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Pergunto-me se o que move o leitor à leitura não será a secreta esperança ou a simples possibilidade
de vir a descobrir, dentro do livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas omnipresente, que
é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo tempo revela os traços do romancista. Se a
pessoa que o romancista é não interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, lê o
5 romancista.
Ah, a memória! Há três anos, quando a amizade de Javier Pérez Royo, então reitor da Universidade de
Sevilha, me tornou ali doutor «honoris causa», pretendi citar, no meu discurso de agradecimento, certas
palavras um dia lidas e que assim rezavam: «Somos contos de contos contando contos, nada.» Puxando pela
memória, encontrei que eram de Quevedo, mas, chegado o momento de lhe escrever o nome, entraram-
10 -me as dúvidas e, com muito trabalho, fui verificar: não, não eram de Quevedo. Voltei à memória, e ela,
bastante menos segura, propôs-me outro nome: o de Léon Felipe. Mal reposto ainda da canseira que a
busca quevediana me causara, acolhi a sugestão com alívio, pois a obra do autor de El payaso de las bofeta-
das, comparada com a do autor dos Sueños, é brevíssima. Tão breve que bastaram poucos minutos para
apurar que as misteriosas palavras não tinham saído da pena dele. A memória tornara a enganar-me. Deixei
15 portanto de fiar-me dela e pus-me a perguntar a amigos e conhecidos, tanto portugueses como espanhóis,
se algum saberia dar-me fé de quem fosse um escritor que, pelos vistos, parecia não ter deixado outro sinal
da sua passagem por este mundo. Um desses antigos sugeriu-me que visse no Shakespeare e eu fui, obe-
diente e alvoroçado, procurar no Macbeth, que aí, segundo ele, se devia encontrar a minha pepita de ouro.
Pois não, não senhor, não estava no Macbeth, não estava no Hamlet, o Shakespeare, por muito genial que
20 tivesse sido, não conseguira chegar a tanto. Perdido no meio da biblioteca universal, sem guia nem roteiro,
sem índice nem catálogo, não tive mais remédio que rematar desta maneira coxa o meu discurso no Para-
ninfo da Universidade de Sevilha: «Alguém (quem? a memória não mo diz) escreveu um dia: “Somos contos
de contos contando contos, nada.” Sete palavras melancólicas e céticas que definem o ser humano e resu-
mem a história da Humanidade. Mas, se é certo que não passamos de contos ambulantes, contos feitos de
25 contos, e que vamos pelo mundo contando o conto que somos e os contos que aprendemos, igualmente
me parece claro que nunca poderemos vir a ser mais do que isto, estes seres feitos de palavras, herdeiros
de palavras e que vão deixando, ao longo do tempo e dos tempos, um testamento de palavras, o que têm
e o que são.» A assistência, simpática, aplaudiu, e eu desci da tribuna saboreando o mel do grau que me
haviam atribuído e amargando a triaga1 duma pergunta para que não tinha encontrado resposta. E assim
30 ficámos, ela e eu, estes três anos, até hoje.
Estava aqui a classificar e a arrumar alguns dos milhentos papéis vindos de Lisboa, quando me sai ao
caminho um livro grosso que reunia fotocópias de notícias e artigos publicados quando das Belles Étrangères,
aquela viagem de vinte escritores portugueses a França, em que, segundo opinião mais ou menos unânime,
não nos portámos mal, honrámos a pátria e falámos francês… «Passaram seis anos, que vou fazer com
35 isto?», perguntei-me. Decidi arrancar o que me dissesse diretamente respeito e largar de mão o resto, pen-
sando que os meus colegas e companheiros nessa viagem decerto já tinham feito o mesmo. Ora, entre os
salvados, que encontrei eu? Uma entrevista dada a Antoine de Gaudemar, do Libération, e de que, de todo,
não me recordava. Pus-me a lê-la, e de repente salta-me aos olhos a misteriosa frase, tantas vezes procurada
e nunca achada. Citara-a eu, sim, eu, não como a memória a tinha conservado, mas evidentemente a
40 mesma: «Somos contos contando contos, nada», e em francês, sem graça nenhuma e sem minha culpa:
«Nous sommes des contes contant des contes — le néant»… O nome do autor, escrito com todas as letras,
estava também ali: Ricardo Reis.
1. Para responder a cada um dos itens, de 1.1 a 1.7, selecione a opção correta. Escreva, na folha de
respostas, o número de cada item e a letra que identifica a opção escolhida.
1.3. A passagem «o verso que a memória me tinha oferecido» (linhas 44 e 45) sugere que
(A) o autor se sentiu feliz por se ter lembrado da origem do verso.
(B) o autor ficou satisfeito por verificar que a sua memória não era tão fraca como pensava.
(C) o verso que o autor retivera na memória era mais rico do que a sua formulação original.
(D) o verso, na realidade, tinha sido produto da imaginação do autor.
1.6. Na passagem «saboreando o mel do grau que me haviam atribuído e amargando a triaga» (linhas 28 e
29), encontramos
(A) metáforas e antítese.
(B) metáforas e hipérboles.
(C) hipérboles e ironia.
(D) sinestesias.