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CRÍTICA,
LITERATURA
E NARRATOFOBIA
CAPA
FOLHA DE ROSTO
EPÍGRAFE
PREFÁCIO: “Um crítico que é um crítico” — Flavio Morgenstern
APRESENTAÇÃO
II — A Tradição Universal
Narrador malicioso — Thomas Bernhard
Zen e melancolia — Yasunari Kawabata
Perfeição corrosiva — Saki
Amizade entre luz e trevas — Tahar Ben Jelloun
Perene inconstância — Hans Jacob Christoffel Von Grimmelshausen
Submetido ao desespero — James Joyce
Antes do silêncio — Carmen Laforet
Tímido acerto de contas — Jean-Marie Gustave Le Clézio
Onde está o bardo? — William Shakespeare
O silêncio impossível — Antonio di Benedetto
Heroísmo anônimo e perfeição — Arthur Miller
Literatura e populismo — Kiran Desai
A adúltera e a contradição — Gustave Flaubert
O preço de ser um herói — Santiago Roncagliolo
Muito além da morte — Claudio Magris
A navalha do narrador — William Somerset Maugham
Nossa herança comum — Liev Tolstói
Efêmera felicidade — Mario Benedetti
Sofrimento e dignidade — Joseph Roth
Tarde demais — Henry James
A vítima de pandora — Philip Roth
Pela fresta da porta — Isaac Bashevis Singer
À procura dos deuses — John Banville
IV — O toque do Shofar
Pecados de Wilson Martins
Álvaro Lins: O crítico para os dias de hoje
Centelhas de verdade — Chamfort, Kraus, Lichtenberg, La Rochefoucauld
O jugo da utopia — Lauro Machado Coelho
Palavras inatingíveis — Stuart Kelly
Como defender a democracia? — Alexis de Tocqueville
Memória e Lágrimas — Daniel Mendelsohn
Diálogos com a civilização — Philip Roth
Grandiosa epopéia — Felipe Fernández-Armesto
Miragens de Kafka — Calasso, Lemaire, Crumb e Günther Anders
Trágica ingenuidade — Frederic Amory
Crimes incomensuráveis — Ivo Patarra
A Ética da liberdade contra o autoritarismo — Ralf Dahrendorf
Pessimismo, contradições e apatia — Emil Cioran
Ao encontro de Nelson Rodrigues
Apontamentos sobre um bestiário — Olavo de Carvalho
V — Pouca fortuna
Atalhos de sonho — Julián Fuks
Só para lacanianos — Wesley Peres
Incoerências e cacofonia — Livia Garcia-Roza
Boas e más escolhas — Roberto Drummond
Açucarados chavões — Ana Miranda
Narrativa feita de haicais — Adriana Lisboa
Liberdade para contar uma boa história — Igor Gielow
Um sabor a fel — Ivone C. Benedetti
A pequena alegria de Fabrício Corsaletti
Num pântano de escárnio — Eduardo Alves da Costa
Torturante labirinto — José Luiz Passos
Primos muito distantes
Bordados sem risco — Autran Dourado
Romance aliciador — Alberto Mussa
A cópia monótona da realidade — André Sant’anna
Seguro no ofício de narrar — Luis S. Krausz
Romance e pan etarismo — Oscar Nakasato e Ana Maria Machado
O narrador doutrinário — Rodrigo Lacerda
Apuro estilístico e perversidade — Otto Lara Resende
No limiar da anti- cção — Carola Saavedra
Desesperança e poesia — José Luís Peixoto
CRÉDITOS
SOBRE O AUTOR
Tenho lido ultimamente, em vários artigos de jornal, e até em livros,
em autores diversos — uns, por sinal, não tendo nada a ver com a
literatura —, a opinião de que a crítica não deve ser a rmativa, mas
displicente, não deve ser julgadora, mas apenas comentarista. Pensam
assim, em geral, aqueles que não obtiveram da crítica mais do que
censura ou silêncio; também se inclinam para este ponto de vista os
que não puderam realizar a crítica integral. Opinião extravagante e
absurda, porque nenhum verdadeiro crítico aceitaria o desempenho de
um tão secundário papel como seja o de falar de livros e autores sem
os julgar, sem se de nir diante de uns e outros. Seria fazer do crítico
um corneteiro da fama dos autores; um empregado para atirar ores
sobre cabeças mais ou menos gloriosas; um fabricante de elogios e
adjetivos para engordar vaidades e orgulhos. Bem sei que se faz isso na
vida literária; que existem os pro ssionais do elogio e da frase feita;
que há os que escrevem sobre livros somente com este m sem
grandeza. Mas não será possível tolerar que se queira oferecer como
teoria da crítica, como destino da crítica, aquilo que é a sua
descaracterização, a sua caricatura.
É
É responsabilidade a mais exigente e grati cante cuidar de
apresentar este grande intelectual a um público tão importante quanto
os leitores de cção – e também tarefa pavimentada de hesitações,
medos e aventuras perigosas, por não se querer tomar as rédeas do
leitor e conduzi-lo por impressões outras, desejando por m ser
esquecido para que o leitor saboreie as palavras do verdadeiro autor. É
buscando uma integração no todo – zen , como nos ensina Rodrigo
Gurgel a ler Yasunari Kawabata –, longe de estruturalismos e outras
frescuras acadêmicas, que deixo a faina de reintegrar tais impressões
no objeto e no sujeito ao poder poético e de difícil assimilação por
esquematismos racionais à própria leitura literária – pois alguém da
grandeza de Rodrigo Gurgel, ao fazer crítica literária, também faz
literatura a mais brilhante.
Flavio Morgenstern
APRESENTAÇÃO
Reúno neste volume textos publicados na última década. A maior
parte, no Jornal Rascunho e na Folha de S. Paulo . Outros, nas revistas
Sibila e Dicta & Contradicta , em meu próprio site ou como
entrevistas e prefácios. Ao preparar este livro, tentei criar um conjunto
homogêneo, que expressasse minha visão da literatura e do papel da
crítica literária. Só não foi possível ampliar, como gostaria, os textos
escritos para a Folha — mas a essência dos julgamentos respira neles
com igual força, com igual sinceridade.
Agosto de 2015
I — O crítico à procura de si mesmo
EM BUSCA DO LIVRO PRIMORDIAL
1.
De Euclides da Cunha, Os Sertões foi o primeiro livro que estudei
com olhar de leitor malicioso — não no sentido de “má índole”, o
mais comum entre nós, infelizmente, mas no sentido de “astúcia”,
“sagacidade”. A motivação veio de Paulo Vieira, meu professor de
português no velho Instituto de Educação, em Jundiaí. Quando
comecei “A Terra”, tive uma vertigem: aquilo era incompreensível —
o livro exigia muito mais que um dicionário constantemente aberto ao
meu lado.
Foi, aos dezessete anos, o primeiro lampejo de que as melhores
obras literárias estão além, muito além do que o leitor inocente vê no
seu contato super cial, passageiro. Ir e voltar pelas páginas, descobrir
a musicalidade que a linguagem pode alcançar, sentir que aquele livro
estava além dos meus conhecimentos — tudo me impulsionava a ir
adiante, a perseverar.
2.
Descobri John Keats de forma inesperada. Era o primeiro dia de
aula na universidade. E a primeira aula do primeiro dia. Meu
professor de Teoria da Comunicação, Flávio Vespasiano Di Giorgio,
tirou o maço de Continental sem ltro do bolso rasgado da camisa,
acendeu um cigarro, sentou sobre a mesa e, olhando para o vazio,
agitando um pouco no ar seus dedos manchados de nicotina,
começou: A thing of beauty is a joy for ever… Quando terminou, o
feitiço estava lançado: manhã após manhã eu tentaria me vincular à
terra, apesar do desespero, dos dias escuros e de todas as dúvidas que
pudessem existir no meu espírito. Desde aquele dia, não passa um
semestre sem que eu releia o “Endymion” ou algum outro poema de
Keats. Minha fascinação por ele foi semelhante à do próprio Keats por
Homero: era como se eu tivesse descoberto um novo planeta.
3.
Foi também Flávio Vespasiano Di Giorgio quem me despertou para
Drummond. Em algum momento daquele primeiro semestre,
interrompeu, como sempre fazia, seu raciocínio, e começou a
declamar “Campo de ores”. Comprei Claro enigma depois da aula. E
descobri “Tarde de maio”, “Remissão” — nada resta do que
escrevemos, “senão contentamento de escrever”. E se busco “o m
sem a injustiça dos prêmios”, também me pergunto, até hoje, “Que
pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?”.
4.
O início de A Morte de Virgílio capturou-me: “a solidão do mar,
ensolarada e todavia prenunciadora de morte”. Eu não sabia que a
visão da armada imperial a cruzar o Adriático me levaria mais longe
do que qualquer outro romance. Com Hermann Broch descobri que a
cção não precisava estar presa aos temas comezinhos da literatura
brasileira, às historinhas pér das, a permanentes universos
mesquinhos, restritos à pelada no m de semana, à libido insatisfeita,
aos subúrbios, a casos de adultério e existências rasteiras.
5 e 6.
Lorde Jim e A fera na selva con rmaram Broch. A grande literatura
está muitos degraus acima de Capitu, Peri e Ceci, ou eternos retirantes
esfaimados sem nenhuma dúvida interior.
Joseph Conrad e Henry James mostraram-me que a grande batalha
encontra-se no centro do nosso coração — essa é a única história
sempre recontada. Sem o duelo permanente que ocorre na nossa
consciência, a banalidade se instala na cção — e é vendida aos
incautos como o melhor realismo.
7.
Em algum momento da década de 1970 comprei Raízes da Criação
Literária , de Edmund Wilson. Foi meu primeiro contato com uma
crítica literária consistente, jamais sufocada pela erudição. Ao
contrário, a erudição servia para tornar o texto sedutor, as idéias eram
colocadas de forma clara — e o autor realmente dialogava com os
livros.
Ter lido um ensaio como “Filoctetes: a chaga e o arco” vacinou-me,
percebi anos mais tarde, contra o estruturalismo e a semiótica. Wilson
foi o ltro que impediu minha contaminação completa. Na faculdade,
forçado a me empanturrar com os textos tediosos de Roland Barthes,
eu mantinha Wilson como uma referência lúcida, equilibrada.
8.
A análise que Mario Vargas Llosa faz de Madame Bovary, em A
orgia perpétua , con rmou o que eu intuíra ao ler Edmund Wilson: na
análise de um texto, era possível o detalhamento, digamos, quase
cientí co, mas sem matar a obra, sem transformá-la num esquema,
numa árvore de análise lingüística, sem endeusar a linguagem, sem
desvincular a obra da realidade.
Vargas Llosa ensinou-me ainda mais: mostrou-me que o
hermetismo das vanguardas, seu suposto espírito revolucionário, era
um engodo. E por um simples motivo: o bom escritor carrega a ira de
Flaubert — a ira que o salvou do “esteticismo hermético”. Essa ira,
muitas vezes contra a própria humanidade, “infundiu em seus livros o
vírus negativo que é o segredo da sua acessibilidade: para que um
romance provoque dano é imprescindível que seja lido e entendido”.
9 e 10.
Se Edmund Wilson me vacinou contra os estruturalistas, Olavo de
Carvalho me vacinou contra o marxismo e a intelectualidade
materialista, hedonista e cética que ponti ca na mídia e na
universidade brasileiras. Depois de ler O imbecil coletivo ainda militei
anos na esquerda, mas o pensamento de Olavo permanecia —
desculpem-me o chavão — uma ilha de lucidez.
Fazia com Olavo de Carvalho o que o diretor do Gabinete de
Leitura Ruy Barbosa, em Jundiaí, fazia com Lênin nos anos duros da
ditadura militar: guardava-o num armário bem fechado, em algum
ponto sombrio da biblioteca. Eu me debatia com meus próprios
pensamentos; repleto de dúvidas, observava a vida e meu trabalho
seguirem destituídos de sentido. Ao mesmo tempo, percebia a
tremenda incompatibilidade que havia entre o discurso dos
“companheiros” e sua prática cínica, aética.
O imbecil coletivo e tantos outros artigos de Olavo somaram-se a
Isaiah Berlin — e então livrei-me do coscorão esquerdista. Olavo e
Berlin foram meus guias no processo de rompimento de nitivo não
apenas com uma forma de pensar, mas com uma forma de viver.
Ambos são intelectuais completos. Minha leitura de Berlin começou
por seu ensaio “O ouriço e a raposa”, em Pensadores russos , aula de
crítica literária e cultural.
Foi um longo processo. Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin
ajudaram-me a abraçar aquelas verdades que sempre estiveram à mão,
obscurecidas pelo meu esquerdismo. A primeira delas, a mais banal, é
que justiça e liberdade jamais foram bandeiras exclusivas da esquerda.
Aliás, a esquerda tem se notabilizado na história exatamente por,
chegando ao poder pela via revolucionária, trair esses ideais.
Mas o que Olavo de Carvalho e Isaiah Berlin me oferecem não se
resume a desacreditar do marxismo. Seria muito pouco para dois
pensadores excepcionais. Eles me fazem re etir, como os outros livros
que mudaram minha vida, sobre a existência, a literatura, a condição
humana — e cada página deles acrescenta algo à minha
Weltanschauung .
REFLEXÕES NO IMPÉRIO DOS FILISTEUS
Respeito ao leitor
Pedem-me, muitas vezes, que comente sobre o espaço, cada vez
menor, concedido à crítica literária em jornais e revistas. Contra o
senso comum, repito que a crítica tem o espaço que merece.
Se o espaço diminui cada vez mais — e se o número de publicações
dedicadas à literatura escasseia —, isso se deve não só a certas
políticas editoriais ou a questões de ordem sociológica, mas também
aos próprios críticos, que afastam os leitores ao incorporar a
linguagem hermética da academia e evitar fazer julgamentos claros.
Ora, o leitor dos cadernos culturais não quer receber, a cada
semana, pílulas estruturalistas ou conceitos derridianos. E não quer
chegar ao ponto nal do texto sem saber o que, exatamente, o
articulista pensa. Quer e precisa de uma crítica que se disponha à
tarefa de intermediar o diálogo entre a obra e ele, o leitor. Portanto, se
a crítica deseja recuperar seu espaço, deve, antes de tudo, reaprender a
respeitar o leitor.
Forma de hipocrisia
Em 2010, numa entrevista ao jornal O Globo , Karl Erik
Schøllhammer, professor de literatura da PUC-RJ, questionado pelo
jornalista Miguel Conde sobre os críticos que receavam fazer
julgamentos de valor, respondeu claramente: “As pessoas não têm
coragem. A dura verdade é essa. Existe no Brasil uma cordialidade
exagerada entre crítica e escritor, que é ambígua, mas que é mantida
assim: o crítico diz para o autor ‘Isso é muito bom’, mas vira a cabeça
e diz ‘Isso é uma droga’. Essa cordialidade, essa falsa a nidade e essa
conivência bloqueiam a franqueza na discussão. Com poucas
exceções. Existem algumas exceções na crítica brasileira”.
Quando li essas palavras, quei em estado de júbilo: alguém
pensava como eu. Essa é, portanto, minha avaliação. Grande parte
dos nossos críticos esconde sua opinião sob os jargões acadêmicos
exatamente para não julgar. Quando não utilizam o discurso
hermético, cam naquilo que minha avó chamava de “conversa para
boi dormir”. Nos dois casos, trata-se do que eu chamo de síndrome
do bom-mocismo. No fundo, uma forma de hipocrisia.
Papel da crítica
Não entendo a crítica literária como um exercício acadêmico e
narcisista, que busca apenas sua autossatisfação. Não. A crítica
literária é um instrumento a serviço do homem. Serviço, aliás,
extremamente honroso, pois elabora o diálogo que deve existir entre a
obra literária e o leitor. O discurso da crítica é imprescindível e precisa
ser feito com destemor e autoridade. Sem ele, sem a crítica, teríamos o
depauperamento da cultura, da própria civilização.
Um subterfúgio verbal
Tornou-se comum o julgamento estereotipado da crítica, de que ela
trabalha apenas com “critérios estabelecidos” e, assim, não lê a obra
“dentro daquilo a que o autor se propõe”. Agindo dessa forma, os
críticos di cultariam a renovação e a inovação na literatura.
Ora, a expressão “critérios estabelecidos” é um subterfúgio verbal,
pois não explica nada. Poderíamos dizer, da mesma forma, que as
estantes das livrarias estão repletas de prosa e poesia feitas segundo
“critérios estabelecidos”.
A questão, na verdade, é outra.
Trata-se de entender os papéis que crítico e escritor desempenham
no sistema literário. O papel do escritor é escrever, criar. Se ele escreve
para satisfazer sua roda de amigos, seu professor de Teoria Literária,
seu partido político ou determinado crítico literário, então escreve
mal, muito mal. Como em todos os setores da vida, a liberdade deve
ser a grande diretiva. A regra serve, feitas as necessárias mudanças,
para o crítico. Ambos devem exercer suas tarefas com maturidade,
evitando adulações e idéias preconcebidas. E ambos devem agir,
principalmente, com independência.
Penso num exemplo: Sílvio Romero desancou Machado de Assis o
quanto pôde. Acertou ou errou? Não importa. Importa que ambos
agiram, cada um em seu campo, de maneira independente, autêntica,
certos de estarem fazendo o melhor. Até este momento, Machado
parece ter vencido a batalha. Mas isso não diminui o valor da ampla
obra que Romero deixou, da mesma forma que não garante que a
avaliação da obra machadiana permanecerá, no futuro, imutável. A
verdade é uma só: a cultura sempre sairá ganhando se críticos e
escritores cumprirem suas funções.
“Verniz onírico”
A crítica precisa reencontrar o caminho que possa salvá-la do
discurso hermético, do medo de julgar e do relativismo cultural. Ela
precisa se libertar também do formalismo emburrecedor e da visão
monista da obra literária e da própria realidade.
É inacreditável que grande parte da crítica e da produção
acadêmica continue de joelhos diante do estruturalismo. O mesmo
estruturalismo que Todorov superou há trinta anos, em 1984, quando
publica Critique de la critique .
Mas nossos professores de Letras forçam seus alunos a estudarem o
Todorov de Poétique de la prose , que foi publicado em 1971… Assim
funciona parcela signi cativa da academia: estabelece-se um modelo
— e a maioria só consegue papagueá-lo.
À parte essas teorias — que não passam de “verniz onírico”, como
bem de niu Thomas Pavel em A miragem lingüística , infelizmente
pouco estudado no Brasil —, nossos estudiosos pretendem desvincular
a literatura da vida real, como se a obra literária fosse uma espécie de
geração espontânea. Perdoem-me por repetir o nome de Todorov, mas
sua lição, no delicioso A literatura em perigo , é atualíssima:
“Assassinamos a literatura quando fazemos das obras simples
ilustrações de uma visão formalista, ou niilista, ou solipsista”.
Dupla desorientação
O problema, entretanto, começa muito antes da universidade.
Os futuros críticos estão, neste exato momento, recebendo as
mesmas velhas e ultrapassadas lições nas escolas. Continuam
ensinando aos jovens que, por exemplo, Canaã , de Graça Aranha, ou
Bom Crioulo , de Adolfo Caminha, são ótimos romances, o que é um
disparate.
Ao mesmo tempo, a literatura contemporânea brasileira tem
entrado com força nas escolas, por meio das compras de paradidáticos
feitas pelos governos estaduais e federal, o que cria o segundo
problema: 95% dessa literatura irá para o lixo dentro de uma ou três
décadas, ou até mesmo antes. É o processo de depuração natural do
sistema literário. Mas esses livros são lidos hoje na escola como se
fossem paradigmas a serem seguidos, exemplos de boa literatura.
Temos, portanto, dupla desorientação: nossos jovens lêem péssimos
autores antigos como se fossem gênios — e péssimos autores
contemporâneos como se fossem o que há de melhor na literatura.
Enquanto isso, os clássicos são esquecidos. Não entendo por que
um jovem de quinze ou dezesseis anos não lê, por exemplo, Homero
na escola. Há ótimas traduções, modernas, extremamente bem
realizadas; as histórias são fantásticas, empolgantes; o texto é claro;
além disso, Homero está longe de ser um chato sentimentalóide como
José de Alencar... Mas é a escola que temos: claudicante como todas as
instituições do país.
Império de filisteus
No Brasil, é preciso, a cada dia, redescobrir a coragem de viver e de
pensar. Não leio jornais há anos — exatamente para me proteger da
idéia de que a realidade do país é irreversível.
Mas a “estranha pretensão” de que falava Ortega y Gasset
completou seu trabalho de contaminação nas últimas décadas. A
pretensão “de ser mais que qualquer outro tempo passado; mais
ainda: por se desligar de todo o passado, não reconhecer épocas
clássicas e normativas, e ver-se a si mesmo como uma vida nova
superior a todas as antigas e irredutível a elas”, veio para car.
O homem-massa é indestrutível. Vivemos e viveremos sob o império
dos listeus. É o que previu Jacob Burckhardt em suas cartas: “Um dia
o mundo irá sufocar e cair sobre o estrume de seu próprio listeísmo”.
Por isso mesmo não podemos car em silêncio ou agir como
vaquinhas de presépio.
Uma só resposta
Vivemos num tempo em que o simplismo e o raciocínio
esquemático pretendem substituir os caminhos do espírito que,
demonstrando coragem e maturidade, olha para si mesmo e,
prolongadamente, para o real, volta-se mais uma vez para o seu
próprio eu — e só então expressa suas idéias, seus sentimentos.
É a época na qual a imprudência e a precipitação brilham a cada
textinho de quatro ou seis parágrafos, escrito com a arrogância de ser
não só uma re exão, mas de apontar caminhos, soluções, regras,
quando não verdades.
Tempo em que os textos fedem a rascunho, a esboço. A boa menina
faz seu resuminho escolar com capricho, usa canetinhas coloridas para
as ores das margens, numera as linhas — e fecha a página do
caderno com delicada iluminura. Mas o texto continua um resumo. O
esquematismo refulge a cada linha.
Assim, a coluninha de jornal é chamada de ensaio; o conto
estendido, romance; as trinta linhas repetindo lições de Derrida, crítica
literária.
Ora, quando o centro da consciência já não é a verdade, mas
apenas o gosto efêmero, então o subjetivismo comanda. É o império
dos croniqueiros, coelhinhos de olhar róseo, tiques nervosos e pelagem
branca, apressados e super ciais.
Tempo triste, desolador — não só para a literatura —, no qual os
homens, sem perceber, se transformam em covardes, pois só têm uma
única resposta aos seus desejos pessoais e ao senso comum: “— Sim”.
Competição de coxos
Certa vez, respondendo ao e-mail de um amigo, no qual ele fazia
comentários sobre minhas críticas, escrevi que esse era um trabalho
nem sempre agradável. E por uma simples razão: muitas vezes, a
honestidade me obrigava a fazer comentários desfavoráveis.
À parte o fato de meus juízos estarem ou não corretos — o que
apenas o tempo poderá dizer —, quando, depois de ler certa obra,
vejo-me obrigado a mostrar incongruências e desatinos, ajo assim sem
nenhum prazer. Na verdade, sou tomado de certo mal-estar, pois, se
há uma pulsão que move meu trabalho, é a de apontar acertos. Ao
contrário do que muitos pensam, duvido que algum crítico seja
movido por uma pulsão sádica.
E se o autor brasileiro pensa assim, é apenas por um motivo: ele
não está acostumado a receber críticas. Do que leio na mídia, percebo
que a crítica desfavorável é, muitas vezes, escrita de forma velada,
protegida sob uma terminologia praticamente hermética, como se, ao
dissimular seu julgamento, o crítico pretendesse não se comprometer
ou não fazer inimigos.
Outra prática comum entre nós é a de considerar bom o que é
apenas razoável ou medíocre. Alguns escritores, certamente, cam
satisfeitos — e o suposto crítico ganha amigos e fama. Esse tipo de
celebridade, contudo, mostra apenas o quanto a perversão atingiu a
literatura, a vida intelectual.
De minha parte, se considero um livro ruim, a rmo claramente o
que penso. Por que haveria de fazer concessões? Por que haveria de
tratar como gênio quem é somente mediano? Gotthold Lessing tinha
um pensamento apropriado sobre o assunto: “Em uma competição de
coxos, o primeiro que chega ao nal continua sendo coxo, apesar de
tudo”.
Os dançarinos
Para o crítico alemão Marcel Reich-Ranicki, os críticos atuam
como porteiros de um baile, devendo introduzir um pouco de ordem
na festa e, sobretudo, rechaçar, logo na entrada, os charlatães e os
incapazes, a m de deixar mais espaço no salão para os bons
dançarinos.
Penso da mesma forma, mas faço uma ressalva: em um país
subdesenvolvido como o Brasil, onde a leitura não é um hábito, as
edições raras vezes superam os dois mil exemplares e grande parte da
população não ultrapassa a linha do analfabetismo funcional, o papel
do crítico não pode ser apenas o de porteiro do baile. Porque, neste
país, o salão está quase vazio e a orquestra toca, sem entusiasmo, para
poucos dançarinos.
Quem faz crítica literária aqui deveria trocar idéias, de maneira
didática e sincera, com a minoria iluminada que se interessa pelo
assunto, tentando formar consciências para uma verdade simples: em
literatura, exatamente como acontece nos demais espaços da vida, há
o ótimo, o bom, o medíocre e o ruim.
O baile, portanto, está aberto a todos. Mas não há nada de errado
em se aproximar de um dançarino e dizer: “Meu caro, você precisa
treinar mais” ou “Meu amigo, você é um desastre”.
Polidez
O crítico literário deve buscar a justiça que está inscrita na própria
obra. Essa deve ser a predisposição, sempre: deixar que a obra fale.
É necessário ir além do mero sentimento de prazer ou desprazer.
Devo penetrar no modus faciendi do escritor, apesar dos inevitáveis
limites. E devo responder a duas questões básicas: a) Como esta obra
representa o possível?; e b) O resultado está à altura do que essa
representação exige? Ou, dito de outro modo: a obra consegue ser
uma estrutura coerente?
Como em qualquer diálogo, é preciso ser paciente, ouvir o
interlocutor, deixar a conversa uir sem a prévia preocupação de
provar este ou aquele ponto de vista.
Às vezes, contudo, o discurso do outro é titubeante, ele gagueja de
forma incontrolável, seus raciocínios são repletos de lacunas, acredita
estar dizendo algo novo, mas, na verdade, apenas repete o que muitos
já falaram.
Então, por polidez, escuto até o m seus argumentos. Mas o autor,
ainda que tenha a melhor avaliação a respeito de suas idéias e da
forma como as expôs, já julgou a si próprio.
O chavão da vanguarda
O ccionista precisa se vacinar contra a doença que chamo de
narratofobia . Precisa abandonar o pavor de narrar histórias. E deve
abandonar o clichê, o lugar-comum. Quando digo clichê, não me
re ro a “noites estreladas em que a lua derrama sua luz sobre os
namorados”. Há esse lugar-comum, claro. Mas hoje temos clichês
vanguardistas. Um jovem de vinte anos que escreve algo parecido com
“beba coca-cola / babe cola / beba coca” acredita estar em condições
de igualdade com a melhor vanguarda. E há críticos e professores que
dirão isso a ele… Mas, na verdade, esse jovem apenas repete um lugar-
comum, não tão velho como o exemplo das estrelas e da lua, mas, na
forma e no conteúdo, tremendo chavão.
Patologias
Mas há outros problemas na nossa cção.
Destaco a sintaxe lacônica, às vezes obscura; a insistência na
linguagem obscena; o descaso e a insegurança em relação à gramática
(muitos escritores, inclusive, justi cam seu desconhecimento e sua
negligência em relação à língua citando ambíguas opções estéticas); o
narcisismo, que produz tediosas narrativas em primeira pessoa; e o
niilismo, com sua inevitável visão facciosa da realidade. São as
patologias atuais.
Crítica e patrulhamento
Há alguns anos, George Steiner provocou polêmica na Europa ao
a rmar que “é muito fácil sentar-se aqui, nesta casa, e dizer: ‘— O
racismo é horrível!’. Mas pergunte-me o mesmo se uma família de
jamaicanos se mudar para a casa ao lado com seis lhos que escutam
reggae e rock and roll o dia inteiro [...]”.
O ensaísta terminava a a rmação salientando o fato de que, caso
tal família se tornasse sua vizinha, seu próprio imóvel perderia, com
certeza, grande parte do valor.
Vivendo sob o império do politicamente correto, Steiner foi
acusado, é claro, de racismo. Os intelectuais de esquerda cariam
felizes se ele tivesse dito que, no caso de um dia ter vizinhos desse tipo,
se submeteria de bom grado à barulheira, recusando o direito de
desfrutar do silêncio em nome de viver uma inusitada experiência
multicultural; e que, quando fosse avisado sobre a deterioração do
valor de seu imóvel, o transformaria, com prazer, num abrigo para
imigrantes desempregados.
A polêmica mostra como vivemos em tempos inseguros. Hoje, os
ideólogos que se tornaram funcionários públicos querem nos ensinar
que devemos nos sentir felizes quando temos o bem-estar e o silêncio
violentados — ou quando a propriedade que adquirimos com imensos
sacrifícios é desvalorizada da noite para o dia.
David Hume não sofria esse tipo de patrulhamento. Em seu ensaio
“Da simplicidade e do requinte na maneira de escrever”, a rmou, sem
receio, que “os gracejos de um aguadeiro, as observações de um
camponês e a linguagem confusa de um carregador ou de um cocheiro
de praça são coisas naturais e desagradáveis, simultaneamente”.
O exemplo não é gratuito. Hume o utiliza para defender uma tese
simples: a literatura que apenas reproduz a realidade, que é uma cópia
el do real, é, no mínimo, insípida.
Ele também critica o oposto: os escritores que recorrem a
ornamentos estilísticos quando o assunto de que tratam não comporta
tais maneirismos.
Buscando um “meio-termo justo entre os excessos de requinte e de
simplicidade”, ele a rma, no entanto, “ser difícil, senão impossível,
explicar por palavras” como chegar a tal equilíbrio. Mas salienta que
o “exagero do requinte, além de ser o extremo menos ‘belo’, é o mais
‘perigoso’”.
Hume enfrentaria sérios problemas se vivesse no Brasil atual.
Imagino-o suplicando, inutilmente, aos escritores para que parem de
escrever como aguadeiros, camponeses, carregadores e cocheiros. Ou
talvez repetisse, sem sucesso, a lição de Joseph Addison: “Escrevam
com sentimentos naturais, mas que não sejam óbvios”.
No atoleiro moral
Um amigo, infelizmente já falecido, publicou certa vez, no
Facebook, uma curiosa frase da escritora Anne Rice. Para ela, “é triste
que não possamos fazer a bondade ser tão interessante quanto a
maldade”.
A autora, conhecida por suas tramas de vampirismo, mostra-se
melancólica em relação ao fato de a temática do bem não produzir
tantos adeptos quanto a literatura que narra o mal.
Teríamos nos acostumado à maldade? E estaríamos realmente
impedidos de transformar a bondade num tema capaz de despertar
interesse?
O problema da re exão de Anne Rice é que ela só exprime o senso
comum. Pois, como respondi a meu amigo, a bondade é mais
interessante que a maldade.
A verdade parece ser o contrário apenas porque somos massacrados
— do noticiário à literatura — por todas as formas de mal, dia após
dia. Nossa cultura niilista, devota do pessimismo, insiste em nos
apresentar o mal como regra de todos os homens — e exatamente por
esse motivo nada, absolutamente nada, pode ser mais entediante do
que a maldade.
Se o homem contemporâneo é descrito por muitos como a gura do
egoísmo, do vazio e da frivolidade, se a vilania tornou-se vitoriosa na
cção, em parte da poesia e, se acreditarmos no que diz a mídia,
também na realidade, isto se deve ao cinismo que a cultura erudita do
século XX elevou à categoria de deus.
Mas se dermos ao homem enfadado pela maldade um só gesto, uma
só página de bondade, ele se sentirá renovado, quando não
desorientado, pois a bondade — neste mundo que aparentemente
cultua o mal — inquieta, perturba, estimula.
Precisamos, portanto, abandonar o senso comum dos nossos
intelectuais, deixar de ser nietzschianos de ouvido e virar no avesso a
frase de Anne Rice: o mal apenas parece mais interessante que a
bondade — e por uma só razão: ele é amplamente difundido,
propagandeado.
A intelligentsia e os formadores de opinião colocaram o homem no
atoleiro moral — e não querem que ele saia daí.
Parafraseando Rice, é triste que nossos escritores não tenham
coragem para mostrar a verdade: que só o bem é verdadeiramente
interessante — e que nobreza, generosidade, honradez e benevolência
são as únicas forças capazes de libertar o homem do tédio em que
pretendem aprisioná-lo.
Fracasso, vileza e perversidade
Ontem, hoje e sempre, não só no Brasil, mas em qualquer lugar do
mundo, precisamos analisar a produção literária dos nossos
contemporâneos usando uma pinça.
Utilizando-a de modo cirúrgico, posso dizer que às vezes tenho a
impressão de que começamos a sair do beco escuro controlado pelo
eterno vanguardismo.
Sim, é verdade que estamos impregnados da cultura contemporânea
— relativista, materialista, de um niilismo que chega a ser atroz. Mas
nossos escritores estão começando a criar coragem para desobedecer
aos departamentos de Letras das universidades e aos críticos que só
valorizam acrobacias lingüísticas.
Abandonar o vício de recriar constantemente um dialeto exclusivo,
que só pode ser entendido pelo escritor e meia dúzia de amigos, é
apenas o primeiro passo. Será um longo caminho até sermos curados
da doença à qual dei o nome de narratofobia .
Mas começam a surgir escritores dispostos a contar boas histórias,
corajosos a ponto de escrever com bom humor, sem se preocupar com
discursos politicamente corretos. E outros já percebem que boa
literatura não é, necessariamente, literatura niilista; que um bom livro
não precisa falar apenas de fracasso, vileza e perversidade.
NARRATOFOBIA — OU O PAVOR DE NARRAR
E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que pedra
é pedra, existe o que se chama de arte. O objetivo da arte é dar a sensação do objeto
como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da
singularização dos objetos e o procedimento que consiste em obscurecer a forma,
aumentar a di culdade e a duração da percepção.
O ato de percepção em arte é um m em si mesmo, e deve ser prolongado [...].
Hipocrisia e provincianismo
Para compreendermos, parcialmente, o que movia Bernhard — e
termos uma visão mais ampla do universo focalizado em Origem — é
importante recuperarmos os fatos históricos centrais daquele período.
Com o nascimento da República — depois da renúncia de Carlos I,
o último imperador austro-húngaro, em 1918 —, a Áustria foi
reduzida a um território diminuto, de economia frágil, e que passaria
a experimentar crises cada vez mais graves, até o assassinato pelos
nazistas, em 1934, de Engelbert Dollfuss, substituído na chancelaria
por Kurt von Schuschnigg, que, isolado pelos países do Eixo,
renunciaria em 1938, permitindo a entrada triunfal de Hitler e a
anexação da Áustria à Alemanha, rati cada por um plebiscito no qual
os nazistas obtiveram 99% dos votos.
É exatamente nesse período que têm início os anos de formação de
Bernhard. Ele conhecerá não só o despotismo nazista, mas,
posteriormente, as humilhações sob as tropas aliadas e os difíceis anos
de reconstrução do país, com sucessivas crises econômicas, até que a
Áustria começasse a se recuperar, entre o nal da década de 1950 e
início dos anos 60, quando o escritor, adulto, já respondera a seu
primeiro processo por difamação (1955), em conseqüência de um
artigo contra o teatro de Salzburgo, e migrava do mundo da música
(Bernhard foi aluno de canto, encenação e arte dramática no
Mozarteum de Salzburgo) para a literatura e a dramaturgia (seu
primeiro romance, Gelo , data de 1963).
Na verdade, o apoio incondicional ao nazismo permaneceu como
uma nódoa na história da Áustria majoritariamente católica. E é sob
esse manto de hipócrita consensualidade que as forças políticas
presentes nas décadas de 30 e 40 continuarão a atuar, agora sob novos
disfarces. Em 1986, por exemplo, eleito presidente da Áustria pelo
Partido Popular, Kurt Waldheim foi acusado de participação em
crimes de guerra nazistas, mas permaneceu teimosamente no poder até
1992, condenando o país a seis anos de isolamento internacional.
Some-se a este panorama o provincianismo desalentador criticado
por inúmeros intelectuais e teremos completado o cenário em que
Bernhard gerou toda a sua obra — uma Áustria que parecia ter
esquecido Albert Schnitzler, Hermann Broch e Robert Musil, para
carmos apenas entre os escritores.
Narrador perverso
À parte o cenário histórico, os relatos presentes em Origem
inspiram a descon ança inicial que toda narrativa autobiográ ca
desperta, pois, à medida que a leitura avança, torna-se claro que nos
deparamos com a voz de um narrador cuja preocupação central não é
contar a vida do autor. Essa suspeita transforma-se em certeza
quando, depois de lermos os quatro relatos nais do livro (os
primeiros a serem publicados na Áustria), passamos à leitura de “Uma
criança”. Neste, surge uma voz coloquial cujo objetivo é, aí sim,
principalmente relatar os fatos em um célere uxo de acontecimentos,
como se, nalmente, Bernhard se dispusesse a escrever sua
autobiogra a.
O melhor nos aguarda, contudo, em “A causa”, “O porão”, “A
respiração” e “O frio”, quando nos deparamos com um discurso
prolixo, no qual há deliberada intenção de ampli car os fatos por
meio do estilo persuasivo, hiperbólico, marcado de contínuos
incrementos que somam, linha a linha, novas camadas de signi cados
ao mesmo fato, como se o narrador construísse uma espiral
ascendente, acrescentando, a cada nova curva, uma série de sinônimos
e de imprevisíveis acumulações.
O leitor vê-se, assim, enredado por sucessivos acréscimos de
ênfases, conglomeradas nessa espiral audaciosa que busca, página a
página, criar um clima de estranhamento e miti cação.
Torna-se evidente, no transcorrer dos blocos monolíticos em que os
relatos se organizam, o objetivo perverso do narrador. O texto,
impregnado de disfemismo, numa tensão incansável, atribui, de
maneira exaustiva, características exageradas e negativas aos
acontecimentos e aos estados de ânimo. Amplia-se o drama do “eu”
protagonista, de forma a se expressar uma condenação absoluta.
A questão é que não se encontra em pauta a exposição da verdade.
O narrador tem consciência de que “toda história sempre foi
falsi cada e passada adiante como tal”, e caracteriza a si mesmo como
parcial e provocador:
Minha tarefa só pode ser a de comunicar minhas percepções, tenham elas o efeito que
tiverem, relatar sempre as percepções que me pareçam dignas de comunicar aos outros,
aquilo que estou vendo ou aquilo que ainda hoje trago na memória, quando, como
agora, volto os olhos para trinta anos atrás; se muita coisa já não me é clara, outras se
revelam com demasiada nitidez, como se tivessem acontecido ontem. A m de se salvar,
os interlocutores não acreditam, e com freqüência descrêem do que há de mais óbvio. As
pessoas se recusam a ser perturbadas pelo encrenqueiro que lhes tira o sossego. Sempre
fui esse tipo de encrenqueiro, a vida toda, continuo sendo e sempre vou ser […]. Tudo
que escrevo, tudo que faço é perturbação e irritação. Minha vida inteira, toda a minha
existência nada mais é do que perturbação e irritação ininterruptas.
A verdade, só a conhece quem foi afetado por ela, penso eu; e se desejar comunicá-la aos
outros, será de pronto transformado num mentiroso. […] Escrever sobre uma época, um
período da existência […], é coletar centenas, milhares, milhões de falsidades e
falsi cações conhecidas daquele que escreve como verdades, e nada além de verdades.
[…] O descrito clari ca algo que decerto corresponde ao desejo de verdade daquele que
descreve, mas não à verdade em si, porque essa não é possível comunicar.
A ponte de um sonho
As raízes da arte de Yasunari Kawabata encontram-se também
estreitamente ligadas ao Genji Monogatari ( A história de Genji ),
primeiro romance da literatura mundial, escrito no princípio do século
XI por Shikibu Murasaki, dama da corte do imperador. O escritor não
mede elogios à obra: A história de Genji “marca o ponto mais alto
alcançado pelo romance japonês. Não existe obra literária comparável
a essa, nem entre as antigas nem entre as atuais. [...] Foi, penso que
por sua índole, o livro do qual mais se embebeu meu coração.”
Kawabata descobriu no romance o “esplendor da cultura cortesã”,
quando “aqueles dias gloriosos” da Era Heian (794-1185) estavam
começando a entrar em decadência. O livro ocupou um papel
marcante em sua vida, inclusive nos meses nais da Segunda Grande
Guerra, período no qual ele lia diariamente o Genji , compelido a um
exercício que servisse não apenas como escape, mas lhe concedesse a
certeza de que o Japão, ao inquirir o passado, encontraria formas de
superar os bombardeios, as mortes e a provável derrota.
Essa obra inspirou os principais escritores do Japão, como
Junichiro Tanizaki, que a traduziu para a língua japonesa moderna.
No caso de Kawabata, exerceu evidente in uência na formação do
autor, acrescentando ao sentimento de impermanência transmitido
pelos poemas zen uma atmosfera em que a dor predomina sobre o
prazer, pois o clima de tristeza perpassa todo o romance, e o Genji é a
evocação de um mundo que nunca existiu exatamente da forma que
Murasaki o descreve, como a rma Donald Keene, um dos principais
estudiosos da literatura japonesa:
Dentro do tempo que o romance abarca, encontramos um tom cada vez mais pessimista,
e quando morre o herói, o singular Genji, seus sucessores são apenas uns jovens não
mais que agradáveis [...]. Nesse e em muitos outros aspectos, o romance descobre uma
obsessão com a idéia de tempo, obsessão análoga à que se pode observar em grande
parte da poesia japonesa. O esplendor e a beleza que caracterizaram cada aspecto da
carreira do príncipe Genji se dissipam. Até mesmo ao contemplar alguma graciosa
bailarina ou as ores que caem de uma bela árvore há sempre a consciência quase
penosa de que tudo tem de acabar. [...] Ainda quando o romance mostra-se pleno de
humor e de encanto, a impressão dominante é de tristeza, por causa, em grande parte,
dessa insistência sobre o correr inexorável do tempo.
A irrealidade branca
Alguns aspectos da vida de Yasunari Kawabata certamente foram
responsáveis por predispô-lo a tais in uências, moldando essa
personalidade que nunca conseguiu superar a propensão aos estados
depressivos.
O escritor nasceu em 1899. Logo após, em 1900, perdeu o pai e, no
ano seguinte, a mãe. Ele e sua única irmã, quatro anos mais velha,
passam, então, a ser criados por parentes: Kawabata, pelos avós
maternos. Sua irmã também morrerá pouco tempo depois; e, logo a
seguir, com a idade de sete anos, o menino perderá a avó, restando-lhe
acompanhar, no período da adolescência, a lenta derrocada do avô,
atingido pela cegueira.
