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A Inquisição no Brasil: uma tentativa de análise – Bruno Feitler

Fichamento de trechos:
- A ação inquisitorial pode ser vista como mais um elemento do complexo de ações e
comportamentos que caracterizam a transformação do espaço extra-europeu em espaço
luso e católico. (p. 29)
- Se deu a primeira manifestação do Santo Ofício na América portuguesa, quando o
capitão donatário de Porto Seguro, Pero do Campo Tourinho, foi preso pelo vigário e
pelos juízes ordinários locais por blasfemar, e remetido em 1546 diretamente para o
tribunal da Inquisição de Lisboa (p. 30)
- Jean de Bolés, um desertor da França Antártica parece ter sido a segunda pessoa a ser
presa na América. (p. 30)
- Nem o processo de Tourinho nem o de Bolès foi movido por culpas de judaísmo. [...]
uma ‘anomalia’. (p. 30)
- O Brasil é dado como um lugar de refúgio para a população de origem conversa, um
lugar que eles estariam salvos da Inquisição, pela falta de um tribunal local. (p. 30)
- Mesmo se o maior número de denúncias foi de culpas de judaísmo (207), elas parecem
não ter originado mais que 17 processos, enquanto as visitações provocaram a
instauração de 31 processos por blasfêmia, 19 por irreverências e 18 contra pessoas que
desqualificavam o estado religioso. (p. 31)
- Isso se dá por 2 motivos: seja, como chegaram a aventar alguns historiadores, que não
interessava à coroa desbaratar ou afuentar os cristãos-novos da colônia por seu
importante papel na ocupação territorial, o que desestabilizaria o difícil adensamento
populacional de origem branca; seja a perda de uma parte da documentação da primeira
visitação à Bahia. Mais especificamente relativa ao recôncavo baiano, região açucareira
de importante população cristã-nova. (p. 31)
- Durante a primeira visitação os delitos mais escandalosos, e que deram mais trabalho
ao visitador, Heitor Furtado de Mendonça, foram os casos da santidade do Jaguaripe. (p.
31)
- O índios, mesmo convertidos, não estavam sob a alçada do Santo Ofício. O bispo os
deveria julgar com o auxílio dos jesuítas locais, e a provisão ainda encomendava que tal
fosse feito “com moderação e respeito que se deve ter com gente novamente convertida
para que não se intimidem os outros vendo que se usa de todo o rigor do direito com os
já convertidos”. (p. 31)
- Apesar de não termos provas de uma ação real desse tribunal, a comissão enviada ao
bispo excluiu oficialmente e na prática os índios da jurisdição inquisitorial, delegando-a
ao prelado, seu pastor natural e instância originalmente detentora do poder de julgar os
casos de heresia. [...] Os raros casos de indígenas do Brasil presos pela Inquisição
(sobretudo por bigamia) aconteceram durante a segunda metade do século XVIII,
quando a política pombalina tendeu a aplainar as diferenças entre os portugueses e os
índios. (p. 32)
- A primeira visitação está ligada ao contexto da expansão geral do Santo Ofício pelos
domínios atlânticos portugueses e das visitações efetuadas na mesma época no reino. (p.
32)
- A segunda visitação pode ser mais facilmente conectados a uma vontade de repressão
mais ampla ao criptojudaísmo, e ao medo de um conluio entre os cristãos-novos e os
inimigos holandeses. (p. 32)
- O Brasil nunca chegou a abrigar um tribunal permanente da Inquisição. (p. 32)
- Além das visitações mencionadas, Lisboa enviou para o Brasil o que podemos chamar
de ‘super-comissários’, com poderes para inquirir, mas não para efetuar prisões em
nome da Inquisição. (p.33)
- Também houve por parte da Coroa tentativas de criação de um tribunal da Inquisição
no Brasil, mesmo que dependente do tribunal lisboeta. [...] Encontrou resistência da
parte da própria instituição (um tribunal completo custaria muito caro). (p. 33)
- O sistema proposto pela Coroa para o tribunal brasileiro implicaria no julgamento de
hereges diretamente pelos bispos, o que, apesar do “enlace entre a Inquisição e os bispos
em Portugal”, poderia levar outros antístites do mundo português a querer exercer esse
poder quase natural dos bispos independentemente do Santo Ofício. (p. 33)
- A impossibilidade de se criar um tribunal local, e a pouca adaptação dos sistemas
excepcionais de ação (visitações e super-comissários) à realidade luso-americana, fez
com que a Inquisição tivesse que se contentar com um funcionamento ordinário. (p. 34)
- O que aqui chamamos de funcionamento ordinário dependia sobretudo das denúncias
feitas espontaneamente ou em reação à leitura de editais da fé. Era baseado nessas
