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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

DURVAL BUENO

A HUMANIDADE DE JESUS

São Paulo – SP
2019
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

DURVAL BUENO

A HUMANIDADE DE JESUS

Trabalho de conclusão de curso (TCC)


apresentado à Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, Faculdade de
Teologia Nossa Senhora da Assunção,
como parte das exigências para a
obtenção do título de Bacharel em
Teologia, sob a orientação do ​Prof. ​Dr°
Côn. Antonio Manzatto​.

São Paulo – SP
2019

1
BANCA EXAMINADORA

________________________________________

________________________________________

________________________________________

2
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, quero agradecer a Deus que me deu força e a oportunidade


de poder estudar a teologia em uma das melhores Universidades da América Latina.
Dedico a Ele, em sinal de ação de graças este trabalho acadêmico e todos os anos
destinados a este curso.

Meus sinceros agradecimentos a minha esposa e as minhas duas filhas que


de alguma forma, deram um pouco de si para que a conclusão do meu curso e
principalmente deste trabalho fosse possível.

De modo muito especial, quero agradecer ao Professor Dr° Côn. Antonio


Manzatto, que se colocou generosamente a minha disposição para ser meu
orientador, fazendo de tudo para o bom andamento do meu trabalho.

“Iahweh é a minha luz e a minha salvação;

de quem terei medo?

Iahweh é a fortaleza de minha vida;

frente a quem temerei?” (Sl 27:1)

3
RESUMO

A Humanidade de Jesus

Este trabalho tem como objetivo mostrar a vida de Jesus e a sua atuação no
contexto histórico da sociedade de seu tempo, como figura real que assume a
condição de criatura, ou seja, o Verbo Encarnado, para introduzir nela seus
ensinamentos e os princípios do Reino de Deus, tão aguardado por todos. Jesus
consolida o seu ministério baseado na fraternidade, na solidariedade na justiça e no
amor.

No decorrer deste trabalho, é possível compreender as relações e o convívio


de Jesus na sociedade e a sua atuação na vida pública de sua época. Descrevemos
a situação da Palestina durante o período em que Jesus viveu, sendo assim uma
base para explicar as necessidades e toda expectativa do povo pela chegada de
Messias.

A concepção do Reino de Deus, que faz parte das convicções do povo de


Israel desde as suas origens, torna-se o centro da atuação e dos ensinamentos de
Jesus. A ideologia impregnada no contexto judeu, visualizava o agir messiânico
como uma troca de situações, onde o povo pobre e oprimido haveria de ter toda
regalia e poderio sobre seus dominadores. Jesus, no entanto, demonstra uma busca
pela formação de um povo com laços de irmandade e não de domínio, onde aquele
que era servido passe agora a servir, abandonando todo idealismo de grandeza e
domínio.
Diante de todo contexto que nos é apresentado, percebemos que, o sujeito
histórico Jesus de Nazaré é a plenitude da revelação divina ao homem. Esta
plenitude deriva do fato que Ele é o “Filho Unigênito do Pai”, aquele que é
absolutamente humano e absolutamente divino; é o “Verbo de Deus”. Portanto
Jesus de Nazaré é Deus, mesmo em pessoa, que vem ao encontro dos homens
para nos comunicar as verdades do Reino.
A encarnação é a união ontológica de Deus com os homens, que através de

4
seu Filho se doa completamente para revelar plenamente o mistério de Deus e, ao
mesmo tempo, o mistério do homem ao homem. É mostrado também o papel da
comunidade que proclama Jesus, e a atuação da Igreja, aqui denominada Igreja
encarnada que segundo tudo o que nos é ensinado tem a missão de apresentar
novamente a pessoa de Jesus como “caminho, verdade e vida”.
Assim, somos convidados a refletir sobre a grande verdade que nos é
relatada. A verdade de que o Reino de Deus não acontece só no agir do próprio
Jesus. Reino de Deus acontece sempre que homens e mulheres agem da maneira
como Jesus agiu. Seguindo o exemplo dele, realizam no seu atuar sinais da
presença do Reino.

Palavras-chave: ​Jesus, Palestina, Reino de Deus, Messias, Verbo Encarnado,


Ressurreição, salvação.

5
ABSTRACT

The Humanity of Jesus

This academy study aims to show the life of Jesus and his performance in
the historical context of the society of his time, as the real figure who assumes the
status of creature, that is, the Incarnate Word, to introduce in him his teachings and
the principles of the Kingdom of God, so long awaited by all. Jesus consolidates his
ministry based on brotherhood, solidarity in justice and love.
During this academy study, it is possible to understand the relations and the
conviviality of Jesus in the society and his action in the public life of his time. We
describe the Palestina’s situation during the period in which Jesus lived, thus
providing a basis for explaining the needs and all expectation of the people for the
coming Messiah.
The conception of the Kingdom of God, which has been a part of the
convictions of the people of Israel since the beginning, becomes the center of the
activity and teachings of Jesus. The ideology impregnated in the Jewish context,
visualized the messianic action as an exchange of situations, where the poor and
oppressed people would have to have all prerogative and power over their
dominators. Jesus, however, demonstrates a search for the formation of a people
with ties of brotherhood and not of dominion, where the one that was served now
has to serve, abandoning all idealism of greatness and dominion.
In view of all the context presented to us, we realize that the historical
subject Jesus of Nazareth is the fullness of the divine revelation to man. This
fullness derives from the fact that He is the "Only Begotten Son of the Father," the
one who is absolutely human and absolutely divine; is the "Word of God."
Therefore Jesus of Nazareth is God, even in person, who comes to meet men to
communicate the truths of the Kingdom.
The incarnation is the ontological union of God with men, who through his
son gives himself completely to fully reveal the mystery of God and, at the same
time, the mystery of man to man.
It is also shown the role of the community that proclaims Jesus and the

6
work of the Church, here called the Incarnate Church, which according to all that is
taught has the mission to introduce again the person of Jesus as "the way, the truth
and the life".
Thus, we are invite to reflect on the great truth that is told to us. The truth that
the Kingdom of God does not only happen in the action of Jesus himself. Kingdom
of God happens whenever men and women act the way Jesus did. Following his
example, they perform in his work signs of the presence of the Kingdom.

Keywords: ​Jesus, Palestine, Kingdom of God, Messias, Verb Incarnate,


Resurrection, salvation.

7
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1. O QUE É O SER HUMANO 15

1.1 A criação 15

1.2 História – A realidade criada 1​7

1.3 O ser humano físico 1​8

1.4 A visão antropológica do ser humano 19

1.5 O ser humano e a reflexão da antropologia teológica 23

1.5.1 Antropologia teológica - O ser humano no Antigo Testamento 25

1.5.2 Antropologia teológica - O ser humano no Novo Testamento 26

1.5.3 A antropologia teológica integrada a fé cristã 27

2. A HISTORICIDADE DE JESUS 29

2.1 O nascimento de Jesus - Um profeta Galileu de Nazaré e um Messias não


Davídico de Belém 29

2.2 A Palestina na época de Jesus - A influência do domínio romano 30

2.3 A economia da Palestina no século I – Diversos setores 34

2.4 Religião – As instituições religiosas da época 39

2.5 A cultura na Palestina do século I - As festas 41

2.6 Jesus e o contexto social de sua época 43

2.7 A cultura de Jesus 45

2.8 A escolaridade de Jesus e sua missão 46

3. JESUS - O MESSIAS E A PROXIMIDADE COM O REINO DE DEUS 48

8
3.1 O Messias tão aguardado 48

3.1.1 O batismo 49

3.2 O Messias – O ministério de Jesus 50

3.2.1 Considerações messiânicas 52

3.3 Jesus - A proclamação do Reino de Deus 53

3.3.1 As parábolas como ensinamentos 56

3.3.2 As parábolas do Reino 57

3.4 A relação da prática de Jesus com a sua morte e ressurreição 58

3.5 A fé da comunidade que proclama Jesus 60

4. A ENCARNAÇÃO DE JESUS 63

4.1 O Verbo Encarnado 63

4.2 Verdadeiro Deus e verdadeiro homem 66

4.3 A atualidade - A Igreja encarnada 69

4.3.1 A Igreja na dimensão da pessoa 71

4.3.2 A Igreja na dimensão da comunidade 72

4.3.3 A Igreja na dimensão da sociedade 74

4.4 A Igreja como povo de Deus 75

CONCLUSÃO 78

BIBLIOGRAFIA 82

9
INTRODUÇÃO

Este trabalho tem como objetivo mostrar de uma forma clara e ampla, a
Humanidade de Jesus, especificamente no que se refere ao Jesus histórico. O ponto
de partida da Cristologia é o Jesus histórico. Quando invocamos “Jesus Cristo” pelo
nome, professamos duas realidades na pessoa do Filho de Deus: o Jesus histórico e
o Cristo da Fé. Essas duas realidades sempre geraram uma grande tensão na
compreensão do pensamento teológico da Igreja, mas também na humanidade em
geral, ao longo de toda história.
Humanidade e divindade na pessoa de Jesus Cristo não se contradizem e
nem se opõem, sob o risco de perda da identidade pessoal, pelo contrário, se
relacionam mutuamente. Nesse sentido em absoluto se nega o Cristo da Fé, mas
se privilegia a história de Jesus como fundamento para a Fé. Jesus é todo humano
e ao mesmo tempo todo divino. Em Jesus, Deus nos deu tudo e se deu todo.
Atualmente, o chamado “Cristo da Fé” já se encontra bem divulgado e
conhecido através de todos os ensinamentos por parte da Igreja, que por muitas
vezes, por certos exageros, leva a espiritualidades desencarnadas e até a
desumanização de Jesus. Cabe então o resgate do Jesus histórico, da importância
da encarnação do verbo e da humanidade de Jesus1, a fim de que o cristão faça
um diálogo coerente de ligação entre a Fé e a vida encarnada na história, sendo
esta última, a realidade proposta pelo objeto do trabalho que se segue.
A busca do Jesus histórico tem sido uma constante no mundo científico, mas
até hoje, ao que tudo indica o “Jesus Real” ainda é uma figura inacessível. Todavia
o estudo sobre o Jesus que teria vivido segundo os padrões da sociedade de sua
época, dos seus costumes e tradições, conforme o seu tempo, constituiu-se desse
modo o homem histórico.
O ponto de partida do nosso trabalho terá como foco mostrar o ser humano
de uma maneira antropológica, física, sua criação e todo o seu contexto histórico,
diretamente ligado à figura de Jesus humanizada. Neste capítulo veremos o ser
humano como do ponto de vista filosófico, o ser humano é caracterizado como um

1
Cf. MANZATTO, A. ​Cristologia latino-americana.​ In: SOUZA, Ney (org). ​Temas de Teologia
latino-americana.​ São Paulo: Paulinas, 2007. p.35.

10
ser vivo racional, capaz de ser uma unidade e uma totalidade ao mesmo tempo,
enquanto matéria. Ele também consegue, através da racionalidade, distinguir
coisas e elaborar conceitos. A condição e existência do ser humano foi, e é, motivo
de estudo para diversos filósofos, como Jean-Paul Sartre, Friedrich
Nietzsche, Aristóteles, Platão, entre outros. Do ponto de vista sociológico, o ser
humano é aquele indivíduo que é capaz de viver em sociabilidade com os demais.
É um ser social que consegue conviver em sociedade e influenciar ou ser
influenciado por determinado comportamento social.
Já no segundo capítulo faremos uma “viagem” pela historicidade de Jesus,
abordando temas como: família, religião, língua, cultura, profissão, entre outros
fatores que faziam parte do seu meio social.
Jesus foi uma figura que caracterizou uma época. Para nós, Jesus é o
homem mais importante que andou sobre a Terra. É a maneira como Deus se
manifesta nesse homem e através dele, de uma forma jamais vista antes e nem
depois, que desperta a imaginação de todos. Abordaremos o lado humano de
Jesus, o Jesus que realmente conheceu e viveu a realidade da existência cotidiana
na Palestina do século I, o Jesus que viveu entre os pobres, que considerava
amigas pessoas como Marta e Maria, que era conhecido como “amigo dos
cobradores de impostos e dos pecadores” (Mt 11, 19). O grande objetivo deste
capítulo é recuperar o Jesus histórico, Jesus viveu um dos períodos de maior
turbulência política e religiosa da história da Palestina.
Neste percurso o encontro com Jesus Cristo vivo se faz necessário, através
de sua vida, paixão, morte e ressurreição. O discurso sobre Jesus de Nazaré nos
aproxima de sua pessoa e de sua particular natureza de Homem-Deus. Aí se inclui
também o destino dos seres humanos, o motivo de adesão a Ele e o sentido à
passagem histórica do homem.
A vida de Jesus está escrita através da fé, uma realidade histórica e
escatológica que exprime a experiência e a fé de testemunhas evangélicas. Assim,
os textos sobre Jesus Cristo exprimem a confiança em uma realidade absoluta que
confere sentido à existência e, ao mesmo tempo, é um conteúdo aberto e
disponível diante do mistério da realidade. A fé em Jesus Cristo expõe a relação
entre uma constelação de realidades e a necessária tomada de posição, não só

11
diante de Jesus, mas em relação à realidade como um todo e a concepção de
salvação para o ser humano.
O mistério de Cristo continua fazendo com que a história alcance um sentido
e se mostre como horizonte, na experiência concreta de cada homem. O momento
atual se traduz pela mesma busca de salvação do homem diante do que os autores
chamam de “fim da modernidade”. Seguindo os passos da Constituição ​Gaudium et
Spes​ encontra-se no mistério de Jesus o caminho para o ser humano.
Ao longo do terceiro capítulo estudaremos Jesus como o Messias, a
proclamação do Reino de Deus, sua missão, o ministério proclamado por Jesus, a
morte e ressurreição e também a Fé da comunidade que proclama e procura viver
os ensinamentos de Jesus.
A expressão Reino de Deus era recente e de uso pouco frequente. Foi Jesus
que decidiu usá-la de forma regular e constante, na medida em que não encontrou
expressão melhor para comunicar aquilo em que acreditava, pois desde criança
havia aprendido a crer em Deus como criador dos céus e da terra, soberano
2
absoluto e Senhor de todos os povos.
Para uma interpretação adequada do evento “Jesus” e daquilo que ele
3
chamou de “Reino de Deus”, é necessário mergulhar em seu “​sitz in leben”​ , no
qual, dentre muitos aspectos, podemos destacar a insatisfação geral do povo da
Palestina do século I, contra a dominação romana e judaica, e das autoridades
religiosas.
Havia uma forte presença da expectativa da proximidade de Deus, da
experiência da ação de Deus na história, e sobretudo sobre a chegada do “Reino
de Deus”.
Jesus situar-se-á perante todos eles demonstrando com transparência em
suas palavras gestos e ações, sua consciência de tal proximidade de Deus e do
4
“Reino de Deus”.

2​
Cf. PAGOLA, J. A. ​Jesus: aproximação histórica​. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 11.

3 ​
Sitz in leben é uma expressão alemã utilizada na exegese de textos bíblicos. Traduz-se
comumente por “contexto vital”. Cf. SILVA, C. ​Metodologia da exegese bíblica.​ São Paulo: Paulinas,
2000.

4​
Cf. LIBANIO, J.B. & BINGEMER, M. L. ​Escatologia Cristã.​ Petrópolis: , Vozes 1985​.

12
Em Jesus, a ideia fundamental na compreensão de sua missão salvífica e,
que dava sentido a toda a sua vida, é o fato de que o “Reino de Deus”, anunciado
em seu ministério e pregação, não é um dado a mais, nem um elemento entre
tantos outros proclamados, mas constitui o tema central anunciado por Jesus, no
qual se fundamentam todas as demais temáticas propostas por ele, sendo esse o
5
dado histórico mais bem assegurado sobre a vida de Jesus.
Ainda no terceiro capítulo, falaremos sobre a morte de Jesus, que
assassinado injustamente por sua fidelidade, não permanece aniquilado pela morte
física. Ele ressuscita pela ação de Deus e alcança a sua plenificação definitiva, mas
é o mesmo Jesus que os seus seguidores conheceram; pois, “quem ressuscita é o
crucificado”, cuja ressurreição foi gestada durante toda a sua vida de amor,
fidelidade e entrega graciosa. A sua vida real não é rompida com a morte, mas
glorificada por Deus que ressuscita os mortos. Após a ressurreição, torna-se
impossível aos discípulos permanecerem calados na condição de testemunhas (At
4, 20) e todos os envolvidos se transformam em pessoas que se sentem no dever
de anunciar a mensagem primitiva, dando continuidade à obra e missão de Jesus.
Ao final, no último capítulo trataremos sobre a encarnação, o que é o Verbo,
ou seja, o Verbo Encarnado. Mostraremos também a atuação da Igreja encarnada,
atuando segundo os ensinamentos e atitudes de Jesus, chegando até os dias
atuais.
Jesus Cristo, o Verbo encarnado, não é nem um mito, nem uma ideia abstrata
qualquer. É um homem que viveu num contexto concreto e que morreu depois de
ter levado a sua própria existência no quadro da evolução da história. A
investigação histórica sobre Ele é, pois, uma exigência da fé cristã. O Verbo é a
manifestação das ações de Deus e seu Reino pela humanidade de Jesus.
Podemos dizer que: Jesus é humanamente divino e divinamente humano.
A Encarnação é o mistério da união admirável da natureza divina e da
natureza humana, na única Pessoa do Verbo. A Encarnação do Filho de Deus não
significa que Jesus Cristo seja, em parte Deus e em parte homem, nem que seja o
resultado de uma mistura confusa do divino com o humano. Ele fez-se verdadeiro

5​
Cf. SOBRINO, J. ​Cristologia a partir da América Latina.​ Petrópolis: Vozes, 1983, p. 177.

13
homem, permanecendo verdadeiro Deus. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e
verdadeiro homem. A divindade de Jesus Cristo, Verbo eterno de Deus, estudou-se
ao tratar da Santíssima Trindade. Aqui vamos fixar-nos, sobretudo, no que se
refere à Sua humanidade.
Nessa mesma linha podemos usar a expressão: Igreja encarnada, que vem
ao longo da história e na atualidade, procurando estar a serviço dos ensinamentos
de Jesus. Isso significa, uma Igreja ou comunidade missionária, estando a serviço
do “Reino de Deus”, em diálogo com o mundo, inculturada na realidade histórica,
inserida na sociedade, encarnada na vida do povo.
O Documento de Aparecida afirma que a Igreja é na sua essência,
comunidade missionária, é comunhão no amor, sempre fiel a Cristo e aos seres
humanos.

