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A Antropologia No Brasil - Um Roteiro (Julio Cezar Melatti)
A Antropologia No Brasil - Um Roteiro (Julio Cezar Melatti)
1-INTRODUÇÃO
Osip Mandel’stam1
1
Poema “O Século”, de 1923, apud AGAMBEN, 2010.
2
Vide o artigo “Não à tatuagem biopolítica” (AGAMBEN, 2004b) e a controvérsia de sua
publicação no Le Monde.
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3
“an array of illiberal policies and practices that are legitimated through claims about necessary
exceptions to the norm”.
12
PRIMEIRA PARTE
Konrad Weiss4
4
Schmitt (1994) dedica estes versos a sua filha, Anima Louise; palavras que, segundo ele,
atestam sua essência íntima.
5
Formalmente conhecido como Treasury Plan for the Treatment of Germany, foi desenvolvido
pelo Secretário do Tesouro norte-americano, Henry R. Morgenthau Jr., e seu assistente, Harry
Dexter White, no verão de 1944, e implementado pelos aliados. O plano tinha como objetivos
reeducar os alemães, desmontar a indústria pesada alemã, promover a desmilitarização da
Alemanha, entre outros, a fim de evitar uma “Terceira Guerra Mundial”. Como consequência do
plano, a Alemanha foi dividida em dois Estados independentes e milhões de alemães morreram
de fome, doença, e no processo de expulsão das regiões orientais do país. Vide:
http://www.fpp.co.uk/bookchapters/Morgenthau.html
17
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Entonces el investigador y profesor de Derecho público se encuentra repentinamente
circunscripto y empadronado con cualquier palabra o pensamiento libres y eso por hombres
que nunca han tenido en su vida um pensamiento libre y a los que es esencialmente ajena toda
libertad de espíritu.
7
“favor o disfavor, cuya suerte o desgracia, victoria o derrota capta también al investigador y
maestro y determina su destino pessoal”.
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De la coación y del control técnicamente aumentados resultan nuevas formas de pensar y
hablar que escapan a esta coacción y a este control. Esto es aplicable en general frente a
cualquier terror o discriminación, no sólo para Alemania y no solamente para estos doce anos.
19
“Teologia Política”, seria uma estratégia discursiva para apresentar uma política
particular de nomeação, interpretação e representação do excepcional como
algo lógico e necessário e não uma ética política específica. A teoria
schmittiana usaria o problema da exceção (contingência ao mesmo tempo
hipotética e metafísica) com o objetivo de defender a primazia do poder
soberano excepcional e construir uma ética estatocêntrica extrema. Se Schmitt
vê o excepcional como a possibilidade real, para Agamben ele é o grande
destino histórico-transcendental da humanidade. Em comum, Schmitt e
Agamben são estatocêntricos, privilegiando o centro soberano e reduzindo o
excepcionalismo a dualidades como amigo-inimigo, norma e exceção, vida nua
e vida política.
É importante ressaltar que Schmitt foi, antes de tudo, um jurista, um
representante clássico do direito público europeu e, em sua própria definição,
um professor e pesquisador da ciência jurídica, nos campos do direito
internacional e do direito constitucional, ambos pertencentes ao ramo do direito
público. E é no âmbito do direito que Schmitt vai desenvolver seus conceitos
fundamentais como exceção, poder soberano, legalidade e legitimidade,
ditadura e democracia.
Segundo Schmitt (1994), a ciência jurídica é um fenômeno
especificamente europeu, estando enraizado no racionalismo ocidental e tendo
como “nobres” antepassados o direito romano e a Igreja Romana, cuja
separação se deu na épocas das guerras civis confessionais dos séculos XVI e
XVII. Deste modo, o direito público europeu nasceu com a saída dos juristas da
Igreja e o êxodo do sagrado para o domínio do profano.
Contudo, nesta saída, os juristas teriam levado consigo algumas coisas
sagradas, e o Estado se adornou com um simulacro de origem eclesiástica. O
poder dos príncipes temporais foi reforçado com atributos e argumentações de
origem espiritual e os juristas do ius publicum europaeum passaram a ocupar
posições que antes pertenciam aos teólogos. Herdaram, desta maneira, muito
do potestas spiritualis da Igreja Cristã na Idade Média. Em conflito com o poder
temporal, os clérigos medievais desenvolveram teorias bem estruturadas sobre
a guerra justa e a resistência justa frente ao tirano. E também é deles a
herança das antigas fórmulas do inimigo da humanidade, do hostis publicus e
do hostis generis humani.
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10
“el último representante consciente del jus publicum Europaeum, su último teórico e
investigador em um sentido existencial y experimento su fin”.
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12
“Quien no tiene poder para proteger a alguien tampoco tiene el derecho de exigirle
obediencia. Y viceversa:quien necesita protección y la recibe no tiene derecho a rehusar la
obediencia.
25
13
“Todo poder directo está así sujeto a influencias indirectas.”
26
Schmitt (2010) faz esta referência a Gregório para refutar a ideia de que
o poder seria sempre mau, teoria amplamente difundida a partir do século XIX,
mas também não compartilha da visão do Papa. O poder para ele não é bom
ou mau em si mesmo e muito menos depende de quem o exerce. Afinal, quem
definiria se o poderoso é mau ou bom, ele mesmo?
Assim, para entender a essência do poder, mais uma vez é preciso
retornar à teoria do perigo de Hobbes. Para o filósofo inglês, o homem é, ao
mesmo tempo, menos e mais que um animal, no momento em que consegue
compensar suas debilidades biológicas e suas deficiências com inovações
tecnológicas. Aliás, atualmente, com o desenvolvimento dos armamentos e de
instrumentos de destruição em massa, esta compensação estaria se dando em
excesso, aumentando também o perigo. E, proporcionalmente ao crescimento
do perigo, se expande também a diferença entre o poder e sua ausência, de
uma forma tão ilimitada, que levaria o conceito de homem a um novo patamar.
A centralidade da análise do poder não está, deste modo, no homem
que o exerce, sua boa ou má vontade não é parte do problema. O indivíduo
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Dios es el poder supremo y el ser supremo. Todo poder procede de él y en su essencia es y
mantiene divino y bueno. Si el demonio tuviese poder, también este poder, en cuanto es poder,
sería divino y bueno. Sólo la voluntad del demonio es mala. Pero aun a pesar de esta voluntad
domoníaca siempre maligna, el poder sigue siendo divino y bueno en sí mismo.
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nada mais é que uma parte do aparato técnico e social que produz as novas
tecnologias de destruição. E o uso destas tecnologias, como instrumento de
exercício do poder de um homem sobre outro, teria colocado fim à igualdade
entre os mesmos, entre poderoso e sujeitado.
O poder, portanto, vai além de quem o exerce. É objetivo, autônomo em
relação aos poderosos, supera incessantemente a reduzida capacidade física,
intelectual e psíquica individual. Segundo Schmitt (2010), ao criarem estes
novos recursos de destruição, os inventores contribuíram para o surgimento de
um novo Leviatã. O primeiro Leviatã foi o Estado moderno europeu,
organizado, dos séculos XVI e XVII, um produto técnico artificial, o super
homem, criado pelos pequenos homens que o constituem. A primeira máquina
moderna, “a máquina das máquinas”, que se materializa no consenso humano
e o supera.
O novo Leviatã é produto do progresso da técnica moderna e que tudo
domina. Um progresso que é, ao mesmo tempo, técnico, mas também é o da
eliminação do subjetivismo romântico, um progresso na
captação do indivíduo humano, e na criminalização e
automatização das massas. Uma maquinaria gigantesca
devora sem diferenciar centenas de milhares de homens.
Ao lado dele, o velho Leviatã, o grande monstro, parece
quase acolhedor, e a antiga prisão quase um idílio
(SCHMITT, 1994, p. 11, tradução nossa 15).
15
Eliminación del subjetivismo rómantico, un progreso en la captación del individuo humano, y
en la criminalización y automatización de masas. Una maquinaria gigantesca devora sin
diferenciar a cientos de miles de hombres. Al lado de esto, el viejo Leviatán, el gran monstruo,
parece casi acogedor, y la antigua cárcel casi um idilio.
16
“El poder es más fuerte que cualquier voluntad de poder, más fuerte que cualquier bondad
humana y por fortuna más fuerte también que cualquier maldad humana.”.
28
2.3- O Leviatã
17
“El nombre del Leviathan proyecta una larga sombra”.
29
18
“qué ‘limpia’ y ‘exacta’ es la máquina!”
34
como uma máquina tecnicamente perfeita, tendo seu direito e sua verdade em
si mesma, ou seja, em seu próprio rendimento e função.
E este Estado é infinitamente distante da comunidade medieval não só
na concepção do soberano (direito divino dos reis medieval x direito de mando
racional do Estado neutro), mas também na situação jurídica dos súditos. Na
comunidade medieval, o direito de resistência feudal ou estamental contra um
governante injusto era evidente; o vassalo ou estamento podia evocar um
direito divino. No Estado absoluto hobbesiano, colocar o direito de resistência
no mesmo plano que o direito estatal é absolutamente absurdo, uma vez que
ele não pode ser construído nem como direito objetivo nem como direito
subjetivo; frente ao Leviatã, a máquina perfeita, capaz de aniquilar toda
resistência, toda tentativa de resistir resulta praticamente vã.
Segundo Schmitt (1990), admitir, em Hobbes, o direito de resistência
seria o mesmo que admitir o direito à guerra civil, reconhecido pelo Estado, ou
seja, um direito de destruir o Estado, o que também resulta absurdo19.
Ou o Estado existe realmente como Estado e funciona
como instrumento incontrastável da paz, da segurança e
da ordem, e tem de sua parte o direito objetivo e o direito
subjetivo, posto que como legislador único e supremo cria
ele mesmo todo direito, ou não existe realmente e não
cumpre sua função de assegurar a paz. Então, não há
Estado, e sim estado de natureza. Pode ocorrer que o
Estado deixe de funcionar e que a grande máquina se
rompa pela rebelião e pela guerra civil. Mas isto nada tem
a ver com o ‘direito de resistência’ (SCHMITT, 1990, p.
46, tradução nossa20).
21
‘el que busca su seguridad en otro se somete a él.’
36
22
“cada soberano decide inapelablemente dentro de su propio Estado lo que es milagro”.
37
23
Una vez admitida la distinción entre el fuero interno y externo, ya es cosa decidida, por lo
menos en potencia, la superioridad de lo interno sobre lo externo y, por conseguiente, de lo
privado sobre lo público. Aunque se acate al poder público en forma expresa e incondicional, y
se respete con toda lealtad, cuando ese Poder no es más que um poder público, todo el poder
externo está, en realidad, vacío y sin alma. Un Dios terrenal de esta hechura no cuenta más
que con la apariencia y los ‘simulacra’ de la divinidad. Las cosas divinas no se pueden imponer
externamente.
38
24
Todo Estado se funda, según Hobbes, en un contrato; y todo Estado es Estado de derecho,
porque dentro del Estado no cabe ningún derecho extrano o contrario al Estado mismo; ahora
bien, sólo el Estado fundando por esa asamblea nacional constituyente es Estado de derecho
constitucional.
39
25
Vide a teoria dos poderes indiretos de Schmitt no item 2.2 deste trabalho.
26
“Las instituciones y los conceptos del liberalismo sobre los que el Estado legal positivista se
asentaba, se convirtieron en armas y posiciones fuertes de poderes genuinamente
antiliberales”.
40
27
“the courage to handle differences differently and to carry through necessary differentiations”.
41
28
“there is no normal state which is not total at the same time”.
43
29
Schmitt (2007) admite a possibilidade de um Estado de direito tanto nos modelos Legiferante
e Jurisdicional, como também no Dirigente e Administrativo, desde que estes dois últimos se
proponham a “substituir o Direito antigo incorreto por um Direito novo correto e, sobretudo, a
criar a situação normal, sem a qual todo e qualquer normativismo é um engodo. A expressão
‘Estado de Direito’ pode significar tantas coisas distintas como o próprio termo ‘direito’ (...)” (p.
15).
45
parlamentar ordinário, uma vez que suas medidas devem ser toleradas pelo
Reichstag, que pode pedir sua revogação.
No entanto, na prática, o que se percebe, para a situação extraordinária,
é a superioridade deste legislador ratione necessitatis, que apenas não pode
reivindicá-la abertamente. Superioridade que advém do fato de que o
legislador, com base em seu próprio julgamento, toma as decisões sobre os
pré-requisitos de suas competências extraordinárias (perigo para a segurança
e ordem públicas) e sobre o conteúdo das medidas necessárias. E exatamente
por isto, ele pode, em um espaço exíguo de tempo, voltar a tomar medidas que
foram revogadas pelo Parlamento. Como o pedido de revogação não tem
caráter retroativo, “o legislador extraordinário pode criar fatos consumados
perante o legislador ordinário” (SCHMITT, 2007, p. 74).
Analisando, neste contexto, a abrangência e o conteúdo da competência
legislativa do legislador extraordinário, o que fica evidente é sua superioridade
em relação ao legislador ordinário, o Reichstag, para o qual a lei está separada
do aparato de aplicação da mesma.
E é esta separação entre a lei e a sua aplicação um dos fundamentos do
Estado Legiferante parlamentar, que desenvolve mecanismos de salvaguarda
no âmbito do Estado de direito, visando à proteção do Executivo. Mas, em
virtude do art. 48, §2º, para o legislador extraordinário, a distinção entre lei e
sua aplicação, entre Executivo e Legislativo, não é um obstáculo nem jurídico
nem fático, uma vez que ele encarna ambas. Se ele assim o determinar,
segundo Schmitt (2007), um mero ato de aplicação da lei pode ganhar um
caráter legislativo.
Em suma, o Presidente do Reich pode, em virtude das competências a
ele atribuídas, intervir em todo o sistema de normatizações jurídicas existentes,
promulgar normatizações gerais, decidir sobre mecanismos especiais e criar
instâncias extraordinárias executoras para a aplicação e execução das novas
normatizações. Em outras palavras,
(...) ele concentra a faculdade de legislar e de aplicar a
lei, podendo executar as normas legiferadas por si
mesmo, o que está vedado ao legislador ordinário do
Estado legiferante parlamentar, enquanto ele respeitar a
separação de poderes essencial a um Estado legiferante,
reconhecendo a divisão existente entre lei e aplicação da
lei (SCHMITT, 2007, p. 76).
55
Uma autoridade estável, que faça a pergunta certa e que não abuse
deste grande poder; que seja capaz de realizar as despolitizações necessárias
e, uma vez fora do Estado Total, resgatar áreas vitais e esferas de liberdade. É
uma autoridade rara e que pode se originar de diversas fontes – dos efeitos de
57
sentido eminente, um vez que a norma jurídica válida jamais pode assimilar
uma exceção absoluta e, deste modo, nunca pode justificar a decisão tomada
em um verdadeiro caso excepcional. Este não pode ser circunscrito em uma
tipificação jurídica, o que torna fundamental a questão do sujeito da soberania.
Na impossibilidade de se determinar objetivamente quando ocorre um
caso emergencial, ou de enumerar o que deve ser feito para se eliminar o
perigo, é o soberano quem decide sobre ambos – em outras palavras, é o
soberano quem decide sobre a existência da emergência extrema e sobre o
que deve ser feito para eliminá-la. Ele se situa fora da ordem legal vigente, mas
ainda sim pertence a ela, por ser competente para decidir sobre a suspensão
da constituição.
