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í: Organizadores:

Allan Novaes e Felipe Carmo


0 livro O adventista e a cultura pop mostra um
lado da Igreja Adventista do Sétimo Dia que você
nunca conheceu! Nele, você irá descobrir como
a denominação se relaciona com a “cultura
pop” e os diversos meios artísticos utilizados
para expressá-la: séries televisivas, filmes,
literatura ficcional, histórias em quadrinhos
etc.; tudo isso a partir de um diálogo simples e
inteligente com estudiosos da área de Teologia e
Comunicação Social. Você vai mudar a forma como
entende a relação do cristão com a cultura pop.
UN SP
— '

Centro Universitário Adventista de São Paulo


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Editor Unaspress: Rodrigo Follis 0 adventista e a cultura pop


Editor Excelsior!: Allan Novaes

Revisão: Felipe Carmo, Jônathas Sant'Ana Ia edição-2017


Programação visual e capa: Ana Paula Pirani Follis 1.000 exemplares
Imagens: Shutterstock, Wallyson de Oliveira

Todos os direitos reservados para a Unaspress. Proibida a reprodução por Todo o texto, incluindo as citações, foi adaptado segundo o Acordo Ortográfico

quaisquer meios, salvo em breves citações, com indicação da fonte. da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009.

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

0 adventista e a cultura pop/Allan Novaes, Felipe Carmo (orgs.J. -1. ed. - Engenheiro Coelho, SP: Unaspress -

Impressa Universitária Adventista, 2017.

ISBN: 978-85-8463-087-5

1. Comunicação 2. Comunicação ■ Aspectos sociais 3. Comunicação - Teoria 4. Comunicação de massa 5. Teoria da


comunicação

14-03589 CDD-302.2

índices para catálogo sistemático:

1. Comunicação: Teoria: Sociologia 302.2


2. Teoria da comunicação: Sociologia 302.2

Editora associada:

Associação Brasileira
das Editoras Universitárias 022708201?
PALAVRAS INICIAIS

PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

PRIMEIRA SEÇÃO
Capítulo 1: Revelação e cultura........................................................... 29
Felipe Carmo

Capítulo 2: Mensagens subliminares.................................................. 5?


Allan Novaes

Capítulo 3: Modernidade, mídia e missão............................................. 81


Rodrigo Follis e Marcelo Dias

SEGUNDA SEÇÃO
Capítulo 4:0 adventista e a ficção televisiva................................. 105
Lizbeth Kanyat

Capítulo 5:0 adventista e os filmes...................................................129


Bruno Ribeiro e Bruno Cruz
Capítulo 6: 0 adventista e a literatura de ficção............................... 151
ClacirVirmes Junior

Capítulo 2: 0 adventista e os quadrinhos........................................ 123


Felipe Carmo e Allan Novaes

Capítulo 8:0 adventista e os games.................................................. 19?


Gabriel Ferreira e Fabio Darius

Capítulo 9: 0 adventista e a música pop............................................ 221


JoêzerMendonça

Capítulo 10: 0 adventista e a mulher na mídia................................. 239


Betina Pinto

TERCEIRA SEÇÃO
Capítulo 11: Minha relação com a cultura pop.................................. 261
Histórias reais
0 tempo passa, e com ele ficam para trás antigas
maneiras de enxergar o mundo a nossa volta. 0
desenvolvimento tecnológico, a mudança de paradigma
e a evolução do pensamento científico avançam, às
vezes, sem pedir licença, exigindo do ser humano um
espírito determinado, porém, flexível. Em face a essa
realidade, não podemos esquecer as palavras do sábio:
“Não diga: ‘Por que os dias do passado foram melhores
que os de hoje?’ Pois não é sábio fazer tais perguntas”
(Ec ?:10, NVI). Esse antigo conselho comunica uma
realidade presente: cada época da história humana
carrega consigo suas inevitáveis dificuldades, mas,
ao mesmo tempo, descortinam um universo de
possibilidades nunca antes imaginado! A vida avança, e
os que desconsideram essa realidade, caducam - seja
na escola, no comércio, no entretenimento ou na religião.
Atualmente, podemos afirmar que vivemos
em uma sociedade apressada. Uma sociedade que
se preocupa, acima de tudo, com o que pode ser
conquistado no imediato'. Compartilhamos a “cultura
da pressa”, em que o vencedor é o mais veloz - seja
na produção de bens de consumo, na elaboração de
idéias ou na veiculação de notícias. A nova geração
que está diante de nós tem pavor da ociosidade, e
não aceita “perder tempo” com afazeres que não
sejam úteis para a realização de seus objetivos. 0
jovem nesse sentido vive com medo do “vazio”,
preenchendo cada segundo do seu dia a dia com
atividades das mais variadas. Esse sentimento
instaura no palco do cotidiano uma competição
entre os afazeres, em que tomam prioridade aqueles
que prometem ser mais promissores para o rápido
avanço de nossas realizações pessoais.
Na tensão das atividades cotidianas, as novas
gerações buscam o alívio de suas preocupações
no entretenimento. Isso significa que, em ocasiões
“livres”, o jovem acostumou-se a acompanhar séries
pela internet, colecionar histórias em quadrinhos,
dedicar tempo e dinheiro em jogos eletrônicos ou
mesmo reunir-se em finais de semana para uma sessão
pipoca com os amigos. Como diriam os especialistas,
a sociedade busca o espetáculo para as ocasiões de
prazer; ela estará inteiramente interessada em um
assunto conquanto este se demonstre interessante
o suficiente para ser consumido, em termos de
relevância, emoção, profundidade e apelo visual. Esse
estilo de vida, devemos admitir, tornou-se abrangente
o suficiente para representar o espírito de nossa
época! Ele não perdoa sequer as nossas igrejas.
Reconhecendo o contexto em que estamos
inseridos, assim como a necessidade de atualizar a
mensagem do evangelho para as novas gerações, o livro
0 adventista e a cultura pop representa uma iniciativa
corajosa. 0 material que você tem em mãos foi redigido
por especialistas na área de Teologia e Comunicação
Social que, além de considerar a relação histórica dos
adventistas com os meios de comunicação, aprofundam
o nosso conhecimento sobre eles, oferecendo uma
perspectiva equilibrada e otimista sobre o assunto.
Tenho comigo a convicção de que Deus conduz
a sua igreja de maneira sábia e inovadora, sempre
disposto a alcançar o ser humano onde quer que se
encontre; sempre preocupado a realizar uma coisa nova
(Is 43:19; 65:17; Nm 16:30). Portanto, acredito que o
estudo dos conceitos elaborados nesta obra e a prática
de suas sugestões abrirão oportunidades inimagináveis
para o avanço do adventismo às novas gerações. Acima
de tudo, consciente da rápida e infindável produção de
conteúdos midiáticos, desejo que o livro 0 adventista
e a cultura pop instaure em nós o sentimento de que
possuímos algo peculiar para oferecer.

Martin Kuhn
Reitor do Centro Universitário Adventista de São Paulo
0 livro O adventista e a cultura pop, uma
novidade lançada pelo selo editorial Excelsior!,
chegou em um momento determinante para a
Igreja Adventista do Sétimo Dia [IASD]. Poderia
ser dito, inclusive, que os esforços empregados
pela denominação para esse quinquênio foram
“coroados” com uma obra simples, acessível e bem
embasada para o início de discussões emergentes,
principalmente no que diz respeito aos meios de
comunicação e às novas gerações.
Atualmente, é inegável o protagonismo
que os meios de comunicação exercem para o
funcionamento da sociedade, de maneira que é
impossível pensar em qualquer ação sem levar em
conta esse fenômeno. A IASD, da mesma forma,
não poderia se excluir deliberadamente deste
contexto, que a abraça de maneira inevitável. Com
esse espírito, a igreja elaborou o Documento sobre
Comunicação Adventista, que visa estabelecer
parâmetros de orientação para a relação entre
a IASD e os meios de comunicação. Dentre as
muitas prescrições apontadas no documento, a
igreja reconhece a necessidade de evangelizar as
“subculturas”. Ele afirma: “a diversidade desses
grupos [as subculturas] exige da missão adventista
a elaboração e execução de abordagens que
respondam às necessidades desses segmentos
e que comuniquem o evangelho eterno de modo
inteligível para eles.” Tudo isso, contudo, sem a
mudança de qualquer princípio da fé adventista.
Essa preocupação com as subculturas,
segundo o documento, impele a IASD a “adotar
abordagens segmentadas ”; isto é, tomar
conhecimento de uma realidade social específica e
respondera ela à sua própria maneira. É justa mente
neste contexto que o livro O adventista e a cultura
pop se enquadra de maneira especial. Ele tem
como objetivo iniciar um diálogo franco com o
público mais jovem, a saber, as “ndvas gerações”,
sobre assuntos que são inevitáveis no seu
cotidiano: jogos, filmes, histórias em quadrinhos
etc. Entretanto, o que torna o livro excepcional
para o momento é a maneira inteligente, profunda
e despreconceituosa de se aproximar dessa
subcultura a partir de sua própria linguagem e
contexto. Dessa forma, O adventista e a cultura
pop incentiva o que o documento citado acima
já idealizava: “utilizar os meios de comunicação
disponíveis, sejam denominacionais ou seculares,
para transmitir ao mundo o evangelho eterno.”
Nesse sentido, 0 adventista e a cultura pop dá
continuidade a uma série de iniciativas ousadas e
criativas da IASD para evangelizar as novas gerações
através dos meios de comunicação. Desde os
mileritas, por exemplo, em uma época em que os
protestantes associavam a utilização de imagens à
idolatria, eram utilizados livrogravuras, diagramas e
gráficos ilustrados para a pregação. A própria Ellen G.
White, em seu livro Fundamentos da Educação Cristã,
reconhece a necessidade do engajamento da igreja
com os novos meios de comunicação, ao afirmar:
“Deus dotou os homens de talentos e capacidade
inventiva, a fim de que seja efetuada a sua grande
obra em nosso mundo. As invenções da mente
humana parecem proceder da humanidade, mas
Deus está atrás de tudo isso. Ele fez com que fossem
inventados os rápidos meios de comunicação para o
grande dia de sua preparação.”
Um exemplo mais prático dessas iniciativas
dentro da IASD pode ser evidenciado na produção
de dois filmes muito conhecidos atualmente
entre os adventistas: Tell de world [“Como tudo
começou”], que conta a história da denominação;
e o filme O resgate, que apresenta uma narrativa
ficcional sobre a história da redenção. Tão
importantes foram essas produções para a igreja
que, por ocasião do primeiro filme, a IASD publicou
um documento intitulado 0 uso de filmes para o
cumprimento da missão, em que reafirma o seu
compromisso com a ?a arte para a propagação da
mensagem do evangelho. Segundo o documento, o
objetivo principal da obra é comunicar esperança
e fé para o cumprimento da missão. Com essa
declaração oficial, a igreja esclarece, de uma vez
portodas, o comprometimento que os adventistas
possuem com os meios de comunicação como
ferramentas outorgadas pelo próprio Deus para a
propagação da sua vontade ao mundo.
É nesse mesmo contexto de inovações que
o livro 0 adventista e a cultura pop se encontra.
Em suma, ele faz questão de esclarecer as
relações históricas que o adventismo possui
com os diversificados meios de comunicação
e, posteriormente, apresentar uma perspectiva
otimista para o futuro. Trata-se de um livro
elaborado por especialistas na área que, além de
explicar as funções específicas dos objetos que
estudam, oferecem ótimos esclarecimentos a
respeito de sua relação com conteúdos religiosos
- especialmente o adventista do sétimo dia.
Portanto, o livro 0 adventista e a cultura pop
deve ser recebido como parte integrante de duas
ênfases da IASD na América do Sul para os próximos
anos: em primeiro lugar, revitalizar a relação dos
adventistas com os meios de comunicação a
fim de que estes sejam ferramentas úteis para a
pregação de sua mensagem; e, por conseguinte,
explorar novas linguagens e conteúdos para o
alcance das novas gerações. 0 departamento
de comunicação da IASD para a América do Sul
reconhece a utilidade deste livro para o avanço das
expectativas acalentadas pela denominação. Além disso, é nosso
desejo que as reflexões oferecidas por essa obra sejam recebidas
com humildade e espírito de inovação para que a igreja avance.

Rafael Rossi
Diretor de Comunicação da Igreja Adventista do Sétimo Dia para a América do Sul
Entre os membros da Igreja Adventista do
Sétimo Dia (IASD), falar de “filme”, “videogame”,
“história em quadrinhos”, “música” etc., costuma
comunicar um sentimento de tensão nas reuniões
jovens. Mas isso não ocorre por considerarem
esses objetos como demoníacos, e muito menos
por acreditar que são inofensivos à moral cristã. 0
problema encontra-se justamente no meio termo,
ou seja, na procura por uma opinião equilibrada
que consiga transitar entre as ênfases otimista e
pessimista. Por isso, os argumentos prós e contras
sobre o envolvimento do adventista com tais objetos
costumam se desenvolver no extremo das opiniões:
ou o adventista se afasta completamente dos
produtos culturais de sua época, para viver uma vida
“pura”, ou mergulha inofensiva e irrefletidamente no
universo do entretenimento... Ambos os extremos,
concordamos, estão enganados.
Embora essa dificuldade seja comum nas
congregações adventistas, com o passar dos anos,
o mesmo sentimento foi transferido ao ambiente
acadêmico. No Centro Universitário Adventista de São
Paulo, campus Engenheiro Coelho (Unasp-EC), por
exemplo, o corpo docente do curso de Comunicação
Social se deparou com dois impasses. Por um
lado, surge a questão: 1) como ensinar aos alunos
a estudar os meios de comunicação e, assim, a
cultura midiática, se muitos deles acreditam que tal
envolvimento é pecaminoso? Por outro lado, 2)como
ensinar aos alunos os princípios de vida cristã se
os meios de comunicação muitas vezes promovem
um universo moral com elementos opostos aos
ensinamentos bíblicos? A relação dos adventistas
com os meios de comunicação pode sertraduzida
assim: se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Com essas preocupações em mente, no
segundo semestre de 2016, o curso de Comunicação
Social juntamente com o grupo de pesquisa
interdisciplinar em religião, juventude e cultura da
mídia Excelsior! promoveram uma serie de palestras
intitulada “0 cristão e a cultura midiática”, realizada
aos sábados à tarde no Unasp-EC. Foram convidados
um grupo de especialistas - docentes da área de
Teologia e de Comunicação Social - para elaborar
palestras sobre os problemas que mencionamos.
Cada um deles preparou uma apresentação sobre
o relacionamento histórico dos adventistas com
um objeto específico da cultura pop (jogos, filmes,
literatura, quadrinhos etc.) e ofereceu, a partir de
um viés teológico-comunicacional, uma sugestão
mais equilibrada sobre os temas. Todo o conteúdo
apresentado nessa série de palestras, além de
outros que acrescentamos com o passar do tempo,
foram reunidos exatamente no livro que você tem
em mãos, intitulado O adventista e a cultura pop.
Neste caso, o título deixa claro que o foco principal
desse material é a relação do cristão adventista
com aquilo que conhecemos como “cultura pop,
que entendemos como a cultura da mídia e seus
símbolos, ícones e produtos associados ao universo
do entretenimento, do consumo e da juventude.
Neste livro você encontrará as mesmas palestras,
organizadas com o objetivo de te introduzir ao universo
tempestuoso e, ao mesmo tempo, otimista, das
relações da IASD com a cultura pop. Para que essa
tarefa fosse realizada de maneira completa, o livro
foi dividido em duas partes: a primeira delas quis
apresentar um contexto teológico para as relações
do adventista com a cultura pop; a segunda parte,
de maneira complementar, quis abordar diversos
produtos ou elementos da cultura pop de forma mais
específica, assim como seu relacionamento com a
IASD no passado, no presente e em perspectivas
futuras. Com isso em mente, devemos lembrarvocê,
querido leitor, que o objetivo do livro não é oferecer
uma lista de regras para a sua relação com os meios
de comunicação! Não queremos dizer: “Você pode
assistir isso e deve evitar aquilo”, “filmes da igreja
são melhores do que filmes do mundo” ou “Star Wars
é melhor do que Star Trek’’. Nosso objetivo principal é
introduzir você ao universo da relação da IASD com a
cultura pop e, quando possível, sugerir algumas idéias
para o futuro dessa relação.
0 primeiro capítulo, “Revelação e cultura: reflexões
bíblicas para o cotidiano”, escrito pelo professor Felipe
Carmo, oferece uma perspectiva bíblica e teológica
para ser aplicada aos meios de comunicação. Nesse
capítulo, entendemos, a partir do relato bíblico, que
Deus se revela de diversas maneiras e, portanto,
possuímos a possibilidade de encontrá-lo em contextos
diversificados, mesmo que de forma ainda limitada.
Em seguida, o professor Allan Novaes, no capítulo
“Mensagens subliminares: o imaginário conspiratório
sobre a mídia na literatura adventista”, oferece um
importante esclarecimento sobre a limitação de
abordagens que costumam analisara cultura pop como
recipiente de mensagens ocultas. No final dessa seção,
os professores Marcelo Dias e Rodrigo Follis, no capítulo
“Modernidade, Mídia e Missão: para ser adventista em
um mundo dominado pela comunicação”, explicam
a importância de entender como a mídia atualmente
constrói identidades religiosas e qual o papel do
cristianismo nesse contexto.
Finalmente, a segunda seção é iniciada
pelo capítulo “0 adventista e a ficção televisiva:
redescobrindo a arte de contar histórias”, em que a
professora Lizbeth Kanyat procura compreender o
conceito de “ficção” de uma perspectiva mais ampla.
Em seguida, ela apresenta alguns exemplos de como
a IASD se utilizou dessa linguagem para propagar
sua mensagem por meio da televisão. Quase que
em complemento ao anterior, no capítulo cinco, “0
adventista e os filmes: mudanças de paradigma e
perspectivas para o futuro”, Bruno Ribeiro Nascimento
e Bruno Leonardo Ferreira demonstram que a arte
fílmica, há muito, tem sido utilizada pelos cristãos
como ferramenta para a pregação do evangelho - de
maneira até mesmo pioneira na história do cinema.
Depois disso, os autores também demonstraram
que os adventistas não se encontram alienados da ?a
arte! Na verdade, eles estão produzindo e idealizando
produtos fílmicos de diversos gêneros para a
comunicação de sua mensagem.
0 capítulo seis, “0 adventista e a literatura de
ficção: produção e crítica literária no adventismo
brasileiro”, da autoria do professor Clacir Virmes
Junior, apresenta uma perspectiva otimista sobre a
relação entre teologia e literatura. Posteriormente,
o autor apresenta várias iniciativas da IASD na
produção de ficção literária e enfatiza a importância
do desenvolvimento de uma visão crítica da literatura
entre os membros da instituição. No capítulo sete,
“0 adventista e as histórias em quadrinhos: um
breve relato sobre a relação do adventismo com
a 9a arte”, os professores Felipe Carmo e Allan
Novaes apresentam um panorama resumido sobre
o potencial teológico das histórias em quadrinhos
- por mais estranho que isso possa parecer! Em
seguida, eles apresentam um breve histórico sobre as
opiniões da IASD sobre os quadrinhos e, depois disso,
as iniciativas da própria instituição nesse sentido.
0 capítulo oito, “0 adventista e os games:
expandindo o evangelho à linguagem do
entretenimento”, de Fábio Darius e Gabriel Ferreira,
apresenta de uma maneira muito interessante a
relação dos adventistas com os jogos, mas com
o foco especial na época de Ellen G. White. Depois
disso, eles apresentam algumas iniciativas da própria
IASD na produção de jogos, tanto de tabuleiro quanto
eletrônico. Em seguida, no capítulo nove, “0 adventista
e a música pop: definições, preconceitos e práticas
eclesiásticas”, o professor Joêzer Mendonça retrata
brevemente o contexto de preconceitos em que a
música pop emergia e como muitos dos pressupostos
antigos ainda perduram entre os cristãos adventistas.
Além disso, o autor explica como esse gênero tem sido
tratado atualmente no contexto adventista.
Por fim, e nunca menos importante, a professora
Betina Bordin Pinto, no capítulo “0 adventista e
a mulher na mídia: encontros e desencontros na
construção do feminino”, tenta tratar de um assunto
raramente abordado nas discussões sobre a relação
entre os adventistas e a cultura midiática: a retratação
da figura feminina nos meios de comunicação. Ao
analisar alguns programas da Rede Novo Tempo de
Televisão e alguns artigos da Revista Adventista, a
autora faz observações sobre como a imagem da
mulher é construída no contexto midiático adventista.
Em complemento a todo esse conteúdo que
apresentamos para você, o livro O adventista e
a cultura pop também inclui uma terceira seção
dedicada a testemunhos pessoais. Nós selecionamos
oito pessoas importantes (você deve conhecer várias,
inclusive], para dividir conosco algumas de suas
experiências pessoais com a cultura pop! Mesmo com
um pouco de receio, eles escolheram compartilhar
com você alguns dos desafios (ou não] da relação
com esse tipo de cultura. Cada um deles preparou
uma pequena “declaração pessoal”, apenas com o
objetivo de demonstrar, na prática, como a cultura
pop fez ou ainda faz parte de suas vidas.
Bom... nós esperamos, sinceramente, que
você faça um bom proveito de cada parágrafo deste
livro! Ele foi preparado por pessoas que, além de
abordar os temas profissionalmente, possuem um
amor profundo por Cristo. É também parte do nosso
desejo pessoal que esse conteúdo seja útil para a
informação, educação e reflexão dos adventistas,
principalmente os mais jovens, de maneira que
desenvolvam uma visão mais madura sobre Deus, o
ser humano e o mundo em que estão inseridos.

Os organizadores
Revelação e cultura
REFLEXÕES BÍBLICAS
PARA 0 COTIDIANO
Felipe Carmo

Mestrando em Língua e Literatura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP); Especialista
em Teologia Bíblica [2014] pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo [Unasp-EC];
e Bacharel em Teologia (2012) pela mesma instituição. Atua como redator na Imprensa
Universitária Adventista (Unaspress) e como professor da Faculdade Adventista de Teologia no
Unasp-EC. E-mail: felipe.carmoiaucb.org.br
Vamos direto à questão: “0 que é de Deus
e o que é de Satanás na cultura?” A pergunta
parece simples, mas devo confessar que esse
questionamento é amplo demais para ser
respondido em poucas páginas. 0 que pretendo
dizer é que, antes de formular essa questão, o
sujeito estará normalmente afirmando: existem
coisas que são exclusivamente de Deus e
outras que são exclusivamente de Satanás.
Contudo, para alegar isso, você deve responder
em primeiro lugar quais características são
capazes de tornar um objeto “sagrado” (de
Deus) ou “profano” (de Satanás). Ou seja,
alguém deve ser apto para definir o caráter de
Deus e o caráter de Satanás para, finalmente,
lançar o veredito: isto é sagrado e aquilo é
profano. Complicado, né? Por exemplo, se
entendemos que Deus é amor, por contraste
óbvio, podemos afirmar que Satanás é ódio; se
Deus é fidelidade, Satanás é traição. Até aqui,
a lógica parece simples e aplicável a diversas
circunstâncias, mas não devemos ser ingênuos.
A coisa é bem mais complicada do que parece.
Esses exemplos são características
abrangentes a respeito de Deus. A Bíblia
afirma, várias vezes, que Ele é amor e
fidelidade (lJo 4:8,16; Jr 31:3; SI 33:5; Lm
3:23; Os 2:20; SI 92:2); disso todo mundojá
sabe. Porém, quando alguém pergunta: Esta
música é de Deus? Este livro é de Deus? Esta
comida é de Deus? Este filme é de Deus?,
“amor” e “fidelidade” são categorias muito
limitadoras ou amplas demais! Elas não dão
conta de respondertodos os questionamentos
que podemos levantar. Por exemplo: É
pecado andar de patinete? É pecado mascar
chiclete? Que tipo de óculos agrada a Deus?

capítulo 1
Qual penteado é o menos pecaminoso? É
pecado usar uma camiseta do Chaves? Para
responder a essas questões, precisaremos de
mais definições sobre Deus para aplicá-las a
todas as possíveis instâncias de nossa vida.
Será possível construir uma lista com todas as
características sobre Deus capaz de nos guiar
em cada aspecto do nosso cotidiano?
Sabemos da existência de uma ciência
que pretende conhecer a Deus, por mais
maluco que possa parecer; chamamos
ela de Teologia (do grego Oéoç + Àóyoc;,
literalmente “estudo de Deus”). Assim, se
existe a possibilidade de formular uma lista
de “sagrados e profanos” a respeito dele,
é inevitável nos introduzirmos à “ciência
de Deus”. Por isso, este capítulo pretende
apenas responder uma parte da questão que
propomos acima. A partir de alguns conceitos
introdutórios à Teologia, iremos tentar
entender, de forma geral, “o que é de Deus na
cultura?”. Se essa pergunta for respondida
com sucesso, por lógica, estaremos mais
aptos para responder à outra parte da
questão: “o que é de Satanás na cultura?” Mas
não queremos falar de Satanás nesse capítulo.
(Temos medo de mexer com essas coisas...)

REVELAÇÕES DE DEUS
AO SER HUMANO
Para conhecera Deus, em primeiro
lugar, devemos descobrir em quais locais
Ele resolveu aparecer! Todas as introduções
ao estudo da Teologia trarão o assunto da
“revelação” à tona como pressuposto para

REVELAÇÃOECULTURA
qualquer alegação a respeito de Deus (SEVERA,
2016; REIS, 2016; FRANKLIN, 2015; CANALE,
2011). Muito embora Deus seja gigantesco
e o ser humano uma pulga de mosquito, Ele
toma a iniciativa de se comunicar com a
humanidade de várias formas diferentes (Hb
1:1). Entendemos que, sozinha, a humanidade
nunca seria capaz de entrar em contato com
Ele por ser infinitamente limitada em suas
capacidades físicas e intelectuais. Mesmo
assim, a Teologia compreende que Deus se
revela ao ser humano; Ele pode ser conhecido,
e nos deixou algumas pistas a seu respeito.
Os teólogos costumam explicar a
revelação de Deus de duas maneiras. Para
eles, Deus se manifesta na revelação geral
e na revelação especial. Esses dois tipos de
revelação podem ser definidos da seguinte
maneira, segundo Miliard J. Erickson [2015, p.
140): a revelação geral “é a comunicação que
Deus faz de si mesmo a todas as pessoas,
em todas as épocas e em todos os lugares”; a
revelação especial “envolve a comunicação
e as manifestações particulares de Deus
a respeito de si para certas pessoas,
(...) as quais se encontram à disposição
hoje somente mediante a consulta a
determinados escritos sagrados.”
Em outras palavras, a revelação geral é a
comunicação divina que não faz distinção de
povos, cultura, religião ou time de futebol. Uma
tribo remota na Polinésia, por exemplo, é capaz
de aprender alguma coisa sobre Deus a partir
daquilo que Ele apresenta sobre Ele mesmo.
Ainda que essa tribo possua distinções
doutrinárias daquilo que a Bíblia ensina, ela
pode aprender algo do conhecimento de Deus

CAPÍTULO 1
graças ao que Ele comunica a todos os seres
humanos. Por outro lado, a revelação especial
representa o tipo de conhecimento a respeito
de Deus que está restrito a uma época, local
ou povo específicos. Compreendemos, e
acreditamos, que o povo hebreu foi elegido
por Deus por meio de Abraão para perpetuar a
sua Aliança (Gl 3:29; Rm 9:2; Hb 2:16; Lc 3:8; At
13:26; Gl 3:16). Embora pudessem conhecer
o Criador a partir da revelação geral, para se
relacionar com o Deus verdadeiro, os povos da
antiguidade precisariam se render ao “Deus de
Abraão, Isaque e Jacó”.
Sobre a revelação geral, a Bíblia menciona
alguns exemplos. Podemos alegar que a
revelação geral se manifesta de pelo menos
três formas distintas à humanidade: Deus fala
de si mesmo através da natureza, da história
e do interior moral do ser humano. Contudo,
devemos chamar atenção para uma coisa
muito importante: essas três formas distintas
não representam a revelação de Deus em si,
mas funcionam como uma espécie de “palco”
em que a revelação ocorre. É como se Deus
estivesse caminhando por eles e, ao mesmo
tempo, deixasse algumas pegadas, isto
é, impressões digitais de si mesmo! Nesse
sentido, a natureza, a história e o interior moral
do ser humano não representam a revelação
geral em si, mas o lugar em que a revelação se
manifesta. Isso ficará mais claro ao passo que
recorrermos a alguns exemplos.
Ao introduzir sua carta aos Romanos,
por exemplo, Paulo afirma: “A ira de Deus
se revela do céu contra toda impiedade e
perversão dos homens que detêm a verdade
pela injustiça; porquanto o que de Deus se

REVELAÇÃO E CULTURA
pode conhecer é manifesto [cpavepov1]
entre eles, porque Deus lhes manifestou.” E
complementa: “Porque os atributos invisíveis 1 0 termo grego cpavepov
de Deus, assim o seu eterno poder, como [phaneron] que se
encontra entre colchetes
também a sua própria divindade, claramente
no verso citado significa
se reconhecem, desde o princípio do mundo, “visível, claro, fácil de
sendo percebidos por meio das coisas que ser visto, conhecido”
(GINGRICH; DANKER,
foram criadas. Tais homens são, por isso,
2012). 0 alcance
indesculpáveis” (Rm 1:18-20). Nesse texto, semântico da expressão
o apóstolo nos esclarece que Deus pode ser inserida no verso em

reconhecido através das coisas criadas, por análise confere ainda


mais ênfase no aspecto
meio da natureza. Ele chega a alegar que evidente da revelação
os seres humanos são “indesculpáveis”. A de Deus. Aparentemente,
revelação de Deus na natureza pode ser ele aponta a um evento
que está disposto de
considerada uma revelação geral porque maneira óbvia e palpável.
está disponível a qualquer ser humano,
independentemente de sua etnia ou religião.
Outro exemplo, de forma mais poética,
esclarece que a natureza é capaz de proclamar
a mensagem divina sem pronunciar uma única
palavra: “Os céus proclamam a glória de Deus,
e o firmamento anuncia as obras das suas
mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite
revela conhecimento a outra noite. Não há
linguagem, nem há palavras, e deles não se
ouve nenhum som; no entanto, portoda a terra
se faz ouvir a sua voz, e as suas palavras, até
aos confins do mundo” (SI 19:1-4).
De maneira semelhante, a revelação geral
é evidenciada a partir da sucessão de eventos
históricos. Ou seja, eles demonstram, em
ocasiões notáveis, a ação de Deus no controle
da história. Um exemplo disso encontra-se
em Josué 2. Nessa ocasião, uma prostituta
chamada Raabe, após ser informada das
coisas que Deus havia feito em prol de Israel,
se impressiona, passando a acreditar no poder

CAPÍTULO 1
divino: “Bem sei que o Senhor vos deu esta
terra, e que todos os moradores da terra estão
desmaiados. Porque temos ouvido que o Senhor
secou as águas do mar Vermelho diante de vós,
quando saíeis do Egito [...], e em ninguém mais
há ânimo algum, por causa da vossa presença;
porque o Senhor, vosso Deus, é Deus em cima
nos céus e embaixo na terra (Js 2:9-11],
Na Bíblia, os eventos históricos
representam provas concretas a respeito da
existência de Deus e, mais do que isso, de que
Ele é fiel e misericordioso. Nas palavras de
Isaías, “povos fortes te glorificarão, e a cidade
das nações opressoras te temerá. Porque foste a
fortaleza do necessitado na sua angústia; refúgio
contra a tempestade e sombra contra o calor” (Is
25:3-4). A história é um tipo de revelação geral
porque comunica à humanidade a onipotência
divina em face aos acontecimentos.
Por último, a revelação geral pode ser
manifesta no próprio ser humano, a partir
de sua vida moral interior: a consciência
humana. Segundo o apóstolo Paulo: “Quando,
pois, os gentios, que não têm lei, procedem,
por natureza, de conformidade com a lei, não
tendo lei, servem de lei para si mesmos."
Eles procedem com ela “acusando-se ou
defendendo-se, no dia em que Deus, por
meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos
homens” (Rm 2:14-16). Esse verso é revelador
porque nos explica que o gentil (ou seja, o
não judeu) será julgado pela lei inscrita em
seu coração e não precisamente pela lei
conferida aos Israelitas. Esse exemplo ilustra
a revelação geral porque todos os seres
humanos, independentemente de etnia ou
religião, nascem com uma habilidade inata

REVELAÇÃOECULTURA
para avaliar moralmente as situações e optar
pela escolha que julgam mais correta.
Mesmo depois desses versos reveladores,
nem tudo é tão bonitinho quanto parece: a
natureza, a história e o interior moral do ser
humano, embora possam sinalizar algo sobre
a revelação de Deus, são meios imperfeitos de
comunicação! Isso significa que eles não vão
conseguir expressar a revelação de Deus de
maneira precisa. Por serem imperfeitos, eles
costumam fazer isso de forma defeituosa.
Essa revelação pode aparecer ambígua e nem
sempre refletir a vontade de Deus de forma
muito clara. Mesmo assim essa limitação não
invalida a revelação geral de maneira alguma!
Na verdade, ela apenas nos lembra que o
“palco” em que Deus atua deve ser analisado
com os “óculos da fé” (CALVINO, 2006), ou seja,
precisa ser interpretada à luz das Escrituras.
Ellen G. White já demonstrava essa mesma
preocupação quando disse: “o livro da natureza
e a palavra escrita lançam luz de um para
o outro” (WHITE, 2008, p, 128); e em outra
ocasião, complementa: “a razão humana,
destituída de auxílio, o ensino da natureza
não poderá deixar de ser senão contraditório
e enganador. Unicamente à luz da revelação
poderá ele ser interpretado corretamente”
(WHITE, 2008, p. 134). Neste caso, a Bíblia será
capaz de nos alertar a respeito da validade
daquilo que encontramos na natureza, na
história e no interior moral do ser humano.
Quando nos deparamos com essas
facetas sobre a revelação geral podemos
reconhecer quatro coisas. Se Deus possui
uma maneira de se revelar a todos os
seres humanos: 1) todas as pessoas,

CAPÍTULO 1
independentemente de etnia ou religião,
possuem um mínimo conhecimento sobre
Deus. Essa característica nutre em nós
uma virtude: 2) a revelação geral amplia
nossa concepção a respeito da grandeza e
onipresença de Deus. Ela deve ser estudada
em conjunto com a revelação especial para
que o nosso conhecimento de Deus seja
enriquecido. Contudo, devemos lembrar
que a revelação geral é muito abrangente e
corre o risco de ser contraditória. Afinal, ela
apresenta algumas características gerais
sobre Deus, e essas características podem
ser interpretadas de maneiras distintas:
dessa forma, 3] a revelação geral possui
algumas imperfeições e ambiguidades; para
ser esclarecida, ela necessita da revelação
especial. Isso não significa, é claro, que a
39
revelação de Deus em si é imperfeita, mas
que o palco em que ela aparece (a natureza, a
história e a moral humana] está com defeito
e, portanto, não consegue se comunicar muito
bem. Ela é limitada e ambígua em termos
de comunicação, porque consegue revelar
apenas as “impressões digitais” da atuação
divina. Por último, podemos alegar que 4) a
revelação geral sinaliza à possibilidade de
que as religiões mundiais possuem algum
elemento válido sobre Deus. Ela nos torna mais
humildes em relação à nossa fé e admite que
Deus é capaz de deixar suas impressões no
contexto das religiões não cristãs, mesmo que
essas impressões sejam ainda ambíguas e
defeituosas por causa do pecado.
Em resposta à questão inicial, o que
abordamos é muito introdutório, mas pode
nos servir de auxílio. Entendemos que é

REVELAÇÃOECULTURA
possível conhecera Deus em qualquer
contexto histórico ou religioso - mesmo que
de forma imperfeita, ambígua e incompleta
- e, portanto, o “mundo” pode ser entendido
como palco da manifestação divina e um
instrumento útil para conquistarmos um
pouco do nosso conhecimento sobre Deus.
Ainda assim, restam alguns questionamentos:
será que podemos elaborar uma “Teologia” a
partir da revelação geral? É muito fácil pegar
uma Bíblia (revelação especial] e falar de
Teologia a partir dela, mas ao entrar em contato
com a revelação geral, seria possível oferecer
definições sobre Deus? Podemos reconhecê-
lo nos acontecimentos cotidianos?

REFLEXÕES TEOLÓGICAS
40 PARA 0 COTIDIANO
Antes de falar da vida cotidiana, vamos usar
outra palavra para entendê-la melhor. Vamos
considerar que ela reflete precisamente aquilo
que conhecemos como cultura. Em termos
simples, ela é entendida de duas perspectivas
propostas por Raymond Williams [2001]: 1]
o “domínio das idéias”, que representa as
descrições que as pessoas conferem às suas
experiências comuns, o que as auxilia a dar
algum sentido à vida; e 2] as “práticas sociais”,
deliberando a existência da cultura como um
modo de vida. De forma mais técnica, a cultura
poderá ser entendida como as “relações entre
elementos de um modo de vida global [...] ela
está perpassada portodas as práticas sociais
e constitui a soma do inter-relacionamento das
mesmas” (HALL, 2003, p. 136).

