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Título do Original em Inglês: BRAVE MEN TO THE BATTLE
Direitos de tradução e publicação em Língua Portuguesa para a CASA
PUBLICADORA BRASILEIRA
Rodovia Estadual SP 127 — km 106 Caixa Postal 34 18270 - Tatuí, SP
Esta edição Cinco mil exemplares
1988
Editor: Márcio Dias Guarda
Capa: Eli S. Campos
Arte Final: Vilma B. Piergentile
Foto Capa: Keystone

Índice

Capítulo Página
1. Um Lugar no Deserto..................................................... 5
2. Tempestades Prestes a Desabar.................................... 7
3. Presos em Uma Caverna................................................ 10
4. Deus Envia Uma Nuvem................................................ 14
5. Nova Luz na Europa....................................................... 17
6. Ameaça da Saboia......................................................... 21
7. A Resposta Dos Alpes.................................................... 26
8. Extinguiu-se Uma Luz.................................................... 31
9. Tempestades e Pragas.................................................. 37
10. Moedas de Ouro Para o Marquês................................ 40
11. Dezoito Homens Contra Mil........................................ 46
12. Homens Que Lutaram Como Leões.............................. 52
13. Um Povo no Exílio........................................................ 57
14. A Volta Gloriosa........................................................... 62
15. Defesa de La Balsiglia................................................... 67
16. Jogados Nos Vagalhões da Guerra............................... 71
17. Os Últimos Marcham na Vanguarda............................. 77

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Prefácio

Acho que você vai gostar deste livro. Ele contém uma história
comovente e inspiradora. E mais, é verídica, tudo aconteceu conforme está
relatado.
Os quatro séculos de aventuras e heroísmo começam por volta de
1170, com Pedro Waldo, um homem rico, que se converte, distribui todas as
suas riquezas aos pobres e passa a pregar um modo honesto de viver.
Os valdenses, como foram chamados os seus seguidores, formaram o
grupo mais conhecido entre os vários outros que surgiram no século doze,
resistindo à crescente degradação da igreja dominante.
Basicamente o que eles queriam era manter a fidelidade aos ensinos da
Bíblia. Mas, em 1231, sofreram uma grande perseguição. E, depois dessa, os
valdenses não tiveram mais sossego: quando não estavam sendo
perseguidos, estavam se preparando para enfrentar a próxima batalha.
Isso é o que faz de Heróis de Todas as Épocas um livro movimentado. E
as surpresas ficam por conta dos recursos fantásticos utilizados por Deus
para livrar os valdenses do inimigo!
Vários jovens e crianças tiveram atuação destacada nos tempos de paz
ou de guerra. Gostavam de cantar e decorar trechos da Bíblia. Assim, sus-
tentaram a tocha da Verdade até brilhar a luz da Reforma Protestante, no
século dezesseis. Agora que você sabe por que eu acho que você vai gostar
deste livro, vá em frente, leia-o até o fim! Como os outros da série Horizonte,
foi feito especialmente para você.

O Editor

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1 - Um Lugar no Deserto

Entre os elevados Alpes do Noroeste da Itália, onde os picos lembram dedos


apontando o firmamento, aninham-se vales férteis e atapetados de relva. Esses
vales, que se estendem longamente, ao coração das alterosas montanhas, abrem-
se uns para outros mediante estreitos passos. Por mil anos esses vales abrigaram
um povo humilde que queria ser fiel a Deus não seguindo a igreja de Roma.
Os vales forneciam boas moradas ao povo de Deus. Torrentes de águas
provindas de altitudes cobertas de neve, regavam a terra. O povo plantava os
alimentos, criava ovelhas e gado, cultivava pomares e vinhedos de frutos muito
doces. E em virtude de suas estradas estreitas e de muralha de montanhas que
os circundava, os vales demonstraram-se magnificentes fortalezas naturais que
protegiam o povo nos tempos de tribulação inda dos inimigos. Muitas vezes
alguns homens a combater por trás de barricadas mantiveram à distância
milhares de soldados furiosos que tentavam penetrar pelas estreitas gargantas.
O apóstolo João referiu-se a esse povo várias centenas de anos em
antecipação, quando escreveu o último livro da Bíblia. No duodécimo capítulo do
Apocalipse ele mencionou uma bela mulher a enfrentar dragão feroz. Essa mulher
representava a verdadeira igreja de Jesus ao passo que o dragão simbolizava
Satanás e seus seguidores. João disse que a mulher fugiria do dragão e en-
contraria lugar de refúgio no deserto.
Um homem por nome Pedro Valdo começou a pregar verdades bíblicas por
volta de 1170. Os padres chamavam suas crenças heresias, o que quer dizer
qualquer coisa que discordasse dos ensinos da Igreja Católica Romana. Muitos
dos cristãos dos vales alpinos seguiram os ensinos de Valdo, e assim ficaram
conhecidos como valdenses.
Por longos anos viveram os valdenses sossegados em seus vales entre as
montanhas, em paz com os vizinhos católicos das cidades e vilas das planícies.
Possuíam a Bíblia em sua própria língua, e faziam cópias manuscritas e
partilhavam com outros. Como os valdenses temessem que a preciosa Bíblia lhes
fosse algum dia tirada, decoravam o mais possível partes dela. As próprias
crianças eram capazes de repetir de cor livros inteiros da Bíblia.
Padres da próxima cidade de Turim visitavam por vezes os valdenses,
procurando persuadi-los a aceitar os ensinos da Igreja Católica Romana e
obedecer às leis do papa, mas não logravam muitos conversos. Os pastores
valdenses, chamados barbas, ensinavam seus rebanhos a ser puros, bondosos,
amigáveis com todos. Mantinham o amor de Deus no coração, e desejavam
partilhar com outros as bênçãos que fruíam.
Os valdenses consideravam dever seu disseminar o verdadeiro evangelho
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de Jesus. Sabiam que muitas pessoas nas cidades sentiam-se descontentes com
a religião católica, mas vagavam nas trevas buscando a salvação. Encontravam
essas pessoas nos caminhos, fazendo longas peregrinações a lugares santos. Os
padres haviam-lhes dito que se poderiam salvar por suas obras. Os valdenses
começaram a fazer planos para levar o evangelho a essa pobre gente que não
possuía a Bíblia para por meio dela aprenderem a verdade.
Os valdenses sabiam que os dirigentes católicos os chamavam hereges, por
eles não obedecerem às leis do papa. Sabiam que os chefes dessa igreja
aprisionavam por vezes hereges e entregavam-nos ao governo para serem
queimados na estaca. Assim, resolveram eles trabalhar cautelosamente, segundo
as instruções de Jesus a Seus discípulos, de que precisavam ser “prudentes como
as serpentes e simples como as pombas.”
Eles adotaram um plano bem simples. De seus tranquilos e abrigados vales,
saíam jovens que viajavam por grande parte da Europa, não no caráter de
missionários, mas como vendedores ambulantes, levando sedas e cetins, joias e
pratas para vender. Ao chegarem a uma casa cuja família lhes dava a impressão
de acolher bem o evangelho, falavam-lhe cautelosamente do plano da salvação!
Oravam muitas vezes nesses lares e, antes de partir deixavam em geral alguma
porção da Bíblia, um dos evangelhos, talvez o livro dos Salmos, ou uma das
epístolas de Paulo. Os valdenses tinham outro método de disseminar suas
crenças. Alguns de seus jovens mais inteligentes partiam de casa, no vale, e iam
às grandes escolas em Paris, Milão, Bolonha, Barcelona ou mesmo Roma.
Misturavam- se nessas universidades com os outros estudantes, conversando
com eles e fazendo-lhes perguntas. Levavam assim muitos deles a aceitar os
ensinos dos valdenses.
Quando a Igreja Católica, isto é, seus dirigentes, descobriram o progresso
dos valdenses, ficaram muito irados. Ordenaram que eles fossem presos e mortos
onde quer que estivessem. Proibiram o povo de aceitar quaisquer partes da Bíblia
da mão de visitantes. Insistiram com os dirigentes de universidades para não
permitirem que os valdenses nelas entrassem.
— Mas — indagavam os professores — como podemos distinguir os
estudantes valdenses de seus companheiros?
— Se os senhores virem um que não jura nem joga, não bebe nem briga, é
provavelmente um valdense.
As autoridades católicas apanhavam muitos dos valdenses longe de seus
vales natais. De ordinário, davam-lhes a escolher entre renunciar a sua fé ou ser
queimado no poste. Poucos renunciavam à fé e entravam na igreja papal, só para
salvar a vida.
Essas vítimas eram levadas para fora dos muros da cidade, amarradas a um
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poste, amontoando- se lenha ao seu redor. Se bem que amassem a vida, nunca
mais ergueriam os olhos para as altaneiras montanhas de sua terra. Ao verem,
porém, a lenha sendo amontoada em torno de seus pés, as palavras de Jesus lhes
acudiam docemente ao espírito, dando forças, e por vezes mesmo alegria, na
hora da provação. Lembravam-se da promessa: “Sê fiel até à morte, e dar-te-ei a
coroa da vida.”
Detiveram-se os valdenses com sua obra missionária por causa de tais
tragédias? Não. Outros surgiam para ocupar o lugar dos que haviam tombado. O
papa em Roma ficava mais irado ao receber, de vários lugares da Europa, notícias
que contavam da obra dos valdenses. Achou que tinha de ser feita alguma coisa.
Não somente precisavam de ser mortos os valdenses apanhados nas vilas e
cidades, mas era preciso que fossem soldados aos seus vales e destruíssem
completamente os hereges. Concitaram seus cardeais e altos dignitários da igreja.
Confabularam por longo tempo, fazendo planos para trazer de volta os valdenses
à igreja, e destruir todos quantos se não quisessem submeter.

2 - Tempestades Prestes a Desabar

Do outro lado dos Alpes dos valdenses, vivia um maior grupo de “hereges,”
os albigenses. Estes ocupavam muitas florescentes cidadezinhas, e vilas no sul da
França, à margem do Rio Ródano. Povo laborioso, seu governo considerava-os
dos melhores súditos.
Subiu em 1198 um novo homem ao trono papal. Tomou o nome de
Inocêncio III. Tornou-se o mais poderoso papa que já governara em Roma, e
forçou a maioria dos reis e dominadores da Europa a obedecer-lhe. Castigava
severamente aos que não o faziam. Esse papa convocou os chefes de sua igreja
para discutirem a maneira melhor de destruir os albigenses e os valdenses.
Por esse tempo, os valdenses haviam levado suas doutrinas a muitos lugares
da Europa. Pequenos grupos de pessoas residentes em Nápoles, Polônia,
Alemanha, Morávia, Boêmia e Inglaterra, adoravam a Deus da mesma maneira
que o povo dos vales. Na França, porém, havia uns duzentos mil albigenses.
Inocêncio III decidiu destruí-los em primeiro lugar.
Proclamou uma cruzada, ou guerra santa, contra os albigenses. Nos países
dominados pelo papado em toda a Europa, os padres leram a proclamação do
papa. Ele convidava todos os homens para se unirem em um exército que
marchasse contra os albigenses. Prometia-lhes as casas, terras e bens dos
hereges que matassem. Assegurava- lhes também que todos os soldados mortos
na cruzada seriam perdoados de seus pecados, e teriam um lugar certo no Céu.
Em resultado reuniram-se no sul da França homens de quase todos os países
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europeus, avolumando-se em grande exército. Grande parte dele, no entanto,
consistia em ladrões, homicidas e aventureiros que esperavam enriquecer-se
com os bens dos hereges.
Os albigenses não possuíam soldados, nem fortalezas, nenhum meio de
defesa. Ficaram indefesos enquanto a horda de cruzados invadia seu belo país
roubando, matando, queimando. O exército reduziu a outra florescente região a
uma ruína, e ao terminar a cruzada, os albigenses haviam sido destruídos. Apenas
alguns haviam conseguido escapar pelas montanhas e reunir-se aos valdenses.
Pouco tempo depois da cruzada, o papa Inocêncio III morreu, e os hereges
sossegaram em relativa paz.
Mais de um século após, tornou-se papa João XXII. Lera a respeito da
cruzada de Inocêncio III contra os albigenses, e mandou dois espias aos vales dos
valdenses a fim de averiguar ali as condições. Os espias ouviram falar de uma
reunião a que assistiam centenas de pastores e chefes valdenses. João viu
prontamente que a cruzada de Inocêncio III não destruíra todos os hereges. Antes
de poder completar a obra, porém, esse papa, João XXII, também morreu. Os
vales ficaram em paz por outros trinta anos.
Ao tornar-se papa, Clemente VI queria ver destruídos todos os valdenses,
sendo posto fim a sua obra na Europa. Escreveu aos reis da França e de Nápoles,
incitando-os a lançar cruzadas contra os valdenses e seus seguidores. Escreveu
uma carta especial a Joana, esposa do rei de Nápoles, concitando-a a ajudar a
limpar os vales pela destruição dos hereges que viviam ali.
Os reis de França e de Nápoles, entretanto, hesitaram. Os valdenses
achavam-se entre seus melhores cidadãos. Eram prósperos, pagavam pron-
tamente os impostos, não causavam perturbações a suas autoridades. Por que
haviam os reis de destruir tão valiosos cidadãos? De modo que os monarcas da
Europa quietamente passaram por alto as instruções papais, e os valdenses
aumentavam em número à medida que passavam os anos de paz.
Vieram então anos maus para o próprio papado. Um francês que se tornara
papa, mudou a corte de Roma para a cidade francesa de Avignon.
Cerca de setenta anos se passaram antes que outro papa, Gregório XI,
fizesse voltar o papado de Avignon para Roma. Gregório morreu um ano depois,
e o papa novamente eleito enraiveceu cardeais que o haviam elegido. Elegeram
então outro papa, que logo se estabeleceu novamente em Avignon.
O papa francês, é claro, afirmava que era o único papa verdadeiro, e
amaldiçoava o de Roma. Esse anunciava que era o único papa verdadeiro, (.
amaldiçoava o de França. Muita gente não sabia a qual seguir. Um terceiro papa
foi eleito em 1409 para substituir os outros dois, mas nenhum deles queria
resignar. Agora, três papas pretendiam o poder supremo, cada um amaldiçoando
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os outros. Só em 1414 um homem reconquistou o domínio supremo do papado.
De maneira que, por cem anos, os vales valdenses ficaram mais ou menos
em paz, visto nenhum dos papas ter tempo de molestá-los.
Realmente, a perseguição nunca cessou por completo. A igreja romana
mandava homens chamados inquisidores para verificar quais não prestavam
culto segundo o papado, para serem mortos. No ano de 1400, um desses
inquisidores reuniu alguns soldados e levou-os a um dos vales dos valdenses.
Estes foram de todo surpreendidos. Os inquisidores aprisionaram cento e
cinquenta homens, mais várias mulheres e crianças, e levaram-nos Grenoble,
onde foram mortos.
Enlevados com esse primeiro esforço bem-sucedido, o inquisidor Borelli,
resolveu repetir. Desta vez, ele sabia que os valdenses estariam alerta de modo
que esperaram até metade do inverno quando a neve bloqueava os desfiladeiros.
Então, com seus soldados, penetrou no vale e marchou sobre a cidadezinha de
Pragelas. Alguns os viram vindo, numa longa fila de figuras negras contra a alvura
da neve, e bradou um alarme para a vila. Os pais pegaram suas crianças, jovens
levaram os velhos e os doentes. As sombras de uma longa noite hibernai caíam
quando os soldados chegaram à vila, e seguindo os rastos recentes na neve,
pronto alcançaram a procissão em fuga. Mataram muitos dos fracos e inválidos,
tingindo de rubro sangue a brancura da neve. Então caíram as trevas, os soldados
voltaram ã vila e passaram a noite nas casas abandonadas de seus moradores. Os
fugitivos não tiveram descanso naquela tremenda noite. Procuraram atravessar
o passo da montanha de S. Martinho, para outro vale valdense, mas na escuridão
e na tempestade, muitos se perderam. Alguns caíram de elevados rochedos.
Outros afundaram na neve para nunca mais se erguer. A luz da manhã revelou
terrível espetáculo. Muitos dos valdenses tinham pés e mãos congelados. Alguns
carregavam crianças que haviam morrido durante a noite. O povo achou
cinquenta crianças mortas nos braços de suas mães, caídas na neve profunda à
beira do caminho.
Essa grande tragédia teve lugar na véspera do Natal, e até hoje pais e mães
em Pragelas contam a seus filhos a história do mais triste Natal que já passou
naquele vale.
Se bem que os valdenses sofressem muito durante essas perseguições,
sobreviveram ainda. Quando a igreja ou as autoridades estatais prendiam seus
missionários na França, Inglaterra, ALEmanha ou Itália, e lhes tiravam a vida,
outros jovens de boa vontade lhes tomavam o lugar. Finalmente, muitas
autoridades eclesiásticas acharam que os missionários valdenses tinham de
acabar e que a única maneira de o conseguir seria destruir toda a nação valdense.
Em 1487, o papa Inocêncio VIII reinou em Roma. Lembrou-se de como um
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papa anterior, do mesmo nome, destruíra os albigenses na França. Ele queria
tornar-se tão famoso como seu predecessor, de modo que proclamou longa
declaração acerca dos valdenses, apontando-os como os piores hereges do
mundo. Pedia que fossem todos mortos.
“Caso não reneguem sua fé”, declarou o papa cheio de ira, “sejam
esmagados como serpentes venenosas.”
Ele começou por procurar um homem que organizasse uma cruzada,
Escolheu Cataneo, famoso capitão italiano. Então o papa escreveu ao rei de
França e a Carlos II, duque de Saboia, ordenando- lhes que enviassem exércitos
para ajudar Cataneo a destruir os hereges. Concitou todos os católicos romanos
a virem em auxílio de Cataneo. Uma vez mais reuniu-se um exército para
exterminar os hereges, e mais uma vez o papa prometeu aos soldados que
poderiam guardar para si todos os bens dos hereges que matassem.
Em Turim, Cataneo reuniu-se com seus outros oficiais para fazer os planos.
Um contingente reunir-se-ia em França e atacaria os valdenses daquele lado, ao
passo que ele avançaria com seu exército do lado da Itália. Mediante ataque por
dois lados ao mesmo tempo, esperava destruir os valdenses por completo. E
esmagar-lhes para sempre a fé.

3 - Presos em Uma Caverna

Cruel, mas ousado capitão por nome La Palu, dirigiu os soldados que
avançavam contra os valdenses do lado francês dos Alpes. Com seus homens,
atacou ele primeiro o povo que morava em Valouise. Alguns pastores de gado, lá
muito alto na encosta da montanha, viram-nos descendo e correram velozmente
à vila para advertir o povo. Os valdenses observaram os inimigos vindo pelo passo
na montanha, e verificaram que La Palu tinha vinte vezes mais soldados em seu
exército do que eles poderiam mandar contra ele. Nada poderiam fazer senão
fugir. Pondo em carroças os velhos, as mulheres e as crianças, com provisões de
mantimento, e tangendo de cabras, ovelhas e gado diante deles, começaram a
subir as íngremes encostas do Monte Peloux. Entoavam salmos de Davi enquanto
subiam mais e mais alto acima do vale. O cimo elevava-se acima deles. Os abismos
ressoavam ao som de suas vozes.
Alguns dos idosos e fracos ficaram para trás. Os inimigos apressavam-se
atrás deles, matando os que ficavam apartados dos outros. A maioria do grupo,
todavia, chegou a bem conhecida caverna no flanco da montanha. Para ali
correram eles com seus animais. As mulheres e as crianças foram à pressa bem
para o fundo, nas escuras profundidades da gruta, ao passo que os homens fi-
caram à entrada, prontos a resistir a qualquer ataque dos soldados para forçar a
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entrada. Tinham pilhas de grandes pedras para arremessar na cabeça de quem
quer que fosse que tentasse trepar para a caverna.
La Palu viu o perigo, e sabia que seria fatal dirigir seus homens, destreinados
nessa espécie de luta, sob a aba da caverna. Ao contrário, conduziu ao redor da
montanha, e trepou nela pela retaguarda. Conduziu-os então diretamente a um
ponto de sobre a boca da caverna. Servindo-se de cordas trazidas com o fim de
enforcarem os valdenses, os soldados baixaram alguns deles à plataforma diante
da gruta.
Os valdenses não haviam previsto um ataque de cima, e pareceram
paralisados de temos ao observarem os inimigos. Haveria sido fácil matar aquele
primeiro e pequeno grupo de soldados, mas aquele povo havia vivido por tanto
tempo em paz, que a ideia de lutar, mesmo por sua vida, parecia-lhes estranha.
Uma vez que seus inimigos haviam tomado conta da boca da caverna, os
valdenses retiraram-se muito para o interior, mediante bem conhecidos
caminhos. Os soldados de La Palu não ousavam penetrar no coração da caverna
sem guia. Compreendendo o perigo que adviria a seus homens naquele estranho
lugar escuro, o capitão ordenou a seus soldados que ajuntassem grandes montes
de capim dos lados da montanha. Eles amontoaram-nos alto, na boca da gruta, e
puseram-lhes fogo. Silenciosamente, lá embaixo, no mais fundo interior da
caverna, rolavam grandes nuvens de fumo. Os valdenses não tinham nenhum
meio de escapar, e morreram sufocados.
Ao todo, três mil pessoas pereceram naquele abismo. O exército destruíra
toda a população de Valouise, e os valdenses nunca mais ocuparam aquele belo
vale.
La Palu conduziu então seus homens a outro vale matando o povo, e
destruindo-lhes os lares. Ao chegar a notícia de sua vinda, antes dele, muitos do
povo fugiram pelas gargantas para vales mais protegidos. Todavia tantos dos
valdenses perderam a vida, que logo os soldados de La Palu verificaram que não
podiam carregar os despojos que apanhavam das moradas de suas vítimas.
Naturalmente os soldados esperaram que uma guerra tão proveitosa havia de
continuar por longo tempo.
O último vale em que La Palu entrou foi Pragelas, cuja população fora tão
terrivelmente afligida na véspera de Natal oitenta e sete anos atrás. Os cruzados
caíram de improviso sobre a vila. Muitos desprevenidos lavradores caíram nos
campos enquanto ceifavam suas colheitas. Outros, fugiram em busca dos cimos
das montanhas. Alguns destes, não havendo sabido da sorte do povo de Valouise,
refugiaram-se nas cavernas, onde La Palu repetia a tragédia. Seus soldados
ateavam fogo à boca dessas grutas, e o povo que se achava no interior sufocava.
Nem todo o povo de Pragelas morreu. Havendo-se recuperado do choque
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do inesperado ataque voltavam-se ousadamente contra os invasores, e
atacaram-nos. Na maioria os soldados de La Palu haviam sido bandidos e ladrões
antes de se unirem aos cruzados, e não sabiam lutar. Ao serem assaltados pelos
valdenses, fugiam aterrorizados. Muitos deles morreram no vale que haviam
esperado conquistar tão facilmente.
Entrementes, do lado italiano dos Alpes, Cataneo dirigia seu exército
através das planícies do Piemonte e ao sopé dos montes em que ele se preparava
para uma guerra, que esperava, extirparia toda a colônia valdense. Os habitantes
das vilas próximas da planície, compreendendo que não poderiam resistir com
êxito, voltaram para suas fortalezas da montanha. Os soldados saquearam suas
casas, e meteram-lhes fogo.
Vendo pouca perspectiva de resistir a tão poderoso exército, os valdenses
enviaram dois de seus homens mais idosos e sábios para negociar com Cataneo.
Eles afirmaram que obedeciam unicamente a Palavra de Deus, e propuseram-se
a renunciar a qualquer doutrina que os padres pudessem provar ser contrária ao
que a Bíblia ensinava. Como eles falassem mansamente, Cataneo pensou que
deviam ser um povo fraco. Assim, zombou deles e mandou-os embora com
terríveis ameaças do que havia de acontecer a menos que se submetessem.
Pensando que não precisavam empregar todo o exército contra gente tão
pacífica e contrária à guerra, dividiu-o em dois bandos separados, pretendendo
mandar cada grupo a um vale diferente. Devia, porém, descobrir que os valdenses
não eram tão fracos com pareciam.
O exército de Cataneo avançou até à cidadezinha de La Torre. Acharam-na
deserta, havendo o povo fugido para os vales mais inacessíveis. Pelo caminho que
ladeava o belo rio de Pelice, continuaram os soldados papais sua jornada, passan-
do por Vilaro e outras vilas enquanto subiam ao vale de Lucerna. Do alto do vale,
foram à cidadezinha de Bóbio, que facilmente tomaram, pois seus habitantes
haviam fugido também para as montanhas. Como os soldados de Cataneo não
haviam encontrado oposição, começaram a considerar-se muito bons soldados.
Enquanto um bando avançava para o vale de Lucerna, o outro voltou-se em
outra direção a fim de destruir os hereges no vale Angrogna, centro do país dos
valdenses.
Entretanto os soldados que haviam tomado Bóbio com tanta facilidade
resolveram subir pela garganta da montanha até Prali, para matar-lhes os habi-
tantes; continuando depois para os vales de San Martin e Perosa. Marchariam
dali para Angrogna e se uniram ao outro ramo do exército. Estaria finda a guerra,
e as montanhas livres de hereges. Estavam certos de que o papa ficaria contentes
e abençoá-los-ia.
Certa manhã, setecentos soldados marcharam de Bóbio, para Prali. À
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medida que os homens galgaram mais alto pela escarpada senda, puderam ver a
vila de onde haviam vindo, lá embaixo as armas nas mãos e tendo sobre si a
pesada armadura, fatigaram-se em breve da subida. Paravam com frequência
para descansar ou refrigerar se com as frescas águas da corrente que lhes atra-
vessava o caminho. Acima deles, elevavam-se os poderosos picos dos Alpes, mas
esses homens não tinham tempo de olhar às belezas da criação de Deus.
Pensavam apenas na vila que em breve iriam atacar, o povo que iriam matar, e
os despojos que haviam de pilhar.
Atingiram finalmente o ponto culminante do passo. Alegres por haverem
terminado a longa ascensão, começaram sua descida, certos da vitória na vila.
Os soldados de Cataneo, porém, não suspeitavam de que os aguçados olhos
de um jovem lá muito embaixo haviam-nos visto a moverem-se, vindo do topo
do desfiladeiro, e ele fizera soar o alarme vale afora. Homens deixaram seu
trabalho e foram correndo de todas as direções. Alguns levavam espadas, outros
machados, outros foices, e outros ainda simples fundas, todos, porém, possuíam
coração valoroso, braços robustos, e firme confiança em Deus. Bem sabiam eles
que sua vida e a de sua mulher e de seus filhos dependiam da ação ousada
daquele dia. Poderiam eles derrotar o exército que, lentamente, descia a
montanha em sua direção?
Os soldados de Cataneo acharam a descida de novecentos metros quase tão
fatigante como havia sido a subida. Quando chegaram afinal ao vale, estavam
grandemente dispersos. Vindo através da floresta, viram eles então os
fortificados valdenses erguerem-se-lhes através do caminho prontos a lutar na
defesa de seus lares.
Soltando um débil brado, os cansados soldados papais precipitaram-se para
seus inimigos, mas tudo em vão. Os valdenses, não só derrotaram os invasores,
como os destruíram. Dos setecentos homens que haviam subido a montanha e
descido sobre Prali, unicamente um fugiu montanha acima nas trevas que se
adensavam. Ali, numa fenda por trás de um banco de neve, ocultou-se ele por
vários dias, até que a fome e o frio o enxotaram afinal para fora. Entrou então,
humildemente na vila de Prali, para lançar-se sobre a misericórdia dos homens
que ele viera matar.
Satisfeitos com sua vitória, os valdenses cuidaram do fugitivo, depois
mandaram-no de volta através da garganta da montanha para relatar ao
comando em Bóbio, que só ele dos setecentos soldados escapara à espada dos
valdenses.

