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INFORMARE - Cademos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação 45

DISSERTACÃO

MEMÓRIA INSTITUCIONAL: UMCONCEITO EMDEFINIÇÃO


Idéia Thiesen Magalhães Costa
IBGE

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. Resumo·
.
Aborda o conceitO de memória institucional, construido a partir da retmião de outros
conceitos ·retirados .de Várias· áreas do conhecimento;· . DesenvolVido em estudo
exploratório-metodológico, tem como referência omGE. úistituíçãocinquentenáriaque
empreendeatividades· voltadas para o resgate de sua· memória~ .

Palavras-Chave
IBGE - História
Sistema de Infonnação - IBGE
Memória

1 Introdução

Nos últimos anos, no Brasil, há um interesse incomum pelas questões ligadas à preservação da memória
nacional. Estas, no entanto, se dispersam em iniciativas isoladas ou mesmo diluídas nos descaminhos das políticas
de infonnação, de educação e de cuhura, nas quais estariam inseridas as ações de organização da memória
institucional. Tais políticas são primordiais para o desenvolvimento de uma nação. Mas vêm sendo caracterizadas
por descontinuidades fundamentais geradas: 1) por sucessivas mudanças que ocorrem nos órgãos públicos em
geral, contribuindo para a perda de acervos históricos - os materiais da memória e, 2) por visões defonnadas da
tecnocracia que decide sobre os investimentos científicos e tecnológicos que são feitos no país.
Acreditamos ser fundamental, para o desenvolvimento da memória institucional, a definição de
caminhos(métodos, políticas, meios adequados, etc.) a serem percorridos tendo por objetivo a sua organização.
Tais caminhos deveriam ser fundados numa política de memória voltada para ação. Tal política visa alcançar dois
objetivos fundamentais: 1) Organizar o acervo histórico (bibliográfico, arquivístico e museológico, etc.) de modo
a preservar as infonnaçães que as instituições e seus agentes produzem; 2) Divulgar (transmitir, disseminar) a
memória institucional através de ações específicas (programas, projetos) não apenas no interior da(s) prápria(s)
instituição(ões), mas também no âmbito das sociedades nas quais se inserem. E esta divulgação precisa ser feita
através de programas comprometidos com a memória histórica e não nos estreitos limites da história oficial
discriminatória.
Nesse sentido, o enfraquecimento do Positivismo e seu rigor metodológico, que induz à crença na neutralidade
da ciência, tem possibilitado a convivência de enfoques diferenciados na metodologia das Ciências Sociais e

