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ANÁLISE ECONÓMICA DO CRIME


E ANÁLISE ECONÓMICA DOS
CONTRATOS
Arlindo Donário
Ricardo Borges dos Santos

Janeiro de 2021

Universidade Autónoma de Lisboa


Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

2
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

ÍNDICE 3

INTRODUÇÃO 6

II EVOLUÇÃO HISTÓRICA E O MODELO DE BECKER 17

III - DA DIFERENÇA ENTRE PREÇOS E SANÇÕES E A SUA 19

IV - ANÁLISE ECONÓMICA DOS CONTRATOS 21


4.1) Os contratos como melhoria paretiana e dos incentivos
para se obter a eficiência 21

4.2) Do incumprimento eficiente dos contratos. A caixa de Edgeworth 26

V -DA SANÇÃO ESPERADA E OUTROS FACTORES DETERMINANTES


DO CRIME 33

5.1) Factores estruturais e conjunturais e biológicos 33


5.1.1) Evolução do número de condenados por grau de ensino
em Portugal e da importância da educação 36
5.1.2) Evolução do número de arguidos por sexo em Portugal 39
A) Dos factores biológicos 40

B) Dos factores culturais 42


5.2) Da diferente propensão ao risco entre os homens devido
a diferentes níveis de basal testosterona 43

5.3) Da sanção esperada para os indivíduos neutrais ao risco 47

5.4) Da sanção esperada para os indivíduos avessos ao risco 49

5.5) Da sanção esperada para os indivíduos proclives ao risco 50


5.6) Os direitos fundamentais, as regras processuais quanto à obtenção
da prova e sua influência na probabilidade de aplicação da lei 51

VI - UTILIDADE ESPERADA DA COMISSÃO DE UM CRIME TENDO


EM CONTA A RACIONALIDADE DO INDIVÍDUO 53

3
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

VII - DA PROBABILIDADE UMBRAL E DA PROBABILIDADE EFECTIVA 55

7.1) O trade-off e a probabilidade umbral 55


7.2) O trade-off, a probabilidade umbral e a taxa de desconto 57

VIII - DA SANÇÃO GOBAL INTEGRANDO AS SANÇÕES INTERNAS


DERIVADAS DOS SISTEMAS AXIOLÓGICOS 59

8.1) O modelo das escolhas racionais e o homo economicus 59


8.2) O processo das escolhas em função da satisfação dada
pelo nível de dopamina (neuroeconomia) 61

IX - O CONTEXTO E A SUA INFLUÊNCIA NAS DECISÕES DOS


INDIVIDUOS E O SISTEMA I OU SISTEMA AUTOMÁTICO E
O SISTEMA II OU SISTEMA REFLEXIVO 68

4
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

5
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

INTRODUÇÃO

A premissa principal do Direito é que as normas do sistema jurídico constituem


um método poderoso de organizar a sociedade a fim de atingir os objectivos
colectivos e de criar incentivos aos indivíduos e organizações, através de sanções
e preços e recompensas, a fim de alinharem seus comportamentos com os
objectivos sociais, dado que os indivíduos reagem a incentivos ou estímulos, com
base na interacção do Sistema I e do Sistema II, de forma a que os valores sociais
da eficiência e equidade possam ser maximizados, dois valores fundamentais na
sociedade humana.

O conceito de eficiência tem um significado muito preciso em Economia. Uma


situação diz-se eficiente ou óptima se quando não é possível encontrar outra
situação em que alguém veja melhorada a sua situação sem que pelo menos outra
pessoa veja a sua situação piorada em termos de utilidade ou satisfação.
Atendendo às restrições deste critério de eficiência de Pareto, Kaldor e Hicks
propuseram um critério mais abrangente e flexível, que é conhecido por eficiência
potencial, em que é entendido toda a situação a qual pode melhorar a situação de
alguém mais do que piorar a situação de outras pessoas. Por outras palavras;
quando o benefício social total líquido é máximo, o que permitiria potencialmente
compensar os perdedores com o benefício total e ainda haveria um benefício
líquido para os ganhadores.

Quanto ao conceito de equidade, em termos económicos, faz-se referência, em


termos gerais, à forma como são distribuídos os benefícios entre as pessoas, entre
os factores produtivos, pelas áreas geográficas, consubstanciados em vários
activos, como a riqueza, o rendimento, o poder, ou outro denominador que se
deseje, etc. A noção de equidade empregada em Economia é tomada da Filosofia
e está associada ao conceito de justiça1.

1 1
Pastor, Santos (1989) Sistema Juridico y Economía. Una Introducción al Analisis Económico del
Derecho. Madrid: Tecnos, pp. 34-35.

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Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Para definir as regras conectadas com o conceito de equidade em Economia pode


mencionar-se que um tratamento para ser justo ou equitativo deve ser igual para
os iguais (igualdade horizontal ou justiça comutativa) e desigual para os desiguais
(igualdade vertical ou justiça distributiva).

A igualdade não se consubstancia no igualitarismo, pois tal ofenderia a identidade


e individualidade de cada ser humano, dadas as diferenças específicas de cada
um, como é claramente exposto por Robert Alexy2:
“Para se chegar a uma vinculação substancial do legislador, é necessário interpretar a fórmula
"o igual deve ser tratado igualmente; o desigual, desigualmente" não como uma exigência
dirigida à forma lógica das normas, mas como uma exigência dirigida ao seu conteúdo, ou seja,
não no sentido de um dever formal, mas de um dever material de igualdade.[…] igualdade - tanto
quanto a desigualdade - entre indivíduos e situações é sempre uma igualdade - ou uma
desigualdade – em relação a determinadas características […]

Como não existem dois indivíduos, ou duas situações, entre os quais não exista tanto uma
igualdade fática parcial quanto uma desigualdade fática parcial, tudo teria que ser tratado ao
mesmo tempo como igual e como desigual, caso a fórmula se relacionasse a uma igualdade - ou
a uma desigualdade - fática parcial em relação a algum aspecto qualquer. […]

Como não existe uma igualdade ou uma desigualdade em relação a todos os aspectos
(igualdade/desigualdade fática universal) entre indivíduos e situações humanas, e visto que uma
igualdade (desigualdade) fática parcial em relação a algum aspecto qualquer não é suficiente
como condição de aplicação da fórmula, então, ela só pode dizer respeito a uma coisa: à
igualdade e à desigualdade valorativa.”[…]

Para se chegar a uma vinculação substancial do legislador, é necessário interpretar a fórmula "o
igual deve ser tratado igualmente; o desigual, desigualmente" não como uma exigência dirigida
à forma lógica das normas, mas como uma exigência dirigida ao seu conteúdo, ou seja, não no
sentido de um dever formal, mas de um dever material de igualdade.”

2 Alexy, Robert (2006). Teoria dos Direitos Fundamentais - Malheiros Editores. Brasil, pp.399-400.

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Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

A análise legal-formal do Direito3, que é o que dominantemente é ensinado nas


escolas de direito, é uma análise útil para a interpretação do direito, sendo uma
função prévia necessária, mas é insuficiente para levar a cabo um estudo científico
do Direito, assim como para o desenho do melhor sistema jurídico de uma
sociedade: a política jurídica 4.

A análise económica do direito consiste, essencialmente, na aplicação da análise


económica, como ciência social, ao sistema jurídico. Esta análise funciona como
um método que pode ser aplicado a um objecto diferente daquele para o qual
tradicionalmente tem vindo a ser aplicado, o “sistema económico” substituindo-o
pelo " sistema jurídico5

A natureza “económica” da abordagem reside, então, no método utilizado e não


no objecto da análise, consubstanciando a teoria da escolha dos seres humanos,
com um sentido mais amplo do que a análise económica tradicional, podendo
englobar não apenas a visão tradicional da teoria económica neoclássica como
também os conhecimentos obtidos, nas últimas décadas, pela economia
comportamental, pela psicologia e, sobretudo, pela neuroeconomia.

A análise económica do direito aplicada ao comportamento das pessoas físicas


(pois apenas estas têm inteligência e vontade) parte de pressupostos que o
criminoso visa maximizar a sua satisfação (utilidade, benefício) e minimização dos
custos (de toda a ordem), tendo em consideração todas os constrangimentos
quanto à informação, risco, incerteza, factores viscerais, contexto ou

3
Pastor, Santos (1984) Una Introducción al Analisis Económico del Derecho – Hacienda Pública Española,
n.º 84, Ministerio de Economia e Hacienda, Instituto de Estudios Fiscales
“Essencialmente, consiste em trabalho interpretativo sobre os elementos e sobre o conteúdo do
próprio sistema jurídico. No caso mais típico, a análise da norma define-a e fixa o seu alcance e
significado de acordo com a interpretação literal, o espírito, as concordâncias, as analogias, a
vontade do legislador, a posição na estrutura hierárquica das fontes, a relação com os precedentes
judiciais ou legislativos, encaixe nos princípios gerais de direito, o contexto social, a análise da
estrutura da própria norma, etc., p. 155.
4 Pastor, Santos (1984) Una Introducción al Analisis Económico del Derecho – Hacienda Pública Española,
n.º 84, Ministerio de Economia e Hacienda, Instituto de Estudios Fiscales, p. 155
5 Idem, p. 154.

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Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

circunstâncias e os custos emergentes dos valores éticos e morais inculcados no


indivíduo ao longo da sua socialização, a formação e conhecimento e crenças o
que constitui a equação pessoal6 de cada pessoa, valores que integram a sanção
esperada global, que será analisada mais adiante.

Por sistema social ou sociedade entende-se o conjunto de seres humanos que se


relacionam entre si (relações de alteridade) e com a natureza, sendo o sistema
jurídico um subsistema do sistema social

De acordo com Santos Pastor7:


“Os elementos estruturais que se podem identificar o sistema jurídico são dados pela definição
que propomos. Há, assim:
a) sujeitos individuais ou colectivos, físicos ou jurídicos;
b) conflitos ou choques de interesses, potenciais ou já existentes;
c) que é o que o Direito trata de organizar ou regular (função de controlo social);
d) mediante normas em sentido amplo;
e) que hão-de ser aplicadas por um conjunto de instituições.”
[…] o sistema jurídico contem dois grandes grupos de elementos:
Um constituem-no as normas substantivas; outro, os instrumentos encarregados de
aplicação daquelas.
Por instrumentos entendemos: a) as ações que as leis estabelecem para o
Caso de as regras não serem cumpridas (por exemplo, sanções); b) agentes e órgãos
"inspectores" encarregados de verificar se ocorreu um conflito e,
nesse caso, transferi-lo para a autoridade competente, os juízes, bem como outros para
garantir o cumprimento das regras ou decisões judiciais (por exemplo, órgãos
administrativos, funcionários prisionais, etc.); c) as regras de procedimento (direito
adjectivo) segundo o qual os conflitos são resolvidos, administrativa ou judicialmente.”

6 Donário, Arlindo; Ricardo Borges dos Santos (2019) Economia com destaque para a microeconomia –
Sílabo, pp. 19-21.
- Donário, Arlindo (2010) Aumento das sanções ou das probabilidades de aplicação da lei? /. Aumento de
las sanciones o de las probabilidades de Aplicación de la ley? – Universidade Autónoma de Lisboa,
p.13.
7
Pastor, Santos (1989) Sistema Juridico y Economía. Una Introducción al Analisis Económico del Derecho.
Madrid: Tecnos, pp. 25-26.

9
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Considerando que o Direito é um valor esperado, o que Santos pastor refere como
“instrumentos” do sistema jurídico, nomeadamente a interpretação e aplicação da
lei pelos tribunais, integra a probabilidade de aplicação da lei que, juntamente com
a sanção prevista na lei forma a sanção esperada que constitui o incentivo que
actua sobre o comportamento dos indivíduos.
Para a compreensão da sociedade, não como o somatório dos indivíduos, mas
como um sistema constituído por pessoas e relações pode também analisar-se o
que foi escrito por Karl Marx8 no prefácio à crítica da economia política.
“O meu primeiro trabalho, empreendido para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi uma
revisão crítica da filosofia hegeliana do direito,[…] A minha investigação desembocava no
resultado de que tanto as relações jurídicas como as formas de Estado não podem ser
compreendidas por si mesmas nem pela chamada evolução geral do espírito humano, mas
baseiam-se, pelo contrário, nas condições materiais de vida cujo conjunto Hegel resume, […] sob
o nome de "sociedade civil", e que a anatomia da sociedade civil precisa de ser procurada na
economia política. […]
O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de fio condutor aos meus estudos,
pode resumir-se assim: na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas
relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem
a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto
dessas relações de produção forma a estrutura económica da sociedade, a base real sobre a qual
se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social.
O modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual
em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser
social é que determina a sua consciência.”

Tanto na definição de sociedade de Santos Pastor como na de Marx se evidencia


que a sociedade não é o somatório dos indivíduos e que as circunstâncias e a sua
evolução diacrónica influenciam o modo como os indivíduos actuam no meio de

8
Marx, Karl (1859) Avant –Propos de la Critique de L’Économie Politique – Oeuvres, Économie I,
Biblioteque de la Peiade, pp. 272-273. Tradução nossa.

10
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

relações de alteridade que, na maioria das vezes, são conflitivas, actual ou


potencialmente, não bastando as normas dos sistemas normativos axiológicos
para determinar o comportamento humano, sendo necessário o Direito com as
suas normas (regras e princípios) potencialmente coercitivas (dizemos
potencialmente porque o Direito é um valor esperado).
As relações são globais, de unidade e interdependência, por isso nos referimos a
“sistema social”, “sistema jurídico” e “sistema económico”, onde todas as partes
e elementos são sobredeterminados, numa relação dialética, muito mais
abrangente e para lá de uma simples relação causal e univocamente determinada.
Como refere Manuel de Andrade9 citando Simoncelli:

““Por unidade de lei entende-se que todas as fontes jurídicas, qualquer que seja o tempo em que

foram emanadas e qualquer que seja a sua multiplicidade, devem considerar-se como um todo
orgânico e harmónico, como a palavra duma única lei, e portanto deve excluir-se nela toda a
possibilidade de contradição.”.

Esta análise aplica-se a todos os participantes da sociedade, sejam, juízes,


advogados, procuradores do ministério público ou quaisquer outros sujeitos
integrantes da sociedade. O que distingue as pessoas umas das outras são os
factores biológicos (nomeadamente hormonais, o que tem sido evidenciado,
sobretudo, pela neuroeconomia, como se analisará mais adiante) e a sua equação
pessoal, com destaque para os valores éticos e morais, que influenciam,
determinantemente, o comportamento dos indivíduos.

A equação pessoal, subjectivamente diferente, influi determinantemente na


aplicação da lei pelos juízes ou na acusação ou não efectuada pelos procuradores
do ministério público e outros intervenientes, com efeitos na eficácia e eficiência
do sistema jurídico e, consequentemente, no bem-estar social.

9 Andrade, Manuel (1963). Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Interpretação e Aplicação das
Leis. Arménio Amado, Editor, Sucessor-Coimbra, p. 98.

11
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

A análise económica do direito visa uma análise sistemática que leve ao melhor
entendimento de como os indivíduos e organizações (através dos indivíduos)
respondem aos comandos contidos no sistema jurídico, a fim de se obter a
realização quer da eficiência quer da equidade, dois valores fundamentais em
qualquer sociedade, como já referido.

No âmbito da análise económica do direito os principais assuntos concernentes


com o custo público10 para reduzir a actividade criminosa centram-se em torno do
montante de recursos que devem ser afectados para combater o crime, dado que
os recursos são escassos e de empregos alternativos, cada escolha implicando
um custo de oportunidade que traduz o valor da melhor escolha sacrificada pela
opção efectuada.

De referir que a análise económica do crime pode ser estendida a outros tipos de
direito sancionadores, seja no que concerne ao direito administrativo seja no que
tange ao direito disciplinar.

O papel da teoria da escolha racional (TER), na análise do crime, é uma teoria


abrangente e bem articulada de tomada de decisão e, portanto, um ponto plausível
a partir do qual iniciar uma análise de como os indivíduos e as organizações
(através dos indivíduos, pois apenas estes têm inteligência e vontade) respondem
aos comandos insertos nas normas jurídicas, princípios e regras, e às sanções e
preços nelas estabelecidas que constituem incentivos. Como os indivíduos
respondem a incentivos, a alteração dos mesmos leva a alterações de
comportamento com diferentes efeitos também no bem-estar social.

Dado que o objectivo final é encontrar a lei mais eficaz e eficiente e uma melhor
descrição da tomada da decisão humana em relação aos comandos da lei, a teoria
da escolha racional será útil apenas na medida em que é uma descrição precisa de
como as pessoas tomam decisões.

10Deve notar-se que o combate à actividade criminosa e os custos suportados para minimizar a mesma a
não se cinge apenas ao Estado, mas também os cidadãos além de utilizarem meios de vária ordem, desde
os utilizados nas casas como nos veículos, a utilização de segurança privada, suportam ainda os custos
do risco de serem assaltados levando-os a desenvolverem comportamentos estratégicos para
aumentarem o custo da actividade criminosa de modo a que esta diminua.

