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PROCESSOS ESTRUTURANTES: Ponderações da sua Viabilidade no

Ordenamento Jurídico Português

Sandra Isabel Braga Fernandes

PG49577

Trabalho realizado no âmbito da Unidade Curricular de Teoria Geral do Processo, do


Mestrado em Direito Judiciário (Direitos Processuais e Organização Judiciária)

Braga, 2022
ÍNDICE

INTRODUÇÃO 2
1. Enquadramento histórico 3
1.1. Brown II: implementação de reformas estruturais 4
2. Processos estruturantes 5
2.1. Problema estrutural: noção 5
2.2. A desadequação da tutela coletiva 6
a) Processos coletivos e processos estruturantes: a ação popular 7
2.3. Complexidade 8
3. O fenómeno do ativismo judicial e o julgador 10
3.1. Ativismo judicial 10
3.2. Uma postura adequada do julgador 11
3.3. A criação de um modelo regulatório 13
4. Podem os processos estruturantes ter sucesso em Portugal? 14
4.1. Uma solução proposta 15
CONCLUSÃO 16
REFERÊNCIAS 17

1
INTRODUÇÃO

O direito processual civil português foi desenhado para a resolução de litígios atendentes a
direitos e interesses particulares, pelo que a decisão do juiz opera numa ótica binária, acolhendo
ou negando o pedido do autor da ação. Dir-se-á que, na sua generalidade, este ramo do direito foi
criado na ótica do direito privado. Esta é uma realidade palpável até nos próprios princípios que
o enformam, desde a legitimidade aos princípios do dispositivo e da igualdade de armas, os quais
impõem às partes litigantes uma igualdade formal, ainda que espelhada por uma desigualdade
substancial.

Perante esta tutela jurisdicional típica, como proceder perante a massificação dos direitos
individuais1 decorrente do fenómeno de globalização e que acaba por submeter um vasto conjunto
de indivíduos a violações dos seus direitos e interesses? Não obstante o nosso ordenamento
jurídico existir equipado com diversas figuras de ‘controlo’ da proliferação dos processos, tem-
se vindo a constatar uma relativa insuficiência dos mesmos, restando a submissão da tutela destes
direitos aos preceitos aplicáveis à tutela coletiva, por meio da ação popular.

Neste contexto, a temática dos processos estruturantes surge como uma forma de resposta
às dificuldades apresentadas, por ser um processo capaz de abranger tanto direitos coletivos – em
sentido amplo – como verdadeiros direitos individuais homogéneos. Como veremos no desenrolar
deste trabalho, as questões típicas suscitadas em litígios estruturantes têm a particularidade de
envolver amplos e fundamentais valores da sociedade, não apenas por haver interesses
concorrentes no seu seio, mas porque a perspetiva jurídica de terceiros pode vir a ser afetada pelo
desfecho do caso, tratando questões, a título de exemplo, da capacidade eleitoral, do ensino
doméstico, entre outras.

Estabelecem-se assim como principais objetivos desta reflexão o entendimento da


evolução, tramitação, enfim, a compreensão dos mais essenciais aspetos relativos à
implementação de processos estruturantes. Para tal, e com a consciência de que esta é uma
temática ainda rudimentar nos espaços jurídicos nacionais – tendo sido apenas recentemente
abordada por PAULA COSTA E SILVA2, ainda assim, levianamente –, são imprescindíveis os
estudos já realizados noutros pontos do mundo em que os processos estruturantes possuem outra
centralidade, nomeadamente no Brasil e nos Estados Unidos, através dos quais se pretende
transpor para a nossa realidade uma eventual adaptação destes processos no ordenamento jurídico
português.

1
Que não são nem coletivos em sentido estrito nem difusos, cindíveis por cada pessoa e, portanto,
individualmente apropriáveis. Certo é que cada direito individual tem direito a uma tutela individual própria
desse direito.
2
Vide SILVA, Paula Costa, Perturbação dos contratos e processo estrutural, in Revista Ius Dictum, Ano
I, #01, AADFL Editora, 2020.

2
1. Enquadramento histórico

Não será descabido apontar aos Estados Unidos da América o papel de precursor dos
structural reform litigation ou institucional litigation, aquilo que, entre nós, designamos de
processos estruturantes – este é, aliás, um facto de reconhecimento generalizado. Efetivamente, o
seu alcance tem um vasto passado histórico, enraizado na conquista da igualdade pelas minorias,
particularmente pela comunidade áfrico-americana. Décadas de oscilações no que tocava à
regulação da escravidão levaram os próprios tribunais americanos a posicionar-se quanto à
validade dessas normas, contudo, as suas decisões não eram frequentemente aceites sem mais por
determinados Estados.

Casos como Commonwealth v. Aves3 e Dred Scott v. Standford4 surgem como primeiras
manifestações da íntima ligação do poder judiciário americano às questões raciais, contudo,
aquele que efetivamente lançou as bases para a instituição de processos estruturantes terá sido o
caso Brown v. Board of Education of Topeka, de 19545, já várias décadas passadas. O consenso é
que este caso terá sido um dos principais motivadores do Civil Rights Movement.

Sucintamente, o que levou este caso ao Supremo Tribunal Federal americano foi a junção
de quatro litígios individuais – intentados nos Estados de Kansas, Carolina do Sul, Virgínia e
Delaware – que, apesar de todos terem sido julgados improcedentes, bem como de terem sido
baseados em “diferentes factos e diferentes condições, uma questão legal comum justifica a sua
consideração conjunta numa opinião consolidada”6.

