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Teoria das Relações

Internacionais I
Prof.ª Mariana Balau Silveira

Indaial – 2020
1a Edição
Copyright © UNIASSELVI 2020

Elaboração:
Prof.ª Mariana Balau Silveira

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

R587t

Silveira, Mariana Balau

Teoria das relações internacionais I. / Mariana Balau


Silveira. – Indaial: UNIASSELVI, 2020.

168 p.; il.

ISBN 978-65-5663-158-5
ISBN Digital 978-65-5663-159-2

1. Relações internacionais. – Brasil. Centro Universitário


Leonardo Da Vinci.
CDD 327

Impresso por:
Apresentação
O avanço da tecnologia, principalmente na área da comunicação,
aproximou pessoas, empresas e países. Se antes do advento da internet a
forma mais tradicional de se comunicar eram as cartas, que poderiam
levar meses para chegar ao seu destinatário, hoje, em questão de segundos,
podemos nos comunicar por vídeo e voz em alta definição com qualquer
pessoa no mundo. Essa facilidade tornou mais evidente o impacto das
relações internacionais em nossa vida cotidiana.

Eventos que ocorrem do outro lado do mundo são rapidamente


noticiados e seus impactos, positivos e negativos, são rapidamente
sentidos. Guerras entre Estados, guerras civis, crises econômicas e relações
de cooperação são parte do vocabulário de qualquer grande jornal em
circulação, grandes empresas, organizações internacionais e até indivíduos.
Grande parte daquilo que vestimos, comemos e usamos dependeu em
alguma medida das relações internacionais. Esse fenômeno, portanto, é parte
indissociável de nosso cotidiano, mesmo que não percebamos.

Sem dúvida, as relações internacionais estão presentes, direta ou


indiretamente, em nosso dia a dia. Seria possível afirmar que, em 1973, o
preço de uma passagem de ônibus em qualquer grande cidade do mundo
sofreu aumento por conta da guerra do Yom Kippur, na Península do
Sinai? Um analista internacional diria que sim. Isso ocorre porque uma
das consequências do conflito foi o choque do petróleo, que desencadeou
um aumento exponencial do preço do barril do petróleo. Da mesma forma,
quando viajamos e passamos por grandes aeroportos em qualquer lugar do
mundo podemos notar um rígido esquema de segurança e monitoramento,
consequência dos ataques terroristas às Torres Gêmeas, no dia 11 de
setembro de 2001, nos Estados Unidos. Ao longo da história, eventos de
caráter internacional têm moldado Estados e sociedades no mundo todo.

Tal como nos exemplos anteriores, o mundo atual é permeado


por situações nas quais diversos atores interagem, produzindo efeitos
estruturais e locais. A tarefa de um analista internacional, aquele que se
dedica a compreender e explicar fenômenos internacionais a partir de
teorias e conceitos próprios, é decifrar um quebra-cabeça que, aos olhos de
leigos, parece não ter sido feito para ser montado. Assim, destarte, este livro
apresenta uma distinção fundamental entre os fenômenos internacionais e o
campo formal do saber dedicado a estudá-los.

A primeira unidade é dedicada à reflexão sobre os pensadores


clássicos da corrente realista e à análise da evolução da teoria ao longo dos
anos e das críticas aos seus pressupostos a partir de seus limites na análise do
internacional.
A segunda unidade do livro é focada na apresentação da teoria liberal
clássica, de seus sucessores e da reflexão liberal acerca da interdependência
em um mundo globalizado. A terceira e última unidade, por fim, reflete sobre
o marxismo nas Relações Internacionais; inicialmente, a partir da análise dos
princípios centrais do marxismo na Sociologia, do conceito de imperialismo
em Lênin e, por fim, da observação da teoria da dependência como uma
vertente marxista nos trópicos.

A disciplina Teoria das Relações Internacionais I representa um


sucinto, mas importante relato de como o campo das Relações Internacional
se desenvolveu até o final da Guerra Fria, acompanhando as transformações
profundas da política internacional e a necessidade de compreendê-las em
seu conjunto.

Bons estudos!

Prof.ª Mariana Balau Silveira

NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto para
você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há novi-
dades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova diagra-
mação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também contribui
para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilida-
de de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assun-
to em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!
LEMBRETE

Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela


um novo conhecimento.

Com o objetivo de enriquecer seu conhecimento, construímos, além do livro


que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você
terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complemen-
tares, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento.

Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada!


Sumário
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS....................................... 1

TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO............................................................................................ 3


1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................................... 3
2 POR QUE ESTUDAR AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS? O SURGIMENTO DO .
CAMPO E A EVOLUÇÃO DA DISCIPLINA ATRAVÉS DOS DEBATES TEÓRICOS......... 5
3 O REALISMO EM MAQUIAVEL.................................................................................................... 11
4 O LEVIATÃ DE HOBBES E A SEGURANÇA NA VIDA EM SOCIEDADE........................... 13
RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 17
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 18

TÓPICO 2 — O REALISMO POLÍTICO........................................................................................... 21


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 21
2 A TEORIA REALISTA EM LINHAS GERAIS.............................................................................. 21
3 O REALISMO CLÁSSICO DE CARR ........................................................................................... 25
4 MORGENTHAU E A POLÍTICA ENTRE AS NAÇÕES............................................................. 27
RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 31
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 32

TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL......................................... 35


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 35
2 O NEORREALISMO EM WALTZ................................................................................................... 35
3 O REALISMO OFENSIVO EM MEARSHEIMER....................................................................... 39
4 OS LIMITES DA TEORIA REALISTA E SEUS CRÍTICOS....................................................... 45
LEITURA COMPLEMENTAR............................................................................................................. 48
RESUMO DO TÓPICO 3..................................................................................................................... 52
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 53

REFERÊNCIAS....................................................................................................................................... 55

UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS.............................. 57

TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO................................................................................... 59


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 59
2 A TRADIÇÃO LIBERAL NO PENSAMENTO POLÍTICO: O CONTRATUALISMO
DE JOHN LOCKE ............................................................................................................................. 60
3 A TEORIA POLÍTICA LIBERAL DE ROUSSEAU ...................................................................... 63
4 O PENSAMENTO DE KANT E A PAZ PERPÉTUA.................................................................... 65
5 O IDEALISMO WILSONIANO E A CRIAÇÃO DO CAMPO
DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS............................................................................................. 68
RESUMO DO TÓPICO 1..................................................................................................................... 73
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 74
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL
E NEOLIBERAL............................................................................................................ 77
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 77
2 OUTRAS VARIÁVEIS DO PENSAMENTO LIBERAL ............................................................. 77
3 A INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXA NA CONTEMPORANEIDADE............................... 81
3.1 O ESTUDO DA COOPERAÇÃO NO INSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL................... 84
3.2 O DEBATE NEO-NEO.................................................................................................................. 90
RESUMO DO TÓPICO 2..................................................................................................................... 94
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................... 95

TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO..................................................................... 99


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................... 99
2 LIBERALISMO SOCIOLÓGICO.................................................................................................. 100
3 FUNCIONALISMO E NEOFUNCIONALISMO........................................................................ 102
4 A SOCIEDADE CIVIL GLOBAL NO CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO......................... 107
LEITURA COMPLEMENTAR........................................................................................................... 111
RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 116
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 117

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 119

UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS................................. 121

TÓPICO 1 — A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS.................................................... 123


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 123
2 PRESSUPOSTOS GERAIS DO MARXISMO............................................................................. 125
3 O IMPERIALISMO EM LENIN E A INTERPRETAÇÃO DO INTERNACIONAL............. 129
RESUMO DO TÓPICO 1................................................................................................................... 134
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 135

TÓPICO 2 — A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS............................................................................ 137
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 137
2 O MARXISMO NO LESTE EUROPEU: A TEORIA CRÍTICA DA
ESCOLA DE FRANKFURT............................................................................................................. 137
3 A ANÁLISE DA ORDEM MUNDIAL PELA TEORIA NEOGRAMSCIANA ..................... 140
4 ABORDAGENS DO SISTEMA-MUNDO................................................................................... 143
RESUMO DO TÓPICO 2................................................................................................................... 147
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 148

TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS........................................................................... 149


1 INTRODUÇÃO................................................................................................................................. 149
2 A TEORIA DA DEPENDÊNCIA ................................................................................................... 150
3 LIMITES E POTENCIALIDADES DA TEORIA MARXISTA NA ANÁLISE
DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS ....................................................................................... 154
LEITURA COMPLEMENTAR........................................................................................................... 156
RESUMO DO TÓPICO 3................................................................................................................... 165
AUTOATIVIDADE............................................................................................................................. 166

REFERÊNCIAS..................................................................................................................................... 167
UNIDADE 1 —

O REALISMO NAS RELAÇÕES


INTERNACIONAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• aprender a tradição teórica mais convencional do campo de Relações


Internacionais: o Realismo;

• conhecer importantes aspectos concernentes aos conflitos que derivam da


relação entre indivíduos e seu impacto na dinâmica estatal;

• entender os conceitos centrais do denominado Realismo Político;

• discutir o realismo ofensivo de John Mearsheimer.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – O REALISMO CLÁSSICO

TÓPICO 2 – O REALISMO POLÍTICO

TÓPICO 3 – O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos


em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá
melhor as informações.

1
2
TÓPICO 1 —
UNIDADE 1

O REALISMO CLÁSSICO

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico será abordada a tradição teórica mais convencional do


campo de Relações Internacionais: o Realismo. Essa teoria foi influenciada por
diversos pensadores ao longo da história, em sua maioria pessimistas em relação
a natureza humana e a possibilidade de harmonia entre indivíduos e Estados na
política internacional.

ATENCAO

Atenção à influência da interdisciplinaridade na formação do campo, pois


vários autores clássicos do pensamento realista – como Hans Morgenthau e Edward H.
Carr – lançaram mão de pensamentos desenvolvidos por autores da Ciência Política, do
Direito e da Filosofia.

As origens clássicas do pensamento realista remontam à Grécia Antiga,


aos escritos de Tucídides (460 - 400 a.C.) sobre a Guerra do Peloponeso, nos quais
analisou os processos que culminaram no conflito entre Atenas e Esparta. Suas
reflexões foram fundamentais para a compreensão das dinâmicas políticas entre
grandes potências e dos princípios de justiça. O quadro a seguir apresenta um
fragmento de História da Guerra do Peloponeso, na edição de 1972, que ilustra seu
pensamento sobre o princípio da justiça:

3
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

QUADRO 1 – O PADRÃO DE JUSTIÇA EM TUCÍDIDES

O padrão de justiça depende da igualdade de poder para coagir e, de fato, os


fortes fazem o que tem o poder de fazer e os fracos aceitam o que têm de aceitar...
essa é a regra certa – enfrentar seus iguais, se comportar em consideração aos
seus superiores e tratar seus inferiores com moderação. Reflita sobre o assunto
e depois que formos embora deixe esse ponto ser recorrente em suas mentes –
discutam acerca do destino de seu país, vocês só têm um Estado e seu futuro
depende, mal ou bem, dessa única decisão que vocês tomarão.

FONTE: Tucídides (1954 p. 406)

Conforme será possível perceber, esta orientação de Tucídides se tornaria


fundamental para o desenvolvimento da interpretação realista clássica no campo
de Relações Internacionais. Séculos mais tarde, Maquiavel e Hobbes discorreram
sobre importantes aspectos concernentes aos conflitos que derivam da relação
entre indivíduos e seu impacto na dinâmica estatal.

Dessa forma, anterior à discussão sobre as teorias realistas em si, o capítulo


procederá com uma breve discussão a respeito dos pensamentos de Maquiavel
e Hobbes sobre a natureza humana para que fique clara a sua influência no
pensamento realista de Relações Internacionais. Vale lembrar que, por uma
questão temporal e formal, esses autores não podem ser considerados realistas
do campo das Relações Internacionais, mas são indispensáveis para a formulação
dos pressupostos teórico-conceituais e metodológicos dessa teoria.

Em seguida, será discutido o Realismo Político de Edward H. Carr e Hans


Morgenthau, fundamental para a evolução do pensamento teórico do campo
em meados do século XX. A unidade é encerrada com a exposição das ideias de
Kenneth Waltz, expoente da vertente neorrealista das Relações Internacionais, e
de John Mearsheimer, responsável por prover as bases do realismo ofensivo no
campo. À guisa de conclusão será apresentado um conjunto de críticas à teoria
realista a partir de suas limitações explicativas.

DICAS

Um site útil para pesquisa de artigos e documentos sobre a política


internacional e as relações internacionais do ponto de vista clássico é o endereço da
Columbia International Affairs: https://cup.columbia.edu/reference/ciao.

4
TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO

2 POR QUE ESTUDAR AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS? O


SURGIMENTO DO CAMPO E A EVOLUÇÃO DA DISCIPLINA
ATRAVÉS DOS DEBATES TEÓRICOS
A separação entre campo e objeto nas Relações Internacionais deve ser
levada em conta sempre que o interlocutor desejar referir-se a este ou àquele
domínio. Dessa forma, quando nos referimos às relações internacionais (com
iniciais minúsculas), estamos nos debruçando sobre acontecimentos e fenômenos
que existem e interagem no sistema internacional. Relações Internacionais (com
iniciais maiúsculas), por outro lado, diz respeito ao campo acadêmico, com suas
teorias, métodos e conceitos próprios.

A necessidade de compreensão do internacional não é nova. A criação do


campo remonta ao final da Primeira Guerra Mundial, em 1919. O contexto era
de devastação, principalmente no continente europeu, e um dos objetivos dos
líderes e acadêmicos à época era, além de compreender o que ocorrera, evitar
futuros conflitos da mesma proporção. A guerra mostra aos tomadores de decisão
e aos estudiosos em geral que os esforços acadêmicos vigentes à época eram
insuficientes caso se objetivasse a extinção de conflitos entre nações. Uma das
personalidades históricas mais relevantes nesse contexto foi Woodrow Wilson,
então presidente norte-americano, principalmente no contexto das negociações
do Acordo de Paz em Versalhes.

Wilson levou para as negociações 14 pontos que, em sua visão, seriam


fundamentais para a reconstrução da ordem internacional, baseada em princípios
de paz, cooperação internacional e transparência, amparados pelos instrumentos
do direito internacional, materializados em uma associação geral de nações
(sob pactos específicos com o propósito de fornecer garantir garantias mutuas
de independência política e integridade territorial) para todos os Estados. Essa
associação foi criada em 20 de junho de 1919, em Genebra, na Suíça e ficou
conhecida como Liga das Nações.

TUROS
ESTUDOS FU

A Liga das Nações, sua importância e papel na promoção da cooperação


e paz internacionais, será objeto de discussões mais aprofundadas na Unidade 2 deste
Livro Didático.

Para além da criação da Liga das Nações, o legado de Wilson concretizou


a criação de um campo específico dedicado ao estudo das relações internacionais.
O marco formal desse processo foi a criação da cátedra Woodrow Wilson na
5
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Universidade de Aberystwyth, no país de Gales, em 1919. A criação da cátedra,


contudo, não significou que estudos sobre o internacional não ocorriam antes
de 1919. As tentativas de compreensão e explicação dos fenômenos na arena
internacional estavam fragmentadas na Ciência Política, Sociologia, Antropologia
e Direito. O novo campo que surgia no século XX era, portanto, ponto de encontro
de diversas ciências sociais, o que faz deste privilegiado e interdisciplinar. Mas o
que seria um campo interdisciplinar?

Muitas vezes se usa de forma intercambiável os conceitos de


“interdisciplinar” e “multidisciplinar”. Embora estes guardem similaridades, não
são exatamente iguais. Um estudo multidisciplinar consiste em um engajamento
orientado em torno de diversos eixos temáticos pertencentes a diversos campos
formais do saber. Um estudo interdisciplinar, por outro lado, lança mão de
teorias, conceitos e saberes provenientes de diversos campos, mas com o objetivo
de criar um saber próprio e emancipado dos campos dos quais deriva.

ATENCAO

Embora o campo de Relações Internacionais tenha produzido conhecimentos


novos, os estudiosos dessa área não devem desconsiderar os saberes dos campos correlatos
como Direito, Economia, Sociologia, Antropologia, Ciência Política e Filosofia.

A grande evidência dessa interdisciplinaridade é vista na evolução da


disciplina através de seus debates teóricos próprios. As teorias das Relações
Internacionais têm como objetivo final formular métodos e conceitos que deem
ao analista a possibilidade de compreensão da natureza e do funcionamento do
sistema internacional, além de auxiliar na explicação de fenômenos importantes
que moldam a política internacional.

Vale destacar que todas as teorias de Relações Internacionais são


influenciadas pelo contexto histórico em que estão inseridas, não significando
que são aplicáveis apenas àquele contexto. Do ponto de vista metodológico,
a função das teorias de RI seria, entre outras, prover generalizações das quais
podem derivar conclusões específicas. Desse modo, as teorias servem como
“lentes” a partir das quais se observa a realidade e se busca compreender suas
especificidades, nuances e processos.

A história convencional, contada a respeito da evolução do campo


das Relações Internacionais, é estruturada em torno daquilo que acadêmicos
denominam debates entre proposições teóricas. É importante ressaltar que esses
debates não ocorreram da forma convencional, na qual dois interlocutores, com
proposições distintas, ficam frente a frente, e tentam convencer uma audiência
6
TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO

da adequação de seu ponto de vista. Os debates no campo das RI, na verdade,


se deram entre autores e autoras que publicaram artigos acadêmicos e livros nos
quais apresentavam suas proposições teóricas, bem como suas respectivas forças
analíticas após terem demonstrado a insuficiência de uma outra proposição teórica
de satisfazer as demandas da busca pelo conhecimento no campo recém-formado.

Nesse sentido, a historiografia do campo convencionalmente afirma que


houve quatro grandes debates desde 1919. O primeiro diz respeito à contraposição
entre os pensamentos do denominado “Idealismo” ou “Liberalismo Utópico” e
o “Realismo Clássico” e teria ocorrido entre 1919 e meados da década de 1950.
Conforme abordado anteriormente, os horrores da Primeira Guerra Mundial
desempenharam papel importante na avaliação dos acadêmicos da época de que
um campo de conhecimento distinto das Ciências Sociais deveria ser criado para
compreender as calamidades daquele conflito, além de evitar eventos semelhantes.

NOTA

Historiografia é uma palavra que designa o registro escrito da história, a


memória estabelecida pela humanidade e a ciência da história. Em suma, é uma história
sobre a História. Nesse sentido, entender a historiografia do campo é relevante na medida
em que oferece uma visão ampla sobre a evolução dos estudos acadêmicos em dada área.

É importante ressaltar que a Primeira Guerra teve batalhas que provocaram


mais de 100.000 baixas – como na Batalha de Somme, na França, entre julho e
agosto de 1916, que ficaria conhecida como um “holocausto sangrento”. Por que
a guerra começou? Por que potências como Grã-Bretanha, França, Alemanha,
Rússia, Áustria e Turquia prosseguiram a batalha mesmo diante de tamanha
brutalidade e letalidade dos confrontamentos?

A primeira corrente teórica conhecida no campo, influenciada por valores


liberais de Kant, Locke e outros, concluíra que a guerra não foi travada porque
os generais ou tomadores de decisão erraram em seus julgamentos a respeito de
suas forças ou sob prognóstico da guerra, tampouco deveria se atribuir as causas
do conflito a razões egoístas desses líderes.

Os teóricos dessa corrente afirmavam que o conflito poderia ser


compreendido através da ausência de instituições democráticas em alguns países
que pudessem pressionar generais ou líderes autoritários a não tomar decisões
que pudessem levar as suas populações e sociedades à guerra. Apoiados na
ideia de paz democrática em Kant, os teóricos liberais afirmavam que os países
democráticos foram dragados para o conflito que seria inevitável. Dentre os
7
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

expoentes mais proeminentes dessa corrente teórica, destacam-se o ex-presidente


dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, e o cientista político Norman Angell. A
grande influência do pensamento liberal pode ser vista na criação da Liga das
Nações, que tinha em seu artigo 16 seu elemento central, pois dava à instituição
o poder de aplicar sanções econômicas ou militares contra um Estado que
ameaçasse a ordem e a paz internacionais.

O projeto liberal, sintetizado na Liga das Nações, contudo, não conseguiu


cumprir seu objetivo fundamental: evitar guerras. Como é sabido, a Segunda
Guerra Mundial não só interrompeu o projeto de Wilson, como foi ainda mais
letal e cruel que a Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, a partir das limitações
e incapacidades do projeto liberal em responder às perguntas norteadoras da
criação do campo àquela época e manter a ordem internacional pacífica, surge
um grupo de acadêmicos que colocava em xeque a ideia de que as causas da
guerra residiriam na ausência de democracia em alguns Estados.

Fortemente influenciados por filósofos políticos clássicos como Maquiavel,


Hobbes e Tucídides, esses acadêmicos resgatavam a centralidade do poder
enquanto elemento explicativo das interações entre Estados no plano internacional,
além disso, denunciavam o caráter idealista do pensamento Wilsoniano. Edward
H. Carr, acadêmico britânico, escreveu aquela que talvez seja a crítica mais dura
à visão liberal. Denominando-os de “idealistas utópicos”, Carr afirmou em sua
obra Vinte Anos de Crise, escrita em 1939, que esses pensadores teriam falhado em
compreender alguns fatos da história e, com isso, não foram capazes de apresentar
explicações satisfatórias a respeito da natureza das relações internacionais.

ATENCAO

Lembre-se de que há uma diferença entre Relações Internacionais e relações


internacionais. O primeiro, com iniciais em maiúsculo, diz respeito ao campo formal do
saber, enquanto o segundo, com iniciais em minúsculo, diz respeito às interações que
ocorrem no ambiente internacional.

Para Carr (1939) era um equívoco acreditar que as interações entre os


Estados poderiam ter como base uma harmonia de interesses. O autor afirmava
que o ponto de partida mais adequado para se compreender a relação entre
Estados era, na verdade, o oposto: o analista deveria partir do princípio de que
existem intensos e irreconciliáveis conflitos de interesse tanto entre países, quanto
entre indivíduos dentro de um país. Assim, ficaria evidente que alguns Estados
teriam mais condições/capacidades que outros e que, dessa forma, buscarão
preservar e manter essa situação. Já aos Estados que se encontram em posições
desprivilegiadas de condições e capacidades não restaria alternativa senão lutar
para mudar essa situação.
8
TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO

As relações internacionais seriam, portanto, uma constante luta por


poder, de modo que a cooperação apenas poderia ocorrer em breves períodos
e jamais em temas considerados relevantes e fundamentais pelos Estados, tais
como a dimensão militar, geopolítica e partes essenciais de suas respectivas
economias. A incapacidade dos liberais em apreender esse que seria o princípio
básico e mais fundamental das relações internacionais é o que motivou Carr
a classificá-los enquanto utópicos e, em contrapartida, a autodenominar sua
posição como “realista”.

Outro expoente do pensamento realista político foi Hans Morgenthau,


que, fugindo do regime nazista, se mudou para os Estados Unidos na década de
1930 e levou a corrente realista para esse país. Seu livro Política entre as nações: a
luta pelo poder e pela paz, publicado em 1948, foi durante muitas décadas o livro
mais influente das Relações Internacionais. Para Morgenthau (1985), a natureza
humana seria a base das relações internacionais. Sua compreensão seria, portanto,
fundamental. Como os seres humanos, na visão do autor, buscam sempre realizar
seus interesses e aumentar seu poder, a violência é um recurso constantemente
utilizado. Essa abordagem é baseada no pensamento clássico de Thomas Hobbes.

É importante destacar que o pensamento realista desafiou também um


pressuposto fundamental dos construtos liberais: de que a pressão popular poderia
evitar conflitos. Vale lembrar que tanto Hitler quanto Mussolini, possuíam amplo
apoio popular mesmo em seus piores projetos de dominação: a eliminação de
judeus e de minorias em geral. Nesse sentido, mais uma vez, a temática relevante
e central das Relações Internacionais seria o conflito, não a cooperação.

A historiografia do campo acredita que o primeiro grande debate foi


“vencido” por Carr, Morgenthau e outros expoentes do pensamento realista. A
Segunda Grande Guerra Mundial foi uma evidência empírica muito forte em
favor dos argumentos realistas, enquanto colocou em xeque alguns argumentos
liberais. Isso não significou, contudo, o desaparecimento da perspectiva liberal.
Muito embora, alguns liberais tenham admitido que as proposições realistas eram
mais adequadas à compreensão daquele contexto, afirmavam que as décadas de
1930 e 1940 teriam representado um período extremamente anormal na história.

O pós-Segunda Guerra, apesar de trazer a disputa por influência


entre estadunidenses e soviéticos, também observou a criação de instituições
internacionais com diversos propósitos, incluindo a cooperação entre as duas
grandes potências da época em alguns casos.

O período também foi palco da emergência do segundo grande debate


no campo das Relações Internacionais. Esse debate, contudo, não foi de ordem
estritamente teórica, sendo amplamente conhecido como um debate metodológico.
A sua compreensão é possível quando lançamos mão novamente da historiografia
e entendemos quem eram os principais expoentes de cada vertente teórica. É
evidente que os primeiros teóricos do campo não tinham formação específica
na área de Relações Internacionais, visto que a disciplina havia sido criada há

9
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

pouco e, até aquele momento, era um amálgama de teorias advindas das mais
diversas áreas das humanidades, como História, Jornalismo, Filosofia, Direito etc.
As teorias do primeiro debate, por consequência, tinham um caráter descritivo e
baseado em pressupostos históricos e disso derivavam as suas escolhas em termos
metodológicos, voltadas ao entendimento dos fenômenos internacionais. Em
virtude dessas características, as primeiras contribuições teóricas são conhecidas
como “tradicionalistas”, ou “clássicas”.

O campo evoluiu ao longo do século XX em direção ao recrudescimento de


um programa de pesquisa específico em Relações Internacionais, principalmente
nos Estados Unidos. Nesse contexto cresce o número de cientistas que se opunham
ao tradicionalismo no campo e acreditavam ser necessária a formulação de
teorias objetivas e passíveis de validação, à semelhança da tendência behaviorista
nas Ciências Sociais e na Ciência Política. Segundo essa abordagem, a pesquisa
científica em RI deveria focar na explicação de fatos observáveis e isolar ao
máximo os valores e a moralidade, contrapondo o tradicionalismo.

Não é possível afirmar que houve um “vencedor” do segundo debate nas


Relações Internacionais, uma vez que tanto tradicionalistas quanto behavioristas
evoluíram teórica e metodologicamente, e suas ferramentas de análise permanecem
válidas para o entendimento de vários fenômenos da política internacional, a
depender das variáveis centrais (sejam elas poder, interesse, moralidade, valores
etc.). Ainda assim, o behaviorismo teve proeminência uma vez que a disciplina,
principalmente após a Segunda Guerra Mundial, foi dominada pela academia
norte-americana.

O terceiro debate foi marcado por uma contraposição de duas abordagens


dominantes no campo: o neorrealismo e o Institucionalismo Neoliberal, e ficou
conhecido como “debate neo-neo” ou, ainda, “debate interparadigmático”. O
contexto de emergência de ambas as abordagens (anos 1970 e 1980) foi marcado
pela evolução das relações internacionais em direção ao aumento do fluxo de
comércio, investimentos e interação entre Estados, indivíduos e organizações em
geral. Nesse sentido, um dos objetivos dos teóricos liberais era evitar o idealismo
excessivo das abordagens anteriores e oferecer uma contribuição pragmática e
racional para a explicação dos fenômenos da política internacional.

E
IMPORTANT

Muito embora esse debate tenha sido conhecido como interparadigmático


– “entre paradigmas” – conforme veremos na Unidade 3, apenas a posição Radical era de
fato um paradigma distinto do ponto de vista metateórico dos demais. Tanto neorrealistas
quanto neoliberais partem de noções semelhantes, como a ideia do Estado como principal
ator das Relações Internacionais e a possibilidade de explicação da política internacional a
partir de noções de causa-efeito.

10
TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO

Os neorrealistas, por sua vez, retomavam a discussão sobre a centralidade


do poder estatal, previamente elencada pelos clássicos, mas se distanciavam
(influenciados pelo behaviorismo) de explicações baseadas em valores ou na
natureza do indivíduo.

Ao contrário, para essa escola de pensamento, a estrutura anárquica do


sistema internacional, aliada àquilo que era considerado o objetivo primário de
todo Estado (a sua sobrevivência), criavam as condições que tornavam a guerra
um recurso sempre passível de utilização por parte dos Estados na busca da
maximização de seus interesses.

Talvez a grande contribuição desse debate tenha sido os engajamentos


para o desenvolvimento de uma teoria estrutural. Conforme visto anteriormente,
o primeiro debate depositava na natureza humana grande importância, além
da possibilidade de ser alterada ou não, para prover explicações a respeito das
relações internacionais.

Os teóricos do debate neo-neo, ao contrário, buscavam evidenciar as es-


truturas e matrizes de ganhos e perdas dos Estados na compreensão da política
internacional.

Essa virada estrutural exerceu e exerce grande influência até os dias de


hoje no campo das Relações Internacionais, ainda que as diferentes abordagens
teóricas discordem sobre a natureza e a qualidade das interações que ocorrem
nessa estrutura.

Há, ainda, um conjunto de abordagens teóricas relevantes após o terceiro


debate do campo. O foco do livro, porém, será naquelas consideradas “abordagens
canônicas” dos séculos XIX e XX: Idealismo e Realismo Clássico, Neorrealismo,
Institucionalismo Neoliberal e Marxismo nas Relações Internacionais.

3 O REALISMO EM MAQUIAVEL
Nicolau Maquiavel (1469-1527) publicou, em 1513, uma obra que entraria
para a história da filosofia política. Em O príncipe, o autor sugere que o poder (o
leão) e a decepção (a raposa) seriam dois eixos de atuação da inserção internacio-
nal de qualquer país (MAQUIAVEL, 2017). O valor político supremo que qual-
quer estadista deveria preservar era o da liberdade de seu país em tomar decisões
internas e externas. Apenas com a garantia da liberdade é que um Estado poderia
garantir sua sobrevivência. Isso, contudo, orientaria os atores a buscarem poder,
pois somente o Estado mais poderoso teria uma garantia de que sua sobrevivên-
cia estaria certa. Garantir a sua sobrevivência requer astúcia e, por vezes, bruta-
lidade. A falta dessas qualidades poderia levar o Estado à morte, caso um gover-
nante não conseguisse avaliar corretamente as ameaças que cercam seu país.

11
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

FIGURA 1 – O LEÃO E A RAPOSA (PODER E DECEPÇÃO)

FONTE: <https://bit.ly/341qJ7O>. Acesso em: 25 maio 2020.

Uma das premissas centrais na obra do autor é que o mundo seria perigoso,
mas também geraria oportunidades para os estadistas. Ao mesmo tempo em que
estes devem estar cientes das ameaças que os circundam e devem agir, portanto, de
modo a minimizá-las, também devem perceber as oportunidades para maximizar
suas riquezas e poder. A expressão mais importante para um estadista seria,
portanto, “a ética da responsabilidade”. O termo alude a uma postura, por parte
do governante, na qual este deve despir-se de uma moralidade cristã ou religiosa
e olhar para o mundo e suas relações através do equilíbrio entre ganhos e perdas.

Segundo Maquiavel (2017), seria necessário que o governante também


buscasse o equilíbrio entre aquilo que denomina virtú e fortuna, ou habilidade
e sorte, respectivamente, para governar. Seu exame dos processos de conquista
e manutenção do poder político ficaram conhecidos como referências no
pensamento político e influenciaram a valorização da separação entre poder e
moralidade, centrais na abordagem realista das Relações Internacionais.

A relação entre os conceitos de virtú e fortuna se estabeleceu como um


dos problemas filosóficos mais interessantes na obra de Maquiavel. A analogia
presente na figura da deusa “Fortuna”, derivada da mitologia romana clássica,
refere-se a todas as circunstâncias que os seres humanos não podem controlar,
mas que têm influência direta no sucesso ou fracasso de um governante. Virtú,
por outro lado, diz respeito ao talento, ou habilidade direcionada à consecução
de certos objetivos e seria a qualidade mais vital para um governante. Se aplicada
corretamente, essa habilidade poderia derrotar a “fortuna”, ou seja, quaisquer
circunstâncias adversas à conquista de seus objetivos (MAQUIAVEL, 2017). No
século seguinte à publicação de O príncipe, outra interpretação realista clássica
emerge como parte da explicação do comportamento dos governantes, dessa
vez a partir de uma análise da natureza humana e do processo de construção da
sociedade: Leviatã (1651), de Thomas Hobbes.
12
TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO

4 O LEVIATÃ DE HOBBES E A SEGURANÇA NA VIDA


EM SOCIEDADE
Thomas Hobbes (1588-1679) foi um dos pensadores do denominado
Contratualismo, em adição a Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e John Locke
(1632-1704). De forma geral, esse termo diz respeito a todo um corpo teórico que
pensa a sociedade e sua origem como sendo criada através de um contrato. Como
ponto em comum, é possível apontar a recorrência de análises sobre a natureza
humana e sobre a construção de um contrato social em torno do qual as sociedades
se estruturariam. Esses pensadores, contudo, divergem em suas concepções sobre
a natureza desse contrato, qual seria o papel do Estado, do contrato social e sobre
a ontologia, ou seja, a base do estado de natureza.

Publicada originalmente em 1651, Leviatã, a sua obra mais proeminente,


apresenta uma reflexão sobre a condição anterior à vida em sociedade e ao
denominado contrato social. Essa condição era caracterizada essencialmente
pela ausência do Estado e denominada “estado de natureza”. Essa situação
era, segundo Hobbes (2009), extremamente adversa para o indivíduo, pois no
estado de natureza hobbesiano todos são ameaçados por todos e a vida está
constantemente em risco, visto que nenhum indivíduo tem a certeza de que
sua segurança e sobrevivência estão garantidas. Nesse contexto, os indivíduos
viveriam em constante medo uns dos outros.

QUADRO 2 – O ESTADO DE NATUREZA EM HOBBES

Em tal condição, não há lugar para a indústria; porque não há certeza sobre
o fruto disso e, consequentemente, nenhuma cultura do mundo, nenhuma
marinha, nenhum uso de mercadorias importadas pelo mar; nenhuma
edificação confortável... nenhuma arte; nenhuma carta, nenhuma sociedade e,
pior de tudo, o contínuo estado de medo e o medo de morte violenta; e a vida
do homem, solitária, pobre, detestável, bruta e crua.

FONTE: Hobbes (2009, p. 82)

O estado de natureza não seria caracterizado por um alto grau de


sociabilidade, mas pela primazia da guerra de “todos contra todos”. Para o autor,
nesse estado os indivíduos são tomados pela sensação de incerteza constante,
derivada da incerteza sobre a ação dos outros – nesse contexto cada um viveria
de acordo com suas próprias “paixões” e interesses (HOBBES, 2009).

Escapar desse estado de natureza e rumar para uma condição humana


civilizada, segundo Hobbes (2009), somente seria possível através da criação
de um Estado soberano, a partir de um contrato social. Ao ser criado, homens
e mulheres formariam um pacto de segurança conjunto que teria como objetivo
assegurar que suas vidas não seriam ceifadas.

13
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Uma vez constituído, o Estado teria condições de permitir o


desenvolvimento civilizacional daquela sociedade, visto que uma vez garantida
a sua sobrevivência, os indivíduos poderiam buscar maximizar seu bem-estar.

Nesse contexto, os homens submeteriam suas vontades a um único,


constituindo uma sociedade civil. Todos os cidadãos, então, passariam a obedecer
ao Estado que, em troca, lhes garantiria a paz por meio do uso da força. Ao
contrário do pensamento liberal, a liberdade seria garantida a partir do contrato
social, não existindo antes dele.

Um efeito não esperado da emergência do Estado para a garantia da


sobrevivência de seus cidadãos é, contudo, o fato de que agora estes Estados
recém-criados passariam a temer uns aos outros. Nesse sentido, o estado de
natureza que antes reinava entre os indivíduos, passa a imperar e ser condição
primária entre Estados.

A diferença é que, ao contrário dos indivíduos, os Estados não estão dis-


postos a abrir mão de sua soberania para criar um estado totalizante em nível
internacional (o que seria característico de um “Leviatã”). Isso ocorre porque o es-
tado de natureza internacional não é tão ameaçador quanto aquele em nível indi-
vidual. Diferentemente das pessoas, o Estado nunca dorme e pode mobilizar sua
sociedade para criar um constante sistema de vigilância contra ameaças externas.

Desse modo, no nível doméstico haveria uma hierarquia entre soberano e


indivíduos, garantindo segurança e estabilidade. Em nível internacional, porém,
como não há autoridade superior, os Estados interagem em uma anarquia,
análoga ao estado de natureza. Nesse cenário, os Estados não teriam outra opção
senão lutar pela sua sobrevivência.

FIGURA 2 – LEVIATÃ (1651) DE HOBBES

FONTE: <http://www.arqnet.pt/portal/teoria/leviata.html>. Acesso em: 25 maio 2020.

14
TÓPICO 1 — O REALISMO CLÁSSICO

A figura ilustra a edição original da obra Leviatã (1651). A ilustração, feita


pelo próprio autor, demonstra a emergência de um soberano construído e levado
ao poder pela sociedade, construindo um pacto de segurança entre os indivíduos.

No campo das Relações Internacionais, a visão de Hobbes é amplamente


considerada uma base para a compreensão realista da política internacional.
Embora o próprio autor não tenha dissertado sobre as relações entre os Estados em
um sistema internacional, sua obra é mencionada em quase todas as contribuições
historiográficas do campo como sendo vital para o desenvolvimento teórico do
Realismo Político no século XX.

É possível identificar duas contribuições centrais da obra de Hobbes para


o realismo político. Em primeiro lugar, a teoria de Hobbes fornece um modelo
para a análise da criação daquele que é considerado o principal ator das RIs para
o Realismo: o Estado. Segundo a visão de Hobbes (2009), ao observar às relações
entre seres humanos no “estado de natureza”, oferece uma base para a analogia
com o sistema internacional, caracterizando-o como conflituoso e marcado por
incerteza e medo.

DICAS

O filme O Senhor das Moscas (1990) retrata, de modo alegórico, uma situação
análoga ao estado de natureza hobbesiano e é uma obra interessante para o entendimento
do conceito realista de anarquia.

O quadro a seguir ilustra as questões centrais do pensamento hobbesiano,


principalmente no que diz respeito ao estado de natureza, contrato social e suas
consequências:

15
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

QUADRO 3 – PRINCIPAIS ELEMENTOS DO PENSAMENTO REALISTA EM HOBBES

Antes da criação do Estado impera a lei natural


do mais forte. O estado de natureza é aquele em
que todos se julgam com direito a tudo. Por isso,
ESTADO DE ninguém reconhece ou respeita direito algum.
NATUREZA A vida humana é nessa situação um constante
conflito e está constantemente ameaçada pela
guerra de todos contra todos. O homem seria
mau por natureza.

Ninguém, racionalmente, pode aceitar viver


numa situação em que não há garantia alguma de
continuar a viver. Para garantir certa segurança,
CONTRATO SOCIAL ordem e estabilidade, os indivíduos renunciam a
todos os seus direitos. Cedem a uma só pessoa: o
soberano, a única autoridade que pode assegurar
a ordem e paz sociais.

Estado autoritário; poder absoluto do monarca


CONSEQUÊNCIA
ou do soberano.

FONTE: A autora

16
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A Teoria Realista é a tradição mais convencional do campo das Relações


Internacionais e foi influenciada por diversos pensadores ao longo da história.

• Grande parte das abordagens realistas possui uma visão pessimista em


relação à natureza humana e à possibilidade de harmonia de interesses entre
indivíduos e Estados na política internacional.

• As origens do pensamento realista remontam à Grécia Antiga, aos escritos de


Tucídides, passam pelos séculos XVI e XVII, com as contribuições de Maquiavel
e Hobbes, e chegam à contemporaneidade nas ideias de autores como Carr,
Morgenthau, Waltz e Mearsheimer.

