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Rodrigo Gurgel

Percevejos, ideólogos — e alguns escritores


Rodrigo Gurgel
1ª edição — outubro de 2019 — CEDET
Copyright © Rodrigo Gurgel, 2019

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Editor:
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Capa:
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Diagramação:
Virgínia Morais

Desenvolvimento de eBook:
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Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br


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edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia,
gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

FICHA CATALOGRÁFICA

Gurgel, Rodrigo
Percevejos, ideólogos — e alguns escritores / Rodrigo Gurgel — Campinas, SP:
Vide Editorial, 2019.

ISBN: 978-85-9507-075-2

1. Literatura Brasileira — Ensaios I. Autor II. Título.


CDD – B869.45

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Literatura Brasileira – Ensaios – B869.45
SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
Créditos
Epígrafe
Apresentação

Capítulo 1. Um percevejo — Alberto Rangel e Lume e


cinza
Monstros
Adornos e patriotada
Alucinações

Capítulo 2. Desejo de ficção — Oliveira Vianna e O


ocaso do Império
Ironia
Caudilhismo
Literatura

Capítulo 3. Ódio ao português — Antônio Torres e As


razões da Inconfidência
Clareza e humor
Portugueses
Amor

Capítulo 4. Tediosa floresta — Gastão Cruls e A


Amazônia misteriosa
Ética e personagens
Linguagem
Agrippino

Capítulo 5. Fábulas desiguais — Darcy Azambuja e


No galpão
Ética pampiana
Humor e coloquialismo
Descrição

Capítulo 6. Um caso de sucesso — Paulo Setúbal e A


marquesa de Santos
Sentidos sentem
Colunismo social
Mediocridade e valor

Capítulo 7. Tralha linguística — Plínio Salgado e O


estrangeiro
Nacionalismo panfletário
Desatinos
Simbolismo oco
Capítulo 8. Bizantinismo — Adelino Magalhães e A
hora veloz
Simbolismo
Ironia
Paráfrase verbosa

Capítulo 9. Lacuna prejudicial — Antônio de


Alcântara Machado e Laranja da China
Percepção do ridículo
Intimidade com a vida

Capítulo 10. Péssimo precursor — José Américo de


Almeida e A bagaceira
Narração esquemática
Autômatos
Tautologia
Naturalismo

Capítulo 11. Na contramão do modernismo — Paulo


Prado e Retrato do Brasil
Curral de cabras
Ideia fixa
Pessimismo
Reverberações

Capítulo 12. Mais um naturalista — Peregrino Júnior


e Puçanga
Leis da fisiologia
Redundâncias

Capítulo 13. Romance desencarnado — Barretto Filho


e Sob o olhar malicioso dos trópicos

Capítulo 14. Em busca da literatura — Rachel de


Queiroz e O Quinze
Abandono da retórica
Complexidade do real
Recusa do melodrama

Capítulo 15. Romancinho bem-intencionado —


Ribeiro Couto e Cabocla
Detalhista sensível
Pai desconhecido

Capítulo 16. Estreia razoável — João Alphonsus e


Galinha cega
Sartrianice
“Apodrecerei quase sem feder”
Gracejo pirotécnico
Absoluta bondade

Capítulo 17. Romance abatido — José Geraldo Vieira


e A mulher que fugiu de Sodoma
Capítulo 18. Narcisismo — Humberto de Campos e O
monstro e outros contos
Da sobriedade à retórica
Grandiloquência e repetições
Ritmo ternário
Nem o melhor se salva

Capítulo 19. Sem proselitismo — Amando Fontes e


Os Corumbas
Realismo
Diálogos e descrições

Capítulo 20. Galimatias, nada mais — Oswald de


Andrade e Serafim Ponte Grande
Eterno escárnio
Desestímulo à criação

Capítulo 21. O brasileiro universal — Gilberto Freyre


e Casa-Grande & Senzala

Capítulo 22. Limites do experimentalismo — Mário


de Andrade e Os contos de Belazarte

Capítulo 23. A descoberta do horror — Graciliano


Ramos e São Bernardo

Capítulo 24. A perversão do homem — Dyonélio


Machado e Os ratos
Capítulo 25. Excesso de benevolência — Rodrigo
Melo Franco de Andrade e Velórios

Capítulo 26. Teatro de revista — Raimundo


Magalhães Júnior e Fuga

Capítulo 27. Quimera autoritária — Sérgio Buarque


de Holanda e Raízes do Brasil

Capítulo 28. Exercícios de perfeição — Manuel


Bandeira e suas crônicas
Metáfora e exatidão
Visão do Brasil
Decepções
Rescaldo

Capítulo 29. Só bons retalhos — Cyro Martins e Sem


rumo

Capítulo 30. Maquinismo ideológico — Abguar


Bastos e Safra
Curvatura de ginástica sueca
Falha estrutural e marxismo

Capítulo 31. A sombra de Deus — Otávio de Faria e


Mundos mortos

Capítulo 32. Guia turístico — Osvaldo Orico e Seiva


Capítulo 33. Receita de abulia — Cyro dos Anjos e O
amanuense Belmiro
Retórica e dissimulação
Amizades sem rosto
Anti-romance

Capítulo 34. Jorge Repetidor Amado — Jorge Amado


e Capitães da areia
Antiestilo
Sentimentalismo e doutrinação

Capítulo 35. Narrativa menor — Orígenes Lessa e O


feijão e o sonho
Infantilismo e literatura
Superficialidade

Capítulo 36. Sarcasmo e mediocracia — Menotti Del


Picchia e Cummunká
Males do intelectualismo

Capítulo 37. Inaceitável desenraizamento — Vianna


Moog e Um rio imita o Reno

Capítulo 38. Amostra de vitimismo — Fran Martins e


Poço dos Paus
Falsa bondade
Capítulo 39. Falso romance — Raimundo Morais e O
mirante do Baixo Amazonas

Capítulo 40. Morte sem luta — Telmo Vergara e


Estrada perdida

Capítulo 41. Sem nunca viver — Guilhermino César e


Sul

Capítulo 42. Rude e maravilhoso — Cassiano Ricardo


e Marcha para Oeste
The more books we read, the clearer it becomes that the true function
of a writer is to produce a masterpiece and that no other task is of any
consequence. Obvious though this should be, how few writers will
admit it, or having drawn the conclusion, will be prepared to lay aside
the piece of iridescent mediocrity on which they have embarked!
Writers always hope that their next book is going to be their best, and
will not acknowledge that they are prevented by their present way of
life from ever creating anything different.

— Cyril Connolly, The Unquiet Grave


APRESENTAÇÃO

Este livro é o terceiro da série, ainda não terminada, em que releio


os prosadores da literatura brasileira, cujos volumes iniciais —
Muita
retórica — Pouca literatura (de Alencar a Graça Aranha)
e
Esquecidos
& Superestimados
— vieram a público, respectivamente, em 2012 e
2014.
Escrever os breves ensaios aqui reunidos — publicados, em primeiro
lugar, no
Jornal Rascunho
— concedeu-me duplo prazer: reencontrar
escritores que desde a época do colégio despertam meu interesse e, na
contramão do que a crítica atual não cansa de fazer, vergastar
medíocres — encharcados de pompa retórica ou de experimentalismo
vazio — e ideólogos, que, inclusive, utilizam a literatura para a mais
ordinária, a mais rasteira das intenções: o proselitismo político.
Que você, caro leitor, a quem agradeço a generosa recepção dos
livros anteriores, possa livrar-se desses dois grupos — e ficar, apenas,
com a literatura.

Rodrigo Gurgel

Julho de 2019
CAPÍTULO 1

Um percevejo
— Alberto Rangel e Lume e cinza

Em
Lume e cinza
, de 1924, Alberto Rangel tentou repetir o relativo
sucesso de
Inferno verde
, publicado em 1908 com elogioso prefácio
de Euclides da Cunha, seu amigo e mestre. Aliás, a correspondência
do autor de
Os sertões
apresenta momentos expressivos dessa
amizade: em 20 de março de 1905, escrevendo de Manaus, Euclides
relata sua saudade, dá detalhes acerca dos preparativos para a
Expedição de Reconhecimento do Alto Purus e agradece a Rangel
pelas “generosas palavras” que este publicara no jornal
Província do
Pará
; a 10 de dezembro de 1907, questiona sobre o lançamento do
livro e revela a prática censurável, de exagerada camaradagem, ainda
hoje comum no sistema literário brasileiro: “[…] Quando surgirá,
afinal, o
Inferno verde
? Espero-o todos os dias. Tenho já três críticos
a postos, de penas perfiladas, prontos à primeira voz”. No mesmo
ano, em data desconhecida e com o livro em mãos, Euclides decreta:
“Julgo o sucesso inevitável”.
De fato, muitos apreciaram o estilo que tentava repetir, de maneira
desbragada, o “cipoal” euclidiano, as excentricidades que faziam o
autor de
À margem da história
colocar-se, segundo Gilberto Freyre,
“perigosamente próximo do precioso, do pedante, do bombástico, do
oratório, do retórico, do gongórico”. Mas há profunda diferença entre
os dois prosadores, pois a retórica que, nos trechos memoráveis de
Euclides, surge carregada de dramaticidade, bem como o gênio do
escritor para dosar possíveis artificialismos, transformam-se, nas mãos
de Alberto Rangel, em mera cabotinagem.

Monstros
Semelhante a um parque de diversões,
Lume e cinza
oferece
narrativas para todos os gostos: o inusitado diálogo entre um atlante e
certo náufrago, subitamente interrompido pela destruição da ilha; o
voo inaugural de um “filóptero”, exercício de ficção científica; as
angústias do monarca que não suporta mais a abundância de ouro em
seu Eldorado; a volúpia de mulheres temporariamente abandonadas
pelos homens da vila — desesperadas, atacam, à noite, cinco idosos
que ali ficaram; a
relação doentia, sempre próxima do assassinato, de
um casal de fazendeiros; o ciúme incontrolável de uma menina, que
chega a transformá-la em assassina; a descrição minuciosa dos males
causados pelo
Trypanosoma cruzi
; o caso do amigo que não pode
agradecer a ajuda financeira, pois o câncer devorou sua língua; o
pobre-diabo que acredita ter mau-olhado poderoso o suficiente para
causar incêndios; o gramático e sofista abandonado pelos amigos
quando os dias de fartura terminam. Essas histórias compõem as duas
primeiras partes do livro, “Fantasmagorias” e “Contos e recontos”.
Na última, “Frutos da terra”, o autor oferece crônicas sobre os
elementos que considera característicos do Brasil: a jangada, o carro
de boi, a palmeira, o monjolo, a queimada, a mandioca, dentre outros.
Um resumo assim, entretanto, não explicita o principal problema do
autor cuja grandiloquência desconhece limites. Alberto Rangel se
espoja na própria linguagem, ­deleitando-se como incontrolável
Narciso, a ponto de comprometer a verossimilhança das narrativas.
Logo na primeira, “Nas grimpas da Atlântida”, o náufrago lançado à
ilha é um homem destruído: “As chagas do seu corpo borbotavam
sangue, como se na rocha sombria do costão desabrochassem em sete
fontes sete rios de um rúbido cruor”. Mas tal criação hiperbólica, esse
homem exaurido e à beira da morte ganha, duas páginas depois, a
força de um titã — e sobe por um “grosso cabo de cânhamo” até o
cume da escarpa em que se encontra a civilização. Descobrimos, na
justificativa para a súbita mudança, a linguagem rebuscada,
responsável pelas características simiescas do personagem:
“Habituado a levantar-se pelos galhos dos seus bosques natais, a fim
de evitar os grandes répteis dos pauis e perseguir pelas ganeiras das
árvores o voo das tragopanas e o salto dos camaleões, alçou-se […] a
vigorosos puxões dos pulsos reforçados”.
Tratamento igualmente desagradável recebe a planta que dá título à
segunda narrativa, “O horto dos marroios”:
[…] Não invejariam os labiados e almiscarados marroios a glória doutras
flores mais notáveis ou pomposas, daquelas cujo perfume de longe entontece e
arrebata as abelhas, e cujas corolas tingem os canteiros e latadas de mais
cores que as da palheta de Apeles. Sem alardeio de vulto ou colorido, além de
servirem os marroios a farmacopeias e ervanários, aureolavam na Beócia o
abrigo dos brincos da imaginação, das ferroadelas da sátira, dos transportes
dos poemas e dos textos de luz da erudição, na roda de alguns eleitos e
preclaros…

Para usar uma expressão do próprio Rangel, sua linguagem é um


“realejo incessante de metáforas” cujo preciosismo irrita e enfastia, a
ponto de, em “O filóptero”, salvar-se apenas curtíssimo trecho,
quando a nave, pousando com violência na Antártica, mata algumas
dezenas de pinguins. Trata-se, também, de narrativa em que o
eruditismo concede ininteligibilidade à história:
— Hei de medir com o verboperêmetro a intensidade oratória desse canibal,
resmoneou o velhusco, concertando esse octaedro de cobre onde se fixava um
fio em espiral que, emergido da coveta de ondonite do turbilhonoscópio, se
atirava ao quadrante graduado de uma espécie de eletróforo.

Tudo transpira esforço pompeante, ornamentação vazia. Em outro


texto, “Nos paços do Eldorado”, a adjetivação desmesurada e a
reiteração da presença de ouro em cada detalhe fazem a alegria dos
semioticistas, pois recriam no leitor o nojo que o rei experimenta. É
um exemplo de como a chamada função poética pode chegar ao
paroxismo e produzir monstros.

Adornos e patriotada

A linguagem carregada de bacharelismo lembra os piores trechos de


Afonso Arinos e Raul Pompéia: “A lisonja magnificava-o, recamando-
lhe a fama das limalhas de um Sol preluzido. Assim, miúdo de corpo e
com as desproporções homunculares de um ludião ou um feto em
bocal, na sua prolixidade enxurravam-lhe os embargos e a
contrafacção”.
Não basta ao narrador descomedido de “Sono e peçonha” dizer que
o pai sai sem fazer barulho, a fim de não acordar a filha. Não… ele
precisa agigantar a cena, florear: “[…] E acabou de vestir-se na ponta
dos pés, para não acordar a filhinha, que deixaria a ressonar com o
anjo de asa rútila e fechada que a velava, chumbando-lhe as pálpebras
sedosas com os raios da alvorada”.
Ainda insatisfeito, o narrador extrapola até provocar engulhos no
leitor:
Pelas frinchas da telha vã entravam as primícias auritrêmulas da aurora a
palorejarem a luzinha da lamparina à cabeceira da criança. Um grilo alongava
com o invariável cricri a sua insônia de solista mofino e soporífero da noite.
Os cílios e os lábios da boneca cerravam com fechos de seda e rosa a crisálida
suave que palpitava na pasta branca e tenra da figurinha de amor. Devia ter
um desses nomes com que a botânica por vezes se apura em adornar tão
docemente a secura de seus róis taxinômicos:
alba
,
mimosa
,
graciles
e
laeta
.

Alberto Rangel sofre da patologia que aponta em uma de suas


personagens: “eloquência flageladora”. As digressões cansativas e a
verborreia mesclam-se, algumas vezes, a manifestações gratuitas de
erudição vocabulista, como ao listar, em “Bucho-de-Piaba”, os
diferentes nomes da cachaça:
Era a venda do Saturnino, onde se vendia a cana, a outra má sorte deste
povo: — a bicha, o caxixi, a pinga amaldiçoada, o parati de todas as horas, a
mangereba reimosa, a pilóia, a sinhaninha, a tiúba, o restilo, a jeribita, que
vilificava os fregueses e amadores, o mata-bicho que assassinava o bicho
homem.

Em “Ritinha Arapari”, as informações sobre a ciumenta menina são


repetidas
ad nauseam
— e o narrador se converte num equilibrista
que, depois de refazer as mesmas acrobacias dezenas de vezes, merece
apenas ser arrancado do palco.
No relato “O crime de Rozendo Filho”, enquanto o marido
alimenta seu desejo de assassinato ao lado da esposa “contabescente”,
esta, “magra e transida, desfolhava” — acreditem! — “a grinalda
lampejante das flores mortais da insônia”.
Mas não joguei o volume pela janela antes de chegar à última
página, pois tudo pode ficar pior quando se trata de retoricismo. É
exatamente o que ocorre na parte final, quando ao discurso
bombástico se acrescenta, num estilo exclamatório e anafórico,
tremenda patriotada: a jangada é “diligente e volteira”, “humilde e
libertadora”, “afoita e pescadora”. O monjolo é “o emblema da vida
e da paciência no coração da roça”, mas depois se torna o “emblema
da vida e da abundância no coração da roça” e o “emblema da vida e
da pachorra no coração da roça”. A mandioca é o “pão do trópico”, a
“mãe do trópico”, a “ração do trópico”, a “alma e segurança do
trópico”, a “sustância e benefício do trópico”, a “salvação do
trópico” e, finalmente, “riqueza dos pobres do trópico”.
Contudo, de todos os exemplos horrorosos que poderiam ser
citados, o trecho a seguir, dedicado à palmeira, merece ser inscrito no
panteão dos nossos retóricos:
És harmonia e firmeza, graça e desempeno, retidão e altura! Orgulho do
Brasil que levanta no horizonte o seu exército fiel e ardente, firme e
inumerável de lanças e penachos. Palmas à palmeira!

Alucinações

Essa literatura de penachos mostra os limites da Semana de 22 —


que
não passou de um traque para a maior parte dos escritores da
época — e como alguns autores conseguem desprezar nossa melhor
tradição: em 1924, Alberto Rangel nada aproveitara de Manuel
Antônio de Almeida ou Machado de Assis — e nem mesmo de Inglês
de Souza, de quem certamente lera
Contos amazonenses
e cujas
narrativas “O gado do Valha-me-Deus” e “A quadrilha de Jacó
Patacho”, publicadas em 1893, são exemplos do melhor que a
literatura brasileira produziu no século
XIX
.
No prefácio de
Lume e cinza
, Alberto Rangel defende “a cor, a
precisão e a energia de certos epítetos”, condena a “embirração” com
os vocábulos, tratando-a como “infantilidade”. Esclarece que “não é
tudo ir à pesca com o seu puçá de singularidades e bons achados no
mar morto da língua”, mas é necessário estilo, pois este “é um meio,
não é uma finalidade”. Faz, no entanto, exatamente o contrário. Ou
seja, trata-se de mais um caso patológico, em que ação e pensamento
dissociados produzem alucinações.
“Até hoje não surgiu ainda um crítico que ousasse dar-me a parte do
que literariamente me pertence”, reclama Rangel em carta a Péricles
Moraes, depois de perguntar: “[…] Não lhe parece ter havido uma
espécie de conspiração para me reduzir a um simples percevejo do
lombo euclidiano?”. Este capítulo responde à pergunta e,
principalmente, atribui ao escritor a ínfima, desprezível parte que lhe
cabe.
CAPÍTULO 2

Desejo de ficção
— Oliveira Vianna e O ocaso do Império

Oliveira Vianna carrega a mácula de supervalorizar as etnias de


origem europeia e repetir críticas à mestiçagem semelhantes às de
Graça Aranha e Euclides da Cunha. Alguns talvez sintam-se surpresos
com o fato de Vianna não merecer a indulgência utilizada para julgar
os autores de
Canaã
e
Os sertões
, mas tal é o comportamento típico
de parcela da nossa intelectualidade, pronta a perdoar em alguns o
que condena em outros, ­pautando-se por um grosseiro utilitarismo: o
ardor revolucionário com que Aranha defendeu as ideias da Semana
de 22 e o suposto ideal socialista de Euclides eximiriam esses
escritores de quaisquer culpas. Quanto a Vianna, pouco importa o
conjunto de sua obra ou que ele tenha corrigido suas afirmações a
respeito da miscigenação — prevalece, em nossa
intelligentsia
, o
lugar-comum de tratá-lo não só como racista, mas também como
ideólogo do Estado Novo.
À parte essa questão, como afirmei em diferentes oportunidades, é
no mínimo curioso que os principais críticos da República
permaneçam soterrados: o romance
A todo transe!…
, de Emanuel
Guimarães, de inegáveis qualidades literárias, segue escondido no
canto mais escuro das bibliotecas, sem reedição há décadas; as
crônicas sarcásticas de Carlos de Laet, divertidíssimas, sequer foram
compiladas na íntegra; e as denúncias de Eduardo Prado, revelando o
empreguismo, a demagogia e a corrupção que assolaram o país logo
após 1889, reunidas em
Fastos da ditadura militar no Brasil
, são lidas
como insignificantes curiosidades do folclore político. O mesmo
estranho tratamento é concedido a Oliveira Vianna, com um
agravante: muitas de suas conclusões podem ser encontradas em
autores que se dedicaram, nos últimos cinquenta anos, a estudar o
Brasil — mas parte deles sofre de terrível insegurança, ou mau-
caratismo, forte o suficiente para impedi-los de citar sua fonte ao
menos nas bibliografias.
Na contramão dos papagueadores e dos tímidos ­destaca-se o
trabalho imparcial de Ricardo Vélez ­Rodríguez, da Universidade
Estadual de Londrina, que não deixa de apontar — no ensaio
“Francisco José de Oliveira Vianna; sua vida e sua obra”, disponível
no portal
Proyecto ­Ensayo Hispánico
1
— as “deficiências teóricas” de
Oliveira Vianna, salientando, contudo, que
o pensador fluminense rejeita e supera definitivamente o monocausalismo
sociológico que vingou nas diversas teorias de inspiração cientificista acerca
da formação social brasileira, ao longo do século XIX
e ainda no século XX.
Um outro mérito inegável é a rica tipologia sociológica com que soube ilustrar
a organização política do Brasil, desde a Colônia até o século XX
. […]
Justamente o espírito científico do pensador fluminense se revela no rigor
metodológico por ele seguido no processo de formulação dos conceitos
sociológicos, extraídos […] de uma rigorosa observação dos fatos sociais e do
confronto com os dados da experiência. Tendência salutar, hoje mais do que
nunca extremamente necessária, em face da perniciosa ideologização das
ciências sociais.

Ironia

Essas e outras qualidades encontram-se em


O caso do Império
, de
1925, cujo prefácio apresenta o objetivo central do livro — “descrever
a evolução da mentalidade das nossas elites no momento justo em que
passam da grande ilusão monárquica para a grande ilusão
republicana” — e a justificativa de ter definido o período entre a
queda do gabinete chefiado por Zacarias de Góis (1868) e a
publicação do Manifesto Republicano (1870) como ponto de partida
do movimento que levaria ao golpe de 1889: no afã de buscar as
causas primeiras, o historiador não pode, “de inferência em
inferência”, agir como o hipopótamo de Machado de Assis, que “tem
a fome do infinito e tende a procurar a origem dos séculos”.
A lembrança de
Memórias póstumas de Brás Cubas
anuncia uma
das características do estilo de Vianna, repleto de comentários e
contrastes que revelam a agudeza de sua inteligência.
Há evidente ironia quando se refere ao “romantismo filantrópico
dos abolicionistas” e ao “clima de exaltação” que o movimento
atingiu. Sem desprezar a humanidade da causa, ressalvando o “estado
de degradação” em que caíram os escravos depois da Lei Áurea,
Vianna salienta o caráter imaginativo do brasileiro, propício a
campanhas emocionais, “extremamente suscetível ao idealismo e
ricamente dotado para o entusiasmo”. Os defensores do
abolicionismo são “apóstolos”, “cavaleiros andantes”,
“evangelizadores” impelidos inclusive por fatores externos, pela
pressão de outros países, aos quais o autor se refere como “o resto da
Cristandade, lavada, limpa, purificada por inteiro da mácula
pecaminosa do escravismo”, afirmação sem dúvida despropositada
que objetiva
ressaltar, com sarcasmo, a verdade: direta ou
indiretamente, a Europa sempre se serviu da escravidão.
Oliveira Vianna procede da mesma forma quando se refere aos
políticos brasileiros, prontos a considerar uma temeridade a defesa
que Pedro
II
faz, na Fala do Trono de 1867, da “emancipação” dos
escravos — homens que, fantasiados de republicanos abolicionistas,
oferecem um discurso dúbio poucos anos depois, no Manifesto
Paulista que antecedeu a Convenção de Itu. Depois de citar um longo
trecho, em que apresenta o raciocínio tortuoso dos signatários, Vianna
comenta:
Os próprios republicanos, pelo menos os republicanos paulistas,
tergiversaram — e foram perfeitamente deliciosos nas suas tergiversações. O
Manifesto Paulista de 1872 é um mimo, uma jóia de coerência e de coragem
de princípios […]. No gênero lusco-fusco, no gênero “quero, não quero”, no
gênero encruzilhada, é o que há de mais obra-prima. Eis aqui um documento
que devia resplandecer, em moldura de ouro, nas paredes do Museu de Itu.

Vianna descreve os radicais que se aferraram ao utopismo,


sonhando com uma república idealizada — política que Joaquim
Nabuco qualifica como “silogística” ou “construção no vácuo” —, e
declararam Pedro
II
culpado de todos os males:
Equivale dizer que o que, aos olhos dos republicanos de 70, punha em
perigo a Liberdade era a ação de Dom Pedro, vigilante, atenta, miúda,
exigente. Desde que a livrássemos desta ação, o “perigo” desapareceria, e a
Liberdade poderia vir para a rua, limpinha, vestidinha, segurazinha, sem
nenhum receio de desacato ao seu pudor e, muito menos, à sua pureza de
Diana imaculada. Hoje, porém, com uma perspectiva magnífica pela vastidão
e pela riqueza da experiência acumulada, a uma distância de mais de meio
século, podemos sentir perfeitamente a ilusão em que andavam aqueles
idealistas adoráveis. Os raros, que sobrevivem dessa época, flutuando como
épaves
no oceano do arrivismo contemporâneo, bem poderiam atestar o seu
engano. Muitos deles já o confessaram, num
penitet
significativo,
reconhecendo lealmente que o mal não vinha daquela origem, para a qual
“todos apontavam”, mas de outra, muito diversa. Tanto que a causa
apontada desapareceu — e o “mal”, isto é, “a anulação do elemento
democrático”, continuou cada vez mais florida e vicejante.

O ensaísta também analisa o que chama de “fluxo oratório”, o país


hipnotizado pela eloquência vazia:
Esses neófitos do credo republicano, que mais tarde seriam canonizados e
passariam a figurar no
Flos ­Sanctorum
do Historicismo, possuíam, na sua
generalidade, uma mentalidade de declamadores e, como tais, contentavam-se
em atirar, com intuitos ferozmente demolidores, ruidosas bombas de retórica
contra o Trono e a Dinastia — e apenas isso.

A predominância da sanha dos propagandistas sobre os fatos só


demonstra que o método ilusionista no qual se mesclam verborreia e
demagogia sempre fez sucesso entre nós.

Caudilhismo

A leitura de
O caso do Império
causará, em alguns, certo
estranhamento; em outros, mais afeiçoados ao palavrório da classe
política nacional, verdadeira repulsa. Entretanto, seja qual for a
reação, o fato é que, em inúmeros trechos, temos certeza de que
Vianna fala do Brasil contemporâneo.
Ao analisar o parlamentarismo — “um governo de opinião, isto é,
um governo cuja instituição num dado povo pressupõe a existência de
uma opinião pública organizada” —, o diagnóstico de Vianna ajusta-
se, passado quase um século, à nossa realidade:
[…] Ora, esta opinião pública organizada, capaz de governo, nunca existiu
aqui, nem hoje, nem outrora […]. Havia — como ainda há hoje — uma
opinião informe, difusa, inorgânica […]. Esta opinião, aliás, tinha sempre um
caráter artificial, era quase sempre um reflexo americano das agitações
europeias. Só exprimia realmente o pensamento de uma pequena parcela das
classes cultas do país. […]
Sua definição dos partidos Liberal e Conservador — “eram simples
agregados de clãs organizados para a exploração comum das
vantagens do Poder” — poderia estar num artigo dos raros analistas
políticos sérios que escrevem hoje. E não ficaria mal usar também esta
citação: “Em nosso país, com efeito, […] vive-se do Estado, como se
vive da Lavoura, do Comércio e da Indústria — e todos acham
infinitamente mais doce viver do Estado do que de outra coisa”.
Se, durante a monarquia, as eleições eram “pura ficção
constitucional”, uma “burla”, uma “artificialidade do regime
representativo”, o problema não mudou com a República:
[…] O presente regime não deu satisfação às nossas aspirações democráticas
e liberais: nenhuma delas conseguiu ter realidade dentro da organização
política vigente. Estamos todos descrentes dela. […] Tendo perdido a fé no
regime vigente, mas não tendo
elaborado ainda uma nova fé, estamos
atravessando uma dessas “épocas sem fisionomia”, […] parda, informe,
indecisa — de atonia, em cuja atmosfera parada, de calmaria, giram,
circulam, suspensos, germes de futuras crenças, embriões de futuros ideais,
mas que não são nem crenças, nem ideais ainda.

A semelhança que nossos presidentes guardam em relação aos


caudilhos do Prata; o desejo do governo, tantas vezes descontrolado,
de intervir nas eleições; as “artimanhas dos nossos
bosses
eleitorais
[…], inapreensíveis, intangíveis, invencíveis no prodigioso diabolismo
das suas habilidades de prestímanos”; a ineficiência “dos aparelhos
protetores das liberdades individuais”, que “sempre funcionaram mal,
deixando o homem do povo na iminência ou na atualidade dos golpes
de vindita dos poderosos” — tudo se corporifica na carta que Floriano
Peixoto escreve ao general João Neiva em 1887, defendendo a
necessidade da ditadura militar: “Como liberal que sou, não posso
querer para meu país o governo da espada; mas não há quem
desconheça […] de que é ele o que sabe purificar o sangue do corpo
social, que, como o nosso, está corrompido”.
Mas o que se tornaria violência incontida no governo de Floriano,
entre 1891 e 1894 — violência, aliás, que nossos historiadores
premiaram, dando a esse déspota o título de Consolidador da
República —, também se anunciava antes, de forma sutil e
melancólica, no comportamento de Deodoro, pronto a utilizar uma
retórica que jamais correspondeu à realidade — “[…] a República virá
com sangue, se não formos ao seu encontro sem derramá-lo” — e
fraco o suficiente para ser manipulado por Benjamin Constant ou, no
cargo de Chefe do Governo Provisório, nomear o ministro da
agricultura, Demétrio Nunes Ribeiro, sem qualquer referência, a não
ser o comentário de Francisco Glicério: “É um grande homem”.

Literatura

O estudo minucioso dos fatos — veja-se, na Terceira Parte, o


levantamento dos jornais e clubes republicanos, bem como dos
adeptos do positivismo, números que comprovam a desprezível
penetração social dessas forças —, o encadeamento de exemplos
elucidativos, a análise da psicologia de Pedro
II
, a exposição do jogo
dissimulado da política e a ausência de conclusões ideológicas
transformam
O ocaso do Império
num agradável ensaio, semelhante
ao que Steven Runciman fez em
A queda de Constantinopla
, obra
que
o romancista Javier Marías julgou com precisão: “Sua vontade de não
fazer literatura é precisamente o que converteu sua crônica em um
romance excelente, que sugere mas não mostra, que faz o leitor
fantasiar ao invés de enfastiá-lo com o evidente”.
Oliveira Vianna não idolatra o povo, as instituições, os partidos ou
as personagens dessa trama desafortunada, retrato da imaturidade de
um país que ainda cambaleia sob o peso de instituições frágeis e
políticos oportunistas, acreditando que bastam decretos para se criar
uma nação. Com ironia e cultura, sem a linguagem hermética e
pedante dos que se apoiam em academicismos, ele nos faz desejar que
tudo, incluindo nossa história recente, seja apenas ficção.

1
Em
https://www.ensayistas.org/filosofos/brasil/vianna/introd.htm
.
CAPÍTULO 3

Ódio ao português
— Antônio Torres e As razões da Inconfidência

Sacerdote que abandonou a vida eclesiástica para ingressar no


jornalismo e na carreira consular, o mineiro Antônio Torres partilha
com seu conterrâneo Joaquim Felício dos Santos e o maranhense João
Francisco Lisboa a sorte do esquecimento, prêmio que o Brasil
concede a alguns de seus melhores escritores.
Ao destino de Antônio Torres, contudo, temos de acrescentar um
quê de estranhamento, pois foi autor prestigiadíssimo, principalmente
no período de 1910 a 1930. Seu livro
As razões da Inconfidência
, por
exemplo, lançado em 1925, teve a primeira edição, de 3 mil
exemplares, esgotada em quinze dias. Publicada a segunda edição um
mês depois, em maio, esta também se esgota — e uma terceira, com
acréscimos, surge em julho. São números impressionantes ainda hoje,
quando raramente um escritor nacional vende mais que dois
milheiros.
O estudioso ranzinza dirá que tal sucesso se devia ao gênero
aparentemente fácil em que Torres se especializou, a crônica, aos
temas debatidos no calor da hora e ao estilo insolente, sardônico,
destemido. Mas veremos que nosso autor é muito mais.
Antônio Torres orgulhava-se de sua independência — e se colocava
em frontal oposição a João do Rio, sempre pronto, segundo Ledo Ivo,
a cortejar “desembaraçadamente os comendadores portugueses que
costumavam ­abastecer-lhe os bolsos furados de dissipador
incorrigível”. Não por outro motivo, Torres o considerava “uma das
criaturas mais vis, um dos caracteres mais baixos, uma das larvas mais
nojentas” do jornalismo carioca. E, com justificado orgulho, inclui a si
mesmo, na nota que escreve à segunda edição de
As razões da
Inconfidência
, em seleto grupo:
[…] Nós outros que não nascemos para viver a espojar-nos aí por estes
cisqueiros em que tão felizes se acham os galináceos mansos, para os quais o
supremo surto do voo não passa da altura de um poleiro; e será a suprema
honra do seu destino — o ferver algum dia na panela dalgum rico, ricaço, ou
simples caloteiro com fumaças de nababo.

Clareza e humor

Na contramão da eloquência nacional, Torres repete nos textos o


rigor que pauta sua conduta. Em
Da correspondência de João
Epíscopo
(1917), não basta mostrar a teimosia com que Antônio
Austregésilo Rodrigues de Lima, neurologista escolhido para a
Academia Brasileira de Letras em 1914, abusa do chavão “de
oradores de comícios, chapa retórica inteiramente gasta”, mas é
preciso tripudiar, de forma didática, sobre o “venturoso clínico”:
[…] A sua frase vai, volta, sobe, desce, anda, desanda, empaca, corre um
centímetro, enguiça logo depois, resvala para a direita, escorrega para a
esquerda, range nas engrenagens, emperra, torna a mover-se, embaraça-se
imediatamente, faz novo e último esforço para voar e vai engastalhar-se
definitivamente no beco sem saída de um ponto final. Aí o motor de V. Exa.
dá uma descarga; o aparelho começa então a funcionar, trepidando; a frase
volta ao ponto de partida; tenta tomar nova direção; anda um instante, vibra
e paf! novo empacamento! V. Exa. força a manícula; abre a caixa de gases; a
frase sai zimbrando (como diria o Sr. Coelho Neto), às curvetas e zigue-
zagues, em linhas quebradas e sinuosas, e, cansada, arquejante, impotente,
despedaça-se no ímpeto de uma derrapagem. Trilam apitos; corre gente, acode
a polícia, grita a multidão:
Não pode! Não pode! Prende! Lincha!
Nisto se
ouve tilintar aflitamente a campainha e é a Assistência que chega para
socorrer o leitor desfalecido!

Um estilo assim, despojado de rodeios e pleno de humor, só poderia


alcançar sucesso. Justo sucesso.
Sua ironia sobranceia a crônica “A Academia em sessão”, no livro
Verdades indiscretas
(1920). Nela, o autor celebra o caráter
enciclopédico, infrutífero e inofensivo da Academia Brasileira de
Letras, pois “da única sessão em que os acadêmicos se reuniram para
resolver coisas, saiu um monstro: a reforma ortográfica”. Faz tempo,
portanto, que as sumidades nacionais não conseguem refrear seus
ímpetos reformativos e populistas, como Torres explica:
A pretexto de facilitar o ensino da escrita, nivelou a Academia os
intelectuais e os vendeiros. Que nos importa a nós, senhores, que o vendeiro
ali da esquina escreva cachorro com
x
? Devemos acompanhá-lo? Não.
Deixemos-lhe a inteira responsabilidade da sua grafia lusitana…
A Academia pensa de modo contrário. Uma vez que o vendeiro ache
dificuldade no emprego do
ph
, o que os intelectuais devem fazer
não é
disseminar a instrução a fim de instruir o vendeiro mas, sim, desaprender a
sua ortografia e escrever com ele! Chama-se isto — simplificação ortográfica.

Destituído de pretensões socializantes e demagógicas, Torres se


deleitaria com a Medalha Machado de Assis que a Academia
Brasileira de Letras concedeu a Ronaldinho Gaúcho e Vanderlei
Luxemburgo em 2011 — e certamente perguntaria por que a
instituição não substitui o fardão bordado com fios de ouro por
camisetas, calções e chuteiras. Antecipando-se ao esquete, no início do
século
XX
ele suplicava, inutilmente, aos acadêmicos: “Fique quieta a
Academia. Nada de estroinices, nada de brincadeiras inconvenientes
[…]”.
Em
Prós e contras
, de 1921, sua “Crônica culinária”, provocação
bem-humorada ao senador Francisco Sales, é aula de política e
gastronomia, práticas, bem sabemos, inseparáveis. Torres assegura que
o cardápio proposto consegue converter possíveis adversários até
mesmo aos paradoxos do anfitrião. Mas o que surge a cada linha é a
descrição límpida, visual, econômica:
[…] Assim, pois, abatido pela manhã o porco, um grande porco de
toucinho de palmo, retira-se-lhe o lombo, puro, sem nenhuma gordura. Deita-
se esse lombo em água limpa, que se renovará a quando e quando, até que
não haja nele vestígio de sangue. Faz-se uma salmoura de vinagre, cebola, sal,
folhas de louro, pimenta e alho, tudo bem moído e misturado num almofariz.
Despeja-se essa salmoura numa vasilha conveniente, na qual, em seguida, se
coloca o lombo; toma-se um furador com a mão esquerda; com a direita,‐ ­
empunha-se heroicamente uma colher; e, à proporção que a esquerda vai
furando o lombo a esmo, a direita, com a colher, vai-lhe derramando molho
por cima, tendo-se o cuidado de repetir essa operação em cada uma das faces
dele. […]

Resta ao conviva, antes de comer o lombo, “farejar o ambiente em


torno, recolher-se alguns momentos dentro de si mesmo, agradecer a
seu deus, seja qual for, o dom da vida do porco e meditar sobre a
alegria de viver…”. Guimarães Rosa — em carta ao diplomata Raul
de Sá Barbosa, que organizou e prefaciou ótima antologia de Antônio
Torres
2
— estava certo: o cronista não tinha apenas “verve, muita
cultura e uma coragem danada”, mas também “pena e estilo sem
ferrugem”.

Portugueses

Entre os inimigos de Antônio Torres está Portugal, que ele chamava,


carinhosamente, de “carro fúnebre de 3ª classe”, acusando o país de
ser a
“única colônia inglesa que não tem moral nenhuma”. Seu ódio
nascia dos crimes que a metrópole cometera no Brasil e do controle,
verdadeira censura, que alguns portugueses milionários exerciam
sobre a imprensa.
As razões da Inconfidência
é a melhor reunião de suas críticas
implacáveis — livro que, segundo Torres, tem “a vantagem de não ter
sido descoberto por nenhum português”. A cada página, encontramos
o desprezo pelo risco de assumir uma posição pública ferina; passado
quase um século, quando o jornalismo se transformou, em nosso país,
num coro de felizes anuentes — com algumas honrosas exceções —,
seus textos audaciosos produzem efeito medicinal.
É claro que ele exagera — e qualquer leitor de mediano bom senso
não se sentirá obrigado a concordar plenamente com Antônio Torres.
Mas não podemos esquecer que, ao atingir o colonizador, ele
pretendia também denunciar aspectos do caráter brasileiro, como o
provincianismo e o “horror à responsabilidade”. De qualquer forma,
não importa se os comentários expressam apenas excessiva
indignação, pois o estilo envolve, persuade.
Assim, na crônica “Os portugueses julgados por outrem e por eles
mesmos”, lista as críticas que mais aprecia: “De todas as nações da
Europa […] é Portugal a que, na época do descobrimento e da
colonização do Brasil, menos tocada havia sido da civilização
moderna” (Louis Agassiz); “o povo mais rústico da Europa” (Camilo
Castelo Branco); Richard Burton, depois de visitar o Brasil, escreve
sobre “a sujeira da civilização portuguesa, que polui os seus (isto é, os
nossos) rios cor de prata e conspurca até a pureza das nossas florestas
virgens”; para o escritor Fialho de Almeida, “excetuando talvez um
terço de Lisboa, e um quinto ou sexto de Coimbra e Porto, o resto do
país vive na coação da força retrógrada, emparedado em imundícies
de gueto”; e, dentre outros exemplos, inclusive um trecho do Canto
V
dos
Lusíadas
, salienta o texto do anúncio publicado em Buenos Aires,
no qual certa companhia de navegação esclarece, com orgulho, que
seus navios, rumo à Europa, não paravam em portos brasileiros,
deixando os clientes “livres do incômodo de viajar com portugueses
embarcados em Santos, Rio de Janeiro, Bahia e Recife”.
Uma simples dotação orçamentária — a contribuição do governo
brasileiro à Cátedra Luís Vaz de Camões no King’s College de Londres
— serve para Torres destilar sua ira. Inclemente, trata a primeira
travessia aérea do Atlântico Sul, realizada pelos lusitanos Sacadura
Cabral e Gago Coutinho (que Torres chama de “Coutinho Gago”)
como uma “viagem de cágados”. Na crônica “O capítulo Sacadura”,
análise cáustica da retórica portuguesa, ele comenta:
Antes de Sacadura e Gago virem ao Brasil, o Atlântico já tinha sido
atravessado em verdadeiros
raids
de Londres a Nova York, e vice-versa, por
aviadores britânicos e norte-americanos, em percursos de poucas horas. Se
havia, pois, algum problema para resolver nesse sentido, já o haviam
conseguido fazer os homens de língua inglesa. Mas os portugueses acharam
ser necessário arrombar a porta aberta. Pelo que, saíram os dois lusíadas de
Lisboa a 31 de março de 1922 e — coisa extraordinária! — chegaram ao Rio
a 17 de junho do mesmo ano, depois de arrebentarem duas ou três máquinas!
Conseguiram com essa proeza homérica demonstrar, à luz mais pura da alta
matemática, que um aeroplano pilotado por aviadores portugueses leva para
vir de Lisboa ao Rio tanto tempo como uma baleeira, guiada por pescadores
escandinavos, para viajar de Gotemburgo à Terra do Fogo. Realmente, um
grande progresso na arena científica.

Eis, inegável, um mestre da zombaria, apreciador da “frase limpa,


enxuta, que o resguardava do ritmo oratório”, como bem sintetizou
Gilberto Freyre (citado por Raul de Sá Barbosa).

Amor

O centro de
As razões da Inconfidência
é a palestra que Torres
proferiu na Associação dos Empregados do Comércio, em 21 de abril
de 1925, verdadeiro anátema contra os portugueses. Ali encontramos,
segundo a definição de Amadeu Amaral Júnior, o “panfletário
devastador”. Nada escapa à sua ira: dos impostos acachapantes que a
metrópole cobrava — e que hoje pagamos a nosso próprio governo —
à monstruosa condenação de Tiradentes. Peça de retórica, sim, mas
cuja sobriedade empolga: ele despreza a verborragia e concretiza o
fragmento de Arquíloco: “Tenho uma grande arte:/ firo duramente/
aqueles que me ferem”.
Se é verdade que o furor justiceiro de Antônio Torres contra
Portugal não tem mais lugar no Brasil contemporâneo, também é
certo que suas lições de história precisam ser continuamente
lembradas e seu estilo — coeso, congruente, desenvolto — merece o
qualificativo “modelar”.
Raul de Sá Barbosa conta que, no início da carreira jornalística,
período de insegurança e pobreza, Torres chegava a dormir “nas
redações em que escrevia, embrulhado, às vezes, se fazia frio, na
bandeira nacional”. Talvez tenha se aprofundado aí, mais que a
aversão aos colonizadores, o seu indiscutível amor pela língua
portuguesa.

2
Antônio Torres — uma antologia
, Editora Topbooks,
RJ
, 2002.
CAPÍTULO 4

Tediosa floresta
— Gastão Cruls e A Amazônia misteriosa

Agrippino Grieco escreveu que o romance


A Amazônia misteriosa
,
de Gastão Cruls, lançado em 1925, é um “livro de sólida ossatura,
com algo de Kipling, Conrad e Chadourne”. O elogio, bem mais
longo, publicado em
Evolução da prosa brasileira
, de 1932, não é
apenas imprudente, mas revela o lado desagradável, aético, dos
sistemas literários, incluindo o brasileiro, pois Grieco e Cruls eram
sócios, proprietários da Editora Ariel, criada em 1930. Essa
construção artificial de celebridades, ainda que empolgue as
panelinhas e, talvez, facilite temporariamente a venda dos livros, dura,
entretanto, como dizem os espanhóis:
un rato
.
De qualquer maneira, não importa que o louvor exagerado venda
um romance repleto de problemas ou deficiências — é preciso ir além
da desconfiança, gastar alguns reais, abrir o livro e conceder ao
escritor a oportunidade de comprovar que seu amigo não foi desleal
com os possíveis leitores.

Ética e personagens

Em
A Amazônia misteriosa
, Cruls tenta recontar sob o ponto de
vista tupiniquim o romance de ficção científica
A ilha do Dr. Moreau
,
de H. G. Wells, publicado em 1896, obra de caráter darwinista, na
qual o autor discute os limites éticos da manipulação biológica de
animais e seres humanos — prática que hoje recebe o nome
eufemístico de “engenharia genética”.
Depois de se perder durante uma caçada, o narrador de Cruls acaba
isolado em algum ponto da Hileia, numa tribo composta unicamente
de mulheres, as mitológicas amazonas que o explorador espanhol
Francisco de Orellana afirmou ter visto em 1541. Ali, depara-se com
uma utopia silvícola, na qual, a depender da idade, cada mulher
desempenha uma função predeterminada. Tudo é perfeito: da
arquitetura — “habitações bem construídas, ruas regulares, estradas
largas, e até o arremedo de praças e jardins, onde muitas árvores
deveriam ter sido plantadas pela mão do homem” — às relações
sociais, estratificadas e plenas daquele desprendimento feliz que,
segundo os socialistas, deveríamos sentir
enquanto o garrote do
Estado nos estrangula.
Tal lugar paradisíaco não teria nascido, contudo, sem uma história
sanguínea: no século
XVI
, as predecessoras das amazonas, ao saberem
da prisão do grande inca Atahualpa e da vitória dos conquistadores
espanhóis, liderados por Francisco Pizarro, decepcionadas com a
derrota sofrida pelos maridos, mataram os filhos de sexo masculino e
fugiram pela “vertente oriental dos Andes”, vindo cair em plena
Amazônia. Apesar do desprezo que, no romance, alimentam em
relação aos homens, uma vez por ano, na “Festa das Pedras-Verdes”,
recebem os varões para um rito que, depois de algumas horas, se
transforma numa orgia carnavalesca, afinal essas feministas ainda
obedecem à libido ou à lei da preservação da espécie.
É nesse lugar idílico que o narrador se depara com Hartmann,
médico alemão que, a princípio, esconde os motivos de estar ali há
oito anos. No entanto, após rápida investigação, nosso protagonista
descobre as experiências que ele desenvolve com crianças e adultos,
dando vida a mutações excêntricas ou, prática mais simples,
alterando, por meio de uma lobotomia específica, os centros cerebrais
da fala e da memória.
Apesar das aberrações criadas pelos experimentos — o que pode
nascer, por exemplo, de um óvulo humano fecundado com o esperma
do macaco-aranha? —, a discussão ética surge frágil, pífia, pois o
narrador-protagonista não passa de um pusilânime que deseja ficar
bem com todos:
Achei de bom alvitre mostrar-me de perfeito acordo com o seu ponto de
vista, e, dali por diante, já de regresso, mas sempre conversando
animadamente, só tive aplausos para os seus trabalhos. Aliás, esses trabalhos
eram de tal relevância e tão grandes e inesperadas as novas aquisições trazidas
à ciência que, tirante a desumanidade dos processos experimentais, não
haveria quem os deixasse de elogiar. Elogiei-os, portanto, na certeza de que
não comprometia de todo a minha sinceridade e com a esperança de, assim,
mais fácil, talvez, me fosse a liberdade.

Não há espaço para crises ou conflitos no romance. O protagonista


se refestela em seus divertimentos bucólicos, a possível discussão ética
é jogada no limbo e os personagens, hábeis contemporizadores,
simplesmente seguem a vida, cada um divertindo-se em seu universo
particular — enquanto as corajosas amazonas caçam, pescam,
plantam e se comportam de forma servil.
O desejo de fuga desse paraíso inverossímil surge quando a esposa
de Hartmann, Rosina, que se torna amante do narrador, praticamente
impõe a decisão, pois o médico planeja usá-la em suas experiências.
Mesmo a relação adúltera é descrita de forma inconsistente, superficial
— e o máximo de emoção que o escritor consegue oferecer são
parágrafos cujo estilo remonta ao século
XIX
:
Filtrava-me no sangue a exultação da natureza ambiente e as minhas
narinas arfavam sentindo um aroma delicioso. Seria o perfume do seu corpo
ou a fragrância das corolas recém-abertas, da erva tenra e dos frutos
maduros? E os nossos lábios se colaram num longo beijo…

Um só personagem tem vida própria, individualidade, e se expressa


de maneira natural: Pacatuba, fiel companheiro do narrador,
nordestino eternamente arrependido da viagem e saudoso de sua
gente. Esperto, logo percebe o mal que se esconde sob a aparência
solícita de Hartmann; e, quando é informado das experiências,
conclui:
— Eu não lhe dizia que aquele não-sei-que-diga tinha de ser muito
miserável? Aqueles olhos de xexéu não enganam. Lá nos meus mundos a
gente já sabe, tipo de olho azul não presta, tem temperamento muito
sanguinário. Seu doutor entende como é? Não presta não…
E, como eu o interpelasse, a respeito do que pensava da nossa situação, caso
tivéssemos mesmo de ficar prisioneiros, ele respondeu-me:
— Que é que eu penso? Eu não penso nada… — E, depois de uma ligeira
pausa em que parecia querer se recordar de alguma coisa: — Olhe! E recitou-
me:
A desgraça do pau verde
É ter um seco encostado,
Vem o fogo, dá no seco,
E fica o verde queimado.
Logo a seguir, inquiriu-me: — Seu doutor entende como é? — Fiz que não
com a cabeça, e ele concluiu: — Pois é. O pau verde sou eu… O doutor foi
vigiar as bruxarias desse barbaças e agora paga o justo pelo pecador.

Movido por incrível senso prático, medroso, bem-humorado,


parcial, religioso, fiel ao poder das rezas e das mezinhas, Pacatuba é o
único homem — no sentido de ter sentimentos, fraquezas,
perplexidades — em todo o romance.

Linguagem

O que não seria problema nas mãos de um bom escritor transforma-


se, na pena de Gastão Cruls, em obstáculo intransponível: o livro foi
escrito sem que ele conhecesse o Norte do país, a não ser “através de
numerosa e selecionada bibliografia”, diz a nota da Editora José
Olympio; seu primeiro contato com a Amazônia só ocorre em 1928,
quando acompanha a expedição do Marechal Rondon à fronteira do
Brasil com a Guiana Holandesa, atual Suriname.
Seu apego à bibliografia — e não à sua capacidade de fantasiar; o
desejo de escrever uma obra que fosse réplica da floresta — e não
exercício de verossimilhança; a aflição evidente de transpor para o
livro cada mínimo elemento amazônico, atribuindo-lhe seu nome
específico; tudo contribui para a criação de uma narrativa artificial,
que obriga o leitor ao exercício de consultar, página a página, o
“Elucidário”, formado por cerca de 250 palavras. Usar a expressão “o
lago estava saru”, por exemplo, é condenar a um vazio mental o leitor
que não domina os regionalismos.
Mas, fosse este o único problema do romance, ­Agrippino Grieco
ainda poderia dizer que Cruls se agarra desesperadamente à barra da
calça de Joseph Conrad, cujas narrativas utilizam, inúmeras vezes, o
vocabulário náutico.
Na verdade, Cruls não consegue ir além do preciosismo. Tenta
repetir o que Euclides da Cunha já fizera, mas só consegue criar
retórica destituída de dramaticidade, mero discurso ostentatório:
Sumaumeiras gigantescas, tocaris hercúleos, majestosos cedros, abrindo as
ramas no alto, faziam o travejamento desse maciço zimbório de verdura, que
transverberava claridade vaga, deixando o recesso da mata num crepúsculo
esverdeado. Aí, numa luta surda mas de todos os instantes, comprimia-se,
amotinada, a legião sem fim dos outros vegetais. Árvores portentosas
confundindo raízes e sapopemas na difícil conquista do solo; troncos seculares
abarcados por cipós constritores; copagens grenhudas entretecidas de
monstruosas trepadeiras; forquilhas cravejadas de caraguatás e parasitas;
moitas espessas de palmeiras; tufos sombrios de folhagem; estolhos aculeados
e refilhos gavinhentos rojando pelo chão, unhando a galharia, ­engrimpando-
se nos ramos; hastes colubreantes, volutas sarmentosas e redouças virentes —
tudo aquilo revolto, emaranhado, inóspito, mas borbulhando viço e
regurgitante de seiva, na “frescura eterna da vida orgânica”, subia às
avançadas para o azul, num mesmo anseio de luz.

É o discurso de quem não viu e, pior, não consegue imaginar,


agarrando-se aos adjetivos, tábua de salvação do escritor medíocre.
No capítulo 9, o problema se agiganta. O canto do uirapuru é
formado
de “vocalizações argênteas, notas de cítara e violino,
harpejos, estridências de sistro e suavidades de flauta, o chocalhar de
muitos guizos…”. O pássaro é “cantor mágico” e “instrumentista
incomparável”; a melodia, “acariciadora e envolvente”; e, depois de
alguns segundos de silêncio, “as escalas recomeçavam cálidas, vivas,
ondulantes”. Quando o uirapuru se afasta, os “trinados” ficam “cada
vez mais flébeis e amortecidos pela distância, até que os sons já
surdinavam ao longe, numa toadilha quase imperceptível”. Mas não
chegamos ao fim. Pouco depois, o narrador se lembrará do pássaro,
“sentindo aos ouvidos, num eco inesquecível, as dulcíloquas melodias
do gorjeador incomparável”.
“Dulcíloquas” é o tipo de vocábulo que Cruls aprecia. Ele diz: “nos
dessedentamos”; “aos rescaldos do licor ebriático”; “orgulho do mais
exigente ginasiarca”; “viajante êxul”; “garridice dos seus trajes”;
“inimitável lavor artístico”. Certo personagem não caiu,
simplesmente, mas “cambalhotou precípite no rio”. E a lista é
interminável: “os índios lançavam mão desse alvitre”; “insetos
bezoavam no ar”; “ao bochorno do meio dia”; “belo animal de pelo
cetinoso e largamente ocelado de negro”; “fauce hiante”…
Seu amor pelos arcaísmos soma-se à afetação exagerada para criar
parágrafos em que renascem os piores momentos de Alencar:
Estava uma manhã esplêndida, de Sol muito claro e céu azul, sem nuvens.
No ar luminoso, cortado de voos e regorjeios, pairava o imenso perfume da
mata próxima, a luxuriar na gala de seus verdes mais vivos. Uma brisa ligeira
fazia estremecer a fronde dos cajueiros vigorosos, onde concertavam de súcia,
numa traquinada azoinante, os grandes bandos de araçaris, anambés e pipiras
que, de momento a momento, acudiam aos seus ramos. Ouvia-se também o
rechino de algumas cigarras; e, pelos sibilos e assobios, macacos deviam
folgar nas fruteiras altas.

Agrippino

No início do romance, o narrador salienta que é preciso conhecer a


“imensidade da Amazônia para poder avaliar a mesquinhez ridícula
que assumem as cartas geográficas, quando, diante delas, procuramos
refazer mentalmente algum trecho já percorrido”.
A Amazônia
misteriosa
sofre de mal semelhante: representação imperfeita, esta
mimese da floresta não é só inverossímil e repleta de figuras
despersonalizadas, mas foi construída numa escala enfadonha, tediosa
— e isso é pior do que saber que Agrippino Grieco realmente
exagerou.
CAPÍTULO 5

Fábulas desiguais
— Darcy Azambuja e No galpão

Lançado em 1925,
No galpão — contos gauchescos
, de Darcy
Azambuja, recebeu, da Academia Brasileira de Letras, o prêmio de
melhor livro de contos. Certamente, a honraria era mais valiosa
naquele tempo, quando a instituição ainda não se submetia a vexames
como o que citei na página 29.
Mas deixemos de lado o populismo rasteiro — e perdoem-me o
pleonasmo.
As narrativas de Darcy Azambuja tentam recriar, na linha
inaugurada por Simões Lopes Neto, o gaúcho ideal, figura mítica do
pampa. Não devemos, entretanto, buscar nelas o conto na sua
estrutura moderna, mas o texto que se aproxima da crônica, dos
causos, das fabulações relatadas ao pé do fogo.

Ética pampiana

Tratam-se, portanto, de narrativas marcadas por extrema


simplicidade, quase sempre revelando a pretensão não de construir
elaborados enredos, mas, sim, de expor uma lição de ordem moral.
É o caso de “Contrabando”, no qual o gaúcho que faz parte da
tropa responsável pelo comércio ilícito se transforma em herói. Numa
ética duvidosa, a mácula do ato ilegal é superada pelo comportamento
que encara a morte com frieza, consequência inevitável, inclusive, da
lealdade.
Descobre-se a mesma lacuna ética em “Brinquedo pesado” e “Juca
da Conceição”. Na primeira, Zé Venâncio, dono de uma pequena
propriedade rural, acossado pelos vizinhos, grandes estancieiros, e por
carreteiros que sequer pedem licença para usar seu rancho como
pousada, escolhe não o enfrentamento direto dos problemas, mas a
vingança oblíqua — que a narrativa chama de “brincadeira”. O
resultado trágico deixa cego um personagem e não acarreta punições
ao protagonista. Na segunda, o narrador mostra-se mais hábil: sem
condenar o lucrativo comércio que um gaúcho desenvolve em torno de
certa imagem milagrosa, não se
omite e faz crítica irônica, divertida,
apresentando o paralelo entre o sucessivo aumento do negócio e a
perpetuação de cultos e festividades cada vez mais complexos. A fala
que encerra a narrativa, simples, dirigida à imagem, denuncia a
relação comercial: “Cumo quera, tou com vontade de não fazê mais
festa. Este ano não deu nem pra roupa das criança…”.
Outra questão de ordem ética é apresentada em “Por pena”: durante
a fuga, após uma das sangrentas batalhas da Revolução Federalista —
episódio raramente utilizado em nossa ficção —, dois irmãos,
perseguidos por tropas governistas, veem-se num dilema: um deles,
ferido, não pode prosseguir na fuga e pede para ser morto. No final,
“o Quirino, já meio transtornado, agarrou a faca. E foi o outro que
estendeu o pescoço, e foi a mão do outro que apertou a dele que
tremia… O sangue esguichou na mão do que matava de pena”. O
drama da decisão é ampliado pelas repetições e justificativas do
narrador, que insiste em dizer: “Vocês entendem, não é? E que havia
ele de fazer?”.
O heroísmo clássico ressurge nos dois textos finais.
O personagem da narrativa “Emboscada”, repleto de bravura, é um
guaipeca, um cão vira-lata. Perdido em seus pensamentos, “lembrando
vagamente corridas de tatus, arremetidas em guaraxains manhosos,
[…], madrugadas de rodeios, dias trabalhosos e quentes de marcação,
sestas longas à sombra da figueira”, o animal se antecipa ao dono na
estrada. Súbito, fareja algo e, rápido, denuncia a tocaia, enfrenta o
criminoso. No fim, mortalmente ferido, é carregado pelo vaqueiro:
Agarrando-o, pelo calor do sangue, o dono achou a ferida, na paleta.
Montou com ele ao colo e deu rédea no picaço. O guaipeca ia quietinho, nem
gemia, e o sangue dele corria, lento e quente, pelos dedos que o acariciavam.