denúncias, e também naquelas feitas por pessoas já presas nos cárceres inquisitoriais,
que o Santo Ofício conseguia os testemunhos necessários para se lavrar um mandado de
prisão. [...] também necessitou da estreita colaboração do clero e das autoridades
administrativas locais. (p. 34)
- A rede de oficiais do Brasil, composta de familiares, comissários, notários e os raros
qualificadores e visitadores das naus, demorou a se formar. No longo espaço de tempo
durante o qual essa rede se constituiu, e em seguida, se consolidou, foram pessoas que
oficialmente não faziam parte do corpo inquisitorial que lhe serviram de agentes locais,
efetuando inquirições, coordenando capturas e distribuindo editais da fé. (p. 34)
- Da colaboração do clero regular se sobressai o papel dos jesuítas. (p. 34)
- Os jesuítas também tiveram papel importante enquanto representantes inquisitoriais
nas primeiras décadas do século XVIII no Rio de Janeiro e em Pernambuco,
transmitindo denúncias e efetuando inquirições em nome do Santo Ofício. (p. 35)
- Curas, vigários da vara, bispos ou membros dos tribunais episcopais foram essenciais
ao bom funcionamento da Inquisição no Brasil; quem sabe até de modo mais evidente
do que em Portugal, onde existiam tribunais locais e onde a rede de comissários se
constituíra já durante o século XVII. [...] Eles também faziam, é claro, inquirições a
pedido dos juízes de Lisboa. (p. 35)
- Finalmente, a ligação entre episcopado e Inquisição também se desvela no Brasil por
meio da nomeação a bispos de vários antigos inquisidores ou deputados do Santo
Ofício, sobretudo depois das frustradas tentativas de criação de tribunais locais da
Inquisição. (p. 35)
- Com a consolidação da rede local de comissários oficiais nos anos 1740, estes
começaram a ser os correspondentes preferenciais dos inquisidores, mas os prelados, os
jesuítas, franciscanos e capuchinhos nunca deixaram de receber, de quando em vez,
inquirições delicadas ou mandatos de prisão para efetuar em nome do Santo Ofício. (p.
35)
- O regimento inquisitorial de 1613 instituía que os principais lugares de cada distrito,
sobretudo os portos marítimos, deviam ter um comissário inquisitorial e um escrivão
para assistilo, inclusive “nas capitanias do Brasil”. (p. 36)
- A companhia dos familiares só surge no Brasil no século XVIII. (p. 37)
- A ação do Santo Ofício no Brasil também variou bastante no tempo e no espaço,
geralmente acompanhando o ritmo de ocupação territorial e de crescimento econômico
das regiões, o que evidentemente fazia com que a população também crescesse e assim,
as ocasiões de se encontrar réus. (p. 37)
- Ela também se deixou influenciar pela falta de uma estrutura local de funcionamento e
pelos contextos geopolíticos europeus, como denota a baixa do número de casos
brasileiros durante o século XVII, como vimos, período de experimentação para o Santo
Ofício no Brasil, mas também de guerras, o que dificultava a comunicação entre os dois
lados do Atlântico. (p. 37)
- As primeiras décadas do século XVIII foram o momento de maior ação inquisitorial
no Brasil, particularmente voltada contra os judaizantes. (p. 38)
- Depois de 1760 a atividade repressiva do Santo Ofício no Brasil cai drasticamente,
tornando-se inexpressiva após a instauração das reformas pombalinas (1768-1774). (p.
38)
- A situação colonial das terras portuguesas na América também sobressai das
ocupações ou profissões declaradas pelos homens presos. Enquanto no reino os artesãos
foram as principais vítimas da Inquisição, seguidos dos profissionais do comércio
(comerciantes e tendeiros), surgindo só então os homens que viviam da terra, vemos que
no Brasil a ordem se inverte. (p. 41)
- É bastante difícil vislumbrar objetivamente qual foi o impacto da ação inquisitorial
sobre a população e sua importância na história local. Contandose o número de prisões,
não se pode dizer que sua ação tenha sido muito grande, beirando apenas os cinco casos
por ano quando se consideram os 223 anos que medeiam a primeira visitação ao Brasil
(1592) e a abolição do Santo Ofício português em 1821, número bem abaixo das médias
metropolitanas, que giram em torno de 45 casos/ano para o período 1536-1821. (p. 41)
- O Santo Ofício também atuou como instrumento especificamente disciplinador do
clero (nos casos de solicitação) ou moralizante dos hábitos sociais da população em
geral (com a punição da bigamia e da sodomia, por exemplo), mas é sobretudo nos
casos de judaísmo que, atingindo grupos mais amplos, podemos ver com mais clareza o
seu impacto local. (p. 41)
Fichamento resumo:

