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Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio:

aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil

MULTA COERCITIVA, BOA-FÉ PROCESSUAL E SUPRESSIO: APLICAÇÃO DO


DUTY TO MITIGATE THE LOSS NO PROCESSO CIVIL
Revista de Processo | vol. 171/2009 | p. 35 - 48 | Maio / 2009
DTR\2009\715

Fredie Didier Júnior


Doutor (PUC-SP) e Mestre (UFBA). Professor-adjunto de Direito Processual Civil da UFBA.
Professor-coordenador da Faculdade Baiana de Direito. Membro dos Institutos Brasileiro
e Ibero-americano de Direito Processual. Advogado e consultor jurídico.

Área do Direito: Civil


Resumo: Este ensaio1 cuida de examinar a possibilidade de o credor de multa judicial vir
a perder parcela do seu crédito em razão do exercício tardio da pretensão creditícia
(supressio), a partir da aplicação do princípio da boa-fé, que impede o abuso do direito
no processo.

Palavras-chave: Boa-fé - Supressio - Astreinte - Duty to mitigate the loss


Riassunto: Questo saggio esamina la possibilità del creditore di una ammenda giudiziaria
perdere parte del suo credito a causa del esercizio tardivo di questo diritto, in
applicazione del principio di buona fede, che impedisce l'abuso del diritto nel processo.

Parole chiave: Parole-chiavi: Buona-fede - Supressio - Ammenda giudiziaria - Duty to


mitigate the loss
"Oberstes Ziel des Prozess ist die Herbeiführung einer
gerechten Entscheidung; die Anwendung des Grundsatzes
von Treu und Glauben im Prozess ist ein Mittel, um dieses
Ziel zu erreichen".2
Sumário:

1. Consideração introdutória - 2. Noção sobre a supressio - 3. Notas sobre o princípio da


boa-fé processual - 4. Valor da multa, dever do credor de mitigar o próprio prejuízo
(duty to mitigate the loss) e o princípio da boa-fé processual: possibilidade de supressio

1. Consideração introdutória

A produção doutrinária brasileira sobre o princípio da boa-fé processual é ainda muito


pequena. Trabalhos que relacionem a boa-fé às posições jurídicas ativas (de crédito) são
ainda mais raros. O objetivo deste pequeno artigo é examinar a possível aplicação do
princípio da boa-fé processual na execução da multa (astreinte) para a efetivação da
decisão judicial. A questão central a ser investigada é a seguinte: é possível cogitar de
perda do valor da multa, pelo exercício tardio do direito do credor a ela?

Para responder a esse questionamento, é preciso, antes, fazer considerações sobre o


que se entende por supressio e qual o conteúdo do princípio da boa-fé processual.

2. Noção sobre a supressio

A supressio é a perda de uma situação jurídica de vantagem, pelo não exercício em


lapso de tempo tal que gere no sujeito passivo a expectativa legítima de que a situação
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jurídica não seria mais exercida; o exercício tardio seria contrário à boa-fé e abusivo. A
surrectio é exatamente a situação jurídica ativa, que surge para o antigo sujeito passivo,
de não mais submeter-se à antiga posição de vantagem pertencente ao credor omisso.

A supressio nasceu na jurisprudência alemã, a partir da aplicação da cláusula geral de


boa-fé prevista no § 242 do BGB. Em alemão, denomina-se Verwirkung. Supressio é a
designação sugerida por Menezes Cordeiro, de modo a evitar confusão com institutos
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semelhantes como a caducidade, preclusão, prescrição, decadência, renúncia etc.

A consagração dogmática da supressio deu-se por ocasião dos problemas econômicos


derivados da primeira grande guerra, sobretudo a inflação. Com aumentos imprevisíveis
de preço e as dificuldades na realização de certos fornecimentos, o "exercício retardado
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de alguns direitos levava a situações de desequilíbrio inadmissível entre as partes". Ao
lado disso, havia o direito à correção monetária, construção jurisprudencial, hoje
consagrada em lei. Esse direito serve, essencialmente, à proteção do credor, como
homenagem à boa-fé, que requer, "pela equivalência das prestações e pelo equilíbrio
das situações das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a compensar a
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depreciação monetária". A supressio serve como um contrapeso dessa proteção: "a
mesma boa fé exige que as pretensões de reajustamento, quando caibam, sejam
exercidas num prazo razoável, sem o que atingiriam montantes com que o devedor não
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poderia contar".