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4 - Deus Envia Uma Nuvem

Ao compreenderem os valdenses que Cataneo e seus soldados pretendiam


realmente destruí-los, decidiram lutar pela vida e pela fé. Sabiam que jamais
poderiam enfrentar um exército em campo aberto de batalha. Sendo simples
agricultores, poucas eram as armas que possuíam. Começaram então uma grande
retirada para as fortalezas interiores de suas montanhas. Milhares, velhos e
jovens, com rebanho e gados, deixaram os sorridentes campos no sopé dos
montes, e jornadearam para os vales interiores de Lucerna, San Martin, e
especialmente de Angrogna.
Espiões contaram a Cataneo esse movimento, e foram-lhe agradáveis as
notícias. Dessa maneira, pensou, todos os seus inimigos estariam concentrados
em dois ou três lugares, e poderiam ser destruídos de uma vez. Não haviam ainda
chegado aos ouvidos do capitão as notícias da total derrota de seus
destacamentos no vale de Lucerna Entrementes os valdenses ocuparam-se em
preparar todas as armas que eles sabiam fazer. Alguns possuíam espadas. Bom
número armou-se de arcos e flechas. Entrando o exército de Cataneo pela
extremidade mais baixa do vale de Angrogna e caminhando pela estreita estrada
que ladeava a corrente, chegaram em breve ao principal grupo dos valdenses.
Estes haviam erguido rude barricada de toros através da estrada. Diretamente
atrás da barricada achavam-se os homens, dirigindo as defesas. Na retaguarda,
os velhos, as mulheres e as crianças reunidos numa concavidade para proteção.
Regozijando-se com a oportunidade de usar as espadas contra o povo que
haviam sido levados a desprezar, as forças papais soltaram exclamações, e
precipitaram-se para vencer aquela frágil linha por trás da barricada. Estes
despediram uma chuva de setas, e por um momento pareceu como se a linha
valdense fosse cair. As mulheres e as crianças, que observavam com corações
trementes, caíram de joelhos, ergueram os braços para o teu, e clamaram: “Ó
Deus de nossos pais, ajuda-nos. Ajuda-nos!”
Os soldados papais ouviram-lhes o grito e ergueram outro brado,
antecipando a imediata vitória. Um deles, o capitão Le Noir, homem orgulhoso e
obstinado, adiantou-se, chamando os valdenses de covardes.
– Orem – exclamou – vejam que benefício isto lhes trás – e puxando para
trás o elmo de cobre, continuou em tom de mofa – Nada os poderá salvar agora!
Mal proferira essas palavras quando vigorosa seta, atirada por Pierre Revel
acertou-o na testa entre os olhos. E caiu morto.
Com uma exclamação, todos os valdenses em linha arrojaram-se para
frente. Desconcertados pela perda de seu campeão, os soldados papais co-
meçaram a fugir. Os valdenses perseguiram-nos por todo o vale afora,
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acampando-se mais uma vez aquela noite na entrada de Angrogna.
Esta derrota desalentou e enraiveceu Cataneo. No dia seguinte, pôs
novamente suas forças em marcha, trilhando o mesmo caminho até chegarem ao
mesmo lugar de sua derrota na véspera. Para surpresa sua, ninguém acharam ali.
Avançaram firmemente, observando com cuidado, não fossem cair em qualquer
armadilha, mas não puderam ver ninguém.
Subindo adiante o vale, que se tornava gradualmente mais estreito,
descobriram estreito desfiladeiro, lavado através dos anos pelas águas geladas da
corrente de Angrogna. Um trilho conduzia através dessa passagem - passagem
tão estreita, que não mais de dois homens podiam andar um ao lado do outro.
Alto, acima das águas, aquele desfiladeiro lavá-los-ia sem dúvida ao vale interior,
onde esperavam encontrar os valdenses acampados em volta de seu quartel-
general em Pra Del Tor. Cataneo estava certo de se pudesse segui-los, seria capaz
de os destruir a todos e pôr termo vitorioso à campanha.
Ousadamente, ordenou a seus soldados que penetrassem no desfiladeiro,
lugar verdadeiramente tremendo. Por vezes a densa folhagem das árvores
ocultava as águas do rio. A encosta da montanha erguia-se íngreme para a direita
do caminho novecentos metros em direção ao céu. Através da vereda marchava
o exército de Cataneo dois a dois, em longa e estreita fila.
Os valdenses haviam estado a observar cada movimento de seus inimigos.
Espias nos flancos das montanhas, haviam assinalado a entrada dos invasores na
garganta. Colocaram forte guarda no local em que o trilho se alargava na saída
para o vale em que eles se haviam refugiado. Tinham vigorosa fé em Deus, e criam
que Ele os havia de proteger. Exatamente como o faria, não o sabiam eles. Talvez
abalasse a terra e fizesse desmoronar os montes sobre a cabeça de seus inimigos.
Talvez fizesse chover saraiva sobre eles. Ou, quem sabe, o Anjo do Senhor os
ferisse como outrora as hostes de Senaqueribe!
Olhando para cima, notaram espessas nuvens escuras reunindo-se no cimo
das montanhas que olhavam ao vale. Enquanto observavam, fascinados, aquelas
nuvens começaram de manso a baixar pelo flanco do monte, vindo mais e mais
baixo. Haveria o Senhor escolhido as nuvens para salvá-los? Mais baixo, e mais
ainda, desciam elas, pairando enfim sobre o abismo em que os soldados
mourejavam trilho acima, cerrando-o de cima abaixo e excluindo a luz do dia.
Pasmos com as sombras que haviam caído subitamente sobre eles, os
soldados papais se detiveram, sem ousar mover-se à frente ou retroceder. Os
valdenses soltaram alta exclamação. Subiram aos montes acima da garganta e
começaram a rolar tremendas rochas para baixo. As grandes pedras esmagaram
dúzias de soldados do papa onde se encontravam. Eles foram tomados de pânico.
Procuraram fugir mas, na escuridão, perderam o caminho. Muitos caíram na
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corrente embaixo. Poucos daqueles que tão confiadamente haviam entrado no
abismo à luz do dia horas antes, voltaram para contar a Cataneo sua derrota.
Desanimado com esta segunda derrota, Cataneo voltou com seu exército
para La Torre. Enquanto ali esperava, cogitando como relataria seu fracasso ao
duque de Saboia, recebeu a notícia da completa derrota dos destacamentos
enviados por ele aos vales de Lucerna e Prali. Possuído de supersticioso medo de
que talvez caísse também sob as espadas desses lavradores montanheses, desceu
à planície do Piemonte para estabelecer novo quartel-general.
Desse novo ponto, enviou Cataneo pequenos destacamentos volantes de
homens a várias partes dos vales, prosseguindo por um ano com essa tática de
guerrilha. Os soldados surpreendiam muitos valdenses separando-os de seus
lares. Queimavam-lhes as moradas e espalhavam-lhes o gado, as ovelhas e
cabras. Os invasores, porém, sofriam mais pesadas perdas ainda. Os valdenses
colocavam espias em vários pontos para manter cerrada observação dos
movimentos inimigos. Turmas volantes de montanheses se organizaram para
manter afastados que Cataneo mandava aos vales.
Em meio de tudo isso, os valdenses continuavam a orar pela paz e a ordem
de modo que pudessem voltar a seus lares e trabalhar sem temor desses
repentinos ataques. Finalmente o duque de Saboia resolveu terminar com as
perseguições. Mandou um enviado aos vales, convidando o povo a quem não
lograra conquistar a enviar representantes a uma conferência de paz.
Doze de seus homens mais sábios viajaram para Turim, onde falaram com o
duque. Ele lhes fez muitas perguntas curiosas acerca de suas crenças religiosas, e
eles lhe explicaram sua fé, mostrando como simplesmente procuravam seguir a
Bíblia.
O duque pôde ver que lhe haviam sido ditas muitas mentiras acerca dos
valdenses. Exprimiu a esses representantes seu profundo pesar pelas perdas que
haviam sofrido. Ele não sabia em que realmente eles criam. Antes de os enviados
para os vales, o duque fez solene promessa de que as perseguições cessariam.
Fez ao mesmo tempo um estranho pedido.
- Gostaria de ver uma dúzia de crianças de vocês!
Os homens valdenses entreolharam-se surpresos, cogitando porque
quereria o príncipe ver seus filhos. Concordaram, então, em mandar buscá-los.
Algumas semanas depois, doze mães acompanhavam os filhinhos á presença do
príncipe. Ele olhou atentamente às crianças, e pareceu surpreendido do que viu.
Mais perplexos ficaram os valdenses.
– Que é que surpreendente Vossa Excelência? - indagaram.
– Essas crianças parecem ser inteiramente normais. Sabem o que me
disseram?
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– Não, senhor. Não temos nenhuma ideia.
– Os padres me disseram que os filhinhos dos valdenses nasciam com um
olho só no meio da testa, e que também tinham quatro filas de dentes pretos.
Os enviados sorriram, apontando as suas crianças sadias e alegres. O
príncipe pode ver que os padres lhe haviam mentido.
Com a promessa de seu príncipe de que não seriam mais perturbados por
causa de religião, os valdenses regressaram aos vales. Por cinquenta anos não foi
feita mais nenhuma tentativa de destruir os valdenses.

5 - Nova Luz na Europa

Terminara a guerra. Dos lugares de refúgio entre as montanhas, das


cavernas ou espessas florestas, volveram os valdenses a seus torrões natais.
Tinham muito a fazer reconstruindo as moradas destruídas pelo fogo, plantando
novas árvores e semeando searas que substituíssem as que haviam sido
destroçadas.
Muitas famílias nunca mais seriam as mesmas. Pais e irmãos haviam sido
mortos em batalha. Mães haviam sido derribadas enquanto fugiam de seus lares.
Muitas crianças haviam sido raptadas, para nunca mais serem vistas, colocadas
em escolas católicas entre as cidades da planície.
Contristados olhavam os valdenses suas igrejas arruinadas. Dificilmente
havia alguma escapado à tocha do invasor. A despeito de todas as suas
tribulações sentiam-se os valdenses cheios de reconhecimento por sobreviver
sua pequenina nação quando parecia que seria totalmente destruída.
Sob as sombras dos picos altaneiros, sob a cúpula azul do firmamento, os
pastores podiam outra vez realizar reuniões em massa. O povo entoou hinos e
fez orações de ações de graças a Deus por havê-los poupado.
Acerca de uma questão, entretanto, os valdenses tinham opiniões divididas.
Deviam eles reconstruir suas igrejas arruinadas? Os pastores e membros mais
idosos da comunidade, pensavam que sim; os mais jovens, porém, não julgavam
isso prudente.
"Assim que reconstruirmos nossas igrejas", diziam, "o povo as verá e ficará
zangado, e lançará outra guerra contra nós. Melhor nos seria ter culto em nossas
casas e efetuar reuniões gerais nas florestas, onde nossos inimigos não nos verão.
Então nos deixarão em paz." Relutantemente, concordaram os mais velhos com
esse plano.
Agora que a guerra terminara, os valdenses permaneceram a salvo
enquanto se mantivessem em seus vales. Com essa paz e segurança, entretanto,
veio outro problema. Agora, que não mais tinham que lutar por sua religião,
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muitos perderam de vista a fé. Não se reuniam regularmente para os serviços
religiosos, e em alguns vales não se reuniam absolutamente. Mesmo seu antigo
zelo quanto a levar o evangelho a outras partes da Europa, desapareceu. Se bem
que alguns ainda viajassem para outros países, evitavam fazer qualquer coisa que
suscitasse a ira das autoridades eclesiásticas. Haviam sofrido terrivelmente e não
desejavam despertar novamente a ira dos inimigos.
Alguns valdenses foram ainda mais longe no procurar esconder sua religião.
Sabendo que não poderiam viajar em segurança como conhecidos valdenses, iam
aos padres, e pediam um papel que dizia que eram bons católicos, e não deviam
ser molestados. Os padres cooperavam com a condição de que frequentassem a
igreja católica romana, e seus filhos fossem batizados nessa fé. Muitos valdenses,
julgando assegurar a paz para si e os seus, fizeram o que os padres exigiram.
Afinal, raciocinaram, os padres não precisavam saber nunca o que eles ensinavam
aos filhos em casa.
Ao verem os mais idosos, homens e mulheres, que a fé e o zelo de seu povo
estavam enfraquecendo, entristeceram-se muito. Fizeram o que lhes foi possível
para animar cada um a erguer-se pela defesa da fé que haviam recebido de seus
pais, a fé pela qual tantos, tantos haviam dado a vida. Não mais, todavia,
decoravam as crianças longas passagens da Bíblia, e tornou-se cada vez mais
difícil encontrar jovens dispostos a aceitar a árdua e muitas vezes perigosa vida
de pastor.
Então, valdenses que haviam estado a viajar por terras estrangeiras
voltaram aos vales natais com novas estranhas e excitantes. Na Alemanha, na
Suíça e na França haviam eles encontrado cristãos que não mais iam à missa, que
não obedeciam ao papa, nem lhe frequentavam a igreja. Esse povo possuía a
Bíblia, e acreditava que pela fé em Jesus é que se salvariam. Oravam a Deus e
recusavam confessar os pecados a qualquer padre. Não se curvavam diante de
imagens, nem faziam igrejas. longas peregrinações.
Essas notícias emocionaram os habitantes dos vales. Cada um fazia
perguntas. Onde haviam esses cristãos achado uma religião tão semelhante à
deles?
Naturalmente, se bem que esses viajantes não o compreendessem, haviam
testemunhado começos da grande Reforma iniciada por Martinho Lutero,
Melâncton, Zwinglio e outros. As semelhanças entre as crenças dos protestantes,
como esse povo veio a ser chamado, e as dos valdenses, surpreenderam o povo
dos vales. As notícias dos valdenses surpreenderam também os protestantes.
Alguns dos dirigentes protestantes visitaram os vales valdenses para estudar e
comparar as duas crenças religiosas.
Quando chegaram os ministros protestantes sentiram-se ao mesmo tempo
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satisfeitos e entristecidos. Falando com os pastores valdenses, verificaram, para
alegria sua, que esse povo rejeitava os ensinos da igreja papal, e que ensinava as
mesmas idéias bíblicas dos protestantes. Entristeceram-se, porém, por haver-se
enfraquecido a fé religiosa do povo das montanhas. Insistiram em que fossem
reedificadas as igrejas em ruínas. Aconselharam os valdenses a deixarem de
assistir aos serviços religiosos romanos, mesmo que fosse por amor da paz.
Os valdenses, envergonhados de que esses novos seguidores pudessem
repreendê-los, puseram-se prontamente a reedificar suas igrejas. Deixaram de
assistir aos serviços católicos e de permitir que seus filhos fossem batizados pelos
padres.
"Convoquemos um concílio de todos os cristãos que creem na Bíblia e se
recusam a obedecer ao papa", insistiram alguns pastores. Mensageiros partiram
para a Suíça, a Alemanha, a França e a Itália, convidando os protestantes daquelas
terras a mandarem delegados.
Em outubro de 1532, reuniu-se a assembleia em Chamforans, colônia no
vale de Angrogna, centro do território valdense. Por seis dias continuaram as
reuniões, e ao encerrarem-se, os dirigentes haviam redigido uma declaração de
que os valdenses e os protestantes partilhavam as mesmas verdades.
"Que podemos fazer por nossos irmãos na Suíça e na França?" perguntaram
os valdenses. "Que podemos nos dar que se demonstre para eles do maior
valor?" Depois de muita discussão, resolveram traduzir e imprimir a Bíblia na
língua francesa. Os valdenses, nenhum dos quais era rico, arrecadaram 1.500
coroas de ouro. Pediram a um homem por nome Olivetan que fizesse a tradução
da obra. Seu primo, o famoso erudito protestante João Calvino, ajudou-o nesse
trabalho. Em 1535 foi impressa a Bíblia em francês. Ela se demonstrou grande
bênção aos protestantes de língua francesa em toda parte. Assim pagou a velha
igreja dos Alpes seu débito para com os protestantes que tanto haviam feito para
ajudar a reacender a fé religiosa no coração dos vales valdenses.
Durante os vinte e oito anos seguintes, caiu sobre os valdenses, terrível
perseguição. Em 1537, padres persuadiram o duque de Saboia, que dominava na
planície do Piemonte e naquelas partes dos Alpes em que viviam os valdenses,
que devia, para salvar sua alma, destruir os hereges. O duque consentiu. Ordenou
a um nobre por nome Barsour, que organizasse em exército, vencendo então e
destruindo todos os valdenses que se recusassem voltar à igreja católica.
Barsour apressou-se a obedecer às suas ordens. Com quinhentos
cavalarianos e soldados, avançou ele ousadamente pelos vales a dentro, dirigindo
o ataque principalmente no vale de Angrogna. Os valdenses, porém, fizeram-no
recuar para fora do país. Furioso, ele atacou valdenses que haviam vivido
pacificamente nas planícies em torno de Turim, e lançou centenas deles na prisão.
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Muitos foram queimados nos meses que se seguiram, entre eles, Catalan
Girard. Mesmo enquanto estava atado à estaca, com a lenha amontoada, em
torno de si, ele só pensava nos circunstantes que não conheciam a Cristo.
“Tragam-me duas pedras", pediu ele pouco antes de ser tempo de atear
fogo a seus pés. Alguém trouxe duas pedras. Segurando uma em cada mão,
ergueu-as alto e começou a atritá-las uma contra a outra.
Vocês pensam que podem extinguir nossas igrejas por suas perseguições.
Será tão possível fazer isso quanto a mim, com minhas débeis mãos, esmagar
estas pedras.” Então, quando as chamas já lhe saltavam ao redor, ele cantou
hinos enquanto pôde.
Os valdenses lá nos vales ouviram contar esses martírios. Queria isso dizer,
perguntavam temerosos, que as perseguições do passado, que os não haviam
perturbado por muitos anos, haviam voltado a afligi-los agora? Muitas pessoas
contavam histórias que lhes haviam sido narradas por seus pais dos terríveis
tempos de outrora. Recordavam o que sofrerá a igreja quando Cataneo e seus
grupos de bandidos lhes haviam devastado os vales. Tornariam eles a ver
novamente aqueles horrorosos dias? Começaram a orar e a buscar a Deus,
rogando que, em Sua misericórdia, salvasse Seu povo.
Deus lhes ouviu as súplicas, mas talvez não pela maneira que eles haviam
esperado. O rei da França desejava invadir a Itália. Para isso fazer, precisava
conduzir seu exército pelos Alpes. O melhor caminho o levaria através dos
desfiladeiros em poder dos valdenses. Assim, mandou ao duque a solicitação de
passar pelos vales dos valdenses.
O duque de Saboia, não querendo ver os franceses na Itália, recusou esse
pedido. Lembrou-se então de que aqueles desfiladeiros estavam nas mãos dos
valdenses, o povo que ele estava perseguindo e buscando destruir.
Imediatamente, resolveu fazer a paz com seus fiéis súditos para que não abrissem
eles aquelas passagens e deixassem os franceses atravessá-las. Mandou ordem a
Barsour que cessasse os ataques contra eles. Pôs mesmo em liberdade os que
ainda se achavam na prisão, e eles voltaram para casa em regozijo.
O rei de França, porém, penetrou na Itália por outro caminho. A guerra
prosseguiu por vários anos. Ao voltar afinal a paz, os vales tornaram-se parte do
domínio da França. Durante os três séculos que se seguiram, aqueles vales
passaram de um lado para outro entre a França e o Piemonte por várias vezes.
Se bem que cessassem por cerca de vinte anos os ataques diretos nos vales,
continuou ainda a perseguição aos valdenses fora dos vales. Um de seus mais
doutos pastores, Martin Conon, foi à cidade de Genebra a falar com João Calvino.
De volta, passou pelo Dauphiné, onde as autoridades o prenderam, acusando-o
de ser espia. Ele provou que isso não era verdade. Entretanto, entre seus papéis,
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os captores encontraram demonstração de que ele era alguma coisa muito pior
aos seus olhos — herege. Condenaram-no imediatamente à morte, haveriam
querido queimá-lo no poste, mas temeram grandemente o efeito de suas últimas
palavras nos espectadores. De maneira que, na calada da noite, tiraram-no da
prisão, levando-o ao rio Isere, onde o afogaram.
Os que foram aprisionados e mortos incluíam um homem que causou
grande impressão em seus captores. Bartolomeu Heitor, humilde vendedor de
livros, caiu em mãos de um padre, que o arrastou a Turim, e ali acusou-o de
vender livros heréticos.
— Você foi preso no ato de vender livros que contêm heresias, disse o juiz.
Que tem a dizer?
— Se a Bíblia é heresia para o senhor, é verdade para mim.
— Mas você emprega a Bíblia para fazer os homens deixarem de ir à missa.
— Se a Bíblia faz com que os homens deixem de ir à missa, é prova de que
Deus não a aprova, e de que a missa é idolatria.
O juiz não pôde suportar essa espécie de conversa. Adiantando-se e
apontando com o dedo o prisioneiro, gritou: Retrate-se!
- Tenho falado apenas a verdade, respondeu o valoroso colportor. Posso eu
mudar a verdade como o faria com uma roupa?
Por vários meses conservaram os juízes Bartolomeu na prisão, esperando
que se viesse a retratar. Os juízes temiam que queimar valdenses, só tornaria o
povo mais disposto a aceitar a fé dos hereges, e assim hesitavam em queimá-lo
em público. Finalmente, porém, Ievaram Bartolomeu perante grande multidão, e
queimaram-no na estaca.
Em 1559, os vales voltaram à posse do duque de Saboia. Por esse tempo, o
rei de França e o duque assinaram um tratado, do qual um dos termos exigia que
o duque destruísse todos os hereges. Uma tempestade mais negra e mais terrível
do que qualquer outra que eles houvessem sofrido até então, irrompeu sobre a
cabeça dos valdenses.

