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1-INTRODUÇÃO

Meu século, minha fera, quem poderá


Olhar-te dentro dos olhos e soldar com o seu sangue
As vértebras de dois séculos?

Osip Mandel’stam1

Giorgio Agamben nasceu em 1942 em Roma, tendo se graduado em


Direito na mesma cidade em 1965. Foi professor de filosofia e estética em
inúmeras universidades europeias como a Universidade de Veneza, a de
Verona e a de Macerata, todas na Itália, o European Graduate School na
Suíça, o Collège International de Philosophie na França, e em várias
universidades norte-americanas, como a Berkeley e a de Los Angeles. Foi
também professor visitante na Universidade de Nova Iorque, tendo renunciado
ao cargo como consequência da recusa a se submeter ao que denominou de
tatuagem biopolítica 2 – a exigência da coleta de dados biométricos pelo
Departamento de Imigração dos Estados Unidos, como requisito para se entrar
no país após o 11 de Setembro.
A obra de Agamben, ainda em formação, é difícil de ser classificada,
“navegando” com destreza entre a política, a filosofia, a teologia, a economia, a
história, a literatura e a filosofia da linguagem e da estética. Não há no filósofo
italiano um tema ou questão determinante em seu pensamento, mas temas e
questões que predominam em alguns períodos, embora entrelaçados e em
permanente diálogo. É, portanto, um trabalho multifacetado, denso e complexo,
cujas análises, normalmente, terminam em zonas de fronteira, indistinção e
indiscernibilidade.
Assim como seus temas, sua escrita é fragmentada, algo entre o
fragmento e o ensaio, resvalando muitas vezes para o que José Barrento, no
Prefácio da “Ideia da Prosa” (1999), denominou de prosa reflexiva-narrativa-
poética. Como sua obra, é difícil classificar seu estilo, mas certamente não se
trata de uma linguagem filosófica usual. Suas reflexões se desenvolvem, de

1
Poema “O Século”, de 1923, apud AGAMBEN, 2010.
2
Vide o artigo “Não à tatuagem biopolítica” (AGAMBEN, 2004b) e a controvérsia de sua
publicação no Le Monde.
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acordo com Barrento, em blocos de pensamento, mosaicos de ideias, de


limiares – como na música, a fuga; o instante entre a abertura e o fecho.
Neste contexto, o presente trabalho de doutorado busca realizar um
recorte no pensamento agambeano, focando no projeto “Homo Sacer”,
desenvolvido pelo autor a partir de meados da década de 1990 e constituído
por “Homo Sacer I: a vida nua e o poder soberano” (1995), “O que resta de
Auschwitz” (1998), “Estado de Exceção” (2003) e “O Reino e a Glória” (2007).
Esta opção não implica, entretanto, no reconhecimento de que esta parte da
obra de Agamben é mais importante que as demais, como sua crítica à cultura
e suas análises no campo da linguagem, ou que outras partes de seu
pensamento não estarão presentes nesta tese, ainda que de forma subsidiária.
O motivo desta escolha foi outra - estudos anteriores sobre as práticas
iliberais nos regimes liberais e na análise das relações e (des) continuidades
entre os regimes democráticos liberais e os não democráticos, especialmente
os totalitários.
A partir do estudo da obra de autores como Jeffrey Huysmans, Andrew
Neal, Judith Butler, Didier Bigo, Vivienne Jabri, entre outros, sobre as violações
de direitos civis em Estados liberais, em particular após o 11 de Setembro, o
idioma do excepcionalismo e sua crítica se mostraram como o ponto
nevrálgico, central, para se pensar as práticas iliberais.
Segundo Neal (2006), o excepcionalismo pode ser definido como um
“conjunto de práticas e políticas iliberais que são legitimadas através da
reivindicação de exceções necessárias à norma” (p.31, tradução nossa3).
Este discurso da exceção, tanto oficial quanto crítico, de que vivemos
em um momento em que, em nome da segurança, especialmente após os
eventos do 11 de setembro, decisões e medidas excepcionais devem ser
tomadas, tem ressurgido de maneira cortante nos últimos anos, e legitimado
práticas iliberais nas democracias liberais ocidentais, ressignificando o próprio
conceito do político – a política como excepcionalismo, ou seja, como o conflito
entre a regra da lei e o Executivo e o exercício direto do poder soberano sobre
a vida biológica, em contraste com a vida política.
É, segundo Bigo (2010), um momento especialmente complicado nas

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“an array of illiberal policies and practices that are legitimated through claims about necessary
exceptions to the norm”.
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relações/tensões entre liberdade e segurança dado aos fortes clamores da


necessidade dos governos em lidarem com novas formas de violência
transnacional e terrorista, que acabam por justificar medidas de emergência, ou
seja, a exigência de uma ação rápida que só pode ser alcançada por um
Executivo não constrangido por parlamentos, cortes, e outros processos de
responsabilização e de controle. E, acima de tudo, é a alegação que as regras
normais de conduta devem ser suspensas sob certas condições, pelo menos
por certo período.
O foco desta tese está, portanto, no pensamento de Agamben sobre o
poder soberano (e, consequentemente o estado de exceção) e a biopolítica, e
seus conceitos correlacionados, como vida nua, campo e a relação entre
direito, política e violência. Trata-se de compreender como o autor articula
estes dois conceitos-chave e como isto ocorre no campo do excepcionalismo.
Há aqui, então, um novo recorte - ler o projeto “Homo Sacer” a partir
de um diálogo com as obras de Carl Schmitt e de Michel Foucault, e, em
particular, com os conceitos de poder soberano e de estado de exceção do
primeiro, e de biopolítica e governamentalidade do segundo. A obra de
Agamben compreendida como uma tentativa de construção de um terceiro
caminho – entre o poder soberano e a biopolítica. Ou seja, a articulação entre a
doutrina da soberania em Schmitt enquanto teoria da exceção, que na crítica
benjaminiana de Agamben se torna a exceção como regra, e a biopolítica de
Foucault, que, na peculiar leitura da obra do filósofo francês, se normaliza na
figura do campo.
Isto não significa, entretanto, afirmar que outros autores não tenham
importância no pensamento agambeano. Muito pelo contrário. É inegável a
influência de pensadores como Guy Debord, Hannah Arendt, Jacques Derrida,
Martin Heidegger, Jean-Luc Nancy, Hegel, Emile Benveniste, Aristóteles,
Platão, bem como de autores do direito romano, teólogos cristãos e judaicos,
poetas e escritores, como Kafka e, acima de todos, Walter Benjamin. Mas seria
um trabalho hercúleo e, provavelmente, infrutífero, o estudo do pensamento de
Agamben a partir de todos estes autores, com obras igualmente vastas e
densas.
É necessário, deste modo, escolher uma abordagem, realizar um novo
recorte – agora em relação aos interlocutores. E, pelo foco adotado nesta tese,
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os escolhidos são Carl Schmitt e Michel Foucault. Neste contexto, deve-se


reforçar que a escolha destes autores se deu não por serem os mais
importantes, mas por trazerem luz à reflexão proposta por Agamben sobre as
relações entre o poder, a vida e a morte, uma vez que este está em
permanente diálogo com aqueles através dos conceitos de exceção e de
biopolítica na construção do que esta tese tem denominado de terceiro
caminho.
No caso de Schmitt, a sua influência no pensamento de Agamben será
mediada por seus debates com Walter Benjamin, talvez o autor com quem o
filósofo italiano tenha a sua maior dívida conceitual e temática, tendo sido
inclusive o editor da obra benjaminiana no italiano.
Não é objetivo desta tese, pois, defender ou criticar, em sentido estrito,
estes autores, mas pensar a obra de Agamben a partir de sua leitura de
Schmitt e Foucault, tentando compreender os problemas, consequências e
limites de suas interpretações. Neste sentido, é uma tentativa de
problematização.
Para a consecução destes objetivos, este trabalho será dividido em duas
partes. Na primeira parte, será analisado o pensamento dos interlocutores de
Agamben – Schmitt e Foucault.
No capítulo 2, sobre Schmitt, os pontos-chave serão os conceitos de
poder soberano e de estado de exceção, bem como a abordagem jurídica que
o autor adota em sua obra. Embora esta tese seja uma trabalho
predominantemente de filosofia política e, em certa medida, de teoria política,
não há como ignorar o campo do direito. Schmitt é um autor que se define
como um jurista do direito constitucional e do direito internacional público, cuja
consequência é a interlocução constante entre direito e política em sua obra, o
que inclui a tentativa de dar juridicidade ao estado de exceção.
Já Agamben, embora adote, com deslocamentos e ressignificações, o
método arqueológico-paradigmático foucaultiano, bem como sua biopolítica e
arquegenealogia da governamentalidade, realiza uma crítica ao fato de
Foucault ter deixado de fora de suas análises justamente o direito, além da
teologia. Agamben, no projeto “Homo Sacer”, faz não apenas uma reflexão
política sobre nosso tempo, mas também uma crítica da condição jurídica do
homem contemporâneo, frente ao poder e na sua relação com este.
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Para os leitores, o capítulo sobre Schmitt pode parecer, em se tratando


de uma tese sobre Agamben, demasiadamente longo e exaustivo. Isto se deve
à dificuldade de se trabalhar com este autor. Primeiro, pelo seu engajamento
com o nazismo, que o tornou um pensador maldito e, frequentemente, mais
criticado do que lido; o que não significa, obviamente, justificar suas escolhas
políticas, mas reconhecer sua importância, profundidade e sua capacidade de
fazer dialogar o direito, a política e a teologia, “recuperando”, em tempos de
neutralização e racionalização exacerbada da política, sua base não racional.
Além disto, toda a obra de Schmitt é, em certa medida, uma discussão sobre o
poder e, mais especificamente, sobre o poder soberano e a exceção. A obra de
Schmitt é, assim, ao mesmo tempo, vasta como também una, o que justifica
um capítulo exaustivo como o realizado. E, para evitar que o leitor se perca na
densidade schmittiana, ao final do capítulo é retomado o conceito de poder
soberano, sistematizando as ideias trabalhadas ao longo do texto.
No capítulo 3, sobre Foucault, outro autor extremamente complexo e
interessado nos mais diferentes temas, buscou-se focar nos conceitos que
serão utilizados por Agamben no desenvolvimento de sua obra e, mais
especificamente, na biopolítica, por meio da defesa do campo como o
paradigma político, como a técnica de governo da modernidade – a biopolítica
e a governamentalidade; a (não) passagem do poder disciplinar à biopolítica,
do poder soberano ao biopoder. Como no capítulo sobre Schmitt, também
neste, será realizada uma retomada e sistematização do conceito de biopolítica
ao final do mesmo.
Já a utilização da metodologia foucaultiana por Agamben, como a
genealogia e arqueologia (Agamben, aliás, usa estes termos de maneira
indistinta), o paradigma e a assinatura, será analisada na segunda parte da
tese, que trata do pensamento agambeano.
Deste modo, a segunda parte vai ser dedicada a Agamben e, de modo
mais específico e focal, aos pontos de convergência e divergência entre o
filósofo italiano, Schmitt (com mediação de Walter Benjamin, o famoso dossiê
Schmitt-Benjamin) e Foucault na sua articulação entre poder soberano e
biopolítica. A questão que se coloca é: como Agamben se aproxima ou se
distancia destes autores? Como utiliza seus conceitos? Este último ponto é,
particularmente, importante, uma vez que Agamben é comumente criticado por
15

utilizar de maneira deslocada, dando um novo sentido a conceitos já


“consagrados” (seria uma profanação?) por outros autores, especialmente a
biopolítica de Foucault.
Assim, o que se busca nesta segunda parte é fazer uma reflexão crítica
do projeto “Homo Sacer”, estabelecendo um diálogo entre os três autores, a
partir dos dois conceitos-chave desta tese. Sob o aspecto metodológico, a
opção pelo diálogo fica evidente no modo como este trabalho foi estruturado,
procurando não dividir o mesmo didaticamente entre pontos de convergência e
divergência entre Agamben e seus interlocutores; estes aparecem ao longo do
texto, de maneira por vezes fragmentada, mas que oferece uma abordagem
mais rica. Vários pontos e conceitos são retomados em inúmeros momentos,
exigindo a leitura do todo para sua compreensão. Se a primeira parte é mais
direta, a segunda se desenvolve em um mosaico. Além disto, uma vez que os
conceitos de Schmitt e Foucault foram desenvolvidos na primeira parte, na
segunda eles são abordados de maneira mais superficial. No entanto, foram
introduzidas notas de rodapé que permitem ao leitor localizar, na primeira parte,
os conceitos aos quais se faz remissão na segunda.
Finalmente, deve-se ressaltar que esta tese é um processo, uma obra
incompleta que não acaba aqui, e que pode e deve ser reiteradamente
aperfeiçoada e aprofundada. Trabalhar com três autores da magnitude de
Giorgio Agamben, Carl Schmitt e Michel Foucault certamente tem seu preço.
Mas que também, indubitavelmente, vale a pena, pela sua capacidade de
lançar luz ao nosso tempo, ou, como diria Agamben, de olhar no escuro de
nossa época e perceber neste escuro uma luz.
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PRIMEIRA PARTE

2 - CARL SCHMITT E O PODER SOBERANO

2.1- As bases do pensamento schmittiano

Cuanto más se busca el sentido a si mismo


tanto más se conduce el alma de la prisón
oscura hacia el mundo.
Cumple lo que debes cumplir; ya está
cumplido desde siempre, y tú no puedes más
que contestar.

Konrad Weiss4

Na primavera de 1945, russos e americanos promoveram a privação de


direitos e a internação de membros de certos estamentos sociais alemães,
como altos funcionários públicos, em campos de concentração na Alemanha.
Este processo foi denominado pelos americanos de prisão automática,
constituindo, segundo Carl Schmitt (1994), a consequência lógica da
criminalização de todo um povo e da realização do Plano Morgenthau 5.
Carl Schmitt ficou preso no campo de Berlim-Lichterfelde-Sud entre 1945
e 1946, onde escreveu quase todos os ensaios do seu livro Ex Captivitate
Salus, apesar da proibição expressa de escrever. A obra só foi possível devido
à ajuda de um médico americano que facilitava a possibilidade de fazer notas,
bem como ajudou a tirar do campo notas e cartas, sem que passassem pelo
controle das autoridades.
Em 1947, Schmitt, ainda preso, participou do Tribunal de Nuremberg
como testemunha e possível acusado. Durante todo o tempo da sua prisão, no
campo e durante o julgamento, nenhuma acusação formal foi apresentada
contra ele, tampouco foi provada qualquer ação delitiva.

4
Schmitt (1994) dedica estes versos a sua filha, Anima Louise; palavras que, segundo ele,
atestam sua essência íntima.
5
Formalmente conhecido como Treasury Plan for the Treatment of Germany, foi desenvolvido
pelo Secretário do Tesouro norte-americano, Henry R. Morgenthau Jr., e seu assistente, Harry
Dexter White, no verão de 1944, e implementado pelos aliados. O plano tinha como objetivos
reeducar os alemães, desmontar a indústria pesada alemã, promover a desmilitarização da
Alemanha, entre outros, a fim de evitar uma “Terceira Guerra Mundial”. Como consequência do
plano, a Alemanha foi dividida em dois Estados independentes e milhões de alemães morreram
de fome, doença, e no processo de expulsão das regiões orientais do país. Vide:
http://www.fpp.co.uk/bookchapters/Morgenthau.html
17

Schmitt é um autor considerado maldito por sua participação no regime


nazista e cujas obras foram banidas de diversos países. Entre 1915 e 1919,
Schmitt, como militar, participou do Primeiro Corpo do Exército da Baviera, no
qual exerceu a função de supervisão do movimento de paz, bem como da
importação, exportação e confisco de materiais impressos, entre outras tarefas.
Os contatos com o Escritório de Censura do Ministério da Guerra se refletiram
em medidas contra conhecidos escritores pacifistas. Ainda como militar, foi
testemunha da derrubada da monarquia da Baviera, da guerra civil entre os
seguidores da República da Baviera e do Exército Imperial em 1919.
Schmitt conquistou fama durante a República de Weimar (1918-1933)
pela sua interpretação do artigo 48, § 2º. da Constituição, segundo a qual, em
tempos de crise, o Presidente poderia apelar a poderes ditatoriais para emitir
decretos de emergência, no lugar das leis, sem apelar para o Parlamento:
Caso a segurança e a ordem públicas sofram uma
perturbação ou um risco consideráveis, o presidente do
Reich poderá tomar as medidas cabíveis para o
restabelecimento da segurança e ordem públicas,
inclusive, caso seja necessário, com o auxílio das forças
armadas. Para a consecução desse objetivo, o
presidente do Reich poderá revogar, temporariamente,
em parte ou integralmente, os direitos fundamentais
estabelecidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e
153. (In Schmitt, 2007, p. 14).

De acordo com Giesler (2010), Schmitt se aproximou do centro do poder


político quando, em setembro de 1932, elaborou um plano de emergência
destinado a evitar que Hitler tomasse o poder – em virtude do já citado art. 48,
o governo poderia atuar excluindo o paralisado Parlamento.
Com a nomeação de Hitler como chanceler e a adoção da Lei
Habilitante, Schmitt se dispôs a colaborar com o novo regime. É de sua autoria
a lei que criou o cargo de Reichsstaatthalter (Governador Imperial), que
colocou fim à soberania dos Estados federados, bem como à Constituição da
Prússia. Durante 03 anos, ele ocupou cargos de influência – membro do
Conselho de Estado da Prússia, diretor da equipe especializada de professores
universitários da Associação de Juristas Nacional-Socialistas da Alemanha,
membro da Academia de Direito da Alemanha e editor de importantes revistas
e coleções de livros. Afastado do poder pelas S.S., a polícia política alemã, se
dedicou à análise do Leviatã de Thomas Hobbes (GIESLER, 2010).
18

Em Ex Captivitate Salus, espécie de autobiografia escrita na prisão, ele


faz uma defesa de suas ideias e posições políticas, buscando justificar, em
parte, suas escolhas.
Segundo Schmitt (1994), em tempos tranquilos há certa proteção ao
pensamento que se acaba em tempos agitados. Nestes se agudiza o perigo
imanente a todo pensamento livre e, então,
o pesquisador e professor de Direito Público se encontra
repentinamente circunscrito e cobrado por qualquer
palavra ou pensamento livre e isto por homens que
nunca tiveram em sua vida um pensamento livre e para
os quais é essencialmente estranho toda liberdade de
espírito (p. 54, tradução nossa6).

Além disto, a matéria a partir da qual um pesquisador forma suas ideias


e da qual depende o seu trabalho científico se insere em um determinado país,
em determinados grupos e em determinada época, o vinculando a situações
políticas, cujo “favor ou desfavor, cuja sorte ou desgraça, vitória ou derrota
captura também o pesquisador e mestre e determina seu destino pessoal”
(SCHMITT, 1994, p.54, tradução nossa7).
Entretanto, não existe um totalitarismo que seja capaz de eliminar todo
pensamento livre ou objeção. Não há, assim, nas palavras de Schmitt (1994),
um totalitarismo total, cem por cento, ou pelo menos um totalitarismo
intelectual.
Da coação e do controle tecnicamente aumentados
resultam novas formas de pensar e falar que escapam a
esta coação e a este controle. Isto é aplicável em geral
frente a qualquer terror ou discriminação, não só para a
Alemanha e não apenas para estes doze anos (p. 20,
tradução nossa8).

Os doze anos a que Schmitt se refere constituem o governo nacional-


socialista na Alemanha – 1933 a 1945, sendo que ele contribuiu com o governo
entre os anos de 1933 e 1936.

6
Entonces el investigador y profesor de Derecho público se encuentra repentinamente
circunscripto y empadronado con cualquier palabra o pensamiento libres y eso por hombres
que nunca han tenido en su vida um pensamiento libre y a los que es esencialmente ajena toda
libertad de espíritu.
7
“favor o disfavor, cuya suerte o desgracia, victoria o derrota capta también al investigador y
maestro y determina su destino pessoal”.
8
De la coación y del control técnicamente aumentados resultan nuevas formas de pensar y
hablar que escapan a esta coacción y a este control. Esto es aplicable en general frente a
cualquier terror o discriminación, no sólo para Alemania y no solamente para estos doce anos.
19

Por outro lado, não se deve, segundo Schmitt (1994), simplesmente


julgar a partir de uma posição externa as obras que foram realizadas debaixo
das circunstâncias de controle agudo, como o foi durante o nazismo. É preciso
levar em consideração, de acordo com o autor, algumas verdades sociológicas
básicas, como a eterna relação hobbesiana entre proteção e obediência.
Assim, um pesquisador ou acadêmico não pode escolher a seu capricho os
regimes políticos. Em geral, ele os aceita como qualquer cidadão ou súdito leal.
Mas, quando a
situação se faz completamente anormal e ninguém de
fora o protege contra o terror interior, ele mesmo tem que
determinar os limites de sua lealdade, sobretudo quando
as circunstâncias se tornam tão anormais que nem
sequer se conhece a verdadeira posição do amigo mais
próximo. O dever de desencadear uma guerra civil, de
sabotar e se fazer mártir tem seus limites. É o problema
das vítimas de tais situações e não se deve julgar de fora
(p.23-24, tradução nossa9).

E, deste modo, Schmitt busca se justificar. Como um intelectual, um


jurista, que, em um período de anormalidade, acatou, como qualquer cidadão
não disposto a se tornar um mártir, o regime político vigente.
Entretanto, esta autodefesa se torna particularmente complicada quando
se analisa o ensaio de Schmitt (2001) “Estado, Movimento e Povo”, de 1933.
Não se trata nesta obra de simplesmente obedecer ao poder, na lógica
proteção e obediência, mas de fazer uma defesa do Estado Nazista e,
particularmente, do Partido Nazista enquanto corpo político. Segundo Schmitt
(2001), o nacional-socialismo seria o único capaz de assegurar e cultivar uma
substância verdadeiramente nacional, criando uma unidade política a partir da
identidade étnica do povo alemão; argumento este que está na base do Estado
racista do totalitarismo germânico.
No entanto, apesar de sua escolha política, a obra de Schmitt
permanece viva e é essencial para a compreensão do panorama político
contemporâneo, que adota o idioma do excepcionalismo.
Segundo Neal (2006), o uso que Schmitt faz da ideia de exceção, na
9
Situación se hace completamente anormal y cuando nadie desde fuera le protege contra el
terror interior, él mismo tiene que determinar los límites de su lealtad, sobre todo cudando las
circunstancias se tornan tan anormales que ni siquiera se conoce la verdadera posición del
amigo más próximo. El deber de desencanear una guerra civil, de sabotear, de hacerse mártir
tiene sus límites. Es problema de las víctimas de tales situaciones, y no se debe juzgar desde
fuera.
20

“Teologia Política”, seria uma estratégia discursiva para apresentar uma política
particular de nomeação, interpretação e representação do excepcional como
algo lógico e necessário e não uma ética política específica. A teoria
schmittiana usaria o problema da exceção (contingência ao mesmo tempo
hipotética e metafísica) com o objetivo de defender a primazia do poder
soberano excepcional e construir uma ética estatocêntrica extrema. Se Schmitt
vê o excepcional como a possibilidade real, para Agamben ele é o grande
destino histórico-transcendental da humanidade. Em comum, Schmitt e
Agamben são estatocêntricos, privilegiando o centro soberano e reduzindo o
excepcionalismo a dualidades como amigo-inimigo, norma e exceção, vida nua
e vida política.
É importante ressaltar que Schmitt foi, antes de tudo, um jurista, um
representante clássico do direito público europeu e, em sua própria definição,
um professor e pesquisador da ciência jurídica, nos campos do direito
internacional e do direito constitucional, ambos pertencentes ao ramo do direito
público. E é no âmbito do direito que Schmitt vai desenvolver seus conceitos
fundamentais como exceção, poder soberano, legalidade e legitimidade,
ditadura e democracia.
Segundo Schmitt (1994), a ciência jurídica é um fenômeno
especificamente europeu, estando enraizado no racionalismo ocidental e tendo
como “nobres” antepassados o direito romano e a Igreja Romana, cuja
separação se deu na épocas das guerras civis confessionais dos séculos XVI e
XVII. Deste modo, o direito público europeu nasceu com a saída dos juristas da
Igreja e o êxodo do sagrado para o domínio do profano.
Contudo, nesta saída, os juristas teriam levado consigo algumas coisas
sagradas, e o Estado se adornou com um simulacro de origem eclesiástica. O
poder dos príncipes temporais foi reforçado com atributos e argumentações de
origem espiritual e os juristas do ius publicum europaeum passaram a ocupar
posições que antes pertenciam aos teólogos. Herdaram, desta maneira, muito
do potestas spiritualis da Igreja Cristã na Idade Média. Em conflito com o poder
temporal, os clérigos medievais desenvolveram teorias bem estruturadas sobre
a guerra justa e a resistência justa frente ao tirano. E também é deles a
herança das antigas fórmulas do inimigo da humanidade, do hostis publicus e
do hostis generis humani.
21

Entretanto, estes conceitos não foram desenvolvidos como um meio de


guerra civil, mas como um princípio ordenador, reconhecido e dominante, de
uma auctoritas, como também do potestas spiritualis da Igreja. E foi justamente
isto que se perdeu com a separação da Igreja e do Estado. Os juristas do
direito público desenvolveram suas teorias e conceitos a partir do Estado
soberano, buscando purificar a teoria da justa causa belli dos elementos da
guerra civil, ao separar a questão da guerra justa do iustus hostis, trazendo
novamente a distinção entre inimigo e criminoso (SCHMITT, 1994).
Estes juristas se afastaram, assim, das instituições eclesiásticas e se
colocaram ao lado do racionalismo e do progresso. No entanto, eles
continuaram a ser defensores de uma tradição e autoridade próprias, sendo,
neste sentido, conservadores. A autoridade foi apenas secularizada, mas não
profanada ou destruída, constituindo, segundo Schmitt (1994), uma perigosa
situação intermediária.
Neste contexto, dois tratadistas e fundadores do direito internacional,
contemporâneos das guerras civis confessionais, Jean Bodin e Thomas
Hobbes, seriam figuras destacadas e representantes desta mudança. Estes
autores travaram uma luta ferrenha com os teólogos, sem, todavia, visarem à
criação de uma religião, ainda que laicista ou positivista. Daí sua posição
intermediária, entre o antigo e o novo, a tradição e a revolução. A profanação
total só ocorreria a partir do século XIX, com a era da técnica pura, do
tecnicismo. Do sagrado ao profano.
E, Schmitt, frente a esta profanação total pela técnica, se afirmou como
“o último representante consciente do jus publicum europaeum, seu último
teórico e investigador em um sentido existencial e experimento seu fim”
(SCHMITT, 1994, p. 70 e 71, tradução nossa10).
Neste contexto, Bodin e Hobbes seriam interlocutores “vivos e
presentes”, tendo impulsionado e mantido desperto seu pensamento em uma
época dominada pelo positivismo.
Jean Bodin, jurista erudito, teria exposto com incomparável acerto o
conceito decisivo do direito público europeu e do Estado soberano na política
interior e exterior, mas, de acordo com Schmitt, não teria compreendido o

10
“el último representante consciente del jus publicum Europaeum, su último teórico e
investigador em um sentido existencial y experimento su fin”.
22

Leviatã – a quádrupla combinação de Deus, animal, homem e máquina.


Hobbes, por outro lado, não só compreendeu muito bem esta essência, como
também o modo de lidar e de se conduzir em relação a ele. Para Hobbes, o
político já não é a neutralidade, e sim a clara delimitação da linha da amizade.
Thomas Hobbes, por sua vez, não era um prático, nem um homem da
vida pública. Era um racionalista e agnóstico, um homem de espírito
independente e cauteloso, que, em sua vida privada, também se manteve
consciente da base de todo direito que era, para ele, a relação mútua de
proteção e obediência.
Na obra de Bodin, Schmitt buscou a teoria da soberania e o
decisionismo; em Hobbes, a teoria do poder racional do Estado e a relação
entre proteção e obediência, e, finalmente, encontrou na obra do católico
conservador espanhol Donoso Cortés a base para a crítica do liberalismo e da
democracia parlamentar e construção de uma teoria da ditadura.
Este último, de acordo com Schmitt (1950), foi injustamente deixado no
esquecimento, inclusive em seu país de origem, após ter logrado êxito político
e literário por toda Europa, entre os anos de 1849 e 1853, ou seja, ainda em
vida. Cortés foi um professor liberal de direito constitucional que se converteu
em um “mensageiro” teórico da ditadura conservadora, tendo apoiado o golpe
de Estado de Napoleão III e se tornado um nome importante na história da
teoria contrarrevolucionária.
Foi, segundo Schmitt (1950), um dos grandes pensadores políticos do
século XIX, com habilidade rara, e que formulou as posições decisivas na
história da crítica da democracia parlamentar moderna. Além disto, e acima de
tudo, Schmitt deve a Cortés seu conceito político central – a distinção entre
amigo e inimigo.
Segundo Bento (s.d), embora a obra de Schmitt seja “prolífera,
contrastante e camaleônica", há alguns pontos na mesma que aparecem de
forma obsessiva:
feroz crítica ao liberalismo, com a sua noção de um
sujeito individual, romântico, privado, invisível aos outros,
incapaz de intervir na configuração e disposição da vida
pública, incapaz, quer de reconhecer, quer de fundar
autoridade, incapaz de entender quer o Estado quer a
política, incapaz ainda de tomar a seu cargo a essência
da representação própria do político e de prever, em
23

longo prazo, os mais genuínos e espinhosos problemas


da humanidade (p. 3).

Entender a obra de Carl Schmitt é, portanto, compreender seu profundo


antiliberalismo, de crítica do indivíduo liberal burguês, e sua oposição às
neutralizações e despolitizações da época moderna, que se dissolve na técnica
pura.

2.2- O poder e sua dialética interna

Ser um homem continua sendo, apesar de


tudo, uma decisão. (Daubler T., apud Schmitt,
2010, p.56, tradução nossa11)

Segundo Schmitt (2010), a fonte do poder que um homem exerce sobre


outro homem não estaria na natureza ou em Deus. Dizer que sua origem é
natural significaria compará-lo ao poder do progenitor sobre sua cria ou torná-lo
equivalente à superioridade de dentes, chifres, patas, glândulas venenosas e
outras armas naturais. Neste sentido, um homem que tem o poder seria um
lobo em relação àqueles que não o têm, as ovelhas – Homo homini lupus.
No que diz respeito a Deus como fonte, aquele que exerce o poder seria
portador de uma qualidade divina, sendo a manifestação do próprio poder de
Deus – Homo homini Deus.
Todavia, na atualidade, o poder já não nos parece algo de origem
natural. Na verdade, o homem, com o desenvolvimento da técnica, teria se
elevado, com enorme poder, por sobre o meio ambiente, se tornando o senhor
da natureza e de todos os seres viventes. Do mesmo modo, em relação a
Deus, o homem moderno, entendido como o típico habitante das grandes
cidades, também tem a sensação de que aquele tem se afastado de nós.
Assim, se a origem do poder não está mais na natureza ou em Deus, ela
agora se encontra no próprio homem. É uma relação entre aqueles que detêm
e os que não detêm o poder, entre os potentes e os impotentes – Homo homini
homo. É, antes de tudo, uma relação de obediência, que não é arbitrária. Por
que os homens obedecem a outros? Para Schmitt (2010), às vezes isto ocorre
por confiança, outras por esperança ou desespero, mas, em todos os casos, os
homens necessitam de proteção e a buscam junto ao poder. Em suma, a
11
Pues ser um hombre sigue siendo, a pesar de todo, una decisión.
24

explicação para o poder está na relação entre proteção e obediência


hobbesiana. “Quem não tem poder para proteger alguém tampouco tem o
direito de exigir-lhe obediência. E vice-versa: quem necessita de proteção e a
recebe não tem o direito de recusar a obediência” (SCHMITT, 2010, p. 21,
tradução nossa12).
Para que esta obediência seja contínua, o poder deve gerar
continuamente estímulos eficazes, outorgando proteção e uma existência
assegurada mediante a educação e o interesse solidário pelos outros. É
necessário, portanto, que o poder gere consenso (e este, por sua vez, também
gera poder), o que não significa que este seja irracional ou imoral; ele é, antes
de tudo, social, fruto da inserção do homem no contexto social . Deste modo, o
consenso é o pleno consentimento dos que estão sujeitos ao poder e
representa não a soma de todos os consentimentos, mas o produto de todos
eles.
Este consenso, contudo, não permite ao poder fazer o que bem
entender, como ordenar que se vá contra a lei. Embora, em regra, os
poderosos e os sujeitados ao poder formem uma unidade política, o poder vai
além de ambos, tendo uma magnitude independente, objetiva, com regras
próprias. Aquele que exerce o poder não é o poder, e segue estando sujeito
aos limites da natureza física do homem, da deficiência de seu intelecto e da
psique humana.
Para Schmitt (2010), o mais moderno de todos os filósofos a
compreender o poder como algo exclusivamente humano foi Thomas Hobbes.
Este parte da debilidade comum a todo indivíduo para sua construção do
Estado – a debilidade gera situações de perigo que geram medo que, por sua
vez, levam ao desejo de segurança, de um aparato de proteção com maior ou
menor grau de complexidade organizacional. No entanto, apesar de todas as
medidas protetivas, qualquer um pode matar o outro em determinados
momentos, e mesmo o homem mais fraco pode matar o mais forte e poderoso
dependendo das circunstâncias. Assim, neste aspecto, todos os homens são
iguais, uma vez ameaçados e em situação de perigo.

12
“Quien no tiene poder para proteger a alguien tampoco tiene el derecho de exigirle
obediencia. Y viceversa:quien necesita protección y la recibe no tiene derecho a rehusar la
obediencia.
25

Entretanto, o perigo físico não é cotidiano, e o efeito mais importante dos


limites dos indivíduos é outro – a autonomia normativa objetiva do poder em
relação ao poderosos e à dialética intrínseca do poder que envolve a relação
entre poder e impotência.
E esta dialética é crucial para chegar ao ponto central de Schmitt – a
questão do acesso ao poderoso e da antessala do poder. Para o autor, aquele
que deve tomar decisões importantes só pode exercer sua vontade em
determinadas circunstâncias e com certos meios, mesmo o mais absoluto dos
príncipes. O poderoso deve basear-se em notícias e informações fornecidas
por terceiros e, em regra, depende de seus assessores.
É esta a dialética interna do poder – entre o poderoso e aquele que o
informa, uma vez que este também participa do poder, embora não o detenha.
Nas palavras de Schmitt (2010), “Todo poder direto está, assim, sujeito a
influências indiretas” (p. 29, tradução nossa13). E estas influências indiretas são
a antessala do poder, um acesso, uma passagem à psique do poderoso. Todo
poder humano, necessariamente, possui esta antessala e esta passagem, na
qual convergem uma sociedade multiforme e heterogênea. Os indiretos são
formados por ministros, assessores, diplomatas, confessores, médicos
particulares, secretário(a)s e mesmo amantes.
E, quanto mais centralizado é o poder, quanto mais se concentra em um
posto ou em um homem ou grupo de homens, mais o poderoso se isola, mais
aguda se torna a questão da passagem, do acesso ao poderoso, como
também mais violenta a luta na antessala entre os que a ocupam. Esta luta é
inevitável e essencial ao poder humano, materializando sua dialética interna. O
isolamento do poderoso se dá através do aparato de poder, constituindo, ao
mesmo tempo, esta dialética um processo de autoafirmação e de auto
alienação.
Neste sentido, segundo Schmitt (2010), a dialética do poder deve ser
analisada sem retórica ou sentimentalismos, cinismo ou niilismo, mas com
realismo. A questão do acesso ao poder é central, por exemplo, para
compreender o que ele denominou de tragédia do Segundo Reich, no momento
em que o chefe de governo, Bismarck, se recusou a permitir acesso direto dos

13
“Todo poder directo está así sujeto a influencias indirectas.”
26

ministros ao rei e imperador Guilherme II. Embora tivesse a liberdade de


receber e falar com quem quisesse, Bismarck negou ao imperador o direito de
escutar o informe de um ministro sem sua presença, o que contribuiu para sua
queda. O problema do acesso direto ao rei significa, em outras palavras, que
quem tem este acesso também participa do poder.
E é a partir desta perspectiva realista, que Schmitt discute se o poder é
em si bom, mau ou neutro ou se depende de quem o exerce. Em “Diálogo
sobre el poder y el acesso al poderoso”, Schmitt cita o Papa Gregório, para
quem apenas a vontade do poder é mau, mas o poder em si seria sempre bom.
Deus é o poder supremo e o ser supremo. Todo poder
procede dele e em sua essência é e se mantém divino e
bom. Se o demônio tivesse poder, também este poder,
enquanto poder, seria divino e bom. Só a vontade do
demônio é má. Mas mesmo apesar desta vontade
demoníaca sempre maligna, o poder segue sendo divino
e bom em si mesmo (Schmitt, 2010, p.41, tradução
nossa14).

