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Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

Fundamentos da Ética e da

1 Moral: contexto histórico e


social, conceitos e
definições fundamentais

Distinguindo Ética de Moral.


O caráter histórico e social da Moral.
O caráter histórico e social da Ética.
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

Caro aluno, bem-vindo à nossa primeira unidade de estudo. Comecemos esta


módulo apresentando a você o contexto histórico do surgimento da ética e da
moral, assim como os principais conceitos e definições que as envolvem. Trata-se,
portanto, de uma unidade introdutória cujo teor da abordagem preparará você ao
entendimento seguro das questões tratadas nas unidades seguintes. Espero que,
por intermédio desta explicação, você sinta-se confortável ao se introduzir no
universo especulativo da ética e seus problemas fundamentais.

Objetivos da unidade

 Apresentar a problemática relativa à distinção entre ética e moral,


assim como as suas respectivas definições e objetos de estudo.

 Esboçar, de forma esquemática, os aspectos históricos e sociais da


ética e da moral.

 Situar os seus elementos constitutivos no desenvolvimento da


humanidade.

Plano da unidade

 Distinguindo Ética de Moral.

 O caráter histórico e social da Moral.

 O caráter histórico e social da Ética.

Como parceiros de sua aprendizagem, desejamos sucesso na sua formação!

Bons Estudos!

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Distinguindo Ética da Moral

No sentido geral, a palavra ética origina-se do grego antigo ήθική [ήθική


φιλοσοφία] "filosofia moral" e do adjetivo ήθος (ēthos) que quer dizer "costume,
hábito". Conexo ao conceito de ética está o conceito de moral, também originado
de uma palavra grega “mores” (ήθος = mos) possui aparentemente um significado
semelhante ao de ética. No entanto, se atentarmos como os gregos realmente
usavam a grafia e a pronúncia do termo ēthos, nota-se uma nítida diferença de
significado entre ambas. São elas:

 (pronunciado como êtos) = para designar "costume”.

 (pronunciado como étos) = para designar a índole, no sentido de caráter


e temperamento natural da pessoa.

Compreendeu como a diferença da pronúncia de ēthos altera substancialmente o


seu significado? Certamente, em um ato concreto realizado por uma pessoa a diferença
de sentido entre ambas não são claramente percebida. Por exemplo: o ato do cidadão
grego de partir, com seus iguais, para a guerra, em defesa da cidade-estado (pólis), está
presente nos dois sentidos indicados pelas duas palavras gregas. É costume da cidade
grega que o cidadão seja soldado e não escravo, pois o ato de defender a cidade é um
ato honroso. Com efeito, o ato de ir à guerra diz também algo íntimo acerca do homem,
pois está relacionado ao seu caráter: ele é um homem corajoso e, como tal, valoroso.
Vejam, nestas frases comuns entre nós, como os dois sentidos da palavra ēthos
utilizados pelos gregos antigos estão intimamente relacionados:

a) "O rapaz foi muito ético: não revidou agressão."

b) “Aquele político é um homem ético."

c) "Todos aqui o respeitam como um homem de moral."

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Diferentemente dos gregos, os romanos utilizavam a palavra latina mos


(mores) para designar o costume ou costumes. Foi a partir deste termo romano que
surge o modo como entendemos o significado de moral na Língua Portuguesa.
Sendo assim, na nossa Língua, os dois termos, ética e moral,
implicam, simultaneamente, de alguma forma, nos dois
significados diferentes antigos e, de fato, tanto a ética
quanto a moral, incidem sobre estas duas dimensões, ou
seja, uma valoração do homem como tal e do seu agir em
conformidade ou não com os costumes e a tradição.

Reconhecendo as dificuldades para separar de modo consensual e técnico o


que é ético do que é moral, em um terreno em que não há acordo fácil entre os
filósofos sobre a distinção entre ambas, vejamos como o dicionário de Aurélio
Buarque de Holanda as define:

1. ÉTICA: refere-se ao "estudo dos juízos de apreciação referentes à


conduta humana suscetível de qualificação do ponto de vista do bem e
do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo
absoluto" (HOLANDA, 1999, p. 848-849).

2. MORAL: refere-se ao "conjunto de regras de conduta consideradas


como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar,
quer para grupo ou pessoa determinada" (HOLANDA, 1999, p. 978-
979).

IMPORTANTE:

A distinção do dicionarista está de acordo com a certa tradição


filosófica: a de considerar moral como as normas de convivência social e ética como
o estudo e a reflexão teórica, sobre a moral, o comportamento moral dos homens e
as valorações morais das diferentes culturas e sociedade, segundo uma
metodologia estritamente racional, ou seja, filosófica e científica (Cf. VÁZQUEZ,
2001).

Percebe-se claramente que as definições de ética e moral fornecidas pelo


dicionarista apresentam uma diferença técnica entre os dois termos, segundo seu
uso correto em nossa língua, em que está também a chave da solução para

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entender o modo confuso e equivocado com que as duas palavras são usadas: os
homens modernos não gostam de dizer que suas ações são morais, pois isto
equivaleria a dizer que elas são corretas apenas porque são conformes ao costume
e à tradição. Preferem dizer que agem segundo uma ética para denotar um
suposto caráter independente, reflexivo e filosófico de sua posição existencial e
política.

Diante dos clamores da imprensa, dos políticos e dos militantes dos


movimentos sociais por "mais ética na política", nos
últimos anos, usa-se o termo ética e não o termo moral Tradição mosaica:
para uma fuga, até certo ponto fictícia, do caráter tradição proveniente dos
"tradicionalista" da moral. Por um lado, se avaliarmos bem ensinamentos de Moisés.
quais seriam os "princípios éticos" que, em última análise,
se espera dos políticos, encontraríamos antigos valores da cultura ocidental,
consignados em mandamentos da lei de Deus, conforme a tradição mosaica e
incorporada pelo cristianismo: “Não matarás; não roubarás”; “não levantarás falso
testemunho”; “não cobiçarás as coisas alheias” (Cf. VÁZQUEZ, 2001).

Diante disso, o apelo por mais ética na política nada mais é do que um apelo
por mais fidelidade aos antigos valores morais do mundo ocidental. Desta forma, lá
onde se alardeia uma novidade, produto de uma reflexão "filosófico-ética" original,
nada mais há do que valores antigos sob novos nomes ou "novas fachadas". Por
outro lado, há níveis de complexidade dos problemas humanos reais e concretos
que já não são tão facilmente resolvidos com base nos costumes tradicionais.