CAPÍTULO 1
“DEUS SE COMUNICA
COM TODOS OS
SERES HUMANOS
NO‘PALCO’DO
COTIDIANO, DE
FORMA DUE
POBSMO5
ENCONTRAR
EXPRESSOS NA
CULTURA POP
REFLEXÕES
TEOLÓGICAS
OüGHAS DE
VALIDADE.”
Vamos simplificar: a cultura é,
basicamente, a união daquilo que você veste,
o que você come, o que assiste, o que lê
etc., tudo isso (e muito, muito, muito mais)
representa a sua cultura! Para um londrino,
é normal ir a igreja de terno. Para algumas
regiões do Caribe, pode ser que alguém vá
à igreja de camiseta. Tanto a maneira de se
vestir quanto a maneira de se relacionar com o
clima são culturais para eles.
Já que o ser humano também se
relaciona com a natureza, com a história
e consigo mesmo (em suas relações
interpessoais), ou seja, com a “revelação
geral”, é possível dizer que os significados que
eles conferem a essas relações se configuram
como “culturais”, ou seja, eles possuem idéias
sobre a natureza, a história e a moral. Por isso,
se esses elementos são o palco em que Deus
se revela ao ser humano, podemos considerar
que ele se revela através da “cultura humana”
- ainda que de forma imperfeita devido às
limitações dela, como já falamos. Todas as
outras atividades cotidianas resultantes
dessa relação com a revelação geral, portanto,
também serão representantes importantes de
uma cultura, justamente por serem práticas
sociais: escrever histórias, representar a
natureza artisticamente, cantar sobre as
coisas da vida, costurar um tipo de roupa,
preparar um prato de alimento etc.
Existe uma vertente nos estudos
teológicos que procura compreender como
Deus se manifesta na cultura (NIEBUHR, 1926;
TILLICH, 2009). De maneira mais específica,
existem tentativas que pretendem observar
os fenômenos cotidianos (culturais) e, a partir

CAPÍTULO 1
deles, identificar algo a respeito de Deus. Esse
tipo de “Teologia”, em nosso contexto, costuma
receber o nome de “Teologia do Cotidiano”
(REBLIN, 1995; 200?; 2012; BOBSIN, 1992). Ela
representa a Teologia que não tem como base
primordial a revelação especial (ou seja, a Bíblia),
mas as vivências populares da vida cotidiana.
Porém, essa Teologia não é considerada como
“oficial”. Ela não tem como pretensão substituir
as elaborações teológicas empreendidas
através do estudo das Escrituras: a Teologia
do Cotidiano pode ser considerada como uma
forma “subterrânea” de conhecer a Deus. Ela
não dá preferência à fonte oficial [Sola Scriptura]
para expressar algo a respeito dele, mas analisa
a possibilidade de que qualquer fonte possa
apresentar algo ao seu respeito, por reconhecer
que todos possuem alguma coisa a dizer sobre
Ele a partir de suas experiências individuais -
mesmo que limitadas.
Entretanto, para o autor deste capítulo,
é muito complicado dizer que podemos fazer
“Teologia” em qualquer lugar; ou seja, que essa
ciência pode ser sistematizada por qualquer
indivíduo, como se todos fossemos teólogos
no sentido técnico do termo - o que seria
como dizer que o curandeiro de uma tribo
indígena merece um diploma de medicina. Por
isso, preferimos alegar que o cotidiano, na
verdade, pode nos proporcionar “reflexões
teológicas” e não, como os estudiosos
parecem afirmar, uma Teologia no seu status
como ciência - o que, entendemos, só pode
ser elaborado da Bíblia.
Nesse sentido, a reflexão teológica
do cotidiano é formulada “fora do Templo”;
ela se manifesta em ambientes que não

RFVFI AFÃn F FUI TIIRA


possuem relação com a igreja. Ela é um
tipo de conhecimento sobre Deus que pode
ser formulado na padaria, no albergue,
no Palácio do Planalto, na prisão, na
escola, no trabalho, enfim, em todo tipo
de contexto, e sujeito às limitações que
esses contextos proporcionam.2 Ela confere
atenção aos medos, conflitos e esperanças
da sociedade, sempre questionando o
que tais sentimentos dizem a respeito de
sua relação com Deus; e também pode se
manifestar nas atividades mais corriqueiras
do dia a dia, como, por exemplo, cozinhar, 2 É importante comentar

namorar, cantar, comprar, vender, escrever, aqui que não estamos


propondo uma espécie
desenhar, viajar etc. Segundo Reblin (1995,
de "panteísmo”, em
p. 89): “o cotidiano é o despercebido que todas as coisas
inevitável na vida humana. 0 habitual e no mundo, de alguma
forma, representam
o ordinário, que sucede a cada instante”;
Deus e falam sobre
portanto, a reflexão teológica no cotidiano ele. Queremos apenas
“é a articulação da religiosidade do sujeito afirmar que todas as
pessoas possuem
ordinário nos mais distintos planos de
capacidade de refletir
expressão. Trata-se daquilo que as pessoas sobre Ele.
em sua vida diária creem e expressam.”
Vamos usar um exemplo mais simples.
Suponhamos que uma senhora, no afã de
preparar a janta antes da chegada do seu
marido, orará a Deus para que seu arroz não
queime. Ela é capaz de fazer esse pedido
a Deus unicamente por acreditar que Ele
é um ser pessoal, e está preocupado com
os afazeres de uma senhora na cozinha.
Contudo, essa noção acerca de Deus não
está discriminada na fonte de revelação
especial. Ou seja, a Bíblia nunca afirmou “0
Senhor nosso Deuste auxiliará na cozinha,
para que não queimes o arroz antes da
chegada do teu marido”. No máximo, a Bíblia
declara que Ele é um Deus pessoal [SI
22:10; 139:3; 21:6; Is 52:15; 66:2] que está
preocupado com os afazeres cotidianos
de uma senhora.3 Por motivos como esse,
aquela senhora é capaz de refletir uma noção
3 Um exemplo muito claro particular sobre Deus a ponto de acreditar
desse princípio está na que Ele é compassivo o suficiente para zelar
narrativa bíblica, entre
outras, em que Deus
pela temperatura do fogão, a fim de que o
fez flutuar um machado arroz não queime.
emprestado que, no caso, Posteriormente, vamos supor que
não poderia ser perdido
no rio (2Rs 6:5-7).
o arroz daquela senhora queimou e isso
desagradou o marido, que trabalhou duro
o dia todo! Ela, desolada, vai à igreja em
busca de consolo, porém, chegando lá,
não encontra alento. Esse acontecimento
a conduzirá na elaboração de respostas
pessoais à questão “Por que Deus deixou
meu arroz queimar?” A partir daí, ela poderia
tentar responder seu questionamento de
maneira positiva: “Deus deixou o arroz
queimar para que eu aprendesse a organizar
melhor o meu tempo e não fizesse a janta
com pressa.” Se essa resposta a satisfaz,
ela acaba de elaborar mais uma reflexão
teológica para seus problemas cotidianos:
uma noção de que Ele corrige a todos com
amor, assim como um pai corrige o seu filho
(Hb 12:2-8; Pv 3:11; SI 94:12).
É exatamente dessa perspectiva que
podemos entender o que a cultura e os meios
de comunicação dizem quando pretendem
falar a respeito de Deus! 0 diretor de um
filme, por exemplo, demonstrará aspectos
positivos e negativos sobre Deus no diálogo
de seus personagens, justamente porestar
representando uma reflexão geral sobre
Deus. 0 desenhista de uma história em

RFVFI ACÃÍ1 F Till TI IRA


quadrinhos, da mesma forma, desenhará
um personagem com semelhanças divinas
porque, em seu íntimo, possui a necessidade
de falar a respeito de esperança e justiça
que não resultam dos esforços humanos.
De forma semelhante, um pintor retratará
a figura de Cristo de maneira piedosa, não
porque está vinculado à uma instituição
religiosa, mas porque acredita ser esta
a expressão verdadeira do Salvador a
partir daquilo que experimentou de forma
pessoal. De acordo com luri A. Reblin (1995,
p. 89), esse tipo de reflexão teológica
“pode ser encontrada nos mais diferentes
meios de interação e comunicação: nas
relações (família, conversa de bar, trabalho),
nos meios de comunicação (televisão,
quadrinhos, rádio), na arte (cinema, pintura,
literatura)” etc.
Resumindo, o indivíduo comum,
religioso ou ateu, não pode ser considerado
como ignorante a respeito de Deus em
todos os sentidos. Ele é capaz de elaborar
suas próprias reflexões teológicas,
embora elas possam apresentar certas
limitações e incongruências! Às vezes, ela
estará repleta de ódio a Deus, devido às
incontingências da vida; em outros casos,
ela refletirá profunda fé e arrependimento
diante da misericórdia divina. Como a
experiência humana está manchada pelo
pecado, infelizmente, ela se apresentará
ambígua dessa forma. Em relação à
nossa questão inicial, dependendo do
discurso, todas as produções na cultura
humana podem falar a respeito de Deus,
embora façam isso de forma incompleta e
imperfeita. Essa afirmação só é possível
se reconhecemos que Deus se comunica
com todos os seres humanos no “palco”
da cultura e do cotidiano, possibilitando
que eles reflitam e alcancem fagulhas da
revelação divina. Dessa perspectiva, é
possível que os discursos populares que
encontramos expressos nos meios atuais
de comunicação apresentem reflexões
teológicas dignas de validade.

REFLEXÕES BÍBLICAS
PARA 0 COTIDIANO
Você pode ter chegado até aqui ainda
descrente de que é possível refletir sobre
o dia a dia de uma perspectiva teológica;
e ainda mais receoso com a possibilidade
de que tanto as atividades corriqueiras de
uma pessoa comum quanto as expressões
midiáticas são capazes de falar algo a
respeito de Deus, mesmo que de maneira
imperfeita. Contudo, a própria Bíblia, como
você a tem em mãos também nos ajuda a
compreender essas facetas! Ela costuma
ser dividida em livros históricos, poéticos
e proféticos. Os livros históricos estão
repletos de narrativas sobre a história da
salvação, enquanto os proféticos esbanjam
advertências de Deus sobre a Aliança.
Contudo, algo diferente ocorre com os livros
“sapienciais” (Jó, Provérbios e Eclesiastes, na
categoria dos poéticos). Eles não contam a
história da salvação; não estão preocupados
com o relato da queda do ser humano; não
fazem menção à eleição de um povo na

REVELAÇÃO E CULTURA
geração dos patriarcas; não dedicam espaço
à exaltação da Aliança entre Deus e Israel;
não apresentam nenhuma expectativa a
respeito do futuro, como a conquista de uma
terra prometida ou a vinda do Messias; além
disso, há quem diga que esses livros sequer
refletem o conceito de justificação pela fé!
(Afinal de contas, o que eles estão fazendo
na Bíblia mesmo?)
Desde o início do século 18, os livros
sapienciais foram considerados como um
“estranho no ninho” entre os escritos bíblicos
por não contemplarem as temáticas mais
comuns aos estudos teológicos. Para Gerhard
Hasel (2012, p. 62), renomado teólogo
adventista, “virtualmente todas as teologias
do AT tiveram dificuldades de lidar com os
escritos sapienciais”.4 Isso ocorre porque
os livros sapienciais estão interessados 4 Estudiosos se esforçam
até hoje para propor uma
em instâncias práticas da vida cotidiana; teologia específica para
sua abrangência de temas corriqueiros é esses livros (PERDUE,
tão grande que John F. Genung (1906, p. 8) 200?; 1994; CRENSHAW,
19??; O’CONNOR, 1990;
costumava considerá-lo como “o vade mecum PACKER, 2000).
do homem comum para a vida.”
Por exemplo, basta estudar o livro de
Provérbios para perceber que ele está mais
preocupado com a fidelidade no casamento
(Pv 2:5; 21:9, 19; 25: 24; 12:4; 5:18); a
prudência na maneira de falar (Pv 10:11;
19:18; 10:14; 26:2; 10:32); o respeito e
dedicação ao ensinamento dos mais velhos
(Pv 10:1; 4:20; 15:20; 23:19; 1:8; 4:10); as
maneiras de se portar com o alimento -
principalmente em companhia de pessoas
ilustres (Pv 23:1-3; 25:16; 6:8; Ec 2:24; 11:2);
o cuidado com os animais (Pv 9:1-2; 12:10;
22:23); entre outros. No livro de Jó, por outro

CAPÍTULO 1
lado, o leitor é introduzido de maneira intensa
ao tema do sofrimento. Ele nos fala sobre a
vontade de cometer suicídio (Jó 3:1-26; 2:1-21)
e a descrença em Deus (Jó 10:1-22; 16:1-
22), entre outros assuntos. Por fim, o livro
de Eclesiastes aborda questões existenciais
únicas na Bíblia. Ele avalia a legitimidade da
própria vida e, em determinadas situações,
chega a questionar o que absolutamente vale
a pena (Ec 1:1-3; 4:1-4). Resumindo, os livros
sapienciais não estão preocupados com a
“história da salvação”, mas nenhum outro livro
é capaz de responder de maneira tão imediata
às inquietações do ser humano.
Portanto, a Bíblia apresenta uma seção
que está inteiramente preocupada com
questões cotidianas (familiar, amorosa,
profissional etc.). Dessa perspectiva, os
livros sapienciais representam a experiência
de todos os seres humanos, e não apenas
a dos israelitas - já que todas as pessoas
estão inseridas no cotidiano, se relacionam,
comem, bebem, trabalham, estudam etc.
0 livro de Provérbios, por exemplo, inclui
uma seção intitulada “palavras dos sábios”,
sem confirmara origem étnica ou religiosa
destes, evidenciando autores não israelitas
no livro (Pv 22:12; 30:1; 31:1). Além disso,
em Provérbios 22:24 o leitor é exortado:
“Não te associes com o iracundo, nem andes
com o homem colérico.” 0 mesmo assunto
é abordado de maneira quase idêntica em
um texto egípcio chamado Ensinamentos
de Amenemope: “Não confraternizes com
o homem inflamado nem dele te acerques
para conversa” [Amenemope xi, 10). 0 fato de
ambos os textos instruírem o leitor a respeito

REVELAÇÃOECULTURA
do mesmo assunto é uma evidência de que os
autores estavam abordando temas cotidianos.
Todos os seres humanos estão preocupados
com o tipo de companhia que possuem.
Mesmo em nossa época, escutamos um
ditado popular que diz: “diga-me com quem
andas e te direi quem és.”
Um texto sapiencial babilônico oferece o
seguinte conselho: “Quanto a você, Gilgames, 5 Nas palavras de Kathleen
mantenha sua barriga farta, continue se O’Connor [1990, p.

divertindo, dia e noite! Esteja contente 13-14; CERESKO, 2015,


p. 9): “Além de servir
todos os dias, dance e brinque dia e noite! como lugardetroca de
Mantenha suas roupas limpas!” [Épico de alimentos e produtos
Gilgames, Sippar Tablet, iii, 1-15). 0 autor de comuns necessários
à sobrevivência
Eclesiastes 11:9 alega: “Alegra-te, jovem, na diária, a feira também
tua juventude, e recreie-se o teu coração nos funcionava como ponto
dias da tua mocidade; anda pelos caminhos de convergência para
a comunidade. Alise
que satisfazem o seu coração e agradam aos encontravam os amigos,
teus olhos.” É óbvio que os textos acima não trocavam-se notícias e
representam cópias um do outro! Na verdade, se tomavam decisões
legais e políticas. [...]
eles estão abordando um assunto cotidiano Como imagem poética
em comum: a necessidade de aproveitar e teológica, a feira
a vida da melhor forma possível. Esses exprime o fascínio dos
pensadores da sabedoria
exemplos ilustram bem o caráter cotidiano
com a existência
da sabedoria bíblica.5 humana ordinária. Ela
Por fim, como último exemplo, gostaria representa a área na qual
os seres humanos se
de apresentar um paralelo entre dois textos.
empenham em lidarcom
Neles, ambos os autores se encontram o caos da vida diária.”
desiludidos com a vida e, no auge de sua
tristeza, cogitam a possibilidade de nunca
terem nascido. De um lado está Jó, após
ser alvo das impiedosas garras de Satanás,
sofrendo sozinho toda sorte de perda. Do
outro lado está um cidadão egípcio, após ser
traído por seus amigos e perceber que a vida
só é capaz de lhe oferecer tristezas:

CAPÍTULO 1
“A morte é para mim hoje [como] “Por que não morri eu na madre?
saúde para o doente. Como Por que não expirei ao sair dela?
liberdade para o prisioneiro. A Porque houve regaço que me
morte é para mim hoje como o acolhesse? E por que peitos, para
perfume de mirra, como uma que eu mamasse? Porque já
varanda em um dia de brisa. A agora repousaria eu tranquilo;
morte é para mim hoje como o dormiría, e, então, havería para
perfume de lótus, como beber às mim Descanso, com os reis e
margens do rio. A morte é para conselheiros da terra que para si
mim como o momento após edificaram mausoléus; ou com
a chuva, como o retorno dos os príncipes que tinham ouro
homens aos seus lares após a e encheram de prata as suas
Guerra. A morte é para mim hoje casas; ou, como aborto oculto,
como os céus sorrindo, como um eu não existiría, como crianças
tesouro escondido no campo. A que nunca viram a luz. Ali, os
morte é para mim hoje como o lar maus cessam de perturbar, e, ali,
para o viajante, como a terra natal repousam os cansados. Ali, os
para o exilado. Verdadeiramente, presos juntamente repousam e
quem já ali está vive como um não ouvem a voz dofeitor. Ali, está
deus, punindo os pecados dos tanto o pequeno como o grande
transgressores. Verdadeiramente, e o servo livre de seu senhor. Por
quem já ali está se levanta que se concede luz ao miserável
no Barco do Sol, e recebe as e vida aos amargurados de ânimo,
melhores ofertas dos templos. que esperam a morte, e ela não
Verdadeiramente, quem já ali vem? Eles cavam em procura dela
está será sábio, e será recebido mais do que tesouros ocultos.
por Ra, o criador (0 diálogo de um Eles se regozijam se achassem a
homem com sua alma]. sepultura [Jó 3:11-22).

RPVPI ATÃn P nu TI IDA


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em primeiro lugar, podemos reconhecer
que Deus pode falar a cerca de si mesmo aos
seres humanos de forma geral. Esse conceito
teológico (revelação geral] nos ensina que a
natureza, a história e o interior moral humano
podem falar a respeito dele, mesmo que
de maneira imperfeita. Em segundo lugar,
compreendemos que a cultura não só é capaz
de falar sobre Deus, mas, em muitas ocasiões,
se esforça para elaborar reflexões teológicas
cotidianas para responderás perguntas
corriqueiras da vida. Essas elaborações,
obviamente, não são oficiais; mesmo assim,
em algumas ocasiões elas são capazes de
refletir experiências legítimas com Deus. Em
terceiro lugar, identificamos na Bíblia uma
seção que está preocupada com os afazeres
cotidianos como atividades religiosas. Além
disso, essa seção não demonstra apenas as
preocupações dos israelitas, mas compartilha
em seu conteúdo as palavras de “pagãos” que
foram capazes de expressar idéias morais
legítimas a partir de sua própria cultura.
Se pudéssemos responder de maneira
categórica à questão que levantamos no
início do capítulo, poderiamos estufar o peito,
tomar coragem e dizer: tudo na cultura possui,
em essência, o potencial ou a possibilidade
para ser de Deus! Todos os seres humanos,
independentemente de sua atividade - seja no
ato de cozinhar ou na produção de um filme -,
obrigatoriamente revelarão algo de sua inevitável
experiência com Deus. Claro, em inúmeras
ocasiões elas serão negativas e imperfeitas.
Contudo, ao contrário do que muitos possam

CAPÍTULO 1
alegar, a natureza, a história e a moral humana
estão repletos de pistas a respeito dos atributos,
do poder e da divindade de Deus.

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BOBSIN, 0.0 subterrâneo religioso da vida eclesial:
Intuições a partir das ciências da religião. Estudos
Teológicos, v. 32, n. 3, p. 261-280,1992.

CALVINO, J. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006,


livro 1.

CANALE, F. 0 princípio cognitivo da Teologia Cristã: Um


estudo hermenêutico sobre revelação e inspiração.
Engenheiro Coelho: Unaspress, 2011.

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DOIS

Mensagens subliminares
0 IMAGINÁRIO CONSPIRATÓRIO SOBRE
A MÍDIA NA LITERATURA ADVENTISTA
Allan Novaes

Doutorem Ciências da Religião pela PUC-SP com período de pesquisador-visitante nas


universidades Andrews e Notre Dame; pró-reitor de desenvolvimento institucional do Centro
Universitário Adventista de São Paulo [Unasp] e professor da Faculdade de Teologia da mesma
instituição. E-mail: allan.novaes@unasp.edu.br
Mensagem subliminar é um assunto
polêmico e confuso portrês razões básicas:
raras vezes o conceito é definido com precisão,
nunca foi possível comprovarem absoluto
sua eficácia e quase sempre é abordado com
passionalidade, sensacionalismo e doses
cavalares de teoria da conspiração.
A despeito dessa confusão que ronda o
tema, há pesquisas sérias sendo feitas (não são
muitas hoje em dia, mas existem) (DJIKSTERHUIS;
AARTS; SMITH, 2005).1 Primeiramente, quando
se fala em subliminar do ponto de vista científico
e acadêmico, estamos tratando de um tema
de interesse basicamente da psicologia, das
neurociências e da comunicação, diretamente
ligado ao estudo da inconsciência. Do ponto
de vista das duas primeiras áreas, estuda-se a 1 No Brasil, um dos raros
manipulação de atitudes por condicionamento estudos sérios sobre
otema encontra-se
subliminar e a influência do subliminar na saúde, na obra Propaganda
enquanto da perspectiva da terceira, analisa- Subliminar, de Flávio
se a influência de mensagens subliminares no Calazans.

comportamento do consumidor (NOVAKOVIC;


WHITNEY, 2014, p. 29).
Se ignorarmos as contribuições da
filosofia e considerarmos apenas o campo
da psicologia, o estudo da inconsciência - e,
portabela, do subliminar - tem cerca de
cem anos de história, e já produziu centenas
de pesquisas e experimentos somente no
século passado (DIXON, 1920; 1981). A área
de estudo é razoavelmente madura, mas
ainda está longe de sertaxativa em suas
conclusões. 0 estudo do inconsciente ainda é
um dos temas mais complexos e desafiadores
da ciência e não há espaço para discursos
absolutos e irrefutáveis. As opiniões são
divergentes e os resultados, inconclusivos.

CAPÍTULO 2
Diante desse cenário, este texto
procurará se restringir a dois aspectos do
estudo do subliminar: 1) o relacionado à
mídia e à comunicação; e 2) o relacionado
ao conceito popular e conspiratório do
termo, bem diferente daquele usado
pela comunidade acadêmica. Aquilo que
popularmente se entende por mensagem
subliminar é: todo estímulo transmitido em
um baixo nível de percepção, captado pelo
cérebro humano sem nos darmos conta.
Nesse cenário, a mensagem seria assimilada
sem nenhuma crítica consciente, como se
estivéssemos hipnotizados. Esse tipo de
definição é comum, por exemplo, nos textos
1 Tempos atrás eles e vídeos de sites e blogs que analisam
também analisavam símbolos ocultos em filmes e desenhos
falas diabólicas ao animados. É também muito frequente nos
girarem discos de vinil
ao contrário, mas agora
discursos de “especialistas” religiosos
a tarefa é mais difícil por que tentam identificar mensagens ocultas
conta da ausência desse satânicas nos logos da Globo ou da Pepsi.2
tipo de função no Spotify.
Nesse universo apocalíptico, é
muito comum associar as mensagens
subliminares a termos como lavagem
cerebral e reprogramação mental, e a teorias
conspiratórias envolvendo sociedades
secretas, planos de dominação mundial,
apocalipse zumbi e outros mistérios. Pior: de
acordo com essa compreensão conspiratória,
as mensagens subliminares são capazes
de comandaras escolhas, determinara
vontade, moldar o comportamento e implantar
hábitos (ou vícios!). Em outras palavras, as
mensagens subliminares têm o poder de
controlara mente humana. Fica evidente,
portanto, que essa perspectiva do subliminar
pouco ou nada tem de científico.

MENSAGENS SUBLIMINARES
Já definimos que tipo de conceito de
subliminar vamos tratar (o conspiratório) e
em que aspecto ele se manifesta (na mídia).
Agora, vamos conhecer um pouco da história
da mensagem subliminar no contexto da
comunicação, como ela influenciou a literatura 3 Um retrato interessante

e o pensamento adventista e quais são suas dessa época encontra-


se em Mad Men, série
implicações para a teologia da denominação. de TV do canal AMC que
descreve o cotidiano e
os dramas pessoais de
BEBA COCA-COLA, COMA publicitários e outros
funcionários da fictícia
PIPOCA E ASSISTA MAD MEN (?) agência de propaganda
Sterling Cooper, na
Madison Avenue, na Nova
Embora os estudos empíricos sobre Iorque dos anos 1950.
mensagem subliminartenham começado
ao final dos anos 1800 em alguns ramos
da psicologia e da filosofia, foi apenas a
partir dos anos 1950 que o assunto ganhou
as ruas e se tornou popular. Em grande
parte, isso se deve ao contexto de como
funcionava o marketing e a propaganda
nessa época, cujos métodos usados por FROM WRITER ANO EXECUTIVE PRODUCER
MATTHEW WEINER OF THE SOPRANOS
agências de publicidade para convencer os
consumidores a comprar um certo produto
eram cada vez mais sofisticados, elaborados
e... invasivos. Trabalhava-se com grupos
de discussão, espelhos bidirecionais (isto é,
aqueles que permitem que a luz passe nas
duas direções, mas que também refletem a
MADMEN Where the truth lies -

luz no ambiente) e pesquisas psicológicas


sobre a percepção visual e sobre a natureza
dos desejos, a fim de criar campanhas bem Séries Premiere July 19 I
Thursdays 10pm/9c I
j
I
planejadas que tentavam se infiltrar na esfera
do inconsciente e manipular as ações do
Fonte: Pôster da primeira
indivíduo sem seu conhecimento (NOVAKOVIC; temporada da série Mad Men,
WHITNEY, 2014). Ou pelo menos isso era o que transmitida em 200? pela AMC.

se acreditava naquele período.3

CAPÍTULO 2
Em 1956, um publicitário iria revelar os
segredos “sujos” de seus colegas de profissão,
causando um alvoroço na opinião pública. Seu
nome era James Vicary (1915-19??], nascido
em Detroit, EUA, especialista em desenvolver
técnicas que tinham como objetivo fazer
consumidores comprarem por impulso. Ele ficou
famoso após divulgação de seu experimento
em uma sala de cinema em Nova Jersey, no
qual um segundo projetor emitia um slide com
dizeres imperativos: “Drink Coke" (“beba Coca-
Cola”) e “Eatpopcorn" (“coma pipoca”). As frases
James Vicary (1915-19??), eram projetadas sobrepostas ao filme em uma
publicitário norte-americano velocidade de 1/3.000 de segundo - o que seria
pioneiro no estudo das
propagandas subliminares.
tempo suficiente para o inconsciente absorvê-
las, mas não lento o bastante para o espectador
estar ciente disso (CALAZANS, 2006, p. 29). Os
anúncios subliminares supostamente criaram
um aumento de 18,1% nas vendas do refrigerante 53
e um aumento de 5?,8% nas vendas de pipoca.
Com as polêmicas pesquisas de James
Vicary, o tópico “mensagem subliminar” entrou
Fonte: © 2014 Ladrão da Noite.
no radar da opinião pública (ZANOT, 1992, p. 56;
DJIKSTERHUIS; AARTS; SMITH, 2005, p. ??-?9).
A mídia divulgou vastamente os resultados
dos experimentos de Vicary, fazendo do tema
um dos mais populares na América no final
dos anos 1950. Em 195?, ainda durante o
“efeito Vicary”, foi publicado o livro The Hidden
Persuaders, do jornalista Vance Packard (1914-
1996), que prometeu desmascarar o lado negro
do marketing e da comunicação, “reforçando o
interesse e a crença na propaganda subliminar”
(ZANOT, 1992, p. 56).
0 tema da mensagem subliminargerou
apreensão na sociedade americana, levando
Fonte: Capa do livro The Hidden
o congresso dos Estados Unidos a debater as
Persuaders, de Vance Packard.

MENSAGENS SUBLIMINARES
implicações morais e legais desse assunto.
Vicary chegou a apresentar suas idéias
a um grupo de senadores e as principais
emissoras de TV aberta do país decidiram
proibir“materiais subliminares” em suas
propagandas diante do cenário.
0 furor social e o frisson causados pelas
publicações de Vicary e Packard começaram
a diminuirão passo que a agenda política 4 Apesar do caráter

e cultural dos anos 1960 ganhava força fraudulento e do


descrédito acadêmico,
(estamos falando do movimento hippie, do os escritos de Vicary
feminismo, da Guerra do Vietnã e da Guerra têm importante
Fria). Para piorar, em 1962, Vicary admitiu que valor histórico. Eles
retratam bem o clima
sua pesquisa (aquela mesmo, da pipoca e conspiratório da época,
da Coca-Cola) não seguiram o rigor científico e podem nos ajudar a
exigido e seu experimento não permitia compreender como as
pessoas achavam que a
chegar a conclusões assertivas, impactantes comunicação funcionava
e abrangentes, como ele havia tanto e o impacto que ela tinha
defendido. Em outras palavras, a pesquisa foi sobre a mente humana.
Muitas dessas idéias
considerada uma fraude.4 Com a confissão de permanecem até hoje,
Vicary, um desinteresse se abateu sobre as especialmente entre
pesquisas em torno do subliminar nos anos alguns grupos religiosos
tradicionalistas. Aqueles
1960 e 1920 (WEITEN, 2002, p. 122).
que tiverem curiosidade
No entanto, o assunto do subliminar de acessar os escritos
voltaria a ganhar evidência com o livro originais de Vicary
podem fazê-lo nos
Subliminal Seduction, de autoria do psicólogo
arquivos do Thomas
canadense Wilson Brian Key (1925-2008), J. Dodd Research
lançado ao final de 1923. Uma de suas Center da Universidade
de Connecticut, nos
idéias mais influentes foi defender que
Estados Unidos.
“desenhos e palavras de cunho sexual
estavam embutidos de forma subliminar
em anúncios de revistas” (WEITEN, 2002,
p. 122). Em pouco tempo, essa abordagem
passou a ser aplicada também à televisão,
sendo praticamente a origem das análises
subliminares de palavras e imagens ocultas
em desenhos animados infantis e outros

CAPÍTULO 2
produtos audiovisuais (quem nunca ouviu
falar das supostas mensagens ocultas nos
desenhos da Disney?).
Na esteira do sucesso do seu livro,
Key viajou os Estados Unidos em palestras,
programas de rádio e talk shows televisivos
durante esse período, popularizando
ainda mais seus métodos e conceitos. Key
publicaria mais livros nos anos seguintes,
desdobrando sua análise do subliminar
SIGNET-4S1 C9149-J2 50^
na mídia, sendo o último deles em 1989.
Vale ressaltar que os anos 1980 ficaram
SUBLIMINAL marcados pelas alegações de grupos
SEDUCTION evangélicos tradicionalistas de que haviam
ARE YOU
BEING SEXUALLY ordens de adoração ao demônio em discos de
AROUSED
BY Ijj.lS-RLgTURE? rock que eram ouvidos ao contrário (WEITEN,
200?, p. 122; VOKEY; READ, 1985).
Desde então, em parte do mundo
evangélico, a mensagem subliminar passou a
fazer parte do repertório “básico” e “obrigatório”
de argumentos demonizadores da mídia. Nos
anos 1980 e 1990 proliferaram nas igrejas
evangélicas pregadores itinerantes, que
apresentavam discursos sensacionalistas
sobre o perigo do subliminar nas mídias para
Fonte: Capado livro Subliminal
Seduction, de Wilson Bryan Key.
justificar a venda de desenhos animados
bíblicos em VHS, Bíblias Ilustradas e outros
materiais que substituiríam os produtos
“do Maligno”. Enquanto isso, no circuito
acadêmico, o tema continuava marginalizado e
desacreditado por grande parte dos cientistas
e pesquisadores da comunicação e das
neurociências, configuração que permanece
até os dias de hoje, dada a fragilidade
metodológica, a inconsistência teórica, a
abordagem sensacionalista e os resultados
inconclusivos que orbitam o assunto.

MENSAGENS SUBLIMINARES
HIPNOSE, LAVAGEM
CEREBRAL E O APOCALIPSE ZUMBI
5 Em minha tese de
Quando se fala que a sociedade americana doutorado, mapeei
ficou alarmada com o debate sobre o subliminar 12 livros em inglês
na propaganda por conta de Vicary e Packard, é publicados poreditoras
adventistas que falam
importante ressaltar que a literatura adventista sobre a mídia a partir dos
não ficou de fora e também repercutiu essa anos 50 até hoje. São
discussão em sua literatura oficial. eles: Motion pictures
and television (1951);
Em se tratando dos livros adventistas em What abouttelevision?
língua inglesa sobre a mídia publicados a partir (1956); Quagmire ...
dos anos 50, década na qual os experimentos jungle ... desert ... or
what? The Pros and
de Vicary e o livro de Packard ganharam Cons of Television
popularidade, pelo menos metade deles se Viewing (196?); The
destacam por comparar a mídia, e em especial media, the message,
and man (1922); Mind
a televisão, com atividades como hipnose, manipulators (1924);
lavagem cerebral e uso de narcóticos (NOVAES, Televiolence (1928);
66
2014].5 Essas analogias começaram cedo na Television and the
Christian home (1929);
literatura adventista já em 1956, no folheto What
The television time
about television?, que faz menção à hipnose bomb (1993); Remote
como resultado da exposição à televisão, que se controlled: how TV
affects you and your
repetiría duas décadas depois em Televiolence, family (1993); Media
lançado em 1928, como segue na citação abaixo: values: Christian
perspectives on the
mass media (1999);
[A televisão] pode fazer de você um viciado assim
What you watch: a
como os narcóticos podem fazer de você um Christian teenager’s
dependente. Ela pode hipnotizá-lo de tal forma que guide to media
evaluation and decision­
você não terá mais poder de desligá-la. Alguns de
making strategies
vocês já experimentaram seu poder. Vocês sentaram (1994); Screen deep: a
na frente dela para assistir ao jornal das seis horas. Christian perspective
on pop culture (2002).
Depois veio ojogo de futebol americano ou algum
Para mais detalhes, ver
filme de segunda à noite, e depois um programa Novaes (2016).
bem tarde da noite, e depois algum mais tarde ainda.
Finalmente nas primeiras horas da manhã você se
levanta da cadeira bem cansado. Você está com dor
de cabeça. Você se sente drogado. Oe certo modo

CAPÍTULO 2
você está. Você acabou de deixar a televisão ser seu
mestre (RICHARDS JUNIOR, 1978, p. 23).

A mídia seguiu sendo comparada ao


efeito do uso das drogas e à ação da hipnose
até os anos 1990, mostrando a força da
linguagem de manipulação e domínio
cerebral na literatura adventista. 0 nível de
maior elaboração desse vocabulário e desse
raciocínio de controle mental exercido pela
mídia acontece nas obras Mind manipulators,
The television time bomb e Remote controlled.
0 exemplo mais claro da perspectiva
Fonte: Capa do livro Tele- conspiratória dos efeitos da mídia dentre os
violence, de H.M.S. Richards, Jr.
livros acima citados é Mind manipulators, de
Roland Hegstad, publicado em 1974 pela editora
adventista Review and Herald, um ano depois
do retorno do interesse pela temática subliminar
causada pelo livro Subliminal seduction de
Key. A efervescência social sobre o poder das
mensagens subliminares pode explicar boa parte
da motivação portrás da publicação desses
materiais sobre a mídia por autores adventistas.
Na verdade, Hegstad menciona na introdução de
Mind manipulators que uma das obras em que
se baseou foi The hidden persuaders, de Packard,
que ele afirma trazer “penetrantes insights sobre
procedimentos usados por publicitários para
controlaras compras através da exploração de
motivações ocultas” (HEGSTAD, 1974, p. 6).
Mind manipulators é um livreto, em
formato de bolso e de pouco mais de 30
páginas, que consiste basicamente em um
Fonte: capa do livro Mind argumento contra a suposta manipulação
Manipulators, de Roland R.
mental operada pelos meios de comunicação
Hegstad.
de massa, que tem como alguns dos objetivos,
nas palavras do próprio autor: fazer o leitor

MENSAGENS SUBLIMINARES
saber “como técnicas de lavagem cerebral
estão sendo usadas por publicitários, políticos,
e pela imprensa” e colocar em prática um “plano
de cinco passos [que] irá ajudá-lo a protegera
mente da manipulação” (HEGSTAD, 19?4, p. ?).
Em Mind manipulators, afirma-se que
“sem nosso consentimento, e na maioria dos
casos sem nosso conhecimento, nossas
mentes têm sido invadidas e alteradas”,
uma vez que “muitas ações e pensamentos
que assumimos como espontâneos e
exclusivamente nossos em vez disso são
respostas a informações programadas em
nosso subconsciente” (HEGSTAD, 19?4, p. 5).

Cientistas sabem há trinta e cinco anos que tal tipo


de condicionamento pode ser alcançado em massa.
Alguns têm alertado que as maiores liberdades
68
de uma nação - liberdade de expressão e religião,
por exemplo - podem ser alteradas sutilmente ou
mesmo levadas embora por um ataque aos sentidos
muito difundido, um ataque mais perigoso do que
a de um inimigo desembarcando em nossas praias.
Porque é imperceptível. Nós não estamos em guarda,
nossas defesas estão desatentas, e nossas mentes
podem ser invadidas e capturadas a resistência de
um tiro sequer disparado (HEGSTAD, 19?4, p. 5 e 6).

Os outros dois livros com tom


conspiratório sobre a mídia mencionados
foram lançados no mesmo ano: 1993. São
eles: Remote controlled e The television time
bomb. 0 primeiro foi escrito por Joe Wheeler
e publicado pela Review and Herald, citando
diversas vezes o livro Mind manipulators
como referência, mostrando a influência
indireta do trabalho de Packard também sobre

CAPÍTULO 2
“A NOÇÃO DO CRISTÃO
COMO UM SER
INDEFESO, INERTE E
PASSIVO DIANTE DAS
MENSAGENS MIDIÁTICAS
NÃO CORRESPONDE
AO OUE SE SABE
HOJE NAS CIÊNCIAS
DA COMUNICAÇÃO E
TAMPOUCO REPRESENTA
A COMPREENSÃO
ADVENTISTA DA
NATUREZA HUMANA.”
essa publicação. 0 segundo é de autoria de
E. Lonnie Melashenko e Timothy E. Crosby,
lançado pela editora adventista Pacific Press.
Em Remote controlled e The television
time bomb, os autores também constroem
um discurso de tom conspiratório de que a
mídia pode escravizar a mente. Acrescenta-
se à argumentação um vocabulário que
remete a um cenário pós-apocalíptico típico
da literatura de ficção cientifica: a mídia
pode transformar as pessoas em “zumbis”
enquanto é assistida (MELASHENKO; CROSBY,
1993, p. 61). 0 motivo é, novamente, a
convicção de que “quando você senta na
frente de seu televisor, você não está sendo Fonte: capa do livro Remote
Controlled1, de Joe L. Wheeler.
meramente entretido”, você está sofrendo
“lavagem cerebral” e “sendo reprogramado”
(MELASHENKO; CROSBY, 1993, p. 58).
?0
Os agentes desse domínio mental e
de lavagem cerebral sempre são os meios
de comunicação: “tudo o que cruza o limiar
da nossa consciência - rádio, televisão,
filmes, propagandas - transforma-nos ”
(HEGSTAD, 1974, p. 28). Crê-se que através
da ação subliminar da mídia o indivíduo vai
mudando de identidade e caráter, já que “os
eventos dos quais não temos consciência
são impressos mesmo assim (...) em nossa
mente” (HEGSTAD, 1924, p. 13). A violência, a
promiscuidade, a imoralidade e qualquer outro
tipo de conduta antiética e pecaminosa passa
a ser atribuída mais à capacidade da mídia
de conduzir ações e moldar pensamentos do
que à natureza má inerente ao ser humano no
contexto pós queda. Vale ressaltar que, para
boa parte da literatura até aqui analisada, o
mau comportamento e os maus hábitos da

CAPÍTULO 2
mídia são transmitidos a nós mesmo contra a
nossa vontade e ciência. A ideia aqui é que a
dimensão inconsciente da mente humana é
bem mais poderosa e influente no processo
de construção de identidade e de exercício da
vontade das pessoas do que a consciente. A
ideia é que o conteúdo midiático é o principal
instrumento deformadores do caráter e que,
por sua vez, “determina o destino eterno de
uma pessoa” [WHEELER, 1993, p. 16 e 1?).