Este ensaio tem o propósito de examinar a possibilidade de ocorrência da supressio, em


razão de comportamentos processuais. Para tanto, é preciso, antes, estabelecer a
relação entre a supressio e o princípio da boa-fé processual.

3. Notas sobre o princípio da boa-fé processual

Os sujeitos do processo devem comportar-se de acordo com a boa-fé, que, nesse caso,
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deve ser entendida como uma norma de conduta ("boa-fé objetiva"). Esse é o
princípio da boa-fé processual, que se extrai do texto do inc. II do art. 14 do CPC
(LGL\1973\5): "São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma
participam do processo: (...) II - proceder com lealdade e boa-fé".

Note que os destinatários da norma são todos aqueles que de qualquer forma participam
do processo, o que inclui, obviamente, não apenas as partes, mas também o órgão
jurisdicional. A observação é importante, pois grande parte dos trabalhos doutrinários
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sobre a boa-fé processual restringe a abrangência do princípio às partes.

A vinculação do Estado-juiz ao dever de boa-fé nada mais é do que reflexo do princípio


de que o Estado, tout court, deve agir de acordo com a boa-fé e, pois, de maneira leal e
com proteção à confiança.

O inc. II do art. 14 do CPC (LGL\1973\5) é uma cláusula geral processual: espécie


normativa composta por termos de acepção vaga (aberta, portanto, no antecedente
normativo) e que também é indefinida em relação às conseqüências derivadas de sua
desobediência (aberta, pois, também, na prescrição normativa).

A opção por uma cláusula geral de boa-fé processual é a mais correta. É que a infinidade
de situações que podem surgir ao longo do processo torna pouco eficaz qualquer
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enumeração legal exaustiva das hipóteses de comportamento desleal. Daí ser correta a
opção da legislação brasileira por uma norma geral que impõe o comportamento de
acordo com a boa-fé.

De fato, não seria necessária qualquer enumeração legal das condutas desleais: o inc. II
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é bastante, exatamente por tratar-se de uma cláusula geral.

Não se pode confundir o princípio (norma) da boa-fé com a exigência de boa-fé


(elemento subjetivo) para a configuração de alguns atos ilícitos processuais, como o
manifesto propósito protelatório, apto a permitir a antecipação dos efeitos da tutela
prevista no inc. II do art. 273 do CPC (LGL\1973\5). A "boa-fé subjetiva" é elemento do
suporte fático de alguns fatos jurídicos; é fato, portanto. A boa-fé objetiva é uma norma
de conduta: impõe e proíbe condutas, além de criar situações jurídicas ativas e passivas.
Não existe princípio da boa-fé subjetiva. O inc. II do art. 14 do CPC (LGL\1973\5)
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brasileiro não está relacionado à boa-fé subjetiva, à intenção do sujeito do processo:
trata-se de norma que impõe condutas em conformidade com a boa-fé objetivamente
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considerada, independentemente da existência de boas ou más intenções.
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A consagração do princípio da boa-fé processual foi resultado de uma expansão da


exigência de boa-fé do direito privado ao direito público. A jurisprudência alemã
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entendeu aplicável o § 242 do Código Civil (LGL\2002\400) alemão (cláusula geral de
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boa-fé) também ao direito processual civil e penal. De um modo geral, a doutrina
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seguiu o mesmo caminho. Na verdade, a boa-fé objetiva expandiu-se para todos os
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ramos do direito, mesmo os "não civis".