Veja-se que ninguém precisa fazer apelo à reflexão ética para dizer que "é
imoral um vizinho roubar o cachorro do outro e dá-lo de presente a um amigo". Em
geral, poder-se-ia dizer que a lei moral "não roubarás" surgiu neste mesmo
contexto elucidativo, ou seja, problemas humanos antigos continuam sendo
suficientemente bem resolvidos pela moral tradicional. Logo, um dos grandes
dilemas dos estudos da moral na atualidade pode ser resumido nas seguintes
questões: existem ou não valores morais válidos para todos os homens? Como
justificar a classificação das ações em moralmente corretas ou incorretas, boas ou
más?

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Retomando a problemática da distinção conceitual entre ética e moral,


Vázquez afirma que a “ética é a teoria ou ciência do comportamento moral dos
homens em sociedade. Ou seja, é a ciência de uma forma específica do
comportamento humano” (VÁZQUEZ, 2001, p. 12). Essa definição ressalta o caráter
científico da ética, isto é, corresponde à necessidade de uma abordagem científica
dos problemas morais.

Por outro lado, Valls afirma que:

“a ética preocupa-se com as formas humanas de


resolver as contradições entre necessidade e
possibilidade, entre tempo e eternidade, entre o
individual e o social, entre o econômico e o moral, entre
o corporal e o psíquico, entre o natural e o cultural e
entre a inteligência e a vontade, evidenciando as
contradições enfrentadas pelos indivíduos na tomada
de decisões envolvendo dilemas éticos (VALLS, 1996, p.
48).

Comparando as definições fornecidas pelos autores, poderemos traçar o


seguinte esquema:

1. a ética relaciona-se com a ciência (o conhecimento científico);

2. a ética relaciona-se com avaliação da conduta humana;

3. a ética é uma ciência normativa;

4. a ética, pelo contrário, é uma reflexão filosófica, logo puramente


racional;

5. a ética possui um caráter universalista opostamente ao caráter


restrito da moral.

Conforme explicitado, os problemas éticos caracterizam-se pela sua


generalidade; isto os distingue dos problemas morais relativos à vida cotidiana. De
acordo com Vázquez, “por causa de seu caráter prático (…), tentou-se ver na ética
uma disciplina normativa, cuja função fundamental seria a de indicar o
comportamento melhor do ponto de vista moral” (VÁZQUEZ, 2001, p. 10). Desse

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modo, o ético tornar-se-ia uma espécie de “legislador do comportamento moral”


dos indivíduos ou da comunidade.

No entanto, ainda segundo Vázquez:

A função fundamental da ética é a mesma de toda


teoria: explicar, esclarecer ou investigar uma
determinada realidade, elaborando os conceitos
correspondentes. Por outro lado, a realidade moral
varia historicamente e, com ela, variam os seus
princípios e as suas normas (VÁZQUEZ, 2001, p. 10).

Portanto, não cabe à ética formular juízos de valor sobre a prática moral de
outras sociedades ou épocas, mas sim explicar a razão de ser destas mudanças de
moral, esclarecendo o fato de o homem ter recorrido a práticas morais diferentes e
até opostas. É importante notar que a ética não deve ser confundida com moral,
como podem induzir expressões correntes como “ética católica” ou “ética do
capitalismo”.

Segundo Robert Srour:

Enquanto a moral tem uma base histórica, o


estatuto da ética é teórico, corresponde a uma
generalidade abstrata e formal. A ética estuda as morais
e as moralidades, analisa as escolhas que os agentes
fazem em situações concretas, verifica se as opções se
conformam aos padrões sociais. (…). Distingue-se das
morais históricas que imbuem coletividades amplas
(nações, classes ou categorias sociais) e que remetem a
conceitos específicos ou de “espécie” (SROUR, 2000, p.
270).

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Embora sejam temas de natureza teórica, as definições


construídas pela ética podem interferir substancialmente nas Retroalimentação
práticas morais. Por isso, Vázquez afirma que teoria ética e a
significa, neste contexto,
prática moral, ainda que distintas, devem viver entrelaçadas
uma troca constante e
ou, nas suas palavras, em “retroalimentação” permanente.
mútua de elementos da
Neste sentido, a ética estudaria os comportamentos “prático-
moral e da ética que se
morais”, trazendo-lhes depois questionamentos e
proposições. entrecruzam
simultaneamente.
Quanto à moral, entende-se um conjunto de normas e
regras destinadas a regular as relações entre os indivíduos. O seu significado, função e
validade não podem deixar de receber uma variação histórica nas diferentes sociedades.
De fato, o comportamento moral varia de acordo com o tempo e o lugar, conforme as
exigências nas quais os indivíduos se organizam ao estabelecerem as formas de
relacionamento e as práticas de trabalho. À medida que estas relações se alteram, exige-
se uma modificação progressiva nas normas do comportamento coletivo. Por exemplo,
a idade média caracterizava-se pelo regime feudal, baseado, sobretudo, na hierarquia
de suseranos, vassalos e servos (ARANHA, 2003).

Neste regime, o trabalho era garantido pelos servos, possibilitando aos nobres uma
vida dedicada ao ócio e à guerra. A moral cavalheiresca deriva e baseia-se no
pressuposto da superioridade da nobreza, exaltando a virtude da lealdade e da
fidelidade — suporte do “sistema de suserania”. Em contraposição, o trabalho é
desvalorizado e restrito aos servos. Esta situação foi alterada substantivamente com o
aparecimento da burguesia, a qual, formada pelos antigos servos libertos, tendeu a
valorizar o trabalho e criticar a ociosidade (Cf. ARANHA, 2003).

IMPORTANTE:

Diante disso, é possível perceber que uma mudança radical na estrutura


social acarreta uma mudança fundamental de moral. Em cada indivíduo,
entrelaça-se, de modo particular, uma série de relações sociais próprias ou particulares
de sua época ou da sua sociedade, o que demonstra que a sua individualidade possui
também um caráter social. Percebe-se, por outro lado, que existe uma gama de padrões
que, em cada sociedade, modelam o comportamento individual, o seu modo de
trabalhar, o seu modo de se vestir, sentir, amar, etc. Estes padrões variam de uma
sociedade para outra e, por isso, não há sentido em falar de uma individualidade fora
das relações que os indivíduos encontram na sociedade.

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Contudo, ainda que a moral mude historicamente, e uma mesma norma moral
possa apresentar um conteúdo diferente em diferentes contextos sociais, a função
social da moral em seu conjunto ou de uma norma particular é a mesma, isto é,
regular as ações dos indivíduos nas suas relações mútuas ou as do indivíduo com a
comunidade, objetivando preservar a sociedade no seu conjunto ou a integridade
do grupo social.