12
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Mas qualquer teoria não é um corpo estável e permanente da explicação da


realidade, dado que o conhecimento é sempre provisório e em constante evolução.
Por vezes os indivíduos sofrem de dissonância cognitiva que traduz um conflito
mental que as pessoas experienciam quanto são postas perante evidências que
mostram que as suas crenças ou pressupostos estão errados, pelo que a
dissonância cognitiva pode ser classificada como uma espécie de sofrimento ou
arrependimento (desutilidade) pelos erros e crenças erradas. Muitas vezes as
pessoas a fim de diminuírem a dissonância cognitiva têm comportamentos que se
consubstanciam em evitar informação ou conhecimento ou desenvolver
argumentos contorcidos para manterem as suas crenças 11.

A inovação jurídica da análise económica do direito iniciou-se ao importar a teoria


convencional da microeconomia quanto à tomada de decisões e evidenciando
como as sanções e preços (existe uma diferença entre a natureza das sanções e a
natureza dos preços) previstos no sistema jurídico podem influenciar os
indivíduos na tomada de decisões, desde que a probabilidade de aplicação da lei
seja superior à probabilidade umbral, a fim de tomar decisões que maximizem o
bem-estar privado e social.

A análise económica do crime e de outras transgressões legais não consideradas


como crime é um estudo sobre a pessoa do agressor e da forma como as suas
decisões podem ser afectadas por incentivos, positivos e negativos, criados pela
sociedade, por meio do sistema jurídico, nomeadamente o subsistema penal 12,
partindo do pressuposto que os indivíduos são racionais, no sentido do termo em
economia, intentando ampliar ao máximo o seu bem-estar dentro das limitações
em que se move; limitações de informação, limitações da capacidade cognitiva,
dissonância cognitiva, limitações da vontade (acrásia), conflitos com outros
valores, etc.

11 Shiller, Robert (1998) Human Behavior and the Efficiency of the Financial System – National Bureau of
Economic Research.
12 Pastor, Santos (1989) Sistema Juridico y Economía. Una Introducción al Analisis Económico del
Derecho. Madrid: Tecnos, p. 169.

13
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Este pressuposto de racionalidade leva os indivíduos a responder de forma


diferente a estímulos ou incentivos insertos na ordem jurídica e influenciados
pelas circunstâncias, podendo esses incentivos ser modificados pela política
criminal.

Deste modo, deduz-se que os indivíduos cometem actos ilícitos porque cometê-
los compensa os custos esperados de os cometerem, pois, os benefícios
esperados que visam obter pela suas comissões são maiores que os custos
esperados. Deverá notar-se que os benefícios e os custos são da mais diversa
índole e natureza, quer sejam monetários ou não.

Devemos ter a consciência que é uma mera ilusão pretender viver numa sociedade
sem a comissão de crimes, dado que qualquer sociedade humana é formada por
indivíduos naturalmente egoístas13, embora os indivíduos tenham também uma
predisposição inata para a solidariedade e generosidade 14, no sentido da obtenção
de bem-estar máximo ou, pelo menos adequado, e que apenas se pode contrariar
essa tendência egoísta pela inculcação de valores éticos e morais que contrariem
essa tendência15 ou por contextos em que existem elevados níveis de confiança16,

13
Dawkins, Richard (2006) The Selfish Gene – Oxford University Press
14
Smith, Adam (1790) The Theory of Moral Sentiments: Chapter one: “Quão egoísta seja o homem, existem
evidentemente alguns princípios na sua natureza, que o interessam pela fortuna dos outros, e tornam a
sua felicidade necessária para ele, embora ele nada retire dela, excepto o prazer de a ver. Deste tipo é
pena ou compaixão, a emoção que sentimos pela miséria dos outros, quando a vemos, ou somos
obrigados a concebê-la de uma forma muito viva.” Tradução nossa.
15Dawkins, Richard (2006) The Selfish Gene – Oxford University Press – Oxford University Press. "If you
wish to build a society in which individuals cooperate generously and unselfishly towards a common
good, you can expect little help from biological nature. Let us try to teach generosity and altruism,
because we are born selfish. Let us understand what our own selfish genes are up to, because we
may then at least have a chance to upset their designs, something that no other species has ever
aspired to do."
Tradução: “Se desejar construir uma sociedade na qual os indivíduos cooperem generosa e
desinteressadamente para um bem comum, poderá esperar pouca ajuda da natureza biológica.
Tentemos ensinar generosidade e altruísmo, porque nascemos egoístas. Compreendamos o que
os nossos próprios genes egoístas tramam, porque assim, pelo menos, poderemos ter a
oportunidade de frustrar os seus intentos, uma coisa que nenhuma outra espécie jamais aspirou
fazer
16
Zak, P.J., A.A. Stanton and S. Ahmadi (2007) Oxytocin increases generosity in humans - PLoS ONE, 2
(11), e1128.

14
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

devendo ter-se em consideração todas circunstâncias 17 em que o indivíduo está


inserto, sendo as desigualdades de riqueza, rendimento e oportunidades factores
determinantes para a existência da violação das leis, nomeadamente para a
entrada na actividade criminosa. E não esquecer que a actividade criminosa é,
muitas vezes, uma actividade altamente lucrativa.

Dado que assim é, e não o que deve ser, a diminuição da taxa de criminalidade
requer a utilização de recursos escassos com aplicações alternativas para a
detenção do crime, implicando, sempre, a existência de um custo de oportunidade,
pelo que, necessariamente, o montante óptimo de crimes será, muito
provavelmente, positivo.

No que concerne à redução do número de crimes a questão social essencial


coloca-se no montante de recursos que deverá ser afectada à redução dos
mesmos e de como estes (recursos) deverão ser divididos entre os diferentes
ramos da justiça criminal tais como a polícia, os tribunais e as prisões e tendo em
conta, sempre, o custo de oportunidade e os benefícios que advêm de uma
diminuição da taxa dos diferentes tipos de crimes ou de outras violações de
normas que não sejam consideradas crimes pelo sistema jurídico.

Em muitos casos podem existir violações de normas que são transgressões


eficientes, contribuindo para aumentar o bem-estar social, quando o benefício
social é superior ao custo social e a prática de transgressões da lei não viole
quaisquer direitos de personalidade, que são transversais e absolutos.
A estrutura da escolha racional, em que assenta a análise económica do direito
com base na teoria neoclássica, desenvolvida, sobretudo, na escola de Chicago,
assenta em três principais pressupostos:
 a hipótese relativa às preferências, que são consideradas estáveis e tidas
como um dado, não importando a sua formação;
 a hipótese de restrição ou constrangimento externos, como os preços e o
rendimento; e

17 Gasset, Ortega y (1914). Meditaciones del Quijote, ““Eu sou eu e as minhas circunstâncias e, se não
as salvo a elas, não me salvo a mim”. (Tradução nossa).

15
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

 a hipótese de maximização da utilidade ou benefício sujeita aos


constrangimentos dos preços e do rendimento
Estas hipóteses servem para formalizar os modelos de comportamento dos
indivíduos que são considerados racionais, sem ter em consideração qualquer
contexto externo, para além dos que são considerados como dados,
nomeadamente as preferências, com semelhanças com os átomos da física
racional de Newton.

Esta teoria assenta numa representação unidimensional da acção humana,


baseada no homo economicus, fundamentada no dualismo cartesiano e no
atomismo da mecânica racional de Newton, afastada do que Adam Smith escreveu,
mesmo no que concerne à metáfora da mão invisível, a qual se baseava na
premissa de indivíduos éticos ligados ao mundo exterior 18, o que não se verifica
com o homo economicus, principal fundamento do modelo económico
neoclássico, dominante na actualidade, nas suas vertentes do monetarismo, das
expectativas racionais e ou da teoria dos ciclos reais de negócios.
No âmbito específico da análise económica do crime, de acordo com Santos
Pastor19, são três os pressupostos básicos sobre o comportamento delitivo, e que
são também aplicáveis a formas não delitivas:
 O castigo (sanção) tem efeitos dissuasórios:
 Delinquir é rendível para quem o faz, numa perspectiva ex-ante: e
 As “condições económicas” são um determinante fundamental da
quantidade de criminalidade existente.

18 Evensky, Jerry. (1993) Ethics and the Invisible Hand – Journal of Economic Perspectives 7(2):197-205.
https://www.jstor.org/stable/2138208?seq=1
19
Pastor, Santos (1989) Sistema Juridico y Economía. Una Introducción al Analisis Económico del
Derecho. Madrid: Tecnos, pp.170-172.

16
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

II

EVOLUÇÃO HISTÓRICA E O MODELO DE BECKER

Foi com Beccaria20, século XVIII, e com Jeremy Bentham 21, século XIX, que se
iniciou a análise de que a escolha da actividade criminosa, por parte dos
indivíduos, obedecia às mesmas decisões de cometer um crime como as decisões
da escolha de outra qualquer actividade. Contudo, foi com Gary Becker 22 (1968)
que, contemporaneamente, se iniciou o aprofundamento a teoria do crime com a
análise económica do direito, como representando a "ressurreição",
modernização" e aperfeiçoamento da análise desses pioneiros.

No seu artigo seminal “Crime and Punishment" Gary Becker23 sugere que esta é
uma teoria útil quanto ao comportamento criminal que pode dispensar as teorias
da anomia, das inadequações psicológicas, ou da herança de traços especiais, e
simplesmente aplicar a análise económica da escolha racional em situações de
incerteza.

No modelo de Becker um acto criminoso é preferido e escolhido se os benefícios


esperados de cometer o crime excedem os custos esperados, incluindo tendo em
conta os custos de oportunidade pelas alternativas legais sacrificadas. Segundo
Becker, a teoria económica do crime é vista como um caso especial da teoria geral
do comportamento racional em situação de incerteza.

20 Beccaria, Cesare (1764) Des délits & des peines - Éditions du Boucher (2002)
21 Bentham, Jeremy (1811) Théorie des peines et des recompenses - ed. E. Dumont, Vol. 1.
22 Becker, G. S. (1968) Crime and Punishment: An Economic Approach - Journal of Political Economy, 74,
2: 169–217.
23 Idem

17
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Refere Becker:

“Algumas pessoas tornam-se “criminosas”, no entanto, não por que as suas


motivações básicas sejam diferentes das de outras pessoas, mas porque os seus
benefícios e custos diferem”24,

o que significa que as pessoas actuam racionalmente a fim de maximizar o seu


bem-estar, tendo em conta os constrangimentos de toda a ordem. De notar que
esta a afirmação de Becker implica que a entrada na actividade criminosa é apenas
uma questão de custos e benefícios, uma questão de preço.

24 Idem: “Some persons become "criminals," therefore, not because their basic motivation differs from that
of other persons, but because their benefits and costs differ”

18
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

III

DA DIFERENÇA ENTRE PREÇOS E SANÇÕES E A SUA IMPORTÂNCIA NA


APLICAÇÃO DO DIREITO NOS CONTRATOS E DA POLÍTICA CRIMINAL

Na maioria dos casos, mesmo na literatura da análise económica do direito, não


se faz a distinção entre preços e sanções ou punições, identificando-se os dois
conceitos. Contudo, existem diferenças substanciais entre os dois. Como refere
Robert Cooter25:

“a jurisprudência tradicionalmente vê a lei como um conjunto de obrigações


apoiado por sanções ou comandos apoiados por ameaças, e economistas
tendem a ver a lei como um conjunto de preços oficiais” (determinados pelo
sistema jurídico),

Uma sanção consubstancia-se num prejuízo imposto a alguém por fazer o que é
proibido. Um preço consubstancia o pagamento por alguém fazer o que é
permitido, o que traduz uma diferença substancial. Os conceitos essenciais para
captar a diferença são: “fazer o que é proibido” e “fazer o que é permitido”. Importa
sublinhar que a interpretação da frase “fazer o que é permitido” não implica, por
exemplo, que as cláusulas de um contrato tenham que ser obrigatoriamente
cumpridas, pois as mesmas podem ser violadas se aumentarem a eficiência,
havendo uma melhoria paretiana, se uma ou as duas partes ficarem numa situação
melhor, sem que nenhuma delas fique prejudicada, o que implica a compensação
pela parte beneficiada pelo não cumprimento do contrato (breach of contract)à
parte prejudicada, tendo essa compensação a natureza de preço e não de sanção.

As violações de normas que implicam compensações por produção de custos


externos ou externalidades negativas têm a natureza de preços. Os custos

25 Cooter, Robert (1984) Prices and Sanctions - Columbia Law Review, Vol. 84, No. 6 (Oct., 1984), pp.
1523-1560 (38 pages) Published By: Columbia Law Review Association, Inc.

19
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

externos podem ser consubstanciados no dano causado por um acidente, nos


custos sociais causados por um poluidor, ou nos danos advenientes do não
cumprimento de um contrato, o que implica, neste último caso, a responsabilidade
civil contratual.

Estes custos externos podem ser minimizados pelo desenvolvimento de um nível


de cuidado adequado, ou seja, por um nível de cuidado óptimo, que levará à
minimização dos custos sociais, gerando eficiência, custos sociais que são a
soma dos custos de cuidado mais os custos esperados externos.
Normalmente as normas jurídicas concernentes quer à responsabilidade civil
aquiliana quer à responsabilidade civil contratual exigem um nível mínimo de
cuidado a desenvolver pelo indivíduo, que é considerado o nível de cuidado
óptimo e que minimiza os custos sociais.
As sanções, no entanto, diferem dos preços de mercado. O preço de mercado
permite actos que deixam à discrição do indivíduo fazer escolhas mesmo violando
algumas cláusulas contratuais.
Em contraste, as sanções legais, sobretudo as sanções criminais, proíbem actos
e comportamentos que envolvem julgamentos sociais, não estando na
discricionariedade dos indivíduos a sua não observação, salvo as excepções 26
previstas na lei ou decorrentes de situações onde estejam em causa colisões entre
princípios.27
Uma sanção está ligada a uma obrigação, está conectada a actos que são
proibidos por lei, enquanto um preço está ligado a uma discricionariedade, a actos
que são permitidos realizar, desde que os custos externos sejam internalizados,
como se verifica na maioria dos contratos, tendo as compensações e
indemnizações a natureza de preço.

26
Alexy, Robert (2006). Teoria dos Direitos Fundamentais - Malheiros Editores. Brasil, p. 92.
27 Idem, p. 93.

20
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

IV

ANÁLISE ECONÓMICA DOS CONTRATOS

4.1) OS CONTRATOS COMO MELHORIA PARETIANA E DOS INCENTIVOS PARA


SE OBTER A EFICIÊNCIA

O objectivo da análise económica dos contratos é a eficiência. É com base na


mesma que os alunos deverão interpretar as normas jurídicas quanto aos
contratos.

Quando o sistema jurídico não contém incentivos adequados para levar as partes
a terem um comportamento eficiente, quer cumprindo o contrato quer pagando as
indemnizações por danos causados por uma parte à outra por incumprimento do
mesmo, de forma a que se verifique uma melhoria paretiana, o sistema jurídico
funciona ineficientemente levando à criação de externalidades negativas que têm
como efeito a diminuição do bem-estar social, afectando, consequentemente, a
equidade e, na maioria das vezes, afectando mais negativamente os que são
economicamente mais débeis e com menos nível de educação, contribuindo para
o acentuar das desigualdades.

Contribui para essa ineficiência o poder monopolístico quer dos monopólios quer,
dos oligopólios que dominam na sociedade portuguesa, implica a diminuição do
excedente do consumidor, podendo levar ao trade-off entre as actividades legais
e ilegais, nomeadamente, a actividade criminosa, e custos decorrentes da
morbidade com implicações directas na produtividade do trabalho e consequentes
efeitos no desenvolvimento económico.

A doutrina tradicional, baseada em concepções individualistas do liberalismo


económico (com excepção dos contratos de trabalho) considera as partes iguais,
mesmo quando sociedades oligopolistas com elevado poder de mercado,
informação assimétrica, portanto dominantes, apresentam contratos a pessoas

21
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

singulares para afastarem a responsabilidade pelos danos causados à outra parte,


gerando ineficiência.

Contudo, em muitos casos, essa igualdade não passa de uma igualdade formal
que de modo algum traduz a equidade horizontal ou justiça comutativa que é
associada às transacções, em especial aos contratos.

De notar a importância de os tribunais portugueses terem começado a aplicar nas


suas sentenças os ensinamentos da análise económica do direito, destacando-se,
como inovador, o Tribunal da Relação de Lisboa, no seu acórdão de 26-04-2017,
quanto a danos provocados a uma pessoa no âmbito da cirurgia estética.

Os contratos podem ser analisados de acordo com a teoria dos jogos com os
seguintes elementos:

 As partes contratantes (jogadores) e eventualmente o juiz (em caso de


incumprimento e desde que uma parte busque a tutela judicial;
 Ações. Todas as diferentes ações que os jogadores podem desenvolver;
 A informação que os diferentes jogadores têm ao longo do processo,
considera-se que sabem as regras do jogo;
 Estratégias. Uma estratégia é uma descrição completa do que um jogador
escolherá em cada situação possível que possa surgir durante o jogo;
 Resultados (payoffs) que se traduzem na utilidade que o jogador obterá,
dado certo resultado do jogo.

