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REVISTA
DISCRIMINAÇÃO, INTOLERÂNCIA E
RACISMO RELIGIOSO
VOL. 2, NÚM. 1
JAN-JUN 2018
ISSN: 2526-9704
REVISTA CALUNDU
http://calundu.org/revista
Discriminação, intolerância
e racismo religioso
Volume 2, Número 1, Jan-Jun 2018
EXPEDIENTE E COMISSÃO EDITORIAL
COMISSÃO EDITORIAL
EQUIPE EDITORIAL
Adélia Mathias
Aisha – Angéle Leandro Diéne
Andréa Carvalho Guimarães
Ariadne Moreira Basílio de Oliveira
Beatriz Martins Moura
Clara Jane Costa Adad
Danielle de Cássia Afonso Ramos
Guilherme Dantas Nogueira
Iyaromi Feitosa Ahualli
Luís Augusto Ferreira Saraiva
Nathália Vince Esgalha Fernandes
Francisco Phelipe Cunha Paz
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CONSELHO EDITORIAL
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A Revista Calundu é uma publicação acadêmica semestral on-line do Calundu – Grupo
de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras, que apresenta trabalhos escritos (artigos,
resenhas de livros e textos extensionistas), com a temática afrorreligiosa/calunduzeira.
http://calundu.org/revista
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trágica vinda forçada de africanas/os para este canto do planeta, para fins de trabalho
escravo. O prisma teórico desta interpretação são os estudos decoloniais.
A Revista Calundu busca, por meio de textos livres de caráter extensionista e textos
especializados, ouvir e amplificar a voz da comunidade afrorreligiosa, acadêmica ou
não. Neste sentido, a revista assume um caráter extensionista, abrindo espaço para
outras formas de conhecimento, diferentes – porém não menos importantes – do que
aquela considerada científica.
Com os textos livres o Grupo Calundu busca trabalhar na revista, ademais e sempre
horizontalmente, com pensadores considerados como mestres populares, no sentido que
vem sendo desenvolvido pelo antropólogo José Jorge de Carvalho (apoiador do Grupo
Calundu), em seu trabalho com o Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na
Pesquisa, ligado ao INCTI - Instituto Nacional de Ciência Tecnologia e
Inovação/UnB/MCTI. Em linhas gerais, mestres populares são aquelas pessoas
detentoras de um saber popular extenso e relevante, que pode perpassar conhecimentos
técnicos diversos, filosofias e modos de vida de toda uma comunidade. Exemplos de
mestres populares que vivem a temática afrorreligiosa são as/os diversas/os mães e pais
de santo das religiões afro-brasileiras.
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Discriminação, intolerância
e racismo religioso
Volume 2, Número 1, Jan-Jun 2018
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SUMÁRIO
Apresentação 1
Calundu – Grupo de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras
Artigos
Resenha
Ensinamentos candomblecistas nas Minas Gerais 126
Adalberto de Salles Lima
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Textos livres
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Revista Calundu - vol. 2, n.1, jan-jun 2018
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Em ordem alfabética, o grupo é formado por: Adélia Mathias, Aisha Angéle Leandro Diéne, Andréa
Carvalho Guimarães, Ariadne Moreira Basílio de Oliveira, Clara Jane Costa Adad, Danielle de Cássia
Afonso Ramos, Francisco Phelipe Cunha Paz, Gerlaine Martini, Guilherme Dantas Nogueira, Hans Carrillo
Guach, Iyaromi Feitosa Ahualli, Luís Augusto Ferreira Saraiva, Nathália Vince Esgalha Fernandes
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vida social brasileira, o que perpassa desde a história, a sociabilidades e interações com
o Estado.
Convém, assim, antes de se situar os textos do dossiê, lembrar que o racismo
religioso contra religiões afro-brasileiras é um processo facilmente percebido por duas
vias. A primeira, quando são observados ataques diretos a praticantes de religiões como
Umbanda, Candomblé e Tambor de Mina, dentre outras, que veem seus terreiros serem
incendiados, suas/seus integrantes apedrejadas/os em vias públicas, etc. Esses atos estão
diretamente ligados ao ódio contra essas religiões, que se diferenciam em práticas e
crenças da matriz religiosa mais popular no Brasil.
A segunda via em que o racismo religioso comumente se apresenta contra
religiões afro-brasileiras está relacionada, justamente, com o fato de que essas religiões
estão associadas com uma matriz geográfica africana, com uma racialidade negra. Não
são todas as religiões não hegemônicas aquelas que veem adeptas e adeptos serem
violentadas/os. Não são todas que são publicamente acusadas de primitivismo ou
classificadas como folclore. Não são todas que são desrespeitadas por representantes do
Estado. Não são todas que são satanizadas e atacadas como práticas de magia para o mal
– não coincidentemente chamada de magia negra. Pelo contrário, isso ocorre
exclusivamente contra a afrorreligiosidade e suas manifestações em solo brasileiro. O
ódio não é, portanto, contra religiosidades discrepantes, mas contra religiões afro-
orientadas.
Problematizando essas e outras situações, o dossiê se inicia pela sessão de artigos
científicos. Estes são abertos pelo texto “História, cultura e intolerância acerca das
religiões de matrizes africanas no Brasil” de Wélia Pimentel Santos, que fez uma extensa
revisão bibliográfica e busca problematizar como, ao longo da história do Brasil, a
intolerância religiosa esteve ligada ao cotidiano de afrorreligiosas/os, mormente
perseguidos por manifestarem sua fé, que possui forte ligação com a África.
Em seguida, Emília Guimarães Mota apresenta o texto “Diálogos sobre religiões
de matrizes africanas: racismo religioso e história”. Neste, que é parte das
problematizações de sua dissertação de mestrado, a autora debate como o tratamento
historicamente relegado às religiões de matriz africana na modernidade deve ser pensado
como racismo religioso, assim definido conceitualmente.
Movendo-se a um debate com o Estado, Nilo Sérgio Nogueira e Guilherme Dantas
Nogueira, que é membro do Grupo Calundu, apresentam o artigo “A questão da laicidade
do Estado brasileiro e as religiões afro-brasileiras”. Neste, debatem que o princípio
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moderno da laicidade estatal nunca encontrou lastro no Brasil, nem mesmo jurídico.
Assim, mostram como comunidades de terreiros sempre tiveram que se adaptar e resistir
a normativas e instituições pensadas para cercear sua coexistência com religiões de matriz
europeia e cristã.
A integrante do Grupo Calundu, Ariadne Moreira Basílio de Oliveira, na
sequência, apresenta com o texto “Um panorama das violações e discriminações às
religiões afro-brasileiras como expressão do racismo religioso”, casos concretos em que
o racismo religioso é observado. Para embasar suas afirmações, discute abstratamente o
conceito de racismo religioso.
Seguindo com as problematizações com o Estado e fechando a sessão de artigos,
a também integrante do Grupo Calundu Andréa Letícia Carvalho Guimarães, apresenta o
texto “Os terreiros como espaço da diferença: análise sobre as intervenções do estado nas
comunidades tradicionais de matriz africana”. Neste, analisa diferenças intervenções e
exigências estatais feitas a terreiros afrorreligiosos. Problematiza que o Estado brasileiro
já possui legislações e outros dispositivos que salvaguardam suas religiões, pelo que,
terreiros devem ser reconhecidos em suas diferenças e respeitados pelo próprio poder
público.
Na sequência dos artigos, a revista traz uma resenha, de Adalberto de Salles Lima,
intitulada “Ensinamentos candomblecistas nas Minas Gerais”. Nesta, o autor apresenta e
debate o livro “O Moxicongo nas Minas Gerais”, do pai de santo Nelson Mateus Nogueira
(Tateto Nepanji). Salles Lima mostra que o livro traz lições de toda uma vida de seu autor,
de resistência ao Racismo Religioso e de culto ao sagrado afrorreligioso. Traz também
análise do cenário afrorreligioso mineiro, feitas não apenas pelo autor, mas por dois ogans
de seu terreiro, que são também seus parentes consanguíneos.
Finalmente, a revista é fechada com a sessão textos livres, que apresenta três
textos. No primeiro desses, as autoras Aisha Lembá Mueji e Iyaromi Ahualli, que são
integrantes do Grupo Calundu, analisam a relação entre os espaços tidos como restritos
e coletivos no espaço de terreiro, perpassando também pela relação de ser e pertencer
àquele espaço como um todo, tendo como objeto de estudo o terreiro de candomblé Nzo
Jimona ria Nzambi.
No segundo, o autor Marcelo Rodrigues Barreto Regis, traz problematiza a
intolerância religiosa perpetrada pelos pentecostais e neopentecostais, trazendo como
reflexão também as formas de combater tal discriminação.
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Por fim no terceiro texto, a autora Cynthia Rachel Esperança, narra a história de
Olokun, um ancião de uma tribo chamada Motumbá que costumava contar histórias para
sua comunidade, sempre sentado em cima da pedra de Xangô. Dessa vez, ele contara a
história do “Menino Omolu”.
Como um todo, os textos buscam oferecer contribuições acadêmicas e ativistas
para uma questão perene na colonial modernidade brasileira, que é o imenso racismo
religioso brasileiro, que ganha contornos e centralidade mais evidentes no momento
histórico presente. Este assiste a uma escalada de violências contra a afrorreligiosidade,
paralela à chegada ao poder, via golpe de Estado, de um governo conservador,
desinteressado no bem-estar da população e nos direitos das minorias políticas brasileiras.
Urge neste momento, portanto, a leitura, produção e reprodução de textos que, como os
aqui apresentados, problematizem e denunciem as injustiças da situação vivida. O Grupo
Calundu, assim, espera que este dossiê contribua a orientar, no campo da luta por Direitos
Humanos, debates entorno das causas, consequências e demais relações que
circunscrevem o racismo religioso brasileiro.
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DOI: https://doi.org/10.26512/revistacalundu.v2i1.9542
Resumo:
As religiões de matrizes africanas são parte da diversidade religiosa do Brasil. Dentre
algumas dessas manifestações, que tem como referência a cultura trazida pelos africanos
durante mais de 300 anos de escravidão estão o cabula, o catimbó, a quimbanda e,
principalmente, a umbanda e o candomblé, que se propagaram com mais intensidade
pelo Brasil. Desde sua chegada ao país estes praticantes foram alvos de perseguições
por manifestarem a sua fé, mas, ainda hoje, os episódios de intolerância religiosa fazem
parte do cotidiano dessas pessoas. Nesse contexto, este artigo destaca essas
manifestações brasileiras e sua forte ligação com a África, convergindo-se para as
causas dessa intolerância. Para tanto, a metodologia aplicada ao trabalho se ateve a um
estudo descritivo do tipo revisão bibliográfica, que se respaldou em literaturas
científicas, trabalhos acadêmicos referenciados que tentam responder a tais reflexões,
sendo que os resultados obtidos respondem satisfatoriamente à proposta da pesquisa em
foco.
Resumen:
Las religiones de matrices africanas son parte de la diversidad religiosa de Brasil. Entre
algunas de esas manifestaciones, que tienen como referencia la cultura traída por los
africanos durante mas de 300 años de esclavitud, se encuentran el cabula, el catimbó, la
quimbanda y, principalmente, la umbanda y el candomblé, que se propagaron con mas
intensidad por todo Brasil. Desde su llegada al país, estos practicantes fueron blancos de
persecuciones por manifestar su fe, y, todavía hoy, los episodios de intolerancia
religiosa hacen parte del cotidiano de las personas. En este contexto, este artículo
destaca esas manifestaciones brasileiras y su fuerte vínculo con áfrica, centrándose en
1
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM/Diamantina-MG. Mestre em
Ensino em Saúde (UFVJM); Especialista em Criminologia (PUC-MG); Graduação em Letras-Inglês
(UFVJM), Bacharela em Humanidades (UFVJM) e Serviço Social. Integrante do grupo de pesquisa
Educação Popular em Saúde (UFVJM). welliapimentel@hotmail.com
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las causas de esa intolerancia. Para tanto, la metodología aplicada al trabajo se atiene a
un estudio descriptivo de tipo revisión bibliográfica, que se respaldó en literaturas
científicas, trabajos académicos referenciados que intentan responder a tales reflexiones,
siendo que los resultados obtenidos responden satisfactoriamente a propuesta de
investigación en cuestión.
Introdução
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Segundo levantamento do Disque 100, canal que reúne denúncias, houve 1.486, dentre o ano de 2015 ao
primeiro semestre de 2017, Entre os Estados com o maior número de ocorrências informadas estão: São
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Contudo a intolerância também ocorre em outros estados como o
de Goiás. Entre as maiores vítimas da intolerância estão as religiões de matriz africana com 39% das
denúncias. No ranking estão umbanda (26 casos), candomblé (22). Em seguida, vêm a católica (17) e a
evangélica (14). As informações são do jornal O Estado de S. Paulo. (Acesso em: 10 abr. 2018).
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A partir deste marco conceitual básico, nota-se que essa não é só uma norma
prevista pela Constituição Federal, é uma demanda imprescindível que necessita ser
debatida em caráter internacional, haja vista que uma sociedade de direito deve zelar
pela pluralidade de religiões. Destarte, este não é um consenso ideológico e conta, por
sua vez, com inúmeros desafios.
Colocado no oposto à despersonalização democrática, a cultura afro-brasileira
tende a ser, recorrentemente, criminalizada, seja do ponto de vista da religiosidade ou a
partir de aspectos ligados à cultura, assim como o samba de roda do recôncavo baiano e
a roda de capoeira3, símbolos do movimento histórico-cultural brasileiro que somente
no final do ano de 2014 foram concebidos como patrimônio cultural imaterial da nação
pelo IPHAN, posteriormente reconhecidos com patrimônio cultural da humanidade pela
UNESCO (UNESCO, 2014).
Neste contexto, cumpre assinalar o processo de construção eugênica4
introduzido no país, nas primeiras décadas do século XX, no qual convergia-se ao
interesse de construção de uma “outra” realidade nacional, apregoada pelo, então,
atraso civilizacional, o que pressupunha incutir os valores 'brancos', valores estes
ligados à tentativa de implantação de uma cultura europeizada que, por sua vez, tende a
gerar o estigma a todas as práticas religiosas que não apresentam correlação a esse
modelo.
3
A capoeira é uma manifestação cultural afro-brasileira criada pelos negros escravos como forma de luta
contra a opressão, luta esta que se travou no plano físico e cultural. Em seu universo simbólico e motor
encontramos elementos, tais como a musicalidade, a religiosidade, movimentos acrobáticos, dentre
outros, que a tornam bastante peculiar. A capoeira é plural, e nela o lúdico e o combativo interpenetram-
se, caracterizando-a como jogo, luta e dança (SILVA, 2002, p. 02).
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O movimento eugênico brasileiro é um caso particularmente interessante de estudo de ciência e
ideologia social. De um lado, a eugenia foi profundamente estruturada pela composição racial e pelas
preocupações raciais do país. Em um sentido bem fundamental, a eugenia referia-se à raça e ao
aprimoramento racial, não à classe. Isso porque concentrava suas atenções nas doenças que eram vistas
como particularmente prevalentes entre os pobres, vale dizer, entre a população principalmente negra ou
mestiça. Essa população era percebida como ignorante, doente e cheia de vícios, com altas taxas de
alcoolismo, imoralidade, mortalidade e morbidade. Se na cena pública a literatura eugênica utilizava a
palavra ‘raça’ invariavelmente, no singular, para referir-se ao ‘povo brasileiro’, na esfera privada ela
significava a ‘raça negra’ (STEPAN, 2004, p. 355-356).