Em “Passo brabo”, o heroísmo é duplo: do campeiro, o negro


Ranulfo, e do cavalo, um “tostado”. A história é contada no galpão
da estância, enquanto “a lenha da aroeira crepitava no fogão raso e as
chamas espancavam o frio e a meia-escuridão do recinto, fazendo
chiar a chaleira de ferro batido”. O narrador, Laureano, hábil em
fazer arreios, trança um apero quando entra no galpão “o sujeito do
caso”:
Era um negro desempenado; no rosto baço os olhos pareciam saltados, o
que lhe dava um ar de audácia e de astúcia. Vestia um poncho grosso, com a
parte da frente atirada sobre o ombro direito, deixando ver o cinto de grandes
fivelas de prata; nas botas rossilhonas, chinelas grandes, choradeiras.

No passado, incumbido pelo patrão de buscar, com urgência e a


qualquer custo, um médico na cidade, ao retornar enfrentara a
correnteza do rio, avolumado pela tempestade: “A água, bufando e
cor de sangue. Assim nas voltas, vinha cada gorgolejão roncando que
dava medo. Barranca, então, não se via. Tudo coberto”. Carregando o
médico covarde, “um mocinho magro, de falinha chiada”, tem de
vencer a natureza, o que só consegue graças ao cavalo:
Com o companheiro montado no tostado, o Ranulfo começou a nadar do
lado de baixo, falando no ouvido do cavalo. O tostado, parece que entendia.
Meteu os encontros na correnteza, forcejando, bufando, e devagarzinho,
devagarzinho — estavam bem no meio do arroio! — foi aguentando a água
que vinha grossa e roncando. Às vezes parecia que não tinha mais força, que
ia ser arrastado; descaía umas braças e ficava só a cabeça de fora; mas o negro
falava-lhe ao ouvido e ele estendia mais o pescoço, alinhava e vinha
apartando as maretas, ressolhando forte… Les digo! naquela hora eu senti
honra de ter nascido na mesma terra que aquele cavalo! Bicho de alma
grande! Nem sei o que era mais bonito de ver: se aquele cavalo ou aquele
homem brigando ali, juntos, com a água […].

Superada a aventura, o desfecho resume, de forma lírica, a relação


de interdependência que se estabelece, no pampa, entre homem e
animal:
Fui direito à estrebaria e vi-o com uma escova e um pano enxugando o
tostado. E com um jeito que parecia cuidar de uma criança. Passava o pano
pelo lombo, pelas pernas, pelo pescoço, e depois esfregava a escova,
devagarzinho, muito tempo… E falava, dizia cousas no ouvido do cavalo,
animando-o com as mãos, dando palmadinhas. Depois abraçou-o pelo
pescoço e encostou a cabeça na dele… E falava sempre. Falava aquela língua
que a gente, que vive com esses bichos tão bons, aprende a falar.
Humor e coloquialismo

Algumas histórias são banais ou previsíveis, como “Charla” e “Dia


de chuva”. Outras — caso de “Lagoa morta” —, inconvincentes. A
que resume as qualidades de Azambuja é “Fazendo aramado”, na qual
dois amigos, João Silvano e Jango Touro, enfrentam certa noite,
bêbados, uma fantasmagoria:
La fresca! A coisa espantava mesmo! Me pareceu até que o chuvisqueiro
frio tinha-me bandeado o poncho, nas costas… E nós mal com os matungos,
que não queriam ir adiante e tremiam pelo corpo todo. O Jango juntou o
malacara nas esporas, praguejando, já
de pistola na mão, e ameaçava o
assombramento — que viesse no mais, caramba! O malacara chegava a ficar
nas patas e se atirava pra cima dos barrancos da estrada. Vi a coisa mal
aparada. De medo, não! E bem podíamos ter atinado o que era aquele clarão;
mas, a canha com bíter, a noite escura, e sexta-feira… Nisto o Jango me
convidou: — “Vamos no mais índio velho!”. E a relho e espora chegamos até
o meio do repecho. Meu amigo!… aí no mais estrondou de novo o banzé do
outro lado, o clarão bateu no céu, e veio aquilo como uma tropa estourando,
venceu o topo do cerro e desceu para o nosso lado que até parecia o cerro
mesmo que vinha abaixo!…

No fim, trata-se apenas de um automóvel, mas a cena torna-se ainda


mais hilariante quando, com os faróis postos sobre os cavaleiros, a
buzina “berra como uma vaca sangrada”. Azambuja reúne
coloquialismo e dialeto gaúcho, acrescentando ambiente perfeito, além
da descrição desenvolta, como nesta cena em que se prepara o
churrasco e podemos ver os pormenores, os gestos:
[…] E começou a preparar o churrasco. Do saco branco pendurado a um
galho da capororoca, tirou a manta de carne. Era gorda, e de novilho. Furou-
a com a faca em três lugares e enfiou o espeto; como o centro da manta fosse
largo, estaqueou-a com um pauzito. Bateu os tições para juntar as brasas,
fincou uma forquilha no chão, apoiou nela o espeto e começou a assar a
carne.
Vendo que ia ter começo o “rancho”, os dois peães vieram-se chegando e
começaram a matear, enganando o estômago. Mate não ocupa lugar.
Assar um churrasco era coisa em que João Silvano se esmerava. Podiam os
companheiros estar verdes de fome; ele não se apressava. Tinha orgulho de
ser bom assador.
E pitando e chupando mate, sentado quase em cima do fogo, virava
devagarzinho o espeto.
A carne coloreou-se, enrugou, e depois fez-se ouvir um leve crepitar. Das
bordas escorriam lentamente pingos de graxa sobre as brasas, levantando
fumo e espalhando odor forte. Aí, João Silvano retirou a carne do fogo, deu-
lhe pequenos talhos, esborrifou salmoura com um molhinho de carqueja e pô-
lo de novo a assar. A todas essas, conversando sempre. Quando julgou pronto
o assado, fincou o espeto no capim, cheirando a faca, e:
— “Cheguem-se, moçada, que isto é churrasco e algo mais”.
E cortaram nacos de carne, que mastigaram com a fome de uma larga
manhã de trabalho, deixando escorrer, às vezes, pela comissura dos lábios,
gotas de gordura sangrenta. […]

Este e outros trechos mostram como a narrativa regionalista, ainda


que presa à cena local, pode estar carregada de universalidade. Mas
não só. Também comprovam que é sempre preferível utilizar uma
linguagem simples, a mais difícil de ser dominada pelo escritor: a
linguagem que superou a espontaneidade infantil — que Vladimir
Nabokov chama de “o tagarelar do cronista” — sem se apegar à
retórica e à artificialidade esteticista. O estilo amaneirado, tão comum
nos dias de hoje, por meio do qual o autor prefere atrair atenção à
linguagem — e não à trama —, serve, quase sempre, apenas para
entediar os leitores.

Descrição

Não é sempre, contudo, que Darcy Azambuja alcança bons


resultados. Superior em todos os aspectos a seu conterrâneo Alcides
Maya,
3
às vezes resvala para soluções fáceis. Um exemplo é
“Querência”, em que o excesso de descrições petrifica a narrativa; ao
mesmo tempo, ideias e vocábulos repetidos — o narrador, em poucas
páginas, reitera, de forma desnecessária, a alegria e o sorriso dos
personagens — transformam a leitura num exercício enfadonho.
Livro desigual, portanto. Mas que, quando menos esperamos, pode
nos oferecer trechos como este, no qual a sucessão de frases breves
recria a lentidão — e notem a perfeita analogia entre o número de
ideias do carreteiro e os poucos raios da roda:
Vida dura… vida triste… Mas o verão volta. E nem chuva nem Sol apura o
passo à boiada. Porque no mundo parece que só o carreteiro nunca tem
pressa. Tudo, para ele, não precisa ir mais ligeiro que a carreta. Toda a sua
vida repousa em hábitos que se afeiçoaram ao passo lento dos bois. No
matungo lerdo, ao lado da carreta preguiçosa, o carreteiro é por força
vagaroso, tanto no gesto como na ideia. Destas não as tem mais que raios tem
a roda, e, como eles, giram devagarzinho em torno de um eixo invisível,
custam a vir e quando vêm, perdem-se na voz grossa e lenta e abortam no
gesto relaxado. Em cada “baio” que fecha gasta meia hora larga, descansada
como as meias-léguas que a carreta faz.

Trecho que nos obriga a lastimar a escolha profissional de Darcy


Azambuja — empobreceu nossa literatura ao preferir o jornalismo, a
política, o magistério e o direito.

3
Veja-se o capítulo 16 de
Esquecidos & Superestimados
, “O filho tardio de Alencar”.
CAPÍTULO 6

Um caso de sucesso
— Paulo Setúbal e A marquesa de Santos

Publicadas imediatamente após a Semana de Arte Moderna ou


poucos anos depois,
A marquesa de Santos
, de Paulo Setúbal, e as
obras de Alcides Maya, Alberto Rangel, Gastão Cruls e Darcy
Azambuja confirmam que se a influência do modernismo não foi nula,
também não se concretizou com a eficácia e a presteza apontadas por
certos estudiosos. O caso de Setúbal é, inclusive, paradigmático: a
Semana não passou de um espirro para esse paulista e seu imenso
público. O desprezo, aliás, prolongou-se até seu último livro, em
1937, sempre ratificado pelos fiéis leitores, responsáveis por primeiras
edições de, no mínimo, 20 mil exemplares.
Mesmo entre os modernistas há casos curiosos, em que festa e
discurseira não contribuíram para real mudança estética. Veja-se, por
exemplo, Graça Aranha, dado a cenas emotivas e ímpetos
propagandísticos no seu afã modernizador, mas que, em 1929, ao
publicar
A viagem maravilhosa
, fala de “crises da miseranda
intimidade do lar tenebroso”, “combustão daquele ser desesperado na
maior angústia humana”, “tortura nefanda”, “fatalidade inelutável” e
“paixão […] maravilhosa e infinita”, apenas para citar exemplos de
uma longuíssima lista de expressões que não conseguem ultrapassar o
dramalhão e o lugar-comum.
Na verdade, Monteiro Lobato, execrado até hoje pelos tataranetos
da Semana, fez mais pela literatura — e não precisou de um gesto de
revolta grupal para escrever, por exemplo, “O colocador de
pronomes”, conto perfeito, adoravelmente sarcástico.

Sentidos sentem
No que se refere a Paulo Setúbal, se lembrarmos as variedades do
gênero do romance histórico apontadas por Otto Maria Carpeaux no
capítulo “Romantismos de evasão”, em sua
História da literatura
ocidental
, veremos que o romancista não se serviu do passado para
“construir uma árvore genealógica de nobreza, para gente nova”, não
teve a pretensão de “renovar moralmente e espiritualmente a
nacionalidade, lembrando-lhe as grandezas do passado”, e não
pretendeu “dar exemplos do passado para
incentivar as lutas
patrióticas” da sua época. Sabe-se lá por qual motivo, apenas preferiu
“o passado ao presente”. E, com absoluta certeza, apreciava “só ou
principalmente o aspecto pitoresco do passado”. Foi o que fez em
A
marquesa de Santos
, lançado em 1925: produziu um romance
pitoresco, no sentido de divertido; e divertido porque caricato.
Já no primeiro capítulo, “Um acontecimento alvoroçante”, o texto,
espontâneo como uma crônica sobre a vida de
socialites
, emperra no
parágrafo recheado de termos que remetem a um sentido único: a
jovem Domitila, apelidada de Titília, “linda doidivanas”, de “adorável
estouvamento”, sai pela rua, “trêfega” e “borboleteante”, movida
pelo “alvoroço” e pela “entontecedora” felicidade provocada por seu
noivado. Em cinco linhas, o autor consegue o feito de se apresentar
como mestre da redundância.
Quando o leitor chega ao último parágrafo desse capítulo, aguarda-
o nova surpresa: incontinente, o romancista oferece um resumo do
que o destino reserva a dois dos principais personagens, matando ali,
sem pena, grande parte da história.
Setúbal também aprecia os lugares-comuns: certo personagem é
“belo e encantador como um Adônis”; adulta, Domitila não é mais
um “botão de rosa prestes a romper”, mas tornou-se “mulher
desabrochada, mulher-mulher em pleno verão de sua formosura”.
Capítulo a capítulo, o Sol é sempre dourado, o céu muito alto e muito
azul. As mulheres, farfalhantes de sedas e cintilantes de pedrarias. E
Pedro
I
tem um olhar que sempre “fuzila”.
Nada é tão grave, contudo, quanto a desmesura. Há cenas que se
transformam em enormidades. Veja-se, por exemplo, a abertura do
capítulo “O Grão-Mestre da Maçonaria”:
O Grande Oriente, a
famosa
Loja Maçônica da Corte, desempenhou papel
preponderantíssimo
nos movimentos políticos do seu tempo. Ali, naquele
sobradão da Rua Nova do Conde,
fervilharam
ideias
extremadas
de
Independência. Ali
reboaram
discursos
exaltados
de patriotas. Ali se
coligaram, sob juramentos
formidáveis
, em prol da
grande
causa nacional, os
políticos
mais prestigiosos
e os homens
mais em destaque
daquela época. Tão
intensa
e tão
irradiante
foi a ação daquela Loja, que dentro de pouco tempo,
agremiando prosélitos entre os
mais poderosos
,
centralizou em si o
mais
terrível
foco da propaganda, a
máxima potência
da campanha.

Os grifos são meus. E servem para salientar a pobreza ribombante


do estilo. O exagero permeia tudo — e com tal intensidade, com
tamanha insistência, que surge um cenário completamente
inverossímil.
Todas as situações, todos os estados de ânimo são narrados da
mesma forma, obedecendo à norma de exaltar, dizer com excesso:
[…] Num instante, pelas tribunas imperiais, onde as colchas da Índia,
despencando, riam pelo riso quente de suas cores, espalha-se fidalgamente o
bando suntuoso. Por toda a parte, onde o olhar pousasse, era um gosto o
contemplar as cores estonteantes dos vestidos, a garridice das plumas, os
gorgorões pesados das matronas, a riqueza dos grandes leques marchetados. E
chispando pelas cabeleiras e incendiando os colos, e fuzilando nas orelhas, e
enroscando-se pelos braços, fulgia sobre aquela florida ninhada de camareiras
e damas, um dardejar de broches, de borboletas cravejadas, de pingentes, de
trepa-moleques, de bichas, de camafeus, de pedraria de toda a cor.

É o estilo antidescritivo. O autor acumula informações vazias e vai


sobrepondo-as num movimento crescente. Ao final, temos o cenário
extravagante mas flácido, em que nenhum elemento concreto se
oferece ao leitor.
A recepção de Pedro
I
em Salvador não foge à regra:
[…] Foi uma apoteose. Tudo embandeirado! Tudo enguirlandado! Tudo
recamado de flores! Eram arcos de triunfo, dísticos laudatórios, coretos a
cada canto, colchas de damasco a despencarem das varandas, ondear de
flâmulas e de bandeiretas, e, redourando tudo, uma alegria larga, ruidosa,
esparramada pela cidade em festa.

Depois de receber as chaves da cidade, Dom Pedro,


entrando debaixo do pálio, cujos varais os vereadores carregavam, lá foi
cintilando de grã-cruzes, pela ladeira da Preguiça acima, ao som reboante das
charangas, sob larga chuva de rosas que tombavam das sacadas.

Paulo Setúbal tinha vocação holywoodiana. É o Cecil B. DeMille da


literatura brasileira, sem medida para perceber quando abandona o
razoável e resvala para o grotesco.
No capítulo “Uma cena do Paço”, o conhecido estado depressivo da
Imperatriz Leopoldina, humilhada por Pedro
I
, que chega a nomear a
própria amante como dama camarista de sua esposa, transforma-se
numa tediosa repetição:
Na Quinta da Boa Vista, encostada a uma janela, a Imperatriz D.
Leopoldina, cismarenta, derrama vago olhar nostálgico pela melancolia do
parque. ­Ensombra-lhe o semblante uma expressão
dorida, um tom esmaecido
de saudade que punge. Em que cisma, tão merencória, a desventurada filha de
Francisco Leopoldo? Talvez, na paz enevoante daquele crepúsculo, ante seus
olhos pisados e olheirentos perpassem, numa sucessão dolorosa, visões de
antigas felicidades […].

Bastaria, para conformar o quadro de dor, a pieguice deste trecho.


Mas o autor insiste, poucos parágrafos depois: “[…] D. Leopoldina
derrama novamente o seu olhar nostálgico pela melancolia do parque.
[…]”.
E volta a repetir o que está claro desde o início do capítulo:
[…] de toda aquela exuberante e fresca mocidade, restava agora, tristonha e
enervada, uma criatura sem cor, enfermiça, ferida de melancolias pungentes.
Era um enlanguescer, um desflorir, um murchar-se dia a dia.

Insatisfeito, Setúbal retoma a ladainha: “[…] Sua Majestade


derrama o olhar nostálgico pela tediosa melancolia do parque. Tudo
tão triste! Tudo tão enervante! Que tarde…”.
O leitor entendeu e se enfastia, mas o autor mostra-se inabalável: “A
Imperatriz, com duro punhal cravado no peito, encosta-se de novo ao
peitoril da janela”. Mais à frente, Setúbal precisa salientar que “D.
Leopoldina, com a sua nevrose, recolhe-se taciturna aos aposentos”;
que “encerrou-se no seu gabinete, calada e sofredora”; e que carrega
“lancinante desespero”.
Depois da morte da imperatriz, o romancista perde o que lhe resta
de bom senso e escreve:
[…] Dolorosa angústia aperta a todos. Erra pelo ar, como se alma daqueles
crepes voasse pelo ambiente, uma tristeza funda, uma tristeza espessa, que os
sentidos sentem.

Pergunto-me o que seriam dos sentidos se não sentissem…

Colunismo social

Os problemas do romance não terminam, entretanto, nas questões


estilísticas. A trama é pequena e estrábica. Na corte em que intrigantes
e alcoviteiros se digladiam para ganhar os préstimos da cortesã real,
os gestos de indignação sequer ultrapassam o murmúrio. Todos são,
em maior ou menor grau, coniventes. Domitila de Castro Canto e
Melo, a marquesa, e Francisco Gomes da Silva, o Chalaça, confidente
do imperador, possuem poder quase absoluto sobre um Pedro
I
irresponsável e leviano. E a única personagem relativamente digna,
José Bonifácio de
Andrada e Silva, merece atenção apenas na medida
em que seu comportamento reforça esses estereótipos.
As questões políticas, tratadas com superficialidade e de forma
esquemática, transformam-se em disputas nas quais o que importa é
fazer a vontade da marquesa e manipular Pedro
I
, um adolescente que
sofre de priapismo. Ou seja, o livro, extremamente simplista, é fraco
como romance e como exemplo de erudição histórica.
Na tentativa de disfarçar sua carência de dados, de subsídios,
Setúbal cria descrições como esta, típica do pior colunismo social:
[…] A flor mais nobre da aristocracia brasileira resplandece em São
Cristóvão. É soltar os olhos pela sala… Que deslumbrante! D. Ilda Mafalda
de Sousa Queiroz, a rutilante Marquesa de Valença, vestido de gorgorão
negro, cadeia de ouro e mitenes de seda, corre pelos grupos o seu
lorgnon
de
madrepérola. A graciosa Baronesa Nogueira da Gama, a pequenina D. Maria
Francisca Calmon, filha da austera Condessa de Itapagipe, enfeita lindamente
o Paço com a garridice primaveril dos seus vinte anos. A Viscondessa do Rio
Seco, recamada de laçarotes, grande fortuna da época, traz no decote um
áspero faiscar de joias dardejantes.

Mediocridade e valor

Otto Maria Carpeaux está certo quando afirma, com ironia, que
“não existe relação entre os valores literários e os efeitos sociais: o
sucesso não é prova de valor; a mediocridade não exclui
consequências benéficas”.
Os bons leitores realmente não devem se surpreender com o fato de
as pessoas amarem livros ruins. São eles, os livrinhos medíocres, que
financiam os bons livros e garantem o desenvolvimento do mercado
editorial. Aliás, se as editoras publicassem apenas o que é ótimo, ainda
estaríamos imprimindo livros com os tipos móveis de Gutenberg. No
caso de
A marquesa de Santos
, verdadeiro
best-seller
, resta-nos,
portanto, o consolo de que os lucros da editora devem ter financiado
meia dúzia de clássicos.
CAPÍTULO 7

Tralha linguística
— Plínio Salgado e O estrangeiro

O primeiro romance de Plínio Salgado,


O estrangeiro
, é resposta
direta à Semana de Arte Moderna. Plínio foi convertido à estética
futurista por Menotti del Picchia, cujo empenho, mesmo antes de
1922, consistia em defender o que chamava de “apostolado do verbo
novo”. A base do programa estético dos modernistas está, portanto,
nessa obra de 1926: nacionalismo exacerbado e tentativa de
rompimento com a sintaxe da língua portuguesa — reações brasileiras
ao entusiasmo do fascista Filippo Tommaso Marinetti pela velocidade,
pela tecnologia, pela violência.

Nacionalismo panfletário

Várias histórias se cruzam em


O estrangeiro
: Carmine Mondolfi,
imigrante que enriquece graças ao próprio trabalho e à contribuição
providencial da natureza; Nhô Indalécio e Zé Candinho, par de
caboclos: o primeiro, um corajoso domesticado pela vida, o segundo,
persistente e indomável; Juvêncio de Ulhoa, professor em cidadezinhas
do interior paulista, patriota inveterado e narrador da trama;
Arquimedes Pantojo, milionário quatrocentão que perde a fortuna
enquanto a família se desagrega moralmente; Ivã, revolucionário
russo, fugitivo do czarismo, constantemente em busca de sua própria
identidade; além de várias outras personagens menores.
Ivã é a mistura de Milkau e Lentz, imigrantes alemães que Graça
Aranha reuniu em seu afetado
Canaã
.
4
O Milkau, para quem “as
raças civilizam-se pela fusão; é no encontro das raças adiantadas com
as raças virgens, selvagens, que está o repouso conservador, o milagre
do rejuvenescimento da civilização”, se reflete no Ivã que descobre, em
seu novo país, “o balbucio das formas ideais da nação vindoura”, um
Brasil “ainda não estilizado”, onde não existe “a íntima comunhão
dos homens, de que resulta a
consciência criadora das formas
definitivas
” (o grifo é meu, para salientar a expressão vaga, recurso
inevitável dos piores narradores). Mas há espaço também, nessa
personalidade inadaptada, para o pessimista Lentz, pois Ivã acredita
não ser o imigrante ideal: “Trago muita Europa no sangue, na
inteligência, na alma. O homem
transportado para a América deve ser
bronco, boçal. Sua influência cultural será nula”.
Esquerdista que, depois de trabalhar num cafezal, acaba por se
tornar empresário, Ivã não supera seus antagonismos — “Sentia-se o
homem anulado por todos os personagens criados pelo demônio da
sua própria inteligência” — e sucumbe no niilismo que sempre o
norteou, envenenando, em pleno Ano-Novo, seus operários e um
grupo de russos brancos que imploravam sua caridade. Ele próprio
ingere o veneno, mas não morre sem discursar:
Como um destino implacável, antes que os homens achassem o Novo
Mundo, cinco estrelas formaram a cruz do suplício, para que a Humanidade
soubesse que, em toda a parte, o sofrimento a persegue. Tudo é repetição de
cansados martírios e, nem a luta, nem a esperança dissimulam a nossa
miséria. Este país nasceu velho como a nossa Rússia; e tudo quanto aqui
fizerem não será mais do que acelerar a construção de novas barreiras e novos
impossíveis.

Na verdade, Ivã e o narrador, Juvêncio, são complementos da


mesma filosofia, do determinismo que impulsiona também as
patriotadas desse professorzinho interiorano, capaz de repetir,
copiando Euclides da Cunha:
Como estuava, no caboclo forte, a vitalidade da raça, livre das
contaminações dos grandes centros! E como era diferente dos brasileiros
urbanos, chocados, ao desequilíbrio das civilizações improvisadas!

Ou defender absurdos como este:


O urbanismo é a morte da nacionalidade. Porque é a morte do homem
transformado no títere cosmopolita. O homem degrada-se em contato com o
homem; só a íntima correspondência com a Natureza o eleva à condição
universal de símio.
Dessa barafunda de pensamentos, de concepções estereotipadas e
preconceituosas, semelhantes às de Graça Aranha, surge inclusive uma
paráfrase do conhecido final machadiano: “Seguir sozinho! Não
deixar rastro na memória amorosa do próprio sangue…” — que se
concretizará no funesto aborto de Maria de Lurdes, amante de Ivã.
Juvêncio, nacionalista e pretenso inovador, é a figura do adepto do
modernismo que justifica, com superficialidade, as predileções
estéticas:
Fizera o curso da Normal de São Paulo e amara a literatura. Perdera noites
pelas revisões dos jornais, publicara sonetos camonianos […].
E tanto corrigiu pastéis e apanhou gatos, que acabou odiando os escritores
exigentes que reclamavam vírgulas e crases.

Seu nacionalismo, aliás, descamba para ideias estapafúrdias:


A Iara, de verdes cabelos compridos, teme o confronto com os penteados
parisienses?
E o Saci deixa ao Pinóquio os becos do Brás e do Bom Retiro?
E o Caapora, por onde anda, com seu cigarrão de palha, com seu garrafão
de pinga, de sorte que nem dele tem notícias a sociedade que fuma cigarrilhas
egípcias e bebe cachaça inglesa de Johnnie Walker, com gosto de cheiro de
defunto?

Impossível não recordar as propostas panfletárias de Oswald de


Andrade em 1924, no
Manifesto da Poesia Pau-Brasil
: “O contrapeso
da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica”. Ou, em
1928, no
Manifesto Antropófago
: “Nunca fomos catequizados.
Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na
Bahia. Ou em Belém do Pará”.
O idealismo de Juvêncio, contudo, também degenera em loucura:
numa excursão da escola ao Salto do ­Avanhandava, o professor leva
consigo três papagaios que, presenteados a Carmine Mondolfi,
aprenderam “o hino fascista de Mussolini”. A cena, apesar da
evidente pretensão dramática, é caricata:
O Tietê tombou, de chofre, com ribombo e estilhas. Catadupa de ouro
líquido. Piscina larga de muros a pique. E os papagaios de Carmine gritavam,
roucos:
Giovinezza, giovinezza,
Primavera di bellezza!
Uma grande arara gargalhou gostosa no alto de um ipê. Juvêncio, de pé
sobre uma rocha, exclamou:
— Quem ri desta cachoeira?
E, voltando-se para os discípulos e para os caipiras amontoados:
— Vamos! Algum de vocês é capaz de rir desta cachoeira?
E explicou:
— Esta queda de água poderia fornecer força a muitas cidades, mover
usinas e iluminar. Assim é o homem da nossa terra. No litoral, ele se
desmancha em arroios, mas aqui é bruto e forte.
Agarrou, então, os papagaios —
giovinezza! ­giovinezza!
— e, um por um,
os foi estrangulando, atirando-os na onda brava da catadupa.
— Indignos todos os seres que falam como os papagaios, sem pôr nas
palavras a força e o calor da Terra! Indignos todos os homens que falam com
os lábios e acabam transformando-se na insensibilidade dos fonógrafos!

Em 1935, no livro
Despertemos a nação!
, Plínio Salgado diria: “O
meu primeiro manifesto integralista foi um romance. Quatro anos
levei a meditá-lo e a escrevê-lo, desde uma luminosa manhã de
setembro em que viajei pelo sertão paulista, onde o Tietê explode nas
pedreiras do Avanhandava”.

Desatinos

Acusado de imitar o estilo de Oswald de Andrade em


Memórias
sentimentais de João Miramar
, de 1924,
O estrangeiro
está realmente
coalhado daquela linguagem que, na falta de melhor inspiração,
celebra o telegrama:
Dia 30 de abril. Casamento do Humberto.
Maio. Dias limpos e altos. A estrela da tarde, tremendo no crepúsculo fino.
Sumo doce no íntimo das Horas.
Céu pernalta, das noites de junho oblíquo.
Jongo.
Na colônia, cantigas marinhas — Santa Lucia lontana… Fogueiras de Santo
Antônio e São João.
Beijos e ineditismos. Indolências macias de carícias curiosas de lua de mel.
Amor curioso como lanternas.
Quitação plena e geral selada ao Destino e pazes com a Vida.
Mocidade dos beijos. Beijos. E beijos.
Calor familiar da lareira.
Violas-sabiás!

Há também lugares-comuns para todos os gostos: a “alma dos


pássaros errantes e dos ventos que passam na liberdade das alturas”; a
“vida palpitante e dolorosa dos bairros pobres”; os “róseos lábios
entreabertos e os olhos de ternura molhada”; e, para não dizer que
Plínio esqueceu da metafísica, “a cruz do destino” que “cai sobre os
ombros como o peso do Universo”.
O autor demonstra carinho particular por expressões que não
ultrapassam o nível da bobagem: “A madrugada madrugou”, salienta,
de repente. E o que se considera, por um momento, licença
modernista, torna-se verdadeira muleta: “andava estudando vagos
estudos”; “­endesejando-o de desejos”; “vida colorida de cores
alegres”; “imagem viva da vida vidente”; “o corpo auroreal de
lascívias e desejos clamava, com uma voz que chama”; “o ­zum-zum
zunzunou”; “vadiava vadiagens distintas”; “vozes pescadoras
pescavam pormenores”; “o carro trepidava na trepidação”; e
“ouvidos levavam gemidos gemendo”.
Vários dos trechos citados até aqui anunciam os horrores do
discurso retórico. E, de fato, ele contamina o romance:
[…] Toda a sua beleza parecia provir do espírito meigo e submisso da sua
raça, de um permanente sonho construtivo, insinuando a carícia maternal
propiciatória dos triunfos pacíficos do homem…

A septicemia provocada pelo aborto leva Maria de Lurdes à morte.


Enquanto a mulher, febril, sofre alucinações, Ivã deita-se ao seu lado e
o narrador profere desatinos:
O corpo de Maria de Lurdes era um mormaço tropical. E, naquele contato,
o homem das latitudes glaciais sentia a terra brasileira.
Meios-dias quentes, mamões mornos, musgos cálidos… Largas folhas de
bananeiras curvadas para os banhados; balouço mole de palmeiras.
Cipoerais-abraços. Beijos-pitangas. Flexibilidade de caule indolente…
Crepúsculos esbraseados de bruscas atonias sincopando violentos ardores
de ar trêmulo, de céu trêmulo…

Inesgotável, a linguagem ornamentada e vazia produz docilidades


como esta: “Na manhã rosa-lírio, acharam-se às margens do Tietê
verde-garrafa”. Certa personagem passa a madrugada “sozinha, no
seu leito viúvo de uma geração caprípede”. Às vezes, torna-se
impossível visualizar o que a frase sugere: “Estagnava-se uma luz
emílio-zola de nuvens pardas”. O reencontro de alguns amigos se
transforma na “palestra aplacadora de saudades”. Ao invés de usar o
verbo “prostituir-se”, o narrador prefere dizer: “Oficiava o rito
noturno do amor cigano”.
5

Simbolismo oco

Talvez
O estrangeiro
nasça de uma decisão refletida em busca da
arte “sintética, simultânea, dinâmica, intencional”, que, segundo o
narrador,
deve ser o “recreio rápido de gente atarefada”. Ou, quem
sabe, a história foi apenas consequência das “crises de maleita” em
que “Juvêncio ardia e delirava”, segundo palavras do próprio autor,
nas páginas finais do volume. Prefiro acreditar, entretanto, na
explicação reticente que Plínio Salgado utiliza no prefácio à 1ª edição:
“Este livro é, antes de tudo, um desabafo. Nele se notará que se quis
dizer alguma cousa”. Só mesmo altas doses de indeterminação,
sintetizadas nesse “alguma cousa”, poderiam ter produzido tanto
simbolismo oco, tamanha tralha linguística.

4
Minha análise de
Canaã
pode ser lida em
Muita retórica — Pouca literatura
.
5
Esse tipo de linguagem torturante encontra adeptos até hoje em nossa literatura. Veja-se,
por exemplo, o romance
Nosso grão mais fino
, de José Luiz Passos, que analiso em
Crítica,
Literatura e Narratofobia
.
CAPÍTULO 8

Bizantinismo
— Adelino Magalhães e A hora veloz

A recepção da obra de Adelino Magalhães tem oscilado, desde a


estreia do autor — em 1916, com
Casos e impressões
—, entre a
indiferença e o elogio veemente. “Literatura para iniciados” e
“precursor” são expressões encontradas nos que integram o segundo
grupo, como Andrade Muricy e Murilo Araújo, autores de posfácios
críticos à edição das
Obras completas
, de 1963.
6
O primeiro compara
Magalhães a Joyce, Lautréamont e Rabelais; quanto ao segundo,
afirma:
Adelino Magalhães permanece ainda meio ignorado do grande público e da
pequena crítica… Da pequena; porque espíritos de alta estatura consagraram-
lhe estudos que o elevam às estrelas. Era justo que pasmassem “os que têm
olhos para ver” com o caso desse rebelde, que, há trinta anos, quando a
mentalidade do País era um açude parado esperando outros céus, surgiu
diversamente de todos e de tudo. Trazia em germe as tendências que iam
depois vir: arte de instintos, flagrantes, surpresas, dinamismos, relâmpagos
cotidianos, individuação brasileira, reivindicações sociais. Era alguém,
criando alguma coisa… Teria que crescer o curso desse destino.

Mas, no final do parágrafo que antecede a citação, Araújo consegue


ser ainda mais reverente e meloso:
[…] Esse estilo lembra o mato dos trópicos, onde os graves troncos se
enredam nos graciosos bambus em vaia irônica assoviando ao vento. E se é
confusa e estranha, é ainda mais surpreendente essa paisagem moral toda
nova. O cenário da montanha compensa a árdua escalada. Mas para vencê-la
são poucos os que conhecem os caminhos… Eis porque tão intenso artista e
tão forte inovador não saiu muito além dos círculos intelectuais que lhe são
próximos.
Ora, o discurso de que alguns escritores só podem ser
compreendidos por iniciados nada explica e serve, principalmente,
para fazer a fama dos medíocres. Não digo que seja o caso de
Magalhães, mas sua obra, marcada desde o início com o sinal da
dificuldade, acabou por cumprir o
julgamento: serviu, nas últimas
décadas, a alguns estudos reducionistas, prontos a exaltar qualquer
experimento de vanguarda com um palavrório que se divide entre o
não dizer ou o dizer obscuro.

Simbolismo

A hora veloz
, publicado em 1926, é bom exemplo da produção de
Adelino Magalhães, pois concentra erros e acertos de uma linguagem
fracionária, adjetivo caro ao próprio autor: “Tudo em mim”, teria
dito ele, segundo Murilo Araújo, “é fracionário: um turbilhonamento
de anímicas frações”.
A epígrafe do livro explica não só o título, mas também a pretensão
do escritor:
Hora veloz, incontível, de tão arfante! hora veloz, em que mal se vislumbra
pensar: hora veloz, durante a qual se gozam a pleno as existências, pois se não
as consegue pormenorizar.

Apreender o momento em seus aspectos fugidios, deseja Magalhães


— e não qualquer momento, mas aquele que, ao apresentar a
“humana trajetória, para a Luz se impacienta”. Falta clareza a tal
objetivo, delineado na linguagem impressionista e muitas vezes
enigmática que ele nos oferece. Ainda assim, alguns trechos permitem
ao leitor um entendimento difuso dessa pretensão.
Vejam-se, por exemplo, as cenas que compõem “Instável!… Glória
ao transitório! (impressões de viagem)”. O autor almeja descrever o
substrato, a natureza íntima dos diferentes tipos de viagem ou das
diversas reações que o viajante experimenta. Incapaz de abandonar a
linearidade da prosa e apegado ao desejo de captar apenas os
momentos-chave, Magalhães, fiel à sua própria personalidade e a seu
propósito estético, cria segmentos concisos e autônomos.
Nascem, dessa forma, textos extravagantes:
— Esguias torres… casario de incoerentes formas… diversas fisionomias…
incidentes quantos… ora me aparece a passada visão através de um fastio
morno.
Através da bruma de um fastio morno, a se alongiquar tudo: cada segundo,
a se alongiquar…

Nestes parágrafos iniciais do capítulo, a imaginação, esforçando-se,


pode descobrir informações preciosas ou… nada. Frágil, o escritor se
coloca nas mãos do leitor e parece dizer: “Nem eu mesmo sei o que
pretendo expressar”. Mas há exceções; como estas linhas,
compreensíveis:
Carro-restaurante, poltronas, carro-dormitório, a correrem; a correrem,
funções da vida, no vórtice.
— Viveremos em eterna semiconsciência.
Em nervos lassos de quem viaja em trepidante sonambulismo, viveremos
um dia.

São anotações de um diário; promessa de uma crônica; instantâneos,


apenas. Ou rascunhos de uma filosofia pessimista:
— Tudo tão célere nesta viagem!
Oh! tempo virá, em que se não verão mais, os homens. — Rápida, a
extremo, será a trajetória.
— Plange, plange teu desconforto, irmão meu, a conjeturares o que virá.
Debuxar-se-ão sombras no cataclismo de tudo se ir.

Os fragmentos nascem carregados de fugacidade. De fato, é cômodo


criar apenas certa atmosfera, pois a narração, a representação escrita
que transcende a realidade ou abarca uma série de pensamentos, exige
diferentes células interligadas de forma lógica, coesa. Mas essa
unidade geral, essa sucessão de acontecimentos num enredo, é
exatamente o que Adelino Magalhães nos recusa — por incapacidade,
preguiça ou opção estética, seus biógrafos talvez esclareçam.
Murilo Araújo nos dá, contudo, indícios da técnica do autor:
Mal repassa o que escreve. Não têm rasuras os seus textos. E daí nascem
justamente as obscuridades — duma expressão que é pura projeção de
pensamentos. Fixam-se no papel, desgraciosos ou belos, jocosos ou tristes,
com as palavras que primeiro suscitam. Escrevendo, ele olvida a pessoa com
quem fala, para evocar somente a que fala ou a de quem fala. Monologa
interiorizado.

O próprio crítico reconhece que obedecer a tal método significa


“perder a transparência”. Entretanto, essa não é uma preocupação de
Magalhães, pois ele está preso ao simbolismo que Jean Moréas definiu
no manifesto de 1886:
[…] Por vezes uma personagem única se move nos meios deformados por
suas alucinações, seu temperamento: nessa deformação aloja-se o único real.
Os seres de gestos mecânicos, de silhuetas enubladas, se movem em torno da
personagem única: não são senão pretextos dele para sensações e conjecturas.
[…] O romance simbólico construirá sua obra de
deformação subjetiva
,
alentado por este axioma: a arte não saberia procurar no
objetivo
senão um
simples ponto de partida extremamente sucinto.

Mais que um precursor das vanguardas europeias, como alguns


estudiosos insistem, ou especificamente de André Breton, como
bradam os mais ardorosos, Adelino Magalhães era, portanto, homem
do simbolismo, tenha lido ou não Moréas.

Ironia

Contudo, nem sempre o escritor se deleita no hermetismo. Em “A


ansiosa espera” e “O ventre da Maroca Cabe-Tudo”, os melhores
textos do volume, encontramos um Adelino Magalhães disposto ao
esforço de narrar.
Se descontarmos a adjetivação exagerada, a primeira narrativa
consegue transmitir a angustiosa espera do idoso que se divide entre
desejar o retorno do médium ludibriador ou aceitar a impossibilidade
de contato com o neto morto. Por meio da linguagem reticente, o
autor constrói a certeza de que se deixar enganar é uma forma de
reencontro. São apenas alguns minutos num fim de tarde, à janela —
mas o curso da história familiar e do passado próximo é recuperado
de forma dramática.
O relativo preciosismo não consegue destruir “O ventre da Maroca
Cabe-Tudo”. Apesar do texto atomizado, do exagero no uso de
exclamações e dos adjetivos afetados — por que, desprezando a
nitidez, usar “atassalhada” e não “difamada” ou “caluniada”? —, a
perfeita construção do ambiente vulgar e a ironia salvam a cena:
— Oh! os trabalhos que a pequena dera, à Mamã Maroca Cabe-Tudo!
Mamã a pusera a educar: em bom colégio: nada menos do que o Sacré Cœur.
Mamã tinha um medo infinito de que a menina se viesse a simpatizar com a
“profissão”.
Conseguidos os meios, jeitosamente, pelo Pai (padrinho, aliás, nessa
circunstância), a gentil Filó entrou para o educandário cristão aos sete anos:
do educandário saiu aos dezesseis. Não houve remédio: teve de voltar à
Escola Superior de Marocagem.

É pena que a história resvale, no final, para o dramalhão retórico:


Fulgiu um rasgo de maternidade no ventre sórdido! — A Ira irrefreável
erguera a mão: a Mãe adivinhou e se lançou à frente da alvejada, com os
dedos hirtos nas mãos alargadas, erguidas.

Mais que um texto com pretensões literárias, ­assemelha-se,


convenhamos, a certa estrofe do Hino Nacional.

Paráfrase verbosa

O livro, no geral, é decepcionante. “Excelsior” não passa de um


somatório de arrebatamentos, em sua maioria bombásticos e
incompreensíveis:
— Há no irrealizável, no inapreensível (excelsior!), no inatingível, na ânsia
de desejar — há no Luminoso Impossível — um segredo!
Supremo que é, segredo dentre os segredos!
Excelsior!
Rebentarão um dia os mundos em notas de sinfonia! Sus! o magno segredo
então desvendar-se-á!…

Pretende recriar a linguagem do êxtase, mas é mero enfileiramento


de palavras. A via mística, entretanto, pode ser descrita; e Santa Teresa
d’Ávila o fez com sucesso — de forma clara — em seus poemas e
livros. Adelino Magalhães, ao contrário, prefere o circunlóquio
repleto de exclamações.

É
É o que ocorre em “Dies Irae”: o escritor transforma o hino
litúrgico do século
XIII
, um dos mais belos poemas do latim medieval,
numa paráfrase verbosa que dilui o texto original e cria um estertor de
adjetivos, verdadeira lamúria.
Luciana Stegagno-Picchio, em sua
História da literatura brasileira
,
7
afirma, ao avaliar a obra do escritor, que “será mister deixar passar
ainda alguns anos para que talvez, além da barreira dos pontos de
exclamação e das reticências, se descubra em Adelino Magalhães um
autêntico e singularíssimo escritor”. Decorridas duas décadas, não há
mais espaço para “talvez”; chegou o momento de avisar aos
interessados na literatura simbolista: leiam
Anábase
, de Saint-John
Perse, lançado em 1924 — na tradução de Bruno Palma, publicada
pela Nova Fronteira em 1979 —, mas evitem perder tempo com o
bizantinismo de Magalhães.

6
Companhia Editora Aguilar,
RJ
.
7
Editora Nova Aguilar,
RJ
, 1997.
CAPÍTULO 9

Lacuna prejudicial
— Antônio de Alcântara Machado e Laranja da China

Generalizações podem servir à eloquência dos palanques ou à


retórica irônica, sarcástica — que não é um mal em si mesma —, mas
tendem a nos afastar da verdade. Abro o volumezinho 57 da antiga
Coleção Nossos Clássicos, dedicado a Antônio de Alcântara
Machado, e encontro esta pérola do Francisco de Assis Barbosa, que
assina a apresentação: “O sapato de ferro do convencionalismo
gramatical impedia a literatura brasileira de caminhar para a frente”,
diz ele depois de frenéticos elogios aos modernistas, chegando a
compará-los aos tenentes que puseram fim à República Velha — para
criar a Nova que repetiu os vícios de sempre.
Os livrinhos desta coleção publicada pela Editora Agir (alguns
ótimos), serviram, nas décadas de 1950 a 1970, para formar uma
geração de leitores: introduções concisas; trechos escolhidos do autor;
citações críticas; breve bibliografia; mas, às vezes, julgamentos
semelhantes ao de Barbosa, adequado para transformar jovens
divertidos — entre os quais havia bons escritores — em seres
estratosféricos, heróis da cultura brasileira, Quixotes que combatiam,
no que se refere ao “convencionalismo gramatical”, moinhos de vento
imaginários.
Se realmente houve um “sapato de ferro”, se realmente a literatura
brasileira, no início do século
XX
, estava impedida de “caminhar para
a frente”, como devemos julgar os acertos dos que escreveram antes
da Semana de 22 e daqueles que, produzindo literatura após esse
evento supostamente mágico, desprezaram o modernismo? Como
tratar, por exemplo, Graciliano Ramos? Em 1948, ele considerava o
movimento “uma tapeação desonesta” — e chama os modernistas de
“cabotinos”. Na mesma ocasião, uma entrevista concedida a Homero
Senna, o autor de
São Bernardo
completa:
Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a
Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o
mau. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por
ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva.

O próprio Antônio de Alcântara Machado, apesar de entusiasta do


modernismo, não aceitaria o exagero de Assis Barbosa. O escritor
tinha opinião clara a respeito dessas mistificações, como afirma num
artigo de 5 de fevereiro de 1927:
8
A apreciação nacional não conhece muitos termos. Diante de uma
individualidade ou diante de um acontecimento. É fulminante. Vai logo às do
cabo. Consagra ou escacha de uma vez. Com imensa autoridade.
Entre nós o literato que escapa na opinião de seus patrícios de ser besta
tapada é gênio incomparável. O brasileiro não admite talentos nem
mediocridades. Não, senhor. Quem tem talento é logo sagrado gênio, águia,
condor, píncaro.

Ele insiste:
[…] E é de senso crítico justamente que nós carecemos. Para distinguir o
preto do branco, o péssimo do ótimo, o bom do mau. E deixarmos essa mania
de chamar gênio a todo sujeito mais ou menos verboso e bem falante que
aparece.
[…] A absoluta ausência de senso julgador e o mau gosto que no Brasil
tomou conta de tudo (das plataformas presidenciais aos vestidos das
professoras públicas) levam o brasileiro em cousas de arte antes de mais nada
às mais disparatadas confusões. No fundo está a ignorância sem dúvida.
Ignorância completa e incrível. Epidêmica e inelutável. E o que é pior:
pretensiosa.

E, logo a seguir, para que não fiquem dúvidas:


[…] Entre os próprios modernistas brasileiros não são poucos os que
confundem tendências as mais opostas, baralham temperamentos os mais
diversos, metendo os pés pelas mãos, perdendo-se, dando cabeçadas,
disparatando. Um horror.

Foi tal independência crítica, sem dúvida, que lhe permitiu criar
obra sólida, livre de preconceitos estéticos e panfletarismo, pois sabia
que “renovação, antes de mais nada, é de essência. Não se exprime
por fórmulas. Não possui regrinhas nem receitas”.

Percepção do ridículo

Alcântara Machado também detestava a “literatura em


profundidade, de dramas interiores e estéreis, prosa fiada sobre os
problemas do subconsciente, onde a explicação e as lorotas
metafísicas tomam o lugar da ação” — ou, tipo de ficção comum nos
dias de hoje, as “autobiografias
disfarçadas ou não”, em que “a gente
vê os inquietos se flagelando, desnudando os sequestros e complexos
numa expiação pública para ser bem expiatória”.
Há outras declarações contundentes no artigo “Sobre a literatura de
hoje”, publicado em maio de 1930. Na verdade, ele buscava novos
heróis, ou, como sintetiza, “heróis heroicos”, pessoas de carne e osso
que fossem, de alguma forma, “empolgantes”.
Talvez por não encontrá-los, preferiu dar vida a alguns. Os contos
reunidos em
Laranja da China
, de 1928, mostram essas personagens
de vida comum, algumas sem grandeza de alma, mas donas de
encantamento tal que, terminada a leitura, nos faz querer voltar ao
livro.
No conto que abre o volume, “O revoltado ­Robespierre”, a
precipitação da primeira frase anuncia a personalidade intensa do
protagonista. A ironia do título, iremos descobrindo-a pouco a pouco.
Agressivo, irrequieto, com seu “sorriso sibilino”, parágrafo a
parágrafo gestos e pensamentos se sobrepõem, disparatados, na mente
do Senhor Natanael Robespierre. Crítico radical, ­resta-lhe às vezes,
em sua febre de falar, apenas a linguagem fática. Apesar do
exaltamento, mostra-se, no entanto, dissimulado e servil diante de um
superior. No fim, o narrador conclui a superposição de sentidos: título
da narrativa, nome da personagem e psicologia se fundem nesse
soldado da República, escriturário cuja espingarda é um ­guarda-chuva
— e cujo ardor vale meia pataca.
O olhar irreverente de Alcântara Machado pode ser avaliado, de
forma errônea, como humor descomprometido. Na verdade, a
conclusão de Luís Toledo Machado (em
Antônio de Alcântara
Machado e o modernismo
)
9
mostra-se mais correta: o autor tem uma
É
“vivaz percepção do ridículo”. É o que ocorre em “O patriota
Washington”, no qual o protagonista, que dá nome ao conto,
demonstra de forma ostentatória seu amor pelo Brasil, mas tudo não
passa de sentimentalismo superficial: comemora o 15 de Novembro
usando o automóvel do serviço sem que o chefe saiba, como faz todo
final de semana; e pode interromper o passeio com a família para
enviar um telegrama emocionado ao presidente da República. Logo
depois, contudo, o mau humor assoma, pois esqueceu de colocar seu
endereço, para resposta, na mensagem. No fundo, o exagero
patriótico esconde incontrolável desejo de reconhecimento, mera
vaidade — ou, talvez, busca de vantagens pessoais.
Platão Soares, de “O filósofo Platão”, sofre de transtorno obsessivo-
compulsivo e de uma preguiça quase paralisante. Vive com o salário
da filha, ostenta ser quem não é, mas todos conhecem sua condição de
pobre-
diabo. Personagem de esquetes, o escritor o transforma num
homem patético, despreparado para a vida.
“A apaixonada Elena” não convence. Alcântara Machado pesa a
mão no estilo informal de narrar e produz frases descuidadas como “o
maxixe
está
com jeito de
estar
acabando”. Mas o início é perfeito:
vemos a adolescente insatisfeita pedindo atenção numa cena familiar
que, mais ou menos, todos já experimentaram. Também “O
inteligente Cícero” é fraco. O autor possui inegável poder de síntese,
bastam-lhe três Natais para criar um monstro de lógica infernal —
mas a demência que se esconde na personalidade do garoto merecia
mais do que o gesto espontâneo e intuitivo do pai.
São apenas crônicas “A piedosa Teresa” e “O lírico Lamartine”.
Quanto a “O aventureiro Ulisses”, salvam-no a reação do
personagem, descrita de forma precisa, ao notar que só ele está
descalço na cidade, a forma indireta de mostrar que o caipira perdido
é o mesmo retratado na notícia de jornal e o epílogo aberto, no qual
infinitas aventuras se anunciam.
Entre as narrativas que nos permitem sorrir também se encontram
“O ingênuo Dagoberto” e “O mártir Jesus”. Nesta, nota-se que nem
sempre dá certo a experiência de não virgular adequadamente.
Períodos como “Fifi que procurava na
Revista da Semana
um modelo
de fantasia bem bataclã exclamou mastigando o palito” ou, mais
grave, “ideia do Mário Zanetti pequeno da Fifi e primogênito louro
do seu Nicola da farmácia onde Crispiniano já tinha duas contas
atrasadas (varizes da Sinhara e estômago do Aristides)” pedem as
pausas furtadas sem qualquer justificativa, o que não ocorre em “O
revoltado Robespierre”: a frase de abertura — “Todos os dias úteis às
dez e meia toma o bonde no Largo Santa Cecília encrencando com o
motorneiro” — reforça a personalidade agitada do protagonista.
As descrições, entretanto, salvam o texto; como esta, síntese não só
de um Carnaval de periferia, mas do desgosto com que Crispiniano B.
de Jesus suporta os quatro dias de festa:
Domingo carnavalesco. Serpentinas nos fios da Light. Negras de confete na
carapinha bisnagando carpinteiros portugueses no olho. O único alegre era o
gordo vestido de mulher. Pernas dependuradas da capota dos automóveis de
escapamento aberto. Italianinhas de braço dado com a irmã casada atrás. O
sorriso agradecido das meninas feias bisnagadas. Fileira de bondes vazios. Isso
é que é alegria? Carnaval paulista.

No final, o martírio se completa — e o personagem só consegue rir


de si mesmo, da via-sacra que tem de percorrer anualmente para
contentar
esposa e filhos.
“O ingênuo Dagoberto” também é história familiar. O casal e cinco
filhos vêm do interior para passar uns dias e fazer compras em São
Paulo. O deslumbramento pela cidade torna-se palpável: os animais
no Jardim da Luz, o passeio no bonde de terceira classe, a multidão no
Parque Antártica. O golpe que Dagoberto sofre é explicitado de forma
indireta: o autor introduz, abruptamente, a cena em que um novo
personagem lê à esposa a notícia da página policial e disserta sobre a
“bobice humana”; um novo corte apresenta Silvana, mulher de
Dagoberto, gritando: “Seu bocó! Devia ter contado o dinheiro na
frente dos homens! Sua besta!”. O
timing
de Alcântara Machado é
fulminante. E a arquitetura do trecho amplia, ao mesmo tempo, o
humor e a gravidade da ação desleal.

Intimidade com a vida

Dois contos, entretanto, se destacam. Ambos são estudos


psicológicos densos, dramáticos, em que não há espaço para humor
ou irreverências.
“O tímido José”, que encerra o volume, retrata a agonia do
acanhado, as emoções aflitivas que convulsionam o homem incapaz de
decidir. Quase nada acontece, mas a trama se desenrola, angustiante,
no interior do personagem. História tristíssima na madrugada
paulistana, sob a garoa que “descia brincando no ar”, enquanto a
neblina cobre o Vale do Anhangabaú. O cenário é formado por
poucas quadras, espaço suficiente para que José experimente o
paroxismo da timidez e, pior, demonstre ter horror à própria
frouxidão.
A mesma tensão existencial pesa sobre “A insigne Cornélia”.
Soterrada pelas obrigações domésticas, a protagonista é a figura do
desvelo, dedicando-se ao marido, verdadeira cavalgadura, à filha
paralítica, ao filho boêmio, à irmã fútil e adúltera. Alcântara Machado
sobrepuja sua habilidade para o pormenor revelador: vejam o vestido
vermelho de Isaura, a irmã, que vai “furando” a casa, rompendo a
ordem sagrada que Cornélia luta para recriar dia após dia; o olhar de
Aurora, a empregada, que guarda na memória o feitio do vestido,
“atrás principalmente”; e a mentira de Isaura sobre o cabeleireiro.
Cada elemento, negativo ou não, salienta as qualidades dessa dona de
casa anônima, sábia, ilustre.
José Lins do Rego afirma, com razão, que “a língua de Alcântara é
livre, vem de dentro dos seus personagens, se articula com uma pureza
admirável”. E completa:
Dele poderia ter saído o grande romancista de São Paulo, porque Antônio
de Alcântara Machado dispunha como pouca gente do elemento essencial do
romance, que é a capacidade que tem o
escritor de se encontrar em intimidade
com a vida e não banalizar a vida.

Mana Maria
, seu romance incompleto, vibra, portanto, como uma
promessa, nada mais. Entre o que Alcântara Machado fez e o que
poderia ter feito há um vazio que expressa não apenas a injustiça da
morte que o colheu aos 34 anos, mas também consequências
infelizmente encontradas em qualquer livraria. Nenhum escritor, antes
dele, deixou lacuna tão prejudicial à literatura brasileira.

8
Os artigos de Antônio de Alcântara Machado estão reunidos em
Pathé Baby e Prosa
turística: o viajante europeu e platino
, volume 2 de suas
Obras
(Editora Civilização
Brasileira/Instituto Nacional do Livro/Fundação Nacional Pró-Memória, 1983).
9
Editora José Olympio,
RJ
, 1970.
CAPÍTULO 10

Péssimo precursor
— José Américo de Almeida e A bagaceira

A bagaceira
, romance de José Américo de Almeida publicado em
1928, principia com algumas epígrafes do autor reunidas sob o título
de “Antes que me falem”. Dentre elas, esta afirmação polêmica:
O regionalismo é o pé-do-fogo da literatura… Mas a dor é universal,
porque é uma expressão de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode
competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só
interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos
despercebidos.

Não deixa de ser irônico que o marco do romance social nordestino


— título que o livro recebeu desde sempre — se coloque de forma tão
submissa, aceitando, antecipadamente, um posto medíocre e
pretendendo se afirmar apenas por seu caráter exótico. Tais aspirações
acanhadas resultaram, veremos, numa obra em grande parte irrisória.

Narração esquemática

Tendo a seca como pano de fundo, o romancista reúne o típico


senhor de engenho, Dagoberto Marçau, seu filho, Lúcio, e a jovem
retirante Soledade num dramalhão destituído de fluidez, formado por
cenas justapostas que raramente se interpenetram.
No capítulo “Festa da Ressurreição”, por exemplo, o sertanejo
Pirunga, irmão adotivo de Soledade, desafoga suas mágoas de amor
entoando, ao anoitecer, um grunhido doloroso. Certa vez, encostado à
porteira do curral, seu “garganteio convidativo” se transforma em
“urro de desespero”. A irmã, objeto da sua paixão, já vivendo como
mulher de Dagoberto, surge de forma abrupta, como se despencasse
na cena, bastando ao narrador dizer: “Soledade correu e tapou-lhe a
boca com ambas as mãos. E ele ficou gemendo, como um aboio em
surdina”.
Trechos assim, em que os personagens permanecem ocultos nos
bastidores do teatro, prontos a saltar para o palco quando o narrador
estala os dedos, encontram-se espalhados pelo livro. E José Américo
de Almeida não se mostra preocupado com as possíveis dúvidas do
leitor,
que, no caso acima, se pergunta qual acrobacia permitiu à
jovem chegar tão rápido; por que, enquanto a noite avança, ela não
está na casa-grande, mas ao lado do curral que cheira “a mijo de
vaca”; e onde, diabo!, se enfiou o dominador Dagoberto: o narrador o
fez sumir para favorecer o gesto imprudente da mulher?
No capítulo “Uma história que se repete”, Lúcio, ­Pirunga, Manuel
Broca, o feitor, e Valentim, pai de Soledade, conversam. De repente,
um estrondo: o teto da estrebaria veio abaixo. Sob ele, quase
soterrado, um cavalo só consegue mover as patas dianteiras. Mas de
que maneira os interlocutores se moveram até o local? Onde estavam?
Que distância percorreram? Não temos nenhuma resposta. Salta-se
uma linha e Pirunga já se dirige a Dagoberto, inserido subitamente na
cena, levado até o local talvez pelo teletransporte da nave estelar
USS
Enterprise: “— Dá licença, major? E disparou um tiro na cabeça do
animal”.
A seguir, no capítulo “
Moritur et ridet
”, o feitor reclama que há
muito tempo não se faz um forró. Dagoberto, a princípio indeciso,
concorda — e a festa começa repentinamente: “Lúcio escutava o
maracatu: duas pancadas isócronas, como um coração batendo alto.
O baticum de seu coração alvoroçado”. Detalhe nada desprezível, em
meio à formidável seca, várias mulheres, enfeitadas, trazem “cravos
vermelhos no seio”, certamente preservados em alguma estufa
miraculosa…
Em “O retrato”, Soledade é jogada em nova cena:
Era um clamor assim como um trovão enfurnado.
Soledade correu ao engenho e pôs as mãos na cabeça:
— Mas que judiação!
A moagem parada.
Dagoberto não tivera dúvida: amontoara a palha seca debaixo da barriga
do chamurro empacado e tocara fogo.