Schmitt (2010) faz esta referência a Gregório para refutar a ideia de que
o poder seria sempre mau, teoria amplamente difundida a partir do século XIX,
mas também não compartilha da visão do Papa. O poder para ele não é bom
ou mau em si mesmo e muito menos depende de quem o exerce. Afinal, quem
definiria se o poderoso é mau ou bom, ele mesmo?
Assim, para entender a essência do poder, mais uma vez é preciso
retornar à teoria do perigo de Hobbes. Para o filósofo inglês, o homem é, ao
mesmo tempo, menos e mais que um animal, no momento em que consegue
compensar suas debilidades biológicas e suas deficiências com inovações
tecnológicas. Aliás, atualmente, com o desenvolvimento dos armamentos e de
instrumentos de destruição em massa, esta compensação estaria se dando em
excesso, aumentando também o perigo. E, proporcionalmente ao crescimento
do perigo, se expande também a diferença entre o poder e sua ausência, de
uma forma tão ilimitada, que levaria o conceito de homem a um novo patamar.
A centralidade da análise do poder não está, deste modo, no homem
que o exerce, sua boa ou má vontade não é parte do problema. O indivíduo

14
Dios es el poder supremo y el ser supremo. Todo poder procede de él y en su essencia es y
mantiene divino y bueno. Si el demonio tuviese poder, también este poder, en cuanto es poder,
sería divino y bueno. Sólo la voluntad del demonio es mala. Pero aun a pesar de esta voluntad
domoníaca siempre maligna, el poder sigue siendo divino y bueno en sí mismo.
27

nada mais é que uma parte do aparato técnico e social que produz as novas
tecnologias de destruição. E o uso destas tecnologias, como instrumento de
exercício do poder de um homem sobre outro, teria colocado fim à igualdade
entre os mesmos, entre poderoso e sujeitado.
O poder, portanto, vai além de quem o exerce. É objetivo, autônomo em
relação aos poderosos, supera incessantemente a reduzida capacidade física,
intelectual e psíquica individual. Segundo Schmitt (2010), ao criarem estes
novos recursos de destruição, os inventores contribuíram para o surgimento de
um novo Leviatã. O primeiro Leviatã foi o Estado moderno europeu,
organizado, dos séculos XVI e XVII, um produto técnico artificial, o super
homem, criado pelos pequenos homens que o constituem. A primeira máquina
moderna, “a máquina das máquinas”, que se materializa no consenso humano
e o supera.
O novo Leviatã é produto do progresso da técnica moderna e que tudo
domina. Um progresso que é, ao mesmo tempo, técnico, mas também é o da
eliminação do subjetivismo romântico, um progresso na
captação do indivíduo humano, e na criminalização e
automatização das massas. Uma maquinaria gigantesca
devora sem diferenciar centenas de milhares de homens.
Ao lado dele, o velho Leviatã, o grande monstro, parece
quase acolhedor, e a antiga prisão quase um idílio
(SCHMITT, 1994, p. 11, tradução nossa 15).

Seja no Leviatã ou no novo Leviatã, no qual poder e carência de poder


não se encontram e os homens se sentem indefesos face aos instrumentos de
destruição, “o poder é mais forte do que qualquer vontade de poder, mais forte
do que qualquer bondade humana e por sorte também mais forte do que
qualquer maldade humana” (SCHMITT, 2010, p. 51, tradução nossa16).

15
Eliminación del subjetivismo rómantico, un progreso en la captación del individuo humano, y
en la criminalización y automatización de masas. Una maquinaria gigantesca devora sin
diferenciar a cientos de miles de hombres. Al lado de esto, el viejo Leviatán, el gran monstruo,
parece casi acogedor, y la antigua cárcel casi um idilio.
16
“El poder es más fuerte que cualquier voluntad de poder, más fuerte que cualquier bondad
humana y por fortuna más fuerte también que cualquier maldad humana.”.
28

2.3- O Leviatã

”O nome do Leviatã projeta uma larga sombra” (SCHMITT, 1990, p. 3,


tradução nossa17). É assim que Schmitt termina o prólogo do seu livro sobre o
Leviatã, prevendo que a mesma larga sombra que foi projetada sobre a obra de
Hobbes também o seria sobre a sua.
Para o autor, sendo má ou boa a fama, Hobbes a deve ao Leviatã, figura
que mais que a representação plástica de uma ideia ou uma comparação
ilustrada da teoria do Estado se tornou um símbolo mítico, com um fundo
repleto de sentido. É, assim, a imagem mais vigorosa da história da teoria
política – o monstro marinho descrito nos capítulos 40 e 41 do Livro de Jó, no
Antigo Testamento, como o animal mais forte e indomável.
Embora Leviatã também tenha sido traduzido, na Bíblia, como serpente
ou dragão, ele é comumente descrito como um crocodilo, baleia ou um peixe
grande. Em outras tradições, como a bizantina, foi descrito como o animal
marinho que tudo devora ou mesmo o mar. No entanto, independente da
tradução ou do mito, o que importa, segundo Schmitt (1990), é que o Leviatã
sempre pertence ao mar.
Em meio ao caos das interpretações míticas, surgiram, durante a Idade
Média, duas grandes linhas interpretativas: a simbolização cristã dos padres da
Alta Idade Média e o mito judaico da Cabala.
A primeira linha está dominada, mesmo na escolástica, pela concepção
teológica de que o Diabo, em virtude da morte de Cristo na cruz, perdeu a luta
pela humanidade e foi pego pela própria cruz, como uma armadilha. O Diabo
aqui representa o grande Leviatã, o grande peixe capturado e aprisionado por
Deus.
Já na interpretação judaica, o Leviatã e o Behemoth (o monstro terrestre
do Livro de Jó, representado como um grande touro ou um elefante) são o
símbolo das potências mundiais pagãs hostis aos judeus e que podem se
referir aos Impérios babilônico, assírio, egípcio, entre outros. Na tradição
esotérica da Cabala, o Leviatã representa os povos pagãos e, neste contexto, a
história é a luta destes povos entre si – O Leviatã, ou as potências marítimas,

17
“El nombre del Leviathan proyecta una larga sombra”.
29

contra o Behemoth, ou as potências terrestres – estando os judeus às margens


destas lutas.
Em Jean Bodin, o Leviatã mantém o caráter “demoníaco” das
interpretações religiosas e místicas. Ele é o Diabo, cujo poder ninguém pode
enfrentar e persegue não apenas os corpos, mas também as almas. Nos
discursos de Lutero, ele é o Príncipe deste mundo, ao qual Deus amarra e, de
vez em quando, permite que confunda os homens e jogue com ele diariamente,
3 horas por dia, para seu consolo (SCHMITT, 1990).
Enquanto representação da serpente ou dragão, o Leviatã deixa de ser a
figura hostil e má da mitologia judaica e pré-asiática e se torna um símbolo de
divindades protetoras e boas, como entre os chineses, os celtas e os
germânicos; entre os anglo-saxões, é o emblema do acampamento real.
Em termos gerais, entre 1500 e 1600, o Leviatã perde a imagem de sua
força propriamente demoníaca e sua representação sofre na literatura do
século XVI uma modificação. Na literatura inglesa, na época do Leviatã de
Hobbes, por volta de 1650, prevalecia uma concepção que não era mística
nem demoníaca – os Leviatãs eram os grandes, uma denominação humorística
de todo tipo de homens e coisas, excepcionalmente grandes e poderosas. E,
de certa maneira, Hobbes também influenciou na linguagem usual. Nos séculos
XVI e XVII desaparece completamente a crença popular cristã da Idade Média.
Mas o que significa o Leviatã na obra hobbesiana?
Hobbes, segundo Schmitt (1990), realizou uma crítica à típica cisão
judaico-cristã da unidade política, quando os judeus realizaram a distinção
revolucionária entre religião e política, destruidora do Estado. A distinção entre
os poderes temporal e espiritual era alheia aos pagãos e é o restabelecimento
desta unidade originária e natural entre religião e política o verdadeiro sentido
da teoria política hobbesiana.
Para justificar sua interpretação da obra hobbesiana, Schmitt (1990)
parte da capa da primeira edição inglesa do Leviatã em 1651. A imagem é de
um homem enorme, composto de vários homens menores, tendo no braço
direito, o temporal, uma espada e no esquerdo, o espiritual, um básculo
episcopal que protege uma cidade. Debaixo de cada braço, estão os seguintes
desenhos: debaixo da espada, um castelo, uma coroa, um canhão, fuzis,
lanças, bandeiras e, por último, uma batalha; debaixo do braço esquerdo, um
30

templo, uma mitra, os raios da excomunhão, distinções, silogismos e dilemas


sutis e, por último, um concílio. Estes desenhos são a representação dos
instrumentos de poder e combate próprios da disputa entre os braços temporal
e espiritual, da luta política, do amigo-inimigo. Na capa, portanto, o Leviatã não
é um monstro, mas um homem majestático.
E, ao longo da obra, a impressão mítica produzida pela capa se desfaz,
segundo Schmitt (1990). No texto, são utilizadas indistintamente as expressões
Magnus homo e Magnus Leviathan, e, assim, são justapostas as imagens do
homem magno e do animal marinho do Livro de Jó; homem e animal se
confundem.
Aliás, no livro de Hobbes, a palavra Leviatã aparece somente três vezes:
bem no começo, quando ele diz que a civitas ou república é um homem
magno, um grande Leviatã, um ser, animal artificial, ou máquina. Aqui se
encontram três imagens: um grande homem, um animal grande e uma grande
máquina, fabricada pelo ser humano. Na segunda, no capítulo 17 do livro
segundo, se referindo ao nascimento do Estado por meio do contrato, Hobbes
fala no nascimento do grande Leviatã, o Deus mortal, que por meio do medo ao
seu poder, obriga todos os homens a viver em paz. Aparece, portanto, a quarta
imagem – a do Deus mortal. O Leviatã é, pois, o conjunto Deus, homem,
animal e máquina.
A última citação do vocábulo está no final do capítulo 28 e é, para
Schmitt (1990), a verdadeira explicação da imagem do Antigo Testamento.
Neste capítulo, Hobbes desenvolve o problema das penas e das recompensas,
meio necessário para influir sobre os homens e, principalmente, frear sua
soberba e outras paixões. O titular do poder supremo, o Rector, é quem dispõe
das penas e das recompensas, sendo comparado, e não o Estado em sua
totalidade, ao grande Leviatã, uma vez que Deus disse no Livro de Jó: 41,24 –
Nenhum poder da terra pode se comparar a ele (SCHMITT, 1990). Assim, é o
titular do poder soberano quem detém o poder terreno supremo e indivisível e,
por meio do terror e do uso da força, subjuga a todos. Subjuga e mantém a
ordem contra o caos, o estado de natureza, a revolução, representada pelo
Behemoth; é o absolutismo estatal, e a função da citação bíblica do Leviatã tem
como fim apenas fazer patente esta representação.
31

A grande preocupação de Schmitt (1990) na análise do Leviatã não é


apenas entender o significado do termo utilizado por Hobbes, mas,
principalmente, compreender o que significa a imagem dentro da estrutura
conceitual e sistemática da teoria política hobbesiana.
O ponto de partida da construção do Estado em Hobbes é o medo do
estado de natureza, e seu objetivo é a segurança do estado civil político.
Naquele estado, todos são iguais, uma vez que podem matar a quem
desejarem, cada um é inimigo e oponente do outro, reinando, desta maneira,
de acordo com Schmitt (1990), uma “democracia”. Com o Estado, todos os
indivíduos têm a segurança de sua existência física e reina a tranquilidade, a
segurança e a ordem, sendo sua instituição mais essencial a polícia. Se no
estado de natureza homo homini lupus, no Estado policial moderno, homo
homini Deus.
No entanto, ao longo do Leviatã, Hobbes apresenta três concepções de
“Deus”, impossíveis de serem harmonizadas umas com as outras. Em primeiro
lugar, a imagem mítica do Leviatã, que reúne os termos Deus, homem, animal
e máquina; em segundo, a construção jurídica do contrato, que serve para
explicar uma pessoa soberana, obtida por meio da representação; e,
finalmente, e o ponto vital da construção política hobbesiana, para Schmitt
(1990), a transferência da concepção cartesiana do homem, como mecanismo
dotado de alma para o homo magno, o Estado, uma máquina animada pela
pessoa representativa soberana.
Para Hobbes, portanto, antes de tudo, Deus é potestas, e o soberano
político, o “Vicario de Dios en la tierra” (SCHMITT, 1990, p. 31). O caráter
divino do poder político, soberano e onipotente, não tem, deste modo, uma
fundamentação lógica ou mesmo do direito natural, já que ele é criador de uma
paz terrena e não divina - seu fundamento é sua onipotência, que tem origem
humana, decorrente de um contrato celebrado pelos homens. Em suma, não
há, em Hobbes, uma ordem natural preexistente, criada por Deus, mas uma
ordem e comunidade, o Estado, como resultado da razão e do gênio criador
humano, do contrato. E este tem um sentido absolutamente individualista, no
momento em que indivíduos aterrorizados no estado de natureza se juntam e
se submetem, de maneira geral e absoluta, a um poder mais forte.
32

A pessoa soberana representativa é, assim, mais do que a força somada


de todas as vontades individuais; o Leviatã é um novo poder, um novo Deus,
que transcende juridicamente, e não metafisicamente, os indivíduos que o
criaram. O que importa não é a representação por meio de uma pessoa (esta
só é a alma do homo magno), mas a proteção efetiva do Estado, que é
assegurada por um mecanismo eficaz de mando, um mecanismo técnico-
político. O Estado moderno, que nasce no século XVII, é, pois, o primeiro
produto da época técnica, machina machinarum.
O Leviatã é, neste contexto, uma obra típica e mesmo prototípica do
período técnico industrial seguinte e o soberano não foi capaz de conter o
processo de mecanização estatal que ocorreu no século posterior. Não só não
foi detido pelo personalismo soberano, como foi aperfeiçoado pelo mesmo. O
Estado é uma máquina, construída e constituída por homens, e a alma – o
soberano – é apenas uma parte desta máquina, cuja função é a segurança da
vida terrena dos homens dominados e protegidos por ele, o estado de paz civil.
Entretanto, Schmitt (1990) faz questão de ressaltar que, na época de
Hobbes, mecanismo e máquina não tinham o sentido que vão adquirir nos
séculos XIX e XX. Ele não faz, como Kant ou os românticos alemães, uma
distinção entre coisa morta, mecanismo e máquina, sem caráter mítico, e coisa
viva. Em Hobbes, mecanismo, organismo e obra de arte estão implícitas como
produto da energia suprema criadora do homem. Por isto, para ele, mecanismo
e máquina podiam ter significado mítico.
Mas, é pela mesma razão, que seu conceito de Estado se torna
essencial no processo de quatro séculos, no qual, por meio de noções
técnicas, se produziu uma neutralização geral, convertendo o Estado em um
instrumento técnico neutro.
O Estado como um aparato técnico, cujo poder de mando cresceu
visivelmente com o desenvolvimento das possibilidades de circulação e
comunicação e das armas militares, de tal modo que seu funcionamento e a
precisão interna da técnica moderna parecem qualidade autônomas,
independentes de considerações e objetivos metafísicos, jurídicos, políticos ou
religiosos. Nas palavras de Schmitt (1990), “quão ‘limpa’ e ‘exata’ é a máquina!”
33

(p.40, tradução nossa18). E a consequência desta lógica é evidentemente uma


concepção que coloca o valor do Estado em ser uma boa, uma grande
máquina. Neste ponto, a democracia liberal coincide com o marxismo
bolchevique, transformando o Estado em um aparato das mais diversas forças
políticas que podem dele se servir como um instrumento técnico neutro.
Ao longo do século XVII, já há, então, um processo de neutralização
que, com uma lógica interna absoluta, culmina em uma tecnificação geral. Nela
o Estado, como toda técnica, se torna independente de todos os objetivos,
convicções políticas e valores, adquirindo a neutralidade própria de um
instrumento técnico.
O primeiro passo decisivo deste processo se deu com as lutas religiosas
e teológicas, das disputas e guerras sangrentas do referido século. O natural é
que, como consequência destas disputas teológicas, das quais nenhum
“partido” saía vencedor, se buscasse um campo neutro, no qual se pudesse ter
conciliação, tranquilidade, segurança e ordem. No princípio, este campo foi a
metafísica natural, já distanciado um pouco da teologia tradicional, incapaz de
distinguir, de maneira clara, tolerância e neutralização. O que importava era
evitar as disputas dos teólogos.
Em contrapartida, em Hobbes e sua filosofia sistemática do Estado, seu
racionalismo precursor da moderna ciência natural, a neutralidade adquire
outro sentido – um pensamento técnico-positivista, neutro frente aos valores e
à verdade, com os valores do mando e da função sendo autônomos em relação
à religião e à metafísica. Um Estado neutro, que pode ser tolerante ou
intolerante, mas que segue, em ambos os casos, sendo neutro. Seu valor,
verdade e justiça estão na perfeição técnica e na decisão do mandato da lei. A
máquina estatal ou funciona ou não; e, no primeiro caso, requer obediência
incondicional às leis que presidem seu funcionamento, garantindo a segurança
e existência física dos indivíduos.
Tem-se aqui, de acordo com Schmitt (1990), um novo plano do
pensamento jurídico e político teórico – o positivismo jurídico. Para o autor,
Hobbes foi o primeiro a conceber e dar expressão conceitual à ideia do Estado

18
“qué ‘limpia’ y ‘exacta’ es la máquina!”
34

como uma máquina tecnicamente perfeita, tendo seu direito e sua verdade em
si mesma, ou seja, em seu próprio rendimento e função.
E este Estado é infinitamente distante da comunidade medieval não só
na concepção do soberano (direito divino dos reis medieval x direito de mando
racional do Estado neutro), mas também na situação jurídica dos súditos. Na
comunidade medieval, o direito de resistência feudal ou estamental contra um
governante injusto era evidente; o vassalo ou estamento podia evocar um
direito divino. No Estado absoluto hobbesiano, colocar o direito de resistência
no mesmo plano que o direito estatal é absolutamente absurdo, uma vez que
ele não pode ser construído nem como direito objetivo nem como direito
subjetivo; frente ao Leviatã, a máquina perfeita, capaz de aniquilar toda
resistência, toda tentativa de resistir resulta praticamente vã.
Segundo Schmitt (1990), admitir, em Hobbes, o direito de resistência
seria o mesmo que admitir o direito à guerra civil, reconhecido pelo Estado, ou
seja, um direito de destruir o Estado, o que também resulta absurdo19.
Ou o Estado existe realmente como Estado e funciona
como instrumento incontrastável da paz, da segurança e
da ordem, e tem de sua parte o direito objetivo e o direito
subjetivo, posto que como legislador único e supremo cria
ele mesmo todo direito, ou não existe realmente e não
cumpre sua função de assegurar a paz. Então, não há
Estado, e sim estado de natureza. Pode ocorrer que o
Estado deixe de funcionar e que a grande máquina se
rompa pela rebelião e pela guerra civil. Mas isto nada tem
a ver com o ‘direito de resistência’ (SCHMITT, 1990, p.
46, tradução nossa20).

É o Estado quem coloca fim à guerra civil ou não é um Estado. Um


exclui o outro. O mesmo não ocorre, entretanto, no campo do direito
internacional em relação às guerras. Estas são simplesmente guerras entre
Estados, os sujeitos do direito internacional sobre os quais repousam todo este
sistema jurídico, e não guerras de religião, civis ou entre partidos. Apenas os
19
Norris (1998) critica, neste ponto, a interpretação de Schmitt sobre a teoria hobbesiana.
Segundo o autor, Schmitt diz repetidamente no Leviatã que Hobbes nega o direito de
resistência do cidadão ao Estado. No entanto, Hobbes o garante nos casos em que o Estado
ameaça diretamente a vida do indivíduo, já que a proteção da vida é uma condição necessária
(se não suficiente) da legitimidade política.
20
O el Estado existe realmente como tal Estado y funciona como instrumento incontrastable de
la paz, de la seguridad y del orden, y tiene de su parteel derecho objetivo y el derecho
subjetivo, puesto que como legislador único y supremo crea él mismo todo el derecho, o no
existe realmente y no cumple su naturaleza. Puede ocurrir que el Estado deje de funcionar y
que la gran máquina quede rota por la rebelión y la guerra civil. Pero esto no tiene nada que
ver con el ‘derecho de resistencia’.
35

Estados como organizações fechadas, com sua racionalidade de mecanismo


de mando, podem se enfrentar como inimigos.
E, neste contexto, a questão da guerra justa, tratando-se de uma guerra
entre Estados, resulta tão incomensurável como o problema da resistência
justa frente ao Estado dentro do mesmo. É dizer que a guerra interestatal não
pode ser medida por critérios de verdade e de justiça – a guerra não é justa
nem injusta, apenas um problema do Estado, como Schmitt (1993) irá
desenvolver na sua obra “O Conceito do Político”. Tratá-la com valores de
honra e justiça é transformar a guerra entre Estados em uma guerra civil
internacional (SCHMITT, 1990).
No campo do direito internacional, como colocou Hobbes pela primeira
vez, os Estados estão em relação aos outros em um estado de natureza. Neste
se celebram contratos, mas sempre com grandes reservas que impedem que a
situação de insegurança ceda lugar a um Estado de segurança racional e legal.
Portanto, apenas no Estado há segurança e ele assume integralmente a
racionalidade e a legalidade. Fora dele, só há estado de natureza e entre as
máquinas a posição é francamente irracional. Entre Estados não se deve
interpor outro Estado, de modo que não há guerra legal ou paz legal, mas
apenas o estado de natureza pré-legal e extralegal dos Leviatãs, cujas relações
recíprocas são sempre de extrema tensão, dificilmente controladas por meio de
contratos. A zona é de perigo e ameaça e distinguir o amigo-inimigo é questão
de sobrevivência, não há garantias e aquele “que busca sua segurança no
outro se submete a ele” (SCHMITT, 1990, p. 49, tradução nossa21).
A última questão que Schmitt (1990) analisa no Leviatã de Hobbes é a
questão da fé e dos milagres. Segundo ele, o poder soberano é também o
único que em virtude da sua soberania determina o que os súditos devem crer
como prodígio ou milagre.
O milagre em Hobbes não é uma questão teórica ou crítica de natureza
geral, mas tem uma importância política, concreta e imediata. A cura dos
enfermos com o toque das mãos era, naquela época, próprio do ofício real,
sendo um signo do caráter sagrado da pessoa do soberano. Hobbes faz uma
análise agnóstica deste rito e seu ponto de partida é a afirmação de que

21
‘el que busca su seguridad en otro se somete a él.’
36

ninguém pode saber com certeza se um determinado feito é ou não um


milagre. De acordo com Schmitt (1990), Hobbes é um dos primeiros e mais
incisivos críticos dos milagres bíblicos cristãos, bem como de todo tipo de
milagre. Para ele, nada é verdadeiro, tudo é mandato. Novamente, Auctoritas,
non Veritas.
Em outras palavras, milagre é tudo o que o soberano do Estado manda
crer como tal; e o inverso também ocorre – os milagres deixam de sê-lo quando
o Estado os proíbe. Assim, “cada soberano decide inapelavelmente dentro de
seu próprio Estado aquilo que é milagre” (SCHMITT, 1990, p. 53, tradução
nossa22). Hobbes continua, deste modo, fiel ao seu decisionismo. Se o Estado
decide que é milagre, todo mundo deve, por razão de direito, ater-se a este
mandato. Com isto, o poder soberano alcança o ápice de sua força e se torna o
“lieutenant of God”, como Hobbes o denomina.
O Deus mortal tem, portanto, poder sobre o milagre e a confissão. E, no
sistema político do Leviatã, ele realiza uma distinção entre a crença interna e a
confissão externa. O milagre é uma questão de razão pública, mas o Leviatã
reconhece, em virtude da liberdade geral de pensamento, que cada qual,
conforme sua razão privada, creia ou não intimamente e assim o conserve. A
crença pode ser interna, mas a confissão externa é de razão pública, o juízo
privado nada conta e é o soberano quem decide sobre o verdadeiro ou falso.
Tem-se, então, neste momento, uma distinção entre o privado e o
público, a fé e a confissão, dos quais se derivaram, nos séculos posteriores, o
Estado de direito e o Estado constitucional liberal. É do agnosticismo e não dos
sectários protestantes que nasce o moderno Estado neutro. É o começo,
segundo Schmitt (1990), da moderna liberdade individual de pensamento e de
consciência construída em um sentido jurídico e não teológico, bem como das
liberdades peculiares da estrutura do sistema constitucional liberal.
E foi justamente esta reserva de liberdade interna e privada de
pensamento que foi o gérmen letal que destruiu, a partir de dentro, o poderoso
Leviatã e colocou em estado crítico o Deus mortal, que perdeu sua alma.
Uma vez admitida a distinção entre o foro interno e
externo, já é coisa decidida, pelo menos em potência, a
superioridade do interno sobre o externo e, por
conseguinte, do privado sobre o público. Ainda que se

22
“cada soberano decide inapelablemente dentro de su propio Estado lo que es milagro”.
37

acate ao poder público de forma expressa e


incondicional, e o respeite com toda lealdade, quando
esse Poder não é mais que um poder público, todo poder
externo está, na verdade, vazio e sem alma. Um Deus
terrestre desta forma não conta mais do que com a
aparência e o simulacro de divindade. As coisas divinas
não podem se impor externamente (SCHMITT, 1990, p.
61, tradução nossa23).

Em suma, o que leva à destruição do Leviatã, como magnus homo, no


século XVIII, é a distinção entre o interno e o externo. Mas, sua obra, o Estado,
sobreviveu como poder Executivo, exército e polícia bem organizados, com um
aparato de administração e justiça e uma burocracia perfeitamente
especializada; cada vez mais próximo da imagem da máquina e do
mecanismo. Do mesmo modo, a lei também se transformou, convertendo-se
em um meio técnico para enfrentar o Leviatã, para sujeitar ao cálculo o manejo
do poder estatal. É um processo de legalização generalizada, no qual o Estado
se transforma em um sistema positivista de legalidade. O legislador humanus
se converte em machina legislatoria.
O Estado absoluto do século XVIII deu lugar, no continente europeu, ao
Estado burguês de direito do século XIX, um sistema de legalidade cujos
instrumentos de trabalho são as leis escritas, sobretudo códigos, e fundado em
uma constituição feita por homens. É o Estado das leis, o Estado legislador, no
qual a legalidade é o fundamento para exigir a obediência e para suprimir o
direito de resistência. O Estado moderno é, pois, a transformação da
legitimidade em legalidade, do direito natural em direito positivo e estatal.
Na interpretação schmittiana é, então, Hobbes o “precursor espiritual” do
Estado de direito e do Estado constitucional burguês. Hobbes, objetivamente
neutro e científico, funda o Estado como obra humana, por meio do contrato de
todos com todos, distinguindo depois um tipo especial de Estado
institucionalizado, ao qual se pode chamar de Estado de direito constitucional –
ordenado por uma assembleia nacional constituinte.

23
Una vez admitida la distinción entre el fuero interno y externo, ya es cosa decidida, por lo
menos en potencia, la superioridad de lo interno sobre lo externo y, por conseguiente, de lo
privado sobre lo público. Aunque se acate al poder público en forma expresa e incondicional, y
se respete con toda lealtad, cuando ese Poder no es más que um poder público, todo el poder
externo está, en realidad, vacío y sin alma. Un Dios terrenal de esta hechura no cuenta más
que con la apariencia y los ‘simulacra’ de la divinidad. Las cosas divinas no se pueden imponer
externamente.
38

Todo Estado se funda, segundo Hobbes, em um


contrato; e todo Estado é Estado de direito, porque dentro
do Estado não cabe nenhum direito estranho ou contrário
ao Estado mesmo; agora bem, apenas o Estado fundado
por essa assembleia nacional constituinte é Estado de
direito constitucional (SCHMITT, 1990, p. 68, tradução
nossa24).

E esta neutralização e formalização do Estado de direito, sua redução a


um sistema de legalidade estatal, funcionando na forma do cálculo e indiferente
a todo conteúdo ou objetivo de verdade e justiça, se converteu, no século XIX,
na doutrina jurídica do positivismo legal. Neste contexto, mesmo o Estado
bolchevique, erguido entre os anos de 1917 e 1920, pode ser considerado um
Estado de direito. Para Schmitt (1998), “(...) cada ordem é uma ordem jurídica e
cada Estado é um Estado de direito” (p.38). Este não significa, portanto, uma
meta e conteúdo de um Estado, mas a maneira de realizar ambos; é a
dissociação entre conteúdo e forma, objetivo e caráter, assim como a
contraposição de interno e externo do século XVIII (SCHMITT, 1990).
Nesta nova concepção de Estado, iniciada por Hobbes, a lei se converte
em decisão e mandato em sentido de motivação coativa, psicologicamente
calculável, cujo modelo típico é o da lei penal. Mas ainda assim esta coação se
dá nos limites do Estado de direito burguês – a lei, por exemplo, não pode ter
força retroativa. Hobbes declara, no Leviatã, que não são obrigatórias as leis
post-factum, no mesmo sentido do liberalismo lockeano, a quem normalmente
se atribui a “paternidade” do direito liberal. Ou seja, já estaria implícito em
Hobbes o princípio penal básico do nulla poena, nullum crimen sine lege.
Schmitt (1990), deste modo, baseado no trabalho de Fernando Tönnies,
interpreta Hobbes não como um teórico do Estado absolutista, mas como um
teórico do Estado de direito positivo. Para ele, durante muitos séculos, Hobbes
carregou a má-fama de absolutista e o Leviatã se tornou um símbolo primário
para representar tudo o que a democracia ocidental entende pela denominação
de Estado totalitário e totalitarismo, permanecendo ignorados na sua teoria os
elementos próprios do Estado legalista.

24
Todo Estado se funda, según Hobbes, en un contrato; y todo Estado es Estado de derecho,
porque dentro del Estado no cabe ningún derecho extrano o contrario al Estado mismo; ahora
bien, sólo el Estado fundando por esa asamblea nacional constituyente es Estado de derecho
constitucional.
39

Na teoria hobbesiana, a pedra angular está na relação proteção e


obediência. O objetivo do Leviatã é colocar fim à anarquia do direito de
resistência feudal, canônico ou estamental e à guerra civil, se opondo ao
pluralismo medieval, às pretensões da Igreja e de outros poderes indiretos,
defendendo a unidade racional de um poder inequívoco, que seja capaz de
proteger de maneira eficaz, e um sistema legal cujo funcionamento está
reduzido ao cálculo. Este poder estatal deve ser capaz de fazer frente a
qualquer perigo político, assumindo, desta maneira, a responsabilidade pela
segurança e proteção dos seus súditos. E quando esta cessa, também cessa o
dever de obediência dos súditos em relação ao Estado, recobrando os
indivíduos sua liberdade natural. E esta relação é, de acordo com Schmitt
(1990), conciliável com os conceitos e ideais do Estado de direito burguês.
O pensamento hobbesiano penetra, deste modo, o Estado legal
positivista do século XIX, só que de forma apócrifa. Os antigos poderes
indiretos a que Hobbes 25 se refere, como as organizações de interesses,
continuam a existir, mas transfigurados em poderes da sociedade, como
partidos políticos e sindicatos, que, através do Parlamento, se apoderaram da
legislação e do Estado legal. O antigo dualismo Estado e sociedade livre se
converteu em um pluralismo social, formado de poderes heterogêneos,
invisíveis, não controlados, propício ao triunfo fácil dos poderes indiretos. Estes
se serviram do Leviatã para destruí-lo e, com ele, levaram todo o sistema legal
do Estado de direito.
Para Schmitt (1990), o pluralismo levou à destruição do Estado liberal,
“As instituições e conceitos do liberalismo sobre os quais o Estado legal
positivista se assentava, se converteram em armas e posições fortes de
poderes genuinamente antiliberais” (p.77, tradução nossa26).
E, assim , com a separação entre Estado e liberdade individual, o Deus
mortal morreu pela segunda vez.

