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AS SOCIEDADES ANDINAS

ANTERIORES A 1532*

QUANDO A REGIÃO andina foi mvadída pelas tropas de Pizarro em


1532, quarenta anos haviam-se passado desde a capitulação de Granada e da
primeira das ilhas das Antilhas aos castelhanos e mais de vinte anos desde a
invasão da Mesoamerica. Uma geração inteira de europeus - quase duas -

~J--
estavam familiarizados com os costumes dos "pagãos" e dos "índios", Os
' filhos que haviam gerado no Novo Mundo estavam agora crescidos~ falavam
()i'Lh as línguas de suas mães. Pais e filhos ouviam as h1stónas de lugares muito
mais remotos, ao sul do Panamá, habítados por povos mais ricos. Os boatos
sobre sociedades que vivíam nos Andes eram comuns entre os colonos do
Istmo~ alguns acreditam que mesmo no Brasil. Um português, Aleíxo
Garcia, ouviu o bastante para encorajã-io a juntar-se a uma incursão dos
chinguanos contra os habitantes das montanhas; avançando a partir do
sudeste, atacaram instalações incas, pe!o menos cinco anos antes de Pizarro
invadir pelo norte. Mmto depois que o grupo de Pizarro fez valer seus pre-
tensos direitos aos Andes, outros pretendentes insistiram em dizer que
foram os primeiros a ouvir falar desses reinos.
É dessas histórias e dos relatos posteriores de testemunhas oculares que
deriva basicamente nosso conhecimento sobre as civilizações andinas em
1532. Trata-se de um conhecimento bastante mcompleto; mesmo a comuni-
dade académica nem sempre tem consciência da fragmentariedade em que
permanecem os registros. A arqueologia poderia ajudar. não fosse a posição
rnargmal que os arqueólogos amda mantêm nas repúblicas andinas (em fla-
grante contraste com o que acontece no México). É passivei que milhões de
pessoas Jeram a ode de PabJo Neruda a Niachu-Picchu e outros milhões visi-
taram o monumento, mas mnguém sabe que segmento da sociedade ínca
habitou o lugar. Isso não impede que ondas sucessivas de arquitetos "restau-

O autor e o editor a~radecem o auxílio de Ms. Oliv1a Harns, do Goldsmiths' College,


Londres, na preparação final deste capituJ.o.
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rem" a colônia. mas poucos arqueólogos se dedicam profissionalmente - se O ti.nico estudioso importante nesse campo f01 Marcos Jíménez de ia
é que algum o faz - a esse estudo, trabalhando no próp~o sítio, incrustado Espada, que há cem anos atrâs estava no apogeu de sua atividade, enquanto
profundamente na paisagem quase vertical, ou nas técnicas de construção ganhava a vida como conservador de anfíbios no Museu de História Natural
que distmguem Machu-Picchu de outros centros urbanos dos Andes. de Madn. Paralelamente, Timenez publicou tanto as fontes que Prescott
Paradoxalmente, grande parte de periodos mais antigos, alguns que havia utilizado na forma de manuscritos quanto outras as quais o estudioso
datam de centenas de anos antes dos mcas, parecem mais acessive1s e tive- da Nova Inglaterra jamais tivera acesso. Em 1908, quando Pietschmann des-
ram suas peças de cerâmica minuciosamente estudadas; e os aspectos deco- cobrm em Copenhagen um texto realmente inaudito - uma "carta" de
rativos de outras técnicas, especialmente a tecelagem - a principal arte dos 1200 págmas ao rei da Espanha, escrita e ilustrada, por volta de 1615, por
Andes - foram todos catalogados. fotografados, preservados. Todavia, um "índio" andino - havia desaparecido a urgência que Jiménez sentira em
quanto mais nos aproximamos de 1532, época em que o Estado andino foi publicar fontes prímárias; passaram-se outros 28 anos antes que vissem a luz
dommado e estilhaçado nas centenas de grupos étnicos que o compunham, as queixas de Guaman Poma (Nueva Corónica y Buen Gobierno). Desde
menos possibilidade temos de obter conhecimentos através da arqueologia então, novos textos ocasionais foram localizados, a maioria deles por
na forma como e praticada hoJe, e mais temos de depender dos relatos escri- Hermano Trimborn, de Bonn, mas é digno de nota o quanto Prescott se
tos por aqueles que "estiveram lá", assemelha a Cunow (1896), a Baudin (1928), a Rowe (1946), a Murra (1955)
Esses relatos são notáveis sob alguns aspectos: no espaço de dois anos após ou, mais recentemente, a Hemming (1970). Todos eles utilizaram quase as
o desastre de Ca1amarca, quando o rei Atahuaipa foi capturado, foram publi- mesmas fontes, e se diferem e em questões de mterpretação e ideologia.
cadas em Sevilha duas narrativas que descrevem esses acontecimentos, numa Nos últimos trinta anos, foi removida uma parte do mistério, especial-
epoca em que as comunicações transatlânticas eram lentas e a impressão de mente com relação ao Estado ínca. Houve algum avanço no entendimento
livros, perigosa. Uma detas f01 o relato oficíal do primeiro escrivão de Pizarro, da articulação entre os grupos étnicos locais e os incas, atraves do estudo das
Francisco de Xerez, que se empenhou em demonstrar que o seu era o "relato demandas litig10sas, ou dos registros demográficos e tributáríos compilados
verdadeiro" (Verdadera Relaciàn de la Conquista dei Perú [15341), pois outra nas primeiras décadas de domímo espanhol. Ainda assim, é fato que a inves-
testemunha ocular se lhe havia antecipado. Mesmo antes, numa feira anual tigação de John H. Rowe sobre as organizações políticas dos Andes centrais
que se realizou em Lyon, vendedores ambulantes vendiam a negociantes do ("Inca Culture at the Time of the Spanish Conquest", publicada há quase
Reno e de Piemonte folhas impressas que descreviam o resgate de Atahuaipa. quarenta anos, em 1946, no Handbook of South American Indians) permane-
Os estudiosos costumam queíxar-se das falhas desses relatos; todo espe- ce uma boa exposição de nosso conhecimento etnográfico. O exame da vida
cialista tem listas de questões importantes que permanecem sem resposta. quotidiana e da orgamzação dos Estados andinos continua sendo um traba-
Danças folclóricas ainda hoie renovam o encontro dos íncas com os solda- lho de fôlego. a ser empreendido seriamente quando os arqueólogos e os
dos europeus, mas não é possível recuperar uma tradição oral dinástica 450 etnólogos aprenderem a trabalhar juntos e quando as cmco repúblicas que
anos após os acontecímentos. Alguns relatos antigos, feitos por estrangeiros, são herdeiras da tradição andina - Bolívia, Peru, Equador, Chile e Argenti-
são há mlllto tempo de conhecimento geral, porém não restam mmtos deles. na - decidirem que essa herança lhes pertence realmente.
O século XIX foi o grande período de descoberta e publicação dessas antigas
descrições: antes mesmo que a maioria delas fosse impressa, W. H. Prescott Enquanto isso, notamos que os pnmeiros observadores quinhentistas
tivera acesso a elas. É notável como sua Conque~t of Peru (1897) permanece chegaram a certas conclusões que os estudiosos modernos confirmaram.
atual, mais de 130 anos após sua publicação. Isso se deve menos il com- Em primeiro lugar, a paisagem não se assemelhava a nada que já houves-
preensão que Prescott tmha das c1vilízações pré-colombianas do que ao sem visto antes ou de que tivessem ouvido falar. embora alguns fossem sol-
tempo escasso que os histonadores contemporâneos dedicam a pesqmsa de dados que haVIam lutado na Itália. no México, na Guatemala, em Flandres
novas fontes. além da mencionada superficialidade da arqueologia inca. ou na África do Norte. Nos Andes, as montanhas eram mais altas, as noítes
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mais frias e os dias mais quentes, os vaies mais profundos, os desertos mais mapas das chuvas e das temperaturas eram madequados e enganosos quan-
secos, as distâncias maiores do que as palavras poderiam descrever. do aplicados a essa região. Para registrar os extremos andinos num período
Em segundo lugar, o pais era ríco e não apenas em termos do que podia qualquer de 24 horas, Troll criou novos gráficos. Cedo descobriu que a ter-
ser levado embora. Havia riqueza na quantidade de pessoas e em suas habí- minoiog1a cíentífica desenvolvida em outros lugares não descrevia os climas
lidades, nas maravilhas tecnológicas observáveis na edificação, na metalur- tocaís: tomou emprestado boa parte de seu vocabulário das práticas etno-
gia, na construção de estradas. na irrigação ou nos produtos têxteis geográficas andinas. Evidentemente, pode-se encerrar o termo andino puna
("depois que os cnstãos levaram tudo o que queriam, amda parecia que numa caixa marcada "estepe", ou "savana", mas isso implica uma séria
nada havia sido tocado"'). perda de especificidade. Essas pradarias tropíca1s, mas altas e frias, são culti-
Em terceiro lugar, o domínio estava sob o controle de um príncipe havia vadas há muito tempo, talvez antes mesmo que todas as árvores fossem cor-
pouco tempo, cerca de três ou quatro gerações antes de 1532. E desde os pri- tadas; durante milêníos a ma10na dos povos andinos VIveram nesse local.
meiros dias após a vítória espanhola em Ca1amarca, pessoas mais atentas se Não apenas os mcas, porem as mais antigas estruturas políticas (Tihuanaco,
perguntavam como havia ruído com tanta facilidade essa autoridade que Huari) surgiram na puna; Troll interpretou isso como um indicativo impor-
governava tantos povos distintos por sua geografia particular. tante das potencialidades que a maiona dos observadores contemporâneos
Embora basicamente verdadeiras. cada uma dessas conclusões é passive! não conseguem apreender.
de uma reelaboração. Conquanto localizada inteiramente nos trópicos, a Só recentemente ê que a agricultura andina começou a atrair a atenção
geografia andina tem poucas semelhanças func1ona1s para o homem de dos agrônomos. A fácil adaptação de vanedades européias e africanas culti-
outras latitudes, se é que existe alguma. As regiões povoadas mais densa- vadas - cevada, cana-de-açúcar, uva, banana - mascarou o apego dos
mente, por exemplo. estão também situadas em altitudes extremamente ele- agricultores a culturas resistentes, domesticadas no local, perfeitamente
vadas. Em 1532 (e. na verdade, amda hoíe} haVIa muito mais habitantes no adaptadas ás condições andinas. Ninguém sabe quantas dessas variedades
alto planalto ao redor do lago Titicaca do que em qualquer outro lugar. Isso eram cultivadas em 1532; muitas delas desapareceram e outras ainda perma-
intriga não apenas os planificadores internacionais; mesmo os economistas necem em condições de bai.xo rendimento, apesar do seu valor nutncional já
locais freqüentemente revelam sua exasperação. Vêem uma população provado. Quando se estudam os mm tos tubércuios (dos quais a batata é
mmto grande, assolada pela fome, tentando cavar um meio de vida sob con- apenas o mais famoso) ou o tarwt ( um tremoço rico em gorduras) ou a
dições que para o estranho urbano parecem as mais mausp1c1osas. Por que kinuwa ( um cereal cultívado em grandes altitudes e rico em proteínas) ou a
uma população agricola tão numerosa ms1stiria em cultivar num locai onde, folha de coca que sacia a sede, percebe-se quão autóctone e quão antigo era
a qualquer ano, pode-se esperar trezentas noites de geada, ou maís? o compiexo agrícola andino. Algumas das culturas (milho, batata-doce)
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Um grande passo na compreensão científica da geografia andina fo1 dado eram encontradas por todo o continente, mas no sul nenhuma era produzi-
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~ no final da década de 20, quando o estudioso alemão Carl Troll realizou tra- da em grande quantidade, embora algumas fossem altamente valonzadas ~
~
5
a
z balhos de campo na Bolívia. Em 1931. Troll publicou o que ainda é a Umca por serem exôtícas. 2
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discussão de maior prestígio dos muitos e diversos "bolsões" na paisagem No entanto, nas condições andinas não era suficiente ter conseguido z<
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o cnada pela grande proximidade entre si de altas montanhas, desertos costei-
~ uma adaptação ao local. A terra de qualquer espécie é mmto pouca. As boas <
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~ ros e úm1das planicies amazônicas2- Troll observou que os tradicionais pastagens podem estar muito distantes. Mesmo que se comparassem os pro- õ
~ dutos de dois ou três pisos v1zmhos, não se podia fornecer as bases para uma
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~
< 1. Francisco de Xerez, Verdadera Retaciô11 de la Conqmsta de! Pení [ 15341, Madrid, 1947, p. 334. grande população ou para a formação de um Estado. Se os povos andinos
<
u 2. Carl Troll, "Dic gcographischc Grundlagcn der Andinen Kuituren und des Inkarc1chs". qmsessem evitar a fome, encher seus próprios celeiros e os de seus senhores
~
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Ibero-Amencamsclles Archiv, Berlim, 193 l, vol. V. Cf. tambem I!Íem, T/Je Geo-ecology o( t/le e deuses, teriam de enfrentar as bruscas mudanças das condições geográfi-
<
< Mountamous Reg1ons af tlie Tropicai Amencas, Bonn, 1968. cas, não só como handicaps ou limitações, mas também como vantagens em
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68 potencial. Isso foi conseguido nos Andes mesmo por grupos humanos quando lhe perguntaram se os indios nos campos de coca eram nativos da região, (o
pequenos no mício e que no curso de um llnico ano tenam de pescar, cole- senhor locai de Queros I disse que havia três índios no campo de coca de Picho-
tar alimentos e cultivar em vã.nos pisos. Com o aumento de sua população, machay- um deies de Pecta, outro de Atear e um terceiro de Guacor e que estavam
foram forçados a buscar recursos em locais cada vez mais distantes: na lá desde a época dos incas; e, quando morre uma de suas mulheres ou eles mesmos
região costeira desfrtíca abaixo, se viviam na cordilheira ocidental; ou na morrem, são substituídos por outros, e no campo de coca de Chmchao havia outros
floresta das encostas andinas, se habitavam a cordilheira oriental. dois indios, um de Rondo e outro de Chumicho.
Na agricultura andina, a adaptação precisou enfrentar outra desvanta-
gem: as bruscas mudanças de temperatura, que passa das noites glaciais aos Esse testemunho, dado em 1549, somente foi registrado sete anos depois
dias tropícais. No altiplano, a região com maior densidade populac10nal, que foi esmagada a resistência local á mvasão. lvfais uma vez é mencionada a
freqüentemente são regístradas diferenças de 30ºC e até mais, num Umco folha de coca de Chmchao:
período de 24 horas. Esse empecilho aparente também foi transformado
numa vantagem adaptacional: numa data ainda desconhecida da históna naquele mesmo dia mspectonamos I_ ••• I em Chmchao 33 índios que estavam encarre-
andina, todo tecido vegetai. mas em particular as literalmente milhares de gados das folhas de coca; eles chegam aqm vindos de todas as colônias dos chupaychos
variedades de tubérculos, e toda carne de animal domesticado ou selvagem e vmte deles [jál haviam sido contados nas próprias aldeias em que tmham nascido.
sofreram um processo de conservação: congelados á noite e secos sob o sol
tropical no dia seguinte. Eram muitos os tecidos congelados e secos, mas Esse testemunho, incomum na historiografia andina por sua minuciosi-
dois nomes subsistiram num uso mais generalizado: cfwiiu e c!zarki. A maio- dade e por sua data tão precoce, permite-nos perceber que os colonos eram
na deles não só eram facilmente transportáveis, mas também se conserva- enviados de todo povoado da montanha; esses colonos permaneciam na pla-
vam mdefinidamente sob as condições da puna. nície durante toda a vida do casal - uma vez que o censo andino não regis-
No âmbito de tais adaptações e transformações do ambiente, as dimen- trava pessoas solteiras ou víúvas; embora ausentes fisicamente de sua região
sões das comunidades políticas andinas variaram de algumas centenas de nativa, continuavam amarrados em seus quípos. Em locais de trabalho
famílias a 25 ou 30 mil, com totais populacionais que chegavam talvez a 150 semelhantes, a uma distância de dois a quatro dias de cammhada de suas
mil; quando reunidas num Estado como a Tahuantinsuyo dos incas, seu residências, outros colonos pastoreavam camelídeos, cavavam sal. cortavam
total podia alcançar cinco milhões ou mais3 Aumentos nas dimensões da madeira ou cultivavam pimenta e algodão. No vale de Huallaga, tanto as
comunidade política causavam mudanças na localização e nas funções das folhas de coca quanto o sal eram partilhados por pessoas de fora da v1z1-
colônías espalhadas. No vale de Huallaga, no que hoje é o Peru central, as nhança imediata: alguns dos extratores de sal eram relocalizados a uma dis-