Segundo Agamben (2004a), falta ao direito público uma teoria sobre o
estado de exceção. Para os juristas e, em especial, os publicistas, a exceção
se apresenta mais como uma questão de fato do que de direito; uma questão
de necessidade, a qual é negada juridicidade – necessitas legem non habet
(AGAMBEN, 2004a, p. 11).
Neste sentido, a grande contribuição da teoria schmittiana está na sua
articulação entre o estado de exceção e a ordem jurídica. Isto só foi possível
através da distinção realizada por Schmitt, na “Teologia Política”, entre norma
(Norm) e decisão (Entscheidung, Dezision). No momento em que suspende a
norma, o estado de exceção revela a decisão, como um elemento formal
jurídico. Na situação de normalidade, a decisão é reduzida a um mínimo,
enquanto no estado de excepcionalidade, a norma é anulada. Mas ambos,
norma e decisão, continuam parte do ordenamento jurídico (SCHMITT, 2006b).
A exceção seria um caso singular, excluído da norma geral, mas não do
ordenamento jurídico. A norma continua a se relacionar com a exceção por
meio de sua suspensão, ou seja, é uma exclusão que inclui. Assim, segundo
Agamben (2007), “A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se
desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas
a situação que resulta de sua suspensão” (p.25). Na verdade, segundo a
doutrina schmittiana, esta suspensão não seria da norma, mas de sua
aplicabilidade.
Neste sentido, a teoria schmittiana faz ainda outra distinção – entre as
normas do direito e as normas de realização do direito. Deste modo, no estado
59
30
O que não ocorre na obra anterior de Schmitt Die Diktatur, de 1921. Nesta, o autor faz uma
análise do estado de exceção a partir dos conceitos de ditadura comissária (que visa a
defender ou restaurar a constituição em vigor) e ditadura soberana (que visa à criação de uma
nova constituição). Para esta discussão, vide Agamben (2004a).
60
a quebrar o pacto.
Os homens, desta forma, abrem mão de um direito natural de fazerem o
tudo o que for necessário para a preservação da vida, e transferem-no a uma
terceira pessoa (ou assembleia) que, apesar de não ser parte contratante neste
processo, garante o cumprimento do mesmo impondo sanções a quem
desobedecer ao contrato feito.
Fica, então, instituído um poder soberano, acima de todos os homens
que se comprometeram a viver em paz. Assim como os homens imitariam a
natureza para construírem as máquinas, este ser soberano se assemelharia a
um Homem Artificial criado para garantir o pacto. O Estado que nasce seria o
próprio Homem Artificial; seus funcionários as juntas; a riqueza e prosperidade
sua força; seus conselheiros a memória; a concórdia seria a saúde; a
soberania corresponderia à alma; as recompensas e castigos por ele impostos
seriam os nervos; a segurança do povo o objetivo; a justiça e as leis seriam sua
razão e vontade; a sedição a doença e, enfim, a guerra civil, a morte, pois
assim voltaríamos ao Estado de Natureza. Hobbes 31 chama a este novo
Homem de Leviatã.
Este poder soberano seria indivisível, caso contrário não seria realmente
soberano. A este poder caberia: prescrever leis civis que garantam a
propriedade; exercer a autoridade judicial; decidir a respeito de guerras contra
outros Estados; escolher todos seus conselheiros e castigar ou recompensar
como lhe aprouver. São direitos do soberano, classificados por Hobbes (1979)
como incomunicáveis e inseparáveis.
Deste modo, segundo Schmitt (1996), a soberania estatal hobbesiana
seria concreta, recusando uma ordem abstrata. O poder estatal estaria
submetido a um poder maior, intelectual e espiritual, do Leviatã 32. Um poder
pessoal.
Além disto, Schmitt critica Hobbes por permitir a liberdade de opinião
31
Vide item 2.3 deste trabalho.
32
Para Agamben (2007), o estado de natureza hobbesiano não é uma época real,
cronologicamente anterior à fundação da cidade, mas o momento em que a cidade se divide e
se dissolve, ou seja, um estado de exceção. Mais do que uma guerra de todos contra todos,
ele é o momento em que “cada um é para o outro vida nua e homo sacer” (p.112); em que
cada um é, ao mesmo tempo, lobo e homem – lupus homini lupus. Com a criação do Leviatã, o
estado de natureza passa a sobreviver dentro do próprio Estado, como o jus puniendi do poder
soberano. Assim, este não é fundado no pacto ou contrato social, mas na “inclusão exclusiva
da vida nua no Estado” (AGAMBEN, 2007, p.113).
62
aos indivíduos, uma vez que qualquer forma de opinião autônoma no âmbito
público pode se fragmentar em uma pluralidade de interesses – fundamento do
liberalismo, objeto das críticas schmittianas (HUYSMANS, 2008; SCHMITT,
1990).
O Estado liberal e seu correlato o Estado de direito se esforçaram, em
seu desenvolvimento, para eliminar a figura do soberano. E é justamente por
isto que Schmitt (2006b) adota o conceito de soberania de Bodin, orientado ao
caso crítico, ao caso de exceção. Não se trata aqui de mera retórica, mas de
considerar a soberania como uma unidade indivisível e que decide
definitivamente a questão do poder do Estado. O príncipe só está ligado a um
compromisso na medida em que o cumprimento da promessa é do interesse do
povo; no caso da emergência, da urgência, ele não mais permanece ligado ao
compromisso, podendo transgredir suas promessas, modificar ou anular leis.
Neste sentido, a verdadeira característica da soberania é o poder de suspender
a lei vigente – em geral, ou em casos isolados.
Por conseguinte, como alternativa às teorias normativistas e
decisionistas, Schmitt (2006b) inclui na soberania o conceito de decisão – toda
ordem jurídica baseia-se em uma decisão e não em uma norma - e propõe sua
Teologia Política. Segundo o autor, todos os conceitos da teoria moderna do
Estado seriam, na verdade, conceitos teológicos que foram secularizados.
Nesta perspectiva, o estado de exceção estaria para a jurisprudência
como o milagre para a teologia. Em ambos os casos haveria uma intervenção
direta do soberano na ordem das coisas. É ele quem detém os poderes que
não são atribuídos pelo direito positivo; é ele quem é competente quando a
competência não está prevista.
Esta teologia política estaria presente em diversas concepções de
soberania, seja na vontade geral rousseauniana, ocupando o lugar de Deus, ou
no próprio Deus do hobbesianismo.
A crítica de Schmitt recai, então, novamente sobre o liberalismo e sua
fundamentação racional, que busca protelar ao máximo a questão da soberania
por meio do controle mútuo e da distribuição de competências. A defesa do
Estado de direito e da ordem e a negação da exceção. O direito como
contraposto à exceção.
No entanto, como afirma Schmitt (2006b), a exceção está presente no
63
33
A guerra civil é tão grave, para Schmitt (1994), que ele considera que somente nesta época o
suicídio adquire sua significação exemplar, como sacramento, constituindo “la única posibilidad
de demonstrar su dignidad humana y de comprobar su libertad moral” (p. 42). Isto explicaria os
suicídios que ocorreram em Berlim, na primavera de 1945, em determinados grupos sociais.
34
“Desgraciadamente, (…) adquiere su ultimo y más amargo sentido en la guerra civil”.
66
35
“Se toma asiento en el tribunal para juzgar sin dejar de ser enemigo”.
67
36
“the factual condition one faces necessitates transgressing the legally instituted norms and
procedures of decision making”.
68
37
“tecnique of a decisive political authority who asserts a mystic or organic unity between a
sovereign leadership and the people”.
69
38
“Así, todo derecho termina por ser referido a la situación de las cosas”.
39
Significa a “alteração fundamental das circunstâncias”. É uma das modalidades de extinção
ou suspensão da força obrigatória dos contratos, em virtude de circunstâncias supervenientes
ao mesmo e que não poderiam ser previstas pelas partes à época, tornando a obrigação
demasiadamente onerosa para uma das partes.
71
própria representação do que é bom ou mal, útil ou não, o soberano precisa ter
também uma decisão sobre as opiniões dos homens, de modo a colocar um
fim na guerra de todos contra todos. Portanto, em Hobbes, por sua própria
constituição, o Estado tem o sentido de uma ditadura. Neste contexto, a lei tem
por base uma decisão sobre o interesse estatal e passa a existir a partir da
ordem dada, ou seja, ela é “ditada”.
Desta forma, o poder soberano de Hobbes se baseia em um acordo
mais ou menos tácito, no convencimento dos súditos, ainda que realizado pelo
Estado. A soberania nasce, então, do ato de constituição do poder absoluto
pelo povo, o que lembra a ditadura soberana, cujo fundamento é uma
delegação absoluta (SCHMITT, 1968).
Quando o povo, na sua totalidade, transfere, de maneira definitiva, a
dominação a um indivíduo, tem origem a monarquia. Se a dominação só é
transferida por um tempo, o caráter jurídico do poder político a que se deu
origem depende do povo, ou seja, o conjunto dos cidadãos que atua como
sujeito jurídico-político tem ou não direito de se reunir em assembleia enquanto
durar esta dominação temporal. E, se o povo tem este direito, independente da
vontade do titular do poder ou mesmo contra sua vontade, este não é um
monarca, mas apenas um primus populi minister. Isto é aplicável ao ditador
romano, o qual pode ser deposto a qualquer momento, antes do término do seu
mandato, por uma assembleia do povo, pois este permanece sempre
soberano.
Segundo Schmitt (1968), no Leviatã, Hobbes chama de monarca
temporal o ditador (referindo-se a Cromwell), uma vez que ele teria o mesmo
poder de um monarca. Além disto, o ditador, quando não pode designar por si
mesmo o seu sucessor, é apenas um ministro da democracia ou da
aristocracia, já que se o pudesse fazer, se converteria em um monarca.
Hobbes distingue, assim, entre a soberania e o exercício da mesma. Na
democracia, se transmite, com certa frequência, o exercício da soberania a um
ministro ou funcionário. Em uma guerra, entretanto, sempre se faz necessária
uma forma absoluta de exercício de dominação, já que os Estados vivem em
um permanente estado de natureza, de onde decorre a superioridade da forma
estatal monárquica.
Entre a perspectiva da tecnicidade maquiavélica e do Estado de direito
73
40
1- Fundamento: ordonnance, por tanto;
2- la actividad no tiene un carácter ordinario, sino solo selon l’occasion y termina con la
ejecución del negocio; por tanto,
3- no tiene derecho al cargo; el comisario tiene su función tan solo como un precarium y
depende permanentemente de su comitente; revocabilidad en cualquier momento; por tanto,
4- el contenido de la actividad del comisario está fuertemente ligado a sus instrucciones, su
discreción (discrétion) está estrechamente limitada, depende siempre y en todas las
particularidades inmediatamente de la voluntad del comitente, si bien este puede dejarle mayor
margen de acción.
74
41
“todo ejercicio del poder estatal que se realice de una manera inmediata, es decir, no
mediatizado atraves de instancias intermedias independientes, entendiendo por ella el
centralismo, por oposición a la descentralización”.
76
circunstâncias. Todavia, para que isto não signifique uma dissolução de toda
situação jurídica existente, deve-se considerar que estas medidas são sempre
de caráter fático e não podem se constituir em atos de legislação nem de
administração da justiça.
Segundo Schmitt (1968), este artigo contém uma contradição. Ao
mesmo tempo em que dá poderes ilimitados para a ação, ele limita as
liberdades constitucionais que podem ou não ser suspensas. Por esta
disposição, os direitos fundamentais suscetíveis a uma ingerência estão
enumerados taxativamente, sendo os dos arts. 114, 115, 117, 118, 123, 124 e
153. É, assim, uma regulamentação “estranha”, já que primeiro confere uma
faculdade de suspender toda a situação jurídica existente, incluindo o art. 159,
e depois enumera um número limitado de direitos fundamentais que podem ser
suspensos. Contradição esta que decorre da combinação entre uma ditadura
soberana e uma ditadura comissarial.
A consequência, de acordo com Schmitt (1968), é que a suspensão da
liberdade de imprensa (art.118), e das demais enumeradas no art. 48, é
explícita, enquanto o direito à vida e à morte é concedida implicitamente.
42
Nome de um ensaio de Schmitt publicado em 1955, e, posteriormente, publicado, como
apêndice, na edição argentina de 2005 do “Nomos da Terra”.
43
Palavra grega, que aparece na Bíblia (Tessalonianos 2:6-7) como o Anticristo. Em Schmitt, é
o poder histórico de restringir o aparecimento do anticristo e o fim da eternidade presente,
tendo sido fundamental para a continuidade do Império cristão centrado em Roma.
81
44
Nesta obra, Schmitt analisa o poema Nordlicht do poeta expressionista austríaco Theodor
Däubler (1876-1934).
82
45
Segundo Bento (s.d), o éon pode ser definido como “lapso de tempo infinitamente longo, da
eternidade, de infinidade dos séculos e dos tempos” (p.17).
83
46
Este conceito aparece nas obras “Humano, demasiado humano” (1878) e “Aurora” (1881)
relacionado à guerra e suas consequências. Para Nietzsche, a grande política era uma política
que pretendia ir além dos domínios territoriais de um Estado ou nação, o que, em última
instância, resultaria na guerra. A questão, para Nietzsche, é saber, então, se vale a pena
sacrificar os mais nobres homens de um povo em nome desta política, reconhecendo que as
consequências da guerra são devastadoras. Por outro lado, o autor, sem fazer uma apologia
belicista, reconhecia que a guerra era parte das grandes culturas e capaz não só de renová-
las, como também a própria existência do homem. Em Aurora, especificamente, o conflito é
visto como decorrente do acúmulo do sentimento de poder. No período tardio do pensamento
nietzscheano, o conceito de grande política está ligado à ideia da vontade de potência e da
transvaloração dos valores. Nota da autora.
84
É por esta configuração que Schmitt, de acordo com Norris (1998), tem
mais a dizer sobre o inimigo que sobre o amigo, o que não significa que um
conceito possa ser entendido sem o outro. O sentido está em que “A guerra
decorre da inimizade, pois esta é a negação ontológica de outro ser”
(SCHMITT, 1992, p.59).
Além disto, fica claro na teoria schmittiana que a ameaça não se refere à
vida física individual, mas à forma de existência ou de vida da coletividade, ou
seja, o Lebensform é anterior e tem primazia sobre o individual. Portanto, o
direito de demandar que seus membros estejam prontos para morrer implica
que o Estado tem prioridade sobre o individual.
Logo, é em virtude deste seu poder sobre a vida física dos homens que
a comunidade política transcende todas as outras formas de associação ou
89
48
“the transcendence of private, physical life and opens the possibility of a particular form of
violent conflict”.
90
amigo (público e não privado) é aquele que compartilha uma forma de vida,
que pode ser definida de inúmeras maneiras e só pode ser entendida em
termos de uma existência política. Assim, como a guerra, outros conceitos
essenciais como nação e cultura não são normativos, mas existenciais.
Na visão schmittiana, de acordo com Norris (1998), a identidade parece
ser um fato, que não pode ser debatida como a religião, a moral e mesmo a
economia. Mas há a possibilidade de se debater sobre as interpretações da
identidade política, o que não significa debate público e deliberação, o que
Schmitt tanto critica na “Crise da Democracia Parlamentar”. Em sua leitura da
identidade política, a democracia não é uma questão de participação popular,
consentimento revogável ou instituições parlamentares/liberais, mas de
identidade entre legislador e legislado, que não é irreconciliável com uma forma
de ditadura que nega à população o direito de debater questões políticas. Para
ele, quanto mais debate público, como querem os liberais, menor a autoridade.
