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PROAC Nº 31/2015

BOLSA DE INCENTIVO À CRIAÇÃO LITERÁRIA NO ESTADO DE SÃO


PAULO - PROSA

PROJETO: DIONISIO EM BERLIM

PROPONENTE: TIAGO NOVAES

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b. Quem é o proponente?

c. Texto de autoria do proponente (últimas linhas de Os amantes da


fronteira);

"Não houve pensamentos no caminho. Sua consciência já batia adiante,


na lua cheia entre os troncos queimados que elevavam os galhos ao
firmamento. A fumaça dos incêndios ardia e lacrimejava. Era noite alta e
noutro lugar as labaredas espinoteavam. A moto engolia os chilreios, o cricri
dos insetos e as sutilezas invisíveis, a ignição rugindo como um trovão
disparatado a caminho daquela resolução incógnita de onde brotavam as
ações mais modestas.
[...] Entreviu, súbito, o bruxuleio distante da procissão. Ecoando de onde
se divisavam as nervuras da enorme aldeia, um cântico multilíngue se fundia
aos clamores e gemidos da madrugada. Adiante, militares gritavam e
empurravam as gentes com as coronhas da artilharia. Um tanque barrava a
estrada. Estacou, tomado por uma breve vertigem. Rodando em falso, o
motor da motocicleta tossiu e morreu. Ia deixá-la no acostamento, mas
acabou deitando-a além, na mata, onde já quase não se via nada. Ao erguer-
se trombou com uma cadeira de rodas conduzida por uma anciã. Afastou-se
com o joelho latejando na altura dos olhos ausentes da criança, a boca
esgarçada e os dedos a tiritar. Desviou mancando rumo às luzes vaporosas
da mata. O tumulto irrompeu até onde avistava: soldados interditavam o por-
tão principal que dava acesso aos montes cobertos de casas de bambu e
palmas, ao lado dos alto-falantes que chispavam numa língua feroz e
autoritária. Um tiro estalou. Gritos, as cabeças arremetendo como uma leva
que ia e retornava, atirando a multidão de encontro aos fardados. Mais tiros,
e os semblante em pânico começaram a cruzar entre ele, e tinha de firmar-se
para não se deixar levar. A malta começou a chocar-se num corre em todas
as direções.
Tinha de pensar rápido. Acompanhando uma outra leva, embrenhou-se
no breu que bordejava o asfalto no sentido da aldeia. Os leprosos e ictéricos
desciam o barranco até o riacho. Muitos caíam e rolavam feito bonecos.
Crianças se prendiam aos pescoços de homens de vista toldada, os

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movimentos tépidos, como se prolongassem os estertores até a culminação
do êxtase e da dor, meninos sombrios de olhos e narizes cheios de terra,
catarro e água salgada. Um grupo se metera nos cardos e urzes. Atravessou
o riacho metendo os pés na água fresca, guiando-se pelas orações e
avançando em direção às luzes. Estava ali mas não estava, aquelas mãos
eram suas e não eram, as ideias desbotando, um homem na turba de
molambos se afunilando na trilha depois do riacho. Atrás de si eram centenas
agora, que desciam o barranco, espessando o apogeu pandemoníaco de
semblantes dolentes, pernas descarnadas, uivos entre as preces, olências de
pólvora, incenso e pânico, a brisa soprando salmos e mantras, a lua cheia
mosqueada que era e não era a lua que guiava Ártemis ao colo de um deus
que nascia entre mártires e legiões, um messias que abriria caminho no mar
dos anseios e voracidades humanos. No campo, entre as casas, a
aglomeração começava a deter-se. Já não se avançava, mas Y valia-se de
todo o impulso das pernas para ganhar passo a passo a ascensão, sentindo
contra si os corpos grandes, os ossos esquálidos, resvalando em mantos,
tropeçando de lado, os pulmões prensados e os olhos à procura, Ártemis nos
birmaneses branqueados por thanakas, no salmão das cabeças raspadas,
Ártemis nas jovens noviças e do alto Ártemis nos fachos dos helicópteros que
afugentavam abutres e registravam os fatos bizarros, as notas exóticas do
Oriente para a curiosidade dos que viviam no avesso do mundo, massas que
agora eram formigas escalando um formigueiro, centenas de aranhas em um
tronco de árvore, Ártemis em todos os semblantes, ela que se entregava à
morte em bacanais sem alegria, em todo canto da terra um fim de mundo, as
pupilas que abriam e cerravam para se refazer entre os trapiches onde
enfermeiros suavam sobre ventres abertos e enfartes fulminantes, os tantos
homens sem braços e sem pernas, à vista de uma silhueta que pela moldura
torta da janela abria na arcada um esgar macilento, no pescoço um apostema
que já lhe alterava as feições, e eram como fantasmas, já mortos palmilhando
o purgatório.
E foi então que Y, desabrido, alargou a boca para dizer algo, algo que
ele próprio não pôde discernir, engolido na deriva do presente, e antes de
soçobrar nas trevas, de esmaecerem as vitalidades, na expiração dos
quereres, como se nada, turvo e perdido, foi então que, no mar de cabeças e