Em seu prefácio à coletânea das cartas trocadas entre Yukio
Mishima e Kawabata, Diane de Margerie a rma que “preso entre o
vazio dos seres desaparecidos e uma agudeza matemática para a
observação, Kawabata vê-se submerso em uma irrealidade branca,
uma bruma que ele trata de penetrar para sobreviver, uma necessidade
aguda de ver, de captar, de contemplar, para remediar a ausência da
memória e a mutilação do olhar”.
Em seu estudo sobre o escritor — Concepção estética de Kawabata
Yasunari em ‘Tanagokoro no Shosetsu’ —, a professora e tradutora
Meiko Shimon reforça a tese de Margerie, a rmando que Kawabata
jamais conheceu o semblante da mãe, de quem não restara nenhuma
fotogra a.
Ora, se somarmos todos esses diferentes aspectos talvez possamos
começar a entender que caminhos levaram o escritor a se tornar, no
Japão do século XX, quem melhor retratou o “mundo utuante” —
expressão cara aos japoneses e aos estudiosos dessa cultura —, mundo
de ilusões, de aparências, onde a consternação se alterna com o gozo,
o transitório impera e o belo é marcado de fugacidade. Mundo ao
qual Yasunari Kawabata concedeu um traço particular de melancolia,
ainda que buscasse criar, com sua escritura de parágrafos breves e
orações predominantemente coordenadas, a iluminação de um haicai,
o traço rápido da pintura sumi-ê, que brota da mente vazia de
vontades do pintor, ou um estado búdico de contemplação.
A cerimônia do chá
Em Mil tsurus , o autor descreve um Japão dividido entre suas
tradições e a ocidentalização do pós-guerra. Kikuji, o jovem
protagonista, é a gura do homem perplexo, imaturo e tímido, que
não consegue abandonar a infância. Aos oito ou nove anos, levado
pelo pai à casa de uma de suas amantes, presencia o que jamais
esquecerá: Chikako, a amante, com o seio à mostra, corta, sobre uma
folha de jornal, os pêlos da mancha escuro-arroxeada, do tamanho de
uma palma da mão aberta, que lhe recobre metade do seio esquerdo e
se estende até a boca do estômago. Enquanto os pêlos caem sobre o
jornal estendido no chão, o menino escuta os ratos que correm no
sótão e vê, ao fundo, o único elemento de beleza: na varanda interna,
uma cerejeira em or, símbolo de pureza e também de perenidade da
existência. Essa dicotomia, repetindo-se em diferentes momentos, fará
a narrativa oscilar entre bem e mal, entre o Japão pré-guerra e a
vulgarização dos costumes provocada pela abertura sem controle ao
Ocidente.
A história começa, no entanto, com Kikuji já adulto, lembrando o
pai falecido e dirigindo-se ao templo Engakuji para participar, a
convite de Chikako, de uma cerimônia do chá. Antes de entrar no
salão reservado à cerimônia, o narrador mostra a bagunça e o barulho
que maculam o ambiente. Logo depois, o timbre de voz indiscreto de
Chikako e sua incontrolável maledicência completam a cena.
O leitor ocidental, contudo, só compreenderá o papel desses
elementos antagônicos se conhecer o signi cado da cerimônia,
indissociável do zen-budismo, exatamente como tantos outros
aspectos da cultura japonesa: “Na cerimônia do chá, o chá é mais um
coadjuvante neste universo que almeja, através do exercício de cada
movimento, chegar à perfeição do esquecimento de si, ao se pôr a
serviço do homenageado, de se tornar magia o tempo que escorre em
movimentos de ângulos precisos, uma oferenda de paz num mundo-
fora-do-mundo”, explica Madalena Hashimoto (em Pintura e escritura
do mundo utuante ). Assim, ao descrever a cerimônia que é
transformada por Chikako apenas em um motivo a mais para rir, falar
alto e mexericar, Kawabata denuncia o Japão que parece esquecer de
si mesmo ao abraçar, cegamente, novos valores.
Durante a cerimônia, Kikuji conhecerá outra amante do pai, a
viúva Ota, de 45 anos, que se torna sua amante e o desperta para
formas inesperadas de prazer: “Nunca tinha imaginado que uma
mulher pudesse ser tão suavemente receptiva. Uma submissão
sedutora, uma obediência sem deixar de instigar, uma receptividade
que o sufocava em cálido aroma”.
O erotismo de Kawabata é sempre diáfano. Neste caso, ele
descreve, mais que a experiência violenta da paixão, um processo de
amadurecimento. Às vezes, as descrições aproximam-se do desejável
repouso no ventre materno: “Ele não sabia que o prazer de uma
mulher podia ser assim incessante, como a suave ondulação das águas
do oceano”.
Chikako, no entanto, intromete-se em tudo, destilando seu veneno e
tornando-se o ponto de desequilíbrio do enredo, sombra sempre à
espreita, com sua mancha recoberta de pêlos a denunciar a pureza
perdida de um Japão que luta para reencontrar seu caminho. Ao
mesmo tempo, Kikuji é o jovem apartado das tradições e da memória
paterna, tentando inutilmente negar o pai — um especialista na
cerimônia do chá — ou, ao menos, superá-lo.
Depois da morte da viúva, que se suicida, Fumiko, sua lha,
também se torna amante de Kikuji. Virgem de gesticulação contida e
adorável submissão, aspecto frágil e nítido pendor para o trágico, ela
se transforma na gura do Japão que o protagonista hesita em
redescobrir. Paralelamente, uma quarta mulher cruza o caminho de
Kikuji: Iukiko, com seu lenço de tsurus (grous), ave símbolo da
longevidade e da felicidade, a atestar, com sua delicadeza, o caráter
perene das tradições e do amor.
A obra está permeada de referências às cerâmicas utilizadas na
cerimônia do chá, quase sempre peças artesanais seculares. Kawabata
concede-lhes vida, torna-as receptivas às emoções. As lágrimas da
viúva Ota escorrem sobre elas, reacendendo a memória dos amores
passados. As cores dos utensílios se repetem na sionomia dos
personagens ou na natureza, formando, em diversos trechos, cenários
de colorido mágico.
Assediado constantemente pela imagem da mancha de Chikako,
enredando-se nas dissimulações dessa mulher grosseira, Kikuji tateia a
realidade em busca de uma saída, de uma solução. Entre o desprezo às
suas raízes, a visão da morte e a formidável atemporalidade das
cerâmicas — a obra humana que sobrevive ao próprio homem, a arte
que sobrevive à destruição do Japão tradicional — ele se liberta ao
desvirginar Fumiko, que o conduz a “um abismo de encantamento e
torpor”. O nal, contudo, desconcertante como todos os nais de
Kawabata, contribui para rea rmar a intenção do autor: “É errôneo
considerar meu romance Mil tsurus como uma evocação da beleza
formal e espiritual da cerimônia do chá. É uma obra crítica, uma
expressão de dúvida e uma advertência frente à vulgaridade em que
caiu a cerimônia.”
Kawabata constrói suas narrativas por meio de pequenos quadros
que se sucedem, encerrando os parágrafos quase sempre num instante
de suspensão da realidade: “Kikuji passou por detrás dela, com o
intuito de abrir a porta de vidro que dava para o quintal. Veio-lhe o
suave aroma das peônias brancas dispostas no vaso sobre a mesa. A
moça curvou-se de leve como se lhe desse passagem.”
John Lewell, estudioso do escritor, citado por Meiko Shimon, diz
que Kawabata “raramente estruturou seus romances com um começo,
um meio e um m, preferindo desenvolver uma rica textura linear,
algo como versos encadeados”.
Mas há outro aspecto que chama a atenção: a imaterialidade de
inúmeros trechos cria um universo de emoções, fatos e
comportamentos que seguimos, inebriados, apenas para, no m, saber
muito pouco. Esse caráter insubstancial também se deve à voz do
narrador: ou ele nos esconde algo ou encontra-se “limitado pelas
ignorâncias, dúvidas e erros dos personagens”, ou apenas — jamais
saberemos — trata-se de “um observador igualmente imperfeito”,
comenta Antonio Cabezas.
Assim, enquanto os elementos do romance levitam diante de nós,
somos reconduzidos ao sentimento de impermanência e à sensação de
que o vazio se encontra no âmago de todas as coisas.
A continuidade do viver
A história de Kyoto transcorre no período imediatamente posterior
à retirada das tropas de ocupação norte-americanas. A jovem Chieko,
abandonada quando ainda bebê, é criada como lha por Takichiro
Sada e sua esposa, proprietários de uma pequena loja de quimonos.
Sada é um artista frustrado e assiste, devido à ocidentalização do país,
à decadência de seu comércio. Chieko, “na plenitude da mocidade”,
conhece, por acaso, sua irmã gêmea, Naeko, de quem estava separada
desde o nascimento. Apesar de os pais adotivos não terem escondido
que Chieko havia sido abandonada, ela sempre alimentou dúvidas em
relação à sua verdadeira origem. Depois que conhece Naeko, alegra-se
e, ao mesmo tempo, sofre por saber que seus verdadeiros pais eram
pobres e estão mortos. Deseja aproximar-se da irmã, mas as diferenças
de classe e o complexo de inferioridade de Naeko di cultam o
relacionamento. Shin’ichi, companheiro de passeios de Chieko, ao
partilhar das dúvidas de sua amiga, expressa a imagem que melhor
caracteriza a dor dos principais personagens de Kawabata: “Nascer
neste mundo signi ca ser abandonado por Deus”.
As páginas iniciais do romance são exemplos da delicada escritura
de Kawabata. Com suas frases curtas e objetivas, ele adiciona, sem
qualquer pressa, camada após camada, novos elementos à descrição
da primavera, introduzindo-nos em um cenário no qual Chieko e a
natureza acabam por se fundir numa fascinante empatia.
Se em Mil tsurus a ocidentalização é enfocada de maneira oblíqua,
em Kyoto o escritor torna-se implacável. Logo após a saída dos
ianques, todos os aspectos da vida estão deteriorados: dos motivos
que enfeitam os quimonos à organização da economia, passando pelos
costumes. No templo Nenbutsuji, entre centenas de lápides de pedra,
erguidas em memória dos mortos desconhecidos, fazem-se sessões de
fotogra as, nas quais “as mulheres utilizam estranhos vestidos
semitransparentes”; antigas tecelagens familiares, responsáveis pela
confecção de tecidos que são exemplos de esmero artesanal e intuição
artística, acabam substituídas por teares mecanizados, cujos produtos,
feitos em série, de baixa qualidade, seguem os padrões ocidentais de
beleza; no templo Nin’naji, “nos caminhos entre as cerejeiras do
bosque havia tablados, e as pessoas promoviam festança de bebedeira
e cantoria. Era uma desordem total. Velhotas interioranas dançavam
alegremente, e bêbados roncavam alto, alguns deles chegando a rolar e
cair do banco em que se deitaram”.
A contraposição às mudanças é feita não apenas por meio do olhar
amargo de Takichiro Sada, mas descrevendo-se a diversidade da ora
e as variações da natureza, estação a estação, ou detalhando os
festivais e comemorações seculares de Kyoto. Há também descrições
dos quimonos e dos obis — com suas cores e desenhos que, desligados
da preocupação de obedecer à moda ditada pelo mercado, expressam
traços da personalidade de quem os veste —, além da gestualidade
contida e harmoniosa de homens e mulheres, essencial à etiqueta
japonesa, que se revela no ato de prender ou soltar o cabelo, nas
manifestações de carinho entre as irmãs, na reverência de um
subalterno diante do patrão, ou no simples movimento de puxar as
portas corrediças da casa, fechando-as à noite. São indícios da
sobrevivência do verdadeiro Japão, capaz de confrontar, mesmo que
furtivamente, os hábitos nefastos que invadiram o país.
Ao nal, nada se resolve, e o leitor permanece incerto quanto ao
futuro das irmãs. Contudo, é exatamente esse o objetivo de Kawabata,
pois ele não almeja uma solução para os dramas pessoais, e tampouco
se preocupa com a suposta necessidade de um clímax. Para desespero
de alguns leitores, o escritor pretende apenas insinuar o
prosseguimento da vida, a continuidade do uxo da existência.
Podemos concordar com a a rmação de Antonio Cabezas — “Sem
jamais losofar de um modo explícito, Kawabata expõe genialmente a
sua fé na força da realidade: o que existiu uma vez, existiu para
sempre” —, mas apenas parcialmente, pois há uma sugestão implícita
nos nais do escritor: podemos acompanhar seus personagens nessa
trilha cujo único objetivo louvável seria a proposta básica do zen, ou
seja, a reintegração ao todo, pois dores e decepções não podem ser
superadas de outra forma.
O êxtase do nada
Em sua carta recomendando Yasunari Kawabata ao Nobel de
Literatura, Yukio Mishima revela a “obsessão” perseguida, desde os
primeiros escritos, por seu mestre e amigo: “O contraste entre a
solidão fundamental do homem e a inalterável beleza que se apreende
intermitentemente nas fulgurações do amor, como um raio que
subitamente pudesse revelar, no coração da noite, os ramos de uma
árvore em plena oração.”
O raio de que fala Mishima lembra o impacto do satori na
consciência, o “súbito relâmpago”, o “olhar intuitivo no âmago das
coisas”, guras usadas por Daisetz Teitaro Suzuki para explicar o zen
aos ocidentais. De fato, a cção de Kawabata pretende repetir o
caminho em direção ao satori, semelhante às tradicionais artes
japonesas, nas quais se incluem a disciplina dos samurais ou o manejo
da espada ( iai ) e do arco e echa ( kyudo ).
Kawabata buscou elaborar uma literatura do comedimento, que
dissesse menos, mas, utilizando sutilezas que só a cultura japonesa
possui, ganhasse nova força expressiva. Ele almejou que a experiência
da leitura de sua obra produzisse um efeito semelhante ao do exemplo
de certo mestre zen: “Antes que um homem estude o zen, as
montanhas são para ele montanhas e as águas são águas. Mas quando
ele vislumbra a verdade, as montanhas não são mais montanhas, nem
as águas são águas. Mais tarde, quando atinge o satori, as montanhas
são novamente montanhas e as águas são águas.”
Ou seja, que seus leitores pudessem vislumbrar a realidade de
maneira clara, despida do véu de ilusão com que nossas ânsias e
desejos a recobrem.
Ler os romances de Yasunari Kawabata — e também suas cartas,
nas quais se revela inseguro e procrastinador — é entender o que ele
disse em seus escritos da juventude: “Pai e mãe, que zeram de mim o
lho de meu avô [...]. Ninguém no mundo, mais que vocês, deu-me o
dom de submergir-me no êxtase do nada”. Mas o “nada” do qual sua
obra está embebida não é ocidental. Completamente diverso do
niilismo, trata-se do esvaziamento que pretende conduzir quem o
experimenta a um estágio de consciência acima do bem e do mal, da
pureza e da impureza — o estado da mente livre de todas as antíteses,
de todas as injunções.
PERFEIÇÃO CORROSIVA — SAKI
Olhares dessemelhantes
Mamed e Ali falam um do outro, separadamente, em duas longas
rememorações que formam o eixo do livro. E ambos vêem a si
mesmos e ao outro de maneiras sutilmente opostas. Quem, a nal, fala
a verdade? Qual dos dois é o mais idôneo, o mais con ável? Quem
conhece a si próprio ou fala de si mesmo com sinceridade? E qual
deles soube compreender e amar o outro? As perguntas se sucedem e
vemos ganhar vida homens aparentemente incompatíveis, mas que se
acreditam amigos.
Ali, de tez clara, nasceu em Fez, cidade tradicional do Marrocos,
onde se instalaram judeus e muçulmanos fugidos da Guerra da
Reconquista, na Península Ibérica. Mamed é pardo e sempre viveu em
Tânger, cidade cosmopolita que, a partir de 1912, quando o Marrocos
se torna protetorado francês, é declarada zona internacional e passa a
ser administrada por vários países europeus. Ali é politizado, mas
prefere ler poesia, incluindo o su andaluz Ibn Arabi. Mamed é um
leitor voraz de Lênin e Marx. Ali se masturba pensando em Ava
Gardner; Mamed o faz sem grandes vôos de imaginação, lembrando-
se de uma colega da escola. Quando ambos começam a namorar,
descobrem caminhos opostos para satisfazer a libido naquela
sociedade em que a virgindade da mulher era um tabu insuperável.
Onde um se apaixona, o outro se mantém frio. Onde um demonstra
equilíbrio, o outro se revela um teimoso contumaz. Tudo parece, do
começo ao m, separá-los. E, no entanto, eles permanecem unidos,
éis, ainda que, em diferentes ocasiões, não sejam con dentes.
Eles perscrutam a amizade como se esta fosse palpável, viva,
pulsando entre os dois. Mas o fazem com olhares dessemelhantes,
cada um prendendo-se às suas próprias necessidades, aos seus
próprios sentimentos. “Era difícil saber qual de nós dois tinha mais
ascendência sobre o outro. Nós nos completávamos, precisávamos um
do outro. Isso nos dizíamos e cávamos quase orgulhosos”, lembra
Ali. Mas as recordações de Mamed, ainda que pareçam seguir na
mesma direção, possuem nuanças reveladoras: “Ali [...] tinha uma
capacidade de entrar na minha vida, no meu mundo e no meu
imaginário que me fascinava e me inquietava ao mesmo tempo. Essa
forma superior de inteligência é temível. Eu o invejava. Com o tempo,
aquele aspecto intuitivo se tornava preocupante. Éramos dois livros
abertos face a face. Tornáramo-nos transparentes um para o outro.
No fundo, eu não queria aquilo.”
O relacionamento, para Ali, estava vincado de um ideal quase
romântico. Contudo, a percepção de Mamed, mais fria, elabora uma
rememoração aguda, na qual os pormenores formam um discurso
angustiado. E depois que o drama, anunciado desde a primeira
página, instala-se na narrativa, Ali conclui, longe do nal do livro, ao
assistir O falso culpado , de Alfred Hitchcock: “A verdade se
mantinha em um o esticado entre a luz e as trevas. A vida cotidiana
parecia simples ali, enquanto era muito complexa; basta que uma
aparência se confunda com um sentimento para que nos encontremos
no centro de uma conjuração de forças ocultas e invisíveis em que
tudo pode se desequilibrar em direção ao horror.”
Re exão formulada a duras penas, e que ele produz não apenas em
relação à sua amizade com Mamed, mas de maneira a sintetizar toda a
sua vida.
A perda da esperança
O Marrocos que serve de cenário à narrativa de Tahar Ben Jelloun
é, inicialmente, um país em transição política. As lembranças dos dois
amigos remontam à década de 1950, período conturbado na história
marroquina, quando a derrota dos franceses na Indochina (maio de
1954) e a insurreição na Argélia (novembro do mesmo ano), somadas
aos atos de terror que ocorrem no Marrocos, praticados por
partidários da independência, acabam forçando a França a concordar
com o retorno de Muhammad V do exílio, em 1955. A independência,
ainda que apenas de fachada, viria no ano seguinte, seguida de crises e
cisões partidárias que acabam levando à ascensão, em 1959, de
Hassan II ( lho de Muhammad V) ao trono. A partir desse ponto, as
esperanças de democratização desaparecem. E será sob um regime
despótico que os dois protagonistas viverão, experimentando os anos
de violenta repressão política da década de 1960, quando, em 1965, o
general Muhammad Oufkir se torna o homem de con ança da
monarquia, intensi cando as prisões, as torturas e os
desaparecimentos de presos políticos.
Ali e Mamed serão presos, torturados e mantidos incomunicáveis
durante longos meses, a m de, “reeducados”, servirem dignamente à
pátria. Sofrerão medo e terror — “medo difuso, sem nome, sem cor”,
diz Ali —, seguidos da dissolução de todos os seus sonhos, quando
viver não será mais a busca de um ideal, mas somente a conformação
dos desejos às possibilidades estreitas que o Estado corrupto e
submetido aos interesses estrangeiros lhes oferece.
Os amigos que, na adolescência, desobedeciam às regras severas do
Ramadã, alicerçando a cumplicidade que os unia, acabarão por se
separar. Mamed, formado em medicina, parte para a Suécia, enquanto
Ali, tendo abandonado a faculdade de cinema no Canadá, resigna-se a
uma licenciatura na área de Letras, sem abandonar o Marrocos. Ben
Jelloun utiliza essa separação com habilidade, servindo-se dela não só
para salientar as diferenças entre os dois amigos, mas também com o
intuito de revelar os antagonismos sociais que colocam a Suécia e o
Marrocos em posições absolutamente opostas na ordem mundial.
O poder massacrante de um Estado absoluto vem acompanhado da
desagregação de todas as esperanças. Ficam para trás os anos de
juventude, com as tardes passadas no hamman , essa verdadeira
instituição do Maghreb, lugar de banhos ritualísticos, erotismo e
sociabilidade. Os amigos que tra cavam kif , um tipo de marijuana
plantada nas montanhas do Rif, ao norte do Marrocos, afastam-se.
Não acontecem mais os namoros ao som de Dalida, a bela cantora
nascida no Egito e que, radicada na França, tornou-se mundialmente
famosa interpretando Bambino e Parole, parole . Desaparecem as
atormentadas visitas aos prostíbulos. A leitura do Jardim perfumado ,
do xeque Omar Ibn Nefzaui, uma espécie de Kama Sutra árabe, já não
desperta qualquer alegria. E quanto a Frantz Fanon, um dos principais
ideólogos anticolonialistas, que Mamed e Ali estudavam com
voracidade no colégio, deste restou apenas uma vaga lembrança.
À sombra da morte
A realidade, os dramas familiares, os casamentos, os lhos, a
resignação ou o inconformismo, a busca de uma fuga do sistema
opressor por meio da sexualidade, a submissão à doença, a indignação
crescente contra o Marrocos que, comparado à Suécia, torna-se um
país de poeira, mentiras, corrupção e nepotismo, tudo contribui para a
manutenção dessa amizade que subsiste apesar da distância. E Ben
Jelloun tece a narrativa de maneira a prender o leitor em uma
suspensão permanente. Seu texto não arrebata, mas seduz, levando-
nos de adiamento a adiamento, por vezes resvalando a verdade, mas
acabando sempre por adiá-la.
A palavra nal, nesse romance forjado de sutilezas, em que a
dúvida persiste até a última página, pertence a Mamed. E quem foi
ele, a nal? O mais amigo? Seria ele o derradeiro amigo? E por que,
depois dele, qualquer amizade seria impossível, estaria condenada ao
fracasso?
Outro lósofo, Nietzsche, em seu A gaia ciência , de niu a amizade
como “uma espécie de continuação do amor”, a “elevada sede
conjunta de um ideal”, colocada acima da “cobiçosa ânsia que duas
pessoas têm uma pela outra”. Entretanto, ele também encerra seu
raciocínio com duas interrogações: “Mas quem conheceu tal amor?
Quem o experimentou?”.
Em O último amigo , a expectativa de uma carta, cujo único intuito
é, presume-se, a destruição, perpassa todo o romance. Será sob esse
signo, e sob a sombra nem um pouco acolhedora da morte, que Ali e
Mamed se reencontrarão a última vez. Nesse reencontro, quando
todas as diferenças e semelhanças avultam, nesse reencontro do qual
restará apenas uma carta, reside a resposta de todas perguntas,
esconde-se a verdade não apenas sobre os sentimentos que uniram
Mamed e Ali, mas sobre a esperança, sempre renovada, de que a
amizade, a amizade ideal de Aristóteles ou de Nietzsche, seja
realmente possível.
PERENE INCONSTÂNCIA — HANS JACOB
CHRISTOFFEL VON GRIMMELSHAUSEN
A lei do viver
Desconhecido, assinando seus livros com vários pseudônimos —
anagramas de seu verdadeiro nome —, Grimmelshausen escreveu uma
obra que não é apenas exemplo da conhecida dualidade barroca, das
tensões antitéticas nas quais o homem se vê dividido entre suas
paixões e Deus, entre o pecado e a virtude, a fugacidade do presente e
a ânsia pela salvação. Sim, tais antíteses fazem parte do drama de
Simplicissimus — e sua luta interior, as divisões de sua personalidade,
as alternâncias de humor e de objetivo, bem como a insegurança e as
mudanças abruptas provocadas pela guerra, conformam o quadro
tipicamente barroco, em que a realidade parece se contorcer sobre si
mesma, transformando a vida do protagonista numa in ndável
sucessão de alterações de curso.
Há um brilho especial na inconstância, no verdadeiro caos, nas
volutas de equívoco que engolfam o protagonista. Ele pode oscilar
entre alegria e tristeza, compenetração e arroubo guerreiro, luxúria e
isolamento, liberdade e prisão, amor e misoginia, busca da santidade e
pilhagem, mas está sempre imbuído de sinceridade, de certa leveza e
de propósitos que, bons ou maus, nos seduzem.
Ao mesmo tempo grave e sutil, Simplicissimus é um pícaro
perspicaz, de níssimo humor, dissimulado, encantador, que jamais se
nega à auto-análise, à introspecção. Ele nos fascina a cada página,
pois seus dramas não o derrotam, mas servem para impulsioná-lo a
novas aventuras, agarrado à vida, sem jamais conceder às dúvidas e
aos temores aquela propriedade da angústia quase absoluta que
domina os heróis da literatura moderna. Trata-se de um homem que
alcança a mais re nada forma de sabedoria: consegue rir dos
acontecimentos e, principalmente, de si mesmo.
Essa densa obra, parcialmente autobiográ ca, na qual a sátira está
embebida de lirismo, inspira-se nos romances picarescos espanhóis —
Grimmelshausen deve ter lido o Lazarillo de Tormes , traduzido para
o alemão em 1617 — e funda o Bildungsroman .
Pastor de cabras e ovelhas, lho adotivo de camponeses,
Simplicissimus lentamente evolui: toma consciência de sua própria
ignorância; aprende a arte da malícia; torna-se hábil esgrimista,
soldado invejado pela coragem e astúcia; especializa-se na artilharia e
na construção de fortalezas; inventa aparelhos curiosos e fantásticos;
domina a técnica da composição musical e aprende a tocar vários
instrumentos; alcança a fama como ladrão e ator; desvenda segredos
da alquimia; estuda astrologia, matemática, astronomia, cabala,
teologia; viaja pelo mundo; e é disputado como amante.
Narrando suas aventuras e desventuras, Simplicissimus muitas vezes
olha a própria história em retrospecto, e pode avaliar seu passado com
os olhos de um homem sábio, culto. E, se demonstra desilusão, ela é
passageira, pois viver exige presteza, diligência. Matreiro e, ao mesmo
tempo, justo, há uma ética subjacente a todos os seus atos.
Espirituoso, sempre com respostas e perguntas na ponta da língua —
o tradutor, Mario Luiz Frungillo, teve o cuidado de elaborar notas que
explicam os divertidíssimos trocadilhos —, ele tem a virtude de
conceder à pregação moral um papel menor em seu discurso, pois seu
principal desejo é o de que conheçamos um tipo humano peculiar, ele
próprio, síntese de todos os homens, que pretende nos ensinar a lei
que, em sua opinião, rege o viver:
Engenhosidade
Otto Maria Carpeaux diz, com acerto, em sua História da
Literatura Ocidental , que Grimmelshausen “aspirava a um
cristianismo além das con ssões dogmáticas”, mas discordo dele
quando a rma, no Literatura alemã , que o m de Simplicissimus é a
conversão. Primeiro, porque no nal do Livro V (a tradução brasileira
engloba os seis livros que formam o corpo principal das aventuras
simplicianas), quando o protagonista se despede do mundo, ele apenas
retorna à vida de eremita (que já experimentara no início da obra) e
consuma o despojamento que, gradativamente, vinha realizando, sem
adotar qualquer religião em especial. E, segundo, porque ainda que o
Livro VI termine com o herói recusando-se a voltar à civilização,
depois de viver anos numa ilha deserta à qual fora lançado durante
um naufrágio, sabemos que Grimmelshausen deu seqüência às
aventuras de seu personagem com mais quatro livros, publicados entre
1670 e 1675. Neles, segundo Walter Muschg, em História trágica da
literatura , “Simplicissimus volta à Alemanha transformado em um
curandeiro milagroso, invocador de espíritos e descobridor de
tesouros; ganha a vida escrevendo trovas [...] e como vendedor
ambulante de um médico com quem percorre novamente metade da
Europa. Agora ele é ‘uma raposa velha, que viu, ouviu, aprendeu, leu
e experimentou muito durante a vida’”. Rea rmando o lado nório da
personalidade de seu protagonista, Grimmelshausen, ainda segundo
Muschg, transforma a charlatanice em parábola poética:
“Simplicissimus está construído totalmente sobre o tema do ilusório, e
a maneira como seu autor segue reelaborando-o só pode ser explicada
pelo prazer do jogo hermético, que ele leva no coração como todos os
gênios do cômico.”
Mas Grimmelshausen também faz uma radiogra a da severa
estrati cação social daquele período e da desordem criminosa
provocada pela guerra, analisa a organização dos Estados, coloca na
boca de um louco duras críticas aos governantes, escreve literatura de
viagem, cria sonhos que são parábolas e apólogos, e produz
acontecimentos de pura fantasia, nos quais Simplicissimus é
transportado a um sabá, visita certo mundo subaquático, no qual
vivem estranhas e geniais criaturas, domina as artes da magia e chega
a dialogar com a folha de um caderno in-oitavo : antes de lhe servir
como papel higiênico, ela reclama da fugacidade de sua vida e solicita,
em nome dos inúmeros serviços prestados, que não seja utilizada para
um m tão desonroso; o que, evidentemente, lhe é negado.
Dono de fantástica engenhosidade, Grimmelshausen jamais teme
mostrar os vícios, os defeitos de seus personagens. Sem idealizar a
humanidade, lutando para sobreviver num tempo hostil e precário, o
escritor consegue arrancar da imaginação a síntese buscada não só
pela literatura barroca: à única regra invariável da existência, a
inconstância, o homem não deve responder com lamentos, mas, sim,
tomar distância dos fatos; não sem antes emitir uma sonora
gargalhada.
SUBMETIDO AO DESESPERO — JAMES JOYCE
Pássaros escuros
O primeiro capítulo de Nada já nos mostra a desenvoltura de
Laforet. Em meio à chegada solitária na Barcelona noturna,
carregando a mala repleta de livros, Andrea registra as primeiras
impressões da cidade — intensas, marcadas por um poder de síntese
que recupera odores, luzes, sons — e o clima de crescente expectativa,
rompido abruptamente, logo no primeiro contato com os familiares,
“ guras alongadas, quietas e tristes, como luzes de um velório de
interior”. A partir daí, a ansiedade da jovem se transmuta em
pesadelo. O apartamento da rua Aribau fede, o banheiro parece
povoado de guras fantasmagóricas e a cama, preparada às pressas,
coberta pela manta preta, assemelha-se a um ataúde. As ilusões se
desfazem.
A família neurótica que a acolhe vive impulsionada por crises e
escândalos. A violência entre irmãos impera. E o drama será levado ao
extremo pela crescente pobreza, pela fome. Relacionando-se com
desrespeito e cinismo, os parentes se apegam a seus mundinhos
particulares, a certezas mesquinhas, afundando cada dia mais.
Naquele apartamento se concentram os vícios humanos — e a
narradora compara os moradores, acertadamente, aos personagens
dos Caprichos , de Goya. O texto de Laforet não tem a corrosão, a
sátira ou o grotesco das gravuras do pintor, mas é igualmente
implacável. Angustias, a tia hipócrita e autoritária, é “uma daquelas
últimas folhas de outono, mortas na árvore antes de serem arrancadas
pelo vento”. Em certo trecho, a narradora lembra: “Vejo que eram
como pássaros envelhecidos e escuros, com os peitos arfantes por
terem voado muito num pedaço de céu muito pequeno”. A única que
guarda alguma dignidade é a avó, crédula, protegida em seu casulo
quase arteriosclerótico, movendo-se pelo apartamento às escuras com
“distinção espectral”.
Orfandade
A esses exemplares de uma classe média fracassada, Laforet
contrapõe o mundo da universidade, com os amigos igualmente
burgueses, mas abastados. Pouco saberemos dos estudos, das leituras
de Andrea, mas acompanhamos a vergonha que sente por causa dos
sapatos envelhecidos, o sentimento de inferioridade provocado pela
pobreza e a renitente mania de presentear a amiga Ena e sua mãe,
mesmo que isso signi que não ter dinheiro para comer. É a forma de
Andrea mendigar atenção, amor.
A jornada da protagonista oscila entre preservar sua
individualidade e construir relações que possam libertá-la da família
— e também de seus medos, da insegurança, de suas carências. Sem
amor-próprio, porém, ela se torna uma presa fácil das armadilhas que
se escondem na vida social. Mesmo a amizade com um grupo de
jovens boêmios ricos, supostos artistas, não se concretiza — ao
contrário, todos os relacionamentos são pouco profundos,
contaminados por um persistente sentimento de inadequação. Os dias
mais felizes serão passados ao lado de Ena e seu namorado, Jaime.
Andrea se alegra sinceramente pelos dois, mas sente-se deslocada; e,
terminados os passeios, ela voltará a experimentar a solidão.
Há uma orfandade que supera o fato de ela ter perdido os pais. Seu
desamparo é mais vasto, mais denso. E, para amadurecer, Andrea
pagará alto preço, nada aviltante, é verdade, mas constituído por uma
série de descobertas dolorosas. E ela só consegue vencer algumas de
suas inseguranças e abandonar a família depois de agir exatamente
como não desejava: unindo seus dois mundos, ainda que durante
brevíssimo tempo.
A solução para parcela dos problemas de Andrea virá na forma de
um convite inesperado, o que interrompe a narrativa abruptamente.
Fica-se, portanto, com a impressão de que o processo de
amadurecimento não se completou. Ela se despede de nós — e jamais
saberemos quais dos seus sonhos se concretizaram. Assim, diferente
do que alguns dizem, Nada não é um clássico Bildungsroman , pois
enfoca tão-somente uma fase crítica da existência, passageira, aquela
que ultrapassamos para garantir o direito de entrar na vida adulta.
Nômade
Fernando Valls, professor de literatura espanhola contemporânea
da Universidade Autônoma de Barcelona, questiona-se sobre o
misterioso silêncio de Carmen Laforet, do qual falamos no início. Na
opinião de Valls, “tem-se a sensação de que, uma vez realizadas as
obras que tinham como fundo as vicissitudes de sua própria biogra a,
ela não foi capaz de obter os mesmos sucessos com a invenção de
outras vidas”. Mas o crítico também aponta, com absoluta razão, o
caráter ético dessa escritora, salientando a “sensatez” e a “exigência
incomuns que ela demonstrou ao reconhecer sua incapacidade para
alcançar de novo essa arte sincera, humilde e verdadeira à qual
aspirava com tamanho afã”.
Faltam-me elementos para avançar nessas re exões. Mas tenho a
viva impressão de que Laforet passou sua vida em permanente crise,
sem jamais encontrar a resposta que pudesse satisfazê-la plenamente.
Em 1956, cinco anos depois de reabraçar a fé, ela renunciaria ao
catolicismo. E à medida que abandona a escrita, parece navegar sem
rumo, nômade em busca de certezas, como se a descoberta de Andrea
repercutisse em seu íntimo: “Eu então percebia, pela primeira vez, que
tudo segue, desbota, estraga, enquanto a vida continua. Que não
existe nal na nossa história até que chega a morte e o corpo se
desfaz...”. Não por outro motivo, seu principal romance chama-se
Nada . Mas é terrível imaginar que a melancolia ou a sensação de
vazio tenham dominado sua existência. Viver imersa em uma
atmosfera soturna teria sido um peso excessivo, injusto, para essa
mulher cuja voz renovadora conseguiu iluminar a Espanha submersa
na cisão e no ódio.
TÍMIDO ACERTO DE CONTAS —
JEAN-MARIE GUSTAVE LE CLÉZIO
Indulgência
Esse narrador pusilânime passa ao largo dos dramas que poderia
esmiuçar e, quem sabe, esclarecer. Não nos explica os motivos da
grave crise que dividiu e dispersou a família paterna, formada por
ingleses radicados nas Ilhas Maurício. E sua visão da África está
repleta dos lugares-comuns que culpam os colonizadores pela miséria
do continente — mundo no qual, com exceção de seus pais, todos os
brancos são impuros e não merecem con ança.
Aliás, no que se refere ao casal que o gerou, o narrador alcança o
ápice da idealização: no meio de um verdadeiro inferno, vivendo
expatriados de tudo que a civilização ocidental conquistou, os pais de
Le Clézio são seres perfeitos — Adão e Eva expulsos da hipócrita
sociedade européia e convocados a recriar o novo paraíso em solo
africano.
Tímido acerto de contas com o passado, O africano é o livro de um
adolescente sexagenário — indulgente consigo mesmo, indulgente com
a África, indulgente em relação ao pai. Como Enéias nas profundezas
do Hades, Le Clézio tenta abraçar Anquises repetidas vezes, mas
sempre em vão, pois a sombra paterna lhe foge de maneira
irremediável.
ONDE ESTÁ O BARDO? —
WILLIAM SHAKESPEARE
Maquinações políticas
No drama Henrique VIII , por exemplo, Shakespeare abre a peça
com o diálogo de Buckingham e Norfolk, duques da corte, que
comentam sobre o encontro entre os reis da Inglaterra e da França, a
m de estabelecer um tratado. Criticam o excesso de luxo do evento,
que durou vários dias, argumentando que tudo não passou de
cenogra a inútil, pois a França continuava a desrespeitar os termos do
acordo.
Buckingham, que não pôde estar presente, pergunta a Norfolk
quem foi o responsável por organizar a reunião — e só depois de
insistir ouve a resposta: “Alguém, decerto, / que inclinação nenhuma
demonstrara / para um negócio desses”. A fala, que alude ao cardeal
Wolsey, lorde chanceler de Henrique VIII, homem de sua total
con ança, soa estranhíssima, ilógica, pois a especialidade de Wolsey é,
como descobrimos no transcorrer da peça, exatamente dar às
super cialidades o ar da grandeza, montar estratagemas, ser ardiloso,
perseguir seus inimigos e enganar o próprio rei. Nossa tese se con rma
quando consultamos a tradução de F. Carlos de Almeida Cunha
Medeiros e Oscar Mendes, na Obra completa de Shakespeare,
publicada pela Editora Nova Aguilar. Eis a resposta sucinta de
Norfolk: “Alguém que, certamente, não é noviço nesta classe de
negócios”. Ou seja, o oposto do que Nunes propõe.
Logo a seguir, em uma fala de Buckingham, a escolha de Nunes, de
se prender à versi cação, cobra seu preço na forma de um cacófato e
da sintaxe confusa, sem transparência: “[...] Ele mesmo / a lista
preparou dos gentis-homens, / de maneira geral só escolhendo / os a
que ele pretende impor um fardo / muito grande para honra
secundária”. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes
(que a partir de agora chamaremos de CM e OM), abdicando do
verso, fazem melhor: “Ele mesmo fez a lista dos gentis-homens,
escolhendo aqueles a quem deseja impor um pesado encargo, a troco
de pequenas mercês”.
Em dado momento, outro nobre, Abergavenny, comentando sobre
parentes que se endividaram para participar do encontro entre os reis,
a rma: “de tal modo esgotaram seus haveres, / que jamais poderão
voltar ao prístino / bem-estar da família”. CM e OM usam apenas
“nunca mais voltarão ao antigo estado de conforto”, não ousando
inserir um arcaísmo como “prístino”, que na década de 1950, data da
primeira edição deste trabalho de Carlos Alberto da Costa Nunes, já
era usado somente nos piores exemplos da oratória tupiniquim.
As rubricas também apresentam problemas. Vejamos: “Entra o
cardeal Wolsey; a bolsa é trazida na sua frente; alguns guardas e dois
secretários com papéis o seguem”. Ora, o leitor de Nunes ca se
perguntando sobre essa estranha bolsa, mas não encontrará resposta,
a não ser que leia uma das notas de CM e OM, quando será
informado de que a bolsa, carregada por alguém do séquito, contém o
grande selo, símbolo do rei, que confere autoridade a Wolsey.
Quando Norfolk tenta acalmar Buckingham, usando alusões
tipicamente shakespearianas, ele diz, segundo CM e OM: “Sede
prudente, não acendais para nosso inimigo uma fornalha tão quente
que sirva para chamuscar-vos [...]. Não sabeis que o fogo que empurra
o líquido até fazê-lo transbordar, parecendo que o aumenta, faz que
ele diminua?”. Em Nunes, a confusa organização do pensamento e a
escolha de utilizar “licor” na rara acepção de “qualquer líquido”
exaurem a fala: “Como o sabeis, a chama que o licor / faz subir na
vasilha e derramar-se, / parecendo aumentá-lo, o esgota apenas”.
As colocações dos pronomes também massacram o leitor.
Agradecendo a Wolsey, o rei (Ato I, Cena 2), diz: “[...] Eu me
encontrava / na iminência de ser estraçalhado / pela de agração de
uma conjura. / Mas frustraste-la; muito agradecido”. CM e OM,
menos formais, novamente resolvem melhor: “Eu me achava debaixo
da ameaça de uma conspiração prestes a estalar e agradeço porque a
zestes fracassar”.
Cacófatos e exercícios de tortura com a língua são freqüentes em
Nunes. Ouvindo as falsas acusações contra Buckingham, Henrique
VIII interrompe a testemunha e comenta: “Lembro-me ainda / desse
fato: sendo ele do meu feudo, / entre os vassalos dele o pôs o duque”.
CM e OM, ao contrário, não maltratam o português (e muito menos
o leitor): “Estou lembrando desse dia... Embora estivesse ele obrigado
a servir-me, o duque o reteve a seu serviço...”.
Drama da maturidade de Shakespeare, Henrique VIII é uma
história de maquinações políticas — na qual a lei obedece a planos
furtivos, à sede de poder, e não ao direito, à justiça. Mesmo que
Wolsey acabe por ser denunciado, a sensação nal, com a queda da
rainha Catarina e o casamento de Henrique e Ana Bolena, é a da
prevalência do mais ardiloso, daquele que consegue torcer a lei em seu
benefício, mediante inúmeros artifícios.
Como sempre, Shakespeare nos oferece um panorama da
humanidade. Ou, segundo o que ensina Samuel Johnson no seu
Prefácio a Shakespeare ,
suas peças não são, no sentido exato e crítico, nem tragédias nem comédias, e sim
composições de uma espécie diferente, mostrando a condição real da natureza sublunar,
que abrange o bem e o mal, a alegria e a tristeza, misturados em uma proporção
in nitamente variável e combinados de inúmeras maneiras, re etindo o curso do mundo,
onde a perda de um é o benefício de outro; onde, ao mesmo tempo, o libertino está
correndo para o seu vinho e o pesaroso enterrando seu amigo; onde a maldade de um é
às vezes derrotada pela galhofa de outro, e muitos malefícios e muitos benefícios são
feitos e impedidos sem nenhum motivo.
Em meio às intrigas da corte, por exemplo, dois lordes (Ato I, Cena
2) criticam as modas importadas dos franceses e, assim, reforçam a
velha rivalidade entre França e Inglaterra — um diálogo que deveria
fazer a platéia do Globe vir abaixo de tanto rir. Na Cena 4 do Ato I, o
duplo sentido das palavras confere lubricidade ao diálogo dos nobres.