Num jogo em que todas as partes envolvidas sabem quem são os “jogadores”, as
estratégias disponíveis e os resultados, mas não sabem as acções específicas que
cada jogador desenvolve, é denominado um jogo com informação imperfeita.

No caso de o contrato ser incumprido e que a tutela judicial seja procurada o


tribunal saberá as estratégias das partes do contrato, atendendo a que seria um
contrato para cuja celebração as partes tinham competência.

22
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Contudo, o tribunal pode verificar que uma das partes (por exemplo uma
sociedade) induziu a outra parte, uma pessoa singular, a celebrar um contrato para
o qual não tinha legitimidade para o celebrar, dado se estar num mercado
oligopolista ou mesmo monopolista (em certas situações no âmbito dos serviços
de saúde) e com informação assimétrica e incompleta, com risco moral, numa
relação principal-agente, o que leva à ineficiência.

Como um contrato visa a eficiência, significando a melhoria da situação para as


duas partes, caso ex-ante as partes estejam numa situação de informação
incompleta e com elevada probabilidade de os resultados pelo cumprimento do
contrato serem danosos (externalidades negativas) para a parte menos informada
(sem que tenha o dever de aumentar a informação) e mais débil, os danos
resultantes do contrato principal serão indemnizáveis ou compensados, mesmo
que uma das partes, o principal, e quando está em causa a obtenção de um
resultado, “neles incluindo precisamente o da cirurgia plástica: são os dos exames
laboratoriais, o da cirurgia plástica em que existe o compromisso de obter um certo
resultado estético no paciente, o dos médicos analistas, radiologistas e
odontologista, todos eles assumindo o encargo de obter um certo resultado, o
caso de transfusão sanguínea em que o médico assegura a não existência de
qualquer risco para o doente e os casos de vasectomia 28” ((Acórdão do Tribunal
da Relação de Lisboa (TRL) de 26-04-2017)).

A questão considerada no acórdão do TRL - que é original em Portugal, tanto


quanto conhecemos - pode ser generalizada. Suponha-se a hipótese que uma
pessoa ferida deitada na rua com grandes dores tem hipóteses de ser tratada por
um médico de cujo tratamento podem surgir danos (externalidades negativas).

O médico insiste como condição prévia para o tratamento que a pessoa ferida
renuncie, por escrito, à responsabilidade civil do médico por qualquer reclamação

28 Nunes, Manuel Rosário (2007) O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos
Médicos - Edições Almedina, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 26-04-2017,
disponível em: www.dgsi.pt.

23
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

por negligência médica resultante do tratamento. Deverão os tribunais impor tal


renúncia?

De acordo com a análise económica do direito, que visa a eficiência dos contratos,
é óbvio que os tribunais deverão desconsiderar a renúncia efectuada pelo doente,
dado que essa renúncia implica, necessariamente, uma diminuição dos incentivos
para a realização de contratos eficientes, tendo o TRL, no acórdão referido,
actuado eficientemente e, com esse modo de aplicação da lei, se essa doutrina for
geralmente seguida pela jurisprudência, está-se a contribuir para comportamentos
eficientes, pela criação de incentivos, aumentando a sanção esperada, com base
no aumento da probabilidade de aplicação da lei que, geralmente, é mais eficaz do
que o aumento da severidade da sanção prevista na lei, sobretudo para os
indivíduos proclives ao risco.

Os danos por confiança - a perda que uma vítima sofre devido à sua confiança no
contrato - pode encorajar violações ineficientes, o que se verifica, muitas vezes,
nas situações de informação assimétrica que pode levar ao risco moral e à
selecção adversa.

O objectivo da celebração de um contrato é a expectativa de melhorar a situação


das duas partes desse negócio jurídico, isto é, a mudança de uma situação ex-ante
(traduzida por uma dada curva de indiferença) para uma situação ex post
(representada por outra curva de indiferença) que corresponde a uma melhoria
paretiana, potencialmente, para as duas partes.

Na área dos contratos a análise económica do direito foca-se, sobretudo, na


melhoria da eficiência económica, através do aumento dos estímulos para que as
cláusulas dos mesmos sejam cumpridas ou possa haver compensação (com a
natureza de preços) caso não sejam cumpridas, através dos tribunais, que a
promessa (em inglês “consideration”), efectuada por uma das partes, que requer
que ambas as partes do contrato tenham que realizar alguma acção que beneficie
a outra parte a fim de que o contrato possa ser executado pelos tribunais, o que
pode ser analisado com a utilização da caixa de Edgeworth.

24
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Contudo, devido à existência de informação assimétrica o seu cumprimento pode


ser defeituoso ou permanecer relativamente limitado, dado que a maioria dos
contratos são incompletos29.

Como a realização dos contratos tem por finalidade a obtenção de benefícios para
as duas partes, “o contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem
acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado
necessário o acordo.” (art.º 232º do Código Civil) e deverá ser pontualmente
cumprido (art.º 406º/1 do CC).

Um dos objectivos da análise económica dos contratos consiste em averiguar


quais os incentivos que induziriam à obtenção de resultados eficientes para os
vários pressupostos de incumprimento do contrato, analisando, nomeadamente, a
opção entre a acção de cumprimento e a de danos, bem como o nível de danos
ressarcíveis que induzam resultados eficientes.

A análise económica do direito evidencia que muitas regras concernentes aos


contratos são eficientes porque induzem a que os recursos sejam usados por
quem os valora mais, tendo em consideração as compensações que poderão
verificar-se se os mesmos não forem cumpridos, o que pode levar a um
comportamento eficiente, por qualquer das partes ter de suportar no seu
património os custos externos (externalidades negativas) que provoque à outra
parte por não cumprimento do contrato.

A teoria da perspectiva veio trazer mais conhecimento quanto à conclusão dos


contratos, relativamente ao efeito de dotação (endowment effect) ligado ao status
quo30 31, que levam a comportamentos que podem não ser eficientes, desviando-
se do que é preconizado pela teoria da escolha racional.

29 George Akerlof (1970) The Market for Lemons: Quality, Uncertainty and The Market Mechanism - 84
Quarterly Journal of Economics, 488 (1970).
30
Russell Korobkin (1998) The Status Quo Bias and Contract Default Rules - 83 Cornell L Rev 608 (1998),
and also Russell
31
Korobkin, Russell (1998) Inertia and Perception in Contract Negotiation: The Psychological Power of
Default Rules and Form Terms - 51 Vand L Rev 1583 (1998)

25
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

O endowment effect sugere que mesmo na ausência de custos de transacção (ou


que os mesmos sejam muito baixos) as pessoas são muito mais relutantes em
transaccionar do que o que é considerado pela teoria da escolha racional e, mais
importante, este efeito (endowment) leva a que os indivíduos tendam a pedir um
valor cerca de duas vezes maior pelo possuem do que o que estariam dispostas a
pagar para adquirir a mesma coisa, pondo em causa o teorema de Coase que já foi
estudado anteriormente.

4.2) DO INCUMPRIMENTO EFICIENTE DOS CONTRATOS. A CAIXA DE


EDGEWORTH. A CURVA DE CONTRATOS EFICIENTES. ÓPTIMO DE
PARETO E MELHORIA PARETIANA

Como no caso da maioria dos contratos, o indivíduo toma em conta os benefícios


e custos marginais para a sua decisão de não cumprir as cláusulas do contrato,
ceteris paribus. No âmbito dos contratos a finalidade de o lesante suportar os
danos esperados no seu património pelo incumprimento do contrato é colocar o
lesado pelo não cumprimento do contrato na posição que teria se o lesante tivesse
cumprido o contrato, para que se verifica uma melhoria Paretiana, e não apenas
uma acção que levasse a melhoria potencial com base na eficiência de Kaldor-
Hicks, o que tende a acontecer com as sentenças dos tribunais quando atribuem
compensações aos lesados pelo incumprimento do contrato.
No caso de não cumprimento do contrato e depois da compensação integral do
lesado, pelos danos esperados, o lesante ainda fica numa posição melhor do que
se cumprisse o contrato verifica-se uma melhoria paretiana, pois o não
cumprimento do contrato melhorou a situação de uma parte sem prejudicar
ninguém. Porém, o excedente em relação aos danos esperados do contrato pode
ser dividido pelas duas partes, o que significa que se verifica uma deslocação das
curvas de indiferença das duas partes, tangenciando-se na curva de contratos,
utilizando a caixa de Edgeworth, como se pode visualizar no seguinte gráfico:

26
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Gráfico n.º 4.2.1


Caixa de Edgeworth-Curva dos contratos

Para analisar a caixa de Edgeworth comecemos pelo ponto G que está dentro da
Lente ou Zona de Contrato (Zona que fica entre as curvas de indiferença A2 e B2).
Este ponto G está para a direita da curva de indiferença B 3, o que significa que
traduziria uma pioraria O’, estando, o mesmo ponto G, para a esquerda da curva
de indiferença A3 o que significa que um contrato naquela situação também
diminuiria a utilidade da parte O.

As curvas de indiferença são convexas em relação às respectivas origens, pelo


que a taxa marginal de substituição para os bens X e Y é decrescente. Para cada
pessoa.

Como os contratos visam melhorar a situação das partes (aumentando a sua


utilidade o que significa a deslocação das curvas de indiferença de O para a direito
e para cima e a deslocação das curvas de indiferença de O’ para baixo e para a

27
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

esquerda), conclui-se que o ponto G não induz à celebração de qualquer contrato,


tendo em conta o pressuposto da racionalidade.
Assim, as partes apenas celebrarão um contrato se, ex-ante, a situação de cada
um melhorar, o que significa a deslocação das curvas de indiferença de cada uma
para uma situação de maior utilidade. (Recorde-se que cada curva de indiferença
representa a utilidade que um sujeito retira da combinação de dois bens, cada
ponto de uma curva de indiferença representando a mesma utilidade).
Neste gráfico a curva CC é a CURVA EFICIENTE DOS CONTRATOS ou CONJUNTO
DE PARETO em que as curvas de indiferença das duas partes se tangenciam no
interior da caixa de Edgeworth, representam pontos ou situações eficientes
formadas por óptimos de Pareto.
Em todas as alocações eficientes de Pareto cada uma das partes do contrato,
nomeadamente, como nos pontos K, R e L, cada parte está na sua mais elevada
curva de indiferença, dadas as curvas de indiferença da outra parte.
A alocação que é eficiente à Pareto (óptimo de Pareto) pode ser descrita como uma
alocação onde:
 Não existe outra forma de fazer com que todas as pessoas envolvidas
possam melhorar; ou
 Não há maneira de melhorar a situação de alguém sem que a situação de
outrem piore;
 Todos os ganhos da transacção foram exauridos; ou
 Não existem mais vantagens mútuas que possam ser realizadas.
Fora dos pontos da curva de contrato as situações são ineficientes, o que significa
que os indivíduos procuram melhorar a sua situação através das transacções
(contratos).
No gráfico, o espaço sombreado entre as curvas de indiferença A2 e B2 representa
a ZONA DE CONTRATO ou LENTE (por ter a forma de uma lente ocular), dentro da
qual o contrato pode ser estabelecido com benefício para as duas partes
contratantes e, assim, poder ser executado pelos tribunais, verificando-se uma
melhoria paretiana.

28
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Como exemplo, suponha-se que A, produtor de melões, prometeu vender 1’000kg


de melões a B, retalhista, por 2 €/kg. Este, B, venderia cada kg de melões a 2,2 €/kg,
obtendo um lucro de 200€ com a venda de todos os melões.
Contudo, A, o produtor, antes de entregar os melões a B (o primeiro retalhista), foi
contactado por um segundo retalhista, C, que lhe ofereceu comprar os 1000kg de
melões a 2,5 €/kg, tendo o produtor vendido todos os 1000kg de melões a C
(segundo retalhista), não cumprindo o contrato com B, e tendo realizado um lucro
extra de 300€ (=1000*2,5€ -1000*2,2€).
Pelo incumprimento do contrato o produtor de melões, A, tem de compensar B, o
primeiro retalhista, pelo potencial lucro que deixou de obter, compensação que
tem a natureza de preço (não de sanção) e ainda ficou numa posição melhor. Deste
modo, verificou-se o que é denominado por incumprimento eficiente, traduzindo
uma melhoria paretiana.
As compensações que a lei prevê pelo não cumprimento dos contratos que sejam
efectuadas constituem incentivos para o seu cumprimento, levando a uma
melhoria paretiana, não podendo o lesado (credor) exigir uma indemnização
superior aos danos (art.º 811º/3 do CC).
Contudo, alguma doutrina32 e alguma jurisprudência33 consideram que a
estipulação de uma cláusula penal, pode ter a natureza indemnizatória e a natureza
de sanção. Neste último caso a cláusula penal funciona mesmo que não existam
danos pelo incumprimento do contrato, constituindo um forte incentivo ao
cumprimento do contrato.
Embora sejam denominadas cláusulas “penais” não têm a natureza criminal pois,
o seu incumprimento nunca pode levar a uma condenação privativa da liberdade
ou o seu equivalente. Apenas e só o lesante (a parte incumpridora do contrato) terá
que responder com o seu património, (art.º 601º do CC) se o lesado buscar a tutela
judicial caso o lesante não realizar a prestação34. Neste caso, da cláusula “penal”
como sanção e desde que o incumpridor não obtivesse nenhum ganho pelo

32 Monteiro, António Pinto (1990) Cláusula penal e indemnização - Coimbra, Livraria Almedina.
33 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-1998: http://www.dgsi.pt.
34 Serra, Vaz (1957) Pena Convencional - BMJ, nº 67, Junho de 1957.

29
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

incumprimento verifica-se uma melhoria potencia (eficiência de Kaldor-Hicks) e


não uma melhoria paretiana.
No caso do incumpridor do contrato obter um ganho com o incumprimento
superior ao montante da cláusula penal, então verifica-se uma melhoria paretiana.
Contudo se o lesado pelo incumprimento do contrato não procurar a tutela judicial,
e desde que o incumpridor do contrato não aceite compensar o lesado pelos danos
advenientes do incumprimento, verificar-se á um incumprimento eficiente tendo
em conta a eficiência de Kaldor-Hicks ou eficiência potencial. Deste modo, embora
o lesado tenha o direito subjectivo (faculdade35) de exigir a compensação ou
indemnização dos danos que sofreu no seu património, a fim de obter a
indemnização tem o ónus de solicitar a tutela judicial.36
Os benefícios obtidos pela realização de um contrato podem não ser
equitativamente distribuídos, dependendo de vários factores, entre os quais o
ponto de referência ou status quo de cada parte, o efeito framing, bem como o que
é designado por preço “âncora”.
O enviesamento de ancoragem (anchoring effect) significa que as pessoas fazem
estimativas, avaliações, a partir de um valor inicial que é sujeito a ajustamentos
antes de se chegar ao acordo final. O valor inicial pode ser dado pela formulação
do problema, framing effect, ou através de um cálculo parcial. Os valores iniciais
levam os indivíduos a fazerem avaliações que tendem a ser enviesadas em relação
ao valor inicial37.

35 Andrade, Manuel (1987) Teoria Geral da Relação Jurídica (Vol.I) – Livraria Almedina. “E assim definir-
se-á o direito subjectivo como a faculdade ou o poder atribuído pela ordem jurídica a uma pessoa
de exigir ou pretender da outra um determinado comportamento positivo (fazer) ou negativo (não
fazer), ou de por um acto da sua vontade com ou sem formalidades, só de per si ou integrado
depois por um acto da autoridade pública (decisão judicial) produzir determinados efeitos jurídicos
que se impõem inevitavelmente a outra pessoa (adversário ou contraparte).”, p. 3.
36 Nos contratos pode ser estabelecido o que é designado por “cláusula penal”, conforme o previsto nos
artigos 810º a 812º do Código Civil.
37 Tversky, A. and D. Kahneman (1982) Judgment under uncertainty: Heuristics and biases, “in D.
Kahneman, P. Slovic, and A. Tversky (eds.), Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases -
Cambridge: Cambridge University Press, 3–20.

30
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

A aversão ao risco por parte dos indivíduos leva a dois efeitos: o Endowment Effect
e ao Status Quo Bias38. O endowment effect significa que a escolha é enviesada
em relação à dotação actual do indivíduo 39 40.

O valor subjectivo de um desvio em relação ao seu ponto de referência ou status


quo atribuído por um indivíduo a uma mudança é geralmente superior quando o
desvio representa uma perda do que quando o mesmo montante é percebido como
um ganho.

Se a transacção, o contrato for subjectivamente percepcionado como uma perda,


o mesmo não se realizará. Mas se o mesmo contrato for apresentado (framing) de
modo a que a outra parte o percepcione como um ganho, relativamente ao seu

Dado que o ponto de referência de cada indivíduo difere subjectivamente, a sua


âncora de referência também é distinta subjectivamente. Normalmente as pessoas
fazem as suas avaliações, nomeadamente, quando querem realizar um contrato,
com base num preço âncora de um bem em relação ao qual fazem as outras
avaliações sucessivas de outros bens. Se preço âncora for baixo, ao decidirem
obter um bem com um preço elevado tendem a ter uma propensão a pagar por
esse bem um preço menor do que se o seu preço âncora fosse mais elevado.