A narração esquemática só consegue mover os personagens de


maneira brusca, aos solavancos.
Mas há outras incongruências. Pirunga passa páginas vigiando
Soledade e Lúcio, quando a jovem, ainda não conquistada por
Dagoberto, tentava seduzir de todas as maneiras o estudante. Não há
um único lugar em que, estando o casal, também não se faça presente
a sombra ciumenta do sertanejo. Pois bem… a eficientíssima vigilância
desaparece, num passe de mágica, quando se trata de impedir que
Soledade seja abocanhada pelo senhor de engenho. Subitamente,
Pirunga torna-se despreocupado, cego — ou, quem sabe, preferiu
trocar ideias com algum ator coadjuvante nas coxias do teatro.

Autômatos

O autor mostra-se negligente em relação à psicologia dos


personagens. Lúcio, por exemplo, só conhece extremos. No início do
romance, é o pessimista que vive numa introspecção doentia, descrito
assim pela retórica do narrador:
Flutuavam-lhe sentimentos incompletos no tropel da alma desarmônica.
Afundava-se na análise íntima, como alguém que procurasse reconhecer-se
na própria sombra. Mal sabia ele que o espelho nos familiariza com a imagem
física, mas nenhum homem se identificaria, se se encontrasse em pessoa.
Tapava os ouvidos para escutar a voz recôndita.
Esse abuso de introspeção exaltava-se nas tendências discordantes. E
discreteava consigo mesmo com o entendimento das duas faces opostas do
mesmo eu. Conversava com o silêncio; tinha a audição do invisível.
Recolher-se é voltar-se contra si próprio. E ­sobrevinha-lhe o remorso que é
o narcisismo dos pessimistas
.

Depois, assediado pela incansável Soledade — a jovem muitas vezes


lembra Emma Bovary, sempre pronta a desatar o cordão do corpete
—, Lúcio permanece estranhamente assexuado, experimentando um
raro tipo de amor, que o faz vibrar apenas da cintura para cima. A
paisagem que se renova com a chuva torna-se afrodisíaca, mas ele vive
“um amor sem carnalidades”.
Mais tarde, quando descobre que Soledade agora pertence a
Dagoberto, obedece às regras do dramalhão e corre, armado de um
punhal, para matar a jovem. Eterno fraco, o gesto termina em nova
covardia. Fraqueza que ele voltará a demonstrar quando, após a
morte do pai, renova o engenho e se decepciona com a ingratidão dos
empregados.
Dagoberto sofre do mesmo mal. No princípio, um déspota que
humilha, menospreza e tortura filho e empregados. Depois, ao
confessar que seduziu Soledade — na verdade, então descobrimos, sua
sobrinha —, assemelha-se a uma criança indefesa; e desse ponto em
diante apaga-se: torna-se, sem nenhuma explicação, um boneco
desprovido de vontade nas mãos de Pirunga.
Não há meio-termo para esses pobres autômatos.

Tautologia

A linguagem de José Américo de Almeida é nitidamente devedora de


Euclides da Cunha, mas não possui a eufonia euclidiana, a assonância
que emerge dos grandes períodos e embala o leitor a ponto deste não
se preocupar com o real sentido das palavras. Não chega a produzir os
horrores de um Alberto Rangel — o “percevejo do lombo euclidiano”
—, mas apresenta poucas escolhas felizes.
Logo no primeiro capítulo, ao descrever os retirantes, o narrador
compõe um de seus melhores trechos:
Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos —
esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.
Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e
trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado
por elas.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham
pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por
espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.
Fugiam do Sol e o Sol guiava-os nesse forçado nomadismo.
Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse.
E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.
As escolhas desta sequência, na qual ele amplia a tragédia e o tom
onírico por meio de elementos grotescos — a dança capenga, a
magreza deformante —, raramente se repetirão.
Mas salvam-se, ainda, frases isoladas: “Era uma inquietação
serôdia, como brasa remanescente que procura acender o cinzeiro”,
diz ele, tentando definir o amor que Dagoberto experimenta.
Os efeitos do Sol implacável contaminam o próprio narrador, que os
descreve assim: “Um incêndio estranho que ardia de cima para baixo.
Nuvens vermelhas como chamas que voassem. Uma ironia de ouro
sobre azul”. Ou concedendo ao clima uma força quase maligna:
Um derrame de luz exaltada que parecia o Sol fulminante derretido nos seus
ardores.
Ventava. Não era o vento pontual da boca da noite todo sujo de pó como
uma criança traquina.
Era um sopro do inferno que, alteando-se, parecia querer rasgar as nuvens
para acender a fogueira.

A antropomorfização potencializa o horror da paisagem destruída,


fantasmagórica: “A capoeira esquelética levantava os garranchos,
como dedos crispados. E dançava, à força, nessa tragédia, com o
bochorno fogoso”. A opressão do silêncio pode transbordar do texto
graças à comparação precisa, eloquente: “Um silêncio inquietador,
como o sono prolongado de um doente grave […]”.
Inúmeras vezes, contudo, no afã de singularizar a narrativa, as
escolhas vocabulares são carregadas de preciosismo. Ele também
repete certa estrutura frasal, o que banaliza o ritmo de seu estilo:
“Agônica concentração de vitalidade faiscante”, diz, compondo a
sentença em que ao substantivo deve, necessariamente, corresponder
um adjetivo. Ou: “Flutuavam-lhe sentimentos incompletos no tropel
da alma desarmônica”; “Calores modorrais nas charnecas
esmoitadas”. E aqui, ampliando o esquematismo da fórmula:
“Reflorescia o deserto arrelvado nesse surto miraculoso da seiva
explosiva”.
Em vários trechos, o autor quer ressaltar seus sentimentos
nacionalistas ou não consegue descobrir o qualificativo adequado —
então utiliza o recurso mais fácil: “Minudenciou, em seguida, na sua
linguagem brasileira […]”; “Pirunga tomou o verbo no sentido
brasileiro […]”; “Vinha da mata vizinha um rumor de crepúsculo
brasileiro”; “[…] o Brasil brasileiro com mulheres nuas no mato…”.
Solução fácil — mas principalmente tautológica.

Naturalismo

Olívio Montenegro, no ensaio que dedicou a José Américo de


Almeida, afirma que “é o escritor que nele vinga muitas vezes as
decepções do político”. Não só do político, mas também do sociólogo
— e do sociólogo adepto do naturalismo, pronto a mostrar os pobres
como escravos da hereditariedade e do meio em que vivem. Além de
“vítimas de uma emperrada organização do trabalho” — ideia que se
repete cansativamente ao longo do livro —, demonstram, curvados no
plantio, “a atitude natural do servilismo hereditário”. Até mesmo
preconceitos e desconfianças entre os sertanejos são provocados pela
“fisiografia”. E esta cena, apesar da camuflagem euclidiana, traz, em
seu substrato, o pior Aluísio Azevedo:
10
Passavam as lavadeiras vistas de longe como monstros macrocéfalos — com
uma trouxa na cabeça e outra trouxa na barriga. Enchiam as panças, já que
não podiam encher os estômagos.
Mulheres extraordinárias! Filhavam uma e, não raro, duas vezes
por ano.
Engendravam-se em prazeres fugazes eternidades de sofrimentos. Os
apetites com que a natureza capciosa encadeava as gerações deserdadas eram
uma série de sacrifícios irresistíveis. Amplexos de corpos moídos. Procriações
desastradas. Fábrica de anjos. A fecundidade frustrada pela miséria e pela
morbidez geral.

Não posso deixar de referir-me à praga da retórica. Bastam dois


exemplos: “Nessa manhã luminosa a mata resplandecia com uma
orgia de desabrocho em sua pompa auriverde” — ou, igualmente
enjoativo, “[…] os dois viviam, mais e mais, na intimidade desta
natureza alcoviteira que era toda uma exaltação comunicativa nos
seus solertes amavios e nos seus frêmitos de vitalidade”. Como podem
ver, o discurso fastuoso comanda, transformando a leitura num
exercício maçante, interminável.
10
Analisei
O cortiço
, de Aluísio Azevedo, em
Muita retórica — Pouca literatura
.
CAPÍTULO 11

Na contramão do modernismo
— Paulo Prado e Retrato do Brasil

Influências familiares são, na maioria das vezes, ­bem-vindas. No


caso de Paulo Prado, sua família, confirmando a regra, não
representou o núcleo de opressão, neurose e perversidade que os
discípulos de Freud e Foucault costumam, erroneamente, apregoar.
Sob a influência de seu tio, Eduardo Prado,
11
Paulo não só escreveu
Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira
, mas também se
tornou importante mecenas, responsável, em grande medida, pela
realização da Semana de Arte Moderna. Suas relações, contudo,
jamais foram restritas ao modernismo, espraiando-se num leque
variado do qual participaram Joaquim Nabuco, Eça de Queirós,
Monteiro Lobato e, principalmente, Capistrano de Abreu, de quem se
tornou discípulo.
Publicado em 1928,
Retrato do Brasil
pertence à tradição
montaigniana, isto é, anseia examinar as questões da realidade
filtrando-as numa visão pessoal, repleta de associações inesperadas e
problematizadoras. Não se deve esperar, portanto, do trabalho de
Paulo Prado, interpretações que se pretendam definitivas — mas, sim,
intuições capazes de produzir no leitor o mesmo desejo que motivou o
ensaísta: não aceitar passivamente sua realidade; ou, como dizia
Ortega y Gasset ao comentar as características do ensaio, ser “uma
pupila vigilante aberta sobre a vida”.
Leitor de Euclides da Cunha e do Padre Antônio Vieira, Paulo não
absorveu deles a forma. Ou seja, quer persuadir seus leitores, almeja
inquietá-los, mas utiliza linguagem sóbria, elegante, destituída de
afetação. Trata-se do “bom escritor” de Augusto Meyer: um “jejuador
de palavras”. Seu estilo é contraposição higiênica ao linguajar
labiríntico e falsamente erudito que parcela da nossa produção
intelectual — inspirada em Derrida e Deleuze — apresenta hoje.

Curral de cabras

Dividido em quatro partes — A luxúria; A cobiça; A tristeza; O


romantismo —, o livro impacta já no primeiro parágrafo: não se trata
de enaltecer o sensualismo como
raison d’être
do povo brasileiro,
generalização que tem servido para garantir algumas bolsas-sanduíche
no exterior e bom número de canções populares, mas de mostrar a
lascívia no seu papel de elemento deteriorador da nossa organização
social.
O leitor afoito está pronto, neste momento, a acusar Paulo Prado de
“moralista”. É o julgamento frívolo de quem deveria, antes, ler o
ensaio, pois o autor não está preocupado em fazer considerações
morais cujos fundamentos são regras tradicionalistas ou preceitos
religiosos. Não. Ele analisa a complexidade da formação histórica do
país e mostra que o contato do português com o primitivismo das
práticas sexuais indígenas estabeleceu um padrão de desregramento
que transformou a colônia em “terra de todos os vícios e de todos os
crimes”.
Qualquer sociedade empenhada na satisfação exorbitante de suas
pulsões sexuais tem de pagar algum preço em termos de esgarçamento
ou debilidade da sua organização social. No Brasil, a concubinagem
tornou-se regra, como mostra esta citação, que Paulo Prado busca em
Capistrano de Abreu, do jesuíta Antônio Ruiz de Montoya a respeito
dos bandeirantes paulistas:
As mulheres […] de boa estampa, casadas, solteiras ou índias, o dono as
encerrava consigo em um aposento, como quem passava as noites como um
bode num curral de cabras.

Tal “superexcitação erótica”, contudo, não era “privilégio das


camadas inferiores e médias” —, Prado oferece exemplos à farta de
clérigos, funcionários da Coroa e artistas —, mas de todos os
colonizadores ibéricos, pois os espanhóis participantes da conquista
da América, a começar por Hernán Cortez, também “viviam num
regime de poligamia muçulmana”, no qual “sodomia, tribadismo e
pedofilia” eram práticas comuns:
Para homens que vinham da Europa policiada, o ardor dos temperamentos,
a amoralidade dos costumes, a ausência do pudor civilizado — e toda a
contínua tumescência voluptuosa da natureza virgem — eram um convite à
vida solta e infrene em que tudo era permitido.

De fato, essa “sociedade informe e tumultuária”, de espantosa


libidinagem — os detalhes indecentes estão à disposição dos leitores
no próprio ensaio —, se desenvolveria em meio à natureza — não a
natureza idealizada, mas a que “os sentidos imperfeitos do homem
mal podem apanhar e fixar” na “desordem de galhos, folhagens,
frutos e flores” que “o envolvem e submergem”.
Não é estranho afirmar, portanto, que, à visão falsamente
paradisíaca dos primeiros viajantes, corresponde, dentre outros, o
mito da supremacia da beleza de nossas mulheres, mentira que uma
caminhada de poucos quarteirões em qualquer centro urbano derruba
facilmente, ainda que reerguida pela mídia, todos os anos, à época do
Carnaval.
Pertence à mesma fonte idealista — que vê no indígena apenas o
exemplar bom selvagem — o anelo de Oswald de Andrade, no
Manifesto da Poesia Pau-Brasil
, por “bárbaros crédulos, pitorescos e
meigos”, ou, no
Manifesto Antropófago
, a repetida generalização
pueril de que “a alegria é a prova dos nove”.
Consequência ou não da lascívia, até o mesmo o ideal jesuítico da
ação — elogiado por Paulo Prado — degenerou entre nós, apesar de
algumas irrepreensíveis exceções, num neopelagianismo que
transformou os membros da Companhia de Jesus em repetitivos e
demagógicos sociólogos marxistas.

Ideia fixa

À luxúria somou-se a lei do enriquecimento instantâneo. Quando


Prado recupera a frase atribuída a Hernán Cortez — “Eu não vim
aqui para cultivar a terra como um camponês, mas para buscar ouro”
—, recordam-se imediatamente os insaciáveis impostos da coroa
portuguesa e a tendência pertinaz, até hoje, de nossos políticos à
corrupção: seus patrimônios crescem em escala geométrica tão logo
são eleitos, sem que ninguém investigue esse estranho mérito,
desencadeador de riqueza apenas quando o felizardo ocupa um posto
de legislador ou governante. São herdeiros diretos do “aventureiro
miserável, resolvido a tudo, o
desperado
, na expressão inglesa”, que
povoou este país.
Desde a chegada da primeira caravela, o que excedeu na forma de
sonhos impossíveis inexistiu quando se tratou de organizar a colônia:
Tinha faltado a Portugal a verdadeira compreensão histórica e econômica
da sua missão metropolitana. A nação e o governo recebiam como uma
esmola o ouro, as pedras preciosas e os produtos comerciáveis das colônias.
Quiseram viver sem trabalhar.

E mesmo as famosas bandeiras — Prado não deixa de apontar, em


relação aos bandeirantes, a “força de heroísmo anônimo e
individualista, decisiva na integração do território” —, calculados
lucros e perdas, acabaram numa “desproporção entre os resultados
práticos obtidos e o esforço descomunal despendido”:
12
A obsessão foi contínua, espalhada por todas as classes, como uma
loucura
coletiva. Esse característico na formação da nacionalidade é quase único na
história dos povos. Os agrupamentos étnicos da colônia — os mais variados,
de Norte a Sul — não tiveram outro incentivo idealista senão esse de procurar
tesouros nos socavões das montanhas, e nos cascalhos dos córregos e rios do
interior.

É verdade, afirma Prado, que “outras terras pelo mundo sofreram


também dessa vertigem do ouro”. Mas salienta: essa “febre se
extinguia rapidamente, como um incêndio, para se transformar no
industrialismo das minas e explorações comerciais”. Exatamente o
oposto do que ocorreu no Brasil, em que os colonizadores e as
primeiras gerações de nacionais mostraram-se prontos a abraçar o
sonho da fortuna fácil:
Southey escreveu uma página admirável sobre o desvario dos buscadores de
ouro. Viviam num contínuo sonho de esperança, vítimas de uma espécie de
loucura, forma aguda e crônica da doença que é a paixão do jogo. Homens de
reputada prudência, mesmo parcimoniosos, rapidamente transformavam a
avareza em prodigalidade. Na obsessão da ideia fixa, tudo convergia para a
sua realização; tudo lhes indicava, razoável ou fantasticamente, a
proximidade do tesouro encoberto, o simples aspecto e tamanho de um
morro, ou a qualidade da erva que o cobria. O dia seguinte podia ser a
compensação de anos e anos de penosos e pacientes trabalhos.

A irresponsabilidade portuguesa contribuiu, sem dúvida, para


aprofundar os problemas. Mas não se podia esperar muito de um país
“já gafado do gérmen de decadência”, em que
à dissolução […] associavam-se a miséria e a fraqueza, “cobrindo-se com as
fórmulas de uma religiosidade fervente, como a pobreza e a debilidade se
encobriam sob as aparências do esplendor e sob a linguagem da onipotência”,
disse magnificamente Alexandre Herculano.

Pessimismo

O início da Parte 3, dedicada à “tristeza”, confronta as experiências


que modelaram os Estados Unidos às que, no Brasil, seguiram as
determinações de Portugal. As palavras de John Smith — “Aqui nada
se obtém senão pelo trabalho” —, fundador do primeiro assentamento
permanente na América do Norte, no estado da Virgínia, chocam o
brasileiro acostumado a “chefes venais e peculatários”, a
“subordinados” que primam “pela ignorância” e a um passado
repleto de “colonos apáticos e submissos”.
A história do bandeirante Sebastião Pinheiro Raposo serve, a Paulo
Prado, como exemplo do “tipo representativo e pitoresco” da
desagregação moral a que a luxúria e a cobiça nos levaram:
Vindo de São Paulo, percorreu com a comitiva de camaradas e escravos
índios e negros os sertões do Norte e Nordeste, deixando por toda a parte um
rasto sanguinolento e uma lenda de riqueza. Acompanhava-o um bando de
mucambas, com quem tinha inúmeros filhos. Uma vez, duas destas, exaustas
pelo caminho montanhoso, caíram desfalecidas à beira da estrada. O
sertanista mandou-as despenhar pelo precipício abaixo, pois “não queria
deixá-las vivas para não servirem a outrem”.

O que mais restava a um povo empenhado apenas em satisfazer as


próprias ambições — “sem outro ideal, nem religioso, nem estético,
sem nenhuma preocupação política, intelectual ou artística”, diz Paulo
Prado —, a não ser a melancolia?
O ensaísta não deixa de apontar a promiscuidade favorecida,
inclusive, pelo “abandono desleixado e corrompido que é a praga da
escravidão”. Mas o que fere duramente o cidadão que tenha um
mínimo de consciência política é a dessemelhança destes
comportamentos:
Washington, quando se referia à Virgínia dizia sempre: “a minha pátria”.
Nunca se soube que Fernão Dias Paes dissesse da Capitania de São Vicente:
“a minha terra”.

O pessimismo de Paulo Prado vibra em todas as páginas. Mas, hoje,


passadas décadas de governos esquerdistas —
PSDB
e
PT
—, prontos a
comemorar a ignorância e tratar vícios como virtudes heroicas, certa
boa dose de visão pessimista poderia garantir um mínimo de realismo.
Aliás, a crítica do ensaísta ao papel desempenhado por nossos
governantes é irretocável e atualíssima:
[…] Tudo se deve à iniciativa privada. Foi o particular que desbravou a
mata, que ergueu as plantações, que estendeu pela terra virgem os trilhos dos
caminhos de ferro, que fundou cidades, abriu fábricas, organizou companhias
e importou o conforto da vida material. O poder público, pacientemente,
esperou os frutos da riqueza semeada. E logo em seguida criou o imposto,
como os governadores do século
XVIII
e a metrópole estúpida, na loucura do
ouro, criaram os quintos, os dízimos, as dízimas, a capitação e a derrama.

Reverberações

Em
Pensadores que inventaram o Brasil
,
13
Fernando Henrique
Cardoso
chama Paulo Prado de “fotógrafo amador”, preferindo
enaltecer o personagem de Mário de Andrade, Macunaíma, por meio
de um obscuro jogo de palavras, exemplo perfeito de como os
marxistas sempre procuram corromper a realidade: “Sem mentiras, ou
melhor, mentindo-se abertamente e, portanto, santificando-se a
mentira”. O personagem seria o representante perfeito do que
Cardoso chama de “originalidade do
blend
brasileiro”.
De fato,
Retrato do Brasil
não se presta a comparações
macunaímicas — e, muito menos, a tentativas de idealizar nossos
defeitos. Em sua crueza, o livro obedece à tarefa que Ortega y Gasset
definiu para o ensaio: “Colocar as matérias de toda ordem, que a vida,
em sua perene ressaca, lança a nossos pés como restos desarranjados
de um naufrágio, numa postura tal que o Sol produza nelas
inumeráveis reverberações”.
O brilho da verdade pode estar, muitas vezes, algo encoberto por
generalizações perigosas ou por rasgos do racismo que ainda
pontificava na ciência das primeiras décadas do século
XX
, mas a
leitura de
Retrato do Brasil
continua indispensável, pois nele
preponderam o trabalho de investigação honesta, a recusa de
interpretações simplistas, a sobriedade de estilo e uma rara coragem
— difícil de encontrar atualmente —, que o faz avançar na contramão
do ideário modernista.

11
De quem analisei o imprescindível
Fastos da ditadura militar no Brasil
(em
Muita
retórica — Pouca literatura
).
12
O ensaísta e poeta Cassiano Ricardo pensa de forma diversa. Veja-se, neste volume, o
ensaio “Rude e Maravilhoso”.
13
Editora Companhia das Letras,
SP
, 2013.
CAPÍTULO 12

Mais um naturalista
— Peregrino Júnior e Puçanga

Em seu famoso texto sobre


O primo Basílio
, de Eça de Queirós,
Machado de Assis refere-se a
O crime do ­Padre Amaro
como uma
“imitação” de
La Faute de l’abbé ­Mouret
, de Émile Zola. É sua
observação mais branda, logo no início. Publicada em duas partes, nos
dias 16 e 30 de abril de 1878, a crítica afirma, sem dissimulação, a
respeito do romance publicado em 1875:
Não se conhecia no nosso idioma aquela reprodução fotográfica e servil das
coisas mínimas e ignóbeis. Pela primeira vez, aparecia um livro em que o
escuso e o — digamos o próprio termo, pois tratamos de repelir a doutrina,
não o talento, e menos o homem —, em que o escuso e o torpe eram tratados
com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário.

E conclui, ainda referindo-se, com ironia, ao “inventário”:


[…] A nova poética é isto, e só chegará à perfeição no dia em que nos disser
o número exato dos fios de que se compõe um lenço de cambraia ou um
esfregão de cozinha.

O acerto das repreensões machadianas — para ele, “o perigo do


momento realista é haver quem suponha que o traço grosso é o traço
exato” — se confirmaria poucos anos mais tarde, com Aluísio
Azevedo, obcecado por tudo que representasse “esfregão de cozinha”,
sempre pronto a tratar seus personagens como exemplos de uma
inescapável depravação, física e moral.
À parte o que Machado anuncia de sua própria estética nessas
reflexões — lembremos que
Memórias póstumas de Brás Cubas
sairia
no formato de livro em 1881 —, o acerto da crítica mostra-se
incontestável. O naturalismo, entre nós, restringiu-se a apresentar o
homem como escravo dos caracteres hereditários e do meio, da
natureza, utilizando um monismo vulgar, que via apenas os aspectos
patológicos do indivíduo e da realidade; como afirmo, aliás, em
Muita
retórica — Pouca literatura
, no capítulo dedicado a
O cortiço
.
Essa escola literária, que naufraga nos estereótipos e na ausência de
livre-arbítrio dos personagens, fez sucesso entre nossos escritores: em
1895, meia década depois de
O cortiço
, deu vida à subliteratura de
Adolfo Caminha e seu
Bom crioulo
; em 1902, determinismo e
hereditariedade se refestelam em
Canaã
, de Graça Aranha; 25 anos
após Aluísio Azevedo ter abandonado a literatura pela carreira
diplomática, ela ressurge, em 1920, no romance
Fruta do mato
, de
Afrânio Peixoto. Antes, no ano de 1913, contribuiu para transformar
Aves de arribação
, de Antônio Sales, num exemplo perfeito da pior
literatice.
14
E em 1928, passados seis anos da supostamente
revolucionária Semana de 22 — que, segundo alguns desvairados
papagueadores, salvou a literatura nacional — o naturalismo
apresentou-se, vivíssimo, intacto, em
A bagaceira
, de José Américo de
Almeida.
Na verdade, a vida literária se submeteu de bom grado, em nosso
país, à visão determinista, ao cientificismo. E alguns desses escritores,
talvez exatamente por seu pessimismo — sem esquecer Euclides da
Cunha e
Os sertões
—, continuam a ser exaltados pela crítica. Todos
eles repetem, como se anunciassem alguma verdade milenar, a fala de
Milkau em
Canaã
, que vê no seu guia, um pobre menino brasileiro,
o rebento fanado de uma raça que ia se extinguindo na dor surda e
inconsciente das espécies que nunca chegam a uma florescência superior, a
uma plena expansão da individualidade.

Não é à toa que, em 1926 e 1936, o fascista Filippo Marinetti, ao


visitar o Brasil, foi aclamado como um gênio. A mística exaltada do
fascismo, que pretende criar uma nova nação, uma comunidade étnica
perfeita (seja lá o que isso for), amolda-se perfeitamente ao
derrotismo, à autocomiseração de parcela da nossa elite literária —
que se encarregou de acrescentar à receita a morbidez naturalista, a
tendência, como denunciou Machado, de tratar “o escuso e o torpe
com um carinho minucioso”.
Leis da fisiologia

As narrativas que compõem


Puçanga
, de Peregrino Júnior,
publicado em 1929, confirmam o exposto acima. Aliás, o próprio
verbete biográfico do escritor, publicado no site da Academia
Brasileira de Letras, salienta, entre os temas centrais de sua obra, a
“fatalidade geográfica”.
Termo repisado em
Os sertões
, a ideia embutida nos vocábulos
“fatalidade” e “fatalismo” é a melhor desculpa para um povo
treinado no apadrinhamento de coronéis e nas benesses
governamentais. Se tudo está prescrito com antecedência pela
natureza, qual o sentido de lutar, qual o sentido de erguer a cabeça,
com suas próprias forças, acima da pobreza?
Se nada pode modificar
o rumo dos acontecimentos é preferível que o governo, na sua
imaculada bondade, conceda-me o Bolsa Família e deixe-me aqui,
sempre disposto a me tornar o personagem ideal de uma literatura
pequena.
Assim ocorre com os personagens de Peregrino Júnior, que recusou
as lições de Inglês de Souza em
Contos amazônicos
, obra publicada
no ano de 1893, ainda hoje erroneamente classificada como
naturalista pelos nossos acadêmicos, mas em tudo superior às
historietas de
­Puçanga
.
A narrativa que abre o volume não deixa espaço a dúvidas. O
“elixir indígena”, poção mágica, “maior descoberta do século”, que
oferece a “cura radical” até mesmo da lepra, reúne à porta do Hotel
América, sob o comando do coronel José Caruana e seu ganancioso
sócio, o médico Vicente Dória,
a procissão macabra das misérias humanas. Leprosos, tísicos, opilados,
papudos, herniados, idiotas — aqueles sinistros rebotalhos da espécie, que a
Natureza, na sua inexorável sabedoria, em proporções úteis tinha condenado
ao aniquilamento — subiam e desciam incessantemente as escadas do Hotel,
em busca de cura ou alívio para as suas mazelas irremediáveis. Era doloroso e
era repulsivo. Uma parada ostensiva de decadências físicas.

Não bastasse a redundância do período, que abre e termina com a


mesma ideia — procissão/parada; misérias humanas/decadências
físicas —, reencontramos essa natureza tão sábia e sádica, capaz de
distribuir doenças em “proporções úteis”, lembrando que, também
para benefício da estética naturalista, as mazelas são “irremediáveis”.
Na história seguinte, “Areia gulosa”, o autor se rende ao
esquematismo e cria um par de personagens opostos: Josino, um
tapuio do Baixo Amazonas, preguiçoso e supersticioso, e Antônio,
cearense do Rio Grande do Norte, corajoso, trabalhador, quase um
semideus.
Antônio recebe os encômios retóricos e inconvincentes do narrador:
Bicho forte e valente, […] possui músculos encordoados e tendões tesos.
Tem o olhar vivo e franco; seus gestos elásticos são ágeis; a palavra dele é
fácil, a voz segura, a expressão pitoresca. A todo instante confessa, no que diz
e no que faz, que guardou no sangue o calor do Sol implacável e na alma a
lição útil dos trabalhos e das provações duras do sertão estorricado donde a
seca o expulsou sem piedade. Exuberante, falastrão, bravateiro, gosta de
contar histórias, e sabe ilustrar as coisas engraçadas que diz com o desenho
decorativo dos gestos amplos. Cabra disposto e resoluto, é capaz de matar um
cristão por um dez réis de mel coado.

Quanto ao tapuio, a este o narrador reserva os males, igualmente


inverossímeis, da hereditariedade:
Cherimbado do gerente, conseguiu Josino a vida que sonhava: vivia na sua
choça, de barriga no chão, pescando e dormindo.
Não fazia nada.
Malandro e solerte, de quando em vez tecia uma esteira ou fazia uma cuia
para o capataz Mergulhão.
Deste tamanho, mirrado, amarelo, carnes bambas, pele suja, olhos
apagados, cabelos estirados, lábios grossos, traz na cara mongólica os
estigmas visíveis da opilação, do etilismo, da malária.
A alma espelha as mazelas espoliantes do corpo.
Temperamento madraço, incolor e amorfo, duma passividade congênita, é
resignado e tranquilo, aceitando tudo, o bem e o mal, sem alegria, mas
também sem tristeza, incapaz integralmente de reação ou cólera.

Insatisfeito com o quadro negativo, o narrador ainda completa:


“Arreganhava os dentes num sorriso que era um vestígio simiesco da
careta antropoide”.
Resta, a Antônio e Josino, seguirem obedecendo o que a genética
inscreveu em suas células, nada mais. Tal determinação esvazia
inclusive o porquê da narrativa, afinal, se os personagens são
desprovidos de vontade própria, não há sentido em apenas reproduzir
seus automatismos.
Raimundo Turuna, protagonista de “Ladrão de mulheres”, sofre do
mesmo mal:
Nascido e criado no nomadismo profissional da vida de canoeiro —
correndo mundo sem se levantar do bailéu do barco — acostumado desde
curumim ao isolamento e à imobilidade das longas viagens, ­deixou-se
inconscientemente penetrar de um instintivo sentimento de fatalismo, que o
torna indiferente aos riscos da vida, e que seria fácil de confundir com o
prazer voluptuoso da preguiça, se não fosse a ágil presteza com que ele se
transforma, de repente, quando acaso sobrevém o perigo, seja a cólera do
homem bruto, seja a fúria do mar bravo, revelando-lhe no corpo mole de
caboclo indolente as energias latentes que dormiam silenciosas no seu
sangue…

Agitado ou em calma, o personagem obedece não à sua vontade, à


decisão tomada em seu íntimo, mas apenas a ímpetos irracionais,
ditados pelo instinto, pelas leis da fisiologia.
Páginas à frente, na mesma narrativa, o autor não deixa dúvidas em
relação ao seu determinismo:
Ali é a geografia que explica o homem. A tristeza e o fatalismo, a
indiferença e a confiança — são qualidades que só se compreendem
contemplando a topografia da região. A paisagem obedece à monotonia de
planos geométricos invariáveis: para fora, mar e céu, até onde a vista alcança;
para dentro, as margens daquelas intermináveis águas sujas são extensas
tarjas atolentas de tijuco preto.

Da construção da frase à escolha lexical, passando pelo eco das


teorias cientificistas e pelas generalizações, o parágrafo transpira, do
começo ao fim, Euclides da Cunha.

Redundâncias

Num dos exemplos acima, deparamo-nos com o uso da


redundância. É uma das constantes do autor. Veja-se este trecho:
Enfeitou a cara redonda com um sorriso circular. Uma ideia inesperada e
excitante, fazendo-lhe piruetas contentes nas rugas da testa, deu-lhe piparotes
na imaginação.
Não consigo imaginar um sorriso que, ao menos, não prenuncie um
círculo — e desconheço piruetas que sejam de tristeza. Logo a seguir,
na mesma página, de maneira a não permitir possíveis dúvidas, o
narrador enfatiza: o personagem carrega “uma alegria ridícula e
sorridente escancarada em todas as rugas da cara”.
Esse infeliz personagem, o Dr. Dória, usa “uma dialética untuosa e
sonora” e desdobra, diante do possível sócio, “uma longa série
persuasiva de argumentos de peso”. Segundo a estranha lógica do
autor, argumentos de peso não são persuasivos, mesmo que em série…
Mais à frente, um leproso “conduzia com gravidade sinistra pelas
ruas da cidade o espetáculo macabro de sua decomposição itinerante”.
Ora, se ele “conduz pela cidade”, com certeza é “itinerante” — e se é
“sinistro” também é “macabro”.
No início das peripécias em torno do “elixir indígena”, somos
avisados sobre o “castigo emoliente” do “Sol do meio dia”. Passam-se
cinco páginas e o narrador, desconfiado da nossa fraca memória,
ressalta, mais uma vez, a “hora implacável de calor emoliente”.
Encontramos outro exemplo de redundância massacrante em “O
putirum dos espectros”. Diz o narrador: “O petardo da notícia
estourou no
seringal com estrupício”. Seria surpreendente se um
petardo estourasse em silêncio, de maneira que só temos a agradecer
ao escritor por insistir na repetição da ideia.
Certa família é tratada como uma “tribo espectral de múmias”. Não
bastasse o exagero da figura, ela retorna, poucos parágrafos adiante, a
fechar a narrativa: “[…] a miséria daquelas múmias ambulantes”.
Às vezes, o autor consegue elaborar certa imagem curiosa: “A
sombra coagulada das mangueiras, esmagando os paralelepípedos da
avenida […]” (em “Feitiço”). Mas, páginas à frente, fraco de
imaginação e memória, o autor decepciona e repete a figura: “As
sombras do crepúsculo esmagavam a floresta” (em “O espritado”).
De resto, temos lugares-comuns:
[…] Aquilo tudo despertava, na intimidade profunda do seu ser,
sensualidades adormecidas e ignoradas, que agora flutuavam, exaltadas,
numa tempestade de desejos, nos seus olhos iluminados…

Ou a frase de matriz euclidiana:


[…] Os jejuns prolongados galvanizaram-lhes nas fisionomias mumificadas
a resignação imóvel dos faquires.

Merece leitura apenas a narrativa que fecha o volume: “A fogueira


de Guajará” — desprezando-se, é claro, os trechos pleonásticos, a
adjetivação exagerada e as páginas em que o autor copia uma série de
cantigas populares.

14
Essas e outras análises estão reunidas em
Muita retórica — Pouca Literatura
e
Esquecidos & Superestimados
.
CAPÍTULO 13

Romance desencarnado
— Barretto Filho e Sob o olhar malicioso dos trópicos

Há alguns anos, quando analisei o romance


Madame Bovary
,
15
apontei, citando alguns exemplos, a persistente presença de
pormenores, a exaltação do detalhe, o contínuo uso de elementos que
remetem aos nossos cinco sentidos, semeando no leitor o desejo de,
muitas vezes, estender a mão e completar a cena com seu próprio tato.
Repito o que afirmei naquela oportunidade: a miríade de pormenores,
a volúpia por descrever, por chafurdar num oceano de cores, formas e
perfumes, dá a impressão de que Flaubert agoniza para abarcar toda a
realidade; a busca do pormenor exato faz com que ele escreva a um
passo do esgotamento — mas Flaubert se dispõe a pagar o preço, a
fim de que nada escape ao leitor.
A leitura do romance
Sob o olhar malicioso dos trópicos
, objeto
desta análise, fez-me recordar aqueles trechos. Publicado
originalmente em 1929, numa edição restrita de três centenas de
exemplares, e cinco anos depois em tiragem comercial, o romance de
Barretto Filho — autor de um brilhante ensaio, ainda de leitura
imprescindível, a respeito de Machado de Assis
16
— é o oposto de‐ ­
Flaubert. Certa imaterialidade aflitiva transpassa a história,
condenando os personagens à existência intangível, como se o escritor
descrevesse objetos, seres e paisagens etéreos. Encontramos, desde a
primeira linha, o narrador que fala incansavelmente, sem jamais
permitir que os fatos ocorram, que os personagens ajam diante do
leitor. O protagonista André Lins permanecerá, até a última página,
numa prisão esotérica de sentimentos e sensações — composta, sim,
de frases, mas que raramente recriam diante do leitor a experiência
concreta:
André Lins não podia dizer que fosse uma surpresa. Aquele rompimento
tinha sido previsto, adivinhado por um instinto. Nesse momento, acorridas
em rápida desfilada diante de sua memória intensa, todas as imagens dela
vinham renovar a dor, como uma teoria de sacerdotisas, que num rito místico
evoluíssem em torno da chama sagrada, alimentando-a com o sopro, num
desejo de eternizá-la. Aquilo estava dentro dele como um círculo hermético,
uma condensação obscura, em torno de que se agitava inutilmente, para
penetrá-la e dissolvê-la. Mas aquela presença estava ali,
inexplicável, imóvel,
estática, detendo o curso de sua vida interior num pasmo semelhante a uma
paralisia moral, e resistindo ao seu esforço em diluí-la e volatilizá-la.
Certamente que André, numa reação instintiva, já tinha executado os atos e
invocado todos os pensamentos que ele supunha adequados à sua
conservação: eram como a criação de anticorpos, de elementos imunizadores
contra as toxinas pérfidas que vinham tingir a sua substância moral do
colorido doloroso […].

Em vão o leitor se perguntará que “atos” André executou. Terá


ciência, no transcorrer da narrativa, de uma sucessão de impressões,
jamais transmitidas diretamente pelo comportamento do protagonista,
mas filtradas por um narrador não só onipresente, mas despótico e
repetitivo. Veja-se, por exemplo, nos dois capítulos iniciais, como a
descrição das reações de André, ao examinar o retrato da ex-
namorada, vão e voltam, tentando ampliar, sem sucesso, o
estranhamento causado pelo descompasso entre fotografia e realidade,
como se aquela houvesse antecipado o amadurecimento do corpo
adolescente. Inábil em suas tergiversações, o narrador se perde numa
psicologia exagerada e confusa, a que não faltam pinceladas de
biologismo, no melhor estilo naturalista tupiniquim, como ao recordar
a ex-namorada e sua irmã:
[…] esse encanto confuso repousava num lastro de sensações incidentes, de
evocações cruzadas, de desejos fragmentários. Nunca surgiu no seu espírito a
necessidade de uma preferência. Nelas o que ele amava não eram as suas
qualidades individuais, mas uma espécie de permanente matemática,
coexistindo, em ambas, aquele caráter de família que as identificava, da
mesma forma que os gatos angorás, os cães policiais e todos os organismos
raceados se parecem e se equivalem.

Também outras mulheres que povoam o romance, às vezes como


sombras, recebem tratamento semelhante: “[…] Levava sempre Frida
como um galgo doméstico estendido ao seu lado”. E seria curioso
conhecer de que forma o narrador atualizaria suas impressões, caso
estivesse vivo para acompanhar o Carnaval contemporâneo:
Copacabana arde num delírio de cor e de forma, e se sente na multidão
palpitante que abraça as ondas; se sente como no Carnaval, que não tem a
despreocupação dos sangues puros, a leveza e a virgindade das raças íntegras.
As mulheres e os homens se espiam, num desejo de se aproximarem mas
contendo cada um os seus ímpetos; e a atração de corpo para corpo, num
sentimento de espasmo árido e cáustico […].

Trata-se da tentativa, infrutífera, de criar um clima de perene


sensualismo, ao qual o protagonista se entrega após a decepção
amorosa:
Só agora André podia avaliar a repercussão total dos últimos
acontecimentos na sua vida. Tinha saído deles com um caráter amoral, uma
intenção de puro prazer, que, no fundo, era um desprezo e uma decepção da
mulher. Aproximava-as agora para a fruição exclusiva dos seus sentidos, sem
tentar interessá-las ao seu modo de ser, aos seus motivos íntimos, às suas
secretas tendências para o carinho e para a afeição. E isso se tornava perigoso.
André começava a utilizar a sua facilidade em impressionar e atrair com fins
muito diretos e definidos. Criara-se na raiz de sua sensibilidade a convicção de
que a mulher é apenas um instinto que se disfarça sob todas as folhagens de
educação e de finura, e tratava de interessar esse instinto.

Nessa narrativa perdida em circunlóquios, na qual os diálogos são


raríssimos, com personagens emudecidos, cingidos por camisas de
força, a melhor definição do protagonista cabe a Madame Villar:
André “se interessava pelos seres”, segundo afirma essa intuitiva sem
função no romance, “pelas suas plumas e variedades, como um
ornitólogo maníaco”.
Um psicanalista se divertiria com este romance e seu protagonista
doentio, cuja personalidade “comportava um desdobramento infinito
de si mesmo”, mas o leitor comum será raptado pelo tédio e pela
perplexidade de quem espera acompanhar uma história, mas se depara
com sequências e sequências de impressões do narrador palavroso,
redundante, inapto para mostrar as atitudes dos personagens e suas
consequências. Que alguns tenham comparado esse intimismo
maçante a Proust, bem, isso só comprova como é possível ler Proust e
nada entender. Na verdade, tal comparação mostra também absoluto
desconhecimento do que é a literatura.
No ensaio “The Nature and Aim of Fiction”, presente em
Mystery
and Manners: Occasional Prose
, Flannery O’Connor mostra como a
“natureza da literatura está determinada, em grande medida, pela
natureza do nosso aparato perceptivo”. O raciocínio da escritora é
imperturbável: se nossa capacidade de conhecer “começa nos
sentidos”, então o escritor só pode começar “onde começa a
percepção humana”. Ou seja, para transmitir sua mensagem, deve
apelar aos sentidos, mas não pode fazê-lo baseando-se apenas em
“abstrações”. É o problema, segundo Flannery, de muitos escritores
principiantes: preferem “enunciar uma ideia abstrata do que descobrir,
e assim recriar, algum objeto que estão vendo de verdade” — preferem
se ocupar de “ideias e emoções desencarnadas”,
escrevem por estarem
“possuídos não por uma história, mas pelo esqueleto de uma ideia
abstrata”.
A lucidez de Flannery contagia. Em certo trecho a autora faz, sem
saber, a crítica de
Sob o olhar malicioso dos trópicos
: Barretto possui
indiscutíveis “sensibilidade sutil” e “aguda penetração psicológica”,
mas só consegue “enlaçar, uma depois da outra, frases carregadas de
emoção, ou de uma perspicácia muito fina, sem outro resultado que a
monotonia absoluta”. E o faz porque se esquece de que “se deve
mostrar a ficção, mais do que contá-la”, de que “escrever literatura é
falar
com
personagens e ações — e não
de
personagens e ações”.
Utilizando
Madame Bovary
como exemplo, Flannery insiste na
pungente materialidade que as narrativas exigem: “A literatura trata
de tudo o que é humano e nós somos feitos de pó” — e o escritor que
“se recusa a manchar-se de pó não deve tentar escrever”.
Barretto Filho foi exímio ensaísta — seu longo ensaio sobre
Machado de Assis é, repito, leitura obrigatória —, mas naufragou
nesta ficção prolixa, verbosa, da qual poderíamos salvar, com extrema
benevolência, alguns trechos do último, dramático, capítulo. E
fracassou não apenas por uma questão de estilo, mas por ter
menosprezado o que Flaubert sabia e Flannery O’Connor lembra: “A
literatura é, em grande parte, uma arte da encarnação”.

15
Ver, em
Crítica, Literatura e Narratofobia
, o capítulo “A adúltera e a contradição”.
16
Reeditado, em 2014, pela Editora TopBooks.
CAPÍTULO 14

Em busca da literatura
— Rachel de Queiroz e O Quinze

Lançado em 1930,
O Quinze
, de Rachel de Queiroz, integra o
chamado Ciclo das Secas, do qual analisei, neste e nos volumes
anteriores desta série,
Luzia-Homem
(Domingos Olímpio),
Dona
Guidinha do Poço
(Manuel de Oliveira Paiva),
Aves de arribação
(Antônio Sales),
A bagaceira
(José Américo de Almeida) e, dividido
entre ficção e ensaio,
Os sertões
, de Euclides da Cunha.
Na verdade, o fenômeno da seca está longe de se esgotar enquanto
tema literário. Sem esquecer as contribuições de Graciliano Ramos e
José Lins do Rego, a seca e seus indissociáveis componentes —
migração, relações de compadrio, cangaço, formas de religiosidade —
ainda esperam pelo romancista, impregnado de senso épico, que
realize trabalho semelhante ao de Érico Veríssimo em
O tempo e o
vento
.
É preciso construir uma trama que vá além do microcosmo;
necessitamos de uma objetiva grande-angular, um escritor que não se
prenda ao óbvio e demonstre como os dramas e suas inter-relações
não se restringem a causas ou consequências imediatas do problema
climático. Abandonando cientificismos, ele deve mostrar o homem
pleno, o homem da caatinga que, sofrendo, nem sempre se abandona
à melancolia ou ao derrotismo. Precisamos do romance que supere a
literatura ideológica e retrate o Nordeste com a diversidade cultural
que nega, todos os dias, as teses simplistas, ainda repetidas entre nós,
da dicotomia litoral/interior ou opressores/oprimidos.
Quando a literatura recusa as soluções sociológicas, quando se
liberta da camisa de força determinista e marxista, então pode ver a
realidade sem maniqueísmos.
Apesar de não preencher plenamente tal lacuna,
O Quinze
é um
vislumbre do que, passados mais de oitenta anos, ainda não se
concretizou.

Abandono da retórica

Em termos de linguagem, o romance está numa posição superior à


dos
que citei no primeiro parágrafo — como se tivesse apreendido, de
cada um, as melhores características — e do que se escrevia no Brasil
nas primeiras décadas do século
XX
.
Poucas vezes Rachel cede ao lugar-comum, como nesta descrição,
em que o Sol surge “rutilante”, comparado ao “fogo”:
Sacudido pela estrada larga do quartau, seguiu rápido, o peito entreaberto
na blusa, todo vermelho e tostado do Sol, que lá no céu, sozinho, rutilante,
espalhava sobre a terra cinzenta e seca uma luz que era quase como fogo.

Ela prefere utilizar, respeitando a língua e os leitores, formas


sucintas:
Na grande mesa de jantar onde se esticava, engomada, uma toalha de
xadrez vermelho, duas xícaras e um bule, sob o abafador bordado,
anunciavam a ceia:
— Você não vem tomar o seu café com leite, Conceição?

Pode inserir detalhes inesperados, enriquecedores:


Lagartixas davam carreirinhas intermitentes por cima das folhas secas no
chão que estalavam como papel queimado. […]
Conceição apressou-se em abrir a carta, rasgando o envelope com um
grampo do cabelo.

Ou figuras que surpreendem, simples e enérgicas, destituídas de


excessos:
O céu, transparente que doía, vibrava, tremendo feito uma gaze repuxada.
[…] Em geral as pobres árvores apareciam lamentáveis, mostrando os cotos
dos galhos como membros amputados.
E o comboio, entrando numa curva, sibilando e rugindo, era como uma
cobra que fugisse sobre o borralho ainda quente de uma coivara.
A saia roída se apertava na cintura em dobras sórdidas; e se enrolava nos
ossos das pernas, como um pano posto a enxugar se enrola nas estacas da
cerca.
Queria somente que a lembrança dela se sumisse, como se some um peixe
que foge por entre as malhas da tarrafa e mergulha de vez na água revolta…

De fato, a verbosidade que contamina nossa literatura praticamente


desaparece. Porém, aqui e ali, esse veneno tenta conspurcar o trabalho
da
jovem romancista:
Iam para o destino, que os chamara de tão longe, das terras secas e fulvas
de Quixadá, e os trouxera entre a fome e mortes, e angústias infinitas, para os
conduzir agora, por cima da água do mar, às terras longínquas onde sempre
há farinha e sempre há inverno…

Percebam como a viciante retórica se insinua, no trecho a seguir, por


meio do advérbio e do último adjetivo, ambos desnecessários:
A rapariga ficou na calçada, aconchegando ao peito o seu embrulho vivente,
a silhueta vivamente destacada na luz crua do meio dia, aparecendo-lhe as
pernas finas através da saia rala.

Mas Rachel sabe derrotar o monstro. Veja-se esta descrição, em que


não há ideologia, palavreado inútil ou influência naturalista, mas
apenas literatura em boa língua portuguesa:
Chico Bento parou. Alongou os olhos pelo horizonte cinzento. O pasto, as
várzeas, a caatinga, o marmeleiral esquelético, era tudo de um cinzento de
borralho. O próprio leito das lagoas vidrara-se em torrões de lama ressequida,
cortada aqui e além por alguma pacavira defunta que retorcia as folhas
empapeladas.

Qualidades semelhantes ressurgem neste período — apesar do


advérbio “vivamente”, desnecessário — cuja pontuação tenta recriar o
movimento do vaqueiro:
Chico Bento entrou, no mesmo passo lento, a modo que curvado sob a cruz
de remendos que ressaltava vivamente, como um agouro, nas costas
desbotadas da velha blusa de mescla.

Complexidade do real
As personagens de Rachel têm vida própria, reagem a estímulos,
revelam suas personalidades até mesmo num gesto automático, quase
destruído, mais uma vez, pelo advérbio inútil:
Depois dobrou o papel, tornou a pô-lo no lugar, puxando o braço
vivamente como se se libertasse, ­livrando-se do temor supersticioso que lhe
travava as mãos, porque uma carta daquelas lhe parecia coisa amaldiçoada.

O capítulo 7, quando Chico Bento e sua família transformam-se em


retirantes, merece leitura atenta. Note-se o cuidado na composição das
cenas, no desenho das reações: a despedida da vaca Rendeira; as
crianças
“estirando a língua, com gestos insultuosos” contra o irmão
escolhido para viajar na cangalha; o vestido engomado de Mocinha,
seu “passo macio, tão rápido e leve que mal esmagava os torrões
quebradiços do chão” — três dias depois, a vestimenta “já não parecia
toilette
de missa”; e “a generosidade matuta” do vaqueiro, pronto a
dividir sua manta de carne com outros retirantes.
No capítulo 12, quando chega o desvario provocado pela fome,
certificamo-nos de que os exemplos acima não foram felizes acidentes:
Num súbito contraste, a memória do vaqueiro confusamente começou a
recordar a Cordulina do tempo do casamento. Viu-a de branco, gorda e
alegre, com um ramo de cravos no cabelo oleado e argolas de ouro nas
orelhas… Depois sua pobre cabeça dolorida entrou a tresvariar; a vista
turbou-se como as ideias; confundiu as duas imagens, a real e a evocada, e
seus olhos visionaram uma Cordulina fantástica, magra como a morte,
coberta de grandes panos brancos, pendendo-lhe das orelhas duas argolas de
ouro, que cresciam, cresciam, até atingir o tamanho do Sol.

O núcleo da obra encontra-se páginas à frente: Chico Bento e Pedro,


um de seus filhos, dirigem-se a uma casinha de “telha encarnada” que
brilha sob o Sol. De repente, surge uma cabra. O gesto de matar e
esfolar dura segundos, mas o dono do animal interrompe, com
revolta, a preparação do banquete. Na sua narrativa ágil, de
parágrafos curtos e precisos, a autora insere o dilema moral: a faca
convida o vaqueiro a disputar o butim. A cena vai além do mero
realismo. Rachel sabe que o papel da literatura não é somente ser
espelho da realidade — trata-se, ao contrário, de desvendar a vida, de
mostrar a rica complexidade do real, comprovar que nada é óbvio,
raso. A alguns pode parecer incrível que ela não permita o crime, mas
a escritora sabe que o homem não é apenas instinto, que até na
degradação há limites:
Caindo quase de joelhos, com os olhos vermelhos cheios de lágrimas que
lhe corriam pela face áspera, suplicou, de mãos juntas:
— Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um
taquinho ao menos, que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra
eles que eu matei! Já caíram com a fome!…
— Não dou nada! Ladrão! Sem-vergonha! Cabra sem-vergonha!
A energia abatida do vaqueiro não se estimulou nem mesmo diante daquela
palavra.
Antes se abateu mais, e ele ficou na mesma atitude de súplica. E o homem
disse afinal, num gesto brusco, arrancando as tripas da criação e atirando-as
para o vaqueiro:
— Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez,
dar-se tripas é até demais!…
A faca brilhava no chão, ainda ensanguentada, e atraiu os olhos de Chico
Bento.
Veio-lhe um ímpeto de brandi-la e ir disputar a presa; mas foi ímpeto
confuso e rápido. Ao gesto de estender a mão, faltou-lhe o ânimo.
O homem, sem se importar com o sangue, pusera no ombro o animal
sumariamente envolvido no couro e marchava para a casa cujo telhado
vermelhava, lá além.
Pedro, sem perder tempo, apanhou o fato que ficara no chão e correu para
a mãe.
Chico Bento ainda esteve uns momentos na mesma postura, ajoelhado.
E antes de se erguer, chupou os dedos sujos de sangue, que lhe deixaram na
boca um gosto amargo de vida.

Recusa do melodrama

Até mesmo nossa velha conhecida, a corrupção, se apresenta: nada


pode ser feito contra o burocrata que vende as passagens doadas pelo
governo — e assim condena os migrantes a viajarem a pé.
Um sentimento de completude acompanha a leitura. A firmeza de
Dona Inácia, a independência de Conceição, o devotamento de
Vicente à terra, o caráter infantil de suas irmãs, a partida de Chico
Bento e do que restou de sua família para São Paulo: as peças quase
sempre se encaixam.
Soa inverossímil, no capítulo 16, o trecho em que se apresenta o
encontro de Conceição com a família de Chico Bento, já instalada no
campo de retirantes da cidade. O remendo que o narrador utiliza para
justificar a relação de amizade, até ali desconhecida pelo leitor, é um
truque ineficiente.
Pequenos desequilíbrios, contudo, não apagam as qualidades da
obra.
Insisto: não há personagens planos. Nem Conceição, a professora
que se impõe pela inteligência e caridade, escapa de ter ciúme e
preconceitos. Deles, aliás, não se livra nem mesmo, no final, numa
rápida cena, um “negro dos guindastes”. E Vicente, concentrado na
luta contra a seca, incansável na proteção do patrimônio familiar,
encontra tempo para refletir, questionar-se.
Devemos comemorar que Rachel não ceda ao melodramático ou ao
romântico e obrigue Conceição a permanecer só. Ela também não se
curva às receitas fáceis do modernismo — antes, permite-se um trecho
lírico para comemorar o retorno da vida:
Lá adiante, em plena estrada, o pasto se enramava, e uma pelúcia verde,
verde e macia, se estendia no chão até perder de vista.
A caatinga despontava toda em grelos verdes; pauis esverdeados, dum sujo
tom de azinhavre líquido, onde as folhas verdes das pacaviras emergiam, e
boiavam os verdes círculos de aguapé, enchiam os barreiros que marginavam
os caminhos.
Insetos cor de folha — esperanças — saltavam sobre a rama.
E tudo era verde, e até no céu, periquitos verdes esvoaçavam gritando.
O borralho cinzento do verão vestira-se todo de esperança.

O Quinze
não é, portanto, apenas mais um romance regionalista.
Retrato fiel da nossa humanidade, retoma, longe da Semana de 22 e
dos pândegos paulistas, o eixo da nossa ficção, formado por Manuel
Antônio de Almeida, Machado de Assis, Coelho Neto, Monteiro
Lobato e Antônio de Alcântara Machado. A jovem Rachel de Queiroz
desejava, realmente, a literatura.
CAPÍTULO 15

Romancinho bem-intencionado
— Ribeiro Couto e Cabocla

Escrever um romance não exige apenas ânimo. Prova de resistência,


não requer somente fôlego, mas disciplina e técnica. Refiro-me, é
claro, a verdadeiros romances — e não a esses contos ampliados que
algumas editoras publicam hoje em papel de alta gramatura e com
letras grandes, do contrário o texto caberia num folheto de cordel.
Não me refiro a esses livrinhos citados como romance, anunciados
como romance, vendidos como romance e criticados como romance
— mas que não passam de opúsculos.
O desprezo pela classificação das obras segundo gêneros literários
ou, dizendo de outro modo, a insistência em relativizar essa
classificação, se, por um lado, parece dar maior conforto aos
escritores, libertando-os de quaisquer parâmetros, por outro contribui
à mesmice em que chafurdamos, na qual muitos se sentem obrigados,
para agradar aos membros de sua panelinha, a fazer de conta que é
impossível identificar as diferenças entre
Morte em Veneza
e
Doutor
Fausto
.
Ora, afirmar que não há dessemelhança formal entre
Missa do Galo
e
Dom Casmurro
exige imensa dose de cinismo. E mostra que não se
trata apenas de apregoar a duvidosa implosão dos gêneros literários,
mas de cumprir uma agenda política — trata-se de, numa afetação
própria da chamada modernidade, confundir, baralhar, induzir leitores
e escritores ao erro.
Mas voltemos ao início.
À literatura, como à própria vida, não bastam disposição e boas
intenções. Se bastassem, temas sugestivos, na mão de qualquer
alfabetizado, se transformariam em grandes livros. Na verdade, o
inferno da literatura está repleto de bem-intencionados que
produziram banalidades.
É o caso de Ribeiro Couto e seu
Cabocla
, publicado em 1931.

Detalhista sensível

O livro abre com o narrador-protagonista, Jerônimo, anunciando


sua
contrariada partida para a Fazenda do Córrego Fundo, em Vila da
Mata, no Espírito Santo. Ali, na propriedade de seus primos, iniciará
o tratamento de uma lesão pulmonar. O jovem boêmio paga o preço
da vida desregrada. Mas não o faz sem ironia:
O doutor dissera que eu tinha uma lesão de primeiro grau no pulmão
direito. Sua luneta de tartaruga, de cordão preto atrás da orelha, dava-lhe um
ar de sábio infalível. Eu não acreditava na lesão, mas acreditava no doutor.