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A noção de mestiço ou mestiçagem tornou-se muito recorrente no momento de constituição de algumas
áreas da produção intelectual e acadêmica no Brasil da passagem do século XIX para o século XX,
guiando as análises e ações desta produção. Fundada nas teorias raciais, no determinismo biológico, a
noção de mestiço foi utilizada por disciplinas como a história, a antropologia, o direito, a medicina, nos
movimentos aqui designados como de conhecer, regularizar e curar o Brasil e o brasileiro.... Todavia, o
mestiço não constitui uma realidade atemporal que teria sido descoberta pela produção intelectual, mas
um objeto cuja realidade e significado condicionam-se por questões histórico-sociais específicas do
contexto de ruptura e continuidade que caracteriza a implantação do regime republicano no Brasil (LIMA,
1994, p. 06).
6
A Medida Provisória nº 726, publicada no Diário Oficial da União no dia 12 de maio de 2016 estabelece
a nova organização da Presidência da República e dos Ministérios que compõem o governo federal. O
documento informa a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos
Direitos Humanos, cujas competências foram transferidas para o recém criado Ministério da Justiça e
Cidadania. Os artigos 9 e 10 da Medida Provisória determinam que o acervo patrimonial e o quadro de
servidores efetivos dos órgãos e entidades extintos serão repassados aos órgãos que os absorveram, além
dos direitos, créditos e obrigações, atos administrativos ou contratos, bem como as respectivas receitas e
despesas. De acordo com o artigo 29 da MP, inciso XIV, o Ministério da Justiça e da Cidadania será
composto pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres; Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial; Secretaria Especial de Direitos Humanos e Secretaria Nacional de
Juventude, além daquelas que contemplarão as atribuições do extinto Ministério da Justiça (Disponível
em: http://www.seppir.gov.br/medida-provisoria-estabelece-nova-organizacao-dos-ministerios-2. Acesso
em 11 de abr. de 2018).
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Seguindo a trilha aberta por Shohat, Benjamim (1994) nos preceitua que,
articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi".
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O que é chamado genericamente de Candomblé é uma religião de síntese que foi constituída no Brasil,
como "resultado da reelaboração de diversas culturas africanas, produto de várias afiliações". Isso
implica, portanto, na existência de vários Candomblés (Angola, Congo, Efan, Jêje-Nagô etc.), que
comumente são chamados de "nações" (CARVALHO, 2005, p.120).
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O continente africano é composto por várias etnias, dentre elas, tem-se o Congo,
Angola, Nigéria e Benim que originaram religiosidades plurais. Em cada um desses
países existia uma forma específica de manifestação da fé, haja vista que não existe uma
forma tipicamente africana, mas a junção de elementos de distintos lugares,
simultaneamente. Nesta perspectiva, cada etnia detinha autonomia em relação ao seu
culto, e o próprio sacerdote entrava em contato com seus orixás, suas entidades.
8
O iorubá é uma língua única, constituída por um grupo de falares regionais concentrados no sudoeste da
Nigéria (ijexá, oió, ifé, ondô, etc.) e no antigo Reino de Queto (Ketu), hoje, no Benim, onde é chamada de
nagô, denominação pela qual os iorubás ficaram tradicionalmente conhecidos no Brasil (CASTRO, 2012,
p. 03).
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No continente africano uma atitude individual pode reverberar e fazer com que
toda a comunidade seja afetada. A este propósito, a responsabilidade dessa convivência
é muito importante, uma vez que ela reverbera em toda a coletividade. Não obstante, o
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princípio africano preza sempre pela coletividade de todos aqueles que estão envolvidos
em determinado ritual, diferentemente da salvação através da individualidade ocidental
em que a pessoa por si só é salva.
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Religiões de matrizes africanas podem ser consideradas como todas as expressões religiosas em que
existe algum tipo de transe ou possessão mediúnica (de orixá, inquice, vodum ou ancestral) e rituais
de iniciação, públicos ou privados, envolvendo a comunidade com cânticos e danças, ao som de
instrumentos de percussão, comandadas por um/a ou mais de um sacerdote ou sacerdotisa,
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o candomblé enquanto uma das religiões na qual são cultuadas divindades de origens
diversas, identificadas por meio dos elementos da natureza, com sentimentos e emoções
e, ainda, por meio de processos sincréticos, a partir da relação com a igreja católica – o
cristianismo, da sua relação com cultos, vivências, saberes e a própria cultura indígena
já existente no país.
Ressaltamos que este culto da forma como aqui é praticado não existe
na África, o que existe lá é o que chamamos de culto à orisá , ou seja
cada região africana cultua um orisá, portanto a palavra candomblé foi
uma forma de denominar as reuniões feitas pelos escravos para cultuar
seus deuses, pois também era comum no Brasil chamar as festas ou
reuniões de negros de Candomblé, devido seu significado em iorubá
(NASCIMENTO, 2010, p. 935).
amparado/a por um tipo de oráculo africano, bem como mitos e histórias africanas (SANTOS, 2010,
p. 52-53).
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africanas está ligada a uma questão racial ainda muito forte no país. Neste sentido Jones
conjectura:
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Nesta perspectiva, os jovens têm uma importância fundamental nesse processo pelo fato
de questionarem e trazerem essa ideia de que há um questionamento social a ser feito,
um questionamento da sua própria realidade.
Nesse sentido, torna-se importante se pensar, ainda, nos corpos negros que são
alvo desses processos violentos e letais. A violência, portanto, é fruto e consequência do
que se chama aqui de “intolerância” e atinge, por sua vez, territórios negros e também o
corpo negro, propriamente. E por isso, a ação conjunta à sociedade se faz de extrema
significância no sentido de proposição de abertura de mais espaços para o diálogo, de
modo a tornar-se perceptível que para que se tenha uma religião não é necessário negar
a religião do próximo ou até mesmo afirmar sua religião de forma radical, como se ela
fosse a única que devesse existir, mas sim de assumir-se enquanto ser reflexivo e
desenvolver a capacidade de reciprocidade afetiva em relação ao outro.
Considerações Finais
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Referências Bibliográficas
CUNHA, Cristina Vital da; LOPES, Paulo Victor Leite; LUI, Janayna. Religião e
Política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições 2014. Christina Vital da
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Cunha, Paulo Victor Leite Lopes, Janayna Lui. – Rio de Janeiro: Fundação Heinrich
Böll.
JONES, James. Racismo e Preconceito. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo,
Edgard Blüclher, Ed. Universidade de São Paulo, 1973.
LIMA, Ivana Stolze. O Brasil mestiço: discurso e prática sobre relações raciais na
passagem do século XIX para o século XX. Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio. Disponível em:
http://rubi.casaruibarbosa.gov.br/bitstream/20.500.11997/1253/1/Lima%2C%20Ivana%
20Stolze%20-
%20Brasil%20Mestic%CC%A7o%20discurso%20e%20pr%C3%A1tica.pdf. Acesso
em 11 de abr. de 2018.
STEPAN, NL. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, G., and ARMUS, D.,
orgs. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América
Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004.
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STEPAN, NL. Eugenia no Brasil, 1917-1940. In: HOCHMAN, G., and ARMUS, D.,
orgs. Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América
Latina e Caribe [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004.
UNESCO. História Geral da África, VII: África sob dominação colonial, 1880-1935.
Editado por Albert Adu Boahen. 2. ed. rev. Brasília, 2010.
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Resumo:
O texto faz parte de um projeto de mestrado que atualmente desenvolvo. Aqui apresento
alguns diálogos com a bibliografia e reflexões que nos permitam falar sobre o histórico
de tratamento relegado às religiões de matriz africana, sobre as consequências da
modernidade, para além de permitir chamar a discussão sobre tolerância/intolerância e
racismo religioso. Este último será visto a partir do conceito de dispositivo de racialidade,
cunhado por Sueli Carneiro (2005). O dispositivo de racialidade, ao cumprir funções
estratégicas, tem articulado práticas que tem como um de seus efeitos, o racismo religioso.
Com esta escrita, pretendo tangenciar caminhos, testando possíveis argumentações e
bases para o desenvolvimento da pesquisa que está em andamento.
Resumen:
El texto hace parte de un proyecto de maestría que actualmente desarrollo. Aquí presento
algunos diálogos con la bibliografía y reflexiones que nos permitan hablar sobre el
histórico de tratamiento relegado a las religiones de matriz africana, sobre las
consecuencias de la modernidad, para además permitir llamar a la discusión sobre
tolerancia/intolerancia y racismo religioso. Este último será visto a partir del concepto de
dispositivo de racialidad, acuñado por Sueli Carneiro (2005). El dispositivo de racialidad,
al cumplir funciones estratégicas, ha articulado prácticas que tienen como uno de sus
efectos, el racismo religioso. Con este escrito, pretendo tangencial caminos probando
posibles argumentaciones y bases para el desarrollo de la investigación en marcha.
1
Mestranda em Antropologia Social no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal de Goiás. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Goiás.
emilia.g.mota@hotmail.com
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como um par, que tem sido mobilizado, qualificando atitudes que jogam dentro de um
cenário que é racializado. Para além de afrorreligiosos e pessoas dos movimentos negros,
alguns autores já utilizam essa denominação, como Wanderson Flor Nascimento (2014,
2016), Ordep Serra (2014), Ariadne Oliveira (2016, 2017), Nathalia Fernandes (2017).
Outros textos têm alcançado a noção de que a intolerância religiosa é um “braço” do
racismo estrutural entranhado no Brasil (SILVA Jr. 2007, 2009; SILVA, 2009;
GUALBERTO, 2011; OLIVEIRA, 2014, 2015), embora não assumam a expressão
‘racismo religioso’ diretamente.
As inúmeras violências sofridas pelos povos de religiões de matriz africana têm
sido chamadas de intolerância religiosa. Pesquisadores, legisladores, setor jurídico,
mídias e afrorreligiosos contribuíram para que essa expressão se tornasse corrente como
o modo de tipificar essas violências. O tema da intolerância religiosa e da discriminação
contra religiões de matriz africana que aqui tomo como racismo religioso, remonta outros
tempos. Embora presente em vários momentos das histórias brasileiras, atualmente tem
ganhado espaço e debates devido a uma série de ataques contra essas comunidades,
mostrando outras roupagens e formas de articulação de vários tipos de violências e
relações de poder. As experiências de violências contra afrorreligiosos também podem
ser identificadas em Goiás e na região de Goiânia e entorno.
A Iyalorixá Cris ty Oxum, por exemplo, que tem sua casa de candomblé na cidade
de Aparecida de Goiânia, enfrentou perseguição de um vizinho durante alguns anos desde
a fundação da casa em meados de 2011. O agressor realizava protestos e cultos com uma
caixa de som na porta do terreiro, jogava pedras e bombinhas no telhado. Iya Cris conta
que todas as vezes que havia festa na casa ele chamava a polícia. Durante as primeiras
atividades realizadas, quando o terreno ainda não tinha muro e os vizinhos conseguiam
ver algo que fazia ali, o mesmo vizinho acusou de estarem realizando rituais de magia
negra. Culminou com uma agressão física na qual ele tentava invadir a casa durante uma
festa. Derrubou o portão da casa da sacerdotisa e provocou a fratura em um de seus pés.
Foram registrados boletins de ocorrência na delegacia e o processo se arrastou sem que
ele fosse punido. Outro caso foi o de uma filha do Babalorixá Raimundo ty Oya que
tentava se consultar no posto de saúde do setor onde fica o terreiro, também em Aparecida
de Goiânia. A jovem teve que lidar com uma funcionária que queria “expulsar o demônio”
de seu corpo porque portava as vestimentas características de um recém-iniciado no
candomblé (contas no pescoço, torso/turbante, roupa branca).
Em 2015, no setor central de Goiânia, a Iyalorixá Watusi Ty Oya teve seu rosto
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acertado por um objeto enquanto a pessoa que o atirou gritava “você vai para o inferno”.
Outro caso foi o de Mãe Maria Baiana, sacerdotisa de Umbanda, que sofreu perseguições
de vizinhos evangélicos que fazia “cantatas” em sua porta e despejavam sal ao redor do
terreno. Uma das pessoas que ia até sua porta em protesto pela existência do terreiro
chegou a dizer “Que religião é essa que é religião de pobre e preto...”.
Para além dos exemplos citados rapidamente, em 2015 uma sequência de ataques
foram praticados no entorno de Brasília. A casa de Mãe Baiana (Paranoá) foi queimada,
a do Babalorixá conhecido como Babazinho também (Santo Antônio do descoberto), e o
Babalorixá Djair sofreu tentativa de invasão em Águas lindas de Goiás.
As discussões sobre as violências contra as religiões de matriz africana, quando
qualificadas como intolerância religiosa, têm aparecido principalmente quando alguma
ocorrência faz suscitar o debate. Concordando com a fala de Paula Montero (ANPOCS,
2017), o espaço público, que tanto tem sido pautado nas discussões sobre o religioso,
atualmente, pode ser visualizado como uma forma-debate. O quero dizer é que este tema
fica por vezes adormecido sendo chamado à cena quando algum caso aciona as discussões
e, ai sim, o que chamamos de espaço público emerge.
Alguns dos acontecimentos que têm movimentado o debate e a produção
acadêmica são aqueles envolvendo as tensões em torno da imolação de animais (ORO,
2005; GOLDMAN, 2015; COELHO et al, 2016; VIEIRA e SILVA, 2016), os ataques às
casas no Rio de janeiro, a relação de traficantes com a expulsão de terreiros das favelas
(SILVA, 2017), o crescente avanço do Neopentecostalismo, a influência dessa corrente
na mudança do cenário religioso no Brasil, e sua oposição às religiões de matriz africana
(ORO, 1997, 2003; SILVA, 2005, 2007, 2007a, 2014) e, também, os debates entre
religioso e secular, sobre a laicidade do Estado brasileiro, pluralismo religioso, que
frequentemente ressurgem (GIUMBELLI, 2008, 2011; MONTERO 2006, 2012;
BIRMAN 2009, 2012; ALMEIDA, 2009).
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Refiro-me como religiões por corrente uso do termo mas alerto para o fato de que nesse período não
tinham o estatuto de religião reconhecido. Foi negado o estatuto de religião às religiões de matriz africana
até meados do século XX (ORO, 2012).
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A diferença, de acordo com Fernandes (2017, p.120), é que “os artigos não vão
proibir ou punir todo espírita, curandeiro ou praticante de magia e sim apenas os que
praticam o mal”. É curioso perceber aqui a articulação discursiva da imprensa com ciência
e ações policiais que, em nome de um controle do biológico, sobre evitar práticas
descontroladas de cura, de ingestão de substâncias com fins terapêuticos, emplacou
práticas racistas e estigmatizadoras.
Ou seja, “o mal” fora localizado nas populações negras, nas atividades
provenientes de religiões de matrizes africanas que continuariam criminalizadas e
perseguidas ao longo da história do nosso país. O que a história confirma, quando
verificamos que uns dos períodos de repressão foi durante o governo de Getúlio Vargas
(ASSIS e SANTOS, 2016).
As práticas das religiões de matrizes africanas foram identificadas com práticas
reguladas ou proibidas, previstas em Códigos de Posturas, que requeriam um alvará de
funcionamento com registros em delegacias, em meados das década de 1940 e 1950. Na
Bahia, somente em 1976 é que a Lei Estadual 25.095, liberou os terreiros de pedirem
licença para tocar3. Serra (2011) enfatiza que os materiais e tudo aquilo encontrado nos
terreiros, para a leitura racista, era classificado como magia e feitiçaria. Assim,
conseguimos ver que a expressão “magia negra” foi equacionada a “magia de negros” no
Brasil.
Um dos terreiros invadidos pela campanha de perseguição empreendida durante
o Estado Novo de Getúlio Vargas foi o Terreiro Xambá, situado em Olinda (PE). Essa
casa é sucessora do terreiro de Maria de Oyá, que funcionou em Recife, até ser fechado
pela polícia em maio de 1938. “Os objetos de culto foram recolhidos pela polícia,
permanecendo na casa apenas o otá de Exu e a espada de Oyá, por terem sido escondidos
da polícia. A Yalorixá Maria de Oyá entrou em profunda depressão, vindo a falecer
exatamente um ano depois, em maio de 1939” (ASSIS e SANTOS, 2016, p.231).