E a autoridade política, capaz de tomar decisões sobre a vida e a morte
dos indivíduos, significa um comprometimento absoluto, que envolve a vida
como um todo. Este mesmo princípio pode ser encontrado no conceito do
político, no qual a parte encontra seu significado apenas quando assume o
lugar certo dentro do todo. Deste modo, a vida individual só adquire seu
verdadeiro significado quando transcende sua vida física na solidariedade com
a comunidade, formando um todo. E “apenas a morte confronta a vida como
um todo” (NORRIS, 1998, p. 87, tradução nossa 49).
Em suma, segundo Norris (1998), a ênfase de Schmitt está na
autoridade, no comprometimento e na mortalidade, se alinhando, neste ponto,
com os gregos, em sua insistência em que a política seja uma resposta para a
fragilidade da vida humana. Logo, a hostilidade schmittiana ao individualismo
não se deve simplesmente às suas tendências autoritárias, mas porque a
forma de individualismo da sociedade contemporânea, que se manifesta no
consumo de imagens, prazeres e comodidades, é incapaz de responder a esta
questão.
O grande perigo da teoria schmittiana estaria, na visão de Norris (1998),
justamente nesta sua insistência na primazia do todo. Para ir além do conceito
49
“only death confronts life as a whole”.
91
50
Vide item 2.3 deste trabalho.
95
51
Para esta discussão sobre a guerra e a criminalização do inimigo, vide Schmitt (1952, 2005a,
2005b).
98
52
“de la infección liberal, decididamente neutralizante de lo político, desmitologizadora y
generadora de una época tan solo técnica”.
103
53
Segundo Gómez (2010), foi uma época particularmente difícil para Foucault, pois, além de
ter que lidar com as críticas, estava insatisfeito com suas aulas no Collège, que tinham se
transformado em espetáculo, e sob o impacto do seu fracasso nas incursões no jornalismo
político, em especial na defesa da Revolução Iraniana.
107
Neste sentido, o poder de matar para poder viver, que era o sustentáculo
das táticas dos combates, se torna o princípio estratégico entre os Estados – a
existência em questão já não “é aquela – jurídica da soberania, é outra –
biológica – de uma população” (FOUCAULT, 1985, p.129). O genocídio se
torna, deste modo, o sonho dos poderes modernos; mas não se trata da volta
ao velho direito de matar soberano. O poder agora se exerce e se situa ao nível
da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços da população.
Além da guerra, a outra forma de exercício de força já citada é a pena de
morte, a resposta do soberano a quem atacava sua lei, sua vontade e sua
pessoa. Com a forma moderna do poder, o número de condenados à morte
diminui ao passo que aumentam os mortos pela guerra. Isto, entretanto, não
ocorreu, de acordo com Foucault (1985), por questões humanitárias e sim
porque no momento que o poder assume a função de gerir a vida, sua razão de
ser e sua lógica de exercício tornam mais difícil a aplicação desta pena. Como
infligir a pena de morte se a função do poder é garantir, sustentar, multiplicar e
colocar a vida em ordem? No lugar de um castigo comum, esta pena se torna
aplicável apenas para os incorrigíveis, para os que colocam os outros em
perigo biológico.
Em suma, “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi
substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte” (FOUCAULT,
1985, p. 130). Ocorreu uma desqualificação da morte e com ela o poder
estabelece agora seus pontos de fixação sobre a vida e seu desenrolar. A
morte se torna o limite, o ponto mais privado, que escapa ao poder; o que
justificaria o interesse sociológico crescente pelo suicídio ao longo do século
XIX – o direito individual e privado de morrer.
Este poder sobre a vida se desenvolveu a partir do século XVIII, sob
duas formas, que não são antitéticas e sim polos que se interligam por um feixe
intermediário de relações – o poder disciplinar e, um pouco mais tarde, a
biopolítica. Ambos se desenvolvem, de início, em direções diversas, até que,
no século XIX, passam a se articular, formando uma grande tecnologia de
poder, na qual o poder tem como função mais elevada não o matar, mas o
investir sobre a vida, de cima a baixo. A disciplina sobre o corpo dos indivíduos,
em um processo de docilização, de adestramento; a biopolítica como a
112
54
Segundo Agamben (2005b), o dispositivo pode ser compreendido como um conjunto
heterogêneo que envolve, virtualmente, qualquer coisa, e que compreendido a partir de sua
origem grega oikonomia, administração ou gestão, significa “um conjunto de práxis, de
saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e
orientar, em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os
pensamentos dos homens” (pg.12). A disciplina, então, é um modo de subjetivação, e, na visão
de Agamben, também de de-subjetivação.
115
e da disciplina” (p.14).
São técnicas complementares, embora por vezes sejam antagônicas-
enquanto a disciplina não deixa escapar nada, se ocupa de todos os detalhes,
até o mais ínfimo, não permitindo o laissez-faire, o dispositivo de segurança
não é o panóptico, já que ele deixa fazer, o que não significa, obviamente, fazer
tudo; se a disciplina e o sistema legal funcionam na lógica binária do permitido
e obrigatório e do permitido e do proibido na técnica, a segurança é uma
reação a uma dada realidade.
Deste modo, o aparato legal, e o correlato sistema judiciário, e a
disciplina, a individualização dos corpos por meio do seu controle espacial, não
deixam de existir com o advento dos dispositivos de segurança. Eles passam a
coexistir com uma nova técnica, que os integra e que é exercida em um outro
nível, por meio de instrumentos totalmente distintos. E o instrumento específico
da sociedade de segurança é a biopolítica ou biopoder.
3.1.2- A biopolítica
57
“Biopolitics deals with the population, with the population as political problem, as a problem
that is at once scientific and political, as a biological problem and as power’s problem”.
119
Por um lado, dizer que o soberano tem o direito de vida e morte quer
dizer, basicamente, ou que ele pode matar ou deixá-los viver, ou em todo caso
que vida e morte não são um fenômeno natural ou imediato, que se situam fora
do campo do poder. De acordo com Foucault (2003), levando este argumento
um pouco mais além, chega-se ao ponto paradoxal no qual, em termos de
relações com o soberano, o sujeito está, pelo direito, nem morto nem vivo. O
sujeito é, desta forma, do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e é graças
ao soberano que o sujeito tem o direito de estar vivo ou, possivelmente, o
direito de ser morto. Em todo o caso, a vida e a morte dos sujeitos se tornam
direitos apenas como resultado da vontade do soberano. E é este o paradoxo
teórico, um desequilíbrio prático.
Assim, segundo Patton (2011), enquanto na teoria o soberano tem poder
de vida e morte sobre o sujeito, na prática este poder é sempre exercido de um
58
“The phenomena addressed by biopolitics are, essentially, aleatory events that occur within a
population that exists over a period of time”.
59
You know that in the classic theory of sovereignty, the right of life and death was one of the
sovereignty’s basic attributes. Now the right of life and death is a strange right. What does
having the roght of life and death actually mean?
120
60
Sovereign power’s effect on life is exercised only when the sovereign can kill. The very
essence of the right of life and death is actually the right to kill: it is at the moment when the
sovereign can kill that he exercises his right over life. It is essentially the right of the sword.
121
a novidade é
que o fato de viver não é mais esse sustentáculo
inacessível que só emerge de tempos em tempos, no
acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no
campo de controle do saber e da intervenção do poder
(FOUCAULT, 1985, p. 134).
61
“Life has eclipsed death”.
124
64
Na crítica de Gómez (2010), esta articulação não é clara em Foucault, sendo que a
biopolítica continua marcada pelo modelo bélico nietzscheano. Além disto, ele não explica de
que modo e sob quais circunstâncias históricas surge a população como novo domínio de
intervenção e reflexão. É por este motivo que Foucault teria privilegiado o conceito de
governamentalidade em detrimento da biopolítica.
65
Schmitt já não o teria feito? Vide item 4.4.1 deste trabalho.
126
66
“National-socialism is nothing but applied biology”.
67
Segundo Arendt (2006), o que diferencia uma dominação totalitária de uma ditadura não é
apenas o fato de a primeira ser baseada no terror (e não apenas na violência), exercendo uma
dominação total sobre os indivíduos, mas por se voltar tanto contra seus inimigos como contra
seus amigos e auxiliares. O clímax do terror se daria, justamente, quando este Estado policial
começa a derrotar seus “próprios filhos”.
127
69
Neste sentido, vide a análise schmittiana do Leviatã no item 2.3 deste trabalho.
70
“(...) an artificial man, is no more than the coagulation of a certain number of distinct
individualities that find themselves united by a certain number of the State’s constituent
elements”.
129
a noção do Estado de direito. Estado este criado não só para fazer cumprir o
contrato social, mas também submetido a este mesmo contrato; Locke
desenvolve sua teoria em torno do controle do poder Executivo e da afirmação
dos direitos do homem, que são invioláveis mesmo pelo poder soberano. Locke
ajudou a firmar o liberalismo na Europa e influenciou a Revolução norte-
americana e, por meio dos iluministas, também a Revolução Francesa.
Segundo Locke (1994), o Estado (entendido em seu sentido abstrato,
como ente político-jurídico) teria como origem um pacto ou contrato social
realizado entre os indivíduos com o objetivo de defender a vida (esta, aliás,
seria a primeira propriedade) e a propriedade dos cidadãos, sendo esta última
um direito natural outorgado por Deus. Este teria oferecido toda a terra, junto
com seus frutos, a todos os homens indiscriminadamente, constituindo posse
comum de todos os seus filhos, que viviam neste mundo criado por Ele, e com
direito irrestrito ao seu usufruto. O que diferenciaria a posse de cada um seria o
trabalho aplicado sobre a terra para cultivá-la e obter os frutos nela
encontrados.
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam
comuns a todos os homens, cada homem tem uma
“propriedade” em sua própria “pessoa”; a esta ninguém
tem qualquer direito senão ele mesmo. Podemos dizer
que o “trabalho” do seu corpo e a “obra” das suas mãos
são propriamente seus. Seja o que for que ele retire do
estado que a natureza lhe forneceu e no qual a deixou,
fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se lhe
algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-se
propriedade dele (LOCKE, 1994, p.198).
71
Em Locke (1994), a propriedade é entendida em um sentido mais amplo, incluindo o direito à
vida e à liberdade, além dos bens.
72
Vide Marshall,1967 e Vieira, 2002.
131
73
Segundo Marshall (1967), o primeiro direito civil básico foi o de trabalhar.
133
74
Neste ponto, a crítica de Schmitt à democracia representativa tem uma influência fortemente
rousseauniana. Vide itens 2.4 e 2.7.3 desta tese.
136
eficácia.
É preciso, segundo Foucault (2008b), partir de uma outra perspectiva, a
histórico-estrutural, ou seja, da análise das tecnologias de controle que
instituem a subjetividade e as formas de controle que são definidas, por um
lado, pelo mercado e, por outro, pelo Estado e suas burocracias. Não é, desta
forma, uma doutrina mais ou menos coerente, mas uma forma de reflexão
crítica sobre uma prática governamental anterior, a Razão de Estado, e que,
aparentemente, surgiu na Inglaterra (FOUCAULT, 2008a).
Neste contexto, a liberdade não é algo particularizado no tempo e no
espaço, mas uma relação entre governantes e governado. No mesmo sentido,
afastando de uma compreensão jurídica do poder, a segurança deve ser
entendida em termos de práticas localizadas e a liberdade em termos de
práticas discursivas e não discursivas. São, assim, as práticas que definem os
limites da liberdade em termos de segurança.
Segundo Jabri (2010), não há, então, qualquer fundamento em defender
que certos contextos ou contingências demandam mais liberdade ou que a
liberdade possa ser limitada em condições de necessidade. Antes, o
liberalismo, como uma arte de governo, gera a liberdade, mesmo quando
assume que um certo número de liberdades realmente existe. É uma arte que
diz respeito ao gerenciamento da liberdade e de sua organização; e o governar
pela liberdade e pela segurança não deve ser construído em termos opostos,
mas que mutuamente se reforça.
Nas palavras de Foucault (2008b), “o liberalismo produz a liberdade,
mas este mesmo ato estabelece a fundação de limitações, controles, formas de
coerção, e obrigações dependendo das ameaças” (p. 64).
Assim, o liberalismo deve ser compreendido como uma forma de
governamentalidade, cujo paradoxo está no fato da produção do sujeito livre
dentro da economia estar condicionada ao governo da totalidade da vida. A
sociedade liberal deve, deste modo, ser entendida como um aparato de
segurança total, um governo das populações que inclui tecnologias
direcionadas aos indivíduos e às populações com o objetivo de moldar
expressões, identidades, gostos e mesmo concepções do que deve ser
governado (JABRI, 2010).
Neste contexto, o governo da vida ou biopolítica é a competência do
137
75
“An architecture, in other words, that might involve agencies working locally, nationally, and
transnationally, constituting what might be referred to an international civil service at large”.
76
“self-governing self-capable of self-discipline and self-scrutiny, all within the limits of
governamentality itself”.
77
Segundo Huysmans (2006), a teoria de Schmitt é existencialista, constituindo uma
ultrapolítica. Esta seria caracterizada pela projeção global de um Estado no campo
internacional – uma tentativa de impor sua superioridade ideológica, espiritual, cultural ou racial
globalmente. A ultrapolítica foi praticada pelos nazistas no período entre guerras e na Segunda
Guerra, e hoje é praticada pelos EUA.
138
78
(…) the law is born of real battles, victories, massacres, and conquests which can be dated
and which have their horrific heroes; the law was born in burning towns and ravaged fields. It
was born together with the famous innocents who died at break of day. (…). Law is not
pacification (…) There is no such thing as a neutral subject. We are all inevitably someone’s
adversary (…) It is interested in rediscovering the blood that has dried in the codes.
141
79
Frequentemente, Foucault usa os termos arqueologia e genealogia de maneira indistinta.
143
rebanho e, para tanto, é necessário que ele ensine, de maneira global e com
seu exemplo, constituindo uma direção da conduta cotidiana. Ele deve
observar e vigiar o seu rebanho a todo momento e de maneira contínua,
construindo sobre esta vida cotidiana observada um saber sobre o
comportamento das pessoas e sua conduta, um discurso de verdade. É, antes
de tudo, uma direção de consciência, não episódica e circunstancial, mas
permanente, que vai além do controle, constituindo-se em uma dependência,
principalmente pelo uso do exame de consciência. Exame este, de si e dos
outros, que revelará a verdade oculta da alma e através do qual será exercido
o poder do pastor e a obediência individual.
Assim, é o pastorado cristão,
(...) uma forma de poder que, pegando o problema da
salvação em sua temática geral, vai introduzir no interior
dessa relação global toda uma economia, toda uma
técnica de circulação, de transferência, de inversão dos
méritos, e é isso seu ponto fundamental. (...) vai instaurar
um tipo de relação de obediência individual, exaustiva,
total e permanente. (FOUCAULT, 2008b, p. 241-242).
80
Segundo Jabri (2010), esta é uma visão realista, próxima da de Schmitt, que não se conecta
com a leitura de Foucault sobre o liberalismo, na medida em que o Golpe de Estado é a
exceção, a violência justificada em termos de necessidade, quando o Estado se depara com
um perigo para sua sobrevivência. Na leitura foucaultiana do liberalismo, de acordo com a
autora, a violência não é uma exceção, mas parte constitutiva da governamentalidade liberal.
148
estatística. Esta nada mais é que o conhecimento das forças e dos recursos de
um dado Estado em um determinado momento; é, portanto, um conhecimento
técnico.