O contexto pode levar as pessoas a mudar a sua escolha baseada no método da


maximização da utilidade, conforme é previsto no modelo neoclássico, para um
método de escolha conduzido emocionalmente, bem como a forma como as
opções são apresentadas, alterando a percepção dos indivíduos, o que leva a
alterações nas escolhas e, por conseguinte, no comportamento, o que é referido
como framing effect.

38 Samuelson, W., and Zeckhauser, R. (1988) Status Quo Bias in Decision Making - Journal of Risk and
Uncertainty 1: 7-59.
39 Kahneman, D., Knetsch, J. L. and Thaler, R. H. (1990) Experimental tests of the endowment effect and
the Coase theorem - Journal of Political Economy, 98 (1990), 1325-48.
40 Kahneman, D., Knetsch, J. L. and Thaler, R. H.(1991) The endowment effect, loss aversion, and status
quo bias - Journal of Economic Perspectives, 5 (1991), 193-206.

31
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Este efeito, no caso das discussões para a realização de um contrato, tem


influência decisiva na conclusão do mesmo ou não, consoante os resultados
forem formulados como ganhos ou como perdas. Quando a presentação é focada
nas perdas existe elevada probabilidade de que o contrato não se realize. Pelo
contrário, se as negociações se basearem nos ganhos esperados a probabilidade
da conclusão dos contratos é elevada41, o que evidencia os efeitos do efeito
framing42, mostrando que o axioma normativo da independência, quanto à
racionalidade, é afastado na maioria dos comportamentos humanos, pondo em
causa o homo economicus, pressuposto que é a base da teoria da escolha
racional.

Um maior nível de confiança permite que os contratos sejam mais


incompletamente elaborados, levando a menores custos de transacção. Pelo
contrário, menor nível de confiança entre as partes de um contrato implica maiores
custos de transacção a fim de se procurarem colocar nas cláusulas dos contratos
maiores especificações de forma a torná-lo menos incompleto para, em caso de
incumprimento por uma das partes, facilitar a decisão jurisdicional no caso de
procura da tutela judicial e a obtenção das indemnizações decorrentes do
incumprimento.

Assim, conclui-se que a confiança é um valor de elevada importância nas relações


de alteridade com efeitos positivos ao nível da eficiência e do bem-estar social,
diminuindo, nomeadamente, os custos de transacção e o risco, aumentando a
percepção da boa fé, como cláusula geral, que é um pressuposto das
negociações43, a que se referem, nomeadamente, os artigos 227º a 239º e 437º a
762º do CC.

41 Bazerman, M. H. 1983 Negotiator judgment - American Behavioral Scientist 27:211–28.


42 Tversky, Amos; Daniel Kahneman (1986) Rational Choice and the Framing of Decisions – The Journal of
Business, Vol. 59, No. 4, Part 2: The Behavioral Foundations of Economic Theory (Oct., 1986), pp. S251-
S278 (28 pages).
43
Pinto; Alberto Mota Pinto (1976) Teoria Geral do Direito Civil - Coimbra Editora.

32
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

DA SANÇAO ESPERADA E OUTROS FACTORES DETERMINANTES DO CRIME

5.1) FACTORES ESTRUTURAIS E CONJUNTURAIS E BIOLÓGICOS

Na maioria dos crimes o criminoso busca rendimento e riqueza, tendo em conta o


valor esperado actualizado dos rendimentos e custos decorrentes da actividade
criminosa, comparando o rendimento esperado líquido dessa actividade com a
opção alternativa de desenvolver uma actividade legal, traduzindo o custo de
oportunidade, consubstanciando-se num trade-off.
A análise económica do crime pode ser usada para examinar o crime, a prevenção
de crime e a eficácia das punições. Esta análise é feita em termos de incentivos
relativamente à entrada na actividade criminosa.
Na ausência de benefícios esperados a serem obtidos com a atividade criminosa
o número de crimes tenderá a diminuir, ceteris paribus, tendo em conta que os
criminosos tendem a obter ganhos líquidos esperados da sua actividade, podendo
reduzir-se essa actividade aumentando os meios que diminuem esses ganhos
esperados e/ou aumentado os custos da actividade criminosa, fazendo com que a
oferta de crimes diminua, o que significa que a curva da oferta se desloca para a
esquerda.
Como já referia Gary Becker, um dos erros cometidos é considerar os potenciais
criminosos como doentes ou irracionais, embora, de facto, alguns caiam dentro
destas categorias, como em qualquer outra profissão.
Com efeito, se considerarmos, erradamente, a maioria dos potenciais criminosos
como doentes ou com elevada acrásia, fora do normal, teríamos menores
probabilidade de desenvolver políticas que forneçam desincentivos para o crime
como medidas preventivas.

33
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Em vez disso, as políticas tenderiam apenas a ser reactivas, concentrando-se nos


esforços para prender e punir o criminoso depois de o crime ter sido cometido,
com efeitos negativos para o bem-estar social.
Muita da análise actual quanto à participação na actividade criminosa é de natureza
reactiva, em vez de dissuasora e preventiva, considerando, como pressupostos
que a maioria dos comportamentos criminosos tende a surgir devido a uma
doença, a circunstâncias sociais, pobreza ou instabilidade mental, embora estes
factores tenham influência quanto à entrada na actividade criminosa.
Sem dúvida que estes factores e circunstâncias influem grandemente na produção
de actividade criminosa, sendo concausas dessa actividade, dado que a actividade
criminosa é o efeito de uma miríade de factores, destacando-se:

 o nível de educação44;
 o género, havendo evidência científica que as mulheres, em média e ceteris
paribus, têm um grau de aversão ao risco maior do que os homens;
 o nível de rendimento, sobretudo o baixo nível salarial 45 e o seu impacto no
número de crimes sobre a propriedade (que não nos crimes violentos),
 a desigualdade da distribuição do rendimento constitui uma das causas da
actividade criminosa, conforme alguns estudos 46 têm evidenciado, tendo-se
verificada que quanto maior o grau de desigualdade na distribuição do
rendimento maior tende a ser a taxa de criminalidade.
 o desemprego47 que pode afectar sobretudo a taxa de crimes sobre a
propriedade, podendo existir simultaneamente uma actividade legal e uma
actividade criminosa, podendo aquela ser um meio de facilitar o
comportamento criminal como o desfalque, a corrupção, ou o furto de bens

44 Lochner, L. and Moretti, E. (2004) “The Effect of Education on Crime: Evidence from Prison Inmates,
Arrests, and Self-reports,” American Economic Review, 94: 155–189.
45 Gould, E.D., Weinberg, B.A. and Mustard, D.B. (2002) Crime Rates and Local Labor Market Opportunities
in the United States, 1979–1997 - Review of Economics and Statistics, 84: 45–61.
46 Kelly, M. (2000) Inequality and Crime - Review of Economics and Statistics, 82: 530–539.
47 Raphael, S. and Winter-Ebmer, R. (2001) Identifying the Effect of Unemployment on Crime - Journal of
Law and Economics, 44: 259–283.

34
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

do local de trabalho, o que evidencia que a relação entre o desemprego e a


actividade criminosa é complexa;
 as oportunidades de emprego estão positivamente relacionadas com uma
maior taxa de criminalidade dos indivíduos com menores níveis de
educação e formação48, para os quais as oportunidades de emprego são
menores e com mais baixos salários, sendo o baixo nível de salários uma
das causas da actividade criminosa, tendo um efeito de longo prazo;
 as oportunidades após a saída da prisão49 50,
 a discriminização baseada em qualquer característica, atributo ou valores,
etc.
Todos estes factores, embora separados, estão todos interconectados de forma
sistémica com profundos efeitos nas decisões dos indivíduos (traduzindo o que é
denominado por confounding factors) nomeadamente, na decisão de praticar
actos criminosos.

48 Gould, E.D., Weinberg, B.A. and Mustard, D.B. (2002) Crime Rates and Local Labor Market Opportunities
in the United States, 1979–1997 - Review of Economics and Statistics, 84: 45–61.
49 Tyler, J.H. and Kling, J.R. (2006) Prison-based Education and Re-entry into the Mainstream Labor
Market- NBER Working Paper 12114.
50 Council of Europe Report, February, 2006: Social Reintegration of Prisoners: “Reintegration presupposes
that detention is organised in a manner which facilitates a return to normal living and working
conditions. This is a long and difficult process and also requires the co-operation of the social,
medical and judicial services if it is to be effective. Returning successfully to a life in the mainstream
society prevents repeat offending.
Throughout the Council of Europe’s member states, prison does not have the desired effects in
terms of successful reintegration and is very often an obstacle to former prisoners’ prospects and
future employment opportunities.”

35
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

5.1.1) EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE CONDENADOS POR GRAU DE ENSINO EM


PORTUGAL E DA IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO

Quanto ao nível de educação pode observar-se o quadro seguinte quanto ao nível


de condenados por nível de educação em Portugal:

Gráfico n.º 5.1.1.1


Condenados por nível de ensino

Condenados por nível de ensino


12 000
10 000
8 000
6 000
4 000
2 000
0
1962
1966
1970
1974
1978
1981
1983
1985
1987
1989
1991
1993
1995
1997
1999
2001
2003
2005
2007
2009
2011
2013
2015
2017
2019
Ensino básico Ensino secundário Ensino superior

Fonte: Pordata. Elaboração própria


O gráfico evidencia a existência potencial de uma relação causal inversa entre o
nível de educação e o crime. Quanto menor é o nível de educação (nível de capital
humano) maior tende a ser a taxa de criminalidade.

Estudos (Lochner e Moretti, 2004)51 efectuados em outros países evidenciam


como um ano a mais do ensino médio (estatisticamente) reduz significativamente
a probabilidade de prisão e encarceramento, reduzindo a taxa de criminalidade, o
que é explicado pela existência de maiores oportunidades de emprego e mais
elevados salários que levam a que o custo de oportunidade (trade-off) de
desenvolver actividades criminosas seja superior em relação aos indivíduos com

51
Lochner, L. and Moretti, E. (2004) “The Effect of Education on Crime: Evidence from Prison Inmates,
Arrests, and Self-reports,” American Economic Review, 94: 155–189.

36
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

mais baixa força de trabalho (menos educação e menos conhecimento) com o


consequente baixo nível salarial.

O custo de oportunidade para o criminoso consiste no benefício líquido esperado


(benefício bruto menos o custo esperado) da atividade legal sacrificada para
cometer o crime. Quanto mais baixo for o nível de rendimento de um indivíduo,
menor é o seu custo de oportunidade por entrar em actividades ilegais.

Esta ligação explica a relação existente entre o nível de capital humano e o nível
de rendimento. Muito provavelmente a relação inversa encontrada, entre o nível de
educação e a taxa de criminalidade é explicada pelas melhores oportunidades de
emprego e salários mais elevados oferecidos a indivíduos com maior nível de
escolaridade, de capital humano ou força de trabalho.

Pode concluir-se, também, que os aumentos nas taxas de escolaridade produzem


não só benefícios privados para os indivíduos, mas desse aumento do nível de
educação emergem, também, externalidades positivas, traduzidas em benefícios
sociais em termos de redução do número de crimes, com a consequente redução
dos custos sociais, para além do aumento do bem-estar social que daí deriva.

Como efeitos na sociedade há ainda que ter em consideração os efeitos positivos


no nível de produtividade do trabalho e as suas consequências para o
desenvolvimento económico e social que tenderá à diminuição do desemprego e
uma tendente elevação dos salários reais.

O emprego e, sobretudo, o aumento dos salários reais elevarão o custo de


oportunidade no trade-off consubstanciado na escolha entre uma actividade legal
e ilegal, tendendo a diminuir, ceteris paribus, a taxa de criminalidade, pelo
desencadeamento dos efeitos rendimento e substituição, sendo, como é
evidenciado, o investimento na educação um meio eficaz não só em elevar a
qualidade de vida dos que estudam, mas também se obterem ganhos para toda a
sociedade. Assim, a política social que se traduz no investimento na educação tem
efeitos abrangentes em toda a sociedade.

37
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Segundo Ehrlich52, os crimes sobre a propriedade dependem, sobretudo, das


“oportunidades fornecidas pelas potenciais vítimas do crime” medidas pelo
rendimento mediano das famílias de uma dada comunidade, ou seja, quanto menor
for o nível de rendimento legal esperado por um indivíduo comparado com o nível
de rendimento das potenciais vítimas, maior será o incentivo para entrar na
actividade criminosa, em especial crimes contra a propriedade.
Deste modo, para um determinado rendimento mediano, a desigualdade de
rendimento pode ser uma indicação da diferença entre as recompensas de
actividades legais e ilegais, podendo essas diferenças induzir a um aumento da
actividade criminosa tanto maior quanto maiores forem as diferenças de
rendimento verificadas na comunidade.
Uma vez que o encarceramento implica a perda de rendimento, os indivíduos com
baixo rendimento actual e potencial têm maiores incentivos para correr o risco de
cometer crimes contra a propriedade, ceteris paribus, pois o custo de
oportunidade é menor se o criminoso for preso, tanto menor será quanto mais
baixo for o seu nível de rendimento e uma maior utilidade se a actividade for bem-
sucedida53, por simples aplicação da lei da utilidade marginal decrescente. Os
incentivos dos indivíduos de baixo rendimento para cometer crimes aumenta
quanto maior for a diferença entre ricos e pobres54, ceteris paribus, para dado
nível de valores éticos e morais.
A análise económica do crime não serve como substituto para os estudos de
criminologia. Dados os factores acima referidos como potenciais causas da
actividade criminosa, programas que identificam e isolam factores que contribuem
a aumentar a actividade criminosa são essenciais na criação de políticas que
podem diminuir o impacto desses fatores.

52 Ehrlich, Isaac (1973) Participation in Illegitimate Activities: A Theoretical and Empirical Investigation -
Journal of Political Economy 81, 3: 521–65.
53 Chiu, W.H.; Paul Madden. (1998) Burglary and Income Inequality.” Journal of Public Economics 69, 1:
123–41
54 Deaton, Angus (2001) Health, Inequality, and Economic Development -Working Paper 8318, National
Bureau of Economic Research, Cambridge, MA.

38
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Os programas sociais que ajudam os desempregados a encontrar trabalho, os


programas sociais traduzidos em subsídios aos que se encontram em certo grau
marginalizados, bem como o apoio a todas as crianças que se encontram em
situações que não permitem o seu desenvolvimento integral, afectando a sua
dignidade, são políticas que não só tendem a diminuir a actividade criminosa como
contribuem para o desenvolvimento e bem-estar social, que deve ser o objecto do
Estado e da sociedade e concretizar a dignidade humana.

5.1.2) EVOLUÇÃO DO NÚMERO DE ARGUIDOS POR SEXO EM PORTUGAL

O número de arguidos (sobre quantos homens ou mulheres recaem fundadas


suspeitas de terem praticado crimes?) em Portugal é 5,7 vezes maior nos homens
do que no que tange às mulheres, para o período considerado de 1960-2018. Os
gráficos seguintes evidenciam essa relação.
Gráfico n.º 5.1.2.1
Arguidos por sexo em Portugal
Período: 1960-2018

ARGUIDOS POR SEXO EM PORTUGAL


140 000
120 000
100 000
80 000
60 000
40 000
20 000
0
1960
1964
1968
1972
1976
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018

Masculino Feminino

Fonte: Pordata. Elaboração própria

39
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Gráfico n.º 5.1.2.2


% de arguidos por sexo
Período: 1960-2018

% de Arguidos em Portugal por sexo


100%
90%
80%
70%
60%
50%
40%
30%
20%
10%
0%
1960
1964
1968
1972
1976
1980
1982
1984
1986
1988
1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
% M/Total % F/Total

Fonte: Pordata. Elaboração própria


Pela análise dos gráficos conclui-se que o género é um factor explicativo
importante quanto ao número de crimes55. Importa saber porquê. Que factores
biológicos e culturais poderão explicar esta disparidade?

A) DOS FACTORES BIOLÓGICOS QUE DIFERENCIAM AS MULHERES DOS


HOMENS QUANTO À TOMADA DE RISCO

Comecemos pelos factores biológicos. Um dos principais elementos biológicos


que diferenciam as mulheres dos homens face ao risco é constituído pelo nível de
testosterona56 e que tem efeitos nas suas decisões e, consequentemente, na maior
ou menor propensão de entrar na actividade criminosa.

55 Sobre as disparidades da justiça por género Ver: Arnaud Philippe (2017) Gender disparities in criminal
justice - Toulouse School of Economics; University of Toulouse Capitole.
56 Mazur, A.; T.A. Lamb (1980) Testosterone, status, and mood in human males -Hormones and Behavior,
14, 236–46.

40
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Os homens têm níveis de testosterona muito superiores ao das mulheres. Dado


que mudanças no nível de testosterona estão associadas com alterações no nível
do risco57 assumido58 e dominância59, sendo definitivamente mais preponderantes
no homem do que na mulher, pelo que, ceteris paribus, a propensão para entrar na
actividade criminosa – que é ma actividade de levado risco - é mais elevada nos
homens, o que é confirmado pela experiência empírica.