Para Vázquez (2001, p. 233):

Assim a moral cumpre uma função social bem


definida: contribuir para que os atos dos indivíduos ou
de um grupo social desenvolvam-se de maneira
vantajosa para toda a sociedade ou para uma parte.

A moral implica, portanto, uma relação livre e consciente entre os indivíduos


ou entre estes e a comunidade. Mas esta relação está também socialmente
condicionada, precisamente porque o indivíduo é um ser social ou um nexo das
relações sociais. O indivíduo se comporta moralmente no quadro de certas relações
e condições sociais determinadas que ele não escolheu e dentro também de um
sistema de princípios, valores e normas morais que não inventou, mas que recebe
socialmente e segundo o qual regula as suas relações com os demais ou com a
comunidade inteira.

Com base nestes elementos conceituais, podemos definir a moral da seguinte


forma:

“A moral é um sistema de normas, princípios e


valores, segundo o qual são regulamentadas as
relações mútuas entre os indivíduos ou entre estes e a
comunidade, de tal maneira que estas normas, dotadas
de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e
conscientemente, por uma convicção íntima, e não de
uma maneira mecânica, externa e impessoal (VÁZQUEZ
2001, p. 84).

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A moral, portanto, possui um caráter social, porque os indivíduos se sujeitam a


princípios, normas ou valores socialmente estabelecidos. Também, regula somente
atos e relações que acarretam consequências para outros e exigem
necessariamente a sanção dos demais. Por outro lado, cumpre a função social de
induzir os indivíduos a aceitar livre e conscientemente determinados princípios,
valores e interesses.

Com base na definição de moral em Vázquez, delinearemos um quadro


comparativo entre ética e moral. Vejamos a seguir:
ÉTICA MORAL
Parte da filosofia prática que objetiva elaborar
um reflexão sobre os problemas fundamentais A moral é uma forma de comportamento
da moral fundamentado em um estudo humano que compreende tanto uma aspecto
metafísico do conjunto de regras da conduta normativo quanto um aspecto factual.
considerada como universalmente válida.

Diferente da moral, a ética preocupa-se em


detectar os princípios de uma vida conforme a
sabedoria filosófica, em elaborar uma reflexão A moral é um fato social.
sobre as razões de se desejar a justiça e a
harmonia e sobre os meios de alcançá-la.

A ética é a ciência da moral, ou seja, de uma Embora a moral possua um caráter social, o
esfera do comportamento humano. Neste individuo tem um papel fundamental, pois a
sentido, a ética não é moral nem a moral é moral exige a interiorização das normas e
científica. deveres.

Diante desse quadro comparativo, é possível constatar a confluência dos


enunciados com as definições de ética e moral formuladas anteriormente. Ética e
moral relacionam-se, mas com objetos diferenciados, específicos e bem definidos.
Com efeito, ambas as palavras mantêm uma relação que não possuíam
propriamente em suas origens etimológicas. Certamente, a moral diz respeito ao
conjunto de normas ou regras adquiridas pelo hábito. Neste caso, a ela refere-se ao
comportamento adquirido socialmente ou modo de ser conquistado pelo homem.

A ética, por sua vez, baseia-se em um modo de comportamento que não


corresponde a uma disposição natural, mas é adquirido ou conquistado pelo
hábito. É precisamente esse caráter não-natural da forma de ser do homem que, no
período antigo da humanidade, conferia a este mesmo homem uma “dimensão
moral”.

A seguir, discutiremos com mais detalhe o caráter histórico e social da moral,


especificando esta dimensão moral do homem. Preparados?

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O caráter histórico e social da Moral

Mesmo considerando a origem divina das ideias morais, por intermédio das
quais os indivíduos teriam adquirido a consciência dos meios adequados à sua
elevação ao plano espiritual dos valores perenes, a investigação do problema da
moral não pode desprezar os processos históricos responsáveis pelos mecanismos
de criação, funcionamento e aplicação dos padrões e das regras morais. Todas as
sociedades humanas possuem valores padrões, normas de conduta e sistemas que
garantem a aplicação e o funcionamento das mesmas.

O estudo do modo de implementação social desses sistemas de regulação


moral revela-nos que o fundamento sobre o qual repousam constitui-se de hábitos
e atitudes firmados diante de “padrões de conduta”, que funcionam como
“cimento da unidade social dos grupos humanos”. A questão que nos interessa é
saber se estes padrões de conduta moral são impostos a partir da própria estrutura
de poder vigente ou se refletem a natureza geral humana.

IMPORTANTE:

No primeiro caso, a existência desses padrões é objetiva: está posta nas


leis e normas emanadas das instâncias de poder. No segundo caso, fazem-se
necessárias especulações e discussões sobre o que é a natureza humana e como
ela deve ser cuidada para se manter fiel a si mesma. Para auxiliarmos no
entendimento destas questões, verificaremos o comentário de Howard Parsons
(1982, p. 158) sobre esta problemática:
A “moral”, em suas raízes latinas, caracteriza-se
como algo de pesado, inamovível e campesino: os
mores são os usos e costumes de um povo, embebido
de hábitos que estão na base dos seus caracteres e que
os une num sólido liame. Destruam os mores,
destruirão os homens e a sociedade. A moral
tradicional, porém, não satisfaz muita gente hoje em
dia. A sociedade e a mores estão em uma convulsão
como nunca se viu antes. Deriva daí que a nossa
pesquisa não deve voltar-se nem tanto para uma nova
moral (os frutos), nem tampouco para velhas morais
(troncos vazios), e sim para raízes eternas.

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Baseados no comentário citado pelo autor, podemos dividir as concepções


quanto à origem da moral em dois tipos básicos: aquelas que explicam esta origem
por princípios metafísicos e, como tal, supra-históricos ou a-históricos. Alinham-se
neste primeiro tipo as teorias que veem um poder sobre-humano como fonte das
normas morais. Também as que veem o homem como origem e fonte da moral,
mas referindo-se a uma essência eterna e imutável a todos os indivíduos. De outro
lado, estão as teorias historicistas, ou seja, as que procuram a origem da moral no
horizonte da história, vendo-a como produto histórico e social do homem.