• A visão de Hobbes e Maquiavel sobre a relação entre os Estados parte da


primazia da luta pelo poder e pela sobrevivência em um mundo marcado pelo
egoísmo e pela ausência de uma autoridade superior.

17
AUTOATIVIDADE

1 Por que os realistas clássicos enfatizam a segurança enquanto elemento


central da política internacional?

2 Disserte sobre as principais contribuições do pensamento realista em


Maquiavel e Hobbes para o campo das Relações Internacionais.

3 Quais as diferenças entre os âmbitos doméstico e internacional para


Hobbes? O que caracteriza essas diferenças?

4 (ENADE, 2012) Ao longo do século XX, a área de Relações Internacionais


adquiriu contornos e características teóricas e conceituais próprias em
relação às demais Ciências Sociais. Na busca de autonomia e legitimidade,
os estudiosos da área, como Hans Morgenthau e Kenneth Waltz,
representantes do pensamento realista, procuraram raízes de interpretação
sobre o fenômeno internacional em autores clássicos do pensamento
social. Essa inciativa permitiu adaptar conceitos e contextos próprios de
pensadores como Tucídides (460-400 a.C.), Nicolau Maquiavel (1469-1527)
e Thomas Hobbes (1588-1679) e suas épocas às premissas e princípios
do Realismo do século XX. Da tradição herdada desses autores foram
estabelecidas algumas bases teóricas que são consideradas comuns a todos
os realistas.

NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das relações internacionais: correntes e debates. Rio
de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 21-23 (adaptado).

Considerando a herança teórica mencionada no texto, avalie as afirmações


a seguir, que tratam dos fundamentos do pensamento realista acerca das
relações internacionais.

I- As Relações Internacionais são marcadas pela busca de poder pelos


Estados, fato que gera caos permanente no sistema internacional.
II- O Estado, ator central das Relações Internacionais, ator unitário e racional,
tem como objetivo central a defesa do interesse nacional.
III- A anarquia, como princípio ordenador das Relações Internacionais, indica
a ausência da autoridade superior dos Estados, os quais são capazes de
produzir aquiescência das forças políticas.
IV- O objetivo primordial das Relações Internacionais é a manutenção da
ordem e estabilidade na relação entre Estados, por meio da disseminação
de uma identidade compartilhada entre as nações.

18
É correto o que se afirma em:
FONTE: <https://bit.ly/3776AyY>. Acesso em: 30 jul. 2020.

a) ( ) II, apenas.
b) ( ) I e IV, apenas.
c) ( ) II e III, apenas.
d) ( ) I, III e IV, apenas.
e) ( ) I, II, III e IV.

5 São características do realismo:

I- Relações internacionais vistas como uma constante luta pelo poder entre
os Estados;
II- Objetivo último de todos os Estados: garantir sua sobrevivência em um
ambiente anárquico e hostil;
III- A cooperação neste contexto: alianças são feitas e quebradas com base
na realpolitik. Para evitar tal processo, destaque é dado ao direito
internacional assim como às organizações internacionais;
IV- Os conflitos internacionais são vistos como endêmicos e inevitáveis
devido às disposições agressivas da natureza humana e às deficiências da
condição humana.

Analisando as assertivas apresentadas. Somente estão CORRETAS:


a) ( ) III, apenas.
b) ( ) I e II, apenas.
c) ( ) III e IV, apenas.
d) ( ) I, II e IV, apenas.
e) ( ) Todas estão corretas.

6 Avalie as afirmações a seguir, a respeito da natureza humana:

I- Hobbes tinha uma visão pessimista a respeito da natureza humana. A


solução para evitar que os homens vivessem em um estado de vigilância e
incerteza contínuas envolvia a criação de uma instituição superior a esses
homens.
II- Para Maquiavel, o líder deveria sempre usar a força para alcançar seus
objetivos.
III- Hobbes e Maquiavel tinham visões semelhantes a respeito da natureza
humana e das dificuldades em alterá-la. Por isso adotavam uma visão
pessimista em relação à vida em sociedade e a política em geral.

Analisando as assertivas apresentadas. Somente estão CORRETAS:

19
a) ( ) I e II, apenas.
b) ( ) I e III, apenas.
c) ( ) II e III, apenas.
d) ( ) III, apenas.
e) ( ) Todas estão corretas.

20
TÓPICO 2 —
UNIDADE 1

O REALISMO POLÍTICO

1 INTRODUÇÃO

As contribuições apresentadas no Tópico 1 ilustram, em linhas gerais, as


abordagens clássicas que estabelecem a base filosófica do pensamento realista no
campo das Relações Internacionais. Neste tópico serão discutidos os conceitos
centrais do denominado Realismo Político, que emerge no contexto entreguerras
e se estabelece, já nos anos 1950, como pensamento dominante do campo das
Relações Internacionais.

O primeiro subtópico analisa a teoria realista em linhas gerais, apontando


semelhanças e diferenças entre seus diferentes pensadores e discutindo as
premissas centrais que a caracterizam. O segundo subtópico é dedicado à
discussão do realismo político de Edward H. Carr a partir da análise de sua obra
principal: Vinte Anos de Crise (1919-1939). A crítica à noção idealista de que
haveria uma “harmonia de interesses” intrínseca à conduta dos Estados, ponto
central da obra de Carr, será enfatizada, ampliando a visão sobre as contribuições
do realismo para o campo.

O terceiro e último subtópico é destinado à análise do pensamento de


Hans Morgenthau. À semelhança de Carr, o autor dedica sua carreira à análise do
sistema internacional a partir de conceitos como “poder”, “interesse” e “anarquia
internacional”. O objetivo é estabelecer uma noção ampla das contribuições
desses autores e definir as bases teórico-conceituais para a análise das relações
entre grandes potências e de temas relacionados à segurança dos Estados.

2 A TEORIA REALISTA EM LINHAS GERAIS


Muito embora a primeira abordagem teórica do campo de Relações
Internacionais tenha sido o Liberalismo Clássico, foi o Realismo que popularizou
o campo e, mesmo sendo criticado até hoje, figura enquanto uma corrente teórica
dominante. Ainda que haja diferenças consideráveis entre as várias abordagens
realistas, há pelo menos quatro premissas comuns a elas. A primeira é que o Estado
seria o principal protagonista na política em geral. Isso não significa dizer que não
existam outros atores – tais como empresas, organismos internacionais, regimes

21
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

etc. –, que possam exercer influência na política internacional. Significa, ao invés,


que o Estado seria a unidade básica e mais elementar da política internacional e a
única que exerceria poder efetivamente.

A segunda premissa é que esse Estado seria um ator unitário. Embora seja
conhecido que os países possuem diversas burocracias e poderes internos que
podem até disputar pelo comando, no plano internacional a influência desses
atores seria drasticamente reduzida. A terceira premissa afirma que esses Estados
seriam atores racionais. As teorias realistas acreditam que as ações estatais seriam
os resultados de cálculos de custo-benefício, nos quais se procura maximizar
os ganhos e minimizar os gastos. Na racionalidade realista, porém, não seria
possível atingir um quadro de soma positiva no qual todos os atores ganhariam.
Ao contrário, o cenário seria de soma zero, no qual o ganho de um ator é visto
pelo outro como uma perda.

A quarta premissa é que a preocupação central dos Estados, em termos de


política internacional, é com a segurança. Um Estado aumenta a sua segurança
quando amplia suas capacidades estratégico-militares ou quando desenvolve
sua economia. A razão pela qual a preocupação central dos Estados é com a
segurança, se dá pelo fato de que é somente através de sua garantia que um
Estado pode sobreviver. Apenas após a garantia de sua sobrevivência esse
Estado poderia se preocupar com outras questões, como direitos humanos, meio
ambiente, questões culturais etc.

QUADRO 4 – PREMISSAS COMUNS ÀS ABORDAGENS REALISTAS EM RELAÇÕES


INTERNACIONAIS

O Estado seria o protagonista da política


internacional. Isso não significa que
PREMISSA 1: o Estado é o
não existam outros atores – o Estado
principal Ator das relações
é a unidade básica e mais elementar
internacionais
da política internacional e a única que
exerceria efetivamente o poder.
Ainda que a tomada de decisão em
política internacional possa ser resultado
de um jogo de forças doméstico,
PREMISSA 2: o Estado é ator
caracterizado pela disputa entre os
unitário
poderes e burocracias internas, no plano
internacional a influência desses atores é
reduzida.
As ações dos Estados seriam resultado de
cálculos de custo-benefício, através dos
PREMISSA 3: os Estados são
quais se procura maximizar os ganhos e
atores racionais
minimizar os gastos. O cenário seria de
soma-zero.

22
TÓPICO 2 — O REALISMO POLÍTICO

Somente através da garantia da segurança


(obtida com a ampliação de suas
PREMISSA 4: a preocupação capacidades estratégico-militares) um
central dos Estados é com a Estado pode sobreviver. Apenas após essa
segurança garantia ele poderia preocupar-se com
questões como meio ambiente, direitos
humanos etc.

FONTE: A autora

Dessas premissas partiria uma orientação geral sobre a conduta mais


adequada ao Estado. Dessas condutas, por sua vez, derivaria um conceito-chave
para todas as abordagens realistas: o equilíbrio de poder. A ideia de equilíbrio de
poder parte da concepção hobbesiana de que, como entidades soberanas e sem
nenhuma autoridade superior, os Estados passariam a atuar buscando preservar
sua independência e aumentar o seu poder.

Conforme afirmou Hobbes (2009), uma vez estabelecido o contrato


social, os indivíduos teriam sua liberdade garantida pelo Estado e poderiam
formular pactos que teriam no Estado a garantia de seu cumprimento. No
âmbito internacional, em contrapartida, devido à ausência de um “Leviatã”, ou
autoridade superior, não haveria garantia do cumprimento dos pactos. A essa
ausência foi dado o nome de “anarquia”.

ATENCAO

É importante destacar que o conceito de anarquia não é equivalente ao de


caos. O primeiro diz respeito tão somente a ausência de uma autoridade superior aos
Estados, capaz de coagi-los a agir da forma como não gostariam anteriormente. O segundo
conceito, por sua vez, pressupõe um estado geral de desordem e, seria, portanto, impossível
para o analista produzir cenários prospectivos baseados nele.

Como consequência da anarquia, os Estados teriam de lutar por sua


sobrevivência a partir dos mecanismos de poder disponíveis. Conforme
abordado anteriormente, na ausência de uma autoridade superior, cada Estado
contaria apenas consigo mesmo para se defender de uma ameaça a sua soberania.
Desse modo, um dos princípios centrais das abordagens realistas é o princípio
da “autoajuda”. Isso não significa que o Estado não possa recorrer a alianças e
instituições, mas o que prevaleceria, em última medida, seria o interesse nacional.

23
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

NOTA

O PRINCÍPIO DE AUTOAJUDA NO PENSAMENTO REALISTA

O conceito de “autoajuda” deriva da visão realista de que a ausência de uma autoridade


superior levaria à incerteza, à desconfiança e a um comportamento egoísta – nesse quadro,
os Estados só poderiam recorrer a eles mesmos, sempre prevalecendo o interesse nacional
sobre interesses coletivos.

É importante salientar que a busca dos Estados pelo equilíbrio de poder


não é orientada para a obtenção da paz e da estabilidade, mas para prevenir
o surgimento de um poder superior aos demais. Nessa lógica, a estabilidade
do sistema internacional é mantida através da competição entre os Estados.
Compreender a disposição desse equilíbrio envolve produzir análises sobre a
distribuição do poder, ou sobre a “balança de poder”. Nessa distribuição, cada
Estado representa um “polo” de poder e a avaliação das capacidades de cada
ator permite ao analista internacional compreender qual é a polaridade do
sistema. Historicamente, é possível afirmar a partir de uma análise realista, que
houve momentos de maior ou menos estabilidade, dependendo da polaridade
do sistema. O quadro a seguir exemplifica a posição do ex-presidente norte-
americano, Richard Nixon, sobre a balança de poder, nos anos 1970:

QUADRO 5 – DISCURSO DE NIXON (1970) SOBRE A BALANÇA DE PODER

Devemos nos lembrar que a única época na história mundial em que observamos
um período pacífico mais longo foi a da balança de poder. Quando uma nação
se torna infinitamente mais poderosa em comparação ao seu oponente em
potencial, o perigo da guerra emerge. Por isso, acredito em um mundo no
qual os Estados Unidos são poderosos. Acho que o mundo será melhor e mais
seguro se tivermos os Estados Unidos forte e saudável, enquanto a Europa,
a União Soviética, a China e o Japão contrabalançam uns aos outros, não por
meio da competição, mas de um equilíbrio igual.

FONTE: Nixon, (1970 apud KISSINGER, 1994, p. 705)

Um dos elementos centrais nesse equilíbrio seriam as alianças. Ainda


que o interesse nacional prevaleça, é possível que os Estados recorram a alianças
militares para a obtenção de seus interesses. Para o Realismo, porém, caso
quaisquer dessas alianças sejam contrárias ou distintas de seu interesse próprio,
elas podem e devem ser rompidas. Prevaleceria, então, em última medida, a
autoajuda.

24
TÓPICO 2 — O REALISMO POLÍTICO

E
IMPORTANT

O CONCEITO DE BALANÇA DE PODER NO REALISMO

Em um quadro de anarquia internacional, o conflito seria inevitável. Carr (1939) e Morgenthau


(1985) apontam, então, que o curso de ação possível, visando evitar a primazia do conflito,
seria o balanceamento de poder. Nesse sentido, os Estados buscariam a estabilidade através
da competição e da avaliação das capacidades dos outros atores (em termos materiais:
poder militar-estratégico e político). Ao longo da história houve momentos de maior ou
menor estabilidade (Ex.: a bipolaridade entre EUA e URSS na Guerra Fria; a hegemonia
britânica do século XIX; unipolaridade norte-americana pós-Guerra Fria etc.).

Nos subtópicos seguintes serão discutidas as abordagens realistas centrais


do campo: o realismo político em Edward H. Carr e Hans Morgenthau e o
neorrealismo em Kenneth Waltz e John Mearsheimer. Ao fim, serão discutidas,
brevemente, as limitações do pensamento realista e as críticas feitas às suas
premissas ao longo dos anos.

3 O REALISMO CLÁSSICO DE CARR


Um dos principais expoentes do pensamento realista foi Edward H. Carr.
Em sua obra Vinte Anos de Crise (1919-1939), publicada em 1939, o autor introduz
à comunidade acadêmica em ascensão o que denomina “debate entre idealistas
e realistas”. Seu objetivo primário não era oferecer uma análise sistemática da
política internacional, tampouco propor uma teoria geral sobre esse objeto, mas
pensar o internacional a partir do cenário entre guerras (período evidente no
título de sua obra: de 1919 a 1939), propondo o desenvolvimento de uma ciência
que estudasse a política internacional isenta de utopias e idealismos.

Segundo o autor, era necessário compreender as falhas do Tratado de


Versalhes, que encerrou a Primeira Grande Guerra, e os limites do liberalismo
wilsoniano. O tratado partiria de pressupostos equivocados sobre as motivações
individuais e cairia no exagero de afirmar que existiria um conjunto de interesses
comuns que uniria todos os indivíduos e países em torno da construção de um
mundo mais pacífico e democrático, encerrando as guerras. Carr (1939) repudia
essa leitura, classificando-as como prescrições descoladas da realidade, e
defende que a política internacional seria orientada pelo poder, dada a natureza
humana (analisada por Hobbes e Maquiavel) e a realidade objetivas das relações
entre os Estados.

A partir dessa análise, Carr (1939) afirma que tanto realistas quanto
idealistas tinham como objetivo evitar a guerra, mas o esforço idealista de
entendimento da realidade seria utópico e idealista, ou uma tentativa de observar

25
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

como o mundo “deveria ser”. A proposta realista, por outro lado, seria mais
objetiva e enxergaria o mundo “como ele é”. Evitar crises e conflitos similares
àqueles do início do século dependeria de propostas de uma ordem internacional
baseada na realidade política, no equilíbrio de poder, na ausência de autoridade
superior e no jogo de forças entre os Estados.

A contraposição defendida por Carr (1939) entre os pensamentos realista


e idealista teria criado, segundo Schmidt (1998), um “corpo de pensamento
fictício” denominado Idealismo, e o debate descrito pelo autor na obra de 1939
nunca teria de fato acontecido. De todo modo, é possível atribuir objetivamente
a Wilson e Norman Angell (1909), expoentes do que Carr denomina Idealismo,
a ênfase à existência de uma harmonia de interesses entre os Estados, criticada
pelo pensamento realista ao longo dos anos. Segundo Carr (1939, p. 18): “o
realista não tem dificuldade em perceber que essas proposições utópicas não
são fatos, mas aspirações”.

Carr (1939) desafia o Idealismo, questionando a visão de que poderia


existir uma moralidade comum a todos os Estados e, conforme citado, uma
“harmonia de interesses”. Segundo o autor, “a moralidade só pode ser relativa,
não universal” (CARR, 1939, p. 19). A reivindicação wilsioniana de que há essa
harmonia, seria parte da “ação de grupos privilegiados para justificar e manter
sua posição dominante na política internacional” (CARR, 1939, p. 75).

Os interesses de um Estado sempre determinariam o que ele considera


como “princípios morais” – a moral, portanto, derivaria dos interesses, não o
contrário. Um exemplo seriam as ações de políticos que afirmam fazer o que é
“justo”, ou “moralmente correto” para encobrir interesses particulares ou para
criar imagens negativas de outros países com o intuito de justificar atos de agressão.
Nesses casos, a moralidade (ou a definição do que é certo ou errado) depende das
decisões políticas e do interesse dos Estados. Desse modo, as políticas não seriam,
como afirmam os idealistas, baseadas em normas universais, mas relacionadas
diretamente à interpretação dos Estados a respeito da moralidade.

À semelhança de Hobbes, Carr (1939) considera que há um conjunto de


normas internacionais impostas aos países por nações dominantes, que teriam
como objetivo central se perpetuar no poder. Os valores que idealistas, como Wilson
e Angell, consideram bons para todos – como paz, justiça social, prosperidade e
ordem, são considerados por Carr (1939) meras noções de status quo, impostas e
mantidas por aqueles que possuem maior poder na política internacional.

No contexto em que o autor escreve sua obra (1919-1939) havia o


entendimento de que a criação e manutenção de uma instituição internacional
baseada em valores comuns (a Liga das Nações) seriam suficientes para evitar
conflitos e guerras. Carr (1939) critica essa visão, apontando a dificuldade de
atribuir a Estados as mesmas características dos indivíduos. Estados não seriam
capazes de demonstrar sentimentos como “generosidade” ou “compaixão”, como
afirmam os Idealistas. Em vez disso, eles teriam como objetivo primário proteger
seus cidadãos e sobreviver no sistema internacional.

26
TÓPICO 2 — O REALISMO POLÍTICO

Nesse sentido, haveria uma diferença enorme entre a moralidade dos


indivíduos e a moralidade dos Estados. A moralidade, segundo Carr (1939),
dependeria do contexto das ações dos atores. Os indivíduos encontrariam esse
contexto na sociedade (Ex.: o ato de ferir, ou matar, alguém encontra limites
legais e morais nas diferentes sociedades, seja por meio de leis formais e
institucionalizadas, seja por meio de tradições enraizadas nessas sociedades – os
indivíduos em sociedade possuem responsabilidades com relação aos outros).
Os Estados, por sua vez, interagem em sistema internacional caracterizado pela
incerteza, sem a definição de qualquer tipo de responsabilidade de um Estado
com relação a outro. Nesse cenário cada Estado defende e promove os interesses
de seus próprios membros, mesmo que isso impeça outros de também o fazerem.

Fica evidente, então, que para Carr (1939) a visão wilsoniana de que seria
possível estabelecer uma estrutura legal na qual os Estados compartilhariam
visões comuns e cooperariam a partir de estruturas jurídicas, é completamente
desconectada da realidade. Wilson, nessa leitura, relacionaria interesses e
princípios morais norte-americanos aos princípios supostamente comuns à
humanidade em seu conjunto. Isso não seria diferente, por exemplo, da afirmação
nazifascista de Hitler e Mussolini de que as suas respectivas nações seriam
repositórias de uma “ética superior” (CARR, 1939).

O realismo político avançou após a Segunda Guerra Mundial, a partir


da visão de que suas premissas foram bem-sucedidas na leitura de um sistema
internacional marcado pela recorrência de conflitos e guerras. De fato, a Liga
das Nações não foi bem-sucedida em seus objetivos e refletiu uma moralidade
não compartilhada entre todas as grandes potências. A contribuição de Hans
Morgenthau, no contexto pós-guerra, foi central para a sistematização do
pensamento realista e para a “popularização” do campo das Relações Internacionais.

4 MORGENTHAU E A POLÍTICA ENTRE AS NAÇÕES


O pós-Segunda Guerra Mundial foi marcado pelo auge da desilusão com
o pensamento liberal, incapaz de prover caminhos pacíficos para a resolução
de conflitos na política internacional. Nesse contexto é publicada aquela que
seria uma das obras seminais do realismo nas Relações Internacionais: Política
entre as Nações (1948), de Hans Morgenthau. Assim como seus antecessores, o
autor defende que a política internacional seria, por definição, uma luta pelo
poder. À semelhança de Carr, identifica no idealismo excessivo liberal um
problema, tanto analítica quanto empiricamente, e propõe a formulação de
uma teoria que “tenta entender a política internacional como ela realmente é”
(MORGENTHAU, 1985, p. 47).

27
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

NTE
INTERESSA

O livro seminal Política entre as Nações de Hans Morgenthau, publicado em


1948, foi o principal livro acadêmico do campo na América do Norte no início dos anos
1950 até o fim dos anos 1970. No mundo pós-Guerra Fria, houve um interesse renovado
em sua obra após a constatação das limitações teóricas do neorrealismo de Waltz.

Poder, segundo Morgenthau (1985), seria percebido como meio e fim


da atuação dos Estados. O poder estatal seria uma série de fatores que envolve
o território, a população, os recursos naturais e a localização geográfica. A
capacidade de um Estado de transformar esses fatores e convertê-los em poder
seria central na definição do que seria uma grande potência ou hegemonia
na política internacional. Desse modo, as ações políticas devem ser julgadas
a partir de parâmetros políticos, referentes à conquista, posse, manutenção e
expansão do poder.

Uma das premissas centrais em sua obra é que as relações de cunho


político, assim como todas as relações sociais, seriam governadas por leis
objetivas enraizadas na natureza humana, essencialmente conflitiva. Nesse
sentido, o autor reitera a tradição de Maquiavel e Tucídides e afirma que haveria
uma moral específica para a esfera privada e outra distinta para a esfera pública
(MORGENTHAU, 1985). No âmbito público certas atitudes, como o uso da
violência, seriam justificadas visando a preservação da soberania e do poder. A
moralidade para os realistas clássicos deve ser julgada pelas consequências da
ação política, não na ação em si mesma.

Morgenthau (1985) também define que os agentes centrais das relações


internacionais seriam os Estados autônomos e independentes. Eles atuariam em
uma arena denominada sistema internacional, visando garantir sua sobrevivência
e maximizar seu poder, uma vez que, conforme dito anteriormente, as relações
internacionais seriam marcadas pela luta pelo poder. Isso não significa que não
haveria outros atores na política internacional, mas que o Estado seria o mais
importante na medida em que detém o monopólio legítimo do uso da força física,
em termos weberianos. Desse modo, o interesse dos Estados seria sempre definido
em termos de poder – o que determina suas prioridades e seu comportamento.
Questões militares e estratégicas teriam prioridade em relação a questões como
direitos humanos, meio ambiente, justiça distributiva etc.

Visando resumir os elementos teóricos centrais do realismo clássico,


o autor estabelece seis princípios que, segundo Morgenthau (1985), seriam
fundamentais para a análise pragmática da política internacional:

28
TÓPICO 2 — O REALISMO POLÍTICO

• A política seria governada por leis objetivas que refletem a natureza humana:
segundo o autor, para compreender a política internacional seria necessário
observar a natureza humana imutável e profunda, caracterizada pelo egoísmo
e pelo autointeresse.
• O interesse é definido em termos de poder: todos os Estados agiriam com o
objetivo de obter e manter o poder. A razão seria o instrumento principal do
processo político. Para o autor, a racionalidade caracterizaria a esfera política.
• Poder é conceito universalmente definido, mas sua expressão varia no tempo
e no espaço: o poder, como elemento central da política entre as nações, variaria
de acordo com o contexto e o lugar nos quais esse poder é exercido.
• Princípios morais devem ser subordinados aos interesses políticos: conforme
dito anteriormente, Morgenthau (1985) concorda com Maquiavel que a
moralidade na política não é compatível com a moralidade privada. Segundo o
autor, o limite dos princípios morais seria a prudência: o estadista deve sempre
priorizar a segurança e o interesse do Estado (definido em termos de poder) ao
observar princípios morais.
• Princípios morais não são universais, mas particulares: segundo o autor,
princípios morais não poderiam ser aplicáveis a todos os Estados e qualquer
tentativa de “exportá-los” ou “expandi-los” seria equivocada. Neste sentido,
Morgenthau (1985) se opõe a noção liberal de moralidade comum e responde
às aspirações norte-americanas de considerar seus princípios superiores aos
demais Estados.
• A esfera política é autônoma em relação às demais: neste princípio o autor
reitera a centralidade do Estado, como agente principal da política, e o seu
dever de priorizar essa esfera em relação à econômica, a jurídica ou a religiosa.

ATENCAO

Ao observar os seis princípios do realismo clássico de Morgenthau, é necessário


entendê-los como complementares. Em seu estudo, procure não os decorar, ao invés, os
entenda como guias para o estudo das ideias gerais do realismo clássico nas Relações
Internacionais.

Embora os seis princípios de Morgenthau contenham uma série de


repetições (Ex.: o 4º e 5º princípios são intrinsecamente conectados e derivam
um do outro), ainda assim é possível derivar o seguinte quadro geral: poder,
ou interesse, é o conceito central que transformaria a política em uma disciplina
autônoma. Os atores estatais racionais buscam, no sistema internacional, satisfazer
seus interesses nacionais. Portanto, seria necessária a construção de uma teoria
racional de política internacional, distante de preocupações com moralidade,
crenças religiosas, motivos ou preferências ideológicas de líderes políticos.

29
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Ainda que defina a política como esfera autônoma, Morgenthau


(1985) não segue totalmente a premissa maquiavélica de que a ética deve ser
completamente separada da política. Mesmo que não seja guiada por princípios
morais universais – à semelhança do que afirma Carr (1939) –, a ação política
tem para Morgenthau (1985) um significado moral. Em última análise, a ação dos
Estados, com o objetivo de sobreviver no sistema internacional, também envolve
prudência. O que o autor afirma é que essa moralidade não pode ser comparada
com a moralidade individual, submetida a limites e regras muito mais restritos
que os Estados em um contexto de anarquia.

Ainda que o pensamento de Morgenthau (1985) tenha dominado a


academia de RI até os anos 1970, seus princípios não foram suficientes para
compreender os processos em constante mudança na política internacional,
como a interdependência, o transnacionalismo, as novas fases da globalização
e a interdependência. Nesse contexto, alguns autores propõem uma revisão
do realismo clássico. O principal deles foi Kenneth Waltz, principal nome do
denominado “Neorrealismo”.

30
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• Ainda que o pensamento realista seja heterogêneo, há, ao menos, quatro


premissas comuns às suas contribuições: 1) o Estado é o protagonista da política
internacional; 2) o Estado é um ator unitário; 3) Estados são atores racionais; e
4) a preocupação central dos Estados é com a segurança.

• O realismo político de Carr provê críticas ao idealismo excessivo da teoria


e da prática propostas por Woodrow Wilson, afirmando que não haveria
uma moralidade comum a todos os Estados, sendo impossível atingir uma
“harmonia de interesses” entre eles.

• O realismo político de Morgenthau popularizou o campo das Relações


Internacionais, estabelecendo seis princípios sucintos e uma explicação mais
“simplificada” da política internacional.

31
AUTOATIVIDADE

1 Quais as principais críticas de Carr ao conceito de “harmonia de interesses”


idealista? Por que não seria possível haver uma “moralidade universal”,
como afirmavam Wilson e Angell?

2 Quais são os seis pontos principais do Realismo Político de Morgenthau?


Relacione-os entre si e disserte sobre sua contribuição para o pensamento
realista político do campo.

3 Defina “equilíbrio de poder” e disserte sobre a importância deste conceito


para a explicação da política internacional em Carr e Morgenthau.

4 De acordo com Carr seriam três os princípios essenciais do realismo:

I- A história é uma sequência de causa e efeito, cujo curso se pode analisar


e entender através do esforço intelectual, porém não dirigida pela
“imaginação”
II- A teoria não cria a prática, mas sim a prática é quem cria a teoria
III- A política não é uma função da ética, mas sim o inverso. Ou seja, não há
moral efetiva onde não há autoridade efetiva: a moral é produto do poder

Analisando as assertivas apresentadas. Somente estão CORRETAS:


a) ( ) I, apenas.
b) ( ) I e II, apenas.
c) ( ) I e III, apenas.
d) ( ) III, apenas.
e) ( ) Todas estão corretas.

5 Leia as afirmações a seguir:

I- O interesse dos Estados seria definido em termos de poder. Isso significa


que as ações dos Estados ocorrem a partir do cálculo racional em busca do
aumento ou manutenção de seu poder.
II- A moralidade para Morgenthau seria universalmente definida. Nesse
sentido, a visão realista do autor acredita no potencial das instituições
internacionais na promoção da cooperação entre os Estados.
III- Para Morgenthau, princípios políticos deveriam ser subordinados aos
interesses morais: O autor, nesse sentido, discorda de Maquiavel ao afirmar
que a moralidade na política não é compatível com a moralidade privada.
IV- Para Morgenthau, a esfera política seria autônoma em relação às esferas
econômica, religiosa e ideológica.
32
Analisando as assertivas apresentadas. Somente estão CORRETAS:
a) ( ) I, II e III, apenas.
b) ( ) I, III e IV, apenas.
c) ( ) II, III e IV, apenas.
d) ( ) I e IV, apenas.
e) ( ) III e IV, apenas.

6 Analise as afirmações abaixo acerca das inconsistências do pensamento


idealista apontadas por Carr (1939):

I- A crença de que a construção de que uma organização de Estados, unidos


através do princípio da segurança coletiva, poderia acabar com as guerras.
II- A crença de que a natureza humana poderia ser alterada e,
consequentemente, melhorada através da cooperação e do diálogo.
III- A crença de que os Estados mais fortes deveriam anexar territórios de
países fracos que pudessem ameaçar a paz internacional.

Analisando as assertivas apresentadas. Somente estão CORRETAS:


a) ( ) I e II, apenas.
b) ( ) I e III, apenas.
c) ( ) II e III, apenas.
d) ( ) II, apenas.
e) ( ) I, II e III.

33
34
TÓPICO 3 —
UNIDADE 1

O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

1 INTRODUÇÃO

Após a discussão sobre as premissas centrais do pensamento


realista político, neste tópico serão analisados os conceitos do denominado
“Neorrealismo”. Influenciado pelos campos da Ciência Política e Economia, o
campo das RIs passa a adotar uma abordagem mais “científica” e se afasta do
tradicionalismo característico das visões anteriores. Neste contexto se destacam
dois dos principais pensadores do campo: Kenneth Waltz e John Mearsheimer.
O primeiro subtópico é dedicado à discussão das premissas centrais da obra de
Waltz, enfatizando as diferenças de sua abordagem em relação às anteriores. A
ideia não é detalhar o que foi uma das contribuições mais importantes para o
campo, mas pontuar os elementos fundamentais de sua teoria.

O segundo subtópico apresenta e discute o realismo ofensivo de


John Mearsheimer, além de apresentar uma análise da ascensão da China na
contemporaneidade a partir de sua teoria. A unidade, por fim, apresenta alguns
limites das abordagens realistas – criticadas e testadas por vários autores ao
longo dos anos. A ideia é pontuar que mesmo que a teoria realista ainda ocupe
um lugar proeminente no campo das Relações Internacionais, há limitações
em suas premissas e falhas na explicação da política internacional frente a uma
complexidade cada vez maior de temas, atores e agendas.

2 O NEORREALISMO EM WALTZ
Os anos 1970 foram marcados pela relevância crescente de atores como as
organizações internacionais, regimes e empresas transnacionais. Nesse contexto,
as premissas do realismo clássico são colocadas em xeque, uma vez que a
relevância desses novos atores parecia ser cada vez maior na política internacional.
Com o objetivo de fortalecer as premissas realistas e propor uma abordagem mais
“científica” para o campo, Kenneth Waltz publica, em 1979, a Teoria da Política
Internacional, obra seminal do denominado neorrealismo ou realismo estrutural.

35
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

E
IMPORTANT

WALTZ EM 1959: AS TRÊS IMAGENS

Vinte anos antes da publicação de Teoria da Política Internacional, Kenneth Waltz publicou
O Homem, o Estado e a Guerra, obra na qual descreve “três imagens”, ou “níveis de análise”:
o nível individual, o nível estatal/nacional e o nível sistêmico. O objetivo do autor foi definir
como cada um dos níveis proveria explicações para a ocorrência de guerras. Ao longo dos
anos, o autor avançou na explicação de conflitos a partir da condição anárquica do sistema
internacional, se afastando de proposições filosóficas e da busca por entendimento da
natureza humana (WALTZ, 1959).

O contexto de publicação da obra, em 1979, coincide com o crescimento


expressivo de abordagens liberais, otimistas com relação à ascensão de instituições
internacionais como alternativas para a resolução de conflitos e promoção
da cooperação. O neorrealismo surge como uma tentativa de revisão dos
princípios propostos por Carr e Morgenthau, mas elimina a discussão excessiva
sobre a natureza humana e a ética na política. Além disso, a teoria defende o
estabelecimento de bases teóricas mais robustas e próximas daquilo que Kuhn
(2013) denominou “paradigma”.

NOTA

A TEORIA DA POLÍTICA INTERNACIONAL (1979)

A Teoria da Política Internacional é o texto fundacional do realismo estrutural e um dos


livros mais influentes das Relações Internacionais desde a criação do campo. A tese central
é de que a ausência de uma autoridade central a qual os Estados possam recorrer, somada
ao seu interesse pela sobrevivência, levaria a luta pelo poder. Waltz (1979) se difere de seus
antecessores na medida em que afirma que os Estados não buscam necessariamente
maximizar poder, mas garantir que outros Estados não o façam.

Waltz (1979) defendeu, à semelhança de seus antecessores, a explicação


da política internacional “como ela é”, mas foi além ao propor uma teoria
que poderia prover explicações para a continuidade e as repetições no âmbito
internacional, além de cenários futuros possíveis. Nesse sentido, um elemento
central é a estrutura do sistema internacional, anárquica e descentralizada. A
existência dessa anarquia seria a causa permissiva das guerras ao longo dos anos,

36
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

uma vez que não haveria autoridade superior e cada Estado lutaria sobrevivência
e pelo poder. Segundo Waltz (1979), nada além dessa estrutura anárquica do
sistema internacional explicaria a incidência de guerras – qualquer teoria que
oferecesse uma explicação em nível estatal seria reducionista.

ATENCAO

Teorias reducionistas, segundo Waltz (1979), seriam aquelas que concentram


suas explicações e suas relações de causalidade no nível individual ou nacional. Acreditam
que as decisões internas de um Estado refletem na sua posição política dentro do cenário
internacional.

Waltz (1979) afirma que essas teorias reducionistas teriam dois problemas
fundamentais: em primeiro lugar, não seria possível prever os resultados das
interações entre atores somente através de uma análise de seus atributos. Em
segundo lugar, não seria possível fazer inferências acerca da política internacional
a partir da composição interna dos Estados ou somando suas políticas externas.
Além disso, Waltz (1979) alerta para o risco que teorias reducionistas correm de
produzir meras descrições a respeito de seus objetos de análise.

Para o autor, as teorias que melhor poderiam apresentar análises e que


teriam maior validade, tanto para o analista internacional, quanto para o tomador
de decisão, seriam as teorias sistêmicas. Essas teriam a necessidade de omitir
os atributos e as relações das unidades para que possam ser distinguidas as
mudanças da estrutura e as mudanças que ocorrem na estrutura, além de dois
grandes objetivos: em primeiro lugar, traçar a evolução esperada de diferentes
sistemas internacionais, indicando sua duração provável e seu caráter pacífico;
e em segundo lugar mostrar como a estrutura do sistema afeta as unidades em
interação e como elas afetam a estrutura (WALTZ, 1979).

Waltz (1979) alerta o analista, também, que as teorias sistêmicas deveriam


ser parcimoniosas ou, ainda, elegantes. Isso significa que a teoria deveria
conseguir explicar a maior quantidade de elementos possível acerca da política
internacional com a menor quantidade de variáveis. Sendo assim, dentro de um
sistema, uma teoria explicaria as continuidades, enquanto entre sistemas, ela
explicaria a mudança.

37
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

E
IMPORTANT

UMA ANÁLISE DA ASCENSÃO DA CHINA A PARTIR DO


REALISMO ESTRUTURAL

Há certa concordância entre realistas estruturais com relação à unipolaridade


norte-americana nos últimos anos. Nesse sentido, o crescimento da China, eventualmente,
acabaria com esse quadro e tornaria o mundo mais perigoso, uma vez que na unipolaridade
não haveria guerra entre grandes potências. No caso da ascensão chinesa, haveria o perigo
de conflito entre o país e os Estados Unidos.

Em suma, não há consenso entre os realistas estruturais sobre se a China pode


ascender pacificamente. Essa diversidade de pontos de vista não é surpreendente, uma vez
que esses mesmos realistas discordam entre si sobre o que causa a guerra. O único ponto
importante de concordância entre elas é que a estrutura do sistema internacional forçaria
grandes potências a competir entre elas mesmas pelo poder.

Outro elemento importante do realismo estrutural é o equilíbrio de poder,


anteriormente teorizado pelos clássicos. Nesse cenário de incertezas, os Estados
(principais atores do sistema internacional), buscariam maximizar o poder
visando a sua sobrevivência e permanência no sistema. Ao contrário dos clássicos,
porém, os neorrealistas afirmam que essa busca seria determinada pela estrutura
do sistema internacional, que condicionaria as ações dos Estados. Essa estrutura
seria definida a partir de três características principais: seu princípio ordenador,
a característica de suas unidades e a distribuição de capacidades.

• Princípio Ordenador: segundo Waltz (1979), o sistema internacional é


marcado pela ausência de autoridade central. A anarquia, portanto, ordenaria
a relação entre os Estados e seria um princípio central e inevitável da política
internacional.
• Característica das Unidades: os Estados seriam semelhantes em seu aspecto
funcional. Apesar das diferenças em termos ideológicos, culturais, econômicos
e identitários, todos os Estados realizam as mesmas tarefas, como cobrança
de impostos e condução da política externa. Neste contexto, as unidades são
caracterizadas pelo sistema de autoajuda: cada Estado pode contar apenas
consigo mesmo.
• Distribuição de Capacidades: Waltz (1979, p. 97) afirma que os Estados são
“distinguidos principalmente por meio de seu maior ou menor poder de cum-
prir tarefas similares”. Esses atores agiriam no sistema internacional a partir
dessas capacidades distintas, determinando se este seria bipolar ou multipolar.

A polaridade do sistema internacional é outro elemento central na obra


de Waltz (1979). Para o neorrealismo, sistemas bipolares – como aquele existente
durante a Guerra Fria, entre Estados Unidos e União Soviética – seriam mais
estáveis e seguros que os multipolares. Isso ocorreria porque haveria um espaço
38
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

reduzido para o jogo duplo e alianças escusas. Além disso, há maior possibilidade
de monitoramento mútuo dos movimentos dos Estados. De acordo com essa visão,
a Guerra Fria teria sido um período de relativa paz e estabilidade internacionais.