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Humanas. A História das Mentalidades, que hoje Para onde foram os pedreiros, na noite em
apresenta uma vasta produção científica voltada para que a Muralha da China ficou pronta?
a recuperação de aspectos do cotidiano nunca antes A grande Roma está cheia de arcos do tri
estudados, abre um leque de possibilidades, com lentes
Quem os ergueu? Sobre quem
de várias cores e tamanhos, para o estudo de novos
problemas, novos objetos, novas abordagens. Triunfaram os Césares? A decantadaBizânci
A chamada Nova História nos conduz a repensar Tinha somente palácios para seus habitantes
o fato histórico, os acontecimentos e as crises, alargan- Mesmo na lendaria Atlântida
do o campo do documento histórico para abrigar
Os que se afogavam gritaram por seus e
fotografias, filmes, documentos orais, ferramentas, ex-
votos, ampliando os horizontes da crítica desses docu- Na noite em que o mar a tragou.
mentos, bem como da percepção do tempo e da O jovem Alexandre conquistou a Jndia.
mudança.
Sozinho?
No entanto, há que se buscar na leitura de tais César bateu os gauleses.
documentos a ideologia que carregam, para que não se
caia nas annadilhas da história oficial: Não levava sequer um cozinheiro?
"(...) O documento não éinócuo. É antes de mais Felipe da Espanha chorou, quando sua
o resultado de uma montagem, consciente ou Naufragou. Ninguém maischorou?
inconsciente, da história, da época, da sociedade
que oproduziram, mas também das épocas suces- Frederico II venceu a Guerra dos Sete Anos.
sivas durante as quais continuou a viver, talvez Quem venceu além dele?
esquecido, durante as quais continuou a ser
manipulado, aindaquepelosilêncio." (LE GOFF,
Cada página umavitória.
l1984.p.103) Quem cozinhava o banquete?
Nascida no âmbito da Escola dos Anais, a Nova A cada dez anos um grande homem.
História tinha corno principal motivação derrubar as Quem pagava a conta?
barreiras estritamente disciplinares.
Tantas histórias.
"derrubar as velhas divisórias caídas em desuso,
os aglomerados babilônicos de preconceitos, de Tantas questões."
rotina, de erros deconcepção e de compreensão". (BRECIIT,B.I990.p.167-168)
(FEBVRE,L.1979.p.257)
Assim, busca-se a pesquisa das diferenças mais
do que a das semelhanças, e o modelo universal dá Estas são as "Perguntas de um trabalhador que
lugar ao estudo das singularidades das culturas, agora lê", as quais não se pode responder, entre outras
vistas e aceitas corno plurais. inúmeras razões devido às omissões da história oficial.
Pode-se, no entanto, refletir sobre elas e considerá-Ias
Assim, cai o mito dos grandes homens, aqueles sempre que se iniciar buscas nos escaninhos da memó-
que se destacaram na condução dos fatos e dos ria. Aquela memória que hoje se constrói com vistas ao
acontecimentos. Entretanto, na dinâmica da História, amanhã.
como definir relevância dos acontecimentos e priorizar
este ou aquele personagem? O que é um vulto? No contexto de uma interdisciplinaridade tão
proclamada aos quatro ventos e, na realidade, pouco
vivenciada, as Ciências em geral buscam um solo
"Quem construiu a Tebas de sete portas? epistemológico que as defina e o objeto do saber que as
Nos livros estão nomes de reis. delimite. A Ciência da Informação, no entanto, para
alguns ainda uma disciplina, para outros uma ciência
Arrastaram eles os blocos de pedra? interdisciplinar e emergente, desevolve linhas de pes-
E a Babilônia várias vezes destruida - Quem a quisa que permitem abordagens multifacetadas da
reconstruiu tantas vezes? Em que casas infonnação, nos mais variados contextos. Tanto assim
Da Lima dourada moravam os construtores? que abrigou em seu escopo pesquisa sobre memória
institucional, tema em si, multidisciplinar, voltadoorigi-