O texto aborda a atuação da Inquisição no Brasil, desde seus primórdios até o


século XVIII. Inicialmente, destaca-se a importância dos estudos baseados em
documentação posterior à virada do século XVI para o XVII, impulsionados pela
professora Anita Novinsky. A implantação da Inquisição no Brasil ocorreu de forma
discreta, acompanhando a ocupação do território pelos portugueses

Os primeiros casos de intervenção do Santo Ofício na América portuguesa,


como o de Pero do Campo Tourinho e Jean de Bolès, não foram relacionados ao
judaísmo, ao contrário do que ocorria nos tribunais portugueses. A análise dos processos
revela que, embora as acusações de judaísmo fossem frequentes, outros delitos como
blasfêmia, irreverência e desqualificação do estado religioso também eram perseguidos.

A Inquisição no Brasil diferiu daquela no reino de Portugal, principalmente


devido à falta de interesse da coroa em desbaratar os cristãos-novos, importantes para a
ocupação territorial. As visitações inquisitoriais ao Brasil, especialmente a primeira,
foram marcadas por escândalos, mas sua eficácia foi questionada.

Os índios convertidos não estavam sujeitos à jurisdição da Inquisição, sendo


julgados pelos bispos locais com o auxílio dos jesuítas. Durante o período filipino,
houve experimentação e fixação de métodos locais de ação da Inquisição, como a
nomeação de "super-comissários", embora não tenha sido estabelecido um tribunal
permanente no Brasil.

A tentativa da Coroa de criar um tribunal da Inquisição no Brasil esbarrou em


resistência da própria instituição e questões econômicas. O sistema proposto pela Coroa
implicava o julgamento de hereges pelos bispos, o que não interessava ao Santo Ofício.
Diante da impossibilidade de estabelecer um tribunal local eficaz e da pouca adaptação
dos métodos excepcionais de ação, a Inquisição acabou por operar de forma ordinária
no Brasil.

O funcionamento ordinário do Santo Ofício baseava-se principalmente em


denúncias espontâneas ou reações a editais da fé. As denúncias permitiam a obtenção
dos testemunhos necessários para emitir mandados de prisão. A colaboração estreita do
clero e das autoridades locais era essencial para o sucesso desse sistema.
A rede de oficiais inquisitoriais no Brasil era composta por familiares,
comissários, notários, qualificadores e visitadores das naus. Inicialmente, essa rede era
formada por pessoas que oficialmente não faziam parte do corpo inquisitorial, como
membros do clero secular e de ordens religiosas. Os jesuítas desempenharam um papel
significativo como representantes do Santo Ofício em várias regiões do Brasil.

Além disso, o clero secular, incluindo curas, vigários da vara, bispos e membros
dos tribunais episcopais, desempenhou um papel crucial no funcionamento da
Inquisição no Brasil. Eles transmitiam denúncias, realizavam inquirições e colaboravam
estreitamente com os inquisidores. A nomeação de antigos inquisidores ou deputados do
Santo Ofício como bispos também refletia a conexão entre o episcopado e a Inquisição.

Com o tempo, a rede local de comissários oficiais se consolidou, mas prelados,


jesuítas, franciscanos e capuchinhos continuaram a receber inquirições delicadas ou
mandatos de prisão em nome do Santo Ofício. A partir do século XVIII, houve um
aumento significativo no número de familiares no Brasil, especialmente entre os reinóis
enriquecidos. No entanto, a Coroa limitou o número de familiares privilegiados para
conter a inflação do cargo.

A formação de instituições ligadas ao Santo Ofício, como a companhia dos


familiares, seguiu a cronologia dos homens que as compunham. Além disso, o cargo de
juiz conservador dos familiares e de juiz do fisco estava conectado a cargos locais,
como o de ouvidor geral. Esses agentes desempenharam um papel fundamental no
funcionamento da Inquisição no Brasil, especialmente na coleta de denúncias e na
realização de inquirições.

O período de maior atividade inquisitorial ocorreu nas primeiras décadas do


século XVIII, especialmente focado na repressão aos judaizantes.

Essa intensificação resultou no desmantelamento das comunidades cristãs-novas,


com destaque para o Rio de Janeiro e regiões periféricas como a Paraíba. O Brasil se
destacou na participação nos autos-da-fé de Lisboa, representando cerca de 21,25% dos
condenados do século XVIII.

Após 1760, a repressão inquisitorial no Brasil diminuiu drasticamente, tornando-


se insignificante após as reformas pombalinas. A distribuição dos casos ao longo do
tempo e por região revela diferenças significativas, com maior concentração no século
XVIII e em regiões específicas.

A ação inquisitorial não se limitou à repressão penal, mas também atuou como
instrumento disciplinador do clero e moralizante dos hábitos sociais. Além disso, o texto
destaca o impacto da Inquisição na estrutura social e econômica, desestruturando
cadeias de solidariedade e mantendo os cristãos-novos em posição de párias sociais.

A influência da Inquisição ultrapassou sua ação penal, refletindo-se na ascensão


social dos familiares e no temor gerado por sua presença e rituais públicos. Assim, a
Inquisição teve um impacto profundo nas sociedades em que atuava, indo além dos
números de prisões e execuções.

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