Nesse estilo simples, despojado, o narrador apresenta fatos centrais


de sua vida e seus casos amorosos, incluindo Pequetita Novais, “a
mais esquiva de todas as cariocas”, sem deixar de insistir, bem-
humorado, na decepção por não fazer o tratamento em algum país
europeu.
O texto flui de maneira agradável — e Ribeiro Couto domina os
recursos que a língua oferece. Veja-se, por exemplo, esta descrição,
uma das primeiras impressões do viajante quando chega ao lugarejo
que circunda a estação ferroviária, poucos quilômetros distante da
fazenda:
No rés-do-chão era a vendinha do José da Estação, com duas portas. No
compartimento ao lado, também com porta para a rua, havia o refeitório do
hotel. Nas prateleiras de um armário velho, com bicos de papel de cor,
empilhava-se a louça grosseira, junto à qual um paliteiro de porcelana azul
parecia desterrado como um objeto de luxo.

Logo a seguir, a composição de Zuca, cabocla por quem Jerônimo se


apaixona, mostra-se perfeita. A jovem não é modelo de beleza, o que
concede verossimilhança à narrativa:
Eu ia agradecer a Siá Bina as boas palavras, quando surgiu da cozinha, num
vestido de chita vermelha, uma espécie de Nossa Senhora morena, com um
rostinho redondo em que tudo era gracioso: o queixo, a boca, o nariz. Apenas
a fronte era larga, por cima de uns olhos pretos de expressão austera; parecia
que aqueles olhos não sorriam nunca.
[…]
Aproximou-se de mim: era uma mulherzinha de pés pequenos, cintura fina,
mas com seios opulentos. Este pormenor chocou-me, parecia quebrar a
castidade do conjunto.

A menina que, na frente dos pais, apresenta-se de “olhos baixos” e


“envergonhada”, muda de comportamento ao ver-se sozinha com
Jerônimo. Torna-se falante, ri, confundindo o protagonista:
Que significava aquele desembaraço, aquele tom? O vestido de chita e o
chinelo cara-de-gato, de repente, se me afiguraram um disfarce. Não era mais
a filha do José da Estação, era uma menina da cidade em travesti de moça de
roça. Minha expressão de surpresa devia parecer-lhe cômica, porque ela se
pôs a rir, divertida.

Essa personalidade algo complexa, insinuante, delineada já no


capítulo 2, mescla-se ao perfil idealista de Jerônimo, também
anunciado desde seu primeiro momento na roça:
[…] Súbito, pensei em Pequetita Novais, irônica, citadina, com um brilho de
malícia nos grandes olhos verdes. Pensei em Pepa la Sevilhana, festiva,
mercenária, pública. Uma ternura indefinível me invadiu, não apenas por
aquela mocinha, mas também por todas as outras, pelo país afora, nos
lugarejos apagados; todas as que, como Zuca, eram criadas nos arranjos da
casa, sem vaidades, nem ambições, e amanhã seriam mães, educariam com a
mesma simplicidade e para o mesmo fim outras brasileirinhas de cara
redonda. Até eu não conhecia do Brasil senão a multidão do Rio,
atormentada de dificuldades de dinheiro e do desejo incontentável de divertir-
se. Pela primeira vez me pareceu doce o destino de viver obscuramente,
acordando com o Sol e dormindo com o recolher das galinhas, no ar livre dos
campos, longe dos carnavais e dos cassinos.

Tais sentimentos evoluirão no transcorrer do romance, passando por


uma crise de melancolia até chegar à decisão de se estabelecer
definitivamente na zona rural.
A estas características devemos acrescentar indiscutível habilidade
para compor cenários. Ribeiro Couto sabe selecionar os elementos e
revelar pormenores eloquentes:
O fordinho estava encostado à porta. Poeirento, com placas de lama
ressequida, sem capota, seria risível nas ruas do Rio. Ali, entre aqueles
casebres decadentes, parecia uma carruagem de luxo. Dois velhos caboclos de
barbicha rala, acocorados, fumando o pito com cusparadas metódicas a cada
instante, examinavam abstratos as rodas imóveis. Na estação, a sineta
anunciou que um trem partira da localidade mais próxima. A casa do chefe,
ao lado da plataforma, tinha um quintalzinho plantado de couves, protegido
por uma cerca de bambus. Na praça, os casebres continuavam fechados, mas
dos telhados principiava a sair uma fumaça lenta. Pau d’Alho despertava.

Há outros componentes elogiáveis. Veja-se, no capítulo 7,


“Mulher”, como Ribeiro Couto constrói a cena na qual Jerônimo
descobre o noivado
de Zuca. O narrador entremeia de divagações
ciumentas o seu diálogo com o jovem caixeiro, em que esmiúça o
relacionamento da cabocla. Devagar, o ciúme torturante cresce e se
transforma em cólera, ainda que contida. Minutos mais tarde, quando
o leitor acredita que a emoção foi superada, o encontro com dois
vendedores obriga-o a remoer o sentimento:
[…] E como o hoteleiro tivesse subido para levar as valises aos quartos, um
deles — que era bexigoso e tinha um anel de brilhantes num dedo cabeludo —
curvou-se para mim, confidencialmente:
— Conhece a pequena aqui do hotel?
Piscou-me um olho. O outro, reforçando a intenção da pergunta com um
gesto, inclinou-se também:
— Isto que é um pedaço de morena!

O escritor, que é detalhista sensível — ele pode nos mostrar, meio


escondida sob a blusa de Zuca, “a camisinha de morim barato,
enfeitada de renda ordinária” —, também consegue dar vida a
personagens cativantes, cujas personalidades se revelam
principalmente nas cartas que escrevem. Aliás, adiantando-me às
conclusões, não escrever
Cabocla
na forma de um romance epistolar
foi tremendo erro. Couto teria produzido trabalho memorável,
superior, em todos os sentidos, ao medíocre
A correspondência de
uma estação de cura
, de João do Rio — que analisei em
Esquecidos
& Superestimados
—, pois estamos diante de um autor que, nos
melhores momentos, faz transbordar de cada frase, de cada escolha
vocabular, de cada erro gramatical, o personagem inteiro.
Pai desconhecido

O escritor, contudo, não consegue sustentar essas qualidades, não


mantém um padrão, parece mesmo desistir da trama complexa que
anuncia no primeiro terço do romance.
O comportamento dúbio de Zuca, anunciado logo no início, não se
concretiza. Ou melhor, a cabocla que dá título ao livro, promessa de
mulher insinuante, mas que finge pureza na frente dos pais, torna-se
uma sonâmbula. Pode jogar beijos furtivos a Jerônimo logo depois do
primeiro rápido encontro e mostrar-se extremosa quando a
tuberculose o prende à cama, mas pouco fala e raramente age.
Seu mutismo não é o silêncio da caipira acanhada — o que seria
compreensível —, mas uma imperfeição da narrativa, que a
transforma num fantoche. Zuca é de uma passividade atordoante,
cansativa. Não se esforça para seduzir — e o protagonista se
apaixona; não verbaliza seus
sentimentos — e o protagonista faz tudo
por ela; não recusa ou aceita — apenas deixa que o mundo gire à sua
volta. É uma esfinge — mas não esconde nenhum segredo. Ao
contrário, é impossível ser mais invariável, insossa, rasa.
O autor também cria cenas inconsistentes. Veja-se, por exemplo, o
final do capítulo 7: é noite; Jerônimo parte, no fordinho do primo,
para a fazenda; não estamos numa avenida iluminada, mas na
escuridão do mato; ele diminui a velocidade quando a estrada
circunda o laranjal nos fundos da residência de Zuca; e, de repente,
zás: um molho de cravos cai no seu colo, jogado não se sabe de onde.
Com certeza foi a cabocla. Mas até esse momento ninguém havia
informado ao leitor que a jovem possuía visão noturna. Além disso,
ela precisaria ser uma atleta olímpica para enfeixar os cravos e cruzar
o amplo terreno — levando-se em conta a descrição que o narrador
oferece no primeiro capítulo — ao mesmo tempo que Jerônimo.
A narrativa se torna quase esquemática à medida que a saúde de
Jerônimo se complica. Os capítulos 17 e 18 são resumos do que
merecia ser desenvolvido de maneira paulatina, a fim de construir,
efetivamente, o drama diante do leitor. Mas Ribeiro Couto, movido
por inexplicável pressa, ficou satisfeito em escrever um esboço.
O narrador fala muito de si mesmo. Centrado nos próprios
sentimentos, é fatal que seu bucolismo se torne entediante. Na última
terça parte do livro já antevemos, dada a primeira linha de qualquer
explanação, tudo o que ele nos dirá. Até seus sentimentos em relação
a Zuca são repetitivos. E sua melancolia romântica, que faz lembrar as
piores páginas de Álvares de Azevedo, enfastia o leitor mais benévolo.
Jerônimo poderia falar do que experimenta em seu coração sem
esquecer de narrar a vida dos demais personagens. Mas o autor não
quis ou não teve habilidade para compor um quadro complexo, em
que várias histórias se entrecruzam ou o drama dos personagens
secundários complementa o núcleo da narrativa. Assim, jamais
saberemos como Pequetita Novais, sempre pronta a fisgar um bom
partido, acaba por seduzir e casar com o próprio pai de Jerônimo,
Joaquim. Este, aliás, que se mostra sábio, firme e decidido em grande
parte do livro, acaba se fechando num silêncio incompreensível.
Mas o final reserva a pior surpresa. Zuca e Jerônimo passam o livro
inteiro num namoro casto, de muitos beijos e… nada mais. O
narrador faz contorcionismos fantásticos para assegurar ao leitor a
pureza da relação. Muito bem. Eles casam e seguem felizes para seu
destino pastoril. No trem, aconchegada nos braços protetores do
amado, Zuca revela que está grávida — e o leitor, boquiaberto, fecha
o livro com a certeza de que
Ribeiro Couto esqueceu de contar quem é
o pai.
Cabocla
é, portanto, apenas um romancinho ­bem-intencionado,
destruído por um escritor que não teve habilidade para ser perfeito de
fio a pavio.
CAPÍTULO 16

Estreia razoável
— João Alphonsus e Galinha cega

João Alphonsus provém de conhecida família literária, na qual


despontam seu pai, o simbolista Alphonsus de ­Guimaraens, e, tio-avô
deste, Bernardo Guimarães, exaltado romântico, autor de
O
seminarista
.
Seguindo a tradição familiar, João Alphonsus ­mostrou-se ativo
militante da causa modernista em Minas Gerais: participou — ao lado
de Carlos Drummond de ­Andrade, ­Martins de Almeida, Emílio
Moura, Pedro Nava, ­Gregoriano Canedo e Abgar Renault — do
grupo ligado ao periódico
A Revista
, cujos três números foram
publicados entre 1925 e 1926.
Seu livro de estreia,
Galinha cega
, de 1931, reunião de quatro
contos, oferece a síntese da breve carreira, encerrada aos 43 anos, que
nos legou dois romances premiados pela Academia Brasileira de
Letras,
Totônio Pacheco
e
­ Rola-Moça
, além de poemas e os volumes
Pesca da baleia
e
Eis a noite!
, nos quais o escritor exercita o conto,
gênero que, segundo o consenso da crítica, dominou.

Sartrianice

O último conto de
Galinha cega
— “O homem na sombra ou a
sombra no homem” — é o mais fraco. A narrativa inicia com um
diálogo humorístico, acolhedor, entre o protagonista — Ricardo,
revisor do jornal sem importância, estudante de medicina e candidato
a poetastro — e o redator-chefe, poetastro notável, bem definido pelo
irônico narrador como “poeta consagrado por geração e meia de
sofredores”. O tom da abertura, entretanto, não se mantém, e logo
resta apenas o personagem que se entrega, a partir da morte de uma
desconhecida, a imaginosa soturnidade, experimentando ciclotimia
própria de adolescentes.
O narrador divaga em inúmeros trechos, suas digressões nada
acrescentam à história, enquanto os poucos fatos — paixonite pela
prostituta, gastos irresponsáveis, noites ao relento, sucessivos vexames
— confirmam a crise existencial sartriana, ou seja, enfadonha.
Não surpreende que o narrador considere sua história uma “odisseia
obscura” — o que confirma a visão distorcida dos modernistas,
cultuada
até hoje, prontos a encontrar aventura numa sucessão de
errinhos suburbanos, destituídos de heroísmo. O final, debochado, em
que um jato de urina acorda o jovem, reconduz o leitor à qualidade do
início, o que só amplia nossa frustração.

“Apodrecerei quase sem feder”

“Godofredo e a Virgem” engana de maneira habilidosa. As


primeiras páginas querem nos convencer de que o tema central é o
amor não consumado entre Godofredo e Carmita, morta
prematuramente. Para tanto, o narrador constrói o envolvimento
passional do jovem que, frente à morte da amada, deseja oferecer-se,
para sempre, em holocausto.
O leitor desatento se surpreenderá com a mudança, elaborada desde
a agonia de Carmita, que ocorre no terço final da narrativa. Terêncio,
sogro de Godofredo, e seu “ronco metódico” crescem, avolumam-se,
sobranceando a paixão infeliz. Quando o leitor se dá conta, a
personalidade fria de Terêncio controla o enredo. Na verdade, o conto
dialoga, de forma crítica, com o Romantismo, assemelha-se a uma
paródia do ultrarromantismo, quiçá uma resposta ao antepassado de
João Alphonsus, pois à mulher cuja “beleza não apodrecerá” —
“Godô, eu apodrecerei quase sem feder, eu juro, eu juro…”, Carmita
sussurra no caixão, eco da morbidez quase necrofílica de
O
seminarista
— o narrador contrapõe o pai calculista, “bólido lento e
pesado”, de presença “incômoda e supérflua”, capaz de contemplar
“sucumbido” o cadáver e, minutos depois, entabular agradável
conversa sobre política.
As mesquinhezas do cotidiano sobrepõem-se, assim, ao amor, à
saudade, à tristeza da perda. Para Terêncio, o que importa é arrumar
alguém disposto a pagar as contas — para Godofredo, o desalento
nasce do fato de não vencer a libido. Os dois opositores resumem-se a
seus instintos no final, mas tudo é apresentado de forma sutil,
inteligente, até o fecho que o próprio narrador anuncia como
“anedótico e necessário”, restando a Terêncio subir “solenemente pela
Mantiqueira do seu desprezo metódico e bem dosado”.

Gracejo pirotécnico

O que avulta em “Oxicianureto de Mercúrio” é a macroestrutura,


apoiada em duas linhas de tensão: a raiva, verdadeiro ódio
concentrado do “homem de boné”, e a história da tentativa de
suicídio de Amâncio. Esta apresenta o que poderíamos chamar de
subinterpolação, pois sua eficiência se deve, em grande parte, às
analepses — na verdade, analepses externas, que ultrapassam o tempo
em que a narrativa se desenvolve,
nas quais surge devotada figura
materna, contraponto perfeito ao mundo de bebedeiras e frustrações
em que os dois personagens centrais se desesperam.
O final, uma pena, tem inesperada pretensão tragicômica, que, ao
destoar do conjunto, afunda a narrativa. Nem sempre o humor dá
resultado, concluímos, principalmente quando o recurso apresenta um
corte oswaldiano, ou seja, mero gracejo pirotécnico, apendículo
desnecessário.

Absoluta bondade

“Galinha cega”, que dá título ao livro, divide com “Godofredo e a


Virgem” o protagonismo da coletânea. O início é exemplo de
concisão, de boa escolha vocabular e uso correto dos adjetivos:
Na manhã sadia, o homem de barbas poentas, entronado na carrocinha,
aspirou forte. O ar passava lhe dobrando o bigode ríspido como a um
milharal. Berrou arrastadamente o pregão molengo:
— Frangos BONS E BARATOS!
Com as cabeças de mártires obscuros enfiadas na tela de arame os bichos
piavam num protesto. […]
Minha única resistência relaciona-se ao advérbio, pois duvido de sua
necessidade e eficácia — bastava o adjetivo “molengo”. Aliás, trata-se
do motivo pelo qual a narrativa coxeia. Veja-se, por exemplo, nestes
dois parágrafos, como o advérbio nada acrescenta à psicologia
galinácea — ou, analisando sob perspectiva diversa, à
antropomorfização da personagem:
Agora a vida voltava a ser boa. Não tinha saudades do torrão natal. Possuía
o bastante para sua felicidade: liberdade e milho. Só o galo é que às vezes
vinha perturbá-la incompreensivelmente. Já lá vinha ele, bem elegante, com
plumas, forte, resoluto. Já lá vinha. Não havia dúvida que era bem bonito. Já
lá vinha… Sujeito cacete.
O galo — có, có, có — có, có, có — rodeou-a, abriu a asa, arranhou as
penas com as unhas. Embarafustaram pelo mato numa carreira doida. E ela
teve a revelação do lado contrário da vida. Sem grande contrariedade a não
ser o propósito inconscientemente feminino de se esquivar, querendo e não
querendo.

O advérbio, nos dois casos, desempenha função semelhante à da


linguagem galiforme do segundo parágrafo: mera redundância.
Outro trecho ajuda a esclarecer minha crítica:
Foi assim que, certa madrugada, quando abriu os olhos, abriu sem ver coisa
alguma. Tudo em redor dela estava preto. Era só ela, pobre, indefesa galinha,
dentro do infinitamente preto; perdida dentro do inexistente, pois que o
mundo desaparecera e só ela existia inexplicavelmente dentro da sombra do
nada. […]

Se “infinitamente” amplia a cegueira a que a galinha está


condenada, “inexplicavelmente” desempenha função apenas retórica,
pois confusão e perplexidade permanecem visíveis, concretas, se
retiramos o advérbio.
Aqui e ali, também incomoda o relativo excesso de adjetivos:
Porque o bico e as unhas não mais catassem e ciscassem, puseram-se a
crescer. A galinha ia adquirindo um aspecto irrisório de rapace, ironia do
destino, o bico recurvo, as unhas aduncas. E tal crescimento já lhe
atrapalhava os passos, lhe impedia o comer e beber. Ele notou mais essa
miséria e, de vez em quando, com a tesoura, aparava o excesso de substância
córnea no serzinho desgraçado e querido.
O parágrafo delineia, com perfeição, o estado deplorável da
personagem — mas o autor, incontido, desequilibra o trecho com o
diminutivo e os adjetivos finais, supérfluos, dispensáveis.
Mas há trechos perfeitos. O comprador da galinha surge como
figura quase monstruosa — “[…] Um bruto homem de barbas brancas
na porta de um barracão chamava o vendedor cavando o ar com o
braço enorme” —, reforçada pela feliz, inusitada escolha do verbo
“cavar”.
A narrativa se desenvolve tendo como eixo o drama crescente da
galinha, ao qual corresponderá, da parte do seu novo proprietário,
ternura desmedida. A paciência que este devota à esposa indiferente
torna-se bondade incondicional quando se trata da ave, a quem ele
não teme defender nem mesmo ao preço de passar a noite no xadrez.
O caráter generoso, nobre, desse homem cava também a alma do
leitor, que se vê preso no ilimitado carinho pelos bichos.
O final — pleno de humor e leveza — confirma as qualidades de
João Alphonsus, mas não elimina a impressão de uma estreia apenas
razoável. De qualquer forma, é impossível não lamentar que o autor
tenha vivido tão pouco, da mesma forma que Antônio de Alcântara
Machado, enquanto, tremenda injustiça, Oswald de Andrade pôde
repetir suas galimatias até se tornar um sexagenário.
CAPÍTULO 17

Romance abatido
— José Geraldo Vieira e A mulher que fugiu de
Sodoma

A obra de José Geraldo Vieira encontra-se condenada ao


esquecimento. O caso não é raro em nossa literatura, bastando
recordar Emanuel Guimarães e
A todo transe!…
, vertiginosa crítica às
politicagens dos primeiros anos da República, Júlia Lopes de Almeida
e
A falência
, assim como
Turbilhão
, de Coelho Neto, ambos
pungentes dramas familiares, o primeiro também inseparável do início
do período republicano e do Encilhamento. Haverá, no futuro, quem
estude os dissimulados motivos ideológicos que obrigam nossos
estudantes a conhecer autores de segunda linha — basta lembrar de
Afonso Arinos, Adolfo Caminha, Franklin Távora e João do Rio —
como se fossem clássicos, enquanto esses romances permanecem
mumificados nas edições esgotadíssimas. E aguardamos algum herói
surdo à retórica dos medalhões que, movidos por esclerótico
superficialismo, vociferam em defesa de mais literatura
contemporânea nas escolas e repudiam a sábia escolha da Unicamp,
que tenta, nos vestibulares recentes, impulsionar a leitura do Padre
Antônio Vieira e de Júlia Lopes de Almeida. Resta-nos, por enquanto,
a tentativa de romper tal isolamento — desta vez, analisando
A
mulher que fugiu de Sodoma
, primeiro romance de José Geraldo
Vieira, escrito em 1924, aos 27 anos, durante os três dias de Carnaval,
e publicado, em 1931, por insistência de Augusto Frederico Schmidt e
Hamilton Nogueira.
O fato que desencadeia a escrita do romance é curioso: convidado
por Jackson de Figueiredo a participar de um retiro espiritual durante
os festejos de Momo, Vieira recusa o convite, mas, talvez impelido a
fazer um acerto de contas com o passado, fecha-se na biblioteca e
escreve o livro que, em 1947, no artigo “Confissões”, afirma ter
“qualquer coisa de antiga ruína de jesuítas”. Aliás, vale a pena
conhecer esse e outros textos não ficcionais do autor, alguns
autobiográficos, reunidos no volume
Impressões e expressões
.
17
De fato, a marca autobiográfica perpassa a ficção de Vieira — e a
crítica mostra-se unânime nesse juízo, seguindo o que o próprio
escritor confessa no depoimento citado por Francisco Escorsim na sua
elucidativa introdução de
Impressões e expressões
:
Se nos romances entrei reflexamente como personagem, não foi por
complexo de culpa, nem por alternativas narcisistas entre o Ego e o Id. […]
Não venho agradecer, venho pedir desculpas por haver dado tão pouco, muito
embora os esquemas fossem amplos. Repito, a memória é um asilo com duas
alas, numa, as saudades, essas anciãs paralíticas, na outra os complexos, esses
loucos domados com camisas de força, permitam já agora confessar que
extraí minhas personagens das duas alas.

Mário, o médico protagonista de


A mulher que fugiu de Sodoma
,
revela, ainda segundo Escorsim, a insegurança do escritor, que
demorou a se firmar como homem maduro, dono das próprias
decisões, sem cometer os exageros do personagem tomado por
“habilidades instantâneas de simulação” e pronto a utilizar a mentira
como “oportuna destruidora de embaraços”. O narrador esmiúça os
desvios dessa personalidade, “vítima não sabia bem de quê nem de
quem”. O vício do carteado mina o casamento com Lúcia — e Mário
jamais superará o caráter infantil, formado na família decadente,
controlada pela matriarca que, vivendo na irrealidade, condicionou o
filho à permanente ilusão.
O romance acompanha a derrocada de Mário, percurso dramático
que termina na França — país no qual também o autor se
especializara como médico —, onde o personagem cumpre a visão
profética da esposa, anunciada pelo narrador durante a crise das
primeiras páginas:
Faltavam ainda treze contos.
O carrilhão de São Francisco batia doze pancadas e duas ou três sereias de
edifícios de jornais desferiam um grito sibilante. Meio dia.
Voltou à galeria Cruzeiro. O marido estava lá, rondando as pilastras, talvez
se distraindo com o aspecto das pessoas que subiam e desciam dos bondes.
— Podes ir embora.
— Arranjaste?…
— Podes ir!
— Para onde? Não será melhor te acompanhar?… Já arranjaste?
Fez que não, com a cabeça, e repetiu:
— Podes ir.
Viu-o sumir, como um cão, entre o povo.

Ainda que a história nos leve a acreditar, por longo trecho, na


recuperação de Mário, prevalecem a insegurança, a compulsão para
jogar ou apostar. A imagem que encerra o trecho acima ressurge,
assim,
definitiva e fulminante, ainda na Primeira Parte: “Foi para casa,
como um animal que ressabiado se recolhe ao canil”.
Lúcia suporta a descoberta das infindáveis deslealdades, sai em luta
pelo marido, pronta a conseguir o dinheiro que saldará a dívida
exorbitante, contraída no jogo; mas sucumbe ao descobrir a falha
moral: ao invés de cumprir sua palavra e atender a um menino,
humilde vendedor de jornais — por isso apelidado de Segundo Clichê
— que definha com meningite, Mário refugia-se, mais uma vez, no
baralho. As cenas que compõem o capítulo 6 da Primeira Parte
sintetizam as qualidades dramáticas de José Geraldo Vieira: do
telefonema que enseja a descoberta da nova mentira ao enterro do
garoto, passando pela agonia que Lúcia acompanha de perto, tudo
convida o leitor a compreender o gesto dessa mulher que, desiludida,
abandona o marido.
Merecem especial atenção as modulações de voz do narrador, capaz
de, por exemplo, surgir do fundo noturno do velório e, semelhante a
um coro grego, recordar o morto:
Pobre Segundo Clichê… Tu, que muita vez dormiste na soleira das casas
comerciais do Largo do Machado, tonto de sono e de fadiga, com os teus
jornais esparramados pelo chão; tu, que, como quarto teu, tinhas apenas esse
quarto onde tua mãe passava a ferro; tu que te sentias tão bem, depois do teu
trabalho, deitado e estirado entre trastes, ferros de engomar, latas, bacias,
caixas de papelão, sapatos velhos e roupas alheias — dormes, agora,
sossegado sob essa colcha que cheira a poções e a óleo canforado…
Ou mostrar-se hábil, áspero descritor:
Rodar de féretro sobre paralelepípedos. Rodar seco e antipático. Um
cocheiro semibêbado, que fuma um toco de charuto Palhaço de 100 réis.
Grinaldas pobres sacudindo, dançando aos solavancos da marcha.
Curiosidades. Olhares. Reverências. […] Seis carros e um automóvel sempre
juntos, um atrás do outro; nem as esquinas, nem os bondes os separam. Lá
vão eles, estragando a beleza dessa tarde límpida e azul, entristecendo essas
ruas, essa praça, rodando sobre os trilhos com um ruído especial, seco,
antipático, com sujeitos que exageram a compunção quando se sentem
olhados.

O romance, contudo, apresenta desequilíbrios. É compreensível, por


exemplo, que Lúcia se perca em recordações no capítulo 5 da Primeira
Parte, e que tais recordações, somadas ao comportamento de Mário,
culminem na decisão do capítulo seguinte, quando, graças às
lembranças, ela sente “uma coragem inaudita, uma resolução
consciente, uma energia decisiva, como se saísse de dentro de um
despojo”. Mas há excesso de palavras — o estilo se torna, nesse e em
outros trechos, algo circunvagante.
Da mesma forma, se a energia da composição psicológica de Mário
e a diversidade de personagens impressionam, Lúcia decresce a partir
da Segunda Parte, fica restrita ao papel de governanta da filha do casal
que a protege e emprega. Assim, quando o suposto clímax se
aproxima e a analogia entre Lúcia e o tema da pintura de Peter Paul
Rubens,
A fuga de Ló e sua família de Sodoma
, irá, esperamos,
concretizar-se, recebemos muito pouco. Sim, Lúcia é o oposto da
mulher de Ló — não olha para trás, não titubeia em suas decisões,
mas a caracterização do choque entre sua moral e o ambiente esnobe
em que vive não é convincente, ocorre de forma abrupta. O autor
tenta, nas páginas finais, transformar o anfitrião — e patrão — de
Lúcia num representante de Sodoma, mas nenhuma indicação é clara;
e até mesmo a decisão de não mostrar a Lúcia a última carta de Mário
surge num lusco-fusco carente de vigor narrativo. A segunda fuga de
Lúcia transforma-se, portanto, num gesto imprudente, precipitado,
nada mais.
A provável resposta a esse desfecho sem solidez ­encontra-se na
citada introdução de Francisco Escorsim: segundo o pesquisador, em
1957, pouco antes do relançamento de seus romances pela Editora
Martins, o autor, motivado pela pichação feita na calçada de sua
residência — “Morreu José Geraldo Vieira. Viva o romance
brasileiro!”—, decide ser “mais severo” e altera substancialmente os
textos.
Vejamos o exemplo selecionado por Escorsim.
18
Na 1ª edição:
Lúcia tapou os olhos com as mãos, sentindo sob a polpa dos dedos o relevo
desses olhos agora cheios de esferas violáceas e purpúreas. Ficou muito
quieta, como quem vai ouvir um conselho, estranho, desses que, embora
partindo de analogias, se levantam do ser uma vez, mas que têm tal
clarividência, tal pujança, que todo o ser pasma ante a sabedoria da decisão
que vai chegar. […] Então, desamparada de tudo e de todos, vendo a própria
tia Marta flutuar incorpórea, apagada como comparsa de fundo de cena de
tragédia, Lúcia se lembrou daquele único refúgio e único amigo que ainda
podia valer. Era Ele, o grande Esquecido, Aquele que aprendera a amar em
pequenina. Aquele que a Irmã Latour dizia ser O Esposo, o único que lhe
podia valer nessa circunstância atroz. Como pudera, tanto tempo, não
perceber a sua permanente e total presença, a ponto de Ele, se sentindo em
Sua espera paciente, recalcado, ter resolvido ir sozinho ao encontro de Mário!

E nas edições atuais, após a revisão do autor:


Tia e sobrinha passaram devagar a certa distância do quadro de Rubens.
Mesmo assim foi como se integrassem por alguns segundos o contexto da
tela: num instante fugaz houve coerência de analogias. Logo, porém, as duas
rumaram para o pórtico, desceram até o fundo e enveredaram para o parque.

A comparação dos trechos, se confiarmos na pesquisa de Escorsim,


comprova: o que o romance ganhou em concisão, perdeu em
referências psicológicas, religiosas e morais, transformando Lúcia, na
cena final, numa autômata. José Geraldo Vieira não apenas
descaracterizou a obra, mas o fez para agradar a uma voz anônima e
desqualificada. Esqueceu-se de que o mundo da literatura, semelhante
ao reino da frase bíblica, pertence aos corajosos — só é “arrebatado à
força e são os violentos que o conquistam”.

17
Editora Arcádia, 2016.
18
Apesar de meus esforços, não consegui ler um exemplar da 1ª edição. Utilizo, por esse
motivo, o trecho escolhido pelo pesquisador.
CAPÍTULO 18

Narcisismo
— Humberto de Campos e O monstro e outros contos

Humberto de Campos é desses raros polígrafos da literatura


brasileira — semelhante a Coelho Neto no volume de escritos e no
esquecimento a que foi condenado. Ambos, aliás, maranhenses.
Contista, cronista, biógrafo, poeta, crítico e memorialista, sua obra
não recebeu leitura e julgamento abrangentes, muito menos
definitivos. O que também não acontece nesta análise, restrita a um
único livro — a coletânea
O monstro e outros contos
, publicada em
1932.
O escritor, que faleceu prematuramente, aos 48 anos, venceu a
pobreza, a ignorância e o isolamento cultural, impondo-se no
jornalismo graças à própria inteligência — sem depender da caridade
do governo, que hoje se tornou imprescindível a muitos —, merece,
também por sua vasta bibliografia, ser arrancado do limbo a que
nossas elites esquerdistas condenam os que não seguem sua cartilha.

Da sobriedade à retórica

O conto que abre o volume — “O monstro” — pretende flagrar a


natureza no momento seguinte ao da Criação. Narrativa genésica, sua
linguagem é característica da fantasia dos mitos. Neste caso, um mito
pessimista, que coloca Dor e Morte como criadoras do homem. O tom
sóbrio, que infelizmente desaparecerá nos outros contos, alia-se, em
certos trechos, a uma composição correta:
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as
maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à
frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo
ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
A compassada harmonia que marca as inseparáveis irmãs será
destruída no final hermético, em que o homem, no centro de uma
disputa ciumenta, acaba por ser apenas um monte de lama carregado
nos ombros da Morte.
No relato seguinte, “A promessa”, a sobriedade que marca “O
monstro”
começa a sumir. Mas a história da mãe — Maria Inácia,
desesperada pela ideia de que o único filho, João Vicente, pode morrer
na Revolução Federalista — ainda apresenta o narrador atento ao
detalhe que, inserido no trecho correto, amplia a verossimilhança:
Doze dias depois, estavam as forças de que era um dos componentes
acampadas nas vizinhanças de uma pequena cidade do interior, na zona de
guerra, quando o João Vicente recebeu, com a sua companhia, munição de
combate. Em torno do corpo, nos bolsos do cinturão forte, os cartuchos
punham um peso novo, que, no entanto, pouco o afligia.

O narrador também se mostra apto a desenvolver a psicologia do


personagem. Após os primeiros combates, em que João Vicente se
comporta de forma destemida, o jovem amadurece:
[…] Não era, porém, mais, aquele rapagão claro das serenatas do Araçá. A
barba forte, que raspava toda antigamente, tomava-lhe agora o rosto,‐ ­
envelhecendo-o, dando-lhe os ares daqueles cangaceiros do Nordeste, que via
passar, às vezes, a cavalo, pela vila, com a faca de um lado, a garrucha de
outro, e o clavinote na lua da sela. A vida militar absorvera o boêmio. Era,
agora, um soldado.

Da mesma forma, a mãe solitária, que se entrega a orações


contínuas, passa da fé simples ao misticismo febril, no qual a
divindade é tratada como impassível comerciante:
[…] As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento
de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota:
— Minha Senhora das Dores! Trazei meu filho são, e salvo, ainda uma vez,
à minha vista, que eu vos dou a minha vida!
E com todo o fervor da contrição, num acesso de choro:
— A minha vida pela dele, Minha Mãe Santíssima!… A minha vida pela
dele!… Mas que eu ainda veja meu filho!…

A retórica, contudo, já se intromete, desequilibrando o texto:


Calada por essa maneira a arma que mais os hostilizava, os assaltantes,
desprezando a fuzilaria, ­puseram-se de pé e investiram contra a trincheira,
rangendo os dentes. E, em breve, após um curto combate à arma branca, em
que os homens da mesma pátria se retalhavam, se dilaceravam, se
estraçalhavam com fúria sanguinária, tomavam os legalistas posse do reduto,
onde o sangue coagulado se misturava, repugnante, entre zumbidos de
moscas,
com dejeções humanas e com a lama da chuva da véspera.

O exagero produz efeito contrário ao planejado. E o que poderia ser


uma cena realista, emocionante, transforma-se no quadro, tão comum
na literatura brasileira, no qual a eloquência se sobrepõe à mensagem.
O problema se agrava nesta descrição:
[…] avolumado pelos riachos da montanha, o rio Araçá rolava agora
transformado em torrente, arrastando galhos de árvores e moitas de aninga
no turbilhão das suas águas escachoantes. Comprimido pelas ribanceiras, que
ia lambendo numa volúpia furiosa de sátiro, fazia vertigem vê-lo. De quando
em quando, um ruído cavo alarmava os moradores ribeirinhos. Era a queda
de um barranco, de uma barreira da margem, que logo se dissolvia em
rodopios, na retorta diabólica daquelas águas.

Perceba-se que, graças à verborragia, o texto torna-se pleonástico:


“turbilhão das suas águas escachoantes”, “volúpia furiosa de sátiro” e
“retorta diabólica daquelas águas” pretendem criar novas imagens
para a ideia de movimento incontrolável — e, exatamente por nada
acrescentarem, poderiam ser suprimidas sem perda da expressividade.
Quanto mais avançamos, mais esses adornos pomposos
predominam — e mais o autor se distancia da fórmula cuja beleza
nasce da substancialidade das palavras, presente, por exemplo, neste
período: “Em uma árvore próxima, chiavam cigarras, limando o
silêncio” (no relato “O caldo”). Graças ao sentido metafórico, o verbo
“limar” amplia a realidade, surpreende, domina a imaginação do
leitor, impondo-se com mais força do que uma sucessão de adjetivos
inúteis.

Grandiloquência e repetições

A retórica, no entanto, degrada o livro de forma incontrolável.


Muitas vezes, unindo-se a melosos lugares-comuns:
[…] Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o
amor lhe penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma.

Repete-se, a cada conto, a insistência de criar imagens originais —


mas a maioria concede ao texto aspecto ridículo. Em “Catimbau”, o
narrador não hesita em dizer, a respeito da personagem que se
ruboriza: “As orelhas pequenas tornaram-se-lhe de lacre, como duas
cristas de galo garnizé” — comparação esdrúxula, que não condiz
com a personagem e nada lhe acrescenta.
O discurso empolado surge também para teatralizar determinadas
cenas. À escolta que, malvestida e descalça, persegue bandoleiros no
sertão, o narrador acrescenta, em “A luz dos mortos”, sem qualquer
justificativa, sua literatice untuosa:
[…] Das matas quietas subia, e espalhava-se, um cheiro forte de folhas
machucadas, como se a natureza virgem se martirizasse em um grande sonho
voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo cálices roxos em que a Noite se
embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das
próprias ramas, polvilhadas de terra e de sereno.

E logo a seguir, ansioso para provocar náuseas no leitor:


[…] Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma árvore morta sonhava com os
encantos da vida, oferecendo ao Sol, em cima, no espectro do último galho, o
óbulo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara ao tronco para ir dar, no
alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele beijo. […]

A grandiloquência, entretanto, torna-se um problema menor quando


nos deparamos com a pobreza vocabular.
Em “O alce”, o narrador volta a tempos primevos e nos coloca
diante da “boca monstruosa” de uma caverna:
[…] Aberta na rocha bruta pela força inconsciente das
grandes
águas
primitivas, a
enorme
furna constituíra o refúgio seguro dos tímidos veados
perseguidos, que ali iam repousar, assustados, contra a voracidade dos leões
do deserto. [Aqui — e no parágrafo seguinte — os grifos são meus.]

Em meio à fúria dos adjetivos, perceba-se que tudo é, de alguma


forma, desmedido. Mas, insatisfeito, o narrador fala, nesse conto de
seis páginas, da caverna cuja “goela” é “
enorme
”, de “
grandes
pedras amontoadas”, de “
grandes
herbívoros adormecidos”, da “
enorme
floresta repousada”, das “
grandes
várzeas pontilhadas do
sangue dos cardos floridos”. O troglodita tem “mãos de
grandes
unhas”; a mulher apresenta um “
tumultuoso caudal
de cabelos
desordenados”, capazes de se contrapor ao verde da folhagem como
“uma
grande
mancha”. Há “
grandes
formigas” e uma “
grande
faia
de raízes à flor do solo”. Um “
grande
alce” luta com outro e formam,
ao vergar seus dorsos, “dois arcos
enormes
”, o que, claro, é a “
grande
luta dos cervos”.
A sanha do exagero prossegue por todo o livro. Em “O
seringueiro”,
[…] A noite caía lenta, envolvendo tudo, como um sudário imenso,
lançado
sobre a Terra pela piedade divina. O céu, estrelado e baixo, parecia a cúpula
enorme da tenda suntuosa de um poderoso rei oriental.

A lama racha sob o Sol, em “Retirantes”, parte-se na forma de


“escamas escuras” que lembram “a carapaça de uma tartaruga
monstruosa”.
E ao exagero soma-se o grotesco, como nesta cena, em que a velha
empobrecida pela seca escava um túmulo para roubar as vestimentas
do defunto:
[…] Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e
compridos fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à
semelhança de dois badalos sem eco de uma velha torre desmoronada.

Talvez uma das comparações mais infelizes e desproporcionais da


literatura brasileira.

Ritmo ternário

O autor coleciona lugares-comuns ao dizer “o Sol da mocidade em


franco declínio”, “entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem,
contudo, entregar-lhe a sua alma” e “não há estrada escura e coberta
de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores”.
Mas tudo pode ficar pior. Humberto de Campos também aprecia o
tipo de acumulação esquemática que descobrimos nas crônicas de
Olavo Bilac.
19
O trio de palavras ou expressões encadeadas repete-se
incansavelmente. Num único relato, “Herodes”, a fila é extensa:
Um espanto, um susto alegre, uma inquietação feliz parecia apossar-se das
cousas […]
Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava intermitentemente, boiavam
a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência de sociedades polidas, a
lembrança inequívoca de um ambiente invulgar. […]
Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as nossas
bolachas. […]
Que as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem
de outros braços, de outros lábios, de outra luxúria. […]
Essa preocupação turvava até as minhas conquistas felizes, o meu prazer, as
minhas horas de ventura. […]
Os maridos, os amantes, os noivos de agora seriam vingados. Dentro de
alguns anos viriam outros homens, mais jovens, mais
vigorosos, mais
arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha noiva, minha mulher, minhas
amantes.
[…] a que se misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da
noite que declinava. […]
As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas. […]
Era o escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a
prisão infalível.

À previsibilidade do ritmo frasal soma-se a previsibilidade dos finais:


o último parágrafo revela sempre, necessariamente, a tentativa de
escandalizar por meio de detalhes que ressaltem a ruína física ou
moral, ainda que ela já tenha sido demonstrada.

Nem o melhor se salva

É o que ocorre no melhor conto do volume, “Os olhos que comiam


carne”, em que o intelectual acometido de cegueira busca o auxílio de
um cirurgião famoso e acaba condenado a ver apenas a ossatura das
pessoas. As consequências da operação e o desespero do paciente
estão claros parágrafos antes do final, mas Humberto de Campos
precisa selar a narrativa com sua prosa extravagante:
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num
movimento de desespero, os dois glóbulos ensanguentados, e tomba
escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e
que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida
humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos…

Esse e outros são finais de falso impacto, em que a linguagem


enfeitada e pedante contribui para tornar inconvincentes histórias de
trama esquemática, quando não artificial, pois o autor aplica a mesma
fórmula de composição a todas as narrativas.
Se é possível, diante dessas inutilidades, um julgamento sintético,
podemos dizer que, como outros escritores narcisistas, Humberto de
Campos amava a própria voz, não a literatura.

19
Ver meu ensaio “Perfumaria bilaquiana”, em
Esquecidos & Superestimados.
CAPÍTULO 19

Sem proselitismo
— Amando Fontes e Os Corumbas

Publicado em 1933,
Os Corumbas
, de Amando Fontes, teve longa
gestação, desde o início da década de 1920, quando o autor, residindo
no Rio de Janeiro, participava do grupo de intelectuais reunidos em
torno de Jackson de Figueiredo. O romance só nasceria após a
Revolução de 30, ao fim de tortuosa trajetória — durante a qual
Fontes viveu em três estados: Bahia, Sergipe e Paraná — que terminou,
mais uma vez, no Rio de Janeiro, quando o autor chegava aos 34
anos.
Obra da maturidade, portanto — o que talvez explique parcialmente
as qualidades do livro —, apesar de ser romance de estreia,
Os
Corumbas
reafirma as lições de
O Quinze
, de Rachel de Queiroz,
publicado três anos antes: repúdio à linguagem verbosa, nossa
conhecida retórica, e ao naturalismo, ao romance de tese — que,
ainda em 1928, guiara José Américo de Almeida na redação de
A
bagaceira
.

Realismo

A história da família Corumba tem seu início dois anos antes da


terrível seca de 1905, num desses repetidos períodos em que o sertão
do Nordeste vive sob tensa expectativa, na qual temor e esperança se
digladiam enquanto a natureza não toma sua decisão.
Com as chuvas, o fazendeiro João Piancó precisa cumprir a
promessa que fizera e organiza a Festa de São José. Os melhores
músicos são convidados, entre eles, Geraldo Corumba, gaitista
famoso, que se apaixona pela filha caçula de Piancó, Josefa, a “flor da
casa”.
O Geraldo que se apresenta, pronto a responder ao convite do
futuro sogro com uma afirmativa jocosa — “Nem que chova canivete,
antes das onze eu risco na Urubutinga” — e que encanta Josefa ao
chegar à festa “cavalgando um ruço magro e perereca”, não
perdurará:
Era moreno-claro, de estatura mediana, corpo delgado e ágil. Estava sem
casaco, na sua camisa nova de riscado, calças brancas seguras por um largo
cinturão de couro, com vistosas fivelas de metal. À cabeça, um largo chapéu
de palha de carnaúba, circulado
por uma fita escarlate, quebrado atrás e
empinado na frente, emprestava-lhe um ar pimpão e alegre — diz o narrador
sobre o gaitista que, apenas dezenove anos mais tarde, com cinco filhos, sente-
se velho e hesita em aceitar o plano da esposa: Josefa sonha com a vida na
capital, Aracaju, forma provável de conseguir “emprego decente” para os
filhos maiores — Rosenda, Albertina e Pedro — nas fábricas de tecidos e na
estrada de ferro.

A gaita é esquecida — e a personalidade do patriarca fecha-se, desde


a seca que os obriga a fugir para o engenho da Ribeira, num crescente
mutismo.
Seis anos de vida em Aracaju servirão para derrotar o casal. Quando
Josefa, certo dia, recorda o aniversário de casamento, Geraldo, agora
um claudicante vigia noturno, nada responde e se limita a “balançar a
cabeça encanecida”.
Essa resignação diante da vida, sem jamais abdicar da luta pela
sobrevivência, é o tema central da narrativa que muitos classificaram
como “proletária”, termo que revela a tentação de sequestrar o
romance para a zona turva da literatura ideológica, na qual, aliás,
atolaram-se com sucesso os primeiros livros de Jorge Amado, até hoje
cultuados pela esquerda.
Os Corumbas
é, na verdade, literatura realista. Ou melhor, boa
literatura, ficção despojada do olhar cínico, do escárnio machadiano
que polui nossa ficção e, também, nosso imaginário, fazendo-nos
acreditar que há sempre, necessariamente, por trás de cada gesto, uma
segunda intenção malévola.
Como salientou Olívio Montenegro,
20
as “circunstâncias invisíveis e
imponderáveis” formam o grande personagem do romance que o
crítico, como outros, não entendeu, exigindo de Fontes o que este
recusa: um narrador onisciente capaz de esmiuçar a alma dos
personagens, revelando aos leitores a psicologia de cada um não por
meio de suas decisões, de seus atos — como o romancista faz de
maneira habilidosa —, mas de elucubrações, comentários e análises
morais ou antropológicas.
Montenegro chega ao cúmulo de afirmar que Fontes “enfraqueceu
moralmente” e “reduziu a zero a consciência de personalidade” das
personagens, “tão vivas nos gestos e palavras, e tão mortas na alma”.
Vibra, no substrato desses comentários, o leitor ­mal-acostumado,
que exige a presença do narrador didático, pronto a revelar “o
invisível fundo de verdade que ele descobre por trás do que vê e
apalpa”, como o próprio Montenegro afirma. O realismo sóbrio de
Fontes não permite, contudo, essas tergiversações, esses julgamentos.
O autor recusa também os estereótipos, o sociologismo — e a tese
pessimista, no estilo de Aluísio Azevedo, para quem a degradação
moral é regra absoluta da sociedade.
Em relação a esse ponto, Massaud Moisés
21
também não
compreendeu o romance, pois anseia descobrir ali alguma “tese
implícita”: ou a de que “não há remédio para o retirante nem para o
operário”, ou a rousseauniana, de que a “cidade degenera” o homem
do campo, de que as filhas de Geraldo e Josefa teriam sido levadas à
prostituição por serem ingênuas.
Ora, Fontes deixa as possibilidades abertas aos personagens. E se há
limites, são os enfrentados por todos nós, os da própria realidade, que
tentamos sempre superar, com menor ou maior sucesso.
O filho Pedro, por exemplo, liga-se aos comunistas e, após
malsucedida greve, condenado ao degredo, pena comum na época,
escolhe continuar no partido. Depois, submete-se, por determinação
partidária, a emprego medíocre, de baixíssimo salário, no Rio de
Janeiro. Interrompe assim, por escolha própria, a carreira ascendente.
Quanto à prostituição de três das quatro filhas — uma delas, Bela,
morre de tuberculose —, todas são educadas segundo os rígidos
valores de Josefa e Geraldo. Sabem, portanto, das consequências,
naquele meio e naquela época, para as mulheres que optavam por
relações amorosas fora do casamento. Rosenda, a mais velha, é
severamente alertada pela mãe, mas utiliza a fuga amorosa como gesto
voluntarioso, de libertação. Albertina entrega-se por livre e
espontânea vontade ao médico da fábrica e diz: “Faça de mim o que
quiser…”. Sua atitude, sempre positiva e alegre, permanece igual
quando se vê abandonada: à decisão livre segue-se, sem nenhum
drama, a mudança para a rua das prostitutas. Quanto a Caçulinha,
seduzida pelo noivo, mostra arrependimento, mas, principalmente,
caráter. Diante da fraqueza, da inferioridade do sedutor, age como se
afirmasse: “Desvirginizada, sim; desonrada, não”.
O comportamento dos personagens secundários reforça a liberdade
das irmãs: outras mulheres seguem caminhos semelhantes, mas
algumas casam-se e são felizes. E há, entre as jovens, sejam operárias
ou trabalhem no escritório das fábricas, a consciência de como são
vistas pelas famílias de outros bairros: podem ser atraentes, educadas
e moralmente retas, mas continuam sendo as “moças do tecido”, ou
seja, devem procurar maridos na sua própria esfera social.
Há revolta contra os baixos salários, há consciência da injustiça, a
impossibilidade de ascender socialmente está colocada de forma
inquestionável — mas sem que o narrador discurse em favor dos
pobres ou dos ricos, sem que decida edulcorar a realidade com teorias
mirabolantes
ou, como se costuma dizer hoje, de maneira eufêmica,
politicamente corretas.
Escolhas aéticas, censuráveis, ocorrem também entre ricos e
poderosos. Veja-se, por exemplo, o interesse político e a corrupção
que norteiam as reações do governo estadual à greve das empresas
têxteis: quando o governador muda de lado, Celestino, delegado de
polícia da capital, a princípio defensor dos comunistas, percebe a
fragilidade de sua opção e não hesita em trair os líderes do
movimento.
A sociedade baseada no patriarcado e a moral da época não surgem
por meio do narrador que decide levantar a voz contra os opressores,
mas das reflexões do personagem que se reconhece egoísta e submisso
às influências familiares. Entre o amor por Caçulinha e o preconceito
familiar, Zeca acaba vencido pelo segundo, sintetizado na fala do avô,
antigo senhor de escravos:
— Não, Zeca. Pra você tornar às boas com nós todos e ter a nossa ajuda na
vida, precisa tomar juízo de uma vez. Comece por acabar com esse casamento
desigual. Essa menina não é digna de você. Lembre-se bem: “Mulher e cão de
caça, pela raça”.
A vida, tão somente a vida, pulsa nesse romance, repetindo a lição
irrefutável que a maioria se recusa a aprender: escolhas produzem
consequências.

Diálogos e descrições

A força do romance manifesta-se também nos diálogos espontâneos


e nas descrições que não se perdem numa exatidão cansativa ou no
palavreado exuberante.
Veja-se, no capítulo 3 da Segunda Parte, as falas tensas, a agitação
de Josefa:
Tinha a fisionomia carrancuda. De quando em quando engrolava umas
palavras de raiva, fazendo os bilros se entrechocarem com força, num estalar
ritmado e estridente.
Passava alguns minutos nessa tarefa, os olhos fitos no desenho caprichoso
que as linhas iam modelando; mas logo se impacientava e erguia-se para
chegar até a janela. Olhava a rua em todos os sentidos. E como não divisasse
o que queria, voltava, arrebatadamente, à sua cadeira.
— Ah! — exclamou em dado instante. — Essas meninas estão é tomando
sopa comigo! Quem já viu uma coisa dessas? Já passa muito das nove e
aquelas duas moças sozinhas pela rua! Qual!… Isso
precisa entrar nos eixos
[…]
Soavam dez horas no relógio da Têxtil quando Albertina foi entrando. Sá
Josefa descarregou sua cólera sobre ela:
— Não! Eu não criei filhas pra andarem vagabundando até alta noite pelas
ruas! Vocês estão se enganando comigo! O que é que ficam fazendo lá por
fora? Namoros, com certeza… Muito bonito, isso! Se têm namorados, se eles
são sérios, com boas tenções, que venham ver vocês aqui em casa. É melhor!
Eu não me importo! O que não me cheira bem são esses passeios até tarde,
ninguém sabe por que cantos.

A tensão cresce quando Rosenda finalmente chega:


[…] Sá Josefa caminhou para ela. E as mãos escanchadas nas ilhargas, os
olhos fuzilantes, prorrompeu:
— Bonito! Bonito! É mesmo uma beleza! Quero saber onde é que já se viu
uma moça donzela ficar sozinha na rua até essas horas! O que é que está
pensando? Você cuida que me trepa no cangote. Ah! Ah! Sá Dona! Está
enganada comigo! Muito enganada, mesmo!
Num segundo, a cólera havia transtornado as feições da que chegara. Sua
respiração tornou-se apressada e sibilante. Achou melhor, porém, não dizer
nada. E, num gesto arrebatado, dirigiu-se ao corredor.
Mas Sá Josefa postou-se-lhe na frente:
— Não, não! Não saia! Tem que ouvir tudo! Não pense que é só fazer suas
doidices e corres caladinha pro seu canto! Tem que me escutar até o fim, pra
ver se toma vergonha nessa cara!
Aí, Rosenda já não pôde mais se conter, e retrucou também gritando:
— Virgem! Mãe está ficando de uma forma, que nem quer que a gente dê
um passeinho…
— Eu estou ficando?! Não estou ficando coisa alguma!
E, batendo com a mão espalmada sobre o peito:
— Eu sempre fui a que sou hoje. Vocês, sim, é que mudaram… Quando a
gente morava na Ribeira, não havia passeios toda noite, nem amiguinhas,
nem namoros. Mas, lá, vocês eram tementes. Aqui, é que engrossaram o
pescoço. […]

Será sempre assim, não importando o estado emocional dos


personagens: às falas correspondem gestos, compondo cenas
harmônicas, sintéticas, verossímeis, em que nenhum elemento pode ser
classificado
como exagero.
O tempo é marcado em dois níveis: as sirenas das fábricas assinalam
não apenas o começo e o término dos expedientes, mas o início e o fim
dos dias. Ditam os horários de descanso, as pausas para refeições, os
momentos que compõem o cotidiano. Num plano maior, há as festas
populares, grandes pausas no trabalho extenuante.
Aos sábados, quando o expediente termina mais cedo e os operários
recebem o pagamento, é possível caminhar a esmo, como fazem
Caçulinha e Zeca no capítulo 32 da Segunda Parte. No Cruzeiro de
Santo Antônio, veem a cidade “que se desdobrava a seus pés”:
Primeiro, o subúrbio, com as suas casas, ora de palha, ora de telha,
espalhadas, quase a esmo, por entre os arbustos ralos da caatinga. Mais
adiante, o Cemitério de Santa Isabel, muito branco, fazendo lembrar uma
pequena vila, com as ruas, silenciosas e estreitas, de seus túmulos. Vinha,
depois, a cidade, que era todo um amontoado de tetos vermelhos, afogados
entre o verde dos coqueiros e das árvores que vicejavam nos quintais. Mais
longe, depois do casario, o Atlântico, azul e imenso, lançando espumas
brancas na areia branca da praia. E lá, quase imperceptível na distância, o
vulto esguio da Atalaia Velha, com seu farol rotativo já aceso.

No final, quando Geraldo e Josefa aguardam a partida do trem que


os levará de volta ao interior, as chaminés das fábricas fumegam.
Mudos, afogados na derrota e na vergonha, ouvem as sirenas que
liberam as operárias. A visão das moças em seus tamancos e aventais,
conversando alegres, aguça a dor do casal — e o tumulto do vagão,
repleto de viajantes, cessa, pouco a pouco, diante do choro dos velhos.
Mesmo nesse ponto, quando a certeza de terem perdido tudo cresce e
os engolfa, mesmo aí o narrador se recusa ao proselitismo. Diante do
leitor, além dos soluços de Josefa e Geraldo há somente o apito do
trem e a locomotiva que resfolega. Nada mais — nenhuma concessão
à ideologia ou a qualquer tipo de catequese.

20
O romance brasileiro,
José Olympio Editora,
RJ
, 1953, 2ª edição, revista e ampliada.
21
História da literatura brasileira
, Editora Cultrix,
SP
, 2004, 2ª edição.
CAPÍTULO 20

Galimatias, nada mais


— Oswald de Andrade e Serafim Ponte Grande

Publicado em 1933,
Serafim Ponte Grande
é a tentativa de levar ao
paroxismo o que Oswald de Andrade fizera em
Memórias
sentimentais de João Miramar
, de 1924. A receita da prosa
experimental está completa nas aventuras do funcionário público
paulistano: narrativa fragmentada, mudança abrupta de narradores,
mescla de gêneros literários, automatismo, neologismos, subversão da
linguagem por meio do sarcasmo desbragado.
Ao radicalismo do experimento, contudo, corresponde a realidade
da recepção literária: ninguém lê
Serafim Ponte Grande
, a não ser os
mestres supostamente iluminados que, à semelhança de Haroldo de
Campos, comemoram, com seu característico espírito revolucionário,
a existência desse “grande não livro”, fórmula risível, que ganha ares
realmente humorísticos quando nos deparamos com os elogios
encomiásticos utilizados pelo concretista no estudo que abre o volume
das
Obras completas
de Oswald. De fato, um “não livro” ou um
“fragmento de grande livro”, como Antonio Candido definiu o
romance, aceita qualquer classificação, pois o que é amorfo pode ser
obra genial ou tremenda enganação.
Comparar
Serafim Ponte Grande
a um
Bildungsroman
— mais um
alinhavo de Haroldo de Campos — só revela absoluta ausência de
senso de proporção; e a tentativa de amenizar o descalabro, utilizando
a expressão “molde residual”, serve para comprovar que, na retórica
dos que endeusam Oswald de Andrade, qualquer elogio é aceitável,
ainda que se tenha de dourar a pílula.
Na verdade, a porfia haroldiana humilha o leitor inteligente: se é
preciso tanto esforço, tanta lucubração, para provar que
Serafim Ponte
Grande
merece ser lido; se uma ficção necessita de tantas justificativas
teóricas; se uma obra não pode ser decifrada sem um guia — então
não estamos diante de um romance, mas da Hipótese de Riemann, do
mistério da Atlântida ou, quem sabe, às portas da Área 51.

Eterno escárnio

A ideia de que Oswald de Andrade pertence a algum tipo de


racionalidade superior, inalcançável para os não iniciados, é típica dos
discursos ideológicos, sempre construídos segundo a lógica da
monopolização da verdade. Talvez por isso não seja difícil encontrar
oswaldianos que são verdadeiros fundamentalistas.
Mas todas essas questões começam a se dissolver quando lemos o
próprio Oswald. Em “Objeto e fim da presente obra”, artiguete
publicado em 1926 —
Serafim Ponte Grande
foi escrito entre 1925 e
1928 —, o escritor fala do seu processo criativo — “A obra de ficção
em minha vida corresponde a horas livres, em que estabelecido o caos
criador, minhas teorias se exercitam com pleno controle” —,
revelando o relativo desprezo com que tratava seu ofício, o que
explica, em parte, o texto corrido e, algumas vezes, desleixado. Mas
um desleixo, claro, tratado como seríssima opção estética por alguns
especialistas; um desleixo como o deste conjunto de frasesinhas
superficiais, escritas no tom de manifesto
marinettista
que Oswald
jamais conseguiu abandonar:
O material da literatura é a língua. A afasia da escrita atual não é
perturbação nenhuma. É fonografia. Já se disse tanto. A gente escreve o que
ouve — nunca o que houve.