Outros casos nos ajudam a relembrar o tratamento dado às religiões de matrizes
africanas. Para citar dois: os controles das “casas de macumba”, práticas de feitiçaria,
magia, ao serem alocadas como assunto das Delegacias de Jogos de Azar e tratadas como
práticas criminosas; o outro, seria as formas de montar coleções em museus, localizando
os materiais em sessões de tóxicos, entorpecentes e mistificação, museus de criminologia.
Oliveira (2014, p.66) nos ajuda com alguns exemplos: Coleção Perseverança (Instituo
3
Disponível em https://www.irdeb.ba.gov.br/soteropolis/?p=11700
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É importante pontuar que está em andamento uma campanha de mobilização denominada Liberte nosso
Sagrado, que reivindica a devolução dos objetos apreendidos. Realizaram o lançamento de um
documentário sobre a temática também. Página online:
https://m.facebook.com/profile.php?id=245804462571950&ref=content_filter
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Talal Asad (2010) argumentou contra as tentativas de elaborar definições universalistas para religião. “O
meu argumento é de que não pode haver uma definição universal de religião, não apenas porque seus
elementos constituintes e suas relações são historicamente específicos, mas porque esta definição é ela
mesma produto histórico de processos discursivos” (ASAD, 2010, p.264). Já as referidas autoras, na
tentativa de abranger outras religiões e fugir dos supostos que implicavam uma base de análise cristã, optam
pelo termo religioso.
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assim! O barracão é sagrado mas minha casa também é assim como minha vida, assim
como o ato de comer”. Essas afirmações viram motivo para acusações porque quebram a
regra mestra da modernidade - a separação, e daí vemos a dificuldade de posicionar essas
religiões de acordo com o modo de classificação dos modernos.
Acusações estas que desqualificam e começam a tentar dizer o que é religião ou
não. Os reflexos dessas separações podem ser vistos, por exemplo, na decisão de um juiz6
Eugenio Rosa de Araújo, da 17ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Afirmou que candomblé
e umbanda não são religiões porque não possuem um livro base, a crença em um deus e
estrutura hierárquica. A ação tratava sobre o pedido de retirada de vídeos do YouTube
que ofendem essas religiões.
As separações entre secular e religioso, natureza e cultura, colocam o cenário
como em função de regimes de verdade. O jeito moderno de pensar a vida coloca os
ocidentais como aqueles que sabem e os outros, nesse caso as religiões de matrizes
africanas, como aqueles que creem (LATOUR, 2013). Coloca os modernos com uma
vantagem epistemológica.
Um exemplo é aquele em que os saberes ocidentais e modernos, objetivos,
científicos, são indicados como verdadeiros, em contraposição aos saberes populares, de
curandeiros, rezadeiras, raizeiras, tratados como crendices, cultura popular. Por estarem
localizados nessa chave, da cultura, podem ser colocados no domínio do incerto, podem
mudar, inclusive deixar de existir. Aqui somos remetidos à uma crítica a um excesso do
relativismo cultural que entende tudo como cultura, anula das diferenças e que tolera
muitos “aspectos culturais” porque o que nos une é a natureza que temos em comum- essa
sim, inquestionável para os modernos (LATOUR, 2002).
Um outro par decorrente do modo moderno de classificar é o da tolerância/
intolerância. Vejamos mais a seguir.
6
Disponível em: <https://dellacellasouzaadvogados.jusbrasil.com.br/noticias/119874570/oab-critica-
decisao-de-juiz-que-disse-que-umbanda-e-candomble-nao-sao-religioes>
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então, como uma das operações do dispositivo de racialidade. Para tal intento comentarei
sobre o par tolerância- intolerância e utilizarei como base os escritos de Sueli Carneiro
(2005) sobre o dispositivo de racialidade. Comentarei alguns efeitos do dispositivo
olhando para algumas legislações e casos mais recentes.
Outro par que a modernidade faz emergir é o da tolerância- intolerância. Também
tem sido de grande interesse dos estudos de religiões assim como o secular, as religiões
no espaço público. O suposto de que os modernos estejam no polo da natureza e os outros
no da cultura, aponta para uma divisão assimétrica que confere aos primeiros uma espécie
de possibilidade de escolher, optar por aquilo que pode ser tolerado ou não. Uma certa
arrogância faz parte desse agenciamento que desqualifica as religiões de matrizes
africanas em diferentes aspectos. A religião aparece também como opcional de um modo
que a ciência não é (ASAD, 2010, p.275).
Tolerar sugere uma constante tensão de que ora pode vigorar sob a construída
imagem de respeito ora pode se decidir apagar. Como bem coloca Goldman (Jornal
Adital,2014), “significa que a tolerância sempre envolve um sentimento de superioridade
que permite até mesmo ser "tolerante” com os outros”. Num mesmo sentido, Tomás y
Valiente, segundo Fernandes (2017, p.125), rejeita a tolerância e a define como uma
‘concesión graciosa y unilateral que el dominante hace al dominado, trata de una actitud
que podría expresarse en la frase– te tolero, pero podría no hacerlo”. A tolerância vista
então como uma indulgência.
Enrique Dussel (s/d) faz uma discussão sobre a intolerância indicando que ela
articula uma certa unidade entre teoria da verdade e o poder político. Segundo este autor
“el intolerante afirma “poseer” la verdad o encontrarse en un acceso privilegiado con
respecto a lo que se conoce como “verdadero” (s/d, p.01). De acordo com o autor a
tolerância só pode ser promovida ao sujeito com menos poder, uma vez que “o sujeito
dominante/ hegemônico não necessita da indulgência ou condescendência de sujeitos
subordinados hierarquicamente a ele” (DUSSEL apud FERNANDES 2017, p.125).
O par tolerância/intolerância faz parte do mesmo viés assimétrico que separou
natureza e cultura, e está diretamente relacionado à atitude de tomar as religiões de
matrizes africanas como crença. Embora o projeto de um Estado secular e o discurso
sobre o pluralismo religioso sejam centrais no Brasil atualmente, o que observamos é que
ainda parece existir uma percepção tácita de que algumas religiões “seriam menos
propensas do que o cristianismo à modernidade, à racionalidade e à democracia”
(MONTERO, 2012, p.176). Isso nos remete ao que Mariano (2007, p.176) conseguiu
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Para o autor aparecem primeiro tecnologias disciplinares do trabalho, técnicas de poder centradas no corpo
que tentavam organizar espacialmente os corpos.
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então, uma outra estrutura social. E isso significa articular, no caso brasileiro, configurar
a nova estrutura social que se fez necessária depois da abolição da escravatura e advento
da República. Todo esse arcabouço vem também no bojo de um projeto de modernidade
que essa República traz na sua formação. É o que conseguimos acessar, por exemplo, a
partir da produção do discurso médico e jurídico assim como nos materiais produzidos
pela imprensa, contra as populações negras.
Sueli Carneiro (2005) concordando com Foucault, fala que uma das melhores
maneiras de se pensar o dispositivo é a partir dos efeitos de poder que ele provoca, dos
efeitos de poder que determinados domínios instituem. O epistemicídio é fundamental na
constituição do dispositivo de racialidade e configura um desses efeitos. Já que um
dispositivo é sustentado e sustenta poderes e saberes. Tomar as religiões de matrizes
africanas e os saberes tradicionais como crença faz parte desse processo de epistemicídio.
A autora comenta sobre a instalação do epistemicídio no Brasil, enfatizando a
atuação da Igreja Católica através da censura, condenação, supressão do conhecimento
nos processos de controle (idem, p.102). Num primeiro momento as violências foram
justificadas porque negros eram vistos como sem almas; depois, a razão toma o lugar
desta última categoria para justifica a não- educabilidade dos negros num processo de
laicização do Estado (idem, p.104). Ao mesmo tempo em que endossava a desqualificação
de saberes e de sujeitos.
É o que vemos na afirmação da autora que tem nos acompanhado nesse diálogo,
quando fala que o epistemicídio atua como operador para consolidar hierarquias
produzidas pelo dispositivo da racialidade. Ele realiza, nas suas vinculações com a
racialidade, a perspectiva de seres humanos instituídos como diferentes e inferiores;
distribui e marca o bem e o mal entre as raças. Isso se vê refletido diretamente no
tratamento dado às religiões de matrizes africanas.
A perspectiva adotada por Sueli Carneiro (2005, p.97), para o epistemicídio, é de
que se trata de um processo de “anulação e desqualificação do conhecimento dos povos
subjugados” e como “um processo persistente de produção da indigência cultural”, isso
porque – continua Sueli Carneiro – “não é possível desqualificar as formas de
conhecimento dos povos dominados sem desqualificá-los também, individual e
coletivamente, como sujeitos cognoscentes”. Ocorre um sequestro da racionalidade do
Outro e em alguns –muitos – casos, a assimilação cultural que lhe é imposta (idem). Eu
diria que para além do nível epistemológico, os agenciamentos deste dispositivo se dão a
nível ontológico.
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Este mesmo autor (2014, p.18) relembra que o aparato de medidas legislativas que
se referem às comunidades tradicionais no país tem lá sua robustez. Vejamos: a
Constituição de 1988, com ênfase no Artigo 5º que trata da liberdade de expressão; a Lei
Caó” (Lei 7.716/89; modificada pela Lei 9.459/97) e o Estatuto da Igualdade Racial, Lei
Nº 12.288, de 20 de julho de 2010, que aborda especificamente o tema da religiosidade
no Capítulo III; criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial; a Lei
federal no 11.635 de 2007, do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa,
comemorado no dia 21 de janeiro; o Decreto 6.040 de 7 de fevereiro de 2007 instituiu a
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais; a presença de um parágrafo no Código Estadual8 de Proteção aos Animais
que destaca a liberdade das religiões de matriz africana para realizarem os procedimentos
ritualísticos com a utilização de animais.
Houve também a criação do disque 100, órgão ligado à ouvidoria da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR), um dos mecanismos utilizados
para a denúncia de violações de direitos, e que tem recebido um número crescente de
denúncia com relação ao racismo religioso contra as religiões de matrizes africanas.
Em concordância com Oliveira (idem), de fato temos atualmente muitas leis que
permitiriam melhores condições de vida às comunidades de terreiro. Contudo, pensando
a operação do dispositivo de racialidade, a mesma instância que produz essas leis é a que
nega os direitos dessas comunidades. Oliveira (2014, 62) percebe que se “a repressão
policial e dos órgãos do sistema de justiça não são explícitas”, é porque “apresentam de
outras formas- sutis- veladas de negação de direitos dos afrorreligiosos”. E no caso de
Santa Luzia- MG nem podemos dizer que a justiça agiu de modo ‘sutil’ e ‘velado’.
As legislações cumprem o que o Brasil assinou em acordos e termos
internacionais. Quem procurar vai encontrar a existência delas. Já o funcionamento e
8
Necessário verificar ainda a amplitude disso nos estados brasileiros.
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efetividade constituem outro assunto. Geraram algumas mudanças e atitudes que servem
para remediar, entretanto, não avançam tanto quanto necessário porque não rompem com
a estrutura que é racializada. Por exemplo, conseguir a acesso à isenção de IPTU para
templos religiosos- uma movimentação homérica que na maioria dos casos não resulta
em nada. Para além de um registros com CNPJ, outras exigências ficam por vezes
inacessíveis e rompem com o modo de existência e funcionamento dos povos de terreiro.
Logo, entende-se que a noção de “templo religioso” não inclui as especificidades dos
povos de terreiro.
Muitas acusações assolam as comunidades de terreiro atualmente, que chegam a
fechar casas das religiões de matrizes africanas sob a alegação de perturbação do sossego,
poluição sonora, poluição ambiental e maus-tratos a animais, casos de cobrança de
impostos. Verifica-se que ainda que exista uma legislação que ‘ampara’ as religiões de
matrizes africanas, outras formas de operação do racismo de estado encontra formatos de
acusações que tornam a inviabilizar a existência dos terreiros. É o uso funcional de
categorias de que falou Catherine Walsh (2009) que não tencionam as estruturas
racializadas e as assimetrias sociais. É também uma das formas de decidir quem o Estado
deixa viver ou faz morrer.
Recentemente, após discussões levantadas por proposições de leis, que possam
regular o sacrifício ritual de animais, em diferentes estados do país (ORO, 2005;
GOLDMAN, 2015; COELHO et al, 2016; VIEIRA e SILVA, 2016, dentre outros).
Assim, outros setores começaram a se pronunciar sobre as questões, como aqueles que
advogam pelos direitos animais. Outros abordam o tema como forma de evidenciar que
se trata de, mais uma vez, posicionamento racistas do Estado e dos proponentes das leis
para com as religiões de matriz africana. Uma vez que o discurso camuflaria a tentativa
de embaraçar a prática religiosa desses grupos, o que contradiz o próprio Estatuto da
Igualdade Racial- para citar ao menos um dos instrumentos jurídicos.
Conforme exemplifica Ilzver Oliveira (2014, p.141), “no Rio Grande do Sul, por
pressão de políticos e com o apoio das sociedades protetoras dos animais, o Código
Estadual de Proteção aos Animais tem sido acionado na tentativa de coibir os sacrifícios
rituais do candomblé”. Um trecho da proposta vedava a realização de cerimônias
religiosas em que fossem feitas imolações de animais. Mas segundo Silva (2007 apud
Oliveira, 2014), ainda que tenha sido barrada a ação, ocorreram alguns processos como
aquele contra a Mãe de santo Gisele Monteiro da Silva, “condenada a trinta dias de prisão
por realizar sacrifícios de animais em seu terreiro”.
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Em São Paulo, por mais de uma vez pudemos ver a tentativa de emplacar uma
legislação semelhante. Em 2001, foi proposto o projeto de lei 992/20119, que proíbe o
sacrifício de animais em práticas de rituais religiosos no estado de São Paulo. Em 2016,
no município de Cotia (SP), propuseram a lei 1960 que dispunha “sobre a proibição da
utilização mutilação e/ou sacrifício de animais em pesquisas, em rituais religiosos ou de
qualquer natureza” (COTIA, 2016). A votação em 2017 gerou grande mobilização por
parte dos afrorreligiosos. De acordo com matéria divulgada em abril de 2017, pelo
ConJur, o advogado Hédio Silva Júnior declarou que “a norma também viola leis federais
que já tratam de maus tratos contra animais e discrimina religiões ao presumir que todo
abate desses seres é errado, enquanto a morte para fins comerciais é sempre considerada
legítima”.
O tema sobre a imolação de animais é complexo porque envolve a capacidade dos
julgadores de compreenderem que trata-se de uma outra forma de viver muito além de
mera crença em que se supõe que as práticas podem ser facilmente alteradas. Toca na
questão de segurança alimentar também, uma vez que os animais são preparados
ritualisticamente para alimentarem às divindades e também toda a comunidade, já que
não se desperdiça. Mexer nesse ponto é modificar a relação que as comunidades
estabelecem com os animais, os territórios, as divindades, as pessoas. Este é um assunto
que será melhor desenvolvido noutro lugar.
O que se pode observar é que para além da existência de leis que possam melhorar
as condições de vida das comunidades de terreiro, o discurso da tolerância segue
invisibilizando o racismo religioso e jogando com as possíveis operações do dispositivo
de racialidade. Este, por ser uma rede de elementos heterógenos, consegue operar em
esferas diferentes que atingem as religiões de matrizes africanas, atualizando-se.