O elemento população ainda não estava presente nesta arte de
governar; nela há apenas o público, a opinião pública, mas, no final do século
XVII e ao longo do XVIII, ele vai ser elaborado por meio de um aparelho
utilizado para fazer a Razão de Estado funcionar – a polícia.
Mas também não se trata da polícia no significado atual; no século XVII,
ela vai significar um conjunto de mecanismos através dos quais é possível
aumentar a força do Estado, mantendo, ao mesmo tempo, a sua ordem. Ela
será o cálculo e a técnica que irão possibilitar o estabelecimento de uma
“relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem
interna do Estado e o crescimento de suas forças” (FOUCAULT, 2008b, p. 421).
E a manutenção desta ordem interna é essencial ao equilíbrio europeu.
Através da Razão de Estado, será criado um mundo de uma pluralidade de
Estados que terão como finalidade apenas eles mesmos. E todo Estado
buscará o desenvolvimento pleno de suas forças e o domínio sobre outros
Estados, não na forma de um Império, que busca dominar territórios, mas da
concorrência e da composição das forças estatais em alianças políticas e
provisórias. É a tentativa de desenvolver as próprias forças sem uma ruptura
no conjunto, ou seja, mantendo um equilíbrio das forças; essa junção é o que
mais tarde, de acordo com Foucault (2008b), vai se chamar de mecanismo de
segurança.
Para o desenvolvimento destas forças e a manutenção do equilíbrio das
relações, ou, em outras palavras, do equilíbrio europeu, os Estados vão
desenvolver técnicas militares (como o exército permanente e a guerra) e
diplomáticas (como tratados e organizações). O objetivo é que, na Europa
plural, o Estado mais forte tente ditar sua lei a um mais fraco. É a busca pela
Balança da Europa, cujo resultado esperado é a paz.
É a primeira vez, segundo Foucault (2008a), que a Europa se percebe e
se apresenta como uma unidade, como um sujeito econômico, que vê o mundo
como seu domínio econômico. Neste contexto, de abertura de um mercado
mundial, há uma diferença de status e de natureza entre a Europa e o resto do
mundo, “os europeus é que serão os jogadores, e o mundo, bem, o mundo
149
será o que está em jogo. O jogo é na Europa, mas o que está em jogo é o
mundo” 81 (FOUCAULT, 2008a, p. 77).
E a polícia, ao buscar o crescimento das forças do Estado com ordem
interna, terá, como objetivo principal, o próprio equilíbrio europeu, já que é
necessário que o desenvolvimento entre as polícias estatais seja paralelo.
Nesta perspectiva, o instrumento comum vai ser a estatística. É necessário
saber os recursos, a população, a produção, o exército, o comércio, as
possibilidades e virtualidades do próprio Estado, bem como conhecer os dados
(alguns mantidos em sigilo em nome da Razão de Estado) dos outros Estados.
O que interessa à polícia é a atividade do homem, mas apenas aquelas
que têm relação com o Estado e o seu desenvolvimento. A polícia vai procurar,
então, integrar as atividades do indivíduo ao Estado, como também estimular,
determinar, orientar e regular esta atividade de modo que ela seja útil ao
Estado. É a criação da utilidade estatal, por meio da polícia, que, para atingir
seus objetivos, ou seja, para ter homens que possam trabalhar, deverá se
ocupar: 1- com o número de homens, pois disto depende a força estatal; 2-
necessidades da vida e, em especial, as imediatas como a subsistência; 3-
saúde cotidiana; 4- zelar para que os homens não fiquem ociosos; 5- propiciar
a circulação das mercadorias.
Assim, esta regulação da atividade humana pela polícia vai se ocupar,
em termos gerais, do problema da coexistência dos homens e da coexistência
densa. São questões que dizem respeito à cidade e ao mercado, constituindo
uma polícia essencialmente urbana e mercantil (FOUCAULT, 2008b). Ela foi
pensada para a urbanização do território, para sua transformação em cidade,
fazendo com que, em sentido estrito, policiar e urbanizar fossem a mesma
coisa.
Os mecanismos de ação e intervenção da polícia serão parecidos com o
do Judiciário embora não se confundam com o mesmo – serão o regulamento,
o decreto, a instrução e a proibição. Ela deve se ocupar perpetuamente dos
detalhes, criando um mundo do regulamento que pertence ao mundo da
disciplina, da tentativa de regulamentação geral dos indivíduos no território do
81
Esta relação entre a Europa e o resto do mundo foi bem desenvolvida por Schmitt (2005a,
1952,1962) em “O Nomos da Terra”, “Terra e Mar” e “A ordem do mundo depois da Segunda
Guerra Mundial”.
150
trabalho numerosa e dócil, tal qual se encontra no Estado de polícia. Para eles,
é necessário uma certa população, ou seja, nem pouco nem muito numerosa;
ela não é um valor absoluto, portanto, mas relativa. Há um número de pessoas
desejável em um determinado território em função de seus recursos e do
consumo necessário para sustentar os preços e a economia. E este número vai
ser alcançado também de maneira espontânea, sem regulação estatal.
Os economistas vão defender ainda a necessidade da concorrência, não
entre os Estados, como no modelo anterior, mas entre particulares. Para se
obter o preço justo, deve-se deixar que os indivíduos busquem o lucro máximo,
permitindo que a coletividade e o Estado embolsem, em certa medida, o ganho
da conduta dos particulares. Neste sentido, o bem de todos não vai depender
da regulamentação do Estado, da polícia, mas do bem de cada um, da busca
pelos interesses individuais.
É o nascimento, no século XVIII, do homo oeconomicus, o sujeito de
interesses que é irredutível ao sujeito de direitos. O sujeito de direito é aquele
que aceita renunciar a seus direitos naturais, quando aceita uma limitação e ou
transferência dos mesmos (teoria do contrato); o sujeito econômico, entretanto,
tem uma lógica diferente, já que o mercado nunca pede a ele a renúncia de
seus interesses. A multiplicidade de interesses torna o homo oeconomicus não-
totalizável, enquanto o sujeito de direitos pode ser totalizado na unidade
política, por meio da figura do soberano.
O sujeito de interesse, por conseguinte, funciona “em uma espécie de
mecânica bizarra (...) no interior de uma totalidade que lhe escapa, mas funda
a racionalidade das suas opções egoístas” (FOUCAULT, 2008a). E esta
mecânica bizarra, quando os indivíduos buscam seus interesses e, não se
sabe como (quase uma providência), produzem o bem comum, é o que Adam
Smith chamou de mão invisível. Para alcançar o bem de todos, não se deve
buscá-lo, uma vez que o mesmo não pode ser calculado em um estratégia
econômica, e este é o princípio da invisibilidade (FOUCAULT, 2008a).
Como consequência política, é necessário, então, deixar cada um fazer
(laissez-faire), sem a intervenção ou a criação de obstáculos por parte do
governo. O soberano, o governo, é necessariamente ignorante, no sentido em
que é impossível a ele conhecer a totalidade do processo econômico. É uma
desqualificação do soberano político pela afirmação da inexistência do
153
sociedade política (no que não difere de Hobbes). A partir da segunda metade
do século XVIII, este conceito vai se transformar, adquirindo a acepção de um
conjunto, de uma síntese espontânea, no qual os indivíduos são ligados por
sentimentos, simpatias, instinto, compaixão, ou o que Foucault (2008a)
denominou de “interesses desinteressados”. É mais ampla que o egoísmo, mas
nela o vínculo econômico, dissociativo, também encontra seu lugar,
ameaçando sua existência ao introduzir um desequilíbrio. E, embora não se
confunda com a sociedade política, é a matriz permanente do poder político,
pela formação espontânea de vínculos de fato entre os indivíduos, e na qual
alguns terão uma supremacia natural sobre os outros. “Alguns vão dar sua
opinião. Outros vão dar ordens. Uns vão refletir, outros vão obedecer”
(FOUCAULT, 2008a, p. 413).
É a sociedade civil que obriga o liberalismo a permanentemente se
questionar se não governa demais. Assim, nesta razão governamental crítica,
que surge a partir da economia política, “Não é ao abuso do soberano que se
vai objetar, é ao excesso de governo” (FOUCAULT, 2008a). É a questão da
frugalidade do governo como questão central do liberalismo.
Portanto, para que este governo seja bom, ou seja, capaz de realizar
seus objetivos, é necessária uma limitação, que é de fato e não de direito,
geral, interna e que vai ser um limite à ação do governo não por meio da
demarcação nos súditos (liberdade reservada e submissão consentida), mas
no campo da própria prática governamental, no estabelecimento do que pode
ou não ser feito, da agenda e da non agenda. O liberalismo é, assim, uma
tecnologia de governo que busca sua própria limitação, uma autolimitação, na
medida em que está ligada à especificidade dos processos econômicos
(FOUCAULT, 2008a).
E, neste contexto, segundo Gómez (2010), em Foucault, a sociedade
civil não é uma realidade independente, mas o correlato da tecnologia liberal de
governo, uma objetivação histórica gerada a partir de uma
governamentalização; ela é o campo de intervenção no qual se pode governar,
ao mesmo tempo, os interesses individuais e os sociais, no qual a justiça é
uma consequência da liberdade.
A sociedade civil não é uma ideia filosófica. A sociedade
civil é, a meu ver, um conceito de tecnologia
156
próprio liberalismo. Com a sociedade liberal, surge uma nova arte de governo,
uma nova racionalidade governamental, que tem por objeto a massa, a espécie
humana, o público, a população. Se a sociedade disciplinar age sobre os
corpos, a sociedade da segurança age sobre o conjunto da sociedade, na vida
dos homens, nos seus hábitos, costumes, comportamentos, crenças, opiniões.
A primeira é, portanto, centrípeta – o indivíduo, isolado em sua “cela”, que é
visto sem poder ver, que é o objeto de uma informação, mas não o sujeito de
uma comunicação; e a segunda, que é centrífuga – que amplia o horizonte
físico e mental (MATTELART, 2008).
A disciplina é essencialmente centrípeta (...)O na medida
em que isola um espaço, determina um segmento. A
disciplina concentra, centra, encerra. O primeiro gesto da
disciplina é, de fato, circunscrever um espaço no qual
seu poder e dos mecanismos do poder funcionarão
plenamente e sem limites. (...) os dispositivos de
segurança (...) tendem perpetuamente a se ampliar, são
centrífugos. Novos elementos são o tempo todo
integrados. (...) Trata-se, portanto, de organizar ou, em
todo caso, de deixar circuitos cada vez mais amplos se
desenvolverem (FOUCAULT, 2008b, p.59).
82
“a shift away from normative or metaphysical renditions on the subject, or even the idea that
liberty is somehow a product of the sovereign edict – you will be free.”
161
Escola de Chicago. Em ambas, o autor vai perceber uma “fobia do Estado” 83,
compartilhada pelos liberais clássicos, que se opõe de maneira direta às
políticas de welfare implementadas nos Estados Unidos da América (New Deal)
e na Europa (Welfare State).
O Estado social, com seu intervencionismo e tutela dos indivíduos, seria,
para os neoliberais, um retorno perigoso à Razão de Estado, que os liberais
clássicos haviam tentado superar, gerando uma cultura da dependência.
No entanto, como ressalta Foucault (2008a), o neoliberalismo não é
simplesmente uma tentativa de retorno ao liberalismo clássico, como formulado
nos séculos XVIII e XIX. Não se trata mais de apenas deixar a economia livre,
com o Estado fazendo seu papel de supervisor, mas de uma nova
racionalidade de governo, que abarca a vida econômica, bem como a vida
social e individual.
O neoliberalismo é, na análise foucaultiana, um liberalismo positivo, ou
seja intervencionista. Assim, esta nova racionalidade não vai se situar na lógica
do laissez- faire, mas sob o “signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma
intervenção permanente” (FOUCAULT, 2008a, p. 182).
Se o problema dos liberais era abrir um espaço livre que seria o do
mercado, para os neoliberais, o problema é saber como se pode
regular o exercício global do poder político com base nos
princípios de uma economia de mercado. Não se trata,
portanto, de liberar um espaço vazio, mas de relacionar,
de referir, de projetar numa arte geral de governar os
princípios formais de uma economia de mercado
(FOUCAULT, 2008a, p.181)
83
Gómez (2010) afirma que em Foucault também há esta fobia do Estado. Segundo Foucault,
sua crítica ao neoliberalismo não se faz em nome do Estado intervencionista, se afastando do
marxismo, ou mesmo a partir do Estado como um universal. Neste sentido, o neoliberalismo
não deve ser compreendido como um fenômeno de carência, de retirada do Estado.
164
SEGUNDA PARTE
84
Não se trata propriamente de um sistema, já que a obra de Agamben é usualmente
fragmentária, mas de explicitar seu método e suas influências neste campo – Foucault e
Benjamin.
172
85
“something like an example, an exemplar, a historically singular phenomenon”.
86
Vide item 3.1.3 desta tese.
173
87
Para Gómez (2010), é possível falar em uma filosofia política em Foucault, mais
especificamente em uma filosofia das tecnologias políticas, uma vez que os seminários de 78 e
79 oferecem uma reflexão, não normativa, sobre o modo como a política implica
necessariamente no começo de uma racionalidade técnica.
175
88
Vide item 2.7.1 desta tese.
89
Vide item 4.4.1 desta tese.
176
90
Vide item 2.8.1 desta tese.
91
Lo fundamental de este imperio cristiano es el hecho de que no sea un imperio eterno, sino
que tenga en cuenta su propio fin y el fin del eón presente, y a pesar de ello sea capaz de
poseer fuerza histórica. El concepto decisivo de su continuidad, de gran poder histórico, es el
de Kat-echon.
177
quanto Peterson são contrários a esta fórmula liberal – o primeiro por ela ser
base da democracia liberal, que ele tanto critica92, e o último porque ela define
a teologia judaico-helenística que é o fundamento da teologia política que ele
nega.
Esta aversão de Schmitt pela separação entre reino e governo vai
aparecer inúmeras vezes em sua obra, e, em especial, em “Estado,
Movimento, Povo”93. Nela, Schmitt (2001) afirma que diante do soberano que
não governa, da República de Weimar, Hitler assume não só uma função de
governo, Regierung, mas uma nova figura do poder político, Führung, a
liderança. E é, neste sentido, que de acordo com Agamben (2011), o jurista
alemão vai realizar uma genealogia do governo dos homens, antecipando as
preocupações de Michel Foucault nos cursos do Collège de France.
Do mesmo modo que Foucault, Schmitt percebe o paradigma do
conceito moderno de governo no Pastorado da Igreja Católica – guiar não
significa apenas comandar, mas pastorear. A diferença entre o Führer e o
pastor estaria no fato de haver uma absoluta igualdade entre aquele e o seu
séquito, uma identidade étnica-racial, não havendo, deste modo, um caráter
transcendente em relação ao rebanho. É, portanto, a secularização do
paradigma pastoral-governamental pelo conceito de raça (SCHMITT, 2001) 94.
Conceito este que estará presente em “Em Defesa da Sociedade” de Foucault,
na qual ele afirma que o racismo se tornou o dispositivo por meio do qual o
poder soberano é reinserido no biopoder (AGAMBEN, 2011).
Em “Segurança, Território, População”, Foucault95 se dedica a realizar
uma genealogia da governamentalidade moderna, distinguindo três modos
históricos e coexistentes de poder: o Estado soberano territorial e normativo, o
sistema disciplinar e os contemporâneos dispositivos de segurança, do governo
dos homens. Estes três modos se relacionam e, em determinados momentos,
se sobrepõem uns aos outros. Assim, o declínio da função soberana é também
o nascimento da noção de população e a primazia dos dispositivos de
segurança, e esta nova governamentalidade é, em uma fórmula já utilizada por
92
Vide itens 2.4 e 2.7.3 deste trabalho, sobre a crítica schmittiana à democracia liberal.