Perante a organização segregacionista do sistema de ensino americano da época com base


em critérios discriminatórios raciais, o que este tribunal veio a considerar, sem necessidade de
quaisquer embelezamentos, que a máxima separated, but equal (separados, mas iguais) não tem
qualquer peso no que à educação pública se refere, porquanto escolas segregadas não poderão
nunca ser escolas onde paira a igualdade7. O regime segregacionista indubitavelmente ameaça,
na opinião deste tribunal, a igualdade das crianças pertencentes à categoria minoritária. Trazendo
para as suas argumentações os precedentes de Sweatt v. Painter e McLaurin v. Oklahoma State,
considerou o Supremo Tribunal Federal Americano que:

Estas considerações aplicam-se reforçadamente a crianças no ensino médio e secundário. Separá-


las de outros da mesma idade e qualificações unicamente por causa da sua raça gera um

3
Commonwealth v. Aves, 35 Mass. 193, 18 Pick. 193 (1836).
4
Dred Scott v. Sandford, 60 U.S. 19 How. 393 (1856).
5
Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954).
6
Tradução livre de: “They are premised on diferente facts and diferente local conditions, but a common
legal question justifies their consideration together in this consolidated opinion”, Brown v. Board of
Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954), disponível em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/347/483/#F1 [20/12/2022].
7
347 U.S. 483, 494-495 (1954).

3
sentimento de inferioridade relativo à sua posição na comunidade que pode afetar os seus
corações e as suas mentes de um modo provavelmente irreversível 8.

Viu-se saída desta decisão uma verdadeira mudança no paradigma americano alusivo às
questões raciais, algo que WOODWARD vem a chamar de “segunda Reconstrução”9. A
segregação racial, primeiramente nas escolas, e eventualmente nos demais espaços públicos,
adquiriu o estatuto de problema estrutural da sociedade americana.

1.1. Brown II: implementação de reformas estruturais


Tomada uma decisão histórica em Brown v. Board of Education of Topeka, nos momentos
seguintes, questionava-se de que modo seria a mesma implementada, bem como de modo se faria
frente à provável resistência do povo americano em favor do sistema segregacionista. É em
resposta a esta conjuntura que surge Brown II10, em 1955, continuando a linha tomada pelo
tribunal em Brown I.

Reconhecendo a complexidade de mexer com a organização do sistema de ensino, o próprio


tribunal vem delegar às administrações das escolas a respetiva reforma:

As autoridades escolares têm a responsabilidade primária de elucidar, assessorar e resolver estes


problemas: os tribunais terão de considerar se a ação das autoridades escolares constitui uma
implementação em boa-fé dos princípios constitucionais. Atendendo à sua proximidade às
condições locais e à possível necessidade de futuras audiências, os tribunais que originariamente
atenderam estes casos farão uma melhor avaliação. Como tal, acreditamos ser apropriado remeter
os casos11 a esses tribunais12.

Se, por um lado, houve quem considerasse essa delegação de poderes da parte do Supremo
Tribunal Federal americano uma tentativa de ilibar o mesmo do ónus de erradicar ele mesmo o
sistema segregacionista13, outros não imputam esta opção ao tribunal, entendendo ser o ‘melhor

8
Tradução livre de: “Such considerations apply with added force to children in grade and high schools. To
separate them from others of similar age and qualifications solely because of their race generates a feeling
of inferiority as to their status in the community that may affect their hearts and minds in a way unlikely
ever to be undone.”, 347 U.S. 483, 494 (1954).
9
WOODWARD, Comer Vann, The Strange Career of Jim Crow, Oxford, Oxford University Press, 2002,
p. 134-135.
10
349 U.S. 294 (1955).
11
Referindo-se aos casos originais do Kansas, Carolina do Sul, Virgínia e Delaware.
12
Tradução livre de: “School authorities have the primary responsibility for elucidating, assessing, and
solving these problems; courts will have to consider whether the action of school authorities constitutes
good faith implementation of the governing constitutional principles. Because of their proximity to local
conditions and the possible need for further hearings, the courts which originally heard these cases can
best perform this judicial appraisal. Accordingly, we believe it appropriate to remand the cases to those
courts.”, 349 U.S. 294, 299 (1955).
13
SCHLANGER, Margo, Civil rights injunction over time, in New York University Law Review, Vol. 81,
n.º 2, p. 550-630, 2006, p. 552, disponível em https://www.nyulawreview.org/issues/volume-81-number-
2/civil-rights-injunctions-over-time-a-case-study-of-jail-and-prison-court-orders/ [21/12/2022].

4
cenário’ face à possibilidade de resistência que uma desagregação imediata poderia causar14.
Independentemente da perspetiva sobre o motivo, persiste o facto de se ter tornado possível
“promover judicialmente a conformação de uma instituição de grande porte aos valores
constitucionais”15, de modo que, nos anos seguintes, se proliferaram ações do mesmo intuito sobre
estabelecimentos prisionais, hospitais psiquiátricos, enfim, das demais áreas em que se
identificavam problemas do mesmo calibre.

Brown II, suportado pelo caso que lhe deu origem, adquiriu, portanto, um papel pioneiro
da reforma estruturante16, tendo sido a primeira instância em que o poder judicial surge como
agente de mudança social e não se cinge a declarar a existência ou não de direitos, alargando a
sua intervenção a uma verdadeira tarefa de agente de implementação.

Adiante se verá que a suavidade da mescla da tríade dos poderes estatais não é
universalmente aplicável, trazendo desafios aos ordenamentos jurídicos com uma separação
vincada, como efetivamente é o caso do português.

2. Processos estruturantes

2.1. Problema estrutural: noção


Definir um problema estrutural pressupõe a existência de um estado de desconformidade
estruturada, o qual se materializa numa situação de ilicitude permanente, contínua, ou numa
situação de desconformidade que, embora não necessariamente ilícita, constitui um estado das
coisas desorganizado e ‘desconfortável’17, não correspondente ao “estado de coisas considerado
ideal”18. Ora, em face de uma violação reiterada dos direitos e interesses de vários sujeitos –
demonstrando, portanto, a complexidade e o policentrismo referidos supra – o processo reveste,
em regra, caráter coletivo em sentido amplo.