Considerações finais
9
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Revista Calundu - vol. 2, n.1, jan-jun 2018
Resumo:
Debatemos neste texto, a partir de pesquisa sócio-histórica e de um olhar desde dentro
dos Calundus, a questão da laicidade do Estado brasileiro, problematizando algumas
consequências da ausência de neutralidade do poder público sobre as comunidades de
terreiro. Recuperamos como marco teórico os conceitos de secularismo e laicidade,
movendo-nos, em seguida, a demonstrar como a ideia de Estado laico, historicamente,
não se aplica ao Brasil. O tema, como debate, é campo de disputa não exclusivo no
Brasil para a Sociologia da Religião, e torna-se mais complexo quando exposto junto a
elementos que consubstanciam o cenário de racismo religioso brasileiro.
Resumen:
Debatimos em este texto, a partir de la investigación socio-histórica y de una mirada
desde dentro de los Calundus, la cuestión de la laicidad del Estado brasileño,
problematizando algunas consecuencias de la ausencia de neutralidad del poder público
sobre las comunidades de terreiro. Recuperamos como marco teórico los conceptos de
secularismo y laicidad, moviéndonos, a continuación, a demostrar cómo la idea del
Estado laico, históricamente, no se aplica a Brasil. El tema, como debate, es campo de
disputa no exclusivo en el Brasil para la Sociología de la Religión, y se torna mas
1
Administrador com larga experiência em Gestão Social e Pública. Foi Assessor técnico da Secretaria de
Políticas para as Comunidades Tradicionais da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
da Presidência da República – SEPPIR-PR, tendo responsabilizado-se pela articulação de políticas
públicas para terreiros. Tata Kivonda da Cabana Senhora da Glória – Nzo Kuna Nkos’i.
n.nogueira1@gmail.com.
2
Doutorando em Sociologia pela Universidade de Brasília, sob a orientação da professora Tânia Mara
Campos de Almeida. Membro do Calundu – Grupo de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras. Sua
participação na escrita deste texto foi apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico – CNPq. Tata Kambondo da Cabana Senhora da Glória – Nzo Kuna Nkos’i.
guidantasnog@gmail.com.
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Introdução
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pelo Regime Militar. Como forma de finalização, há uma última sessão, que apresenta
as breves considerações finais do texto.
Ainda relevante à construção da pesquisa que embasa este artigo e sua discussão,
apresentamos nosso lugar de fala, ademais de pesquisadores, como ogans do terreiro
Cabana Senhora da Glória – Nzo Kuna Nkos’i, de Belo Horizonte/MG, que pratica a
Umbanda e o Candomblé. É este que nos permite situarmo-nos e falarmos desde dentro
dos terreiros e do movimento afrorreligioso, do qual fazemos parte como ativistas.
Nosso terreiro é familiar e sexagenário e nossa inserção a partir dele na vivência
comunitário-afrorreligiosa, a partir de cargos de liderança, é uma experiência de toda a
vida. Como ogans, ademais, somos atores políticos de nossa comunidade religiosa
(NOGUEIRA, 2017) e participamos ativamente de suas relações públicas.
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Segundo explica o autor, o central para a laicidade na prática é que o Estado não
interfira nos direitos à livre crença e à livre prática religiosa das/dos cidadãs/ãos – que
os assegure, mais adiante – e que se mantenha aberto ao diálogo democrático entre as
diversas visões de mundo – religiosas ou não – presentes em seu território. Para o autor,
é a partir deste diálogo democrático que o Estado deve se pautar, e não por uma única
visão de mundo religiosa (ainda que oficial). Ou seja, a laicidade estatal não tem que
implicar em ateísmo generalizado, mas em um Estado mais democrático, ainda que isso
leve à constante presença pública de instituições religiosas.
O sociólogo Ricardo Mariano (2011), por sua vez, também defensor da ideia de
que laicidade implica em pluralidade de possibilidades no que tange a crenças (ou
mesmo a ausência destas), oferece a seguinte definição:
3
A ideia de de "mercado religioso" advém da Sociologia da Religião. Grosso modo, compara a forma
como as diferentes religiões são apresentadas às pessoas com aquela de produtos de consumo no
mercado. Assim, a laicidade interfere na regulação do mercado religioso. Em um mercado totalmente
desregulado (Estado laico), pessoas podem consumir a religião que quiserem – ou não consumir. Em um
mercado religioso regulado (Estado religioso), pessoas são forçadas a escolher a religião oficial, que
exerceria, no limite, monopólio religioso. Cenários intermediários também se aplicam.
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Ainda assim, Mariano (2011) concorda com o postulado de Abumansur (2016), de que
os conceitos de laicidade e secularização são confundidos na prática, sem que isso cause
maiores problemas teóricos.
De acordo com o sociólogo José Casanova (1994), o termo secularização tem
dois sentidos conceituais. O primeiro advém, historicamente, de uma noção da Igreja
Católica medieval, que separava o mundo dos humanos (a terra) em duas esferas. Uma
era apenas acessível à própria Igreja, sendo assim interna e religiosa; e a outra, externa,
possuía acesso amplo, com contato entre templos religiosos e o mundo a seu redor. Esta
segunda era nomeada secular.
Havia na estrutura do catolicismo medieval dois grupos de religiosos: (1) os que
passavam a vida enclausurados/internados na esfera religiosa; e (2) os que tomavam
parte em atividades externas a essa clausura, como padres que rezam missas,
estabelecendo contato, portanto, com a esfera secular. A transição de religiosos da
esfera interna para a externa era o que se denominava como secularização. Nesse
sentido, enquanto conceito histórico, secularização é um termo específico do
catolicismo, aplicado à sua forma de ver o mundo, dividida entre as esferas interna e
externa, religiosa e secular – e essa divisão de mundo contava com a mediação
exclusiva da igreja católica, a única capaz de transitar entre as duas esferas
(CASANOVA, 1994).
O segundo sentido de secularização explanado por Casanova (1994) é aquele
que se assemelha no Brasil (na língua portuguesa) ao conceito de laicidade. Conforme o
autor, o estudo do verbete católico histórico só faz sentido enquanto origem etimológica
do termo hodierno, que se refere “ao processo histórico em que esse sistema dualista
dentro” da terra “e as estruturas sacramentais de mediação” entre essa e o paraíso – a
terceira esfera do sistema católico, que é um mundo próprio, externo à terra –
“progressivamente se quebram até que todo o sistema medieval de classificação
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desaparece, para ser substituído por sistemas novos de estruturação espacial das esferas”
(CASANOVA, 1994, p.15).
Uma característica central desta seqüência de mudanças históricas, que impede
sua verificação em diferentes locais do planeta, é sua dimensão geográfica. Trata-se de
um processo definido em função de mudanças no ocidente europeu, conforme salienta o
mesmo Casanova (1994, 2006). Refere-se ao progresso, na concepção weberiana, da
Europa ocidental. Isso, pois ainda que o catolicismo tenha se espalhado pelo mundo, o
processo de secularização descrito por Casanova (1994) é característico da região do
mundo que era dominada pela Igreja Católica. Região essa que, via colonização,
expandiu sua presença política e dominação, produzindo com isso conceitos e sistemas
coloniais próprios, mas também carregando consigo o modo de pensar e de funcionar
europeu às terras colonizadas – Américas, inclusive (QUIJANO, 2005).
Ainda que historicamente o processo de secularização tenha sido um fenômeno
social localizado ao continente europeu, Estados seculares, ou, ainda, laicos, não são
encontrados apenas na Europa. Pelo contrário, como posto acima, encontram-se por
todo o planeta, sempre que haja diferenciação formal entre religião e política na
estrutura do poder público, com verificável lastro dessa diferenciação e consequente
neutralidade na postura que o Estado assume diante de questões religiosas. Isso, sem
que tal postura neutra abra espaço para negligências estatais face intolerâncias e
racismos religiosos e impedimentos à livre prática de uma ou mais religiões por parte de
outra(s).
Notamos, por outro lado, que embora não restritos à Europa, clamores populares
por Estados laicos e/ou a efetiva laicização do poder público não são supostos para a
verificação de índices elevados que apontam para desenvolvimento de um país em
diferentes esferas. Alguns países islâmicos, neste sentido, são exemplos de que Estados
religiosos (strictu sensu, não modernos), i.e. Arábia Saudia e Emirados Árabes Unidos,
podem ser economicamente desenvolvidos e religiosos ao mesmo tempo. Igualmente,
há Estados islâmicos que, por razões diversas e que não excluem conflitos e dominação
imperialista estadunidense, i.e. Afeganistão, são exemplos do contrário.
O resultado do processo de secularização é a separação em esferas diferentes
entre Estado – circunscrito à esfera pública – e religião – circunscrita à esfera
privada/íntima, condição basilar do que conhecemos como modernidade (CASANOVA,
1994; MARIANO, 2011; ABUMANSUR, 2016) – que na América Latina permanece
colonial (QUIJANO, 2005). Isso não impede, todavia, conforme argumenta Casanova
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O termo Calundu é polissêmico. No sentido usado neste texto, resgatado pela historiadora Laura de
Mello e Souza (2002), nomeia o grupo heterogêneo das primeiras religiões de matrizes africanas
formadas no Brasil, durante o período colonial – Calundus coloniais.
5
Lições de pretos velhos são basilares à afrorreligiosidade brasileira e, caso possa haver estranhesa
quanto à validade sociológica das palavras dessas entidades na condição de informantes históricos (que
aqui sustentamos), as mesmas não devem ser questionadas como guardiãs das tradições orais e das
histórias de terreiros. Pelo contrário, as Ciências Sociais brasileiras podem se enriquecer muito com o
aprendizado de lições de pretos velhos e demais seres de Umbanda.
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Ao contrário do que indica o senso comum brasileiro, labor forçado e senzala não eram as duas únicas
experiências vivenciadas por pessoas escravizadas no Brasil. Nada diminui a tragédia do período
escravocrata brasileiro e algumas pessoas eram sujeitadas a destinos ainda piores do que o confinamento
ao trabalho e à senzala – alguns escravos mineradores em Ouro Preto/MG, por exemplo, viviam em minas
sem jamais ver a luz do dia – mas havia outras atividades em que a participação de pessoas cativas era
permitida. Essas, em sua quase totalidade, eram organizadas/tutoreadas pelas Irmandades Católicas.
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Silva (2017) explica ainda que a Igreja Católica, na primeira metade do século
XX, organizou-se politicamente, via organizações oficiais, para influenciar os rumos
políticos do país diretamente. Isso passou, inclusive, pela eleição de políticos ligados ao
Catolicismo e controle de suas ações durante os mandatos, o que possibilitou à Igreja
assegurar a preservação de seus interesses (em forma de princípios defendidos) até
mesmo no texto da Constituição de 1933. Posteriormente, aliou-se formalmente com o
Governo Vargas, estabelecendo um relacionamento de respaldos políticos e sociais
benéfico a ambos, o que permitiu à Igreja assegurar a manutenção de sua agenda
pública até o fim de 1945.
No lado negro da equação Estado-religião brasileira, Mariano (2011) chama
atenção para o fato de que
A antropóloga Diana Brown (1994), por sua vez, lembra que uma das ações
políticas populistas do governo de Getúlio Vargas foi, sob argumento nacionalista, tratar
publicamente a Umbanda dentro da categoria simbólica de verdadeira religião nacional.
Isso, sob a ideia de que a mesma cultuava todos os símbolos e figuras nacionais, desde
ex-escravos (pretos velhos) e indígenas (caboclos) até o deus cristão. Conforme a
autora, inúmeros terreiros por ela visitados no Rio de Janeiro/RJ, já após o fim da Era
Vargas, mantinham fotos do já falecido ditador em seus gongás7, exaltando-o como um
líder benéfico aos umbandistas. Todavia, a mesma Brown (1994) argumenta que os
números da violência e opressão contra terreiros durante a Era Vargas atestam para o
7
Altares
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contrário, e mostram que aquele não foi um momento próspero para a livre prática
umbandista – afrorreligiosa como um todo – no Brasil.
O primeiro período democrático, que durou de 1946 a 1964, foi marcado por um
maior afastamento entre o Catolicismo e o Estado, se comparado à Era Vargas.
Igualmente, foi um período de crescimento da urbanização do país, o que favoreceu o
crescimento do pentecostalismo, cuja força se concentrava nos centros urbanos. A Igreja
Católica se mantinha neste momento mais próxima às elites rurais, posição que
começou a rever, até sua completa adesão à pauta/política de amparo e defesa das
classes sociais mais empobrecidas – em 1961, a partir do Concílio Vaticano II. Esse
período também marcou a emergência de atores católicos leigos (que não formam parte
do clero oficial) com atuação política e a formação dos pilares das Comunidades
Eclesiásticas de Base e da Teologia da Libertação. Este movimento católico de esquerda
veio a influenciar decisivamente, na década de 1980, dentre outros, a fundação do
Partido dos Trabalhadores (SILVA, 2017).
Apesar da forte emergência da esquerda católica e do posicionamento oficial em
prol dos mais pobres, oriundo do Concílio Vaticano II, Silva (2017) explica que a
cúpula conservadora do Catolicismo no Brasil aliou-se com os militares, respaldando
socialmente suas ações, e a Igreja apoiou o golpe de 1964. Esta aliança marca uma
reaproximação entre Estado e Catolicismo no Brasil, em um movimento que apenas
perde força na década de 1970, em que posturas contrárias ao militarismo ganham
espaço na estrutura da Igreja brasileira.
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uma causa justa, atesta para o peso da religião católica sobre a política brasileira e para
o caráter nada laico do Estado (SILVA, 2017).
Desde dentro dos terreiros, não obstante, lembramos que durante a ditadura a
vida social era amplamente controlada pelo governo autoritário. Toda e qualquer
organização social ou esportiva era monitorada. Organizações políticas não puderam
existir oficialmente por um longo tempo (ainda que atuassem clandestinamente) e
qualquer grupo com mais de duas pessoas era marginalizado. Havia a temida “denúncia
vazia” e o medo generalizado impedia as pessoas de se reunirem. O governo ditatorial
dispunha de órgãos de informação em todos os setores, inclusive em Igrejas, mesmo
com os estranhamentos entre Estado e clero.
Uma forma de mostrar que o Estado era laico e que tudo acontecia de maneira
livre era deixar que as instituições religiosas não católicas se manifestassem e
constituíssem seus templos. Comunidades afrorreligiosas, contudo, tinham que registrar
seus terreiros civilmente e, mensalmente, encaminhar as atas de reuniões para a
Delegacia de Costumes, criada objetivamente para controlar o que acontecia nessas e
outras instituições indesejadas. Apesar do governo ser militar, essa delegacia era
comandada pela Policia Civil, subordinada ao Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS), órgão de fiscalização e combate aos insatisfeitos com o poder vigente àquela
época. Foram instituídos toques de recolher a partir das 22h e, diante disso, os
Candomblés e terreiros de Umbanda reforçaram sua concentração nas periferias das
cidades, distantes dos centros urbanos, onde podiam tocar seus atabaques e cultuar seus
ancestrais sem incomodar os vizinhos e, com isso, correrem maiores riscos de serem
denunciados. O controle quantitativo dos terreiros era feito através de inscrição no
Cartório de Registro Civil das Pessoas Jurídicas e a fiscalização dos atos na Delegacia
de Costumes. Essa forma de controle do governo autoritário só terminou no governo
Collor, pois o anterior ainda era de transição.
