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TALES

DE ANDRADE




57.ª edição
(225.° milheiro)
19 6 7
Impresso no Brasil

COMPANHIA EDITORA NACIONAL SÃO PAULO



As ilustrações de texto desta edição de
Saudade
foram especialmente desenhadas por
J. G. VILLIN
sob a orientação do Prof. Tales de Andrade


ÍNDICE

Prefácio
Uma história... verdadeira
Coração (Guilherme de Almeida)
Deixamos a fazenda
Na cidade
Fim de ano
Economias forçadas
Papai empobrecia
Todos trabalhavam
Na chácara de seu Ferraz
Os jornais
O Sr. Pontes
Uma carta?
Dr. Gilberto
De trole
As terras
O acordo
O meu primo Juvenal
Dona Francisca
O "Pelintra"
Sábado
Em serviço
No domingo
Nhô Lau
Na farmácia
Um recado
Rosinha
Rosas...( Luís Pistarini)
Planos
O nome
Colheita
A casa
Despedidas
A mudança
A escola
Matriculados
Livros
A "Mansinha"
Convite
Colegas
Dona Alzira
As tardes
Tarde (Paulo Setúbal)
Tempestade
Feriado
Nós dois
Manhã(Álvares Azevedo Sobrinho)
A roça do Raul
Um provérbio
O pião
Brinquedos
Correspondência
Uma revista
Uma criação
Pescaria
O Governo
Na horta
Zé Feliz
"Músicos"
São João
Meia-noite
Devaneios
A árvore (Ricardo Gonçalves)
Pomar
Duas histórias
Um banho
Medo
Frutas
Içás
Aves (Canto e Melo)
Jardim
Patriotas
A "guerra"
As "pazes"
O cordão
Último dia
Regresso
Três anos depois
Agricultura
Uma notícia
Resolução
A partida
A vida no campo (Luís de Camões)


Prefácio

"Saudade"
Eis um livro digno de aplausos. Para que ele se imponha, não é
preciso confrontá-lo com a massa de livros, sem idéias e sem estilo,
que andam por aí a enfarar e deseducar as crianças. Mas brilha, pelo
seu calor intrínseco, entre os melhores livros de leitura como os de
Köpke.
O autor tem a intuição exata da psicologia infantil; sabe ser
criança entre as crianças, aliando a um assunto próprio uma
linguagem sóbria e expressiva.
Com a leitura deste livro, a memória nos revive, num aperto de
coração, os dias descuidosos de nossa meninice. Temos saudades do
que fomos.
Nas mãos dos escolares, Saudade será um encanto sugestivo. Trá-
los-á interessados e terá o condão de lhes insuflar, na alma, germes
de amor à terra e à Pátria.
Bem haja o seu autor pela caridade de ter escrito um livro útil às
crianças.

A. de Sampaio Dória

Moções de louvor e congratulações a Saudade


do Senado Nacional

Saudade, que durante esses quatro decênios tem servido à instrução brasileira,
adotado pelas escolas e principalmente ensinado à infância brasileira as mais
generosas, belas e cívicas lições de amor à vida rural; de respeito pelos homens
do campo e de orgulho pela nacionalidade.
A Escolinha Rural, descrita por Tales de Andrade, é como um santuário
dominado pelo espírito da Pátria.
As páginas se desenvolvem simples e comovedoras, falando de coisas e de
homens humildes e na pauta dessa humildade panteísta, compondo o livro da
glorificação do trabalho agrícola.
Trecho da moção aprovada pelo Senado Federal, em sessão de 29-11-1959,
segundo requerimento do Senador Auro de Moura Andrade.


da Escola Superior de Agricultura "Luís de Queirós", da Universidade
de São Paulo

Saudade, obra que muito tem contribuído para tornar conhecido o nome da
"Luís de Queirós" e patente a sua importância para a grandeza do ensino
agronômico do Estado de São Paulo.
Considerando ação idônea objetivando esclarecer e orientar o rurícola: todo
empreendimento justo visando assisti-lo e elevá-lo; toda obra correta em prol da
dignificação da profissão de agricultor; todo trabalho certo demonstrando a
importância do estudo da Agricultura; todo meio nobre adotado para
conhecimento da Escola Superior de Agricultura "Luís de Queirós" e do seu
reconhecido valor;
Considerando a existência de um livro escolar infantil — Saudade — cujo
escopo é o da realização dos itens enumerados;
Considerando que esse livro — consagradamente cognominado Cuore
Brasileiro e Evangelho Ruralista — celebra o 40.° aniversário no corrente ano
de 1959, consigne-se por esse auspicioso fato, em ata dos trabalhos desta
Congregação, um voto de congratulações ao autor de Saudade — o preclaro
piracicabano Tales Castanho de Andrade.
Do requerimento aprovado em sessão de 3-10-1959 e de autoria do Professor Tufi
Coury.



Uma história... verdadeira

Era uma vez um menino chamado Mário.
Mário foi crescendo, foi crescendo e... ficou moço.
Um dia, cheio de saudades da sua meninice, quis escrever' a história dele.
Poderia, assim, contar muita coisa do tempo em que, montado num cabo de
vassoura, andava pulando pela casa, e poderia dizer das vezes que saía pela
enxurrada, nos dias de chuva, a fazer tanques e a soltar barquinhos de papel.
Poderia falar daquele tempo em que sua irmã e as meninas conhecidas
picavam os retalhos de fazenda encontrados pela casa, e faziam deles feios e
desengonçados saiotes para os queridos bebês.
Diria também das vezes em que se fingiam donas de casa, e iam morar nos
ranchos feitos no fundo do quintal, onde aprontavam comidinhas em latas de
manteiga, e punham ao sol enormes tabuleiros de cocadas... de terra.
Desde que já não podia voltar àqueles tempos, queria, ao menos, guardar
deles recordações escritas em que falasse das horas e horas que passara
construindo casas para formigas, ou empinando o seu bonito papagaio de papel
de seda, ou perseguindo cigarras, colibris, sapos e borboletas.
Mário começou, pois, a descrever a própria vida.
Trabalhou muito, trabalhou sem descanso.
Ao fim de um certo tempo a história estava escrita.
Era uma história grande, mesmo tão grande que dava um livro. Mário mandou
fazê-lo. Quando o livro ficou pronto, deu-lhe o nome de — Saudade.
Sei que já adivinharam o resto da história. Saudade é este livro.



Coração (Guilherme de Almeida)


Lembrança, quanta lembrança
dos tempos que já lá vão!
Minha vida de criança,
minha bolha de sabão!

Infância, que sorte cega,
que ventania cruel,
que enxurrada te carrega,
meu barquinho de papel!

Como vais, como te apartas,
e que sozinho que estou!
— Ó meu castelo de cartas,
quem foi que te derrubou?!

Tudo muda, tudo passa
neste mundo de ilusão;
vai para o céu a fumaça
fica na terra o carvão.

Mas sempre, sem que te iludas
cantando no mesmo tom,
só tu, coração, não mudas,
porque és puro e porque és bom!





Deixamos a fazenda

Eu ainda não sabia escrever e minha irmã Rosinha mal contava até cinco,
quando papai vendeu a fazenda.
Às vezes ouvia mamãe dizer que a vida na cidade seria mais alegre e menos
trabalhosa.
Certa noite chegou à minha casa um homem gordo, bem vestido e com anel
muito grande no dedo. Fiquei por perto dele para saber quem era e o que queria.
Alisou-me os cabelos, sorrindo.
— É Mário, o meu filho mais velho, apresentou-me papai.
— Venha cá, Mário. Tome para comprar doce, disse-me ele, dando-me uma
pratinha nova.
Eu lhe agradeci e guardei-a.
Pela conversa, soube que ia ver a fazenda para comprá-la.
No dia seguinte, bem cedinho, saiu com papai. Voltou para almoçar. A mesa,
depois que falou da gostosura do almoço e enquanto punha açúcar refinado
numas fatias de bananas fritas, mostrou-se disposto a fazer negócio.
Após o café, entraram em combinações.
Sei dizer que na outra semana a fazenda era dele e a nossa mudança, em
carroções, seguia para uma bonita casa alugada na cidade.
Lembro-me de haver chorado muito ao deixar a fazenda. Papai nem queria
que o "Peri" nos acompanhasse. Agradavam-me. Diziam-me que não fosse bobo
e largasse de chorar à toa.
Logo que chegamos, andei pela casa toda, que não era tão grande como a da
fazenda. Fui ao quintal. Que tristeza! Nem uma árvore!
Saí à janela. Passava um enterro. Eu me pus a chorar novamente.
A vizinha da direita começou a tocar piano. Isso me consolou um pouco.
Depois, descobrindo que no outro lado da rua havia uma grande confeitaria,
peguei na pratinha e corri para lá a comprar um tostão de suspiros e broinhas.
À noite, algumas pessoas conhecidas apareceram em casa e ficaram
conversando até tarde. Ouvi papai dizer que se achava contente. Fizera boa
venda. Com o dinheiro apurado pagaria diversas dívidas, abriria um armazém na
esquina e ainda depositaria alguns contos de réis num banco.
Eu é que não estava contente. Achava tudo esquisito, tão barulhento! Aquilo
parecia um sonho ruim.
Fui dormir com o sítio na imaginação.

Deixamos a fazenda




Na cidade

Já fazia dois meses que morávamos na cidade e eu ainda tinha muitas
saudades do sítio.
A nossa vida ficou muito diferente.
Mamãe obrigava-me a andar bem vestido o dia inteiro. Isso, para mim, era um
verdadeiro castigo.
A fim de que não saísse à rua, davam-me brinquedos bonitos, sim, mas que
me aborreciam ao cabo de meia hora.
Matricularam-me num Grupo Escolar situado a dois quarteirões de casa. A
princípio ia para as aulas com a Teresa, nossa empregada. Depois arranjei para
companheiros os filhos do dono da confeitaria.
Eram delicados e bons. No recreio sempre me davam algum docinho
gostoso...
Em casa a mobília era nova.
Havia um guarda-roupa com um espelho comprido onde eu me enxergava dos
pés à cabeça. A mesa de jantar ficava maior ou menor, conforme a gente
quisesse. Na sala de visitas estenderam um tapete onde se via uma onça pintada.
Mamãe vivia ralhando comigo, com receio de que eu estragasse o verniz dos
móveis ou engordurasse o assoalho.
Eu teimava em pedir-lhe que me armasse a rede ao canto da varanda.
De manhã até à noite batiam palmas ao portão ou faziam soar a campainha.
Aquilo parecia não ter fim, enjoava a gente. Era o padeiro, o leiteiro, o
verdureiro, o peixeiro, o carteiro, o mascate, o cego, o aleijado e mil outras
pessoas que iam oferecer alguma coisa ou pedir, ou visitar mamãe e acompanhá-
la nos passeios.
Papai só aparecia em casa nas horas de refeição e de noite. Gastava o resto do
dia no armazém, que, conforme prometera, abrira no prédio da esquina.
Já tinha uma freguesia regular.
Às vezes eu dia lá dar um recado de mamãe ou buscar alguma coisa. Notava,
então, que papai arranjara muitos amigos que passavam, no armazém, horas e
horas, pitando e contando casos.
Era essa a nossa vida na cidade.


Fim de ano

Estávamos perto do fim do ano.
Naquele dia saí do grupo muito contente. A minha mestra dissera que eu seria
promovido.
Na rua, não me contive e fui correndo para casa. Cheguei cansado e suando.
Atirei-me aos braços de mamãe.
— Que é isso, Mário?
— Vou para o 2.° ano!
Ele me beijava quando papai entrou.
Ele soube logo a razão da minha alegria e beijou-me também. Depois
começou a conversar com mamãe.
Disse que as coisas não corriam bem. Efetuara transações infelizes. Só na
última partida de açúcar, sofrera um prejuízo de alguns contos de réis.
No livro de assentamentos havia um fiado enorme, completamente perdido.
Estava todo em mãos de gente velhaca, trampolineira.
Dantes, quando possuía a fazenda, tudo parecia cair do céu por descuido. Não
pagava aluguel de casa, não pagava água, lenha, café, feijão, arroz, batatas,
cebola, banha, leite, queijo, manteiga, frangos, ovos, verduras, frutas, flores...
Agora? A despesa, já despropositada, crescia cada vez mais. Tudo custava
muito dinheiro. Mas não era só isso. Percebia-se explorado pela maioria dos que
o rodeavam. Ainda naquele dia arranjara mais um desafeto. E por quê? Somente
porque não lhe emprestara certa quantia de dinheiro que estava no banco.
Qual! Era preciso mudar de vida. Era forçoso acabar com aquilo. Era
necessário gastar menos, senão, ao cabo de algum tempo, chegariam à miséria.
Pois já estavam com o capital reduzido à terça parte...
Urgia que...
E papai ainda ficou falando e gesticulando, enquanto fui trocar de roupa.


Economias forçadas

Papai era um homem de palavra, pois dali a quatro dias mais ou menos houve
uma reviravolta em casa.
Um carroceiro barbudo levou o guarda-roupa de espelho, a mesa que
aumentava e diminuía, o tapete da onça pintada, a cadeira de balanço, quadro e
tudo de bonito que havia em casa.
Espantado, perguntei à mamãe para onde íamos.
— Olhe, Mário, esses objetos já não são nossos, disse-me ela. Foram
vendidos. Agora...
— Acho que fizeram mal, disse titia, entrando na sala.
— Não fizemos mal, Juventina, respondeu mamãe. É que, de hoje em diante,
precisamos economizar. Se não cuidarmos disso, com afinco, ficaremos logo
sem nada. Desde que Raimundo vendeu a fazenda, só perdemos dinheiro. O
armazém felizmente está liquidado. Aquilo só nos causou danos e dissabores.
Agora pensamos em ir para uma casa menor e mais barata. Certamente
levaremos uma vida bem pior mas, que fazer? É preciso. Do contrário lá se vai
tudo por água abaixo... Sabe? Não queremos bulir no dinheiro que está no
banco. Raimundo vai procurar emprego. A cidade é grande: espero que ele
encontre logo serviço que lhe sirva.
— E papai também arranja um emprego para mim? perguntei depressa.
— Você continua no grupo, respondeu mamãe, dando risada.
— A senhora pensa que não sou capaz?
— Eu sei, Mário. Sei que você é capaz, mas ainda há muito que estudar.


Papai empobrecia

Até parece impossível! Mais de três meses e sem emprego! Papai mexia por
toda parte, falava com toda gente. Nada!
Diziam que a ocasião era imprópria, davam mil desculpas, aconselhavam
paciência. Na primeira vaga que aparecesse, não se esqueceriam dele.
Promessas, muitas promessas, mas... só promessas.
Por infelicidade, caí doente. O médico, que tratava de mim, exigiu que
mudássemos de casa. Embora sentindo muito, precisei sair do grupo.
Mamãe, por causa das noites que perdera comigo, também ficou adoentada e
passou muito tempo sem poder tomar conta da cozinha. Arranjou uma
empregada para isso.
A despesa da casa cresceu demais com a entrada dessa cozinheira. Ela fazia
comida para pôr fora, derramava gordura e ainda carregava para a casa dela tudo
quanto podia.
Tanto assim que uma tarde, quando estava quase à porta da rua, distraiu-se e
deixou cair um embrulho que levava embaixo do xale. Eram batatinhas que
saíram rolando pelo chão.
Por tudo isso, sei dizer que era um tirar dinheiro do banco... tirar dinheiro do
banco...
Papai já andava desesperado, quando recebeu recado para dirigir-se à fábrica
de chapéus dos Srs. Pontes & Cia.
Sem perder um só instante, pressuroso, foi saber o que queriam.
Em casa, ficamos impacientes à espera de papai.
Mamãe prometeu cinqüenta mil réis ao Hospital dos Lázaros, se daquela vez
papai arranjasse emprego.
Teve o gosto de dá-los, porque papai apareceu alegre e contando que
finalmente estava empregado. Ganharia duzentos mil réis por mês, para
encarregar-se de trabalhos no escritório.
Como são as coisas! Papai começou a assobiar, ele que não queria que eu
assobiasse...


Todos trabalhavam

Ia-se vivendo.
Eu voltei ao grupo. Com muito custo, já escrevia cartinhas ao meu primo
Juvenal.
Papai continuava empregado na fábrica de chapéus, onde passava o dia
inteiro.
Pelo que acontecia em casa, vi que o ordenado de papai não permitia
larguezas: apenas bastava para a gente viver.
Era um medo de que eu gastasse os sapatos, de que comprasse cadernos sem
precisar... Um dia fiquei de castigo porque, por gosto, quebrara a ponta do meu
lápis.
Mamãe, coitada!, não parava um instante. Cozinhava, lavava, passava,
engomava, torrava café, arranjava a casa e cuidava de nós. E não sei como ainda
podia costurar e fazer pão!
Eu achava engraçado o jeito da mamãe fazer compras. Não adquiria coisa
alguma de um lugar sem saber ao certo dos preços em outra parte. Depois não
tinha preguiça nem vergonha de pechinchar. E, com isso, obtinha quase sempre
reduções compensadoras.
Eu era o comprador de carne.
Todas as manhãs, logo depois do café com pão, ia ao Largo Municipal, onde
ficava o açougue.
Não gostava desse serviço. No açougue todo mundo pedia carne boa.
Chegada a minha vez, o homem, querendo lograr-me, ia pondo na cesta um
pedaço de carne já embrulhada. Eu desenrolava o papel e dizia:
— Essa eu não levo. É só osso!
— Pois você já viu boi sem osso, menino?
— Eu não sei. O que sei é que quero alcatra ou filé.
Em certa ocasião, ou porque estivesse distraído, ou porque não quisesse
discutir com o açougueiro, que era muito estúpido, levei para casa um pedaço de
pescoço.
Ah! Tive que voltar ligeiro para o açougue. Senão...



Na chácara de seu Ferraz

Nalgum raro domingo, íamos à casa dos nossos poucos amigos.
Eu ia satisfeito ou contrariado, conforme a pessoa que visitássemos.
Como eu gostava de ir à chácara de seu Ferraz! Aquilo, sim, que era um
homem bom. Perto ou longe de mamãe, agradava-me do mesmo jeito.
Naquele domingo seu Ferraz fez uma verdadeira festa conosco.
Quinze minutos depois que chegáramos, convidou-nos para ir ao pomar
experimentar umas laranjas de qualidade.
Saímos ao quintal e nos sentamos à sombra das laranjeiras.
Joanico, o empregadinho, apareceu trazendo algumas facas e uma bonita
cestada de laranjas que principiamos a chupar.
— Que saudades da fazenda, disse papai suspirando. O senhor não calcula,
seu Ferraz, o meu arrependimento por ter abandonado a liberdade do sítio. Ao
vender a fazenda, fiz a maior asneira da minha vida.
— Também penso nisso, afirmou seu Ferraz. A cidade tem os seus encantos:
ruas bem arranjadas, igrejas, teatros, mercados, iluminação, automóveis, muita
gente e tantas coisas boas, mas também tem outras que só nos causam desgosto e
dão prejuízos.
— É isso mesmo, continuou papai. Veja o nosso caso. Levamos uma vida
trabalhosa e sem esperanças de melhorar. De que me serve a abundância nos
mercados, nas lojas e nas vendas, se tudo é a peso de dinheiro? Para que me
prestam os belíssimos e espaçosos prédios que vejo por aí, se a casa onde
moramos é pequena, abafada e com uns vizinhos importunos e sem educação?
De que me valem as festas e os espetáculos, se para freqüentá-los é preciso
tempo, dinheiro e boas roupas? Que grande serviço me prestam as praças
ajardinadas, se estão longe de minha pobre vivenda? Depois, seu Ferraz...
depois, são os filhos a chorar, porque viram, na vitrina da esquina, um cavalinho
de vinte mil réis, ou a gritar porque querem sorvete, melado, amendoim,
rebuçado, frutas e mil coisas que os quitandeiros inventam e oferecem pela rua,
desde manhã até à noite.
— E o senhor não fala do perigo dos veículos em disparada? Lembre-se de
que sempre há por aí o caso novo de uma desgraça. É um homem com as pernas
quebradas, é uma criança esmagada...
— E as doenças, seu Ferraz?
— É verdade. Só poeira... só a poeira quantas moléstias não espalha! Basta
falar da tuberculose. Depois há sempre as epidemias de gripe, de sarampo,
caxumba, catapora, dor-d'olhos, coqueluche... Alastram-se espantosamente.
— Creio que ainda volto a morar no sítio, seu Ferraz.
— Pois faz muito bem. Olhe, seu Raimundo — "nem para os ricos é boa a
vida da cidade".
Eu estava escutando tudo isso, caladinho, mas com uma vontade de falar mal
da cidade... Não o fiz. Tive receio de que papai não gostasse. E depois, para quê?
As laranjas estavam que nem açúcar...


Na chácara de seu Ferraz



Os jornais

Quase todas as noites, enquanto mamãe remendava a nossa roupa ou fazia
crochê, Rosinha dormia e eu preparava lições ou cochilava, papai se entretinha
na leitura dos jornais. Lia só para si mas, sempre que encontrava uma notícia
interessante, lia em voz alta.
Às vezes lia livros, outras vezes entregava-me um jornal e dizia:
— Vá lendo.
Eu lhe obedecia e começava:
— "Desastre. Ontem pela manhã, um pobre trabalhador..."
— Adiante, dizia papai. Eu prosseguia:
— "Sorteio militar. Por ordem de Exmo. Sr. Ministro da Guerra, foi adiado
até 13 de março o prazo concedido para a apresentação de novos conscritos".
— Muito bem. Adiante... Assim ia lendo ou pulando, conforme papai
ordenava.
Justamente no mesmo dia em que estivéramos na chácara de seu Ferraz, papai
me mandou ler os jornais. Peguei e comecei:
— "Banco de Custeios. Estamos informados de que será suspenso o
pagamento neste banco..."
— Como é? disse papai muito assustado e tomando-me o jornal das mãos.
Leu a notícia por várias vezes e depois disse à mamãe: — Tivemos sorte,
Emília! Imagine se andasse nesse banco o resto do que possuímos! Agora
estaríamos bem pobres. O banco onde está o nosso dinheiro é forte, mas qual! Já
não fico descansado. Sabe de uma coisa? Amanhã vou pôr na Caixa Econômica
tudo quanto tivermos lá no "Lavoura e Comércio".
Eu imaginei que tal prosa ainda poderia prolongar-se por muito tempo. Ora, já
estava pendendo de sono! Perguntei então, a papai se era preciso ler mais. Como
me respondesse que não, disse-lhe boa noite e fui para a cama.


O Sr. Pontes

No outro dia, papai não apareceu para almoçar e mamãe ficou com cuidado,
ordenando-me que fosse, imediatamente, saber o que lhe sucedera. Fui à fábrica
e soube que papai havia saído, como sempre, à hora de costume. Voltei ligeiro
para comunicar o que ouvira. Quando cheguei, mamãe ficou tranqüilizada e
notei que já havia perdido a hora de ir ao grupo.
Tratei de vestir uma roupa caseira para poder brincar à vontade, no quintal,
onde andava encantado com a construção de um pequeno rancho, que seria a
futura hospedagem da criançada. Trabalhei muito nesse dia.


Mário

Finquei o esteio que faltava e pus a coberta. Pensava nas paredes. De que
seriam feitas? Lembrei-me de que podia fazê-las com alguns sacos velhos. Eu
falaria com mamãe. Justamente quando eu entrava, papai entrava também.
Esperei, pois, que falasse. Ele disse:
— Então, Emília, está assustada pela minha demora? Tem razão. Vou explicar
o que sucedeu. Olhe: todo o mundo, hoje, só falava na quebra do "Custeios".
Quando meu patrão chegou ao escritório, eu pedi a opinião dele sobre o meu
desejo de transferir os nossos haveres do "Lavoura e Comércio" para a Caixa
Econômica.
Olhou-me assustado e depois me disse:
— Então o senhor tem essa quantia num banco? Então o senhor, que já foi
fazendeiro, que tem prática de lavoura, que possui dinheiro para comprar alguns
alqueires de mata, o senhor fica por aí a perder o seu rico tempo num emprego
de duzentos mil réis? Admira-me, Sr. Raimundo 1 Isso é estragar o futuro de sua
família. Queira desculpar-me a franqueza. O senhor tem feito muito mal nisso. E
acredite que falo a verdade pura e simples. Falo em meu prejuízo, porque o
senhor é um bom empregado e eu só tenho a perder com a sua saída daqui. Mas
acho que é minha obrigação dar-lhe estes conselhos. É tempo ainda. Pegue o seu
dinheiro e compre umas terras com ele. Olhe, sei de um conhecido, um meu
amigo, que tem umas terras e pode vendê-las em condições esplêndidas. Mora
em frente da Coletoria Federal. Vá. Não perca tempo.
À hora do almoço fui lá com um bilhete do patrão. É um advogado. Chama-se
Dr. Gilberto Lopes. Infelizmente,não se achava em casa. Esperei-o por muito
tempo, até que me souberam contar que ele estava de viagem. Não importa. Eu
estou influído. Amanhã vou procurá-lo novamente. Que me responde? Tem
coragem de tornar a viver no sítio?
Eu estava certo de que mamãe ia dizer não. Enganei-me. Ela disse que tinha
coragem e até achava muito bom.
Ora, diante disso, achei que nem valia a pena pôr as paredes no meu rancho.


Uma carta?

— Ninguém me procurou? perguntou papai ao entrar em casa.
— Pelas três horas mais ou menos, respondeu mamãe, apareceu aí um menino
com uma carta do Sr. Pontes.
— Uma carta do Sr. Pontes? Que quererá ele?
— Não sei, Raimundo; não quis abri-la. Ei-la: Papai rasgou o envelope e disse
admirado:
— Mas isto não é uma carta! É uma folha de revista! Traz um escrito...
Vejamos o que há nele.

"CHACARINHA"

A narração de um pequeno e feliz proprietário

"Num de meus passeios por São Joaquim, notei nas cercanias dessa povoação
uma chácara de uns dois hectares, bem plantada de árvores frutíferas e de
hortaliças, e com belas casinhas rodeadas de sombrias parreiras e de trepadeiras
florescidas. Tudo me parecia novo e dirigido por uma família entendida e
cuidadosa.
"A curiosidade e o interesse me levaram a pedir licença para visitar essa
quinta. Bati ao portão. Um homem de 40 anos me recebeu e atendeu
prontamente ao meu pedido.
"Tudo era maravilhoso: felicitei-o e pedi que me contasse a história de tão
admirável criação.
"_ Faz hoje 8 anos, disse o homem. Eu e minha mulher, que era laboriosa, e
mais quatro filhos de 5, 8, 10 e 13 anos, formávamos a nossa família. Vivíamos
por oficinas e fábricas, eu como ferreiro e minha mulher como cigarreira. Afinal,
um dia, resolvemos retirar-nos para o campo e fazer-nos agricultores.
"Encontramos logo um proprietário desta região que nos vendeu a largo
prazo, pagáveis em prestações anuais, dois hectares de terras em boas condições
de cultivo.
"Adiantou-nos também um pouco de dinheiro reembolsável nas mesmas
condições.
"Com este dinheiro cercamos um hectare; compramos um cavalo, uma vaca,
uma cabra e algumas galinhas.
"Construímos uma pequena casa de dois compartimentos.
"Com uma junta de bois e um arado que me emprestou um bondoso vizinho,
havia limpado e arado a área cercada, podendo assim preparar a terra para
semear e plantar árvores frutíferas e hortaliças.
"Logo os produtos desse hectare, cuidadosamente trabalhado, nos ajudaram
para cercar o outro hectare, de sorte que, hoje, os dois apresentam o aspecto que
o senhor está vendo. Eis como procedemos:
"Eu e meu filho maior nos encarregamos dos serviços pesados: lavrar, plantar,
cuidar dos animais. Minha mulher e os três menores, dois meninos e uma
menina, se dedicaram com afã aos afazeres da casa, criação de aves domésticas,
coelhos, porcos e fabricação de manteiga, queijo; alimentação da cabra e da
vaca; cuidados às abelhas, pois a primeira coisa em que pensamos foi organizar
o nosso colmeal, cujos produtos, mel e cera, davam o açúcar para a casa e algum
dinheiro pelas vendas.
"O que nos ajudou desde o começo foram os morangos e hortaliças,
cultivados logo e que se acham em plena produção como o senhor vê.
"Durante os três primeiros anos tivemos que trabalhar muito para alcançar
uma vida folgada, mas logo que os pomares começaram a produzir e as
hortaliças, galinhas, ovos, coelhos, queijo, manteiga, mel e cera principiaram a
ser vendidos, a nossa situação mudou de figura, melhorou muito.
"Enfim, podemos dizer e demonstrar que os nossos dois hectares, incultos há
oito anos, dão hoje, anualmente, nove contos de réis de produtos, com o único
esforço de minha família e já livres de toda dívida.
"— Pois o senhor é digno de felicitações e também a sua família, pelo êxito
alcançado.
"— Agradeço as felicitações e ponho a casa às suas ordens.
"— Muito obrigado. Hei de publicar o que acabo de ver. Assim muitas
famílias operárias poderão tomar o exemplo da vida feliz que os seus vieram
encontrar no campo".

Max Duran


Dr. Gilberto

Ouvindo bater palmas e correndo para ver quem era, encontrei, à porta, um
moço alto e muito bem vestido.
— É aqui a casa do Sr. Raimundo? perguntou-me.
— Sim, senhor, respondi.
— Ele está?
— Não está, mas deve chegar daqui a pouquinho.
— Nesse caso volto mais tarde.
— Não. Faça o favor de esperar. Vou chamar mamãe. Fui contar da chegada
da visita. Mamãe me ordenou que recebesse o moço na sala e o entretivesse até
que ela se desocupasse, pois estava torrando café e o café estava quase no ponto.
Dirigi-me à porta, novamente, e disse:
— É para o senhor entrar, que papai não se demorará.
O visitante aceitou o convite. Pedi-lhe o chapéu e a bengala, que coloquei
sobre uma cadeira, oferecendo-lhe outra, em que sentasse, e pedi-lhe licença
para me sentar também e fazer-lhe companhia até mamãe vir.
Esperei que me perguntasse qualquer coisa.
Fez logo uma porção de perguntas: Qual o meu nome, a minha idade, o nome
do grupo onde eu estava, o nome da mestra...
Nisto entrou papai. Cumprimentaram-se. O moço disse:
— Soube que o senhor me procurou ontem...
— Ah! É o senhor que tem umas terras...
— Justamente.
— Pois é verdade. Meu patrão contou-me que o senhor quer dispor, e em
muito boas condições, dumas terras aqui no município. Eu desejava saber
quantos alqueires são, a que distância ficam as terras da cidade, se são boas ou
misturadas, se possuem matas, e finalmente a como pretende vendê-las.
— Olhe, seu Raimundo. Parece-me que faremos negócio e por isso lhe darei,
já, todas as informações que quiser. As terras que tenho andam nuns 38
alqueires. Trata-se, porém, de uma extensão quase só de pura terra roxa,
inteiramente coberta de linda mata, e cortada pelo Guamium, que, como o
senhor sabe, é um córrego regular. Está situada no bairro Capão Bonito, que é
servido de boa estrada e fica somente a duas léguas e pouco da cidade. No bairro
há um negócio, uma escola, vários sítios e reina excelente saúde, o que é
esplêndido. Contíguo às terras fica o sítio do Sr. Pedro Benedito, que é o melhor
dos vizinhos.
— Pelo que o senhor diz, as terras são boas "a conta inteira". Resta ver o
preço.
— Peço 400 mil réis por alqueire.
— Não está exagerado; não está. Mas quantos alqueires me poderá ceder?
— Eu tencionava retalhar a propriedade. Ela deveria ser, assim, inteiramente
cultivada. Mas ao senhor prefiro vendê-la englobadamente. Sei que a aproveitará
o mais que lhe for possível. Não é?
— É verdade, mas...
— Que é, seu Raimundo?
— É que o meu dinheiro não dá. Tenho apenas 8 contos de réis. Faltariam
ainda sete contos e tanto, isto é, faltaria mais, pois não poderia cuidar das terras
sem ter dinheiro para os primeiros gastos.
— Não importa, seu Raimundo. Dê uma chegada ao Capão Bonito, veja as
terras, tome as informações e apareça. Havemos de combinar. Eu o espero. E,
agora, com licença...
Vendo que o moço se levantava, apressei-me a entregar-lhe o chapéu e a
bengala. Ele agradeceu e disse a papai:
— Saio gostando de seu filho. É menino ativo e muito delicado.
Palavra que fiquei cheio de mim...