14
WEAVER, Russell L., The rise and decline of structural injunctions, in San Diego Law Review, Vol. 41,
p. 1617-1632, 2004, p. 1620, disponível em
https://digital.sandiego.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=2973&context=sdlr [21/12/2022].
15
VIOLIN, Jordão, Processos Estruturais em perspectiva comparada: a experiência norte-americana na
resolução de litígios policêntricos, Universidade Federal do Panamá, Curitiba, 2019, p. 33, disponível em
https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/66023 [19/12/2022].
16
TUSHNET, Mark, Public Law Litigation and the Ambiguities of Brown, in Fordham Law Review, Vol.
61, n.º 1, p. 23-28, 1992, p. 25, disponível em https://ir.lawnet.fordham.edu/flr/vol61/iss1/4/ [21/12/2022].
17
É certo que a existência de uma situação ilícita facilita o processo, sobretudo para os tribunais, uma vez
que deles apenas exige a devida aplicação das normas jurídicas; por outro lado, não existe um ‘ponto de
ebulição’ desta desestruturação, podendo a mesma revestir vários graus.
18
DIDIER, Fredie, ZANETI, Hermes, OLIVEIRA, Rafael, Notas sobre as decisões estruturantes, in
ARENHART, Sérgio Cruz, JOBIM, Marco Felix (Org.), Processos estruturais, Salvador, JusPODIVM,
2017, p. 104, https://civilprocedurereview.com/revista/article/download/138/129 [23/12/2022].

5
O mais frequente é que a existência de problemas estruturantes esteja intimamente ligada
ao funcionamento enviesado de instituições públicas ou privadas, de modo que nos diz FISS, de
acordo com quem nos posicionaremos ao longo deste trabalho:

O processo judicial de caráter estrutural é aquele no qual um juiz, enfrentando uma burocracia
estatal no que tange aos valores de âmbito constitucional, incumbe-se de reestruturar organização
para eliminar a ameaça imposta a tais valores pelos arranjos institucionais existentes. Essa
‘injunction’ é o meio pelo qual essas diretivas de reconstrução são transmitidas 19.

Podemos inferir, portanto, que a resolução de problemas estruturais pressupõe


necessariamente a mudança de comportamento das instituições visadas, através de uma decisão
estrutural, entendida, segundo DIDIER, ZANETI e OLIVEIRA:

Aquela que busca implementar uma reforma estrutural (structural reform) em um ente,
organização ou instituição, com o objetivo de concretizar um direito fundamental, realizar uma
determinada política pública ou resolver litígios complexos20.

Por outro lado, não descartam estes autores que o problema estrutural esteja também
associado à ineficácia ou inexistência de políticas públicas.

O problema estrutural é uma característica típica e essencial do processo estrutural21, no


entanto, ressalve-se que a existência de um litígio estrutural não radica necessariamente na
abertura de um processo estrutural, porquanto é possível que esses litígios venham a ser tratados
em processos de caráter individual ou coletivo, alternativamente ao estrutural – a razão de ser
desta realidade é a não necessária correspondência entre o tipo de litígio e o tipo de processo. Não
obstante, o entendimento generalizado é no sentido de tratar litígios estruturais no seio de
processos estruturais, para que se garanta uma verdadeira alteração da situação de
desconformidade que lhe deu origem, através de decisões flexíveis e voltadas para o futuro22.

2.2. A desadequação da tutela coletiva


Recorde-se que os processos estruturantes surgem, face ao modelo processual civil
português, como uma figura à margem da “demanda de uma parte (autor) em frente a outra

19
FISS, Owen, As formas de Justiça, in COSTA, Susana Henriques, WATANABE, Kazuo, GRINOVER,
Ada Pellegrini (Org.), O processo para solução de conflitos de interesse público, Salvador, JusPODIVM,
2018, p. 120.
20
DIDIER, Fredie, ZANETI, Hermes, OLIVEIRA, Rafael, cit., p. 109.
21
DIDIER, Fredie, ZANETI Hermes, OLIVEIRA, Rafael, cit., p. 110-11: outras características apontadas
pelos autores são a multipolaridade, no sentido de existirem múltiplos núcleos de posições e opiniões, a
coletividade e a complexidade, mas também a implementação de um ideal estado de coisas e a
consensualidade.
22
OLIVEIRA, Lillian Zucolote, RIBEIRO, Luiz Alberto Pereira, Processo estrutural: da importância da
atuação do julgador, in Conpedi Law Review, Vol. 7, n.º 2, p. 56-75, 2021, p. 60, disponível em
https://www.indexlaw.org/index.php/conpedireview/article/view/8129 [23/23/2022].

6
(réu)”23 que caracteriza o modelo processual civil português, e na qual a decisão do juiz se inclina
em favor de uma das partes. O nosso tradicional modelo processual tem como camada base a
resolução de litígios relativos a direitos ou interesses individuais, de baixa complexidade e
sequelas sociais.

Ora, perante causas estruturais – ou problemas estruturais –, quase todas elas de elevada
complexidade e associadas a interesses policêntricos ou multipolares, o nosso sistema não vem
devidamente equipado para oferecer uma solução satisfatória, mesmo lançando mão dos demais
institutos da tutela coletiva, nomeadamente, da ação popular. A referência a este seu policentrismo
tem diretamente que ver com o facto de que, perante ações múltiplas com uma causa de pedir
comum, a solução de cada uma está inerentemente conexionada com a solução de todas as
outras24. Isto porque os processos coletivos e os processos estruturantes não são conceitos que se
espelham completamente, reconhecendo-se necessária uma distinção.

a) Processos coletivos e processos estruturantes: a ação popular


Se, conforme já estabelecido pela posição adotada neste trabalho acerca das implicações
dos processos estruturantes, estes pressupõem a reestruturação do modo de funcionamento de uma
instituição de modo a eliminar recorrentes ameaças a valores consagrados constitucionalmente25,
os processos coletivos admitem um conjunto de aspetos próprios.