Todo programa de televisão, toda novela radiofônica,


todo letreiro, todo livro e revista lidos, todas as
pessoas escrutinadas, toda suspeita abrigada, toda
palavra dita - está tudo lá [na mente], E aquelas

memórias inconscientes - a soma total do que


colocamos em nossa mente formará o tipo de
pessoa que somos hoje e que seremos amanhã
[HEGSTAD, 1974, p. 13 e 14).

A BALA MÁGICA EA
AGULHA HIPODÉRMICA

As descrições sobre o funcionamento


da mente humana e os efeitos da mídia sobre
o comportamento na literatura adventista
são muito semelhantes às que aparecem
nos estudos acadêmicos de comunicação
nos EUA na época de Vicary e Packard.
Acreditava-se no conceito de “massa” e
no poder do emissor e da mensagem no
processo de comunicação. Os argumentos
e vocabulário dos textos adventistas estão
muito próximos dos pressupostos da
Mass Comunication Research, tradição de

MENSAGENS SUBLIMINARES
estudos de comunicação influente nos EUA
entre os anos 1920 e 1960. Nessa escola
da comunicação, uma das compreensões
mais populares sobre o efeito da mídia foi o
da “Teoria Hipodérmica” ou “Teoria da Bala
Mágica” (ARAÚJO, 2002, p. 120-125).
Essa teoria tinha esse nome porque fazia
referência ao termo “agulha hipodérmica” (nome
técnico atribuído às seringas usadas em hospitais
para a infusão de medicamentos ou extração de
sangue). A lógica era que, assim como a infusão
de um medicamento era irreversível uma vez
que a agulha penetrasse nos vasos sanguíneos,
a mensagem da mídia também seria irresistível
uma vez que fosse transmitida. Portrás dessa
comparação estava a crença na noção de “massa”,
elaborada pelos pensadores” Gustave Le Bon
(1841-1931) e José Ortega y Gasset (1883-1955),
que enxergavam os grandes grupos humanos
na sociedade urbana contemporânea “como
multidões semisselvagens”, caracterizados por
“irracionalidade”, e que seriam guiados e moldados
pelas mensagens da mídia (MALDONADO;
FOLETTO; STRASSBURGER, 2014, p. 339 e 340).
A partir dos anos 1960, contudo, a
tradição de estudos norte-americanos
perdería força diante da ascensão dos Estudos
Culturais Ingleses e, a partir dos anos 1980,
da popularização da Teoria Latino-Americana
das Mediações. Essas duas escolas iriam
questionar a existência do conceito de
“massa”5 e se recusariam a tratar ouvintes,
leitores e telespectadores como reféns
da mídia. E com a perda de influência dos
estudos norte-americanos de comunicação,
caiu também a crença na habilidade
onipotente da mídia de imputar qualquer ideia,

CAPÍTULO 2
convencer qualquer pessoa e induzir qualquer
6 Hoje em dia o termo comportamento, como se acreditava.
“massa” não tem mais
Essas duas novas escolas ou abordagens
a credibilidade do
passado. Porisso.se
apontavam a ingenuidade da crença no poder
você quiser parecer infalível que os conteúdos e as mensagens da
alguém que está por mídia teriam sobre o indivíduo, concentrando-
dentro das discussões
atuais da pesquisa em
se em estudar as complexas e diferentes
comunicação, evite reações dos receptores e das audiências.
o termo “meio(s) de Apesar dessas mudanças que ocorreram
comunicação de massa”
em sua fala. Substitua-a
na história da pesquisa em comunicação nas
por“mídia(s)”. últimas décadas, a compreensão sobre o poder
da comunicação permaneceu basicamente
inalterada na literatura adventista. É possível
verificar nas publicações adventistas sobre
a mídia analisadas neste artigo menções
diretas ou indiretas à conceitos, pressupostos
e abordagens ligadas à Teoria Hipodérmica.
A noção do indivíduo como um ser indefeso,
inerte e passivo diante das mensagens da
mídia, típicas dos estudos de comunicação
norte-americanos dos anos 1930 a 1960, foi a
perspectiva adotada por boa parte da literatura
adventista sobre a mídia, estando presente até
hoje em diversos discursos da denominação.

ÀDÃO VERSUS 0 HOMEM-MASSA

No entanto, o que não parece ser


percebido por muitos autores adventistas
que defendem idéias conspiratórias sobre a
comunicação é a contradição explícita entre a
repetida ênfase nos poderes de manipulação,
lavagem cerebral e reprogramação da mídia
e a compreensão da natureza do ser humano
da teologia adventista, que reserva ã vontade
o único componente da natureza do indivíduo

MENSAGENSSUBLIMINARES
sobre o qual o diabo não tem poder.8 Sob a
perspectiva adventista, a vontade humana é
livre e determinante do destino pessoal.9
Portanto, existe um choque de visões sobre
o ser humano em questão, diante do qual parte
da literatura adventista sobre a mídia busca 1 “Sem o consentimento

um diálogo muitas vezes irreconciliável entre o próprio, ninguém poderá


ser vencido por Satanás.
discurso científico dos estudos de comunicação 0 tentador não tem poder
da época e o discurso religioso de sua teologia. para governar a vontade
É um embate entre o “homem-massa”10 inerte, ou forçar a alma a pecar”
(WHITE, 2005, p. 510);
passivo e “irracional” e o ser humano criado à “Satanás não pode tocar
imagem e semelhança de Deus cuja mente é o a mente ou intelecto, a
centro de comando. Nesse conflito, a lógica de menos que Iho cedamos"
(WHITE, 2002, p. 26).
parte da literatura adventista iguala o crente
mais ao “homem-massa”, indefeso diante das
investidas diabólicas da mídia, do que ao ser
humano como compreendido pela perspectiva
bíblica, “senhor” do próprio destino através das
decisões feitas pela mente. 9 “De acordo com a Escritura,

Ao dar ênfase ao poder “hipodérmico” da a salvação dos seres


humanos envolve[...J
mídia, diminui-se a importância do papel central a espontânea resposta
da vontade e da livre escolha. É quase como se ao chamado e sugestão
fosse dado, nessa dimensão restrita da relação do Espirito Santo. 0
papel do livre-arbítrio na
“influência da mídia versus papel da vontade”, determinação do nosso
um peso mais proeminente a Satanás do que a destino eterno está
Deus. Embora seja reproduzida a ideia de que o implícito na doutrina do
juízo final [...] que envolve,
diabo não tem poder sobre a vontade, a teoria entre outras coisas, a
da mensagem subliminar, nos moldes como encarnação e a morte de
foi compreendida pela literatura adventista, Jesus Cristo, a livre reação
humana ao chamado para
funciona como exceção a essa lógica. A mídia
aceitartodas as condições
e suas mensagens ocultas, portanto, seriam a do plano de Deus, bem
maneira que Satanás “encontrou” para driblar como o juízo divino em
face de nossa resposta”
a única restrição que Deus o impôs em sua (CANALE,2011,p. 132).
interação com a raça humana.
Porém, cabe aqui uma ressalva. Embora
não se possa afirmara existência de uma
manipulação que anule o livre arbítrio [pois não

CAPÍTULO 2
10 Termo de conotação há base bíblica para a crença na depravação e
sociológica usado por incapacitação total da vontade), por outro lado a
Ortega y Gasset para
qualificar o indivíduo
vontade humana não é isenta de tendências más
na “sociedade de massa” (pois as Escrituras apresentam uma humanidade
que, ao fazer um uso com natureza pecaminosa). Então, acreditar em
indevido da tecnologia, é
desumanizado, tornando-
uma manipulação todo-poderosa ao nível do
se não autêntico. Os inconsciente ou crerem uma fácil resistência
homens-massa são por parte de nossa vontade “soberana” são dois
aqueles que “vivem sem
esforço, abandonam-se,
extremos a serem evitados. Na compreensão
e deixam-se ir, em pura da natureza do ser humano em sua relação com
inércia” (ASSUMÇÃO, 2012, os conteúdos da mídia é preciso alcançar um
p.128).
meio termo que reconheça o livre-arbítrio ao
mesmo tempo em que aceite a existência de más
influências por parte do que lemos, ouvimos e
assistimos, afinal de contas é preciso lembrar
11 “Devemos ter sempre
que estamos em um contexto de conflito entre
em mente que estão em
operação seres invisíveis,
poderes espirituais do bem e do mal.11 A questão
tanto do mal como do aqui não é se as mensagens da mídia influenciam
bem, procurando ganhar o ou não (pois obviamente há influência), mas
controle da mente; agem
com invisível e eficaz
sim o quanto ela influencia e o quanto somos
poder. Anjos bons são capazes de resistir a essa influência. A exemplo
espíritos ministradores, da análise feita neste artigo, no discurso religioso
a exercer celestial
influência sobre o coração
o poder atribuído à mídia geralmente é muito
e a mente; ao passo que maior do que se apresenta na realidade, ao passo
o grande adversário, o que a capacidade do ser humano de exercer a
diabo e seus anjos,
livre-escolha é compreendida como sendo menor
estão continuamente
trabalhando para efetuar do que de fato é.
nossa destruição. Pois bem, retomando o fio da meada,
Conquanto devamos
vê-se que a noção do cristão como um
estar ativamente atentos
quanto a nossa exposição ser indefeso, inerte e passivo diante
aos assaltos dos inimigos das mensagens midiáticas, além de não
visíveis e invisíveis,
corresponder ao que se sabe hoje nas ciências
devemos estar certos de
que não poderão fazer- da comunicação, também não representa
nos mal sem haverem adequadamente a compreensão adventista
antes ganho nosso
da natureza humana. Algo que, na literatura
consentimento" (WHITE,
1887). adventista analisada neste artigo, ficaria mais
claro somente a partir do final dos anos 1990.

MFNRARFNÇÇIIRI IMINARPR
0 principal exemplo dessa guinada é o livro
Media values, de Daniel Reynaud, publicado
pela Avondale Academic Press em 1999. Nele
não se verifica a presença do discurso de
natureza subliminar ao se referir aos efeitos
da mídia sobre a mente humana. Ao contrário:
o livro enaltece a capacidade de autonomia do
ser humano diante da mensagem da mídia e
questiona o poder controlador das tecnologias
da comunicação e suas mensagens. Em Media
values, procura-se ressaltar o poder do receptor
e da audiência de negociarem sentidos e
fazerem decisões conscientes e livres.

Um estudo da técnica da televisão e sua ideologia pode


reforçar a impressão popular de que o meio é todo-
poderoso e pode nos vender quaisquer idéias e produtos
que quiser. Essa má compreensão surge de se ignorar
um elemento chave da mídia, chamado audiência. Um
estudo apropriado do impacto da televisão incluiria não
apenas estudos do meio em si mesmo, mas também de
seus consumidores (REYNAUD, 1999, p. ?0).

Diante da história das mensagens


subliminares em seu contexto comunicacional,
da evolução da pesquisa em comunicação
e da análise da forma que livros adventistas
falam sobre o poder da mídia, fica claro que
uma boa parte do imaginário adventista sobre a
comunicação se constrói a partir de discursos
conspiratórios e em estudos da comunicação
populares nos anos 1950. Muito do que se
tem falado hoje em dia sobre a influência da
mídia infelizmente não leva em consideração
o suficiente os avanços das pesquisas do
campo da comunicação e a compreensão
bíblica da natureza do ser humano e o papel
da vontade e do livre-arbítrio. Contudo, livros
como Media values e outros exemplos da
literatura adventista mais recente mostram
que a perspectiva da igreja sobre a mídia tem
amadurecido e se tornado mais consistente e
equilibrada. A publicação desse livro que hoje
está em suas mãos é um grande exemplo disso.

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77

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saiba mais

http://bit.ly/2gxE0iT
Rodrigo Follis

Doutor em Ciências da Religião com bolsa Capes/MEC e mestre em Comunicação Social pela
Universidade Metodista de São Paulo. Professor nos cursos de Teologia e Comunicação Social no
Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Diretor da Unaspress.
E-mail: rodrigo.follis@ucb.org.br

Marcelo Dias

Doutor em Missiologia pela Universidade Andrews (EUA). Professor no curso de Teologia do no


Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp). Diretor do NUMCI.

E-mail: marcelo.dias@ucb.org.br
Você já deve ter se deparado com notícias
sobre como fãs fazem loucuras por causa dos
seus ídolos. Um exemplo recente, ocorrido
em 2016, foi o de um grupo de adolescentes
que passou quase seis meses na fila à espera
de um show, simplesmente para serem os
primeiros a entrar e, assim, conseguir ficar bem
perto do cantor. Muitas piadinhas foram feitas
Fãs do cantor Justin Bieber
e, mesmo assim, eles continuaram firmes em
acampam no Sambódromo
seu propósito: ver de perto seu cantor favorito, do Rio de Janeiro para o show
aquele que lhes conferia um sentido para a vida. em 2017.
Copyright © 2016 Folha de S.P. Todos
Rir desse tipo de gente é fácil, mas te os direitos reservados.
convidamos a pensar sobre esse caso como algo
mais profundo. Sabe o que significa para eles
estar naquela fila? Aqui é que essa notícia fica
ainda mais interessante: o fato de estarem ali é a
constatação de que a identidade deles é definida
por seguir aquele cantor! 0 que isso quer dizer?
Simples. Eles são fãs e isso dá identidade a eles.
Antes de os acusarmos, é importante dizer que
isso também acontece com todo mundo. Inclusive
com você! 0 que muda é o local que buscamos a
nossa identidade. Quer exemplos? Então lá vai. Os
grupos de interesse que nos envolvem definem
nossa identidade: você gosta de futebol? Isso
faz parte de sua identidade. Seu time de futebol é
parte de quem você é. Você tem irmãos? Isso faz
parte de sua identidade. Você gosta muito de um
cantor? Isso faz parte de você.
É impressionante pensar que hoje seja
possível ter nossa identidade formada a partir
de um cantor midiático que mora a mais de
seis mil quilômetros de distância! No passado,
nossos avós e bisavós viviam em comunidades
bem fixas. As cidades eram menores, as
pessoas da rua se conheciam, até tinham o
hábito de sentar na calçada para conversar

CAPÍTULO 3
(loucura, né?j. Na verdade, todos moravam
naquela mesma região quase que a vida toda.
Eram raras pessoas novas naquela comunidade.
Dessa forma, todos tinham em comum muitas
crenças e um estilo de vida bem parecido. Isso
permitia com que as suas identidades não
sofressem mudanças tão bruscas e constantes.
Pois bem, como você sabe, hoje o mundo
é um local bem diferente, não é? Mesmo se a
sua cidade não for grande, você tem acesso ao
mundo todo através de rádio, televisão, telefone,
internet e por aí vai. Em outras palavras, você
conhece, mesmo que somente pelos meios de
comunicação, várias formas diferentes de ser e se
portar no mundo. Você tem acesso a informações
e opções de estilo de vida que seus avós nunca
imaginaram ter. Realmente, creio que você
concorda que o mundo está bem diferente hoje do
que no passado. Mas ainda falta discutirmos as
implicações de ter nossa identidade definida por
aquele cantor famoso que mencionamos no início
desse texto. E, como temos demostrado, podemos
tirar várias lições desse caso.
Uma das questões que observamos
é a fragilidade da construção de nossas
identidades nesse novo mundo. Como assim?
Pense conosco: esse cantor hoje é famoso,
assim como outros no passado o foram,
correto? Mas, a verdade é que essa fama
passará. E, na sociedade da informação e da
comunicação na qual vivemos hoje, a mudança
está cada vez mais rápida. Repare só: quantos
cantores e músicas você gostou no passado,
mas hoje nem se lembra da existência? Vários,
né? Viu, a velocidade da sociedade atual te
pegou e você nem mesmo se deu conta disso.
Apenas parou de ouvir esses cantores, sem

MODFRNinADF MÍDIA F MIRRÃD


nem ao menos parar para pensar o que isso
realmente significa.
Podemos te dar outro exemplo que mostra
como esse nosso mundo muda cada vez mais,
em uma velocidade cada vez maior (MORAES,
2006). Imagine que, menos de 10 anos atrás,
você precisaria ira uma loja física para conseguir
Interface do Spotify
comprar um CD, e seria necessário pagar cerca Copyright © 2017, Spotify Todos os
de R$ 22,00 por esse produto (nossa, acredita direitos reservados.

que tinha gente que comprava CD antigamente?).


Mas hoje não é mais assim, o CD até existe, mas
nem é tão importante em nossas vidas. Menos
de dez anos foram preciso para acabar com o
império do CD e iniciar a onda digital. Hoje você
pode pagar o mesmo valor de um único CD e
ouvir milhões de músicas através de sites como
o Spotify e o Apple Music. Isso é, se você quiser
pagar, caso contrário pode entrar no YouTube
ou baixar um CD “pirata” (embora a gente não
recomende isso, pois se trata de um crime e um Interface do Apple Music
cristão deveria respeitara lei, certo?). Copyright © 2017, Apple Music Todos
os direitos reservados.
“Nossa, é verdade!” - você pode estar se
sentindo surpreso (ou não). Se estiver, vamos
seguirem nossa conversa (se não estiver, releia
tudo até aqui e se sinta surpreso, por favor). Se
a velocidade é cada vez maior e isso muda a
sociedade, como será que é viver o evangelho
nesse contexto? Afinal, a Bíblia foi escrita há mais
de 2 mil anos, e não estava preocupada com
esse novo contexto contemporâneo. Ou será que
estava? Enfim, é relevante perguntar: como ser
adventista em um mundo movido pela mídia?
Para responder essa questão, vamos Antiga loja de CDs
Copyright © 2017, Curta Mais.
abordar alguns temas durante o resto deste
Todos os direitos reservados.
capítulo. 0 primeiro será discutir melhor
como é que os meios de comunicação estão
mudando a sociedade atual. Depois vamos

rapítui n 3
discutir o que é ser adventista (importante
isso, viu!]. Por último, cabe discutirmos quais
os limites da contextualização do evangelho
(em resumo, essa última parte se questiona
com questões como: até onde podemos ir
nesse mundo atual, sem perder a essência
de ser quem somos, como cristãos? Como se
adaptara nova sociedade midiática e continuar
a ser “um povo segundo a Bíblia”?].

AS IDENTIDADES
(RELIGIOSAS) NA IDADE MÍDIA
Para Campos (2008], um pesquisador
brasileiro muito importante, as mudanças na
mídia proporcionaram o pano de fundo para
que ocorressem algumas transformações
na “produção, transmissão e recepção da
mensagem religiosa”. A sociedade atual não
usa mais a mídia como um instrumento, muito
pelo contrário, nós nos articulamos através
dos meios de comunicação. Quer um exemplo?
Antes, o telefone servia para conversar com
outras pessoas, mas nossos relacionamentos
eram pessoais e presenciais. Hoje, nossos
telefones estão cada vez mais inteligentes e,
devido à internet que eles possuem, nem mesmo
precisamos nos conhecer pessoalmente ou
estar no mesmo local geográfico para termos
longas conversas e mesmo amizades que
consideramos verdadeiras. Viu só? Antes o
telefone fixo era um meio para marcar uma
conversa. Ninguém seria “zoado” por não
carregar seu telefone fixo a todo momento (isso
nem era possível!]. Nem mesmo por não estar
com ele a todo o tempo para responder a galera

MODERNIDADE. MÍDIA EMISSÃO


nos grupos de bate papo (isso nem existia!]. Hoje
nossos celulares são, eles próprios, mais do que
um instrumento para usarmos, eles determinam
se somos parte do grupo ou não.
Imagine se aquele garoto ou garota que
você está interessado chegasse em você e
iniciasse a seguinte conversa:

- Oi tudo bem?

- Tudo, sim. E contigo? - você responde.

- Bem... - essa última frase sai com maior dificuldade,


sai até errada, até porque ela é a razão daquela
abordagem: te convidar para uma conversa mais longa.
E isso dá muita vergonha, né? A pessoa nem consegue
falar "bem”, acaba inventando uma palavra toda nova e
já pensa: “ops, que anta eu sou, olha só o que eu falei”.
88
Mas é preciso continuar, ela querte conhecer melhor.

- Tem como me passar o seu WhatsApp? - a pergunta


sai bem tímida. 0 maior medo é a recusa. Ela pergunta
e já pensa: “Nossa, e se a resposta for não!?”.

-Eu... Bem... Eu não tenho WhatsApp - Essa é a


sua resposta, o nome do aplicativo nem sai direito,
você nem sabe como falar esse nome corretamente,
na verdade. Você fica bem sem graça e pensa: “putz,
perdi minha chance. Como assim eu não tenho
WhatsApp (sei lá como se fala isso, afinal)?”

Seria ridícula essa cena, você não acha?


Antes, na era do telefone fixo, ele era um
instrumento útil para conversarmos, mas
não era essencial, embora ele já tenha sido
um grande avanço para aquele tempo, pois
permitia conversar com pessoas que estavam

CAPÍTULO 3
longe. Como nem todo mundo tinha ou ficava
ao lado dos telefones fixos o tempo todo, a
gente dava um jeito e nem pensava nisso.
Se precisávamos conversar com alguém
e o telefone não atendeu, iríamos até a casa
dele ou esperaríamos até o dia seguinte. Hoje
acontece o efeito oposto! Já que todo mundo
tem um celular e está sempre online, vivemos
nossas vidas a partir dessa lógica. É isso
que queremos dizer quando afirmamos que
os meios comunicacionais agora são a base
das relações humanas, e não mais meros
ajudantes (PUNTEL, 2010).
A pessoa que pediu seu contato pode até
pensar: que estranho, como assim alguém não
tem WhatsApp? Notou? Você é obrigado a ter
esse instrumento comunicacional para não
ser considerado “por fora”. A depender do seu
grupo, você é obrigado, mesmo que não pense
assim, a ficar seis meses na fila esperando um
show. Todo mundo vai. Você gosta. Isso te dá
identidade. 0 que é uma fila por seis meses?
E note, não estamos condenando
nenhum desses meios de comunicação ou de
entretenimento. É legal todas essas coisas, elas
fazem parte de quem somos como sociedade.
Não tem nada de erado com elas em si, afinal, a
busca de identidade é algo que todos fazemos.
0 problema está apenas na questão de quão
profunda e duradora essas identidades serão.
Vamos fazer um exercício de recordação: quantos
cantores do passado você gostava e nem gosta
mais? Você tinha Orkut? (Se não tinha, acredite,
todos tinham, igual Facebook, mas hoje ninguém
se lembra dele.) E por aí vai. Todas essas coisas
foram importantes no momento em que elas
aconteceram, mas elas acabaram. Será que tudo

MnncDMinAnc uíniAruiccin
na vida tem que sertão frágil e passageiro assim?
Bem, segure essa questão, a gente já volta nela.
Vamos discutir primeiro a importância dos meios
de comunicação na propagação de opções tão
mutáveis de identidade.
Embora não tenha sido apenas por
causa dos meios de comunicação que a
sociedade se modificou, acreditamos que tais
transformações sociais foram acentuadas
devido à introdução dessas tecnologias, que
acabaram por gerar importantes “produtos”,
tais como o jornal, o rádio, o cinema, a TV e a
internet (KLEIN, 2006, p. 21; POSTMAN, 1994,
BERGER, 2002). É essa análise que nos auxilia
a entender a afirmação de Peter Berger e Anton
Zijderveld (2012), importantes estudiosos da
sociedade atual, de que essas tecnologias são
parte integrante da construção das identidades
do mundo atual. Essa nova construção se
forma e adquire sentido e status nas práticas
e vivências cotidianas, produzindo sentido em
sua organização social (CASTELLS, 2002).
0 avanço dos meios de comunicação nos
traz coisas maravilhosas. Conseguimos conversar
com pessoas em segundos. Reduzimos o espaço
e aqueles que estão distantes parecem estar
perto, devido a vídeo-chamadas ou mesmo
ligações telefônicas. E isso é algo muito bom!
Entretanto, nem tudo são rosas. Passamos
a definir nossas identidades através de uma
quantidade cada vez maior e mais superficial
de fontes. Nunca recebemos tantas opções
como hoje. São muitas mesmo. Estima-se que
hoje, através da internet, tenhamos mais amigos,
contatos, relacionamentos e versões de nós
mesmos como nunca tivemos em toda a história
da humanidade.
Essa quantidade de opções nos permite, em
diferentes momentos de um mesmo dia, caminhar
de um grupo para o outro com facilidade grandiosa,
o que Bauman (2001) considera como uma
“liquidificação" de nossas identidades. Um termo
bem complicado, né? Mas o que esse importante
pesquisador quis dizer é: não temos mais formas
fixas em nossas relações. Lembra que dissemos,
ali em cima, que nossos pais e avós tinham
relações mais duradoras, que eram para a vida
toda? Pois bem, Bauman (2001) afirma que isso
está cada vez mais raro, pois as opções do mundo
atual são tantas que não podemos, mesmo se
quisermos, ficar parados.
Aqui, o maior perigo é sermos tragados por
essa nova realidade, e deixarmos de ser parte
de uma comunidade, vivendo cada dia mais
como “se o mundo não importasse”. 0 problema
não é nos preocupar conosco, isso até pode
ser bom, o erro está quando esquecemos que
nossa missão é viver em comunidade e a amar
a todos como a nós mesmos. E olha só, tem
muitas pessoas por aí bem egoístas. Mas você
não deveria ser uma delas. Nossa sociedade
parece forçar a barra para que todos nós
vivamos como se ninguém mais importasse, só
“eu mesmo”. Geramos cantores famosos que
nos levam para a fila a espera de um show. Mas
isso é muito superficial.
Cada vez menos temos nossa identidade
fixada a grupos duradouros, tal como em uma
religião (BERGER, 2002, p. 26). Em outras
palavras, os meios de comunicação têm coisas
boas. Eles nos aproximam de quem amamos se
estivermos longes geograficamente. Mas, ela
também nos dá tantas opções que podemos
acabar nos perdendo. Corremos o perigo de ter

MODERNIDADE, MÍDIA EMISSÃO


relacionamentos superficiais. Conversamos com
tantas pessoas, curtimos tantas postagens, mas
nos abrimos cada vez menos. Temos cada vez
menos amigos de verdade.
Por agora, cremos que seja possível
passar para a segunda parte deste capítulo.
Acreditamos que ser religioso é algo que
pode ajudara equilibraras questões que
essa sociedade comunicacional traz. Não
vamos pregar aqui dizendo que você precise
abandonar os filmes, as séries ou mesmo
televisão. Muito pelo contrário, acreditamos
que você pode continuar usando tudo isso. 0
que faremos é propor que você coloque a Bíblia
como óculos para te capacitar a usar a mídia.

0 CRISTIANISMO
92 NO MUNDO DA COMUNICAÇÃO
A antropologia cultural é uma área de
estudo que nos lembra que todos temos status
e papéis na sociedade que determinam a nossa
identidade. A expressão “status” não quer dizer,
necessariamente, que somos importantes, mas
qual posição ocupamos em um determinado
sistema social. Isso porque as sociedades têm
certas expectativas comportamentais para cada
status. Se temos exemplo? Claro que sim! Se
você é um professor no Brasil (seu status] existe
a expectativa de que você dê aulas, provas e
notas (esses seriam seus papéis sociais, ou seja,
o que se espera de seu comportamento],
Um ponto aqui é importante deixar claro:
as pessoas têm mais do que um status. Sabe o
professor do exemplo acima? Então, ele também
pode ser pai (outro status], filho (outro status),

CAPÍTULO 3
“SE VOCE NOS
PERGUNTAR: QUAL A
MANEIRA CORRETA DE
SER CRISTÃO EM UM
MUNDO DOMINADO
PELO INDIVIDUALISMO
E PELA COMUNICAÇÃO?
NOSSA RESPOSTA SERÁ
APENAS UMA: SEJA
BÍBLICO.”
diretor do clube de desbravadores (mais um
status). E, em cada um deles, a pessoa modifica
seu modo de agir. Quando ele estiver cuidando
do filho, ele agirá de maneira diferente do que
quando estiver na escola dando aulas.
É assim que todos funcionamos na
sociedade, nos associando a uma diversidade de
status pelos quais transitamos constantemente.
Alguns papéis sociais são mais pessoais do
que outros baseado na intimidade envolvida
nos relacionamentos. 0 relacionamento entre o
vendedor de uma loja e você como consumidor
não envolve muita intimidade. Em todos esses
casos, usamos máscaras na interação com
outras pessoas. Somos algo que não é nossa
totalidade, mas que não deixa de ser quem
somos. Mas o que acontece entre os membros
da igreja? 0 status de membro carrega alguns
papéis sociais que envolvem a expectativa de
relacionamentos próximos entre as pessoas e
uma série de comportamentos.
Garanto que você já ouviu alguém dizer
que o mundo e sua cultura estão entrando
na igreja. Ficamos imaginando o que isso
significa. Será que existe alguém que
não seja cultural? Que não faça parte “do
mundo”? Se eu e você, que somos culturais e
vivemos no mundo, estamos na igreja, então
é normal “o mundo entrar na igreja”. Não é
verdade? Nos comunicar em um determinado 1 Esse mesmo conceito de

idioma, pentear o cabelo de certa maneira “mundo” e “cultura” já foi


mencionado no primeiro
e trabalhar onde trabalhamos determina capítulo de uma
a cultura que pertencemos. Em outras perspectiva teológica.
palavras, todos somos culturais. Não existe Se você quiser entender
melhor, volte lá e dê uma
mundo fora da cultura e nem cultura fora do conferida.
mundo (até que se prove a existência dos
ETs, manteremos essa convicção).1

CAPÍTULO 3
Na verdade, o que alguns se preocupam
é que elementos culturais que não estejam
de acordo com a Bíblia possam estar fazendo
parte da identidade de alguns (ou vários)
daqueles que se dizem cristãos. Essa é uma
preocupação legítima! Mas, como pode um
cristão brasileiro, outro na Ucrânia e outro
em Papua Nova Guiné, portanto de culturas
bastante diferentes, terem identidades
igualmente bíblicas? Será que a cultura de
um país, que é bem diferente do outro, não
será uma influência para decidirmos o que
consideramos bíblico ou não?
No chamado Concilio de Jerusalém
(Atos 15) os cristãos do primeiro século,
conduzidos pelo Espírito Santo, perceberam
que era possível ser genuinamente cristão e
ainda pertencera uma determinada cultura.
Isso quer dizer que é possível desenvolver
um relacionamento com Deus e viver pelos
mesmos princípios e valores, mesmo que
se expressando de maneiras diferentes. Da
mesma maneira, o movimento adventista,
desde muito cedo, entendeu que a sua
missão era mundial (KNIGHT, 2005; 2000).
Ser adventista é mais do que dizer que
temos crenças em comum: é entender que
os valores comuns geram diversidade de
expressões culturais. Isso significa que a
nossa identidade, como adventistas, não
deve ser primariamente baseada no que
fazemos ou deixamos de fazer. Precisamos
ser mais do que isso! Não necessariamente
você é adventista se você come ou não queijo,
vai ou não a um local, veste esta ou aquela
roupa. 0 que importa é a razão por trás dessas
decisões e o fato dela estar alinhada com a

MODERNIDADE, MÍDIA EMISSÃO


cosmovisão bíblica. É isso que determinará se
estamos, mesmo com culturas diferentes, no
mesmo caminho de fé.
A Bíblia nos ensina sobre uma realidade
que envolve relacionamento com um Deus
todo-poderoso que decide se revelar e buscar
o ser humano para reatar o relacionamento
rompido pela descrença humana. Esse Deus
mostra todo o seu amor pela raça que ele criou
e que redimiu do pecado na cruz do calvário.
Portanto, amar a Deus acima de todas as
coisas e ao próximo como a si mesmo deve
resumir a identidade do cristão adventista.
Pois isso é o que resume a própria identidade
do nosso Redentor.
Isso quer dizer que não precisamos nos
preocupar com mais nada além de amar? Sim,
é isso mesmo. Nada é maior do que amar!
E amar inclui todas as coisas. Longe de ser
algo pequeno, estamos falando do ato mais
revolucionário e difícil de ser executado.
Afinal, o único que conseguiu amar a todo o
momento e em total intensidade foi Cristo, e
sua entrega para morrer em uma cruz, por
mim e por você, é a maior prova desse amor
(KNIGHT, 2016). 0 amoraprendido na cruz nos
conduz para uma verdadeira revolução, que é
completa em todos os aspectos. Ao amarmos
verdadeiramente seremos impelidos a cuidar
de tudo: do meio ambiente, das crianças, dos
nossos vizinhos, do nosso país e dos nossos
inimigos. Nossa identidade será integral.
Mas sabemos que, devido ao pecado, será
impossível amar e viver como Cristo viveu. Por
isso, esperamos a restauração completa em
breve, que ocorrerá no dia em que Jesus voltar
para nos buscar (Mt 24).

CAPÍTULO 3
CONSIDERAÇÕES FINAIS
0 que tudo isso tem a ver com os meios de
comunicação e com aquele cantor famoso que
abordamos no começo deste texto? Como vimos,
a mídia expressa e ajuda a formara cultura.
Esportes, música, acontecimentos atuais não
são intrinsecamente maus. São apenas parte de
nossa busca de identidade dentro de um mundo,
esse sim, mau devido ao pecado de nossos
primeiros pais. Desde então buscamos nossa
identidade. Na primeira parte deste capítulo
argumentamos que muita coisa mudou devido
aos meios de comunicação. Falamos que a
velocidade vista hoje acaba por tornar nossos
relacionamentos frágeis e sem continuidade.
Hoje gostamos e somos queridos, amanhã
descartamos e somos descartáveis. Parece que
ninguém está mais seguro. Nossa cultura mudou,
vivemos em um mundo culturalmente frágil e
que precisa de esperança.
Com isso em mente, como devemos nos
relacionar com a cultura a nossa volta? Evitando
as expressões artísticas e culturais que se
chocam com valores bíblicos. E o erro aqui é achar
que a discussão está apenas relacionada a quem
produz o material. Se minha igreja produz, então
é bíblico. Se o cantor fulano, que não frequenta
minha igreja, produz, então não é. Se o filme é
de Hollywood, então não é de Deus. Se é feito
por um irmão da minha igreja, então deve estar
tudo certo. Queríamos muito que o mundo fosse
assim, tão simples de ser julgado. Mas ele não
é. Tem coisas boas “lá fora” e tem muita coisa
errada e não bíblica sendo pregada nos púlpitos de
nossas igrejas. Precisamos estar bem embasados
biblicamente para decidir.

MODERNIDADE, MÍOIA EMISSÃO


É possível traçar quatro modelos de
relacionamentos entre a religião e a cultura
popular: 1) religião na cultura pop; 2) cultura
pop na religião; 3) cultura pop como religião; e
4) religião e cultura pop em diálogo. 0 primeiro
modelo aponta o uso de linguagem, temas,
imagens e personagens religiosos em filmes,
músicas, televisão, esportes etc. 0 segundo
descreve justamente o uso de ferramentas,
estratégias, recursos, linguagem e mídia
da cultura popular para os propósitos da
transmissão da fé. 0 terceiro modelo sugere que
os interesses seculares subverteram os valores
religiosos e os “conversos” são os consumidores.
Finalmente, o último modelo permite uma
interação, os dois trabalham juntos, mas nenhum
“vende a sua alma para o outro”.
Demonizara mídia sem diálogo está longe
de ser a solução! Cristãos e, mais recentemente,
evangélicos estão entre os pioneiros no uso
da mídia, desde a prensa do século 16 até
as redes sociais do século 21. Filmes sobre
as histórias da Bíblia, gêneros musicais,
programas religiosos de rádio e televisão há
muito têm o seu lugar conquistado e costumam
ser permitidos para a maior parte dos crentes.
Ou seja, usar a mídia pode ser bom ou ruim.
Por isso temos que estar sempre atentos. Se
formos intencionais no relacionamento com a
mídia e pensarmos a todo momento em realizar
a missão, não estaremos usando a cultura,
mas criando uma cultura própria do Reino de
Deus. Mas para que isso aconteça, as igrejas
precisam passar por uma mudança radical de
paradigma deixando a ideia de consumismo
religioso e recuperando a sua identidade
missional. Não mais desenvolvendo uma

CAPÍTULO 3
realidade de “a igreja para mim” mas “eu para a
igreja”. Assim, desenvolvemos uma identidade
cristã relevante e santificada. Estaremos no
mundo, mas não seremos do mundo.
Até mesmo dentro da igreja é possível
viver sem um propósito profundo e realmente
relevante. É possível viver na fila, à espera
do próximo grande evento, que durará
segundos, mas nos fará esperar por seis
meses. Queremos a emoção do momento, não
o comprometimento de uma vida dedicada
ao serviço do outro e ao amor a todos que
estiverem ao nosso alcance. Mesmo na
igreja, sem usar a mídia, sem ver nenhum
filme ou seriado, poderemos “perdertempo
precioso”, pois não estamos verdadeiramente
convertidos para a cruz de Cristo.
Não deve haver uma divisão entre religião
e cultura porque não devemos imaginar que o
que acreditamos está totalmente desconectada
da maneira como vivemos aqui na Terra. A
cosmovisão cristã é a de um jeito de ser no
mundo. 0 que não é uma opção é 1) viver no
passado como se fosse uma era superior,
evitando qualquertecnologia apenas por elas
“serem modernas”; 2) viver exclusivamente no
futuro como se todas as decisões pertencessem
a um tempo que ainda virá, assim, deixamos de
perceber que, sim, tudo a nossa volta importa,
pois Jesus está voltando e precisamos viver isso.
Mas longe de nos tirar de nossa cultura, vamos
ser jogados nela, para clamar de todas formas,
que o nosso “Redentor vive, e que por fim se
levantará sobre a terra” (Jó 19:25).
Quando existe uma dimensão cultural
que estimula um viver passivo, individualista e
líquido, a cultura, seja ela religiosa ou secular,

MODERNIDADE. MÍDIA EMISSÃO


passa a ser um perigo. Se você nos perguntar:
qual a maneira correta de ser cristão em um
mundo dominado pelo individualismo e pela
comunicação? Nossa resposta será apenas
uma: seja bíblico. Seja bíblico, assistindo
ou não filmes. Seja bíblico, vendo ou não
televisão. Seja bíblico, pregando em sua igreja
ou para um amigo. Que você tenha a Bíblia
“junto de ti, na tua boca e no teu coração” (Rm
10:8). E que seu foco seja a cruz de Cristo:
amando ao mundo “como também Cristo amou
a igreja, e a si mesmo se entregou por ela” (Ef
5:25) (REID, 2009).