~
primeiras investigações européias identificaram vários grupos étnicos, o
maior dos quais, o Chupaycho, alegava ter quatro mil famílias no sistema
tância de seis a oito dias de "casa",
As pnncipais colônías nessa região estavam localizadas um pouco abaixo da
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o mca de contagem decimal. Outros nesse vale relataram apenas quatrocentas linha dos três mil metros, numa tinco, o locai de encontro de duas zonas ecoló- ~
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o gicas, onde se podiam alcançar facilmente tanto as terras de tubérculo quanto ~
"fogos". Independentemente das dimensões, em 1549, cada grupo declarava
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o possuir hortas de folhas de coca a uma distância de três a quatro dias de as de milho, a menos de um dia de cammhada, acima e abaixo da aldeía4. .
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camínhada, para quem desce da colôma principal: Em outros locais, as condições geográficas impossibilitaram esse fácil õ
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acesso ao milho: em núcleos populacionais acima de 3 500 e mesmo 3 800 <

metros - mais próximos dos rebanhos de camelídeos - não mais se podia


J. Sobre a popuiação do Peru em 1532, cuias esumauvas recentes tem variado de dois a nove
milhões, ver adiante, ás pp. 129-31, "Nota sobre as Populações Americanas às Vesperas das ,. Ifügo Ort12 de Zúfiiga, Visita de la Provmcia d!! Leó11 de Hmm11co f 1562!, Huánuco, Peru,

Invasões Européias" 1967, vai.!, pp. +l, 303-304.


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70 trabalhar no campo de milho e voltar no mesmo dia. No altiplano povoado nenhum centro político importante podia reclamar hegemonía, durante
do lago Tit1cacas, o milho amda era indispensâvel como cereal de ritual e de periodos que os arqueólogos chamam de Intermediário Antigo ou Tardio, o
"hospitalidade", mas agora era cultivado por colonos permanentes em peda- acesso complementar a uma ampla gama de nichos ecológicos era importan-
ços de terra a uma distância de vários dias de casa, no modelo que descreve- te demais para que fosse eliminado do repertório económico dos senhores
mos acima para os cultivadores de folhas de coca. As dimensões maiores da andinos locais.
comunidade polítíca tornavam possivel o envío de colõmas maiores e insta- Independentemente da origem, pode-se afirmar que o aumento nas
lá-las a muitos mais dias de caminhada. O reino aimarâ dos lupacas enviara dimensões da sociedade política tinha conseqüências sobre a complexidade
grandes quantidades de pessoas á costa desértica, a dez e ás vezes a qumze de arranjos nas periferias. Vimos acima, no caso dos extratores de sal. que
dias de distância do núdeo. Thierry Saignes estudou recentemente o modo suas colónias eram multiétmcas; essa característica tornou-se mais comum à
como todas as comunidades situadas em volta do Tit1caca tinham acesso ás medida que cresceram as comunidades políticas. A ocupação simultânea de
"ilhas" da planicíe a leste do lago; nesse locai, a madeira, a folha de coca e o uma "ilha" periférica por colonos de diversas comunidades políticas deve ter
mel, assim como o milho, podiam ser cuidados diretamente pelos parentes gerado atntos, disputas e mesmo hegemomas temporànas de um concorren-
de alguém ou pelos que lhe eram submetidos 6 • te sobre o outro. :Mas há mdíc1os de que a busca de acesso a produtos exóti-
A esse modo complementar de ter acesso a muitos pisos ecológicos 7 cos era tão grande que a periodos de conflito se seguiam sempre épocas em
espalhados deu-se o nome de padrão "arquípélago" de colonização andina. que o acesso era partilhado, por mais tensa que fosse a trégua.
Embora, na ma10ria das localidades, seu alcance tenha sofrido um processo O modo como eram escolhidos os colonos vitalícios e a forma como era
de erosão durante o periodo colomai e em épocas mais recentes, algumas mantida sua lealdade ao grupo que os enviava são temas de mvestigação.
populações das montanhas ainda praticam o "duplo domicílio" B_ Quando a distância do micleo era pequena, o colono, chamado ,mtmac em
A arqueología assevera a ant1güídade desse padrão, mas poucas escava- língua quichua, podia facilmente manter os vínculos com o lugar de ongem.
ções revelaram sua idade. Alguns afirmaram que tal acesso múltiplo e simul- No entanto, quando a distância chegava a oito, dez dias de distância ou
tâneo de uma única comunidade a muitos microclimas não poderia ter mais, foram criados disposrtlvos institucionais para garantir não só o acesso
ocorrido antes que a proteção pacificadora de um Estado resguardasse as dos colonos aos produtos, mas tambem ao intercâmbio social. aos parceiros
caravanas anuais que ligavam as povoações periféricas ao micleo de poder. de casamento para seus filhos e à participação ritual no ntideo. Os reg1stros
Os Estados provavelmente favoreciam esses arranjos, impondo sua autorida- edesiâsticos da Europa no secuto XVI indicam que as caravanas se desloca-
de a grupos étnicos concorrentes. No entanto, mesmo nos séculos em que vam livremente de um piso para outro; os registros mostram que as esposas
vinham de mmto longe9,
5. Garci Diez de San Miguel, Visita Hecha a la Pro1 111ma de Cliucmto 11567 J, Lima, 1964, p. A especialização das técnicas tornou-se implícita no próprio padrão de
109.
colónias espalhadas. Os mztmacs eram também responsàveis nas áreas cober-
,. Thierry Sa1gnes, "De la filiauon il la résidence: les ethmes dans Jes va!lécs de la L:1reca1a", tas de ri.rvores pelas taças e pratos de madeira; os que viviam nas praias
Armales. Eco11on11es, Sociértfs, Civilisat1011s (AESC), 33(5-6): 1160-1181. 1978. Trata-se de podiam secar peixes e algas comestíveis, mas também coletavam guano. Em
uma edição esµectal dos Amwles sobre a antroµolog1:1 histónc::t dos Andes, editada por troca, a caravana que vinha das montanhas periodicamente trazia tubércu-
John V. Murra e Nathan Wachtel. los, gêneros bâsicos, mas também carne, lã e outros artigos, mdusive milho
7. John V. Murra, "EI Contrai Vertical de un Máximo de Pisos Ecológtcos en ia Economia de cultivado nos níveis medias. Em algum ponto ainda indetermmado da his-
las Sociedades Andinas", em J. V. Murra (cd.), Formac1011es Eco11óm1cas y Políticas tlel tória andina, o padrão de colonização dispersa sofreu uma mudança qualita-
lvfu11do Andino, Lima, 1975.
,. O!iv1a Harns, "Kinshtp and the Vertical Economy", em lnternat10nal Congress of
9. Freda Yancy Wolf, comumcação pessoa!, com base num estudo de reg1stros cclesiãncos cm
fuli, na província de Chucmto.
Amencamsts, Actes, Pans, 1978. voL IV, pp. I65-177.
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tiva, quando foi ampliado a fim de incluir colónias de artesãos que não esta- colonial. A macro-adaptação. pelo Estado inca, desse antiqüíssimo padrão
vam presos a vinculas ecológicos. Além das "ilhas" periféricas relacionadas andino (atravês de milhares de quilômetros, com milhões de habitantes, no
acima, os Iupacas também registravam uma aldeia de ceramistas e outra de terrítórío ocupado hoje pelas cinco repúblicas andinas) desintegrou-se tão
metalurg1stas. Cada linhagem das sete províncias mantínha um representan- rapidamente apôs 1532 que hoie é extremamente difícil reconstítui-la.
te nas aldeias especializadas, várias centenas de artesãos no totaJ. Contudo. essa dimensão mãxima e importante para compreender as
Os padrões de colonização dispersa constituiram uma característica do mudanças que o padrão sofreu quando a comunidade política controladora
território andino que os europeus logo observaram. Em 1538-1539, cínco ultrapassou uma escala de cerca de vinte mil famílias. Inicialmente, o Estado
anos após a invasão, as enconuendas outorgadas por Pizarro segmam esse seguiu as normas andinas correntes: suas rendas eram cobradas sobre as ter-
princípio. Ao beneficiârio não era concedida a terra, mas as pessoas dos dois ras cultivadas que tinham sido alienadas das comunidades políticas locais no
senhores locais com todos os que lhes fossem sujeitos. por mais salpicados modelo "arquipélago". Essas terras do Estado eram cultivadas pela população
(espalhados) que estivessem por todo o território. Assim, Lope de Mendieta, local num sistema rotativo em que as linhagens se alternavam. da mesma
um dos primeiros associados de Pizarro, recebeu toda e qualquer estancia de forma que havíam trabalhado os campos de seus senhores étnicos ou do san-
cameHdeos. aldeias agricolas ou pesqueiras que deviam fidelidade a Chuk1 tu.i.rio regional. Vez por outra. os mitmacs do Estado eram transplantados
Champi e a Maman Huillka, senhores dos karancasIO, Seus terrítónos não- para os novos territórios a fim de assegurar ao inca o governo e as rendas.
adjacentes chegavam a situar-se a bem mais de quatro mil metros acima do Mas esse governo amda era "indireto" ; era exercido através dos senhores
nivel do mar e estavam localizados no que são hoje a Bolívia, o Chile e o Peru. "naturais" anteríores aos incas. Não havia qualquer espécie de tríbuto: nin-
Segum-se o mesmo padrão quando se teve de reservar um grupo étnico guem devia o que quer que fosse plantado em seus campos ou que estivesse
para Carlos V: os lupacas, que viviam perto do lago Titicaca, eram conheci- armazenado em suas despensas.
dos como "los yndios dei Emperador". Na década de 1550, o procurador da Nas últimas décadas antes de 1532, o tamanho da admmistração ínca cres-
coroa queixou-se ao vice-rei da concessão, a grupos particulares, de alguns cera tanto que não havia precedente da distância que separava o mideo dos
lupacas da área costeira que trabalhavam em locais distantes de suas residên- locais de trabalho. Quase todo ano, se o mttmac qmsesse reafirmar seu vinculo
cias. Ele argumentava que: com o centro, ou cultuar seus deuses no santuário principal, ou simplesmente
visitar seus parentes, era obrígado a fazer uma caminhada de dez, qumze dias
quando foram outorgadas essas enconuendas pnvadas (. .. ! os governadores [pós- até a terra de origem. Os colonos que foram deslocados durante o domímo
Pizarro I não compreenderam a ordem que regia a vida dos índios. A questão fot inca podem ter chegado a uma distância de sessenta ou mesmo oitenta dias de
levantada quando o marquês de Cafiete governou esses remos e verificou-se que a viagem . .tv!esmo que continuassem a ser incluídos em seu grupo étnico orígi-
informação que forneci era verdadetra f••• ! foi ordenado que tmham de ser devolvi- nal1 mdaga-se que cons1stêncía teria um vinculo como esse.
dos os índios e as terras que a provincia de Chucmto (nome pelo qual os europeus Não hâ dúvida de que foi feita essa tentativa de reportar-se a um prece-
chamavam Lupaca! tinha na região costetra desde a época dos incas 11 dente andino: Don Pedro Kutimpu, um senhor iupaca bem informado,
amda Jovem em 1532. esclarece essa tentativa, enquanto explica as discre-
A mformação fornecida por essas fontes européias documenta melhor os pâncias entre o quipo populacional que está em seu poder desde antes da <
z
padrões de "complementaridade vertical" no plano étnico, pois era essa a mvasão e a contagem por cabeça feita pelas admimstrações coloniais: õ
z
realidade que toleravam e com que lidavam nas primeiras décadas de regime <
~
~
quando esta provincia foi mspec1onada pelos incas, muitos colonos foram contados o
<
10. Manuscrito inédito, LegaJo 658 na seção {ust1c1a, Arqmvo General de Indias, Sevilha. junto com outros nativos dessa µravinem.( ... ! Os colonos podiam estar em mmtos o
~