14
1. O QUE É O SER HUMANO

1.1 A criação

A importância da verdade da criação baseia-se no fundamento de todos os


projetos divinos. Os cristãos creem que o homem foi criado por Deus e que ele não
é resultado de um processo macro evolutivo. Na verdade a criação do homem foi
uma das coisas mais importantes de todas as obras de Deus, sendo um
maravilhoso testemunho da grandeza de Deus e de que o homem faz parte de um
lugar único no mundo de Deus.
A Bíblia relata a singularidade do homem de várias formas diferentes. Em Gn
1:26-27 diz que Deus criou o homem à sua própria imagem. Deus criou o homem
para viver em comunhão com ele (Gn 2:15-17). A Palavra de Deus ensina de forma
muito clara a doutrina de uma criação especial, que tem um significado de que Deus
fez cada criatura “segundo a sua espécie”. Cada ser foi criado fechado dentro de sua
própria espécie. Não há margem para se dizer que uma espécie se transforma em
outra. Deixando-as para que se desenvolvessem e progredissem segundo as leis do
seu ser. A diferença entre o homem e as criaturas inferiores implica a declaração de
que “Deus criou o homem à sua imagem”. A redenção só tem significado diante do
entendimento do homem como imagem de Deus.
A criação é, pois, um mistério de fé e, ao mesmo tempo, uma verdade
acessível à razão natural. Esta peculiar posição entre fé e razão, faz da criação um
bom ponto de partida na tarefa de evangelização e diálogo que os cristãos estão
sempre – particularmente nos nossos dias chamados a realizar, como já fizera São
Paulo no Areópago de Atenas (Act 17, 16-34).
A Revelação apresenta a ação criadora de Deus como fruto da sua
omnipotência, da sua sabedoria e do seu amor. Costuma atribuir-se a criação,
particularmente, ao Pai (cf. Compêndio, 52), assim como a redenção ao Filho e a
santificação ao Espírito Santo. Do mesmo modo, as obras “ad extra” da Trindade –
a primeira delas, a criação – são comuns a todas as Pessoas e, por isso, é lógico
perguntar qual o papel específico de cada Pessoa na criação, pois cada pessoa
divina realiza a obra comum segundo a Sua propriedade pessoal. É este o sentido

15
da, igualmente, tradicional apropriação dos atributos essenciais – onipotência,
sabedoria, amor – respectivamente, ao operar criador do Pai, do Filho e do Espírito
Santo.
“No princípio, Deus criou o céu e a terra”. Três coisas são afirmadas nestas
primeiras palavras da Escritura: Deus eterno deu um princípio a tudo quanto existe
fora d’Ele. Só Ele é criador (o verbo “criar” – em hebraico ​bara ​– tem sempre Deus
por sujeito). E tudo quanto existe (expresso pela fórmula “o céu e a terra”) depende
d’Aquele que lhe deu o ser.
Só Deus pode criar em sentido próprio, o que implica originar as coisas a
partir do nada – ​ex nihilo – e não a partir de algo preexistente; para isso requer-se
uma potência ativa infinita, que só a Deus corresponde. É congruente, portanto,
apropriar a omnipotência criadora ao Pai, já que Ele é na Trindade (segundo uma
clássica expressão) ​fons et origo,​ quer dizer, a Pessoa de quem procedem as
outras duas, princípio sem princípio.
A fé cristã afirma que a distinção fundamental na realidade é a que se dá
entre Deus e as Suas criaturas. Isto supôs uma novidade nos primeiros séculos,
nos quais, polaridade entre matéria e espírito motivava visões inconciliáveis entre si
(materialismo e espiritualismo, dualismo e monismo). O cristianismo quebrou estes
moldes, sobretudo com a sua afirmação de que também a matéria, como o espírito,
é criação do único Deus transcendente. Mais tarde, São Tomás desenvolveu uma
metafísica da criação que descreve Deus como o próprio Ser subsistente – ​Ipsum
Esse Subsistens​. Como causa primeira, é absolutamente transcendente ao mundo
e, ao mesmo tempo, em virtude da participação do Seu ser nas criaturas, está
presente intimamente nelas, as quais dependem, em tudo, d’Aquele a que pertence
a fonte do ser. Deus é superior summo meo e ao mesmo tempo, ​intimior intimo
meo​ (Santo Agostinho, Confissões, 3, 6, 11; cf. Catecismo, 300).
A Bíblia explica que, quando, Deus criou o homem, elevou-o à vida
sobrenatural e deu-lhe alguns dons sobrenaturais, entre outros, os da ciência e da
integridade. Segundo Gênesis, Adão e Eva tinham todos os conhecimentos e toda
a educação. Não tinham necessidade de aprendizagem, pois Deus tinha lhes dado
essa “personalização” do corpo que necessitavam. O corpo original do homem era
um instrumento perfeito e uma expressão perfeita da sua alma. Viviam em perfeita

16
amizade com Deus, no que se chama estado de graça habitual. E essa
generosidade a respeito de Deus, repercutia-se nas suas relações mútuas. Foram
criados um para o outro, capazes de entregar-se plenamente. Nada entre eles os
separava, e cada um deles dava-se conta de que a entrega ao outro era caminho
da entrega a Deus.
Quando Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, isto consistiu em
duas coisas: a Santidade e a Personalidade.
Na Santidade, o homem teve uma semelhança moral com Deus, pois a
santidade é o atributo fundamental de Deus. Isto se confirma pelo fato que ela se
comunica na renovação da imagem de Deus na regeneração (Efésios 4:24;
Colossenses 3:10).
Já a personalidade do homem tem uma semelhança natural com Deus. É
através da personalidade que o homem é distinguido num modo natural do bruto.
Em Gênesis podemos ver que a personalidade foi uma parte da imagem de Deus no
homem, mesmo quando ele está decaído, faltando santidade, ainda assim, se diz
estar na imagem de Deus.

1.2 História – A realidade criada

O efeito da ação criadora de Deus é a totalidade do mundo criado, “céus e


terra” (Gn 1, 1). Deus é Criador de todas as coisas, das visíveis e das invisíveis,
espirituais e corporais; que pela sua omnipotente virtude ao mesmo tempo, desde o
princípio do tempo, criou do nada uma e outra criatura, a espiritual e a corporal, ou
seja, a angélica e a mundana e depois a humana, como comum, composta de
espírito e de corpo.
O cristianismo supera quer o monismo (que afirma que a matéria e o espírito
se confundem, que a realidade de Deus e do mundo se identificam), quer o
dualismo (segundo o qual matéria e espírito são princípios originários opostos).
A ação criadora pertence à eternidade de Deus, mas o efeito de tal ação
está marcado pela temporalidade. A Revelação afirma que o mundo foi criado
como mundo com um início temporal, quer dizer, que o mundo foi criado
juntamente com o tempo, o que se mostra muito congruente com a unidade do
desígnio divino de se revelar na história da salvação.

17
1.3 O ser humano físico

Deus criou o mundo visível em toda a sua riqueza, a sua diversidade e a sua
ordem. A Sagrada Escritura apresenta a obra do Criador, simbolicamente, como
uma sequência de seis dias “de trabalho” divino que terminam no “repouso” do
sétimo dia (Gn 1, 1-2, 4) (Catecismo, 337). A Igreja, em diversas ocasiões, viu-se
na necessidade de defender a bondade da criação, mesmo a do mundo material
(cf. DS 286; 455-463; 800; 1333; 3002) (Catecismo, 299).
Pela própria condição da criação, todas as coisas estão dotadas de firmeza,
verdade e bondade próprias e de uma ordem (GS 36, 2). A verdade e bondade do
criador procedem do único Deus Criador que é, ao mesmo tempo, Trino. Assim, o
mundo criado é um certo reflexo da atuação das Pessoas divinas: em todas as
criaturas se encontra uma representação da Trindade à maneira de vestígio.
O cosmos tem uma beleza e uma dignidade, enquanto obra de Deus. Há
solidariedade e hierarquia entre os seres, as quais hão de conduzir à atitude
contemplativa de respeito para com o criado e para com as leis naturais que o
regem (cf. Catecismo, 339, 340, 342, 354). Certamente, o cosmos foi criado para o
homem, que recebeu de Deus o mandato de dominar a terra (cf. Gn 1, 28). Tal
mandato não é um convite à exploração despótica da natureza, mas à participação
no poder criador de Deus: mediante o seu trabalho o homem colabora no
aperfeiçoamento da criação.
A pessoa humana goza de peculiar posição na obra criadora de Deus, ao
participar, ao mesmo tempo, da realidade material e espiritual. A Escritura só nos
diz que Deus o criou à Sua imagem e semelhança (Gn 1, 26). Foi posto por Deus à
cabeça da realidade visível e goza de uma dignidade especial, pois de todas as
criaturas visíveis, só o homem é capaz de conhecer e amar o seu Criador; é a
única criatura sobre a terra que Deus quis por si mesma; só ele é chamado a
partilhar, pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus. Com este fim foi criado e
tal é a razão fundamental da sua dignidade (Catecismo, 356; cf. ibidem,
1701-1703).
Homem e mulher, na sua diversidade e complementaridade, queridas por
Deus, gozam da mesma dignidade de pessoas (cf. Catecismo, 357, 369, 372). Em

18
ambos, se dá a união substancial de corpo e alma, sendo esta a forma do corpo.
Por ser espiritual, a alma humana é criada de modo imediato por Deus – e não
“produzida” pelos pais, nem sequer é preexistente – e é imortal (cf. Catecismo,
366). Os dois pontos, espiritualidade e imortalidade, podem ser demonstrados
filosoficamente. Portanto, é um reducionismo afirmar que o homem procede
exclusivamente da evolução biológica (evolucionismo absoluto). Na realidade, há
saltos ontológicos que não podem explicar-se apenas com a evolução. A
consciência moral e a liberdade do homem, por exemplo, manifestam a sua
superioridade sobre o mundo material e são a amostra da sua especial dignidade.
A verdade da criação ajuda a superar quer a negação da liberdade –
determinismo – quer o extremo contrário de uma exaltação indevida da mesma: a
liberdade humana é criada, não absoluta e existe na mútua dependência com a
verdade e o bem. O sonho de uma liberdade como puro poder e arbitrariedade
corresponde a uma imagem deformada, não só do homem mas, também, de Deus.
Mediante a sua atividade e o seu trabalho, o homem participa do poder
criador de Deus. Além disso, a sua inteligência e vontade são uma participação,
uma chispa, da sabedoria e amor divinos. Enquanto o resto do mundo visível é um
mero vestígio da Trindade, o ser humano constitui uma autêntica imagem, imago
Trinitatis.

1.4 A visão antropológica do ser humano

Antropologia vem do grego ​anthropos (homem) + ​logos (​ tratado, estudo) +


ia: estudo das raças e variedades humanas; história natural do homem, enquanto
um ser animal. A Antropologia Filosófica tem como objeto de estudo a origem, a
natureza e o destino do homem, bem como o seu lugar no universo. O desafio está
em se tentar descobrir qual a essência humana, sob a ótica filosófica.
Essência: é a natureza de cada coisa. É aquilo que faz cada coisa ser ela
mesma e não outra; o que a distingue das demais coisas, colocando à parte
características acidentais e secundárias, tais como forma, tamanho, cor, etc.
Hoje, mais do que nunca, torna-se imperioso retomar os questionamentos
acerca do homem. Nitidamente, as flagrantes violações dos direitos humanos

19
vivenciadas na sociedade contemporânea têm origem no violento embate entre
diferentes interpretações do fenômeno humano.
Os filósofos gregos, os pensadores cristãos, a filosofia moderna e também a
contemporânea, dedicaram-se ao estudo do homem. Todavia, não o fizeram da
mesma maneira. Se as indagações permanecem idênticas, as respostas são
incontáveis e diversas. Portanto, não há uma forma padrão de conceber o homem
no mundo contemporâneo.
Em sua obra “A Posição do Homem no Cosmos”, Scheler constata que a
busca do homem pelo homem, empreendida pelo pensamento filosófico, sempre
trilhou caminhos escarpados. “O homem é uma coisa ampla, colorida, múltipla, de
modo que todas as definições se mostram como muito curtas. Ele tem fins
6
demais!”
Homero, oito séculos antes de Cristo, foi um dos primeiros a estudar
sistematicamente o homem. O humano, ser uno, compreendido a partir de seus
atos, é a figura marcante dos poemas homéricos. Os primeiros elementos da
antropologia filosófica já eram objeto das reflexões dos pré-socráticos, que se
detiveram na observação dos fenômenos da natureza.
O homem era analisado a partir destes fenômenos e a curiosidade de
conhecer o mundo levava a questionar a essência do ser humano. Trata-se de
perspectiva eminentemente cosmocêntrica, ou seja, os pré-socráticos pretendiam
conhecer o mundo e, por consequência, acabaram por “descobrir” algo sobre o
homem.
Sócrates teve o mérito de inverter esta perspectiva ao tomar o homem como
ponto de partida de suas considerações: antes de conhecer qualquer coisa é
preciso conhecer-se a si próprio. Embora distinta, a abordagem de Sócrates não se
desvincula completamente da interpretação cosmocêntrica proposta pelos que o
antecederam.
Os mais valorosos estudos antropológicos da Antiguidade foram efetuados
por Platão, Aristóteles e Plotino. Nesta seara, as perquirições de Platão ganham

SCHELER, M. ​El puesto del hombre en el cosmos​. 4 ed. Buenos Aires: Editorial Losada, 1960. p.
6 ​

95.

20
especial relevo, pois o filósofo, além de apresentar as suas próprias concepções de
homem, retrata de maneira magistral os ensinamentos socráticos.
O homem é sua própria alma, de origem divina, que acidentalmente está
jungida ao corpo e tem por incumbência guiá-lo, tal qual o timoneiro que comanda o
navio ou o cocheiro que conduz a carruagem. Corpo e alma são apreendidos como
substâncias incompletas que se juntam, formando uma única natureza. A alma
representa a forma essencial do homem e é responsável pela vida do corpo
inanimado. A união corpo/alma forma, segundo Aristóteles, um ser uno.
Enquanto a filosofia antiga é marcada pela visão cosmocêntrica do homem,
a filosofia medieval, profundamente influenciada pelo ideário cristão, revela-se
teocêntrica. O medievo é religião. Neste período a investigação do homem está
completamente aferrada à teologia. Pouquíssimas obras negam a existência de
Deus. A figura do homem ateu, tão difundida na sociedade moderna, é
extremamente incomum. Resta o homem cristão, atado à religiosidade, compelido
a aceitar o dualismo corpo/alma, desamparado, perdido em seu próprio ser e
destituído de autenticidade.
Jacques Le Goff estudou com profundidade o ser humano inserido na
sociedade medieval e concluiu que a antropologia cristã da época considerou o
homem a criatura de Deus. O historiador francês investigou duas concepções de
homem muito presentes na Idade Média: o ​homo viator e o homem penitente.
Ambas devem ser compreendidas à luz do Velho Testamento: a primeira
corresponde ao homem sagrado, imagem e semelhança de Deus; a outra, retrata o
homem expulso do paraíso — em virtude do pecado original — e condenado ao
sofrimento.7
Ao revelar o homem “imagem e semelhança de Deus”, a teologia lhe
confere, expressamente, liberdade e historicidade. Ainda não se pode falar em uma
antropologia filosófica, nos moldes dos trabalhos desenvolvidos após Scheler, mas
há uma substancial mudança nos estudos do homem. O ser humano é concebido
como a união de um corpo material à alma espiritual, obra direta e imediata do
Transcendente. A doutrina cristã observa o homem em sua relação com o Ser
Supremo. O homem não é parte desfraldada da substância divina ou uma alma

7​
LE GOFF, J. ​A civilização do ocidente medieval.​ São Paulo: EDUSC, 2005​.​ p. 67.

21
violentamente presa ao corpo — como ensinava Platão — mas uma criatura de
Deus.
O pensamento de Marx evidencia a historicidade, característica marcante do
homem. O ser humano modifica o mundo e tem necessidade de fazê-lo, mas não
pode se desvencilhar da sucessão de acontecimentos que lhe precederam a
existência. “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se
defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.”8
Outra maneira de esquadrinhar a natureza humana corresponde ao exame
do espírito objetivo, da cultura. Através da análise de manifestações artísticas,
religiosas, culturais, é possível traçar-se a imagem do homem que viveu em
determinado período histórico. A partir de uma manifestação coletiva é permitido
inferir mais sobre os seres humanos, individualmente. Este é o trajeto percorrido
por Cassirer e pelos pensadores da antropologia cultural. Esta filosofia não tem por
objeto a análise das estruturas físicas ou espirituais humanas, mas da expressão
cultural.
O homem, segundo Cassirer, deve ser definido como “animal simbólico” e
não como “animal racional”. 9
Sartre recobra a precedência da essência na filosofia moderna, para então,
explicar porque o existencialismo ateu inverteu este paradigma. “Que significará
aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem
primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, e que só depois se define. O
homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque
primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se
fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O
homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como
ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a
existência; o homem não é mais do que o que ele faz.”10

8​
MARX, K. ​O 18 brumário de Luís Bonaparte.​ São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 335.
9​
CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o Homem. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p. 128​.
10
SARTE, J. ​O existencialismo é um humanismo​. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 12

22
Ao contemplar as diferentes perspectivas antropológicas descritas neste
trabalho, observa-se que algumas particularidades do ser humano são referidas por
diferentes filósofos de maneira pouco dissímil. O homem é um ser tão intrincado
que a antropologia filosófica jamais será capaz de apontar todas as suas
características. Entretanto, afigura-se imprescindível detalhar alguns dos atributos
identificados na elaboração desta análise. Assinalar as particularidades do ser
humano é individualizá-lo, diferenciá-lo dos outros seres.
A primeira constatação é que o ser humano existe, está pronto para agir. A
partir desta constatação, pode-se afirmar que o homem é um ser corpóreo e
espiritual; temporal e histórico; volitivo, livre e racional; dotado de vida; social e
simbólico; consciente de si e do mundo; capaz de desejar e construir sua existência
a cada instante.
O homem é apenas isso? Seria possível defini-lo apenas nestas palavras?
Não. O ser humano é um plexo de valores espirituais, estéticos, físicos, entre
outros. À luz de cada um destes valores é possível elaborar uma definição distinta
de homem. Estas análises não se excluem, completam-se mutuamente. O homem
não é apenas isto ou aquilo, mas tudo isso e muito mais. Cada valor identificado no
homem descortina um vértice de seu ser.

1.5 O ser humano e a reflexão da antropologia teológica

O grande desafio imposto pela atualidade não é apenas refletir sobre fatos,
mas necessariamente responder a estes, conforme afirma Deleuze: “Não existe
sequer um acontecimento, um fenômeno, uma palavra, nem um pensamento cujo
sentido não seja múltiplo”.11 Este desafio não apresenta exceção em relação à
teologia, uma vez que seu eixo central trata, fundamentalmente, da relação de
Deus com o homem e de sua resposta a Ele, que resulta em sua verdadeira
liberdade, levando “a sério a absoluta primazia do Deus que nos criou e continua
nos criando por amor, única e exclusivamente por amor”.12

11
DELEUZE, G. ​Nietzsche e a Filosofia.​ Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. p. 3.

12
QUEIRUGA, A. ​Fim do Cristianismo pré-moderno.​ São Paulo: Paulus, 2003. p. 17.

23
Assim somos levados a refletir sobre o que o cristianismo entende ao
assumir uma antropologia unitária, ou seja, uma visão integrada do ser humano,
contra qualquer tipo de dualismo. Mas afinal, o que se entende por dualismo, por
visão dualista de pessoa humana? Onde está a sua origem? Quais as
consequências práticas de uma visão antropológica dualista? A visão dicotômica ou
dualista é percebida quando, para ressaltar uma dimensão ou aspecto. Por
exemplo, para acentuar a importância da alma, a pessoa despreza o corpo, para
valorizar a razão, desvaloriza o afeto. Ou, ao contrário, para sublinhar a importância
do corpo, desvaloriza a alma, para valorizar a afetividade despreza a razão.13
A origem dessa maneira de ver o ser humano é muito antiga. No ocidente,
encontra sua raiz na filosofia de Platão e no estoicismo. Para o platonismo e
neoplatonismo, a realidade está dividida entre dois mundos opostos – o mundo das
ideias e o mundo das coisas – numa estrutura mental predominantemente de
oposição-exclusão. Pela alma, a pessoa humana pertence ao mundo divino, eterno,
etc. Pelo corpo, pertencemos ao temporal, sensível, etc.
A partir dessa visão dualista do ser humano foram desenvolvidas, no
cristianismo, algumas tendências, levando a graves consequências como:
desprezar o corpo, visto inimigo da vida espiritual; reprimir o mundo afetivo, ou
seja, os sentimentos, as emoções; desvalorizar a sexualidade, reduzindo-a ao
aspecto genital biológico; tender a separar o masculino do feminino como
realidades oposta, sendo que o masculino domina e despreza o mundo feminino.
Disse França Miranda: “Como consequência do horizonte teológico hodierno
há uma busca para que sejam desmascarados os dualismos que deformam ainda
hoje a vida dos cristãos”.14 Esta busca deve começar tendo como ponto de partida
uma perspectiva bíblica da antropologia teológica. Para que se descreva o humano
a partir da revelação cristã, é necessário recorrer ao testemunho das Escrituras. A
antropologia teológica tece sua fundamentação com a base das afirmações dos
antigos profetas, de Jesus Cristo, e dos primeiros apóstolos da Igreja.

13
GARCIA, R. ​Elementos de Antropologia Teológica – salvação cristã: salvos de quê e para quê?
Petrópolis: Vozes, 2004, p.24.
14
MIRANDA, F. ​Libertados para a práxis da justiça. A teologia da graça no atual contexto
latino-americano​. 2 Ed. São Paulo: Loyola, 1991, p. 21.