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ombros, destacado a fitá-lo, neste momento, num único segundo, nó dos
tempos, desafiando acasos, história e azares, foi então que ele me viu."

d. Por que realizar o projeto? Justificativa do projeto;

i. Duas questões;

Dionísio em Berlim é um romance fundado em duas grandes perguntas,


apresentadas nos itens abaixo. A primeira alude à temática do exílio, de uma
experiência anônima e traumática de expatriação e orfandade. A segunda
pergunta refere-se ao desejo dos viajantes pelos descaminhos no mundo, a
ânsia por raízes em terra estrangeira e a tentativa de traduzir em destino - ou
na ausência de destino - uma herança e um legado em permanente
decifração. Ambas as perguntas são base do pensamento moderno, do
homem livre e fraturado, sempre um foragido e sempre um perseguidor. As
duas perguntas dizem respeito a posturas bastante presentes no seio da
comunidade diaspórica dos artistas do século XX e que incutiram uma cisão
nesta comunidade, particularmente presente no discurso de grandes
escritores como James Joyce, Julio Cortazar, Samuel Beckett, Imre Kertész e
Roberto Bolaño. Afinal, haverá aqueles que concebem o exílio como
danação, perda e fratura permanente de um lado, e os que salientam o poder
criativo da condição errante e peripatética daquele que expulsou-se e foi
expulso de sua terra e cultura natal. Para estes, o imperativo da escrita e da
viagem se equivalem, e partir seria um meio inevitável de apropriar-se do
próprio.

ii. A viagem na literatura;

Situação criadora de incertezas, projeção de imagens vagas de


liberdade, metáfora da vida, da morte, do desejo, emblema da fugacidade e
da beleza; e ao mesmo tempo do terror, do desenraizamento e do
desamparo, a viagem acompanhou a imaginação humana e sua expansão
civilizatória, impregnando seus mitos e fundando a subjetividade ocidental. A
maior epopeia grega, "Odisseia", conta dos vinte anos de viagens de Ulisses