E quando as mulheres sentam-se à mesa, as falas prosseguem,
levemente licenciosas, reforçando a sugestão do adultério que o rei
está prestes a cometer.
Logo a seguir, na primeira cena do Ato II, a contraposição é
perfeita: graças à conversa de dois desconhecidos, sabemos que,
enquanto Henrique e a corte se divertiam, Buckingham era condenado
pelos juízes, apesar de os testemunhos terem sido forjados por Wolsey.
Temos, então, a despedida de Buckingham, nobre, plena de dignidade,
criando um terrível contraste em relação à cena passada. Durante seu
discurso, o duque fala de si mesmo na terceira pessoa, como se zesse
referência a alguém que já não existe, o que amplia a dramaticidade.
Aqui, na tradução de CM e OM: “Ó vós, seres raros que me estimais
e ousais chorar por Buckingham; vós, seres nobres, amigos e
companheiros, cujo adeus é para ele a única amargura, a única morte,
acompanhai-o como amigos bons, até seu m; e, quando o longo
divórcio do aço cair sobre mim, fazei de vossas orações um inefável
sacrifício e levai minha alma para o céu [...]”. Até o nal, não menos
digno, profundamente amargurado (na tradução de Nunes): “Quando
algo triste relatar quiserdes, / contai como eu caí”.
As escolhas de Shakespeare em relação a Henrique e Ana Bolena
são curiosas. Ana parece estar longe de ser uma sedutora, mas dúvidas
sobre suas intenções são despertadas no leitor por uma dama de
companhia (Ato II, Cena 3). A velha irônica, que aguilhoa Ana com
perguntas, coloca a nova escolhida de Henrique numa situação
desconfortável. No que se refere ao rei, seu divórcio de Catarina é
justi cado utilizando-se um problema de consciência — e não o seu
caráter voluptuoso, ou a necessidade de ter um herdeiro. Nesse
sentido, o drama às vezes assemelha-se a uma patriotice.
Os editores, infelizmente, não tiveram o cuidado de traduzir
expressões ou frases que o tradutor preferiu deixar na forma original.
Assim, em vários trechos, o leitor monolíngüe se perderá. Em
Henrique VIII , a hipocrisia de Wolsey está concentrada na frase em
latim que ele usa para tentar convencer Catarina de sua honestidade.
CM e OM traduziram a fala melí ua: “Tão grande é a integridade de
nossa mente em relação a ti, sereníssima rainha...”
Catarina, por sua vez, mantém-se altiva. Shakespeare constrói uma
rainha inteligente, capaz de jogos verbais instigantes, como este, ao se
referir aos dois cardeais que lhe oferecem, falsamente, amizade: “Eu
pensava que fôsseis santos homens, por minha alma! Duas reverendas
virtudes cardeais! Mas, temo que sejais dois pecados cardeais, dois
corações hipócritas” (na tradução de CM e OM).
Quando Wolsey começa a perder prestígio, Shakespeare rege as
expectativas do público: na Cena 2 do Ato III, sabemos que o
monarca conhece as intenções do cardeal — e, para nosso maior
prazer, também sabemos que Wolsey não tem consciência disso,
sentindo-se plenamente seguro. O vilão está em maus lençóis, mas só
nós e o autor estamos cientes de sua derrocada, o que aumenta nosso
prazer.
Os monólogos de Wolsey, quando se vê perdido, não têm a
dignidade das falas de Buckingham ou de Catarina. Seu passado não
permite que tenhamos piedade dele — e seus discursos se assemelham
a lamentos de uma velha raposa. Mas não deixa de ser gracioso vê-lo
reconhecer que cairá “como brilhante meteoro ao entardecer” (Nunes
traduz, estranhamente, “como lúcido meteoro”) ou — exemplo de sua
invencível egolatria — imaginá-lo comparando-se a um anjo caído:
“Oh! Como é miserável o pobre homem que depende do favor dos
príncipes! Há entre o sorriso ao qual aspira, o doce olhar dos
príncipes e a própria desgraça, mais tormentos e temores do que os
causados pela guerra ou aqueles sofridos pelas mulheres. E quando
cai, cai como Lúcifer, desesperado para sempre!” (CM e OM).
Será Catarina, numa de suas falas mais brilhantes, próxima da
morte, quem dará ao leitor a síntese da personalidade de Wolsey (Ato
III, Cena 2): “Era incapaz de mostrar piedade, a não ser com aqueles
de quem projetava a ruína. Suas promessas eram o que ele então era:
magní cas; mas o cumprimento delas era o que ele hoje é: nada” (CM
e OM).
Pouco antes do nal, Shakespeare desloca nossa atenção para o
povo que se espreme nos portões do palácio, acotovelando-se para ver
o cortejo que leva Elizabeth, lha de Henrique e Ana Bolena, à
cerimônia de batismo. A confusa tradução — e a ausência de notas —
matam o caráter malicioso da fala do porteiro, que reclama do
empurra-empurra. Ele diz, respondendo ao lacaio que lhe pergunta o
que deve fazer (segundo Nunes): “Que tereis de fazer, senão derrubá-
los / às dúzias? Acaso isto aqui é Moor elds, para fazerem / uma
parada? Ou terá chegado a esta corte alguma / índia do estrangeiro,
com uma grande cauda, para / que as mulheres nos venham sitiar
dessa maneira? / Deus me abençoe! Quanta sem-vergonhice está /
acontecendo atrás das portas!”.
Mas do que Shakespeare está falando? Índia com uma grande
cauda? CM e OM esclarecem: “Que quero que tu faças? Que os
derrubes às dúzias. Isto aqui é Moor elds para que se reúnam aqui?
Ou acaba de chegar à corte algum estranho índio com um grande
instrumento, para que as mulheres nos assediem desta maneira? Deus
me abençoe! Que fervedouro de fornicações há na porta!”.
Completam o trecho, na edição da Nova Aguilar, duas notas: uma
salienta o sentido obsceno de great tool ; enquanto a outra nos explica
o porquê da referência a Moor elds: tratava-se de um campo usado
para passeios.
Indulgente com a falta de escrúpulos de Henrique VIII, um
personagem menor na peça, Shakespeare decepciona quando chega ao
nal, fechando o espetáculo com uma profecia sobre os grandes feitos
da menina que se tornará Elizabeth I.
Moral nefasta
Dentre as tragédias de Shakespeare, a de abertura mais inusitada
talvez seja Macbeth , principalmente para quem teve a chance de
assistir no teatro. Quanto ao leitor, vê-se obrigado a imaginar, entre
trovões e relâmpagos, as três bruxas que praguejam em um local
deserto. As falas rápidas se sucedem, e Carlos Alberto Nunes,
infelizmente, não recria o tom incisivo das imprecações. Parte da força
se perde, inclusive, por ele não traduzir “Graymalkin” e “Paddock”,
expressões que se referem, nas conjuras das feiticeiras, ao “Gato
Cinza” e ao “Sapo”, os conhecidos animais de todas as histórias de
bruxaria. Nesse começo enfraquecido, a fala que elas pronunciam em
coro, antes de desaparecer — e que resume o clima da peça —
também soa debilitada: “São iguais o belo e o feio; / andemos da
névoa em meio”. Mas há outras traduções, melhores. CM e OM
dizem: “O belo é feio e o feio é belo! Pairemos entre a névoa e o ar
impuro!”; enquanto Manuel Bandeira prefere: “O Bem, o Mal! / — É
tudo igual. / Depressa, na névoa, no ar sujo sumamos!”.
Os leitores de Macbeth estão condenados a pairar “entre a névoa e
o ar impuro”, vendo o belo ser desprezado como feio — e o feio
enaltecido como belo, pois o que ressalta nessa tragédia é a corrupção
transformada em motor da história. Aqui, o mal está destituído de
qualquer banalidade, ganha vida própria e passa a justi car todos os
comportamentos.
O corte da Cena 1 para a Cena 2, nesse primeiro ato, nos leva ao
campo de batalha. O rei, Duncan, e outros nobres encontram um
o cial ferido e o questionam sobre os combates. Mas a resposta do
soldado, que enaltece Macbeth por ter derrotado o rebelde
Macdonwald com atos de bravura, soa parcialmente incompreensível
aos leitores de Nunes. Em certo trecho, ele diz: “O impiedoso
Macdonwald [...] suprimentos / das ilhas do oeste recebeu de quernes /
e galowglasses ; e a fortuna, rindo / para sua querela amaldiçoada, /
mostrou-se prostituta de um rebelde”. Quem seriam esses quernes e
galowglasses ?, pergunta-se o leitor. Vejamos como cuidaram do
trecho outros tradutores. CM e OM dizem: “O implacável
Macdonwald [...] recebera das ilhas do oeste um reforço de kerns e de
gallowglasses e a Fortuna, sorrindo-lhe para a maldita causa, parecia
prostituir-se ao traidor”. O texto começa a car mais claro, e uma
nota se encarregará de elucidar nossa principal dúvida: “ kerns eram
soldados de infantaria, [...] geralmente usados na antiga Irlanda. Os
gallowglasses eram mercenários estrangeiros armados com machados
[...]”. Mas há outra solução possível, que Bandeira nos oferece, mais
simples, certamente ideal para o palco: “O implacável Macdonwald
[...] das ilhas do oeste recebeu reforço / De tropas irlandesas, e a
Fortuna / Sorria-lhe à diabólica empreitada / Como rameira de
soldado”.
Ainda na Cena 2, Duncan se regozija ao saber da vitória de
Macbeth e decide premiá-lo com o título que pertencia ao inimigo:
thane de Cawdor. O rei termina sua ordem desta forma:
Duncan — Jamais de novo há de trair o thane / de Cawdor nosso afeto. Sem delongas /
o condenais à morte e com seu título / saudai Macbeth.
Ross — A mim tomo esse encargo.
Gigantesco bibelô
Uma questão se impõe, ao nal destes comentários: não bastasse o
fato de o Teatro completo ser composto por três volumes pesados, de
leitura extremamente desconfortável, qual o sentido de se reeditar
uma tradução datada, que sequer foi corrigida em seus erros ou
deslizes, que não oferece notas indispensáveis e cujas introduções
estão superadas, em vários pontos, pela crítica contemporânea?
Fariam bem as editoras se seguissem o conselho de Marcia A. P.
Martins, da PUC do Rio de Janeiro, em uma das introduções a O
conto de inverno , peça de Shakespeare traduzida por José Roberto
O’Shea: precisamos de traduções que permitam “ao público brasileiro
apreciar o verso, a verve e a riqueza imagística shakespeariana sem
recorrer a pirotecnias estilísticas, que criam um efeito de intimidação e
conseqüente distanciamento, ou estratégias banalizadoras, que
simpli cam a linguagem e privilegiam o enredo [...]”.
Num mercado editorial caracterizado, cada vez mais, pelo
pro ssionalismo, em que ótimas traduções são oferecidas, o Teatro
completo — gigantesco bibelô — caminha na contramão, colaborando
para frustrar os leitores e afastá-los de Shakespeare e de sua magní ca
dramaturgia.
O SILÊNCIO IMPOSSÍVEL —
ANTONIO DI BENEDETTO
Revolta e impotência
Mais do que os comportamentos expressos pelo su xo eiro , o
narrador-personagem do romance de Di Benedetto anseia
desesperadamente pelo silêncio. E não se trata de uma aspiração, mas,
sim, de uma febre cuja intensidade aumenta na exata medida em que o
nível dos ruídos cresce.
Os barulhos, elementos inextricáveis da cidade, intrometem-se no
cotidiano desse homem, ganhando, pouco a pouco, existência própria.
Deixam de ser meras conseqüências do aprimoramento tecnológico e
se transformam em entidades possuidoras de uma teimosia que não só
perturba a vida, mas a altera profundamente. Recolhido ao quarto, o
narrador ouve, por exemplo, os sons a itivos da o cina mecânica
instalada no imóvel vizinho. Eles invadem o aposento; e a percepção
do ruído é tão intensa, que não se trata de apenas ouvi-lo, mas de
vivenciá-lo tal qual uma pena, um sofrimento: “Não o vejo,
simplesmente o padeço”. Em outro trecho, ele dirá que o ruído chega
ao “dorso” do dormitório, criando uma metáfora — repetida no
transcorrer da obra — que não deixa dúvidas sobre a força do
barulho, capaz de atingir o quarto como se este fosse parte do corpo
do protagonista.
Os ruídos indesejados arrombam a privacidade, obrigando os
personagens a participarem do que não lhes interessa: um churrasco
para comemorar a inauguração da o cina; os bailes no salão aberto
do outro lado da rua; o programa de rádio que o proprietário da
venda próxima escuta no último volume.
Página a página, os rumores circundam e acossam o narrador,
obrigando-o a ser o que não deseja, a agir em desacordo com sua
índole. Violentado, ele busca refúgio na lei, mas o estudo do Código
Civil mostra-lhe as dubiedades do texto: uma defesa do cidadão, mas
também perigosa teia, na qual o reclamante pode se tornar réu.
Não há segurança, portanto. E a própria espera do barulho, sua
antevisão, a certeza de que ele se repetirá, despedaça o narrador. O
barulho, então, migra da o cina para o âmago do personagem,
transformando-o num hospedeiro revoltado, mas impotente:
Volto ao lar. No caminho, a cidade que desce pela minha rua apaga suas vitrines, baixa
persianas: desmantela seus andaimes de trabalho. Até amanhã.
Mas resta um lugar onde a atividade prossegue: no dorso da minha casa.
A luz cinge-se ao canto onde está o torno, esse torno que pulsa conseqüente, como
descubro que começa a pulsar, na minha cabeça, uma veia que bombeia algo mais
sacri cada que as outras, e dói um pouco.
Gênese e estilo
Enquanto o personagem esquadrinha a cidade em sua busca por
silêncio, também sonha escrever um livro, cujo tema central seria o
desamparo. Mas é exatamente essa a obra que se faz enquanto ele
investiga a origem dos barulhos, livro no qual ele se encontra, cada
vez mais privado do que lhe é indispensável, escrito, contudo, por
outra pessoa, alguém chamado Antonio Di Benedetto. O autor,
inclusive, revela — em entrevista concedida a Günter W. Lorenz — a
gênese do romance, num relato que, guardadas as devidas proporções,
assemelha-se à trajetória de seu personagem:
[...] Digo que em El silenciero discuto o ruído físico e metafísico. Os dois me perturbam,
como pessoa comum e como romancista, desde certa época penosa de minha vida. Tinha
o tema, mas não conseguia nem tramar a narração nem ver e de nir os personagens.
Ainda que o protagonista fosse eu mesmo! Quando tive acesso à Europa, convenci-me
de que em Paris — cidade que supunha mais ruidosa e atormentadora —, com mais
seres atormentados pelas duas classes de ruídos, me envolveriam os elementos
necessários para os argumentos. Puro engano. Não vi nem soube observar, ou melhor,
não ouvi nem soube escutar, nem em Paris, nem em Bordéus, nem em Amsterdã, nem em
Londres. Regressei à Argentina. Fiz-me todo ouvidos. Bem, é um exagero, pois na
verdade não precisava me empenhar, os ruídos bloqueavam-me novamente,
morti cantes e destruidores. Observei, estudei, o problema se encarnou em personagens
que começaram a dar forma ao romance. Nasceu El silenciero : psicologias,
comportamentos, neuroses, metafísica de homens de cidade, talvez de qualquer cidade
moderna, industrial ou pré-industrial; todavia, captadas, aprendidas, aprofundadas em
meu milieu .
A vida imposta
No período de tempo em que nalizo esta análise, o fragor das ruas
invade mais uma vez o apartamento. Uma serra circular guincha com
estridência em algum ponto; da quadra da escola, situada no
quarteirão em frente, sobe insistente microfonia e a voz melancólica
do funcionário que testa o ampli cador dezenas de vezes; ônibus e
carros aceleram, freiam, buzinam; um operário arranca a marteladas a
estrutura de ferro que, presa à marquise do prédio, sustentava um
letreiro. É sábado, início da manhã, o inferno da cidade apenas
começa — e não sou o protagonista de O silencieiro . Ou talvez seja,
talvez tenha sido sempre, sem saber.
A cidade realmente conspira contra o homem. As derivações da
tecnologia fugiram, há muito, do nosso controle. Entre a elaboração
da ciência e os resultados que ela provoca — em termos de técnicas,
instrumentos, modos de vida e variações de comportamento —, existe
um abismo de irracionalidade, diante do qual o narrador de O
silencieiro se diz um mártir, “mártir da pretensão de viver minha vida
e não a vida alheia, a vida imposta”. Como resposta, ouve de um
político, ex-jornalista, a acusação de ser “inimigo do progresso”, ou
seja, nada mais que o velho recurso dos cínicos, o lugar-comum que
serve para manter as coisas exatamente onde estão.
Assim, vivendo sob a arbitrariedade, o narrador-personagem
descobre, com amargura, que a lógica e a ética não servem à vida real.
Os fatos se colocam apenas; são o que são. Os ruídos produzem
loucos que, por sua vez, buscam novos ruídos — ou uma solução
excêntrica, semelhante à experimentada pelo silencieiro, mas de
conseqüências injustas e implacáveis.
HEROÍSMO ANÔNIMO E PERFEIÇÃO —
ARTHUR MILLER
Tropeços
Em certos momentos, a in exibilidade do narrador descamba para
a crítica maniqueísta, demonstrando um esquerdismo às vezes
dissimulado, às vezes ostensivo. Vejamos alguns exemplos.
Para as inglesas Lola e Noni, certos sentimentos só devem ser
mencionados entre pessoas socialmente iguais. Certo dia, Kesang, a
criada, relata às patroas seu casamento com o leiteiro, a grande
paixão de sua vida, e chega às lágrimas. Essa incontrolável emoção
choca as irmãs. Na opinião de Lola, “os criados não experimentam o
amor da mesma forma que gente como elas duas”. A seguir, Lola
re ete consigo mesma, concluindo que “nunca havia experimentado a
coisa real”, essa “fé no mergulho da paixão”. Quanto a Noni, o
narrador é taxativo: “Nunca amara de jeito nenhum. Nunca sentara
em seu quarto silencioso e conversara sobre coisas capazes de fazer
sua alma tremular como uma vela. [...] Nunca desfraldara sobre sua
existência a breve bandeira gloriosa do romance”. Assim, Noni chega
a “sentir inveja” de Kesang.
Ora, a idéia de que somente os pobres podem ser capazes de um
amor genuíno, sincero e profundo não é apenas melodramática, mas
populista, demagógica. Esse exagero no enaltecimento dos pobres —
sob o qual se esconde o objetivo de depreciar as remanescentes dos
colonizadores britânicos — surge como uma saída excessivamente
fácil e, portanto, inconvincente.
Nossa con ança no narrador se quebra quando ele não consegue
manter uma distância respeitosa de sua história e decide intervir,
fazendo críticas que vão muito além das digressões próprias de um
narrador em terceira pessoa: “Said logo encontrou trabalho na
Banana Republic, onde ia vender para os so sticados urbanos a gola
rolê preta da moda, uma loja cujo nome era sinônimo da exploração
colonial e da rapina do terceiro mundo”. A conclusão não pertence a
Said — aliás, um tipo engraçadíssimo, que não dá a mínima para a
“exploração colonial” —, mas ao narrador onisciente. Este, perdendo
o controle, abandona a necessária circunspecção e passa a exprimir
julgamentos que remetem o leitor a uma autoridade colocada fora da
trama. À medida que tal prática se repete, a verossimilhança se
desintegra.
O narrador também dedica o mais absoluto desprezo aos indianos
que, vivendo fora de seu país, zeram fortuna e se ocidentalizaram,
abandonando os costumes tradicionais. Há sempre um olhar de crítica
para eles, descrições que beiram o sarcasmo, como se enriquecer e
adquirir novos hábitos fossem atos impuros, pecaminosos.
Outro aspecto, ainda que menor, contribui para prejudicar a leitura:
a autora abusa das onomatopéias, um recurso que, vez ou outra — na
voz, por exemplo, de um personagem cômico ou de uma criança —,
até pode ser sugestivo. Em O legado da perda , contudo, tais signos
infantilizam a narrativa — “O tom abafado das rezas rolara pelas
montanhas quando as mulas e cavalos passaram pocotó-pocotó
saindo da névoa [...]” — ou, além de tornar infantil, surgem como
elementos completamente desnecessários: “Ia subir e descer a
montanha em dias de mercado, com enfeites dourados, deuses em
cima do painel, uma buzina cômica, PÓpumPOM pó ou TUÍI-dii-dii
DII-TUÍI-dii-dii”.
É
explicativas. É estranho que o editor tenha optado por traduzir ou
tornar compreensíveis os títulos de canções e as expressões
idiomáticas de língua inglesa, esquecendo do leitor brasileiro no que se
refere ao híndi. Assim, aprendemos, por exemplo, que Let’s B Veg é
uma “brincadeira lingüística com Let’s Be Vegetarian — Vamos ser
vegetarianos”, mas jamais saberemos o que um motorista de táxi está
dizendo ao perguntar: “ — Oi, koi hai? Khansama? Uth. Koi-hai?
Uth. Khansama ?”.
O que signi ca laddus ? E puris ? E salwar kauriz ? E to sunao
kahani ? E ghas phus , ekdum bekaar , bidis , kakas-kakis-masas-
mais-phois-phuas ? Tais expressões pululam em quase todas as
páginas, chegando, algumas vezes, a comprometer a leitura. Uma
mulher pergunta pela esposa do juiz Patel e insiste: “— Não tem
nenhuma história de purdah , espero?”. Na página seguinte, o
problema se repete, aparentemente acentuado, na voz de outra
mulher: “— O senhor tem uma swaraji bem debaixo do nariz”. A
reação de Patel é de indignação e revolta contra a esposa, e até
supomos, parcialmente, qual é o problema, mas as lacunas
permanecem, insuperáveis.
Os leitores até podem correr ao Google ou a dicionários em busca
de um e outro signi cado, mas tal quantidade de palavras merecia
atenção especial. Se o editor optou por não encher as páginas com
notas de rodapé — decisão, aliás, compreensível —, um glossário,
colocado no nal do volume, resolveria o problema.
A verdade
Se deixarmos de lado as irregularidades, o romance oferece bons
momentos. Há ótimas descrições da cachorra Mutt, humanizada
graças ao amor incondicional que o juiz lhe devota. O personagem
Gyan cresce no transcorrer da narrativa, dividido entre a guerrilha —
luta que lhe parece uma opção concreta diante de sua vida banal, sem
possibilidades de mudança — e o amor por Sai, a jovem
ocidentalizada e, exatamente por esse motivo, difícil de amar e
compreender, já que ela parece ter assimilado os “vícios” dos
colonizadores ingleses. E também os trechos em que o juiz mergulha
no passado, a m de reencontrar as razões de todos os seus
ressentimentos: apesar de poucos, são notáveis.
O melhor, no entanto, ca para Sai, talvez o alter ego da escritora.
Só ela encontra a redenção. Só ela descobre que, diante da covardia,
do medo, dos costumes desumanos ou da mediocridade, o homem
deve reinventar a vida acreditando em seus próprios valores. E que,
para os espíritos realmente livres, a verdade está sempre à mão.
A ADÚLTERA E A CONTRADIÇÃO —
GUSTAVE FLAUBERT
Eu completei [...] vinte e cinco páginas (vinte e cinco páginas em seis semanas). Foram
duras de conseguir. [...] Eu as trabalhei tanto, recopiei, mudei, remanejei, que no
momento não vejo mais nada. [...] Levo uma vida áspera, deserta de qualquer alegria
exterior e onde não tenho nada em que me apoiar a não ser uma espécie de raiva
permanente, que às vezes chora de impotência, mas que é contínua. Eu gosto do meu
trabalho com um amor frenético e pervertido, como um asceta do cilício que lhe arranha
o ventre. Às vezes, quando eu me encontro vazio, quando a expressão se furta, quando,
depois de ter garatujado longas páginas, descubro que não z nem uma frase, caio no
meu divã e co ali paralisado num pântano interior de tédio.
Eu me odeio e me acuso por essa demência de orgulho que me faz arquejar atrás da
quimera. Um quarto de hora depois, tudo mudou; meu coração bate de alegria. Na
última quarta-feira, eu fui obrigado a me levantar para apanhar meu lenço de bolso; é
que as lágrimas corriam sobre o meu rosto. Eu me enterneci escrevendo, eu gozava,
deliciosamente, da emoção de minha idéia e da frase que a revelava e da satisfação de tê-
la encontrado.
Este livro, no ponto em que estou, me tortura de tal modo (e se eu achasse uma palavra
mais forte, eu a empregaria) que eu co às vezes doente sicamente. Há três semanas
que tenho com freqüência dores de fazer desmaiar. De outras vezes, são opressões, ou
melhor, vontade de vomitar na mesa. Tudo me desgosta. Acho que hoje me teria
enforcado com delícia, se o orgulho não me tivesse impedido. É certo que às vezes sou
tentado a mandar tudo se foder, e a Bovary em primeiro lugar. Que santa idéia maldita
eu tive em apanhar um tema semelhante! Ah! eu bem os conheci, os pavores da Arte!
[...] Bem ou mal, é uma coisa deliciosa escrever, não ser mais para si mesmo, mas
circular em toda a criação de que se fala. Hoje, por exemplo, homem e mulher tudo
junto, um e outro amante ao mesmo tempo, eu passeei a cavalo, numa oresta, por uma
tarde de outono, sob folhas amarelas, e eu era os cavalos, as folhas, o vento, as palavras
que eles diziam e o sol vermelho que fazia entrecerrar as pálpebras afogadas de amor. É
orgulho ou piedade, é o extravasamento néscio de uma auto-satisfação exagerada? Ou
então um vago e nobre instinto de religião? Mas quando eu rumino, depois de tê-las
sentido, estas alegrias, vejo-me tentado a fazer uma oração de agradecimento ao bom
Deus, se eu soubesse que ele me ouviria. Que ele seja bendito por não me ter feito nascer
negociante de algodão, escritor de vaudeville, homem espirituoso etc!
Método e paixão
Se há várias maneiras de narrar uma história, há um número quase
in nito de se escrever uma biogra a. Esse período de 1851 a 1856
poderia ser visto sob diversos prismas, mas pre ro pensar nesses anos
torturados como uma seqüência de meses centrais na carreira do
escritor, não apenas por terem resultado em Madame Bovary , mas
principalmente pelas centenas de páginas jogadas no lixo, pelo
número inexprimível de palavras rasuradas e frases refeitas, pelas
horas de angústia e pelo gozo, ainda que efêmero, de chegar a um
resultado — uma infatigável luta com as palavras.
Flaubert não estabeleceu apenas um método de trabalho. Sim, ele
sabia que “todo talento de escrever não consiste senão na escolha das
palavras. É a precisão que faz a força” — diz a Louise Colet, a 22 de
julho de 1852. Mas não se tratou somente de disciplina. Flaubert
tinha consciência das correntes que o prendiam, maiores que os seus
próprios limites. Sabia que a expressão humana é claudicante, falha,
imperfeita; que há um abismo separando a idéia e o discurso, a
emoção e a palavra. O narrador de Madame Bovary conclui em certo
trecho que “a palavra humana é como um caldeirão rachado, no qual
batemos melodias próprias para fazer dançar os ursos, quando
desejaríamos enternecer as estrelas”. Ter a clara consciência da
imperfeição, da rudeza dos meios humanos, do idioma, e ainda assim
persistir, demanda mais que obediência a um método: exige obsessão,
exige viver em um mórbido estado de vigilância e pesquisa, cuja
primeira conseqüência é a solidão, e, logo a seguir, a visão terrível de
seus semelhantes como uma horda de estúpidos e insensíveis. De fato,
em 22 de abril de 1853, ele escreve: “O único meio de viver em paz é
colocar-se, de um salto, acima da humanidade inteira e não ter nada
em comum com ela, a não ser pelo olhar”. Se Flaubert agiu
corretamente ao se transformar em um tipo especial de misantropo,
isso podemos discutir em outro momento. O que interessa neste texto
é que, pensando dessa forma e agindo como agiu, exatamente por
esses motivos, deu vida a Emma Bovary.
Em seu ensaio sobre Flaubert, Henry James chama nossa atenção
para a personalidade de Emma: “[...] Ela mergulha cada vez mais
fundo em duplicidade, dívidas, desespero, e encontra um m trágico
[...]. E faz tudo isso enquanto permanece absorvida pela visão e pela
intenção românticas, e permanece absorvida pela visão e pela intenção
românticas enquanto rola na lama”. Ora, a febre de Emma re ete a
febre de seu criador. Flaubert não escreve apenas, mas se espoja nos
rascunhos da obra, cego a tudo que não seja o romance, reclamando
do que o obriga a interromper seu trabalho e procrastinando o mais
que pode os encontros com Louise Colet, dedicado exclusiva e
apaixonadamente à literatura, escrevendo e devorando Rabelais,
Cervantes e Montaigne — a vida que ele chamou de uma “orgia
perpétua”.
Fetichismo
Mas para se viver em uma “orgia perpétua” faz-se necessário
desejar não somente o clímax do prazer — esse gozo que se aproxima
do estertor. Alguns amantes imaginam que a volúpia é feita também
do amor aos detalhes; às vezes, do apego fetichista a este ou àquele
pormenor. E Flaubert demonstra ser esse tipo doentio de amante. Uma
cena, para ele, requer a evocação de tantas minúcias, que chegamos a
nos perguntar se, de fato, tudo é imprescindível. Mas tudo é
imprescindível. Um editor malevolente poderia suprimir algumas
frases — e Madame Bovary continuaria genial. Perderíamos,
entretanto, uma série de elementos que, combinados, não só forjam
verossimilhança, mas seduzem, modelam o mundo do qual nos
aproximamos como animais curiosos, sedentos de uma realidade que
não seja a nossa.
Quando Charles Bovary visita pela primeira vez a propriedade dos
Bertaux, onde Emma vive com o pai, a quinta se revela para o leitor
em meio à sonolência do médico. Amanhece, e não bastasse o vapor
úmido que se eleva de uma grande estrumeira, “sob o telheiro havia
duas grandes carroças e quatro charruas com seus chicotes, seus
cabrestos, sua equipagem completa, entre os quais as peles de carneiro
pintadas de azul sujavam-se com o pó no que caía dos celeiros”. Ao
penetrar na casa, Bovary vê o almoço dos criados fervendo ao redor
do fogo, as roupas úmidas secando na lareira, e “a pá, as pinças e os
foles, todos de proporções colossais”, que “brilhavam como aço
polido”, e a “abundante bateria de cozinha onde se re etiam de forma
desigual a chama clara do fogão juntamente com os primeiros raios de
sol que entravam pelas vidraças”. É a exaltação do detalhe. Mas não
há um único elemento que, ao ser retirado, dele possamos dizer: —
Realmente, era desnecessário.
Nas seguidas visitas que Bovary faz aos Bertaux, Emma, ao se
despedir,
sempre o acompanhava até o primeiro degrau da escada externa. Enquanto não traziam
seu cavalo, ela permanecia ali. Já se haviam despedido, não se falavam mais; o ar livre a
rodeava, levantando em desordem os pequenos e loucos cabelos de sua nuca ou
sacudindo em seus quadris os cordões do avental que se enroscavam como bandeirolas.
Uma vez, num dia de degelo, a casca das árvores ressumava no pátio, a neve fundia nos
telhados das construções. Ela estava na soleira da porta; foi procurar a sombrinha,
abriu-a. A sombrinha de seda furta-cor que o sol atravessava iluminava com re exos
móveis a pele branca do seu rosto. Embaixo, ela sorria no calor tépido e ouviam-se as
gotas d’água, uma a uma, que caíam sobre o chamalote esticado.
Depois, mal se distinguiam os que vinham em seguida, pois a luz das lâmpadas, caindo
sobre o tapete verde do bilhar, deixava utuar uma certa sombra na sala. Escurecendo as
telas horizontais, quebrava-se contra elas em nas arestas seguindo as fendas do verniz;
e, de todos aqueles quadrados negros debruados de ouro saíam, cá e lá, uma porção
mais clara de pintura, uma fronte pálida, dois olhos que xavam o observador, perucas
que caíam sobre os ombros empoeirados dos trajes vermelhos, ou então a vela de uma
jarreteira no alto de uma panturrilha roliça.
Amor e ódio
Esse extremo cuidado com os detalhes nos fornece indícios da
personalidade de Emma desde as primeiras páginas do romance. Em
uma das visitas de Bovary à quinta dos Bertaux, o futuro casal bebe
licor. Depois de servir a si mesma uma dose pequena, Emma leva o
copinho à boca: “Como estava quase vazio, ela inclinava-se para trás,
para beber; e com a cabeça deitada, avançando os lábios, com o
pescoço retesado, ria por nada sentir, enquanto, passando a ponta da
língua entre os dentes nos, lambia aos poucos o fundo do copo”. A
adúltera já não está toda nesses gestos? Sua luxúria não freme na
ponta dessa língua serpeante?
Flaubert descreve bem inclusive quando recusa pormenores ao
leitor. Depois de reencontrar Léon Dupuis em Rouen, Emma iniciará
seu segundo caso de adultério, agora com o jovem escrevente, que
conhecera em Yonville. Quando saem da catedral e se fecham na
carruagem que passa a trafegar por toda a cidade, nada mais sabemos.
O escritor não precisa dizer o que ocorre por trás das cortinas — e
também não precisamos ter, sob os olhos, um mapa de Rouen, a m
de acompanhar a sucessão de ruas. O in ndável e tortuoso percurso
alimenta num crescendo a nossa descon ança e, ao mesmo tempo,
explica tudo. À nossa imaginação bastam a mão nua que passa sob as
cortinas e joga fora a carta de despedida que Emma havia escrito a
Léon, agora transformada em pedacinhos de papel; e depois de horas
fechados ali, a mulher que desce sozinha, “caminhando com o véu
abaixado e sem virar a cabeça”. Minutos mais tarde, sabendo que o
marido a aguarda em Yonville, o narrador arremata nossa certeza,
dizendo que Emma sente “no coração aquela covarde docilidade que
é, para muitas mulheres, ao mesmo tempo como o castigo e o preço
do adultério”.
O escritor nos faz amar e odiar Emma Bovary. Poucos homens não
se encantariam ao ver a clara nudez dessa mulher contrastando com o
carmim das cortinas de má qualidade e, a melhor parte, depois que
não existem mais segredos, ela, tão experiente em dissimular e trair,
agindo como uma menina envergonhada: “A cama era uma cama de
casal de acaju em forma de barca. As cortinas de levantina vermelha
que desciam do teto fechavam-se baixo demais, perto da cabeceira que
se alargava; e nada havia no mundo de mais bonito do que sua cabeça
morena e sua pele branca destacando-se sobre aquela cor púrpura
quando, com um gesto de pudor, ela fechava os dois braços nus,
escondendo o rosto nas mãos.”
Nossa imaginação despreza as cenas chulas e o vocabulário
mortalmente cru ao nos depararmos com uma descrição que oferece,
melhor que as palavras grosseiras, o frenesi da entrega: “Despia-se
brutalmente, arrancando o no cordão do seu corpete que lhe sibilava
ao redor das ancas como o escorregar de uma cobra. Ia na ponta dos
pés nus ver ainda uma vez se a porta estava fechada; depois, com um
único gesto, deixava cair, juntas, todas as suas roupas; — e, pálida,
sem falar, séria, abatia-se contra seu peito, com um longo
estremecimento.”
Mas ela se entrega apenas quando ama. Chantageada, oprimida
pela cobrança das dívidas e das promissórias, pelo processo e pela
penhora dos bens, pode insinuar a Léon que ele deveria roubar para
ajudá-la, mas não aceita ser seduzida pelo notário de Yonville.
Revolta-se, tenta persuadir Rodolphe, o primeiro amante, a lhe dar
dinheiro, e quando percebe que está perdida, manipula ainda uma
última vez. Demonstrando a argúcia e a agilidade de re exos que a
tornam exuberante, manipula para poder se matar. E a mesma avidez
daquela língua que buscava o fundo do copo de licor, reencontramos
na mão que, arrancando a rolha do pote de veneno, mergulha para
retornar cheia do pó branco que Emma se põe a comer sofregamente.
Poder e linguagem
A partir de certo momento, Chacaltana nota que todos aqueles com
quem conversa acabam assassinados. Torna-se, desse modo, o centro
dos crimes que investiga: uma espécie de Édipo, buscando às cegas o
assassino que, indiretamente, parece ser ele próprio. Descon ado de
todos, vendo todas as certezas ruírem, “se o promotor Chacaltana
sabe algo por experiência própria”, como a rmou Santiago
Roncagliolo, em seu discurso ao receber o Prêmio Alfaguara,
é que toda paz implica olhar o horror cara a cara e ser capaz de certo grau de perdão.
Mas ele também sabe que todo perdão traz consigo uma injustiça. Viver sem sangue
signi ca, de alguma forma, conviver com aqueles que o derramaram. Depois do que
experimentou neste livro, o promotor se pergunta o que pode ser pior: deixar os
assassinos em paz ou deixar que sigam matando. Mas também sabe que não lhe cabe
encontrar resposta para essa pergunta. As sociedades seguem dando suas próprias
respostas e não se preocupam muito com sua opinião.
Sem idealizações
Narradora não só consciente do seu poder, mas devotada ao amado
e, ao mesmo tempo, vaidosa, cheia de vontades, por meio dessa
mulher nem um pouco romântica, mas sinceramente apaixonada,
Claudio Magris cumpre o ritual que garante a sobrevivência do mito
— e, ao fazê-lo, assegura a magia da contínua e renovada transmissão
literária, e também da própria literatura: a arte de contar sempre as
mesmas histórias, mas de maneira original.
Agradavelmente in el ao mito tradicional, Magris recria nossa
herança narrativa, concedendo nova força à história quiçá desgastada
pela repetição. Recontar é, neste caso, revivescer o mito, permitindo
que Orfeu e Eurídice ganhem simbolismos inusitados para os leitores
do nosso tempo. Não é diferente, aliás, do que os próprios gregos
zeram, pois ninguém jamais descobrirá, em meio às escassas fontes
arqueológicas, qual a narrativa verdadeiramente primeva, inspiradora
de todas as outras.
Claudio Magris desloca o relato da gura do herói mítico — o
eleito, o que desa a todos os limites e parte ao encontro do eterno, do
perigo, ou em busca de respostas e soluções — para a da mulher cujo
silêncio, na história original, lembrava certa tranqüila submissão. Ao
calar Orfeu, engrandece Eurídice e humaniza a narrativa,
aproximando-a da nossa própria realidade. O autor não deseja
reforçar o mito que pode sugerir preceitos morais — como o da
superação de todas as di culdades em nome do amor — ou falsamente
estéticos — o da arte cujo poder vence a morte. Distante das
idealizações fúteis, Magris nos oferece uma Eurídice satisfeita com sua
própria sorte e um Orfeu impelido por motivos censuráveis.
Essa Eurídice identi cada com seu destino assemelha-se, aliás, à de
Rainer Maria Rilke. Ainda que a de Magris não tenha a suavidade
proposta pelo poeta, ela se encontra igualmente centrada,
praticamente transmutada em outro ser, para o qual a volta ao mundo
dos vivos talvez não seja a melhor escolha:
[...]
Estava em si, de altas esperanças,
E não pensava no homem que lhe ia à frente
nem pensava no caminho que subia para a vida.
Estava em si. E ser-morta
a colmava de plenitude.
Qual fruto cheio de dulçor e treva,
sentia-se repleta da sua grande morte,
que lhe era nova e que ela não compreendia.
Ela entrara numa outra, uma inatingível
donzelice; seu sexo se fechara
como uma or recente ao m da tarde
e suas mãos se haviam desabituado tanto
do enlace que até mesmo o toque
in nitamente suave do leve deus a conduzi-la
lhe doía como excessiva intimidade.
Ela não era mais aquela mulher loura
Que os cantos do poeta invocaram tantas vezes,
não mais o aroma e a ilha do espaçoso leito,
nem propriedade mais daquele homem.
Já estava solta como longa cabeleira
e outorgada como chuva sobrevinda
e repartida como cêntupla ração.
Ela era já raiz.
[...]
Desmistificar a arte
Adicionando novas camadas de sentido ao discurso da tradição,
Claudio Magris também questiona, de maneira oblíqua, se não
haveria algo de megalomaníaco em um poeta que con a
exageradamente no poder da sua arte, a ponto de acreditá-la su ciente
para domar os guardiões do reino de Hades e resgatar sua amada.
Não seria digno de riso o escritor que se mostra tão absolutamente
seguro do que pode fazer, chegando mesmo a desprezar os favores
divinos?
Desmisti car a força da arte, mostrar que ela nada tem de
prodigioso, aproxima o Orfeu de Magris daquele sugerido por Platão
— no Banquete —, segundo o qual Hades não teria entregado ao
poeta a verdadeira Eurídice, mas apenas sua sombra. E por um só
motivo: Orfeu não passava de um homem fraco, destituído de
virtudes, sem coragem para se unir ao objeto do seu amor através da
única maneira possível, ou seja, aceitando morrer.
Para Claudio Magris, entretanto, Eurídice ama esse escritor
presunçoso. Conhece seus defeitos, mas quer, ainda uma vez, salvá-lo
de si mesmo. Ela o mantém, assim, na inconsciência, pois sabe —
agora que é uma sombra dentre milhares de outras — que a verdade
pode esmagar o homem.
A NAVALHA DO NARRADOR —
WILLIAM SOMERSET MAUGHAM
Erros e acertos
O mesmo elogio não pode ser feito, infelizmente, a O o da
navalha — tradução de 1945 que vem ganhando sucessivas
reimpressões —, romance menor mas famoso, com duas versões
cinematográ cas (a de 1946, com Tyrone Power, merece ser vista), que
não é o melhor de Maugham, mas, ainda assim, está muito acima de
uma literatura, digamos, de entretenimento.
O que me incomoda em O o da navalha é o fato de Maugham
conceder ao personagem Lawrence Darrell uma importância que ele
não tem. Maugham tentou construir um romance que falasse das
desilusões, dos traumas e do vazio que se abatem sobre as pessoas em
tempo de guerra, principalmente sobre os soldados que, de volta a
seus lares, não se readaptam à vida em sociedade. Darrell — ou Larry,
como ele é chamado ao longo do romance — volta da Primeira
Guerra Mundial consternado pela morte do amigo que lhe salvara a
vida; e passa, então, a buscar sentido para a existência. Trata-se de
homem simples, herdeiro de pequena fortuna, que, movido por
inquietações metafísicas, percorre o mundo em busca de respostas.
Após experimentar diferentes religiões e empreender inúmeros
estudos, torna-se uma espécie de santo leigo, alguém que, como o
próprio narrador anuncia, “ao morrer não deixará vestígio de sua
passagem pela terra”. Mas Larry — enigmático até mesmo para o
narrador, que chega a ser repetitivo nas descrições, como se não
conseguisse perscrutar o personagem — acaba se transformando num
ser apático, destituído de grandes emoções, místico às vezes irritante.