O princípio da boa-fé atua mediante a aplicação de dois subprincípios ou princípios


mediantes: (a) proteção da confiança, pelo qual se protege o sujeito que foi levado a
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acreditar em certo estado de coisas; (b) prevalência da materialidade subjacente: é
preciso aplicar as normas jurídicas com atenção ao conjunto das particularidades da
situação concreta que se busca resolver, em postura de combate ao formalismo, "então
entendido como submissão rígida dos casos a decidir às proposições legais tidas por
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aplicáveis". Como diz Menezes Cordeiro: o subprincípio de primazia da materialidade
subjacente "traduz a vocação efectiva da Ciência do Direito para, em termos
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constituintes, resolver problemas concretos".
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De acordo com a sistematização procedida pela doutrina alemã, são quatro os casos
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de aplicação da boa fé ao processo: (a) proibição de criar dolosamente posições
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processuais, ou seja, proibição de agir de má-fé; (b) a proibição de venire contra
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factum proprium; (c) a proibição de abuso de poderes processuais; (d)
Verwirkung (supressio, de acordo com a sugestão consagrada de Menezes Cordeiro):
perda de poder processual em razão do seu não-exercício por tempo suficiente para
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incutir no outro sujeito a confiança legítima de que esse poder não mais seria exercido.

Menezes Cordeiro relaciona os diversos tipos de exercício inadmissível de posição jurídica


com os respectivos princípios mediantes da boa-fé: "O venire contra factum proprium,
certas hipóteses de inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio mostraram que,
em determinadas condições, as posições jurídicas, a exercer por si, licitamente, não
podem ser actuadas por, com isso, se atentar contra situações de confiança que o
Direito entende proteger. Outras hipóteses de inalegabilidades formais, o tu quoque e
algumas manifestações de desequilíbrio no exercício põem antes a tónica na
necessidade, a quando de um exercício irrepreensível, em si, de respeitar a realidade
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material subjacente ao edifício jurídico em jogo".
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De todas essas aplicações, a supressio é, sem dúvida, a que mais suscita dúvidas. O
estudo da supressio decorrente de fatos processuais é o objeto principal deste ensaio,
que será desenvolvido no item seguinte.

Antes, porém, é preciso tecer ainda mais algumas considerações sobre o princípio da
boa-fé processual.

Como se pôde perceber, o princípio da boa-fé processual é a fonte normativa da


proibição do exercício inadmissível de posições jurídicas processuais, que podem ser
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reunidas sob a rubrica do "abuso do direito" processual (desrespeito à boa-fé
objetiva). Além disso, o princípio da boa-fé processual torna ilícitas as condutas
processuais animadas pela má-fé (sem boa-fé subjetiva). Ou seja, a cláusula geral da
boa-fé objetiva processual implica, entre outros efeitos, o dever de o sujeito processual
não atuar imbuído de má-fé, considerada como fato que compõe o suporte fático de
alguns ilícitos processuais. Eis a relação que se estabelece entre boa-fé processual
objetiva e subjetiva. Mas ressalte-se: o princípio é o da boa-fé objetiva processual, que,
além de mais amplo, é a fonte dos demais deveres, inclusive o de não agir com má-fé.

Mesmo se não houvesse texto normativo expresso, o princípio da boa-fé processual


poderia ser extraído de outros princípios constitucionais. A exigência de comportamento
em conformidade com a boa-fé pode ser encarada como conteúdo de outros direitos
fundamentais.

Há quem veja no inc. I do art. 3.º da CF (LGL\1988\3) o fundamento constitucional da


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proteção da boa-fé objetiva. É objetivo da República Federativa Brasileira a construção
de uma sociedade livre, justa e solidária. Haveria um dever fundamental de
solidariedade, do qual decorreria o dever de não quebrar a confiança e de não agir com
deslealdade. Nesta mesma linha de raciocínio, há quem veja a cláusula geral de boa-fé
como concretização da proteção constitucional à dignidade da pessoa humana (art. 1.º,
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III, CF (LGL\1988\3)).

Para Menezes Cordeiro, por exemplo, a exigência de atuação de acordo com a boa-fé
decorre do direito fundamental à igualdade: "a pessoa que confie, legitimamente, num
certo estado de coisas não pode ser vista se não tivesse confiado: seria tratar o diferente
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de modo igual".

Antônio do Passo Cabral entende que o fundamento da boa-fé objetiva processual é o


princípio do contraditório, que não é apenas fonte de direitos processuais, mas também
de deveres. O contraditório não serve apenas para dar aos litigantes o direito de poder
influenciar na decisão, mas também "tem uma finalidade de colaboração com o exercício
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da jurisdição". O direito ao contraditório não pode ser exercido ilimitadamente: o
respeito à boa-fé objetiva é exatamente um desses limites.