Vários estudos sobre a percepção do risco evidenciaram que as mulheres têm uma
percepção do risco maior que os homens, nomeadamente em relação ao crime, ou
outras formas de violação da lei, conforme um dos estudos efectuados por William
Smith e Marie Torstensson60:
“...as mulheres percebem mais o risco [de crime] nas suas próprias áreas onde habitam e,
consequentemente, são mais temerosas em resposta a contextos específicos do que os homens.
O receio das mulheres de contextos específicos pode ser um reflexo da sua vulnerabilidade,
enquanto alguns homens, particularmente aqueles com baixa ou elevada educação, pensam que
são invulneráveis, levando-os a descontar o risco” com maiores taxas de desconto.
Os mesmos resultados foram obtidos no âmbito da circulação rodoviária, quanto
às diferenças biológicas entre os homens e as mulheres, evidenciado, também por
vários estudos empíricos61:

57 Coates, J.M.;J. Herbert (2008) ‘Endogenous steroids and financial risk taking on a London trading floor
-Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, 105 (16),
6167–72.
58 Booth, A., et al (2006) Testosterone and social behavior - Social Forces, 85, 168–91.
59 Mehta, P.H., A.C. Jones; R.A. Josephs (2008) The social endocrinology of dominance: basal testosterone
predicts cortisol changes and behavior following victory and defeat - Journal of Personality and
Social Psychology, 94, 1078–93.
60 Smith, William; Marie Torstensson (1997) Fear of Crime: Gender Differences in Risk Perception and
Neutralizing Fear of Crime: Toward Resolving the Paradox - 37 Brit. J. of Criminol. 608 (1997).
“women perceive more risk [of crime] in their own living areas and are consequently more fearful
in response to specific context than men. Women's fear of specific contexts may be a reflection of
their vulnerability, while some men, particularly those with either low or high educational
achievement, think they are invulnerable, leading them to discount risk.”

61 Donário, Arlindo (2013) Road Accidents, Risk and Biological Factors – UAL, p. 94
Disponível em:
https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/3153/1/BIOLOGICAL%20FACTORES%20AND%20THE%20RO
AD%20ACCIDENTES%20%20-DONARIO-.pdf

41
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

“Quanto maior o nível de testosterona, maior a propensão ao risco, uma vez que os homens são
mais confiantes (Barber, B. M .; Odean, T., 2001)62. Assim, podemos concluir que existem fatores
biológicos que predispõem os homens a serem mais amantes de risco do que as mulheres. Com
efeito, existe uma tendência a um maior risco de condução em relação aos homens do que às
mulheres. (Andersson, Henrik; Petter Lundborg, 2006)63”

B) DOS FACTORES CULTURAIS

Para além dos factores biológicos, distintos entre as mulheres e os homens,


podem destacar-se factores culturais que tendem a acentuar as diferentes taxas
de criminalidades entre os homens e as mulheres.

Cultural e historicamente as mulheres têm vindo a ser socializadas para


desempenharem certas funções, nomeadamente ao nível familiar, de forma
estereotipada, com nível de risco inferior às actividades que foram atribuídas aos
homens.

Normalmente, as mulheres têm sido mais vítimas de crimes sexuais, de rapto, de


violência doméstica, o que naturalmente lhes teria criado um maior sentimento de
vulnerabilidade64 e terá contribuído para acentuar mais o grau de aversão ao risco.

62
Barber, B. M.; Odean, T. (2001) – Boys will be boys: gender, overconfidence, and common stock investment,
Quarterly Journal of Economics, 116, 261–92, pp. 264-266.
63
Andersson, Henrik; Petter Lundborg (2006) – Perception of Own Death Risk An analysis of Road-Traffic and
Overall Mortality Risks – VTI notat 12A-2006, Stockholm, Sweden.
64 Riger, Gordon; M. R. Le Bailly (1978) Women’s Crime: From Blaiming to Restricting the Victim. –

Victimology 3: 274-284.

42
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

5.2) DA DIFERENTE PROPENSÃO AO RISCO ENTRE OS HOMENS DEVIDO A


DIFERNTES NÍVEIS DE BASAL TESTOSTERONA

O nível basal de testosterona65, que é geneticamente determinado66, é um


elemento essencial que diferencia os homens entre si quanto às suas atitudes,
competências para comandar, quanto à tomada de risco e, por conseguinte,
quanto ao seu comportamento, o que pode influenciar a tomada de decisão para
entrar na actividade criminosa, ceteris paribus, dado que o risco é um elemento do
custo a ter em conta na decisão a tomar.

Os homens com elevado nível basal de testosterona quando são colocados em


posições de subordinação (ocupando posições de baixo estatuto) podem sofrer
um declínio cognitivo ou seja, tendem a desempenhar as suas tarefas com menor
eficiência67, dado que estes indivíduos do sexo masculino com elevado nível basal
de testosterona têm tendência a desempenhar posições elevadas nas quais o seu
desempenho tende a ser eficiente e eficaz68, Nos homens com elevado nível basal
de testosterona após perderem o seu estatuto o nível de cortisol (que é a hormona
do stress, sobe, baixando este nível de cortisol quando são colocados a
desempenhar posições de elevado estatuto e independência.

“Entre outros, um estudo realizado por Mehta e Josephs (2010) revelou que a combinação de
níveis de testosterona e níveis de cortisol (não apenas o nível de cada uma destas hormonas)
influenciam o comportamento humano com no que diz respeito a decisões sobre riscos. De

65 Mehta, P.H., A.C. Jones and R.A. Josephs (2008) The social endocrinology of dominance: basal
testosterone predicts cortisol changes and behavior following victory and defeat -Journal of
Personal and Social Psychology, 94 (6), 1078–93.
66 Harris, J.A., P.A. Vernon; D.I. Boomsma (1998) The heritability of testosterone: a study of Dutch
adolescent twins and their parents - Behavioral Genetics, 28 (3), 165–71.
67
Josephs, R.A., J.G. Sellers, M.L. Newman and P.H. Mehta (2006) The mismatch effect: when
testosterone and status are at odds - Journal of Personality and Social Psychology, 90 (6), 999–
1013.
68 Josephs, R. A., Newman, M. L., Brown, R. P., & Beer, J. M. (2003). Status, testosterone, and human
intellectual performance: Stereotype threat as status concern. Psychological Science, 14(2), 158–
163

43
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

acordo com este estudo, o efeito da testosterona em relação à agressividade, dominância e a


manutenção ou procura de um estatuto superior e, portanto, um nível de risco mais elevado
depende do nível de cortisol.”69

Assim, quando os indivíduos estão sob stress, o nível de cortisol é elevado,


bloqueando os efeitos da testosterona, mesmo que os níveis de testosterona
sejam elevados, mas quando estão a desempenhar elevadas posições (em
qualquer organização) desempenham bem as suas funções 70.

Por exemplo, as pessoas com um nível elevado de testosterona basal tendem a


ser mais agressivas e socialmente mais dominantes do que os indivíduos com
baixos níveis de testosterona basal. Contudo, alguns estudos 71 72evidenciaram que
os indivíduos com níveis elevados de testosterona (nomeadamente elevado nível
basal de testosterona) quando desempenhando funções de elevado estatuto
tendem a ser mais propensos a aplicar uma punição mais severa quando
percepcionam uma iniquidade, mas também a serem mais generosos que os
indivíduos com baixos níveis de testosterona.

Ao contrário os homens com baixo nível basal de testosterona tendem a ser mais
avessos ao risco e quando colocados em posições elevadas sofrem de alterações
cognitivas como resultado do stress para o qual, geneticamente, não estão bem
preparados73, elevando-se o nível de colesterol, o que implica que o seu stress
aumenta e baixando o nível de testosterona, além de sofrerem de stress e de
disfunção cognitiva74», sendo mais propensos a terem comportamentos snob
quando ocupam posições elevadas nas organizações.

69 Donário, Arlindo (2013) Road Accidents, Risk and Biological Factors – UAL, p. 46
70 Newman, Matthew L; Jennifer Guinn Sellers; Robert A Josephs (2004) Testosterone, cognition, and
social status - Hormones and Behavior 47(2):205-1.
71 Josephs RA, Mehta PH, Carré JM (2011) Gender and social environment modulate the effects of
testosterone on social behavior: Comment on Eisenegger et al. - Trends Cogn Sci 15(11):509–
510.
72
Güth W, Schmittberger R, Schwarze B (1982) An experimental analysis of ultimatum bargaining - J Econ
Behav Organ 3(4):367–388.

73
Idem.
74
Stanton, Angela (2010). Hormonal influence on male decision-making: implications for organizational
management. In “Neuroeconomics and the Firm”. Edward Elgar, p. 138.

44
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Existem, em geral, dois tipos de stress75 que afectam a performance de uma


empresa, que são denominados por stress Tipo I e stress Tipo II. O stress Tipo I é
caracterizado pela existência de medo crónico é que é desencadeado quando
indivíduos com baixo nível basal de testosterona estão a desempenhar cargos de
elevado estatuto, sofrendo os mesmos de stress crónico e criando stress Tipo I
naqueles que com eles trabalham, levando a uma diminuição de pensamento claro,
tendendo a criar um estado de elevada a morbidade em toda a equipa com efeitos
negativos para o indivíduo e para a empresa76.

Por seu lado, o stress Tipo II está associado com a motivação e elevada energia,
sendo episódico, não sistemático, estando relacionado com a realização de
determinadas tarefas, o que acontece quando se tem dead lines ou se está numa
situação de criatividade e motivação, levando a comportamentos colaborativos 77.

Existe uma diferença entre uma posição e o status de um indivíduo. Quando um


homem com baixo nível basal de testosterona e com um baixo status é colocado
em elevadas posições (em qualquer instituição) o seu desempenho torna-se
stressante para ele e para os outros, atingindo o que é denominado como princípio
de Peter que se traduz no mais elevado nível de incompetência numa organização
hierarquizada78.

No âmbito da actividade criminal os homens com mais elevado nível de


testosterona tendem a ser mais proclives ao risco e, por conseguinte, tendem a
mais facilmente entrar na actividade criminosa, ceteris paribus, dado que para os
indivíduos proclives ao risco o prémio de risco é negativo e, em consequência, no
âmbito da política criminal, o instrumento mais adequado para a prevenção das
actividades ilegais é o aumento da probabilidade de aplicação da lei e não o
aumento da severidade das sanções79.

75
Zak, Paul J.; Amos Nadler (2010). Using brains to create trust: a manager’s toolbox. In Neuroeconomics
and the Firm. Edward Elgar Cheltenham. UK: Northampton, MA, USA. Pp. 69-77.
76
Idem, p. 71
77
Idem, p.71.
78
Peter, L.J.; R. Hull (1969) The Peter Principle - New York: W. Morrow.
79
Avner Bar-Ilan (2000) The Response to Large and Small Penalties in a Natural Experiment - University
of Haifa, Israel.

45
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Desta análise conclui-se que os indivíduos do sexo masculino com elevado nível
basal de testosterona são mais proclives ao risco, tendendo a ser mais agressivos
quando o seu status é ameaçado e, ceteris paribus, são mais propensos a entrar
na actividade criminosa.

Para os indivíduos com elevado nível basal de testosterona, quando em situações


do estado hot, os níveis testosterona aumentam e o nível de cortisol baixa, a
sensibilidade ao castigo é reduzida, o que significa que se manifesta menos medo
em comportamento agressivo, ou seja, a taxa de desconto dos custos esperados
pela comissão de um crime é elevada, podendo levar com maior probabilidade à
entrada na actividade criminosa ou à violação das leis noutros domínios não
criminais (como na circulação rodoviária)80, levando a atitudes de luta (fight)
enquanto que os altos níveis de cortisol libertados em situações stressantes
aumenta a sensibilidade ao castigo, resultando na escolha do comportamento de
fuga81 (flight) às situações, o que está mais ligado com os indivíduos com baixo
nível basal de testosterona.

Os incentivos para agir advêm da previsão quer da punição ou recompensa e


expressam-se (a motivação) pelos comportamentos de enfrentamento ou fuga das
situações. A sensibilidade à punição (sanções) é reduzida quando os níveis de
testosterona aumentam o que implica que a propensão ao risco aumenta, o medo
das sanções diminui, e o comportamento agressivo pode aumentar.

Por seu lado, elevados níveis de cortisol, que estão relacionados com situações
stressantes, aumentam o grau de aversão ao risco e, por conseguinte, aumenta a
sensibilidade à punição, o que leva, consequentemente, a uma menor propensão
a entrar em actividades criminosas ceteris paribus.

Deste modo, em conclusão, quando o rácio testosterona/cortisol é elevado a


propensão ao risco aumenta, levando a prováveis atitudes mais agressivas e

80
Batrinos, Menelaos L. (2012) Testosterone and Aggressive Behavior in Man – International Journal of
Endocrinology Metabolism, 2012 Summer; 10(3): 563–568.
81 Idem.

46
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

comportamentos de mais elevado risco com aplicação de uma taxa de desconto


mais elevada quanto aos custos esperados, como é a actividade criminosa, com
comportamentos de luta. Pelo contrário, quando o rácio testosterona/cortisol é
baixo leva a comportamentos opostos e comportamentos de fuga.

5.3) DA SANÇÃO ESPERADA PARA OS INDIVÍDUOS NEUTRAIS AO RISCO

A sanção esperada para os indivíduos neutrais ao risco é a probabilidade da


punição vezes a magnitude da sanção legal, traduzindo um valor esperado que
pode ser formalizada pela seguinte expressão:

Se = S * p (1)
onde
Se : representa a sancao esperada;
S : é a sanção prevista na lei
p : representa a probabilidade de aplicação da lei

S, a sanção prevista na lei, e p, a probabilidade de aplicação da lei, são, à priori,


dois instrumentos da política criminal, a fim de estabelecer um nível óptimo da
sanção esperada, Se. Se se considerassem apenas os indivíduos neutrais ao risco,
seria indiferente escolher qualquer dos instrumentos da política criminal, S ou P,
devendo escolher-se, por questões de eficiência, o instrumento que minimizasse
o custo social da prevenção, o que levaria a escolher a sanção prevista na lei, S,
em detrimento da probabilidade de aplicação da lei.

Contudo, como analisaremos, há que ter em consideração quer os indivíduos


avessos ao risco quer os indivíduos proclives ao risco, para os quais, quanto aos
efeitos de prevenção, não é indiferente aumentar a severidade das sanções ou a
probabilidade de aplicação da lei.

Existe uma questão essencial na definição da punição esperada e desejada que se


traduz na determinação da severidade da sanção prevista na lei e na probabilidade
de aplicação da lei (grau de certeza). Para qualquer nível de sanção esperada, S e,

47
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

existem muitas combinações de probabilidade e severidade que produzem a


mesma punição esperada.

Uma primeira conclusão será a de que para qualquer nível de sanção esperada
desejada deverá escolher-se a combinação entre a probabilidade e a sanção que
utilize a menor quantidade de recursos.

Tendo em conta que a sanção esperada é determinada pela probabilidade de


aplicação da lei e pela severidade da sanção prevista na lei, (para os indivíduos
neutrais ao risco) a política jurídica eficiente levaria a aumentar a severidade da
sanção e diminuir a probabilidade de aplicação da lei, por ser a que diminui os
custos, ou seja, combinar uma baixa probabilidade com uma elevada severidade
de punição, dado que a probabilidade de aplicação da lei implica a utilização de
maiores recursos que deverão ser afectados ao desenvolvimento dos esforços da
polícia, dos procuradores do ministério público e dos tribunais, implicando um
custo de oportunidade.

Aumentando as sanções previstas na lei e reduzindo a probabilidade da sua


aplicação (detecção e aplicação da lei em sentido estrito), o nível de prevenção
poderia manter‑se fixo, enquanto os custos de detecção são reduzidos.

A probabilidade de aplicação da lei e a sanção (bem como o seu grau de


severidade) deverão ser determinadas de modo a minimizar os custos sociais
derivados de comportamentos ilegais.

Se determinados pressupostos se verificassem, nomeadamente se os indivíduos


fossem neutrais face ao risco, a sanção (sobretudo quando monetária, ou tendo
em conta o seu equivalente monetário para as sanções de natureza não monetária)
deveria ser máxima, limitada superiormente pela riqueza do individuo, e a
probabilidade de aplicação da lei deveria ser mínima, pois desta forma os custos
sociais seriam minimizados, mantendo‑se um determinado nivel da sanção
esperada política e socialmente desejada que e o produto da sanção prevista na

48
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

lei pela probabilidade da sua aplicação, argumento que foi aparentemente


explicitado por Gary Becker82.

5.4) DA SANÇÃO ESPERADA PARA OS INDIVÍDUOS AVESSOS AO RISCO

Para os indivíduos avessos ao risco a sanção esperada será aumentada pelo


prémio de risco em relação à sanção esperada para os indivíduos neutrais ao risco,
sendo dada por:

Se = S * p + π (2)

onde π representa o prémio de risco. O prémio de risco é constituído pelo


montante que o indivíduo está disposto a pagar ou a não receber para afastar o
risco, cuja diferença para o valor esperado constitui o que é denominado por
equivalente certo, que corresponde à probabilidade umbral.