GOMES JÚNIOR define uma “demanda coletiva”26 como compreendendo um sistema de


legitimidade diferenciada, um regime especial da coisa julgada e uma dedução em juízo de
pretensão relativa a um ou mais direitos coletivos27. Contudo, o que nos compete é olhar àquele
que vem consagrado na lei portuguesa como processo coletivo por excelência – a ação popular.

23
CHIOVENDA, Giuseppe, Instituições de direito processual civil, Vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1969, p. 5.
24
FLETCHER, William A., The discretionary constitution: institutional remedies and judicial legitimacy,
in The Yale Law Journal, Vol. 91, n.º 4, p. 635-697, 1982, p. 645, disponível em:
https://core.ac.uk/download/pdf/160249072.pdf [21/12/2022].
25
Para uma distinção adicional entre estes conceitos e o de processo de interesse público ou public law
litigation, veja.se CHAYES, Abram, The role of the judge in public law litigation, in Harvard Law Review,
Cambridge, Vol. 89, n.º 7, 1976, 1281-82, p. 35, disponível em
https://www.jstor.org/stable/1340256?origin=crossref [21/12/2022]. Considera o autor que um processo de
interesse público não implica obrigatoriamente a reorganização de uma estrutura burocrática ou instituição,
mas antes se volta essencialmente para o Estado.
26
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo, VASCONCELOS, Lincoln Machado Alves, O processo estrutural
como forma de proteção aos direitos fundamentais ao meio ambiente, in Research, Society and
Development, Vol. 10, n.º 2, 2021, p. 4, disponível em
https://rsdjournal.org/index.php/rsd/article/download/11605/11044/162962 [20/12/2022].
27
Ibidem.

7
Prevista no artigo 52.º, n.º 3 da nossa Constituição, a ação popular constitui um verdadeiro
meio processual de tutela coletiva sobre direitos difusos ou coletivos28. A alínea a) deste artigo
interessa particularmente, porquanto vêm referidas finalidades de prevenção, cessação ou
perseguição judicial de infrações contra a saúde pública, direitos dos consumidores, qualidade de
vida e preservação ambiental e do património cultural. Sucede que um processo estrutural, não
obstante compreender em si um caráter coletivo, diferencia-se da ação popular precisamente por
faltar, a esta última, o passo em frente de ‘imposição’ de uma verdadeira mudança do
funcionamento das instituições infratoras, bastando-se com uma intervenção meramente judicial.

Precisamente como afirmam CRUZ e VASCONCELOS:

As ações coletivas tal como sistematizadas no ordenamento jurídico vigente, sequer revelam-se
propensas a proporcionar uma ingerência/fiscalidade democrática na construção do provimento
jurisdicional – muito menos se prestariam a remodelar práticas institucionais, tal como se sucede,
invariavelmente, no âmbito do processo estrutural29.

A natural conclusão a retirar é que, não obstante a ação popular ter sido construída para
lidar com demandas coletivas, mostra-se ainda inadequada para dar uma efetiva resposta a
interesses multipolares, sobretudo por não incorporar a vertente intervencionista que
intrinsecamente compõe um processo estrutural. A ação popular não contém, no seu desenrolar
processual, a elaboração de um plano de reestruturação, aprovado pelo juiz, que se prolonga no
tempo e é alvo de variadas avaliações dos impactos dessas políticas no comportamento das
instituições visadas, entre outras providências30.

2.3. Complexidade
Aquela que talvez é a característica mais proeminente de um processo estrutural é a sua
complexidade, seja referindo-se ao problema estruturante que lhe dá origem31, seja referindo-se
àquilo que dele resulta.

A complexidade a que se referem DIDIER, ZANETI e OLIVEIRA, tem que ver com o
conteúdo aberto da norma jurídica que vem prescrita de uma decisão no âmbito de um processo

28
Ainda que, em face da cada vez maior massificação de processos sobre direitos individuais com a mesma
causa de pedir, se venha a entender que, além dos direitos coletivos, a ação popular possa abranger direitos
individuais, desde que homogéneos.
29
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo, VASCONCELOS, Lincoln Machado Alves, cit., p. 4.
30
VITORELLI, Edilson, Levando os conceitos a sério: o processo estrutural, processo coletivo, processo
estratégico e suas diferenças, 2021, disponível em
https://www.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pagina_visualizar&id_pagina=2225 [23/12/2022].
31
Recorde-se que a complexidade de um problema estruturante, dando origem a um litígio estruturante, é
imputada à colisão de múltiplos interesses sociais, todos merecedores de tutela, justificando também que
se fale numa multipolaridade.

8
estruturante, que procura promover um determinado estado ideal das coisas, assumindo uma
“estrutura deôntica de uma norma-princípio”32. É assumidamente neste domínio que esta
característica ganha maior destaque, uma vez que, em função do resultado que se promove, a
própria decisão estrutural determina um conjunto de condutas a observar – ou evitar –, podendo
mesmo adquirir a estrutura deôntica de uma norma-regra33. O desdobrar desta complexidade
termina num mútuo auxílio entre as normas-princípio e as normas-regra – enquanto as primeiras
estabelecem finalidades e objetivos, planeando as diligências necessárias para alcançar o
resultado pretendido, as segundas realizam plenamente o que aquelas planearam.

A particular importância das normas-regra vem ainda destacada por VITORELLI, quando
o autor afirma que:

[A] emissão de ordens ao administrador, estabelecendo objetivos genéricos [normas-princípio],


não era suficiente para alcançar os resultados desejados. Ou o juiz se envolvia no quotidiano da
instituição, cuidando de minúcias de seu funcionamento, ou teria que se conformar com a
ineficácia da sua decisão34.