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Memória Institucional: Um conceito em definição 47
nalmente para Memória do IBGE, instituição será discutido a seguir,
cinquentenária
. que busca desenvolver_ regras
,flexíveis
. O conce o de naçao
Jt' . uIado ao pnnClplO
- està' VIDC ., '
para um SIStema de Recuperaçao de Memona que da 'd t'dad
~;c. . . da 1 en 1 e,
possa dar conta de WJ.erentes acervos - os matenalS
Memória - com base em pressupostos epistemológicos (. ,.) "cuja representação concreta se expressa na
possíveis de serem definidos em quadro teórico em capacidade que têm os homens de identificar-se,
construção. a si e a seu povo, com o patrimônio comum que,
em última análise, outra coisa não é senão a
A referida pesquisa utilizou literatura das áreas comum participa ção e fruição das conquistas
de História, Antropologia, Filosofia, Sociologia, Psico- culturaisdeumpovo"(ORTIZ,R 1985.p.25-26).
logia, Educação e Ciência da Informação na busca do A questão da identidade é algo muito complexo.
conhecimento acumulado ao longo do tempo, partindo Segundo MATIA, importa saber que somos, como
do pressuposto de que o terna da Memória Institucional somos e por que somos.
vem sendo tratado através de subtemas e subconceitos
diluidos em esferas próprias. Memória Institucional é "Sobretudo quando nos damos conta de que o
homemse distingüedos animaispor ter acapaci-
um conceito em construção e deve permanecer aberto
dade de seidentificar,justificare singularizar: de
para que seja capaz de crescer juntamente com a
saberquemeleé." (MArrA, R da. 1984. p.16).
dinâmica do conhecimento.
E o que seria uma cultura nacional? ORTIZ
entende que C,.) "falar em cultura brasileira é falar de
relações de poder". Para ele
2 Memória lilstitucional
(...) "toda a identidade é uma construção sim
bólica, o que elimina portanto as dúvidas sobre
Apesar de ser um conceito que se forma numa a veracidade ou a falsidade do que é produzido.
sociedade em constante mudança, Memória Instituci- Dito de outra forma, não existe uma identidade
onal em geral e não apenas a do ffiGE toca em outros autêntica, mas uma pluralidade de identidade,
conceitos que não devem ser esquecidos por aqueles construída por diferentes grupos sociais em
que diret:a ou indiretamente lidam com o tema. O diferentesmomentoshistóricos"(ORTIZ,RI985.
esquema abaixo resume os principais conceitos que p.8).
tangenciam o tema: BOURDIEU afirma que o poder é um tipo de
círculo
(...) "cujo centro está em toda parte e em parte
alguma - é necessário saber descobri-lo onde ele
sedeixavermenos,ondeeleémaiscompletamen-
te ignorado, portanto, reconhecido: o poder
simbólico é, com efeito, esse poder invisível o
qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão
sujeitosoumesmoqueoexercem", (BOURDlEU,
P.1989.p.7-8).
SALCEDO considera a noção de patrimônio
urna noção politica, Patrimônio seria
(.. ,) "uma relação constante entreamaneira que o
povo tem de resolver sua existência e os instru-
mentosquefoi capazdecriarparaisso. Patrimônio
é a capacidade de transformar o mundo que se
guarda na consciência através da herança
cultural. "(. ..)"ÉacapacidadehistóricaqueheIda-
mos paravencer as dificuldades que enfrentamos
O conceito de Memória Institucional, represen-
e continuamos a enfrentar, e que nosso povo
tado pelo circulo central, relaciona-se com os demais supera criativanIente apartir de sualuta, a partir
conceitos representados pelos circulos menores que se de sua experiência, a partir dessa coisa que DÓs
tangenciam, indicando as relações entre si, confonne