25
Vide a teoria dos poderes indiretos de Schmitt no item 2.2 deste trabalho.
26
“Las instituciones y los conceptos del liberalismo sobre los que el Estado legal positivista se
asentaba, se convirtieron en armas y posiciones fuertes de poderes genuinamente
antiliberales”.
40

2.4 – A neutralização do Estado: antiliberalismo e crítica do legalismo


positivista

Segundo Schmitt (1996), o sistema parlamentar, ou o que ele denomina


government by discussion, pertence ao mundo intelectual do liberalismo e não
da democracia; liberalismo e democracia, portanto, devem ser separados.
Para o autor, a verdadeira democracia deve buscar a homogeneidade e,
por consequência, eliminar a heterogeneidade, uma vez que se baseia no
princípio de tratar o igual de maneira igual e, implicitamente, de tratar o
desigual de maneira desigual. A força política da democracia estaria, deste
modo, em afastar tudo o que é estranho e diferente, buscando a igualdade, em
sua substância, e não apenas de maneira abstrata, como quer a falsa
igualdade da democracia liberal (SCHMITT, 1996, 2001).
Só assim a igualdade é politicamente interessante – na medida em que
possui uma substância e contém, deste modo, a possibilidade e o risco de uma
desigualdade, permitindo a exclusão de uma parte da população dominada
pelo Estado, sem que deixe de ser uma democracia.
Aplicando esta noção de igualdade concreta ao Estado alemão, Schmitt
(2001) afirma que a aceitação da multiplicidade poderia levar a uma divisão
pluralista do povo alemão em tribos, classes e grupos de interesse. Neste
contexto, se fez necessária a existência de um Estado forte que fosse capaz de
garantir a unidade política sobre uma multiplicidade de formas, criando uma
lógica interna coerente de instituições e sistemas normativos. E este Estado
forte foi, na Alemanha, o nazista; o único a ter a “coragem de lidar com as
diferenças diferentemente e realizar as diferenciações necessárias” (SCHMITT,
2001, p. 36, tradução nossa27), buscando a homogeneidade do povo alemão a
partir do conceito de identidade étnica.
O grande problema, então, do liberalismo é que este criou a ideia de
uma democracia da humanidade, na qual toda pessoa deve ter o mesmo direito
político que qualquer outra, quando, na verdade, o direito de voto requer a
igualdade e a homogeneidade substanciais. Uma democracia da humanidade
não pode e nem deve predominar, pois significaria uma igualdade absoluta,

27
“the courage to handle differences differently and to carry through necessary differentiations”.
41

“uma igualdade compreendida sem riscos, sem a correlação necessária da


desigualdade e, portanto, uma igualdade indiferente, prática e conceitualmente
sem significado” (SCHMITT, 1996, p.13).
Assim, é uma tolice liberal desprezar as particularidades das pessoas e
das regiões, abstraindo o seu sentido específico como igualdade política e
econômica em determinado território, o que acabaria levando a injustiças e, em
última instância, à desvalorização e nivelação da própria política. Aliás, a
igualdade de todas as pessoas como pessoas sequer é um tipo determinado
de liberalismo, em uma forma estatal, mas uma forma moral e uma visão de
mundo individualista-humanitária, cuja interligação com a democracia é a base
da moderna democracia de massas.
E é este modelo que leva a uma crise da própria democracia, ao se
dissolver a questão da igualdade (relativa) e da homogeneidade substanciais
na igualdade humana geral. Crise esta que é acompanhada por uma crise do
sistema parlamentar, sendo que ambas surgiram, ao mesmo tempo, e se
reforçam. A democracia, em uma perspectiva rousseauniana adotada por
Schmitt (la volonté générale) , procura criar uma identidade entre governantes
e governados, líderes e seguidores, mas, no modelo moderno de massas,
esbarra na figura do Parlamento, uma instituição dedicada à discussão entre
seus membros (o que é liberal, mas não democrático).
A crítica schmittiana é, portanto, à democracia liberal, parlamentar, e não
à democracia propriamente dita. A vontade geral, não pode, segundo o autor,
ser medida ou expressa por uma simples soma de votos, mas antes, seria mais
bem representada por meio de uma aclamação. A defesa, desta forma, é de
uma democracia direta, na qual a busca da homogeneidade seja possível.
Neste sentido, o voto universal e secreto é antidemocrático, embora liberal.
A crise da democracia e do sistema parlamentar levariam ainda a uma
terceira crise – a do Estado moderno, que consiste em uma incapacidade da
democracia de massas de construir qualquer forma de Estado e muito menos
um democrático. De acordo com Schmitt (2001), cada incerteza e cisão
produzida pela democracia liberal pode se tornar uma abertura para a inserção
de formações primeiramente neutras e, então, inimigas do Estado, constituindo
um ponto de desenvolvimento da fragmentação e da desintegração pluralistas.
Neste sentido, o liberalismo matou o Leviatã.
42

É necessária, então, a existência de um Estado forte, o Estado total,


capaz de lidar com as diferenças e construir uma democracia baseada em uma
igualdade substancial e não a artificial do liberalismo e seu conceito apolítico
de humanidade (SCHMITT, 1992, 2001). Neste sentido, é que se pode afirmar
que “não há Estado normal que não seja total ao mesmo tempo” (SCHMITT,
2001, p.37, tradução nossa28).
E Schmitt (1996) vai além – as ditaduras podem ser antiliberais, mas não
são necessariamente antidemocráticas. O Parlamento sim é uma instituição
artificial liberal, enquanto “os métodos ditatoriais e imperialistas podem até ser
sustentados pelo povo, não só por meio da acclamatio, mas também por meio
diretos de expressão, de substância e força democráticas” (SCHMITT, 1996,
p.17).
O contraste insuperável, deste modo, não é entre ditadura e democracia,
mas entre a consciência liberal do indivíduo e o princípio da homogeneidade
democrática. A ditadura, mesmo que transitória, pode representar a
identificação democrática entre a vontade de governante (ditador) e do
governado (povo). A grande questão, por conseguinte, para Schmitt (1996,
2001) é a da identificação, de como moldar a vontade do povo e de quem
detém esta capacidade, por meio da propaganda, da força política e militar, do
controle da opinião pública por meio da imprensa, entre outros. A luta política
hoje se dá, neste sentido, nos meios de identificação com a vontade do povo, e
a legitimidade é a democrática.
Contudo, a exigência da democracia para legitimar a identificação
também significou, historicamente, a exigência de uma Assembleia
Constituinte. No século XIX, o sistema parlamentar e a democracia estavam
interligados da tal forma que foram considerados basicamente como sinônimos.
Entretanto, como afirma Schmitt (1996), pode existir uma democracia sem o
sistema parlamentar moderno e vice-versa.
Durante a luta entre a representação popular e a monarquia, o governo
que era escolhido sob influência da primeira era chamado de parlamentarista,
conceito que passou a designar um tipo particular de poder Executivo. Assim,

28
“there is no normal state which is not total at the same time”.
43

governo parlamentar passou a ser aquele que pressupõe a existência de um


Parlamento, que exerce um controle sobre o Executivo.
A justificativa mais antiga para esta instituição está na impossibilidade
concreta do exercício da vontade do povo de maneira direta, tomando decisões
sem intermediações. O Parlamento é, portanto, uma questão prática – na
impossibilidade de todo o povo decidir, elege-se uma comissão do povo, os
representantes, e o governo é uma comissão do Parlamento. E, desta forma, o
sistema parlamentar aparece como algo democrático. Mas da mesma maneira
que uma comissão de pessoas confiáveis pode decidir em nome do povo,
também o pode uma única pessoa confiável, o que consiste em uma
democracia não parlamentar.
Em suma, o Parlamento não é um princípio democrático, mas técnico-
prático, liberal, um processo de conflitos que resultam na vontade do Estado. O
essencial desta instituição não é, então, o fato de ser uma comissão do povo,
mas ser o espaço da discussão pública, de debates sem objetivos e dos
discursos banais, com decisões tomadas por dirigentes de facções, nos
bastidores, transformando todo o sistema parlamentar em uma fachada para o
exercício de poder dos partidos e dos interesses econômicos. Citando a crítica
de Donoso Cortés ao liberalismo, Schmitt (2006) afirma que é da essência da
burguesia liberal nada decidir, mas discutir. Como diria Cortés, a burguesia é
“una clase discutidora”, que transfere a atividade política aos discursos, na
imprensa e no Parlamento.
E isto não é uma democracia. Discussão, competição de projetos
divergentes, negociação, liberdade de expressão e reunião, publicidade de
opinião entre outros, são valores liberais e, no caso da publicidade,
especificamente, apenas uma técnica contra o absolutismo que se tornou um
valor. Aliás, o mesmo acontece com o princípio liberal da separação dos
poderes, com o agravante de que dizer que o poder do Estado não pode se
concentrar em um único ponto é, na prática, contrastante com a ideia de
identidade democrática.
O Parlamento se tornou o lugar do equilíbrio, da mediação, da
diversidade e não mais da unidade, e, a partir do século XVII, com o
surgimento de um conceito constitucional de lei, a separação dos poderes
44

torna-se sinônimo de constituição e o Parlamento de órgão do Estado,


essencialmente legislativo. Sua função é fazer a lei, a norma geral e racional.
Schmitt é, portanto, um autor profundamente antiliberal. Para ele,
segundo Norris (1998), o individualismo liberal é apolítico (a morte do Leviatã);
nele, a vida pública governa a si mesma, por meio da oposição pública, de
indivíduos privados. Ou seja, nada no sistema é representativo, sendo uma
questão privada.
Além disto, segundo Schmitt (2007), o Estado de direito liberal é o
Estado da legalidade e, para tanto, se constitui, em regra29, como um Estado
Legiferante parlamentar, no qual o Poder Legislativo, na forma da
representação parlamentar, cria as leis.
Um Estado legiferante é um Estado regido por
normatizações com conteúdo mensurável e
determinável, caracterizadas como impessoais e,
por esse motivo, gerais, bem como
predeterminadas em consequentemente,
concebidas, visando a uma duração permanente
(SCHMITT, 2007, p.2).

Logo, a lei é definida como norma geral e abstrata, com duração


permanente, que não rege, mas vige enquanto norma. Neste Estado, estão
separados a lei e a aplicação da lei, aquele que legisla daquele que aplica a lei,
quem legisla e quem governa, o Legislativo e o Executivo. A instância
legiferante, então, cria, mas não aplica nem faz valer as leis.
Esta separação é, para o autor, o fundamento e o princípio básico do
Estado Legiferante, no qual indivíduos não detêm o poder, mas normas
impessoais vigem. Neste contexto, a lei é a manifestação do direito e a
justificação da coerção estatal é a legalidade.
No entanto, para além desta forma de Estado, há outros nos quais a
vontade política se manifesta de outros modos, com diferentes focos, podendo
estes modelos, na realidade histórica, se apresentarem de maneira combinada
e híbrida, uma vez que em todos os Estados se ordena, se comanda, se
administra e se criam normas legais.

29
Schmitt (2007) admite a possibilidade de um Estado de direito tanto nos modelos Legiferante
e Jurisdicional, como também no Dirigente e Administrativo, desde que estes dois últimos se
proponham a “substituir o Direito antigo incorreto por um Direito novo correto e, sobretudo, a
criar a situação normal, sem a qual todo e qualquer normativismo é um engodo. A expressão
‘Estado de Direito’ pode significar tantas coisas distintas como o próprio termo ‘direito’ (...)” (p.
15).
45

Neste contexto, Estado Jurisdicional é aquele no qual o juiz, responsável


pela decisão de um litígio, pronuncia a última palavra. Se no Estado Legiferante
sua manifestação é a normatização, no Jurisdicional é a mera aplicação desta
normatização. No extremo oposto ao Legiferante, está o Dirigente, cuja
característica é a manifestação da vontade pessoal soberana e da ordem
autoritária de um mandatário. E, finalmente, há o Estado Administrativo, no
qual não há nem pessoas que governam nem normas vigentes como algo
superior, mas no qual as coisas se auto administram. É a tomada de decisão
apenas conforme a situação dada, concreta e guiada por critérios de
conveniência prático-objetivos (SCHMITT, 2007).
Embora cada Estado se manifeste de uma forma específica, na figura do
soberano, todos esses elementos voltam a se reunir – o soberano é, assim, ao
mesmo tempo, “supremo legislador, supremo juiz e supremo mandatário, última
fonte de legalidade e última base de legitimidade” (SCHMITT, 2007, p.4). O que
vai caracterizar cada modelo é o tipo de vontade suprema que vem à tona, em
determinado momento e de maneira decisiva e marcante.
Para Schmitt (2007), esta distinção entre a legalidade do Estado
Legiferante e as outras formas de legitimação dos Estados Jurisdicionais,
Dirigentes e Administrativos são mais produtivas para entender a situação
estatal de sua época que a oposição “clássica” entre democracia e autoridade,
ou a tripartição monarquia, aristocracia e democracia.
A oposição decisiva, segundo o autor, é entre a ficção normativista de
um sistema fechado de legalidade e legitimidade de uma vontade realmente
existente. Além disto, ele percebia, na época em que “Legitimidade e
Legalidade” foi escrita, em 1932, que o Estado alemão estava sofrendo uma
guinada rumo a um Estado Total, que é um Estado Administrativo, ainda que
faça uso da Justiça, o que ele termina por constatar em sua obra de 1933,
“Estado, Movimento e Povo”. A tendência, portanto, não era para a liberdade, e
sim para o planejamento, em virtude das circunstâncias político-sociais da
Alemanha.
Deste modo, pode-se afirmar que é a política interna de um Estado que
vai determinar o modelo adequado para o mesmo. Assim, em tempos de paz,
de estabilidade jurídica, predomina o Estado Jurisdicional, de tendência
46

conservadora, como meio de preservação do status quo e dos direitos


adquiridos, no qual a Justiça está separada do Estado e é guardiã do direito.
Em tempos revisionistas, reformistas, o Estado Legiferante, munido de
programas partidários, é o instrumento do progresso por meio da via
parlamentar legal, em uma busca do desenvolvimento com segurança jurídica.
Já em períodos de revolução ou grandes mudanças, a tendência é a de
prevalecer o Estado Dirigente ou Estado Administrativo. O primeiro possui mais
um pathos que um ethos, na busca pela glória e pela honra como demonstrado
pelos monarcas absolutos dos séculos XVII e XVIII. O segundo é baseado não
nas normatizações, mas em medidas conforme as circunstâncias, a urgência e
a necessidade da situação.
Se o Estado Jurisdicional é marcado pelas defesas advocatícias e o
Legiferante pelas discussões intermináveis, segundo Schmitt (2007), o
Dirigente e o Administrativo partem da ordem concreta e são decisionistas,
valendo aqui a máxima “A melhor coisa do mundo é uma ordem!” (SCHMITT,
2007, p. 8). No caso do Dirigente, este teria na pessoa do seu mandatário ou
na dignidade do Executivo todas as qualidades da representação.
O Estado Legiferante, no entanto, age na esfera do abstrato, na crença
na legalidade, subsumindo a esta as expressões legitimidade e autoridade. Seu
ethos é a ratio, em oposição à mera voluntas; o racionalismo normatizador em
oposição ao pragmatismo e à adequação de medida e ordem. Não há aqui
como elemento legitimador o monarca ou a vontade popular plebiscitária, ou
qualquer autoridade superior e poder público fundamentados em si mesmos.
Estes só fazem sentido enquanto expressão da legalidade e dela são
derivadas.
O Estado da monarquia constitucional do século XIX era um Estado
Legiferante parlamentar. Nele, o conceito de lei, em um sentido formal, como
resolução emanada de um processo com participação da representação do
povo, é essencialmente político. Neste sentido, foi uma vitória da
representação popular o surgimento do direito essencialmente na forma da lei,
ou seja, como direito positivo e, mais especificamente, como direito escrito e
não consuetudinário, já que este teria um papel restritivo em relação ao
legislador.
47

É neste sentido, segundo Schmitt (2007), que no século XIX surge o


sistema jurídico ainda vigente, o da legalidade, no qual se tornaram
equivalentes os conceitos de Estado, direito e lei. O Estado é a lei e só a ela se
deve obediência, sendo nulo o direito de resistência. E a lei é o regulamento
estatal que surge com a participação do povo, via representantes, e que
significa o próprio direito.
É o domínio da lei – sua prioridade (em relação a outras atividades
estatais) e primazia (monopólio da regulação legal em relação a direitos
constitucionais) – garantido pelo legislador e o processo legiferante por ele
controlado. O legislador é o guardião da lei e, portanto, do próprio direito e,
consequentemente, da ordem social, origem última de toda legalidade e
proteção contra a injustiça. Assim, no Estado Legiferante, também há uma
equivalência entre legalidade e justiça.
Em suma, é em nome de todas estas equivalências conceituais que se
tornou possível submeter-se ao domínio da lei em nome da liberdade,
eliminar o direito de resistência do catálogo dos direitos
da liberdade e conceder à lei aquela prioridade
incondicional que enxergou na submissão do juiz à lei
uma garantia da independência judiciária, encontrou na
legalidade da administração a mais importante proteção
contra os abusos do poder estatal e disponibilizou ao
magistrado, sem objeções, todos os direitos
fundamentais garantidos pela Constituição, que passou a
ter o direito, por força da ‘primazia da lei’, de neles
interferir em seu arbítrio. (SCHMITT, 2007, p.20).

Analisando o Estado alemão e a Constituição de Weimar de 1919,


Schmitt (2007) afirma que a mesma é, na verdade, duas Constituições, que
traduzem dois modelos estatais.
A primeira parte é legalista, em uma manifestação típica do Estado
Legiferante parlamentar, previsto no artigo 68 da Constituição. Nele, lei
significa, como já analisado, um regulamento estatal surgido com a
participação da representação do povo, via Parlamento, que se confunde com
o próprio conceito do direito e do Estado. É o domínio da lei, do sistema
fechado da legalidade, e não da autoridade, em nome da liberdade,
concedendo à lei prioridade incondicional e eliminando o direito de resistência
do rol das liberdades. O legislador, neste contexto, no qual repousa a confiança
social, é sempre o ordinário, e não há outras fontes jurídicas que não a lei,
48

mantendo aquele o monopólio da legalidade e sobre o qual deve residir uma


confiança imperturbável.
Para que a Constituição organize o Estado de direito em um Estado
Legiferante, é preciso que haja confiança, pois, no legislador, na justiça e em
todos aqueles que participam do processo legiferante, garantindo, assim,
proteção contra abusos. O sistema de legalidade, deste modo, não existe de
maneira incondicional. A lei, além do seu sentido formal, também tem um
sentido material, de norma ou preceito jurídico que determina aquilo que
deverá ser de direito para o indivíduo, contendo uma sanção ao seu não
cumprimento.
Este legalismo em momentos de pacificação e normalidade, em uma
situação na qual foi eliminada a dualidade Estado e sociedade e vontade
estatal e vontade popular, no entanto, tende a reforçar o caráter formal da lei.
Na democracia, a lei é a vontade do povo, que na prática é a vontade da
maioria dos cidadãos votantes, ou seja, a vontade do Parlamento, órgão
legiferante; é a vontade popular. Neste caso, a decisão por maioria simples
pode ser, ao mesmo tempo, direito e lei, desde que se parta do princípio que
ela contém as qualidades da vontade popular.
A legalidade é, por conseguinte, neutra, tanto no sentido liberal quanto
funcionalista, sendo a lei a decisão tomada pela maioria parlamentar. Neste
contexto, a Constituição escrita deve se restringir fundamentalmente a
regulamentos organizacionais e jurídico-processuais, e não materiais, uma vez
que não deva assumir o papel de legislador. O monopólio deste cabe, em um
Estado parlamentar, ao Parlamento, que, pelo art.68 da Constituição de
Weimar, é o Reichstag. Na perspectiva funcionalista, a ele cabe fazer as leis,
tornando direito, lei e legalidade modos de processo e procedimentos de
votação “neutros” e indiferentes e acessíveis a qualquer conteúdo.
Entretanto, esta neutralidade deve servir de suporte a qualquer Estado
Legiferante e não agir contra ele mesmo e seus pré-requisitos. Transformar o
Parlamento em mera função de votações majoritárias não só transforma este
processo em lei votada, sem preocupação com conteúdo, como também coloca
fim a todas as garantias de justiça e razão (SCHMITT, 2007). Além disto, este
reducionismo requer a ideia de que em uma democracia o povo é
49

indivisivelmente homogêneo, uniforme, não existindo, na coisa e na essência,


uma minoria; parte-se do princípio que todos desejam o mesmo.
Caso contrário, se não há esta homogeneidade nacional, a averiguação
aritmética da maioria passa a ser o oposto da neutralidade e da objetividade. É
um governo da maioria, que a minoria tem que obedecer, cessando “a
identidade democrática de governantes e governados, de autoritários e
obedientes” (SCHMITT, 2007, p. 29).
Para impedir que o sistema da legalidade pereça, é necessário
pressupor um princípio de justiça, consubstanciado em um princípio de
igualdade de chances, que permita que todos concorram para alcançar a
maioria. Este princípio, portanto, é uma pré-condição para a ideia do Estado
Legiferante parlamentar.
Schmitt (2007) ainda aponta outra consequência nefasta da neutralidade
legalista – a supressão de todo direito de resistência enquanto direito, uma vez
que o poder estatal é legal e o conceito de legalidade não leva em
consideração nenhuma justiça material. É, na verdade, segundo o autor, a
abolição de qualquer diferença entre direito e injustiça; a possibilidade da
injustiça e do tirano. Este, no contexto da falta de conteúdo, será não aquele
que chega ao poder sem um título legal ou que exerce o poder de forma má,
mas o que exerce o poder estatal sem dispor da maioria. O tirano é também,
assim, uma questão numérica.
Nesta perspectiva, na legalidade, toda resistência e toda defesa tornam-
se injustiça e ilegalidade. Como consequência, a maioria governante pode
tornar a minoria hors la loi, ou seja, ilegal. Para evitar este perigo, tenta-se
introduzir certas garantias, como maiorias qualificadas, mas que, segundo
Schmitt (2007), não resolvem a questão. Para ele, mesmo “a introdução dessas
maiorias qualificadas com base em cifras negam e destroem tanto a
democracia quanto o Estado parlamentar legiferante” (SCHMITT, 2007, p. 31).
O princípio da maioria permite que quem governa não só faça as leis,
mas também as torne vigentes. O monopólio, desta forma, é tanto da vigência
quanto o de tornar vigente, da produção e da sanção da legalidade, conferindo
à maioria a posse legal dos meios hegemônicos estatais. Consequentemente,
a maioria deixa de ser apenas o partido dominante e se torna o próprio Estado.
50

Contudo, se em tempos de normalidade esta recompensa “supralegal


pela posse legal do poder” (SCHMITT, 2007) e pela obtenção da maioria é
relativamente previsível, em circunstâncias anormais, é totalmente imprevisível
e incalculável, apresentando três elementos. Em primeiro lugar, ela emana da
utilização concreta de conceitos discricionários e indeterminados como
emergência, medidas necessárias, ordem, perigo, interesses vitais, entre
outros. Este conceitos só fazem sentido, só ganham um caráter concreto, na
aplicação ao caso concreto.
Em segundo lugar, aquele que detém o poder, em caso de dúvida
quanto a estes conceitos indeterminados, em situações difíceis, sempre terá a
legalidade a seu favor. E, finalmente, o que o governante decidir, ainda que a
legalidade seja duvidosa, deverá ser executado de imediato. Na disputa entre o
Executivo e a Justiça, esta, normalmente, chegará tarde.
Esta situação de anormalidade coloca em risco o princípio da igualdade
de chances na política interna, vital ao Estado parlamentar Legiferante, porque
obscurece a oposição insuprimível entre este princípio e a recompensa pela
posse legal do poder. Além disto, o próprio conceito de igualdade de chances é
um daqueles indeterminados, que só se fará concreto com sua utilização em
uma dada circunstância pelo partido que está no poder. E será, então, o partido
que definirá quais são as possibilidades de ação do oponente interno e quando
começa a ilegalidade deste, o que, obviamente, deixa de ser uma igualdade de
concorrência e de chances.
Tem-se, deste modo, um embate entre o partido dominante, e seu direito
inalienável de decidir a (i)legalidade pela própria ótica, e o partido não
dominante, e seu direito de almejar o poder e opinar sobre a (i)legalidade
concreta, dentro da igualdade de chances. A questão que coloca Schmitt
(2007), na situação crítica, é: no caso de conflito, quem decide sobre as
incompatibilidades de opiniões? Se se considera a igualdade de chances, há
uma paridade incondicional entre partido dominante e não dominante. Assim,
seria o caso de se convocar um terceiro para solucionar a questão? Isto seria,
para Schmitt, o abandono do sistema de legalidade do Estado Legiferante
parlamentar. Este terceiro seria supraparlamentar, quando não supra
democrático.
51

A solução, para o autor, estaria no partido dominante, que detendo a


hegemonia legal do poder estatal, se torna o “terceiro elemento”, suprimindo a
igualdade de chances – o estado de exceção.
É por meio do uso das competências extraordinárias do
estado de exceção que a grande recompensa pela posse
de poder, baseada em uso discricionário, presunção de
legalidade e imediata exequibilidade, desenvolve o seu
efeito integral maior e eliminador de qualquer
possibilidade de chances iguais (SCHMITT, 2007, p. 37).

Em suma, à medida que a recompensa supralegal pela posse legal do


poder vai ganhando uma importância política decisiva e se tornando um meio
abusivo de afirmação político-partidária, o princípio da igualdade de chances, e
com ele, a base da legalidade do Estado Legiferante parlamentar, vão sendo
minados. E, vislumbrando a possibilidade de seu fim, quem deterá o poder
legal e sobre quais bases será constituído?
Para responder a esta questão, Schmitt (2007) analisa a segunda parte
da Constituição de Weimar, que ele considera como uma segunda
Constituição, apresentando seus três legisladores extraordinários.
O primeiro é o legislador extraordinário ratione materiae. De acordo com
o autor, neste segunda parte, a Constituição introduz desvios jurídico-materiais
nunca antes vistos na história constitucional alemã, por meio de garantias,
precauções, declarações de inviolabilidade, entre outros. A crítica de Schmitt
(2007), neste ponto, é ao desvio do princípio da maioria simples, por meio da
exigência constitucional de maioria qualificada para votação de determinados
conteúdos.
Para o autor, a exigência da maioria qualificada não pode ser
fundamentada com princípios democráticos, com o recurso aos conceitos de
justiça, humanidade e razão, mas apenas por conjecturas técnico-práticas
sobre uma dada situação. Como já analisado, a democracia tem como pré-
requisito a ideia de homogeneidade constante e indivisível. O objetivo da
votação, deste modo, não é conseguir mais ou menos votos, uma maioria
“maior ou menor”, mas gerar uma concordância, como modo de se constatar a
uniformidade em um nível mais profundo. Na democracia, portanto, não há,
teoricamente, divisão permanente e organizada entre maioria e minoria, como
também não há interesses passíveis e carentes de salvaguarda.
52

Entretanto, a realidade é outra, já que esta carência existe e o seu


simples reconhecimento é uma negação da democracia e, em última instância,
para garantir estes interesses, talvez fosse necessário privá-los dos métodos
parlamentares e mesmo democráticos. Segundo Schmitt (2007), o lógico seria
uma isenção total, com deliberação em separado ou o reconhecimento ao
êxodo e à secessão. Mas não é isto que prevê a Constituição, e sim o
mecanismo das maiorias qualificadas.
Assim, esta previsão de votos além da maioria simples não pode ser
justificada, em relação a interesses e grupos determinados, com a pré-
condição da homogeneidade; por outro lado, o reconhecimento da não
homogeneidade e da pluralidade de interesses dos cidadãos faz com que o
princípio de maioria aritmética perca o sentido.
Esta maioria qualificada produz ainda outra consequência: ao exigir uma
maioria além da simples para determinados conteúdos, introduz uma
diferenciação entre legalidade superior e inferior, introduzindo uma diferença
qualitativa na norma, quando o Estado parlamentar Legiferante se apoia
justamente em um sistema de legalidade no qual somente a norma, em um
sentido neutro, sem conteúdo jurídico-material, possui validade. E esta
diferenciação não apenas degrada a norma inferior como também tira a
centralidade do legislador, criando instâncias e organizações superiores ao
legislador ordinário. Em outras palavras, o conteúdo passa a ser valorizado em
detrimento da neutralidade do sistema de legalidade e o legislador se divide em
legislador extraordinário superior e legislador simples inferior. O resultado, em
ambos os casos, é uma ameaça às bases do Estado Legiferante parlamentar
(SCHMITT, 2007).
Cria-se, então, uma fenda no Estado Legiferante, no qual passam a
penetrar elementos do Estado Jurisdicional, provocando uma expansão e
aprofundamento da referida divisão. Essa introdução do legislador superior
significa uma mudança no tipo de Estado pensado originariamente a partir da
posição determinante do legislador.
A segunda parte da Constituição introduz, ainda, outra relativização do
sistema de legalidade e do legislador ordinário – um procedimento legislativo
típico da democracia plebiscitária direta, entre eles a consulta direta e um
processo legislativo por iniciativa popular. Neste caso, o legislador
53

extraordinário é o povo, acima do Parlamento, resultando tanto seu caráter


extraordinário quanto sua superioridade de sua qualidade de soberano. Se o
primeiro caso é extraordinário ratione materiae, neste último, do povo-
legislador, é ratione supremitatis.
Há nesta parte da Constituição não só outra que se contrapõe à
primeira, como também há, na primeira, que organiza o Estado Legiferante, o
reconhecimento de dois sistemas paralelos de legalidade parlamentar (ratio) e
legitimidade (voluntas) plebiscitária, constituindo uma democracia
constitucional. São duas lógicas diferentes, do legislador parlamentar e do
legislador plebiscitário, portanto, mas que coexistem.
E, finalmente, há um terceiro legislador extraordinário, ratione
necessitatis, quando a medida tomada pelo Estado Administrativo reprime a lei
do Estado Legiferante parlamentar. Este legislador não decorreu, no caso
alemão, do que está escrito na Constituição, mas da própria prática do
Presidente do Reich, com a tolerância do Reichstag, o reconhecimento da
teoria do direito do Estado e de uma prática judiciária legitimadora. O terceiro
legislador extraordinário é, então, o Presidente, a quem o art. 48, §2º. da
Constituição alemã confere competências extraordinárias para promulgar
decretos (como todo art.48, aliás).
E estas competências possuem um caráter jurídico-positivo, uma vez
que o legislador extraordinário é concorrente do ordinário e pode criar o direito
não apenas praeter (de caráter supletivo), mas também contra legem, ou seja,
contra o legislador ordinário do Estado Legiferante parlamentar.
É, deste modo, segundo Schmitt (2007), um legislador ratione temporis
ac situationis, verdadeiramente jurisprudencial, segundo o qual as normas
valem para as situações normais, que são o elemento jurídico-positivo da sua
validade. Entretanto, na situação de anormalidade, o legislador da normalidade
cede lugar ao comissário da ação, que busca restabelecer a situação normal, o
que significa a segurança e a ordem.
Neste contexto, ainda que se busque equiparar as medidas legislativas
do comissário da ação às leis, continua a subsistir uma diferença que destrói o
sistema de legalidade parlamentar justamente em virtude desta equiparação.
Diferentemente dos dois outros legisladores extraordinários, ratione materiae e
ratione supremitatis, o do art. 48, § 2º. não é superior, mas inferior ao
54

parlamentar ordinário, uma vez que suas medidas devem ser toleradas pelo
Reichstag, que pode pedir sua revogação.
No entanto, na prática, o que se percebe, para a situação extraordinária,
é a superioridade deste legislador ratione necessitatis, que apenas não pode
reivindicá-la abertamente. Superioridade que advém do fato de que o
legislador, com base em seu próprio julgamento, toma as decisões sobre os
pré-requisitos de suas competências extraordinárias (perigo para a segurança
e ordem públicas) e sobre o conteúdo das medidas necessárias. E exatamente
por isto, ele pode, em um espaço exíguo de tempo, voltar a tomar medidas que
foram revogadas pelo Parlamento. Como o pedido de revogação não tem
caráter retroativo, “o legislador extraordinário pode criar fatos consumados
perante o legislador ordinário” (SCHMITT, 2007, p. 74).
Analisando, neste contexto, a abrangência e o conteúdo da competência
legislativa do legislador extraordinário, o que fica evidente é sua superioridade
em relação ao legislador ordinário, o Reichstag, para o qual a lei está separada
do aparato de aplicação da mesma.
E é esta separação entre a lei e a sua aplicação um dos fundamentos do
Estado Legiferante parlamentar, que desenvolve mecanismos de salvaguarda
no âmbito do Estado de direito, visando à proteção do Executivo. Mas, em
virtude do art. 48, §2º, para o legislador extraordinário, a distinção entre lei e
sua aplicação, entre Executivo e Legislativo, não é um obstáculo nem jurídico
nem fático, uma vez que ele encarna ambas. Se ele assim o determinar,
segundo Schmitt (2007), um mero ato de aplicação da lei pode ganhar um
caráter legislativo.
Em suma, o Presidente do Reich pode, em virtude das competências a
ele atribuídas, intervir em todo o sistema de normatizações jurídicas existentes,
promulgar normatizações gerais, decidir sobre mecanismos especiais e criar
instâncias extraordinárias executoras para a aplicação e execução das novas
normatizações. Em outras palavras,
(...) ele concentra a faculdade de legislar e de aplicar a
lei, podendo executar as normas legiferadas por si
mesmo, o que está vedado ao legislador ordinário do
Estado legiferante parlamentar, enquanto ele respeitar a
separação de poderes essencial a um Estado legiferante,
reconhecendo a divisão existente entre lei e aplicação da
lei (SCHMITT, 2007, p. 76).
55

De acordo com o art. 48, §2º., alínea 2, o legislador extraordinário, além


das suas já citadas competências, pode, de maneira explícita, revogar sete
direitos fundamentais, entre eles a liberdade individual e a propriedade, sem
necessidade de um procedimento formal. O que significa, segundo Schmitt
(2007), que estes direitos fundamentais, que são a base do Estado de direito,
simplesmente deixam de existir para o legislador extraordinário.
É o estado de exceção típico, com suspensão de direitos, no Estado
Legiferante parlamentar, que, ao permitir esta exceção, não pretende equiparar
o comissário da ação ao legislador ou as medidas à lei, mas criar uma margem
de ação livre para as medidas efetivas necessárias. Esta suspensão, portanto,
não é apenas dos direitos, mas também da primazia da lei e,
consequentemente, do Estado Legiferante e o próprio núcleo da constituição –
a liberdade e a propriedade.
Não existe aqui, contudo, uma concorrência de legisladores. Aquele que
é legitimado a tomar as medidas extraordinárias não faz leis; em outras
palavras, embora não sejam ilícitas, as medidas não têm (e nem podem ter)
força de lei. Se o tivessem, como ocorreu com o Reich alemão, quando os atos
extraordinários se tornaram decretos com força de lei, um novo sistema de
legalidade seria instaurado na Constituição e os direitos fundamentais
poderiam ser suspensos tanto via ato extraordinário quanto por via de um
decreto que representa a lei. Neste contexto, seria afetada a base do Estado
de direito, a da primazia da lei e do legislador ordinário.
Isto ocorre, de acordo com Schmitt (2007), quando há uma degeneração
do conceito de lei – no Estado Legiferante parlamentar, a normatização
realizada pelo legislador em razão de sua competência legislativa é algo
diferente e superior a uma mera medida. Portanto, medida não é lei e lei não é
medida. Outra interpretação diversa desta permitiria ao ditador autorizado não
só tomar medidas, como também o direito extraordinário de legislar.
Em suma, na Constituição de Weimar, existem 3 legisladores
extraordinários – ratione materiae, ratione supremitatis e ratione necessitatis-
que colocam em risco o sistema de legalidade do Estado Legiferante
parlamentar, ao qual a própria Constituição queria se ater. Na verdade, eles
56

foram criados como uma forma de se corrigir determinados desequilíbrios do


sistema parlamentar, não obtendo, entretanto, êxito.
Na análise schmittiana, as “correções” não foram capazes de evitar um
esfacelamento pluralista e a morte do Leviatã, com a vontade da maioria
parlamentar baseando-se apenas em um acordo de organizações
hegemônicas declaradamente heterogêneas. E este sistema pluralista
necessita de outro tipo de justificação que não a legalidade do Estado
Legiferante parlamentar.
Além disto, o pluralismo também nega um princípio fundamental deste
Estado – o de igualdade de chances, com os partidos que estão no poder
destruindo o sistema da legalidade em nome de uma legitimidade da
democracia plebiscitária, a da eleição. Assim, o Parlamento deixa de ser uma
assembleia caracterizada por qualidades específicas, de criar leis e ser fonte
da legalidade, e se torna, com sua maioria, uma “interposição plebiscitária”
(SCHMITT, 2007, p. 95).
E, com a prática de decretos-lei pelo presidente do Reich, o Estado
alemão se tornou, na realidade constitucional, uma ligação entre o Estado
Administrativo e o Estado Jurisdicional, que encontra sua justificação última no
âmbito da legitimidade da democracia plebiscitária, e no qual a manifestação
da vontade plebiscitária não é normatização, mas sim decisão por meio de uma
vontade.
A causa do Estado Total alemão, portanto, ou do que Schmitt (2007)
denomina de politização total de toda a existência humana, está na
democracia. Esta, ao pressupor consultas e respostas, também pressupõe uma
autoridade que faça estas perguntas; ou seja, um governo que não apenas
gere negócios, mas também possua autoridade para
realizar as formulações de perguntas plebiscitárias na
ocasião certa. A pergunta somente pode ser formulada
pela instância superior, e já a resposta somente poderá
vir da instância inferior. (...) autoridade vem de cima,
confiança vem de baixo. (SCHMITT, 2007, p.97).