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
100

BERGER, C. Tensão entre os campos religioso e midiático.


In: MELO, J. M; et al. (Orgs.J. Mídia e religião na sociedade
do espetáculo. São Bernardo dos Campos: Universidade
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convicções sem se tornar um fanático. São Paulo: Elsevier,
2012. [Edição Kindle],

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2002. [Col. Era da informação: economia, sociedade e cultura],

KLEIN, A. Imagens do culto, imagens da mídia. Porto Alegre:


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KNIGHT, G. R. Uma igreja mundial: breve história dos


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Brasileira, 2000.

CAPÍTULO 3
. Em busca de identidade: o desenvolvimento
das doutrinas Adventistas do Sétimo Dia. Tatuí: Casa
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. Eu costumava ser perfeito: minha busca pela


verdadeira religião. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2016.

MORAES, D. Atirania do fugaz: mercantilização cultural


e saturação midiática. In: MORAES, D. (Org.J. Sociedade
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POSTMAN, N. Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia.


São Paulo: Nobel, 1994.

PUNTEL, J. Comunicação: diálogo dos saberes na cultura


midiática. São Paulo: Paulinas; Sepac, 2010.

REID, G. W. (Ed.J. Compreendendo as Escrituras: uma


abordagem adventista. Engenheiro Coelho: Unaspress, 2009

saiba mais

http://bit.ly/lnv2sKd
o adventista e a ficção televisiva
redescobrindoaartede
CONTAR HISTÓRIAS
Lizbeth Kanyat

Doutoranda em Ciências da Comunicação na Universidade de São Paulo (USPJ e coordenadora


do curso de Comunicação Social do Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC),
Campus Engenheiro Coelho. E-mail: lizbeth.kanyatfSunasp.edu.br
Séries, seriados, minisséries, telenovelas
e telefilmes representam em média 24%
das apresentações de televisão na América- 1 Média extraída dos
Latina.1 Junto aos programas jornalísticos e de relatórios de Brasil,
Argentina, Chile, Colômbia,
entretenimento, eles compõem a receita básica Equador, Espanha,
das emissoras de televisão aberta. As séries são México, Perú, Uruguai e
também o tipo de programa mais assistido nas Venezuela publicados em
(Re)invenção de gêneros
plataformas de streaming de vídeos on demand e formatos da ficção
(VoD). Em geral, esses programas possuem televisiva: anuário Obitel
um aspecto em comum: eles contam histórias 2016/coordenadores-
gerais Maria Immacolata
fictícias, isto é, histórias inventadas. No universo
Vassallo de Lopes e
acadêmico, esse conjunto de programas é Guillermo Orozco Gómez.
chamado de “ficção televisiva” - apesar da Porto Alegre: Sulina, 2016.

plataforma de exibição, em alguns casos, não


ser a televisão, mas o celular, o computador
ou o tablet, por exemplo. Você já se perguntou
por que este tipo de programa arregimenta
audiências tão vastas? Por que pessoas de
todas partes do mundo gostam tanto de assistir
a programas ficcionais? Além disso, a pergunta
mais importante: como a Igreja Adventista do
Sétimo Dia (IASD) se relaciona com este tipo de
produção cultural? Embora sejam perguntas
abrangentes, este texto busca trazer à tona
algumas pistas para respondê-las.

POR QUE A FICÇÃO NOS FASCINA?

Chamamos de ficção televisiva as


narrativas inventadas por um ou mais autores -
representada por atores -, que são transmitidas
com linguagem e recursos televisivos para
construir um mundo imaginado, povoado
por personagens que participam de enredos
(acontecimentos e ações) (PALLOTTINI, 1998;
RYAN, 2003). Da mesma forma, as narrativas têm

CAPÍTULO 4
a capacidade de rememorar e recontar histórias
conhecidas. Ao fazer uma releitura do passado,
acabam transformando-se em novas versões e,
por consequência, histórias novas.
No geral, as narrativas são transmitidas por
vários tipos de linguagens. A linguagem televisiva,
sobre a qual estamos estudando, é uma entre
outras, tais como a linguagem imagética, a
linguagem escrita, a linguagem oral. Contudo,
todas elas partem da linguagem verbal, pois ela
se desenvolve junto ao pensamento conceituai,
uma vez que a fala é racional e o pensamento
manifesta-se por meio da linguagem. A conexão
entre a linguagem e o pensamento possibilita
que nomeemos as coisas que passamos a
conhecer. Dessa forma, as palavras representam
objetos, estados, ações e desejos (VIGOTSKI,
2005]. Pelo sinal ou pelo desenho, o objeto
adquire uma existência mental mesmo fora
da sua presença. A palavra chama no mesmo
instante a imagem mental da coisa que evoca,
conferindo-lhe a presença, mesmo que esteja
ausente (MORIN, 1923).
0 conhecimento que temos do mundo
é mediado pela linguagem. A realidade
‘pura’ é inapreensível, pois nós interagimos
com ela por meio de signos, nomeando as
coisas, as experiências e narrando-as para
outras pessoas. Portanto, a realidade é
semiotizada por nós e para nós. Eco (1992, p.
136) exemplifica esse conceito da seguinte
maneira: “Nosso relacionamento perceptual
com o mundo funciona porque confiamos em
histórias anteriores. Não poderiamos perceber
inteiramente uma árvore se não soubéssemos
(porque outras pessoas nos disseram) que ela é
o produto de um longo processo de crescimento

0 ADVENTISTA E A FICCÃO TELEVISIVA


e que não cresce da noite para o dia.” A partir
desse exemplo, ele afirma: “Essa certeza faz
parte de nosso ‘entendimento’ de que uma
árvore é uma árvore, e não é uma flor. Aceitamos
como verdadeira a história que nossos
ancestrais nos transmitiram, ainda que hoje
chamemos esses ancestrais de cientistas.”
Com isso, Eco quer dizer que contos,
histórias, mitos, metáforas são facilitadores,
organizadores da nossa relação com o mundo.
Da política à arte, da ciência ao cotidiano,
todo os saberes constroem narrativas, isto é,
rearranjos linguísticos que possibilitam pensar
sobre o que se faz e ensaiar o que se pode fazer.
Narrar, seja por meio da oralidade, da escrita,
das artes visuais ou das artes audiovisuais,
serve para comunicar para uns o mundo
imaginado por outros - suas descobertas,
lições, princípios, invenções etc.
Portanto, contar e ouvir histórias é uma
atividade que acompanha todo ser humano
desde seu nascimento. É uma atividade da qual
se participa desde o início da existência. Dai a
familiaridade, o aconchego e identificação que
sentimos quando estamos diante de uma ficção!
A ficção nos fascina tanto porque nos proporciona
a oportunidade de utilizar infinitamente nossa
faculdade criativa para perceber o mundo,
reconstituir o passado, repensar o presente
e projetar o futuro que queremos. Em outras
palavras, “a ficção tem a mesma função que os
jogos. Brincando, as crianças aprendem a viver,
porque simulam situações em que poderão se
encontrar como adultos. E é por meio da ficção
que nós, adultos, exercitamos nossa capacidade
de estruturar nossa experiência passada e
presente” (ECO, 199?, p. 13?).

CAPÍTULO 4
OS ADVENTISTAS EA FICÇÃO
Conhecendo as oportunidades de reflexão
que a ficção proporciona, os autores bíblicos e o
próprio Jesus Cristo usaram este tipo de narrativa
para se comunicar com o público de sua época.
0 gênero da “parábola” é um exemplo disso. Por
ser uma narrativa ficcional, a parábola busca a
projeção do mundo real no mundo imaginário e, por
isso, é predominantemente figurativa - que utiliza
figuras de linguagem para expressar um sentido
não literal. Vejamos um exemplo em 2 Samuel
12:1-?. 0 profeta Natã repreende Davi usando
uma história ficcional para provocar reflexão no
governante: “Dois homens viviam numa cidade,
um era rico e o outro, pobre. 0 rico possuía muitas
ovelhas e bois, mas o pobre nada tinha, senão
uma cordeirinha que havia comprado. Ele a criou, e
ela cresceu com ele e com seus filhos. Ela comia
junto dele, bebia do seu copo e até dormia em seus
braços. Era como uma filha para ele. Certo dia, um
viajante chegou à casa do rico, e este não quis
pegar uma de suas próprias ovelhas ou dos seus
bois para preparar-lhe uma refeição. Em vez disso,
preparou para o visitante a cordeira que pertencia
ao pobre.” A Bíblia diz que Davi encheu-se de ira e
respondeu a Natã: “Juro pelo nome do Senhor que
o homem que fez isso merece a morte! [...]. Então
Natã disse a Davi: Você é esse homem!”
As parábolas podem ser interpretadas por
meio de uma leitura superf icial e literal do texto
ou podem ser compreendidas pelo leitor que
vai além das aparências para buscar a conexão
dessa história com o mundo real. Na parábola
do semeador (Lc 8], por exemplo, Jesus conta a
história de um agricultor e o seu ofício. A história
pode ser compreendida no seu sentido literal,

0 ADVENTISTA E A FICCÃO TELEVISIVA


no entanto, Jesus conduz os ouvintes a uma
compreensão figurativa do relato. No verso
11, Ele diz: “Este é o significado da parábola:
A semente é a palavra de Deus”, e nos versos
seguintes explica o significado de toda as figuras
de linguagem usadas anteriormente. Resumindo,
o que pretendo assinalar é que apesar do
emprego de narrativas ficcionais no próprio texto
sagrado, a IASD tem uma relação de relativa
resistência e desconfiança perante obras
ficcionais. Trata-se do dilema, enfrentado ainda
hoje, sobre “ficção versus realidade”.
0 consumo de ficção literária tem
sido desaconselhado pela igreja a partir da
interpretação de textos de Ellen G. White que
condenam a leitura de romances (WHITE, 2004b,
p. 221-290]. Os adventistas interpretaram
essas declarações como prova de que deveríam
evitartodo tipo de ficção literária, pois estariam
colocando a sua espiritualidade em perigo. 0 uso
do termo “ficção” [“fiction”, no original em inglês]
por Ellen G. White acarretou más interpretações
por conta de muitos de seus leitores adventistas,
fazendo com que a crítica aos romances ou 2 Para uma discussão um

contos da época fosse entendida como uma pouco mais demorada


sobre Ellen G. White e a
rejeição a tudo aquilo que é fantasioso ou irreal literatura ficcional veja o
(TIDWELL JUNIOR, 2013]2. Assim, as narrativas cap. 6 deste livro.
imagéticas também passariam a servir como
formas de comunicação, que se bem facilitavam
a compreensão de verdades, não poderíam ter
impressões autorias. Cabe ressaltar que esta
expectativa estaria fadada à frustração por ignorar
que toda criação humana passa pela subjetividade
do indivíduo criador, dotando a obra de novidade
(caraterística do que é novo). 0 que ocorre de
igual maneira com o texto sagrado, que é reflexo e
refração da revelação divina (CANALE, 2011).

CAPÍTULO 4
0 movimento milerita, e posteriormente
o adventista, buscava combater o rótulo
de complicação e mistério que envolvia as
profecias bíblicas usando desenhos, diagramas
e gráficos. As imagens eram consideradas uma
estratégia didática que tornavam as profecias
mais acessíveis e, ao mesmo tempo, respeitava
a essência bíblica, simbólica e iconográfica
em sua natureza. “No final das contas, as
ilustrações de bestas, chifres e estátuas
não eram consideradas fruto da criatividade
e imaginação, mas uma conversão fiel da
descrição textual da Bíblia” (NOVAES, 2016, p.
101). Sobre esse mesmo assunto, para David
Morgan (1999, p. 152), “no caso dos gráficos
adventistas, essa transposição da visão para
o texto significava um entrelaçamento entre
textos bíblicos e formas visuais na fabricação
de uma interpretação sistemática da profecia.
Os diagramas combinavam signos gráficos,
alfabéticos e numéricos em somente um campo
visual. As formas de representação discrepantes
estavam integradas de tal forma que uma pessoa
poderia ler as imagens e ver a palavra falada.” 0
autor ainda considera que, para Bates e seus
companheiros adventistas em 1840, “escrever
a visão significava primeiro transcrever em texto
(cumprido em Habacuque) e depois visualizá-la
uma vez mais em imagem pelo gráfico de Fitch.
[...) Na verdade, seus gráficos proviam os meios
para ler [plena e adequadamente] as Escrituras.”
0 adventismo deu abertura a imagens
autorais a partir de uma ilustração alegórica feita
pelo pioneiro médico Merritt Kellog (1832-1922)
para Tiago White nos anos 1820. A composição
apresentava a história da queda e redenção de
Adão e Eva, e deveria ser “lida” da esquerda para

0 ADVENTISTA E A FICCÃO TELEVISIVA


a direita. Tiago White viu aí uma oportunidade
evangelística, e em 1824 foram feitas diversas
impressões da arte, chamada “The way of life:
from paradise lost to paradise restored” [“0
caminho da vida: do paraíso perdido ao paraíso
restaurado]. 0 ano de 1824, portanto, marca o
início do engajamento adventista com as artes
visuais para além dos tradicionais diagramas
proféticos. Nas décadas seguintes, e até o
presente, o adventismo desenvolve, lenta e
gradualmente, uma relação mais aberta com as
artes visuais (MACARTHUR, 2014). Não obstante,
sobre a produção ficcional em linguagens sonora
e audiovisual, o adventismo retoma a tradição de
resistência e iletramento midiático herdeiro das
ressalvas apresentadas para à ficção literária
de romances do século 19. Apesar do rádio e a
televisão serem alvo de investimento e atenção
como ferramentas evangelísticas, educativas e
de serviço comunitário pela IASD desde a segunda
metade do século 20, as narrativas ficcionais para
jovens e adultos são timidamente experimentadas.
Na América do Sul, esse diagnóstico passa a
mudar a partir dos primeiros anos da década
atual como reflexo da configuração que tomou o
panorama audiovisual adventista no século 21, o
qual será descrito mais adiante.

POR QUE RESISTIMOS


À FICÇÃO TELEVISIVA?

Na América Latina, a forma de ficção


seriada mais popular é a telenovela. Suas
raízes históricas se remetem ao melodrama
do teatro popular que nasce no fim do
século 18, na Inglaterra e França. Nele
eram dramatizadas as paixões populares,
desgraças sofridas porvítimas inocentes e
traidores que pagam caro por sua maldade.
Em meados do século 19, como resultado do
desenvolvimento tecnológico da imprensa,
o melodrama do teatro popular ganha forma
escrita no folhetim. A literatura folhetinesca
viajou da Europa para a América no final do
século 19 entre os barcos de imigrantes. 0
folhetim se dirigia ao público em geral e trazia
histórias de diversos gêneros tais como o
dramático, histórico e detetivesco. Adaptado
ao rádio, o romance-folhetim daria origem à
radionovela e, posteriormente, à telenovela
(MARTIN-BARBERO, 2004).
Assim como os adventistas rejeitaram a
literatura ficcional a partir das recomendações
de Ellen G. White em relação ao romance
realizadas no século 19, a telenovela, neta do
romance-folhetim, foi por extensão também
considerada entretenimento impróprio para o
cristão. Além disso, como no caso da literatura,
a resistência que partiu de um gênero em
particular (a telenovela), se alastrou para
outros produtos culturais da ficção audiovisual
(séries, filmes etc.).
Novaes (2016a) explica que no
relacionamento do adventista com a cultura
midiática o movimento optou predominantemente
por rejeição e/ou tensão. Na sua tese doutorai, o
autor analisou as publicações oficiais da IASD
sobre a cultura midiática em língua inglesa de 1951
até 2015 e concluiu que o discurso institucional
oscila entre uma postura antimidiática e
uma postura ambígua. Enquanto a primeira
compreende que a mídia televisiva funciona
apenas como a representação máxima das

0 ADVFNTISTA F A FlfTÃÍl TFI FVKIVA


intenções malignas do diabo e a materialização
dos ideais antibíblicos do “mundo”, a segunda
postura encara a TV como instrumento diabólico,
como ferramenta evangelística, como perda de
tempo ou como investimento em lazer e educação.
As motivações para essas posturas, contudo,
residem nas marcas identitárias do milerismo
e do adventismo, entre elas, a orientação texto-
centrada e a ênfase experiencial cognitiva-
racional, que enfatizam, por sua vez, a supremacia
do texto sobre a imagem e do aspecto cognitivo da
natureza humana sobre outras dimensões da vida
religiosa (NOVAES, 2016a).
A ênfase no discurso de “manipulação
mental”, comum à opinião pública dos anos
1950 aos 1920 nos EUA, repercutiu na
mentalidade da IASD. Como resultado, se
atribuiu à mídia o poder de impelir à vontade,
moldar comportamentos, formar hábitos e
manipular a mente, sem que o sujeito tenha
consciência disso. Por consequência, o ser
humano foi considerado refém e vítima da
tecnologia, sendo incapaz de se “defender”
das mensagens e da influência midiática.
Esta compreensão, além de não corresponder
ao atual estado da arte da pesquisa em
comunicação, também não representa
adequadamente a compreensão da natureza
humana da IASD, a qual indica que a vontade
é o único componente da natureza humana 3 Para se aprofundar no

sobre o qual Satanás não tem poder.3 assunto da “manipulação


mental" veja o segundo
A postura ambígua se apresenta capítulo deste livro.
no discurso oficial a partir dos anos
1990, revelando um amadurecimento
no entendimento da cultura midiática
e suas lógicas de produção e recepção:
“Inicialmente, há certa demonização de
“NARRAR, SEJA POR
MEIO DA ORALIDADE,
DA ESCRITA, DAS ARTES
VISUAIS OU DAS ARTES
AUDIOVISUAIS, SERVE
PARA COMUNICAR
PARA UNS O MUNDO
IMAGINADO POR
OUTROS — SUAS
DESCOBERTAS,
LIÇÕES, PRINCÍPIOS E
INVENÇÕES.”
determinado veículo de comunicação ou
cautela e descrença em relação a ele, até que
um ministro ou membro de perfil ‘evangelista’
ou ‘missionário’ faça algum experimento com
aquela tecnologia. Nesse processo, líderes da
denominação observam a iniciativa e avaliam
acertos, erros, limites e excessos. Quando a
iniciativa amadurece, ela é institucionalizada”
(NOVAES, 2016b).
A crença na autonomia do ser humano,
em contraste com a ideia de uma mídia
manipuladora e perversa, permite que
esta postura acredite na moderação e
na criticidade em relação ao consumo de
produtos midiáticos. Primando o bom-
senso, o discernimento e a inteligência
humana, esta postura entende que Deus
pode falar mesmo através de produções
que não fazem parte do rótulo “gospel”
ou “cristão”. Esta postura está por trás da
apropriação dos meios de comunicação e
suas diversas linguagens como ferramentas
evangelísticas, educativas e recreativas.
4 “Deus dotou os homens
Motivados pela missão de Jesus (Mt 28:19-
de talentos e capacidade
20) de fazer discípulos de todas as nações inventiva, a fim de que
e pelo entusiasmo de Ellen G. White (1996) seja efetuada a Sua
grande obra em nosso
em relação aos meios de comunicação4, a
mundo. As invenções
IASD institucionaliza seu envolvimento com da mente humana
a mídia, incluindo a produção de conteúdo parecem proceder da
humanidade, mas Deus
ficcional. Isto se revela na consolidação
está atrás de tudo isso.
de departamentos de comunicação na Ele fez com que fossem
estrutura administrativa da organização, na inventados os rápidos
meios de comunicação
abertura de centros de mídia para produção
para o grande dia de sua
audiovisual nos campos, na fundação de preparação" (WHITE,
redes televisivas e radiofônicas, na abertura 1996, p. 409).

de cursos de ensino de comunicação em


níveis técnico, superior e de pós-graduação.

CAPÍTULO 4
BREVE PANORAMA
AUDIOVISUAL ADVENTISTA

Nos EUA, ministros experimentaram o


evangelismo por rádio, mas foi o evangelista
H. M. S. Richards quem concentrou a atenção
da igreja sobre a praticabilidade de proclamar o
adventismo através desse veículo. Em 1930, na
Califórnia, iniciou a transmissão do programa
que anos mais tarde, em 1942, viria se chamar
The Voice of Prophecy [“A Voz da Profecia”].
Nesse ano, o programa se tornou modelo
para os programas radiofônicos na América
do Sul. Ainda em 1942 Bráulio Pérez iniciou
programas de fala espanhola e, no ano seguinte,
oradores brasileiros iniciaram o programa em
português. A pregação da mensagem pelo rádio
foi amplamente assimilada pelo adventismo em
muitas partes do mundo. Em 1921 começou
a programação adventista através da Rádio
Transeuropeia de Lisboa, Portugal. Em 1984,
a Associação Geral aprovou um plano para
estabelecer uma estação em Guam na Ásia. Em
1992, a Rádio Mundial Adventista transmitia
programas em 46 línguas diferentes nas
Américas, Ásia, Europa, África e Rússia asiática
[SCHWARZ; GREENLEAF, 2009). Apesar da
popularização de novos meios de comunicação,
a malha radiofônica adventista continua
crescendo. Apenas no Brasil, em 2012, a rede
conta com 18 emissoras associadas dando
cobertura a 829 cidades.
0 uso da televisão como uma ferramenta
evangelística se desenvolveu primeiro nos
Estados Unidos depois da Segunda Guerra
Mundial e se estendeu a outros países à

n AnVFNTIFTA F A FIFrÃn TFI FVICIVA


medida que a tecnologia se tornava popular
nas outras regiões do mundo. Dentre as
iniciativas pioneiras, o projeto mais bem-
sucedido foi o do pastor William Fagal, na
cidade de Nova Iorque. Tratava-se de um
programa televisivo de meia hora cujo
formato girava em torno de dramas curtos
que descreviam um problema corriqueiro,
seguidos de um breve sermão. 0 programa
se chamava Faith for Today [“Fé para Hoje”]
e se popularizou rapidamente em todo o
mundo como referência para programas
evangelísticos. Por volta de 1958 o programa
aparecia gratuitamente em 130 estações com
uma audiência televisiva estimada de quatro
milhões de pessoas. No início da década de
1920 o programa de Fagal foi substituído
pela série ficcional Westbrook Hospital, cuja
produção foi desenvolvida por profissionais da
área e findou em 1979. Apesar do término da
produção de programa inéditos, os episódios
foram reprisados por muitos anos adiante.
Por volta de 1929, a série se tornou parte da
programação da Rede de Satélite Internacional
no Canadá e retransmitido na Europa, Ásia
e América do Sul. Os episódios também
chegaram a Israel, Líbano, Jordânia, Japão,
Nova Zelândia, Filipinas, entre outros países
[SCHWARZ; GREENLEAF, 2009).
Como resultado da ampliação da
produção e distribuição de programas
televisivos adventistas, a Conferência Geral
aprovou em 1921 um plano para estabelecer
um centro de rádio, televisão e filmes a fim
de coordenar os programas de comunicação
em massa da denominação - o Centro
Adventista de Comunicação localizado na
Califórnia. Em 1996 a propriedade do centro
foi transferida para a Divisão Norte-Americana
ao mesmo tempo em que outras divisões no
mundo construíram seus próprios centros de
comunicações (SCHWARZ; GREENLEAF, 2009).
Na Divisão Transeuropeia, a Associação de
Locutores Adventistas passou a organizar
a produção de programas radiofônicos e
televisivos para a região a partir de meados da
década de 1990. A serviço da Divisão do Sul
do Pacífico os centros de mídia foram reunidos
em 2006 uma única empresa de comunicação
chamada Adventist Media. Em 1995 surge na
Divisão Sul-Americana o Sistema Adventista
de Comunicação, que mais tarde viria se
chamar Rede Novo Tempo de Comunicações
produzindo programação em português e
espanhol (a partir de 2003).
121

PRODUÇÃO DE FICÇÃO
NA DIVISÃO SUL-AMERICANA

Apesar da produção de ficção televisiva estar


nas primeiras páginas da história audiovisual da
IASD, na América do Sul ela é um macro-gênero
pouco utilizado. 0 filme mais antigo que se tem
conhecimento é a média-metragem argentinaA
Vitória Final (1968). Outra importante produção
independente que circulou amplamente na
membresia da divisão sul-americana foi a longa-
metragem A Última Batalha (2005). Por outro
lado, produções oficiais foram identificadas
Cena do filmei vitótia
apenas desde 2012. Ainda que incompleto, o
final lançado em 1968. mapeamento apresentado na tabela 1 revela
uma tendência de crescimento do número de
produções ficcionais da igreja na última década.

0 ADVENTISTA E A FICCÃO TELEVISIVA


TABELA 1: PRODUÇÕES FICCIONAIS REALIZADAS PELA IASD.

Título
Ano IASD Formato5 Gênero Temporalidade
original

Trayectos TV Nuevo Tiempo Chile Série Drama Contemporânea

Meet Hiram Adventist Heritage Ministry Média-


Drama Histórica
Edson - North American Division metragem

Amigos y
TV Nuevo Tiempo Chile Série Sitcom Contemporânea
Hermanos

Meet
Adventist Heritage Ministry Média-
William Drama Histórica
- North American Division metragem
Miller

Meet
Adventist Heritage Ministry Média-
Joseph Drama Histórica
- North American Division metragem
Bates

The Record
General Conference Websérie Sci-Fi Época
Keeper
122 0 Silêncio USB - Associação Sul Curta-
Drama Contemporânea
de Lara Paranaense metragem
El Último Misión del Lago Titicaca - Longa-
Drama Histórica
Testigo Union Peruana metragem

Australian Union Conference


Tell The (propriedade intelectual) e
Telefilme Drama Histórica
World General Conference (direitos
de distribuição)

El Método Média-
Nuevo Tiempo Perú Drama Contemporânea
de Cristo metragem

Média-
0 Resgate Divisão Sul Americana Drama Contemporânea
metragem

Conferência Geral / Divisão Média-


Opostos Drama Contemporânea
Sul Americana/Unasp metragem

5 Classificação conforme
a Instrução Normativa n°.
36, de 14 de dezembro de
2004, da Agência Nacional
de Cinema -Ancine.

CAPÍTULO 4
É padrão do mercado audiovisual a inserção
de ficção na grade de programação televisiva.
Depois do conteúdo informativo, as produções
ficcionais são as que ocupam mais tempo de tela
nas emissoras de televisão aberta na América
Latina. Acompanhando essa tendência, a Nuevo
Tiempo Chile veiculou duas séries, uma delas se
apropriando de um gênero popular de sitcom, ou
comedia situacional. Outra produção ousada foi
a websérie The Record Keeper (2014) produzida
no gênero sci-fi, que teve seu lançamento
Cena dawebsérie The cancelado. Salvo estas duas produções, as
record keeper produzido
em 2014.
demais obras são do gênero drama. Também
se destaca na ênfase em médias-metragens,
produções de duração superior a quinze minutos
e inferior a setenta minutos. Apenas uma das
produções trata de uma história bíblica [The
Record Keeper). Analisando a temporalidade da
narrativa, foram identificadas cinco produções
históricas, isto é inspiradas em fatos ocorridos
no passado, e seis histórias que transcorrem
na contemporaneidade retratando a conflitos e
dramas da jornada cristã atual.
Se por um lado pontuamos que a filmografia
da igreja na América do Sul no gênero ficcional
é recente, por outro é importante registrar o uso
frequente de dramatizações, encenações ou
z pequenos esquetes como recursos ilustrativos
em programas televisivos não ficcionais, tais
I liram Edson
como documentários ou televangelismos.
Alguns exemplos são a série evangelística 0
Sétimo Dia: revelações das páginas perdidas da
história, produzida pela Rede Novo Tempo e a LLT
Productions, onde breves dramatizações são
Cartaz da produção
Meet Hiram Edson realizadas para ilustrar o tema em estudo. Ou,
lançado em 2012. os documentários 0 menino que vendia doces e
entregava sonhos (2012 - Rede Novo Tempo de

n Ani/CKITICTA C A CirrÃATCI C\/ICI\/A


Comunicação), Homens de fé (2013 - União Sul-
Brasileira) e O legado dafé (2016 - Igreja Central
de Curitiba) que fazem uso das encenações para
tornar mais vivida a história resgatada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Promocional do
documentário O menino
Percebe-se, portanto, o despertar da que vendia doces e
IASD para a ficção televisiva como um recurso entregava sonhos
lançado em 2012.
comunicativo potente! Na última década, a igreja
na América do Sul passa a superar a postura de
rejeição em relação aos programas ficcionais,
investindo na profissionalizando da estrutura
comunicacional. Entre as instituições de ensino
superior adventistas da região, Argentina, Peru e
Brasil ofertam juntos sete cursos de bacharelado
nas diversas áreas da comunicação social,
inclusive o curso de Rádio e Televisão que forma
profissionais especializados na criação de
programas ficcionais e não ficcionais.
Por fim, vale assinalar à perspectiva de
crescimento da produção ficcional. Em nota
oficial sobre o lançamento do telefilme Como
tudo começou, a Divisão Sul Americana reitera o
uso de ficção audiovisual para o cumprimento da
missão: “A participação nessa tarefa pode se dar
por meio da distribuição de livros e revistas, por
meio das redes sociais, de programas de rádio e
televisão, de filmes já produzidos ou que ainda
serão desenvolvidos nos próximos anos, bem
como pela vida consagrada de adoradores fiéis” (0
USO DE FILMES, 2016). Aficção audiovisual é uma
linguagem particularmente consumida por jovens,
que buscam nela elementos para construir sua
identidade e cosmovisão. Este é precisamente
um grupo demográfico para o qual a igreja dedica
pouca atenção. Diante disso, acredita-se que seja
fundamental a produção de programas ficcionais
que possibilitem ao jovem refletir sobre suas
escolhas, repensar seus valores, testar suas
crenças e, por fim, o inspirem a construir sua
identidade em harmonia com a vontade divina.

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
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WHITE, E. G. Fundamentos da educação cristã. Tatuí, SP:


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CAPÍTULO 4
CINCO

O adventista e os filmes
MUDANÇAS DE PARADIGMA E
PERSPECTIVAS PARA 0 FUTURO
Bruno Ribeiro Nascimento

Mestre em Comunicação e Culturas Midiátícas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPBj; e


Bacharel em Comunicação Social (Rádio e TV) e em Letras Português pela mesma universidade.

Atualmente, atua como professor substituto de Rádio e TV da UFPB.


E-mail: rn.brunno@gmail.com

Bruno Leonardo Ferreira da Cruz

Mestre ern Teologia pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC); Especialista

em História do Cristianismo pela Universidade Andrews; Bacharel em Teologia pelo Unasp-EC;


possui curso livre em Cinema pela Academia Internacional de Cinema (AIC).

E-mail:w brunocruzz@hotmail.com
... ■■
A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD)
possui uma relação ambivalente com a arte
fílmica. Contudo, a posição histórica adventista
a esse respeito se alterou com o passar dos
anos. Da condenação categórica contra o
consumo de filmes ficcionais, a IASD passou a
utilizá-los como ferramenta de evangelização
e de divulgação de sua mensagem no século
21. Pode-se alegar que à medida que os
adventistas avançaram na compreensão sobre
a relação que um cristão deve manter com
a cultura pop, avançou também a reflexão
teológica sobre o assunto, assim como a
frequência da utilização do meio fílmico como
ferramenta de disseminação da mensagem
adventista. Neste capítulo, pretendemos
demonstrar, mesmo que de maneira breve, os
caminhos que o cristianismo, em geral, e o
adventismo, de maneira específica, galgaram
para amadurecer sua relação com a 2a arte.
Para isso, vamos nos organizar em três
partes: na primeira, 1] apontamos a relação
que os cristãos protestantes, de forma
geral, mantiveram (e em muitas instâncias
ainda mantêm) com a arte fílmica. De certa
forma, é possível perceber que a atitude dos
adventistas no começo do século 20 reflete a
do contexto protestante, de uma perspectiva
mais generalizada; em seguida, 2) explicamos
a relação histórica dos adventistas com os
filmes de ficção, sublinhando como ela se
modificou ao longo dos anos; por fim, em
nossas considerações finais, 3) afirmamos a
importância da arte fílmica para a propagação
do evangelho e vislumbramos algumas
possíveis projeções e/ou perspectivas para o
uso desta entre os adventistas.

CAPÍTULO 5
AARTE FÍLMICA
NO PROTESTANTISMO

Assim como nas artes, em geral - poesia,


pintura e ficção literária - não há uma única e
definitiva “posição protestante” a respeito da
arte fílmica. Ao contrário, encontramos uma
variedade surpreendente de abordagens que
foram alteradas ao longo do tempo, sendo
cada uma delas consistente com a percepção
do protestantismo em seu contexto histórico
específico (MCGRATH, 2012], Portanto, antes de
aceitar para si uma posição específica sobre o
consumo de uma obra fílmica ficcional, deve-se
estar atento ao período e às motivações históricas
que geraram tais opiniões. Do contrário, o cristão
estaria conferindo prioridade à uma pequena
133
parcela do pensamento protestante a respeito da
cultura popular e, com efeito, desconsiderando
uma parte considerável de sua história.
Por exemplo, é interessante notar que, no
seu período embrionário, uma parte considerável
dos filmes de ficção produzidos eram de
temáticas cristãs! Machado (1992, p. 88) afirma
que muitos dos primeiros dramas ficcionais com
razoável duração foram as “Paixões, encenações
da vida de Cristo por meio de quadros, como no
ritual religioso da Via-Sacra ou nos ‘mistérios’
medievais”. Pode-se alegar que, nos seus
primórdios, o desenvolvimento artístico e
técnico da 2a arte contou com a colaboração de
cristãos protestantes; o nome mais proeminente
desse período - e ao mesmo tempo o mais
polêmico - é o de David W. Griffith (1825-1948).
De formação metodista e orientação vitoriana,
Griffith foi diretor de mais de 300 filmes e um

0 ADVENTISTA E OS FILMES
dos principais nomes no aprimoramento da
“montagem” e na utilização de movimento de
câmera e posicionamento de iluminação que
^SJUNE 18
são empregadas até hoje (DANCYNGER, 2003).
Ao mesmo tempo, ele é conhecido também
por obras como O Nascimento de uma Nação
(1915) - primeiro longa-metragem com técnicas
avançadas de posicionamento de câmera e de
edição - embora com teor altamente racista; e
Intolerância (1916) - filme que, parcialmente, foi
uma resposta às críticas a obra de 1915.
Mesmo diante de um contexto favorável, 18000 People 3000 Horses
Cost S500.000.00
já no seu início, havia também aqueles que WORTH K.W A SEAT
distanciavam a nova expressão artística da
religião cristã. A partir do crescimento da Cartaz de lançamento
do filme 0 nascimento
indústria fílmica e do aumento do número de
de uma nação publicado
roteiristas, no começo do século 20, houve em 1915.
uma evidente separação entre os filmes
134
de ficção, os filmes com temas religiosos
e os filmes com temáticas variadas,
especialmente as adaptações de obras
DWGRIFFITH’S
literárias. Em decorrência desse crescente COLOSSAL SPECTACLE

distanciamento, era natural que as igrejas


cristãs também se opusessem à 2a arte.
Em virtude dessa separação, religiosos
passaram não apenas a criticar a indústria
de filmes, mas também a própria natureza
destes, aconselhando aos fiéis que se
afastassem das “imagens que reverteríam
à idolatria” (LINDVALL, 2011, p. 12), e, ao
mesmo tempo, alegando que o consumo de INTOLERANCE
- A SUN PLAY OF THt AGES

tais obras fílmicas refletia a desobediência THE BIRTH OF A NATION

imediata do segundo mandamento: “Não


Poster do filme
farás para ti imagem de escultura, nem Intolerância lançado em
semelhança alguma do que há em cima nos 1916.

céus, nem embaixo na terra, nem nas águas


debaixo da terra” (Éx 20:4).
Embora a polarização entre os cristãos
e os autores de filmes se acentuasse cada
vez mais, alguns filmes com temáticas cristãs
trouxeram de volta, na década de 1950, o
público protestante às obras fílmicas de
ficção. Alguns desses filmes tiveram sucessos
avassaladores, como é o exemplo dos
clássicos Os Dez Mandamentos (1956) e Ben
Hur (1959) - este último detentor do recorde
de uma das obras mais premiadas da história
do “Oscar”, com onze premiações. Assim,
com o retorno dos protestantes à apreciação
dos filmes ficcionais na década de 1950, a
distância entre eles ea 7aarte se encurtou
Cartaz do filme (7s
dez mandamentos
a ponto de os cristãos comprometidos com
publicado em 1956. a mensagem do evangelho se tornarem
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autores das mesmas produções ficcionais!
reservados. Atualmente, o consumo e a produção filmes
no protestantismo é relativamente positiva.
Como afirma o roteirista Brian Godawa, (2004,
p. 10), “grandes filmes são como sermões
narrativos”. 0 autor, contudo, não está
sozinho nessa visão: grandes escritores e
pregadores como John Stott (2002), John
Piper (2005) e Robert C. Sproul (2013) são da
opinião declarada de que, quando utilizados
devidamente, os filmes ficcionais podem
transmitir valores e verdades cristãs.
É possível que as maiores iniciativas em
prol da produção de filmes cristãos tenham
ocorrido com a criação da Affirm Films e da
Sherwood Pictures. A primeira, lançada em 2007,
representa uma divisão da Sony Pictures e produz
Poster do filme Risen
grandes sucessos de público como Ressurreição
publicado em 2016.
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declaração missiológica oficial, elas se propõe
a produzir “filmes que refletem (...) os valores

0 ADVENTISTA E 0S FILMES
e crenças” de uma crescente audiência que
busca por conteúdos de qualidade.1 Por outro
lado, a Sherwood Pictures, parceira da Affirm 1 Disponível em: chttp://
bit.ly/2qMV5Y4>. Acesso
Films, produziu quatro filmes em seu catálogo,
em: 1? mai. 201?.
todos com temática eminentemente cristãs.
Liderada pelos irmãos Kendrick, a produtora é um
ministério da Igreja Batista Sherwood, na Geórgia,
EUA. 0 filme 0 quarto de guerra (2015), por
exemplo, foi líder de bilheterias na semana em que
foi lançado e chegou a faturar quase 68 milhões
de dólares apenas nos EUA. Outras iniciativas
como a Pure Flix, provedora de filmes cristãos via
streaming, surge e fomenta o crescimento de uma
indústria de filmes cristãos.