QUADRO 6 – AS POLARIDADES EM WALTZ

UNIPOLAR BIPOLAR MULTIPOLAR


• Mais
• Mais organizado.
• Menos duradouro. interdependência.
• Apenas um inimigo.
• Grande instabilidade. • Menos
• Mais estável na
• Ameaça do mais previsibilidade.
manutenção da paz,
forte. • Instabilidade nas
força controla força.
relações.

FONTE: A autora

QUADRO 7 – A ESTRUTURA DO SISTEMA INTERNACIONAL EM WALTZ (1979)

O interesse do governante e, mais tarde, do Estado, impulsiona a ação; as


necessidades da política surgem da competição desregulada entre os Estados;
um cálculo com base nessas necessidades pode identificar as políticas que
servirão melhor aos interesses estatais; o sucesso é o teste decisivo da política,
e é medido pela preservação e pelo fortalecimento do Estado...restrições
estruturais explicam por que os métodos são usados de forma repetida, apesar
das diferenças entre as pessoas e os países que os utilizam.

FONTE: Waltz (1979, p. 117)

O neorrealismo de Waltz, portanto, é mais determinista que o de


seus antecessores, enfatiza a importância da estrutura anárquica do sistema
internacional na definição das estratégias dos Estados e na explicação da guerra
e coloca em segundo plano discussões de ordem moral e ética. A preocupação do
autor foi muito menos com a reflexão sobre a natureza humana e sobre os objetivos
da política entre as nações e muito mais com os determinantes estruturais que
levam as grandes potências a balancear poder. Desse modo, Waltz (1979) define
que a política internacional é composta por uma gama variada de atores, mas que
a sua explicação deve ser baseada amplamente na observação da busca por poder
por parte das grandes potências, sendo outras questões secundárias.

3 O REALISMO OFENSIVO EM MEARSHEIMER


Ainda que desafiado pela crescente complexidade da política internacional
no fim do século XX, o realismo avançou ao longo dos anos 1990 e 2000 como uma
das teorias dominantes do campo. Um dos expoentes centrais nesse contexto foi
John Mearsheimer, autor de A Tragédia da Política das Grandes Potências (2001). O

39
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

contexto de publicação da obra coincidiu com o atentado ao World Trade Center,


em setembro do mesmo ano, e com a ascensão da “guerra ao terror” por parte
do governo norte-americano. Nesse mesmo contexto, o realismo de Waltz (1979)
era alvo de críticas por não ter sido capaz de prever o fim do conflito Leste-Oeste.

Mearsheimer (2001) não rompe com os princípios ontológicos de seus


antecessores, defendendo uma política internacional caracterizada pelo conflito
e pela incerteza trazida pela ausência de uma autoridade central. Além disso,
reafirma o papel central do Estado, reiterando sua característica racional e de
busca pelo poder. O que diferencia sua proposta é a explicação mais apurada das
hegemonias – globais e regionais – e das múltiplas estratégias empregadas pelos
Estados na busca pelo poder. Desse modo, sua proposta teórica ficou conhecida
como “realismo ofensivo”.

Para compreender a proposta de Mearsheimer em seu livro cânone,


é preciso entender qual era seu objetivo ao escrevê-lo e isso se relaciona
diretamente com o contexto mundial à época. O fim da guerra fria e sua
consequente retração de tensões entre grandes potências, levou o campo a
questionar a teoria neorrealista e a adotar visões otimistas com relação à política
internacional. A incapacidade dos neorrealistas em prever o fim da guerra
fria e a dissolução da União Soviética colocaram em xeque uma teoria que,
fortemente influenciada pelo behaviorismo, afirmava que buscava produzir
previsões que pudessem auxiliar o tomador de decisão.

O fim das tensões entre grandes potências, representado principalmente


pelo medo do início da guerra fria, de uma hecatombe nuclear, deu espaço
para que abordagens otimistas a respeito da possibilidade de estabelecimento
de cooperação entre os atores para o progresso humano e mundial ficassem
em voga. A publicação de O Fim da História, de Francis Fukuyama, em 1992, é
representativa desse momento. O argumento do autor apontava para a ideia de
que o fim da guerra fria representaria o ponto final da evolução ideológica da
humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como forma
final do governo humano.

Mearsheimer (2001), por outro lado, afirma que os elementos fundacionais


e fundamentais para a explicação pessimista do realismo não haviam sido
desafiados ou postos em xeque com o fim da guerra fria. O autor apresenta,
então, cinco hipóteses que justificariam a relevância do Neorrealismo enquanto
uma lente teórica do campo das Relações Internacionais.

A primeira delas é de que a anarquia ainda seria o princípio ordenador


do sistema internacional e isso significa que as considerações realistas sobre
este princípio ser caracterizado pela autoajuda ainda seriam válidas. A segunda
hipótese diz respeito ao fato de que as grandes potências ainda possuiriam grandes
capacidades militares ofensivas, o que significa que conflitos por disputas de
interesse num contexto de anarquia (primeira hipótese) ainda seriam possíveis.
A terceira hipótese era de que ainda havia incerteza, entre os Estados, a respeito

40
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

das intenções dos demais (característica que é intensificada pelo ambiente de


autoajuda da anarquia). A quarta hipótese de Mearsheimer resgatava uma das
grandes ideias-força do Realismo como um todo: de que o principal objetivo dos
Estados seria garantir sua sobrevivência. Por fim, o autor afirma, em sua quinta
hipótese, que os Estados são atores racionais e que, portanto, fazem cálculos
buscando maximizar seus benefícios, reduzindo seus custos, em cada ação
(MEARSHEIMER, 2001).

QUADRO 8 – AS CINCO HIPÓTESES DE MEARSHEIMER PARA A RELEVÂNCIA TEÓRICA DO


NEORREALISMO NO CAMPO

HIPÓTESE I As considerações dos autores realistas


“Anarquia ainda seria o a longo dos anos, de que a anarquia é
princípio ordenador do Sistema marcada pela autoajuda, ainda seriam
Internacional”. válidas.

HIPÓTESE II
Conflitos por disputas de interesse em
“Grandes Potências ainda possuem
um contexto de anarquia ainda seriam
grandes capacidades militares
possíveis.
ofensivas”.

A incerteza seria intensificada pelo


HIPÓTESE III
ambiente de autoajuda da anarquia, o
“Ainda há incerteza entre os
que levaria à desconfiança constante
Estados sobre as intenções alheias”.
entre os Estados.

Em um sistema internacional sem


HIPÓTESE IV
autoridade superior, os Estados teriam
“O principal objetivo dos Estados é
como objetivo central a garantia de sua
garantir sua sobrevivência”.
sobrevivência.

HIPÓTESE V Os Estados efetuariam sempre um


“Os Estados são atores racionais e, cálculo racional que buscaria minimizar
portanto, buscam maximizar seus seus custos e maximizar seus ganhos,
benefícios”. em cada ação na política internacional.

FONTE: Adaptado de Mearsheimer (2001)

Dessas cinco hipóteses, emergem três padrões gerais de comportamento


dentro do sistema internacional. O primeiro seria o medo: não tendo certeza
das intenções e estratégias dos demais Estados, sabendo que estes possuem
capacidades militares ofensivas e que não há um poder superior para resgatá-lo
em caso de conflitos, os Estados devem temer uns aos outros no que diz respeito
às suas intenções. O segundo padrão de comportamento seria a autoajuda,
elemento amplamente teorizado pela vertente realista de forma geral: sabendo
que não há um leviatã para recorrer em caso de ameaças à sua sobrevivência, o
Estado precisa compreender que depende apenas de si para cumprir seu objetivo

41
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

primordial de continuar existindo enquanto unidade política autônoma. O


terceiro padrão geral de comportamento, por sua vez, diz respeito à maximização
de poder: essa seria a estratégia mais segura que um Estado poderia adotar para
cumprir seus interesses. Nesse sentido, todos os Estados buscariam incrementar
seu poder relativo a todo momento.

Esses três padrões, combinados às hipóteses supracitadas de Mearsheimer


(2001), criariam um ambiente inóspito e ameaçador para os Estados. A competição
seria a característica permanente da política internacional. Aqui observa-se a
grande diferença entre Waltz e Mearsheimer que faz com que o campo separe
estas duas teorias em Realismo Defensivo (advogada por Kenneth Waltz) e
Realismo Ofensivo (representada por John Mearsheimer). Enquanto para o
primeiro o Estado deve ficar atendo às movimentações da balança de poder e
buscar maximizar seu poder apenas em momentos específicos, para o segundo,
essa busca deve ser constante.

Outro ponto que diferencia as duas teorias diz respeito à possibilidade de


um Estado alcançar a hegemonia global. Mearsheimer (2001) afirma que Estados
hegemônicos globais seriam difíceis de serem observados por conta daquilo que
o autor chama de “poder parador da água”, ou seja, a dificuldade de projetar
poder através de grandes massas de água teria como consequência a existência de
hegemonias confinadas às regiões. Podendo projetar seu poder mais facilmente
através do território de sua região, os Estados deveriam ter dois objetivos: se
tornar a única hegemonia regional e buscar evitar, em outras regiões, a ascensão
de hegemonias. Assim, o Estado que se tornasse uma hegemonia regional atuaria
como um equilibrador externo nas demais regiões, buscando mantê-las em
permanente estado de competição.

Além disso, Mearsheimer (2001) apresenta quatro objetivos básicos que


Grandes Potências deveriam ter para garantir sua sobrevivência. O primeiro é
atingir a hegemonia regional: ao ser alcançada, esse Estado teria um maior grau
de confiança de que seus vizinhos não seriam ameaças à sua sobrevivência e que
este poderia se defender caso houvesse um equilibrador externo. O segundo
objetivo é a maximização de sua riqueza relativa: aqui, Mearsheimer (2001)
diferencia poder real de poder potencial. Enquanto o primeiro seria relativo
às capacidades militares defensivas e ofensivas de um Estado, o segundo diria
respeito às riquezas desse, que poderiam ser direcionadas à produção de poder
real em caso de ameaças. O terceiro objetivo básico das grandes potências seria o
domínio do equilíbrio de poder terrestre na sua região: isso tornaria mais difícil
a ameaça de vizinhos à estabilidade do Estado. Por fim, o quarto objetivo das
grandes potências seria a obtenção de superioridade nuclear.

Com base nesses objetivos, e tendo as cinco hipóteses como pano de fundo,
Mearsheimer (2001) apresenta quatro estratégias para conquistar poder e duas
estratégias para controlar agressores e estratégias a ser evitadas pelos Estados.
Com relação às estratégias para a conquista do poder, o autor cita primeiramente
a guerra. Segundo ele, a guerra seria a política por outros meios, a partir das ideias

42
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

de Clausewitz (1984 apud MEARSHEIMER, 2001). Ela seria a forma mais eficiente
de subjugar o oponente ou potencial ameaça e maximizar poder. Em segundo
lugar, o autor menciona a “chantagem”, que seria o uso de ameaças coercitivas e
intimidação de um outro ator. A esse respeito, Mearsheimer (2001) faz algumas
considerações: em primeiro lugar, é preciso lembrar que a chantagem precisa
parecer crível para o ator que está sendo chantageado. Nesse sentido, o ator que
está chantageando deve deixar claras suas intenções e capacidades de prosseguir
com a proposta, caso o ator chantageado não ceda às pressões.

A terceira estratégia seria o denominado bait and bleed, ou incitamento


oportunista. O objetivo é induzir os estados rivais a se envolverem em uma
prolongada guerra de atrito uns contra os outros "para que se sangrem",
enquanto o Estado que incentivou o conflito permanece à margem e mantém sua
força militar. A quarta, e última, estratégia seria o bloodletting ou sangria. Quando
os rivais de um estado já tiverem entrado em guerra de forma independente,
o objetivo seria incentivar o conflito a continuar o maior tempo possível, para
permitir que os estados rivais se enfraqueçam ou que sua força militar “sangre”.

O autor ainda apresenta duas estratégias para o controle de agressores. A


primeira é o denominado balanceamento, que tem três objetivos centrais: enviar
sinais claros ao agressor que há um compromisso com o equilíbrio de poder,
mesmo que isso leve à guerra; criação de uma aliança defensiva que ajude a conter
a ameaça; contrabalancear um agressor, automobilizando os recursos adicionais.
A segunda estratégia seria a delegação, ou buckpassing (MEARSHEIMER, 2001).
Há quatro medidas possíveis para facilitar a delegação: manter boas relações
diplomáticas com o agressor para que ele mantenha suas atenções no “Estado
delegado”; manutenção de relações “frias” e distantes com o Estado delegado;
a mobilização de recursos próprios adicionais e, por fim, permitir ou facilitar o
aumento do poder do estado delegado.

E
IMPORTANT

UMA ANÁLISE DA ASCENSÃO DA CHINA A PARTIR DO REALISMO OFENSIVO

O objetivo máximo das grandes potências, de acordo com o realismo ofensivo, é tornar-se
hegemonia, porque essa posição garantiria a sua sobrevivência. Na prática, é quase impos-
sível para qualquer país atingir esse status, porque é difícil projetar e sustentar poder mun-
dialmente e através de territórios distantes. O melhor objetivo a ser buscado é tornar-se
hegemonia regional, o que significa dominar uma determinada área geográfica. Os Esta-
dos Unidos compreenderam essa lógica realista ofensiva e trabalharam assiduamente para
tornar o país a potência dominante no ocidente, conquistando finalmente a hegemonia
regional em 1898. Ainda que os Estados Unidos tenham se tornado ainda mais poderosos
desde então, não é possível afirmar, segundo a lente realista neoclássica, que o país é uma
hegemonia global. Estados buscam o status de hegemonia regional por um motivo impor-
tante: prevenir que grandes potências de outras regiões geográficas dupliquem seu poder.

43
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Desse modo, após atingir o status de potência regional, os EUA tentaram prevenir que outras
grandes potências controlassem a Ásia e a Europa. No século XX havia quatro grandes
potências com a capacidade de tornar-se hegemonia regional: a Alemanha Imperial (1900-
1918), o Japão Imperial (1931-1945), a Alemanha Nazista (1933-1945) e a União Soviética
(1945-1989).

Em cada um dos casos, os EUA desempenharam um papel central no combate e


desmantelamento das aspirações hegemônicas. Em suma, a situação ideal para qualquer
grande potência seria tornar-se a única hegemonia regional do mundo.

A partir da lente realista ofensiva, então, devemos esperar que a China “imite” os EUA e tente
tornar-se uma hegemonia regional na Ásia. A China tentará maximizar a lacuna de poder
entre ela mesma e seus vizinhos, como o Japão e a Rússia, garantindo que nenhuma outra
potência tenha a capacidade de ameaçar sua posição.

Outra estratégia possível, a partir dessa lente, seria a China tentar retirar qualquer influência
militar norte-americana na Ásia, do mesmo modo pelo qual os EUA reduziram a influência
das grandes potências europeias no ocidente no século XIX.

Mearsheimer (2001) afirma, por fim, que duas estratégias devem ser
evitadas: o seguidismo (ou Bandwagoning) e o apaziguamento. Bandwagoning
ocorre quando um Estado se alinha com um poder adversário mais forte e admite
que esse adversário ganha desproporcionalmente os bens que conquistam juntos.
O bandwagoning, portanto, é uma estratégia empregada por Estados que se
encontram em uma posição fraca. A lógica estipula que um Estado mais fraco
e sem armas deve se alinhar com um adversário mais forte, porque este último
pode conquistar o que quer à força de qualquer maneira. Ocorre geralmente
quando um Estado mais fraco decide que os custos de se opor a um Estado
mais forte ultrapassam os benefícios. É uma estratégia considerada perigosa por
Mearsheimer (2001) porque permite que o Estado rival ganhe poder. Desse modo,
deve ser empregada apenas quando não há possibilidade de construção de uma
coalizão para balancear poder, ou quando há constrangimentos geográficos. A
mesma lógica é empregada quando a estratégia é o apaziguamento, ou a tentativa
de abrandar o conflito.

É possível identificar uma gama de semelhanças entre os diferentes


teóricos realistas, ainda que haja uma série de diferenças consideráveis em suas
propostas. O realismo clássico, conforme discutido, se debruça sobre questões
normativas e éticas para explicar o desejo dos Estados de competirem por poder.
O neorrealismo, por outro lado, foca nas características estruturais que levam
esses atores ao conflito na política internacional. Além disso, se debruça com
maior atenção sobre o equilíbrio de poder e sua importância na sobrevivência dos
Estados. O realismo ofensivo concorda com grande parte das premissas de seus
antecessores, mas foca nas estratégias utilizadas pelos atores para maximizar
poder, considerando a busca por hegemonia uma finalidade máxima dos Estados.

O quadro a seguir resume os principais pontos das três grandes abordagens


realistas a partir de duas indagações: “o que leva os Estados a competirem por
poder?” e “quanto poder desejam os Estados?”:

44
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

QUADRO 9 – QUADRO COMPARATIVO ENTRE REALISMO ESTRUTURAL E CLÁSSICO

REALISMO DA
REALISMO REALISMO
NATUREZA
DEFENSIVO OFENSIVO
HUMANA

O que leva
O desejo de poder
os Estados a A estrutura do A estrutura do
inerente aos
competirem sistema. sistema.
Estados.
por poder?

Tudo o que Não muito mais Tudo o que


conseguirem. do que o que conseguirem.
Os Estados tem. Os Estados Os Estados
Quanto poder
maximizam o concentram-se maximizam o
desejam os
poder relativo, na manutenção poder relativo,
Estados?
com a hegemonia do equilíbrio de com a hegemonia
como fim último. poder. como fim último.

FONTE: A autora

4 OS LIMITES DA TEORIA REALISTA E SEUS CRÍTICOS


O realismo tem sido uma das principais teorias do campo desde a
publicação de Política entre as Nações, de Morgenthau, em 1948. Suas premissas
foram incentivadas e fortalecidas pelo fracasso da tentativa liberal de prover
instituições capazes de gerir os conflitos internacionais. Ao se contrapor ao
suposto “idealismo”, denunciado por Carr (1939), o realismo construiu uma
agenda de pesquisa baseada na premissa da centralidade do Estado, nas incertezas
decorrentes da anarquia, no equilíbrio de poder e nos determinantes estruturais
das ações dos Estados. Ainda que tenha dominado a agenda de pesquisa no
campo por várias décadas (notadamente, até o fim dos anos 1970, início dos anos
1980), o realismo não foi imune a críticas dentro e fora do campo.

Uma das escolas em ascensão nesse período (anos 70) foi a Escola
Inglesa, representada, entre outros autores, por Hedley Bull, Adam Watson e
Martin Wight. Também conhecida como “Teoria da Sociedade Internacional”,
a abordagem foi relegada ao campo da História no início e reconhecida
gradualmente enquanto teoria das Relações Internacionais. Ainda que não caiba
no presente livro aprofundar a discussão sobre essa teoria, é válido refletir sobre
suas críticas à escola realista.

A Escola Inglesa critica o realismo em dois principais pontos: primeira-


mente, a considera uma teoria unidimensional, com um enfoque limitado em ter-
mos de atores relevantes e áreas temáticas. Além disso, ressalta que o realismo
não compreende e não leva em consideração que a política internacional é com-

45
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

posta pelo diálogo entre diferentes abordagens de diferentes campos. Baseados


em perspectivas clássicas da filosofia moral e política, os teóricos dessa escola
creem na existência de uma sociedade internacional, mais complexa e intricada
que o sistema internacional realista. Segundo Bull (2002), ela surgiria quando os
Estados, cientes de certos valores e interesses comuns, criam instituições e nor-
mas que comporiam uma sociedade internacional. A dificuldade dos realistas
em identificar esse surgimento e a importância das instituições internacionais do
ponto de vista normativo, seria uma limitação importante da teoria.

Os teóricos da sociedade internacional reconhecem, à semelhança dos


realistas, a importância do interesse nacional como um valor, mas não o aceitam
como o único valor essencial da política mundial. Também criticam a negligência
realista com relação a elementos morais e normativos, essenciais para a reflexão
sobre responsabilidade estatal, e com relação à contraposição entre os conceitos
de ordem e justiça, centrais para os teóricos ingleses.

Os teóricos marxistas também criticam a visão realista, considerando-a


excessivamente simplista. Os marxistas afirmam que o realismo falha em
considerar o Estado o ator principal das relações internacionais e em ignorar
a relevância de empresas e do capital transnacional na política mundial. Além
disso, o foco excessivo na esfera política, em detrimento da análise do sistema
internacional em termos econômicos, seria outra limitação realista.

Os construtivistas, representantes de uma escola teórica importante que


surge nos anos 1990 no campo, criticam o realismo pela ausência da discussão
sobre as identidades nacionais como elementos importantes na definição dos
interesses dos atores. O construtivismo também coloca em xeque a visão realista
sobre a anarquia. Alexander Wendt, um dos representantes mais importantes dessa
teoria, afirma que a anarquia pode ser constituída a partir das interações entre os
agentes, a partir da visão de Anthony Giddens sobre a “dualidade da estrutura”.
Nessa visão, estrutura e agente se coconstituem. Desse modo, a interação entre
os Estados determinaria a estrutura e, ao mesmo tempo, seria determinada por
ela. As interações podem ser de amizade, inimizade ou rivalidade, a depender da
área temática e dos atores envolvidos.

Outra crítica válida é a de que ainda que Waltz (1979) busque oferecer uma
teoria “científica” e “elegante” da política internacional, em vários momentos o
autor recorre a princípios normativos, típicos de seus antecessores. Além disso,
segundo Lawson e Shilliam (2010), Waltz teria interpretado erroneamente os
conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica da Durkheim, o
que teria prejudicado o seu entendimento sobre os elementos característicos da
anarquia internacional.

É necessário ressaltar, por fim, ainda que haja um conjunto de críticas


válidas a essa abordagem, os Estados permanecem sendo uma unidade de
análise central nas Relações Internacionais e possuem grande importância na
dinâmica da política internacional. Os realistas enfatizam a luta pelo poder e a

46
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

racionalidade dos Estados como elementos centrais pois empiricamente a história


confirma a recorrência de guerras, conflitos e da dinâmica de equilíbrio de poder.
Enquanto a política internacional mantiver essa recorrência, a teoria realista terá
relevância e capacidade de explicar as relações internacionais.

DICAS

Para entrevistas com autores realistas, como Kenneth Waltz e John


Mearsheimer, acesse:
http://globetrotter.berkeley.edu/people2/Mearsheimer/mearsheimer-con0.html

47
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

LEITURA COMPLEMENTAR

REALISMO VERSUS GLOBALISMO NAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Tullo Vigevani
João Paulo C. Veiga
Karina Lilia P. Mariano

A compreensão do mundo atual passa cada vez mais pelo exame das
relações entre temas econômicos e temas clássicos da estratégia e das relações
de poder, relativos às bases do poder mundial. Trata-se de compreender como a
capacidade econômica, entendida em sentido amplo e dinâmico, poderá incidir
nas formulações estratégicas globais, tornando-se o fator decisivo do poder em
escala internacional. Os autores que se utilizam do globalismo como ponto de
partida para suas análises teóricas do sistema internacional consideram que a
emergência da economia como fator explicativo básico das relações internacionais
é irreversível, sendo isso o que permite a compreensão das modificações em curso.
Essa perspectiva vem ganhando força com a aparente crise do realismo, que
predominou nos Estados Unidos durante décadas, após se sobrepor ao chamado
idealismo de inspiração wilsoniana, que tivera força no período entre as duas
guerras mundiais. Nesta nova fase dos debates, há uma tentativa de reabilitar
o realismo, ou o neo-realismo, como se chama a nova sofisticação desse modelo
de análise (Waltz, 1979), entrando como principais opositores os chamados
globalistas (Rosecrance, 1981).

É certamente esse o debate que oferece o pano de fundo necessário à


compreensão das modificações da política internacional, particularmente da
norte-americana nos anos oitenta, e que explica parte dos pressupostos, também
teóricos, que orientam a ação internacional dos Estados Unidos e dos demais atores.
Particularmente no caso das análises globalistas, que tiveram notável incidência
na formulação da política norte-americana nos anos oitenta, apesar de sempre
estarem condicionadas pelo realismo, deve-se dizer que alimentaram, também
fora dos Estados Unidos, as novas correntes "internacionalistas". Hoje, a questão
da crise do realismo e da supremacia da concepção liberal-internacionalista aponta
para uma relação complementar mais do que excludente. Os críticos do realismo
o qualificam de obsoleto, um modelo de análise envelhecido para um mundo
globalizado, no qual a aceitação universal de valores parece generalizar-se.

Contudo, o realismo permanece um modelo fundamental para a análise


das relações internacionais, menos por constituir um guia normativo e mais
por buscar uma perspectiva de explicação de como o mundo funciona. Por isso,
mesmo incompleto, o modelo realista vem sendo criticado por alguns mais com o
propósito de inserir nele novas variáveis do que para substitui-lo. De forma geral,

48
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

os desafios mais significativos vêm sendo propostos pela perspectiva globalista


ou liberal-internacionalista. As interpretações da política mundial devem ser
analisadas criticamente, o que implica um certo grau de sofisticação em relação
ao tema, pois todas as análises e todas as teorias estão enviesadas pela própria
experiência que as informa e por referências históricas, ideológicas e políticas. É
importante lembrar que a teoria não existe como um fim em si mesmo, e somente
tem sentido como arcabouço explicativo de realidades ou de projetos. Se não
possuir essa capacidade, rapidamente torna-se caduca.

A teoria política, assim como a teoria das relações internacionais, insere-


se num campo do conhecimento diretamente vinculado à consciência, à moral
e às concepções gerais do ser humano. Isso a torna uma área do conhecimento
intrinsecamente datada. Hoffmann assinala (Hoffmann, 1977) que a área do
conhecimento denominada "relações internacionais" é uma ciência social
tipicamente americana. O que caracteriza essa situação é a própria temática
tratada. Para Waltz, as teorias não nascem de tentativas de estabelecer leis, mesmo
nos casos em que essas tentativas obtenham sucesso. Para ele, a elaboração de
uma teoria é uma tarefa de importância fundamental devido à necessidade de
se decidir em que argumentos deve concentrar-se a atenção, com vistas a uma
explicação dos fatos e das relações internacionais. Portanto, para ele, o esforço
da elaboração teórica está voltado para a tentativa de identificar como variam
as possibilidades das grandes potências de governar de forma construtiva os
assuntos internacionais. Tendo em conta as mudanças da política mundial e as
modificações dos valores de que estamos imbuídos, não há garantia alguma de
que mesmo uma teoria hoje bem assentada possa permanecer válida no futuro.
Qualquer proposta teórica das relações internacionais deve ser atentamente
examinada para verificar o raio da sua aplicabilidade, e também o grau da sua
funcionalidade explicativa com respeito aos aspectos que se propõe tratar.

Mesmo considerando a existência de enfoques profundamente distintos,


há, segundo Cox, duas características sempre retomadas: a perspectiva de
os Estados Unidos serem a potência preponderante com um certo grau de
responsabilidade, e as relações entre poder e moralidade e entre ciência e
tradição (Cox, 1986). Nesse sentido, toda teoria das relações internacionais
tem seus princípios valorativos fortemente vinculados a concepções sobre o
homem. Justifica-se assim que toda análise séria das relações internacionais
parta de Hobbes, Grotius ou Kant, pois ela sempre remete à natureza do homem
e ao enfoque que se tem dessa mesma natureza. Nessa perspectiva, a natureza
humana projeta-se na sociedade e no Estado, e acaba determinando as relações
entre estados ou entre sociedades. Ao mesmo tempo, é importante que, na busca
dos fundamentos das relações internacionais, sejam estabelecidos parâmetros
referentes ao contexto do período histórico em questão.

No período entre as duas guerras tudo levava a crer que, nas relações
internacionais, prevalecia a concepção kantiana da não-existência objetiva do
conflito entre a moral e a política. Isso possibilitaria, segundo a proposta de Kant,
a constituição de uma liga de paz, que eliminaria todas as guerras. Implícita nisso

49
UNIDADE 1 — O REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

estava a exequibilidade da ideia de federação, que se estenderia gradativamente a


todos os estados. Naquele momento as formulações de uma política internacional
racional e pacifista estavam no auge, visíveis particularmente no empenho da
Liga das Nações por estabelecer uma paz duradoura e nas tentativas de alcançar-
se um desarmamento global. Essa concepção entrou em crise às vésperas da
Segunda Guerra Mundial, abrindo caminho para a emergência do realismo,
que se afirmou no mundo anglo-saxão como a formulação mais importante da
política exterior do pós-guerra. A preocupação dos realistas não tinha como
objeto principal a explicação das causas do poder: concentrava-se no poder em
si mesmo, sendo a busca deste considerada inata no ser humano. Disso decorre
a ideia de que a natureza humana determina em boa medida a lógica da ação
política dos homens, posto que a busca do poder é parte da sua motivação básica.
A compreensão do poder acaba sendo necessária à visualização do instrumento
para se alcançar outros objetivos, os chamados interesses nacionais. A estreita
vinculação entre a política e a natureza humana para os realistas torna-se ainda
mais clara quando se considera a explicação do fenômeno da guerra. Uma teoria
que pretende explicar como o mundo funciona deve ser capaz de revelar como e
porque as guerras ocorrem.

Morgenthau, que persistentemente rebateu as teses idealistas, entendia


a guerra como o resultado de forças inerentes à natureza humana. Segundo ele,
seria isso que induziria as organizações políticas à luta pelo poder. Waltz, mais
tarde, destacou a hipótese de Morgenthau, perguntando se a natureza humana
era capaz de explicar também a paz, ou por que determinados períodos eram
mais conflituosos do que outros. Na verdade, a questão de fundo, no caso, era a
de se as guerras eram ou não o resultado da organização anárquica do sistema
internacional, no qual cada Estado deve ser capaz de se prover de recursos
próprios para sobreviver, o que gera a necessidade do uso da força. A origem
hobbesiana desse encadeamento analítico é evidente. Nas relações internacionais
não haveria, de fato, um poder acima do poder soberano de cada Estado,
imperando, portanto, a desordem.

Daí a redução que os realistas fazem dos valores morais: para Hobbes,
onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Em outras
palavras, pode-se reconhecer aqui elementos que persistem em toda a elaboração
pós-Segunda Guerra Mundial. Há uma característica definitiva do Realismo que
reitera permanentemente a separação entre a esfera do nacional e a esfera do
internacional. Se, segundo a análise de Waltz, na esfera nacional há uma estrutura
hierárquica sempre funcionando, as partes dos sistemas políticos internacionais
estão, pelo contrário, numa situação de coordenação: "Formalmente cada uma
delas é igual a todas as outras: nenhuma tem o direito de mandar e ninguém tem o
dever de obedecer. Os sistemas internacionais são anárquicos e descentralizados"
(Waltz, 1979, p. 178). Tal situação exerce forte influência sobre o comportamento
dos Estados nacionais. Ainda que sem referência específica, a preocupação de
Hobbes com as relações entre os povos é evidente: "Mas mesmo que jamais
tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa situação
de guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis,

50
TÓPICO 3 — O NEORREALISMO OU REALISMO ESTRUTURAL

e as pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência


vivem em constante rivalidade, e na situação e atitude de gladiadores, com as
armas assentadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições
e canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com
espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra.
Mas como através disto protegem as indústrias de seus súditos, daí não vem
como consequência aquela miséria que acompanha a liberdade dos indivíduos
isolados" (Hobbes, 1974, p.81).

FONTE: <https://bit.ly/2TakXdM>. Acesso em: 30 jul. 2020.

51
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A emergência de novos atores e temas na política internacional, nos anos 1970,


leva ao questionamento das premissas do Realismo Político. Nesse contexto,
com o objetivo de propor uma abordagem mais “científica” do campo, é
publicada a obra Teoria da Política Internacional, de Kenneth Waltz, em 1979.

• Segundo Waltz (1979), a estrutura do sistema internacional seria caracterizada


por três elementos: (1) a anarquia enquanto princípio ordenador; (2) as
características das unidades; e (3) a distribuição de capacidades materiais entre
os Estados.

• Mearsheimer (2001) reforça a relevância do neorrealismo na explicação da


política internacional, apresentando cinco hipóteses que afirmam que a teoria
proveria explicações à realidade do início do século XXI. Elas são baseadas
na ideia de que conceitos como “autoajuda”, “racionalidade dos atores”,
“primazia da incerteza” e “capacidades militares” ainda têm validade analítica
e serviriam como base de explicação da política internacional.

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52
AUTOATIVIDADE

1 Sobre o Realismo Estrutural e as diferenças entre Realismo Defensivo e


Realismo Ofensivo, podemos afirmar que:

I- Os realistas defensivos consideram que o sistema internacional cria fortes


incentivos para o ganho adicional de poder, mas que a maximização
absoluta de poder deve ser evitada. Um dos motivos apresentados para
isso é a ideia de que se um Estado ficar muito poderoso, certamente haverá
um movimento de balancing no sistema internacional.
II- Para as vertentes do realismo estrutural, poder é baseado em
recursos materiais que um Estado controla. A balança de poder seria
fundamentalmente determinada em função dos recursos militares
disponíveis. Entretanto, os Estados possuem um segundo tipo de poder,
o poder latente, que se refere aos ingredientes socioeconômicos que são
empregados na formação de maior poder militar.
III- Ao contrário dos realistas clássicos, os realistas estruturais argumentam
que a explicação central para o comportamento dos Estados nas relações
internacionais não reside na natureza humana, mas, sim no sistema.
Entretanto, enquanto os realistas ofensivos tendem a focar exclusivamente
em argumentos estruturais para explicar a política internacional, os
realistas defensivos reconhecem que existem comportamentos dos Estados
que não podem ser explicados apenas com uma análise estrutural.

a) ( ) Todas as alternativas estão corretas.


b) ( ) I e II estão corretas.
c) ( ) Apenas I está correta.
d) ( ) II e III estão corretas.
e) ( ) Todas as alternativas estão erradas.

2 Como a teoria do neorrealismo de Kenneth Waltz se difere das tendências


anteriores do pensamento realista?

3 Cite e explique as três características principais da estrutura do sistema


internacional segundo Waltz (1979).

4 Em “Teoria da Política Internacional” Kenneth Waltz (1979) argumenta que:

I- As partes de um sistema anárquico estão relacionadas umas com as outras


de modo que uma parte sempre vai considerar o poder das demais para
avaliar sua segurança e seu curso de ação no sistema internacional.
II- A sobrevivência pode ser considerada um pré-requisito para alcançar
qualquer objetivo que os Estados possam ter.
53
III- A estrutura do sistema internacional é definida de acordo com o princípio
ordenador, a distribuição de capacidades e a função das unidades.
IV- Ao focar nos Estados enquanto unidades principais da estrutura do
sistema, intencionalmente são ignorados da análise todos os atributos e
qualidades particulares dos Estados, exceto forma de governo e sistema
político. Desta forma a descrição da ordem internacional é conduzida a
partir apenas do posicionamento das unidades.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) I e II.
b) ( ) II e IV.
c) ( ) III e IV.
d) ( ) I, II e III.
e) ( ) II, III e IV.

5 Em A Tragédia das Grandes Potências, John Mearsheimer postula que:

I- Um Estado, por não ter certeza das intenções dos demais, deverá agir
sempre com base no pior cenário possível.
II- Atingir a hegemonia global é o objetivo final de todos os Estados. Esse
status pode ser alcançado apenas quando um Estado derrota o mais
poderoso do sistema.
III- Os Estados devem estar preocupados com questões que podem levar o
planeta ao colapso, tais como o aquecimento global, questões de segurança
alimentar e doenças pandêmicas.
IV- Devido ao poder parador das águas, alcançar a hegemonia mundial se
torna uma tarefa excessivamente árdua. O melhor resultado passa a ser,
portanto, se tornar o hegêmona regional, evitando o surgimento de outros
hegêmonas em outras regiões.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) I e II.
b) ( ) I e IV.
c) ( ) III e IV.
d) ( ) I, II e III.
e) ( ) II, III e IV.

54
REFERÊNCIAS
BULL, H. A Sociedade anárquica: um estudo da ordem da política mundial.
Brasília, DF: Funag. 2002.

CARR, E. H. The twenty years crisis (1919-1939): an introduction to the study of


International Relations. New York: Harper Perennial. 1939.

HOBBES, T. Leviatã. São Paulo: Martin Claret. 2009.

JACKSON, R., SORENSEN, G. Introdução às relações internacionais. Rio de


Janeiro: Zahar. 2007.

KISSINGER, H. Diplomacy. New York: Simon and Schuster, 1994.

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55
56
UNIDADE 2 —

O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES


INTERNACIONAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• identificar os principais conceitos da corrente liberal, suas potencialidades


e limites de análise da política internacional;

• analisar as consequências da interdependência entre os Estados e o papel


das instituições, regimes e organizações internacionais na promoção da
cooperação;

• diferenciar as diferentes perspectivas da corrente liberal ao longo dos


anos, do liberalismo clássico às perspectivas contemporâneas;

• identificar a influência do liberalismo clássico na teorização contemporânea


acerca das instituições e regimes internacionais.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – LIBERALISMO CLÁSSICO

TÓPICO 2 – INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS


LIBERAL E NEOLIBERAL

TÓPICO 3 – OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

57
CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em


frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor
as informações.

58
TÓPICO 1 —
UNIDADE 2

O LIBERALISMO CLÁSSICO

1 INTRODUÇÃO

Conforme discutido anteriormente, a vertente liberal foi alvo de


críticas ao longo dos anos por parte do realismo nas Relações Internacionais.
Independentemente de sua validade teórica e consonância com a empiria, é
inegável que a vertente liberal teve influência no campo, desde a sua criação.
É possível afirmar que no contexto inicial de evolução do campo acadêmico de
Relações Internacionais, o liberalismo foi eclipsado pela validade dos conceitos
realistas na explicação de um mundo marcado pela predominância do uso da
força na obtenção de interesses e na busca por sobrevivência.

Ao longo dos anos, e mais especificamente no fim do século XX, a rele-


vância de instituições, regimes e organizações internacionais passa a ser objeto
de análise inevitável. Neste contexto, o determinismo e pessimismo realistas fi-
cam em evidência, abrindo espaço para a (re)emergência do pensamento liberal
nas Relações Internacionais. O pensamento liberal, entretanto, tem suas raízes
muito antes da criação de um campo de conhecimento dedicado ao estudo da
política internacional.

Não há um único liberalismo, assim como não há um único realismo.


A vertente é composta por uma gama de autores e por uma diversidade de
teorias e argumentos que não cabem em uma única síntese. Ainda, assim, é
possível identificar semelhanças entre as várias contribuições liberais: a visão
otimista sobre a natureza humana, a aplicabilidade de princípios racionais a
questões internacionais, a preocupação com a liberdade individual, a crença
no progresso (em diferentes graus) e nas possibilidades de cooperação (entre
indivíduos e entre Estados).

Historicamente, a vertente liberal é associada à ascensão da burguesia no


fim do século XVII e da propriedade privada derivada do trabalho dos indivíduos.
As mudanças históricas ocorridas nesse período – com efeito das Revoluções
Liberais: a Gloriosa, de 1688/1689, a Americana, de 1776, e a Francesa, de 1789
– foram centrais para a consolidação dessa nova classe social que ascendia. É
importante dividir os pensadores liberais clássicos em duas categorias (ainda que
haja semelhanças em suas propostas): os liberais políticos e os liberais econômicos.

59
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Do ponto de vista político, destacam-se John Locke, o barão de


Montesquieu, Hugo Grotius, Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Immanuel Kant.
Do ponto de vista econômico, o grande expoente foi Adam Smith.

No campo específico das Relações Internacionais, além de Wilson e Angell


(representantes da vertente liberal denominada “idealismo”), anteriormente
mencionados, a perspectiva liberal ganha força nos anos 1980, com a visão de
Robert Keohane e Joseph Nye sobre a crescente interdependência entre os atores.
Também se destacam nomes como Lisa Martin, Andrew Moravcsik e Stephen
Krasner. Assim, o presente tópico será dedicado à discussão da vertente liberal,
dos clássicos como John Locke e Immanuel Kant ao pensamento contemporâneo,
representado pelo Funcionalismo e pelos teóricos do Institucionalismo Neoliberal.

