Você está na página 1de 4

A Representação do Psicólogo no Imaginário Social:

De quem para quem?

Dan Brosko Mendes


Universidade Nove de Julho, 2022.

A representação social é quase uma versão contemporânea do que costumávamos chamar de


“senso comum”. O termo é trazido por Moscovici (1981), como um conjunto de conceitos,
explicações e afirmações que se originam na vida diária. É um processo de “familiarização", onde os
objetos e eventos são reconhecidos a partir de encontros anteriores.
Para compreender o que as pessoas imaginam sobre os psicólogos, é indispensável pensar em
como se constrói a formação desses profissionais no Brasil. Parte do imaginário popular, tem a
psicologia subentendida apenas como um “braço” inferior da medicina e psiquiatria, ou “perna” da
psicanálise, e não como uma área de atuação própria. Não devemos descartar também, os dados
socioeconômicos dos profissionais formados e os dados socioeconômicos da população nacional, que,
sutilmente revelam desigualdades que possibilitam um “lugar de saber” que não se encontra com as
demandas de toda a sociedade, mas geralmente de classes específicas dela.
Alguns dados do censo do CPF de 2022, chamam atenção para esta discussão. 79,2% das
profissionais são mulheres, 64% são brancos, 72% se graduaram em instituições privadas de ensino e
83,8% são heterossexuais. O fato de mulheres estarem à frente majoritariamente das profissões de
“cuidado” não conflita com o imaginário social do que é a psicologia, nem com a percepção de 69,3%
dos profissionais sobre a profissão ser mal remunerada, afinal, um trabalho de “cuidado” é um
trabalho de mulheres, e não remuneramos as mulheres como remuneramos homens em nossa
sociedade. Tendo em vista que vulnerabilidades de classe, raça e orientação sexual, são grandes
fatores de adoecimento psíquico, e que a população que mais necessita é também a que menos tem
acesso, como é possível fazer uma análise apropriada da representação social do psicólogo, que
desconsidera que a maioria da população e do público com grandes necessidades de atendimento, só
vê a psicologia de um lugar distante? Isso justificaria o fato das pesquisas mais acessíveis sobre a
representação do psicólogo encontradas serem com pessoas já ingressantes na graduação de
psicologia, como a de Leme, Bussab e Otta (1989) e Praça e Novaes (2004). O problema na análise
desses estudos (com ingressantes do curso) ao falarmos de representação social, é que o processo de
familiarização fica comprometido, ao momento em que: a aproximação científica do assunto, torna o
familiar “não familiar” (MOSCOVICI, 1981).
O estudo de Leme, Bussab e Otta (1989) coletou respostas de ingressantes no curso de
psicologia entre 1976 e 1984, com a pergunta "Qual é, a seu ver, a imagem que o público leigo tem do
psicólogo?", As respostas foram categorizadas por presença ou ausência de informações sobre a
profissão, dimensão valorativa e campo de representação ou imagem.
A nível de informação da atuação, o destaque nas respostas é para "Sinônimo de pedagogo",
"É aquele que trabalha em departamento de pessoal de alguma indústria" e "É um aplicador de testes".
Sobre a dimensão valorativa, não houve muita neutralidade, tendendo a maior parte das
respostas (73%) para uma valoração negativa, com crescimento ao longo dos anos.
E no campo de representação e imagem, as familiarizações se dão à outras profissões:
psiquiatria, psicanálise, pedagogia e intelectual. Aos guias espirituais: padres, magos, bruxos e
pai-de-santo. E aos confidentes: amigo, pai, conselheiro, babá.
As representações menos negativas se encontram em frases que colocam o psicólogo como
auxiliador para alguns problemas através do diálogo e afeto, como “amigo pago”, “Resolvedor de
problemas dos loucos"; "Uma pessoa que só de olhar ou conversar já sabe de seus problemas, pontos
fracos e fortes e como ajudar", enquantos as negativas merecem nosso olhar estendido e também
autocrítico.
O profissional é visto como elitista, invasor, incompetente ou de saber menor, ideciso, sádico
e preguiçoso. Tais características se revelam nas frases: "Um profissional do blá, blá blá e, ainda por
cima, atuando apenas com a elite"; "Alguém não tão necessário à sociedade, um capricho e privilégio
de umas poucas pessoas"; "Uma frescura usada só por gente rica"; "Um charlatão, sem função eficaz
para a sociedade"; "Radicalmente falando, um charlatão que cobra caro pelo que aprendeu numa
faculdade 'fácil'; "Abelhudo"; "É aquele intrometido que adora fazer perguntas"; "A maioria tem um
grande preconceito, 'eu não sou louco', não preciso contato com psicólogo"; "O psicólogo é alguém
que se intromete na sua vida e tenta moldá-lo"; "O psicólogo vai criar em cima do paciente uma
relação de dependência"; "Ir a um psicólogo é sinal de fraqueza"; "Pessoa essencialmente fria,
desumana, voltada aos problemas numa relação sádica, sem campo de ação definido..."; "Pessoa que
