Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CEDET LLC is licensee for publishing and sale of the electronic edition of this book
CEDET LLC
1808 REGAL RIVER CIR - OCOEE - FLORIDA - 34761
Phone Number: (407) 745-1558
e-mail: cedetusa@cedet.com.br
Editor:
Thomaz Perroni
Revisão:
Juliana Amato
Preparação de texto:
Gabriel Buonpater
Capa:
Vicente Pessôa
Diagramação:
Virgínia Morais
Desenvolvimento de eBook:
Loope Editora | loope.com.br
Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
Gurgel, Rodrigo
Percevejos, ideólogos — e alguns escritores / Rodrigo Gurgel — Campinas, SP:
Vide Editorial, 2019.
ISBN: 978-85-9507-075-2
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Epígrafe
Apresentação
Rodrigo Gurgel
Julho de 2019
CAPÍTULO 1
Um percevejo
— Alberto Rangel e Lume e cinza
Em
Lume e cinza
, de 1924, Alberto Rangel tentou repetir o relativo
sucesso de
Inferno verde
, publicado em 1908 com elogioso prefácio
de Euclides da Cunha, seu amigo e mestre. Aliás, a correspondência
do autor de
Os sertões
apresenta momentos expressivos dessa
amizade: em 20 de março de 1905, escrevendo de Manaus, Euclides
relata sua saudade, dá detalhes acerca dos preparativos para a
Expedição de Reconhecimento do Alto Purus e agradece a Rangel
pelas “generosas palavras” que este publicara no jornal
Província do
Pará
; a 10 de dezembro de 1907, questiona sobre o lançamento do
livro e revela a prática censurável, de exagerada camaradagem, ainda
hoje comum no sistema literário brasileiro: “[…] Quando surgirá,
afinal, o
Inferno verde
? Espero-o todos os dias. Tenho já três críticos
a postos, de penas perfiladas, prontos à primeira voz”. No mesmo
ano, em data desconhecida e com o livro em mãos, Euclides decreta:
“Julgo o sucesso inevitável”.
De fato, muitos apreciaram o estilo que tentava repetir, de maneira
desbragada, o “cipoal” euclidiano, as excentricidades que faziam o
autor de
À margem da história
colocar-se, segundo Gilberto Freyre,
“perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do
oratório, do retórico, do gongórico”. Mas há profunda diferença entre
os dois prosadores, pois a retórica que, nos trechos memoráveis de
Euclides, surge carregada de dramaticidade, bem como o gênio do
escritor para dosar possíveis artificialismos, transformam-se, nas mãos
de Alberto Rangel, em mera cabotinagem.
Monstros
Semelhante a um parque de diversões,
Lume e cinza
oferece
narrativas para todos os gostos: o inusitado diálogo entre um atlante e
certo náufrago, subitamente interrompido pela destruição da ilha; o
voo inaugural de um “filóptero”, exercício de ficção científica; as
angústias do monarca que não suporta mais a abundância de ouro em
seu Eldorado; a volúpia de mulheres temporariamente abandonadas
pelos homens da vila — desesperadas, atacam, à noite, cinco idosos
que ali ficaram; a
relação doentia, sempre próxima do assassinato, de
um casal de fazendeiros; o ciúme incontrolável de uma menina, que
chega a transformá-la em assassina; a descrição minuciosa dos males
causados pelo
Trypanosoma cruzi
; o caso do amigo que não pode
agradecer a ajuda financeira, pois o câncer devorou sua língua; o
pobre-diabo que acredita ter mau-olhado poderoso o suficiente para
causar incêndios; o gramático e sofista abandonado pelos amigos
quando os dias de fartura terminam. Essas histórias compõem as duas
primeiras partes do livro, “Fantasmagorias” e “Contos e recontos”.
Na última, “Frutos da terra”, o autor oferece crônicas sobre os
elementos que considera característicos do Brasil: a jangada, o carro
de boi, a palmeira, o monjolo, a queimada, a mandioca, dentre outros.
Um resumo assim, entretanto, não explicita o principal problema do
autor cuja grandiloquência desconhece limites. Alberto Rangel se
espoja na própria linguagem, deleitando-se como incontrolável
Narciso, a ponto de comprometer a verossimilhança das narrativas.
Logo na primeira, “Nas grimpas da Atlântida”, o náufrago lançado à
ilha é um homem destruído: “As chagas do seu corpo borbotavam
sangue, como se na rocha sombria do costão desabrochassem em sete
fontes sete rios de um rúbido cruor”. Mas tal criação hiperbólica, esse
homem exaurido e à beira da morte ganha, duas páginas depois, a
força de um titã — e sobe por um “grosso cabo de cânhamo” até o
cume da escarpa em que se encontra a civilização. Descobrimos, na
justificativa para a súbita mudança, a linguagem rebuscada,
responsável pelas características simiescas do personagem:
“Habituado a levantar-se pelos galhos dos seus bosques natais, a fim
de evitar os grandes répteis dos pauis e perseguir pelas ganeiras das
árvores o voo das tragopanas e o salto dos camaleões, alçou-se […] a
vigorosos puxões dos pulsos reforçados”.
Tratamento igualmente desagradável recebe a planta que dá título à
segunda narrativa, “O horto dos marroios”:
[…] Não invejariam os labiados e almiscarados marroios a glória doutras
flores mais notáveis ou pomposas, daquelas cujo perfume de longe entontece e
arrebata as abelhas, e cujas corolas tingem os canteiros e latadas de mais
cores que as da palheta de Apeles. Sem alardeio de vulto ou colorido, além de
servirem os marroios a farmacopeias e ervanários, aureolavam na Beócia o
abrigo dos brincos da imaginação, das ferroadelas da sátira, dos transportes
dos poemas e dos textos de luz da erudição, na roda de alguns eleitos e
preclaros…
Adornos e patriotada
Alucinações
Desejo de ficção
— Oliveira Vianna e O ocaso do Império
Ironia
Caudilhismo
A leitura de
O caso do Império
causará, em alguns, certo
estranhamento; em outros, mais afeiçoados ao palavrório da classe
política nacional, verdadeira repulsa. Entretanto, seja qual for a
reação, o fato é que, em inúmeros trechos, temos certeza de que
Vianna fala do Brasil contemporâneo.
Ao analisar o parlamentarismo — “um governo de opinião, isto é,
um governo cuja instituição num dado povo pressupõe a existência de
uma opinião pública organizada” —, o diagnóstico de Vianna ajusta-
se, passado quase um século, à nossa realidade:
[…] Ora, esta opinião pública organizada, capaz de governo, nunca existiu
aqui, nem hoje, nem outrora […]. Havia — como ainda há hoje — uma
opinião informe, difusa, inorgânica […]. Esta opinião, aliás, tinha sempre um
caráter artificial, era quase sempre um reflexo americano das agitações
europeias. Só exprimia realmente o pensamento de uma pequena parcela das
classes cultas do país. […]
Sua definição dos partidos Liberal e Conservador — “eram simples
agregados de clãs organizados para a exploração comum das
vantagens do Poder” — poderia estar num artigo dos raros analistas
políticos sérios que escrevem hoje. E não ficaria mal usar também esta
citação: “Em nosso país, com efeito, […] vive-se do Estado, como se
vive da Lavoura, do Comércio e da Indústria — e todos acham
infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra coisa”.
Se, durante a monarquia, as eleições eram “pura ficção
constitucional”, uma “burla”, uma “artificialidade do regime
representativo”, o problema não mudou com a República:
[…] O presente regime não deu satisfação às nossas aspirações democráticas
e liberais: nenhuma delas conseguiu ter realidade dentro da organização
política vigente. Estamos todos descrentes dela. […] Tendo perdido a fé no
regime vigente, mas não tendo
elaborado ainda uma nova fé, estamos
atravessando uma dessas “épocas sem fisionomia”, […] parda, informe,
indecisa — de atonia, em cuja atmosfera parada, de calmaria, giram,
circulam, suspensos, germes de futuras crenças, embriões de futuros ideais,
mas que não são nem crenças, nem ideais ainda.
Literatura
1
Em
https://www.ensayistas.org/filosofos/brasil/vianna/introd.htm
.