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11. fuan Polo de Ondegardo, "Informe 1 ... 1 a Licenciado Bnviesca de Mufiatones 11561!", outros locais distantes !.... I alguns no Chile e outros em Quito 1... 1 e Juntos todos eles ~
~
Revista Histórica, Lima, 13:18, 1940. constituíam os vmte mil índios mencionados no qu1po. Mas agora f_1567I esses colo- <
74 75
nos foram concedidos em encom,enda em suas residências distmtas e não foram mais Os mitmacs também foram utilizados pelo Estado, de uma maneíra nova,
contados com os dessa província .. .1 2 para propósitos militares. Não hã provas da existência, no periodo prê-
incaico, de guarnições distantes que trabalhassem em tempo integral, mas
Por quanto tempo podiam esses vinculas e direitos residuais ser exerci- nas décadas anteriores a 1532 a constante expansão e as conseqüentes rebe-
dos efetivamente no grupo étnico ongmal? Remoções do lago Titicaca para liões ex.igiam que as fronteiras fossem guarnecidas em tempo integral:
0 Chile e para Quito parecem um ônus pesado, não importa quantos prece-
dentes tenham sido alegados para fazê-lo. Indícios de uma resposta são ele disse que seus ancestrais foram colocados nesta terra fo vale de Huallagal para pro-
encontrados na freqüência de rebeliões contra os mcas 13 e na pronta adesão. teger a fortaleza de Colpagua, que fica nas florestas do leste, e as fortalezas eram tres,
após 1532, de muitas das comunidades políticas locais aos europeus. !vias uma chamada Colpagua, a outra Cacapayza, e uma Cachaypagua e uma outra !_sicl
nenhum informe de queixas a respeíto disso chegou até nôs de testemunhas Angar. e os colonos mencionados e os antepassados do narrador foram tirados dos vales
da invasão. próXJmos a Cuzco e baseados nos menc10nados fortes, tnnta homens casados em cada
O que podemos asseverar é que o Estado inca deu continuidade as colo- um. E aqueles que guardavam as fortalezas não tmham campos plantados, uma vez que
mzações complementares nos Andes, mesmo que as novas dimensões não podiam cu.!ttvar ali de modo que receberam essa cidade fGuarapa! onde outros
tenham implicado dificuldades. Novas funções também foram conferidas membros de seu grupo plantavam e supnam a subs1stênc1a dos que guardavam IS
aos mitmacs: da mesma forma que os 1upacas mantinham aldeias de artesãos
especializados, o Estado controlava uma instalação manufatureira perto de É possível talvez identificar outros empregos tardios dos mitmacs para
Huancanê, situada na margem nordeste do lago TiticacaM. Congregava "um propósitos não-agrícolas, mas os prolongamentos militares e artesanais da
milhar" de tecelões e "uma centena" de ceramistas. Embora não se deva estratégia "arquípélago" são indício suficíente de que aquilo que começou
aceitar esses números literalmente, as proporções dessas operações do como um meío de complementar o acesso produtivo a uma séne de pisos
Estado inca não devem ser postas em dúvida; as roupas constituíam a mais ecológicos se transformara num oneroso meio de controle político.
importante forma de arte andina, de modo que tmham muitos usos políti-
cos, rituais e militares, exigindo que fossem tecidas para o Estado em Tahuantinsuyo, o Estado inca, não foi a primeira comunidade política
dimensões verdadeiramente industnais para os padrões europeus do sêcu1o multiétmca surgida nos Andes. Nas últímas décadas, os arqueólogos têm
XVI. A tecedura em tempo integrai ocupava grande número de mulheres distmguido vários "horizontes" (períodos em que as autoridades centrais
"escolhidas", separadas de seu grupo êtmco e colocadas em todo centro conseguíram controlar tanto as comunidades das montanhas quanto as cos-
admimstrativo do Estado, onde os soldados esperavam receber recompensas teiras) das eras "intermediárias", em que floresceu o separatismo étnico.
em roupas quando marchavam para a fronteíra. O que hâ de novo com rela- O "Horizonte Primitivo" nos Andes, também chamado de Formativo,
.
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e

3
ção âs oficinas de Huancanê era o fato de os tecelões formarem unidades era centrado em Chavín, um templo localizado a 3 135 metros de altitude
o domésticas; tampouco podemos dizer se esse centro manufatureiro era nas montanhas do leste.; mais conhecido por sua arte relig10sa, o templo foi
z
o úmco ou se constituía uma característica regular da produção inca que per- considerado por Tulio C. Tel10, o decano dos arqueólogos andinos, "a matriz
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o manecera sem regístro. da civilização andina". Alcançou o apogeu de sua mfluência cerca de três mil
anos atrás, 1000-300 a.C., quando inflmu sobre outras colônías da região
12. Diez de San Miguei, La Prol'l11cia de Clmcwto, op. cit., p. 170. montanhosa e modificou as formas de arte costeira; não se sabe ao certo se
13. /ohn V. Murra, "La Guerre ct les rêbcllions duns l'expans1on de l'état mka", AESC, 33(5- tais mfluências significaram dommação. Dona1d Lathrap recentemente res-
6):927-935, 1978. saltou e documentou as raizes amazômcas da arte que Tello foi o primeíro a
H. fohn V. Murra, "Los Olleros del Jnku: Hac1a una Historia y Arqueologia dei Qollasuyu", em
Historia, Problema y Promesa, Hame11a1e a !arge Basadre, Lima, l 978, voL I, PP· 415-423. !5. Omz de Zúãiga, La Provmcm de Le.On, vol. II, p. !97.
77
76
postular. Através das planícies tropicais Chavin pode ter alcançado fontes de •sogotâ
inspiração muito mais antigas na MesoamêricaI6, o 300rnllhas

Não há um consenso entre os arqueólogos sobre o modo como surgiram 500km


esses "honzontes" nos Andes e como acabaram por desintegrar-se. Alguns
sugeriram que o elemento ativo foí o "comêrcio", revigorado por controles
militares que usualmente se originaram nas montanhas; outros detectaram
um zelo religioso por trás da expansão.
O Horizonte Médio estende-se desde antes de 500 a.C. até por volta de
1000 d.C. e estava centralizado em dois locais pelo menos: Tiahuanaco, perto
do lago Tit1caca na Bolívta, e Huan, próximo à atual cidade de Ayacucho no
Peru. Ambos foram verdadeiras colônias urbanas, considerados núcleos de
Estados grandes e de vasta extensão. Há testemunhos de contemporaneidade e
mesmo de contato entre ambos; no começo do seculo. costumava-se conside-
rar os dois uma única comunidade política, cuja capital ficava nas montanhas
do sul. Pesquisa recente sugere que, embora Tiahuanaco e Huari possam ter
exercido sua hegemoma ao mesmo tempo. suas esferas de mteração foram dis-
tintas. Alguns chegaram a sugerír a existência de uma zona-tampão entre
ambos, que se estendia da linha de neve perpétua ao oceanol7. Em seu Peoples
and Cultures m Anc1e11t Peru (1974), L. G. Lumbreras, o eminente arqueólogo
andino. defendeu a tese de que o urbamsmo e o militarismo tiveram inic10
com Huari e aos poucos influenciaram todas as sociedades dos Andes centrais.
É passivei que o impeto de integração inter-regional se tenha originado
sistematicamente nas montanhas, mas os povos da região costeira desértica OCEANO
muitas vezes levavam séculos para desenvolver seu próprio potencial centra-
do no oceano e na irrigação. A maior parte da arqueologia inicial da região
costeira, empreendida por estrangeiros, centrou seu interesse na espetacular
arquitetura com base no tijolo cru, ou nas produções têxteis e cerâmícas, de PACÍFICO
~ que os museus e as coleções particulares em todo o mundo estão cheios. Em
5
a
z
o 16. Cf. fulio C. Tello, Chavl/l, Cultura Matnz de ia Civilizacíó11 A11dirla, ed. Toribío Majía
u

.
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o
<
~
Xesspe, Lima, 1960; John H. Rowe, "Form and Meamng m Chavin Art", em John H. Rowe
e Dorothy Menzel (eds.), Pcruvian Archacalogy, Palo Alto, Calíf., 1967; Donald W .