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em seu retorno a Ítaca. O mito fundador cristão se inicia com o exílio do casal
primevo, a vida recriada como errância fugaz, como caminho a uma terra
perdida e prometida. Da poesia dos goliardos, clérigos medievais boêmios e
errantes, à jornada de Dante Alighieri em "Divina Comédia", a viagem denota
expiação e alegoria moral. A obra magna de Cervantes, considerada o
primeiro romance - aquele que funda a subjetividade moderna -, narra as
desventuras viajeras de um fidalgo. E assim seguimos, até o momento em
que a viagem já parece impossível, explorados os quatro cantos do globo,
absorvendo-os no sistema de produção, distribuição e consumo. Anunciava-o
o espírito do capitalismo em Robinson Crusoé, homem-ilha, self-made man,
encampavam-no os cavalheiros ingleses em seus clubes londrinos que, em
meio a partidas de bridge, decidem partir motivados por uma aposta, a uma
volta ao mundo em oitenta dias, como modo de confirmar o Império Britânico
na Ásia, África e América. Seu verniz desaparece nas trevas de Conrad,
naqueles relatos de fantasmas desterrados em sua própria terra revolta e
esburacada, onde o homem e a lama se indistinguem. Culminamos no ocaso
das peripécias, aventuras e explorações ultramar, o momento em que o
marinheiro irlandês Henry Shackleton se lança à lendária exploração
Antártica na primeira década do século XX, anunciando a extinção dos
territórios desconhecidos pelo homem civilizado no planeta. A viagem de
peripécias e aventuras se converte então em experiência do exílio, condição
do artista moderno por excelência. Dos arautos da modernidade, e ainda no
século XIX, Baudelaire assevera a atopia deste homem novo e denuncia a
necessidade de uma nova linguagem. Desdobrando o exílio em relação a si
próprio com o aforismo Je est un autre, Rimbaud interrompe precocemente
sua escrita quando começa a viajar. E assim, a viagem constitui nos
modernos uma poética da indivisibilidade entre vida e obra, e a busca pelo
avesso da vida culmina na dissolução da própria escrita.
Ao longo do século XX, muitos empreendem este caminho: Julio Cortázar,
Jack Kerouac, Joseph Conrad, Paul Theroux, Ernest Hemingway, Paul
Bowles, Malcolm Lowry, Bruce Chatwin. Na aurora do século XXI, Imre
Kertész, sobrevivendo à adolescência em campos de concentração, irá
desnacionalizar-se em sua escrita e em seu vagar, situando-se no não-lugar
do exilado ao descrever um mundo que contempla sem esperança ou alívio,

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para o qual se torna eternamente estrangeiro. E Roberto Bolaño, com sua
infância no Chile, adolescência no México e maturidade na Europa,
reiterando a temática como um sol onde orbitou grande parte dos maiores
escritores do Ocidente, e que em seus romances apresenta a aridez e o
desencanto em um mundo embotado e perverso, espantoso em sua pobreza
e na opacidade de toda teleologia.

iii. Homens divididos do novo século;

Se o Homem é desde os relatos originários um estrangeiro neste


mundo, o exílio como o consideramos hoje é uma experiência própria da
modernidade, entre outras coisas porque o século XX é particularmente fértil
em estados totalitários e guerras de proporções absolutas. Este cenário
tornou o homem particularmente frágil e à mercê de deliberações das altas
esferas do poder. Exilados, refugiados, asilados, imigrantes: expulsos
mediante situações de perigo e escassez, a população diaspórica acabou
criando uma rede discursiva assentada no desenraizamento, produzindo um
vasto debate e uma abundante bibliografia que oporá a poética e a política,
aspectos disfóricos e eufórico, nefastos e criativos da condição errante. A
própria modernidade é identificada à expatriação, e a arte deste tempo não
poderá ser senão cosmopolita, descentrada, semovente.
Como atividade criadora, o exílio comporta dois universos: a dimensão
positiva de sua presença/ausência e o universo desagregador e miserável do
estranhamento, do vazio e da solidão. Para escritores e filósofos como Joyce,
Pound, Beckett ou Bowles, a viagem sugere aspectos mais sedutores
vinculados a estados de consciência, capazes de confirmar qualidades do
indivíduo cuja pureza só seria possível a partir da conquista solitária de um
espaço próprio. Nietzsche, Conrad, Eliot, Nabokov e Adorno, porém,
pertencem à outra tradição de autores que enxergam o exílio como absoluta
orfandade, fratura, trauma, solidão e silêncio. Nessa condição não existe
nada glorioso nem romântico: o exílio é nossa maldição, nossa vocação
existencial e nossa natureza.
Desta última vertente encontra-se o intelectual Edward Said, ele próprio
dividido entre as culturas britânica e palestina. Embora reconheça que o

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pensamento acadêmico e a moderna cultura ocidental sejam realizados por
dissidentes políticos e consista num pensamento extraterritorial, excêntrico e
arredio, Said defende que louvar a migração implica conferir dignidade a uma
situação criada para suprimir a dignidade e encobrir as mazelas perpetradas
pelas políticas do século passado:

"Na escala do século XX, o exílio não é compreensível nem do ponto de


vista estético, nem do ponto de vista humanista: na melhor das hipóteses, a
literatura sobre o exílio objetiva uma angústia e uma condição que a maioria
das pessoas raramente experimenta em primeira mão; mas pensar que o
exílio é benéfico para essa literatura é banalizar suas mutilações, as perdas
que inflige aos que as sofrem, a mudez com que responde a qualquer
tentativa de compreendê-lo como 'bom para nós'. Não é verdade que as
visões do exílio na literatura e na religião obscurecem o que é realmente
horrível?" (Said, Reflexões sobre o exílio, p. 115)

No pólo oposto da discussão, encontramos o filósofo tcheco radicado no


Brasil Vilém Flusser, para quem o exílio é um desafio à criatividade. Ao
contrário do que afirma Said, que destaca a impotência dos contingentes
foragidos, Flusser salienta que o exílio é a partir de dado instante um
movimento voluntário. Vivemos num mundo em expulsão, onde o exilado se
torna o criador deste mundo, e não apenas sua vítima passiva (os judeus não
são parte da história nazista, mas os nazistas são parte da história dos
judeus).

"O exilado foi arrancado (ou arrancou-se) de seu ambiente costumeiro.


Costume e hábito são um véu sobre a realidade. Em nossa rotina, nos
atentamos para as mudanças, mas não para o que permanece fixo, que é
redundante. Mas no exílio tudo é incomum. O exílio é um oceano de
informação caótica. A ausência de redundância no exílio não permite que as
informações sejam absorvidas pelo exilado. Para poder viver, o exilado deve
primeiro transformar a tempestade de informações em torno dele em
mensagens significativa; ou seja, deve processar dados. Trata-se de uma
questão de vida ou morte. Se ele não for capaz de processar dados, será

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inundado e consumido pelo tufão do exílio. Processar dados é sinônimo de
criação. Para não perecer, o exilado deve ser criativo." (Flusser, Exílio e
Criatividade, p. 81)

O hábito é um cobertor macio - um anestésico agradável, reconfortante


e tranquilo que filtra informações, eliminando ângulos e ruídos. A verdade
grega, a-letheia, dá-se com a retirada do cobertor, e é o momento em que
tudo se torna inquietante, monstruoso e incomum. Exilar-se é como ser
expulso do próprio corpo, quando até as coisas rotineiras causam
estranhamento. Se no hábito apenas as mudanças são percebidas, no exílio
tudo parece em constante mudança. Mesmo que sua meta seja apenas
sobreviver, o exilado suscita a suspeita dos habitantes locais, porque se torna
um revolucionário que irá dessacralizar lugares que o hábito sacralizou, e
renovar lugares que o hábito envelheceu. Exilados são desenraizados que
buscam desenraizar tudo à sua volta para criar raízes. Sua humanidade
reside no desenraizamento, em sua "pessoa aérea" (em alemão, luftmensch).

iv. Atopia e Utopia (orfandade e desejo)

Fazendo reverberar o não-lugar do escritor, o comprometimento da


literatura com um projeto emancipado de qualquer nacionalismo, repensando
enfim a liberdade e o prazer a partir da criação literária, Dionísio em Berlim é
um romance que reflete sobre os destinos pulsionais de nosso tempo. O
poder criativo e destrutivo do desejo, o elã espiritual do tornar-se outro, a
transfiguração pela metáfora dionisíaca do vinho, néctar que converte mortais
em seres divinos, são convertidos em narrativa de personagens anônimos e
estrangeiros.
A partir do seio da orfandade, a obra se inscreve numa tentativa de
participar de uma cartografia afetiva e do mundo - contribuição rizomática,
mas essencial -, elaborada em português e já iniciada no romance anterior,
Os amantes da fronteira. A pesquisa da estrangeiridade e a revisão dos
nacionalismos equivalem a um choque cultural entre a língua mãe e os outros
códigos línguísticos, chaves para mundos desconhecidos. Escrito a partir de
São Paulo, inserido na cultura e tradição literária brasileira, o romance inverte