Uma autoridade estável, que faça a pergunta certa e que não abuse
deste grande poder; que seja capaz de realizar as despolitizações necessárias
e, uma vez fora do Estado Total, resgatar áreas vitais e esferas de liberdade. É
uma autoridade rara e que pode se originar de diversas fontes – dos efeitos de
57

um grande êxito político, do prestígio de uma elite paralela à democracia ou


dos vestígios de uma época pré-democrática.
Um Estado, deste modo, não se torna Total através da sua força e vigor,
mas da fraqueza de seu pluripartidarismo, intervindo em todas as esferas da
vida, inclusive econômica, para satisfazer às exigências de todos os
interessados. E um Estado fraco busca legitimações, legalizações e sanções,
utilizando-os como justificativa e arma na luta interpolítica (partidária). A
legitimidade e a legalidade se tornam, neste contexto, instrumentos táticos na
busca do poder e no aproveitamento de suas vantagens, e a constituição se
dissolve em inúmeras possibilidades interpretativas de diferentes grupos e seus
interesses. A constituição passa, então, a ser também uma arma de luta
política e utilizada contra si mesma, e sua ficção normativa, como
consequência, se torna incapaz de evitar uma guerra civil. Aliás, “Legalidade,
legitimidade e constituição, ao invés de evitarem a guerra civil, somente
contribuiriam para um acirramento” (SCHMITT, 2007, p.101).
A solução para Schmitt (2007), estaria no reconhecimento de que a
Constituição de Weimar são duas e que a escolha entre ambas deve recair
sobre o princípio da segunda e sua busca por uma ordem substancial, em
detrimento de uma neutralidade valorativa de um sistema funcionalista da
maioria.
E é em sua segunda parte, no art. 48, §2º, que se encontra o significado
do poder soberano schmittiano.

2.5- A exceção soberana: poder e estado de exceção

“Soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. É, assim, que


Schmitt (2006b, p.7) define soberania na abertura do primeiro capítulo da
“Teologia Política”.
É, como reconhece o autor, um conceito limítrofe e geral de soberania.
Não se trata apenas de um estado de sítio ou de outra situação específica, mas
de um conceito genérico da doutrina do Estado, que justifica sua adequação a
uma definição jurídica da soberania.
Usando a teoria de Bodin, Schmitt (2006b) adota o conceito de decisão
na sua definição sobre a soberania. A decisão sobre a exceção o é em um
58

sentido eminente, um vez que a norma jurídica válida jamais pode assimilar
uma exceção absoluta e, deste modo, nunca pode justificar a decisão tomada
em um verdadeiro caso excepcional. Este não pode ser circunscrito em uma
tipificação jurídica, o que torna fundamental a questão do sujeito da soberania.
Na impossibilidade de se determinar objetivamente quando ocorre um
caso emergencial, ou de enumerar o que deve ser feito para se eliminar o
perigo, é o soberano quem decide sobre ambos – em outras palavras, é o
soberano quem decide sobre a existência da emergência extrema e sobre o
que deve ser feito para eliminá-la. Ele se situa fora da ordem legal vigente, mas
ainda sim pertence a ela, por ser competente para decidir sobre a suspensão
da constituição.
Segundo Agamben (2004a), falta ao direito público uma teoria sobre o
estado de exceção. Para os juristas e, em especial, os publicistas, a exceção
se apresenta mais como uma questão de fato do que de direito; uma questão
de necessidade, a qual é negada juridicidade – necessitas legem non habet
(AGAMBEN, 2004a, p. 11).
Neste sentido, a grande contribuição da teoria schmittiana está na sua
articulação entre o estado de exceção e a ordem jurídica. Isto só foi possível
através da distinção realizada por Schmitt, na “Teologia Política”, entre norma
(Norm) e decisão (Entscheidung, Dezision). No momento em que suspende a
norma, o estado de exceção revela a decisão, como um elemento formal
jurídico. Na situação de normalidade, a decisão é reduzida a um mínimo,
enquanto no estado de excepcionalidade, a norma é anulada. Mas ambos,
norma e decisão, continuam parte do ordenamento jurídico (SCHMITT, 2006b).
A exceção seria um caso singular, excluído da norma geral, mas não do
ordenamento jurídico. A norma continua a se relacionar com a exceção por
meio de sua suspensão, ou seja, é uma exclusão que inclui. Assim, segundo
Agamben (2007), “A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se
desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas
a situação que resulta de sua suspensão” (p.25). Na verdade, segundo a
doutrina schmittiana, esta suspensão não seria da norma, mas de sua
aplicabilidade.
Neste sentido, a teoria schmittiana faz ainda outra distinção – entre as
normas do direito e as normas de realização do direito. Deste modo, no estado
59

de exceção, o que, na verdade, se suspende não é a norma, que continua


vigente enquanto potência, mas sua aplicação. O estado de exceção separa a
norma de sua aplicação, criando uma zona de anomia para tornar possível “a
normatização efetiva do real”( AGAMBEN, 2004a, p.58).
É esta articulação entre exceção e direito que permite a Agamben
(2004a, p.56) afirmar que o estado de exceção schmittiano é, na “Teologia
Política”, uma doutrina da soberania.30 O soberano é aquele que está fora da
ordem jurídica, mas, ao mesmo tempo, pertence a ela, já que é responsável
pela decisão sobre sua suspensão. É uma relação dialética, portanto - o
soberano é quem decide sobre a exceção, mas esta decisão só pode ser
tomada porque ele é o soberano.
Segundo Agamben (2007), seria este o paradoxo de Schmitt – a decisão
do soberano não precisa do direito para criar o direito. Se a exceção estivesse
prevista na norma, seria norma e não exceção. Na realidade, a decisão
soberana cria o espaço de validade da ordem político-jurídica, criando um
verdadeiro ordenamento do espaço. Não é uma decisão de direito, nem de
fato, mas que diz respeito à própria relação entre direito e fato. A exceção como
a “forma originária do direito”, que se refere à vida e “a inclui em si através de
sua própria suspensão” (AGAMBEN, 2007, p.34-35).
Entretanto, esta competência soberana não deve ser apreendida em
termos de seu sujeito. Juridicamente, a soberania estatal deve ser definida não
como “monopólio coercitivo ou imperialista”, mas “como um monopólio
decisório em que a palavra decisão é utilizada no sentido geral ainda a ser
desenvolvido” (SCHMITT, 2006b, p. 14).
No âmbito do pensamento científico-jurídico, Schmitt (1992, 2006b)
adota a chamada linha institucional, em contraposição às linhas normativistas
(validade da ordem jurídica centrada na impessoalidade das normas) e
decisionistas (caráter personalista do poder).
Entre os normativistas, encontra-se Kelsen (1998), para quem o Estado
seria a própria ordem jurídica, entendido como uma unidade e não como autor
ou fonte dela. Consoante sua teoria positivista, a validade de uma norma

30
O que não ocorre na obra anterior de Schmitt Die Diktatur, de 1921. Nesta, o autor faz uma
análise do estado de exceção a partir dos conceitos de ditadura comissária (que visa a
defender ou restaurar a constituição em vigor) e ditadura soberana (que visa à criação de uma
nova constituição). Para esta discussão, vide Agamben (2004a).
60

estaria sempre em uma norma hierarquicamente superior a ela no


ordenamento jurídico. E, em última instância, como pressuposto lógico do
sistema normativo e critério de validade e existência de todas as normas,
estaria a norma fundamental.
Kelsen (1998) defende, neste sentido, uma teoria pura do direito, como
condição de autonomia científica da disciplina, e, desta forma, a dissociação
entre o direito e as outras ciências, como a sociologia e a filosofia. Como
consequência, o fundamento do direito só pode ser encontrado no próprio
direito. Nesta perspectiva, segundo Schmitt (2006b), o Estado seria também
uma figura puramente jurídica, sendo idêntico a sua constituição, ou seja, à
norma fundamental.
Schmitt (2006b) não só critica esta concepção de Estado de Kelsen, mas
também o fato deste último autor negar o conceito de soberania, afirmando que
o mesmo deve ser reprimido de maneira radical.
Na mesma linha de Kelsen, Krabbe (apud SCHMITT, 2006b) defende
que o soberano não é o Estado, mas o direito, ou seja, as normas jurídicas.
Para ambos, o aspecto pessoal deve desaparecer do conceito de Estado,
sendo a ideia de direito pessoal do comando (subjetivismo) um equívoco da
doutrina de soberania estatal. No lugar do subjetivismo, a validade da norma
objetivamente vigente. A esta posição, Schmitt (2006b) coloca a seguinte
indagação: a norma não pode se auto aplicar; então, quem deve aplicá-la se
ela não dispõe sobre isto? Não se trata, pois, de uma questão meramente
jurídica.
O normativismo, portanto, é incapaz de lidar com situações na qual a
autoridade legalmente constituída não tem uma capacidade real de tomar
decisões e de impô-las de acordo com os procedimentos estabelecidos. Assim,
a distância entre fato e lei permanece e o sistema normativo se vê sob uma
tensão crítica (HUYSMANS, 2008).
Em oposição aos normativistas, encontram-se os decisionistas, como
Hobbes (1979), que fazem uma defesa do personalismo. Segundo Hobbes
(1979), o Estado seria o resultado de um pacto feito entre os homens. Mas este
não se sustentaria se tivesse seus alicerces apenas nas palavras que o selam.
Para que o pacto seja obedecido após sua celebração, é necessário que exista
alguma força externa aos pactuantes que lhes imponha castigos caso venham
61

a quebrar o pacto.
Os homens, desta forma, abrem mão de um direito natural de fazerem o
tudo o que for necessário para a preservação da vida, e transferem-no a uma
terceira pessoa (ou assembleia) que, apesar de não ser parte contratante neste
processo, garante o cumprimento do mesmo impondo sanções a quem
desobedecer ao contrato feito.
Fica, então, instituído um poder soberano, acima de todos os homens
que se comprometeram a viver em paz. Assim como os homens imitariam a
natureza para construírem as máquinas, este ser soberano se assemelharia a
um Homem Artificial criado para garantir o pacto. O Estado que nasce seria o
próprio Homem Artificial; seus funcionários as juntas; a riqueza e prosperidade
sua força; seus conselheiros a memória; a concórdia seria a saúde; a
soberania corresponderia à alma; as recompensas e castigos por ele impostos
seriam os nervos; a segurança do povo o objetivo; a justiça e as leis seriam sua
razão e vontade; a sedição a doença e, enfim, a guerra civil, a morte, pois
assim voltaríamos ao Estado de Natureza. Hobbes 31 chama a este novo
Homem de Leviatã.
Este poder soberano seria indivisível, caso contrário não seria realmente
soberano. A este poder caberia: prescrever leis civis que garantam a
propriedade; exercer a autoridade judicial; decidir a respeito de guerras contra
outros Estados; escolher todos seus conselheiros e castigar ou recompensar
como lhe aprouver. São direitos do soberano, classificados por Hobbes (1979)
como incomunicáveis e inseparáveis.
Deste modo, segundo Schmitt (1996), a soberania estatal hobbesiana
seria concreta, recusando uma ordem abstrata. O poder estatal estaria
submetido a um poder maior, intelectual e espiritual, do Leviatã 32. Um poder
pessoal.
Além disto, Schmitt critica Hobbes por permitir a liberdade de opinião

31
Vide item 2.3 deste trabalho.
32
Para Agamben (2007), o estado de natureza hobbesiano não é uma época real,
cronologicamente anterior à fundação da cidade, mas o momento em que a cidade se divide e
se dissolve, ou seja, um estado de exceção. Mais do que uma guerra de todos contra todos,
ele é o momento em que “cada um é para o outro vida nua e homo sacer” (p.112); em que
cada um é, ao mesmo tempo, lobo e homem – lupus homini lupus. Com a criação do Leviatã, o
estado de natureza passa a sobreviver dentro do próprio Estado, como o jus puniendi do poder
soberano. Assim, este não é fundado no pacto ou contrato social, mas na “inclusão exclusiva
da vida nua no Estado” (AGAMBEN, 2007, p.113).
62

aos indivíduos, uma vez que qualquer forma de opinião autônoma no âmbito
público pode se fragmentar em uma pluralidade de interesses – fundamento do
liberalismo, objeto das críticas schmittianas (HUYSMANS, 2008; SCHMITT,
1990).
O Estado liberal e seu correlato o Estado de direito se esforçaram, em
seu desenvolvimento, para eliminar a figura do soberano. E é justamente por
isto que Schmitt (2006b) adota o conceito de soberania de Bodin, orientado ao
caso crítico, ao caso de exceção. Não se trata aqui de mera retórica, mas de
considerar a soberania como uma unidade indivisível e que decide
definitivamente a questão do poder do Estado. O príncipe só está ligado a um
compromisso na medida em que o cumprimento da promessa é do interesse do
povo; no caso da emergência, da urgência, ele não mais permanece ligado ao
compromisso, podendo transgredir suas promessas, modificar ou anular leis.
Neste sentido, a verdadeira característica da soberania é o poder de suspender
a lei vigente – em geral, ou em casos isolados.
Por conseguinte, como alternativa às teorias normativistas e
decisionistas, Schmitt (2006b) inclui na soberania o conceito de decisão – toda
ordem jurídica baseia-se em uma decisão e não em uma norma - e propõe sua
Teologia Política. Segundo o autor, todos os conceitos da teoria moderna do
Estado seriam, na verdade, conceitos teológicos que foram secularizados.
Nesta perspectiva, o estado de exceção estaria para a jurisprudência
como o milagre para a teologia. Em ambos os casos haveria uma intervenção
direta do soberano na ordem das coisas. É ele quem detém os poderes que
não são atribuídos pelo direito positivo; é ele quem é competente quando a
competência não está prevista.
Esta teologia política estaria presente em diversas concepções de
soberania, seja na vontade geral rousseauniana, ocupando o lugar de Deus, ou
no próprio Deus do hobbesianismo.
A crítica de Schmitt recai, então, novamente sobre o liberalismo e sua
fundamentação racional, que busca protelar ao máximo a questão da soberania
por meio do controle mútuo e da distribuição de competências. A defesa do
Estado de direito e da ordem e a negação da exceção. O direito como
contraposto à exceção.
No entanto, como afirma Schmitt (2006b), a exceção está presente no
63

interior do direito e é por isto que, ao invés de negá-lo, o confirma. Em sua


perspectiva institucional ou supra pessoal, as normas só valem para situações
normais. A exceção seria o caso que não cabe no âmbito da normalidade
abrangido pela norma geral. É exceção porque não está escrita na ordem
jurídica vigente; não está, portanto, presente no direito positivo, mas se
encontra no interior do direito. Na teoria schmittiana a exceção está inscrita na
ordem jurídica. A situação de emergência não é o caos; a decisão de se
declarar a exceção é antes de tudo relacionada às circunstâncias às quais as
normas se aplicam (PAYE, 2004).
Deste modo, o Estado emergencial não é a anarquia, o Estado continua
a subsistir, bem como a ordem no sentido jurídico, embora não seja a ordem
jurídica. A decisão liberta-se de sua ligação normativa e, em certo sentido,
torna-se absoluta. A ordem deve ser implantada para que a ordem jurídica
tenha um sentido. É o soberano, então, quem decide e cria a situação normal.
Assim, para Schmitt, não só a decisão é jurídica como cabe ao soberano
decidir sobre ela:
De forma que uma filosofia de vida concreta não pode se
retrair diante da exceção e do caso extremo, porém deve
interessar-se por isso em grande medida. (...). A exceção
é mais importante que o caso normal. O que é normal
nada prova, a exceção comprova tudo; ela não somente
confirma a regra, mas esta vive da exceção (SCHMITT,
2006b, p.15).

A definição de soberania tem, para Schmitt (2006b), um caráter


metafísico, estando sua fundamentação última em um momento irracional,
constituindo um mito fundador, entendido com uma base não racionalmente
legitimável, para além das razões históricas. Não há, neste sentido, uma
explicação meramente política para explicar a constituição dos princípios que
orientam a ordem pública. A soberania e a ordem repousam, pois, não sobre
uma norma, mas sobre uma decisão. Assim como o logos, a decisão originária
do Deus do Novo Testamento. No lugar do intervir histórico do Deus judaico, do
Antigo Testamento, o Deus cristão, feito homem na figura de Jesus. E neste
Deus encontra-se o logos, a soberania divina, que cria a ordem objetiva, sem
fundamentação racional ou argumentativa.
Neste sentido, segundo Santos (2007),
O pensador alemão considera que quem decide sobre a
64

exceção, e detém o monopólio dessa decisão última,


detém a essência do poder estatal. Ora, na sua
concepção, o que a exceção revela é precisamente o
caráter mítico sobre o qual se assentaria, em última
instância, a política (p. 321).

Na concepção de Schmitt, então, não há nem a anterioridade do caos


nem da ordem, reforçando o caráter mítico da decisão soberana. É o soberano
quem decide o que é o normal e o que é excepcional; o que é lei e o que é fora
da lei. Agamben discorda desta posição ao vislumbrar uma anterioridade do
ordenamento, que, quando suspenso, cria a exceção. Não há um fora da lei. A
decisão do soberano não tem um caráter mítico, mas é a própria estrutura
jurídico-política originária, que constitui a ordem jurídico-política e sua
suspensão (SANTOS, 2007, p. 322).
Deste modo, na perspectiva schmittiana, a política também é uma
questão de ação e decisão, fruto da ideia de soberania política. O âmbito do
político é definido, e sua natureza objetiva e autônoma, pela oposição binária
amigo x inimigo, o fundamento último das ações e dos motivos políticos.
Inimigo entendido como hostis (inimigo público) e não inimicus (inimigo
privado), que seria o adversário ou mero concorrente. Na teoria do amigo-
inimigo schmittiana, o inimigo não é uma simples metáfora, mas uma situação
concreta. Ele é um grupo que se contrapõe a outro; é o estrangeiro, que
ameaça a existência e que, portanto, dever ser combatido como uma forma de
autopreservação.
E é o Estado que detém o jus belli, ou seja, o direito de dizer quem é o
hostis, que deve ser aniquilado fisicamente. O Estado é a unidade política por
excelência; a unidade determinante, suprema, decisiva para o antagonismo
amigo-inimigo. É a soberania do Estado; por outro lado, se não é o Estado
soberano, o mesmo inexiste. Schmitt (1992) é um crítico das teorias pluralistas,
que negam a unidade soberana/política do Estado a partir do argumento de
que o homem vive em várias organizações e agrupamentos sociais, tais como
Igreja, família e sindicatos. Segundo o autor, estas não seriam
incondicionalmente decisivas e soberanas, uma vez que não deteriam o jus
belli.
A unidade política é justamente, por essência, a unidade
determinante, independente de que forças ela extrai seus
últimos motivos psicológicos. Ela existe ou não existe.
65

Quando ela existe, é a unidade suprema, isto é aquela


que determina o caso decisivo (SCHMITT, 1992, p. 69).

É o Estado a unidade que dá a norma e a medida, por seu caráter


político; é ele quem pode dizer a guerra e esta é “(...) uma luta armada entre
duas unidades políticas organizadas; guerra civil, a luta armada no interior de
uma unidade organizada” (SCHMITT, 1992, p.58). A guerra, então, requer
necessariamente o conceito do Estado – o hostis ou é outro Estado soberano
ou um agrupamento interestatal que ameaça a integridade da unidade política
(guerra civil).
A guerra é assim entendida não como negação da política, mas como
seu aprofundamento, como um meio político mais extremo, decidida pelo
Estado. É “a realização extrema da inimizade” (SCHMITT, 1992, p.59). Um
instrumento tão importante da política que é reconhecido e delimitado pelo
direito internacional público. O inimigo não é um criminoso, mas tem um status
próprio reconhecido juridicamente.
Quanto à guerra civil, especificamente33, Schmitt (1994) afirma que tudo
o que se diz sobre a guerra só pode “desgraçadamente, (...) adquirir seu último
e mais amargo sentido na guerra civil (p. 28, tradução nossa 34)”. Esta teria algo
de especialmente cruel, enquanto uma guerra entre irmãos dentro de uma
mesma unidade política e do mesmo ordenamento jurídico, uma vez que os
combatentes afirmam e, ao mesmo tempo, negam absolutamente esta unidade
comum. Ambos colocam o adversário, de maneira incondicional, na
ilegitimidade, suprimindo o direito do outro em nome do direito.
Segundo Schmitt (1994), a natureza da guerra civil implica na submissão
sob a jurisdição do inimigo, o que demonstra a relação estreita e dialética desta
guerra com o direito. Um lado defende sua própria razão e a ausência de razão
do outro, se convertendo em um arquétipo da guerra justa enquanto auto
justificada. Um faz valer o direito legal e o outro o natural; um oferece o direito
de obediência e o outro de resistência. E é esta introdução de argumentações
e de instituições jurídicas que “envenena” a luta. Esta é, então, intensificada até

33
A guerra civil é tão grave, para Schmitt (1994), que ele considera que somente nesta época o
suicídio adquire sua significação exemplar, como sacramento, constituindo “la única posibilidad
de demonstrar su dignidad humana y de comprobar su libertad moral” (p. 42). Isto explicaria os
suicídios que ocorreram em Berlim, na primavera de 1945, em determinados grupos sociais.
34
“Desgraciadamente, (…) adquiere su ultimo y más amargo sentido en la guerra civil”.
66

o último grau de crueldade, fazendo dos meios e métodos da justiça meios e


métodos de extermínio. “Se toma assento no tribunal para julgar sem deixar de
ser inimigo” (SCHMITT, 1994, p. 55, tradução nossa35).
Neste contexto, são estabelecidos tribunais revolucionários e populares,
são feitas listas de proscrição públicas ou secretas, discriminações legais,
declarações de inimigos do Estado, do povo ou da humanidade; e estas
declarações, ao invés de darem o status jurídico de inimigo ao adversário, o
privam deste direito, em nome do direito. A inimizade chega, desta forma, a um
nível tão absoluto que a antiga distinção entre inimigo e criminoso se desfaz no
paroxismo da auto justificação.
Entretanto, duas questões devem aqui ser colocadas. Em primeiro lugar,
ainda que reconheça o Estado como o âmbito por excelência do político,
Schmitt (1992) afirma que o político não se resume ao estatal. Embora sejam
conceitos intimamente interligados, os mesmos não se confundem, do mesmo
modo que a política também não se resume à guerra.
E, em segundo lugar, no Prefácio de 1963 do “Conceito do Político”,
analisando o direito público internacional, Schmitt (1992) já relativizava o papel
do Estado enquanto modelo da unidade política e decisória, no sistema intra-
estatal, em função dos tratados internacionais, que teriam abalado a soberania
estatal moderna.
O Estado como modelo da unidade política, o Estado
como portador do mais formidável de todos os
monopólios, ou seja, o monopólio da decisão política,
esta obra-prima da forma europeia e do racionalismo
ocidental, é destronado (SCHMITT, 1992, p.32).

Segundo o autor, os Estados no pluriverso do sistema internacional (o


mundo não é uma unidade política, mas um pluralismo), estariam mais
interessados em tratados, sanções e medidas para assegurar a paz do que na
guerra. Em uma crítica à Liga das Nações, com seus métodos pacíficos de
sanções econômicas, ele a classifica como apolítica. Afinal, para Schmitt
(1992), um mundo sem guerra ou possibilidade da mesma é também um
mundo sem política.
Em suma, o excepcionalismo schmittiano pode ser resumido a dois
elementos centrais (HUYSMANS, 2008). Primeiro, sua formulação da política

35
“Se toma asiento en el tribunal para juzgar sin dejar de ser enemigo”.
67

acontece dentro de uma problemática constitucional-legal que demanda a


escolha entre o decisionismo e o normativismo. Quando Schmitt diz que
soberano é quem decide sobre a exceção, ele coloca a questão do poder
político em termos legais, privilegiando o quem decide sobre o modo como se
decide. Schmitt é, então, um decisionista. A aplicação da lei ao fato não pode
ocorrer sozinha e, para que isto ocorra, é necessária uma decisão. Na prática
legal cotidiana, a decisão dos juízes e do júri; constitucionalmente, esta decisão
se refere ao exercício extralegal do poder político e ao critério do Executivo que
decide se “a condição factual que alguém enfrenta necessita transgredir as
normas legalmente constituídas e os processos de tomada de decisão”
(HUYSMANS, 2008, p.168, tradução nossa36).
O soberano, por conseguinte, é aquele que decide em uma situação na
qual o processo legal e racional fracassa e uma resposta precisa ser dada –
uma decisão precisa ser tomada: quando e como transgredir os procedimentos
quando a situação assim a requer.
Segundo, Schmitt apaga a relevância política da sociedade. O Estado é
a essência do político e deve ser claramente distinto da sociedade. Sua função
é determinar quem é o inimigo público. Assim, o momento político por
excelência é o da exceção e não o das lutas entre as forças sociais como
querem os liberais e os marxistas. É o seu momento criativo que não pode ser
constrangido por normas e procedimentos legais.
Todavia, esta estruturação da política em torno da escolha do inimigo
cria uma política do medo; e, esta política do medo em torno do inimigo é o
princípio central de governo das ditaduras. O mundo passa a ser interpretado
pela vontade do líder e há uma perigosa e radical identificação entre o povo e
aquele que governa, acabando com a relação dialética típica da democracia.
Neste contexto, uma nova concepção de representação surge: ela não é mais
uma questão de mediação entre as forças sociais e os líderes políticos, mas
uma “técnica de uma autoridade política decisiva a qual afirma uma unidade
orgânica ou mística entre o líder soberano e o povo” (HUYSMANS, 2008,

36
“the factual condition one faces necessitates transgressing the legally instituted norms and
procedures of decision making”.
68

p.170, tradução nossa37).


E, assim, dentro de uma perspectiva schmittiana, a democracia desliza
rumo à ditadura.

2.6- Ditadura, poder soberano e exceção

Segundo Schmitt (1968), para os autores do Renascimento, a ditadura


era um conceito prese
nte na história de Roma e em seus autores clássicos, criando, assim, uma
tradição segundo a qual a ditadura era uma sábia invenção da república
romana, e o ditador, um magistrado romano extraordinário.
O ditador romano era nomeado, com um mandato de 6 meses, pelo
cônsul, a pedido do Senado, e tinha como função eliminar a situação perigosa
que havia motivado sua nomeação – poderia tanto ser fazer uma guerra
(dictadura rei gerendae) quanto reprimir uma rebelião interna (dictadura
seditionis sedandae). Posteriormente, foi a ele delegado funções especiais
como a condução de uma investigação ou fixação de dias festivos.
Para a consecução de seus objetivos, o ditador não estava vinculados
às leis e era uma espécie de rei, com poderes ilimitados de vida e de morte,
não tendo os obstáculos típicos do poder dos cônsules, como o colegiado, o
direito de veto dos tribunos da plebe e a apelação ao povo.
E é a partir da experiência romana que autores, como Maquiavel, vão
desenvolver uma teoria geral do Estado. Para ele, o ditador não é um tirano e a
ditadura não é uma forma de dominação absoluta, mas um meio da
constituição republicana preservar a liberdade. Utilizando a contraposição entre
deliberação e execução, Maquiavel define o ditador como aquele que pode
adotar todas as disposições, sem estar sujeito à intervenção consultiva ou
deliberativa de outra autoridade, podendo impor penas com validade jurídica
imediata. No entanto, ele não pode modificar as leis existentes, derrogar a
constituição ou a organização dos poderes públicos, nem fazer novas leis. A
autoridade regular segue existindo na ditadura como uma espécie de controle
e, por este motivo, a ditadura é uma instituição, um órgão constitucional da

37
“tecnique of a decisive political authority who asserts a mystic or organic unity between a
sovereign leadership and the people”.
69

república, ainda que extraordinário (SCHMITT, 1968).


O ditador é, pois, aquele que atua, que tem que intervir imediatamente,
com meios concretos, em situações também concretas; ele é o comissário da
ação, o Executivo, em contraposição à simples deliberação. É quem deve agir
no caso extremo, fazendo tudo aquilo que as circunstâncias exigirem, sem
considerações jurídicas. O seu comportamento pode ser correto ou não, mas
esta apreciação somente pode ser feita no sentido da correção das medidas na
perspectiva técnico-objetiva, ou seja, se são adequadas aos fins perseguidos. A
ditadura é, neste sentido, uma questão “técnica”, de execução, sem
precedência de nenhuma norma no sentido jurídico.
A partir destas colocações, é possível estabelecer 3 características da
ditadura: racionalismo, tecnicidade pura e os órgãos executivos submetendo-se
incondicionalmente ao interesse do funcionamento técnico. E são estas
características que permitem afirmar que a ditadura, entendida como um
ordenamento no qual não se depende da concordância ou compreensão do
destinatário e nem se espera seu consentimento, marca o início do Estado
moderno. Desta forma, este nasceu historicamente de uma técnica política, e,
com ele, começa também a Razão de Estado.
A Razão de Estado, por sua vez, é derivada da necessidade de
afirmação e ampliação do poder político; é o arcanum, o segredo de
“fabricação”. Cada ciência possui sua arcana e todas utilizam certos ardis,
inclusive a astúcia e a fraude, para alcançar seus objetivos, e com o arcanum
político não é diferente (SCHMITT, 1968).
No Império Romano, era possível distinguir entre os arcana imperii e os
arcana dominationis. Os primeiros se referiam à situação de poder em tempos
normais, aos métodos utilizados pelo Estado, em qualquer de suas formas
(monarquia, aristocracia, democracia), para manter o povo tranquilo. Já arcana
dominationis diz respeito à proteção e defesa das pessoas que exercem a
dominação durante acontecimentos extraordinários, rebeliões, revoluções e
aos meios para resolvê-los. A ditadura é parte desta última.
E ambas as classes de arcana estão, conceitualmente, opostas aos jura
imperii e dominationis. Os primeiros são os diferentes tipos de direitos de
soberania, característicos do summun imperium, especialmente o direito de dar
as leis; constituem o fundamento dos arcana e se mantêm os mesmos em cada
70

Estado, embora os arcana possam mudar de acordo com as circunstâncias.


Mas, primordialmente, a diferença está no fato de que os jura são direito e os
arcana são planos e práticas secretas, com ajuda dos quais são mantidos os
jura imperii.
Já jura dominationis compreende o direto público de exceção, que
consiste na possibilidade de seu titular afastar-se do jus commune em caso de
necessidade estatal para manutenção de sua existência, da tranquilidade e da
segurança pública. Os casos mais importantes de sua aplicação são a guerra e
a insurreição.
O direito de exceção, por sua vez, é jus speciale, frente ao direito de
soberania normal, que é um jus generale. A diferenciação entre os direitos de
soberania ordinários e extraordinários se baseia na ideia de que o soberano
está sujeito a regras de direito humano geral e natural. Neste contexto, o direito
de exceção deve respeitar apenas este último, uma vez que é nele que se
revela toda a plenitude do poder estatal. Deste modo, o direito de exceção
segue sendo um direito, uma vez que limitado.
Como consequência da literatura sobre os arcana, em especial da leitura
que Schmitt (1968) faz da obra de Arnold Clapmar, decorre que não se deve
aplicar princípios do direito privado ao direito público. Neste último, não cabe
tentar diferenciar entre o justo e o injusto, o que seria mera formalidade, mas
manter a salus publica, vis dominationes, o que significa que o direito público
depende do estado concreto das coisas e do êxito a ser alcançado. E o estado
de exceção é parte desta lógica – aquele que domina o estado de exceção
domina também o Estado, uma vez que é ele quem decide sobre a existência
deste estado; e é isto que a situação das coisas exige. “Assim, todo direito
termina por se referir à situação das coisas” (SCHMITT, 1968, p. 49, tradução
nossa38). É, neste sentido, portanto, que se diz que é característico do direito
público a cláusula rebus sic stantibus39.
Em contraposição à tecnicidade maquiavélica, os monarcômacos se
opõem à Razão de Estado com argumentos próprios do Estado de direito. Na

38
“Así, todo derecho termina por ser referido a la situación de las cosas”.
39
Significa a “alteração fundamental das circunstâncias”. É uma das modalidades de extinção
ou suspensão da força obrigatória dos contratos, em virtude de circunstâncias supervenientes
ao mesmo e que não poderiam ser previstas pelas partes à época, tornando a obrigação
demasiadamente onerosa para uma das partes.
71

literatura dos monarcômacos do século XVI, como Julius Brutus, a ditadura é


apenas mencionada e o príncipe absoluto é qualificado como um tirano. E este
é definido a partir do conceito de justiça - tirano é aquele que se apodera do
governo de forma violenta ou abusa do mesmo, que a ele é transmitido
juridicamente, violando o direito ou os contratos firmados por ele. Nesta
perspectiva, a lei é a vontade do povo, mais especificamente da representação
estamental do povo, e o príncipe deve governar como um órgão da mesma.
Além disto, o príncipe também deve estar sob o controle do Senado, que é
nomeado para fiscalizar a interpretação das leis pelo rei e sua execução.
Para os monarcômacos, o rei deve governar zelando pelo bem geral, o
que implica na univocidade do conceito de interesse geral, sobre o qual não se
admite dúvidas e há um acordo geral. Entretanto, para Schmitt (1968), é
justamente neste ponto que se produziu uma fissão, levando à criação de dois
sistemas distintos de direito natural, que, no século XVII, era considerado como
um complexo unitário.
Nos monarcômacos, e mais tarde em Grócio, vigora o direito natural da
justiça, que parte da existência de um direito com um conteúdo determinado,
anterior ao Estado. Já o sistema natural científico, adotado por Hobbes, se
baseia na proposição de que antes do Estado e fora do mesmo não há nenhum
direito e que o valor daquele está exatamente em quem cria o direito, pois
decide a polêmica em torno do mesmo. Para esta vertente, a oposição justo e
injusto se dá somente no Estado e através dele, e ele não pode cometer
injustiça; uma prescrição qualquer apenas pode se converter em direito em
virtude do Estado quando este a converte no conteúdo de um mandato estatal
e não porque responda a algum ideal de justiça. Autoritas, non Veritas facit
Legem. A lei, deste modo, não é uma norma de justiça, mas um mandato de
quem tem o poder supremo e por meio do qual determina as ações futuras dos
súditos estatais.
Em suma, o sistema natural de justiça parte do interesse por certas
representações de justiça e, por conseguinte, de um conteúdo da decisão; já
no científico, existe um interesse para que se adote uma decisão, qualquer que
seja seu conteúdo ou fundamento.
Na teoria de Hobbes, natural científica, o soberano é aquele que
determina o que é útil ou prejudicial ao Estado; e, como os homens têm sua
72

própria representação do que é bom ou mal, útil ou não, o soberano precisa ter
também uma decisão sobre as opiniões dos homens, de modo a colocar um
fim na guerra de todos contra todos. Portanto, em Hobbes, por sua própria
constituição, o Estado tem o sentido de uma ditadura. Neste contexto, a lei tem
por base uma decisão sobre o interesse estatal e passa a existir a partir da
ordem dada, ou seja, ela é “ditada”.
Desta forma, o poder soberano de Hobbes se baseia em um acordo
mais ou menos tácito, no convencimento dos súditos, ainda que realizado pelo
Estado. A soberania nasce, então, do ato de constituição do poder absoluto
pelo povo, o que lembra a ditadura soberana, cujo fundamento é uma
delegação absoluta (SCHMITT, 1968).
Quando o povo, na sua totalidade, transfere, de maneira definitiva, a
dominação a um indivíduo, tem origem a monarquia. Se a dominação só é
transferida por um tempo, o caráter jurídico do poder político a que se deu
origem depende do povo, ou seja, o conjunto dos cidadãos que atua como
sujeito jurídico-político tem ou não direito de se reunir em assembleia enquanto
durar esta dominação temporal. E, se o povo tem este direito, independente da
vontade do titular do poder ou mesmo contra sua vontade, este não é um
monarca, mas apenas um primus populi minister. Isto é aplicável ao ditador
romano, o qual pode ser deposto a qualquer momento, antes do término do seu
mandato, por uma assembleia do povo, pois este permanece sempre
soberano.
Segundo Schmitt (1968), no Leviatã, Hobbes chama de monarca
temporal o ditador (referindo-se a Cromwell), uma vez que ele teria o mesmo
poder de um monarca. Além disto, o ditador, quando não pode designar por si
mesmo o seu sucessor, é apenas um ministro da democracia ou da
aristocracia, já que se o pudesse fazer, se converteria em um monarca.
Hobbes distingue, assim, entre a soberania e o exercício da mesma. Na
democracia, se transmite, com certa frequência, o exercício da soberania a um
ministro ou funcionário. Em uma guerra, entretanto, sempre se faz necessária
uma forma absoluta de exercício de dominação, já que os Estados vivem em
um permanente estado de natureza, de onde decorre a superioridade da forma
estatal monárquica.
Entre a perspectiva da tecnicidade maquiavélica e do Estado de direito
73

dos monarcômacos, se encontra a teoria da ditadura comissarial de Bodin.