De trole

Acordei quando papai me chamou e disse que me levantasse para ir com ele
ao Capão Bonito, a fim de ver as terras.
Saltei da cama, aprontei-me depressa, tomei café e saí à ^janela para esperar o
veículo que nos transportaria ao sítio. Um trole parou em frente de casa.
— Pronto, Mário?
— Sim, papai.
— Vamos, então.
O trole partiu. Passou pelo açougue. Lá estava o homem todo atarefado, de
machadinha em punho, cortando os ossos... Passou pelo grupo, pela Praça 13 de
Maio, onde vi meu primo carregando uma cesta cheia de hortaliças... Disse-lhe
adeus. Atravessamos os bairros e finalmente ganhamos a estrada.
Devia ser muito cedo ainda porque o sol estava baixo e as plantações
orvalhadas. Respirava-se um ar fresco e cheiroso. Parece que havia um
passarinho em cada galho. Eram tantos! De certa em certa distância surgiam uma
casa, um mastro, um rancho, uns cercados... Eu pensava: "É um sítio".
Papai ia quieto, mas, ao depararmos uma encruzilhada, ele perguntou ao
cocheiro:
— Você conhece bem o caminho, Pascoal?
— Ora se conheço. Como a palma da minha mão. Depois, não há que errar.
Isto aqui é um estradão que dá gosto. Não tem areia. Não tem buracos... Nem
subida tem, pois o morro do Zé Punga não é subida. Fique descansado; não
demora muito, aportamos à casa do Pedro Benedito. O senhor já conhece o
homem?
— Não o conheço, mas ouvi dizer que é boa pessoa. Levo uma carta para ele.
— "Aquilo" não é gente, seu Raimundo.
— Que é ele, então?
— É um santo. Vai ver.
Calaram-se novamente. Eu que ia tão bem até ali, vi-me forçado a fazer cara
feia. O Pascoal metera-se a fumar charuto e soltar cada baforada que me
obrigava a tossir.
Felizmente apareceu uma porteira e ele, ao saltar do trole para abri-la, deixou
de fumar e pôs fora o resto do insuportável charuto. Que alívio 1
— Já estamos no bairro, disse ele voltando à boléia. Isso aqui é Capão Bonito.
Aquele córrego é o Guamium.
Olhem lá a capelinha, o armazém do Bertassa, onde fica a escola pública.
Mais dez minutos e entramos nas terras do Pedro Benedito.
Foi exato.
Pouco depois apeávamos no terreiro do sítio.
Desci do trole com dificuldade. É que uma das minhas pernas estava
dormindo...


As terras

Seu Pedro Benedito recebeu-nos alegremente. Mandou soltar os animais e
dar-lhes milho. A mulher dele, Dona Tudinha, tratou logo de matar um frango
bem gordo para o almoço. Papai e seu Pedro Benedito puseram-se a palestrar.
— Que tal é o bairro? perguntou papai.
— Não é mau, não, senhor. É saudável. Ora, só isso já é qualidade de
primeira. Faz muitos anos que o médico não pisa nesta casa. Os moradores da
redondeza são bons. Dão-se demais. Auxiliam-se nas ocasiões de apuro.
— E as terras?
— Esplêndidas!
— As do Dr. Gilberto também são assim?
— A mesma coisa. Até são melhores, pois estão cobertas de mata.
— Que me conta do Dr. Gilberto?
— Do Dr. Gilberto? Sei contar que é um moço bom, muito estimado e rico.
Depois do almoço foram ver o mato.
Não me deram licença para acompanhá-los, mas nem por isso me entristeci.
Fiquei em companhia de Raul e Cármen, que me levaram a passear por toda
parte.
Estivemos no pomar, chupando tangerina, fomos ao monjolo, mostraram-me
uns coelhinhos, enfim agradaram-me bastante.
Gostei de travar esse conhecimento. Eram já dois excelentes companheiros e
colegas, pois freqüentavam a escola de Dona Alzira, que lecionava numa sala da
casa do Bertassa, mas residia com eles.
À tardinha, papai, Pascoal e seu Pedro Benedito voltaram do mato.
Tomamos leite com farinha e só partimos do sítio quando era noite fechada.


O acordo

Quase todos os meus brinquedos eram feitos por mim mesmo. Arranjava
flautinhas com canudos de folhas de mamoeiro, arranjava bodoques,
bonequinhos que giravam num barbante esticado, espingardinhas, papagaios,
papa-ventos...
Nesse dia eu andava fazendo um papa-vento. Pus-me a tirar algumas varetas
de um gomo de taquara seca. Estava todo enlevado nesse mister, quando ouvi
papai dizer que ia à casa do Dr. Gilberto.
Larguei da taquara e do canivete e corri a pedir que me deixasse ir também.
— Não deveria consentir que você me acompanhasse, disse-me papai. Apesar
disso consinto. Sabe por que procedo assim?
— Não, senhor.
— Outro dia, você recebeu o Dr. Gilberto de uma bonita maneira. Quero
premiá-lo por isso.
— Posso ir então?
— Ponha o chapéu e vamos.
Meia hora depois, o moço nos recebia. Estava alegre como da outra vez, e foi
logo me dizendo:
— Então, seu Mário, o senhor também quis vir? Fez bem, muito bem. Poderá,
assim, provar uns docinhos que tenho aí.
— Não é preciso, Dr. Gilberto.
— Ora, deixe-se de cerimônias... Ó Antônio, disse ao criado, traga-me
aqueles rebuçados que estão no guarda-comida.
Dali a pouco o criado aparecia com um prato cheio de doces.
O moço enfiou um punhadão deles no meu bolso e começou a palestrar com
papai.
— Então? Que me diz? Viu as terras? Gostou do bairro? Veio disposto a
efetuar a compra?
— É como já lhe disse. Vi as terras, gostei do bairro, não acho o preço
exagerado e estaria mesmo disposto a fechar negócio, mas se para tanto bastasse
o meu dinheiro.
— Olhe, seu Raimundo, nesse caso as terras são suas.
— Como assim?
— O senhor efetua a compra pagando-me a metade ou a terça parte na
ocasião, e o resto após um prazo bem largo, cinco anos, por exemplo. Não lhe
fica bem?
— Aceito. Aceito e agradeço a felicidade que me oferece.
— Não tem que agradecer. Saiba que essas terras me couberam por herança e
que não pretendo cuidar da lavoura. Achei acertado auxiliar alguém que pretenda
viver dela. Com isso me favoreço, dispondo de uma coisa morta para mim,
favoreço-o também e creio beneficiar a nossa Pátria. Não é nada, mas será
sempre uma grande área de terra cultivada, produzindo, enriquecendo o país.
— Vejo quanto o doutor é bom e patriota.
— Obrigado, seu Raimundo. Então? Ficamos certo?
— Amanhã ao meio-dia, passaremos a escritura. Despedimo-nos e saímos.
Papai estava alegre como nunca. Na rua ele me disse:
— Veja, Mário. A bondade é a maior riqueza que se pode alcançar no mundo.
Ser bom é ser feliz.


O meu primo Juvenal

— Que é isso, Juvenal? Faz tanto tempo que você não vem aqui. Pensei que
estivesse zangado comigo.
— Ora, Mário, zangado por quê? Você não fez a menor coisa para isso!
— Então, está bem. Já sei que o dia de hoje fica por nossa conta.
— Fica.
— Pois tenho uma porção de coisas para contar a você.
— Eu também, Mário.
— Domingo passado fui de trole a um sítio...
— Por sinal que vi você na Praça 13 de Maio, bem cedinho, quando eu
voltava do mercado.
— Pois é, foi um ótimo passeio. "Essa história" de só viver na cidade enjoa a
gente. Vai indo não se acha mais graça nas coisas. Um passeiozinho ao campo
faz muito bem.
— Que coisa! Nós dois fomos passear no mesmo dia 1
— Você também foi a um sítio?
— Não. Fui à capital. Andei de trem. Estivemos num hotel de luxo...
— Que foi o titio fazer lá?
— Parece-me que foi ver um amigo e comprar uns maquinismos. E o
padrinho, que foi fazer no sítio?
— Papai esteve olhando umas terras...
— Seria para comprar?
— Isso mesmo. Esteve olhando umas terras que já são nossas. Ontem tirou o
dinheiro do banco para pagar ao Dr. Gilberto, que foi quem as vendeu.
— E o emprego na fábrica de chapéus?
— Faz três dias que papai saiu de lá.
— Então você vai ficar fazendeiro? Bem bom. Gosto muito disso. Assim a
cada passo poderei visitá-lo.
— Pois é esse o meu desejo. Calculo, desde já, quanto nos divertiremos pelo
sítio, em pescarias, passeios a cavalo...
— Tomara que isso seja logo, Mário.
— Tomara, mesmo.


Dona Francisca

Por aquele tempo havia dois cinemas na cidade: o "Ideal" e o "íris", sem
contar o meu. Pois eu também era dono de um cinemazinho barato, onde a
entrada para criança custava cinco palitos de fósforo, e para uma família, um
toco de vela. Quem desse uma vela inteira, recebia uma permanente.
O meu cinema funcionava num quartinho com porta para a sala de visitas de
minha casa. Mamãe era muito boa e deixava que desse os meus espetáculos de
vez em quando. Um dia papai quis proibir tal brincadeira, porém ela interveio,
dizendo:
— Deixe, Raimundo. Isso é mania de criança. Dura um mês e está acabado.
E foi exato.
Mas contemos em que consistia o meu cinema.
Era simples. Um lençol pendurado num barbante, uma vela acesa e uma caixa
de papelão, atulhada de figuras recortadas em papel grosso.
Fechava-se o quarto, acendia-se a vela por detrás do lençol e faziam-se dançar
as figuras de papel, sustidas por fios, entre o lençol e a luz.
E os espectadores podiam, assim, ver as sombrinhas dançando.
Lembro-me de que a coisa era divertida. Havia enchentes... Eu vivia
preparando novas fitas e programas variados. Também não perdia ocasião para
fazer um ensaio. Justamente quando me fechei no quartinho para fazer um
ensaio, escutei a voz de Dona Francisca, mesmo na sala.
— Com licença, Dona Emília.
Eu não quis sair para cumprimentá-la, como era de minha obrigação; por isso
não tive outro remédio senão ficar preso no quarto até que se fosse embora.
Resignei-me, e tratei de estender-me na cama.
Ouvi bem o que falavam.
— Como vai, Dona Emília? Como passam os filhos? Sabe? Vim fazer a visita
de despedida...
— Como assim?
— Soube que seu Raimundo comprou umas terras e que mudam para lá na
próxima semana.
— Não é bem isso, Dona Francisca. A senhora está enganada. O que há é o
seguinte: Compramos umas terras no Capão Bonito, mas estão cobertas de
mataréu. É preciso fazer derrubadas, plantar, construir casas e conseguir outras
benfeitorias, antes que nos mudemos para lá. Por enquanto é só meu marido que
se muda. Vai ficar em casa do Pedro Benedito, que é o dono de um sítio pegado
ao nosso.
— Ah! isso é outra coisa...
— Pois é. Meu marido segue amanhã levando uma turma de camaradas, mas
nós não iremos antes de um ano ou talvez mais.
— Mudando de pato a ganso... Dona Emília, estive em casa da Henriqueta.
Vi lá um bordado cheio... Oh! que beleza de bordado...
Mamãe e Dona Francisca entraram a falar em bordados, modos de temperar
carne, preço e qualidade de morim... e não sei em que mais. Não ouvi o resto da
conversa. Ao cabo de algum tempo eu havia ferrado no sono.


O "Pelintra"

Mal clareou o dia, pusemo-nos de pé. Por quê? É que papai, naquela manhã,
partiria de mudança para o sítio.
Não iria longe e aos sábados estaria na cidade, mas, mesmo assim, a falta ia
ser enorme.
Entretanto, estávamos alegres, vendo-o bem disposto e com a esperança de
que a nossa vida ia melhorar muito daí em diante.
Enquanto punha alguns objetos numa bolsa, ia fazendo as últimas
recomendações à mamãe.
— Olhe, Emília, não tenha cuidado de mim. Serei bastante prudente,
evitando, nos meus passos, todos os perigos. Naturalmente fará o mesmo por
aqui. Não deixará que os pequenos andem pela rua. Quando precisar de dinheiro,
irá retirá-lo na Caixa Econômica, onde deixarei dois contos para o passadio da
família, até que cheguem os primeiros ganhos do sítio. Se necessitar de algum
serviço urgente, que você não possa fazer, recorra ao Ferraz, que bondosamente
já se ofereceu. Querendo transmitir algum recado para mim, é só enviá-lo pelo
telefone ao Bertassa, negociante em Capão Bonito, com quem já falei a respeito.
Agora é com vocês que quero conversar, disse pondo-nos ao colo. Já sei que
vão ser obedientes e bonzinhos, não contrariando a mamãe e procurando ajudá-
la, sempre e muito. Prometem fazer tudo isso?
— Prometo, papai, respondi.
— Eu também, disse Rosinha.
Então papai abraçou-nos forte, beijou-nos muitas vezes. O relógio deu sete
pancadas.
— É hora de o Pascoal estar aí com o cavalo que comprei. Dizendo isso
despediu-se de mamãe, pegou a bolsa e saiu. Nós o acompanhamos, eu levando a
capa e Rosinha carregando o guarda-chuva.
O filho do Pascoal lá estava segurando um bonito cavalo quase branco.
— Como é o nome dele? perguntei ao papai.
— Chama-se "Pelintra". É mansinho como um carneiro. Sábado, quando vier
do sítio, você montará nele. Então, adeus.
E tocou o animal, que partiu ligeiro, desaparecendo instantes depois, no fim
da rua. Ao entrarmos em casa, eu disse:
— Ora, mamãe, porque hoje não é sábado?
Mamãe não me respondeu. Os seus olhos pareciam chorar.


Sábado

Mamãe lavou a casa e pôs bicos de papel nas prateleiras; nós varremos o
quintal; enfim, deixamos tudo bonito, à espera de papai. Só faltava ele chegar.
Pelo cheiro da carne assada e pela bulha de pratos, percebemos que os nossos
vizinhos já haviam jantado.
— Corra, Mário, disse-me Rosinha, corra depressa, porque papai vem vindo.
Saí com ela até à rua; olhei para ambos os lados. Nada!
— Como é isso?
— Enganei um bobo com uma casca de ovo! Enganei um bobo...
— Ora, Rosinha... Que brincadeira mais sem graça!
— Não se zangue Mário. Foi um pretexto arranjado para que você viesse à
porta. Depois, não o enganei de todo. A estas horas, papai vem vindo mesmo,
não é verdade?
— Isso é. Então, vamos buscar os banquinhos e, sentados aqui na calçada,
veremos quem tem o prazer de avistar papai primeiro.
Mal se avistava, ao longe, um vulto de cavaleiro, começávamos a discutir se
era papai ou não. O cavaleiro se aproximava. Era um velho de grandes barbas
brancas.
Aparecia outro vulto. Recomeçávamos a discussão.
— Agora é ele.
— Não é ele.
— É, sim.
O cavaleiro se aproximava. Era um moço imberbe.
— Pois vou contar até 100. Garanto que ele chega antes. De repente, papai
dobrou a esquina.
Corri ao encontro dele. Rosinha deu gritinhos de contentamento. Mamãe
apareceu à porta.
Logo que papai parou o animal, deu-me a segurar uma cesta dizendo:
— São pêssegos. É presente de Cármen e Raul. Apeou do cavalo e, depois de
nos abraçar e beijar, perguntou-me se queria ir montado até à cocheira do
Pascoal.
— É só no que ele pensa, disse mamãe. Chega até a sonhar com esse cavalo.
— Pois vá, Mário, falou papai.
Não esperei segunda ordem. Montei no "Pelintra" e saí. Dei um jeito e passei
pela casa do primo Juvenal. Ele estava à janela. Vendo-me a cavalo, correu para
a rua. Mas quando saiu à porta, eu já estava longe.


Em serviço

Terminado o jantar, papai começou logo a narrativa de quanto se passara no
sítio durante a semana. Pusemo-nos a escutá-lo com a maior atenção.
— Muita coisa já se fez, Emília. Construímos um rancho para o pessoal.
Agora pretendemos fazer uma pequena casa onde irei morar em companhia de
um dos camaradas.
A derrubada começou há dois dias.
Dei ordem para cortarem dez alqueires de mata, justamente nos lugares
escolhidos para casas de morada, ranchos, outras dependências e reservados para
as primeiras culturas, para pastos, pomar, horta, jardim e terreiros.
— Dez alqueires de mata! disse mamãe, como que assustada. Já não
compraremos lenha!
— Não é só lenha que teremos dessa mata derrubada. Mandei separar toda a
madeira boa e de lei, como perobeiras, jequitibás, cabriúvas, taiúvas, cedros,
jacarandás, canelas e outras mais raras. Vendê-las-ei para serrarias, menos as que
reservarei para construções, no sítio, de casas, ranchos, chiqueiros, cercas, etc.
Estou satisfeitíssimo com a compra que fiz. Só com a madeira e a lenha
vendidas, conseguirei inúmeros melhoramentos no sítio e manterei as despesas
até à primeira colheita.
— Nesse caso, disse mamãe, se fosse eu, mandava derrubar logo tudo — os
38 alqueires de mata de uma vez. Não era melhor?
— Deus nos livre! exclamou papai. Deus nos livre! Isso era estragar o sítio.
Sítio sem mata não vale quase nada. Fica feio, as terras secam, as fontes
desaparecem... Por falar nisso, sabe? descobrimos uma fonte de água cristalina,
saborosa e que facilmente poderá ser canalizada até à porta de nossa futura
habitação.
— Eu vou entrando, disse uma voz no corredor.
Era Juvenal. Cumprimentou papai, mamãe, Rosinha e virou-se para mim:
— Então, seu malandro, você anda a fazer inveja p'ra gente?
Eu dei risada.
— De quem era aquele cavalo?
— De papai.
— Então era o "Pelintra"?
— Isso mesmo.
— Pois acredite que eu, ao sair à rua, e vendo que você já ia longe, tive desejo
de atirar-lhe pedras, de ficar mal com você e de fazer nem sei o quê. Fiquei com
uma raiva...
— E agora?
— Foi só na hora; eu não guardo raiva de ninguém.
— Então, coma um pêssego.


No domingo

— Ontem, Mário, reparei no que o Juvenal lhe disse. Notei que tem bom
coração, pois, além de confessar que é incapaz de guardar raiva de alguém, deu
prova disso, vindo procurá-lo depois de ter sido magoado por você. O seu
procedimento para com ele é que me parece injusto.
— O que fiz, papai, foi o seguinte: Indo levar o "Pelintra" à cocheira, passei
pela casa do Juvenal, para que ele me visse a cavalo. Juvenal estava à janela,
mas desapareceu logo que me avistou. Pensei que vindo para a rua, certamente
quereria experimentar o animal que já se mostrava cansado, e dar uma prosa
comigo, fazendo-me perder a hora do jantar. Achei melhor não esperar. Dei uma
relhada no "Pelintra" que se pôs a galope e num minuto deixou longe a casa do
primo.
— Está bem, mas não está direito. Você quer pregar uma agradável surpresa
ao Juvenal?
— Quero, papai.
— Pois vá à cocheira, arreie o "Pelintra" e leve-o à casa de seu primo, para
que ele passeie à vontade.
Não perdi tempo. Dali a uma hora, no máximo, eu, montado, parava à frente
da casa do Juvenal.
Chamei-o. Ele apareceu com ar desconfiado.
— Outra vez a cavalo, Mário?
— Não, Juvenal. Escute-me primeiro: Tive o gosto de ir arrear o "Pelintra" e
de trazê-lo até aqui para que você me faça o favor de ir passear nele quanto
quiser.
— Isso é sério?
— Ora, Juvenal. Olhe aqui o chicote. Vá.
— Dê cá um abraço.
— Até dois ou mais.
— Onde você me espera?
— Aqui mesmo. Eu entro para ver titia. Passeie à vontade, leve depois o
animal à cocheira e venha avisar-me para irmos dar conta do resto daqueles
pêssegos.
— Está entendido.
— Olhe, Juvenal...
— Que é?
— Não faça feio por aí, caindo na rua...


Nhô Lau

Tia Juventina era tão boa como mamãe. Nós a estimávamos deveras. Foi,
pois, com agrado que ali fiquei proseando até à volta do Juvenal.
— Soube que seu pai veio ontem, disse titia. Como vai ele?
— Vai bem, respondi e repeti a narração feita na véspera por papai, sobre os
trabalhos no sítio.
Depois, notando a ausência de minhas primas Áurea e Violeta, perguntei por
elas.
— Estão na igreja. E Rosinha, por que não tem aparecido nestes dias?
— Não sei, titia. Só posso dizer que ela vive a fazer planos e planos sobre a
festa que pretende realizar no dia 28 de setembro.
— É verdade. Ela faz anos nesse dia. Mas ainda está longe...
— Pois...
— Pois o "Pelintra" é um bom cavalo, disse o Juvenal, entrando. É esperto, é
mole de boca e é marchador.
— Como ele é entendido no assunto! observou titia, sorrindo.
— Você não fez feio por aí? continuei.
— Quase, Mário. Ao virar uma esquina encontrei um auto fazendo um
barulhão... Mas desviei-me a tempo e achei melhor dar por terminado o passeio.
Cá estou às ordens.
— Se é assim, corramos aos pêssegos. Disse adeus à titia e fomos para casa.
Papai estava contando qualquer coisa engraçada a seu Ferraz, que fora visitá-
lo. Pusemo-nos à escuta.
— Pois nhô Lau é um camarada e tanto. Vê-se que é bom, corajoso,
trabalhador e amigo da gente. Logo que eu deixe a casa do Pedro Benedito e vá
residir na minha, não precisarei escolher os camaradas para saber quem serve
para morar comigo. Nhô Lau já está escolhido. Ele é asseado, é amigo das
crianças, tanto, que passa, às vezes, horas inteiras a contar histórias ao Raul e à
Cármen.
— Por favor, papai, nunca despache esse homem lá do sítio. j
— Hei de fazer tudo para conservá-lo ao meu serviço, Mário. Um homem
como nhô Lau não se dispensa à toa. Não se pode ficar triste perto dele. Conta
logo um caso engraçado, mesmo que seja um caso impossível. Ainda ontem,
quando falávamos em matar uns macacos, contou um dos tais casos.
"— Sabe, patrão, disse ele, macaco não se mata. Eu, pelo menos, desde que
me aconteceu uma, larguei de querer liquidar com essa raça de bichos. Foi
assim: Um dia, no meio de um mato virgem, vi um bando de macacos numa
árvore. Apontei a espingarda para uma, que carregava um macaquinho. Assim
matava dois de um golpe. Já ia fazer fogo, mas não tive coragem. A macaca
entregou o macaquinho para uma companheira e disse: "Ai, comadre Venância.
Pegue o meu filho ligeiro, por misericórdia, tome conta dele que já me vão
matar!"
Foi só risadas.


Na farmácia

— Mas que tipografia é essa, Mário?
— É uma caixinha cheia de tipos de borracha. Há nela três letras de cada
qualidade; há algarismos, vírgulas, pontos... É uma boniteza! O Eduardo tem
uma.
— Mas, que pretende você fazer com isso?
— Ih!... mamãe! Tanta coisa. Hei de pôr títulos nas poesias do meu álbum.
— É, Mário, seria bom, mas, neste tempo, gastar dois mil réis nisso?
— Se a senhora deixasse, eu arranjava esse dinheiro e até mais.
— Onde, menino? De que jeito?...
— Bastava que me desse licença para vender os vidros e as garrafas vazias.
— Pois dou licença. Vá vendê-los. Imediatamente fui ter com a Rosinha e
contei-lhe do consentimento de mamãe. Disse-lhe que, se me ajudasse na
lavagem dos vidros, receberia a metade dos lucros, como era de justiça.
Ela aceitou. Conseguimos separar garrafas e vidros que deram para encher
duas cestas.
Fui à "Farmácia Meireles", situada na mesma rua de casa. Ia fazer a oferta,
quando Carlos, o farmacêutico, indicando-me a um homem trigueiro que lá
estava, disse-lhe:
— Esse menino é filho do Sr. Raimundo. É só acompanhá-lo e poderá falar
com a sua patroa.
O homem veio para o meu lado.
— Sou camarada de seu pai. Chamo-me Estanislau Pires, seu criado; mas
todo mundo me trata por nhô Lau.
— Ah! o senhor é...? O senhor é que conta histórias ao Raul e à Cármen?
— Isso mesmo.
— Então vamos para casa.
— Mas...
— Que é, nhô Lau?
— Parece que vinha buscar alguma coisa na farmácia?...
— É verdade, até já me ia esquecendo.
E aproveitei para oferecer os vidros e garrafas a Carlos.
— Pode trazê-los. Pagarei cem réis cada vidro e duzentos, cada garrafa. Já
aviso antes, porém: Quero tudo lavadinho, porque aqui não estamos para
comprar sujeiras.
— Tem boa presença mas é impertinente, disse nhô Lau em caminho de casa.


Um recado

— Entre, nhô Lau.
— Não, seu Mário. Eu espero aqui fora.
— Isso não pode ser. Entre...
— A casa está tão limpinha e os meus sapatões cheios de lama. Não vale a
pena.
Afinal tanto insisti com ele, que se resolveu a entrar. Apresentei-o à Mamãe.
Chamei Rosinha e disse-lhe:
— É este o homem que sabe contar histórias.
Nhô Lau sorriu e falou que não tinha lá muito jeito para contar histórias, mas
no sítio ficava às nossas ordens para isso. Depois explicou que viera fazer
algumas compras e trazer um recado de papai.
— Que é? perguntou mamãe.
— Seu Raimundo manda dizer que vai indo bem de saúde e contente com as
plantações, que estão tremendo de viçosas. Se não veio hoje, foi por causa da
chuvarada e por aperto de serviços, mas no dia 28 há de fazer todo o esforço
para vir. Pediu para dizerem como vão por aqui. E é só.
Queria retirar-se logo, mas mamãe não consentiu que ele se fosse embora sem
almoçar.
— Então, patroa, enquanto a senhora arranja meu prato, vou à farmácia levar
uns vidros que seu Mário vendeu lá.

— Entre, nhô Lau

E só ficou sossegado com as cestas nos braços. Fui com ele. O Carlos pagou-
me 4 mil réis. De volta entreguei o dinheiro à mamãe.
O almoço estava pronto.
Sentamo-nos à mesa. Mamãe comeu pouco. Rosinha quis só arroz com
batatas; eu aceitei também um bife. Mas, nhô Lau! Palavra que fiquei assustado!
Debruçou-se no prato e comeu de tudo; comeu como nunca vi.
Sabia contar histórias, mas também sabia comer!


Rosinha

O dia 28 de setembro chegou, afinal.
Mamãe fez arroz-doce, balas de ovos e mandou comprar duas garrafas de
capilé, tudo em homenagem à Rosinha, que era a senhora do dia, pois
completava nove anos.
Desde cedo, eu o Juvenal andamos aos trotes, de um lado para outro, no
quintal, ajudando a mana nos preparativos para a festa, que seria à tarde, com a
presença de muitos convidados.
Enfeitamos o nosso rancho com folhagem, vasos, jarros e muitas
bandeirinhas.
Para servirem de mesas, arranjamos diversos caixões, que cobríamos com
papel de seda. Um caixão maior seria o palco, pois discursos, cantos e recitativos
faziam parte do programa.
Ao meio-dia mais ou menos, a tarefa estava terminada. Então, eu e o primo
apresentamos os nossos presentes à Rosinha. Juvenal ofereceu-lhe um livro de
histórias, chamado: A Filha da Floresta, da "Biblioteca Infantil". Eu dei-lhe um
estojo com agulhas, dedal e uma tesourinha.
Dinheiro para comprá-lo foi o que me tocou das garrafas e vidros vendidos.
Lembrando-me do aniversário da mana, desisti da tipografia.
Rosinha ficou toda risonha e agradeceu muito.
Mais tarde, um trole parava em frente de casa. Trazia papai, Cármen e Raul.
Os dois novos amiguinhos vinham aumentar a nossa alegria.
Abraçaram a aniversariante, deram-lhe os parabéns e ofereceram-lhe
presentes.
— São frutas para a rapaziada, disse Raul, dando-lhe uma cesta cheia de
figos.
— São as flores do seu nome, disse Cármen, entregando-lhe um ramalhete de
rosas, de diversas cores e vários tamanhos.
A tardinha o quintal ficou cheio. Lá estavam papai, mamãe, Juvenal, eu,
Rosinha e tia Juventina, Áurea e Violeta, que trouxeram uma linda boneca; seu
Ferraz, que havia mandado um corte de vestido, apareceu em companhia do
Joanico, muitas meninas da vizinhança e alguns colegas.

Rosinha
8161

(Recitada na festinha por Violeta).

Rosas...( Luís Pistarini)

Há nesta vida coisas deliciosas.
Vi, num jardim, Rosa a passear um dia:
rosas nas mãos, rosas no colo, rosas
no cabelo, que ao sol resplandecia...