CAPÍTULO 3
Ódio ao português
— Antônio Torres e As razões da Inconfidência
Clareza e humor
Portugueses
Amor
O centro de
As razões da Inconfidência
é a palestra que Torres
proferiu na Associação dos Empregados do Comércio, em 21 de abril
de 1925, verdadeiro anátema contra os portugueses. Ali encontramos,
segundo a definição de Amadeu Amaral Júnior, o “panfletário
devastador”. Nada escapa à sua ira: dos impostos acachapantes que a
metrópole cobrava — e que hoje pagamos a nosso próprio governo —
à monstruosa condenação de Tiradentes. Peça de retórica, sim, mas
cuja sobriedade empolga: ele despreza a verborragia e concretiza o
fragmento de Arquíloco: “Tenho uma grande arte:/ firo duramente/
aqueles que me ferem”.
Se é verdade que o furor justiceiro de Antônio Torres contra
Portugal não tem mais lugar no Brasil contemporâneo, também é
certo que suas lições de história precisam ser continuamente
lembradas e seu estilo — coeso, congruente, desenvolto — merece o
qualificativo “modelar”.
Raul de Sá Barbosa conta que, no início da carreira jornalística,
período de insegurança e pobreza, Torres chegava a dormir “nas
redações em que escrevia, embrulhado, às vezes, se fazia frio, na
bandeira nacional”. Talvez tenha se aprofundado aí, mais que a
aversão aos colonizadores, o seu indiscutível amor pela língua
portuguesa.
2
Antônio Torres — uma antologia
, Editora Topbooks,
RJ
, 2002.
CAPÍTULO 4
Tediosa floresta
— Gastão Cruls e A Amazônia misteriosa
Ética e personagens
Em
A Amazônia misteriosa
, Cruls tenta recontar sob o ponto de
vista tupiniquim o romance de ficção científica
A ilha do Dr. Moreau
,
de H. G. Wells, publicado em 1896, obra de caráter darwinista, na
qual o autor discute os limites éticos da manipulação biológica de
animais e seres humanos — prática que hoje recebe o nome
eufemístico de “engenharia genética”.
Depois de se perder durante uma caçada, o narrador de Cruls acaba
isolado em algum ponto da Hileia, numa tribo composta unicamente
de mulheres, as mitológicas amazonas que o explorador espanhol
Francisco de Orellana afirmou ter visto em 1541. Ali, depara-se com
uma utopia silvícola, na qual, a depender da idade, cada mulher
desempenha uma função predeterminada. Tudo é perfeito: da
arquitetura — “habitações bem construídas, ruas regulares, estradas
largas, e até o arremedo de praças e jardins, onde muitas árvores
deveriam ter sido plantadas pela mão do homem” — às relações
sociais, estratificadas e plenas daquele desprendimento feliz que,
segundo os socialistas, deveríamos sentir
enquanto o garrote do
Estado nos estrangula.
Tal lugar paradisíaco não teria nascido, contudo, sem uma história
sanguínea: no século
XVI
, as predecessoras das amazonas, ao saberem
da prisão do grande inca Atahualpa e da vitória dos conquistadores
espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, decepcionadas com a
derrota sofrida pelos maridos, mataram os filhos de sexo masculino e
fugiram pela “vertente oriental dos Andes”, vindo cair em plena
Amazônia. Apesar do desprezo que, no romance, alimentam em
relação aos homens, uma vez por ano, na “Festa das Pedras-Verdes”,
recebem os varões para um rito que, depois de algumas horas, se
transforma numa orgia carnavalesca, afinal essas feministas ainda
obedecem à libido ou à lei da preservação da espécie.
É nesse lugar idílico que o narrador se depara com Hartmann,
médico alemão que, a princípio, esconde os motivos de estar ali há
oito anos. No entanto, após rápida investigação, nosso protagonista
descobre as experiências que ele desenvolve com crianças e adultos,
dando vida a mutações excêntricas ou, prática mais simples,
alterando, por meio de uma lobotomia específica, os centros cerebrais
da fala e da memória.
Apesar das aberrações criadas pelos experimentos — o que pode
nascer, por exemplo, de um óvulo humano fecundado com o esperma
do macaco-aranha? —, a discussão ética surge frágil, pífia, pois o
narrador-protagonista não passa de um pusilânime que deseja ficar
bem com todos:
Achei de bom alvitre mostrar-me de perfeito acordo com o seu ponto de
vista, e, dali por diante, já de regresso, mas sempre conversando
animadamente, só tive aplausos para os seus trabalhos. Aliás, esses trabalhos
eram de tal relevância e tão grandes e inesperadas as novas aquisições trazidas
à ciência que, tirante a desumanidade dos processos experimentais, não
haveria quem os deixasse de elogiar. Elogiei-os, portanto, na certeza de que
não comprometia de todo a minha sinceridade e com a esperança de, assim,
mais fácil, talvez, me fosse a liberdade.
Linguagem
Agrippino
Fábulas desiguais
— Darcy Azambuja e No galpão
Lançado em 1925,
No galpão — contos gauchescos
, de Darcy
Azambuja, recebeu, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio de
melhor livro de contos. Certamente, a honraria era mais valiosa
naquele tempo, quando a instituição ainda não se submetia a vexames
como o que citei na página 29.
Mas deixemos de lado o populismo rasteiro — e perdoem-me o
pleonasmo.
As narrativas de Darcy Azambuja tentam recriar, na linha
inaugurada por Simões Lopes Neto, o gaúcho ideal, figura mítica do
pampa. Não devemos, entretanto, buscar nelas o conto na sua
estrutura moderna, mas o texto que se aproxima da crônica, dos
causos, das fabulações relatadas ao pé do fogo.
Ética pampiana
Descrição
3
Veja-se o capítulo 16 de
Esquecidos & Superestimados
, “O filho tardio de Alencar”.
CAPÍTULO 6
Um caso de sucesso
— Paulo Setúbal e A marquesa de Santos
Sentidos sentem
No que se refere a Paulo Setúbal, se lembrarmos as variedades do
gênero do romance histórico apontadas por Otto Maria Carpeaux no
capítulo “Romantismos de evasão”, em sua
História da literatura
ocidental
, veremos que o romancista não se serviu do passado para
“construir uma árvore genealógica de nobreza, para gente nova”, não
teve a pretensão de “renovar moralmente e espiritualmente a
nacionalidade, lembrando-lhe as grandezas do passado”, e não
pretendeu “dar exemplos do passado para
incentivar as lutas
patrióticas” da sua época. Sabe-se lá por qual motivo, apenas preferiu
“o passado ao presente”. E, com absoluta certeza, apreciava “só ou
principalmente o aspecto pitoresco do passado”. Foi o que fez em
A
marquesa de Santos
, lançado em 1925: produziu um romance
pitoresco, no sentido de divertido; e divertido porque caricato.
Já no primeiro capítulo, “Um acontecimento alvoroçante”, o texto,
espontâneo como uma crônica sobre a vida de
socialites
, emperra no
parágrafo recheado de termos que remetem a um sentido único: a
jovem Domitila, apelidada de Titília, “linda doidivanas”, de “adorável
estouvamento”, sai pela rua, “trêfega” e “borboleteante”, movida
pelo “alvoroço” e pela “entontecedora” felicidade provocada por seu
noivado. Em cinco linhas, o autor consegue o feito de se apresentar
como mestre da redundância.
Quando o leitor chega ao último parágrafo desse capítulo, aguarda-
o nova surpresa: incontinente, o romancista oferece um resumo do
que o destino reserva a dois dos principais personagens, matando ali,
sem pena, grande parte da história.
Setúbal também aprecia os lugares-comuns: certo personagem é
“belo e encantador como um Adônis”; adulta, Domitila não é mais
um “botão de rosa prestes a romper”, mas tornou-se “mulher
desabrochada, mulher-mulher em pleno verão de sua formosura”.
Capítulo a capítulo, o Sol é sempre dourado, o céu muito alto e muito
azul. As mulheres, farfalhantes de sedas e cintilantes de pedrarias. E
Pedro
I
tem um olhar que sempre “fuzila”.
Nada é tão grave, contudo, quanto a desmesura. Há cenas que se
transformam em enormidades. Veja-se, por exemplo, a abertura do
capítulo “O Grão-Mestre da Maçonaria”:
O Grande Oriente, a
famosa
Loja Maçônica da Corte, desempenhou papel
preponderantíssimo
nos movimentos políticos do seu tempo. Ali, naquele
sobradão da Rua Nova do Conde,
fervilharam
ideias
extremadas
de
Independência. Ali
reboaram
discursos
exaltados
de patriotas. Ali se
coligaram, sob juramentos
formidáveis
, em prol da
grande
causa nacional, os
políticos
mais prestigiosos
e os homens
mais em destaque
daquela época. Tão
intensa
e tão
irradiante
foi a ação daquela Loja, que dentro de pouco tempo,
agremiando prosélitos entre os
mais poderosos
,
centralizou em si o
mais
terrível
foco da propaganda, a
máxima potência
da campanha.