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enclausuramos no mundo do diferente e que se de apenasdas relações memória-história,
cbamacultura" (SALCEDO,L. G.L.1988. p.32). te-passado. A história é a ciência do tempo.
estritamente ligada às diferentes concepçõeS
Segundo LE GOFF , "o conceito de memória é tempo que existem numa sociedade e são·
crucial". Não é mais possível desconhecer-se as rela- elemento essencial da aparelhagem mental
ções e as diferenças entre memória e história. O seus historiadores" . (LE GOFF, 1. 1984. p.lf
passado e o presente apresentam-se como oposição
constante nos estudos das durações históricas, onde o A memória sofre um processo seletivo que I
tempo histórico - lembrar ou esquecer - é o elemento inerente, resultante da capacidade de lembrar, de f
de alimentação e realimentação dessa história. Isto presente, de trazer à tona conteúdos. fudividua
coletiva, escrita ou oral, natural ou artificial, a men
(...) "porque há pelo menos duas histórias (... ): a é tema recorrente na história do Ocidente.
da memória colectiva e a dos historiadores. A
primeira éessencialmentemítica, deformada, ana- "O que sobrevive não é o conjunto daqui]
crónica, mas constitui o vivido dessa relação existiu no passado, mas uma escolha efe<
nunca acabada entre o presente e o passado. É quer pelas forças que operam no desenvol\'
desejável que a informação histórica fornecida to temporal do mundo e da humanidadf
pelos historiadores de ofício, vulgarizada pela pelos que se dedicam a ciência do passa<
escola ( ou pelo menos deveria ser ) e os mass tempo que passa, os historiadores". ( LE I
media, corrijaestahistóriatradicional falseada. A ll984.p.95)
história deve esclarecer a memória e ajudá-la a LEROI-GOURHAN apud LE GOFF dE
retificarosseuserros." (LEGOFF,J.1984. p.l66).
3 tipos de memória - memória específica, m
E prossegue adiante: étnica, memória artificial:
"Tal como o passado não é a história mas o seu "Memória é entendida, nesta obra, em
objecto, tambéma memórianão é a história, mas muito lato. Nãoéumapropriedadedaintel
umdos seus ~sesimultaneamenteumnível mas a base seja ela qual for sobre a
elementar de elaboraçãohistórica" (LE GOFF, J. inscrevem as concatenações de actos. J
1984. p.lSO). a este título falar de uma •'memória eSJ
para definir a fixação dos comportaIr
NORA apud LE GOFF afirma que a história
espécies animais, de uma "memóriaétt
fermenta a partir dos lugares da memória colectiva. assegura a reprodução dos comportam
"Lugares topográficos, como os arquivos, as sociedades humanas e, no mesmo se
bibliotecas e os museus; lugares monumentais uma memória" artificial" , electrônica;
como os cemitérios ou as arquitecturas; lugares ma mais recente, que assegura, sem 1
simbólicos como ascomemor3ÇÕeS, as peregrina- instinto ou à reflexão, a reproduçã<
ções, os aniversários ou os emblemas; lugares mecânicos encadeados". ( LEROI-G<
funcionais como os manuais, as autobiografias apudLEGOFF,J.1984.p.12-13 ).
ou as associações " . Para ele são memoriais com
E segue adiante:
umabistóriaprópria.(NORA,P.apudLEGOFF,
lI984.p.44). "A utilização de uma linguagem fal:
escrita, é de facto uma extensão fund::
LE GOFF fala das relações entre memória e possibilidades de armazenamentc
história, bem como das relações entre passado e memória que, graças a isso, pode saiJ
presente que não deve levar à confusão e ao ceticismo. físicos do nosso corpo para estar entJ
"Sabemos agora que o passado depende parcial- nos outros quer nas bibliotecas. I~
mentedo presente. Todaabistóriaébemcontem- que, antes de ser falada ou escrita
porânea, na medida em que o passado é apreen- certa linguagem sob a forma de arm
dido no presente e responde, portanto, aos seus de informações na nossa memóri~
interesses, o que não é só inevitável, como GOURHAN, apudLEGOFF, J. 1984
legítimo. Pois que a história é duração, o passado Bergson e seu discípulo Halbwachs
é ao mesmo tempo passado e presente." ( LE sadores que mais se dedicaram ao estudo I
GOFF,lI984.p.181).
embora com abordagens diversas e Ir
E continua: opostas.
"A cultura (oumentalidade) histórica não depen- No Entender de HALBWACHS c