24
1.5.1 Antropologia teológica - O ser humano no Antigo Testamento

De acordo com Urbano Zilles, diante das várias formas de antropologia que
aparecem na era moderna, uma antropologia teológica tem o seu lugar com muita
singularidade.
O conceito cristão de homem não é mero produto da inteligência humana ou
da religiosidade popular. Pressupõe a abertura para o mistério que transcende o
natural, daquele que supera as possibilidades do homem e procede da graça
divina. Para obter o conceito cristão de homem, é preciso ouvir as Sagradas
Escrituras. Elas nos dizem algo sobre a imagem do homem querida por Deus e por
ele revelada. É preciso ouvir e levar ao homem a palavra de Deus referente ao
próprio homem em sua plena configuração. A tarefa da teologia é libertar conceitos
bíblicos fundamentais como “carne”, “alma”, “coração”, “espírito”, “vida” de
camadas que os envolveram, no decurso dos séculos, e os despiram de sua
originalidade.15
No Antigo Testamento, o ser humano é visto primeiramente sob a condição
de criatura, e também, como imagem e semelhança de Deus. Essa é a afirmação
fundamental da antropologia bíblica. Nenhuma outra afirmação pode superá-la.
Afirmar o ser humano (homem e mulher) como criatura de Deus é afirmar que não
se pode diviniza-lo como o fazem outras religiões, tampouco divinizar sistemas
políticos e ideologias absolutistas. Humano e divino são seres distintos. Ainda
assim, o humano deve experimentar a comunhão com seu Criador e com as
demais criaturas, vendo todo o universo criado como um dom de Deus.16
Em suma, afirmar o humano como imagem de Deus deve ser antes de tudo
um atributo que indica sua dignidade17 inerente, e, ao mesmo tempo, uma
atribuição, responsabilidade e deveres diante de Deus, diante dos outros e do
mundo.18

15
ZILLES, U. ​Antropologia teológica​. São Paulo: Paulus, 2011, p. 12-13

16
RUBIO, A.​ Unidade na pluralidade​, São Paulo: Paulus, 1989, p. 170.

17
LADARIA, L. ​Introdução à Antropologia Teológica​. São Paulo: Loyola, 1998, p. 98.

18
CONCÍLIO, Constituição pastoral Gaudium Et Spes, n. 12, in: Compêndio Vaticano II, p. 154- 155.
Ver ainda o estudo: BRAKEMEIER, G. ​O ser humano em busca de identidade - Contribuições para

25
1.5.2 Antropologia teológica - O ser humano no Novo Testamento

Os primeiros escritos cristãos, em suma, não modificam o essencial da


antropologia do Antigo Testamento,19 tendo em vista que a Igreja primitiva surge de
um contexto de orientação semita. Os termos gregos mais importantes da
referência ao humano, como ​psyché, pneuma, sarx, soma e kardia​, em
continuidade com a antropologia semita, querem expressar sempre o ser integral
da pessoa humana, remetido a algum aspecto em especial, mas nunca como
dualismo alma-corpo no sentido metafísico helênico.20 Ainda assim, deve ficar
evidente que um dualismo ético é acentuado em alguns textos do Novo
Testamento, em referência ao interior do ser humano.
Convém frisar que o Novo Testamento reconhece a existência da dualidade
no interior de cada ser humano, entre a realidade do “homem velho” e a realidade
do “homem novo”, mas não se trata de um dualismo metafísico que aponta para
dois elementos constitutivos do ser humano (espírito-matéria), antes está referido a
dois modos de existência antitéticos, em cada um dos quais está implicado o ser
humano inteiro.21
García Rubio esclarece o dado dos escritos mais antigos do Novo
Testamento, atribuídos ao apóstolo Paulo, o único hagiógrafo cristão a expor uma
doutrina esboçada sobre o homem,22 quanto à expressão de um dualismo ético,
que em si mesmo não representa nenhum problema em termos de constituição
antropológica. Trata-se de uma ambiguidade radical da existência humana. Na obra
intitulada “Elementos de Antropologia Teológica”, nosso teólogo espanhol sintetizou

uma antropologia teológica​, 2 ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 18- 25.

19
AUER, J. El mundo, creación de Dios.​ Barcelona: Herder, 1985. p. 279. Ver também: RUBIO, A.
Elementos de antropologia Teológica. Petrópolis: Vozes, 2004. p. 34. Idem, ​Unidade na pluralidade.​
São Paulo, Paulus, 1996. p. 355. COMBLIN, J. ​Antropologia cristã​. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 77.
SCHELKLE, K. ​Teologia do Novo Testamento vol. 2. A criação: o mundo – o tempo – o homem, São
Paulo, Loyola, 1978, pp. 93-94. GEVAERT, Joseph. El problema del hombre​. Salamanca: Síguime,
2003. p. 72-74.

20
RUBIO, A.​ Unidade na pluralidade​, São Paulo: Paulus, 1989. p. 324-327.

21
Ibid., p. 329.

22
Ibid., p. 324-329.

26
o caráter ambíguo e mesmo contraditório da vivência e das relações das pessoas,
até as cristãs. Tal contradição não é acidental ou casual, porém é uma realidade
fundamentalmente constituinte da experiência humana cristã, em última análise, e
pela qual o ser humano entra num lento processo transformador, da imagem do
primeiro Adão, à imagem do segundo Adão (Cristo).
Na experiência cristã, na vida humana em processo de santificação, vive-se
o paradoxo entre o velho e o novo humano,23 num movimento de transição entre
um e outro, e ainda em uma perspectiva escatológica.24 Logo, o contraste bíblico
entre homem interior e homem exterior nos textos de Paulo não se resume ao
contraste entre alma e corpo respectivamente, inferido na interpretação de
escritores pentecostais vista acima, ​porém se trata mais de uma dualidade básica
do que um dualismo propriamente dito. Além desta dualidade, há ainda outras que
sobressaem no pensamento de Paulo.25 Independente disso, Kaesemann garantiu
que todos os termos antropológicos usados por Paulo designam o homem todo.26

1.5.3 A antropologia teológica integrada a fé cristã

García Rubio, investigou outra forma de dualismo alavancada principalmente


por teólogos protestantes no século XX, representantes da corrente teológica
conhecida como neo-ortodoxa, dando a entender certa ruptura entre fé e religião.
Ruptura evidente na mentalidade cristã popular que recebe a Deus na fé, mas não
compreende a necessidade e o sentido dos ritos religiosos.27

23
SCHEFFCZYK, L. ​O homem moderno e a imagem bíblica do homem​. São Paulo: Paulinas, 1976.
p. 94-103.

24
SOUZA, J. ​Imagem humana à semelhança de Deus - Proposta de antropologia teológica.​ São
Paulo: Paulinas, 2010. p. 27-28.

25
SPICQ, C. ​Dios y el hombre en el Nuevo Testamento​. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1979. p.
168-173. Este exegeta destacou as dualidades mais claras na teologia de Paulo, como por exemplo:
Homem psíquico e homem espiritual; homem exterior e interior; homem velho e homem novo. Cf.:
AUER, J.​ El mundo, creación de Dios.​ Barcelona: Herder, 1985. p. 280.

26
KASEMANN, E. ​Perspectivas paulinas​. São Paulo: Paulinas, 1980 p. 26​.

27
RUBIO, A. Unidade na pluralidade,​ São Paulo: Paulus, 1989. p. 575. Para aprofundar a noção das
relações entre fé e religião, será importante também ver o estudo de todo o capítulo 13 de outra
obra do autor: Id. ​Elementos de antropologia Teológica.​ Petrópolis: Vozes, 2004. p. 245-273.

27
O autor, então, fez sua análise às observações de Barth e Bonhoeffer. A
religião está a serviço da expressão da fé. K. Barth e Bonhoeffer, seguindo a
grande tradição bíblico-cristã, têm toda a razão quando insistem na prioridade que
sempre deve ser concedida à revelação de Deus e à fé. O que estes e outros
teólogos não percebem claramente é que a revelação de Deus e a fé realizam-se
no concreto da história humana com todos os seus condicionamentos. Revelação e
fé supõem a capacidade histórica concreta de o ser humano acolher essa
revelação de Deus e de responder a ela com uma atitude de fé. Quer dizer,
revelação e fé se dão no interior da linguagem humana, na expressividade humana,
no simbolismo humano. Revelação e fé se dão encarnadas na linguagem e na
expressividade humanas concretas. Sem essa encarnação, nem a revelação nem a
fé teriam sentido algum para o ser humano.
Coletivamente e na prática, o indivíduo que possui fé em Deus deseja
expressá-la. A expressão da fé, mesmo contendo a própria fé, com a mesma não
deve ser identificada. A religião expressa uma experiência de fé do indivíduo.
A prática religiosa de um indivíduo inserido na comunidade eclesial deve
manifestar a fé em Deus comunitariamente pelo rito, pelo sacramento, pela
comunhão fraterna. Ou seja, religião é uma ação interpretativa do homem, capaz
de expressar sua fé no mundo em que vive.28

28
​ UBIO, A.​ Unidade na pluralidade​, São Paulo: Paulus, 1989. p. 250.
​R

28
2. A HISTORICIDADE DE JESUS

2.1 O nascimento de Jesus - Um profeta Galileu de Nazaré e um


Messias não Davídico de Belém

O Filho de Deus não se fez homem, em geral: fez-se tal homem particular,
judeu, galileu, num determinado momento da história do mundo. Como homem, ele
foi, portanto, marcado pela geografia e pela história do seu país, por sua cultura;
esteve sujeito às leis econômicas, entrou em conflitos políticos, partilhou das
esperanças de seu povo.
Sendo assim, é muito importante que seja feita uma apresentação das
condições sociais, econômicas, políticas que fizeram de Jesus o homem que ele
foi. Sem dúvida, um homem não se explica unicamente por essas diferentes
condições e Jesus menos que qualquer outro. Mas é conhecendo-as melhor que se
vê surgir com mais clareza a originalidade de sua mensagem e da sua imagem.
Jesus nasce entre os anos 6 e 4 a.C, pouco antes da morte de Herodes - O
Grande, em seu palácio de Jericó. Provavelmente veio ao mundo entre os meses
de março e abril. Com a morte de Herodes, no ano 4 a.C., houve muitas revoltas.
Judas - o Galileu, apodera-se de um arsenal de armas na cidade de Séforis, a
poucos quilômetros de distância do povoado de Nazaré; no mesmo ínterim, Simão -
o Escravo, juntamente com outros companheiros, saqueou o palácio de Jericó.
Roma tinha três legiões estacionadas na Síria. Diante das revoltas, Varo, que era
governador da Síria, dá ordens às legiões de destruir a cidade de Séforis, matando
seus habitantes ou levando-os como escravos para outros lugares; estima-se que
crucificou mais de dois mil judeus nos arredores de Jerusalém. Assim, Jesus
cresce em Nazaré sob a lembrança desta violenta e sangrenta intervenção romana,
que provavelmente arrasou também com pessoas de sua pequena aldeia, dada a
proximidade com a cidade de Séforis.
Quando Jesus nasce, o imperador romano era Augusto, que terminará seus
dias no ano 14 d.C.. Augusto sucedeu Tibério, que nomeará Valério Grato
governador, no ano 15 d.C.. Este destruirá Anás e nomeará Caifás como sumo
sacerdote no ano de 18 d.C., que logo fará uma aliança com Pilatos, o novo

29
governador, que iniciou seu mandato no ano de 26 d.C.. Juntos eles levaram
adiante o processo que resultou na morte de Jesus.
Os dados neotestamentários não são contundentes a respeito do lugar onde
Jesus nasceu. É possível sustentar sua ascendência davídica, com a devida
concepção de Mc 12, 35-37, na qual Jesus nega ser “filho de Davi”, a fim de não
ser confundido com um novo revolucionário político ou um zelota,que permitiria a
vitória a Israel através de um estado de violência.
Os textos da infância de Jesus respondem a perguntas e discernimentos das
comunidades pós-pascais antes que a experiência do próprio Jesus histórico e de
sua família.
A concepção virginal de Maria simboliza o grandioso passo para uma nova
família, cuja origem supera o biológico, a fim de que todos possam entrar nas
relações fraternas do Reino sob o mesmo Pai que é Deus.
Não é esse anúncio e a forma como ele ocorre, uma boa nova ante um
sistema que fazia do outro um objeto e um súdito antes que um filho e um irmão? A
Fé de José como crente fiel se complementa e completa com a disposição de Maria
diante da ação de Deus, a fim de dar início a essa nova possibilidade de construir
família para além dos critérios biológicos ou socioculturais estabelecidos nas
sociedades mediterrâneas.
Agora Deus estava com seu povo, verdadeiramente como Emmanuel, o
Deus conosco. Deus havia ouvido e respondido pessoalmente o clamor dos pobres
de Javé, os ​anawim​, numa de suas filhas, Maria, que então podia dar graças com
as belas palavras do Magnificat, onde se anuncia que Deus se separa dos
poderosos e se aproxima dos pobres, para que os opulentos e soberbos já não
reinam, mas os humildes e os famintos. A comunidade lucana havia captado o
projeto de vida de Jesus anunciado em Nazaré.

2.2 A Palestina na época de Jesus - A influência do domínio romano

A Palestina, na época de Cristo, faz parte do império romano. Iremos ver


como os romanos conseguiram se implantar no local, por que meios Herodes
chegou a tornar-se rei e qual era a situação política no momento em que pregava
Jesus.

30
Os primeiros contatos entre Roma e os judeus ocorrem não antes da metade
do séc. II a.C. São consequência de um jogo político complexo no qual a República
romana se misturou progressivamente (a partir de 200 a.C. aproximadamente).
Nesta época, o Mediterrâneo oriental está dividido entre as diferentes
monarquias originadas da conquista de Alexandre: os Lágidas reinam no Egito; os
Selêucidas dominam um império que se estende teoricamente da Ásia Menor até o
Indo, mas que, com o passar do tempo se encolhe como um couro curtido: é
amputado a oeste pelas usurpações, a leste pela independência de fato dos
soberanos e pela expansão dos partas. A Macedônia é dirigida pelos Antigônidas
que, com desigual sucesso, tentam dominar as cidades da Grécia e as ilhas do
Egeu. O pequeno reino de Pérgamo, no extremo oeste da Ásia Menor, é governado
pelos Atálidas.
Nesse contexto agitado, a Palestina tem um lugar privilegiado. Constituindo
uma parte daquela que então se chamava a Celessíria29 , é objeto de permanentes
cobiças e motivo de conflitos que opõem Lágidas e Selêucidas. Outrora parte
integrante da 5ª satrapia persa (a Transeufratena), caiu em poder dos Lágidas após
a conquista de Alexandre. Os judeus se acomodaram bem com esta hegemonia
afinal pouco importuna. Porém, entre 200 a.C. e 198 a.C. Ptolomeu V é vencido por
Antíoco III na batalha de Panion: a Palestina passa então para o domínio soberano
selêucida. O novo senhor dos judeus usa de diplomacia para com eles; Antíoco III
aliás tem outras preocupações: está em guerra com Roma.
Derrotado em 189 a. C., deve, conforme os termos do tratado de Apaméia,
pagar uma indenização muito pesada que vai sobrecarregar por muito tempo as
finanças do reino. Seu sucessor, Antíoco IV Epífanes, desejoso de lutar contra as
forças centrífugas que minam seu império e de reatar os laços com as tradições
dos fundadores da dinastia, inicia uma política de helenização autoritária, à qual a
Palestina não escapa. Esta tentativa age como um revelador, cindindo os judeus
em duas tendências: os filo-helenos (ou pró-gregos) e os ortodoxos; daí nasce a
revolta dos Macabeus.

29
Significa a Síria profunda em oposição aos planaltos do norte e às cadeias do Líbano e do
Antilíbano.

31
Por esta época, Roma acaba de conquistar a Macedônia (no ano de 167 a.
C.) e põe em ação uma diplomacia que consiste em sustentar os estados mais
fracos (por seu tamanho, como Rodes ou Pérgamo, ou pela mediocridade dos seus
soberanos, como o Egito) contra as tentativas imperialistas dos Selêucidas. Com
esse objetivo, ela impede Antíoco IV de prosseguir seus avanços no Egito. Por
volta de 160 a. C., Roma teria até mesmo recebido favoravelmente uma delegação
judaica enviada por Judas Macabeu (1 Mc 8). A autenticidade do relato tem sido
contestada; no entanto, se os senadores receberam tal delegação, eles não
chegaram a prometer-lhe qualquer ajuda material, mas contentaram-se com vagas
palavras, próprias para entreter as cizânias que os favoreciam.
Roma não recomeça a intervenção direta no Oriente senão no séc. I a.C.
Serviu de pretexto a política expansionista de Mitrídates Eupator, rei do Ponto (na
costa norte da Ásia Menor) que se arvora em campeão da liberdade das cidades
gregas contra a expansão romana. A primeira e segunda guerras contra Mitrídates
terminam com tratados de paz. Em 66 a. C., Pompeu é investido de um comando
extraordinário para combater esse soberano e seu aliado Tigrano da Armênia.
Entretanto, não contente de seguir as diretrizes do Senado, Pompeu aproveita-se
do estado de composição em que caíra o que restava do reino selêucida (Antíoco
XIII, o último soberano, acabava de ser assassinado) para anexar seu território e
criar assim a província da Síria.
A estratégia estabelecida foi simples: para proteger suas possessões da
Ásia Menor e da Síria contra os partas, Roma submete à vassalagem mais ou
menos diretamente as regiões periféricas, a saber a Armênia, o reino judeu e os
pequenos principados árabes, como a Ituréia. Esse projeto explica igualmente que
Roma tenha dado decretos em favor dos judeus; para garantir a fidelidade de seus
novos súditos teve que aceitar reconhecer seus particularismos.
De início, César recompensa Hircano II pela ajuda que lhe prestou,
reconhecendo-o como etnarca e sumo sacerdote dos judeus a título hereditário.
Essa decisão constitucional é seguida de uma disposição particular: os judeus não
serão obrigados a alojar tropas romanas durante o inverno e não estarão sujeitos a
taxas por essa isenção. Quase ao mesmo tempo, César dá disposições de ordem
fiscal que regulam a coleta de imposto na Palestina; é uma determinação que

32
ratifica o dom feito a Hircano do norte do país; além disso, legisla sobre a cessação
da coleta das taxas durante o ano sabático e sobre sua diminuição no ano
seguinte.
As guerras civis, sobretudo entre César e Pompeu, vão acarretar novas
mudanças na Palestina, favorecendo o desaparecimento da monarquia asmonéia
(descendentes dos Macabeus) e a ascensão política de Herodes.
Príncipe de tipo helenístico, mas de origem árabe, sem parentesco com a
família dos Asmoneus, Herodes jamais conseguiu conquistar a simpatia dos judeus
piedosos. Era filho de um idumeu, Antípater, e de uma nabatéia; ora, os idumeus
(no sul da Judéia) vencidos em 126 por João Hircano, tinham sido obrigados a se
judaizar e portanto não eram considerados como fiéis de boa cepa; é por isso que
Herodes não exercerá o ofício de sumo sacerdote, e o confiará a homens sem
valor. Por outro lado, para legitimar seu poder, procura ligar-se aos Asmoneus
desposando, no ano de 37, Mariana que era neta de Aristóbulo II pelo lado do pai e
de Hircano II pelo da mãe. Este cálculo político, aliás, não o impediu de amar
apaixonadamente sua esposa, que ele mandará executar por ciúme em 29. Além
disso, seu amor pela civilização grega se percebe no gosto que tem pelas grandes
obras, pelos jogos e pelos espetáculos. Extraordinária figura de aventureiro, deve
seu êxito ao seu senso do possível: sabendo que não era bastante poderoso para
sacudir o jugo romano e, ao mesmo tempo, que não era bastante popular para
dispensar seu apoio, sempre quis, prioritariamente, agradar a Roma. Isto é
suficiente para tornar compreensível todo o seu governo.
O fim da sua vida foi obscurecido pelas disputas dinásticas. A oposição vem
dos dois filhos nascidos da sua união com Mariana: Alexandre e Aristóbulo. Esse
conflito quase lhe faz perder a confiança de Augusto. No entanto, tendo o
imperador ordenado a constituição, em Beirute, de um tribunal composto de
romanos e de judeus, os dois jovens foram condenados e executados, junto com
300 cúmplices, no ano 7 a.C. Depois foi Antípater, filho de Mariana II, que nomeado
herdeiro do pai, trama contra ele. Antípater é enviado preso para Roma. Doente e
próximo do fim, Herodes ainda manda para a fogueira dois fariseus que haviam
conspirado contra ele. Morre em Jericó em 4 a.C, não sem ter tido tempo de
mandar matar, com a permissão imperial, seu filho Antípater. Flávio Josefo

33
acrescenta que ele havia ordenado a execução de nobres judeus, encerrados no
hipódromo, dizendo que assim haveria choro no momento da sua morte.
O resto da Palestina está, até 66, sob a autoridade de príncipes herodianos;
seu poder é, aliás estreitamente sujeito ao beneplácito da autoridade romana e
sofre, às vezes, eclipses como vamos ver. Primeiramente, com efeito, Herodes
Filipe II governa, até morrer em 34, a tetrarquia da Transjordânia (exceto a Peréia);
ao mesmo tempo, Herodes Antipas comanda a Galiléia e a Peréia, mas vítima das
intrigas de Agripa I, é exilado em 39 para Lião por Calígula. Será Herodes Agripa I,
filho de Aristóbulo, quem vai herdar as possessões de seus tios: beneficia-se em
primeiro lugar da tetrarquia de Filipe II à qual se soma a Abilene quando
desaparece Lisânias (do qual quase nada se sabe); em 39 Calígula lhe confia a
Galiléia e a Peréia e mais tarde, em 41, a etnarquia da Judéia-samaria com o título
de rei. Até sua morte em 44, Herodes Agripa reúne, pois, o antigo reino de seu avô
Herodes. Após sua morte, é mais verossímil que Roma tenha assumido a
administração direta da maior parte da Palestina.
Contudo, por volta do ano 50 Herodes Agripa II, que até então vivera em
Roma, recebe o principado de Cálcis; desde 49 ele é igualmente governador do
Templo, com o direito de supervisionar a nomeação dos sumos sacerdotes. Por
cerca de 53, em troca de Cálcis, recebe a Abilene e a antiga tetrarquia da
Transjordânia. Nero lhe dará ainda algumas partes importantes da Galiléia e da
Peréia e certas cidades. Após a grande revolta de 66 a 70, esses principados
desaparecem com a mesma facilidade com que se extinguiu a família Herodiana.