Para Joan Pico I Junoy, o princípio da boa-fé processual compõe a cláusula do devido
processo legal, limitando o exercício do direito de defesa, como forma de proteção do
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direito à tutela efetiva, do próprio direito de defesa da parte contrária e do direito a
um processo com todas as garantias ("processo devido"). Cria, para tanto, eloqüente
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expressão: o devido processo leal.

O STF, órgão máximo da justiça brasileira, segue também essa linha de argumentação,
de maneira ainda mais incisiva: a cláusula do devido processo legal exige um processo
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leal e pautado na boa-fé. A transcrição de trecho da fundamentação é necessária:

"O princípio do devido processo legal, que lastreia todo o leque de garantias
constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos,
assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras
procedimentais previamente estabelecidas, e, além, representa uma exigência de fair
trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída
pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais.

A máxima do fair trial é uma das faces do princípio do devido processo legal positivado
na Constituição de 1988, a qual assegura um modelo garantista de jurisdição, voltado
para a proteção efetiva dos direitos individuais e coletivos, e que depende, para seu
pleno funcionamento, da boa-fé e lealdade dos sujeitos que dele participam, condição
indispensável para a correção e legitimidade do conjunto de atos, relações e processos
jurisdicionais e administrativos."

E arremata o STF com a confirmação de que a exigência de comportamento de acordo


com a boa-fé atinge todos os sujeitos processuais, e não apenas as partes:

"Nesse sentido, tal princípio possui um âmbito de proteção alargado, que exige o fair
trial não apenas dentre aqueles que fazem parte da relação processual, ou que atuam
diretamente no processo, mas de todo o aparato jurisdicional, o que abrange todos os
sujeitos, instituições e órgão, públicos e privados, que exercem, direta ou indiretamente,
funções qualificadas constitucionalmente como essenciais à Justiça."

Todas essas opções são dogmaticamente corretas. Adota-se a do STF, principalmente


em razão de um aspecto prático: a caracterização do devido processo legal como uma
cláusula geral é pacífica, muito bem construída doutrinariamente e aceita pela
jurisprudência. É com base nesta garantia que, no direitoestadunidense, se construiu o
dever de boa-fé processual como conteúdo da garantia do fair trial. É mais fácil,
portanto, a argumentação da existência de uma dever geral de boa-fé processual como
conteúdo do devido processo legal. Afinal, convenhamos, o processo para ser devido
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(giusto, como dizem os italianos, eqüitativo, como dizem os portugueses) precisa ser
ético e leal. Não se poderia aceitar como justo um processo pautado em
comportamentos desleais ou antiéticos.

Com base nessas premissas, vamos ao exame da questão-objeto desse nosso pequeno
artigo.

4. Valor da multa, dever do credor de mitigar o próprio prejuízo (duty to mitigate the
loss) e o princípio da boa-fé processual: possibilidade de supressio

Há uma interessante questão sobre a multa coercitiva (astreinte, prevista no § 4.º do


art. 461 do CPC (LGL\1973\5)) que está intimamente relacionada ao princípio da boa-fé
processual: a parte, em cujo favor se destina a multa, tem o dever de impedir o
aumento desnecessário e irrazoável do seu montante? De que maneira incide sobre a
posição jurídica do credor da multa o princípio da boa-fé processual?

O tema é instigante e complexo. Tivemos acesso a dois casos concretos, que podem
servir como bons pontos de partida para a solução do problema.

a) A autora de uma demanda, em cujo favor se destinava a multa fixada em uma


decisão liminar, fez carga dos autos em novembro de 2002, devolvendo-os ao cartório
em janeiro de 2007 - 51 meses depois, portanto. A devolução dos autos judiciais veio
acompanhada de petição contendo pedido de execução de multa diária, em valor
superior a R$ 13.000.000,00 (treze milhões de reais), por suposto descumprimento de
ordem judicial que determinava a retirada do nome da autora dos cadastros dos órgãos
de proteção ao crédito.

b) Autor de demanda proposta perante os Juizados Especiais, em que pleiteava o retorno


do fornecimento de energia elétrica à sua residência e perdas e danos decorrentes da
indevida interrupção na prestação do serviço, obteve decisão liminar, com ordem
reintegratória, para que o ilícito fosse removido e o serviço voltasse a ser prestado.
Houve fixação de multa diária pelo descumprimento. A sentença ratificou a decisão
provisória. Houve recurso da empresa-ré. O autor não noticiou o descumprimento da
liminar nem pediu a execução provisória da sentença. Anos depois, após o trânsito em
julgado do acórdão da Turma Recursal que confirmou a sentença, o autor pediu a
execução da multa, cujo montante já se aproximava do primeiro milhão de reais.