2 A TRADIÇÃO LIBERAL NO PENSAMENTO POLÍTICO: O


CONTRATUALISMO DE JOHN LOCKE
Um dos grandes autores clássicos do liberalismo, John Locke (1632-1704),
foi autor de uma série de obras relevantes sobre a vida em sociedade a partir da
filosofia política, dentre elas: Ensaio sobre o Entendimento Humano (1690) e Dois
Tratados sobre o Governo Civil (1690). Locke, à semelhança de Hobbes, era um dos
denominados “contratualistas”, ou seja, defendia que aquilo que deu origem ao
Estado seria um contrato entre os indivíduos. Ao contrário de Hobbes, porém,
afirmava que o estado de natureza não era uma situação de anarquia completa,
no qual não havia nenhuma lei ou segurança.

NOTA

OS CONTRATUALISTAS: LOCKE, HOBBES E ROUSSEAU

Contratualismo é um termo na filosofia e na ciência política que se refere a uma série


de teorias políticas e filosóficas que buscam explicar a criação do Estado e por que os
indivíduos concordam em abrir mão de algumas de suas liberdades em troca da proteção
de seus direitos e da manutenção da ordem social. Autores contratualistas, como John
Locke, Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau, ganharam notoriedade durante o
iluminismo e influenciaram uma gama de autores liberais que sucederam seus trabalhos.

Segundo Locke (1994), no estado de natureza havia uma série de leis


naturais, dadas aos indivíduos por Deus, que indicavam como se deveria agir.
Esse direito natural indicava que as promessas deviam ser cumpridas e que
cada um teria direito à vida e aos frutos de seu trabalho. A passagem do estado
de natureza para a sociedade civil teria sido feita via pacto, com o objetivo de
60
TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO

melhorar e garantir as benesses já existentes no estado de natureza. O pacto,


então, não romperia com ele, mas o aperfeiçoaria. Locke (1994) acreditava que
os indivíduos seriam sociáveis por natureza, não precisando de uma autoridade
separada da sociedade para viver em conjunto.

A autoridade criada pelo pacto seria resultado do consenso entre os


cidadãos que, sem abdicar de nenhum de seus direitos dados por natureza,
criam um soberano capaz de aplicar as leis e se submeter ao controle daqueles
que o contrataram. Caso isso não ocorra, o soberano perderia legitimidade e,
portanto, sustentação entre os indivíduos. Esses dois princípios elencados por
Locke (1994): o de direito natural (e inalienável) e o da legitimidade do governo
soberano (que deve seguir as leis, sem nenhuma arbitrariedade) são elementos
centrais do pensamento liberal.

Uma das marcas de sua visão é a defesa da responsabilidade do soberano


com relação aos seus súditos. Segundo Locke (1998) nem o direito divino dos reis,
dado por Deus, nem a visão hobbesiana de um “todo poderoso” que emergiria
do contrato seriam autoridades legítimas. A legitimidade seria a de um soberano
que agiria como uma espécie de “gerente” do Estado e que poderia (e deveria) ser
controlado pela população.

A solução para esse controle seria a separação dos poderes do Estado em


dois: um, a cargo do soberano, que executaria as leis e realizaria os julgamentos
sobre as suas infrações: a junção de executivo e judiciário. O outro poder faria
as leis, o legislativo, representando o povo e composto por “homens com
propriedade”, encarregados de escolher seus representantes. Locke (1998) não
propunha o sufrágio universal, que concederia a todos os indivíduos (sem
distinção) o direito ao voto, mas uma melhoria do sistema vigente. Desse modo,
o autor quebra com a ideia hobbesiana de que soberania deveria ser única.

Outra questão central do pensamento contratualista de Locke (1994)


é a propriedade privada. Segundo o pensador, as obrigações de constituir
propriedade pelo trabalho e respeitar as propriedades assim constituídas seriam
partes centrais do que denomina “lei natural” e, como lei, implicaria obrigações
passíveis de punição em caso de transgressão.

As leis naturais não dependeriam do poder político para obrigar e regular


as relações entre os cidadãos. Desse modo, haveria, antes mesmo da constituição
do corpo político, um conjunto de deveres e obrigações que vinculariam os
homens uns aos outros, naquilo que denomina “comunidade natural”.

Por propriedade, o autor não entende apenas os bens que cada homem
possui, mas também que cada indivíduo possuiria uma propriedade em sua
própria pessoa, além de possuir “o trabalho do seu corpo e a obra de suas mãos”
(LOCKE, 1998, p. 409). As posses que um homem possui em sua própria pessoa
seriam bens inalienáveis.

61
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A terra seria um bem concedido ao homem por Deus, de forma


indiscriminada e, portanto, um bem comum a todos os indivíduos. Ao trabalhar
sobre determinada porção de terra, o homem fixa a propriedade e a diferencia
daquilo que é compartilhado com os demais. O que daria início à propriedade
seria o ato de “tomar parte daquilo que é comum e retirá-lo do estado que a
deixa a natureza” (LOCKE, 1998, p. 410). O trabalho seria aquilo que dá direito à
propriedade a quem faz uso conveniente daquilo que todos os homens possuem
em comum: a natureza.

O homem em estado de natureza deve defender sua propriedade de


qualquer ataque externo e, além disso, possuiria o poder de julgar e punir
qualquer pessoa que ataque a propriedade, não só a dele, mas a de terceiros, com
base na lei natural. O homem que infringe essa lei seria inimigo da humanidade
e todos que desejam protege-la teriam o direito de castigá-lo, fazendo valer a lei.
Dessa forma, o homem abandona o estado de natureza apesar de sua liberdade
porque só assim terá garantias de segurança contra os ataques externos. Um dos
objetivos centrais do contrato social seria a preservação da propriedade.

O estado de natureza para Locke (1998) não seria um estado de dispersão,


mas um contexto em que os homens estariam naturalmente ligados uns aos
outros pela racionalidade. Todo homem teria, a partir do uso da razão, o dever
de constituir e respeitar a propriedade alheia. Esse reconhecimento vincularia
os homens uns aos outros em uma série de relações – jurídicas, econômicas, de
trabalho e de produção de bens.

O contrato político não criaria, portanto, laços de dever e obrigação, mas


evitaria que, em estado de guerra, essas relações se tornem de puro poder. Segun-
do o autor, “evitar o estado de guerra [...] é a grande razão pela qual os homens se
unem em sociedade e abandonam o estado de natureza” (LOCKE, 1998, p. 400).

O estado de guerra, ao contrário do que afirma Hobbes (1983), não seria


causado pelo direito dos homens de usar seu poder sem restrição, mas o fato de
que as restrições naturais ao uso do poder possam ser transgredidas. Ou seja,
a transgressão da lei natural cria uma situação em que os vínculos de dever e
obrigação estabelecidos por ela são justificadamente substituídos por relações de
poder e violência.

Desse modo, em estado de guerra, a “comunidade natural” composta pe-


los indivíduos agindo em reciprocidade se degeneraria. Para evitar essa conse-
quência, os homens instituiriam por contrato o governo civil e, caso esse governo
transgrida a lei, caberia aos indivíduos com base no direito natural destituí-lo.

É importante entender a lógica do pensamento lockeano e também


contrapor suas ideias à visão de Hobbes. Enquanto o segundo afirmava que a
natureza humana era marcada pelo conflito de todos contra todos e pelo uso
irrestrito do poder, o primeiro acreditava que os homens seriam capazes de
conviver ordenadamente e que o contrato social potencializaria os benefícios já

62
TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO

existentes no estado de natureza. Seu pensamento é baseado no direito natural,


que ligaria todos os homens a partir de sua capacidade de usar a razão e agir
com reciprocidade, em nome do bem comum. Da mesma forma que os realistas
se baseiam no contratualismo hobbesiano para refletir sobre as ações dos
Estados na política internacional, concluindo que as relações são inerentemente
conflituosas, os liberais nas RIs vão recorrer à visão otimista de Locke e Jean-
Jacques Rousseau para teorizar sobre a potencialidade dos Estados cooperarem
através de instituições e regras criadas por eles mesmos.

3 A TEORIA POLÍTICA LIBERAL DE ROUSSEAU


Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi, ao mesmo tempo, produto
do Iluminismo e um de seus principais expoentes. Leitor de Locke e Hobbes,
desenvolveu sua própria teoria sobre a natureza humana, a criação do Estado e o
estabelecimento do contrato social, conceitos centrais de Do Contrato Social (1762).
A visão do autor sobre esses conceitos tornou-se sua principal contribuição para
o campo das Relações Internacionais.

A compreensão da interação entre os Estados no âmbito internacional


depende do exame daquele que dá origem ao Estado: o indivíduo. A concepção
do autor sobre o estado de natureza é de que ele seria marcado pela liberdade e
bondade naturais. No entanto, o homem teria a capacidade de ser bom e meu. A
sociedade corromperia o homem, e a fonte disso repousaria em instituições ruins
passíveis de substituição por instituições melhores (HALL, 1956, p. 22).

Com o objetivo de definir precisamente o estado de natureza humano,


Rousseau estabeleceu três princípios básicos em sua obra Discurso sobre a Origem
e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens (1754). O primeiro argumento
afirma que o homem no estado de natureza seria solitário e não teria laços
permanentes com os demais.

Em segundo lugar, o homem teria apenas dois princípios: o amor próprio,


demonstrado pela ganância, egoísmo e busca por interesse próprio, e piedade,
demonstrada através da compaixão, admiração e amor pelos outros. Por fim,
seria possível distinguir os homens dos demais animais, principalmente porque
ele possuiria livre arbítrio e teria a capacidade de se aperfeiçoar. A partir dessas
três premissas, o autor elabora uma explicação sobre como a sociedade teria
corrompido os homens naturalmente bons.

Através do progresso histórico, os indivíduos testemunharam o estabele-


cimento e distinção das ideias de “família” e “propriedade”. Quando da criação
dessas “instituições”, os homens teriam passado a se comparar uns aos outros.

Outro ponto de inflexão teria surgido com a invenção de novas


tecnologias, como agricultura e metalurgia, que levaram os homens a se
tornarem dependentes uns dos outros por recursos e responsabilidades, desse

63
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

modo, a divisão do trabalho foi criada. Como resultado direto dessa divisão
e da existência de propriedade, a desigualdade entre os homens tornou-se
escancarada e a liberdade tornou-se escravidão.

O homem foi dividido em classes sociais determinadas pela riqueza e pelo


poder e, portanto, tornou-se compelido a obter lucro pessoal às custas dos demais.
O estado de natureza humano tornou-se conflituoso devido a essa competição. Des-
se modo, os homens só poderiam recuperar sua liberdade estabelecendo um poder
supremo que os governaria, de acordo com as leis às quais haviam consentido.

No cerne da filosofia política de Rousseau está a forma como esse governo


foi criado. Para o autor, a passagem do estado de natureza para a sociedade civil
produziria uma mudança notável no homem; colocaria a justiça como regra de con-
duta no lugar do instinto e confere às suas ações a qualidade moral que elas ante-
riormente não possuíam (HALL, 1956). Rousseau acreditava na democracia direta
como o sistema político a partir do qual os homens poderiam atingir a liberdade.

O estabelecimento de um contrato social seria relacionado principalmente


à ideia de que, para permanecer livre em uma sociedade política, os indivíduos
devem, acima de tudo, ter a liberdade de criar suas próprias leis.

A voz da coletividade se tornaria a “vontade geral” e os indivíduos seriam


seus próprios soberanos. Essa coletividade teria a obrigação de obedecer a suas
próprias leis para permanecer livre.

Desse modo, a vontade geral seria definida como a “harmonização dos


interesses individuais e coletivos” (HALL, 1956, p. 73). Obedecer a essa vontade
não seria uma perda de liberdade porque os indivíduos estariam obedecendo
a si mesmos.

Outro componente importante do contrato social seria a instituição política.


Rousseau define o Estado como “essencialmente a expressão institucional do
propósito moral do homem e não um dispositivo pelo qual os homens podem se
controlar” (ROUSSEAU, 1999 apud HALL, 1956, p. 141). Os membros do governo
implementam o poder que lhes é delegado em nome do soberano, de modo a
garantir a liberdade do povo governado.

Segundo Rousseau (1999), esse sistema só poderia existir em uma


democracia direta, em que cada indivíduo participa diretamente do processo
de tomada de decisão. Ainda que defenda essa modalidade de representação, o
autor admite que democracias diretas só podem funcionar em países pequenos,
nos quais é possível reunir assembleias periodicamente.

O quadro a seguir ilustra os principais pontos da visão lockeana sobre


estado de natureza, contrato social e suas consequências e os contrapõe à leitura
de Rousseau:

64
TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO

QUADRO 1 – COMPARAÇÃO ENTRE AS CONCEPÇÕES DE ESTADO DE NATUREZA E


CONTRATO SOCIAL EM LOCKE E ROUSSEAU

LOCKE ROUSSEAU

Antes de haver Estado e


No estado de natureza os
sociedade organizada, os
indivíduos já gozam de di-
seres humanos são livres,
reitos básicos, como vida,
iguais e bons. A socieda-
verdade e propriedade.
ESTADO DE de é que os corrompe. No
Contudo, não existem meca-
NATUREZA estado natural há dificul-
nismos que obriguem ao res-
dade em satisfazer as ne-
peito desses direitos natu-
cessidades básicas. Não
rais nem para legitimamente
haveria direitos anterio-
castigar os que os violam.
res ao contrato social.

Cada membro da socie-


dade abdica sem reserva
de todos os seus direitos
em favor da comunidade.
Para assegurar o respeito pe-
Mas como todos abdicam,
los direitos naturais, os indi-
na verdade, ninguém
víduos dão ao Estado o po-
perderia. Cada membro
CONTRATO der de os defender e tutelar.
enquanto elemento ativo
SOCIAL O contrato social é revogá-
do todo social, ao obe-
vel, pode ser revogado caso
decer a lei, obedece a si
os governantes não respei-
mesmo. O contrato não
tem os direitos dos cidadãos.
faz o indivíduo perder
a sua soberania, pois ele
não cria um Estado sepa-
rado de si mesmo.

CONSEQUÊNCIA Democracia representativa Democracia direta

FONTE: A autora

4 O PENSAMENTO DE KANT E A PAZ PERPÉTUA


Immanuel Kant (1724-1804) não é um autor facilmente enquadrado na
escola liberal. Enquanto argumentava em prol da liberdade de imprensa, defendia
os direitos de propriedade e advogava por políticas mais humanistas e focadas na
paz, fez considerações negativas com relação a judeus, negros e mulheres em sua
obra Antropologia de um ponto de vista pragmático, de 1798.

65
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Ainda assim, no que diz respeito a sua contribuição para o pensamento


liberal nas Relações Internacionais, cabe incluí-lo no conjunto de pensadores
dessa vertente. A filosofia de Kant é amplamente caracterizada como filosofia
crítica. Suas três principais obras são: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão
Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790). Segundo Kant:

A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-


se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade,
querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas
justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a
razão só concede a quem pode sustentar o seu livre o público exame
(KANT, 1993, p. 5).

Segundo o autor, somente aquele que se submete ao exame público


poderia adquirir respeito. Nesse sentido, está alinhado ao espírito iluminista que
defende que tudo deveria ser esclarecido, trazido à público.

Kant acreditava que o progresso das sociedades seria alcançado


pelo esclarecimento e pelo uso da razão, instrumento universal e vital para o
direcionamento crítico e moral dos indivíduos.

Kant também defendia que a melhor constituição política para que os


indivíduos pudessem preservar sua liberdade e atingir o esclarecimento máximo
seria uma constituição republicana.

O caminho rumo ao republicanismo, segundo o autor, não seria via


revolução (porque esta desconsideraria os deveres morais dos indivíduos uns
com os outros), mas via reforma gradual e lenta do Estado (KANT, 1993).

Os princípios republicanos garantiriam a paz e a ordem desejadas pelos


indivíduos porque: (1) pressupõem a proteção dos direitos dos homens; (2)
defendem o consenso e a representação como forma de legitimidade do governo;
e (3) a transparência nas decisões do Estado.

NOTA

O PENSAMENTO REPUBLICANO

O pensamento republicano tem origem na Grécia Antiga, com pensadores como Aristóteles
(384-322 a.C.) e Cícero (106-43 a.C.), e evoluiu historicamente a partir das ideias de Maquiavel
(1469-1527) e Kant (1724-1804). Essa visão defende que o chefe de Estado seja escolhido
pelo povo e tenha sua autoridade legitimada pela representação, em um mandato finito e
limitado, em oposição às monarquias nas quais a legitimidade do governante vinha de sua
descendência e o mandato era vitalício.

66
TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO

Desse pensamento deriva um dos conceitos mais celebrados da obra


de Kant (e utilizados nas reflexões sobre a política internacional): o de “paz
perpétua”. Segundo o autor, as guerras seriam causadas principalmente pela
diferença entre as formas de governo (KANT, 1997).

Kant condenava Estados dinásticos, como a França, nos quais as decisões


não eram tomadas a partir da vontade do povo, mas levando em conta critérios
individuais. Isso encorajaria a busca ilimitada por poder e por territórios.

Em governos republicanos, por outro lado, prevaleceria o interesse


coletivo, o que dificilmente levaria a conflitos. Isso ocorreria porque a guerra
colocaria em xeque a segurança e sobrevivência dos indivíduos e o uso da razão
(instrumento universal, comum a todos os homens) levaria a conclusão de que
conflitos deveriam ser evitados.

Ainda segundo Kant (1997), se todos os Estados adotassem o


republicanismo e a escolha democrática de seus governantes, o mundo seria mais
pacífico e gradativamente se atingiria o que denomina “paz perpétua”. Nesse
contexto, as instituições teriam papel fundamental na manutenção dos ideais de
paz e segurança internacionais.

É possível apontar no pensamento liberal em Relações Internacionais dois


elementos centrais derivados do legado kantiano: a visão de que democracias
tendem a não usar a força contra outras democracias e a afirmação de que o
comércio tende a criar incentivos à manutenção das relações de paz entre Estados.

Com relação à visão de Kant sobre democracia, o autor defende que Estados
democráticos operam internamente com o princípio de que conflitos devem ser
solucionados de modo pacífico, por meio de negociação e compromissos, sem
que se recorra a ameaças ou uso da força (KANT, 1997).

Os povos democráticos e seus líderes reconheceriam outras democracias


como países que operam sob os mesmos princípios em suas relações domésticas
e, assim, estenderiam a eles o princípio da resolução pacífica de conflitos.

Espera-se que haja negociação e estabelecimento de compromissos for-


mais entre Estados democráticos, tornando desnecessário e ilegítimo o uso da
força física.

É esperado que as ditaduras, por outro lado, operem com base nos
princípios hobbesianos, fazendo ameaças e recorrendo à força militar.

Outra característica das democracias seria a existência de instituições.


Líderes de países democráticos que travam uma guerra seriam responsabilizados,
via instituições democráticas, pelos custos e benefícios do conflito. Por
exemplo, políticos que iniciam guerras correriam o risco de não serem reeleitos,
especialmente se perderem ou se a guerra for longa ou cara.

67
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Ao antecipar esse risco, os líderes democráticos evitarão se engajar em


conflitos, especialmente se anteveem uma perda. Ditadores, entretanto, se-
riam mais capazes de reprimir possíveis opositores e permanecer no poder
após um conflito.

Com relação aos incentivos criados pelo comércio internacional, a visão


kantiana afirma que o comércio entre países estabelece um meio de comunicação
através do qual se troca informações sobre necessidades e preferências, e isso vai
além da simples troca de produtos.

Esse processo resultaria em um entendimento mútuo, empatia e


reconhecimento de similaridades entre os países através das fronteiras.

Além disso, conflitos violentos colocariam em risco o acesso a mercados,


importações e capital, aumento os riscos e custos dos países, que tenderiam a
evitá-los.

Segundo Kant (1994), quanto maior a contribuição do comércio entre dois


países para suas economias nacionais, mais forte será o interesse em preservar
relações pacíficas entre eles.

No campo das Relações Internacionais, um dos primeiros pensadores a


considerar válidas as premissas kantianas foi Woodrow Wilson (1856-1924).

Apropriando-se das premissas do filósofo clássico e do pensamento


liberal de modo mais amplo, o ex-presidente norte-americano formulou uma
série de pontos para a obtenção e preservação da paz na política internacional e
inaugurou uma importante agenda de pesquisa no campo que se iniciava.

O subtópico seguinte será dedicado à reflexão sobre o pensamento de


Wilson e seu legado para a vertente liberal nas RIs.

5 O IDEALISMO WILSONIANO E A CRIAÇÃO DO CAMPO


DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS
À semelhança do pensamento realista, o Idealismo nas Relações
Internacionais não é homogêneo. Ainda assim, é possível identificar semelhanças
entre os vários pensadores dessa vertente: a ênfase no poder da razão, a
importância da disseminação do conhecimento e da democracia e o apoio ao
aumento do controle democrático da política externa, que fortaleceria a opinião
pública mundial.

Além disso, o pensamento idealista vê a guerra como condenável e


enfatiza a existência de uma harmonia natural de interesses entre todos os povos,
independente da nacionalidade. Isso ocorreria porque todos os indivíduos

68
TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO

estariam vinculados por uma moralidade comum, baseada no princípio kantiano


da reciprocidade. Nesse sentido, cabe discutir a contribuição de um dos principais
pensadores idealistas: Woodrow Wilson (1856-1924).

Wilson foi o 28º presidente dos Estados Unidos e um dos principais


pensadores da vertente denominada “Idealismo” das Relações Internacionais.
Foi eleito em 1912, e, novamente, em 1918, ao fim da Primeira Guerra Mundial,
e empreendeu esforços para estabelecer um acordo de paz definitivo e uma
estrutura institucional que findasse as tentativas de conflito internacionais.

Tendo como base a doutrina filosófica de Kant, o político colocou a


autodeterminação como centro do Acordo de Paz da Conferência de Paris, de 1919,
que colocou fim à Primeira Guerra Mundial, e propôs a criação de um aparato
institucional que findasse as tentativas de conflito na política internacional.

NOTA

O PRINCÍPIO DA AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS

Autodeterminação, segundo o direito internacional, é um princípio que garante a todas as


nações o direito de se autogovernar, sem interferência externa de outro país ou instituição,
de forma soberana.

As propostas de Wilson eram largamente baseadas em 14 pontos expressos


em um discurso proferido, em janeiro de 1918, ao congresso americano, no qual
defendia o fim das animosidades entre as nações e a obtenção de uma “paz sem
vencedores”. O quadro a seguir ilustra os pontos defendidos por Wilson.

QUADRO 2 - OS QUATORZE PONTOS DE WILSON

1. Inaugurar pactos de paz, depois dos quais não deverá haver acordos
diplomáticos secretos, mas uma diplomacia franca e sob o olhar público.
2. Liberdade de navegação nos mares e águas fora dos territórios nacionais, tanto
em momentos de paz quanto de guerra, com exceção dos mares fechados
completamente ou em parte por ação internacional em cumprimento de
pactos internacionais.
3. Abolição, dentro dos limites legais, de todas as barreiras econômicas entre
os países e estabelecimento de uma igualdade de condições comerciais entre
todas as nações que concordam com a paz e com a associação multilateral.
4. Garantias adequadas da redução dos armamentos nacionais até o menor nível
necessário para a garantia da segurança nacional.

69
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

5. Um reajuste livre, aberto e imparcial da política colonialista, baseado na


observação do princípio de que a soberania dos interesses das populações
colonizadas deve ter o mesmo peso dos pedidos das nações colonizadoras.
6. Retirada dos exércitos do território russo e solução de todas as questões
que envolvem a Rússia, visando assegurar melhor cooperação com todas as
nações do mundo. O tratamento dispensado à Rússia por suas nações irmãs
será o teste de sua boa vontade, da compreensão de suas necessidades como
distintas de seus próprios interesses e de sua simpatia inteligente e altruísta.
7. A Bélgica precisa ser restaurada, sem qualquer tentativa de limitar sua
soberania, a qual tem direito assim como as demais nações livres.
8. Todo o território francês deverá ser libertado e as partes invadidas restauradas.
O mal feito à França pela Prússia, em 1871, na questão de Alsácia e Lorena,
deve ser desfeito para que a paz possa ser garantida mais uma vez, no interesse
de todos.
9. Reajuste das fronteiras italiana, respeitando as linhas reconhecidas de
nacionalidade;
10. Reconhecimento do direito ao desenvolvimento autônomo dos povos da
Áustria-Hungria, cujo lugar entre as nações queremos ver assegurado e
salvaguardado.
11. Retirada das tropas estrangeiras da Romênia, da Sérvia e de Montenegro,
restauração dos territórios invadidos e o direito de acesso ao mar para a
Sérvia.
12. Reconhecimento da autonomia da parte da Turquia dentro do Império
Otomano e abertura permanente do estreito de Dardanelos como passagem
livre aos navios e ao comércio de todas as nações, sob garantias internacionais.
13. Independência da Polônia, incluindo os territórios habitados pela população
polonesa, que devem ter acesso seguro e livre ao mar.
14. Criação de uma associação geral sob pactos específicos para o propósito de
fornecer garantias mútuas de independência política e integridade territorial
dos grandes e pequenos Estados.
FONTE: Adaptado de <https://bit.ly/2INaQcP>. Acesso em: 31 jul. 2020.

Os primeiros cinco pontos, mais gerais e amplos, defendem o fim de


acordos secretos, a liberdade de navegação nos mares, o livre comércio mundial,
a redução dos armamentos e o direito dos povos colonizados à autodeterminação.
Nesse sentido, fica evidente a influência do pensamento liberal clássico na
proposta de Wilson, na medida em que valoriza a transparência, a liberdade de
cada nação e o livre-comércio.

Os pontos 6 a 13 refletem sobre questões específicas da Primeira Guerra


Mundial, relacionadas a compensações territoriais e à configuração política do
sistema internacional no pós-guerra. O último ponto, por fim, tem destaque com
relação aos demais, pois a partir da proposta de criação de uma associação geral
com o objetivo de garantir independência política e integridade territorial, é
criada a Liga das Nações.

70
TÓPICO 1 — O LIBERALISMO CLÁSSICO

NTE
INTERESSA

A LIGA DAS NAÇÕES

A organização foi criada em 1919 e composta por 32 membros fundadores, além de


13 Estados convidados. Possuía quatro órgãos centrais: o Secretariado, o Conselho, a
Assembleia e o Tribunal Permanente de Justiça Internacional. Além disso, sob o “guarda-
chuva” da Liga foram criadas: a Organização da Saúde, a Organização Internacional do
Trabalho, o Conselho Central Permanente do Ópio, a Comissão de Escravatura, o Comitê
para os Refugiados e o Comitê para o Estudo do Estatuto Jurídico da Mulher.

A organização foi criada em 29 de abril de 1919, durante a Conferência


de Paz de Paris, liderada por Estados Unidos, Reino Unido, França e Itália. Foi
a primeira instituição internacional a propor a manutenção da paz a partir de
mecanismos jurídicos institucionalizados.

A figura a seguir ilustra seus membros, dividindo-os entre os países


fundadores que permaneceram até o fim, fundadores que saíram e retornaram
à Liga, fundadores que deixaram a instituição, países que integraram a Liga
depois de sua criação e ficaram até o fim, países que deixaram a instituição,
colônias dos membros, colônias de membros que deixaram a instituição e
colônias de não-membros:

FIGURA 1 – OS MEMBROS DA LIGA DAS NAÇÕES

FONTE: <https://bit.ly/31kxXC4>. Acesso em: 31 jul. 2020.

71
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Liga foi criada a partir da noção de que a anarquia internacional seria


uma das principais causas da Primeira Guerra Mundial e, portanto, o princípio
da soberania e o equilíbrio de poder precisavam ser regulamentados. Algumas
das propostas da organização, para isso, incluíam uma estrutura de segurança
coletiva, o desarmamento gradual, diplomacia aberta e transparente e prestação
de contas por parte das antigas metrópoles às colônias.

A visão de Wilson foi considerada ousada para a época. O presidente


acreditava no poder de uma opinião pública forte, que rejeitaria a guerra, e na
possibilidade de manutenção da paz pela via institucional. Caberia à Liga evitar
a criação de alianças militares e tornar transparentes as práticas diplomáticas.

Apesar dos esforços de Wilson para a consolidação da organização, o Se-


nado americano se posicionou contrário à entrada dos Estados Unidos na Liga, e
o país nunca foi membro da instituição. Esse foi um dos inúmeros problemas que
levaram ao seu fim e ao fracasso do multilateralismo no período entre guerras.
Apesar do fracasso da Liga das Nações em garantir e manter a paz mundial, o
legado de Wilson foi de importância central para a criação do campo das Relações
Internacionais. Em 1919, foi fundado o primeiro Departamento de Política Inter-
nacional, na Universidade de Aberystwyth, no País de Gales, e a primeira cátedra
dedicada ao estudo das relações internacionais foi nomeada Woodrow Wilson.

Com relação ao legado do pensamento wilsoniano, é importante ressaltar


que o termo “Idealismo”, usado para caracterizar as ideias do ex-presidente
americano e seus seguidores, não foi criado pelos próprios pensadores dessa
vertente. Boa parte das ideias idealistas foram condensadas e discutidas por um
de seus maiores críticos: o autor realista Edward H. Carr (1892-1982), em seu livro
Vinte Anos de Crise: 1919-1939, publicado em 1939, intitula as ideias de Wilson
como “utópicas” e afirma que o pensamento idealista superestimaria o papel
do direito, da moralidade e da opinião pública. Também critica a ideia de que
razão e discussão pública poderiam substituir os exércitos e marinhas nacionais.
Segundo o autor realista, o poder seria um fator decisivo em todas as situações
políticas e não seria possível abolir essa característica das relações internacionais.

A eclosão da Segunda Guerra Mundial, somada à emergência da visão


realista como o paradigma central do campo, eclipsaram as contribuições liberais
durante mais de três décadas. A crítica de Carr foi vista como pertinente e a visão
otimista sobre a política internacional foi caracterizada como idealista e utópica,
tendo pouca credibilidade na explicação das relações internacionais no século XX.
No fim dos anos 70, porém, após décadas de estabilidade política internacional e
de sucesso da Organização das Nações Unidas na manutenção da paz e segurança
mundiais, o pensamento liberal reemerge sob novos moldes e volta a aparecer
como uma das teorias centrais do campo.

72
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• O pensamento liberal, à semelhança do Realismo, não é homogêneo. Evoluiu


ao longo dos anos a partir de contribuições filosóficas e políticas de autores
como Locke e Rousseau, passando pelo iluminismo kantiano, até a visão mais
contemporânea de Wilson, autor dos 14 pontos para a paz, de 1919.

• A vertente liberal é associada à ascensão da burguesia no fim do século XVII e


da propriedade privada derivada do trabalho dos indivíduos.

• Em linhas gerais, o liberalismo possui uma visão otimista sobre a natureza


humana, defende a aplicabilidade de princípios racionais a questões
internacionais e acredita na possibilidade de cooperação entre Estados.

73
AUTOATIVIDADE

1 A partir da leitura da Unidade II e de seus conhecimentos sobre as


obras contratualistas na ciência política, é CORRETO afirmar que, para
Rousseau, o contrato social:

a) ( ) Se origina da discórdia entre os indivíduos, por isso uma das máximas


em sua obra é que “o homem é o lobo do homem” e viveria sempre
em conflito.
b) ( ) Seria legítimo apenas quando é unânime entre todos os indivíduos.
Tendo em vista que cada indivíduo faz parte da comunidade, quando
abdica de sua liberdade a partir do contrato, acaba por obedecer a si
mesmo.
c) ( ) Afirma que a obediência à vontade geral seria ilusória e idealista.
d) ( ) Antecede o estado de natureza, uma vez que seria um termo pré civil.

2 (ENADE, 2018, adaptado) As lições do colapso que envolveu a Europa em


uma segunda grande guerra, há vinte anos e dois meses do Tratado de
Versailles, deverão ser cuidadosamente ponderadas. Nenhum período da
história recompensará melhor seu estudo, pelos artífices da paz do que os
“vinte anos de crise” que preencheram o intervalo entre as duas grandes
guerras. CARR. E. H. Vinte anos de crise. Brasília. Ed. UnB, 2001.

A partir do exposto no texto, avalie as afirmações a seguir, considerando


o contexto das relações internacionais no período entre as duas Grandes
Guerras (1918-1939).

I- A eliminação da diplomacia secreta em favor de acordos públicos,


liberdade comercial e de navegação em mares e estreitos e a criação de
um sistema de segurança coletiva sob os auspícios da Liga das Nações,
são alguns dos "14 pontos de Wilson", delineados para tornar a paz
permanente.
II- A partir de uma visão de mundo neutra, os "14 pontos de Wilson" foram
projetados como um conjunto de princípios gerais que poderiam ser
aplicados a problemas pontuais, com o objetivo de se evitar a ocorrência
da guerra e de suas mazelas.
III- A crítica à utopia wilsoniana marcou o primeiro debate nas relações
internacionais entre os realistas – que acreditavam na mudança da
natureza humana e em sua tendência à cooperação – e os idealistas, que
ansiavam por transformar o mundo a partir de uma visão normativa do
que deveria ser a realidade.
IV- Como instituição internacional responsável pela paz e estabilidade
mundial, a Liga das Nações tinha como um dos seus princípios a
autodeterminação dos povos, ou seja, a independência dos povos e o
reconhecimento do seu direito ao desenvolvimento autônomo.
74
É CORRETO apenas o que se afirma em:

a) ( ) I e II.
b) ( ) I e IV.
c) ( ) II e III.
d) ( ) I, III e IV.
e) ( ) II, III e IV.

3 (UEG, 2009, adaptada) A defesa da propriedade é um dos pontos centrais


do pensamento político de John Locke. Assinale a alternativa CORRETA
sobre o papel do Estado para o pensador:

a) ( ) O Estado deve garantir que todos os cidadãos possuam alguma


propriedade.
b) ( ) O Estado deve garantir a posse vitalícia de bens por parte dos
cidadãos.
c) ( ) O Estado deve fazer com que a propriedade seja comum a todos os
cidadãos.
d) ( ) O Estados deve permitir aos seus cidadãos ter propriedade ou
propriedades.

4 Aponte as semelhanças e diferenças das abordagens de Locke e Rousseau


quanto (1) à natureza humana; (2) ao contrato social; e (3) à importância da
propriedade para os indivíduos.

5 Qual é a importância do pensamento idealista de Wilson (1919) para a


criação do campo das Relações Internacionais?

6 Defina o conceito de “paz perpétua” em Kant e o relacione às ideias de


Wilson em seus 14 pontos para a paz.

75
76
TÓPICO 2 —
UNIDADE 2

INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL


E NEOLIBERAL

1 INTRODUÇÃO

O pensamento liberal evoluiu ao longo das décadas, influenciando


e sendo influenciado pelas múltiplas mudanças na política internacional.
Conforme discutido anteriormente, não há uma visão canônica única nessa
tradição. É possível classificar o Liberalismo como um conjunto de princípios
(teóricos e políticos) e instituições, que possuem certas características comuns – a
defesa das liberdades individuais, participação política, propriedade privada e
igualdade de oportunidades.

Neste tópico serão discutidas as variações centrais do liberalismo no


estudo das sociedades e do sistema internacional. Inicialmente serão apresentadas
três visões clássicas: liberalismo pacifista, liberalismo imperialista e liberalismo
internacionalista. A ideia é ampliar a perspectiva acerca dessa visão de mundo e
oferecer um panorama das contribuições clássicas principais para o campo.

Em seguida será analisado um conceito importante para o pensamento


liberal contemporâneo: a interdependência complexa. O aumento das interações
entre Estados e atores como Organizações Internacionais, Regimes, empresas
transnacionais, Organizações Não Governamentais e indivíduos ao redor
do mundo suscitou a reflexão sobre os impactos desse processo na política
internacional. O denominado Institucionalismo Neoliberal emerge como lente
útil no entendimento dessas mudanças e também será explorado nesse tópico.

2 OUTRAS VARIÁVEIS DO PENSAMENTO LIBERAL


Dentre as várias contribuições teóricas ao pensamento liberal, três
destacam-se como clássicas: o liberalismo pacifista, o liberalismo imperialista e
o liberalismo internacionalista, já discutido preliminarmente no tópico anterior
a partir das ideias de Kant. Neste tópico o objetivo será explorar as semelhanças
e diferenças dessas contribuições e ampliar o entendimento do leitor acerca da
tradição liberal na Ciência Política e nas Relações Internacionais.

77
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O liberalismo pacifista teve como representantes uma série de pensadores,


dentre os quais se destacam Joseph Schumpeter e o, anteriormente mencionado,
ex-presidente americano Woodrow Wilson. Schumpeter (1955, p. 95) afirma que
“o capitalismo democrático levaria à paz”.

Como prova, o autor afirma que teria surgido, em todo o mundo


capitalista, no século XX, uma oposição crescente à guerra, à expansão territorial e
à diplomacia secreta. Segundo ele, o capitalismo contemporâneo estaria associado
a movimentos pacifistas e o trabalhador industrial na maioria das sociedades
seria “vigorosamente anti-imperialista”. Além disso, Schumpeter (1955) também
aponta que o mundo capitalista teria desenvolvido meios de impedir a guerra,
como a Corte de Haia, e que sociedades menos feudais e mais capitalistas, como
os Estados Unidos, teriam demonstrado tendências menos imperialistas.

NOTA

A CORTE DE HAIA

A Corte de Haia foi criada no contexto de emergência da Organização das Nações Unidas
como instituição central na manutenção da paz e ordem internacionais. A denominação
oficial do órgão, cuja função central é a resolução de conflitos entre Estados, é Corte
Internacional de Justiça. Possui sede em Haia, nos Países Baixos.

A CORTE INTERNACIONAL DE JUSTIÇA, EM HAIA

FONTE: <https://bit.ly/31pYjCs>. Acesso em: 30 jul. 2020.

78
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

A explicação de Schumpeter para o suposto pacifismo derivado do


liberalismo seria baseada na ideia de que apenas a aristocracia militar e o setor
industrial militar ganhariam com as guerras. Nenhuma democracia defenderia
um interesse derivado de uma minoria e toleraria os custos altos do imperialismo.
A maioria das democracias capitalistas se posicionaria contra o uso da força
militar e a favor de acordos de paz diplomáticos.

Os argumentos do autor enfrentaram uma série de críticas ao longo


dos anos, principalmente à luz dos conflitos recorrentes empreendidos, e/ou
influenciados, por países democráticos capitalistas durante o século XX, como
a Guerra do Vietnã (1955-1975) e a Guerra da Coreia (1950-1953), além de
conflitos nas colônias, derivados do controle das grandes potências – incluindo
as democracias capitalistas. Essa discordância entre o pensamento teórico e as
evidências históricas evidencia as limitações do liberalismo pacifista.

Outra abordagem importante é o denominado liberalismo imperialista.


Um dos autores mais proeminentes dessa visão foi Nicolau Maquiavel (1467-
1529). O autor refletiu, principalmente em duas de suas obras mais marcantes
– O Príncipe (1532) e Os Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio (1517)
– sobre a relação entre os conceitos de liberdade e Estado, principalmente as
repúblicas. Segundo Doyle (2017), além de haver pouca possibilidade de um
estado republicano ser pacifista, essa seria a melhor doutrina política para a
expansão imperial.

Uma república, na visão de Maquiavel, seria o que Doyle (2017) denomina


república “mista”. Não seria uma democracia, mas seria caracterizada por
igualdade social, liberdades políticas e participação política. A expansão imperial
resultaria da maneira como essa liberdade incentiva o aumento da população
e das propriedades, que crescem quando os cidadãos sentem que suas vidas e
bens estão em segurança. Esses cidadãos livres se envolveriam em guerras e em
expansão territorial com o objetivo de proteger sua própria população e aumentar
o poder de suas sociedades, uma vez que sabem que as demais sociedades também
estão em expansão e, eventualmente, poderão ameaçar a sua sobrevivência.