Colunismo social
Mediocridade e valor
Otto Maria Carpeaux está certo quando afirma, com ironia, que
“não existe relação entre os valores literários e os efeitos sociais: o
sucesso não é prova de valor; a mediocridade não exclui
consequências benéficas”.
Os bons leitores realmente não devem se surpreender com o fato de
as pessoas amarem livros ruins. São eles, os livrinhos medíocres, que
financiam os bons livros e garantem o desenvolvimento do mercado
editorial. Aliás, se as editoras publicassem apenas o que é ótimo, ainda
estaríamos imprimindo livros com os tipos móveis de Gutenberg. No
caso de
A marquesa de Santos
, verdadeiro
best-seller
, resta-nos,
portanto, o consolo de que os lucros da editora devem ter financiado
meia dúzia de clássicos.
CAPÍTULO 7
Tralha linguística
— Plínio Salgado e O estrangeiro
Nacionalismo panfletário
Em 1935, no livro
Despertemos a nação!
, Plínio Salgado diria: “O
meu primeiro manifesto integralista foi um romance. Quatro anos
levei a meditá-lo e a escrevê-lo, desde uma luminosa manhã de
setembro em que viajei pelo sertão paulista, onde o Tietê explode nas
pedreiras do Avanhandava”.
Desatinos
Simbolismo oco
Talvez
O estrangeiro
nasça de uma decisão refletida em busca da
arte “sintética, simultânea, dinâmica, intencional”, que, segundo o
narrador,
deve ser o “recreio rápido de gente atarefada”. Ou, quem
sabe, a história foi apenas consequência das “crises de maleita” em
que “Juvêncio ardia e delirava”, segundo palavras do próprio autor,
nas páginas finais do volume. Prefiro acreditar, entretanto, na
explicação reticente que Plínio Salgado utiliza no prefácio à 1ª edição:
“Este livro é, antes de tudo, um desabafo. Nele se notará que se quis
dizer alguma cousa”. Só mesmo altas doses de indeterminação,
sintetizadas nesse “alguma cousa”, poderiam ter produzido tanto
simbolismo oco, tamanha tralha linguística.
4
Minha análise de
Canaã
pode ser lida em
Muita retórica — Pouca literatura
.
5
Esse tipo de linguagem torturante encontra adeptos até hoje em nossa literatura. Veja-se,
por exemplo, o romance
Nosso grão mais fino
, de José Luiz Passos, que analiso em
Crítica,
Literatura e Narratofobia
.
CAPÍTULO 8
Bizantinismo
— Adelino Magalhães e A hora veloz
Simbolismo
A hora veloz
, publicado em 1926, é bom exemplo da produção de
Adelino Magalhães, pois concentra erros e acertos de uma linguagem
fracionária, adjetivo caro ao próprio autor: “Tudo em mim”, teria
dito ele, segundo Murilo Araújo, “é fracionário: um turbilhonamento
de anímicas frações”.
A epígrafe do livro explica não só o título, mas também a pretensão
do escritor:
Hora veloz, incontível, de tão arfante! hora veloz, em que mal se vislumbra
pensar: hora veloz, durante a qual se gozam a pleno as existências, pois se não
as consegue pormenorizar.
Ironia
Paráfrase verbosa
É
É o que ocorre em “Dies Irae”: o escritor transforma o hino
litúrgico do século
XIII
, um dos mais belos poemas do latim medieval,
numa paráfrase verbosa que dilui o texto original e cria um estertor de
adjetivos, verdadeira lamúria.
Luciana Stegagno-Picchio, em sua
História da literatura brasileira
,
7
afirma, ao avaliar a obra do escritor, que “será mister deixar passar
ainda alguns anos para que talvez, além da barreira dos pontos de
exclamação e das reticências, se descubra em Adelino Magalhães um
autêntico e singularíssimo escritor”. Decorridas duas décadas, não há
mais espaço para “talvez”; chegou o momento de avisar aos
interessados na literatura simbolista: leiam
Anábase
, de Saint-John
Perse, lançado em 1924 — na tradução de Bruno Palma, publicada
pela Nova Fronteira em 1979 —, mas evitem perder tempo com o
bizantinismo de Magalhães.
6
Companhia Editora Aguilar,
RJ
.
7
Editora Nova Aguilar,
RJ
, 1997.
CAPÍTULO 9
Lacuna prejudicial
— Antônio de Alcântara Machado e Laranja da China
Ele insiste:
[…] E é de senso crítico justamente que nós carecemos. Para distinguir o
preto do branco, o péssimo do ótimo, o bom do mau. E deixarmos essa mania
de chamar gênio a todo sujeito mais ou menos verboso e bem falante que
aparece.
[…] A absoluta ausência de senso julgador e o mau gosto que no Brasil
tomou conta de tudo (das plataformas presidenciais aos vestidos das
professoras públicas) levam o brasileiro em cousas de arte antes de mais nada
às mais disparatadas confusões. No fundo está a ignorância sem dúvida.
Ignorância completa e incrível. Epidêmica e inelutável. E o que é pior:
pretensiosa.
Foi tal independência crítica, sem dúvida, que lhe permitiu criar
obra sólida, livre de preconceitos estéticos e panfletarismo, pois sabia
que “renovação, antes de mais nada, é de essência. Não se exprime
por fórmulas. Não possui regrinhas nem receitas”.
Percepção do ridículo
Mana Maria
, seu romance incompleto, vibra, portanto, como uma
promessa, nada mais. Entre o que Alcântara Machado fez e o que
poderia ter feito há um vazio que expressa não apenas a injustiça da
morte que o colheu aos 34 anos, mas também consequências
infelizmente encontradas em qualquer livraria. Nenhum escritor, antes
dele, deixou lacuna tão prejudicial à literatura brasileira.
8
Os artigos de Antônio de Alcântara Machado estão reunidos em
Pathé Baby e Prosa
turística: o viajante europeu e platino
, volume 2 de suas
Obras
(Editora Civilização
Brasileira/Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória, 1983).
9
Editora José Olympio,
RJ
, 1970.
CAPÍTULO 10
Péssimo precursor
— José Américo de Almeida e A bagaceira
A bagaceira
, romance de José Américo de Almeida publicado em
1928, principia com algumas epígrafes do autor reunidas sob o título
de “Antes que me falem”. Dentre elas, esta afirmação polêmica:
O regionalismo é o pé-do-fogo da literatura… Mas a dor é universal,
porque é uma expressão de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode
competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só
interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos
despercebidos.
Narração esquemática
Autômatos
Tautologia
Naturalismo
Na contramão do modernismo
— Paulo Prado e Retrato do Brasil
Curral de cabras
Ideia fixa
Pessimismo
Reverberações
Em
Pensadores que inventaram o Brasil
,
13
Fernando Henrique
Cardoso
chama Paulo Prado de “fotógrafo amador”, preferindo
enaltecer o personagem de Mário de Andrade, Macunaíma, por meio
de um obscuro jogo de palavras, exemplo perfeito de como os
marxistas sempre procuram corromper a realidade: “Sem mentiras, ou
melhor, mentindo-se abertamente e, portanto, santificando-se a
mentira”. O personagem seria o representante perfeito do que
Cardoso chama de “originalidade do
blend
brasileiro”.
De fato,
Retrato do Brasil
não se presta a comparações
macunaímicas — e, muito menos, a tentativas de idealizar nossos
defeitos. Em sua crueza, o livro obedece à tarefa que Ortega y Gasset
definiu para o ensaio: “Colocar as matérias de toda ordem, que a vida,
em sua perene ressaca, lança a nossos pés como restos desarranjados
de um naufrágio, numa postura tal que o Sol produza nelas
inumeráveis reverberações”.
O brilho da verdade pode estar, muitas vezes, algo encoberto por
generalizações perigosas ou por rasgos do racismo que ainda
pontificava na ciência das primeiras décadas do século
XX
, mas a
leitura de
Retrato do Brasil
continua indispensável, pois nele
preponderam o trabalho de investigação honesta, a recusa de
interpretações simplistas, a sobriedade de estilo e uma rara coragem
— difícil de encontrar atualmente —, que o faz avançar na contramão
do ideário modernista.