Em ambos os casos, como se vê, o montante da multa atingiu valor altíssimo, muito por
força do comportamento omissivo do credor-autor.

Para a solução do problema, é preciso investigar primeiro alguns aspectos do direito


civil.

O direito privado prevê a existência de um dever do credor de minimizar as suas perdas


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(duty to mitigate the loss). Esse dever decorre do princípio da boa-fé (art. 422 do
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CC/2002 (LGL\2002\400)), sendo um dos deveres anexos que o tratamento
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cooperativo do vínculo obrigacional impõe ao credor. Ao não diligenciar que o valor dos
próprios prejuízos não aumente consideravelmente, o credor cometeria abuso de direito,
ferindo, portanto, o princípio da boa-fé. Nesse sentido, foi aprovado o Enunciado 169 da
III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "O princípio da boa-fé
objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo". É muito
importante perceber que o nosso direito positivo contém norma da qual se permite
extrair o dever de mitigar o prejuízo. Esse "esforço" hermenêutico deve "valer a pena,
pois inúmeras vezes nos deparamos, na prática do foro, com situações em que o credor
se mantém inerte face ao descumprimento por parte do devedor, cruzando, literalmente,
os braços, vendo crescer o prejuízo, sem procurar evitar ou, ao menos, minimizar sua
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própria perda". A previsão de deveres jurídicos para o credor é uma das principais
manifestações do princípio da boa-fé. Como ensina Clóvis do Couto e Silva, não caberá
ao credor a efetivação da obrigação principal; "caber-lhe-ão, contudo, certos deveres
como os de indicação e de impedir que a sua conduta venha dificultar a prestação do
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devedor".

Segundo Véra Maria Jacob de Fradera, a jurisprudência francesa ora enquadra o dever
de mitigar o próprio prejuízo como corolário da boa-fé, ora se vale da proibição de venire
contra factum proprium como fundamento para punir "o comportamento do credor
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faltoso". A autora cita como exemplo o caso de um locador que permaneceu 11 anos
sem cobrar os aluguéis e, ao invocar a cláusula resolutória do contrato, acabou por ser
privado de exercer esse direito, com fundamento na proibição de comportamento
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contraditório.

Parece, porém, que, tendo em vista que o comportamento abusivo é omissivo (não
evitar o aumento exagerado dos prejuízos), talvez seja mais adequado referir à
supressio, e à sua correlata surrectio, e não à proibição do venire contra factum
proprium.

O descumprimento do dever de mitigar o próprio prejuízo é ato ilícito que viola a


cláusula geral da proteção da boa-fé objetiva, como visto. Como se trata de cláusula
geral, não há previsão para a conseqüência decorrente de sua violação. A cláusula geral,
como se sabe, é espécie normativa, que, além de ser composta por termos vagos, não
estabelece um preceito; o preceito deve ser determinado pelo órgão jurisdicional, à luz
das peculiaridades do caso concreto. Uma das possíveis conseqüências dessa conduta
ilícita pode ser a perda, pelo credor, da situação jurídica ativa (posição de vantagem).
Foi o que aconteceu no caso do locador, já citado. Tratar-se-ia, então, de uma espécie
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de ato ilícito caducificante: conduta contrária ao Direito que tem por conseqüência a
perda de uma situação jurídica ativa por aquele que o praticou.

Remanesce a dúvida: toda essa construção teórica, criada para o universo do direito
privado, pode ser aplicada por extensão ao direito processual?

Certamente que sim.

É lícito conceber a existência de um dever da parte de mitigar o próprio prejuízo,


impedindo o crescimento exorbitante da multa, como corolário do princípio da boa-fé
processual, cláusula geral prevista no art. 14, II, CPC (LGL\1973\5).