fez psicologia porque não sabia o que fazer".
Essas percepções de conotação negativa nos acendem um forte sinal de que há de fato um
distanciamento entre o objetivo da profissão e como ele é percebido. Ainda que possamos aplicar
muitas das críticas a outras profissões da saúde, elas não são percebidas pela população geral com
essa conotação. Podemos dizer que a população geral não valoriza o psicólogo por não compreender
as dimensões da saúde mental, mas isso não seria de qualquer forma, uma falha da própria psicologia
e de seus profissionais? Podemos questionar o elitismo da medicina, mas até pessoas mais carentes de
recursos podem já ter experienciado comorbidades curadas ou tratadas, e ainda ter tido contato com
dispositivos e órgãos médicos mais básicos como postos de vacinação.
Os estudos de Praça e Novaes (2004), indicam urgência na reflexão sobre a responsabilidade
social e ética do psicólogo ao analisar a representação social dos profissionais da área, apontando uma
visão altamente subjetivista e individualista, em que as condições sociais, históricas e culturais são
excluídas.
A herança positivista da profissão no Brasil ainda tem foco nas demandas do regime
disciplinar, com objetivo de ajustar, adaptar. Selecionar o estudante para a turma adequada, treinar o
operário, programar a aprendizagem, etc. Quando Praça e Novaes (2004) citam Bock (2000), trazem a
luz que a função social está diminuída neste campo de atuação já a partir do momento em que a
concepção do termo “social”, tenta ser referência apenas à “existência de outros homens” e não de si
mesmo. Entendido dessa forma, o profissional estaria comprometido com a adaptação social, com a
legitimação de formas instituídas, hegemônicas de ser em nossa sociedade, e não com uma
perspectiva crítica voltada para a produção de novas formas de ser e se relacionar.
Os estudos de Leme, Bussab e Otta (1989) diferem dos estudos de Praça e Novaes (2004).
Enquanto o primeiro traz a representação social do psicólogo pelo público geral através dos
ingressantes no curso, o segundo traz essa representação direta dos ingressantes e por eles mesmos.
Desta forma, a valorização positiva tem um viés maior neste segundo estudo. Mas os autores se
atentam à Bock (2000) quando ela diz que “a onipotência se traveste de humildade”.
A afirmação de Bock fica mais expícita se analisarmos a primeira categoria do estudo, a
“caracterização da psicologia”, que revela uma função assistencialista, que dá ajuda incondicional ao
outro. “ a Psicologia ajuda nos problemas”, “...resolve e compreende os problemas...”, “cuida das
pessoas”, “ajuda no autoconhecimento”, “ajuda a lidar com a vida”, “ajuda em uma nova visão de
mundo”.
Na segunda categoria do estudo temos o “objeto de estudo”, sendo afirmado majoritariamente
como “comportamento”, “mente” e “subjetividade”. Mas também com objetos menos expressivos
como inconsciente e alma. Curiosamente, inconsciente está representado como objeto por 10% dos
estudantes de psicologia, mas “consciência” não possui declaração.
A terceira categoria é o “objetivo profissional” e se destacam o tratamento das doenças
nervosas, ajudar pessoas, promover saúde, qualidade de vida, curar comportamento e mudar. Na
categoria de “instrumentos do psicólogo”, aparecem: ouvir (89,3%), entrevistas (87,2%), testes
(87,2%) e dinâmica de grupo (84,5%). Em um índice menor mas representativo, aparece a
subcategoria terapia de vidas passadas (33,3%) como instrumento do psicólogo.
Quanto às características do psicólogo, são trazidas: observador (85,6%), equilibrado (46,9%)
e confiável (43,2%). Contudo, apenas 18,2 % dos estudantes da saúde de outros cursos atribuem ao
psicólogo a categoria “cientista”, mas na categoria “credibilidade” a representação do psicólogo é
altamente positiva (87,2%), tanto nos estudantes de Psicologia (92%) como nos estudantes dos outros
cursos (86,4%). Apenas (6%) de estudantes de Psicologia não buscariam serviços psicológicos se
sentissem necessidade. E como última categoria, a ”imagem da Psicologia e do psicólogo”, nela surge
a uma Psicologia como profissão da área da saúde, com uma incidência de respostas bem maior nos
estudantes de Psicologia (96%) do que nos de outros cursos (56,9%).
Esse segundo estudo, percebendo como a psicologia fala de si mesma, com uma valoração
que não condiz com a do resto da sociedade, afirma:
“Essa representação da Psicologia vincula-se, historicamente, ao pensamento
liberal, onde o homem é pensado como ser livre e autônomo, e as experiências
subjetivas são vistas de forma individualizante, excluindo as condições sociais,
históricas e culturais presentes nessas experiências. Surge, então, nesse cenário, um
terreno fértil para uma psicologização da vida quotidiana e um pensamento acrítico
em relação ao contexto histórico-social.” Leme, Bussab e Otta (1989)

