos como pessoas viventes. A fé na ressurreição tem
iluminado muitos “últimos momentos” e suavizado inúmeras despedidas.

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“Se não há ressurreição de mortos, também Cristo não ressuscitou.


E, se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.”
(1Cor 15,13-14)
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18

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