Essa superficialidade, jogo fácil de palavras, cobrou alto preço de


Oswald. Veja-se, por exemplo, no parágrafo imediatamente posterior
ao desta citação, o
insight
infelizmente não desenvolvido: “[…] Achar
a beleza de uma coisa é apenas aprofundar o seu caráter”. Nestes
tempos de hegemonia facebookiana, a frase serve apenas como um
meme
.
Na apresentação do livro, de fevereiro de 1933, ele não só confirma
o “anarquismo” da sua formação como despreza as atividades
intelectuais do passado próximo — e, portanto, o próprio
Serafim
Ponte Grande
. Afirma ter “atolado diversas vezes na trincheira social
reacionária” e conclui: “Continuei na burguesia, de que mais que
aliado, fui índice cretino, sentimental e poético”. Salientando,
contudo, a “fonte sadia” que brotava do seu anarquismo, o sarcasmo,
Oswald também reavalia o movimento modernista, ensaia pinceladas
de economia marxista e resume o romance:
O movimento modernista, culminado no sarampão antropofágico, parecia
indicar um fenômeno avançado. São Paulo possuía um poderoso parque
industrial. Quem sabe se a alta do café não ia colocar a literatura ­nova-rica da
semicolônia ao lado dos custosos surrealismos imperialistas? […]
Eis porém que o parque industrial de São Paulo era um parque de
transformação. Com matéria-prima importada. Às vezes originária
do próprio
solo. Macunaíma. […]
A valorização do café foi uma operação imperialista. A poesia Pau Brasil
também. Isso tinha que ruir com as cornetas da crise. Como ruiu quase toda a
literatura brasileira “de vanguarda”, provinciana e suspeita, quando não
extremamente esgotada e reacionária. Ficou da minha este livro. Um
documento. Um gráfico. O brasileiro atoa na maré alta da última etapa do
capitalismo. Fanchono. Oportunista e revoltoso. Conservador e sexual.
Casado na polícia. Passando de pequeno-burguês e funcionário climático a
dançarino e turista. Como solução, o nudismo transatlântico. No apogeu
histórico da fortuna burguesa. Da fortuna mal-adquirida.

A linguagem telegráfica embaralha o que ele pretende dizer. O texto


de Oswald sofre, realmente, de um hermetismo panfletário que muitos
estudiosos deslumbrados analisam como sibilismo. Mas, se limparmos
o discurso do viés comunista, talvez possamos começar a entender os
limites do modernismo — e ler
Serafim Ponte Grande
na chave
desejada pelo próprio Oswald: “Epitáfio do que fui”. De qualquer
forma, avulta o ressentimento do esquerdista — e principalmente do
neo-esquerdista; ressentimento, como bem observou Wilson Martins,
“do antigo moço rico que se viu arruinado pelas maquinações
incompreensíveis do ‘capitalismo’, nome, naturalmente, que cobria
tudo, desde as operações infelizes dos pais até as dissipações
descontroladas do filho”.
O sarcasmo, entretanto, polui a argumentação. O Oswald que
proclama seu desejo de ser, “pelo menos, casaca de ferro da Revolução
Proletária”, não pode ser levado a sério, pois, já na frase seguinte,
titubeia: “O caminho a seguir é duro, os compromissos opostos são
enormes, as taras e as hesitações maiores ainda”. E, pouco antes do
final pretensamente dramático — “O meu relógio anda sempre para a
frente. A História também” —, ele não resiste: comparando as
escolhas do passado à opção pelo comunismo, zomba de si mesmo:
“Tarefa heroica para quem já foi Irmão do Santíssimo, dançou
quadrilha em Minas e se fantasiou de turco a bordo”. Numa análise
semiótica típica dos que adoram Oswald, poderíamos dizer que o
sarcasmo se transforma em auto-sarcasmo na expressão “casaca de
ferro”, que designa, como se sabe, o empregado de um circo de
cavalinhos.
É essa mescla de
clown
e eterno vanguardista que inicia
Serafim
Ponte Grande
com um trecho antológico:
PRIMEIRO CONTATO DE SERAFIM E A MALÍCIA
A—e—i—o—u
Ba — Be — Bi — Bo — Bu
Ca — Ce — Ci — Co — Cu

Antológico, claro, se nos referimos ao anedotário nacional.


São instantâneos desse tipo que compõem a saga picaresca de
Serafim, não destituída, contudo, de melancolia. Lemos, ainda na
parte inicial, “
RECITATIVO
”:
A loira deixa-se apalpar como uma janela. No escuro. Numa noite de
adultério ele penetra na Pensão da Lili. Mas ela diz-lhe que não precisa de
tirar as botinas.

Essa luxúria fria, essas mulheres despersonalizadas, desprovidas de


afeto, sempre prontas a trair e abandonar Serafim, se repetirão ao
longo do livro. A forma do texto cria um protagonista de psicologia
superficial, inconsistente, mas avulta a causa das relações
insatisfatórias: o próprio Serafim, leviano, insatisfeito, sempre agindo
de forma precipitada — e dividido entre a pederastia e a
heterossexualidade.
Nada do que ele projeta se concretiza — nem mesmo um plano de
estudos banal. Tudo é vago, ambíguo: peripécias e forma de narrar.
Não há angústia verdadeira, pois todos os imprevistos — e o livro é
apenas um somatório de imprevistos — se resolvem de forma fugaz.
Os diálogos são trechos falsos de melodramas, nos quais o escritor
tenta, mas não consegue, fazer a crítica da retórica nacional, pois a
linguagem definha na única fórmula que Oswald domina, a do eterno
sarcasmo:
— Sentir que o coração se comprometeu nesta vasta aventura de três dias!
Perguntaste-me se te quero um pouco. Amo-te! Porque és a resposta no vasto
diálogo telefônico da vida! Falaste-me de embelezar os dias que passam. Com
outra, eu teria rido às bandeiras despregadas! Mas a tua simpleza… a tua
naturalidade…
— Bárbaro!
— Não! Oh! Porque te prendo na atmosfera que tu mesma criaste. Porque
te reduzo à menina permanente, curiosa, sentimental que existe em toda
mulher! […]
Lá fora o mar. De par em par. Ela baixou a cabeça. Perdeu a sintaxe do
coração e as calças.

A mesma artificialidade, a mesma afetação carregada de deboche


ressurge neste trecho, em que Oswald não permite a seus personagens
sequer um laivo de erotismo sincero:
Quando ele lhe deu um ósculo e pegou na coxa de setineta, a pucela Jacquy
sussurrou sem boca:
— Oh! Vós me fazeis chorar!
Ele então narrou-lhe a proeza náutica de que pescara Joaninha das águas
turbulentas do Sena. E subindo, sob a calça, ligeiramente tocou-lhe o
mandorová. Mas ela disse:
— Oh! Vós me fazeis corar!
A berlinda passa no quilômetro 69.
— Morde minha estogomia!

Na verdade, o livro não passa de um conjunto mais ou menos


cosido de esquetes:
Na tarde seguinte pilhando-a só e triste no salão de bilhar e esperando que
ela tivesse terminado uma carambola, disse-lhe com uma barretada:
— Madama, sois vós itálica?
— Não, meu senhor.
— Turca?
— Não, meu senhor.
— Venezuelana… Chinesa?
Ela esfregou o giz no taco e sussurrou:
— Eu sou a solitária!

Ao incontrolável afã de vilipendiar, somam-se trechos


incompreensíveis ou construções mal escritas, forçadas, cuja única
finalidade é servir ao riso do próprio autor. Vejam alguns exemplos:
Viva porque suas pulsações latiam como cães de fila sob a moldura da cútis
num ritmo adolescente, tudo, tudo prometendo mas nada dando…
[…] um argentino taleigo regressando na toda de uma corrida doidivanas
inadvertidamente pregou um tranco nos dois que sem quererem se deram uma
imbigada.
[…] Por que a brancura sibilante do navio, força geométrica armada e
bussolada para a visita de todas as nações?
[…] E ele comparou o desprezo solar de sua nova amiga, deitada a essas
horas no silêncio ortopédico da cabina, com o resto.

Oswald gargalha inclusive no suicídio de Serafim Ponte Grande:


este, cansado de historietas caducas, empunha um para-raios e
enfrenta as nuvens carregadas de eletricidade. Mas nosso especialista
em escarnecer
arremata, como se as nuvens falassem: “— Raios que te
parta!”.

Desestímulo à criação

Na crônica “Serafim Ponte Grande”, demolidora, publicada em 5 de


agosto de 1933, Manuel Bandeira acossa, com justiça, Oswald de
Andrade. Bandeira aponta o “defeito de misturar frequentemente os
sentimentos e os processos de escrita do autor com os de seus
personagens” e conclama o modernista a “se despojar daquele
individualismo que tanto se compraz — acima de tudo se compraz —
na deformação diletante e feroz”.
22
Crítica certeira — mas inútil. Oswald de Andrade fez da arrogância
e da autolatria os motores da sua literatura e do seu projeto de
futilização da literatura.
Show pirotécnico, conjunto de gracejos e invencionices,
Serafim
Ponte Grande
é um desestímulo à criação literária. Fruto do
desencantamento de Oswald em relação à vida, resume-se a um
engodo proteiforme, mas vendido aos crédulos como tipo avançado de
arte. Essa pátina de ilusionismo com que alguns estudiosos insistem
em enfeitar o livro não resiste, entretanto, à leitura minuciosa; e não
esconde o verdadeiro caráter desse cansativo esboço: galimatias, nada
mais.

22
O texto de Bandeira pode ser lido em
Crônicas inéditas 2
, Editora Cosac Naify,
SP
,
2009.
CAPÍTULO 21

O brasileiro universal
— Gilberto Freyre e Casa-Grande & Senzala

Antes de se debruçar sobre o texto de


Casa-Grande & Senzala
, o
clássico de Gilberto Freyre, é importante conhecer um pouco da
história de suas edições, que revela não apenas o sucesso no Brasil —
lançada em dezembro de 1933, a obra já ultrapassou a 50ª edição —,
mas o êxito persistente no exterior: quatro edições nos Estados
Unidos, a última em 1986; na França, também quatro edições, a mais
recente em 1997; em Portugal, a 7ª edição é de 2001; e, comprovando
a diversidade de leitores, três edições na Alemanha, a mais próxima de
nós, publicada no ano de 1990.
Freyre diz, no prefácio à 1ª edição, que o livro nasceu do exílio
forçado pela Revolução de 30, no qual acompanhou o então
governador de Pernambuco, Estácio Coimbra: da Bahia viajou a
Portugal, passando pela África; depois, professor na Universidade de
Stanford, nos Estados Unidos, um período na Alemanha e, finalmente,
o regresso ao Brasil.
Sem dúvida, muitas vezes é preciso distanciar-se da própria realidade
para vê-la melhor; o afastamento — e também a saudade — fomentam
olhar mais agudo, livre das injunções cotidianas. Mas a base do livro
estava, havia tempo, fixada em dois parâmetros: os estudos sob
orientação de Franz Boas e a antipatia ao materialismo histórico —
“tantas vezes exagerado nas suas generalizações — principalmente em
trabalhos de sectários e fanáticos”, segundo as próprias palavras de
Freyre —, o que não o impediu de aceitar que “a técnica da produção
econômica” tem “influência considerável” na organização social,
“embora nem sempre preponderante”. São heranças do período entre
1918 e 1923, quando estudara nas universidades de Baylor e
Colúmbia — nesta, defendeu, para o grau de Master of Arts, a tese
Social life in Brazil in the middle of the 19th Century
, trabalho
elogiado por vários professores e também pelo viperino H. L.
Mencken, que o aconselhou a ampliar suas ideias e transformá-las em
livro. A respeito desta sugestão, Freyre diz, com justificado orgulho:
“O livro, que é este, deve esta palavra de estímulo ao mais
antiacadêmico dos críticos”.
Foi longa, portanto, a gestação da obra. E não poderia ser diferente,
constatação óbvia quando nos deparamos com o volume que pretende
abarcar múltiplos aspectos da formação do cotidiano e da intimidade
nacionais; decisão consciente, estudada, que Freyre explicita no
prefácio:
A história social da casa-grande é a história íntima de quase todo brasileiro:
da sua vida doméstica, conjugal, sob o patriarcalismo escravocrata e
polígamo; da sua vida de menino; do seu cristianismo reduzido à religião de
família e influenciado pelas crendices da senzala. O estudo da história íntima
de um povo tem alguma coisa de introspecção proustiana; os Goncourt já o
chamavam “ce roman vrai”. O arquiteto Lúcio Costa diante das velhas casas
de Sabará, São João del-Rei, Ouro Preto, Mariana, das velhas casas-grandes
de Minas, foi a impressão que teve: “A gente como que se encontra… E se
lembra de coisas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós;
não sei — Proust devia explicar isso direito”.
Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro;
a nossa continuidade social. No estudo da sua história íntima despreza-se
tudo o que a história política e militar nos oferece de empolgante por uma
quase rotina de vida: mas dentro dessa rotina é que melhor se sente o caráter
de um povo. Estudando a vida doméstica dos antepassados sentimo-nos aos
poucos nos completar: é outro meio de procurar-se o “tempo perdido”. Outro
meio de nos sentirmos nos outros — nos que viveram antes de nós; e em cuja
vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando em nervos;
um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de
sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos.

Concorde-se ou não com a tese do autor, esses parágrafos sintetizam


suas inovações sociológicas e antropológicas, que ele jamais
desvincula da história — o que representaria, segundo o filósofo Julián
Marías, leitor e amigo de Freyre, verdadeira “mutilação” —, além da
limpidez do estilo, cujas raízes remontam às aulas de latim na infância
— em 1914, o adolescente já ensinava as declinações aos colegas —, e
do caráter de “romancista com fundamento
in re
”, como salienta
Marías — ou seja, com base na realidade, não na fantasia.
Para confirmar tais características, veja-se, por exemplo, no primeiro
capítulo, a longa defesa que Freyre faz do heroísmo português. Em
nenhum momento abandona a visão criteriosa das influências opostas
— inspira-se, inclusive, num longo trecho de
A ilustre Casa de
Ramires
, de Eça de Queirós — que formam o caráter do colonizador:
O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas,
a europeia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista‐ ­
encontrando-se no português, fazendo dele, de
sua vida, de sua moral, de sua
economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram
ou se hostilizam. Tomando em conta tais antagonismos de cultura, a
flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que
bem se compreende o especialíssimo caráter que tomou a colonização do
Brasil, a formação
sui generis
da sociedade brasileira, igualmente equilibrada
nos seus começos e ainda hoje sobre antagonismos.

Não se trata, assim, de heroísmo romântico, solitário e altivo, mas


de vitórias que seriam impossíveis sem “aclimatabilidade”,
“mobilidade” e, principalmente, “miscibilidade”:
[…] A sociedade capaz de tão notáveis iniciativas como as bandeiras, a
catequese, a fundação e consolidação da agricultura tropical, as guerras
contra os franceses no Maranhão e contra os holandeses em Pernambuco, foi
uma sociedade constituída com pequeno número de mulheres brancas e larga
e profundamente mesclada de sangue indígena. Diante do que torna-se difícil,
no caso do português, distinguir o que seria aclimatabilidade de colonizador
branco — já de si duvidoso na sua pureza étnica e na sua qualidade, antes
convencional que genuína de europeu — da capacidade de mestiço, formado
desde o primeiro momento pela união do adventício sem escrúpulos nem
consciência de raça com mulheres da vigorosa gente da terra.

Raciocínio que ele reafirma, com igual transparência, em outro


trecho do mesmo capítulo:
[…] Pelo intercurso com mulher índia ou negra multiplicou-se o
colonizador em vigorosa e dúctil população mestiça, ainda mais adaptável do
que ele puro ao clima tropical. A falta de gente, que o afligia, mais do que a
qualquer outro colonizador, forçando-o à imediata miscigenação — contra o
que não o indispunham, aliás, escrúpulos de raça, apenas preconceitos
religiosos — foi para o português vantagem na sua obra de conquista e
colonização dos trópicos. Vantagem para sua melhor adaptação, senão
biológica, social.
Trata-se do discurso destituído de ambiguidades — e que marca
toda a obra. O leitor acompanha o raciocínio e vê as cenas sem lusco-
fusco. Freyre não recusa nem mesmo a conclusão assertiva:
[…] O certo é que os portugueses triunfaram onde outros europeus
falharam: de formação portuguesa é a primeira sociedade moderna
constituída nos trópicos com característicos nacionais e qualidades de
permanência. Qualidades que no Brasil madrugaram, em vez de
se retardarem
como nas possessões tropicais de ingleses, franceses e holandeses.

E, recuperando o tema, sintetiza, no capítulo 3, a figura do nosso


colonizador:
[…] O tipo do contemporizador. Nem ideais absolutos, nem preconceitos
inflexíveis.

Essas primeiras páginas do livro são suficientes para entendermos a


condescendência, a quase bondade de Gilberto Freyre no ensaio
“Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira”: comparado a
Freyre, o autor de
Os sertões
não está “perigosamente próximo do
precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do
gongórico”, mas naufraga nessas armadilhas. O leitor de
Casa-Grande
& Senzala
jamais será tomado pela vertigem que nos domina em
tantas páginas euclidianas, o que não significa dizer que o estilo de
Freyre seja seco ou telegráfico, mas, sim, composto de naturalidade
invejável, destituído do hermetismo academicista que enxovalha o
ensaísmo nacional nos dias de hoje. José Lins do Rego, no prefácio
que escreveu a
Região e tradição
, resumiu bem a técnica freyriana:
para expressar o que deseja, ele não se submete à terminologia da sua
ciência, mas ao “estilo da sua personalidade” — receita que,
convenhamos, encontra-se esquecida. “Nunca, em nossa língua, um
estilo foi mais original, mais expressivo, mais natural. Nenhum
artifício, nenhum requebro, nenhum luxo”, salienta Rego, com
relativo mas desculpável exagero, acertando ao afirmar que essa
“precisão de dizer” é, ao mesmo tempo, “de pintor e de arquiteto”.
Ainda comemorando o caráter inteligível da escrita freyriana, a
melhor observação cabe a Julián Marías, quando afirma, em artigo
publicado no
La Vanguardia
, em 2 de outubro de 1983, que Gilberto
Freyre “usa os conceitos como instrumentos óticos, não como
equivalente da realidade ou como tribunal ao qual a realidade deve se
submeter” — ou seja, o oposto do que faz nosso ensaísmo
contemporâneo, pronto a, primeiro, eleger uma ideologia e sua
respectiva nomenclatura, para, depois, como se todos os problemas
pudessem ser resolvidos por uma imposição mecânica, submeter a
realidade a tal esquema.
Exemplo desses “instrumentos óticos”, no primeiro capítulo, é a
forma como Gilberto Freyre, partindo dos relatos de viajantes, entre
eles Von Martius, cria um novo par de opostos — a miscigenação e a
sífilis —, utilizando-o para valorizar o primeiro elemento, mas sem
esquecer-se de apontar os malefícios do segundo:
À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a desvantagem
tremenda a sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro — talvez
o tipo do homem moderno para os trópicos, europeu com sangue negro ou
índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-lo. Daí certa confusão de
responsabilidades; atribuindo muitos à miscigenação o que tem sido obra
principalmente da sifilização; responsabilizando-se a raça negra ou a
ameríndia ou mesmo a portuguesa, cada uma das quais, pura ou sem
cruzamento, está cansada de produzir exemplares admiráveis de beleza e de
robustez física […].
De todas as influências sociais talvez a sífilis tenha sido, depois da má
nutrição, a mais deformadora da plástica e a mais depauperadora da energia
econômica do mestiço brasileiro. Sua ação começou ao mesmo tempo que a
da miscigenação […].

A paronomásia construída por meio do par civilização/sifilização é


intencionalmente perturbadora. Servirá para Freyre concluir, com
perfeito realismo, o desenho do caráter heroico do colonizador:
Costuma dizer-se que a civilização e a sifilização andam juntas: o Brasil,
entretanto, parece ter-se sifilizado antes de se haver civilizado. Os primeiros
europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar
sobre ela outro traço europeizante além das manchas da mestiçagem e de
sífilis. Não civilizaram: há, entretanto, indícios de terem sifilizado a população
aborígine que os absorveu.

Mas Freyre voltará ao tema no capítulo 4, “O escravo negro na vida


sexual e de família do brasileiro”, para compor trecho antológico,
cinematográfico, no qual parece escandir as palavras:
A sífilis fez sempre o que quis no Brasil patriarcal. Matou, cegou, deformou
à vontade. Fez abortar mulheres. Levou anjinhos para o céu. Uma serpente
criada dentro de casa sem ninguém fazer caso de seu veneno. O sangue
envenenado rebentava em feridas. ­Coçavam-se então as perebas ou
“cabidelas”, ­tomavam-se garrafadas, chupava-se caju. A sifilização do Brasil
— admitida a sua origem extra-americana — vimos, às primeiras páginas
deste trabalho, que data dos princípios do século
XVI
. Mas no ambiente
voluptuoso das ­casas-grandes, cheias de crias, negrinhas, molecas, mucamas, é
que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade, através da
prostituição doméstica — sempre menos higiênica que a dos bordéis.

Mantendo-se longe de qualquer preocupação edulcorante, a crueza


do texto derrota os ensaiozinhos cujas ideias se refugiam numa sintaxe
e
num vocabulário próprios de seita ocultista, tão obscuros quanto a
ideologia que defendem, ou repletos de otimismo insano, daquele
angelismo moderno que é incapaz de separar o bem do mal, ou, ainda
pior, pronto a apontar como mal tudo o que não esteja na pauta
esquerdista.
Mas não se escreve com tal objetividade sem dominar a língua, isto
é, sem conhecê-la na sua estrutura e no seu constante, interminável
processo de formação. Graças a esse domínio, Gilberto Freyre pode
analisar as “canções de berço portuguesas”, no capítulo 4, mostrando
de que maneira foram modificadas pela
boca da ama negra, alterando nelas as palavras, adaptando-as às condições
regionais; ligando-as às crenças dos índios e às suas. Assim, a velha canção
“escuta, escuta, menino” aqui amoleceu-se em “durma, durma, meu
filhinho”, passando Belém de “fonte” portuguesa, a “riacho” brasileiro.
Riacho de engenho. Riacho com mãe-d’água dentro, em vez de moura
encantada. […]

Ou, páginas à frente, no mesmo capítulo, desenvolver sua teoria —


psico e sociolinguística — sobre a variação no uso dos pronomes:
Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o português só
admite um — o “modo puro e imperativo”: diga-me, faça-me, espere-me. Sem
desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente nosso,
caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere. Modo bom, doce,
de pedido. E servimo-nos dos dois. Ora, esses dois modos antagônicos de
expressão, conforme necessidade de mando ou cerimônia, por um lado, e de
intimidade ou de súplica, por outro, parecem-nos bem típicos das relações
psicológicas que se desenvolveram através da nossa formação patriarcal entre
os senhores e os escravos; entre as sinhá-moças e as mucamas; entre os
brancos e os pretos. “Faça-me”, é o senhor falando; o pai; o patriarca; “me
dê”, é o escravo, a mulher, o filho, a mucama.

Dessas considerações, Freyre colhe sua conclusão a respeito da


“potencialidade da cultura brasileira”, que “parece residir toda na
riqueza dos antagonismos equilibrados”. E afirma, referindo-se a
“brancos e pretos”:
Somos duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente
enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos
em um todo, não será como o sacrifício de um elemento ao outro.

Voltando ao âmbito da linguagem, só um escritor de consciência


ampla e diversa, capaz de abraçar os mais diferentes aspectos da nossa
cultura, poderia também perceber o “vício” que, até hoje, polui nosso
idioma; antagonismo, como ele bem diz, que vem sendo “corrigido e
atenuado”, por nossos romancistas e poetas, com imensa dificuldade:
O vácuo enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português
dos bacharéis, dos padres e dos doutores, quase sempre propensos ao
purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o português do povo, do ex-
escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.

Essa percepção, antes de qualquer outra, foi o que permitiu a


Gilberto Freyre abandonar os contorcionismos da língua, a retórica
vazia, e escrever com desenvoltura, fluidez. Mas tal “vontade de
estilo”, no sentido de um esforço de expressão que, quando
alcançado, não sobrepuja a ideia, mas se apresenta de forma orgânica,
inseparável do conteúdo, ergueu-se
pari passu
com outra característica
fundamental, perfeitamente definida por Julián Marías: “A chave da
atitude vital de Gilberto Freyre era o gozo ante a realidade”. Foi seu
amor ao real — e não às teorias — que lhe permitiu usar suas fontes,
cada mínima citação bibliográfica, como “um gesto, um ato humano,
uma notícia, uma visão de uma parcela da realidade” — só assim ele
não sucumbiu à “seca erudição”, só assim ele se tornou, como Julián
Marías intitula o necrológio que escreveu em 24 de julho de 1987,
“um brasileiro universal”.
CAPÍTULO 22

Limites do experimentalismo
— Mário de Andrade e Os contos de Belazarte

Os contos de Belazarte
, de Mário de Andrade, originam-se de
crônicas escritas para a
Revista América Brasileira
. Publicado em
1934, o livro sofreu modificações e acréscimos na 2ª edição, de 1944.
As sete narrativas que compõem o volume estão muito distantes do
que o leitor pode encontrar em
Contos novos
, obra póstuma, de
1947. E nenhuma se aproxima da qualidade do célebre “O poço”,
sutil estudo sobre a cobiça.
O que descobrimos em
Belazarte
é o escritor preso ao
experimentalismo da Semana de 22. É verdade que a obra de Mário
não está repleta do cinismo que macula o legado de Oswald de
Andrade, mas o autor de
Macunaíma
reconhece
23
que as narrativas
nasceram como “exercício de estilo” — estigma limitador, confirmado
em carta a Murilo Miranda (dezembro de 1935):
[…] Tentei grafar exatamente, com o mais contraditório realismo, as
inconsequências da fala popular […]. Mas grafei mais como objeto de estudo
da fala popular, que como arte, que requer maior unidade e… parecença. Se
você quiser mesmo publicar a coisa, faça um esforço danado pra sair sem
nenhum erro tipográfico.

Nessas “coisas”, o narrador, Belazarte, de voz marcada por frases


em sua maioria curtas, às vezes expressando erudição, tenta
reconstruir prosódia, vocabulário e sintaxe coloquiais. De texto a
texto, a receita invariável cansa o leitor. Some-se a tais características
as soluções dramáticas centradas no pessimismo e no ceticismo de
inspiração machadiana — e teremos a síntese do livro.
Pessimismo, aliás, do qual Mário jamais se libertaria. Suas palavras,
no citado prefácio, são incisivas:
Se não é possível em mim sequer uma esperança de mudar meu pessimismo
neste país desgraçado em que cada mocidade é um monturo nojento de
fraquezas, ignorâncias, complacências e ambições paupérrimas, é por vias
mais humanas que terei de cantar a elegia do caráter moribundo e a imundície
de tudo quanto
somos.

Palavras que ecoam na carta a Álvaro Lins (4 de julho de 1942),


24
em que reavalia, com incrível sinceridade,
Macunaíma
:
Mas a verdade é que eu fracassei. Li o livro é todo ele uma sátira, um não
conformismo revoltado sobre o que é, o que eu sinto e vejo que é o Brasileiro,
o aspecto “gozado” prevalecem. É certo que eu fracassei. Porque não me
satisfez botar a culpa nos brasileiros, a culpa tem de ser minha, porque quem
escreveu o livro fui eu. Veja no livrinho, a introdução com que me saudaram!
Pra esses moços, como pra os modernistas da minha geração o
Macunaíma
é
“a projeção lírica do sentimento brasileiro, é a alma do Brasil virgem e
desconhecida”, que virgem nada! que desconhecida nada! Virgem, meu Deus!
será muito mais um cão de nazista! Eu fracassei.

A franqueza de Mário alerta os leitores e põe em xeque a crítica


literária que, até hoje, de forma disparatada, endeusa
Macunaíma
. Ao
mesmo tempo, é uma demonstração clara do seu caráter, do escritor
cujas cartas apresentam, quase sempre, um desnudamento integral,
como neste trecho:
Sou apenas como todos, um pequeno e incompleto e imenso ser humano. E
se lhe confessei certos aspectos dolorosos da minha vida foi por esta
sinceridade tantas vezes brutal com que gosto da vida, gosto da humanidade e
dos indivíduos, lealmente sem a menor intenção de me fazer passar por um
“caso”.

Mas voltemos a
Belazarte
.
A primeira narrativa, “O besouro e a rosa”, resume o
experimentalismo do autor, capaz de mimetizar o discurso informal de
um contador de causos, mas ­desequilibrando-se algumas vezes, ao
introduzir expressões eruditas — “A venda movia toda a dinâmica
alimentar da existência […]” —, ou, pior, infantilizar-se recorrendo à
artificialidade das onomatopeias — “Batia pra saberem e ia-se embora
tlindliirim dlimdlrim, na carrocinha dele”.
Há boas figuras, cuja expressividade altera, momentaneamente,
nosso julgamento — “alastrou um riso perdido na cara”; “vivia
mordido de impaciências curtas”; “chorava gritadinho” —, mas
insuficientes para salvar a descrição naturalista e inverossímil do
despertar da libido na protagonista: o besouro de Rosa equivale à
borboleta do sonho de Pombinha, no capítulo 11 de
O cortiço
. Aliás,
não satisfeito em repetir o exagero de Aluísio Azevedo, Mário
acrescenta, na jovem de completo alheamento, que sequer conversava
com as vizinhas, a preocupação
infundada de permanecer solteira.
O problema se repete na história seguinte, “Jaburu malandro”:
obedecendo à psicologia tortuosa, Carmela adquire “violência de
malvadez”, consequência inevitável, segundo o biologismo de
Belazarte, para todos que se apaixonam.
“Caim, Caim e o resto” não é apenas uma “coisa” inócua, na qual o
narrador não oferece justificativas para o comportamento dos irmãos
— mas reencontramos as onomatopeias que, segundo os fãs do livro,
devemos considerar geniais: “Plão, tlão, tralharão, tão, plão,
plãorrrrr… bonde passava” e, ainda mais risível, a vergonhosa “O
cachorro latia, uau, uau… uau…”.
O autor destila lascívia homossexual em “Túmulo, túmulo,
túmulo”, único texto em que Belazarte fala de si mesmo. A descrição
de Ellis, negro contratado para ser doméstico, surge carregada de
elogios sensuais: “[…] Era doce, aveludado o preto de Ellis… A gente
se punha matutando que havia de ser bom passar a mão naquela cor
humilde […]”; “[…] Com aquele olho-de-pomba me seguindo,
arrulhando pelo meu corpo numa bulha penarosa de carinho batido,
eu nem sabia o que fazer […]”. Não por outro motivo o
alter ego
de
Mário, se consegue ver beleza em Dora, a mulher pela qual Ellis se
apaixona, também demonstra inveja e despeito: “[…] Dora era corpo
só. […] Eu não tinha corpo mas era protetor. E principalmente era o
que sabia das coisas. Desta vez amor não se uniu com amizade: o
amor foi pra Dora, a amizade pra mim. Natural que o Ellis procedesse
dessa forma, sendo um frouxo”.
Sentimentos aos quais não faltam melosidade e chavões:
[…] A força do amor é que ele pode ser ao mesmo tempo amizade. Mas
tudo o que existe de bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudada
nele. […] Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua de si
mesmo, coisa humana profundamente, que faz a gente viver duplicado, se
repartindo num casal de espíritos amantes que vão, feito passarinhos de voo
baixo, pairando rente ao chão sem tocar nele…”.

O discurso preconceituoso surge aqui e ali: o narrador se declara


superior a Ellis e sua família, ridicularizando-os por seus modos pouco
refinados, por não saberem “pegar na xicra”, e salienta que
“Benedito” é o “nome abençoado de todos os escravos sinceros”.
Pergunto ao leitor: que nome horrível teria um escravo insincero? Os
membros do Conselho Federal de Educação — que, há poucos anos,
empreenderam vergonhosa campanha contra Monteiro Lobato —
certamente não leram Mário de Andrade.
“Piá não sofre? Sofre” e “Nízia Figueira, sua criada” nada
acrescentam. Na primeira, famosa por seu caráter melodramático, o
narrador comete grave erro — ou pretende confundir o leitor: no
início, para introduzir a personagem Teresinha, que aparecera em
“Caim, Caim e o resto”, cita fatos que nem sequer foram ali
sugeridos.
Há, no entanto, uma narrativa que merece atenção: “Menina de
olho no fundo”. O narrador supera o pessimismo e consegue se livrar
da psicologia superficial, ainda que não totalmente. O humor perpassa
a história do professor Gomes e sua aluna, Dolores, manipuladora e
infantil. Belazarte permite aos personagens diálogos ágeis e divertidos,
em que o tom coloquial perde o artificialismo e expressa as
características dos interlocutores. A personalidade da jovem revela-se
na exata medida em que o confuso, desligado e tímido Gomes demora
para perceber o que sente em relação à vizinha, Serafina. Os olhos
verdes de Dolores ganham vida numa sucessão de figuras eloquentes: a
garota lança sobre Gomes “um feixe de esmeraldas”; ao chorar,
“apaga esmeraldas no lencinho”. No final, não temos desgraças mal
construídas — Dolores sofre, mas, em sua leviandade, “três meses
depois está curada”.
Belazarte
evidencia o domínio de Mário sobre a linguagem, mas um
domínio frio, que produziu, no caso destas histórias, literatura
desimportante — exatamente da forma como o próprio autor confessa
em carta a Manuel Bandeira (10 de agosto de 1934):
25
Eu tenho muita técnica, não se discute, e tenho principalmente o que se
poderia chamar de inteligência técnica, ou talvez, técnica de inteligência.
Quero dizer: aquela esperteza de inteligência que sabe aperfeiçoar uma obra
de tal forma que ela pareça boa, você me entende? A coisa não é boa nada,
mas pela escolha do detalhe, pela habilidade de gradação, pela roupagem
exterior, pelo mistério habilmente disposto, parece profundo. Sem ser
profundo propriamente.

Melhor julgamento que esse, só o de Guimarães Rosa, em carta a


Mari L. Daniel,
26
quando critica o projeto de Mário de “abrasileirar a
todo custo a língua”, segundo “postulados […] mutiladores,
plebeizantes e empobrecedores”.
Obra limitada,
Belazarte
só pode fazer a alegria dos que, errados,
ainda se apegam à Semana de 22 como tábua de salvação da literatura
nacional.

23
Ver o “Prefácio inédito”, na edição da Editora Nova Fronteira, 2013.
24
Livraria José Olympio Editora,
RJ
, 1983.
25
Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira
, Edusp/
IEB
,
SP
, 2001, 2ª
edição.
26
Citada por Wilson Martins em sua
História da inteligência brasileira.
CAPÍTULO 23

A descoberta do horror
— Graciliano Ramos e São Bernardo

Quem deseja estabelecer o cânone dos ficcionistas brasileiros pode


desprezar — sem receio de cometer injustiças — Graça Aranha, Raul
Pompeia e Adolfo Caminha. Pode colocar em segundo plano — não
tenho medo de fazê-lo — Lima Barreto, José de Alencar e Aluísio
Azevedo. Mas terá de incluir Manuel Antônio de Almeida, Machado
de Assis e Graciliano Ramos, cujo lugar está garantido graças à
publicação de
São Bernardo
.
Lançado em 1934,
São Bernardo
é romance universal, fruto, em
parte, da maturidade do autor, cuja carreira literária começara aos 40
anos, com
Caetés
, quando havia acumulado experiência colaborando
em vários jornais, inclusive do Rio de Janeiro, voltara a Alagoas para
assumir o comércio da família, ocupara cargos públicos e já era pai de
vários filhos. Carreira semelhante,
mutatis mutandis
, à de Joseph
Conrad, que publicou seu primeiro livro aos 38 anos, depois de viver
infância tumultuada ao lado dos pais revolucionários, ficar órfão,
cometer as loucuras da juventude e fazer respeitável carreira na
marinha mercante inglesa.
Sempre que me deparo com escritores cuja carreira começou tarde,
lembro-me das palavras de G. K. ­Chesterton: “O romance não está do
lado de fora da vida, mas absolutamente em seu centro”; o romance
não é “uma brincadeira, uma invenção, um convencionalismo, algo
exterior”. Somadas à experiência e à dedicação de Conrad e
Graciliano, tais palavras deveriam diminuir a ansiedade dos jovens
que, antes de realmente viverem, nos oferecem romancinhos que são a
espuma da imaturidade.
Voltando a Graciliano, uma de suas qualidades é a forma como
constrói as cenas, inserindo nelas o diálogo ampliador. Veja-se, no
capítulo 4, a narração do encontro entre Paulo Honório e Luís
Padilha, herdeiro da Fazenda São Bernardo — encontro para cobrança
de dívidas e que garantirá ao primeiro a almejada posse da
propriedade. As frases são curtas e precisas. Nenhum elemento
retórico desvia nossa atenção. Cada verbo reconstrói um gesto, cada
vocábulo ilumina certo trecho da paisagem chuvosa. Os detalhes — a
rede encardida, as goteiras —
aprofundam o abandono da fazenda. O
diálogo principia com a fala do assustado Padilha. As vozes se
intercalam numa negociação tensa, na qual Paulo Honório, quando
parece recuar, na verdade prepara novo bote, encurralando o
interlocutor. Não é diálogo, mas dança de ritmo soturno em que um
dos participantes conduz o outro, por meio da insistência, da
agudização dos argumentos, à derrota. A última frase — “Não tive
remorsos” — é a derradeira cutilada.
Também o diálogo entre Madalena e Paulo Honório, no capítulo
15, merece atenção. A forma direta de o protagonista propor o
casamento revela a rudeza de sua personalidade, mas o diálogo
apresenta características curiosas de Madalena. Tratada, por parte da
crítica, como mulher indefesa e idealista, que depois de aceitar o
casamento é destruída pelo marido autoritário, na verdade Madalena
se interessa pela união porque tem plena consciência do que isso
representa em termos de ascensão social. Ela não se surpreende com a
proposta; e seu gesto — “Afastou a frase com a mão fina, de dedos
compridos” — repudia com frieza a fala de Paulo Honório — “Já se
vê que não sou o homem ideal que a senhora tem na cabeça” —, para
retrucar, calculista: “— O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu
Paulo Honório […]. Muito vantajoso. Mas é preciso refletir. De
qualquer maneira, estou agradecida ao senhor, ouviu? A verdade é que
sou pobre como Jó, entende?”. A nova faceta da proposta é
imediatamente incorporada pelo fazendeiro, que arremata: “[…] Se
chegarmos a acordo, quem faz negócio supimpa sou eu”.
A aspereza de Paulo Honório — também narrador da história — é
irrefutável, mas falta tato a Madalena: logo após o casamento, critica,
na frente de funcionários, o baixo salário de um deles, o guarda-livros
Ribeiro. Seu lado calculista é reforçado pelo desejo de cuidar da
correspondência da fazenda, desde que receba um salário — pedido
que soaria estranho se não conhecêssemos seu verdadeiro interesse.
Paulo Honório também vê o matrimônio como um acordo financeiro,
no qual a gravidez de Madalena é sua “compensação” por ter de
suportar as “coisas desagradáveis” que a esposa lhe diz, por ter de
tratá-la como “louça fina” (capítulo 22).
Tal casamento só poderia dar errado — e a relação se enche de
amargura:
[…] Madalena bordava e tinha o rosto coberto de sombras. Às vezes as
sombras se adelgaçavam. E findo o trabalho, tudo convidava a gente às
conversas moles, aos cochilos, ao embrutecimento. Uma aragem corria.
Vinham-me arrepios bons, desejo de espreguiçar-me. Via o monte, que a fita
vermelha da estrada contorna, a mata,
o algodoal, a água parada do açude.
Madalena soltava o bordado e enfiava os olhos na paisagem. Os olhos
cresciam. Lindos olhos. Sem nos mexermos, sentíamos que nos juntávamos,
cautelosamente, cada um receando magoar o outro. Sorrisos constrangidos e
gestos vagos. Eu narrava o sertão. Madalena contava fatos da escola normal.
Depois vinha o arrefecimento. Infalível. A escola normal! Na opinião do
Silveira, as normalistas pintam o bode, e o Silveira conhece instrução pública
nas pontas dos dedos, até compõe regulamentos. As moças aprendem muito
na escola normal. Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e
são horríveis. Tenho visto algumas que recitam versos no teatro, fazem
conferências e conduzem um marido ou coisa que o valha. Falam bonito no
palco, mas intimamente, com as cortinas cerradas, dizem: — Me auxilia, meu
bem.

As frases podem ser curtas, mas não há brusquidão. O período


desenvolve-se numa sequência de lembranças perfeitamente
encadeadas. Tudo caminha para o entendimento, mas um componente
esfria o que começava a surgir… e o preconceito derrota as
possibilidades de confiança mútua ou de carinho, enquanto a mulher
fraca, agora quase despersonalizada, não se impõe.
O vigor narrativo de Graciliano é raro em nossa literatura. Há
inúmeros trechos memoráveis em
São Bernardo
: o suicídio de
Madalena, preparado pelo trecho de carta que o narrador encontra
por acaso e pelo diálogo lacunar entre marido e mulher na capela; a
decadência da fazenda, provocada pela Revolução de 30; as tensas
relações do narrador com Mendonça, fazendeiro que tenta tomar
parte das terras de São Bernardo: o vaivém das conversas hipócritas,
as insinuações do narrador a respeito do seu plano, nunca plenamente
verbalizado, de matar Mendonça, o carneiro morto para os eleitores,
anúncio metafórico da decisão de matar o rival.
O núcleo de
São Bernardo
, contudo, é a trajetória narrativa de
Paulo Honório, homem sem sobrenome, isto é, sem identidade clara.
Trata-se de narrador intuitivo, dono de um plano inicial de livro, em
que tenta delegar a outros a tarefa que, descobrirá, só ele pode realizar
— pois da mesma forma que se apoderou da fazenda e conquistou
tudo o que quis, deve se impor também sobre a linguagem.
Desonesto e violento, Paulo Honório conquista o leitor com sua
visceral sinceridade. Sua amoralidade não é postiça; Graciliano não
criou mais uma personagem naturalista, repleta de pose e
artificialismo.
A autoconsciência de Paul Honório cresce em dois planos que se
sobrepõem: como escritor e como homem. Avançar na narrativa
representa dupla vitória: sobre o emaranhado da linguagem e sobre o
labirinto das suas culpas. Vitórias amargas, que impõem uma derrota:
o homem que o escritor encontra possui pouquíssima honra. O
narrador descobre a própria feiura, física e moral; confunde-se com
Casimiro Lopes, jagunço que é o prolongamento da sua vontade;
compara todos que o circundam a bichos, ecoando a fala sobre “som
e fúria” de
Macbeth
, que transforma em “movimento e rumor”. Do
suicídio de Madalena ao começo do seu exercício de rememoração e
autoconhecimento passam-se dois anos. Processo que se cristaliza por
meio de clarões, fragmentos que surgem e logo se apagam, com os
quais também nós reunimos o conjunto imperfeito do que sabemos a
respeito de nossas decisões, de nossos atos — e das consequências que
provocam. Tortuoso trabalho, em que nem sempre nos empenhamos
— e quando o fazemos, só com imensa dificuldade descobrimos nossas
intenções. É para refletir essas dúvidas que, no último capítulo, o “se”
repete-se numa triste litania. Mas quando chega ao final, Paulo
Honório construiu sua narrativa e conhece a si mesmo — sabe que
nada poderia ser diferente, não por culpa dos outros, mas por sua
própria incapacidade. O pio da coruja o despertou para penetrar no
horror da sua própria violência. O horror que Marlow, narrador e
protagonista de Joseph Conrad em
O coração das trevas
, descobre no
interior da selva africana, Paulo Honório descobre em si mesmo.
CAPÍTULO 24

A perversão do homem
— Dyonélio Machado e Os ratos

Dyonélio Machado estreou na vida literária em 1927, com a


coletânea de contos
Um pobre homem
. Oito anos depois, lançaria
Os
ratos
— livro definitivo desse psiquiatra, presidente da Aliança
Libertadora Nacional, organização política controlada pelo Partido
Comunista e responsável pela Intentona de 1935 — “plano insensato”
ou “revolta frustrada”, como o próprio nome salienta, ataque
traiçoeiro de Luís Carlos Prestes e seus comandados a quartéis de
Natal, Recife e Rio de Janeiro, que causou dezenas de mortes.
Dyonélio, tenha ou não participado do plano, ficou preso cerca de
dois anos, quando se filia ao
PC
, sigla pela qual será eleito deputado
em 1947.
Os ratos
apresenta o funcionário público Naziazeno Barbosa, menos
que um amanuense e pouco acima de um contínuo. Correspondendo
ao trabalho medíocre na repartição, vive num bairro pobre, com
esposa e filho pequeno. Indivíduo fragmentado, nele se concentram as
teorias modernas que reduzem o homem a um amontoado de células,
capaz somente de experimentar aspectos negativos da existência. Não
há nenhuma perplexidade nesse protagonista apartado não só da
riqueza material, mas também do verdadeiro enriquecimento:‐ ­
interrogar-se a respeito do seu ser, da sua vontade, do sentido da vida.
Naziazeno é a representação literária do alienado, mas sem jamais
alcançar a etapa revolucionária, única chance, segundo os marxistas,
de redenção.
Quando amanhece — a primeira das 24 horas que compõem a
história —, o leiteiro discute com Naziazeno: a dívida precisa ser
paga, não é possível admitir mais atrasos — “Lhe dou mais um dia!”,
grita o leiteiro e “despenca-se pela escadinha que vai do portão até a
rua, toma as rédeas do burro e sai a galope, fustigando o animal,
furioso, sem olhar para nada”.
A pobreza surge, assim, não por meio do discurso ideológico, mas
graças ao quadro real, composto do pão “quebrado em pedaços
miudinhos” no café da manhã — pão duro, esmigalhado pelos “dedos
ossudos” — e do que falta à família, realidade que descobrimos no
transcorrer do diálogo entre o protagonista e sua esposa: gelo,
manteiga, talvez o leite — tudo está
sendo eliminado. As desculpas de
Naziazeno para os cortes compõem discurso falacioso: segundo ele, a
justificativa não está na miséria, mas na inutilidade do que foi
excluído. Argumentos não do estoico, mas do fraco. Simulação à qual
a mulher se submete.
A personalidade de Naziazeno revela-se também na forma como vê
os outros e se preocupa com a opinião alheia. Acredita-se “fuzilado”
pelos olhares de todos. Em grande parte, trata-se apenas da
imaginação desse homem, preso às suas debilidades, incomodado com
a vida simples e digna dos vizinhos, tão pobres quanto ele, mas
prontos a não abdicar da alegria. Os “olhos devassadores” o
perturbam apenas por um motivo: Naziazeno acredita-se inferior,
incapaz. Envergonhado e submisso, encontra-se apartado da vida
tranquila ou dos pequenos prazeres — não por serem inalcançáveis,
mas por sua própria incapacidade. Sob a pressão desses olhares — que
compõem um diálogo sempre incompleto e fantasioso —, a imagem
do leiteiro, “superior e inquietante”, provoca-lhe náuseas, “amargura
doída”, sufoca-o. Por meio do narrador, cuja voz se confunde com a
do próprio Naziazeno, sabemos como julga fraca a própria esposa —
e seus critérios denunciam o sentimento de inferioridade: “Fosse a
mulher do amanuense, queria ver se as coisas não marchariam de
outro modo”. Mas ambos, marido e mulher, são exemplos de dupla
pobreza: falta de recursos materiais e miséria moral.
Dyonélio não escreve como um reducionista, ­recusa-se a produzir
um romance que seja peça de propaganda partidária ou cartilha
ideológica. A obra, portanto, não denuncia a degradação das
condições sociais — que os marxistas estão sempre prontos a
encontrar em qualquer nicho da realidade —, mas a vontade
desfibrada dos personagens. Essa falta de energia, moral e física, não é
atributo da classe social a que Naziazeno pertence, mas concentra-se
na figura do protagonista, em oposição à realidade que o circunda. A
pobreza material é mero adereço nesse homem despersonalizado, que
não luta para se impor, lento em tudo o que faz — no trabalho,
acumula dez meses de atraso —, revelando inaptidão e letargia a cada
gesto, a cada escolha, sempre pronto a depender de que outros tomem
as decisões. Vivendo as consequências dessa “preguiça doentia”,
Naziazeno cruza as 24 horas do seu dia sem nunca esquecer —
angustiado e incapaz de agir — a dívida com o leiteiro. Consegue
idealizar a solução do problema, mas não se espere que lute para
resolvê-lo.
Naziazeno é o hesitante perfeito, acorrentado ao passar das horas,
medroso, submetido às loucuras da imaginação. Veja-se, no capítulo
8, o retrato psicológico dessa figura cujo mérito é antecipar-se, sem
lógica ou apoio na realidade, à própria derrota: Alcides, um amigo,
pede a Naziazeno que vá cobrar a comissão da venda de um
automóvel.
Relutante, o protagonista se dirige ao endereço,
antevendo, a cada passo, as dificuldades que enfrentará. A numeração
da rua e a arquitetura das casas — mas, principalmente, sua
insegurança — criam a fantasia, a expectativa que se ancora apenas na
imaginação. Pronto a enfrentar a “casa assobradada, com jardim,
isolada e aristocrática”, suado, sentindo as pernas moles, o coração
acelerado, nervoso e com dor de cabeça, tudo se confunde diante do
olhar que percorre as fachadas — até que o número indicado por
Alcides surge, “duro e impessoal”, e ele descobre a porta “pintada de
um gris sujo, e um pouco empenada, fechando mal embaixo”, casinha
de aluguel, de “aparência um tanto pobre”. Mas nem mesmo a
realidade lhe dá coragem: basta que o “corpanzil” do morador se
insinue “na porta entreaberta como uma hérnia” para que ele gagueje.
O autor maneja com perfeição o discurso indireto livre — o
narrador absorve, desdobra as hesitações da personagem — e leva
Naziazeno de um receio infundado a outro, caminhando pela cidade
como um idiota, sem rumo, capaz de desistir sob a pressão de
qualquer olhar. É um animalzinho comprimido entre a necessidade e
os impulsos imediatos. Coloca sua esperança no jogo do bicho ou na
roleta; mas resta-lhe apenas, em alguns momentos, o retorno à
infância, único tempo aprazível, não destituído de pequenas
humilhações.
Dyonélio Machado mostra-se seguro também na elaboração dos
diálogos, como no capítulo 14, em que ­Naziazeno mendiga um
empréstimo apenas para receber diferentes negativas.
O personagem arrasta seus “enormes pés de chumbo” pela cidade
— ele não é nada além do dinheiro de que necessita. Não há nenhum
encanto nesse
flâneur
de estômago vazio — assemelha-se ao “animal
ascético” de Walter Benjamin,
27
mas trata-se de uma ascese que não o
aperfeiçoa moral ou espiritualmente.
Flâneur
destituído de paixão,
iluminado pelo Sol que, ao entardecer, o narrador compara, de forma
expressiva, a uma moeda.
Flâneur
que não se encanta com o que vê,
condenado a repetir sua única urgência, movendo-se impulsionado
por apreensões e expectativas frustradas.
Quando um amigo, Duque, finalmente consegue o dinheiro, estamos
no capítulo 23: Naziazeno volta para casa, mas ainda nos resta
percorrer uma quinta parte do livro. O leitor, hipnotizado pelo texto,
pergunta-se o que falta — e descobre que a tensão predominará até o
amanhecer, até que o leiteiro receba seu pagamento. Nessas horas de
insônia — em que Naziazeno luta inutilmente para dormir — surgem
os ratos, anunciados, desde o início da narrativa, por sugestivas
indicações. Obrigado a repisar seu ritual de sobrevivência, Naziazeno
sente-se espiado — ali, na cama —, preso à opinião alheia. Nessa vida
pequena, asfixiada por preocupações
que outros resolveriam com uma
risada ou um gesto prático, Naziazeno mostra-se um rato em seu
comportamento previsível, na irresolução permanente, no sentimento
absoluto de derrota.
Perfeito em seu estilo conciso, na elaboração psicológica do
protagonista e na organização da estrutura narrativa, Dyonélio
Machado falha ao desesperar do homem e entregá-lo ao nada.
Personagem incompleto, paralisado e sem transcendência — como se a
alienação fosse propriedade inata e imperecível da humanidade —,
Naziazeno representa a perversão do que é o homem.

27
Em
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo
(
Obras escolhidas
, volume 3),
Editora Brasiliense,
SP
, 1995.
CAPÍTULO 25

Excesso de benevolência
— Rodrigo Melo Franco de Andrade e Velórios

Publicado em 1936,
Velórios
, de Rodrigo Melo Franco de Andrade,
é desses livros que, graças ao apoio de parcela da crítica e de alguns
colegas de ofício, tornaram-se fetiches da literatura brasileira. Manuel
Bandeira ressalta os “raros dons de observação e composição”. João
Alphonsus fala de “páginas notáveis”. Lúcio Cardoso afirma que o
autor segue “a linha natural iniciada por Machado de Assis”. Antonio
Candido salienta a “forte originalidade” e o “classicismo moderno”.
É natural, portanto, que o leitor, ao se aproximar do volumezinho,
abra-o movido à leitura reverente, como se daquelas poucas páginas
emanasse algum poder sobrenatural ou mágico. Sentimento, aliás,
ampliado quando descobrimos que, após lançar
Velórios
, o autor
abandonou a literatura para se dedicar “de corpo e alma”, diz a Nota
da Editora em meu exemplar, à direção do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, sob o comando do Ministro da
Educação, Gustavo Capanema. Tal escolha reforçou o fetichismo e
sobrepôs a este o mito do servidor público que, apesar da genialidade
literária, desprezou a glória e, num “escrúpulo extremo”, exagera a
nota, “consagrou-se à causa da preservação de nossos bens culturais”.
A retórica luta para nos convencer: estamos diante do gênio-herói,
capaz de marcar a literatura para sempre e, sacrificando-se, abandoná-
la e proteger a memória nacional.
Velórios
foi, portanto, o enterro do
homo literatus
— mas garantiu
ao escritor fama eterna. Situação experimentada — ao menos
parcialmente — por um dos defuntos que compõem o livro, no conto
“O príncipe dos prosadores”: dois amigos conversam debruçados
sobre o caixão; a narrativa abre com a fala do primeiro — “Este é que
teria sido, se quisesse, o príncipe dos prosadores” —, que aponta o
corpo “entre os quatro círios tremeluzindo à brisa que soprava pela
janela aberta” e salienta a prosa inigualável, abandonada, contudo,
pelas “exigências da atividade profissional”. O segundo amigo, mais
realista, acende um cigarro e lança “olhar distraído ao cadáver,
querendo ponderar que no Brasil faltava a noção precisa do que fosse
um prosador digno desse nome”. Mas o
primeiro, comovido, não dá
espaço — e segue elogiando, “com método”, o “artista consumado”,
seus “contos e fantasias brilhantes”, o “vigor e a concisão de suas
melhores páginas”.
Ora, tais elogios guardam certa ironia — recordam o prêmio que
alguns dos cérebros supostamente brilhantes do sistema literário
oferecem ao escritor que não escreveu, que preferiu, por quaisquer
motivos, o silêncio. Silêncio que, em alguns casos, é prova de desprezo
pela literatura. Logo, elogios que representam menosprezo por quem
se aventura na incerteza de escrever e trata a literatura como a
verdadeira razão de sua vida — e não um bibelô a mais na cristaleira
da bisavó falecida.
Mas vamos aos textos de Rodrigo M. F. de Andrade.
O volume composto de sete relatos abre com “Dona Guiomar”. Do
conflito apresentado nas primeiras linhas, entre José e a namorada que
lhe nega alguns minutos a mais de carinho, desprega-se o passado do
jovem e de sua família. O pai e as irmãs morreram, restando José, um
irmão e a mãe, cujo nome dá título à narrativa. As personagens
Teotônio — o pai que deliciava as visitas com sua conversa simpática
— e Dona Guiomar — com sua “tendência incoercível para a ternura”
— vão sendo construídas por um narrador aparentemente seguro, que
introduz não só a decadência familiar mas, sobretudo, o drama da
mulher, obrigada a aceitar sucessivas infidelidades do marido, afável
com visitas e amantes, autoritário com esposa e filhos. O narrador,
contudo, revela-se algo prolixo, repetitivo — e o pior: incapaz de
conceder materialidade aos conflitos e dar-lhes um desfecho. O relato
se dilui a cada página, sem nenhum clímax, como se lêssemos um
cronista apaixonado não pela história, mas por sua própria voz ou
pela arquitetura da frase, incapaz de obrigar os personagens à ação.
Esse narrador monopoliza o relato com sua linguagem de tom distante
e sua psicologia esforçada, mas inconvincente, nascida do que ele
conta — e não do próprio comportamento dos atores:
Desde os primeiros tempos do casamento ele fora dado a mulheres, com a
peculiaridade de aproximar da família as suas conquistas por meio de
expedientes diversos. Quanto a isso Dona Guiomar nunca se iludiu:
acompanhara sempre as iniciativas de Teotônio com bastante perspicácia,
embora não lhe ocorresse absolutamente protestar contra aquela infidelidade
quase à sua vista. Não lhe passava pela cabeça reclamar, porque a autoridade
que o marido lhe impunha era incompatível com a menor veleidade de reação
de parte dela, pelo menos frente a frente.

Voz altiva, de quem não deseja se comprometer com o que diz —


dessa forma a história é conduzida, não sem que o autor insista nas
características do temperamento de Dona Guiomar, evidentes desde as
primeiras páginas. Quanto a José, abandonado após a cena inicial,
jamais saberemos se superou a paixão não correspondida.
Esse narrador, que delineia personagens interessantes mas mostra-se
incapaz de colocá-los em ação, de permitir que ajam e se
entrechoquem, retorna em várias narrativas. “Martiniano e a
campesina” é outro exemplo de psicologia superficial, informações
repetidas, ausência de trama e desfecho banal. O narrador esboça sua
atração por Maria José, filha de Martiniano, mas não segue essa linha
narrativa, optando por se prender à história que o coronel Timóteo
lhe conta, a respeito do defunto:
Martiniano falava habitualmente como se o vocabulário vulgar fosse
imprestável para exprimir o que tinha a dizer. As expressões mais
extravagantes e os termos técnicos mais arrevesados despencavam de sua
boca, em cachoeira. Por essa forma, as observações e os conceitos que lhe
ocorriam, ainda que os mais comuns, acabavam sofrendo uma deformação
surpreendente. E a impressão de grotesco produzida pela sua terminologia era
ainda agravada pela dicção estranha que ele tinha. Parecia permanentemente
resfriado, com as narinas obstruídas, porque emitia todas as consoantes
nasais como se fossem explosivas:
— Isbênia é beiga cobo uba betralhadora.