6 – Ameaça da Saboia

Um dia, dia funesto, mandou o duque de Saboia mensageiros galopando em


seus cavalos a toda cidadezinha e vila de seu território, incluindo os vales
valdenses. Estes tremeram à sua chegada, pois já rumores corriam com respeito
a sérias tribulações que se aproximavam. Nos cartazes de praças de cidades e
vilas, colocaram os mensageiros proclamações assinadas pelo duque. Rostos
ansiosos e corações trementes, reuniu-se o povo para ler a mensagem do duque.
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Em geral, escolhiam um homem para ler em voz alta a proclamação. Após a
leitura, o povo se olhava um ao outro, abismado. Poderia ser isso possível?
Haveriam ouvido direito? O leitor repetiu palavra por palavra
Qualquer pessoa, em qualquer lugar do território do duque de Saboia, que
fosse ouvir pregadores protestantes, seria multado a primeira vez dizia a notícia.
Se apanhado pela segunda vez se ria enviado às galés, para ali passar o resto de
sua vida como escravo.
Os valdenses mal dormiram aquela noite. Tampouco trabalharam muito nos
dias que se seguiram. Não podiam compreender como seu governador pudesse
publicar edito tão cruel. Parecera sempre homem tão bom, e sua esposa era
protestante.
Não sabiam, entretanto, que haviam chegado à corte do duque
mensageiros do papa e dos reis de França e de Espanha, os mais poderosos do-
minadores da Europa, advertindo Emanuel Philberto de que, se ele não destruísse
os hereges de seu reino, enviariam seus exércitos, e fá-lo-iam por ele. Caso isso
acontecesse, ele nunca mais governaria os vales, advertiam.
Na esperança de que pudessem mudar o edito, os valdenses escolheram
dois de seus líderes para entregar um protesto na corte do duque. Mui
humildemente rogaram eles para que seu povo não fosse condenado sem
oportunidade de falar em sua própria defesa. Eles haviam sempre pago seus im-
postos fielmente. Não existia crime nos vales das montanhas. Nenhum criminoso
valdense jazia a definhar nas prisões do duque. Nunca haviam eles molestado
seus vizinhos católicos. Advertiram o duque de que, viesse ele a derramar-lhes o
sangue, este clamaria a Deus como o sangue de Abel, e a maldição de Caim viria
sobre sua casa. A duquesa que simpatizava com os valdenses, juntou suas
lágrimas e súplicas às dos embaixadores. O duque despediu seus visitantes e
prometeu reconsiderar a questão. Os editos ficaram suspensos até que viesse
ordem posterior aos valdenses.
O duque de boa vontade pouparia a vida desses súditos pacíficos e
obedientes. Os chefes católicos da Europa, no entanto, insistiam para que ele
fosse adiante com a tarefa de sua destruição, e ele não ousou recusar. Todavia
esperou ainda por três meses, esperando que algum milagre o habilitasse a
poupá-los. Também os valdenses aguardavam ordem posterior, na esperança de
que o decreto fosse radicalmente mudado. Seus inimigos, porém, não podiam
refrear a ansiedade. Bandos de desordeiros começaram a atacar as vilas
montanhesas, matando o povo e apoderando-se de seus bens. A princípio, os
valdenses não reagiam em combate. Certamente pensavam que seria melhor o
combate aberto do que tal situação.
No esforço de ganhar mais tempo, o duque mandou seu irmão, Filipe de
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Saboia, aos vales, para tentar persuadir o povo a voltar à igreja de Roma. Homem
bondoso, Filipe escutou a um sermão dos “hereges”, e achou-o boa doutrina.
Convidou então o povo a escutar alguns padres que ele trouxera consigo, e eles
concordaram. Os padres, porém, não puderam provar pela Bíblia que os
valdenses estavam errados, de modo que não converteram ninguém. De-
sanimado, Filipe relatou ao duque sua falta de êxito. Os embaixadores da França
e da Espanha e o papa tornaram-se mais exigentes que nunca.
“Só há um meio de destruir a heresia é atacar o povo a fogo e espada”,
insistiam. Nunca eles darão ouvidos aos padres.” Com relutância lançou o duque
outro edito em que declarava guerra aos valdenses. A fim de abreviar a
campanha, mandou por toda parte da Itália uma ordem convidando todos os
homens a unirem-se a seu exército e ajudar a vencer os valdenses. Bandidos,
desordeiros, ladrões e criminosos de toda espécie juntaram-se aos soldados
regulares no prepararem-se para invadir a terra dos valdenses.
O papa oferecia grandes recompensas a todos quantos se unissem a essa
cruzada. Como havia feito o papa Inocêncio III na cruzada contra os albigenses, o
papa agora prometia que se alguém morresse combatendo os hereges, seus
pecados seriam perdoados, e ele teria certa a salvação. Os soldados sabiam
também que, sendo bem-sucedidos no combate, poderiam saquear as cidades e
vilas dos valdenses, apoderar-se de tudo quanto eles quisessem.
O conde La Trinita, homem cruel e sanguinário, tomou o comando do
primeiro grupo, de 4.000 homens, e avançou afoitamente para as montanhas.
Tendo às portas o inimigo, os valdenses humilharam-se, jejuaram e oraram.
Participaram juntos da Santa Ceia. Mandaram depois seus velhos, homens e
mulheres, suas esposas e as crianças para os vales mais interiores, enquanto se
preparavam para deter o exército dos inimigos. Se bem que toda população dos
vales por esse tempo atingisse apenas a dezoito mil pessoas, contava apenas
cerca de mil e quinhentos combatentes.
O exército piemontês penetrou na extremidade inferior do vale de
Angrogna, e estendeu-se em ordem de batalha. Pequeno grupo de valdenses
permaneceu em seu terreno e combateu varonilmente para impedir que o
inimigo avançasse mais pelo vale. Lutaram toda a tarde, mas os valdenses não
podiam fazer recuar o exército muito maior. Muito poucos dos homens possuíam
espadas. A maioria deles lutava com arco e flechas, ao passo que alguns tinham
apenas fundas.
Quando o Sol se pôs, nenhum dos lados obtivera nenhuma vitória, mas os
valdenses haviam sido empurrados para trás vale acima. Lançando de lado suas
armas, os soldados de ambos os lados acenderam fogueiras e prepararam sua
refeição.
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Subitamente, um brado de regozijo dos piemonteses interrompeu a calma
vespertina. No cimo de um monte próximo haviam eles visto as silhuetas dos
valdenses desenhadas contra o firmamento, ajoelhados com os braços
estendidos para o céu, e rogando o auxílio de Deus. Outro som ainda interrompeu
o riso dos soldados. De algum lugar, nas trevas, ouviram eles, o firme bater de um
tambor. Este parecia vir mais e mais próximo.
— Isto é outro exército que vem de auxílio dos valdenses! — exclamou um
capitão. A ideia de serem atacados por número superior de forças, prin-
cipalmente na escuridão, encheu os soldados de terror. Foram possuídos de
pânico. Centenas de homens voltaram-se e fugiram do campo de batalha,
atirando fora suas armas enquanto corriam. Perderam todo o terreno que haviam
conquistado durante o dia, e não se detiveram enquanto não se acharam a vários
quilômetros vale abaixo. Alguns valdenses, entretanto, rolaram pedras sobre os
soldados que fugiam. Na manhã seguinte, os valdenses recolheram as armas dos
invasores, tão precipitadamente lançadas fora. O conde La Trinita perdera
sessenta e sete homens, ao passo que apenas três dos valdenses haviam
tombado.
Os valdenses, tão assustados pelo ruído do tambor como seus inimigos,
estavam ansiosos de saber quem o havia tocado. Uma investigação revelou que
uma criança encontrara um velho tambor e começara a tocá-lo só para divertir-
se. Por essa tão simples respondera o Senhor às orações de Seus desamparados
seguidores.
Em grande ira com o que ocorrera, La Trinita conduziu seu exército às
expostas cidades valdenses fora dos vales das montanhas. Ali os soldados
queimaram e pilharam sem misericórdia. Mataram apenas poucos, entretanto,
pois a maioria do povo já se retirara para o fundo entre as montanhas. Três vezes
mais La Trinita tentou entrar no vale de Angrogna com seu exército, e três vezes
os valdenses os repeliram com grande prejuízo.
Finalmente, La Trinita compreendeu que teria dificuldade em vencer esses
rijos montanheses. Talvez fosse mais fácil subjugá-los por outra maneira. Sabia
que os valdenses eram inteiramente verdadeiros, e sem dúvida esperariam que
os outros homens tossem semelhantes a eles. Mandou então mensageiros sob
uma bandeira de trégua ao acampamento dos valdenses, levando a mensagem
de que desejavam a paz. Sempre felizes de cessar a luta, alguns dos montanheses
entraram no acampamento do conde.
Ele primeiro os lisonjeou, dizendo quão bravos eram eles, e que bons
soldados tinham sido. Disse depois que evidentemente o papa fora mal
informado a seu respeito, pois ao que parecia não eram hereges. Caso
desejassem a paz, precisavam fazer apenas algumas coisas.
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– Quais são as suas exigências? - perguntaram os cautelosos enviados
valdenses.
– Apenas permitir que alguns padres entrem em seus vales e em suas
igrejas, e digam missa aí.
Os valdenses pensaram que isso seria possível. Afinal, eles poderiam
purificar outra vez suas igrejas depois da partida dos padres. Consideraram o
assunto com seu povo. Os pastores insistiram com eles em que não fizessem
nenhuma concessão, mas o povo, ansioso de paz, concordou. Padres viajavam
pelos vales, mas os exércitos não se retiravam.
— Que mais precisamos nós fazer? — indagaram os ansiosos valdenses.
— Os senhores devem depor suas armas, e deixar-me estabelecer
guarnições em suas vilas para ajudar a manter a paz. Ao mesmo tempo, devem
mandar delegados ao duque e pedir-lhes termos de paz.
Os valdenses discutiram isso. Novamente os pastores insistiram contra, mas
uma vez ainda o povo resolveu confiar na palavra do conde. Os soldados deste,
entretanto, continuavam a saquear e matar os valdenses. Pela terceira vez, seus
enviados entraram no campo do conde.
– Que mais precisamos fazer?
– Precisam mandar embora cada um de seus pastores. É minha última
exigência. Se assim fizerem, então a guerra terminará.
Com grande tristeza, mandaram os valdenses embora seus pastores.
Profunda era a neve nas gargantas das montanhas e embaixo em Pragelas, &vila
protestante francesa.
La Trinita tinha agora o povo inteiramente na mão. Com a saída dos
pastores, o espírito deles parecia de todo quebrantado. Soldados papais ocupa-
ram os vales, queimando, saqueando e matando o povo. Os soldados caçavam o
povo pelas florestas, matando-os a tiros como a animais selvagens.
Seguiram um ancião a grande distância montanha acima. Um soldado
piemontês compeliu-o gradualmente para trás, à beira de um penhasco. Julgando
fruir o vê-lo cair, avançou para o homem a fim de precipitá-lo de cima para baixo.
Nesse soldado, porém, o valdense viu um inimigo de seu povo. Agarrando o
atacante pelos joelhos, atirou-se da aba levando consigo o soldado a morte a
muitos metros abaixo.
A destruição continuava. O exército enxotava o gado, as ovelhas, as cabras.
Despedaçavam os moinhos com que o povo moía seu trigo. Derribavam as
árvores frutíferas, e entulhavam os poços com pedras. Evidentemente, o conde
intentava matá-los de fome. Efetuou muito mais pelo engano do que jamais fizera
com seus soldados.
O derradeiro golpe veio quando os deputados voltaram de falar com o
25
duque. Os valdenses no vale de Angrogna reuniram-se para ouvir a mensagem de
seu príncipe. Antes, porém, de os delegados falarem, o povo conheceu pela
tristeza de seus semblantes, que haviam fracassado.
Com gemidos e soluços, deram ao povo as tremendas notícias. A casa de
Saboia recusava fazer a paz. Os valdenses tinham sua decisão — ou voltar à igreja
de Roma, ou ser completamente exterminados. O duque começara a
arregimentar outro grande exército para terminar a obra que os homens de La
Trinita haviam começado.
O povo assombrado necessitava desesperadamente agora do sábio
conselho de seus pastores. Compreendiam quão grandemente haviam eles sido
enganados por La Trinita.
Ainda que soubessem qual seria a resposta, os delegados perguntaram: —
Vocês estão dispostos a ir à missa e voltar para a igreja de Roma?
Mãos erguidas para o céu, o povo deu a resposta. Suas desafiadoras
palavras ecoaram pelos vales das montanhas:
— Não! Não! Nunca!

7 - A Resposta Dos Alpes

Antes de muitos dias, os valdenses até nas mais remotas vilas ouviram a
tremenda escolha que lhes era oferecida pelo duque de Saboia. Enquanto os
sinos soavam o alarme, homens e mulheres, largavam seu trabalho, reuniam- se
nas praças das vilas para discutir o assunto. Solenemente, apresentaram os
homens mais idosos a questão ao povo.
— Estão vocês dispostos a entregar suas igrejas aos padres, a aceitar-lhes
os ensinos, a renunciar à fé que recebemos de nossos pais?
— Impossível! — bradou o povo. Todavia, caso não se rendessem, que
futuro teriam eles e seus filhos? O duque declarara positivamente que ex-
terminaria os valdenses e daria seus vales a outro povo, caso eles não se
rendessem.
Naquela hora de desespero, o povo pensou naturalmente com anseio em
seus amados pastores. Aqueles bons homens, porém, viviam agora em Pragelas,
do outro lado dos altos e nevados Alpes. Alguém sugeriu que os pastores fossem
convidados a voltar.
— Acham que eles virão? — perguntaram os mais novos — Lembrem-se de
quão mal os tratamos. Recusamos dar-lhes ouvidos quando nos advertiam contra
aceitar os termos de La Trinita.
— Certamente eles voltarão — asseguravam os mais idosos — Eles dariam
a vida por nós, se necessário fosse.
26
— Mandemos então buscá-los imediatamente. Se tivermos de morrer,
pereçamos todos juntos. Eles trarão consigo a bênção de Deus. Quem sabe se
Deus não operará em nosso favor e nos livrará como fez a nossos pais?
Assim, mensageiros atravessaram os Alpes. Os pastores não hesitaram em
atender ao chamado de seu povo. De volta pelas montanhas seguiram eles os
mensageiros e mais uma vez tomaram o cuidado das vilas.
— Esta é a oportunidade de mostrar ao mundo que somos homens
verdadeiros, exortaram. Lembrem-se de que servimos o poderoso Deus do Céu,
que ajudará Seu povo agora com a mesma boa vontade com que ajudou aos
israelitas outrora pelo Mar Vermelho.
Não mais falou o povo em render-se. Os pastores convocaram uma grande
reunião geral. Uma vez que todo o povo não se podia ajuntar em uma casa de
reunião, uniram-se na floresta. Ali resolveram lutar unidos por seus lares e sua fé.
Purificaram primeiro suas igrejas usadas por meses pelos padres que La
Trinita espalhara pelos vales. Destruíram toda imagem, pintura e vela. Então os
pastores entraram e pregaram a Palavra de Deus ao povo.
Passavam os dias da semana a preparar-se para a grande luta que lhes
estava adiante. Todo o dia e muitas vezes até altas horas da noite, o povo tra-
balhava ainda. Toda casa se tornou uma fábrica em que faziam mosquetes, balas,
espadas, lanças, e mesmo arcos e flechas. Fizeram barricadas ao longo dos trilhos
das montanhas, as quais deteriam qualquer exército que procurasse entrar nos
vales.
Um grupo de valdenses desceu ao vale para purificar o templo de Vilaro.
Encontraram, de caminho o primeiro bando dos soldados e La Trinita, marchando
vale a dentro para receber a rendição dos hereges. Seguiu-se uma luta breve e
intensa, e os valdenses derrotaram os soldados, que fugiram para Vilaro. Os
valdenses seguiram-nos e sitiaram-nos. Em vão enviou La Trinita três bandos de
soldados para libertarem seus homens. No décimo dia de cerco, os soldados
renderam-se. Os valdenses pouparam-lhes a vida e escoltaram-nos até La Torre.
La Trinita ficou furioso quando soube da perda de Vilaro, e decidiu lançar
uma vigorosa campanha. Primeiramente, porém, tentou sua velha astúcia,
mandando emissários com oferta de paz aos valdenses, caso eles satisfizessem
certas condições. O povo, todavia, não se deixaria enganar na segunda vez, e os
mensageiros voltaram para contar que os valdenses estavam preparados para
lutar.
Os valdenses sentiam-se agora prontos para o ataque que aguardavam a
qualquer hora. Coloram espias nos cimos da montanha para observar os
movimentos do inimigo. Organizaram “esquadrões volantes”, grupos de homens
prontos a precipitar-se para qualquer ponto atacado no momento em que
27
tivessem notícia. Com cada um desses grupos iam dois pastores que oravam com
os dados antes da batalha. Esses pastores cuidariam também dos feridos, orariam
pelos moribundos, e estimulariam os valdenses a serem misericordiosos no dia
da vitória.
Sabendo que nunca poderiam esperar defender todos os seus vales, a maior
parte da nação reuniu-se uma vez mais no vale de Angrogna. Com eles, foram
suas mulheres e filhos, gado, cabras, ovelhas, toda a comida que lhes foi possível
carregar.
Sabendo que, se pudesse conquistar esse vale, isto da luta seria fácil, La
Trinita resolveu fazer aí seu primeiro ataque. Por um dia inteiro batalhou seu
exército próximo à entrada daquela grande fortaleza, buscando derrotar os
defensores do desfiladeiro. Ao pôr-do-sol, reconheceu o conde que seus soldados
não haviam feito nenhum progresso, se bem que muitos houvessem sido mortos.
Na manhã seguinte, fez retirar as tropas, e discutiu com os capitães o que deviam
fazer.
Duas semanas mais tarde, ele estava para fazer novo ataque. Desta vez, o
exército entraria no vale de três direções. Um dos corpos de soldados marcharia
pela garganta do Rio Angrogna. O conde esperava que todos os valdenses
precipitar-se-iam para combater aquele grupo. Enquanto isso, outra tropa
atravessaria as montanhas e entraria no vale do lado leste, enquanto um terceiro
grupo, desceria do lado do norte. Caso um ataque falhasse, estava ele certo, um
dos outros havia de ter êxito.
Na manhã do ataque, espias valdenses viram primeiro o grupo que
marchava pela estreita garganta acima, e deram o alarme. Seis jovens valdenses
correram ao ponto ameaçado, e esperaram. Assim que os soldados de La Trinita
apontaram, as espingardas dos valdenses dispararam com tão quente fogo em
cima da subdivisão do regimento, que os invasores detiveram-se confusos. Na
estreita garganta não podiam andar mais de dois soldados ao lado um do outro.
Enquanto os soldados de La Trinita caíam diante das espingardas dos seis
valdenses, foi-se amontoando um muro de homens mortos. O pânico apoderou-
se então dos que ainda se encontravam no desfiladeiro, e ficaram
impossibilitados de avançar. Incapazes ficaram eles na apertada trilha, ouvindo
os estampidos dos mosquetes ecoando nas paredes da passagem. Não podendo
suportar por mais tempo a terrível tensão, sacudiram de si as armas e, com gritos
de terror fugiram de volta pelo caminho por que tinham vindo.
De repente, soou outro alarme. Um dos espias viu outro contingente que
marchava montanha acima pela garganta para entrar em Angrogna ao lado de
leste. Um segundo grupo de valdenses precipitou-se encostas acima, atacou os
invasores, forçou-os à fuga, montanha abaixo.
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Entrementes, o terceiro grupo galga ainda ouro desfiladeiro de montanha,
tentando penetrar no vale do lado do norte. Mais uma vez se fez ouvir o alarme
dos espias, mas a essa altura os valdenses já tinham poucos soldados disponíveis
para mandar contra a nova ameaça. Sabendo que os invasores precisariam de
passar por estreito desfiladeiro antes de penetrar no vale, eles se espalharam em
emboscadas ao redor da boca da passagem. Fatigados e sem fôlego devido à
longa ascensão e íngreme descida, surgiram do desfiladeiro os invasores. Perante
eles, jazia o belo vale. Lançando-se para a frente, exclamaram uns para os outros:
— Apressemo-nos! Apressemo-nos, Angrogna nossa!
Então, saltando de sua emboscada de todos os lados dos assustados
invasores, os valdenses caíram-lhes em cima como um redemoinho. Sabendo que
valdenses tinham menos soldados que eles, os piemonteses lutaram
desesperadamente, e a batalha prosseguiu furiosa. De súbito, porém, os
valdenses, e haviam sido vitoriosos em outros pontos do vale vieram
apressadamente em auxílio de seus irmãos. Derrotaram os soldados de La Trinita,
matando muitos e dando caça aos restantes na subida monte que havia pouco
tinham atravessado.
O conde, furioso de que todos os três contingentes de seus ataques
houvessem sido derrotados, zomba de seus homens.
— Que há com vocês — perguntou — Aqueles valdenses não são soldados,
são simples lavradores que não sabem lutar!
— Se aqueles homens não sabem lutar, nesse caso tampouco nós! —
responderam os homens.
Mais uma vez La Trinita retirou seu exército para as planícies do Piemonte.
Resolveu esperar reforços antes de tentar novamente. Não teve muito que
esperar. O rei da Espanha mandou um regimento; o mesmo fez o da França. De
repente, ele tinha sete mil homens. Pondo em movimento seu exército, partiu
novamente para as montanhas, determinado a apagar a desonra de suas derrotas
anteriores.
Dirigiu pela terceira vez o principal ataque contra o vale de Angrogna. Um
domingo de manhã, toda a comunidade valdense reuniu-se para adorar em vasta
encosta relvosa. O vale ecoava aos sons dos hinos entoados pelo povo. Outra vez
os pastores liam-lhes as promessas de Deus. Mais uma vez eles prometeram
nunca renegar sua fé.
Súbito, um jovem espia correu sem fôlego para o ajuntamento dos fiéis,
indicando as montanhas circunvizinhas. Olhando para o alto, viram os valdenses
os soldados de La Trinita penetrando no vale de três direções ao mesmo tempo.
Alguns valdenses apressaram-se em direção ao lugar em que a escura
garganta do Angrogna abria-se para o vale, e aí detiveram um grupo dos invasores
29
e fizeram-nos voltar atrás. Fortes barricadas erguidas anteriormente pelos
valdenses esbarraram os outros dois grupos. Enquanto os homens de La Trinita
lutavam para atravessar as barricadas, os valdenses lutavam para empurrá-los
para trás. A batalha prosseguiu por horas, e ao fim do dia os soldados
compreenderam que sua tentativa de penetrar no vale fracassara mais uma vez.
Haviam morrido na batalha alguns do mais bravos capitães de La Trinita. O
próprio conde, presente ao combate, segundo dizem, sentou-se e chorou ao ver
amontoados os corpos de seus soldados mortos. Nunca mais zombou ele de seus
homens por não haverem derrotado os simples montanheses. Quietamente, fez
La Trinita a retirada de seu exército, voltando à planície.
Desanimado, desejava o conde não haver nunca empreendido conquistar
os hereges. Resolveu, porém, fazer um derradeiro esforço para restaurar sua
reputação perdida. Por sugestão sua, o duque de Saboia solicitou que os
valdenses enviassem deputados a Turim para discutir termos de paz com seu
príncipe.
Por esse mesmo tempo, La Trinita reuniu todos os seus soldados e conduziu-
os em marcha noturna mais uma vez para Del Tor, esperando surpreender os
valdenses. Com seus deputados discutindo termos de paz em Turim, não seria
provável que estivessem suspeitando ataques. Dando uma palavra de animação
a cada um de seus capitães, La Trinita enviou seu exército uma vez mais pela
estreita garganta de mais de três quilômetros que conduzia ao vale que ele por
meses tentara capturar.
Haviam terminado os serviços religiosos matinais, e os valdenses iam-se
espalhando para seus vários deveres, quando um grito de advertência soou nos
ares.
— O desfiladeiro! O desfiladeiro! Soldados vêm subindo pelo desfiladeiro!
Sem tempo para reunir todo o contingente valdense, um punhado de bravos
montanheses pegou seus mosquetes e correu ao ponto de maior perigo. Quando
os primeiros dois inimigos foram entrando no vale, saídos da boca da garganta,
os valdenses atiraram, derrubando-os. Os dois seguintes tombaram do mesmo
modo, em cima dos seus companheiros. Depois, mais dois. Calmamente, os
valdenses continuaram atirando e carregando outra vez seus mosquetes. Mais e
mais alto se foram empilhando os mortos, até que os soldados no desfiladeiro
não podiam avançar.
Como nos anos anteriores, alguns valdenses treparam pelas encostas da
montanha ao lado da estreita passagem. Não tardou, grandes pedras vieram
rolando em cima dos soldados piemonteses, esmagando dúzias deles onde se
encontravam. Não é de surpreender que mais uma vez se apoderasse dos
restantes terrível pânico. Tentaram fugir, mas era demasiado estreito o trilho.
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Dezenas e dezenas de soldados foram empurrados pela borda do penhasco para
a morte nas rochas que ladeavam a corrente.
La Trinita e seus oficiais acampavam a uns três quilômetros de distância.
Quando seus soldados haviam partido na noite anterior, ele fizera votos para que
antes de o dia terminar, eles tornassem rubras as águas do rio com o sangue dos
valdenses. Por volta da metade da manhã, chegou a ele um de seus homens em
grande excitação.
— O Angrogna está se tingindo de vermelho! Bradou.
— É o sangue dos hereges, explicou o jubiloso general. Pra Del Tor caiu, e o
sangue dos hereges corre pelo rio!
Não tardou muito, porém, alguns soldados que haviam escapado da
garganta entraram cambaleando no acampamento piemontês, levando a notícia
da destruição de outro exército. Uma vez ainda La Trinita aprendeu que seus
esforços para entrar no vale de Angrogna haviam fracassado. O sangue no rio era
o de seus próprios soldados. Naquele mesmo dia reuniu os restantes de seus ho-
mens, e partiu. Nunca mais voltou.
As conversas de paz continuaram, e no fim o duque de Saboia deu por
terminada a guerra. Não mais insistiu para que o povo que ele não lograra vencer
voltasse para a igreja de Roma. Devolveu-lhes todas as suas terras.
Quase um século se passou antes que fosse feito outro grande esforço para
destruí-los. Volvamos agora a duzentos anos atrás, e vejamos o que haviam
estado a fazer os valdenses em outra parte da Itália.