Entre as teorias a-historicistas ou metafísicas,


Tomás de Aquino que foi
poder-se-ia citar a posição Neotomista. Esta corrente
chamado o mais sábio dos
de pensamento europeia e católica (representada por
santos e o mais santo dos
Garrigou-Lagrange e Jacques Maritain) surgiu entre as
sábios. Seu maior mérito foi a
duas grandes guerras mundiais e que teve penetração
síntese do cristianismo com a
no Brasil a partir dos anos cinquenta através do Pe.
visão aristotélica do mundo,
Leonel Franca e de Alceu de Amoroso Lima (Tristão de
introduzindo o aristotelismo,
Ataíde). Estes seguem o pensamento de São Tomás de
sendo redescoberto na Idade
Aquino e afirmam que o homem é dotado de um
Média, na escolástica anterior,
senso moral natural, "no sentido de que possui uma
compaginou um e outro, de
infalibilidade resultante da própria natureza da
forma a obter uma sólida base
inteligência" (Cf. ARANHA, 2003, p. 67).
filosófica para a teologia e
O senso moral, segundo Tomás de Aquino, é o retificando o materialismo de
"sentimento imediato e absoluto da lei reguladora do Aristóteles. Em suas duas
conhecimento e da ação práticos", define-se "Summae", sistematizou o
"adequada e essencialmente pelo princípio de que é conhecimento teológico e
preciso fazer o bem e evitar o mal". Desta forma, a filosófico de sua época : são elas
vontade humana tende necessariamente para o bem. a "Summa Theologiae", a
Por esta razão, os sentimentos morais, considerados "Summa Contra Gentiles"
componentes da consciência moral, manifestem uma (Disponível em:
tendência ao bem e uma repulsa ao mal, o respeito do <www.wikpedia.com.br>.
dever e a antipatia pela má conduta. Acesso em 16 maio 2008.)

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As teorias historicistas, por outro lado, defendem que a moral de uma


comunidade encontra-se essencialmente em seus costumes. Em outras palavras,
para estes os costumes dizem como cada homem deve agir em situações concretas
em função daquilo que a comunidade considera como sendo o bem e o mal. Por
isso, consideram o modo de agir e de pensar baseado na "moral" como aquele que
está em conformidade com a moralidade. Por sua vez, para estes a moralidade
consiste na obediência ao costume de tal forma que onde não há nenhum
costume classificado como certo, não há moralidade, pois se pode agir de
diferentes modos sem que nenhum deles seja visto pela comunidade como um ato
imoral ou amoral.

Mas o que é imoral e amoral? No sentido geral, o termo imoral significa algo
que é contrário à moral. Especificamente, diz respeito a uma conduta ou regra que
contraria a moral prescrita pela sociedade. Em outras palavras, entende-se por
imoral tudo aquilo que uma sociedade (em um determinado espaço e tempo)
consensualmente não admite ou julga ser correto ou justo em relação à conduta
ou ao comportamento social de um indivíduo e um grupo de indivíduos que
pertencem a ela.

De outra forma, o termo amoral significa propriamente ausência de moral, ou


seja, é o instante que não se pode avaliar ou emitir um juízo de valor de natureza
moral ou imoral sobre o agir de um indivíduo ou mesmo um grupo de indivíduos
pertencentes a uma determinada sociedade.

Percebeu como estes dois termos estão intimamente relacionados ao


comportamento dos indivíduos no seio da sociedade? É exatamente este o ponto
de vista de Vázquez (2001, p. 244):
A necessidade de ajustar o comportamento de
cada membro aos interesses da coletividade leva a que
se considere como bom ou proveitoso tudo aquilo que
contribui para reforçar a união ou a atividade comum e,
ao contrário, que se veja como mau ou perigoso o
oposto; ou seja, o que contribui para debilitar o minar a
união; o isolamento, a dispersão dos esforços, etc.
Estabelece-se, assim, uma linha divisória entre o que é
bom e o que é mau, uma espécie de tábua de deveres

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ou obrigações baseada naquilo que se considera bom


ou útil para a comunidade. Destacam-se, assim, uma
série de deveres: todos são obrigados a trabalhar, a
lutar contra os inimigos da tribo, etc. Estas obrigações
comuns comportam o desenvolvimento das qualidades
morais relativas aos interesses da coletividade:
solidariedade, ajuda mútua, disciplina, amor aos filhos
da mesma tribo, etc. O que mais tarde se qualificará
como virtudes ou como vícios acha-se determinado
pelo caráter coletivo da vida social. Numa comunidade
que está sujeita a uma luta incessante contra a
natureza, e contra os homens de outras comunidades, o
valor é uma virtude principal porque o valente presta
um grande serviço à comunidade. Por razões análogas,
são aprovadas e exaltadas a solidariedade, a ajuda
mútua, a disciplina, etc. Ao contrário, a covardia é um
vício horrível na sociedade primitiva porque atenta,
sobretudo contra os interesses vitais da comunidade. E
se deve dizer a mesma coisa de outros vícios como o
egoísmo, a preguiça, etc.

Cabe notar que a partir desta consideração, Vázquez entra em uma calorosa
discussão entre as teses metafísicas e historicistas sobre a origem da moral, o que
nos conduz a uma reflexão sobre os seus fundamentos, ou seja, uma discussão a
respeito da legitimidade com que a moral se impõe aos indivíduos. Se a moral
possui uma origem metafísica, não está ao alcance do
homem modificar seus postulados fundamentais, tais Barbárie: estado ou
como, o princípio "faça o bem e evite o mal". Um princípio condição de bárbaro.
metafísico como este garante por si mesmo uma forte
fundamentação teórica para o ordenamento moral da
sociedade. Se concepções historicistas da origem da moral estiverem certas, a
moral a que estamos submetidos relativiza-se os nossos próprios atos, o que torna
um desafio repensar os seus fundamentos.

Com efeito, torna-se possível não apenas reformá-la, mas fazê-la com a
consciência de que ela é apenas um produto humano. Isto retira boa parte de sua
força de imposição e legitimidade proveniente da ideia de sua origem metafísica,
transcendente e sagrada. O que acontece com o indivíduo e com a sociedade que
dessacraliza sua moral? Surge o risco da desordem e da desestruturação da
sociedade? Desestruturar a sociedade é correr risco de voltarmos para a
animalidade, para a barbárie.

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Por conta disso, o âmbito da moral passar a existir como um traço de formação
que todo homem recebe do processo de interação. Essa formação é inteiramente
não-religiosa na sua própria justificação: por isso se diz que a moral do homem
moderno é laicizada. Os valores morais não são reconhecidos como revelados por
uma um origem divina, ou seja, trata de valores que não são sagrados. Ao
contrário, estes valores são resultantes do processo histórico de sua
dessacralização. A eles recusa-se qualquer transcendência, qualquer caráter
sagrado. Mas existem objetivamente e sua existência pode até ser estatisticamente
verificada, ou seja, justificada através de critérios científicos.