Contrapondo novamente a visão teórica às evidências empíricas, é


possível identificar impérios republicanos como os descritos por Maquiavel:
Roma e Atenas nos séculos IV e V a.C., por exemplo. Além disso, como afirma
Doyle (2017), as várias intervenções dos EUA após a II Guerra Mundial também
se alinhariam aos argumentos do autor.

A terceira visão, explorada no Tópico 1 da presenta unidade, é


denominada “internacionalismo liberal”. Um dos representantes centrais dessa
perspectiva foi o filósofo Immanuel Kant. Para o autor, uma vez estabelecidas
as repúblicas, elas levariam a relações pacíficas, não conflituosas, conforme
defendido por Maquiavel.

79
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Kant argumenta que, uma vez controlados os interesses de monarquias


absolutistas e o internalizado o hábito de respeitar mutuamente o outro –
características de governos republicanos – as guerras seriam vistas como
obstáculos ao bem-estar da população.

O quadro a seguir sintetiza as três visões e as compara, oferecendo um


panorama amplo das diferentes visões sobre as democracias republicanas – em
Schumpeter, Maquiavel e Kant:

QUADRO 3 – COMPARAÇÃO ENTRE LIBERALISMO PACIFISTA, IMPERIALISTA E


INTERNACIONALISTA

LIBERALISMO LIBERALISMO LIBERALISMO


PACIFISTA IMPERIALISTA INTERNACIONALISTA

• Repúblicas atingiriam
• Repúblicas buscariam ma-
• Apenas uma minoria a paz entre elas porque
ximizar sua influência, o
lucraria com a guerra exercitam precaução de-
que inclui expansão terri-
e em democracias não mocrática e são capazes
torial e uso de força militar.
prevalece a vontade de respeitar os direitos de
• A necessidade de sobre-
de minoria. O resul- outras repúblicas.
vivência política levaria à
tado, portanto, será a • Guerras entre repúblicas
expansão.
busca pela manuten- democráticas seriam im-
• Pouca possibilidade de
ção da paz. prováveis. Repúblicas en-
cooperação entre repúbli-
• Baixo potencial impe- trariam em guerra com pa-
cas, uma vez que elas bus-
rialista em repúblicas íses não republicanos, que
carão a expansão territo-
democráticas levaria à não compartilham seus
rial, mesmo que envolva
cooperação entre elas. princípios morais de paz e
o uso da força militar.
respeito às liberdades.

FONTE: A autora

Ainda que as três visões tenham semelhanças, principalmente no que diz


respeito ao objeto de estudo, Estados democráticos e/ou republicanos, conforme
evidenciado no quadro anterior, os autores discordam sobre vários elementos –
possibilidade de intenções expansionistas e imperialistas e recorrência de conflitos.

A política internacional evoluiu e se expandiu ao longo dos séculos XX


e início do século XXI, incluindo outros atores além do Estado, e a tradição
liberal acompanhou essas mudanças, trazendo novos elementos para a análise e
enfatizando novas variáveis no jogo de forças e interesses políticos. No tópico a
seguir será discutido um conceito central do pensamento do “novo” liberalismo
– ou neoliberalismo – que emerge no campo ao fim dos anos 1970.

80
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

3 A INTERDEPENDÊNCIA COMPLEXA NA
CONTEMPORANEIDADE
O mundo pós-Guerra Fria passou por uma série de transformações
econômicas, políticas e sociais. As agendas políticas de segurança nacionais
e poder militar tradicional passaram a dividir espaço com a busca dos atores
internacionais por uma ordem estável e pacífica, baseada no desenvolvimento
econômico das nações. Nesse contexto reemergem as tentativas liberais de
compreensão da política internacional, agora muito menos baseada na busca
ilimitada por poder por parte dos Estados, e muito mais diversificada e plural.
Uma das abordagens centrais nesse contexto é a “Interdependência Complexa”,
desenvolvida por Robert O. Keohane e Joseph S. Nye, no fim da década de 1970.

No mundo globalizado contemporâneo, o termo “interdependência”


é utilizado com frequência. É uma situação na qual todos os atores: Estados,
Organizações Internacionais, Organizações Não Governamentais, indivíduos e
empresas dependem uns dos outros. Em termos gerais:

Dependência significa um estado de ser determinado ou afetado


significativamente por forças externas. Interdependência,
mais simplesmente definida, significa dependência mútua.
A interdependência na política mundial refere-se a situações
caracterizadas por efeitos recíprocos entre países ou entre atores de
diferentes países (KEOHANE; NYE, 1977, p. 8).

Sob essa dependência mútua, a relação entre os atores envolvidos,


incluindo Estados e outros atores transnacionais, é caracterizada tanto pela
cooperação, quanto pela competição. Na interdependência, existem efeitos
recíprocos nas relações entre os atores: as políticas e ações de um ator têm um
impacto profundo nas políticas e ações de outros atores, e vice-versa. Nesse
sentido, interdependência não significa apenas paz e cooperação entre os atores,
mas um relacionamento entre eles caracterizado pela cooperação, dependência e
interação em várias áreas distintas.

A interdependência complexa é uma teoria que enfatiza as maneiras


complexas pelas quais, como resultado dos vínculos crescentes entre si, os atores
transnacionais se tornam mutuamente dependentes, vulneráveis às ações um dos
outros e sensíveis às necessidades alheias. Interdependência complexa pode ser
definida como:

Um conceito econômico transnacionalista que assume que os Estados


não são os únicos atores importantes, as questões de bem-estar social
dividem o centro do palco internacional com as questões de segurança
da agenda global, e a cooperação é uma característica tão dominante
quanto o conflito na política internacional (GENEST, 1996, p. 140).

Nesse sistema de interdependência os Estados cooperam porque é de seu


interesse comum, o que se aproxima da visão otimista de Wilson e Kant, e o resultado
direto dessa cooperação é a prosperidade e estabilidade no sistema internacional.

81
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Os liberais dessa vertente, considerados “Institucionalistas Neoliberais”,


ou “Transnacionalistas”, acreditam que os Estados não são motivados apenas pelo
interesse nacional definido em termos de poder, como afirmavam os Realistas.
Ao contrário de autores como Morgenthau, Waltz e Mearsheimer, a afirmação
dos neoliberais é que a política internacional não pode ser dividida simplesmente
em “high” e “low” politics.

NOTA

OS CONCEITOS DE HIGH E LOW POLITICS

O termo “high politics”, ou alta política, diz respeito a assuntos/temáticas relativas à segurança
e à sobrevivência dos Estados. Essas questões envolvem o setor militar, segurança nacional
e diplomacia. “Low Politics”, ou baixa política, por sua vez, diz respeito a assuntos não vitais
para a sobrevivência dos Estados, como meio ambiente, gênero e direitos humanos.

Embora segurança internacional e poder militar permaneçam importan-


tes e relevantes, questões econômicas, sociais e ambientais – consideradas lar-
gamente “low politics” – por vezes são prioridades na agenda internacional. Um
aspecto muito significativo da interdependência complexa é que ela é uma com-
binação de duas visões consideradas opostas – ou seja, integra os elementos da
política de poder (realistas) e do liberalismo econômico. A visão neoliberal leva
em consideração os custos e benefícios do relacionamento de interdependência
entre os atores.

Em um mundo cada vez mais interdependente, apesar da crescente


cooperação econômica e interdependência entre os atores, a possibilidade de
conflitos militares internacionais não pode ser ignorada. No entanto, diferente
da política de poder tradicional, na interdependência complexa a relação entre os
atores não pode ser de soma-zero.

E
IMPORTANT

JOGO DE SOMA-ZERO

Um jogo de soma-zero é, segundo a teoria dos jogos (ramo da matemática aplicada que
se dedica ao entendimento das ações individuais), uma situação em que o ganho de um
indivíduo significa necessariamente a perda de outro indivíduo.

82
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

Keohane e Nye, em sua obra clássica Power and Interdependence: world politics
in transition, descreveram três características principais da interdependência
complexa: (A) canais múltiplos; (b) ausência de hierarquia entre problemas; e (c)
papel diminuído da força militar, elucidados a seguir:

• Canais múltiplos: na política internacional, existem vários canais que conectam


as sociedades, incluindo todas as relações interestatais, transgovernamentais e
transnacionais. Isso se opõe à afirmação realista sobre a centralidade do Estado.
Nesse mundo complexo de interdependência, não apenas a interação formal e
informal entre as elites governamentais é fonte de conexão entre as sociedades,
mas os laços informais entre elites não governamentais e organizações
transnacionais têm ganhado cada vez mais importância. Empresas e bancos
multinacionais têm um grande impacto nas relações domésticas e interestatais.
Esses atores, além de buscarem seus próprios interesses, também atuam como
“correntes de transmissão, tornando as políticas governamentais em vários
países mais sensíveis umas às outras” (KEOHANE; NYE, 1977, p. 26).
• Ausência de hierarquia entre problemas: em um mundo de interdependência
complexa, não existiria hierarquia entre os problemas da política internacional.
A linha divisória entre política interna e política externa fica “embaçada” e
não há uma agenda clara e definida nas relações entre os Estados. Segundo
os autores: “a segurança militar não domina consistentemente a agenda”
(KEOHANE; NYE, 1977, p. 25). As agendas de política externa estariam se
tornando cada vez mais diversas. Em oposição à afirmação realista de que a
segurança seria a questão mais importante entre os Estados, para a abordagem
da Interdependência Complexa, qualquer área temática pode estar no topo da
agenda internacional em qualquer momento.
• Papel diminuído da força militar: ao contrário da centralidade que o papel do
uso da força tem para o Realismo, para a Interdependência Complexa ele tem
pouca relevância. Quando as relações interdependentes prevalecem, a força
militar pode ser irrelevante na resolução de acordos sobre questões econômicas
e políticas, por exemplo. Segundo os autores, podem existir relações intensas
de influência mútua, mas o uso da força não é mais considerado apropriado
para alcançar outros objetivos, como o bem-estar econômico e ambiental, por
exemplo, porque os efeitos do uso da força militar são muito caros e incertos.
De fato, devido ao desenvolvimento de armas nucleares, biológicas e químicas
cada vez mais modernas, todos os atores estão cientes dos custos altos da guerra.

Assim, a importância da força militar como ferramenta política essencial


para resolver disputas diminuiu no mundo globalizado.

No entanto, seu papel como ferramenta de negociação ainda é importante


e pode variar de uma questão para outra, não podendo ser completamente
ignorado. Em um relacionamento assimétrico, o ator menos dependente pode
usá-lo como ferramenta de negociação.

Para entender o papel do poder na interdependência, Keohane e


Nye (1977) conceituaram duas dimensões: sensibilidade e vulnerabilidade.
Sensibilidade significa o grau em que os atores são sensíveis a mudanças em uma

83
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

determinada área temática: “a sensibilidade envolve um grau de capacidade de


resposta dentro de uma estrutura política – com que rapidez as mudanças em
um determinado país trazem mudanças em outro país, e qual a magnitude os
efeitos dessas mudanças?” (KEOHANE; NYE, 1977, p. 12). Por vulnerabilidade
entende-se até que ponto os atores são capazes de controlas suas respostas à
sensibilidade. Diz respeito à responsabilidade de um ator de sofrer custos
impostos por eventos externos.

O menos vulnerável entre dois atores não é necessariamente o menos


sensível, mas aquele que incorreria em custos mais baixos para alterar sua
situação. Em uma interdependência assimétrica, em que os atores têm “níveis”
de poder distintos, os Estados mais fracos são mais vulneráveis às mudanças
externas, devido ao alto custo de adaptação às mudanças.

3.1 O ESTUDO DA COOPERAÇÃO NO


INSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL
O início da década de 1980 foi marcado, no campo de Relações
Internacionais, pela introdução e desenvolvimento de estudos relacionados às
possibilidades da cooperação internacional. O contexto pós Segunda Guerra
Mundial era propício à discussão das possibilidades institucionais de tratamento
das múltiplas questões que ascendiam à agenda internacional – comércio, meio
ambiente, direitos humanos, entre outros – e esse movimento transbordou ao
desenvolvimento teórico da área.

Robert Axelrod (1984), um dos primeiros autores a delinear um quadro


de análise da cooperação entre Estados, desenvolve uma obra cuja pergunta
central – Sob quais condições a cooperação emerge em um mundo de egoístas
sem autoridade central? – inaugura as discussões acerca da natureza do
comportamento cooperativo e dos mecanismos através dos quais esse movimento
ocorre. A utilização da Teoria dos Jogos como referência para definição das
possibilidades cooperativas dos indivíduos permitiu ao autor defender a hipótese
de que a estratégia dominante seria o chamado “tit-for-tat”, ou “olho por olho”,
em tradução literal, a partir da comparação de todas as estratégias possíveis, em
um experimento realizado por meio de testes computadorizados: “A estratégia
dominante do Tit-for-Tat começa com uma escolha cooperativa por parte do
indivíduo; o próximo, por sua vez, seguirá a estratégia prévia, resultando em
um quadro cooperativo, recíproco [...] nessa estratégia a reciprocidade é robusta”
(AXELROD, 1984, p. 31).

84
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

NTE
INTERESSA

TEORIA DOS JOGOS

A Teoria dos Jogos é uma ferramenta analítica, primariamente utilizada na matemática


e fundada, entre outros, por John Nash (1951), que visa compreender o comportamento
a partir de uma lógica exata. Alguns jogos específicos são utilizados na Ciência Política,
como o Jogo da Galinha, Batalha dos Sexos e Dilema do Prisioneiro. Em todos eles alguns
cenários são hipoteticamente desenhados visando à observação da ação racional e as
consequências de sua recorrência.

A cooperação, nesse sentido, seria resultado da resposta de um indivíduo


ao comportamento prévio de outrem – a reciprocidade seria a chave da
cooperação e o caminho esperado em situações de conflito. A partir dessa ideia
de reciprocidade robusta, Robert Keohane (1984, p. 51) amplia o escopo e define
cooperação internacional como “um processo de coordenação de políticas por
meio do qual os atores ajustam seu comportamento às preferências reais ou
esperadas dos outros atores”.

A definição do autor chama a atenção para dois fatores principais:


considera a cooperação um processo, não um fim, e aceita a existência de interesse
compartilhado dos atores, o que abre espaço para a análise das condições a
partir das quais o interesse poderia levar à cooperação. É importante salientar
que interesse compartilhado não é sinônimo de harmonia de interesses – em um
quadro de harmonia, a própria necessidade de cooperação seria nula, uma vez
que haveria concordância desde o princípio, e não um conflito de interesses que
exigiria ajuste de políticas.

Seguindo essa tendência, Axelrod escreve em conjunto com Robert


Keohane, em 1985, a obra Achieving Cooperation under Anarchy: strategies and
institutions, que estuda a cooperação internacional a partir do que os autores
chamam de “contexto de interação” dos atores. Para eles, o contexto de interação
seria baseado nas normas partilhadas, muitas vezes implicitamente, pelos
participantes, e que se expressariam, em uma perspectiva influenciada pela
teoria dos jogos, em "questões vinculadas (issue-linkage), conexões doméstico-
internacionais e incompatibilidades entre jogos de diferentes grupos de atores"
(AXELROD; KEOHANE, 1985, p. 239). A cooperação internacional seria, portanto,
resultado da interação entre os atores em um contexto favorável, dependente da
área temática, e em um quadro de interdependência complexa.

Nos anos 1980, o institucionalismo neoliberal também avança na direção


da explicação de como, e em que condições, as instituições importam na condução
do comportamento estatal e como elas promoveriam a cooperação entre os atores.

85
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Keohane (1984, p. 51) afirma que ela ocorreria quando Estados “ajustam
seu comportamento às preferências reais ou antecipadas de outros, em um
processo de coordenação política”. Em um ambiente internacional competitivo, os
Estados, enquanto atores racionais, buscariam maximizar seus ganhos absolutos
através da cooperação. Os neoliberais, porém, não negam que a cooperação seria
de difícil obtenção uma vez que o sistema internacional é anárquico.

Na tentativa de explicar o funcionamento de instituições, os autores


dessa vertente identificam dois grandes temas relevantes: barganha e deserção,
explorados a seguir:

• Barganha

O primeiro grande tema de interesse dos institucionalistas neoliberais é


a barganha. Uma das grandes perguntas dos autores dessa vertente é “até que
ponto o desenho institucional (o conjunto de regras, normas e instituições em
uma dada área temática) desempenha um papel relevante nas negociações e na
barganha entre os Estados?”.

Ao estabelecer regras e procedimentos, as instituições internacionais


estabelecem limites mutuamente aceitos para o comportamento e para a
consecução de objetivos coletivos. No entanto, qualquer tentativa de se cooperar
na política internacional envolve um grande número de atores estatais, com
recursos e interesses diferentes. Os Estados Unidos, por exemplo, enquanto
potência mundial, possuem muito mais recursos econômicos, políticos e militares
que um país como a Argentina, ou o Brasil. Isso terá um impacto significativo em
qualquer negociação que envolva esses países.

Uma maneira eficaz de reduzir essas assimetrias é criar instituições


transparentes e com estruturas legais bem fundamentadas. Martin e Simmons
(1998) afirmam que os Estados tendem a cooperar entre si, apesar de suas
diferenças, quanto mais legalizados e transparentes forem os processos e quanto
maior clareza jurídica a instituição tiver. Isso ocorre porque os Estados são atores
racionais e utilizam as informações disponíveis para calcularem seus cursos de
ação – quanto maior a oferta de informações, menores os custos.

Outro aspecto importante na decisão do Estado sobre cooperar ou não


é a presença de uma liderança forte. Segundo Young (1991), a presença de um
Estado que tenha a capacidade de liderar os processos, seja via habilidade
diplomática, ou pelo uso de seus recursos, faz toda a diferença no resultado de
uma negociação internacional. De modo geral, os autores do Institucionalismo
Neoliberal concluem que o desenho institucional e a liderança desempenham
um papel importante na promoção ou desencorajamento de alguns aspectos
da negociação internacional, sendo elementos importantes no estudo da
cooperação entre Estados.

86
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

• Deserção

Outra questão relevante no estudo da cooperação internacional é a


possibilidade de os Estados desertarem (desistirem, abandonarem) em acordos
internacionais. Conforme visto, a vertente institucionalista neoliberal reitera o
caráter anárquico do sistema internacional. Desse modo, acreditam, assim como
os realistas, que a incerteza é uma das características centrais da relação entre os
Estados. Nesse cenário de incerteza, é razoável pensar que cada Estado teme que
seus parceiros na cooperação falhem em cumprir acordos mutuamente firmados,
ou que haja desistência e os custos acabem aumentando para si.

E
IMPORTANT

O CASO DOS ESTADOS UNIDOS NO PROTOCOLO DE KYOTO

Um dos casos emblemáticos de deserção de acordos internacionais foi a desistência dos


Estados Unidos em ratificar o Protocolo de Kyoto. Negociado em 1997, o protocolo destinava-
se à diminuição das emissões de gases de efeito estufa, que causam o aquecimento global e
consequente mudança do clima. Os EUA são o maior emissor histórico de GEE e, portanto,
o país mais responsável por esse processo. Após um período extenso de negociações, a
expectativa dos demais Estados era de que os custos de redução das emissões fossem
distribuídos proporcionalmente e que os EUA cooperassem, atingindo o objetivo esperado.
O que ocorreu, entretanto, confirmando os temores de deserção, foi a recusa do país em
ratificar o protocolo e cooperar com os demais, levando à falha do protocolo em estabilizar
o aumento da temperatura média global.

As preocupações com a deserção dos Estados levam ao seguinte


questionamento: como as instituições internacionais podem ser projetadas para
diminuir as incertezas e preocupações com relação a possíveis desistências dos
Estados? O fato de que existe uma série de instituições internacionais duradouras
e relativamente eficazes já indica que, em alguma medida, o problema da
deserção não impede a cooperação. Os Estados confiariam, em diferentes graus,
na habilidade dos acordos e arranjos institucionais de reduzir as incertezas e
aumentar a transparência entre os atores.

Desse modo, a questão é muito menos sobre “se” a deserção ocorrerá,


mas “como” lidar com ela quando ocorrer. Embora as instituições internacionais
não tenham a capacidade ou recursos para punir aqueles que desertam (o Estado
continua tendo autonomia e soberania, o que lhe confere o monopólio da decisão),
o institucionalismo neoliberal demonstra que diferentes arranjos institucionais
tornam a deserção mais ou menos provável.

87
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A maioria das instituições possuem mecanismos de monitoramento


e acompanhamento das ações dos Estados, e isso é central para a redução das
incertezas porque esses mecanismos tornam qualquer deserção custosa.

Como os Estados sabem que seu comportamento está sendo monitorado,


os incentivos para a desistência diminuem. Esse é o caso de instituições de
comércio, direitos humanos e meio ambiente, nas quais os países enfrentam
pressões domésticas e internacionais para o cumprimento dos acordos. Desse
modo, uma característica importante das instituições é a coleta e disseminação de
informações periódicas sobre o comportamento dos Estados membros.

A transparência por si só, entretanto, geralmente não é suficiente para


garantir a conformidade e a manutenção da cooperação. Mitchell (1994) afirma
que é necessário combinar transparência com redução de custos, ameaça de
sanções e um sistema de prevenção de violações.

Outra ferramenta importante é a existência de um mecanismo eficaz


de resolução de disputas. Se os Estados sentem que a distribuição de custos e
benefícios é justa, e que há mecanismos de verificação regular do cumprimento
de regras, a cooperação será mais provável.

ATENCAO

A OMC E O MECANISMO DE SOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS

Um exemplo relevante de mecanismo de resolução de disputas é o Mecanismo de Solução de


Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC). Criado em 1994, o mecanismo
objetiva trazer previsibilidade e segurança aos Estados-membros da organização.

A ideia é prover soluções a eventuais disputas comerciais entre países (quando, por exemplo,
um país adota uma medida que viola os princípios da OMC, como proteção à propriedade
intelectual ou protecionismo).

Por fim, é possível afirmar que o a perspectiva liberal avançou, ao longo


dos anos, na direção de análises muito menos idealistas e utópicas e se aproximou
da empiria, tendo validade na explicação de processos derivados da maior
interdependência dos atores no pós-Guerra Fria.

As instituições internacionais, enquanto arenas de interação entre os


Estados, ainda apresentam problemas, conforme discutido, mas já são espaços
de coordenação política escolhidos frequentemente para a solução de conflitos na
política internacional, conforme ilustrado no caso a seguir:

88
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

QUADRO 4 – ESTUDO DE CASO – A UNIÃO EUROPEIA

Além de oferecer elementos para análise da política internacional, o pensamento


liberal também influenciou a tomada de decisão política em vários momentos
da história contemporânea. Um dos principais foi a criação da União Europeia,
em 1992. Inspirados pelo otimismo liberal, os líderes europeus do Pós Segunda
Guerra (Konrad Adenauer, Alcide de Gasperi, Jean Monnet e Robert Schuman)
construíram um sistema complexo de cooperação visando a promoção e
manutenção da paz no continente europeu.

Cientes do papel que o autoritarismo exerceu na eclosão da Segunda Guerra


Mundial, esses líderes decidiram estabelecer instituições democráticas estáveis,
a partir do pressuposto liberal de que isso garantiria a paz em longo prazo.
Esse processo teve início com a criação da Comunidade Europeia do Carvão e
do Aço, em 1957, e foi fortalecido com o Tratado de Maastricht, em 1992.

Outro pressuposto liberal central no desenvolvimento da organização é a


noção de que integração econômica e cooperação regional estariam intrinse-
camente ligados. Após a guerra, os novos líderes europeus entenderam que
a obtenção de um futuro próspero exigiria o estabelecimento de uma rede
econômica interdependente. A integração econômica foi iniciada no próprio
continente, com a Organização para Cooperação Econômica Europeia, e se
mundializou, com a criação da Organização para Cooperação e Desenvolvi-
mento Econômico (OCDE).

Nenhum desses elementos – existência de democracias e a promoção de


comércio internacional – teria efeitos práticos se não fosse a criação de
instituições para regular as interações e práticas dos atores. No caso da UE,
os Estados atribuíram à instituição uma série de poderes supranacionais. A
organização coleta impostos de todos os seus Estados membros e a Comissão
Europeia aplica uma ampla gama de regulamentos comuns entre eles.

O Conselho é um órgão executivo em que decisões importantes são tomadas


via votação e o Parlamento Europeu é eleito diretamente pelos cidadãos dos
estados membros. Isso garante um certo grau de similaridade, o que evitaria
conflitos como os que ocorreram no início do século XX.

A União Europeia é um exemplo empírico de que os ideais liberais fazem


sentido, mesmo que em um contexto limitado. A organização tem sido bem-
sucedida em seus objetivos, principalmente em evitar guerras e conflitos de
grandes proporções no continente.

FONTE: A autora

89
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Neorrealistas e institucionalistas neoliberais possuem, conforme discutido


anteriormente, uma série de diferenças no que diz respeito à centralidade do
Estado, a relevância do poder militar e a hierarquia das agendas da política
internacional. Suas diferenças serão discutidas no subtópico a seguir, dedicado à
explicação do debate denominado Neo-Neo.

3.2 O DEBATE NEO-NEO


Conforme visto anteriormente, o realismo é largamente considerado
a teoria mais influente e dominante das relações internacionais desde a
Segunda Guerra Mundial. Os realistas acreditam que os Estados são motivados
principalmente pelo desejo de poder ou segurança militar e econômica, em vez
de ideias, identidades ou pela ética. Os realistas estruturais, ou neorrealistas,
sustentam que os atores buscam poder não a partir de um impulso inato, mas são
submetidos à estrutura do sistema. Enfatizam a natureza anárquica do sistema
internacional, no qual os Estados precisam confiar na autoajuda para garantir
sua sobrevivência. Assim, os neorrealistas focam nos aspectos conflitantes das
relações internacionais, ou seja, se concentram muito mais nas causas da guerra
do que na possibilidade de cooperação internacional.

O Institucionalismo Neoliberal, por outro lado, tenta de maneira mode-


rada integrar os elementos dessa política de poder, descrita pelos realistas, ao
liberalismo econômico. Em um quadro de interdependência complexa, poder e
interdependência (todas as relações relevantes entre atores na política internacio-
nal) estariam intimamente interligados. Ao contrário dos neorrealistas, que acre-
ditavam em um papel menor das instituições internacionais, limitado pelos Esta-
dos por interesses relacionados a sua segurança e manutenção da soberania, para
a interdependência complexa o papel potencial das instituições internacionais na
negociação política é grande. Elas ajudariam a definir a agenda internacional e
atuariam como catalisadores de ações políticas e articulação de estados fracos.

E
IMPORTANT

A ATUAÇÃO DA AOSIS NO REGIME INTERNACIONAL DE MUDANÇAS DO CLIMA

Um exemplo interessante que valida a hipótese neoliberal de que as instituições auxiliariam


a articulação de Estados fracos é a atuação da Aliança de Pequenos Estados Insulares (AOSIS,
sigla em inglês) no Regime Internacional de Mudanças do Clima. A aliança, composta por
38 pequenos países-ilha em risco de desaparecimento decorrente das alterações do clima
no mundo, articula uma posição conjunta desde o fim dos anos 1980, e participa de uma
série de negociações políticas, vocalizando suas preferências e sendo capaz de negociar,
pela via institucional, uma série de acordos e benefícios que não seriam possíveis sem a
existência de regras e normas institucionalizadas.

90
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

John Mearsheimer teceu, principalmente durante os anos 1980, uma série


de críticas ao pensamento liberal, afirmando que essa visão não teria sido capaz
de promover paz e cooperação no período pós-Guerra Fria, tampouco teria sido
capaz de explicar o balanceamento de poder nesse período. De acordo com o
autor, a anarquia inerente ao sistema internacional inibiria a cooperação entre os
Estados, pois eles estariam sempre mais preocupados com o equilíbrio de poder
e sua sobrevivência, deixando em segundo plano qualquer outro tema ou agenda
(MEARSHEIMER, 2001).

Em resposta à crítica de Mearsheimer, Robert Keohane e Lisa L.


Martin publicam um artigo, em 1995, intitulado The Promise of Institutionalist
Theory, e argumentam que as instituições eram importantes na conduta e no
comportamento do Estado, mas que seria relevante descobrir como isso ocorre, e
sob quais condições. De acordo com liberais e neoliberais, as instituições seriam
meios seguros através dos quais a cooperação entre os Estados poderia ser obtida.
Elas reduziriam as incertezas decorrentes da condição anárquica do sistema e
facilitariam a resolução de conflitos entre os atores.

Para os realistas, o principal obstáculo à cooperação internacional


seria relacionado à questão dos ganhos relativos. Os Estados teriam sempre a
preocupação com a distribuição de ganhos entre os Estados cooperativos, porque
isso poderia afetar o equilíbrio de poder prevalecente. Esse problema foi apontado
por Joseph Grieco, em 1988, quando argumentou que a questão mais crítica em
qualquer arranjo de cooperação é como os benefícios seriam distribuídos entre
os Estados. Assim, para a visão realista, o que importam são os ganhos relativos,
não os absolutos. Por outro lado, para os institucionalistas neoliberais, todos
os Estados teriam ganhos absolutos, principalmente em situações pacíficas nas
quais os atores não temem por sua sobrevivência a todo o momento. Enquanto
os neorrealistas são mais cautelosos quanto à possibilidade de cooperação, os
institucionalistas neoliberais acreditam que os Estados podem ser persuadidos a
cooperar quando convencidos de que todos os Estados respeitarão as regras e que
a cooperação resultará em ganhos absolutos.

E
IMPORTANT

O debate Neo-Neo não foi um debate entre duas visões polarizadas e opostas.
Conforme dito anteriormente, trata-se de um debate dentro do mesmo paradigma.
Neoliberais e neorrealistas estudam diferentes “mundos” da política internacional: enquanto
os neorrealistas focam em segurança e assuntos militares, neoliberais focam em economia
política, assuntos ambientais, direitos humanos, gênero etc.

91
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O quadro a seguir resume as principais diferenças entre as abordagens, a


partir dos objetivos dos atores, dos instrumentos da política estatal que cada uma
das teorias considera mais relevantes, formação da agenda, conexão entre temas
e papel das organizações internacionais:

QUADRO 5 – PROCESSOS POLÍTICOS: NEORREALISMO VS. INSTITUCIONALISMO NEOLIBERAL

INSTITUCIONALISMO
NEORREALISMO
NEOLIBERAL

Variam de acordo com a


área temática. Políticas
transgovernamentais
Objetivos dos
Segurança Militar. tornam difícil a definição
Atores
dos objetivos; atores
transnacionais buscam seus
próprios objetivos.

Recursos de poder específicos


às áreas temáticas serão mais
relevantes. Manipulação
Força militar é a mais
Instrumentos de da interdependência,
efetiva, o que não exclui
Política Estatal organizações internacionais
outros instrumentos.
e atores transnacionais serão
os instrumentos de maior
relevância.

Afetada por: mudanças na


Mudanças no equilíbrio distribuição de poder nas
de poder estabelecem a áreas temáticas; status dos
Formação da
agenda de alta política regimes internacionais;
Agenda
que influencia as mudanças na importância dos
demais agendas. atores transnacionais; conexão
entre temas.

Difícil para os Estados mais


Reduzem a diferença fortes em função da não-
Conexão entre nos resultados entre efetividade da força. Já a
Temas áreas temáticas e conexão feita pelos países
reforçam a hierarquia. mais fracos através das OIs
erode a hierarquia.

92
TÓPICO 2 — INTERDEPENDÊNCIA NOS PENSAMENTOS LIBERAL E NEOLIBERAL

Estabelecem a agenda,
induzem a formação de
coalizões e atuam como
De menor importância,
Papel das arenas para a ação política
limitado pelo
Organizações de Estados mais fracos. A
poder estatal e pela
Internacionais habilidade para escolher o
importância do uso da
fórum organizacional para
força militar.
um tema e para mobilizar
outros atores é um importante
recurso de poder.

FONTE: A autora

93
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O pensamento liberal não é homogêneo. Dentre as várias vertentes destacam-se


o liberalismo pacifista, liberalismo imperialista, liberalismo internacionalista e,
mais recentemente, o institucionalismo neoliberal, ou neoliberalismo, dedicado
ao estudo da interdependência complexa.

• Interdependência complexa é um conceito central no pensamento neoliberal.


Diz respeito a um relacionamento recíproco entre Estados e atores não estatais,
caracterizado pela cooperação, dependência e interação em áreas temáticas
distintas.

• No contexto contemporâneo, a vertente liberal no campo das Relações


Internacionais tem como foco o estudo da cooperação entre os Estados no
contexto das instituições, organizações e regimes internacionais.

• O neoliberalismo nas RIs foi parte de um dos debates teóricos mais importantes
da área: o debate neo-neo, marcado pela contraposição entre o pensamento
neorrealista, que afirma que a segurança militar seria o objetivo central dos
Estados e o pensamento neoliberal, que defende que o interesse dos Estados
varia em relação à área temática.

94
AUTOATIVIDADE

1 (ENADE, 2018, adaptado) No artigo The promise of institutionalist theory, é


avaliada a importância das instituições internacionais para a mudança de
comportamento dos Estados: “When states can jointly benefit from cooperation,
we expect governments to attempt to construct such institutions. Institutions can
provide information, reduce transaction costs, make commitments more credible,
establish focal points for coordination, and in general facilitate the operation of
reciprocity” KEOHANE, R.O.; MARTIN, L.L. The promise of institutionalist
theory. International Security, v. 20, n. 1, Summer, 1995.

Considerando o exposto neste texto, avalie as afirmações a seguir:

I- A mudança de comportamento dos Estados é contestada pelas vertentes


realistas, que consideram que os Estados permanecem como atores
unitários e egoístas, preocupados com os riscos de traição e defecção, que
podem afetar seus ganhos relativos.
II- Segundo a matriz institucionalista, a mudança de comportamento dos
Estados depende da sua avaliação acerca dos ganhos relativos envolvidos,
que é feita em função de sua participação em regimes e instituições
internacionais.
III- Segundo a matriz institucionalista, a mudança de comportamento
dos Estados é avaliada como positiva porque reforça os compromissos
estabelecidos em regimes e instituições internacionais e aprofunda a
interdependência entre eles.

É CORRETO o que se afirma em:


a) ( ) II, apenas.
b) ( ) III, apenas.
c) ( ) I e II, apenas.
d) ( ) I e III, apenas.
e) ( ) I, II e III.

2 (ENADE, 2018, adaptado) As conclusões que extraímos do debate sobre


ganhos relativos são diferentes das do professor Mearsheimer. É verdade
que, quando apenas dois Estados existem e têm interesses diretamente
conflitantes, as instituições não serão significativas, mas este ponto é óbvio.
Duas questões são mais significativas: 1) as condições sob as quais os
ganhos relativos são importantes; e 2) o papel das instituições quando as
questões distributivas são significativas – isto é, quando ganhos relativos
estão em jogo. KEOHANE, R; MARTIN, L. The promise of institutionalist
theory. International Security, v. 20, n. 1, p. 44, 1995.

Considerando as características da abordagem liberal institucionalista, avalie


as afirmações a seguir.
95
I- Embora a abordagem dos autores do texto parta de pressupostos
distintos da abordagem de John Mearsheimer, o foco da análise liberal
institucionalista, em ambos estudos, é o papel dos ganhos relativos.
II- Segundo a abordagem liberal institucionalista, situações de conflitos
distributivos, em que se coloca a questão dos ganhos relativos, reforçam
a pertinência das instituições internacionais.
III- Na abordagem liberal institucionalista, destaca-se o papel das instituições
internacionais e da reciprocidade, para se lidar com as dificuldades que
têm origem na coordenação de ações entre mais de dois Estados.
IV- Na abordagem liberal institucionalista, enfatiza-se o papel da governança
supranacional e de instituições capazes de lidar com as situações em que
há conflitos distributivos resultantes da cooperação.

É CORRETO apenas o que se afirma em:


a) ( ) I e IV.
b) ( ) II e III.
c) ( ) III e IV.
d) ( ) I, II e III.
e) ( ) I, II e IV.

3 O panorama teórico e epistemológico das relações internacionais


contemporâneas é reflexo das profundas mudanças experimentadas na
política internacional com o fim da Guerra Fria. Novos temas e questões
adquiriram visibilidade e relevância em razão da crítica a premissas e
pressupostos até então estruturantes da área.

Considerando as diversas abordagens teóricas que hoje compõem o campo


das Relações Internacionais, avalie as seguintes afirmações.

I- Para as correntes liberais, os regimes democráticos são menos propensos a


estabelecer relações pacíficas entre si, em razão da prevalência de valores
universais.
II- A oposição binária entre masculino e feminino é constitutiva das dinâmicas
de poder na relações internacionais, impactando, sobretudo, o fênomeno
da guerra.
III- A experiência colonial, que estruturou o sistema internacional a partir do
século XV, permanece como dimensão fundamental à compreensão das
relações internacionais contemporâneas, exemplificada pelos processos
de intervenção humanitária no pós-Guerra Fria.
IV- As dinâmicas políticas decorrentes da condição anárquica do sistema
internacional dependem dos processos de socialização dos atores.
V- A soberania deve ser entendida como um conjunto de práticas produtoras
de comunidades políticas exclusivas e excludentes que separam a esfera
doméstica da internacional.

96
É CORRETO apenas o que se afirma em:
a) ( ) I, II e III.
b) ( ) I, II e V.
c) ( ) I, III e IV.
d) ( ) II, IV e V.
e) ( ) III, IV e V.

4 Quais são as semelhanças entre o neorrealismo e o neoliberalismo? E as


diferenças?

5 Como a proliferação de instituições em várias áreas da política internacional


pode influenciar a política externa dos países?

6 Em que medida as instituições mitigam os efeitos da anarquia internacional,


segundo o pensamento Institucionalista Neoliberal?

97
98
TÓPICO 3 —
UNIDADE 2

OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

1 INTRODUÇÃO

As mudanças na ordem política internacional no contexto pós-Guerra


Fria levaram à revisão de vários conceitos e premissas no campo das Relações
Internacionais. A interdependência complexa e a expansão das trocas comerciais,
das relações políticas e diplomáticas, somadas à ampliação das agendas
internacionais, demandaram a inclusão de novos atores à reflexão sobre as
relações internacionais.

O Estado, que protagonizava tanto as interações políticas quanto as


análises teóricas no campo, passa a dividir espaço com uma multiplicidade
de temas e agendas. Além da segurança internacional e de questões militares
estratégicas, as agendas de direitos humanos, meio ambiente, gênero, identidade,
cultura, entre outras, passam a ser objetos das Relações Internacionais, exigindo
a ampliação dos conceitos das diferentes tradições teóricas.

No pensamento liberal, essas mudanças tiveram reflexo na evolução do


pensamento liberal clássico para o denominado “neoliberalismo” ou “institucio-
nalismo neoliberal”, discutido na unidade anterior.

A cooperação, antes limitada aos Estados, passa a ser analisada em


suas várias dimensões: entre Estados e empresas, empresas e organizações da
sociedade civil, entre Estados e Organizações Internacionais etc. Nesse sentido, é
necessário discutir as vertentes do liberalismo dedicadas à compreensão dessas
relações e ao entendimento das consequências do processo de globalização e de
aumento das interações entre os atores internacionais.

O Subtópico 2, a seguir, é dedicado à discussão sobre o liberalismo socio-


lógico, de autores como Rosenau, Deutsch e Cobden. As abordagens funcionalis-
tas e neofuncionalistas, ligadas a essa expansão do pensamento liberal, serão foco
do Subtópico 3.

Será analisada, por fim, a suposta emergência de uma “sociedade civil


global” e o rescrudescimento da interação entre diferentes atores no advento das
redes sociais e da evolução das tecnologias nas áreas de comunicação e transporte,
encerrando essa unidade dedicada ao Liberalismo nas RIs.
99
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

2 LIBERALISMO SOCIOLÓGICO
Uma das vertentes contemporâneas do liberalismo é o denominado
“liberalismo sociológico”. Autores como James Rosenau, Karl Deutsch e Richard
Cobden apontam as limitações das visões liberais e realistas focadas no Estado
e defendem o estudo das relações transnacionais – relações entre grupos da
sociedade civil, indivíduos e organizações através e entre Estados.