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a questão do olhar estrangeiro ao qual estamos habituados. Sem o risco de
tornar-se objeto pela visada do exotismo, levantamos as questões da
internacionalização da literatura, mas pelo movimento contrário, mais raro e
instigante: o nosso olhar - ou ao menos o de uma certa literatura brasileira -,
sobre o mundo. Não sob o afã antropofágico, mas com o registro da
conservação dos abismos da distância e com as ressonâncias da
proximidade. Ao anular o próprio código linguístico no incógnito de uma fala
estrangeira, ao remontar o balbuciar fundante dos sentidos, caroço poético
da linguagem, a língua portuguesa apropria-se um pouco mais de si mesma.

e. O que será realizado? Descrever: concepção literária, referências


estéticas, bases da pesquisa, personagens, tempo e espaço;

i. referências, estrutura e narrativa

Dionísio em Berlim é uma versão contemporânea, ambientada em Berlim e


nos tempos atuais, do mito grego de Dionísio, em particular o episódio
narrado na tragédia As Bacantes, de Eurípedes. Na peça teatral, Dionísio,
deus errante e amigo dos mortais, vinga-se da casa real de Cadmo em
consequência do não reconhecimento de sua divindade na Tebas natal. Na
versão clássica, Dionísio conduz os acontecimentos ao ponto em que
Penteu, rei tebano, disfarçado e às escondidas para testemunhar o frenesi
das bacantes na floresta, acaba devorado por elas, dentre as quais está
Agave, sua própria mãe.
A história estimula uma reflexão acerca da dimensão trágica do prazer e do
êxtase e encontra em Berlim seu ambiente atual mais sugestivo, por sua
ambiguidade entre o progresso apolíneo de uma das grandes potências
mundiais e o desvario dionisíaco e carnavalesco de suas festas e orgias.
Berlim é a capital dos artistas - cidade intelectual da dança e da música - e
que acaba por reeditar o modus operandi da exclusão na situação de
orfandade de seus estrangeiros e na cultura sofisticada de seus clubes
privilegiados.
Já no introito do romance, Dionísio, o de muitos nomes (Baco, Dendrites,
Bromios, Lesbos Enorches, Eleutherios...) já não está ali para ser

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encontrado. Um interlocutor do qual nada sabemos entrevista cinco
personagens que estiveram com Dionísio antes de seu desaparecimento.
Cada capítulo é representado por um desses personagens - todos
estrangeiros, com exceção de uma quinta figura, o alemão proprietário e
guardião do clube Wriezener, cenário do desenlace trágico do romance.
Cada personagem tem uma voz, um estilo, e foi tocado de um modo especial
pela passagem de Dionísio. O romance, de aproximadamente 150 páginas
(30 páginas em média por capítulo), percorre no timbre polifônico das
personagens as peripécias do protagonista-deus e as razões de sua
dissolução: a infância com o padrasto em uma ilha na Índia, naufragada pela
elevação do nível do mar; suas perambulações até a chegada a Berlim; seus
períodos de dança e de festa de libertação do mundo; suas visitas
enigmáticas ao Neues Museum, onde encontra os artefatos da homérica
Tróia, coleção do arqueólogo Heinrich Schliemann; as ameaças que começa
a receber; a descoberta de uma mãe - uma junkie solitária e precocemente
envelhecida agonizando num sobrado em Neukölln; a travessia inquiridora e
vingativa em um submundo de figuras apátridas; finalmente, o confronto com
o pai: o alcoviteiro Gotelieb, que havia incumbido um malsim - o taciturno
padrasto - de tomar conta de Dionísio em sua infância e adolescência, e de
mantê-lo longe de Berlim. Consciente deste destino e desejoso de vingança,
Dionísio adentra a casa noturna Wriezener, onde as massas entregam-se à
dança e ao sexo orgiástico, e às escondidas substitui o opiáceo alucinógeno
consumido pelos frequentadores do clube por uma substância tóxica,
culminando no êxtase mortífero e excruciante de centenas de jovens e no
encarceramento de Gotelieb, onde o encontramos no último capítulo do
romance. Dionísio segue inapreensível.

ii. personagens

São cinco personagens - sujeitos multi-identitários, diante de um


perscrutador invisível, à maneira de La Chute, de Albert Camus, ou Grande
Sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Se o Dionísio grego acolhe as figuras
marginais em seus ritos, o nosso protagonista é o próprio marginal, que