Por outro lado, apesar da demonstração de força imposta pela ditadura e de seus
ataques contra a afrorreligiosidade, todas as suas medidas acabaram por (re)forçar a
organização política interna das comunidades de terreiro. Forçou-lhes buscar meios para
sua institucionalização jurídica – que vemos como positiva no presente – e forçou a que
suas lideranças buscassem o conhecimento das leis. Igualmente, as casas mantinham
dentre suas/seus filhas/os de santo, pessoas com formação/conhecimento jurídico, que
eram encarregados de acompanhar o desenrolar dos fatos. Potencializou, ainda, a
mobilização do já antigo (ver SILVEIRA, 2006) movimento social afrorreligioso e o
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A termos quantitativos, também fazem parte do grupo de evangélicos, em minoria, os chamados
protestantes históricos, ou seja, luteranos, batistas, dentre outros (IBGE, 2010). A termos de representação
política oficial, dentro do grupo dos evangélicos os neopentecostais são ampla maioria – mesmo porque
protestantes clássicos no Brasil, em maioria, são aversos ao envolvimento com a política (SILVA, 2017).
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enfrentamento ao demônio bíblico, por eles identificado nas deusas e nos deuses
africanas/os. O filósofo Wanderson Flor do Nascimento (2011), todavia, chama atenção
para o fato que a figura do demônio pertence à tradição judaico-cristã e não faz parte da
crença afrorreligiosa. O Estado brasileiro, por sua vez, se mostra passivo à violência
neopentecostal contra as religiões de matriz africana e, igualmente, também age com
racismo religioso contra elas (com legislações que seguem tentando impedir cultos e
crenças, fechar e criminalizar terreiros, e.g. leis de silêncio, leis contra abate religioso de
animais), ou se omite em atuar contra ataques violentos a terreiros e seus frequentadores
(MATHIAS e NOGUEIRA, 2017). Justamente por isso, está sendo desde 2017
processado na Corte Interamericana por juristas afrorreligiosos apoiados pelos
movimentos afrorreligioso e negro (PAI RODNEY, 2017). Nesse cenário, a postura de
respeito apresentada pelos padres católicos, ainda que gere desconfiança, é celebrada
pelo povo de santo.
A então Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência
da República (SEPPIR/PR) tentou, durante o governo Lula, dirimir o cenário de amplo
racismo religioso contra os terreiros, mas a tentativa foi frustrada com o não lançamento
do plano de combate à intolerância, vetado pela então Ministra da Casa Civil Dilma
Rousseff. Pressões sofridas pela política, que então concorria ao cargo de Presidenta da
República, de religiosos contrários ao plano, inclusive da bancada evangélica, foram
fatores preponderantes em sua não aprovação (FERNANDES e OLIVEIRA, 2017). A
pouca coesão interna dos movimentos negro e afrorreligioso, bem como ausência de
alianças políticas mais influentes, também tiveram parte neste desfecho.
Enfatizando lado oposto ao de Mariano (2011) na relação entre católicos e
neopentecostais, Silva (2017) enfatiza que esses religiosos atuam juntos politicamente,
no sentido de defender uma agenda cristã no Estado brasileiro. Assim, em diversos
assuntos, parlamentares da Bancada Evangélica votam articulados com parlamentares
assumidamente católicos – ainda que não exista uma bancada oficial, existe uma frente
parlamentar católica – e, desta forma, asseguram a manutenção de seus valores
religiosos na vida pública brasileira. Esses valores, invariavelmente, passam pelos
princípios do conservadorismo cristão – defesa da família nuclear heteronormativa,
proibição ao aborto, proibição às drogas, etc. – que ainda são protegidos por lei ou
mesmo pela Constituição brasileira.
Seja atuando em conjunto ou como opostos, é inegável que o Estado brasileiro é
permeado pela política cristã e não é neutro com relação a ela. O cenário, todavia, não
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Considerações finais
O Brasil não é um Estado laico. Não há neste país – ainda que passados
processos secularizantes – neutralidade estatal face a assuntos de religião. Para, além
disso, em um cenário social plurirreligioso, em que a laicidade irredutível poderia
implicar em danos para a nossa já frágil (e questionável) democracia, pela não inclusão
de grandes parcelas da população sensíveis ao discurso, aos conhecimentos e à
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Referências bibliográficas
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BROWN, D. Umbanda: Religion and politics in urban Brazil. Nova York: Columbia
University Press, 1994.
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PAI RODNEY. “Um jurista contra a intolerância religiosa”. In: Carta Capital – Blog
Diálogos da Fé. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-
fe/um-jurista-contra-a-intolerancia-religiosa. Acesso em: 10/11/2017.
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Resumo:
O presente artigo visa evidenciar as formas com que as religiões afro- brasileiras têm
sido discriminadas e o embasamento racista dessas discriminações. Para tanto,
selecionei alguns casos emblemáticos que expressam um panorama das variadas
formas de discriminação e violações a essas religiões, sem, contudo, esgotar a questão.
Esse panorama, que foi dividido em tópicos para expressar a variedade de casos,
contém relatos, dados jurídicos, sociais, midiáticos, que, mesclados, esboçam um
histórico, assim como aponta para os percursos das discriminações.
Resumen
El presente artículo pretende evidenciar las formas en que las religiones afrobrasileñas
han sido discriminadas y el fundamento racista de esas discriminaciones. Para tanto,
seleccioné algunos casos emblemáticos que expresan un panorama de las variadas
formas de discriminación y violaciones a esas religiones, sin, no obstante, agotar la
1
Este artigo é derivado do terceiro capítulo da minha dissertação de mestrado no Programa de Pós-
Gradução em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília defendida em agosto de 2017.
2
Mestra em Direitos Humanos e Cidadania pela Universidade de Brasília. Integrante do Calundu – Grupo
de Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras. ariadnebasilio@gmail.com
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cuestión. Este panorama, que fue dividido en tópicos para expresar la variedad de
casos, contiene relatos, datos jurídicos, sociales, mediáticos, que, mezclados, esbozan
un histórico, así como también apunta para los itinerarios de las discriminaciones.
Introdução
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aos espaços dos terreiros, assim como aos membros das comunidades de terreiro, em
especial nos últimos anos.
A liberdade religiosa
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burocracia pública. Igualmente, tampouco implica que não haja uma religião – ou
pensamento religioso – hegemônica, que atue como religiões públicas, forçando a que
todas as outras apenas sejam toleradas como religiões privadas (CASANOVA, 1994).
A expressão “Estado laico”, strictu sensu, não está presente em nenhuma linha
do texto. Além disso, há uma expressa alusão a Deus no preâmbulo da Constituição o
que pode ser interpretado como um reflexo da prevalência de proximidade entre Igreja e
Estado.
No Brasil, são ilustrativos deste argumento, dentre outros, a presença e atuação
institucional da Bancada Evangélica (cristã), ou todos os crucifixos (cristãos)
pendurados em repartições públicas – inclusive na Câmara dos Deputados.
Os dispositivos que garantem a laicidade de um Estado, portanto, não são
suficientes para assegurar que não haja discriminação religiosa. Mesmo porque a
simples garantia de liberdade religiosa não exclui a existência de leis que criminalizam
religiões minoritárias, ou seja, que não façam parte do arcabouço cristão.
As leis que criminalizaram as religiões afro-brasileiras eram explícitas nos
ordenamentos jurídicos, penais e constitucionais que regiam o Brasil no período do
império e mesmo após a proclamação da república e a instituição de um novo
ordenamento jurídico. Apesar da garantia jurídica da liberdade religiosa, as religiões
afro-brasileiras continuaram a ser criminalizadas, agora disfarçadas em uma roupagem
evolucionista e higienista.
O período que inicia a colonização da região hoje conhecida como Brasil pelos
portugueses foi caracterizado pelo atrelamento entre o Estado e a Igreja Católica,
derivado da forma com que Portugal – que era um reino católico – regia seu império e
suas colônias.
As primeiras normas jurídicas produzidas pelo Império português e estendidas
ao Brasil foram derivadas das Ordenações Filipinas, que consistiam no ordenamento
jurídico que regeu Portugal a partir de 1603 e que, no Brasil, teve vigência até 1916
(PAES, 2011).
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3
Ordenações Filipinas, disponível em http://www1.ci.uc.pt/ihti/proj/filipinas/l5ind.htm
4
Nos termos do artigo 5 da Constituição Imperial: “Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana
continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto
doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.”
5
São vários os dispositivos constitucionais de 1891 que permitem a interpretação da separação entre
Estado e Igreja. Começando pelo texto do preâmbulo, que não menciona Deus ou realiza qualquer outra
menção à religiosidade, e atingindo o corpo de dispositivos, cuja leitura permite a interpretação da
separação. São exemplos: “Art 11 - É vedado aos Estados, como à União: [...] 2 º ) estabelecer,
subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; [...]”; e “Art 72 - A Constituição assegura a
brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à
segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...] A República não admite privilégios de
nascimento, desconhece foros de nobreza e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas
prerrogativas e regalias, bem como os títulos nobiliárquicos e de conselho.; § 3º - Todos os indivíduos e
confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e
adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum.; [...] § 5º - Os cemitérios terão caráter
secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a
prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as
leis.; § 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos.; § 7º - Nenhum culto ou igreja
gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou
dos Estados. [...]”.
6
OBSERVAÇÃO: as Constituições continuam fazendo menção a um Deus único no texto dos
preâmbulos.
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2008; MAGGIE, 1992). Portanto, mesmo com a separação entre Estado e Igreja
Católica, há a discriminação religiosa e consequente criminalização das religiões não
hegemônicas.
Não é preciso muito para compreender que as pessoas criminalizadas por esses
artigos eram negras e praticantes de religiosidade de origem africana haja vista que o
cerne dessas práticas gira em torno de uma compreensão das plantas de usos medicinais
e que estas são utilizadas nos tratamentos de pessoas que a elas busquem.
É interessante notar, entretanto, que havia uma hierarquização entre os
praticantes do chamado alto espiritismo, associado a práticas kardecistas, e o baixo
espiritismo relacionado à macumba e ao candomblé, sendo o primeiro mais tolerado que
o segundo e hierarquicamente superior, como sugere a própria designação. (MAGGIE,
1992)
A função da criminalização da prática do espiritismo não é a extinção do mesmo,
mas sim criminalizar a prática, reconhecê-la hierarquicamente de forma inferiorizada. O
intuito é instituir o inimigo.
Em seu livro “Medo de feitiço: relações entre magia e poder no Brasil”, Yvonne
Maggie (1992) traz um panorama das criminalizações das religiões afro-brasileiras a
partir dos artigos 156, 157 e 158 do Código Penal republicano de 1890, como acima
referido. A autora afirma que o código penal de 1890 foi inovador ao criminalizar a
prática ilegal da medicina, a prática da magia e espiritismo e o curandeirismo,
sinalizando que estas não eram criminalizadas anteriormente.
A autora sustenta a argumentação de que o que era efetivamente reprimido pelos
referidos artigos, eram as más práticas, seriam as práticas que teriam como fim a
enganação e o lucro, o charlatanismo, baseada na categorização referente aos casos
jurídicos por ela analisados e da formulação de Viveiros de Castro, juiz maranhense que
defendia uma separação entre a má e a boa prática.
A meu ver, por traz do discurso higienista, positivista e comteano que sustenta
tais decretos e que foi largamente utilizado na construção da república, há o racismo de
toda e qualquer prática religiosa que não fosse a eurocentrada - cristã que, nesse caso,
abre espaço para o espiritismo científico, tendo em vista a estruturação cristã e a larga
influência do positivismo em sua formulação.
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A opção de uma abordagem que não preza pelo eixo racial, indispensável para a
leitura do contexto de criminalização de tais práticas, fez com que Maggie
negligenciasse uma abordagem crítica do referido contexto. Apesar de inserir ao que ela
denomina nova política repressiva, uma política higienista, proposta a partir da
preocupação com a saúde da população, escapa a sua argumentação o ideário racista da
mesma.
O advento das políticas higienistas está envolta de um ideário racista e finda por
formular uma política de cunho modernista que prega a homogeneização da população
através de uma imposição educacional e cultural preconizada pelo Estado.
Tendo em vista que a proclamação da república foi forjada em decorrência da
abolição da escravidão no Brasil e que esta preza pela separação entre Igreja e Estado,
os artigos que criminalizam as religiões afro-brasileiras são derivados da necessidade de
se separar quais eram as práticas religiosas reconhecidas pelo Estado e quais não eram.
O Estado se ausenta da relação com a Igreja Católica, mas não deixa de
determinar quais práticas religiosas são consideradas religiões e como essas serão
praticadas. (MAGGIE, 1992)
O código penal atual, que data de 1940, herdou alguns dos artigos do código
penal anterior, de 1890, sendo dois deles do processo de criminalização da prática de
curandeirismo e do crime de charlatanismo:
Charlatanismo
Art. 283. Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa, de um a cinco contos de réis.
Curandeirismo
Art. 284. Exercer o curandeirismo:
I - prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância;
II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio;
III - fazendo diagnósticos:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado mediante remuneração, o agente fica
tambem sujeito à multa, de um a cinco contos de réis. (BRASIL, 1940)
7
Mais sobre a questão das condenações as práticas afrorreligiosas: SCHRITZMEYER, Ana Lúcia
Pastore. Sortilégio de saberes: curandeiros e juízes nos tribunais brasileiros (1900-1990). São Paulo:
IBCCRIM, 2004. 204 p.
8
Derivada de uma legislação do estado do Rio Grande do Sul concedida pelo Tribunal de Justiça do
estado, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação do Ministério Público do Rio Grande do Sul que
pede a inconstitucionalidade do abate religioso previsto na lei 12.131/04-RS. O Recurso Extraordinário
494601 ainda será discutido.
9
Para ver mais sobre o assunto: FLOR DO NASCIMENTO, 2015
77
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Mediante cuidadoso levantamento feito nos jornais da época foi possível notar um
discurso elucidativo sobre o olhar de setores letrados a respeito das noções de
civilização que informavam e justificavam suas posições. Aparentemente elaborada
por representações fragmentadas, elas acabam por construir um quadro mais ou
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insignificantes, tornam-se mais tarde, de algum vulto, pela sua repetida freqüência.
(Diário da Manhã, 21 de julho de 1936) (PETEAN, 2011, p. 23)
Os leitores têm visto: - esta folha, com o propósito de collaborar na acção policial na
repressão aos macumbeiros e outros illaqueadores da fé, da crendice alheia, todos
elles na funcção damnosa de propagar o mal. (Ribeirão Preto, Diário da Manhã,
domingo, 26 de julho de 1936) (PETEAN, 2011, p. 24)
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10
Informações disponíveis em : https://mundonegro.inf.br/ppopulacoes-de-matrizes-africanas-vencem-
por-unanimidade-acao-contra-rede-record/; http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/religioes-
afro-brasileiras-ganham-direito-de-resposta-na-record/; https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-
da-fe/a-rede-record-e-o-direito-de-respostas-as-religioes-de-matriz-africana
11
A citação do termo lobby eclesiástico e sua influencia na mudança do artigo 33 da LDB está presente
na obra de Evaldo Luis Pauly: O dilema epistemológico do ensino religioso (2004)
12
Para a elaboração destes conteúdos foram criadas o Fórum Permanente do Ensino Religioso
(FONAPER), que é uma associação voluntária; e os Conselhos para o Ensino Religioso (Coner), que em
alguns estados já eram articulados e atuavam juntos ao estado na implementação do ensino religioso. As
duas entidades foram, e muitas ainda são, fortemente marcadas pela presença de entidades e
representantes cristãs e a não incorporação de demais entidades religiosas. (Dickie, 1996; Diniz;Lionço;
Carrião, 2010)
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13
A Ação Direta de Inconstitucionalidade requerida pela Procuradoria Geral da República pode ser lida
na integra em:
http://www.stf.jus.br/portal/geral/verPdfPaginado.asp?id=635016&tipo=TP&descricao=ADI%2F4439
14
Educação nos terreiros e como a escola se relaciona com as crianças do candomblé. Stela Guedes
Caputo. (2012)
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Bruno é um menino de oito anos cujos pais são adeptos da religião tradicional
iorubá. Na semana passada, esteve ausente porque estava sendo iniciado em Ifá.