Nas lindas faces, cândidas, mimosas
duas rosas também Rosa trazia:
— as da saúde que são mais valiosas,
e nos lábios de Rosa ainda se via

outra que, em duas pétalas graciosas,
Num sorriso arcangélico se abria...
E assim, formosa entre as irmãs formosas,

não sei por que, Rosa me parecia
não Rosa só, mas um buquê de rosas
que falava, que andava e que sorria.

Foi uma pândega.
Todo mundo recitou. O Joanico subiu ao caixão, não teve coragem para dizer
qualquer coisa, mas fez caretas impagáveis.
Até seu Ferraz saiu do sério e disse uns versinhos engraçados.
Houve distribuição de figos, de bolos, de pires com arroz-doce, de capilé com
água...
Quando escureceu e as estrelas foram aparecendo, a festa estava terminada
para todos.
Só não estava terminada para mim. Tanta mistura eu fiz que fiquei, até tarde,
rolando de dor de barriga.


Planos

Mamãe, Rosinha e eu fomos ao sítio.
Juvenal iria conosco, mas, à última hora, ficou doente.
Ali pelas oito horas da manhã, o Pascoal parou o trole no terreiro ainda novo
do nosso sítio.
Papai, que nos esperava à porta da casa provisória, correu para auxiliar-nos a
descer.
— Chegaram cedo, disse ele. Que tal a viagem, Emília?
— Admirável, respondeu mamãe. Eu me sinto outra, respirando estes ares
saudáveis do campo.
— E as crianças?
— Mário esteve numa tagarelice de papagaio durante o trajeto inteiro.
Rosinha parece que estranhou a viagem.
— Eu não, mamãe.
— Está bem, Emília. Quero mostrar-lhe as nossas terras. Muito já
trabalhamos, mas ainda fizemos pouco, diante do que resta a fazer. Se Deus
permitir, hei de transformar isso aqui, pouco a pouco, num verdadeiro jardim. Já
que nos saiu má a vida na cidade, já que nos dispusemos a residir no sítio para
sempre, estou disposto a cercar a nossa morada de todo o conforto possível. Não
me falta esperança, nem coragem, para levar avante esta empreitada.
— Pois lhe garanto, Raimundo, que encontrará em mim uma companheira
decidida e pronta para auxiliá-lo a realizar esses dourados planos.
— Querem avistar a cidade?
— A cidade?
— A cidade?!
— Da soleira da porta, pode-se avistá-la perfeitamente. Mamãe dirigiu-se para
o lugar indicado e disse:
— É verdade, Raimundo. Olhe lá a Matriz, o Grupo Escolar...
Eu e Rosinha também queríamos ver. Papai ergueu-nos um por um, e assim
pudemos avistar, lá longe, uma casaria branca.
— Em noites escuras é que é bonito, disse papai. As centenas de lâmpadas
elétricas, acesas, faíscam como estrelas.
Afinal, entramos na casa, que era muito pequena: Uma sala, dois quartinhos, a
varanda e a cozinha.
Mamãe começou logo arranjando tudo.
Eu e Rosinha perguntamos por nhô Lau.
— Foi buscar água da bica, respondeu papai. Não sabem que ele é o meu
cozinheiro?
— Onde é a bica, papai? O senhor deixa que eu vá lá?
— Pode ir. Siga por aquele trilho e não tem o que errar.
Rosinha e eu saímos correndo, ao encontro do contador de histórias. Lá vinha
ele, carregando duas latas cheias d'água. Cantava.
— Não nos viu ainda, Rosinha. Esconda-se nesta moita, para ouvi-lo cantar.

Casa provisória


Escutamos estes versos:

Minha barriga está com fome,
Minha boca quer comer;
Para pedir tenho vergonha,
Para furtar não pode ser.
Como há de ser, como há de ser...

Fiz chocar a minha galinha
Debaixo da goiabeira:
Os ovos goraram todos,
E os pintos...?
Saíram na carreira.

Na carreira saímos nós do mato, para abraçar aquele homem que parecia um
crianção.


O nome

Papai levou-nos à bica.
Ao pé de uma árvore, vertia um jorro dágua clara.
Todos bebemos dela.
— Subam nesse toco, disse papai. Poderão ver como as plantações estão
lindas. Penso que colherei carradas e carradas de milho e centenas de alqueires
de feijão e de arroz. Hei de ter mantimento para o resto do ano e ainda para
vender tanto que com o dinheiro possa mandar construir uma boa casa de tijolos,
espaçosa, alta, assoalhada, forrada e que sirva definitivamente para nossa
morada aqui no sítio.
Dali fomos ver o córrego.
— Chama-se Guamium, disse papai.
Repeti esse nome por duas ou três vezes, para retê-lo na memória. Depois
observei:
— O tal Guamium é pequeno, mas é barulhento.
— É por ser encachoeirado, respondeu papai. E isso é muito bom. Logo que
eu possa, erguerei um paredão ali. Assim haverá no sítio um tanque esplêndido
para criação de marreco e poderei assentar uma roda d água que tocará um
moinho.
Voltamos para casa.
— Queiram desculpar-me, disse nhô Lau apontando a mesa. É esse o nosso
almoço.
— Paçoca de carne-seca com bananas? perguntou mamãe. Pois olhe que está
muito bem. É uma combinação agradável ao paladar.

* * *

Depois desse almoço, papai e mamãe puseram-se a escolher um nome para o
sítio.
— "Boa Vista" seria um nome acertado, Raimundo.
— Seria mesmo, mas já há um igual na redondeza. Creio que "Santa Emília"
ficava bem.
— Esse não quero.
— Nesse caso, proponho que se batize o sítio pelo nome de uma planta
encontrada na divisa, um dia destes.
— Qual?
— Congonha.
— Está muito bem. Que se chame pois "Congonha!".
— Papai, o senhor fez-me lembrar, agora, de uma explicação da minha
mestra, disse eu, arriscando-me a entrar na prosa dos grandes.
— Qual, Mário?
— Foi a que nos ensinou de que jeito a nossa Pátria recebeu o nome de Brasil.
Papai e mamãe gostaram da comparação.

* * *

Antes de regressarmos à cidade, enchemos a caixa do trole com uma braçada
de cambuquira, diversas abobrinhas e umas noventa espigas de milho verde,
com as quais mamãe ia fazer purê, gostoso curau e pamonha saborosa.
Depois visitamos a família do seu Pedro Benedito.
Finalmente, ali pelas quatro horas da tarde, o trole estava na estrada. Eu disse
a mamãe:
— Vi que nhô Lau tem razão.
— Tem razão de quê? perguntou-me ela.
— Tem razão de comer bastante.
— Mas, a propósito de que você me diz isto agora?
— É que reparei uma coisa lá no sítio. Os camaradas almoçaram às 8 horas,
jantaram às 2; nhô Lau ainda me falou que iam cear, de noite. E cada prato de
comida que arranjavam, parecia uma pirâmide!


Colheita

Papai e eu fomos à casa de tia Juventina. Juvenal já estava em convalescença,
mas ainda muito fraco.
Titia começou logo a falar da moléstia do filho.
— Juvenal é cabeçudo. Pensa que é de ferro. Julga que a gente é carrasca e só
aconselha por mal para privá-lo de todos os prazeres. Um menino fraquinho
como ele é, mete-se a fazer extravagâncias e não se importa com as
conseqüências, não se lembra de que tem de pagá-las com dias e semanas de
horríveis sofrimentos. Desta vez, estando com o corpo quente, suado, entrou
numa confeitaria e tomou dois ou três copinhos de sorvete. O resultado não se
fez esperar, foi certo. No dia seguinte, ardia em febre alta. Apanhou uma
pneumonia da qual está escapo por verdadeiro milagre.
— Agora ele cria juízo, disse papai. Agora aprende que a saúde é a coisa mais
preciosa que se tem na vida.
— É; tenho esperança de que ele seja mais cauteloso, de agora em diante.
— Juvenal delirava, mana?
— Oh! se delirava. Delirava muito, Raimundo. Falava assim: — "Vamos,
"Pelintra". Segura... segura! Meu primo, não vá, não vá!... Olhe o lambari... que
venha angu, não há minhocas. Que venha angu!"
Não pude passar sem rir, ao escutar titia contar isso.
Depois, mudando de assunto, papai perguntou se foram entregues ao Hospital
dos Lázaros e ao Asilo de Órfãos os sacos de cereais que lhes mandara.
— No mesmo dia, Raimundo. No mesmo dia Tônico se encarregou disso.
Nessas casas de caridade agradeceram a sua dádiva e ficaram bendizendo o seu
nome.
— Era o meu dever...
— Pois olhe, já experimentamos o feijão e o arroz que você nos deu. São de
primeira qualidade. Pelo que vejo, neste ano a coisa correu bem, não é assim?
— Graças a Deus, Juventina. Tanto a colheita como o preço do produto
vendido foram além do que eu pensava. Agora vou tratar com um empreiteiro a
construção de nossa casa. Quero que ela esteja prontinha nestes dois meses.
Saímos.
Que diferença! pensei então. Antigamente papai comprava feijão e arroz.
Agora ele os dá!
Depois, lembrei-me do Juvenal. Coitado! Estava acabado; magro, olhos no
fundo e pálido como um defunto.


A casa

Num dia de festa na cidade, fui à casa da titia. Estive umas horas com meu
primo. Ali pelo meio-dia, carregando dois travesseiros e uma esteira, fomos
parar embaixo de uma grande ameixeira, no fundo do quintal, onde um tico-tico,
cantando, parecia dizer: "Minha vida é assim.., assim... assim..."
Estendida a esteira e arranjados os travesseiros, tiramos os sapatos, as meias e
estendemo-nos também.
Sempre fazíamos assim. Ficávamos horas seguidas a olhar o espaço e a
conversar sobre as coisas esquisitas deste mundo, e a fazer planos sobre a nossa
vida quando fôssemos grandes.
— O céu é lindo, Juvenal!
— Lindo mesmo, mas num dia como hoje. Quando ameaça tempestade é
muito feio.
— Pois eu até nessas horas gosto de vê-lo, escuro, cheio de nuvens pretas, que
descem e correm...
— Eu, não, Mário; gosto do céu num dia como hoje. Olhe que azul! Olhe
aquelas nuvens brancas, que parecem tão macias, feitas de paina.
— Como é engraçado a gente ver as formas que vão tomando de instante a
instante.
— É mesmo. Ficam parecidas com montanhas, cachoeiras, lagos, leões,
elefantes, crocodilos, mulheres, gigantes, igrejas... e vão mudando e de repente
somem.
— Você está vendo aquele corvo, no alto, lá muito no alto?
— Onde?
— Olhe lá, pertinho daquela nuvem.
— Agora vejo.
— Pois eu queria ser aquele corvo.
— Para poder voar?
— É. Queria ir até ao sítio, agora mesmo, ver a festa que os camaradas estão
fazendo.
— Por causa de ter ficado pronta a casa?
— Justamente. Eu sei que vão soltar rojões, vão beber cerveja e gasosas, vão
dançar...
— Por que titio não quis que você fosse também?
— Não sei, Juvenal.
— Então, se você fosse um corvo...?
— Voava...
— Pois olhe, Mário, mesmo sem ser corvo a gente pode voar.
— De aeroplano?
— Não... Eu digo a gente voar, voar como se fosse corvo, ou andorinha, ou
tico-tico...
— De que jeito?
— Sonhando.
— Assim já tenho voado muitas vezes. Ainda na semana passada tive um
sonho desses. Voava de uma esquina a outra, para meus companheiros verem.
Batiam palmas. Olhavam-me assombrados. Mas num dos vôos, não sei o que me
aconteceu. Sei que fui parar embaixo da cama.


Despedidas

Fazia já uma semana que mamãe se vinha despedindo de uns e de outros;
entretanto, estávamos na véspera da mudança para o sítio, e as amigas de maior
consideração não haviam sido visitadas. Certamente mamãe queria fazer-lhes
visitas especiais. Foi isso mesmo.
O último dia de cidade esteve reservado à família de seu Ferraz, à do Sr.
Pontes, à do Dr. Gilberto e à da tia Juventina.
Papai e mamãe atrás, Rosinha e eu à frente, casal grande e casal pequeno,
andamos de uma para outra banda da cidade, oferecendo o rancho, lá no sítio, e
recebendo votos de todos para que a boa sorte nos seguisse e nos tornasse ricos e
felizes.
Quem havíamos de encontrar numa esquina? A Teresa; aquela italiana que
fora nossa empregada nos primeiros tempos da cidade e me acompanhava ao
grupo, muitas vezes.
— Oh! Dona Emília! Sr. Raimundo! Como vai, Mário? Está crescido!
Rosinha também...
— Você desapareceu, disse mamãe. Pensei que estava na Itália.
— Não há perigo, Dona Emília. Gosto muito do Brasil. Esta gente é boa
demais. Posso morrer sossegada nesta grande terra.
— Então não pensa em voltar?
— Penso, Dona Emília, penso em voltar a trabalhar... em sua casa. Nisso sim,
eu penso. Contaram-me que vão morar na fazenda. Gostaria ainda mais por isso.
Papai e mamãe entreolharam-se e resolveram tomar Teresa como nossa
empregada, novamente. Depois de combinarem sobre o ordenado, despedimo-
nos dela e continuamos o trajeto, interrompido ali.
Só à noite chegamos a casa, onde tudo já estava preparado para a mudança;
caixões atulhados de louças, outros de livros, de arranjos de casa, de utensílios
de cozinha e de tanta coisa mais.
Era preciso pular de madrugada. Tratei, pois, de me deitar.
Doíam-me as pernas de canseira. Pensei: — "É só cair na cama que os olhos
se fecharão".
Enganei-me. Quando todos na cama já ressonavam, eu ainda tinha os olhos
bem acesos. Ouvia bater horas, latidos de cães, o apitar das rondas, ruídos de
baratas... Não podia dormir. Por que seria?
— Ah! É que me encharcara de tanto tomar café em casa dos outros.


A mudança

Ainda estava escuro e os carroceiros, dentro de casa, já faziam um barulhão,
arrastando móveis, falando alto, batendo os sapatos pelo soalho. E iam
transportando para os carroções os móveis pesados, colchões amarrados, latas e
caixões cheios de objetos diversos.
Papai, acompanhando os carroceiros, recomendava-lhes que tivessem cuidado
e amarrassem tudo muito bem.
Mamãe dizia, ainda uma vez, que não se esquecessem de tirar os arames do
quintal.
Rosinha não largava da caixa com a boneca. Eu procurava o gato.
Quando chegou o trole, papai disse:
— Deixe o gato, Mário. Nhô Lau arranja um outro muito mais bonito.
— Mas eu quero o "Cetim" mesmo, papai. Hei de achá-lo. Espere mais um
pouquinho, por favor.
Pus-me a fazer com toda a força: pschiute, pschiute.
O gato escutou o meu chamado e respondeu, lá longe, com um mi-a-u
comprido, assim como quem dizia: — Já vou.
Eu o esperei. Pouco depois ele saltou o muro e veio vindo todo contente, para
o meu lado.
— Apronte o saco, Rosinha.
Quando o "Cetim" chegou ao alcance das minhas mãos, fiz-lhe festinhas e...
zás, tratei de pô-lo no saco.
Não foi tão fácil. Gato tem força, é ágil, e, nas horas de perigo, sabe defender-
se com as vinte unhas que tem. Arranhou-me, mordeu-me, mas lá foi para dentro
do saco cuja boca amarrei bem.
Todos já estavam no trole. Subi também, em companhia de meu prisioneiro.
— O "Cetim" morre asfixiado aí dentro, disse papai.
— Não morre; fiz uns buraquinhos para entrar o ar.
— Que trabalho perdido, esse de levar o gato ao sítio. Ele volta mesmo. Basta
que se veja solto.
— Então um gato há de poder mais do que eu? É desaforo!
"Cetim" miava como um desesperado; dava pulos...
Logo que chegamos, tirei-o do saco. Primeiramente pus-lhe a cabeça de fora e
amarrei-lhe uma cordinha ao pescoço. Depois prendi a cordinha ao pé da mesa.
A casa nova

Dei-lhe carne, leite e bolachas.
Estava enjoado. Nem provou essas gulodices.
Eu pensei: — "Não faz mal. Está com luxo? A fome há de penetrar". Deixei-o
deitado nuns panos e corri para examinar bem a nossa casa, novinha, bonita...
Havia ainda, pelos cômodos, um leve cheiro de tinta fresca.


A escola

O gato pôde mais do que eu. Foi assim: — Fazia já uns três dias que
estávamos no sítio. "Cetim" continuava tristonho, sem aceitar alimento algum e
emagrecendo cada vez mais. Achei melhor soltar o coitado. Para que havia eu de
querer obrigá-lo a gostar do mato?
Desamarrei-lhe a cordinha do pescoço e disse-lhe:
— Está livre, "Cetim". Corra. Volte. O Zezé cuidará de você. Ele o achava tão
bonito! Vá.
O talzinho saiu vagarosamente, desconfiado e a cheirar os móveis.
— Decerto não foge, disse Rosinha.
— Quem sabe? respondi.
Erramos, porque de repente ele se pôs a farejar e saiu correndo pela estrada
afora.
Fiquei alegre. A tristeza do "Cetim" me andava entristecendo.

* * *

De tarde nhô Lau convidou-me para ir com ele ao negócio do Bertassa.
— Irei se mamãe deixar.
— Então podemos ir, porque ela já deixou.
Saímos.
Não ficava longe o armazém do Bertassa. Em quinze minutos lá chegamos.
Eu ainda não conhecia o homem.
— É aquele, disse-me nhô Lau, indicando um sujeito gordo, vermelho e de
fisionomia alegre. É ele que vai arranjar um gato para nós.
— Não vale a pena, nhô Lau.
— É novinho, Mário. Esteja descansado: garanto que ele logo se acostuma.
Não sabe que é "de pequenino que se torce o pepino?"
Depois de uma agradável palestra, na qual o meu companheiro contou duas
ou três anedotas engraçadas, fomos ver os gatinhos.
— A escola é aí, Mário. Cá o Sr. Bertassa não é careiro. Dá a sala varrida e
espanada, todos os dias, e lavada aos sábados, e não cobra nem um vintém de
aluguel.
— A gente poderia ver a sala? perguntei.
— Pode, respondeu o Bertassa abrindo a porta.
Fui o primeiro a entrar, curioso por ver a minha nova escola. Rosinha e eu, na
próxima segunda-feira, de acordo com o que papai dissera, nela seríamos
matriculados. — "Onde me sentaria?" Olhei para tudo com interesse. Não era
grande a sala. Um, dois, três... dezesseis bancos! Bastavam para trinta e duas
crianças, entre meninos e meninas. A escola era mista.
Duas lousas, uma sobre o cavalete, e outra pendurada na parede. Achei pouco,
habituado, como estava, com as do grupo, que eram enormes.
Nas paredes viam-se ainda uma folhinha e dois mapas, — o do Brasil e o do
Estado, e um quadro de pesos e medidas.
A um canto ficava o armário, com bicos de papel de seda, com pilhas de
cadernos, com as caixas para os lápis, tudo posto em ordem.
A mesa da professora, coberta com um atoalhado cor de vinho, parecia
enfeitada. Sobre ela achavam-se uma pasta, o tinteiro, o porta-canetas, berço de
mata-borrão, moringa, copo, um... Lembrei-me da escrivaninha do Dr. Gilberto.
Perto da talha, um caixão alto, coberto, fazia as vezes de porta-vasos. Sobre
ele se achava uma jarra com flores.
— Chega, Mário, disse nhô Lau. Até parece que está namorando a escola. No
meu tempo, nem por sombra se fazia isso. Se a gente pudesse, punha fogo na
escola, e até no mestre. Mas também... era cada palmatória!... Hoje em dia, só
mesmo um bicho do mato fica sem aprender. É cantiga daqui, agrado dali, festa
de lá...
Achei que nhô Lau falava com razão. Deixei a sala e fomos ver os gatinhos.
Escolhi um que me pareceu mais esperto. Era lindo!
— Já tem nome, disse o Bertassa. Chama-se "Corrupio". Depois de
agradecermos o presente, retiramo-nos. Em caminho, disse a nhô Lau:
— Sabe por que eu estava admirado pela escola?
— Não sei, Mário.
— Disseram-me que no sítio a escola era relaxada.
— Que grande mentira!
— Mentira mesmo.


Matriculados

Havia alguns alunos no pátio da escola, quando Rosinha, papai e eu lá
chegamos.
Não foi preciso esperar pela professora. Ela lá estava entretida a mudar umas
flores na jarra. Vestia saia azul-marinho e blusa branca.
Vendo-nos, saiu ao nosso encontro.
— Já sei o que deseja, Sr. Raimundo. Fosse uma semana antes e não
encontraria uma vaga sequer. Hoje, felizmente, posso matricular o seu bonito
casalzinho. Saíram três alunos.
Deu-nos cadeiras e fez uma porção de perguntas a papai. À medida que
perguntava, ia escrevendo num livro largo, de capa amarela.
— Está pronto, Sr. Raimundo.
— Muito agradecido, Dona Alzira.
Um bando de meninos espiava-nos da porta. Dispersou-se logo que nos
levantamos.
Saímos ao pátio. Papai, ainda uma vez, repetiu-nos as recomendações feitas
pelo caminho; deu-nos um beijo e se foi para casa.
A criançada parecia desprezar a brincadeira, naquela hora. Só um menino, de
cabelos arrepiados, com uma bola de pano na mão, gritava para aqueles que o
abandonavam:
— Vocês são uns tontos! Nunca viram gente! Cármen e Raul, chegando nesse
momento, correram ao
nosso encontro. Os demais foram-se aproximando, aproximando, e até o de
cabelos arrepiados largou a bola e correu a juntar-se aos que nos rodeavam.
— Eu já vi você de trole, disse-me um.
— É filho daquele homem que esteve em casa e comprou uma vaca, disse
outro.
— Decerto são conhecidos de nhô Pedro Benedito, falou um menino.
Um tal, de carinha gaiata, disse-me:
— Garanto que vocês não reviram do banco, como aconteceu comigo no
primeiro dia de escola.
Todos riram.
— É o Paulinho, contou-me Raul. É muito engraçado, fez-se o palhaço de
nossa classe.
Ele olhou para mim e piscou um olho. Nisto ouvimos um toque de
campainha.
— É o primeiro sinal, explicou-me Raul. É para deixar os brinquedos. Ao
segundo, forma-se. Ao terceiro é que se entra.
— Tal qual como no grupo, respondi.
Ouvimos o segundo toque. Não esperei ordens. Entrei na fila ao lado de um
menino da minha altura. Rosinha fez o mesmo.
Ao terceiro toque entramos.
Ainda em pé cantaram. E cantaram como eu não esperava; com voz muito
afinadinha. O hino começava assim:

Nem prisão nem paço nobre
Devem ter nosso louvor;
Mas o tem a escola pobre,
Templo de luz e de amor.


Livros

A mestra deu serviço para todos. Caligrafia para uns, problemas para outros e
livros para os que se achavam na minha fileira.
— Mário, disse ela. Levantei-me.
— Vejamos o que você sabe. Página dez.
Eu não tive medo. A voz de Dona Alzira inspirava confiança. Abri o livro.
Era o primeiro livro de João Köpke, livro muito meu conhecido e do qual eu
tanto gostava. Era nele que havia A questão, história da briga de João e Jorge,
por causa de um coquinho achado no mato. Havia também a do Janjão e o
relógio, a de Noel, o malcriado, a de Ana e o gato...
— Pode ler, Mário...
Comecei: — "O Periquito". "Um homem tinha um peri-quito. Era um
periquito muito bonito..." Fui lendo. Li até o fim.
— Está bem. Você precisa de um livro mais difícil. À tarde veremos isso.
Passou-me depois problemas sobre compra e venda de mantimentos. Ditou-
me um trecho e fez diversas perguntas sobre História, Geografia e Ciências
Naturais. Ao fim do exame, declarou-me aluno de segundo ano. Também
examinou a Rosinha, pondo-a no primeiro ano.
Chegou a hora do recreio e saímos ao terreiro. Os meus colegas, mal se
pilharam fora do alinhamento, aproximaram-se de mim, a comer e a prosear.
Percebi com muito prazer que eu não lhes era desagradável. Faziam-me festas.
Um deles ofereceu-me uma tábua de rapadura; um outro deu-me dois gomos de
cana descascada e cortada em pedacinhos.
Depois, na distribuição dos lugares para a brincadeira escolhida, reservaram-
me o posto mais cobiçado.
— Eu não podia encontrar melhores companheiros, disse ao Raul, pouco
antes de bater o primeiro sinal.

* * *

Na sala, mais tarde, mesmo na ocasião em que a nossa mestra explicava um
ponto de História Pátria, houve um menino que se atreveu a interrompê-la para
lhe contar que o Eugênio se debruçara na carteira e já dormia.
Pensei que Dona Alzira, muito zangada, fosse sacudir o dorminhoco e
repreendê-lo asperamente.
Pois o repreendido foi o denunciante, que ficou com uma cara de causar pena.
— Pensa que não vi o Eugênio dormindo? disse-lhe a mestra. Vi e deixei.
Deixei e está acabado!
O menino dormiu até a hora da saída, quando a mestra foi despertá-lo,
fazendo-lhe cócegas no pescoço com uma tira de papel.
Na estrada, não me contive e disse ao Raul achar esquisita a nossa professora.
— Você diz isso por causa do Eugênio, não é?
— É.
— Coitado do Eugênio! Sabemos que anda doentinho e se levanta às três e
meia da madrugada todos os dias para ajudar o pai a tirar leite. Dona Alzira não
é esquisita, Mário. E boa de coração.


A "Mansinha"

Eu não perdia ocasião para passear. Tudo valia como pretexto para uma
voltinha pelas redondezas do "Congonhal"! Era minha intenção conhecer de
perto todos os sítios vizinhos.
Ora, sabendo que nhô Lau iria a um deles buscar a "Mansinha", boa vaca
leiteira, comprada de um tal Alexandre, tratei de arranjar licença para ir também.
— Não pode, disse-me papai.
Foi inútil insistir no pedido. Foi perder tempo dizer que ajudaria a nhô Lau,
que cuidaria do bezerrinho, que voltaria logo.
— Já disse que não pode!
Fiquei desconsolado, quase chorei... Nada!
Papai saiu, ia à roça.
Quando eu vi nhô Lau pegar no laço, pô-lo ao ombro e aprontar-se para sair,
tive uma idéia má — desobedecer a papai.
— Seu Raimundo deu licença, Mário? Vacilei um instante e respondi:
— Deu, sim.
— Então, vamos.

* * *

Pelo caminho assaltava-me o desejo de não ir até o fim, de sentar no barranco,
à beira da estrada, de voltar correndo para casa...
Nhô Lau nem percebeu a minha perturbação. Como foi ruim eu ter mentido!
Estragava-me toda a festa.
Afinal chegamos ao sítio do Alexandre. Um menino veio abrir a porteira. Era
Gabriel, o tal que contara aos colegas da compra da vaca.
Começou a conversar comigo e depois, enquanto o pai atendia a nhô Lau,
aproveitou a ocasião para mostrar-me várias coisas do sítio.
Enlevei-me pela criação de abelhas. Quarenta e tantos caixões, todos pintados
iguaizinhos e em fila ao lado do cafezal.
Gabriel, disposto como estava, deu-me logo uma série de explicações sobre as
abelhas.
Eu não pensava que se pudesse criá-las daquele jeito, obrigando-as a fabricar
os favos nos quadros certos e podendo abrir-lhes os caixões, a qualquer hora,
para ver o andamento da colheita de mel.
— Isso é que se chama ciência! Ter por aí milhões de abelhinhas, catando o
mel de todas as flores, para pô-lo à nossa disposição!
— É isso mesmo. Papai tira um bom rendimento com as abelhas. Vende
muitos cem mil réis de mel e cera por ano. Se mais tivesse, mais venderia.
Depois, contam e é sabido que onde há abelhas as plantações dão muito mais.
— Direi tudo isso a papai. Hei de pedir-lhe para criar abelhas também.
— Se ele quiser é muito fácil. O meu pai vende caixões para principiar.
Começou só com um enxame.
— Vamos? gritou nhô Lau, que já estava com a vaca no laço. O bezerrinho ia
solto atrás.
Dissemos adeus e saímos.

* * *

— A vaca é boa, Mário. Sabe por quanto seu Raimundo conseguiu comprá-
la?
— Não.
— Por duzentos mil réis. Acha caro?
— Não sei.
— Que é isso, Mário? Está doente, triste ou zangado?
— Estou tudo isso. Vou dançar, nhô Lau. Saí contra a vontade de papai.
Agora é que a coisa vai ser dura de roer.
Estou em brasas, arrependido e aborrecido. Com que cara aparecerei diante
de papai?
Nhô Lau parece que não gostou do que lhe contei; nem sequer respondeu.
Fomos calados pelo resto do caminho. Chegamos. Entrei cabisbaixo.
— Bonito, hem, seu Mário? gritou papai, avistando-me. Pegue naquele
caderno e escreva nele a sentença: — Jamais desobedecerei aos meus pais.
Quinhentas vezes. Ouviu bem? e com boa caligrafia!
Não tugi nem mugi. Quietinho, tomei do lápis e comecei a tarefa. Quinhentas
vezes! Não era brincadeira.
Quando eu já havia escrito cinqüenta e poucas vezes, fui interrompido por
nhô Lau.
— Desculpe, Mário. Mas essa é bem merecida! E era.


Convite

Querido primo.
Saudações.
Você nem pode imaginar a enorme falta que me faz. Só agora sei avaliar o
quanto lhe quero bem. Desde a sua mudança acho a cidade mais triste, e os
brinquedos sem graça. Será sempre assim? Um dia destes, distraidamente,
passei pela porta da casa onde você morava. Confesso-lhe: as lágrimas vieram-
me aos olhos.
Às vezes fico-me a pensar em como seria bom se papai comprasse um sítio e
ele fosse pegado ao seu. Quem sabe? "O mundo dá tantas voltas"...
Domingo estive com nhô Lau. Fiz-lhe perguntas e mais perguntas. Contou-me
que o "Cetim" não quis morar no sítio. Bobo o "Cetim"! Preferir a cidade!
Também soube que você anda satisfeito com a escola, com a mestra e com os
seus colegas. Parabéns.
Como vai o "Pelintra"! Tem passeado muito nele?
Olhe, primo: o fim principal desta carta não é contar das minhas saudades
por você. Escrevo-lhe, convidando-o para vir passar comigo o próximo feriado.
Dê esta carta ao padrinho. Conte-lhe que, se você vier, talvez regresse ao
sitio em minha companhia. Mamãe acha melhor que eu passe uma boa
temporada na roça.
O médico deu esse conselho dizendo: "Vale mais uma semana de ar saudável
do campo do que meia dúzia de fortificantes caros".
Ora, eu que arrenego os fortificantes, estou ansiosíssimo por tomar esse.
Venha, pois que de volta irei com você.
Abraça-o o primo e amigo.
Juvenal.
Matão...