Para este autor, o ditador romano não era soberano, mas tinha apenas uma
missão, como conduzir uma guerra, reprimir uma rebelião ou reformar o
Estado. Seu poder não poderia ser qualificado como soberano, uma vez que se
extinguia assim que cumprido seu encargo, ou seja, não era um poder
permanente. Portanto, para Bodin, o poder soberano é um poder permanente,
que não se deriva de nenhum outro, e que acima dele reconhece somente
Deus.
Além disto, Bodin não distingue entre a soberania do Estado e a do
titular do poder do Estado. Ele não contrapõe ao Estado um órgão estatal
supremo, como sujeito independente; quem tem o poder absoluto é o
soberano.
O comissário em Bodin não é um simples funcionário; enquanto este é
uma pessoa pública a quem se confia uma esfera de ação limitada pela lei,
aquele, também uma pessoa pública, tem um encargo extraordinário, limitado
somente por sua missão.
Em linhas gerais, são características do comissário:
1- Fundamento: ordem, portanto;
2- a atividade não tem um caráter ordinário, senão
segundo a ocasião e termina como a execução do
negócio; portanto,
3- não tem direito ao cargo; o comissário tem sua função
somente como um precarium e depende
permanentemente do seu comitente; revogabilidade a
qualquer momento; portanto,
4- o conteúdo da atividade do comissário está fortemente
ligado a suas instruções, sua discrição está
estreitamente limitada, dependendo sempre e em todas
as particularidades imediatamente da vontade do
comitente, se bem que este pode deixar-lhe uma maior
margem de ação (SCHMITT, 1968, p. 65, tradução
nossa40).

De acordo com Schmitt (1968), Bodin foi o primeiro a desenvolver

40
1- Fundamento: ordonnance, por tanto;
2- la actividad no tiene un carácter ordinario, sino solo selon l’occasion y termina con la
ejecución del negocio; por tanto,
3- no tiene derecho al cargo; el comisario tiene su función tan solo como un precarium y
depende permanentemente de su comitente; revocabilidad en cualquier momento; por tanto,
4- el contenido de la actividad del comisario está fuertemente ligado a sus instrucciones, su
discreción (discrétion) está estrechamente limitada, depende siempre y en todas las
particularidades inmediatamente de la voluntad del comitente, si bien este puede dejarle mayor
margen de acción.
74

sistematicamente a oposição entre os comissários e os magistrados, no sentido


de titulares de cargos ordinários. Nesta perspectiva, ele critica tanto Maquiavel
quanto os monarcômacos.
Para Bodin, o Estado é um Estado de direito, cujas leis não são simples
manifestações do poder, que podem ser promulgadas e revogadas como um
regulamento qualquer. Caso isto ocorresse, não seria mais Estado e sim
tirania. Do mesmo modo, a distinção entre comissário e funcionário não pode
ter um caráter arbitrário ou simplesmente temporal. O conteúdo da atividade do
comissário deve ser diferenciada em relação à “situação das coisas”, das
circunstâncias. E, embora reconheça diferentes tipos de atividade comissarial,
Bodin trata a todos de maneira indistinta, porque, para ele, tudo o que faz o
comissário está baseado no encargo, na comissão do soberano e não em uma
determinação legal geral, sendo revogável a qualquer tempo.
Schmitt (1968), entretanto, faz uma diferenciação entre os vários tipos
de comissários: 1- comissários de serviços – são os administrativos, em geral,
cuja atividade não está sujeita a plenos poderes especiais, sendo delimitada
por disposições gerais; 2- comissários de negócios – aqueles que estão
incumbidos de um negócio especial, cujos plenos poderes dependem da
vontade do comitente; 3- comissário de ação – neste último tipo se encontra a
figura do ditador, o comissário da ação absoluto.
Segundo Schmitt (1968), na teoria de Bodin, o ditador é um comissário,
que pode deixar de considerar os obstáculos jurídicos quando necessário à
realização de seu encargo. É, deste modo, a possibilidade de abolir as
barreiras jurídicas e transgredir direitos de terceiros se a situação das coisas
assim o exigirem – a exceção. Em suma, o ditador é um comissário e sua
atividade, juridicamente considerada, é essencialmente comissarial.
A ditadura, portanto, não pode ser um cargo ordinário ou de caráter
perpétuo. Se o ditador possui o munus perpetum, ele não apenas tem direito a
seu cargo, como também se torna soberano e não mais ditador, uma vez que
Bodin não admite a ditadura soberana.
Mesmo entre os liberais, como Locke, a commissio pode ser
vislumbrada. A teoria lockeana não admite a ditadura, que é considerada uma
anormalidade, nem a violação da lei, que, para ele, é o fundamento da
autoridade estatal. Ainda assim, a commissio está presente nos seus conceitos
75

de prerrogativa e de Poder Federativo (SCHMITT, 1968).


Quanto ao primeiro, consiste na possibilidade daquele que detém o
poder estatal de usar, de acordo com princípios jusnaturalistas gerais, o seu
poder nos casos imprevistos, até que se possa reunir a Assembleia Legislativa.
Isto decorre da incapacidade do legislador em prever todas as situações e
circunstâncias.
Já o Poder Federativo, responsável pelos assuntos externos do Estado,
como tratados, guerra e paz, tem o direito de agir de acordo com o momento,
segundo a situação das coisas, uma vez que ele depende de interesses
distintos e dos planos do adversário.
Se a ditadura não é algo admissível no pensamento lockeano, em
Rousseau, a ditadura é tratada como um problema de governo e não de
soberania, e que só pode ocorrer quando já existe uma constituição. O
apoderamento do ditador se dá, então, por outorga de um órgão estabelecido,
dentro de um marco constitucional, constituindo, deste modo, uma ditadura
comissarial (SCHMITT, 1968).
Em termos políticos, Schmitt (1968) define como ditadura, “todo
exercício do poder estatal que se realiza de uma maneira imediata, ou seja,
não mediatizada através de instâncias intermediárias independentes,
entendendo por ela o centralismo, em oposição à descentralização” (p. 179,
tradução nossa41).
De maneira mais específica, tanto a ditadura comissarial quanto a
soberana podem ser conceituadas a partir da atividade do ditador, isto porque
sua natureza jurídica consiste na derrubada, na prática, de barreiras e
impedimentos jurídicos quando a situação das coisas assim o exigir. Desta
forma, para o conceito de ditadura, há de se considerar a atualidade imediata
de uma situação a ser superada e este encargo, que é jurídico, fundamenta,
então, juridicamente, um poder pleno, determinado unicamente pelas
circunstâncias.
No entanto, segundo Schmitt (1968), deve-se lembrar de que a ditadura
é não só ação, mas também contra ação. Pressupõe-se que o adversário não

41
“todo ejercicio del poder estatal que se realice de una manera inmediata, es decir, no
mediatizado atraves de instancias intermedias independientes, entendiendo por ella el
centralismo, por oposición a la descentralización”.
76

se atém às normas jurídicas que o ditador reconhece como o fundamento


jurídico que dá a medida de sua ação. Aqui há, desta forma, uma oposição
entre norma jurídica e regra técnico-objetiva da ação – a ditadura comissarial
suspende a constituição in concreto, para protegê-la em sua existência também
concreta.
Neste caso, a ação do ditador deve criar uma situação na qual o direito
possa ser realizado, uma vez que toda norma jurídica pressupõe uma situação
de normalidade na qual tenha validade. Como consequência, a ditadura é um
problema da realidade concreta, sem deixar de ser um problema jurídico, e a
constituição pode ser suspensa sem deixar de ter validade, pois a suspensão
significa uma exceção concreta.
Já a ditadura soberana vê na ordenação total existente a situação que
quer eliminar mediante a sua ação. Ela não suspende a constituição vigente
valendo-se de um direito fundamentado pela mesma e, portanto, constitucional,
mas visa à criação de uma situação que torne possível a constituição, a que
considera verdadeira. Consequentemente, a ditadura soberana não recorre a
uma constituição existente e sim a uma que vai implementar.
Contudo, de acordo com Schmitt (1968), isto não significa uma falta de
fundamentação jurídica, pois embora o poder da ditadura soberana não seja
constituído constitucionalmente, ele guarda conexão com a mesma, sendo um
poder fundamentador, um pouvoir constituant.
Deste modo, tanto a ditadura comissarial quanto a soberana são uma
continuidade jurídica; a primeira suspende a constituição para protegê-la e a
última invoca o poder constituinte, que não pode ser suprimido por nenhuma
constituição oposta. Os representantes extraordinários, ou seja, os que
exercem de maneira imediata o pouvoir constituant, têm plenos poderes, não
sendo submissos a nada, ao contrário dos representantes ordinários, do
pouvoir constitué, que têm direitos e obrigações.
Assim, o ditador comissarial é o comissário da ação incondicionada de
um poder constituído, enquanto o ditador soberano é o comissário da ação
incondicionada de um poder constituinte.
Neste sentido, o art. 48,§ 2º. da Constituição alemã pode ser analisado
como um caso claro de ditadura comissarial, na qual não se estabelece
nenhuma limitação bem como nenhum outro obstáculo ao exigido pelas
77

circunstâncias. Todavia, para que isto não signifique uma dissolução de toda
situação jurídica existente, deve-se considerar que estas medidas são sempre
de caráter fático e não podem se constituir em atos de legislação nem de
administração da justiça.
Segundo Schmitt (1968), este artigo contém uma contradição. Ao
mesmo tempo em que dá poderes ilimitados para a ação, ele limita as
liberdades constitucionais que podem ou não ser suspensas. Por esta
disposição, os direitos fundamentais suscetíveis a uma ingerência estão
enumerados taxativamente, sendo os dos arts. 114, 115, 117, 118, 123, 124 e
153. É, assim, uma regulamentação “estranha”, já que primeiro confere uma
faculdade de suspender toda a situação jurídica existente, incluindo o art. 159,
e depois enumera um número limitado de direitos fundamentais que podem ser
suspensos. Contradição esta que decorre da combinação entre uma ditadura
soberana e uma ditadura comissarial.
A consequência, de acordo com Schmitt (1968), é que a suspensão da
liberdade de imprensa (art.118), e das demais enumeradas no art. 48, é
explícita, enquanto o direito à vida e à morte é concedida implicitamente.

2.7 - Poder soberano: política, vida e morte

2.7.1 – O existencialismo schmittiano: secularização, teologia política e a


genealogia do amigo/inimigo

A secularização é um processo, intensificado na modernidade, no qual


categorias teológico-metafísicas migram da sua esfera original (o
transcendente) para serem aplicadas na esfera mundana. É neste sentido que
Schmitt (2006b) afirma, na “Teologia Política”, que “todos os conceitos concisos
da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados” (p.35).
Neste processo de secularização, o lugar de Deus para o homem moderno foi
ocupado por conceitos mundanos como humanidade, nação, indivíduo e a vida
em sua banalidade.
Este processo teria ocorrido a partir de duas grandes transformações da
modernidade – a superação do geocentrismo pelo sistema planetário
copernicano e a emergência do egocentrismo pelo centramento do sujeito da
78

filosofia cartesiana. Por conseguinte, houve um esvaziamento da realidade do


mundo externo e o surgimento de uma tensão interna entre o pensamento e o
ser, o conceito e a realidade, o espírito e a natureza, o sujeito e o objeto, que
marcou o nascimento da filosofia moderna.
Na filosofia, o Deus transcendente é eliminado e substituído por duas
novas realidades seculares – a humanidade e a história, e ambas têm um
papel importante na produção da subjetividade humana, por meio da unificação
das oposições. Pretensão esta que fracassa, segundo Adverse (2008), uma
vez que o mundo se transforma no objeto da experiência individual, esvaziado
de sentido próprio.
A crítica de Schmitt (2005c, 2006b) recai, então, sobre o endeusamento
do indivíduo liberal e do sujeito romântico. Para ele, o romantismo realizou a
emancipação do sujeito, ao compartilhar os mesmos pressupostos metafísicos
da filosofia cartesiana, aprofundando as aporias do pensamento moderno.
Neste sentido, a secularização do Deus transcendente como eu romântico
corresponderia ao endeusamento do cidadão liberal, produtor-consumidor no
livre mercado.
Neste contexto, assim como o sujeito romântico se evade da realidade, o
sujeito liberal é incapaz da tomada da decisão política. É, portanto, de acordo
com Adverse (2008), a impossibilidade da modernidade de conferir uma forma
à realidade.
Para Schmitt (1998), uma sociedade que estabelece o fundamento da
vida coletiva na esfera de produção, no econômico, é incapaz de
representação e, deste modo, de estabelecer uma forma. O pensamento
econômico se vincula à precisão técnica e, com isto, perde qualquer espécie de
representação.
Além disto, como os tipos que povoam a sociedade burguesa (como o
comerciante e o intelectual) são apenas servidores da grande máquina da vida
econômica, não é possível representá-los. O econômico e o técnico requerem
a presença real das coisas, não podendo ser representados; eles são reflexos
e espelhamentos da realidade. Não se pode representar, afinal, o consumo e a
produção (SCHMITT, 1998). A secularização parece, deste modo, tornar mais
clara a incapacidade da sociedade moderna de constituir um fundamento para
a ordem ou mesmo de construir uma ordem política.
79

Contudo, a sociedade que perdeu o transcendente, não perdeu a


metafísica; esta continua viva com a última instituição capaz de lhe conferir
uma forma jurídica e política – a Igreja Católica. E esta se mantém através do
conceito de autoridade, do Papa como representante de Deus na Terra. “O
Papa não é o profeta, mas o vigário de Cristo” (SCHMITT, 1998, p. 29)
Assim, “(...) a Igreja é uma representação concreta, uma representação
pessoal de uma personalidade concreta. Na sua força representativa assenta
sua supremacia sobre uma época do pensar técnico-econômico” (SCHMITT,
1998, p.33).
Em suma, em oposição ao fundamento privado liberal, a formação
jurídica da Igreja Católica é publicista, sua essência é representativa, o que
permite abarcar o religioso de maneira jurídica.
Novamente a crítica de Schmitt é ao liberalismo e sua racionalidade
técnico-econômica; ao indivíduo liberal egocêntrico e incapaz de uma decisão.
Nesta perspectiva, segundo Bento (s.d), é possível afirmar que todas as
frentes do pensamento de Schmitt abordam e atacam um aspecto letal do
liberalismo – o individualismo moderno. E, nesta luta contra o indivíduo liberal,
Schmitt encontrou como aliados a tradição católica e o mito, sendo que a
primeira tem primazia sobre este último por ter tornado possível a
transformação do mito em teologia e da luta em direito.
Neste sentido, Schmitt busca erigir uma teologia política sobre os
escombros dos efeitos destruidores do surgimento da individualidade e de seus
aliados, a racionalidade técnica e o pensamento econômico, próprios da
modernidade. O espírito moderno da técnica, fruto do individualismo, que se
seculariza como pragmatismo e utilitarismo, teria acabado por abandonar o
homem à barbárie da onipotência dos meios e da impotência dos fins objetivos.
Segundo Schmitt (1998), “nenhum sistema político pode sobreviver sequer uma
geração com a simples técnica e a fumaça de poder” (p.31).
Como consequência, a confrontação das potências arcaicas como toda
a violência da barbárie só poderia ser “espiritualizada” por meio das formas
primárias do mito. Antes de Schmitt, Nietzsche já havia feito este diagnóstico,
ao reconhecer a impossibilidade de se excluir, em definitivo, o mito das raças, o
mais antigo, como fonte da ordem (BENTO, s.d).
Para Schmitt, é necessário, então, regressar ao mito como
80

consequência e destino da destruição cultural levada a cabo pela técnica desde


há séculos; como fonte imediata de vida e o ponto de partida da teologia.
Segundo Bento (s.d), Schmitt tinha consciência, desde os seus escritos
de juventude, do perigo deste seu projeto de teologia política, uma vez que
este não poderia deixar de “pactuar com uma potência negativa perigosa, que
aspira, de maneira bárbara, ao poder, mediante a hegeliana figura da luta de
morte, da luta até a morte” (BENTO, s.d., p.9).
A aposta schmittiana é, assim, em uma teologia política que, construindo
uma ordem soberana e unitária, rompe provisoriamente com a tendência do
mito para a luta e o dualismo, apesar de realizar um pacto com o mesmo, o que
viabilizaria a ação política na modernidade.
Na sua perspectiva católica, Deus não pode nunca abandonar o mundo,
mesmos nas piores circunstâncias. Tem-se, desta forma, o conceito de Kat-
echon, a força, o “dique” como afirma Schmitt (2005b) em “Terra e Mar”42, que
detém o anticristo, a partir da ideia de que a teologia e a política se enlaçam e
é dela que o político extrai sua legitimidade.
De acordo com Schmitt (2005a), o Império cristão tem por conceito
decisivo de sua continuidade o Kat-echon43; e, por conseguinte, o Império da
Idade Média cristã vai perdurar enquanto permanecer ativo este conceito. O
Império significa, então, a força histórica capaz de deter a aparição do anticristo
e a função do imperador, neste contexto, não é a de ser uma posição absoluta
de poder que absorve os demais cargos, mas de Kat-echon, com tarefas e
missões concretas, que se soma a um reino ou uma coroa concreta, ou seja,
ao domínio sobre um determinado país cristão e seu povo.
Deste modo, parece que a crença mais aguda de Schmitt, segundo
Bento (s.d.), foi a de que a violência do mito aspira sempre a fundar um direito
divino, defendendo a imanência de Deus ao mundo e criticando a ontologia do
indivíduo.
Há na teoria schmittiana, assim, um substrato mitológico gnóstico, de
dualidades, polaridades e tensões que não encontram um centro, entre o

42
Nome de um ensaio de Schmitt publicado em 1955, e, posteriormente, publicado, como
apêndice, na edição argentina de 2005 do “Nomos da Terra”.
43
Palavra grega, que aparece na Bíblia (Tessalonianos 2:6-7) como o Anticristo. Em Schmitt, é
o poder histórico de restringir o aparecimento do anticristo e o fim da eternidade presente,
tendo sido fundamental para a continuidade do Império cristão centrado em Roma.
81

Estado romano (o viril, o sol, o luminoso) e o cristianismo (feminino, amoroso,


terreno), que, em um hegelianismo peculiar, não constituem uma síntese,
segundo o modelo católico do complexo oppositorium. “Não se lhe adeque nem
o desespero das antítese nem a altivez ilusória da sua síntese” (SCHMITT,
1998, p.27).
A gnose é, neste contexto, a revelação, a dádiva e a graça, o
testemunho direto que Deus não abandona o mundo e manifesta sua vontade.
O problema espiritual da Europa estaria na esperança da eternidade, na antiga
aspiração idealista de fazer um reino de Deus na Terra, em um ativismo
intramundano típico do Ocidente; e sua superação estaria em uma
transfiguração no lugar da ética intramundana, que é a do dever ser. O
conhecimento gnóstico seria, por outro lado, o deixar guiar, uma deixar-se ir.
O mais próprio da crença ocidental, para Schmitt, está em que o
“homem deve lutar, matar e morrer” (BENTO, s.d., p.23) e, para isto, deve
percorrer e reproduzir o caminho do pecado. Como consequência, nem toda
dor será transfigurada pela graça e, apesar de tudo, o ocidental não poderá
fugir ao mundo.
Em sua obra “Nordlicht” 44 (1916), Schmitt reabilita um catolicismo
gnóstico, que, de acordo com Bento (s.d.), é pouco católico, mas muito
moderno. Nele o que vincula a natureza e a graça é o milagre da graça, a
generosidade da dádiva e do dom e não a natureza cheia do pecado.
Neste contexto, o que significa acreditar em uma natureza ainda capaz
de oferecer um caminho até Deus em um mundo dominado pela técnica, pela
organização capitalista e pelo cálculo? A acusação schmittiana ao Ocidente é,
então, a de que este abandonou a dimensão complementar da graça,
reforçando a ética intramundana e a crença de ser capaz de realizar o reino de
Deus na Terra. É a secularização, o abandono da dimensão metafísica dos
fenômenos mais importantes e decisivos da Terra; a naturalização e
absolutização da vida e da ação humana e, consequentemente, a interpretação
dos elementos fundamentais da existência do homem fora de qualquer relação
com o aparecimento do dom e da graça.
Em Schmitt, o Anticristo impõe-se precisamente quando consegue imitar

44
Nesta obra, Schmitt analisa o poema Nordlicht do poeta expressionista austríaco Theodor
Däubler (1876-1934).
82

Cristo, o que ocorreria na atualidade. Assim, “A secularização é a estrutura do


Anticristo (...) A técnica imitará o fiat lux do Deus criador, o conforto e a
segurança imitam a paz da alma, a precisão e a planificação imitam a
providência” (BENTO, s.d., p. 25). Mas, apesar disto, o gnóstico vê que a
transfiguração do presente é sempre possível. O mundo possui o seu éon45 e a
transfiguração coincidirá com o tempo do Apocalipse que, para Schmitt, existe,
como bem demonstra o horror escatológico da Primeira Guerra.
O paraíso na Terra não é, deste modo, o reino de Deus, mas, na
perspectiva schmittiana, a reconstrução do andrógino feminino, da terra e do
mar, como figuras míticas representativas do feminino e do masculino, do
católico e do protestante, da justiça e do amor, de Roma como direito e de
Roma como Igreja, convergindo na configuração de uma ordem única, na
unidade que Schmitt tanto busca em seu pensamento. Entretanto, isto não
significa um paraíso hermafrodita na Terra, mas a dualidade mitológica e a luta
que devem dar origem a um direito e a um Estado entendido como Deus na
Terra. A especificidade da política católica romana é, portanto, este complexo
oppositorium, que deve servir de modelo para o Estado moderno.
Neste sentido, o mito será capaz de transcender em teologia sempre
que um Deus produza catolicidade e se transforme em caminho da salvação,
sendo que o mesmo pode ocorrer na teologia política, quando da luta emerge a
lei e o direito.
A partir da obra de juventude, “A Visibilidade da Igreja”, publicado em
1917, o gnosticismo espiritualista de Schmitt é superado pela sua interpretação
do jurídico como a manifestação mais adequada e precisa da transfiguração
espiritual na Terra – a centração pneumática no jurídico schmittiana. O
catolicismo do autor se transforma, então, em uma instituição jurídica, mas sem
deixar de existir a premissa e o caminho da luta e o horror em um mundo em
pecado. Assim, “a dualidade só pode dar origem a uma luta que o direito
soberano deve ser capaz de reduzir” (BENTO, s.d., p.27).
A partir desta transformação, é possível entender os fundamentos
últimos de “Teologia Política” (1922) e de “O Conceito do Político” (1932). Foi
em “O Conceito” que, segundo Bento (s.d.), Schmitt tomou consciência e expôs

45
Segundo Bento (s.d), o éon pode ser definido como “lapso de tempo infinitamente longo, da
eternidade, de infinidade dos séculos e dos tempos” (p.17).
83

de maneira mais clara e sistemática a forma mitológica do presente. Nesta


perspectiva, a efetiva genealogia do amigo e inimigo como caracterização da
política deve remontar à Nietzsche e seu conceito de Grande Política46.
Esta distinção schmittiana já estava presente em “Nordlicht”, na estrutura
interna do ser humano enquanto dualidade. O inimigo é, citando Däubler, como
Schmitt faz reiteradamente ao longo desta obra e do “Glossarium” (1923), “a
nossa própria pergunta enquanto forma e ele arrasta-nos, e nós a ele, para o
mesmo fim” (BENTO, s.d., p.28). E a forma desta pergunta não é jurídica e sim
decisão e crença. “(...) a existência humana na sua forma de pergunta,
incompreensível como harmonia e como paz. O inimigo é carne da nossa carne
e sangue do nosso sangue” (BENTO, s.d., p.29).
Do ponto de vista mitológico, a relação entre Adão e Eva já é a do
amigo-inimigo e o regresso andrógino, cindido e fraturado, representa e
fundamenta a luta originária. No Glossarium, Schmitt diz que “Só o meu irmão
me pode por em questão e só o meu irmão pode ser meu inimigo. Adão e Eva
tiveram dois filhos: Caim e Abel” (apud BENTO, s.d., p.29). E o crime de Caim
e a Abel é a essência da lei. Schmitt recorda que a lei já havia sido instituída no
paraíso, e, enquanto regulamentação jurídica das relações humanas, é anterior
à maldade e ao pecado e não a sua consequência.
É, portanto, uma metáfora radical do homem, na qual o amigo e o
inimigo estão em condição de igualdade, se definindo em uma relação; é uma
estrutura verdadeiramente existencial, que atravessa a imanência do mundo.
“Enquanto eu vivo, vive também o meu inimigo” (BENTO, s.d., pg.29).
O amigo-inimigo é o dualismo sobre o qual se baseia o conceito do
político, se originando de um esquema de pensamento metafísico, que prevê o
fim do mito como uma consequência da expulsão de Adão e Eva do paraíso.
Neste contexto, o dualismo do mito é decorrência do pecado, assim como a

46
Este conceito aparece nas obras “Humano, demasiado humano” (1878) e “Aurora” (1881)
relacionado à guerra e suas consequências. Para Nietzsche, a grande política era uma política
que pretendia ir além dos domínios territoriais de um Estado ou nação, o que, em última
instância, resultaria na guerra. A questão, para Nietzsche, é saber, então, se vale a pena
sacrificar os mais nobres homens de um povo em nome desta política, reconhecendo que as
consequências da guerra são devastadoras. Por outro lado, o autor, sem fazer uma apologia
belicista, reconhecia que a guerra era parte das grandes culturas e capaz não só de renová-
las, como também a própria existência do homem. Em Aurora, especificamente, o conflito é
visto como decorrente do acúmulo do sentimento de poder. No período tardio do pensamento
nietzscheano, o conceito de grande política está ligado à ideia da vontade de potência e da
transvaloração dos valores. Nota da autora.
84

distinção amigo-inimigo. É um dualismo que dá origem a uma deformação do


direito, a uma separação entre poder e direito, facticidade e validade. E apenas
o fundador do direito pode recompor a síntese entre o fático e a ideia,
refundando um paraíso teológico que é agora a normalidade da lei. Para isto,
deve assumir a representação, segundo a forma do catolicismo romano, e
produzir a concentração do pneumático no jurídico, dotando de legitimidade a
facticidade da norma. O Deus, que antes era Geist, faz-se agora carne,
palavra, Igreja, comunidade; é a síntese entre o conceito de Deus enquanto
espírito e como direito.
Em suma, de acordo com Bento (s.d.), há dois diagnósticos de Schmitt
que estão na base da “Teologia” e do “Conceito”: a filosofia da história como
fluxo e refluxo do imediato configurado nas potências do mito dualista e
gnóstico e o presente como época da dominação técnica e secularização dos
valores, a qual “destruindo a possibilidade de uma interpretação genuína do
espírito, enraizava, deste modo, as forças mitológicas da vida imediata na mais
arcaica barbárie” (BENTO, s.d., p.31).

2.7.2- A guerra como conceito existencial: a distinção amigo e inimigo

Schmitt (1992) inicia o “Conceito do Político” buscando responder à


questão da definição do político, de sua especificidade. A crítica do autor recai,
desta forma, sobre a equiparação entre os conceitos de político e de estatal.
Segundo ele, “Em geral, o político é equiparado, de alguma forma, a ‘estatal’
ou, pelo menos, relacionado ao Estado. O Estado surge então como algo
político, o político, porém, como algo estatal; evidentemente um círculo que não
satisfaz” (SCHMITT, 1992, p. 44).
Portanto, embora reconheça o valor, na prática jurídica, da referência ao
estatal para se definir o político, isto não é o suficiente, além de que esta
remissão só é válida quando o Estado representa de maneira clara e
inequívoca uma determinada grandeza, distinguível da sociedade, sendo o
detentor do monopólio do político. No entanto, não é isto que ocorre no século
XX, no qual Estado e sociedade se interpenetram, havendo uma expansão da
noção do primeiro.
85

Como consequência, áreas até este momento consideradas ‘apenas’


sociais tornam-se estatais; assuntos políticos tornam-se sociais e vice-versa.
Deste modo, as esferas até então “neutras”, como a religião, cultura, educação,
economia, deixam esta neutralidade no sentido não-estatal e não-político.
Como conceito contraposto a estas neutralizações e despolitizações, surge,
então, o Estado Total, o qual se interessa por todos as esferas da vida, em
uma identidade entre Estado e sociedade. Nele, tudo é potencialmente político
e a referência ao Estado já não mais consegue fundamentar uma distinção do
‘político’ (SCHMITT, 1992).
Esta evolução vai do Estado absoluto do século XVIII, passando pelo
liberal do XIX até o Total do século XX. Neste contexto,
A democracia deverá abolir todas as distinções, todas as
despolitizações típicas do século XIX liberal e, ao apagar
a oposição Estado – sociedade (= o político oposto ao
social), fará também desaparecer as contradições e as
separações que correspondem à situação do século XIX
(...) (SCHMITT, 1992, p. 47).

Desaparecem, desta forma, a oposição entre o político e o religioso,


cultural, econômico, jurídico e científico, bem como outras antíteses polêmicas
e, por isso mesmo, segundo Schmitt (1992), ‘mais uma vez políticas’ (p.48). A
crítica da Schmitt ao liberalismo está justamente no fato de que este obscurece
estas distinções, afetando a autonomia do político (NORRIS, 1998).
O político, por conseguinte, na teoria schmittiana, não equivale ao
estatal, sendo uma esfera com uma lógica própria, autônoma, definida a partir
de critérios e não de conteúdo - a distinção binária amigo-inimigo.
Neste sentido, esta oposição não se baseia em critérios morais,
econômicos ou estéticos; o inimigo não precisa ser mau, feio, prejudicial,
economicamente útil, ou não. Ele é o outro, o estrangeiro, aquele que ameaça
a existência física do político. O inimigo não é, assim, aquele que se odeia, o
adversário particular, o concorrente econômico; ele é o inimigo público e não
privado.
Logo,
Inimigo é um conjunto de homens, pelo menos
eventualmente, isto é, segundo a possibilidade real,
combatente, que se contrapõe a um conjunto
semelhante. Inimigo é apenas o inimigo público, pois
tudo que se refere a tal conjunto de homens,
86

especialmente a um povo inteiro, torna-se, por isto,


público. Inimigo é hostis, e não inimicus no sentido lato;
polémios, não ekhthrós (SCHMITT,1992, p.55).

Segundo Norris (1998), como jurista, Schmitt dá ênfase à distinção entre


o político e o jurídico. Para este autor, a identificação do amigo-inimigo é uma
decisão existencial, que não pode ser antecipada por lei. Além disto, o político
é anterior ao legal, já que nenhum sistema de normas pode ser desenvolvido
ou aplicado sem um momento de decisão que ultrapassa a regulação destas
normas.
Desta forma, o Estado, como ator político, não pode ser reduzido ao
sistema legal nem sua legitimidade pode derivar da lei, como quer o liberalismo
e o Estado de direito. Particularmente, em um caso de emergência ou de
exceção, uma decisão soberana deve ser tomada e esta não pode ser inferida
das normas estabelecidas em uma situação normal. Norris (1998) critica
Schmitt justamente por este enfatizar o limite da lei, enquanto glorifica a
decisão que excede a regulação de qualquer lei; como consequência, os
direitos que são definidos e garantidos legalmente se tornam vulneráveis à uma
decisão política não regulada.
Em outras palavras, em Schmitt, o poder soberano não reside na lei,
mas na capacidade decisória do mesmo, que inclusive não está limitado
legalmente no caso da exceção. Assim, como analisado por Schmitt (2006b) na
“Teologia Política”, a soberania não pode ser definida em termos de monopólio
coercitivo, mas decisório. Aliás, para o autor, a definição weberiana (WEBER,
2000)47 do Estado como monopólio legítimo da força física, tanto no contexto
nacional quanto frente a outros Estados, teria sofrido um forte abalo. Primeiro
pelos limites impostos, a partir da segunda metade do século XX, pelo direito
internacional e por inúmeros tratados internacionais; depois pelo discurso dos
direitos humanos nas últimas décadas do mesmo século (SCHMITT, 2006b).
Em suma, o que caracteriza o político é justamente a contraposição
entre o hostis e o amigo. E quanto mais acirrado este antagonismo, mais
47
Weber define o Estado a partir do conceito de dominação (poder socialmente legitimado,
como probabilidade de se encontrar obediência a um mandato). Para ele, o Estado é o
monopólio legítimo (portanto, dominação) do uso da força física em determinado território. A
forma moderna de dominação seria a racional-legal e, em especial, na sua forma mais pura, a
burocrática. Vide Weber, 2000.
Já Schmitt (1992) define o Estado como “(...) unidade política organizada, pacificada em si,
fechada em si territorialmente e impenetrável para estrangeiros” (p.72).
87

política é a relação, tendo a decisão aqui um papel fundamental, de


identificação do inimigo existencial (NORRIS, 1998) .
Neste contexto, a guerra, enquanto consequência extrema do
agrupamento amigo-inimigo, é também política; não existe, segundo Schmitt
(1992), guerras meramente econômicas ou religiosas. Ainda que tenham
começado por motivos econômicos ou religiosas, ao se tornarem a oposição
amigo-inimigo, elas são políticas; são, como o autor denomina, o “meio político
mais extremo” (p.61).
No entanto, isto não equivale a dizer que a guerra é o fim ou o objetivo
da política, mas o “pressuposto sempre presente como possibilidade real, a
determinar o agir e o pensar humanos de modo peculiar, efetuando assim um
comportamento especificamente político” (SCHMITT, 1992, p. 60). A guerra,
contudo, não tem que ser sangrenta ou ininterrupta, nem deve ser considerada
como algo normal ou desejável; o politicamente correto estaria justamente no
evitar a guerra. Além disto, o autor considera que sua definição do político não
é nem belicista nem militarista, nem imperialista nem pacifista.
A guerra, portanto, não é a política, mas seu pressuposto a partir do
momento em que é uma possibilidade real, na qual o conceito de inimigo tem
sentido. Ela tem suas “próprias regras e pontos de vista estratégicos, táticas e
outras, que no entanto conjuntamente pressupõem que a decisão política
acerca de quem é o inimigo já se encontra presente” (SCHMITT, 1992, p. 60).
Em outras palavras, a decisão sobre quem é o inimigo, critério do político, é
anterior à guerra; e é o Estado, como unidade política e soberana, que detém
este monopólio decisório sobre a guerra, o jus belli, o direito de dizer quem é o
hostis, interno ou externo. A decisão soberana é, então, fazer ou não a guerra
de modo a resolver o conflito, ponto no qual este se torna político. Neste
contexto, o Estado é compreendido prioritariamente em termos de conflito
externo, e não de suas estruturas sociais específicas internas.
Para Norris (1998), este conceito do político de Schmitt não é
necessariamente totalitário. Na verdade, esta dimensão do pensamento
schmittiano estaria relacionada a sua base hegeliana, de compreensão da
relação individual com a comunidade e com a sua própria mortalidade. Neste
sentido, o critério amigo-inimigo define uma forma particular de vida, na qual a
identidade de grupo é valorada além da existência física. Entender Schmitt
88

requer, então, na perspectiva de Norris (1998), não considerar seu trabalho


como uma rejeição de uma ordem moral estabelecida, mas como uma resposta
a uma cultura do niilismo, na qual o sentido, mais que o valor, está
desaparecendo.
A qualidade existencial da guerra de Schmitt recupera esta relação
hegeliana com a mortalidade. Segundo Norris (1998), Schmitt tem uma
preocupação hobbesiana com a segurança física, mas que vai além para a
justificação da guerra – esta só seria justificada quando a destruição física da
vida humana fosse motivada pela ameaça existencial ao modo de vida de
alguém. A guerra, pois, é definida em termos defensivos e não como uma ação
de agressão.
Schmitt coloca, então, ênfase na ameaça da morte física implícita no
encontro com o inimigo, e é o que estabelece a independência existencial do
político. Assim, “Os conceitos de amigo, inimigo e luta adquirem seu real
sentido pelo fato de terem e manterem primordialmente uma relação com a
possibilidade real de aniquilamento físico” (SCHMITT, 1992, p.59). E é nesta
perspectiva que se encontra a qualidade existencial da guerra:
A guerra, a prontidão para a morte de homens que
combatem, o matar outros homens que se encontram do
lado do inimigo, tudo isso não tem nenhum sentido
normativo, mas sim um sentido existencial, e isto ainda
na realidade de uma situação de luta efetiva contra um
inimigo real, não em quaisquer ideais, programas ou
normatividades (SCHMITT, 1992, p.75).