Esse falso protagonista surge de maneira intermitente no romance — e
Maugham se esforça para, por meio dele, unir as peças de sua trama.
Traído por seu protagonista, o escritor perdeu a oportunidade de
escrever um clássico, o que aconteceria se tivesse centrado sua atenção
no esnobe Elliott Templeton, o melhor personagem do romance:
norte-americano que vive em Paris, bon vivant , frívolo e pedante, de
passado suspeito, que, graças ao comércio de arte, enriqueceu durante
a Primeira Guerra. Fofoqueiro, tio solteirão, aparentemente
homossexual, com tino para organizar festas ou recepções, ele transita
na alta burguesia e na nobreza européias com facilidade. Mas é
também homem generoso, que sai inabalado do crash da Bolsa, em
1929, não por ser um escroque, mas apenas pelo fato de possuir as
fontes certas. Apegado aos valores de classe social que o acolheu — e
como poderia ser diferente? —, Elliott se escandaliza, por exemplo,
quando, de volta temporariamente aos EUA, um motorista de táxi o
chama de “amigo” e não de “senhor”. Por meio dele, o narrador
radiografa a vida e os valores das classes altas, mas, o que é um
mérito, sem fazer julgamentos ideológicos, sem descair para o
achincalhe ou, pior, para a exaltação dos pobres como bem-
aventurados e puros de coração. Esse tipo de demagogia, nunca
encontraremos em Maugham. Ao contrário, ele nos seduz com a
“requintada ironia” de Elliott — há diálogos repletos de falas ferinas,
inteligentes, plenas daquele tipo de esgrima social que presenciamos
com facilidade nos grupos que sabem unir elegância, verve e rapidez
de pensamento. Esses diálogos permitem que visualizemos até
pequenas rugas de humor nas expressões dos personagens; e nosso
autor jamais se rende à literatura de tese.
Seguimos parte da vida de Elliott e, depois, sua decadência física,
seu crescente medo da solidão; e o vemos se transformar num homem
digno de piedade, apegando-se com todas as forças, apesar da doença,
ao frenesi de uma vida glamorosa. Um dos mais perfeitos trechos do
romance é o que descreve sua agonia e morte, bem como a preparação
do cadáver. Cena triste, com uma ponta de humor negro, pois Elliott
deixara ordens expressas para ser vestido de uma maneira que, sob o
olhar do narrador, transforma o dândi num “corista de uma ópera de
Verdi”. Acompanhamos a humilhação que a morte impinge — o
quanto ela pode nos tornar ridículos — e, ao mesmo tempo, sofremos,
pois nos acostumamos a gostar desse requintado bufão, ironista que
ascendeu socialmente, sabe-se lá a que preço.
Larry não tem um terço da complexidade de Elliott ou de Isabel
Bradley, de quem se torna noivo por um breve período. Sobrinha de
Elliott, Isabel é o exemplo de uma das melhores qualidades de
Maugham: retratar personagens femininos. Ela evolui no transcorrer
do romance, física e psicologicamente, e seu longo diálogo com Larry,
quando rompem o noivado, mostra uma mulher realista, diante de
quem Larry se transforma numa insigni cante caricatura, sem
respostas, que apela à ironia vulgar e covarde quando se sente sob
pressão. Frente à lógica de Isabel, ele não passa de um idealista
exacerbado — e como todos os sonhadores, um egoísta a quem os
próprios ideais bastam. A frieza dessa mulher, contudo, se lhe dá
forças para sobreviver quando o marido, Gray Maturin, perde tudo na
crise de 29, também a leva a cometer um delito que comprometerá a
vida de outra personagem, Sophie MacDonald. De encantadora
colegial a rainha perversa, Isabel reúne todos os matizes femininos.
É uma pena que a tradução seja muito antiga e não tenha sido
revisada. Isabel, por exemplo, toma refresco usando uma “palhinha” e
não um canudo; um personagem “dá uma perobinha” com outro,
talvez uma gíria da década de 1940 no Brasil, mas da qual não
consegui encontrar o signi cado; as mulheres têm “pestanas” e não
cílios; outro personagem, cheio de vivacidade, é “um azougue”; e,
numa festa, todos se divertem “à grande”. Mas isso não estraga a
narrativa. Aqui e ali, às vezes encontramos lugares-comuns ou
descrições que chegam a ser bobas — e imediatamente lembramos de
Edmund Wilson —, mas Maugham também nos oferece, além dos
diálogos espirituosos, sólidas descrições dos personagens e trechos que
são boas descobertas, como ao dizer que os mortos se assemelham a
“fantoches de uma companhia falida” ou, apenas outro exemplo,
quando comenta sobre a Avenue de Clichy, ao amanhecer: “Sórdida à
noite, tinha agora um ar garboso, lembrando a mulher pintada,
abatida, que caminhasse com o passo vivo de uma moça”.
É uma vida cheia de contratempos. Para começar, ele deve sofrer a pobreza e a
indiferença do mundo; depois, tendo conquistado uma parcela de sucesso, tem de se
submeter sem protesto aos seus riscos. Depende de um público inconstante. Está à mercê
de jornalistas que querem entrevistá-lo; de fotógrafos que querem tirar-lhe o retrato; de
diretores de revistas que o atormentam pedindo matéria, de cobradores de impostos que
o atormentam por causa do imposto sobre a renda; de pessoas gradas que o convidam
para almoçar; de secretários de instituições que o convidam para fazer conferências; de
mulheres que o querem para marido e de mulheres que querem divorciar-se dele; de
jovens que lhe pedem autógrafo; de atores que desejam papéis e estranhos que querem
um empréstimo; de senhoras sentimentais que lhe solicitam a opinião sobre assuntos
matrimoniais; de rapazes graves que querem sua opinião sobre suas composições; de
agentes, editores, empresários, chatos, admiradores, críticos, e da própria consciência.
Mas existe uma compensação. Sempre que tiver alguma coisa no espírito, seja uma
re exão torturante, a dor pela morte de um amigo, o amor não correspondido, o
orgulho ferido, o ressentimento pela falsidade de alguém que lhe devia ser grato, en m,
qualquer emoção ou qualquer idéia obcecante, basta-lhe reduzi-la a preto-e-branco,
usando-a como assunto de uma história ou enfeite de um ensaio, para esquecê-la de
todo. Ele é o único homem livre.
Ora, vinte anos depois de ter escrito Anna Kariênina , Tolstói grava
em seu diário tais impressões, certamente experimentadas naquele dia.
Contudo, a leitura do romance nos revela tratarem-se de sensações
conhecidas do autor, por alguma razão intensi cadas naquele 28 de
fevereiro, mas utilizadas no passado para compor a derradeira crise de
Anna:
Olhou para o relógio. Haviam passado doze minutos. ‘Agora, ele já recebeu o bilhete e
vai voltar. Não demora, mais dez minutos... Porém, e se ele não vier? Não, isso é
impossível. Não posso deixar que me veja com os olhos chorosos. Vou me lavar. Sim,
sim, será que eu me penteei?’, perguntou-se. E não conseguiu lembrar. Apalpou a cabeça,
com a mão. ‘Sim, estou penteada, mas não me lembro de forma alguma quando me
penteei.’ Chegou a não acreditar na própria mão e aproximou-se do espelho de um
aparador, a m de veri car se estava penteada, de fato. Estava penteada e não conseguia
lembrar quando zera isso. ‘Quem é?’, pensou, olhando no espelho para um rosto
in amado, com olhos que brilhavam de modo estranho e tavam-na, assustados. ‘Ora,
sou eu’, compreendeu de repente [...].
Ficção e moralismo
O vazio que há entre nós e Tolstói não se restringe ao
desconhecimento dos aspectos biográ cos que podem estar ou não
presentes em sua obra, ou às traduções indiretas, ou à impossibilidade
de os leitores que dominam apenas a língua portuguesa adentrarem a
constelação de fatos e idéias que ele relata em seus diários. Conhecer
Tolstói pelas bordas signi ca também correr o risco de menosprezar
parte de Anna Kariênina , pois se é difícil situar-se em meio aos
hábitos da aristocracia russa do século XIX, será um exercício
igualmente intrincado entender sua moral. Na verdade, uma leitura
proveitosa do romance exige que abdiquemos temporariamente do
nosso modo de pensar e dos nossos valores, sob pena de, não agindo
dessa forma, deixarmos escapar parcela signi cativa do substrato
atemporal da obra.
Mesmo para uma leitora russa, de profunda sensibilidade, Anna
Kariênina guarda questões inaceitáveis. Em meio à crônica do curioso
encontro de Isaiah Berlin com a poeta Anna Akhmatova, ocorrido em
novembro de 1945, relatado por Berlin no ensaio “Conversa com
Akhmatova e Pasternak”, encontramos a surpreendente crítica da
poetisa:
Por que Tolstói fez com que ela se suicidasse? Assim que ela deixa Kariênin, tudo muda.
Ela se transforma de repente numa mulher caída, numa traviata, numa prostituta. Quem
pune Anna? Deus? Não, não é Deus — mas a sociedade cujas hipocrisias Tolstói está
constantemente denunciando. Por m, ele nos diz que Anna repugna até a Vrónski.
Tolstói está mentindo. Ele tinha mais entendimento que isso. A moralidade de Anna
Kariênina é a moralidade das tias de Tolstói em Moscou, das convenções listéias. Está
tudo ligado a suas vicissitudes pessoais. Quando Tolstói estava casado e feliz, ele
escreveu Guerra e paz, que celebra a família. Depois que começou a odiar Sophia
Andreevna [sua esposa], mas sem poder se divorciar, porque o divórcio é condenado
pela sociedade, e talvez também pelos camponeses, ele escreveu Anna Kariênina e puniu
Anna por deixar o marido.
Estados de consciência
A discussão sobre os dilemas que morti caram Tolstói ao longo de
sua vida é importante, inclusive, para compreendermos as razões que
o afastaram da cção durante vários anos. Quanto a Anna Kariênina ,
a obra não se resume à tragédia pessoal de uma adúltera ou à história
de uma classe social, com seus preconceitos e vícios, mas mergulha
nos dramas humanos, presentes em todas as pessoas que guardam um
mínimo de autoconsciência. “Toda a diversidade, todo o encanto, toda
a beleza da vida é feita de sombra e luz”, diz Tolstói. E ele nos mostra
como essa alternância de estados pode marcar as existências,
enquanto nos leva a perseguir Anna Kariênina, fazendo-nos
compreender a cada página o que Vrónski havia pensado ao encontrá-
la a primeira vez: “O excesso de alguma coisa inundava seu ser”.
Ao voltar de Moscou para São Petersburgo, depois da famosa cena
do baile, onde conquista Vrónski, Anna encontra-se no trem,
esforçando-se para se concentrar na leitura de um romance, cujas
páginas ela separa com uma espátula, sonhando partir com o herói do
livro para sua propriedade rural. Ela raciocina sobre os sentimentos
experimentados no baile e se divide entre a vergonha e a coragem de
assumir seu desejo. Quando, en m, a vaidade derrota a censura e ela
se alegra por ter despertado a paixão em Vrónski, tudo se conturba e
Anna não é mais dona de si:
Sorriu com desdém e pegou de novo o livro, mas, positivamente, já não conseguia
compreender o que lia. Deslizou a espátula pelo vidro da janela, depois encostou a
superfície lisa e fria contra a face e por pouco não riu em voz alta, com a alegria que,
sem motivo, se apoderou dela. Anna sentiu que seus nervos, como cordas, se punham
cada vez mais tensos, puxados por uma cravelha que apertava. Sentia que seus olhos se
abriam mais e mais, que os dedos das mãos e dos pés se remexiam nervosos, que algo
dentro dela comprimia sua respiração e que todos os sons e imagens, nessa penumbra
trêmula, a impressionavam com uma clareza incomum. De forma ininterrupta, lhe
vinham momentos de dúvida, se o vagão seguia para frente ou para trás, ou se estava
completamente parado.
Infelicidade e mesmice
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à
sua maneira”, escreve Tolstói no início de Anna Kariênina , pois ele
pressente que, por uma desconcertante razão, apenas a infelicidade
nos arranca da mesmice. Em sua luta para descobrir o motivo de
sermos eternamente infelizes, ele criou Anna e Liévin, frações de uma
mesma personalidade, desse ego que se duplica e, seguindo rumos
paralelos, tenta satisfazer sua insaciável busca de um sentido para a
vida. Os anos posteriores ao romance mostram-nos que ele não
conseguiu a resposta de nitiva. Mas o nobre desgastado por dúvidas
muitas vezes intoleráveis, e que viveu dividido entre ser escritor,
profeta ou moralista, deixou-nos esse romance escrito naquela Rússia
praticamente feudal, pois a servidão havia sido extinta em 1861,
tratando de um tema simples, o adultério. Um exemplo, contudo, de
como a arte pode permanecer fora do domínio do tempo; uma obra
com a qual Tolstói nos mostrou não existirem barreiras para a dor que
resume a experiência de viver, pois essa dor — sentida e expressada de
maneiras as mais diferentes, nascida do custoso enfrentamento do
cotidiano — é a verdadeira herança comum da humanidade.
EFÊMERA FELICIDADE — MARIO BENEDETTI
A última chance
É exatamente esse caráter transitório da felicidade a principal
marca do romance A trégua , de Mario Benedetti. Martín Santomé, o
narrador da história, escreve um diário cujo tema inicial concentra-se
na espera de sua aposentadoria e numa curiosa visão da existência.
Aos 49 anos, prestes a completar cinqüenta, viúvo, a seis meses e
alguns dias de se aposentar, ele se sente indeciso quanto ao futuro, e
também ingênuo e imaturo, como que preso à juventude, mas só aos
defeitos dela. Trata-se de um homem detalhista, capaz de analisar as
pequenas curvas de sua letra e, num exercício de incipiente grafologia,
os estados de ânimo que, em sua opinião, elas revelam. Ama a rotina
do trabalho — ele é um burocrata do comércio, cuja mesa, voltada
para a parede, oferece-lhe apenas a visão de uma folhinha —,
principalmente porque ela lhe permite pensar ou sonhar. Durante o
expediente, divide-se em dois: um que trabalha de forma mecânica e
outro, “sonhador e febril, frustradamente apaixonado, um sujeito
triste que, no entanto, teve, tem e terá vocação para a alegria”.
Ainda que seja um crítico arguto das pessoas, da sociedade e de si
mesmo, ele nunca se revolta: “Já aprendi que meus estados de pré-
explosão nem sempre conduzem à explosão. Às vezes terminam numa
humilhação lúcida, numa aceitação irremediável das circunstâncias e
de suas diversas e agravantes pressões”. De uma ironia deliciosa, bem-
humorada, capaz de elaborar descrições sutilmente ferinas dos
médicos, dos jornais, da corrupção, da política em geral e da cidade de
Montevidéu, Santomé possui, ao mesmo tempo, penetrante senso
ético, que o faz criticar o comportamento dos outros, mas sem
arrogância, ciente de que ele não é melhor ou superior. Em relação a
Deus, pondera, com jocoso ceticismo, que Ele “talvez tenha uma face
de crupiê e eu seja apenas um pobre-diabo que joga no vermelho
quando dá preto, e vice-versa”.
Sofrendo a contradição que todo ser humano minimamente
consciente experimenta — a de se saber (ou de se acreditar) superior
ao seu destino —, ele se reconhece, entretanto, como um
procrastinador: “A segurança de me saber capaz para algo melhor me
deu o controle da postergação, que no m das contas é uma arma
terrível e suicida. [...] Postergar: esse é o meu vício, aliás incurável”.
Sua capacidade de autoconhecimento permite-lhe distinguir, inclusive,
o processo de insensibilização pelo qual a vida o obrigou a passar, e
lembra-se, sem qualquer pudor, do que lhe disse uma de suas eventuais
amantes: “Você faz amor com cara de empregado”. Ou das palavras
da lha, Blanca: “Acho que você se resignou a ser opaco, e isso me
parece horrível, porque eu sei que você não é opaco”.
Em meio aos encontros e divergências da vida familiar, na qual se
revela às vezes um cinqüentão controlador, às vezes incompreendido
pelos lhos, e quase sempre um pai que não tem certeza sobre qual a
melhor palavra a ser dita ou o gesto mais apropriado, Martín Santomé
anseia apenas pelo ócio que a aposentadoria lhe concederá, e guarda a
esperança de que ela o liberte para a derradeira chance de encontrar a
si mesmo.
Clarão instantâneo
A forma do diário permite a Mario Benedetti criar um
protagonista-narrador que jamais teme a auto-análise, a
autoconsciência. Há temas, portanto, recorrentes, frutos dessa
honestidade em esmiuçar as verdadeiras causas — e também as
conseqüências — de suas escolhas. Santomé não poupa nem mesmo o
passado, recuperando as lembranças de sua falecida esposa, Isabel,
com incrível coragem. Em momento algum — o que realmente seria
um recurso fácil — ele idealiza o casamento, mas repensa, um a um,
todos os limites, todos os problemas, chegando a confessar sua
incapacidade para reconstituir a imagem de Isabel. Lembra-se, isto
sim, da textura e do calor de sua pele, do relevo de seu corpo. “Por
que as palmas das minhas mãos têm uma memória mais el do que a
minha memória?”, ele se pergunta, somente para constatar que seu
sentimento não é saudade, mas, antes, a certeza de estar preso ao
desejo que, abruptamente interrompido pela morte, não pôde se
consumir.
Ele reencontrará o amor — e a libertação do tédio e da indiferença
— em Laura Avellaneda, jovem de 24 anos contratada para ser sua
subalterna. A princípio, ao analisá-la, ele demonstra certa misoginia
— apesar das relações sexuais apressadas e ocasionais que mantém
com desconhecidas —, mas sua avaliação muda gradativamente. A
lenta aproximação de Laura — ou apenas Avellaneda, como ele
apreciará chamá-la — e a forma com que o narrador descreve esse
processo, são outras das inúmeras qualidades de A trégua . Não há
saltos ou situações arti ciais, mas um vagaroso apaixonar-se, que
evolui do olhar observador às pernas da jovem, passando por uma
difusa atração, até chegar à consciência, no feriado de 1º de maio, da
saudade daquela “ gurinha triste, concentrada, indefesa”. No dia
seguinte, quando a reencontra, seu amor é confuso: “Sinto-me nervoso
como um adolescente, é verdade, mas quando vejo minha pele que
começa a se afrouxar, quando vejo estas rugas dos meus olhos, estas
varizes dos meus tornozelos, quando sinto de manhã minha tosse de
velho, absolutamente necessária para que meus brônquios iniciem sua
jornada, então já não me sinto adolescente, mas ridículo.”
A partir desse trecho, a dolorosa percepção que Santomé demonstra
do próprio envelhecimento chega a ser comovente.
Assim, apesar de, passo a passo, tudo se tornar um deleite —
“Penso no prazer (qualquer forma de prazer) e tenho certeza de que
isso é a vida”, escreve Martín Santomé —, esse amor outonal também
terá sua cota de angústia, nascida daquela clara noção que o narrador
possui da diferença de idade entre ele e Avellaneda, o que o fará
mover-se impulsionado pela urgência, permanecendo alerta, temeroso
de que a felicidade lhe escape. A paixão é submetida, dessa forma, a
um duro senso de realidade, mas que nunca impede o desfrute do
prazer ou o ímpeto de sonhar.
Enquanto experimenta todas as formas de amar e vive a emoção de
ter alcançado Avellaneda, de tê-la tornado realmente parte de si,
Santomé jamais abdica de duas certezas — a solidão o espreita e a
felicidade está acorrentada à fruição do momento:
Amplificação
Para introduzir o leitor nessa família de judeus pobres — que vivem
na cidadezinha russa de Zuchnow em algum momento depois da
Guerra Russo-Japonesa — e acompanhá-los até o m da Primeira
Guerra Mundial, Joseph Roth faz com que sua narrativa se desdobre,
tentando abarcar toda a realidade, mas sem jamais se precipitar.
Escreve de forma meticulosa, delicada, mesmo ao descrever momentos
dramáticos ou cenas em que a tensão — nascida da miséria, da
angústia ou do desamor — se espraia lentamente pelo texto,
obedecendo a um narrador insatisfeito, que busca sempre mais,
semelhante a um compositor que acrescentasse novas e incansáveis
camadas de sentido a certa melodia. Sua ânsia é esgotar o que tem a
dizer, mas um ou dois detalhes não o satisfazem. Sem as
circunvoluções desmesuradas do barroco, Roth molda seu texto
acrescentando elementos que acumulam sentido. Não se trata da mera
repetição de sinonímias, mas de uma acumulação que, enquanto
pormenoriza, concede concretude à história. Nesses trechos, o
pensamento se ampli ca, alargando o tecido narrativo; há um
verdadeiro desdobramento de idéias, dando vida a quadros cuja
complexidade corresponde perfeitamente à vida. Os elementos são
decompostos não apenas para satisfazer a necessidade, digamos, de
enumeração, mas antes para que o narrador argumente com perfeita
clareza.
A viagem de Débora, com o objetivo de levar o bebê para ser
abençoado por um famoso rabino, pode servir como exemplo do
estilo de Roth:
Certo dia, uma semana antes das grandes festas (o verão transformara-se em chuva e a
chuva queria fazer-se neve), Débora pegou o cesto de vime com o lho, envolveu-o num
cobertor de lã, acomodou-o na carroça do cocheiro Sameschkin e viajou para Kluczysk,
onde morava o rabino. A tábua que servia de assento cava solta sobre a palha e
deslizava a cada movimento do carro. Débora continha-a apenas com o peso de seu
corpo. Era como se a tábua estivesse viva e quisesse saltar. Lama prateada cobria a
estrada estreita e tortuosa em que afundavam as longas botas dos caminhantes, assim
como metade das rodas da carroça. A chuva encobria os campos, pulverizava vapor
sobre as cabanas esparsas, moía com na e in nita paciência tudo de sólido que
encontrava: a pedra calcária que, aqui e ali, crescia da terra negra como um dente
branco; os troncos serrados nas margens da estrada; as pranchas de madeira
perfumadas, empilhadas umas sobre as outras, em frente à entrada da serraria; o lenço
sobre a cabeça de Débora e as cobertas de lã sob as quais Menuhim jazia enterrado.
Nenhuma gotinha deveria borrifar sobre ele. Débora calculava que tivessem ainda
quatro horas de viagem. Se a chuva não passasse, precisaria parar numa hospedaria e
secar as cobertas, tomar um chá e comer as rosquinhas que trouxera, já amolecidas. Isso
podia custar-lhe cinco copeques. Cinco copeques que não devia gastar de forma leviana.
Mas Deus mostrou compreensão e a chuva parou. Um sol diluído branqueou os farrapos
apressados de nuvens por menos de uma hora; depois, submergiu de nitivamente em
nova e ainda mais profunda penumbra.
Crueza e síntese
Esse trecho, aliás, apresenta outro mérito de Roth: ele não permite
que idealizações religiosas se imiscuam no drama. Mais tarde, a forma
como Mendel passa a olhar para Débora, sentindo o desejo sexual
fenecer, é narrada sem meios-tons: “De uma mulher a quem alguém se
une apenas na penumbra, ela se convertera, por assim dizer, em uma
doença à qual se está ligado dia e noite, que nos pertence por inteiro,
que não é necessário partilhar com o mundo e em cuja el amizade se
sucumbe”. E a voz do narrador sentencia, referindo-se a Mendel: “A
vergonha estivera no início de seu prazer, e ali estava ela de novo, no
m”.
Se Joseph Roth não evita tratar com crueza o casamento
massacrado pelo cotidiano e pelo envelhecimento, também não foge
das piores pulsões humanas. O olho de Deus e a culpa se fazem
presentes depois que os irmãos tentam matar o caçula, mas, durante a
cena do afogamento, as crianças são movidas por uma “alegre e atroz
expectativa”.
Com o passar do tempo, a família se desintegra, física e
moralmente. Jonas se alista no exército, Schemariah migra para os
EUA e Miriam passa a dar seu corpo aos soldados russos. A cena em
que Mendel descobre a verdade sobre a lha é outro exemplo do
poder descritivo de Roth. Neste caso, a economia de recursos
surpreende — e transmite, com perfeição, o impacto da vergonha. Pai
e lha haviam saído de casa juntos. Miriam, envolta em seu xale
amarelo, para um encontro secreto; Mendel, rumo à sinagoga. Horas
depois, caminhando de volta para casa, Mendel ouve sons estranhos
ao passar por um trigal. Esconde-se, então, temendo algum perigo:
[...] Quando as espigas se repartiram, o homem destacou-se primeiro. Um homem de
uniforme, um soldado usando quepe azul-escuro, botas de couro e esporas cujo metal
reluzia e tilintava levemente. Atrás dele, um xale amarelo iluminou-se, um xale amarelo,
um xale amarelo! Uma voz ressoou, era a voz da jovem mulher. O soldado virou-se,
abraçou-a, o xale se abriu, o soldado atrás dela, as mãos no seio, ela caminhava
encaixada nele.
Mendel fechou os olhos e deixou que o infortúnio passasse por ele em meio à escuridão.
A condição de Jó
A saída para preservar a honra de Miriam é a emigração. Mas o
lho doente tem de car, sob os cuidados de amigos. Em Nova York,
contudo, a derrocada da família e a dor de Mendel só aumentam. A
América, o novo, invade a consciência do protagonista desde a
chegada, alucinando-o; ele percebe a inevitável crise de identidade dos
que o circundam, além de sofrer pelo lho deixado para trás e pelo
abandono das tradições. A idéia da volta à Rússia passa a estar
sempre presente. Mendel espera. Repete o mesmo ritual, os mesmos
gestos todos os dias — uma serena resignação, uma espera na fé. Ele
acompanha o desenrolar do tempo na certeza de que todas as
promessas se realizarão; observa o tempo como se este fosse uma
transcorrência natural da misericórdia divina.
Quando eclode a Primeira Guerra, à dor por Jonas, o lho que não
dá notícias, e por Menuhim, o caçula abandonado, somam-se as
mortes de Schemariah e Débora, e a loucura de Miriam. A tragédia se
instala. Joseph Roth despreza qualquer proselitismo. Tudo está morto.
Mendel Singer é um herói trágico, ainda que passivo. Mudo diante do
que não tem sentido, ele se revolta contra Javé e torna-se uma velha
sombra, dependente dos favores alheios. Mas, em meio à dor
inexplicável, Mendel preserva sua dignidade — como dizia
Montaigne, ele “sabe pertencer a si mesmo”.
Deus não abandonará Mendel, mas enquanto a hora da pesah não
chega, o protagonista assume a condição de Jó. Este, quando se vê
abandonado e coberto de chagas, apanha “um casco de cerâmica para
se coçar” e, impassível diante de suas provações, “senta-se no meio
das cinzas”. Sua mulher, então, lhe diz: “— Persistes ainda em tua
integridade? Amaldiçoa a Deus e morre duma vez!”. Ao que Jó
responde: “— Falas como uma idiota: se recebemos de Deus os bens,
não deveríamos receber também os males?” (Jó 2, 8-10).
Em seus comentários sobre esses versículos, Harold Bloom diz, em
Onde encontrar a sabedoria? , que “o Livro de Jó encerra uma
estrutura dotada de crescente autoconsciência”, um livro “que não
confere conforto algum, na aceitação de tal sabedoria”. Mendel Singer
seguirá por essa via. As dores, as perdas e as humilhações o
conduzirão a um estado de perfeita integridade, no qual descobrirá o
quanto o homem pode se manter digno, apesar de todo sofrimento.
Uma dignidade solitária, eumática — “uma sabedoria severa,
suspensa entre a ironia e a tragédia”, diz Bloom —, na qual nem a
religião nem Deus ocuparão qualquer espaço, mas que servirá para
rea rmar o Gênesis : se o homem foi moldado à semelhança de Javé,
por que haveria de se vergar, mesmo diante do mais atroz
padecimento?
Referindo-se às di culdades de sua própria vida, Bloom a rma ter
encontrado conforto, desde a infância, na sabedoria talmúdica que se
concentra no Pirkei Avot , “uma suplementação tardia do extenso
Mishná ”. E cita, dentre outros trechos, as questões atribuídas a um
dos mestres mais reverenciados da tradição judaica, o rabino Hillel:
“Se eu não for por mim, quem então? E, sendo por mim, o que sou? E
se não for agora, quando será?”. Enquanto a esperança de Mendel
não renasce, enquanto o milagre não se manifesta, ele fará de seus dias
uma resposta silenciosa a essas três perguntas.
TARDE DEMAIS — HENRY JAMES
A experiência nunca é limitada e nunca é completa; ela é uma imensa sensibilidade, uma
espécie de vasta teia de aranha, da mais na seda, suspensa no quarto de nossa
consciência, apanhando qualquer partícula do ar em seu tecido. É a própria atmosfera
da mente; e quando a mente é imaginativa — muito mais quando acontece de ela ser a
mente de um gênio — ela leva para si mesma os mais tênues vestígios de vida, ela
converte as próprias pulsações do ar em revelações.
Prova de amor
De fato, ler Henry James signi ca enredar-se na “teia de aranha” da
consciência de narradores argutos e, ao acompanhá-los, descobrir
“revelações” em “tênues vestígios de vida”. No caso especí co de A
fera na selva , o narrador nos apresenta John Marcher, homem
sensível, apreciador de poesia e história, em sua hesitante trajetória,
iniciada ao reencontrar, inesperadamente, May Bartram, a quem ele
con denciara, dez anos antes, seu mais importante segredo. O
reencontro tem seu glamour , mas está impregnado da emoção
daquele dia distante, quando se viram a primeira vez: “Olhavam um
para o outro com o sentimento de uma ocasião perdida; a atual
poderia ter sido muito melhor se a outra, tão remota no passado,
numa terra estrangeira, não tivesse sito tão absurdamente escassa”.
Quando May lembra que ele lhe con ou seu segredo, o interesse de
Marcher por sua interlocutora cresce, fornecendo ao leitor o primeiro
indício de egoísmo, a marcante característica desse homem anódino.
Em alguns momentos, Marcher quase se predispõe a, efetivamente,
conhecer e compreender May, mas acabará sempre dominado por sua
apreensão — o seu segredo —, aguardando “a fera que saltará da
selva” para mudar radicalmente sua vida. Pouco importa que os
encontros dos dois tornem-se cada vez mais freqüentes: Marcher
jamais deixará de ser o cavalheiro de “descoloridas” boas maneiras,
ou de tratar May apenas como leal con dente. Em determinado
momento, chega a pensar num matrimônio, mas com o único objetivo
de ter alguém para partilhar amiúde suas preocupações. Trata-se de
acabado egoísta, cuja primeira regra na vida social resume-se à
dissimulação.
Marcher também é leviano, cego em relação aos sentimentos de
May, pronto a conceder migalhas de atenção à amiga, frio —
acreditando-se generoso —, incapaz de qualquer gesto arrebatador, de
qualquer mínimo ato de coragem, e aferrado às próprias idéias,
especialmente ao mórbido segredo partilhado com May. Nem mesmo
quando ela adoece gravemente Marcher demonstra desvelo, ainda que
se angustie, mas principalmente ao antever a possibilidade de car sem
a con dente. Próxima do m, a própria May o adverte, num tom de
leve ironia: “Você con a plenamente nas suas ‘sensações’”.
Depois da morte da amiga, Marcher viverá longo processo de auto-
análise, ainda hesitante, preso às conjecturas que controlam sua vida.
O homem que não conseguiu amar, a não ser a si mesmo, pagará alto
preço: a fera escondida na selva se manifestará com a violência que ele
sempre esperou, mas permitindo-lhe, antes, a visão do que não pôde
concretizar, do que perdeu.
Contrapondo-se a Marcher, temos May Bartram, uma das mais
instigantes personagens femininas do universo jamesiano. Lúcida,
serena, amando John Marcher incondicionalmente, ela manifesta seu
inacreditável respeito pelos limites desse homem infeliz. Em pelo
menos três oportunidades, inclusive quando já se encontra devastada
pela doença, tomará a iniciativa de se aproximar dele, de tentar
acordá-lo para a realidade. Na verdade, May Bartram devotou sua
vida a proteger Marcher dele mesmo. Foi sua prova de amor.
Amizade e estilos
Muito já se disse sobre o estilo de Henry James, elíptico e de
contrastes às vezes imperceptíveis, com longos parágrafos,
meticulosamente compostos, nos quais todos os elementos são
indispensáveis. Um dos melhores comentários, no entanto, coube ao
escritor Robert Louis Stevenson, com quem James trocou cartas entre
1884 e 1894. Logo na primeira resposta, a 8 de dezembro de 1884,
Stevenson escreve, compondo uma imagem em negativo, de re nado
humor:
[...] Não sou tolo a ponto de lhe pedir que abandone seu estilo, mas você não poderia,
em um romance, para ganhar o agradecimento de um sincero admirador, não poderia
fundir seus personagens em um molde um pouco mais abstrato e acadêmico [...], e a nar
os incidentes, não digo em uma tonalidade mais forte, mas ligeiramente mais enérgica,
como se fosse um episódio de um dos velhos romances chamados de aventuras? Temo
que você não o fará, e suponho que devo admitir, suspirando, que você tem razão.
Desencontro
Voltando à novela, a recompensa da leitura brilha a cada página
dessa história de amor cujo tema central é o desencontro — ou seja,
uma história de amor composta na forma de dilacerante antítese. John
Marcher passou a vida cumprindo o destino da maioria das pessoas,
ou seja, sem perceber o mais importante, o essencial. E no m, quando
consegue abandonar o que Henry James chama de “o centro do seu
deserto”, acorda a tempo de, tão-somente, descobrir que é tarde
demais.
A VÍTIMA DE PANDORA — PHILIP ROTH
Obstinado racionalista
Mas uma ponderação deve ser feita. Que racionalista é esse, que
busca desesperadamente, a qualquer custo, a congruência de seus atos
e dos de outrem? Olívia, a mulher que o enlouquece, lhe diz: “Você é
tão intenso. Relaxe”. Mas ele responde: “Não sei como relaxar”; e
re ete: “Embora o dissesse em tom jocoso e encabulado, era a mais
pura verdade. Estava sempre exigindo algo de mim. Sempre querendo
atingir um objetivo”.
Há um quê de irracionalidade nesse jovem tenso, ateu,
despreparado para a vida a ponto de não conhecer um buquê de rosas.
Ardoroso leitor de Bertrand Russell, o imaturo Messner enlouquece
com a primeira e inesperada felação, apegando-se à namoradinha
como se fosse a única mulher existente, naufragando diante do
irresistível apelo dos sentidos. Em sua crença absoluta e infantil na
razão, ele desconhece o quanto o corpo e seus hormônios podem se
rebelar contra as idéias. E durante um desentendimento com o diretor
da faculdade, será engolfado pela ira que, apesar de justa, o fará
perder o controle sobre palavras e gestos.
Philip Roth parece, às vezes, sorrir desse obstinado racionalista,
atordoado frente ao comportamento inconstante de Olívia, perplexo
diante das imposições doutrinárias e do gregarismo arti cial da
universidade, pronto a fugir dos colegas desrespeitosos e da aparente
loucura de seu pai. Jovem que, apesar de seu comportamento e
raciocínio rigorosos, só encontra cada vez mais loucura, cada vez mais
desagregação social.
A narrativa tem como pano de fundo a Guerra da Coréia, o que
amplia o drama pessoal de Messner, que luta para não ser convocado.
Mas o encadeamento vertiginoso dos fatos — que a mimese de Roth
cria admiravelmente — mostra-se implacável: nenhuma das
qualidades do jovem serve para evitar sua convocação; ao contrário,
elas o levam à guerra. E essa é a formidável ironia de Roth: neste
mundo, as grandes qualidades são desnecessárias. Ou melhor: a
maioria medíocre as considera acintosas, impertinentes, quase
obscenas.
Philip Roth não chega a defender a ataraxia, mas as perguntas que
nos coloca cam no ar: se uma inocente guerra de bolas de neve pode
descair para gestos tresloucados de violência — o escritor usa bem
essa imagem nas páginas nais do livro —, o que mais podemos
esperar? Se uma brincadeira inocente conduz o homem à insanidade,
então nada tem sentido — e todas as nossas atitudes são, na verdade,
levianas.
O “triunfo” da razão
Desencontro após desencontro, enfrentando diferentes formas de
intolerância, Messner deveria ter aprendido que a primeira importante
lição da maturidade é não se levar a sério demais, pois “nossas
escolhas banais, fortuitas e até cômicas conduzem a resultados” não
apenas “desproporcionais” — como a rma o narrador que se
incumbe de contar o nal da história —, mas loucos, violentos,
capazes de produzir uma guerra e condenar milhares de inocentes ao
sofrimento e à morte.
Isaiah Berlin, que sempre fugiu da idéia mentirosa de que a razão
triunfará de nitivamente em algum momento da história, dizia que
estamos condenados a viver em um “equilíbrio difícil”, precário, que
deve ser reconstruído a cada manhã; e ensinava, com sabedoria: “Um
mundo sem con itos de valores incompatíveis é um mundo
completamente além de nosso conhecimento”. Foi essa a lição que
Marcus Messner não aprendeu, talvez por lhe faltar savoir-vivre ,
euma e uma boa pitada de humour . Racionalista radical, foi
destruído pela ignorância dos que o circundavam e pela própria
imaturidade, condenado a interrogar no vazio, sem encontrar
respostas. Mais uma das incontáveis vítimas de Pandora.
PELA FRESTA DA PORTA —
ISAAC BASHEVIS SINGER
Quando morre uma pessoa que é próxima a você, nas primeiras semanas depois da
morte essa pessoa ca tão distante de você quanto é possível se estar; é só com o passar
dos anos que ela se torna mais próxima, e aí chega um momento em que você está quase
vivendo com ela. Foi o que aconteceu comigo. A Polônia, a vida judaica na Polônia, está
mais próxima de mim agora do que estava naquela época.
Embora minha mãe e meu pai não se parecessem muito um com o outro, a ambos
revoltavam a vulgaridade, a ostentação, as intrigas e a bajulação. Havia em nossa
família o entendimento de que a derrota era preferível ao vício, de que as conquistas que
a pessoa obtinha na vida deviam ser alcançadas com honestidade. Éramos os herdeiros
de um código heróico até então não descrito na literatura iídiche, cuja essência era a
capacidade de suportar o sofrimento em benefício da pureza espiritual.
[...] é aquele que lê um livro com um lápis na mão [...]. É também aquele que corrige os
erros mesmo ao ler um jornal. [...] Eu não falo em termos de gênio, porém designo uma
sede incessante de conhecimento, de transcendência e de pensamento puro. Creio que o
judeu é aquele que, até na soleira de uma câmara de gás, ainda corrigia um texto. Os
rabinos o zeram. Corrigir um texto é interpelar Deus dizendo-Lhe que se é el a esse
câncer do pensamento, a essa patologia do absoluto que Ele colocou em nós, sem que
saibamos por que, é dizer-Lhe o que isso nos custou.
Lembrei-me [...] das palavras de meu pai sobre os segredos da Torá: somos todos lhos
de Deus. Em cada um de nós habita uma alma que veio do Trono de Glória. Há
centelhas divinas até na lama... [...] Cheguei realmente a sentir que havia um espírito
santo dentro de mim, uma partícula da Divindade. Na escuridão, divisei uma or
chamejante, reluzindo como ouro, luminosa como o sol. Ela se abriu como um cálice e
de seu interior saltaram cores vivas: amarelo, azul, púrpura — cores e formas como as
que vemos somente nos sonhos.
Tudo o que ele dizia cava gravado na minha cabeça. Ao fechar os olhos, eu via guras e
cores que nunca tinha visto antes, as quais assumiam continuamente novos feitios e
formas. Às vezes, divisava um olho afogueado, mais luminoso que o sol e com uma
pupila estranhíssima. Até hoje consigo, com algum esforço, ver esse olho radiante.
Minha lembrança daqueles dias é repleta de ores e gemas visionárias. Porém, na época
as visões eram tão numerosas que eu às vezes não conseguia me libertar delas.
Meus pensamentos se aceleravam com as rodas, estimulados por cada árvore, arbusto e
nuvem. Vi lebres e esquilos. A redolência das folhas dos pinheiros mesclava-se com
outras fragrâncias a um só tempo exóticas e reconhecíveis, embora eu não soubesse de
onde vinham. Acometia-me o desejo de, à maneira dos heróis dos livros de histórias,
saltar do trem em movimento e perder-me no meio daquelas coisas verdes.
O umbral da verdade
Há, contudo, uma ponta de melancolia que perpassa esses relatos.
Ela nasce não apenas do fato de que a maior parte dos familiares de
Singer foi morta pelos nazistas na Segunda Grande Guerra, mas
também daquela certeza infelizmente tão viva para o povo judeu, e
que a mãe do escritor declara sem titubear: “Os gentios sempre
tiveram ódio aos judeus. Mesmo que use uma cartola, o judeu será
odiado, pois é um guardião da verdade”.
Ler No tribunal de meu pai é pôr os pés no limiar dessa verdade.
Próximos do que fazia o menino Singer, olhamos pela fresta da porta
não só porque somos curiosos, mas porque estamos sedentos de ética,
decididos a recuperar um pouco da inocência primeva — e, sobretudo,
conhecer aqueles que podem nos tornar melhores do que somos.
À PROCURA DOS DEUSES — JOHN BANVILLE
[...] Sentado diante da minha escrivaninha, imerso em palavras, [...] senti que rompia a
membrana da simples consciência e penetrava num outro estado, num estado sem nome,
onde as leis comuns não funcionavam, onde o tempo se movia de um modo diferente, se
é que se movia, onde eu não estava nem vivo nem qualquer outra coisa, e, contudo, me
sentia mais presente do que jamais pude me sentir nisso que chamamos, já que é preciso
lhe dar uma denominação, mundo real.
[...] Como é que ela podia estar comigo num momento e no outro não? Como podia
estar em qualquer outro lugar, de forma tão absoluta? Era isso que eu não conseguia
entender; era isso que eu não conseguia aceitar e continuo não conseguindo. Uma vez
afastada da minha presença, ela deveria ter se tornado imediatamente pura cção, uma
recordação minha, um sonho meu; mas todas as evidências me diziam que, mesmo
longe, ela permanecia ela mesma, de um jeito sólido, obstinado, incompreensível. E, no
entanto, as pessoas vão embora, desaparecem. Esse era o maior mistério, o maior de
todos.
Natureza e morte
Esse narrador acorrentado às suas lembranças gera uma
comparação quase que automática com o narrador de Em busca do
tempo perdido , de Marcel Proust. Mas precisamos ser cuidadosos,
pois o retorno ao passado não é patrimônio exclusivo de Proust. Idas
e vindas no tempo, buscando dar sentido não só ao pretérito, mas
também ao presente e ao futuro, utilizando-se de diferentes focos
narrativos, estão espalhadas pela literatura. E, numa rápida
lembrança, poderíamos citar Nostromo , de Joseph Conrad, e Fim de
caso , de Graham Greene — romances que não se encontram sob a
esfera da in uência proustiana.