2.3 A economia da Palestina no século I – Diversos setores

A terra pertence a Deus: esse é um dogma essencial da fé de Israel. Deus


lhe deu o país de Canaã — que se chama Palestina ou país dos filisteus desde a
época helenística. Israel vai, pois, valorizar esta terra e nós vamos estudar a
economia da Palestina no séc. I da nossa era neste capítulo; mas diversas festas e
a instituição religiosa lhe recordará que é Deus quem permanece seu dono.
O país tem a forma de um trapézio, cujas bases medem 50 e 100
quilômetros, para uma altura de 220 quilômetros. O Mediterrâneo o limita a oeste e
o vale do Jordão, muito apertado, a leste; esse rio, cujo nome significa sem dúvida

34
o discente, tem suas fontes nas faldas do Hermon; no lago Hulé, está a 68 metros
acima do nível do mar, e aproximadamente quinze quilômetros abaixo, no lago de
Tiberíades, já está a 212 abaixo do nível do mar e se lança no mar Morto a 392
metros abaixo do nível do mar. Entre o Mediterrâneo e o Jordão, uma cadeia de
montanhas forma a espinha dorsal do país: com 600 metros de altitude em média,
ela tem seus pontos mais altos na Alta Galiléia e em Hebron (1000 m) e apresenta
uma depressão na fértil planície de Jezrael, a Meguido do AT (50 m). A leste do
Jordão, sobe-se rapidamente para o planalto da Transjordânia (a Peréia), que se
eleva entre 900 e 1200 metros.
Infelizmente, as chuvas caem praticamente todas entre novembro e março, e
em pequena quantidade em outubro e abril. O verão possui um clima totalmente
seco. O relevo faz com que essa água escorra imediatamente, quase sem penetrar
no solo, bem pobre em argila, não conseguindo conservá-la. Os produtos naturais
do país são portanto árvores de folhagem persistente que crescem sobretudo no
inverno, ou plantas da estepe que secam no verão. Mas o trabalho humano e a
irrigação podem mudar muitas coisas neste país de clima relativamente temperado;
no tempo de Jesus, conseguiu-se aclimatar espécies normalmente incompatíveis: a
maçã que gosta de clima fresco e a palmeira que exige o calor.
O trigo constitui a base da alimentação e é cultivado um pouco por toda
parte, embora cresça sobretudo na Galiléia; esta produz bem mais do que
consome; armazena grandes quantidades precavendo-se contra a fome e ao
mesmo tempo abastece a Judéia e Jerusalém, cujas necessidades são enormes
por causa do afluxo dos peregrinos durante as festas. Só mesmo em uma grande
seca é que a Palestina se vê obrigada a importar trigo.
A cevada, segunda cultura no processo de rotação, tem a mesma repartição
que o trigo. Em caso de carestia, sua farinha substitui a do trigo para a população;
habitualmente, é a farinha dos mais pobres e serve para fazer ração para o gado e
as aves.
As figueiras são essenciais para a alimentação; durante a fome de 49 d.C.
importam-se figos de Chipre, ao passo que normalmente produzem-se bastantes
figos para exportar para Roma. A oliveira é muito encontradiça em toda a Palestina;
diz um ditado que “é mais fácil cultivar miríades de oliveiras na Galiléia do que

35
educar um filho na terra de Israel”. A Judéia, com o "monte das Oliveiras" não é
menos rica. A produção de óleo é aliás largamente superavitária e exporta-se óleo
para o Egito e para a Síria.
A vinha brota por toda parte na Judéia e é de boa qualidade pois o Templo
não tem problema de abastecimento: lá o vinho serve para as libações (mas os
sacerdotes não devem beber na hora do serviço); ele é indispensável para a festa
da Páscoa, na qual quatro taças circulam durante a refeição (o vinho é cedido
gratuitamente aos que não teriam recursos para comprá-lo); por todo lado, o vinho
é a bebida costumeira de todo o Israel e certas marcas são exportadas para longe.
A pecuária é certamente o setor mais deficitário da Palestina. Josefo fala
sem dúvida do leite muito abundante da Judéia-Samaria, o que supõe animais, mas
de fato a estepe não produz senão pouca forragem. Na criação dos rebanhos,
numerosos na Judéia, o interesse está somente nas ovelhas (para a reprodução) e
nos cordeiros (necessários para o culto); prefere-se importar de Moab os carneiros,
que comem sem produzir. Quanto aos bovinos, criados na planície de Saron, a
política é a mesma: matam-se os vitelos machos e importam-se bois da
Transjordânia. Se não houvesse a Samaria para atravessar, a Galiléia poderia
também fornecer bovinos para o Templo.
Em resumo, a Palestina do séc. I é um país bastante rico no setor agrícola,
satisfazendo amplamente às suas necessidades, não obstante possuia uma
população relativamente densa para a época: 600 mil habitantes em 20 mil km².
No que diz respeito à indústria, em primeiro lugar vem a pesca, por causa de
seu papel na alimentação de cada dia. É intensa na costa mediterrânea, no Jordão
e sobretudo no lago de Tiberíades; há importantes estabelecimentos de preparo e
conserva: a cidade de Mágdala foi apelidada Tariches, palavra grega que significa
salga alusão ao ofício de seus 40 mil habitantes. O peixe, salgado ou defumado, é
depois comercializado em todo o país.
A construção está em plena atividade. A ampliação do Templo, depois seu
arranjo e embelezamento duram de 20 a.C. até 64 d.C; no fim dos trabalhos, para
não deixar os 18 mil operários da obra desempregados, são destinado à
construção de calçadas e às ruas de Jerusalém.

36
Por volta de 20 d.C, Herodes Antipas constrói a cidade de Tiberíades e
fortifica Séforis e Júlias. Jerusalém cresce de tal modo que se estende além das
muralhas construídas por Herodes Magno: em 41 d.C. Agripa vai proteger o novo
bairro, ao norte, por um muro de 3.500 metros de comprimento e de 5,25 de
espessura. É preciso ainda continuar, manter e embelezar as numerosas
construções de Herodes Magno: Pilatos acrescenta um novo aqueduto a
Jerusalém; a rainha de Adiabene manda construir para si um magnífico túmulo ao
norte da cidade santa. Foram encontrados em Jerusalém esgotos, que têm certas
instalações notáveis (2m de altura e 80 cm de largura).
Fiação e tecelagem ocupam uma mão-de-obra sobretudo feminina, mas
também inclui homens. A Judéia trabalha sobretudo com a lã (neste ponto os
carneiros são numerosos), enquanto que a Galiléia, atravessada por uma das rotas
da Índia, especializou-se na seda proveniente da China e no linho. Cobertores,
tapetes e outros produtos são abundantes e exportavam para Roma. Tintura e
pisoamento (para impermeabilização dos tecidos) são muito bem representados em
Jerusalém, e os historiadores apontam esta como a grande especialidade da
Síria-Palestina antiga. A tintura de púrpura, especialidade da cidade de Tiro, é
realizada a partir de um crustáceo, o múrice, que se pesca na costa mediterrânea
de Tiro a Jope: os judeus participam desta pesca.
A indústria do couro, alimentada sobretudo pelas peles das vítimas
oferecidas no Templo, é florescente: 18.000 cordeiros só para o rito pascal,
dezenas de milhares de sacrifícios de comunhão em cada festa, os sacrifícios de
expiação particulares (centenas por dia). A isso se acrescenta a pele dos animais
abatidos para o açougue. As peles são curtidas, e depois transformadas e
exportadas.
A cerâmica, importante em todos os tempos para o vasilhame e para
guardar alimentos ou objetos preciosos (os rolos de Qumrã, por exemplo), é
próspera neste primeiro século. Duas cidades da Galiléia, Kefar Hanania e Kefar
Shilim, têm o monopólio da cerâmica impermeável ao ar, ideal para conservar o
óleo.
O betume, "substância viscosa e colante que, em certa época do ano bóia
sobre as águas de um lago da Judéia chamado Asfáltico" (Plínio, His. Nat. VII, 13,

37
3) é cuidadosamente recolhido e exportado sobretudo para o Egito onde "é
utilizado não só para a calafetagem dos navios, mas também como remédio: entra
na composição de muitos produtos farmacêuticos" (Josefo, Guerra judaica IV, 481).
Em Jerusalém concentra-se todo um artesanato de luxo, quer para o Templo
(perfumes), quer para os peregrinos que já naquele tempo apreciavam os bibelôs,
que seriam lembranças da Cidade Santa. Como centro de peregrinação, Jerusalém
conhece ainda outros ofícios que são mais raros em outros lugares: padeiros,
carregadores de água, barbeiros e até mesmo um serviço de limpeza urbana, para
manter a pureza arredores do Templo.
Já o comércio é sobretudo centrado no Templo que tem necessidades
enormes e recursos maiores ainda, graças à Didracma, o imposto cobrado de todos
os judeus, mesmo dos que moram fora da Palestina (cf. p. 21). Mas também os
diversos Herodes bem como os procuradores têm suas cortes faustosas e as
classes abastadas de Israel não fazem economia.
O comércio interno entre particulares é muito reduzido: a ele se prefere a
troca no interior da aldeia, o que evita deslocamentos e portanto taxas (cf. p. 26).
Mas todos os excedentes da produção vão para as cidades, sobretudo Jerusalém,
cuja população supera os 50 mil habitantes em tempo ordinário e chega a 180 mil
na ocasião das grandes peregrinações. As mercadorias são transportadas em
animais de carga, pois as estradas não permitem, com raras exceções, a
passagem de carros. Para os longos deslocamentos prefere-se o camelo, cuja
carga útil é maior. Tem-se todo cuidado em não viajar sozinho, mas em se agrupar
em caravanas, que oferecem melhores garantias contra as agressões de bandidos
de toda espécie. Existem sem dúvida verdadeiras sociedades de transportes; isto é
atestado no setor dos transportes marítimos e fluviais em todo o império e em
Palmira, onde uma sociedade tinha escritórios em Babilônia.
O comércio externo é mais conhecido. As importações se referem todas a
produtos de luxo: em primeiro lugar, os cedros do Líbano, por causa da nobreza da
madeira e do comprimento das traves que são utilizados para o madeiramento dos
palácios. No Templo utiliza-se o cedro, a figueira, a nogueira e o pinheiro como
combustível para os sacrifícios; a oliveira é comum demais para ser digna desse
serviço. O Templo exige também incenso, que vem da Arábia, e parece demandar

38
um custo alto. É também na Arábia que se compram muitos aromas que servem
aos perfumistas, pedras preciosas, ouro ou materiais mais simples, como ferro,
cobre (levando em conta que as minas de Salomão, perto de Áqaba, ficam
distantes).
Embora a Galiléia teça a seda, para o sumo sacerdote e a aristocracia civil e
religiosa, manda-se também vir o tecido diretamente da Índia ou de Babilônia:
escarlate, bisso, púrpura. Babilônia vende ainda especiarias: relata-se por exemplo
que uma caravana de 200 camelos levou pimenta para Jerusalém. Corinto envia
seu célebre bronze para a confecção de uma porta do Templo; manda-se também
seu mármore para os diversos palácios. Os capitéis Jônicos e Coríntios, bem como
as numerosas esculturas da época fazem supor, pelo menos, a presença de
mestres vindos da Grécia. As exportações, como vimos, consistem de alimentos,
frutas, óleo, vinho, peixe ou de produtos industriais correntes como peles, tecidos e
betume. Os perfumes parecem ter sido a única produção de luxo a ser exportada.
Esse comércio está nas mãos de grandes negociantes que têm escritórios e
depósitos em todo o império e que são um pouco de todas as nacionalidades. É
certo que entre eles há judeus que fazem questão, na velhice, de se instalarem em
Jerusalém, perto do Templo e do Céu, mas também da Corte e dos seus prazeres.
Esses negociantes são verdadeiros banqueiros, que conhecem os cheques e os
títulos ao portador e ao mesmo tempo são especuladores: conhece-se um que
compra a plantação ainda verde de um camponês endividado. Graças aos produtos
do solo e ao Templo que dá trabalho para boa parte dos judeus, a Palestina deveria
ser aquele país onde correm o leite e o mel, onde as pessoas vivem felizes. Mas
não é o que acontece; um rabino da época declara: "As filhas de Israel são belas,
pena que a pobreza as torne feias!" Esta pobreza é tão célebre que ela se torna o
tema predileto das comédias pagãs da época.

2.4 Religião – As instituições religiosas da época

É difícil apresentar, em si mesma, as instituições religiosas de Israel, pois é


toda a existência judaica, econômica, social, política, que é marcada pela religião.
Assim, já vimos a importância econômica do Templo. Aqui reuniremos
simplesmente alguns dados conhecidos sobre o Templo, a sinagoga e as festas.

39
O templo é sob todos os pontos de vista o centro de Israel. O primeiro
edifício foi construído por Salomão e destruído quando Jerusalém foi conquistada
em 587 por Nabucodonosor. O segundo Templo, reconstruído após a volta do
Exílio e inaugurado em 515, era muito mais modesto. Foi reedificado por Herodes
em bases completamente novas. Às vezes se designa a história judaica entre 538
a.C e 70 d.C. pelo nome de período do segundo Templo.
É verdade que o contemporâneo de Jesus devia ficar estupefato quando, ao
chegar ao topo duma colina, descobria a cidade, que tinha no meio uma torre de 50
metros de altura (o equivalente a um arranha-céu de quinze andares), plantada
num imenso terrapleno de 480m de comprimento por 300m de largura, que domina
boa parte da cidade e é rodeado por um muro que constitui uma verdadeira
muralha. Judeus e pagãos têm acesso livre a ele. Notam-se dois imensos locais
cobertos, próximos a entrada do templo, sob os quais estão instalados os
comerciantes de bois, de carneiros, de pombas, de óleo e de farinha necessários
para o culto30, bem como os cambistas: a moeda oficial do Templo é ainda, com
efeito, a moeda cunhada no tempo de Alexandre Janeu (103-76 a.C), do mesmo
valor que a de Tiro (por isso chamam-na também de moeda tíria). O centro do
terrapleno é elevado em relação ao conjunto: estelas escritas em grego e em latim
proíbem a entrada a todo incircunciso, sob pena de morte. Através de degraus,
chega-se então ao terraço central sobre o qual está construído o Templo.
O Templo é o lugar que polariza toda a vida religiosa, política e econômica
de Israel. Mas no cotidiano da vida, uma outra instituição — a sinagoga —
reveste-se de uma grande importância. Não há senão um só Templo em que se
sobe em certas ocasiões (ao menos uma vez na vida quando se mora longe da
Palestina), mas até a menor aldeia tem sua sinagoga: é aqui, afinal, que se forjam
a mentalidade e a piedade do israelita. Como o termo igreja, o termo sinagoga
parece abranger duas realidades: a reunião para a oração dos crentes e o edifício
material onde ela se realiza. At 16, 13 sugere que o edifício é secundário em

30
Havia também um mercado tradicional no monte das Oliveiras. Pode-se pensar que "os mercados
do templo e do monte das Oliveiras foram, na época de Jesus, objeto de disputas apaixonadas e
que, por conseguinte, um incidente do gênero da expulsão dos vendedores nada tem de
inverossímil, muito ao contrário. Não se exclui que Jesus tenha tomado partido num conflito
preexistente, cujos elementos econômicos, administrativos e jurídicos nos escapam". ROLLAND, B.
& SAULIER, C. ​A Palestina no tempo de Jesus.​ São Paulo: Paulus, 1979.

40
relação à reunião. As origens desse tipo de reunião só nos são conhecidas por
fontes literárias especialmente obscuras neste ponto. Parece certo que se deve
buscar sua origem no tempo do Exílio em Babilônia (587 a 538 a.C.).
A primeira preocupação foi reconstruir o Templo e restaurar o culto. Mas, na
própria Palestina, esse movimento sinagogal parece desenvolver-se sob o impulso
de Esdras e de Neemias; a descrição apresentada em Ne 8 é um bom exemplo de
tal reunião. O roteiro do culto está centrado na oração e na meditação das
Escrituras. Começa-se pela recitação do Shemá, o Credo do povo de Israel,
composto de três passagens bíblicas: Dt 6, 4-9; 11, 13-21; Nm 15, 37-41. Afirma-se
assim globalmente a unicidade de Deus e o vínculo muito forte que o une a seu
povo. Vem depois certo número de orações, proclamadas pelo responsável pelo
ofício, e às quais se associa o grupo dos participantes por meio de "Améns".
A sinagoga é geralmente um edifício retangular orientado para o Templo. O
essencial da mobília se compõe de um armário, no qual são cuidadosamente
conservados os rolos da Torá e dos profetas. Algumas sinagogas têm bancos de
pedra ao longo das paredes; parece que o povo senta no chão ou fica em pé. Mt
23, 6 faz alusão a cadeiras reservadas a pessoas importantes, mas esse fato não é
atestado em outro lugar. As mulheres e as crianças ficam separadas dos homens
por simples balaustrada de madeira; em certos casos constrói-se uma tribuna para
as mulheres. As sinagogas dos séc. II e III da nossa era têm paredes ricamente
ornadas e o chão é enfeitado de mosaicos, mas não se sabe se era assim no séc.
I.

2.5 A cultura na Palestina do século I - As festas

Três festas exercem, em Israel, um papel importante. São momentos em


que o povo faz questão de se reunir para manifestar a solidariedade que une seus
membros e para celebrar as grandes intervenções do Senhor, libertador de seu
povo. São as três festas de peregrinação, Páscoa, Pentecostes e Tabernáculos (ou
Tendas). "Três vezes por ano, declara o Deuteronômio, todos os vossos varões se
apresentarão diante do Senhor vosso Deus no lugar que ele tiver escolhido: na
festa dos Ázimos, na festa das Semanas e na festa das Tendas" (Dt 16, 16). Essas
festas parecem ser, no início, celebrações ligadas ao ritmo da natureza: na

41
primavera, os nômades oferecem à divindade os primogênitos do seu rebanho
(páscoa) e os camponeses sedentários, as primícias da colheita da cevada (festa
dos ázimos); a festa das semanas situa-se no verão, no fim da colheita do trigo e a
das Tendas, no outono, no fim da colheita das frutas. No decorrer dos séculos,
essas festas foram "historicizadas", quer dizer, é ligado a cada uma delas um
acontecimento histórico, como veremos.31
No século I, cada uma dessas festas tinha a duração de uma semana
completa, sem contar o tempo de caminhada que vai de poucas horas a dias, para
quem mora na Alta Galiléia. Viajava-se a pé, em caravana, que reunia os
peregrinos de uma ou várias aldeias: assim corre-se menos risco de ter más
surpresas da parte dos salteadores.
● A festa da Páscoa - A festa agrária fora ligada a lembrança da
libertação do Egito. Depois, com o passar dos tempos, o que se celebra nesta
ocasião é o "aniversário" dos grandes acontecimentos fundadores e libertadores de
Israel: a criação do mundo, a realização da promessa de descendência para
Abraão, a libertação do Egito e a (futura) libertação messiânica. Por ocasião da
Páscoa, 180 mil peregrinos se concentram numa cidade que possui entre 25 mil e
32
50 mil habitantes. Não podendo todos esses peregrinos se alojar na Cidade
Santa, os limites da cidade são ampliados para esta circunstância, abrangendo as
aldeias da periferia.
● Pentecostes ​- Como o indica sua etimologia grega, esta festa
começa 50 dias após a Páscoa (cf. Dt 1 6, 9). O livro do Êxodo chama-a de festa
da colheita (Ex 23, 16) ou das semanas (34, 22). Mediante uma ligeira modificação
vocálica, alguns fizeram dela a festa dos juramentos. À sua celebração foi
vinculada, com efeito, a Aliança do Sinai; aparentemente desde o século I da nossa
era, ela se tinha tornado a festa da renovação da Aliança (não é por acaso que o
33
autor dos Atos coloca neste dia a vinda do Espírito Santo). Nos inícios da era
cristã, os diferentes grupos religiosos não concordam entre si quanto à data da sua

31
VAUX, R. ​Instituições de Israel no Antigo Testamento​. São Paulo: Vida Nova, 2017. p. 383-413.

32 ​
JEREMIAS, J. ​Jerusalém no tempo de Jesus.​ São Paulo: Paulinas, 1983.
33 ​
​Vide ​Cadernos Bíblicos​ nº 19 - ​Uma leitura dos Atos dos Apóstolos​.

42
celebração, assim é que certos grupos como os fariseus terminam a festa no
momento em que outros como os Essênios ou o autor do livro dos segredos de
Henoc a começam.
● Tendas ​– É citada como "a mais santa e a maior das solenidades
judaicas" (Antiguidades VIII, 100). Sua origem é também rural, como no caso das
festas precedentes: celebra o fim das colheitas frutíferas e tem todas as aparências
de uma festa das vindimas com a alegria e os riscos de embriaguez que isto
comporta. "Mas o Levítico (23, 43) denota uma evolução e relaciona-a com a
história: a festa deve relembrar que Deus fez os filhos de Israel morar em cabanas
quando saíram do Egito. A dedicação do templo de Salomão coincide com esta
festa (1 Rs 8, 65-66), já lhe dando assim uma relação especial com o santuário,
lugar da Presença e da proteção divinas. Segundo o Targum, as cabanas deviam
efetivamente fazer recordar as nuvens protetoras da epopéia do deserto. Esdras (3,
4) nos fala que os repatriados celebram a festa logo que o altar é reconstruído,
antes mesmo de estarem colocados os alicerces do novo templo, e Neemias (8,
13-18) descreve uma celebração segundo o ritual de Lv 23, 40-43, com leitura
34
quotidiana da Torá (cf. Dt 31, 10)".
Esta festa é a mais espetacular de todas: para celebrá-la, cada família deve
construir nos arredores imediatos de Jerusalém uma cabana de folhagens, na qual
ela vai morar por uma semana. Certos ritos eram muito populares como a
procissão dos sacerdotes cada manhã, até Siloé, acompanhados por todo o povo
levando palmas (os lulav), ao som do shofar (longo chifre de carneiro que serve de
trombeta), a libação da água sobre o altar (cf. Jo 7, 37) provavelmente para pedir o
retorno das chuvas, a procissão em torno do altar e o acender de quatro grandes
candelabros de ouro no pátio das mulheres (cf. Jo 8, 12) que iluminavam a cidade
inteira.