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seduz aqueles que encontra pela liberdade de seus movimentos e
pensamento, e por uma súbita perda de individualidade.
A primeira é uma dançarina cega, Mercedes, nascida na Patagônia,
que se enamora do deus e de sua dança na escola fight club. Mercedes
encarna o lirismo da infância, a esfera sensível e o corpo no encontro com
Dionísio, neste capítulo chamado de Eleu (de Eleuthério). Pela chave da
poesia, a bailarina narra as perambulações do protagonista até sua chegada
a Berlim, além do fascínio inicial perante a cidade. É o momento das pulsões
da primavera, da sintaxe da comunhão, da festa do divino.
No segundo capítulo, o narrador é Beyza, um segurança de
ascendência turca que trabalha nos corredores do Neues Museum, e encarna
o discurso do suspense, da pulsão escópica e da estrutura do romance
histórico. Sua atenção é capturada por um visitante assíduo - Zagreu (avatar
de Dionísio) -, e passa a segui-lo pelo amplo labirinto museológico, vigiá-los
pelas câmeras do museu e especular sobre suas origens. O segurança será
testemunha da primeira abordagem dos sicários de Gotelieb.
A terceira aparição, fazendo um churrasco solitário no descampado do
aeroporto desativado de Tegel é Ruwayd, rebatizado Silena. Silena é uma
travesti que dividiu um apartamento com Dionísio no bairro de Lichtenberg, e
testemunhou a mudança de fisionomia do deus, neste capítulo conhecido
como Dendrites. Silena, que encarna a mudança, a casa semovente, o
testemunho de luta, acaba protagonizando um interlúdio no romance, no qual
relata a própria história. Nascida homem no berço de uma família
mulçumana, Ruwayd é jurada de morte no momento em que assume sua
mudança de sexo. Foge para a Alemanha, onde é autorizada a permanecer
em um perímetro estreito perto de Munique, em companhia de outros
refugiados sírios. Árabes fervorosos, seus companheiros também ameaçam
matá-la, e Ruwayd-Silena fura o perímetro legal de sua permanência,
perdendo todos os direitos adquiridos como refugiada política, e aluga a casa
de um amigo em Berlim. Neste capítulo, Dionísio Dendrites encontra seu
antigo padrasto, que o admoesta a fugir e, não logrando convencê-lo, leva-o
condoído até o refúgio de sua mãe em Neukölln, onde esta agoniza.
O quarto personagem transita entre as margens do Spree e o Görlitzer
Park. É o traficante etíope Alemayehu, que relata de modo hesitante o

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desvario de Dionísio pelo submundo berlinense. Alemayehu é a figura que
encarna a dissolução da linguagem no trauma e na violência. O capítulo
recua na sequência dos acontecimentos para o momento em que o
protagonista encontra a mãe agonizando em um covil úmido, escuro e
raquítico, e acompanha a busca sedenta do protagonista por um culpado.
Neste momento da narrativa, Dionísio atravessa os recessos precários dos
imigrantes ilegais e o lado mais perverso da discriminação das origens, no
seio de uma Europa que ainda dissemina seus impulsos imperiais. Inquirindo
traficantes, assassinos e prostitutas, Dionísio chega ao nome de Gotelieb e
seu clube noturno. O capítulo termina na tentativa fracassada de entrar no
clube.
Gotelieb é o narrador do último capítulo, e encarnação de uma ficção
tradicional e estruturada, representante do poder, do bom gosto e do status
quo. A fala do personagem deverá apresentar um contraste radical com a
linguagem do capítulo anterior. Não há hesitação - a narrativa é ponderada,
persuasiva e razoável. Gotelieb domina a retórica e manobra com
propriedade o mundo em que está. Como dono de um clube noturno em
Berlim e o chefe de uma rede de tráfico e prostituição, sua figura é a do
arrendador do hedonismo contemporâneo, o capitalista que lucra com a
subversão, aquele que instrumentaliza os sonhos, a imaginação e a
juventude.
Gotelieb narra a tragédia em Wriezener dentro de uma sala no
complexo prisional de Justizvollzugsanstalt Plötzensee. A morte de centena
de jovens em um clube berlinense obteve a atenção dos principais canais
midiáticos do planeta, e o personagem o relata de modo igualmente
jornalístico, mimetizando um discurso distanciado dos noticiários. Em
seguida, discute os meandros jurídicos de um longo processo forense, e
parte para uma autodefesa orquestrada, procurando inocentar-se e
culpabilizar o filho por todo o ocorrido. O discurso apresentará a ambiguidade
oratória que pinta um Dionísio ao mesmo tempo perverso e perturbado,
descrevendo de modo detalhado o efeito da droga mortífera que este utilizou
para substituir a recreativa quetamina, muito consumida nos clubes
berlinenses, pela conium maculatum, ou a cicuta, que começa a produzir
transtornos digestivos nos jovens, seguidos de náuseas, dores de cabeça,