Essa visão defende que o campo foi construído e evoluiu a partir de


uma visão estatocêntrica da política internacional, e que essa característica teria
limitado o entendimento das múltiplas interações existentes entre vários atores,
sendo necessário considerar outros atores, como Organizações Internacionais,
Regimes, empresas e organizações da sociedade civil.

James Rosenau (1990) aponta que os processos conduzidos por governos


na política internacional são largamente complementados por relações entre
indivíduos, grupos e sociedades e essas relações teriam impactos diretos sobre as
decisões dos Estados.

Os governos nacionais permaneceriam relevantes e protagonistas, mas


a existência e importância de atores transnacionais levaria à emergência de
uma política de vários centros, ou “multicêntrica”. Cinco razões explicariam a
importância crescente de indivíduos e organizações transnacionais na política
internacional, segundo Rosenau (1990):

• A erosão e dispersão do Estado e do poder governamental.


• A emergência de uma nova mídia, o uso de computadores e novas tecnologias
de informação, o crescimento e ampliação de viagens internacionais, aumento
da migração e a expansão de instituições de educação, que contribuíram para
o aumento das capacidades analíticas dos indivíduos.
• A emergência de assuntos globais interdependentes (AIDS, terrorismo,
poluição ambiental), que tornaria os indivíduos mais ativos e críticos.
• Revolução das tecnologias de informação, que tornaram possível o
acompanhamento de eventos em nível internacional.
• A transformação de líderes em “seguidores”, uma vez que os indivíduos estão
cada vez mais informados e suas demandas estão mais complexas.

Agendas e temas que anteriormente tinham um escopo claramente


doméstico ou internacional, hoje tem de se submeter a decisões nos dois níveis –
cada vez menos delimitados e identificáveis.

Um exemplo é a própria agenda de terrorismo, ou das mudanças do


clima, ambas transnacionais e não limitadas por critérios fronteiriços e nacionais
– ex.: a emissão de gases de efeito estufa que causa a mudança do clima ocorre
a partir de uma indústria e/ou atividade poluente, mas seus efeitos podem ser
internacionais; um atentado terrorista que ocorre, por exemplo, nos EUA, tem
efeitos nas políticas de segurança no Brasil, Reino Unido, China etc.

100
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

Em relação à temática de segurança, especificamente, o liberalismo


sociológico acredita na existência de “comunidades de segurança”. Deutsch
(1969) afirma que os Estados podem construir comunidades transnacionais a
partir do compartilhamento de costumes, identidades e percepções.

Ao contrário do que afirmam os realistas, a agenda de segurança


internacional não seria limitada à maximização do poder militar por parte das
grandes potências e alheia a questões como cultura, tradições e identidade.

Para essa perspectiva, é possível que Estados criem uma sensação de


pertencimento comum, a partir da qual constroem uma comunidade pacífica, na
qual o uso da força não seria uma alternativa política prioritária.

Para o autor, uma comunidade de segurança pode ser amalgamada ou


pluralista:

A comunidade amalgamada é composta por um governo comum


que contém o processo decisório supremo. A comunidade pluralista
é composta por unidade políticas legalmente independentes com
centros de processos decisórios supremos diferentes, ou seja, governos
diferentes. Os estados germânicos conformavam uma comunidade de
segurança pluralista antes de 1871, ano da unificação da Alemanha,
que concretizou uma comunidade de segurança amalgamada. É
possível identificar amalgamação sem que haja uma comunidade de
segurança: no multinacional império austro-húngaro não havia um
sentimento de comunidade (MAGALHÃES, 2012, p. 85).

O liberalismo sociológico, portanto, acredita que as relações
internacionais não seriam exclusivamente compostas pela interação entre Estados,
mas incluiriam indivíduos, organizações, regimes e atores transnacionais. Neste
cenário seria possível que os Estados interagissem de modo pacífico a partir do
alto grau de relações transnacionais.

A proliferação de organizações e grupos transnacionais nos últimos anos


aponta para a validade analítica dessa vertente liberal e incentiva a evolução do
pensamento em direção à compreensão de uma política internacional cada vez
mais plural e multifacetada.

O quadro a seguir ilustra, a partir da discussão realizada neste tópico,


alguns exemplos de organizações internacionais a partir de várias categorias –
das mais tradicionais, entre Estados (ou intergovernamentais) até organizações
transnacionais, que envolvem atores não tradicionais:

101
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

QUADRO 6 – EXEMPLOS DE ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS E TRANSNACIONAIS

TIPO DE ORGANIZAÇÃO
TIPO DE MEMBRESIA
ESPECÍFICA GERAL

União
INTERGOVERNA-
OTAN, NAFTA Africana
MENTAL
(UA)

União
SUPRANACIONAL EURATOM, CECA Europeia
REGIONAL (UE)

Rede Europeia Anti- Movimento


TRANSNACIONAL
pobreza (EAPN) Europeu

OMS, Agência
INTERGOVERNA-
Internacional de
MENTAL ONU
Energia Atômica (IAEA)

UNIVERSAL SUPRANACIONAL FMI --

Movimento
TRANSNACIONAL Anistia Internacional Federalista
Mundial

FONTE: A autora

A emergência do conceito de interdependência complexa, somada às


contribuições teóricas do institucionalismo neoliberal e do liberalismo sociológico,
ampliaram a agenda de estudos no campo das relações internacionais.

Os Estados deixam de ser o único objeto de análise e atores como


organizações, regimes, empresas transnacionais, indivíduos e a sociedade civil
passam a ser analisados a partir de sua importância na definição dos rumos
da política internacional. O subtópico a seguir tem como foco a discussão da
emergência da sociedade civil global no contexto da globalização, a partir dessas
mudanças profundas, tanto na teoria, quanto empiricamente.

3 FUNCIONALISMO E NEOFUNCIONALISMO
Conforme discutido anteriormente, ao final da década de 1930, muitos
estudiosos das relações internacionais identificaram a necessidade de uma nova
abordagem no estudo da política mundial. A incapacidade da Liga das Nações
em lidar com crises internacionais tornou-se mais aparente e chegou ao ápice com
a eclosão da Segunda Guerra Mundial.

102
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

A crise da vertente idealista no pensamento liberal do campo deu espaço


para a emergência e consolidação da escola realista no campo das Relações
Internacionais. Isso não significa, porém, que não houve espaço para o surgimento
de abordagens liberais menos utópicas e voltadas ao entendimento da nova
ordem na política internacional.

Nesse caso, emerge a teoria funcionalista proposta por autores como David
Mitrany (1943). O autor defende a busca pelo entendimento da ordem no pós-
guerra a partir da observação das funções de cada um dos atores internacionais. À
semelhança de Carr (1939), Mitrany (1943) argumentou que o fracasso da Liga das
Nações seria devido aos limites inerentes à criação de um sistema político baseado
em pactos legais em um mundo de Estados desiguais e muito diferentes entre si.

Dessa forma, o crescente poder do sentimento nacionalista minaria a


força da razão humana compartilhada como uma qualidade cosmopolita, que
poderia unir a humanidade a partir de um sistema legal neokantiano baseado em
uma harmonia de interesses. Isso ocorreria porque o nacionalismo político teria
prejudicado a capacidade dos Estados de alcançar prosperidade econômica e paz:
razões de ordem política os impediriam de colaborar com outros Estados em prol
do bem comum.

O nacionalismo teria agravado a tendência dos Estados de optar por


políticas que promovam seus próprios interesses, mesmo que isso acontecesse às
custas dos interesses de outros Estados.

Mitrany (1943) afirmou em sua obra A Working Peace System que nesse
contexto pós-Guerra as economias nacionais passaram a depender cada vez mais
das relações internacionais, minando a capacidade do Estado de controlar e regular
sozinho suas finanças domésticas e prover estabilidade econômica internamente.

O autor acreditava que nessa nova ordem era necessário levar em


consideração a contribuição potencial das funções internacionais de empresas
multinacionais privadas, distintas das funções públicas. Ele argumentou que as
demandas públicas por bem-estar e reformas sociais passaram a ser articuladas
em uma linguagem política com uma ênfase maior em “serviços” do que em
“direitos”, deslocando a discussão de uma esfera mais jurídica para a esfera
administrativa, na qual as empresas privadas poderiam passar a desempenhar
um papel significativo (MITRANY, 1943).

As políticas sociais e econômicas nacionais passaram a ter fortes


repercussões em empresas privadas que operam em uma rede internacional de
produção e comércio não limitada aos territórios nacionais.

Uma nova ordem internacional só seria eficaz se fossem construídas


instituições transnacionais que respondessem a essas várias necessidades
socioeconômicas, em coordenação com o mundo dos negócios coorporativos.

103
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O objetivo do autor era enfatizar essa nova demanda popular por reforma
social baseada não em direitos, mas em serviços. Nessa nova realidade, o aparato
institucional necessário se concentraria no aspecto das atividades humanas que
mais precisariam de “reformas”: a sociedade e a economia, não a política.

Enquanto o pensamento federalista defendia a reforma e criação de


instituições políticas transnacionais nesse contexto pós-guerra, o funcionalismo
de Mitrany advogava por um sistema que não dissolvesse as soberanias nacionais
a partir de meios legais e constitucionais, mas que promovesse uma interação
mais próxima entre as esferas pública e privada.

Segundo o autor, seria improvável o sucesso de uma estrutura política


dependente de um alto grau de compartilhamento de valores e normas, incerto
em um sistema internacional de Estados distintos (MITRANY, 1943).

Diante de um contexto de interdependência entre instituições públicas e


privadas, quais seriam as funções essenciais na política internacional? Segundo
o funcionalismo, elas deveriam ser relacionadas à satisfação das necessidades
humanas. Em termos objetivos, é possível citar a importância de agências
transnacionais de transporte rodoviário, ferroviário, marítimo, além de serviços
relacionados à agricultura, alimentação e comunicações.

A proposta funcionalista seria, então, que serviços relacionados a esses


temas fossem conduzidos por agências transnacionais e apenas guiadas e
reguladas pelo Estado. Segundo Mitrany (1943), o Estado não seria o agente mais
plausível de mudança social, tampouco a melhor forma política para a provisão
de serviços e necessidades essenciais à humanidade.

As ações realizadas pelas instituições transnacionais defendidas por essa


visão deveriam ter, ao menos, dois efeitos principais:

• Uma performance eficiente de tarefas realizadas por instituições transnacionais


resultaria em um processo de transferência de lealdade da população, que
passaria a confiar mais nesses atores que no próprio Estado.
• Os conflitos internacionais seriam reduzidos.

A partir do momento em que essas instituições passassem a existir, seus


resultados positivos poderiam levar a sua manutenção e à proliferação de outras
instituições da mesma natureza.

O apoio funcionalista às instituições transnacionais levou às críticas de


Mitrany ao modelo europeu de integração regional, que apenas reproduziria
funções tradicionalmente estatais em nível supranacional, o que seria insustentável
no longo prazo.

104
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

As únicas instituições regionais europeias exaltadas pelo funcionalismo


foram a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) e a Euratom,
consideradas soluções adequadas às necessidades das diferentes sociedades
europeias e representavam uma lógica funcionalista, não territorial.

FIGURA 2 – A FUNDAÇÃO DA CECA, EM 1957

FONTE: <http://www.caef.org.uk/images/d115routeparis2.jpg>. Acesso em: 31 jul. 2020.

NOTA

A COMUNIDADE EUROPEIA DO CARVÃO E DO AÇO (CECA)

Criada em 1957, a CECA foi uma das bases institucionais da União Europeia. Teve como
objetivo construir uma estrutura de governança conjunta de recursos naturais entre
Alemanha Ocidental, Itália, França, Países Baixos, Bélgica e Luxemburgo. A ideia era evitar
possíveis conflitos futuros pelo domínio desses recursos e estabelecer o livre comércio sem
taxas de exportação de importação de aço e carvão.

105
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

NOTA

A COMUNIDADE EUROPEIA DE ENERGIA ATÔMICA (EURATOM)

Após a criação da CECA, seus países-membros identificaram a necessidade de extensão


da cooperação entre os países a outras fontes energéticas, como a nuclear. O tratado
Euratom, assinado também em 1957, deu origem a uma estrutura de cooperação contínua
de desenvolvimento de pesquisas e promoção de investimentos no setor nuclear.

O Neofuncionalismo, por sua vez, tem como obra seminal o livro The
Uniting of Europe: Political, Social and Economic Forces, publicado em 1958 por
Ernest Haas. A partir das contribuições de Mitrany, Hass teve como objetivo
central explicar a importância da CECA e da Comunidade Econômica Europeia
(CEE), como partes de uma nova organização no continente europeu.

NOTA

A COMUNIDADE ECONÔMICA EUROPEIA (CEE)

A CEE foi criada em 1958, a partir da assinatura do Tratado de Roma (1957), com o objetivo
de estabelecer uma estrutura institucional para o processo de integração econômica e
política crescente na Europa. Foi uma das bases para a União Europeia, criada efetivamente
em 1993 pelo Tratado de Maastricht.

O TRATADO DE ROMA (1957)

FONTE: <https://bit.ly/2HbMAAO>. Acesso em: 31 jul. 2020.

106
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

Haas procurou entender como, e por que, a integração regional, uma


vez iniciada, continua a evoluir e se aprofundar, ganhando “vida própria”. Para
o autor, a nova cooperação na Europa exigia um afastamento das abordagens
realistas que dominavam as Relações Internacionais à época (HASS, 1958).
A ênfase do neofuncionalismo é na cooperação supranacional, no papel das
elites na criação de um consenso internacional e, finalmente, um entendimento
progressivo do processo de cooperação como algo que se espalha de uma área
para a outra.

É importante ressaltar três ideias centrais para o neofuncionalismo:

• As elites tendem a apoiar o projeto de integração e expressam esse apoio a


partir da transferência de parte de suas atividades para o nível supranacional.
• Instituições supranacionais são atores importantes das relações internacionais.
• A integração em uma área tem a tendência de se “espalhar” para outras áreas
relacionadas, resultado em uma espécie de “bola de neve” de integração entre
campos e domínios políticos (o autor denomina esse processo “spillover”).

As duas primeiras ideias: socialização das elites e a importância de


instituições supranacionais, baseiam-se no pressuposto de que Estados não são
os principais (ou únicos) atores relevantes no processo de integração. Os próprios
atores e instituições supranacionais, além de grupos de interesse, desempenham
papeis importantes.

Quanto à terceira, relacionada à noção de spillover, refere-se a um fenômeno


a partir do qual a integração em uma área específica se espalha para outras áreas
relacionadas. Haas notou que, à medida em que a integração regional progredia,
por vezes ela se espalhava e se expandia. Nesse sentido seria possível entender
a criação da CEE como um spillover da CECA, na medida em que a comunidade
de 1952 teria criado as estruturas suficientes para que as elites confiassem na
nova entidade supranacional e estendessem a delegação de funções à uma nova
comunidade, criada em 1958.

4 A SOCIEDADE CIVIL GLOBAL NO CONTEXTO


DA GLOBALIZAÇÃO
O contexto pós-Guerra Fria, conforme visto anteriormente, foi propício
para a reemergência do liberalismo enquanto teoria relevante para a explicação
da política internacional. A criação das Nações Unidas, em 1945, e a proliferação
de arranjos institucionais cooperativos foram evidências de que era possível
solucionar conflitos e promover ordem sem que o uso da força fosse necessário.
Isso corroborou para a noção liberal de uma solidariedade latente.

É importante ressaltar que o institucionalismo neoliberal só ganhou


relevância no campo porque não repete o idealismo wilsoniano do início do
século XX – ao contrário, reafirma a condição anárquica do sistema interna-

107
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

cional à semelhança dos realistas, mas afirma que é possível que os Estados,
de maneira racional e com base em seus interesses, escolham a cooperação
enquanto meio para atingir seus objetivos. Desse modo, a teoria mantém os
pressupostos gerais do liberalismo, mas não possui a “ingenuidade” empírica
presente em seus antecessores.

A relevância do institucionalismo neoliberal é intrinsecamente relacionada


ao fenômeno da globalização. O grande fluxo de mercadorias, informação e
pessoas, somado ao avanço da tecnologia (principalmente a partir de meados do
século XX), incentivou a criação de normas, regras e instituições entre Estados,
empresas e atores transnacionais, voltados à regulação desses fluxos e diminuição
das assimetrias. A interdependência complexa, enquanto um processo histórico,
também é intimamente ligada à globalização. Se os atores internacionais estão
cada vez mais conectados e mutuamente dependentes, isso ocorre porque o
processo de globalização se expandiu rapidamente e de modo inevitável.

Desse modo, o Estado não é o único ator relevante, dividindo espaço em


diversas agendas com Organizações Internacionais, empresas e a sociedade civil
como um todo. Diferentes perspectivas teóricas podem ser usadas para interpretar
a sociedade civil global. Os liberais podem entendê-la como o ator que fornece uma
contribuição importante para a eficácia e legitimidade do sistema internacional
de modo mais amplo. Em essência, a sociedade civil seria a democracia em ação,
uma vez que o poder estaria sob a responsabilidade da população.

O ativismo de grupos da sociedade civil no contexto da globalização


foi facilitado por várias condições específicas. Primeiro, várias organizações
internacionais apoiaram a inclusão de atores da sociedade civil nas tomadas de
decisão internacional. Por exemplo, a Cúpula da Terra da ONU, em 1992, no Rio
de Janeiro, forneceu um meio para grupos anteriormente excluídos do processo
decisório e dispersos se encontrarem e criarem plataformas e redes comuns.

NOTA

A CÚPULA DA TERRA EM 1992

Em 1992 ocorreu a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o


Desenvolvimento (CNUMAD, também conhecida como Rio 92 ou Eco 92). A conferência
discutiu a adoção de convenções específicas para a gestão ambiental e abriu espaço,
em arena paralela, para a participação de ONGs e da sociedade civil de modo mais
amplo. Estima-se que a conferência tenha contado com a participação de mais de 1400
organizações da sociedade civil e 30.000 participantes, sendo até hoje uma das maiores
conferências da ONU.

108
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

A CÚPULA DA TERRA EM 1992

FONTE: <http://jacses.org/image/rio92photo1.jpg>. Acesso em: 31 jul. 2020.

A União Europeia também tem seguido uma abordagem semelhante,


integrando diferentes tipos de organizações da sociedade civil em seus mecanismos
de governança. Esse processo ocorreu por vários fatores, mas principalmente
porque as prioridades do Estado para a alocação de recursos mudaram entre
as décadas de 1980 devido à tendência de privatização de indústrias. Nesse
sentido era comum ver empresas estatais sendo vendidas e privatizadas. Por
esse motivo, em vários países ocidentais o papel geral do Estado em assuntos
públicos foi reduzido. As organizações da sociedade civil conseguiram assumir
muitas funções que anteriormente eram do Estado e assumir novos papeis como
prestadores de serviços.

Outro fator importante nesse contexto é o papel da internet. Através


dos canais que a internet estabelece, grupos de diferentes partes do mundo
puderam se familiarizar com outras realidades políticas e organizações com
ideias semelhantes.

O próprio sistema internacional, de modo geral, ofereceu um ambiente


propício ao desenvolvimento desses tipos de atividades. Ao formar redes
transnacionais, as organizações da sociedade civil usaram sua influência em nível
internacional para obter resultados notáveis. Não há um conceito único, mas uma
rede transnacional pode ser amplamente definida como uma coordenação entre
diferentes organizações da sociedade civil, localizadas em vários países, focadas
coletivamente em questões globais, em várias áreas temáticas.

109
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Nas últimas décadas, as atividades da sociedade civil foram responsáveis


por várias contribuições importantes. Embora isso ainda esteja longe de ser um
passo definitivo e decisivo em direção a uma maior democratização da política
mundial, essas contribuições não podem ser ignoradas. Pelo menos dois tipos de
impacto podem ser identificados: em um primeiro momento as organizações da
sociedade civil conseguiram influenciar os tomadores de decisão políticos, dando
voz a povos e movimentos marginalizados e estruturando novas temáticas na
agenda global (Ex.: movimentos LGBTQI, gênero etc.). Ao mesmo tempo, essas
organizações conseguiram pressionar as instituições de governança global para
que hoje o nível geral de transparência seja mais alto que no passado.

Ainda que o aumento desse tipo de organização seja significativo, não


é possível ignorar o fato de que esse movimento foi desigual. Grande parte do
ativismo transnacional surgiu no ocidente. Outras partes do mundo ainda estão
socialmente desconectadas – Rússia, China, grande parte da África e do mundo
árabe constituem “ilhas” que permanecem relativamente isoladas do crescimento
geral da sociedade civil transnacional. Assim como as organizações da sociedade
civil estão desigualmente concentradas no norte global, os resultados políticos
também apresentam um relativo desequilíbrio geopolítico. Os ganhos alcançados
pelo ativismo político estão em grande parte associados a agendas de Estados do
norte global, beneficiando a população dessa região. É improvável, entretanto,
que isso permaneça, pois há uma emergência notável de movimentos no sul
global e a influência do poder ocidental tem diminuído gradativamente. Esse
processo exige dos analistas a observação de mudanças na interdependência
entre os Estados, historicamente definida pelo mundo desenvolvido.

110
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

LEITURA COMPLEMENTAR

AS TEORIAS PRINCIPAIS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UMA


AVALIAÇÃO DO PROGRESSO DA DISCIPLINA

Pedro Emanuel Mendes

O institucionalismo, também designado por institucionalismo liberal


ou neoliberalismo, embora tenha desenvolvido o seu percurso teórico em
concorrência com o realismo, partilha várias das preposições teóricas racionalistas
do realismo26. Todavia, as conclusões a que os institucionalistas chegam são
substancialmente diferentes. Para estes, apesar da existência da anarquia e da
competição egoísta entre atores, a cooperação é possível.

Partindo da teoria microeconómica e da teoria dos jogos, os institucionalistas


sublinham que a cooperação entre atores pode ser um comportamento
racional e a melhor estratégia para a defesa dos interesses dos estados. Para os
institucionalistas, de acordo com determinadas circunstâncias, o comportamento
cooperativo de atores com interesses próprios pode ser o mais natural e racional
comportamento, precisamente para maximizarem os seus interesses.

Os institucionalistas argumentam que através das instituições – definidas


como um conjunto de regras, normas, práticas e procedimentos decisórios
que influenciam e formatam as expetativas dos atores  – é possível ultrapassar
a incerteza e os obstáculos decorrentes da anarquia que, normalmente,
impossibilitam a cooperação. Aqui, reside outra diferença importante entre
realistas e institucionalistas. Enquanto os primeiros não consideram as instituições
atores essenciais, os segundos olham para as instituições como atores decisivos
e acreditam que a institucionalização crescente das relações internacionais é um
fenómeno determinante para a sua compreensão.

O institucionalismo foca-se na explicação das razões da cooperação entre


estados, bem como nas razões que levam as instituições a conseguirem desenvolver
capacidades próprias e a forçarem os estados a agirem em determinadas direções.
Isto leva-nos à consequente questão: mas, então, como é que as instituições
promovem a cooperação?

Sintetizando as respostas de um grande número de estudos empíricos,


podemos dizer que existem três argumentos fundamentais. Em primeiro lugar,
porque as instituições estendem o horizonte temporal das interações entre os
atores, criando um jogo reiterado de movimentos, jogadas e encontros, ao invés
de uma rodada de jogadas única. Devido à existência de um quadro institucional
de negociação relativamente permanente, os atores sabem que mesmo que num
determinado encontro tenham perdas relativas, podem sempre ter a expetativa de

111
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

que no próximo encontro conseguirão recuperar e obter melhores resultados. Por


outro lado, enquanto num quadro negocial único a tendência é maximizar os lucros
e minimizar as perdas, mesmo que para tal se tente tirar vantagens das fraquezas
momentâneas do ator concorrente, num quadro de negociação institucional
permanente os estados têm consciência que terão de interagir e negociar de forma
reiterada com os seus concorrentes. Isto incentiva-os a cumprirem com as suas
obrigações contratuais de curto prazo para que possam continuar a beneficiar
dos lucros da cooperação a médio e longo prazo. A lógica institucional promove
a utilidade e a eficácia do relacionamento cooperativo dos atores. Os estados são
incentivados a trabalhar dentro das instituições para conseguirem obter uma boa
reputação no cumprimento das suas obrigações contratuais, o que, por outro
lado, também torna as hipotéticas sanções mais credíveis.

Em segundo lugar, os institucionalistas sublinham que as instituições


aumentam consideravelmente o conjunto de informações sobre os comportamentos
dos estados. Se nos recordarmos que a incerteza comportamental dos estados
é uma das mais significativas razões para que os realistas duvidem que a
cooperação possa ser sustentável no tempo, então, é razoável dar razão à ideia
institucionalista que defende que as instituições são os melhores instrumentos
possíveis para a obtenção de informação sobre o comportamento dos estados.
Cumulativamente, as instituições desenvolvem regras e práticas normativas
que permitem bons indicadores de avaliação relativamente ao cumprimento ou
incumprimento das normas institucionais por parte dos estados.

Em terceiro lugar, os institucionalistas constatam que as instituições


contribuem para um aumento significativo da eficiência nas relações entre atores.
Ao contrário dos custos significativos de uma negociação  ad hoc  entre estados,
as instituições reduzem o custo das transações e negociações ao providenciarem
um fórum centralizado de coordenação onde os estados se podem encontrar e
negociar. As instituições providenciam focal points – normas e regras instituídas
– que permitem aos estados de uma forma rápida enquadrar e resolver um
determinado problema ou política.

Em síntese, o institucionalismo identificou compreensivamente o


desenvolvimento progressivo da institucionalização internacional desde o
Pós-Guerra até à atualidade. Desenvolveu estudos inovadores e cumulativos
sobre o papel das organizações internacionais, com especial destaque para
a integração regional. Posteriormente, introduziu a importante teoria sobre
os regimes internacionais para, finalmente, se centrar na cooperação e no papel que
as instituições podem ter como solução para os dilemas relativos aos interesses
próprios e egoístas dos estados apontados pelos realistas.

Como refere Arthur Stein, para os institucionalistas a solução institucional


é semelhante aos argumentos dos teóricos do contrato social para a criação
do Estado. Da mesma forma que o surgimento do Estado foi, historicamente,
a solução institucional encontrada para o problema da autonomia no  estado de

112
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

natureza – e os indivíduos cederam parte da sua liberdade para atingir objetivos


comuns de ordem e segurança, que de outra forma não seriam possíveis –, as
organizações internacionais são a solução institucional para o egoísmo anárquico
das relações internacionais.
 
O LIBERALISMO

O liberalismo tem origem na teoria política idealista-liberal e esteve ligado


a várias ilhas teóricas das RI que em determinados momentos se afirmaram
contra a teoria dominante do realismo, a começar pelo idealismo internacionalista
liberal de entre guerras. Mesmo o institucionalismo é usualmente considerado
como fazendo parte do liberalismo. Na verdade, o institucionalismo teve uma
importante fase neoliberal antes de se declarar especificamente como teoria
institucionalista. Isto significa que o liberalismo sempre teve dois pilares básicos,
um mais normativo, outro mais empírico. O primeiro diz respeito à teoria política
iluminista de raiz kantiana e a uma visão do mundo progressista e otimista da
natureza humana. O segundo diz respeito à sua ligação e influência a várias
teorias parciais que, tanto na análise da política externa (APE), como na política
comparada, como nos estudos sobre a integração funcional dos estados e sobre
as comunidades de segurança, sempre tiveram um enfoque explicativo crítico e
alternativo ao realismo.

A principal preposição teórica do liberalismo, que percorre todas as suas


variantes, é que as características nacionais dos estados importam e são decisivas
para explicar os motivos e razões dos fenómenos internacionais. Esta ênfase
explicativa nas características domésticas dos estados contrasta com as visões
realista e institucionalista que, basicamente, defendem que todos os estados,
independentemente das suas características nacionais particulares, têm, na sua
essência, os mesmos objetivos e comportamentos nas relações internacionais. Ou
seja, todos os atores são jogadores com interesses nacionais de busca da sobrevivência
e de acumulação de poder e riqueza, numa lógica universal de billiard-ball model.

Claro que a visão liberal sobre a importância das características internas


– ideacionais, societárias e institucionais – não significa que os defensores do
liberalismo pura e simplesmente rejeitem que os estados buscam a sobrevivência,
o poder e a riqueza. O que o liberalismo enfatiza é que a cultura política e
institucional interna dos estados influencia decisivamente as suas preferências e
interesses. Neste quadro, o liberalismo especializou-se em analisar as variantes
e invariantes do comportamento dos estados relativamente ao tipo de regime
adotado, nomeadamente ao estudo das preferências e do comportamento de um
tipo particular de Estado: o Estado demoliberal.

Um dos mais importantes desenvolvimentos teóricos do liberalismo diz


respeito ao fenómeno designado por paz democrática. Originalmente inspirada
na paz perpétua de Kant, a paz democrática significa a ausência de guerra entre
estados democráticos, no sentido demoliberal consolidado. Vários estudos
quantitativos e qualitativos descreveram este fenómeno.

113
UNIDADE 2 — O LIBERALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Após o fim da Guerra Fria, com a crise relativa dos paradigmas teóricos
dominantes (neorrealismo, neoliberalismo institucional), o liberalismo saiu
reforçado e houve um esforço de refundar a teoria. O principal autor da tentativa
de redesenhar uma grande teoria liberal nas RI foi Andrew Moravcsik. Este
professor de Princeton, ex-aluno de Kheone, assume, sinteticamente, que os três
principais pressupostos teóricos da teoria liberal das ri são os seguintes:

1. A primazia dos atores societários. Os atores fundamentais nas relações


internacionais são os indivíduos e os grupos privados que vivem e decidem
embebidos em sociedades nacionais e que se movem transnacionalmente.
2. As preferências e a representação dos estados. Os estados – e outras instituições
políticas – representam determinados segmentos das sociedades domésticas
à volta dos quais se formam interesses. É com base nestes interesses que os
decisores e funcionários governamentais vão definir as preferências e opções
das políticas públicas dos estados.
3. O sistema internacional é caracterizado pela interdependência. É fundamental
perceber a influência dos constrangimentos e configurações dos processos de
interdependência internacional na formatação das preferências nacionais e na
determinação do comportamento dos estados e de outros atores não estatais
nas relações internacionais.

Numa tentativa de integrar as várias tradições e correntes do liberalismo,


Moravcsik defende que existem três variantes da teoria liberal em RI:

• o liberalismo ideacional, que estuda o papel das ideias, das identidades e da


legitimidade nas ordens sociais;
• o liberalismo comercial, que estuda o papel dos bens e das transações
económicas transnacionais;
• o liberalismo republicano, que estuda a representação e a definição das
políticas públicas, nomeadamente o tipo e natureza da representação política
dos estados e a sua relação com a definição das preferências e interesses que
capturam ou dominam as políticas públicas.

Importa, finalmente, referenciar que o liberalismo também é uma teoria


sistémica que se preocupa em explicar os fatores estruturais da ordem internacional.
Neste quadro, Ikenberry tem produzido interessantes interpretações sobre a
ordem internacional pós-Guerra Fria, designadamente sobre o papel dos Estados
Unidos na construção de uma ordem internacional liberal. Mais uma vez, é visível
a dialética entre teoria e história na obra de Ikenberry. A influência do contexto
histórico pós-bipolar e a natureza da liderança dos Estados Unidos são óbvias
nos argumentos de Ikenberry. A sua análise pode ser lida como uma resposta
aos perigos da erosão da ordem liberal provocados pela política externa da
Presidência George W. Bush, bem como, embora por razões diferentes, também
se possa aplicar à atual Presidência Trump.

114
TÓPICO 3 — OUTRAS FACES DO LIBERALISMO

O seu argumento principal é que o multilateralismo e as normas


internacionais são essenciais e as únicas vias para os Estados Unidos defenderem
os seus interesses. No longo prazo, o interesse nacional norte-americano é
sinónimo de uma ordem internacional liberal e pacífica. Independentemente
do tipo de potencial hegemónico que os Estados Unidos detenham, unipolar
ou multipolar, a sua maior preocupação deve ser a de consolidar uma ordem
liberal e institucionalista, isto é, normativamente internacionalista e multilateral.
Mesmo na possibilidade de os Estados Unidos perderem o monopólio da
hegemonia, será esta ordem normativa – liberal, internacionalista e multilateral
– que melhor protegerá os seus interesses contra regras unilaterais que não
tenham em conta princípios normativos liberais, mas apenas interesses de
poder económico ou demográfico.

FONTE: <https://bit.ly/35wGzqz>. Acesso em: 24 ago. 2020.

115
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A interdependência e o processo de globalização no pós-Segunda Guerra


Mundial trouxeram mudanças significativas para o entendimento da política
internacional no campo das Relações Internacionais.

• O pensamento liberal evoluiu, integrando visões como o Liberalismo


Sociológico, o Funcionalismo e Neofuncionalismo, entre outras.

• O Liberalismo Sociológico acredita em uma ordem internacional


“multicêntrica”, na qual o papel do Estado seria menor, dando espaço à
emergência de organizações não governamentais, instituições e empresas
como atores relevantes das relações internacionais.

• O Funcionalismo acredita que as demandas públicas por bem-estar e reformas


sociais passaram a ser articuladas em uma linguagem política com uma ênfase
maior em “serviços” do que em “direitos”, deslocando a discussão de uma
esfera mais jurídica para a esfera administrativa, na qual as empresas privadas
poderiam passar a desempenhar um papel significativo.

• O Neofuncionalismo tem como foco central o estudo da integração europeia e


do aumento da importância de instituições supranacionais na política.

• Neste contexto de maior interdependência e avanço tecnológico, o Estado


como protagonista dá lugar a uma multiplicidade de atores relevantes e o
liberalismo no campo das Relações Internacionais expande o escopo das
análises, englobando também a sociedade civil como ator relevante.

CHAMADA

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116
AUTOATIVIDADE

1 Seriam razões da importância crescente de indivíduos e organizações


transnacionais na política internacional, segundo o liberalismo sociológico,
exceto:

a) ( ) O fortalecimento do Estado e do poder governamental.


b) ( ) A emergência de uma nova mídia, o uso de computadores e novas
tecnologias de informação, o crescimento e ampliação de viagens
internacionais, aumento da migração e a expansão de instituições
de educação, que contribuíram para o aumento das capacidades
analíticas dos indivíduos.
c) ( ) A emergência de assuntos globais interdependentes (AIDS, terrorismo,
poluição ambiental), que tornaria os indivíduos mais ativos e críticos.
d) ( ) Revolução das tecnologias de informação, que tornaram possível o
acompanhamento de eventos em nível internacional.
e) ( ) A transformação de líderes em “seguidores”, uma vez que os
indivíduos estão cada vez mais informados e suas demandas estão
mais complexas.

2 Assinale a alternativa correta acerca do funcionalismo nas Relações


Internacionais:

a) ( ) As economias nacionais no pós-Segunda Guerra Mundial passaram


a depender cada vez mais das relações internacionais, reforçando a
capacidade do Estado de regular de forma autônoma suas finanças e
prover estabilidade econômica doméstica.
b) ( ) No pós-guerra, uma nova ordem internacional só seria eficaz se
fossem construídas instituições transnacionais que respondessem às
várias necessidades socioeconômicas, em coordenação com o mundo
dos negócios coorporativos.
c) ( ) O funcionalismo de Mitrany defende um sistema que dissolvesse as so-
beranias nacionais a partir de meios legais e constitucionais, e promo-
vesse uma interação mais próxima entre as esferas pública e privada.
d) ( ) Segundo o funcionalismo, seria improvável o sucesso de uma estrutura
política independente de um alto grau de compartilhamento de valores
e normas, incerto em um sistema internacional de Estados distintos.
e) ( ) As únicas instituições regionais europeias exaltadas pelo funcionalis-
mo foram a União Europeia e a Organização das Nações Unidas, consi-
deradas soluções adequadas às necessidades das diferentes sociedades
europeias e representavam uma lógica funcionalista, não territorial.

117
3 Assinale a alternativa correta sobre os conceitos de Globalização e
Transnacionalismo:

a) ( ) Transnacionalismo diz respeito a um processo ocorrido a partir do


aumento dos fluxos de transporte, pessoas, bens e comunicação,
enquanto Globalização é atitudinal, envolve interações humanas que
conectam indivíduos através de nações e fronteiras nacionais.
b) ( ) Sobre a Globalização, é possível citar como aspectos positivos,
entre outros: (I) maior democratização; (II) diminuição do senso de
diferença e (III) Processo gradual de colonização Virtual.
c) ( ) A ideia de democracia transnacional, característica de uma ordem
mundial multicêntrica, tem como consequência um alargamento de
fronteiras políticas que implica mudanças nas condições e restrições
da realização da democracia contemporânea.
d) ( ) O transnacionalismo precede a globalização na medida em que
representa um fenômeno primário de conexão de indivíduos através
de nações e fronteiras.
e) ( ) O pensamento transnacional na filosofia foi iniciado, e estimulado,
pelo advento da globalização, que permitiu o crescimento e a difusão
de ideias plurais.

4 Quais são as semelhanças entre o funcionalismo e o neofuncionalismo? E as


diferenças?

5 Quais as principais contribuições do liberalismo sociológico para a


compreensão da política internacional?

6 Disserte sobre o papel da sociedade civil global no contexto da globalização.

118
REFERÊNCIAS
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AXELROD, R.; KEOHANE, R. Achieving cooperation under anarchy: strategies


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Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. 3. ed. São Paulo:
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119
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Institutions in International Society. International Organization, Oxford, v. 45,
n. 3, 1991. p. 281-308.

120
UNIDADE 3 —

O MARXISMO NAS RELAÇÕES


INTERNACIONAIS

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de:

• compreender as desigualdades materiais nas relações internacionais e de


sua importância para o desenvolvimento do campo;

• conhecer as mudanças profundas na política internacional no início do


século XX;

• saber como o pensamento marxista contribui para a compreensão do


sistema mundial a partir de conceitos como hegemonia, comunidade
política, emancipação e indústria cultural entender os conceitos centrais e
a validade da visão dos autores da corrente marxista;

• aprender os pressupostos gerais do pensamento marxista nas Relações


Internacionais e aplicar seus conceitos na análise da política e economia
mundiais;

• debater a condição de subdesenvolvimento na região e as possibilidades


de inserção de países historicamente dependentes.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. No decorrer da unidade,
você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo
apresentado.

TÓPICO 1 – A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

TÓPICO 2 – A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS

TÓPICO 3 – O MARXISMO NOS TRÓPICOS

121
CHAMADA

Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em


frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor
as informações.

122
TÓPICO 1 —
UNIDADE 3

A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

1 INTRODUÇÃO

A corrente marxista das Relações Internacionais, à semelhança das demais


contribuições teóricas do campo, não é homogênea. As contribuições de Karl Marx
(1818 – 1883) para a análise do sistema capitalista antecedem a criação formal do
campo e, por vezes, são abordadas de modo marginal e secundário como válidas
para o entendimento da política internacional. Neste tópico, nós abordaremos
uma série de conceitos dessa corrente, a partir do entendimento de sua validade
na compreensão das desigualdades materiais nas relações internacionais e de sua
importância para o desenvolvimento do campo.

Não há um momento inicial a partir do qual o pensamento marxista


se ocupa da análise do internacional. É possível afirmar, entretanto, que a
contribuição de autores, como Vladimir Lenin (1870 – 1924) e John Hobson (1858
– 1940) sobre o fim do século XIX e as transformações do capitalismo, marca o
início do entendimento mais sistemático da relação entre as nações a partir dos
interesses das elites e dos fluxos transnacionais.