93
Vide item 2.9 deste trabalho.
94
Para a utilização do conceito de raça e identidade étnica em Schmitt, vide itens 2.4 e 4.4.1.
95
Vide itens 3.2.2 e 3.2.3 deste trabalho.
182
96
Para a análise da função da aclamação na teoria schmittiana, vide item 2.4 deste trabalho.
185
oikonomia.
A glória, no sentido bíblico originário, kabod, continha uma ideia de
soberania e de senhorio de Deus, se referindo à aparição de YHWH97, com o
Reino e o Juízo Final. No judaísmo, a glória de Deus significa tanto sua
essência quanto sua glorificação; é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo,
glória e glorificação, realidade divina e práxis humana.
Já no Novo Testamento, kabod é traduzido pelo termo grego doxa, ou
glória, mas assume a forma de uma economia trinitária, estabelecendo, assim,
uma relação essencial entre doxa e oikonomia. É agora a glorificação recíproca
entre o Pai e o Filho (e, no sentido mais geral, também o Espírito Santo),
constituindo uma economia da glória, presente no Evangelho de São João.
Segundo o apóstolo, ao Filho coube uma economia da salvação, que é tanto a
obra de Cristo como também uma glorificação do Filho pelo Pai, em uma
circularidade. Se em João, a ênfase está na glorificação recíproca, na
economia trinitária, em Paulo, na Segunda Epístola da Carta aos Coríntios,
está na redenção messiânica, na irradiação da glória do Pai sobre o Filho e
todos os membros da comunidade messiânica.
Em suma, para Agamben (2011), há apenas uma economia, a economia
da glória na qual se conciliam a trindade econômica, de práxis salvífica, e a
trindade imanente, de substância divina, do ser; na qual teologia e economia se
encontram e o Reino e a Glória parecem coincidir.
Entretanto, há na glória uma dissimetria fundamental – apenas a práxis
pode ser completada, tendo um fim após o Juízo Final. Após o fim dos tempos,
a hierarquia e os ministérios angélicos são desativados; não há governo no
paraíso, apenas glória, uma vez que a trindade imanente é eterna, o ser que
sobrevive a sua economia. É a própria inoperosidade da vida humana como
essência, representada pelo sabatismo judaico.
Deste modo, em última instância, a doxologia se refere ao ser de Deus e
não a sua economia. Mas se o Reino é o que sobra quando se retira o Governo
e este é o que resta na autodestruição do Reino, então, Reino e Glória se
glorificam e se produzem mutuamente. São os dois polos da máquina
governamental.
97
Deus no hebraico antigo. Esta escrita não utilizava vogais.
187
98
Mas porque, se pergunta Agamben (2011), o poder precisa da
inoperosidade e da glória? Para a teologia, a resposta está na vida eterna, que
tem um sentido não apenas temporal, mas significa uma qualidade essencial
da vida, a transformação que a mesma sofre no mundo por vir. Em Paulo, é a
condição escatológica dos justos, a vida no tempo messiânico, no qual todas
as condições jurídicas e comportamentos sociais são desativados, ou seja, o
momento no qual nossa vida é tornada inoperosa.
A vida messiânica é a impossibilidade da vida coincidir
com uma forma predeterminada, a revogação de todo
bios para abri-lo para a zoé tou Iesou. E a inoperosidade
que aqui acontece não é a simples inércia ou repouso,
mas é, ao contrário, a operação messiânica por
excelência (AGAMBEN, 2011, p. 271).
99
Vide item 2.5 deste trabalho.
189
100
Vide o capítulo 2 deste trabalho, sobre o pensamento de Carl Schmitt, e, em especial, os itens 2.5 e
2.6.
190
101
O termo ban foi utilizado por Jean Luc Nancy e, posteriormente, reformatado por Agamben
em “Homo Sacer”. Segundo Nancy (1983), ban é a ordem, a prescrição, o decreto, a
permissão, e o poder que detém a livre disposição. “Abandonner” (à bandon, ou seja, ban) é
ceder, se entregar a tal poder soberano e também a sua exclusão. Aquele que é banni,
excluído, o é em relação à lei; é colocado à margem de sua jurisdição. A lei da exclusão exige
192
que a lei se aplique se retirando; ela é a lei que faz a lei, uma ordem absoluta e solene que não
prescreve outra coisa que não a exclusão. Agamben desenvolveu este conceito mais como
uma questão de soberania e menos como uma questão de normalização ou exclusão. Para
Mills (2004), Nancy retirou este termo da obra de Martin Heidegger.
193
102
Vide o capítulo 2 desta tese, sobre Carl Schmitt e, em especial, os itens 2.7 e 2.8.
194
103
É importante salientar que, para Agamben (2004a), a ampliação dos poderes
governamentais e, em especial, a atribuição ao Executivo do poder de promulgar decretos com
força de lei, o chamado ‘plenos poderes’, é apenas uma das possíveis possibilidades de ação
do Executivo durante o estado de exceção, mas não se confunde com ele.
104
Vide itens 2.4 e 2.5 deste trabalho.
195
105
Para o conceito de ditadura em Schmitt, vide item 2.6.
196
106
George W. Bush comumente referia a si mesmo como comandante-em-chefe. O atual
presidente norte-americano, Barack Obama, adota o mesmo discurso – “Mas talvez o problema
mais profundo que cerca a entrega deste prêmio a mim seja o fato de que sou comandante-
em-chefe de um país que se encontra no meio de duas guerras (...)”. Obama, em 10 de
dezembro de 2009, durante o recebimento do Prêmio Nobel da Paz. Disponível em
www.ipoom.com.br.
197
107
Agamben, como afirma em “Signatura Rerum”, não se considera um historiador. Vide
Agamben, 2009.
198
de tempo e de espaço.
Como observa Bigo (2006a), apesar de adotar uma perspectiva
foucaultiana em suas análises, Agamben, ao realizar a genealogia do estado
de exceção, o faz de maneira positivista, como se fosse um fenômeno
homogêneo, como se o discurso fosse apenas uma questão de semântica e
não de práticas, criando a ilusão de um “objeto natural” que esconderia a
heterogeneidade das práticas.
Portanto, para Bigo, o estado de exceção não é um programa e nem
uma atualização através da história de uma ideia do político. Ele é o resultado
específico, na sua forma atual, de inúmeros fatores e deve ser analisado não
como uma realidade atemporal e anacrônica, mas a partir de “son milieu, de
son pratiques” (BIGO, 2006a). Assim, no lugar de uma teoria geral do estado
de exceção ao longo da história ocidental, Bigo defende uma análise das
particularidades das práticas em momentos e sociedade determinadas. Para
ele:
Os estados de exceção decretados pelos juízes, pelos
políticos ou militares são diferentes formalmente (se são
declarados ou não), na meta (se são limitadas ou não)
que eles se atribuem, em seu impacto (que afetam os
direitos do homem, o jus cogens, a liberdade, a
integridade da vida) (BIGO, 2006a, p. 12, tradução
nossa108).
108
Les états d’exception decretes par les juges, les politiques ou militaires sont différents
formellement (qu’ils soient declares ou non), dans le but (limité ou non) qu’ils s’assignent, dans
leur impact (qui affectent les droites de l’homme, les jus cogens, la liberté, l’intégrité de la vie).
199
Primo Levi109
109
Levi, 1988, p. 83-84.
110
In it, the state of exception, which was essentially a temporal suspension of the state of Law,
acquires a permanent spatial arrangement that, as such, remains constantly outside the normal
state of law.
200
111
Bigo (2006a, p. 6) faz uma crítica a Agamben por sequer mencionar as práticas coloniais
como uma forma de estado de exceção, além de não realizar uma análise da relação entre
exceção, exclusão e práticas coloniais (estrangeiro e migrante). Entretanto, Agamben faz uma
referência às guerras coloniais como origem dos campos em Means without end. Vide
Agamben, 2000.
201
uma ameaça por sua própria existência. De acordo com Rahola (2007),
independente da denominação que se use, como zona de proteção temporária
ou centro de refugiados (para refugiados), centros de identificação (para os que
requerem asilo), centro de detenção temporária (para migrantes irregulares) ou
campo de internação (para prisioneiros), o que se destaca nesta forma-campo
é o caráter administrativo e supostamente temporário das detenções.
O campo é também o território da produtividade - no qual o poder se
produz e também produz a diferença, gerando os corpos dos internados.
Corpos estes que são disciplinados, assujeitados, administrados e tornados
clandestinos (RAHOLA, 2007). Sujeitos que vivem uma existência em trânsito,
que se reduz a uma simples reprodução biológica e a uma morte possível, cuja
manifestação mais extrema é o campo de extermínio.
É na Primeira Guerra Mundial que, no Ocidente, os campos serão
importados das colônias para os civis, sob a forma específica de estruturas de
detenção para prisioneiros de guerra e de campos de trabalho, em um primeiro
momento, e, em seguida, o local no qual eram internados os civis de
nacionalidade estrangeira. Nas décadas de 20 e 30, a Europa “adota” o cenário
colonial dos campos, inscrevendo a catástrofe de Auschwitz na história, o
espaço da mais notável experiência biológica e social com e do homem, na
definição de Levi (1988).
No caso específico da Alemanha, a base jurídica para o internamento
não era o direito comum, mas um estatuto jurídico de origem prussiana (lei
sobre estado de sítio, de 04 de junho de 1851), que permitia a detenção dos
indivíduos, sem considerar qualquer comportamento criminal relevante, como
uma medida cautelar, preventiva, exclusivamente para evitar um perigo para a
segurança do Estado. Este estatuto – Schutzhaft – foi a base para os primeiros
campos de concentração alemães, criados não pelos nazistas, mas pelos
governos socialdemocratas. Em 1923, os socialdemocratas internaram, com
base na Schutzhaft, militantes comunistas, e, no campo de Cottbus-Sielow,
judeus orientais, constituindo o primeiro campo para judeus do século XX
(AGAMBEN, 2007).
O fundamento da Schutzhaft era a declaração do estado de sítio ou de
202
exceção, o que ocorreu inúmeras vezes entre 1919 e 1924 112. O mais curioso,
no entanto, é que a base deste estatuto jurídico, as leis prussianas de 1851,
visava à proteção da liberdade dos indivíduos contra a suspensão da lei que
caracteriza o estado de exceção. Deste modo, o campo não nasce de uma lei
ordinária ou da transformação e desenvolvimento das leis sobre prisão; o
campo nasce fora do estado de exceção e da lei marcial (AGAMBEN, 2000).
Quando os nazistas chegaram ao poder, o estado de exceção foi
promulgado por Hitler logo que assumiu o governo, por meio do Decreto para a
Proteção do Povo e do Estado, em 28 de fevereiro de 1933. O decreto teria
sido uma reação ao incêndio no Reichstag (Parlamento alemão) por militantes
comunistas e resultou na suspensão de garantias constitucionais e na
supressão das liberdades individuais. É importante salientar que em nenhum
momento o Decreto utilizou a expressão ‘estado de exceção’, embora fosse, na
prática, a decretação do mesmo, com base no art. 48 da Constituição de
Weimar.
São autorizados, mesmo para além dos limites fixados
pela lei: as restrições e os atentados à liberdade
individual, ao direito de livre expressão, à liberdade de
imprensa, ao direito de reunião; também são autorizadas
as violações do segredo de correspondência e do
telefone (Decreto de 28 de fevereiro de 1933)113.
112
A utilização do instituto do estado de exceção se tornou prática em inúmeros Estados
democráticos durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando se ampliaram os poderes do
Executivo em detrimento do Legislativo e do Judiciário (AGAMBEN, 2004a).
113
Disponível em www.slideshare.net.
114
Atualmente, o estado de exceção está previsto na Constituição alemã, tendo sido
introduzido por uma lei de 24 de junho de 1968, como um mecanismo de defesa da democracia
(AGAMBEN, 2004a).
203
115
Vide os itens 2.8 e 3.3 desta tese.
116
Vide o capítulo 3 desta tese.
206
118
Vide o item 3.1.2 desta tese.
119
We have, then, in Nazi society something that is really quite extraordinary: this is a society
which has generalized biopower in an absolute sense, but which has also generalized the
sovereign right to kill. The two mechanisms – the classic, archaic mechanism that gave the
State the right of life and death over its citizens, and the new mechanism organized around
discipline and regulation, or in other words, the new mechanism of biopower – coincide exactly.
208
muçulmanos, nunca em nome próprio. “Os homens são homens enquanto dão
testemunho do não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 125). Contudo, este
testemunho por delegação não tem sentido algum, pois “os submersos nada
têm a dizer, nem têm instruções ou memórias a transmitir. Não têm ‘história’,
nem ‘rosto’ e, menos ainda, ‘pensamento’ ”(AGAMBEN, 2008, p.43). Assim, no
jargão do campo, o intestemunhável tem um nome – Der Muselmann.
Os judeus, como todas as outras minorias que adentraram os campos,
perderam qualquer forma de proteção jurídica. Eles seriam membros do povo
(os excluídos, os que não querem ou não podem ser assimilados) em
contraposição ao Povo (o corpo político) alemão. O extermínio seria uma
forma, biopolítica, de reconstituir esta fratura entre a bios e zoé nas formas de
vida, entre exclusão e inclusão, entre vida nua e existência política
(AGAMBEN, 2000).
O conceito de povo sempre contém uma fratura
biopolítica fundamental. Ele é o que não pode ser incluído
no todo do qual faz parte como também é aquele que não
pode pertencer ao todo no qual está incluído desde
sempre (AGAMBEN, 2000, p.31, tradução nossa120).
120
The concept of people always already contains within itself the fundamental biopolitical
fracture. It is what cannot be included in the whole of which it is a part as well as what cannot
belong to the whole in which it is always already included.
121
É importante ressaltar que outros Estados também adotaram leis que permitiam a
desnacionalização de seus cidadãos, como a França em 1915, para os cidadãos de origem
inimiga; a Bélgica, em 1922, para os que tiveram comportamento antinacional durante a guerra;
a Itália fascista para os que não mereciam a cidadania italiana; a Áustria, em 1933, fez o
mesmo e, finalmente, em 1935, as leis de Nuremberg dividiram os alemães em duas classes
de cidadãos – os que tinham e os que não tinham direitos políticos. Deste modo, a partir da
Primeira Guerra Mundial, a Europa produziu uma massa de apátridas. Vide Agamben (2000,
2010).
211
Homem e do Cidadão (1789) seria ambígua no uso dos dois termos. Cidadão é
quem tem seus direitos protegidos por um poder soberano em um território,
ligando as ideias de nascimento e de nacionalidade122. Deste modo, o Estado-
nação significa o “Estado que faz da natividade, do nascimento (isto é, da vida
nua humana) o fundamento da soberania” (AGAMBEN, 2010, p. 4).
Assim, na passagem da soberania divina para a soberania nacional, o
nascimento, a vida nua natural tornou-se, pela primeira vez, o portador
imediato da soberania. Por uma ficção implícita, o nascimento tornou-se
imediatamente nação. E a figura originária desta inscrição são os direitos
humanos; os direitos dos homens que se tornam desprovidos de qualquer
tutela quando não se é mais possível configurá-los como cidadãos de um
Estado. Os refugiados são homens que perderam qualquer qualidade e relação
específica a não ser o fato de serem humanos, que quebraram a identidade
entre homem e cidadão (AGAMBEN, 2010). Os refugiados modernos são,
segundo Giacóia Jr. (2008), os ban-didos de nossos tempos; as figuras
centrais de nossa história política (AGAMBEN, 2010).