É por esta configuração que Schmitt, de acordo com Norris (1998), tem
mais a dizer sobre o inimigo que sobre o amigo, o que não significa que um
conceito possa ser entendido sem o outro. O sentido está em que “A guerra
decorre da inimizade, pois esta é a negação ontológica de outro ser”
(SCHMITT, 1992, p.59).
Além disto, fica claro na teoria schmittiana que a ameaça não se refere à
vida física individual, mas à forma de existência ou de vida da coletividade, ou
seja, o Lebensform é anterior e tem primazia sobre o individual. Portanto, o
direito de demandar que seus membros estejam prontos para morrer implica
que o Estado tem prioridade sobre o individual.
Logo, é em virtude deste seu poder sobre a vida física dos homens que
a comunidade política transcende todas as outras formas de associação ou
89

sociedades (NORRIS, 1998). Nesta perspectiva, o direito de dizer a guerra


também é o direito de vida e morte sobre os indivíduos que se submetem à
proteção estatal, bem como sobre os inimigos e seus aliados.
Homens e mulheres devem, deste modo, reconhecer o direito do Estado
de demandar suas vidas e é este reconhecimento que torna o grupo político, ou
seja, quando alguém preza a integridade de um modo de vida sobre suas
próprias vidas (NORRIS, 1998).
Em suma,
O Estado, como a unidade política decisiva, concentrou
um poder enorme (Befugnis): a possibilidade de fazer a
guerra e de com isso dispor abertamente sobre a vida
dos homens. Pois o jus belli inclui tal disposição; ele
significa a possibilidade dupla: de exigir dos que
pertencem ao próprio povo prontidão para morrer e para
matar, e de matar homens que estejam do lado do
inimigo (SCHMITT, 1992, p. 72).

Neste sentido, para Norris (1998), o conflito decisivo é entre a


solidariedade política e o individualismo liberal apolítico em face do potencial
inimigo, uma vez que o conceito do político requer a transcendência do
individual. Ou seja, em Schmitt, a essência do político está em uma forma
homogênea de identidade que permite “a transcendência do privado, da vida
física e abre a possibilidade de uma forma particular de conflito violento”
(NORRIS, 2008, p.77, tradução nossa48). E esta identidade estaria ausente no
pluralismo liberal e em sua ideia de representação.
Entretanto, o político não reside na batalha por esta identidade
homogênea, mas no modo de comportamento que é determinado por esta
possibilidade, a solidariedade que torna possível o auto sacrifício e a
autoridade política. A vida, nesta perspectiva, só terá significado se ela contiver
comprometimentos valorizados para além da mera existência física.
A identidade de um grupo pode ter sua origem na religião ou nos valores
morais, mas politicamente isto é irrelevante. Sua importância está no fato de
que ela é a única justificativa sensata para se travar uma guerra em defesa do
grupo. Diferentes regimes serão ameaçados por diferentes causas, de
diferentes modos; as ameaças não são auto evidentes. E, nesta concepção, o

48
“the transcendence of private, physical life and opens the possibility of a particular form of
violent conflict”.
90

amigo (público e não privado) é aquele que compartilha uma forma de vida,
que pode ser definida de inúmeras maneiras e só pode ser entendida em
termos de uma existência política. Assim, como a guerra, outros conceitos
essenciais como nação e cultura não são normativos, mas existenciais.
Na visão schmittiana, de acordo com Norris (1998), a identidade parece
ser um fato, que não pode ser debatida como a religião, a moral e mesmo a
economia. Mas há a possibilidade de se debater sobre as interpretações da
identidade política, o que não significa debate público e deliberação, o que
Schmitt tanto critica na “Crise da Democracia Parlamentar”. Em sua leitura da
identidade política, a democracia não é uma questão de participação popular,
consentimento revogável ou instituições parlamentares/liberais, mas de
identidade entre legislador e legislado, que não é irreconciliável com uma forma
de ditadura que nega à população o direito de debater questões políticas. Para
ele, quanto mais debate público, como querem os liberais, menor a autoridade.
E a autoridade política, capaz de tomar decisões sobre a vida e a morte
dos indivíduos, significa um comprometimento absoluto, que envolve a vida
como um todo. Este mesmo princípio pode ser encontrado no conceito do
político, no qual a parte encontra seu significado apenas quando assume o
lugar certo dentro do todo. Deste modo, a vida individual só adquire seu
verdadeiro significado quando transcende sua vida física na solidariedade com
a comunidade, formando um todo. E “apenas a morte confronta a vida como
um todo” (NORRIS, 1998, p. 87, tradução nossa 49).
Em suma, segundo Norris (1998), a ênfase de Schmitt está na
autoridade, no comprometimento e na mortalidade, se alinhando, neste ponto,
com os gregos, em sua insistência em que a política seja uma resposta para a
fragilidade da vida humana. Logo, a hostilidade schmittiana ao individualismo
não se deve simplesmente às suas tendências autoritárias, mas porque a
forma de individualismo da sociedade contemporânea, que se manifesta no
consumo de imagens, prazeres e comodidades, é incapaz de responder a esta
questão.
O grande perigo da teoria schmittiana estaria, na visão de Norris (1998),
justamente nesta sua insistência na primazia do todo. Para ir além do conceito

49
“only death confronts life as a whole”.
91

de política de Schmitt é necessário, portanto, pensar a política sem tentar


recuperar a totalidade e a unidade, que é o que o liberalismo faz.

2.7.3 – Liberalismo, poder total e o fim da guerra: a guerra em nome da


humanidade

Segundo Sá (2001), o Estado moderno e, de modo geral, toda a política


moderna se assenta no princípio da representação que, em Schmitt, significa
tornar presente aquilo que está ausente ou visível (caráter público) o que está
invisível, por meio de seu representante.
Neste sentido, há, na teoria schmittiana, duas formas de representação:
a por delegação, na qual um delegado ou procurador representa uma pessoa
particular, no âmbito privado; e a representação propriamente dita, na qual uma
pessoa pública representa uma entidade em si mesma invisível. E é nesta
segunda representação que consiste o princípio do Estado e da política
moderna. Nela, o Estado, como pluralidade de homens, se torna unidade, o
que é sua condição de possibilidade. Em outras palavras, é na figura do
soberano que a existência privada do homem se torna unidade política.
Assim, o povo só é povo na pessoa pública do soberano; só é sujeito
político na medida em que é representado. O povo não é, desta forma,
preexistente, mas é constituído por meio do seu representante, que surge
perante esse mesmo povo como soberano (SÁ, 2001).
Deste modo, o Estado moderno articula 2 elementos: não há Estado
sem representação, pois aquele só ganha forma mediante o processo
representativo; e, enquanto o mesmo se baseia no princípio da representação
e no emergir do representante, ele se caracteriza, então, pela emergência do
poder soberano.
Neste contexto, segundo Sá (2001), o poder soberano é aquele que é
próprio do “príncipe” moderno enquanto representante, sendo, essencialmente,
ilimitado, absoluto, uma vez que constitui o representado.
É então a própria representação que determina o
carácter absoluto e desvinculado do poder soberano que
lhe é próprio. Não é apenas acidentalmente que o poder
absoluto está nas mãos do príncipe representante,
podendo ser-lhe retirado e transferido se as
circunstâncias políticas se alterarem. Pelo contrário: tal
92

poder é intrínseco ao acto de representação, de tal modo


que é da própria existência da representação que resulta
a existência do poder absoluto. Por outras palavras, o
poder absoluto não pertence ao príncipe representante
porque é absoluto, ou porque acidentalmente há um
poder absoluto que poderia não estar presente no
próprio processo representativo, mas passa-se
justamente o contrário: ele é e tem de ser absoluto
porque pertence ao príncipe representante (SÁ, 2001, p.
432).

É este poder ilimitado que constitui a essência da soberania e é nesta


perspectiva que se deve interpretar a afirmação de Schmitt (2006b), segundo a
qual o soberano é aquele que decide sobre o caso de exceção - a soberania é,
no plano interno, a origem da ordem legal e aquela capaz de decidir sobre a
suspensão desta mesma ordem, em um estado de extrema urgência, cuja
existência também é determinada pelo soberano.
Quanto ao plano externo, a soberania se manifesta através do jus belli,
do direito de decidir quem é o hostis. E, de acordo com Sá (2001), “decidi-lo
com as consequências que tal decisão implica: quer a possibilidade da
declaração de guerra, quer o poder de expor ao perigo e sacrificar vidas
humanas” (p.433).
No entanto, este poder decisório, a soberania, não consiste em um
poder total. Mas sendo o exercício de um poder que pode exigir o sacrifício da
vida, há uma natural reação ao mesmo, com os homens desejando participar
da soberania. Assim, o povo, a nação, o sujeito político representado, ao tomar
consciência de si como tal, tende a sua própria representação. É o princípio da
identidade entre representante e representado, que se contrapõe ao princípio
da representação.
E a contraposição entre estes dois princípios políticos seria o
fundamento da necessidade histórica da reação democrática e liberal contra as
monarquias absolutas (SÁ, 2001). Ao princípio da representação destas se
contrapõe o princípio da identidade democrática que, para Schmitt, era fatal.
No Estado moderno, estes princípios são conjugados, constituindo a
estrutura estatal enquanto unidade política. Isto quer dizer que a monarquia
absoluta não exclui a identidade, mas subsume-se na pura representação, de
modo que o monarca se identifica com o próprio Estado. Neste caso, o
93

princípio da identidade está presente, mas enquanto ausente; está presente


como pura formalidade.
Com o processo democrático, o princípio monárquico da representação
não aparece de modo imediato e, por este motivo, emergem as monarquias
representativas ou parlamentares (princípio da dupla representação), nas
quais, além da representação do Estado pelo monarca, também há uma
representação do povo pelo Parlamento.
Com a progressiva reivindicação do Parlamento de autodeterminação, o
Estado vai se tornando cada vez mais neutro e impotente perante esta
requisição de liberdade. A legitimidade da Assembleia advém, deste modo, de
sua identidade com o povo e, consequentemente, com o Estado por ele
constituído, impedindo a legitimação do monarca através da identidade formal.
É o que Schmitt vai denominar, segundo Sá (2001), de era política do
ocaso da soberania – o monarca já não é soberano, nem o Parlamento, que é
um órgão meramente legislativo. A soberania passa, assim, a residir na própria
ordem instaurada por ele. A partir de sua crise, a democracia estabelece-se
como princípio segundo o qual o soberano é o próprio direito e não o Estado
(Krabbe, Kelsen).
O Estado que surge a partir desta era é, então, neutro, não interveniente
em uma sociedade que deve se auto organizar. É o Estado liberal. E é a partir
deste Estado, neutro e liberal, que se desenvolve a teoria schmittiana do poder
total.
Para compreender esta teoria, de acordo com Sá (2001), é preciso
entender a íntima relação entre representação e identidade. Neste sentido, a
democracia surge no século XIX como uma reação necessária à monarquia
absoluta dos séculos XVII e XVIII, mas traz no seu âmago o poder total, que se
desenvolve no século XX. É, portanto, meramente reativa, negativa, contra o
princípio puro da representação. Para que tenha um efeito positivo, ela também
tem que atribuir ao princípio da identidade o mesmo poder que caracterizava a
soberania do princípio da representação. Como na teoria rousseauniana, se
Estado e sociedade são a mesma coisa, então, tudo pode ser assunto estatal e
de seu poder. Assim, o Estado democrático é totalmente imanente à
sociedade, perdendo sua neutralidade. Tudo se torna político e o poder do
Estado, ao abranger toda sociedade, se torna total.
94

É um processo dialético que constitui o desenvolvimento intrínseco do


próprio conceito de poder, com a passagem do Estado absoluto, transcendente
e soberano, para o neutro democrático-liberal e, finalmente, deste para o total.
Estado este que se apresentou, no século XX, como uma democracia de
massas totalitária.
De acordo com Sá (2001), a tese de Schmitt sobre a passagem do
poder soberano ao poder total não deve ser interpretada como uma mera
tentativa de análise da República de Weimar. O alcance de sua teoria é maior,
permitindo a compreensão da história política como tal. Neste sentido,
aplicando Schmitt a nossa era, é possível afirmar que o poder total se
desenvolve dentro do regime democrático liberal e não como decorrência da
visibilidade exterior própria da mudança de instituições e regimes políticos.
No princípio da representação pura da monarquia absoluta já existia
uma exigência invisível do princípio da identidade – o cuidado de uma esfera
de liberdade privada dos seus súditos, que é a justificativa do poder absoluto
do príncipe em função da garantia da liberdade e da propriedade possíveis dos
súditos. A ideia de liberdade do homem está presente, deste modo, desde
sempre no Estado moderno, não sendo típico do liberalismo50.
Neste contexto, é que pode ser compreendida a reivindicação da religião
como questão privada. Na análise schmittiana, o fundamento da democracia
liberal estaria na privatização da religião, como realizada por Hobbes, e, com
isto, na sacralização do privado. A democracia tem, pois, em sua última
instância, um fundamento teológico-político; a religião da privacidade como
essência do Estado moderno. O princípio da democracia liberal já opera, desta
forma, na essência da monarquia absoluta, no Leviatã.
Espera-se que a vida pública se governe a si mesma; ela
deve ser dominada pela opinião pública do público, isto
e, de pessoas privadas; e a opinião pública, por seu lado,
deve ser dominada por uma imprensa que se mantém na
propriedade privada. Nada neste sistema é
representativo, tudo é uma coisa privada. Considerada
historicamente, a "privatização" inicia-se no fundamento,
na religião. O primeiro direito individual, no sentido da
ordem social burguesa, foi a liberdade de religião; no
desenvolvimento histórico daquele catálogo de direitos à
liberdade - liberdade de fé e de consciência, liberdade de
associação e de reunião, liberdade de imprensa,

50
Vide item 2.3 deste trabalho.
95

liberdade de acção e de profissão -, ela é início e


princípio. Mas onde quer que se ponha o religioso, em
toda a parte ele mostra o seu efeito absorvente e
absolutizador, e se o religioso é o privado, então, pelo
contrário, é o privado que, em consequência disso, é
sacralizado religiosamente (SCHMITT, 1998, p.41).

Assim, na interpretação da democracia liberal, a religião da privacidade


apresenta, segundo Sá (2001), 3 características fundamentais:
1- ela apresenta-se como o trajeto histórico de uma atitude política e social
de tolerância;
2- surge como apelo para que os homens se emancipem de maneira
crítica, deliberando livremente sobre o que é justo e correto;
3- institucionalmente está baseada no princípio de que cada homem deve
escolher de acordo com o que delibera, assumindo-se como o cidadão
de uma república liberal e democrática.
A primeira característica, da tolerância, significa que todos os modos de
vida, desde que se mantenham no privado, são admissíveis. A preocupação
democrática liberal está em permitir a coexistência multicultural e cosmopolita
dos homens, garantindo o direito das minorias. É a partir da Segunda Guerra,
sobretudo, e com o desaparecimento dos regimes totalitários, que a religião da
privacidade se concretiza, nos EUA, como filosofia política cuja ética máxima
consiste na prática da tolerância. Quanto à deliberação, esta significa os
homens deliberando sobre princípios políticos de acordo com seus princípios
privados, que serão a base de sua decisão e escolha.
Em suma,
uma sociedade determinada pela democracia liberal
surge hoje configurada institucionalmente como um
Estado republicano e democrático, no qual homens
tolerantes e deliberantes são, como cidadãos, chamados
a exercer a sua capacidade de escolha através do direito
de voto (SÁ, 2001, p. 446).

No entanto, se se admite a religião da privacidade, a deliberação deixa


de ser confrontação e diálogos públicos, se transformando, na democracia
liberal contemporânea, em pura e simples afirmação de princípios privados.
Como consequência, a tolerância e a escolha são contaminadas por este
privatismo e a tolerância se torna descrença na deliberação e, com ela, na
possibilidade de persuasão. O homem liberal é cético e, por isto, tolerante.
96

Segundo Sá (2001), a comunicação dos cidadãos nas democracias


liberais é um “diálogo de surdos” (p.448), na qual opiniões, propostas e
princípios são válidos apenas no plano privado e inaceitáveis no público. É uma
relação sem relação; um conjunto de monólogos no lugar do diálogo.
Em termos da participação política, o indivíduo liberal escolhe o que já
está previamente escolhido, em uma escolha sem deliberação e em um
processo de socialização do privado e fuga da vida pública. É uma renúncia a
pensar publicamente, que constitui o que Sá (2001) denomina de dupla
ingenuidade: de uma intransigência de princípios, na qual nada, nem a Razão
de Estado, pode ser evocada para sacrifício do privado; e a ingenuidade da
desistência, a entrega a um conjunto de homens daquilo que são incapazes de
fazer – a tarefa de pensar publicamente, de deliberar e, enquanto governo, de
transigir. É o cidadão “impecável”, incapaz de ocupar o poder político, que o
afetaria com a mácula da transigência.
Portanto, em Schmitt, a base fundamental da democracia liberal está na
crença na liberdade de deliberar, que possibilita a tolerância e a livre escolha,
diante de um Estado neutro e tolerante. O poder total, neste contexto, surge
como a negação desta crença, e isto ocorre como decorrência da descrença na
discussão pública e na incapacidade de deliberação. Esta disponibilidade de
dialogar, argumentar, pensar e persuadir está, na teoria schmittiana, afastada
desta forma política.
Assim, a emergência do poder total nas democracias modernas
contemporâneas tem se dado pela reconfiguração das duas manifestações do
poder soberano. Em primeiro lugar, em relação à decisão sobre o estado de
exceção. Como analisado por Agamben (2004a, 2007), hoje há uma indistinção
entre exceção e normalidade. Com o desaparecimento da soberania, enquanto
possibilidade de se decidir sobre a exceção, esta desaparece e, com ela,
também a norma como norma. Consequentemente, norma e exceção tornam-
se a mesma coisa, na imanência de um único plano.
O poder total cresce, então, dentro das democracias liberais. O cidadão
liberal, centrado na vida privada, afastado da vida pública e exposto ao poder
invisível da economia e da técnica com suas leis, o mercado e o domínio
técnico, torna-se um objeto. Se o poder soberano incidia sobre o homem
97

enquanto cidadão, o poder total incide no homem enquanto homem, na sua


vida pura, ou, na denominação de Agamben (2004a, 2007), na vida nua.
Já a segunda transformação ocorre no jus belli, com o surgimento da
ideia de que seria possível o fim da guerra. Segundo Schmitt (1992), a
essência do político está na distinção amigo-inimigo e na consequente
possibilidade da guerra, a instância mais extremada da relação de inimizade.
Para o autor, nada nem ninguém pode escapar à consequência desta oposição
– a guerra e a decisão soberana do Estado sobre a mesma e, assim, sobre a
vida e a morte dos indivíduos. Deste modo, em uma perspectiva schmittiana,
se torna impossível imaginar um mundo sem guerras, totalmente pacificado,
pois isto equivaleria a um mundo apolítico.
Nesta transformação do jus belli, o projeto de estabelecimento de uma
paz perpétua concretiza-se na possibilidade, impensável para o poder
soberano, de mover uma guerra em nome da humanidade.
Entretanto, no conceito do político de Schmitt (1992), o universal,
representado pela noção de humanidade, não é um pressuposto do político; a
humanidade pertence a todos os seres humanos e, por isto, a relação de
amigo-inimigo não pode ser estabelecida. Em contrapartida, esta mesma
concepção pode ser utilizada por um dos antagonistas para “desqualificar” o
seu oponente, reservando para si o status de humanidade e recusando-o para
o inimigo.
Neste contexto, a guerra torna-se particularmente desumana, de
criminalização do inimigo51,
A guerra desenrola-se, então, a cada vez na forma de
‘derradeira guerra de humanidade’. Tais guerras têm de
ser particularmente intensiva se desumanas porque
ultrapassando o político, ao mesmo tempo degradam o
inimigo em categorias morais e outras e precisam
transformá-lo num monstro desumano que não só precisa
ser combatido, mas definitivamente aniquilado que,
portanto, deixa de ser um inimigo que precisa ser
rechaçado de volta a suas fronteiras (SCHMITT, 1992, p.
62).

O conceito de humanidade é, portanto, um conceito ideológico do qual


se faz uso político, mas que, na verdade é apolítico; isto porque a noção de

51
Para esta discussão sobre a guerra e a criminalização do inimigo, vide Schmitt (1952, 2005a,
2005b).
98

humanidade exclui a de inimigo. A humanidade não tem inimigos, pois estes


teriam que ser inumanos. Por conseguinte, a humanidade não faz guerra, mas
Estados guerreiam em seu nome, realizando uma identificação com conceitos
universais, tais como paz, justiça e civilização, como justificaram os norte-
americanos na invasão do Iraque em 2003.
Neste contexto, o inimigo é desumanizado, desmoralizado; o direito
internacional do pós-guerra o criminalizou, o transformou no agressor, naquele
que rompe a paz, o que não tem os valores universais. E é justamente esta a
lógica da guerra de combate ao terror – a criminalização do inimigo, sua
desqualificação, seu caráter de ameaça à humanidade. A emergência do
inimigo absoluto (SCHMITT, 1992, 2005b). Agora, o inimigo é o monstro, o não
humano, com determinado perfil racial e contra quem a sociedade, ou a
humanidade, deve ser defendida (JABRI, 2010).
Uma guerra sem fronteiras, que retoma a noção de guerra justa, a que é
feita em nome da paz, da justiça e da humanidade, e que serve para legitimar
os próprios atos políticos – “As construções (mentais) que exigem uma guerra
justa costumam servir, por sua vez, a uma finalidade política” (SCHMITT, 1992,
p. 76).
(...) sabemos que hoje a guerra mais terrível se realiza
somente em nome da paz, a mais medonha opressão só
se realiza em nome da liberdade e a mais terrível
desumanidade só em nome da humanidade (SCHMITT,
1992, p. 119).

De acordo com Sá (2001), a democracia liberal, a partir do momento em


que destrói o princípio da representação e recusa a transcendência soberana,
provoca a indistinção entre o inimigo público e privado, o hostis e o inimicus,
cuja distinção é central na teoria schmittiana e no próprio conceito de inimigo
do direito público internacional. Como fim desta diferenciação, altera-se a
própria concepção da guerra, que se torna “uma guerra em que o inimigo
público é, ao mesmo tempo, um inimigo pessoal e privado, um criminoso e um
inumano. Tal guerra torna-se, então, uma guerra contra o crime e, nesse
sentido, uma guerra total” (SÁ, 2001, p.459).
Em suma, o que Schmitt (1952, 2005a, 2005b) faz em “Terra e Mar”, em
“O Nomos da Terra” e na “Teoria do Partisano” é justamente explorar a relação
entre ocaso da soberania política e a emergência do conceito de guerra
99

humanitária enquanto guerra criminalizante, ou seja, a guerra total com seu


inimigo absoluto. É a busca por uma “paz perpétua”, conduzida por uma guerra
sob a forma de ação policial, discriminante, que deixa entrever, nas
democracias liberais contemporâneas, o poder total que nelas se desenvolve.
Assim, é a atualidade do pensamento schmittiano o que o torna tão inquietante.

2.8 – Epítome 1- Poder soberano: direito de deixar viver e de fazer morrer

O ponto de partida para a análise do poder soberano em Schmitt está na


sua definição do poder e em sua relação no âmbito do Estado entre
governantes e governados.
Para o jurista alemão, o poder é uma relação de obediência entre os que
o detêm e os que não o detêm, um vez que estes buscam proteção junto a ele.
É a relação hobbesiana entre proteção e obediência, na qual poderosos e
sujeitados formam uma unidade política, constituindo o poder uma realidade
autônoma, objetiva e com regras próprias, sendo dotado de uma dialética
interna, de luta pelo acesso ao poderoso (SCHMITT, 2010).
Este poder protetor, na teoria hobbesiana, está consubstanciado na
figura do Estado ou, mais especificamente, do Leviatã – o misto de homem
(magnus homo, o grande homem formado por todos os homens), animal (o
monstro marinho do Livro de Jó), máquina (fabricada pela razão humana
através do contrato) e Deus (mortal), cujo objetivo é a garantia da segurança e
da paz civil aos indivíduos. Sua alma é o soberano, o Rector, que é o detentor
do poder terreno supremo e indivisível.
Para Schmitt (1990), Hobbes foi o primeiro a conceber o Estado como
uma máquina tecnicamente perfeita, um mecanismo técnico-político eficaz de
proteção, sendo, portanto, um precursor da neutralização estatal dos quatro
séculos posteriores. Neutralização que se daria principalmente com a
racionalidade econômica-individualista liberal, da qual, na leitura schmittiana,
Hobbes também foi predecessor. Isto porque o filósofo inglês reconheceu a
distinção, em relação à fé e ao milagre, entre crença interna, de caráter
privado, íntimo, e confissão externa, de razão pública, cuja decisão cabe ao
soberano. É a distinção entre o público e o privado (e a superioridade do
último), com a liberdade de pensamento, e o nascimento do Estado moderno
100

neutro, que destruiu o Leviatã a partir de dentro.


Como consequência desta destruição, o Estado sobreviveu como um
aparato técnico e legal, em um processo de legalização generalizada, se
transformando em um sistema positivista de legalidade; a lei como fundamento
da obediência, a legalidade como legitimidade.
É a passagem do Estado absoluto do século XVIII ao Estado burguês de
direito do século XIX, no qual os poderes indiretos (a dialética interna do poder)
se transfiguram em poderes da sociedade, como partidos políticos e sindicatos;
o pluralismo social, a fragmentação e desintegração liberal, que matou o
Leviatã.
Aqui fica evidente o profundo antiliberalismo de Schmitt, inclusive no que
diz respeito à democracia. Para o autor, a verdadeira democracia não é a
liberal, a parlamentar, mas a que busca a homogeneidade (vontade geral),
eliminando a heterogeneidade. No lugar da igualdade formal liberal, a
igualdade como substância, capaz de construir uma identidade entre
governantes e governados. Uma democracia na qual a vontade geral seja
expressa não por meio de votos ou maiorias, simples ou qualificadas, mas pela
aclamação (SCHMITT, 1996, 2001).
Neste contexto, o “remédio” para o Estado parlamentar liberal, com suas
discussões intermináveis entre grupos divergentes, estaria em um Estado forte,
Total, como foi o nazismo. Neste, a homogeneidade do povo alemão foi
construída a partir da identidade étnica, enquanto raça ariana, sendo o nazismo
o único governo que soube efetivamente “lidar” com as diferenças, com sua
exclusão.
A verdadeira democracia, assim, não é a da humanidade (conceito
ideológico na leitura schmittiana), mas a dos iguais, o que significa tratar os
iguais de maneira igual e os desiguais de maneira desigual. É uma defesa da
ditadura, que, para Schmitt, é antiliberal, mas não necessariamente
antidemocrática, sendo capaz de permitir a identificação da vontade do
governante (ditador) e do governado (povo).
A segunda crítica schmittiana ao liberalismo está no fato de que o
Estado de direito é um Estado legiferante, centrado na criação (Legislativo, por
meio do Parlamento) e aplicação da lei, enquanto norma geral e abstrata,
separando quem legisla e quem governa. É o Estado da legalidade neutra, do
101

caráter formal da lei, enquanto decisão tomada pela maioria parlamentar, na


qual a maioria acaba se tornando o próprio Estado.
Deste modo, de acordo com Schmitt (2007), para entender a situação
estatal de sua época seria mais produtivo classificar os Estados não como
democracia ou ditadura, mas como Legiferante, Jurisdicional (que foca na
aplicação da normatização), Dirigente (manifestação da vontade pessoal
soberana, sendo típico do absolutismo) e Administrativo (auto administrado, no
qual a decisão é tomada apenas na situação concreta). Estes tipos estatais se
encontram na história sob formas híbridas, prevalecendo um ou outro de
acordo com a época.
O Legiferante e o Jurisdicional são típicos de momentos de calmaria,
sendo o primeiro o âmbito dos debates e o segundo das defesas advocatícias.
Já o Dirigente e o Administrativo são decisionistas, sendo este último baseado
nas circunstâncias, na urgência e na necessidade da situação.
Analisando a Constituição de Weimar, Schmitt afirma que a primeira
parte constitui um Estado Legiferante, liberal, enquanto a segunda abre uma
brecha para o Estado Jurisdicional e, em especial, para o Estado
Administrativo. Segundo o art. 48, §2.o. da Constituição, o Presidente é um
legislador extraordinário ratione necessitatis, que possui competência
extraordinária para promulgar decretos, podendo criar um direito de caráter
supletivo ou mesmo contra a lei. Deste modo, as normas só valem para a
situação normal, enquanto a anormal exige que o legislador ceda lugar ao
comissário da ação, buscando reestabelecer a ordem pública e manter a
segurança, através das medidas necessárias, sendo que estas têm um caráter
fático, não consistindo nem em atos de legislação nem de administração da
justiça. É a ditadura schmittiana, cujo conceito seria mais tarde substituído pelo
de estado de exceção (SCHMITT, 2001).
Nesta perspectiva, o comissário da ação é o ditador, aquele que tem que
intervir imediatamente, com meios concretos em situações também concretas.
É quem deve agir no caso extremo, fazendo o que as circunstâncias exigirem.
O comissário da ação pode ser o do poder constituído, na ditadura comissarial,
que suspende a constituição para protegê-la, buscando reestabelecer a
normalidade (caso do supracitado art. 48); ou pode ser o do poder constituinte,
na ditadura soberana, que almeja criar uma nova constituição, eliminando a
102

ordem existente (SCHMITT, 1968).