Max Morden recua, sim, no tempo. E se a memória o prende ao
passado, ele também se encontra acorrentado ao presente, lugar a
partir do qual narra o hoje e o ontem, lembrando-se, como mostramos
acima, do que, imaginava, seria o seu futuro — uma expectativa não
realizada. Assim, há a decepção por não reter o passado — e, no
entanto, estar atado a ele, às múltiplas e inebriantes sensações que ele
lhe proporcionou e que Morden tenta desesperadamente recuperar —
e a de, estando no presente, não encontrar nem o futuro imaginado na
infância nem a felicidade parcial que acreditava ter construído durante
o passar dos anos.
Trata-se de um narrador esmagado por uma tripla experiência de
morte: a da esposa, Anna, morta há poucas semanas; a do passado
distante — vivido nos arredores da casa chamada Os Cedros e cuja
sensualidade foi a experiência mais crucial de sua vida —, perdido
irremediavelmente; e a da sensação de inutilidade nascida do decorrer
do tempo, da própria vida, com todas as frustrações que, enquanto ele
narra, o fazem se antecipar à sua ruína.
De onde Morden está, não se vê qualquer futuro, mas apenas
decepção. Sempre que o passado retorna, ele surge, inicialmente, na
forma de um enlevo pleno de sensualidade, mas logo depois tudo se
corrompe. Não há iterações. O narrador não consegue restaurar o
passado, por mais que se esforce. Mesmo Os Cedros parece mudada:
alguns cômodos surgem completamente diferentes do que ele lembra e
há poucos vestígios capazes de ajudá-lo. Na há madeleines em John
Banville. Ao contrário do que ocorre no romance de Proust, não existe
tempo reencontrado ou redescoberto em O mar , mas apenas a
destruição de tudo que é humano, sabendo, numa convicção ainda
mais angustiante, que a natureza — cuja força e encanto conformam a
única certeza desse narrador — permanecerá: vibrante, luxuriosa,
iluminada. E sempre pronta a desdenhar dos homens, magní ca mas
indiferente.
Figuras inusitadas
Se, contudo, insistirmos em comparar o texto de Banville a outras
experiências literárias, talvez um estudo acurado possa nos mostrar o
diálogo que ele mantém com a própria literatura irlandesa —
pensemos, por exemplo, em O mar, o mar , de Íris Murdoch — ou
com um de seus poetas preferidos, Wallace Stevens, o Bardo de
Hartford, e os dez cantos que compõem o poema “The auroras of
autumn” (“As auroras boreais do outono”). A fulgurante natureza do
Canto VI, por exemplo, está desdobrada em todo o livro, assediando
o leitor com sua lascívia e aturdindo-o desde a primeira página: “As
aves gritavam e mergulhavam do céu, parecendo perturbadas pelo
espetáculo daquela imensa bacia cheia de água que inchava como uma
bolha de um azul quase chumbo malignamente reluzente.”
Essas imagens arrebatadoras se repetem, não num exercício fútil de
estilo, mas dilatando, até muito além do suportável, a impassibilidade
da natureza:
Um raio de sol desceu de viés sobre a praia, deixando a areia da orla branquíssima, e um
pássaro branco, ofuscante contra o pano de fundo da muralha de nuvens, se ergueu no
céu com as asas como foices, e, virando-se com um estalido inaudível, mergulhou no
dorso do mar feito um “v” bem fechado.
Era um suntuoso, isso mesmo, um suntuoso dia de outono, com todos aqueles cobres e
ouros bizantinos sob um céu de Tiepolo, de um azul-esmaltado. O campo estava parado
e com uma aparência vítrea, mais parecendo o seu próprio re exo na superfície calma de
um lago. Era o tipo do dia em que, ultimamente, o sol tem me parecido o olho
empapuçado do mundo, observando tudo com o maior prazer, enquanto eu co aqui me
contorcendo na minha infelicidade.
Quando a luz foi se tornando mais rala por entre as árvores, e a sombra do prédio em
frente começou a baixar sobre o jardim como o alçapão de uma armadilha [...].
[...] A árvore vai crescendo e, dessa forma, mudando, mas o que se modi ca é apenas o
cerco que rodeia uma parte imutável. Os anéis situados no centro continuam sendo os
mesmos de quando era um broto. Deixaram de ser vistos, mas não deixaram de ser
centrais. Quando nasce um ramo na parte superior de uma árvore, ele não se desprende
de suas raízes, antes, ao contrário, quanto mais alto se elevam os ramos, com mais força
a árvore terá de se prender às suas raízes. Este é o verdadeiro conceito do que deve ser o
progresso sadio e vigoroso do homem, das cidades, ou de toda uma espécie. Mas
quando os progressistas a que estou aludindo falam de evolução, não se referem a isto.
Eles não desejam que mude a parte externa de um centro orgânico e permanente, como
numa árvore; objetivam a modi cação total e absoluta de cada parte a cada minuto,
como a transformação que sofrem as nuvens.
Mas se adotarmos como loso a uma evolução similar à das nuvens, ou seja, uma
evolução de algo que não tem esqueleto, não haveria lugar, então, para o passado, e a
civilização estaria incompleta; o que hoje existe pode desaparecer amanhã, inclusive
amanhã mesmo. Pois bem, eu não creio nesse progresso perpétuo que acarreta apenas
um caos perpétuo; creio na evolução orgânica, ordenada e de acordo com o projeto e a
natureza de cada coisa. Penso, por conseguinte, que não pode evoluir a civilização que
não esteja razoavelmente completa, e a nossa, tão cientí ca, avançada e progressista,
está irracionalmente incompleta.
Se você empreender hoje uma discussão com um jornal moderno cuja posição política é
oposta à sua, descobrirá que não se admite meio-termo entre a violência e a fuga; você
não receberá senão jargões ou silêncio. Um editor moderno não deve ter o ouvido atento
que acompanha a língua honesta. Pode ser surdo-mudo — a isso chamam “dignidade”.
Ou pode ser surdo-barulhento — a isso chamam “jornalismo mordaz”.
Em nossa época, despontou uma fantasia singularíssima: a de que, quando as coisas vão
muito mal, precisamos de um homem prático. Seria bastante mais verdadeiro dizer que,
quando as coisas vão muito mal, precisamos de um teórico. Um homem prático é
alguém acostumado à mera prática cotidiana, à maneira como as coisas funcionam
normalmente. Quando as coisas não estão funcionando, é preciso do pensador, do
homem com uma doutrina que explica por que elas não estão funcionando. Enquanto
Roma arde em chamas, é errado tocar violino; mas é correto estudar teoria hidráulica.
A mente moderna vê-se forçada na direção do futuro pela sensação de fadiga — não
isenta de terror — com que contempla o passado. Ela é propelida para o futuro. Para
usar uma expressão popular, é arremessada para meados da semana que vem. E a espora
que a impulsiona avidamente não é uma afeição genuína pela futuridade, pois a
futuridade não existe, pois que ainda é futura. É antes um medo do passado: um medo
não só do mal que há no passado, senão também do bem que há nele. O cérebro entra
em colapso ante a insuportável virtude da humanidade. Houve tantas fés amejantes que
não podemos suportar; houve heroísmos tão severos que não somos capazes de imitar;
empregaram-se esforços tão grandes na construção de edifícios monumentais ou na
busca da glória militar que nos parecem a um tempo sublimes e patéticos. O futuro é um
refúgio onde nos escondemos da competição feroz de nossos antepassados. São as
gerações passadas, não as futuras, que vêm bater à nossa porta.
Houve um tempo em que eu, você e todos nós estávamos muito mais próximos de Deus;
tanto que, ainda hoje, a cor de um seixo (ou de uma pintura) e o cheiro de uma or (ou
de fogos de artifício) tocam-nos o coração com uma espécie de autoridade e convicção,
como se fossem fragmentos de uma mensagem confusa ou traços de um rosto esquecido.
Incorporar essa ardente simplicidade à totalidade da vida é o único objetivo real da
educação. E quem está mais perto da criança é a mulher – ela compreende. Dizer
exatamente o que ela compreende está fora do meu alcance. Só posso garantir que não é
uma solenidade. É antes uma leveza altaneira, um amadorismo ruidoso do universo,
assim como o que sentíamos quando éramos pequenos, o que nos fazia cantar, cuidar do
jardim, pintar e correr. Arranhar as línguas dos homens e dos anjos, meter o nariz nas
terríveis ciências, fazer malabarismos com colunas e pirâmides, jogar bola com os
planetas, eis a audácia interior e a indiferença que a alma humana, como o ilusionista a
jogar suas laranjas, deve conservar para sempre. Eis aquela coisa insanamente frívola a
que chamamos sanidade mental. E a mulher elegante, deixando cair os anéis dos cabelos
por sobre suas aquarelas, sabia disso e agia levando-o em conta. Ela fazia malabarismos
com sóis frenéticos e amejantes. Mantinha o arrojado equilíbrio das inferioridades que
é a mais misteriosa — e talvez a mais inacessível — das superioridades. Ela mantinha a
verdade primordial da mulher, da mãe universal: se uma coisa é digna de ser feita, é
digna de ser mal feita.
Chesterton sabia perfeitamente que “se as mulheres chegassem a ser
‘iguais’ aos homens, se envileceriam”, diz Joseph Pearce. É nossa
realidade hoje. Como a rma Francisco José Contreras, “o tipo de
sexualidade (banalizada, de consumo rápido, desvinculada do amor,
do compromisso e da reprodução) [...] parece desenhada à medida das
necessidades e caprichos masculinos. As mulheres são as grandes
vítimas da revolução sexual [...]. Na sociedade hipersexualizada, a
mulher se converte com freqüência em objeto de usar e jogar fora. As
feministas conseguiram impor à mulher o modelo sexual masculino”.
E, em outro trecho, citando a jornalista e ensaísta Eugenia Rocella:
“O neofeminismo converte as mulheres em ‘machos falidos’”.
Não é preciso muito esforço para perceber que o mundo
contemporâneo se incumbe, dia após dia, de comprovar a dramática
atualidade das profecias de Chesterton, aqui ainda referindo-se ao
movimento sufragista: “A destruição é nita ao passo que a obstrução
é in nita. Enquanto a rebelião assume a forma de mera desordem (em
vez de a de uma tentativa de impor uma nova ordem), não há um nal
lógico para ela; ela pode alimentar-se e renovar-se eternamente”.
O intelectual inspirado pela compreensão cristã do mundo sabe que
os ideólogos pretendem substituir o matrimônio pelo hedonismo
absoluto. Exatamente por essa razão, Chesterton faz sábia e vigorosa
defesa, como raras vezes encontramos atualmente, da família, esse
núcleo de segurança, amor, dedicação e estabilidade:
O princípio é este: em tudo que é digno de ter — mesmo nos prazeres todos — há uma
porção de dor ou tédio que deve ser preservada a m de que o prazer possa renascer e
perdurar. A alegria da batalha vem depois do primeiro medo da morte; a alegria de ler
Virgílio vem depois do enfado de tê-lo estudado; o entusiasmo do banhista vem depois
do choque inicial em face da gelada água do mar; e o sucesso do matrimônio vem depois
do fracasso da lua de mel. Todos os votos, leis e contratos humanos são maneiras de
sobreviver com sucesso a esse ponto de ruptura, a esse instante de rendição potencial.
Em tudo que vale a pena fazer há um estágio em que ninguém o faria, exceto por
necessidade ou por honra. É então que a Instituição sustém o homem e o ajuda a
prosseguir sobre um terreno mais rme. Se este sólido fato da natureza humana é
su ciente para justi car a dedicação sublime do matrimônio cristão, isso já é outra
questão; importa saber que ele é plenamente su ciente para justi car a corrente
impressão dos homens de que o matrimônio é algo xo e sua dissolução é uma falha ou,
no mínimo, uma ignomínia.
Selecionar e rejeitar
Há muito mais em O que há de errado com o mundo . E não direi
que o livro permanece atual pelo fato de o mundo seguir errado, pois
seria cometer não apenas uma obviedade, mas, principalmente,
repulsivo lugar-comum. A rmo, porém, que Chesterton pode falar
com a mesma veracidade, com o mesmo poder de sedução, sobre
camaradagem e democracia, dogma e educação; rir e discordar de
Bernard Shaw — sem jamais perder sua amizade — ou elogiar e fazer
justiça ao, no Brasil, negligenciado Samuel Johnson; vergar-se à beleza
e ao mistério da Encarnação ou enaltecer os méritos do
parlamentarismo britânico, pois, na sua terra natal, “o primeiro
homem que você avistar pela janela, eis o rei da Inglaterra”. De nir o
que é um diálogo perfeito, denunciar os perigos do cesarismo, zombar
das “imaturas e hipotéticas” loso as modernas: Chesterton abarca
tudo, pois, como a rma o ensaísta Eduardo Mallea,
a fome de relação achava-se proporcionada a seu corpo físico. Quer isso dizer que sua
fome era gigantesca. Fome humana: fome de verdade; fome de verdade humana. Uma
fome que não saciavam os conceitos, uma fome que não saciavam as idéias, uma fome
que não saciavam as seitas, uma fome que não saciavam os axiomas, uma fome que não
saciavam as estruturas mentais. Uma fome que não parava. Uma fome que ia mais além
de tudo isso e que tinha a arquitetura do corpo humano: sua solidez, sua força, suas
necessidades, sua mobilidade. Uma fome que era um estado de plenitude solicitada,
contada, ou seja, um estado de poesia.
Assombro
No capítulo anterior, encerrei minha análise ressaltando que a
retórica ensolarada de Chesterton pisoteia, com a alegria de um
menino, grande parte do ensaísmo contemporâneo, inclusive no Brasil,
onde a arrogância epistêmica se espalha, renovando-se, a cada dia, por
meio da sintaxe confusa e do jargão intraduzível.
A imagem que surge em minha mente quando releio essas palavras
é a de um garoto a correr sob a chuva. Nesses minutos em que ele
experimenta liberdade, pisoteando a enxurrada que desce a ladeira, o
aguaceiro pára e o sol abre caminho por entre as nuvens, o que
redobra sua alegria, fazendo-o chutar a água em todas as direções. O
menino não sabe, mas essa tarde, esses minutos de imaculada
excitação, a brincadeira espontânea — tudo permanecerá nele para
sempre; serão as marcas da sua personalidade.
Esta imagem algo idílica surge não do meu sonho, mas ancorada na
realidade. A fé na inocência permaneceu como uma das notáveis
características de Chesterton, ainda que esse apego à infância tenha
sido ridicularizado por alguns de seus adversários, hoje esquecidos.
Ele realmente acreditava que a inocência é o princípio da sabedoria,
certeza inalterável, rea rmada pouco antes de sua morte: “Nunca
perdi o sentimento de que a infância era minha vida real; o princípio
verdadeiro do que deve ser uma vida mais real; uma experiência
perdida na terra dos vivos”.
O leitor apressado poderia ver em tais palavras um sentimento
melancólico, um saudosismo mal resolvido. No entanto, Chesterton
lutou para jamais perder, frente à realidade, o olhar de assombro que
nasce das crianças a cada mínima descoberta. “O sentido do milagre
da Humanidade em si”, a rma ele em Ortodoxia , “devia estar
sempre mais vivo em nós do que as maravilhas do poder, da
inteligência, da arte ou da civilização. O simples fato de o homem
andar sobre duas pernas devia nos comover mais do que qualquer
música, e nos impressionar mais do que qualquer caricatura.”
Considerando tudo guarda inúmeros exemplos desse empenho para
recuperar o assombro como ato de conhecimento. Em “Um ensaio de
duas cidades”, por exemplo, Chesterton defende que “o principal
objetivo da educação deveria ser restaurar a simplicidade”; ou, dito de
forma apaixonada, “o principal objetivo da educação não é aprender
coisas; não: o objetivo principal da educação é desaprender coisas. O
objetivo da educação é desaprender toda a fadiga e maldade do
mundo e retornar àquele estado de liberdade que todos
instintivamente celebramos quando preferimos escrever sobre crianças
e meninos”.
Tal proposta não permaneceu relegada ao mundo das idéias, mas
transformou-se numa das ferramentas estilísticas de Chesterton. Na
crônica “Pensamentos ao redor de Köpenick”, nosso escritor
abandona a visão óbvia das coisas e recria o espanto ao inverter a
lógica: soldados prontos para a guerra, obedientes a seus superiores,
estão longe de ser, como imagina o senso comum, “adoradores da
força”. Repudiando o militarismo, Chesterton nos mostra que “os
soldados, mais do que quaisquer outros homens, são sistemática e
severamente ensinados que ter força não é ter direito”. A cada linha
de sua argumentação, vemos o homem esmagado dentro de seu
uniforme, pronto a “obedecer a símbolos, coisas arbitrárias, faixas em
um braço, botões em um casaco, um título, uma bandeira”, mas, na
verdade, preso a um estímulo de ordem moral, a lealdade: “[...]
Enquanto alguém for leal a algo, nunca será um adorador da mera
força. Pois a mera força, a violência abstrata, é o inimigo de tudo o
que amamos. Amar alguma coisa é vê-la imediatamente sob céus
tormentosos de perigo. A lealdade implica lealdade no infortúnio; e
quando um soldado aceitou o uniforme de alguma nação, já aceitou
também sua derrota”.
Semelhante destreza de pensamento surge na crônica “Controvérsia
Zola”. Ao ironizar a discussão que ocorria na França — se os restos
mortais do romancista deveriam ou não ser colocados no Panthéon
—, Chesterton, que não escondia seu desprazer em relação ao
movimento naturalista, ironiza o debate e joga novamente com os
termos. Vejam a repentina analogia entre a tabuada e Shakespeare;
percebam como seu raciocínio migra da idéia de imortalidade à de
insu ciência; a seguir, o elogio irônico à “questão viva” que Zola
representa; e, logo depois, o francês derrotado pelo enaltecimento
incontestável de Shakespeare:
Quando alguma coisa do intelecto se estabelece, não morre: antes, torna-se imortal. A
tabuada é imortal, assim como a fama de Shakespeare. Mas a fama de Zola não está
morta nem é imortal; está em crise, está na balança; e talvez seja insu ciente. Os
franceses, portanto, estão absolutamente certos em considerá-la uma questão viva.
Ainda vive como questão, porque ainda não está resolvida. Mas Shakespeare não é uma
questão viva: é uma resposta viva.
Paradoxos
Essa forma de argumentar servia ao intuito de Chesterton: por meio
do raciocínio que desorienta, obrigava os leitores a perceber aspectos
esquecidos ou menosprezados da realidade.
A própria escolha dos vocábulos, ainda que parecesse muitas vezes
excêntrica, era outra de suas preocupações. Na crônica “Espiritismo”,
ele a rma ser “uma regra quase invariável que o homem de quem
discordo pense que estou me fazendo de bobo, e o homem com quem
concordo pense que o estou fazendo de bobo. Parece haver uma
espécie de idéia de que você não está tratando adequadamente de um
assunto se o elogia com termos fantásticos ou defende com exemplos
grotescos”.
E continua:
Penso seriamente, em geral, que quanto mais séria é a discussão, mais grotescos
deveriam ser os termos. Há para isso [...] uma razão evidente. Pois um assunto é
realmente solene e importante na medida em que se aplica a todo o cosmo, ou pelo
menos a grandes esferas e ciclos de experiência. Na medida em que uma coisa é
universal, é séria. E na medida em que algo é universal, está cheio de aspectos cômicos.
[...] Os germes são sérios, porque matam. Mas as estrelas são engraçadas, pois dão
origem à vida, e a vida dá origem à diversão. Se você tiver, digamos, uma teoria sobre a
humanidade, e só puder prová-la falando sobre Platão e George Washington, sua teoria
pode ser um bocado frívola. Mas se puder prová-la falando sobre o mordomo ou o
carteiro, então é séria, pois é universal. Longe de ser uma irreverência usar metáforas
tolas em questões sérias, é um dever usá-las nessas questões. É o teste da seriedade. É o
teste de uma teoria ou religião responsáveis veri car se são capazes de tomar exemplos
de potes e panelas e botas e batedeiras de manteiga. O teste de uma boa loso a é se
pode ser defendida grotescamente. O teste de uma boa religião é se é possível fazer
piadas com ela.
Como vemos, são indissociáveis do seu estilo as justi cativas
paradoxais — elas também, ao provocar estranheza, despertam a
inteligência à verdade. O desejo de Chesterton é libertar seu leitor da
invariabilidade do pensamento, dos chavões que obrigam a ver o real
sem nenhum relevo. As coisas podem se tornar novas se lembrarmos
como realmente são, despojadas da mesmice com que o senso comum
as camu a todos os dias.
O paradoxo surge, assim, como a gura de linguagem capaz de
questionar o que parece irrefutável, contribuindo à certeza de que o
mundo deve pasmar, pois ele é sempre mais do que aparenta ser. Com
palavras que lembram as de Cícero — “O que os gregos chamam de
paradoxo, nós chamamos de coisas que maravilham” —, Gabriel
Syme, o detetive de O homem que foi quinta-feira , diz: “O paradoxo
nos ajuda a recordar verdades esquecidas”.
[...] todo o mundo moderno, ou pelo menos toda a imprensa moderna, tem um perpétuo
e esgotante terror da pura moral. Os homens sempre tentam evitar condenar algo apenas
por argumentos morais. Se eu espancar minha avó até a morte amanhã no meio de
Battersea Park, podem ter certeza de que as pessoas dirão tudo sobre isso exceto o fato
simples e bastante óbvio de que é algo errado. Alguns o chamarão de insanidade; isto é,
o acusarão de uma de ciência de inteligência. Isto não é necessariamente verdade. Vocês
não poderiam dizer se foi um ato pouco inteligente ou não, a menos que conhecessem
minha avó. Alguns o chamarão de vulgar, repugnante, e coisas assim; isto é, o acusarão
de falta de educação. Talvez demonstre mesmo uma falta de educação; mas di cilmente
é seu maior defeito. Outros falarão sobre o asqueroso espetáculo, e a cena revoltante;
isto é, o acusarão de uma falta de arte ou de beleza estética. Também isso depende das
circunstâncias: para ter certeza absoluta de que a aparência da velha senhora
de nitivamente deteriorou-se no processo de ser espancada até a morte, é necessário que
o crítico losó co esteja bem certo de quão feia ela era antes. Outra escola de
pensadores dirá que o ato é pouco e ciente: que é um desperdício pouco econômico de
uma boa avó. Mas isso só poderia depender do valor, que é novamente um assunto
individual. O único ponto real que vale a pena mencionar é que é um ato perverso, pois
sua avó tem o direito de não ser espancada até a morte. Porém, o jornalismo moderno
tem, dessa simples explicação moral, um persistente medo. Chamará a ação de qualquer
outra coisa – louca, bestial, vulgar, idiota, antes de chamá-la pecaminosa.
[...] Se o mundo moderno não insistir em ter uma lei moral clara e de nida, capaz de
resistir às atrações contrárias da arte e do humor, será simplesmente entregue como
espólio a qualquer um que consiga fazer algo errado de uma forma simpática. Qualquer
assassino que consiga matar de forma interessante será autorizado a matar. Qualquer
ladrão que roube com gestos realmente humorísticos poderá roubar tanto quanto quiser.
Em nenhuma escola pública inglesa sequer se sugere, exceto por acidente, que é dever de
um homem dizer a verdade. O que se sugere é algo inteiramente diferente: que é dever de
um homem não mentir. Este engano embebe de forma tão completa toda a civilização
que muito raramente chegamos sequer a pensar na diferença entre as duas coisas.
Quando dizemos a uma criança: “Você deve dizer a verdade”, queremos simplesmente
dizer que deve abster-se de inexatidões verbais. Mas o que nunca chegamos a ensinar é o
dever geral de dizer a verdade, de dar uma imagem completa e clara de qualquer coisa
de que falemos, de não deturpar, não evadir, não suprimir, não usar argumentos
plausíveis que sabemos serem falsos, de não escolher inescrupulosamente provar uma
hipótese ex parte [...]. A única coisa que nunca é ensinada na atmosfera das escolas
públicas é exatamente isso – que há uma verdade nas coisas, e que ao conhecê-la e dizê-
la somos felizes.
De volta à realidade
Mas nosso escritor não se entrega a lamentações. Chesterton possui
planos para ultrapassar o cinismo enfadonho e desencantado da
intelectualidade modernista, cujos textos pautam-se, também, por um
solipsismo patológico.
Aqueles que leram as crônicas reunidas em Tremendas trivialidades
certamente se recordam do Capítulo 16, “A avó do dragão”. O
inesperado e desagradável visitante de gravata verde e pescoço longo
entra na biblioteca no exato momento em que Chesterton acaba de
“examinar uma pilha de cção”, novelas cujos títulos sintetizam, de
forma irônica, a estreita temática da literatura moderna: Processo
suburbano: um conto de psicologia ; Processo psicológico: um conto
dos subúrbios ; Trixy: um temperamento ; e Ódio ao homem: uma
monocromia. Entre essa tediosa leitura e a chegada da visita, o
escritor vê, sobre a escrivaninha, um volume dos Contos de Grimm e
reage com júbilo: “Aqui pelo menos, aqui en m, era possível
encontrar um pouco de bom senso”. Na longa, paradoxal e divertida
explanação que se segue, na qual ele defende os contos de fadas,
encontramos a síntese da crítica chestertoniana à literatura narcisista,
incapaz de criar heróis, debilitada a ponto de renunciar ao épico:
Você não vê, disse-lhe, que os contos de fadas são em sua essência bastante sólidos e
diretos, mas que essa eterna cção sobre a vida moderna é em sua natureza
essencialmente incrível? Folclore quer dizer que a alma é sã, mas o universo é selvagem e
cheio de maravilhas. Realismo quer dizer que o mundo é enfadonho e cheio de rotina,
mas que a alma está doente e gritando. O problema do conto de fadas é – o que um
homem saudável faria com um mundo fantástico? O problema do romance moderno é –
o que um louco faria com um mundo monótono? Nos contos de fadas o cosmo
enlouquece, mas o herói não. Nas novelas modernas o herói está louco antes de o livro
começar e sofre com a dura estabilidade e a cruel sanidade do cosmo. [...]
Um lunático não é surpreendente para si mesmo, porque é bastante sério; isso é o que
faz dele um lunático. Um homem que pense ser um pedaço de vidro é para si mesmo tão
sem graça quanto um pedaço de vidro. Um homem que pense ser uma galinha é para si
mesmo tão comum quanto uma galinha. Apenas a sanidade é que consegue ver até
mesmo uma poesia selvagem na insanidade. Assim, aqueles sábios contos antigos
zeram o herói ordinário e o conto extraordinário. Mas vocês zeram o herói
extraordinário e o conto ordinário — tão ordinário — oh, tão terrivelmente ordinário.
Contra o formalismo
Longe de ser uma generalização, esta a rmativa de G. K.
Chesterton o coloca no ângulo exatamente oposto ao das teorias
formalistas e niilistas, hoje populares.
A teoria moderna inteira, diz ele, surge de um erro fundamental — a idéia de que o
romance é de alguma forma uma brincadeira com a natureza, uma invenção, um
convencionalismo, algo exterior. Nunca haverá nenhuma crítica genuína ao romance até
que nos demos conta do fato de que o romance não está do lado de fora da vida, mas
absolutamente em seu centro.
Os homens viveram entre poderosas montanhas e orestas eternas por séculos antes de
que se apercebessem de que estas eram poéticas; pode-se inferir razoavelmente que
alguns de nossos descendentes poderão enxergar as chaminés com um matiz de púrpura
tão rico quanto o dos picos das montanhas, e pensar que os postes de luz são tão velhos
e naturais quanto as árvores. Com relação a essa percepção de uma grande cidade como
algo em si mesmo selvagem e óbvio, os romances policiais certamente são sua Ilíada .
Ninguém pode ter deixado de notar que nestas histórias o herói ou investigador cruza
Londres com algo da solidão e liberdade de um príncipe em um conto de fadas, que
durante aquela jornada incalculável o ônibus casual assume as cores primárias de um
navio de fantasia. As luzes da cidade começam a brilhar como os olhos de inumeráveis
duendes, já que são as guardiãs de algum segredo, talvez grotesco, que o escritor
conhece e o leitor, não. Cada curva da rua é como um dedo que aponta para isso; cada
fantástica linha de chaminés parece assinalar de forma fantástica e zombeteira o
signi cado do mistério.
Para alguém que, como eu, vive em São Paulo, é impossível não
recusar o idealismo de Chesterton. Um idealismo que talvez fosse
aceitável se pensarmos na Londres do início do século XX. Mas ele
nos embriaga com seu estilo e somos forçados a distinguir, no caos de
hoje, alguma forma de beleza. Somos obrigados a ver o homem, a
encontrar nosso semelhante: ele é o centro do “mistério”, pois,
Chesterton está certo, o núcleo do romance policial é sempre uma
questão moral — “a mais obscura e ousada das conspirações”.
De qualquer forma, Chesterton não deseja que concordemos com
ele. Mas que percebamos a necessidade de uma literatura que jamais
perca contato com a imperfeição, com o mundo que ele encontrou em
Walter Scott: estranho, antigo, confuso — e exatamente por isso,
inspirador e saudável.
IV — O toque do shofar
PECADOS DE WILSON MARTINS
POR UMA DESSAS CASUALIDADES com que a vida nos golpeia, às vezes mal
tenhamos acabado de morrer, Wilson Martins faleceu em 30 de
janeiro de 2010, quando os jornais, as rádios, a tevê, a web e grande
parte dos intelectuais que detêm postos-chave na mídia ainda
derramavam lágrimas de sangue pela morte de J. D. Salinger. De certa
forma, foi uma casualidade positiva: graças ao intervalo de três dias (o
escritor norte-americano faleceu a 27 de janeiro), o crítico literário,
historiador e professor emérito da Universidade de Nova York
ganhou, aqui e ali, dez ou quinze linhas de atenção. Mas a sorte durou
pouco. Logo no dia 31, para consternação geral, outro ícone falecia —
e quando alguns poucos leitores esperavam por artigos mais
aprofundados sobre a obra do nosso intelectual, o noticiário foi
tomado por per s, críticas, rememorações, encômios, listas de obras
publicadas e fotos do argentino Tomás Eloy Martínez. Entretanto,
devemos ser otimistas e, assumindo o comportamento apropriado ao
populismo que impera no país, fazer o jogo do contente: se Wilson
Martins tivesse falecido um dia depois de Salinger ou na mesma data
que Martínez, sequer receberia o favor de um breve necrológio.
Não discuto o valor da obra dos estrangeiros falecidos — e muito
menos a dor de suas viúvas brasileiras —, mas se o leitor me pergunta
sobre o porquê desse tratamento diferenciado, quiçá injusto, minha
resposta talvez não agrade, mas é a única que tenho: ainda somos um
país primitivo, uma colônia que se encanta facilmente com o ouropel
das cortes estrangeiras. No que se refere à teoria literária, por
exemplo, o estruturalismo é questionado na Europa desde a década de
1980 — e alguns de seus seguidores já lhe deram as costas, como
Todorov —, mas aqui ainda é objeto de culto nas universidades, onde
há quem leia Derrida e outros de joelhos, acreditando que certa
terminologia folclórica pode dar conta de analisar não só a literatura,
mas toda a realidade. Não importa se os estruturalistas e seus
continuadores criaram apenas — no irônico dizer de Thomas Pavel —
um “verniz onírico” ou, lembrando o ácido comentário de José
Guilherme Merquior, uma “teorréia, ou seja, teorização inconseqüente
sem qualquer referente estável”. Importa, sim, o prazer doentio de se
submeter ao que vem de fora, aceitando, sem críticas, qualquer teoria
fantasiosa.
Em segundo lugar, há outro motivo para o descaso em relação a
Wilson Martins: ele — pasmem! — não era de esquerda, não rezava
pelo catecismo marxista, não acreditava na irrefreável, fatal e
invencível revolução que, no galope leninista ou no trote gramsciano,
um dia levará o proletariado ao poder e à completa destruição do
capitalismo. E não ser de esquerda neste país, ainda mais nos dias que
correm, é pactuar com monstruosidades. Hoje, são os liberais que
comem criancinhas. Não interessa se Wilson Martins era um
irredutível democrata, avesso a qualquer tipo de coerção por parte do
Estado — um liberal clássico. O que vale, para parcela da
intelectualidade, é a carteirinha com a estrela vermelha, ou com a
foice e o martelo. Não segue o rebanho? Tem idéias próprias? Fora!
Wilson Martins cometeu ainda um terceiro pecado: apesar de não
ser de esquerda e não se vergar diante de modismos estrangeiros,
venceu. Além da brilhante e respeitável carreira em uma das melhores
universidades do mundo, elaborou, com altivez e independência, uma
obra que será lida, relida e analisada, nos próximos séculos, por todos
os que pretenderem, de forma isenta, honesta e rigorosa, estudar ou
conhecer não só a literatura brasileira, mas parte fundamental da
nossa cultura. E uma carreira vitoriosa — sem pensar ou agir como a
maioria — é algo execrável. Como alguém pode ganhar
respeitabilidade sem seguir a manada? A esses, aos que ousam
construir seu próprio caminho, as igrejinhas nacionais premiam com
sua arma mais vil: a blindagem de mudo desprezo. É a tentativa de
garrotear aquele que cometeu o pior dos crimes: não ser apenas mais
um em meio à turba.
Nosso crítico literário, no entanto, era homem singular. Não
satisfeito com esses pecados, verdadeiramente assombrosos, ainda
cometeu mais um, talvez o pior de todos, o mais terrível: foi daqueles
críticos, hoje raros, que não trocam favores, não dão tapinhas nas
costas, não adoçam as palavras para conseguir novas amizades ou
manter a qualquer custo as antigas. En m, Wilson Martins tinha uma
“santa rabugice”, na feliz expressão do poeta, tradutor e ensaísta Ivan
Junqueira. Rabugice à qual ele acrescentou, ainda segundo Junqueira,
“privilegiada formação literária e humanística”, “sutileza e
inteligência”, “elegância de linguagem”, “fundo conhecimento
teórico” e “certo humor, o que lhe confere [...] encanto ainda maior”.
As conseqüências de todos esses pecados só poderiam ser danosas.
No país do compadrio, da mancomunação, do puxa-saquismo, o
comportamento sobranceiro e reservado de Wilson Martins, avesso às
panelinhas, não apenas o isolou, mas, somado à sua severidade no
julgar e à sua ironia, granjeou-lhe inimigos em toda parte. Eu diria,
aliás, que a la dos ressentidos é quilométrica e disputa, palmo a
palmo, cada fatia de calçada com as viúvas de Salinger. E tudo por um
simples motivo: nosso crítico não era paternal, não silenciava diante
de erros e omissões, não se fazia de cego ou surdo quando discordava
dos supostos mandarins da literatura brasileira. Mas o que os
criticados entendiam como ataque pessoal era apenas a concretização
de um imperativo caro a Martins: “O clima da crítica é a polêmica”,
ele dizia,
mas não a polêmica de ataques e destruição dos adversários, mas o debate de idéias, a
discussão e o confronto das idéias. Este sentido positivo da polêmica faz parte da crítica.
O crítico nunca se coloca passivamente diante de um livro. Já no ponto de partida ele
está encarando aquele livro polemicamente. Não contra o livro, mas ele está penetrando
naquele mundo com esta idéia de veri car até que ponto aquela obra responde ao que
ela queria ser.
Que culpa Wilson Martins poderia ter se alguns dos livros que
criticou foram escritos por pessoas infantis, que só aceitam o gesto
paternal de quem lhes acaricia o cocuruto e diz, com suavidade,
“Olha, você, no fundo, é genial, mas podia dar uma melhoradinha
aqui nestes trechos...”? Que culpa ele poderia ter se alguns intelectuais
são imaturos, despreparados para conviver com a discordância, com o
pluralismo de idéias e, principalmente, para saborear o uso da ironia,
níssimo em seus textos, mas que alguns preferiam entender como
sarcasmo?
Diante de tal personalidade, que se empenhou, durante décadas, na
ingrata tarefa de “higiene crítica”, para usar a expressão de José
Guilherme Merquior, e na elaboração de uma obra cujo valor
raríssimas vezes foi alcançado neste país, que somava à erudição uma
metodologia avessa ao pedantismo e à arrogância epistêmica que
grassam entre nós, e que, contrariando todos os seus detratores, agia
como um gentleman , destilando cavalheirismo, amizade e atenção, o
que restou a alguns cardeais da nossa cultura, senão o rancor? O
rancor... Ora, o rancor é apenas, segundo a sábia lição de Ortega y
Gasset, em seu Meditaciones del Quijote ,
Asceta e humanista
E já que citamos o lósofo espanhol, lembremos que Wilson
Martins cumpriu o ideal orteguiano de crítico, compreendendo
aqueles a quem criticava, agindo com a tolerância que é “própria de
toda alma robusta”, introduzindo “em seu trabalho todas aquelas
ferramentas sentimentais e ideológicas por meio das quais o leitor
médio pode receber a impressão mais intensa e clara da obra que seja
possível”, pois “a obra se completa completando sua leitura”.
Na contramão do que ocorre hoje no Brasil, a concepção crítica de
Wilson Martins estava vinculada a um profundo respeito pelos que o
antecederam, diante dos quais ele se colocava com humildade,
a rmando que
a crítica que fazemos hoje, como a ciência que hoje realizamos, não são necessariamente
melhores que as do nossos antepassados: e se de fato temos motivos para julgá-las
melhores, a explicação deve ser outra que a idéia, supremamente discutível, de que nos
encontramos num pináculo. [...] Não é com ilusões desse porte que se pode estabelecer
nem uma sólida ciência nem uma crítica sólida.
Dignidade da crítica
A coletânea organizada por Maia reúne, de 1940 a 1963, re exões
sobre os objetivos e o papel da crítica literária, incluindo avaliações de
críticos que in uenciaram Lins ou foram seus contemporâneos, como
José Veríssimo, Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima), Augusto
Meyer, Otto Maria Carpeaux e outros.
Publicados em ordem cronológica, os textos mostram a
transformação do crítico, de católico a cético e materialista, mas
imutável na defesa da independência da literatura, que ele entendia
como “gnose”, um dos meios para autores e leitores conhecerem o
homem e a realidade.
Sua visão de que a crítica literária “não é só apreciação ou
julgamento no plano subjetivo” e “não pode se fechar nos limites de
um seco objetivismo, não pode ser uma prisioneira das leis e dos
conceitos de outras ciências”, também permaneceu inalterada.
Segundo Lins, “um simples objetivismo não teria forças para criar
mais do que uma gura de erudito. Um simples subjetivismo, por sua
vez, não teria forças para criar mais do que uma gura de divagador”.
Se ainda vivesse, veria, com desagrado, que muitos dos supostos
objetivistas de agora conduziram a crítica literária de volta ao que ele
mais criticava nos subjetivistas de sua época: o “desembestado
verbalismo”.
Em 1957, apontava as “estreitezas e friezas” da “nova Retórica”
utilizada pelos adeptos do new criticism . Otimista em relação às
conquistas da Semana de 22, alertava para “a despreocupação da
forma, da linguagem, do estilo” — o “desprezo deliberado e
voluntário” de certos escritores modernistas “em face da beleza
formal”. E jamais abdicou do seu “propósito invariável”: o de, ao
fazer crítica literária, “procurar a verdade e exprimi-la sem qualquer
outro interesse que não seja o da literatura”.
Para ele, “julgar é um testemunho da dignidade da crítica” — e por
esse motivo trata-se de exercício que “não ca bem nas mãos dos
conformistas, dos frágeis, dos frívolos”. Crítico que não se refugiava
sob o verniz dos jargões, norteado pela ética e sempre disposto ao
diálogo, Álvaro Lins é o intelectual por excelência, obrigatório para os
dias de hoje.
CENTELHAS DE VERDADE — CHAMFORT, KRAUS,
LICHTENBERG, LA ROCHEFOUCAULD
Agudeza e concisão
Chamfort e Kraus caram famosos por seus aforismos. Percebam
que não falamos aqui de provérbios ou ditos espirituosos, bons para
enfeitar diálogos fúteis ou conceder ao falante um verniz de falsa
erudição. O aforismo é uma forma de re etir sobre a realidade, de
problematizá-la. Sua precisão serve bem à ironia e ao sarcasmo, pois
transforma o pensamento numa seta que fere sem alarde, cujo zunido
quase imperceptível sintetiza um erro, um absurdo, às vezes certa
mentira renitente.
De origem multíplice — os estudiosos o encontram na Escola
Hipocrática, nos livros sagrados da Índia, nos ensinamentos de
Confúcio ou Lao-Tsé, e também na Bíblia , incluindo uma das leituras
prediletas de Machado de Assis, o Eclesiastes —, o aforismo pretende
ser uma epítome de frações do vivido ou do observado. Do mesmo
modo, ele se assemelha — se for possível tal imagem — a um pequeno
abismo, no qual o aprofundamento do tema soma-se à brevidade da
expressão. Destituído de enredo, paira acima do tempo e do espaço,
pois qual civilização ou que homem não encontrará verdade ao ler:
“O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: nada há de novo
debaixo do sol!”?
Pleno de agudeza e concisão, no centro do aforismo pulsa uma
força que pretende depurar a existência sem necessitar de
argumentações. E quanto mais elaborada a frase por meio da qual o
pensamento se expressa, mais o aforismo denuncia a banalização da
linguagem. Manifestos contra o senso comum, julgamentos insólitos,
exemplos de engenho lingüístico, os aforismos estimulam nossa
inteligência, obrigam-nos a re etir.
Contra a imprensa
Encontramos mal-estar semelhante ao de Chamfort nos aforismos
de Karl Kraus. Morando em Viena, entre a derrocada do Império
Austro-Húngaro e o início da Segunda Guerra Mundial, ele foi
testemunha do que Hermann Broch classi cou de “alegre
Apocalipse”. Em 1899 funda A Tocha (ou O Archote ), publicação
que editará sozinho durante trinta anos e na qual denuncia os
absurdos de sua época, principalmente a forma como jornalistas e
intelectuais justi cavam o anti-semitismo e a violência. Chama-os de
“traidores da humanidade”.
Contestador da psicanálise — “É a doença cuja cura ela pretende
ser” —, Kraus é de nido por Freud, erroneamente, como “um louco
idiota com grande talento histriônico”. Se fosse apenas isso, alguns
jornais não fariam, logo após a Primeira Grande Guerra, uma
campanha pedindo sua morte.
Revolucionário para alguns, reacionário para outros, Kraus
apontou, sem medo, a covardia, o silêncio e a cumplicidade de
intelectuais e jornalistas, mestres da incoerência e do descompromisso
com a verdade. A imprensa, em sua opinião, era, essencialmente, uma
corruptora da linguagem, capaz de utilizar eufemismos para quali car
a guerra e, logo a seguir, o avanço do nacional-socialismo. Kraus usa a
ironia e a sátira, portanto, como instrumentos para se contrapor à
linguagem deturpada pela ideologia e destituída de seu principal
poder: o de criticar. Foi um lutador solitário, a voz da consciência de
um tempo em que os homens perderam a razão: “Tendo bom ouvido,
ouço barulhos que os outros não ouvem e que me perturbam a
harmonia das esferas que os outros tampouco ouvem”.