O estilo alcança, em alguns trechos, o “classicismo moderno”


sugerido por Candido, a descrição da personagem é bem-humorada e
ameaça nos cativar — mas todos se comportam como autômatos.
Não contente em repisar os problemas apontados, Rodrigo M. F. de
Andrade complica ainda mais a vida do leitor em narrativas centradas
na formação da personalidade de dois garotos: “Quando minha avó
morreu” e “Iniciação”. Ambas apresentam pré-adolescentes curiosos,
mas os conflitos íntimos jamais são resolvidos ou superados. Todos os
problemas terminam como se fossem nada. O narrador não teme, por
exemplo, encerrar a experiência de luto do seu personagem com um
simples “Mas não pensei mais em minha avó”.
Analisar “O enterro de Seu Ernesto” e “Nortista” (este,
extremamente enfadonho) seria repetir minhas observações.
Mas nem tudo se perde em
Velórios
. Dois relatos são, realmente,
contos. E bons. Em “O príncipe dos prosadores”, perfeita narrativa de
atmosfera, de humor sutil, certa delicada sensualidade emana da
personagem que vem rezar ao lado do defunto — sensualidade e
adultério construídos graças aos “cabelos molhados perto da nuca”, à
pele translúcida e ao diálogo de sugestivas repetições travado pelos
dois amigos. “Seu
Magalhães ­suicidou-se” é peça inteligente, em que
Seu Aderne migra de uma certeza a outra, mudando de opinião a
respeito do sócio falecido. As reações das personagens femininas são,
de início, incompreensíveis, mas fazem parte da técnica de protelação
utilizada pelo autor para criar estranhamento e, sem nenhuma pressa,
num
timing
perfeito, nos fazer dar boas risadas.
Depois de fechar o volume, lembrei-me do segundo amigo, em “O
príncipe dos prosadores”. Na verdade, ele é o
alter ego
de Rodrigo M.
F. de Andrade, que olhou demoradamente para seus escritos, leu as
críticas elogiosas e concluiu que “no Brasil faltava a noção precisa do
que fosse um prosador digno desse nome”. Abandonar a literatura, no
seu caso, foi uma demonstração de autocrítica e lucidez. A lucidez que
faltou a seus amigos tão benevolentes.
CAPÍTULO 26

Teatro de revista
— Raimundo Magalhães Júnior e Fuga

O polígrafo Raimundo Magalhães Júnior, um dos signatários do


Manifesto da Esquerda Democrática — que deu origem ao Partido
Socialista Brasileiro, no qual se misturaram de antigetulistas a
trotskistas —, atuou no jornalismo, na produção de estudos
biográficos e no teatro. Neste, especializou-se numa dramaturgia
menor, de recreio, que brilhou na noite carioca entre as décadas de
1930 e 1950, composta principalmente de peças dedicadas ao teatro
de revista, espetáculo em que músicas, esquetes e coreografias
somavam-se para realizar a crítica bem-humorada e superficial da vida
brasileira. Pouco restou também do trabalho de Magalhães como
jornalista, incluindo o que produziu para jornalecos partidários, como
A Batalha
e
A Esquerda
. Ainda que suas traduções de Tennessee
Williams tenham recebido elogios, o mesmo não aconteceu com várias
adaptações, tratadas, algumas vezes, como “mutilações”. Sua dívida
com a cultura brasileira cresceu no decorrer do tempo, pois, apesar
dos ideais socialistas, aceitou o trabalho de censor cinematográfico
durante a ditadura militar, na década de 1970 — incoerência, aliás,
típica da esquerda, que jamais recusa benesses do Estado, não
importando a ideologia de plantão. No que se refere ao trabalho de
Magalhães como biógrafo de Machado de Assis, que ainda lhe
assegura um lugar nas letras nacionais, isso talvez revele mais a falta
da grande biografia machadiana, até hoje não escrita, do que a
imprescindibilidade das suas conclusões. O tempo dirá.
Tais limites se refletem no segundo volume de contos do autor,
Fuga
, publicado em 1936. O livrinho abre com a narrativa homônima,
história supostamente aventurosa do pré-adolescente que, censurado
pela avó, decide fugir de casa. A dedicatória do conto — “Em
memória de
David Copperfield
, de Charles Dickens, e de
Jack
, de
Alphonse Daudet” — engana o leitor. O começo simples, a
constatação, exposta de forma clara, de que “o desejo de fuga anda na
cabeça de todos os meninos”, promete mas não entrega. Logo a seguir,
anunciadas por exclamações — “belas!” e “linda!” — que nada
acrescentam às “bandeirinhas multicolores” e à “roupa bizarra e
colorida dos jóqueis”, começam a surgir inverossimilhanças: em
alguma perdida cidade no interior do Ceará, o narrador não só
construiu,
no quintal de sua casa, “um circo completo, com barras,
trapézios, trampolim, tudo”, como provocou, ao descuidar da
segurança, a morte de um garoto trapezista que “arrebentou o
pescoço estupidamente” — e ninguém foi punido. Obedecendo ao
sonho mirabolante de ser um jóquei famoso, ele “ganha páreos de
honra” nesse mesmo lugarejo, o que provocará as reprimendas da avó
e sua fuga. Nosso megaempresário e surpreendente cavaleiro consegue
também caminhar léguas e léguas, incluindo um longo trecho de
terreno pedregoso, sem sapatos, invencível mesmo depois de roçar o
braço na “pior urtiga do mundo”. Só a fome e o menosprezo do
fazendeiro que se recusa a acolhê-lo vergam sua obstinação, fazendo
com que tome o caminho de volta, num comportamento típico das
crianças — mas não dos garotos que são megaempresários e jóqueis
famosos. A raiva contra a avó se dissipa “de maneira quase
miraculosa” — e demonstrando que todos os seus feitos mirabolantes
esconderam do leitor uma personalidade superficial, incapaz de extrair
dos fatos lição duradoura, o narrador fecha o conto recordando sua
decisão de jamais acreditar na “generosidade desinteressada e nessa
coisa que chamam de solidariedade”.
“Desencontro” é a história do narrador-protagonista que se anuncia
como pessoa sem reações, incapaz de fazer com que sua opinião
prevaleça. Esse personagem, arrastado pelas circunstâncias, mostra-se,
contudo, valente quando quer; e luta para enriquecer, trabalhando
numa região diamantífera em local “insalubre, pantanoso, cheio de
mosquitos”. A odisseia superficial leva nosso narrador de amores
infelizes a dezenas de escolhas erradas, da vida de seminarista ao
convívio com bandidos e ao alcoolismo — sempre por não obedecer a
si próprio. Os motivos das reviravoltas e do seu comportamento são
apresentados com ligeireza, numa linguagem corriqueira, à qual não
faltam lugares-comuns ou imagens no pior estilo alencariano, como
neste trecho, em que descreve Margarida, sua paixão: “E não era de
flor só o nome que tinha. Era o ser também. Tão fresca, tão jovial, tão
expansiva! Um canário em dia de verão não faz tanto alvoroço junto
ao ninho”. Chegando às reticências que fecham a narrativa, resta o
desconforto de termos lido um melodrama negligente.
“A usina” trata de Clodoaldo, enganador profissional de uma
cidadezinha, mas é crônica, textinho sem conflitos. “O sino” não se
inscreve na mesma categoria apenas porque Tio Zeca, sedutor violento
e insaciável da cidade de Taquara, termina caindo na armadilha
inteligente do sacristão, o marido chifrado. O melhor trecho é a
descrição do lugarejo, em que o autor consegue superar a mera lista de
características.
O teatro do grotesco — com uma ponta de
Grand Guinol
— surge
em “A grande atração”, história da decadência do homossexual
Bianchi, cantor lírico que não consegue papéis femininos na ópera,
abandona o sonho do La Scala e torna-se travesti, até se transformar
no domador dos cachorrinhos Abelardo, Heloísa, Paulo, Virgínia e
Eurico, nomes que o narrador, irônico, afirma serem “sugestões de
leituras românticas”. No circo decadente, Bianchi apaixona-se por
Betanzo, homem dos “músculos de aço”, que, por falta de dinheiro, e
apesar do nojo, cede ao travesti. O final é mais que previsível: surge a
uruguaia Berta Caballero para desequilibrar a relação — depois, o
ciúme de Bianchi, que o leva a matar seu grande amor. História
caricata e medíocre.
A inverossimilhança retorna em “O crime de Bandú”, na qual o
“caboclinho mirrado, de constituição franzina e musculatura débil”,
incapaz de qualquer trabalho braçal, vê-se desprezado por Patrocínio,
“faceira morena”, que prefere o másculo Taturana. É o que basta para
o protagonista adquirir “aspecto quase trágico” e assassinar, a
facadas, o valentão, dono de um punhal que “já tinha ido espiar o que
nove pessoas haviam comido”. A história é tão inconvincente que o
próprio narrador tenta justificar a morte de Taturana, como se
escrevesse um relatório policial: “A surpresa do ataque, pois não
contava com reação tão fulminante, inibiu-o de qualquer movimento
de defesa, deixando também estarrecidos os circunstantes”. No final, é
claro, Patrocínio apaixona-se por Bandú.
“O sentenciado” é outra dessas histórias inócuas, cujo mérito se
resume a apresentar o Brasil arcaico, prevalecente até hoje, com seus
60 mil homicídios por ano, grande parte deles por motivos fúteis ou
desconhecidos. Passou-se quase um século entre esse arremedo de
conto e o presente — mas nada mudou.
Um hiperbólico bandido é o protagonista de “O julgamento de
Policarpo Corisco”, em que o sádico criminoso acaba derrotado por…
uma insolação. A historieta vale pelo final divertido.
Os chavões do desgosto, do amor não correspondido e da jovem
sonhadora que detesta o próprio nome escorrem de “Catidiana”,
história insignificante da pobre Tudinha, que sonhava ser “Laura,
Beatriz, Julieta, Margarida…”. Outro conjunto de obviedades forma
“Corpo fechado”, cuja descrição inicial seria curiosa se Euclides da
Cunha não tivesse, três décadas antes, esgotado o tema. Na trama
fácil, Pedro Macambira transforma-se em Pedro Curador, enganando
o povo com a cascavel da qual sempre extrai o veneno. É o desfecho
mais previsível do livro.
A última narrativa, “Rio movido”, acrescenta ao rol de defeitos uma
incontrolável sanha pleonástica. O narrador utiliza as primeiras linhas
para dar vida ao rio que, anualmente, durante as chuvas, mudava de
curso. A analogia que se tenta construir é capenga: “Parecia uma
dessas mulheres que se cansam depressa de um leito só. Uma dessas
mulheres que gostam de variar de leito pelo prazer das novidades”.
Poucas linhas depois, para reafirmar a “convulsão geológica”, o
narrador insiste: “A terra ali apodrecera, como uma mandioca dentro
de um charco. Não oferecia resistência. Amoldava-se aos caprichos do
rio. O rio era dono e senhor da terra. Fazia dela o que quisesse.
Passava aqui, passava ali, passava acolá. Lambia terra do jeito que
queria” — o que mostra como as redações do Enem podem não ser o
fim do mundo. A história que se segue, de atração sexual, traição e
duplo assassinato, é contada de forma verborrágica, com páginas
repletas de informações desnecessárias.
No final do volume, em que o editor reuniu elogios ao escritor, o
filólogo Joaquim Ribeiro destrambelha: “Raimundo Magalhães
Júnior, acima de novelista, é o escritor de estilo cheio de agudeza e de
recursos privilegiados. A sua prosa, além de espontânea, vem sempre
orvalhada e luminosa; lembra a verdura molhada de rocio nas manhãs
claras”. Nada melhor do que a nefasta retórica nacional para provar
minha tese: acabamos de analisar um ótimo autor do teatro de revista.
Nada mais.
CAPÍTULO 27

Quimera autoritária
— Sérgio Buarque de Holanda e Raízes do Brasil

Publicado em 1936,
Raízes do Brasil
foi sucessivamente alterado
durante três décadas por Sérgio Buarque de Holanda, processo que a
edição crítica, de 2016,
28
apresentou com minúcias, revelando a
obsessão do historiador: não se tratou de perseverar numa
determinada tese, mas de enrijecer o próprio pensamento, levando-o,
cada vez mais fundo, à radicalização que lhe permitiria ser enaltecido
pelas tropas marxistas do país.
Num estilo muitas vezes hermético — que o distancia da linguagem
límpida do seu contemporâneo, Gilberto Freyre —, Sérgio está sempre
pronto a torcer seu objeto de estudo até o desvirtuamento. Utiliza
técnica curiosa, camuflada pelo linguajar erudito e pelos períodos às
vezes labirínticos, mas que revela, ao final, ausência de penetração e
insistência em obscurecer ao invés de aclarar, pois seu afã se resume
não a permitir que os fatos falem, mas a submetê-los a determinados
conceitos.
Nesse sentido, está sempre pronto a uma forma peculiar de indução:
escolhe determinado exemplo — não uma série de casos semelhantes
—, define-o e, imediatamente, generaliza, estende o resultado de sua
magra observação ao conjunto da sociedade. Sérgio, é nítido, recusa-
se à dialética que o diálogo pressupõe: mostra-se pronto a perguntar,
mas a resposta que poderia descobrir na realidade é substituída pela
generalização — no seu caso, uma forma de arrogância.
Veja-se, no capítulo 1, como arranca da cartola a ideia de que
estamos “desterrados em nossa terra” e, não importando nossos
esforços, “o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece
participar de um sistema de evolução próprio de outro clima ou de
outra paisagem”. De onde teria extraído tal veredicto? O leitor,
persuadido de que Sérgio talvez defenda o
New Look
de Flávio de
Carvalho, apresentado em sua
Experiência nº 3
, prossegue para
encontrar outra generalização: apenas os países ibéricos teriam
desenvolvido o que ele chama de “cultura da personalidade”, pois só
portugueses e espanhóis atribuem “importância particular ao valor
próprio da pessoa humana, à autonomia de cada um dos homens em
relação aos semelhantes no tempo e no espaço”. Nisso residiria
“muito de sua originalidade nacional” — nesses dois povos, “o índice
de valor de um homem infere-se, antes de tudo, da extensão em que
não precise depender dos demais, em que não necessite de ninguém,
em que se baste. Cada qual é filho de si mesmo, de seu esforço, de suas
virtudes…”. Tal forma de ser estaria fielmente espelhada na palavra
“sobranceria”, cujas ideias de superação, luta e emulação “eram
tacitamente admitidas e admiradas, engrandecidas pelos poetas,
recomendadas pelos moralistas e sancionadas pelos governos”.
Ora, não é necessário grande conhecimento para perceber que
semelhante argumentação se liquefaz com facilidade: se uma única
palavra, “sobranceria”, basta para comprovar a índole de um povo,
índole que conjuga independência e capacidade heroica de esforços,
em que categoria deveríamos inserir os demais povos europeus?
Pertenceriam a algum tipo
sui generis
de submissos? Ingleses, alemães,
franceses, poloneses… em que nicho dessa categorização devem ser
incluídos? Ou, ao contrário, a proposição, exatamente por seu caráter
geral, serve, de uma forma ou de outra, a todos os povos? Mas se
serve, de alguma maneira, à história de todos os povos, então não
pode ser uma característica exclusiva dos ibéricos… e se a
peculiaridade não existe… então o castelo de cartas acaba de cair.
O grave problema é que uma generalização nunca está isolada nesse
discurso — sempre leva a outra, criando uma cadeia de falsidades. No
caso exposto, a tentativa de dar vida a uma operação de
universalização leva ao coroamento do raciocínio: já que, entre os
ibéricos, cada um basta a si mesmo, é dessa “sobranceria” exagerada
que nasce “a singular tibieza das formas de organização, de todas as
associações que impliquem solidariedade e ordenação entre esses
povos. Em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo
durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida”.
Portanto, “a falta de coesão em nossa vida social não representa,
assim, um fenômeno moderno”.
O leitor não deve se assustar com a inexistência de interação
dialética — Sérgio repetirá a mesma forma de raciocínio até a última
página do livro, sempre forçando conclusões políticas e sociológicas.
Como todo mau observador, é destituído do talento para realizar,
repito, a interação correta entre o dado da realidade e o resultado que
um pesquisador lúcido — ou imaginativo — alcançaria. Dizendo de
outra forma, parte de falsas premissas e observa mal o mundo à sua
volta, pois o que sobra entre nós é exatamente coesão na vida social.
Característica que sobeja desde sempre, bastando, para refutar a tese
do historiador, lembrarmo-nos da figura quase mítica de João
Ramalho, cuja teia de organização social e comercial
facilitou
amplamente o trabalho dos primeiros colonizadores, incluindo os
jesuítas, sem que houvesse necessidade de uma “força exterior
respeitável e temida”. E se desejamos outro exemplo, lembremos do
retrato que Manuel Antônio de Almeida expõe em
Memórias de um
sargento de milícias
: em pleno período joanino, o povo já possuía
identidade nacional, dava todos os sinais de uma permanente
disposição à vida associativa.
Mas Sérgio constrói novas generalizações, pessimistas e repetitivas:
dizer que, para espanhóis e portugueses, “a moral do trabalho
representou sempre fruto exótico”, significa transformar a exclamação
de Macunaíma — “Ai! que preguiça!…” — em síntese de uma
civilização inteira, que, desde seus primórdios, refuta essa tese mal
urdida. Ansioso por encontrar o fundamento de sua conclusão
apressada, basta ao historiador o trecho de uma das cartas de
Clenardus Brabantus, humanista que percorreu a Península Ibérica no
século
XVI
, na opinião de quem a agricultura sempre “foi tida em
desprezo em Portugal”, concluindo, para júbilo do historiador: “Se há
algum povo dado à preguiça sem ser o português, então não sei onde
ele exista”. De fato, os portugueses
não
realizaram o maior
empreendimento marítimo da história — sobrevivem até hoje
refestelados em divãs, recebendo bonificações altíssimas dos ingleses,
que amam seu vinho do Porto, e sendo abanados por velhas escravas
angolanas. Aliás, se foi possível “construir uma pátria nova longe da
sua”, isso ocorreu “sem esforço sobre-humano”, garante-nos Sérgio,
mas principalmente graças à mestiçagem, prova de que não há, nos
portugueses, ainda segundo o admirável pesquisador, nenhum
“orgulho de raça”.
O leitor perdoar-me-á não só esta mesóclise, mas também as ironias
do parágrafo anterior, pois não há outra forma de suportar essas
conclusões superficiais, tratadas, há décadas, como o suprassumo do
ensaísmo nacional. Entretanto, são compreensíveis os elogios
desmesurados a Sérgio Buarque de Holanda, sempre enaltecido pela
esquerda: o autor não perde nenhuma oportunidade de se colocar
contra tudo que represente algum tipo de tradição, começando pelo
núcleo familiar e sua capacidade para se manter “imune de qualquer
restrição ou abalo”. A família patriarcal representa, para ele, elemento
perverso, tirânico, preconceituoso e antipolítico, que jamais se
submete ao Estado. E, da mesma forma, ele detesta o individualismo e
a defesa do mérito pessoal.
Em contrapartida, anseia e defende, para o Estado, a “conquista de
uma força verdadeiramente assombrosa em todos os departamentos
da vida nacional”, não importando os meios a serem utilizados. Na
verdade, faz defesa explícita da revolução, ao referendar o naturalista
Herbert Huntingdon Smith, que, depois de percorrer o Brasil no
século
XIX
,
implorou por “uma boa e honesta revolução, uma
revolução vertical e que trouxesse à tona elementos mais vigorosos,
destruindo para sempre os velhos e incapazes”. Ideias que, logo a
seguir, ganham sua verdadeira têmpera, quando Sérgio elogia
Mussolini e o fascismo — “Não há dúvida que, de certo ponto de
vista, o esforço que realizou significa uma tentativa enérgica para
mudar o rumo da sociedade, salvando-a de supostos fermentos de
dissolução” —, para imediatamente criticar, nos comunistas
brasileiros, a falta da “disciplina rígida que Moscou reclama de seus
partidários” e apontar o que considera “atraente” nessa outra
ideologia revolucionária: a “tensão incoercível para um futuro ideal e
necessário, a rebelião contra a moral burguesa, a exploração
capitalista e o imperialismo”.
Comentando a respeito de nossos “homens de ideias”, Sérgio diz
que foram apenas “puros homens de palavras e livros; não saíam de si
mesmos, de seus sonhos e imaginações”, o que “conspirou para a
fabricação de uma realidade artificiosa e livresca, onde nossa vida
verdadeira morria asfixiada”. Ao supor os erros de outrem, ele
consegue definir a si mesmo. Autor catequético, Sérgio Buarque de
Holanda quis entender o Brasil e apenas desenhou uma quimera,
monstro confuso e grotesco, mas dócil aos seus devaneios marxistas e
autoritários.

28
Publicada pela Editora Cia. das Letras.
CAPÍTULO 28

Exercícios de perfeição
— Manuel Bandeira e suas crônicas

A poesia e a prosa de Manuel Bandeira são citadas, quase sempre,


como exemplos de “simplicidade”, substantivo fluido, cujas acepções
permitem conclusões diversas e, sob alguns aspectos, conflitantes: a
obra de Bandeira seria isenta de complexidade? Em que medida? Não
guardaria significações ocultas ou passíveis de serem subentendidas?
Seus textos estariam presos a uma singeleza plana, de fácil e imediata
compreensão? Poderiam ser tomados como exemplos de candura? Ou
ler Bandeira significaria penetrar em um universo no qual o eixo de
denotação praticamente exclui os aspectos conotativos?
Na verdade, tal classificação simplifica injustamente a obra do poeta
pernambucano, pode desviar a atenção dos leitores para aspectos
superficiais dos textos e, em determinados casos, esconde uma
tentativa de descrédito.
Para lançar por terra qualquer visão superficial da obra de Bandeira,
basta ler seu ensaio autobiográfico, “Itinerário de Pasárgada”.
29
Ali
encontramos o escritor que jamais descuidou dos “valores plásticos e
musicais dos fonemas”, o conhecedor da fonologia da língua
portuguesa, ciente de que “uma dental em vez de uma labial pode
estragar um verso”. Acompanhando sua formação, entendemos como
o desenvolvimento de seu estilo — iniciado com a leitura dos versos de
histórias da carochinha, ou por meio das cantigas de roda, das trovas
populares, das “coplas de zarzuelas”, dos “
couplets
de operetas
francesas”, dos pregões dos vendedores ambulantes e dos “versos de
toda sorte” que o pai lhe ensinava — chega a alcançar exercícios mais
complexos: “Quantas vezes, querendo lembrar uma estrofe de um
poema, uma trova popular, e não conseguindo reconstituí-la fielmente,
fazia da melhor maneira o
remplissage
, depois, cotejando as duas
versões — a minha e o original, verificava qual delas era melhor,
pesquisava o segredo da superioridade e, descoberto, passava a utilizá-
lo nos meus versos”.
Também a tradução o ajudará, incentivando-o ao exercício de
descobrir “o tesouro que são a sintaxe e o vocabulário dos clássicos
portugueses”, pois “a sintaxe dos clássicos, mais próxima da latina, é
muito mais rica,
mais ágil, mais matizada do que a moderna,
sobretudo a moderna do Brasil”. Bandeira, no entanto, jamais
negligenciou as lições aprendidas com seu pai, para quem a poesia
estava “em tudo — tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas
coisas lógicas como nas disparatadas”. Perceber os matizes da língua
sem qualquer preconceito ­concedeu-lhe uma visão integral: “A mim
sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorinamente
seleto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do
baixo calão”.
Crônicas da província do Brasil
, coletânea publicada em 1936,
30
confirma, na prosa, as qualidades desse escritor atento à materialidade
das palavras, consciente do amplo aprendizado descrito no
Itinerário
e
da mensagem que deseja expressar, para a qual há apenas uma forma
adequada, aquela “em que cada palavra está no seu lugar exato e cada
palavra tem uma função precisa, de caráter intelectivo ou puramente
musical, e não serve senão a palavra cujos fonemas fazem vibrar cada
parcela da frase por suas ressonâncias anteriores e posteriores”.

Metáfora e exatidão

Ler
Crônicas da província do Brasil
é deparar-se, em certos
momentos, com uma língua morta, enterrada nas páginas dos
dicionários; mas trata-se de reencontro prazeroso, pois voltamos a
ouvir vocábulos que caíram em desuso: substituídos no interminável
processo de transformação da língua, não estão mortos, guardam sua
carga expressiva, além da sonoridade agradável. Ao relatar a primeira
leitura do
Paulicéia desvairada
, de Mário de Andrade, Bandeira diz
que o livro “declanchou” nele “um movimento de repulsão”. Se
escrevesse hoje, certamente preferiria, ao invés do galicismo, o verbo
“desencadear”. E numa das melhores crônicas, “Reis vagabundos”, o
texto inicia com interjeição vivaz e raríssima, “juque”, atualmente
substituída por “pimba” ou “zás”.
Na crônica “O heroísmo de Carlitos”, a experiência é diversa. A
escolha das palavras reflete a busca pelo termo preciso. Ao descrever a
marcha peculiar de Carlitos como a de um “tabético”, Bandeira acerta
e, portanto, ilumina. Obriga o leitor a correr para o dicionário, mas
esse será sempre um exercício salutar. Referindo-se às calças do
personagem, qualifica-as de “lambazonas”, intensificação de
“lambaz”, pelo fato de a vestimenta recordar esse esfregão feito de
cordas ou trapos. Em outra crônica, “No mundo de Proust”, salienta
a via anedótica das personagens desse escritor, utilizando o exato
“embastida”, ou seja, “espessada”, “compactada”.
Quando se trata não de um termo específico, mas de longo período,
o
conjunto pode nos envolver com seu ritmo, neste caso lento,
reproduzindo nas frases o caminhar do
flâneur
: “Em Olinda há o
silêncio e a tranquilidade que favorecem os passos perdidos dos que se
comprazem nessa contemplação do passado e dos seus vestígios
impregnados de tão nobre melancolia” (na crônica “Velhas Igrejas”).
Ao descrever os trabalhos de seu homônimo, o desenhista Manuel
Bandeira — em “Um grande artista pernambucano” —, o texto abre
com analogias deliciosamente inusitadas:
[…] o Recife tem o físico, a psicologia, a graça arisca e seca, reservada e
difícil de certas mulheres magras, morenas e tímidas. Porque, não repararam
que há cidades que são o contrário disso? Cidades gordas, namoradeiras,
gozadonas? O Rio, por exemplo. Belém do Pará. São Luís do Maranhão são
cidades gordas. A Bahia é gordíssima. São Paulo é enxuta. Mas Fortaleza e o
Recife são magras.

Poucos parágrafos depois, no entanto, o cronista nos reserva a


melhor figura, construída a partir de uma relação metafórica ainda
mais imprevista, imagem decadente e ao mesmo tempo delicada, que a
antropomorfia se encarrega de engendrar: “[…] as ruínas ingênuas de
Sabará, onde as casas de porta e janela parecem sorrir contentes de se
sentirem tão velhinhas […]”.
Mas Bandeira também é o autor de frases ágeis, nas quais a
descrição se dá por meio de pinceladas rápidas:
[…] Sinhô para toda a gente era uma criatura fabulosa, vivendo no mundo
noturno do samba, zona impossível de localizar com precisão — é no Estácio
mas bem perto ficam as macumbas do Encantado, mundo onde a impressão
que se tem é que ali o pessoal vive de brisa, cura a tosse com álcool e desgraça
pouca é bobagem. (Em “Sambistas”.)

Neste trecho, a pausa abrupta do travessão e a ausência da vírgula


depois de “Estácio” aceleram a leitura, obrigando-nos a seguir o ritmo
bruscamente alterado, como se de fato passássemos do samba aos
arroubos frenéticos da macumba.
Há, ainda, o escritor que sabe criticar os costumes com bom humor,
sem abandonar o lirismo:
Sim, Don Juan era o pecado: Casanova era o prazer. O amor do primeiro
um tecido de angústias, uma longa expectativa de catástrofes; o segundo, pelo
contrário, aliviava as mulheres, às vezes até os homens responsáveis dessas
mulheres, de todo o peso dos imperativos morais; com ele a paixão virava
coisa fácil, que se toma
e larga, sem outras olheiras senão as dos excessos,
inteiramente a salvo do suicídio, da tentativa de assassinato, da paranoia e até
dos desarranjos do fígado.

Nessa crônica — na verdade, mescla de crônica e resenha —, o


autor elabora divertido elogio do amor sensual, até encerrar com um
comentário saboroso, levemente irônico: “Três mil mulheres possuídas
não consolam de não possuir três mil e uma…”.
Cinco crônicas se destacam, entretanto: “A trinca do Curvelo”,
“Reis vagabundos”, “Golpe do chapéu”, “Romance do beco” e
“Lenine”.
O mundo da infância pobre está radiografado na primeira. Bandeira
salta com agilidade de um aspecto a outro, sem desprezar alegrias ou
tristezas, revelando, por meio de um e outro detalhe, todo o universo
em que já se manifestam as diferenças de classe e os dramas e agruras
da idade adulta. Um dos meninos, Lenine, reaparecerá na crônica que
leva seu nome no título. Nela, é interessante perceber como Bandeira
desorienta o leitor, enfocando, inicialmente, o líder da Revolução
Russa e, logo depois, reconstruindo seus diálogos com o garoto, sem
jamais perder a oportunidade de sugerir semelhanças entre as duas
figuras.
“Reis vagabundos” e “Golpe do chapéu” são historietas geniais.
Bandeira demonstra acurada sensibilidade para desenvolver dois
enredos envolventes, humorísticos. O escritor dialoga com a sintaxe
de seu próprio texto, cria figuras e personagens imprevistas e não
descuida do ritmo elétrico, pulsante.
Quanto ao texto “Romance do beco”, trata-se de um exemplo das
profusas possibilidades que a crônica, enquanto gênero literário,
oferece. Revela não só a diversidade da produção de Bandeira, mas
adapta-se perfeitamente ao que afirma Júlio Castañon Guimarães em
seu posfácio:
[…] o que faz o encanto deste livro é tanto toda a sua preciosa carga de
informação, quanto a elegância e o afeto que revestem seus textos, passando
pelos momentos, ora mais, ora menos perceptíveis, em que ele envereda por
trilhas que levam seja a um ou outro momento da poesia do autor, seja ainda
a instantes da própria formação de sua poética.

Acompanhar as mudanças de perspectiva desse texto — que migra


do marinheiro a observar a paisagem distante, emoldurada pelos
telhados sujos, para o diálogo com o verso alexandrino de Emílio de
Menezes, em seguida oferece-nos um parágrafo de cunho
memorialístico e depois envereda rumo ao universo proustiano, só
então retomando o tema de abertura, apenas para concluí-lo em um
final que não descuida de
nenhum dos elementos utilizados — concede
ao leitor incontrolável arrebatamento, pois nos deparamos,
novamente, com a escrita que soube mostrar-se perfeita na prosa e na
poesia.

Visão do Brasil

Surge, contudo, estranho passadismo em algumas crônicas, devoção


a certo Brasil provinciano, existente apenas nas fantasias de Bandeira,
que reclama, de maneira injusta, dos viajantes que passaram por aqui
e mostraram-se decepcionados com a visível decadência de nossas
cidades (em “De Vila Rica de Albuquerque a Ouro Preto dos
Estudantes”). Não deixa de ser agradável o tom pueril ao descrever o
que chama de “democracia sincera”, encontrável “num pátio de igreja
em dia de festa de Nossa Senhora” (em “A festa de N. S. da Glória do
Oiteiro”). Mas o autor sonha com um Brasil agrário,
naïf
, como se o
melhor dos mundos residisse em uma cultura para sempre primitiva.
Ideia expressa, inclusive, na “Advertência” que abre o volume.
Apesar dos raros momentos de idealização, na crônica “Impressões
de um cristão-novo do regionalismo” surge uma visão equilibrada,
nem um pouco passadista e saborosamente irônica.
O melhor do escritor, no que se refere à compreensão do Brasil,
pode ser lido nas límpidas interpretações do barroco e da arquitetura
brasileira — e na defesa do patrimônio histórico. Poucos, inclusive,
descreveram tão bem a obra do Aleijadinho:
Nas claras naves de Antônio Francisco dir-se-ia que a crença não se socorre
senão da razão; não há nelas nenhum apelo ao êxtase, ao mistério, ao
alumbramento. E se houvesse porventura alguma reserva que opor à sua obra
estupenda, seria precisamente o excesso de personalidade, que não capitulou
diante da divindade.

Finalmente, em “Recife” — evocação que sintetiza a memória e o


presente que decepciona —, não há espaço para idealismos ou críticas
exageradas às mudanças. Ali, o homem solitário se defronta com seu
passado irrecuperável — “Não havia nada para quebrar a ilusão da
minha saudade” —, sabedor de que apenas a concretude da escrita, e
não lembranças melancólicas e fugazes, poderá aliviar a angústia
diante do que está irremediavelmente perdido.

Decepções

O problema dos escritores notáveis, contudo, é que a reiterada


leitura de suas obras acaba nos transformando em pessoas exigentes

expectadores que não admitem frustrações. Imaginemos o leitor de
Machado de Assis que, depois de seguir o escritor desde
Ressurreição
até a reviravolta que foi
Memórias póstumas de Brás Cubas
, se
deparasse, uma década mais tarde, não com
Quincas Borba
, mas com
uma novelinha de laivos românticos. Tal leitor razoável, de capacidade
crítica mediana, sentiria, no mínimo, certo desconforto.
É mais ou menos o que acontece para quem inicia a leitura da prosa
de Manuel Bandeira pelo insuperável “Itinerário de Pasárgada” ou
saboreando as equilibradas
Crônicas da província do Brasil
: um
desânimo abate o leitor do primeiro volume das crônicas inéditas,
31
cuidadoso trabalho de compilação do poeta e pesquisador Júlio
Castañon Guimarães. Raríssimos textos, nesse volume, aproximam
daquela prazerosa quina que elogiei linhas acima.
As crônicas talvez valham enquanto curioso documento da vida da
classe média carioca no início do século
XX
, pois Bandeira ensaia uma
visão de urbanista — ­preocupando-se com o “desafogo do tráfego” e
testemunhando o surgimento dos arranha-céus —, comenta a exibição
do primeiro filme falado no Rio de Janeiro, chega a oferecer uma boa
— e desoladora — radiografia do mercado de arte brasileiro, fala do
panorama cultural e da cafeicultura, digressiona sobre arquitetura,
êxodo rural, bailes carnavalescos e concursos de
misses
, além de ser
gentil com amigos. Mas há pouquíssima boa literatura.
Na verdade, sobram lugares-comuns e elogios fáceis. Grande parte
das crônicas é dedicada aos espetáculos de música erudita que
aconteciam na cidade. Vários instrumentistas, na sua maioria
medíocres, recebem a atenção de Bandeira numa enfiada de textinhos
banais — alguns, aparentemente, meras cópias dos programas
distribuídos nos concertos. Praticando uma crítica impressionista, o
poeta destila conclusões discutíveis — “cada escritor é transpositor
literário de elementos espirituais ou técnicos da pintura, da escultura
ou da música” — ou envereda por arroubos capazes de embrulhar o
estômago: “a música tem espontaneidade e a frescura dos 23 anos,
que era a idade do autor ao tempo em que a compôs”; “a penetrante
emotividade de suas interpretações impressionaram fundamente o
auditório”; “é um violinista da mais pura escola”.
Sobre uma apresentação da ópera
Orfeu e Eurídice
, de Gluck, ele
diz: “[…] daí a sensação de fresco repouso que produz um enredo de
linhas simples, como o do
Orfeu
, e onde entretanto nos comove a
beleza de um dos mais belos símbolos da mitologia”. Mas isso ainda é
pouco diante deste trecho verdadeiramente aflitivo: “Não há uma só
nota morta no jogo pianístico daquela intérprete finamente vibrante
de vida requintada.
Grande técnica, em verdade, pelo que há nela de
humanidade quintessenciada e profunda”.
Da música de Villa-Lobos ele dirá que é “uma festa de timbres, uma
golfada de ritmos, onde os motivos selvagens constituem o substrato
da humanidade profunda que sustenta o edifício sonoro”. Qualquer
um é “excepcionalmente dotado”. Certo artista apresenta um
“inteligente ecletismo”. E Bandeira sintetiza sua opinião sobre
determinado recital utilizando-se da mais vazia de todas as conclusões:
a de que as peças foram “realizadas […] com muito sentimento”.
Até mesmo o elogio do livro
Alguma poesia
, de Carlos Drummond
de Andrade, derrapa em um raciocínio estranho, que nada conclui:
“Em Carlos Drummond de Andrade a perfeição técnica não resulta,
como em Guilherme de Almeida, do gosto e trabalho do artista, mas
da fidelidade do poeta ao movimento lírico da sensibilidade. Daí a
frescura desse lirismo que sabe à fruta comida ao pé da árvore”.
Em meio a tanta inutilidade — da inauguração de um órgão na
Catedral Metropolitana a elogios despropositados ao jornal em que
ele próprio escreve —, apeguei-me à esperança de que o poeta
recebesse uns bons trocados pelas crônicas. O dinheiro talvez lhe
permitisse ter tranquilidade para escrever seus poemas, quem sabe…
De qualquer forma, os leitores fiéis de Bandeira sofrerão inevitável
crise de melancolia antes mesmo de chegar à metade do livro. E depois
de páginas e páginas cheirando a necrológio, o próprio Bandeira
reconhecerá, em crônica publicada no dia 9 de setembro de 1930:
“Nunca escrevi tão em cima da perna como hoje”. Considerando-se o
conjunto das crônicas, o poeta, infelizmente, não foi sincero.

Rescaldo

Mas será possível que, em quatrocentas páginas de crônicas, não se


salve alguma coisa? Bandeira, sabemos bem, é dos raros que merecem
esse trabalho de pinçar. Vamos a ele.
Para os pesquisadores do modernismo, por exemplo, as crônicas
“Amar, verbo intransitivo”, “Mário de Andrade” e “Ah Juju!” servem
como estudo sociológico dos fenômenos comuns a todas as igrejinhas:
nas duas primeiras, vemos seus participantes protegerem-se uns aos
outros sem qualquer pudor, a ponto de a suspensão do juízo crítico
tornar-se regra; na terceira, lembramos que os rompimentos são
igualmente comuns (no caso, o de Graça Aranha).
Mas Bandeira não era leniente com todos: desanca os modismos, em
“Um caso à parte”, crônica de 1928, mostrando não ter perdido a
lucidez:
Precisamos urgentemente voltar à métrica, à rima, à sintaxe lusíada […]. O
modernismo era suportável quando extravagância de alguns. Agora é a
normalidade de toda a gente. Então depois que reinventaram a brasilidade, a
coisa tornou-se uma praga.
Os livros de poesia só falam de candomblés e de urucungos. Nos quadros só
se vê pretos, carros de boi e desenho errado.
Confesso que acho um certo sabor nos poemas dos iniciadores. Os meninos
que vieram depois é que estão caceteando. Raro o que trouxe aos processos
novos uma nota pessoal, a marca de um temperamento.

Aliás, seu amor à métrica e à boa sintaxe revela-se também no justo


elogio que faz aos parnasianos Olavo Bilac, Raimundo Corrêa e
Alberto Oliveira, “autores de uma obra equilibrada e harmoniosa”,
que “reagiu contra a incorreção e a eloquência derramada dos
românticos, criando em nossa língua uma técnica precisa e comedida.
Mas essa técnica degenerou depois em mãos pesadas, afeitas a só
carpinejar. A tradição camoniana, tão sensível nos três mestres, não
foi assimilada pelos epígonos”. Na mesma crônica, “Apologia de um
poeta”, de 1921, louva, com acerto, a obra satírica de Emílio de
Menezes, hoje infelizmente esquecida.
Sua veia irônica também surge aqui e ali: criticando os jornais da
época — “a imprensa do Rio me dá a impressão de uma casa de
cômodos da rua Senador Eusébio quando a d. Júlia Lavadeira acabou
de meter a mão na cara da Chica do Alfredo” — ou espicaçando os
cantores líricos e as produções operísticas nacionais — “resulta
sempre um enterro de terceira classe, desses que chegam ao cemitério à
hora de fechar o portão: os convidados estão apressados, os coveiros
de mau humor; o defunto é despachado com um mínimo de cal”.
Respiramos aliviados ao encontrar a perfeita descrição de certo baile
carnavalesco, ilha de vivacidade nesse mar de textos insignificantes:
Outro espetáculo curioso é o do Teatro Fênix que se especializou em bailes
para homens. Ali as senhoras pagam entrada porque não é possível distingui-
las dos tipos que se fantasiam de mulher com uma perfeição em que não entra
somente a habilidade e a arte, mas o temperamento também. E há-os de todas
as cores, de todas as idades, de todas as classes, nacionais e estrangeiros. O
círculo de mirones toma com eles liberdades cruéis que vão do carinho
acanalhado ao pontapé de troça. No meio disso sujeitos maduros, de capote,‐ ­
guarda-chuvas e óculos de tartaruga combinando com seriedade encontros
acenando os dedos para ajustar preços. Aqui e ali, nas frisas e camarotes, a
timidez de um grupo cuidadosamente mascarado trai
a família que veio só
para ver. Aquele português porém instalou-se com a sua gente numa mesa da
plateia em plena bagunça. A mulher traz ao colo um menino de peito e
amamenta-o ali mesmo. De um camarote bisnagam-lhe o seio exposto. O
português dana-se, não por causa do seio mas por causa da criança: “Olha a
criança, seu estúpido!”. Passa um lindo rapaz que a assistência aclama de miss
Brasil. E João, que está comigo, confessa desesperado que há nos olhos da
falsa mulher qualquer coisa que ele nunca encontrou nas mulheres de fato.

Em meio a várias crônicas elogiando escritores e artistas, a maioria


deles seus amigos ou conhecidos, os melhores textos, nada geniais,
referem-se a Augusto Frederico ­Schmidt (“Um poeta que não quer
cantar mais o Brasil”) e Emily Dickinson (“Poesia”). O comentário
mais brilhante, entretanto — inusitado e revelador não só da
personalidade de Bandeira, mas também de sua visão crítica, enquanto
leitor da obra machadiana —, encontramos na crônica “Antonieta
Rudge”:
Nos versos como no conto o gosto doentio de espiar o sofrimento alheio. E
a psicologia dura, derrotista, insultante de quase toda a obra. Sempre o móvel
egoísta, e ainda que limpo, inconfessável. […] Em suma eu achava, e ainda
hoje acho, que Machado de Assis era um monstro. Um monstro que não fazia
mal a ninguém, que nunca haveria de fazer mal a ninguém, mas não obstante
um monstro.

Enfim, se jogarmos fora as análises superficiais, as tiradinhas sem


graça, os elogios desmedidos, as repetições e os textinhos gentis ou tão
somente corretos sobram quatro crônicas: a extremamente bem-
humorada “Saudades dos telefones do Recife”, crítica antecipada aos
serviços de
telemarketing
; a visão fria e quase sarcástica do folclore
brasileiro em “Festas do Nordeste”; a ironia antibolchevique de
“Comunismo: polícia e poesia”; e as saudosas vidraças de dona
Aninha Viegas, da crônica “Villegagnon tem hoje um aspecto
pacífico” — texto leve, paradigma do gênero crônica.

29
Em
Seleta de prosa
, Editora Nova Fronteira,
RJ
, 1997, 2ª impressão.
30
Reeditada, em 2006, pela extinta Editora Cosac Naify.
31
Crônicas inéditas
I
, Editora Cosac Naify,
SP
, 2008. O volume reúne textos escritos entre
1920 e 1931.
CAPÍTULO 29

Só bons retalhos
— Cyro Martins e Sem rumo

O neuropsiquiatra Cyro Martins — militante do Partido Comunista


Brasileiro, colaborador de
A Tribuna Gaúcha
(jornal que pertencia à
rede de periódicos criada pelo
PCB
na década de 1940, denominada
“imprensa popular”) e da revista
Horizonte
(a partir de 1950,
seguidora da estética do Realismo Socialista) — estreou na literatura
em 1934, com a coletânea de contos
Campo fora
. Três anos depois,
lança a novela
Sem rumo
, primeiro volume da chamada “trilogia do
gaúcho a pé”, à qual pertencem os romances
Porteira fechada
(1944) e
Estrada nova
(1954). Ao revisar a novela, em 1977, o autor passaria a
tratá-la como romance, por concluir, afirma no prefácio, “que esta é a
classificação que lhe senta melhor”, justificativa, convenhamos, que
nada explica.
Delineia-se, nas três obras, o tema daqueles que são expulsos do
campo pela modernização da agricultura e da pecuária, situação que o
autor dramatiza ao definir seus protagonistas como homens “sem eira
nem beira”, esforçando-se por caracterizar “a comparsaria cachaceira
que apinha os bolichos da beira do povo”, as “mulheres sofredoras,
tristes criaturas sem nenhuma esperança”, as “crianças andrajosas,
desnutridas, formigando na aldeia suja, cozinhando aos sóis violentos
do verão e tiritando de frio quando sopra o minuano varredor”,
inserindo-os em contextos nos quais uma suposta ética gaúcha se
desintegra, dando espaço à “japa”, aos “desmandos policiais”, às
“falcatruas eleitoreiras” e “um escangalhar-se dia a dia, escorregando
sem parar barranca abaixo na vida”.
Distante do estilo e da temática escolhidos por ­Dyonélio Machado,
seu contemporâneo, Cyro aproxima-se do regionalismo de Simões
Lopes Neto, Alcides Maya e Darcy Azambuja — não é superior ao
primeiro, recusa as fórmulas decadentes, alencarianas, do segundo e
tem momentos de rara força estilística, exatamente como Azambuja.
No centro de
Sem rumo
encontra-se Chiru, apresentado em cena do
capítulo 1, na qual o adolescente se entrega ao devaneio enquanto
fiscaliza o burrico que faz o moinho funcionar. Na estância decadente,
o assobio de Chiru e o milho esfarelando-se sob o peso da mó
compõem
música atemporal, interrompida pelo pica-pau que martela
uma árvore próxima. Na sequência perfeita, o garoto vê-se com a
pedra na mão e, obediente ao instinto, mata a ave, arrependendo-se
logo depois. A mesma cuidadosa psicologia ressurge no capítulo 2, em
que o narrador penetra a consciência de Evarista, dominada pela
presença opressora do marido:
[…] Não tardava, ele saía para o galpão, para as mangueiras, para o
campo, para a lida diária, enfim, a dar ordens. Ficava depois tão bom aquele
quartinho apertado de cozinha, paredes tortas, sem reboco, e coberta de
capim. Então, ela podia chegar sem constrangimento ao catrezinho dos filhos
e mimá-los, acariciá-los, sem pensar, por momentos, na inclemência da vida. E
tinha todo o pátio para andar à vontade. Ficava ligeira, remoçada. Os olhos
pesados de longas insônias dilatavam-se iluminados de alívio, ao contato
penetrante da água fria da pipa. E do pensamento das mãos, dos peitos, das
ancas, do corpo todo afinal, ­ia-se desprendendo aos poucos a lembrança da
presença truculenta de Clarimundo. À maneira que se agrandava a sua
alegria, afastava-se a sensação de medo que lhe vinha daquela assistência
calada e hostil, esbatendo-se até ficar vaga reminiscência, como um pesadelo
da outra noite, mal lembrado.

O estudo da psiquiatria contribuiu à formação dessa habilidade para


descrever o interior de alguns personagens. No capítulo 8, Filipe migra
do sonho à vigília, e desta novamente ao sonho, numa confusão
mental cujos deslocamentos são quase imperceptíveis, tal é a
delicadeza do entrelaçado em que surge o fantasma cuja brancura se
mescla ao luar e aos gansos do açude, até que a realidade estilhaça o
sonho. Um pouco antes, no capítulo 5, Chiru surge transformado no
gaúcho mítico, mas percebemos que se trata apenas de sua
imaginação, jogo convincente que o autor arquiteta, conduzindo-nos
pela fímbria entre sonho e realidade.
Sua perícia revela-se também nas descrições da natureza, repletas de
lirismo comedido, como neste trecho do capítulo 9:
Tinha parado a chuva. Uma chuvinha mansa, medrosa, que desde o
amanhecer matava a seca, devagarinho. Nem no terreiro, nem nos campos
havia água empoçada. A terra bebera, voraz, todas as nuvens. Céu limpo,
horizonte claro e chão quase enxuto. Pairava no ar uma serenidade de êxtase.
Os cinamomos, numa fruição de gozo quase animal, espalmavam as
voluptuosas folhinhas. Adivinhava-se o sensualismo delas, impregnando-se,
lentamente, da orvalhada apetecida. No topo de um moirão, sentou um joão-
de-barro. Teso, fanfarrão, o bichinho. […]

A entrada de Chiru na maturidade ocorre num rito de passagem


descrito no capítulo 10. A empolgação do leitor cresce ao acompanhar
os peões que guasqueiam suas montarias: “A cada pisada dos cavalos
fervia uma vertente, com um rangido fresco de arreio novo”. No
capítulo 12, Manuel Garcia, homem simples, vivendo entre bois e
arado, transforma-se, por exigência dos políticos locais, em professor
da inútil escolinha rural. Envaidecido pelos falsos elogios, sua
primeira preocupação é o uso da palmatória, mas logo acorda do
sonho, obrigado a capturar a porca que invade sua plantação de
batatas: derrubado pelo animal, “Manuel Garcia de repente virara
Maneco outra vez”, suando, canelas esfoladas, sujo de terra.
Depois que Chiru abandona a estância, na tentativa de se unir,
supomos, aos revolucionários de 30, começa sua decadência. Esconde-
se graças ao auxílio de Tomás Barbosa, antigo chacreiro da região,
aprende a jogar, beber, mentir; é preso na cidade, foge, passam-se
quatro anos, torna-se mascate, vive de forma inconsciente, ao sabor
dos acontecimentos, e passará a coabitar com Alzira, tornando-se,
depois, boteiro. Enquanto troteia no campo aberto, dirigindo-se ao
encontro da futura mulher, “a alma simples do índio se recolhia,
acompanhando a alma grande dos campos na paz do anoitecer”.
Trata-se do núcleo da narrativa, este trecho do capítulo 21:
Já agora as sombras iam se encontrar mansinhas, humildes, não querendo
assustar os viventes, quando a cheia, viva e enorme como um espanto, rasgou
o fundo do céu […]. E uma bruta saudade, grande como a lua, acendeu de
supetão na alma do gaúcho. Uma gana de voltar pelos caminhos andados…
De ser outro, de ser como contam que foram os gaúchos andarengos de
antigamente. De ser o que decerto fora seu pai, um índio vago… O que era
ele, Chiru, o mascate, o lambe-espora? Um sotreta! […]
E o que seria, se vivesse naquele outro tempo, no tempo das adagas
grandes, das pilchas prateadas, das onças sonantes, dos pingaços de lei, das
distâncias sem fim? Seria um campeiro guapo, um andarengo, um valente!
[…]

No que se refere aos diálogos, bem elaborados, ­leia-se, no capítulo


23, a conversa entre Lopes, dono de um bolicho, e Chiru, na qual está
presente a manipulação que, até hoje, determina o resultado das
campanhas eleitorais em grotões do Brasil.
A qualidade do conjunto, entretanto, é desigual. Um bom exemplo
encontra-se exatamente no capítulo 23, em que, após o diálogo de
Chiru e Lopes, surge, fora de lugar e sem naturalidade, o discurso
imaginário e as
reflexões do médico Rogério, candidato da oposição.
O maniqueísmo com que Cyro Martins trata a política, como se fosse
possível dividi-la entre bons e maus, falsos e verdadeiros, contamina o
próprio narrador e revela, sob o discurso recheado de lugares-comuns,
a voz do autor comunista.
Mas o problema maior é a falta de coesão, a inexistência de um
enredo que congregue os dramas pessoais. Quando, no início, os
personagens começam a surgir, inseridos em diferentes situações,
temos a expectativa de que o autor concatenará os fatos — mas tal
esperança se dissipa, restando ao leitor perplexo um conjunto de
figuras desunidas, que nunca interagem. Não há continuidade nessas
vidas que, ao final, formam não uma novela, muito menos um
romance, mas apenas certa coletânea de passagens curiosas, nas quais
Chiru às vezes perambula como um ser diáfano. O tempo em que a
narrativa transcorre é apenas sugerido, esgarçando ainda mais as
lacunas que nem mesmo um leitor imaginativo preencheria. Só o
domínio estilístico sobressai desses capítulos meramente contíguos,
com raríssimos conflitos. O drama existencial de Chiru, diminuído
para dar protagonismo aos vícios da disputa eleitoral, ressurge nas
últimas linhas, “apelo campeiro gritado dum fundo remoto”, mas
esgota-se na melancolia que encerra a narrativa alquebrada, colcha
mal urdida de bons retalhos.
CAPÍTULO 30

Maquinismo ideológico
— Abguar Bastos e Safra

Abguar Bastos participou da Revolução de 1930, ­rebelando-se com


o 26º Batalhão de Caçadores de Belém, no Pará. A vitória dos
revolucionários levou o escritor ao centro do poder estadual,
transformando-o em chefe de gabinete do interventor, Magalhães
Barata. Em 1935, vamos encontrá-lo na alta direção da Aliança
Libertadora Nacional (
ANL
), composta de socialistas, comunistas e
tenentistas de esquerda, todos sob o comando de Luís Carlos Prestes.
Depois dos assassinatos traiçoeiros da Intentona Comunista, Bastos,
que teve participação direta no movimento, é preso, apontado como
homem de confiança de Prestes. Dois anos mais tarde, está livre para
testemunhar o início da ditadura getulista, o Estado Novo, e publicar
o romance
Safra
.
O ideal revolucionário do escritor anunciava-se desde 1926, no
Manifesto Flaminaçu
(ou, como escreve Bastos, “
FLAMI-N’-ASSÚ
”),
em que conclama os intelectuais do Norte a abandonarem seu
tradicionalismo, voltando-se aos temas da realidade e do folclore
amazônicos. Trata-se de arroubo nacionalista que, na sequência de
1922, recusa o pau-brasil como símbolo e pretende “excluir qualquer
vestígio transoceânico” da literatura, “textualizar a índole nacional”,
“prever suas transformações étnicas”, “exaltar a flora e a fauna
exclusivas ou adaptáveis do país” e, finalmente, “combater os termos
que não externem os sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela
água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a
taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo
algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma”. Tudo para, ao
final, “dar de tacape na testa do romantismo” — esta, convenhamos,
a única ideia que não é risível.
Tal projeto, Bastos buscou concretizá-lo desde o primeiro romance,
Amazônia que ninguém sabe
, lançado em 1930. Segundo o que
afirma no prefácio de
Safra
, seu objetivo era revelar aspectos
desconhecidos da região, concentrando-se, a partir do segundo
romance,
Terra de Icamiaba
, na socioeconomia da castanha:
A era do fastígio dos castanhais me oferecia contribuição digna de ser
imediatamente revelada e mesmo necessária, a demonstrar que,
além do
seringueiro, já decadente, um outro tipo se movimentava no cenário duma
idade, positivamente mais notável: o castanheiro.

É a necessidade de expor o problema social que obriga Bastos,


portanto, à ficção. Mau começo para a literatura — e, no caso
específico de
Safra
, transpira, desde as primeiras páginas, nítida
insatisfação, como se o exercício de criar uma história não fosse
suficiente para o intelectual acostumado à luta política.

Curvatura de ginástica sueca

O romance inicia com o grito “embriagado de solidão” do


protagonista, Valentim, preso por ter assassinado Bento, a quem
aceitou como empregado na coleta da castanha, mas que se revela
desonesto, ludibriador. A narrativa se desenvolve em torno desse
crime, recuperando, numa entrecortada analepse, os acontecimentos
que levaram Valentim a cometê-lo.
Pari passu
, conhecemos as
histórias do rábula Teotônio; do policial — e carcereiro de Valentim
— Chico Polia; dos chefes políticos Leocádio e Dalvino, cuja
rivalidade polariza a região; das crianças do lugarejo, incluindo
Manduca, filho do protagonista, que crescem alimentando-se de barro
e roendo tijolos; de China, prostituta que se entrega, sem nenhuma
cobrança, a todos os presos — estes, aliás, vivendo soltos pela
cidadezinha, graças à desorganização administrativa, ao descaso das
autoridades.
Há passagens interessantes, que revelam boa expressividade,
algumas com agradável humor. Nos dois capítulos iniciais, veja-se a
descrição da cadeia, antiga escola, em que podridão e decadência
dominam: insetos e animais peçonhentos invadem a narrativa,
infestando não só a latrina, mas cada frincha das paredes, cada fissura
do passado que o narrador recria, de maneira que a deterioração tudo
contamina, até chegarmos à história de Paulino Surdo e seus
salvadores, os morcegos que, abrindo-lhe um furo na barriga
hidrópica, permitiram que o líquido jorrasse:
Os bichos têm cara de canibal. As suas orelhas, em concha, empinam como
duas folhas crespas. O seu focinho de rato, os seus pêlos de cão novo, os seus
peitos de homem, as suas barbas de gato, as suas unhas de pássaro, os seus
esporões de galo, a sua boca de peixe e, como pés de pato, as suas mãos, que
ao mesmo tempo são asas, tudo lhes dá esse contorno de animais
interplanetários, que não vieram do dilúvio, mas virão no apocalipse.

No final do primeiro capítulo, Valentim e Chico Polia estão


irmanados pela desgraça — voltam-se à infância, mas agora só existe,
entre a prisão em que se encontram e a mata povoada de criaturas
estranhas, o
cemitério. A morte domina a lembrança de ambos — e
cada um experimenta peculiar solidão.
A seguir, no capítulo “Teotônio”, o casaco monarquista do
advogado, “fraque soturno” que inspira “desconfiança”, é “capaz de
ficar em pé e marchar sem as pernas do dono”. Brilhando “como uma
folha de flandres”, esticado, semana após semana, pelo ferro de
engomar, o fraque ganha vida própria: “É mesmo possível que o
fraque existisse e Teotônio não”. O acerto das escolhas descritivas e o
humor compõem personagem inesquecível, figura que também se
dedica à astrologia, às línguas e às “inquietudes atmosféricas”:
Os seus óculos montavam guarda a um nariz arquissemita, que lhe viera do
tempo do bisavô, por parte de mãe. […] O queixo, petulante e irreverente,
avançava em curva excessiva além dos limites dum queixo relativamente
educado. Era um queixo que perdia a sua gravidade. Espichado e revirado,
vivia a espiar os buracos do nariz do Teotônio.

Ainda que sem humor, encontramos habilidade também no capítulo


“Capitão de praia”, com a dramática caça às tartarugas que buscam
praias fluviais no período da desova.
O episódio “A rainha do café” possui trechos de insuperável ironia.
Ali se concentra a crítica aos paulistas “modernos”, que visitam
regiões selvagens do país em busca de elementos excêntricos — e a
personagem ­Mário d’Almeida, “insolitamente grandiosa”, a quem
todos cumprimentam com uma “curvatura de ginástica sueca”, é o
próprio Mário de Andrade e sua caça ao verdadeiro Brasil. Em certo
trecho, as jovens sobrinhas da Rainha do Café, “amuadas”, dizem ao
poeta:
— Você nos prometeu mostrar o mapinguari, a mãe d’água, o curupira, a
cobra-grande e outros fenômenos. Até agora não vimos nada. Você nos
blefou, Mário.
O poeta ficou triste. Desculpou-se:
— Eu pensava encontrar curupira em Manaus. Como gente, sabe? Chapéu
de palhinha, paletó saco, calças largas, camisa americana e horríveis botas de
curupira, isto é, com o salto na frente. Mas, infelizmente, o Brasil ainda está
muito atrasado.
As meninas não sabiam se o poeta estava falando sério ou zombando.
Também não perguntaram. Limitaram-se a rir.
Porém, repararam que ele estava com raiva. E foi nesse instante que Mário
d’Almeida inventou ­Macopapáco — um herói de romance,
tremendamente
nacional.