A ARTE FÍLMICA NO ADVENTISMO

Apesar de não existirem pesquisas


acadêmicas no Brasil que examinem de forma
aprofundada a relação da IASD com os filmes
de ficção2, uma análise do conteúdo de artigos
2 Há um excelente estudo
da RevistaAdventista e de documentos oficiais de Novaes (2016) que,
produzidos pela IASD demonstram uma relação mesmo não analisando
exatamente a relação
declaradamente conturbada, mas apontam
histórica de como a
alterações com o passar dos anos. Assim como IASD enxerga a arte
os protestantes de sua época, os adventistas cinematográfica, fala sobre
tal relação no primeiro
eram capazes de alegar: “Não importa qual seja
capítulo. No entanto, o foco
vosso padrão na escolha, não vos será possível da tese dele é analisar a
encontrar filmes que não sejam intrinsecamente relação dos adventistas

contrários a Cristo! Não adianta, portanto, com a televisão.

esforçar-se por discriminar entre as ‘boas’ e as


‘más’ películas, porque a totalidade das produções
de Hollywood opõe-se à própria natureza da
revelação cristã” (JAEGER, 1946, p. 31). Ao
mesmo tempo, como qualquer denominação
religiosa, os adventistas não estarão imunes às

CAPÍTlll fl R
mudanças culturais que os circundam, de maneira
que a sua opinião sobre os filmes de ficção se
altera com o tempo. Wheeler (1989, p. 21) afirma
que “a compreensão adventista inicial do certo
e do errado foi fortemente condicionada pelo
aspecto cultural, bem como por fatores de tempo”.
Podemos aplicar esse conceito à relação dos
adventistas com a arte fílmica.
De uma perspectiva mais abrangente,
de acordo com Moon (1988), a relação dos
adventistas com a arte fílmica pode ser dividida
em três fases. A primeira, datada entre as
décadas de 1910 e 1935, pode ser denominada
de “atitudes de formação”. Nessa fase, proibições
como assistir filmes de ficção ainda não são
oficiais - apesar de boa parte dos autores
desse período estarem “convencidos de que a
resposta para o adventista era a abstinência
13?
total” (MOON, 1988, p. 6). Na segunda fase, de
1935 a 1932, denominada “fase das decisões”,
tal proibição surge com uma publicação da
Associação Geral dos Adventistas do Sétimo
Dia de 1932. Ela votou no dia 10 de março, por
unanimidade, o documento Principles and
Standards in the Use of Motion Pictures (IASD,
1932). No texto, é afirma-se que “as imagens não
são erradas apenas porque se movem. 0 filme é
simplesmente uma reprodução cinematográfica
animada. Há uso legítimo de filmes para fins de
educação, iluminação e recreação” (IASD, 1932,
p. 1). Segundo o documento, haveria, assim, um
uso “correto” das “imagens em movimento”. No
entanto, ele aponta que a resistência adventista
à 2a sétima arte era contra o conteúdo ficcional
veiculado por ela: “Há, antes de tudo, uma
distinção fundamental entre imagens naturais,
ou imagens da vida real e imagens de tramas

n AnVFNTIFTA F fK Fll MFÇ


teatrais dramatizadas. Esta é uma linha básica
de demarcação" (IASD, 193?, p. 1).
De acordo com o documento, as cenas
da “vida natural” de pessoas, animais, plantas
etc., são, dentro de alguns limites, legítimas.
Contudo, “em contraste, há os filmes de tramas
teatrais dramatizadas, geralmente produzidas
por atores e atrizes profissionais. 0 próprio
princípio sobre o qual estes são construídos
é inerentemente errado, e não pode ser
aprovado ou tolerado pela igreja” (IASD, 1937,
p. 3j. Além disso, o documento lista quais os
tipos de filmes são aceitáveis e quais não são:
por um lado, os filmes documentais, de arte,
arqueologia, ciência, natureza, vida selvagem,
cotidiano, entre outros, são aceitáveis; por
outro lado, qualquer filme de ficção, como
o que “retrate Cristo e homens inspirados”,
“filme de caráter histórico ou científico que
misture deturpação de fatos com a realidade”,
e qualquer filme que, em geral, mostre de
forma negativa os princípios defendidos
pelos adventistas, são inaceitáveis. “Tal
dramatização de tramas imaginativas, como
um método de criar impressões, influenciara
vida ou transmitir informações, não deve ser
empregada ao serviço de Deus, e não deve ser
apoiada pelo seu povo” (IASD, 1937, p. 3).
Naturalmente, a Revista Adventista
conferirá força à promulgação da Conferência
Geral e seguirá a mesma distinção entre os
filmes. De acordo com o periódico, “nada de
mal, havería em os crentes assistirem, em
locais dignos e apropriados, à exibição de
películas tais como a vida de Pasteur, de Mme.
Curie etc., ou aos filmes realmente educativos”
(BUTLER, 1945, p. 23], Ambos os filmes
citados pelo artigo, Vida de Louis Pasteur
(1936) e Madame Curie (1943) eram filmes
do gênero drama biográfico e representavam
obras relativamente conhecidas na época.
Nesse sentido, qual seria o real problema
em consumir esse tipo de material fílmico?
Para o autor, a proibição se justifica visto
que essa arte “foi desvirtuad(a) de sua
finalidade máxima, qual seja a do aumento
do conhecimento entre os homens, por êsse
veículo tão mais aproveitável e superior, que é
a vista” (BUTLER, 1945, p. 23).
Aterceira fase, de 193? a 1950, pode ser
denominada “filmes em ambientes adventistas”.
Cartaz do filme Vida de
Louis Pasteur publicado
Ela pretendia discutir quais os tipos de
em 193B. filmes seriam aceitáveis para os adventistas
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assistirem. Em 1951 foi publicado, em forma
de folheto, outro documento produzido pela
Conferência Geral intitulado Motion Pictures
and Television. 0 objetivo era apresentara
declaração revisada de 1935 e incluir diretrizes
para a mídia televisiva. 0 documento segue
as diretrizes de 193?, condenando todos os
filmes que “retratam encenações dramáticas
ficcionais" (MOTION PICTURES, 1951, p. 4). De
maneira mais específica, o principal ponto de
distinção entre um bom filme e um mal filme
está na ficcionalidade da obra. De acordo com
o documento, “em harmonia com os princípios
estabelecidos neste conselho, é evidente que
todos os filmes cinematográficos [...] que
retratam peças teatrais ficcionais e dramatizadas
não podem ser aprovados ou permitidos pela
Poster do filme Madame
Curie publicado em
igreja” (MOTION PICTURES, 1951, p. 4).
1943. Durante esse período, a reprovação
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Globo.com. Todos os direitos
expressa nas matérias da Revista Adventista
reservados. contra os filmes de ficção refletia uma

0 ADVENTISTA E OS FILMES
comoção geral de desconfiança dos meios de
comunicação. Em 1951, lemos: “Vê-se desde
logo que o adventista deve pensar duas vezes
antes de introduzir em seu lar um instrumento
tão dúbio [a televisão], Esta questão é tão
importante que deve ser feita assunto de
fervorosa oração, antes de introduzirmos em
nosso lar semelhante objeto” (DELAFIELD, 1951,
p. 4], 0 artigo prossegue citando o exemplo de
um jovem ministro da Califórnia que, ao visitar
uma família adventista de sua igreja local,
encontra-os não em meditação ou reposto, “mas
agrupada ao redor do aparelho de televisão
novinho em folha, a apreciar avidamente um
longo filme de Hollywood” (DELAFIELD, 1951, p.
4). Assim, um dos principais problemas com a
televisão está justamente na facilidade que um
adventista possui para assistira um “longo filme”
de ficção dentro de sua casa.
Em suma, em tais publicações, os
adventistas eram aconselhados a evitar assistir
produções fílmicas ficcionais de qualquertipo.
Mesmo filmes com temáticas cristãs não eram
vistos com bons olhos. Por exemplo, um editorial
da Review and Herald traduzido e publicado na
Revista Adventista sobre os filmes de Hollywood
com temáticas cristãs (os clássicos Ben HureOs
Dez Mandamentos] afirmava categoricamente
que os adventistas não deveríam assisti-los
(WOOD, 1961], 0 autor enumera possíveis
justificativas utilizadas para o consumo
desse material: “Há os que têm dito que não
é necessário privarem-se os adventistas dos
chamados valores culturais encontrados no
cinema3; que os membros da igreja deveríam
assistir a ‘bons’ filmes, evitando os ‘maus’; que é
melhor ver ‘bons’ filmes do que sentir-se privado”

CAPÍTULO 5
“A RELAÇÃO DA
IASD COM OS
FILMES
■ I SE JrfkMa
■»« w» «MPItan ALTERA
I

CONSTANTEMENTE E,
PODEMOS IMAGINAR,
AINDA PROMETE SE
DESENVOLVER COM O
PASSAR DOS ANOS.”
[WOOD, 1961,p. 2). No entanto, a conclusão
do autor é que tais pontos de vista devem ser
reprovados, principalmente em se tratando de 3 É importante lembrar

filmes que retratem narrativas bíblicas: “Não que quando os autores


da Revista Adventista
podemos aceitar êstes pontos de vista. Verdade usam o termo “cinema”
é que os tempos têm mudado, mas o cinema eles o fazem como
não o tem, a não ser para pior” [WOOD, 1961, sinônimo de “filmes
de ficção” e não
p. 2). Para ele, a produção de filmes de ficção
como referência a
com temáticas bíblicas deveria ser condenado. um ambiente onde as
Nesse ponto, Hollywood “tem-se tornado tão pessoas vão assistir a
tais filmes. 0 assunto
ousado e atrevido que não hesita em penetrar
do cinema, é importante
no santo dos santos, por assim dizer, em pontuar, não é abordado
busca de assuntos para filmagens, e então usa neste capítulo. 0 único
objetivo que temos em
blasfemamente a ‘Bíblia contra si mesma’! Que
mente é a relação dos
afronta” [WOOD, 1961, p. 2). adventistas com os
A matéria de capa da edição de agosto filmes de ficção.

1982 da Revista Adventista intitula-se “A


religião do cinema”. 0 artigo compõe a união de
outros dois artigos publicados em periódicos
estrangeiros. 0 termo “religião do cinema” diz
respeito ao que o autor chama de “caráter Revista Adventista
pseudo-religioso” presente nos filmes de
ficção (SCHEFFEL, 1982, p. ?]. Em outras
palavras, ao utilizar arquétipos cristãos em
suas histórias, os filmes de ficção satisfazem
uma “necessidade básica de todos os tempos
e de todos os homens, uma necessidade
que é suprema em nossos próprios dias — a
necessidade de um redentor — de alguém
que nos mostre o caminho, e que nos ajude a
viver com êxito”. Por isso, tais usos tornaram-
se um desafio para o cristão uma vez que, ao Capa da Revista
pregar o evangelho, os adventistas precisam Adventista publicado
em 1982.
“mostrar a esses milhões de espectadores Copyright © 1982, Casa
que o Redentor no qual nós cremos, e que Publicado Brasileira. Todos os
direitos reservados.
morreu para salvar o mundo, é mais real do
que o redentor fantasioso da tela, no qual

CAPÍTULO 5
tantos parecem acreditar” (SCHEFFEL, 1982,
p. 13). Nesse sentido, a religião apresentada
nos filmes de ficção demonstra-se prejudicial
por aparentar um caráter de “deturpação”
ou “contrafação” daquilo que poderia ser
reconhecido na religião cristã de maneira mais
explícita.
Como era de se esperar, com o passar
dos anos, os adventistas passam a nutrir uma
opinião diferenciada a respeito dos filmes de
ficção. As matérias da Revista Adventista, a partir
da década de 1920, por exemplo, se tornavam
cada vez mais favoráveis ao consumo dos filmes
de ficção. Essa afirmação, contudo, era feita
com a ressalva de que os jovens precisam de
discernimento para escolher entre bons e maus
filmes. Apesar de ainda ser possível encontrar
matérias críticas sobre filmes ficcionais, era
tendência considerar que bons filmes podem
ser utilizados para uma recreação sadia: “Há
como sabemos sobejamente, filmes excelentes
para o propósito de educação, ilustração e
recreação” (EDITORIAL, 1980, p. 6). Assim, “no
caso da televisão, se o filme é instrutivo, não há
problema (a não ser que ele seja um obstáculo
a frequência aos cultos ou a execução de
trabalhos relevantes), pois o ambiente do lar,
quando cristão, é ‘um pedacinho do Céu na Terra”’
(EDITORIAL, 1980, p. 6). Em outras palavras, o
editorial comenta a existência de bons filmes
que passam na TV; contudo, esse status só
poderá se manter a partir do momento que estes
não sejam obstáculos prioridades da vida cristã.
A ideia de que “sabemos que existem bons
filmes” se tornou comum quando as matérias da
Revista Adventista abordam a relação que a IASD
deve manter com a TV e com os filmes de ficção.

0 ADVENTISTA E OS FILMES
De uma perspectiva completamente oposta
às anteriores, é interessante notar que, antes
da década de 1980, a IASD já produzia filmes
de ficção! Em 1969, por exemplo, A Vitória Final
(41 min] foi um filme dirigido por Leroy Beskow
e produzido por Arturo Lescano, em Cosquín, na
Argentina. Depois de produzido, a Divisão Sul
Americana procurou afinara obra, dublá-la, e
distribuir para toda a América do Sul, inclusive no
Brasil. 0 filme dramatizava os eventos finais do
Grande Conflito como costumava ser idealizado
pela escatologia adventista das décadas de 1960
e 1920. De forma ficcional, a obra dramatiza os
acontecimentos relativos às últimas pragas, a
marca da besta, a perseguição e a Segunda
Vinda de Jesus. 0 filme caiu no gosto do público
adventista nas décadas de 1920 e 1980, sendo
apresentado em conferências evangelísticas e
em instituições adventistas ao redor do Brasil,
de acordo com edições da Revista Adventista da
década de 1980.
0 exemplo acima exemplifica muito bem
a mudança de paradigma entre os adventistas
a respeito da arte cinematográfica ficcional,
apresentando uma iniciativa diametralmente
oposta àquela promulgada na resolução de 193?.
De acordo com as 28 Crenças Fundamentais
Adventistas, há um incentivo positivo no sentido
de que “as nossas diversões e entretenimento
devem corresponder aos mais altos padrões
de gosto e de beleza cristãos" (IASD, 2008, p.
346); essa afirmação é diferente das antigas
resoluções que apontavam listas de proibições
e alertas sobre os perigos dos meios de
comunicação. Nas revisões presentes nos
Manuais da IASD de 2010 e 2015, os textos
sobre “Meios de Comunicação” se mostraram

CAPÍTULO 5
menos negativos e mais positivos em relação
ao uso que os adventistas podem fazer de tais
4 Borges ainda é instrumentos em seus momentos de lazer-
responsável desde 2006 diferente das edições anteriores a 2010, como a
por um blog chamado
“Bons Filmes” onde ele
de 2005 e de 2000, por exemplo. Mesmo que se
faz indicações de bons afirme que o “inimigo de Deus está utilizando os
filmes de ficção que meios de comunicação com intensidade nunca
os adventistas podem
vista” (BORGES, 2016, p. 50], reconhece-se a
assistir. Disponível em:
<http://www.bonsfilmes. possibilidade de escolher bons filmes de ficção
criacionismo.com.br>. (BORGES, 2016, p. 66-62] - algo totalmente
Acesso em 8 maio 2012.
impensável entre as décadas de 1930 a I960.4
Com essa perspectiva inovadora em
mente, os adventistas passaram a produzir
filmes de ficção de forma efetiva. 0 primeiro
longa-metragem brasileiro adventista foi 4
Última Batalha (2005,90 min). 0 filme, gravado
em Cascavel (PR], foi dirigido pelo dentista
João Stéfan - que trabalhou mais de uma
145
década em sua produção, vendendo imóveis e
Jesus Esta Voltando. permutando serviços para concretizara obra.
Voei Está Preparado?
De acordo com a Revista Adventista da época,
A Última Batalha tem como “objetivo inicial
reavivar espiritualmente a igreja. Mas, além
disso, através da projeção na mídia, o longa-
metragem vem despertando nas pessoas o
interesse em estudar as profecias do Apocalipse,
e também ler 0 Grande Conflito, livros em que
o filme foi baseado” (SIMÕES, 2005, p. 33],
Além disso, nos últimos cinco anos, a IASD
0 primeiro longa-metragem adventista brasileiro
patrocina e fomenta a produção de obras
ficcionais sobre temáticas adventistas e cristãs.
Capa do DVD A última 0 filme Tell the World (“Como Tudo Começou”],
batalha lançado em dirigido por Kyle Portbury (2016,150 min), por
2005.
Copyright © 2005, Novo exemplo, conta a história dos primórdios da
Tempo. Todos os direitos IASD; Opostos (2012,50 min), escrito e dirigido
reservados.
porTuiu Costa, produzido em parceria com a
Adventist Communication Training e o Centro

0 ADVENTISTA E OS FILMES
Universitário Adventista de São Paulo, campus
Engenheiro Coelho (Unasp-EC), conta a história
de um garoto de rua que se tornou docente de
uma universidade. Outra obra muito recente
é o filme de ficção 0 Resgate: Salvação ao
Extremo, dirigido por Alexandre P. M. Alto (201?,
55 min), utilizado como estratégia da IASD para o
evangelismo da Semana Santa de 2012.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, é inevitável perceber que a


IASD adotou uma nítida mudança oficial de
postura em relação ao consumo e à produção
de filmes de ficção - mesmo aqueles
relativos à ficção cristã. Em consentimento
a uma parcela do sentimento protestante, a
princípio, os adventistas nutriam aversão à
qualquer relação com as obras fílmicas de
ficção; contudo, ainda em conformidade com
as tendências de sua época, os adventistas
passam a encarar a produção de filmes de
uma perspectiva educativa e missional. Essa
realidade nos conduz ao reconhecimento de
que o comportamento dos adventistas em
relação aos meios de comunicação - aqui, em
específico, os filmes de ficção - também está
sujeito às mudanças culturais e às influências
de seu contexto social. Isso significa que
a relação da IASD com os filmes se altera
constantemente, e, podemos imaginar, ainda
promete se desenvolver com o passar dos anos.
Essa noção nos conduz à perspectiva de que
tanto os prós quanto os contras do adventismo
em relação aos filmes ficcionais tende a evoluir
com o aprofundamento dos estudos teológicos

CAPÍTIII n R
e comunicacionais da instituição. Ainda há, sem
dúvidas, muito para aprendera respeito desse
gênero artístico. 0 reconhecimento de um
passado, de certa forma, temeroso em relação
à ?a arte não deve limitar as perspectivas para
o futuro; nem devem os antigos argumentos,
sujeitos à uma época e mentalidade específicos,
tomar frente das produções cinematográficas
adventistas. 0 caminho mais seguro é conferir
força e dedicação às novas perspectivas nutridas
pela denominação com o intuito de promulgara
mensagem do advento a todo mundo.

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comunicação afetam a mente. Tatuí: Casa Publicadora
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http://bit.ly/2ublmkP
0 adventista e a literatura de ficção
PRODUÇÃO E CRÍTICA LITERÁRIA NO
ADVENTISMO BRASILEIRO
Clacir Virmes Junior

Mestre em Ciências das Religiões pela Universidade Federai da Paraíba [UFPB], Especialista em
Teologia Bíblica pelo Seminário Adventista Latino-Americano de Teologia sediado na Faculdade
Adventista da Bahia [SALT-FADBA], Bacharel em Teologia [SALT-FADBA]; e Bacharel em Sistemas
de Informação [2005] pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC).

E-mail: clacir.junior@adventista.edu.br
“Literatura” talvez seja um dos termos
com maior multiplicidade de significado e um
dos mais difíceis de definir, especialmente em
referência a um “estudo científico da literatura”
(DAVIS, 2002; EAGLETON, 2006; MOISÉS, 2012).
Fala-se de literatura para referir-se simplesmente
ao objeto livro tanto quanto para se falar sobre
todo o corpo de escritos de um determinado
período (por exemplo, “literatura medieval”) ou
como sinônimo de gênero literário (por exemplo,
“literatura policial”). Contudo, os estudos literários
referem-se ao termo literatura no sentido
das obras, normalmente livros, que contêm
narrativas, reais ou imaginárias. Esses livros são
classificados em gêneros e subgêneros. As duas
classificações mais gerais, pelo menos no senso
comum, distinguem entre obras não ficcionais de
obras ficcionais.
No adventismo, a grande preocupação tem
sido com a última categoria, especialmente por
conta das declarações de Ellen G. White (TORRES,
2013; 2014); nesta ocasião, contudo, não nos
deteremos as afirmações da autora. 0 que nos
interessa é pensar em como a Igreja Adventista
do Sétimo Dia (IASD) lidou com a questão da
literatura ficcional no passado e como podemos
lidar com ela atualmente. É provável que um dos
maiores problemas entre os adventistas a esse
respeito seja o conceito de “ficção”, conforme
entendido por muito tempo no discurso popular
- como algo mentiroso, irreal, não verdadeiro -, e
o uso que ele adquiriu tecnicamente dentro dos
estudos literários.
Devido a essas questões, gostaria de
convidá-lo para pensar um pouco sobre a relação
entre os adventistas, em particular, com a
literatura ficcional. Para isso, em primeiro lugar,

CAPÍTULO 6
vamos analisar a possibilidade de conversarmos
1 Veja um breve histórico sobre Teologia a partir de produções literárias
deste periódico e seu ficcionais, com o intuito de contextualizar o
impacto no adventismo
brasileiro no artigo de
tema. Em segundo lugar, tentaremos recapitular
Marcos De Benedicto e brevemente a relação entre os adventistas e
Michelson Borges [2006, a literatura ficcional no Brasil, especialmente
p. 8-13) intitulado “Um
século de história’’.
através das páginas da Revista Adventista (RA)1,
órgão oficial de divulgação da IASD no Brasil.
Porfim, refletiremos sobre os desafios e as
possibilidades da literatura ficcional na IASD.

LITERATURA E TEOLOGIA

Temas bíblicos ou temas teológicos


ocorrem na literatura de ficção? É possível uma
história não factual transmitir idéias e conceitos
teológicos? Sim, absolutamente! E há dois
autores que exemplificam magistralmente esta
relação: C. S. Lewis e J. R. R. Tolkien. A íntima
relação entre os dois autores já foi discutida
amplamente (DURIEZ, 2006). Tolkien, junto com
Hugo Dyson, um erudito inglês contemporâneo
de ambos, exerceu grande influência sobre
Lewis para que ele se tornasse cristão. Por sua
vez, Lewis foi o maior incentivador de Tolkien
para que terminasse a trilogia de 0 senhor
dos anéis (TOLKIEN, 2001). As obras desses
dois autores - especificamente as de Lewis -
exemplifica bem como a literatura articula temas
Fonte: Ilustração de capa e conceitos teológicos através da linguagem
de The Lord of the Rings
ficcional (MORROW, 2005).
publicada em 2003 pela
HapperCollins C. S. Lewis é um autor inglês conhecido
© 2013 HapperCollins, inc., Todos os no Brasil principalmente por causa da série de
direitos reservados.
livros intitulada As crônicas de Nárnia (LEWIS,
2005). Lewis foi, além de autor de literatura, o
maior apologista cristão do século 20, crítico

n Anx/CkiTiCTA r a i itcdati ida nr cirrÃn


literário e professor de Oxford (MCGRATH, 2013).
Durante a Segunda Guerra Mundial, Lewis fez
uma série de preleções que foram transmitidas
pela rádio BBC de Londres e que, posteriormente,
foram compiladas em Cristianismo puro e
simples (LEWIS, 2009), uma de suas obras mais
conhecidas. Apesar de As crônicas de Nárnia
ser sua série de livros mais famosa, Lewis
escreveu outras obras de literatura ficcional.
Entre elas está a Trilogia cósmica (ou Trilogia
do Resgate}, série de três livros que contam
as viagens interplanetárias de Ransom. As
três obras que compõem a trilogia são Além do
Fonte: Ilustração de capa
planeta silencioso (LEWIS, 2010), Perelandra de As Crônicas de Nárnia
(LEWIS, 2011) e Umaforça medonha (LEWIS, publicada em 2009 pela
2012). Tomando o primeiro livro como exemplo, Martins Fontes
© 2009 Martins Fontes, inc., Todos
podemos demonstrar como C. S. Lewis inseriu os direitos reservados.

teologia em suas obras ficcionais.


156
Em Além do planeta silencioso, o filologista
Elwin Ransom é raptado por um cientista
chamado Weston e um empresário chamado ALEM DO
Devine. Ele é colocado em numa espécie de PLANETA
nave interplanetária e levado para um planeta SILENCIOSO
chamado Malacandra. Lá, depois de conseguir
sNÁRNIA
desvencilhar-se de seus raptores, Ransom se rçijhi

encontra com os nativos do lugar. A primeira


raça alienígena com a qual o personagem
se encontra são os hrossa. Ele convive com
eles por um tempo e começa a descobrir que
»
há seres invisíveis que cuidam das raças
malacandrianas. Um desses seres, chamados -rrioídR.llwod.
de eldila, diz a Ransom que ele deve dirigir-se a wBKHKWi
Meldilorn, o centro do planeta, para encontrar-
Fonte: Ilustração de capa de
se com o Oyarsa2 de Malacandra. Para poder Além do Planeta Silencioso
chegara este lugar, Ransom recebe a ajuda publicada em 2010 pela

dos séroni, a segunda raça malacandriana. Ao Martins Fontes


© 2010 Martins Fontes, inc., Todos
chegarem Meldilorn, o filólogo conhece a última os direitos reservados.
raça do planeta, os pfifltriggi. Depois de passar
a noite em uma das cabanas disponíveis na ilha,
Ransom é levado para conversar com o Oyarsa.
2 Afigura do Oyarsa vem Nessa conversa, Ransom descobre que os
de um conceito medieval malacandrianos possuem uma metanarrativa
de que cada planeta era
presidido por um ser
que se assemelha muito àquilo que nós
angélico. Ele seria uma entendemos como grande conflito. Note as
espécie de “arcanjo”, palavras do Oyarsa de Malacandra:
apesar de a correlação
não ser exata (SAMMONS,
2010). - Nem sempre foi assim. No passado, nós conhecíamos
o Oyarsa do seu mundo... ele era mais brilhante e
maior do que eu... e naquela época não a chamavamos
de Thulcandra. É a história mais longa e mais amarga

de todas. Ele se tornou torto. Isso ocorreu antes que


qualquertipo de vida surgisse no seu mundo. Aqueles
foram os Anos Tortos dos quais ainda falamos no
céu, quando ele ainda não estava preso a Thulcandra,
mas livre como nós. Sua intenção era estragar outros
15?
mundos além do seu. Ele atingiu a lua com a mão
esquerda e, com a direita, trouxe a morte pelo frio à
minha harandra antes do tempo. Se por meu braço
Maleldil não tivesse aberto as handramits e deixado fluir
as fontes termais, meu mundo teria sido despovoado.
Não o deixamos à solta por muito tempo. Houve uma
guerra tremenda, e nós o expulsamos dos céus e o
prendemos no ardo seu próprio mundo, como Maleldil
nos ensinou. Lá ele sem dúvida permanece até agora,
e nada mais nós sabemos daquele planeta: ele é
silencioso. Acreditamos que Maleldil não o entregaria
totalmente ao Torto, e existem entre nós histórias de que
ele teria tomado decisões estranhas e ousado coisas
terríveis, na luta com o Torto em Thulcandra. Mas disso
nós sabemos menos que você. É uma questão que
gostaríamos de examinar [LEWIS, 2010, p. 164-165).

Note os seguintes detalhes: Thulcandra é


o nome malacandriano para o planeta Terra; e o

0 ADVENTISTA E A LITERATURA DE FICÇÃO


Oyarsa conta a Ransom a história da rebelião de
Satanás no Céu. Perceba os paralelos: “ele era
mais brilhante” do que o Oyarsa de Malacandra,
mas tornou-se “torto”. EmÃ/ém do planeta
silencioso, esse termo abrange conceitos
como a perversão do livre-arbítrio e a mudança
da natureza perfeita com a qual as criaturas
foram formadas. Essa simples nuance do texto
nos lembra a descrição do rei de Tiro, feita
em Ezequiel 28:12-19. Em seguida, é dito que
houve uma “guerra tremenda” na qual o Oyarsa
de Thulcandra foi expulso dos céus. Essa é a
descrição que encontramos em Apocalipse
12:2-9 sobre a guerra que terminou no banimento
do dragão (Satanás) e seus anjos. Por fim, a
referência ao aprisionamento do Torto no arde
Thulcandra lembra a menção à Satanás feita
em Efésios 2:2. Lewis, contudo, não identifica
o Oyarsa de Thulcandra explicitamente com
Satanás. É possível que seus leitores ficassem
ofendidos com a menção de uma figura bíblica
em um livro de ficção científica. Mesmo assim,
ele deixou pistas. Lewis usa uma linguagem
simbólica, mediada por uma narrativa ficcional,
para poder falar sobre a teologia cristã!
Além disso, outro personagem
que é mencionado na fala do Oyarsa de
Malacandra é Maleldil. Ele nunca é descrito tão
pormenorizadamente como outros personagens,
mas é frequentemente referenciado nos
diálogos do livro. Não há espaço aqui para
fazer uma descrição pormenorizada, mas
fica claro que Maleldil deve ser relacionado a
Jesus Cristo. Note o seguinte fragmento de um
diálogo entre Ransom e os hrossa: “E então,
Ransom, seguindo um palpite seu, perguntou se
Oyarsa tinha criado o mundo. Os hrossa quase

CAPÍTULO 6
latiram com o fervor da negativa que deram.
Os habitantes de Thulcandra não sabiam que
Maleldil, o Jovem, criara e ainda governava o
mundo?” (LEWIS, 2010, p. 90). Assim, durante
a narrativa, fica implícita a ideia de que quem
governa Malacandra é o Oyarsa, mas que ele
é subordinado a Maleldil, o verdadeiro criador.
Deve-se levarem conta o fato de Lewis estar
trabalhando com concepções medievais, nas
quais havia uma rígida hierarquia no mundo,
uma linha de comando de Deus às criaturas
irracionais. Contudo, ao fim e ao cabo, Maleldil, o
Jovem, é a maneira de referir-se a Jesus dentro
do universo ficcional criado pelo autor.
0 mais notável é o final do diálogo entre
o Oyarsa de Malacandra e Ransom. Ele diz que
Maleldil ousou coisas espantosas na batalha
contra o Torto e que essa era “uma questão que
gostaríamos de examinar” [LEWIS, 2010, p. 165).
Lewis ecoa as palavras de 1 Pedro 1:12: “A eles
foi revelado que, não para si mesmos, mas para
vós outros, ministravam as coisas que, agora, vos
foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito
Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho,
coisas essas que anjos anelam perscrutar.” No
contexto da carta de Pedro, essas “coisas que os
anjos anelam perscrutar” é o significado da vida,
morte e ressurreição de Jesus. É interessante
que Ransom não tem oportunidade de responder
ao anseio do Oyarsa. Com essa alusão, Lewis
espera que aqueles que não foram a Malacandra
descubram o que Maleldil fez em Thulcandra
através do registro bíblico. Assim, o foco do autor
é levar seus leitores a conhecer o evangelho.
Note os temas que são discutidos nesse
breve exemplo que exploramos até aqui: a
teologia do grande conflito, a existência de

0 ADVENTISTA E A LITERATURA DE FICÇÃO


Satanás e o papel da vida, morte e ressurreição
de Jesus Cristo! Essa é apenas uma pequena
demonstração de como é possível detectar e
estabelecer relações entre a Teologia, o ensino
bíblico, e a literatura de ficção. Isso a torna um
meio importante - e até mesmo inevitável - para
a divulgação da fé cristã e da visão adventista de
seu conteúdo e importância escatológica.

0 ADVENTISTA EA
LITERATURA DE FICÇÃO

A relação dos adventistas com a literatura


de ficção é complexa, mas pode ser resumida
em dois polos: de um lado, a denominação
nutriu, durante muito tempo, diversos
preconceitos sobre a literatura ficcional,
avaliando-a como material imaginário e indigno
de consumo; por outro lado, a IASD passa a
reconhecer o potencial teológico, artístico e
evangelístico de tais textos, incentivando uma
crítica literária adventista e a produção de
material desse gênero.
A primeira menção específica à literatura
ficcional na RA foi feita pelo pastor E. H. Wilcox.
Ele mostra sua preocupação com a qualidade
dos livros que são lidos pelos jovens da igreja
quando declara: “Muitos são os meninos e
meninas que estão vivendo em um mundo
irreal, por causa dos livros de ficção que estão
lendo. Sua imaginação está pervertida. Seus
pensamentos corrompidos” (WILCOX, 1933, p.
2). Em seguida, ele cita uma extensa declaração
de Ellen G. White (2005, p. 411], onde se lê: “E
impossível que os jovens possuam saudável
disposição mental e corretos princípios

CAPÍTULO 6
religiosos, a menos que apreciem a leitura atenta
da Palavra de Deus.” Ela continua: “Este Livro
contém as mais interessantes histórias, indica o
caminho da salvação por meio de Cristo, e é o seu
guia para uma vida mais elevada e melhor. Todos
declarariam ser ele o livro mais interessante
que já manusearam, se a sua imaginação não se
houvesse pervertido por provocantes histórias
de índole fictícia.”
A atitude geral de repúdio e extrema
cautela para com a literatura ficcional perdurou
visivelmente até a década de 1990 entre os
adventistas. Ao longo desses anos, expressões
de desaprovação à literatura ficcional eram
frequentes. Por exemplo, no início da década
de 1970, dois artigos abordam a questão da
ficção de maneira negativa. Para o autor, ficção
é igual a mentira e aquele que desenvolvia o
gosto por histórias fantásticas na infância e
na juventude “não raro termina seus dias num
hospício ou numa cadeia. Isto quando não são
levados prematuramente pela morte” (MACEDO,
1971a, p. 15). Entre os possíveis males que
sobreviríam aos leitores de literatura ficcional
estava a decepção, a revolta, a corrupção da
mente, que inevitavelmente levaria a ações
más, e a perda do discernimento entre o certo e
o errado (MACEDO, 1971b, p. 14-15).
Uma década depois, outros dois artigos
voltaram à questão. Independentemente de
ser ficção científica, ficção política ou ficção
policial, o efeito da literatura ficcional jamais era
desenvolver ou defender “virtudes apreciáveis”.
Apelando para as definições do dicionário, o
autor declara que “ficção não é outra coisa senão
escrito ou tema fantasioso, imaginário, ilusório,
aparente, fabuloso; ato ou efeito de simular. E

0 ADVENTISTA E A LITERATURA DE FICÇÃO


acrescentam [os dicionários] que é fingimento,
mentira, engano, artifício, invencionice e até
simulação para encobrira verdade” (LOBO,
1983a, p. 42], 0 autor ainda toma o cuidado
de não incluir no termo “ficção” as parábolas
bíblicas, uma vez que elas, para ele, seriam
melhor definidas como alegorias de caráter 3 Para uma explicação mais
técnica sobre o conceito
moral. Os dois artigos tentam demonstrar que de ficção ver o capítulo 4
a ficção distorce a leitura, uma atividade por si deste livro.
mesma saudável, e a imaginação. Essa distorção
é propagada, além dos próprios livros, pelos
quadrinhos e pelas telenovelas. A conclusão é
de que a leitura de ficção pode, inclusive, fazer
perecer os que a leem (LOBO, 1983b].3
Essa visão negativa, contudo, começa
a se inverter aos poucos em 1990. No início
dessa década, a professora Sônia Gazeta (1991)
publicou um artigo sobre a questão do ensino
da literatura nas escolas adventistas.4 0 texto 4 Junto com este artigo, a
RA publicou o voto “0
mostra a importância da educação adventista ensino de literatura nas
e como a filosofia educacional da igreja sempre instituições educacionais
foi favorável ao desenvolvimento completo da adventistas”, votado em
1971 (GAZETA, 1991, p.
pessoa, inclusive os aspectos artísticos. Antes 42-43]. 0 texto original em
de falar sobre a literatura, a autora mostra que, inglês pode ser lido em
os princípios exaltados por Ellen G. White para a Davis (2002, p. 113-119).

devida educação cristã não estavam restritos ao


ensino da literatura, considerada, na maior parte
dos casos, não factual, mas ao próprio estudo
da história, uma ciência que lida, por definição,
com fatos. 0 ponto alto de seu artigo demonstra
que Ellen G. White não se opunha ao que hoje
chamamos de ficção, mas sim preocupava-
se com os valores promovidos e defendidos
pela literatura. Gazeta (1991, p. 45] escreve: “A
aprovação de Ellen G. White a certo texto literário
não é necessariamente baseada na realidade de
matéria que ele contém. [...] Portanto, o problema

CAPÍTULO 6
“UMA VEZ QUE 0
ADVENTISMO SE ABRE
PARA UMA RELAÇÃO
MAIS POSITIVA COM
A LITERATURA,
ESPECIALMENTE
A LITERATURA
FICCIONAL, É POSSÍVEL
DESENVOLVER UMA
RELAÇÃO MAIS
FRUTÍFERA E CRÍTICA
EM RELAÇÃO A ELA.”
fundamental não é se a obra é ou não de ficção,
mas nos valores que estão sendo passados ao
leitor e seu efeito sobre o intelecto.” Ao final, a
autora destaca o problema do ensino da literatura
na educação adventista; ela propõe uma série de
perguntas norteadoras para a escolha e o uso da
literatura. Contudo, talvez o apelo mais sensato
feito por ela seja o dever do professor de “formar
uma consciência crítica no aluno, projetando 4 Emjaneirodoano
seguinte (REVISTA
sempre os elevados valores cristãos em
ADVENTISTA, 1992, p. 29),
contraposição aos falsos valores apresentados ou o livro Projeto Sunlight, de
defendidos por certo autor” (GAZETA, 1991, p. 45).4 June Strong (1986), era