2.6 Jesus e o contexto social de sua época

Alguns dados, a seguir apresentados, possuem alto grau de solidez


histórica. Porém, não são os únicos que constam a respeito de Jesus. Seu nome,

34 ​
LE DÉAUT, R. ​Le Judaisme​. Paris: Beuchesne, 1975. p. 63.

43
Yeshua, foi dado por seu pai José, no dia de sua circuncisão. Como este nome era
muito comum naquele tempo, diferenciava-se um indivíduo do outro,
acrescentando-lhe outras referências a mais. Por exemplo, Jesus era chamado
Yeshua bar Yosef – Jesus filho de José. Sua mãe chamava-se Maria e como seu
pai era artesão e carpinteiro, ajudava-o nestes ofícios.
Jesus nasceu durante o reinado do imperador romano Augusto, antes da
morte de Herodes, na primavera do ano 4 a.C. Para Pagola “Não é possível
precisar melhor a data do seu nascimento.” (PAGOLA, 2014)
A família de Jesus não era sacerdotal como a de Zacarias, pai de João
Batista (Lc 1, 5). Jesus não pertencia ao clero que cuidava do templo. Não era
doutor da lei, nem pertencia ao grupo dos fariseus ou dos essênios. Ele nasceu
35
leigo, pobre, sem a proteção de uma classe ou de uma família poderosa.
As razões para se guardar a própria genealogia, quaisquer que fossem,
estavam no fato de que, em várias ocasiões era necessário provar sua
legitimidade, como, para ocupar um cargo público, e para usar certos privilégios.
Dessas informações pode-se concluir que Jesus provinha de uma família que devia
guardar zelosamente sua própria genealogia, pois se julgava da estirpe de Davi.36
A genealogia de Lucas, mais universalista, remonta a Adão, cabeça de toda
a humanidade. De Davi a José, as duas listas só têm dois nomes em comum que
terminam com José, que é apenas o pai legal de Jesus. Naturalmente, não se está
excluindo a possibilidade de Maria também ter pertencido a essa linhagem, embora
os evangelistas não o afirmam (Lc 3, 23-38).
A língua materna de Jesus foi o aramaico, que era uma forma dialetal na
Galileia. Certamente Jesus conhecia o hebraico, que era a língua literária usada na
prática da liturgia do templo e nas sinagogas. As leituras depois eram traduzidas
para o aramaico. Compreendia e traduzia o hebraico, compreendia o grego, mas
não provavelmente, a ponto de escrever ou falar corretamente.37

35 ​
MESTERS, C.​ Com Jesus na contramão.​ São Paulo: Paulinas, 1995. p. 17

36
ECHEGARAY, H.​ A prática de Jesus.​ Petrópolis: Vozes, 1982. p.112.

MEIER, J. ​Um judeu marginal: Representando o Jesus histórico.​ 3 ed. Rio de Janeiro: Imago,
37 ​

1991. p.253

44
Ao ouvir falar do movimento de conversão e batismo realizado por João
Batista no deserto, deixou Nazaré, indo ao encontro do profeta, e lá recebeu
incontestavelmente o batismo nas águas do rio Jordão. Ali, Jesus passou por uma
experiência religiosa e desde então “aquele jovem artesão, oriundo de uma
pequena aldeia da Galiléia não retornou mais a Nazaré” (PAGOLA, 2014),
passando a se entregar a uma atividade própria e original, diferentemente de João
Batista. Ele inicia sua atividade itinerante por volta do ano de 27 ou 28. Jesus se
afasta da família e sua atividade de profeta não é apoiada pelos parentes mais
próximos, que creem que Jesus estava fora de si, com problemas mentais e que
estavam sendo desonrados por sua atitude.

2.7 A cultura de Jesus

Jesus de Nazaré recebeu uma boa educação como todo judeu. Ele era uma
pessoa inteligente e ponderada. Percebe-se isso pelos seus ensinamentos pois Ele
tinha uma sabedoria extraordinária. Jesus falava o aramaico. Aramaico era a língua
corrente na Palestina nessa época, e a prova de que era a língua de Jesus está
nas expressões aramaicas que os evangelistas põem em sua boca, vez por outra,
no meio do texto grego, para dar mais vivacidade ou autenticidade às suas
palavras. Assim, por exemplo, no milagre em que Jesus ressuscita a filha de Jairo,
ele diz: “​Thalita, Kum​”, o que quer dizer, segundo a tradução do próprio evangelista
“menina, levanta-te” (Mc 5, 41).38 ​Não se sabe com certeza se Jesus sabia ler ou
escrever. De acordo com um grupo crescente de autores, ele pode ter falado um
pouco de grego, mas desconhecia o latim. O idioma próprio de Jesus era o dialeto
siríaco misturado ao hebreu, que se falava na Palestina.
Andando por esses lugares todos, ele conversa com o povo (Mc 7, 24-29; Jo
4, 7-42), o que era proibido. Com a mesma naturalidade, o povo daquelas regiões
andava pela Galiléia e era aceito pelo povo de lá (Mc. 3, 7- 8). Até os anciãos de
Cafarnaum chegaram a interceder junto a Jesus por um estrangeiro cujo
empregado estava doente (Lc 7, 3- 5).39

38
RENAN, E. ​Vida de Jesus​. São Paulo: Martin Claret, 1995. p.445

39
MESTERS, C. ​Com Jesus na contramão.​ São Paulo: Paulinas, 1995. p.33

45
Observa-se aqui a passagem bíblica provando que Jesus fala com os
pagãos, sem constar a presença de intérpretes em grego, quando Ele fala com um
centurião de Cafarnaum, não-judeu (Mt 8, 5-13). Jesus nos mostra que viveu
realmente a inculturação, a fim de comunicar a sua pedagogia.

2.8 A escolaridade de Jesus e sua missão

A escola de Jesus era, antes de tudo, a vida em casa, na família, na


comunidade. Foi lá que aprendeu a viver, a rezar e a trabalhar.40
A primeira educação é recebida na família, mas uma família hebraica
exemplar, nos tempos de Jesus, tinha deveres educacionais bem precisos, tanto
civis como religiosos. É óbvio que as sinagogas eram usadas também como
escolas, no tempo de Jesus, especialmente para a instrução primária,
correspondente, a grosso modo, às nossas escolas elementares. Contudo esse
ensinamento ainda não possuía um caráter sacro e as lições poderiam também ser
dadas na casa do professor. Riesner41 possui elementos suficientes para concluir
que no tempo de Jesus, também em Nazaré, existia uma escola elementar.
A sinagoga era um centro de aprendizagem. Flávio Josefo fala do costume
de se levar as crianças para a sinagoga. O fato de que Jesus tinha o costume de ir
à sinagoga nos sábados para ali ensinar (Lc 4, 15-16) e o fizesse com grande
naturalidade, para um indício de onde se pode inferir uma certa familiaridade
adquirida no lar, desde a infância, como é de se esperar do filho de uma família de
boas tradições, piedosa e da classe média (daquele tempo).
Como todo israelita, Jesus sabia de memória muitos textos bíblicos e,
provavelmente, todos os salmos. Nota-se que Jesus frequentou escola como todo
judeu daquela época, mas tinha uma sabedoria especial vinda de Deus. Em todo
caso, surpreendemos a Jesus ser notavelmente familiarizado com a Escritura, e
com que facilidade maneja os textos sagrados. Sua cosmovisão, sua compreensão
da alma e do destino de seu povo, seu sentido profundo e último da história, enfim
toda sua “filosofia” está impregnada de espírito bíblico. “Admiravam-se então os
judeus, dizendo: Como entende ele de letras sem ter estudado? Jesus lhes

40
I​bid. ​p. 21
41 ​
BETZ, O. & RIESNER, R. ​Jesus, Qumran and Vatican.​ São Paulo: SCM Press, 1994​.

46
respondeu: Minha doutrina não é minha, mas daquele que me enviou” (Jo 7, 15).
Nota-se que Jesus está sempre mostrando que a sua sabedoria não é só escolar e
sim de Deus. Entretanto Jesus nunca foi escravo da letra, citava os textos com
muita segurança.
Jesus foi, como ninguém, filho da Bíblia, filho do povo bíblico. Jesus, como
verdadeiro israelita, viveu longos anos aquela relação de adoração, perplexo diante
do Único e Eterno. Os seus estudos eram praticados nas sinagogas ou perto delas,
porque lá ficava a Santa Escritura. O evangelho nos diz que Jesus era assíduo na
frequência da sinagoga.
Jesus faz com que o povo perceba o dedo de Deus em tudo. A proposta
desta profecia é viver a serviço da vida humana e não a serviço da lei. Jesus é o
42
anunciador de uma nova realidade. Os títulos lhe são atribuídos pelos
evangelhos, isto é, pelas comunidades, anos mais tarde: Jesus é chamado de
profeta, mestre, guia, luz, palavra, servo, sofredor, senhor, salvador, redentor,
mensageiro da justiça, advogado, crucificado, ressuscitado, vencedor, filho da
Virgem Maria, filho do altíssimo Deus, Jesus libertador e Rei. Então, questionamos:
Como esse Jesus se apresenta no nosso meio social, político e religioso? Jesus
aparece e é o novo profeta. Depois de ter falado pelos profetas, Deus quer falar
ainda mais de perto, através dele. Quer revelar-se ainda melhor. Deus o faz através
do seu próprio filho, Jesus. A sua missão é de ser profeta anunciador da palavra de
Deus.

42 ​
NOLAN, A. ​Jesus antes do cristianismo.​ São Paulo: Paulus, 1987. p.109-120.

47
3. JESUS - O MESSIAS E A PROXIMIDADE COM O REINO DE DEUS

Neste capítulo serão abordados alguns tópicos relativos à trajetória do


messias, desenvolvida por Jesus e anunciada por João Batista, com o intuito de
suscitar, em meio a posturas, obras, mensagens e afirmações demonstradas na
história de cada um, conceitos primordiais para que se possa traçar o perfil
idealizado por eles.

3.1 O Messias tão aguardado

Envolvidos em um contexto de espera messiânica muito forte, vê-se que


todo um ideal de salvação seria realizado através da chegada do messias. Tal
messias, ungido, vindo da dinastia davídica, seria o único capaz de conceder ao
seu povo a liberdade tão sonhada. Esta salvação concebida pelo messias seria
dada ao seu povo, que se constituía de pessoas escravizadas, humilhadas e
marginalizadas que estavam clamando pelo fim da opressão.
Jesus vem para cumprir a anunciação de João Batista, pregando o
arrependimento a todos quantos o aceitarem como o messias profetizado. Para
relatar o perfil do messias esperado por João Batista, torna-se necessário entender
a formação e idealização, as quais, através de suas mensagens, expunham as
diretrizes a serem traçadas pelo messias.
João Batista é assim visto como o precursor (ou pré-messias) de Jesus,
aquele que haveria de vir preparar o povo para receber o messias. Profecias sobre
aquele que viria abrindo o caminho para Iahweh (Is 40, 3), sustentam a vinda
daquele que teve seu nascimento anunciado por um anjo (Lc 1, 5-23), à
semelhança de Isaac (Gn 18, 9-14), Sansão (Jz 13) e Samuel (1Sm 3) e João, que
também teve sua vinda predita a Maria, na anunciação (Lc 1, 36).
João nasceu no seio de uma família sacerdotal. Seu pai, Zacarias, era do
grupo de Abias, e sua mãe, Isabel, era da descendência de Aarão, o fundador do
sacerdócio hebreu. Com relação à sua infância, sabe-se apenas que ele “crescia e
se fortalecia em espírito, vivendo nos desertos, até o dia em que manifestou a
Israel” (Lc 1, 80).

48
O perfil do messias esperado por João Batista aflui mais claramente através
das declarações feitas por ele em suas mensagens, como em sua primeira
exortação: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para vir?”
(Mt 3, 7). João Batista torna-se o porta-voz do povo comum, o qual transforma o
apelo pela justiça e igualdade social em uma ira escatológica, capaz de desafiar as
autoridades, considerando-as ilegítimas e opressivas, concedendo a elas a
oportunidade de arrependimento para não serem eliminadas. (HORSLEY e
HANSON, 1995).

3.1.1 O batismo

Fazer parte do povo eleito de Deus deixa de ter qualquer importância, o


único meio de escapar do julgamento aniquilador é a exigência da conversão
simbolizada pelo ato do batismo nas águas. O rito batismal celebrado por João
trouxe um novo elemento que proporcionava a todas as pessoas a possibilidade de
confessar seus pecados, para que, através do seu perdão, pudessem alcançar
favores diante de Deus. Tal batismo ministrado por João era realizado apenas uma
vez em cada pessoa, pelo fato de estarem no momento último, sem tempo para
renovação. (GNILKA, 2000).
O fato de João Batista não especificar a forma daquele que haveria de vir,
deixava em segredo a presença do messias esperado. Sabia-se apenas que ele
estava no meio do povo (Jo 1, 26). Percebe-se que o próprio João, mesmo
tratando-se de seu primo, não tinha consciência de que Jesus era o esperado (Jo
1, 31). (MIEN, 1998).
Em meio à multidão, anonimamente Jesus espera pelo momento em que
possa ser batizado por João Batista, enfatizando o reconhecimento pelo seu
ministério. Tal reconhecimento que Jesus teve pelo ministério de João Batista,
reafirmado mais tarde (Mt 11, 7-15), chega a seu extremo quando Jesus é de fato
submetido ao batismo de João. (GNILKA, 2000).
Vivendo na solidão do deserto, lugar sugestivo pela tradição bíblica para
uma atuação escatológica, João tinha a consciência de que sua missão seria a de
preparar a vinda do messias prometido, o qual seria tão grande como o próprio
Moisés (Dt 18, 15).

49
3.2 O Messias – O ministério de Jesus

Por cerca do ano 28, Jesus abandona o anonimato para dar início a seu
ministério. Como era de se esperar, sua caminhada teve início junto ao
reconhecimento dado por João Batista, denominado o precursor do messias.
(GRELOT, 1971). Através de sua enérgica pregação, João Batista em meio à
multidão que o cercava distingue Jesus com uma significativa declaração: “Eis o
cordeiro de Deus”, e logo após uma confirmação ao dizer que “ele é o eleito de
Deus” (Jo 1, 29 e 34).
Pode-se notar, que ao relatar a figura de cordeiro (v. 29), criou-se, logo no
início de seu ministério, uma busca para designá-lo na mesma imagem de servo,
aquele que como cordeiro foi levado ao matadouro, trazendo menção a Isaías 53.
Sua postura de servo foi de imediato anunciada pelo evangelista João, postura esta
que se torna de grande relevância em meio à formação messiânica assumida por
Jesus. Afirmações encontradas nos evangelhos demonstram sua busca em
assumir tal postura: Tal como o filho do homem, que não veio para ser servido, mas
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos (Mt 20, 28).
Ao verificar seu nascimento, já se poderia presumir com facilidade que o
messias chamado Jesus não demonstrava ser um líder de magnitudes reais, e sim,
de grande humildade. Em uma de suas aparições em público, Jesus relata diversos
ensinamentos. Em meio a todos coloca um condicionamento central para o contato
com o reino dos céus, a questão da pobreza (Mt 5, 3), seguindo em seu discurso
uma série de recompensas a todos que se enquadram em um perfil de mansidão,
aflição, misericórdia, puros de coração e perseguição.
As boas-novas do reino de Deus são, em Jesus, anunciadas aos pobres (Mt
11, 5) assim como procede em Is 61, 1-2, trazendo justiça e libertando os cativos,
sendo desta forma a salvação advinda do messias para formação do reino de Deus
aos pobres. Jesus inaugura um movimento com base na igualdade e na irmandade,
onde não se questionava a situação financeira de seus adeptos, sendo, porém, de
suma importância que os tais se desligassem das riquezas. Ao verificar tal postura
assumida por Jesus, de estar junto aos pobres e não se revoltar com aqueles que

50
estão sendo os causadores desta situação de pobreza, gera uma certa imagem de
passividade por parte de Jesus.
Porém, a sua vinda fornece a todos a promessa de uma nova vida, onde,
assumindo a forma de libertador como Moisés, tendo à sua frente um povo
oprimido que clamava por justiça, sendo como símbolo das novas tribos, os doze
discípulos que o acompanhavam, os quais seriam conduzidos a uma nova terra,
um novo tempo de salvação e glória. (MONLOUBOU e BUIT, 1997, p. 519-520).
A ideologia impregnada no contexto judeu, visualizava o agir messiânico
como uma troca de situações, onde o povo pobre e oprimido haveria de ter toda
regalia e poderio sobre seus dominadores. Jesus, no entanto, demonstra uma
busca pela formação de um povo com laços de irmandade e não de domínio, onde
aquele que era servido passe agora a servir, abandonando todo idealismo de
grandeza e domínio. (MESTERS, 1983, p. 36-37).
Quando Jesus chamou para junto de si seus adeptos, todos aqueles que
haveriam de formar com ele uma nação gloriosa, algo de sublime se constitui, pois
não se percebe uma seleção de pessoas com boa aparência, suficientemente
capazes de inaugurar um novo povo, sem fome e sem miséria.
O messias Jesus traz consigo um forte pronunciamento: “não são os que
têm saúde que precisam de médico, mas sim, os doentes” (Mt 9, 12). O reino de
Jesus será composto por pessoas pobres, doentes, abandonadas, todos aqueles
sem esperança, tornando, com isto, as palavras de Jesus um bálsamo para a vida
de todos.
Nas narrativas evangélicas relacionadas ao ministério de Jesus, o ato de
curar ocupa um lugar considerável em suas obras, sendo uma variedade de
doenças descritas pelos evangelistas. As realizações de curas tornaram-se tão
relevantes no seu ministério que Jesus atribui como sinal da presença do Espírito
Santo entre eles, a manifestação de cura (Mc 16, 17-18). (IDIGORAS, 1983, p.
110).
Em meio às curas realizadas por Jesus, manifestações de milagres
tornou-se presente em vários casos, como ressurreição (Mt 9, 23-6), cegueira (Mt
9, 27-31) e doenças de pele (Mt 8, 1-4), porém, em outros casos, a cura se
relaciona com a libertação demoníaca na pessoa, exercendo Jesus o papel de

51
exorcista, como no caso do mudo (Mt 9, 32-4) , do cego e mudo (Mt 12, 22).
(GNILKA, 2000, p. 118-119).
Desta forma, Jesus com seus atos poderosos, abalou um grande número de
pessoas, abrindo a possibilidade para que se manifestasse o reino de Deus. Sobre
a forma de messias milagreiro e exorcista, Jesus estabelece a chegada do novo
mundo, anunciando a libertação aos cativos. (FABRIS, 1988, p. 152-154).

3.2.1 Considerações messiânicas

Ao levantar pontos pertinentes à formação e atuação ministerial de João


Batista e Jesus, pode-se perceber alguns fatores de grande valia para se traçar o
perfil do messias desenvolvido por cada um.
Com relação a João Batista, pode-se notar uma grande carga histórica que
perpetuava em seu idealismo messiânico. Ao mencionar carga histórica,
referimo-nos ao idealismo advindo da dinastia davídica que se constituiu matriz na
esperança messiânica.
Assumindo a postura de precursor do messias, sendo sua a obrigação de
pregar a mensagem do arrependimento, no qual todas as pessoas, sem privilégios,
deveriam modificar suas atitudes frente a Deus. Tal mudança sendo simbolizada
pelo batismo que se constituiu em um ato de admissão ao reino messiânico.
Já em relação ao ministério desenvolvido por Jesus, viu-se também uma
forte influência em sua vinda, onde alguns conceitos se formam em relação à sua
postura messiânica, como filho do Altíssimo. O messias Jesus não pretendia tomar
o poder dos reis e retirar o seu povo de debaixo do domínio político vigente, ele
queria estabilizar uma nova nação, um povo escolhido por ele como o mais sofrido
e marginalizado. Em meio a este povo se encontram os doentes e deficientes
físicos, os quais ele curava e restabelecia.
Outras características marcantes no perfil messiânico desenvolvido por
Jesus foram: sua relação de se igualar com o próprio Deus no instante em que
perdoou pecados, de se posicionar de forma íntima com Deus ao designar-se filho
de Deus, ou em mostrar o seu poder ao subordinar o sábado à sua autoridade.