Não é somente o critério científico que a moral justifica-se. Ela pode ainda ser
justificada pelos seguintes critérios:

 critério de justificação social: na medida em que a moral


desempenha a função social de garantir o comportamento dos
indivíduos de uma comunidade numa determinada direção, toda
norma corresponderá aos interesses e necessidades sociais. Em
suma, em uma comunidade em que se verifica a necessidade de um
indivíduo ou o interesse de um indivíduo particular, justifica-se uma
norma que exige o seu comportamento adequado;

 critério de justificação prática: uma norma moral somente pode


ser justificada se forem verificadas as condições reais para que a sua
aplicação não se ponha às necessidades sociais da comunidade.
Sendo assim, em uma determinada comunidade na qual se verificam
as condições necessárias, justifica-se a norma que corresponde a tais
condições;

 critério de justificação lógica: a justificação lógica das normas


satisfaz plenamente a função social de toda moral, pois impede que
uma comunidade determinada elabore normas arbitrárias ou
caprichosas que, precisamente, por não se integrarem no respectivo
sistema normativo, entrariam em contradição com os interesses e
necessidades da comunidade. Neste contexto, uma norma se
justifica logicamente se demonstrada a sua coerência e não-
contraditoriedade com respeito às demais normas do código moral
do qual faz parte.

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Veremos a seguir alguns aspectos desta discussão, apresentando a você o


contexto histórico e social da ética. Vamos lá?

O caráter histórico e social da Ética


Como já discutimos, toda coletividade humana possui sua própria moral ou
suas morais (diferentes morais para diferentes grupos da mesma sociedade). Isto,
porém, não significa que todo povo tenha uma ética, entendida como um estudo
racional da moral. O nascimento (origem ou gênese) da moral data do próprio
nascimento da coletividade humana e do seu processo de interação. Pode-se
afirmar que as doutrinas éticas nascem e se desenvolvem em diferentes épocas e
sociedades como respostas aos problemas básicos apresentados pelas relações
entre os homens e, em particular, pelo seu comportamento moral efetivo.

Por essa razão, existe uma estreita vinculação entre os conceitos morais e as
realidades humana e social, sujeitas historicamente à mudança. Com efeito, as
doutrinas éticas não podem ser consideradas isoladamente, mas dentro de um
processo de mudança e de sucessão que constitui propriamente a história. Ética e
história, portanto, relacionam-se duplamente: com a vida social e com a sua
própria história, uma vez que cada doutrina ética está em conexão com as
anteriores.

Toda moral efetiva se elaboram certos princípios, valores ou normas. Assim,


mudando radicalmente a vida social, muda também a vida moral. Os princípios,
valores e normas encarnados nela entram em crise e exigem a sua justificação ou a
sua substituição por outros. Assim explica-se o surgimento e sucessão de doutrinas
éticas fundamentais em conexão direta com a mudança e sucessão de estruturas
sociais e, dentro delas, da vida social.

A gênese da moral é também um problema em relação à moral estabelecida


na atualidade. O fato de ela estar estabelecida, de sustentar-se e perpetuar-se
historicamente exige uma explicação. Por isso, do ponto de vista filosófico, há uma
necessidade intrínseca para explicar a gênese e os pressupostos fundamentais da
moral. A ética, enquanto estudo da moral, por outro lado, tem data de nascimento
certa e, graças à história da filosofia, podemos conhecer o seu surgimento e a sua
evolução.

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A ética surgiu na Grécia, no século V a.C., com o surgimento dos sofistas e com
a atitude de reação aos sofistas por parte de Sócrates. A sofística aparece num
momento cultural e político muito específico da história e cultura grega. No
período clássico grécia, os sofistas rejeitam a tradição mítica ao considerar que os
princípios morais resultam de convenções humanas. Embora na mesma linha de
oposição aos fundamentos religiosos, Sócrates se contrapõe aos sofistas ao buscar
explicar os princípios morais não nas convenções, mas na natureza humana.

Segundo Hamlyn (1990 p. 25):

A ética propriamente dita começou com Sócrates,


embora os sofistas lhe tenham dado um estímulo
importante. Isto a despeito do fato de que Sócrates, a
julgar pelas indicações que nos dá Platão, se opunha a
eles. Para seus contemporâneos, de qualquer maneira,
eles provavelmente pareciam mais próximos a ele do
que nos parece hoje. Os sofistas eram mestres
ambulantes que davam cursos ou aulas individuais
sobre vários assuntos e cobravam por esse privilégio.
Alguns deles, pelo menos, parecem ter ganho bom
dinheiro com essas atividades. É tentador atribuir a esse
fato o desfavor em que são hoje tidos, embora seja
duvidoso que cobrar honorários por serviços prestados
tenha sido motivo de desaprovação para o ambiente
ateniense típico de meados do século V a.C. Sócrates
censurava-os porque achava que eles alegavam
fornecer mais do que realmente davam. Em especial,
alegava que eles diziam que podiam ensinar virtude ao
homem e achava que não faziam nada disso.

Um sofista era um professor e, por este motivo, a palavra sophistés era utilizada
para se referir aos poetas, que foram os primeiros educadores na Grécia. Em
princípio, a palavra sofista não possui um sentido pejorativo que veio adquirir mais
tarde, em Atenas, quando os seus inimigos os acusavam de charlatães e
mentirosos. O que ensinavam os sofistas? Os sofistas ensinavam a arte de
argumentar e persuadir, arte decisiva para quem exerce a cidadania em uma
democracia direta.

29
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

Mais uma vez, contudo, se acreditarmos nos diálogos de Platão, os


próprios argumentos de Sócrates, considerados puramente como tais, são
amiúde pouco melhores do que os de seus adversários sofistas. Pouca dúvida
pode haver de que os contemporâneos de Sócrates o teriam julgado tão
inigualável a esse respeito como os sofistas. Por outro lado, muitos
tributavam a todos eles uma análoga admiração prudente. Sócrates, no
entanto, exercia um fascínio próprio, como dá notícia Alcibíades em O
Banquete, de Platão, e era o caráter do homem e a profundidade de sua
consciência moral que o tornava especial.