Mas o interno do campo, o deportado, é não só o não cidadão, mas
também o não homem. No momento de sua desnacionalização, o indivíduo é
sacralizado – o homo sacer no lugar do cidadão; a perda de todo o status
político, de toda proteção jurídica, o abandono, que o reduz completamente à
vida nua, a vida puramente biológica, sem nenhuma mediação; ele está aquém
(ou além) do direito, inclusive dos direitos humanos. Assim, o campo se torna o
quarto elemento da trindade nação, Estado e território.
Nesta perspectiva, “O campo é o paradigma do espaço político no ponto
no qual a política se torna biopolítica e o homo sacer se torna indistinto do
cidadão” (AGAMBEN, 2000, p.40, tradução nossa 123 ). Primeiro os campos
europeus de controle de refugiados após a Primeira Guerra, depois os campos
de internação, de concentração e, finalmente, de extermínio.
E este é o ponto de partida para entender o que aconteceu em
Auschwitz. Para Agamben (2000), é acrítico se perguntar como foi possível que
tais atrocidades fossem cometidas contra seres humanos; a questão a se
122
Vide Marshall (1967) e Vieira (2002).
123
“The camp is the paradigm itself of political space at the point in which politics becomes
biopolitics and the homo sacer becomes indistinguishable from the citizen”.
212
125
“what is being captured under the rule of law is first of all the very state of exception”.
126
Hotel perto do aeroporto de Paris-Orly na França, utilizado pelo Ministério do Interior francês
como zona de detenção de estrangeiros ou, nas palavras do governo, como zonas de trânsito
internacional. A detenção (ou, como prefere o governo, retenção) neste hotel, em lugar
separado dos demais hóspedes, foi justificada pela possibilidade dos estrangeiros escaparem
da vigilância da polícia e dos oficiais da imigração. Vide: www.unhcr.org
215
127
Em a “Tatuagem Biopolítica”, Agamben (2004b) afirma que as tatuagens biopolíticas (o
número tatuado no braço, as cores e símbolos nas camisas) surgiram nos campos como uma
maneira mais econômica e efetiva de organizar a inscrição e o registro dos internos. Mas as
técnicas que antes eram utilizadas apenas com as “classes perigosas” se estenderam a toda
humanidade. A humanidade se tornou perigosa. O que está em jogo, portanto, é uma nova
relação biopolítica supostamente normal entre os cidadãos e o Estado; a biometria, os
dispositivos tecnológicos que inscrevem e identificam a vida nua, como as digitais, criaram um
novo estatuto jurídico-político ou simplesmente biopolítico dos cidadãos nos Estados
supostamente democráticos. Sobre este tema, vide Mattelart, 2008.
128
Lógica esta que Foucault já havia percebido – o Estado liberal nasce como uma sociedade
da segurança. Vide item 3.2.3 deste trabalho.
216
129
(...) Power must be understood in the first instance as a multiplicity of force relations
immanent in the sphere in which they operate and which constitute their own organization; as
the process which, through ceaseless struggles and confrontations, transforms strengthens ,or
reverses them; as the support which these force relations find in another, thus forming a chain
or a system, or on the contrary, the disjunctions and contradictions which isolate them from one
another.; and lastly, as the strategies in which they take effect, whose general design or
217
Logo, o poder não é algo que se adquire, não é uma “coisa”, uma
instituição ou uma estrutura, mas uma relação de forças heterogênea, instável,
desequilibrada e tensa. É uma situação estratégica complexa em uma
sociedade em particular, na qual não há um único centro de exercício do poder,
sendo, neste sentido, anônimo. Neste contexto, o poder está (e vem) em todo
lugar, ele é onipresente e trespassa todas as relações sociais; todas as
desigualdades e divisões sociais, sejam em relação ao conhecimento ou ao
sexo, por exemplo, são efeitos imediatos do poder, e conjuntamente, a
condição interna de exercício do mesmo. O poder, portanto, tem um papel
produtivo.
Além disto, a percepção do poder como interdição interpreta toda afronta
ao mesmo como uma transgressão, como se poder e resistência fossem
fenômenos opostos ou exteriores um ao outro. Entretanto, como afirma
Foucault (1977, 1990), onde há poder há necessariamente resistência. Esta
última não está “fora” da relação de poder; ao contrário, ela só pode existir em
relação ao mesmo, estando inscrita em seu campo estratégico de forças. Do
mesmo modo como o poder é múltiplo, também há pontos de resistência
presentes em toda parte, uma pluralidade de resistências que se apresentam
de inúmeras formas: como necessárias, possíveis, espontâneas, ora pacíficas
ora violentas, ora solitárias ora em grupos. Em suma, para Foucault (1990),
poder e resistência atravessam todas as estratificações sociais e todas as
unidades individuais.
E é justamente este caráter relacional do poder, capaz de produzir e
abrigar sua própria resistência, que, segundo Bigo (2006a), Agamben parece
“esquecer”. Na concepção do campo e na análise do estado de exceção de
Agamben não existe resistência, não existe a capacidade de “continuar sendo
humano e de subverter o desejo que o poder tem de tudo controlar” (p. 13,
130
tradução nossa ). Neste sentido, Agamben seria benthamiano e não
foucaultiano.
A exclusão em Agamben é determinada por sua relação com o
soberano, o poder que decide quem deve ser excluído e que cria o homo sacer,
institutional crystallization is embodied in the status apparatus, in the formulation of the law, in
the various social hegemonies.
130
“capacitor à continuer à être humain et à subvertir le rêve que le pouvoir a de tout contrôler”.
218
aquele que pode ser morto a qualquer momento sem honra ou ritual. A
consequência da decisão soberana é a criação da vida nua. Agamben adota
claramente a perspectiva schmittiana, se afastando de Foucault, que, por não
compreender o momento soberano, o verdadeiro momento político com a
declaração da exceção, seria incapaz de explicar fatos cruciais da
modernidade: a polarização do poder e da vida nua nos Estados liberais e nas
democracias, a tendência a reduzir a política ao momento da exceção absoluta
e específica da designação do inimigo e de sua eliminação, seja real ou virtual
(BIGO, 2006a).
Assim, Agamben, ao partir de uma situação limite, tende a superestimar
a capacidade do poder e não percebe que as formas de vida estão
constantemente em um processo de ressurgimento, mesmo no mais
“desperate of cases”, como foi o caso dos campos de concentração. As formas
de resistência sempre vão existir mesmo onde o poder parece ser unilateral
(BIGO, 2006b).
Bigo adota, neste ponto, a leitura da resistência de James C. Scott. Para
Scott (1990), a resistência pode se dar tanto por meio de uma oposição velada
quanto por uma resistência aberta. Entre a concordância e a revolta há, para
ele, um imenso terreno político que não se constitui apenas da ação ou
oposição política ostensiva, mas também de uma vida política “invisível” dos
grupos subordinados.
Para além do “public transcript”, das representações sociais e formas
sociais de relação aberta entre dominados e dominadores, há o “hidden
transcript”, o conjunto de discursos, de gestos e práticas que confirma,
contradiz ou dá inflexão ao que aparece no “public transcript”. Ou seja, há uma
diferença entre o que é “dito” na face do poder e o que é “dito” por trás. É um
jogo de dissimulação e vigilância entre o fraco e o forte; uma espécie de
performance, de deferência e consentimento dos subordinados e de comando
e superioridade dos poderosos. E, quanto mais ameaçador é o poder, mais
grossa é a máscara de dissimulação dos dominados, mais seu “public
transcript” será ritualizado e estereotipado.
Nesta perspectiva é que se pode ler a resistência no campo de
concentração na obra de Primo Levi. Não se trata, obviamente, de uma
resistência aberta e ostensiva, que seria inexoravelmente punida com a força
219
(a forca), mas de uma infrapolítica das vítimas. Um jogo entre dominantes, que,
mais que por sadismo, deveriam representar o “papel” de algozes, nos gestos e
nas falas, e dos dominados, representando a aquiescência. Mas havia no
campo o “hidden transcript”, que se dava no que Levi (1988) denominou de luta
pela sobrevivência. Nesta, era necessário representar a disciplina, mas não
segui-la integralmente na prática; se, verdadeiramente, o interno seguisse todo
o regulamento, agisse realmente apenas na esfera do “public transcript”, ele
não duraria mais do que 3 meses no campo. Sucumbir era mais fácil; bastava
se encaixar com perfeição à disciplina. A outra opção era buscar os “caminhos
da salvação”.
Para tanto, o interno poderia ascender na hierarquia, se tornando
“especial”, como um Organisator, Kombinator ou Proeminent, um funcionário
do campo, e, consequentemente, assumindo também uma certa representação
que por sua vez exigia exercer o papel de algoz. Basta lembrar que os
capatazes e os Kapos eram os próprios internos e não membros das SS. No
campo, não há solidariedade entre as vítimas, mas uma “luta extenuante de
cada um contra todos” (LEVI, 1988, p. 93), na lógica de resistir aos inimigos e
não ter pena dos rivais. Desta forma, todos estão cruelmente sós.
Outra forma de salvação estava nos roubos, nos contatos com
funcionários externos (o que era proibido) e nos chamados Kombinacjes, os
jeitinhos esporádicos. É nesta perspectiva que Levi (1988) conta as histórias de
Alfred L. e do ex-sargento Steinlauf. Ambos resistiram não de forma aberta,
mas através da preocupação de manter uma aparência de dignidade, de
civilização, um cuidado com o corpo e os gestos. Como dizia Steinlauf, embora
o campo quisesse transformá-los em animais, era preciso continuar homem. E
assim ele se mantinha barbeado e limpo, não porque o regulamento mandasse,
mas porque esta era sua forma de resistir – recusando o consentimento.
Era o que os tornava “salvos”, o que os impedia de submergir, de se
tornar um muçulmano. Especialmente porque as leis do campo, não os
regulamentos, mas as leis fáticas de funcionamento do campo que os internos
aprendiam com a experiência, prescreviam que “a quem já tem, será dado; de
quem não tem, será tirado” (LEVI, 1988, p. 89-90). Logo, manter a
representação de disciplinado, ao mesmo tempo, resistindo em se manter
homem, era necessário para conquistar funções, privilégios e vantagens e,
220
131
“Party that carries State and People”.
132
“The civil servant is now a comrade of the people in a political unity based on ethnic identity”.
222
nem uma alegoria barroca ou uma representação nem uma ideia geral
cartesiana. É uma presença real que implica em uma identidade étnica
absoluta entre o líder e seus seguidores, como fonte da lealdade mútua. Deste
modo, a identidade entre representante e representado que Schmitt defende no
seu conceito de democracia como expressão homogênea do povo, em
contraposição ao seu sentido liberal, assume, aqui, uma forma racista.
E é justamente esta identidade étnica do povo alemão, premissa e base
de sua liderança, o princípio capaz de evitar que o poder do líder se torne
tirânico e arbitrário. Sem ele, o Estado nazista não existiria e sua vida legal
seria inimaginável, razão pela qual a ideia de raça esteve presente no
Congresso dos Juristas Alemães Nazistas em 1933, em Leipzig e, em especial,
no “fascinante” discurso do líder da Frente Legal Alemã, Dr. Hans Frank
(SCHMITT, 2001).
Na interpretação de Agamben (2005a), este modelo triádico schmittiano
teria como consequência a definição do movimento como o conceito político
decisivo quando o conceito democrático de povo, enquanto um corpo político,
está em falência - quando a democracia termina os movimentos surgem. Neste
sentido, é que se pode afirmar que não há movimentos democráticos, ponto no
qual as tradições revolucionárias de esquerda concordam com o nazismo e
com o fascismo.
A segunda implicação da teoria schmittiana está no seu argumento de
que o povo é um elemento apolítico cujo crescimento o movimento deve
proteger e sustentar; é o povo, então, o lado que cresce “sob a proteção e na
sombra das decisões políticas” (SCHMITT, 2001, p. 12, tradução nossa 133 ).
Como observa Agamben (2005a), Schmitt usa a palavra Wachsen (traduzida
no inglês como grow), que significa o crescimento biológico de plantas e
animais. Portanto, neste contexto, o povo é compreendido com um elemento
que se desenvolve no sentido biológico do termo, o que permite a Agamben
(2005a) afirmar que em Schmitt há um conhecimento implícito que ele “nunca
ousa articular, que é o seu caráter biopolítico” (p.02, tradução nossa134).
Assim, como consequência do movimento, o povo foi transformado de
corpo político constitutivo em população: uma entidade demográfica e, como
133
“growing under the protection and in the shade of the political decision”.
134
“never dares to articulate, of its biopolitical character”.
223
tal, não política, que o movimento tem que proteger, sustentar e deixar crescer.
Por conseguinte, o povo é hoje estritamente uma entidade biológica no sentido
foucaultiano do termo e é isto que torna o conceito de movimento necessário.
Para Agamben (2005a), se nós queremos repensar a biopolítica, não
podemos utilizar o conceito de movimento de maneira acrítica. Segundo o
autor, se continuamos a ler Schmitt, nos deparamos com o que ele denomina
de “aporia ameaçadora”: na medida em que o movimento é o determinante
político e o elemento autônomo e o povo é apolítico, então o movimento
apenas pode encontrar o seu ser político atribuindo ao corpo não político uma
cisão interna que permite sua politização. E, em Schmitt, esta cesura é a
identidade de espécie, ou seja, o racismo. É neste ponto da sua teoria que
Schmitt alcança sua mais alta identificação com o racismo, e, de acordo com
Agamben (2005a), sua maior corresponsabilidade com o nazismo.
No movimento,
sua política apenas pode ser fundada em sua
capacidade de identificar um inimigo dentro do povo, no
caso de Schmitt um elemento racialmente estranho. O
que ocorre no movimento é sempre uma cisão que corta
e divide o povo, neste caso, identificando um inimigo
(AGAMBEN, 2005a, p. 03, tradução nossa135).
135
Its politics can only be founded on its capacity to identify an enemy within the people, in
Schmitt’s case a racially extraneous element. Where there is movement there is always a
caesura that cut through and divides the people, in this case, identifying an enemy.
224
136
“all perspectives are neutralised and discoulored”.
226
138
Para Pasquino (2003), a exceção significa a existência de uma norma (no direito público, a
Constituição ou governo regular), a derrogação desta norma e a sua justificação por meio da
urgência ou emergência de uma situação e do princípio superior da necessidade de se
defender a Constituição ainda que com o sacrifício das leis. Há, deste modo, uma dicotomia – o
governo regular e o governo de exceção. É a escola dualista, que se contrapõe à escola
monista, segundo a qual, há uma identidade entre a ação do governo e o princípio de que a
saúde do povo é a única e suprema lei. Desta última fazem parte os autores absolutistas, entre
eles Thomas Hobbes.
230
A política da exceção é, então, uma luta entre uma vida que é objeto de
uma governança sem qualquer mediação generalizada e a liberdade da vida
como anomia, fundamentalmente contingente e não mediada. A escolha, em
Agamben, é, desta forma, entre duas formas de poder político – o campo, no
qual o poder age diretamente sobre os corpos e os reduz a uma vida
139
The methaphysics of pure life seeks to ontologically erase them. The result is an apocalyptic
political vision in which not fear of the enemy but the collapse of order into anomic, self-
referential life is the defining principle of politics. Agamben captures this by referring to the
emergence of pure life as a ‘catastrophe’ that collapses the juridical-political order and its
conception of sovereignty.