Falha estrutural e marxismo

O romance, contudo, decepciona, primeiro por sua falha estrutural:


as cenas são justapostas; raramente se interligam ou provocam a
interação dos personagens. Trata-se de conjunto esquemático, no qual
os melhores trechos estão, quase sempre, desligados do conjunto.
Alguns, inclusive, obedecem claramente a intuito informativo,
documental.
Safra
nos faz recordar a lúcida crônica de Manuel Bandeira,
publicada em 9 de setembro de 1933: citando o filólogo e crítico
literário João Ribeiro, para quem a “pura imaginação” é “aptidão a
reproduzir no espírito as sensações”, enquanto define “fantasia” como
a “capacidade de organizar as imagens na unidade de uma obra”,
Bandeira afirma sobrar imaginação aos nossos romancistas. No que se
refere à fantasia, entretanto, ela é suficiente para “representar uma
vida, algumas vidas”, mas quando, num romance, “elas são
numerosas e as relações se multiplicam e complicam, falta-nos a força
do contraponto para compô-las”. Não temos, completa Bandeira, “a
aptidão de combinar tanta abundância de imagens e, sobretudo, de as
exteriorizar artisticamente num entrecho que nos dê a ilusão da vida
em toda a sua rica versatilidade”. Defeito que nossa literatura
contemporânea só confirma.
No prefácio Bastos afirma que, em
Safra
, “a intenção social e sua
experiência artística se misturam sem que um perceba o outro. Não
será como água e azeite. Será, antes, como a luz e a cor”. Não cumprir
o prometido é, dessa forma, a segunda decepção, pois o narrador
gasta longos trechos num iterativo discurso sociológico — e, temeroso
de que a catequese não convença o leitor, encarrega Chico Polia de
repetir a mesma arenga. O último capítulo é sintomático:
contrariando seus personagens, desprezando, do alto de sua ilustração
marxista, os dramas que experimentam, o narrador quer condenar
todos a um determinismo atroz — transforma, assim, em maquinismo
ideológico o que, nas mãos certas, poderia ser um bom romance.
CAPÍTULO 31

A sombra de Deus
— Otávio de Faria e Mundos mortos

Os quinze romances que compõem a


Tragédia burguesa
, de Otávio
de Faria, são, com absoluta certeza, os mais desconhecidos da
literatura nacional. A mortalha usada para esconder das últimas
gerações esse ciclo romanesco que se inicia em 1937, com
Mundos
mortos
, e termina em 1979, com
O pássaro oculto
, é o índice claro
dos erros cometidos por movimentos literários — e teóricos da
literatura — que enaltecem a forma sobre o conteúdo, o niilismo e
seus nocivos derivados sobre a necessária interrogação a respeito da
vida, as náuseas do eu narcisista sobre a complexidade, sempre
dramática, do ser humano. Movidos também pelo ardor marxista,
enxotaram para o limbo nossas duas principais obras
antirrepublicanas:
Fastos da ditadura militar no Brasil
, de Eduardo
Prado, e
A todo transe!…
, de Emanuel Guimarães, ambas, em seus
campos específicos — o libelo de cunho ensaístico e o romance
político —, vibrantes e corrosivas. Mas se, nesses casos, tratou-se de
sufocar algumas centenas de páginas, com Otávio de Faria o crime se
agiganta: sete mil páginas; mais de quarenta anos de trabalho. Não é,
contudo, surpreendente que o tenham feito, pois mais impressionante
é nosso silêncio, termos consentido com tal estrangulamento, possível
apenas por chegarem a controlar imprensa, editoras e universidades —
tamanha foi nossa negligência.
Quanto mais o leitor avança em
Mundos mortos
, mais o incômodo,
certo estranhamento, parece dominá-lo — estará, em vários trechos,
perigosamente próximo do tédio; e, chegando ao final, não
compreenderá o mal-estar, o desagrado que o domina. Sucede que o
romance exige reeducação estética. Tudo o que hoje se venera como
exemplar em literatura — da concisão telegráfica à exaltação do
pansexualismo, passando pela ausência de reflexões filosóficas e pelo
totalitarismo do narrador em primeira pessoa — está em completa
oposição às escolhas estéticas do autor. Como bem mostrou José
Carlos Zamboni em sua perfeita análise da
Tragédia burguesa

“Octavio de Faria, nosso contemporâneo”, publicada no volume 2, de
novembro de 2014, da extinta
Revista Nabuco
—,
Mundos mortos
e
os catorze livros subsequentes “encaixam-se na grande tradição do
romance ensaístico, ao lado de um
Proust, um Musil, um Thomas
Mann, um Hermann Broch”. Não por outro motivo, como salienta
Zamboni, Gustavo Corção, ainda que elogiasse Otávio de Faria,
reclamava, numa entrevista de 1946, da falta de “riqueza plástico-
visual”, salientando que “os personagens sofrem da ausência de
atitudes e palavras gratuitas que vivifiquem e oxigenem a cerrada
trama psicológica em que se debatem”.
São reclamações semelhantes às dos editores que, na mesma década,
se recusavam a publicar
Under the ­Volcano
, de Malcolm Lowry,
considerando-o lento e tedioso, com personagens de características
débeis e um narrador pronto a cometer divagações em excesso. Otávio
de Faria pertence a esse grupo de escritores — figuras não só como
Shelby Foote, que demorou vinte anos para terminar os três volumes
do seu épico
The Civil War: A Narrative
, mas também como Thomas
Mann, que sempre buscou revelar o que se esconde sob o “mar em sua
monotonia ininterrupta”, pronto a “escutar sem fôlego o
insignificante”, segundo suas próprias palavras. O narrador de
Mundos mortos
cumpre o anseio de Schopenhauer, partilhado por
Mann: “Um romance será tanto mais elevado e mais nobre, quanto
mais vida íntima e menos externa apresentar”, já que “a arte consiste
em salientar bem a vida interior usando o menos possível a exterior:
pois o íntimo é realmente o objeto do nosso interesse”.
Tal narrador nos coloca, desde as primeiras páginas, no centro da
crise experimentada por Ivo, adolescente órfão de mãe e pai, criado,
junto com o irmão, Carlos Eduardo, pelas tias amorosas, Matilde e
Lisa:
[…] Lá fora chovia mais forte, agora. Como se fosse impossível conciliar
todas as coisas que estava sentindo, Ivo sacudiu a cabeça e mergulhou-a
fundamente no travesseiro. Viesse agora o que viesse. Estava por tudo, cedia
de uma vez. Para que lutar? Para que se desesperar noites e noites, diante de
uma coisa contra a qual não podia nada, absolutamente nada? Sacudiu o
lençol com irritação várias vezes seguidas e sentiu que uma leve aragem lhe
passava pelo corpo. O mesmo abafamento permanecia no entanto, a chuva
não o tendo modificado em nada. Ivo continuava acordado. E dentro dele,
reforçadas pela temperatura cúmplice, as mesmas imagens de sempre, da
véspera e da antevéspera, de todos aqueles últimos dias, procurando
continuar a viver nele, convidando-o incessantemente a um abandono
completo. As mesmas ideias, as mesmas visões, que, por mais estranho lhe
parecesse, estavam ali ao seu lado, no travesseiro onde mergulhava a cabeça,
fora, independentes. […]

Crise que o levará ao fim do namoro com Lourdes, sua prima e


primeiro amor, e também à cisão definitiva de sua personalidade: ao
final do
romance, Ivo não será mais o jovem que
gostava de tudo como se gosta das coisas conservadas longo tempo […], das
casas onde se vive bem e feliz, da família que se teve e não tem mais, de tudo
que foi nosso algum tempo e de que somos obrigados a nos separar antes do
triste momento da saciedade ou do amargor que envenena as recordações.

Assim fala o narrador tão onisciente e onipresente quanto os


narradores de Balzac, pronto a revelar o móvel das decisões
individuais e coletivas:
[…] Nunca ultrapassavam determinados limites, por receio, ou por se
satisfazerem com o que conseguiam, ou ainda por escrúpulos de ir mais além,
ou talvez mesmo por simples impossibilidade de vencer certas resistências
encontradas.

O cenário da maior parte do romance é um colégio carioca, dirigido


por padres jesuítas. Ali acompanhamos “as dificuldades da batalha
por ocasião desses primeiros encontros de uma alma incerta, aturdida
por choques constantes, como uma força em luta por se manifestar,
por se expandir e viver em liberdade, ambicionando sempre um
campo mais vasto onde lhe seja possível se lançar, se desenvolver e,
por fim, se gastar inteiramente”, diz o narrador, que não se nega às
contorções necessárias para mostrar a subjetividade dos personagens.
Na exata medida em que as crises — não só de Ivo, mas de outros
personagens, como Roberto Dutra, que protagoniza a segunda parte
— se acentuam, surge outra característica fundamental do autor: o
catolicismo. Essa opção existencial e filosófica, não apenas religiosa,
marca seu entendimento do drama humano. Se, como afirmou T. S.
Eliot, “a totalidade da literatura moderna está corrompida por algo
que chamaria de secularismo, que simplesmente não tem consciência
ou não é capaz de entender a importância da primazia do sobrenatural
sobre a vida natural”, para Otávio de Faria esse é o tema subjacente
às escolhas de seus personagens. Para ele, estamos sempre colocados
diante do Bem e do Mal; e crises, dramas, escolhas, angustiadas ou
não, nunca representam eventos solitários, nos quais o homem pode se
espojar numa aventura meramente narcísica, pois é impossível viver à
margem dos nossos próximos. Muito além de qualquer pietismo,
muito além de um cristianismo que é somente moralismo, Otávio de
Faria apresenta o homem na sua principal debilidade — a inevitável
tendência ao mal — e no seu inquietante percurso entre a vida e a
morte, entre o pecado e a graça divina.
Ateus terão dificuldade para compreender a luta interior dos
personagens de
Mundos mortos
, mas a técnica literária mostra-se
irrefutável. Veja-se, por exemplo, como o narrador reconstrói o
itinerário de Roberto Dutra, a zona de sombra à qual ele adentra
vagarosamente, acreditando, semelhante àqueles que não conhecem a
si mesmos, ser formado apenas de boas intenções, até despertar para a
consciência de que
desenvolvera-se nele um desses processos misteriosos e subterrâneos que tudo
conseguem porque nada dizem e nem mesmo parecem existir — tão
silenciosos, na sua lenta e poderosa miragem, que é de repente, um belo dia,
que se tem consciência da obra realizada, de que o edifício está por terra, o
mundo sem eixo, a paixão transformada em desejo cego e repulsivo.

O exercício de liberdade do personagem exacerba a revolta, tão


sartriana quanto infantil, do homem contra Deus — mas não há
maniqueísmo. Ao mostrar as sutilezas, os labirintos da mente humana,
por onde mal e bem se insinuam, Otávio de Faria está pronto a revelar
que “o amor não é impossível, seguramente não o é. Mas é um
milagre — o milagre de um equilíbrio que nada consegue romper,
apesar de sua infinita fragilidade”.
Longe de ser, como julgam os apressados, obra de um sermoneiro,
romance confessional ou apologético,
Mundos mortos
faz com que
conheçamos “forças existentes no interior do homem que o levam a
sentir terror de si mesmo” (o que Malcolm Lowry desejava para
Under the Volcano
); e nos aguilhoa com as interrogações de Padre
Luís, um dos principais personagens de toda a
Tragédia burguesa
: “É
preciso não querer demarcar a sombra de Deus na Terra… Nós, o que
vemos da vontade de Deus, é uma sombra apenas — é como se
víssemos a sombra que se projeta sobre a Terra, de um vulto sempre
em movimento… Como fixá-la? Como demarcar essa sombra em
eterno movimento? Como julgar se é maior ou menor que uma
outra?”.
CAPÍTULO 32

Guia turístico
— Osvaldo Orico e Seiva

A reação de Osvaldo Orico à Revolução de 1930 — ­tornou-se


diretor de propaganda da Frente Única Paraense (
FUP
), organização
que surge em 1934 para se opor ao interventor nomeado por Getúlio
Vargas — durou pouco: ainda no Estado Novo, foi nomeado a cargos
diversos, inclusive diplomáticos; depois, eleito deputado federal, não
hesitou em apoiar o ex-ditador no segundo período de governo, de
1951 a 1954. Orico, entretanto, está longe de ser um caso isolado —
apenas seguiu a prática nacional dos acordos a qualquer custo,
obedecendo não só às orientações da própria
FUP
, mas ao movimento
nacional que, incluindo os comunistas mais ranhetas, fez vista grossa
aos crimes da ditadura getulista e se aproveitou de postos na
burocracia.
Poeta, contista, autor de biografias, ensaios e estudos sobre o
folclore amazônico, Orico deixou um único romance,
Seiva
,
publicado em 1937, quando também foi eleito para a Academia
Brasileira de Letras, pouco antes de completar 37 anos.
O enredo de
Seiva
é primário: Ellen Gray, filha do empresário e
chefe da missão comercial americana no Tapajós, visita a região para
conhecer a selva e os empreendimentos familiares. Numa excursão à
floresta, perde-se do grupo, mas é salva por Uitá, empregado de seu
pai, reencarnação, ainda que desvigorada, do alencariano Peri. Passam
a noite na selva, quando instintos “genésicos” dominam o casal. De
volta à civilização, o desfecho dramático: Ellen é mandada de volta
aos Estados Unidos; Uitá, revoltado, deflagra uma greve que se
transforma em conflito armado, pois a ciumenta Ritoca, apaixonada
por ele, trai o movimento. Uitá e Ritoca, entretanto, seguindo
caminhos diferentes, desaparecem na floresta, tragados, suponho, por
sucuris ou plantas carnívoras.
As primeiras páginas da narrativa delineiam a personalidade da
protagonista, Ellen, ressaltando o temperamento que desprezava “a
agitação dos salões de dança […] pelo prazer de leituras […]. Tinha a
vocação da surpresa, do inesperado, e, sobretudo, uma indisfarçável
antipatia pelos homens vulgares”. Voluntariosa e aventureira,
demonstra “inaptidão para a vida do matrimônio numa constante
fuga
de si mesma”. O narrador ainda salienta o “excessivo pudor”, o
“infinito zelo” que havia paralisado “todas as inquietações
femininas”, de tal maneira que “todos os homens […] pareciam-lhe
fantoches ensinados”. Essa jovem imagina, para a região que visita,
“uma topografia exótica, misteriosa e indescritível”, mas encontra,
decepcionada, ainda em Belém, no início da viagem,
uma cidade como as outras, com a reta cimentada de seu cais em comércio
com paquetes de todas as procedências; e, mais ao longe, elevando-se sobre a
fila de armazéns de zinco cinza, cúpulas e coruchéus de mercados e igrejas,
cumeeiras e cornijas de edifícios públicos, um quadro que nunca supusera
deparar, embebida na miragem das descritivas que lhe haviam feito.

Tal personalidade complexa não alcança, contudo, vida


independente. Marionete do narrador, destituída de vontade, será
jogada de uma cena a outra. O narrador a descreve, nossa imaginação
cria expectativas, mas Ellen jamais ultrapassa o estágio de figura num
museu de cera: moldada com perfeição, parecendo humana, podemos
observá-la durante horas, ir e voltar sobre as páginas, mas só
encontraremos o que o narrador diz, sem nenhum sinal de que ela
efetivamente se alegra, decide, reluta, sofre.
Na verdade, o problema de
Seiva
é mais grave: não há trama, só a
retórica do escritor, num tom que, apesar do esforço para se
aproximar da épica, jamais cria aventura — e por um motivo simples:
os personagens não atuam, não têm vida própria. No caso específico
de Ellen, suas características se diluem de tal maneira que, depois de se
perder na floresta, ao ser encontrada por Uitá, entrega-se ao mateiro
como um animal pavloviano, sem nenhuma hesitação, nenhuma
dúvida — e, depois, nenhuma crise de consciência ou manifestação de
prazer, arrependimento, felicidade.
O mesmo ocorre com Uitá, mero autômato musculoso, enaltecido
em diversas páginas, mas que jamais comprova, por meio de uma
decisão pessoal, o que o narrador afirma.
É a tragédia do leitor: ser obrigado a conviver com personagens
desprovidos de memória, dicção e vontade, que raramente dialogam,
não fazem abstrações, não tentam se antecipar aos fatos, não se
questionam.
Quando chegamos à metade do livro já entendemos o porquê desse
defeito: acima do enredo mal-ajambrado encontram-se duas
necessidades vitais do autor: demonstrar eloquência e relatar fatos
curiosos, folclóricos, da Amazônia.
Obedecendo à lei geral de muitos dos nossos prosadores, Osvaldo
Orico é retórico segundo a definição de Juan ­Carlos Onetti: repete
elementos
literários, ao invés de criá-los; trata-se de um aplicador de
fórmulas prontas, nada mais. O leitor poderá aproveitar
Seiva
para
compor uma lista de antonomásias, metáforas, enumerações,
hipérboles e outras figuras, mas sempre com a linguagem que não
ultrapassa o lugar-comum ou cria discursos bombásticos. O pai que,
durante a noite, vela a filha, pois prevê o assédio do comandante do
navio, transforma-se nisto: “[…] Embaixo da tipoia onde a pequena
rendeira dormia seu humilde sonho de zíngara, velava o ardente zelo
do jaguar nordestino”. O rio Tapajós é “um colorido tributário
amazônico, que é uma espécie de vassalo verde do rei moreno”. Ellen
não se aproxima da floresta amazônica, mas da “selva despida e
violada pela cobiça de uma civilização curiosa e veloz”. Os retirantes
nordestinos que migram para a Amazônia “personificam a angústia de
uma região causticada pelo Sol e devastada pela seca”, enquanto os
moradores da floresta “exprimem a contradição dessa angústia,
arrastando atrás de si o calvário das enchentes”. Não basta ao
narrador repetir o chavão da floresta que “se estende, misteriosa e
sombria” — ele precisa compor o discurso que ficaria bem na voz de
algum populista, principalmente se transmitido em horário nobre e
rede nacional:
Há que travar uma luta demorada, tenaz, contra essa muralha verde, que à
primeira vista parece dócil com a sua trama de flabelos e seu festim de
parasitas, mas que guarda, no fundo, o segredo das couraças, resistindo aos
domadores velozes, e sensível, apenas, ao facão do seringueiro caboclo, o
único violador venturoso dos seus atalhos.

Mas tudo pode ser pior quando o escritor ­mostra-se incapaz de


conter sua verborragia. Depois da cena mal construída em que Ellen e
Uitá, juntinhos na selva, ­entregam-se a seus instintos — sempre
“genésicos” —, o narrador desembesta numa homilética biologista
que explica o título do livro:
Vida é seiva.
Seiva é batismo das substâncias que se querem, que se penetram e que se
unem para melhor se completarem.
Saúde e vigor da terra!
Sangue que a terra dá, em segredo, no conúbio subterrâneo das raízes que a
apalpam, que a sugam, que se dão às suas fecundações silenciosas.
Noivado imperceptível do humo, que fermenta nas florestas, nas trufeiras, e
nutre todas as espécies vivas. Todas. […]
Seiva é fecundidade. Não admite hesitações entre as raízes famintas. Neste
solo, a regra de todas as espécies vivas é recebê-la. […]
Seiva é obediência a um mandamento. […] É a cópia humana dos
hialonemas, que mergulham as esponjas fibrosas nas grandes profundidades.
Que realizam nas simbioses o abraço dos organismos mais diversos, — corpos
que se desagregam e se associam em benefício de transformações que renovam
e perpetuam a vida vegetativa.

Transpor o vocabulário biológico à literatura serve à pretensão de


justificar qualquer comportamento humano. É mais fácil construir um
personagem que só obedece a seus instintos, a seus impulsos, que
obrigá-lo a fazer escolhas conscientes, questionamentos, o que exige
do escritor observação, técnica ficcional e autoconsciência. No
naturalismo rasteiro do autor, não: basta que os personagens sejam
prolongamentos mecânicos da ordem natural da selva, nada mais.
Temos também a segunda necessidade vital de Osvaldo Orico: está
pronto a sacrificar a continuidade da narrativa, desde que possa
incluir, em cada cena, alguma informação folclórica. Não dispensa,
inclusive, as listas de coisas típicas, transformando seu texto num
relatório de curiosidades, festas, hábitos alimentares, animais que
prenunciam acontecimentos bons ou funestos, mandingas. Há uma
lenda escondida em cada curva do rio, em cada laço de cipó — e ela
sempre interromperá a história, semelhante a um anúncio publicitário
que oferece quinze dias na Amazônia, com diárias completas, em vinte
suaves prestações. Seria melhor que o autor tivesse escrito mais um
manual de folclore ou um tratado de etnografia — e não esse
insignificante guia turístico.
CAPÍTULO 33

Receita de abulia
— Cyro dos Anjos e O amanuense Belmiro

Aos 38 anos, o amanuense Belmiro Borba decide, pela terceira vez,


escrever suas memórias. Sobre a cova onde enterrou as tentativas
anteriores — nos fundos da casa humilde, na Rua Erê, em Belo
Horizonte —, nasceu a planta vulgar, tão comum e tão destituída de
atrativos quanto o amanuense ou seus escritos: uma bananeira. O
próprio Belmiro se considera “fruto chocho” da árvore genealógica de
sua família, pois não encontra em si “a força, o poder de expansão, a
vitalidade dos antepassados” e, principalmente, do pai, que lhe dizia,
com amargura: “— Como Borba, você faliu”. Na juventude, depois de
abandonar a fazenda para estudar agronomia, Belmiro pôs-se a
conviver com literatos e “a sofrer imaginárias inquietações”. Quando
o pai percebeu, era tarde.
No início de seus exercícios de rememoração — objetivo inicial do
narrador de
O amanuense Belmiro
, de Cyro dos Anjos, publicado em
1937 —, ele afirma reconhecer em si mesmo “certa dissolução do
espírito” e recorda a fala de Glicério, colega da repartição: “Você é
um homem errado, Belmiro!”.
Logo entenderemos as razões de Glicério, por enquanto basta saber
que nada persevera na vida do amanuense, incluindo o propósito de
escrever as memórias. Os saltos de tempo que permeiam os capítulos
iniciais revelam a completa falta de ânimo para levar qualquer projeto
adiante. Belmiro se apresenta, assim, como a figura do fastio, e as
memórias se transformam em um diário relativamente curioso.
Página a página, delineia-se a personalidade patética, alimentada
somente de impossibilidades, homem para o qual a urgência de viver
não existe, cujas poucas decisões nem sabe ao certo como e por que
tomou. Trata-se de narrador irritante, resignado a viver na casa de
assoalho apodrecido, sob o qual os ratos procriam, e na companhia de
duas irmãs obtusas: Francisquinha, realmente louca, de tempos em
tempos internada no manicômio; e Emília, estranha a ponto de,
durante as refeições, colocar diante de si um anteparo de papelão, a
fim de não olhar para Belmiro.
Esse “incorrigível produtor de fantasias, a retalho e por atacado”,
como
ele se define, esforça-se por não viver. Evita, inclusive, expressar-
se em demasia: fala e escreve pouco. Jandira, uma amiga, classifica-o
como “analgésico”, e ele afirma não só distanciar-se de todo
inconformismo, mas chega a sentir “ternura” pelo edifício em que
trabalha.
Tergiversando com os fatos, com a vida, reconhece, no entanto,
adular “em todos os tempos e modos”. É um homem insignificante,
que poderia ser o destinatário de uma das visões místicas que
compõem o
Apocalipse
: “Conheço tua conduta: não és frio nem
quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, nem
frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca”.

Retórica e dissimulação

A repulsa que o narrador provoca nasce, inclusive, da visão


distorcida que tem de si próprio e dos outros. A voz que fala em
primeira pessoa, que relata poucas reflexões e o cotidiano medíocre,
nem sempre é o personagem real, que assina o ponto na Seção de
Fomento e usa
pince-nez
, mas o resultado da mente perdida em
lucubrações. Ele afirma conhecer-se, mas é traído por seu discurso,
que o denuncia, apresentando-o em sua frouxidão.
Certa madrugada, os latidos de um cachorro da vizinhança o
impedem de pegar no sono. Belmiro atira, então, um sapato velho pela
janela, mas age consciente de que o faz na direção errada,
comportando-se assim para descarregar a irritação momentânea. Ao
narrar o fato, apega-se a um pensamento atribuído a Montaigne, com
o qual diz concordar: “A alma descarrega suas paixões sobre os
objetos falsos, quando faltam os verdadeiros”. Tal argumentação não
passa, contudo, de retórica capciosa, usada — conscientemente ou
não, jamais saberemos — para justificar a própria fraqueza. Os
“objetos” reais estão à mão, a vida pulsa e se oferece, mas Belmiro se
recusa a viver, optando pela solução menos trabalhosa. A regra que se
repete é jogar sempre o sapato na direção errada. Revela-se, desse
modo, um dissimulado — ou um delirante —, incapaz, entretanto, de
enganar seus leitores.
Define-se também como “um amanuense complicado, meio cínico,
meio lírico, e a vida fecundou-me a seu modo, fazendo-me conceber
qualquer coisa que já me está mexendo no ventre e reclama
autonomia de espaço”. Novas mentiras. Não é nem cínico nem lírico.
Talvez superficialmente lírico, mas falta-lhe estofo para o cinismo.
Resume-se, na verdade, a um inútil, que, poucos parágrafos depois,
anota, num breve momento de lucidez: “Minha vida tem sido
insignificante”.
Em um de seus raros desabafos, reclama: “Quero rir, chorar, cantar,
dançar ou destruir, mas ensaio um gesto, e o braço cai, paralítico”. A
verdade, contudo, é que nada pulsa em Belmiro e suas reclamações
não convencem. A vida sempre o toma de assalto. No Carnaval,
andando pelas ruas, vê-se “inesperadamente” envolvido pelo cordão e
arrastado por quarteirões como um espantalho. Sua permanente
impassibilidade transforma esses tímidos reclamos em meros
exercícios de retórica.
Sem convicções, entregue à inércia, constrói uma imagem distorcida
de sua personalidade. No capítulo 24, aparentando estar indignado
com os sentimentos platônicos que passou a nutrir por uma jovem,
afirma: “Reajo com virilidade contra essa ridícula história da noite de
carnaval”. Mas não há qualquer virilidade ou reação, pois ele não só
voltará aos idílios pueris, mantendo-se incapaz de uma decisão, como,
no final do capítulo, arremata, pleno de espantoso vigor: “É preciso
fazer qualquer coisa. Sobretudo tomar um sorvete, pois a noite está
quente”.
Pouco antes, ao pensar em Carmélia, a jovem do baile carnavalesco,
escreve: “A solidão fez com que eu revivesse um processo infantil e o
velho mito de Arabela ­perseguia-me sempre. Uma noite de carnaval,
cheia de sortilégios, fez-me encarná-lo nessa donzela Carmélia, que
não tem culpa de coisa alguma”. Em sua mente fantasiosa, realmente
imagina que a noite foi “cheia de sortilégios”, mas a verdade será
exposta, sem rodeios, por Glicério, no capítulo 43. Tendo conversado
com Carmélia, de quem frequenta a casa, o colega de repartição ouve
da jovem o relato do momentâneo encontro com Belmiro, que se
resume à visão de um homem maduro e bêbado, assistindo
maravilhado ao baile e, segundos depois, desmaiando.
Ao comentar sobre suas pobres variações de humor, Belmiro diz:
“Em todo este esboço de livro, um problemático leitor futuro sentirá
os abalos que tais desnivelamentos determinam”. Novamente, a
retórica — o único recurso de que ele dispõe para inocular um pouco
de vida aos seus dias — é empregada para exagerar o que se passa em
seu íntimo e, também, justificar a existência pequena. Não existem
“abalos” ou “desnivelamentos”. E não se trata de um “esboço de
livro”, mas, sim, de um esboço de vida, enfadonho sob todos os
aspectos.
São inúmeros os trechos nos quais surge essa visão deturpada. Ao
saber do noivado de Carmélia, diz ter-se conformado “sem esforço”,
quando a verdade é que continuará a remoer suas fantasias. Analisa o
comportamento de Glicério, este também enamorado da moça, apenas
para concluir, numa transferência digna de tratamento médico, que o
colega “é um hesitante, um homem sem endereço”. A seguir, de
maneira risível, completa o julgamento: “E, como não dispõe dos
recursos com que conto, irritou-se, ao passo que eu assumi uma
atitude quase olímpica”.
Tão “olímpica” que, dias mais tarde, seguirá
para o Rio de Janeiro, a fim de acompanhar a partida do navio no
qual embarcarão Carmélia e o marido, sempre repetindo, no entanto,
que “o desejo de ir não foi veemente”, mas “uma vaga ideia”. Na
véspera da partida, cansado das andanças pelo Rio, decide voltar a
Belo Horizonte sem ir ao porto. Entretanto, um parágrafo depois, no
início do capítulo 79, confirma ter visto o navio zarpar.

Amizades sem rosto

Belmiro busca desculpas para não viver e, ao mesmo tempo, reclama


da vida que passa sem que nada aconteça. Tem poucas amizades e diz
contentar-se em manter “cinco por cento de afinidade”, mas logo a
seguir confessa: “Só desejo que me deixem sossegado”. Assim,
relaciona-se, mas superficialmente. Não se revela, não porque tenha
algo a esconder, mas por refrear os raros impulsos.
Define suas amizades como “funcionais”, e talvez por esse motivo
não forneça a descrição da fisionomia dos amigos ou das irmãs,
personagens sem face, superficiais. O mais complexo de todos,
Silviano, é um quarentão hipócrita, machista e mitômano, dado a
mixórdias filosóficas. Glicério não passa de um arrivista. Jerônimo,
um católico inveterado. Redelvim, um esquerdista pseudo-
revolucionário. Jandira dedica-se apenas a flertar, instilando falsas
esperanças nos admiradores. E, por fim, Florêncio, a um passo do
alcoolismo, que, semelhante a Belmiro, é “o homem sem abismos”, “o
homem linear”, qualificado de “repousante amigo”.
Na solidão da Rua Erê ou nas poucas conversas com Silviano,
Belmiro julga a maioria das pessoas como “filistinos”. Percebe-se o
evidente despeito do narrador sem perspectivas, cujos movimentos —
e também os escassos gestos de amizade — são mais frutos da inércia
do que do entusiasmo ou de qualquer outra pujança.
A partir de certo momento, quando Belmiro percebe que as relações
começam a se desintegrar e os amigos se afastam, passa a manter
relações com o contínuo da repartição, Carolino, que todos avaliam
como louco, mas que lhe empresta dinheiro e chega a antecipar o
pagamento de algumas contas. É a única amizade que restará.

Anti-romance

Nos dias em que permanece no Rio de Janeiro, o amanuense acaba


por sentir-se perturbado diante do mar, pois “é vário e a cada instante
se renova. Cada onda lhe traz formas novas, cada vaga, traços novos
de
vida”. Ao deparar-se com sua antítese, Belmiro chama o mar de “o
grande paralítico”, numa tentativa de remover o mal-estar que
experimenta por se sentir, ele sim, um paralítico, seguro apenas na
casinha da Rua Erê, ouvindo o “lento martelar do relógio”.
Em certas páginas, o narrador tem um lampejo de consciência e se
pergunta: “Não estarei aqui somente para integrar o vasto painel
humano — ponto de luz ou de sombra, molécula puramente pictórica,
sem outro destino?”. Mas a chama logo se apaga e ele permanece
incapaz de ajudar até mesmo o cachorro que surge à noite, com a cara
enfiada e presa na lata de lixo: “Bem podia ser que ele me agradecesse
o benefício com uma dentada, refleti, para ter em paz a consciência”.
Talvez pudéssemos concluir que
O amanuense Belmiro
é o romance
brasileiro por excelência, ou seja, o ­anti-romance — ou, como afirma
Alcir Pécora, um “romance que se divisa como possibilidade” —, pois
o que tem sido o Brasil, senão a promessa que não se cumpre?
“Réplica nova de um reino velho” — no pensamento modelar de
Raymundo Faoro, em
Os donos do poder
—, a passividade é um dos
principais rebentos da formação deste país, em que as mudanças
políticas nascem sob o comando de traiçoeiras facções. Nesse ponto,
aliás, Belmiro acerta ao simplificar, para Emília, a Intentona
Comunista, comparando-a à Revolução de 1930: “Uma briga de
coronéis, gente graúda”.
Quando o leitor se aproxima do final dessa maçante narrativa,
percebe que o diário não passa de uma justificativa a mais para
Belmiro continuar sendo o que é, enganando-se ao reclamar que “a
vida se torna vazia”, pois ele próprio comentou, páginas antes,
impregnado de prazer: “É a vida quase boa, quando é vazia como
neste domingo”. Resta, assim, a este exemplo acabado de acídia,
apenas o ridículo de quase ser atropelado por Carmélia e o marido,
que, recém-chegados da Europa, riem dentro do automóvel e partem
sem lhe pedir desculpas; e a última frase, a pergunta cujas possíveis
respostas estão — irremediavelmente — contaminadas de enfado.
CAPÍTULO 34

Jorge Repetidor Amado


— Jorge Amado e Capitães da areia

A biografia de Jorge Amado é indissociável do comunismo,


ideologia política da qual foi fidelíssimo seguidor, tendo recebido, em
1951, o Prêmio Stalin, outorgado a figuras públicas que de alguma
forma lutaram pela implantação do ideário esquerdista — ou, na
linguagem de propaganda da antiga União Soviética, “em defesa do
fortalecimento da paz entre os povos”. Desde 1932 integrado à
Juventude Comunista, Amado ascendeu, em 1935, ao comitê dirigente
desse setor do partido, quando atua na covarde Intentona, o que lhe
garantiu seguidas prisões. Prolífico escritor, o primeiro período de sua
carreira literária é impressionante: seis romances entre 1931 e 1937 —
febre não só ficcional, mas principalmente política.

Antiestilo

Em 1937, chega às livrarias


Capitães da areia
, história de uma
gangue de meninos de rua que aterroriza Salvador. A fim de
contextualizar o drama dos componentes da quadrilha, Amado
elabora reportagens e cartas, publicadas em periódicos
soteropolitanos, mostrando o debate que divide a sociedade: pessoas
pobres e caridosas defendem os criminosos; representantes da polícia e
do Poder Judiciário só desejam oprimir e torturar. Introduzido na
trama, o leitor conhece o armazém que os delinquentes habitam.
Pari passu
o surgimento gradativo dos personagens, alguns de
psicologia bem delineada, como o contraditório Sem-Pernas, sobressai
a certeza de que o narrador defende os criminosos, pois descreve-os
segundo a fórmula que se repetirá ao longo do romance: “Vestidos de
farrapos, sujos, semiesfomeados, agressivos, soltando palavrões e
fumando pontas de cigarros, eram, em verdade, os donos da cidade,
os que a conheciam totalmente, os que totalmente a amavam, os seus
poetas”. Em vão o leitor busca provas desse amor e dessa poesia, mas
o narrador insiste que a própria gargalhada dos Capitães, emitida
após cada crime bem-sucedido, soa como “um hino do povo da
Bahia”. Essas idealizações vêm sempre acompanhadas de
sentimentalismo: todos se amam ou se consideram
irmãos, unidos pela
falta de carinho e de conforto. A tais fórmulas fáceis o narrador
acrescenta o mais batido dos esquemas sociológicos, segundo o qual a
pobreza justifica o crime: “Sua vida era uma vida desgraçada de
menino abandonado e por isso
tinha de ser
[grifo meu] uma vida de
pecado, de furtos quase diários, de mentiras nas portas das casas
ricas”.
A sociologia rasteira polui, é claro, a psicologia dos personagens: no
capítulo “Filha de bexiguento”, por exemplo, Dora, órfã de mãe e pai,
obrigada a pedir ajuda a uma antiga freguesa de sua mãe, é cobiçada
pelo filho desta: “O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve
pensamentos canalhas ao ver o pedaço de coxa. Já se sonhava na
cama, Dora trazendo o café pela manhã, a safadeza que se seguiria”.
Duas páginas à frente, acolhida por membros dos Capitães da areia, o
narrador enche-se de complacência pelos heróis tão puros: “Mas não
olhavam nem os seios, nem as coxas. Olhavam o cabelo loiro batido
pela luz das lâmpadas elétricas”.
Além desses problemas, a indigência estilística predomina, pois o
autor é obcecado por repetições. Ao descrever o personagem Gato, ele
diz: “Uma noite […] andava pelas ruas das mulheres, o cabelo muito
lustroso de brilhantina barata, uma gravata enrolada no pescoço,
assoviando como se fosse um daqueles malandros da cidade”. Na
página seguinte, parece ter se esquecido dessas linhas, e insiste: “Tinha
o dom da elegância malandra, que está mais no jeito de andar, de
colocar o chapéu e dar um laço despreocupado na gravata que na
roupa propriamente”. Poucos parágrafos depois, certo de que o leitor
não tem memória, afirma, mais uma vez, que o personagem colocara
“brilhantina no cabelo e ia marchando com aquele passo gingado que
caracteriza os malandros”.
No capítulo “As luzes do carrossel”, o problema alcança nível
paroxístico. Em vinte páginas, as luzes do carrossel torturam o leitor:
“Como as crianças, os grandes cangaceiros […] acharam belo o
carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando […] era a maior
felicidade”; eles “gozam daquela felicidade” que é “montar e rodar
num cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música de pianola
e onde as luzes eram de todas as cores: azuis, verdes, amarelas, roxas e
vermelhas […]”. Os Capitães também podem ver “de perto rodarem
as luzes de todas as cores”. O narrador insiste nas “luzes do carrossel”
que giram “loucamente”, assegurando-nos que “penduradas estavam
as lâmpadas azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas”. Passam-se
algumas horas e lá “estão as luzes do carrossel que rodam”, um poeta
“faz um poema sobre as luzes do carrossel”, as crianças montam nos
cavalos de madeira, “as luzes girando, todas as cores fazendo uma cor
única e estranha”, namorados trocam beijos quando “o motor falha e
as luzes se apagam” — e Sem-
Pernas “só vê as luzes que giram com
ele”. Páginas à frente, o narrador lamenta que “à tarde as luzes do
carrossel não estejam acesas. Não era tão belo como à noite, as luzes
girando de todas as cores”. No final do capítulo, os Capitães
“estavam cheios de desejo de andar nos cavalos, de girar com as
luzes” — e surge o arremate piegas: “Esqueceram tudo e foram iguais
a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com
as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que
tudo, brilhavam na noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas,
roxas, vermelhas […]”.
Avançamos na leitura — e a reiteração se torna um esquema de
maçante previsibilidade, pois o autor não dispõe de outros recursos.
Amado não consegue superar seu limite nem mesmo num trecho de
vinte linhas: no capítulo “Alastrim”, o “Padre José Pedro entrou na
sala com o coração batendo muito”; a seguir, “o Padre José Pedro,
enquanto esperava…”; “o padre captara”; “o padre tivera de passar”;
“o padre tivera que fazer”; “o padre ­lembrou-se”; “o primeiro
sentimento do padre”; e “o Padre José Pedro necessitava…”.
A ideia de que Dora se transforma em mãe dos Capitães da areia
vem anunciada desde as primeiras palavras do capítulo “Dora, mãe”,
mas é imprescindível repisar a figura: primeiro, na imaginação de
Gato, a voz da menina soa como “a voz doce e musical de sua mãe”.
Ele diz: “Você é a mãezinha da gente agora” — e o narrador,
contaminado, prossegue: “[…] chamando-a de mãe, e ela sorrindo
com seu ar maternal de quase mulherzinha”; depois, “olhavam o rosto
sério de Dora, o rosto de uma quase mulherzinha que os fitava com
carinho de mãe”, “[…] eles todos gargalharam junto com Dora, e a
olharam com amor. Como crianças olham a mãe muito amada”. A
imagem se propaga sem nenhum acréscimo metafórico: “[…] agora
falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho.
Como a uma mãe”. Um dos Capitães fala: “É como uma mãe… Como
uma mãe, sim. Pra todos…” — e volta a dizer: “É como uma mãe…
Como uma mãe…”. Para Pedro Bala, o chefe da gangue, Dora se
transforma em “esposa, irmã e mãe”, enquanto outro personagem
reitera: “É como uma mãezinha”. E outra afirmativa ecoa: “É como
mãe!”.
Veja-se, no capítulo “Reformatório”, a utilização iterativa de “a
liberdade é como o Sol. É o maior bem do mundo”, proclamada numa
lenga-lenga que o autor deve ter considerado original. Nos capítulos
“Noite de grande paz”, “Dora, esposa” e “Como uma estrela de loira
cabeleira”, a expressão “paz da noite” — ou “a grande paz da noite”
— cria ladainha fastidiosa. São apenas alguns exemplos desse estilo
paupérrimo, ou melhor: verdadeiro antiestilo, de assustador
desmazelo.

Sentimentalismo e doutrinação

Mas por que Jorge Repetidor Amado encanta o leitor comum?


Porque sua escrita é um pântano de sentimentalismo — como toda
subliteratura, reduz a consciência aos desejos, subjuga a razão às
emoções. Trata-se de um método para simplificar a realidade — e
utilizar essas simplificações como forma de manipulação ideológica.
Tudo é óbvio e previsível no romance. Sem chegar à metade do livro,
adivinhamos o destino dos principais personagens, sabemos quem será
o grevista profissional, o pintor famoso, o sacerdote. Mas a fórmula
não é gratuita: as repetições martelam o sentimentalismo, enfatizam a
catequese comunista, até que o leitor aceite, sem contestar, as últimas
mentiras do livro: “A greve é a festa dos pobres” — e “companheiro”
é “a palavra mais bonita do mundo”. Péssimo resultado estético, a
reiteração, contudo, serve como pedra de moer consciências,
reforçando, página a página, associações mentais enganosas.
Hugo von Hofmannsthal afirmou, em 1927, numa conferência
pronunciada na Universidade de Munique, que “nada é realidade na
vida política de uma nação que já não esteja presente como espírito
em sua literatura”. Se ele está certo,
Capitães da areia
contribuiu para
o delírio e o caos — econômico, político e moral — que, graças à
esquerda, vivemos neste início de século no Brasil. Não é à toa que, no
final do romance, Pedro Bala, exaltado pelas crianças “de punhos
levantados”, escuta o samba “Companheiros, vamos pra luta”. E,
ainda pior, não é por acaso que, década após década, este romancinho
de doutrinação política tem sido leitura obrigatória nas escolas e nos
principais vestibulares do país.
CAPÍTULO 35

Narrativa menor
— Orígenes Lessa e O feijão e o sonho

Quando Orígenes Lessa publica


O feijão e o sonho
, em 1938, seu
destino já pertence à literatura: fora aclamado por nomes consagrados
da época, como Menotti del Picchia e João Ribeiro, ao lançar, em
1929, uma primeira coletânea de contos,
O escritor proibido
; a
segunda,
­ Garçon, garçonete, garçonnière
, recebera menção honrosa
da Academia Brasileira de Letras; preso durante a Revolução de 1932,
lutando ao lado dos paulistas contra a ditadura de Getúlio Vargas, as
duas obras escritas na prisão —
Não há de ser nada
e
Ilha Grande,
jornal de um prisioneiro de guerra
— fizeram sucesso e são, até hoje,
relatos confiáveis de aspectos do movimento constitucionalista. Seu
ganha-pão, contudo, era o trabalho de redator publicitário, como o
próprio Lessa confirma a Edla van Steen:
32
“Quase tudo que escrevi
entre 1930 e 1960 foi em tempo alugados aos patrões, no meio de
anúncios de automóvel, de inseticida ou de cremes dentais”.

Infantilismo e literatura

O protagonista de
O feijão e o sonho
é o escritor José Bentes de
Campos Lara, a quem a esposa, Maria Rosa, chama de Juca. O
romance inicia com as imprecações da mulher, desorientada no dia a
dia massacrante, “de pé às cinco da manhã” para cuidar das tarefas
da casa, dos filhos e da sala de aula contígua à residência. Seus
resmungos, gritos e gestos bruscos, enquanto Campos Lara dorme,
apesar de ser quase meio dia, criam o clima de antagonismo que
dominará o romance: de um lado, a realidade, à qual o autor concede
o nome simplista de “feijão”; de outro, não propriamente o “sonho”,
mas a imaturidade de Juca, sonhador, sim, e também irresponsável,
perdulário, alheio a todos os elementos que compõem a vida real, de
que participa como se obedecesse a mera contingência, pois não tem
nenhum compromisso com as questões básicas do cotidiano: casou-se,
mas a mulher é um enfeite, na maior parte das vezes um empecilho
aos seus devaneios; os filhos são outros bibelôs, seu amor se resume a
tratá-los como figurinhas agradáveis de se observar, mas não pessoas
que necessitam de alimento, segurança, educação; os
poucos alunos
não lhe interessam, a não ser que manifestem pendor à escrita.
Sempre pronto a escrever poemas, o momento central do cotidiano
de Campos Lara é a visita à “gameleira majestosa”. Depois de
caminhar dois quilômetros, afastando-se do centro da cidadezinha em
que reside, ali, sob a árvore, passa horas ouvindo a “orquestra
soberba” de passarinhos, além de olhar o céu, “onde as nuvens
corriam, acarneiradas, delibando a paisagem sempre nova, de colinas
verdes ao longe, que a noite lentamente ensombrecia”. O narrador
descreve bem essa vida de completo escapismo, interrompida pelas
queixas da mulher, pelo choro dos filhos, pelas eternas dívidas.
À medida que avançamos na leitura, Maria Rosa ganha
complexidade. Veja-se, por exemplo, o capítulo 12, em que essa
verdadeira heroína manifesta seu cativante realismo, próprio dos que
assumem a vida de forma integral. Ao mesmo tempo, enquanto ela
expõe seus preconceitos, reclamações e lembranças, o diálogo desnuda
Campos Lara, infantil a ponto de obedecer às ordens mais simples da
esposa.
Ao contrário do que o leitor apressado pode concluir, é Maria Rosa
a personagem contagiante da história, exatamente por ser complexa,
pronta a expressar seus paradoxos, dividida entre o amor pelo marido
e o repúdio veemente da sua completa inabilidade para viver e da
literatura, que considera inútil. Coube ao senso comum, entretanto,
romantizar as irresponsabilidades de Campos Lara, transformando-o
num herói. De fato, como afirmou Ernest Hemingway, com ironia, “o
fracasso e a covardia bem disfarçados são mais humanos e mais
amados”.
Orígenes Lessa sintetiza a incapacidade do protagonista para a vida
ao mostrar seu comportamento durante a primeira gravidez de Maria
Rosa:
Campos Lara não sabia compreender aquele sofrimento. Fazia frases líricas
sobre o drama espantoso da maternidade. Toda a sua angústia mortal só
parecia sentida intelectualmente, só provocava reações literárias, não
inspirava uma atitude profunda. Punha-o atormentado, sem rumo. Não sabia
o que fazer. Todas as suas soluções eram ingênuas, absurdas, impraticáveis.
Quisera tomar empregada — como se eles pudessem pagar! Falara em se
transportarem para uma estação de águas, por causa dos rins, que não
andavam bons — como se fosse possível! À primeira queixa da mulher queria
chamar o médico, como se o doutor fosse de graça. Tudo no ar. Mas um chá,
uma papinha, alta noite, era incapaz de fazer. Para dar uma colher de
remédio, derramava meio vidro. Para fazer-lhe um escalda-pés, despejara-lhe
a chaleira fervendo no joelho. Um desastre! Meu benzinho pra cá, meu amor
pracolá. Mas
tudo sem préstimo. E incapaz de compreender-lhe a situação, de
penetrar-lhe a psicologia, de sentir a sua tragédia.

O perfeito contraponto ao infantilismo de Juca ­encontra-se no


estudo sobre a vaidade, no capítulo 28, que a perspicaz Maria Rosa
elabora em ótimo diálogo. Seus argumentos expõem, novamente, a
fragilidade do marido, escritor incapaz de conhecer a si próprio.
A glória literária acontece num futuro próximo, mas fazendo jus ao
despreparo de Campos Lara para a vida: será efêmera. É o que merece
o personagem cujo único ato de heroísmo restringe-se a uma rixa
secundária, fruto de fofocas.

Superficialidade

Os diálogos apresentam as qualidades de Orígenes Lessa: não há


redundâncias; as falas não soam como repetições da linguagem
coloquial, mas têm naturalidade; as personalidades se revelam sem
que o narrador precise, a cada cena, justificar os raciocínios ou os
comportamentos; a tensão se instala porque as emoções transparecem
na interação dos interlocutores, nos gestos, nas argumentações, nas
controvérsias. Também é elogiável a escolha de narrar o núcleo da
trama utilizando-se, numa longa analepse, das recordações de Maria
Rosa. E merece atenção o estilo fluido, quase sempre claro, apesar de
alguns chavões e trechos maçantes.
O resultado final guarda, contudo, um sabor de incompletude. O
romance — na verdade, uma novela — não consegue se libertar da
ligeireza que se torna evidente ao não aprofundar as questões íntimas,
existenciais, do protagonista, cujos pensamentos são sempre
sequestrados pela pieguice. A completa inabilidade de Juca é
apresentada de forma repetitiva, insistente, ainda que por meio de
situações diversas.
Muitas vezes, o esquematismo comanda a história: não convence,
por exemplo, dizer que o protagonista “trabalhava sempre. Um, dois
romances por ano. Palpitantes de vida. Dolorosos de vida. Cheios de
um íntimo, de um suave desencanto” — frases vagas, vaporosas, que
não resistem a um questionamento superficial. O próprio drama de
Maria Rosa acaba por se dissolver num estranho senso de fatalidade,
em completa desarmonia com suas características psicológicas:
[…] De arestas pouco a pouco adoçadas, com o correr dos anos, o rolar
monótono do sofrimento, o treino diário, já mais conformada com o marido,
mais capaz de compreender, de uma nova compreensão, o seu feitio pessoal e
inconsertável, olhava quase com emoção aquele pobre lutador a seu modo,
sofrendo com os seus
personagens, sofrendo com a sua sensibilidade
particularíssima. Sofrendo mesmo com as misérias e problemas do lar. A seu
modo, sofrendo.

Trata-se de um resumo que não dá conta do conflito delineado —


saída hábil mas precária, inconvincente.
Até mesmo o processo criativo de Campos Lara é mal apresentado:
o primeiro romance, por exemplo, surge da “febre mediúnica da
inspiração”. Semelhante, aliás, ao que ocorrera com Orígenes Lessa,
que escreveu
O feijão e o sonho
em 22 dias, reconhecendo, na
entrevista citada, o preço que teve de pagar pela afobação:
[…] Da primeira para a segunda edição, fiz vinte ou trinta alterações no
texto. Da segunda para a terceira, cem ou duzentas. Da terceira para a quarta,
duzentas ou trezentas. Da quarta para a quinta, centenas e centenas. Pequenas
ou grandes, mais sérias ou menos sérias, um limpar e corrigir sem fim. Daí
por diante, resolvi não ler mais. Do contrário […]

Sem aprofundamentos, precipitando-se, no terço final, rumo ao


desfecho carregado de fatalismo e melancolia pegajosa, a novela se
presta à popularização, o que explica não só as sucessivas edições,
mas as três versões teledramatúrgicas. Longe de ser um paradigma,
O
feijão e o sonho
é obra menor, evidente dívida para com a linguagem
publicitária.
32
Na entrevista publicada em
Viver & Escrever
, vol. 1, Editora
L&PM
,
RS
, 1981.
CAPÍTULO 36

Sarcasmo e mediocracia
— Menotti Del Picchia e Cummunká

Meses antes da Semana de Arte Moderna, um de seus mentores,


Paulo Menotti Del Picchia, já consagrado autor do poema
Juca
Mulato
, repudia, em crônica no
Correio Paulistano
, a classificação de
“futurista” para o grupo de escritores que representa. O termo,
segundo ele, designara “na Europa a reação genial e idiota de uma
horda de avanguardistas reacionários, cujos generais eram talentos e
cujos aderentes eram imbecis”. O poeta não deseja, para as
transformações estéticas que devem ocorrer no Brasil, o mesmo
destino das italianas, pois estas, “desmoralizadas, se transformaram
em blague”. Ao mesmo tempo, contraditório, aceita o qualificativo e
conclui: “O futurismo de São Paulo odeia tudo quanto é escola. […] A
fórmula do futurismo paulista encerra-se, pois, nisto: máxima
liberdade dentro da mais espontânea originalidade”.
Depois, em plena Semana, na conferência que pronuncia a 15 de
fevereiro, Menotti resume os ingredientes defendidos pela pretensa
revolução modernista: recusando “a arte dos embalsamadores”,
empolga-se: “[…] Que o rufo de um automóvel, nos trilhos de dois
versos, espante da poesia o último deus homérico, que ficou,
anacronicamente, a dormir e sonhar, na era do
jazz-band
e do cinema,
com a flauta dos pastores da Arcádia e os seios divinos de Helena!”.
De fato, ser modernista em 22 é, acima de tudo, ­posicionar-se como
antiparnasiano: “Morra a Hélade! Organizaremos um zé-pereira
canalha para dar uma vaia definitiva e formidável nos deuses do
Parnaso!”. Pequena dose de imaginação recria o tom em que as
exclamações eram proferidas: “Nada de postiço, meloso, artificial,
arrevesado, precioso: queremos escrever com sangue — que é
humanidade; com eletricidade — que é movimento, expressão
dinâmica do século; violência — que é energia bandeirante”. O
discurso expõe as influências do movimento — e as ponderações de
Menotti contra o futurismo se esvaziam, implodidas pela retórica que,
na forma e no conteúdo, ecoa as ideias de Filippo Tommaso Marinetti,
pai dos futuristas, publicadas em 1912: “No aeroplano, sentado sobre
o cilindro da gasolina, queimado o ventre da
cabeça do aviador, senti
a inanidade ridícula da velha sintaxe herdada de Homero. Desejo
furioso de libertar as palavras, tirando-as fora da prisão do período
latino!”.
Bastariam sete anos, contudo, para Menotti perceber os limites da
Semana: quando lança, em 1929 — com Alfredo Élis, Plínio Salgado,
Cassiano Ricardo e Cândido Motta Filho —, o Manifesto do Verde-
Amarelismo ou ­Nhengaçu Verde Amarelo, também chamado de
Manifesto da Escola da Anta, o tom é completamente diverso,‐ ­
opondo-se, inclusive, ao Manifesto Antropófago que Oswald de‐ ­
Andrade, eterno imaturo, publicara em 1928. Enquanto este se
aferrava às suas imprecações herméticas, adaptáveis a qualquer
disparate, os autores do Verde-Amarelismo escolhem seguir caminho
diverso: contrapõem os tapuias (representantes do “preconceito” e do
“jacobinismo”, antropófagos que se isolam no sertão, inimigos do
colonizador português — clara referência a Oswald, encastelado num
experimentalismo inócuo) aos tupis, que aceitaram “diluir seu sangue
no sangue da gente nova”, representam a “ausência de preconceitos” e
são os grandes vencedores do processo colonizador, pois triunfaram
“dentro da alma e do sangue português”. Dessa dicotomia nasce uma
visão estética em tudo distinta do sectarismo oswaldiano: a Escola da
Anta almeja congregar as diferenças, porque “jacobinismo quer dizer
isolamento, […] desagregação”. Tendo superado os
slogans
de 22,
Menotti e os amigos recuperam o bom senso:
Convidamos a nossa geração a produzir sem discutir. Há sete anos que a
literatura brasileira está em discussão. Procuremos escrever sem espírito
preconcebido, não por mera experiência de estilos, ou para veicular teorias,
sejam elas quais forem, mas com o único intuito de nos revelarmos, livres de
todos os prejuízos.

O verde-amarelismo surge, dessa forma, não só como resposta às


criancices de Oswald — às quais parcela da nossa literatura encontra-
se acorrentada até hoje —, mas, principalmente, como repúdio ao
modernismo que se satisfaz no papel de “público de si mesmo”; deseja
alforriar a literatura da “tirania das sistematizações ideológicas”,
defendendo a “liberdade plena” de “cada um ser brasileiro como
quiser e puder”.

Males do intelectualismo

Cummunká
, romance lançado em 1938, é uma das respostas de
Menotti, na ficção, à estética militante de 22. Para realizá-la, o autor
recupera a temática indigenista numa nova chave, em que o índio
surge como elemento recivilizador da sociedade urbana, tecnológica,
democrática — e também seu crítico severo, irônico.
O romance inicia apresentando Gualtério, proprietário do jornal
Rebate
, autor de artigos magistrais de economia, mas incapaz de
pagar as dívidas da empresa. A cada crise financeira, ele dá vida a uma
ideia supostamente genial — na verdade, sempre uma receita para
enganar os leitores, aumentar a tiragem do diário e conseguir novos
anunciantes. Agora, trata-se de organizar uma nova bandeira,
expedição que desbrave o sertão, retome contato com os índios e leve
a esses pobres ignorantes os benefícios do progresso. A ideia contagia
os puxa-sacos e os aderentes do jornal, entre eles, Sérgio Menha,
milionário angustiado e melancólico.
Num corte abrupto, o narrador conduz os leitores da sociedade
industrializada à tribo dos xavantes, onde encontramos os indígenas
refestelados em suas redes, à sombra dos buritis, mas, de forma
inesperada, tecendo longos comentários críticos às canções que
acabaram de ouvir no rádio:
— Todos os sambas são idênticos. Os caraíbas (homens brancos) começam
a sofrer de uma franciscana indigência de imaginação acústica. Você não
reparou, Ponkerê, que o barulho das cidades vai matando o sentido originário
da música? As cidades eliminaram a linha melódica a qual é, no fundo, a
verdadeira substância e a razão da ideia musical? […] A música urbana e
moderna está artificializada pela irrealidade da vida mecânica.

Os comentários são do personagem que dá nome ao livro,


Cummunká, cacique da tribo, admirador de Bach, cuja música, em
sua opinião, é uma “superposição de planos melódicos”.
O romance é construído sobre essas duas forças antagônicas: de um
lado, os caraíbas, que se acreditam inteligentes e civilizados, mas que,
entregues ao oportunismo, abandonaram seus valores, suas crenças;
de outro, os índios, sábios, conhecedores da cultura e da tecnologia,
mas que impõem limites ao uso de ambas, pois abandonar seus
costumes seria “ceder à tentação do demônio da inteligência”.
A bandeira forjada pelo
Rebate
provocará, graças à inabilidade dos
participantes, às espalhafatosas mentiras veiculadas pelo jornal e ao
despreparo dos políticos, o confronto desses grupos, verdadeira guerra
na qual os homens brancos serão derrotados pelo gênio de ­Cembeaçú,
estudioso das batalhas napoleônicas, e pela fortuna de Sérgio Menha,
que reencontra, na vida simples dos indígenas, seus esquecidos valores
e também o amor. Todos são guiados pelos ensinamentos de Ambará,
velho abaré, para quem o mundo moderno, limitado pelo
“racionalismo científico, […] sofre de duas doenças mortais:
mediocracia e perda de
espiritualidade”. A primeira trata-se de
uma infecção das massas pelos rudimentos descoordenados de cultura
socializados pela técnica. Essa doença barbariza as multidões e instala nelas a
força anarquizadora da violência. […] Mediocracia é esse estágio de
semicultura em que se encontram as massas que através do jornal, do rádio,
do cinema e da mais rápida circulação do homem, se apossam de
conhecimentos superficiais e esparsos, sem a coordenação de um sistema.