Colegas

Não estava na escola ainda há quinze dias e já sabia o nome dos meus
colegas, meninos e meninas.
Havia conversado com todos e feito amizade com diversos.
Antes da entrada e no recreio, tínhamos tempo de sobejo para palestrar,
brincar e assim travar novas relações.
As meninas entretinham-se a fazer rodas, a pular corda, a brincar de canto, a
bater petecas.
Nós, os meninos, achávamos, também, muito com que nos distrair, enchendo
as horas tão curtas, nessas ocasiões. Brincava-se de cavalinho, de bola, de
garrafão, de barra-manteiga, de esconder, de presos... Jogava-se às bolinhas,
jogavam-se pião e fichas. Mas o tempo, às vezes, corria melhor, quando certos
meninos começavam a fazer graça.
Paulino, por exemplo, era verdadeiramente impagável. A propósito de
qualquer coisa, arranjava logo uma pilhéria ou dizia uma piada espirituosa.
Punha apelidos em todos e nele próprio.
— Eu sou o Briguela, dizia fazendo uma careta e a bater no peito. (Esse era o
nome de um palhaço que ele viu no último espetáculo de um circo de
cavalinhos).
A um, que estava na escola havia dois anos e ainda não sabia ler, pôs o
apelido de Piruá. A um outro, que era magro e residia à beira de um tanque,
chamava de Maneco Soco. A mim, por beliscar os brotos das plantas, chamava
de Mário Saúva. Havia o Lico Enxadão, o Zé Passarinho, o Nonhô Telefone e
outros muitos.
Fiquei sabendo muita coisa sobre o passado, a família e os hábitos dos meus
colegas.
O Tissiani parecia ter a língua enrolada. Era incapaz de pronunciar três, dizia
tuês; dizia tuelente em vez de trelente. Era filho de afamado tocador de sanfona.
O Tônico andava amolando a gente para que olhasse as coisas por uns cacos
de vidro colorido, de que trazia os bolsos cheios. Tinha, na casa dele, uma coisa
que causava inveja a todos nós, uma gangorra, ou vira-mundo, como se costuma
dizer.
O melhor da classe chamava-se Firmiano. Estudava demais. Contavam que
ele vivia por cima das árvores, com livros na mão. Perguntei-lhe se aquilo era
certo. Respondeu-me afirmativamente.
Chegara a construir uma casinha no alto de uma goiabeira.
— Quando você puder, vá à minha casa e verá que coisa boa, disse-me ele.
O Egídio era o ruinzinho da turma. Só trazia na boca palavras feias. Metia-se
a valentão e era provocador. Andava sempre armado com um cacete de
perobinha, que só largava perto da escola, escondendo-o numa moita.
Diziam que o Gabriel, certa vez, lhe dera uma tunda, pondo-o a manquitolar
por mais de uma semana.
O Honório, já grandinho, de uns doze anos, muito simpático, muito amável,
era o aluno mais habilidoso dentre nós. Sempre surgia com alguma novidade.
Com caixas de fósforos, armava rodinhas que, tocadas a água, movimentavam
todo um mecanismo de carretéis vazios. O papagaio que ele arranjasse subia
mesmo. Subia quase sem vento. Até balão o Honório sabia fazer. Explicou-nos a
maneira pela qual os fogueteiros fabricam os busca-pés, os pistolões e os
fósforos de cor. Só não descobria como é que se faz rojão assobiar.
O Nabor, aquele de cabelo cor de fogo, imitava com perfeição a voz de
muitos animais. Cantava como galo grande e galo pequeno, como galinha choca
ou ao ver cobras; latia como cachorro, e como cachorrinho, grugulejava,
grunhia.
Se principiava a fazer de conta... não parava mais. Também fazia de conta que
chorava e punha cuspo nos olhos.
O Inocêncio pegava um bezerro ò unha, montava em potros velhacos. Era
destorcido! Também já estava marcado. Tinha na cabeça o sinal de um coice de
cavalo.
Eram todos uns meninos decididos. Sabiam nadar, subir às árvores, mesmo às
mais difíceis, montar em animais, arreá-los e guiá-los numa carroça ou trole.
Sem esforço, caminhavam léguas e léguas a pé. Corriam muito e saltavam
facilmente um córrego ou valo. Eram ágeis, de força e corajosos. Muitos
manejavam a enxada, a foice e até o machado. Outros sabiam fazer uma roça e
conheciam o tempo das plantações e o das colheitas.
Por tudo isso, eram excelentes auxiliares dos pais. Alguns se excediam no
trabalho.
O Evaristo por exemplo, que na casa era o maior dos irmãos e tinha o pai
adoentado, tornara-se o esteio da família. Lenhava, trazia do córrego, em latas,
toda a água necessária para os gastos domésticos e para os animais, tratados por
ele mesmo. Auxiliava na roça, ia à cidade. Também vivia abençoado pelos pais e
apontado por todos como um modelo dos filhos bons.
Sei contar que aquela criançada se divertia a valer. Eu pensava que, no sítio,
os meninos fossem meio tontos e apalermados; entretanto... eu andava ansioso
para que o meu primo Juvenal viesse conhecer como eles eram tontos... daquela
moda!

Colegas



Dona Alzira

Era já quase noite quando saímos do sítio do Sr. Pedro Benedito. Fôramos lá
em visita à minha mestra.
Pelo caminho, papai e mamãe começaram a falar sobre ela.
— Que tal a professora dos nossos filhos? perguntou papai.
— Bem simpática e acho que deve ser muito boazinha. Percebe-se que é
prestimosa e, principalmente, muito modesta.
— Você acertou, Emília. Dona Alzira sabe ensinar e educar a meninada, e,
além disso, não despreza os trabalhadores da roça. Faz a norma de um
requerimento para um, resolve um problema para outro e vive, assim, estimada
de todos. Certa ocasião pretendeu remover-se, mas tanto se lastimaram, que ela
não achou jeito de persistir na idéia. Sei que se alguém, por acaso, se levantasse
para molestá-la, ver-se-ia contra cinqüenta que a defenderiam.
Calados, eu e Rosinha íamos escutando tal conversa. Quando papai parou, eu
quis ajudar a falar bem de Dona Alzira. Por isso, dei um jeito e entrei na
conversa.
— Sabe, papai, ainda ontem aconteceu uma coisa na escola.
— Que foi, Mário?
— Foi isto, papai: estávamos brincando no pátio. Antes do primeiro toque de
campainha, ouvimos, do lado da escola, um grito acompanhado de choro. Dona
Alzira também ouviu tudo, porque saiu correndo e foi para o lado donde viera o
grito. Nós corremos com ela. Encontramos o Tissiani, muito pálido, caído, com
os livros para uma banda. Chorava como um doido.
— Que foi, Tissiani? Que foi? Conte, disse a mestra ansiosa.
Do pé corria-lhe sangue. Havia pisado num enorme caco de vidro. Quisemos
carregá-lo. Dona Alzira não nos deixou. Ela sozinha levou o Tissiani até à sala
de aulas. Lavou-lhe os pés e pôs um desinfetante na parte machucada,
amarrando-a em seguida. Depois começou a encorajar o nosso Língua Enrolada.
— Isso não é nada, dizia. Antes de casar sara.
— Como não é nada? falou Paulino. O homem ia perdendo as tripas...
O Tissiani ficou alegre e começou a dar risada.
— Agora, disse-nos Dona Alzira, brinquem de fazer silêncio. Ouviram?
Nós ficamos bem quietinhos, e ela falou muito: disse que é estupidez e
malvadez abandonar cacos de vidros em lugares onde todo mundo anda. Falou
bem do calçado. Mostrou que não vale a pena andar-se descalço, principalmente
no sítio. Em troca do pé no chão, disse ela, há o desgosto dos bichos, das
mordeduras de cobras venenosas, dos estrepes e cacos, das frieiras e de doenças
terríveis, como o amarelão, que seriam evitadas, se o pé estivesse dentro de um
calçado qualquer, bonito ou bem grosseiro.
— Que lição ótima, afirmou papai.
— Só agora, disse mamãe, é que compreendo por que você atura os sapatos.
Nisso chegamos.
Nhô Lau, correndo, foi abrir a porteira.


As tardes

Dona Francisca apareceu no sítio, coberta de pó e muito amolada, pois errara
o caminho, aumentando para três léguas uma viagem de apenas duas.
Logo que trocou de roupa, quis ver a casa inteirinha e tudo no sítio. Não
cessou de fazer perguntas. Gabou o lugar, a água, a divisão do prédio. Achou-
nos corados e mais bonitos. Quando chegou ao passeio em frente de casa, ficou
extasiada pela vista que se lhe descortinou aos olhos e disse:
— Eu gosto disto, minha amiga. É encantadora esta vida, é alegre, é saudável,
e não é dispendiosa. É tudo isso, mas... não me serve. As noites aqui são
medonhas e parecem não ter fim. Horrorizam-me!
— A senhora não é a primeira que me diz tal coisa. Há muita gente dessa
opinião, muito amiga do sítio, mas só de dia. Entretanto, isto admira.
— Pois não é para admirar, Dona Emília.
— Não é para admirar? Então unicamente por achar que no sítio as noites são
feias, destrói-se todo o valor desse viver? E depois... Ora, minha amiga, as noites
na roça não são tão feias.
— Não diga isso! Na cidade, sim, elas não são feias. Mal escurece, acendem-
se as lâmpadas e tudo continua claro. Há movimento pelas ruas até tarde, e,
quando todos dormem, os guardas ficam vigiando as casas.
— Pois a luz elétrica, a bulha das ruas e os guardas, Dona Francisca, valem
pouco, bem pouco em comparação com o que se tem no campo. No campo, só o
anoitecer quanto não vale? Aqui... Bem dizem os escritores e cantam os poetas:
"A tarde traz a porção de poesia de que precisa o nosso espírito. Todos os
rumores tomam a suavidade de um suspiro perdido. Em todas as nuvens se apaga
a refulgência de ouro, e o esplendor, que se não deixa fitar, é então atenuado. O
céu derrama uma doçura, uma pacificação que penetra na alma e a torna também
pacífica e doce... O piar velado e curto dos pássaros traz a lembrança de um
ninho feliz. Em fila, a boiada volta do pasto, cansada e farta, e vai ainda
bebericar no tanque. Um carro retardado, pesado de troncos, geme pela sombra
dos atalhos. As casas, voltadas para o poente, com uma ou outra janela acesa em
brasa e os cimos redondos das árvores apinhadas, parecem ficar, de repente,
parados, melancólicos e graves, olhando a partida do sol, que mergulha
lentamente... Escurece. Os pirilampos, nas sebes, acendem as suas lanterninhas
verdes. Vênus cintila no alto. E o dia, aqui no sítio, finda, enquanto ao lado
alguém ponteia a viola e canta uma dessas lindas canções brasileiras, longas em
saudades e ais, e a lua, ao fundo da varanda, uma lua vermelha e cheia, surge,
como a escutar, por detrás dos negros montes..."
— Sim, senhora. Muito lindo! Muito lindo! E nas cidades?
— Nas cidades as tardes não têm todo esse encanto. As atenções voltam-se
para o movimento das ruas e o barulho dos veículos não deixa ouvidos para a
voz da Natureza.
— Concordo, Dona Emília. E depois?
— Depois...
Nisso papai apareceu, interrompendo-se a prosa.



Tarde (Paulo Setúbal)

Uh! vós que respirais a poeira da cidade,
Jamais entender eis a doce suavidade,
A música dorida, a estranha nostalgia,
Que vem da solidão quando desmaia o dia!

Vós nunca entendereis essa rude grandeza,
Essa infinita paz, essa imensa tristeza,
Que sai do coração da mata bruta, quando
Resplandecem no céu os astros palpitando!

É preciso viver longe da turba humana,
Longe do mundo vão, longe da vida insana,
Para sentir, amar, ouvir essa tristeza
Que exala, ao pôr do sol, a maga Natureza
As noites

— Continuem, disse papai, sentando-se. Não se incomodem comigo. Só se é
segredo.
— Não, seu Raimundo, não é segredo. Discutimos sobre a feiúra das noites
na roça.
— Sobre a beleza é que discutimos, emendou mamãe. E recomeçou: Depois
de anoitecer, a vida prossegue no interior das casas. Aqui, por exemplo, é nessa
ocasião que se passam as melhores horas. Ninguém fica à janela, como na
cidade, a espiar gente e mais gente, carro e mais carro, bondes, automóveis...
Ninguém ouve o rodar dos veículos, a gritaria de um vizinho ou o apitar dos
guardas. No meu entender, faz-se coisa mais alegre e mais proveitosa.
Raimundo, comodamente estirado na rede, lê os jornais e revistas. Às vezes, lê
romances e outros livros. Às vezes, escreve. Eu cuido de crochês e escuto a
leitura por meu marido ou meus filhos, aos quais ajudo no preparo das lições.
Mário e Rosinha estudam ou nos escutam. A Teresa, depois de escolher o feijão
para o dia seguinte, senta-se na tripeça, perto da porta e agrada ao "Corrupio" ou
faz meias, e também escuta o que se fala e entra na conversa. Muitas vezes, as
crianças andam à volta do fogão, esperando que fiquem assadas as batatas postas
na cinza quente. Quase sempre frito pratadas de "bananinhas" ou de bolinhos de
colher. É uma festa. Também é festa se se arrebenta uma caçarolada de pipocas.
Habituamo-nos a deitar cedo. Quem cedo se levanta, cedo tem sono. Nove horas
já é tarde. Em geral, às oito e meia, todos vão para a cama. Dorme-se bem.
Dorme-se como se deve dormir — sossegadamente.
— Sossegadamente? Então, no sítio, pode-se dormir assim, Dona Emília?
Menos eu. Os ladrões...
— Ora, minha amiga. Esse receio é descabido, ou antes, é tão natural nos
sítios como nas cidades. Os guardas não impedem todos os furtos. Eles são
poucos em relação ao número de prédios a vigiar. Nos sítios também temos
guardas e há quem vele pelos nossos lares. Fora, dois ou três cães bravios não
dormem. Dentro, um cãozinho é a campainha que não falha. Depois, as boas
trancas de peroba, as armas e...
— É verdade, Dona Emília. Bem pensado, não se está livre de roubo em parte
alguma.
Papai não havia dito uma só palavra. Escutava e, às vezes, sorria. Nesse ponto
da conversa, levantou-se e perguntou:
— Em que fica, Dona Francisca? São feias as noites no sítio?
— Já não posso dizer isso, seu Raimundo.



Tempestade

Dona Francisca esteve quatro dias no sítio, e, perto ou longe de mamãe,
agradou-me sempre.
A prova disso é que, ouvindo dizer que me levaria à casa da titia, prontificou-
se, espontaneamente, a ceder um lugar para mim, no trole por ela contratado.
— Mas... objetou papai, é demasiado incômodo...
— Ora, seu Raimundo. Deixe-se disso. Até gosto que o Mariozinho vá
comigo. Serve de companheiro.
Papai aceitou, pois, o oferecimento, e no mesmo dia eu e Dona Francisca lá
fomos pela conhecida estrada.
Mal deixamos a ponte do Guamium, principiou um vento fortíssimo,
vergando as árvores, levantando nuvens de poeira, formando redemoinhos que
erguiam folhas, cascas e até pequenos galhos secos.
— Toca os animais, Pascoal! Toca isso, quero alcançar a casa de nhá
Venância.
O relho estalava, os animais galopavam e o Pascoal, em pé, ia gritando:
"Vamos, Briosa! Ale, Pintura!"
Eu me firmei na boléia.
Do lado do Capão Bonito estava tudo escuro. As nuvens corriam baixas. Do
lado oposto tudo já estava branco. Era a chuva caindo e caminhando ao nosso
encontro. Minutos depois alcançou-nos, encharcando-nos. Não havia mais
recurso, era suportá-la até à cidade.
Os relâmpagos faziam ziguezague; os trovões deixavam pelo espaço roncos
medonhos.
— Parece que o céu vai desabar, dizia o nosso cocheiro.
— Santa Bárbara! exclamava Dona Francisca, persignando-se.
E a chuva caía.
A estrada parecia um regato transbordante. De todos os barrancos saltavam
jorros d'água. Por toda parte surgiam cascatas e enxurradas.
Foi uma verdadeira tempestade!
Quando avistamos a casa de nhá Venância, já não valia a pena parar.
— Agora, disse o Pascoal, o melhor é chegar depressa. Falta só uma légua.
Enquanto a percorríamos, a chuva virou chuvisqueiro, e o chuvisqueiro,
garoa. Por uns dez minutos, vimos no céu o duplo arco das sete cores. É que o
sol reaparecera, mais claro e mais lindo.
Quando avistamos a cidade, nem garoa havia. Já eram poucos os indícios
daquela tempestade — as ruas muito lavadas, e o ar fresco, as andorinhas
barulhentas e, nós, ensopados e enlameados.
Finalmente o trole parou em frente da casa de meu primo. Nas sarjetas,
algumas crianças se divertiam com os últimos restos da enxurrada. O pobre
convalescente espiava-as da janela. Enxergando-nos, correu ao portão.
— Você veio, Mário, com uma tempestade destas?
— Pois então?
Juvenal convidou Dona Francisca a descer.
— Obrigada. Não posso. Estou com a roupa grudada no corpo.
Logo que o trole partiu, eu disse ao Juvenal:
— Essa mulher não tem sorte. Na ida errou o caminho. Agora, na volta, toma
toda essa chuva! Olhe que já é azar!


Feriado

No dia seguinte, procurávamos uma roupa que servisse para sair à rua.
Foi perder tempo. Experimentei duas ou três calças e alguns paletós do
Juvenal; mas era tudo muito estreito para mim.
Pensava-se em enxugar a minha roupa a ferro quente, quando bateram palmas
à porta.
— É nhô Lau! gritou Violeta no corredor.
Efetivamente, era ele. Viera à cidade buscar umas encomendas e trazer o meu
terno de sarja, o meu querido terno de sarja azul.
Disse-me que não perdesse tempo: saísse logo a passeio.
— Por que tanta pressa? perguntei-lhe.
— É porque trago ordens de seu pai para voltar cedo em sua companhia e na
de seu primo. Compreendeu?
E não perdemos tempo. Juvenal e eu tratamos de dar as nossas voltas,
imediatamente.
Na rua eu disse:
— Parece-me que a cidade está mais bonita. Por que será?
— Nada mais fácil de responder. Isso é assim mesmo. Quem mora no sítio,
acha a cidade uma boniteza que a gente daqui não é capaz de achar.
Percorremos várias ruas e nos dirigimos ao Jardim Público. Lá estivemos, à
sombra de umas árvores, sentados, conversando, e a olhar as águas do repuxo do
tanque.
Vimos o Dr. Gilberto, que me cumprimentou e veio perguntar dos meus e
enviar-lhes lembranças.
Do jardim fomos ao cinema, onde passamos uma hora bem agradável a ouvir
música e a ver uma fita intitulada Judex, na qual trabalhavam o Joanico e o
Lingüiça, dois meninos levados da breca.
Do cinema voltamos direitinho para casa, a cuidar dos arranjos para ir ao
sítio.
Juvenal estava num contentamento enorme.
Já na horinha de tomarmos a carroça, pois era de carroça que se ia ao sítio
daquela vez, as primas pregaram-me uma surpresa.
E que surpresa boa! Deram-me de presente um cãozinho, felpudo e de pêlos
macios.
— Ê de raça que não cresce muito, disse Violeta. Nós o batizamos há poucos
dias. Chama-se "Piquira".
— Estime o "Piquira", pediu Áurea. Mesmo que ele morda o seu gatinho, não
lhe dê surras, ouviu?
— Fiquem descansadas. O "Corrupio" já está como uma bola. Como uma
bola também o "Piquira" há de ficar.
— Pronto? perguntou nhô Lau.
— Pronto, respondemos, eu e meu primo, a uma voz. No caminho
encontramos o Paulino a pé e de picuá ao ombro.
— Que é isso, Paulino?
— Ué, Mário. O que há de ser? O Briguela em serviço.
— Suba na carroça.
— Pensa que o Briguela é pobre soberbo? Aceito o convite. É sempre assim.
Nunca ando toda a estrada a pé. É um trole, é um carro de boi, é uma carroça... é
uma garupa.
Nhô Lau parou a carroça... O Paulinho subiu e apresentei-o ao Juvenal.
E lá fomos nós, estrada afora, a prosear, a rir, a brincar com o "Piquira" e
agüentando os solavancos da carroça.


Nós dois

Quando chegamos ao sítio, Juvenal não quis esconder a sua admiração pelo
que encontrava. Disse-me não supor que aquilo já estivesse tão bem arranjado e
tão bonito assim.
Antes de anoitecer, ainda houve tempo para corrermos à bica e à casa de nhô
Lau.
A meu pedido, mamãe pôs à mesa, com o leite e o café, uma peneirada de
pipocas.



Manhã(Álvares Azevedo Sobrinho)

Rompe a manhã! Nas árvores do monte
Estende o sol o seu dourado manto;
O azul do céu reflete-se no pranto
Do orvalho; tristemente de uma fonte

Por sobre o verde campo de esmeralda,
Vai serpeando a límpida corrente,
E da montanha na festiva fralda,
Esbate-se a áurea luz tremulamente.

Sorrindo vem, em fúlgido esplendor,
A primavera derramando flores
E vozes soltas e canções de amor...

E ouve-se, ao longe, em coro, de repente,
O canto dos alígeros tenores
E os galos a cantar festivamente.


Ás nove horas, deitamo-nos. Por aquela noite, eu e o primo dormiríamos na
mesma casa. Também "Piquira", às escondidas de papai, foi levado para o nosso
quarto. Pusemo-lo nuns panos, dentro de um caixãozinho, embaixo da cama.
Começamos a conversar. A princípio cochichava-se, depois, pouco a pouco,
esquecemo-nos de que o quarto de papai era contíguo ao nosso, e fomos
elevando a voz, dando gargalhadas que ameaçavam não ter fim.
— Vocês não dormem? perguntou papai. Calamo-nos depois dessa pergunta,
mas o "Corrupio", miando, veio da varanda e entrou no quarto. Eu já mordia o
travesseiro para conter o riso. Estava a ponto de estourar... quando, sob a cama, o
"Corrupio" e o "Piquira", aos roncos e bufos, ferram uma briga.
Não pudemos resistir. Soltamos gargalhadas e a palestra recomeçou, talvez
mais forte.
— Ah! — gritou papai. Vocês estão querendo mesmo que lhes dê sono?!
Esperem um pouco. E mexeu-se na cama.
— Não brinque, Juvenal! disse-lhe baixinho. Agora é sério. Nem mais um
pio. Até amanhã.
Ficamos num silêncio profundo. Já não era cedo. Ouvia-se o cantar dos galos.
O relógio, na varanda, bateu onze horas.
Não vi, nem ouvi, nem pensei mais nada. Só abri os olhos pela manhã, aos
chamados de papai.


A roça do Raul

— Levante, Mário. Já é dia velho. O sol já está alto. Eu pulei da cama.
Juvenal começou a ensaiar... Queria ficar só mais um pouquinho.
Instei para que se levantasse na mesma hora.
— Não me amole, resmungou cobrindo a cabeça, e encolhendo-se todo.
— Ah! é assim?
Abri as janelas e arranquei-lhe as cobertas. Um jorro de claridade entrou no
quarto. Juvenal esfregou os olhos e não teve outro remédio senão o de abandonar
o leito.
— Estava tão bom... disse ele, bocejando e espreguiçando-se.
— Qual bom o quê, seu dorminhoco! No sítio o mais bonito é de manhã.
Pegamos numa toalha, num sabonete e nos fomos lavar lá na bica. Ao
voltarmos fomos chamados por nhô Lau, que estava tirando leite da "Mansinha".
Cada um de nós se deliciou com um copo de leite espumoso e quentinho
ainda.
— Isso sim, é que é bom, disse eu.
Dali, com licença de papai, fomos pegar o "Pelintra", que se achava no
pastinho. Eu e o primo, engarupados, tocamos o animal para o sítio de seu Pedro
Benedito.
Lá encontramos o Raul plantando feijão.


A roça do Raul

— Não é roça de papai. É minha roça, respondeu Raul parando. Aqui é assim.
Também tenho a minha plantação.
— Você não nos contou nada, hem?
— Palavra que me esqueci. Pois fique sabendo, agora, que só no ano passado,
de milho, feijão e arroz colhi e vendi para mais de cem mil réis. E não é só isso.
Também crio. Tenho as minhas galinhas, o meu leitão, a minha vaca...
— Seu pai não se importa, Raul?
— Ele até gosta. Procura ensinar-me naquilo em que não estou muito prático.
— E que faz você com o dinheiro?
— Quis dá-lo a papai, ou comprar o que precisasse, mas ele não deixou.
Então guardei-o para ir arranjando um capitalzinho, com o qual, algum dia...
—... você comprará também o seu sítio, não é assim?
— É, Mário. Você adivinhou. É isso mesmo...
— Pois estou enlevado com a sua idéia. Eu também hei de fazer a minha roça
e a minha criação. Sei que papai há de gostar. Vamos, Raul, não pare o seu
serviço por nossa causa.
— Então, com licença. Preciso aproveitar a fresca da manhã.
Desci do animal e pedi a enxada ao Raul. Pus-me a manejá-la,
desajeitadamente. Ao fim de dois minutos, entreguei-a ao colega dizendo:
— Parecia tão mole!
— Isso é assim mesmo, replicou, rindo-se. Não se deve desanimar com a
primeira vez. Para tudo é preciso costume, jeito e constância, do contrário nada
se obtém, como Dona Alzira sempre diz.
— Pois quero ver se arranjarei tudo isso e hei de ter a minha roça também,
respondi montando no "Pelintra".
— Para onde vamos agora, Juvenal?
— Até à casa do Honório, não é isso?
— É, sim.
Dissemos adeus ao Raul e tocamos o "Pelintra", que partiu a galope.


Um provérbio

Era domingo.
Logo cedo, eu e o primo corremos à procura de nhô Lau.
Àquela hora, com certeza andaria ele pelos arredores da casa, entretido
nalguma reinação.
Reinação, para nhô Lau, vinha a ser qualquer serviço feito espontaneamente,
nas horas em que podia vadiar.
Arranjar um chiqueirinho para pintos, construir um jirau para coradouro,
engraxar um arreio, arear uma espingarda, pôr uma tramela na porteirinha do
terreiro e outros afazeres parecidos eram para nhô Lau verdadeiros
divertimentos.
Rodeamos a casa, chegamos até ao mangueirão e nada de encontrar o nosso
amigo.
Encaminhamo-nos para a casa dele, mas a encontramos fechada.
Numa carreira fomos perguntar se papai o havia mandado a qualquer parte.
— Não, disse-nos papai.
— Então que é feito dele? Que lhe aconteceu?
— Ora, meu filho, aconteceu-lhe que, se não o mandei a parte alguma, dei-lhe
a licença que pediu para ir ao "Recanto", em visita a um amigo, o Zé Feliz.
— Ao "Recanto"? Sei onde é. Fica pertinho do sítio do Gabriel. Não é isso,
papai?
— É lá mesmo.
— Ah, nhô Lau! exclamou Juvenal com uma certa raiva. Ele foi esperto
demais. Bem podia ter-nos prevenido desse passeio. Bem merecia que lhe
pregássemos uma peça.
— Que peça?
— Irmos ao "Recanto" agora, com licença do padrinho. Eu só queria ver a
cara de nhô Lau quando nos enxergasse lá.
— Palavra que havia de ser engraçada.
— Havia de ser mesmo, meus tratantes, disse papai, mas o pior da festa é que
eu não dou a licença desejada. É muito longe. E, depois, não é só isso. Vocês
não largam desse homem, um só instante, a semana inteira. Nem sei até como
ele pode aturá-los.
— Então o senhor não deixa, mesmo? perguntei.
— Não, Mário.
— Ora, padrinho, disse Juvenal. Só esta vez... por favor.
Papai não nos disse coisa alguma. Levantou-se e saiu.
Juvenal não queria conformar-se. Resmungou bastante, ficou pensativo e, por
fim, convidou-me, insistentemente, a que lográssemos papai.
— Sabe, disse ele, pedimos para ir à casa do Raul e em vez de ir lá...
— Eu? Deus me livre!
— Então você é assim? Não sabia que o meu primo era tão patife!
— Ah! você não sabia? É que não sabia também que esse mesmo primo, um
dia, já fez a asneira de querer lograr ao pai e saiu logrado, arrependeu-se e teve,
ainda por cima, de encher folhas de papel, escrevendo, com letra boa, que jamais
lhe desobedeceria.
Juvenal, ao ouvir isto, acalmou-se, perdeu o arzinho de amuado e, todo
risonho, pediu que lhe contasse o caso, por miúdo.
Foi então que lhe repeti o caso da "Mansinha".
Depois, quando corríamos ao valo em busca de fichas, chamou-me de gato
escaldado.
Mas foi só essa vez...


O pião

Mais tarde, no meu quarto, com a porta fechada, sentados no soalho, eu o
primo íamos vendo, devagarinho, todos os brinquedos que me pertenciam e que
andavam guardados numa canastra velha.
— Bonito caviúna, disse Juvenal, pegando num pião. Deve ter custado pelo
menos uns quinhentos réis.
— Muito mais.
— Um mil réis!
— Mais do que um mil réis!
— Ah I não posso acreditar.
— Pois é a pura verdade. Foi assim: Certa vez, quando eu voltava para casa,
encontrei no Largo do Bom Jesus uma porção de meninos, fazendo roda e
jogando pião. Fiquei a ver como se entretinham a arranjar as batatas na mesa, a
ver os piões pererecarem, dormirem roncando e serem caçados para virar na
palma da mão ou na unha do polegar.
Logo depois reparei num menininho que estava fora da roda, num monte de
saibro descarregado na sarjeta, brincando de fazer túneis e fornos.
Comecei a prosear com ele.
— Quem é você?
— Sou irmão do Pedro, respondeu-me indicando um dos menino? que
jogavam.
— Você não tem pião?
— Tenho. Quer ver?
E tirou do bolso esse caviúna.
Olhei para o pião e olhei para o menino. O pião era bonito e o menino tinha
cara de bobo. Pensei que seria fácil passar-lhe a perna.
Ofereci-lhe cem réis pelo caviúna e o talzinho aceitou a proposta e ficou
muito contente a olhar para a moeda, enquanto eu azulava.
Mas em casa comecei a pensar no negócio e vi que fizera um papel feio. Eu
tinha sido um refinado tratante. Principiei a imaginar tanta coisa. "Quem sabe se
ele irá sofrer por minha culpa; quem sabe se o pião nem era do menino; quem
sabe se ele se lembraria de mim, como quem se lembra de um malvado ou de um
ladrão".
— E daí?
— Daí voltei correndo ao Largo do Bom Jesus. Lá estava o monte de saibro,
cheio de túneis, crivado de palitos de fósforos e... mais nada I Tratei de procurar
o menininho, sempre, por toda a parte, e parece que, para meu castigo, nunca
mais o pude ver.
— E daí?
— Daí o pião ficou comigo.
— Por cem réis?
— Ora essa é boa!
— Pois você não me disse que custou mais de quinhentos réis, mais de um
mil réis, muito mais?
— Disse, Juvenal, mas um remorso como o que sofri, e sofro ainda, não
custará mais de um mil réis?