O risco constitui um custo, que se integra no custo marginal aquando da tomada


de qualquer decisão pelos indivíduos avessos ao risco.

Para os indivíduos avessos ao risco, mesmo se o benefício é elevado e a


probabilidade de aplicação da lei é baixa, existe uma penalidade, uma sanção, que
tem efeitos de prevenção83. Como acima foi analisado, os indivíduos do sexo
masculino com um nível basal de testosterona baixo tendem a ser mais avessos
ao risco, pelo que quer um nível de severidade das sanções quer da probabilidade
de aplicação da lei tendem a ser mais eficazes em termos preventivos do que os
necessários quanto aos indivíduos neutrais ao risco e, a fortiori, quanto aos
indivíduos proclives ao risco.

82 Donário, Arlindo (2010) - Aumento das Sanções ou das Probabilidades de Aplicação da lei?” /"Aumento
de las Sanciones o de las Probabilidades de Aplicación de la Ley? - (Publicación bilingue) - EDIUAL
- Universidade Autónoma de Lisboa. Disponível em:
https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/133/1/Aumento%20das%20san%C3%A7%C3%B5es%20ou%2
0das%20probabilidades%20de%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20da%20lei.pdf
83 Avner Bar-Ilan (2000) The Response to Large and Small Penalties in a Natural Experiment - University
of Haifa, Israel. Neste paper é efectuada uma demonstração matemática.

49
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

5.5) DA SANÇÃO ESPERADA PARA OS INDIVÍDUOS PROCLIVES AO RISCO

Para os indivíduos proclives ao risco a sua função utilidade é convexa sendo o


prémio de risco negativo. Para estes indivíduos uma baixa probabilidade de
aplicação da lei e uma sanção elevada leva-os a aumentar as transgressões legais,
nomeadamente, essa combinação de baixas probabilidades com elevadas
sanções tem como efeito o aumento de crimes.

Numa demonstração matemática (que não explicitamos aqui) Avner Bar-Ilan 84


evidenciou que quanto aos indivíduos propensos ao risco, quando a probabilidade
de aplicação da lei é baixa ou quando o benefício é elevado, mesmo uma muito
elevada sanção não tem efeitos preventivos do crime levando os potenciais
criminosos a aumentar a actividade criminosa.

Os indivíduos proclives ao risco tendem a aplicar uma taxa de desconto elevada


aos custos esperados da acção criminosa, o que leva a que o benefício actual
imediato do crime seja superior aos custos esperados actualizados, pelo que para
os indivíduos proclives ao risco o instrumento da política criminal mais eficaz na
redução da criminalidade seja o aumento da probabilidade de aplicação da lei.

84 Idem. “When the probability is low or when the benefit is high, even infinitely high penalty will not prevent
the crime. Equations (4) or (5) show that this case in which no penalty can deter the crime happens
when the probability is below the level.”

50
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

5.6) OS DIREITOS FUNDAMENTAIS, AS REGRAS PROCESSUAIS QUANTO À


OBTENÇÃO DA PROVA E SUA INFLUÊNCIA NA PROBABILIDADE DE
APLICAÇÃO DA LEI

As normas processuais concernentes à validade das provas obtidas influem na


probabilidade da aplicação da lei.

A CRP no art.º 26º, como forma de garantir a defesa dos direitos, liberdades e
garantias que consagra, nomeadamente os direitos de personalidade, que são
absolutos e transversais, como o direito à imagem e à reserva da intimidade da
vida privada, onde se enquadram as conversas telefónicas e vídeos privados,
impõe limites à validade dos meios de prova obtidos sem autorização judicial,
conforme está estabelecido art° 126° Código de Processo Penal ,sob a epígrafe
“Métodos proibidos de prova”, estabelece, no seu n°3: “Ressalvados os casos
previstos na lei, são igualmente nulas as provas obtidas mediante intromissão na
vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o
consentimento do respectivo titular.

No mesmo Código, nos artigos 174° a 177° quanto às revistas e buscas, estatuindo-
se no art.º 174º/3 que as mesmas devem ser autorizadas por despacho pela
autoridade judiciária competente; a apreensão (art°178° a 186°) que deve ser
autorizada por despacho judicial (art.º 178º/3); as escutas telefónicas (187° e seg.)
que devem ser autorizadas por despacho judicial (art.º 187º/1) 85.

85
Acórdão do STJ de 20.12.2006:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/a8170b691d90fe63802572dd0051befb?OpenD
ocument
Acórdão do STJ de 23.02.2002
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/9bf831af4c957ae58025741d005399c3?OpenDo
cument
Acórdão do STJ de 3.07.2007
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0367c3da3af7b47e8025731b002e10ed?OpenD
ocument

51
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Todas estas restrições quanto ao método e forma de obtenção da prova


processual sem o consentimento do indivíduo e/ou sem prévio despacho judicial
autorizando a obtenção das provas, gerando a nulidade das mesmas, tem como
efeito a diminuição da probabilidade de aplicação da lei 86. Estas proibições são
designadas nos Estados Unidos da América por Exclusionary Rule (Regra da
Exclusão) e derivam da 4ª emenda da Constituição dos EUA.

De uma perspectiva racional do crime, dado que a regra da exclusão da prova do


processo obtida ilegalmente torna mais difícil para as polícias a investigação do
crime ou para os procuradores concretizarem a acusação, os criminosos podem
enfrentar uma menor probabilidade de aplicação da lei e, assim, a sanção esperada
tende a diminuir, podendo levar a uma maior taxa de criminalidade, sobretudo dos
crimes no âmbito da corrupção, desfalques e administração danosa.

Contudo, estes efeitos terão que ser contrabalançados com os benefícios


advenientes da protecção dos direitos fundamentais e de personalidade dos
cidadãos que integram a sua dignidade.

86 Atkins; Raymond A.; Paul H. Rubin (2003) Effects of Criminal Procedure on Crime Rates: Mapping Out
the Consequences of the Exclusionary Rule - The Journal of Law and Economics Volume 46,
Number 1April 2003

52
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

VI

UTILIDADE ESPERADA DA COMISSÃO DE UM CRIME TENDO EM CONTA A


RACIONALIDADE DO INDIVÍDUO

Gary Becker considerou que a utilidade esperada E[U] de cometer uma ofensa é
dada pela seguinte expressão:

E[U] = p U(Y − f ) + (1− p)U(Y) (5.1)

onde U (⋅) é a função de utilidade esperada de von Neumann-Morgenstern, onde:

 P: é a probabilidade subjectiva de o indivíduo ser apanhado e condenado,


 Y é o rendimento monetário mais o rendimento psíquico (ou seja, o
equivalente monetário) de uma ofensa; e
 f é o equivalente monetário de uma punição.

O indivíduo cometerá a transgressão (incluindo o crime) se a utilidade esperada


for positiva.

Se o indivíduo for neutral ao risco a anterior equação é transformada na seguinte


expressão:

E[U ] p (Y f ) (1 p )Y Y -pf (5.2)

O indivíduo neutral ao risco não cometerá a transgressão se,

pf= Se<Y (5.3)

isto é, se a sanção esperada (pf) for maior que o rendimento obtido pela
transgressão. O valor exigido da sanção esperada pode ser obtido por várias
combinações da probabilidade e severidade da punição.

53
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

A punição ou sanção esperada pode ser particionada em duas componentes


básicas: a severidade da sanção prevista na lei e o grau de certeza da punição, ou
seja, a probabilidade de aplicação da lei.

Como exemplo, considere-se que o potencial criminoso, actuando racionalmente,


enfrenta a probabilidade de 0,5 de ser detectado e condenado por um crime.
Considere-se também que, como hipótese, a sanção é uma pena monetária de
1’000€. Contudo, o violador da lei não enfrenta apenas uma punição de 1’000€,
mas, como a probabilidade de aplicação da lei é de 0,5, a média é de 500€, o que é
denominado como sanção esperada, ou seja, S e=0,5*1000=500€. Note-se que o
violador da lei nunca é punido com o montante de 500€, A sanção será 1000€ ou
zero. Mas, dado que o direito é um valor esperado a sanção nunca ocorrerá com
certeza pelo que o violador da lei confronta-se apenas com a sanção esperada que
é menor que a sanção prevista na lei. É a sanção esperada que constitui o incentivo
que actua sobre o indivíduo e não a sanção prevista na lei.

54
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

VII

DA PROBABILIDADE UMBRAL E DA PROBABILIDADE EFECTIVA

Ceteris paribus, um indivíduo pratica uma acção (por comissão ou omissão), em


situação de incerteza, se, e apenas se, a utilidade esperada de cometer a acção for
superior a não a cometer, o que pode ser expresso pela seguinte expressão:

P U(X1) + (1-P) U (X2) > U (X0) (6.1)

onde
U (.): representa a função utilidade do indivíduo;

p: representa a probabilidade de sucesso;

(1-p); representa a probabilidade de insucesso;

U (X1); significa a utilidade ou benefício obtido pelo resultado X 1 de sucesso da


acção;

U (X2): representa significa a desutilidade suportada em decorrência do resultado


de insucesso X2; e

U (X0): representa a utilidade de não praticar a acção.

7.1) O TRADE-OFF E A PROBABILIDADE UMBRAL

Este caso geral pode ser aplicado ao trade-off entre o cumprimento da lei e a sua
violação. Na óptica da política social, para avaliar o benefício do transgressor da
lei, existem duas questões fundamentais. A primeiro traduz-se na identificação de
todos os trade-offs relevantes e a segunda relaciona-se com a importância de cada
compensação. Importa sublinhar que qualquer escolha implica um custo de
oportunidade quer individual quer social.

Aplicando a anterior expressão ao trade-off entre cumprir ou não cumprir a lei


podemos observar que se a probabilidade efectiva for inferior à probabilidade

55
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

umbral87, mesmo que a sanção esperada se mantenha, por uma combinação dos
dois instrumentos (diminuição da probabilidade e aumento da sanção legal) o
aumento da sanção legal será ineficaz, sobretudo quando aos indivíduos
propensos ao risco.

Verifica-se que nas expressões (3) a (6) não se encontra a magnitude da punição
prevista na lei, destacando-se, apenas, a probabilidade de aplicação da lei, pelo
que, pelo menos no curto prazo, se pode concluir que será mais eficaz aumentar a
probabilidade de aplicação da lei do que a magnitude da severidade da sanção
legal.

Aumentando a probabilidade de aplicação da lei, de modo a que seja superior à


probabilidade umbral, a inequação (6) inverte o sinal, expressando-se do seguinte
modo:

P U(X1) + (1-P) U (X2) < U (X0) (6.2)

tendendo a levar a que a utilidade esperada de cometer uma infracção da lei se


torne inferior à utilidade de cumprimento da lei, o que, em consequência, diminuirá
o número de transgressões da lei, nomeadamente de crimes.

A probabilidade umbral é a probabilidade que torna o indivíduo indiferente entre


cometer ou não determinada acção (A~B) que, no caso em análise, se traduz em
violar ou não a lei. A sua expressão pode ser dada por:

Pu U(X1) + (1-Pu) U (X2) = U (X0)

onde o sinal de igual traduz a indiferença.

A probabilidade umbral pode ser associada com o equivalente certo para os


indivíduos avessos ao risco, como sendo a situação limite em que a escolha se
coloca entre violar ou não a lei.

87 Sobre a probabilidade umbral ver:


 Donário, Arlindo (2010) - Aumento das Sanções ou das Probabilidades de Aplicação da lei?”
/"Aumento de las Sanciones o de las Probabilidades de Aplicación de la Ley? - (Publicación
bilingue) - EDIUAL - Universidade Autónoma de Lisboa.
 Donário, Arlindo (2010 - ANÁLISE ECONÓMICA DA REGULAÇÃO SOCIAL. - EDIUAL –
Universidade Autónoma de Lisboa, Cap. III, pp. 419-420.

56
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

7.2) O TRADE-OFF, A PROBABILIDADE UMBRAL E A TAXA DE DESCONTO

No âmbito da actividade criminosa os custos legais esperados têm a natureza de


sanção e não de preços, tal como foi analisado, sendo-lhes atribuída, pelo
potencial criminoso, uma taxa de desconto associada à probabilidade de aplicação
da lei, numa relação inversa com a magnitude da probabilidade de aplicação da lei.

Isto é, uma baixa magnitude da probabilidade de aplicação da lei está associada a


uma taxa de desconto elevada quanto aos custos esperados, em especial os que
decorrem da severidade da sanção. Quanto maior a taxa de desconto atribuída aos
custos esperados (nomeadamente quanto à sanção) menor é o valor actualizado
dos custos esperados por essa taxa de desconto. Se essa taxa de desconto for
superior à que está associada à probabilidade umbral, o indivíduo tende a cometer
o crime.

À taxa de desconto correspondente à probabilidade umbral pode denominar-se


como taxa de equilíbrio, significando que qualquer pequena alteração na
probabilidade efectiva de aplicação da lei ou na magnitude da severidade da
sanção legal podem fazer variar a decisão num sentido ou noutro, isto é, um
pequeno aumento na probabilidade de aplicação da lei, ceteris paribus, leva a que
o indivíduo decida não praticar o crime, enquanto que uma pequena diminuição
leva-o a cometer o crime.

De notar que os indivíduos no estado hot (estado em que as emoções predominam


sobre a reflexão) tendem a ser optimistas em excesso com uma maior propensão
ao risco e, por conseguinte, neste estado, atribuem uma taxa de desconto mais
elevada aos custos esperados da comissão do crime, pelo que a propensão em
entrar na actividade criminosa aumenta.

No estado cold existe uma elevada probabilidade de os indivíduos falharem as


suas previsões sob a influência de excitação, ou seja, quando estão no estado

57
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

hot88 89. No estado hot, refere Ariely90, “A prevenção, a protecção, o


conservadorismo e a moralidade desaparecem completamente da tela do radar”

No estado cold os indivíduos pensam que se conhecem bem a si próprios, que


compreendem as suas preferências e que sabem quais as acções de que serão
capazes ao estarem no estado hot. Contudo, quando de facto estão no estado hot
subestimam completamente as suas reacções que são diferentes das que
pensavam ser quando estavam no estado cold 91.

Como os estados psicológicos e emocionais dos indivíduos variam entre os polos,


cold e hot, as pessoas descontam o futuro a taxas de desconto diferentes
consoante o seu estado, pelo que as suas preferências podem variar entre esses
estados (que podem ser traduzidos por um mapa de curvas de indiferença).

Em situação de incerteza, como é a actividade criminosa, a taxa de desconto varia


com o nível de excitação (arousal – estado mais ou menos hot). Sempre que o
humor flutua, em função do estado de excitação, a taxa de desconto varia também
e, por conseguinte, as preferências. De notar aqui a importância do contexto como
factor determinante da alteração do estado de humor e excitação e, por
conseguinte, a variação do ímpeto para a decisão de cometer ou não o crime.

88 Loewenstein, George (2005) – Hot-Cold Empathy Gaps and Medical Decision Making. Health
Psychology, vol. 24, nº 4 (Suppl.): S49-S56.
89 Ariely, Dan (2010). Predictably irrational – HarperCollins, Chapter 5.

90 Idem, “Prevention, protection, conservatism, and morality disappeared completely from the radar screen.
They were simply unable to predict the degree to which passion would change them.”, p. 97.
91 Idem.

58
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

VIII

DA SANÇÃO GOBAL INTEGRANDO AS SANÇÕES INTERNAS DERIVADAS DOS


SISTEMAS AXIOLÓGICOS

8.1) O MODELO DAS ESCOLHAS RACIONAIS E O HOMO ECONOMICUS

O modelo neoclássico, nomeadamente no que concerne à teoria do crime, é um


modelo que tem apenas uma representação unidimensional do comportamento
humano, baseado apenas na racionalidade, um modelo reducionista que abstrai
da dimensão ética e de outros elementos que não são transaccionáveis nem
contratualizáveis, que integram a dimensão não materialista do ser humano, bem
como não tem em conta as dimensões ligadas com o sistema automático.

Este modelo tem por base o homo economicus (que é uma ficção) sobrestimando
o poder da razão, considerando apenas o sistema reflexivo ou sistema II e
olvidando as emoções, os sentimentos (emoções consciencializadas 92), as
paixões, que estão relacionados com o sistema automático ou sistema I, e
desprezando também a dimensão ética que está relacionada com o sistema
reflexivo ou sistema II.

O modelo neoclássico com base no homo economicus, embora formalmente seja


uma teoria compreensiva, coerente e consistente – baseada nos seus
pressupostos – é uma teoria incompleta ao afirmar que os indivíduos tomam as
suas decisões como racionais maximizadores dos resultados, com a utilidade
esperada como a satisfação, a utilidade que se espera obter pelo consumo ou
posse de quaisquer bens e serviços, desconsidera as emoções e sentimentos e os
factores viscerais que podem ameaçar “a regra ordeira de lei, pois trazem consigo
a irracionalidade dos impulsos primitivos e a indeterminação de estados

92 Damásio, António (2007) Looking for Spinoza. Joy, Sorrow, and the Feeling Brain - William
Heinemann: London, p. 31.

59
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

subjectivos.”93, ou seja, os estados que em certas situações dominam a


racionalidade e que é necessário compreender para o desenvolvimento de
políticas criminais adequadas à prevenção.