Inúmeros são os diálogos de Platão em que são descritas as discussões


socráticas a respeito das virtudes e da natureza do bem. Resulta daí a convicção de
que a virtude se identifica com a sabedoria e o vício com a ignorância. Neste
termos, para Platão, a virtude pode ser aprendida. Na célebre passagem de
República em que Platão descreve o mito da caverna reaparece essa ideia: o sábio é
o único capaz de se soltar das amarras que o obrigam a ver apenas sombras e,
dirigindo-se para fora, contempla o sol, que representa a ideia do Bem. Portanto,
"alcançar o bem" se relaciona com a capacidade de "compreender bem". Todavia,
apenas o filósofo atinge o nível mais alto de sabedoria, só a ele cabe a virtude
maior da justiça e, portanto, lhe é reservada a função de governar a cidade. Outras
virtudes menores, mas também importantes para a cidade, caberão aos soldados
defensores da pólis e aos trabalhadores comuns, artesãos e comerciantes.

IMPORTANTE:

Herdeiro do pensamento de Platão, Aristóteles aprofunda a discussão a


respeito das questões éticas. Mas, para este, o homem busca a felicidade, que
consiste não nos prazeres nem na riqueza, mas na vida teórica e contemplativa cuja
plena realização coincide com o desenvolvimento da racionalidade. O que há de
comum no pensamento dos dois filósofos gregos em questão é a concepção de
que a virtude resulta do trabalho reflexivo, da sabedoria, do controle racional dos
desejos e paixões. Além disso, o sujeito moral não pode ser compreendido ainda,
como nos tempos atuais, na sua completa individualidade. Os homens gregos são,
antes de tudo, cidadãos, membros integrantes de uma comunidade, de modo que
a ética se acha intrinsecamente ligada à política e a pólis.

30
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

No período helenista, os filósofos se ocupam


predominantemente com questões morais, e Epicuro (341-270 a.C.), filósofo
destacam-se duas tendências opostas: hedonismo e o grego (nascido em Samos)
estoicismo. Para os hedonistas (do grego hedoné, atomista, fundador do
"prazer"), o bem se encontra no prazer. O principal epicurismo. A base de seu
representante do hedonismo grego, Epicuro (341-270 sistema é uma física fundada
a.C.), considera que os prazeres do corpo são causas
nos *átomos como em
de ansiedade e sofrimento. Para permanecer
Demócrito. Pontos últimos se
imperturbável, a alma precisa desprezar os prazeres
deslocando no vazio. Os átomos
materiais, o que leva Epicuro a privilegiar os prazeres
constituem a explicação última
espirituais, dentre os quais aqueles referentes à
do mundo: nada existe a não ser
amizade.
os átomos e o vazio no qual se
Na mesma época, o estoico Zenon de Cítio (336-
move: a alma, como tudo o que
264 a.C.) despreza os prazeres em geral, ao considerá-
existe, é formada de átomos
los fonte de muitos males. As paixões devem ser
materiais: tudo o que acontece
eliminadas, porque só produzem sofrimento e, por
no mundo deve-se às ações e
isso, a vida virtuosa do homem sábio, que vive de
interações mecânicas dos
acordo com a natureza e a razão, consiste em aceitar
com impassibilidade o destino e o sofrimento (Cf. átomos.

ARANHA, 2003). Visão teocêntrica é aquela que


As teorias estoicas foram bem aceitas pelo atribui Deus como centro de
cristianismo ainda na época do Império Romano, tudo.
tendo também fecundado as ideias ascéticas do
período medieval. Durante a Idade Média, a visão teocêntrica do mundo fez com
que os valores religiosos impregnassem as concepções éticas, de modo que os
critérios do bem e do mal se achavam vinculados à fé e dependiam da esperança
de vida após a morte. Na perspectiva religiosa, os valores são considerados
transcendentes, porque resultam de doação divina, o que determina a
identificação do homem moral com o homem temente a Deus.

No entanto, a partir da Idade Moderna, culminando


no movimento da Ilustraçao no século XVIII, a moral se Laico e secular significam
torna laica, secularizada. Ou seja, ser moral e ser religioso respectivamente o oposto ao
não são polos inseparáveis, sendo perfeitamente possível eclesiástico.
que um homem ateu seja moral e, mais ainda, que o
fundamento dos valores não se encontre em Deus, mas no próprio homem.

31
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

O movimento intelectual do século XVIII conhecido como Iluminismo,


Ilustração ou Aujklärung e que caracteriza o chamado Século das Luzes exalta a
capacidade humana de conhecer e agir pela "luz da razão". Esta critica a religião
que submete o homem à heteronomia, que o subjuga a preconceitos e o conduz
ao fanatismo. Rejeita toda tutela que resulta do princípio de autoridade. Em
contraposição, defende o ideal de tolerância e autonomia.

No lugar das explicações religiosas, a Ilustração fornece três tipos de


justificação para a norma moral: aquela se funda na lei natural (teses
jusnaturalistas), no interesse (teses empiristas, que explicam a ação humana como
busca do prazer e evitação da dor) e na própria razão (tese kantiana).

A máxima expressão do pensamento iluminista encontra-se em Kant (1724-


1804) que, além da Crítica da razão pura escreveu a Crítica da razão prática e
Fundamentação da metafísica dos costumes, nas quais desenvolve a sua teoria
moral e ética. A razão prática diz respeito ao instrumento para compreender o
mundo dos costumes e orientar o homem na sua ação. Analisando os princípios da
consciência moral, Kant conclui que a vontade humana é verdadeiramente moral
quando regida por imperativos categóricos. O
Imperativo categórico: Kant
imperativo categórico é assim chamado por ser
criou o termo imperativo no
incondicionado, absoluto, voltado para a realização da
seu livro Fundamentação da
ação tendo em vista o dever.
Metafísica dos Costumes,
A tradição da moral ocidental encontrou no escrito em 1785. Esta palavra
pensamento do filósofo alemão do século XVIII um pode ser entendida, segundo
momento de aparente resolução do antagonismo alguns autores, como uma
histórico entre as fontes judaicas e helênicas da analogia ao termo bíblico
moralidade. Para este, uma ação moralmente Mandamento.
justificável deve ser pública e, como tal, não pode estar
a serviço de qualquer intenção ou interesse particular ou egoísta. Deve-se,
portanto, agir somente na medida em que a nossa ação possa ser imitada por
todos sem prejuízo a ninguém. Ou seja, a norma a que obedeço é a norma que eu
próprio me dou, mas que deve poder ser defendida publicamente, para que possa
ser seguida por toda a humanidade como um “lei universal” ou , no mínimo, não
ser rejeitada por esta.

