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O catimbó-jurema é um sistema religioso cujas origens remetem aos grupos indígenas que no
passado, habitaram grande parte do Nordeste brasileiro, mas que ainda hoje, mantem-se vivo
graças as ações dos novos mestres e mestras juremeiras. Culto ancestral baseado na crença de
cidades e reinos encantados habitados por mestres espirituais detentores de uma sabedoria
muito antiga. O catimbó-jurema passou por diferentes transformações ao longo dos séculos:
no XVI, integra à sua estrutura religiosa algumas referências do catolicismo português trazido
pelos missionários jesuítas. No XVII, negros africanos escravizados e índios aldeados, exercem
uma influência mútua em seus respectivos sistemas religiosos tornando-os mais complexos e
diversificados. Nos séculos posteriores, o hibridismo com o candomblé e a umbanda, por
exemplo, tornou possível novos arranjos aos cultos afro-luso-ameríndios.
Dentro deste universo religioso tão plural constituído por diferentes espacialidades elaboradas
para sediar as experiências com o sagrado, penso que o corpo humano seja uma das categorias
espaciais mais importantes. Assim como os terreiros, barracões, tendas ou ilês, “o corpo é um
templo em menor escala”, assim afirmou Richard Sennett. Um espaço construído a partir de
investimentos simbólicos e materiais que tem como principal função mediar o contato entre o
mundo dos homens e o mundo místico no qual habitam os mestres, mestras, reis, encantados,
caboclos, pretos-velhos e outros espíritos desencarnados.
Nas religiões onde o transe de possessão acontece, o corpo é compreendido como “sacrário”
dos ancestrais evocados durante as cerimônias para interagir com os adeptos e aqueles que
vão aos templos para pedir favores ou prestar homenagens aos guias espirituais. Em se
tratando das religiões afro-luso-indígenas, o processo de construção do corpo-templo se dá a
partir de uma série de rituais iniciatórios: banhos a base de ervas, sacrifícios de animais e
oferendas diversas. O noviço se abstém de sexo; alimenta-se exclusivamente com as comidas
sagradas que representam e contém a energia dos seus pares espirituais – o axé. Durante os
dias de preceito, priva-se temporariamente do contato com outros membros da casa. É preciso
purificar o corpo para receber o sagrado. Por meio de uma complexa ritualização, particular de
cada terreiro ou nação, o corpo passa a estar simbólica e efetivamente ligado as divindades
tornando-se, a partir de então, um espaço consagrado.
A mestria juremeira fala: aconselha, adverte, critica, previne. Aceitar a mediunidade significa
ceder o corpo inteiro para ser tomado por poderes místico-espirituais. A fim de destacar a
personalidade e a identidade do mestre, o médium tem seu corpo paramentado com vestes e
insígnias que representam seu mentor. Na cabeça: chapéus, lenços ou turbantes. No pescoço:
amuletos, joias e os colares de conta – as guias. Nas mãos: bengalas, punhais, cigarros,
charutos, taças de vinho, champanhe ou cachaça. Elementos simples, que manipulados por
estas entidades tornam-se instrumentos poderosíssimos e imprescindíveis para a
concretização dos trabalhos mágico-religiosos. Estes itens não possuem apenas uma dimensão
estética. Na verdade, o corpo-receptáculo e tudo que ele ostenta, como as vestes e as
coreografias, além de outros demarcadores corporais e identitários, devem estar em
consonância com a liturgia juremeira. O corpo-mediúnico materializa uma “hierofania”, isto é,
a revelação do sagrado de modo físico, palpável.
Por fim, reiteramos que a jurema se configura como um sistema religioso que privilegia e
constrói corpos proativos; não mais subjugados pelas ações colonialistas e “civilizatórias” das
religiões dominantes que no passado condenaram e demonizaram as práticas corporais dos
cultos afro-luso-indígenas. Na jurema, a corporeidade ganha sentido político, pois as
entidades auxiliam na desconstrução das classificações social, de gênero ou de origem étnica.
O mesmo “corpo-aparelho” que “recebe” espíritos nobres, como príncipes, rainhas e fidalgos,
por exemplo, “recebe” também, ex-escravos, mestras, prostitutas e ciganos. Na jurema, o
corpo do médium serve a um propósito de resistência, no sentido de dar visibilidade aos
discursos e personagens que as narrativas e as instituições oficiais trataram de invisibilizar.
Médium e entidade em comunhão, tornam-se essenciais na constante reatualização dos mitos
e tradições desse sistema religioso.