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Memória Institucional: Um conceito em definição 49
trás da análise e interpretação da memória é uma imagens e idéias de hoje, as experiências passadas. A
definição de tempo. memória é um fenômeno social.
(...)"evoca o depoimento, que não tem sentido "Uma memória coletiva sedesenvolve a partir de
senão em relação a um grupo do qual faz parte, laços de convivência familiares, escolares, pro-
pois supõe umaconteeimento real outrora vivido fissionais. Elaentretéma memória de seus mem-
em comum e, por isso, depende do quadro de bros, que acrescenta, unifica, diferencia, corrige
referêncianoqualevoluempresentementeo grupo epassaalimpo. Vivendo nointerior de um grupo,
e o individuo que o atestam. Isto quer dizer que sofreasvicissitudes da evolução de seus membros
o "eu" e sua duração situam-se no ponto de e depende de sua interação. Quando sentimos
encontro de duas séries diferentes e por vezes necessidade de guardar os traços de um amigo
divergentes: aquela que se atém aos aspectos desaparecido, recolhemos seus vestigios a partir
vivos e materiais da lembrança, aquela que re- do que guardamos dele e dos depoimentos dos
constróiaquiloque nãoémais se não dopassado". que o conheceram. O grupo de colegas mal pode
(HALBWACHS,M 1990.p.14). constituir um apoio para sua lembrança, pois se
disperçoue cadaum se integrou nummeio diverso
E continua:
daquelequeconheceu. Comosalvarsualembrança
"(...) a memória individual existe, mas ela está senão escrevendo sobre ele, fixando assim seus
enraizada dentro dos quadros diversos que a traçoscadavezmaisfugidios?". (HALBWACHS,
simultaneidadeouacontigência reaproxima mo- M,BOSI,E.1983.p.332).
mentaneamente. A rememoração pessoal situa-
No entanto,
se na encruzilhada das malhas de solidariedades
múltiplas dentro das quais estamos engajados. (...)"por muito que deva à memória coletiva é o
Nada escapa à trama sincrônica da existência individuoque recorda. Ele éo memorizador e das
social atual, e é da combinação destes diversos camadas do passado a que tem acesso pode reter
elementos que pode emergir esta forma que objetos que são, para ele, e só para ele,
chamamos de lembrança, porqueatraduzimosem significativos dentro de um tesouro comum".
umalinguagem".(HALBWACHS,M 1990. p. 14). (BOSI,E.I983.p.333).
(...)"nos faz compreender profundamente que E conclui:
não é o indivíduo em si nem nenhuma entidade
"As lembrançasgrupais seapóiamumas às outras
social que se recorda; mas que niguém pode
lembrar-se efetivamente, senão da sociedade, formando um sistema que subsiste enquanto
pela presença ou a evocação e, portanto, pela puder sobrevivera memóriagrupal. Seporacaso
assistência dos outros ou de suas obra (...)". esquecemos, não basta que os outros
(HALBWACHS,M apudDUVIGNAUD,J. 1990. testemunhem o que vivemos. É preciso mais: é
p.23 ). preciso estar sempre confrontando, comunican-
do e recebendo impressões para que nossas
Para ele lembrançasganhemconsistência. Imagine-seum
arqueólogo querendo reconstituir, a partir de
"não basta que eu tenha assistido ou participado
fragmentos pequenos, umvaso antigo. É preciso
de uma cena onde outros homens eram
mais que cuidado e atenção com esses cacos: é
telespectadores ou atores para que, mais tarde,
preciso compreender o sentido que o vaso tinha
quando eles a evocarem diante de mim, quando
para o povo a quem pertenceu. A que função
reconstituirem peça por peça a sua imagem em
servia na vida daquelas pessoas? Temos que
meu espírito, subitamente essaconstrução artifi-
penetrar nas noções que orientavam, fazer um
cia! se anime e tome aparência de coisa viva, e a
reconhecimento de suas necessidades, ouvir o
imagemsetransformeemlembrança(...).Podeser
quejá não é audível. Então recomporemos ovaso
que essas imagens reproduzam mal o passado, e
e conheceremos sefoi doméstico, ritual, floral..."
que o elemento ou a parcela de lembrança que se
(BOSI,E. 1983.p.336).
achavaprimeiramenteemnosso espírito, seja sua
expressão mais exata: para algumas lembranças Em "Matéria e Memória", publicada em 1896,
reais junta-se assim uma massa compacta de BERGSON define a sua teoria da memória, desenvol-
lembrançasficticias". (HALBWACHS, M apud vendo uma perspectiva dualista, onde opõe o espírito à
DUVIGNAUD,J.1990.p.28). matéria. Para ele a matéria é um conjunto de imagens,
Tal como HALBWACHS, BOSI coloca a ênfa- e a lembrança o ponto de interseção entre o espírito e
se no contexto social, onde lembrar é reconstruir, com a matéria. (BERGSON,H., PROUST, M. 1990.p.4).