Em um sentido muito semelhante, Rubens anunciado na RA como


uma “ficção que poderia
Lessa (2002] escreveu um artigo com foco muito bem ser real".
não unicamente na literatura ficcional, mas
na literatura contemporânea em geral. 0 autor
mostra que a literatura retrata a condição
humana em suas várias facetas, ao mesmo
tempo em que pode divulgar valores que
estão de acordo com a mensagem cristã.
Para Lessa (2002, p. 10), a maneira pela qual
podemos avaliara literatura é o discernimento
baseado na cosmovisão cristã: “a fim de que
tenhamos discernimento para fazer a diferença,
é necessário nos firmarmos em sólidos
conhecimentos sobre a origem do homem, sobre
Deus e as Escrituras Sagradas. Quando usamos
esses parâmetros, temos condições de saber o
que é joio e o que é trigo.” Os dois artigos citados
acima demonstram que, com o passar dos anos,
os adventistas passaram a desenvolver uma
visão mais crítica - menos demonizante - da
Fonte: Ilustração de capa de
literatura ficcional. Essa visão possibilitou que Projeto Sunlight publicada
a IASD iniciasse uma empreitada frutífera na em 1986 pela Casa
Publicadora Brasileira @ 1986
produção desse tipo de material. Casa Publicadora Brasileira, inc.,
Atualmente, é inegável o fato de que Todos os direitos reservados.

o adventismo brasileiro produz literatura


ficcional! Talvez a obra ficcional adventista mais
conhecia seja Projeto Sunlight, da escritora
norte-americana June Strong (1986}. Na trama,
um anjo acompanha a vida de uma terráquea e
sua reação aos eventos que levam à segunda
vinda de Jesus. De certa maneira, ela abriu
as portas para outras produções ficcionais
brasileiras que veiculam a mensagem adventista.
Recentemente, o livro Ofim do começo, de
A HISTÓRIA DE UM
COMPROMISSO LEVADO
Carolina Costa Cavalcanti (2010), trouxe à tona
ÀS ÚLTIMAS CONSEQLJÉNCIAS
os mesmos temas tratados por Strong, mas com
uma linguagem e ambientação mais voltada à
cultura brasileira. Ambas as obras imaginam
Fonte: Ilustração de capa de 0 histórias com base no entendimento escatológico
Fim do Começo publicada em
2010 pela Casa Publicadora
do adventismo. Por outro lado, a partir de uma
Brasileira ficção histórica, temos 0 livro amargo, de Denis
© 2010 Casa Publicadora Brasileira, Cruz (2012). Ele conta a história de Jerry I McNolan,
inc., Todos os direitos reservados.
personagem fictício, ambientada ao redor dos
eventos ligados ao grande desapontamento de
1844. De uma perspectiva mais apologética e
ligada aos acontecimentos contemporâneos, a
obra A descoberta (BORGES; CRUZ, 2013) conta
a história de um cientista ateu que é abalado por
uma tragédia e precisa repensar sua postura em
relação à Deus.
Além disso, em 2013, sobre o livro
missionárioAún/caesperança (BULLÓN, 2013),
a RA veiculou uma nota explicando a razão pela
qual o autor escolheu a narrativa como técnica
para o livro: “Com previsão de tiragem de 20
milhões de exemplares, a obra apresenta as
verdades bíblicas por meio de narrativas. A
Fonte: Ilustração de capa de inovação proposta pelo pastor Bullón tem como
0 Livro Amargo publicada em base a tendência crescente do gosto popular
2012 pela Casa Publicadora
por obras de ficção” (REVISTA ADVENTISTA,
Brasileira
© 2012 Casa Publicadora Brasileira, 2013, p. 30). Fica evidente que cada vez mais
inc., Todos os direitos reservados.
o adventismo entende que é possível, e até

n ADVFNTISTA F AI ITFRATL JR A DF FICDÃO


necessário, o uso do maior número possível de
veículos para que sua mensagem seja propagada.
É possível que a iniciativa mais inovadora entre
as citadas seja publicação do livro Crônicas do
Reino (BARRETO; CARDOSO; FOLLIS, 2014), uma
compilação de dez contos, todos ficcionais, das
mais diferentes perspectivas com propósito
mostrar janelas para o Reino de Deus. Entre
os estilos dos contos apresentados no livro,
encontramos uma história futurista, uma crônica
do cotidiano e até uma fábula! No fim, todas 5 É importante lembrar que

essas obras são ficcionais e buscam transmitir o livro Crônicas do Reino


ganhou uma segunda
valores e ensinos da cosmovisão adventista.5 edição pela Imprensa
Por fim, uma vez que o adventismo Universitária Adventista
se abre para uma relação mais positiva (Unaspress).

com a literatura, especialmente a literatura


ficcional, é possível desenvolver uma
relação mais frutífera e crítica em relação
a ela. Segundo Davis (2002, p. 92-93), ao
longo dos anos, o adventismo relacionou-se
com a literatura e com a teoria literária de
maneira apologética. Não se produziu ainda,
de maneira consistente, uma abordagem
proativa e inovadora para avaliar a literatura.
Normalmente, parte-se das declarações de
Ellen G. White em busca de princípios para 6 0 autor propõe alguns
lidar com a literatura requerida pela academia. princípios críticos: 1)
o caráter amoroso de
Nasce, nessa ocasião, a necessidade de
Deus; 2) o contexto de
desenvolver uma “crítica literária adventista” um conflito cósmico;
que não apenas ajude o adventismo em sua 3) a vitória final de
Jesus Cristo; 4) a Bíblia
relação com a literatura, mas contribua com o
como revelação divina;
cristianismo em geral.6 Nas palavras de Knight e 5) a existência da
(2010, p. 12): “Essa abordagem vê a literatura graça comum, isto é, a
revelação geral (DAVIS,
a partir do ponto de vista singular e vantajoso
2002, p. 94-95).
do cristianismo e do contexto da anormalidade
do mundo atual e da atividade divina nesse
mundo.” Assim, o estudo da literatura “pode
ser mais rico [...]. A cosmovisão bíblica não
nos ensina apenas a interpretara literatura,
mas visões literárias também nos ajudam
a entender melhor a experiência da religião
dentro do contexto de verdade religiosa.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resumindo o conteúdo de nosso capítulo, a


partir de um trecho do diálogo entre Ransom e o
Oyarsa de Malacandra na obra Além do planeta
silencioso, de C. S. Lewis, fomos capazes de
Fonte: Ilustração de capa de
compreender que a Teologia - o que inclui a
A Descoberta publicada em adventista - pode ser bem expressa através
2013 pela Casa Publicadora da literatura de ficção. Além disso, percebemos
Brasileira
© 2013 Casa Publicadora Brasileira, a partir de breve apanhado histórico que o
inc., Todos os direitos reservados.
adventismo passou de uma atitude de repúdio à
167
literatura ficcional para uma postura mais aberta
e crítica. Embora ainda existam discussões
sobre a questão, precisamos ajudar os leitores
de todas as idades a desenvolver seus valores
bíblicos e os utilizar para filtrar a literatura ao
seu redor. Felizmente, temos parâmetros para
avaliara literatura dentro de diretrizes bíblicas da
cosmovisão cristã. Uma atitude assim fará com
que detectemos temas e discussões teológicas
ERÔniEHS onde menos esperamos!
AEinO Nesse sentido, podemos pontuar, a partir
do que foi dito acima, três desafios para a relação
dos adventistas com a literatura ficcional:
a primeira é 1) desenvolver uma estrutura
Fonte: Ilustração de capa de conceituai que possa avaliara literatura, isto
Crônicas do Reino publicada em é, uma “crítica literária adventista”. Depois, há
2014 e 2012 pela Unaspress uma grande necessidade de 2] produzir boa
© 201? Unaspress, inc., Todos os
direitos reservados. literatura, não só do ponto de vista estético, mas
levando em conta também a cosmovisão cristã.

0 ADVENTISTA E A LITERATURA DE FICÇÃO


E, finalmente, 3) deve-se encontrar maneiras
de falar de Cristo em diálogo com a literatura
e através dela. 0 momento em que vivemos
representa uma grande oportunidade para
entender a cultura que nos cerca através da
literatura e lidar com seus temas a partir de uma
cosmovisão cristã, contribuindo para a promoção
de valores éticos. 0 gosto por histórias ficcionais
cresce entre os brasileiros e, assim, abre espaço
para o desenvolvimento de uma literatura que
seja esteticamente relevante e, ao mesmo tempo,
seja veículo das boas novas da salvação em
Jesus Cristo. Cabe ao adventismo valer-se dessa
oportunidade para que o Reino de Deus avance.

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
168
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http://bit.ly/2tbvJRj
0 adventista e os quadrinhos
UM BREVE RELATO SOBRE A RELAÇÃO
DO ADVENTISTA COM A 9° ARTE
Felipe Carm

Mestrando em Língua e Literatura Judaica pela Universidade de São Paulo (USP); Especialista
em Teologia Bíblica (2014) pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC);
e Bacharel em Teologia (2012) pela mesma instituição. Atua como redator na Imprensa
Universitária Adventista (Unaspress] e como professor da Faculdade Adventista de Teologia no
Unasp-EC. E-mail: felipe.carmo@ucb.org.br

Allan Novaes

Doutorem Ciências da Religião pela PUC-SP com período de pesquisador-visitante nas


universidades Andrews e Notre Dame; pró-reitor de desenvolvimento institucional do Centro
Universitário Adventista de São Paulo (Unasp) e professor da Faculdade de Teologia da mesma

instituição. E-mail; allan.novaes@unasp.edu.br


A Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD)
sempre esteve preocupada com a produção de
material impresso. Poderiamos alegar que existe
uma “reverência religiosa” pela popularização de
livros e revistas, responsáveis pela disseminação
das convicções da igreja e pela educação de
seus membros. Tradicionalmente, ela possui
um histórico pessoal de zelo pelas publicações
impressas desde a sua emergência como
movimento (CARVALHO, 2012; SCHWARZ;
GREENLEAF, 2016; WHITE, 1908). Quando
falamos de literatura, contudo, não estamos nos
restringindo à produção de um tipo específico de
livro, mas a um universo de possibilidades! A IASD,
por meio de suas editoras, cumpre esse papel há
anos de maneira magistral. Contudo, existe uma
área na produção de conteúdo impresso que a
igreja parece ter abandonado com o passar dos
anos. A área esquecida diz respeito à relação da
denominação com a “9° arte da humanidade”,
ou “arte sequencial”. Estamos falando das as
histórias em quadrinhos!
“Como assim histórias em quadrinhos? ” -
alguém poderia perguntar - “Será que podemos
utilizar esse meio para propagar o evangelho?”
Essa pergunta é válida. Os adventistas não estão
apenas preocupados com a comunicação da
mensagem bíblica, mas pretendem fazer isso
sem contradizer os princípios de sua fé. Contudo,
algo já podemos afirmar ao leitor desde o início:
em primeiro lugar, essa relação não diz respeito
aos princípios da fé adventista; em segundo lugar,
por consequência do primeiro, a IASD possui um
longo histórico de publicação de histórias em
quadrinhos no Brasil! Ocorre que esse costume
se perdeu paulatinamente com o passar dos
anos por motivos ainda desconhecidos. Em todo
caso, as histórias em quadrinhos podem ser
consideradas uma mídia impressa importante
dentro do adventismo, embora ainda seja um
objeto marginalizado.
Neste capítulo, tenho duas propostas aos
que querem entender a relação entre a IASD e as
histórias em quadrinhos: 1) primeiro, pretendo
demonstrar brevemente o potencial teológico
que as histórias em quadrinhos possuem dentro
e fora da denominação, visto que as histórias em
quadrinhos são um ramo da literatura rico em
conteúdo religioso e institucional; 2) em segundo
lugar, pretendo explicar como os adventistas no
Brasil utilizaram as histórias em quadrinhos em
suas publicações, assim como suas respectivas
opiniões teológicas a respeito delas. Com esses
dois objetivos em mente, espero deixar claro a
você a importância dessa mídia para a propagação
17?
da mensagem adventista, assim como os
desafios que ainda possuímos pela frente.

RELIGIÃO NAS
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Mesmo entre os fissurados pelas histórias
em quadrinhos, dificilmente alguém falaria de
maneira tão natural sobre a relação destas com
a religião. Entre os evangélicos, inclusive, é
ainda mais incomum afirmar que as histórias
em quadrinhos possuem essa relação. Contudo,
quando nos aprofundamos no estudo desse
tema, chegamos a um ponto em que, com muita
dificuldade, não poderiamos associar uma coisa
à outra. Poucos estudiosos se demoram, de fato,
no estudo das intersecções entre a religião e
as histórias em quadrinhos. Mesmo assim, as

n AOVFNTISTA F OS QUADRINHOS
poucas relações estabelecidas são dignas de
credibilidade. A maioria deles procura mapearas
diversas maneiras que esses dois elementos se
encontram na arte sequencial (REBLIN; BRAGA
JR„ 2015; GARRET, 2008; REYNOLDS, 2008; 1 No primeiro capítulo deste
KNOWLES, 2008). 0 esforço acadêmico de livro, tratamos o conceito
de Teologia do Cotidiano
tais estudiosos não se inclina às histórias em
com mais cuidado a partir
quadrinhos como objeto de culto religioso. Para da perspectiva do mesmo
eles, esse gênero representa apenas um entre autor. Se você quiser
entender esse conceito
diversos ramos da literatura que também está
com mais atenção, sugiro
interessado em assuntos religiosos. que retorne ao primeiro
No contexto brasileiro podemos eleger luri capítulo e, posteriormente,
A. Reblin (2010; 2012; 2013; 2014a; 2014b; volte às nossas
considerações sobre as
2015) como um dos estudiosos mais engajados histórias em quadrinhos.
no estudo das histórias em quadrinhos de uma
perspectiva religiosa. Ele aponta às possíveis
intersecções que podem serfeitas entre
essas duas áreas e explica o “tipo” de religião
que podemos encontrar nelas. Para o autor, a
religiosidade que evidenciamos nesse gênero
costuma se relacionar ao cotidiano da sociedade
sem ligação com uma instituição religiosa
específica. Isso significa que as histórias
em quadrinhos apresentam uma “Teologia
do Cotidiano”1; ou seja, elas são capazes de
representar práticas religiosas de um ponto de
vista popular, em conformidade com os medos,
as esperanças, a moral e as expectativas
religiosas da sociedade. De uma perspectiva
ainda mais específica, Reblin (2014a) sugere
que a religião pode ocorrer nas histórias em
quadrinhos de quatro maneiras distintas: 1)
como opinião veiculada por uma instituição
religiosa; 2) como temas religiosos, de uma
perspectiva mais abrangente; 3) como ilustração
contextual; e 4) como símbolos ou metáforas do
sagrado. Daqui em diante, vamos nos referir a
cada uma delas separadamente.

ràpítiii n 7
RELIGIÃO INSTITUCIONAL - Uma instituição
religiosa, ou mesmo uma religião específica,
pode se utilizar das histórias em quadrinhos
para propagar as suas crenças. Aquelas que
são idealizadas por uma instituição costumam
carregar um conteúdo religioso de cunho mais
sistematizado, e corresponde às crenças e
dogmas promulgados por essa instituição. Por
exemplo, recentemente, na Itália, o papa Francisco
ganhou uma história em quadrinhos (25 páginas)
com o título Papa Francesco afumetti [“História
em Quadrinhos do Papa Francisco”). A edição tem
Fonte: Ilustração de capa de como objetivo ilustrar a vida do papa de maneira
Papa Francesco afumetti, n° divertida, além de apresentar sua mensagem,
3, publicada em 2013 pela
Edizione Master
às crianças. Essa história não pretende apenas
© 2013 Edizione Master, inc., Todos divertir o público infantil; é objetivo dos católicos,
os direitos reservados.
como instituição religiosa, familiarizar as crianças
com a figura do pontífice, além de introduzir
alguns conceitos do catecismo a elas.
Esse conteúdo pode tomar formas mais
gerais, abarcando o conjunto de crenças de
uma religião específica. Em 2011, por exemplo,
a editora Geográfica lançou uma Bíblia em
quadrinhos intitulada Bíblia em Ação: A História
da Salvação do Mundo (252 páginas). Embora
não esteja filiada a uma instituição, esse
material traz mais de 200 narrativas bíblicas
em ordem cronológica, introduzindo o leitor ao
livro sagrado do cristianismo - assim como sua
crença central: a salvação da humanidade no
sacrifício de Jesus Cristo. Outro exemplo está na
história intitulada Nuvem de Estrelas: Venerável
Fonte: Ilustração de capa da Mestre Hsing Yün: Uma vida dedicada ao
Bíblia em Ação,publicada em
budismo (14? páginas), lançada pela Escrituras
2011 pela Editora Geográfica
© 2011 Editora Geográfica, inc.,Todos Editora em 2006, sobre a biografia de um mestre
os direitos reservados.
budista. Para o mestre, a história em quadrinhos
sobre sua vida é convidativa aos jovens

0 ADVFNTISTA F 03 01JAORINHOS
leitores e representa uma maneira agradável
de comunicar os ensinamentos budistas. Um
trabalho de alta qualidade artística, produzido
por Carlos Ferreira e Rodrigo Rosa, foi Kardec [12?
páginas), em 2011, em que é retratada a história
do pioneiro do espiritismo, Allan Kardec, com o
foco na sua conversão à religião espírita.

TEMAS RELIGIOSOS - As histórias em quadrinhos


também podem apresentar um tema religioso
que não expressa o conteúdo de uma doutrina, ou
seja, as crenças fundamentais de uma instituição.
Esses temas refletem instâncias mais cotidianas
sobre os anseios e as esperanças da sociedade Fonte: Ilustração da HO Nuvem
em geral. Esses temas religiosos aparecem com de Estrelas, publicada em 2006
muita frequência na atuação de super-heróis pela Escrituras Editora
© 2006 Escrituras Editora, inc., Todos
adeptos a uma crença, como, por exemplo, na os direitos reservados.
série Daredevil [“Demolidor”). Este herói, além
de atuar como advogado, é apresentado como
católico. Ele não apenas é ilustrado ao lado
de cruzes e igrejas, mas costuma ser inserido
em ritos sagrados e confissões. 0 fato de seu
uniforme representara figura de um demônio
pode apontar ao senso de pecaminosidade
que o personagem carrega consigo como um
“espinho na carne”, uma condição inevitável de
sua luta contra o crime. Outro personagem com
profundas práticas religiosas é retratado na
série X-men, Noturno. Ele mesmo é apresentado
como um demônio! Ainda assim, ironicamente, o
personagem possui uma piedade religiosa cristã
marcante: ele cita textos bíblicos, ora pelos outros Fonte: Página da HO Kardec,
publicada em 2011 pela Leya
personagens e os incentiva a seguir preceitos do © 2011 Leya, inc.,Todos os direitos
cristianismo, além de afirmar a crença em Jesus reservados.

Cristo como o salvador da humanidade.


Os dois personagens citados acima são
cristãos! Aliás, o próprio cristianismo é um traço
determinante para o caráter deles. Entretanto,
essa não é a única religião retratada como tema
nas histórias em quadrinhos. Outras religiões
costumam ser mencionadas e associadas aos
super-heróis: o Coisa, do quarteto fantástico, é
judeu; o Homem-Aranha é apresentado como
protestante; a Tempestade é associada a uma
religião de matriz africana; o novo Lanterna Verde
é muçulmano; o Arqueiro Verde, agnóstico; entre
muitos outros. Algumas histórias em quadrinhos
giram em torno de personagens inspirados
em mitologias antigas, como Thor, Hércules,
Mulher Maravilha, Aquaman, Shazam etc. Vez ou
outra, esses super-heróis estão envolvidos em
Ilustração de capa de Joe
Quesada do Demolidor,
situações em que suas convicções religiosas
publicada em 1999 pela Marvel são úteis para a resolução de seus dilemas.
© 1999 Marvel Comics, inc., Todos os
direitos reservados.
ILUSTRAÇÃO CONTEXTUAL - A religião nas
histórias em quadrinhos nem sempre será o
centro das atenções, mas certamente estará
presente como parte de seu composto narrativo.
As ocasiões em que a religião ocorre dessa
maneira são mais raras do que as anteriores.
Mesmo assim, elas são importantes porque
demonstram que, para os artistas e roteiristas
das histórias em quadrinhos, o componente
religioso é inevitável na vida dos personagens.
Essa perspectiva pode ser evidenciada quando,
por exemplo, os personagens aparecem dentro de
uma igreja; quando objetos de culto religioso são
dispostos na cena; quando é realizado algum rito
(casamento, funeral, batismo etc.) no decorrer da
Fonte: Ilustração de capa de narrativa, entre outros diversos exemplos.
Amazing X-meri: Nightcrawler,
no 12, publicada em 2015
SÍMBOLOS E METÁFORAS - Por fim, o discurso
pela Marvel
© 2015 Marvel Comics, inc.,Todos os religioso das histórias em quadrinhos pode
direitos reservados.
aparecer na estrutura do próprio argumento da

0 ADVENTISTA E OS QUADRINHOS
narrativa sem, contudo, ser mencionado nela.
Ao invés de falar expressamente sobre religião,
a história quadrinhos poderá mencioná-la por
meio de símbolos ou figuras metafóricas. Um
personagem poderá representar algum elemento
comumente relacionado à religião, mesmo
sem fazer menção a ela. Um exemplo dessa
perspectiva é a figura do Superman! Para muitos,
não é novidade o fato de este personagem
representar uma figura messiânica nas histórias Ilustração de Alex Ross
em quadrinhos (WALLS, 2009; WAID, 2009; retirada do álbum Peace
on Earth [“Paz da Terra”],
KOLOVIC, 2012); é consenso que o Superman publicada em 1999 pela DC
está protagonizando um papel religioso nas suas Comics
O 1999 DGComics, inc., Todos os
superaventuras. Podemos afirmar, inclusive, direitos reservados.
que existem muitas características de sua
mitologia que fazem referência ao conceito
de “Messias” das religiões judaico-cristãs,
como, por exemplo: o nome Kal-el no hebraico
(’pjr’psj pode sertraduzido como “todo Deus”,
ou “completamente Deus”, uma competência
semelhante à de Jesus Cristo (Jo 8:19,28; 14:9;
Hb 1:1-8); nos quadrinhos, na língua do planeta
natal do Superman, Kal-el significa “criança da
estrela”, uma designação que também pode
ser associada ao nascimento de Cristo e à
aparição da estrela no Oriente (Mt 2:2); além
disso, assim como Jesus Cristo, o Superman
possui uma paternidade supraterrestre e ambos
representam, em suas narrativas, a esperança
para a salvação da humanidade.
Quando afirmamos que o Superman
Fonte: Ilustração de capa da
protagoniza um papel messiânico, não queremos série All-Star Superman, no 10,
alegar que pretende substituir a figura de Jesus publicada em 2008 pela DC

Cristo. Seria muita ingenuidade acreditar que o Comics


© 2008 DC Comics, inc., Todos os
Superman possa substituí-lo na vida religiosa direitos reservados.

de uma pessoa. Entre os leitores de histórias


em quadrinhos, não escutamos “0 Superman

CAPÍTULO 7
me tirou das drogas”, “0 Superman me libertou
do cigarro”, ou ainda “0 Superman me curou
de um câncer”. 0 fato de simbolizar o Messias
apenas demonstra que as pessoas permanecem
deslumbradas com a possibilidade de um
salvador para a humanidade. É justamente por
esse motivo que o Superman só poderá ser uma
metáfora religiosa que representa a figura de
Jesus Cristo, mas nunca poderá substitui-lo na-
vida do cristão. Nas palavras de Garrett (2008,
p. 22), os super-heróis “não são, de fato, tais
figuras [das crenças cristãs], e qualquer ingênua
tentativa de dizer que ‘Jesus é o Super-Homem’,
ou sugerir uma profunda verdade teológica
coordenada em qualquer narrativa proveniente
da cultura popular, nos conduzirá ao pesar. As
HOs não foram escritas para substituir a Torá, a
escola dominical ou as lições de midrash.”
Resumindo, as histórias em quadrinhos
possuem um potencial religioso muito variado.
Elas podem ser utilizadas por instituições
religiosas com o objetivo de propagar suas
doutrinas de maneira sistematizada; inclusive,
elas podem expressar os fundamentos básicos
de uma religião específica - cristianismo,
budismo, espiritismo etc. Além disso, as histórias
em quadrinhos também poderão abarcar
temas religiosos, que não necessariamente
estão incluídos na agenda evangelística de
uma denominação. Seriam temas de cunho
mais popular, preocupados com as frustrações
e esperanças do cotidiano. As histórias em
quadrinhos também podem apresentar algumas
ilustrações contextuais que demonstram a
inevitável presença da religião na vida dos
personagens. Por fim, a religião pode ser
expressa por meio de símbolos ou metáforas nas

n afivfkitirta f nç m iAnRiNi-inç
histórias em quadrinhos, de maneira a traduzir às
páginas da revista alguns conceitos relacionados
à fé religiosa, mas expresso em linguagem de
entretenimento.

OSADVENTISTAS
E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS

Evidentemente, como instituição religiosa


formalmente inaugurada, os adventistas
costumam se valer das histórias em quadrinhos
de uma perspectiva denominacional. Isso significa
que, ao produzir esse tipo de conteúdo, a igreja
pretende comunicar de maneira sistematizada o
seu conjunto de doutrinas. A partir dos resultados
obtidos em pesquisas recentes,2 é possível
afirmar de maneira categórica que a relação
entre ambos foi muito conturbada. Em outras
palavras, no decorrer de sua história como
denominação, os adventistas alimentaram
diversificados sentimentos a respeito das
histórias em quadrinhos; alguns de caráter
negativo e outros mais otimistas (CARMO; NOVAES,
2015). Para explicar melhor essa relação, elas
podem ser divididas em duas ênfases: 1) a ênfase 2 Atualmente, poucos
demonizante, em que todos os discursos da igreja estudos foram
realizados a respeito
eram essencialmente negativos a respeito das
da relação entre os
histórias em quadrinhos; e 2) a ênfase sacralizada, adventistas e as
em que as histórias em quadrinhos passam a histórias em quadrinhos,
a maioria deles de
ganhar espaço na igreja como ferramenta de
caráter introdutório e
propagação de suas doutrinas. parcial (CARMO; GUBERT;
Durante um período de aproximadamente RICKEN, 2016; CARMO;
40 anos (1940-1980), no Brasil, as histórias SANTOS, 2016; CARMO;
HUF, 2016; NOVAES;
em quadrinhos eram abordadas de um ponto DIAS, 2016; NOVAES;
de vista completamente negativo, isto é, KINDERMAN; CORREA
2016).
demonizante. Em primeiro lugar, as histórias

CAPÍTIII O?
“COMO GENERO DA
LITERATURA COM
POTENCIAL TEOLÓGICO
PARA A PREGAÇÃO,
AS HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS PODEM
PROTAGONIZAR
COMO FERRAMENTA
EVANGELÍSTICA A
TODAS AS FAIXAS
ETÁRIAS.”
em quadrinhos eram associadas à delinquência
juvenil. Elas representavam uma ameaça
às crianças por introduzirem o assunto da
criminalidade e conduzi-las a um mal caminho. A
Revista Adventista costumava usar estatísticas
que sugeriam o aumento da criminalidade
como resultado do consumo das histórias em
quadrinhos. Em 195? lemos: “A qualidade de
menino ou menina que vocês são, manifesta-se
pelo que vocês fazem. Uma pessoa não pode
gastar o tempo com revistas de quadrinhos
e ainda assim ter um espírito e um coração
puros.” A edição complementa: “Mais ou menos
um ano atrás, certo menino que frequentava
a escola paroquial, matou a tiro uma senhora
vizinha que lhe recusou qualquer coisa que êle
pedia. Quando a polícia foi a casa dêle a fim de
prendê-lo, êle estava sentado lendo uma revista
de quadrinhos, dizendo: ‘Foi isto que me levou a
fazertal coisa’” (WHEELER, 195?, p. 30)
Outra perspectiva demonizante foi a
classificação das histórias em quadrinhos como
literatura de baixa qualidade. Costumava-se alegar
que esse gênero de entretenimento possuía
conteúdo para ignorantes e que eram indignos
de comporá biblioteca dos cristãos adventistas.
Além de não ensinar coisas espirituais, o consumo
desse material poderia resultar em deficiências
mentais, além da consequente falta de cultura.
Dentre as duas citadas, essa correspondia à
ênfase negativa mais frequente na Revista
Adventista: “Às vezes ouvimos pais dizerem: Meu
filho era tão bonzinho e desde que começou a ler
as tais revistas em quadrinhos, virou a cabeça
e só pensa em malandragens com idéias de
‘mocinhos’. Agora não quer estudar nem ler bons
livros” (HOLTZ, 1963, p. 9-10).

CAPÍTULO 7
Embora fossem as opiniões mais
influentes entre os adventistas sobre as
histórias em quadrinhos, essas ênfases não
perduraram, se não até o final da década de
1980. No início dos anos de 1990, elas nunca
mais apareceram na Revista Adventista e
assim perduram até hoje. Podemos afirmar
que elas se perderam, mas que possuiu um
papel determinante nas relações iniciais dos
Fonte: Revista Adventista, abr. adventistas com as histórias em quadrinhos.
1977
© 19?? Casa Publicadora Brasileira,
Com o passar dos anos, o adventismo
inc., Todos os direitos reservados. passou a encarar as histórias em quadrinhos
de uma perspectiva missiológica. Durante um
período de aproximadamente 60 anos (1960-
201?) - período que ainda permanece vigente
-, a IASD adotou as histórias em quadrinhos de
maneira sacralizada, enfatizando a sua linguagem
como potencial evangelístico entre os mais jovens.
Contudo, ao mesmo tempo que o gênero dos
quadrinhos era utilizado para propagara crença
adventista, surge uma outra ênfase negativa,
distinta daquelas citadas anteriormente.
Um evento interessante dentro dessa
perspectiva ocorreu nos editoriais da Revista
Adventista. No final da década de 19?0, a revista
costumava inserir no início de suas edições
uma breve “tirinha”, ou “charge”, sobre o tema
Tirinha do cartunista principal daquela edição. Esse material em
brasileiro Luís Sá publicada
na revista Nosso Amiguinho
quadrinhos, contudo, possuía uma finalidade
© 1954 Casa Publicadora apenas propagandista. Em outras palavras, elas
Brasileira, inc., Todos os direitos
reservados. eram inseridas no editorial apenas para chamar
atenção a um artigo da revista, normalmente de
cunho doutrinário ou outro mais polêmico. Essa
prática durou pouco tempo (aproximadamente
três anos, 19??-1980), e nunca mais foi repetida
nas edições posteriores da Revista Adventista
por motivos desconhecidos.

n Ant/rMTiCTA rnc ni ianDikiunc


Entretanto, a pioneira na publicação de
histórias em quadrinhos entre os adventistas
no Brasil foi a revista Nosso Amiguinho. Desde
a década de 1950 essa revista já apresentava
edições com diversificados estilos. Ao folheá-
la, o leitor juvenil podería se deparar com
tirinhas humorísticas, histórias sobre a Bíblia,
narrativas de ficção sobre animais, dramas
ficcionais de aventura ou terror, biografias de
personagens reais da história do Brasil, entre
outros incontáveis assuntos. Entretanto, a
revista Nosso Amiguinho, com o passar dos
anos, diminuiu muito a quantidade de histórias
em quadrinhos publicadas e a diversidade de
estilos utilizados. Ainda assim, ela permanece História ficcional de terror
intitulada “A caverna", publicada
publicando mensalmente ao menos uma na revista Nosso Amiguinho
amostra desse gênero. © 1955 Casa Publicadora Brasileira,
inc., Todos os direitos reservados.
Além da vasta publicação de histórias
188
em quadrinhos na revista Nosso Amiguinho,
vale fazer uma rápida menção às iniciativas
independentes de alguns adventistas. Nem
todos os quadrinhos que circulavam entre
eles representavam um esforço institucional.
Indivíduos e associações costumavam trabalhar
por conta própria para popularizar histórias em
quadrinhos de maneira particular. Por exemplo,
o 7° Campuri de Desbravadores da União Sul-
Brasileira, na grande Porto Alegre (RS) em 1998,
publicou no evento uma revistinha intitulada
Aventuras, que foi confeccionada especialmente
para os desbravadores. No Centro Universitário
Adventista de São Paulo campus 2 (Unasp-
EC), o aluno Jean Monteiro, do curso de
Fonte: História ficcional
jornalismo, resolveu elaborar um trabalho de intitulada “0 esquilo voador",
conclusão de curso sobre livros-reportagem publicada na revista Nosso
em quadrinhos, utilizando-se do mesmo gênero Amiguinho
© 195? Casa Publicadora Brasileira,
para confeccioná-lo. 0 seu trabalho ganhou inc., Todos os direitos reservados.
popularidade a ponto de receber o prêmio HQ-
Mix3 na sua categoria em agosto de 2013. Um
outro trabalho, elaborado por Breno de Barros,
teve como título 1844 (65 páginas), e possui um
relato ficcional de um evento conhecido entre os
adventistas como “o grande desapontamento”.
Uma produção em quadrinhos muito
recente foi elaborada pelo selo editorial Excelsior!,
da editora Unaspress, a pedido da União Central
Brasileira em 2015. Intitulada Desmond Doss (5
páginas), a HQ retrata brevemente a história do
ex-combatente adventista que serviu o exército
americano como médico, recebendo a medalha
Fonte: História bíblica intitulada de honra dos EUA porter salvo mais de 25
“História de Jesus”, publicada na
revista Nosso Amiguinho
soldados no campo de batalha. A HQ, contudo, foi
© 1958 Casa Publicadora Brasileira, produzida em vista da estreia do filme Hacksaw
inc., Todos os direitos reservados.
Ridge (2016), que narra a história do mesmo
personagem. Além de ser publicada na internet -
em formato PDF e em vídeo -, a HQ foi distribuída 189
na porta dos cinemas após a exibição do filme,
como uma iniciativa evangelística da IASD.
Entretanto, mesmo em um contexto de vasta
publicação impressa de histórias em quadrinhos
3 0 “Troféu HQ-Mix”é surgiu uma outra ênfase negativa a seu respeito.
considerado como uma Em muitas ocasiões, as produções em quadrinhos
das premiações mais
“seculares” - ou seja, aquelas que não são
tradicionais do ramo das
histórias em quadrinhos produzidas pela IASD -, eram consideradas como
no Brasil. Ele tem a más influências à religião adventista. 0 fato de
intenção de divulgar e
apresentarem cenas de violência, vestimenta
premiar as produções de
histórias em quadrinhos com apelo sexual e menções a religiões pagãs, foi
brasileiras. o engodo para que os adventistas passassem
a acreditar que as histórias em quadrinhos
seculares representassem uma armadilha
satânica para dominar a mente dos cristãos. No
contexto do “grande conflito”, esse tipo de mídia
faria parte de um plano conspiracional de Satanás
para conduzir o mundo à rebelião contra Deus:

0 ADVENTISTA E OS QUADRINHOS
“esses filmes vão cumprindo uma ‘agenda’ que
-----------------------------
parece ser a mesma: substituir a crença nos
antigos deuses pela idolatria dos ‘novos deuses’,
mitologizando a ideia de que existe um verdadeiro •1844a
filho de Deus.” Assim, “quanto mais distração e
distorção houver no caminho dos filhos de Deus,
melhor para aquele que já foi derrotado pelo
grande Herói e que não quer ninguém do lado
vencedor” (BORGES, 2013, p. 21).
No fim das contas, os adventistas
permanecem dessa maneira: por um lado, são
capazes de pensar estratégias evangelísticas
e educacionais para a utilização das histórias
em quadrinhos; por outro, ainda acreditam que Fonte: Capa de revista em
quadrinhos 1844.
o material produzido fora da igreja representa
um plano conspiracional de Satanás para uma
rebelião contra Deus. Hoje em dia, a partir do
190
número de pesquisas desenvolvidas até então,
é difícil prescrever uma previsão a respeito do
futuro das histórias em quadrinhos no contexto
adventista. Mesmo assim, essa breve avaliação
histórica no contexto brasileiro foi suficiente
para demonstrar que a opinião da IASD sobre o
assunto varia com o passar dos anos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme analisamos, a religião pode


ser relacionada às histórias em quadrinhos de
maneiras variadas. Ela pode, de fato, expressar
as convicções de uma instituição religiosa
específica ou pode se utilizar de símbolos Fonte: Capa da revista em
e metáforas religiosas para compor uma quadrinhos Desmond Doss.

narrativa de super-heróis. De qualquer forma, é


inegável o fato de que o elemento religioso está
sempre presente nas histórias em quadrinhos.

CAPÍTULO ?
Esse mesmo fato também é evidente no
contexto adventista. Desde a década de 1950,
no Brasil, a IASD já publicava histórias em
quadrinhos para comunicar aos leitores mais
jovens as suas crenças particulares. Essa
perspectiva, dentre as anteriores, representa
uma das diversas demonstrações de como a
religião ocorre de maneira institucional nas
histórias em quadrinhos.
Contudo, no contexto adventista, a relação
com as histórias em quadrinhos possui um
histórico de inimizades - pelo menos nas
primeiras décadas em que eram mencionadas.
No início, elas eram classificadas como material
de baixa cultura e de má influência moral. Embora
essas ênfases não existam mais com a força
que possuíam no passado, permanece a noção
de que as histórias em quadrinhos seculares
fazem parte de uma agenda satânica para
dominar a mente do cristão. É difícil afirmar com
certeza a respeito do futuro desta última opinião.
Ainda assim, podemos sugerir a possibilidade
de que ela, à semelhança das anteriores,
seja desconsiderada, e outras opiniões mais
equilibradas surjam daqui por diante.
Ainda há muito para aprender acerca das
histórias em quadrinhos e de seu potencial
como literatura na instituição adventista - e
ainda mais sobre os benefícios das produções
fora do ambiente denominacional. As diversas
abordagens à religião, assim como a amplitude
de temas e estilos que as histórias em
quadrinhos possuem, encontram-se em fase
embrionária entre os adventistas. Como gênero
da literatura com potencial teológico para a
pregação, as histórias em quadrinhos podem
protagonizar como ferramenta evangelística

0 ADVENTISTA E OS QUADRINHOS
a todas as faixas etárias; com capacidade de
abordara mensagem do segundo advento das
formas mais variadas possíveis.

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BORGES, M. Superman: Uma Paródia de Jesus Cristo.
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XI Conferência Brasileira de Comunicação Eclesical,
2016, São Paulo. Anais da XI Conferência Brasileira de
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194
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WHEELER, R. Lições para a Semana de Oração das crianças


preparadas pela Sra. Ruth Wheeler. Revista Adventista, p.
30, nov. 1952.