Os elogios que Otto Maria Carpeaux escreveu sobre ele — “Assim
como a teologia moral é a técnica de revelar os pecados, assim a arte
satírica de Kraus é uma técnica de lologia moral” — encontram
justi cativa em cada um dos seus aforismos: mostrou-se implacável
com jornalistas — “O que a sí lis poupou será devastado pela
imprensa. Nos amolecimentos cerebrais do futuro, não se poderá mais
constatar a causa com segurança” —, com certos escritores — “A
ironia sentimental é um cão que ladra para a Lua enquanto mija sobre
sepulturas” —, com as mulheres — “Vista de perto, muitas vezes uma
mulher nos decepciona. Sentimo-nos atraídos porque ela aparenta ter
espírito, e ela o tem” — e com os mitos que subsistem até hoje — “O
progresso faz porta-moedas de pele humana”. Carpeaux está certo:
“Karl Kraus é o maior escritor satírico e o maior moralista da
literatura alemã”.
Um gigante
Kraus era leitor assíduo de outro brilhante aforista, sobre quem
escreveu: “Lichtenberg cava mais fundo do que qualquer outro, mas
não volta à superfície. Ele fala sob a terra. Só o escuta quem também
cava fundo”.
Lido e citado por Kant, Thomas Mann, Goethe, Wittgenstein,
Musil, Canetti e muitos outros, Georg Christoph Lichtenberg foi, além
de satirista, matemático e físico experimental, professor da
Universidade de Göttingen, apaixonado pela Inglaterra — chegou a
ser preceptor dos lhos do rei Jorge III —, eleito para a Royal Society
em 1793. Formou, com Christoph Martin Wieland e Gotthold
Ephraim Lessing, o trio responsável pela divulgação de Shakespeare
na Alemanha. Leitor devotado dos ingleses, recomendava aos alemães
que não perdessem tempo com o Werther , de Goethe, mas se
dedicassem a Daniel Defoe, Jonathan Swift e Laurence Sterne, o que,
de certa forma, con rma sua revelação auto-irônica: “Na realidade,
fui à Inglaterra para aprender a escrever em alemão”.
Hipocondríaco e supersticioso — obcecado pela idéia da morte,
tinha o hábito de contar os enterros que passavam sob sua janela —,
um acidente sofrido na infância marcou-o com uma corcunda e
di cultou seu crescimento, deixando-o pouco maior que um anão.
Mas, salientemos: isso não impediu Lichtenberg de ter êxito com as
mulheres.
Editor e escritor de almanaques, transformou esses anuários de
temas populares, para os quais escrevia artigos de divulgação
cientí ca, num grande sucesso. Quanto aos seus inúmeros cadernos de
notas (escritos de 1765 a 1799), a publicação se estendeu por vários
anos, e só em 1971 os leitores tiveram acesso à obra completa.
Em permanente polêmica com alguns de seus contemporâneos,
Lichtenberg alcançou in uência espantosa. Kierkegaard chamava-o de
“Voz no deserto” e Schopenhauer escreveu paráfrases de seus textos
em O mundo como vontade e representação . Seus aforismos revelam
argúcia surpreendente — “Na verdade, há muitos homens que lêem
apenas para não pensar” —, profunda visão ética — “Onde a
moderação é um erro, a indiferença é um crime”—, capacidade para
rir de si mesmo — “Ao longo de minha vida outorgaram-me tantas
honras imerecidas, que eu bem poderia me permitir alguma crítica
imerecida” — e certo lirismo — “Uma moeda de um centavo é sempre
preferível a uma lágrima”.
Poucos, pouquíssimos tiveram sua obra colocada em tão alta conta
por Otto Maria Carpeaux, que assim se referiu aos Aforismos :
“Exilado numa ilha deserta, eu levaria este pequeno breviário de sadio
bom senso, ao lado de Marco Aurélio e dos Pensées de Pascal, sem
ofender aos meus santos. Lichtenberg, também, é um companheiro
eterno”.
Delicada malevolência
Nesta rápida ciranda em torno do gênero aforístico, encerremos
falando sobre um dos autores prediletos de Lichtenberg: François VI,
duque de La Rochefoucauld, príncipe de Marcillac, membro de uma
das famílias mais antigas da França. La Rochefoucauld lutou contra
os cardeais Richelieu e Mazarin, participando ativamente — e sem
sucesso — do confuso período da Fronda. Suas decepções foram
tantas, que aos 48 anos se retirou da vida pública e passou a se
dedicar exclusivamente à escrita. Publica Máximas e re exões,
conjunto de epigramas pessimistas e contundentes , em 1655. Edição a
edição, revisará os textos, atenuando seu caráter ferino e dando-lhes
mais brilho, maior concisão.
Desengano e ressentimento zeram nascer esse livro. Para La
Rochefoucauld, o mundo é movido por interesse e egoísmo — e são
esses dois comportamentos que provocam, inclusive, as atitudes
aparentemente virtuosas. Longe de criar um sistema losó co, ele
apenas insiste na tese de que o mal impulsiona todos os gestos
humanos. Mas ainda que possamos discordar do seu pessimismo, suas
frases nos encantam, pois ele escreve com leveza, delicada
malevolência, fazendo jogos de paradoxos nos quais brilha uma
inteligência extraordinária. Super ciais ou não, verdadeiros ou não,
seus aforismos são lições de estilo, de habilidosa capacidade para
condensar a linguagem.
Na opinião de La Rochefoucauld, “como mortais, tememos todas
as coisas, como imortais as desejamos todas”. In exível na sua visão
dos homens, ele a rma que “esquecemos facilmente nossos erros
quando só nós os conhecemos” e que “se não tivéssemos defeitos não
nos agradaria tanto notá-los nos outros”. Mas nosso aforista também
pode cunhar frases de níssimo humor: “Há casamentos bons, mas
não os há deliciosos”.
Fragmento moral
Para alguns, subjacente à arte do aforismo encontra-se apenas uma
simpli cação que falseia a realidade — juízo ao qual me oponho.
Todos os aforistas analisados aqui estão muito além dessa frágil
leitura. E o mesmo pode ser dito daqueles, tão essenciais quanto estes,
de que não pudemos falar: o conceptista Baltasar Gracián y Morales;
o infelizmente pouco lido Nicolás Gómez Dávila e seus geniais,
intrépidos escólios; o veemente Ambrose Bierce; e tantos outros.
Malabarismos lingüísticos, investigações acerca das leis que regem
nossa conduta, sentenças que se contrapõem às loucuras e idiotices de
uma época: os aforismos nascem na tênue fronteira entre literatura e
loso a. Fórmulas esmeradas, contraposições à verbosidade que
concentram escárnio, denúncia, humor e lucidez, eles revelam, numa
centelha, certo fragmento moral — quase sempre apontando o que
preferimos ocultar ou desconhecer.
O JUGO DA UTOPIA —
LAURO MACHADO COELHO
O Paraíso
Dentre os diversos méritos de Anna, a voz da Rússia , quero
salientar dois. O primeiro se refere ao trabalho de contextualização
dos principais personagens da literatura russa moderna. Para o leitor,
saber em que circunstâncias os escritores viviam, conhecer suas
relações e seus objetivos estéticos pode iluminar estilos, temas e
opções políticas. Essa gama de informações liberta o leitor do
estabelecido pelo senso comum, incluindo o de considerar Maiakóvski
o gênio supremo de um período no qual acmeístas, simbolistas e
futuristas lutavam entre si: alguns, de maneira semelhante ao que
ocorre hoje no Brasil, propugnavam pelo abandono sistemático de
todas as tradições; outros, mais sábios, alertavam para o fato de que
“não se poderia conseguir verdadeiro desenvolvimento ignorando-se a
tradição histórica e cultural”.
Quanto ao segundo mérito, está inserido nesse minucioso trabalho
de contextualização. Lauro Machado Coelho destrinça a Revolução
de 1917 e os crimes cometidos em nome da utopia comunista,
mostrando-nos o Estado criminoso, excitado pelo ímpeto de
transformar uma ideologia em religião — e cidadãos em cegos
devotos.
De fato, a ilusão romântica da igualdade absoluta não demorou a
mostrar sua verdadeira face, começando pelo líder de 1917:
A impressão, por muito tempo arraigada no Ocidente, de que Liênin [gra a do autor]
foi um idealista, cujas boas intenções foram subvertidas pela chegada de Stálin ao poder,
não resiste, hoje, ao exame dos acontecimentos daquela época. Foi ele quem montou a
infra-estrutura de uma polícia política [...] responsável pelas torturas e pressões contra
os oposicionistas que superaram em brutalidade a Okránna dos tempos da monarquia. E
toda a violência do período conhecido como o do Terror Vermelho aconteceu com o seu
conhecimento e autorização.
Por quê?
Mas Anna, a voz da Rússia é também o estudo meticuloso da
personalidade e da obra de uma mulher aberta ao amor, capaz de um
“sim” irrepreensível à existência, mesmo quando diante das piores
angústias, das mais terríveis di culdades. “Esta é a minha vida”, diz
Akhmátova, “assim é a minha biogra a. Quem pode recusar viver a
própria vida?”
O biógrafo enfrenta todos os problemas, incluindo a questão do
relacionamento de Anna e seu lho; cria um diálogo inspirador entre
vida e poesia; e nos oferece um exaustivo trabalho de tradução. Pode-
se desejar mais de um livro? No caso de Anna, a voz da Rússia , sim.
Ainda é preciso apontar a ampla e atualizada bibliogra a, as citações
e notas de rodapé — que se transformam, nas mãos de Lauro
Machado Coelho, em ferramentas de um estilista — e o CD com
poemas declamados pela própria Akhmátova (em português, por
Beatriz Segall). E ainda, nalizando, a re nada editoração.
“Diga-me,” perguntou, certa vez, Anna Akhmátova, “por que o
meu grande país, que expulsou Hitler, com toda a sua tecnologia,
considerou necessário passar como um trator sobre o peito de uma
mulher velha e doente?” Sem jamais conseguir uma resposta, amando
a Rússia, ela dedicou sua vida à poesia.
PALAVRAS INATINGÍVEIS — STUART KELLY
Obscurantismo
Um caso emblemático é o dos escritos do explorador, tradutor,
lingüista e agente secreto sir Richard Francis Burton, que ocupou,
dentre outros cargos diplomáticos, o de cônsul inglês em Santos, no
Estado de São Paulo, e de observador da Grã-Bretanha na Guerra do
Paraguai. Falecido em 1890, sua viúva, Isabel Arundell, encarregou-se
de queimar diários, manuscritos, cartas e a tradução de Burton do
Jardim perfumado do xeque Nefzaoui, obra erótica da qual Burton
havia encontrado um exemplar árabe em sua última viagem a Argel. A
tradução dos poemas de Caio Valério Catulo se salvou, mas a viúva
teve o cuidado de eliminar as “impropriedades”. Depois que Isabel
morreu, sua irmã queimou outros dezoito manuscritos. Kelly nos
oferece poucas páginas sobre essa extremosa viúva, e, de certa forma,
tenta inclusive preservá-la. Mas os detalhes piromaníacos podem ser
lidos na magní ca biogra a Sir Richard Francis Burton , de Edward
Rice. Superstição, moralismo ou estranha obediência à sua fé, não será
demais salientar que Isabel obedecia às ordens de seu confessor, padre
Pietro Martelani.
As Obras completas de Ésquilo sofreram a mesma sorte, mas não se
tratou de uma fogueira doméstica. A única cópia existente, trazida de
Atenas, estava guardada na Biblioteca de Alexandria, queimada em
640 por Amrou Ibn El-Ass, o militar muçulmano que conquistou a
Síria, a Palestina e o Egito no século VII. Para ele, “aqueles que
discordam da Palavra de Deus são blasfemos, aqueles que concordam,
supér uos”. Sem dúvida, um radicalismo semelhante ao da viúva de
Richard Francis Burton.
O fogo e a censura em nome de dogmas ou certezas particulares —
políticas, morais, religiosas — diminuem nossa humanidade. O que
dizer, por exemplo, de William Gifford, editor e testamenteiro de
Lorde Byron? Ele queimou as memórias do poeta, justi cando-se com
palavras vazias, que jamais saberemos o quanto guardam de verdade:
as Memórias serviam “apenas para o bordel e teriam condenado
Byron à infâmia eterna”. E o que pensar de Ibn Hisham, o gramático
responsável por preparar a edição de nitiva de Sirat Rasul Allah , a
biogra a de Maomé? Os registros colhidos por Ibn Ishaq,
supostamente verídicos, foram recortados e reescritos por Hisham,
que, segundo Stuart Kelly, removeu as informações que seriam
ofensivas aos muçulmanos ou que pudessem ir contra o Corão .
Escrúpulos editoriais escondem, às vezes, a sanha de um inquisidor.
A história mais triste, no entanto, é a de Nikolai Gógol. Sob
in uência do intolerante padre Matthew Konstantinovsky, ele
queimou, uma a uma, as folhas do manuscrito das partes II e III de
Almas mortas . Foi sua penitência por ter publicado a primeira parte.
Kelly nos diz que quando Gógol acabou, fez o sinal da cruz e caiu em
prantos. A partir daquele momento, não se alimentou mais. Morreu
nove dias depois.
Erudição e clareza
Mas O livro dos livros perdidos não traz apenas relatos dramáticos.
Stuart Kelly discute também o tema eletrizante das autorias duvidosas:
Hesíodo teria mesmo escrito a Teogonia e Os trabalhos e os dias ? A
II Carta aos Tessalonicenses foi realmente escrita por São Paulo? Ou
nos oferece, a cada capítulo, um verdadeiro périplo de erudição: dos
nove volumes escritos por Safo, o único poema intacto encontra-se em
Sobre o sublime , de Longino. Hawthorne e Melville desprezaram a
mesma história, Agatha , condenando a sinopse ao desaparecimento
antes mesmo de ser transformada em livro. Num gesto irresponsável,
John Stuart Mill deixou o manuscrito do primeiro volume de A
história da Revolução Francesa , de Thomas Carlyle, sob a guarda de
sua namorada, Harriet Taylor. A empregada desta confundiu os papéis
com recortes velhos e lançou tudo ao fogo. Carlyle foi obrigado a
reescrever o volume, pois não possuía cópias. O poeta Samuel Taylor
Coleridge parece ter sofrido de uma enigmática doença — scriptus
interruptus —, à qual pre ro dar o nome de síndrome de
procrastinação.
Kelly, entretanto, erra ao dizer que “é vã a busca por uma brochura
atual de Torquato Tasso em qualquer livraria moderna”. A a rmação
talvez represente a realidade da Grã-Bretanha, mas não serve às
livrarias brasileiras, onde podemos adquirir Jerusalém libertada na
tradução de José Ramos Coelho — edição, aliás, extremamente
cuidadosa.
Entre tantos livros perdidos, Kelly semeia um pouco de esperança
nos leitores ao contar sobre as obras encontradas inesperadamente,
como o papiro, descoberto em 1911, contendo A vida e a raça de
Eurípides , escrita “por um tal de Sátiro”, ou a comédia
melodramática de Cervantes, Os tratos de Argel , reencontrada no
século XVIII.
A limpidez do estilo de Stuart Kelly — que confere ao livro um
didatismo raro, quando comparado às poucas obras de divulgação
cultural escritas por brasileiros — não deixa de lado argumentações
que transitam do poético à re exão losó ca. Ao imaginar a sinuosa
jornada de elaboração dos livros e o terrível destino de algumas dessas
obras, talvez desaparecidas para sempre, ele completa: “Para aqueles
de quem não resta sinal, este livro é uma oferenda. Porque nos
juntaremos a eles no m”.
Essa perfeita noção, às vezes melancólica, da sua própria nitude, é
o que permite ao autor manter uma visão equilibrada. Ele não se
entrega a um enfadonho lamento pelos livros perdidos, mas tece
hipóteses, esquadrinha o passado, busca pistas, enamora-se da cultura,
apaixona-se sem perder a lucidez.
O que desapareceu nos diminui, sem dúvida, mas a capacidade
inventiva do homem jamais deve ser esquecida. Comentando sobre a
possibilidade da existência de Homero e de ele ter escrito uma
comédia, Margites , Stuart Kelly conclui: “Na ausência de uma
comédia do maior poeta de todos os tempos, sucessivas gerações
tiveram a liberdade de criar comédias sarcásticas, sentimentais,
caprichosas, sérias, gentis e de humor negro, inteligentes e obscenas,
vulgares e misteriosas. A explosão de novas formas pode fazer jus a
uma extinção”.
Cercando o objeto de seu estudo, Kelly tenta dar vida àquilo que se
extinguiu. Ainda que não nos ofereça nem mesmo um arremedo das
obras, esse método de ensaio concede aos leitores o panorama capaz
de aprimorar seus sonhos — dá fundamento à nossa imaginação:
“Uma interpretação não ltra versões da história para destilar alguma
verdade inalienável; ela duplica o passado no presente. Assim como as
tentativas da ciência de clonar espécies extintas, o antigo DNA é
fundido numa célula contemporânea e adotado por uma matriz
adequada. O leitor recria o escritor em seu próprio mundo, dele ou
dela.”
Âncoras do mundo
Durante a leitura de O livro dos livros perdidos lembrei-me,
repetidas vezes, de fatos que me impressionam desde o primeiro
contato que tive com Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda:
Penso, assim, nos livros que não desapareceram, mas que jamais
foram publicados, não por uma opção pessoal do autor, mas por um
silêncio imposto. A história dos livros perdidos no Brasil é a história
do nosso atraso, da falta de civilização que nos obriga a, até hoje, ler,
por exemplo, as obras completas de Plutarco em espanhol, inglês ou
francês. No que se refere a esse e a tantos outros livros, os leitores
monolíngües do Brasil devem usar o adjetivo, citado por Stuart Kelly,
com que Goethe se referia ao dramaturgo Menandro: “inatingível”.
Fechamos O livro dos livros perdidos desejando que, no futuro
próximo ou distante, ao menos uma parte desse tesouro que nos foi
roubado — por irresponsáveis, criminosos, idiotas, déspotas
ignorantes ou fanáticos religiosos — possa ser encontrada, possa ser
lida.
Graças a Stuart Kelly, partimos em busca dos vestígios de parcela
do que o homem produziu e daqueles que se aventuraram antes de
nós, mas cujas pequenas vitórias se perderam. As palavras escritas
têm, ainda que imperfeitamente, testemunhado essa história de lutas
— a permanente batalha do viver. Bem ou mal, no calor da hora ou
com indesculpáveis atrasos, sempre presas à fragilidade da argila, do
papiro, do pergaminho, do papel, do disquete, do CD ou de uma
impalpável webpage , elas lutam para se perpetuar como âncoras do
nosso mundo. Mas o que as gerações futuras poderão ler do que hoje
produzimos ou estudamos? Quais, dentre nós, ou dentre os que hoje
são cultuados pela mídia, desaparecerão? Eis o que o livro de Stuart
Kelly principalmente nos ensina: que toda empá a é vã.
COMO DEFENDER A DEMOCRACIA? —
ALEXIS DE TOCQUEVILLE
[...] O mesmo homem pôde dar seu nome a um deserto que ninguém havia atravessado
antes dele; ele pôde ver tombar a primeira árvore da oresta, construir no meio da
solidão a casa do agricultor, em torno da qual se formou de início um povoado, e hoje
transformado em vasta cidade. No curto intervalo que separa a morte do nascimento,
assistiu a todas essas mudanças. Em sua juventude, habitou entre nações que já não
existem; em sua vida, rios mudaram ou diminuíram seu curso; o próprio clima é outro
em relação ao que viu outrora, e tudo isso não é em seu pensamento senão um primeiro
passo numa carreira sem limites. Por mais poderoso e impetuoso que seja aqui o curso
do tempo, a imaginação precede-o: o quadro não é assaz grande para ela; ela já se
É
apodera de um novo universo. É um movimento intelectual que não pode se comparar
àquele que fez nascer a descoberta do Novo Mundo há três séculos; e, com efeito, pode-
se dizer que a América é descoberta uma segunda vez. E que não se creia que tais
pensamentos só germinam na cabeça do lósofo; eles estão tão presentes no artesão
quanto no especulador; no camponês bem como habitante das cidades. Incorporam-se
em todos os objetos; fazem parte de todas as sensações; são palpáveis, visíveis, sentidos
de certa forma. Nascido sob um outro céu, introduzido no meio de um quadro sempre
movente, ele próprio movido pela torrente irresistível que arrasta tudo o que o avizinha,
o americano não tem tempo para apegar-se a nada; ele só se acostuma à mudança, e
acaba por vê-la como o estado natural do homem; sente a necessidade dela; bem mais,
ama-a: pois a instabilidade, em vez de produzir-se para ele por desastres, parece
engendrar em torno dele só prodígios...
Ao pôr-do-sol, entramos num canal muito estreito. Vista admirável; instante delicioso.
As águas do rio imóveis e transparentes; uma oresta extraordinária que se re ete nas
águas. Ao longe, montanhas azuis e iluminadas pelos últimos raios do sol. Fogo dos
indígenas que brilha por entre as árvores. Nosso barco avança majestosamente em meio
a essa solidão, ao rumor dos cantos guerreiros que o eco dos bosques propaga de todos
os lados.
...O que mais nos incomoda na Europa são os homens que, nascidos numa condição
social inferior, receberam uma educação que lhes dá vontade de sair dela sem fornecer-
lhes os meios para isso.
Não há [...] na terra autoridade tão respeitável por si mesma nem revestida de um
direito tão sagrado que eu desejasse deixar agir sem controle e dominar sem obstáculos.
Quando, portanto, vejo dar o direito e a faculdade de fazer tudo a uma potência
qualquer, quer se chame povo ou rei, democracia ou aristocracia, quer se exerça numa
monarquia, quer numa república, então digo: aí está o germe da tirania, e procuro ir
viver sob outras leis.
[...] quanto mais eu conversava com as pessoas, mais estava ciente de quanto
simplesmente não pode ser conhecido, em parte porque a coisa [...] jamais foi
testemunhada e, portanto, é agora incognoscível, e em parte porque a própria memória
daquelas coisas que foram testemunhadas pode pregar peças, pode omitir o que é
doloroso demais, ou ser enfeitada de modo a se adequar a um padrão do qual gostamos.
Consciência do efêmero
A estrutura do livro obedece a um permanente diálogo entre as
descobertas do autor e seus pensamentos sobre duas diferentes
interpretações da Torá : a do rabino francês Shlomo ben Itz’hak, mais
conhecido como Rashi, nascido em Troyes, em 1040, e a do rabi
Richard Elliot Friedman, mais recente, que busca ligar o texto antigo à
vida contemporânea. Os comentários desses estudiosos iluminam as
idas e vindas de Mendelsohn, que recupera várias das loucuras
cometidas em nome do anti-semitismo — das vinganças ocasionais aos
assassinatos sistemáticos das aktionen nazistas, passando por
diferentes perseguições de ordem econômica —, parte da história da
Galícia, guras marcantes do pensamento judaico e o somatório de
detalhes que compõem a existência dos heróis anônimos que, vivendo
na cidadezinha polonesa onde seu tio-avô residia — Bolechow (hoje
Bolekhiv, na Ucrânia) —, conseguiram sobreviver.
Mendelsohn constrói lentamente sua narrativa, apoiando-se nesses
fragmentos de memórias sofridas, das quais, muitas vezes, avulta a
pior das dores, a psíquica. Enquanto descortina a verdade sobre seus
familiares, também acorda para suas lembranças da infância —
quando se sentia decepcionado com seu povo, que lhe parecia, ele
confessa, “um povo de perdedores” — e da adolescência, quando
compreende o que é ser judeu e de como estava ligado a uma
intrincada e milenar trama de relações.
Sessenta anos depois do Holocausto e duas décadas após o suicídio
de seu avô, que já não suportava a tortura do câncer, Mendelsohn
aprenderá que o trivial pode se transformar, com a passagem do
tempo, em algo merecedor de ser preservado. Cada nova revelação
ampliará sua angústia, fazendo-o tomar consciência de como “é fácil
para alguém se perder, permanecer desconhecido para sempre”.
Durante os longos meses em que procura dar vida aos que morreram,
experimentará a decepção de não poder modi car o passado — e
também, durante raros e grati cantes momentos, a proximidade com
os mortos, até acordar para a verdade das palavras do irmão que o
acompanha na maioria das viagens: “O Holocausto não foi algo que
simplesmente aconteceu, mas é um evento que ainda está
acontecendo”.
Duplo investigador
Contudo, se há uma característica central nessa busca que se
defronta ora com testemunhos contraditórios, ora com relatos que
desmentem, inclusive, parte das histórias que o próprio avô de
Mendelsohn contava, ela tem um nome: fragilidade. Mas, terrível
ironia, é exatamente essa fragilidade, nascida da distância de que
falávamos acima, que permite a existência do narrador, daquele que se
propõe contar a história.
Dentre outros méritos, o narrador de Os desaparecidos não hesita
em expor até mesmo divisões familiares, velhos ressentimentos. Não o
faz para obedecer a alguma doentia compulsão, mas porque —
movido, aparentemente, pela sinceridade — estabelece analogias entre
o passado de seus ancestrais, próximos e distantes, e as descobertas
que realiza no presente, utilizando-as como parte de seu método
investigativo. Acompanhamos, assim, um duplo pesquisador: o que
interroga suas testemunhas e o que se questiona sobre de que maneira
as respostas obtidas não só o aproximam ou afastam da verdade, mas
também lhe franqueiam as portas do autoconhecimento e das raízes
do judaísmo.
Dotado de bom humor, destituído de qualquer ingenuidade,
Mendelsohn está certo de que todo conhecimento traz, em seu bojo,
alguma dor — e que se há orgulho na acumulação do saber, há
também a possibilidade de conhecer certas coisas tarde demais para
que nos façam algum bem. Dessa forma, ele nunca deixa de se
perguntar se deve ou não prosseguir.
Inspirando-se na técnica narrativa do avô, plena de digressões,
técnica reencontrada, anos mais tarde, em Homero, Heródoto, Proust
e Sebald, esse narrador detalhista mostra-se capaz de analisar inclusive
sutilezas lingüísticas, com o objetivo de esclarecer, por exemplo, o
sentido de uma palavra em iídiche — e assim iluminar sua história e a
de seu povo.
Mas, insisto, trata-se, acima de tudo, de uma voz consciente de que
seu olhar e suas conclusões sobre o testemunho dos que viveram o
Holocausto são apenas frágil aproximação da verdade.
O homem que vê e se vê
Homenagem aos que se recusam a esquecer, preito à memória, a
cada página de Os desaparecidos ressoa a exclamação: lembrem-se
dos judeus de Bolechow, daqueles milhares que foram humilhados
gratuitamente e morreram sob a iniqüidade. Ao nal, deles restaram
apenas 48, dispersos sobre a terra. E lembrem-se também daqueles
seis, emudecidos pelo ódio.
Mais de três séculos antes de Os desaparecidos ser publicado, no
ano de 1674, em Roma, pronunciando, perante a rainha Cristina da
Suécia, o panegírico “Lágrimas de Heráclito”, António Vieira
comentava o verso de Virgílio que Mendelsohn escolheu como
epígrafe: “Não residem as lágrimas só nos olhos, que vêem os objetos,
mas nos mesmos objetos, que são vistos; ali está a fonte, aqui está o
rio; ali nascem as lágrimas, aqui correm; e se as mesmas coisas que
não vêem, choram, quanto mais razão tem o homem que vê e se vê?”.
Quando chegamos às páginas nais de Os desaparecidos ,
descobrimos — ou lembramos — quão extensa é a dor que impregna
a vida — ainda que tal verdade seja perceptível apenas ao “homem
que vê e se vê” —, pois o relato de Daniel Mendelsohn nos fornece
inúmeras, desoladoras razões para distinguir as lágrimas das coisas,
chorar com elas — e também por nós.
DIÁLOGOS COM A CIVILIZAÇÃO — PHILIP ROTH
Nós entramos em contato com forças míticas arcaicas, uma espécie de subconsciente
obscuro cujo signi cado não conhecíamos, como aliás ainda não conhecemos. [...] Eram
viagens da imaginação, mentiras e trapaças, que só poderiam ter sido inventadas por
impulsos irracionais profundos. Eu não conseguia e ainda não consigo compreender o
motivo dos assassinos.
Ficção e realidade
Somente aos trinta anos Appelfeld se sentiria livre — ou maduro —
para abordar, como escritor, sua experiência durante o Holocausto. O
diálogo entre ele e Roth, no entanto, não enfoca apenas a experiência
dramática de uma criança em fuga pelo interior ucraniano. Chama a
atenção o processo criativo desse artista, tentado, como inúmeros
outros, a colocar no papel toda a verdade. Frente a essa tarefa
angustiante, o mundo real mostrou-se “muito além do poder da
imaginação, [...] pois tudo era tão inacreditável que eu mesmo parecia
ctício”, ele a rma. E a saída encontrada se traduz nesta bela re exão
sobre verdade e verossimilhança:
Escrever as coisas tal como aconteceram é tornar-se escravo de sua própria memória,
que é um elemento menor do processo criativo [...]. Os materiais são de fato extraídos
da vida do autor, mas em última análise a criação é uma criatura independente [...]. A
realidade é sempre mais forte que a imaginação humana. Além disso, a realidade pode se
dar ao luxo de ser inacreditável, inexplicável, desproporcional. A obra criada,
infelizmente, não tem esse direito.
Literatura em hebraico
Os melhores escritores mantêm um relacionamento íntimo com a
língua em que escrevem. Perdem-se no labirinto de possibilidades com
que ela os seduz — e, a partir de certo ponto, já mesmerizados,
escondem-se nas ssuras entre os morfemas, orando para jamais serem
encontrados. A língua torna-se, assim, não só pátria, mas amante e
algoz. E quanto mais ela tripudia sobre eles, quanto mais os engana,
mais se apaixonam. Só de uma relação assim, torturante e
escravizadora, pode nascer a literatura que não é apenas modismo,
concessão aos desejos populares ou anseio infantil de escandalizar.
No caso de Appelfeld, que escreve em hebraico, sua devoção chega
aos signos concretos da língua: “A letra em hebraico tem a aura
adicional do amor pelas letras isoladas”, ele diz, num murmúrio de
fascinação, referindo-se a Kafka. Mas tal intimidade espraia-se, acima
de tudo, no leito in nito em que a língua o encanta e suplicia:
Aprendi hebraico com muito esforço. É um idioma difícil, severo e ascético. Sua base
antiga é um provérbio do Mishná: “O silêncio é uma cerca para a sabedoria”. O
hebraico me ensinou a pensar, a poupar palavras, a não usar adjetivos demais, a não
intervir demais, a não interpretar. [...] O hebraico me ofereceu o âmago do mito judaico,
seu modo de pensar e suas crenças, desde os tempos bíblicos até [Shmuel Yosef] Agnon.
Trata-se de um uxo caudaloso de cinco mil anos de criatividade judaica, cheio de
subidas e descidas: a linguagem poética da Bíblia, a linguagem jurídica do Talmude e a
linguagem mística da Cabala. Essa riqueza às vezes é difícil de abordar. Por vezes somos
sufocados pelo excesso de associações, pela multiplicidade de mundos ocultos numa
única palavra.
Crítica
Depoimentos como esse não nascem espontaneamente. Philip Roth
está presente, instigando, pronto a discordar, irônico, sugerindo
analogias inesperadas, descrevendo seus entrevistados por meio de
escolhas sutis, plenas de bom humor. De Primo Levi, por exemplo, diz
que “mais parecia uma criaturinha buliçosa da oresta” ou que “ ca
tão concentrado e imóvel quanto um esquilo ao observar algo
desconhecido do alto de um muro de pedra”.
Mas Roth revela-se especialmente atento à obra, ao estilo dos
entrevistados. É uma agradável surpresa ver que um grande escritor
pode também exercer a crítica de maneira sagaz. Além do magní co
ensaio que fecha o livro, no qual Roth revisita os elementos centrais
da obra de Saul Bellow, seu depoimento sobre Bernard Malamud
possui trechos em que o discurso sobre a criação literária se apresenta
límpido, naquele estado de pureza que comprova como a melhor
crítica literária não necessita dos hermetismos deleuzianos ou do
academicismo estruturalista-marxista que, surpreendentemente, ainda
faz sucesso no Brasil:
Malamud escrevia sobre um mundo empobrecido e dolorido num idioma todo seu, um
inglês que parecia [...] ter sido arrancado do barril menos mágico que se poderia
imaginar: as locuções, as inversões e a dicção dos imigrantes judeus, um amontoado de
ossos verbais quebrados que, até surgir Malamud para fazê-los dançar ao som de sua
melodia tristonha, pareciam só ter serventia para os comediantes judeus e os
pro ssionais da nostalgia. Mesmo quando ele levava suas parábolas aos limites, as
metáforas mantinham um sabor de provérbio. Nos seus momentos de originalidade mais
consciente, quando detectava, em suas histórias narradas do modo mais sóbrio, o
momento exato em que deveria fazer soar a nota mais grave, Malamud apegava-se ao
que parecia antigo e despojado, utilizando a poesia menos enfeitada para tornar as
coisas ainda mais tristes do que já eram.
Virtudes e duplicidade
A grandeza do verdadeiro diálogo nasce de uma premissa que só os
civilizados entendem: não há necessidade de alguém ter razão. Esse
despojamento das vaidades exige virtudes — nobreza de caráter,
tolerância, polidez, generosidade — cada vez mais raras, que
encontramos em todos os capítulos de Entre nós . Roth não é um
prosélito defendendo sua verdade ou um arrogante cujo cinismo
objetiva, ao nal, mostrar como ele próprio é melhor ou mais sábio
que seu interlocutor. Suas perguntas estão destituídas de qualquer
obscura veleidade, e pretendem estabelecer uma comunicação por
meio da qual entrevistado e entrevistador tornem-se, chegado o
momento da despedida, apenas mais humanos — ou seja, melhores do
que são.
Para os afeitos à inteligência, o livro oferece pérolas: a plena
consciência de Primo Levi em relação ao seu processo criativo; a visão
despojada de vulgaridades utópicas do tcheco Ivan Klíma e sua
descrição do paraíso comunista, que transformou escritores e críticos
em operários de construção do metrô ou operadores de guindastes,
embrutecidos e silenciados; a sacrossanta descon ança de Isaac
Bashevis Singer em relação a todos os escritores que não conhecia —
“quando me mandam um livro já parto do pressuposto de que ele não
vai ser grande coisa” —, regra de ouro dos melhores leitores; e a
lucidez de Milan Kundera, resumindo o papel do escritor e do
romance numa época em que todos se autonomeiam arautos da
verdade:
Oriente e Ocidente
O autor dá vida aos mais inusitados viajantes: Zhang Qian,
emissário chinês que partiu, no ano de 139 a. C., em direção à Báctria,
um dos reinos da Ásia Central criados depois das conquistas de
Alexandre, o Grande; Kan Ying, outro emissário da China, que visita
Roma em 79 d. C.; Faxian, o explorador budista que partiu de Xian
em 399 d. C. e, percorrendo a Rota da Seda, alcançou a Índia; e o
almirante Zheng He, que, obedecendo ao imperador chinês Yongle,
realizou, entre 1405 e 1433, sete grandes expedições através do
oceano Índico.
Segundo Fernández-Armesto, os chineses não só podem ter
“dobrado o cabo da Boa Esperança, de leste para oeste, durante a
Idade Média” — pois “um mapa chinês do século XIII mostra a
África de maneira bastante próxima da realidade” e “um cartógrafo
veneziano de meados do século XV relatou ter visto um junco chinês
ou, talvez, javanês, na costa sudoeste da África” —, como também
in uenciaram, “graças ao desenvolvimento das rotas que cruzavam a
Eurásia”, a sensibilidade européia: “É difícil imaginar a grande
descoberta da beleza do mundo natural que ocorreu [...] no Ocidente
— e que associamos principalmente a são Francisco de Assis — sem a
fertilização cruzada com a civilização chinesa, que já tinha uma
notável tradição de apreço pela paisagem”.
Na verdade, essas in uências são mais amplas — e a conclusão do
autor é de que, sob “determinado ponto de vista, os ocidentais são o
resíduo da história da Eurásia, e a projeção onde vivemos é o
sumidouro para onde essa história escoou”. Ou seja, “a propagação
da agricultura e da mineração, a chegada das línguas indo-européias,
as colonizações de fenícios, judeus e gregos, o advento do
cristianismo, as migrações de germânicos, eslavos e dos povos da
estepe, a aquisição do conhecimento, o gosto, a tecnologia e a ciência
da Ásia: tudo isso representou in uências exercidas do Oriente sobre o
Ocidente”.
Em busca da verdade
Se Fernández-Armesto relembra, por exemplo, os Irmãos Vivaldi,
de Gênova, “que se anteciparam em quase dois séculos ao projeto de
Colombo e cujas informações se perderam quase que na totalidade”,
também redimensiona outros personagens, nossos velhos conhecidos.
Dom Henrique, o Navegador, ganha a gura de “um arrivista — um
príncipe real não primogênito com ambições acima de sua condição.
[...] Membro de uma dinastia de modestos recursos e recém-chegada
ao poder — detinha a coroa portuguesa desde 1385, somente —,
ansiava pelo tipo de riqueza que o controle sobre o comércio do ouro
prometia. Para compensar a ausência de uma ‘antiga fortuna’, que
Aristóteles de nia como indicador da verdadeira nobreza, Henrique
impregnou-se dos valores aristocráticos dominantes em sua época — o
‘código’ cavalheiresco”. A corroborar essa descrição, lembremo-nos
de Charles Ralph Boxer, que, em seu clássico O império marítimo
português , já quali cava dom Henrique de “monopolista e
açambarcador”.
Quanto a Hernán Cortés, apenas para citar mais um exemplo,
Fernández-Armesto considera-o “superestimado como conquistador”.
Contrariando as versões que se popularizaram entre nós graças ao
pan eto esquerdista As veias abertas da América Latina , os astecas na
verdade foram derrubados por “uma coligação de povos indígenas
[...], o mais feroz bolsão de resistência [...] entre o México e a costa”.
É pena que o mundo seja vasto demais para permitir ao historiador
uma visão pormenorizada do bandeirismo. Ele cita, claro, esses
corajosos aventureiros, detendo-se em Raposo Tavares, que, no ano de
1650, chegou até a “vertente oriental dos Andes, e a seguir desceu
pelo rio Amazonas”. Mas um estudo detalhado de Fernández-Armesto
certamente despojaria os bandeirantes da aura, apenas parcialmente
verdadeira, de criminosos, assassinos e escravizadores, versão
divulgada por parcela dos estudiosos brasileiros há décadas, num
verdadeiro processo de achincalhação desses paulistas que, sofrendo
de “paixão ambulatória” — segundo o feliz comentário de Charles
Ralph Boxer —, em nada se assemelhavam às outras populações do
Brasil litorâneo, as quais, “durante mais de um século, zeram poucos
esforços, relativamente débeis e esporádicos, para a profunda
penetração nas terras do interior”. (As citações de Boxer estão em A
idade de ouro do Brasil ; obra, aliás, que oferece amplo panorama do
bandeirismo e da personalidade dos paulistas no capítulo “O ouro das
Minas Gerais”).
Coragem intelectual
Voltando à conquista do Atlântico, se é possível sintetizar as causas
da vitória ibérica sobre os mares, devemos seguir Fernández-Armesto
em duas brilhantes conclusões.
Ele considera “tentador [...] atribuir a penetração do Atlântico, com
todas as suas conseqüências, a algo de especial na cultura da região
onde ela teve início”. Contudo, sua avaliação é de que “a maioria dos
aspectos culturais comumente alegados em nada ajuda, porque não
eram exclusivos da costa ocidental da Europa, por serem falsos ou
porque não estavam presentes no momento certo”. Investigando todos
os ângulos da questão, o historiador consegue, no entanto, discernir
um elemento cultural particular e, se não exclusivo do mundo ibérico,
extremamente difundido na região: a literatura de cavalaria. Na
opinião de Fernández-Armesto, aqueles exploradores estavam
“impregnados da idealização da aventura” e “muitos abraçavam ou
procuravam personi car o eminente éthos aristocrático da época — o
‘código’ da cavalaria. Os navios eram seus corcéis, e eles singravam as
ondas como ginetes”. Só uma “estratégia psicológica de escapismo”
poderia “enobrecer atividades que em outras partes do mundo
representavam um ônus para a carreira ou um obstáculo para a
mobilidade social”. Foi essa “atmosfera romântica” que, segundo o
dizer irônico de Fernandez-Armesto, fez o sonho e a ambição
triunfarem “em meio aos ratos e às agruras da vida a bordo”.
A segunda conclusão do historiador é também um emblema de sua
coragem intelectual. Em uma historiogra a dominada por concepções
que obedecem cegamente ao materialismo histórico, Fernandez-
Armesto recupera a importância das características geográ cas:
Durante toda a era da vela — vale dizer, ao longo de quase toda a história — a geogra a
teve um poder absoluto para limitar o que o homem podia fazer no mar. Em
comparação com a geogra a, pouco signi cavam a cultura, as idéias, o talento ou o
carisma individual, as forças econômicas e todos os demais motores da história”. E
fornece ao leitor uma explicação tão clara quanto elucidativa sobre o comportamento
dos ventos que favoreceram os navegantes de Portugal e Espanha, explicando o
predomínio dos alísios, “uma con guração regular em que os ventos dominantes sopram
na mesma direção, qualquer que seja a estação.
De maneira incessante, partindo mais ou menos do noroeste da
África, os alísios atravessam o oceano, descrevendo uma curva que
passa poucos graus acima da linha do equador e prossegue em direção
às terras em torno do Caribe. Graças aos alísios do nordeste, as
comunidades marítimas em torno das desembocaduras do Tejo e do
Guadalquivir tinham acesso privilegiado a grande parte do resto do
mundo. [...] No hemisfério sul, repete-se mais ou menos a mesma
con guração, com ventos que sopram do sul da África para o Brasil.
A Terra inteira
O destemor e a ambição encontraram, assim, dois apoios
fundamentais: o sonho alimentado pela literatura e a benevolência dos
ventos. Essas condições favoráveis, entretanto, não se repetiram a
todos os aventureiros. A história da exploração da Terra é um
somatório de erros, desastres, tragédias. Os desbravadores que
ousaram enfrentar climas inóspitos e relevos traiçoeiros também são
protagonistas da obra de Fernandez-Armesto. Alessandro Malaspina e
seu infortúnio, John Cook, Richard Burton, David Livingstone, Henry
Morton Stanley, Bering e suas terríveis viagens transiberianas, Ernest-
Marc-Louis de Gonzague, Robert Peary, Roald Amundsen, Robert
Scott e Ernest Shackleton – todos comprovaram na própria carne os
versos de Fernando Pessoa: “Os deuses vendem quando dão. /
Compra-se a glória com desgraça”. Eles se reúnem nessa “marcha da
insensatez, na qual quase todo passo adiante representou o resultado
fracassado de um salto que pretendia ir bem mais longe”. Graças a
eles — e a tantos outros, que jamais emergirão do anonimato —
podemos ler o poema de Fernando Pessoa não como um vaticínio,
mas como o relato de um prodígio que se concretizou:
O que torna angustiante nosso esforço para ler [Kafka] não é a coexistência de
interpretações diferentes; é, para cada tema, a possibilidade misteriosa de aparecer ora
com um sentido negativo, ora com um sentido positivo. Esse mundo é um mundo de
esperança e um mundo condenado, um universo de nitivamente fechado e um universo
in nito, o da injustiça e o do erro. [...] Deve ser dito de sua obra: tudo nela é obstáculo,
mas também tudo nela pode se tornar degrau. Poucos textos serão mais sombrios, e, no
entanto, mesmo aqueles cuja conclusão é sem esperança permanecem prontos a se
reverterem para expressar uma derradeira possibilidade, um triunfo ignorado, a
fulguração de uma pretensão inacessível.
