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FICHA DE COMPREENSÃO DA LEITURA

NOME: _________________________________________ N.º: ______ TURMA: _________ DATA: ________

Diário

«SOMOS CONTOS DE CONTOS CONTANDO CONTOS, NADA»


27 de fevereiro

Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade
de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que
é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Se a
pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o
5 romancista.
Ah, a memória! Há três anos, quando a amizade de Javier Pérez Royo, então reitor da Universidade de
Sevilha, me tornou ali doutor «honoris causa», pretendi citar, no meu discurso de agradecimento, certas
palavras um dia lidas e que assim rezavam: «Somos contos de contos contando contos, nada.» Puxando pela
memória, encontrei que eram de Quevedo, mas, chegado o momento de lhe escrever o nome, entraram-
10 -me as dúvidas e, com muito trabalho, fui verificar: não, não eram de Quevedo. Voltei à memória, e ela,
bastante menos segura, propôs-me outro nome: o de Léon Felipe. Mal reposto ainda da canseira que a
busca quevediana me causara, acolhi a sugestão com alívio, pois a obra do autor de El payaso de las bofeta-
das, comparada com a do autor dos Sueños, é brevíssima. Tão breve que bastaram poucos minutos para
apurar que as misteriosas palavras não tinham saído da pena dele. A memória tornara a enganar-me. Deixei
15 portanto de fiar-me dela e pus-me a perguntar a amigos e conhecidos, tanto portugueses como espanhóis,
se algum saberia dar-me fé de quem fosse um escritor que, pelos vistos, parecia não ter deixado outro sinal
da sua passagem por este mundo. Um desses antigos sugeriu-me que visse no Shakespeare e eu fui, obe-
diente e alvoroçado, procurar no Macbeth, que aí, segundo ele, se devia encontrar a minha pepita de ouro.
Pois não, não senhor, não estava no Macbeth, não estava no Hamlet, o Shakespeare, por muito genial que
20 tivesse sido, não conseguira chegar a tanto. Perdido no meio da biblioteca universal, sem guia nem roteiro,
sem índice nem catálogo, não tive mais remédio que rematar desta maneira coxa o meu discurso no Para-
ninfo da Universidade de Sevilha: «Alguém (quem? a memória não mo diz) escreveu um dia: “Somos contos
de contos contando contos, nada.” Sete palavras melancólicas e céticas que definem o ser humano e resu-
mem a história da Humanidade. Mas, se é certo que não passamos de contos ambulantes, contos feitos de
25 contos, e que vamos pelo mundo contando o conto que somos e os contos que aprendemos, igualmente
me parece claro que nunca poderemos vir a ser mais do que isto, estes seres feitos de palavras, herdeiros
de palavras e que vão deixando, ao longo do tempo e dos tempos, um testamento de palavras, o que têm
e o que são.» A assistência, simpática, aplaudiu, e eu desci da tribuna saboreando o mel do grau que me
haviam atribuído e amargando a triaga1 duma pergunta para que não tinha encontrado resposta. E assim
30 ficámos, ela e eu, estes três anos, até hoje.
Estava aqui a classificar e a arrumar alguns dos milhentos papéis vindos de Lisboa, quando me sai ao
caminho um livro grosso que reunia fotocópias de notícias e artigos publicados quando das Belles Étrangères,
aquela viagem de vinte escritores portugueses a França, em que, segundo opinião mais ou menos unânime,
não nos portámos mal, honrámos a pátria e falámos francês… «Passaram seis anos, que vou fazer com
35 isto?», perguntei-me. Decidi arrancar o que me dissesse diretamente respeito e largar de mão o resto, pen-
sando que os meus colegas e companheiros nessa viagem decerto já tinham feito o mesmo. Ora, entre os
salvados, que encontrei eu? Uma entrevista dada a Antoine de Gaudemar, do Libération, e de que, de todo,
não me recordava. Pus-me a lê-la, e de repente salta-me aos olhos a misteriosa frase, tantas vezes procurada
e nunca achada. Citara-a eu, sim, eu, não como a memória a tinha conservado, mas evidentemente a
40 mesma: «Somos contos contando contos, nada», e em francês, sem graça nenhuma e sem minha culpa:
«Nous sommes des contes contant des contes — le néant»… O nome do autor, escrito com todas as letras,
estava também ali: Ricardo Reis.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.º ano • Material fotocopiável • © Santillana


Tanto eu procurara lá por fora, e afinal tinha em casa o que buscava. Tempo perdido? Memória fraca?
Talvez não. Apesar de todo o respeito que devo a Ricardo Reis, ouso afirmar que o verso que a memória me
45 tinha oferecido — «Somos contos de contos contando contos, nada» — diz mais e diz melhor o que Reis
quis dizer. Agora só tenho de esperar que a memória de alguém, sucessivamente esquecendo e recor-
dando, por sua vez acrescente ao que eu acrescentei a palavra que ainda falta. O testamento das palavras é
infinito.

JOSÉ SARAMAGO, Cadernos de Lanzarote II, Porto, Porto Editora, 2016.

(1) triaga (linha 29) — substância amarga.

1. Para responder a cada um dos itens, de 1.1 a 1.7, selecione a opção correta. Escreva, na folha de
respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.

1.1. A afirmação «Somos contos de contos contando contos, nada»


(A) é do jornalista Antoine Gaudemar, do jornal francês Libération.
(B) é do protagonista d’O ano da morte de Ricardo Reis.
(C) retoma, com alterações, uma frase de Ricardo Reis, heterónimo de Pessoa.
(D) é de uma ode de Ricardo Reis, heterónimo de Pessoa.

1.2. A afirmação «Somos contos de contos contando contos, nada» sublinha


(A) a tendência natural do ser humano para contar histórias.
(B) o carácter ilusório e a transitoriedade da vida humana.
(C) o facto de, em sociedade, o homem ter tendência para construir máscaras.
(D) o facto de sermos contos ambulantes e de termos vidas efémeras.

1.3. A passagem «o verso que a memória me tinha oferecido» (linhas 44 e 45) sugere que
(A) o autor se sentiu feliz por se ter lembrado da origem do verso.
(B) o autor ficou satisfeito por verificar que a sua memória não era tão fraca como pensava.
(C) o verso que o autor retivera na memória era mais rico do que a sua formulação original.
(D) o verso, na realidade, tinha sido produto da imaginação do autor.

1.4. Relativamente ao primeiro parágrafo da entrada do diário de Saramago, os restantes parágrafos


(A) não apresentam nenhuma relação de sentido.
(B) constituem uma conclusão.
(C) retomam a ideia de que a vida do ser humano é feita de histórias e ilusões.
(D) retomam a ideia de que o homem é um conto ambulante.

1.5. Na expressão «pepita de ouro» (linha 18), existe


(A) uma metáfora.
(B) uma hipérbole.
(C) uma hipálage.
(D) a ironia.

1.6. Na passagem «saboreando o mel do grau que me haviam atribuído e amargando a triaga» (linhas 28 e
29), encontramos
(A) metáforas e antítese.
(B) metáforas e hipérboles.
(C) hipérboles e ironia.
(D) sinestesias.

1.7. Na expressão «[o] testamento das palavras» (linha 47), existe


(A) uma hipérbole.
(B) uma metáfora.
(C) uma hipálage.
(D) a ironia.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.º ano • Material fotocopiável • © Santillana

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