Como já se disse, o princípio da boa-fé processual é decorrência da expansão do


princípio da boa-fé inicialmente pensado no direito privado. Esse princípio implica a
proibição do abuso do direito e a possibilidade de ocorrência da supressio, figura, aliás,
que é corolário da vedação ao abuso. Se o fundamento do duty to mitigate the loss é o
princípio da boa-fé, que rege o direito processual como decorrência do devido processo
legal, pode-se perfeitamente admitir a sua existência, a partir de uma conduta
processual abusiva, no direito processual brasileiro.

Ao não exercer a pretensão pecuniária em lapso de tempo razoável, deixando que o


valor da multa aumente consideravelmente, o autor comporta-se abusivamente,
violando o princípio da boa-fé. Esse ilícito processual implica a perda do direito ao valor
da multa (supressio), respectivamente ao período de tempo considerado pelo órgão
jurisdicional como determinante para a configuração do abuso do direito. Trata-se, pois,
de mais um ilícito processual caducificante.

3. "La giustificata aspettativa che il diritto stesso non sarebbe più stato fatto valere"
(RANIERI, Filippo. Rinuncia tacita e Verwirkung. Padova: Cedam, 1971, p. 1).

4. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. 2.ª reimp.
Coimbra: Almedina, 2001, p. 797.

5. Idem, ibidem.
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6. Idem, p. 801. Sobre a evolução da Verwirkung, também, RANIERI, Filippo. Op. cit., p.
14 e ss.

7. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p.


801.

8. Idem, p. 802.

9. Sobre a boa fé como regra de conduta, amplamente, CORDEIRO, António Manuel da


Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p. 632 e ss.

10. Na doutrina brasileira, não são muitos doutrinadores que mencionam a existência de
uma "boa-fé objetiva processual". Poucos doutrinadores brasileiros aproveitaram essa
grande contribuição germânica (Treu und Glauben,a proteção objetiva da confiança e da
lealdade) em seus estudos sobre o direito processual, que ainda estão presos a uma
concepção subjetiva de boa-fé. Ignora-se toda produção doutrinária sobre boa-fé
objetiva no direito privado e no direito público. Parece não ter havido "comunicação
doutrinária interdisciplinar", fato triste e lamentável. Olvida-se, também, a doutrina
européia sobre a boa-fé objetiva no processo, principalmente os autores alemães e
portugueses, citados ao longo do texto. Cabe, então, mencionar alguns autores
brasileiros que expressamente defendem a existência de uma "boa-fé processual
objetiva": CABRAL, Antônio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual
objetiva. RePro 126/76-78. São Paulo: Ed. RT, ago. 2005; MITIDIERO, Daniel. Bases
para a construção de um processo civil cooperativo: o direito processual civil no marco
teórico do formalismo-valorativo. Tese de doutorado, Porto Alegre, Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, 2007, p. 70; ______. Comentários ao Código de Processo Civil
(LGL\1973\5). São Paulo: Memória Jurídica, 2004, t. I, p. 173; VINCENZI, Brunela Vieira
de. A boa-fé no processo civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 169 e ss.; GÓES, Gisele.
Defesa do devedor na execução de título extrajudicial: principiologia e técnicas
processuais de efetividade. A leitura. Belém: Escola Superior da Magistratura, 2008. vol.
1, p. 32-40.

11. Por exemplo, o monografista do tema PICO I JUNOY, Joan. EL DEBIDO PROCESO
"LEAL". REVISTA PERUANA DE DERECHO PROCESAL 9/341. Lima: Palestra, 2006;
MILMAN, Fábio. Improbidade processual. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 81 e ss.;
NERY JR., Nelson, NERY, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade. Código de Processo
Civil (LGL\1973\5) comentado e legislação extravagante. 9. ed. São Paulo: Ed. RT, 2006,
p. 177-178; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Código de Processo Civil (LGL\1973\5)
interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 84-85.

12. PICO I JUNOY, Joan. Op. cit., p. 370-371. Também reconhecendo a grande utilidade
de uma cláusula geral processual de boa-fé,VINCENZI, Brunela Vieira de.Op. cit., p. 169
e ss.

13. LIMA, Alcides de Mendonça. Abuso do direito de demandar. RePro 19/61. São Paulo:
Ed. RT, jun.-set. 1980. Assim, também, CABRAL, Antônio do Passo. Op. cit., p. 69.