Em busca de Ka a
Gérard-Georges Lemaire, autor da biogra a Kafka , é intelectual de
múltiplas facetas: tradutor de, entre outros, Allen Ginsberg e William
Carlos Williams, criou várias revistas culturais e colabora em diversas
publicações. Estudioso de história da arte e estética, com inúmeros
livros publicados, foi curador de uma exposição coletiva dedicada a
Franz Kafka, com o objetivo de transformar em obras pictóricas os
escritos do autor de A metamorfose .
Lemaire inicia seu relato pelo enterro de Kafka. Movido por um
fundo senso dramático, ele não descuida, no entanto, da recuperação
dos necrológios publicados nos jornais da época — oferecendo-nos a
repercussão da morte de Kafka entre a intelectualidade de língua
alemã e tcheca —, de um amplo levantamento histórico sobre a
situação dos judeus instalados na Boêmia e da cuidadosa
reconstituição do problema do anti-semitismo, traçando inevitável
paralelo entre o funeral de Kafka e “o crepúsculo da Praga judia e
germânica (uma minoria no seio de outra minoria bastante ín ma,
presa entre o martelo do nacionalismo tcheco e a bigorna do anti-
semitismo alemão), que viu pouco a pouco seus artistas desertarem-
na”.
Lentamente, surge diante de nós o jovem Kafka, formado em
instituições escolares severas, a m de responder aos anseios de
ascensão burguesa do pai, bem como a estranha discordância existente
entre o que seus contemporâneos lembram sobre sua dedicação e seu
desempenho na escola e a maneira de Kafka, reiteradamente, se
autodepreciar.
Lemaire deixa evidentes os cuidados que toma na tentativa de
recuperar o “verdadeiro” Kafka. Utiliza a Carta ao pai com
descon ança — “Não sabemos se é puramente autobiográ ca ou
puramente literária. [...] É preciso ler essa carta com muitas
precauções” —, permitindo que a ore um Kafka menos ccional: “A
vida em família nem sempre foi tão sombria quanto ele nos faz crer,
como se a completa dominação do pai lançasse uma sombra pesada
sobre tudo. Na qualidade de mais velho, ele tem ascendência sobre
suas irmãs, que parecem, aliás, obedecê-lo com docilidade.”
E essa descon ança se repete em relação a outra fonte assinada pelo
escritor, sobre a qual Lemaire pondera: “[...] se con armos em seu
Diário , sempre muito lacunar e elíptico”.
O aluno de direito que cursa germanística, história da arte,
literatura alemã e sintaxe do alto alemão moderno — “com os
exercícios de estilo e os comentários das cartas de Gestenberg, um
grande crítico do século XVIII” —, também é o leitor de Nietzsche,
Flaubert (no original francês), Goethe e Robert Walser, além de
desenhista — aparentemente in uenciado por Paul Klee e Alfred
Kubin —, adepto do naturismo, caminhante solitário pela Praga
dominical e freqüentador assíduo de cabarés, bares e prostíbulos.
Todas as facetas da personalidade de Kafka são apresentadas ao leitor,
incluindo seu humor sutil e a capacidade para rir de si mesmo.
Trata-se de uma biogra a útil como introdução ao mundo
kafkiano, e não só porque Lemaire nos oferece uma minuciosa
cronologia das obras de Kafka, sempre contextualizando os
respectivos períodos de elaboração, mas pelo fato de que o biógrafo
tem o cuidado de compor um claro panorama do espaço físico no qual
o escritor viveu, descrevendo o processo de urbanização dos bairros
em que a família Kafka morou, historiando a vida noturna, inclusive
com detalhes da decoração dos cafés e prostíbulos, além de
acompanhar os personagens centrais, principalmente as mulheres que
se relacionaram com o escritor, como Felice Bauer e Milena Jesenská,
até anos depois da morte de Kafka.
No texto de Lemaire não há espaço para hipóteses mal
fundamentadas ou generalizações. Seu apego aos detalhes — inclusive
da correspondência de Kafka, na qual o escritor expõe suas carências
sem qualquer pudor, exagerando-as a ponto de confundir realidade e
cção — dá vida a uma narrativa equilibrada, capaz de encontrar
soluções prudentes para as inevitáveis lacunas. Por exemplo, entre
duas versões sobre a relação do biografado com o sionismo, Lemaire
delibera: “O que podemos a rmar é que Kafka tem uma consciência
aguda da situação acrobática e necessariamente perigosa do homem
judeu na Europa moderna. Ele sabe que essa situação é fruto de uma
longa, longuíssima história cujos fundamentos estão deturpados.
Os últimos dias de Kafka fecham o livro. A descrição da pobreza, a
doença que o impede de se alimentar, as horas de felicidade ao lado de
Dora Diamant, a inesgotável ânsia por escrever, a agonia no Sanatório
Wiener Wald, o ímpeto com que ele arranca de si o pneumotórax,
todos esses elementos são impregnados pela descrição do encontro de
Kafka com sua “leitora ideal”, aquela que, “como ele, prefere a
‘verdadeira vida’ da cção à vida real” — páginas nais que
rea rmam o timing de Gérard-Georges Lemaire.
Simplificações
Distanciando-se da biogra a formal, Kafka de Crumb , com
desenhos de Robert Crumb e texto de David Zane Mairowitz, é obra
à parte. Nesse sentido, o editor brasileiro agiu acertadamente ao não
traduzir o título original, Introducing Kafka , pois o livro não é uma
introdução aos escritos, à vida ou às idéias de Kafka, mas, no que se
refere exclusivamente aos desenhos, uma leitura pessoal de Crumb.
O texto de Mairowitz, que já escreveu volumes semelhantes sobre
Wilhelm Reich e Albert Camus, apresenta conclusões duvidosas e
criticáveis generalizações. Ele a rma, por exemplo, que Kafka “não
tinha uma visão do mundo discernível para utilizar em seu trabalho,
nenhuma loso a que o guiasse, somente lendas espantosas retiradas
de um subconsciente extraordinariamente agudo”, demonstrando não
conhecer a formação de Kafka e restringindo o imaginário do escritor
a algumas histórias assombrosas da cultura judaica, como a do
Golem.
Para Mairowitz, entre alemães e tchecos, “TODOS [maiúsculas do
autor] odiavam os judeus”. E no que se refere à relação de Kafka com
o pai, dois parágrafos bastam para termos uma idéia de seus exageros:
O pavor que Kafka demonstrou em toda a vida frente ao PODER superior, tornado
famoso em seus livros O processo e O castelo , começa com Hermann Kafka [pai do
escritor]. Ele temia e odiava seus professores da escola, mas tinha de vê-los como
Respektspersonen a serem respeitados por nenhuma outra razão a não ser a de estarem
em posições de autoridade.
Mas ele nunca se rebelou. Em vez disso, transformou seu medo em auto-rebaixamento
ou doença psicossomática. Em cada enfrentamento com a autoridade, tornava-se o lado
culpado. Além disso, como na clássica relação entre senhor e escravo, colonizador e
colonizado, COMEÇOU A VER-SE ATRAVÉS DOS OLHOS DO PAI.
Pequenas epifanias
Outra leitura de Kafka, distante dos excessos de Crumb e
Mairowitz, encontra-se em K. , de Roberto Calasso, editor e ensaísta
conhecido dos leitores brasileiros, autor de Os 49 degraus e As
núpcias de Cadmo e Harmonia .
Os capítulos de K. pressupõem a leitura de Kafka. Sem esse
antecedente, o leitor se sentirá navegando à deriva. Contudo, tendo
lido ao menos O castelo e O processo , sua experiência nem sempre
será agradável, pois, se, como a rma a orelha do livro, “Calasso não
tenta desfazer o labirinto a golpes de interpretação”, algumas vezes
despende páginas e páginas para recontar o que já lemos nas obras de
Kafka, apenas para recontar o que Kafka, é claro, contou melhor.
Assim, é preciso ler Calasso com paciência e pertinácia, não
somente para ultrapassar as páginas entediantes, mas principalmente
para descobrir os momentos nos quais o autor elabora comentários
que são pequenas epifanias, observações que nada concluem, que na
verdade não pretendem ser conclusões de nitivas, mas que nos fazem
re etir.
Logo no início da obra, partindo de uma citação autobiográ ca —
“Como justi co o fato de não ter escrito nada hoje? Com nada. [...]
Tenho continuamente nos ouvidos uma invocação: Ah, se viesses,
tribunal invisível” —, Calasso a rma:
Com essas palavras, como se recorresse a um potente sortilégio da mão esquerda, Kafka
cruza o umbral e penetra no recinto do Processo e do Castelo — mas também de todo o
resto de sua obra. Esse é o lugar de sua escrita, na expectativa de uma condenação e nas
delongas de um trâmite interminável. Lugar torturante, mas também o único ao qual
Kafka tem certeza de pertencer.
Escolhendo o nome K., Kafka obrigou-se a grafar centenas de vezes, diante dos próprios
olhos, um traço que ofendia e no qual reconhecia alguma coisa que lhe dizia respeito. Se
tivesse narrado O castelo em primeira pessoa, conforme começara a fazer, a história não
teria imergido tão profundamente em sua própria siologia, em zonas subtraídas ao
império da vontade.
[...] Mas voltemos a olhar para uma fotogra a de Hermann Kafka em 1930, seis anos
depois da morte do lho e um ano antes da sua própria. Está em pé, ao lado da esposa,
que, metida num casaco longo e escuro, parece sair do chão. Hermann está magro, a
gola da camisa é frouxa demais, o casaco está aberto e pende, com certa elegância, como
de um cabide. O rosto é o de Franz Kafka, tivesse ele envelhecido. Tudo é igual: os
cabelos rentes, as orelhas para fora, a leve inclinação da testa, a ossatura triangular do
rosto, a quieta desolação do olhar. Apenas deste último pode-se dizer que não
corresponde plenamente ao do lho. Mas o pressupõe.
[...] Aqui aboliu-se toda a redundância, todo acidente, toda ênfase. Em sua brevidade,
em sua limpidez enganadora, essas frases têm alguma coisa de taxativo. Seria fútil exigir
uma ampli cação ou concatenação. São os traços intempestivos do pincel de um mestre
velhíssimo, que se concentra por inteiro nas mínimas oscilações do pulso, guiadas por
um “olho que simpli ca até a desolação total”, como Kafka de niu seu próprio olhar
numa carta da mesma época.
Ka a e o mundo
Da mesma forma que Roberto Calasso, o lósofo Günther Anders
— em Kafka: pró & contra — não se propõe a alcançar uma verdade
de nitiva sobre Kafka, pois sabe quão frágil seria o estabelecimento de
um juízo dependente de provas nem sempre identi cáveis e de um réu
cujos depoimentos podem ser tanto cção quanto realidade. Mas,
numa decisão que o coloca em um patamar superior ao de Calasso,
pretende “ver por dentro” o texto kafkiano. Seu ensaio também não
almeja “ser uma introdução, mas um comentário”, pois Anders — que
foi aluno de Martin Heidegger, Ernst Cassirer e Edmund Husserl —
tem consciência de que nenhuma análise pode substituir ou se
antecipar à leitura da obra à qual ela se refere.
Empreendendo um estudo que busca as vísceras do texto, Anders
tenta comprovar a tese de que “as verdades da fábula nascem da
deformação” e, no caso de Kafka, trata-se de estudar um “fabulador
realista”. Ele atinge seu propósito, revelando, passo a passo, as
inversões, deformações ou deslocamentos por meio dos quais Kafka
cria suas metáforas: o escritor trata a loucura de maneira trivial —
como se todos os dias homens acordassem transformados em insetos
—, torna comum o insano, potencializando, assim, a loucura do
mundo; ou renomeia os objetos, “para separar, de antemão, os
preconceitos automaticamente ligados aos nomes, com isso forçando o
leitor — e a si mesmo — a olhar de frente, sem preconceito, aquilo
que deseja dizer”. Ao inocular estranhamento no real, cria “a
trivialidade do grotesco”: o espantoso é tratado “como algo
despojado de espanto”; o além “não é de maneira alguma
extramundano, mas o próprio mundo, o próprio Aquém”; “a punição
(que se antecipa à culpa) torna-se testemunho da culpa”; e os
personagens deixam de ser homens, transformando-se em funções, de
maneira que a “incorporação progressiva no mundo”, interpretada no
romance ocidental como “educação”, é “descrita como um malogro”.
Para Günther Anders, as bases dessa “estranheza especial de
Kafka” podem ser encontradas, ao menos parcialmente, em sua
biogra a: a de um judeu ateu vivendo em um mundo tcheco e cristão,
mas expressando-se em alemão. E esta é apenas uma parcela do que
Anders chama de “condição de não-pertencer” ou “discrepância
insanável entre sujeito e mundo”: “o ‘eu’ que Kafka encontra, ele o
descobre como um ‘estranho’ — mas o ‘estranho’ não ‘é’, pois a
palavra ‘ser’ [...] em alemão quer dizer as duas coisas: ‘estar aí’ (
dasein , existir) e ‘pertencer a’ ( ihm gehören , ser de). Quem ‘pertence’
(é de) pode dizer: ergo sum ”.
Na verdade, o lósofo só consegue realizar sua lúcida leitura de
Kafka pelo fato de ser, antes, um leitor do mundo, um leitor sensível
da realidade e, também, de uma ampla tradição literária e losó ca,
na qual se incluem Kant, Marx, Lessing, Goethe, Gógol e Poe, entre
outros. Na condição de incansável explicador, verdadeiro criptógrafo,
ele constrói seu texto claro, didático, no qual os raciocínios são
expostos sem causar enfado, mas obrigando-nos a reconhecer sua
perspicácia. Ao mesmo tempo, Anders não abre mão da profundidade,
da pesquisa que esmiúça cada detalhe, que critica outros estudiosos de
Kafka e penetra no jogo de inversões do seu objeto de estudo para, ao
nal, extrair uma síntese. Jogo de inversões, aliás, clari cado pelas
notas do tradutor, Modesto Carone.
Não se trata de a rmar que Anders estabeleceu parâmetros
incontestáveis, nem é esse o seu objetivo, mas de reconhecer que, por
meio de sua leitura, nossa compreensão do universo kafkiano se
ilumina. Assim, o que, em Calasso, serve a um repisar que se estende
por páginas e páginas, em Günther Anders restringe-se a poucas linhas
de uma interpretação que não soa forçada, mas elucidativa. Nele,
nada é excessivo.
Poucos meandros escapam à sua análise. A abrangência de sua
leitura alcança, inclusive, a função do subjuntivo, tempo verbal que
ele chama de “ lho da insegurança”, partindo daí para analisar as
“frases condicionais” do escritor, tratadas como um “sintoma de falta
de vontade própria e um elemento decisivo da sintaxe de não-
liberdade”, até desembocar em uma preciosa de nição, composta para
resumir a qualidade do estilo kafkiano, mas adequada a todos os
escritores que dominam sua arte: “o ducto lingüístico e a empostação
de voz de quem, quando fala, sabe com precisão na qualidade de
quem, a quem e para que fala, assumem aquela inequivocidade que
nós acolhemos como estilo convincente”.
O trabalho de Anders não se esgota nesse ponto. Ao comentar
Kafka, ele o ultrapassa, caminha para além da literatura e elabora
uma cosmovisão útil não apenas ao homem que conheceu de perto os
horrores da Segunda Guerra Mundial, mas também para os que vivem
nos dias de hoje. Suas re exões, portanto, abandonam a condição de
uma crítica essencialmente literária e se transformam em um ensaio
sobre a condição humana.
Günther Anders, no entanto, não elogia apenas. Ele indica aqueles
que seriam os limites de Kafka, considerando-o, “em certo sentido,
um moralista do nivelamento”, cuja “mensagem moral é o sacri cium
intellectus ”, cuja “mensagem política é a auto-humilhação”, o que
teria desembocado “num arrazoado de defesa da desindividualização e
da dependência [...], um documento literário pré-fascista — um
discurso de defesa da obediência cadavérica”.
Mas ainda que exerça seu direito e seu poder de crítica, Anders sabe
reconhecer os próprios limites, como nestes dois momentos:
Muita coisa continua passível de muitas interpretações. Não só se ele [Kafka] está
falando em tese ou se apenas testa teses em forma de fábula. Se supuséssemos que
realmente “pretendeu” aquilo que disse, ainda assim caria incerto se o que foi dito em
forma de tese descreve atitudes humanas que existem ou atitudes que deveriam existir.
Mais que isso, porém, ca sujeito a múltiplas interpretações.
Racismo e determinismo
Outra das qualidades de Amory é não escamotear nenhum dos
aspectos censuráveis da obra euclidiana. O racismo, inserido no
quadro da evolução intelectual de Euclides, que vai do positivismo ao
darwinismo spenceriano, ganha inúmeras páginas de análise e uma
conclusão que poucos tiveram coragem de escrever: se o escritor não
foi um “rematado racista”, suas idéias “sobre a sociedade e o avanço
ou regressão social” são “tingidas ora com matizes mais leves, ora
com matizes mais escuros de racismo”. É o caso, por exemplo, do
insistente e obscuro bordão da “integridade étnica” que faltaria aos
brasileiros, capaz de nos aparelhar “de resistência diante dos
caracteres de outros povos” — tese tão simplista quanto ultrapassada.
Há também o exagerado determinismo, que permitiu a Euclides
criar um método recorrente — inspirado em Henry Thomas Buckle —
para expressar suas analogias: o que Amory chama de “interações
fantasiosas entre o homem e a natureza”. Vistas sob certa perspectiva
unilateral, podem parecer licenças poéticas, mas quando
contextualizadas no plano maior do pensamento euclidiano, tornam-
se hipóteses pseudocientí cas. No ensaio “Contrastes e confrontos”,
por exemplo, a idéia é de que, no Peru, “a história parece um
escandaloso plágio da natureza física”. Euclides faz, então, o Império
Inca ser resultado da presença dos Andes, enquanto o comportamento
dos modernos líderes políticos daquele país seria fruto dos
terremotos... No que se refere aos caboclos da Amazônia, o escritor
avalia que a própria oresta se encarrega de selecionar para a vida os
mais dignos: “Eliminou e elimina os incapazes, pela fuga e pela morte.
E é por certo um clima admirável que prepara as paragens novas para
os fortes, para os perseverantes e para os bons”. Sem dúvida,
conclusões que, analisadas sob critérios cientí cos contemporâneos,
não passam de bobagens. Tais raciocínios, inclusive, estimulam uma
visão exageradamente otimista, quase pueril, segundo a qual o
progresso produzirá inevitável desenvolvimento das qualidades
morais, de modo a tornar “a sociedade uma extensão da unidade
familiar”.
Frederic Amory não perdoa nem mesmo as generalizações de seu
biografado, algumas bem toscas, como a a rmação de que “a
literatura russa divulgou um largo e generoso sentimento de piedade,
diante do qual se eclipsam, ou se anulam, o platônico humanitarismo
francês e a artística e seca lantropia britânica”.
Escrúpulos e imaturidade
Quando se trata de política, o biógrafo demonstra a completa
ingenuidade de Euclides. Sonhador, ele realmente acreditava que a
República não nascera de uma quartelada, mas, sim, de um processo
revolucionário. E tal idealismo turvaria seus pensamentos, fazendo
com que, em minha opinião, os problemas encontrados por Amory
nos primeiros artigos, escritos para A Província de São Paulo — “o
brilhantismo intelectual de suas apresentações podia ser tão arti cial
quanto sua ignorância de que a política de bastidores realmente
existia, e as pessoas e os fatos freqüentemente desapareciam diante das
abstrações de sua argumentação” —, se repetissem, em maior ou
menor grau, até a derradeira página.
A incapacidade de Euclides para compreender os mecanismos da
luta política e seus inseparáveis lances de perfídia levou-o a acreditar
em Floriano Peixoto, ainda que, mais tarde, percebesse algumas
sutilezas do ditador. Esse erro, somado ao seu incurável romantismo,
faz com que apóie a ditadura orianista e, depois, não dedique
atenção a Prudente de Morais, talvez o principal político da República
Velha, cujas qualidades José Maria Bello enumerou em História da
República : “O melhor tipo de político criado pelo Império de Pedro
II: inteligência equilibrada, probidade perfeita, gravidade um tanto
formalística, altivez, espírito cívico, invencível aversão a qualquer
forma de militarismo”.
Essa imaturidade desbordaria para a vida pro ssional e familiar. O
episódio envolvendo a Escola Politécnica de São Paulo e seu diretor,
Paula Souza, é tristemente paradigmático. Depois de escrever severas
críticas à escola e à orientação de Paula Souza, Euclides luta para
conseguir uma cadeira na Politécnica. E se surpreende por não
consegui-la, julgando, talvez, que devessem desconsiderar os ataques
públicos que zera e aceitá-lo por seus méritos... Sem dúvida, era de
uma inabilidade social lamentável.
Às vezes, essa incompetência para a vida prática provocava cenas
dignas: Euclides chega a se altercar com o barão de Rio Branco por
causa do valor de seu salário, pois continuava a receber como chefe da
Comissão Mista que explorara o rio Purus, apesar de a expedição ter
acabado — devendo, portanto, segundo ele, receber de acordo com a
“tabela comum”. Após muita discussão, acaba convencido pelo barão
de que o salário estava certo, já que ainda não terminara de redigir o
relatório nal.
Em outros momentos, no entanto, sua imaturidade e seus
exagerados escrúpulos morais o transformam num tolo. É desolador
acompanhar o relato de como ele foi jubilosamente traído pela esposa,
Ana. Depois de longos meses na Amazônia, quando volta ao Rio de
Janeiro encontra Ana grávida de três meses — e esta lhe diz que fora
in el apenas “em espírito”... E até mesmo quando o lho do adultério
nasce, louro, semelhante a “um pé de milho num cafezal”, segundo o
que Euclides teria dito a Coelho Neto, o escritor parece perdido em
dúvidas, sentindo-se culpado pela longa ausência a serviço do país.
Obra monumental
Não deixa de ser espantoso que tal personalidade tenha escrito Os
Sertões . E é ainda mais surpreendente que o tenha feito não no
silêncio do escritório, mas em uma cabana de folhas de zinco, em
pleno canteiro de obras, enquanto dirigia a reconstrução da ponte
sobre o rio Pardo, em São Paulo.
Amory faz a reconstituição minuciosa do período que Euclides
passou em Canudos — acompanhando a última expedição do
governo, que derrotaria as forças de Antônio Conselheiro —, recupera
detalhes da guerra, interpreta trechos vagos das anotações do escritor,
confere o acerto de cada uma das datas e nos apresenta o processo de
criação de Os Sertões , a começar dos primeiros esboços, de 1898.
A obra monumental de Euclides da Cunha tem provocado reações
contraditórias desde o seu lançamento, em 1902. E, numa tentativa de
isolar o valor estilístico dos erros geográ cos e das análises
deterministas e racistas, convencionou-se dizer que a força da
narrativa de Os Sertões supera o conteúdo analítico datado. Amory
tenta seguir essa linha de pensamento, e o faz bem, inserindo o estilo
euclidiano na categoria de Kunstprosa , que se refere a uma prosa
altamente artística e formal, construída com o apoio do aparato
retórico clássico. Não por outro motivo, aliás, o biógrafo também se
serve, em sua análise, do livro de Heinrich Lausberg, Elementos de
retórica literária .
Confesso que já admirei mais o estilo euclidiano. Hoje, pinço os
trechos que ainda me encantam e, no geral, tendo a pensar como
Gilberto Freyre, para quem Euclides está “perigosamente próximo do
precioso, do pedante, do bombástico, do oratório, do retórico, do
gongórico, sem afundar-se em nenhum desses perigos: deixando-o
apenas tocar por eles; roçando por vezes pelos seus excessos;
salvando-se como um bailarino perito em saltos-mortais, de extremos
de má eloqüência que o teriam levado à desgraça literária ou ao
fracasso artístico”.
Dentre os trechos selecionados por Amory há um dos que mais
aprecio, “Higrômetros singulares”, o qual considero — como a rmei
em Esquecidos & Superestimados — inspirado no poema “Le
dormeur du val” (“O adormecido do vale”), de Arthur Rimbaud. Os
comentários do biógrafo, aliás, só reforçaram minhas suspeitas.
Tendência ao trágico
Mas, voltando ao objeto desta resenha, Amory nos deixou um
trabalho de rara honestidade intelectual, que supera, sem qualquer
dúvida, as biogra as anteriores, pois nenhuma delas apresenta, de
maneira tão viva, esse “homem multifário”. Todas as neuroses dessa
personalidade doentia, irritativa, são apresentadas, bem como as
di culdades em família, as tortuosas relações com o pai, os gestos de
heroísmo na expedição ao rio Purus, a revolta diante dos crimes de
Canudos, a sexualidade sublimada na juventude — e a incontrolável
tendência ao trágico, seu anelo da morte trágica, visível, por exemplo,
na atitude que teve durante uma tempestade em alto-mar, quando
exige que a embarcação não se desvie do rumo, e mais tarde, salvo em
terra graças ao capitão que o desobedecera, no comentário que faz a
Vicente de Carvalho, seu companheiro de viagem: “Se eu morresse
seria uma bela morte — uma morte no cumprimento do dever. A sua é
que seria estúpida — morrer num passeio”. Tragédia que ele
nalmente encontraria, assassinado pelas costas e ouvindo, em seu
último momento, não as palavras de carinho maternal que, órfão
desde pequeno, certamente buscou por toda a vida, mas a invectiva do
amante de sua mulher: “— Toma, cachorro!”.
CRIMES INCOMENSURÁVEIS — IVO PATARRA
“República sindicalista”
Por muito menos, Pierre Bérégovoy, primeiro-ministro de François
Mitterrand de 1992 a 1993, cometeu suicídio. Acontece que na velha
França a corrupção também grassa, mas lá alguns ainda acreditam na
importância de manter a própria honra. Aqui, não. Entre nós, o que
impera é o pensamento de Delúbio Soares, colhido por Ivo Patarra:
“Quando você está no governo, você é o dono do mundo. Você não
tem preocupação com nada”. Ou talvez pre ra-se recordar a fala de
Klinger Luiz de Oliveira — petista que, segundo Patarra, está sempre
acompanhado de um revólver: “Com o poder não se brinca, o poder
tudo pode”. Uma pequena parcela de cidadãos, contudo, aprecia mais
esta outra pérola gravada por Patarra, o veredicto de Hélio Bicudo
sobre Lula: “Ele é mestre em esconder a sujeira debaixo do tapete.
Sempre agiu dessa forma”.
Mas O chefe não é apenas uma coletânea de sordidezes. Não. Ivo
Patarra investiga as possíveis causas dos sucessivos e ininterruptos
casos de corrupção, chegando a se aproximar de algumas, como neste
elucidativo trecho:
Em abril de 2008, o jornal O Globo , do Rio, ajudou a entender Lula um pouco melhor.
Publicou o artigo “Lula, o pelego”, do professor Francisco Weffort, fundador do PT e
secretário-geral do partido de 1984 a 1988. Ele relatou uma viagem internacional na
qual acompanhou Lula na década de 80. Um dirigente sindical metalúrgico foi agressivo
com Lula na Alemanha. Estava furioso porque enviara dinheiro a São Bernardo do
Campo (SP), mas não recebera qualquer prestação de contas do sindicato comandado
por Lula. Já naquela época, Lula se desvencilhou do problema. Não sabia de nada.
“Até então era difícil imaginar que um partido tão a nado com o discurso da moral e da
ética pudesse aninhar o ovo da serpente. Minha dúvida atual é a seguinte: será que a
leniência do governo Lula em face da corrupção não tem raízes anteriores ao próprio
governo? A propensão para tais práticas não teria origem mais antiga, no meio sindical
onde nasceu o PT e a atual ‘república sindicalista’?”.
Sociedade de Erasmistas
Terminadas essas considerações, o estudo se abre a outra
importante questão: imaginando a existência de uma Sociedade de
Erasmistas, que reuniria todos os intelectuais semelhantes a Erasmo,
Aron, Berlin e Popper, quem mais, no século XX, poderia ser aceito
nesse grupo tão seleto?
Propondo-se a tal averiguação, Dahrendorf analisa a vida e o
pensamento de Hanna Arendt, Theodor Adorno, Norberto Bobbio,
Arthur Koestler, George Orwell e vários outros.
Ao mostrar que a liberdade “sempre está em perigo e por isso
necessita de uma defesa ativa”, Dahrendorf passa pelo crivo das
virtudes erasmistas esses e outros pensadores, nem sempre
encontrando idéias ou carreiras irretocáveis.
Muitos cometeram o “pecado venial da adaptação”, aceitando
sobreviver de forma passiva sob regimes ditatoriais; alguns se
mostraram oportunistas, ainda que de forma passageira; e outros,
como Jean-Paul Sartre, merecem ser categoricamente rechaçados.
A busca de candidatos a essa hipotética sociedade faz com que
Dahrendorf analise também os principais acontecimentos da segunda
metade do século XX, como a “rebelião verborrágica” de maio de
1968 — que representou a “irrupção do relativismo e do
fundamentalismo no mundo ilustrado da sociedade aberta” e silenciou
em relação aos crimes da Primavera de Praga e da Revolução Cultural
Chinesa.
Novas ameaças
Na correta opinião de Dahrendorf, infelizmente falecido em junho
de 2009, neste mundo inseguro não faltam indícios de novas ameaças
à liberdade.
O autoritarismo que vai se introduzindo em inúmeros países e o
terrorismo islâmico talvez possam fazer acreditar que os valores
liberais não têm mais qualquer utilidade, diz o sociólogo, mas o fato
de eles continuarem sendo cultivados e propagandeados representa
mais do que mera esperança: dá a todos nós convicção de que a defesa
da liberdade jamais morrerá e de que é sempre hora de os erasmistas
se pronunciarem.
La libertad a prueba , de Ralf Dahrendorf, é leitura indispensável
para todos nós, latino-americanos, que vivemos sob o jugo de
governos populistas e demagógicos, de crescentes atitudes despóticas.
Governos que transformaram inclusive artistas e intelectuais em
cúmplices de um novo tipo de caudilhismo.
PESSIMISMO, CONTRADIÇÕES E APATIA —
EMIL CIORAN
Manuel Bandeira chegou pra mim um dia, quando eu e meus personagens éramos
odiados, e disse: ‘Nelson, por que você não faz uma peça em que os personagens sejam
assim como todo mundo?’. Eu respondi da forma mais singela: ‘Mas meu caro Bandeira,
meus personagens são como todo mundo’. Porque uma coisa é verdade: quem metia ou
mete o pau no meu teatro está procedendo como um Narciso às avessas, cuspindo na
própria imagem.
Estudei, pois, e estudei muito, tão-somente em vista de compreender alguma coisa deste
mundo, e eventualmente do outro, sem a menor pretensão de usar meus conhecimentos
para me tornar aquilo que se convencionou denominar alguém .
Urso na toca, mantive-me por trinta anos entre livros e uns poucos amigos, ensinando
em cursos privados, sem sentir a menor falta daquela tagarelice colorida que se entende
por vida cultural.
Fissura moral
Olavo de Carvalho não se assemelha a Euclides da Cunha, que se
de nia “como certos pássaros que, para desferir vôo, precisam de
trepar primeiro a um arbusto. Abandonados no solo raso e nu, de
nada lhe servem as asas; e têm que ir por ali afora à procura do seu
arbusto”, como relata Sylvio Rabello na biogra a Euclides da Cunha .
Mas apesar de pertencer ao grupo de escritores admirados pelo autor
de Os Sertões , os “espontâneos”, que não dependem de “arbustos”
— a expressão que Euclides utilizou para se referir a “fatos” —,
elabora alguns de seus ensaios a partir do que se encontrava, à época,
nas páginas dos jornais, ou seja, a partir do material que, difundido
graças à cumplicidade midiática, in uencia e muitas vezes condiciona
as mentes incapazes de elaborar juízos críticos, sempre prontas a
aderir aos modismos.
Suas análises, contudo, extrapolam o que poderíamos chamar de
“crítica cultural” — e exatamente por esse motivo o livro provoca
reações apaixonadas: os “arbustos” em que Olavo se apóia são apenas
uma desculpa para expor os vícios de certa intelectualidade. Ele
disseca o acordo tácito por meio do qual concentra-se
“obsessivamente a discussão em certas correntes de idéias, para
bloquear ao público o acesso às outras” — acordo, aliás, que é um
“método elegante de censura prévia, que dá ao mais tirânico dirigismo
mental a aparência de uma discussão democrática”. Expõe, a partir da
análise das idéias de Christopher Lasch, a existência dessa “nova elite
dominante no mundo”, insatisfeita em apenas uniformizar o
pensamento e disposta a “reinventar o mundo à sua imagem e
semelhança, doa a quem doer”, o que ela chama de “engenharia
social”. Após desmontar o pensamento do próprio Lasch,
apresentando-o como péssimo leitor de Ortega y Gasset, enfurece a
intelligentsia , “hordas de lhinhos de papai”, desnudando cada
perniciosa moda transmitida como se representasse um valor
universal, cada erro de avaliação referendado pela mídia como lho
do brilhantismo, da genialidade. Vira no avesso a lógica deformada
que rege os intelectuais tupiniquins, apresentando-a na sua faceta
mórbida por meio de uma tese inovadora: a classe cujo único
referencial é a mudança política suportou a ditadura militar
desprezando a criação de novas formulações, entregue à confusão
existencial, à
perda completa do sentido da vida, justi cando todas as medidas desesperadas, todas as
loucuras, todos os acanalhamentos. [...] Não sabendo viver sem política, a classe letrada
encontrou na ditadura o pretexto para legitimar a sua auto-indulgência. A esterilidade
cultural do período foi depois inteiramente lançada à conta dos débitos da ditadura. A
alegação pareceu verossímil a um público desprovido de pontos de comparação.
Há na alma de cada um desses homens uma parte que não se compromete com o pathos
moralizador exibido em público; uma parte que olha tudo isso com frieza e ironia, e que
desmente, por dentro, a convicção enfática dos gestos e palavras. Essa parte é a sua
consciência crítica, que, formada numa tradição de materialismo histórico e relativismo
sociológico, não pode levar integralmente a sério os valores morais.
Façam o que zerem, andem por onde andarem, os cérebros uspianos estarão sempre
girando em torno do valor, da alienação, do capital, e de todas aquelas palavras mágicas
que, nascidas para a descrição de um fenômeno histórico local e passageiro, são in adas
em seguida até se constituírem em chaves, princípios e critérios de ilimitado alcance
ontológico, dos quais se pode esperar licitamente a explicação de tudo quanto existe sob
o Sol e acima dele, bem como dentro e em torno.
[...] o Brasil é o único país do mundo onde a loso a é uma especialização, dispensável
para os intelectuais de todos os outros ramos, e onde — numa espécie de perversão
complementar — um diploma de bacharel em loso a dá direito ao título de “ lósofo”.
Isto produz nos ambientes letrados um estranho cacoete burocrático: quando sou
apresentado como lósofo, logo o interlocutor me pergunta em que departamento estou,
quem é meu chefe, se sou efetivo ou contratado, e outras coisas por este gênero, que
subentendem ser a condição de lósofo um tipo de cargo público. Um ar de profunda
consternação esboça-se no rosto do interrogante quando respondo que não estou em
parte alguma, não tenho chefe nem subordinados como aliás não os teve o bom
Sócrates, nada entendo de planos de carreira e, quanto a títulos, só os tive no protesto,
graças a Deus resgatados a tempo. Explico então, mais que depressa, que não sou
lósofo não, apenas um escritor de livros que, por mera coincidência, tratam de loso a,
professor em cursos privados que, dada a minha carência de outros conhecimentos,
tratam também de loso a, e proprietário de um cérebro que, por absoluta falta de
outros interesses, se ocupa de loso a obsessivamente e em tempo integral. Ao ver-me
reconhecer que todas essas coisas não bastam para me fazer um lósofo — condição
funcional reservada àqueles que, sem nunca terem escrito livros de loso a, proferido
cursos de loso a ou pensado em problemas losó cos por um único instante,
bocejaram aplicadamente por quatro anos num cursinho universitário —, o interlocutor
parece sentir-se aliviado. Mas por dentro co me perguntando quando uma similar
identi cação funcional começará a ser exigida aos poetas, aos santos, aos heróis, os
quais formam, com o lósofo ou aspirante a sábio, a quaternidade das formas superiores
de existência, que nós outros, passadistas empedernidos, imaginávamos irredutíveis a
qualquer carimbo de identidade pro ssional.
Literatura e mediocridade
Décadas de governo esquerdista in igem ônus avassalador à
cultura, extremam tentativas de controle ideológico. É o que vemos
hoje, inclusive no crescente movimento para transformar Lima Barreto
num escritor que mereça ser equiparado aos maiores da língua
portuguesa. A crítica que não admite matizações trata o autor de Vida
e Morte de M. J. Gonzaga de Sá como um gênio: endeusa até mesmo
seu alcoolismo e seus eternos ressentimentos. Mas, em 1996, Olavo de
Carvalho anunciava essa inversão de valores: “Já houve quem,
preferindo a simples nacionalidade dos temas à grandeza consumada
de um clássico, pretendesse destronar Machado de Assis para colocar
em seu lugar Lima Barreto, um escritor muito bom, sem dúvida, mas
cujas realizações cam obviamente aquém das promessas.”
O próprio major Quaresma — protagonista de Triste Fim de
Policarpo Quaresma —, hoje visto, por alguns exaltados, como
símbolo do melhor idealismo, nacionalista de esquerda circundado de
estúpidos, sonhador corajoso e pueril, recebe de Olavo a análise
correta:
[...] nossos educadores julgam muito natural impingir aos jovens a leitura de Joaquim
Manuel de Macedo, de Bernardo Guimarães e de toda uma plêiade de autores de
segunda ou terceira ordem, por serem tipicamente nacionais, ou típicos da formação
histórica nacional, ao mesmo tempo em que se omite da educação literária qualquer
menção a escritores de valor muito mais alto, como Da Costa e Silva, por ser muito
grego, José Geraldo Vieira, por ser excessivamente português, ou Hilda Hilst, por não
ter raízes em nenhum lugar conhecido no sistema solar.
Seres excêntricos
Longe de ser análise exaustiva de O Imbecil Coletivo , este ensaio
almeja entusiasmar o leitor a empreender o percurso proposto pelo
lósofo: perscrutar o Brasil dando as costas, inicialmente, às escolhas
diárias que a mídia impõe; depois, não “julgar o passado com os olhos
do presente — o mais volúvel dos juízes —, mas [...] julgar o presente
à luz do passado; à luz das suas esperanças, sobretudo, que são às
vezes o mais temível testemunho contra a arrogância do presente”.
Se conseguirmos olhar a realidade a partir dessa inversão
extraordinária, os personagens que surgem nesta obra, alguns ainda
ponti cando na vida do país, assumirão sua verdadeira natureza:
raríssimos com inteligência própria; a maioria, seres excêntricos,
exemplos estapafúrdios ou nocivos do pesadelo nacional, dignos de
constar num bestiário de monstros híbridos ou espécimes abomináveis
apenas porque grunhem suas mentiras sob o comando justo e rigoroso
de Olavo de Carvalho.
V — Pouca fortuna
ATALHOS DE SONHO — JULIÁN FUKS
Narrador e personagem
Quem narra a história é Bela. Ela volta seu olhar para o passado —
não sabemos se próximo ou distante — e expõe a sucessão de fatos, o
turbilhão de acontecimentos que não só testemunhou, mas viveu. E
precisamente nesse ponto temos o problema crucial do livro, pois a
narradora somente rememora os fatos, sem esmiuçar suas causas e, o
mais grave, sem expressar qualquer juízo.
Ora, a imparcialidade de um narrador — neste caso extrema —, seu
afastamento em relação ao drama, pode ser compreensível, mas não
quando ele também é personagem da história. Se ele viveu o que está
narrando e, principalmente, depois de viver, tomou a decisão de
narrar, é por ter encontrado alguma relevância nos fatos, ou deseja
acertar contas com o passado, ou sente a necessidade de, por meio da
rememoração, compreender melhor aquele período de sua existência.
En m, as razões podem ser as mais diversas.
No caso de Bela, contudo, ao não esboçar qualquer re exão, ao se
restringir a fazer um relatório dos poucos anos que seu casamento
durou, a narradora compromete a verossimilhança da história. A nal,
se não há nada que a emocione ou que a abale, qual o motivo de
narrar? Se Bela é, de fato, uma parva sem remédio, então resta apenas
uma pergunta: alguém com tal personalidade se debruça sobre o
passado, sente necessidade de narrá-lo e decide fazê-lo?
Trata-se, portanto, de um livro destituído de tensões, pois Belmira
jamais reage, jamais expressa sua opinião, a não ser em momentos
desimportantes, e, pior, nunca re ete sobre o que está narrando.
Assim, Eduardo acerta ao de nir sua mulher como “uma pessoa sem
nuances”; mas, quando o livro termina, temos a impressão de que ele
utilizou um eufemismo.
Sensação incômoda
A coerência da obra também é comprometida por alguns aspectos
do enredo. No Capítulo 2, por exemplo, Bela decide visitar seus pais.
Parte, com o lho e a babá, em uma viagem de alguns dias, mas o
leitor não recebe uma explicação para o fato de ela abandonar o
emprego durante esse período. O motivo talvez seja o que Eduardo
disse na noite anterior, “— Tive que comer o Ramón. Amanhã eu
explico”, assunto sobre o qual Bela prefere não conversar, mas a
ausência no trabalho segue sem esclarecimento. No início do mesmo
capítulo, a narradora diz que, chegando ao aeroporto, alugará um
carro; contudo, na página seguinte, descobrimos que, novamente sem
qualquer justi cativa, ela usa um táxi.
Eduardo, Bela, Raphael e a babá moram em um apartamento. No
Capítulo 6, quando os pais de Bela chegam, para passar alguns dias
no Rio e festejar o aniversário do neto, o porteiro do edifício não
realiza um dos gestos mais comuns de sua pro ssão: interfonar,
perguntando se aquelas pessoas desconhecidas podem subir. Dessa
forma, o capítulo começa com o pai de Bela batendo na porta do
apartamento. E a única estranheza que Eduardo demonstra se refere à
opção do sogro de não usar a campainha.
Ainda no Capítulo 6, quando a mãe de Bela tropeça no degrau de
um restaurante, levam-na para o pronto-socorro. Lá, ao invés do
procedimento comum de emergência — ou seja, ser, primeiro,
examinada por um médico de plantão —, ela segue direto para o setor
de radiologia.