Retorna hoje aos bancos escolares, orgulhoso de ser agora um iniciado de Ifá,
integrante de um coletivo internacional de iniciados nesse Orixá, divindade da
sabedoria do povo iorubá. Exibe, com respeito e reverência, a marca de sua pertença
a esse coletivo: uma discreta pulseirinha de contas marrons alternadas com contas
verdes. De resto, ele aparece aos olhos de todos como o mesmo menino de sempre.
A professora aproxima-se dele, observa a pulseirinha, dirige-se ao armário da classe,
pega uma tesoura, volta para perto de Bruno, corta a pulseira e, com gestos
dramáticos e expressão facial dura, a atira, com raiva, no cesto de lixo. Os
coleguinhas assistem à cena e acham muito engraçado. (FRIAS; RIBEIRO, 2016, p.
211)
15
Guias são fios de contas feitos de miçangas que representam os orixás, voduns, inquices e outras
entidades presentes no complexo religioso afro-brasileiro.
16
Notícia disponível em na revista Fórum online:
http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/02/pequenos-fieis-quando-intolerancia-religiosa-atinge-
criancas/ Acesso 12/03/2015 – 19:50.
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A professora afirma, então, que o espaço onde ela aprendeu a lidar com a
diferença foi em uma religião afro-brasileira, através de sua vivência nessa religião:
Nesse sentido, Graça afirma que o candomblé é uma grande escola, pois ensina aos
seus praticantes que “as pessoas têm qualidades e defeitos” e, por isso, não devemos
emitir juízo de valor sobre elas. Em sua opinião, é o candomblé e não a escola que
tem ensinado aos seus praticantes a lidar com a diferença, a se relacionar com as
outras religiões. (QUINTANA, 2013, p. 130)
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O que embasa esse confrontos, essa situação de guerra santa reivindicada pelos
neopentecostais é o racismo presente em sua construção proselitista.
Segundo Petean (2011) o discurso da Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD), está finamente embasado em uma ideia evolucionista que resgata práticas do
ideal de branqueamento (p. 15). O argumento defendido pelo autor em seu trabalho
17
Artigo informativo de autoria de Suely Frota, disponível em:
http://horariodebrasilia.blogspot.com.br/2006/05/
18
Reportagem do jornal Correio Brasiliense, disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2015/12/29/interna_cidadesdf,512294/grupo-
de-vandalos-destroi-estatua-de-orixa-na-prainha-do-lago-paranoa.shtml
19
Reportagem do jornal Correio Brasiliense, disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2016/04/11/interna_cidadesdf,526657/vandalos
-ateiam-fogo-em-imagem-de-orixas-na-prainha-do-lago-sul.shtml
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A IURD foi criada tendo como centro argumentativo de sua teologia a crença no
deus cristão em evidente oposição as religiões afro-brasileiras. Assim, toda a referência
de mal que possa impedir o desenvolvimento de um adepto dessa nominação religiosa é
derivada de um impedimento espiritual maligno associado a algumas das entidades
espirituais das religiões afro-brasileiras.
Assim como a Igreja Universal do Reino de Deus, as religiões neopentecostais
apresentam como características:
20
Como no caso acima referido da Mãe de Santo Rosalice do Amor Divino que teve seu terreiro
parcialmente por agentes estatais sem que tenho sido notificada da ação, em Salvador, Bahia.
90
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21
Dados estatísticos disponíveis em: http://www.mdh.gov.br/disque100/balanco-2017-1
22
Informação disponível em: https://www.menorahnet.com.br/11390-2/
23
É importante frisar que existem muitos casos que não são midiatizados ou se quer denunciados o que
faz com que o número de ataques possa ser ainda maior. A Fundação Palmares tem o registro de que
foram 27 casos de violações de terreiros no ano de 2015.
24
Foi assim que o Babalorixá responsável pelo tereiro Axé Queiroz Ilê Orinlá Funfun caracterizou a
destruição de seu terreiro.
25
O laudo da perícia apontou que a causa do incêndio teria sido um curto circuito na fiação do terreiro.
Este laudo foi questionado pelos adeptos que acreditam que essa seria uma forma de encobertar a
intolerância religiosa.
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crimes de racismo e intolerância26. O anúncio foi simbólico, até por ter sido feito ao
lado da mãe de santo do Ilê Axé Oyá Bagan, sobre as cinzas do terreiro queimado.
No ano de 2017 quatro terreiros de umbanda foram atacados dentro do período
de uma semana, em Teresina, capital do estado do Piauí. 27
O enorme número de casos de discriminação no Estado do Rio de Janeiro nos
anos de 2017 e 2018, com o requinte de crueldade demonstrado através de um vídeo que
circulou nas redes sociais em que a Mãe de Santo Carmem de Oxum se vê obrigada a
destruir seu terreiro para que não fosse morta por um homem que a ameaçava28, também
fez com que o então governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, anunciasse a
criação de uma Delegacia de Combate a Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(Decradi), em agosto de 201729, e sancionou, em 16 de janeiro de 2018, uma lei que
obriga as delegacias a classificarem como crime de intolerância religiosa os casos de
agressão e ofensa a adeptos e templos de qualquer denominação religiosa30.
Os casos acima relatados cumprem o papel de exemplificar os caos de ataques a
terreiros, mas não tem o intuito de esgotá-los, pois mesmo nos estados citados como em
outras regiões do Brasil houveram demais casos de discriminação e violação a terreiros.
Atentando para a denominação das delegacias instituídas no estado do Rio de
Janeiro e no Distrito Federal, que inclui o combate a crimes raciais já pode ser
considerado como um reconhecimento institucional, em algum nível, de que há uma
associação entre a intolerância sofrida por afrorreligiosos e o racismo.
Contudo, é curiosa a sanção de uma lei que visa a obrigatoriedade da
classificação de crimes contra adeptos e templos de denominações religiosas, pois tal lei
e classificação já existem. O que fica demonstrado é o racismo institucional com a não
aplicação da mesma e a necessidade de sanção de uma nova lei para que possa haver
efetividade.
A lei Caó engloba os crimes resultantes de discriminação ou preconceito
relacionados à religião. Nesse sentido, é possível associar, como feito anteriormente, a
26
Trata-se da Delegacia de Repressão aos Crimes de Discriminação, criada em 21 de janeiro de 2016
27
Informação disponível em: http://www.gp1.com.br/noticias/policia-investiga-ataques-em-terreiros-de-
umbanda-em-teresina-417347.html
28
Informação disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/10/11/Como-a-
intoler%C3%A2ncia-religiosa-tem-se-manifestado-no-Brasil
29
Informação disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2017-08/rio-tera-
delegacia-especializada-para-combater-crimes-raciais-e
30
Informação disponível em: https://pleno.news/brasil/cidades/policia-registrara-como-crime-casos-de-
intolerancia-religiosa.html
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Gualberto salienta ainda que até o ano de 2008 a Lei Caó não constava no
sistema de delegacias legais no estado do Rio de Janeiro e acrescenta que após a
inclusão no sistema os registros passaram a ser quase diários. (2011, p. 26-27).
Essa dificuldade em se nomear o racismo deriva-se da forma com que o racismo
foi construído no Brasil. A classificação não é feita porque não se quer assumir o
racismo presente na sociedade assim como na estruturação de todas as instituições
estatais. Fato que acaba por fortalecer a invisibilização do racismo em sua vertente
religiosa.
Para além de demonstrar uma espécie de racismo institucional que demonstra
quão distante as instituições estão da sociedade, mostrando assim uma das faces de sua
exterioridade; também comprova a distância entre as comunidades de terreiro e o
Estado, isso porque, como evidencia Segato (2007) o estado não é um aliado das
comunidades de terreiro. Pelo contrário, é um de seus maiores violadores. O Estado age
assim, como um perpetrador do racismo religioso mediado pelo racismo institucional.
Considerações finais
Referências Bibliográficas
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DOU, 1989.
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Chicago Press, 1994.
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http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/otros/20111218114130/1942.pdf >
FRIAS, Eduardo R.; RIBEIRO, Ronilda. A professora destruiu minha pulseira de orixá
e todo mundo riu: o psicólogo escolar diante da discriminação religiosa. In: Psicologia,
Laicidade e as relações com a religião e a espiritualidade. Laicidade, Religião, Direitos
Humanos e Políticas Públicas – Volume 1. São Paulo, 2016.
MAGGIE, Yvonne. Medo de feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de
Janeiro. Arquivo Nacional. 1992.
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RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô rezado baixo: um estudo da perseguição aos terreiros
de Alagoas em 1912. 2004. 266 f. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) –
UFRJ - IFCS: Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia, Rio de
Janeiro. 2004.
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SEGATO, Rita L. Ciudadania: Por que no? Estado y sociedad en el Brasil a la luz de
un discurso religioso afro-brasileño. In: La nación y sus otros. Raza, etnicidad y
diversidade religiosa en tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo
Libros, 2007.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Prefácio ou Notícias de uma Guerra Nada Particular:
Os Ataques Neopentecostais às Religiões Afro-brasileiras e aos Símbolos da Herança
Africana no Brasil. In: Intolerância religiosa. Impactos do neopentecostalismo no
campo religioso afro-brasileiro. São Paulo, EDUSP, 2007.
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Resumo:
O presente artigo pretende analisar as exigências e as intervenções estatais que tem sido
feitas em diversos estados brasileiros nos terreiros dos povos tradicionais de matriz
africana. Considera-se que a forma como tais intervenções vêm sendo feitas – de
maneira arbitrária e sem considerar as especificidades desses povos – devem ser
avaliadas e modificadas, haja vista que os terreiros se constituem como espaço da
diferença, como territórios tradicionais, sendo salvaguardados por inúmeras disposições
normativas de âmbito nacional e internacional. Por isso, este trabalho analisará o
histórico de perseguição que essas práticas sofreram ao longo da história do País,
exigindo políticas de inclusão e proteção dessas comunidades, o que fica claro na
Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades
Tradicionais, que reconheceu as religiões afro-brasileiras como povos tradicionais de
matriz africana. Além disso, apresentará as normativas existentes que salvaguardam
esses povos, concluindo ao final a necessidade de respeito e reconhecimento dessas
comunidades e a possibilidade de construção de outras formas de regulamentação pelo
Estado que respeitem as suas condições diferenciadas.
1
Mestra em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília. Advogada. Professora de
Direito Público. Integrante do Calundu – grupo de estudos sobre as religiões afro-brasileiras (UnB).
Integrante do Centro Cultural Orè. andreacarvalhoguimaraes@gmail.com
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Resumen
El presente artículo pretende analizar las exigencias y las intervenciones estatales que
han sido realizadas en diversos estados brasileños en los terreiros de los pueblos
tradicionales de matriz africana. Se considera que la manera en que tales intervenciones
vienen siendo realizadas – de forma arbitraria y sin considerar las especificidades de
esos pueblos – deben ser evaluadas y modificadas, teniendo en cuenta que los terreiros
se constituyen como espacio de la diferencia, como territorios tradicionales, siendo
salvaguardados por innumerables disposiciones normativas de ámbito nacional e
internacional. Por eso, este trabajo analizará el histórico de persecución que esas
prácticas sufrieron a lo largo de la historia del país, exigiendo políticas de inclusión y
protección de esas comunidades, lo que queda claro en la Política Nacional de
Desarrollo Sustentable de los Pueblos y Comunidades Tradicionales, que reconoció las
religiones afrobrasileñas como pueblos tradicionales de matriz africana. Además,
presentará las normativas existentes que salvaguardan esos pueblos, concluyendo al
final la necesidad de respeto y reconocimiento de esas comunidades y la posibilidad de
construcción de otras formas de reglamentación por el Estado que respeten sus
condiciones diferenciadas.
Introdução
2
Algumas notícias sobre as intervenções do Estado nos terreiros de forma arbitrária: Desacato, 2015.
Disponível em: http://desacato.info/floram-multa-terreiros-de-umbanda-por-barulho/. Acesso:
15.05.2018; Defensoria Pública da União, 2017. Disponível em: http://www.dpu.def.br/noticias-santa-
catarina/158-noticias-sc-slideshow/36864-garantias-para-cultos-de-religioes-de-matriz-africana-sao-
discutidas-em-sc. Acesso: 15.05.2018.
100
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Essa atuação do Estado não impede somente que essas comunidades vivenciem
suas práticas religiosas, mas também sua forma de ser, estar e viver no mundo como
povos tradicionais, que tem no espaço do terreiro a construção e preservação, de forma
dinâmica, da sua cultura, língua, alimentação, constituído e reconhecido como locus de
resistência e diferença.
Os dados contidos no Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no
Brasil (2011-2015) publicado na época pela Secretária de Direitos Humanos da
Presidência da República, indicam que os adeptos das religiões de matriz africana como
grupo mais vitimizado por casos de intolerância religiosa, incluindo situações de
conflitos de vizinhança e de racismo institucional (RIVIR, 2015).
Como exemplo dessa realidade cito o ocorrido no município de Florianópolis em
que a FLORAM (Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis) multou,
impôs impedimentos de várias ordens e até fechou vários terreiros, sob o argumento do
barulho e questões ambientais. Além disso, a própria legislação do município associa os
terreiros a estabelecimentos comerciais, fazendo exigências de limites para emissão
sonora, de horários e de arquitetura que vão de encontro às características dos cultos
afro-brasileiros. A situação chegou a tal ponto que o Fórum das Religiões de Matriz
Africana de Florianópolis denunciou à Defensoria Pública da União (DPU) os ataques
que vêm sendo perpetrados contra os terreiros, levando a instauração de ação civil
pública, que encontra em trâmite, contra a União, IPHAN (Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional), Estado de Santa Catarina, Município de Florianópolis,
Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis (IPUF), Fundação do Meio
Ambiente (FATMA) e Fundação Municipal do Meio Ambiente (Floram) a fim de
proteger e salvaguardar os terreiros das ingerências do Estado.
Além disso, recentemente, os Ministérios Públicos de diversos estados
brasileiros, como Paraná, Bahia e Pernambuco têm lançado recomendações para
orientar a atuação do Estado no tratamento dos povos tradicionais de matriz africana, a
fim de diminuir os danos que essas interferências “regulatórias” tem feito na dinâmica
desses cultos. Por exemplo, o Ministério Público do Paraná recomendou, nos termos do
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3
Sugere-se aos membros do Ministério Público, dentre outras medidas:
1) aprofundar investigações sobre notícias de poluição sonora provocada por locais de culto das
religiões de matriz africana, a fim de impedir que pessoas ou grupos de pessoas se valham do aparato
estatal para perpetuar a intolerância religiosa;
2) solicitar, sempre que necessário, apoio de equipe multidisciplinar que reúna conhecimentos e
habilidades relevantes para a compreensão dos conflitos dessa natureza, como, por exemplo, servidores
das áreas das ciências sociais (CIMOS) e de meio ambiente; das áreas específicas dos Municípios, dos
órgãos de proteção do patrimônio cultural, étnico e histórico, material e imaterial do Estado e da União
(IPAC, IPHAN e Conselhos de Cultura);
3) promover reuniões públicas com vistas à mediação comunitária e difusão de informações de
enfrentamento à intolerância religiosa, fomentando o debate e incentivando a cooperação entre grupos
de pessoas de diversas crenças e convicções, buscando aproximá-los por intermédio do princípio do
respeito mútuo;
4) valer-se – nos casos de conflito entre o direito à liberdade religiosa e o direito ao ambiente livre de
poluição sonora – da utilização de técnicas de negociação, na busca de soluções ponderadas;
5) promover, em parceria com o Comando da Polícia Militar e Guardas Municipais, medidas de
orientação e capacitação dos agentes sobre os cultos e festividades de matrizes africanas, com o fito de
evitar e minimizar possíveis constrangimentos durante as diligências relacionadas à perturbação do
sossego e ou poluição sonora;
6) tomar conhecimento sobre a legislação municipal que regula os limites sonoros no território; caso
inexista, que o debate seja fomentado no sentido de implementação de ações afirmativas no plano
normativo municipal, a exemplo do que ocorre em Salvador e no Distrito Federal;
7) participar (ou enviar representante) das reuniões do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade
Racial, levando para o âmbito do Conselho os casos envolvendo intolerância religiosa;
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8) fiscalizar e fomentar a implementação da Lei de Diretrizes e Base - LDB, alterada pela Lei nº
10.639/03, que obriga o ensino da cultura e da história afro- brasileira nas escolas, com vistas à
promoção de uma cultura de valorização e respeito às diferenças na sociedade;
8) excepcionalmente, o órgão de execução do Ministério Público analisará a conveniência/necessidade
de firmar Termo de Ajustamento de Conduta, cujas cláusulas deverão considerar as características da
edificação, condições socioeconômicas do proprietário do local de culto (terreiro), dentre outras de
ordem técnica, antropológica, histórica e científica, de modo a não exigir condições que impeçam o
funcionamento do templo religioso.