Brinquedos

— Está bem, Mário. Já aprendi que um remorso custa caro. E esta coleção de
bandeirinhas quanto custa?
— Para meu padrinho que a comprou, não sei; para mim custou pouco — só
um muito obrigado e o cuidado com que a trato e guardo.
— Dê-me o binóculo. Vamos olhá-las.
Durante uma boa hora ali ficamos a ver bandeirinhas. Eram muitas e eram
lindas. Traziam fotografias — de índios, de chineses, de esquimós, de monarcas,
de artistas, de imagens, de estátuas, de quadros célebres, de animais esquisitos,
de navios de guerra, de palácios, de pontes, de torres, de igrejas, de cidades e de
outras mil coisas interessantes que há por esse mundo afora...
Cansados de ver bandeirinhas, folheamos o livro da histórias de "João
Felpudo" e começamos a repetir o nome de todas as histórias, que conhecíamos:
— Maria Borralheira, João Bobo, João Meringote, Mata Sete de Revés e Oito
num Golpe, Pedro Malasartes, O Gato de Botas, Os três irmãos em busca de
fortuna, A gruta dos doze ladrões, Uma festa no céu, Não furte o meu bolinho, e
outras e mais outras...
Palácios de prata, palácios de ouro, palácios de brilhantes... Velhinhas, muito
enrugadas e arcadinhas, que viraram fadas. Espelhos mágicos, onde se viam
pessoas e coisas, ausentes e distantes. Tapetes, também mágicos, que
transportavam a gente, num pulo, até ao fim do mundo! Flores mágicas ainda,
que, encostadas ao nariz dos mortos queridos, lhes davam a vida. Toalhas
encantadas, que estendiam, sozinhas, cobertas dos mais apetecíveis manjares.
Sacos que prendiam os malfeitores, o diabo e até a morte I Cacetinhos
malcriados que, a uma palavra do dono, saltavam sobre a cabeça do inimigo,
esbordoando-o sem piedade! Ursos que falavam... Encruzilhadas com três
caminhos, cada caminho com três cidades, cada cidade com três castelos, cada
castelo com três filhas de rei...
— Estão batendo aí, Mário.
Levantei-me e fui abrir a porta. Era Rosinha.
— Até agora?! exclamou. Mais de duas horas, fechados aqui no quarto, só
para ver esse pouquinho de brinquedos? Eu, sim, é que tenho brinquedos a valer.
Quatro bonecas de porcelana, uma de massa, cinco de pano. È todas têm a sua
roupinha de batizado, de baile, de festa e de ocupar em casa. Tenho maquininha
de costura, o estojo que você me deu, livros de figuras, um ferrinho de engomar,
um diabolô...
— Chega, Rosinha. As mulheres precisam mesmo ter muitos brinquedos.
— Ora essa! Por quê?
— Porque nós, os homens, subimos às árvores, pescamos, nadamos,
brincamos de tourada, de cavalinhos, de guerra... Vocês não! Vocês, desde
meninas, já vão ficando em casa, aprendendo a ser patroas, recebendo visita,
fazendo docinhos, comidinhas, roupinhas, enfeitando a sala...
— E você pensa que estamos erradas, que fazemos mal nisso?
— Pelo contrário, prima. Acho que fazem só o que devem. Fazem muito bem.


Correspondência

Vendo que nhô Lau não voltava do sítio do Zé Feliz, papai ordenou que
fôssemos buscar a correspondência.
— Está muito quente, disse-nos mamãe. Levem o guarda-sol.
Respondemos-lhe que não era preciso e saímos.
O sol estava mesmo de rachar. Fazia um calorão insuportável. As plantas,
com as folhas novas emurchecidas, não se moviam e pareciam mortas; não
conseguimos avistar nem um passarinho nem uma borboleta!
Encontramos o pai do Gijo, de volta da cidade, com a carroça cheia de
compras.
Chegamos suados ao Capão Bonito.
No armazém do Bertassa, nem se podia entrar de tanta freguesia que lá se
achava.
O Bertassa e o empregadinho pulavam pra cá e pra lá, atendendo aos
fregueses, com agrado para uns e asperezas para outros.
Depois de muito custo conseguimos comprar chocolate.
Fomos chupá-lo sob as amoreiras, no terreiro, onde alguns italianos jogavam
boliche.
Detrás do negócio vimos sair um homem, com uma garrafa na mão,
cambaleando e a fazer ziguezagues. Deu alguns passos e se estendeu e rolou por
terra, como um porco.
Foi preciso atropelarmos um cachorro que lhe farejava a boca.
— Que tristeza! exclamou o Juvenal, com dó e com repugnância, mirando o
embriagado, que roncava e falava coisas incompreensíveis.
— Aí vem o Giocondo! gritou alguém.
Giocondo era quem ia à cidade, todos os dias, buscar a correspondência.
Cada morador do bairro pagava-lhe um pouco por mês, e ele arranjava, assim,
um ordenado regular, suficiente para viver e tratar da família.
A correspondência não era distribuída de sítio em sítio; ficava no armazém do
Bertassa, que se incumbia de entregá-la aos que a procuravam.
O Giocondo chegava quase sempre antes das quatro horas e por isso, ao
saírem da escola, os meninos levavam para casa as cartas e os jornais da
família...
Enquanto dois ou três homens erguiam o bêbado e o carregavam, deixamos a
sombra agradável das amoreiras e fomos tratar da nossa obrigação.


Uma revista

Logo que Giocondo nos entregou a correspondência, pusemo-nos de volta
para casa.
— Que é que veio hoje? foi perguntando o Juvenal.
— Hoje? Só os jornais e uma revista.
— Uma revista? Decerto é a "Brasileira".
— Pelo jeito, não.
— Deixe-me ver isso.
— Espere um pouco. Vou arrancar este papel que a enleia.
— "Chácaras e Quintais"! exclamamos a um tempo.
— Que nome bonito! disse Juvenal.
— Bonito mesmo.
— Já ouvi esse nome nalguma parte.
— Mas que revista será essa?
— Ora, Mário... Pois o próprio nome está contando. Por força há de tratar de
tudo o que se passa nas chácaras e nos quintais.
— Essa é boa!
— Essa é boa, por quê? Pois as outras revistas que conhecemos, de que é que
tratam? Não é de futebol, paradas militares, procissões, festas?...
— E é só na rua que se passa tudo isso?
— É um modo de dizer, Mário.
— Está bem... Tratemos, então, de ver se é errado o nome dessa revista.
Comecei a folheá-la, vagarosamente. Juvenal ia lendo: "Criação de marrecos",
"Crianças cultivadoras", "Cultura de rosas", "Como se faz uma horta", "Porcos
de raça", "Um colmeal", "Como fiquei rico criando galinhas".
Em casa, papai, percebendo o nosso interesse pela revista, nos deu diversas
explicações sobre ela.
— A "Chácaras e Quintais", disse-nos, é uma revista agrícola mensal. Custa
10 mil réis por ano. Por essa quantia ensina muitas coisas à lavoura. Ensina a
criar aves, tais como: galinhas, marrecos, perus, pombos e pássaros cantores; a
criar abelhas, coelhos, carneiros, porcos, cavalos, cabras, vacas... Ensina a
cultivar o milho, o feijão, o arroz, a cana-de-açúcar, mandioca, batatas,
amendoim, plantas frutíferas, ervas medicinais, hortaliças, flores... É, enfim, um
guia indispensável na mão do agricultor que gosta de aprender cada vez mais, e
quer plantar e criar pelos métodos mais modernos, por conseguinte mais simples,
mais fáceis, mais baratos e mais lucrativos.
— E não há outra revista como essa, papai?
— Há, sim, muitas outras. Conheço: "A Lavoura", "Revista de Agricultura",
"O Fazendeiro", "A Fazenda", "O Criador Paulista", "O Brasil Agrícola", "Vida
Rural", etc. Algumas tratam só de aves, outras só de abelhas...
— O senhor deixa que eu leia essa revista, inteirinha, todos os meses?
— Ora, que pergunta mais sem cabimento, meu filho. Então, eu que já lhe dei
ferramentas, sementes e conselhos para você cultivar, por sua própria conta e
risco, dois hectares de terra, agora havia de proibir uma leitura tão proveitosa?
Você tem cada uma! Pois vou castigá-lo. Você fica incumbido de colecionar a
"Chácaras e Quintais".
Se todos os castigos fossem assim!.


Uma criação

Mamãe, influída pela leitura da revista agrícola, resolveu fazer uma criação de
galinhas e contou isso ao Sr. Pedro Benedito quando esteve em casa. Ora, ele,
que era entendido no assunto, aprovou a idéia de mamãe e falou muita coisa a
respeito.
— Na cidade, disse ele, pensam que se cria, arranjando-se uma galinha, um
galo, três varas para poleiro, um caixão com palha, uma latinha com água, restos
de comida e... pronto!
— Haverá gente assim? perguntou mamãe.
— Há gente que assim pensa e assim faz. Há também os que nem isso fazem.
Nem caixão com palha, nem varas para poleiro, nem restos de comida. "Para
quê?" perguntam eles. "Uma touceira de capim no pasto, não é bom ninho? As
árvores não serão esplêndidos poleiros? Os bichinhos não valerão pelos restos de
comida e pelo milho?" No entanto, esses criadores ficam sempre numa dúzia ou
pouco mais de aves, e mesmo, na maior parte das vezes, elas são magras,
arrepiadas e atacadas de bouba, pigarra e outras moléstias.
— Pois pretendo criar galinhas, continuou mamãe, mas não assim, a esmo.
Pretendo criá-las de verdade, de modo que possamos ter, em abundância, ovos e
frangos para o gasto da casa e para vendê-los. Principiarei devagar, com poucas
aves e de uma só raça — Leghorns. Primeiramente, quero conseguir certa prática
no tratamento delas; mais tarde, pouco a pouco, irei aumentando a criação.

* * *

Dias depois dessa palestra, foram preparadas as dependências destinadas às
aves. O cercado foi feito com telas de arame. Plantaram-lhe, dentro, grama, e
algumas amoreiras, que no tempo de calor dariam sombra, frutinhas no outono e,
no inverno, despindo-se, não obstariam o sol.
O galinheiro ficou bonito. Puseram-lhe um poleiro móvel e horizontal e
muitos ninhos em caixas próprias, dependuradas na parede.
Fora, colocaram um bebedouro automático, tão simples e engenhoso, que
deixava a água ir saindo à medida que fosse consumida.
Viam-se também, no cercado, aqui e acolá, vários cochos ^pequeninos, onde
seriam postos os alimentos.
Só faltava chegarem as habitantes. Haviam sido encomendadas na Capital e
estavam de viagem. Seria um casal respeitado.
Custara trinta mil réis.
Eu andava ansioso por vê-lo.
Um dia, ao voltar da escola, meu primo veio esperar-me com a notícia de que
o pai do Gijo trouxera as esperadas Leghorns. Fui vê-las.
Eram, na verdade umas aves lindas! Alvas e perfeitas.
Nhô Lau, olhando-as, disse-nos que tais galinhas chegavam a pôr 300 ovos, e
até mais num ano.
— Isso, sim, vale a pena! falou Juvenal.
— Vale a pena, acrescentei, e dá jeito para eu tomar gemada todos os dias!


Pescaria

Algumas semanas depois daquela em que fomos buscar a correspondência,
dirigimo-nos à pescaria.
— O domingo de hoje está próprio, disse-nos nhô Lau. Nem um ventinho se
percebe. As árvores estão quietas. Aprontem-se. Logo, com o sol bem quente, é
a melhor hora de se pegarem os lambaris espertos.
Eu e o primo, ansiosos para que nhô Lau cumprisse a promessa que nos fez de
nos levar à pesca, mal ouvimos isso fomos à procura dos apetrechos necessários.
Pegamos as varinhas, preparadas com antecedência e muita arte. Vergavam
como se fossem de junco. Também, não era para menos; foram sapecadas,
tintadas e esticadas durante uns quinze dias. Tinham linhas especiais de rabo de
cavalo-marinho como chumbada de enfiar o anzol de primeira.
Depois do almoço, enquanto a Teresa preparava uma grande pelota de angu,
dirigimo-nos à bica onde arrancamos, com um enxadão, e em pouco tempo,
muitas minhocas. Deram para encher a latinha velha, que levávamos vazia.
Ali pelas onze horas, saímos em companhia de nhô Lau. Disse que nos levaria
a um lugar escolhido, cevado e à sombra de um ingazeiro. Depois de andar quase
um quilômetro e de atravessar uns cem metros de capoeirão, chegamos ao ponto
determinado.
Era, na verdade, um bonito lago. As águas do córrego formavam uma espécie
de tanque. As margens eram largas, limpas, ensombradas pelo tal ingazeiro,
muito frondoso.
— É o "Poção", disse nhô Lau, atirando sobre a água uns dois ou três
punhados de farelo.
Peixinhos apareceram à tona, em busca do petisco.
Cada um de nós escolheu um lugar, desenrolou a linha, muniu-se de minhoca
e de angu e lançou o anzol nágua.
Nhô Lau acendeu um cigarrão de palha e... zás, tirou um peixe... Tirou outro,
outro, outro... e não parou mais. Era fisgar um lambari, tirá-lo do anzol, e jogá-lo
na cesta, pôr nova isca, deitar de novo o anzol nágua e fisgar outro e...
— Está fazendo inveja, nhô Lau? Também vou pescar sem chumbada, disse
Juvenal.
E tirou a chumbada. Mas não se deu bem com a experiência e tornou a pô-la
na linha.
Do mato vinha o canto de um sabiá, dobrando que era uma lindeza!

Pescaria

Borrachudos e mutucas de asas rajadas, sem medo e teimosos, ferravam-me
na barriga da perna. Eu dava tapas que estalavam.
— Eh! mosquitada amolante! exclamava Juvenal com raiva.
— Tenha paciência, moço. Sem paciência não se vai ao céu. E o melhor é a
gente não principiar na conversa senão... adeus, pescaria!
— Mas já estou descoroçoado de pôr isca no anzol. Não pega nada mesmo.
Essa corja está enchendo a barriga à minha custa.
Mal ele disse isso, eu ferrei um bonito tambiú.
— Olhe, Juvenal... é assim que se faz. Choramingar não adianta...
Juvenal não me respondeu. Saiu de onde estava e veio pôr o anzol bem perto
do meu.
— Ora, seu Juvenal, isso não é do trato. Só serve para nos atrapalharmos.
Nhô Lau fez-me um sinal. Eu fui para o lugar abandonado pelo primo.
Continuamos a pescaria.
De repente o Juvenal dá um grande arranco e levanta no anzol um... Um
peixe? Não! um pedaço de pau podre...
— Bonito dourado, hem?
— Que peixe é esse, primo? Será piupau?
— Não sei. Se faz muita questão de saber o nome é só mandá-lo para o
Museu.
Dali a instante, dá novo arranco e puxa para fora d água um lambari. Mas,
coitado! Fora fisgado pela barriga.
Gargalhadas saudaram a pescaria do Juvenal, que se mostrou alegre e disse:
— Peguei ou não peguei?
— À traição...
— Não sei disso. Sei é que ele veio para fora. Já não poderão assá-lo no dedo
como prometiam.
A pescaria continuou.
Decididamente, Juvenal fora ao "Guamium" apenas para nos divertir. Dali a
pouco dava novo puxão. Vimos-lhe no anzol, tremendo, um lindo canivete...
— Aí, primo!
Mas o peixinho escapou e lá se foi ligeiro. Juvenal parece que ficou
desesperado e começou a dar varadas nágua.
— Enrolemos a linha, disse nhô Lau. Esse é sinal de parada.
— Desculpem, perdi a paciência, falou Juvenal meio desapontado.
— Está desculpado, está desculpado... Já é tarde mesmo. Agora é tratarmos de
arranjar um cipozinho para servir de fieira.
— Serve este? perguntei, dando-lhe um, que logo eu encontrara.
Nhô Lau achou-o bom e enfiou nele as diversas dúzias de lambaris que pegara
e o bagre, que me engolira o anzol. Voltamos para casa, satisfeitos. Em caminho
não pude passar sem bulir com o Juvenal:
— Então, como é?
— Você bem viu, Mário. Hoje não fiquei em branco. Na outra vez, sim; hão
de conhecer! Quero mostrar como é que se pesca!


O Governo

Segunda-feira, ali pelas dez horas da manhã, o primo e eu na cozinha víamos
a Teresa, rente ao fogão, toda atarefada, fritando os lambaris.
— Bem torradinhos é que são gostosos, você não acha, Mário?
— Acho, sim. Ficam pururucas como couro de leitoa assada. Olhe, Teresa:
esses hão de ser para nhô Lau.
— Para nhô Lau? Que perigo!... Nhô Lau não volta com tempo.
— Então ele não está aí?
— Não está, Mário. Levantou-se de madrugadinha, pôs o burro na carroça e
foi à cidade buscar não sei o quê.
— Que pena!
— Mas não faz mal. Eu vou arranjar o prato de nhô Lau... Posso muito bem
guardar esses lambaris para ele.

* * *

A mesa já estava posta e íamos almoçar, quando ouvimos a bulha da carroça,
chegando. Corremos ao terreiro. Papai saiu conosco.
— As mudinhas vieram bem?
— Muito bem, seu Raimundo. Estão pegadinhas e até viçosas.
Nós olhamos para dentro da carroça.
— Que porção de jacazinhos engraçados! exclamou o Juvenal. Veja, Mário.
— Para que tanta muda? perguntei a papai.
— Tanta muda? Isso é apenas o começo, meu filho. Esse é o primeiro pedido
que fiz. Pretendo fazer muitos outros ainda.
— Pedidos? Então isso é dado?
— É dado, sim.
— E quem é que dá presentes assim?
— O Governo.
— O Governo! Então o Governo dá presentes? Que Governo bom!
— Você está admirado? Pois olhe: eu mostrarei como isso é uma coisa muito
natural. Olhe Mário: você deve saber que a obrigação dos governantes é fazer
tudo quanto seja possível para que as terras prosperem e enriqueçam. Para
conseguir tal prosperidade e enriquecimento, buscam todas as maneiras. Ora,
uma dessas maneiras consiste em prestar auxílio aos lavradores e criadores.
Aqui, meu filho, podemos considerar-nos felizes pelo que os governos vêm
fazendo. Fornecem, gratuitamente, mudas de árvores frutíferas, florestais e
ornamentais. Remetem sementes selecionadas, de todos os cereais e plantas
úteis. Concedem prêmios aos melhores agricultores e criadores. Distribuem
publicações em folhetos e livros com ensinamentos sobre plantas e animais.
Pagam uma turma de inspetores agrícolas, que percorrem a lavoura, combatendo
pragas e modos atrasados de cultura. Não cobram impostos sobre máquinas
agrícolas, animais de raça e materiais para adubos. Criam e mantêm escolas
superiores de agricultura, aprendizados agrícolas, núcleos coloniais, campos de
cultura, campos experimentais, hortos, postos zootécnicos, ensino agrícola
ambulante...
— Quanta coisa, papai!
— É isso mesmo. Por essa carroçada de mudas você bem pode calcular. Aí
estão 22 plantas frutíferas, de qualidade, enxertadas e prontinhas, 50 mudas de
pau-brasil, ipês, primaveras e quaresmeiras, para enfeitar o caminho, desde a
porteira até o terreiro, e 100 mudas de eucaliptos, que marginarão o Guamium.
Tudo isso não me custou um só níquel!
Nisso mamãe apareceu à janela e comunicou que o almoço estava esfriando.
— Vamos ao almoço, rapaziada, disse papai. Vamos, nhô Lau. Você
descarrega a carroça depois. Agora tratemos de saber se estão gostosos os
lambaris do "Poção".
E estavam.


Na horta

— Pegue, Juvenal!
— Venha também, Mário. Vá buscar um pano.
E nós dois corríamos atrás de um besourão serra-pau que entrava na varanda,
enquanto tomávamos café. Para pegá-lo andamos aos pulos pela casa. Mas ele
encontrou uma janela aberta e lá se foi voando.
Caiu na horta.
— Caiu. Corra, Juvenal. Seguimos para lá.

* * *

Por esse tempo mamãe já colhia muita verdura na horta que mandara fazer,
logo à nossa chegada ao "Congonhal". Ela própria dirigira o serviço. Ordenara
que cercassem um terreno próximo da casa. Mandara revolvê-lo, estercá-lo e
dividi-lo em canteiros de vários tamanhos, destinados, uns, a sementeiras,
outros, a plantações de legumes, de cheiros e de ervas medicinais.
Auxiliada por papai, por nhô Lau, pela Teresa, por mim e Rosinha, mamãe
pretendia deixar aquela horta como um brinco. Dizia sempre:
— Vocês hão de ver. Nem um pequeno espaço aqui será perdido. As próprias
cercas serão aproveitadas. Havemos de ter couve-manteiga, couve-crêspa e
couve-flor, alface romana e repolhuda, pimentões e pimenta ardida, ervilhas,
favas, e feijão de vara, tomates grandes e miúdos, cebolinhas, alfavaca, coentro,
manjerona, chuchus, quiabos, aspargos e pepinos; erva-doce e erva-cidreira,
bálsamo, arruda, hortelã...
— Abra a porteirinha, Mário.
— Não pise nos canteiros.
Inutilmente procuramos o serra-pau pelo meio das hortaliças. Decerto,
enquanto abríamos a porteirinha, ele erguera o vôo e lá se fora para o pasto ou
para o mato...
Não perdemos de todo o nosso trabalho. Tomamos uma larga folha de couve
e com ela colhemos uma porção de leite de pinhão-do-paraguai. Nós o extraímos
quebrando brotos novos da planta.
Depois, na extremidade de uma flor de capim, fizemos uma pequena
argolinha. E bastava mergulhá-la no leite e soprar-lhe em seguida, para que se
formassem inúmeras bolhas que fugiam pelo ar, ora subindo até desaparecer de
vista, ora numa descida lenta, até esbarrar numa folha ou no solo, arrebentando-
se.


Zé Feliz

— Então, meu filho, nhô Lau cumpriu a promessa?
— Cumpriu, sim, papai. Levou-nos, hoje, à casa do Zé Feliz.
— Casa? exclamou Juvenal. Aquilo nunca foi casa.
— Ih! papai. Juvenal tem razão. Vimos lá tanta sujeira e tanta miséria. A
morada do Zé Feliz é pequena e baixinha, muito mal coberta, mal barreada, e o
barro já está caindo. Não é assoalhada, nem atijolada; é chão esburacado. Uns
caixões, muito sujos, servem de armário e de mesa. Uns dois cepos servem de
cadeiras. Há, na casa, uma canastra velha e as camas, que são de jirau, têm por
cima uns colchões magros com uns farrapos. Vêem-se, nas paredes, a imagem de
Santo Antônio, num quadro cheio de teias de aranha, uma folhinha encardida e
sem bloco, uma espingarda, um facão, uma patrona e uma viola. Na cozinha, o
pilão e um varal cheio de cascas secas de laranja, umas espigas, de milho-pipoca
e uns pedaços de couro de porco. Há também, na prateleira, umas tigelinhas e
uns pratos de ágata, descascados.
— E você viu tudo isso, meu filho?
— Pois estava admirado de encontrar uma casa daquele jeito.
— Zé Feliz está doente, Mário. Ele andou no sertão de onde veio há pouco
tempo. Apanhou por lá o amarelão e a maleita. É isso. Não se tem tratado como
era preciso. Ora, um doente é sempre um desanimado...
— Só se é isso. O sítio do Zé Feliz é vazio. Não tem horta, nem pomar, nem
roça, nem jardim, nem pasto, nem criação.
— Então nem é sítio.
— É sítio, padrinho, disse Juvenal, interrompendo-me. É sítio e tem tudo o
que Mário falou, mas a roça é só um pouquinho de batata e mandioca, no meio
do mato. Numa pitangueira velha, perto da casa, dorme meia dúzia de galinhas
arrepiadas de nhá Vera; em roda dos mamoeiros, uns canteirinhos com
mostarda, onze-horas e cravo-de-defunto, tudo misturado. E é só isso.
— E animais?
— Só vi uma cabra, que disseram dar meio litro de leite por dia; e vi a
"Biriba", uma égua toda machucada nas costas.
— Ficaram com pena do Zé Feliz?
— Fiquei, papai. Morar no sítio é muito bom. Mas daquele jeito? Naquela
pobreza...
— E você pensa que nas cidades não há miséria assim?
— Decerto há, papai.
— Há, sim, como não, disse Juvenal. Lembro-me muito bem de ter visto
mulheres, velhas e até crianças pedindo esmolas.
— É isso mesmo. Nas cidades, infelizmente, também há casebres miseráveis
como o do Zé Feliz. E ainda mais miseráveis: sem o leite de cabra, sem as
batatas, sem o milho-pipoca, sem a lenha, sem a água abundante, quase sem ar...
— É verdade, papai. Agora é que estou reparando. Ainda não encontrei por
este bairro nem um mendigo.


"Músicos"

Um dia, logo cedo, Raul apareceu em casa. Que desejaria ele?
Fora especialmente avisar-nos que Dona Alzira nos visitaria depois do
almoço.
Disse-nos, também, suspeitarem ser aquele o dia do seu aniversário.
Na mesma hora fui pedir à mamãe que fizesse um cuscuz de frango com
azeitonas e rodelas de ovos cozidos. E pedi que não se esquecesse de servir o
doce de laranja.
— Para que isso, Mário?
— É que, em prosa com Raul, soube que Dona Alzira gosta dessas coisas.
— Pois seu pedido será atendido...
Disse um muito obrigado à mamãe, saí à procura do Juvenal. Fui encontrá-lo
na horta, no meio dos canteiros.
— Ainda está procurando o serra-pau?
— Ora, seu Mário, não sou tão bobo assim... Estou arrancando estes
matinhos...
— Deixe isso para depois. Agora temos coisa de grande interesse. Chegou o
dia de a nossa banda fazer bonito.
— Como assim?
— O Raul esteve aí, agorinha mesmo. Avisou-nos de que hoje é o dia de anos
de minha mestra e nos contou que ela vem aqui depois do almoço.
— Mas a banda não está ensaiada...
— Não quero saber disso. Você é o maestro. Avisemos os músicos e
preparemos os instrumentos para nos irmos esconder no algodoal, que é por
onde ela deve entrar no sítio.
— Está feito?
— Está.
— Então não percamos tempo. Vá avisar o Alfredo, o Gijo e o Atílio,
enquanto eu vou chamar o Eliseu.
Meia hora depois a nossa banda estava formada atrás do algodoal.
Pobre banda! O Alfredo tocava uma flauta de taquara do reino. O Gijo, esse
fazia tinir a corda única de uma viola rachada que lhe dera o irmão. O Atílio
cantava no bico de um regador; o Eliseu era bombeiro, batia desesperadamente
numa lata de querosene. Eu me contentava em dar pancadas numa enxada velha,
pendurada num barbante. Juvenal, o maestro, ia à frente e tocava gaita.
— Vocês não me façam um papel feio, recomendava-nos ele. Toquem sem
medo. É mesmo para deixar o pessoal meio surdo.
Mal sentimos passos na estrada e a voz de Dona Alzira, saltamos ao meio do
caminho e rompemos a música. Foi um barulhão.
Depois que paramos, recebemos os elogios e agradecimentos de nossa mestra,
que se mostrou satisfeita por aquela atormentadora, mas sincera manifestação.

* * *

Em casa, Dona Alzira foi recebida muito bem. Rosinha, que se pusera de
vestido novo, de sapatinhos brancos e com um bonito laço de fita nos cabelos,
logo que a aniversariante entrou na sala, deu-lhe uma camélia e atirou-lhe um
beijo.
O resto daquele dia correu em alegria para todos nós. Também para os
músicos, aos quais a nossa bondosa mestra prometera mandar vir flautinhas,
gaitas e berimbaus...
"Músicos"


São João

Desde cedo andamos em preparativos para festejar o São João.
Por toda parte se acenderiam fogueiras e se soltariam rojões; mas naquele ano
a festa principal ia ser no sítio de João Batista de Oliveira, pai do Honório, o
meu colega das habilidades.
Eu e o Juvenal lá iríamos com nhô Lau.
Mal escureceu, vestimos sobretudo, pois já se sentia muito frio, pegamos nos
fogos de vista que papai nos dera e pusemo-nos na estrada, para vencer a meia
légua que ia do "Congonhal", ao sítio do festeiro.
Ouvia-se de longe a cantoria dos que lá estavam. De vez em quando um rojão
no alto dava os três estouros das suas bombas.
Chegamos.
No terreiro, já estava levantado o mastro, todo enfeitado com folhagens, flores
e pencas de laranjas maduras.
Podia-se ver isso, porque bem ao meio do terreiro, numa grande pilha feita
com carroçadas de lenha grossa, o fogo levantava labaredas, clareando tudo em
redor.
A um lado ficava a capelinha, tendo ao fundo o altar com a imagem de São
João.
O mulherio — moças e meninas, cantando, acompanhava o capelão que,
ajoelhado à frente do altar, puxava o terço.
Todos os sitiantes vizinhos e seus camaradas haviam comparecido àquela
festa e mexiam por ali, em volta da fogueira, que estalava.
O pai do Tissiani, a um canto, tocava na sanfona uma valsa da moda.
Na sala vi o Zé Feliz ponteando a viola e cantando.
Os meninos soltavam fogos.
O Juvenal e eu reunimo-nos ao Honório, ao Paulino, ao Gabriel e ao Raul e
começamos a queimar os fogos que leváramos.
Arranjou-se um prego e nele soltamos, uma por uma, vinte e quatro rodinhas.
Depois lá se foram três maços de rojõezinhos, as carteiras de traques, as caixas
de fósforos de cor, as estrelinhas, e, para terminar, uma chuva-de-prata e dois
pistolões.
Quando íamos para gritar: — "Acabou-se o dinheiro do fogueteiro", o
Honório trouxe um lindo balão cor-de-rosa, para soltar.
Com todo o cuidado, nós o abrimos, abanamos-lhe a boca até que se enchesse
de ar e, finalmente, pusemos-lhe fogo na mecha.
Num instante, ficou estufadinho, e o largamos. Subiu. Mas subiu com
tamanha fúria que dançava no ar, e o fogo deu conta dele.
Fizemos verdadeira algazarra ao ver o balão queimar-se.
Um outro balão veio ao terreiro e foi solto.
Esse teve mais sorte, subiu, subiu, subiu... até ficar uma luz vermelhinha, lá
muito alto, como se estivesse no meio das estrelas.
Eu tinha o pescoço já dolorido de tanto espiá-lo quando uma voz anunciou a
hora da ceia.
Todos correram para a varanda e rodearam uma mesa enorme, feita de três
mesas juntas.
Havia do bom e do melhor. Não faltava nem o peru com farofa, nem o leitão
assado, com as rodelas de limão. Comemos pouco, com intenção de guardar, no
estômago, lugar para os doces.
A idéia foi boa. Houve muitos doces e eles estavam saborosíssimos!