As mudanças profundas na política internacional no início do século XX,


com a emergência de regimes totalitários nazifascistas, e a existência de regimes
políticos baseados nos preceitos teóricos de Marx, como a União Soviética (a
partir de 1917) e a China (a partir de 1949), levaram à emergência da denominada
Escola de Frankfurt. Pensadores europeus, em sua maioria associados ao Instituto
de Pesquisa Social da Universidade de Frankfurt, na Alemanha, desenvolveram
uma série de abordagens críticas ao positivismo e saíram em defesa de uma
maior complementariedade entre teoria e prática. Nesse contexto, destacam-se
teóricos como Max Horkheimer (1895 – 1973), Theodor Adorno (1903 – 1969) e,
mais recentemente, Juergen Habermas (1929).

A expansão do capitalismo pelo mundo, as transformações políticas,


econômicas e sociais após a Segunda Guerra Mundial e a crescente estratificação
entre países industrializados e países subdesenvolvidos contribuíram para a
emergência de um pensamento crítico marxista nos trópicos. Nos anos 1960,
surgiu a Teoria da Dependência, a partir da demanda por uma interpretação do
mundo periférico a partir desse mesmo mundo.

123
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Autores como Theotonio dos Santos (1939 – 2018), Ruy Mauro Marini
(1932 – 1997), Vânia Bambirra (1940 – 2015), Fernando Henrique Cardoso (1931),
entre outros desenvolveram uma interpretação crítica do sistema capitalista e se
ocuparam principalmente da análise da dependência dos países do Sul global
com relação ao norte industrializado e desenvolvido.

A análise das trocas econômicas e da relação entre capital e trabalho


também foi foco da análise da denominada Teoria do Sistema Mundial (ou
Sistema-Mundo), desenvolvida por pensadores como Immanuel Wallerstein
(1930 – 2019) e Giovanni Arrighi (1937 – 2009). Essa perspectiva, à semelhança
da Teoria da Dependência, centrou suas contribuições no entendimento da
estrutura do sistema capitalista internacional, marcado pela divisão entre
países do centro (desenvolvidos tecnologicamente, nos quais se fabricam
produtos industrializados), periferia (subdesenvolvidos, que fornecem matéria-
prima, mão de obra e exportam produtos agrícolas) e semiperiferia (países de
desenvolvimento intermediário).

Como parte das contribuições recentes para o pensamento marxista sobre


o sistema internacional ainda é possível citar as obras de autores como Robert Cox
(1926 – 2018), Stephen Gill (1950) e Kees Van Der Pijl (1947), baseadas largamente
nas contribuições de Antonio Gramsci (1891 – 1937), e voltadas ao entendimento
do poder e do papel da hegemonia na ordem mundial neoliberal.

A intenção não é abordar em detalhes as contribuições de cada um dos


autores da corrente marxista, mas entender seus conceitos centrais e a validade
dessa visão para a compreensão do sistema capitalista mundial e para o campo
das Relações Internacionais de modo geral. O primeiro tópico é dedicado à
apresentação dos pressupostos gerais do Marxismo, apreendendo as principais
contribuições de Marx para a análise do internacional. Serão abordadas, também,
as contribuições de Vladimir Lenin, conhecidas como Teoria Imperialista. A ideia
é apresentar os conceitos de monopólio, imperialismo e estratificação, centrais no
pensamento do autor.

TUROS
ESTUDOS FU

O segundo tópico aborda a evolução do marxismo no Leste Europeu, a partir


das contribuições da teoria crítica da Escola de Frankfurt. A reflexão acerca das divisões do
sistema mundial a partir da Teoria de Sistemas-Mundo também será central nessa seção.

O terceiro e último, tópico da terceira unidade será dedicado à discussão do


marxismo nos trópicos e à análise da dependência e do subdesenvolvimento no sistema
mundial. Espera-se que, ao fim da unidade, você, acadêmico, seja capaz de aprender os
pressupostos gerais do pensamento marxista nas Relações Internacionais e aplicar seus
conceitos na análise da política e economia mundiais.

124
TÓPICO 1 — A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

2 PRESSUPOSTOS GERAIS DO MARXISMO


Enquanto as perspectivas realista e liberal consideram centrais os conceitos
de equilíbrio de poder e interdependência, respectivamente, a perspectiva
marxista enfatiza a estratificação do sistema internacional: a divisão entre países
desenvolvidos e industrializados e países subdesenvolvidos e periféricos.

Em linhas gerais, o Estado seria o agente executor dos interesses da


burguesia e das elites, e as ações dos indivíduos seriam determinadas pela classe
econômica a qual fazem parte. Nesse sentido, a teoria marxista romperia com a
centralidade do Estado como protagonista das relações internacionais, elemento
importante das teorias do primeiro debate (anteriormente discutido nas Unidades
I e II), e introduziria o conceito de classe como unidade de análise.

Vigevani et al. (2011) afirmam que não é possível identificar em Marx uma
teoria específica sobre o sistema internacional. Essa afirmação faz coro a Cox
(1986, p. 248): “se há qualquer diálogo entre as contribuições norte-americanas
das relações internacionais e o pensamento marxista, é um diálogo de surdos”.
Ainda assim é possível identificar na trajetória de Marx uma série de análises
acerca do internacional, mesmo que incompletas e pouco desenvolvidas.

Hobden e Jones (2014) afirmam que o autor escreveu copiosamente sobre


questões internacionais, mas boa parte de suas contribuições a esse respeito
tiveram um caráter majoritariamente jornalístico. Seu mapeamento teórico dos
contornos do capitalismo não teria incorporado de modo profundo a dimensão
internacional, esforço empreendido pelos sucessores, notadamente Vladimir
Lenin, no início do século XX.

As contribuições de Marx acerca do internacional passaram por uma série


de releituras e reinterpretações ao longo da história, levando à emergência de
várias escolas de pensamento baseadas em suas concepções. Conforme afirmado
anteriormente, não há um único marxismo, assim como não há uma única
interpretação realista ou liberal. Cabe aqui, então, uma breve discussão sobre as
semelhanças entre as diferentes interpretações do pensamento marxista.

É possível identificar, dentre vários citados pela literatura da área, quatro


elementos comuns às abordagens marxistas:

• a necessidade de análise do mundo social em sua totalidade;


• a concepção materialista da história;
• a relação entre base e superestrutura; e
• a importância do conceito de classe.

Com relação ao primeiro elemento, Marx acreditava que a divisão da


compreensão do mundo social em várias áreas do conhecimento (História,
Filosofia, Economia, Ciência Política, Sociologia, Relações Internacionais etc.)
seria arbitrária e pouco útil.

125
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A análise das diferentes sociedades deveria ser realizada a partir do


estudo do todo, o que exigiria grande esforço dos autores e pensadores em
diferentes campos.

Em relação à concepção materialista da história, um dos elementos centrais


da obra de Marx é a noção de que os processos históricos de mudança seriam
largamente reflexos do desenvolvimento econômico das sociedades, conceituado
pelo autor como o “motor da história”. Nesse sentido, uma dinâmica central
na análise marxista seria a tensão entre os meios de produção e as relações de
produção que, juntos, formariam a base econômica das sociedades.

À medida em que os meios de produção se desenvolvem (a partir de


avanços tecnológicos, por exemplo) as relações prévias de produção se tornam
ultrapassadas. Isso leva a uma série de processos de mudança social, nos quais
as relações de produção são transformadas com o objetivo de se adaptar aos
novos meios de produção. Nesse sentido, Marx afirma em Contribuição à crítica
da Economia Política, de 1859, que desenvolvimentos na base econômica agiriam
como catalisadores de uma transformação na estrutura da sociedade como um
todo: “O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida
social, política e intelectual” (MARX, 2008, p. 47).

E
IMPORTANT

O CONCEITO DE MEIOS DE PRODUÇÃO

Os meios de produção de uma sociedade, segundo a teoria marxista, incluiriam todos os


elementos físicos, exceto seres humanos, envolvidos da produção de bens e serviços. Alguns
exemplos incluem: recursos naturais, máquinas, ferramentas, escritórios, computadores e
meios de distribuição como lojas e, mais recentemente, a internet. Os meios de produção,
conforme apontado, podem mudar ao longo do tempo conforme a evolução tecnológica.

Desse modo, as instituições e práticas legais, políticas e culturais em dada


sociedade refletem e reforçam o padrão de poder e controle da economia. Isso
significa, portanto, que mudanças na base econômica eventualmente levariam a
mudanças na superestrutura legal e política. A relação entre base (infraestrutura)
e superestrutura, terceiro elemento em comum entre as diferentes abordagens
marxistas, é uma das principais áreas de discussão dessa corrente.

126
TÓPICO 1 — A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

NOTA

OS CONCEITOS DE INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURA

Infraestrutura e superestrutura são dois conceitos teóricos conectados e centrais na obra


de Marx. Infraestrutura diz respeito às forças de produção, ou materiais e recursos, que
geram os bens que as sociedades consomem. O conceito de superestrutura, por sua vez,
é relacionado aos demais aspectos da sociedade, incluindo cultura, ideologia, normas,
identidades, educação, mídia etc.

A Figura 1 ilustra, em linhas gerais, a relação entre infraestrutura e


superestrutura no pensamento marxista:

FIGURA 1 – A RELAÇÃO ENTRE INFRAESTRUTURA E SUPERESTRUTURA

FONTE: A autora

Conforme ilustrado no esquema da Figura 1, a superestrutura (conjunto


de normas, ideologias, mídia, política etc.) manteria e legitimaria as relações e os
meios de produção. Ela refletiria os interesses da classe dominante e defenderia
o poder das elites.

A infraestrutura (base econômica da sociedade: meios e relações de


produção), por sua vez, definiria a superestrutura e condicionaria todos os seus
elementos. Em outras palavras, a estrutura econômica das sociedades (os meios
e relações de produção) seria a base concreta sobre a qual é criada uma estrutura
jurídica, cultural e política.
127
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O quarto elemento comum à grande parte das contribuições marxistas


ao estudo do internacional seria a ênfase no conceito de classe. Em contraste ao
pensamento liberal (abordado na segunda unidade), que defende a existência de
uma harmonia de interesses entre vários grupos sociais, o marxismo afirma que
as sociedades seriam propensas a conflitos entre classes sociais.

Em Manifesto do Partido Comunista (1848), Marx e Friedrich Engels (1820 –


1895) argumentam que “a história de todas as sociedades tem sido a história das
lutas de classe” (MARX, ENGELS, 1998, p. 7). Em uma sociedade capitalista, o prin-
cipal eixo de conflito seria entre a burguesia e o proletariado (classe trabalhadora).

O objetivo de Marx e da maioria dos autores cujas obras foram inspiradas


em suas contribuições, não era permanecer “descolado” de seu objeto de estudo
– ao contrário, o autor defendia a interpretação do mundo para que, então, fosse
empreendida a mudança. Outro elemento importante da teoria marxista, nesse
sentido, é a possibilidade de emancipação.

A ideia não era apenas entender a dinâmica do sistema capitalista, mas, a


partir desse entendimento, superar esse sistema e substituí-lo por uma sociedade
comunista na qual as relações sociais seriam transformadas.

DICAS

FILME: Tempos Modernos (1936).


O filme, escrito, dirigido e estrelado por Charlie Chaplin, ilustra a vida de um trabalhador
no sistema de produção característico das indústrias do século XX e critica a desigualdade
entre classe trabalhadora e burguesia.

Para Marx e Engels (1998) o mundo material seria uma realidade objetiva,
independente da mente ou do espírito, ou seja, as ideias surgiriam apenas como
produto e reflexo das condições materiais.

Os autores compreendiam o materialismo como o oposto do idealismo


e adotaram uma abordagem materialista completa, sustentando que qualquer
tentativa de combinação ou reconciliação entre os dois resultaria em inconsistência.
Essa visão é compatível com a defesa e aproximação dos autores com a dialética
de Georg W. F. Hegel (1770-1831).

Em oposição ao modo de pensamento metafísico, que via as coisas em


abstração, cada uma dotada de propriedades fixas, a dialética hegeliana considera
as coisas em seus movimentos e mudanças, inter-relações e interações.

128
TÓPICO 1 — A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

Tudo estaria em contínuo processo de tornar-se e deixar de existir, nada


seria permanente: tudo muda e acaba sendo substituído.

A relação entre uma tese (ideia inicial, questionamento), antítese (nova


ideia, resposta possível) e síntese (conclusão) seria central para o pensamento
dialético. Hegel, entretanto, via a mudança e o desenvolvimento como a expressão
das ideias – para Marx e Engels a mudança era inerente ao mundo material.

DICAS

FILME: A Classe Operária Vai ao Paraíso (1971).


Filme italiano, dirigido por Elio Petri, acompanha a trajetória de um trabalhador na Itália
da década de 1970. Aborda questões relacionadas à consciência de classe, alienação e a
relação entre infraestrutura e superestrutura.

Conforme citado anteriormente, a obra de Marx não enfatiza o caráter


transfronteiriço do sistema capitalista de modo a desenvolver uma teoria robusta
do internacional.

As contribuições de Lenin e Hobson, abordadas na seção seguinte,


emergem como possibilidades de observação e análise da expansão do capitalismo
e da estratificação consequente desse processo.

3 O IMPERIALISMO EM LENIN E A INTERPRETAÇÃO DO


INTERNACIONAL
A publicação de O Capital, em 1867, foi um marco importante no
entendimento das sociedades a partir de suas bases econômicas e materiais.

O foco da obra (desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra do século


XIX), porém, não captura uma série de mudanças na estrutura do sistema
capitalista na transição para o século XX.

A partir da identificação dessa lacuna importante, Vladimir Lenin


publica, em 1917, a obra Imperialismo: etapa superior do capitalismo, com o objetivo
de compreender as implicações transfronteiriças da expansão do capitalismo.

129
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

FIGURA 2 – O IMPERIALISMO: ETAPA SUPERIOR DO CAPITALISMO

FONTE: <https://bit.ly/35f2FO0>. Acesso em: 10 jul. 2020.

Lenin identificou um intenso processo de concentração da produção em


países como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha, levando ao predomínio
de monopólios. Essa concentração caracterizaria a fase final do capitalismo,
denominada imperialismo, principalmente a partir da crise econômica de 1873.

E
IMPORTANT

A CRISE ECONÔMICA DE 1873

A segunda metade do século XIX foi marcada pela segunda Revolução Industrial e a
consequente modernização e aumento da produção industrial na Europa e nos Estados
Unidos. Esses processos também tiveram como consequências a substituição da mão
de obra, desemprego e menor poder de compra. O excedente de mercadorias levou à
busca, por parte das grandes potências, por mercado consumidor e matérias primas em
continentes como Ásia e África.

130
TÓPICO 1 — A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

Lenin identificou que esse período marca o agravamento das


desigualdades na economia internacional, marcada por um centro dominante
(países industrializados na Europa, além dos Estados Unidos) que explora a
periferia menos desenvolvida (África, Ásia e América Latina, notadamente).

Essa divisão levaria, segundo o autor, a um rompimento da suposta


harmonia de interesses entre os trabalhadores em diferentes áreas do mundo,
porque os capitalistas do centro seriam capazes de pacificar sua classe trabalhadora
a partir da exploração da periferia.

O autor aponta quatro características centrais dessa fase monopolista:


“(I) o monopólio seria produto da concentração da produção em um grau muito
elevado do seu desenvolvimento. São formadas as associações monopolistas dos
capitalistas, os carteis, os sindicatos e os trustes” (LENIN, 1987, p. 215). Segundo o
autor, os monopólios seriam a maior consequência da concentração da produção:

(II) os monopólios vieram agravar a luta pela conquista das mais


importantes fontes de matérias-primas, particularmente para a
indústria fundamental e mais cartelizada da sociedade capitalista: a
siderúrgica.
(III) o monopólio surgiu dos bancos que, por sua vez, se transformaram
em monopolistas do mercado financeiro.
(IV) o monopólio nasceu da política colonial (LENIN, 1987, p. 215).

Dessas características, é possível derivar cinco características básicas do


imperialismo:

• a concentração de produção e capital atingiu tal nível que criou monopólios


que têm um papel central na economia dos países;
• a fusão do capital bancário com o capital industrial criou as bases do capital
financeiro ou da oligarquia financeira;
• a exportação do capital (empréstimos e ações) de forma diferenciada da
exportação das commodities assumiu uma importância excepcional;
• as formações de capitalistas monopolistas internacionais, combinando suas
participações, dominam o mundo;
• a divisão territorial entre as grandes potências capitalistas está terminada.

Uma das consequências do imperialismo foi a divisão do continente


africano, em virtude da busca por matéria-prima e escoamento de produção.

Conforme apontado anteriormente, as grandes potências no fim do século


XIX e início do século XX, não buscavam a dominação direta do território, mas a
manutenção do controle da extração de recursos e domínio de mercados, embora
a dominação territorial tenha ocorrido ao longo das décadas. A partilha da África
durante a Conferência de Berlim (1884-1885) foi um marco do imperialismo
europeu nesse período.

131
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

FIGURA 3 – REPRESENTAÇÃO DA CONFERÊNCIA DE BERLIM (1884)

FONTE: <https://www.dw.com/image/18277176_303.jpg>. Acesso em: 10 jul. 2020.

FIGURA 4 – A PARTILHA DA ÁFRICA (1880-1914)

FONTE: <https://bit.ly/3dJsSYZ>. Acesso em: 10 jul. 2020.

132
TÓPICO 1 — A TEORIA MARXISTA EM LINHAS GERAIS

As principais potências europeias à época (além de Império Otomano e


Estados Unidos) – Alemanha, Bélgica, Espanha, Áustria-Hungria, Dinamarca,
Grã-Bretanha, Suécia, França, Noruega, Países Baixos, Rússia, Portugal e Itália –
participaram da conferência com o objetivo de definir suas zonas de influência.

Esse processo teria contribuído para o imperialismo analisado por Lenin.


Conforme o mapa na Figura 4 ilustra, a França passa a dominar boa parte do
Norte da África, além da ilha de Madagascar. O Reino Unido, por sua vez,
dominou parte significativa da África Austral, além das regiões de Egito, Nigéria
e Gana, e utilizou essa influência para escoamento da produção e extração de
matérias-primas.

133
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A corrente marxista não é homogênea. Ao longo dos anos as contribuições


baseadas na obra de Karl Marx evoluíram na direção da compreensão da
economia e do capitalismo em nível internacional.

• É possível identificar ao menos quatro elementos comuns às abordagens


marxistas: (I) a necessidade de análise do mundo social em sua totalidade; (II)
a concepção materialista da história; (III) a relação entre base e superestrutura;
(IV) a importância do conceito de classe.

• No pensamento marxista, infraestrutura (meios e relações de produção) e


superestrutura (instituições sociais) são relacionadas, de modo que mudanças
na base econômica e nas relações de produção eventualmente levariam a
mudanças na superestrutura legal e política.

• Lenin avança na compreensão do internacional a partir das mudanças na


economia mundial a partir do fim do século XIX.

• A partilha da África durante a Conferência de Berlim (1884-1885) foi uma das


maiores consequências da necessidade de escoamento da produção e busca
por matérias-primas e mão de obra em continentes como África e Ásia.

134
AUTOATIVIDADE

1 Disserte sobre as diferenças entre as teorias realista, liberal e marxista em


relação a (I) principal ator das relações internacionais; (II) possibilidade de
mudança; e (III) visão do sistema internacional.

2 Conceitue infraestrutura e superestrutura, segundo Marx, e defina a relação


entre os dois conceitos.

3 O que é imperialismo, segundo Lenin (1987)? Qual foi o papel da colonização


do final do século XIX para a obtenção dos objetivos das grandes potências?

135
136
TÓPICO 2 — A
UNIDADE 3

EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS


RELAÇÕES INTERNACIONAIS

1 INTRODUÇÃO

Neste tópico, serão abordadas três visões influenciadas pelo legado


marxista na compreensão das relações internacionais: a Teoria Crítica, a Teoria
Neogramsciana e as abordagens do Sistema-Mundo. Conforme dito anteriormente,
não há um único marxismo, sendo possível acompanhar a evolução dessa corrente
ao longo das décadas a partir de suas continuidades e rupturas.

A ideia é compreender como o pensamento marxista contribui para


a compreensão do sistema mundial a partir de conceitos como hegemonia,
comunidade política, emancipação e indústria cultural.

Discutiremos, primeiramente, os principais elementos da Teoria Crítica


desenvolvida no contexto da Escola de Frankfurt entre os anos 1920 e 1930. No
mesmo contexto emergem as principais contribuições de um dos pensadores
mais importantes da corrente marxista: Antonio Gramsci, cujo legado será visto
no Subtópico 3.

Nos anos 1970, a Teoria do Sistema-Mundo retoma a importância da


estratificação do sistema internacional entre centro e periferia e problematiza as
relações entre mundo industrializado e mundo subdesenvolvido. Este será o foco
do Subtópico 4.

2 O MARXISMO NO LESTE EUROPEU: A TEORIA CRÍTICA DA


ESCOLA DE FRANKFURT
A Teoria Crítica é um movimento filosófico e sociológico originado no
Instituto de Pesquisa Social da Universidade Goethe, em Frankfurt, na Alemanha
(por esse motivo é, por vezes, denominada “Escola de Frankfurt”).

O Instituto foi fundado em 1923, com o objetivo de desenvolver estudos


baseados na obra de autores como Karl Marx e Friedrich Engels. Após 1933, com
a emergência do regime nazista, o instituto foi transferido para a Universidade de
Columbia, nos Estados Unidos.
137
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

As influências acadêmicas da Teoria Crítica são abrangentes. Algumas


de suas questões-chave e preocupações filosóficas envolvem a crítica da
modernidade e da sociedade capitalista, a definição de emancipação social, bem
como a identificação de patologias sociais.

A Escola de Frankfurt oferece uma interpretação específica da filosofia


marxista no que diz respeito a algumas de suas noções sobre economia e política,
como mercantilização, fetichização e crítica da cultura de massa.

Algumas das figuras mais proeminentes da primeira geração de teóricos


críticos foram Max Horkheimer (1895-1973), Theodor Adorno (1903-1969),
Herbert Marcuse (1898-1979), Walter Benjamin (1892-1940) e Friedrich Pollock
(1894-1970). A denominada “segunda geração” da Teoria Crítica iniciou-se a
partir das contribuições de Juergen Habermas que, dentre outros destaques,
tornou a Escola de Frankfurt popular ao redor do mundo.

FIGURA 5 – A PRIMEIRA GERAÇÃO DA TEORIA CRÍTICA – ADORNO E HORKHEIMER

FONTE: <https://bit.ly/2IKV6Ha>. Acesso em: 10 jul. 2020.

Quando de sua criação, em meados dos anos 1920, a Escola de Frankfurt


foi concebida em termos de uma reinterpretação da psicanálise de Sigmund
Freud (1856-1939) e da teoria marxista. “A síntese entre as duas contribuições
forneceria, segundo os pensadores, a oportunidade de compreensão da
sociedade a partir tanto da base socioeconômica, quanto da superestrutura
ideológica” (JAY, 1973, p. 92).

A ideia era que o marxismo forneceria elementos conceituais importantes


para a compreensão da formação das classes sociais, enquanto a psicanálise
explicaria aspectos mais individuais e psíquicos.

138
TÓPICO 2 — A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Os teóricos críticos defendem que qualquer esforço de pesquisa social


deveria combinar filosofia e ciências sociais, sem a separação entre explicação
e compreensão, estrutura e ação, regularidade e normatividade. Tal abordagem
permite que a pesquisa crítica seja prática em um sentido moral – segundo Adorno
e Horkheimer (1947), a busca do pesquisador crítico seria pela “emancipação
humana” das circunstâncias de dominação e opressão. Isso significa que as
teorias tradicionais (principalmente aquelas baseadas em uma visão positivista
de ciência), para a Escola de Frankfurt, geralmente vêm de “cima para baixo”,
não seriam neutras e legitimariam práticas sociais injustas e repressivas, sendo
necessário o comportamento crítico e a emancipação por parte do pesquisador.

A Escola de Frankfurt propôs, a partir dessas observações, a análise dos


sistemas de poder que oprimiram a classe trabalhadora. De modo geral, a ideia
seria tornar visíveis os pressupostos, suposições e dinâmicas sociais e problema-
tiza-los para que houvesse o rompimento com as estruturas de opressão sociais.

Um dos grandes questionamentos dessa corrente, nesse sentido, foi:


por que não ocorreram revoluções comunistas no ocidente? A resposta estaria
na cultura ocidental. Essa cultura (hegemônica) levaria à marginalização de
outras ideias, impedindo mudanças e mantendo a opressão. Essa seria uma das
grandes contribuições da Teoria Crítica em relação às abordagens marxistas até o
momento: o papel da cultura na dominação em uma sociedade de classes.

ATENCAO

O CONCEITO DE INDÚSTRIA CULTURAL

Adorno e Horkheimer, em A Dialética do Esclarecimento (1947), propõem que a cultura


popular seria como uma indústria que produziria bens culturais que, por sua vez, tornavam
as sociedades “dóceis” e incentivariam o consumo indiscriminado. As elites manipulariam a
população via meios de comunicação como televisão, rádio e jornais.

Somada à contribuição de Habermas, nos anos 1970 e 1990, principal-


mente, a Teoria Crítica ao longo dos anos compartilharia três elementos prin-
cipais (HOBDEN, JONES, 2014): primeiro, o interesse na análise do papel da
cultura e da mídia (ou seja, da superestrutura) e uma menor ênfase no entendi-
mento das bases econômicas da sociedade (infraestrutura). Em segundo lugar,
a teoria crítica coloca em xeque a capacidade de emancipação do proletariado,
conforme Marx acreditava.

139
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Para os teóricos críticos, a classe trabalhadora teria sido “absorvida” pelo


sistema com a emergência de uma cultura de massa e a consequente alienação
da população, que não teria consciência de classe e, portanto, não buscaria a
emancipação. Por fim, a Escola de Frankfurt, conforme discutido, reflete sobre o
potencial de emancipação dos indivíduos.

Sobre o último ponto, Juergen Habermas (1984) afirma que o caminho


para a emancipação total seria a democracia radical, ou deliberativa. Para o autor,
um sistema que busca o equilíbrio entre vários interesses na sociedade por meio
da comunicação seria o caminho para a libertação humana das opressões.

E
IMPORTANT

A TEORIA DA AÇÃO COMUNICATIVA DE HABERMAS (1984)

Habermas, em A Teoria da Ação Comunicativa (1984), critica a noção de que os indivíduos


agiriam apenas com base em uma racionalidade (cálculo de custo-benefício) instrumental
(definida pela razão entre meios e fins). O autor defende que os indivíduos são capazes, a
partir da comunicação entre eles, de construir um consenso que beneficie a todos, sem
que haja a busca individual pela maximização dos ganhos e redução dos custos.

3 A ANÁLISE DA ORDEM MUNDIAL PELA TEORIA


NEOGRAMSCIANA
Um dos pensadores mais influentes da corrente marxista foi Antonio
Gramsci (1891-1937). Membro fundador do Partido Comunista Italiano, Gramsci
foi preso, em 1926, durante o regime fascista de Benito Mussolini e permaneceu
preso durante boa parte de sua vida, escrevendo uma série de reflexões que foram
publicadas postumamente em vários volumes intitulados Cadernos do Cárcere.

140
TÓPICO 2 — A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

FIGURA 6 – ANTONIO GRAMSCI (1891 – 1937)

FONTE: <https://bit.ly/31txs8S>. Acesso em: 12 jul. 2020.

A obra de Gramsci, entre outros elementos, gira em torno do conceito


de hegemonia. O autor via o estado capitalista como sendo composto de duas
esferas sobrepostas, uma “sociedade política” (que governaria através da força) e
uma “sociedade civil” (que governaria mediante consentimento).

Essa sociedade civil seria diferente do sentido tradicional (associado a


organizações não governamentais). Gramsci via a sociedade civil como a esfera
pública em que sindicatos e partidos políticos obtinham concessões do estado
burguês e a esfera em que ideias e crenças seriam moldadas, e a “hegemonia”
burguesa seria reproduzida na vida cultural através da mídia, universidades e
instituições religiosas, “fabricando” consensos e legitimidade.

Nesse sentido, apenas a luta por controle dos meios de produção não
seria suficiente para a emancipação – a luta por ideias e crenças com o objetivo
de criar uma nova hegemonia. Essa noção de luta “contra-hegemônica”, ou seja,
a proposição de alternativas às ideias dominantes do que seria normal e legítimo,
teve amplo apelo em movimentos sociais e políticos ao redor do mundo. Também
contribuiu para a noção, compartilhada com a Teoria Crítica, de que conhecimento
seria uma construção social que serviria para legitimar estruturas sociais.

Em termos práticos, as ideias de Gramsci de como o poder seria constituído


no campo das ideias e do conhecimento – expresso através do consenso, e não da
força – inspiraram o uso de estratégias de contestação de normas hegemônicas
de legitimidade.

141
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

As ideias de Gramsci influenciaram, inclusive, práticas de educação


popular, incluindo métodos de alfabetização e conscientização de adultos,
desenvolvidos por figuras como o brasileiro Paulo Freire em suas obras,
principalmente em Pedagogia do Oprimido (1970).

A ideia de poder como hegemonia também influenciou uma série de


debates sobre a sociedade civil. Os críticos da concepção democrática liberal de
sociedade civil usam a definição de Gramsci para lembrar que a sociedade civil,
enquanto uma rede de instituições e práticas que possui alguma autonomia em
relação ao Estado, também pode ser esfera de luta e contestação política.

DICAS

Assista ao minicurso sobre o pensamento político de Gramsci, disponível no


endereço: https://www.youtube.com/watch?v=zxwzNZtFS7M.

Especificamente no campo das Relações Internacionais, um dos autores


marxistas mais influentes foi Robert Cox (1926-2018). Cox, a partir das obras de
Marx e Gramsci, desenvolveu uma teoria crítica baseada na noção gramsciana de
hegemonia para compreender o sistema internacional.

De acordo com o autor, as potências dominantes no sistema internacional


(notadamente Estados Unidos e Reino Unido) moldaram uma ordem compatível
com seus interesses, principalmente com a ideia de livre mercado.

Segundo Cox (1986), a visão de um livre mercado que beneficiaria a


todos seria tão aceita que atingiu o status de “senso comum” (HOBDEN, JONES,
2014). A realidade, por outro lado, revelaria que esse livre mercado beneficiaria
principalmente o hegemon (que seria o produtor mais eficiente da economia
mundial), e os benefícios em estados periféricos seriam muito menores.

O grau em que um Estado consegue, de modo bem-sucedido, produzir


e reproduzir sua hegemonia seria um indicador da extensão de seu poder. O
sucesso dos EUA, por exemplo, em obter a aceitação mundial do neoliberalismo
sugeriria o quão dominante o país tornou-se. Apesar dessa dominância norte-
americana, Cox (1986) não afirma que ela não poderia ser desafiada.

142
TÓPICO 2 — A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O autor mantém a visão marxista de que o sistema capitalista seria


instável e cheio de contradições. Crises econômicas poderiam agir, então, como
catalizadoras para a emergência de movimentos contra hegemônicos que,
para Cox (1986), requerem uma coalização de forças sociais que rejeita o senso
comum hegemônico.

Uma hegemonia estável demandaria, segundo o autor, uma configuração


particular de forças – uma combinação entre poder material, ideias e instituições.
“O enfraquecimento desse ator ocorreria quando o equilíbrio entre essas três
forças é desestabilizado” (COX, 1986, p. 135).

Outra contribuição importante de Cox seria sua visão acerca do papel da


teoria. Segundo o autor, “teoria é sempre para alguém e para algum propósito”
(COX, 1986, p. 128). As teorias tradicionais (como o realismo e o liberalismo,
estudados nas unidades anteriores) seriam marcadas por uma lógica positivista e
legitimariam a ordem social e as estruturas políticas prevalecentes.

Essa visão é ligada a crítica de Gramsci à suposta “neutralidade” da ciência


e à ideia de que conceitos seriam universalmente aplicáveis, sem associação a
contextos históricos, políticos e relações de poder.

4 ABORDAGENS DO SISTEMA-MUNDO
A noção de divisão entre centro industrializado e desenvolvido e periferia
“atrasada” e dependente, proposta por Lenin no início do século XX e discutida
na segunda seção do primeiro tópico dessa unidade, influenciou a produção
teórica das denominadas “Abordagens do Sistema-Mundo”. Um dos principais
representantes dessa corrente foi Immanuel Wallerstein (1930 – 2019).

Para Wallerstein (1999), a história global teria sido marcada pela


emergência e queda de uma série de Sistemas-Mundo.

O Sistema-Mundo moderno teria emergido na Europa e na Américo


do século XVI – o processo, já discutido, de acumulação de capital em países
como Reino Unido e França, teria desencadeado a expansão para os demais
continentes, de modo que no século XIX o mundo todo já estava incorporado
no sistema capitalista.

143
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

FIGURA 7 – DIVISÃO ENTRE CENTRO E PERIFERIA NO SISTEMA MUNDIAL

FONTE: <https://bit.ly/3dTCzEg>. Acesso em: 10 jul. 2020.

Em relação à geografia desse sistema mundial, além de centro e periferia,


já discutidos, o autor adiciona uma categoria intermediária: a semiperiferia, que
teria características tanto do centro, quanto da periferia do Sistema-Mundo.

O sistema global estratificado seria caracterizado por uma desigualdade


consequente da exploração do Norte global (industrializado) sobre a periferia:
os Estados centrais teriam conseguido concentrar as atividades econômicas
mais lucrativas a partir da exploração e colonização. Enquanto Lenin via o
imperialismo como o último estágio do capitalismo, a teoria da Sistemas-Mundo
via essa relação de exploração como uma característica central da estrutura
constante e evolutiva do capitalismo.

A partir dessa estrutura teórica, Wallerstein (1999) busca explicar a


dificuldade da periferia do sistema mundial em se desenvolver (com base na
Teoria da Dependência, a qual será abordada no Tópico 3 desta unidade).

O autor ressalta que, ao contrário dos países europeus, o histórico


do Sul global é de exploração e colonização, o que faz com que a competição
econômica com países desenvolvidos seja desigual. Não seria possível, portanto,
compreender o “destino” dos países de modo isolado, mas como parte de um
sistema global – nenhum país seria pobre apenas em consequência de sua própria
história e suas características internas, mas por conta de sua posição relativa no
sistema capitalista global.

144
TÓPICO 2 — A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO MARXISTA NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Os teóricos do Sistema-Mundo criticam as teorias clássicas de economia


que apontavam que a especialização no comércio internacional beneficiaria a to-
dos os países (ex.: países que possuem tecnologia para produzir bens industria-
lizados deveriam concentrar-se nessa produção, enquanto países que produzem
commodities – soja, café, açúcar, entre outros – deveriam concentrar-se nisso).

NOTA

A TEORIA DAS VANTAGENS COMPARATIVAS

Desenvolvida pelo economista inglês David Ricardo (1772-1823), a Teoria das Vantagens
Comparativas defende que cada país deve se especializar na produção de um determinado
bem – especificamente aquele que tem menores custos para o país. Isso levaria a ganhos
mútuos, segundo o pensador.

A Teoria das Vantagens Comparativas seria falaciosa por dois motivos


principais:

• A exportação de commodities produz lucro em curso prazo, mas teria uma


consequência de custo elevado: a falha em desenvolver uma indústria nacional
de alta tecnologia e, consequentemente, em gerar lucros futuros.
• O comércio internacional seria assimétrico: países ricos não demandariam
commodities em larga escala e poderiam compra-las de uma série de países.
Em contrapartida, países menos desenvolvidos dependeriam da importação
de tecnologias e produtos industrializados.

Ambas as observações anteriores levam à conclusão de que o sistema


econômico global seria inerentemente injusto: o poder econômico do centro seria
tão grande que a periferia seria sempre explorada e a ideia de que governos e
instituições internacionais poderiam tornar o sistema mais justo (conforme
defendido pela visão liberal) seria uma ilusão. As instituições do sistema
internacional (como a Organização Mundial do Comércio, por exemplo) apenas
refletiriam os interesses dos estados capitalistas. Desse modo, o sistema deveria
ser substancialmente reorganizado de modo tornar-se mais justo, principalmente
a partir de três caminhos, a saber:

• Países periféricos deveriam evitar estabelecer relações econômicas de exploração


com o centro (principalmente a partir do comércio e de investimento externo).
• Desenvolvimento das indústrias nacionais na periferia do sistema mundial e,
consequentemente, o engajamento em processos de substituição de importações
(ou seja, a perda da importância do setor externo na geração de capital).

145
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

• União entre países da periferia na luta contra o poder do centro. O comércio


entre esses países poderia diminuir as assimetrias decorrentes da relação
desigual com o Norte global.

DICAS

Assista ao vídeo Economia Política do Sistema-Mundo, com os professores


Jales Dantas e Rosângela de Lima, disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=a5WVbwcEZA0.

QUADRO 1 – ESTUDO DE CASO: O LUGAR DA CHINA NO SISTEMA MUNDIAL

O crescimento notável da economia chinesa nos últimos anos tem sido foco de
estudos nas Relações Internacionais e o modelo de Wallerstein é especialmente
importante no entendimento desse processo. A emergência da China, de acordo
com Nogueira (2008) estaria redefinindo o formato das relações econômicas
que ligam os países asiáticos semiperiféricos (ex.: Coreia do Sul, Hong Kong,
Taiwan) e as economias centrais, principalmente os Estados Unidos. Holst
(2002) caracteriza essa dinâmica de interação entre China, leste asiático e países
centrais como “comércio triangular”: as exportações da China para os Estados
Unidos aumentaram (de 0,5% do total importado pelo país central, para 11,3%
entre 1980 e 2003), enquanto as importações chinesas passaram a se concentrar
na semiperiferia asiática. Segundo Nogueira (2008, p. 5), “a especialização da
produção dentro da própria Ásia estaria levando a um aumento da parcela das
importações da China que vêm da própria região, transformando o país em um
dos principais (quando não o principal) destino das exportações dos outros
países asiáticos semiperiféricos”.

O caso chinês se aproxima do conceito de semiperiferia proposto pelos autores


do Sistema-Mundo: teria características tanto do centro (e mantém relações
comerciais vantajosas com os países centrais), quanto da periferia do sistema
mundial.

A emergência chinesa, porém, poderia levar a um processo gradual de


aproximação em relação ao centro. O país teria uma capacidade produtiva que
permitiria a exportação de produtos com custo mais baixo e em maior escala.

FONTE: A autora

146
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A Teoria Crítica da Escola de Frankfurt se ocupa da análise da superestrutura


do sistema capitalista. Conceitos como indústria cultural, cultura de massa e
emancipação são centrais na obra de Adorno, Horkheimer, Habermas, entre
outros representantes dessa corrente.

• Um dos autores mais importantes da corrente marxista foi Antonio Gramsci.


Sua obra inspirou teorizações acerca da influência da hegemonia na reprodução
de ideias e dominação do proletariado.

• As abordagens de Sistemas-Mundo, derivadas da Teoria da Dependência,


procuram compreender as relações desiguais entre centro, periferia e
semiperiferia do sistema capitalista.

• Segundo essa visão, a explicação para a dependência dos países do Sul global
em relação ao Norte estaria na estrutura do Sistema-Mundo, caracterizada por
trocas desiguais.

• O caminho para a emancipação da periferia seria, principalmente, via


desenvolvimento de indústrias nacionais e consequente substituição de
importações.

147
AUTOATIVIDADE

1 Quais são as principais diferenças entre os conceitos realista e marxista de


hegemonia?

2 Qual é a importância da emancipação para as Teorias Críticas? Como é


possível alcançá-la?

3 Compare as contribuições de Lenin e Wallerstein para o entendimento do


sistema capitalista.

148
TÓPICO 3 —
UNIDADE 3

O MARXISMO NOS TRÓPICOS

1 INTRODUÇÃO

A emergência de instituições e regimes internacionais no pós-Segunda


Guerra Mundial se deu em virtude da crença de que o multilateralismo e o
diálogo poderiam levar à construção de soluções conjuntas para problemas
globais. Nesse contexto foi criada a Comissão Econômica para a América Latina
e o Caribe (CEPAL), em 1948, com o objetivo principal de debater a condição
de subdesenvolvimento na região e as possibilidades de inserção de países
historicamente dependentes.