Contudo, a ramificação da complexidade dos processos estruturantes não se esgota numa


primeira e única decisão estrutural com vista a alcançar o ‘estado ideal das coisas’. A primeira
decisão tem na sua génese a intenção de ‘fixar’ as linhas gerais, o núcleo das condutas a tomar
para proteger o direito a ser tutelado. Contudo, são frequentemente necessárias inúmeras outras
que procuram resolver eventuais problemas surgidos da implementação das condutas decorrentes
da primeira decisão, de modo a permitir que o resultado pretendido se concretize, mesmo após o
repensar de determinadas condutas – aquilo que SÉRGIO CRUZ ARENHART designa de
“provimentos em cascata”35. Nas palavras do autor:

Após essa primeira decisão – normalmente, mais genérica, abrangente e quase “principiológica”,
no sentido de que terá como principal função estabelecer a “primeira impressão” sobre as
necessidades da tutela jurisdicional – outras decisões serão exigidas, para a solução de problemas
e questões pontuais, surgidas na implementação da “decisão-núcleo” (…), que implicarão
avanços e retrocessos no âmbito de proteção inicialmente afirmado, de forma a adequar, da
melhor forma viável, a tutela judicial àquilo que seja efetivamente possível de se lograr no caso
concreto36.

32
DIDIER, Fredie, ZANETI, Hermes, OLIVEIRA, Rafael, Notas sobre as decisões estruturantes, in Civil
Procedure Review, Vol. 8, n.º 1, p. 46-64, 2017, p. 49, disponível em
https://civilprocedurereview.com/revista/article/download/138/129 [23/12/2022].
33
DIDIER, Fredie, ZANETI, Hermes, OLIVEIRA, Rafael, cit., p. 50.
34
VITORELLI, Edilson, O Devido Processo Legal Coletivo: Dos Direitos aos Litígios Coletivos, São
Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p. 533.
35
ARENHART, Sérgio Cruz, Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro, in Revista de
Processo, São Paulo, Revista dos tribunais, Vol. 225, p. 389-410, 2013, p. 400, disponível em
https://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=3457323 [27/12/2022].
36
Ibidem.

9
O plano de reestruturação prolonga-se no tempo, gradualmente, e por isso se entende que
um processo estruturante não será capaz de fazer caso julgado.

3. O fenómeno do ativismo judicial e o julgador

3.1. Ativismo judicial


Aponta VIOLIN37 que a primeira utilização do termo ativismo judicial38 é reportada a
Arthur Schlesinger Jr., em 1947, portanto, ainda pré-Brown v. Board of Education of Topeka.

Na mesma publicação em que cunha este termo, Schlesinger procede a descrever o


significado, na sua ótica, desse ‘ativismo’ no contexto do Supremo Tribunal norte-americano –
um grupo ativista de magistrados acreditava no papel determinante do Supremo Tribunal na
promoção do bem-estar social, no alcance de resultados sociais ideias, este que era também, para
ele, uma finalidade do poder judicial39. Uma tal posição significaria que “os juízes ativistas
substituem a vontade do legislador pela própria porque acreditam que devem atuar ativamente na
promoção das liberdades civis e dos direitos das minorias, dos destituídos e dos indefesos”40.

Sem prejuízo deste ser um termo sujeito a difusas interpretações, destaquemos a que mais
diretamente contende com o princípio da separação de poderes – falamos aqui do recurso à
expressão ativismo judicial para referir a verdadeiras intromissões do poder judicial no sentido de
‘corrigir’ eventuais erros dos poderes legislativo e executivo.

Contudo, a necessidade destas intromissões vem a ser justificada por uma fação doutrinal,
sob a ideia de que uma “efetiva resolução de litígios estruturantes está condicionada a uma
mudança de postura do julgador”41. Sobretudo porque a própria natureza do processo estrutural
exige, da parte do magistrado, uma postura mais ativa do que aquela que lhe há de competir nos
demais processos, por forma a construir um ambiente pautado pela colaboração em prol do
objetivo de restruturação da situação de desconformidade que originou o processo.

Na formulação de JOBIM:

37
VIOLIN, Jordão, cit., p. 78.
38
SCHLESINGER Jr., Arthur, The Supreme Court: 1947, in Fortune, Vol. 35, 1947.
39
SCHLESINGER Jr., Arthur, cit., p. 201.
40
CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo, A evolução do ativismo judicial na Suprema Corte Norte-
Americana (I), in RIDB, Ano 2, n.º 6, p. 4693- 4741, 2013, p. 4700, disponível em
https://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/06/2013_06_04693_04741.pdf [28/12/2022]: o conceito dos
magistrados ativistas contrapôs-se, em Schlesinger, ao dos magistrados intitulados de autorrestritivos
judiciais, para quem o poder judicial não tem qualquer poder de ingerência em questões políticas, devendo
validar conclusões concordantes com a vontade do legislador, mesmo que das mesmas discordem.
41
OLIVEIRA, Lillian Zucolote, RIBEIRO, Luiz Alberto Pereira, cit., p. 60.

10
Quando o Poder Legislativo não consegue atribuir ao povo novas leis que possam modificar esse
ambiente ou quando o Poder Executivo fica inerte em seu dever de administrar, é o Poder
Judiciário que deverá intervir (…) por meio de processos individuais ou coletivos. A esse
fenómeno dá-se o nome de ativismo judicial, em contraposição à autocontenção judicial, (…)
sendo que o que ora se defende é que um ativismo judicial equilibrado a tendência do acerto é
maior do que a do erro42.

Visto desta perspetiva, reconhece-se desafiante negar as vantagens de um correto e


equilibrado recurso ao ativismo judicial, sobretudo quando aplicado aos processos estruturantes
e acionado para resolver uma desconformidade que se vê já difícil não prestar atenção, e em face
da qual os competentes poderes estatais haverão já falhado.