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50 Memória Institucional: Um conceito em definição
(. ..)"a memória não consiste, em absoluto, numa expor ao mundo sobre nós"(. ..) (SALCEDO, L. G
regressão do presente ao passado, mas, pelo 1988. p. 27).
contrário, num progresso do passado ao presen-
te. E no passado que nos colocamos de saída. "Patrimônio de um povo, patrimônio nosso,
Partimos de um" estado virtual', que conduzimos terra em queumpovo habita evive, oterritório
pouco a pouco, através de uma série de planos de ele transformou com seu trabalho, conve
consciência diferentes, até otermo em que ele se em sociais as paisagens e os recursos na
materialize numa percepção atual, isto é , até o Patrimônio é, portanto, a capacidade que
ponto em que ele se torna um estado presente e expressa historicamente no poder de do .
atuante, ou seja, enfim, até esse planoextremo de adaptar as condições de existência mate .
nossa consistência em que se desenha nosso necessidades do ser social. Patrimônio é a
corpo. Nesse estadovirtual consiste a lembrança lação das experiências bem sucedidas ou e
pura(...)". (BERGSON, H., PROUST, M. 1990. que tem um povo como o território que
p.l96-l97). graças às quais pôde convertê-lo em país.
crítica da razão colonial nos faz conceber
"Com a memória estamos efetivamente no domí- issocomoinsignificante(...)"(SALCEDO,L. G.
niodoespírito."(BERGSON, H., PROUST, M. 1990. 1988.p.27).
p.197 ). Como então aproximar a percepção pura e a
memória pura?
"Se a lembrança pura é já o espírito, e se a 3 Conclusão
percepção pura seria ainda algo da matéria, pre-
cisávamos, colocando-nos no ponto de junção
entrea percepção pura ea lembrançapura, jogar Assim, informação, cultura e sociedade fo
alguma luz sobre aação recíproca do espíritoeda um tripé que se constitui em desafio para as Ciênc·
matéria. Naverdade, apercepção 'pura',ou seja, Humanas e Sociais, no sentido de abandonar a bu
instantânea, éapenas um ideal, um limite. Toda do conhecimento objetivo em favor do conhecim
percepção ocupa uma certa espessura de duração, que liberte o homem e o conduza à cidadania. E
prolonga o passado no presente, e participa por caminho passa necessariamente pela destruição
isso da memória. Aotornarmos então apercepção modelo de exclusão cuhural que limita e aprisiona.
em sua forma concreta, como uma síntese da preciso que a sociedade civil se liberte do obscur .
lembrança pura e da percepção pura, isto é, do
mo de seupróprio meio, de sua cultura, de sua memó .
espíritoedamatéria, encerrávamosemseus limites
mais estreitos o problema da união da alma com Sem educação não há construção da memória in .
o corpo". (BERGSON,H.,PROUST,M. 1990. cionaI.
p.200). Entede-se que o pesquisador interessado
Numa leitura filosófica da obra literáriade Proust, libertar-se dos mitos da história oficial, ao debruçar-
DELEUZE analisa os diferentes tipos de signos e suas sobre seu objeto de estudo - as sociedades e
ressonâncias. Para ele há alguma semelhança entre a instituições - deve desevolver um olhar plural q
concepção de ( BERGSON, H., PROUST, M. ) não a possa dar conta da diversidade que envolve o hom
nível da duração mas da memória, que divide em na sua trajetória existencial. É importante refletir sob
voluntária e involuntária. as idéias de pensadores como (SALCEDO, L. G.
1988. p.38 ), quando alerta para o risco de se
(...)"não retornamos de um presente atual ao
passado, não recompomos o passado com os (...)"converternummonstro esteserque ao long
presentes, mas nos situamos imediatamente no de sua história se fez gigante e que nós conh
próprio passado". (BERGSON,H.,PROUST,M. mos com onome de' 'HOMEM".
apudDELEUZE,G.1987.p.58).
Um passado que é em si virtual.
Assim, entende-se que negligenciar tais concei-
tos pode significar cairmos no erro comum, tão visível
nas instituições culturais que promovem atividades de
preservação de patrimônios, de priorizar um simulacro
de identidade, onde nos identificamos com o exótico e
o singular, com a (...) "imagem que preparamos para

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I
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Abstract
Amethodological-explanatorystudy oninstitutional historical records is developed, taking as areference point
the ffiGE InstitutionalHistorical Record. Itsgeneral aim istheresults derived fromthe survey, in orderto widen
the existinginfonnationonthe subject. Thoseparametersconstituteapreliminarygroundforthe planningofthe
Retrieval SystemfortheffiGEInstitutionalHistoricalRecord, forpurposesofpreserving it. The studyisdesigned
more specifica1lyto contributetotheimprovement ofdatacollectionand analysistechniques, byreporting right
and wrong directionstaken onthe way.

4 Bibliografia

BERGSON, H. Matéria e memória; ensaios sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins
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publicado).

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