8- Extinguiu-se Uma Luz

As janelas da hospedaria eram lavadas pelos fortes borrifos da chuva. O


vento soprava em rajadas, sacudindo as cortinas. Acidentalmente desceu um jato
extra pela chaminé, espalhando fumo pela sala, e disseminando cinzas pelo
soalho. Ao pé do fogo estavam sentados dois jovens chegados dos vales
valdenses. Haviam vindo a negócio à cidade de Turim, capital do Piemonte. No
dia seguinte, deviam voltar ao lar, nas montanhas.
Gostaria de poder encontrar trabalho aqui em Turim — disse um deles
pensativo.
— Como, você perdeu o amor pelas montanhas?
— Oh, não! Jamais o poderia fazer. Mas a vida ali se torna de ano para ano
mais difícil. O sítio de meu pai é pequeno, e tenho quatro irmãos. Que faremos
com a terra? Como podemos casar-nos e viver em nossa vila quando as
propriedades já estão demasiado pequenas para sustentar-nos?
O outro jovem acenou solenemente.
31
— Você tem razão. Também eu tenho pensado no problema. Mas você não
se atreveria a trabalhar aqui em Turim. Bem depressa os padres descobririam que
você não estaria assistindo à missa, e seus dias não seriam muitos.
Um estranho que acabara de jantar deteve-se à mesa, não distante do fogo.
Estivera escutando a conversa dos dois rapazes. Ergueu-se então, deu alguns
passos, aproximando-se deles.
— Desculpem-me a interrupção — disse ele no tom melodioso dos italianos
do sul da península.
— Se os senhores confiarem em mim, poderei levá-los a um lugar em que
há abundância de boa terra para plantação. Não temos suficientes habitantes
para cultivá-la, entretanto, de modo que os senhores seriam ali bem-vindos.
— Onde fica essa maravilhosa terra? — perguntou um dos jovens,
admirado.
— É no sul da Itália, e chama-se Calábria. Eu próprio moro ali, e posso
assegurar-lhes que os nobres ali acolheriam bem cidadãos honestos, diligentes
como os senhores.
— O único problema seria quanto a nossa religião — observou gravemente
um dos rapazes — O senhor vê, não pertencemos à igreja romana.
O estranho sorriu. — São hereges? Bem, não posso dizer que sou muito fiel
católico, por minha parte. Entretanto, penso que esse problema poderia ser
resolvido. O rei de Nápoles governa com muita tolerância a Calábria. Uma vez que
os senhores paguem seus impostos fielmente, não teriam nada a temer.
Poderiam mesmo eleger seus próprios juízes. Que acham disso?
— Não nos achamos em situação de dar-lhe uma resposta imediata.
Precisamos voltar à casa, expor esse plano a nossos pastores e anciãos, e ver o
que eles pensam a respeito. Estará o senhor visitando Turim por algum tempo de
maneira que possamos voltar a discutir posteriormente este assunto?
— Espero estar aqui ainda por uns três meses, e o dono desta hospedaria
poderá sempre dizer-lhes onde me podem encontrar passando a um dos moços
um pedaço de papel em que escrevera seu nome, o estranho inclinou- se e voltou
a sentar-se a sua mesa.
Alguns dias mais tarde os moços regressaram a seus vales, nos Alpes.
Falaram entusiasticamente com os mais idosos acerca da sugestão do estranho.
Cinquenta anos antes, tal ideia seria imediatamente rejeitada; as condições,
porém, haviam mudado grandemente durante a década anterior. A terrível
perseguição dos albigenses na França trouxera em resultado milhares de
refugiados a transpor os Alpes, situando-se entre os valdenses. Se bem que eles
cultivassem cuidadosamente cada pedacinho de terra boa nos vales, todavia ain-
da a fome lhes entrava por vezes em casa, em particular durante os longos e frios
32
invernos. Mais de uma vez as famílias tinham de volver-se para as castanhas, de
que havia abundância ao longo das correntes, para sua alimentação hibernal.
— Por que não enviar dois de nossos melhores homens a espiar a terra
como fizeram os israelitas outrora antes de entrarem em Canaã? — sugeriu um
dos pastores. — Eles podem voltar e dizer-nos se a terra é fértil; podem descobrir
também o melhor caminho de chegar ali. Caso a terra se demonstre fértil e o
governo tolerante, isso poderia ser grande bênção para nós. Além disso, naquela
terra distante pode haver gente a quem possamos levar o evangelho.
O povo escolheu, portanto, dois bons cidadãos que viajaram através da
Itália em direção à Calábria, a ver que tais eram ali as condições. Voltaram com
animadoras novas.
— Toda sorte de frutos cobrem as belas colinas, disseram. Nas planícies, há
vinhas e castanhais. Nos terrenos elevados achamos nozes e muitos tipos de
árvores úteis. A relva cresce espessa, e nossos animais haviam de ficar viçosos.
Conversamos com alguns do povo que ali vive agora, e disseram-nos que
raramente veem neve no inverno. É positivamente um país muito rico, e com
poucos habitantes.
Antes de muito tempo um grande grupo de emigrantes partiu dos vales que
por gerações haviam sido seu torrão natal. Levaram consigo uma versão da Bíblia
em sua própria língua. Foram precisas várias semanas para fazer a longa viagem.
Sua mobília ia empilhada em carros rústicos, puxados por animais de carga. O
gado, as ovelhas e cabras, seguiam a comitiva.
Depois de chegar ao novo país, dois dos dirigentes foram a Nápoles para
falar com o rei Fernando, que elaborou um convênio, garantindo aos estranhos
certa porção de terras. Ali poderiam eles viver em liberdade, governarem-se a si
mesmos e adorar a Deus conforme quisessem.
Não tardou que a região mudasse de aspecto. Tornou-se uma das mais
prósperas, frutíferas seções dos domínios do rei. Este, e o marquês de Spinello,
ficavam cheios de regozijo ao verem o país prosperar, e viam quão ricos ficavam
os valdenses. A maneira pronta por que os valdenses pagavam todos os impostos,
era-lhes particularmente agradável.
A fim de evitar dificuldades com a todo-poderosa igreja de Roma, os
valdenses consentiram mesmo em pagar os dízimos que os padres exigiam.
Durante o meio século que se seguiu, vários grupos seguiram os pioneiros que ali
se foram estabelecer, na cálida e fértil terra sulina.
Para que a fé religiosa dos valdenses da Calábria não viesse a enfraquecer,
iam regularmente pastores dos Alpes pregar nas igrejas, permanecendo cada um
ali por dois ou três anos. Voltava então um, e outro lhe ia ocupar o lugar. O papa
em Roma sabia dessas colônias de hereges, mas o povo vivia pacificamente,
33
sossegado, e pagando com fidelidade seus dízimos. O rei de Nápoles e os nobres,
achavam proveitoso permitir que os valdenses se estabelecessem em colônia em
seu país. Passaram-se mais algumas décadas tranquilas.
Veio então o tempo da Reforma protestante. A Alemanha, partes da Suíça,
toda a Dinamarca, Suécia e Noruega, romperam com a igreja romana, e
recusaram-se a dar-lhe qualquer dinheiro mais, ou obedecer aos mandamentos
papais. Ao chegarem as notícias nas colônias na Calábria, o povo regozijou-se.
Mal podiam crer que o povo agora pudesse pregar livremente o verdadeiro evan-
gelho de Jesus em muitas partes da Europa.
O espírito missionário começou a agitar novamente o coração dos valdenses
na Calábria. Ficaram convencidos de que tinham um dever de ensinar o povo que
vivia nas cidades e vilas vizinhas o que dizia respeito ao amor de Jesus, e que orar
aos santos e confessar os pecados aos padres não era necessário. Começaram
também a duvidar de seu costume de pagar dízimos à igreja papal. Escreveram à
igreja-mãe nos Alpes, pedindo que lhes fossem enviados alguns pastores
missionários.
Os pastores dos vales cogitaram quem deveriam mandar. Lembraram-se
então de um italiano que passara por seus vales dois anos antes, a caminho para
estudar na escola de Calvino em Genebra. Enviaram-lhe uma mensagem
convidando-o a ir como pastor missionário para as colônias na Calábria. O jovem,
Jean Pascale, não era cego aos perigos que haveria de enfrentar. Bem sabia que
todo esforço para disseminar os ensinos protestantes na Itália suscitaria a ira da
igreja estatal.
— Por que havia de ser você o escolhido para ir? — perguntou sua bela
noiva, Camila Guerina.
— É meu país — respondeu Pascale com tristeza — sei a língua, e aquele
povo é meu povo.'
Jean decidiu aceitar o convite, e preparou-se para partir. Ao chegar o triste
dia de sua partida, Camila caminhou a seu lado pela estrada. Finalmente, tinham
de separar-se. Passando-lhe os braços em tomo do pescoço, ela exclamou
dolorosamente: “Ai! tão perto de Roma, e tão longe de mim!”
Ali, de pé, acompanhou com os olhos seu amado até que ele lhe foi oculto
numa curva do caminho. Cheia de pesar, regressou à casa, para nunca mais o ver.
Chegando à Calábria, Jean se pôs imediatamente a pregar. Entrava com
ousadia nas cidades e vilas próximas e, Bíblia na mão, ensinava ao povo,
advertindo-os contra os falsos ensinos de Roma. Os padres ficaram enraivecidos.
Um grupo deles foi ter com o marquês de Spinello, exigindo que os hereges
fossem castigados. Com muita relutância, o marquês mandou que todos os
valdenses em sua região, aparecessem perante ele juntamente com os pastores.
34
Quando Pascale com seu rebanho compareceu perante o nobre, o marquês
falou-lhes asperamente, prendeu o pastor, e despediu seus seguidores exigindo
que se conformassem com os ensinos da igreja católica romana. Fez com que
Pascale fosse levado para Nápoles e amarrado com cordas cruéis, tão apertadas,
que lhe cortavam a carne, dos braços e das pernas. Então seus captores lançaram-
no em uma prisão escura e imunda.
Enquanto ele estava na prisão, um de seus irmãos, católico, foi visitá-lo na
prisão. Seu encontro foi na verdade triste. Bartolomeu apelou para Jean retratar
de seus erros, e entrar para a igreja de Roma. Ofereceu metade de sua fortuna,
caso Jean renunciasse a sua fé; rogou, porém, em vão. Pascale estava preparado
para morrer por sua fé, mas nunca a ela renunciaria.
Da prisão, escreveu Jean a sua noiva, indicando que provavelmente não se
encontrariam mais na Terra, mas exortando-a a ser fiel ao evangelho, lembrando-
lhe que se haviam de reunir no Céu. Pouco depois disto foi Pascale levado para
Roma, onde foi atirado numa prisão ainda pior do que aquela em que estivera em
Nápoles.
Havendo afastado o pastor, o marquês e o inquisidor que lhe fora enviado
de Roma para extirpar a heresia, pensaram que pouca dificuldade haveria com os
valdenses. Primeiro, o inquisidor chamou o povo de San Sexto a uma reunião, e
disse-lhes que deviam assistir à missa, ou serem destruídos. Deu-lhes prazo até
ao dia seguinte para decidir.
Silenciosamente, durante as horas de escuridão noturna, o grupo escapou,
indo buscar refúgio na floresta. O inquisidor foi à próxima cidade. Ali fez fechar
as portas da cidade de maneira que ninguém pudesse sair para as florestas.
Chamou então o povo, e disse-lhes que o povo de San Sexto todo havia
concordado em assistir à missa. Recomendou-lhes que se submetessem
igualmente à igreja.
Crendo no que ouviram, o povo consentiu em assistir à missa. Então as
portas da cidade foram abertas, e souberam que haviam sido enganados.
Deplorando sua fraqueza, decidiram unir-se a seus amigos de San Sexto nas
florestas, mas seu marquês, com promessas de reforma, persuadiu-os afinal a
permanecer.
O inquisidor mandou dois contingentes de homens armados contra o povo
de San Sexto. Os soldados seguiram a pista do povo às cavernas em que estavam,
e mataram-nos. As muitas pedras roladas de cima sobre os soldados pelos valden-
ses, desanimaram-nos de galgar muito longe atrás dos hereges. O inquisidor
chamou em seguida mais soldados, e um contingente maior reuniu-se em torno
dos valdenses, agora firmemente entrincheirados numa fortaleza.
Como os valdenses tivessem pouco mantimento, resolveram procurar fazer
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paz com os inimigos. Sob uma bandeira de trégua, um de seus líderes foi ao
acampamento do exército papal.
— Se nos deixarem ir em paz — disse ele aos soldados — atravessaremos a
Itália em direção a nosso antigo torrão natal, ao norte, e nunca mais os
perturbaremos. Mas os soldados não mostraram nenhum interesse.
— Isso não — disseram-lhes. Ou se entregam e renunciam a fé, ou serão
destruídos.
O mensageiro voltou com as tristes novas. — Não podemos fazer coisa
alguma senão defender-nos até morrer. Não podemos e não havemos de
renunciar a nossa fé.
Outra vez avançaram os soldados, apenas para serem enfrentados por mais
pesada chuva de pedras do que a anterior. As pedras mataram alguns, e feriram
muitos outros.
Então o vice-rei do exército publicou um edito, prometendo perdoar a todos
os bandidos, foragidos e criminosos que se quisessem unir em outro esforço para
reduzir os valdenses em suas fortalezas. Em resposta a esse convite, grande nú-
mero de homens se reuniram. Eles conheciam veredas secretas através das
montanhas, e serviram- se desse conhecimento para aproximar-se do forte por
todos os lados. Trepando por grandes rochas, arremeteram contra as barricadas,
e esmagaram os bravos defensores, que foram todos mortos na luta. Homens,
mulheres e crianças morreram juntos. Os soldados se apoderaram então dos
antigos lares dos valdenses e todos os seus bens. Valdenses de outras cidades da
Calábria foram reunidos em prisões, e mortos.
Com a destruição dos valdenses, foi-se a prosperidade da Calábria. Os
bandidos e salteadores sabiam lutar e matar, mas não sabiam lavrar a terra ou
cuidar de animais. Gradualmente, desapareceram as colônias dos valdenses na
Calábria.
O derradeiro ato da tragédia teve lugar em Roma. Por uma brilhante manhã
primaveril, todos os sinos se puseram a tocar a um tempo na cidade imperial. A
grande ponte que conduz ao pátio do castelo de Sto. Ângelo foi descida, e os
cidadãos da cidade se aglomeraram aos milhares sobre ela. Dentro em pouco o
povo apinhou-se no pátio. De um lado, achava-se sentado o papa Pio IV, rodeado
pelo brilhante aparato de cardeais, bispos e padres. No centro do pátio erguia-se
um tablado com um poste de ferro, uma cadeia e um monte de lenha.
Depois de encher-se o pátio, abriu-se vagarosamente a porta de ferro de
uma prisão subterrânea. Os espectadores ouviram o tilintar das cadeias,
enquanto um jovem tendo impressos na face sofrida os vestígios do sofrimento,
arrastou-se pelo recinto em direção ao tablado.
— Herege! Herege! Filho do diabo! — foram os gritos que ecoaram de todos
36
os lados. Uma tempestade de assobios saudou o jovem prisioneiro enquanto ele
ia arrastando as cadeias até o estrado, subindo então os degraus com dificuldade,
lentamente. Ao chegar à plataforma, voltou-se e enfrentou o povo. Ao erguer as
mãos cobertas de cadeias, foi grande o silêncio que caiu sobre a multidão.
— Boa gente — disse Pascale, o prisioneiro — vim aqui morrer, hoje por
confessar minha crença em meu divino Mestre e Salvador, Jesus Cristo. De boa
vontade dou minha vida por Ele, que deu a Sua por mim.
O moço voltou-se então e encarou o papa. Com um gesto em direção ao
pontífice, acusou-o de ser o assassino do povo de Deus, o inimigo do evangelho
de Cristo, citou-o então, a ele e a todos os seus cardeais a comparecerem um dia
perante o tribunal de Deus, onde seriam sentenciados por seus crimes contra
aqueles que amavam a Jesus.
O papa e seus cardeais, sentindo-se desconfortáveis por seu ataque,
acenaram ao executor para apressar a morte. Ele prendeu Pascale ao poste, pôs
fogo à lenha, e observou as chamas a consumi-lo. Suas cinzas foram reunidas e
lançadas no rio Tibre, que as levou ao Mar Mediterrâneo.

9 - Tempestades e Pragas

Enquanto Pascale e seus seguidores sofriam na Calábria, os valdenses lá nos


vales alpinos haviam estado a lutar contra o conde La Trinita e seu exército. Não
foi senão a 5 de julho de 1561, nove meses depois da execução de Pascale em
Roma, que o duque de Sabóia assinou um tratado de paz com os valdenses.
Então, o povo que se abrigara em Pra del Tor por tantos meses, partiu em
pequenos grupos para seus vales natais.
Muitas famílias tiveram uma dolorosa chegada ao lar. Os soldados
piemonteses haviam-lhes queimado as casas, destroçado sítios e arruinado os
pomares. Haviam derribado as vinhas e enchido de sujeira os poços. A perda,
porém, de muitos de seus rapazes mais promissores na guerra causava aos
valdenses a dor maior. Muitos anos se passaram antes que desaparecessem as
cicatrizes daquela guerra, e aos vales volvesse a prosperidade.
A falta de víveres tornava-se o mais urgente problema do povo. Passara já
o tempo de semear, ao terminar a luta no meio do verão. Ao chegar o outono,
era lamentavelmente pouco o que tinham a colher. Por essa época, também,
chegaram alguns dispersos vindos das desoladas colônias da Calábria, e contaram
tristemente o extermínio de seu povo. Os valdenses deram-lhes as boas-vindas,
mas isso importava em mais bocas para alimentar durante aquele primeiro
inverno, longo e doloroso, que seguiu à guerra.
As nações protestantes haviam observado a luta dos valdenses com
37
interesse e ansiedade. Ao chegarem a seus líderes as notícias dos celeiros vazios
daqueles pobres irmãos, não perderam tempo em enviar auxílio. O grande
reformador João Calvino, vivo ainda em Genebra, chefiou o movimento de
angariar provisões e roupas para os necessitados protestantes dali. Muitos dos
príncipes alemães, igualmente, fizeram coletas. Sem essa oportuna ajuda, os
valdenses haveriam perecido de fome durante aquele inverno.
Mais aflições, porém, sobrevieram ainda aos povos dos vales alpinos. O
duque de Sabóia sentia- se profundamente humilhado por seus exércitos
haverem fracassado em derrotar os agricultores das montanhas. O duque enviou
Castrocaro, que fora coronel sob as ordens de La Trinita, como governador dos
vales. Ele fora uma vez aprisionado pelos valdenses, tratado bondosamente,
sendo depois libertado. Em seu coração, no entanto, ardia um sentimento de
raiva contra os próprios que tão misericordiosos haviam sido para com ele.
Antes de Castrocaro assumir seus novos deveres, recebeu instruções de
duas pessoas. Primeiro, da bondosa duquesa, que era também protestante, e
rogou-lhe que protegesse seu povo lá nas montanhas. O segundo visitante, o
arcebispo de Turim, instigou-o a fazer tudo ao seu alcance para converter os
hereges ao catolicismo. O governador deu-lhe sua palavra de que faria tudo quan-
to lhe fosse possível.
Assim que o novo governador chegou a La Torre, que escolhera para sua
capital, começou a causar perturbações aos súditos. Primeiramente, ordenou que
mandassem embora muitos de seus melhores pastores. Em seguida, enviou ao
duque uma falsa informação, dizendo que os valdenses estavam se preparando
para rebelar-se e renovar a guerra. O duque enviou ao governador um regimento
a mais para habilitá-lo a manter a paz nas montanhas. O governador construiu
então reforçados fortes para guardar as entradas dos vales.
Aos cansados valdenses essas coisas pareciam às vezes mais duras de
suportar do que a guerra franca. Enviaram mensageiros ao duque, em Turim,
indicando os maus tratos a eles infligidos, e suplicando fim a suas aflições. O
governador, porém, envenenara por tal forma o espírito do duque, que lhes falou
asperamente, acusando-os de se prepararem para romper a paz, e mandou-os de
volta sem nenhuma esperança de mudança. Isto fez o governador mais ousado
do que nunca. Mandou notícias de que em breve os valdenses teriam de decidir
se voltariam à velha igreja, ou aceitariam a morte.
Em suas aflições, o povo pensou mais uma vez em seus poderosos amigos
da Alemanha. Mandaram apelos, rogando aos príncipes que interviessem e
procurassem persuadir o duque a tratá-los com justiça. A triste história tocou o
coração de Frederico, eleitor do Palatinado, que se compadeceu de seus irmãos
das montanhas. Escreveu vigorosa carta lembrando ao duque que Deus ouve o
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clamor dos oprimidos. “Cuide vossa alteza de não guerrear voluntariamente
contra Deus”, escreveu ele, “e não perseguir a Cristo em Seus membros.
Considere vossa alteza que a religião cristã foi estabelecida por persuasão e não
por violência.”
Não sabemos se o duque respondeu à carta do eleitor. Mudou, porém, seus
métodos. O governador parou com suas ameaças e atormentações. Morrendo o
duque, foi sucedido por seu filho. Sua mãe recomendou-lhe com insistência que
investigasse o que estivera fazendo o governador. Ao ser feito isso e descoberta
a maldade do homem, o duque mandou soldados para prendê-lo. Então,
Castrocaro reuniu um bando de homens maus e fugiu em busca de refúgio numa
fortaleza. Por algum tempo, defendeu-se bem, mas finalmente teve de render-
se. Foi escoltado por soldados a Turim, onde foi sentenciado a prisão, para passar
ali os últimos anos de sua vida.
Pelos cinquenta anos restantes, os valdenses viveram livres de guerra. O
ano de 1629, entretanto, trouxe calamidades que quase os destruíram. Primeiro,
uma tromba de água entre algumas das mais altas montanhas, ocasionou
enchentes de rios e inundações que arrebataram casas, gado, ovelhas e gente.
Em setembro soprou nos vales um vento gelado, desarraigando os bosques de
castanheiros, cujos frutos haviam servido tanto aos valdenses em tempos de
fome. Uma segunda tromba de água que arruinou por completo a colheita das
uvas, seguiu-se quase imediatamente.
Os pastores valdenses reuniram-se para uma sessão de jejum e oração. Ao
considerarem eles então os seus problemas, mal sabiam que uma tempestade
muito pior que qualquer das calamidades anteriores irromperia em breve em
seus vales.
Um exército francês sob o comando do Marechal Schonberg, penetrou nos
vales naquele verão, ocupando-os por várias semanas. Infelizmente, muitos dos
soldados de Schonberg haviam vindo de regiões francesas infestadas por praga.
Não demorou que essa terrível doença atacasse o povo das montanhas. Durante
os meses quentes de julho e agosto, caíram eles como o grão sob a foice. Quatro
dos pastores morreram em julho, e sete em agosto. Restaram apenas três
pastores; um em Lucerna, um em San Martin, e um em Perosa. Esses três pastores
encontraram-se no vale de Angrogna para estudar a maneira de prover direção
espiritual a seu povo flagelado. Resolveram pedir à igreja protestante da Suíça
em Genebra que lhes enviasse homens de Deus que substituíssem os pastores
que haviam tombado.
Naquele inverno a praga diminuiu, mas na primavera seguinte voltou mais
violentamente do que nunca. Um dos três pastores restantes também caiu.
Famílias inteiras jaziam de cama e morriam juntos. Segundo o cálculo dos
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relatórios, de metade a dois terços da população total do vale caiu pela praga.
Não sobreviveram trabalhadores suficientes para fazer a ceifa do trigo. As uvas
apodreceram nas videiras. Cidades e vilas outrora cenários de laboriosidade,
jaziam agora silenciosas. Um pastor perdeu quatro de seus filhos. Entrando e
saindo nos lares dos doentes e moribundos, esse homem de Deus, Pierre Giles,
viveu durante a praga para cuidar de seu povo afligido.
A igreja protestante da Suíça atendeu ao apelo dos valdenses, e mandou
uma porção de pastores. Acharam que não se deveria permitir que a luz do
evangelho bruxuleasse e se extinguisse nos vales. Os novos pastores falavam
apenas francês, e dirigiam todos os serviços nessa língua. Logo os valdenses
começaram a compreendê-la, pois seu próprio idioma era uma mistura de francês
e italiano. Não mais chamavam seus pastores de barbas, mas ministros. Amavam
os ministros suíços por suas maneiras suaves e atos de bondade.
O século de paz aproximava-se do fim. Pudessem os valdenses penetrar no
futuro, e contemplariam nuvens ainda mais negras a se condensarem. O trono de
Sabóia era ocupado por Carlos Emanuel II, jovem inexperiente. No trono da
França estava Luiz XIV, o mais poderoso monarca do século. Esses dois
governantes levariam os valdenses à beira da destruição.