11
De quem analisei o imprescindível
Fastos da ditadura militar no Brasil
(em
Muita
retórica — Pouca literatura
).
12
O ensaísta e poeta Cassiano Ricardo pensa de forma diversa. Veja-se, neste volume, o
ensaio “Rude e Maravilhoso”.
13
Editora Companhia das Letras,
SP
, 2013.
CAPÍTULO 12
Mais um naturalista
— Peregrino Júnior e Puçanga
Redundâncias
14
Essas e outras análises estão reunidas em
Muita retórica — Pouca Literatura
e
Esquecidos & Superestimados
.
CAPÍTULO 13
Romance desencarnado
— Barretto Filho e Sob o olhar malicioso dos trópicos
15
Ver, em
Crítica, Literatura e Narratofobia
, o capítulo “A adúltera e a contradição”.
16
Reeditado, em 2014, pela Editora TopBooks.
CAPÍTULO 14
Em busca da literatura
— Rachel de Queiroz e O Quinze
Lançado em 1930,
O Quinze
, de Rachel de Queiroz, integra o
chamado Ciclo das Secas, do qual analisei, neste e nos volumes
anteriores desta série,
Luzia-Homem
(Domingos Olímpio),
Dona
Guidinha do Poço
(Manuel de Oliveira Paiva),
Aves de arribação
(Antônio Sales),
A bagaceira
(José Américo de Almeida) e, dividido
entre ficção e ensaio,
Os sertões
, de Euclides da Cunha.
Na verdade, o fenômeno da seca está longe de se esgotar enquanto
tema literário. Sem esquecer as contribuições de Graciliano Ramos e
José Lins do Rego, a seca e seus indissociáveis componentes —
migração, relações de compadrio, cangaço, formas de religiosidade —
ainda esperam pelo romancista, impregnado de senso épico, que
realize trabalho semelhante ao de Érico Veríssimo em
O tempo e o
vento
.
É preciso construir uma trama que vá além do microcosmo;
necessitamos de uma objetiva grande-angular, um escritor que não se
prenda ao óbvio e demonstre como os dramas e suas inter-relações
não se restringem a causas ou consequências imediatas do problema
climático. Abandonando cientificismos, ele deve mostrar o homem
pleno, o homem da caatinga que, sofrendo, nem sempre se abandona
à melancolia ou ao derrotismo. Precisamos do romance que supere a
literatura ideológica e retrate o Nordeste com a diversidade cultural
que nega, todos os dias, as teses simplistas, ainda repetidas entre nós,
da dicotomia litoral/interior ou opressores/oprimidos.
Quando a literatura recusa as soluções sociológicas, quando se
liberta da camisa de força determinista e marxista, então pode ver a
realidade sem maniqueísmos.
Apesar de não preencher plenamente tal lacuna,
O Quinze
é um
vislumbre do que, passados mais de oitenta anos, ainda não se
concretizou.
Abandono da retórica
Complexidade do real
As personagens de Rachel têm vida própria, reagem a estímulos,
revelam suas personalidades até mesmo num gesto automático, quase
destruído, mais uma vez, pelo advérbio inútil:
Depois dobrou o papel, tornou a pô-lo no lugar, puxando o braço
vivamente como se se libertasse, livrando-se do temor supersticioso que lhe
travava as mãos, porque uma carta daquelas lhe parecia coisa amaldiçoada.
Recusa do melodrama
O Quinze
não é, portanto, apenas mais um romance regionalista.
Retrato fiel da nossa humanidade, retoma, longe da Semana de 22 e
dos pândegos paulistas, o eixo da nossa ficção, formado por Manuel
Antônio de Almeida, Machado de Assis, Coelho Neto, Monteiro
Lobato e Antônio de Alcântara Machado. A jovem Rachel de Queiroz
desejava, realmente, a literatura.
CAPÍTULO 15
Romancinho bem-intencionado
— Ribeiro Couto e Cabocla
Detalhista sensível
Estreia razoável
— João Alphonsus e Galinha cega
Sartrianice
O último conto de
Galinha cega
— “O homem na sombra ou a
sombra no homem” — é o mais fraco. A narrativa inicia com um
diálogo humorístico, acolhedor, entre o protagonista — Ricardo,
revisor do jornal sem importância, estudante de medicina e candidato
a poetastro — e o redator-chefe, poetastro notável, bem definido pelo
irônico narrador como “poeta consagrado por geração e meia de
sofredores”. O tom da abertura, entretanto, não se mantém, e logo
resta apenas o personagem que se entrega, a partir da morte de uma
desconhecida, a imaginosa soturnidade, experimentando ciclotimia
própria de adolescentes.
O narrador divaga em inúmeros trechos, suas digressões nada
acrescentam à história, enquanto os poucos fatos — paixonite pela
prostituta, gastos irresponsáveis, noites ao relento, sucessivos vexames
— confirmam a crise existencial sartriana, ou seja, enfadonha.
Não surpreende que o narrador considere sua história uma “odisseia
obscura” — o que confirma a visão distorcida dos modernistas,
cultuada
até hoje, prontos a encontrar aventura numa sucessão de
errinhos suburbanos, destituídos de heroísmo. O final, debochado, em
que um jato de urina acorda o jovem, reconduz o leitor à qualidade do
início, o que só amplia nossa frustração.
Gracejo pirotécnico
Absoluta bondade
Romance abatido
— José Geraldo Vieira e A mulher que fugiu de
Sodoma
17
Editora Arcádia, 2016.
18
Apesar de meus esforços, não consegui ler um exemplar da 1ª edição. Utilizo, por esse
motivo, o trecho escolhido pelo pesquisador.
CAPÍTULO 18
Narcisismo
— Humberto de Campos e O monstro e outros contos
Da sobriedade à retórica
Grandiloquência e repetições
Ritmo ternário
19
Ver meu ensaio “Perfumaria bilaquiana”, em
Esquecidos & Superestimados.
CAPÍTULO 19
Sem proselitismo
— Amando Fontes e Os Corumbas
Publicado em 1933,
Os Corumbas
, de Amando Fontes, teve longa
gestação, desde o início da década de 1920, quando o autor, residindo
no Rio de Janeiro, participava do grupo de intelectuais reunidos em
torno de Jackson de Figueiredo. O romance só nasceria após a
Revolução de 30, ao fim de tortuosa trajetória — durante a qual
Fontes viveu em três estados: Bahia, Sergipe e Paraná — que terminou,
mais uma vez, no Rio de Janeiro, quando o autor chegava aos 34
anos.
Obra da maturidade, portanto — o que talvez explique parcialmente
as qualidades do livro —, apesar de ser romance de estreia,
Os
Corumbas
reafirma as lições de
O Quinze
, de Rachel de Queiroz,
publicado três anos antes: repúdio à linguagem verbosa, nossa
conhecida retórica, e ao naturalismo, ao romance de tese — que,
ainda em 1928, guiara José Américo de Almeida na redação de
A
bagaceira
.
Realismo
Diálogos e descrições
20
O romance brasileiro,
José Olympio Editora,
RJ
, 1953, 2ª edição, revista e ampliada.
21
História da literatura brasileira
, Editora Cultrix,
SP
, 2004, 2ª edição.
CAPÍTULO 20
Publicado em 1933,
Serafim Ponte Grande
é a tentativa de levar ao
paroxismo o que Oswald de Andrade fizera em
Memórias
sentimentais de João Miramar
, de 1924. A receita da prosa
experimental está completa nas aventuras do funcionário público
paulistano: narrativa fragmentada, mudança abrupta de narradores,
mescla de gêneros literários, automatismo, neologismos, subversão da
linguagem por meio do sarcasmo desbragado.
Ao radicalismo do experimento, contudo, corresponde a realidade
da recepção literária: ninguém lê
Serafim Ponte Grande
, a não ser os
mestres supostamente iluminados que, à semelhança de Haroldo de
Campos, comemoram, com seu característico espírito revolucionário,
a existência desse “grande não livro”, fórmula risível, que ganha ares
realmente humorísticos quando nos deparamos com os elogios
encomiásticos utilizados pelo concretista no estudo que abre o volume
das
Obras completas
de Oswald. De fato, um “não livro” ou um
“fragmento de grande livro”, como Antonio Candido definiu o
romance, aceita qualquer classificação, pois o que é amorfo pode ser
obra genial ou tremenda enganação.