52
3.3 Jesus - A proclamação do Reino de Deus

O centro da pregação de Jesus é a proclamação do Reino de Deus, que se


apresenta como uma forma alternativa de organizar a vida humana concretizada
em novas relações políticas e religiosas. Ao proclamar o acesso de todos a Deus
como “pai”, as relações humanas se horizontaliza, dissolvem-se as assimetrias que
caracterizam o poder como domínio e se resolvem como relações de equidade.43
Todavia a vida de Jesus reflete a sua missão de concretizar e objetivar a
vontade e os valores de Deus na história. A expressão literal “Reino de Deus” era
recente e de uso pouco frequente. Foi Jesus que decidiu usá-la de forma regular e
constante, na medida em que não encontrou expressão melhor para comunicar
aquilo em que acreditava, pois desde criança havia aprendido a crer em Deus
44
como criador dos céus e da terra, soberano absoluto e Senhor de todos os povos.
Para uma interpretação adequada do evento “Jesus” e daquilo que ele
chamou de “Reino de Deus”, é necessário mergulhar em seu “​sitz in leben”​ 45, no
qual, dentre muitos aspectos, podemos destacar a insatisfação geral do povo da
Palestina do século I, contra a dominação romana e judaica, e das autoridades
religiosas. Nesse contexto surgem inúmeros pregadores ambulantes e salteadores
que atacavam inclusive as caravanas romanas. Existia uma forte presença da
expectativa escatológica da proximidade de Deus, sobre a experiência da ação de
Deus na história, a espera da chegada do “Reino de Deus”, sob diversas maneiras
e por vários movimentos, grupos políticos e religiosos, tendo como pano de fundo a
linguagem apocalíptica. Jesus estará perante todos eles demonstrando com
transparência em suas palavras gestos e ações, sua consciência de tal
proximidade de Deus e do “Reino de Deus”.46

Cf MIGUEZ, N. ​O Jesus, o povo e a presença política. In: Concilium.​ Petrópolis, nº 322, 2007. p.
43 ​

529-531.

44 ​
Cf. PAGOLA, J. ​Jesus: aproximação histórica​. Petrópolis: Vozes, 2011. p. 11.

45 ​
Sitz in leben é uma expressão alemã utilizada na exegese de textos bíblicos. Traduz-se
comumente por “contexto vital”. Cf. SILVA, C. ​Metodologia de exegese bíblica.​ São Paulo: Paulinas,
2000.

46 ​
Cf. LIBANIO, J. B. & BINGEMER, M. ​Escatologia Cristã​. Petrópolis: Vozes, 1985.

53
Jesus propõe uma nova sociedade, alicerçada na Aliança do Sinai e
baseada no bem comum, na igualdade e no amor fraterno, que gere relações
humanas, nas quais a justiça e o direito sejam colocados em primeiro lugar. “Reino
de Deus está essencialmente ligado à pessoa de Jesus de Nazaré. O Novo
Testamento mantém este fato numa de suas mais antigas lembranças, dizendo
que, com Jesus, o Reino de Deus, Deus ele mesmo, vem para bem perto de nós.
“Reino de Deus deve consequentemente deve ser compreendido e
47
qualificado a partir da vida de Jesus...”. A partir do Novo Testamento, Jesus e a
sua concepção do Reino se tornam os grandes e únicos paradigmas para toda e
qualquer interpretação. Devemos compreender o Reino de Deus assim como Jesus
o compreendeu. E, à medida que se descubra discrepância entre a nossa visão e a
visão de Jesus, somos chamados a mudar as nossas concepções. É esta a
verdade profunda que na escatologia contemporânea está sendo tomado muito a
sério.
O núcleo central de toda a atuação de Jesus é o Reino de Deus. Jesus não
pregava a si mesmo, nem a Deus nem a Igreja. Jesus pregava o Reino de Deus e
48
sua vinda. Do ponto de vista histórico, podemos afirmar que, nesse choque de
concepções divergentes do Reino, encontramos o núcleo central para a
compreensão de Jesus e de seu destino. Analisando as palavras sobre o Reino de
Deus, formuladas por Jesus, se descobrem suas verdadeiras intenções.
Toda pregação e atuação de Jesus devem, de antemão, ser vistas no
contexto religioso e sociocultural. Jesus se move numa sociedade marcada pelas
discussões e reflexões sobre o Reino de Deus. Sociedade impregnada pela espera
ansiosa da vinda iminente desse Reino.
O agir de Jesus e a sua concepção do Reino de Deus questionam as
concepções defendidas pelas instituições estabelecidas de sua época. Mas não só
isso. Muitas vezes Jesus até as rejeita. Com inquietante firmeza, Jesus situa o
Reino no meio da história concreta. Isso, em si, não é novidade. Mas, com a
autoridade daquele que fala em nome de Deus, declara que os primeiros
destinatários deste Reino não são seguidores das leis e doutrinas, e sim os pobres.

47 ​
SCHILLEBEECKX, E. ​Pessoas. A história de Deus.​ Barcelona: Herder, 1990 p. 152-153.

48 ​
SOBRINO, J. ​Cristologia a partir da América Latina,​ Petrópolis: Vozes, 1983. p. 61-62.

54
Aqueles que na sua época, eram rejeitados exatamente por aquelas leis que a
instituição religiosa dizia que era a precondição para o Reino chegar. Contra elas e
contra todos os legalistas do templo, Jesus formula a sua verdade escandalosa,
que é a verdade de Deus sobre o seu Reino: “Bem-aventurados vós, os pobres,
porque vosso é o Reino de Deus” (Lc 6, 20).
Acreditando ao mesmo tempo em que o agir de Jesus se iguala ao agir de
Deus, podemos consequentemente formular a seguinte equação fundamental:
Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Ali, onde Jesus age, Deus age. Ali,
onde Deus age, acontece o Reino de Deus. No agir de Jesus acontece Reino de
Deus.
Podemos notar que em todas as ações de Jesus há um elemento comum:
de situações que de “menos vida” se passa para situações de “mais vida”. De
situações de opressão, se passa para situações de libertação. Quando isto
acontece, e quando no agir deste Jesus se revela de fato aquilo que é Reino de
Deus, então detectamos nestas características estruturais de sua prática, uma das
mais bem fundamentadas características do Reino: quando o Reino de Deus
acontece, situações de opressão estão sendo superadas. Quando Reino de Deus
acontece, situações de menos vida estão sendo transformadas em situações de
mais vida.
Reino de Deus não acontece só no agir do próprio Jesus. Reino de Deus
acontece sempre que homens e mulheres agem da maneira como Jesus agiu.
Seguindo o exemplo dele, realizam no seu atuar sinais da presença do Reino. Eis o
último significado do grande chamado de Jesus: “Vem e segue-me!” (Mc 1, 17; 2,
14; 10, 21). Seguir a ele significa, neste contexto, fazer o mesmo que ele fez.
Sendo assim , quando Jesus prega o Reino de Deus está anunciando uma
esperança que já tinha uma longa história em Israel. Supõe-se que ele tenha
aprendido de Isaías e dos Salmos em particular a verdade básica: que Deus, como
Criador, reinou, reina e sempre reinará sobre a sua criação. A realeza de Deus
também é exposta nos livros narrativos do Antigo Testamento, em especial no Ex
15, 18; Dt 33, 5 e Nm 23, 21. Acredita-se que o Antigo Testamento tenha

55
proporcionado a Jesus a linguagem, os símbolos, a história do domínio régio de
49
Deus e de seus vários significados.

3.3.1 As parábolas como ensinamentos

A história das parábolas se inicia no Antigo Testamento com o uso de


comparações nas formas dialógicas de discurso das profecias e salmos. As
parábolas do Antigo Testamento apresentam aspectos característicos das fábulas
como utilização de traços alegóricos e antropomorfismos mostrando animais e
plantas como homens. Os rabinos as utilizavam para interpretar a Torá e tornar os
ensinamentos acessíveis às pessoas simples e às crianças.
As parábolas de Jesus como uma forma sapiencial aparecem pela primeira
vez no judaísmo com um alcance mais amplo trazendo sua mensagem em si
50
mesmas. O antropomorfismo das fábulas não está presentes nelas. As parábolas
são a expressão natural de uma mentalidade que vê a verdade em imagens
concretas ao invés de concebê-la por meio de abstrações. Em sua forma mais
simples a parábola é uma metáfora ou comparação tirada da natureza ou da vida
cotidiana que atrai o ouvinte por sua vivacidade ou singularidade deixando uma
51
certa dúvida sobre sua significação exata e estimulando a mente a uma reflexão.
As parábolas de Jesus apresentam um realismo notável e oferecem um
quadro completo e convincente da vida dos camponeses, dos habitantes das
aldeias e das pequenas cidades. Este realismo demonstra que há uma afinidade
interna entre a ordem natural e espiritual pois “o Reino de Deus é estritamente
52
semelhante aos processos da natureza e da vida cotidiana dos homens”.

Cf. MEIER, J. ​Um judeu marginal: Representando o Jesus histórico​. 3ed. Rio de Janeiro: Imago,
49 ​

1996. p. 20-31.

50 ​
Cf. THEISSEN, G. & MERZ, A. ​O Jesus histórico - Um manual. São Paulo: Loyola, 2002.
p.360-361

51 ​
Cf. DODD, C. H. & OLIVEIRA, D. ​As parábolas do reino​. São Paulo: Fonte Editorial, 2010. p.17.

52 ​
Ibid. pg. 21

56
3.3.2 As parábolas do Reino

As parábolas como elementos da atuação de Jesus caracterizam-se pela


mensagem sobre a vinda do Reino de Deus. No seu teor original elas não falam
diretamente sobre Deus, nem sobre o próprio Jesus, mas no conjunto da
mensagem de Jesus fica evidente que se trata da salvação que Deus oferece: do
Reino de Deus e da metanoia interior que ela exige. O ensino de Jesus mostrado
nos Evangelhos faz referência tanto ao futuro como ao presente.
Não obstante o passar dos séculos, elas continuam nos tocando com a sua
atualidade e humanidade. No conjunto das parábolas, duas se referem
explicitamente ao Reino de Deus: a do Tesouro Oculto e a da Pérola (MT 13,
44-46). Ambas descrevem a conduta de um homem que encontra um tesouro de
grande valor e o adquire à custa de tudo o que possui.
Também são consideradas parábolas do reino aquelas que, embora não
falem diretamente do reino, fazem alusão a esse aspecto do ministério de Jesus.
Neste caso, incluem-se as duas parábolas sobre os construtores da torre e do rei
que vai à guerra (Lc 14, 28-33), cujos relatos encontram ilustração nos episódios
descritos em Mt 8, 19-22 e Lc 9, 57-62, nos quais se recorda em termos religiosos
o ônus que os discípulos deveriam estar preparados a pagar diante de sua adesão
ao seguimento de Jesus.
É provável que essas parábolas escatológicas de Jesus reforçassem a
metanoica, no sentido de que os homens reconheçam que o Reino de Deus já
estava presente e, ao mesmo tempo, preparavam os discípulos para enfrentar os
tempos difíceis que haveriam de vir em decorrência das práticas e da pregação de
53
Jesus.
O anúncio do Reino de Deus como centro da pregação, está presente em
toda a vida de Jesus, através da sua práxis, por contrariar os interesses das
autoridades religiosas judaicas no fim do seu ministério público de Jerusalém e por
contrariar os interesses do Império custou a sua vida. Todavia na ressurreição,

53 ​
Cf. SCHILLEBEECKX, E. ​Jesus, A História de um Vivente​. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 155.

57
Deus mostra que o seu reino triunfará na história e a ultrapassará na plenitude da
54
vida eterna.

3.4 A relação da prática de Jesus com a sua morte e ressurreição

Jesus no decorrer de seu ministério público dedica-se a proclamação do


anúncio da chegada do Reino de Deus que se concretiza através de uma forma de
vivência dos relacionamentos humanos baseada na justiça, na partilha dos bens,
na solidariedade e na fraternidade, tudo isso possibilitando a transformação deste
mundo e o acesso a Deus. As atitudes de Jesus agradavam principalmente aos
pobres que o seguiam e o aclamavam, mas provocaram o descontentamento das
classes dirigentes que se sentiram ameaçadas com esse novo modo de proceder,
levando-as a tomar a decisão de matar Jesus e terminar com o movimento que ele
inspirava. Jesus não se preocupava em se defender, ao contrário muitas vezes
55
tentava provocar as autoridades com suas próprias palavras e atitudes.
Se por um lado Jesus está enraizado na mentalidade do seu povo, por outro
ele assume atitudes de extrema liberdade que causam espanto e provocam uma
dura oposição das classes dirigentes representadas pelos fariseus e herodianos
(Mc 3, 6). Os conflitos entre Jesus e as autoridades do povo constituem parte
integrante do ministério de Jesus tendo como consequência a sua condenação
pelas autoridades religiosas e civis. Para ser solidário com os homens ele assumirá
todos os riscos decorrentes de sua missão mantendo-se coerente com a sua
proposta.
Os quatro Evangelhos atestam que Jesus morreu na cruz condenado por
Pilatos como líder de uma revolta política. Não há uma unanimidade com relação
ao processo jurídico da morte de Jesus, sendo provável que somente a autoridade
romana tivesse o direito de pronunciar a sentença de condenação à morte de cruz.
Enquanto o Sinédrio condenava Jesus por motivos religiosos, o procurador romano
mandou executar Jesus na cruz, como rebelde político. Embora tenha percebido

54 ​
Cf. MANZATTO, A. ​Notas para uma cristologia para o terceiro milênio. In: Revista de Cultura
Teológica​. São Paulo, 2000. v. 8 p. 79-107.

55 ​
Cf. MANZATTO, A. ​Cristologia latino-americana​. In: SOUZA Ney (org). ​Temas de Teologia
latino-americana.​ São Paulo: Paulinas, 1997. pp.54-55.

58
que lhe entregaram um homem politicamente inofensivo para ser condenado, ele é
convencido de que não devia comprometer sua carreira política por causa de um
simples judeu.
As autoridades religiosas ameaçavam a própria estabilidade e a segurança
56
do procurador romano. A multidão que havia aclamado Jesus na entrada triunfal
em Jerusalém, que o procurava como médico e ouvia atentamente a sua pregação
é a mesma que grita: “Crucifica-o! Crucifica-o!” (Jo 19, 6). O amor de Jesus pela
humanidade leva-o a carregar a cruz para o Gólgota, para fora da cidade, onde foi
57
crucificado. Para os discípulos e para o próprio Jesus a morte foi a última grande
lição do processo revelador, criando uma situação nova e a possibilidade de uma
nova experiência. Contra a crença de que Deus “devia” intervir a favor de Jesus, o
justo por excelência, na sua morte a cruz converteu-se na rocha firme da Fé. Deus
estava presente, e “agia na história, mas sem romper suas leis; Continuava sendo
o Pai do Crucificado e estava com ele, sustentando-o com seu amor, mas não o
58
descia da cruz”.
Todavia, Jesus de Nazaré, assassinado injustamente por sua fidelidade, não
permanece aniquilado pela morte física. Ele ressuscita pela ação de Deus e
alcança a sua plenitude definitiva, mas é o mesmo Jesus que os seus seguidores
conheceram, pois “quem ressuscita é o crucificado”, cuja ressurreição foi gestada
durante toda a sua vida de amor, fidelidade e entrega graciosa. A sua vida real não
é rompida com a morte, mas glorificada por Deus que ressuscita os mortos.
Jesus de Nazaré, agora como Cristo glorioso identificado como o Pai, passa
a um novo modo de existência, conservando a sua identidade pessoal de tal forma
que nas aparições os discípulos o identificam com Jesus de Nazaré e o
reconhecem pelas marcas dos pregos (Jo 20, 20) e pelo partir do pão (Lc 24, 30).
As testemunhas da ressurreição foram aqueles que viveram com Jesus e foram
59
atraídos por Ele, por sua mensagem e sua causa.

Cf. FERRARO, B. ​A significação política e teológica da morte de Jesus.​ Petrópolis: Vozes, 1977.
56 ​

pp 139-142.

57 ​
Cf. ZILLES, U. ​Jesus Cristo: quem é este?​ Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.p.162.

58 ​
QUEIRUGA, A. ​Repensar a Ressurreição​. São Paulo: Paulinas, 2004. p. 166.

59 ​
Cf. SOBRINO, J​. A fé em Jesus Cristo. Petrópolis​. Vozes, 2000. p.100.

59
Após a ressurreição, torna-se impossível aos discípulos permanecerem
calados na condição de testemunhas (At 4, 20) e todos os envolvidos se
transformam em pessoas que se sentem no dever de anunciar a mensagem
primitiva, dando continuidade à obra e missão de Jesus.

3.5 A fé da comunidade que proclama Jesus

Após a ressurreição, a preocupação com a pessoa de Jesus e a salvação


que ele nos trouxe passou a ocupar lugar de destaque, fazendo com que o tema do
Reino de Deus recebesse outras interpretações e perdesse a sua centralidade. Foi
enfatizado o sentido místico-espiritual do reino ou este foi identificado com a Igreja
e o poder temporal. Deste modo a interpretação dada ao reino perdeu a sua
dimensão social e religiosa afastando-se do sentido original da pregação de Jesus.
Crer no Jesus terreno significa reconhecê-lo como profeta de Israel e para
Israel, como profeta escatológico, cheio do Espírito de Deus que anuncia o reino
trazendo-o em palavras e obras. Crer em Jesus ressuscitado é reconhecê-lo como
salvador universal de todos os seres humanos.
A ressurreição como ação de Deus em Jesus confirma a sua mensagem, a
sua práxis de vida e revela sua pessoa unida indissoluvelmente com Deus e com a
mensagem de Deus.60 A salvação definitiva nos vem de Deus em Jesus de Nazaré,
o Crucificado ressuscitado. “É Deus quem nos salva em Jesus Cristo” (2 Cor 5, 19).
Deus salva no homem e pelo homem Jesus, por sua mensagem, vida e morte. A
realidade da maneira humana e pessoal de ser, é necessária para tornar
compreensível a profundeza da auto-entrega salvadora de Deus, mas deixando o
61
sofrimento, a morte e a alienação na realidade terrena da existência humana.
Jesus é o Salvador da humanidade e traz a salvação para dentro da história,
não de um modo mítico ou mágico, mas a partir da Encarnação. A Teologia da
Libertação lembra que para os que crêem o Cristo é Jesus. Através dele Deus se
62
revela à humanidade trazendo a salvação.

60 ​
SCHILLEBEECKX, E. ​Jesus, A História de um Vivente​. São Paulo: Paulinas, 2008. p. 647.

61 ​
Idib.pg. 671.

Cf. MANZATTO, A. ​Cristologia latino-americana​. In: SOUZA, Ney (org). ​Temas de teologia da
62 ​

libertação​. São Paulo: Paulinas, 2007.

60
Jesus como Mediador é a expressão do acesso de Deus aos seres humanos
e caminho dos seres humanos para aproximar-se de Deus. Jesus é a expressão de
como a criatura pode aceder a Deus em confiança e fidelidade, em misericórdia e
entrega, em oração e amor. Aquele que se abre para Jesus e aceita a metanoia
que ele prega encontra a presença imediata e gratuita de Deus como salvação. O
homem deve corresponder à realidade de Deus que se aproxima tornando-se ele
mesmo, boa notícia e salvação para os outros.
Todos os elementos fundamentais dessa fé permanecem e recebem uma
nova fisionomia a partir do novo conceito de futuro dado pela Ressurreição. No
entanto, também agora a fé significa sair do visível e calculável para algo maior,
significa peregrinar e, de tal modo, uma inversão dos valores, uma nova fixação
dos valores e dos critérios da existência a partir do critério do futuro, ou seja, o que
corresponde ao homem não é o momentaneamente útil, mas aquilo que o orienta
para a eternidade. Trata-se de compreender agora que “o homem Jesus que ao
mesmo tempo é Deus é para nós a garantia infinita de que o ser-homem e o
63
ser-Deus podem existir e viver eternamente um no outro”.
A eternidade se torna o critério para o viver. Assim, a fé no Deus de Jesus
Cristo significa fé no Deus que, atrás do muro da morte, ainda mostra um futuro e
até mais intenso. Em sua estrutura, a fé no Deus que ressuscitou Jesus dos mortos
é de fato a exata continuação da fé de Abraão. A fé cristã deve estar envolvida com
o mundo em sua totalidade, que deve sair do seu gueto e levar consigo à esfera
pública o seu conteúdo próprio, isto é, o Deus que julga e sofre, o Deus que
estabelece limites e critérios; o Deus do qual viemos e ao qual nos dirigimos.
Precisamente como cristãos, somos chamados a construir este mundo, a
trabalhar no seu futuro, para que um dia se torne o mundo de Deus que
ultrapassará longe tudo que nós mesmos jamais podemos construir. “O cristianismo
não é uma religião do passado que nos quer prender para sempre a alguma coisa
que um dia foi, mas uma religião da esperança do que está por vir. Uma religião
64
que nos abre o caminho para o que vem, para a criação definitiva.

63 ​
RATZINGER, J. ​Dogma e Anúncio.​ São Paulo: Loyola, 2005. p. 354.

64 ​
Ibid. p. 355.