10 - Moedas de Ouro Para o Marquês

Nem todos os valdenses moravam nos vales entre as montanhas. Alguns


viviam em vilas no sopé de colinas dos Alpes, e à margem de correntes que fluíam
dos vales. Também católicos ali moravam. Numa dessas vilas residia uma
meninazinha valdense chamada Maria. Esta, tinha uma companheirinha católica,
cuja casa ela frequentava, e cujos pais a tratavam bem.
Os pais de Maria não se importavam que ela visitasse um lar católico,
porque achavam que ela compreendia a Bíblia muito bem para suas crenças
religiosas serem abaladas.
Certo dia, a mãe da menina católica levou Maria à grande igreja católica na
vila, e mostrou-lhe as belas pinturas e imagens, velas e o altar coberto de panos
dourados. Maria nunca vira coisa semelhante, e pensou que tudo aquilo era
muito bonito. Depois disso, com frequência, a mãe católica perguntava a Maria
se ela não gostaria de tornar-se católica também. Mas a meninazinha valdense
apenas abanava a cabeça negativamente. A senhora resolveu mudar de método.
— A não ser que você prometa tornar-se católica um dia, não posso permitir
que você venha brincar com minha filha — disse ela a Maria uma ocasião. — O
padre vai ficar muito zangado se descobrir que minha menina brinca com uma
herege. Venha, prometa-me apenas que um dia você vai se tornar católica.
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Maria assustou-se, mas desejava continuar a brincar com sua amiguinha. De
modo que respondeu: — Minha mãe e meu pai não gostariam que eu fizesse isso.
— Eles nunca o vão saber de minha boca, e você também não deve dizer
uma palavra a esse respeito. Vamos, simplesmente diga que um dia você se
tornará católica.
Maria olhou ao rosto sorridente da mulher. Então, devagar, acenou que sim.
— Muito bem. Quando você tiver mais idade, farei com que o padre venha
e lhe ensine todas as coisas que você precisa saber. Agora, corra e vá brincar.
Maria procurou não mostrar a preocupação que a perturbava, quando
voltou para casa. Nem por todo o mundo ela queria que seus pais soubessem o
que ela prometera a sua vizinha católica. Continuaram as visitas diárias, mas de
algum modo, muito da alegria que nelas sentia desaparecera. Então um dia, para
terror seu, ela encontrou ali o padre, esperando para batizá-la com um pouco de
água benta que trouxera.
— Não, não, não ainda! Não posso batizar-me hoje. Espere mais!
— Você sabe o que acontecerá se você morrer antes de eu batizá-la na igreja
verdadeira? — perguntou o padre.
Tremendo, Maria não pôde senão sacudir a cabeça.
— Você vai direto para o inferno e queimará ali para sempre, e nunca mais
sairá dali. Pense nisso. Quando eu vier a próxima vez, você precisa estar pronta
para o batismo.
Desta vez, Maria ficou realmente atemorizada. Sua mãe viu logo que alguma
coisa perturbara a filha. Por algum tempo, Maria recusou-se a responder às
muitas perguntas de sua mãe. Depois de um pouco, ela rompeu em pranto, e
contou tudo a respeito de suas conversas com a senhora católica e com o padre.
Grandemente alarmada, a mãe contou ao marido tudo quanto acontecera.
Ambos sabiam que por muitos anos os pie- monteses haviam roubado crianças
valdenses, levando-as para conventos de frades e de freiras na planície, para
serem criadas como católicos.
Temendo que sua filha fosse arrebatada para longe, o pai de Maria primeiro
proibiu-a de visitar a casa de sua amiguinha. Arranjou ao mesmo tempo que ela
fosse levada à noite para ficar com uma parenta em uma vila distante, onde ficou
por vários meses.
No outono, depois da colheita das uvas, o povo da vila onde estava Maria
fez uma festa. Os pais da menina foram para a ocasião, e a visitar a filhinha. Como
se sentiram felizes ao ver a pequena bem e feliz! Passaram um dia muito agradá-
vel, até que, de repente, viram um bando de cerca de trinta homens a cavalo,
galopando rapidamente em direção a eles. Chegando os soldados ao círculo
daquela vila, apearam-se. Um deles precipitou-se para a frente, tomou Maria nos
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braços, e foi-se correndo antes que o povo aterrado pudesse fazer qualquer coisa
para detê-los. Os soldados galoparam então vale abaixo, desaparecendo no
crepúsculo da noite.
No decorrer das semanas e meses que se seguiram, os Contristados pais
buscaram por todos os modos possíveis descobrir para onde fora Maria levada.
Nenhum dos juízes falava no assunto com os pais. Quando os meses se foram
arrastando em anos, os pais de Maria desistiram da esperança de tornar a vê-la
ou de ouvir notícias a seu respeito.
Sete anos mais tarde, o pai ouviu que Maria, agora uma mocinha,
encontrava-se num convento em Novara, onde se tornara freira. Só depois de ela
haver feito todos os votos, consentiram as freiras que Maria escrevesse uma carta
a sua mãe. Lendo-a, os tristes pais compreenderam que alguém lhe ditara o que
devia escrever. E sabiam que jamais haviam de conhecer toda a história. Ficaram
no entanto aliviados por saber que sua filha vivia.
A mãe de Maria, compreendia, entretanto, que jamais tornaria a ver sua
filha. Em consequência de sua contínua tristeza, a saúde alterou-se, e contraiu
tuberculose. Então, ao tempo em que Maria deveria ter vinte anos, a abadessa
escreveu que a menina morrera de febre. Coração quebranta- do, a mãe morreu
pouco depois. Anos mais tarde, soube-se que seus raptores lhe haviam dado a
escolher ao chegar ela aos dezoito anos. Ou casar com um nobre católico com
grande fortuna, ou tornar-se freira. Como ela não quisesse casar, fora forçada a
fazer-se freira.
O que aconteceu a Maria, sucedeu também a centenas de outras crianças
valdenses. Os pais, esmagados de desgosto, rastrearam muitas vezes seus filhos
até lares católicos em Turim e outras cidades próximas. Ao rogarem que lhes
devolvessem seus filhos, recebiam sempre a mesma resposta:
— Se os senhores se tornarem católicos e forem batizados na igreja
verdadeira, então lhes devolveremos seus filhos.
Com tristeza volviam os destituídos pais pelo mesmo caminho ao desolado
lar sem os filhos ou as filhas. Não há nenhum registro de qualquer valdense
renunciar à fé a fim de reaver filho ou filha.
Em 1622, o papa Gregório XV estabeleceu uma nova sociedade na igreja
católica — a Sociedade para a Propagação da Fé. Seu desígnio era extirpar a
heresia, fosse por trazer os hereges para a igreja católica, fosse exterminando-os.
Dentro de poucos anos a sociedade estendera-se na Espanha, na França e na
Itália.
Em toda cidade e vila católica na Europa, o povo coletava dinheiro para essa
sociedade. Os padres empregavam o dinheiro para comprar os que se achassem
em dificuldades. Quando sabiam de um negociante protestante que ia à falência,
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ofereciam-lhe grande soma de dinheiro, caso se batizasse na igreja romana. Caso
um desafortunado viajante protestante fosse aprisionado e metido em uma
prisão, o padre ia visitá-lo, oferecendo-lhe liberdade e mais uma importância em
dinheiro, se ele se batizasse na igreja católica.
Pelo ano de 1650, fora estabelecido um ramo dessa sociedade em Turim,
capital do reino de Saboia. Seus membros determinaram que os valdenses que
morassem pelas proximidades, ou teriam de aceitar a fé católica ou ser
destruídos.
A marquesa de Pianeza tornou-se um dos principais sustentáculos dessa
sociedade em Turim. Ela não tivera um comportamento correto em sua
mocidade, e a consciência a perturbava. O padre disse-lhe que se ela quisesse
devotar seu tempo e fortuna à grande tarefa de converter os hereges, todos os
seus pecados lhe seriam perdoados. Assim, ela deu muito de seu dinheiro à
Sociedade para a Propagação da Fé e Extermínio dos Hereges.
Para começar a obra de ganhar os valdenses, a marquesa mandou um grupo
de monges capuchinhos pregar aos hereges dos vales. A princípio esses homens
julgaram que haviam de converter facilmente os valdenses, e desafiaram
ousadamente os pastores a discussões públicas. Os ministros, porém, conheciam
a Bíblia, e podiam com facilidade provar que os monges estavam em erro. Em-
baraçados, eles voltaram a Turim, e relataram à marquesa de Pianeza que não
haviam feito nenhum converso. Culpavam de sua derrota os pastores valdenses.
A marquesa convocou os membros de seu concilio para ver que novo plano
poderiam fazer para extirpar a heresia de Sabóia.
— Poderemos persuadir o duque de que é seu sagrado dever destruir esse
ninho de hereges? — perguntou um padre zangado.
— Não — respondeu a senhora. — Eu sei que ele está resolvido a não
romper a paz de seu reino atacando os valdenses.
— Se tão-somente os hereges fizessem alguma coisa irrefletida que
suscitasse a ira do duque!
— Creio que seria necessário esperar longo tempo por tal coisa. Eles vivem
muito pacificamente.
Depois de discutir o assunto por longo tempo, um dos monges pensou afinal
em um plano que, acharam, iria funcionar. No dia seguinte, o monge encontrou
dois homens que concordaram em entrar nos vales e procurar atrair os valdenses
em algum gesto precipitado.
Esses homens disfarçaram-se em viajantes valdenses. Uma vez no vale,
assistiram à reunião de um concilio geral. Disseram ao povo que o duque
planejava levantar um exército para destruí-los. O convento de capuchinhos,
disseram, era um ninho de espias, tramando sua destruição. Então outro homem,
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a quem esses estranhos haviam subornado, interveio, dizendo que também ele
havia ouvido isso, e sabia que era verdade.
— Vamos assaltar o mosteiro, expulsar os frades e queimar o edifício —
incitou um dos espias.
— Assim podemos mostrar ao duque que não dormimos, e não podemos
ser chacinados como ovelhas.
Alguns líderes do grupo concordaram. Naquela mesma noite, apareceram
diante do mosteiro, expulsaram os frades, e puseram fogo no prédio.
Prontamente chegaram ao duque notícias desse feito. Naturalmente, ele ficou
zangado ao saber disso, mas a marquesa e seu concilio, jubilaram. Finalmente,
haveria guerra. O duque convocou um exército de seis mil homens para marchar
contra Vilaro e liquidar com todos os protestantes.
Novas a esse respeito chegaram a Leger, o mais sábio e melhor dos pastores
valdenses. Foi imediatamente a Vilaro, onde juntou positivas provas de que os
homens que haviam tramado esse ato eram pagos pela Sociedade para a
Propagação da Fé. Com essas provas, foi ele a Turim, a fim de expô-las perante o
duque surpreendido, o qual cancelou imediatamente seu plano de castigar os
valdenses. Membros da Sociedade, profundamente zangados por haver seu
plano falhado, decidiram fazer ainda outra tentativa de provocar os valdenses à
violência.
Os protestantes de Vilaro trabalharam duramente, e repararam em breve o
mosteiro danificado pelo fogo. Os frades voltaram e votaram destruir a igreja
protestante dali. Uma vez que a igreja não distava muito do mosteiro, puseram-
se a abrir um túnel que iria dar diretamente embaixo do santuário protestante.
Planejaram arrastar vários barris de pólvora diretamente para debaixo da casa de
reuniões dos valdenses. Então, quando a congregação enchesse o edifício, poriam
fogo aos explosivos, fazendo voar pelos ares o edifício e todos quantos ali se
achassem.
Esse tremendo plano poderia haver tido êxito, não acontecesse que uma
mulher que ia andando pela rua certa manhã, ouvisse um ruído vindo dire-
tamente de debaixo de seus pés. Ela foi falar com o prefeito da cidade, contando
o que ouvira. Se bem que não crendo muito em sua história, ele concordou em
investigar. Guiado pela mulher, os dois voltaram na manhã seguinte àquele lugar.
Colocaram um tambor no solo diretamente sobre o ruído, que puderam ouvir
distintamente. Colocando uma moeda sobre o tambor, viram, para surpresa sua,
que ela se movia regularmente. Golpes amortecidos se podiam ouvir através da
terra embaixo deles.
Uma investigação nos prédios adjacentes, logo revelou o túnel, e evitaram
assim horroroso desastre. Todavia esse acontecimento encheu os valdenses de
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temor, pois viram que seus inimigos não se deteriam diante de coisa alguma em
seus esforços para destruí-los.
Em seguida a marquesa foi ter com o duque Carlos Emanuel II, pedindo que
publicasse um edito banindo os mais importantes pastores valdenses do país.
Como o duque houvesse recebido algumas cartas ameaçadoras do papa,
concordou, e emitiu o decreto. Isto forçou alguns dos pastores a fugirem para a
Suíça, outros para a Holanda, e outros para a Alemanha.
Por volta desse tempo, saíram algumas novas leis para atormentar os
valdenses. As leis fechavam-lhes as igrejas, e ordenavam às cidades protestantes
de Bóbio, Vilaro, Angrogna e Rora a construir casas de missões para os padres
capuchinhos, e fornecer-lhes mantimento. Proibiam qualquer estrangeiro de
chegar aos vales, sob pena de morte. Essa lei impedia que novos pastores da Suíça
substituíssem os que haviam morrido da praga ou sido banidos.
Não muito depois disso, a marquesa de Pianeza caiu muito doente,
compreendeu que iria logo morrer. Em seu leito de morte, mandou chamar seu
marido, de quem estivera separada por muitos anos. Cogitando o que ela
quereria com ele, o marquês entrou no quarto da doente. Ela saudou- o e logo
explicou sua perturbação.
— Temo grandemente que haja de ser castigada porque não pude converter
os hereges dos vales. Não posso morrer em paz a menos que você me prometa
que levará avante a obra da Sociedade, nunca desistindo enquanto os valdenses
hereges não haja voltado à verdadeira igreja. Aceita essa responsabilidade?
O marquês hesitava. Esta não seria exatamente a tarefa que ele escolheria.
— Tenho depositado grande soma de dinheiro na mão do arcebispo —
continuou ela — e já o instruí a dar a você, quando os vales forem limpos de
hereges. Por favor, prometa que fará isso por mim.
Os olhos do marquês abriram-se muito, surpreendidos. Considerava isso
boas novas, na verdade. Estendeu a mão e confirmou o acordo.
— Será segundo o seu desejo. Hei de cumprir fielmente seus desejos.
Poucas horas depois, a marquesa morria. O marquês decidiu ganhar a
fortuna que o aguardava no palácio do bispo o mais depressa possível. E sabia de
uma única maneira de converter os hereges — matá-los.
Apressando-se, foi ter com o duque, persuadindo-o a publicar um edito
ordenando aos valdenses que habitavam em Lucerna, Fenile, Bubiana,
Biquerásio, San Giovani e La Torre a deixarem seus antigos lares, e retiraram-se
para os vales centrais de Bóbio, Angrogna e Rora, dentro de vinte dias, ou serem
mortos. Esse edito privava os valdenses de suas terras mais férteis. E continuava,
dizendo que aqueles que renunciassem à fé protestante, não precisavam retirar-
se.
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Esse decreto, publicado a 25 de janeiro de 1655, em meados do inverno,
ocasionou aos valdenses grandes sofrimentos. Profunda era a neve nos vales,
enchentes avolumavam os rios e as montanhas achavam-se cobertas de gelo.
Nem uma família, porém, entre os milhares que moravam nos distritos incluídos
no edito concordou em ficar em suas terras e assistir à missa. Em lugar disso,
famílias puseram de parte seus pesados artigos de mobília, ataram suas escassas
provisões de alimentos e roupas em fardos, e com rebanhos de ovelhas e cabras
marcharam penosamente das cidades em que seus antepassados haviam vivido
por séculos. Fugiram para os valdenses que residiam em regiões mais favorecidas.
Os valdenses consideraram sua situação. Não tinham suficiente solo nos
três vales que lhes restavam para produzir mantimento para toda a nação.
Certamente, pensaram, seu príncipe não podia compreender quão impossível
lhes seria viver ali, empilhados uns contra os outros.
Mais uma vez escolheram um grupo de homens mais sábios da nação e
enviaram-nos a Turim para pleitear com o duque. Alguns oficiais ouviram-lhes a
triste história. Muitos anos atrás, salientaram os valdenses, seus pais haviam
assinado tratados com duques anteriores, que lhes davam o direito de viver nas
outras cidades e vales. Acaso pretendia o duque agora violar aqueles tratados?
Descreveram as deploráveis condições dos fugitivos, e mostraram a tragédia que
a nação enfrentava caso o duque não lhes concedesse mais terra em que viver.
Os ouvidos do príncipe, porém, haviam sido envenenados por mentiras. Ele
nem sequer se encontrou com os delegados. Os oficiais, porém, asseguraram aos
valdenses que a questão seria considerada. E eles tiveram de satisfazer-se com
essa promessa.
Então os valdenses foram detidos em Turim até 17 de abril, pois seus
inimigos não queriam que eles voltassem e alarmassem o povo dos vales, a quem
esperavam tomar de surpresa. Naquela mesma noite, à meia-noite, o marquês
de Pianeza saiu, secretamente de Turim à testa de um exército de quinze mil
homens. Queria, mais do que nunca, ganhar o ouro que sua mulher havia deixado
com o arcebispo.

11 - Dezoito Homens Contra Mil

La Torre, a maior das cidades valdenses, ficava na confluência de três rios.


Um descia do vale de Angrogna, e um vale de Rora. A corrente maior, o Pelice,
chegava depois de regar o vale de Lucerna. A presença do marquês de Pianeza e
seu exército próximos dessa cidade, pôs os habitantes desassossegados.
O exército do marquês constituía-se principalmente de soldados
piemonteses, com alguns regimentos emprestados pelo governo francês. Con-
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tava também com dois mil exilados irlandeses a quem Cromwell expulsara de seu
país. Os valdenses tinham apenas três mil homens armados para enfrentar os
quinze mil soldados do marquês.
O marquês de Pianeza descobriu que os homens de La Torre haviam
levantado uma barricada guardando a principal entrada da cidade. Ordenou a
seus homens que a atacassem imediatamente, mas tão fortemente defenderam-
na os valdenses, que depois de várias horas de renhido combate, ele retirou o
ataque.
Durante a noite, um grupo de piemonteses moveu-se de manso para o
outro lado da cidade. Pela manhã, atacaram os valdenses de dois lados. Os
sobrepujados valdenses escaparam por um caminho não guardado para as
montanhas, com perda de poucos soldados.
As notícias da luta se espalharam rapidamente até às mais afastadas vilas
valdenses. Os homens deixaram seus sítios, pegaram os mosquetes, as espadas,
ou fundas se não possuíam armas melhores, e apressaram-se aos pontos
ameaçados, prontos a enfrentar o inimigo e proteger suas famílias.
O marquês mandou numerosas patrulhas armadas em várias direções,
tentando capturar os vales. Alguns desses contingentes conseguiram sur-
preender os habitantes das vilas. Queimaram-lhes as moradas, mataram homens
e mulheres, e levaram-lhes os filhos para as escolas católicas em Turim e outras
cidades na planície. Na maioria dos casos, porém, os valdenses conseguiram
derrotar seus inimigos, embora por vezes sobrepujados em número na proporção
de dez contra um. Grupos de soldados piemonteses voltaram a La Torre com a
notícia das perdas de quinhentos a seiscentos homens. Os soldados não lograram
forçar a entrada em qualquer dos vales maiores.
De Pianeza começou a pensar se ele ganharia um dia a fortuna que sua
mulher lhe deixara. Lera a respeito das fracassadas expedições de Cataneo e de
La Trinita em tempos passados. Talvez sua missão terminasse em derrota
também.
Como La Trinita antes dele, resolveu recorrer aos ardis. Na manhã de
quarta-feira, 21 de abril, com um sonido de trombetas, apareceram arautos do
marquês diante dos surpreendidos valdenses em trincheiras. Sendo-lhes
perguntado o que desejavam, declararam que os valdenses deviam enviar
representantes ao quartel-general, para falar com o marquês que não desejava
derramar sangue, mas simplesmente restaurar a paz. O marquês, disseram,
estava preparado para fazer um ajuste que satisfaria a todos. Isso pareceu uma
boa notícia aos soldados lavradores, de modo que, no dia seguinte, seus
representantes chegaram a La Torre para ver De Pianeza.
Ele recebeu os valdenses com a máxima cortesia, e expressou seu desgosto
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pela guerra e o sofrimento que havia causado.
O duque de Sabóia, afirmou, dera-lhe autoridade para fazer paz, de modo
que o povo pudesse voltar a seus lares sem temor ou perdas posteriores.
— Que devemos nós fazer para restabelecer a paz? — perguntaram os
enviados.
— Só há uma condição. O duque pede-lhes que recebam um regimento de
seu exército em cada um de seus vales principais, para que aí permaneçam por
algum tempo, e ajudem a manter a ordem.
Os homens curvaram-se e retiraram-se para levar os termos aos vales.
Reuniram um concilio a que concorreu grande número de pessoas. Os pastores
acharam imprudente permitir que soldados entrassem nos vales, e fizeram força
para que essa parte do ajuste fosse rejeitada. O povo, porém, cansado de
privações e sofrimentos, queria paz. A maioria sobrepujou com facilidades os
poucos pastores, e mandaram dizer ao marquês que aceitavam os termos.
Prontamente entraram nos vales de Lucerna e de Angrogna os soldados
piemonteses, estacionando nos lares dos valdenses. Estes, poucos mantimentos
tinham agora, pois sofriam os efeitos de sustentarem os fugitivos de outros vales
durante o inverno. Partilharam, entretanto, o que tinham com os soldados,
cederam-lhes seus leitos, e trataram-nos com tanta cortesia quanto os soldados
permitiram. Mal suspeitava aquele povo simples que os soldados que abrigavam
seriam em breve seus assassinos.
Três dias passaram em paz. De Pianeza colocou soldados nas entradas e
saídas de cada vale para cortar qualquer possibilidade de escape. Então, às 4 da
manhã do sábado, 24 de abril de 1655, partiram tiros do castelo de La Torre. A
esse sinal, ergueram-se os soldados, e começaram um massacre mais cruel que
qualquer coisa já registrada sobre um povo civilizado. Ninguém saberá jamais
quantos morreram naquela primeira hora, mas os gritos do povo torturado
indicavam centenas de vítimas. Dentro em pouco, o fumo das casas enchia os
céus. As correntes velozes tingiam-se de sangue. Ao tentarem os valdenses fugir
para as montanhas, os soldados o seguiam e matavam. Esses soldados
inventaram novos métodos de tortura e morte para o povo valdense. Apenas
alguns conseguiram escapar pelas montanhas.
Findo o massacre, De Pianeza planejou em seguida destruir Rora, pequena
colônia separada de La Torre por uma cadeia de montanhas. As novas do
massacre não podiam chegar a Rora prontamente em virtude dos passos da
montanha se encontrarem bloqueados pela neve. Sua população sabia apenas
que fora assinado um tratado de paz. De Pianeza escolheu quinhentos de seus
melhores soldados, despachando-os contra Rora. Ordenou-lhes que destruíssem
a vila e todos os seus habitantes, trazendo seus animais e bens para La Torre.
48
De Pianeza, porém, ignorava que vivia em Rora Josué Giavanelo, homem de
grande coragem e um dos mais notáveis capitães que já haviam vivido nos vales.
Relanceando o olhar para o alto, enquanto trabalhava certa manhã, viu Giavanelo
uma linha de pontos negros movendo-se pela estrada que conduzia ao vale. O
capitão compreendeu num momento que eram soldados, e suspeitou de seu ob-
jetivo. Largando o arado, apanhou o mosquete e correu ao encontro do inimigo.
A caminho, apanhou mais seis companheiros que concordaram em ajudá-lo. O
pequenino grupo de sete homens apressou-se para a frente ao longo do trilho na
floresta a fim de enfrentar os quinhentos!
Giavanelo colocou seus homens onde podiam acompanhar o inimigo
caminhando pela estreita garganta da montanha. De ambos os lados erguiam-se
gigantescas rochas. Os soldados piemonteses moviam-se descuidosamente
avante, longe de sonharem com perigo da parte dos habitantes de Rora, vila de
não mais de trinta famílias.
Um repentino troar de mosquete sobressaltou os soldados.
Compreenderam que haviam sido descobertos. Sete homens caíram naquele
primeiro disparo. Os outros pararam, olharam em redor, mas não viram ninguém.
Os mosquetes tornaram a falar, e mais soldados caíram. Foram tomados de
pânico, pois não tinham a mínima ideia de quantos atacantes se poderiam ali
encontrar.
— Salvem-se! Estamos perdidos! — gritaram os homens enquanto se
voltavam para fugir pelo trilho por que haviam descido. Giavanelo seguiu-os por
uns seiscentos metros, até certificar-se e que não voltariam por algum tempo.
Naquela mesma tarde alguns dos homens mais idosos de Rora atravessaram
a montanha para La Torre, e queixaram-se ao marquês do ataque daquela manhã
a sua vila. De Pianeza fingiu-se grandemente surpreendido.
— Vocês fizeram bem em lutar para expulsar aqueles que os atacaram.
Devem ter sido bandidos, pois certamente não foram meus soldados. Voltem as
suas famílias, e não temam. Empenho-lhes minha honra de que nenhum mal lhes
sucederá.
Giavanelo ouviu essas palavras e promessas, mas não se enganou. Estava
certo de que o marquês ordenara o ataque, e de que certamente iria tentar de
novo. Alistou, portanto, dezoito homens que prometeram lutar com ele. Doze
possuíam mosquetes e espadas; os outros seis, só fundas. Depois de postar
espias, o valoroso capitão esperou o ataque.
Efetivamente! Na manhã seguinte um dos espias divisou outro grupo de
soldados penetrando no vale por outra direção. Novamente Giavanelo pôs seus
homens de emboscada e aguardou o inimigo, que marchava
despreocupadamente pela floresta, sem suspeitar do perigo. De súbito, foram
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assaltados por uma chuva de pedras das fundas dos valdenses. Os soldados
marchavam tão juntos, que nenhuma pedra errou o alvo. Os piemonteses
preparavam-se para atirar, quando o estampido dos mosquetes mostrou-lhes
que os inimigos também tinham carabinas. O chuveiro de pedras tornou-se mais
sério, e logo as carabinas renovaram a carga. Como no dia anterior, o pânico
apoderou- se dos soldados. Atirando fora suas armas, fugiram montanha acima.
Os valdenses perseguiram-nos até ao cimo do desfiladeiro, onde deslocaram
grandes pedras que mandaram montanha abaixo esmagando, infligindo mais
perdas nos invasores, e aumentando-lhes o terror.
Foram pela segunda vez representantes de Rora entrevistar-se com o
marquês de Pianeza. Desta vez, ele não procurou fingir que os soldados não eram
seus, antes explicou que haviam sido feitos alguns ataques contra o povo de Rora,
e ele mandara seus soldados a investigar. Mas agora verificara que as acusações
eram falsas, e eles não seriam perturbados outra vez. Deviam voltar a sua vila, e
não se preocupar com um ataque.
Mais do que nunca havia o marquês ficado furioso agora. Sabia que apenas
um punhado de homens defendera Rora, e decidiu capturá-la e destruí-la. Na
manhã seguinte, mil homens saíram de La Torre. As forças estavam divididas e
preparadas para entrar no vale de quatro lados. Seu número era tão grande, que
Giavanelo achou que seria loucura tentar detê-los. Ele e todos os habitantes da
vila retiraram-se para uma fortaleza na encosta da montanha, de onde poderiam
observar e aguardar sua oportunidade de atacar.
Os piemonteses chegaram, regozijando-se por não haverem encontrado
nenhum inimigo no caminho. Penetraram na vila, saquearam-na, e apoderaram-
se de tudo que fosse de valor, mas não encontraram ninguém. Antes de irem-se
embora dali os soldados atearam fogo a algumas das casas. Depois, carregados
com o despojo, puseram- se a caminho de volta a La Torre.
Giavanelo estivera à espreita do momento favorável. Tinha-o agora.
Primeiro, porém, ajoelhou- se e deu graças a Deus por que duas vezes dera a
vitória a seus homens. Pediu coragem e força de coração ao preparar-se ele para
libertar seu povo dos inimigos mais uma vez.
Seguindo caminhos secretos através das montanhas que tão bem conhecia,
o capitão colocou seus homens em pontos estratégicos acima e na frente dos
piemonteses. Ao chegarem os inimigos, os valdenses atacaram-nos
vigorosamente. Os soldados do marquês, julgando passado todo o perigo foram
apanhados de surpresa. Jogaram fora os despojos que haviam colhido, e só
buscaram fugir às balas, setas e pedras disparadas pelos valdenses. Apenas alguns
chegaram de volta a La Torre para informar o marquês de que seu terceiro
esforço para destruir o povo de Rora terminara ainda uma vez em desastre.
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Num acesso de raiva, Pianeza ordenou que todo o seu exército se
preparasse para marchar contra Rora. Quando o capitão Mário, o chefe do regi-
mento irlandês, gabou-se de que, com seus soldados, ele prontamente venceria
o pequeno grupo de hereges, Pianeza deu-lhe permissão de demonstrá-lo.
Avançando ousadamente com seus irlandeses, ele encontrou a mesma
catástrofe dos outros contingentes. Os valdenses atacaram-nos de súbito das
alturas, rolando pedras de grandes dimensões sobre os soldados, muitos dos
quais foram esmagados. O próprio capitão foi empurrado para a beira de um pe-
nhasco, e caiu num precipício. Seus soldados manobraram para salvá-lo.
Levaram-no ferido de volta a La Torre, onde ele morreu dois dias depois.
Pianeza ficou mais furioso que nunca. Esperara assegurar riqueza, honra e
glória pela destruição dos hereges dos vales; em lugar disso, esses lavradores-
soldados haviam-lhe derrotado milhares de suas melhores tropas. Nem um do
grupo de Giavanelo lhe caíra nas mãos. Não admira que o duque de Sabóia se
queixasse posteriormente de que a pele de cada valdense lhe custara quinze de
seus melhores soldados.
Pela última vez, Pianeza convocou seu exército na praça de La Torre,
escolheu três grupos de soldados, em número de dez mil, ao todo, e mandou-os
por três caminhos diversos a conquistar a pequenina Rora.
Desta vez Giavanelo não logrou salvar sua avassalada vila. Os habitantes que
os soldados não mataram no local, levaram para lançar em celas de prisões.
Giavanelo e seus soldados planejaram escapar pelas montanhas para outro vale.
Olhando para trás, os guerreiros viram, do topo do desfiladeiro, a fumaça da vila
incendiada e, em sua profunda dor, pensaram se alguma coisa poderia ser feita
para salvar seu povo da destruição total.
Os prisioneiros levados para La Torre, incluíam a esposa e três filhas de
Giavanelo. Essa notícia deleitou Pianeza. Escreveu a Giavanelo a seguinte carta:
“Exorto-o, pela última vez a renunciar a sua heresia. Esta é a única
esperança de vir a obter o perdão de seu príncipe, e de salvar a vida de sua mulher
e suas filhas, agora minhas prisioneiras, e as quais, se você continuar obstinado,
queimarei vivas.”
Na mesma carta ele ameaçava também a Giavanelo, dizendo-lhe que se ele
não se rendesse, seria posto preço a sua cabeça.
Giavanelo não negou sua fé, mas respondeu:
“Não há tormentos tão terríveis, nenhuma morte tão bárbara que eu não
preferisse a negar a meu Salvador. Suas ameaças não me podem fazer renunciar
a minha fé; antes nela me fortalecem. Fizesse o marquês de Pianeza minha
mulher e minhas filhas passarem pelo fogo, isto não consumiria senão seu corpo
mortal; sua alma, encomendo-a a Deus, confiante de que Ele delas terá
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misericórdia e de mim, se Lhe aprouver que eu caia nas mãos do marquês.”
Não representa aquela carta a mais rude derrota infligida por Giavanelo ao
marquês? Não se sabe se ele queimou a mulher e as filhas de Giavanelo, mas
sabe-se que elas nunca mais voltaram ao bravo capitão valdense. Com um filho a
quem ele conseguira salvar, Giavanelo atravessou os Alpes para a França, onde
deixou-o aos cuidados de amigos. Volveu então a sua desolada terra natal.
Havendo sabido de suas proezas e admirado sua bravura, centenas de fugitivos
valdenses a ele se reuniram. O cuidadoso treino que ele lhes deu, tornou-lhes
possível derrotar repetidamente o inimigo.
Esquadrões volantes de valdenses começaram a atacar e derribar pequenos
grupos dos soldados do marquês, errantes fora de seus acampamentos. Muitos
dos valdenses também foram mortos, mas o povo permaneceu invencível em seu
espírito in- quebrantável. Não há registro de um único valdense que se unisse à
igreja católica.
O futuro, entretanto, afigurava-se sombrio a Giavanelo e aos bravos que o
acompanhavam. Por quanto tempo seria possível aos fugitivos permanecerem
escondidos? Onde poderiam encontrar alimento? Onde se abrigariam eles ao
passar o verão, e chegar o amargo frio do inverno? Deus, unicamente, poderia
trazer-lhes livramento. Dia e noite, corações e vozes erguiam-se a Ele em oração,
a Ele que, tão somente, tinha poder de salvá-los da destruição.