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existia barreira racial para o relacionamento social e sexual entre negros e brancos.
Assim, o imaginário da democracia racial que passou a orientar as relações raciais e as
políticas do Estado brasileiro sob o argumento de valorização da influência negra no
país construiu uma imagem folclorizada, exótica e reificada das religiões de Matriz
Africana (GUIMARÃES, 2014).
O mito da democracia racial tornou-se o vetor de explicação das relações raciais
no País, mas trouxe em si uma contradição interna, surgiu como uma crítica às
concepções oriundas do racismo científico das primeiras décadas da república, porém
carregou em seu bojo a nova conformação do dispositivo da racialidade sobre a
população negra. Ou seja, a disseminação de um discurso ideológico que possibilitou a
permanência da hierarquia econômica, social, religiosa, política e cultural calcada no
racismo enquanto fator de desigualdade e discriminação da população negra e mais
especificamente das manifestações religiosas na diáspora africana no Brasil. Na
exaltação da democracia racial, floresce uma tolerância assimilacionista e paternalista
no discurso, porém racista nas práticas sociais que permanecem disseminadas na
capilaridade do fascismo sócio-racial e do racismo institucional (GUIMARÃES,2014).
Observa-se, então, que a demanda por reconhecimento da liberdade de ser e
praticar as tradições de matriz africana tornava-se uma ameaça ao projeto de
nacionalidade em curso. Assim sendo, o dispositivo da racialidade produz os interditos
sobre as religiões africanas enquadrando-as como práticas religiosas residuais,
primitivas e cuja anormalidade deve ser controlada pelo Estado, impedindo, de alguma
forma, a falta de reconhecimento jurídico desses sujeitos de se tornarem titulares do
direito à liberdade religiosa (GUIMARÃES, 2014).
Neste cenário, os discursos oficiais promovem uma retórica de democracia
marcada pela harmonia e livre manifestação das raças que compõem a identidade
miscigenada do Brasil, camuflando os mecanismos de exclusão das manifestações
culturais negras e impedindo a articulação de uma demanda por direitos, construindo
um conjunto de práticas normalizadoras assentadas em um suposto sincretismo racial e
cultural, e é neste contexto que emerge a prática difundida de uma tolerância
assimilacionista.
Portanto, todas estas questões sobre nosso processo de formação histórica
contribuíram para a construção da identidade dos povos de matriz africana. Estes povos,
mesmo diante da repressão e da assimilação souberam elaborar mecanismos de diálogo
e uso estratégico de alianças com intelectuais e políticos que possibilitaram a sua
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Valdina Oliveira Pinto ocupa o cargo de Makota (auxiliar direta da Iyálorisá) do Tanuri Junsara,
Terreiro de Candomblé Angola, na Bahia. Professora aposentada da rede pública municipal e Educadora
do bloco afro Ilê Aiyê, Valdina Pinto é uma referência para as comunidades negras de Salvador, sendo
reconhecida como mestra nos ambientes intelectuais nacionais e internacionais pela articulação entre a
prática e a teoria da sabedoria bantu. Makota Valdina é ainda membro do Conselho Estadual de Cultura
da Bahia e do Fórum Cultural Mundial.
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Além disso, a Constituição da República de 1988, no artigo 5º, inciso VI, garante a inviolabilidade da
“liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre exercício dos cultos religiosos e, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias”. No inciso VIII, estabelece que “ninguém será
privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as
invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei”. O artigo 19, inciso I, veda aos Estados, aos Municípios, à União e ao Distrito Federal
“estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter
com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a
colaboração de interesse público”. Por isso, em razão do princípio da laicidade, o Estado tem a obrigação
de garantir e proteger o exercício pleno dos seguintes direitos derivados da liberdade religiosa e de
consciência: 1) a liberdade do indivíduo de ter crença religiosa ou não; 2) a liberdade do indivíduo de
professar a sua fé religiosa, caso a tenha; 3) a liberdade do indivíduo de trocar de religião; 4) a liberdade
do indivíduo de não ser perseguido nem ofendido em razão de suas escolhas religiosas; 5) a liberdade dos
familiares de decidirem pela educação religiosa, ou não, de seus descendentes; 6) a garantia de que esta
educação religiosa não se choque com suas convicções, mas que as respeite; 7) a garantia de não ser
discriminado em função de sua(s) crença(s). O direito à liberdade religiosa, além de estar assegurado pela
Constituição de 1988, também encontra proteção na legislação infraconstitucional (Lei nº 9.394/96, Lei nº
4.898/65, Lei nº 7.716/89, etc.), bem como em Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, a
exemplo da Convenção Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; Convenção Interamericana sobre
Direitos Humanos; Declaração sobre a Eliminação de todas as Formas de Intolerância e Discriminação
Fundadas na Religião ou nas Convicções; Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a
Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas; a Declaração de Princípios sobre a Tolerância.
6
DUPRAT, Débora. “O direito sob o marco da plurietnicidade- multiculturalidade”
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educação dos funcionários de justiça e da polícia a fim de evitar ações que impliquem
discriminação nas investigações, no processo ou na condenação civil ou penal das
denúncias de discriminação racial e racismo”.
Portanto, diante de todo esse arcabouço normativo, é imperativo que o Estado
brasileiro tem o dever de proteger manifestações culturais afro-brasileiras portadoras de
referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira, no que se refere às suas formas de expressão, modos de criar, fazer
e viver, seus objetos litúrgicos e espaços e elas destinadas.
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Referências Bibliográficas
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BRASIL. Projeto de Lei n° 7447 de 05 set. 2010. Dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana. Disponível em
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=E53BB735
60D87BDA04B5BEDDE88C4B55.node1?codteor=991955&filename=Parecer-CEC-
15-05-2012. Acesso em: 05 fev. 2018.
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BRASIL. Projeto de Lei n° 7447 de 05 set. 2010. Dispõe sobre a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=480122.
Acesso em: 14.15.2018.
DUSSEL, Enrique. 1994. 1492: el encubrimiento del otro : hacia el origen del mito de
la modernidad: La Paz: Plural editores: UMSA,1994. Disponível em:
http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/otros/20111218114130/1942.pdf
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ESTADÃO, Dilma adia legalização de terreiros de umbanda para evitar nova crise, 21-
01-2010. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,dilma-
adialegalizacao-de-terreiros-de-umbanda-para-evitar-nova-crise,498975. Acesso
em:15.05.2018.
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NOGUEIRA, Oracy. Tanto preto quanto branco: estudos de relações raciais. São Paulo:
T.A. Queiroz, 1985.
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RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô rezado baixo: um estudo da perseguição aos terreiros
de Alagoas em 1912. 2004. 266 f. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) –
UFRJ -IFCS: Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Rio de
Janeiro. 2004.
______. Xangô rezado baixo: religião e política na primeira república. São Cristóvão:
Editora UFS; Maceió: Edufal, 2012.
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SEGATO, Rita L. Cotas: Porque reagimos? REVISTA USP, São Paulo, n.68, p. 76-87,
dezembro/fevereiro 2005-2006.
SODRÉ, Muniz. A verdade seduzida: por um conceito de cultura no Brasil. 2. ed. Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
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Resenha do livro: NOGUEIRA, Nelson Mateus. O Moxicongo nas Minas Gerais: Raízes e
Tradição. Cabana Senhora da Glória, 2017.
O livro O Moxicongo nas Minas Gerais: Raízes e Tradição de Nelson Mateus Nogueira
é uma coletânea de ensinamentos e experiências de um homem religioso. Durante sua vida se
dedicou ao fortalecimento das raízes cultural cultura afro-brasileira através da entrada do
Candomblé Moxicongo em Minas Gerais, em 1966. Como pai de santo do Candomblé Angola,
seu Nelson Nogueira possui a dijina (nome religioso) de Tateto Nepanji.
O livro está dividido em quinze momentos: Prefácio, Prólogo: De Nelson a Nepanji,
Introdução, Nossas raízes, Candomblé - Uma Dádiva Afro-Brasileira, Hierarquia, Formação
dos Fiéis e Aperfeiçoamento para o Candomblé, Como São Chamados os Inquices no
Candomblé Moxicongo, Saudações, Súplicas aos Inquices, Lágrimas dos Inquices, Sonetos, O
Poder dos Sacrifícios e Sacodimentos no Moxicongo, Normas para os Iniciados nas tradições
do Candomblé Moxicongo nas Minas Gerais e o Posfácio.
O prefácio foi elaborado por Nilo Nogueira (Tata Kis'ange), Kivonda da Cabana
Senhora da Glória – Nzo kuna Nkos’i, filho biológico de Tateto Nepanji. Nilo Nogueira
apresenta alguns pontos sobre o terreiro Cabana Senhora da Glória e expõe seus afetos por seu
pai, além de indicar que naquela casa praticava-se a Umbanda anteriormente ao Candomblé
Moxicongo. Este passou a ser tocado/cultuado também, a partir de desígnios do mentor
espiritual da casa, o preto velho Pai Guiné de Aruanda. No prólogo: De Nelson a Nepanji,
Guilherme Dantas Nogueira (Tata Mub’nzazi), ogan da Cabana Senhora da Glória e neto
biológico de Tateto Nepanji, fornece alguns detalhes: marcos históricos do Candomblé
Moxicongo, parte da biografia de seu avô, a relação entre a entrada do Candomblé Moxicongo
em Minas Gerais, em 1966, e as determinações de Pai Guine de Aruanda e do trabalho de Tateto
Nepanji.
1
Doutorando em Ciências Sociais – Estudos Comparados sobre as Américas pela Universidade de Brasília.
Bolsista CAPES. sallesvitoria01@gmail.com
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Caminhos de Nzambi
Calundus coloniais existiram desde sempre no Brasil, tendo sido mormente rurais
até o século XIX. Os terreiros de Candomblé, já urbanos, nasceram em Salvador, que era
um centro urbano. Apesar de o Brasil, até o século XIX, ter sido sobretudo rural, possuía
alguns “minúsculos” centros urbanos. Efetivamente o Brasil torna-se mais urbano que
rural na década de 70 do século XX. Existir em espaços rurais era ter acesso a natureza,
logo, ter acesso à essência do culto à ancestralidade.
No início do século XX, os terreiros de Candomblé eram significados enquanto
territorialidades negras das cidades baianas.
1
Estudante de graduação em Arquitetura e Urbanismo, UniCEUB. Integrante do Calundu – Grupo de
Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras. aisha.diene@gmail.com
2
Estudante de graduação Antropologia, UnB; e Direito, UniCEUB. Integrante do Calundu – Grupo de
Estudos sobre Religiões Afro-Brasileiras. ifahualli@gmail.com
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Na luta pelo que pode ou não existir na cidade (no mundo real ou
imaginário que ela representa), a presença física e institucional do
terreiro foi motivo de grande perseguição e de resultados positivos de
suas estratégias de permanência cultural (...) (p.165, Silva; 1995).
3
Terreiro de Candomblé, da cidade de Salvador/BA, com ano de fundação em 1919 que deu origem ao
Tumba Nzo Jimona ria Nzambi.
4
Existe uma hierarquia na lógica social a qual o Candomblé é inserido. Dentro disto, a definição de “mais
velho” diz respeito à uma pessoa que já possui uma determinada “idade” de santo. Ou seja, desde de seu
nascimento dentro da lógica dos terreiros, o famoso “santo feito”, a iniciação, até hoje, a pessoa alcançou
uma idade de santo que lhe caracteriza enquanto mais velho naquela comunidade.
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Nossos primeiros olhares do terreiro Tumba Nzo Jimona foram após uma chuva.
Um grupo de crianças parava a brincadeira na porta de casa para olhar o Jimona ria
Nzambi. Transitávamos por um caminho preenchido por pequenas chácaras, plantações
de milho, de abacaxi, o som do carro ecoando dentro da garagem de uma das casas
embalando o sábado. Alguns moradores ajudavam um carro atolado em meio à lama que
passava. Um vaqueiro guiava alguns poucos gados para a beira da estrada. Tábuas
cobriam alguns dos vários buracos na estrada e um vale verde ao horizonte
complementava e conduzia a paisagem. Não mais tão distante aos olhos, da esquina de
um bambuzal se avistava no alto, hasteada por uma haste de bambu, uma bandeira branca
indicando que ali existia um terreiro de Candomblé de nação Angola.
Logo mais à frente visualizamos uma placa com o dizer: “Terreiro de Candomblé
Tumba Nzo Jimona ria Nzambi”. As portas do terreiro eram a divisória de um contexto
social muito específico, cujas plantas, a terra e suas estruturas eram marcas de uma
identidade constituída a partir de um jogo ímpar entre o restrito e o coletivo.
Ao entrar, logo à direita algumas plantas camuflavam os segredos do inquice que
é considerado o guardião da porteira. Adiante avistamos uma primeira construção, era
uma pequena casa em vermelho e branco que se estendia através de uma varanda até os
pés de uma grande árvore. Alí também morava o inquice Mpambu Njila. Considerado
dentro da tradição dos Candomblés de Angola o senhor guardião dos caminhos e de todo
movimento da vida.
O trânsito de pessoas dentro desta pequena casa era indicado pela lógica
hierárquica do terreiro. Nem todos os adeptos tinham permissão para transitar pelo local,
tão pouco participar dos cultos que aconteciam nessa. Alí a passagem era restrita!
Caminhamos poucos passos após a casa de Mpambu Njila e nos vimos imersos à
completa natureza. Algumas árvores embelezavam uma grande praça que ficava no centro
do terreiro, por onde todas as pessoas passavam para chegar e para sair.
Esse local, o grande centro do terreiro, era o espaço ritualístico coletivo onde todos
tinham acesso, considerando que todo o espaço do terreiro é ritualístico5. Este,
especificamente, diz respeito ao centro de entrada do terreiro. Todas as pessoas, todos os
caminhos até os locais de rito mais restritos, tinham o ínicio nas partes desse centro.
5
O espaço do terreiro recebe, em sua fundação um rito, onde o ngunzo/axé é plantado, tornando toda aquela
terra a base onde será cultuado o sagrado e por isso, o terreiro em si (geograficamente) torna-se, como um
todo, espaço ritualístico.