~ Lathrap, "Our Father thc Cayman, our Mother the Gourd: Spmden Rcvís1ted", cm C. A.
.
~
>
<
<
Reed (ed.), Ongms of Agnwiturc, Haia, 1977, pp. 713~751; Thomas C. Pattcrson, "Chav1n:
Fonte: John Hys!op, lnka Road System: SuNey and General Anafys1s, Academic Press, 1984
u An [nterpretauon of its Spread and Influcnce", em E. P. Benson {cd.), Dumbarto11 Oaks
iil
~
Co11(cre11cc 011 Clwvin, Washington, D.C., 1971, pp. 29~48.
<
< 17. Elias Mujica, comunicação pessoal, 1980. A extensão do lmp6no Inca
78 79
seu gma do tesouro andino do American Museum of Natural History de maram a presença arqueológica, no final do periodo pré-inca1co, de "casas e
New York, Wendell C. Bennett e Jumus B. Bird se referem a "um periodo de lugares secretos" no interior de defesas pesadas que circundavam vmte hec-
artesãos mestres". A arqueologia, nos últimos tempos, tem tentado fornecer tares ou mais. em altitudes acima de quatro mil metrosl9 Quando foi con-
0 suporte organizacional cronológico e sócio-orgamzacionai para tais mani- quistada pelos incas, a população que conhecemos pelo nome de tupaca foi
festações artísticas. Com o passar do tempo, os habitantes das montanhas removida ou deportada "para baixo", para uma altitude de 3 SOO metros, na
podiam, e freqüentemente o fizeram, mterromper o florescimento da região praia do lago. Após a pax mcaica, não havia mais necessidade das muralhas;
costeira mediante o bloqueio ou o desv10 dos canais de irrigação que tra- agora a estrada real atravessava as sete "capitais provmcia1s" dos lupacas,
ziam água das geleiras andinas para as píantações do deserto, mas ê notável a algumas das quais se converteram em centros admimstrat1vos incas. Algu-
freqüência com que os grupos costeiros locais retornavam às tradições anti- mas ocupavam até quarenta hectares de espaço urbano e todas podem ser
gas tão logo o "horizonte" havia desaparecido. discernidas amda hoje. De acordo com o quipo que está de posse de Pedro
Do mesmo modo, nas montanhas, as muitas comunidades políticas incor- Kutímpu. antes de 1532 esse grupo, que falava a língua a1mará, compreendia
poradas ao Estado mca mantinham as distinções étnicas e a consciência de sua vmte mil famílias. O testemunho de seus dois senhores foi registrado, em
própria identidade. A expansão de Tahuantinsuyo fora rápida, mas sô conse- 1567, por um inspetor enviado de Lima para avenguar um boato de que
guiu tal presteza quando absorveu entidades políticas ínte1ras, e não aldeias e esses "índios do imperador" eram muito ricos. O mspetor relatou que eram
vales distintos. Os senhores locais adequaram-se a um sistema de "governo realmente ricos: nos tempos anteriores á invasão européia, haviam controla-
mdireto"; eles é que impuseram e admimstraram a nova ordem. que pode ter do centenas de milhares de camelídeos; mesmo depois de 35 anos de pilha-
parecido menos nova, uma vez que sua ideologia não reclamava mais que gem, um iupaca admitia ainda possuir l 700 cabeças20.
uma pro1eção numa teia mais ampla de padrões existentes de autoridade. Os dois senhores que deram o testemunho governavam Chucu1to, uma
A tradição oral nos Andes concorda com a arqueologia em que o Período das sete "províncias"; eram também senhores ou reis de todos os lupacas21,
Intermediário Tardio, os séculos imediatamente anteriores á expansão mca, Cada uma das outras seis "provincias" tmha seus próprios líderes, em mi-
unha sido almca nma (tempo de soldados): mero de dois, um para a metade supenor e outro para a inferior. A diVIsão
dual era uma caracteristica quase umversal da organização social andina;
as cidades foram despovoadas 1_ ••• j temendo a guerra. eles tiveram de abandonar os não hã razão para atribui-la a urna influência inca.
bons lugares mencionados. f_ ••• l Foram forçados a mudar de suas cidades para os Os laços de família eram o principio orgamzador nas quatorze subdivi-
lugares mais altos e agora vivem nos picos e nos despenhade1ros das aitas monta- sões. Cada metade era constituída de cerca de dez a qumze hatha. termo as
nhas. Para se defender, tiveram de construir fortalezas 1.••• ! defesas e muralhas; as vezes traduzido por "linhagens", Como os notários e escrivães europeus pre-
casas e os lugares secretos ficavam dentro. f ••• 1 feriam a termmologia quichua de Cuzco, eram reg1stradas usuatmente com
<
Lutaram e houve mortes l---1 fizeram pns1oneiros, mesmo as mulheres e as cnan- o nome de ayllu. O debate em torno da natureza e das funções dessa unidade
ças. Tomaram as terras uns dos outros e os canais de trngação e as pastagens 1.••• ! atC saciai tem uma longa históna nos estudos andinos, tanto quanto os calpulli
as pedras que haviam usado para moerl8 na Nfesoarnefica. Cada hatha lupaca era uma unidade dotada de um nome;
podia ter terra e rebanhos, mas também o tiveram o conJunto do remo, cada
No Período Intermediário Tardio cada região produzia artefatos nitida- metade e cada uma das sete comunidades políticas. Cada uma tmha suas
mente distmtos, isentos de manifestações pan-andinas, como a Tiahuanaco
ou Huari dos primeíros tempos. Pesqmsas na região do lago Titicaca confir- "· iohn Hysiop, "EI Área Lupaca Ba10 cl Dommm incmco: Un Reconoc1m1ento Arqueológi-
co", Histonca, Lima, 3(1 ):53-80, 1979,
20.
ia. Felipe Guaman Poma de Ayala, Nuewi Coromca y Buen Gobiemo 116151, México, 1980, PP· Diez de San Miguei. La Provmcm de Clmcwto, op. ctt., pp. 303-363.
2!.
63-64. John V. Murra, "An Aymara Kingdom m 1567", Etlmohistory, 15(21:115-151. 1968.
80 81
prôpnas autoridades; cada uma compreendia famílias da população aimará nos documentos dos processos judiciais que seus senhores entregaram a
dominante e dos oprimidos pescadores uros; não podemos dizer na prática Audiencia de Charcas; durante urna década ou mais, a admínístração colo-
quanto sucesso teve esse esforço ideológico em reunir pessoas de classes dis- nial incentivou petíções desse tipo por motívos própnos. Essas reclamações
tintas num úníco grupo familiar22, de antigos e novos privilégios compreendiam as recitações de genealogias
Não há mformação sobre santuânos lupacas, porque a inspeção f01 reali- pelos mantenedores amda ativos dos registros de nós. Um desses reclaman-
zada logo depois da conversão dos senhores tupacas ao cnsttanismo. Foram tes relac10nou os nomes de seus antecessores, mclusive um que "prestou
advertidos a não adorar os pícos de montanhas cobertos de neve; foram obediência" ao Inca quatro gerações antes. Em troca havia recebido uma
tambem proibidas as peregrinações aos monumentos erigidos no passado esposa da corte, e seu filho Moroco foi induido na genealogia como "Inca":
nas cidades pré-inca1cas muradas. Em 1567, amda havia uma minoria de Juntamente com a esposa vieram artigos de vestuáno tecidos pelos artesãos
ncos donos de rebanhos que permaneciam sem batismo: sabe-se que alguns do rei e o privilégio de usar urna lite1Ia.
dos xamãs e sacerdotes aimarâs foram mantidos num campo de concentra- Outra relação especíal entre Cuzco e os senhores aimarãs foi seu papei
ção perto do 1ago, fazendo trabalhos de fiação, mas o segundo bispo de militar. Tá no mícto da expansão de Tahuantínsuyo, seus exércitos eram
Charcas, frei Dommgo de Santo Tomás, ordenou que fossem libertados. recrutados sob o mesmo principio da ,mta que mobilizava energias para os
Autor do pnmeiro dicionário e gramática da língua quichua, o bíspo fazia outros serviços públicos: homens e mulheres marchavam para a batalha alter-
parte do Conselho Real das índias, mas foi tambêm confidente de Bartolome nadamente, ayllu por ayllu, um grupo étnico apôs outro. Vinham equipados
de Las Casas; argumentou que os xamãs não podiam ser mantidos pnsione1- com suas armas tradicionais, liderados por seus próprios senhores étnicos.
ros, pois nunca haviam sido convertidos e assím não eram apóstatas. Nada disso os livrava dos muitos outros serviços que deviam a Cuzcozs,
Existem algumas mformações sobre templos do culto ao sol construidos Em algum momento da h1stóna de Tahuantinsuyo, essa mita deve ter
pelos mcas em territórío lupaca. Uma parte da "província" dos yunguyos foi parecido ineficiente: os senhores aimarás alegaram, num memorando dirígido
expropriada e nela foi erguido um centro de peregrinação. Membros das a Filipe II, que a habilidade e a lealdade militares de seus ancestrais haviam
linhagens reais de Cuzco foram reassentados em Copacabana e nas ilhas sído recompensadas e, assim, estavam livres de todas as outras obrígações:
imediatamente próximas da praia23, No final do século XVI, a IgreJa euro-
péia decidiu reutilizar este centro de peregrinação; está em uso ainda hoje. éramos apenas soldados l, .. ! dispensados do tributo( ... ! e de todas as outras taxas e
Os lupacas são a mais conhecida dentre as muitas comunídades políticas serviços pessoais, como do pastorem i. ... l ou de servir a mita na corte, na grande
dos aimaràs que, no período pré-incaico, surgiram no altiplano maís eleva- cidade de Cuzco, ou de ser pedreiros, tecedores de roupas r: ... I e de cultivar a terra,
do. Outras dessas comunidades estão agora sendo estudadas e suas propne- do trabalho de carpmtana ou nas pedreiras - as pessoas se acostumaram a mover
dades ruraís, inclusive as localizadas na regíão costeira desértica da" Chile, um morro com as mãos para algum outro lugar. 1.... [ Não éramos nem dançarmos,
foram mapeadas24 , Suas tradições orais foram ocasionalmente registradas nem palhaços acostumados a cantar canções de v1tóna para os chamados ingas ... 26