Em contrapartida, não deixa de existir uma fação que rejeita esta conexão entre os
processos estruturantes e ativismo judicial, particularmente VIOLIN, que prefere o entendimento
de que a prática judiciária em sede de um processo estruturante não consiste verdadeiramente
numa imposição de valores próprios do juiz, mas antes na adequação de uma instituição a “valores
socialmente compartilhados”43. Será esta a que, reservado aqui algum espaço para conclusões
próprias, a que melhor se coaduna com o propósito dos processos estruturantes, sobretudo perante
valores constitucionais cuja atividade desconformada de instituições ou organizações vêm a ser
colocados em risco. E seja de atribuir crédito a esta visão quando Violin aponta – e considera-se
que bem o faz – que os processos estruturantes constituem uma manifestação de uma vertente
social intrínseca ao Direito, e não de uma ingerência de cariz ativista, ao dizer que “a conceção
de Direito deve ter suporte social (…) porque há amplo e profundo consenso de que o status quo
é inaceitável, o processo jurisdicional é visto como via legítima para a implementação de
mudanças”44.

3.2. Uma postura adequada do julgador


Já vem estabelecido que a multipolaridade dos processos estruturantes os dota de uma
complexidade própria, que se reflete numa postura adequada a ser tomada pelo julgador e que não
se assemelha àquela que este vem tomando na generalidade dos processos. Desde logo pela fuga
à tradicional bipolaridade dos processos civis, na qual o juiz comumente presume que tanto o
autor como o réu representam idealmente os seus próprios interesses – nos processos
estruturantes, será perigoso fazer essa assunção, uma vez que o autor e o réu representam

42
JOBIM, Marco Félix, Medidas estruturantes: da Suprema Corte Estadunidense ao Supremo Tribunal
Federal, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2013, p. 104.
43
Para desenvolvimentos extensivos acerca desta posição, veja-se VIOLIN, Jordão, cit., p. 82-83.
44
Ibidem.

11
interesses que, mesmo que lhes sejam próprios, não lhes são exclusivos, ou seja, não há garantias
de que as partes representam idealmente os interesses do grupo45.

Em face da forte possibilidade de, através da sua decisão, o processo afetar interesses e
direitos de terceiros – do grupo que, afinal, as partes representam –, a postura do julgador não
deve ser pautada por um caráter adversarial puro. Num modelo assim, o objetivo final das partes
seria uma ‘vitória’ sobre o processo e não um verdadeiro litígio justo; para potenciar o suporte
social que caracteriza as funções do Direito, o juiz deve situar-se suprapartes, organizando e
impulsionando o processo sem descair para uma das partes e comprometer a sua imparcialidade46.

Por outro lado, o julgador não deve surgir como entidade absolutamente acima das partes,
como um “oráculo nas alturas”47, abrindo-se às necessidades das partes litigantes.
Semelhantemente, deve desprender-se de uma excessiva observação de burocracias e da vontade
do legislador, opções que, no seu extremo, afetam o processo com uma rigidez indesejável48.

A postura de referência do juiz de um processo estruturante deve, portanto, caracterizar-se


por um equilíbrio entre a imparcialidade e a atenção às necessidades demandadas, desviando-se
ligeiramente de uma neutralidade pura sem, no entanto, comprometer a sua não tomada de posição
face a uma das partes. Sumariamente, não se pede que o juiz tome qualquer partido que não o de
promover os valores de âmbito constitucional contidos no processo, mas sim que este aja mais
ativamente na busca de uma solução eficaz; assim, o julgador deve atender simultaneamente às
alegações trazidas pelas partes e ao funcionamento da(s) instituição(ões) violadora(s)49.

Estas visões são claramente derivadas da conceção preconizada por FISS acerca dos
problemas estruturantes e do propósito dos processos que tratam dos mesmos – o de judicial
interpretation, em que os magistrados “remodelam a realidade à imagem dos direitos que a sua
interpretação constitucional exige” –, contudo, tal não descura que exista uma panóplia de
posições acerca de qual deve ser a postura adequada do juiz estruturante50.

45
VIOLIN, Jordão, cit., p. 65.
46
Técnicas exemplares propostas por Fiss vêm transpostas em VIOLIN, Jordão, cit., p. 66, nomeadamente,
o recurso à ampla divulgação do litígio – figura denominada de fair notice – e ao convite à participação no
litígio de instituições públicas ou privadas, como amici curiae.
47
VITORELLI, Edilson, Processo Civil Estrutural: Teoria e Prática, Salvador, JusPODIVM, 2020, p. 312.
48
OLIVEIRA, Lillian Zucolote, RIBEIRO, Luiz Alberto Pereira, cit., p. 70.
49
Ibidem.
50
Tradução livre de: “(…) courts should reshape reality in the image of the rights that their constitutional
interpretation requires”, EASTON, Robert E., The Dual Role of the Structural Injunction, in The Yale Law
Journal, Vol. 99, n.º 8, p. 1983-2002, 1990, p. 1991, disponível em
https://openyls.law.yale.edu/handle/20.500.13051/16698 [30/10/2022]. Veja-se ainda, na mesma página
referenciada, os aspetos referentes à conceção opositora de Schuck, para quem a postura do juiz num
processo estruturante é uma de ‘competição’ com as demais entidades com autoridade para realizar
reformas burocráticas e fazer prevalecer a sua visão acerca de políticas administrativas a adotar; considera
também o Professor que o recurso à reforma estrutural deve ser um último recurso, perante o insucesso de
outros meios.