12 - Homens Que Lutaram Como Leões

Ao espalharem-se as notícias da terrível destruição causada pelo marquês


nos vales de Lucerna e Angrogna, centenas de valdenses de outras regiões alpinas
fugiram de seu país. Alguns subiram por elevadas gargantas de montanhas,
chegando afinal à Suíça, onde o povo das terras protestantes os acolheu
calorosamente. Em especial Genebra, a cidade de Calvino, abriu seus lares aos
pobres fugitivos. Outros valdenses fugiram em direção ao oeste, pelos Alpes, para
os vales pertencentes à França.
O duque de Sabóia ficou enraivecido ao pensar que seus súditos estavam
escapando. Mandou à corte da França um mensageiro para protestar contra o
abrigo que a França estava dando a seus! súditos rebeldes, e pedir que fossem
imediatamente enviados de volta a seu país. Mazarino, que dirigia o governo
durante a infância de Luiz XIV, respondeu-lhe que lhe era impossível, em nome
da humanidade, recusar refúgio ao pobre povo fugitivo, mesmo sendo ele
protestante.
Países protestantes do norte, a Alemanha, a Holanda e, sobretudo a
Inglaterra, receberam as notícias dos massacres com pasmo e horror. Muitos
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acharam a princípio impossível crer que tais atos pudessem ser praticados por
um príncipe cristão a seus próprios súditos, mas as histórias que os fugitivos
contavam, bem como os relatos de testemunhas oculares, não podiam ser
negadas. Oliver Cromwell, à testa do governo inglês, proclamou um jejum
nacional e começou a fazer uma coleta para ajudar os valdenses. Ele próprio fez
um donativo individual de dez mil dólares.
Cromwell fez ainda mais. Ditou uma carta ao duque de Sabóia, cujo país
limitava-se com a França, para ver se a perseguição aos valdenses parava ime-
diatamente. Enviou também sir Samuel Morland, de sua própria corte, para dizer
ao duque pessoalmente, que a Europa ficara horrorizada com os tremendos atos
praticados por seus soldados.
A tempestade que seu procedimento havia criado através da Europa causou
pasmo ao duque. Tentou a princípio negar que houvessem ocorrido quaisquer
massacres, mas a prova esmagou-o. Os vales desolados, as moradas queimadas
e centenas de corpos jazendo ainda insepultos, tornaram-se provas de sua
crueldade. Morland, que passara em pessoa pelos vales a caminho de Turim,
estava chocado com o que vira. De pé diante do culpado duque e de sua mãe,
que ajudara a instigar ao massacre, Morland falou ao príncipe como nenhum
outro lhe ousara falar.
— Se todos os tiranos de todos os tempos e séculos revivessem — disse ele
— sem dúvida se envergonhariam ao verificar que coisa alguma bárbara ou
desumana, em comparação com esses atos fora jamais inventada por eles. Ao
mesmo tempo, anjos são possuídos de horror; os homens tonteiam de pasmo; o
próprio Céu assombra-se aos gritos dos moribundos, e a Terra mesma ruboriza-
se com o sangue de tantos inocentes.
O duque prometeu pôr termo às perseguições, e Morland deixou a Sabóia
para visitar a Suíça e a Alemanha a fim de procurar emissários que pudessem
voltar com ele, e ajudar a assegurar uma paz justa para os valdenses.
Entretanto, porém, continuava a guerra nos vales. Giavanelo e outro
patriota, Giaheri, recrutaram bandos de valdenses que se voltaram com fúria
contra os soldados piemonteses. Tantos dos valdenses haviam sido mortos, que
ambos os bandos juntos somavam apenas quinhentos homens. Contra eles havia
mais de quinze mil soldados do duque de Sabóia.
Se bem que poucos em número, os soldados valdenses possuíam uma
grande vantagem. Conheciam cada caminho, cada trilho e cada fortaleza em seus
vales. E tinham outra vantagem ainda. Lutavam por uma causa justa e podiam
pedir a Deus auxílio e forças na defesa de seus lares e no conservar a antiga fé.
Seus inimigos, por outro lado, haviam ido aos vales para matar, destruir,
saquear. Olhavam com pasmo um punhado de valdenses lançando contra eles
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poderosas forças, e muitos ficaram convencidos de que Deus ajudava os hereges.
Os valdenses atacavam com tal ousadia, determinação e êxito, que muitos dos
soldados piemonteses perdiam o ânimo.
Os exércitos não travavam agora grandes batalhas, mas dezenas e dezenas
de pequenos combates em vários pontos dos vales. Crescia gradualmente o
número dos grupos valdenses, à medida que voluntários se iam a eles reunindo.
Vieram huguenotes da França, e outros soldados protestantes da Suíça,
Alemanha, Holanda e Inglaterra.
— Eu sempre havia considerado os valdenses homens — disse Descombies,
um francês que os fora ajudar — mas verifiquei que são leões.
Coisa alguma podia deter ou fazer recuar os valdenses. Pouco a pouco,
expulsaram seus inimigos dos vales. Quando, porém, a guerra passou para as
planícies do Piemonte, os valdenses perderam muitas de suas vantagens das
montanhas. Ali foi o bravo Giavanelo gravemente ferido em combate, e forçado
a deixar o exército por cerca de dois meses. O comando recaiu em Giaheri, que
procurou manter a causa do chefe ausente.
Certo dia aproximou-se de Giaheri um homem dizendo-se valdense.
Ofereceu-se para conduzir o exército a um lugar em que, com pequeno esforço,
eles poderiam obter o domínio de poderosa fortaleza. Sem nada suspeitar de mal,
Giaheri e seus homens esforçaram-se na marcha, mal sabendo que seu guia era
um comprado traidor. Ele levou os valdenses diretamente a uma emboscada em
que os soldados do duque, atacando de todos os lados, em grande número,
derrotaram-nos completamente. O próprio Giaheri pereceu nessa luta, e a seu
lado caiu seu valoroso filho. A despeito desse severo revés, os valdenses
juntaram-se, e em breve Giavanelo tomou o comando, conduzindo seus soldados
à vitória mais uma vez.
Enviados de Luiz XIV chegaram comissionados a arranjar termos de paz com
o duque e seus súditos protestantes. Havia também representantes da Suíça, mas
os enviados da Inglaterra e da Alemanha não haviam ainda chegado. Infelizmen-
te, os suíços permitiram que fosse feito um tratado de paz, e assinado
precipitadamente. Por esse tratado, os valdenses perderam suas antigas terras à
margem do Rio Pelice.
Duros como fossem os termos da paz, os valdenses sentiram alívio em
assiná-los. Tinham paz afinal. Cativos foram libertos da prisão, e algumas das
crianças roubadas foram restituídas. Visto seu país haver sido tão devastado, o
governo concordou em suspender os impostos do povo por cinco anos.
Os valdenses aceitaram esses termos, e o duque perdoou seus súditos
“rebeldes,” como os chamava, e tomou-os mais uma vez sob sua proteção. Os
valdenses, porém, haviam-se submetido a um tratado que os colocava mais uma
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vez inteiramente sob o domínio do duque de Sabóia, dando-lhe poder de tornar-
lhes a vida fácil ou dura. Ele, decidindo dominar os valdenses para sempre, apres-
sou-se a construir uma fortaleza vigorosa em La Torre, cidade-chave para os vales.
Os vinte anos seguintes demonstraram-se difíceis para os valdenses.
Compreendendo que a perseguição aberta lhe acarretaria a ira da Europa
Protestante, o duque começou uma série de tormentos. Novamente começaram
a desaparecer, roubadas e carregadas, as crianças valdenses, para serem criadas
em mosteiros e conventos de freiras. Os pais que iam a Turim protestar, eram
muitas vezes apanhados e atirados nas prisões.
Os frades andavam pelos vales. Construíam muitas igrejas e capelas novas.
O duque acrescentava-lhes novos impostos, os quais se tornavam a cada ano mais
pesados.
Então, um ano, o duque exigiu de repente meio milhão de coroas de ouro.
Os valdenses perguntaram a que se destinava esse tributo. Ele lhes disse que a
guerra para vencê-los custara isso, e agora eles deviam pagá-lo! Os valdenses
protestaram que não se haviam rebelado, mas simplesmente combateram para
defender-se e a suas esposas e filhos. Em sua grande perplexidade, apelaram para
o rei de França! Se bem que Luiz XIV se viesse depois a tornar um dos maiores
perseguidores dos protestantes, que já governaram na Europa, não estava então
na disposição de perseguir os valdenses. Em resultado, o total da imposição de
tributo foi reduzido a cinquenta mil coroas.
Uma vez mais, porém, os valdenses perderam muitos de seus melhores
pastores. Durante todos os anos da chamada “paz”, primeiro um, depois outro
de seus líderes teve ordem de deixar o país e não mais voltar. O duque de Sabóia
e seus conselheiros católicos compreenderam que os pastores eram os dirigentes
do povo. Fossem eles mandados embora, talvez enfraquecesse a vontade do
povo para resistir.
Os valdenses perderam um bom amigo, e defensor com a morte de Oliver
Cromwell. Esse inglês levantara em benefício deles muitíssimo dinheiro. Apenas
parte dessa importância havia sido enviada aos valdenses ao tempo de sua morte.
Isto lhe fora de grande auxílio na reconstrução de suas habitações e na compra
de novos rebanhos de ovelhas e gado. Ao tomar Carlos II o trono da Inglaterra,
porém, declarou que não era sua obrigação cumprir as promessas de seu
predecessor. De modo que fez reverter aquele dinheiro a seu próprio tesouro.
Em 1675, morreu Carlos Emanuel II, e seu filho de nove anos de idade, Vítor
Amadeu II, tornou-se duque de Sabóia. Enquanto ele foi de menor idade, sua mãe
governou realmente o país. Como um dos primeiros atos do novo governo, foram
confirmados os antigos direitos e privilégios dos valdenses, assegurando-lhes
maior liberdade religiosa do que haviam fruído por muitos anos. Cessaram por
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um tempo as perseguições.
O jovem duque empunhara o poder havia apenas um ano quando rompeu
uma guerra entre a Sabóia e o povo de Gênova. Os valdenses congregaram-se em
torno da bandeira de seu príncipe, e ajudaram-no a ganhar importante vitória. O
governo exprimiu-lhe profunda apreciação por seu valor e dedicação, que ajudara
a ganhar a guerra.
Em um país vizinho, no entanto, iam tendo lugar acontecimentos que
trariam grande aflição aos valdenses. Em 1685, Luiz XIV revogou o edito de
Nantes, que dera liberdade aos huguenotes, como eram chamados os protes-
tantes franceses. O rei declarou que, no futuro, só uma religião, o catolicismo,
poderia ser praticada na França. Ordenou que todo cidadão se unisse a essa
igreja.
Muitos protestantes obedeceram à ordem, e se uniram à igreja católica,
embora não cressem realmente o que ela ensinava. Outros, porém, que se
demonstraram fiéis, foram para esconderijos, de maneira a poderem continuar a
viver segundo sua fé. Muitos mais, talvez meio milhão, fugiram da França,
cruzaram as fronteiras e começaram novamente a vida em terras protestantes da
Suíça, Alemanha, Holanda e Inglaterra. Alguns fugiram mesmo para além do
Atlântico, estabelecendo-se nas colônias americanas.
Abaixo, próximo do limite sul da França, estava a terra dos valdenses. O rei
sabia que alguns de seus súditos huguenotes haviam fugido para aqueles vales,
para ali viver. Discutiu o assunto com seus conselheiros, e resolveram que todos
os protestantes nos vales deviam ser forçados a entrar para a igreja católica, ou
ser expulsos de suas terras. Um despacho foi enviado ao embaixador francês na
corte de Turim.
Aquele homem aproximou-se de Vítor Amadeu, e informou-o de que o rei
da França, havendo livrado seu reino de todos os hereges, sentia ser seu dever
fazer com que o duque fizesse a mesma coisa nas suas terras.
Essa exigência deixou perplexo Vítor Amadeu. Bem como conhecia ele a
lealdade dos valdenses; não podia esquecer seu auxílio na recente guerra. Sabia
também que eles defenderiam sua religião com a própria vida. Hesitou em
começar uma guerra contra um povo inocente que, quando cruelmente atacado,
humilhara tantas vezes os mais orgulhosos capitães da Sabóia. Mas conhecia por
outro lado também o tremendo poder de Luiz na Europa e a grande força de seus
exércitos.
O duque passou por alto aquela primeira mensagem de Luiz, na esperança
que isso fosse esquecido. O rei francês, porém enviou outra mensagem, insistindo
em linguagem ainda mais forte para que fosse exigido dos valdenses entrarem na
igreja romana. Desta vez o duque mandou uma resposta que não satisfez ao rei
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francês. Prometeu apenas investigar a questão, e ver o que poderia ser feito.
Pela terceira vez o embaixador de França apareceu perante o duque, dando-
lhe uma mensagem ainda mais incisiva. Seu senhor, o altíssimo e poderoso rei de
França, chegara quase ao fim de sua paciência com Sabóia. Se o duque não achava
que podia limpar os vales da heresia, então o rei da França mandaria um exército,
e fá-lo-ia por si mesmo. Caso o rei não recebesse resposta favorável do duque, os
exércitos franceses haviam de atravessar imediatamente a fronteira, reduzir os
valdenses à submissão, anexando em seguida os vales à França.
Esta última ameaça foi bastante para Vítor Amadeu. A perspectiva de perder
os vales e ver o poder francês estabelecido do lado de cá dos Alpes, atemorizou-
o. Mandou dizer a Luiz XIV que executaria os seus desejos.
Ao mesmo tempo, Luiz prometeu ajudar provendo um grande exército para
cooperar com o do duque nessa campanha.
Um dos mais poderosos exércitos franceses pôs-se em marcha para a
fronteira, para ali aguardar a mensagem do duque de Sabóia que era tempo de
marchar contra os hereges.

13 - Um Povo no Exílio

Profunda era a neve nos vales alpinos por uma funesta manhã de janeiro de
1686. A fumaça que ascendia das chaminés em muitas vilas, indicava que as
famílias se estavam aquecendo ao redor de suas lareiras. Subitamente, um toque
de buzina rompeu o silêncio da solidão hibernai. Pessoas sobressaltadas,
correndo às portas viram um soldado montado encaminhar-se para a casa de
oração, saltar do cavalo, e afixar uma longa folha de papel à porta. Saltando em
seguida na sela, galopou afastando-se de caminho para a próxima vila.
Os valdenses sabiam que o homem devia ser um emissário do governo de
Sabóia. Que notícia poderia ser suficientemente importante para trazê-lo aos
vales em um tal tempo? Os homens envergaram seus sobretudos e calçaram as
botas, e foram à porta da igreja para ler o papel, um edito emitido pelo duque de
Sabóia.
Um dos anciãos da vila começou a ler em voz alta. O documento compunha-
se de nove parágrafos, cada um deles qual lança atravessando o coração do povo.
O primeiro rezava simplesmente: “Os valdenses cessarão daqui em diante para
sempre todos os exercícios de sua religião.” Um surdo gemido escapou dos
ouvintes. O homem prosseguiu na leitura. Eles estavam proibidos de ter reuniões
religiosas sob pena de morte e de confisco de todos os seus bens. Todos os seus
antigos privilégios eram abolidos. Todas as igrejas, casas de oração e outros
edifícios consagrados à pregação da heresia seriam destruídos. Todo pastor e
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professor precisava tornar-se católico dentro de quinze dias, ou deixar o país para
sempre. Toda criança precisava ser criada como católica romana. Todos os
protestantes estrangeiros precisavam tornar-se católicos ou deixar o país dentro
de quinze dias. Os que se recusassem teriam permissão de vender suas
propriedades a católicos antes de partir.
Por vários meses os valdenses haviam cogitado por que soldados
piemonteses se estavam ajuntando ao longo de sua região. Começaram agora a
suspeitar de que esses soldados haviam sido reunidos a fim de forçá-los à
submissão ao edito do duque. Chegara-lhes aos ouvidos também que um grande
exército bloqueava o caminho de saída dos vales para o oeste. Como poderiam
eles olhar ao futuro com esperança? Como poderiam defender seus lares contra
tão poderosos inimigos? Mas como poderiam vender suas propriedades e viajar
para novos lugares no inverno?
Por todo o país o povo reunia-se em suas casas de oração para falar acerca
dessas tribulações. Os pastores exortavam-nos a manter a calma e não fazer coisa
alguma em precipitação. Mensageiros rápidos voaram em esquis pelas nevadas
montanhas, levando as notícias do perigo que enfrentavam a seus amigos
protestantes na Suíça.
Outro grupo de mensageiros foi a Turim a fim de protestar ao duque, e
rogar-lhe que suspendesse o edito. Lembraram a seus funcionários que haviam
servido fielmente na recente guerra contra Gênova. Lembraram-lhes o tratado
de paz havia pouco assinado, pelo qual lhes era assegurado que todos os seus
antigos direitos e privilégios seriam respeitados. Não honraria o príncipe sua
promessa?
A todas as suas alegações fez o duque ouvidos moucos, recusando-se
mesmo a ver os representantes. Talvez se sentisse envergonhado de suas ações.
A ameaça de Luiz XIV de tomar-lhe os vales não lhe saía da mente. Concordou,
porém, em adiar a execução do edito por algumas semanas a fim de dar tempo
aos valdenses para conseguir vender suas propriedades.
Entretanto, grupos errantes do Piemonte, impacientes por começar a obra
de extermínio, começaram a saquear e matar nas colônias mais próximas das
planícies. Igualmente soldados franceses então aquartelados em Pinerolo mal
podiam ser contidos.
As novas dos valdenses perturbaram grandemente os suíços protestantes.
Vários de seus homens mais capazes atravessaram os Alpes para conferenciar
com eles. Outros enviados suíços foram a Turim protestar e procurar persuadir o
duque a não executar o tremendo edito. Foram dirigidos ao marquês de San
Tomaso, que devia responder pelo duque.
A princípio, San Tomaso insistiu em que a falta estava com os valdenses que
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haviam pegado em armas contra seu legítimo governador. Os enviados suíços,
porém, rejeitaram-lhe a resposta. Premido para dar uma resposta verdadeira, San
Tomaso reconheceu afinal que a pressão da França era a razão real do edito.
Tomando os suíços à parte, sugeriu que aconselhassem os valdenses a submeter-
se ao edito. Que eles fossem à missa e pusessem seus filhos sob a instrução de
padres católicos por algum tempo. Assim que eles houvessem satisfeito o rei
francês, o duque poderia quietamente permitir-lhes voltar sem ser molestados a
suas práticas religiosas.
Os suíços, no entanto, sabiam que os valdenses não concordariam em
abandonar sua fé, mesmo por um pouco de tempo. Com tristeza, voltaram os
enviados, e relataram aos valdenses o fracasso de sua missão.
Representantes de todos os vales reuniram-se em Chiasso, a 23 de março
de 1686, para tratar da situação. Os suíços indicaram a impossibilidade de resistir
aos exércitos bem treinados da Sabóia e da França.
— Como poderão combater contra seus canhões? — perguntaram.
— Estão cercados por todos os lados pela terra dos inimigos. Não há nação
que possa mandar auxílio. Com menos de três mil homens, como enfrentar trinta
mil soldados piemonteses e franceses, alguns dos quais são reconhecidos como
os melhores da Europa?
Eles continuaram a sugerir que os valdenses desistissem de qualquer idéia
de resistência, mas deixassem sua terra natal e se estabelecessem na Suíça ou
entre os Estados protestantes da Alemanha, onde poderiam viver em paz e
conservar sua antiga fé.
Talvez o conselho fosse bom, mas os valdenses não podiam encontrar em
seu coração lugar para ele. Como poderiam eles deixar as montanhas que haviam
sido sua pátria por oitocentos anos? Além disso, não estariam lutando sozinhos.
Lembravam-se das muitas vezes, no passado, em que um punhado de seus
lavradores-soldados, haviam derrotado poderosos exércitos inimigos. Lembra-
vam-se também do grande massacre de vinte e cinco anos atrás, e de como
Cromwell, o poderoso governador da Inglaterra, havia interferido e posto fim à
matança. Haviam sido então salvos do extermínio. Não poderia isso acontecer
outra vez?
Com tristeza indicaram os suíços que as condições da Inglaterra haviam
mudado. Tiago II, católico romano, ali reinava agora. Portanto nenhum auxílio se
poderia esperar daquele país. Todo esforço feito pelas potências protestantes da
Europa a fim de refrear o poder do rei francês, havia sido em vão. Luiz XIV tinha
quatrocentos mil soldados em seus exércitos. Que nação europeia podia esperar
desafiar tal força ou sequer ousaria fazê-lo a fim de salvar um punhado de gente
que vivia em distantes vales alpinos?
59
Os valdenses saíram da reunião sem haver chegado a uma conclusão
definida. Alguns sentiam- se plenamente determinados a resistir até à morte às
tropas invasoras estacionadas nas fronteiras. Outros acreditavam ser
desesperada a situação. Sentiam-se aturdidos pela magnitude do perigo que os
ameaçava.
Um mês depois dessa reunião, os inimigos avançaram. O exército francês
sob o comando do famoso general Catinat, penetrou no vale de S. Martin,
enquanto os soldados do duque entravam no vale de Lucerna. Tomaram de
surpresa algumas vilas e mataram centenas de pessoas. Em outras regiões, os
valdenses ergueram barricadas e fizeram recuar o inimigo pelo momento.
Sabendo por experiência do passado que qualquer campanha travada nas
fortalezas naturais dos valdenses seria longa e amarga, os comandantes
piemonteses e os franceses queriam experimentar uma aproximação diferente.
Talvez pudessem persuadir o povo a depor as armas sem lutar.
Em San Germano, o general francês anunciou ao povo do lugar que seus
irmãos do vale de Lucerna haviam deposto as armas, e sido inteiramente
perdoados pelo duque. Agora, eles só, de todos os vales, mantinham-se firmes
contra os soldados de seu governo, e ele os convidava a entregar-se.
O povo de San Germano, sendo claro que sozinhos não poderiam enfrentar
tais inimigos, depuseram as armas, e os franceses entraram ali. Em lugar de paz,
um massacre de centenas de homens, mulheres e crianças, eis o que se seguiu.
Os que não foram mortos ou torturados, foram levados ao Piemonte para serem
distribuídos entre as prisões nas cidades da planície. Algumas crianças foram
colocadas em mosteiros e conventos.
Dessa maneira, os exércitos submeteram os vales um a um. Dentro de
poucas semanas, a terra estava vazia de seus habitantes. Finalmente, os vales
estavam silenciosos. Não mais subia a fumaça de suas chaminés. Os animais
haviam todos sido mortos ou tocados para fora. Os bens do povo, haviam sido
saqueados. As igrejas, profanadas, e muitas delas totalmente destruídas.
A Europa protestante ouviu com horror as notícias desse novo ultraje contra
os valdenses. Protestos foram enviados da Alemanha em particular. Os suíços
mandaram outra delegação ao duque de Sabóia, alegando que um povo tão
antigo como os valdenses não se devia permitir desaparecesse da face da Terra.
Seis meses depois que os valdenses haviam sido tangidos para as prisões do
Piemonte, o duque resolveu ceder aos pedidos da Europa protestante e libertar
os que ainda viviam. Mas, decidiu, não deviam voltar a seus vales. O povo devia
ir para o exílio, para nunca mais voltar.
Doze mil robustos montanheses amantes da liberdade, haviam entrado nas
escuras prisões de seu príncipe. Haviam, por seis meses, vivido e morrido em
60
horríveis condições. A comida que lhes era dada, achava-se muitas vezes meio
apodrecida, e nem mesmo dessa comida tinham eles suficiente para lhes manter
a vida a todos. Não tinham camas em que dormir — simplesmente montes de
palha estragada, pululantes de milhares de insetos e espalhados no chão úmido.
Não tinham cobertores. O verão transformara-se no inverno, e insuportável era
o frio. Milhares morreram das privações sofridas naquelas prisões. Ao se abrirem
finalmente as portas, dos doze mil que ali haviam penetrado, menos de três mil
arrastaram-se para fora.
A alegria dos valdenses ao serem postos em liberdade foi bem depressa
ensombrada ao saberem que não poderiam voltar aos vales natais, mas deixar
sua terra para sempre. A Suíça, foi-lhes dito, recebê-los-ia, e talvez a seu tempo
eles pudessem ir para outros países.
— Quando precisamos ir? — indagaram os dirigentes valdenses.
— Imediatamente — responderam friamente os oficiais.
O povo tremeu ante a expectativa. Dezembro ia adiantado, e profunda era
já a neve que bloqueava os passos das montanhas. Como poderiam as mulheres
e crianças atravessar as poderosas trincheiras de neve e rocha? Não poderia seu
exílio ser adiado até a primavera? Rogaram a permissão de permanecer no país
por uns poucos meses.
Vítor Amadeu recusou o pedido. Concordou em prover o povo com um
pouco de pão. Então, tangidos pela guarda de soldados, a desamparada multidão
foi caminhando para fora de Turim, dirigindo-se para o norte, em direção às
montanhas. Enquanto subiam, caiu sobre eles uma tempestade. Quem poderia
descrever os horrores daquela noite. Fracas mulheres e crianças tropeçavam na
neve, e caíam para nunca mais se erguer. Os outros prosseguiam para diante,
para cima, galgando enfim o cimo. Ali os guardas os deixaram descer o outro lado,
aos cantões suíços. Os que chegaram finalmente à Suíça, somavam apenas dois
mil e seiscentos.
A notícia de que os valdenses vinham chegando, difundiu-se celeremente
de uma a outra cidade da Suíça. Pessoas de coração bondoso saíram-lhes ao
encontro, levando alimento e roupas. Seu coração derreteu-se ao verem
caminhar os lastimáveis refugiados, arrastando-se pela estrada, alguns com mãos
e pés ulcerados pelo frio, mães com criancinhas nos braços ou nas costas, tão
debilitadas de fome e de fadiga, que mal podiam mover os passos. Suas roupas,
apodrecidas na longa estada nas prisões piemontesas, pendiam-lhes em farrapos
do corpo. O povo suíço ofereceu-lhes alimento, porém muitos sentiam-se
demasiado fracos para comer. Os robustos braços dos suíços levaram as crianças
e as pessoas idosas para abrigos aquecidos.
Genebra em particular manifestou maravilhoso espírito cristão para com os
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exilados. Quase metade da cidade afluiu ao encontro deles, e entre os que foram
achava-se o idoso Giavanelo, que fora exilado dos vales pelos termos do tratado
de paz assinado vinte e cinco anos antes. Ao olhar o lamentável remanescente de
seu povo, ergueu a voz e chorou. Para alguns dos valdenses, o livramento viera
demasiado tarde. Alguns na verdade caíram e morreram às portas de Genebra.
Os cidadãos suíços acolheram da melhor maneira os refugiados em suas
cidades. Muitos dos lares ali ainda estavam apinhados com os refugiados
huguenotes que haviam vindo em grande número pelas fronteiras da França
apenas dois anos atrás. Não obstante, não mandaram de volta nenhum valdense
necessitado de abrigo e hospitalidade.