Comparar
Serafim Ponte Grande
a um
Bildungsroman
— mais um
alinhavo de Haroldo de Campos — só revela absoluta ausência de
senso de proporção; e a tentativa de amenizar o descalabro, utilizando
a expressão “molde residual”, serve para comprovar que, na retórica
dos que endeusam Oswald de Andrade, qualquer elogio é aceitável,
ainda que se tenha de dourar a pílula.
Na verdade, a porfia haroldiana humilha o leitor inteligente: se é
preciso tanto esforço, tanta lucubração, para provar que
Serafim Ponte
Grande
merece ser lido; se uma ficção necessita de tantas justificativas
teóricas; se uma obra não pode ser decifrada sem um guia — então
não estamos diante de um romance, mas da Hipótese de Riemann, do
mistério da Atlântida ou, quem sabe, às portas da Área 51.
Eterno escárnio
Desestímulo à criação
22
O texto de Bandeira pode ser lido em
Crônicas inéditas 2
, Editora Cosac Naify,
SP
,
2009.
CAPÍTULO 21
O brasileiro universal
— Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala
Limites do experimentalismo
— Mário de Andrade e Os contos de Belazarte
Os contos de Belazarte
, de Mário de Andrade, originam-se de
crônicas escritas para a
Revista América Brasileira
. Publicado em
1934, o livro sofreu modificações e acréscimos na 2ª edição, de 1944.
As sete narrativas que compõem o volume estão muito distantes do
que o leitor pode encontrar em
Contos novos
, obra póstuma, de
1947. E nenhuma se aproxima da qualidade do célebre “O poço”,
sutil estudo sobre a cobiça.
O que descobrimos em
Belazarte
é o escritor preso ao
experimentalismo da Semana de 22. É verdade que a obra de Mário
não está repleta do cinismo que macula o legado de Oswald de
Andrade, mas o autor de
Macunaíma
reconhece
23
que as narrativas
nasceram como “exercício de estilo” — estigma limitador, confirmado
em carta a Murilo Miranda (dezembro de 1935):
[…] Tentei grafar exatamente, com o mais contraditório realismo, as
inconsequências da fala popular […]. Mas grafei mais como objeto de estudo
da fala popular, que como arte, que requer maior unidade e… parecença. Se
você quiser mesmo publicar a coisa, faça um esforço danado pra sair sem
nenhum erro tipográfico.
Mas voltemos a
Belazarte
.
A primeira narrativa, “O besouro e a rosa”, resume o
experimentalismo do autor, capaz de mimetizar o discurso informal de
um contador de causos, mas desequilibrando-se algumas vezes, ao
introduzir expressões eruditas — “A venda movia toda a dinâmica
alimentar da existência […]” —, ou, pior, infantilizar-se recorrendo à
artificialidade das onomatopeias — “Batia pra saberem e ia-se embora
tlindliirim dlimdlrim, na carrocinha dele”.
Há boas figuras, cuja expressividade altera, momentaneamente,
nosso julgamento — “alastrou um riso perdido na cara”; “vivia
mordido de impaciências curtas”; “chorava gritadinho” —, mas
insuficientes para salvar a descrição naturalista e inverossímil do
despertar da libido na protagonista: o besouro de Rosa equivale à
borboleta do sonho de Pombinha, no capítulo 11 de
O cortiço
. Aliás,
não satisfeito em repetir o exagero de Aluísio Azevedo, Mário
acrescenta, na jovem de completo alheamento, que sequer conversava
com as vizinhas, a preocupação
infundada de permanecer solteira.
O problema se repete na história seguinte, “Jaburu malandro”:
obedecendo à psicologia tortuosa, Carmela adquire “violência de
malvadez”, consequência inevitável, segundo o biologismo de
Belazarte, para todos que se apaixonam.
“Caim, Caim e o resto” não é apenas uma “coisa” inócua, na qual o
narrador não oferece justificativas para o comportamento dos irmãos
— mas reencontramos as onomatopeias que, segundo os fãs do livro,
devemos considerar geniais: “Plão, tlão, tralharão, tão, plão,
plãorrrrr… bonde passava” e, ainda mais risível, a vergonhosa “O
cachorro latia, uau, uau… uau…”.
O autor destila lascívia homossexual em “Túmulo, túmulo,
túmulo”, único texto em que Belazarte fala de si mesmo. A descrição
de Ellis, negro contratado para ser doméstico, surge carregada de
elogios sensuais: “[…] Era doce, aveludado o preto de Ellis… A gente
se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor
humilde […]”; “[…] Com aquele olho-de-pomba me seguindo,
arrulhando pelo meu corpo numa bulha penarosa de carinho batido,
eu nem sabia o que fazer […]”. Não por outro motivo o
alter ego
de
Mário, se consegue ver beleza em Dora, a mulher pela qual Ellis se
apaixona, também demonstra inveja e despeito: “[…] Dora era corpo
só. […] Eu não tinha corpo mas era protetor. E principalmente era o
que sabia das coisas. Desta vez amor não se uniu com amizade: o
amor foi pra Dora, a amizade pra mim. Natural que o Ellis procedesse
dessa forma, sendo um frouxo”.
Sentimentos aos quais não faltam melosidade e chavões:
[…] A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas
tudo o que existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudada
nele. […] Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si
mesmo, coisa humana profundamente, que faz a gente viver duplicado, se
repartindo num casal de espíritos amantes que vão, feito passarinhos de voo
baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele…”.
23
Ver o “Prefácio inédito”, na edição da Editora Nova Fronteira, 2013.
24
Livraria José Olympio Editora,
RJ
, 1983.
25
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira
, Edusp/
IEB
,
SP
, 2001, 2ª
edição.
26
Citada por Wilson Martins em sua
História da inteligência brasileira.
CAPÍTULO 23
A descoberta do horror
— Graciliano Ramos e São Bernardo
A perversão do homem
— Dyonélio Machado e Os ratos
27
Em
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo
(
Obras escolhidas
, volume 3),
Editora Brasiliense,
SP
, 1995.
CAPÍTULO 25
Excesso de benevolência
— Rodrigo Melo Franco de Andrade e Velórios
Publicado em 1936,
Velórios
, de Rodrigo Melo Franco de Andrade,
é desses livros que, graças ao apoio de parcela da crítica e de alguns
colegas de ofício, tornaram-se fetiches da literatura brasileira. Manuel
Bandeira ressalta os “raros dons de observação e composição”. João
Alphonsus fala de “páginas notáveis”. Lúcio Cardoso afirma que o
autor segue “a linha natural iniciada por Machado de Assis”. Antonio
Candido salienta a “forte originalidade” e o “classicismo moderno”.
É natural, portanto, que o leitor, ao se aproximar do volumezinho,
abra-o movido à leitura reverente, como se daquelas poucas páginas
emanasse algum poder sobrenatural ou mágico. Sentimento, aliás,
ampliado quando descobrimos que, após lançar
Velórios
, o autor
abandonou a literatura para se dedicar “de corpo e alma”, diz a Nota
da Editora em meu exemplar, à direção do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, sob o comando do Ministro da
Educação, Gustavo Capanema. Tal escolha reforçou o fetichismo e
sobrepôs a este o mito do servidor público que, apesar da genialidade
literária, desprezou a glória e, num “escrúpulo extremo”, exagera a
nota, “consagrou-se à causa da preservação de nossos bens culturais”.
A retórica luta para nos convencer: estamos diante do gênio-herói,
capaz de marcar a literatura para sempre e, sacrificando-se, abandoná-
la e proteger a memória nacional.
Velórios
foi, portanto, o enterro do
homo literatus
— mas garantiu
ao escritor fama eterna. Situação experimentada — ao menos
parcialmente — por um dos defuntos que compõem o livro, no conto
“O príncipe dos prosadores”: dois amigos conversam debruçados
sobre o caixão; a narrativa abre com a fala do primeiro — “Este é que
teria sido, se quisesse, o príncipe dos prosadores” —, que aponta o
corpo “entre os quatro círios tremeluzindo à brisa que soprava pela
janela aberta” e salienta a prosa inigualável, abandonada, contudo,
pelas “exigências da atividade profissional”. O segundo amigo, mais
realista, acende um cigarro e lança “olhar distraído ao cadáver,
querendo ponderar que no Brasil faltava a noção precisa do que fosse
um prosador digno desse nome”. Mas o
primeiro, comovido, não dá
espaço — e segue elogiando, “com método”, o “artista consumado”,
seus “contos e fantasias brilhantes”, o “vigor e a concisão de suas
melhores páginas”.