14. Relacionando o inc. II do art. 14 do CPC (LGL\1973\5) brasileiro à boa-fé subjetiva,


MILMAN, Fábio. Op. cit., p. 101. Nelson Nery Jr. e Rosa Nery afirmam, ao comentar esse
dispositivo, que a boa-fé processual se presume; tratam da boa-fé, pois, como fato, que
se presume, e não como norma de conduta (Op. cit., p. 178, n. 11).

15. Embora sem dizer isso expressamente, parece ser este o pensamento de Antônio do
Passo Cabral, ao afirmar que o inc. II do art. 14 do CPC (LGL\1973\5) "consubstancia
cláusula genérica de conduta ética" (CABRAL, Antônio do Passo. Op. cit., p. 69).

16. § 242 do BGB (Bürgerliches Gesetzbuch): "Der Schuldner ist verpflichtet, die
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Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio:
aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil

Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es
erfordern" ("O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa fé,
com consideração pelos costumes do tráfego", de acordo com a tradução de CORDEIRO,
António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p. 325). Há uma
outra tradução, bastante conhecida no Brasil, de Souza Diniz: "O devedor está obrigado
a executar a prestação como a boa fé, em atenção aos usos e costumes, o exige"
(Código Civil (LGL\2002\400) Alemão. Rio de Janeiro: Record, 1960, p. 56).

17. "A sua natureza instrumental perante o Direito Civil e uma certa tradição literária de
escrita sobre a boa fé em Processo terão facilitado a transposição" (CORDEIRO, António
Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p. 375).

18. O STF já decidiu que o processo penal também é regido pelo princípio da boa-fé
objetiva, como forma de impedir comportamentos abusivos: STF, HC 92.012/SP, 2.ª T.,
j. 10.6.2008, rel. Min. Ellen Gracie.

19. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p.
376, especialmente a nota 437.

20. "Essa expansão é notável e denota a compleição da boa-fé não como um instituto
jurídico comum, mas como factor cultural importante, ligado, de modo estreito, a um
certo entendimento do jurídico" (CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da
boa-fé no direito civil cit., p. 371).

21. Idem, p. 1234-1257.

22. Idem, p. 1252. Arremata o autor português: "Desinseridas de um ordenamento


geral, tais proposições poderiam ignorar quer os objectivos particulares prosseguidos, na
ocasião, pelo Direito, quer as particularidades do caso concreto".

23. Idem, p. 1254.

24. Trata-se de sistematização bastante conhecida, difundida na literatura portuguesa


por Menezes Cordeiro, baseada nas obras de Walther Zeiss e Gottfried Baumgärtel.

25. BAUMGäRTEL, Gottfried. Op. cit., p. 355.

26. Das Verbot zu schafen,no texto original BAUMGäRTEL, Gottfried. Idem, ibidem.

27. Como, por exemplo, alguns casos previstos no Código de Processo Civil
(LGL\1973\5) brasileiro: o requerimento doloso da citação por edital (art. 233, CPC
(LGL\1973\5)), a atuação dolosa do órgão jurisdicional (art. 133, I, CPC (LGL\1973\5)) e
em algumas hipóteses de litigância de má-fé que exigem a presença do "elemento
subjetivo" (art. 17, I, II, III e IV, CPC (LGL\1973\5)). É importante registrar,
especificamente para a aplicação do art. 17 do CPC (LGL\1973\5), que nem todos os
casos de litigância de má-fé ali previstos exigem a "má-fé subjetiva"; há casos em que a
"má-fé" é examinada objetivamente, como nos casos dos incs. V, VI, VII e VIII do
mesmo artigo. Advertindo sobre esse aspecto, BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A
responsabilidade das partes por dano processual no direito brasileiro. Temas de direito
processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 26. Trata-se de um dado relevante para
confirmar a existência de uma cláusula geral de proteção da boa-fé objetiva.

28. Como, por exemplo, recorrer contra uma decisão que se aceitara (art. 503 do CPC
(LGL\1973\5): "A parte, que aceitar expressa ou tacitamente a sentença ou a decisão,
não poderá recorrer") ou pedir a invalidação de ato a cujo defeito deu causa (art. 243 do
CPC (LGL\1973\5)).