E é exatamente no art. 48 da Constituição de Weimar que se encontra o
significado do poder soberano schmittiano – soberano é quem decide sobre o
estado de exceção (SCHMITT, 2006b). É o conceito de decisão de Bodin na
definição da soberania; Schmitt é, pois, um decisionista.
Neste sentido, o soberano é aquele que decide sobre a exceção; tanto
sobre a existência da emergência extrema, como também sobre o que deve ser
feito para eliminá-la; sobre o que é normal e o que é excepcional. Ele está, ao
mesmo tempo, dentro e fora da ordem legal, mas estando incluído no
ordenamento jurídico.
O poder soberano é, pois, o monopólio decisório que decide não sobre a
suspensão da lei, mas sobre sua aplicabilidade ou não. E é, desta forma, que
se pode afirmar que a doutrina da soberania é uma doutrina sobre a exceção
(SCHMITT, 2006b).
E mais uma vez Schmitt critica o liberalismo, desta vez por sua negação
da exceção, como também da figura do soberano. Para o jurista alemão, o
liberalismo é apolítico, com indivíduos egoístas, produtores-consumidores do
livre mercado, e incapazes de uma decisão política ou mesmo de criar uma
ordem política, cujo resultado é uma sociedade tecnicista, de racionalidade
econômica e calculista, que perdeu o transcendente.
Deste modo, segundo Galindo (2002), não se deve ler os argumentos
schmittianos contra o liberalismo simplesmente como um indicador do traço
nazista do jurista alemão, mas como um dos mais agudos desafios teóricos às
democracias atuais, mais ou menos liberais.
Assim, na sua análise do Leviatã hobbesiano, Schmitt deixa explícito o
caráter ingênuo de toda tentativa de se revitalizar o mito leviatânico, ao mesmo
tempo em que apresenta um diagnóstico sobre o devir da política moderna em
direção ao individualismo, ao dualismo (interno x externo; público x privado) e à
neutralidade próprios do individualismo, ou, nas palavras de Galindo (2002),
“da infecção liberal, decididamente neutralizante do político, desmitologizante e
geradora de uma época somente técnica” (p. 152, tradução nossa52).
Nesta perspectiva, a única contraposição possível é a da Igreja Católica,

52
“de la infección liberal, decididamente neutralizante de lo político, desmitologizadora y
generadora de una época tan solo técnica”.
103

do seu publicismo no lugar do privatismo, que permite abarcar o religioso de


maneira jurídica e buscar a unidade perdida com o pluralismo liberal.
Entretanto, se perdeu o transcendente, esta sociedade manteve o
metafísico, permitindo a Schmitt (2006b) propor uma teologia política, contra o
individualismo liberal, o pensamento econômico e a racionalidade técnica,
buscando construir uma ordem soberana e unitária na figura do Estado e da
comunidade nacional (a eticidade estatal schmittiana, segundo Galindo, 2002).
Uma teologia capaz de resgatar o mito, em uma crítica à secularização e ao
abandono da dimensão metafísica do Ocidente, através da ética intramundana
e da tentativa de realização do reino de Deus na Terra.
É a busca de uma unidade a partir do complexo oppositorium da política
católica romana, da dualidade mitológica, que dá origem a uma luta que o
soberano deve ser capaz de reduzir. Neste momento, o catolicismo gnóstico de
juventude de Schmitt é superado pela interpretação do jurídico como a
manifestação mais adequada da transfiguração espiritual na Terra.
E é neste contexto que se deve interpretar a categoria binária que define
o âmbito do político - o amigo-inimigo, a dualidade que constitui a unidade
sobre a qual se baseia o conceito do político, em um esquema metafísico de
pensamento (SCHMITT, 1992).
A decisão sobre o hostis, sobre o inimigo público, é uma decisão
existencial, bem como a relação entre o hostis e o amigo. O inimigo não é o
mero adversário ou concorrente, mas a negação ontológica do outro, a ameaça
de morte enquanto forma de existência, de vida (Lebensform). O político,
portanto, requer a transcendência do individual; contra o individualismo liberal
apolítico está a forma homogênea de identidade que permite a transcendência
do privado. E é esta identidade, com a ausência do pluralismo liberal e sua
ideia de representação, a única justificativa para se travar uma guerra em
defesa do grupo.
Deste modo, se no âmbito interno o poder soberano é a decisão sobre a
exceção, sobre a suspensão da ordem legal no estado de extrema emergência,
cuja existência também é determinada pelo soberano, no âmbito externo é a
decisão sobre o hostis e o jus belli. Este, o direito de fazer a guerra, é também
o direito de vida e morte sobre os indivíduos que se submetem à proteção do
Estado, como também sobre seus inimigos e aliados.
104

É o decisionismo schmittiano, bem como o seu reconhecimento de que a


política é conflito e não a neutralidade liberal. O que os liberais parecem
esquecer, neste ponto, é que toda unidade é uma construção parcial, que
incorpora exclusão e violência, e que, desta forma, reclama a decisão - o que
implica em decidir no campo da luta a partir da disposição em se constituir
como uma unidade política. Democracia, neste sentido, não é um sistema que
exclui a decisão, mas que toma renovadas decisões excludentes, que não são
neutras ou puramente racionais. Assim, pensar a democracia é fazê-lo a partir
de três elementos: o conflito, a necessidade de se construir a unidade e a
impossibilidade de se subtrair à decisão (GALINDO, 2002).
O problema da teoria de Schmitt estaria justamente no modo como ele
articula estes três elementos no desejo de construção de uma unidade sem
fissuras, em um universalismo uniformizador de uma comunidade nacional, de
base étnicas, e na identificação entre governante e governados. É um
pensamento no qual a autoridade política, o poder soberano, capaz de tomar
decisões sobre a vida e a morte dos indivíduos, exige um comprometimento
absoluto, que envolve a vida como um todo. É na figura do soberano, que pode
exigir o sacrifício da vida, que a existência privada se torna unidade política.
Neste sentido, é o poder soberano o direito de deixar viver e de fazer
morrer, e que, a partir do século XVIII, passa a coexistir com outro poder sobre
a vida e a morte – a biopolítica. Assim, se o foco da teoria schmittiana está no
poder soberano, a de Michel Foucault está não em uma tentativa de se fazer
uma teoria do Estado ou da soberania, mas de “cortar a cabeça do rei”. Da
soberania à biopolítica.
105

3-MICHEL FOUCAULT E A BIOPOLÍTICA

Os seminários que Foucault ministrou no Collège de France em 1978 e


1979, publicados como “Segurança, Território e População” e “Nascimento da
Biopolítica”, constituíram um projeto de investigação que, sob o nome de
história da governamentalidade, buscou analisar os modos pelos quais os
discursos de verdade funcionam dentro de complexas redes de poder.
Neles, Foucault deu continuidade às investigações iniciadas em 1975,
com “Vigiar e Punir”, realizando, ao mesmo tempo, uma espécie de ruptura
que, segundo Gómez (2010), teria ocorrido em três pontos. Em primeiro lugar,
nestas duas obras, Foucault fez, como em nenhum outro lugar de seu trabalho,
uma reflexão baseada no Estado. Normalmente, suas análises sempre tiveram
como foco as relações de poder disseminadas na sociedade e não
concentradas em uma instituição particular. No entanto, em “Segurança”, o
filósofo francês dedicou vários seminários à racionalidade política estatal,
embora não pretendesse desenvolver uma teoria do Estado, mas analisar o
surgimento do Estado moderno (séculos XVII e XVIII) como a consequência da
articulação entre diferentes tecnologias de condução dos comportamentos.
Deste modo, mais do que o Estado, o que interessa nesta obra são os
processos de estatalização ou governamentalização do Estado; o espaço onde
se cruzam diferentes tecnologias de governo enquanto práxis e não como
entidade autônoma. Em suma, uma genealogia da governamentalidade.
Em segundo lugar, estas obras, e em especial “Nascimento da
Biopolítica”, foram o único lugar no qual Foucault realizou uma reflexão sobre a
racionalidade política contemporânea. Seu objetivo não foi apenas o de realizar
uma ontologia do presente, mas uma genealogia do liberalismo, dando ênfase
às racionalidades políticas surgidas após a Segunda Guerra Mundial.
E, finalmente, segundo Gómez (2010), o que está latente nesta história
da governamentalidade é a busca por uma relação entre poder e liberdade.
Uma tentativa de compreender a direção das condutas como uma tecnologia
política, ou seja, não como um ato de força, que obriga os governados a
determinados comportamentos, mas como um modo eficaz e consentido, que
pressupõe a liberdade dos que serão governados, gerando sua autorregulação,
fazendo coincidir seus desejos, decisões, necessidades e estilos de vida com
106

os objetivos governamentais fixados anteriormente.


É, desta forma, uma condição eficaz do comportamento dos outros a fim
de alcançar certos objetivos, por meio de estratégias racionais e um cálculo
estratégico para sua implementação. Em outras palavras, trata-se de
compreender como estas tecnologias políticas, em particular o liberalismo e o
neoliberalismo, produzem modos de existência, uma vez que através delas os
indivíduos se constituem como sujeitos, adquirindo uma experiência concreta
do mundo.
De acordo com Gómez (2010), em um momento anterior a este projeto
da história da governamentalidade, mais especificamente no início do curso de
1977, Foucault se encontrava, na definição de Deleuze, em um impasse
teórico, refletindo sobre as críticas que o “acusavam” de estar aprisionado no
dualismo dominação-resistência53.
Neste contexto, o começo do curso pode ser lido como um momento de
autoanálise, de problematização do modelo bélico nietzscheano, das linhas de
força, como matriz explicativa do poder. Este modelo, que Foucault denominou
de “hipótese Nietzsche”, consistia em uma crítica à matriz jurídica do poder,
analisando o poder como uma relação descentrada e desigual de forças
disseminadas na sociedade; as relações sociais como uma batalha, uma
guerra de forças, para além do Estado, na experiência cotidiana, constituindo
uma microfísica do poder (GÓMEZ, 2010).
Nesta matriz, a história é pensada como uma sucessão de dominações
e resistências que geram novas dominações. Para os críticos, se onde há
poder há resistência e se não há, portanto, nada fora do poder, então a
resistência só se poder dar no poder e não contra o poder. É quase uma
tautologia. Para responder a estas críticas, Foucault introduziu uma terceira
dimensão em suas análises – a subjetividade, como fruto da articulação entre
as outras duas dimensões, o poder e o saber. Ser sujeito, neste sentido, é ser
sujeitado às disciplinas corporais, como também às verdades cientificamente
legitimadas.

53
Segundo Gómez (2010), foi uma época particularmente difícil para Foucault, pois, além de
ter que lidar com as críticas, estava insatisfeito com suas aulas no Collège, que tinham se
transformado em espetáculo, e sob o impacto do seu fracasso nas incursões no jornalismo
político, em especial na defesa da Revolução Iraniana.
107

Assim, o problema do sujeito, como Foucault reconheceu em uma


entrevista poucos dias antes de sua morte, foi introduzido em suas reflexões
por meio da conduta individual. Neste momento, o autor se afastou
gradativamente do modelo bélico que havia sido sua rede de inteligibilidade na
análise do poder até 1978, passando a focar não mais nas relações de força,
mas nas articulações entre poder, saber e subjetividade. A superação de seu
impasse teórico veio, deste modo, pela percepção dos processos de
subjetivação não mais como meios e epifenômenos do poder, mas como
possíveis espaços de liberdade e resistência à dominação. É a
governamentalidade, pois, que aparece como o novo quadro de inteligibilidade
para sua análise do poder (GÓMEZ, 2010).
Contudo, como ressalta Gómez (2010), isto não significa que haja uma
descontinuidade completa entre as reflexões a partir de 78 e as anteriores, mas
sim que Foucault vai além das relações de poder como algo marcado
unicamente pela dominação, fazendo uma diferenciação entre relações de
poder, reversíveis e constituída pelos jogos de liberdade, e os estados de
dominação, nos quais impera o exercício da violência. O que conecta estes
dois momentos, antes e pós 78, é a análise das regras do jogo de liberdades,
as relações práticas, as racionalidades e tecnologias.
O ponto de partida está, desta forma, em um antigo conceito
foucaultiano – as práticas; o que os homens realmente fazem quando falam ou
atuam, aquilo que é manifesto, as positividades, sem procurar o oculto. Neste
contexto, as coisas são objetivações das práticas e não entidades frente às
quais as práticas reagem. E é assim que deve ser pensada a loucura, a
sexualidade e o Estado; eles não são objetos e sim campos de ação e
intervenção gerados por meio de um conjunto heterogêneo de práticas. “(...) o
Estado não é um monstro frio, é o correlato de certa maneira de governar. E o
problema está em saber como se desenvolve essa maneira de governar”
(FOUCAULT, 2008a, p.9).
A história da governamentalidade é, então, uma história de práticas,
que devem ser estudadas não separadamente, mas em rede. Elas formam um
conjunto, funcionando de acordo com determinadas regras, que não são
diretamente visíveis, ou seja, têm uma racionalidade. E esta não é atribuição
de um sujeito, mas de um regime de práticas; se as práticas mudam, muda
108

também sua racionalidade bem como suas objetivações (GÓMEZ, 2010).


Assim, nos cursos de 78 e 79, Foucault se interessa não pela ação
política (sujeitos particulares), mas pela racionalidade política, que se faz
operativa nas práticas de governo. Para o autor, não faz sentido falar em
práticas racionais e irracionais, uma vez que todas são racionais já que
possuem uma ratio de cálculo e valores que fazem com que elas sejam
consideradas boas e desejáveis. É, de acordo com Gómez (2010), uma
universalização sem universalismo, já que os regimes de práticas têm
racionalidades singulares e heterogêneas, tendo uma história dentro dos
conjuntos de poder. Segundo Foucault (2008a), no seminário de 10 de janeiro
de 79, descrevendo sua metodologia, “(...) em vez de partir dos universais para
deles deduzir fenômenos concretos, (...), gostaria de partir dessas práticas
concretas e, de certo modo, passar os universais pela grade dessas práticas”
(p.5).
Estas práticas racionais constituem o que Foucault denomina de
tecnologia, o uso dos meios orientados pela reflexão e experiência para
alcançar o seu fim. E como outros conceitos foucaultianos, é também difícil de
ser definido, sendo usado muitas vezes pelo filósofo francês como sinônimo de
técnica. De qualquer modo, sempre se referindo à dimensão estratégica, e não
puramente utilitária ou instrumental, das práticas.
Neste contexto, as tecnologias de governo, de modo específico, são a
zona de contato entre as tecnologias de poder, que determinam a conduta dos
indivíduos (sujeição), e as tecnologias do eu, que permitem aos indivíduos
dirigir sua própria conduta (subjetivação). Estas técnicas de governo podem
servir tanto para criar estados de dominação quanto para favorecer práticas de
liberdade.
É neste sentido que se pode afirmar que o liberalismo e o neoliberalismo
são tecnologias de governo. Não se trata de práticas disciplinares, mas
governamentais, de produção de modos de vida, de subjetivação, de regimes
de verdade. E é a governamentalidade o verdadeiro centro de análise de
Foucault em “Segurança, Território e População” e “Nascimento da Biopolítica”.
Embora neste último seu objetivo inicial fosse analisar a biopolítica, ele acaba
se focando em uma interrogação preliminar: qual a racionalidade específica
desta política? E é a esta questão que ele vai dedicar todo o curso, não
109

voltando mais a falar de biopolítica (GÓMEZ, 2010).


O curso deste ano acabou sendo inteiramente
consagrado ao que devia formar apenas a sua
introdução, O tema escolhido era portanto a “biopolítica”:
eu entendia por isso a maneira como se procurou, desde
o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática
governamental pelos fenômenos próprios de um conjunto
de viventes constituídos em população: saúde, higiene,
natalidade, longevidade, raças (...).
Pareceu-me que não podia dissociar esses problemas do
racionalidade política no interior do qual eles
apareceram e adquiriram sua acuidade (FOUCAULT,
2008a, p. 431).

Por conseguinte, a nova rede de inteligibilidade foucaultiana é a


governamentalidade e sua genealogia, e é nessa nova “gramática” que a
biopolítica deve ser analisada.
Segundo Gómez (2010), antes de 1978, o conceito de biopolítica foi
esboçado em Foucault como oposição ao paradigma da soberania,
constituindo, assim, duas tecnologias opostas - de um lado a biopolítica e de
outra a soberania. Posteriormente, a partir de 78, estas tecnologias passaram a
ser analisadas como racionalidades diferentes, mas que trabalham de maneira
sobreposta, sendo uma dirigida ao adestramento dos corpos, a anatomopolítica
da primeira metade do século XVIII, e a outra à regulação das populações, na
segunda metade do século XVIII. Desta forma, Foucault deixa de contrapor a
soberania à biopolítica e passa a contrapor a soberania ao governo, realizando
uma reinterpretação da biopolítica em termos de governamentalidade.

3.1 - Do poder soberano à biopolítica

De acordo com Foucault (1985), por muito tempo um dos privilégios


característicos do poder soberano era o direito de vida e morte sobre os
súditos. Este derivava do patria potestas do pai de família romano, que possuía
o direito de dispor da vida de seus filhos e escravos.
Este direito vai subsistir na relação entre soberano e súdito, mas de uma
forma atenuada, não sendo exercido em termos absolutos e incondicionais. No
poder soberano, ele será uma questão de defesa e sobrevivência do soberano,
uma espécie de direito de réplica em face de uma ameaça. Se se trata de um
inimigo externo, é a prerrogativa soberana de pedir aos súditos que tomem
110

parte, por meio da guerra, na defesa do Estado; neste momento, trata-se de


uma exposição da vida do súdito, de um exercício indireto de vida e morte
sobre o mesmo. Por outro lado, em se tratando de um inimigo interno, cabe ao
soberano o direito direto de vida e morte sobre o súdito, o matar como um
castigo pela revolta, desobediência e ameaça.
Neste contexto, em sua forma antiga, o direito de vida e morte era
absoluto, encontrando-se limitado em sua forma moderna. No entanto, em
ambos, ele é um direito assimétrico, no qual o soberano marca o poder sobre a
vida pela morte – o direito de vida e morte é, portanto, o de causar a morte ou o
de deixar viver.
Em sua forma antiga, ele era exercido como um direito de apreensão
das coisas (riquezas, bens, confisco), do tempo, dos corpos, e, finalmente, da
vida; era o privilégio de se apoderar da vida para, então, poder suprimi-la.
A partir da época clássica, há uma transformação, no Ocidente, dos
mecanismos de poder; o confisco deixa de ser um fim em si e se torna uma
peça, entre outras, com funções de reforço, controle, vigilância e organização e
majoração das forças que lhe são submetidas. É um poder destinado agora a
produzir forças, fazê-las crescer e ordená-las. Assim, o direito de morte passa a
se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em
função de suas necessidades.
Nesta forma moderna de poder, são dois os modos pelos quais a força é
exercida – a guerra e a pena de morte. De acordo com Foucault (1985), a partir
do século XIX, nunca as guerras foram tão sangrentas e nunca os regimes
haviam praticado holocaustos em suas próprias populações. É o exercício do
poder de morte, como complemento de um poder que se pratica,
positivamente, sobre a vida, que realiza a sua gestão, majoração,
multiplicação, controle e regulação. As guerras deixam de ser travadas em
nome do soberano a ser defendido e passam a ser empreendidas em nome de
todos. É um poder que expõe toda uma população à morte e que é o inverso
da garantia de sua permanência em vida.
(...) populações inteiras são levadas à destruição mútua
em nome da necessidade de viver. Os massacres se
tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da
sobrevivência do corpo e da raça que tantos regimes
puderam travar tantas guerras, causando a morte de
tantos homens (FOUCAULT, 1985, p.129).
111

Neste sentido, o poder de matar para poder viver, que era o sustentáculo
das táticas dos combates, se torna o princípio estratégico entre os Estados – a
existência em questão já não “é aquela – jurídica da soberania, é outra –
biológica – de uma população” (FOUCAULT, 1985, p.129). O genocídio se
torna, deste modo, o sonho dos poderes modernos; mas não se trata da volta
ao velho direito de matar soberano. O poder agora se exerce e se situa ao nível
da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos maciços da população.
Além da guerra, a outra forma de exercício de força já citada é a pena de
morte, a resposta do soberano a quem atacava sua lei, sua vontade e sua
pessoa. Com a forma moderna do poder, o número de condenados à morte
diminui ao passo que aumentam os mortos pela guerra. Isto, entretanto, não
ocorreu, de acordo com Foucault (1985), por questões humanitárias e sim
porque no momento que o poder assume a função de gerir a vida, sua razão de
ser e sua lógica de exercício tornam mais difícil a aplicação desta pena. Como
infligir a pena de morte se a função do poder é garantir, sustentar, multiplicar e
colocar a vida em ordem? No lugar de um castigo comum, esta pena se torna
aplicável apenas para os incorrigíveis, para os que colocam os outros em
perigo biológico.
Em suma, “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi
substituído por um poder de causar a vida ou devolver a morte” (FOUCAULT,
1985, p. 130). Ocorreu uma desqualificação da morte e com ela o poder
estabelece agora seus pontos de fixação sobre a vida e seu desenrolar. A
morte se torna o limite, o ponto mais privado, que escapa ao poder; o que
justificaria o interesse sociológico crescente pelo suicídio ao longo do século
XIX – o direito individual e privado de morrer.
Este poder sobre a vida se desenvolveu a partir do século XVIII, sob
duas formas, que não são antitéticas e sim polos que se interligam por um feixe
intermediário de relações – o poder disciplinar e, um pouco mais tarde, a
biopolítica. Ambos se desenvolvem, de início, em direções diversas, até que,
no século XIX, passam a se articular, formando uma grande tecnologia de
poder, na qual o poder tem como função mais elevada não o matar, mas o
investir sobre a vida, de cima a baixo. A disciplina sobre o corpo dos indivíduos,
em um processo de docilização, de adestramento; a biopolítica como a
112

administração dos corpos e a gestão calculista da vida. Não se trata mais da


velha potência de morte do poder soberano, mas da sujeição dos corpos e o
controle das populações, inaugurando uma era de biopoder.

3.1.1- O poder disciplinar

De acordo com Foucault (2008b), há três modalidades ou mecanismos


de poder, que historicamente foram aplicadas ao campo da criminalidade e da
delinquência. O primeiro é o mecanismo jurídico-político, que consiste em criar
uma lei e estabelecer uma pena para os infratores. Neste contexto, não há
crime ou pena sem lei anterior que o defina. Este sistema legal é o
funcionamento penal arcaico da Idade Média aos séculos XVII e XVIII, e está
relacionado à teoria da soberania – a aplicação da lei pelo soberano em uma
determinada unidade política.
Já a segunda modalidade, a moderna, implantada a partir do século
XVIII, seria a disciplinar, na qual a lei é enquadrada por mecanismos de
vigilância e de correção. Ela vai além do ato legislativo e do sistema judiciário,
criando um terceiro elemento – o culpado, que, através de um conjunto de
técnicas policiais, médicas e psicológicas, deve ser vigiado, diagnosticado e, se
possível, transformado (FOUCAULT, 2008b). Ela não é o prolongamento direto
das grandes estruturas jurídico-políticas, mas também não é absolutamente
independente das mesmas. Na verdade, as disciplinas “dão, na base, garantia
da submissão das forças e dos corpos. As disciplinas reais e corporais
constituíram o subsolo das liberdades formais e jurídicas” (FOUCAULT, 2004).
De acordo com o filósofo utilitarista inglês Jeremy Bentham, vigiar
significa um meio de obter o poder - um poder do espírito sobre o espírito –
cujo paradigma seria o modelo arquitetural do panóptico (FOUCAULT, 2004;
MATTELART, 2008).
O panóptico é uma figura arquitetural, com um ponto central, a torre, a
partir da qual aquele que vigia pode controlar, com plena visibilidade, tudo o
que cerca o edifício, dividido em alvéolos ou celas, e na qual os vigiados,
separados um dos outros, são vistos sem poder ver aqueles que os observam.
Para Foucault (2004), Bentham teria se inspirado no zoológico de Le
Vaux, em Versalhes, construindo o modelo de um zoológico real, no qual os
113

homens são sujeitados de uma maneira menos dispendiosa, sem a


necessidade de força, correntes ou violência. O homem é o princípio de sua
própria sujeição.
Bentham, que foi autor de inúmeros projetos de reformas penitenciárias,
acreditava que este modelo ideal, do panóptico, poderia ser aplicado não só às
prisões, mas a todos os estabelecimentos, sem exceção, que tivessem a
função de manter sob controle e vigilância certo número de pessoas. Assim, ele
poderia ser aplicado às escolas, fábricas, asilos, hospitais, caserna, entre
outros (MATTELART, 2008).
E é a partir desta figura arquitetural que Foucault analisa a gênese da
sociedade disciplinar em “Vigiar e Punir”. O panóptico é o paradigma desta
sociedade, que se desenvolve a partir dos séculos XVII e, especialmente, XVIII.
Se na sociedade “anterior”, a soberana, os limites eram dados pelo
território, na disciplinar, são os corpos dos indivíduos. Não como no suplício
dos condenados, mas agindo de uma maneira mais espacial do que física.
Segundo Foucault (2004), o poder disciplinar é o poder de adestrar, de deixar
os corpos dóceis, por meio de uma técnica específica de poder que toma os
indivíduos, ao mesmo tempo, como objeto e como instrumento de seu
exercício.
Assim,
A disciplina não pode se identificar com uma instituição
nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma
modalidade para exercê-lo, que comporta todo um
conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos,
de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma física ou uma
anatomia do poder, uma tecnologia (FOUCAULT, 2004,
p.177).

Neste poder, portanto, a arquitetura do panóptico transforma-se em um


modelo generalizável de comportamento, uma tecnologia política do corpo e
uma maneira de definir as relações de poder na vida cotidiana dos homens,
visando à automatização e desindividualização deste mesmo poder. O efeito
mais importante deste modelo seria induzir no detento ou no vigiado, em geral,
um estado consciente e permanente de visibilidade, que assegura o
funcionamento automático do poder, que é visível, mas inverificável. “Uma
vigilância permanente, exaustiva, onipresente, capaz de tornar tudo visível,
mas com a condição de ser tornar ela mesmo invisível (FOUCAULT, 2004,
114

p.176)”. Permanente nos efeitos, ainda que descontínua na ação, tendendo a


tornar inútil a atualidade do seu exercício e criando uma relação de poder
independente daquele que o exerce; na verdade, não mais importa quem
exerce o poder. É uma tecnologia que torna o poder o mais eficaz e o menos
custoso possível, tanto política quanto economicamente.
A disciplina, deste modo, vai além da estrutura física, da arquitetura, que
serve apenas como base de sustentação e nem é apenas uma instituição ou
um aparelho; ela é, antes de tudo, uma tecnologia do poder, o objeto de uma
nova anatomia política, o panoptismo, que fabrica os indivíduos, por meio de
técnicas como a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora, o exame e a
indução ao discurso (FOUCAULT, 2004).
Neste contexto, é a disciplina um dispositivo 54, ou seja, uma rede que
envolve elementos tão heterogêneos quanto instituições, discursos, leis,
medidas administrativas, construções arquiteturais, proposições filosóficas,
morais, entre outros, sendo, ao mesmo tempo, discursivo e não discursivo. Ele
teria uma função estratégica dominante, de responder a uma urgência, estando
inscrito em um jogo de poder (FOUCAULT, 1994).
A sociedade disciplinar/panóptica é, por conseguinte, aquela centrada
na vigilância, no adestramento e normalização social do sujeito, na extensão
progressiva dos dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII e
de sua multiplicação por meio de todo o corpo social. Não se trata, deste modo,
da disciplina-bloco da cidade pestilenta, da instituição fechada, da disciplina
como exceção para o combate ao “mal”. A sociedade disciplinar é a sociedade
da disciplina-mecanismo, que busca tornar o poder mais eficaz, mais leve, mais
rápido, mais econômico, por meio de coerções sutis, indo além das instituições
e permeando as relações sociais (FOUCAULT, 2004).
E esta disciplina também é parte da arte de governo liberal. Segundo
Foucault (2008a), já no fim da vida, Bentham vai apresentar o projeto de
codificação da legislação inglesa como aquele que deve ser a fórmula de todo

54
Segundo Agamben (2005b), o dispositivo pode ser compreendido como um conjunto
heterogêneo que envolve, virtualmente, qualquer coisa, e que compreendido a partir de sua
origem grega oikonomia, administração ou gestão, significa “um conjunto de práxis, de
saberes, de medidas, de instituições cujo objetivo é de administrar, governar, controlar e
orientar, em um sentido em que se supõe útil, os comportamentos, os gestos e os
pensamentos dos homens” (pg.12). A disciplina, então, é um modo de subjetivação, e, na visão
de Agamben, também de de-subjetivação.
115

governo, afirmando que o panóptico é a própria fórmula de um governo liberal,


uma vez que a função do governo deve ser a de deixar fluir toda a mecânica
natural dos comportamentos e da produção. Não deve haver sobre eles, então,
qualquer forma de intervenção, a não ser a vigilância; neste contexto, o
governo só pode intervir quando vir, a partir do seu vigiar permanente, que
alguma coisa não ocorre como exige a mecânica geral e natural dos
comportamentos e da vida econômica. O panoptismo, assim, não é apenas
“uma mecânica regional e limitada a instituições. O panoptismo, para Bentham,
é uma fórmula política geral que caracteriza um tipo de governo” (FOUCAULT,
2008a).
A partir dos séculos XVIII e XIX, a sociedade disciplinar passa a conviver
com outro modelo paradigmático – a biopolítica e seu projeto de uma
sociedade da segurança. É a terceira modalidade a qual Foucault (2008b) se
refere, a contemporânea - o dispositivo de segurança, que vai inserir o
fenômeno da criminalidade e da delinquência em uma série de acontecimentos
prováveis. Ao invés da divisão binária entre o proibido e o permitido, busca-se
estabelecer uma média, um limite do aceitável, que não pode ser ultrapassado.
Não se busca a supressão do crime, por exemplo, mas o seu controle dentro
de uma média desejável.
Entretanto, um mecanismo de poder não sucede e nem se sobrepõe ao
outro. De acordo com Foucault (2008b), “Não há a era do legal, a era da
disciplina, a era da segurança” (p.11). O que muda é o dominante, a correlação
entre estas três modalidades.
Neste sentido, pode-se afirmar que a disciplina não apareceu
simplesmente no século XVIII – suas técnicas já estavam presentes no interior
do código jurídico-legal. E este código, por sua vez, e toda sua inflação
posterior, foi necessário para fazer o sistema de segurança funcionar, que
também precisou dos mecanismos disciplinares, como a vigilância e o
diagnóstico.
Para Foucault (2008b), então, estudar a tecnologia de segurança
significa entender que suas técnicas consistem em boa parte “na reativação e
na transformação das técnicas jurídico-legais e das técnicas disciplinares”
(p.13). “A segurança é uma certa maneira de acrescentar, de fazer funcionar,
além dos mecanismos, propriamente de segurança, as velhas estruturas da lei
116

e da disciplina” (p.14).
São técnicas complementares, embora por vezes sejam antagônicas-
enquanto a disciplina não deixa escapar nada, se ocupa de todos os detalhes,
até o mais ínfimo, não permitindo o laissez-faire, o dispositivo de segurança
não é o panóptico, já que ele deixa fazer, o que não significa, obviamente, fazer
tudo; se a disciplina e o sistema legal funcionam na lógica binária do permitido
e obrigatório e do permitido e do proibido na técnica, a segurança é uma
reação a uma dada realidade.
Deste modo, o aparato legal, e o correlato sistema judiciário, e a
disciplina, a individualização dos corpos por meio do seu controle espacial, não
deixam de existir com o advento dos dispositivos de segurança. Eles passam a
coexistir com uma nova técnica, que os integra e que é exercida em um outro
nível, por meio de instrumentos totalmente distintos. E o instrumento específico
da sociedade de segurança é a biopolítica ou biopoder.

3.1.2- A biopolítica

De acordo com Patton (2011), a biopolítica e o biopoder 55 nunca


ocuparam papel central no trabalho de Foucault. O termo aparece pela primeira
vez na parte final da “História da Sexualidade: a vontade de saber”, na forma
de um contraste épico entre o velho direito de tirar a vida e deixar viver e a o
moderno poder de manter a vida ou, na pior das hipóteses, de proibi-la ao
ponto de morte. Este conceito reapareceria no seminário de 17 de março de
1976, que foi publicado na obra “Em Defesa da Sociedade”. Nesta, a biopolítica
se refere à maneira pelo qual, a partir do fim do século XVIII, o poder de
governar começou a ser exercido sobre o homem enquanto um ser vivente.
Nas obras seguintes, “Segurança, Território e População” e “O Nascimento da
Biopolítica”, Foucault, apesar de se propor a falar sobre o tema, segue direções
diversas.
55
Foucault utiliza de maneira indistinta os termos biopolítica e biopoder. No entanto, segundo
Esposito (2008), é necessário diferenciar os termos. Para o autor, a biopolítica significa uma
política em nome da vida, ou seja, um governo da vida. Já o biopoder se refere a um governo
sobre a vida, a uma vida sujeitada ao comando da política. Tampouco, Foucault se preocupa
com as diferentes interpretações sobre a biopolítica que o precedem. Para Esposito (2008), isto
é compreensível na medida em que o trabalho desenvolvido por Foucault a partir de meados
nos anos 70 tem uma complexidade e radicalidade que é completamente incomparável com as
teorias predecessoras.
117

Em “O Nascimento”, o objeto da análise de Foucault é uma forma


particular de governamentalidade, o liberalismo e o neoliberalismo (alemão e
norte-americano), sugerindo que apenas ao entender o liberalismo se torna
possível compreender o que é a biopolítica. De qualquer modo, ambos os
conceitos, biopolítica e biopoder são ambíguos na teoria foucaultiana.
Em uma concepção política estreita, segundo Patton (2011), o foco de
Foucault será nos modos pelo qual o poder soberano56 procurou governar as
vidas econômicas, sociais e culturais dos sujeitos. Na caracterização inicial da
biopolítica, ele é cuidadoso em apontar que do mesmo modo como as técnicas
do poder disciplinar eram praticadas fora das instituições do poder estatal,
assim também o eram as formas de regulação das condições de vida
desenvolvidas no século XIX tanto pelas instituições do Estado quanto por
aquelas infra estatais, como instituições médicas, de bem-estar, entre outras.
Contudo, apesar de ressaltar esta prática fora da órbita estatal, o seu foco
primário será no exercício do poder do Estado sobre as condições biológicas
da vida humana.
Portanto, diferentemente da disciplina, que se dirige ao corpo, ao
indivíduo, a biopolítica se dirige à vida dos homens, ao homem como espécie.
Assim, a disciplina é individualizante e a biopolítica, massificante. Ambas são
uma tecnologia do corpo, mas enquanto a disciplinar individualiza o corpo
como um organismo dotado de capacidades, o biopoder o recoloca nos
processos biológicos de grupo (FOUCAULT, 2003).
A biopolítica é, deste modo, um conjunto de processos que busca
controlar, por meio da estatística e por intervenções diretas e indiretas, os
acontecimentos próprios da vida, como o nascimento, a saúde e a mortalidade.
O que interessa a ela são os fenômenos coletivos em série, no nível da massa,
próprios não dos indivíduos, mas da população. Trata-se de conhecê-los,
controlá-los e mesmo modificá-los, buscando um equilíbrio global.
Com esta nova tecnologia, será instaurado um novo direito, o de fazer
viver e de deixar morrer, que não irá substituir o direito da soberania de fazer
56
Segundo Esposito (2008), apesar das infinitas variações e transformações ao longo do
tempo, a soberania, como reconhece Foucault, tem se baseado no mesmo esquema figurativo,
englobando duas entidades distintas – a totalidade dos indivíduos e o poder, que, em certo
momento, entra em relação com os indivíduos nas modalidades definidas por um terceiro
elemento, a lei. Toda a filosofia moderna, apesar da aparente oposição e heterogeneidade,
está configurada nesta rede triangular.
118

morrer ou deixar viver, mas vai complementá-lo, perpassá-lo e mesmo


modificá-lo.
A crítica que Patton (2011) faz neste ponto se refere à aparente
confusão de Foucault entre a biopolítica como prática, como tecnologia, e como
uma forma de representação do poder. De início, a biopolítica foi introduzida na
obra foucaultiana como uma tecnologia específica do poder que colocou as
condições biológicas da vida humana sob controle estatal. No seminário de 17
de março, ele se preocupa em distinguir as formas do poder soberano
clássicas e modernas das tecnologias biopolíticas desenvolvidas no fim do
século XVIII. A transformação que o interessou em relação ao contraste
elaborado no final da “História da Sexualidade: a vontade de saber” entre o
direito de morte e o poder sobre a vida envolveu mais as formas de exercício
do poder estatal que suas formas de representação na teoria política.
Esta transformação, por conseguinte, ocorreu no nível das técnicas,
mecanismos e tecnologias do poder. Neste sentido, ele aponta para a
emergência de uma nova tecnologia de poder que consiste em fazer viver e
deixar morrer, em níveis e escalas diferentes daquele do poder disciplinar.
Operando sobre as populações, o alvo inicial da biopolítica foram as
taxas de natalidade e mortalidade, reprodução e fertilidade, idade, acidentes,
enfermidades e outras deficiências biológicas, o que levou à introdução de
seguros e outros meios de proteção coletiva e medidas destinadas a preservar
tanto a vida quanto a qualidade de vida. Posteriormente, o biopoder envolveu
várias formas de controle sobre o meio ambiente, como água e condições da
vida urbana.
Assim, “a biopolítica lida com a população, com a população como um
problema político, com um problema que é tanto científico quanto político,
como um problema biológico e um problema do poder” (FOUCAULT, 2003, p,
245, tradução nossa57). A população, deste modo, segundo Gómez (2010), não
é um conjunto de pessoas, mas um conjunto de processos. E as questões a ela
pertinentes são fenômenos coletivos, com efeitos econômicos e políticos e que
só se tornam pertinentes ao nível da massa. Fenômenos estes que são
aleatórios se tomados individualmente, mas predizíveis e mensuráveis no nível

57
“Biopolitics deals with the population, with the population as political problem, as a problem
that is at once scientific and political, as a biological problem and as power’s problem”.
119

do coletivo, ou seja, “os fenômenos dirigidos pela biopolítica são,


essencialmente, eventos aleatórios que ocorrem em uma população em um
determinado período” (FOUCAULT, 2003, p. 246, tradução nossa58).
E, finalmente, como última característica, a biopolítica, por intervir no
nível populacional e não individual, vai utilizar mecanismos muito diferentes
daqueles empregados pelo poder disciplinar, como a estatística.
O que Foucault (2003) faz, então, é claramente descrever os
mecanismos, as técnicas do exercício do poder, do biopoder. Entretanto, no
mesmo seminário de 17 de março, logo no início, ele descreve o poder
soberano em termos de representação política e jurídica e não em termos de
seu exercício efetivo. Segundo Patton (2011), ele descreve os atributos básicos
do poder soberano clássico como o direito de vida e morte e sugere que este é
um direito estranho mesmo no nível teórico.
Vocês sabem que na teoria clássica da soberania, o
direito de vida e morte era um dos atributos básicos da
soberania. Agora o direito de vida e morte é um direito
estranho. Mesmo no nível teórico, ele é um direito
estranho. O que significa atualmente o direito de vida e
morte? (FOUCAULT, 2003, p. 240, tradução nossa59).