Ora, tais elogios guardam certa ironia — recordam o prêmio que
alguns dos cérebros supostamente brilhantes do sistema literário
oferecem ao escritor que não escreveu, que preferiu, por quaisquer
motivos, o silêncio. Silêncio que, em alguns casos, é prova de desprezo
pela literatura. Logo, elogios que representam menosprezo por quem
se aventura na incerteza de escrever e trata a literatura como a
verdadeira razão de sua vida — e não um bibelô a mais na cristaleira
da bisavó falecida.
Mas vamos aos textos de Rodrigo M. F. de Andrade.
O volume composto de sete relatos abre com “Dona Guiomar”. Do
conflito apresentado nas primeiras linhas, entre José e a namorada que
lhe nega alguns minutos a mais de carinho, desprega-se o passado do
jovem e de sua família. O pai e as irmãs morreram, restando José, um
irmão e a mãe, cujo nome dá título à narrativa. As personagens
Teotônio — o pai que deliciava as visitas com sua conversa simpática
— e Dona Guiomar — com sua “tendência incoercível para a ternura”
— vão sendo construídas por um narrador aparentemente seguro, que
introduz não só a decadência familiar mas, sobretudo, o drama da
mulher, obrigada a aceitar sucessivas infidelidades do marido, afável
com visitas e amantes, autoritário com esposa e filhos. O narrador,
contudo, revela-se algo prolixo, repetitivo — e o pior: incapaz de
conceder materialidade aos conflitos e dar-lhes um desfecho. O relato
se dilui a cada página, sem nenhum clímax, como se lêssemos um
cronista apaixonado não pela história, mas por sua própria voz ou
pela arquitetura da frase, incapaz de obrigar os personagens à ação.
Esse narrador monopoliza o relato com sua linguagem de tom distante
e sua psicologia esforçada, mas inconvincente, nascida do que ele
conta — e não do próprio comportamento dos atores:
Desde os primeiros tempos do casamento ele fora dado a mulheres, com a
peculiaridade de aproximar da família as suas conquistas por meio de
expedientes diversos. Quanto a isso Dona Guiomar nunca se iludiu:
acompanhara sempre as iniciativas de Teotônio com bastante perspicácia,
embora não lhe ocorresse absolutamente protestar contra aquela infidelidade
quase à sua vista. Não lhe passava pela cabeça reclamar, porque a autoridade
que o marido lhe impunha era incompatível com a menor veleidade de reação
de parte dela, pelo menos frente a frente.
Teatro de revista
— Raimundo Magalhães Júnior e Fuga
Quimera autoritária
— Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do Brasil
Publicado em 1936,
Raízes do Brasil
foi sucessivamente alterado
durante três décadas por Sérgio Buarque de Holanda, processo que a
edição crítica, de 2016,
28
apresentou com minúcias, revelando a
obsessão do historiador: não se tratou de perseverar numa
determinada tese, mas de enrijecer o próprio pensamento, levando-o,
cada vez mais fundo, à radicalização que lhe permitiria ser enaltecido
pelas tropas marxistas do país.
Num estilo muitas vezes hermético — que o distancia da linguagem
límpida do seu contemporâneo, Gilberto Freyre —, Sérgio está sempre
pronto a torcer seu objeto de estudo até o desvirtuamento. Utiliza
técnica curiosa, camuflada pelo linguajar erudito e pelos períodos às
vezes labirínticos, mas que revela, ao final, ausência de penetração e
insistência em obscurecer ao invés de aclarar, pois seu afã se resume
não a permitir que os fatos falem, mas a submetê-los a determinados
conceitos.
Nesse sentido, está sempre pronto a uma forma peculiar de indução:
escolhe determinado exemplo — não uma série de casos semelhantes
—, define-o e, imediatamente, generaliza, estende o resultado de sua
magra observação ao conjunto da sociedade. Sérgio, é nítido, recusa-
se à dialética que o diálogo pressupõe: mostra-se pronto a perguntar,
mas a resposta que poderia descobrir na realidade é substituída pela
generalização — no seu caso, uma forma de arrogância.
Veja-se, no capítulo 1, como arranca da cartola a ideia de que
estamos “desterrados em nossa terra” e, não importando nossos
esforços, “o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece
participar de um sistema de evolução próprio de outro clima ou de
outra paisagem”. De onde teria extraído tal veredicto? O leitor,
persuadido de que Sérgio talvez defenda o
New Look
de Flávio de
Carvalho, apresentado em sua
Experiência nº 3
, prossegue para
encontrar outra generalização: apenas os países ibéricos teriam
desenvolvido o que ele chama de “cultura da personalidade”, pois só
portugueses e espanhóis atribuem “importância particular ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em
relação aos semelhantes no tempo e no espaço”. Nisso residiria
“muito de sua originalidade nacional” — nesses dois povos, “o índice
de valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que
não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém,
em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço, de suas
virtudes…”. Tal forma de ser estaria fielmente espelhada na palavra
“sobranceria”, cujas ideias de superação, luta e emulação “eram
tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas,
recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelos governos”.
Ora, não é necessário grande conhecimento para perceber que
semelhante argumentação se liquefaz com facilidade: se uma única
palavra, “sobranceria”, basta para comprovar a índole de um povo,
índole que conjuga independência e capacidade heroica de esforços,
em que categoria deveríamos inserir os demais povos europeus?
Pertenceriam a algum tipo
sui generis
de submissos? Ingleses, alemães,
franceses, poloneses… em que nicho dessa categorização devem ser
incluídos? Ou, ao contrário, a proposição, exatamente por seu caráter
geral, serve, de uma forma ou de outra, a todos os povos? Mas se
serve, de alguma maneira, à história de todos os povos, então não
pode ser uma característica exclusiva dos ibéricos… e se a
peculiaridade não existe… então o castelo de cartas acaba de cair.
O grave problema é que uma generalização nunca está isolada nesse
discurso — sempre leva a outra, criando uma cadeia de falsidades. No
caso exposto, a tentativa de dar vida a uma operação de
universalização leva ao coroamento do raciocínio: já que, entre os
ibéricos, cada um basta a si mesmo, é dessa “sobranceria” exagerada
que nasce “a singular tibieza das formas de organização, de todas as
associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses
povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo
durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”.
Portanto, “a falta de coesão em nossa vida social não representa,
assim, um fenômeno moderno”.
O leitor não deve se assustar com a inexistência de interação
dialética — Sérgio repetirá a mesma forma de raciocínio até a última
página do livro, sempre forçando conclusões políticas e sociológicas.
Como todo mau observador, é destituído do talento para realizar,
repito, a interação correta entre o dado da realidade e o resultado que
um pesquisador lúcido — ou imaginativo — alcançaria. Dizendo de
outra forma, parte de falsas premissas e observa mal o mundo à sua
volta, pois o que sobra entre nós é exatamente coesão na vida social.
Característica que sobeja desde sempre, bastando, para refutar a tese
do historiador, lembrarmo-nos da figura quase mítica de João
Ramalho, cuja teia de organização social e comercial
facilitou
amplamente o trabalho dos primeiros colonizadores, incluindo os
jesuítas, sem que houvesse necessidade de uma “força exterior
respeitável e temida”. E se desejamos outro exemplo, lembremos do
retrato que Manuel Antônio de Almeida expõe em
Memórias de um
sargento de milícias
: em pleno período joanino, o povo já possuía
identidade nacional, dava todos os sinais de uma permanente
disposição à vida associativa.