WHITE, E. G. Circulate the Publications - No 2. Review and


Herald, v. 85, n. 33, p. 8-10,13 de ago. 1908.

http://bit.ly/2vae3XU
0 adventista e os games
EXPANDINDO 0 EVANGELHO À
LINGUAGEM DO ENTRETENIMENTO
Fábio Augusto Darius

Doutor e Mestre em Teologia Histórica pela Escola Superior de Teologia de São Leopoldo, (EST).
Graduado em História pela Universidade Regional de Blumenau (FURB). Docente no Centro
Universitário Adventista de São Paulo [UN ASP-EC). E-mail: fabio.darius@unasp.edu.br

Gabriel Ferreira

Especialista em Comunicação Estratégica Global pela University of Florida (EUA); e Graduado


em Comunicação Social pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unasp-EC).
Atualmente é docente no curso de Comunicação Social e encontra-se engajado na elaboração de
projetos que integram a área de Religião e Games. E-mail: gabriel.ferreira@unasp.edu.br
Tempos atrás, recebemos com muita
alegria a incumbência de escrever parte de
um artigo versando sobre os adventistas e os
games. Imediatamente, começamos a pensar
no assunto com certa nostalgia — talvez
impulsionado pelo revival em relação aos
anos de 1980, precisamente, a nossa infância.
Afinal, na classe dos 30, fazemos parte da
geração que viu nascer os videogames;
comprávamos revistas especializadas e
guardávamos até os parcos centavos para
adquirir algum jogo — geralmente com alguma
ajuda paterna em virtude de certas datas
comemorativas. De fato, passamos muitas 1 Em 201?, por exemplo,

horas em frente a uma Telefunken já um comemora-se os 30 anos


do lançamento do Mega
tanto idosa naquela época, além de degustar Drive, pelaTecToy.
os mais variados jogos de tabuleiro nos
longos verões das férias escolares daqueles
tempos — meses inteiros de puro ócio e jogos.
Alguns guardamos até hoje, tanto aqueles de
mesa quanto os da televisão. A internet hoje,
dominada portrintõestão saudosos, trata de
impulsionar a literatura (EUROPA, 2016} e a
reprodução de vários consoles antigos.1
A questão é que, ao longo de muitos
anos, poucos param para pensar sobre o
enorme potencial de todos esses jogos, seja
para o bem ou para o mal, mesmo para o
evangelismo, sem contar os seus óbvios
aspectos socioeconômicos. Como eles sempre
fizeram parte do cotidiano, foram motivo
perpétuo de franca diversão juvenil — desde
os de estratégia até os de luta, sem que seja
dificultoso lembrar de um de cunho bíblico ou
religioso, embora eles até existissem, ainda
que em menor número. Aliás, desde a infância
foi assim: estudo, tarefas de aula e games, não
necessariamente nesta ordem, às vezes com
resultados sofríveis para certas disciplinas da
escola — e nunca para os games.
Praticamente todos os que nasceram
em um lar cristão com sólidos fundamentos,
com o hábito costumeiro de estudara Bíblia,
possuem outras percepções a respeito dos
jogos. Nesse contexto, os jogos passam a ser
vistos como uma verdadeira perda de tempo
e um sinal inequívoco da secularização que
entrava na igreja. Mesmo os clássicos do
tabuleiro como o bom e velho War subitamente
se tornam problemáticos, porque muito tempo
é gasto neles — tempo que não era dedicado
a atividades muito mais importantes como o
estudo da Bíblia e a oração. Era precisamente
isso o que pensamos quando não avaliamos
certos potenciais interessantes dos jogos para
a própria igreja. Desnecessário aqui dizer qual
costuma ser a opinião geral formada sobre o
assunto como um todo, em certas igrejas.
Deve-se ainda concordar, óbvio, que o
estudo da Bíblia, dos livros de Ellen G. White
e da Lição da Escola Sabatina, dentre uma
infindável série de livros denominacionais,
devem ser prioritários na vida de todo cristão
adventista seja qual for sua idade. Parece
absurdo pensar que muitos de nós passam o
dia inteiro sem dar uma olhadela sequer para
a Bíblia enquanto nossos celulares espertos
reinam onipresentes — sem que se abra um
aplicativo da Bíblia, diga-se de passagem. Mas
analisando todo esse quadro geral, ou seja,
nossa vida enquanto cristãos, trabalhadores,
estudantes e jogadores (!), às vezes, devemos
pensar se realmente os games merecem ser
tão descaradamente demonizados enquanto

A An\/FMTKTA P CIC CAMPC


entretenimento em geral. É claro que certos
RPGs e outros tantos com temáticas violentas e
notadamente afrontosos em relação a nossos
princípios bíblicos devem ser rapidamente
refutados sob pena de interferirem
negativamente na formação daquele que o joga,
principalmente nos anos cruciais da infância
e adolescência. Mas o que dizer de todos os
outros que talvez não se encaixem nessas
categorias tão belicosas à fé?
Na Bíblia, como não podería deixar
de ser, nenhum texto específico pode ser
encontrado no tocante aos jogos de hoje. No
entanto, encontram-se excelentes conselhos
gerais sobre equilíbrio, prudência, tentações
e outros temas relevantes que devem ecoar
profundamente em qualquer lar cristão que
pretende buscar nos jogos em geral uma fonte
de diversão. Ellen G. White, que viveu em um
período bastante efervescente nos EUA do
século 19, precisamente na Nova Inglaterra
— palco de importantíssimos acontecimentos
de cunho religioso — não foi sucinta, deixando
bem clara a sua posição. Geralmente é a
partir de alguns de seus excertos, às vezes
descontextualizados, que muitos adventistas
acabam por “cortar o mal pela raiz”, abolindo
toda e qualquer espécie de jogo.

OS GAMES NO CONTEXTO
HISTÓRICO DE ELLEN G. WHITE

0 título acima não foi pensado apenas


para chamar a sua atenção. Parece bem
claro que todo aquele que já procurou algo a
respeito do tema em Ellen G. White deve ter
encontrado nela alguém que condenava com
certa veemência os jogos em geral, tais como
jogos de carta, damas, xadrez, corridas de
cavalo, pugilismo, loteria e futebol americano,
sem falar, claro, na bebida alcoólica e o fumo,
que quase sempre acompanhavam esses
divertimentos por ela condenados. Outros
religiosos, puritanos, costumavam separar
inclusive os “divertimentos" das “recreações”,
sempre com ênfase negativa ao primeiro caso
e positiva ao segundo.
Casal jogando xadrez no Para Ellen G. White, todas as formas de
século 19
Copyright © 201? Allan Klotz Gallery,
recreação ou brincadeira deveríam ser puras
Todos os direitos reservados. e inocentes — sempre com bons propósitos,
espirituais — sem que estas minimamente
possam se exceder, prejudicando a formação
integral da criança ou adolescente: “Não
condeno o simples exercício de jogar bola; mas
este, mesmo em sua simplicidade, pode ser
exagerado” (WHITE, 2000, p. 322), corromper
ou transviar. Nesse sentido, em vários de seus
escritos, ela parece bastante clara. Dessa
forma, segundo ela, “devemos prover fontes de
prazer que sejam puras, nobres e edificantes”
(WHITE, 1996, p. 499).
Enquanto White provavelmente sequer
podería imaginar que em um futuro distante
a tecnologia produziría jogos altamente
sofisticados, a igreja desde pouco tempo
atrás e de forma diligente e efetiva provê
algumas boas alternativas eletrônicas que
podem ser edificantes. Contudo, é possível
notar já em sua época, que “os efeitos da
industrialização, incluindo a contribuição da
tecnologia foram fatores que contribuíram
para o crescimento das atividades esportivas”
(BRADEN, 1988, p. 211). Nesse sentido,

0 ADVENTISTA E OS GAMES
a própria tecnologia, com o advento do
telégrafo, em 1844, acabou possibilitando aos
estadunidenses uma espécie de alargamento
de suas fronteiras comunitárias e tudo o
que essa mudança implicou. Isso incluiu em
grande medida o turismo, que aos poucos foi
preenchendo certos espaços antes ocupados
pelo entretenimento doméstico, como a
leitura, música ou jogos de roda além da já
mencionada percepção geral pelos esportes.
Nesse ponto, cabe aqui uma observação:
“esportes” e “jogos” eram provavelmente
atividades semelhantes no século 19. Afinal,
dificilmente poderíam ser encontrados certos
jogos esportivos que não fossem praticados
ao ar livre além daqueles condenados por
White. Contudo, embora ela e outros escritores
a ela contemporâneos fossem favoráveis
ao exercício físico, “criticando a natureza
sedentária do morador da cidade” (BRADEN,
1988, p. 205], um viajante inglês, William Baxter,
comentou acerca dos estadunidenses: “os
americanos parece-me, dedicam muito pouco
tempo à diversão inocente, e aquela recreação
que é tão benfazeja à saúde. Dia após dia eles
assediam seus corpos e mentes nos cavalos
ou no armazém, fazendo do trabalho uma
escravidão” (BRADEN, 1988, p. 205],
Para fazer aqui um contraponto, “no
início dos anos 1850 aumentou o número
de pastores, médicos e intelectuais
argumentando que o jogo é fundamental para
o desenvolvimento físico e moral do indivíduo”
(GROVER, 1992, p. 9). (É interessante notar
que pouco depois, em 1863, Ellen G. White
teve sua famosa visão que deu início à
Reforma da Saúde.) Certamente, a crítica

CAPÍTULO 8
acima ecoa o contexto histórico do seu
período. Afinal, “depois de 1850, a classe
média vitoriana moldou cada vez mais a ideia e
a prática do lazer como respostas diretas aos
seus medos de instabilidade política" (CLARK,
1996, p. 1). Ainda de acordo com Clark:

Juntamente com o ethos da produtividade e um novo


papel moral de respeitabilidade e autojustificação, a
poderosa classe média procurou reformar as classes
acima e abaixo dela na escala social e econômica ao
formular novas atividades de lazer próprias. 0 lazer
para esta classe teve que ser não só respeitável, mas
também produtivo — bom tanto para a alma como
para o país como um todo. 0 lazer e a recreação acima
de tudo tinham que ser racionais. Bailey argumenta
que “a classe média vitoriana do meio do século 19
tem desconfiado das tentações morais de um mundo
205
de lazeracadêmico, mas aprendeu a assimilá-lo
à sua cultura, criando recreações adequadas e
propositadas" [...]. 0 novo atletismo foi a sua criação,

justificou-se como uma busca adequada para o


The Victorian cidadão obediente (CLARK, 1996, p. 1].
Copyright © 2004The Victorian Web,
Todos os direitos reservados.
0 jovem país de Ellen G. White, ao
contrário da já experiente Inglaterra, parecia
querer desfrutar de sua juventude e recente
vitória contra os próprios ingleses nas
guerras de independência para fazer dinheiro
e ganhar o mundo. Ainda hoje, esse é o
desejo de muitos jovens contemporâneos.
Os ingleses estavam preocupados com sua
posição no mundo e traumatizados por uma
série de conflitos, que culminariam com a
Guerra dos Bôeres no final do século 19 e
início do 20 — talvez um prenúncio da perda
de sua hegemonia logo depois da Primeira

0 ADVENTISTA E OS GAMES
Guerra Mundial. Quem sabe isso explique em
parte as motivações inglesas para a prática
de jogos e esportes — simplesmente para
relaxar em face de tamanhos problemas —
enquanto os americanos ainda não tinham
uma cadeira no grande jogo das nações e,
portanto, podiam usufruir de sua juventude já
com menos traumas da Guerra da Secessão.
Dessa forma, a classe média inglesa
encontrou no lazer e no jogo uma justificativa
para seu uso sem que este fosse associado
ao ócio em si mesmo, além de integrar o
esporte à obediência, tanto ao técnico, ao
time e ao país — que mais do que nunca não
precisava de uma sublevação interna.
Portanto, a prática dos jogos no século 19
vitoriano é uma construção da classe média
inglesa; classe recém estabelecida a partir da
Revolução Francesa. Contudo, pode ser mais do
que isso. De acordo com Heggie (2016, p. 125]:

Os esportes competitivos também deveriam ser uma


distração de outras formas perigosas (particularmente
sexuais] de expressão física e canalizar a violência

natural do homem em uma competição controlada


e aceitável. Foram esses modelos dejogo justo,
desportivismo e cristianismo muscular baseados em
jogos que os reformistas queriam ampliar os corpos
dos trabalhadores pobres para substituir os esportes
tradicionais da classe trabalhadora.

Os jogos esportivos passaram a ser


utilizados como uma espécie de “adestramento
dos corpos” e teria um duplo sentido:
precisamente o de potencializar a virilidade do
jogador e cerceá-la a um espaço regrado, e ao
mesmo tempo excluir os jogos brutais e jogos

CAPÍTULO 8
dos homens das classes menos favorecidas. A
partir dessa percepção acerca dos esportes
e jogos no século 19, talvez agora fique mais
claro observar os motivos pelos quais Ellen G.
White não era favorável à prática, preferindo
as recreações serenas onde fosse possível
sempre manter o foco nas coisas do alto. 0 que
2 “Na esperança de ocorreu a partir disso na história da igreja é o
imprimir vividamente que se sabe: em grande medida por conta dos
no espírito dos crentes
coríntios a importância
escritos dela, todo e qualquer jogo foi mal visto,
do firme autocontrole, independentemente de sua proposta.
estrita temperança Assim contextualizando, é exercício bastante
e persistente zelo no
serviço de Cristo, Paulo
interessante, inclusive, focar o uso literal da
em sua carta a eles faz palavra “games” em sua obra, puramente a
destacada comparação título de curiosidade — visto que o assunto que
entre a milícia cristã e as
celebradas maratonas
tratamos aqui, materialmente, difere dos jogos da
que se realizam em época de White. 0 termo aparece ao menos 103
intervalos fixos, próximo vezes ao longo de seus livros e compilações, sob
de Cortino. De todos
os jogos [gomes]
os mais variados aspectos e usos (WHITE, 200?, p.
instituídos entre os 309)2, quase sempre sob a égide da necessidade
gregos e romanos, era de temperança e domínio próprio, características
a maratona a mais
também da vida cristã como única salvaguarda
antiga e mais altamente
considerada.”
aos engodos do inimigo. É notório o texto bíblico
em que o apóstolo Paulo compara a vida cristã
a uma corrida, passagem comentada por White
(WHITE, 200?, p. 314).
Em alguns casos, o termo utilizado é game
of life, ou “jogo da vida” — o mesmo termo,
inclusive, que dá nome ao famoso jogo da Estrela,
de bastante sucesso em 1980 e ainda hoje
comercializado. Contudo, o jogo da vida de Ellen
G. White nada parece ter de lúdico. Segundo ela,
em um texto chamado “perigos para a juventude”:

Há alguns que professam ser seguidores de Cristo,


mas não trabalham nas coisas espirituais. Em qualquer
empreendimento mundano eles fazem esforços e

n AnVFNTIÇTA F DÇ r.AMFÇ
manifestam ambição para realizar seu objetivo e
realizar o seu fim desejado; mas na empresa da vida
eterna, onde tudo está em jogo, e sua felicidade eterna
depende de seu sucesso, eles agem como indiferentes
como se não fossem agentes morais, e outro estava
jogando o jogo da vida para eles, e eles não tinham
nada para fazer, a não ser esperar o resultado. Oh,
que loucura! Que loucura! Se todos manifestarem
esse grau de ambição, zelo e fervor, pela vida eterna
que manifestam em suas atividades mundanas, eles
serão vencedores. Cada um, eu vi, deve obter uma
experiência para si, agir bem e fielmente em sua parte
no jogo da vida. Enquanto Satanás está observando 3 No Conselhos a Pais,
Professores e Estudantes
sua oportunidade quando o cristão está desprotegido,
ela deixará muito claro
para aproveitar as preciosas graças, o cristão terá um
que todas as coisas, até
conflito severo com os poderes das trevas para mantê- mesmo jogos lúdicos
las; ou se eles perderam por falta de vigilância uma devem ficar abaixo das
Escrituras e da vida
graça celestial, para recuperá-la (WHITE, 1945, p. 149).
208 devocional: “Poder-me-ia
referira capítulo após

Aqui parece bastante claro que esse capítulo das Escrituras


do Antigo Testamento
“jogo” específico poderá ter consequências os quais contêm grande
eternas e que todos os nossos esforços animação. Essas
devem ser concentrados para que derrotemos Escrituras são um
tesouro de preciosas
nosso grande adversário, em uma luta sagaz pérolas, e todos delas
até o fim da história terrestre. Para que esse necessitam. Quanto
jogo seja vencido, é necessário que se dose os tempo é gasto por seres
humanos inteligentes
jogos e divertimentos mundanos, de tal sorte em corridas de cavalo,
que a guarda se mantenha sempre alta. Ellen partidas de críquete e
G. White também orienta que as brincadeiras jogos de bola! Mas acaso
a satisfação nesses
devem ser devidamente ensinadas de sorte a
esportes dá aos homens
criança controle seus sentimentos. Diz ela: o desejo de conhecer
a verdade e a justiça?
Mantêm a Deus em seus
Os professores devem por vezes tomar parte nos
pensamentos? Levá-
jogos e brinquedos dos pequeninos, e ensiná-los los-á a indagar: Como
a brincar. Dessa maneira eles serão capazes de vai com a minha alma?”
(WHITE, 200?b, p. 456).
controlar os sentimentos e ações desagradáveis
sem parecer criticar ou achar defeitos. Esse

CAPÍTULO 8
“A IASD TEM FEITO
ONS ESFORÇOS AO
PROPICIAR JOGOS
INTERESSANTES QUE
MANTENHAM O FOCO NA
MISSÃO, EMBORA AINDA
SEJAM EMBRIONÁRIOS
E COM ORÇAMENTO
LIMITADO.”
companheirismo ligará o coração dos professores
e dos alunos, e a escola será um deleite para todos
[WHITE, 2002b, p.191).3

Ainda, mas não finalizando o tema (que é


bem extenso) White dirá que o trabalho deve
vir antes das brincadeiras e jogos, mesmo para
as crianças. Certamente o trabalho deveria ser
compatível com a idade e capacidade, mas
ainda assim as brincadeiras sempre deveríam
ser secundarizadas face o trabalho. Isso fica
bem claro ao afirmar que:

Minha mãe me ensinou a trabalhar. Eu costumava


perguntar-lhe: “Por que sempre devo fazertanto
trabalho antes de brincar?” “É para educar e treinar

tua mente para o trabalho útil, e, além disso, é para


evitartravessuras; e quando ficares mais velha, me
agradecerás por isso.” Quando uma das minhas meninas
[uma neta] me disse: “Por que devo eu fazer tricô?” “As

vovós fazem tricô”, respondi-lhe: “Pode me dizer como


as vovós aprenderam a tricotar?” “Ora, elas começaram
quando eram meninas” (WHITE, 1996, p. 124).

Dessa forma, os textos de Ellen G.


White, seguindo bem o espírito de sua época,
condenavam em geral os jogos, considerando
que tudo que fosse feito não “sobrecarregasse
a consciência de alguém” (WHITE, 1996, p.
504). Portanto, para os jogos eletrônicos ou
de tabuleiro de hoje, é prudente que a mesma
regra seja utilizada, ou seja: que eles não
tirem o foco daquilo que é verdadeiramente
importante, nosso jogo real, que possui
apenas uma vida, tem um grande chefão
ao final e cujo resultado positivo será nada
menos que a vida eterna.
0 ADVENTISTA EOS GAMES:
ABORDAGEM CONTEMPORÂNEA

A Bíblia é, obviamente, fonte segura


para a nossa fé. Seus conselhos devem
ser norteadores de todas as decisões
cotidianas, visto que é a infalível Palavra
de Deus. Os escritos de Ellen G. White,
inspirados pelo Espírito, são precisos e
particularmente consideramos uma atitude
pouco ponderada não observar o que ela
escreveu, que se mantém tão atual em pleno
século 21. Contudo, não é difícil perceber
que a contemporaneidade pressupõe novas
e aceleradas demandas que, vez por outra,
conferem vida a velhas temáticas. Sobre isso,
Rodrigo Follis (201?) nos conduz à cautelosa
observação: nós, individualmente, somos
agentes morais — enquanto a televisão, por
exemplo, simplesmente não é. Assim, da
mesma forma que não há ciência boa ou
má, mas cientista com boa ou má índole, o
mesmo se pode dizer dos jogos! É a partir da
essência dos mesmos e sua mensagem que
devemos perceber se eles podem ser, além de
divertidos, úteis e compatíveis à nossa vida,
tomando como norte também os conselhos de
Ellen G. White citados acima.
Atualmente, por exemplo, não é possível
fixar os “jogos” em uma única categoria, como
se todos correspondessem a mesma coisa em
todas as ocasiões. Podemos identificartrês
tipos de jogos: os jogos analógicos (clássicos
como o jogo chinês Go com 3.500 anos e
Xadrez com 1.500 anos, e modernos como,
Monopoly de 1935 e Catan de 1995), os jogos

0 ADVENTISTA E 0S GAMES
digitais (tendo seu início nos anos 50 e se
consolidando no mercado a partir da década de
80 com os “fliperamas” e primeiros consoles de
videogames) e os jogos pervasivos (trazendo os
jogadores das telas dos seus computadores de
volta para o mundo tridimensional, misturando
assim a experiência física com a virtual).
São poucos hoje os que não acreditam
no crescente potencial das mídias sociais
para o avanço do evangelho. A Igreja
Adventista do Sétimo Dia (IASD) possui
programas no rádio há décadas e sempre
investiu na televisão, hoje possuindo seu
próprio canal. Nem é preciso dizer sobre sua
atuação na internet. Será possível pensar o
mesmo em relação à igreja e os jogos? De
acordo com Carlos Magalhães (201?), em
artigo publicado por um portal adventista de
notícias, a conclusão parece ser inequívoca:
92% dos jovens dedicam-se a jogos de
computador ou videogames; 40% dos
jogadores são mulheres; 68% dos jogadores
tem até 18 anos; 33% jogam nos celulares.
Contudo, sua fonte é de 2014 e nada indica
que este número diminuiu. É quase certo
que tenham aumentado. Como fechar os
olhos diante de tal realidade? Entendemos
atualmente que 20% da igreja é formada
por jovens, sendo a maioria composta por
mulheres (FOLLIS; NOVAES; DIAS, 2015).
Embora possua uma relação em grande
parte negativa com os jogos (BORGES, 2006),
em geral, a IASD, recentemente, tem passado
por um período de maturação em relação a
eles. Embora reconheça o caráter prejudicial
de alguns, os adventistas reconhecem que
essa realidade não pode ser desconsiderada,
e que o gênero dos games é mais amplo e
inclusivo do que poderíam imaginar (MIRANDA,
2009; CARMO; FERREIRA, 2016). Nesse
contexto, a instituição não apenas deixa de
“demonizar” os games, mas investe energia
e criatividade para a produção de materiais
dessa categoria.
Por exemplo, no ano de 1972, sob a direção
geral do Pr. Wilson Sarli, a Casa Publicadora
Brasileira (CPB) decidiu dar uma chance aos
jogos analógicos, visto que precisavam criar
produtos para o mercado infantil e juvenil. A
tarefa de criar e liderar a produção destes
jogos recaiu sobre Erlo Kõhler, diretor do
Propaganda de Jornadas
Bíblicas na Revista Adventista, departamento de arte na época, que acabou
edição de set., 19??. criando praticamente 50 novos produtos, sendo
Copyright © 1977 Revista Adventista,
Todos os direitos reservados. que destes, 3 foram os jogos aprovados para
prosseguir com produção imediata: os jogos
de tabuleiro 3 em 1 Jornadas Bíblicas, o jogo
de cartas Quarteto Bíblico e caixas de Quebra-
cabeças bíblicos, todos ainda sendo vendidos
até hoje. É interessante ressaltar que foi nesta
reunião diretiva que foi aprovado pelo Pr. Wilson
Sarli juntamente com o diretor financeiro e de
vendas o “novo logo” da CPB que existe até
hoje (tendo este sofrido recentemente uma
atualização na parte tipográfica).
Em conversa portelefone, Kõhler disse
que “a ideia [da criação destes jogos) era de uma
Embalagem do Quarteto,
Copyright © 2015 Casa Publicadora forma resumida passar para a criança, jovem e
Brasileira, Todos os direitos reservados.
adulto, o contato com o Antigo Testamento, os
evangelhos e especificamente o livro de atos”.
De agosto a dezembro de 1972, entre a própria
produção de jogos feita pela CPB e por outras
gráficas especializadas que criavam jogos para
a Estrela, foram produzidos mais de uma dezena
de jogos analógicos, tais como A Arca de Noé

0 ADVENTISTA E OS GAMES
(um jogo de tabuleiro com 49 perguntas, com o
objetivo do jogador convidar um amiguinho não
adventista e juntos responderem a perguntas
na ordem cronológica bíblica, dando assim às
crianças conhecimento da criação até ao dilúvio);
3 caixas de quebra-cabeças; 3 jogos da coleção
Quarteto Bíblico; um jogo de “bingo bíblico”
intitulado de Colitoc; 2 dominós bíblicos e, por fim,
a joia da coroa, que foi o jogo Jornada Bíblica que
trazia 3 tabuleiros — a história de Israel, a vida de
Jesus e os apóstolos — em uma caixa só. Todos
os estes jogos, suas regras e mecânicas, foram
criados por Erlo Kõhler e ilustrados por vários
designers, entre eles o uruguaio Heber Pintos,
criador da “Turma do Noguinho”, mais tarde
conhecida como “Turma do Nosso Amiguinho”.
Em seu segundo mandato de 1995 a 2000, o
Pr. Wilson Sarli autorizou a reedição de alguns
destes jogos que as lojas online e físicas da CPB
vendem até hoje. Sem sombra de dúvida, foi um
investimento grandioso e uma aposta nunca
antes feita neste nicho de mercado.
A conversa pessoal com o diretor de arte
octogenário Erlo Kõhler nos conduziu a uma
deliciosa viagem ao túnel do tempo. No entanto,
nem tudo são flores: 40 anos depois da criação
destes jogos, nada diferente e moderno foi feito,
no que se trata de jogos analógicos clássicos
ou modernos. Kõhlerterminou inferindo
que “se talvez fosse criado um setor [na CPB]
dedicado à criação de jogos, assim como
existe a MusiCasa para produções musicais,
muitos outros designers e criadores de jogos
poderíam contribuir nesta frente. Eles iriam
levar aprendizado e experiências essenciais
às famílias e amigos que querem conhecer a
verdade enquanto se divertem de forma salutar”.

CAPÍTULO 8
De fato, a indústria dos jogos cresceu tanto
nos últimos anos que costuma faturar mais que o
cinema e a música, juntos. 0 Brasil, por exemplo,
desde 2012, experimenta na pele o crescimento
desenfreado e contagiante dos chamados “board
games”—jogos de tabuleiro modernos cujos
game designers são seguidos por legiões de
fãs, à semelhança de atores e escritores, pois
lançam cada vez mais títulos que combinam um
5 Para ter mais equilíbrio quase perfeito entre o design gráfico,
informações sobre a mecânicas de jogos e os mais variados temas.
produção de jogos de
tabuleiro no mundo,
Triste é saber que ao fazer uma pesquisa extensa
visite cboardgamegeek. pela maior base de dados online do mundo de
com>. jogos de tabuleiro,5 existem menos de 100 jogos
com temas Bíblicos cadastrados.
Voltando aos jogos atuais, Cleandro Viana
lançou, juntamente com Leandro Viana, um jogo
eletrônico bem popular, inclusive nos cultos
JA, chamado “Quem quer ser um milionário no
Céu?” 0 jogo, obviamente baseado no programa
Show do Milhão, por sua vez baseado no
estadunidense Who Wants to be a Millionaire?,
consiste em responder adequadamente 12
questões. Como resultado, ao invés de ganhar
um milhão, o vencedor ganha o Céu. Para
cada resposta certa, em vez de uma soma em
dinheiro, o jogador recebe um fruto do Espírito.
Interface do jogo Quem quer
ser um milionário no Céu?
Respondendo incorretamente uma pergunta, o
Copyright ® 201? Jogos Bíblicos, jogo acaba e ele precisa começar outra vez. 0
Todos os direitos reservados.
jogo, no entanto, apesar de angariar popularidade
no início dos anos 2000, nada mais é que uma
versão virtual adaptada dos jogos bíblicos
baseados em memorização, com a finalidade
de fomentar a leitura das Sagradas Escrituras.
Contudo, ao produzir o citado jogo, Viana se
apropriou, ao mesmo tempo, de um interessante
jogo televisivo e do universo computacional.

n ATIVFMTIÇTA F ÍK FAMFF
Ninguém, entre jovens e adultos, questionou sua
utilização, mesmo na igreja.
Outro importantíssimo exemplo é o
primeiro aplicativo denominacional Heroes,
que pode ser baixado para iOS e Android. Neste
game, vários heróis podem ser percebidos, a
partir de suas características, de acordo com
a própria descrição do Google Play: Abraão, “0
Pai de Nações”; Esther, “A Rainha da Coragem”;
Ruth, “A Sábia Viúva”; David, “0 Exterminador”;
Daniel, “0 Visionário”; Jesus, ”0 Leão de Judá”;
Peter, “A Rocha”; Maria M, “Tomb Raider”;
Mary, “A Guardiã”; John, “0 Filho do Trovão”;
Paul, “0 Viajante”. Atualmente, o jogo ainda se
mantém praticamente nos mesmos moldes,
embora sob diferente forma, mantendo
um estilo bem estilizado de perguntas e
respostas. Por fim, pode ser citado o game
PitCairn, também desenvolvido no estilo de
perguntas e respostas, desenvolvido pelo Interface de Heroes retirada
do site Notícias Adventistas,
White Estate Inc., EUA. 0 jogo foi baseado na Copyright O 2013-201? Igreja
vida e obra de Ellen G. White; ele possui uma Adventista do Sétimo Dia, Todos os
direitos reservados.
qualidade superior em termos de design e
trilha sonora, além de possuir um sistema de
pontos — entretanto, o jogo ainda se encontra
disponível apenas em língua inglesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse capítulo nos ajudou a compreender


que, diferentemente do que ocorria no início do Interface do jogo Pitcairn,
Copyright © 2015 Ellen G. White
adventismo, o conceito de “jogo” atualmente é Estate, Inc.
muito mais amplo! Em primeiro lugar, devemos
nos recordar do contexto histórico norte
americano que associava o tempo dedicado aos
jogos ou ao entretenimento (em sua maioria, os

CAPÍTULO A
esportes) como perda de tempo. Em virtude
da necessidade de aplicar esforços para o
desenvolvimento do país, atividades variadas
que não estivessem associados ao trabalho eram
consideradas como ociosas e desnecessárias.
Mesmo Ellen G. White, ao se utilizar do termo
“jogo” (“gome”), costumava aplicá-lo a situações
das mais variadas. Falar dejogos hoje em dia
não é uma tarefa fácil em virtude das milhões de
possibilidades e mecânicas desenvolvidas com
o passar dos anos. Ainda assim, devemos estar
cientes dos conselhos de Ellen G. White e procurar
por jogos que não retirem o foco daquilo que é
realmente importante.
A IASD tem feito bons esforços ao
propiciar jogos interessantes que mantenham
o foco na missão, embora ainda sejam
embrionários e com orçamento limitado.
É preciso, portanto, pensar em novas
possibilidades, visto que aqueles que
possuímos estão baseados em perguntas
e respostas. Inclusive o conceito de
“gamificação" poderia ser melhor utilizado
para aplicativos de auxílio a leituras bíblicas.
Fica evidente que o universo é grande e ainda
carece ser explorado. Em todo caso, a IASD
pode manter uma visão otimista sobre a sua
relação com os jogos, mas precisa ter em
mente que as iniciativas mencionadas aqui
representam apenas o primeiro passo.

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
BORGES, M. Nos bastidores da mídia: como os meios de
comunicação afetam a mente. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 2006.

0 ADVFNTISTA F OS GAMFS
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CARMO, F.; FERREIRA, G. Caça aos Bichos. Revista


Adventista, p. 44-46, set. 2016.

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1850. Disponível em: <http://bit.ly/2trXfyn>. Acessado em
28 de junho, 2012.

EUROPA. MSX: A história completa do computadorfeito para


jogos. São Paulo: Europa, 2016. (Dossiê Old! Gamer],

FOLLIS, R. Memória, mídia e transmissão religiosa:


estudo de caso da Revista Adventista [1906-2010].
Tese [Doutorado em Ciências da Religião]. Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012.

218
FOLLIS, R.; NOVAES, A.; DIAS, M. [Orgs.J. Sociologia

do adventismo: desafios brasileiros para a missão.


Engenheiro Coelho: Unaspress, 2015.

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HEGGIE, V. Bodies, Sports and Science in the Nineteenth


Century. Past and Present, no. 231. Maio, 2016. Acesso em:
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MAGALHÃES, C. Games e Religião. Notícias Adventistas,

2014. Disponível: <http://bit.ly/2sm5LgK >. Acesso em: 20


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MIRANDA, D. K. Mil adolescentes discutem sobre o mundo


digital. Revista Adventista, p. 31, set., 2009.

WHITE, E. G. Atos dos Apóstolos: a igreja transformou o


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CAPÍTIII n R
. Conselhos aos professores, pais e estudantes.
5. ed. Tatuí: CPB Casa Publicadora Brasileira, 200?a

. Conselhos sobre educação. 3. ed. Tatuí: Casa


Publicadora Brasileira, 2002b.

. Mensagens escolhidas. 4. ed. Tatuí: Casa


Publicadora Brasileira, 2000. v. 2.

. 0 Lar Adventista: conselhos a famílias


adventistas do sétimo dia expostos nos escritos de Ellen G.
White. Tatuí: Casa Publicador Brasileira, 1996.

. Orientação da criança: conselhos aos pais


adventistas do sétimo dia. 8. ed. Tatuí: Casa Publicadora
Brasileira, 1996.

. Spiritual Gifts: Important facts of Faith in


connection with the history of holy men of old. [s.l.]: Review
and Herald, 1945.

http://bit.ly/2tbSnZL
0 adventista e a música pop
DEFINIÇÕES, PRECONCEITOS E
PRÁTICAS ECLESIÁSTICAS
Joêzer Mendonça

Doutor em Musicologia pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (UNESP),


e Mestre em Música pela mesma instituição. Atualmente é professor adjunto Pontifícia
Universidade Católica do Paraná [PUCPR], E-mail:joezer.?@gmail.com
Muitos membros da Igreja Adventista
do Sétimo Dia (IASD] acreditam que jovens e
crianças estão ameaçados pelo abundante
fluxo de imagens e sons da mídia. No intuito de
construir uma cerca de proteção, eles lançam um
contra-ataque à música proveniente da cultura
pop: criticam as letras, consideradas vulgares
e impróprias para a conduta cristã; as melodias,
que seriam repetitivas e capazes de viciar; os
ritmos, que pervertem a moral e a razão; e os
intérpretes, péssimos modelos para a juventude.
Apesar de muitas músicas e artistas
populares merecerem essas críticas, devemos
perguntar: será que esse julgamento não
menciona apenas os piores exemplos, a fim de
condenartodo o universo da música pop? 0 fato
de vivermos na geração mais bem informada
de todas as épocas torna inviável o uso de
pesquisas obsoletas e teorias conspiratórias para
comprovar opiniões; corremos o risco de recorrer
à má ciência para ilustrara própria ignorância. A
atitude correta então não é o desprezo da cultura,
mas a inteligência para discerni-la e apreciá-la
com base em uma cosmovisão cristã saudável.
Neste capítulo, pretendo esclarecer o conceito
de “música pop” (ou “música popular”] e abordar
as formas que os adventistas historicamente
se manifestam em relação à ela. Por fim, vou
indicar perspectivas para uma relação crítica e
apreciação das produções da indústria musical
entre os adventistas.

0 QUE É MÚSICA POPULAR (POP)?

0 termo “música pop" surgiu na década


de 1950 para designar músicas direcionadas

CAPÍTULO 9
ao mercado adolescente e caracterizadas pela
mistura de tradições e influências musicais de
gêneros (SHUKER, 1999; MENDONÇA, 2014).
Dessa forma, a música pop é um termo “guarda-
chuva”, que abriga diferentes gêneros musicais,
como rock, pop, música eletrônica, reggae, rap,
funk, hip-hop etc. Além dos estilos estrangeiros,
no Brasil a música pop também inclui alguns
estilos de pagode, sertanejo e axé-music. Essa
abrangência se explica por que a música pop
é produzida dentro de um sistema comercial,
gravada e divulgada com tecnologia moderna,
veiculada pelo aparato midiático moderno de
TV, rádio, cinema, revistas e internet, destinada
Capado álbum We are the world.
ao entretenimento e cruzando limites sociais e
culturais [FRITH, 2004;JAN0TTIJR, 2005). Essas
características podem favorecera produção de
canções simplistas, vulgares e repetitivas. Por
outro lado, nem a força das mídias nem o comércio
musical impedem a criação de músicas com alto
grau de complexidade e sofisticação artística.
De modo geral, a música pop é vista
como produto descartável, de refrões fáceis
que repetem versos sobre o amor (SHUKER,
1999, p. 192-193). Entretanto, o universo da
música popular é bem mais vasto, incluindo
canções que perduram por gerações,
apresentando diferentes graus de técnica
vocal e instrumental, e abordando temas
sociais, religiosos e políticos. A indústria
Capa do álbum Live Aid.
da música pop também organizou shows
de arrecadação milionária de fundos para
o combate à fome, como o We Are the World
[“Nós somos o mundo”) e o Live Aid [“Ajuda ao
vivo”), e vários artistas pop estão envolvidos
em ajuda humanitária, preservação dos
recursos naturais e em campanhas contra

OADVENTISTAEAMÚSICAPOP
a discriminação e a pobreza. Mesmo assim,
paira sobre a música pop a crítica de ser palco
de estrelismo, além de estimular a histeria de
fãs e o comportamento de risco.
Quando a indústria musical se consolidou
no começo do século 20, também se
consolidaram argumentos para depreciara
música popular em relação à “música séria”,
termo usado para identificara música erudita.
Tornaram-se célebres as teorias de Theodor
Adorno (1941), filósofo alemão bastante crítico
à música pop e ao seu ouvinte. Ele considerava
Theodor Adorno (1903-1969)
que a música popular era a música do “inculto”;
que a música pop era padronizada, mecânica,
sem vida; mera mercadoria apreciada por
espectadores frustrados. Perry Meisel (2015,
p. 66) observa que o julgamento de Adorno
“deriva de uma maneira eurocêntrica de medir
tudo o que é musical segundo os estilos dos
tempos clássicos”; além disso, algumas críticas
de Adorno à música popular soam anacrônicas,
isto é, estranhas ao contexto atual, e já foram
contestadas por outros estudos. Contudo, seu
modelo de crítica à música popular continua
presente em muitas argumentações.
Em outubro de 2010, por exemplo, o
cantor adventista Leonardo Gonçalves
participou do show de Ed Motta. Ambos
cantaram a música “Isn’t she lovely?’’ (“Ela
não é um amor?”], feita pelo ícone da música
pop americana Stevie Wonder, em homenagem
ao nascimento de sua filha. Embora a letra
desta canção seja um agradecimento a Deus,
Leonardo Gonçalves (membro da IASD) foi
criticado porter participado de um show de
música secular. Em abril de 2009, o violinista
e maestro adventista Paulo Torres, spalla

CAPÍTULO 9
da Orquestra Sinfônica do Paraná (também
membro da IASD), acompanhou o cantor
Andrea Bocelli em apresentação musical no
Domingão do Faustão, programa da TV Globo.
Apesar de Andrea Bocelli ter entoado canções
do repertório secular, a participação do
violinista não foi criticada.
Esses episódios exemplificam o caráter da
diferenciação que costumamos atribuir à música
clássica e à música popular. Em ambos os casos,
dois adventistas participaram de apresentações
musicais de cantores seculares. No entanto, para
alguns de seus irmãos de fé, um dos cantores
esteve em um “show”, enquanto o outro esteve
em um “concerto”. Foram utilizadas palavras
diferentes para contrastar o significado de algo
que, a rigor, representa a mesma coisa: uma
exibição musical.
22?