61
A partir do prólogo de João está no centro de nossa fé cristã em Deus o
conceito do Logos, que significa razão, sentido, mas também palavra – um sentido
portanto, que é palavra, que é relação, que é criador. O Deus que é Logos nos
afiança a racionalidade do mundo, a racionalidade do nosso ser, a adequação da
razão a Deus e a adequação de Deus à razão, mesmo que a sua razão ultrapasse
65
infinitamente a nossa e nos pareça tantas vezes como escuridão.
A fé cristã, hoje, corre grande risco de ser transformada num mero
palavreado que tem dificuldade de esconder um vazio espiritual completo, de um
assombro diante da descrença em nossos dias ou o assombro que acompanha
empreendimento de comunicá-la, por isso, a importância de uma compreensão da
fé como possibilidade de uma verdadeira existência humana no mundo de hoje, a
compreensão de que a palavra “crer” significa uma decisão da existência, isto é,
viver para o futuro que Deus nos outorga para além do limite da morte. Voltar à
existência na direção do eterno, dando importância para a vida, para seus critérios,
suas ordens e, justamente nisso, sua liberdade.
Sendo assim, proclamar Jesus, é pôr em prática tudo o que ele viveu e
ensinou para a humanidade, é vivenciar dentro do contexto social as suas práticas
e atitudes. Só assim estaremos vivendo o Reino de Deus e manifestando a figura
do Cristo.

65 ​
Ibid. p. 21.

62
4. A ENCARNAÇÃO DE JESUS

Neste capítulo, vamos analisar o evento histórico Jesus de Nazaré, partindo


do mistério da encarnação, onde Deus, através do Filho, assume a carne humana.

4.1 O Verbo Encarnado

“Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou Deus seu Filho, nascido da
mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que se achavam sob a lei e para que
recebêssemos a filiação adotiva. A prova de que sois filhos é que Deus enviou a
nossos corações o Espírito de seu filho que clama Abbá, Pai!” (GI 4, 4-6).
A teologia nos ensina que o Pai enviou seu Filho ao mundo para realizar a
obra da redenção. O amor de Deus pelos homens é a única razão do envio de seu
66
Filho ao mundo. “Eis como se manifestou o amor de Deus entre nós: Deus enviou
seu Filho único ao mundo para que vivêssemos por meio dele” (1 Jo 4, 9).
A habitação de Deus na história atinge sua plenitude na Encarnação.
Encarnação em Jesus, o Galileu, o homem pobre de Nazaré, que é relatada de
forma cálida e concreta por um versículo do prólogo do Evangelho de João: “E a
Palavra se fez carne e pôs sua morada entre nós,” (Jo 1, 44). A habitação de Deus
na história, que com a Encarnação atinge sua mais complexa realização. Mateus o
ressalta assumindo a profecia de Isaías: Jesus é o Emanuel, o “Deus conosco” (Mt
1, 23). O Evangelho de João se empenha em transmitir a importância desse
67
encontro.
O Logos se torna carne, isto é, aparece como ser humano, sem que isso
signifique um abandono de sua divindade. A identificação do Logos com o Jesus
histórico é absoluta, o Verbo é capaz de revelar Deus e conceder a vida eterna (Jo
5, 26). O Filho, pré-existente que está no seio do Pai, tornou-se humano: “Eu saí do
Pai e vim ao mundo; Ao passo que agora deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16,
28). A teologia joanina mostra a orientação total no envio exclusivo do Filho pelo
Pai a um mundo que não conhece a vida eterna e cuja salvação reside,

LADARIA, L. ​O Deus Vivo e Verdadeiro: o mistério da Trindade.​ São Paulo: Loyola, 2005. p.
66 ​

56-57.

67 ​
GUTIÉRREZ, G. ​O Deus da Vida​. 2 ed. São Paulo: Loyola, 1992. p. 112.

63
unicamente, na aceitação das palavras da vida eterna (Jo 6, 68). Jesus veio ao
mundo em nome de seu Pai celestial e não em nome próprio: “Eu não vim por mim
mesmo, foi Ele (Deus) que me enviou” (Jo 8, 42). Assim, a encarnação é
interpretada como amor de Deus pelo mundo e Jesus é o portador absoluto da
68
salvação.
O teólogo Torres Queiruga afirma que pela fé cristã, acreditamos que Jesus
Cristo seja a chave última, mas não exclusiva, para as perguntas decisivas da vida
humana. Ele é a síntese extraordinária de um homem que manifesta a majestade
divina, Deus passeando pela paisagem cotidiana da Palestina. Não como um Deus
que despeja os esplendores de sua onipotência sobre nós, mas como um ser
humano comum que dá respostas às grandes interrogações humanas,
compartilhando conosco sua humanidade. Jesus não se apresenta como um
super-homem, como alguém que sofreu mais que todos, ultrapassando a dor de
milhares subjugados por torturas, ditaduras, mas como um “simples homem”. O
Novo Testamento nos revela o mistério da humanidade de Cristo a partir da
profundidade de seu amor, da autoridade da sua Palavra, da generosidade da sua
69
entrega.
A constituição ontológica de Jesus nos mostra todas as características
próprias de uma pessoa humana no sentido completo do termo. Houve a existência
corporal no tempo e no espaço em relação com a alteridade, assim como foi
inserido perfeitamente nas tradições de seu povo e expressou todas as emoções,
como: tristeza, simpatia, medo, dor e morte, cujas características são
essencialmente humanas. As possibilidades e os limites que marcam o cotidiano da
vida foram vivenciados por Jesus; inclusive o paradoxo fundamental da morte.
O sujeito histórico Jesus de Nazaré é a plenitude da revelação divina ao
homem. Esta plenitude deriva do fato que Ele é o “Filho Unigênito do Pai”, aquele
que é absolutamente humano e absolutamente divino; é o “Verbo de Deus” (Jo 1,
1). Portanto Jesus de Nazaré é Deus, mesmo em pessoa, que vem ao encontro

68 ​
MÜLLER, U. ​A Encarnação do Filho de Deus: concepções da encarnação no cristianismo
incipiente e os primórdios do docetismo.​ São Paulo: Loyola, 2004. p. 59.

QUEIRUGA, A. Repensar a Cristologia: Sondagens para um novo paradigma.​ São Paulo:


69 ​

Paulinas, 1999. p. 20.

64
dos homens para nos comunicar as verdades do Reino. A encarnação é a união
ontológica de Deus com os homens, que através de seu Filho se doa
completamente para revelar plenamente o mistério de Deus e, ao mesmo tempo, o
mistério do homem ao homem (Gs 22). Trata-se de um acontecimento único e
irrepetível, no qual Deus assume radicalmente os segredos e os sofrimentos de
cada homem, no mais profundo de sua individualidade para salvá-lo
70
concretamente.
A totalidade do evento Jesus é revelação do Pai, nas palavras e nas obras
(Dv 4), é sempre a revelação da imagem definitiva e perfeita do Deus Santo e
transcendente do Antigo Testamento. A carne e a linguagem humana são
assumidas por Jesus que fala, prega, ensina e testemunha aquilo que vive e sabe
acerca do Pai. Enquanto pessoa há consciência de si mesmo, se percebe como
homem no tempo e no espaço e à medida que vive, revela através dos gestos e
comportamentos a própria consciência de si mesmo. Neste sujeito pessoal em que
há consciência de si mesmo, habita o “Verbo eterno” (Jo 1, 14), portanto, Cristo em
sua experiência humana tinha necessariamente que revelar o Pai em todas as
ocasiões de sua vida, porque revelando o mistério de sua interioridade, revela o
mistério de Deus, uma vez que na sua interioridade habita Deus, ou melhor,
71
revelando o seu ser, revela o Ser de Deus plenamente encarnado em seu ser.
Neste sentido é que podemos defini-lo como revelação e revelador de Deus,
ou seja, na revelação do mistério de sua interioridade, revela igualmente o Mistério
de Deus, justamente porque é o Verbo de Deus.
Ainda que todo o destino de Cristo seja um constante revelar-se de Deus,
precisamos ressaltar algumas escolhas e decisões específicas dentro da
conjuntura geral de sua vida, que são decisivas para a economia da revelação e,
principalmente para a realização da redenção dos homens.
Se no decorrer da vida, havia sido profundamente solidário com os homens,
particularmente com os pequenos, oprimidos e humilhados; no calvário, na cruz,
exprime a sua solidariedade com todos aqueles que sofrem. Com a ressurreição

70 ​
FISICHELLA, R. ​Rivelazione: evento e credibilità​. Bologna: Dehoniane, 1985. p. 54.

RAHNER, K. ​Curso Fundamental da Fé: Introdução ao conceito de cristianismo​. 3 ed. São Paulo:
71 ​

Paulus, 2004. p. 266.

65
redime todos os homens que acolhem o seu projeto. O evento Cristo é a resposta
concreta de Deus às contradições da vida. Jesus de Nazaré é a resposta amorosa
de Deus à pergunta fundamental acerca do verdadeiro sentido da vida. Podemos
concluir dizendo que o sentido da vida é a possibilidade de encontrar-se com o
Filho de Deus que nos traz amor e a misericórdia do Pai.

4.2 Verdadeiro Deus e verdadeiro homem

O acontecimento único e totalmente singular da Encarnação do Filho de


Deus não significa que Jesus Cristo seja em parte Deus e em parte homem, nem
que ele seja o resultado da mescla confusa entre o divino e o humano. Ele se fez
verdadeiramente homem permanecendo verdadeiro Deus. Jesus Cristo é
verdadeiro Deus e verdadeiro homem. A Igreja teve de defender e clarificar esta
verdade de fé no decurso dos primeiros séculos, diante das heresias que a
falsificavam.
As primeiras heresias, mais do que a divindade de Cristo, negaram sua
humanidade verdadeira (docetismo gnóstico). Desde os tempos apostólicos a fé
cristã insistiu na verdadeira Encarnação do Filho de Deus, “que veio na carne”. Mas
desde o século III a Igreja teve de afirmar, contra Paulo de Samosata, em um
concílio reunido em Antioquia, que Jesus Cristo é Filho de Deus por natureza e não
por adoção. O I Concílio Ecumênico de Nicéia, em 325, confessou em seu Credo
que o Filho de Deus é “gerado, não criado, consubstancial (​homousios)​ ao Pai” e
condenou Ário, que afirmava que “o Filho de Deus veio do nada” e que ele seria “de
uma substância diferente do Pai”.
A heresia nestoriana via em Cristo uma pessoa humana unida à pessoa
divina do Filho de Deus. Diante dela, São Cirilo de Alexandria e o III Concílio
Ecumênico, reunido em Éfeso em 431, confessaram que “o Verbo, unindo a si em
sua pessoa uma carne animada por uma alma racional, se tornou homem”. A
humanidade de Cristo não tem outro sujeito senão a pessoa divina do Filho de
Deus, que a assumiu e a fez sua desde sua concepção. Por isso o Concílio de
Éfeso proclamou, em 431, que Maria se tornou de verdade Mãe de Deus pela
concepção humana do Filho de Deus em seu seio: “Mãe de Deus não porque o
Verbo de Deus tirou dela sua natureza divina, mas porque é dela que ele tem o

66
corpo sagrado dotado de uma alma racional, unido ao qual, na sua pessoa, se diz
que o Verbo nasceu segundo a carne”.
A Igreja confessa, assim, que Jesus é inseparavelmente verdadeiro Deus e
verdadeiro homem. Ele é verdadeiramente o Filho de Deus que se fez homem,
nosso irmão, e isto sem deixar de ser Deus, nosso Senhor.
Uma vez que na união misteriosa da Encarnação “a natureza humana foi
assumida, não aniquilada”, a Igreja tem sido levada, ao longo dos séculos, a
confessar a plena realidade da alma humana, com suas operações de inteligência
e vontade, e a do corpo humano de Cristo. Mas, paralelamente, teve de lembrar
toda vez que a natureza humana de Cristo pertence ​“in próprio​” à pessoa divina do
Filho de Deus que a assumiu. Tudo o que Cristo é e o que faz nela depende do Um
da Trindade. Por conseguinte, o Filho de Deus comunica à sua humanidade seu
próprio modo de existir pessoal na Trindade. Assim, em sua alma como em seu
corpo, Cristo exprime humanamente os modos divinos de agir da Trindade.
O Filho de Deus trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência
humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido da
Virgem Maria, tomou-se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo,
exceto no pecado. Esta alma humana que o Filho de Deus assumiu é dotada de um
verdadeiro conhecimento humano. Enquanto tal, este não podia ser em si ilimitado:
exercia-se nas condições históricas de sua existência no espaço e no tempo. Por
isso o Filho de Deus, ao tornar-se homem, pôde aceitar “crescer em sabedoria, em
estatura e em graça” (Lc 2, 52) e também informar-se sobre aquilo que na condição
humana se deve aprender de maneira experimental. Isto correspondia à realidade
de seu rebaixamento voluntário na “condição de escravo”. Mas, ao mesmo tempo,
este conhecimento verdadeiramente humano do Filho de Deus exprimia a vida
divina de sua pessoa. “A natureza humana do Filho de Deus, não por si mesma,
mas por sua união ao Verbo, conhecia e manifestava nela tudo o que convém a
Deus.” Este é, em primeiro lugar, o caso do conhecimento íntimo e direto que o
Filho de Deus feito homem tem de seu Pai. O Filho mostrava também em seu
conhecimento humano a penetração divina que tinha pensamentos secretos do
coração dos homens.

67
Cristo possui duas vontades e duas operações naturais, divinas e humanas,
não opostas, mas cooperantes, de sorte que o Verbo feito carne quis
humanamente na obediência a seu Pai tudo o que decidiu divinamente com o Pai e
o Espírito Santo por nossa salvação. A vontade humana de Cristo “segue a sua
vontade divina sem estar em resistência nem em oposição em relação a ela; mas
antes sendo subordinada a esta vontade todo-poderosa”. Visto que o Verbo se fez
carne assumindo uma verdadeira humanidade, o corpo de Cristo era delimitado.
Em razão disso, o rosto humano de Jesus pode ser “desenhado””. No VII Concílio
Ecumênico, a Igreja reconheceu como legítimo que ele seja representado em
imagens sagradas.
Jesus conheceu-nos e amou-nos a todos durante sua Vida, sua agonia e
paixão e entregou-se por todos e cada um de nós: “O Filho de Deus amou-me e
entregou-se por mim” (Gl 2, 20). Amou-nos a todos com um coração humano. Por
esta razão, o sagrado Coração de Jesus, traspassado por nossos pecados e para a
nossa salvação, ​“praecipuus consideratur index et symbolus... illius amoris, quo
divinus Rcdemptor aeternum Patrem hominesque universos continenter adamat – é
considerado o principal sinal e símbolo daquele amor com o qual o divino Redentor
ama ininterruptamente o Pai Eterno e todos os homens”.
Diante de tudo que nos foi apresentado neste capítulo, nos certificamos que,
Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, na unidade de sua Pessoa
Divina: por isso Ele é o único mediador entre Deus e os homens.
Jesus Cristo possui duas naturezas, a divina e a humana, não confundidas,
mas unidas na única Pessoa do Filho de Deus. Sendo verdadeiro Deus e
verdadeiro homem, Cristo tem uma inteligência e vontades humanas, perfeitamente
concordantes e submetidas a sua inteligência e a sua vontade divinas que têm em
comum com o Pai e o Espírito Santo.
A Encarnação é, portanto, o Mistério da admirável união da natureza divina e
72
da natureza humana na única Pessoa do Verbo.

Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização​. São Paulo: Viver o Ano da Fé,
72 ​

Paulus, 2012, p. 48-52.

68
4.3 A atualidade - A Igreja encarnada

A realidade do momento presente é marcada por situações graves de


desigualdades, exclusões e violências. Somos todos integrantes de um universo
marcado pelo individualismo e ao mesmo tempo pelo fenômeno da globalização. “A
globalização faz emergir, em nossos povos, novos rostos pobres.”
Diante desse novo quadro socioeconômico e cultural a Igreja também passa
por mudanças profundas em nível pessoal, comunitário e social, experimenta uma
crise de identidade e é desafiada a dar respostas aos novos desafios. Em síntese,
a crise do atual projeto de civilização obriga instituições e consequentemente a
73
Igreja a se “re-situar no novo contexto”. A partir desta complexa e plural realidade,
pergunta-se: é possível resgatar a identidade da religião como expressão cultural
que leve a um compromisso comunitário e envolvimento com a realidade,
especialmente na solidariedade com os mais pobres?
A Igreja, à primeira vista, é uma manifestação histórica. Apresenta-se diante
do mundo como uma realidade que vem atravessando os séculos. Todavia, é uma
realidade complexa, transcendental aos sentidos. Percebe-se que sua realidade
manifesta-se em duas perspectivas: uma histórica e outra supra-histórica ou
escatológica; ao mesmo tempo em que ela é uma comunidade organizada e visível
ela é também portadora do mistério, logo, sinal de esperança futura. Numa
retrospectiva histórica constata-se que em cada contexto histórico determinado,
74
modelos de Igreja foram utilizados para interpretar o mistério que ela encerra.
A Igreja é referida no Vaticano II através de três formulações: “sacramento
de Cristo”, “sacramento de unidade” e “sacramento universal de salvação da
humanidade e do mundo”, as quais manifestam a realidade sacramental da Igreja.
A Igreja, portanto, é portadora do mistério de Cristo e dela Ele se serve
75
como sinal e instrumento visível, para ser “sacramento de salvação” e

BRIGHENTI, A. ​A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas.​ São Paulo: Paulinas,
73 ​

2004, p. 5.

74 ​
DULLES, A. ​A Igreja e seus modelos.​ São Paulo: Paulinas, 1978. p. 49.

SMULDERS, P. ​A Igreja como sacramento de salvação​. In: BARAÙNA, Guilherme. Op. cit., p.
75 ​

396- 419.

69
76
“sacramento de unidade do mundo e da humanidade. Segundo a constituição
Lumen Gentium a Igreja é princípio de unidade: “Deus convocou e constituiu a
Igreja [...] a fim de que ela seja para todos e para cada um o sacramento visível de
unidade” (LG 9). A referência a São Cipriano põe em relevo que a Igreja é
comunhão, cuja realidade significada consiste na unidade do Pai, do Filho e do
Espírito Santo. Com efeito, é através dos sacramentos que a Igreja se atualiza;
neste sentido a eucaristia “fonte e ápice da comunidade cristã” (LG 11) mostra de
maneira concreta a comunhão do Povo de Deus, povo que comporta uma
catolicidade universal e ecumênica (LG 13; UR 3, 4).
A compreensão do Concílio tem como ponto de partida a dimensão
cristológica: Jesus Cristo é o sacramento de Deus voltado para a salvação da
humanidade. Cristo como sacramento de Deus, contém a graça que significa ao
mesmo tempo em que a confere. Nele a graça de Deus assume forma visível. Mas
o sacramento da redenção não é completo em Jesus como um só indivíduo. Para
se tornar aquele sinal que deve ser, deve aparecer como sinal do amor redentor de
Deus, extensivo a toda humanidade e da resposta de todo gênero humano a esse
amor de redenção. Neste sentido a Igreja é em primeira instância um sinal.
Ela deve significar, de uma forma historicamente tangível, a graça redentora
de Cristo e, consequentemente, portadora de salvação ao mundo e a todo o gênero
humano: “a tríplice repetição do adjetivo ‘universal’ põe em relevo o caráter único
desta sacramentalidade que se oferece não só aos crentes, como também a toda a
77
humanidade”. Ora, a compreensão da Igreja como “sacramento universal”,
significa também que ela está à serviço da solidariedade humana. Logo, esta tarefa
pressupõe que a sacramentalidade seja uma expressão relacional entre a
comunidade (Povo de Deus) e o seu mistério de comunhão.
O Concílio Vaticano II optou partir do homem de hoje apoiado numa
antropologia unitária, numa concepção de salvação em comunidade e no
reconhecimento da autonomia do temporal, “... acenando para três âmbitos de uma

WITTE, Jan L. ​A Igreja unidade de mistério do cosmo e do gênero humano​. In: BARAÙNA,
76 ​

Guilherme. Op. cit., p. 526-556.

PIÉ-NINOT, S. ​Eclesiología. La sacramentalidad de la comunidad cristiana​. Salamanca: Sígueme,


77 ​

2007, p. 183

70
autêntica ação pastoral: o âmbito da pessoa, o âmbito da comunidade e o âmbito
da sociedade”.