Meia-noite

Quando o velho relógio da casa deu meia-noite, naquela noite que diziam ser
a mais comprida do ano, a maioria do pessoal já estava nas proximidades da
capelinha.
Enquanto comíamos, a lua aparecera, clareando tudo com a sua luz fria.
Iam lavar o São João.
Distribuíam-se velas aos festantes; o santo foi posto num andor; formou-se
uma procissão, e todos se dirigiram ao córrego sempre rezando e cantando.
A beira d'água, todo mundo procurava ver-se refletido nela, porque, dizia-se,
aquele que não se visse n'água, também não veria o São João que vem.
Uma velha tanto quis ver-se e tanto se debruçou no barranco, que chegou a
escorregar e, perdendo o equilíbrio, foi para dentro d'água! Coitada! Um banho
com aquele frio não deveria ter sido coisa muito agradável...
Logo depois a procissão voltou à capelinha, levando a imagem, lavadinha de
toda a poeira de um ano. Esparramaram-se brasas da fogueira, para que por ela
passassem, descalços, os que tivessem fé no santo.
Fiquei pasmado de ver que alguns passaram, embora o fizessem quase
correndo.
Sempre houve quem não se desse bem com a história. Foi um tal Frederico.
Atirou os sapatos para o alto e subiu ao brasido.
Uma brasa, bem acesa, pregou-se-lhe mesmo na planta do pé. Ele perdeu a
vergonha e saiu pulando e gritando como louco, enquanto todos caíram na
gargalhada.
Achei muita graça e cheguei a chorar de tanto rir.
Mal se esqueceram do Frederico, deram começo às danças, cantigas e
desafios.
Nhô Lau pulou numa roda e recitou:

Era e... não era!
Imaginem vanceis;
Eu andava viajano
Andava correno mundo;
Mas um dia...
Assim de sorpresa,
Arrecebi uma triste nova:
Meu pai ia p'ra cova
E eu ia nascê.
Aquilo era estúrdio,
Mas que fazê!?
Saí na disparada.
Mas vortei
vortei pra trais
Puis perdi uma capa!
Uma capa que eu não levava,
Mais valeu...
Topei cuma arve de figo
Carregadinha de pesco maduro;
Trepei por ela em riba,
E toca a apanha as maçã!
Mas veio o dono do feijoá
E berro:
Ó tinhoso!
Como é que está apanhano
Pimentão, mangarito e buxa,
No sapezá aieio?
Eu ia arrespondê
Mas o marvado
Agarro num moio
De repoio,
E me assento na testa
Uh! Festa!
Me esbandaiô o joeio!

Todos bateram palmas a nhô Lau; e ele saindo da roda veio convidar-nos para
ir embora.
Aceitamos o convite e voltamos para casa, com as mãos nos bolsos, pelo frio,
e cambaleando de sono.
Seriam talvez quatro horas quando fomos dormir. Também só nos levantamos
para o almoço. Ainda fazia muito frio e havia cerração.
No quintal encontramos mamãe, Rosinha e Teresa, atarefadas com a
plantação de roseiras. Elas diziam que:
"Roseiras plantadas pelo dia de São João, Pegam mesmo quer queiram quer
não!"


Devaneios

Aqui e ali, no pasto, havia diversas caneleiras e taiuveiras, que davam sombra
aos animais, nas horas mais quentes do dia.
Certa ocasião, numa hora em que o sol andava pelo zênite, meu primo
convidou-me para ir prosear com ele, no alto da taiuveira mais frondosa que
encontrássemos no pasto.
Acedi ao convite e dali a pouco, escolhida a árvore, nela subimos, sem
dificuldade e sem calcular os perigos de um tombo.
Cada um descobriu um galho ajeitado, que se prestasse como uma cadeira,
tendo por detrás outro galho, que servisse de espaldar, e, por baixo, ainda um
galho, em altura própria para repouso dos pés.
Assim comodamente nos instalamos na sala de visitas dos passarinhos...
Era um gosto escutar o ruído da folhagem balouçada pela brisa e ver nesgas
de céu pelas frestas, através da copa.
Meu primo começou a palestra.
— Você me disse um dia, Mário, que desejava ser um corvo; lembra-se?
— Como se fosse hoje.
— Pois eu desejava ser aquilo que não posso. Quereria ser poderoso que nem
Deus, capaz de fazer num instante, só com um olhar, tudo o que entendesse.
— Para que tanto poder?
— Ainda pergunta para quê? Para defender o Brasil, nossa querida terra. Por
exemplo: ficava à espera de todos aqueles que tivessem a coragem de atacar a
nossa gente. Quando surgisse um submarino querendo torpedear um navio
brasileiro, eu faria um só gesto e o submarino ficaria para-dinho e os seus
tripulantes, de joelhos, haviam de pedir o meu perdão.
— É bonita a sua idéia, Juvenal. Mas eu, se tivesse tal poder, havia de fazer
outra coisa.
— O que faria?
— Uma coisa engraçada, Juvenal. Transformava aquele pobre mamoeiro do
sítio do Zé Feliz numa planta encantada carregada de mamões de ouro, com
sementes de brilhante. Quando o Zé Feliz visse aquilo havia de gritar. —
"Agora, sim, posso chamar-me Zé Feliz de verdade".
— Mas, pensando bem, Mário, o mundo é mais ou menos como sua idéia. O
mundo já é encantado. Uma pessoa, querendo, faz coisas admiráveis, faz
milagres.
— É mesmo, primo. Olhe-se por exemplo o vegetal.. Joga-se na terra uma
pequena semente. Dela nasce uma plantinha que vai crescendo, e fica parecida
com aquela donde saiu o fruto com a semente que lhe deu a vida. Então, por sua
vez, todos os anos e por muitos anos, carrega-se de frutos, cheios de semente...
— Isso é admirável, não resta dúvida... E as invenções e descobertas do
homem!? O telégrafo sem fio! Comunicar-se a milhares de quilômetros por meio
do espaço! E o fonógrafo, a fotografia, o cinema, os aeroplanos!...
— E a eletricidade, Juvenal!? Por um simples fiozinho transmitir-se a luz, a
força, o calor!
— É mesmo de espantar.
O nosso devaneio parou ali. Calamo-nos. Cada qual ficara absorto, num
êxtase, enlevado pelas coisas maravilhosas da terra. De repente, Juvenal disse:
— Também descobri uma grande coisa.
— Que será? O moto contínuo?
— Coisa melhor, Mário. Descobri que aquele galho, ali, é magnífico para se
armar um balanço nele. Vamos armá-lo?
— Vamos.
— E corda?
— Tenho licença de papai e posso gastar nisso todo aquele rolo que está na
despensa.
A descoberta de Juvenal fora das melhores. Naquela mesma tarde, o trapézio
estava armado, experimentado e oficialmente inaugurado por papai e mamãe.


A árvore (Ricardo Gonçalves)

Ama-a; — toda árvore é sagrada —
Ama esta esplêndida morada
De abelhas de ouro e aves gentis!
Busca entender tanta poesia,
E faze coro à sinfonia
Da natureza que a bendiz!

Ama-a, na glória matutina,
Entre os vapores da neblina,
Que toda a envolvem, como véus,
Cheia dos prantos da alvorada,
Ou melancólica, estampada
No ouro e na púrpura dos céus...

E reza então: "Bendita sejas
Por tuas frondes benfazejas,
Pelos teus cânticos triunfais;
Por tuas flores e perfumes,
Pelos teus pássaros implumes,
Por tuas sombras maternais!"


Pomar

— Você ouviu a chuvarada desta noite, Juvenal?
— Ora se ouvi, e bem! Como a cama estava gostosa! Percebia-se mal e mal a
claridade dos relâmpagos. Quando os trovões roncavam, eu tremia, mas as
vidraças também tremiam. Escutei os assobios da ventania, a bulha da chuva...
— Pois o dia está ótimo para plantarmos as mudinhas de pessegueiro, que o
Gabriel me deu.
— E se não houvesse chovido?
— Nós as plantaríamos assim mesmo, mas não com tanta certeza de que
pegassem.
— Pois então vamos já tratar disso. Olhe que nunca plantei uma árvore.
— Nesse caso você vai ter esse gosto hoje.
— Onde estão as mudas?
— Estão lá detrás do rancho. Vá buscá-las enquanto vou ver o enxadão.
Dali a pouco encontramo-nos no pomar. Pomar propriamente ainda não era,
pois não havia lá uma planta sequer que já frutificasse. Mas dali a três ou quatro
anos, então sim, seria pomar e pomar dos melhores. Era bem grande a área
reservada para isso e que estava sendo plantada pouco a pouco. Naquele ano, por
exemplo, papai plantara laranjeiras de qualidade, as mais apreciáveis, como a
baiana, a cravo, a abacaxi, a serra-d'água, a seleta, a natal, a laranja-lima...
Plantara, também, mangueiras, ameixeiras, goiabeiras... E outras espécies mais.
Papai era grande apreciador das frutas!

* * *

— Está bom aqui, Mário?
— Acho que sim.
Juvenal principiou a cavar a terra, que se conservara molinha. Num instante o
buraco ficou com a profundidade necessária.
— Prefiro esse pessegueirinho mais mirrado. Você há de ver que tenho mão
boa, disse meu primo, pegando a muda e plantando-a.
Chegou a minha vez. Num outro lugar, abri uma cova e plantei a mais bonita
das mudas.
Depois, eu e o Juvenal começamos a conversar sobre o dia em que, já
homens, viéssemos àquele pomar, acompanhados de nossas famílias, mostrar-
lhes os pessegueirinhos que plantáramos e repetir, assim, a história daquela
manhã de chuvarada.



Duas histórias

— Bravo, disse-nos nhô Lau, quando soube da plantação e dos planos.
Isso foi à noite, em casa dele, enquanto se fazia um serão para entrançar as
réstias de alho colhido naquele ano.
O pai do Gijo, que ali estava auxiliando nhô Lau no serviço, quis caçoar do
elogio que este nos fizera, e contou a seguinte história:
"— Manuel e Adelaide eram um casal de portugueses. Tinham só um filho, já
menino, chamado Miguelinho. Num dia de chuva, como hoje, Manuel plantou
cinqüenta mudas de laranjeira. Em casa, em conversa com a mulher, disse-lhe:
— Ó Adelaide! Quando as árvores frutificarem, mandaremos o Miguelinho
vender laranja na feira, a cinco mil réis o cento.
— Ninguém compra, Manuel! É muito caro. Deve ser a dois mil réis, quando
muito.
— Já disse e sustento: Há de ser a cinco mil réis.
— Deve ser a dois mil réis, homem.
— A cinco mil réis!
— A dois mil réis!
— És uma cabeçuda.
— E tu, um teimoso 1 Miguelinho! Miguelinho! O menino veio ver o que os
pais queriam.
— Por quanto venderás as laranjas, a 5 ou 2 mil réis?
— É pelo que o pai quiser, respondeu o coitado.
— Ó maroto! gritou-lhe a mãe. Há de ser a 2 mil réis, ouviste?
— É pelo que a mãe quiser, respondeu o menino tremendo.
— Ah, tratante! berrou-lhe o pai, batendo com o sapato no soalho. O menino,
vendo-se em maus lençóis, abriu a boca.
Os vizinhos acudiram, correndo, a indagar a causa daquele barulhão.
O Sr. Manuel tomou a palavra, e narrou por miúdo o caso.
— Onde estão as laranjas? perguntaram-lhe os vizinhos. É preciso vê-las para
a gente saber se valem 2 ou 5 mil réis o cento.
O casal de portugueses, ao ouvir isso, caiu das nuvens.
As mudinhas estavam no chão, apenas há meia hora.
Todos rolaram de gargalhadas. Menos o Miguelinho, que, ainda assustado,
punha os olhos compridos no rabo de tatu pendurado no batente..."

O Juvenal e eu rimo-nos também.
— E olhem que isso podia acontecer, acrescentou o pai do Gijo.
— É, podia acontecer, falou nhô Lau, mas eu vou responder, contando uma
história que aconteceu:
"— Ia um rei por um campo, onde andava a divertir-se, numa caçada, quando
sucedeu passar por perto de um homem, já muito velho, que estava a plantar uma
nogueirinha.
Então disse o rei aos do seu séquito:
— Em verdade bem louco deve ser este homem em estar a plantar esta
nogueira como se estivesse no vigor da mocidade, e contasse como certo vir a
gastar os frutos dessa planta.
Indo-se então o rei para perto do velho, perguntou-lhe quantos anos tinha.
— Mais de oitenta, respondeu o velho; mas, graças a Deus, sinto-me ainda
com tanta saúde como se tivesse apenas trinta.
— Sendo assim, respondeu o rei, quanto pensas que ainda hás de viver, pois
que nessa idade já adiantada estás a plantar uma árvore que, por sua natureza, só
daqui a largos anos dará frutos?
— Senhor, disse o velho, tenho grande contentamento em a estar plantando,
sem procurar saber se serei eu, ou outros depois de mim, quem lhe comerá os
frutos. Assim como nossos pais trabalharam por nos legar árvores, que nós hoje
desfrutamos, assim é justo que deixemos outras novas, com que nossos filhos e
netos venham a utilizar-se e a enriquecer-se. E se hoje nos sustentamos dos
frutos de seu trabalho, e se foram nossos pais tão cuidadosos do futuro, como
havemos de retribuir em desamor aos filhos o que de nossos pais recebemos em
carinho e providência? Assim semeia o pai, para que o filho possa vir a colher.
O rei gostou tanto das palavras do camponês que lhe deu uma bolsa cheia de
ouro.
Então o velho, depois dos agradecimentos, achou no presente do rei mais um
motivo para reforçar o que havia pouco dissera, e exclamou:
— Quem poderá agora dizer que não foi bem pago o meu trabalho de hoje, se
esta arvorezinha, que plantei há pouco, logo ao primeiro dia me deu frutos bem
maduros e de tanto valor?"
— Que história bonita! exclamou Juvenal batendo palmas.
— Cem vezes mais bonita do que a sua, disse eu ao pai do Gijo.
E ele concordou conosco.


Um banho

— Esta chuvinha pára, ou não pára mais? dizia Juvenal da porta, a olhar para
o céu, sempre escuro. Isso já não tem conta! Que chovesse só de noite para a
gente dormir gostosamente, vá! Mas chover o dia inteiro...
— Deixe que chova, dizia-lhe nhô Lau.

Um banho

— Que remédio tenho eu senão deixar? Mas isso de gritar, eu grito mesmo. E
tenho razão. Não vê a braveza de titia por causa do soalho? Não se incomoda
com essa fumaceira por causa da lenha molhada? Não dão raiva esses varas por
dentro de casa, cheios de rouparia estendida, atrapalhando a gente?
— Deixe que chova. É preciso.

* * *

Mal a chuva sossegava um pouco, mamãe, Teresa e Rosinha, com aventais na
cabeça, corriam para a horta ou para o jardim a mudar os repolhos, a rodear um
canteiro de periquitos, a semear não-me-deixes!...
A galinhada não se importava com a chuva. Só os pintos é que se punham a
piar como doidos, de manhã à tarde.
Terça, quarta, quinta e sexta-feira, o tempo não melhorou.
Chegou sábado.
— Hoje, disse nhô Lau, vamos ter um dia correto. Não há domingo sem missa
nem segunda sem preguiça, mas também não há sábado sem sol...

* * *

Deus o permitiu. Logo cedo, o sol apareceu bonito.
Durante a noite o vento havia trabalhado sem descanso, a varrer o céu, que se
apresentou muito limpo, muito azul, tendo apenas, de longe em longe, uma ou
outra nuvem, fofa e alva como floco de paina.
Nós, logo depois do café, saímos pelo sítio, sequiosos de liberdade. Não
tivemos sossego e, mesmo de tarde, ao passarmos pelo Guamium, ainda
quisemos aproveitar.
— Olhe, Mário. Olhe o riozinho...
— Que tem ele, Juvenal?
— Olhe como está convidando o corpo... Vamos tomar um banho?
— É muito tarde...
— Qual tarde nem nada. Vamos... E começou a despir-se.
— Mas não haverá perigo?
— Que perigo o quê?! Isso aqui, cheio e bufando como está, ainda assim é
rasinho, dá pé muito bem.
— Como é que você sabe disso?
— Ora, que tonto! Pensa então que fico a caçar moscas, enquanto você vai à
escola? Quer ver?
Como já estivesse sem roupa, pulou no Guamium. A água dava-lhe pelo
peito. Vendo isso, não vacilei. Tirei a roupa depressa, e também pulei nágua.
Que gostosura!
— Agora, sim... Todos os dias estarei aqui.
E, distraídos, a prosear e a brincar nágua, nem daríamos pelo sumiço do sol e
pelo anoitecer, se um vaga-lume não brilhasse bem perto de nós.
— Olhe, Juvenal.
— Um vaga-lume! Imediatamente saímos da água.
Era já noite quase fechada. Muitas estrelas faiscavam no céu.
Vestíamo-nos apressadamente quando ouvimos uma barulhada esquisita, do
lado da capoeira.
— Que será, Juvenal?
— Olhe, parece um vulto que cresce e anda...
Um medo súbito apoderou-se de nós dois, e, agarrados um ao outro, voltamos
correndo para casa, sem ter ao menos coragem de olhar para trás!


Medo

— Isso acontece, disse nhô Lau, ouvindo-nos contar do medo que passamos
por causa do vulto que andava e crescia... É isso mesmo. Logo que a noite desce,
a estrada fica cheia de vultos. Cada árvore é uma alma chocalhando a cabeça e
os grandes braços... Cada cupim é uma mula sem cabeça; cada moita uma bruxa,
cada toco é um lobisomem. Os curiangos, os morcegos, os coelhos que
atravessam a estrada e até os besouros e vaga-lumes viram sacis! É isso mesmo.
O medo é o maior mágico que se conhece.
— Mas, nhô Lau, nós vimos de verdade.
— Deixem de bobagens. Vocês estão fazendo papel de Pedro Pichorra, sem
tirar nem pôr.
— Papel de Pedro Pichorra?!
— Que Pedro Pichorra é esse?
— Vocês fazem muita questão de saber quem é ele?
— Fazemos, sim.
— Então, venham comigo. Nós o acompanhamos.
Chegando a casa, entrou, acendeu o lampião, abriu a gaveta da mesinha,
remexeu-lhe uns papéis e tirou dentre eles um jornal cheio de dobras.
— Cá está o "Pedro Pichorra". É uma história engraçada e muito certa.
Vamos, Juvenal, leia isso bem alto.

PEDRO PICHORRA
Quem dobra o morro da Samambaia, com a vista enjoada da verdura
monótona, espairece na Grota Funda, ao dar de chapa com uma sitioca pitoresca.
E passa levando nos olhos a impressão daquela sépia afogada em campo
verde. Casebre de palha, terreirinho de chão limpo, mastro de Santo Antônio
com os desenhos já escorridos da chuva e bandeira rota, drapejante ao vento...
Dois mamoeiros no quintal, apinhados de frutos, canteiros de esporinhas, com
periquito à roda e manjericões entrevados... Um pé de girassol, magro e
desenxabido, a sopesar no alto uma rodela cor de canário; as laranjeiras
semimortas sob o toucado de erva-de-passarinho.
Nos fundos da casa vê-se o lavadouro, descoivarado apenas, num poço onde
um córrego rebrilha três palmos d'água. Sobre um tabuão emborcado a meio, lá
está batendo roupa a Marianinha Pichorra, mulher do Pedro Pichorra, mãe de
nove Pichorrinhas. É ali o sítio dos Pichorras e até a Grota Funda já é conhecida
por Fundão da Pichorrada.

* * *

Por que os antigos Pereiras, do Barro Branco, vieram a chamar-se Pichorras?
É toda uma história.
Pedrinho ia nos onze anos, já se destabocara e já preferia, em matéria de
fundo, o forte bem melado. Na véspera realizara o sonho de toda criança da roça:
a faca de ponta. Dera-lhe o pai, como diploma de virilidade. "Menino, doravante
és homem. Agredido, não gritarás por gente grande, é mão na faca, pé atrás e
corisco nos olhos".
Não lhe falou assim o pai, mas Pedrinho leu essa fala na lâmina rebrilhante.
Por isso irradiava de orgulho, imaginando pegas, aloites, tempos-quentes e
tocaias onde a sardinha alumiasse.
O pai, àquela hora, de pé na soleira da porta, assuntava o céu. Viu que chover
não chovia e:
— Pedrinho! gritou para os fundos.
— Pai?
— Vá pegar a égua.
O menino passou a mão do cabresto e mergulhou no pasto. Minutos depois
repontou trotando em pêlo na "Serena", égua velha, de muita barriga mas
agüentadeira.
— Dê milho, do mole, e arreie.
O pequeno debulhou duas espigas no embornal. E, enquanto a. alimária
mascava o lambisco, alisou-a, ajeitando-lhe no lombo pisado um saco velho,
depois a corona, o lombilho, o pelego.
— Não coche demais a barrigueira.
O menino folgou dois dedos o arrocho e esperou um bocado, enrolando o
cigarrinho, até que a "Serena" parasse de mastigar. Por fim arrumou o freio e
montou.
— Agora você vai ao sítio do Nheco e diga praquele tranca que dou o
capadete pelos vinte e cinco mil réis.
Pedrinho abriu cara de quem estranhava a ordem.
— Suzinho?
— Ué e a faca, então? Não é companheiro?
O argumento valeu. Pedrinho, sem mais palavra, deu rédea, e, lepte, lapte,
arrancou estrada afora.
O pai, alisando maquinalmente um palhão, seguiu-o d'olhos até perdê-lo de
vista na primeira curva. Depois, monologou:
— Suzinho? Ué! Até quando? É preciso acostumar. Onze anos, é homem. Eu
com dez varava sertão.
Pedrinho trotava pela fita vermelha do caminho, sobe e desce morro, quebra à
direita, à esquerda, pac, pac, pac...
Pensava na volta. Teria tempo de transpor a figueira antes de escurecer? A
figueira... Havia coisas do arco da velha, ali...
Pela meia-noite, diziam, o capeta juntava a corte inteira debaixo dela e
pinoteavam um samba do inferno.
Os sacis marinhavam pelos galhos em cata de figuinhos, que disputavam aos
morcegos. Lobisomens eram às dúzias que vinham focinhar o estéreo das
corujas. Almas penadas, isso nem era bom falar. Quando o Quincas da Estiva
contava casos, passados ali com ele, não havia chapéu que parasse na cabeça.
Mas de dia, nada. Passarinhada miúda só a debicar frutinhas. Foi o que
Pedrinho viu, nesse dia, ao cruzar com ela. Mesmo assim, passou rápido,
encolhidinho, por via das dúvidas. Chegou ao Nheco ainda com o sol, e deu o
recado.
Nheco, marotíssimo, coca o cabelo de milho da barbicha, e embroma:
— Pois não. Mas não vê que o toicinho baixou? De Minas Gerais tem descido
um poder de capadaria que mete medo. De sorte que você diga pro pai que
nestes casos não sustento o trato. Se ele quiser vinte e três mil réis... Diga assim,
ouviu? Vinte e três!
Pedrinho desandou para trás, pensando consigo: safado! E veio todo o
caminho distraído em xingar mentalmente o aproveitador. Ao defrontar a
figueira, o medo engrifou-o. Escurecia. A luz estava morre não morre, pálida no
alto, laranja desmaiada no poente. Por felicidade passaria a figueira antes da
noite. Fechou os olhos, conjurando o encardido Santo Antônio da família e
transpôs dum galão o passo perigoso...
— Arre!... exclamou, com desabafo, olhando para trás e vendo a árvore
maldita diminuir de porte.
E pac, pac, estrada em fora, rumo ao sítio. Mas escureceu e, já perto de casa,
vai senão quando a égua empina a orelha e passarinha.
— Égua velha passarinhou, é saci, sugeriu dentro dele o medo. E o menino,
retransido, vê de súbito surgir do barranco um saci, de braços espichados,
barrigudo, com um olho de fogo no corpo!
— Nossa Senhora da Conceição, valei-me...

A pichorra dágua
Esta ilustração foi feita pelo saudoso Monteiro Lobato, que se assina "Tatu",
especialmente para ilustrar seu conto "Pedro Pichorra" e oferecida ao prof. Tales de
Andrade na época da 1ª edição deste livro.

Assustado por aquele berro o olho do saci voou pelo ar, piscando...

Pedrinho bateu em casa, de cabelos em pé, espavorido, olhos a saltar.
Agarrou-se com o pai, tremendo, sem fala. A custo desatou o nó da língua.
— O saci, pai!...
—?
— Para cá da figueira... na curva.., barrigudo... preto... O pai deu-lhe água na
cuia.
— Beba. Sossegue um pouco, menino. E depois de uma pausa:
— Você está bobeando, Pedrinho. Não há saci nestas bandas.
— Juro, pai, por Deus do céu que vi!
E contou a viagem por miúdo até a aparição.
— Altinho? Pretinho? indagou o pai.
— Pretinho era, mas chatola, barrigudo, assim como uma pichorra grande.
— Então não é saci! concluiu o velho, entendidíssimo que era no assunto.
Fedeu enxofre?
— Não.
— 'sobiou?
— Não.
— Mexeu do lugar?
— Não. Só o olho — o olho andava e voava.
O caboclo refletiu um bocado, por fim uma idéia iluminou-lhe a cara.
— Onde foi isso? Pra cá do corguinho?
— É.
— No barranco?
— É.
— O olho andou e depois voou, piscando?
— Tal e qual.
— E o corpo ficou parado?
— Isso mesmo.
O velho clareou a cara, desmanchando as rugas da testa e disse rindo:
— O que mais não se aprende neste mundo! Sabe o que você viu? você viu
saci-pichorra!
E mudando de tom, depois de refletir:
— Que é da faca?
— Pra quê? perguntou o menino desconfiado.
— Deixe ver, dê cá a faca.
Pegou nela e pô-la à cinta. E ríspido:
— Vá dormir.
Pedrinho, compreendendo a degradação, ergueu-se, com lágrimas nos olhos.
— E a faca? perguntou.
— Fica comigo. Pra você, porqueirinha, é canivete marca anzol ainda. E com
infinita ironia: — Vá deitar, Pedro Pichorra!
O menino recolheu-se sacudido de soluços. O velho pegou do borralho um
tição e acendeu na brasa viva um cigarro. Baforou uma fumaça com o
pensamento no falecido sogro Chico Vira, o caboclo mais poltrão da Estiva. Por
quem havia de puxar o Pedrinho, pelo Chico Vira...
E, assim, o rebento masculino dos Pereiras, do Barro Branco, virou por troça
do próprio pai o tronco duma nova família, Pichorrada, que hoje põe a nota sépia
da sitioca na verdura monótona da Samambaia.
Tudo porque a velha Miquelina deixara naquele dia a pichorra dágua a
refrescar ao relento, na beira do barranco, e um vaga-lume-guaçu pousara nela
por acaso.
Monteiro Lobato


Frutas

Nhô Lau sempre nos contava que, nas matas do "Congonha!", havia, pelo
menos, umas duzentas fruteiras. Quando chegasse o tempo, levar-nos-ia para ver
com os nossos próprios olhos como aquelas árvores pretejavam de jabuticabas.
Agora era tempo.
Fazia quase uma semana que o pai do Gijo fora cortar um pau no mato e vira
as frutas pintando. Já havia chovido; era, pois, tempo de estarem madurinhas.
Podíamos ir colhê-las.
Na madrugada do primeiro domingo, saímos de casa para isso.
Quando o sol apareceu, já estávamos dentro do mato, esbarrando nas plantas
orvalhadas e a escutar a orquestra da passarinhada. Pulava-se um pau caído,
desviava-se dum cipoal, afastava-se um galho de espinheiro e... ia-se furando o
mato.— Estamos perto, disse-nos nhô Lau. Escutem a araponga cantando.
Parece um ferreiro na bigorna.
Paramos para escutá-la.
— Rtim... rtim... rtim... rtém!!
— Ouviram?
— Que canto estapafúrdio, respondi.
— E há gente que tem coragem de prendê-las em gaiolas e tê-las em casa, só
para ouvi-las... cantar. Já é ter um gosto estragado!
— Pois não resta dúvida, disse nhô Lau. O lugar é aqui mesmo. Onde estão as
arapongas estão as jabuticabeiras.
— Lembrei-me de uma coisa, nhô Lau.
— De que, Mário?
— Lá em casa pediram que lhes levássemos frutas.
— E que tem isso?
— Tem que não trouxemos vasilhas.
— Não se incomode por isso, menino. Soldado velho não se aperta.
Prosseguimos mais uns vinte passos e topamos com uma jabuticabeira muito
grande e carregadinha.
— Vou trepar nela, rapaziada.
— Trepar de que jeito? Tão alta e tão lisa!
— Pois aprendam como se trepa numa gigante destas. Eu e o primo prestamos
a maior atenção ao que nhô Lau se pôs a fazer. Puxou pelo facão e com ele
cortou algumas varas e uns cipós. Depois, com o cipó amarrou as varas ao redor
do tronco da jabuticabeira. Pôs um rolo de cipó ao pescoço e subiu ao primeiro
lugar amarrado, e que ficava saliente e servia de degrau. Depois, amarrou para
cima e subiu; amarrou adiante e subiu, e assim foi fazendo, até alcançar o
primeiro galho.
— Pronto! Cá estou na forquilha. Subi ou não? disse-nos nhô Lau de lá do
alto.
Juvenal quis aproveitar a original escada e ir também à forquilha. Nhô Lau
não consentiu.
Começou a derriçar uma porção de frutas e só desceu quando o chão estava já
forrado.
— Agora, disse-nos ele, enquanto vocês se vão enchendo, faço as vasilhas.
Puxou mais alguns rolos de cipós que teceu, fabricando, rapidamente, três
jacas com tampa e alça. Em seguida levou-os ao alto da fruteira, encheu-os até à
boca e desceu novamente.
As frutas derriçadas bastaram, e até demais, para nos saciar. Eram jabuticabas
como jamais havíamos provado, graúdas, de casca fina e doces, muito doces.
Depois de nos havermos fartado, pusemo-nos a caminho, de volta, cada qual
carregando um jaca cheio.
Chegamos pelo meio-dia.
Foi uma festa! Mamãe despejou as frutas numa bacia com água, para que
ficassem bem frescas.
No fundo d'água estavam lindas, brilhavam parecendo achatadas.
Mais tarde, todos rodearam a bacia e... já se adivinha: Não deixaram nem uma
para remédio.