OS ADVENTISTAS
EA MÚSICA POPULAR

Historicamente, os adventistas se
utilizam da música popular de várias maneiras.
Urias Smith e Tiago White, por exemplo, ao
selecionarem cânticos para os primeiros
hinários adventistas, incluíram versões
evangélicas da canção popular “Old Folks
at Home" (“Velhos amigos em casa”) e do
canto folclórico “Bonnie Eloise”, ambos
presentes no atual Hinário Adventista com
os títulos “Saudade” e “Oh, Quão Doces as
Novas”, respectivamente. Isso não significa,
Partitura da música Oldfolks
at home. de fato, que eles trouxeram estilos dançantes
e adaptaram temas românticos ou até
moralmente reprováveis ao movimento

n ADVENTISTA EA MÍJSICA POP


adventista; conforme o padrão evangélico de
sua época, eles adotaram a facilidade melódica
e rítmica característica dos cantos populares
para impulsionar o canto nas igrejas. Embora
o recurso utilizado pelos pioneiros tenha
sido abandonado há muito tempo, diversos
compositores e arranjadores musicais
adventistas se utilizam de procedimentos
e técnicas musicais oriundas da música
orquestral erudita e da música popular.
Capa do álbum “When angels
Temos como exemplos mais recentes o cry” do grupo vocal Take 6.
famoso grupo vocal americano Take 6, formado
na Universidade Adventista de Oakwood, cuja
carreira musical inclui discos natalinos e também
arranjos a capella de canções pop. Além disso, em
outras ocasiões, a música pop foi utilizada pelos
adventistas em outro contexto como estratégia
para a educação musical. Entre os anos 19?0
e 1980, a revista infantil Nosso Amiguinho -
publicada mensalmente pela Casa Publicadora
Brasileira [CPB] - se utilizava em suas edições de
algumas canções populares, ou mesmo folclóricas,
para ensinar as crianças a tocar violão.
Ainda que existam exemplos como esses
- tanto antigos quanto recentes - a respeito da
utilização da música pop entre os adventistas,
por outro lado, a sua desaprovação não é uma
novidade. Há mais de cem anos, o pastor J. S.
Washburn (1915, p. 3) escrevia que o enorme
fluxo de danças satânicas e ritmos vulgares,
como o ragtime e o jazz, era sinal de que o fim
dos tempos chegava. Lola Wilkinson (1934, p. Cifra da música “Marinheiro
17-18) também apontava que o ritmo contínuo Só” escrita por Clementina de
Jesus publicada no periódico
tocado por uma banda de jazz despertava Nosso Amiguinho.
instintos brutais nos ouvintes e que, por isso, © 19?? Casa Publicadora Brasileira,
inc., Todos os direitos reservados.
o jazz era responsável pelo estado de declínio
moral. Na edição de fevereiro de 1934 da Revista

CAPÍTULO 9
Adventista, H. B. Scott falava sobre “músicas
prejudiciais” e afirmava que o jazz causava
desordens fisiológicas. Duas décadas depois,
havia um novo vilão musical: o rock’n’roll! 0 líder
de jovens e desbravadores John Hancock (1958,
p. 14] julgou que o Diabo estava manipulando
“este novo entretenimento musical”, cuja
sensualidade e ritmo estavam a um passo dos
“diabólicos dançarinos de terras pagãs” - note
que, bem antes do cantor Raul Seixas, já havia
quem apontasse que o Diabo era o pai do rock.
Os primeiros textos de pastores
adventistas a respeito de música popular não
abordam propriamente a música do jazz e do
rock, mas sim as danças como efeito físico
e imoral dessa música. Contudo, eles não
mencionavam que muitos ouvintes preferiam
escutar o jazz em vez de dançar, e que vários
compositores desenvolveram canções e
performances bastante refinadas. A partir dos
anos 19?0, contudo, os autores adventistas
passaram a conferir mais atenção ao efeito
físico e psicológico que a música exerce
sobre as pessoas. Nessa época, a simples
demonização da música popular foi substituída
pelo uso da ciência como fonte de autoridade
para alertar sobre as consequências perigosas
de se escutar ritmos como o rock. 0 músico
e professor Harold Lickey (19?1] escreveu
uma série de artigos sugerindo que a natureza
selvagem do rock causava o problema de
comunicação entre as gerações. Compositora
de obras eruditas, Margarita Merriman (19?2,
p. 4; 1973] afirmou que um ritmo repetitivo
como o rock “leva à hipnose em vários níveis
[e] quando combinado com a síncope, o corpo
reage com movimentos sensuais”, e avaliou

OADVENTISTAEAMÚSICAPOP
que o rock era uma ameaça à saúde física e
espiritual dos indivíduos.
Em geral, a maior parte dos autores
adventistas que escrevem sobre música têm
utilizado três referências básicas: a Bíblia, os
textos de Ellen G. White e a ciência. Na visão de
H. Lloyd Leno (1976, p. 164), para que a igreja
desenvolva uma filosofia adequada para a
música seria necessário abandonar “opiniões
predominantes, gostos pessoais e até a
opinião de profissionais do campo da música”.
Para Leno, a Bíblia demonstrava os princípios
fundamentais da vida cristã, o Espírito de
Profecia ampliava os ensinos bíblicos, enquanto
a ciência esclarecia as respostas da natureza
humana aos estímulos musicais. Esse triplo
recurso acabou fundamentando as críticas
mais recentes à música pop, mas nem sempre
serviu como ferramenta para argumentações
mais corretas e convincentes. Em vários casos,
a combinação desses recursos é muitas vezes
controversa e carregada de interpretações
imprecisas e descontextualizadas de textos
bíblicos, proféticos e científicos.
Nos anos 1980, alguns autores
adventistas afirmavam que o rock causa perda
“quase instantânea de 2/3 da força muscular”
e sua fórmula rítmica repetitiva junto com
instrumentos como a bateria altera toda a
química corporal, “sem contar os elementos
de transe e hipnose que contém”, e também
mencionavam a contestada experiência de
Dorothy Retallack com plantas que gostaram
de música clássica, mas “com rock da banda
Led Zeppelin algumas secaram e morreram”
(ARAÚJO, 1995, p. 28-30). Esse modelo de
abordagem à cultura pop, ao rock ou à música
secular que recorre a mensagens subliminares,
ocultismo e experimentos científicos sem
mérito acadêmico ainda comparece em uma
parte da bibliografia adventista nacional.
Alguns teólogos também se equivocaram
ao corroborar informações do campo da
ciência para falar de música pop. Samuelle
Bacchiocchi (2000, p. 236; 241], por exemplo,
com o intuito de demonstrar que a música
pop é uma ameaça à saúde, escreveu que o
rock eleva a pressão sanguínea, a pulsação, a
produção de adrenalina e que a tensão causada
pela dissonância e sua acentuação sincopada
estimulam hormônios que alteram o estado da
consciência e atrapalham a digestão. A essa
questão, o teólogo adventista Ed Christian
(2003, p. 82] respondeu que esses efeitos não
advêm exclusivamente do rock, mas também
de cantar hinos com bastante entusiasmo ou
assistir e participar de esportes. Se as pessoas
ficam com os músculos mais relaxados ao ouvir
música popular, ocorre um efeito semelhante
após uma boa caminhada ou depois de se
cantar um hino preferido com vigor, pois isso
tudo se trata de reação natural do nosso corpo.
Se até teólogos experientes cometeram
intepretações incorretas de informações
científicas, então o mesmo discernimento
que aconselhamos para a escolha da música
adequada deve ser usado também para a
pesquisa de material científico sobre música. Por
outro lado, é inegável que os autores adventistas
evidenciam uma legítima preocupação com as
consequências do tempo dedicado à escuta
de música e com o tipo de canção usada para
o entretenimento. Ellen G. White (1999, p. 506]
escreveu que “a música é o ídolo adorado por

0 ADVENTISTA EA MÚSICA POP


muitos professos cristãos observadores do
sábado”. Ela notou que a música, em alguns
lares adventistas, “em vez de estimular para a
santidade e espiritualidade, tem sido o meio para
distrair suas mentes da verdade. As canções
frívolas e as músicas populares de hoje parecem
agradar seus corações” (WHITE, 1999, p. 496-
9?). Por isso, ela via uma contradição entre a fé
e o tipo de música que se cantava: “Jovens se
reúnem para cantar e, se bem que professos
cristãos, desonram frequentemente a Deus e
sua fé com conversas frívolas e com a escolha
que fazem da música” (WHITE, 1999, p. 506).
Os redatores da FilosofiaAdventista
para a Música,1 documento oficial da IASD,
preferiram abster-se de comentários baseados
em experimentos científicos e fundamentaram
suas orientações em textos bíblicos e
denominacionais: “Embora reconhecendo que o
gosto, na questão da música, varia grandemente
de indivíduo para indivíduo, cremos que a Bíblia e
os escritos de Ellen G. White sugerem princípios
que podem formar nossas escolhas”. Esse
documento descreve alguns princípios para
1 Documento visualizado
a prática musical dos adventistas a partir de em <http://www.
dois textos da Bíblia: o primeiro, sobre a atitude adventistas.org/pt/
musica/2013/05/0?/
humana de glorificara Deus em todas as suas
filosofia-adventista-
atividades, sagradas ou seculares (ICo 10:13); o relacao-musica/>.
segundo, sobre a pureza moral que deve permear Acesso em 13/04/201?.
a mente (Fp 4:8): “Desses dois fundamentos -
glorificar a Deus em todas as coisas e escolher
o mais nobre e o melhor - dependem os demais
princípios [...] para a escolha musical”.
Não consta nenhuma regulamentação
institucional da IASD que recomende que os
jovens deixem de ouvir música popular, pois tal
regra poderia inibir até mesmo que cantássemos
“A ATITUDE CORRETA
ENTÃO NÃO É O
DESPREZO DA CULTURA,
MAS A INTELIGÊNCIA
PARA DICERNI-LA E
APRECIÁ-LA COM BASE
EM UMA COSMOVISÃO
CRISTÃ SAUDÁVEL.”
o Hino Nacional ou o “Parabéns pra você” em
ocasiões festivas. De fato, segundo o documento,
“embora não esteja destinada a louvar a Deus,
[a música secular] pode ter um lugar autêntico
na vida do cristão”. Contudo, há orientações a
respeito de critérios e princípios de escolha de
músicas sacras ou seculares: equilíbrio, letras que
expressam altos valores e, sobretudo, busca por
glorificar a Deus em todas as atividades humanas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar da presença de cantores e


produtos pop com substância artística e
conteúdo relevante, vimos que o mundo da
música pop é, muitas vezes, definido somente
pelos seus aspectos mais estereotipados:
letra banal, ritmo repetitivo, melodia fácil,
fãs histéricos, artistas libertinos. Ainda que
esses aspectos sejam verdadeiros e embora
líderes religiosos e pais demonstrem legítima
preocupação com a saúde espiritual de jovens e
adolescentes, há alguns autores que têm usado
métodos sensacionalistas e inconvincentes,
demonstrando incompreensão das expressões
culturais midiáticas e populares e dos níveis
variáveis da relação dos jovens com a música.
Diferente do que falam alguns autores, a
música não tem o poderabsoluto de induziras
pessoas a atitudes boas ou más. No entanto,
a música pode suscitar pensamentos e
sentimentos que vão reforçar ou contradizer os
princípios cristãos. Por isso, é preciso refletir
tanto sobre a qualidade das músicas que se
ouve quanto sobre a quantidade de tempo que
se dedica para ouvi-las.
Portanto, a fim de repensar o modelo
de abordagem à música pop e com o intuito
de refletir sobre as escolhas musicais que
fazemos, quero apontar perspectivas para
um relacionamento saudável dos adventistas
com a música, como 1) organizar plataformas
de discussão que reúnam estudos bem
fundamentados sobre a realidade da influência
da música pop no cotidiano dos jovens; 2)
evitarjulgamentos em forma de metonímia,
isto é, que tomam a parte pelo todo, visto
que esse procedimento recorre aos piores
exemplos da música pop a fim de depreciar o
todo, revelando um grave desconhecimento
do universo diversificado e complexo da
cultura pop; 3] entender que a música pop
não se consiste apenas de melodias, ritmos,
letras e artistas, mas também de uma cultura
envolvida com imagens e tendências da moda
que muitas vezes estão em conflito com os
princípios cristãos; 4) orientar positivamente,
reforçando a cosmovisão religiosa em vez de
criticar negativamente baseando-se em táticas
“musicofóbicas”, considerando que as estratégias
sensacionalistas tendem a distanciar os jovens
mais bem informados que percebem as falhas
das argumentações e acabam rejeitando
o discurso inteiro; 5] mobilizar uma visão
multidisciplinar com referências atualizadas
e metodologicamente corretas da teologia, da
musicologia e dos estudos sobre cultura, mídia e
comportamento jovem.
Ao procurar o embasamento que recorre
à Bíblia, aos textos de Ellen G. White e à ciência
com o intuito de falar de música, vemos que
é necessário discernimento para abordar um
assunto que inclui gosto pessoal e níveis

0 ADVENTISTA EA MÚSICA POP


de instrução musical, mas que também se
relacionam com a vida cristã. Por isso, em vez
de apelarmos para o argumento da autoridade
eclesiástica, incentivemos a autoridade do
argumento espiritual. A relação dos jovens e
adolescentes com a música depende de suas
predisposições pessoais e de sua cosmovisão
espiritual. Portanto, uma cosmovisão cristã
bem fundamentada e coerente pode contribuir
para que jovens e adolescentes façam escolhas
musicais em conformidade com a sua fé.

REFERÊNCIAS_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _
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http://bit.ly/2u64nAy
0 adventista e a mulher na mídia
ENCONTROS E DESENCONTROS NA
CONSTRUÇÃO DO FEMININO
Betina Bordin Pinto

Mestra em Comunicação pela Universidade Paulista (Unip), jornalista e professora nos cursos
de Jornalismo e Rádio TV no Centro Universitário Adventista de São Paulo (Unaspj

E-mail: betinabpinto@gmail.com
Certa noite me deparei com uma
propaganda de televisão que me chamou a
atenção. Era um comercial sugestivo para as
férias que orientava sobre a importância de
fazer a revisão do carro, como trocar o óleo
ou os pneus, para garantira segurança de
uma viagem. 0 enredo mostrava um cliente
na loja fazendo um comentário sobre uma
atendente, dizendo que “elas” (as mulheres)
“não entendem muito de carro”. Contudo, no
mesmo instante, o cliente é surpreendido por
uma mulher mecânica cuidando de seu carro.
0 que mais me admirou, contudo, foi o fato de
a mecânica representar uma “mulher comum”;
ou seja, ela não estava vestindo roupas
insinuantes ou fazendo insinuações sensuais.
Quando percebi isso, voltei a refletir
sobre como a mídia é uma ferramenta
poderosa para disseminar conceitos, idéias e
padrões! Ainda assim, me recordei de como
esses padrões têm machucado mulheres ao
longo dos anos. 0 mesmo pensamento me
conduziu à associação, que está se tornando
cada vez mais forte, entre a mídia e a religião
e como isso impacta a vida das mulheres
cristãs. Como sabemos, historicamente, as
mulheres cristãs costumam ser alocadas a
um patamar de subordinação e, por vezes,
de servidão em relação aos homens no
cristianismo. No entanto, parece que, aos
poucos, essa realidade de violência e
subjugação da imagem feminina começa a
mudar - em primeiro lugar, na sociedade,
como vimos no comercial, e, em segundo
lugar, entre os cristãos.
Antes de falarmos sobre essa mudança
- que apareceu depois de muita luta -,

CAPÍTULO 10
precisamos entender como surgiu e como se
dá a relação de amor e ódio entre a mulher
e a mídia, além de compreender como a
religião entrou nesse processo. Para tanto,
é preciso ir às raízes dessa questão afim de
entender um pouco sobre a maneira pela qual
os encontros e desencontros dessa relação
contribuíram para a construção dos cenários
sociais que temos hoje a respeito da mulher
e, sobretudo, da mulher cristã.
1 Em 190í,o arqueólogo
britânico sir Arthur Evans
descobriu a civilização NOS BASTIDORES
minoica, que teve seu
auge na Grécia entre os
DA CONSTRUÇÃO SOCIAL
séculos 2? e 11 a.C. Ele
afirmou tratar-se de uma
Ao longo das décadas, inúmeras
sociedade matriarcal.
A Civilização Minoica pesquisas foram realizadas para compreender
tinha como base a a construção das relações sociais entre
religião cretense, que
homens e mulheres. Há estudiosos que
se fundamentava nas
adorações às divindades
defendem que as sociedades primitivas eram
femininas. Muitas dominadas ideologicamente por homens, e
outras civilizações outra corrente de pesquisadores que prefere
apresentaram e/
ou apresentam
basear suas investigações na existência
características de uma de um sistema familiar matriarcal, centrado
sociedade matriarcal: na figura da mãe - aliás, descobertas
Celta, Ilha de Malta,
Elan. Na América do
arqueológicas1 reforçam esta última versão,
Sul, por exemplo, as que costuma não ser aceita por muitos
índias que dominavam pesquisadores. No entanto, ao se discutir
a região próxima ao
Rio Amazonas-as
sobre as raízes históricas da constituição das
icamiabas - eram sociedades, o historiador Jorge Miklos (2011,
riquíssimas em ouro. 0 p. 2] nos alerta para uma compreensão mais
nome - “Amazonas” -
clara sobre a figura da mulher na sociedade.
nome dado às mulheres
guerreiras pelos gregos - 0 pesquisador destaca um ponto que não
foi dado em homenagem pode ser ignorado nesse cenário: “0 ser
a elas, após terem
humano é um ser social, um ser de relações
derrotado invasores
espanhóis, em 1541. e de interações. 0 ser humano se constrói
(CUNHA, 2015, p. 20], mediante um processo de socialização. Nesse

0 ADVENTISTA EAMULHER NAMÍDIA


processo é que se definem os papéis sociais
entre eles: os papéis de homens e mulheres.”
0 pesquisador nos convida a pensar de
uma perspectiva mais profunda. Para ele, as
relações sociais e de poder são construídas
socialmente. Ou seja, as relações são
construídas na convivência diária entre as
pessoas, nas interações com o outro, assim
como os conceitos e idéias acerca dos papéis,
importâncias e funções de cada em um
grupo social. Isso significa que as diferenças
sociais não nascem com a gente! Elas são
ensinadas e aprendidas. Uma criança inserida
em uma família que cultiva preconceitos
sobre questões raciais, por exemplo, cresce
entendendo que é dessa forma que se deve
encarar o assunto: com discriminação, com
desrespeito! A criança, então, reproduz esse
comportamento nas suas interações sociais.
Nesse cenário, uma outra pesquisadora,
Riane Eisler (2001, p. 11) amplia a discussão
sobre as estruturas de poder que regem
essas mesmas relações em uma sociedade
humana. A autora propõe a existência de dois
modelos básicos de sociedade: o primeiro,
“que eu denominaria modelo dominador, é
popularmente chamado patriarcado ou
matriarcado - a supremacia de uma metade
da humanidade sobre a outra.” 0 segundo,
“no qual as relações sociais se baseiam
primordialmente no princípio de união em
vez da supremacia, pode ser melhor descrito
como modelo de parceria. Neste modelo (...)
a diversidade não é equiparada à inferioridade
ou à superioridade.”
Assim, buscando a compreensão dos
processos que constroem as relações sociais

capítulo m
entre homens e mulheres, a pesquisadora
encontrou ao longo da história o modelo
de “dominação” e outro de “parceria”; um
baseado na imposição, na subjugação,
na desvalorização, e o outro, firmado na
colaboração e na valorização das diferenças
complementares. As pesquisas de Riane Eisler
motivaram outros estudiosos a compreender as
raízes dos problemas que vivemos hoje. Maria
Aparecida Cunha (2015), por exemplo, nos
instiga a considerar que, durante a construção
dessas funções sociais de dominação,
inúmeros signos e ícones ligados à religiosidade
e à arte foram alterados em seus significados,
no sentido de justificara soberania masculina,
contraposta à imagem da mulher como um
indivíduo submisso e inferior.
Na verdade, a análise feminina dos fatos
ficou à margem das pesquisas por muitos anos.
De acordo com o arqueólogo americano James
Adovasioeto/. (2009) o homem foi quem realizou
os primeiros estudos arqueológicos e estampou
suas próprias impressões em cada descoberta!
Apenas no século 20 foram corrigidos alguns
equívocos na ocasião em que as mulheres
começaram a participar das escavações.
Dogmas antigos começaram a ser questionados.
No entanto, a importância da mulher no processo
social ficou comprometida, pois a humanidade
passou a observá-la de maneira deturpada,
como objeto de consumo masculino e, dessa
visão, advém as mais cruéis formas de violência.
Entender e tratar a mulher como um
indivíduo submisso e inferior é, obviamente,
uma maneira de violentá-la. Na compreensão
mais ampla do significado de violência,
o filósofo e teólogo argentino Miguel

n AnVFNTIÇTA P A Ml II UPR NA MÍniA


Angel Nunez [2005] a define como toda
a ação ou conjunto de ações que utilizam
abusivamente o poder para dominar uma
pessoa e, dessa maneira, forçá-la a fazer
algo contra a sua vontade, atentando contra
a integridade, liberdade e a dignidade
dela. Nesse contexto de violência, a mídia
se constitui uma das ferramentas mais
poderosas para a disseminação da violência
“invisível” contra a mulher.

NAS ENTRELINHAS
00 DISCURSO MIDIÁTICO

No mundo midiático, a imagem da


mulher está associada ao consumo. Segundo
alguns pesquisadores, quando a propaganda
surgiu no Brasil ela não tinha muito da cultura
brasileira sobre o consumo; essa influência
veio dos EUA. Entre as décadas de 1940
e 1950, a imagem da mulher passou a ser
associada à venda de produtos. Contudo, o
auge das garotas-propaganda ocorreu na
década de 1950, quando a mulher passou a ser
representada como coadjuvante na sociedade.
As modelos, de acordo com Pyr Marcondes
(2001), passavam a imagem de mulheres
corretas e tradicionais no lar, carentes e
submissas à adoração da beleza masculina.
Alguns se lembrarão das propagandas de
eletrodomésticos nas quais a mulher aparecia
como uma boa dona de casa que sonhava
em ganhar uma geladeira nova, ou ainda
presenteada pelo marido, no dia das mães,
com uma batedeira moderna! A partir dessas
propagandas e da divulgação da mulher nesse

CAPÍTULO 10
contexto, cria-se uma “imagem” da mulher que
passa a ser divulgada pela mídia.
Esses estereótipos criados pela mídia
reforçam o pensamento de Edgar Morin (1997),
sociólogo, filósofo e antropólogo francês. Ele
desvela o “modelo de mulher” apresentado
2 0 conceito de cultura de pelos meios de comunicação, afirmando
massa utilizado nessa que a mídia se preocupa em fazer duas
pesquisa é o idealizado
por Edgar Morin [2002,
abordagens para a “imagem da mulher”, dentro
p. 16), que a define de um formato desenvolvido pela cultura
como sendo "produzida de massa2: uma que se limita ao “domínio
segundo as normas
das artes domésticas; e a outra que aborda
maciças da fabricação
industrial; propagada o universo do bem-estar-conforto que se
pelas técnicas de difusão desenvolve sob controle feminino”. Em outras
maciça; destinando-
palavras, os “modelos” apresentados pela
se uma massa social,
isto é, um aglomerado
mídia sobrecarregam a mulher de conceitos e
gigantesco de indivíduos responsabilidades que só cabem a ela, com o
compreendidos aquém bem-estar do lar, por exemplo.
e além das estruturas
internas da sociedade.
Marcondes Filho (1988, p. ?9), outro
[...] Acultura de massa estudioso da comunicação, fala sobre
integra e se integra ao exclusão e sentimento de marginalização
mesmo tempo numa
realidade policultural;
por parte de quem não se enquadra nesse
faz-se conter, controlar, estereótipo: “Aquele que não se adapta a
censurar (pelo essas normas tem a sensação de estar sendo
Estado, pela Igreja) e,
simultaneamente, tende
marginalizado, excluído, acometido do que se
a corroer, a desagregar denomina sentimento de culpa na cultura, isto
as outras culturas." é, sofre por ser muito alto, muito baixo, muito
gordo, careca, feio; por não ter o penteado
da moda, a roupa da época, o carro novo.
Tudo isso por sua vez gera uma compulsão:
render-se ao imperativo do podertotalitário
dos modismos, que atinge, evidentemente,
os mais fracos com mais facilidade.” Nesse
contexto, o autor afirma que há uma
construção mental que funciona na cultura
como norma à qual todos se sentem coagidos
a se submeter. Isso é violência “invisível”, ou

D AflVENTIRTA F A Mill HFRNAMÍniA


melhor, “violência simbólica”, porque atinge
diretamente a essência da mulher, os seus
conceitos, sua compreensão de si mesma e a
submete a um “modelo pré-fabricado” em prol
de interesses comerciais.
0 pesquisador da comunicação, Vicente
Romano (1998), amplia essa compreensão
e afirma que existem técnicas e estratégias
utilizadas pela mídia para formar uma
mentalidade submissa, no sentido de aceitar
os ditames do mercado e viver conforme
as regras estabelecidas. Portanto, aquele
argumento de que “é só uma propaganda”,
ou ainda “é só um programa de televisão”
cai porterra! Isso porque, cada vez mais,
estudos mostram que a forma como a mulher
é retratada na mídia reflete diretamente a
maneira como a sociedade e as mulheres
veem a si próprias. Pode-se dizer que, ao
falar sobre a imagem da mulher na mídia, nós
falamos também da condição da mulher na
sociedade, e da própria mulher. É por isso que
falar, discutir e refletir sobre a maneira como a
mídia retrata a mulher é tão importante.

AADVENTISTAEO
FEMININO NA MÍDIA

Desde 1990, segundo o historiador Jorge


Miklos, o Brasil acompanha dois fenômenos:
o crescimento das igrejas evangélicas e
o empenho destas em comprar espaços
nos canais de televisão, ou tornarem-
se proprietárias de emissoras de rádio e
televisão, além de jornais e revistas. Para as
igrejas evangélicas, os meios de comunicação

CAPÍTULO 10
surgem como instrumentos pelos quais a
mensagem pode ser simplificada na tentativa
de alcançar um grande número de pessoas
ao mesmo tempo. A utilização dos meios de
comunicação pelas igrejas tornou-se condição
3 Disponível em <http:// fundamental de existência e manutenção
bit.ly/2rGKVcS> . Acesso das atividades religiosas. Ao entender esse
em: 10 abr. 201?
cenário, precisamos refletir sobre a maneira
como essa “ferramenta”, a mídia, é usada pelo
segmento religioso para retratara mulher.
Nesse contexto, a Igreja Adventista do
Sétimo Dia (IASD) também se utiliza dos meios
de comunicação para propagar sua mensagem.
A Rede Novo Tempo de Comunicação3 é o canal
oficial da IASD. 0 primeiro programa da igreja
na televisão brasileira, no entanto, foi ao ar em
novembro de 1962, na TVTupi, em São Paulo.
0 programa, Fé para hoje, era transmitido
apenas nesse estado. Em 1981, foi ao ar o
primeiro programa diário em rede nacional
pela Rede Manchete, chamado Encontro com a
vida, com duração de 5 minutos. Com o passar
dos anos, essa estrutura começou a ganhar
força e a igreja passou a investir na produção
de mais programas. Em 1995 aconteceu a
primeira transmissão ao vivo, via satélite, da
NOVO TEMPO
CANAL DA ESPERANÇA
Holanda para o Brasil e no final de 1995 surgiu
o Sistema Adventista de Comunicação (SISAC).
Marca do canal Novo Tempo. Todos os órgãos de comunicação da igreja
deveríam estar sob o mesmo teto. Estava
nascendo o que mais tarde seria chamado de
Rede Novo Tempo de Comunicação; ela passou
a sertransmitida a quase todas os estados
brasileiros e até fora do país.
Agrade da emissora, que iniciou
timidamente com poucos programas, possui
atualmente conteúdo para todos os públicos.

n An\/EMTICTA C A Ml II UCD MA MÍniA


0 público feminino, como não seria de se
estranhar, também está contemplado nesse
contexto. No entanto, falar da condição
feminina e envolver religião é motivo para muita
discussão - principalmente por parte daqueles
que não se aprofundam no assunto. É preciso,
no entanto, encarar a situação da mulher na
mídia adventista de frente! Analisar os pontos
apresentados, ler linhas e entrelinhas para
começara entender o assunto.4
Assim, para estudara maneira como a
IASD retrata a imagem da mulher ao longo dos
últimos anos, analisamos alguns produtos
midiáticos da igreja. Para esse estudo
escolhemos a Revista Adventista (/?A) e a 4 Além disso, é
TV Novo Tempo (NT) por serem veículos de importante ter em
mente que o exemplo
divulgação oficial da IASD. Nessa análise,
deixado por Jesus
buscamos entender como a igreja aborda quebra os paradigmas
a questão da submissão ao marido, da de uma época em
vários aspectos,
responsabilidade familiar, além do valor que
principalmente no que
a IASD confere à aparência feminina (como diz respeito à valorização
vestimenta e comportamento) e sua influência e ao tratamento que a
mulher deve receber.
na sociedade como profissional.
Podemos lembrar de
Dentro da programação da NT, escolhemos alguns relatos bíblicos
dois programas para serem estudados: o que revelam essa
questão (Lc 2:13; 8:3;
Consultório de Família e o Sempre Mulher. 0
Jo 4; Mc 5:25-34). Jesus
primeiro foi selecionado porter conteúdo curava as mulheres,
abrangente ao que tange comportamento e conferia atenção e se
relacionamento feminino. Preferimos escolher revelava a elas. Além
disso, Ele contava com
o mês de março, uma vez que é considerado o apoio financeiro de
o mês da mulher - o mesmo foi feito com a RA muitas delas em seu
em 55 artigos sobre o tema. Foram analisados ministério.

programas nos anos de 2012 a 2012.0 Sempre


Mulher, por outro lado, é voltado ao público
feminino entre 30 e 45 anos de idade e fez
parte da grade da emissora durante quatro
anos. Foram escolhidas para análise dez

rAPÍTin n m
“A MULHER ÀINDÀ
PRECISA SER MAIS
RECONHECIDA COMO
‘PESSOA’ DOTADA
DE INTELIGÊNCIA,
CONHECIMENTO
E CAPACIDADES
— EM VEZ DE SER
RESTRINGIDA APENAS
AO SENTIMENTALISMO E
ÀS ATIVIDADES DO LAR.”
edições, selecionadas de acordo com o número
de visualizações no YouTube5, pois não há um
lugar específico onde as edições se organizem 5 Disponível em <http://bit.
por mês e ano. ly/2qCtlNM>. Acesso em:
2mai., 2017.
No programa Consultório de família
procura-se oferecer um espaço para a reflexão
das atitudes e posturas que influenciam
na educação familiar e no relacionamento
conjugal, entre outros aspectos. Nele, foi
possível perceber que existe falta de temática
voltada para a mulher como “pessoa”, mesmo
no mês em que se comemora o dia da mulher
- dos 11 programas analisados de 2011 a
2015, apenas 2 deles tinham esse foco
específico: “Os desafios da mulher” e a “Série
só para mulheres”. Essa ausência de conteúdo
talvez ocorra porque esse não é o objetivo do
programa, como abordamos anteriormente.
252
Com o passardos anos, o posicionamento
do programa com relação ao comportamento
feminino considerado como “adequado” se
Trecho do programa Consultório
altera. 0 programa oscila e diverge entre de Família transmitido pelo
dois contextos: a “mulher independente e canal Novo Tempo.
batalhadora” e a “mulher submissa ao marido”.
No programa “Casamento e submissão” (2011),
por exemplo, enfatiza-se que o caminho mais
seguro para a mulher na relação é a submissão,
e que essa representa a vontade de Deus para
ela (BLOCO 1= 3’38”; 10’40”; BLOCO 2= 5’20”;
BLOCO 3= 2’). Em outro sentido, no programa
intitulado “A mulher e a família” (2013), embora
seja mencionada como a responsável pela
educação dos filhos, a mulher deve sonhar
com a conquista de uma profissão (15’;
20’52”; 23’55”; 28’05”; 32’30”) - embora essa
atividade necessite ser abandonada pela
função de mãe com a chegada dos filhos.

CAPÍTULO 10
No geral, a imagem da “mulher-mãe”, ou
seja, aquela que cuida dos filhos e a do marido,
é a principal responsável pelo bem-estar do lar,
mesmo que trabalhe fora e enfrente duplas ou
triplas jornadas. E, ainda que seja considerada
uma “apoiadora” do marido, ela é apresentada
como um ser dependente, com a necessidade
de ter um homem ao seu lado.
0 programa Sempre Mulher não faz mais
parte da grade de programação da NT. Ele ficou
no ar por quatro anos e depois migrou para a
Rádio NT e, continua sendo, exclusivamente,
voltado ao público feminino. Embora o
programa não fale sobre a mulher ser submissa
ao homem de maneira explícita, também
não diz que ela pode se apoiar no esposo e
contar com ele como parceiro. Em todas as
edições analisadas ela foi exaltada, de alguma
253
maneira, à imagem da “mulher-mãe”. Em uma
edição sobre a autoestima, por exemplo (com
15.478 visualizações), a dica do dia foi sobre
maternidade, aconselhando a mulher sobre o
momento em tirar o filho do peito e se aproximar
do marido: “Você é mãe mas também é mulher,
precisa cuidar do seu filhos sem esquecer do
marido”. Os assuntos discutidos durante o
programa, vez ou outra, entram em discursos
de igualdade e valorização, tais como: salários
iguais, força feminina e divisão de tarefas, mas
de maneira tímida.
No geral, o programa também diverge
em opiniões de forma discreta. Enquanto era
veiculado pela televisão, o programa não falou
sobre submissão, mas mostrou uma mulher
que se submete a padrões de beleza, necessita
do esposo em certo grau e passa a viver para si
apenas depois que os filhos crescem. Por outro

0 AOVENTISTA E A MULHER NA MÍDIA


lado, após migrar para o rádio, é possível notar
a alteração dos assuntos. Agora, o programa
também mostra a mulher como “pessoa” que pode
chegar onde quiser porter força e capacidade
como qualquer outro. Além disso, foi percebida
uma tendência no programa de rádio que
procura incentivara independência feminina e a
cooperação do esposo nas diversas atividades
que dizem respeito ao bem-estar da família.
A outra plataforma usada para nossa
análise foi a mídia impressa. Foram lidos e
estudados 55 artigos da RA publicados entre
os anos 200? e 2016, nos meses de março
e maio, que abordaram assuntos ligados à
mulher. Consta na pesquisa que somente dez
artigos foram dedicados à mulher nos últimos
dez anos. Em quatro anos de observação
(2010-2013) não houve artigos direcionados a
ela. No entanto, nota-se mudança significativa
em 2015 quando passou a existir mais de
uma matéria ou artigo exclusivo sobre esse
assunto nos meses de março e maio.
No periódico, a mulher não aparece como
submissa entre os anos de 200? a 2016. No
entanto, a pauta “influência feminina no lar”
aparece no contexto de ajudadora do esposo,
cuidadora, educadora e sensível ao filho. Em
duas ocasiões é constado que a mãe deve
estar presente com os filhos no lar. Em outra
reportagem, a noção da ‘mulher-ideal’ aparece
em seis momentos, tais como quando ela é:
boa esposa, boa dona de casa, cuida bem da
família, é elegante ao se vestir além de ser
discreta e humilde. A dupla jornada é pautada
duas vezes ao longo do período analisado,
alegando que ela precisa ter equilíbrio entre
funções e papel de moldar o futuro dos filhos.

CAPÍTULO 10
A RA, nos artigos analisados, foi sutil
em muitos aspectos, e se preocupou em
retratar a imagem da mulher como alguém
que precisa ser determinada, ter iniciativa,
ser espiritual e amar ao próximo. Além
desses aspectos, também foram frisados
a humildade, a sensibilidade, a intuição, a
necessidade de ser dona do próprio destino,
poderosa, influenciadora e emocional -
diferente do homem, racional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com esse estudo, no que diz respeito à


construção e retratação da imagem da mulher, foi
possível perceber que a IASD anda na contramão
de muitas igrejas evangélicas com relação a esse
assunto! Ao longo dos períodos analisados, ficou
evidente uma preocupação em retratara mulher
dentro de seu valor e importância. Também ficou
clara a mudança no discurso e nas abordagens
dos programas e dos artigos analisados para,
cada vez mais, se adequar ao exemplo deixado
por Cristo com relação ao tratamento que deve
ser destinado à mulher.
No entanto, é bem verdade que existe
um caminho a avançar em alguns aspectos, e
a mulher ainda precisa ser mais reconhecida
como “pessoa” dotada de inteligência,
conhecimento e capacidades - em vez de
ser restringida apenas ao sentimentalismo e
às atividades do lar. No entanto, como temos
observado, a mídia adventista parece caminhar
nesse sentido: valorizar as diferenças criadas
por Deus (entre homens e mulheres) e, ao
mesmo tempo, conferir voz a profissionais,

OADVENTISTAEAMULHER NA MÍDIA
pesquisadores e estudiosos da teologia e da
comunicação engajados nessa atividade.

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