A narrativa é, assim, repúdio ao futurismo. O homem que Marinetti


coloca, no Manifesto Futurista, “de pé sobre o cimo do mundo”,
lançando “ainda uma vez mais o desafio às estrelas”, tornou-se, na
visão de Menotti, um dos “neobárbaros” denunciados por Ambará:
estão “contra a ordem clássica”; atacados de mediocracia, com seu
racionalismo excessivo, “criticam e negam tudo […], procuram agora
destruir a própria civilização que criaram”.
Apesar das cenas idílicas entre Sérgio Menha e Cendi, a cunhantã
por quem se apaixona, nas quais o casal, embriagado pelo amor
crescente, embrenha-se numa pegajosa adjetivação alencariana, o que
sobressai na história é o imprevisível, contagiante sarcasmo — e, em
grande parte, a linguagem precisa. Numa arquitetura romanesca
correta, Menotti pisoteia o indigenismo romântico; denuncia os crimes
das multidões amorfas; desnuda sua própria consciência — e ri, com
deliciosa ironia, não só das contradições modernistas, mas também
das incongruências e dos exageros de uma sociedade subordinada ao
que Cummunká chama de “males do intelectualismo”.
CAPÍTULO 37

Inaceitável desenraizamento
— Vianna Moog e Um rio imita o Reno

O gaúcho Vianna Moog foi dos poucos que, tendo apoiado a


Revolução de 1930, voltou-se contra os excessos do movimento e
passou a fazer parte da oposição constitucionalista, cristalizada na
Revolução de 1932. Mas divergir do tenentismo e de Getúlio Vargas
custou-lhe o desterro político: do Rio Grande do Sul, onde
desempenhava a função de fiscal de consumo, foi transferido
compulsoriamente para o Amazonas, depois ao Nordeste, mais uma
vez ao Norte, em seguida para Minas Gerais, só retornando à terra
natal após a anistia de 1934. Semelhante à história de outros
intelectuais condenados ao ostracismo, não o impediram de escrever
— e, ao contrário de Ovídio, que nas
Cartas pônticas
, enviadas de seu
exílio no litoral do Mar Negro, está sempre pronto a choramingar,
Moog sobreleva a pena, torna-se o ensaísta que esmiúça diferentes
aspectos da cultura, compondo o que chamou de “crônica da
resistência”. Essa “imaginação rebelde à ficção e à fantasia”, como ele
próprio se definiu, ultrapassou, contudo, o ensaísmo e concebeu a
novela
Uma jangada para Ulisses
(1959) e os romances
Toia
(1962) e
Um rio imita o Reno
, publicado em 1938.
O título deste último engana o leitor ao sugerir semelhança
geográfica. A imitação, neste caso, expõe falsa aparência, ilusões. A
analogia não se concretiza — e desempenha, nas lucubrações do
protagonista Geraldo Torres, o papel de uma quimera.
Esse engenheiro amazonense, leitor de Goethe, resume seu idealismo
nas primeiras páginas do romance: possuir entendimento e ação, pois
o primeiro “alarga, mas paralisa”, enquanto a segunda “vivifica, mas
limita”. A realidade, entretanto, mostra-se outra. Duas forças
impedirão o protagonista de alcançar seu objetivo: os imigrantes
alemães, fiéis ao nazismo, que controlam a cidade de Blumental, para
onde Geraldo é transferido, e sua própria personalidade, refém da
melancolia.
Desde as primeiras horas na cidade, o engenheiro ­deixa-se dominar
pelo estranhamento:
Onde estaria? Percorreu novamente os pontos que sua retina acabara de
visualizar. Na praça, ranchos loiros de moças passavam
aos pares; no
quiosque, ao redor das mesas, sob os plátanos, rapazes cobertos de bonés
universitários bebiam descansadamente o seu chope. Pareciam sentir-se ali tão
à vontade, como se estivessem num bar de Heidelberg ou de Munique.
Geraldo então atentou ainda mais para o quadro, retesando a atenção.
Blumental dava-lhe a impressão de uma cidade do Reno extraviada em terra
americana. Desde o gótico da igreja, até a dura austeridade das fachadas,
tudo nela, à exceção do jardim, era grave, rígido, tedesco. […]
Os sinos plangeram dentro da noite que se adentrava. Onomatopeia da
melancolia. Como se estivesse ouvindo novamente o prelúdio do piano, um
tumulto, uma angústia interior agarrava-lhe as entranhas. Geraldo teve
vontade de chorar. Sentia saudades do Brasil.

Mais que inadaptação, Geraldo Torres experimenta o


desenraizamento, definido por Simone Weil em
L’Enracinement
: não
encontra ali nenhum elemento que o ligue às suas origens, à sua
cultura. Preso a uma comunidade da qual não participa realmente,
onde não descobre os “tesouros do passado” e os “pressentimentos do
futuro”, circundado por uma cultura artificiosa, em tudo apartada das
tradições nacionais, o protagonista submerge num incontrolável
sentimento de exclusão, reforçado pelas veladas manifestações de
racismo que acabarão por expulsá-lo da cidade.
O personagem, entretanto, possui psicologia complexa. Experimenta
o desencontro cultural às vezes de forma paroxística, agarrando-se
com desespero às lembranças da infância amazonense, às
características paternas, às lendas contadas pelos familiares.
Saudosista, supersticioso e tímido, o engenheiro descendente de
indígenas, filho de um falido coronel do Ciclo da Borracha, recusa o
preconceito — “Era o sangue dos nheengaíbas que lhe corria nas
veias. Como sua mãe, não distinguia entre brancos, judeus, sírios,
pretos e caboclos”—, mas não consegue vencer o complexo de
inferioridade: apesar do amor sincero de Lore Wolff — a jovem
responsável pelo “prelúdio do piano” que ele se habitua a ouvir todos
os dias, filha da mais poderosa família germânica local —, quando
esta, pressionada pela mãe, deixa de encontrá-lo, uma conclusão
irônica esconde a falta de amor-próprio: “A sua face branca de ariana
tinha tocado o rosto queimado de índio. Ficara decerto manchada de
jenipapo”. Obedece, depreciando-se, ao telegrama que anuncia a
suspensão das obras de saneamento básico em Blumental, pelas quais
era o responsável, e a imediata transferência: “Minha nudez no que
diz respeito a intenções, pensamentos e sentimentos […] se parece, de
certo modo, com a nudez primitiva dos índios”.
Quanto a Lore, decide não lutar para tê-la, preferindo o caminho da
sublimação: transforma a mulher real, que o deseja sinceramente, em
uma “Lore filosofante, na qual os traços femininos haviam
desaparecido”. E quando, por um momento, o amor quer derrotar as
evasivas, Geraldo, certo de que será impossível esquecê-la, pressente o
“gosto amargo das horas de saudade e solidão”, mas escolhe a pior
das desculpas, dizendo a si mesmo: “Que grande fardo, o
sentimentalismo”.
O cuidado de Vianna Moog abarca a linguagem, a arquitetura do
romance e os personagens, criando figuras com características
particulares e voz própria. Veja-se a antagonista, Frau Marta,
matriarca dos Wolff, modelo acabado de antissemita: seus
preconceitos não surgem da adesão cega a Hitler, remontam aos
horrores da Primeira Grande Guerra. Discordamos de suas
justificativas, mas a fúria argumentativa que revela, inclusive nas
discussões com o médico Stahl — personagem fascinante, pronto a
denunciar a incoerência desses supostos cristãos apoiadores do
nazismo —, fica a um passo de soçobrar quando Lore é atacada pelo
tifo:
[…] Frau Marta sentou-se na poltrona de couro, aniquilada. E teve a
dilacerante impressão de que se sentava no banco dos réus, diante de
tremendos juízes invisíveis que iam julgá-la. Mas… Julgar por que crime?
Entrecerrando os olhos, viu-se Frau Marta a dialogar consigo mesma. As duas
partes do eu mais íntimo discutiam frente a frente. O seu Doppelgänger, de
feições indefinidas e de voz longínqua, dizia: — A culpada da doença de Lore
é tu. A outra parte, que tinha exatamente as suas feições e que estava como
ela sentada na poltrona de couro, respondia:
— Culpada, por quê?
— Obrigaste o engenheiro a ir embora; fizeste com que os outros o
expulsassem. — Mas que tem a ver Geraldo com a doença de Lore? — O
Doppelgänger investia, inexorável: — Sem a Hidráulica o tifo se alastra. O
que Lore sofreu por causa de Geraldo deixou-lhe o organismo enfraquecido,
sem defesa. — E pensas que eu não sofro vendo Lore em perigo de vida,
ardendo em febre, sofrendo, gemendo, delirando? — Nunca foste carinhosa
com ela. — Passo as noites em claro. — Isso não melhorará a sorte.
Frau Marta comprimiu as pálpebras com a ponta dos dedos, longamente. O
diálogo continuou, implacável […].

Sem criar esquematismos, o romance expõe as divisões políticas, o


populismo estado-novista, a imposição da cultura nazista — com
desfiles de tropas uniformizadas e a biblioteca pública infestada de
autores antissemitas —, a esperança e o congraçamento dos mais
simples, acima
das diferenças de nacionalidade, até chegarmos ao
clímax da visita de Otto, aguardado primo dos Wolff, que derruba, no
perfeito diálogo do capítulo 20, as ilusórias certezas da família.
É lastimável que
Um rio imita o Reno
não tenha lugar de honra em
nosso cânone. E mais lastimável ainda que estudiosos tenham-no
classificado, de forma superficial, como romance de tese, depreciando-
o a ponto de transformá-lo em mero “
pendant
de
Canaã
”, para citar
as injustas palavras de Massaud Moisés.
33
Aliás, o que mais existe no
romance é exatamente o que Massaud afirmou não ter encontrado e
que Graça Aranha mostrou-se incapaz de construir: “desenvolvimento
imaginário do entrecho e dos protagonistas”.
O romance concretiza a lição de Simone Weil: nenhuma cultura
pode ser modificada de forma arbitrária — “a destruição do passado é
talvez o maior crime”. Ao contrário do que anunciam as propagandas
revolucionárias, “o futuro não nos traz nada; não nos dá nada; somos
nós que para o construir devemos dar-lhe tudo, dar-lhe a nossa
própria vida. Mas para dar é preciso possuir, e não possuímos outra
vida, outra seiva, senão os tesouros herdados do passado e digeridos,
assimilados, recriados por nós”. Daí nasce parte da angústia do
protagonista: vencer os preconceituosos e ficar com Lore significaria
aceitar o desenraizamento, isto é, romper não apenas com sua história
pessoal, mas com sua própria cultura. E Geraldo Torres sabe, de
forma intuitiva, que “de todas as necessidades da alma humana, não
há nenhuma mais vital do que o passado”.

33
Em
História da literatura brasileira
, Editora Cultrix,
SP
, 2004, 2ª edição.
CAPÍTULO 38

Amostra de vitimismo
— Fran Martins e Poço dos Paus

Fran Martins, conhecido por suas obras jurídicas — o


Curso de
Direito Comercial
, de 1957, é reeditado até hoje —, tornou-se
advogado por imposição econômica: sem condições para manter-se em
Pernambuco, onde pretendia cursar medicina, retornou ao Ceará, sua
terra natal, ingressando na Faculdade de Direito.
Em Fortaleza, após o 1º Congresso de Poesia do Ceará, realizado em
1942, participa do Grupo Clã, responsável pela revista homônima,
cujos projetos se consolidam no
I
Congresso Cearense de Escritores,
de 1946, durante o qual Fran Martins defende tese cara a inúmeros
modernistas — e a vários autores que, ainda hoje, pretendem ocupar
protagonismo artístico ou político sem abdicar, é claro, de alguma
sinecura —, segundo a qual o escritor deve deixar de ser “uma figura
decorativa” na vida do país. Fran Martins vê o autor como um
“trabalhador intelectual” semelhante a “todos os trabalhadores
conscientes”, devendo se esforçar para construir “um mundo melhor e
mais feliz”. Em pleno pós-guerra, o discurso algo ingênuo, comum
entre pacifistas de todos os matizes, também convocava os escritores à
participação política, criticando os partidos e a “prepotência dos
governantes” — ideias que, no conjunto, são formas diluídas da
literatura que acredita no engajamento político, modelo de submissão
ideológica defendido por muitos.
A obra de Fran Martins, contudo, antecede esses fatos. Já em 1934
lançara
Manipueira
, uma coletânea de contos, seguida dos romances
Ponta de rua
(1937) e
Poço dos Paus
, publicado em 1938.

Falsa bondade
Segundo a nota do autor que abre o volume,
Poço dos Paus
nasce de
uma identificação: como os personagens Climério e Luciano, afirma
Martins, “eu também desejo ser bom”. O leitor, assim, prepara-se
para a investigação de algum modo ética — na qual a bondade será,
talvez, insistentemente buscada —, não sem antes decepcionar-se com
outra observação do autor: “[…] Muitos notarão a ausência de
intensidade e movimento”.
De fato, o romance principia num tom não somente monótono, mas
repetitivo: os dois parágrafos iniciais espelham-se, ainda que com
variações, construídos por meio de frases telegráficas, como se o autor,
inseguro, buscasse a própria voz. Aqui, apenas o primeiro parágrafo:
O governo estava dando passagens para Poço dos Paus. Queriam construir
um dos maiores açudes do mundo. Corria mais dinheiro que em tempo de
inverno bom. Famílias inteiras abandonavam o sertão, os trens saíam
atopetados de gente. Todos partiam satisfeitos, sorridentes, alegres. Iam
ganhar dinheiro como em tempo de inverno bom. Muitos não acreditavam.
Iam mas não acreditavam que fosse o que se dizia. Tinham medo de deixar a
terrinha, os roçados, as criações. E passavam dias pensando, antes de tomar a
resolução. Valeria a pena tentar? Não seria embromação tanta vantagem
junta? A miragem os atraía, por isso resolviam experimentar. E quando
chegavam nos trens ouviam casos assombrosos. Mais dinheiro que em tempo
de inverno bom. Cassaco ganhando nove mil reis por dia. Apontadores de
quatrocentos, até quinhentos mil réis por mês. Uma verdadeira mina. E se
tomavam de entusiasmo, alegravam-se, criavam coragem. Tinham esperança
de vencer, vontade de vencer. Venceriam. Uma coisa dizia que venceriam.
Coração não mente, ouviam seus corações e sabiam que venceriam.

Essa redação infantil, às vezes hesitante, que elabora um discurso


indireto livre superficial, incapaz de penetrar nas camadas obscuras da
vontade, dos anseios dos personagens, será reencontrada até as
últimas páginas do livro:
E o trem chegou e partiu, levando o servente de volta aos seus pagos.
Árvores, paisagens, rios, tudo o que ficava para trás não o interessava. O trem
corria, as árvores corriam, tudo corria na vida, só o servente Climério parado.
No carro viajantes falavam, vozes diferentes confundiam-se com a zoada da
locomotiva. Aquele povo que ali estava era dono de si, era feliz. Só o servente
Climério como um fugitivo, encolhendo-se a um canto, covarde, vencido,
regressando aos pagos, voltando à terra de onde arribara à procura de
dinheiro e felicidade.
Da mesma forma, as repetições não só atormentam o leitor, mas
reduzem a psicologia dos personagens a pensamentos recorrentes e
previsíveis. Veja-se, por exemplo, o final do segundo capítulo,
“Viagem”. Nas páginas antecedentes, a personalidade do
protagonista, Climério, fora desenvolvida nas suas linhas mestras:
garçom num cassino do Crato, partilha do sonho de enriquecer, ao
qual se contrapõem sucessivas
humilhações que sofre no emprego —
“vida de cachorro, de vencido” — e na vida pessoal, desprezado pela
prostituta Florinda, fêmea inalcançável. Depois de colocá-lo, de forma
abrupta, no trem para Poço dos Paus, o autor fecha o capítulo com
parágrafos que seguem roteiro tosco: Climério resolveu abandonar o
Crato (o que já fora anunciado desde as primeiras linhas do capítulo);
rios de dinheiro correm no açude (o que não é nenhuma novidade
para quem recorda a primeira página do romance); os valores dos
salários não saem da mente de Climério (do que também somos
informados reiteradas vezes); o protagonista está no trem e vai partir
(assim esperamos, ansiosamente, há várias páginas); Climério
abandonou tudo para começar vida nova (o autor talvez não saiba o
que dizer enquanto o trem demora a partir); tudo o que Climério
possui é o “grande amor que Florinda teimava por menosprezar”
(nenhuma novidade para o leitor minimamente atento).
No capítulo “Reação”, na metade do romance, a prisão de um
conhecido de Climério, Cassiano, revolta o protagonista — e o
narrador diz: “O sangue subiu à cabeça do servente do Crato”. A
frase será utilizada mais três vezes em poucos parágrafos, numa
tentativa frustrada de comprovar a mudança de ânimo do ex-garçom.
Redizer e redizer liquefaz a própria estrutura da narrativa: histórias
pessoais são repetidas a intervalos, comprovando a imperícia do autor
— ou, pior, um perturbante método de escrita, que prefere julgar os
leitores como prováveis desmemoriados.
Desprovido de diálogos consistentes — é impossível que as falas se
prolonguem, pois os personagens não possuem vida interior,
expressando-se por meio de exclamações ou, de forma maçante,
repisando o que o narrador já relatou —, o romance avança com o
objetivo de provar uma única tese: todos têm “mistérios”, um
sinônimo, neste caso, para “tragédias”; mas não se deve “andar
alardeando os sofrimentos”, o melhor é calar-se, pois “estava escrito
que seria assim, ninguém pode resolver as dores íntimas, os mistérios
da vida de quem é pobre”.
Para o autor há, portanto, uma só lei a reger nossa vida: a
fatalidade. Perceba-se, contudo, que não estamos diante de
personagens movidos pela aceitação valorosa do próprio destino, ou
seja, por um comportamento estoico. Incluindo o protagonista, todos
permanecem distantes de qualquer tipo de heroísmo, mas sempre
predispostos à resignação, àquela submissão fatalista, para a qual o
destino está predeterminado e as consequências ocorrerão
inevitavelmente, como se fossem marcadas por uma necessidade
absoluta.
Nessa coleção de homens destituídos de
amor fati
, comandados
pelas variações do clima, pelos acontecimentos e pela vontade de
outrem, a
única que apresenta alguma vida interior é Rosalinda:
consciente de sua incapacidade para mudar de vida, afasta-se do
comportamento autômato que a circunda e desobedece a seus
instintos, mostrando-se capaz, por exemplo, de defender Climério
mesmo quando ele a despreza para ficar com Florinda.
Rosalinda pode, assim, agir com bondade; liberta-se, portanto, da
ideia apresentada pelo autor, para quem “Climério queria ser bom”,
mas, exatamente como seus amigos, é “absorvido pela vida”, preso a
uma existência em que o destino força-o a “baixar o fogo” e
“recolher-se ao lugar dos humildes” e à “insignificância dos
pequeninos”, marcado pela “estrela que trouxera ao nascer”. Ideia de
bondade extremamente confusa, pois é impossível ser bom ou mau
sem livre-arbítrio. A bondade — assim como a maldade — é um ato,
determinação da vontade para fazer o bem, decisão que Climério
nunca alcança, pois apenas se submete aos acontecimentos, às
variações de humor dos superiores, à seca e às chuvas, ao desejo das
mulheres. Seguindo o mesmo raciocínio depreende-se também que,
para Fran Martins, os pobres estão impedidos de serem bons — o que
equivale a tremenda falácia.
Cumpre-se, dessa forma, o que o escritor anunciara em sua nota:
“[…] Na realidade, somente personagens vergadas ao peso do destino
encontrareis nas páginas que ides ler”. Ora, se não existe vontade, se a
consciência do protagonista se resume à reiteração de queixas e se o
único ato possível para Climério é a obediência automática, então não
apenas a bondade é impossível, mas o próprio romance, que se
transforma num mero folheto, insignificante amostra de vitimismo.
CAPÍTULO 39

Falso romance
— Raimundo Morais e O mirante do Baixo
Amazonas

O paraense Raimundo Morais é um exemplo de autossuperação.


Nascido em Belém, nas últimas décadas do século
XIX
, cresceu
acompanhando o pai no trabalho de prático, condutor de
embarcações fluviais. Assim, dominou a ciência dos acidentes
hidrográficos e topográficos que se escondem nos rios amazônicos,
tornando-se também piloto experiente. Autodidata, retornou à capital
para atuar no jornalismo e ocupar cargos públicos. Salomão Larêdo,
em sua dissertação de mestrado,
Raymundo Moraes — na planície do
esquecimento
, apresentada ao Centro de Letras e Artes da
Universidade Federal do Pará, revela alguns momentos dessa biografia
romanesca, na qual não faltou o assassinato — ao que parece, em
legítima defesa — de um jornalista, a fuga para Manaus e, depois, à
Bolívia. Eram os anos conturbados que antecederam a Revolução de
1930, episódio-chave da perene instabilidade republicana, cujas
sucessivas crises experimentamos até hoje. Larêdo revela inclusive o
perfil sedutor de Morais, a quem o filho chama de “silencioso déspota
de fêmeas”. À parte seus dotes físicos, o que chama nossa atenção é o
sucesso alcançado por um de seus livros, a coletânea de ensaios
Na
planície amazônica
, que, entre as décadas de 1920 e 1930, superou a
marca de 19 mil exemplares vendidos, fez parte da renomada Coleção
Brasiliana, cujos volumes ainda são disputados nos sebos, e chegou a
ser traduzida para o russo. Fatos que confirmam o julgamento,
segundo Larêdo, de Humberto de Campos: “[…] É um escritor
vitorioso que inverteu a frase de César, pois venceu, viu e chegou,
desarticulou no Brasil a mecânica dos sucessos literários, conseguiu,
de um ponto remoto da selva amazônica, impor-se ao país inteiro”.
No que se refere à ficção, o autor produziu três romances, cujas
histórias retratam diferentes regiões da Amazônia:
Os igaraúnas
,
O
mirante do Baixo Amazonas
e
Ressuscitados
. O segundo, a respeito
do qual falaremos a seguir, é o único com data de publicação certa:
1938.
O mirante do Baixo Amazonas
abre com o protagonista, Florêncio
Timbira, paraense, engenheiro que agora se dedica à fazenda herdada
de uma avó. Sua presença, contudo, é apenas uma desculpa para a
longuíssima descrição não só da paisagem que o ginete vislumbra sem
apear do cavalo, mas dos pormenores da geografia, num estilo que
repete, em diferentes trechos, as modulações da frase euclidiana.
Semelhante ao que ocorre na parte inicial de
Os sertões
, o
vocabulário técnico torna impossível ao leigo visualizar o panorama.
Há duas louváveis tentativas de estilizar o detalhamento — ao
comparar os maciços guianenses a um “bando silencioso de gigantes
que andassem de bruços, roçando o peito no chão” e sugerir, diante
do relevo entrecortado de rios, que o “cavaleiro, em vez de rédeas,
parecia ter na mão um remo” —, mas ambas se perdem no
emaranhado de “enfeites petrográficos”, “grimpas de arenito”,
“restingas sinclinais” e “arenitos caulínicos”.
O problema se repete — veja-se o parágrafo que abre o capítulo 3:
[…] O solo exsicado emitia reverberações de escamas na superfície do
Amazonas. Fronteirando pelo montante o ponto que se remarca, branquejava
a cidade de Monte Alegre, trepada num platô serrano que serve de batente à
escada gigantesca encostada ao Ererê.

É possível imaginar, com algum esforço, a superfície do rio


refletindo algo do solo ressequido; as linhas seguintes, entretanto, não
compõem uma descrição, mas, sim, mero exercício de estetismo
pretensioso, incapaz de recriar o cenário.
O autor não impõe limites à permanente tentação de injetar seus
conhecimentos científicos. No capítulo 4, por exemplo, o sonho febril
do engenheiro é sequestrado pelo narrador e se transforma em mais
uma aula de geologia, botânica e pinceladas de antropologia — com
tal exagero, que passamos a compreender a finalidade do romance:
produzir novos ensaios. Em nome desse objetivo, compõe-se um
enredo primário, que poderia ser utilizado num verdadeiro romance
com relativo sucesso, mas que se perde nas sucessivas demonstrações
de conhecimento enciclopédico, pafioso. Fere-se, assim, uma das
regras básicas da ficção: permitir que o leitor se identifique com algum
personagem, encontre-se nas suas escolhas, nos seus medos, nas
hesitações e certezas que marcam seu cotidiano, de maneira a
perceber, em si mesmo, alguma parcela da verdade que nasce de uma
ilusão do verdadeiro.
A incapacidade do autor para a ficção se reafirma no capítulo 5, que
inicia com o detalhamento do “coberto” amazônico, “revelação
geobotânica” construída graças ao auxílio da velha e conhecida
retórica nacional, em que os adjetivos se irmanam à fraseologia
supostamente culta no intuito de, quem sabe, conceder ao autor
alguns minutos de vanglória:
Na que chamou de Oreades, região de platô campestre, parece-me entrever
o coberto, encantado sulco alpestre, à semelhança dum rio sinuoso e verde
que houvesse, por um milagre da natureza, volvido em pastagem sob a linha
astronômica do Equador. Derivando imaginariamente no lombo serrano com
o álveo tapetado de gramíneas agrestes, as margens desse curso por mim
fantasiado, altas cortinas de folhagens, invocam a selva arbórea dos
altiplanos, também classificada pelo naturalista bávaro (refere-se a Alexander
von ­Humboldt) de Dryades. Porque a verdade, para quem descortina o
coberto nos seus mil aspectos geográficos, é que ele teria sido um curso
imemorial, tais os estirões, as curvas, as bacias, as ilhas que o integram na
tabela dum rio meândrico. Rechã desértica, mal se encontra, de longe em
longe, um habitante que nos informe ou oriente sobre páramos e aquelas
plantas.

Enquanto a trama se desenvolve de maneira previsível, a retórica


telúrica é despejada nas páginas — e qualquer mínima escolha do
protagonista, nas raríssimas vezes em que o autor lhe concede tal
liberdade, serve para nova, hermética, cansativa aula, à qual se
adiciona o discurso utopista da Amazônia celeiro do mundo, luzeiro
dos povos, esperança dos corações.
O esquematismo do enredo comprova a bisonhice do escritor, que
nunca deveria ter abandonado o ensaio. No capítulo 8, surge, de
repente, um geólogo, especialista em paleontologia, para falar, é claro,
das “rochas paleozoicas”, de “graptólitos” e da “concreção calcária”.
Logo a seguir, no capítulo 9, mal se conhecem, Florêncio e a cabocla
Angélica se atracam como símios, não sem que, antes, na escuridão
rompida por uma débil lamparina de querosene, o protagonista
consiga penetrar “bem dentro das meninas dos olhos” de sua recém-
adorada. Durante o jantar, somos presenteados com a melhor
babugem alencariana:
[…] O engenheiro parecia magnetizado, não arredava a vista da cunhã.
Bebia-lhe o semblante pelos olhos, grandes, brilhantes, mas verdes,
curiosamente verdes, refletindo talvez a selva nas suas mil nuanças de
clorofila. Neles repontava a sinfonia da folhagem, desde os tons brandos e
desmaiados até o vivos e glaucos. O que todavia entornava nesses olhos um
tom misterioso era não lhes saber jamais, com precisão, a tonalidade exata:
escuros? Claros? Verdadeiramente enamorado, a atenção do dr. circunscrevia-
se apenas a uma pessoa: Angélica.

No regresso à fazenda, capítulo 10, a decisão por uma viagem


fluvial não serve à aventura, mas à verborreia do autor, sempre pronto
a nos enfadar com seu, reconheçamos, vastíssimo conhecimento da
região.
O mirante do Baixo Amazonas
é, na verdade, uma coletânea mal
cosida, à qual não faltam relatos autobiográficos, como o
abalroamento narrado no capítulo 14, que o autor testemunhou por
ser o imediato de uma das embarcações: para surpresa do leitor,
Florêncio Timbira presencia os fatos, mas não esboça nenhuma
reação. Há também longa crítica, cravada no capítulo 16, à
construção do farol do Frechal — que acaba por desabar, mas sem
contribuir para o enredo. Somando-se a tais apensos, temos o encalhe
de um vaticano no capítulo 17.
É revelador do nosso atraso que, no final da década de 1930,
editores ainda aceitassem vender uma narrativa assim tosca como
romance
. Nenhuma característica do gênero está presente: à escassez
de fluência somam-se o texto algumas vezes jornalístico e os
personagens apartados de qualquer introspecção, de qualquer mínimo
questionamento a respeito da vida. Na verdade, tudo se submete
à
onipresença do autor, timoneiro dessa crônica em que o discurso
empolado assume o papel de verdadeiro protagonista.
CAPÍTULO 40

Morte sem luta


— Telmo Vergara e Estrada perdida

Entre as décadas de 1930 e 1960, o porto-alegrense Telmo Vergara


produziu ampla e elogiada contística, hoje esquecida, bem como o
romance
Estrada perdida
, abandonado à primeira e única edição, de
1939, até 2017, quando o Instituto Estadual do Livro do Rio Grande
do Sul desfez a injustiça e reeditou a obra. Os que desejarem entender
alguns dos motivos dessa desmemória — crime cometido, aliás, contra
outros ótimos autores nacionais como João Francisco Lisboa, Joaquim
Felício dos Santos, Júlia Lopes de Almeida, Emanuel Guimarães,
Coelho Neto e Carlos de Laet — devem conferir a tese de doutorado
escrita por Fábio Augusto Steyer, em junho de 2006, para o Instituto
de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que concede
a Vergara seu devido lugar em nosso cânone.
Dividido em quatro seções, que correspondem a períodos de tempo
— “Alguns dias de 1918”, “Um dia de 1919”, “Um dia de 1920” e
“Alguns dias de 1938” —,
Estrada perdida
ilude, de forma positiva, o
leitor, pois só alguns personagens, dos apresentados na primeira parte,
resistirão à passagem do tempo, que não perdoará nem mesmo Lígia,
a protagonista, centro da vida infantil repleta de brincadeiras e
aventuras que ela divide com o irmão, Roberto, e o primo, Luís.
Sempre pronta a conceder certo tom dramático às cenas de que
participa, Lígia é a personagem que se emociona com coisas simples,
como a luta entre duas pandorgas no céu, demonstra intensidade e
energia em gestos triviais — “As mãos se afirmam espalmadas na
terra, enquanto os lábios, o rosto, quase a cabeça, mergulham na água
fresca, que é bebida aos sorvos vorazes, desce veloz pela garganta
afogueada” —, e pode conceder um quê de sensualidade contida ao
carinho que guarda por Luís:
Lígia puxa Luís pelo braço, encosta-o ao seu corpo, faz as duas cabeças se
roçarem, misturarem os cabelos:
— Oia ali!
Luís não compreende:
— Ali onde?
Lígia encosta o indicador no vidro, apontando:
— Ali perto do mato…
Luís não enxerga:
— Sim. Tô vendo o mato. Que qui tem?
Lígia sussurra, bem junto ao ouvido de Luís:
— Não diz nada pro Roberto, viu?
Luís promete, impaciente:
— Sim, que qui tem?
Lígia prossegue, o hálito morno bafejando o rosto de Luís:
— Tu sabe o que qui eu tô vendo ali no mato?
Gargalhada escandalosa:
— Nada, bobo! Nada!
Apesar da gargalhada e da revelação do logro — Lígia não quer afastar a
cabeça da de Luís, quer deixar os cabelos fartos e negros continuarem
misturados aos de Luís, como o calor bom do seu rosto requeimado
passando, suave, para o rosto frio de Luís. Mas a timidez súbita toma conta
de Luís, fazendo-o afastar-se brusco.

Essa personagem falante, atrevida, impulsionada pela curiosidade às


vezes mórbida, cresce gradualmente na narrativa, mostra-se mais
esperta e ágil que o irmão e o primo, e também dona de inigualável
empatia por todas as formas de sofrimento, como no capítulo 12, na
visita que fazem ao casebre em que vivem as famílias de Peleu e
Marciano, empregados do avô: “A pena, a piedade vem súbita ao
peito de Lígia, que começa a sentir o mal-estar crescente, o mal-estar
que lhe acelera o coração, que lhe empalidece o rosto trigueiro, que
lhe faz fugir, trêmula, na ponta dos pés” — sentimento que mais tarde
elucidará para Roberto e Luís:
Lígia para de bolir na água. Espera que o rosto se refaça, espera que os
grandes olhos negros se desenhem nítidos. Diz, sempre olhando a água do
arroio:
— Vocêis não conta pro vovô, sinão o vovô é capaiz de despachá ele… (A
nuvem de pesar escurece o rosto bonito) Eu vi a filhinha deles, no quarto da
Isaltina… Tá tão magrinha! Eu disse pra Isaltina que lá em casa aparece
criancinha mais magra… Mas é mentira. Nunca vi uma guriazinha tão
magra… (Os olhos pesarosos fitam, vagos, o irmão e o primo) Si o vovô
despacha o Marciano, aí mesmo é que a negrinha morre…

Numa decisão insólita, que obedece à intensidade e à irreverência de


Lígia, essa “boneca inatingível” instiga a morte — e perde o desafio.
A primeira parte do romance está repleta de outros personagens,
figuras comoventes, que serão devoradas pelo surto de gripe
espanhola. Veja-se, por exemplo, o idoso primo Rodrigues, médico,
consciente de que o fim se aproxima, chamando a todos de
“cagarolas”, com sua cativante antipatia, forma irônica e apaixonada
de enfrentar a vida, contraponto perfeito a Nunes, comerciante que se
esconde sob fofocas e outras mesquinharias, a quem Rodrigues
enfrenta com delicioso sardonismo:
A bengala desfere a pancada fortíssima na madeira do balcão:
— Sim! Você está gozando, sim! Mas fique sabendo de uma coisa: você tem
um enorme amor a esta vidinha, você tem um grande cagaço de morrer… E
fique sabendo também que a Espanhola lhe levará, ora se levará! Com este
seu jeitinho magro, com esses seus pulsinhos caquéticos, você embarcará, na
certa! E embarcará se borrando todo, que nem o ajudante de ordens do
Conde d’Eu, um cagarola que eu curei do fígado com colomelano,
compreendeu? Você embarcará, não tenha dúvida! (Outra pancada de
bengala) Aliás, embarcaremos! Mas com esta diferença, você se borrando e
eu… e eu… (gargalhada) me borrando também…
Dr. Rodrigues sobraça a caixa de papelão, já embrulhada, ajeita melhor o
chapéu de feltro negro, faz a bengala dar a última pancada na superfície do
balcão:
— Fique sabendo que, quanto a mim, estou brincando. Eu não me borrarei
quando a cadela vier, porque, graças a Deus, tenho coragem, mas você, seu
Nunes, não tenha dúvida, você se borrará todo! Aproveite um desses seus
suspensórios para segurar as calças… Os de cinco mil réis…

Crianças e adultos irrompem das páginas com dúvidas,


preocupações, alegrias, ressentimentos, movidos não por um
deus ex
machina
, mas pela vida mesma, pronta a se alimentar dos nossos
anseios. Tais personagens se inter-relacionam graças à habilidade do
autor, compondo o painel sensível de uma Porto Alegre antiga,
atemorizada pelas notícias da Primeira Guerra — qualidade que se
revela também nos diálogos ágeis, nos delicados flagrantes do
cotidiano, nas cenas dramáticas ou de cunho introspectivo, como esta
antológica manifestação do medo:
A chaveta se torceu com o estalido seco. A treva chupou a luz do quarto,
como uma esponja que aspirasse todo o conteúdo de um aquário. A esponja
chupou também a respiração, a vida de Luís, que ficou junto à porta, ainda
com a mão sentindo o frio da louça da
chaveta, rijo como uma estátua.
No silêncio do quarto, Luís escutou as batidas apressadas do coração, que
parece ser o único resto de vida que a esponja não aspirou.
Sempre rijo, sempre de respiração suspensa, Luís se dirige para a cama, que
é um vulto vago e escuro, colado ao canto do quarto.
Duro, de movimentos quase tolhidos, Luís deita e se cobre até o pescoço.
Faz força, morde os lábios, a fim de evitar que a respiração chegue forte e
traga ao silêncio do quarto outros ruídos que não sejam o tuc-tuc apressado
do próprio coração, outros ruídos que bem podem trazer o hálito acelerado
de fantasmas malvados.
Os olhos, abertos e fitos na treva — notam o vago, o tímido fio de
claridade, que entra pela fresta da única janela do quarto. O fio, o fiozinho
impreciso de luz azulada, invade, vagaroso, tímido, o país da treva. Quebra-
se, como a fotografia de um corisco, desliza reto, bate à meia altura da
parede, rente à cama de Luís. Irradia-se, ramifica-se, vago, revela a cômoda
alta e pesada. Aqui, na parede fronteira do quarto, junto à porta, o riozinho
de luz azulada desaparece, entra na treva.

Na segunda metade do livro, reencontramos o frágil Luís, agora


adulto medíocre, transformado num protagonista preso às piores
ilusões, esquecido dos ensinamentos do avô, dr. Ferreira. Como diz a
velha prima Sinhá, “­falta-lhe coragem”. A psicologia do personagem é
perfeita: os erros da idade adulta já se manifestavam na infância. A
decadência de Luís se amplia quando o comparamos à vida íntegra do
negro Peleu, paupérrimo, mas altivo, sincero. Luís tem consciência da
sua derrocada — e se entrega cada vez mais a ela: ultraja a memória
familiar; torna concreta a “estrada perdida”, expressão com que o avô
definia a existência; apequena-se por motivos vis.
Exercício de perfeita composição, cujas boas cenas excedem o limite
desta análise, Telmo Vergara compõe não apenas o quadro da Porto
Alegre que se transforma no decorrer da primeira metade do século
XX
, mas apresenta, como disse José Lins do Rego, “as pequenas dores
da vida que corre sem o estrépito das quedas d’água”. Trata-se,
contudo, de olhar aflitivo e pessimista, no qual o ser humano se
oferece à morte por razões fúteis, irresponsáveis — como Lígia — ou
escolhe a morte moral, a decadência sem o mínimo gesto de luta,
aceitando, pusilânime, a dissolução da própria vontade.
CAPÍTULO 41

Sem nunca viver


— Guilhermino César e Sul

Guilhermino César fez parte do núcleo responsável pela criação da


Revista Verde
, em Cataguases, Minas Gerais, no ano de 1927, ao
lado de Rosário Fusco, Henrique de Resende, Francisco Inácio Peixoto
e Ascânio Lopes. O manifesto que acompanha a revista, sem ditar
linha estética clara, pretendia colocar o grupo na contramão das
influências europeias seguidas pelos modernistas do eixo Rio-São
Paulo, recusando os “pais espirituais”, mas enaltecendo o trabalho de
alguns conterrâneos: Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus,
Martins Almeida e Emílio Moura. Seguidores de um “objetivismo”
mal explicado, a mera “situação topográfica” dos jovens deveria
garantir-lhes, segundo a ilusão juvenil, algum tipo de hermético
protagonismo. Destacando-se do grupo, Guilhermino César
continuará o trabalho de divulgação do ideário modernista no
tabloide
Leite Criôlo
, depois transformado em suplemento do jornal
Estado de Minas
.
Com uma obra dedicada principalmente à poesia e aos estudos de
crítica ou história literária, estes centrados na cultura gaúcha,
Guilhermino César deixou também o romance
Sul
, de 1939, no qual
o protagonista, Luciano, surge nas primeiras páginas, no centro da
roda de ouvintes sonhadores que se divertem num boteco. Fala com
desenvoltura, entregando-se a “planos mirabolantes”, a uma
“divagação inocente” que conduz os colegas pelo caminho da ilusão.
Seu tema é a quimera que dá título ao romance, o Sul, mais
precisamente São Paulo, cujas promessas de enriquecimento ofuscam
o juízo desses retirantes vindos do Nordeste: depois de seguirem o Rio
São Francisco, estacionaram ali, no vilarejo do Morro Velho, para
tornarem-se empregados da mina de ouro comandada pelos ingleses.
O verboso Luciano esconde, entretanto, uma angústia “vaga,
imponderável, que lhe machuca o peito sem fazer cicatriz profunda”.
Está sempre pronto a se refestelar na “própria instabilidade de
sentimentos e emoções”, mal equilibrando-se entre o desejo de
permanecer na vila, principalmente se a jovem Margarida mostrar-se
receptiva ao seu amor, e o “chamamento misterioso do Sul”.
O desabe de uma das galerias da mina tira a vida do capataz
Aquiles, inimigo de Luciano, e condena este a lenta recuperação da
saúde, o que aprofunda sua melancolia, carregada de lembranças da
infância, quando fora acometido de estranha doença:
Lembrava-se. As lavadeiras haviam saído cedo para a beira do rio e estavam
custando a regressar. Luciano, de férias no sítio, foi buscar Gabriela, a irmã
caçula que seguira as lavadeiras logo de manhãzinha. […]
Chegou. Nem vivalma. De súbito, o vento começou a vaiá-lo. Era uma voz
fina, estridente. As lufadas ­ergueram-lhe o peito da camisa. As calças colaram-
se-lhe nas pernas, o pó se levantou alto, e Luciano teve medo. Um gavião
passou voando, como que perdido, sem direção. As árvores gemiam, as
canavieiras cantavam. Todo ele era um feixe de nervos à flor da pele, um
molambo de gente arrastado pela carreira do vento.
Mãe Tutinha recolhia a peneira de farinha d’água que secava ao Sol,
quando o filho entrou em casa com os cabelos revoltos, a face congestionada.
— Olha, gente, essa cara de saci.
— Mãe… Mãe… — não pôde terminar a frase, explicar-se; a voz sumida de
angústia aquietou-se na língua emperrada.

Numa comunidade em que o destino pessoal está nas mãos de


curandeiros, Luciano afunda na doença inexplicável que o fragiliza
para sempre — e cuja descrição é bom exemplo das qualidades
estilísticas do autor:
Enrodilhado nuns trapos imundos, Luciano chorava baixinho. O berro da
cabra que haviam esquecido amarrada no pastinho dos fundos começou a
encher o silêncio da casa onde o menino sofria. Ele era todo um ofego, uma
inquietação única, uma respiração ansiada. Ninguém se aproximava do catre,
exceto siá Tutinha. E o pequeno arquejava, mostrando no rosto contrafeito os
olhos esbugalhados. Uma dor generalizada ­tomara-lhe conta do corpo,
envolvendo-o, atenazando-o. E ele sentiu nitidamente que uma corda se
enrolava no seu tronco, para o estrangular.
Fez esforço para ver. E enxergou tudo preto diante dele, e nem viu pai
Inácio dobrado ao tamborete, agora com um rosário nas mãos, se bem que
ouvisse a canção monótona dos colmos de bambu que estalavam no fundo da
horta.
À noite seguinte caiu numa prostração funda, agravada pela respiração
cada vez mais difícil. Só na semana seguinte a febre
começou a baixar, até que
seus olhos se abriram (o pessoal dormia, a casa mergulhada num grande
silêncio), para ver de verdade a manhã que se insinuava por detrás do morro,
e veio vindo, se despejou no telhado, iluminando o chão de terra socada
através da telha vã.

A dicotomia dessa personalidade, física e moralmente debilitada,


está sempre pronta a assomar, debatendo-se entre “deliquescência” e
crises de virilidade, desânimo e entusiasmo, a busca do Sul e a
profunda aversão ao falecido Aquiles, que Luciano perpetua, com
morbidez, ao seduzir a viúva do capataz, Sebastiana.
Capítulo a capítulo, a urdidura do passado do protagonista e a
trama do seu cotidiano interpenetram-se para complexificar a
narrativa, eliminando qualquer possível tediosa linearidade. Dividido
entre o passado irremediável e o futuro pelo qual não luta, Luciano
jamais vislumbra a única opção que pode levá-lo à verdade: o
presente. Semelhante a todos nós, repete o erro apontado por Pascal:
34

Nunca ficamos no tempo presente. Lembramos o passado; antecipamos o


futuro como lento demais para chegar, como para apressar o seu curso, ou
nos lembramos do passado para fazê-lo parar como demasiado rápido, tão
imprudentes que erramos por tempos que não são nossos e não pensamos no
único que nos pertence, e tão levianos que pensamos que nada são e
escapamos, sem refletir, do único que subsiste. É que, em geral, o presente nos
fere. Escondemo-lo de nossas vistas porque nos aflige e, se ele nos é agradável,
lamentamos que nos escape. Buscamos mantê-lo mediante o futuro e
pensamos em dispor as coisas que não estão em nosso poder por um tempo
ao qual não temos a menor certeza de chegarmos.

Concluir sua vingança na carne de Sebastiana traz novos dissabores


a Luciano, derrotado pela memória do inimigo, que ressurge
constantemente nas recordações da viúva. Sem nunca realizar-se, o
ódio espraia-se e atinge o filho de Aquiles, criança indefesa, até a cena
paroxística, salto na escuridão moral desse protagonista constrangido
entre a “água preta dos resíduos da mina”, o “céu também negro” e a
caminhada “às cegas, arrastado por uma força que não conseguia
identificar em suas origens”.
Nada é mais palpável do que a impossibilidade, vivida por todos os
personagens, de “dissecar seus sentimentos”, mal-estar substancial em
Luciano, “bipartido, multiplicado, de sorte que o adolescente e o
menino se confundiam com o homem feito, e eram desejos absurdos,
sonhos vagos,
confusos”. Essa psicologia complexa está presente
inclusive nas figuras secundárias, como Teodureto, sonhando com a
vida artística, infeliz por obedecer às obrigações diárias, mas cujo
único gesto de audácia resume-se à covardia de uma carta anônima.
Nesse labirinto de frustrações, tendo ao fundo os pilões da mina,
incansáveis, que trituram a pedra — “Quando os pilões param […]
eles acordam sobressaltados. As crianças chegam mesmo a chorar de
medo […]. E quando há silêncio no vale, os operários rolam nos leitos
promíscuos, perdem a noção do tempo, acordam cansados como se
houvessem passado a noite em vigília” —, Guilhermino César brune a
linguagem, como ao descrever o nevoeiro matinal — “animais e
pedras se anulavam dentro da cerração baixa” —, atento aos
pormenores — “vozes reclamam café, crianças choram, mulheres
estendem roupa de cama nos varais. Um par de chinelos de liga,
molhados de sereno, ficou ali do lado de fora, perto da porta, ao lado
de uns trapos que foram, na véspera, uma boneca de pano, com o
desenho dos olhos e da boca feito a carvão”. Certos elementos
ganham vida inesperada — os condutores de ar das galerias
subterrâneas são comparados a “traqueias cansadas”; a pobreza do
operário é denunciada nos pés que correm “magoando as lanchas nas
pedras agressivas das ladeiras”. Trata-se do pacto estilístico que o
autor firma conosco — sem grandiloquência, sem metáforas
rebarbativas, desprezando os contorcionismos verbais, a linguagem
obscura ou sucessões de frases telegráficas, mas pronto a iluminar a
realidade.
Enquanto o ouro é arrancado das profundezas da terra, também as
decisões são tomadas sob a escuridão. Luciano refuta o crime
hediondo e assume sua escolha “na solidão da noite” — mas o faz
ecoando o veredicto de Pascal: “O passado e o presente são os nossos
meios; só o futuro é o nosso fim. Assim não vivemos nunca, mas
esperamos viver e, sempre, nos dispondo a ser felizes, é inevitável que
nunca sejamos”. Escolha movida mais pelo acaso do que pelo arbítrio.
Escolha tão frágil quanto sua determinação.

34
Pensamentos
, Editora Martins Fontes,
SP
, 2001.
CAPÍTULO 42

Rude e maravilhoso
— Cassiano Ricardo e Marcha para Oeste

A destacada participação de Cassiano Ricardo na cultura nacional


— como poeta e ensaísta, sem esquecer o trabalho nas funções
públicas e no jornalismo —, iniciada em 1915 com os poemas
reunidos em
Dentro da noite
e chegando, em 1970, à quarta edição,
revista e ampliada, de
Marcha para Oeste
, aprofunda a perplexidade
do leitor que, ao esquadrinhar hoje as livrarias, quase nada encontrará
do autor. Há algo de sinistro num sistema literário que se apressa no
rumo do esquecimento, principalmente de um escritor cuja obra,
segundo Mário Chamie, revela “a série de pontos-chave que lastreiam
os nossos movimentos poéticos”.
A importância de sua prosa não é menor. Soube esmiuçar os
embates, não só diplomáticos, que envolveram a Bolívia e o Acre (em
O Tratado de Petrópolis
); conseguiu distanciar-se das estéticas em
voga, perscrutar seus problemas — principalmente do concretismo —
e defender a autonomia da crítica, em
Algumas reflexões sobre a
poética de vanguarda
; analisou criteriosamente um dos nossos
principais poetas, em
O indianismo de Gonçalves Dias
; opôs-se ao
“sentido contraditório, senão confuso”, da expressão “cordial” na
obra de Sérgio Buarque de Holanda; defendeu a interdependência
entre prosa e poesia no breve, mas instigante,
A poesia na técnica do
romance
; recolocou no centro da história de São Paulo, e do Brasil, a
figura do missionário, poeta, indianista e santo José de Anchieta. Não
satisfeito, deixou-nos o profundo e diversificado estudo a respeito do
bandeirismo,
Marcha para Oeste
, ensaio que investiga causas e
consequências das expedições que, penetrando no sertão, do século
XVI
ao
XIX
, alargaram o território nacional, instituíram uma forma
peculiar de governo móbil, promoveram a miscigenação e descobriram
veios de riqueza, muitas vezes contrapondo-se aos ditames de Portugal
— ou seja, foram muito além do que certa historiografia rasteira, de
inspiração marxista, prefere tratar apenas como captura e
escravização de índios.
O ensaio, o próprio autor insiste, não trata da marcha para
o
Oeste,
mas
para Oeste
, “ao início, para um Oeste sem saber até onde”, o
que marca o caráter aventuroso da bandeira, obediente, inclusive, ao
sinal da própria
geografia: o Tietê, rio que corta o Estado de São
Paulo, “dava as costas pro mar e lá se ia embora, rumo a Oeste, como
que determinando que o homem fizesse o mesmo”.
Servindo-se dessa linguagem leve, às vezes divertida, sem a retórica
esnobe, hermética, de inspiração deleuziana, que polui, de forma
crescente, nosso ensaísmo, o autor reconstitui a época, as influências
econômicas, sociais, políticas, e o imaginário daqueles personagens:
portugueses, índios, espanhóis, negros; religiosos e leigos; degredados
e funcionários da Coroa:
Um pormenor curioso: enquanto Aleixo Garcia dava seu passeio saindo de
Santa Catarina e indo parar no Peru (1526) o tal Ulrich Schmidel (aquele que
visitou os mamelucos de João Ramalho) dava também o seu passeiozinho,
saindo de Assunção e vindo parar em S. Vicente (1552). A recíproca era
verdadeira e tinha um sentido profético. Queria dizer: assim como vocês
podem trazer a linha de Tordesilhas até os Andes, nós podemos levar o
domínio espanhol até o Atlântico e o Brasil não existirá. Eram as pontas de
um dilema que só a bandeira poderia ter resolvido com maior eficácia em
nosso favor.

Veja-se outro exemplo, em que as dificuldades para subir o chamado


“caminho do mar”, do litoral para o planalto, surgem de maneira
plástica, bem-humorada:
[…] A subida que eram elas; subia o pessoal agarrando em raiz de árvore,
machucando os joelhos em pedra e correndo o risco de rolar pela ribanceira.
Ninguém se atrevesse a olhar muito gostosamente para a paisagem que se
abria lá embaixo. O perigo puxava a gente e dava tontura, que era um deus-
nos-acuda. […] Parece que o diabo do caminho do mar vivia agarrando padre
pela batina. Não era só Frei Gaspar que o increpava de tanto horror. Fernão
Cardim não se conteve também, diante da terrível picada. Também dois
jesuítas espanhóis que acompanharam os índios trazidos por Antônio Raposo
Tavares até S. Paulo, e que escreveram, apesar de os terem admitido os
paulistas nessa pretensão absurda, terríveis objurgatórias contra estes, não se
esqueceram de referir-se à subida da serra, que praticaram já de volta de
Santos, dizendo que era “una cuesta azedisima que por ella no pueden subir
cabras montesas sin peligro”.

Mas Cassiano se mostra perfeito também na síntese. Define em


poucas linhas o espírito bandeirante:
[…] Viver naqueles desertões bebendo o leite da ignorância, que lhe
fortificava a rudeza; falar tupi, já que o português lhe impossibilita
a
penetração; ser poeta, embora sem consciência disso mas por acreditar nos
mitos, num ambiente de fábula — são condições necessárias ao homem que
vai sertanejar.

E nesta página, que apresenta nova variação de tom, de estilo,


resume a saudável desobediência bandeirante, bem como as
incoerências seculares que marcam a formação do país:
Não vá, dizia-lhe o padre; e o padre era o primeiro a ir (Anchieta, Nunes de
Siqueira, Antônio Raposo, João Álvares). A ir, e até descer índios, conforme a
observação documentada dos historiadores.
Não vá, ordenava-lhe a Câmara; e toda a Câmara tinha ido. (Episódio
ocorrido com Raposo Tavares).
Não vá; se você for, nós todos iremos também. (Episódio ocorrido com
Antônio Nunes Pinto).
Não vá, dizia o procurador dos índios (Fernão Dias) e preparava ele a sua
bandeira “à testa de muita gente branca e vermelha”.
Não vá; o ouvidor é quem diz que não vá. E o seu irmão já tinha ido com
trezentos homens. (Episódio ocorrido com Nicolau Barreto). […]
Não vá — ordenava a Coroa, alegando que não convinha avançar tanto pra
Oeste a ponto de perturbar a posse castelhana — mas a Coroa, que só se
apercebeu da conquista depois desta realizada, foi a primeira a invocar o feito
dos bandeirantes quando opôs o seu direito ao de Castela, na fixação das
nossas fronteiras territoriais.
Saia dessa posição — dizem el-rei e o Conde de Assumar ao “fronteiro” de
M’Boitetu, Pascoal Moreira; e se ele tivesse saído?

Mas Cassiano Ricardo quer, também, apresentar o “desenho


psicossocial” da bandeira, “o mais curioso exemplo de tendências
contrárias postas numa só direção” — e investiga, então, o imaginário
daqueles desbravadores, daquela gente pobre que, terminada a
existência de sacrifícios e aventuras, morre igualmente pobre (dos
inventários seiscentistas disponíveis nos arquivos, só 5% deles revelam
“alguma abastança”, denotam um final de vida com relativo
conforto). Que mitos impulsionam as bandeiras? Quais são os “focos
de propulsão” que “espicaçam para a aventura”? E como se
configuram, na imaginação coletiva, os “focos de atração” que se
concentram no “sertão enigmático e fascinante”? O mito transforma-
se em realidade cotidiana, familiar; a “imaginação ardentemente
associada à ideia de fortuna” é o aguilhão onipresente; a religiosidade
do português e o animismo do índio se mesclam: “Mitos à frente,
santos atrás — e lá se vai a bandeira…”. Há o “mito inibidor” — o
curupira, a mãe-d’água, o boitatá, o jurupari — e há o
“mito
instigador”: a “montanha reluzente”, a “serra das esmeraldas”. Um
“cria o óbice” — o outro “instiga a caminhada”. Magia e lei da
necessidade constroem essa “
vis propulsiva
”.
O bandeirante acreditou nos mitos. Mas também transformou as
narrativas indígenas, criou suas próprias fantasmagorias e suscitou
outras, como a “raça de gigantes”, de Saint-Hilaire. E se incumbiu de
repelir ao menos dois relatos fantásticos: o das amazonas e o delírio‐ ­
rousseauniano do “bom selvagem” — a lúcida, realista observação de
Domingos Jorge Velho a respeito dos índios deve soar como afronta a
muitos antropólogos: “Enganam-se os que o querem fazer anjo antes
de o fazer homem”.
Publicado em 1940,
Marcha para Oeste
impõe aos leitores
contemporâneos dupla interrogação. A primeira, no capítulo 25:
como o homem urbano, “dentro da vida múltipla, simultânea,
aglomerada, cheia de conflitos por falta de espaço” pode recuperar a
noção clara daqueles milhares de quilômetros cruzados a pé ou em
rústicas canoas?
A segunda, decorrente da anterior, é mais grave: onde estão os
grandes romances que tratam do bandeirismo? Por que as façanhas e a
tenacidade desses homens não foram incorporadas à literatura? A
resposta encontra-se em Walter Benjamin: porque estamos
contaminados pelo “anjo da história”. O cinismo marxista nos
condicionou a ver o passado como “uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e a dispersa a nossos pés”,
35
para que acreditemos na solução mágica que a ideologia, só ela,

afirma deter. A verdade, contudo, é outra: o extraordinário e o


heroico, com seus infinitos matizes, reclamam, sim, magia, mas
literária. Só a literatura pode explicar a complexidade daquelas vidas,
agregar ao nosso imaginário erros e acertos daqueles homens, dar
concretude aos fatos que, hoje, teses acadêmicas e livros didáticos se
incumbem de simplificar com odioso maniqueísmo. Sem o mistério da
literatura, a história dos bandeirantes permanecerá presa a
esquematismos sociológicos — exatamente onde o marxismo a quer:
escrava das alucinações atuais, em que supostos bons são sempre
derrotados e supostos maus sempre prevalecem.
Marcha para Oeste
escancara o que muitos desejam esquecer: nosso passado rude e
maravilhoso está, ainda, em busca da literatura.

35
Ver “Sobre o conceito de história”, de Walter Benjamin, em
Magia e técnica, arte e
política
(
Obras escolhidas
, Editora Brasiliense,
SP
, 1993, 5ª edição).
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Nos outros dois volumes desta série, Muita retórica — Pouca


literatura (de Alencar a Graça Aranha)
, de 2012, e Esquecidos &
superestimados
, de 2014, Rodrigo Gurgel relê e comenta os seguintes
autores:

José de Alencar
Manuel Antônio de Almeida
João Francisco Lisboa
Joaquim Felício dos Santos
Visconde de Taunay
Bernardo Guimarães
Franklin Távora
Aluísio Azevedo
Inglês de Sousa
Adolfo Caminha
Domingos Olímpio
Manuel de Oliveira Paiva
Raul Pompéia
Machado de Assis
Joaquim Nabuco
Eduardo Prado
Afonso Arinos
Xavier Marques
Graça Aranha
Júlia Lopes de Almeida
Emanuel Guimarães
Euclides da Cunha
Coelho Neto
Olavo Bilac
Lindolfo Rocha
Simões Lopes Neto
Antônio Sales
Hugo de Carvalho Ramos
João do Rio
Carlos de Laet
Lima Barreto
Afrânio Peixoto
Valdomiro Silveira
Monteiro Lobato
Alcides Maya
Amadeu Amaral
Jackson de Figueiredo

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