Além disso, a economia dominante observa os resultados das decisões


económicas dos indivíduos, mas não observa o processo actual do cérebro
humano e nem leva em consideração as emoções e sentimentos desencadeados
pela produção de várias hormonas com influência directa nos comportamentos
humanos, dado que as emoções fazem-nos sentir vivos e podem-nos fazer
melhores cidadãos, enquanto outras emoções nos mantêm vivos e levam-nos a
defendermo-nos a nós próprios e aos outros 94.
A teoria dominante, neoclássica, afirma que não se pode conhecer nem
interpessoalmente comparar as preferências actuais, mas apenas observar as
“preferências reveladas,”95 que têm sido muito utilizada na teoria neoclássica,
pelo que os resultados são tudo o que importa, ou como referia Paul Samuelson 96:
“Toda a teoria de comportamento do consumidor pode, portanto, ser baseada em
fundações operacionalmente significativas em termos de preferência revelada”,

o que foi criticado por Amartya Sen 97, entre outros. A teoria da preferência revelada
iguala as preferências não observáveis com as escolhas observáveis efectuadas
pelos indivíduos.

93 Finkel, Norman J.; W. Gerrod Parrott (2006) Emotions and Culpability. How the Law is at Odds with
Psychology, Jurors and Itself – American Psychology Association, Washington, DC., p. 48.
Tradução nossa.
94 Parrott, W. G. (2002) The functional utility of negative emotions, In “L. F. Barrett & P. Salovey (Eds.),
The wisdom in feeling: Psychological processes in emotional intel - Jigence (pp. 341-359). New
York: Guilford Press.

95 Samuelson, Paul (1938). A note on the pure theory of consumer behavior - Economica 1, 61 – 71. “if a
consumer making a choice between an apple and an orange selects an apple, he reveals a
preference for apples.”
96 Samuelson, Paul (1948) Consumption Theory in Terms of Revealed Preference – Economica New
Series, Vol. 15, No. 60 (Nov., 1948), pp. 243-253, “The whole theory of consumer’s behavior can
thus be based upon operationally meaningful foundations in terms of revealed preference”, p.251.
97 Amartya Sen (1973) Behaviour and the Concept of Preference “- Economica, New Series, Vol. 40, No.
159. (Aug., 1973), pp. 241-259. Ver a crítica que Sen fez à teoria da preferência revelada, utilizando
o o dilema dos prisioneiros.

60
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Com efeito, a teoria económica neoclássica trata o cérebro humano como uma
caixa negra98, como não se podendo saber quais os processos que se estabelecem
no cérebro humano nas diferentes situações e estados do indivíduo, o que
hodiernamente já se pode conhecer, o que pode permitir o estabelecimento de
políticas que tendam a diminuir a propensão para a entrada na actividade
criminosa, pelo efeito substituição desencadeado pela aplicação dessas políticas.

Na teoria neoclássica a análise das decisões é efectuada com base nos resultados
das mesmas, a partir das quais são efectuadas inferências acerca das intenções
dos indivíduos, esquecendo as contribuições actuais do conhecimento científico
em outras áreas, como na neurociência.

8.2) O PROCESSO DAS ESCOLHAS EM FUNÇÃO DA SATISFAÇÃO DADA PELO


NÍVEL DE DOPAMINA (NEUROECONOMIA)

De acordo com os conhecimentos científicos da neurociência este modelo é, em


grande parte, incorrecto, de acordo com estudos efectuados, nomeadamente por
Donald Wargo, Norman Baglini e Katherine Nelson 99. Segundo os resultados
científicos obtidos por estes autores:
“Os reais humanos fazem as decisões maximizando internamente a dopamina e
outras hormonas que os fazem sentir bem, em vez de maximizarem o resultado.
Os reais humanos estão focados (seja conscientemente ou inconscientemente)
no processo do cérebro, e não no resultado por si.”

Estas descobertas científicas evidenciam que tanto ou mais que os resultados é o


processo que desencadeia a produção de hormonas que faz o indivíduo sentir-se
bem. Esta nova visão constitui mais um elemento que põe em causa muitos dos

http://mikael.cozic.free.fr/philoESS-1011/sen73-
behaviour%20and%20the%20concept%20of%20preference.pdf
98 Wargo Donald et al (2010) Dopamine, expected utility and decision-making in the firm, in
“Neuroeconomics and the Firm. “
99 Idem, “Real humans make decisions by internally maximizing dopamine and other hormones that make
them feel good, rather than maximizing the outcome. Real humans are focused (either
unconsciously or consciously) on the process in the brain, rather than the outcome by itself.”

61
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

axiomas da teoria neoclássica, o que deverá ser tido em consideração para o


desenvolvimento das políticas criminais, nomeadamente a concretização de
programas ocupacionais para os jovens que lhes despertem o interesse.

O homo economicus é um ente mecanicista e distorcido do ser humano, que actua


apenas em função de estímulos externos, uma criação ficcionada, racional, frio,
calculista, egoísta, representa um caso patológico100 e não uma abstracção do
comportamento de um ser humano normal e saudável.
Os postulados ou axiomas normativos que fundamentam este modelo neoclássico
têm vindo a ser postos em causa por vários ramos do conhecimento científico,
nomeadamente pela psicologia (Kahneman e Tversky) e pela neurociência que,
aplicada à economia, tomou o nome de neuroeconomia. De entre esses axiomas
destacam-se os seguintes:
 a racionalidade entendida de forma restrita;
 a maximização da utilidade apenas com os constrangimentos do rendimento
e dos preços; e
 preferências estáveis, totalmente formadas e independentes da alteridade,
como similares aos átomos da mecânica racional de Newton, afastando a
influência da subjectividade e intersubjectividade;

A concepção atomística do indivíduo (homo economicus) na sociedade com


características fixas independentemente das suas relações de alteridade, com as
suas preferências determinadas exogenamente e estáveis, afasta a
intersubjectividade e os seus efeitos nas decisões dos seres humanos.

Quanto às preferências, segundo a Teoria da Perspectiva (Prospect Theory), os


indivíduos tendem a desprezar as componentes que as várias opções
compartilham e a focar-se nas componentes que as distinguem, o que leva à

100 Damásio, António (1994) Descartes’ Error. Emotion, Reason and the Human Brain -
Putnam:
“Unwittingly, Gage’s example indicated that something in the brain was concerned
specifically with unique human properties, among them the ability to anticipate the future
and to plan accordingly within a complex social environment; the sense of responsibility
towards the self and others; and the ability to orchestrate one’s survival deliberately, at
the command of one’s free will”. p. 10
62
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

inconsistência das preferências, dado que as opções (os prospectos) podem ser
decompostas e ou apresentadas em mais do que forma, o que se traduz no efeito
isolamento, isto é, perante várias opções os indivíduos focam a sua atençaõ nas
diferenças.

A visão do modelo neoclássico da participação criminosa considera que todos


somos criminosos potenciais, dependendo a entrada na actividade criminosa do
nível de benefício líquido esperado, uma questão de preço,

As sanções legais são frequentemente vistas como o preço por fazer o que é
proibido, mas já analisámos acima a diferença entre a natureza de preço e a
natureza de sanção, o que é aplicado não apenas no âmbito criminal como no
âmbito dos contratos.

Não obstante, a sanção esperada fundamentando-se no produto da sanção legal


pela probabilidade de aplicação da lei, para a maioria dos indivíduos o seu
comportamento não se pauta pelo receio da aplicação da sanção jurídica, mas sim
pelos valores éticos e morais, que não se podem reduzir a um preço – dado que a
natureza de preço e a natureza de sanção são ontologicamente diferentes, como
foi anteriormente analisado - não sendo o crime para a esmagadora maioria dos
seres humanos uma actividade normal cuja opção teria apenas em conta (na visão
da teoria da escolha racional) os preços e o rendimento obtido, considerando o
custo de oportunidade da melhor actividade legal.

Para o efeito, importa considerar o que Aristóteles escreveu na Ética a Nicómaco;


“Toda arte e toda investigação, e da mesma forma todas as acções e escolhas
são pensadas para visar a algum bem; e por esta razão o bem foi correctamente declarado ser
aquele para o qual todas as coisas visam. (1094a1-3).”
sendo esse bem a eudaimonia, a felicidade, que é o bem mais elevado, é aquele
que é desejado por si mesmo, e para o qual todos os outros bens são
subordinados, sendo, por conseguinte, um bem dominante.
O comportamento humano real é complexo e rico, sendo frequentemente guiado
ou afectado por considerações éticas, morais e outras considerações não

63
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

económicas, que não têm um preço nem equivalente, conforme referido por
Kant101:
“No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Uma coisa que tem um preço pode ser
substituída por qualquer outra coisa equivalente; pelo contrário, o que está acima de todo preço
e, por conseguinte, o que não admite equivalente, é o que tem uma dignidade."
Muita da incompletude do modelo neoclássico reside em não contemplar os
elementos dos sistemas axiológicos que entram e determinam as acções
humanas.
Como já referimos, o modelo neoclássico trata as preferências como estáveis e
uniformes, não explicando a sua formação. As alterações do comportamento
humano devem-se muito às alterações das preferências e não apenas às
alterações das restrições externas, como os preços e o rendimento como é
considerado, quase exclusivamente, pela teoria neoclássica da escolha racional.
Como escreve Robert Cooter102;
“Os virtuosos preferem o bem, os vilões preferem o mal, e os atores racionais da economia
preferem a si próprios. Ao invés de obedecer ou desobedecer à lei por si mesma, o actor racional
em economia trata o direito como um obstáculo ou um instrumento, não como um valor. O
sucesso da análise económica do direito prova a fecundidade desta estratégia de pesquisa.”

101 Kant – Groundwork for the Metaphysics of Morals - Yale University Press (2002):” In the realm of ends
everything has either a price or a dignity. What has a price is such that something else can also be
put in its place as its equivalent; by contrast, that which is elevated above all price, and admits of
no equivalent, has a dignity.”, p.52.
102 Cooter, Robert (1998) Models of Morality in Law and Economics: Self-Control and Self-Improvement for
the "Bad Man" of Holmes - Boston University law review. Boston University. School of
Law 78(1134)
“The virtuous prefer good, villains prefer bad, and rational actors in economics prefer themselves.
Instead of obeying or disobeying the law for its own sake, the rational actor in economics treats law
as an obstacle or an instrument, not a value. The success of the economic analysis of law proves
the fruitfulness of this research strategy.”

64
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Podemos sumarizar a sanção esperada global na seguinte expressão:

Seg = SL P + Smx + Smi (7.1)

onde
Seg : representa a sanção esperada global;
SL: representa a sanção prevista na lei;
P: é a probabilidade de aplicação da lei;
Smx: representa a sanção social externa; e
Smi: representa a sanção interna que se traduz na culpa pela violação de normas
éticas e morais.
Quanto à sanção social externa (não jurídica) refere António Damásio 103:
“Todavia, a dor e a vergonha social é comparável à de um cancro terminal, a traição pode ser tão
dolorosa como uma ferida aberta, e os prazeres resultantes da admiração social, quer queiramos
quer não, podem revelar-se orgásticos.”
Para muitas pessoas a sanção interna pode tender para infinito, o que leva a que
essas pessoas tenderão a nunca entrar na actividade criminosa, dado que há
valores inculcados em muitas pessoas humanas que não têm preço nem
equivalente.
Convém referir que muitas vezes as normas legais positivas consideram crime o
que em termos de dignidade humana não pode assim ser considerado, por estarem
em causa valores sem preço nem equivalente.
Já John Locke104 considerava que as leis injustas deveriam ser desobedecidas:
“Assim, a lei da natureza permanece como um governo eterno para todos os homens,
legisladores e outros. As regras que eles fazem as ações de outros homens, devem, bem como
as suas próprias e as ações de outros homens, sejam conformes à lei da natureza, i. e., da vontade

103
Damásio, António (2020) Sentir & Saber – Temas e Debates, Círculo de Leitores, p.156.
104 Locke, John (1690) Second Treatise of Government - Hackett Publishing Company, Inc.
“Thus the law of nature stands as an eternal rule to all men, legislators as well as others. The rules
that they make for other men's actions, must, as well as their own and other men's actions, be
conformable to the law of nature, i. e. to the will of God, of which that is a declaration, and the
fundamental law of nature being the preservation of mankind, no human sanction can be good, or
valid against it.”, p. 71.

65
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

de Deus, da qual esta é uma declaração, e a lei fundamental da natureza sendo a preservação da
humanidade, sem sanção humana pode ser bom ou válido contra ele. "
Quando estão em causa direitos fundamentais e de personalidade intrinsecamente
conectados com a dignidade humana, nomeadamente a vida humana, é legítimo
desobedecer às normas positivas para preservar o bem supremo que é a vida, sem
que tal acção possa ser considerada crime.
Uma visão redutora do Direito ao positivismo105 jurídico tem levado a humanidade,
várias vezes na história, à aplicação de normas que ofendem profundamente a
dignidade humana, com a perpetração de genocídios, como se verificou com o
regime nazi na Alemanha, no Camboja (1975-79), na Bósnia (1992-95) e no Ruanda
(1994)106.
Quando está em causa a vida do ser humano e a sua manutenção, é importante
citar o que escreveu Tomás de Aquino 107:
“Não obstante, se a necessidade é tão manifesta e urgente, é evidente que a necessidade
presente deve ser remediada por quaisquer meios que estejam à mão (por exemplo, quando uma
pessoa está em perigo iminente, e não há outro remédio possível), então é legal para um homem
saciar a sua própria necessidade através dos meios da propriedade dos outros, tomando-os de
forma aberta ou secretamente: e falando abertamente tal apropriação não pode ser considerada
furto ou roubo.”

Esta frase de Tomás de Aquino explicita de forma evidente que há que ter em conta
as circunstâncias e os valores (que não têm preço nem equivalente, pelo que têm
dignidade, em causa para se considerar uma acção que segundo a previsão geral
e abstracta da lei é considerada crime, mas que a defesa dos valores supremos
impõe que a mesma seja violada sem que deva ser considerada crime.

Nos casos referidos por Locke e Tomás de Aquino verificam-se as máximas da


adequação e da necessidade, como postulados do princípio de proporcionalidade

105 Kelsen, Hans (1960) Pure Theory of Law – The lawBook Exchange,
“It is called a "pure" theory of law, because it only describes the Law and attempts to eliminate from
the object of this description everything that is not strictly law: Its aim is to free the science of Law
from alien elements. This is the methodological basis of the theory.”, p.11.
106 Perry, Michael J. (2008) Human Rights as Morality, Human Rights as Law - University of San Diego
Law School.
107 Aquino, Tomás (1265-1273) Summa Theologica. Ia–IIae Q.66 A.7 Corpus

66
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

em sentido lato, expressando a exigência - contida na definição de princípio - de


uma máxima realização em relação às possibilidades fáticas 108.

Como exemplos, a proibição abstracta das normas quanto ao furto (art.º 208º do
Código Penal) e quanto ao roubo (art.º 210º do Código Penal) é afastada, no que
tange à sanção penal, pois a protecção do direito da propriedade alheia prevista
no art.º 62º da CRP cede perante direitos fundamentais e de personalidade, dado
que essa proibição não expressa a máxima adequação em face de direitos
fundamentais como a vida, art.º 24º da CRP, ou direitos de integridade pessoal,
art.º 25º da CRP, para a realização da dignidade humana (que não tem preço nem
equivalente), art.º 1º da CRP.
Por essa razão, a proibição de furto ou roubo, prevista nos artigos referidos do
Código Penal, não é adequada em face das circunstâncias, onde existe a
necessidade da sua violação e violaria o direito fundamental à vida e à integridade
física e moral de uma pessoa.
Esta argumentação é a ideia de optimização que expressa uma melhoria paretiana,
se posteriormente os prejuízos puderem ser indemnizados pelo beneficiário ou por
terceiros, ou consubstanciar-se-á na eficiência potencial ou de Kaldor-Hicks se os
prejuízos do detentor do direito de propriedade não poderem ou não forem
compensados.

Ver: Alexy, Robert (2006). Teoria dos Direitos Fundamentais - - Malheiros Editores. Brasil, pp.588-
108

590.

67
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

IX

O CONTEXTO E A SUA INFLUÊNCIA NAS DECISÕES DOS INDIVIDUOS E O


SISTEMA I OU SISTEMA AUTOMÁTICO E O SISTEMA II OU SISTEMA REFEXIVO

Importa sublinhar a importância do contexto 109, das circunstâncias, nas decisões


dos indivíduos e suas consequências. O contexto é formado por factores que têm
o potencial de alterar o resultado das escolhas ao modificar o processo pelo qual
a decisão é efectuada110 com influência na variação da produção de hormonas que,
por sua vez, alteram o comportamento dos indivíduos, processo que está ligado
ao sistema I ou sistema automático.