22. O estudioso que mais deu atenção aos laços de família entre os antigos andinos e sua Não podemos dizer quais as conseqüências desse serYiço militar prolongado
mampuiação pelo Estado foi R. Tom Zuidema. Ver Tlw Ceq11e System ofCuzco: The Social sobre a produção dos meios de subsistência da população aimarã que haVIa
Orgamzatlo11 of the Capital of the foca, Leídcn, 1964, e "The Inca Kinship System: A New ficado para trás. Em outras localidades dos Andes, os remanescentes na
Theoret1cal View", cm R. Bolton e E. Mayer {eds.), Andean Kinsliip and Marrwge, "pàtna" êtmca eram obrígados a trabalhar as terras dos soldados, mas as lon-
Washington, D.C., 1977.
23. 25. Wa!demar Esptnoza Sonano, "E! Memona! de Charcas: Crõmca Inédita de 1582", Cantuta
Ver Adolph Bandelier, The Islar1ds ofTiticaca and Koati, New York, 1910.
24.
Tnstan Platt, "Mapas Colomales en la Provmc1a de Chayanta", em Martha Unostc de (Revtsta de la Umversidad Nac1onal de Educación), Chos1ca, Peru, 1969.
26. Murra, citado em ªLa Gucrre et ies rébe!lions", pp. 931-932.
Agmrre (ed.), Eswdios Bolivmr1os en Honor a Gmmar J,,,fe11doza, La Paz, 1978.
83
82 É documentável o fato de que no periodo pré-coiomal a língua aimará
gas ausências, que ultrapassavam o calendário agrícola, devem ter constringi-
do os mtercâmbíos baseados no parentesco mas politicamente explorados. f01 mmto mais disseminada do que hoje. Os moradores de Cuzco amda cha-
Tampouco podemos dizer até que ponto a divisão dual de todo o altipla- mam os habitantes do planalto, ao norte do lago Titicaca, de collas (aima-
no numa urcusuyo (a metade montanhesa) e uma wnasuyo (a metade aquá- rás), mesmo que tenham passado a falar o quichua. Não deve ser mmto difí-
tica) refletm a realidade aimarâ ou, mais tarde, a inca. A dicotomia parece cil averiguar quando ocorreu essa mudança e sob quais condições históncas,
ter sido mais acentuada na região do lago Titicaca. É passivei que. nesse mas a escassez de estudos filológicos em 1980 ainda nos restringe a conjectu-
local, tenha havido um substrato lingüísttco por trás do dual, pelo qual os ras. Muítos dos vales do Pacífico no que são hoJe o Chile e o sul do Peru
habítantes da metade do leste falavam pukina em vez de a1marà. Infeliz- eram habitados por falantes do aimarâ; no inicio do secu1o XX. as cidades
mente, o filtro mca atravês do qual muitos examínaram as questões andinas situadas na latitude de Lima, na província de Yauyos, falavam kauki. um
ainda não permite o deslindamento do contexto étníco do dualismo. É pos- dialeto aimará29.
sível que. originariamente, as metades tenham ocupado o centro ou se Os europeus chamavam a língua dos incas de quichua, derivando o
"encontrado" no lago Titicaca, uma zona "neutra" com seu mícroclima pró- termo da palavra quichua, "vale". Os próprios incas chamavam-na de nma
prio. Pode ser que urcos e umas se tenham reorganizado quando Cuzco se simí. "a língua do povo", expressão usada ainda ho1e pelo falante nativo; não
tornou o m.ideo27 • Quando os europeus os encontraram pela pnmeira vez, é encontrada no discurso do europeu e do literato. Antes de 1532, o quichua
ambos estavam ntuai e admimstrativamente mduidos no mesmo setor sul, era a língua da administração e era entendida por muítos bilíngües; docu-
o collarnyo, o setor de maior densidade popu1ac10nal do Estado inca. mentos coloma1s chamam-na de lengua generaí (o aímará e o pukina às
O componente "aquático" da divisão dual do planalto e tambem discer- vezes são também designados dessa forma). O lingüista Alfredo Torero
nível na presença entre os aimarâs de uma mínoria ocupacional e étmca, tal- sugeriu que o quichua tena sido outrora a língua da costa central, de onde se
vez mesmo uma "casta" de pescadores uros. A real importância de sua pre- teria espalhado antes e depois dos incas3°. Variantes que se entendiam
sença está-se tornando mais clara graças a recente pesqmsa28 , No período mutuamente eram faladas desde o que é hoJe o Equador, ao norte, até
colomal. os pescadores aos poucos se juntaram às fileiras a1marâs, mas a atn- Tucumân, ao sul. A distmção entre os habitantes do altiplano e os do vale
buição a eles de língua pukina e o sentimento dissemmado de que eram os foi fundamental na classificação étmca andina; essa distmção era aparente-
ocupantes nativos dos altos Andes exigem uma confirmação arqueológica. mente confundida pelos europeus com línguas diferentes.
Correlac10nar a informação histórica com a escavação arqueológíca é
uma abordagem que só foi usada ocasionalmente nos Andes. Mmtos dos Pouco trabalho arqueológico foi feito com seriedade na região inca cen-
enigmas da históna andina são menos macessíveis do que pode parecer. tral: o vaie de Vilcanota e a área em volta de Cuzco. Tohn Howland Rowe
Ainda existem continuidades nos modos de vída e nas línguas, apesar dos deu .micio ao estudo científico dos predecessores dos mcas31 , mas atraiu
450 anos de domimo colomal; remontam até mesmo ao periodo prf-íncai- poucos discipulos.
co. Tanto as tradições orais dinâsticas quanto as demóticas são pelo menos O que se pode afirmar com alguma segurança e que, depois de longo
parcialmente disponiveís nos reg1stros de testemunhas oculares e adminis- periodo de conflito que separou o "Horizonte Médio" do Tardio ou Incaico,
tradores europeus; se fossem comprovadas e ampliadas com a ajuda da Cuzco deixou de ser, no sfrulo XV, o núcleo de uma comunidade local para
arqueologia. poder-se-ia dispor de uma versão mmto mais sólida, embora
29. Martha Hardman de Bautista, Jaqaru: Ourli11e o( Plw11otog,cai arid Morphaiogtcal Structure.
menos sensacional. da sociedade andina.
Haia, 1966.
27. Thérese Bouysse·Cassagne, "L'Espacc aymara: urco et uma", AESC. 33(5-6):1057-1080, 1978. 30. Alfredo Torcro, El Queclma y la Historia Social Andina, Lima, I974.

2s. Nathan Wachtel, "Hommes d'eau: !e probleme uru (XVIe-XVIIc siCdes)", AESC, Jl. Tohn H. Rowc, An Introduct1011 to the Arclweolagy of Cuzco, Papers af the Pea/Jody Museum,

33(5-6):1127-1159, 1978. 28/2, 1944.


85
84 tude de quatro mil metros. Em ocasíões cerimoniais, esperava-se que os
tornar-se um importante centro urbano, capital da Tahuantinsuyo descnta
pelos europeus. Não era apenas o coração adminístrativo do remo inca, mas forasteiros deíxassem Cuzco.
tambem um centro cerimonial. onde eram sacrificadas dianamente uma Não existe um consenso acerca da extensão da intervenção de Cuzco no
centena de peças de roupas finas e um grande número de sacerdotes jejuava governo dos grupos étnicos incorporados. Inimigos do vice-rei Francisco de
enquanto observava de seus observatóríos-palácio os movimentos do sol. Toledo (1568-1581), que parecia um Inca, retratavam os senhores êtnícos
Seus calendános oficiais não são tão bem compreendidos quanto os dos tradicionais como "tiranos", o que no espanhol quínhenttsta significava que
maias, porque os resultados das observações não foram registrados em eram burocratas nomeados "ilegítimos", enviados da capital real e, nesse
pedra. masi mmto provavelmente, tecidos em material têxtil perecivel3 2 • sentido, não eram de modo nenhum "governantes naturais", Foi aventado
A capital estava situada na encruzilhada de estradas reais, que apresenta- também que os incas esgotaram os membros da família real passíveis de ser
vam vinte mil quilômetros ou mais de extensão e a ligavam ao Chile, ao designados administradores regionais e acabaram no final por elevar à con-
oceano Pacífico e, ao norte. â linha do Equador. No estudo que se fez da dição de inca os habitantes teais de determinadas aldeias vizinhas de Cuzco.
diVisão do território em quatro partes chamadas suyo, que por sua vez eram Conhecidos pelo nome de allicac (os que foram melhorados, promovidos):
subdivididas, sugenu-se que cada "linha" que se irradiava a partir do centro
cerimonial ligava membros da família real aos santuãnos dos quais eram os eram os filhos mais velhos dos papns e chillques; estes eram inspetores enviados por
patronos33, A maioria das linhagens reais V1viam com seus partidários na todo o remo para fiscalizar os centros admm1strattvos e as tecelãs e os depósitos de
cidade ou nos povoados prôximos. Garcilaso de 1a Vega, que nasceu em mercado nas I_ ... I alguns (outros [ eram de Quilliscach1 e de Equeco .. .3 6.
Cuzco alguns anos depois da mvasão européia, nos dá uma descrição nostál-
gica da cidade natal de sua mãe inca, escnta, muitos anos mais tarde, no exí- Há indícios de que. em algumas regiões rebeldes, especialmente na costa,
lio em Anda1uzia34, mas. apesar do recente esforço de um década patrocina- os incas realmente designaram "governadores" para substituir o "senhor
do pela Unesco, não foi possível traçar nenhum mapa de Cuzco, seja arqui- natural", Usualmente eram parentes dos "rebeldes", ou membros da peque-
tetônico seja sociológico, semelhante ao que f01 feito para Tenochtitlán, a na nobreza vízínha cuja hegemoma regíonal Cuzco desse modo endossava 37 ,
capital asteca35. A maior parte de nossas informações, no entanto, provém das montanhas,
Não está claro até que ponto os grupos étnicos incorporados pelos incas visto que a população costeira desapareceu logo depois de 1532: nas monta-
estavam representados em Cuzco. Temos mformações de que era obrigação nhas os governantes locais pertenciam â comunidade étnica que governa-
dos chimos, uma comunidade do litora1. enviar para a capital artesãos e vam. Compreendiam o que era exigido deles, pois, pelo menos teoncamen-
mulheres. Quanto aos artesãos de prata, em 1542 um frade europeu ainda te, prevaleciam os padrões prê-inca1cos. O traço andino extremamente
registrou sua presença na cidade. O rei de Chimo não tinha obrigação de ímportante que caractenzava esses padrões era que a despensa do aldeão
<
~
fornecer tropas, pois os soldados da costa eram considerados pouco confiá- permanecesse mtocada. Na verdade, agora ele tinha não só de encher os
5
o veis e provavelmente tambem estavam despreparados para lutar a uma alti- armazéns de seu senhor e do santuário local, mas também de produzir ren-
z
ou
das para o Estado, trabalhando em suas terras hà pouco expropriadas ou
.
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o
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e
32. Tohn V. Murra, "Cloth and ns Functton m the inca State". Amencan 1lntllropolog1st,
64(4):710~728, 1962.
recém-irrigadas e pastoreando os rebanhos de camelídeos do Estado.
Não obstante, exístia uma burocracia "federal", seus membros eram
; designados para grandes centros admimstratlvos como Huillka Huaman,
.
~
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-<
<
33.