12
3.3. A criação de um modelo regulatório
Viu-se já que a decisão estrutural pressupõe o estabelecimento de uma série de ordens e
condutas – numa conjugação de normas-regra e normas-princípio –, frequentemente emanadas
gradualmente ao longo de subsequentes decisões e que, se devidamente acatadas e executadas,
permitem a restruturação de uma instituição violadora e o alcançar do melhor resultado. Na
tradicional doutrina norte-americana, este objetivo depende da criação de um regulatory model,
desdobrável em duas funções, descritas por EASTON:

Primeiro, o juiz procura clarificar, rever ou construir um consenso acerca da legitimidade de uma
instituição, demarcando os seus poderes de forma mais completa. Segundo, o juiz procura
assegurar a implementação das necessárias reformas para distribuir bens obrigatórios e serviços
do governo para os seus cidadãos51.

Através desta conceção subdividida, é possível adequar com maior precisão a posição a
adotar pelo juiz consoante a burocracia necessária. Perante situações condicentes com as
preocupações de Fiss, o modo de atuar do juiz deve ser um que se recorra dos processos
estruturantes para propósitos de implementação (de condutas que garantam o término da violação
de direitos decorrente da atividade de uma instituição)52. Uma instituição em que facilmente se
manifesta esta segunda circunstância, e em que é comum apreender uma necessidade de reforma
estrutural, é a do estabelecimento prisional – se à primeira vista existe uma finalidade geral de
restrição da liberdade nos limites da Constituição, o que muitas vezes se verifica é que os meios
pelos quais essa finalidade é alcançada ficam aquém da mesma, sobretudo da parte em que se
exige o respeito por cânones constitucionais e o equilíbrio na limitação de uns direitos dos
reclusos sem colocar em causa outros53.

Este modelo regulatório de implementação caracteriza-se, portanto, por conter uma decisão
de caráter estruturante que estipula reformas ao comportamento de determinada instituição para
que mais efetivamente a mesma obedeça àquilo que o magistrado considera serem mandados
constitucionais, habitualmente, direitos e interesses dos indivíduos54. Neste contexto, o próprio
FISS clarifica este objetivo, quando diz que “o desejo de ser eficaz não precisa de ser entendido

51
EASTON, Robert E., cit., p. 1993.
52
Ibidem.
53
Frequentemente, os presos vêm-se sujeitos a violência física, condições inadequadas, maus-tratos,
sobrelotação enfim, diversos fatores que naturalmente afetam direitos de âmbito constitucional que nunca
devem surgir como consequências de uma restrição da sua liberdade. Um processo estruturante que
incidiu precisamente sobre questões da dignidade dos prisioneiros – particularmente dos prisioneiros
negros – foi Hutto v. Finney, 437 U.S. 678 (1978).
54
EASTON, Robert E., cit., 1995.

13
como uma afirmação de vontades, mas antes como uma disposição do juiz de assumir
responsabilidade pela realidade prática e pela sua consonância com a Constituição”55.

Contudo, o foco do juiz não é estático, e frequentemente acontece que, no decorrer das
diligências pela sua decisão ordenadas, surjam novas necessidades de aperfeiçoamento que o
levem a aprimorar as condutas, numa nova decisão – como aconteceu em Brown II –, não tanto
no sentido de clarificação de objetivos, mas sim de verdadeira garantia de eficiência da reforma.
Temos aqui uma outra instância em que pode falar-se numa nova adaptação da postura do julgador
que, segundo EASTON, é incentivado pela natureza do processo estruturante a abandonar o
tradicional panorama do reconhecimento de direitos e a optar pelo recurso a estes processos para
impulsionar verdadeiras evoluções e execuções desses direitos56.

4. Podem os processos estruturantes ter sucesso em Portugal?


A resposta a esta questão é uma que justificará, ou pelo menos explicará, a ainda atual
ausência de um sistema de processos estruturais no ordenamento jurídico português, bem como o
caráter ainda embrionário que tem a pesquisa dos processos estruturantes no nosso país. Isto
porque, se ordenamentos jurídicos como o brasileiro têm começado a tecer considerações acerca
de uma necessária ‘superação’ dos padrões processuais tradicionais – a perspetiva binária da
decisão tomada pelo juiz, a predominância de litígios de baixa complexidade e pautados por uma
contraposição de duas partes litigantes, a não-ingerência do poder judicial na execução de
políticas, entre outros –, em Portugal, a tendência é a de manter essas tradições, vincado que é o
princípio da separação de poderes entre nós.

Ficou já estipulado que os processos estruturantes constituem uma ingerência do poder


judicial em matérias geralmente dominadas pelo Poder Executivo e pela Administração Pública,
reconhecido que é o seu foco na atividade de instituições cuja reforma pressupõe o recurso a
políticas públicas. Podemos, portanto, considerar que o nosso modelo segue aquele que
FERNANDO SUORDEM denomina de modelo ocidental ou liberal57.

55
Tradução livre de: “The desire to be efficacious need not be seen as an assertion of will, but as a
willingness of the judge to assume responsibility for practical reality and its consonance with the
Constitution”, FISS, Owen, The Supreme Court: 1978 Term, Foreword: The Forms of Justice, in Harvard
Law Review, Vol. 93, n.º 1, 1979, p. 58, disponível em
https://openyls.law.yale.edu/bitstream/handle/20.500.13051/422/The_Forms_of_Justice.pdf?sequence=2
[2/01/2023].
56
EASTON, Robert E., cit., p. 1996-1997.
57
SUORDEM, Fernando Paulo da Silva, O Princípio da Separação de Poderes e os Novos Movimentos
Sociais, Coimbra, Almedina, 1995, p. 70-71. Nas palavras do autor, este modelo “tem como pressuposto
teorético e exigência metódica a busca da demarcação entre a esfera do Estado e a da Sociedade civil, com
a adopção de de limites à intervenção do Estado no domínio económico e político (…) com a afirmação do
princípio de separação das instâncias administrativas em face das outras instâncias”.