29. Das Verbot des widersprüchlichen Verhaltens, no original, BAUMGäRTEL, Gottfried.


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Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio:
aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil

Op. cit., p. 355.

30. Como, por exemplo, o abuso do direito de defesa, que pode autorizar a antecipação
dos efeitos da tutela jurisdicional (art. 273, II, CPC (LGL\1973\5)), ou o abuso do direito
de recorrer, que é hipótese expressa de litigância de má-fé (art. 17, VII, CPC
(LGL\1973\5)).

31. Der Missbrauch prozessualer Befugnisse,no original, BAUMGäRTEL, Gottfried. Op.cit.,


p. 355.

32. Como, por exemplo, o caso examinado no próximo item.

33. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p.
900.

34. Embora reconheça que, ao menos na Alemanha, é pacífica a aplicação da supressio


no processo, Menezes Cordeiro entende que, no direito português, em razão da
existência de um sistema rígido de prazos processuais, não é possível cogitar de
supressio processual (Idem, p. 803, nota 571).

35. Sobre a relação entre boa-fé e abuso do direito, mais uma vez CORDEIRO, António
Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil cit., p. 861-902.

36. VINCENZI, Brunela Vieira de.Op. cit., p. 163.

37. ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no Código Civil (LGL\2002\400).


São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186 e ss.; NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma
interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p.
224-274.

38. CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Litigância de má-fé, abuso do


direito de acção e culpa "in agendo". Coimbra: Almedina, 2006, p. 51. Assim, também,
do mesmo autor, mais longamente, Da boa-fé no direito civil cit., p. 1271 e ss.

39. CABRAL, Antônio do Passo. Op. cit., p. 63. Assim, também, VINCENZI, Brunela
Vieira de.Op. cit., p. 172.

40. "(...) la efectividad de la tutela judicial impone el rechazo a la actuación maliciosa o


temeraria de las partes, o dicho en otros términos, la mala fe procesal puede poner en
peligro el otorgamiento de una efectiva tutela judicial (...)" (PICO I JUNOY, Joan. Op.
cit., p. 346).

41. Idem, p. 345 e ss.

42. STF, RE 464.963/GO, 2.ª T., j. 14.02.2006, rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 30.06.2006.
Com fundamentação semelhante, STF, AgIn 529.733/RS, 2.ª T., j. 17.10.2006, rel. Min.
Gilmar Mendes, DJ 01.12.2006.

43. Ver, a propósito, o art. 77 da Convenção de Viena sobre a Venda Internacional de


Mercadorias, de 1980; art. 88 da Convenção de Haia a respeito da lei uniforme sobre
venda internacional de objetos móveis corpóreos, de 1964; art. 7.4.8 (1) dos princípios
UNIDROIT relativos aos contratos de comércio internacional, publicados em Roma, 1994;
art. 9: 505 do Código Europeu de contratos etc. Sobre o tema, FRADERA, Véra Maria
Jacob de. Pode o credor ser instado a diminuir o próprio prejuízo? Revista Trimestral de
Direito Civil 19/112-113. Rio de Janeiro: Padma, 2004.

44. Assim, FRADERA, Véra Maria Jacob de. Op. cit., p. 116-117; TARTUCE, Flávio. A
boa-fé objetiva e a mitigação do prejuízo pelo credor. Disponível em:
Página 9
Multa coercitiva, boa-fé processual e supressio:
aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil

[http://www.direito.memes.com.br/jportal/portal.jsf?post=1684]. Acesso em:


12.12.2008.

45. Sobre a relação obrigacional como uma relação de cooperação em razão da


incidência do princípio da boa-fé, COUTO E SILVA, Clóvis do. A obrigação como processo.
São Paulo: José Bushastky, 1976, p. 117-120.

46. FRADERA, Véra Maria Jacob de. Op. cit., p. 110.

47. COUTO E SILVA, Clóvis do. Op.cit., p. 120.

48. FRADERA, Véra Maria Jacob de. Op. cit., p. 115.

49. Idem, p. 110-111.

50. Sobre o tema, DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 10. ed. Salvador:
Juspodivm, 2008. vol. 1, p. 245 e 276-277.

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