34.
Zuidema, Ceque System.
Gardlaso de la Vega, ''El Inca", em Primera Parte de los Comemanos Reales [16041, Huri.nuco Pampa, Pana ou Tumi Pampa, todos erguidos ao longo da estrada
u Madrid, 1960.
~
~
35. O melhor mapa de como çiode ter sido a cidade antes de 1534 está em Santiago Agurto 36. Guaman Poma de Ayala, Nueva Coromca, µ. 363 13651.
"<< Caivo, Cusco: La Traza Urbana de la Ciudad Inca, Cuzco. 1980. 37. Ort1z de Zúi'iiga, La Provmcw de Léon, vol. II. p. 46.
86 87
real. Desses apenas Huânuco Pampa foi estudado em detalhe: abrangia se algum senhor étnico I cacique prmctpalj tentasse opor-se e rebelar-se, eles o mata-
quase dois quilômetros quadrados e contmha até cinco mil residências e vam e a toda sua linhagem, de modo que não restasse nmguem. Quando os incas
palácios, além dos quase qumhentos armazêns. É provâvel que a cidade ainda viviam, essa testemunha era Jovem e viu um pouco disso e o resto ouvrn de
tenha abrigado de doze a qumze mil habitantes, a maioria dos quais presta- seus pats e de outros homens velhos que falaram sobre isso. Esses eram fatos bem
vam serviço de mita no seu turno; mas alguns vivíam aí em base maís per- conhecidos ... 39.
manente: as mulheres dos acllalmasz que tecíam e cozmhavam, os guardas
idosos, funcionãrios responsãveis pela manutenção dos armazéns, especialis- Nenhuma crônica européia precisou em termos tão explícitos a articula-
tas religiosos38 _ Quantos desses eram "incas", fossem membros das linhagens ção dos senhores étnicos com o Estado. Outra testemunha mais velha que a
reais. fossem allicac? Um escritor andino como Guaman Perna afirmava que pnme1ra, chamada Xagua e com experiência em "servir" em Cuzco antes de
seus parentes que não pertenciam á realeza chegaram a ocupar esses postos 1532, explicou ao inspetor europeu que, quando o senhor local morna:
"federais" nos centros admmistrativos.
Quaisquer que tenham sido as suas proporções ao longo da estrada, fun- se ele tivesse um filho crescido, capaz de governar, ele não ousava assumtr o governo
cionârios reais "ínspec10navam" os senhores provinciais submetidos e seus sem antes 1r pessoalmente a Cuzco, para receber a aqmescênc1a dos mcas e o assento
territórios. As melhores informações sobre seu relacionamento provêm de 1tianal para seu cargo; então o Inca o concedia. E se o filho era uma criança sem
uma inspeção feíta em 1562 aos chupaychos, um pequeno grupo étnico que condição de governar, eles o levavam a Cuzco e em seu lugar mdicavam um parente,
vivia no vale de Huallaga. a cerca de dois dias de viagem de Huànuco Pampa. o mais próximo do senhor faíecido, para governar em seu lugar, e isso ele fazia
Entrevístados em sua própna região, declararam que antes de 1532 existira: enquanto vivesse e eles não o destituíssem ...

um senhor mca que governava dez mil famílias ... l_e ! que vmha inspectoná-Jas um Outra testemunha em idade avançada podia lembrar-se do periodo antenor
vez por ano I ... ! e se achasse que o senhor focal ou uma autoridade menor era culpa- ao dominio inca e se referia aos tempos
da de cmco faltas muito sérias como a de não ter obedecido ao que o representante
real havía ordenado antes que os mcas chegassem a essas terras. Quando um senhor morria, eles conce-
ou diam a autoridade a outra pessoa que fosse cora1osa, não a davam ao filho. Depois
a de ter querido rebelar-se ou que os mcas passaram a governar, ele ouviu faiar que sucediam de pai para filho ...
a de ter sido negligente no recolhimento e remessa do que era devido ou
a de não ter realizado os sacrifícios exigidos três vezes ao ano ou Nesse caso. as testemunhas confirmaram o que alguns escritores euro-
peus tambem haviam registrado sobre a prática pré-incaica: uma mudança
a de ter ocupado as pessoas na tecelagem a seu próprio serviço ou
a de ter feito outras c01sas que mterfenam com o que deviam fazer e por outras c01- da "escolha do corajoso", nos chamados afwca rima, tempos militares, para .
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sas semelhantes. Se cometesse cmco faltas, eles lhe tiravam seu cargo e davam-no a uma maior ngídez nas linhas hereditárias·IO. 2
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seu filho, se tivesse um capaz, e se não, davam-no a seu trmão ou ao parente mais As testemunhas do vale de Huallaga não entraram em detalhes sobre o ~
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prox1mo ... censo que as autoridades de Cuzco realizavam em suas "inspeções"_ Perio- .
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dicamente, as famílias eram contadas e os resultados amarrados com nôs ao õ
z
"· Cra1g Morns, "Reconstructmg Patterns of Non-Agncultural Producuon m the Inca Eco- registro qmpo. Segundo Guaman Poma, os homens e as mulheres eram dassi- <
;2
nomy". em Charlotte B. Moore (ed.), Reconstructmg Complcx Societies, Cambridge, Mass.. e
<
e
1972; Itlem, "Tecnoiogia y Orgamzación Inca der Almacenam1cnto de Víveres en la Sierra", "· Ort1z de Ztifüga, La Provmcia de Lcon, vol. II, pp. 45-49. w
ü