4.3.1 A Igreja na dimensão da pessoa

O Concílio Vaticano II, como projeto global, pode ser entendido como um
projeto de Igreja ​ad intra e ad extra​. A Igreja não só soube olhar para si mesma
como também soube ir ao encontro da pessoa.
A reflexão dos padres conciliares coloca a pessoa como sujeito, princípio e
fim de todas as instituições, “... dotada de dignidade (GS 26; DH 1), em razão de
sua sublime vocação para a comunhão com Deus (GS 19), merece reverência e
78
respeito (GS 27), pois Deus a respeita (DH 11), mesmo quando ela erra (GS 28)”.
Na base de toda eclesiologia de comunhão encontra-se o próprio mistério de
Deus em comunhão das pessoas trinitárias, e esta, por sua vez se estende sobre
cada pessoa criada à sua imagem e semelhança (Gn 1, 27). Uma das mais
completas expressões da mística da comunhão encontra-se nos escritos joaninos:
“o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais também em comunhão
79
conosco. E a nossa “comunhão” é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo” (1
Jo 1,3).
A experiência pessoal do amor de Deus é talvez a maior descoberta que o
ser humano pode realizar. Esta, por sua vez, realiza-se na íntima comunhão com
Ele, e assim, capacita a pessoa a superar o amor próprio para amar o próximo:
“isso só é possível realizar-se a partir do encontro íntimo com Deus, um encontro
que se torna comunhão de vontade, chegando mesmo a tocar o sentimento”.80 A
partir da comunhão realizada nas profundas raízes da comunhão trinitária dá-se o

BRIGHENTI, A. ​A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas.​ São Paulo: Paulinas,
78 ​

2004. p. 159.

79 ​
O termo Comunhão (cf. 1 Cor 1,9; 2 Pd 1,4) exprime um dos principais temas da mística joanina
(Jo 14, 20; 15,1-6; 17, 11. 20-26): a unidade da comunidade cristã fundada sobre a unidade de cada
fiel com Deus, em Cristo. Esta unidade é expressa por diferentes formas: o cristão ‘permanece em
Deus e Deus permanece nele’ (1 Jo 2, 5-6. 24. 27; 3, 6. 24; 4, 12-13. 15-16; cf. Jo 6, 56), ele é
nascido de Deus (2, 29; 3, 9; 4, 7; 5, 1. 18), é de Deus (2, 16; 3, 10; 4, 4. 6; 5, 19), conhece a Deus
... Esta união com Deus se manifesta pela fé e pelo amor fraterno (cf. 1 Jo 1, 7; Jo 13, 34; At 1, 8.
21-22).” (Bíblia de Jerusalém , 1 Jo 1).

80
BENTO XVI. ​Deus caritas est​, n. 18, p. 33.

71
germinar da Igreja quando as pessoas se aproximam uma das outras para
comunicar a mesma mensagem de fé, esperança e caridade.
A manifestação desta alegria experimentada de forma pessoal alarga-se
numa comunidade reunida em torno da Trindade. Aquilo que o Vaticano II
expressou nas palavras de Cipriano e Agostinho: “um povo reunido na unidade do
Pai e do Filho e do Espírito Santo” (LG 4).

4.3.2 A Igreja na dimensão da comunidade

Na dimensão comunitária a experiência pessoal de amor dá lugar à


fraternidade. Neste movimento acontece a mútua relação dos diversos indivíduos
onde o conceito de comunidade pressupõe uma pluralidade de indivíduos que se
unem e se inter-relacionam com vínculos pessoais.
Segundo a compreensão de Agenor Brighenti, a pessoa só consegue
personalizar-se e tomar consciência do mundo e dos outros através do encontro
pessoal e de amor no cerne de uma comunidade concreta. Da mesma forma que é
no encontro do ‘eu’ com o ‘tu’ que desperta a consciência pessoal, a harmonia
fundamental da pessoa depende da aprendizagem do gerenciamento de seus
conflitos na comunidade, transformando-os em relações amorosas. A Igreja quer
ser um espaço de realização da vocação cristã, enquanto comunidade, ícone da
Trindade.81
A diversidade de dons e carismas é expressão criativa da única missão de
Cristo em prol da humanidade: “o Povo de Deus aparece como uma comunhão de
irmãos, estruturada segundo uma diversidade de vocações, na qual as diferentes
funções e a diversidade de carismas não anulam a radical igualdade das pessoas”.
82
A diversidade de ministérios na Igreja convida à superação da dicotomia
“hierarquia-leigos” entendido como princípio estrutural para dar lugar à
“comunidade-ministérios” onde os membros agem na co-responsabilidade.

81
BRIGHENTI, A. ​A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas.​ São Paulo: Paulinas,
2004. p. 161.

82 ​
ACERBI, A. ​Due ecclesiologie: ecclesiologia giuridica ed ecclesiologia di comunione nella “Lumen
Gentium”​. Bologna: Dehoniane, 1975. p. 510. (AADE).

72
O princípio estrutural é, então, aquele da unidade do Povo de Deus na
multiplicidade e na interdependência das vocações e dos ministérios, onde todos
juntos concorrem a dar forma à comunidade. Por sua vez, “a comunidade eclesial
sempre apresenta uma dimensão de amor e de fé, que liga e enriquece seus
83
membros”. Esta concepção comunitária é bíblica e sua interpretação atual pode
muito bem ser aplicada na práxis cristã.
Afirma o recente magistério da Igreja: O amor do próximo, radicado no amor
de Deus, é um dever antes de mais para cada um dos fiéis, mas é-o também para
a comunidade eclesial inteira, e isto a todos os seus níveis: desde a comunidade
local passando pela Igreja particular até à Igreja universal na sua globalidade. A
Igreja também enquanto comunidade deve praticar o amor. Consequência disto é
que o amor tem necessidade também de organização enquanto pressuposto para
um serviço comunitário ordenado. A consciência de tal dever teve relevância
constitutiva na Igreja desde os seus inícios: “todos os crentes viviam unidos e
possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro
por todos de acordo com as necessidades de cada um” (At 2, 44-45). Lucas
conta-nos isto no quadro de uma espécie de definição da Igreja, entre cujos
elementos constitutivos enumera a adesão ao “ensino dos Apóstolos”, à
“comunhão” (​koinonia​), à “fração do pão” e às “orações” (cf. At 2, 42). O elemento
da “comunhão”, que aqui ao início não é especificado, aparece depois concretizado
nos versículos anteriormente citados: consiste precisamente no fato de os crentes
terem tudo em comum, pelo que, no seu meio, já não subsiste a diferença entre
ricos e pobres (cf. também At 4, 32-37). Com o crescimento da Igreja, esta forma
radical de comunhão material não pôde ser mantida. Mas o núcleo essencial ficou:
no seio da comunidade dos crentes não deve haver uma forma de pobreza tal que
sejam negados a alguém os bens necessários para uma vida condigna.84
A Igreja, na medida em que seus membros vivem a exigência da caridade,
ela se apresenta como presença visível e significativa à vida humana, é a “família

BRIGHENTI, A. ​A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas.​ São Paulo: Paulinas,
83 ​

2004, p. 161.

84 ​
BENTO XVI.​ Deus caritas est.​ n. 20, p. 36-37​.

73
de Deus no mundo” e então se compreende que ela é “o germe e o início” do Reino
de Deus no mundo.

4.3.3 A Igreja na dimensão da sociedade

A atual antropologia cristã tem como chave de leitura a dignidade da pessoa


humana. Mas tal visão não tem porque levar ao individualismo. Só uma visão
dualista que separa o imanente do transcendente empobrece e fragmenta a vida
pessoal a ponto de levá-la ao anonimato e ao isolamento egoísta. Uma sadia
releitura vetero-testamentária e neo-testamentária vê o cristão sempre na
comunidade eclesial: “viver a vida pessoal comporta o desenvolvimento da
verdadeira experiência comunitária, que não somente não obstaculiza o
85
amadurecimento da identidade pessoal, mas antes o estimula e o promove”.
86
Segundo Dom Elias Zoghbyc a unidade não é exclusiva, mas exige a
diversidade, pois é da diversidade de dons e ministérios, de diferentes povos e
culturas e da pluralidade de modelos religiosos e eclesiais que resulta o mosaico da
comunhão de todos:
Foi-se o tempo em que a sociedade civil religiosa julgava a diversidade
incompatível com a unidade. Os homens de todas as raças, de todas as cores e de
todas as religiões começam a acreditar na fraternidade universal, e a renunciar ao
espírito separatista, fanático e sectário da Idade Média. [...] As duas grandes
guerras que serviram de teste e não trouxeram solução para os problemas que
dividiram a humanidade, demonstraram que os conflitos internacionais não podem
ser solucionados pela força. Uma nova era de diálogo começou entre os povos. E
visto que a união entre os homens, como a união com Deus pelo amor, não pode
geralmente durar a não ser que seja acompanhada de um certo temor salutar,
Deus permitiu que a ameaça das armas atômicas viesse a deter a humanidade à

RUBIO, A. ​Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs.​ 3 ed. São
85 ​

Paulo: Paulus, 2001. p. 14.

86 ​
No período do Concílio Vaticano II era Arcebispo da Núbia; Vigário Patriarcal Greco-Melquita
Católico para o Egito e Sudão (cf. Baraúna, Guilherme. Op. cit., p. 14).

74
beira do abismo, onde a guerra quase a precipitou, toda vez que o diálogo lhes
87
parecia ineficaz.
Hoje a teologia, o magistério eclesial e a própria consciência cristã clamam
pela comunhão solidária na dimensão social e política tendo em vista a superação
da exclusão e da violência na sociedade consumista. A doutrina social da Igreja
propõe para além das fronteiras eclesiais indicações importantes, que são
princípios para guiar a sociedade. No princípio da solidariedade “... a pessoa existe
88
para a comunidade e para a sociedade, as quais existem para a pessoa”. A
solidariedade supera as fronteiras da comunidade nacional se estendendo para o
mundo. O Concílio Vaticano II indica a solidariedade como elemento importante
presente na sensibilidade dos povos: “entre os sinais do nosso tempo, é digno de
especial menção o crescente e inelutável sentido de solidariedade entre todos os
89
povos”.
O princípio da subsidiariedade consiste, de um lado, em respeitar o que
cada instância organizada da sociedade consegue realizar, e por outro lado, na
soma de forças dos diversos organismos que formam a sociedade para prover o
bem comum de todos os membros da sociedade. Portanto, o princípio de
subsidiariedade “... deve ajudar a complementar a ação das pessoas ou
90
comunidades naquilo em que elas não são capazes”.

4.4 A Igreja como povo de Deus

A Igreja é constituída por homens que se convertem ao evangelho. E este


aspecto era o que os Padres mais almejavam. O estudo destes convence de que
um dos traços decisivos do pensamento eclesiológico neles é este: que a
eclesiologia engloba uma antropologia.

87 ​
ZOGHBY, E. ​Unidade na diversidade.​ In: BARAÚNA, Guilherme. Op. cit., p. 573.

BRIGHENTI, A. ​A Igreja perplexa: a novas perguntas, novas respostas.​ São Paulo: Paulinas,
88 ​

2004. p. 169.

89 ​
Apostolicam Actuositatem do Concílio Ecumênico Vaticano​ II. (AA) 14.

90 ​
BRIGHENTI, A. Op. cit., p. 169​.

75
Segundo Yves Congar, para além de sua concepção antropológica a noção
de Povo de Deus presta-se a qualquer meio ou população: Sob o ponto de vista da
pastoral, a noção de Povo de Deus presta-se a uma catequese extremamente real
e à comunicação de um sentido concreto e dinâmico da Igreja. Pode mostrar-se
como, dentre todos os povos da terra, Deus juntou um povo especialmente seu:
Povo de Deus. Não apenas dentre os povos, na acepção antropológica e quase
política do termo, mas dentre qualquer meio ou população: da aldeia, da cidade, do
91
edifício em que habito, do comboio em que viajo, do hospital em que me encontro.
Uma das principais incidências do conceito de Povo de Deus é sobre o
próprio homem, portanto ele tem um valor antropológico: “o Povo de Deus vive no
92
meio dos outros povos. É semelhante aos outros povos em muitos sentidos”.
Um dos desafios urgentes da ação pastoral, no âmbito da pessoa, consiste
na “reconstrução da identidade pessoal e na conquista de uma liberdade autêntica
na sociedade consumista”. É o tempo de apresentar novamente a pessoa de Jesus
como “caminho, verdade e vida” (Jo 14, 6): “o herói cristão, que faz a união do povo
cristão e gera o povo, é Jesus”. Esta afirmação de Comblin se faz verdadeira na
medida em que “a centralidade da pessoa no ministério de Jesus, bem como na
obra da criação, faz do ser humano o ponto de partida e o ponto de chegada da
93
ação pastoral”.
Ao cristianismo, a Igreja tem um testemunho muito grande através do
testemunho dos mártires que sucederam a Jesus. E esse fato sempre a
acompanhou em todos os períodos de sua história. Os mártires souberam viver a
plena liberdade de vida, assumindo com responsabilidade o ideal do evangelho, e
por causa dele chegar às últimas consequências: “os mártires morreram por
defender o verdadeiro sentido do cristianismo e da Igreja. Por isso a sua memória
94
faz o Povo de Deus, e separa o Povo de Deus das suas caricaturas”.

91 ​
CONGAR, Y. ​A Igreja como Povo de Deus.​ Rio de Janeiro: Concilium, 1965. p. 19.

92 ​
COMBLIN, J. ​O Povo de Deus​. São Paulo: Paulus, 2002. p. 282.

93
Ibid, p. 156.

94 ​
COMBLIN, J. Op. cit., p.. 175.

76
Assim, percebemos que na atualidade a Igreja integrada à história humana,
aparece menos como um recinto, no qual os homens entram por uma carteira de
identidade jurídica, e mais, pelo seu empenho missionário e ecumênico, como um
princípio universal de crescimento, colocado no coração do mundo. Percebemos
cada vez mais a tentativa de resgatar o modo de atuação de Jesus e o que Ele nos
ensinou. Essa estrutura é a misericórdia: a misericórdia primigênia de Deus é a que
aparece historizada na prática e na mensagem de Jesus, é o que configura sua
vida e sua missão e provoca seu destino; é ainda o que configura sua visão de
Deus e do ser humano. A missão de Jesus é o que deve ser vivido hoje pela Igreja,
buscando o verdadeiro sentido da “Igreja encarnada.”

77
CONCLUSÃO

No transcorrer deste estudo voltado para uma compreensão clara da


humanidade de Jesus, podemos perceber toda a atuação de Jesus durante a sua
vida e a sua importância ao longo de toda a história, chegando até os dias atuais.
Para entender o “fenômeno” Jesus partimos do princípio de compreender a
própria humanidade, ou seja, entender o que é o ser humano, a criação e toda a
sua história. A importância da verdade da criação baseia-se no fundamento de
todos os projetos divinos de salvação, a criação é a primeira resposta às questões
fundamentais do homem acerca da sua própria origem e do seu fim.
É possível assim ter uma noção bem mais clara de que o ser humano, por
sua complexidade e ambiguidade intrínsecas à sua própria natureza, se mostra
como ser singular diante do mundo e da realidade de Deus.
Seguindo em nosso estudo e buscando entender o homem Jesus, temos
que dar ênfase na sociedade em que Jesus viveu. Compreender como era a época
em que ele viveu. Assim, somos “transportados” para a Palestina do século I, pois é
muito importante que seja feita uma apresentação das condições sociais,
econômicas, políticas que fizeram de Jesus o homem que ele foi. Sem dúvida, um
homem não se explica unicamente por essas diferentes condições e Jesus menos
que qualquer outro. Mas é conhecendo-as melhor que se vê surgir com mais
clareza a originalidade de sua mensagem e da sua pessoa.
Jesus é um personagem inserido no contexto do judaísmo do século I, em
sua história local, social, político-religiosa e sua existência tem sentido não
somente para os cristãos, mas nos chama atenção o fato de que ele realmente tem
algo a dizer a todos os seres humanos. Como judeu Jesus participava dos
costumes religiosos, frequentava a sinagoga, era observante da Torá e se
indignava com a situação de opressão e exploração em que vivia o seu povo.
A Galiléia tão desprezada, é a pátria de Jesus, e Nazaré a cidade de seus
pais. Sua família seguramente pertencia àquela camada da população judia que
mantinha a prática do culto no templo de Jerusalém e cumpria as práticas legais do
judaísmo. Verificamos também que a língua materna era o aramaico da Galiléia. O
hebraico não era a língua corrente, mas apenas a língua da religião e dos letrados.

78
São apresentados comentários sobre o nascimento de Jesus, tendo em vista
não a exatidão histórica, mas sublinhar que Jesus é o herdeiro das promessas
escriturísticas e das promessas humanas de que Israel foi testemunha.
Mais adiante há referências ao surgimento de João Batista anunciando a
necessidade de conversão e a proximidade do Reino de Deus. Jesus após
submeter-se ao batismo de João, é declarado Messias e após a sua estada no
deserto dá início a sua vida pública.
Jesus desencadeou um movimento de renovação que acolheu pessoas
insatisfeitas com a situação social e política em que viviam e acreditaram na sua
mensagem. Entretanto o movimento que Jesus desencadeou não era dirigido
contra os poderes políticos ou contra Roma. A atuação de Jesus se concentra no
anúncio do Reino a realizar-se na terra, que consiste na busca incessante de um
novo tipo de homem numa sociedade qualitativamente diferente. O anúncio do
Reino revela a aspiração a uma sociedade justa e faz descobrir caminhos inéditos
a percorrer, instaura-se o Reino em uma comunidade fraterna e justa, essa ação
desponta em promessa e esperança de plena comunhão de todos os homens com
Deus.
O anúncio do Reino de Deus é feito por Jesus através de parábolas, da
realização de milagres, da acolhida aos pecadores, da expulsão dos demônios e
ele sempre agindo em benefício do povo, como manifestação da livre e amorosa
dedicação de Deus ao ser humano. O centro da pregação de Jesus é a
proclamação do Reino de Deus, que se apresenta como uma forma alternativa de
organizar a vida humana concretizada em novas relações políticas e religiosas. O
núcleo central de toda a atuação de Jesus é o Reino de Deus. Jesus não pregava a
si mesmo, nem a Deus nem a Igreja. Jesus pregava o Reino de Deus e sua vinda.
Jesus procura mostrar que o Reino de Deus, cresce e se manifesta em
silêncio, ele se desenvolve dentro de nós e em nossas atitudes. Por isso é preciso
ficar atento e não perder tempo, o Reino de Deus está aí para vivermos e
divulgá-lo, assim como Jesus fez e até hoje ainda faz. Jesus, com a sua mensagem
do Reino de Deus, se viu confrontado com as expectativas, formuladas pela
corrente apocalíptica de sua época, assim não se encaixa nas expectativas
apocalípticas vigentes do Reino.

79
Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Ali, onde Jesus age, Deus
age. Ali, onde Deus age, acontece o Reino de Deus. Pois, no agir de Jesus
acontece Reino de Deus. Ser pobre, na sociedade de Jesus era o estigma da
rejeição por parte de Deus, e, além disso, a razão de todo tipo de exclusão.
Optando pelos pobres e excluídos, Jesus mostra que Deus não abandonou, mas
que eles, pelo contrário, estão dentro de sua atenção especial. Isso significa a
igualdade de todos diante de Deus.
Jesus convida os seus seguidores, para que eles e elas sigam o mesmo
rumo dele. Isso significa que devem agir de tal maneira que nos seus atos
transparece aquilo que é o Reino de Deus. Não é só Jesus que na sua prática torna
realidade o Reino. Ele chama a todos para fazer o mesmo. Sendo assim, somos
chamados a realizar em nosso agir valores do Reino de Deus.
O amor de Jesus pela humanidade leva-o a carregar a cruz. Para os
discípulos e para o próprio Jesus a morte foi a última grande lição do processo
revelador, criando uma situação nova e a possibilidade de uma nova experiência.
A ressurreição como ação de Deus em Jesus confirma a sua mensagem, a
sua práxis de vida e revela sua pessoa unida indissoluvelmente com Deus e com a
mensagem de Deus. ​A salvação definitiva nos vem de Deus em Jesus de Nazaré, o
Crucificado ressuscitado.
Assim, vemos Jesus como a figura do mediador entre Deus e os seres
humanos e caminho dos seres humanos para aproximar-se de Deus. Jesus é a
expressão de como a criatura pode aceder a Deus em confiança e fidelidade, em
misericórdia e entrega, em oração e amor. Aquele que se abre para Jesus e aceita
a metanoia que ele prega encontra a presença imediata e gratuita de Deus como
salvação.
Nesta mesma linha do que foi e é ensinado por Jesus, vemos o núcleo da
Igreja, também citada na figura da Igreja Encarnada. Que consiste em ter como
missão própria e específica, transmitir a vida de Jesus Cristo a todas as pessoas,
propagando a sua Palavra, ministrando os sacramentos e praticando a caridade.
Como seguidores e seguidoras de Jesus – que vivem em Comunidades (Igrejas) –
devemos estar sempre inseridos e inseridas (encarnados e encarnadas) na vida do
povo, solidários e solidárias com todos e todas que sofrem e organicamente unidos

80
e unidas a todos e todas que lutam pela Vida Humana e por todas as formas de
Vida.
Como Cristo, por sua Encarnação ligou-se às condições sociais e culturais
dos seres humanos com quem conviveu, assim também deve a Igreja inserir-se
nas sociedades, para que a todas possa oferecer o mistério da salvação e a vida
trazida por Deus.
Mostramos enfim, que a partir da história concreta de Jesus, a proposta do
Reino de Deus é algo que deve ser vivido por todos em busca da salvação da
humanidade. Em Jesus, Deus concede a salvação definitiva do homem.

81
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