232
140
Reading the politics of exception as the central lens onto modern conceptions of politics. As
both Agamben and Schmitt do, erases from the concept of politics a rich and constitutive
history, and key sites and temporalities of politics as well as the central processes through
which individualized bodily resistances gain their political socio-political significance.
141
“extremely detailed and fragmented mediations that produce, reproduce, and shift strategic,
governamental practice and resistance to it.”
234
142
“The new, the rupture, the event, the exception, has been used to reveal the continuing
sameness of sovereign power”.
143
“the contigent and structural limit of positivism”. “The sovereign executive must be able to act
without constitutional or legal constraints”.
235
144
(...) Schmitt’s sovereign will conquer contingency so long as there are no constraints on
exceptional sovereign power. Therefore there is a barely concealed normative claim in Schmitt’s
work that the sovereign should have unlimited exceptional prerrogatives in (self-declared) times
of exception. If the nominal sovereign fails to demonstrate the capacity for exceptional
sovereign power, then another will emerge, structurally, who can. The barer of sovereignty may
change, but sovereignty never dies.
236
145
(...) it is the theoretical approaches themselves that perpetuate the ‘sovereign’ structures of
discourses. Discourses of exceptionalism reify a certain vision of sovereignty: accounts of
decision under conditions of contingency; naming, interpretation and representation through
authoritative processes; the authorization of authority according to certain conditions of
necessity; resolution at limit/threshold/border of the normal and the exceptional. It is as if the
discourse of exceptionalism contains a ‘hidden discourse’, a return of the ‘same’, a
‘transcendental act that gives them origin.
237
146
Os enunciados são, segundo Foucault (2010), a unidade elementar do discurso, não sendo
o equivalente da frase e nem requerendo, necessariamente, uma proposição. É composto de
signos, mas também não se resume a eles; não é inteiramente linguístico e nem
exclusivamente material. É um modo singular de existência, que exerce uma função – uma
função de existência que pertence aos signos; a função enunciativa.
147
Foucault (2010) define as formações discursivas como “No caso em que se puder
descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso
em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder
definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (p. 43).
“(...) uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se se puder
estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso
em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se se puder mostrar que ele pode
dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele próprio
tenha que se modifica” (p.50).
239
148
Describe the new in terms of a complex and specific relation of temporally and spatially
dispersed regularities with plural, not singular, horizons. The archive is not a fixed determinant,
but an amorphous and fungible body of historical conditions of possibility for contemporary
statements, events and transformations.
149
“(…) conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço,
que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica,
geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2010,
p. 133).
240
complexidade e em sua densidade; mostrar que falar é fazer alguma coisa (...)”
(p. 234). “(...) de não mais tratar os discursos como conjuntos de signos
(elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas
como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (p.55).
Aplicando ao excepcionalismo, a arqueologia não buscaria descrevê-lo
em termos de unicidade ou de identidade ou de reduzi-lo a um horizonte
analítico único de norma e exceção, política e lei, ou política e segurança. Pelo
contrário, seu objetivo seria o de “pluralizar” os horizontes. Ao invés de buscar
unidade, origens escondidas ou expressões de uma consciência soberana nas
formações discursivas, a análise está nas relações e suas transformações
entre objetos, declarações, conceito e estratégias; em descrever correlações
dentro de sua particularidade, especificidade e positividade histórica. É tentar
compreender como determinados “eventos” emergiram, e não outros, ou seja,
suas condições históricas de possibilidade. Segundo Foucault (2010), a
arqueologia é multiplicadora e não unificadora.
Mas porque utilizar a arqueologia e não a genealogia na crítica
foucaultiana ao excepcionalismo?
Segundo Neal (2006), esta escolha pode ser justificada por 4 motivos: 1-
por ser a arqueologia mais próxima à estrutura dos argumentos de Agamben e
Schmitt, autores que critica pelo excepcionalismo. Agamben, inclusive, faz uma
leitura arqueológica e não genealógica de Foucault; 2- a ideia de força e do
campo de forças da genealogia está presente no excepcionalismo e, portanto,
não seria cabível como instrumento de sua crítica; 3- Foucault, posteriormente,
se afasta da ideia genealógica (e ambígua para Neal) da história como
imposição de violência e dominação (hipótese Nietszsche); 4- genealogia e
suas tecnologias do poder são insuficientes para explicar o excepcionalismo,
pois este traz questões profundas sobre o funcionamentos dos princípios
políticos e dos discursos.
De qualquer modo, como lembra Neal (2006), a arqueologia não
trabalha exclusivamente com discursos e a genealogia com práticas e, antes
de serem excludentes, se completam e, muitas vezes, se sobrepõem 150 .
150
É interessante perceber que Foucault, por diversas vezes, usa os termos arqueologia e
genealogia de maneira indistinta. Em “O Nascimento da Biopolítica”, ele se propõe a fazer uma
genealogia de regimes veridicionais a partir dos discursos. “Tratar-se-ia da genealogia de
241
152
“The state of exception is one of those zones”.
243
153
“It is not possible to identify, without a violent degree of reduction or overdetermination, a
single, unified discursive practice of exceptionalism in territorial or political space”.
244
Corso
154
Para a análise de Foucault sobre o liberalismo enquanto sociedade da segurança, vide os
itens 3.2.2 e 3.2.3.
246
oitava tese sobre a história, na qual ele defende que a exceção se tornou a
regra.
A teoria de Agamben é, portanto, segundo Mills (2004) uma tentativa de
mediação entre Benjamin e Schmitt, por meio de uma obra fragmentada,
interativa, composta de ensaios curtos e limiares, mas que possuem um
consistência interna de argumentação.
O ponto de partida de Agamben é, neste contexto, a análise do aparente
paradoxo da soberania apresentado por Schmitt, de um soberano que está, ao
mesmo tempo, dentro e fora da ordem jurídica. A soberania como um conceito-
limite, que também é adotado por Agamben. Para ele, a característica da
soberania está no fato de que o soberano é quem determina quando a lei é
aplicável e ao que ela deve ser aplicada, e, fazendo isto, ele cria as condições
necessárias para que a lei opere, já que esta exige uma condição normal para
sua operação. O soberano, desta forma, opera no limite da ordem e da
exceção, determinando o alcance da lei e o espaço no qual a ordem político-
jurídica tem validade. A exceção é, deste modo, criada por meio da suspensão
da lei mediante um determinado caso extraordinário e, ao mesmo tempo,
constituindo a eficácia da lei naquela determinação (MILLS, 2004).
Agamben, contudo, ressalva que a suspensão da lei não significa que a
exceção não tem relação com a lei, ou seja, que está excluída do alcance da
mesma, mas que precisamente esta relação se dá por meio de sua exclusão.
Como consequência, a exceção confirma a regra e a força da lei está na sua
capacidade de se manter na relação com a exterioridade. É o “ban” de Nancy,
a capacidade da lei de se aplicar não se aplicando. O fora da lei é o
abandonado, o sujeitado pela força de lei enquanto a lei se afasta do sujeito.
Assim, o abandonado não é apenas excluído do reino da lei, mas entregue à
ela na sua retirada; o que é banido está, então, dentro e fora da ordem jurídica.
A partir das leituras de Benjamin e Schmitt, Agamben vai defender que o
que é capturado pelo abandono soberano é a própria vida. Mais - que no
estado de exceção, a lei coincide com a própria vida em uma indistinção entre
fato e norma. A lei perdeu aqui todo o seu conteúdo, se tornando indistinta da
vida. E o principal protagonista deste exclusão inclusiva é a vida nua, aquela
que é irremediavelmente exposta à morte, constituindo o elemento político
originário. Adotando a ideia de conceito-limite schmittiano, em Agamben, a vida
247
nua é o conceito limite entre polis e oikos; a vida nua que indica a exposição da
vida natural à força de lei no abandono, expressão última do direito de morte do
soberano (MILLS, 2004).
A vida nua não é, assim, uma invenção moderna, mas uma relação
originária na política ocidental. Aqui, em uma integração entre poder soberano
e biopoder, e, contra Foucault, Agamben vai defender que a inclusão da política
na vida nua na esfera política constitui o núcleo original da soberania. Neste
sentido, a biopolítica é tão antiga quanto o poder soberano, e a política
moderna não deve ser vista como a ruptura com a soberania clássica, mas
como extensão e generalização do estado de exceção que funda o poder
soberano.
E, é a partir da oitava tese benjaminiana, que Agamben vai afirmar que
este estado se tornou a regra e, deste modo, a captura da vida nua já não é
mais a exceção, mas a condição geral de existência. Regra e exceção,
inclusão e exclusão, direito e violência não podem mais ser distinguidos. Sob o
regime da biopolítica, todos os homens são potencialmente homo sacers, o que
significa que todos estão potencialmente, senão efetivamente, abandonados
pela lei e expostos à violência como uma condição constitutiva da existência
política. Por conseguinte, o que distingue a democracia moderna da clássica é
o fato de que aquela falhou em reconciliar bios e zoé, mantendo a vida incluída
na política por meio da exceção.
A aporia da política contemporânea está, portanto, em Agamben, na
tentativa de se superar a captura da vida no poder soberano através do recurso
à vida natural, que necessariamente repete e reinstala esta captura na
politização desta vida. Neste ponto, de acordo com Mills (2004), Agamben
rejeita o gesto de Foucault em direção a uma economia dos corpos e dos
prazeres ao afirmar que o corpo é sempre o corpo biopolítico e a vida nua.
Em Agamben, a superação do abandono soberano que caracteriza a
política moderna apenas pode acontecer pela inauguração de uma nova forma
de vida ou vida feliz (happy life). Uma nova concepção de vida que busca
superar a distinção entre bios e zoé e na qual nunca é possível isolar a vida
nua como sujeito político; uma vida que encontra sua unidade em sua pura
imanência. E tanto no conceito de vida nua quanto no de vida feliz, Agamben
está em débito com Benjamin. A primeira, bare life, é “inspirada” pela mere life
248
(Bloβ Leben) benjaminiana, enquanto a vida feliz pode ser remetida à relação
entre o tempo histórico e o messiânico presente nos “Fragmentos Teológicos-
Políticos” de Benjamin (MILLS, 2004).
A vida feliz em Agamben é a vida profana (AGAMBEN, 2005c), que
permite que a lei em vigor sem conteúdo, sem significado, a força de lei sem
lei, possa ser revogada, de modo que o nada mantido pela lei é eliminado e a
humanidade possa alcançar sua própria realização na sua transparência
consigo. É a esperança de redenção, que é externa à biopolítica. A vida feliz
tem fundamento em uma política vindoura, é o estado real de exceção de
Benjamin e, como tal, proporciona a passagem para a redenção messiânica.
O Tempo e o Messias
155
Em Benjamin, religião e teologia são distintas. A primeira se refere a um conjunto de
doutrinas e práticas que visam integrar o homem ao mundo, na aceitação do sofrimento e da
morte, pelo reconhecimento de um sentido transcendente. Já a teologia, é um discurso ou
saber sobre Deus, consciente de que seu objeto está aquém de qualquer objetividade e,
portanto, lhe escapa; é a incapacidade constitutiva e transcendental da linguagem de
apreender seu próprio objeto (GAGNEBIN, 1999).
250
156
El tiempo que el tiempo nos da para acabar.
252
157
“al recuerdo en la eternidad que no conoce pasado ni repetición”.
253
158
Agamben (2004a) ressalta a admiração que Benjamin tinha pelo “teórico fascista do direito
público”, como fica claro na carta do primeiro a Schmitt de dezembro de 1930, e que Adorno
retirou do arquivo das correspondências de Benjamin que tinha ficado ao seu cuidado (BENTO,
s.d.). Segundo Weber (1992), esta carta causou certo mal-estar entre os intelectuais
justamente por reconhecer um débito a um pensador conservador católico nazista.
Como escreve Benjamin,
“Caro senhor professor,
Nos próximos dias, receberá do editor um exemplar do meu livro Der Ursprung des deutschen
Trauerspiels (A origem do drama barroco alemão). Com estas linhas, não quero apenas
anunciar-lho, mas expressar-lhe a minha alegria por me sentir autorizado a enviar-lho por
recomendação do senhor Albert Salomon. Reparará o senhor de imediato o quanto este livro
lhe deve na sua apresentação da teoria da soberania no século XVII. Permita-me ainda que lhe
diga que, graças aos seus métodos de investigação em filosofia do Estado, descobri, nas suas
obras ulteriores, em particular em Die Diktatur (A Ditadura), uma confirmação dos meus
métodos de investigação em filosofia e história da arte. Se a leitura do meu livro lhe permitir dar
conta deste sentimento, a intenção de lhe o enviar terá sido atendida.
Com a expressão da mais alta consideração.
O seu devotado Walter Benjamin (BENTO, s.d., p.10)”
159
Mcquillan (2011) denomina este dossiê de esotérico, afirmando que se ele não é autêntico,
pelo menos é no sentido filosófico uma suposição útil para clarear as diferenças políticas entre
Benjamin e Schmitt.
255
160
Vide item 2.6 deste trabalho.
257
criatura.
Como resposta a Benjamin, dezesseis anos após sua morte, Schmitt
(2006a) escreve “Hamlet ou Hecuba”, uma obra que, segundo o filósofo
alemão, aponta para uma providência cristã. Nela, Schmitt se refere à carta
enviada por Benjamin, demonstrando um profundo respeito por ele.
Em “Hamlet ou Hecuba”, Schmitt critica Benjamin por não ter
considerado o desenvolvimento histórico particular da Inglaterra em sua análise
do príncipe em Hamlet, o “paradigma do melancólico”, na leitura benjaminiana
(1984, p.165).
Para Schmitt (2006a), Hamlet não é um teatro político no senso concreto
que o Estado e a política adquiriram no continente como resultado do
desenvolvimento da soberania nos séculos XVI e XVII. Hamlet tampouco é
cristão, nem mesmo quando se refere à questão da providência, estando no
centro da demonologia da disputa entre católicos e protestantes.
Deste modo, o que Benjamin faz no “Drama”, é subestimar a diferença
entre a Inglaterra insular, dos Tudor, uma potência marítima, e a Europa
continental, em relação a sua situação geral e, ao mesmo tempo, a diferença
entre o teatro inglês e o barroco alemão do século XVII. Neste último ponto,
Schmitt ressalta que não é possível apreender o cerne da peça a partir de
categorias de arte e de história da cultura, como Renascença e Barroco, mas
sim através da antítese entre o bárbaro e o político.
Segundo Schmitt (2006a), a peça shakespeariana coincide com o
primeiro estágio da Revolução Inglesa (1588-1688), sendo a indecisão e a
melancolia de Hamlet um emblema do fracasso dos Stuart em deixar para trás
a barbárie e seguir o curso da modernidade (McQUILLAN, 2011).
No continente europeu, no século XVII, emergiu uma nova ordem
política de neutralização das guerras de religião; o Estado soberano,
diametralmente oposto às formas medievais e aos métodos de dominação
medievais, significando o fim de uma era, da lei e da tragédia dos heróis.
Nestas circunstâncias, o termo política 161 adquire um significado concreto,
antitético ao bárbaro.
O Estado moderno é, desta forma, uma entidade absolutamente nova,
161
Para o conceito de política de Schmitt e sua relação com o estatal, vide itens 2.4 e 2.5 desta
tese.
258
162
“inadimissible and only confounding to call state other forms of community systems or power
structures in world history”.
163
Vide item 2.3 deste trabalho.
259
164
Vide itens 2.4 e 3.2.1 desta tese.
260
165
Para a discussão schmittiana da ditadura, vide item 2.6 deste trabalho.