14 - A Volta Gloriosa

O povo de Genebra não podia cuidar devidamente de todos os valdenses


que haviam vindo de Sabóia. Assim' eles se espalharam por diversas comunidades
dos cantões suíços. Alguns tinham terras, onde mais uma vez eles começaram a
cultivar o solo, provendo sua própria manutenção.
Alguns dos príncipes alemães convidaram os valdenses para se
estabelecerem em seus territórios. Ante o convite do eleitor do Palatinado, várias
centenas de refugiados foram para seu Estado e estabeleceram-se entre seus
súditos. Suas esperanças de encontrar paz permanente na Alemanha, entretanto,
foram decepcionadas. Em constante busca de novos territórios, o rei de França
mandou seus exércitos ao Palatinado. Os habitantes fugiram diante dos
invasores. E os valdenses encontravam-se entre os que foram forçados a fugir, de
modo que uma vez mais se puseram a caminho em busca de um lugar em que
pudessem viver em paz.
Mas fosse aonde fosse que eles se dirigissem, ou quão bondosos fossem os
habitantes do lugar, os exilados não podiam esquecer a terra natal. Ao
crepúsculo, sentavam-se juntos recordando seus antigos lares e falando dos dias
vividos à sombra das grandes montanhas. Lembravam-se de como cuidavam de
seus animais, fazendo-os pastar na luxuriante e verde relva daqueles vales,
abeberando-os nas puras correntes das montanhas. Falavam dos belos bosques
de castanheiros que lhes proviam alimento, a eles e a seus animais.
Por duas vezes mandaram os valdenses espias disfarçados através das
montanhas a fim de verificar se seus vales se achavam habitados por gente nova.
Os espias voltaram, dizendo que o povo mandado pelo duque para viver ali não
conseguira fazer a terra produzir, e assim se fora embora. Os campos jaziam
incultos, e as vinhas sem podar. Ouviam-se lá apenas os sons da Natureza. Ouvin-
do o relato dos espias, mais anelaram os valdenses os seus vales.
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— É melhor morrer em nossa terra natal do que viver no exílio. – diziam uns
aos outros.
Por duas vezes buscaram prematuramente retornar aos vales natais, mas
de cada vez os suíços descobriram e impediram seus planos. As autoridades nos
cantões mantinham-se em meia vigilância em torno dos exilados, sabendo que,
deixassem eles a Suíça e voltassem aos vales, Luiz XIV julgaria por certo que eles
haviam sido ajudados pelos suíços.
Mas os valdenses não eram gente para ser derrotada. Felizmente,
encontraram um líder, Henrique Arnaud, um de seus pastores, que havia servido
no exército de Guilherme de Orange, da Holanda. Arnaud conseguiu dinheiro de
Guilherme de Orange, que em breve se deveria tornar rei da Inglaterra, e com o
auxílio de alguns exilados huguenotes prepararam outra tentativa de atravessar
os Alpes para os vales valdenses. Em agosto de 1689, oitocentos homens
valdenses e huguenotes reuniram-se às margens do Lago Leman. Arnaud fizera
todos os arranjos. Silenciosamente, sob o manto das trevas, os homens entraram
em barcos, remando para a margem sul. Desta vez, as autoridades suíças que
sabiam do escape não os impediram.
As fortalezas que defendiam os caminhos regulares conduzindo da Suíça à
Itália, forçaram Arnaud a servir-se dos mais perigosos trilhos na montanha. De
vila em vila marcharam eles pelo coração dos Alpes, sem ter mapas que lhes
indicassem o caminho a seguir, mas olhando às estrelas durante a noite e
avançando em direção ao sul e a leste. Eles tomaram a maior parte dessas vilas
de surpresa, levando consigo oficiais dessas vilas ou monges da localidade como
garantias. Tomaram também alguns dos habitantes delas como guias de uma a
outra colônia.
Decidido, prosseguia o pequeno bando, sempre em grande perigo. Nuvens
pousavam por sobre os trilhos da montanha, e por vezes os homens perdiam o
caminho. Alguns dias, choveu torrencialmente. Nos mais altos desfiladeiros, eles
encontraram até neve e saraiva, cobrindo a neve o chão à altura de seus joelhos.
Só no oitavo dia chegaram os valdenses em contato com soldados inimigos. A
essa altura chegara aos defensores do passo a notícia de que um pequeno bando
de valdenses, abrindo caminho, planejava invadir os vales.
As novas dessa proposta invasão causaram grande divertimento entre os
soldados franceses e pie- monteses. Como poderia um povo que havia sido quase
destruído três anos antes nas prisões do Piemonte, depois de exilados de sua
pátria, ter esperança de voltar a reconquistar os vales em face do exército de mais
de vinte mil homens?
Ao atingirem os valdenses um estreito desfiladeiro à margem do rio Dora,
chegaram à ponte que havia sido construída através da corrente. Seus espias
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relataram que uma força de dois mil e quinhentos soldados franceses
entrincheirados, preparavam-se para deter-lhes a marcha. Arnaud chamou seus
homens e conversou com eles acerca do que poderia ser feito. Esperando até que
se fizesse escuro, eles avançaram o mais silenciosamente possível em direção à
ponte, dispostos a arriscar tudo em uma tremenda luta.
A sentinela francesa, percebendo sons misteriosos na escuridão, chamou:
— Quem vai aí?
— Amigos — responderam os valdenses.
Isto, porém, não iludiu as sentinelas, que ergueram imediatamente o grito:
— Mata-os! Mata-os!
O exército francês, de um salto, pôs-se em ação. As gargantas da montanha
ecoaram o troar de sua infantaria ao se porem em atividade mil carabinas. Por
quinze minutos os soldados franceses fizeram fogo nas trevas. Arnaud dissera a
seus homens o que fazer quando o fogo começasse. Obedientes, eles
estenderam-se de bruços no chão, e esperaram que cessasse o fogo. As balas
assobiavam por sobre as suas cabeças, mas não lhes causaram dano algum.
Resolvido a destruir esses hereges, o comandante francês mandou dois
grupos de soldados ao redor para cair em cima deles pela retaguarda. Por
momentos, parecia que os valdenses se tinham de entregar. Arnaud viu sua
situação desesperada. Seus homens tinham de vencer ou morrer onde estavam.
Para encorajá-los, um de seus oficiais ergueu o brado: — Coragem, a ponte está
conquistada!
Em verdade, isto não era certo, mas as palavras tiveram efeito eletrizante
sobre os soldados valdenses. Erguendo-se de um salto, arremessaram-se sobre
os homens que guardavam a ponte. Espalharam os soldados inimigos, pondo-os
para fora do campo. Tomaram então a artilharia pesada dos franceses antes que
uma só bala de canhão pudesse ser disparada por eles.
Na confusão da noite, o comandante francês recebeu perigoso ferimento
na coxa. Olhando em torno através das trevas aclaradas pelos jatos luminosos
dos disparos, viu seus soldados em fuga. Relutante, ordenou retirada geral. Com
uma porção de seus oficiais, muitos deles gravemente feridos, foi ele levado a
Briancon; mas como não julgasse que seu exército estivesse a salvo mesmo aí, foi
mais adiante no dia seguinte, a Embrun.
— Pode ser possível — exclamou ele — que eu tenha perdido a batalha e
juntamente minha honra?
No acampamento francês, encontraram os valdenses todas as provisões
que lhes eram necessárias. Destruíram toda comida e munições que não seria
possível carregar.
Na manhã seguinte à batalha, os valdenses contaram seiscentos homens do
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inimigo mortos no campo, ao passo que dos seus, apenas quinze mortos e doze
feridos. Seria de admirar que Arnaud, seu pastor-comandante, os dirigisse em um
grande serviço de ações de graças a Deus, que os ajudara tão poderosamente?
Prosseguiu sua marcha avante. No dia seguinte ao da batalha, avistaram
eles à distância, do cimo do passo no Monte Sei, os picos das montanhas que
circundavam seus amados vales. Ali, na montanha, realizaram eles outro serviço
religioso. No dia imediato, entraram em estreito desfiladeiro onde encontraram
uma companhia de soldados pie- monteses preparados para impedi-los de entrar
em San Martin, um de seus mais belos vales. Tão depressa surgiram os valdenses,
misterioso pânico apoderou-se dos soldados no passo. Fugiram sem dar combate.
E agora, após uma ausência de três anos e meio, pisaram os valdenses uma vez
mais seu próprio solo.
No dia seguinte começaram eles a galgar o passo Julien, que os conduziria
lá embaixo ao vale de
Lucerna. Ao aproximarem-se do topo, defrontou-se lhes forte corpo de
soldados piemonteses, postados atrás de barricadas.
— Venham cá, seus barbudos — gritaram os soldados quando avistaram os
valdenses esforçando-se caminho acima. — Nós guardamos o passo, e há três mil
de nós!
Os valdenses não necessitavam de incitação. Precipitando-se para diante,
assaltaram as trincheiras e puseram em fuga os soldados pelo outro lado da
montanha abaixo. No acampamento de seus inimigos tornaram eles a encontrar
grande quantidade de munições e mantimento. Descendo ao vale, tomaram
posse da cidade de Bóbio, onde pousaram para descansar alguns dias. Conti-
nuaram então sua marcha, até chegarem a Vilaro, cidade que ficava a meio
caminho entre Bóbio e La Torre. Ocuparam Vilaro, mas não lhes foi possível
conservá-la quando uma grande força de soldados franceses os dominou,
forçando-os a retirarem-se para Bóbio.
Arnaud dividiu então seus homens em dois bandos. Por várias semanas
mantiveram eles uma luta contínua com os inimigos, como tantas vezes haviam
feito no passado. Ficavam de emboscada em pontos onde menos eram
esperados, e então, de repente, caíam em cima dos franceses e piemonteses,
pondo-os em fuga, e apoderando-se de valiosos suprimentos de comestíveis e
munições.
Se bem que os valdenses em geral ganhassem nessas escaramuças, perdiam
no entanto homens, e suas fileiras se iam tornando mais e mais reduzidas.
Quando caíam dez soldados piemonteses, reforços os substituíam. Mas se caía
um valdense, ninguém havia a lhe tapar a brecha. Compreendendo que essa
espécie de guerra havia segura-, mente de destruir-lhes todo o corpo de soldados,
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Arnaud resolveu mobilizá-los em alguma fortaleza onde se pudessem defender
durante o inverno, e esperar a ver o que Deus planejara para eles no ano seguinte.
Escolheram uma fortaleza natural conhecida - por La Balsiglia, no extremo
superior do vale San Martin. Aí as montanhas salientavam-se em uma plataforma
lavada por correntes de dois lados, na forma de um V. Esta elevada posição não
podia ser atacada por trás, uma vez que as montanhas se erguiam quase a pique
por trás da fortaleza. Para esse lugar levou Arnaud seus homens, transportando
consigo quantas provisões puderam reunir.
Em La Balsiglia os valdenses derrubaram árvores e construíram vigorosas
fortificações através de todo caminho ou trilho que pudesse conduzir a sua
fortaleza. Havendo destruído todas as es- ' tradas e pontes por quilômetros ao
redor. Arnaud retirou-se então para esse lugar com seus quatrocentos homens,
tudo quanto restava daquele bravo grupo de homens que ele conduzira da Suíça
três meses antes.
Três dias antes de completar o forte, Arnaud viu as forças francesas
avançando pelo vale. No dia vinte e nove de outubro, vários milhares de franceses
marcharam avante para atacar La Balsiglia por todos os lados. Os franceses
lutavam bem, mas encontraram as fortificações inexpugnáveis, e foram repelidos
com grande perda de vidas. Por trás de suas vigorosas paredes, os valdenses
rebateram todo ataque sem perder um só homem.
A primeira neve do inverno já caíra, e o comando francês compreendeu que
seria impossível tomar a posição valdense sem artilharia pesada. E esta, eles não
possuíam. Decidiu retirar-se para um lugar em que ele e seu exército se pudessem
abrigar do inverno.
Antes, porém, de desertar do campo diante de La Balsiglia, o general francês
enviou aos valdenses uma mensagem. Sob uma bandeira de trégua, aproximou-
se um oficial, e foi conduzido a Arnaud.
— Tenho uma mensagem para o senhor, da parte de meu comandante. Ele
vai deixá-los agora, mas voltará no próximo ano, pela páscoa. Então lhes daremos
fim, e não escaparão.
— Estarei aqui à espera de seu comandante — respondeu Arnaud. O oficial
francês curvou-se e deixou a fortaleza.

15 - Defesa de La Balsiglia

Todo o tempo em que os exércitos francês e piemontês haviam combatido


contra Arnaud e seu pequeno bando de valdenses, haviam procurado destruir ou
carregar todas as provisões de mantimento dos vales. Os animais que não
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matavam e comiam, tangiam para as planícies. Os valdenses, caminhando de vale
para vale, escondendo-se muitas vezes em covas, sofriam muito com a fome.
Passavam muitos dias sem ter o que comer a não ser castanhas assadas.
Agora, isolados em La Balsiglia, os exilados olhavam para o vale de San
Martin, e notaram a completa desolação da terra. Mal havia uma casa
que não houvesse sido queimada. Não podiam ver um sinal de fumaça em
parte alguma. Campos e florestas achavam-se igualmente sob o alvo lençol de
uma neve antecipada.
Arnaud compreendeu que ele e seus quatrocentos homens em La Balsiglia
teriam a enfrentar longo e rigoroso inverno. Escolhendo um grupo de seus
homens mais ousados e vigorosos, enviou-os acima do desfiladeiro da montanha,
aos vales franceses de Pragelas e Queiras. Dias depois, voltaram eles trazendo sal,
manteiga, uma centena de ovelhas e alguns bois.
Então, teve lugar um milagre. Uma onda de calor seguiu-se à primeira neve
da estação. Ao derreter-se essa neve, os valdenses viram lá muito embaixo no
vale, campos de trigo que não haviam sido ceifados. Protegidos pelo lençol de
neve, o cereal havia escapado aos olhos observadores do inimigo. Jubilosos
deixaram os homens sua fortaleza, e colheram o alimento. Não seria de admirar
1 acharem eles que o Céu os havia protegido. Pela manhã e à tarde em La
Balsiglia, erguiam as vozes em cânticos e orações a seu Deus.
Alguns daqueles homens que se encontravam em La Balsiglia haviam
nascido no vale de San Martin. Um deles lembrou-se um dia de que, mais i de três
anos atrás, o dono do moinho da vila, com auxílio de seus amigos, havia
escondido sua pedra I de moer na corrente que fluía em torno de La Balsiglia.
— É melhor escondê-la aqui do que deixar que os papistas venham e
esmaguem-na — dissera ele. Os homens que se achavam no forte resolveram
então fazer uma tentativa para descobrir aquela pedra. Escolhendo alguns
auxiliares, aquele homem guiou-os ao local. Ao quebrarem o gelo, encontraram
a pedra do moinho ainda ali. Vadeando pela corrente gelada, eles manobraram
para levá-la à margem. Então, empurrando e impelindo, subiram-na pela íngreme
encosta acima, e para o interior de La Balsiglia, onde a puseram a trabalhar,
moendo o trigo em farinha para os homens famintos.
Arnaud, porém, ainda tinha dificuldades. Sabia que os franceses voltariam
na primavera, mais fortes que nunca. A menos que Deus mandasse auxílio, ele e
seus companheiros não teriam possibilidade de escape. Todavia, ao
recapitularem os passos pelos quais eles haviam sido conduzidos de volta a seus
vales, e as vitórias que o Senhor os habilitara a ganhar sobre grandes e bem
equipados exércitos, ele disse confiantemente a seus homens que Aquele que os
havia guiado até ali não os abandonaria nos dias por vir.
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Quando os dias de inverno se tornaram mais curtos, o frio também ficou
mais intenso. Entre tempestades, deixaram os homens sua fortaleza para cortar
árvores nas florestas vizinhas e transformá-las em toros. Arrastaram-nos pelo
solo nevado e encostas acima, a La Balsiglia, onde os empilharam um em cima do
outro de modo a formar vigorosa barricada contra qualquer exército atacante.
Findou o inverno e ventos cálidos derreteram a neve. Águas espumantes e
rumorosas precipitaram-se corrente abaixo. Pelos desfiladeiros do lado da França
veio um exército de dez mil soldados. Subindo do vale do Clisone, apareceram
doze mil soldados piemonteses para a eles se unir. Os valdenses, de sua fortaleza,
olharam para baixo, e viram vinte e duas mil baionetas rebrilhando ao Sol!
O Marechal Catinat, um dos mais renomados generais franceses daquele
tempo, comandava o exército conjunto. Traziam muitos carros carregados de
mantimento e munições. Centenas de soldados empurravam e puxavam
poderosos canhões para abater o forte dos hereges. Por último, mas não sendo
o mínimo, Catinat trouxera quatrocentas cordas com que intentava enforcar cada
um dos defensores de La Balsiglia.
— Não temam — incitou Arnaud a seus bravos companheiros. Lembrem-se
de Gideão, com trezentos homens, e nós temos cem mais que ele. Nunca
esqueçamos o que ele foi capaz de realizar com o auxílio de Deus.
Catinat estudou cuidadosamente a fortaleza que viera tomar. De um lado,
longo aclive levava à fortaleza. Resolveu servir-se disso para aproximação de seu
exército. Não sabia que Arnaud a havia fortificado com paliçadas vigorosamente
construídas com toras.
— Um dia — observara Catinat a um de seus oficiais — deve ser suficiente
para nosso exército derrotar aqueles montanheses fracamente armados,
famintos e inábeis.
As buzinas francesas soaram cedo na manhã de 1º de maio de 1690. Os
valdenses olhavam fascinados quando os primeiros quinhentos homens,
bandeiras e pavilhões flutuando ao vento e conduzidos por Catinat a cavalo,
encaminharam-se para o pé de La Balsiglia. Os franceses ergueram uma
exclamação que ecoou pelas gargantas dos vales. Depois daquele escolhido grupo
de quinhentos, vinham sete mil hábeis mosqueteiros que deviam derribar a
fortaleza. Com tremenda exclamação, arremessaram-se sobre a paliçada, mas
tudo em vão. Incessante era o fogo das carabinas valdenses, e os soldados
acharam impossível passar além dos maciços toros de árvores que lhe barravam
o caminho.
Quando o inimigo vacilou, um bando de valdenses precipitou-se do forte,
espadas desembainha- das, e sob seus terríveis assaltos de cima, quebrou- se a
linha francesa, e os soldados fugiram aclive abaixo, para o vale. Muito pouco dos
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quinhentos homens que formaram a primeira onda de assalto chegaram ao vale
a salvo. Dos valdenses nem um havia sido morto, nem mesmo ferido.
Catinat compreendeu que devia formar novo plano. Aqueles grandes toros
precisavam ser destruídos. A única maneira de o efetuar, considerou ele, eram
seus canhões. Do outro lado da garganta, erguia-se um pedaço de terreno plano.
Para ali suspenderam os soldados os canhões um após outro. Foram necessárias
duas semanas ao general francês para colocar seus canhões exatamente onde ele
os queria. Sentiu-se então pronto para outra tentativa de conquistar os
valdenses. Desta vez, estava certo, não poderia falhar, e estaria em breve capaz
de fazer funcionar suas cordas.
Na manhã de 14 de maio de 1690, os canhões franceses abriram fogo na
fortaleza. O dia inteiro vomitaram através da garganta uma torrente de balas
contra as defesas do forte. As montanhas
ecoavam um som nunca dantes ouvido naquelas regiões solitárias. Ao cair
da noite, as antes sólidas paredes caíram em ruína; nada havia que impedisse o
inimigo de marchar direto para cima, à fortaleza.
Catinat determinou que os valdenses não deviam escapar. Ordenou grandes
fogueiras naquela noite para cima e para baixo no vale. Elas iluminavam as
paredes do passo de maneira que os valdenses não se pudessem escapulir da
fortaleza pelas montanhas sem ser vistos.
Os homens na arruinada e escura fortaleza enviaram muitas súplicas a Deus
aquela noite. Deus ouviu e atendeu-os à Sua própria maneira. Por volta das dez
horas, as sentinelas nos muros da fortaleza notaram pela primeira vez que se
estava formando neblina em torno dos picos das montanhas próximas.
Essa notícia chegou a Arnaud e a seus homens no interior, e eles saíram a
ver. Muitas vezes haviam eles escutado a história de como, séculos atrás, Deus
Se servira de um lençol de cerração para cobrir e proteger seus antepassados,
ameaçados de destruição. Aconteceria isso outra vez? Ansiosamente esperavam
eles enquanto a cerração continuava a descer mais e mais abaixo da montanha.
A neblina espalhou-se de penhasco em penhasco, e então, dentro de poucos
momentos, caiu na garganta do rio San Martin, fechando-o em completa
escuridão. Olhando para fora da fortaleza, os valdenses não viram uma única
fogueira. Restava, porém, ainda, a interrogação — poderiam eles escapar? E se
assim fosse, aonde ir? Por trás deles erguiam-se penhascos que homem algum
poderia escalar. Arnaud reuniu todo seu grupo, e perguntou se não havia alguém
que conhecesse a região bastante para tentar guiá-los para fora dali. O capitão
Poulat, natural do vale, falou. Ele conhecia uma escarpa aguçada que conduzia
para lá das linhas do inimigo. Sabendo que sua única esperança jazia em escapar
de La Balsiglia, Arnaud e seus homens puseram sua vida nas mãos do guia.
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Sem ruído, marchando em fila única, seguiram os homens a Poulat. Em
muitos lugares, tiveram eles de avançar sobre as mãos e os joelhos. Na densa
cerração, não viam senão algumas dezenas de centímetros adiante. Ao longe,
embaixo, ouviam eles o rumor das águas enquanto o rio se arremessava nos
penedos e cachoeiras. Anos mais tarde, muitos deles foram a esse lugar a fim de
seguir a rota de sua escapada naquela noite.
Enquanto olhavam ao trilho que haviam seguido, estremeceram, vendo que
qualquer homem que tentasse passar por ele mesmo à luz do dia, estaria
arriscando sua vida.
Sempre para baixo, foram eles em direção do rio, por todo o caminho
escudados pela cerração amiga. Rastejando para além das linhas francesas,
ouviram os soldados rindo, cantando, e jactanciando-se da gloriosa vitória que
haviam de ganhar na manhã seguinte. Ao fundo da garganta, atravessaram a
corrente, e começaram a escalar a encosta da montanha do lado mais distante.
A floresta era escura. Muitas vezes tropeçaram e caíram, mas não diziam uma
palavra enquanto escalavam mais e mais alto, buscando um passo que os levasse
acima e abaixo para o próximo vale.
Pela manhã o Sol dissipou a neblina. Catinat comandou seu exército, e
ordenou um grande assalto ao longo de toda a linha. Ao se aproximarem os
soldados da arruinada fortaleza, ergueram um grande grito de vitória, esperando
a cada momento serem assaltados por homens lutando pela vida. Não
encontraram, no entanto, oposição alguma. Trepando nas ruínas, penetraram em
multidão no forte deserto. Olharam por toda parte, mas não viram inimigo algum.
Fitando as montanhas que se erguiam por todos os lados ao redor dos vales, um
soldado apontou de súbito para cima. Muito além, quase no cimo, viram eles uma
pequena linha de pontos negros em movimento. Escapara-lhes a presa! As cordas
não seriam necessárias naquele dia.
Por três dias marcharam os valdenses, gastando muito de seu tempo à
procura de alimento. Quando chegaram a Pra dei Tor, no vale de Angrogna, foram
surpreendidos ao encontrar alguns I homens à sua espera com uma oferta de paz
do duque de Sabóia!
Vítor Amadeu II ficara cansado de receber ordens do rei de França.
Guilherme III, rei da Inglaterra, estivera a insistir com ele por algum tempo para
deixar o lado de Luiz e unir-se à Inglaterra, Holanda e o império austríaco e alguns
dos Estados alemães em fazer guerra ao orgulhoso rei de França. Quando estava
se resolvendo a fazer isso, o duque lembrou-se de súbito de que os valdenses
tinham em seu poder muitos passos de montanhas. Caso ele desejasse que essas
portas I estivessem fechadas e os franceses mantidos do lado de lá, seria sábio
que fizesse as pazes com seu povo da montanha.
70
A despeito de todo mal que o duque de Sabóia lhes ocasionara, os valdenses
sentiam que ele era ainda de direito seu príncipe. Resolveram aceitar-lhe o
oferecimento. Catinat com suas forças retirou-se então para o território francês.
Os quatrocentos homens de Arnaud volveram então pelas montanhas
acima em busca do remanescente de seu povo. Apenas metade dos homens que
haviam tão esperançosamente partido no verão anterior voltou à Suíça. O resto
morrera na luta. Não obstante, aqueles que haviam sobrevivido conduziram
alegremente o resto dos valdenses através dos Alpes para seus vales natais. Desta
vez, caminharam pelas estradas reais para além daqueles fortes que uma vez
haviam ameaçado destruí-los. E lá se foram de regresso a seus arruinados vales,
para iniciar novamente a desanimadora tarefa de reconstruir as derribadas
habitações, replantar pomares e lavouras, e restaurar as igrejas. Generosas
dádivas vieram da Holanda, da Inglaterra e da Alemanha, e especialmente dos
suíços, entre os quais eles haviam encontrado um lar hospitaleiro durante os anos
de exílio.
Uma vez ainda ergueram-se dos vales os sons de cânticos. Mais uma vez
pais, sentados ao pé de suas casinhas de campo ao entardecer, enquanto o Sol
poente iluminava os gloriosos picos nevados, chamavam os filhos para ao pé de
si a fim de repetirem juntos as palavras de fé e confiança da pena do salmista na
antiguidade:
“Deus é nosso refúgio e fortaleza, Socorro bem presente na angústia.”