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vertigem, parestesias, queda da temperatura do corpo, convulsões, paralisia
muscular generalizada e parada cardíaca. Derramando algumas lágrimas de
calculada piedade pelo filho, Gotelieb insiste na necessidade de encontrar o
foragido homicida, verdadeiro responsável pela tragédia.

iii. Dionísio

Segundo Jean-Pierre Vernant, são três os deuses estrangeiros da


mitologia grega: Ártemis, Medusa e Dionísio. São estes os deuses
mascarados, aqueles figurados por uma simples máscara ou em cujo culto
são utilizadas máscaras, sejam votivas ou conduzidas pelos celebrantes:

"Trata-se, essencialmente de três Poderes do além: Gorgó (a górgona


Medusa), Dioniso e Ártemis. Que traços comuns a estes Poderes, por
diferentes que sejam, aparentam-no à região do sobrenatural que a máscara
tem por vocação exprimir? A hipótese é que, segundo modalidades próprias
a cada um, todos se relacionam ao que denominarei aqui, à falta de melhor,
alteridade; eles dizem respeito à experiência que os gregos tiveram do Outro,
nas formas que lhe atribuíam." (Vernant, Com a morte nos olhos, pp.11-12)

A máscara terrível da Medusa traduziria a extrema alteridade. O não-


humano, o monstruoso, o "absolutamente outro, o indizível, o impensável".
Estar diante de Górgona é defrontar-se com a morte - morte nos olhos, que
transformam os viventes em pedra imóvel, "glacial, cega, mergulhada em
trevas".
Ártemis, por sua vez, ao mesmo tempo caçadora e jovem donzela,
eterna virgem, a deusa já está presente no panteão grego no século XII antes
da nossa era. Deusa estrangeira e tipicamente grega, ela é a senhora dos
lugares selvagens e da selvageria da juventude. "Que todas as montanhas
sejam minhas", afirma no "Hino" de Calímaco. Ela está nos confins do
território, em terras não cultivadas. Nas orlas e zonas costeiras, entre a terra
e a água, em limites imprecisos:

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"Mais que de um espaço de total selvageria, representando uma
alteridade radical em relação à cidade e a suas terras humanizadas, trata-se
dos confins, das zonas limítrofes, das fronteiras onde o Outro se manifesta no
contato que regularmente se mantém com ele, convivendo o selvagem e o
cultivado, em oposição, é verdade, mas também em interpenetração."
(Vernant, Com a morte nos olhos, p.18)

E qual seria a alteridade representada por Dionísio?

"Temos aqui, em plena vida, nesta Terra, a súbita intrusão de algo que
nos afasta da existência quotidiana, do andamento normal das coisas, de nós
mesmos: o disfarce, a mascarada, a embriaguez, a representação, o teatro,
enfim o transe, o delírio do êxtase. Dioniso ensina ou obriga a ser outro, e
não mais o que se é normalmente, a enfrentar, já nesta vida, aqui embaixo, a
experiência de evasão para uma desconcertante estranheza." (Vernant, Com
a morte nos olhos, p.13)

Dionísio é o mais mundano dos deuses, o que mais se aproxima dos


homens e o mais generoso com eles. Sua alteridade é a da alegria
transfigurante, da juventude eternizada, o da sabedoria da loucura. Dionísio
restitui a relação entre o homem e a natureza, e devolveu ao mundo o
apagamento das castas. O deus é aquele que aproxima os homens de
distintas origens e dilui nos rituais da primavera o abismo das diferenças. Em
"A visão dionisíaca do mundo", Nietzsche irá afirmar:

"Voluntariamente a terra traz os seus dons, as bestas mais selvagens


aproximam-se pacificamente: coroado de flores, o carro de Dioniso é puxado
por panteras e tigres. Todas as delimitações e separações de casta, que a
necessidade (Not) e o arbítrio estabeleceram entre os homens, desaparecem:
o escravo é homem livre, o nobre e o de baixa extração unem-se no mesmo
coro báquico. Em multidões sempre crescentes o evangelho da “harmonia
dos mundos” dança em rodopios de lugar para lugar: cantando e dançando
expressa-se o homem como membro de uma comunidade ideal mais alta: ele
desaprendeu a andar e a falar. Mais ainda: sente-se encantado e se tornou

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realmente algo outro. Assim como as bestas falam e a terra dá leite e mel,
também soa a partir dele algo sobrenatural. Ele se sente como deus: o que
outrora vivia somente em sua força imaginativa, agora ele sente em si
mesmo. O que são para ele agora imagens e estátuas? O homem não é mais
artista, tornou-se obra de arte, caminha tão extasiado e elevado como vira
em sonho os deuses caminharem. O poder artístico da natureza, não mais o
de um homem, revela-se aqui: uma argila mais nobre é aqui modelada, um
mármore mais precioso é aqui talhado: o homem."

Por seus atributos ideias, Dionísio não pode ser representado como um
simples personagem, mas como uma força que atravessa os personagens,
uma entidade que conserva sempre sua distância em movimento. Por isso,
em Dionísio em Berlim, ele é objeto da linguagem das pessoas que tiveram
experiências dionisíacas e que, por isso, viram-se encarnadas pelo deus.
Estrangeiras, todas parecem buscar as palavras para nomear uma dimensão
sempre imanente e alheia: a de tornar-se outro, a de invocar o Unheimliche
("Inquietante estranheza", ou "familiar estranheza") que nos habita.

f. O que pretende alcançar com a realização do projeto? E qual o perfil de


público-alvo?

O projeto resultará em um romance de aproximadamente 150 páginas.


O público-alvo é o do leitor adulto interessado ou atento à produção literária
brasileira. O livro se inscreve também nas chamadas "literaturas de viagem",
uma tradição tão antiga quanto a própria literatura.

g. Objetivo do projeto e descrição do público-alvo; Quando será realizado?

O objetivo do projeto é a publicação de um romance do autor, e o


público-alvo será o do brasileiro ou estrangeiro lusófono que goste de ler.
Será realizado dentro do prazo estipulado pelo presente edital, a partir do
anúncio do resultado do concurso.

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h. Cronograma de trabalho, conforme o prazo máximo previsto neste Edital;

Tempo Progresso do Trabalho


1o mês Parte I - A bailarina argentina
2o mês Parte II - O segurança turco
3o mês Parte III - O militante palestino
4o mês Parte IV - O traficante angolano
5o mês Parte V - O proprietário alemão
6o e 7o mês 1a revisão
8o e 9o mês 2a revisão
10o mês Revisão Final e Entrega do Original

i. Contrapartida: Proposta de Contrapartida; Plano de Divulgação do projeto,


caso houver; (p. 20)

O autor participará de múltiplas ações literárias, caso seja convidado, da


agenda de atividades da Biblioteca de São Paulo e/ou cidades do interior do
estado, a ser definida pela UBL, em formato de bate-papo, oficinas ou outros.
Ademais, compromete-se, caso convidado, a participar de todas as
entrevistas e bate-papos nos espaços literários ao qual está habituado, como
unidades do Sesc-SP e Casa Haroldo de Campos - Casa das Rosas.
O autor se compromete também a disponibilizar o texto original em uma
plataforma virtual, sob formatos variados para que possa ser lido em
computadores, tablets ou mesmo impressos.
Quando da publicação do romance, o autor negociará com a editora a
doação e distribuição de 200 exemplares para bibliotecas municipais e
centros de cultura.
Por fim, o autor compromete-se a participar de atividades culturais
específicas vinculadas à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo, de
acordo com o interesse da Secretaria.

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