166
Segundo Mcquillan (2011), isto é pouco provável, pois, na época, Schmitt estava mais
preocupado com o positivismo/legalismo de Kelsen. A “Teologia Política”, neste sentido, pode
ser uma resposta schmittiana à “Teoria Pura do Direito”.
261
167
“in the context of a conscious readiness to resume the suspended action under certain
circumstances that either have nothing whatever to do with this action or only superficially
modify it”.
264
deixando-a em vigor, porém sem validade. É, para Ruiz (2011), uma “vigência
sem significado” (p.2). No caso da exceção soberana, o inverso ocorre; ela
anula toda a ordem jurídica, e a lei que não vigora (porque anulada) tem
validade plena no arbítrio da vontade soberana. “Na exceção plena, a vontade
soberana é lei, nesse caso a lei que não vigora (porque não está formulada
juridicamente) se aplica imediatamente no arbítrio soberano” (RUIZ, 2011, p. 2).
A lei que vigora mas não se aplica atinge diretamente a vida humana, a
vida nua (bloβ Leben), segundo Benjamin, suspendendo o que a favorece, os
direitos que possibilitam sua defesa e emancipação. Em Benjamin (1999), a
vida além do direito, não coagida, é a verdadeira exceção, e dispensa o direito
porque o torna desnecessário. O direito, assim, não é mais a justiça, mas
apenas a porta que leva a ela, através de sua desativação e inatividade.
De acordo com Ruiz (2011), é neste sentido que Agamben analisa a tese
de Foucault, segundo a qual é preciso pensar um novo direito livre de toda
disciplina e de toda soberania. Mas como pensar uma vida sem direito? Esta
questão teria sido formulada tanto pelo cristianismo primitivo, em especial na
Carta dos Romanos de São Paulo, como pela tradição marxista.
Em São Paulo, a lei existe como um meio para culpar a vida.
Ora, nós sabemos que tudo que a Lei diz é dito para os
que estão sob a Lei, a fim de que toda a língua se cale, e
todo o mundo se reconheça culpado diante de Deus.
Pois, pelas obras da Lei, ninguém será justificado diante
dele. De fato, pela Lei só se chega ao reconhecimento
do pecado (Rm 3, 19-20).
mas ainda não está nos “portões”. Se esta ameaça não é ainda real, ela se
torna pela declaração do soberano. Deste modo, para Agamben, é um trabalho
de ficção que torna real o que é essencialmente irreal. O poder soberano é,
assim, uma tentativa de anexar a anomia por meio da exceção, de estabelecer
uma relação entre violência anômica e lei quando aquela não existe
(McQUILLAN, 2011).
Para Benjamin e Agamben, então, o poder soberano é
fundamentalmente diferente da violência revolucionária, que é essencialmente
anômica. E quando se retira da soberania suas ficções legais, que fundam sua
soberania, sua violência se torna gratuita, não em um sentido de excesso, mas
por não ter qualquer legitimidade particular. Ela se torna nada mais que alguma
coisa que alguns fazem e outros resistem, de acordo com seu desejo e
capacidades, individual ou coletivamente (McQUILLAN, 2011).
É neste momento que, segundo Ruiz (2011), Benjamin remete às
potencialidades teológicas da política. A teologia como o anão corcunda,
escondido debaixo do tabuleiro da história, o mestre do xadrez que ninguém
vê, e que, no entanto, maneja os fios do fantoche, a política. Aquele que pode
enfrentar qualquer desafio, mas que não ousa mostrar-se, sendo
reconhecidamente pequeno e feio (BENJAMIN, 1986). A teologia como a
possibilidade de se pensar uma vida política que “se realiza além da
normatização biopolítica ou do controle violento da exceção jurídica” (RUIZ,
2011, p. 3).
Benjamim (1999), em uma veia schmittiana, realiza uma crítica dos
parlamentos liberais a partir do momento em que os mesmos cultivam
compromissos que ignoram a presença latente da violência nas instituições
legais, incluindo o contrato, ou seja, que ignoram a relação permanente entre
lei e violência.
Para ir além da violência legal, é preciso procurar um tipo de violência
que não esteja relacionado com a justificação dos meios ou a preservação dos
fins da lei. Em um primeiro momento, Benjamim a busca na violência dos
Deuses gregos, a violência mítica, que, no entanto, replica a estrutura da
violência, do fazer a lei, trabalhando através da culpa e da retribuição para
aqueles que desafiam o destino. É a violência envolvida no fazer da ordem
jurídica, o poder sangrento sobre a vida para o seu próprio fim. Já a violência
268
ser justificada, que exista por ela mesma; seu objetivo é quebrar o ciclo
meios/fins da violência revolucionária benjaminiana, uma vez que esta não é
uma violência de meios que apenas procura uma negação do sistema
existente. Ela é uma violência que nega tanto o eu como o outro, que cria a
consciência da morte. É a aporia da classe revolucionária – saber que a
violência contra o outro é inevitavelmente a morte do eu; é uma autonegação e
um auto sacrifício.
Assim, tanto a violência repressiva, que impõe a lei, quanto a que
desafia a lei não são diferentes daquela que objetiva estabelecer novas leis e
um novo poder. Nestes casos, a negação do outro é a negação do eu. São,
deste modo, violências impuras, independente de seus fins. No arcabouço
messiânico benjaminiano, é apenas a violência revolucionária que pode
inaugurar uma nova cronologia, uma nova experiência de temporalidade, uma
nova história (BENJAMIN, 1999). Mas, no momento em que ela tem com
finalidade instituir uma nova ordem, ela mantém o caráter teleológico que
Agamben (2009) critica.
O que Agamben propõe, então, é que a violência revolucionária seja
compreendida sob a luz de sua relação com a morte, o que nos permite
indagar sobre a relação daquela com a cultura, na medida em que “toda cultura
aspira a superar a morte” (AGAMBEN, 2009, p. 109, tradução nossa170). É esta
a base de nossa tendência a separar violência e linguagem – é o único espaço
possível de reconciliação com a morte. A cultura nos transporta para uma
região em que vida e morte, criação e negação, estão intimamente ligados, nos
levando aos limites das culturas linguísticas; ela nos leva ao limiar do que não
pode ser conhecido pela linguagem e, logo, exaure sua função. Uma vez que
busca nos reconciliar com a morte, a cultura não pode ir além sem negar a si
mesma.
Nesta leitura, a violência revolucionária é a única que pode ultrapassar
esta fronteira, na realização da unidade indissolúvel entre vida e morte, em
uma esfera além da linguagem, capaz de libertar o eu. Deste modo, os vivos só
podem reconhecer sua proximidade basilar com a morte negando a si mesmos;
170
“every culture aspires to overcome death”.
270
parte necessária da vida. Tal morte, contudo, pode ser facilmente negada e
omitida, já que oficialmente ninguém é morto, nenhuma morte é causada, mas
meramente permitida, um evento passivo, um dano colateral. Assim, para que
“nós” possamos viver, “eles” têm que morrer, em uma distinção entre o cidadão
virtuoso e os outros, excluídos como vida nua, uma vida descartável.
Neste contexto, para Murray (2008), a concepção de biopolítica de
Agamben não é radical o suficiente, uma vez que ela é informada pela lógica
jurídica da exceção schmittiana; o filósofo italiano foca exclusivamente na vida
e em sua negação pelo decisionismo jurídico (tirar a vida e deixar viver), em
direção a uma tanatopolítica, uma política da morte.
Entretanto, é preciso repensar esta política de morte, repensando a
biopolítica de uma maneira produtiva; para além da linha da vida e da morte,
nós devemos aceitar os vivos e os mortos, como co-pertencimento de um
modo que frustra a concretização da identidade.
Nós deveríamos apreciar na morte uma ética comunitária
pré-política que é mais que uma negação da vida ou o
fracasso moral de viver, mas que é a produção
biopolítica da vida que é presumidamente fundacional
(MURRAY, 2008, p. 207, tradução nossa171).
171
We might appreciate in death a pre-political community ethic that is more than the negation
of life, more than the production of biopolitical life that is presumed to be foundational.
272
172
The more liberalism and modern rights movements seek to defend us from the dangers of
bio-powers, it would seem, the more they make possible its extension.
273
externo à lei, mas como a vida é, ela mesma, capturada por ela. Então, para
Schmitt, a lei sempre se refere a um padrão normal de existência. Ela tem um
caráter regulatório e é a regra não pelo que ordena e proscreve, mas porque
deve, antes de tudo, criar a esfera de sua própria referência na vida real e fazer
desta algo regular. A soberania schmittiana é a decisão sobre a forma de vida
na qual as suas regras são aplicáveis e como regularizá-la, como fazê-la
governável, através da exclusão da exceção.
Na perspectiva agambeana, a soberania é a estrutura originária na qual
a lei se refere à vida e a inclui suspendendo-a. A força da lei, então, é o que
detém a vida no seu banimento pelo seu abandono. A relação de exceção é um
dos banimentos – ao abandonar indivíduos, a lei não apenas os coloca em uma
esfera de indiferença, como também os deixa expostos e ameaçados no limite
no qual vida e lei, inside e outside, se tornam indistinguíveis. Ser banido é,
deste modo, ser colocado fora da ordem político-jurídica que define o
parâmetro do normal da vida de uma comunidade política. Mas, nesta mesma
ação, aquele que é banido, é também incluído no poder que o coloca lá. Em
suma, segundo Dean (2004), Schmitt, como Agamben, traz a noção de vida ao
conceito de soberania e de lei. Em Agamben, a produção da vida nua é a
atividade originária da soberania.
E esta noção de vida também é trazida por Walter Benjamim para a
relação com a soberania, o sagrado, a vida nua e o homo sacer. Para
Benjamim, há uma relação irredutível entre lei e violência, a partir de duas
formas desta última – a violência do fazer a lei e a violência da preservação da
lei. É a oscilação entre elas que define o surgimento e a queda do vários tipos
de poder do Estado.
De acordo com Dean (2004), Agamben evita a estrutura bipolar de
Foucault. Neste último, a política pode ser analisada apenas como a
articulação ou o deslocamento de polos de uma série de oposições: o direito de
morte e o direito de vida, soberania e biopolítica, caráter individualizante e
totalizante dos poderes modernos, técnicos de governo e técnicas do eu,
Razão de Estado e liberalismo, entre outros. Contudo, o ponto no qual se
ligam, se sobrepõem, interagem ou entram em uma zona de indistinção, é
difícil discernir na obra foucaultiana. Agamben, por outro lado, propõe uma
topografia possível do estado de exceção no qual o banimento soberano
276
173
“apuesta decidida por la presuposición y la reconstrucción de ambiciosas continuidades. La
historia de Occidente es tratada com un friso de cuya homogeneidad sería índice – y factor – el
léxico político”.
278
175
“irrepresentable e inidentificable, pasiva e impotente. Una comunidad que, al igual que la
figura de lo mesiánico, rebasa y desactiva todo nomos”.
176
“etiología de los síntomas del mal”.
280
5- CONSIDERAÇÕES FINAIS
divina. Além disto, o que foi consagrado pode ser restituído, também pelo rito,
ou pelo jogo, que é a inversão do sagrado, mas sem o abolir, à esfera profana.
No entanto, é preciso distinguir entre profanação e secularização. Esta
última é uma forma de deslocamento, que na esfera política significa a
transmutação da monarquia celeste na terrena, deixando, porém, intacto o seu
poder (AGAMBEN, 2005C, 2011). Já o profanar, significa neutralizar aquilo que
se profana; após este ato, aquilo que estava separado é devolvido ao seu
(re)uso. Ambas as operações são políticas, mas a secularização se refere ao
exercício do poder, remetendo-o a um modelo sagrado, enquanto a profanação
desativa os dispositivos do poder e os restitui ao uso comum os espaços que
havia capturado.
Profanare, do latim, significa tanto tornar profano quanto sacrificar. É
uma ambiguidade que, para Agamben (2005c), parece inerente ao vocabulário
do sagrado e é, nesta interpretação, que ele utiliza o adjetivo sacer. O homo
sacer é, então, aquele que é consagrado a Deus, mas que também é o
excluído. Deste modo, na esfera divina, ele não pode ser sacrificado e está
excluído do culto, já que sua vida é uma propriedade dos deuses, e ainda sim
sobrevive, levando uma existência aparentemente profana. Assim, “Sagrado e
profano representam, pois, na máquina do sacrifício, um sistema de dois polos,
no qual um significante flutuante transita de um âmbito para outro sem deixar
de se referir ao mesmo objeto” (AGAMBEN, 2005c, p. 69).
No mundo contemporâneo, no qual o capitalismo é, em uma linguagem
benjaminiana, uma religião, de culto permanente, de culpa e desespero, que
não tende para uma redenção, mas destruição do mundo, a separação, a
consagração, é realizada na sua forma mais pura. Não há nada mais a se
separar. A profanação absoluta coincide aqui com uma consagração integral.
Tudo foi separado e deslocado para a esfera do consumo, da vivência como
espetáculo, a sociedade do espetáculo de Debord, na qual as coisas são
exibidas em sua própria separação. Aqui consumo e espetáculo constituem a
mesma impossibilidade de se usar e, portanto, se torna impossível profanar;
não se pode profanar, devolver ao uso, aquilo que não se pode utilizar. A
religião capitalista criou o Improfanável (AGAMBEN, 2005c, DEBORD, 2005).
É preciso, por conseguinte, e é este desafio que Agamben nos coloca,
profanar o Improfanável; é esta a tarefa da geração política que vem, da
284
busca de um passado remoto, de uma origem, mas do não vivido, do que não
conseguimos viver. É voltar ao presente no qual jamais estivemos.
O contemporâneo é o tempo messiânico (AGAMBEN, 1993, 2006), o
tempo operativo, o kairós que vive no chronos contraído. É ho nyn kairos, o
tempo de agora. Neste contexto, o reino messiânico será como o mundo é
agora, mas um pouco diferente; é o pequeno deslocamento produto da história,
que não se refere ao estado das coisas, mas ao seu sentido e aos seus limites.
A revelação aqui não é do caráter sagrado do mundo, mas de seu caráter
irreparavelmente profano – o mundo como ele é. E a salvação começa neste
ponto, da salvação do caráter profano do mundo, do seu “ser assim”, e não
uma tentativa de (re)sacralização da vida.
A redenção não é, neste sentido, o acontecimento no qual o profano se
torna sagrado e o que era perdido é encontrado, mas “a perda irreparável do
perdido, o definitivo carácter profano do profano” (AGAMBEN, 1993, p. 83).
Nós só podemos ter esperança naquilo que não tem remédio; a única
passagem para fora do mundo está em contemplar o sem remédio enquanto
tal. O “ser assim”, o próprio modo de ser, a não causalidade.
O tempo de agora, por conseguinte, exige não apenas que o
interroguemos, mas também que sejamos capazes de transformá-lo, de colocá-
lo em relação com outros tempos, de ler de outra maneira a história. Uma
exigência a qual este tempo não pode responder. Mas já é um começo.
286
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2007.
AGAMBEN, G. Mais além dos direitos dos homens. 1998. Disponível em:
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and security. In: BIGO et al. (ed). Europe’s first century challenge: delivering
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W.(ed.).Theorizing Surveillance: the panopticon and beyond. Devon: William
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NANCY, J.L. L’être abandonné. In: NANCY, J.L L’Imperatif Catégorique. Paris:
Flammarion, 1983.
NORRIS, A. Carl Schmitt on friends, enemies and the political. Telos, n.o.112
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Revista Filosófica de Coimbra, n.o.20, 2001, p. 427-460.