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6
Não que seja necessariamente uma regra, mas quando observamos os ataques aos terreiros de Candomblé,
o barracão, por ser o cordão umbilical de todas as engrenagens necessárias para o funcionamento do
Candomblé, é o espaço “alvo”, o símbolo do núcleo e o primeiro a ser atacado como forma de expressar a
intolerância à essa religiosidade. Isso talvez, por uma associação da estrutura do barracão enquanto núcleo
comparado à estrutura de uma igreja; ambos os lugares reúnem pessoas para fins ritualísticos abertos a
quem quiser participar,
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2015/09/12/interna_cidadesdf,498369/dois-
terreiros-de-religioes-afros-sao-incendiados-no-entorno-no-df.shtml
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2017/02/14/interna_cidadesdf,573400/em-1-
ano-delegacia-registra-163-ocorrencias-sobre-discriminacao.shtml
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todo o rito envolve o alimento, sendo ele parte essencial para a constituição do sagrado e
para manutenção da alimentação comunitária.
Passado alguns passos, seguindo na mesma sequência das construções que
cercavam em primeiro plano essa grande praça, encontrava-se, do outro lado do portão,
logo mais ao fundo uma casa em que abrigava o caseiro e sua família, juntamente com
um grande galinheiro em seu quintal. Logo mais à frente, uma outra casa com quartos e
banheiros acomodavam os demais frequentadores.
A concepção construtiva e espacial de um terreiro busca ser um espaço que
acomode não só os deuses, mas também aqueles que buscam um lar, trazendo para dentro
dessa espacialidade litúrgica o conceito de abrigo e de acolhimento, enquanto uma ideia,
um valor pessoal.
Após as boas vindas dessa grande sala que nos recebeu, continuamos caminhando.
Seguimos entrando um pouco mais nessa paisagem e percebemos outras partes que esse
espaço litúrgico acomodava. Andando por entre o verde que conecta o barracão, saímos
desse grande perímetro que circundava a grande sala e chegamos até as chamadas “casas
de santo”7. No cenário desse espaço, as casas de santo se encontram mais reservadas,
fazendo parte de um plano que já não é espontaneamente acessado. Sendo acessado na
maioria das vezes por aqueles que vão até o seu interior.
Arquitetura hierarquizada
Ainda que, esse espaço faça parte do terreiro há toda uma lógica presente na
arquitetura dos espaços que não diz respeito somente a construções levantadas pelas
demandas da lógica da casa8, como a construção de cozinhas, banheiros, dormitórios,
praças de convivência etc. A estrutura espacial também perpassaria pela hierarquização
dos espaços, sendo a estrutura um marco materialmente expresso da hierarquia do
Candomblé.
A breve reflexão que propusemos, parte de uma reflexão fenomenológica das
relações dos espaços restrito e coletivos, e o efeito de pertencimento motivado por essa
dualidade dentro do terreiro. No terreiro Tumba Nzo Jimona ria Nzambi, através de uma
7
Edificações que acomodam objetos materiais sagrados.
8
Casa enquanto um local que pertence a uma “família de santo”, uma comunidade construída a partir de
algumas concepções de família, como o uso de termos “pai, mãe, irmãs, irmãos e filhxs”. Com relações que
envolvem uma estrutura de parentesco peculiar a este contexto.
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Bibliografia
BASTIDE, Roger. O Candomblé na Bahia. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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SILVA, Vagner Gonçalves da. Orixás na metrópoles. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
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1
Airá Tilaió. Axogum (ogan responsável pelos cortes rituais de seu terreiro).
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colonial, baseada na mão de obra escrava, mas com o próprio tráfico de escravizados. Ou
alguém acha que os “europeus” fizeram tudo isso só por uma perversidade atávica? Sem
chance.
O tráfico de escravos foi um dos pilares da economia europeia iniciado no século
XVI e perdurou até a revolução industrial. Quando eu era criança a gente ouvia na escola
sobre os ciclos econômicos do Brasil. O ciclo da cana, do ouro, do café, movidos pela
força de trabalho escravizada sem mencionar em momento algum o tráfico como fonte de
sustentação dessa economia colonial. O capitalismo europeu se consolida com a extração
das riquezas das colônias e com o tráfico de gente.
O trabalho baseado na escravidão coisifica a força de trabalho. Aquele escravo
não é um ser humano, é uma ferramenta de e para o trabalho. A relação não é entre
pessoas, o escravo não é “gente”, não é outro ser humano. É apenas uma ferramenta
comercializada e utilizada até, literalmente, sua última gota de sangue. Sendo assim suas
crenças, seus símbolos, sua história não existem ou não tem necessidade de existir.
Se essas relações de trabalho são mantidas a ferro e fogo por mais de 300 anos, é certo
que foram naturalizadas nos “corações e mentes” desta sociedade. De um lado, as pessoas
que trabalham e produzem e, do outro, o dono do que é produzido e que considera os
outros como ferramentas.
Se não é “gente” qualquer manifestação de identidade deste “povo” não existe ou
não deve existir. Esta é a base do que está no “não presta”, “não serve”, “é coisa de negro”
(ou índio) e de todos os atos racistas que presenciamos. Ou melhor, que sempre
presenciamos. Os exemplos são abundantes e constantes sendo desnecessário listá-los.
Friso que nossa sociedade é racista, construída material e simbolicamente com e na
escravidão. Suas classes dominantes (material e simbolicamente dominantes) tentam
“destruir” qualquer forma de manifestação que fortaleça a identidade da sua população
majoritária de ascendência escravizada, negra e mestiça. Essas ações e práticas
discriminatórias não são fenômenos novos ou inusitados. Basta lembrar os registros de
invasão de casas de santo no início do século passado ou mesmo as perseguições e prisões
de sambistas. Seja quais foram os pretextos para aquelas ações usados naqueles tempos,
eles eram só mais uma forma de manifestação racista.
Aqui entram os pentecostais e/ou neopentecostais. Os tempos mudaram. Mas
essencialmente, o discurso e os objetivos das suas ações não diferem muito do que já foi
feito pela igreja católica. Usei antes o termo “destruir”, mas me parece exagerado. É mais
como tentassem dizer: “Vocês são escravos. Não são gente. Ponham-se no seu lugar.”
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No final das contas é disputar constantemente espaços de poder para que o outro
continue como escravo, material e simbolicamente. Esse é o objetivo deles.
Daí é que não acho produtivo, a luta contra o racismo – e contra o racismo
religioso mais precisamente – estar baseada em lemas que não consideram o próprio
racismo. Lemas como “contra a intolerância”, “pela paz” e outros tais tendem a cair na
vala comum e não definem nada.
O que significa ser “contra a intolerância”? Se estamos falando de crenças, cultos,
formas de perceber o mundo, formas de viver, a abrangência dessa “tolerância” estará
circunscrita a estes formatos. Tolero o que acho que deve ser tolerado. Não mais que isso.
A garantia do convívio entre essas diversas “tolerâncias” é mediada pelo estado. Este é o
espaço de disputa. Pedir ao outro que me “tolere” não é pedido. É súplica. Assim, mesmo
com todas as dificuldades que conhecemos, as agressões, invasões etc. tem que ser
tratadas como são. Crimes que devem ser apurados, investigados e julgados.
Não pensem que estou, vamos dizer, desestimulando manifestações “contra a
intolerância”. Pelo contrário, é necessário denunciar e combater qualquer ato deste tipo.
Só que este combate não pode perder a referência de ser um combate ao racismo religioso
cujas manifestações são justamente tais atos.
Não tenho ilusões quanto a alguma possibilidade de convencimento destes setores,
tropa de choque do racismo, para serem mais “tolerantes” ou atender a apelos de um
pretenso convívio pacífico baseado em interpretações de crenças. Não me atrevo a dizer
o que as crenças deles defendem ou não estão certas ou não. Isso sinceramente não me
interessa e faz parte da visão de mundo lá deles. Somos diferentes nas crenças, nas formas
de ver o mundo, no viver e pronto. O convívio dessas visões de mundo conflituosas só é
garantido pelo estado. Cabe a nós definirmos melhor como atuar nesses espaços estatais
já tão restritos.
E como lutar fora destes espaços, no dia a dia? E aqui temos um problema bem
maior. A contaminação dos valores simbólicos da sociedade racista pelas nossas próprias
comunidades religiosas.
Todos falam, quando nos referimos aos pentecostais e neopentecostais, que eles
têm poder, dinheiro, canais de televisão, deputados etc. etc. etc. Mas por que tiveram esse
crescimento de influência tão acentuado nos últimos quarenta, cinquenta anos, mais ou
menos? Como tiveram uma inserção tão grande nas comunidades pobres e periféricas?
Se respondermos porque eles tem poder, dinheiro, canais de TV etc. pode ser uma
resposta mais não explica muita coisa, parece cobra engolindo a cauda.
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E por que será que o discurso contra nossa religião é baseado justamente na
identificação de elementos das nossas crenças como elementos malignos lá da religião
deles? Eles não têm um discurso genérico, muito utilizado há séculos pela igreja católica,
contra heresia ou contra discípulos do mal. Eles constroem seu discurso justamente com
os elementos, muito bem identificados, que estavam presentes nas comunidades pobres e
periféricas, que faziam e fazem parte das suas crenças.
Digo isso porque creio que nestes anos de ascensão dos crentes os terreiros
“esqueceram” seus vínculos com a própria comunidade a que dava sustentação religiosa.
Em algum momento, os terreiros começaram a tentar ser reconhecidos pela classe média
urbana e branca que, estando fora das comunidades, não tinham obviamente os mesmos
interesses, problemas, necessidades destas. Até aí, tudo bem. Pode ser até que fosse
necessário este direcionamento para o reconhecimento das nossas casas como parte
constituinte da sociedade. O problema é quando essa busca por reconhecimento passa a
ser sinônimo de ganhar importância, seja para tentar ter influência em esferas fora da sua
comunidade, seja pela arregimentação de adeptos também de fora.
Os vínculos (aqueles interesses, necessidades e problemas comuns) vão se
esgarçando já que o foco é a aproximação com os de fora, e a importância da comunidade
para a casa, e da casa para a comunidade, vai diminuindo. Os crentes disputam este espaço
que alguns deixaram.
Motumbá.
141
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O MENINO OMOLU
Em algum lugar desse mundo, no meio de uma aldeia rodeada de verde, frutos,
flores, rios e mar, morava uma tribo chamada Motumbá. Lá as pessoas tinham uma cor
tão escura quando a noite. Mas ninguém brilhava mais que OLOKUN, o ancião da aldeia.
Ele tinha o poder da oralidade! Um verdadeiro Griot. Quando a noite caía, ele saía de seu
bangalô e caminhava bem devagar para o centro da aldeia, ajudado por sua bengalinha.
Com ele, toda a tribo o seguia como um grande cortejo. Ao sentar-se na pedra de
Xangô, o vovô brilhava, parecia o céu cheio de constelações. Bem de mansinho, fazia
um som que mais parecia um canto de pássaro. As pessoas costumavam dizer que ele
estava pedindo à benção da floresta sagrada para contar mais uma história. Pediu que
colocasse sua moringa do seu lado.
Logo, ele anunciou que contaria a história do “Menino Omolu”.
Os olhos dos moradores pareciam cristais em contato com o sol, o brilho estava
por todos os lados. Estavam curiosos para ouvi-lo. Todos bem atentos foram tratando de
se acomodar para melhor escutar a história contada pelo sagrado velho. Devagar, como
de costume, ele encostou a bengala na pedra. Olhou nos olhos de cada morador e
pausadamente disparou: “Peço licença aos meus Ancestrais e aos meus Herdeiros para
contar essa história. Se atentem!”.
Em um reinado distante, uma mulher prestes a dar à luz, caminhava pelo meio da
mata na direção de um rio. Chegando às águas correntes, sentou-se bem na beirinha e pôs
seus pés na água cristalina, que refletia a sua imagem. Passou bem devagar as mãos na
barriga e sentiu a criança mexer. Pediu a proteção das águas e das forças da floresta para
que tivesse uma boa hora. De repente, a criança veio ao mundo, como num passe de
mágica. Ainda com os olhos fechados, a pele ferida e vestígios de sangue do parto.
Silencioso, não deu um pio.
1
Cynthia Rachel Pereira Lima. Graduanda em Letras - Literatura pela Escola de Formação de Professores
da Universidade Castelo Branco – E-mail: cynthiarachell@gmail.com
142
A mãe arregalou os olhos, queria respostas para o que via. Mas, para as coisas da
vida, nem sempre existem respostas. A mãe olhou para o menino. Enrolou ele com os
tecidos que carregava consigo e partiu... O menino ficou ali, enroladinho às margens do
rio. Neste momento, era possível notar o olhar triste das pessoas que ouviam atentamente
a história.
E, o ancião continuou:
O dia raiou, e, caminhando pela floresta à procura de ervas sagradas, estava
ANAÃN. Uma senhora rezadeira que passara os dias em busca de folhas para curar as
pessoas de sua aldeia. ANAÃN achou na floresta: levante, manjerona, arruda, alecrim e
outras ervas. Cansada da andança, resolveu repousar à beira do rio. Deixou o balaio no
chão, forrou um tecido sobre o arbusto verde, colocou os pés na água e deitou-se em
repouso. Com o sol na pele, ANAÃN mantinha os olhos fechados.
De longe, ouvira um barulho, porém manteve os olhos em descanso. Estava muito
cansada das andanças na floresta. Quando novamente ouviu um chorinho. Desta vez,
levantou-se e cuidadosamente, foi tentando descobrir de onde vinha tal barulho. ANAÃN
colocou as mãos na terra e baixinho pediu: “sagrada mãe, já que aqui estou me ajude a
entender esse chamado”. Com os olhos fechados, segurava a terra. Pedia, pedia e pedia.
OLOKUN fez uma longa respiração e continuou:
O choro da criança foi ficando cada vez mais alto. ANAÃN correu à procura do
som. Estava quase rodeando o rio inteiro, quando o som parou. Sem saber para onde
seguir, a moça pediu as forças da natureza para ajuda-la. O tempo nesta hora começou a
fechar. O vento levantou as folhas que fizeram um grande redemoinho na floresta. Chuva.
Fortes relâmpagos. O menino voltou a chorar. E, ANAÃN a correr. Foi quando ela
tropeçou e caiu no chão. Na queda, ela avistou o menino que estava em uma poça de lama,
ainda enroladinho com os tecidos que a mãe colocara.
ANAÃN com sua sabedoria, calmamente, foi tira-lo da lama. Conseguiu. O pano
que o cobria ficou no buraco. A chuva caia forte sobre os dois. ANAÃN emocionada,
ainda sem acreditar no que via, admirava o menino que segurava em seus braços.
Conforme a chuva caia, limpava os resquícios de lama do corpo da criança.
OLOKUN fez uma pausa. Pegou a moringa de barro que estava próxima, e
molhou a palavra para que a história pudesse continuar. Todos os olhos estavam atentos
a ele. E continuou.
Foi desta forma que aconteceu o encontro dessas duas almas. ANAÃN olhava
para o menino, que pela primeira vez abria os seus olhos para ver o mundo. Abriu os
143
olhos para ver a mulher que lhe deu a segunda vida. Deixando tudo para trás, ANAÃN
foi com o pequenino para sua aldeia. No seu cazuá, ela preparou um bom banho de ervas,
e enquanto banhava o seu gurizinho, cantava uma cantiga de cura. O menino a observava
com os seus grandes olhos. Com uma felicidade que não cabia em si, ANAÃN falou
baixinho para ele: “de agora em diante, você se chamará OMOLU - o meu menino, que
passou pelas agruras da vida e da morte, resistiu às dores e feridas, foi recebido, guardado
e acobertado pelos sagrados elementos da natureza. Talvez a sua missão na vida não seja
fácil, mas te dará ensinamentos e você terá que passar para todos os seus filhos e filhas,
que serão muitos nesta terra”.
E, o menino OMOLU sorriu!
OLOKUN pegou a sua bengala de madeira, levantou-se bem devagar, pediu
passagem para os moradores da aldeia e disse como um legítimo sábio: “O que
precisamos aprender é que nesta ou em outras vidas, nunca andamos sozinhos”.
E, seguiu com seus passos lentos...
144