Içás

No dia seguinte ao das frutas, logo depois de um chuvisqueiro, saíram as içás.
A criançada, por pândega, tomou como empreitada caçá-las todas.
Juvenal, eu e até Rosinha, cada qual com uma pequena caixa, lá andávamos
pra fora, de olhos fitos no espaço à espera dos pontinhos pretos, que se iam
aproximando até que os alcançássemos com a toalha, derrubando-os.
Sempre que as caixas enchiam, nós as esvaziávamos no cercado das galinhas
que, num instante e com gana, devoravam as gordas formigas rainhas.
— Ao pasto! disse-me Juvenal. Vamos ao pasto. Lá sim, que deve estar
fervendo...
— Você tem razão, vamos ao pasto. Correndo, encaminhamo-nos para lá.
— Façamos uma combinação, Mário. Você vai pelo trilho de baixo e eu vou
por este. Encontrar-nos-emos perto do trapézio. Quero ver quem cata mais...
Tratei de não perder tempo.
Para mim, com certeza, a grama estava forrada de içás.
Fui andando, andando, e... nada.
— Será possível?
Continuei a procurar: fui para perto da barroca, andei rente da tigüera, cheguei
até à porteira e só encontrei cinco içás.
— Parece impossível... Desse jeito serei barrado pelo Juvenal. Não pode
ser...
Corri para a taiuveira do trapézio. O meu primo já se achava à minha espera.
— Então, Mário? Quantas mil?
— Mil? Nem meia dúzia, quanto mais mil! Não estou de sorte hoje.
— Nem eu.
— Você está caçoando...
— É sério, Mário. Olhe, só peguei três. Por que será isso? Imaginava que o
pasto estivesse cheio...
— Palavra que eu também imaginava. Também estou implicado com essa
história.
Justamente quando eu assim falava, avistamos uma içá, a descer, num vôo
muito lento. Precipitei-me para pegá-la, mas nisso apareceu um siriri e, mais
esperto do que eu, tomou-a no bico e lá se foi...
— Pois é, Juvenal, o pasto devia estar cheio de içás...
— Devia, sim, devia estar mesmo, e certamente o estaria, mas se a
passarinhada dormisse e... deixasse. Não é verdade?
— É isso mesmo.





Aves (Canto e Melo)

Que seria da paz dos caminhos,
Ao raiar das auroras suaves,
Se não fosse a tarefa dos ninhos,
Se não fosse o concerto das aves?

Ao rigor da canícula ardente
Quando a brisa se torna em mormaço
Como é doce escutar a torrente,
E o gorjeio das aves no espaço!

Cantai, ó aves amantes!
Cantai no prado e na serra!
Vós sois as almas errantes
Das flores mortas na terra



Jardim

Já era quase hora do almoço e Juvenal ainda estava na cama, ressonando. Não
quis acordá-lo. Na véspera encharcara-se de melado com farinha e depois não
pudera dormir a noite inteira, gemendo de dor de dentes. Não houve óleo de
cravo, nem creosoto que lhe desse alívio. Só pela madrugada foi que a dor
passou...
Ficando sozinho, quis distrair-me e tratei de resolver uns problemas. Mal
peguei no lápis ouvi que me chamavam:
— Mário! Mário!
— Já vou, respondi.
Larguei do lápis e corri para a despensa. Era Teresa.
— Que é?
— Prendi um ratão, aqui atrás da prateleira. Vá ligeiro buscar o "Corrupio". Já
o chamei e ele não aparece.
— Então, espera aí, ouviu?
— Sim.
Saí à procura do meu gatinho. Fui ao quarto dos arreios onde ele costumava
dormir. Quem sabe se estaria sonhando com os ratos? Mas não o encontrei.
Procurei-o pela horta, pelo jardim, pelo pomar, pelo terreiro... Nada! Teria o
"Corrupio" desaparecido?
Eu voltava, já inquieto por aquela busca infrutífera, quando ao passar por
perto da casinha do "Valente", dei com o pobre gato esticado, com os dentinhos
arreganhados. Ergui-o do chão e descobri-lhe, pelo corpo todo, grandes sinais de
dentadas. Era claro! Aquilo fora serviço do "Valente", que, mesmo por ser bom
guarda da casa, era cachorro mau e odiava o pobre "Corrupio".
Olhei-o. Naquele momento dormia um sono tranqüilo, sem remorsos. Tive
ímpetos de pregar-lhe uma tunda. Mas ficou só no ímpeto, porque ele se
levantou. E, depois, ele não era "Valente" só no nome, era valente mesmo, podia
não se conformar com o castigo e querer tirar desforra.
Contentei-me, pois, em pegar o pobre morto e levá-lo para mostrar em casa.
A Teresa, ao ver o gato daquele jeito, não mais se importou com o rato, que
fugiu ligeiro.
— Coitado do "Corrupio", dizia ela. E começou a chorar.
Fiquei admirado, pois ela vivia praguejando contra o "Corrupio": que o poria
ao fogo, que lhe jogaria água quente, o afogaria no Guamium e não sei que mais.
Entretanto.
Rosinha também chorou e quis que enterrássemos o "Corrupio" com todas as
honras que merecia vim gatinho como aquele: — limpo, bonito, mansinho e
querido.

No jardim

— Onde havemos de enterrá-lo? perguntei.
— No jardim, Mário.
— Boa idéia. Vou buscar o enxadão enquanto você leva o gato ao paraíso das
flores.
Instantes depois, escolhíamos o lugar em que se faria a sepultura.
Rosinha quis que fosse no canteiro central. Fiz-lhe a vontade e abri uma cova
de três palmos de profundidade.
Rosinha apanhou várias flores e com elas cobriu, na cova, o corpo do
"Corrupio". Com terra, acabei de encher o buraco.
— Não se marca o lugar, Mário?
— Ponhamos uma cruz.
— Cruz, não.
— Então o quê?
— Já sei. Plantarei um galho de jasmineiro aí. Depois que plantara,
cuidadosamente, na sepultura do
"Corrupio", a muda do jasmineiro, Rosinha pôs-se a discorrer sobre o jardim.
— Então, Mário, você não acha que tenho jeito para tratar das flores?
— Ora, se acho, Rosinha. Quem, como você, em tão pouco tempo, conseguiu
o que se vê: — rosas, cravos, cravinas, esporinhas, bôcas-de-leão, onze-horas,
alfinetes-de-moça, papoulas, monsenhores, heliotrópios, miosótis, malmequeres,
sempre-vivas, camaradinhas, mimos, hortênsias, folhagens e trepadeiras... muito
mais conseguirá.
— Pretendo ainda arranjar flores raras, dálias de qualidade, crisântemos
dobrados...
— Tudo, Rosinha. Sei que você conseguirá tudo.
— Tudo? Por quê?
— Você é Rosa. Não é certo que a rosa é a rainha das "flores? Ora, uma
rainha é sempre uma rainha!


Patriotas

— Escute, Mário. Parece-me que tocam alguma coisa lá pelas bandas da
escola.
Apliquei os ouvidos e respondi:
— É verdade. Parece um toque de cometa e rufos de tambores.
— Vamos à sala, primo. Da janela e com o auxílio do binóculo, veremos de
que se trata.
— Não é preciso binóculo, Juvenal. Vê-se perfeitamente o que é. Corra!
— São soldados. Que beleza! Mamãe deu-nos licença para ir vê-los.
Correndo, chegamos à estrada. De toda parte corria gente, curiosa, como nós,
por ver tantos soldados juntos.
Os trabalhadores largavam da enxada ou do arado, os meninos e meninas
deixavam os brinquedos, e até mulheres, com filhos no braço, saíram para ver
aquele raro e bonito espetáculo.
Quando nos aproximamos do local, é que vimos bem.
Tinham feito alto.
Era a Companhia de Guerra da localidade, acompanhada de algumas
patrulhas de escoteiros.
Havia uns duzentos soldados e uns cinqüenta escoteiros.
Todos uniformizados de caqui. Todos armados: os soldados de carabina e os
escoteiros de bastões.
O comandante montava soberbo cavalo e ia de um lado para outro.
À frente do batalhão achavam-se duas esquadras de ciclistas, seguidas pela
banda de cometas e tambores.
No meio da formatura, sustida por um oficial alto, e entre uma guarda de
soldados com baionetas caladas aparecia tremulando a bandeira brasileira, linda,
muito linda! Atrás da última esquadra vinha a banda de música. Depois dela,
apareciam os escoteiros.
Os escoteiros traziam também uma bandeira.
Ouviu-se um toque de cometa. Era um comando. Os soldados ensarilharam as
armas.
Depois debandaram e formaram pequenos grupos, aqui e ali. Riam,
conversavam alto, bebiam água...
Os escoteiros também tiveram um comando, dado em voz alta pelo monitor.
A criançada meteu-se pelo meio dos escoteiros, a perguntar-lhes mil coisas:
— "Para onde iam, se estavam cansados, se era bom ser escoteiro, para que
servia ser escoteiro"...
A tudo nos respondiam: — "Iam em excursão à cidade vizinha, ainda tinham
que andar mais uma légua e fazer evoluções na cidade visitada; regressariam
embarcados; não se cansavam à toa; sempre faziam excursões para treinar as
pernas; era bom ser escoteiro, pois aprendiam tudo quanto era útil ao espírito e
ao corpo. Tornavam-se bons, pacientes, e delicados, mas fortes e destemidos".
Nós ainda não estávamos cansados de prosear com eles quando ouvimos
alguns toques de cometa.
Toda aquela gente fardada, que se achava misturada e numa aparente
desordem, pôs-se rapidamente em forma, perfilada, firme e silenciosa.
O comandante mandou dar três vivas, em homenagem aos lavradores
brasileiros.
Como de uma só boca saíram os gritos.
Nisso, um menino, o Paulino, saltou sobre o mourão da porteira, arrancou o
chapeuzinho de palha rasgado e gritou:
— Vivam os defensores do Brasil!
— Vivam! gritaram todos num delírio de entusiasmo. A bandeira chegava
nesse instante.
A banda de música, acompanhada pelos clarins e tambores, rompeu o Hino
Nacional.
Os soldados e os escoteiros fizeram continência, as espadas dos oficiais
brilharam ao sol, todos os civis se descobriram.
De grota em grota e de coração em coração ecoou aquele Hino vibrante, voz
querida de nossa Pátria!
Ao terminar, batemos palmas.
Ouviram-se mais uns toques de cometa. Os soldados mudaram de frente, e
romperam a marcha, cantando:

Nós somos da Pátria a guarda,
Fiéis soldados,
Por ela amados...


A "guerra"

Durante aquele dia não se falava noutra coisa. Em casa todos conversavam a
respeito dos atiradores e dos escoteiros.
Nhô Lau contou que a mulher de um dos camaradas, ao ver tantos soldados,
imaginara que já fosse o inimigo e, tremendo e chorando, fechara a casa
inteirinha.
À tarde o primo e eu inventamos de brincar de guerra. Convidamos diversos
meninos, os músicos de nossa banda, e com eles formamos dois batalhões.
Eu me nomeei general dos atacantes e o Juvenal comandaria os defensores
do pasto. Fizemos os nossos tratados estabelecendo diversas leis, às quais nos
submeteríamos, vencidos ou vencedores.
Pedaços de pau faziam as vezes de espingardas e varinhas verdes serviam de
espada.
Depois de tudo combinado, retirei-me com os meus para um lugar oculto,
onde planejasse um meio pelo qual pudéssemos atacá-los de improviso.
Em caminho, descobri um depósito de munições. Eram alguns pés de
mamoneira, carregadinhos de cachos enormes.
Imediatamente ordenei aos meus subordinados que fizessem provisão para
um longo ataque. Eles, que almejavam a vitória tanto quanto eu, apanharam um
grande número de cachos das tão preciosas balas.
Expus-lhes meus planos de ofensiva: de gatinhas, atravessaríamos a roça e de
lá entraríamos no mato, de onde, facilmente, cercaríamos o inimigo.
Obedeceram-me. Tudo ia pelo melhor. Conseguimos atravessar a roça, sem o
menor empecilho, e entrar no mato, sem obstáculos. Quando nos dispúnhamos
para o avança, ouviu-se um berro: — Alerta!
Era o Atílio, sentinela inimiga, que se pusera no pico de um cambuí.
Estávamos descobertos.
Fugir? Não era possível. O mato não nos permitia uma retirada estratégica.
— Para frente, camaradas! Fogo! gritei, sem desanimar. Os meus se
entusiasmaram e furiosamente se puseram a descarregar sobre o inimigo as
sementes da mamona.
Surpresos por aquela maneira de atacar, deram-se por vencidos, jogando o
armamento e levantando as mãos em sinal de rendição.
— Vitória! gritaram os meus.
— Entregue-se, disse eu ao Juvenal.
— Não me rendo, berrou ele. Reúnam-se e avancem... Bato-me contra vocês
todos.
E brandia uma grossa vara.
O Erlindo, o Gijo e o Eliseu quiseram prendê-lo.
— Não, disse-lhes eu. Um oficial só se bate com seu igual. A coisa parecia
tomar um caráter sério. Mas como era tudo brincadeira, fiei-me nisso e avancei.
Pois o Juvenal estava falando sério e lançou-se sobre mim. Agarramo-nos e
rolamos pela relva.
Ele me apertava o estômago, eu puxava-lhe as orelhas.
— Seu Raimundo vem vindo, olhem o seu Raimundo, disse Atílio.
Largamo-nos imediatamente e nos levantamos.
Nem nos olhamos. Envergonhados, aborrecidos e desenxabidos saímos cada
qual para o seu lado, em companhia dos soldados.
Comentava-se o desenlace inesperado da brincadeira.
— Que tal? disse-me o Erlindo. O seu primo está outro. Já não é o fraquinho
que há dois meses apareceu no "Congonhal". O sítio fez-lhe muito bem, não é
verdade?
— É verdade, Erlindo. O sítio fez-lhe muito bem.



As "pazes"

Nhô Lau, logo que soube da briga, não pôde deixar de me passar um pito:
— As brincadeiras estúpidas sempre acabam mal, disse-me ele.
— Mas não havia nada de estúpido, nhô Lau. Fora combinado antes que,
aquele que se atrapalhasse e se visse perdido, ficava obrigado a entregar-se por
bem. Ora, o Juvenal devia fazer isso. Ficara sozinho. Os companheiros se
entregaram. Ele, no entanto, desafiou-nos. Que devia eu fazer? Cumprir a
obrigação de general. Prendê-lo.
— Obrigação de general? respondeu-me nhô Lau, em falsete, debochando-
me. A sua obrigação não era essa, Mário. Você devia dizer-lhe que a brincadeira
estava acabada uma vez que ele não cumpria o trato feito... E pronto!
Abaixei a cabeça, pensei um pouco e vi que nhô Lau tinha razão. Era isso que
eu devia ter feito logo. Mas já estava quente. Não reparei se Juvenal era primo e
amigo. Na hora, esqueci tudo. Parentesco, amizade, delicadeza...
— Quero que isso lhe sirva de lição, continuou nhô Lau. Se não fosse a
lembrança do Atílio, enganando-os, a dizer que seu Raimundo chegava, talvez, a
esta hora, vocês andassem bem mais amolados do que estão...
— É verdade, nhô Lau. A briga estava em começo. Algum de nós poderia ter
saído machucado.
— Que vergonha para os dois!
— Vergonha, mesmo. Sem nos machucarmos já estou em ponto de ir pedir
desculpas ao Juvenal. Tanto tempo que passou aqui e fomos sempre amigos,
agora, no fim, justamente quase na véspera de ele voltar para a cidade, é que
havemos de ficar de mal, e por um motivo tão à toa. É mesmo uma grande
maçada!
— Mas isso não pode ficar assim, Mário. Seu Raimundo e Dona Emília hão
de dizer o quê? E Dona Juventina?
— Não sei o que eles vão dizer, sei é que estou com um espinho atravessado
na garganta. Estou aborrecido de verdade. Fui um desastrado, um tontão. Agora,
que fazer? É tarde!
— Não é tarde, não. Vá procurar seu primo. Explique-se com ele. Peça-lhe
desculpas. Olhe que é seu hóspede. Você tem obrigação de fazer isso.
— Pois eu vou, nhô Lau.
— Era só o que faltava, disse Juvenal, aparecendo.
— Como assim? perguntei, meio desconcertado por vê-lo aparecer.
— Pois havia de ter graça! Sendo eu o cabeçudo, havia de querer ficar que
nem um pavão, muito ancho, à espera de suas desculpas? Qual desculpas, nem
nada! Por mim está tudo acabado. Fiquei com as orelhas ardendo, é verdade, mas
decerto o seu estômago passou mal.
— Assim é que gosto de ver, rapaziada, disse nhô Lau. A gente bem educada
assim é que faz. Quando reconhece ter errado não tem vergonha de dar o braço
a torcer!
Abraçou-me e, à saúde das nossas pazes, contou-nos naquela noite mais uma
bonita história — "A história do cordão".


O cordão

"Macuco", o sítio do Mariano José Bento, estava sendo preparado há muitos
dias para uma festança rara.
Os caminhos foram capinados, a casa levou duas mãos de cal, a prateleira, há
tanto esquecida, foi lembrada, ganhando uma dúzia de xícaras com florezinhas
roxas.
No chiqueiro, duas leitoas, gorditas, andavam em ponto de levai faca.
No cercado diversos frangos, escolhidos, passavam regalada-mente...
Ao fundo da despensa, um baú antigo e morgado, cheirando a roupas velhas,
ficou até à boca abarrotado de coisas açucaradas: doces de abóbora, de laranja,
de cidra, de batata e brevidades, cocadas, broinhas...
— Não há dúvida, dizia o Mariano, puxando a barba, a casa vai ser estreita
para conter o povão que vem assistir ao casamento da minha Maria Luísa. Pois
até o Maneco Honório, com a família completa, prometeu não faltar. E olhe que
ele tem que subir a serra. Agora, que se dirá dos outros?
Mas sossegava ao lembrar-se de que o terreiro era grande.
Maria Luísa cuidava do enxoval.
Antônio Pinto, noivo e primo dela, ainda andava pela freguesia do Rio Claro,
pechinchando, com uns e outros, na compra do que fosse indispensável para a
montagem da casa.
Fora previdente. Dois anos consumira numa sovinice danada, juntando
dinheiro. Mas as coisas andavam pra hora da morte e ele só pôde adquirir o
principal, desistindo, a contragosto, de muita coisinha posta na lista. Um carro
de bois, estrada afora, cantando, baldeou para o "Itaquiri" as compras do noivo.
"Itaquiri" ficava perto do "Macuco". Era um bom sítio e só lhe encontravam,
como defeito sério, o pertencer ao João Mandinga, que lho arrendava por um
bom dinheiro.

* * *

Chegou o dia do casamento.
De manhã, o Mariano chamou a filha e disse-lhe:
— Olhe, Maria Luísa, como você sabe de sobejo, eu faço muito gosto nessa
união. Meu sobrinho é um homem às direitas. Você também tem dois braços que
valem uma fortuna: não tem medo de serviço. Vão formar um casalzinho que
pode alcançar muita coisa no mundo. Mas...
— Que é, meu pai? perguntou-lhe a filha assustada.
— É que não tenho grande coisa para lhe oferecer de dote.
— Ora, meu pai...
— A canastra de couro é pouco, é muito pouco.
— Mas...
— Quer saber de uma coisa? Vou dar-lhe a única jóia que resta do meu tempo
de fartura. Vou dar-lhe o cordão...
— Pra mim?!
— Pra você mesma.
— Deus lhe pague, meu pai. E o senhor deixa que eu leve também o "Crô-
Crô"?
— Ora, essa! Pois o "Crô-Crô", desde patinho, é seu mesmo...

* * *

Chegou a hora do casamento.
Quando a noiva saiu do quarto toda a gente encompridou a vista, de espanto,
vendo-a com um enorme e lindo cordão de ouro, brilhando, no pescoço.
O João Mandinga, presente, não se conteve. Pôs-se a estalar os dedos no
bolso. Depois, com o bom pretexto de dar os parabéns, de pedir um botãozinho
da grinalda, chegou rente da noiva, para melhor avaliar a jóia.

* * *

Já fazia um ano que Maria Luísa estava casada.
No "Itaquiri", as coisas não corriam pelo melhor. Antônio Pinto cuidava
pouco daquelas terras que não lhe pertenciam. Tinha como tolice rematada fazer
benfeitorias em terreno alheio. E, por causa disso, viviam sem conforto. A casa
pedia urgentes reformas, as cercas já não seguravam os animais, o pasto
praguejava...
— Quando os ipês florescerem, finda-se o arrendamento, disse um dia
Antônio Pinto; aí...
— Aí o quê? perguntou a mulher.
— Aí tomarei uma decisão que preste. Isso de viver sem eira nem beira não é
comigo. Hei de comprar um sítio, seja onde for, à vista ou a prazo, custe o que
custar.
— E por que você não compra o "Itaquiri"?
— Ora, Maria Luísa...
— E por que não?
— Comprar o "Itaquiri"... É, seria mesmo um pão e um pedaço, mas não sei o
que tem o Mandinga, desde o nosso casamento. De cada vez que nos vemos,
principia a gabar o "Itaquiri", arrematando sempre a dizer que vale ouro...
— Isso é tática. Decerto o Mandinga anda com tenção de subir o preço do
arrendamento e se põe a gabá-lo desse jeito.
— Que coisa! exclamou Antônio Pinto olhando para fora. Bem diz o ditado
que: falar no mau é aprontar o pau.
— Por quê?
— Pois o homem vem vindo.
— Não diga!
Já no terreiro o João Mandinga berrava um ó de casa com toda a força dos
pulmões.
— Vá se chegando, seu João; vá se chegando e apeie, respondeu-lhe Antônio
Pinto, solícito.
— Bastarde, Antônio.
— Boa tarde. Entre e sente-se.
— Como vão mecês de calo, por aqui?
— Assim... assim... seu João. E que bons ventos o trouxeram em visita à
gente?
— Não é visita, meu amigo. É pra mór de outra coisa. Vô usá de franqueza.
Nein quero faze arrodeios... Vim prepô um negócio da China pra mecês.
— Que negócio é?
— Oie. Inté agora andei de nó na língua. Mas o nó vai se desata...
— Pois fale, seu João.
— É simples. Fiquei com enguiço por aquele cordão de nhá Maria Luísa.
Como sô hóme que se apincha numa transação, acho que devem aproveita a
febre. Dô o "Itaquiri" em troco do cordão e sem vorta.
— ..............................................................................................
— Que me arresponde? Veja que é uma barganha de se aceita cas duas mão.
— Por mim aceitava, até já. Mas o senhor sabe, ele é da patroa... vou ver se
ela quer.
— Puis vai.
E Antônio Pinto foi consultar a esposa, encontrando-a a debulhar lágrimas.
Ouvira a proposta e não queria...
— Que pranto mais esperdiçado, Maria Luísa. Não chore. Uma vez que não é
do seu gosto, está tudo acabado. Mais vale a nossa harmonia do que os
"Itaquiris" da terra!
Deixou a mulher enxugando os olhos e voltou à sala. Disse ao Mandinga que
lhe desculpasse o recusar o negócio. Era uma grande maçada e sentia demais,
porém o cordão era dessas coisas que não têm preço.
João Mandinga não insistiu. Não insistiu, mas também nem o café quis
esperar. Montou a cavalo e disse:
— Não fais má. Vanceis hão de se arrepende. Hão de torce as oreias, mas
sangue não há de saí.
E lá se foi, desconsolado, rilhando os dentes, disposto a não renovar o
arrendamento do "Itaquiri" quando os ipês florescessem.

* * *

Como era natural, a proposta do Mandinga ficou sendo no "Itaquiri" o assunto
predileto e obrigatório de todos os dias. E isso acontecia sem a interferência de
Antônio Pinto. Ele não procurava jeito algum para influir a mulher a que cedesse
o cordão. Não! Embora curtisse esse desejo intimamente, tinha escrúpulos de
demonstrar-lho.
Assim conseguiu reprimir-se de cada vez que Maria Luísa se punha a discutir
o caso.

* * *

Certo dia o céu se mostrou carrancudo.
Não tardou, porém, que a artilharia dos trovões ribombasse e as nuvens, após
as vergastadas do vento, se despejassem num aguaceiro tão pesado como não
havia em memória daquela boa gente.
Foi uma derrama! Parecia que o mundo se acabava!
No "Itaquiri" os estragos calaram fundo. Cercas, porteiras, paiol e árvores,
derrubados. Parte da casa descoberta... Um horror!
— Como é? dizia Maria Luísa, depois da tempestade, a espiar as ruínas.
Como é?
— É como já lhe disse, cubro a casa.
— E o resto?
— O resto fica assim mesmo. Não mudo uma palha. Vou é pegar a minha
matadeira de formigas, que tanta sorte já me deu e saio por esse mundo afora,
amontoando cobre. A dez cruzados cada olheiro, garanto que já terei ajuntado
com que comprar um sitiozinho, antes que apareçam as içás.
— E eu?
— Você fica na casa de meu sogro.
— Ora, Tônico, não haverá por acaso um jeito d'eu ir também?
— Não há jeito, nenhum.
— Isso é que havemos de ver... E ficaram pensativos.
No dia seguinte, Antônio Pinto, logo depois do café, pegou a tal matadeira de
formigas, máquina de madeira, toda cheia de foles e canudos, inventada por ele
mesmo, e levando-a ao terreiro pôs-se a limpá-la cuidadosamente.
Maria Luísa, vendo-o assim tão disposto a cumprir o prometido, refletiu
algum tempo e depois disse ao marido não querer que ele a deixasse em casa do
pai, sozinha, para sair pelas estradas, feito mascate...
— Você não quer? Pensa que vou fazer isso para meu regalo? Pois está muito
enganada. Mas também não estou disposto a continuar, como até agora, um pé-
rapado. A minha queda é pela roça. Preciso ser dono de uns bons alqueires de
chão.
— Pois isso é a coisa mais fácil. É só ficar com o "Itaquiri".
— De que jeito, Maria Luísa? Por acaso eu tirei a sorte grande?
— Não tirou a sorte grande, mas tem o cordão.
— Você fala sério ou está brincando?
— Falo sério.
— Ué, que reviravolta é essa agora?
— É que tenho imaginado tanta coisa, Tônico. Olhe: o cordão é presente de
papai, isso é verdade; mas é um artigo que vive aí na canastra, à toa; sim, porque
botá-lo no pescoço, mesmo em dia de festa, não tenho coragem. O que haviam
de dizer? Nem um lugar pra cair morta essa gente tem! Tudo isso pensei. Ora, o
Mandinga dá o "Itaquiri" a troco do cordão. Por que hei de me fazer rogada? Pra
quê? Seria tontura, refinada. O "Itaquiri" é bom sítio, fica perto de papai, não é
longe da parentada, e, arranjadinho por você, virava um paraíso! Inda mais que o
mundo para mim está nesta redondeza!
Antônio Pinto escutava, encantado.
— Vamos, continuou ela. Hoje mesmo sem falta, damos uma chegada ao
"Macuco". Contarei tudo ao papai, tim-tim por tim-tim, e garanto em como não
desaprova o negócio. Aí você corre ao sítio do Mandinga, agrada o homem,
pede-lhe desculpas, realiza a barganha e o "Itaquiri" fica sendo nosso. Não acha
bom?
— Acho bom demais, Maria Luísa. A felicidade entrou nesta casa, hoje.
Aquela coruja que tanto agourou, na figueira seca, perdeu o tempo. O meu
sonho, o sonho ruim que tive na noite retrasada, não foi aviso.
— Que sonho ruim foi esse agora?
— Pois sonhei que iam roubar o cordão! Sonhei que... nem sei direito o que
sonhei. Foi uma atrapalhada dos quintos.
— Como você está ficando esquisito... Não contou nada para mim!
— Eu? Contar o sonho pra você? Eu não! você podia dizer que era um jeito
arranjado para influir...
— Está bom, Tônico. O melhor é deixarmos disso. O que já foi, foi. Vamos é
pegar o cordão e fazer o que eu disse, e quanto antes. Estou aflita. Pode suceder
que o Mandinga já não queira ou morra...
Instintivamente o casal se dirigiu ao quarto.
Maria Luísa abriu a canastra, e, mesmo sem olhar, pôs a mão no cantinho
onde devia estar o precioso cordão. Sim, devia estar, porque já não estava.
— Você buliu aqui, Tônico?
— Eu? Ora essa!...
Ela apalpou todo o fundo da canastra, mas não encontrou o objeto procurado.
Já nervosa, tirou às braçadas tudo o que estava dentro... só lhe viu o fundo
limpo! Então, pegou as roupas, peça por peça, revistando-lhes as algibeiras todas
meticulosamente. Mas nem sinal!
— Meu pai do céu! Onde está o meu cordão?
E Maria Luísa, com as mãos na cabeça, desandou num choro de criança.
Antônio Pinto, ajoelhado, rente da canastra, não queria acreditar. Também
remexeu tudo e também nada encontrou.
Num desespero horrível, procuraram pela casa toda. Revolveram até a cinza
do fogão! Nada.
Promessas, rezas, exclamações e blasfêmias não conseguiam pôr o cordão i à
mostra. Ele derretera!
— É castigo! dizia Maria Luísa, inconsolável e sem arrumação. Parece obra
do saci ou do tinhoso.
Antônio Pinto emudecera. Com a cara fechada, pensava em João Mandinga.

* * *

Se aquele pobre casal de roceiros morasse em Londres, Paris ou em Nova
York, naturalmente não se conformaria com o sucedido e, sem demora,
pressuroso, recorreria à infalibilidade de um polícia amador. Assim, um
bigodudo Nick Winter ou um Sherlock qualquer, após a cachimbada costumeira,
por-se-ia logo em campo e em três tempos descobriria as pegadas fresquinhas
do...
Mas nós bem sabemos que o "Itaquiri" fica no Brasil, no Estado de São Paulo,
ali no município de Rio Claro. Depois note-se que o Estado de São Paulo ainda
não tinha polícia de carreira e em Rio Claro não estava aquartelada uma seção de
metralhadoras. Depois, naquele tempo do Imperador, quem é que sonhava com o
cinema? Nem Júlio Verne... Quem é que comprava espalhafatosos romances
policiais de trezentos réis o fascículo?
"Itaquiri" era apenas um sertão bravo, onde onças miavam em noites de luar...