<
em Heather Lechtman e Ana Maria Soidi (eds.), R1wakiwap Kawsay11rnlwpaq_
R11rasqm1kunaqa, México, 1981, pp. 327-375.
·10. Tohn V. Murra. "La Vistta de 1os Chupachu como Fuente Etnológ1ca", parte II: Las Autori-
dades Étnicas Tradicmnales", em Ort1z de Zúiiiga, La Provmcia de Lcon, pp. 381·406.
.
~
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88
ficados em dez grupos etários41 . O censo era concom1tante com o reconhec1- 89
São vagas as informações sobre uma intervenção mca em questões da
mento pelo Estado dos casamentos recentes: os novos casais entravam agora
vida quotidiana local que poderia ter desafiado a autoridade. Uma testemu-
nas listas por direito própno. Nenhuma pessoa solteira, qualquer que fosse sua
nha afirmava que:
idade, devia semços pessoaís de mita: eia ou ele eram induidos como parte da
família de alguém. Transformar o casamento, um nto familiar de passagem,
nas causas c1v1s, se um havia invadido as terras de outro e esse reclamasse, quando 0
num artifício político for uma caracteristica da ideologia polítíca inca42,
mca vmha mspec1onar a região, ele investigava a questão e prestava assistência devol-
Há mdícios de que no final do periodo mca foi feito um esforço no sentí-
vendo a terra ao queixoso e punmdo o invasor. O mesmo podia ser fetto pelo senhor
do de ir além do principto étnico, cujo reconhecimento havia regido as rela-
étnico na ausencia do inca ...
ções do Estado com suas unidades integrantes. Foi introduzido um vocabu-
lário admimstrativo, vinculado ao arranjo decimal dos nós nas cordas quipo.
A última cláusula é sob alguns aspectos a mais importante. Mmto antes
Àgora, os senhores étnicos e suas "provincias" podiam ser reg1strados no
dos mcas, mas tambêm hoje, o líder étnico nos Andes confirmava anual-
censo como tantos milhares, centenas e mesmo como grupos menores de
mente os direitos das linhagens e famílias ás terras. Embora os representan-
família. Dizia-se que os senhores de Huanca governavam 28 unidades de mil
tes do Estado possam ter alegado que agíram quando foram chamados,
ou lrnaranca; os de Lupaca, vinte. Xuka Condor, no Huallaga supenor,
segundo nossa V1São do Estado inca as decisões locais sobre as parcelas agri-
registrava apenas três pachaca de cem famílias cada, enquanto o vizmho rio
colas permaneciam em mãos étmcas.
abaixo, Pahucar Guaman, afirmava ter governado quatro lwaranca.
De acordo com testemunhas do vale de Huallaga, Cuzco introduziu algu-
Não se sabe ao certo até que ponto esse esforço decimal ultrapassava a
mas limitações à autoridade do senhor étmco na decisão de questões de vida
prática do censo, interferindo na administração efetiva dos grupos étmcos
e morte. Em casos de assassínio, diz uma testemunha:
submetidos. Evidentemente, não haVIa dispositivos burocráticos que pudes-
sem manter unidades sociais e étnicas dentro de padrões decimais rígidos.
eles traziam o acusado a presença dele [do inca ( e perante o senhor locaJ, em praça
Quando o material de Huallaga foi liberado para estudo, foi possível utilizar
pública, as testemunhas 1.••• [ descreviam o cnme (... j e se ele tivesse assassinado mas
os mimeros casa-por-casa para mostrar que um pachaca correspondia a um
houvesse uma explicação, eles não o matavam mas o puniam com chicotadas f••• ! e
grupo de cinco aldeias v1zmhas 43 • Mesmo em 1549, após uma resistência de
obrigavam-no a sustentar a viúva e os filhos ...
dez anos aos europeus, as cmco registravam uma população de 59 famílias.
Treze anos mais tarde, esse ntimero voltou a crescer para um total de 75.
Não é possível determinar a freqüência com que se realizavam tais V1agens
Um estudioso sueco, Ake Wedin, vmculou o surgimento do vocabulário
de "inspeção". O escritor andino Guaman Poma afirmou que ocornam a
decímal às necessidades militares. Se isso for correto. sena de esperar que
cada seis meses: as testemunhas acima cttadas, uma vez por ano. Se for verda-
fosse usado com mais freqüência entre os aimarás, nos Àndes meridionais.
de, tal freqüência teria exigido de Cuzco uma grande equipe de retaguarda,
No entanto, descobrimos que é usado maís amplamente no norte, onde
do que não hã provas imparciais. Até onde e possível uma reconstituição, a
alguns acreditam que os mcas tê-lo-iam adaptado a partir de prática local 44,
política era decidida no topo e anunciada em reuniões públicas realizadas no
Guam:m Poma de Ayala, Nneva Coromca, pp. 196-236.
usno. construido em cada um dos grandes centros admm1stratlvos de dimen-
n. John V. Murra, The Eco1101mc Orga111zat1011 o{ t/le lnka State, Greenwich, Conn., 1955;
sões urbanas ao longo da estrada real. A implementação de qualquer política
parece ter sido deixada nas mãos dos líderes étnicos locais familianzados com
reimpresso em 1980, p. 98.
o sistema, que decidiam a quem cabia a vez de servir a mita na execução de
Gordon 1. Hadden, "Un Ensayo de Demografia Histônca y Etnológica en Huánuco", em
determinada tarefa. Foi dada como certa a capacidade da autoridade étmca
Ortiz de Zúiiiga ! 1562!, La Provmcta de Leon, vol. í, pp. 371-380,
H.
de mobilizar e controlar grandes números de cultivadores, construtores ou
lohn H. Rowe, "The Kingdom ofChimor", ActaAmencana, México, 6{1·2): 26-59, 1948.
soldados, e isso foi provado nos primeiros dias da mvasão européia quando
90 91
Pizarro ou Benalcazar contaram com seus aliados para recrutar tropas e car- O encarregado dos registros tinha permíssão para proceder da maneira
regadores, sem os quais a mvasão não teria tido sucesso. que qmsesse. Em pnmeiro lugar, ele relacionou oito obrigações devidas á
A diversidade de tarefas abrangidas pela mita pre-hispâmca era mmto coroa mca em Cuzco e fora deJa. Devia-se enviar «quatrocentos indios" para
grande. Temos um relato, até agora úmco, datado de 1549, que afirma ter rela- a capital, a cerca de sessenta dias de viagem de suas casas, "para fazer
cionado as tarefas que um tinico grupo étmco, relativamente pequeno, devia a muros". Outros quatrocentos deviam plantar, produzmdo alimento "para os
Cuzco 45 , Esse registro foi feito apenas sete anos depois que os chupaychos do ausentes", Mesmo que se admita a possibilidade de que o número 400 se
vale de Huallaga foram colocados sob o domimo europeu. Os informantes refira a ambos os sexos, mesmo 400 pares ou casais tirados de quatro mil
amda usavam o vocabulário decunal para descrever a organização local. famílias e uma percentagem mmto alta da população chupaycho total. Se
Quando os interrogadores quiseram saber o que as "4 mil" famílias haviam todos os grupos étnicos enviassem a Cuzco efetivos tão altos, não haveria
"dado" ao Estado, Pahucar Guaman e seus pares responderam lendo um quipo lugar, fisicamente, para ficarem. Uma saída fácil e admittr um erro na tradu-
de cerca de 25-30 cordas. É bastante provãvel que o reg1stro esteJa incompleto; ção ou na cópia. uma vez que o intérprete era um habitante local cuja arit-
os totaís alegados parecem muito altos e não são confirmados por nenhuma mética em espanhol poderia não ser muito precisa. Pode muíto bem ser que
outra fonte disponível. No entanto, a falta de uma amostra não nos deve impe- os quatrocentos pedreíros fossem os mesmos quatrocentos que realizavam o
dir de usá-ío, se não quanto aos nllmeros citados. que podem simplesmente ter cultivo, pois mmtas vezes as pessoas enviadas em suas tarefas de mita
sido traduzidos de modo mcorreto. pelo menos no tocante ás categorias étm- tinham de plantar o próprio alimento. Outra explicação sena admítír que os
cas que os quipos utilizavam para agrupar ttpos de obrígação. No mic10 do senhores tmham aigum motivo para exagerar suas obrigações no periodo
periodo colomal, os tribunais europeus, mesmo as audicnczas reais, aceitavam ínca. Essas oito cordas induiam também as pessoas que guardavam a mtlmta
prontamente testemunhos sob Juramento com base no quipo. Uma testemu- do rei Thupa; outros serviam em guarníções que enfrentavam o rebelde
nha que chegou aos Andes como corneteiro de Pizarro relatou outro caso: Extremo Norte.
As dez ou mais cordas segmntes referiam-se a obngações executadas em
os índios deste pais mantêm registros e contas das c01sas que dão a seus senhores f.•• 1 lugares mais próximos da residência, dentro do território disperso que os
usando o que chamam de qmpos; tudo o que é dado lmesmo que! mmto tempo atrâs chupaychos controlavam, no que e ho1e o departamento de Huãnuco. Elas
também está reg1strado lá. E essa testemunha sabe que os ditos qwpos são mmto pre- abrangiam o pastoreio dos camelídeos do Estado, a tecelagem da sua lã e a
cisos e verdadeiros, pois em multas ocasiões diferentes a testemunha confenu algu- coleta de "terras e cores" para seu tingimento. Três cordas enumeravam a
mas das contas que havia feito com os índios, reg1strando coisas que eles haviam mineração de sal e a colheita de pimentas fortes e de folhas de coca. A corda
dado e lhe deviam e outras que ele lhes havia dado. Achou que os quipos mantidos 13 referia-se ao principal piso da região dos chupàychos, o largo leito do
peios ditos índios eram muito precisos... 46 Pilcomayo, o rio hoJe conhecido como Huallaga. Aqm o povo de Pahucar
<
~ Guaman forneceu quarenta "índios" que:
5
e,
z As duas pnmeíras cordas lidas em 1549 pelo contador de Pahucar Gua-
o guardavam os campos que eles [os mcasl tinham por todo esse vale e o milho (colhi~
u man estavam provavelmente fora de ordem; haviam-lhe perguntado se eles
<
o do! segma prmc1palmente para Cuzco, mas também para os armazéns (no centro
Unham mmas e, se tmham, que dissesse quantos "índios" estavam "jogados"
admimstrat1vo de Huânuco Pampa, a dois dias de v1agem1 ... .i:1
nas mmas de ouro. À resposta foi três homens e três mulheres de cada
pacfiaca, cem famílias; cada um servia por um ano.
Essa e a Limca referência no quipo a terras tomadas pelo Estado no território
Orttz de Zúfüga, La Provmcia de León, op. cit., voi. II, pp. 289~310. dos chupaychos.
Waldemar Espmoza Sonano, "Los Huanca Aliados de ia Conquista {1560!", l!m Analcs
Cientificos de Ia Umvcrsidad dei Centro, Huancavo. I:367, 197l~I972.
Ortiz de Zúfiiga, La Provmcia de Le611, op. ctt., vol. II,{). 306.
93
92 encerra a doação ou o "pagamento" de qualquer coisa com seus próprios
As cordas 17-20 constituem uma macrocategoria de hábeis artesãos que
tambern haviam permanecido na região em que habttavam. Uma delas se recursos - se não contarmos as terras expropriadas 1mcialmente e agora
referia aos batedores para a caça real, outra aos fazedores de sandálias, outra cultivadas em benefício do Estado, da coroa e do Sol.
a "carpinteiros que fazem pratos e tigelas" nas áreas de madeira rio abaixo Havia, no entanto, uma exceção: as cordas 8 e 9 se referiam à "feitura de
em relação às suas principais aldeias. Esse era tambem o piso em que se cul- penas" e ã colheita de mel. Eram produtos não-cultivados que eram cedidos
tivava a folha de coca, mas as duas cordas que re1ac10navam essas tarefas não (a quem?), em benefício de suas famílias, pelos 1'ovens não-casados, como
foram reg1stradas no quipo de maneira contígua. um produto secundário de seu pastore10 e de seu trabalho de batedor. É
Com as cordas 21-24 retornamos a atividades vmcu1adas ás instalações do nesse sentido que "não havia tributo" na sociedade mca: os únicos itens em
Estado, exceto que essas se referem ao centro administrativo regional dos espécie efetivamente cedidos ao Estado eram fornecidos por aqueles que
mcas em Huânuco Pampa, a dois dias de viagem do vale de Huallaga. Aqm ainda não haviam const1tuido sua própna família, e os próprios obJetos
68 famílias chupaychos forneciam "guardas", um trabalho que partilhavam eram "crus", na dicotomia de Claude Léví-Strauss. Nada de "cozido'' era
com mmtos outros grupos étmcos da região - mas até o momento a pesqui- devido ã autoridade, nada que tivesse sido cultivado ou manufaturado para
sa arqueológica não conseguiu determinar o raIO de abrangência em que os a despensa do própno individuo.
"guardas" eram recrutados para esse grande centro de dimensões urbanas. Que as rendas do Estado consistiam esmagadoramente de prestações em
Outras oítenta famílias enviavam carregadores para transportar cargas energia, de tempo gasto em benefício do Estado num grande número de
pela estrada real. Apenas dois postos de parada estão relacionados. um deles a empreendimentos, revela-se claramente no qmpo dos chupaychos. Os
cinco dias de marcha no rumo sul, o outro a apenas um dia. As crômcas melhores observadores europeus compreenderam isso: Cieza e Polo assina-
europêias haviam reiatado que os carregadores eram responsáveis por apenas laram esse fato enfaticamente e confrontaram esse encargo com os tributos
um dia de transporte, mas estudiosos da rede de comunicações mca, como em espécie exigidos das populações andinas na década de 1550. O própno
John Hyslop, duvidam dessa afirmação. Quarenta homens "mais velhos" protocolo de inspeção de 1549 registra também o que os chupaychos agora
eram designados para guardar "as mulheres do Inca" - as acllas, as mulheres davam a Gomez Arias de Avila, seu encomendero. Esse quipo é uma longa
"escolhidas" que teciam e cozinhavam para as tropas que passavam a cami- lista de sacos de folhas de coca, roupas acabadas, calçados europeus, telhas.
nho do norte. alimentos e aves exóticos. devendo tudo ísso ser enviado em espécie. Não
A corda 25, a última que foi lida, leva-nos de volta ao vaie onde residiam podena ser mais dramática a justaposição de pãgmas que registravam rendas
e praticavam agncultura: qumhentas famílias "plantavam e faziam outras geradas segundo príncip1os europeus e andinos.
coisas sem deixar sua região", Esse é o maior número mdividual reg1strado
no qmpo e se refere superficialmente ao mesmo tipo de tarefas que a corda
13. No vaie o milho cresce bem; era uma importante colheita suntuãna e
A rápida expansão de Tahuantinsuyo através dos quatro mil quilómetros
do que e ho1e o Equador, ao norte, até o Chile e a Argentina, ao sul, realiza-
.•
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da em menos de um século, gerou mudanças nas dimensões básicas e antigas "o~


ritual. A cerveja feita de milho era indispensâvei para os rituais e para a ~
~
da organização andina. Tanto os vínculos admínistrativos quanto os religio-
"generosidade" institucionalizada. Podemos admitir que os quarenta mdíge-
nas da corda 13, uma família de cada pachaca, eram os responsâveis por esse sos sofreram tensões. O governo indireto através dos senhores étnicos e dos .
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trabalho durante todo o ano, enquanto os 500 se revezavam no cultivo. santuários locais tornou-se mais difícil porque não podiam ter garantia de õ
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Todas essas muitas atividades, por mais diversas que sejam, podem ser entendimentos comuns. À complementaridade ecológica funcionou melhor <

classificadas como serviços de mtta: na função de soldados, na agricultura, onde não havia mercados em grande escala; era mais fácil ímpar as rendas
no trabalho de pedreiros, todos eles constituíam dispêndio de energia em do Estado baseadas no serviço de mita onde as autoridades políticas regio-
benefício do Estado, devidos, em proporções diferentes. por quase todos os nais eram usadas para recolher essas rendas. No entanto, por volta de 1500
grupos étnicos incorporados por Tahuantinsuyo. Nenhuma dessas cordas d.C., não se podia assegurar mmtas dessas pré-condições.
94
95
Os exércitos de Cuzco viram-se em regiões temperadas ou equatoriais, dos para tarefas militares praticamente em tempo mtegral. Frank Salomon
pouco familiares, portanto, sob novas condíções ecológicas. Por exemplo, ao traçou os detalhes da expansão inca no norte e mostrou que a tentativa de
norte de Ca1amarca. no Peru, em lugar das condições de puna foram encon- nnpor as ínstítuíções soc1a1s e económicas do sul foi tardia e parcíalso,
trados climas mais chuvosos e mais quentes onde não era passivei viver a As novas e grandes distâncias de Cuzco também tornavam difícil. senão
quatro mil metros de altitude; onde não se podia acumular reservas de impossível. aos tmtmacs exercer seus direitos residuais de "arquipélago" em
chuiíu e charki congelados e secos; e onde a complementaridade ecológica, se sua comunidade oríginal. É possivel que, por volta de 1532, as pessoas amda
e quando presente, era praticada em base menor e muito local. fossem contadas no quipo de seu grupo original, mas, se ele agora estava
Na puna, onde a população era mais densa, as trocas complementares distante demais e suas novas tarefas eram muito especializadas, elas tendiam
permaneciam nas mãos do grupo étnico. O escambo e o comercio, se e a permanecer onde quer que fossem reassentadas. Mesmo a chegada e a
quando presentes, eram margmais, p01s as caravanas de um único grupo vitória dos europeus não persuadiram alguns mitmacs a retornar a seus luga-
étmco ligavam o núdeo político e econôm1co aos distantes locais de traba- res de ongem, com exceção daqueles originários de grupos étnicos das pro-
lho que controlavam. Onde as distâncias eram menores e mimmos os con- ximidades, como aconteceu com os "mil" tecelões do Estado em Huancane.
trastes, as trocas podiam permanecer nas mãos das famílias de agricultores, Outro fator que estimulou a fixação permanente longe de sua base étníca
mas podem ter sido entregues a pessoas de fora, algumas delas comerciantes foram os privilég10s concedidos a esses removidos. No vale de Huallaga. as
profiss10nais. Roswith Hartmann enfatizou que os padrões meridionais de mspeções de 1549 e 1562 regístraram queixas dos recém-chegados e de seus
"sem comércio, sem mercado" não se aplicavam a toda a Tahuantmsuyo·1 8 : descendentes nascidos no local, segundo as quais, logo depois da queda do
Udo Oberem e Frank Sa1omon mostraram que na região de Pasto-Carch1 regime mca, a população local havia retomado mmtos campos que haviam
havia mindaías, especialistas em trocas a longa e média distância. Uma das sido expropríados em benefício dos tmtmacs. E, no entanto, não há provas
mercadorias de luxo comerciadas era a folha de coca, cultivada no norte de que qualquer um dos queixosos tenha retornado a suas regiões de ori-
petos habitantes das planícies que não eram colonos nas montanhas; foram gem; simplesmente abandonaram a guarda das fortalezas que lhes havta sido
tambêm relacionados outros produtos pouco pesados mas de alto valor. determinada e se estabeleceram entre os nativos.
Salomon sugere que esses comerciantes gozavam da proteção política de Waldemar Espinoza publicou reg1stros de severas políticas mcas de reas-
líderes étmcos do planalto e podiam dedicar todo seu tempo ás atividades sentamento impostas na região de Abancay5l: uma grande parcela da popula-
de troca49_ ção loca! fm deportada para algum outro lugar e suas fazendas concedidas
Ao norte, Tahuanunsuyo deparou-se com maior resistência do que a que aos mitmacs, alguns dos quais vtndos de tão longe quanto o Equador atual.
enfrentou em terreno mais familiar. A tradição oral dinástica registra a neces- Nledidas semelhantes foram tomadas ao longo da costa, onde os incas ocasio-
sidade de "re-conqmstar" repetídas vezes os terrítônos ao norte de Tum1- nalmente haviam enfrentado sena resistência: as sociedades locais de irriga-
Pampa. a atual Cuenca. Esses desafios militares presumivelmente estimula- ção foram deslocadas, uma parcela ma10r de terras no litoral foi tomada para
ram os incas a fazer experiências pnmeiramente com soldados dos aimarãs uso do Estado, os habitantes da planície não foram admitidos no exercito por
num sistema diferente da mita; somente doze anos antes da invasão europêia falta de confiança e os templos do cu1to solar foram impostos. Não se sabe
é que também foram substituidos por ex-rebeldes locais, os caflaris, coopta- atê que ponto os habitantes das montanhas mterferíram no tráfego em janga-