A Teoria da Dependência nasce a partir da criação da comissão e da


demanda por explicação do sistema capitalista desigual.

As publicações estatísticas e a análise da CEPAL não somente


proveem informação sobre a região e/ou sobre um país determinado,
mas também permitem fazer comparações entre diferentes períodos
e países. O Brasil, pelo seu território, população e participação
na economia da América Latina, foi e permanece sendo uma das
principais fontes e tema de análise dos relatórios e estudos da CEPAL
(ONU, 2020, s.p.).

Alguns dos principais autores dessa tradição são Raúl Prebisch (1901-
1986), secretário executivo da comissão de 1949 a 1963, o ex-presidente brasileiro
Fernando Henrique Cardoso e André Gunder Frank. O terceiro, e último, tópico
desta unidade tem como objetivo apresentar e discutir os elementos centrais
dessa visão, além de refletir sobre o processo de globalização a partir da lente
marxista. Ao compreender as raízes da dependência de antigas colônias, a Teoria
da Dependência seria uma lente válida para a explicação da economia brasileira,
além de outros países do Sul global.

149
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

O Subtópico 2 será dedicado à discussão da Teoria da Dependência – de


seu contexto histórico de emergência, no fim dos anos 1940, até seus principais
conceitos e visões acerca do sistema capitalista global. O terceiro subtópico,
que conclui o livro, reflete sobre a validade da corrente marxista na análise das
relações internacionais contemporâneas, levando em consideração a crescente
globalização, o aumento da interação entre Estados, Organizações Internacionais,
Regimes, sociedade civil e outros atores. A ideia é compreender os limites
e possibilidades de análise do sistema internacional a partir dos conceitos e
abordagens estudados.

2 A TEORIA DA DEPENDÊNCIA
A Teoria da Dependência se desenvolveu no final da década de 1950, sob
a orientação do então diretor da Comissão Econômica das Nações Unidas para a
América Latina e o Caribe (CEPAL), Raul Prebisch.

Uma das preocupações centrais dessa escola de pensamento inicialmente


era o fato de que o crescimento econômico em países industrializados não levou,
necessariamente, ao crescimento em países subdesenvolvidos.

Ao contrário, a atividade econômica no mundo desenvolvido teria


levado à dependência no Sul global. Essa visão desafiava as previsões das teorias
econômicas clássicas, que presumiam que o crescimento econômico seria benéfico
a todos em um sistema de vantagens comparativas.

FIGURA 8 – A COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE (CEPAL)

FONTE: <https://bit.ly/34izudx>. Acesso em: 20 jul. 2020.

150
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

À semelhança das escolas de pensamento estudadas até o momento, a


Teoria da Dependência não é homogênea e, portanto, não oferece uma explicação
única para a desigualdade no sistema capitalista. De modo geral, essa teoria
busca a explicação do desenvolvimento econômico dos Estados em termos das
influências externas – políticas, econômicas e culturais.

Theotônio dos Santos (1936-2018), um dos expoentes da Teoria da Depen-


dência, enfatiza a dimensão histórica das relações de dependência entre os países:

Dependência é uma condição histórica que molda uma certa


estrutura da economia mundial de modo a favorecer alguns países
em detrimento de outros, limitando as possibilidades de economias
subordinadas. É uma situação na qual a economia de um certo grupo
de países é condicionada pelo desenvolvimento e expansão de outras
economias, industrializadas e centrais (DOS SANTOS, 1973, p. 226).

É possível identificar um conjunto de proposições comuns aos teóricos


dessa escola: primeiro, a Teoria da Dependência caracteriza o sistema internacional
como composto de dois grupos de Estados, descritos como dominantes/
dependentes, centro/periferia ou metrópoles/satélites.

Os Estados dominantes seriam as nações industriais desenvolvidas,


notadamente os membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE). Os países dependentes, por sua vez, seriam aqueles
da América Latina, Ásia e África, altamente dependentes da exportação de
commodities no comércio internacional.

NOTA

A ORGANIZAÇÃO PARA COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE)

A OCDE tem suas raízes na Organização para Cooperação Econômica Europeia (OCEE),
criada em 1948, após a II Guerra Mundial, com o objetivo de auxiliar na implementação do
Plano Marshall de reconstrução da Europa no pós-guerra. Seu objetivo inicial foi auxiliar os
governos europeus a retomarem suas economias e encorajar sua interdependência. Após
a entrada dos EUA e Canadá, em 1960, a OCDE foi criada e passa a objetivar a promoção
do desenvolvimento econômico de seus membros, além de investimentos em países em
desenvolvimento.

151
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A segunda característica comum entre os teóricos da dependência seria


a visão de que forças externas têm uma importância central nas atividades
econômicas de Estados dependentes. Essas forças externas incluem corporações
multinacionais, o mercado global de commodities, investimentos externos, meios
de comunicação e qualquer recurso utilizado por países industrializados para
defender seus interesses econômicos internacionalmente.

O terceiro elemento em comum aos teóricos da dependência seria a


visão de que as relações entre Estados dominantes e dependentes são dinâmicas
– isso ocorre porque as interações entre esses dois grupos de países tendem a
não somente reforçar, mas intensificar as desigualdades entre eles. Além disso, a
dependência seria um processo histórico (o que aproxima essa visão do marxismo
clássico), enraizado no processo de internacionalização do capitalismo (conforme
teorizado por Lenin) e ainda estaria em andamento.

Qual seria, porém, o motivo das relações de dependência entre centro


e periferia, segundo a Teoria da Dependência? André Gunder Frank, um dos
precursores dessa tradição, afirma que:

A pesquisa histórica demonstra que o subdesenvolvimento con-


temporâneo é, em larga medida, um produto histórico das relações
econômicas (passadas e presentes) entre países satélites subdesen-
volvidos e metrópoles. Além disso, essas relações seriam uma parte
essencial do sistema capitalista como um todo, em escala mundial
(FRANK, 1972, p. 3).

De acordo com essa visão, o sistema capitalista teria criado e reforçado uma
divisão internacional do trabalho rígida, responsável pelo subdesenvolvimento
em várias áreas do mundo. Os estados dependentes ofereceriam minerais,
commodities agrícolas e mão de obra barata, além de servirem como “repositórios”
de tecnologias e produtos manufaturados obsoletos. A alocação de recursos seria
determinada pelos interesses econômicos dos Estados dominantes.

A divisão internacional do trabalho explicaria, em última medida, a


pobreza e a desigualdade no sistema internacional. A Teoria da Dependência
critica a visão tradicional (ex.: teoria das vantagens comparativas, discutida no
tópico anterior) de que essa divisão seria uma condição necessária para a alocação
eficiente de recursos.

Os teóricos da dependência também defendem a semelhança dos autores


anteriormente citados, que o poder econômico e político estaria concentrado e
centralizado em países industrializados. Desse modo, qualquer distinção entre
poder econômico e político seria equivocada: governos nacionais tomarão
qualquer decisão necessária para proteger os interesses econômicos privados
como, por exemplo, a obtenção de lucro por parte de cooperações multinacionais.

152
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

É importante ressaltar que nem todos os elementos da Teoria da


Dependência são derivados da corrente marxista. A visão marxista de
imperialismo, por exemplo, explica a expansão do Estado dominante, enquanto
a Teoria da Dependência busca compreender o subdesenvolvimento. Ou seja, as
teorias marxistas clássicas explicariam as razões pelas quais o imperialismo ocorre,
enquanto os teóricos da dependência compreenderiam as suas consequências.

As proposições gerais dessa corrente estão resumidas nos cinco pontos a


seguir, discutidos em Ferraro (2008):

• Subdesenvolvido é uma condição distinta de não desenvolvido. Não ser


desenvolvido significa não utilizar recursos. Por exemplo, os colonizadores
europeus enxergavam o continente americano como uma área não desenvolvida:
suas terras não eram ativamente cultivadas em uma escala consistente com o
seu potencial. Subdesenvolvimento, por sua vez, se refere a uma situação em
que os recursos são ativamente utilizados, mas de um modo que beneficiaria
muito mais os Estados dominantes e não os países pobres nos quais os recursos
foram encontrados (ex.: países colonizados como Brasil e os demais países da
América do Sul e boa parte da África e da Ásia).
• A distinção entre subdesenvolvimento e não desenvolvimento localizaria os
países mais pobres em um contexto histórico profundamente distinto. Esses
países não estariam “atrasados” ou “alcançando” os Estados mais ricos. Eles
não seriam pobres porque “ficaram para trás” das transformações científicas
ou dos valores iluministas. O motivo de seu subdesenvolvimento seria a sua
integração (coercitiva) no sistema econômico europeu apenas como produtores
de bens primários ou repositores de trabalho escravo. A eles teria sido negada a
oportunidade de comercializar seus recursos de modo a competir com Estados
dominantes.
• A Teoria da Dependência sugere que o uso alternativo de recursos seria
preferível em relação aos padrões impostos pelos Estados dominantes.
Uma das críticas principais, por exemplo, é que vários países do Sul global
possuem altas taxas de subnutrição ao mesmo tempo em que produzem altas
quantidades de commodities. Isso ocorreria porque boa parte dessa produção
é exportada para o centro.
• Cada país deve possuir um interesse econômico nacional claro, que deve ser
relacionado ao atendimento das necessidades da população mais pobre e não
à satisfação de necessidades coorporativas ou governamentais. Determinar o
que seria “melhor” para essa população não seria uma tarefa fácil.
• A manutenção de relações desiguais seria mantida não apenas através do
poder de Estados dominantes, mas também através do poder das elites em
Estados dependentes. A Teoria da Dependência argumenta que essas elites
manteriam essas relações porque os seus interesses privados coincidiriam com
os interesses dos Estados dominantes. Essas elites compartilhariam valores
similares aos das elites do Norte global.

O paradigma aceito durante os anos 1950 e 1960, e defendido por autores


como Walt Rostow (1916-2003), era de que estratégias de desenvolvimento
nacional seriam universalmente aplicáveis.

153
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Teoria da Dependência critica essa visão e afirma que o sucesso dos


países centrais seria parte de um momento específico da história global, no
qual o desenvolvimento foi consequência de uma série de relações coloniais de
exploração. Seria, portanto, improvável que tal processo se repetisse por parte de
países periféricos ao redor do mundo.

ATENCAO

AS ETAPAS DO DESENVOLVIMENTO DE ROSTOW

Rostow propôs, em Etapas do Desenvolvimento Econômico: um manifesto não comunista


(1974), uma alternativa à visão marxista do desenvolvimento econômico, afirmando que a
história econômica seria uma sucessão de etapas. Segundo o autor, todos os países (tanto
do centro, quanto da periferia) teriam a possibilidade de adotar uma série de estratégias de
emprego dos recursos para se desenvolver.

É possível afirmar que, por fim, a Teoria da Dependência oferece


um modelo de análise da economia global que não só propõe a explicação
do subdesenvolvimento como uma consequência de uma série de relações
históricas de exploração, mas estabelece caminhos possíveis para a sua
superação. Historicamente, a busca pelo desenvolvimento nacional autônomo
foi objetivada por países do Sul global, como o Brasil, com maior ou menor
sucesso a depender do período.

3 LIMITES E POTENCIALIDADES DA TEORIA MARXISTA NA


ANÁLISE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Em relação às diferenças entre a teoria marxista e as demais teorias
estudadas no presente livro, é possível afirmar que há uma série de distinções
consideráveis entre as perspectivas. Enquanto o realismo enfatiza o poder
político (na medida em que o interesse dos Estados seria largamente definido
em termos de poder) como elemento central das relações internacionais, o
marxismo considera central o uso do poder econômico e suas consequências no
sistema mundial. Outra diferença importante é a visão realista e liberal do Estado
enquanto ator importante e central da política internacional e a visão marxista
do Estado enquanto instrumento dos interesses das elites. Para o marxismo,
quem domina a economia e controla os meios de produção, dominaria também
a esfera política.

154
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

É possível citar também as críticas do marxismo à noção liberal de


interdependência e de ganhos absolutos. Enquanto abordagens liberais e
institucionalistas defendem a possibilidade de ganhos mútuos derivados
da cooperação internacional, o marxismo de modo geral defende que a
interdependência seria assimétrica e geraria mais dependência.

As trocas internacionais entre centro e periferia aprofundariam ainda mais


as desigualdades e abririam espaço para a exploração. A relação entre Estados
desenvolvidos e subdesenvolvidos seria, então, de soma-zero: o desenvolvimento
do centro sempre se dará às custas do subdesenvolvimento da periferia.

Em relação às críticas à teoria marxista e às limitações de seu poder


explicativo, seria possível citar a ênfase excessiva no poder econômico e na
estrutura do sistema capitalista, vista pelo realismo como insuficiente para a
explicação da política internacional marcada também pela incerteza e luta pela
sobrevivência. O liberalismo, por sua vez, defende a possibilidade de os Estados
cooperarem a partir da identificação de interesses comuns e identificação de
potencial de ganhos mútuos. Desse modo, seriam críticos à noção marxista de que
não haveria possibilidade para harmonia de interesses em um sistema capitalista
desigual e estratificado.

QUADRO 2 – O MARXISMO RESUMIDO

Relação entre economia e política. Economia decisiva.


Principais atores/unidades de análise. Classes.
A natureza das relações econômicas. Conflituosas, soma zero.
Objetivo econômico. Interesses de classe.

FONTE: A autora

155
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

LEITURA COMPLEMENTAR

A RUÍNA DO CAPITALISMO

Gustavo Ioschpe

Para o sociólogo americano Immanuel Wallerstein, a humanidade


atravessará 50 anos de convulsões sociais com a agonia do sistema.

Nas paredes do diminuto escritório em Paris, pôsteres amarelecidos de


cidades italianas e anúncios de palestras, uma estante com livros, um rack com fitas
cassete de música clássica. Uma mesa para o computador e outra para a montanha
de papéis. No centro da anarquia, o protagonista: Immanuel Wallerstein, um dos
mais importantes intelectuais vivos e um dos principais sociólogos em atividade.

Próximo aos 70 anos, o sociólogo americano é o autor da


monumental trilogia The Modern World-System, três catataus que
descrevem o mundo capitalista do século XVI até o século XIX.
Sua análise de "Sistemas-Mundo" é uma tentativa de ver o sistema capitalista
como um todo, entendendo que não se trata de uma colcha de retalhos de Estados
nacionais autônomos, mas de um sistema unificado e altamente hierarquizado,
que surgiu muito antes de fábricas e navios a vapor.

É de Wallerstein a famosa separação do mundo entre os países de centro


e de periferia e a constatação de que estes sofriam com os termos desiguais de
comércio praticados por aqueles. Suas ideias vêm ajudando a derrubar alguns
dos axiomas pelos quais (sobre)vivemos: a crença na utilidade do Estado-nação
como ferramenta de melhoria de posição na escala das coisas; a ideia, emprestada
do neoclassicismo econômico e da teoria da modernização, de que todos os países
devem convergir, em algum momento, no paraíso da fartura e da opulência; e
a certeza de que o sistema capitalista, apesar de não ter tudo resolvido, pelo
menos trouxe ganhos em qualidade de vida para a humanidade, desde que foi
implantado há 500 anos.

Wallerstein questiona e redireciona tudo: a validade da ciência, a crença no


progresso, a malignidade das elites nacionais, a esperança dos terceiro-mundistas
pela ascensão dentro do sistema e o futuro do mundo como o conhecemos. No fim,
o discreto cidadão na sala pequena de um prédio velho de uma rua de Paris acaba
desmontando as próprias ideias e avisa: o capitalismo não dura mais que 50 anos;
até lá vamos ter um período de muita incerteza, desordem e, principalmente,
mudança, como ele diz na entrevista a seguir.

156
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

Folha – Muitos países têm entrado voluntariamente em acordos de livre


comércio no chamado mundo "globalizado" com potências que recentemente
os exploravam, acreditando na doutrina de vantagem comparativa. O sr. vê essa
adesão como o "beijo da morte" para os países periféricos?

Immanuel Wallerstein – Em primeiro lugar, eu acho que o termo "globalização"


é em grande parte um slogan e uma mistificação, não uma realidade nova.
Estamos falando é da liberdade de movimento dos fatores de produção versus
protecionismo. Isso tem sido uma questão por 500 anos. Países foram para um
lado e para outro na questão, porque há vantagens em ambos, para todos. No
momento, os EUA têm liderado um grande esforço para derrubar barreiras,
especialmente de fluxos de capital. Os fluxos financeiros sempre foram os mais
controlados de todos. Os EUA tiveram um certo nível de sucesso nos últimos dez
anos, conseguindo com que países fizessem coisas para as quais eles ainda não
estavam preparados.

Por um lado, essa iniciativa começou com muito êxito. Quando você proclama
que não há alternativas ao modelo neoliberal, o que está querendo dizer é que
não deveria haver outras alternativas, mas, obviamente, elas existem. Houve
uma forte reação. Não só uma reação de vários países, que disseram: "Isso não
funciona para nós, vamos sair perdendo", mas também dos EUA e da Europa
Ocidental, de pessoas como Jeffrey Sachs e Kissinger; pessoas que você não
poderia nunca chamar de esquerdistas. E o argumento deles é muito sensato,
ao dizerem que as pessoas que têm se esforçado para conseguir esse livre fluxo
não pensaram nas consequências de uma política como essa. As consequências
são muito severas: colapsos de liderança, seguidos de revoluções etc. O que
eles estão dizendo é que você deve fazer isso de uma maneira mais social.
Então a combinação da discussão, simbolicamente, do FMI-Banco Mundial e
a crescente resistência de alguns países definitivamente diminuíram o grau
de abertura. Mas isso não é nada de novo, acelera e regride o tempo todo, e
certamente o livre comércio não é uma panaceia. Quer dizer, a ideia de que você
deve competir não tem nada de novo – o que é o capitalismo senão a teoria de que
você tem de ser competitivo no mercado mundial?

Folha – O sr. não acha que a adesão formal a tratados de livre comércio é algo
novo e prejudicial?

Wallerstein – Certamente não é novo. Certamente algo que não é bom "per
se": é bom para alguns e ruim para outros. E certamente não é inevitável
ou irrevogável. Quer dizer, eu não acho que daqui a dez ou 15 anos haverá
mais abertura do que há agora, talvez até haja consideravelmente menos.
À medida que os EUA constroem uma zona na América Latina, quais seriam os
excluídos? Os europeus, os japoneses... Mas eles terão as suas próprias zonas.
Nós podemos, daqui a dez ou 15 anos, ter um mundo formalmente dividido em
três zonas, dentro das quais haverá livre comércio, mas não entre elas. Nós já
estamos vendo coisas assim na Europa Ocidental, que são apenas um sinal de
conflitos mais fundamentais ainda por vir.

157
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Folha – O livre comércio – ou a globalização, como é chamado – vem sendo


defendido por membros da chamada Terceira Via, pessoas de perfil social-
democrata, como Blair, Clinton...

Wallerstein – ... E Fernando Henrique Cardoso.

Folha – Isso significa que a Terceira Via seria apenas um disfarce, um rótulo?

Wallerstein – Não. Olha, os social-democratas vêm, cada vez mais, migrando


para o centro, por cem anos. Essas pessoas querem capturar a posição liberal. Em
parte, é uma tentativa de conseguir mais votos. Eles acham que vão consegui-
los no centro, sem perder votos na esquerda, se eles se proclamarem social-
democratas. Mas eu não acho que essa seja a receita para o sucesso. Não acho que
nisso haja algo de novo: trata-se da clássica posição centrista, liberal, que vem
enfraquecendo nos últimos 30 anos, e eles estão tentando restaurá-la. Falta saber
quanto sucesso terão.

Uma coisa que se pode dizer sobre a Terceira Via é que ela funciona. Se você é
Clinton, ela funciona contra um Partido Republicano de extrema-direita. E, se
você é Blair, ela funciona contra um Partido Conservador de extrema-direita. Mas,
se os republicanos voltarem para sua posição de "moderados" e os conservadores
voltarem para sua posição tradicional, por que os eleitores votariam na versão
falsa, quando eles podem votar na versão verdadeira? Isso é tudo que tem de ser
feito para a Terceira Via ser derrotada. Então, eu não a vejo como o caminho do
futuro. Acho que ela já alcançou seu cume e agora está começando a retroceder.

Que Fernando Henrique Cardoso tenha aderido a isso diz mais sobre as suas
tentativas de se posicionar internacionalmente do que sobre a política interna
brasileira. Não creio que isso importe muito em termos de política interna
brasileira. Eu não imagino que as pessoas saibam o que isso significa.

Folha – O sr. defende, na contracorrente das ideias dominantes, que, com o fim
da Guerra Fria, o que realmente teria sido derrotado foi o liberalismo.

Wallerstein – Se você quer começar com as minhas heresias, iniciemos com o que
eu entendo por liberalismo. O liberalismo é, como quase todos os termos políticos
importantes, um termo confuso e que confunde, e as pessoas o usam de várias
maneiras diferentes. Há liberalismo político, econômico, liberalismo cultural -e
esses termos não são a mesma coisa. As pessoas podem ser um sem ser o outro.
Então, por que usamos o mesmo termo?

Os liberais têm sido pró e contra o liberalismo político, pró e contra o liberalismo
econômico e pró e contra o liberalismo cultural, se você olhar para a verdadeira
história do movimento. Então, é óbvio que nenhuma dessas é a questão-chave. O
liberalismo tem sido, desde o início, a doutrina dos centristas do mundo.

158
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

Folha – Entre os conservadores e os movimentos antissistêmicos?

Wallerstein – Exato. Tem sido a força dominante. Dizem: "Sim, o comércio


é inevitável, o progresso está chegando e é uma coisa boa, mas ele tem de ser
administrado e controlado por experts, e o que a gente tem para oferecer é reforma
administrada". O liberalismo quer começar uma doutrina orientada pelo Estado
(e a ideia de que o liberalismo é contra o Estado é uma loucura absoluta) sobre
como controlar rebeliões em massa, por meio de concessões.

Se você pensar no liberalismo como a doutrina reformista que faz concessões


para aplacar o descontentamento popular, mas sem entregar o jogo e mantendo o
sistema, aí pode ver o seu sucesso histórico e os problemas que ele enfrenta hoje.

Parte do argumento é que os liberais conseguiram cooptar a oposição: por um lado,


os conservadores, que eram contra qualquer tipo de mudança, e, por outro, os
radicais, que queriam mudanças amplas e rápidas. E assim criou o que eu chamo
de avatares do liberalismo, que podem discutir se querem reformas mais rápidas
ou mais lentas, mas que, basicamente, aceitam as premissas do liberalismo. Isso
controlou a situação política.

O último avatar do liberalismo foi o leninismo, que disse às massas: "Confie


em nós, pois, quando chegarmos ao poder, faremos todas as reformas e, se as
reformas não chegarem rápido o suficiente, é porque estamos sendo atacados,
mas esperem e nós chegaremos, logo, na sociedade perfeita".

O meu argumento é que isso foi o que manteve o sistema nos últimos 30, 50
anos e, quando isso caiu, quando os movimentos antissistêmicos – na forma
de movimentos de liberação nacional, comunistas ou até social-democratas
– perderam o apoio popular, porque eles não conseguiram mudar o mundo,
isso provocou a queda do comunismo. Provocou também a queda da principal
ferramenta de controle que as forças dominantes tinham sobre as massas, que,
então, ficaram desiludidas.

Elas não têm mais a crença de que alguma magia ou feitiço vá acontecer e se
tornam, por um lado, contra o Estado e, por outro lado, muito amedrontadas –
porque o Estado está entrando em colapso a sua volta, e há crimes – e então elas
se voltam ao que eu chamo de "grupismo", que é a criação de grupos que vão
prover segurança contra o perigo.

Folha – Será que o sr. poderia delinear, de forma resumida, suas razões para
achar que o capitalismo está agonizando?

Wallerstein – Eu venho argumentando que o capitalismo está


acabando por causa dos limites impostos à acumulação de capital,
de um lado, e do colapso da sua sustentação política, de outro.
A sustentação política do capitalismo tem sido o liberalismo que tem especialmente
por meio de seu avatar reprimido revoltas populares. Basicamente, em uma palavra,

159
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

a sustentação política mais importante é a legitimação do Estado. E a legitimação


do Estado passa pela promessa dos movimentos antissistêmicos de que o Estado
seria uma ferramenta boa para transformar o mundo. Eu acho que isso acabou.

Então nós vamos às bases econômicas do sistema, e o sistema existe para


a acumulação incessante de capital. O que eu venho argumentando é que
isso está sendo prejudicado por três razões: um, o nível mundial de salários
vem subindo e deve continuar crescendo por causa da "desruralização" do
mundo; dois, o preço da matéria-prima vem subindo por causa do fim da
possibilidade de externalização barata dos custos, essa é a crise ecológica;
e três, o preço da arrecadação de impostos vem subindo mundialmente – a
porcentagem de dinheiro recolhido que é destinada ao Estado, por aquilo que
eu chamo de democratização do mundo, à medida que a população pressiona
o Estado para que este lhe propicie saúde, educação e renda perpétua.
Então há três fatores, em escala mundial, que vem encolhendo as margens de
lucro – e vão continuar a fazê-lo cada vez mais. Por um lado, do ponto de vista
dos capitalistas, vale cada vez menos fazer parte do sistema e, por outro lado, é
cada vez mais difícil de manter legitimidade política.

Folha – Nos próximos 50 anos, o sr. prevê uma série de convulsões sociais...

Wallerstein – À medida que o sistema entra em colapso, a ordem social também
rui, nacional e internacionalmente. Eu prevejo uma série de guerras sangrentas
e inconcludentes, mas também tumultos sociais internos. E, particularmente,
eu quero enfatizar que esses tumultos – normalmente associados a países de
Terceiro Mundo, da periferia – agora vão acontecer no Norte. Especialmente nos
Estados Unidos, mas também na Europa Ocidental, Japão etc. Será um mundo
desagradável para se viver; intelectualmente estimulante, politicamente muito
interessante e pessoalmente muito difícil.

Folha – Que tipo de conflitos o sr. vê entre o Norte e o Sul?

Wallerstein – Eu vejo o conflito adotando o que eu chamo da forma Khomeini


-uma dissensão radical de valores, a negação de se jogar pelas regras –; a forma
Saddam Hussein – que é totalmente diferente, é calculadamente geopolítica:
"Vamos aumentar nossos arsenais e desafiar o mundo". E a terceira forma, que
eu chamo de "balseiros" – o caminho individual. Já que nós temos um mundo
polarizado social e demograficamente, nós teremos, inevitavelmente, grandes
fluxos migratórios, que você não consegue segurar. Você pode diminui-los, mas
não pode pará-los.

Folha – Migração do Sul para o Norte?

Wallerstein – É, do Sul para o Norte. Esses fluxos criarão o tumulto social
interno nos países do norte. A demografia vai mudar, de forma dramática. E não
só porque as pessoas irão do Brasil ou da Venezuela para os EUA: haverá uma
cascata de fluxos, que irá mais rápido do que jamais ocorreu, e nós teremos um
efeito político mais radical, por causa de sua velocidade e de seu tamanho.
160
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

"A política atual de FHC está muito longe de sua posição intelectual dos anos
50, mas não estou muito certo de que seja diferente de sua postura nos anos 70"

Folha – O sr. disse uma vez que é impossível para a América Latina desenvolver-
se sozinha.

Wallerstein – Não era sobre a América Latina. A ideologia liberal é a de que


todos os países estão em estradas paralelas, indo para a frente. É a teoria da
modernização... Então todos podem desenvolver-se, só é preciso que se aja da
maneira correta. Então, nós podemos dizer: "Bolívia, você está numa situação
péssima hoje, mas, se você fizer tudo direitinho, daqui a 30 ou 50 anos, você estará,
se não como os EUA, pelo menos como o Canadá". Agora, dentro da estrutura
do mundo capitalista, isso é "nonsense". O sistema requer polarização e, aliás,
floresce nela. É uma questão de um sistema que é hierárquico. Um Estado em
particular pode melhorar sua situação, mas, no geral, isso significa que alguém
tem de piorar, porque a natureza hierárquica do sistema tem sido persistente
desde o começo. E, como todos os dados mostram, nós estamos mais polarizados
do que nunca, em 1999. A diferença entre os que estão no topo e os que estão
embaixo é a maior que já houve. E isso nunca será solucionado dentro do sistema,
senão você não poderia acumular capital.

Então, se você se refere a desenvolvimento nacional, é uma ilusão. Não são os


Estados que se desenvolvem, mas o sistema. E o sistema como um todo está em
crise. Mas a ilusão desenvolvimentista tem muita força, porque, se você vive em
um Estado que não anda tão bem, parece uma ideia maravilhosa que o seu Estado
deva fazer algo. E, para as pessoas que estão no topo, nesses países, é uma boa
forma de conseguir poder político, para apresentar essa ilusão desenvolvimentista.
Mas isso não aconteceu e não vai acontecer.

A maioria dos Estados latino-americanos está na base da pirâmide... alguns


estão no meio -o Brasil é claramente um desses. Mas o Brasil é um país grande.
Tamanho importa. Você tem certas vantagens por ser grande; não só vantagens
internas, mas externas. Você tem mais poder, mais influência. Você ganha
algumas migalhas como resultado.

Folha – Mas serão sempre apenas migalhas?

Wallerstein – Bem, eu suponho que, se o sistema capitalista fosse existir por mais
150 anos – o que eu não acho que vá acontecer-, talvez o Brasil se tornasse um
grande centro, se a Europa ruísse, ou algo do gênero, o que não é totalmente
impossível, já que nós temos rotações no sistema. Mas não acho que isso vá
acontecer, porque eu não creio que o sistema vá durar até lá.

Folha – Então, o que pode ser feito em um país como o Brasil?

Wallerstein – Há 50 anos, você pensava que podia se desenvolver, então


adotava políticas liberais ou políticas socialistas, não importa. Todos achavam
que esse era o caminho para a salvação. Todos tentaram. Não funcionou
161
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

muito. Pessoas diziam que o caminho para a salvação era juntar-se à economia
global, mas essa só é a salvação para um pequeno número, não para as massas.
Entretanto as massas têm sorte, porque em 1999 há mais possibilidades do que
havia em 1945, precisamente porque o sistema está entrando em colapso. Portanto
nós teremos a oportunidade de construir uma nova alternativa -e a questão é
se ela será melhor ou pior que a atual. Nós podemos construir uma alternativa
melhor. Esse é um desafio para as pessoas no Brasil e para as pessoas nos Estados
Unidos. É um desafio para todos: construir uma nova estrutura -essa é a principal
questão política.

Folha – Um país periférico, como o Brasil, pode ter poder suficiente para influir
na construção dessa nova alternativa?

Wallerstein – Acho que os brasileiros têm tanto poder para afetar onde nós vamos
estar daqui a 25 ou 50 anos quanto as pessoas dos Estados Unidos. Elas podem até
mais, porque o que segura as pessoas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental
é um senso de privilégio presente e um medo de perdê-lo e, portanto, elas tomam
decisões insensatas a longo prazo. Como a maioria das pessoas no Brasil não têm
esse medo de perder uma posição privilegiada, elas podem tomar decisões mais
acertadas. Eu nunca defendi a supremacia do Primeiro ou do Terceiro Mundo.
Acho que nós todos estamos juntos nessa.

Folha – Presumindo-se que o sistema capitalista não desapareça nos próximos


100 anos, aí então haveria a possibilidade de mudança significativa?

Wallerstein – Quer dizer, se eu estiver completamente errado, outras coisas


podem acontecer? (risos). Sim, podem. Eu não posso especular. Faço a melhor
análise que posso e, assim como outros analistas, posso não estar certo.

Folha – Uma de suas razões para acreditar na falência do capitalismo é a crença


de que o mundo piorou, não só em termos relativos, mas absolutos, desde o
início do que o sr. chama de capitalismo histórico. O sr. poderia explicar como
consegue medir essa falência?

Wallerstein – É muito difícil de medir. Você tem de medir em termos de


quantidade real de comida para comer, de espaço para usar, de recursos naturais
para aproveitar e até longevidade. Eu não estou completamente convencido de
que a longevidade aumentou. Claro que sim, estatisticamente, mas muito desse
aumento tem a ver com a sobrevivência infantil, entre as idades de 0 a 1 ano e de
0 a 5 anos. Não estou muito convencido de que as pessoas que atingem os 5 anos
vivem mais do que elas viviam antigamente. E, você sabe, as pessoas têm televisão
agora, o que elas não tinham cem anos atrás, mas possuíam outras formas de
divertimento. As pessoas vivem em uma favela urbana e antes elas moravam
em uma cabana agrícola -qual é melhor? Nós temos um trabalho difícil de medir
qualidade de vida. As pessoas morriam por razões diferentes; se essas são melhores
ou piores do que as razões (ou doenças) pelas quais se morre agora, eu não sei.
Digamos que sou uma voz dissidente sobre a obviedade das melhorias do

162
TÓPICO 3 — O MARXISMO NOS TRÓPICOS

capitalismo. Não há dúvidas de que, para pessoas da classe média alta, suas vidas
são melhores do que as das pessoas de mesmo nível comparadas a cem anos
atrás. E, normalmente, nós estamos olhando para nós mesmos quando fazemos
esse tipo de afirmação de que o capitalismo melhorou a qualidade de vida. Mas,
se você olhar para as pessoas das classes mais baixas, a coisa não é tão óbvia.

Folha – O sr. mencionou Fernando Henrique Cardoso. O que pensa de seu


governo? Suas ações no poder têm surpreendido o sr., que o conheceu na
condição de intelectual?

Wallerstein – Ele tomou a decisão política de mover para o centro, que pensa ser
a melhor para a situação brasileira. Até agora tem recebido apoio popular.

Folha – Que caiu muito depois da desvalorização do Real.

Wallerstein – Bom, isso sobe e desce. Deixe-me dizer isso: FHC é um homem
muito esperto, e as decisões que ele tomou são decisões pensadas, refletidas, e
são as decisões que ele acha as mais acertadas. Talvez não sejam as decisões que
eu tomaria.

Folha – O sr. poderia colocar o trabalho intelectual dele em perspectiva?

Wallerstein – Como sociólogo, ele é uma figura importante, foi um dos primeiros
"dependentistas"; seus escritos foram bastante influentes. Ele então se moveu de
uma posição dependentista clássica para o que ele chamou de desenvolvimento
dependente. Os dependentistas diziam que desenvolvimento nacional é
impossível, e Cardoso mudou sua postura para dizer que o desenvolvimento era
possível, caso houvesse um Estado forte.

Essa posição o levou de uma posição de dependentista para uma variável da teoria
da modernização. Essa foi a mudança intelectual que ele fez, e dela resultaram
as óbvias mudanças políticas que também fez. Mas como intelectual tem sido
influente; é certamente um dos mais importantes sociólogos do pós-guerra.

Folha – Então sua política não o surpreende, pois o sr. a vê como congruente
com sua mudança intelectual?

Wallerstein – Deixe-me colocar da seguinte forma: sua política atual está muito
longe de sua posição intelectual dos anos 50, mas eu não estou muito certo de que
elas sejam muito diferentes de sua postura do começo dos anos 70. Ele mudou,
em resultado da reavaliação que fez a respeito do que acontecia no mundo. Então,
a sua política de hoje me parece consistente com a sua postura intelectual desde,
pelo menos, o início dos anos 70.

Folha – Que tipo de cenário teríamos, no mundo, depois do colapso do


capitalismo?

163
UNIDADE 3 — O MARXISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

Wallerstein – É muito arriscado fazer projeções para o cenário futuro, de como o
mundo será em 2050, ou por aí. De modo geral, podemos distinguir entre duas
formas genéricas. Uma é a forma relativamente democrática e igualitária, e a outra
é uma forma hierárquica, desigual. Cada uma pode tomar múltiplos formatos.

Nos últimos 10 mil anos, com algumas exceções, nós temos tido um sistema
hierárquico, com vários formatos diferentes. Pode ser que inventem mais um,
novo. Ou pode ser que voltemos a usar um antigo: um sistema neofeudal, ou
neofascista, ou neoimperialista.

Nós nunca tivemos um sistema relativamente igualitário. Pode ser que,


quando tínhamos unidades sociais pequenas, há 10 mil anos, elas te-
nham sido relativamente igualitárias. Nós não sabemos, na verdade. Mas
o que funcionou para 200 pessoas pode não funcionar para 6 bilhões.
Como um sistema relativamente igualitário iria realmente funcio-
nar, que tipos de instituições nós teríamos que desenvolver para resol-
ver os problemas atuais? Eu não sei ao certo. Eu acho que teria que ser re-
lativamente descentralizado e não poderia ser orientado para o lucro.
Nós temos alguns tipos de instituições, nos últimos 200 anos, que podemos tentar
copiar: se você pensa como uma universidade, ou um hospital funciona. Inter-
namente, elas são semiautoritárias, mas permitem grande autonomia para seus
profissionais. Seu objetivo não é lucrar. A razão pela qual as pessoas trabalham
duro nessas instituições não é o dinheiro, mas outras razões: prestígio, pressão
social etc. Pode-se tentar estender esse princípio para todos os tipos de atividade
produtiva. Eu estou tentando pensar na usina de aço que não visasse lucrar...

Folha – Como ela funcionaria?

Wallerstein – Aí você tem a questão de hierarquia interna. Você tem tido muita
pressão, nos últimos cem anos, por democratização interna. Estamos chegando
lá, devagarinho. Como é que elas iriam funcionar? Não sei. Teríamos que ir
descobrindo pelo caminho. Por isso é que eu não sou um utopista. Acredito
em tentativa e erro. Mas rejeito a ideia de que é impossível termos um sistema
relativamente não-hierárquico, relativamente democrático, relativamente
igualitário -acho que poderia funcionar, e em grande escala. Nesse sentido eu
sou otimista: acredito na maleabilidade da natureza humana; na capacidade de
construir novas estruturas que realmente funcionem.

Folha – Quais são as suas razões para ser otimista em relação ao futuro?

Wallerstein – É um otimismo irracional.

FONTE: WALLERSTEIN, I. A ruína do capitalismo. [Entrevista cedida a] Gustavo Ioschpe. Folha


de S. Paulo, São Paulo, 17 out. 1999. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/
fs1710199912.htm. Acesso em: 29 set. 2020.

164
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• Uma das interpretações da corrente marxista é a denomina Teoria da


Dependência, cujas origens remontam à criação da CEPAL, em 1948.

• Um dos objetivos centrais da Teoria da Dependência é compreender a estrutura


desigual do sistema capitalista mundial e as razões para o subdesenvolvimento
no Sul global.

• A explicação envolve a reflexão acerca do colonialismo e das semelhanças entre


as elites na periferia e no centro do sistema mundial.

• A emancipação da periferia global estaria ligada à diversificação de suas


parcerias e à diminuição da dependência em relação ao centro a partir do
desenvolvimento de indústrias nacionais competitivas e autônomas.

• Há diferenças consideráveis entre as teorias estudadas no presente livro.


Enquanto o realismo enfatiza o poder político e a incerteza derivada da ausência
de uma autoridade superior ao Estado e o liberalismo defende a possibilidade
de cooperação entre os países na resolução de conflitos, o marxismo foca na
estrutura desigual do sistema capitalista mundial como resultado de processos
históricos que teriam como consequência a prosperidade econômica do centro
em detrimento do crescimento da periferia.

CHAMADA

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pensando em facilitar sua compreensão. Acesse o QR Code, que levará ao
AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo.

165
AUTOATIVIDADE

1 Cite e explique as similaridades entre as propostas dos teóricos da


dependência.

2 Segundo a Teoria da Dependência, quais seriam as causas do


subdesenvolvimento dos países da periferia do sistema internacional?

3 Quais as alternativas propostas pelos teóricos da dependência às relações


desiguais no sistema capitalista?

166
REFERÊNCIAS
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