32
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

Para Kant, esse ato de autonomia e de poder agir publicamente, sem ser
acusado por ninguém, é a fonte da satisfação moral. Essa atitude moralmente
válida decorre unicamente do uso de nossa capacidade racional, da liberdade da
nossa vontade e, sobretudo, da orientação que, por educação, imprimimos à nossa
vontade para que se torne boa ou para que seja absolutamente boa.

Nesse sentido, fica patente que Kant rejeita as


Lei moral é a expressão de
concepções morais predominantes até então, quer seja da
um princípio moral, sob
filosofia grega, quer seja da cristã, e que norteiam a ação
forma que explicite o que
moral a partir de condicionantes como a felicidade ou o
é o bem e o mal, a partir
interesse privado. Por exemplo, para Kant não faz sentido
do qual se pode justificar a
agir bem com o objetivo de ser feliz ou evitar a dor, ou
validade das normas ou
ainda para alcançar o céu ou não merecer a punição
valores morais por ele
divina. O agir moralmente funda-se exclusivamente na
aceitos como fonte de
razão. A lei moral que a razão descobre é universal, pois
sentido para a sua
não se trata de descoberta subjetiva (mas do homem
existência.
enquanto ser racional) e é necessária, pois é ela que
preserva a dignidade dos homens. Isso pode ser
sintetizado nas seguintes afirmações do próprio Kant (1988, p. 34):

"Age de tal modo que a máxima de tua ação possa


sempre valer como princípio universal de conduta";
"Age sempre de tal modo que trates a Humanidade,
tanto na tua pessoa como na do outro, como fim e não
apenas como meio".

A autonomia da razão para legislar supõe a liberdade e o dever. Pois todo


imperativo se impõe como dever, mas a exigência não é heterônoma — exterior e
cega e sim livreniente assumida pelo sujeito que se autodetermina. Vamos
exemplificar: suponhamos a norma moral "não roubar”. Para a concepção cristã, o
fundamento da norma se encontra no sétimo mandamento de Deus. No entanto,
para os teóricos jusnaturalistas (como Rousseau e Hobbes), ela se funda no direito
natural, comum a todos os homens; por outro lado, para os empiristas (como
Locke, Condillac) a norma deriva do interesse próprio, pois o sujeito que a
desobedece será submetido ao desprazer, à censura pública ou à prisão.

33
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

Para Kant, a norma se enraíza na própria natureza da razão; ao aceitar o roubo


e consequentemente o enriquecimento ilícito, elevando a máxima (pessoal) ao
nível universal, haverá uma contradição: se todos podem roubar, não há como
manter a posse do que foi furtado.

A reflexão ética de Kant foi importante para fornecer as categorias da


moral iluminista racional, laica, acentuando o caráter pessoal da liberdade.
Mas, a partir do final do século XIX e ao longo do século XX, os filósofos
começam a se posicionar contra a moral formalista kantiana fundada na razão
universal, abstrata, e tentam encontrar o homem concreto da ação moral. É
nesse sentido que podemos compreender o esforço de pensadores tão diferentes
como Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard e os existencialistas.

Vejamos a posição de Nietzsche. O pensamento de Nietzsche (1844-


1900) se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais,
instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Para tanto, critica
Sócrates por ter encaminhado pela primeira vez a reflexão moral em
direção ao controle racional das paixões. Segundo Nietzsche, nasce aí o
homem desconfiado de seus instintos, tendo essa tendência culminado
com o cristianismo, que acelerou a "domesticação" do homem (ARANHA,
2003).

Segundo Machado (1999), em diversas obras, como A genealogia da


moral, Para além do bem e do mal e Crepúsculo dos ídolos Nietzsche faz a análise
histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida. Em outras
palavras, o homem, sob o domínio da moral, se enfraquece, tornando-se doentio e
culpado. Nietzsche relembra a Grécia homérica, do tempo das epopeias e das
tragédias, considerando-a como o momento em que predominam os verdadeiros
valores aristocráticos, quando a virtude reside na força e na potência, sendo
atributo do guerreiro belo e bom, amado dos deuses.

Nessa perspectiva, o inimigo não é mau: "Em Homero, tanto o grego quanto o
troiano são bons. Não passa por mau aquele que nos inflige algum dano, mas
aquele que é desprezível". Ao fazer a crítica da moral tradicional, Nietzsche
preconiza a "transvaloração de todos os valores" e denuncia a falsa moral,
"decadente", "de rebanho", "de escravos", cujos valores seriam a bondade, a
humildade, a piedade e o amor ao próximo. Também, contrapõe a ela a moral "de
senhores", uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos
fundamentais. A “moral de senhores” é positiva, porque baseada no sim à vida e se

34
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

configura sob o signo da plenitude, do acréscimo. Por isso, ela funda-se na


“capacidade de criação”, de invenção, cujo resultado é a alegria, consequência da
afirmação da potência. O homem que consegue superar-se é o “super-homem”, diz
Nietzsche apud MACHADO (1999, p. 67).

À moral aristocrática, “moral de senhores”, que é sadia e voltada para os


instintos da vida, Nietzsche contrapõe o pensamento socrático-platônico (que
provoca a ruptura entre o trágico e o racional) e a tradição da religião judaico-
cristã. A moral que deriva daí é a moral de escravos, moral decadente, porque
baseada na tentativa de subjugação dos instintos pela razão, o “homem-
fera”, “animal de rapina”, é transformado em “animal doméstico ou cordeiro”.

De acordo com Nietzsche, a moral plebeia estabelece um sistema de juízos


que considera o bem e o mal valores metafísicos transcendentes, isto é,
independentes da situação concreta vivida pelo homem. O que é proveitoso
constitui o valor. O homem é o criador de valores, mas se esquece de sua criação. A
moralidade é o instinto gregário do indivíduo, pois quem é punido é quem pratica
os atos. Para Nietzsche, na sociedade, existem os “instintos de rebanho”. Atribui-se
às palavras um sentido fixo e acha que ela espelha a realidade, que tem caráter
transitório. O homem chega, pelos costumes, à convicção de que é preciso
obedecer. No inverso disso, existe o prazer, a autodeterminação e a liberdade de
vontade.

De acordo com Nietzsche (1987, p. 45):

Qual a genealogia da moral, isto é, a origem do


conceito “bom”?] (...) O juizo “bom” nao provém
daqueles aos quais se fez o “bem”! Foram os “bons”
mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em
posição e em pensamento, que sentiram e
estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de
primeira ordem, em oposição a tudo o que era baixo, de
pensamento baixo, vulgar e plebeu (...).