Além desses pormenores, que certamente passam despercebidos aos
leitores menos atentos, as condições nanceiras da família são
desproporcionais em relação aos empregos de Eduardo e Bela: o
apartamento tem quatro quartos; no que se refere aos empregados,
além da babá há uma diarista, e ao chegar da maternidade, Belmira e
o bebê tem o acompanhamento de uma enfermeira; mãe e lho fazem
aulas de natação quase diárias; e na festa de aniversário há garçons
servindo os convidados. É possível que Eduardo seja, entre tantos
defeitos, um delegado corrupto, o que explicaria a origem do dinheiro
que paga todos esses luxos, mas isso não consta da narrativa, gerando
no leitor uma permanente e incômoda sensação de irrealidade.
Cacofonia
Página a página, uma cacofonia recorrente se intromete na leitura
de Meu marido . Às vezes, a impressão é de que, por entre a tessitura
do texto, descobrimos pequenos e impertinentes poemas de rimas
pobres. Vejamos um trecho, retirado da página 120: “Eles então
diziam que caríamos ricos de tanto que meu marido trabalh ava .
Muitas vezes, chorei de saudade do Eduardo, e quando eu lhe cont
ava , ele dizia que não gost ava de me ver fraquejando. Por que eu
estaria tendo essa reação adversa?, pergunt ava ”.
Exemplos como este podem ser encontrados a mancheias: “Nessa
noite, Eduardo demor ava para chegar em casa; quando se atras ava ,
sempre telefon ava ” (página 14); “[...] voltando-se na minha direção,
apontou para a cabeça, dizendo que ela estava o cão. Desejei melhoras
e saí depressa, de maiô novo, sandália havaiana e touca dentro do
roupão” (página 13); “[...] Culp ado . Quando sozinho, percebe-se o
quanto está decepcion ado , mas alivi ado ” (página 32); “[...] Sent
ava de pernas cruzadas no sofá e c ava imóvel ouvindo as histórias
do Eduardo. Todas as vezes, ao saber que o pai vinha, saía correndo e
volt ava vestido com o uniforme do Botafogo, dos pés à cabeça, e o
esper ava cantando o hino do time. Assim que ele abria a porta, se
abraç ava em suas pernas, dizendo que o pai estava preso, não podia
mais sair de casa. Eduardo se inclin ava e beij ava a cabeça do lho”
(página 121); “[...] Eu continu ava a vida de sempre, aulas e mais
aulas. Dentro e fora d’água. A única novidade é que os trotes continu
avam . Não sabia quem me lig ava ; desde a primeira chamada, a
pessoa falava pouco e deslig ava ” (página 122); “[...] — Eduardo
puxou minha cadeira com o pé, me agarr ando , e não queria me
largar. — Estou c ando sem ar... Diz, pra qu ando é o jantar?”
(páginas 176 e 177).
Em certos trechos, ocorre uma irritante alternância de rimas, como
na página 29: “[...] Carreg ado . Por Dulce, por mim e pelo porteiro.
A diarista ainda não tinha cheg ado , então eu precisei cham ar o
Josim ar , porque você estava desacord ado . E não consegui te tir ar
do lug ar [...]”; ou na página 37: “[...] Mamãe se despediu, dizendo
que ligaria em outra hora, não sabia que a babá tinha dado uma said
inha e eu estava soz inha com Raphael”.
Mas os problemas se agravam na página 82: “— Xô , bi cho , xô !
– enxotou -o mamãe com um jornal ; voltando-se para Luli, pergunt
ou : — Por que está tão longínqua, menina? — e se aban ou com o
jornal que usara para enxotar o ca cho rro”. “Xo”, “cho”, “al” e
“ou” alternam-se, formando ecos desagradáveis. E temos a expressão
“longínqua”, que surge completamente fora do lugar, no discurso de
uma mulher interiorana, cuja fala é permeada, quase sempre, de
lugares-comuns. Aliás, outra expressão erudita já havia aparecido na
voz da mãe de Bela, na página 21, quando ela a rma que a lha
“engastalhou na terceira série e de lá não sai de jeito nenhum”.
A recorrência viciosa do eco poderia ser justi cada pelas origens de
Bela, uma pessoa simples, apesar dos anos vividos no Rio, mas a
narrativa não nos oferece nenhum ponto no qual esse raciocínio
encontre apoio. Ao contrário, Bela é professora de inglês, o que, no
mínimo, deve obrigá-la a se comunicar sem a desagradável mania de
fazer rimas.
Todas essas questões comprometem a leitura de Meu marido .
Comemore-se, entretanto, o fato de Livia Garcia-Roza nos oferecer
uma novela que, provavelmente, causará engulhos nas feministas.
Além disso, a classe social que a autora pretende descrever parece,
nalmente, distanciar-se dos tipos de classe média criados por Nelson
Rodrigues.
BOAS E MÁS ESCOLHAS —
ROBERTO DRUMMOND
Melhores ou piores?
É exatamente esse tipo de prova que enfrentam algumas das
crônicas de Roberto Drummond — o conhecido autor dos romances
Hilda Furacão e Os mortos não dançam valsa , entre outros —,
publicadas de 1989 a 2002 nos jornais Estado de Minas e Hoje em
Dia , e reunidas para formar um volume da coleção Melhores
Crônicas, da Editora Global.
Há textos deliciosos, como “O mistério do telefone tocando no
meio da madrugada”, que nos oferece o lirismo e o humor nascidos
do imprevisto, mas temperados com simpática mineirice. Ou
“Envolvendo Many Catão”, na qual o autor conseguiu mesclar
memória e processo de criação, revelando, em cenas breves, duas vidas
que se cruzam: a do autor e a de uma mulher que parecia aguardá-lo
há muito tempo, apenas para servir como sua personagem. Em um
preciso jogo de tempo e imagística, Roberto Drummond nos revela
não apenas parte de seu percurso como escritor, mas insere a gura de
Many Catão em uma penumbra fascinante, na qual ela se torna a
personagem que sempre existiu, que se antecipou ao seu criador e que
já o aguardava, latente, silenciosa, escondida.
Na crônica “Recordações de Belô City quando Deus estava feliz da
vida”, encontramos um texto evocativo, pungente graças ao eterno
tema da amizade e à maneira sincera com que o autor se desnuda. E se
desejarmos um exemplo de como recursos extremamente simples
podem criar uma beleza tocante, basta lermos “A menina das rosas”
ou “Uma história de amor”. Nesta última, inclusive, o autor utiliza
certo recurso estilístico que provoca um desvio no enredo, resolvido
apenas no nal. Recurso, aliás, usado também em “Lembranças de
uma noite em que aconteceu o apagão”, na qual Roberto Drummond
consegue deixar o leitor perplexo, ainda que desejando um outro
desfecho.
O autor abusa, entretanto, da anáfora, criando repetições
cansativas. Insiste nesse recurso com pertinácia inaceitável e chega a
dar a impressão, em certos momentos, de que está enfadado de
escrever. Se lemos “Para curar um mal de amor”, chegamos ao m
com a palavra “tinha” repercutindo cansativamente em nossos
ouvidos. E o mesmo ocorre em “Para torcer contra o vento”: depois
de séries de “é”, “cheira”, “muda”, “que” e “vi” repetidos ad
nauseam , o texto termina deixando a sensação de não ter,
efetivamente, se concretizado.
Na crônica “Homem procurando Deus”, aos intermináveis
“procurou” vem somar-se certa religiosidade infantil, certa catequese
disfarçada por um lirismo inconvincente. E a mesma religiosidade,
acrescida da febre de repetir, fazem de “Onde Jesus está” um
amontoado de material indistinto, próprio do proselitismo mais
vulgar, encontrável também no texto “Xô, Satanás!”.
Além dos textos completamente datados — caso de “Como é que
pode, Brasil?” e “É tempo de herói” —, encontramos crônicas
marcadas por um comprometimento social fácil, destituído de
qualquer re exão e cansativamente apelativo. É o caso de “Para ler
(ou rezar)”, com suas entediantes repetições, “A menina cor de
chocolate” — verdadeira peça de engajamento monótono —, e
“Abaixo o racismo, viva o negro!” e “Em defesa dos gays”, duas
litanias piegas.
Há também lugares-comuns desconcertantes, salientando-se os que
terminam com a risível “cotovia que aprendeu a rezar”, em “Para
uma moça com Aids”, ou a “língua do coração” de “Carta a Milton
Nascimento”, ou, ainda, “a feia é linda” de “Em defesa das feias”. E,
nalmente, a crônica mais decepcionante de todas: “É Natal”.
Questões mais sutis nos aguardam, contudo. Em “Os meninos dos
dias de hoje”, um diálogo que deveria ser marcado pelo humor
termina sem despertar qualquer interesse, prejudicado pela falta de
timing e de precisão vocabular. Uma sucessão de acontecimentos
comuns — acompanhados de recalcitrantes “tinha” e “é” — alcança
seu nal sem passar do estágio de uma lista recheada de ocorrências
banais, na crônica “Uma cena na praça”. O clima de ansiedade não se
materializa no texto “Crime no parque”, pois as expressões escolhidas
mostram-se fracas na tarefa de gerar expectativa; e chegamos ao m
sabendo qual será o desfecho. A repetição — mais uma vez — e a
sucessão de frases soltas, como se colocadas a esmo no papel, matam
o núcleo de “A insônia dos amantes”, cujo tema, se tratado de outra
forma, poderia revelar o lirismo que Roberto Drummond soube
expressar perfeitamente em outros momentos.
Estranhas ocorrências
A coletânea nos oferece também algumas ocorrências curiosas, pois
há assuntos que se repetem de maneira incompreensível, obrigando-
nos a acreditar que não houve qualquer critério de seleção na escolha
dos textos, a não ser o estabelecimento de um período de tempo.
“O cego e a bela” e “O cego e a bela desnuda” são praticamente
iguais. E diante da inocência da primeira, um dos melhores textos do
livro — no qual, chegando ao m, percebemos a vida que teima em
prosseguir, apesar das decepções e das tristezas, amparada
exclusivamente no sonho, mesmo quando ele é inatingível —, a
segunda crônica perde completamente a razão de ser e de estar no
livro.
“O fantasma de tia Júlia” e “Um estranho episódio” sofrem de mal
semelhante, tendo apenas três páginas a separá-las, de tal forma que o
mesmo ladrão parece ter passado duas vezes, quiçá na mesma noite,
pelo desconforto de ser confundido com uma mulher.
Por m, o tema da adúltera é visitado em três oportunidades, sendo
que a primeira — “Cheiros e perfumes” — é a crônica de melhor
ritmo, culminada pelo marido triunfante e, logo a seguir, um nal
perfeito, em que o sentimento de culpa permanece irresolvido. Quanto
às outras duas, “Evelina... e a tentação” nasce marcada pelo substrato
moralista que acaba por prevalecer sobre os sonhos da personagem, e
a terceira adúltera, devota do Menino Jesus de Praga, encontra o
destino que o título mal escolhido já nos revelara antecipadamente:
“Com um tiro no coração”.
Ao nal do volume é impossível não nos perguntarmos se Roberto
Drummond teria sido realmente esse cronista que abusava das
fórmulas fáceis. Ele não dominava essa faceta do seu ofício de
escrever? Ou, pressionado pelo tempo, preocupado com seus
romances, não se dispunha ao desgastante trabalho de elaboração
sintética que a crônica exige? São perguntas que, frente ao material
escolhido para compor o livro, permanecem sem resposta.
Altos e baixos são compreensíveis naqueles que têm a obrigação do
texto semanal ou diário, mas que tantos momentos infelizes sejam
escolhidos para fazer parte de uma coletânea que pretende oferecer o
melhor de Roberto Drummond, isso é cometer, no mínimo, terrível
injustiça.
AÇUCARADOS CHAVÕES — ANA MIRANDA
Ela cortava o pano sem lágrimas nos olhos, refazia o corte necessário de um dia, certo
dia, e costurava, e ao costurar recosia os ossos dos pés bem juntos uns dos outros e
pregava como botões a alma tão arredia para mantê-la bem rente às solas e, ao bordar,
contava os pontos, um, dois, dez, trinta, os bordados disfarçavam seus pensamentos.
A chuva deixava o mundo luminoso diante dos olhos de Haruki. O asfalto puído da
Machado de Assis brilhava. Os carros estacionados brilhavam. Folhas de árvores.
Grades à entrada dos edifícios. Até o som das coisas brilhava na chuva, as rodas dos
carros sobre o asfalto, uma freada brusca e a buzina, o rádio do porteiro.
Era preciso reconhecer e reverenciar esses momentos. Eles eram rápidos e raros.
Momentos em que sem nenhum motivo aparente tudo parecia entrar nos eixos, ajustar-
se, encaixar-se. Acabavam-se as perguntas e a necessidade delas. Acabava-se a pressa, o
ter aonde ir, o vir de algum lugar. Simplesmente as solas dos sapatos batiam na calçada
úmida e pronto, o mundo prescindia de outros signi cados.
Fazia uma semana que Haruki e Celina haviam chegado a Kyoto. Ele então resolveu
partir para Tóquio, e de lá talvez ainda mais para o norte. Se tinha ido tão longe, queria
ir mais longe ainda. Uma idéia possível: visitar Sendai, a terra da família de seu pai?
Você ia car feliz, velho. Cutucar o passado com a ponta do dedo do pé. Para constatar
sua imobilidade?
Tensão e personagens
A escritora domina a técnica de compor cenas de grande tensão,
envolvendo vários personagens — ela mantém o timing que captura o
leitor e lança-o no redemoinho dos con itos. Vejam, por exemplo, o
adultério que se apresenta logo no início do romance, encenado num
complexo jogo de entradas e saídas, fugas e perseguições, até a certeza
de que a terrível descoberta era ainda mais hedionda; ou o
comportamento da mãe que se divide entre o carinho, a autoridade, a
rapidez de pensamentos, a força e o uso de meios ilícitos ao descobrir,
certa madrugada, as aventuras amorosas da lha; ou, ainda, uma das
cenas mais fortes do livro — concisa, dura, paroxística —, na qual um
feto é lançado ao esgoto, levando consigo toda e qualquer
possibilidade de respeito mútuo e lucidez.
Ivone Benedetti também constrói uma bela galeria de personagens:
Francisco, o lho sensível, inteligente, apegado à mãe, submetido a
uma lenta despersonalização pelo pai, a quem passará a vida dizendo
apenas “sim”, mas que também se revela inteligente, empreendedor,
apesar de jamais conseguir somar aos ganhos nanceiros o poder
político; Pontes, gura vulpina que transpira a delícia de saber quais
cordões puxar para conseguir este ou aquele efeito, considerado
infalível pelos bajuladores, mas que nem sempre acerta nas avaliações,
às vezes medindo mal os oponentes, às vezes apegando-se demais às
próprias certezas; Immaculada, a “heroína romântica gorada na
casca”, cujos “olhos imensos, um verdadeiro luzeiro cor de mel num
rosto oval, de queixo pontudo e boca pequena” perderão todo o
brilho sob a malícia dos que a circundam, ela própria ensinada a
ngir, mas despreparada para pagar o preço de manter as aparências,
tornando-se, assim, medíocre em cada uma de suas escolhas: na arte,
na vida familiar, na mera administração da casa, no sexo.
Pequenos problemas
Alguns senões, contudo, precisam ser apontados, pequenas falhas
que, mesmo não prejudicando o resultado nal, incomodam. Certas
cacofonias, por exemplo, poderiam ter sido evitadas: “Na sexta
chegou Dantas, carregado de bombons e saudades. As de Dantas não
eram chegadas, eram cheganças, sempre prolongadas e agitadas, como
danças”; ou “O trem seguia seu matraqueio, e o matraqueio seguia o
trem; e era tão perfeita a cumplicidade, que lá não se sabia quem
seguia quem” — jogos lingüísticos diferentes do elogiado parágrafos
acima, aparentemente intencionais, mas que, no afã de recriar, na
materialidade dos vocábulos, o sentido ou idéia que a frase expressa,
acabam diminuindo a força das cenas, ganhando, eles próprios, uma
autonomia invasiva que, para repetir aqui esse tipo de exercício,
desconcentra e desconcerta o leitor.
Em raras passagens, o texto torna-se um pouco literário, arti cial.
Apenas para citar um exemplo, há, com certeza, maneiras mais
simples e mais objetivas de se dizer que “uma varejeira soliloquiava
sobrevoos em torno da mesa, e Immaculada era todo ouvidos para
aquela presença ndante do pai”. E, tratando agora de outro extremo,
a narrativa pode, perigosamente, dar vida ao clichê quando recorre à
imagem de lágrimas que irrompem “como lavas do Vesúvio”.
[...] Parou diante dela e lhe pediu que tirasse a camisola. Immaculada fechou os olhos e
obedeceu. Ele cou algum tempo admirando a silhueta da moça e lhe fez um sinal para
deitar-se. Ela não viu, estava de olhos fechados. Ele pediu. Ela obedeceu, deitou-se e, de
olhos fechados, voltou o rosto para o outro lado. Pressentiu que ele se despia, percebeu
que se deitava ao seu lado e sentiu que lhe apartava as pernas e introduzia devagar um
dos dedos em sua vagina. Uma espécie de pressão terebrante lhe arrancou um gemido.
Aquilo mais pareceu um sinal para o ímpeto dele. Num acesso de excitação
incontrolável, atirou-se sobre a mulher e a penetrou de vez, provocando nela uma dor
aguda, picante, funda, que se manifestou num grito sentido. Grito que se confundiu com
os refôlegos de gozo dele.
Em poucos minutos, ele já estava deitado de costas. Logo depois se levantava e saía em
silêncio.
A gente entrava no asfalto, a cidade quente das luzes do jantar era uma mãe generosa e
ngia que não tinha acontecido nada. O barulho dos garfos nos pratos, das panelas de
pressão chiando, dos grilos e das cigarras e da buzina de algum desconhecido crescia,
crescia, crescia — era um barulho espalhafatoso e feminino e um dia iria explodir como
uma bomba sem maldade.
Ela tirou os sapatos e deitou depressa, puxando o lençol sobre as pernas claras. Havia
muitos barulhos naquela noite, mas para mim não foi difícil distinguir os latidos dos
cães e o festejar das folhas dos soluços contidos que vinham da cama ao lado — e era
como se aquele metro que separava as camas, resultado dos erros e do amor de uma
vida inteira, fosse agora o símbolo de uma separação ensaiada desde sempre, desde
muito antes que eu e minha irmã soubéssemos o que signi cava tudo aquilo. E então era
melhor não dizer nada, largar o corpo no lençol lavado, fechar os olhos, dormir.
Por um instante me esqueço que também ela me vê despido pela primeira vez. Mudo a
voz e guio-lhe a volta que dá em torno ao meu centro; apanho entre as mãos seus
quadris ainda marcados pela pressão cintada de panos e ligas maleáveis. Vendo-a por
trás, busco suas cores entre o rosa, a seiva e o castanho. Seus joelhos pressionam o couro
verde do sofá, deixam mossas nas almofadas amarelas, esticam a pele da mobília seca e
aliada. As mãos de Ana, apoiadas sobre o dorso do espaldar, espalmadas na parede
branca entre dois quadros com cenas marinhas, essas mãos miram passagens para um
jardim de que nos aproximamos de costas. Desbaratada pela escavação dos meus dedos,
ela olha para o teto e vê o chão, sua visão deve ser a minha, vemos o que vemos. Ana,
ela, essa mulher que se apóia em joelhos dobrados e mãos crispadas, traz nas espáduas
constelações, vê minha sombra contra a parede, me ouve dizer seu nome por uma língua
de tons abertos. Siderado, repito aquela fala aérea, deixo que o hálito me abandone com
lentidão, passe por entre meus dentes, circule ao redor da boca e rodeie minha língua
para formar seu nome à nossa volta [...].
Esse amor, mesmo o mais corriqueiro, não é vermelho como nos corações que
desenhamos a lápis e imaginamos de rubro prenhe. É alaranjado, meio-termo entre a
surpresa falhada do amarelo (de sua desistência lenta, a debilidade do pus) e aquele tinto
que pensamos ser o corpo pelo avesso, o que esperamos, mas nunca é, nem virá a ser
isso, porque nenhum vermelho é tão vermelho como aquele imaginado, como amor
algum é tanto amor quanto o que houve em mim e de saldo me deixou o espaço oco, a
sombra, uma mera lembrança pálida, digamos amarela, daquela cor mais ansiada, da
sua vera carne [...]
Problemas
Formando com Eliane Ganem, autora do conto “A lha única do
lho mais velho”, o trio problemático da coletânea, temos
“Sonâmbulos”, de Whisner Fraga, e “Travessia”, de Márcia Bechara.
O primeiro narra a cisão de uma família árabe, que não se resolve
nem mesmo com a morte do primogênito: sua lha, a narradora,
abandonada por tios e primos, precisa pedir ajuda a amigos para
carregar o caixão. O texto é contaminado de cacofonias — a autora
não se esforça ou não consegue se libertar da embaraçosa rima em
“ão” —, exala certa ladainha piegas — os braços paternos
acariciavam a lha “como as borboletas saltitam no jardim de
margaridas” — e termina com a desgastada e populista imagem de
uma solidariedade “planetária”.
“Sonâmbulos” é regido por uma linguagem empolada, por meio da
qual o narrador pretende conceder caráter inusitado a aspectos triviais
do cotidiano. Assim, o aroma de um pernil assado não se espalha pela
casa, mas passa a “atracar nas gretas dos cômodos” e parentes
indesejáveis se transformam em “argolas de um parentesco nos
arrastando para a alucinação das a nidades”. Dirigindo-se a sua
interlocutora, em certo momento o narrador talvez a tenha
decepcionado duplamente ao confessar: “[...] não era sempre que o
odor de sua vulva me avivava os rejuntes da glande”; e o mesmo
gongorismo pretende conceder características epopeicas a uma
questão banal: “há vários dias um resfriado sacudia o dédalo de
minhas tripas e eu não conseguia expulsar o cocô que se en leirava em
todas as furnas dos intestinos e tencionava pedir um auxílio divino
para me livrar daquele suor mineral que alagava minhas camisas
sempre que visitava o banheiro”. O anseio de, por meio de tais
guras, despertar na linguagem forças supostamente adormecidas
transforma-se, derrotado pelo excesso, num exercício inócuo. Aliás,
apenas a título de ilustração, Whisner Fraga e José Luiz Passos, autor
de Nosso grão mais no , que analisei no capítulo anterior, têm estilos
cuja semelhança chega a ser atroz.
De patologia semelhante sofre o conto de Márcia Bechara, no qual
encontramos imagens gratuitas, plantadas de maneira desconexa, ou
mera inadequação vocabular. Como a “vocação belicista e
confessional” de uma bisavó pode se transformar num “sentimento
assobradado pela imensidão cáustica” do bisneto recém-nascido? Uma
jovem — que, aliás, desaparece misteriosamente no meio do conto —
troca de navio para seguir viagem e o narrador destrambelha: “Desceu
do antigo navio e arremeteu-se para o outro em correria louca [...],
mas ela estava livre naquele momento e para sempre se lembraria
dessa liberdade, essa disneylândia, esse furor de pirataria, essa saia
roçando a perna em alto-mar, esta tecnologia, este horizonte que nos
contamina e não nos abandona mais.”
E o que dizer do personagem que possui “a composição pétrea dos
insetos”? Munidos de boa vontade, talvez fosse possível descobrir
alguma ironia neste último trecho, mas, terminada a leitura, depois
que o protagonista da segunda parte se mata repentinamente por um
motivo tolo, ca-se com a impressão de que alguns escritores são
inocentes a ponto de acreditarem que as palavras, apenas justapostas,
sem concatenação adequada, podem expressar todo o imaginável.
Capítulos de romance
Ao lermos, por exemplo, “O senhor das horas”, narrativa que abre
o livro, deparamo-nos com o coronel Domingos Monteiro sentado na
sua sala de estar, olhando para o relógio-armário que havia comprado
do espólio de João Capistrano Honório Cota e re etindo sobre o
inexorável passar do tempo. A partir desse ponto, os acontecimentos
se sucedem, perfeitamente encadeados por uma voz que conhece bem
a arte de ir e voltar no tempo, mas destituídos de qualquer relação de
causalidade. O narrador apenas justapõe as cenas, ligando-as pelo o
da memória ou pelo impulso de narrar. Assim, quando chegamos ao
nal, percebemos que todo o nosso esforço de atenção resultou inútil:
ali há uma promessa de história ou várias possibilidades de história
colocadas lado a lado, nada mais.
Quando se trata de um conto, o leitor experiente busca a narrativa
em que um único acontecimento centraliza a trama e o nal apresenta
algum tipo de conclusão — ou aquele desfecho que sugere
continuidade, típico de Tchekhov. No caso dos textos que compõem
O senhor das horas , no entanto, por mais que nos esforcemos, é
impossível descobrir qualquer “risco de bordado”; e se existe uma
“estrutura subliminar”, ela permanece privativa do autor, exímio na
arte de contar histórias, dando-nos a impressão, em alguns trechos, de
que estamos reunidos em volta da lareira, numa velha casa de fazenda,
ouvindo o ancião do clã, o guardião da memória, mas que se deleita
em apenas narrar interminavelmente, sem a preocupação de
estabelecer tensões e resolvê-las, migrando de um tema a outro, muitas
vezes de forma errática.
Não pensem os leitores que estamos diante daquele tipo de conto,
absolutamente tchekhoviano, no qual a atmosfera substitui o enredo.
Não. Os textos de Dourado, inclusive, não poderiam ser classi cados
nem mesmo como mans eldianos — recordando o breve mas
fundamental ensaio “O acontecimento”, de Otto Maria Carpeaux —,
apesar de se adequar a eles a conclusão, com a qual não concordo
integralmente, que o crítico austro-brasileiro formula sobre os contos
de Katherine Mans eld: “O que ca é, outra vez, a crônica”.
Assim, apartados da intensidade e da brevidade, talvez as duas
principais características do conto, somos obrigados a repetir com
Horácio Quiroga (em seu artigo, “La retórica del cuento”):
O contista que ‘não diz algo’, que nos faz perder tempo, e que perde tempo, ele mesmo,
em divagações supér uas, pode andar de um lado para o outro, buscando outra
vocação. Esse homem não nasceu contista.
Adiamentos
Aliás, escreveu sim: um só, a narrativa que fecha o volume, “O
herói de Duas Pontes”. Mas também aí encontramos a retórica que
dilui os acontecimentos, que retarda interminavelmente o nal,
intrometendo-se no enredo, transformando o texto em um exercício
de hesitação entre o conto e a novela, entre esta e o romance. O autor
abusa do recurso de inserir novas histórias na narrativa central, a m
de protelar o desfecho.
Quem leu As mil e uma noites conhece bem essa técnica, sem
dúvida interessante, mas que não alcança o mesmo sucesso nos textos
de Dourado, nos quais desvios e mais desvios nada acrescentam. Ele
nos obriga, por exemplo, a conhecer as regras do jogo de bocha ou as
minúcias das aulas de dona Ordália, e o leitor as deglute, certo de que
iluminarão, em algum momento, este ou aquele trecho do conto, mas
sempre se decepcionando ao nal. Inclusive, no que se refere à bocha,
a história da aposta entre Alessando Campari, o Xandoca Canarinho,
e seu Gaudêncio Vasconcelos mereceria um conto à parte.
A linearidade — que não é um mal em si e da qual Dourado
reclama em seu Uma poética de romance —, linearidade que ele
buscará superar de todas as maneiras em suas obras, faz falta em “O
herói de Duas Pontes”, quando jamais alcançamos o que o escritor
deseja: “Uma unidade em que a cronologia (preciosa, caprichosa
mesmo, labiríntica) e uma narrativa subterrânea se formassem
difusamente, atingindo o seu vértice, ou vórtice, na consciência do
leitor”.
Estilística particular
Mesmo a linguagem nos decepciona. Apesar das inúmeras
possibilidades de verbos dicendi que a língua oferece, o escritor
prefere utilizar apenas o “dizer”, criando nos diálogos uma sucessão
cansativa de “disse”, “disse”, “disse”, cuja nalidade permanece
como incógnita para o leitor a ito.
Há evidentes conversas com outros autores, como Proust — “[...]
Para gozar da presença da mãe por mais tempo, ele forcejava por não
dormir, acabava misturando a voz da mãe com as vozes dos sonhos, a
doce e enevoada gura da mãe embalando o pensamento...” — ou
Camões — “[...] os mesmos olhos ternos, a mesma vagareza e uma
certa mansidão, o mesmo mover de olhos brando e piedoso”. Recurso
sutil, interessante, mas que pouco acrescenta aos textos.
Na verdade, Dourado pretende fugir “de um certo tipo de
linguagem pomposa, enobrecida e retumbante”, como defende no
Uma poética de romance , e abraçar o lugar-comum. “O lugar-comum
em meus livros [...]”, comenta o escritor, “é o lugar-comum mesmo,
agrade ou não agrade”. Ao fazê-lo, contudo, o autor apenas segue
outro tipo de retórica, maçante, que o condena a repetir os mesmos
recursos.
Quando, por exemplo, deseja acelerar o transcorrer do tempo, usa
expressões que, de fato, são os seus queridos lugares-comuns, mas de
qualidade e utilidade questionáveis: “de repente tudo velozmente
aconteceu”, ou “o tempo passou ligeiro”, ou “os ponteiros do tempo
avançaram mais depressa”, ou apenas “de repente”, ou, ainda, “pois
os ponteiros do relógio do tempo andaram mais ligeiros, de repente”.
As teorias podem até ser inovadoras, mas aquilo que, para o autor,
é uma concepção estilística particular — e que alcançou sucesso em
seus romances e novelas —, transformou-se, nos textos de O senhor
das horas , num estranho tipo de hibridez.
Vaga esperança
É evidente que Dourado nos presenteia com passagens deliciosas,
como esta, de “Memórias de um Chevrolet”:
[...] Não me lembro mais de quando, nunca fui bom em matéria de data, do tempo
medido pelos relógios, o meu tempo é o instável tempo interior, só meu, individual e
intransferível, difícil de ser entendido pela razão ou recuperável pela vontade, e que só
me vem à memória involuntariamente, nos momentos mais estúrdios e surpreendentes –
este, sim, regula minha vida. Um desses acontecimentos que costumam gurar nas
perdidas calendas da infância e que mesmo à incomensurável distância no tempo
continuam a reger as nossas vidas. Um desses acontecimentos dignos de constar nos
anais. Não dos Anais de Duas Pontes , que Ismael Silveira, poeta e escrevente de
cartório, vinha compondo no espreguiçar das horas vagas, neutras ou vazias, mas dos
anais translúcidos, fugidios e movediços da memória: a mesma mobilidade de
preguiçosas nuvens no céu azulado, os anais diáfanos do vento.
Narradores e esquematismo
O romance — construído a partir de uma metáfora que, enquanto
crítica ao universo futebolístico, guarda certo interesse — sugere que o
leitor se questione a respeito do mundo no qual, com o apoio da mídia
e das multinacionais, homens comuns são transformados em heróis ou
semideuses, quando, na verdade, seus atributos se resumem a jogar
bem futebol. O livro também almeja ser a radiogra a parcial do Brasil
indigente, onde esse esporte surge, no imaginário popular, como única
tábua de salvação para aqueles pouquíssimos que conseguem se erguer
acima da massa de miseráveis.
A narrativa, entretanto, não se sustenta. Uma barafunda de
narradores se desdobra para apresentar diferentes momentos da vida
de Mané — e assim compor o personagem cujo uxo de consciência é
o eixo da obra. Esses narradores manifestam-se numa reciprocidade
quase que mecânica: um narrador justi ca, complementa ou explica o
que o anterior disse de maneira parcial ou imperfeita. Tal recurso se
repete tanto, de maneira tão exaustiva, que o leitor passa a aguardar,
antecipadamente, a complementação que o narrador seguinte
oferecerá. Dessa maneira, a lógica por meio da qual uma voz
necessariamente se refere àquela que a antecedeu acaba por adquirir
um esquematismo empobrecedor.
Se a forma é repetitiva, o conteúdo assemelha-se a uma planície
entediante. As falas dos narradores ou são estereotipadas ou
preconceituosas. O único que demonstra alguma consciência crítica é
Mnango, jogador nascido na República de Camarões. E não bastasse
um dos narradores, que repete incansavelmente “mas não” e “ lho-
da-puta” — compondo uma oralidade absolutamente inverossímil —,
todos os demais são, depois que se manifestam a primeira vez,
previsíveis, enfadonhos. Contudo, não poderia ser diferente, pois eles
se empenham em falar apenas de Mané, o mais obtuso dentre os
narradores. Alguns, no entanto, chegam ao exagero de nada
acrescentar ao frágil enredo. Talvez tenham sido criados com o
objetivo de desvincular a narrativa da compulsão de falar sobre Mané,
mas permanecem como ilhas sem sentido. É o caso, por exemplo, de
Luca, reclamando de ter perdido sua posição no time para Mané, ou
da mãe de Hassan, ou, ainda, a última fala de Laureano, melancólica,
a despedida do velho torcedor, um dos raros personagens
interessantes.
Alguns dos trechos elaborados com evidente sarcasmo — a
transformação de Tomé em agente do serviço secreto alemão, por
exemplo, e os diálogos com seus aliciadores — chegam a divertir, mas
a de ciência mental de Mané é tão exagerada que acaba
transformando todos os que tentaram ajudá-lo em um excêntrico
bando de imbecis. E o próprio Mané não convence, principalmente ao
migrar de um extremo a outro: das bacanais com suas 72 virgens aos
insights losó cos das últimas páginas, quando o jovem que somente
se libertava da apatia ao se masturbar ou durante as partidas de
futebol, passa a re etir sobre o Inferno, a alma e certa improvável
consciência divina — ou a conceber seu próprio estado na forma de
uma ausência de tempo em que a dor adquire caráter absoluto.
Falsidade e monotonia
Narradores cujos horizontes são estreitos produzem discursos
estreitos, ainda que bem escritos. Até aí, nenhum problema, se
lembrarmos, por exemplo, do longo primeiro capítulo de O som e a
fúria , de William Faulkner. As di culdades começam quando os
escritores passam a acreditar que aquele primeiro capítulo basta a si
mesmo; pode compor, sozinho, uma obra. Em O Paraíso é bem bacana
, encontramos principalmente esses narradores cujos raciocínios são
primários, rasteiros: um amontoado de Benjys. E eles nos fazem
pensar que, na verdade, não é necessário ler a obra. Basta ligar a tevê
e assistir a qualquer programa esportivo, prestando atenção aos
lugares-comuns que os jogadores — esses Apolos da indústria do
entretenimento — verbalizam.
O romance ajusta-se perfeitamente ao conceito de R.U.T. (Realismo
Urbano Total), elaborado pelo tradutor e ensaísta português João
Barrento: “O estilo do R.U.T. é ausência de estilo, é o horror ao estilo,
é o não saber o que isso é. É a rasura total da literatura [...]”. De fato,
o livro de André Sant’Anna apresenta uma questão que precisa ser
ressaltada: quando o autor pretende retratar a banalidade da vida e
escolhe fazê-lo por meio de uma linguagem igualmente banal, uma
linguagem que é apenas o espelho da realidade, ele somente consegue
criar algo mais banal que a própria realidade — uma cópia que não é
somente falsa, pois toda literatura é falsa, mas de uma falsidade
inconvincente e monótona.
SEGURO NO OFÍCIO DE NARRAR —
LUIS S. KRAUSZ
Ú
Única resposta possível nesse mundo fracionado, o desejo de se
reintegrar à Europa, síntese da cultura cosmopolita, materializa-se na
gura de Felicity, a prima que “não carregava em si a memória de
terras que tinham cado para trás, nem vivia na esperança de algum
retorno”.
Seguro no ofício de narrar, o autor constrói longos períodos — um
lenitivo na cção atual, dominada pelo estilo telegrá co —, nos quais
entremeia digressões, lembranças. Veja-se, no Capítulo IV, o trecho em
que descreve a biblioteca do primo Eugen, metáfora da existência
perdida a cada migração. Não é outra a angústia do narrador,
borrifando-se compulsivamente de perfume na Londres que promete
libertá-lo do peso insuportável da memória.
ROMANCE E PANFLETARISMO —
OSCAR NAKASATO E ANA MARIA MACHADO
Havia sempre algum sentimento regendo o encontro de dois corpos. Engano era achar
que o sentimento deveria sempre ser amor. O sexo podia ser presidido por necessidade
de a rmação, ou pela revolta contra imperativos controladores; ou por trás do sexo
podiam estar o tédio, o desprezo, a posse, o medo de morrer cedo, o gosto pela
experiência, o ciúme, ou até a sede de autoconhecimento. Podia ser inclusive em relação
a uma terceira pessoa, que nem estivesse participando.
Por todos os lados, via as pessoas sacri cando justamente aquilo que era mais precioso.
O crescimento populacional sacri cava o espaço, provocando acúmulo de objetos, de
lixo, de prédios, permitindo lares cada vez mais sufocantes, banheiros cada vez menores,
salas e quartos cada vez menores; as ruas sacri cavam a tranqüilidade, com os
engarrafamentos, as las, as aglomerações; as pessoas sacri cavam sua segurança, mas
não apenas a segurança da integridade física, negativa, também uma forma de segurança
positiva, que existiria somente em um contexto pací co, de raízes bem plantadas, da
convivência com os mais velhos e com os outros em geral; a equivocada eleição de
prioridades sacri cava as melhores qualidades das pessoas e do país. Assim ele chegou
ao buraco para descobrir que estava mesmo fadado a terminar um idealista corrompido.
Relativismos
No entanto, ainda que as questões acima nos aguilhoem durante a
leitura, devemos prosseguir esta análise. Toleremos, durante os
parágrafos seguintes, a hipótese de que a obra possui uma só
narradora, Érika; e façamos de conta que todas as dúvidas foram
resolvidas. Deparamo-nos, então, com nossa velha conhecida, a voz
do narrador em primeira pessoa, fórmula batidíssima da literatura
contemporânea brasileira, cujo horizonte é quase sempre estreito,
forçosamente subjetivo e pouco con ável.
Em seu monólogo, Érika divaga, hesita; sua fala se assemelha ao
seu próprio gesto de comprar postais e não enviá-los, ou à sua forma
de encarar a realidade: “A gente vive e pensa que o vivido vai servir
para algo, só que não serve para nada, não camos melhores ou mais
sábios ou mais compreensivos” — ou seja, viver é apenas ir e vir, uma
reescrita permanente, pêndulo oscilando entre o experimentado e o
esquecimento.
Precisaremos de poucas páginas para perceber o que se esconde sob
essa maneira fútil de enfrentar a vida: Érika é uma egoísta contumaz, e
soma a essa característica o típico relativismo pós-moderno, que, aliás,
revela sem pudores: “O que importa é o que eu penso, mesmo que eu
me engane, existe apenas o que eu penso”.
Auto-exilada na ilha, Érika rememora alguns fatos — um deles,
essencial para se compreender sua personalidade e o motivo das
gravações: ela, Alex e Karen (discípula de Alex) viveram um intenso
ménage à trois . Quando Karen descobre que está condenada à morte
por um câncer generalizado, desabafa com Érika, mas recebe desta
apenas frieza: a amante, além de não expressar nenhum sentimento,
afasta-se, deixa de atender seus telefonemas e abandona a jovem à
solidão do seu drama. Fria, displicente e super cial, assim que recebe
É
a notícia, Érika segue para o ateliê de Alex e, sem comentar o fato
com ele, dedica-se a uma relaxante sessão de sexo — com certeza, a
melhor forma de agradecer aos deuses por terem-na poupado de sua
ira.
Durante seu monólogo, nossa narradora mostra como pode se doer
por coisas sem importância — será extremamente carinhosa com Lola,
a cadelinha que encontra perdida — e fechar-se, com egoísmo e
sarcasmo, em relação às pessoas. A cada gravação Érika nos ensina
mais sobre o comportamento dos egoístas: sente falta dos jantares que
Karen preparava ou do papel da jovem na relação a três, mas não
expressa saudade da própria Karen; pode ensaiar alguma reação
emotiva ou aparentemente sincera, mas logo depois gargalha ou faz
um comentário sardônico; qualquer laivo de sentimento logo se
desintegra: chega a chorar a morte de Karen, mas apenas por breves
momentos, recordando-se que a doçura da jovem lhe despertava o
desejo de machucá-la; do mesmo modo, a fragilidade da amante
morta apenas dava-lhe a impressão de que ela estava “o tempo todo
pedindo desculpas”; e quando a mãe de Karen, que procura Érika na
esperança de convencê-la a atender ao menos um telefonema da lha,
a chama de “monstro”, ela, impassível, rapidamente suaviza o
quali cativo por meio de um arti cioso raciocínio de cunho
etimológico.
Além de Vanessa e Bruno, o casal que a hospeda, proprietários da
galeria na qual ela e Alex expõem seus trabalhos, Érika se relacionará
com a faxineira da casa, Pilar, e um veterinário — e a base desses
relacionamentos será sempre a mentira: deixará a empregada
construir, sobre sua pessoa, o que a imaginação lhe ditar; em relação
ao veterinário, não só assume uma falsa identidade, como também
alimenta uma paixão à qual, bem sabe, jamais corresponderá
verdadeiramente.
As pistas que Érika nos fornece sobre sua personalidade durante as
cinco ou seis primeiras gravações serão con rmadas no decorrer das
restantes. E teremos certeza do nosso julgamento graças a Vanessa e
Bruno: este a rma claramente que Karen era apenas o “animalzinho
de estimação” do casal de artistas. Quanto à Vanessa, mostra-se
taxativa ao a rmar: “O problema de Alex, que é o teu próprio
problema também, é que vocês não amam ninguém”; e quando ela
acusa Érika e Alex de nunca terem levado a sério os sentimentos de
Karen, nossa narradora responde com seu ar angelical: “E o que há de
mau nisso?”.
Segundo as falas de Érika, concluímos que Alex é tão egoísta
quanto ela — e igualmente sarcástico. E ambos fazem aquele tipo de
arte tão em voga nos dias de hoje, de nido por Bruno de maneira
sucinta: “Vocês fazem qualquer coisa e depois inventam um discurso
qualquer para justi car a bobagem que zeram. E ca todo mundo
muito impactado, achando aquilo tudo muito inteligente. Bando de
idiotas”.
Assim, às indeterminações da narrativa sobrepõe-se o relativismo
da narradora e de seu amante, ao qual devemos somar o relativismo
estético defendido pelo casal de artistas. É uma forma de conceder ao
todo certa coerência, sem dúvida.
Revisão:
Gustavo Nogy
Editoração & capa:
Laura Barreto
Desenvolvimento de eBook:
Loope – design e publicações digitais
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Conselho Editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
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qualquer meio.
FICHA CATALOGRÁFICA
Gurgel, Rodrigo.
Crítica, literatura e narratofobia [recurso eletrônico] / Rodrigo Gurgel - Campinas, SP: VIDE
Editorial, 2015.
eISBN: 978-85-67394-76-3
1. Literatura Brasileira - Ensaios I. Autor. II. Título.
CDD - B869.45
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Literatura Brasileira - Ensaios - B869.45
SOBRE O AUTOR