Mas Sérgio constrói novas generalizações, pessimistas e repetitivas:
dizer que, para espanhóis e portugueses, “a moral do trabalho
representou sempre fruto exótico”, significa transformar a exclamação
de Macunaíma — “Ai! que preguiça!…” — em síntese de uma
civilização inteira, que, desde seus primórdios, refuta essa tese mal
urdida. Ansioso por encontrar o fundamento de sua conclusão
apressada, basta ao historiador o trecho de uma das cartas de
Clenardus Brabantus, humanista que percorreu a Península Ibérica no
século
XVI
, na opinião de quem a agricultura sempre “foi tida em
desprezo em Portugal”, concluindo, para júbilo do historiador: “Se há
algum povo dado à preguiça sem ser o português, então não sei onde
ele exista”. De fato, os portugueses
não
realizaram o maior
empreendimento marítimo da história — sobrevivem até hoje
refestelados em divãs, recebendo bonificações altíssimas dos ingleses,
que amam seu vinho do Porto, e sendo abanados por velhas escravas
angolanas. Aliás, se foi possível “construir uma pátria nova longe da
sua”, isso ocorreu “sem esforço sobre-humano”, garante-nos Sérgio,
mas principalmente graças à mestiçagem, prova de que não há, nos
portugueses, ainda segundo o admirável pesquisador, nenhum
“orgulho de raça”.
O leitor perdoar-me-á não só esta mesóclise, mas também as ironias
do parágrafo anterior, pois não há outra forma de suportar essas
conclusões superficiais, tratadas, há décadas, como o suprassumo do
ensaísmo nacional. Entretanto, são compreensíveis os elogios
desmesurados a Sérgio Buarque de Holanda, sempre enaltecido pela
esquerda: o autor não perde nenhuma oportunidade de se colocar
contra tudo que represente algum tipo de tradição, começando pelo
núcleo familiar e sua capacidade para se manter “imune de qualquer
restrição ou abalo”. A família patriarcal representa, para ele, elemento
perverso, tirânico, preconceituoso e antipolítico, que jamais se
submete ao Estado. E, da mesma forma, ele detesta o individualismo e
a defesa do mérito pessoal.
Em contrapartida, anseia e defende, para o Estado, a “conquista de
uma força verdadeiramente assombrosa em todos os departamentos
da vida nacional”, não importando os meios a serem utilizados. Na
verdade, faz defesa explícita da revolução, ao referendar o naturalista
Herbert Huntingdon Smith, que, depois de percorrer o Brasil no
século
XIX
,
implorou por “uma boa e honesta revolução, uma
revolução vertical e que trouxesse à tona elementos mais vigorosos,
destruindo para sempre os velhos e incapazes”. Ideias que, logo a
seguir, ganham sua verdadeira têmpera, quando Sérgio elogia
Mussolini e o fascismo — “Não há dúvida que, de certo ponto de
vista, o esforço que realizou significa uma tentativa enérgica para
mudar o rumo da sociedade, salvando-a de supostos fermentos de
dissolução” —, para imediatamente criticar, nos comunistas
brasileiros, a falta da “disciplina rígida que Moscou reclama de seus
partidários” e apontar o que considera “atraente” nessa outra
ideologia revolucionária: a “tensão incoercível para um futuro ideal e
necessário, a rebelião contra a moral burguesa, a exploração
capitalista e o imperialismo”.
Comentando a respeito de nossos “homens de ideias”, Sérgio diz
que foram apenas “puros homens de palavras e livros; não saíam de si
mesmos, de seus sonhos e imaginações”, o que “conspirou para a
fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida
verdadeira morria asfixiada”. Ao supor os erros de outrem, ele
consegue definir a si mesmo. Autor catequético, Sérgio Buarque de
Holanda quis entender o Brasil e apenas desenhou uma quimera,
monstro confuso e grotesco, mas dócil aos seus devaneios marxistas e
autoritários.
28
Publicada pela Editora Cia. das Letras.
CAPÍTULO 28
Exercícios de perfeição
— Manuel Bandeira e suas crônicas
Metáfora e exatidão
Ler
Crônicas da província do Brasil
é deparar-se, em certos
momentos, com uma língua morta, enterrada nas páginas dos
dicionários; mas trata-se de reencontro prazeroso, pois voltamos a
ouvir vocábulos que caíram em desuso: substituídos no interminável
processo de transformação da língua, não estão mortos, guardam sua
carga expressiva, além da sonoridade agradável. Ao relatar a primeira
leitura do
Paulicéia desvairada
, de Mário de Andrade, Bandeira diz
que o livro “declanchou” nele “um movimento de repulsão”. Se
escrevesse hoje, certamente preferiria, ao invés do galicismo, o verbo
“desencadear”. E numa das melhores crônicas, “Reis vagabundos”, o
texto inicia com interjeição vivaz e raríssima, “juque”, atualmente
substituída por “pimba” ou “zás”.
Na crônica “O heroísmo de Carlitos”, a experiência é diversa. A
escolha das palavras reflete a busca pelo termo preciso. Ao descrever a
marcha peculiar de Carlitos como a de um “tabético”, Bandeira acerta
e, portanto, ilumina. Obriga o leitor a correr para o dicionário, mas
esse será sempre um exercício salutar. Referindo-se às calças do
personagem, qualifica-as de “lambazonas”, intensificação de
“lambaz”, pelo fato de a vestimenta recordar esse esfregão feito de
cordas ou trapos. Em outra crônica, “No mundo de Proust”, salienta
a via anedótica das personagens desse escritor, utilizando o exato
“embastida”, ou seja, “espessada”, “compactada”.
Quando se trata não de um termo específico, mas de longo período,
o
conjunto pode nos envolver com seu ritmo, neste caso lento,
reproduzindo nas frases o caminhar do
flâneur
: “Em Olinda há o
silêncio e a tranquilidade que favorecem os passos perdidos dos que se
comprazem nessa contemplação do passado e dos seus vestígios
impregnados de tão nobre melancolia” (na crônica “Velhas Igrejas”).
Ao descrever os trabalhos de seu homônimo, o desenhista Manuel
Bandeira — em “Um grande artista pernambucano” —, o texto abre
com analogias deliciosamente inusitadas:
[…] o Recife tem o físico, a psicologia, a graça arisca e seca, reservada e
difícil de certas mulheres magras, morenas e tímidas. Porque, não repararam
que há cidades que são o contrário disso? Cidades gordas, namoradeiras,
gozadonas? O Rio, por exemplo. Belém do Pará. São Luís do Maranhão são
cidades gordas. A Bahia é gordíssima. São Paulo é enxuta. Mas Fortaleza e o
Recife são magras.
Visão do Brasil
Decepções
Rescaldo
29
Em
Seleta de prosa
, Editora Nova Fronteira,
RJ
, 1997, 2ª impressão.
30
Reeditada, em 2006, pela extinta Editora Cosac Naify.
31
Crônicas inéditas
I
, Editora Cosac Naify,
SP
, 2008. O volume reúne textos escritos entre
1920 e 1931.
CAPÍTULO 29
Só bons retalhos
— Cyro Martins e Sem rumo
Maquinismo ideológico
— Abguar Bastos e Safra
A sombra de Deus
— Otávio de Faria e Mundos mortos
Guia turístico
— Osvaldo Orico e Seiva
Receita de abulia
— Cyro dos Anjos e O amanuense Belmiro
Retórica e dissimulação
Anti-romance
Antiestilo
Sentimentalismo e doutrinação
Narrativa menor
— Orígenes Lessa e O feijão e o sonho
Infantilismo e literatura
O protagonista de
O feijão e o sonho
é o escritor José Bentes de
Campos Lara, a quem a esposa, Maria Rosa, chama de Juca. O
romance inicia com as imprecações da mulher, desorientada no dia a
dia massacrante, “de pé às cinco da manhã” para cuidar das tarefas
da casa, dos filhos e da sala de aula contígua à residência. Seus
resmungos, gritos e gestos bruscos, enquanto Campos Lara dorme,
apesar de ser quase meio dia, criam o clima de antagonismo que
dominará o romance: de um lado, a realidade, à qual o autor concede
o nome simplista de “feijão”; de outro, não propriamente o “sonho”,
mas a imaturidade de Juca, sonhador, sim, e também irresponsável,
perdulário, alheio a todos os elementos que compõem a vida real, de
que participa como se obedecesse a mera contingência, pois não tem
nenhum compromisso com as questões básicas do cotidiano: casou-se,
mas a mulher é um enfeite, na maior parte das vezes um empecilho
aos seus devaneios; os filhos são outros bibelôs, seu amor se resume a
tratá-los como figurinhas agradáveis de se observar, mas não pessoas
que necessitam de alimento, segurança, educação; os
poucos alunos
não lhe interessam, a não ser que manifestem pendor à escrita.