14
Em face disto, aquele que tem sido o entendimento doutrinal no nosso país é que o
mencionado princípio da separação de poderes não permitiria a resolução de problemas
estruturantes através do acesso às instâncias judiciais, ficando ela reservada ao poder
administrativo. Por outro lado, uma vez que a judicatura administrativa portuguesa se abstém ela
mesma de intervir naquele que deve ser o modo de exercício das políticas públicas, ficaram
sedimentadas fortes bases de oposição à aplicação desta estrutura processual.

Ademais, mesmo que, eventualmente, se levasse um problema estrutural a um tribunal, nos


moldes já descritos supra, a mais provável convicção da justiça iria no sentido desta não se
considerar a figura adequada para intervir em matérias deste calibre – sobretudo dos Tribunais
Administrativos face à própria Administração58.

Porém, destaca-se aqui o recente – e sensivelmente o primeiro – contributo para os estudos


dos processos estruturantes no nosso país de PAULA COSTA E SILVA, para quem estes são
processos incrivelmente poderosos no contexto das consequências das decisões deles emanadas.

4.1. Uma solução proposta


É trazendo extensas reflexões de inspiração brasileira que podemos apontar a Paula Costa
e Silva o estatuto de impulsionadora de uma eventual implementação de um sistema de processos
estruturantes em Portugal. Para o efeito, o foco afastou-se do núcleo das políticas públicas para
se centrar em questões, predominantemente de cariz privado, em que o obstáculo da
discricionariedade dos tribunais para se abster em questões contendentes com o administrativo
não se colocaria.

Uma situação em que os processos estruturantes se revelam como uma eventual mais-valia
na resolução de questões jurídicas é no âmbito da insolvência, no contexto das perturbações
contratuais59. Tenham-se em mente, aliás, as palavras de OSNA, quando o mesmo diz que “as
decisões estruturais podem servir como importantes mecanismos para equalizar efeitos
económicos de ampla escala”60. A proposta de Paula Costa e Silva repousa, portanto, numa
realidade cada vez mais urgente no plano processual, a dos novos direitos61. Os processos

58
Núcleo de Direito Processual Civil Comparado UFPR, Prof. Paula Costa e Silva – Perturbação dos
Contratos e Processo Estrutural, Youtube, 09/11/2020, disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=H2OTXE4-KCE [04/01/2023].
59
Terá inclusive sido este o foco de SILVA, Paula Costa, cit., particularmente no contexto das
consequências da recente situação pandémica nas disrupções de inúmeros negócios jurídicos.
60
OSNA, Gustavo, Nem “tudo”, nem “nada” – decisões estruturais e efeitos jurisdicionais complexos, in
ARENHART, Sérgio Cruz, JOBIM, Marco Félix, Processo Estruturais, Salvador, JusPODIVM, p. 177-
202, 2017.
61
GUERRA, Marcelo Lima, Inovações na execução direta das obrigações de fazer e não fazer, in
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Org.), Processo de Execução e Assuntos Afins, 1ª Edição, São Paulo,
Revista dos Tribunais, Vol. 1, p. 296-321, 1998, p. 296.

15
estruturantes tomariam o caráter de primeiro recurso no âmbito processual, impulsionando
verdadeiras negociações entre as partes, olhando “sistemicamente para os problemas que atingem
globalmente os vínculos contratuais”62, enquanto se evita o recurso à insolvência, salvaguardando
assim o vasto conjunto de empresas que na mesma situação se encontrarem.

É possível ir ainda mais longe, propondo a garantia de que o processo estrutural surge como
primeira opção através de medidas de incentivo, aqui, nomeadamente, às empresas, como seria
uma diminuição de determinadas tributações a quem optar por negociar através de processos
estruturantes, em detrimento do comum e mais danoso processo de liquidação ou insolvência63.

Um breve apontamento deve ser feito, contudo, e em jeito de conclusão, sobre a questão da
boa-fé contratual. Certamente que, do mesmo modo que devedores de boa-fé poderão vir a
procurar estes processos, também devedores de má-fé, comum e recorrentemente incumpridores
das suas obrigações contratuais, pretendam retirar vantagens deste processo estruturante. Cumpre
trazer aqui a sensata, mas valiosa recomendação de JUDITH MARTINS-COSTA de “pensar num
modelo que articule o raciocínio abstrato com o raciocínio concreto”64, ou seja, realizar sempre
uma análise casuística de quem deve ou não participar das negociações a acontecer num processo
estruturante.

CONCLUSÃO
Os processos aqui abordados, desde o momento em que nasceram, no seio dos tribunais
norte-americanos, e posteriormente ganhando protagonismo no ordenamento brasileiro,
adquiriram relevância incontornável na solução de litígios ligados a instituições públicas ou
privadas, em questões cujo historial da ação legislativa e/ou executiva é de grave falha.
Paralelamente a esta necessidade, a complexidade destes processos e o caráter policêntrico e
multipolar dos interesses que lhes são subjacentes vieram a exigir uma inédita postura do julgador.

Se inicialmente os processos estruturantes surgiram como um dado social, voltado para


reestruturações institucionais em prol da proteção de direitos e interesses de âmbito
constitucional, os recentes e exponenciais desenvolvimentos socioeconómicos revelam,
sobretudo no contexto português, um novo propósito que pode ser dado a estes processos – o de
salvaguardar novos direitos e interesses, particularmente de empresas, como forma de apelo à
negociação e opção por um meio processual menos danoso.

62
Por oposição ao típico olhar atómico do nosso sistema processual, a única circunstância em que esse
novo olhar, sistémico, acontece é precisamente na insolvência, conforme Paula Costa e Silva expõe em
Núcleo de Direito Processual Civil Comparado UFPR, cit.
63
Idem.
64
Idem.

16
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de Processo, Vol. 225, p. 389-410, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013, disponível em
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