50. Frank Salomon, Ethmc Lords of Qinta tite Age of The Incas: Tlie Polittcal Economy o(
Roswith Hartmann, Zvfiirkte 11n attcn Peru, Bonn, 1986. 111

Udo Oberem, "El Acceso a Recursos Naturales de Diferentes Ecologias en la Sierra Ecuato- Nortll-A11dem1 Chiefdoms, Cornell, 1978.
nana {Sigio XVI)", lnternat1onai Congress of Amencamsts, Actes, Pans, 1978, voL IV; "· Waldemar Esµmoza Sonano, "Colomas de Mitmas Múltq:iles en Abancay, Siglas XV &
Frank Salomon, "Systemes polit1ques verticaux aux marchés de l'emp1re mca", AESC. XVI: Una Información Inêdita de 1575 µara la Etnohtstona Andina". Revista dei Afoseo
33(5-6):967-989, 1978. Nacional, Lima, 39:225-299, 1973.
96 97
das, ao longo da costa. para as águas quentes do golfo de Guayaquil52 • mas é (que envolviam não menos de treze mil agncultores e 2400 depósitos
pouco provável que não tenha sido afetado. locais), a maior parte do cereal colhido era enVIada ao centro admmistratívo
Os casos mais extremos de reassentamento realizados pelo Estado ultra- que os incas haviam erguido em Pana, no planalto, e de lá para Cuzco5S, A
passam qualquer extensão concebível do princípio de complementaridade substituição do principio de mitmac por um novo tipo de mita deve ter tido
ecológica. Envolvem d01s extensos vales, produtores de milho. em Yucay e implicações ideológicas que até agora não foram desvendadas.
em Cochabamba. Em ambos os casos. a população nativa fo1 deportada e Outra mudança no final do periodo inca trouxe no fim das contas conse-
novas pessoas foram trazidasSJ. Aparentemente, não se fez qualquer esforço qüências de grande alcance: o surgimento de populações cuja filiação e con-
para apresentar esse reassentamento em termos ideologicamente aceitáveis: tagem no grupo original foram interrompidas pelo Estado. Essas pessoas
as regiões expropriadas eram extensas demais e as deportações demasiado dedicavam tempo integral aos negócios do rei, e talvez até do Estado. Já
completas para que pudessem ser explicadas em termos de "acesso a uma foram mencíonadas as mulheres acllas, "escolhidas" para tecer para o Estado
variedade máxima de recursos". e para o rei; Guaman Poma ouvira dizer que havia seis tipos de aclla com
Em Yucay, que fica perto de Cuzco, o reassentamento esteve relacionado status e responsabilidades diferentes56. Quase nada se sabe sobre sua orgam-
com fatores políticos: entre os transferidos para a região estavam os solda- zação mterna, pois elas eram atraentes para os soldados europeus (que as
dos que trabalhavam em tempo integral, cooptados entre os cafians rebeldes ídentificaram a "freiras") e assim desapareceram quase imediatamente
no norte. É possivel que sua dedicação em tempo quase integrai ás obnga- depois de 1532. Um equivalente masculino eram os yanas, que também
ções militares não tenha tido precedentes nos Andes, mas, como os charcas foram removidos de suas aldeias de origem pelas autoridades. Ao contràrio
que eles haviam substituído apenas doze anos antes de 1532. os caiiaris das acllas, formavam famílias; trabalhavam em tempo íntegra! como arte-
amda eram recrutados Junto ás linhas étnicas e amda deVIam cultivar o prô- sãos, pastores e agrícultores.
prio alimento quando em suas aideias de ongem 54 . Há provas de servidores do periodo prê-incaico designados para as fami-
No maior vale de cultivo de milho em toda a Tahuantinsuyo. Cochabam- lias polígínas dos senhores êtnícos. Uma autoridade menor no vale de
ba a população local também f01 expulsa, mas neste caso fot tomada uma Huallaga mencionou quatro desses yanas locais: um que vivia rio acima no
medida sem precedentes para aumentar a produtividade das àreas cultivadas vale principal, cuidando dos rebanhos do senhor: o segundo trabalhava no
do Estado. No governo do rei Huayna Cápac. pouco antes da invasão euro- abaixo, nos campos de folhas de coca: os outros dois viviam no mesmo
peia, o território recém-desocupado foi dividido primeiramente em qua- povoado com seu senhor e atendia a seus múltiplos interesses. É possível que
drantes e cada um desses quadrantes em faixas que iam "de cordilheira a se trate de simples coincidência o fato de o número de seus _yanas ser o
cordilheira" Cada faixa era atribuída a um grupo do planalto, de língua mesmo que o de suas esposas57,
aímarã, que vivia do lago Titicaca, no extremo norte, até o deserto de A" ideologia inca, tal como se reflete na tradição oral dinàstíca, afirmava,
Atacama, no sul; os agricultores assentados não eram colonos mitmacs, mas todaVIa, que os yanas eram !}ma movação sua. Dizia-se que um "irmão" real,
sim mitayucs enviados temporariamente por turnos. Exceto por algumas enviado para inspecionar o domínío e realizar um censo, teria removido do
carreiras de milho em cada quadrante destínadas á alimentação das nuta quipo algumas populações, esperando usá-las numa contestação dinástica
contra o irmão remante. A trama fracassou e da pele do irmão foi feito um
s2. Maria Rostworowski de Dicz Canscco, "Mercadores dei Vallc de Chincha en la l:poca Pre- tambor; as pessoas não registradas por ele também foram tratadas como
h,spamca", Revista Espm1ala de Antrapafagia Amencmia, Madrid, 5:135-178, 1970; John V. rebeldes e deveriam ser mortas. Supõe-se que a rainha tenha impedido o
Murra, "El Tráfico de Muelu en la Costa dei Pacífico", cm Farmac1011es Eco11or111cas, 1975.
53. Nathan Wachtcl, "Les mit1maes de la vaUée de Cochabamba: la polit1que de colomsauon ss. WachteJ, "Les Mittmaes", ap. cit.
de Wayna Capac", Jaumal de la Saciéte des Amtncamstes, Paris. 1980. S6. Guaman Poma de Ava.la, Nm:va Coromca, pp. 298-300 {300~3021.
54. Murra, "La Guerre et !es rébcllions", pp. 933-934. S7. Murra, "La Visita de los Chupachu", op. clt.
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massacre sugerindo ao marido que os "rebeldes" poderiam ser aproveitados prias línguas, adoravam os seus deuses e eram capazes de supnr. como
no trabalho em propriedades reais. Como o lugar onde isso aconteceu cha- grupo étmco, a maior parte de suas necessidades. Tudo isso sena afetado e, a
mava-se Yanayaco, os servidores foram dai por diante chamados yanas e às longo prazo. ameaçado pelo surgimento de servidores em tempo integral61 _
vezes yanayacosSB,
Observadores europeus relataram que essas populações ficaram "isentas"
das obrigações étnicas e do parentesco, uma vez que na contagem não eram
mais incluídas junto com seu quipo oríginaL Embora muitos tenham afir-
mado que a sua condição de serviçal era hereditária, as provas disso não são
conclusivas: uma das poucas menções a seu destino em re1atos mais antigos
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e confiáveis afirmava que somente o filho do yana que fosse apto" para esse
serviço lhe sucederia no trabalho. Os outros presumivelmente retornavam a
seu lugar de orígem étmca. Há muita pressão sobre a prova no sentido de
mterpretá-la como se os yanas fossem escravos59,
As tentativas de apresentar como privilégios o que na verdade eram
novas e onerosas tarefas e mudanças de status foram provavelmente anterio-
res aos mcas. O nome das adias, perdidas para seus grupos étmcos e para
seus maridos em potencial. provém de acllay, selecionar. escolher; o nome
dos yanas é oriundo de yanapay, assistir completamente. ajudar alguém sem
qualquer cálculo de retribuíção. O servídor deportado devia encarar sua
nova tarefa como uma varíante do tipo mais altruísta e emocionalmente gra-
tificante de deveres reciprocos60, Não se sabe ao certo se alguém no Estado
inca fo1 enganado por artifícios lingüísticos tão transparentes; h.i muita
coísa acerca dessas populações de servidores que ainda desconhecemos.
Uma das dimensões mais acessiveís de seu status e funções deveria ser a sua
proporção em relação ao total da população. Embora a proporção seja apa-
rentemente pequena (cerca de um por cento do total), não precisa ser esse o
Umco aspecto a considerar. Se a tendência foi no sentido de crescimento e se
seu status fo1 afetado por "rebeliões", os yanas podem ter sido os precursores
do futuro. Tahuantinsuyo em 1500 parece ter sofrido um processo de afasta-
mento dos grupos étnicos relativamente autô"nomos que falavam suas pró-
~
<
58. z
John V. Murra, "Nueva Información sobre ias Poblac1ones Yana", em Formac1011es Econó- õ
z
rmcas. <
~
59. Emilio Choy, Antropologia e Histona, Lima, 1979. Sobre o debate em torno do modo de Q
<
Q
produção predommante em 1532, cf. os vànos artigos reproduzidos em: Waldemar ~

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Espinoza Sonano (ed.), Las Modos de Pract11cció11 en el Imperto de las Incas, Lima, 1978. 61. Para discussões ulteriores sobre as sociedades andinas antes da mvasão européía, cf., neste ~
~
60. Murra, "Nueva Información sobre las Poblaciones Yana", op. c1t. volume, o trabalho de Wachtcl, cap. 5, pp. 195 239.
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