Não à toa, Bock baliza o estudo de Leme, Bussab e Otta. Em 2007, compilando um projeto de
compromiso social de Silvia Lane com a Psicologia, Bock publica resgatando o processo de
reconhecimento científico da psicologia, e isso se torna relevante para a discussão da representação do
psicólogo a partir do momento em que tentamos separar a psicologia em, ou uma ciência
experimental, biológica, objetiva, ou em uma ciência sociológica, subjetiva, dialética. Desvincular o
indivíduo de seu contexto faz com que não seja possível compreender a materialidade histórica que
forma o homem social. Não se pode dividir a psicologia social em ciência aplicada e pura" (Lane,
1986, apud Sawaia, 2002). Parte do “descrédito” da população geral e também parte da tentativa de
credibilizar a psicologia pelos profissionais da área, se devem ao mesmo fato, de a psicologia não ser
uma ciência da saúde como a medicina. Ela precisa da historicidade dos fenômenos, da interpretação
subjetiva, precisa que a realidade seja critério para análise da importância e fidedignidade de dados
que as pesquisas produzem e não o contrário.
A psicologia precisa se “familiarizar”, buscar ancoragens e objetivações, se trazer do mundo
reificado para o mundo consensual, ou a representação social do psicólogo estará sempre em recortes
que se contradizem ou que sequer são escutados.

Referências

CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA . Quem faz a psicologia brasileira? : um olhar sobre o


presente. Conselho Federal de Psicologia. 1. ed. Brasília : CFP, 2O22.

LEME, M. A. V. DA S.; BUSSAB, V. S. R.; OTTA, E.. A representação social da Psicologia e do


psicólogo. Psicologia: Ciência e Profissão, v. 9, n. 1, p. 29–35, 1989.

PRAÇA, K. B. D.; NOVAES, H. G. V.. A representação social do trabalho do psicológo. Psicologia:


Ciência e Profissão, v. 24, n. 2, p. 32–47, jun. 2004.

BOCK, A. M. B. et al.. Sílvia Lane e o projeto do "Compromisso Social da Psicologia". Psicologia &
Sociedade, v. 19, n. spe2, p. 46–56, 2007.

Você também pode gostar