De uma forma geral, o que Nietzsche denomina de valor e, ao contrário do que


poderíamos pensar, não é uma entidade utilizada para ajuizamento moral, mas o
nome com que se designa todo tipo de manifestação engendrada por esse
conflito. Quanto a sua apreensão, os valores podem apresentar-se sob duas
disposições fundamentais para o filósofo em questão:

35
Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

1. “disposição afirmativa”, como aquela que se faz em sintonia com o


lance e cadência do citado binômio, afirmando-o como modo
estrutural da realidade em sua gênese;

2. “disposição reativa”, que não se conforma com este modo


constitutivo, fazendo que irrompa uma perspectiva derivada, que se
arroga no direito de requerer um modo de realização da existência
diverso do que se dá nessa instauração.

Estes modos dos valores são possibilidades de realização dessa vida para
Nietzsche. Estes, por estarem articulados com o próprio modo de dar-se da vida,
isto é, com o movimento da vontade, são sempre passíveis de apreensão através
de duas disposições fundamentais: as disposições afirmativas e reativas.
Respectivamente, aquelas que indicam sintonia e dissintonia com a compreensão
de vida como valor. No primeiro caso, a disposição afirmativa surge na sintonia
com uma perspectiva que se constrói a partir do “aquecimento” do modo de ser
sempre eterno da gênese de realidade, celebrando a vida enquanto experiência de
criação (Cf. MACHADO, 1999, p. 78).

De acordo com Machado (1999), a esse processo Nietzsche chama “vontade


criadora”. No segundo caso, a disposição negativa irrompe em uma perspectiva
que, ao se instaurar, nega a si mesma enquanto perspectiva e se arroga o direito de
determinar — para além de toda e qualquer instância de realização — o modo de
ser da totalidade dos entes. Esta é a compreensão da verdade, como uma instância
que surge em função da separação radical frente ao mundo fenomênico, e recebe
o nome de “vontade de verdade”.

O que Nietzsche revela com isso é que os escravos negam os valores vitais e
resulta na passividade, na procura da paz e do repouso. Nesta perspectiva, o
homem se torna enfraquecido e diminuído em sua potência.

A alegria é transformada em ódio à vida, isto é, o “ódio dos impotentes”. A


conduta humana, orientada pelo ideal ascético, torna-se marcada pelo
ressentimento e pela “má consciência”. O ressentimento nasce da fraqueza e é
nocivo ao fraco. Por sua vez, para Nietzsche, o “homem ressentido”, incapaz de

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Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

esquecer, é como o dispéptico: fica "envenenado" pela sua inveja e impotência de


vingança. Ao contrário, o homem nobre sabe "digerir" suas experiências e esquecer
é uma das condições de manter-se saudável. A má consciência ou sentimento de
culpa é o ressentimento voltado contra si mesmo, daí fazendo nascer a noção de
pecado, que inibe qualquer ação.

Neste sentido, o ideal ascético nega a alegria da vida e coloca a mortificação


como meio para alcançar a outra vida num mundo superior, do além. Assim, as
práticas de altruísmo destroem o amor de si, domesticando os instintos e
produzindo gerações de fracos. É por isso que, contra o enfraquecimento do
homem, contra a transformação de fortes em fracos (tema constante da reflexão
nietzschiana), é necessário assumir uma perspectiva além de bem e mal, isto é,
"além da moral". Mas, por outro lado, para além de bem e mal não significa para
além de bom e mau. A “dimensão das forças”, dos instintos, da vontade de
potência, permanece fundamental. "O que é bom? Tudo que intensifica no homem
o sentimento de potência, a vontade de potência, a própria potência. O que é mau?
Tudo que provém da fraqueza” (MACHADO, 1999, p. 77).

IMPORTANTE:

Os pontos de vistas éticos apresentados não são os únicos existentes


e nem representam a totalidade dos problemas relativos a ética. Existem várias
doutrinas que se debruçaram sobre o tema da ética apresentado e refletindo sobre
seus fundamentos e aplicacações. Cabe neste momento, apresentar as principais
teorias ou doutrinas de ética e suas respectivas especifidades teóricas:

● egoísmo ético: pressupõe que devemos agir apenas em função do nosso


interesse pessoal. A única obrigação moral é promovermos o nosso próprio bem-
estar. Critério moral: são as consequências que as ações têm para nós próprios que
as tornam certas ou erradas. O egoísmo ético é, portanto, uma teoria
consequencialista: o que conta são as consequências que as ações têm para nós
próprios. Regra moral básica: “age sempre e apenas em função do teu próprio
bem-estar”;

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Ética, Valores Humanos e Transdisciplinaridade

● utilitarismo ético: pressupõe que devemos agir com a finalidade de


promover o máximo de bem-estar a um maior número possível de pessoas,
numa perspectiva imparcial. O utilitarismo é também uma teoria
consequencialista: o que conta são as consequências que as ações têm para a
generalidade das pessoas (e não já apenas para nós próprios). Critério moral: são as
consequências que as ações têm para o maior número de pessoas que as tornam
certas ou erradas. Sendo assim, uma ação está moralmente certa apenas quando
maximiza o bem-estar, ou seja, quando promove tanto quanto possível o bem-
estar e está errada quando não o promove. Regra moral básica: “age de tal modo
que as tuas ações possam proporcionar o maior bem possível ao maior número de
pessoas, imparcialmente consideradas”;

● ética deontológica: pressupõe que devemos agir de acordo com o Dever e


não pensar nas consequências das nossas ações. A pergunta a fazer é: toda as
pessoas deveriam fazer o mesmo em idênticas circunstâncias? A ética deontológica
é, portanto, uma teoria anticonsequencialista. O critério moral desta é a relação das
ações com os deveres universais (são os esmos para todos os seres humanos) que
as tornam certas ou erradas. Há, portanto, ações intrinsecamente más (ou seja, são
más em si mesmas), ainda que tenham consequências boas. Desse modo, uma
ação está moralmente certa quando não infringe os nossos deveres e está errada
quando infringe intencionalmente algum desses deveres. Regra moral básica: “age
de tal modo que as tuas ações possam valer para todo o ser racional, sem nunca
infringir os deveres universais”.

SUGESTÃO DE FILME

Pegue seu caderno de anotações, sente-se e assista ao filme A Letra


Escarlate de Douglas Day Stewart, baseado em livro de Nathaniel Hawthorne. Ele
contextualizará melhor ainda o conteúdo que você acabou de estudar.

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