* * *

O pobre casal não teve outro remédio senão o de se conformar com o
misterioso acontecimento. Era incrível, mas não achava uma explicação razoável
para tudo aquilo.
A canastra andava, à beira da cama, fechada a chave. Largar a casa sozinha,
foi coisa que eles não fizeram. Hóspedes eles não tiveram...
— É assombroso, disse o Mariano, ouvindo a triste narração. Ê para pôr uma
pessoa sem juízo! Depois de um largo tempo de matutar, continuou: Mas o João
Mandinga não foi. Tenho tanta certeza disso, que sou capaz de jurar sobre a
inocência dele. Conheço-o desde criança. É incapaz de roubar.
Antônio Pinto, ouvindo aquela solene afirmação da boca do sogro, velho
respeitado e sério, profundo conhecedor de homens, tirou um peso do coração e
suspirou, como que aliviado de uma idéia trágica.
— Vou dar-lhes um conselho, meus filhos, continuou o Mariano. Acho bom
que vocês não pensem mais nisso. Não comecem a esquentar a cabeça à toa. É
bobagem. Tratem é de trabalhar com afinco. Vão fazendo as suas economias,
devagarzinho. Mais dia, menos dia, compram o "Itaquiri". Contem comigo.
Ajudá-los-ei com o que estiver nas minhas forças.
O casal resolveu seguir os conselhos do Mariano.
Antônio Pinto começou, pois, a pôr em ordem todas as coisas do sítio. Ia fazer
de conta que aquilo era dele. Fez planos. O "Itaquiri" havia de ter horta, pomar,
roças, boa casa, pastagens bem cercadas, monjolo. Até um jardinzinho havia de
ter.
Depois de outros arranjos, resolveu, um dia, dar uns retoques na habitação,
tão avariada pela tempestade. Começaria do alto.
Em cima da casa, montado num barrote de coqueiro, assobiando, arranjava o
sapé da coberta, quando, por acaso, ao olhar para baixo viu o "Crô-Crô", que
como sabemos era o pato de estimação de Maria Luísa, dentro da canastra,
deitado nas roupas.
De súbito uma suspeita surgiu-lhe na imaginação e cresceu. Tinha sido o
"Crô-Crô". Pato é de uma voracidade inconcebível. Engole tudo. "Crô-Crô"
morava dentro da casa, vivia por toda a parte. Quem sabe se encontrara a
canastra aberta, como naquela hora, aboletara-se dentro, descobrira o cordão e...
engolira-o!
Ia matar o "Crô-Crô".
Desceu da casa e foi contar à mulher.
— Matar o meu querido "Crô-Crô"?, disse ela, protestando. Não quero,
Tônico. Não foi ele. Não há perigo. Um cordão daquele tamanho! Depois, se
fosse ele, havia de estar doente...
O "Crô-Crô" na canastra

E Maria Luísa defendeu o "Crô-Crô" da melhor forma que pôde.
E Antônio Pinto não matou o "Crô-Crô". Não o matou aquela hora, como
determinara.
Mas, no dia seguinte, amolava uma enxada, sentado na soleira da porta,
quando viu a mulher sair com uma lata e encaminhar-se para o córrego em busca
de água.
Não resistiu mais.
— Ah! seu grandíssimo tratante, disse ele pegando o pato. Com que então já
não chega o milho, nem os restos da comida, nem bolachinhas? Agora é avançar
em tudo. Papas finas: cordão de ouro... o "Itaquiri"!...
E de repente, para não dar tempo ao arrependimento, torceu-lhe o pescoço. O
pobre pato que até ali, todo contente, esperava por alguma guloseima, esperneou,
os olhos vidraram-se-lhe: estava pronto.
Foi então agarrado novamente e aberto a ponta de faca.
— Eu não disse! gritou Antônio Pinto, como doido, olhando para dentro do
papo do "Crô-Crô", onde avistava umas fagulhas rebrilhantes. Eu não disse!
continuou ele, correndo, sujo de sangue, ao encontro da esposa. Veja! Veja!
Maria Luísa! E mostrava-lhe o papo aberto do palmípede.
Maria Luísa largou a lata d'água.
— Você matou meu "Crô-Crô"? Você... Eu já sabia que o fim dele era este
mesmo. Toda vida você não gostou dele. Era cada pontapé...
— Não se zangue, minha Maria Luísa. Seja razoável. Olhe que era preciso
tirar as dúvidas. Agora estou mais descansado. Matei o "Crô-Crô". Mas você
nem deve ter dó dele. Fez o papel daquela víbora que, sendo salva pelo calor
dum homem, quis mordê-lo. "Crô-Crô" não era pato.
— Então o que era?
— Era uma víbora, Maria Luísa. Era uma víbora danada! Hei de comê-lo com
arroz!
E assim parece que a história se acabou, terminando naquela noite numa ceia
de pato com arroz.

* * *

Mas não se acabou ainda. Falta mais um pedacinho.
O tempo, que é também distância, deixou lá longe, em ponto pequenino,
quase esquecida, a história do cordão.
Os conselhos do Mariano frutificaram.
O "Itaquiri" estava outro. Quando os ipês floresciam já se não falava em
arrendamento. João Mandinga, sabedor que foi do sumiço do cordão, ficara
mudado, virando uma seda. Sem ninguém pedir, oferecera o "Itaquiri" a prazo
bem longo.
Antônio Pinto aceitou o oferecimento. Aceitou-o, e depois não teve descanso.
Se por um lado amortizava a dívida, muito devagar, por outro, melhorava o sítio.
Construiu boa casa, fez pomar e horta, conseguiu pastagens bem cercadas,
assentou o monjolo e o jardinzinho saiu.
Maria Luísa tinha filhos. Um deles, o José Miguel ou Zé Miguel como era
chamado, já andava nos seis anos. Era o queridinho, mas trabalhava, como
trabalhavam todos naquela casa. O mais velho ralava mandioca para fazer
polvilho; o do meio fazia um pouco de cada coisa e ele, por ser o menor, ficava
ajudando nos arranjos da casa.
Pois bem. Certa manhã, Zé Miguel pegou a vassoura de guanxuma e foi
varrendo o quarto. Como sofresse da mania dos arranjos, verrumava-lhe na
cachola o desejo de dar nova disposição aos móveis do quarto de seus pais.
Sem dizer palavra à mãe, tratou de executar o plano concebido.
Principiaria mudando a canastra.
— Mudar a canastra! Há quantos anos dormiria ela naquele canto?
Fez alavanca com o cabo da vassoura e começou a empurrar a canastra, mas...
os seus olhos o deslumbraram. Dentre as tábuas e o couro, embaixo, num lugar
furado, surgira a ponta de um cordão de ouro.
Ora, Zé Miguel, que sabia a história do cordão, de cor e salteada, foi pulando
e gritando a chamar a mãe.
Pouco depois estavam todos no quarto, estupefatos.
Antônio Pinto abaixou-se, e puxou a ponta que aparecia. O cordão, o
derretido, o chorado cordão, saiu... inteirinho.
— Ah! que coisa esquisita, meu Deus! exclamou Antônio Pinto, batendo na
testa. Que coisa extraordinária! Na minha vida garanto que não chegarei a ver
outra igual. Façam idéia... Tanto quebra-cabeça, tanta choradeira, tanto mau
juízo e... e o cordão tão bem guardadinho aí. Guardadinho por estas minhas
mãos!
— Como é, Tônico? Como é que você disse?
— É, Maria Luísa. Só agora por esta casualidade, dez anos depois do
sucedido, é que me lembro como foi. E quem havia de dizer? Pois foi durante
aquele sonho ruim. Sonhei que iam roubar o cordão e sonhei também que o
escondi aqui. Até parece que estou vendo como foi.
— E não há de ver que podia ser mesmo? Mas... e as faíscas de ouro no papo
do "Crô-Crô"?
— Aquelas faíscas que brilhavam? Decerto nem eram de ouro, Maria Luísa.
Decerto eram pedacinhos de qualquer metal amarelo.
— No entanto, continuou Maria Luísa, no entanto o pobre pato é que pagou...

* * *

Enquanto o fato corria ligeiro, contado por toda a gente daquelas redondezas,
o cordão deu hora. João Mandinga aceitou-o pelo resto da dívida, que ainda era
bem grande.
Para festejarem a escritura de quitação, passada semanas depois na freguesia
de São João Batista de Rio Claro, Antônio Pinto e Maria Luísa fizeram muita
coisa no "Itaquiri": jantar, reza, ceia, baile, desafio e um animado racha-pé que
terminou com o sol alto.


Último dia

— Mamãe, mamãe...
— Que é, Mário?
— Vamos ter visita hoje.
— E por que, meu filho?
— Lá na sala entrou uma pobre mamangaba e zumbe há muito tempo,
batendo-se pelas vidraças como louca.
— Se fosse por isso, quase todos os dias recebíamos visitas, porque, quase
todos os dias, alguma mamangaba erra o caminho e entra nesta casa!

* * *

A prosa ficou nisso.
O Juvenal e eu fôramos ao mato cortar um pau que se prestasse para a
travessa de uma barra-fixa.
Já havíamos feito o trapézio, nhô Lau fizera uma gangorra e uma engenhoca
para moer cana, só faltava uma barra-fixa, onde aprenderíamos a ficar de cabeça
para baixo e a dar giros... Tratamos, pois, de fazê-la.
Ao voltarmos do mato, ouvimos a cantiga da porteira: — Nhé-é-é... baf!
Olhamos. Era um trole carregadinho de gente.
Corremos e o alcançamos, subindo-lhe na rabeira.
Vinham nele: titia Juventina, Violeta, Áurea e o Joanico. Seu Ferraz, na
boléia, guiava os animais.
— Como você está gordo, Juvenal, ia dizendo titia admirada. Bem me falaram
que você era outro.
— Como vai o "Piquira"? perguntaram-me as primas. Morreu ou já é bola?
— Qual morreu o quê, respondi. Aqui no sítio não se morre. O "Piquira" está
gordinho. Faz sorte... Senta-se e anda como gente, dá saltos e cambalhotas...
— Sabe tudo isso? E quantas varadas tomou ele?
— Ora essa, nenhuma... O trole parou no terreiro.
Mamãe, que fazia o almoço nessa hora, ouvindo a nossa gritaria, saiu
correndo, acompanhada de todos: de papai, de Rosinha e de Teresa.
— Será possível? dizia ela. Que contentamento enorme! Não acredito que
vocês vieram.
Foi só abraços.
Seu Ferraz abraçou papai, tia Juventina abraçou mamãe. Violeta, Áurea e
Rosinha abraçaram-se a um tempo.
— Mas, sim, senhor, disse seu Ferraz, com ar da maior admiração. Como está
lindo isto por aqui!
— Até eu morava num lugar destes e com muito gosto, disse titia.
Áurea, Violeta e Rosinha puseram-se a palestrar.
— Então, perguntei a mamãe, a visita veio ou não veio?
— Foi uma coincidência, respondeu ela.
Nhô Lau foi tirar os animais do trole, pô-los na cocheira e dar-lhes milho.
O pessoal todo entrou em casa. Só eu e o Juvenal nos deixamos ficar no
terreiro, parados, como bobos.
Sem palavras, olhando-nos como quem se entende, como quem pensa na
mesma coisa... E ficamos tristes.
Aquele era o último dia...


Regresso

Foi um dia alegre e triste ao mesmo tempo, aquele em que Juvenal deixou o
sítio.
Alegre, porque era um gosto imenso levar as primas e o Joanico, de um lado
para outro, mostrando-lhes o pomar, a horta, os animais, o jardim...
Chegamos à bica, estivemos à sombra da taiuveira, onde estava armado o
trapézio, e Áurea e Violeta foram balançadas o mais alto possível.
Experimentaram a gangorra enquanto nhô Lau, na engenhoca, feita por ele
mesmo, moeu dois feixes de esplêndidas caninhas, arranjando-nos mais de um
balde de uma garapa saborosa, que deu hora, como disse o Joanico, lambendo os
beiços.
A banda de música se reuniu e executou o melhor programa de seu
repertório, em homenagem ao maestrino Juvenal, que àquela tarde se despedia.
O "Piquira" fez sortes e comprovou, palavra por palavra, tudo o que dele eu
contara às primas.
Não foi, porém, o único artista do dia. Toda a criançada se exibiu.
O Erlindo vergou o corpo e pôs as pernas no pescoço; o Atílio andou só com
as mãos no chão e as pernas para o ar; o Gijo equilibrou uma vassoura na palma
da mão, na ponta dos dedos, nos pés, no queixo e até na testa! Eu trabalhei com
três laranjas, de modo tal que, jogando-as, sempre ficava uma no ar.
— É pena, disse-me Áurea, que vocês não se lembrassem de fazer um circo.
Arranjavam um palhaço, um artista e um come-fogo e a companhia estava
completa. Até pantomimas poderiam levar.
Prometi pensar nisso, a ver se para o ano conseguiríamos tudo aquilo.
O tempo voava.
Chegou o jantar e lá se foi o jantar. Chegou a tarde e com ela a horinha
dolorida de ver o primo e companheiro ir-se embora.
De instante a instante eu parava a pensar como são curtos os momentos
felizes.
Enfim, começaram os preparativos para a volta do pessoal.
Juvenal se despediu de um por um. Dos músicos, de papai e de mamãe, de
Rosinha e de Teresa. Depois foi abraçar nhô Lau. Quis ver o "Piquira", o
"Valente" e o "Pelintra". Pediu-me que sempre lhe escrevesse, contando de tudo
e de todos.
Prometeu-me pagar na mesma moeda e voltar ao sítio logo que pudesse.
Por minha parte fiz iguais pedidos e iguais promessas.
E dali a pouco lá se foi o trole. A porteira cantou.
Nem eu nem o Juvenal choramos.
Senti um nó na garganta e mais nada.
Anoiteceu.
Sentei-me na escada, e fiquei por muito tempo a olhar para as lâmpadas
elétricas que faiscavam lá ao longe.


Três anos depois

Ia longe, muito longe, o dia em que, tristonho, fiquei sentado na escada, à
frente de casa, olhando para as lâmpadas elétricas que ficavam distantes...
Três anos!
Eram decorridos três anos depois daquela hora. E, em todo esse tempo, quanta
coisa já se passara no sítio, comigo e com os meus! Quanta coisa I
Agora o "Congonhal" era bem nosso. Era bem nosso e valia muito mais. Não
parecia o mesmo.
Nhô Lau, cantando modinha, já não baldeava água da bica. O encanamento
fazia tal serviço.
Nhô Lau, a cavalo, já não ia à cidade, feito recadeiro. Um fio telefônico o
substituía vantajosamente.

Trás anos depois



O Guamium já não era o riozinho barulhento e vagabundo de outrora. Fizera-
se um tanque para divertimento dos marrecos e reunião das próprias forças.
Depois tocava uma roda que por sua vez tocava um moinho. E o moinho,
vagaroso mas sem descanso, girava dia e noite triturando milho. Um engenho
que lhe ficava ao pé, em certos meses do ano, acompanhava-o na tarefa, moendo
carradas e carradas de canas cheirosas.
Os diversos mil cafeeiros plantados por papai, no espigão, anunciaram a
primavera daquele ano, recamando-se de estrelinhas alvas, deixando-se ver a
distância, como cabeleira de moça em dias de carnaval, sob uma chuva de
confete.
Na horta, os tomates e os pimentões vermelhos pareciam distribuídos como
enfeites, por entre a verdura das couves, das alfaces e dos repolhos...
Já não se entrava no pomar sem que a vista logo descobrisse alguma fruta
amarelinha e tentadora disputada pelos pássaros.
O jardim parecia um céu aberto.
Da janela do meu quarto, avistava-se o pasto, como um presépio cheio de
animais.
O trole coberto, e de dois assentos, repousava no rancho, ao lado dos
carroções, das carroças, dos arados e dos arreios...
No colmeal, atarefadas, zumbiam milhões de abelhas.
Perderiam o tempo os que, no terreiro, tentassem contar a galinhada.
Uma fila de casas novas aparecia acompanhando o caminho.
Numa delas residia o Zé Feliz, curado das moléstias, curado da lombeira.
Numa outra, com a Teresa, sua mulher, e o filhinho, gorducho, vivia o nosso
querido contador de histórias, já meio riquinho, com muitos planos pela cachola
e bastante dinheiro num baú de folha.
Rosinha era quase uma dona de casa. Não lhe punham medo as caçarolas.
Assim como bordava e enchia de poesias uma caderneta de capa azul com letras
douradas, também temperava um bolo ou depenava um frango.
Eu fazia muita coisa, um pouco de tudo. Olhava pelo pomar e olhava pelas
abelhas, cuidava da horta e cuidava das aves: curava animais, arava... Tudo,
porém, sem descuidar da minha pequenina roça, da qual, depois das colheitas,
sempre saíam boas pratas para o meu cofre recheado.
Papai vivia contente.
Mamãe, todas as noites, nas suas fervorosas preces, agradecia ao Criador a
inspiração que nos encaminhara de "volta ao viver da roça, proveitoso, saudável
e feliz.


Agricultura

Um dia o Sr. Pontes apareceu no sítio. Depois de ver tudo e de palestrar sobre
diversos assuntos, começou a falar de mim.
— O Mário está mocinho, disse ele.
— É verdade, respondeu papai. Já anda em tempo de escolher uma profissão.
— Como? Escolher uma profissão?
— Naturalmente.
— Pois já não está escolhida a da agricultura?
— Não, meu amigo. Tenho refletido sobre o que farei de Mário. Gasto horas
inteiras pensando nisso e ainda não decidi coisa alguma.
— Ainda não decidiu coisa alguma? E por quê? O seu filho não vai seguir a
vida agrícola? Não mostra inclinação pelos trabalhos da agricultura? Não
demonstra jeito e gosto pelo viver no sítio? Terá ele, por acaso, uma vocação
irresistível para uma outra carreira? Sim, porque essa história de escolher
profissão para os outros não é coisa fácil. É até quase impossível. Só a gente é
que sabe do que mais gosta. E acho que toda profissão honrada, abraçada por
inclinação, deve levar à felicidade e à fortuna.
— Sabe, Sr. Pontes, não decidi coisa alguma, nem sei por quê. Mário gosta
demais do viver campestre e tem forte inclinação pelos trabalhos da agricultura.
Tem um jeito extraordinário para lidar com plantas e animais. Um dia até chorou
quando lhe disse que iria estudar para médico, ou advogado, ou engenheiro...
— E então?
— Tenho receio de fazer com que Mário siga a minha profissão. Penso que
nalguma outra carreira ele encontraria mais vantagens...
— Mais vantagens? Ora, seu Raimundo, por favor, não diga disparates. Pois
admite que haja, dentre as carreiras que se acham ao nosso alcance, uma outra
que seja mais rendosa, mais honrosa e mais brilhante que a de agricultor? A sua
vida, meu amigo, a sua volta à lavoura e o seu próprio sítio "Congonhal" não
serão, talvez, a melhor prova em favor do que estou dizendo? Fique certo de que
na continuação do seu trabalho proveitoso, seguindo o seu exemplo, Mário
encontrará a felicidade e a riqueza e se tornará um cidadão útil e estimado.
— É, Sr. Pontes, pode ser. Mas...
— Já sei, seu Raimundo. É a velha mania da nossa gente em desprezar os
roceiros. Mas é erro, injustiça, asneira! A agricultura é, como deve ser, uma
profissão nobilíssima. O café e a cana-de-açúcar poderiam ser considerados
plantas sagradas do Brasil. Foi a cana que civilizou o Norte e o café enriqueceu o
Sul. Mas os jovens que crescem à sua sombra, em vez de se prepararem para a
lavoura, nas escolas agrícolas, vão buscar um pergaminho de doutor nas
faculdades.
— Basta, Sr. Pontes. Basta, meu amigo. Os conselhos são sempre os mesmos:
salutares, judiciosos, benfazejos. Já os aceitei uma vez com brilhante resultado,
aceito-os novamente. Obrigado. Fique certo de que vou fazer de meu filho um
agricultor. Não devo contrariar-lhe a vocação.


Uma notícia

Alguns dias depois da visita do Sr. Pontes eu encontrei papai em pé, na
varanda, com um jornal aberto ante os olhos, lendo qualquer coisa, num
entusiasmo fora do comum. Pus-me a escutá-lo e vi que era notícia de uma festa
realizada em Piracicaba, na Escola Agrícola "Luís de Queirós". Era uma festa
para solenizar a formatura de mais uma turma de agrônomos.
Logo que papai deixou o jornal sobre a mesa eu o tomei para reler a notícia.
Ei-la:

ESCOLA AGRÍCOLA "LUÍS DE QUEIRÓS"
Festa de Formatura

Conforme noticiamos, efetuou-se ontem a festa de formatura dos agrônomos
deste ano, pela Escola Agrícola.
Às 8 horas, sob um céu límpido, claro, prometendo um dia cheio de sol,
começaram a chegar à escola as pessoas que desejavam assistir ao plantio da
árvore.
Às nove horas mais ou menos, em presença do Vice-presidente do Estado e
do Secretário da Agricultura, autoridades locais, Exmas. senhoras, gentis
senhoritas, inúmeros cavalheiros, lentes, alunos da Escola e representantes da
imprensa, dois agronomandos plantaram, em um canteiro sito entre o edifício da
Escola e o campo de futebol, um guarita, a árvore da turma.
Terminado o plantio, falou um dos agronomandos, que pronunciou um belo
discurso.
Disse que a árvore que ali se plantou simboliza o dever que todos temos de
engrandecer a Pátria, renovando a sua flora, e constitui uma lição aos que,
desapiedadamente, devastam as nossas matas, sem medir os males que esse
modo de proceder ocasiona.
À sombra da árvore simbólica da turma, poder-se-ão reunir, em futuro não
remoto, os alunos que ora se despedem da Escola, ouvindo o cantar do passaredo
aninhado em seus ramos, recordando os tempos descuidosos e felizes de
estudantes.
Terminando, o orador pede que seja feita uma reação sistemática, forte e
ininterrupta contra o extermínio das nossas matas.
Em seguida os novos agrônomos se colocaram militarmente em fileira para
receber a caderneta de reservista do Exército.
O Sr. Tte. instrutor pronunciou vibrante alocução, explicando a utilidade da
caderneta, o papel do reservista e concitando os moços, que ora concluíram o
curso da Escola, a não se esquecerem de que a eles, como a todos os brasileiros,
compete defender a Pátria.

SESSÃO SOLENE
Por volta das dezenove horas, o amplo salão da Escola, ornamentado com
apurado e fino gosto, profusamente iluminado, achava-se repleto.
Alguns momentos depois, aberta a sessão e assumindo a presidência o ilustre
Secretário da Agricultura, foi executado o Hino Nacional, religiosamente ouvido
pela assistência.
Seguiu-se a leitura do termo de formatura, feita pelo secretário da Escola, e,
logo depois, a assinatura do referido termo pelos agrônomos.
Ao depois, foi dada a palavra ao diplomando comissionado para oferecer à
Escola o quadro de formatura. O orador, depois de fazer a oferta do quadro,
volta-se para seus colegas, lembra-lhes os dois caminhos que se lhes oferecem: a
burocracia e a estrada prática que leva aos campos.
É da cultura da terra que depende a grandeza do Brasil. Ê a terra, portanto,
que os novos agrônomos devem cultivar, é paia ela que se devem dirigir.
Falou em seguida o paraninfo, que, após inúmeras considerações, aconselha
ordena mesmo, que os nossos agronomandos procurem fazer com que sejam
aproveitadas as terras do Brasil, que tem todos os climas.
Para os encorajar lembra palavras de Assis Brasil, as quais afirmam que na
agricultura tudo depende exclusivamente do homem, da sua educação, da sua
boa vontade, da sua energia.
Diz que já são muitos os agrônomos formados por esta Escola e do trabalho
deles dá prova, talvez, esse ressurgimento da pecuária que há alguns anos se vem
notando.
Muito ainda podem fazer os agrônomos e conjura-os não só a se utilizarem
dos seus conhecimentos científicos, como também a propagar o amor ao campo,
a chamar para ele os homens válidos. Porque a riqueza é a base de
toda.organização social e a agricultura é a base de toda a riqueza.
Terminando, faz ardentes votos pela prosperidade geral de todas as unidades
que compõem o País.

Vista parcial da fachada da Escola Agrícola "Luís de Queirós"




Encerrando a sessão, usou da palavra o Sr. Secretário da Agricultura, que
pronunciou conceituoso discurso.
Declarou não precisar dizer do interesse que o Governo tem pela Escola
Agrícola, verdadeiro monumento que honra sobremaneira o Brasil.
No entanto, diria que jamais teve na vida emoção tão suave como a que sentiu
por ocasião da plantação da árvore da turma.
Acabou, então, de se convencei de que a profissão do lavrador é a mais bela
de todas, referindo-se com palavras eloqüentes às vantagens que ela traz.
Terminando, concitou os agrônomos a prezarem a República — forma de
Governo que os reuniu no recinto da Escola.
Palmas, palmas e palmas abafaram as últimas palavras do eloqüente orador.



Resolução
— Mário, disse-me papai, a notícia que li ontem, sobre os agrônomos,
formados este ano, trouxe, em parte, modificações no plano que fizemos a
respeito de sua carreira. Continuo firme no propósito de fazê-lo homem da
lavoura e isso, felizmente, sem lhe contrariar a vocação. Entretanto, lembrando-
me de que no Brasil há uma escola superior de ensino agrícola, de valor
reconhecido e justo renome, provida de aparelhamento completo, possuidora de
mestres competentes, tendo voltadas para ela, continuamente, as vistas do
Governo, procurada por moços de todos os Estados do nosso País, resolvi que
você passe por ela a fim de que seja, futuramente, um agricultor, guia de
agricultores, em seu benefício e em benefício dos que cultivam o solo. Mas
repare bem no que lhe vou dizer, meu filho: — Não leve em mira,
exclusivamente, alcançar o diploma, apenas como título com o qual você brilhe,
com o brilho falso da purpurina barata num pedaço de pau podre. Não é para isso
que você cursará a Escola Agrícola. "O estudante que se limitar, durante os anos
do curso, ao cumprimento exclusivo de obter médias, sem o intuito superior de
observar praticamente as coisas para o seu aproveitamento futuro, não poderá,
jamais, ser um bom agrônomo". Por isso, você levará como compromisso de
honra a palavra empenhada de que saberá ser forte no estudo, aprofundar-se, sem
esmorecimento, nas matérias às quais se dedicar, para que, ao receber o
pergaminho de agrônomo, você não sinta que poderia ter feito mais, muito mais.
Eu escutava encantado. Queria ser agricultor, queria estudar agricultura. À
medida que papai falava, eu me sentia entusiasmado, e me antevia discípulo
modelo, elogiado dos mestres, queridos dos colegas, encantado pelas coisas do
saber, de consciência tranqüila e de coração livre, abençoado pelos meus.
— Então, Mário, que me responde? Está resolvido a estudar nas condições
que lhe proponho?
— Estou, papai, respondi resolutamente.


A partida

Uma semana depois eu deixava o sítio.
Nesse dia levantei-me bem mais cedo que de costume.
Percorri todas as dependências do "Congonhal". Estive no pasto, na roça, no
tanque, no pomar, na horta, no jardim... Vi a "Mansinha", o "Pelintra", o
"Valente", o "Piquira", as galinhas, os porcos, as abelhas...

Despedi-me dos velhos músicos, despedi-me dos camaradas.
Fui à casa de nhô Lau, que se achava de viagem. Abracei-lhe o filho
gorducho, meu afilhadinho.
— Que Deus o acompanhe, disse-me a Teresa, enxugando na manga as
lágrimas que lhe escorriam pela face.
Fui à bica.

Até um dia

Sentei-me na grama, debaixo da paineira, ali fiquei nem sei quanto tempo, a
ouvir o canto tão simples e tão bonito dos papa-capins. Reparei num serra-pau
que pulava na ponta de um toco e me distraí a olhá-lo. De repente, mil coisas
principiaram a surgir na minha memória e a desfilar na minha imaginação, como
uma fita muito comprida num cinematógrafo encantado. Eu vi... Que vi eu? — O
Pascoal, de trole, mostrando no Capão Bonito a capelinha, a escola e a venda do
Bertassa; o "Pelintra", parado à frente da casa; uma cesta de pêssegos vermelhos;
nhô Lau, ao pilão, socando paçoca, eu e Rosinha, no pátio da escola; Dona
Alzira curando o pé do Tissiani; um caderno todo escrito por causa da
"Mansinha"; Dona Francisca encharcada, a rezar, com medo da tempestade;
Raul, na enxada, plantando feijão; a carinha engraçada do Paulino; nossa
divertida pescaria no Guamium; as jabuticabeiras, carregadinhas de frutas; a
palhoça do Zé Feliz, derrubada, no meio do sapezal; meu primo, no alto da
taiuveira, armando o trapézio; o batalhão entusiasmado, prestando continência à
bandeira; eu e Juvenal, agarrados, rolando no pasto; nhô Lau contando a história
do cordão; a partida de meu primo... depois... eu me surpreendi com lágrimas
nos olhos...
Uma voz veio arrancar-me daquelas queridas recordações.
Era papai que me chamava para o almoço.
Corri para casa.
Almoçamos.
Em seguida, eu mesmo pus os animais no trole.
Zé Feliz carregou as malas, onde eu bem sabia estarem essas tantas coisas de
que não se esquecem a bondade, o carinho e o amor das mães sempre adoráveis.
Abracei Rosinha forte como se a apertasse ao meu coração.
Abracei mamãe. Beijamo-nos repetidas vezes, e, com voz embaraçada, disse-
lhe que não chorasse.
Papai já me esperava no trole.
Embarquei.
Os animais partiram.
Perto da casa de nhá Venância, numa curva da estrada avistei nhô Lau.
Alcançamo-nos.
— Já de Volta? perguntou-lhe papai.
— É verdade, patrão. Felizmente fui bem de negócio, pois até já comprei as
terras. Pretendo, agora, cuidar da mudança se me der licença.
— Quando voltar de Piracicaba, conversaremos, nhô Lau, disse-lhe papai.
Vou levando o Mário para estudar agricultura.
— Vai para Piracicaba?
Nhô Lau apeou do animal. Eu desci do trole.
— Pois então, compadre Mário, agora que chegou a hora de nos separarmos,
quero dizer o meu desejo. Quero que você seja feliz como merece, e quero que a
bênção de seus pais o acompanhe por toda a vida.
— Obrigado, nhô Lau, obrigado. Pela minha parte, também desejo que tenha
muita sorte lá pela Noroeste, e volte rico, um fazendeiro forte, porque o
compadre também merece, e algum dia, quando eu for gente, aparecerei no seu
"Congonhalzinho" para ouvir outra vez as suas histórias tão bonitas.
— Então o Mário não se esquecerá mesmo de nhô Lau?
— Nunca.
Abraçamo-nos com força, longamente. Depois, subi depressa no trole,
enquanto nhô Lau montava no animal.
— Até um dia, disse-me ele.
— Até um dia, respondi.


A vida no campo (Luís de Camões)

Oh! lavradores bem-aventurados,
Se conhecessem seu contentamento!
Como vivem no campo sossegados!

Dá-lhes a justa terra o mantimento,
Dá-lhes a fonte clara de água pura,
Mugem suas ovelhas cento a cento.

Vive um com árvores contente,
Sem lhe quebrar o sono repousado,
A grã cobiça de ouro reluzente.

Se suas casas de ouro não se esmaltam,
Esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
Onde os cabritos seus comendo saltam..

Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou




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