Sempre pronto a escrever poemas, o momento central do cotidiano
de Campos Lara é a visita à “gameleira majestosa”. Depois de
caminhar dois quilômetros, afastando-se do centro da cidadezinha em
que reside, ali, sob a árvore, passa horas ouvindo a “orquestra
soberba” de passarinhos, além de olhar o céu, “onde as nuvens
corriam, acarneiradas, delibando a paisagem sempre nova, de colinas
verdes ao longe, que a noite lentamente ensombrecia”. O narrador
descreve bem essa vida de completo escapismo, interrompida pelas
queixas da mulher, pelo choro dos filhos, pelas eternas dívidas.
À medida que avançamos na leitura, Maria Rosa ganha
complexidade. Veja-se, por exemplo, o capítulo 12, em que essa
verdadeira heroína manifesta seu cativante realismo, próprio dos que
assumem a vida de forma integral. Ao mesmo tempo, enquanto ela
expõe seus preconceitos, reclamações e lembranças, o diálogo desnuda
Campos Lara, infantil a ponto de obedecer às ordens mais simples da
esposa.
Ao contrário do que o leitor apressado pode concluir, é Maria Rosa
a personagem contagiante da história, exatamente por ser complexa,
pronta a expressar seus paradoxos, dividida entre o amor pelo marido
e o repúdio veemente da sua completa inabilidade para viver e da
literatura, que considera inútil. Coube ao senso comum, entretanto,
romantizar as irresponsabilidades de Campos Lara, transformando-o
num herói. De fato, como afirmou Ernest Hemingway, com ironia, “o
fracasso e a covardia bem disfarçados são mais humanos e mais
amados”.
Orígenes Lessa sintetiza a incapacidade do protagonista para a vida
ao mostrar seu comportamento durante a primeira gravidez de Maria
Rosa:
Campos Lara não sabia compreender aquele sofrimento. Fazia frases líricas
sobre o drama espantoso da maternidade. Toda a sua angústia mortal só
parecia sentida intelectualmente, só provocava reações literárias, não
inspirava uma atitude profunda. Punha-o atormentado, sem rumo. Não sabia
o que fazer. Todas as suas soluções eram ingênuas, absurdas, impraticáveis.
Quisera tomar empregada — como se eles pudessem pagar! Falara em se
transportarem para uma estação de águas, por causa dos rins, que não
andavam bons — como se fosse possível! À primeira queixa da mulher queria
chamar o médico, como se o doutor fosse de graça. Tudo no ar. Mas um chá,
uma papinha, alta noite, era incapaz de fazer. Para dar uma colher de
remédio, derramava meio vidro. Para fazer-lhe um escalda-pés, despejara-lhe
a chaleira fervendo no joelho. Um desastre! Meu benzinho pra cá, meu amor
pracolá. Mas
tudo sem préstimo. E incapaz de compreender-lhe a situação, de
penetrar-lhe a psicologia, de sentir a sua tragédia.
Superficialidade
Sarcasmo e mediocracia
— Menotti Del Picchia e Cummunká
Males do intelectualismo
Cummunká
, romance lançado em 1938, é uma das respostas de
Menotti, na ficção, à estética militante de 22. Para realizá-la, o autor
recupera a temática indigenista numa nova chave, em que o índio
surge como elemento recivilizador da sociedade urbana, tecnológica,
democrática — e também seu crítico severo, irônico.
O romance inicia apresentando Gualtério, proprietário do jornal
Rebate
, autor de artigos magistrais de economia, mas incapaz de
pagar as dívidas da empresa. A cada crise financeira, ele dá vida a uma
ideia supostamente genial — na verdade, sempre uma receita para
enganar os leitores, aumentar a tiragem do diário e conseguir novos
anunciantes. Agora, trata-se de organizar uma nova bandeira,
expedição que desbrave o sertão, retome contato com os índios e leve
a esses pobres ignorantes os benefícios do progresso. A ideia contagia
os puxa-sacos e os aderentes do jornal, entre eles, Sérgio Menha,
milionário angustiado e melancólico.
Num corte abrupto, o narrador conduz os leitores da sociedade
industrializada à tribo dos xavantes, onde encontramos os indígenas
refestelados em suas redes, à sombra dos buritis, mas, de forma
inesperada, tecendo longos comentários críticos às canções que
acabaram de ouvir no rádio:
— Todos os sambas são idênticos. Os caraíbas (homens brancos) começam
a sofrer de uma franciscana indigência de imaginação acústica. Você não
reparou, Ponkerê, que o barulho das cidades vai matando o sentido originário
da música? As cidades eliminaram a linha melódica a qual é, no fundo, a
verdadeira substância e a razão da ideia musical? […] A música urbana e
moderna está artificializada pela irrealidade da vida mecânica.
Inaceitável desenraizamento
— Vianna Moog e Um rio imita o Reno
33
Em
História da literatura brasileira
, Editora Cultrix,
SP
, 2004, 2ª edição.
CAPÍTULO 38
Amostra de vitimismo
— Fran Martins e Poço dos Paus
Falsa bondade
Segundo a nota do autor que abre o volume,
Poço dos Paus
nasce de
uma identificação: como os personagens Climério e Luciano, afirma
Martins, “eu também desejo ser bom”. O leitor, assim, prepara-se
para a investigação de algum modo ética — na qual a bondade será,
talvez, insistentemente buscada —, não sem antes decepcionar-se com
outra observação do autor: “[…] Muitos notarão a ausência de
intensidade e movimento”.
De fato, o romance principia num tom não somente monótono, mas
repetitivo: os dois parágrafos iniciais espelham-se, ainda que com
variações, construídos por meio de frases telegráficas, como se o autor,
inseguro, buscasse a própria voz. Aqui, apenas o primeiro parágrafo:
O governo estava dando passagens para Poço dos Paus. Queriam construir
um dos maiores açudes do mundo. Corria mais dinheiro que em tempo de
inverno bom. Famílias inteiras abandonavam o sertão, os trens saíam
atopetados de gente. Todos partiam satisfeitos, sorridentes, alegres. Iam
ganhar dinheiro como em tempo de inverno bom. Muitos não acreditavam.
Iam mas não acreditavam que fosse o que se dizia. Tinham medo de deixar a
terrinha, os roçados, as criações. E passavam dias pensando, antes de tomar a
resolução. Valeria a pena tentar? Não seria embromação tanta vantagem
junta? A miragem os atraía, por isso resolviam experimentar. E quando
chegavam nos trens ouviam casos assombrosos. Mais dinheiro que em tempo
de inverno bom. Cassaco ganhando nove mil reis por dia. Apontadores de
quatrocentos, até quinhentos mil réis por mês. Uma verdadeira mina. E se
tomavam de entusiasmo, alegravam-se, criavam coragem. Tinham esperança
de vencer, vontade de vencer. Venceriam. Uma coisa dizia que venceriam.
Coração não mente, ouviam seus corações e sabiam que venceriam.
Falso romance
— Raimundo Morais e O mirante do Baixo
Amazonas
34
Pensamentos
, Editora Martins Fontes,
SP
, 2001.
CAPÍTULO 42
Rude e maravilhoso
— Cassiano Ricardo e Marcha para Oeste
35
Ver “Sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin, em
Magia e técnica, arte e
política
(
Obras escolhidas
, Editora Brasiliense,
SP
, 1993, 5ª edição).
Acompanhe o trabalho de Rodrigo Gurgel
em seu site e nas redes sociais:
www.rodrigogurgel.com.br
youtube.com/user/gurgelrodrigo
https://www.facebook.com/rodrigo.gurgel1
twitter.com/rodrigogurgel
instagram.com/rodrigogurgel12
medium.com/@rodrigogurgel
José de Alencar
Manuel Antônio de Almeida
João Francisco Lisboa
Joaquim Felício dos Santos
Visconde de Taunay
Bernardo Guimarães
Franklin Távora
Aluísio Azevedo
Inglês de Sousa
Adolfo Caminha
Domingos Olímpio
Manuel de Oliveira Paiva
Raul Pompéia
Machado de Assis
Joaquim Nabuco
Eduardo Prado
Afonso Arinos
Xavier Marques
Graça Aranha
Júlia Lopes de Almeida
Emanuel Guimarães
Euclides da Cunha
Coelho Neto
Olavo Bilac
Lindolfo Rocha
Simões Lopes Neto
Antônio Sales
Hugo de Carvalho Ramos
João do Rio
Carlos de Laet
Lima Barreto
Afrânio Peixoto
Valdomiro Silveira
Monteiro Lobato
Alcides Maya
Amadeu Amaral
Jackson de Figueiredo