16 - Jogados Nos Vagalhões da Guerra

Os valdenses voltaram aos vales em 1690 incomparavelmente mais pobres


do que eram antes da perseguição feroz que caíra sobre eles cinco anos antes. De
quinze mil, seu número fora reduzido a menos de três mil. Suas habitações e
campos de lavoura jaziam devastados. Alguns de seus melhores pastores haviam
perecido nas prisões de Turim. Conquanto reconhecidos pela maneira miraculosa
por que Deus os trouxera de volta à sua pátria e ao lar, choravam ainda por seus
muitos amigos e queridos mortos no decorrer dos cinco anos de luta.
Mais uma vez os países protestantes da Europa manifestaram seu interesse
pelos bravos valdenses. Vinha do rei Guilherme da Inglaterra uma importância
regular de dinheiro a cada ano, para pagamento dos pastores, costume que o
governo inglês continuou por mais de um século. Igualmente a Holanda levantava
fundos para eles, ao mesmo tempo que lhes enviava gado. Universidades na
Suíça, de boa vontade educavam gratuitamente estudantes valdenses.
Em 1690, o duque de Sabóia entregou aos valdenses o controle da fortaleza
que fora construída nos passos alpinos, que dava passagem da França para a
71
Itália. Ele procurou por todos os modos possíveis desfazer o grande dano causado
a esse povo. Restituiu-lhes mesmo todos os seus direitos e privilégios antigos,
inclusive o de adorar a Deus segundo o seu coração.
Entrementes, o rei de França ainda estava perseguindo seus súditos
huguenotes, os quais continuavam a fugir aos milhares de seu país. Os valdenses
acolhiam esses fugitivos, cuja habilidade e atividade se demonstraram de grande
auxílio na reconstrução dos vales. Entre eles foram alguns dos melhores pastores
das igrejas protestantes francesas. Os vales tinham doze distritos pastorais por
volta de 1692, e seus serviços religiosos haviam sido restaurados.
Muitos dos infortúnios dos valdenses podem ser atribuídos à geografia de
seu país. Situados entre a França e Sabóia, ambos fortemente católicos, os vales
valdenses prosperavam quando esses dois poderes se guerreavam, e sofriam
quando eles se aliavam.
Em 1696, Vítor Amadeu II uniu-se mais uma vez ao lado de Luiz XIV, a quem
prometeu expulsar de seus domínios todos os protestantes franceses fugitivos.
Isto significava que o bravo Arnaud, que dirigira a volta gloriosa seis anos antes,
tinha de ir para o exílio, pois seu lugar de nascimento era um vale do lado francês
dos Alpes. O duque ordenou então aos vários milhares de huguenotes que tão
recentemente havia acolhido, a deixarem seus novos lares dentro de trinta dias.
Apenas com os bens que lhes era possível carregar, esse bando de exilados tomou
o caminho, em busca de um lugar de refúgio.
Passando pelos densamente povoados cantões suíços, chegaram os
huguenotes à Alemanha, onde foram bem recebidos, sendo-lhes dados lugares
para morar. Henrique Arnaud foi com eles como seu pastor e mestre-escola.
Guilherme III convidou-os a ir a Inglaterra, prometendo fazer Arnaud oficial no
exército real, porém, ele declinou.
Nos vales, haviam novamente rompido as antigas perseguições. Crianças
eram raptadas e lavadas a cidades católicas para serem ensinadas a negar a fé de
seus pais. Pesados impostos oneravam os valdenses. Unicamente a contínua
generosidade de seus amigos protestantes em outros países da Europa os
habilitava a fazerem face a essas obrigações. Construíam-se mosteiros e con-
ventos em vários lugares nos vales. Frades e freiras andavam por toda a parte,
pregando a fé católica. Até a despesa de manter as instituições católicas era
lançada aos valdenses.
Em 1703, rompeu novamente a guerra na Europa. Julgando que com todo
o continente contra Luiz XIV, o rei francês seria seguramente derrotado, Vítor
Amadeu mudou de partido mais uma vez. Os exércitos da Inglaterra e da Áustria
ganharam muitas batalhas contra os franceses do norte, mas os generais da
França derrotaram no sul o duque de Sabóia, tomando Turim, sua capital.
72
Forçaram-no a retirar-se com pequeno corpo de tropas para as profundezas dos
vales em que viviam os perseguidos mas sempre leais valdenses.
Certo dia, Penderell Durand, lavrador que residia no vale de Lucerna, ouviu
bater na porta. Ao abri-la, viu o que lhe pareceu um pobre viajante fatigado, com
um pesado fardo às costas.
— Entre! Entre amigo. Não fique aí fora ao frio.
— Protegerá o senhor um pobre viandante? — perguntou o homem
olhando nervosamente ao redor.
— Naturalmente — respondeu Durand acenando a seu hóspede para
sentar-se. Ajudou o homem a depositar seu pesado pacote no chão.
— Não tenho nenhum desejo de ofendê-lo, mas é importante que me
responda ainda a uma pergunta. Jura-me o senhor não trair minha presença em
seu lar? Necessito descanso, sono e alimento.
— Um valdense nunca trai seu hóspede — respondeu bondosamente
Durand, ainda perplexo quanto a quem seria seu visitante.
— Eu sou Vítor Amadeu, seu príncipe! — replicou o estranho, para
assombro de seu hospedeiro.
Os valdenses cuidaram bem do duque, fazendo tudo ao seu alcance para
dar-lhe conforto. Antes de partir, dois dias depois, Vítor presenteou
seu hospedeiro com um copo de prata, o qual a família conservou sempre
como lembrança de seu real visitante.
A onda da guerra virou, porém, trazendo livramento ao duque. Quando o
príncipe Eugênio da Áustria invadiu a Itália com seu exército vitorioso, os
valdenses escoltaram seu duque ao acampamento daquele príncipe. Juntos
trabalharam e lutaram os dois homens até expulsar os franceses da Itália e ver a
paz mais uma vez restaurada nos vales.
O duque de Sabóia desejava ajudar seus súditos valdenses, mas não era
bastante forte para resistir às exigências do papa de que toda a heresia fosse
exterminada em toda parte. Continuaram, portanto, as velhas perseguições, e
começaram muitas novas. Nenhum valdense se devia tornar médico ou
advogado, nem frequentar universidades ou outras escolas superiores. Nenhum
valdense podia entrar ao serviço do governo. Frades e padres andavam tão
atarefados como sempre, e as crianças continuavam a desaparecer.
A rainha Ana da Inglaterra e o rei da Prússia pleitearam ambos com o
príncipe para deixar de maltratar seus irmãos protestantes. O duque mandou
uma resposta formal em que prometia “conservar e proteger os valdenses e seus
filhos, e sua posteridade em todos os seus direitos e privilégios, bem como no
que se referia a suas habitações, negócios e no exercício de sua religião para
todos os fins”.
73
Esse compromisso serviu por algum tempo. Depois, quando a rainha Ana
morreu, o papa mandou ao duque uma nota mostrando-lhe que ele não precisava
manter sua promessa a favor dos valdenses. Em vista disso, voltaram por outro
século as antigas perturbações.
Grandes mudanças ocorreram depois do rompimento da Revolução
Francesa de 1789. A França deixou de ser a protetora e defensora da igreja ca-
tólica na Europa. Não mais empregou ela seus exércitos para esmagar os vizinhos
protestantes. O governo francês subverteu a igreja católica na França, apoderou-
se de suas propriedades, e aprisionou milhares de padres, muitos dos quais foram
mortos.
O povo julgou o rei de França e muitos de seus príncipes e nobres como
inimigos do Estado, executou-os, declarando a França república. Reis de outros
países da Europa ficaram atemorizados, não viesse seu povo a seguir o exemplo
da França. Em 1793, a Inglaterra, a Áustria e a Prússia declararam guerra à França.
O duque de Sabóia a eles se uniu. Tornou-se muito importante que os passos que
conduziam da França ao Piemonte pelos vales valdenses fossem conservados
para manter os exércitos franceses fora da Itália.
De todos os fortes que guardavam os passos, o mais importante era o
solidamente fortificado posto de observação de Mirabouc. Seus canhões
estrategicamente colocados, eram garantia de que nenhum exército, por mais
forte que fosse, o poderia capturar, nem poderia nenhum inimigo passar por ali
sem ser destruído. Quando os franceses chegaram a esse desfiladeiro e exigiram
a entrega do forte, o covarde comandante piemontês decidiu render-se. Um
único soldado no forte protestou, e esse era o único valdense a serviço do duque
naquela guarnição. Ninguém sabe se os franceses subornaram o comandante, ou
exatamente por que agiu ele daquela maneira; o fato é que ele entregou o forte,
e os franceses penetraram.
Os franceses permitiram que a guarnição pie- montesa e seu comandante
voltassem para Turim. Ali, um tribunal de investigação achou o comandante
culpado de covardia, e condenou-o a ser fuzilado. Observou a ação do soldado
valdense, e elogiou-o altamente por seu esforço para salvar o forte.
O povo do Piemonte ficou indignado ante a entrega do forte. Uma vez que
ele ficava à testa de um dos vales valdenses, alguém espalhou um falso boato de
que sua queda fora ocasionada pela traição de um valdense. Floresceu a suspeita,
e circularam falsos rumores que o povo nunca haveria acreditado em tempo de
paz.
Começaram a reunir-se pequenos grupos de homens desatinados, e faziam
indagações. Por que haviam esses hereges de continuar a seguir sua religião tão
livremente e controlar os passos que abriam assim aos inimigos de seu país?
74
Quanto mais falavam, tanto mais furiosos ficavam. Líderes fanáticos abanavam
as chamas, e por fim resolveram massacrar todos os valdenses que residiam em
La Torre e no vale de Lucerna.
Antes de se separarem, esses homens concordaram em que tudo devia ser
mantido em segredo absoluto, porquanto não desejavam envolver o governo do
duque. Setecentos homens determinados uniram-se à conspiração, fizeram
provisão de armas, e planejaram os detalhes do vindouro massacre. Pensavam
que a conspiração seria fácil de levar a cabo porque, praticamente, todos os
homens valdenses estavam ausentes na fronteira, com o exército, mantendo
outros passos contra os franceses. Concordaram em que o sinal para o massacre
seria dado em La Torre, à meia-noite do dia 15 de maio de 1793.
A notícia dessa conspiração chegou aos ouvidos de um padre católico
romano, que morava em Lucerna. A idéia de matar inocentes mulheres e crianças
enquanto os homens combatiam na defesa de seu país, encheu o padre de
horror. Procurou o capitão Odeti, comandante em La Torre, e revelou-lhe todo
detalhe da trama, inclusive a data do planejado ataque. Odeti era católico tam-
bém, mas como homem cristão de honra, sentiu- se igualmente horrorizado.
Determinou salvar os valdenses de La Torre e Lucerna.
Reuniu primeiro todas as mulheres valdenses, e mostrou-lhes o grande
perigo em que se encontravam. Recomendou-lhes que não saíssem de casa,
particularmente naquela noite. Enviou então uma mensagem ao comandante do
exército do duque em que se encontravam os valdenses combatendo, insistindo
em que fosse enviado imediatamente um contingente de homens a La Torre para
impedir o massacre. As mulheres protestantes de La Torre foram aconselhadas a
levantar barricadas, reunir pedras, e fazer tudo quanto pudessem para fortalecer
o mais possível seus lares.
Os primeiros mensageiros chegaram ao quartel-general do general Godin,
bravo oficial suíço à testa do regimento valdense.
— Simples pânico! — declarou ele — Porque algumas mulheres e crianças
tiveram ataques de medo por alguns fantasmas de sua imaginação, precisam ter
pais e maridos e irmãos fora de seus postos para conjurar o espírito!
O mensageiro, porém, recusou-se a ser despedido assim levemente.
— Tão certo como é seu o comando deste exército, é certo que os súditos
protestantes de sua majestade vão cair vitimados por uma trama, a menos que o
senhor se interponha, ou se opere diretamente, um milagre do Céu, para impelir
a catástrofe
— Impossível! — exclamou o general — A natureza humana não é tão
depravada a esse ponto.
— Ah, isso era o que o povo pensava antes do massacre da noite de S.
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Bartolomeu, em Paris — replicou o mensageiro, com mais ênfase que nunca. Não
preciso multiplicar exemplos. Só lhe repito que o perigo é grande e não poderá
ser evitado a menos que o seja pelo poderoso braço do governo.
— Quando vai isso ter lugar? — perguntou ele ao mensageiro.
— Hoje à noite!
— Ai, poderemos já chegar demasiado tarde — respondeu o comandante,
convencido afinal da veracidade da notícia
Godin mandou imediatamente chamar os oficiais do regimento valdense
que servia sob seu comando, e esboçou brevemente os perigos que ameaçavam
suas mulheres e filhos em La Torre. Apressando-se, poderiam vencer a distância
até àquela cidade antes da hora fatal da meia-noite.
Não era preciso dizer àqueles homens que se apressassem. Correram pelo
caminho, através dos passos, trepando nas rochas, atravessando rios, não se
detendo nunca nem por um momento. Mesmo enquanto se apressavam,
mandavam ao Céu suas orações, clamando a Deus que lhes salvasse as famílias
da espada de seus inimigos.
O Sol se pôs atrás das montanhas, e a escuridão cobriu os vales. O povo de
La Torre passou as horas anteriores à meia-noite em terror. Por volta das noves
horas, grande tempestade rompeu sobre os vales. A chuva caiu em torrentes. Lo-
go tiveram os soldados de vadear correntes com água acima dos joelhos. Os
vividos clarões dos relâmpagos, se bem que mostrando momentaneamente o
caminho que buscavam seguir, ofuscavam- lhes os olhos, tornando depois mais
negra ainda a escuridão.
Se bem que a tempestade retardasse a marcha dos soldados valdenses, não
os deteve. Entretanto, a violência dos elementos aterrou os quase- assassinos.
Muitos deles estavam em vilas vizinhas à espera de que a tempestade cessasse.
Aproximava-se a meia-noite quando os valdenses avistaram as distantes
luzes de La Torre brilhando através da neblina. Haveriam chegado demasiado
tarde? Encontraram então mulheres da cidade que se apressavam ao seu
encontro.
— Pressa! oh, pressa! — instavam elas com os soldados, que não
necessitavam de incitação. Tão rápido quanto os fatigados pés os podiam levar,
avançaram eles em direção daquelas luzes.
Ao entrarem pelas portas de La Torre, ouviram o sino do convento começar
a soar. Os valdenses
arremessaram-se pelas ruas, prontos a ferir quem quer que buscasse
penetrar em seus lares, mas não viram ninguém.
As felizes novas: — Eles chegaram! Eles chegaram! — correram de casa em
casa, enquanto esposas e filhos derramavam-se pelas ruas para saudar seus
76
libertadores. Os conjurados que estavam dentro das portas de La Torre,
testemunharam a chegada dos soldados valdenses, e conservaram- se
prudentemente fora de vistas.
No dia seguinte, homens, mulheres e crianças reuniram-se na igreja
valdense para erguer louvores a Deus, que os salvara na hora do perigo.

17 - Os Últimos Marcham na Vanguarda

Por longos anos continuaram a erguer-se e abaixar-se as vagas da guerra em


torno das fronteiras dos vales valdenses. O exército francês sob as ordens de
Napoleão, foi bem-sucedido na conquista de quase toda a Itália. Dois anos mais
tarde, porém, quando Napoleão levou seu exército ao Egito, outro grupo de gran-
des nações uniu-se para combater a França. Uma dessas nações, a Rússia,
derrotou um exército francês na Itália. O exército vencido, preparando-se para a
retirada de volta à pátria através dos Alpes, viu que tinha trezentos homens
feridos que não lhes seria possível levar de volta à França. Deixaram esses
homens com os valdenses de Bóbio.
Roistang, o bondoso pastor valdense daquela cidade, arranjou tudo quanto
lhe foi possível para ajudar os franceses. De sua própria casa forneceu ele um
bezerro e vinte e cinco pães, ao passo que sua esposa rasgou lençóis da família e
fez ligaduras para os soldados feridos. Uma vez que apenas algumas famílias
moravam no vale, não havia comida suficiente para estranhos e valdenses através
do inverno.
O pastor reuniu seu povo, e considerou o problema com eles.
— Jamais negou um valdense repartir seu pão com um estrangeiro, quer
amigo, quer inimigo — salientou ele. — Todavia, podemos nós tirar o pão de
nossos filhos e dá-lo a esses franceses? — perguntou.
Ergueu-se um ancião, e estendendo as mãos ressequidas para os
companheiros de vila falou-lhes:
— Piores têm sido nossas perspectivas. Nossos pais, sob circunstâncias em
vista das quais as nossas parecem prósperas, tiveram de travar muitas duras
batalhas quando seu abrigo era a caverna, sua comida as amoras de inverno, as
castanhas caídas, ou dispersas espigas de trigo que colhiam de sob a profunda
neve. Todavia tudo isso — fome, sede, fadiga, frio e contínua vigilância, supor-
taram eles com plena e inteira confiança de que aquilo que haviam empreendido
como dever a eles ordenado, o Supremo Diretor dos acontecimentos habilitá-los-
ia a sofrer. Uma inteira confiança em Deus lança fora o temor. Cumpramos
fielmente nosso dever como humildes crentes em Sua soberana providência, e
calmos aguardemos os resultados. “Lembremo-nos daqueles que se encontram
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em cadeias como estando em cadeias com eles; e daqueles que sofrem
adversidade, como o sofrendo nós mesmos também no corpo.”
Essas considerações prosseguiram. Alguns salientaram que pela metade do
inverno, quando nenhum auxílio poderia ser esperado de qualquer direção,
estariam exaustas todas as provisões, e os soldados e seus hospedeiros
pereceriam juntamente à fome.
— Concordo — disse o pastor — que é nosso dever ministrar aos feridos.
Mas por que não restituir todo o destacamento a seu país natal?
— Restituí-los? — exclamou o povo — Mas como? Sem meio algum de
transporte? Sem cavalos, nem mulas, nem carros? Carregar trezentos homens
montanha acima, em profunda neve, sob iminentes perigos?
— É verdade — continuou o pastor — mas podemos restituí-los a sua
própria fronteira. Conjuguemos à boa causa a energia de nosso vale; empregue-
se toda a mão na construção de liteiras; depositemos nelas os doentes inválidos,
bem protegidos do frio, e nossa própria fortaleza fará o resto.
— O passo — prosseguiu o pastor — se bem que terrível nesta estação para
os tímidos, nunca nos deveria intimidar em tão sagrado dever. Lembrai-vos de
que o Deus que conduziu nosso povo através dos temíveis Alpes e outra vez nos
trouxe de volta, será ainda o vigilante guardião de Seus filhos. Resolvei, irmãos
meus! Não temos senão uma só alternativa; e da maneira por que decidirmos,
dependerá a vida de muitos esta noite.
Um murmúrio de aprovação percorreu a assistência. Então, responderam
juntos: — Estamos resolvidos!
Todos na vila começaram a preparar-se para a temível viagem. Contaram
seus planos aos franceses e, depois puseram-se a fazer as liteiras. Os franceses
não podiam crer que fosse possível a alguém transportá-los através das
montanhas durante aquela estação, quando a neve cobria profunda os
desfiladeiros. Ao colocarem-nos, porém, os valdenses nas liteiras, comoveram-se
até às lágrimas, e rogaram as bênçãos do Céu sobre seus amigos, os valdenses.
Foi na verdade uma horrível viagem. Seguiram estreitas veredas,
atravessaram torrentes espumejantes, e passaram sob escarpada montanha;
olhavam para o alto, e oravam a Deus que segurasse a neve no lugar, e impedisse
a terrível avalanche. Chegaram afinal ao cume e, atravessando espessas florestas
de faia, começaram a descer no lado francês das montanhas.
Rapidamente espalhou-se pelos vales franceses a notícia de sua vinda. Não
tardou, esposas e filhos aglomeraram-se ao redor daqueles a quem há muito
consideravam perdidos. Os feridos soldados franceses louvavam os valdenses por
tudo quanto haviam feito por eles. Meteram-lhes nas mãos generosos pacotes
de mantimento para levarem a suas famílias. Então, lá foram os valdenses peno-
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samente montanha acima, ansiosos de volver ao lar.
Triste é dizer, no entanto, quando o duque de Sabóia ouviu falar do
incidente, preferiu pensar que os valdenses estavam ansiosos de ajudar seus
inimigos, os franceses. Por causa de seu bondoso feito, acusou-os de deslealdade.
Ao voltar do Egito, tornou-se Napoleão o soberano da França. Atravessou
os Alpes com seu exército, derrotou os austríacos e incorporou o território
valdense à França, tornando os valdenses súditos seus. Jamais tivera o povo dos
vales fruído tal paz e prosperidade como a que tiveram durante os anos em que
foram súditos do imperador francês. Adoravam a Deus segundo lhes aprazia, sem
restrições. Então, católicos e protestantes fruíam exatamente os mesmos direitos
e privilégios.
Em 1805, Napoleão visitou Turim. Recebeu ali um grupo de representantes
de vários departamentos do norte da Itália. Entre eles, encontrava- se Peyrani,
pastor valdense, bem como moderador de sua igreja. Não se sabe como
Napoleão reconheceu o pastor protestante, mas adiantando- se para ele, dirigiu-
lhe algumas perguntas.
— É o senhor um dos clérigos protestantes?
— Sim, senhor, e moderador da igreja valdense.
— Os senhores são cismáticos da igreja romana?
— Não cismáticos, espero, mas separatistas por escrúpulos de consciência,
com bases que consideramos escriturísticas.
— Há alguns bravos entre vocês; mas as montanhas são a sua melhor
defesa. César encontrou alguma dificuldade em atravessar esses desfiladeiros
com cinco legiões. É verdade o que ouço acerca da volta gloriosa de Arnaud?
— Sim, senhor, crendo nosso povo que foi ajudado pela Providência.
— Há quanto tempo vocês formaram uma igreja independente?
— Desde o tempo de Cláudio, bispo de Turim, por volta do ano 820.
— Que salário recebe o clero?
— Não se pode dizer que tenhamos qualquer salário fixo atualmente.
Napoleão perguntou então se eles não haviam uma vez recebido salário da
Inglaterra.
Peyrani concordou que era verdade, mas explicou que os valdenses, sendo
agora cidadãos da França, com a qual a Inglaterra se encontrava em guerra, não
mais recebiam o dinheiro.
Napoleão sugeriu que o pastor elaborasse um memorial quanto à igreja
valdense e lho enviasse a Paris. Recebendo isto, o imperador fez arranjos para
que fosse pago aos pastores protestantes o mesmo salário que era recebido pelos
clérigos católicos de seu país.
Dez anos mais tarde o império de Napoleão jazia em ruínas. Ele fora exilado
79
para Santa Helena, mas os valdenses nutriam-lhe carinhosamente a memória em
virtude da liberdade que lhes havia concedido.
No congresso de Viena, realizado depois da queda de Napoleão, resolveram
as grandes nações que os valdenses deviam ser mais uma vez restaurados ao
reino do Piemonte. Lembrando-se da aflição que haviam suportado nas mãos dos
anteriores duque de Sabóia, os valdenses sentiram-se desassossegados acerca
dessa decisão.
No esforço de conservar a liberdade que haviam fruído no império francês,
os valdenses redigiram uma petição rogando que não houvesse mudança em seus
direitos religiosos. Pediram mesmo que uma promessa assegurando-lhes essa
liberdade fosse inserida no novo tratado. Colocaram essa petição nas mãos do
duque de Wellington. Infelizmente nada foi feito a esse respeito, e em breve se
encontraram os valdenses mais uma vez inteiramente à mercê do duque de
Sabóia. Uma vez que o duque era violentamente antifrancês, não é de admirar
que ele decidisse não mostrar favor algum a quaisquer anteriores súditos de
Napoleão.
Assim veio a suceder que todas as suas tribulações anteriores voltaram,
agora intensificadas. Os padres enxameavam pelos vales valdenses. Re-
construíram-se mosteiros e conventos. Desapareciam mais uma vez crianças, se
bem que o duque tomasse medidas pelas quais os pais tinham permissão de vê-
las, uma vez que não fizessem tentativas de reconquistá-las da religião católica.
Trinta anos de intermitentes perseguições se seguiram. Depois, em 1848,
rompeu a revolução em muitas partes da Europa. O duque de Sabóia achou que
era chegado o tempo de libertar seus súditos protestantes. A 24 de fevereiro
emitiu ele um edito garantindo aos valdenses igualdade de direitos com todos os
outros súditos seus, e prometendo tolerância religiosa! As boas novas chegaram
rapidamente aos habitantes dos vales. O povo aglomerou-se nas igrejas, em ação
de graças a Deus pela libertação do temor.
A proclamação quanto aos valdenses era apenas parte de uma nova
constituição que o rei deu a todos os seus súditos, assegurando-lhes parte mais
ampla no governo. Houve então grande parada no Campo de Marte em Turim,
da qual foram convidados os valdenses a participar.
Seiscentos protestantes dos vales, tendo à testa dez pastores, atenderam
ao convite. Ao chegarem ao campo da parada, eles foram saudados pelos
espectadores com aclamações: “Vivam nossos irmãos dos vales!” Resolveu a
comissão encarregada que os valdenses marchassem à frente do desfile.
— Por longo tempo têm eles sido os últimos! Pelo menos uma vez serão os
primeiros. — E a frente do desfile marcharam eles, sendo, portanto, os primeiros
a saudar o rei, Carlos Alberto, que sentado em plataforma, aguardava seus
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súditos. Aos longamente combatidos valdenses, paz viera enfim.
Os valdenses vivem ainda em seus antigos vales. Seus ancestrais
combateram sozinhos por muitos séculos para conservar acesa a chama da ver-
dade evangélica. Fulgura hoje o registro de sua vida como um monumento de
fidelidade a despeito de perigo, de destruição e da própria morte; exemplo
inspirador a todos os cristãos que ora empunham a tocha do evangelho, fazendo
resplandecer as boas novas da salvação através do mundo.

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Livro reeditado para uso particular e sem fins lucrativos, por Pr. Flávio Borges Lima.

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