Em contextos onde não existe confiança entre as pessoas da comunidade, a


desconfiança leva a um aumento do nível de testosterona implicando a elevação
do nível de agressividade.
As decisões humanas são fortemente influenciadas pelos factores viscerais,
contrariamente ao que é representado pelo homo economicus, de acordo com
George Loewenstein111:
“…os factores viscerais são mais básicos para o funcionamento diário do que o mais elevado
processo cognitivo que muitas vezes é assumido para fundamentar a decisão da escolha.”

De entre os factores viscerais destacam-se as hormonas e as suas variações


ligadas ao sistema I, muito influenciadas pelo contexto. Muitas hormonas são
essenciais para a vida quotidiana como, por exemplo, a dopamina, a ocitocina, a

109
Donário, Arlindo (2013) Road Accidents, Risk and Biological Factors – UAL, pp. 41-49; 69-84; 92-94.
Disponível em:
https://repositorio.ual.pt/bitstream/11144/3153/1/BIOLOGICAL%20FACTORES%20AND%20THE%20RO
AD%20ACCIDENTES%20%20-DONARIO-.pdf

110 Thomadsen, Raphael (2017) How Context Affects Choice - Springer Science+Business Media.
111 Loewenstein, George (2000) – Emotions in Economic Theory and Economic Behavior. American
Economic Review: Papers and Proceedings, vol. 90, nº 2: 426-432.

68
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

testosterona e o cortisol que são naturalmente libertadas no cérebro em níveis que


mudam continuamente em resposta às mudanças no contexto112.

Estudos113 no âmbito da neuroeconomia têm evidenciado que o contexto


(environment) leva a variações no nível da hormona denominada oxitocina que tem
efeitos no nível de confiança114 nas relações de alteridade, cuja libertação não é
controlada conscientemente, mas responde ao contexto em que nos encontramos,
desenvolvendo o sentimento de confiança nos outros, afectando e alterando o
comportamento dos indivíduos.

Ambientes que tendam a aumentar a oxitocina levam ao desenvolvimento de


sentimentos de confiança e, consequentemente, induzem comportamentos
diferentes, alterando as preferências, as quais mudam com a aquisição do auto-
controlo115, ligado ao sistema reflexivo ou sistema II, relacionado com a maturação
do córtex pré-frontal116, e que a inculcação de valores éticos e morais ajuda a
desenvolver.

Vários estudos117 118 empíricos evidenciaram que existe uma relação inversa entre
o número de crimes e o nível de salário, em termos relativos, com efeitos,
sobretudo, nos crimes sobre a propriedade119. O desemprego é outro dos factores

112 Audretsch, David B. (2010) Foreword, in “Neuroeconomics and the Firm” - Edward Elgar, p. xxi.
113 Kosfeld, M., M. Heinrichs; P.J. Zak; U. Fischbacher; E. Fehr (2005) Oxytocin increases trust in humans
- Nature, 435 (2), 673–76.
114 Zak, P.J.; A.A. Stanton; S. Ahmadi (2007) Oxytocin increases generosity in humans - PLoS ONE, 2
(11), e1128.
115 Cooter, Robert (1998) Models of morality in law and economics: self-control and self-improvements for
the "bad man" of Holmes - Boston University law review. Boston University. School of
Law 78(1134).
116 Giedd. J. N. (2004). Structural magnetic resonance imaging of the adolescent brain - Annals of the New
York Academy of Sciences, 1021, pp. 77-85.
117 Machin, Stephen & Costas Meghir (2004) Crime and Economic Incentives - 39 Journal of Human
Resources 958 (2004).
118 Zak, P.J., R. Kurzban; W.T. Matzner (2004) The neurobiology of trust - Annals of the New York Academy
of Sciences, 1032, 224–7.
119 Kelly, M. (2000) Inequality and Crime - Review of Economics and Statistics, 82: 530–539.

69
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

determinantes da taxa de criminalidade, conforme evidenciado por vários


estudos120 121empíricos, bem como a dilação judicial. 122 123 124

Podem enumerar-se três proposições básicas quanto ao comportamento delitivo


e que são também aplicáveis a formas não delitivas, como sejam as infracções
administrativas, faltas, etc.:
 a punição tem efeitos dissuasores, efeitos de prevenção;
 delinquir é expectavelmente rendível para que o faz;
 as condições económicas e sociais são determinantes fundamentais quanto
à quantidade de criminalidade existente125.
No âmbito da política criminal o objectivo é minimizar os custos sociais, a fim de
se obter eficiência, que são compostos pelos custos sofridos pela vítima mais os
custos de controlo ou da probabilidade de aplicação da lei que, em termos
económicos não significa a existência de zero crimes. De acordo com o referido
por Stigler126:
“Há uma razão decisiva pela qual a sociedade deve renunciar à aplicação "completa" da regra: a
aplicação é custosa.”

120 Weinberg, E. Gould, B. & D. Mustard (2002) Crime Rates and Local Labor Market Opportunities in the
United States: 1979–1995 - 84 Review of Economics and Statistics 45 (2002);
121 Raphael, S. & R. Winter-Ebmer (2001) Identifying the Effect of Unemployment on Crime - 44 Journal of
Law and Economics 259 (2001).
122 Ehrlich, I., (1974) Participation in Illegitimate Activities – An Economic Analysis,” in Becker, G.S. and
W.M. Landes, eds., The Economics of Crime and Punishment, New York: Columbia University
Press, 68-134.
123 Perry, Orit, et al (2000) Frequent Probabilistic Punishment in Law Enforcement – JEL
124 Donário, Arlindo (2010) Análise Económica da Regulação Social – Universidade Autónoma de Lisboa,
2.3 – Dilação judicial e seus efeitos nos custos dos acidentes, pp. 213- 234.
125 Pastor, Santos (1989) Pastor, Santos (1989). Sistema Juridico y Economía. Una Introducción al Analisis
Económico del Derecho. Madrid: Tecnos, p. 170.
126 Stigler, George (1970) The Optimum Enforcement of Laws - Journal of Political Economy Vol. 78, No.
3 (May - Jun., 1970), pp. 526-536. “There is one decisive reason why the society must forego
"complete" enforcement of the rule: enforcement is costly. […We could make certain that crime
does not pay by paying enough to apprehend most criminals. Such a level of enforcement would
of course he enormously expensive, and only in crimes of enormous importance will such
expenditures be approached. The society will normally give to the enforcement agencies a budget
which dictates a much lower level of enforcement.]”

70
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

A actuação racional dos indivíduos que entram na actividade criminosa não


significa que em cada acto ilícito os indivíduos ponderem cuidadosamente as
consequências antes da sua comissão, mas de forma mais ou menos consciente
têm a sensação e o ímpeto de que cometer um acto ilícito lhes traz mais benefícios
esperados do que não o praticar.

Importa referir que as circunstâncias, em muitos casos, influenciam no


comportamento dos indivíduos pela alteração dos seus estados hot ou cold127
consoante a dominância, em cada momento, do sistema automático ou do sistema
reflexivo.
Quando o indivíduo está no estado cold, com predominância do sistema reflexivo
em relação ao sistema I, não tem verdadeira consciência de como os seus desejos
e o seu comportamento serão alterados quando se encontra sob a influência do
estado hot, um estado de excitação (arousal). O estado de excitação dos
indivíduos varia ao longo do tempo, sendo os pontos extremos o estado hot e o
estado cold128.

Para além dos factores referidos anteriormente como altamente prováveis e


importantes causas da entrada na actividade criminosa, como
sobredeterminantes, de forma dialética, da actividade criminosa, não se pode
assumir que todos os indivíduos que enfrentam um ou vários desses problemas
per se cometerão crimes.

Essencial para compreender porque os indivíduos são diferentes quanto aos


factores internos e, por conseguinte, a sua propensão para entrar numa actividade
criminosa é diferente, mesmo em circunstâncias externas similares, importa trazer
à colação os sistemas normativos axiológicos, em especial o sistema ético, o que
não é efectuado pela teoria neoclássica, nomeadamente a teoria do crime que foi
desenvolvida por Gary Becker e por outros autores da escola de Chicago.

127 Loewenstein, George (2005) – Hot-Cold Empathy Gaps and Medical Decision Making. Health
Psychology, vol. 24, nº 4 (Suppl.): S49-S56.
128
Thaler; Richard H.; Cass R. Sunstein () NUDGE. Improving Decisions About Health, Wealth, and
Happiness - Yale University Press, p. 41.

71
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

Para melhor compreender o comportamento humano e, assim, as suas decisões,


convém ter em consideração o que a neurociência cognitiva 129 trouxe para a
economia. O dualismo cartesiano, que separava a razão dos sentimentos, foi
afastado, tendo sido um dos principais autores o português António Damásio, com
o seu livro “o Erro de Descartes”. No prefácio deste livro à edição francesa, em
2005, diz o autor130, ao referir-se à marca somática, que as emoções participam na
razão e que podem ajudar a razão ao contrário de a dificultar, como era suposto
anteriormente, sem que, no entanto, as emoções substituam a razão.

Se tivermos em consideração os dois sistemas de agir, o sistema I ou sistema


automático, e o sistema II ou sistema reflexivo, em certas circunstâncias pode
existir predominância de um sobre o outro, pela alteração do estado emocional
com predominância do sistema I, levando a acções e comportamentos diferentes,
consequentemente, com efeitos também diferentes. Contudo, existem fortes
elementos de racionalidade nos dois sistemas, como se deduz das conclusões
científicas de António Damásio e de outros estudos, podendo o sistema II ou
sistema reflexivo ser também denominado por sistema analítico131.
Referem Camerer, Loewenstein e Prelec132:
“Algumas percepções importantes certamente vêm da neurociência, seja diretamente ou porque
a neurociência remodela o que se acredita sobre a psicologia que, por sua vez, informa a
economia.”

A severidade da punição traduz a forma da sanção que um violador da lei enfrenta


se cometer o crime e for condenado. Uma sentença de prisão, uma sanção

129 Gazzaniga, Michael et al (2002) Cognitive Neuroscience: The Biology of the Mind 138–39(Norton, 2002).
130 Damásio, António (2005) L’Erreur de Descartes (Nouvelle edition) – Odile Jabob, “[…] a emoção
participa na razão e pode ajudar ao processo do raciocínio em vez de o incomodar, como era
suposto correntemente.”
131 Slovic, Paul; Melissa Finucane; Ellen Peters; Donald MacGregor (2003) Risk as Analysis and Risk as
Feelings: Some Thoughts about Affect, Reason, Risk, and Rationality - National Cancer Institute
workshop on Conceptualizing and Measuring Risk Perceptions, Washington, D.C., February 13-
14, 2003.
132 Camerer, Colin; George Loewenstein; Drazen Prelec (2005) Neuroeconomics: How Neuroscience Can
Inform Economics - Journal of Economic Literature Vol. XLIII (March 2005), pp. 9–64.
“Some important insights will surely come from neuroscience, either directly or because
neuroscience will reshape what is believed about psychology which in turn informs economics.

72
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

pecuniária ou uma multa (coima) são duas formas típicas de sanções aplicáveis,
havendo outras formas de sanções desde a prisão domiciliárias, a liberdade
condicional e o serviço para a comunidade.

O grau de certeza da punição traduz a probabilidade de aplicação da lei quanto à


detecção, apreensão do indivíduo e a aplicação da sanção ao mesmo. O incentivo
que actua sobre o indivíduo, quanto a obedecer ou não à lei, ceteris paribus
(considerando o nível de valores éticos e morais como dados), é a sanção
esperada (que é uma média) e não a sanção prevista na lei.

Dado que a sanção prevista na lei não ocorre com certeza (o Direito é um valor
esperado) o transgressor da lei ou o criminoso confronta-se, ex-ante, apenas com
a sanção esperada. Assim, um criminoso racional e buscando o seu interesse
próprio compara os custos e benefícios esperados da actividade ilegal e comete o
crime se o benefício esperado de cometer o crime excede o custo esperado, não o
fazendo no caso contrário.

A teoria da escolha racional (TER) quanto à decisão do indivíduo entrar na


actividade criminosa tem tido em consideração, sobretudo e apenas, a
maximização dos resultados das decisões (princípio da racionalidade), sem
atender ao conhecimento científico que tem vindo a ser obtido, nas últimas
décadas, em vários domínios do conhecimento quanto ao processo do cérebro
humano no que concerne à tomada de decisões, considerando-se o cérebro como
uma caixa negra133.

Como referem Donald Wargo et al:


“O modelo neoclássico do homo economicus afirma que tomamos decisões como um
maximizador racional da utilidade, sendo a utilidade esperada definida como a "satisfação" que

133 Donald Wargo; Norman A. Baglini; Katherine A. Nelson () Dopamine, expected utility and decision-
making in the firm, in “Neuroeconomics and the Firm” - Edward Elgar:
“The neoclassical model of homo economicus states that we make decisions as a rational utility
maximizer, with expected utility being defined as the ‘satisfaction’ we expect to receive from the
consumption or possession of goods and services. Further, economics as a science observes the
outcomes of economic decisions by individuals and not the actual decision process in the human
brain. It states that we cannot know nor interpersonally compare the actual preferences of
individuals, but only observe the ‘revealed preferences’, so the outcomes are all that matters. In eff
ect, neoclassical economics treats the human brain as a black box.”

73
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

esperamos receber do consumo ou posse de bens e serviços. Além disso, a economia como
ciência observa os resultados das decisões económicas dos indivíduos e não a decisão actual
do processo no cérebro humano.
Afirma que não podemos conhecer nem interpessoalmente comparar as preferências reais dos
indivíduos, mas apenas observar as “preferências reveladas”, pelo que os resultados são tudo o
que importa. Com efeito, a economia neoclássica trata o cérebro humano como uma caixa negra.”

Apenas os factos observáveis importam, ou como referia Paul Samuelson134:


“Toda a teoria de comportamento do consumidor pode, portanto, ser baseada em
fundações operacionalmente significativas em termos de preferência revelada”, o
que foi criticado por Amartya Sen135, entre outros. Os fundamentos da teoria
económica foram construídos com base nos pressupostos de que os pormenores
acerca do funcionamento da “caixa negra” do cérebro não poderiam ser
conhecidos136.
Podem mencionar-se três grandes descobertas que alteraram a visão do ser
humano sobre o universo e sobre si próprio: a de Copérnico de que a Terra não
era o centro do universo; a de descoberta de Darwin sobre a evolução das
espécies; e a descoberta mais recente, de que o ser humano não tem o completo
controlo da sua própria mente nem dos seus actos 137.
A existência de dois sistemas cognitivos que influenciam as decisões dos seres
humanos e que interagem constantemente implica que não existe dicotomia entre
eles.
A investigação no âmbito da neuroeconomia evidencia que as áreas do cérebro
que geram estados emocionais processam também a informação acerca do risco,

134 Samuelson, Paul (1948) Consumption Theory in Terms of Revealed Preference – Economica New
Series, Vol. 15, No. 60 (Nov., 1948), pp. 243-253, “The whole theory of consumer’s behavior can
thus be based upon operationally meaningful foundations in terms of revealed preference”, p.251.
135Amartya Sen (1973) Behaviour and the Concept of Preference “- Economica, New Series, Vol. 40, No.
159. (Aug., 1973), pp. 241-259. Ver a crítica que Sen fez à teoria da preferência revelada, utilizando
o dilema dos prisioneiros na teoria dos jogos.
http://mikael.cozic.free.fr/philoESS-1011/sen73-behaviour%20and%20the%20concept%20of%20preference.pdf

136 Camerer, Colin; George Loewenstein; Drazen Prelec (2005) Neuroeconomics: How Neuroscience Can
Inform Economics - Journal of Economic Literature Vol. XLIII (March 2005), p. 9.

137Epstein, S. (1994). Integration of the cognitive and the psychodynamic unconscious - American
Psychologist, 49, p. 709.

74
Arlindo Donário; Ricardo Borges dos Santos

das recompensas e das punições138, pelo que as emoções, integradas no sistema


I, são fortes determinantes do comportamento dos indivíduos. Os estados hot,
estados com elevada excitação, induzem as pessoas a serem maiores tomadoras
de risco e a aumentar a sua autoconfiança nas suas habilidades e capacidades,
enquanto as emoções negativas têm o efeito oposto.
A compreensão do sistema automático e do sistema reflexivo são importantes pata
compreender o processo de auto-controlo, do poder da vontade, a fim de se
poderem desenvolver medidas de política criminal que sejam eficientes e eficazes,
adaptadas quer espacialmente quer tendo em conta os grupos etários até aos 24
anos de idade e os grupos etários com idades superiores.
O sistema II ou sistema reflexivo é mais preponderante no estado cold, é cognitivo,
emocionalmente neutro, contemplativo, flexível, coerente (daí o axioma da
transitividade do TER), actua espaço-temporalmente, é vagaroso, episódico e
estratégico, sendo o “sítio” da auto-regulação e do autocontrolo.
Por sua vez o sistema automático ou sistema I, é o sistema ligado com os estados
hot, é emocionalmente controlado por os estímulos inatos não controláveis. Os
dois sistemas não actuam separadamente, mas influenciam-se mutuamente.

138
Kuhnen, Camelia M.; Brian Knutson (2011) The Influence of Affect on Beliefs, Preferences, and
Financial Decisions - Journal of Financial and Quantitative Analysis Vol. 46, No. 3, June 2011, pp.
605–626

75

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