Por um lado, dizer que o soberano tem o direito de vida e morte quer
dizer, basicamente, ou que ele pode matar ou deixá-los viver, ou em todo caso
que vida e morte não são um fenômeno natural ou imediato, que se situam fora
do campo do poder. De acordo com Foucault (2003), levando este argumento
um pouco mais além, chega-se ao ponto paradoxal no qual, em termos de
relações com o soberano, o sujeito está, pelo direito, nem morto nem vivo. O
sujeito é, desta forma, do ponto de vista da vida e da morte, neutro, e é graças
ao soberano que o sujeito tem o direito de estar vivo ou, possivelmente, o
direito de ser morto. Em todo o caso, a vida e a morte dos sujeitos se tornam
direitos apenas como resultado da vontade do soberano. E é este o paradoxo
teórico, um desequilíbrio prático.
Assim, segundo Patton (2011), enquanto na teoria o soberano tem poder
de vida e morte sobre o sujeito, na prática este poder é sempre exercido de um

58
“The phenomena addressed by biopolitics are, essentially, aleatory events that occur within a
population that exists over a period of time”.
59
You know that in the classic theory of sovereignty, the right of life and death was one of the
sovereignty’s basic attributes. Now the right of life and death is a strange right. What does
having the roght of life and death actually mean?
120

modo desequilibrado, sempre inclinado em favor da morte.


O efeito do poder soberano na vida é exercido apenas
quando o soberano pode matar. A própria essência do
direito de vida e morte é na verdade o direito de matar: é
neste momento quando o soberano pode matar que ele
exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente o
direito da espada (FOUCAULT, 2003, p. 240, tradução
nossa60).

Em outras palavras, como Foucault argumentou em “Vigiar e Punir”, o


exercício do poder soberano no período pré-moderno era primariamente
negativo, ou seja, era o poder de tirar a vida ou ameaçá-la. Nos termos do
contraste entre as análises foucaultianas do poder como teoria ou
representação e prática ou técnicas, a assimetria que ele aponta aqui, na
relação com o poder soberano clássico, se aplica mais no nível do exercício do
poder que no nível da representação. Nos termos de sua discussão
subsequente sobre a emergência do biopoder, é neste nível que a
transformação se opera – diferentes objetos, escala de aplicação e
mecanismos de regulação das condições de vida em uma dada população.
Mas quando ele sugere que a essência do poder soberano é o direito da
espada, de matar, ele novamente confunde o exercício e a representação do
poder. Para Patton (2011), se é verdade que a assimetria surge apenas no
nível do exercício do direito soberano, então, isto não afeta o caráter do direito
soberano como tal.
Esta “confusão” continua na medida em que Foucault sugere, ainda no
seminário, que uma das maiores transformações no direito político durante o
século XIX envolveu a permeação do velho direito de tirar a vida ou deixar viver
pelo novo direito de fazer viver e deixar morrer. Segundo Patton (2011), é óbvio
que neste momento ele está falando sobre a transformação na forma de
representação do poder soberano, desde que ele sugere que esta pode ser
rastreada na teoria do direito. E para embasar sua argumentação, Foucault
recorre não à filosofia política do século XIX, mas às dos séculos XVII e XVIII,
em especial aos contratualistas. A questão, para ele, é: se os sujeitos “entram”
no contrato como uma forma de proteger suas vidas, faz sentido supor que eles

60
Sovereign power’s effect on life is exercised only when the sovereign can kill. The very
essence of the right of life and death is actually the right to kill: it is at the moment when the
sovereign can kill that he exercises his right over life. It is essentially the right of the sword.
121

iriam conceder um direito sobre suas vidas ao soberano? Um direito de matá-


los? A vida não deveria permanecer fora do contrato, uma vez que foi a razão
inicial e fundamental para o próprio contrato?
Embora Foucault não se aprofunde neste ponto, deixando-o de lado, ele
afirma que estas perguntas claramente demonstram que, neste momento, o
problema da vida começou a ser problematizado no campo do pensamento
político, da análise do poder político. E deixa de lado justamente porque
pretende se dedicar não à transformação no nível da teoria política, mas dos
mecanismos, técnicas e tecnologias de poder. A transformação da tecnologia
do corpo, a disciplina, na da população, a biopolítica (FOUCAULT, 2003).
Na caracterização da biopolítica, Foucault vai abordar a relação entre
biopoder e governo de duas maneiras – a primeira como um esforço para
descrever as diferentes formas de exercício do poder estatal sobre as
condições da vida e a segunda como um esforço de descrição da justificação
ou legitimação do poder estatal em relação à vida biológica do povo, raça ou
espécie a ser governada.
Segundo Foucault (1985), o biopoder foi indispensável para o
desenvolvimento do capitalismo, por meio da inserção controlada dos corpos
no aparelho de produção e pelo ajustamentos dos fenômenos da população
aos processo econômicos. Além disto, o capitalismo requeria a docilidade dos
corpos, um poder capaz de majorar forças, aptidões e vida em geral, o que foi
fornecido tanto pelas instituições estatais de poder quanto pelas técnicas do
biopoder. Estas técnicas operaram ainda como fatores de segregação e de
hierarquização social, garantindo relações de dominação e hegemonia,
articulação crescente da população às forças produtivas, entre outros.
A primeira formação do capitalismo, no século XVIII, foi a “entrada” da
vida na história, isto é, a entrada dos fenômenos próprios à vida da espécie
humana na ordem do saber e do poder – no campo das técnicas políticas. Isto
não significa, entretanto, que este foi o primeiro contato da vida com a história,
bastando para tanto lembrar a era das grandes devastações da fome e da
peste; período de ameaças diretas sobre a vida que foram afrouxadas com o
desenvolvimento econômico e agrícola e com a ajuda de observações e
medidas visando à vida e sobrevivência dos homens.
O que ocorre, pela primeira vez, é que o biológico reflete-se no político;
122

a novidade é
que o fato de viver não é mais esse sustentáculo
inacessível que só emerge de tempos em tempos, no
acaso da morte e de sua fatalidade: cai, em parte, no
campo de controle do saber e da intervenção do poder
(FOUCAULT, 1985, p. 134).

O poder lida agora com seres vivos e o seu exercício se dá no nível da


vida; o acesso ao corpo é por meio do encarregar-se da vida, mais que a
ameaça da morte. A biopolítica é, neste contexto, o que faz com que a vida e
os seus mecanismos existam no campo dos cálculos explícitos, fazendo do
poder um agente de transformação da vida humana. É o que Foucault (1985)
denomina de limiar da modernidade biológica, na qual a espécie entra como
algo em jogo em suas próprias estratégias políticas.
Há uma bio-história, na qual os movimentos de vida e os processos da
história interferem entre si, e o século XVIII assistiu a uma mudança nesta
articulação. Se por milênios o homem era visto, como em Aristóteles, como um
animal vivo e, além disto, capaz de existência política, o homem moderno “é
um animal, em cuja política sua vida de ser vivo está em questão” (FOUCAULT,
1985, p. 134).
E esta transformação teria três consequências. A primeira se refere à
própria relação da história com a vida. É a posição dupla da vida, que a situa
fora da história com suas imediações biológicas e, ao mesmo tempo, dentro da
historicidade humana, infiltrada por suas técnicas de saber e de poder.
A segunda seria a proliferação de tecnologias políticas sobre o corpo, a
saúde, as condições de vida, em todo o espaço da existência. E, finalmente, a
terceira seria a importância crescente da norma, às custas do sistema jurídico
da lei. Esta tem, pelo menos como último recurso, como arma, a morte, a
ameaça absoluta aos seus transgressores. Contudo, a questão aqui não é mais
a de colocar a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir os
vivos em um domínio de valor e de utilidade – se trata, então, de qualificar,
medir, avaliar, hierarquizar; de distribuições em torno da norma e não de traçar
uma linha entre súditos obedientes e inimigos do soberano. É a lei cada vez
mais como norma, com uma função reguladora e um poder essencialmente
normalizador. Uma sociedade normalizadora que é “o efeito histórico de uma
tecnologia de poder centrada na vida” (FOUCAULT, 1985, p. 135).
123

E a resistência a este novo poder também se apoiará na vida e no


homem como ser vivo. A vida se tornou, deste modo, mais o objeto das lutas
políticas que o direito, embora estas mesmas lutas se formulem através de
afirmações do direito.
Segundo Dean (2004), em Foucault, a concepção de poder é pós-
soberana e não jurídica, mas isto não mina a centralidade ou a complexidade
de seu conceito de poder soberano. Para ele, embora Foucault busque
oferecer um conceito de poder fora das antinomias do que chamamos de teoria
jurídica da soberania, talvez paradoxalmente, ele oferece uma completa
caracterização do poder soberano. Nele, a soberania está conectada com a
concepção jurídico-discursiva do poder, que opera como um comando na lei. E,
neste ponto, Foucault se difere de Schmitt, para quem não importa o quão
próxima a lei está associada com a soberania, ela nunca exaure
completamente esta.
A contribuição foucaultiana mais importante para a teoria da soberania
seria, de acordo com Dean (2004), o seu foco no direito de morte. Entretanto,
nos últimos dois séculos, este foco foi alterado em direção da vida. Não se fala
mais sobre a morte; os discursos sobre ela foram esquecidos e repudiados, e a
morte se tornou algo inominável e inumerável, obscura e obscurecida. “A vida
eclipsou a morte” (MURRAY, 2006, p. 192, tradução nossa61).
Deste modo, na “História da Sexualidade”, há uma mudança de centro,
no momento em que Foucault afirma que os poderes modernos estão mais
perto de uma política de vida, de uma biopolítica, agindo sobre a população
enquanto species body. A nossa época, portanto, é a época da vida, de
discurso da vida e sobre a vida e a biopolítica é uma política organizada para
ela e para o seu controle e regulação.
É a vida agora que é prometida, construída discursivamente na sua
relação com o poder, regulada e controlada; por outro lado, a morte não é feita
nem desfeita, ela ocorre, é um efeito colateral rapidamente esquecido. E se o
“nós” deve viver, a morte dos “outros” é permitida para promover a nossa saúde
sagrada, o bem-estar da população; é uma morte alheia que, como no
nazismo, torna o nós mais saudável e mais puro. Mas não somos nós quem

61
“Life has eclipsed death”.
124

matamos, não há uma responsabilidade individual – ela simplesmente


aconteceu (MURRAY, 2006).
Neste contexto, não importa quantos crimes sangrentos foram cometidos
sob o poder soberano; somente com a biopolítica a mesma lógica e tecnologia
aplicadas ao cuidado e desenvolvimento da vida humana foi aplicado à
destruição de populações inteiras.
Entretanto, para Dean (2004), há um ponto de indeterminação na
relação entre biopolítica e tanatopolítica na teoria foucaultiana, uma vez que
este vê uma aporia da política contemporânea que não pode ser resolvida - a
coexistência nas estruturas políticas de mecanismos de grande destruição e de
instituições orientadas para o cuidado da vida individual. É a racionalidade e
“the death and life game” que Foucault busca analisar historicamente.
Um dos aspectos desta investigação diz respeito aos seus estudos, nos
seminários de 1976, sobre a questão de raça62 e o desenvolvimento do racismo
de Estado e dos genocídios políticos do século XX. Analisando a biopolítica, a
partir de Weber63, trata-se da aplicação da racionalidade instrumental à vida, na
qual o desenvolvimento e a aplicação da razão ao homem nas ciências
humanas tem como consequência transformar a racionalidade instrumental em
formas de dominação. Neste contexto, o século XX foi marcado por resultados
terríveis resultantes desta “cientização” e “tecnologização” de noções
anteriores de raça.
Entretanto, não se trata em Foucault apenas de afirmar que o direito de
morte é antigo, enquanto o poder sobre a vida, que emerge no século XVIII,
traz efeitos devastadores sobre a vida. A biopolítica não é apenas a sucessão
ou adição de poderes modernos sobre a vida ao antigo direito de morte; é a
combinação destes poderes dentro dos Estados modernos que é significante. É
o modo como estes poderes são combinados que resultam em sua
malignidade ou benignidade.
Portanto, o decisivo são as diferentes maneiras na qual o poder
62
Segundo Quijano (2000), a raça pode ser definida como uma construção mental da
modernidade, cuja história ficou mais conhecida a partir da colonização da América. É um
conceito que se refere mais a uma suposta diferença de estruturas biológicas entre
conquistados e conquistadores do que a uma questão fenotípica. A ideia de raça tem, portanto,
uma origem colonial, tendo se constituído como um fundamento para a classificação social da
população mundial.
63
Vide conceito de racionalização e desencantamento do mundo, bem como de dominação
racional-legal na teoria de Max Weber (2000).
125

soberano é combinado com a biopolítica 64 e não o momento que a vida se


tornou objeto político no século XVIII. Na “História da Sexualidade”, Foucault
(1985) demonstra que o caráter de genocídio do nazismo não veio apenas
como uma extensão do biopoder, mas se relaciona com a total administração
da vida, da família, da procriação, da educação e da intensificação dos micro
poderes disciplinares articulados com a exaltação do sangue superior, pátria e
triunfo da raça. Em outras palavras, para compreender como as mais
dramáticas forças da vida e da morte foram liberadas no século XX, temos que
entender como o biopoder estava articulado com elementos da soberania e de
seus símbolos.
Assim, o que fez o Holocausto possível não foi apenas o
desenvolvimento racional instrumental na forma de moderno biopoder ou poder
burocrático aplicado à vida, mas sim o sistema de ligações, de recodificações e
de reinscrições de noções de soberania como pátria, território e sangue dentro
do novo discurso biopolítico de eugenia e higienismo racial, que fez “o
impensável pensável” (DEAN, 2004).
O racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma
moderna, estatal, biologizante): toda uma política do
povoamento, da família, do casamento, da educação, da
hierarquização social, da propriedade, e de uma longa
série de intervenções permanentes ao nível do corpo, das
condutas, da saúde, da vida quotidiana, receberam então
cor e justificação em função da preocupação mítica de
proteger a pureza do sangue e fazer triunfar a raça. Sem
dúvida, o nazismo foi a combinação mais ingênua – dos
fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder
disciplinar. Uma ordenação eugênica da sociedade, com
o que ela podia comportar de extensão e intensificação
dos micropoderes, a pretexto de uma estatização
ilimitada, era acompanhada pela exaltação onírica de um
sangue superior; esta implicava, ao mesmo tempo, o
genocídio sistemático dos outros e o risco de expor a si
mesmo ao sacrifício total. (FOUCAULT, 1985, p.140).

Segundo Esposito (2008), Foucault foi o primeiro a nos dar uma


intepretação biopolítica do nazismo 65, introduzindo uma antinomia segundo a
qual a vida se defende e se desenvolve apenas através do alargamento

64
Na crítica de Gómez (2010), esta articulação não é clara em Foucault, sendo que a
biopolítica continua marcada pelo modelo bélico nietzscheano. Além disto, ele não explica de
que modo e sob quais circunstâncias históricas surge a população como novo domínio de
intervenção e reflexão. É por este motivo que Foucault teria privilegiado o conceito de
governamentalidade em detrimento da biopolítica.
65
Schmitt já não o teria feito? Vide item 4.4.1 deste trabalho.
126

progressivo do círculo da morte. Aqui, há um indistinção entre o paradigma da


soberania e da biopolítica, que passam a ser o reverso, mas também o
complemento um do outro. E o instrumento deste processo é o racismo, que
inscrito na prática da biopolítica exerce uma dupla função – a separação entre
os que devem permanecer vivos e os que devem morrer, os destinados “às
seleções”, nas palavras de Levi (1988); e, sua função mais essencial, a de
estabelecer uma relação direta entre estas duas condições, já que a morte de
uns é o que autoriza a sobrevivência dos outros.
O conceito de raça é, assim, central no nazismo; não se trata aqui de
uma questão transcendental, mas biológica. E, sendo biológica, segundo
Arendt (2006), não pode ser mudada, mas apenas eliminada. É neste sentido
estrito, portanto, que deve ser entendida a frase de Rudolph Hess: “O nacional-
socialismo é biologia aplicada” (ESPOSITO, 2008, p.112, tradução nossa66). A
raça não é, neste contexto, um simples instrumento; no nazismo, há uma
identificação direta entre política e ideologia racista, constituindo o que
Esposito (2008), de maneira mais radical que Foucault, denominou de
biocracia.
Deste modo, a especificidade do nazismo não estaria no poder de matar,
mas no fato de que este não é uma exclusividade do líder, do Kapo, como na
ditadura clássica, estando distribuída equitativamente no corpo social. Desta
forma, qualquer um pode, direta ou indiretamente, matar qualquer um. Primeiro
foi o inimigo externo, depois o inimigo interno e, finalmente, o nazismo se
voltou contra o povo alemão, transformando o homicídio (ou genocídio) em
suicídio67. A morte como condição última da vida.
Segundo Gómez (2010), o erro de Agamben foi o de ter extrapolado o
conceito de biopolítica, generalizando seu uso para o que em Foucault é válido
apenas em situações específicas. A partir do estudo foucaultiano sobre o
racismo nazista, Agamben (como outros filósofos italianos) converteu a
regulação das populações em um mecanismo que busca “fazer viver” para uns,
mas “fazendo morrer” outros. O problema é que Foucault está se referindo a

66
“National-socialism is nothing but applied biology”.
67
Segundo Arendt (2006), o que diferencia uma dominação totalitária de uma ditadura não é
apenas o fato de a primeira ser baseada no terror (e não apenas na violência), exercendo uma
dominação total sobre os indivíduos, mas por se voltar tanto contra seus inimigos como contra
seus amigos e auxiliares. O clímax do terror se daria, justamente, quando este Estado policial
começa a derrotar seus “próprios filhos”.
127

um caso particular e não a uma identificação entre soberania e biopolítica,


como afirma Esposito (2008). Neste sentido, o que Agamben faz, portanto, é
uma des-historização da biopolítica.
Além disto, continuando a crítica a Esposito, por seu uso “dúbio” de
Foucault, Gómez (2010) afirma que a biopolítica na obra do filósofo francês não
é uma antinomia entre subjetividade e morte ou um enigma. Aliás, o próprio
Foucault teria se dado conta das limitações de seu modelo bélico na
apresentação da biopolítica como tecnologia de dominação no curso de 1976.
Em suma, “o conceito de biopolítica é provisório na obra de Foucault e cumpre
a função de ponte entre o modelo bélico e o modelo governamental” (GÓMEZ,
2010, p.63, tradução nossa68).
Por outro lado, se esta combinação de elementos da soberania com a
biopolítica permitiu o advento do nazismo, ela também permitiu uma
combinação “virtuosa”, que são as formas liberais e democráticas de governo.

3.2 - Liberalismo, disciplina e biopolítica

3.2.1- Liberalismo: do jurídico-filosófico ao histórico-político

O liberalismo é uma doutrina política e filosófica, de influência


econômica, extremamente complexa. Em linhas gerais, pode-se defini-la mais
como um conjunto de valores morais - individualismo, progresso, tolerância,
igualitarismo, universalismo- que visa à melhoria do padrão de vida dos
indivíduos, do que como uma doutrina propriamente dita (GRAY, 1988).
Embora tenham se desenvolvido de maneiras diferentes nas sociedades
nas quais foram implementadas, estas versões mantiveram uma essência
formal, que pode ser resumida aos valores supracitados.
Ao se tratar de sua origem, deve-se ressaltar que a mentalidade liberal é
anterior ao uso da palavra liberal (VINCENT, 1995). Esta palavra,
historicamente, foi utilizada para definir desde um modelo de educação (de
caráter amplo), passando pela crítica a um comportamento libertino e imoral
(século XVI), até a concepção partidária dos Liberales espanhóis e posteriores
partidos europeus.
68
“El concepto de biopolítica es provisional en la obra de Foucault y cumple la función de
‘puente’ entre el modelo bélico y el modelo gubernamental”.
128

No sentido filosófico, a noção do indivíduo liberal remonta ao século XVII


com as primeiras exposições sistemáticas da filosofia individualista moderna da
qual brota a tradição liberal, tendo sido desenvolvida por John Locke.
No entanto, na teoria de Thomas Hobbes, já é possível encontrar
elementos do individualismo, que rompem com a filosofia social de Platão e
Aristóteles ligada à cristandade medieval, e com as ideias clássicas sobre o fim
natural ou a causa final da existência humana. Se na filosofia clássica, o bem-
estar humano está na auto realização, em Hobbes, felicidade é passar de um
objeto a outro.
Segundo Gray (1988), a teoria hobbesiana teria três pontos liberais69 – o
individualismo, a concepção de liberdade no Estado de Natureza e a rejeição
da hereditariedade no exercício da autoridade política. Para Hobbes (1979), no
estado de natureza, pré-político e pré-social, o homem tem o direito de fazer
tudo o que for necessário para a conservação de sua vida, sendo a liberdade o
silêncio da lei, permitindo que os indivíduos busquem satisfazer seus desejos e
alcancem a honra e a glória. “Conforme a este significado próprio e geralmente
aceito da palavra, um homem livre é aquele que, naquelas coisas que graças a
sua força e engenho é capaz de fazer, não é impedido de fazer o que tem
vontade de fazer (p.130)”.
E é, em busca da paz, que os indivíduos renunciam, por meio de um
contrato, a sua liberdade natural, seu direito natural de guerra contra todos, em
favor de um Terceiro, O Deus Mortal, o Leviatã hobbesiano, “(...) um homem
artificial, que não é mais que a coagulação de um certo número de
individualidades distintas que se acham unidas por um certo número de
elementos constituintes do Estado” (FOUCAULT, 2003, p. 29, tradução
nossa70). No coração, ou melhor, na cabeça do Estado, há algo que o constitui
como tal e este algo é a soberania, a alma do Leviatã. E, este poder soberano
é, de acordo com Hobbes (1979), absoluto, indivisível e inalienável.
Ainda que Hobbes possa ser considerado um precursor da teoria liberal,
no momento que é defeso ao Estado Leviatã a ameaça injustificada da vida,
configurando o primeiro limite do Estado absoluto, é com John Locke que surge

69
Neste sentido, vide a análise schmittiana do Leviatã no item 2.3 deste trabalho.
70
“(...) an artificial man, is no more than the coagulation of a certain number of distinct
individualities that find themselves united by a certain number of the State’s constituent
elements”.
129

a noção do Estado de direito. Estado este criado não só para fazer cumprir o
contrato social, mas também submetido a este mesmo contrato; Locke
desenvolve sua teoria em torno do controle do poder Executivo e da afirmação
dos direitos do homem, que são invioláveis mesmo pelo poder soberano. Locke
ajudou a firmar o liberalismo na Europa e influenciou a Revolução norte-
americana e, por meio dos iluministas, também a Revolução Francesa.
Segundo Locke (1994), o Estado (entendido em seu sentido abstrato,
como ente político-jurídico) teria como origem um pacto ou contrato social
realizado entre os indivíduos com o objetivo de defender a vida (esta, aliás,
seria a primeira propriedade) e a propriedade dos cidadãos, sendo esta última
um direito natural outorgado por Deus. Este teria oferecido toda a terra, junto
com seus frutos, a todos os homens indiscriminadamente, constituindo posse
comum de todos os seus filhos, que viviam neste mundo criado por Ele, e com
direito irrestrito ao seu usufruto. O que diferenciaria a posse de cada um seria o
trabalho aplicado sobre a terra para cultivá-la e obter os frutos nela
encontrados.
Embora a terra e todas as criaturas inferiores sejam
comuns a todos os homens, cada homem tem uma
“propriedade” em sua própria “pessoa”; a esta ninguém
tem qualquer direito senão ele mesmo. Podemos dizer
que o “trabalho” do seu corpo e a “obra” das suas mãos
são propriamente seus. Seja o que for que ele retire do
estado que a natureza lhe forneceu e no qual a deixou,
fica-lhe misturado ao próprio trabalho, juntando-se lhe
algo que lhe pertence e, por isso mesmo, tornando-se
propriedade dele (LOCKE, 1994, p.198).

Se, no início, o direito à propriedade conhece limites rígidos, já que o


indivíduo só pode se apossar do necessário para sua sobrevivência, como o
tempo e o aumento da população, riqueza e a criação do dinheiro, cada
comunidade passa a fixar os limites dos próprios territórios e, através de leis
específicas, delimitar as possibilidades de posses de cada homem que
compunha o contrato social. O direito natural à propriedade foi, portanto,
ampliado através do uso e acúmulo do dinheiro, podendo, de maneira legítima,
possuir mais que o necessário para a sobrevivência. Se o homem de Hobbes
busca honra e glória, o de Locke é um homo oeconomicus.
Em Locke, o contrato social é criado por meio do consentimento
expresso ou tácito dos homens, que aceitam fundar uma sociedade civil e
130

política, para melhor proteger seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade


(limitada pela razão) e à propriedade. Se em Hobbes o contrato é um ato de
submissão, em Locke é de consentimento, no qual qualquer forma de governo
pode ser escolhida com exceção da monarquia absolutista, já que esta seria
incapaz de respeitar os direitos do homem.
Assim, em Locke, a propriedade, a vida e a liberdade são direitos
duplamente protegidos - primeiramente como direito natural e, posteriormente,
como um direito garantido pelo Estado incipiente. A defesa da vida e,
principalmente, da propriedade 71 na teoria lockeana constitui-se como a
primeira defesa dos direitos dos indivíduos perante o Estado.
Deste modo, com a teoria lockeana surge, ao mesmo tempo, a noção de
Estado mínimo e do Estado de direito. Ao invés do súdito, toma forma o
conceito do cidadão, civitas. Neste sentido, cidadão é aquele que é protegido
de outros cidadãos e do próprio Estado. Trata-se, portanto, do nascimento da
mentalidade liberal, uma vez que o conceito de liberal só surgiria no século
XIX.
Esta origem é também cercada de inúmeras controvérsias. Neste
debate, o liberalismo pode ser concebido como intrinsecamente ligado às
próprias origens do Estado-Nação (e, consequentemente, ao conceito territorial
de cidadania72) ou, na visão marxista, como fruto de um determinado modo de
produção - o capitalismo - e seu valor central - a propriedade privada.
Ainda é possível analisá-lo como um ponto de convergência do
constitucionalismo europeu (movimento de defesa dos direitos individuais,
liberdade e limite ao Estado), herança do racionalismo iluminista (em especial,
Descartes e Hobbes) e das Revoluções Americana e Francesa, que colocaram
no foco político as ideias de soberania popular, do contratualismo e dos direitos
naturais (VINCENT, 1995).
Para Bonavides (2004), o primeiro Estado jurídico, guardião das
liberdades individuais, alcançou sua experimentação histórica com a Revolução
Francesa. Liberdades estas que seriam protegidas por meio de uma técnica
liberal – a divisão dos poderes. É Locke (1994) que primeiro defende a divisão

71
Em Locke (1994), a propriedade é entendida em um sentido mais amplo, incluindo o direito à
vida e à liberdade, além dos bens.
72
Vide Marshall,1967 e Vieira, 2002.
131

de poderes como uma forma de limitação do Estado, constituindo os poderes


Executivo, Federativo (responsável pelos assuntos relativos a outros Estados)
e Legislativo, sendo que os dois primeiros deveriam estar submetidos a este
último.
Entretanto, esta é uma divisão de poderes mitigada, uma vez que o
mesmo indivíduo pode exercer os poderes Executivo e Federativo, e pela
existência da prerrogativa – embora o Executivo deva governar por meio de leis
estabelecidas, promulgadas e conhecidas pelo povo e não por decretos
extemporâneos, o mesmo pode agir conforme seus próprios critérios, para o
bem público, em casos em que não haja previsão legal ou até mesmo contra a
lei, se necessário. Não se trata, portanto, de um ato abusivo ou arbitrário, mas
autorizado pelo próprio povo em seu favor. Assim, “(...) a prerrogativa só pode
ser a permissão do povo aos governantes para praticar alguns atos de livre
escolha onde a lei silencie e, por vezes, vá também diretamente contra a lei, a
favor do bem público” (LOCKE, 1994, p. 99).
Mas é Montesquieu (1982) quem efetivamente realiza uma distribuição
efetiva e prática do poder entre titulares que não se confundem. Para ele, a
separação dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e a
(inter)independência e equivalência entre eles seria condição para o Estado de
direito.
Quando se reúne na mesma pessoa, ou no mesmo corpo
de magistratura, o poder legislativo e o poder executivo,
não existe liberdade; porque se pode temer que o próprio
monarca, ou o próprio senado, faça leis tirânicas.
Também não existe liberdade, se o poder de julgar não
estiver poder legislativo e do poder executivo. Se tivesse
ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a
liberdade dos cidadãos seria arbitrário; pois o juiz seria
legislador. Se tivesse unida ao poder executivo, o juiz
poderia ter a força de um opressor.
Tudo estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo
corpo de principais, ou de nobre, ou do povo, exercesse
esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as
resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as
pendências entre os particulares (MONTESQUIEU, 1982,
p.187).

No entanto, embora a Revolução Francesa possa ser considerada uma


vitória do ideário liberal (representado pelos constitucionalistas moderados), o
mesmo não se pode dizer das aspirações democráticas dos sans-culottes, que
132

defendiam, sob inspiração rousseauniana, uma democracia direta, bem como


teorias comunistas de propriedade.
Assim, no período pós-Revolução francesa, a vitória do liberalismo
permitiu o nascimento dos chamados direitos civis, as liberdades e os direitos
fundamentais do indivíduo, que se constituiriam como base para o
desenvolvimento do conceito de cidadania e, posteriormente, para o de
democracia moderna (BOBBIO, 2004).
Uma cidadania de inspiração cristã universalista, que faz uma defesa do
indivíduo, de sua liberdade em buscar a melhoria de sua própria vida.
Liberdade esta, normalmente entendida em seu caráter negativo, como
inexistência de coação estatal, personificado no próprio corpo do indivíduo,
como bem demonstra a definição hobbesiana de liberdade, definida como
ausência de impedimentos externos (HOBBES, 1979). Esta acepção negativa
da liberdade foi, inúmeras vezes, relacionada à defesa da propriedade privada,
entendida como extensão do próprio corpo do indivíduo e de sua liberdade
(LOCKE,1994).
Deste modo, a liberdade levaria ao aperfeiçoamento individual e,
consequentemente, ao aperfeiçoamento social. A competição por bens
econômicos e sociais entre os indivíduos, seres desiguais por natureza, sem a
intervenção desnecessária e injusta do Estado, seria o motor do
desenvolvimento social.
Contudo, apesar de serem naturalmente desiguais, os homens teriam,
segundo os teóricos liberais, uma garantia fundamental - a igualdade jurídica
ou formal. A igualdade apenas na lei/perante a lei, sem preocupação material
ou qualitativa (BOBBIO, 2002). Uma igualdade que possibilitaria o acesso ao
mercado e à busca pelo lucro73, respeitando-se obviamente o lucro alheio (a
liberdade lockeana), e, por outro lado, possibilitaria uma preservação da
liberdade individual, incompatível com a defesa de uma justiça distributiva (o
que requer, obviamente, a intervenção estatal).
A cidadania universal nasce, deste modo, como cidadania liberal, de
defesa dos direitos do cidadão, principalmente, liberdade e propriedade
privada, perante o Estado - a cidadania como status legal (VIEIRA, 2002).

73
Segundo Marshall (1967), o primeiro direito civil básico foi o de trabalhar.
133

Já os direitos políticos, entendidos, segundo Marshall (1967), como o


direito de participar do exercício do poder político, como membro de um
organismo, como o parlamento e os governos locais, ou como eleitor destes
membros, se expandiram no século XIX, com o nascimento da democracia
liberal, e nada mais foram do que a concessão dos direitos políticos a um grupo
cada vez mais abrangente. Não foi, pois, uma expansão no número dos
direitos, mas a concessão de velhos direitos a camadas cada vez maiores da
população. Embora o liberalismo tenha garantido apenas uma igualdade formal
para os cidadãos, esta foi essencial para o posterior desenvolvimento da
democracia moderna.
Segundo Bobbio (2004), um conceito de democracia só seria possível se
considerássemos um conjunto mínimo de elementos, que fossem capazes de
caracterizar estes regimes políticos, apesar das especificidades das
sociedades na qual se desenvolveram.
Assim, democracia seria um conjunto de regras primárias e
fundamentais, escritas ou consuetudinárias, que estabelecem quem está
autorizado a decidir e por quais procedimentos. A definição da democracia
envolve, desta forma, a participação de um número elevado de membros do
grupo que decidem por meio da regra da maioria (a unanimidade é tanto
possível quanto exigível em casos específicos), e que possuem alternativas
reais de escolha e condições de poder escolher.
Estas alternativas e condições a que Bobbio se refere, nada mais são do
que os direitos e garantias fundamentais do cidadão, os direitos civis liberais,
que permitiram o surgimento da democracia moderna, no sentido liberal. Esta,
por sua vez, teria a função vital de garantir hoje a continuidade destes mesmos
direitos. Na teoria de Bobbio, portanto, se teria um duplo caminho: do
liberalismo à democracia e da democracia ao liberalismo.
Para Bobbio (2004), o Estado liberal é o pressuposto histórico e jurídico
do Estado democrático uma vez que são necessárias certas liberdades para o
exercício do poder democrático e este é fundamental para garantir a existência
e a persistência das liberdades fundamentais.
A democracia nasce, então, da concepção individualista da sociedade;
esta, civil e política, como produto artificial da vontade dos indivíduos, do
contrato social e do surgimento do homo oeconomicus. A democracia moderna
134

não é um ideal, mas um conjunto de técnicas, um instrumento de


representação de interesses.
No mesmo sentido é desenvolvida a teoria poliárquica de Robert Dahl
(1997). A poliarquia nada mais seria do que a democracia real, imperfeita,
altamente inclusiva e amplamente aberta à contestação pública, que teria como
condição de sua existência oito garantias fundamentais: o direito de
associação, o direito de voto, o direito dos líderes políticos disputarem apoio, o
direito dos líderes políticos disputarem votos, eleições livres e idôneas, fontes
alternativas de informação, liberdade de expressão e instituições para fazer
com que as políticas governamentais dependam de eleições e manifestações
de preferência. Estas garantias seriam a reafirmação da necessidade dos
direitos liberais para o desenvolvimento e continuidade dos regimes
democráticos.
De acordo com Bonavides (2004), o encontro da democracia e do
liberalismo foi uma elaboração dos princípios da Revolução Francesa e
norteada pelo pensamento dos iluministas e da vontade geral de Rousseau.
Para Rousseau (1991), o contrato social, que funda a sociedade política
(a civil já existe no Estado de Natureza, diferentemente de Hobbes e Locke), é
a alienação completa de cada pactuante, de seus direitos, em nome de toda a
sociedade. Todos se dando, de maneira integral, em nome de toda a
sociedade, ninguém se daria a ninguém, e a liberdade de todos estaria
garantida. Para gerir o corpo coletivo instituído e efetivar os objetivos do pacto,
seria necessária a instituição de uma forma de governo, cuja forma poderia ser
qualquer uma, monarquia, aristocracia ou democracia, já que todas têm vícios
e virtudes. Entretanto, a desejável, quando presentes os requisitos de Estado
pequeno, simplicidade de costumes, igualdade relativa e pouco ou nenhum
luxo, seria a democracia. Não qualquer democracia, mas a direta, uma vez que
o poder soberano não aceita representações e não pode ter representações. E
este poder soberano é a vontade geral, que pode ser definida como aquilo que
é comum a todos os cidadãos ou como a vontade de todos (soma das
vontades particulares) menos as diferenças. Em Rousseau, portanto, a
soberania não reside no Estado, mas no próprio povo.
No entanto, se a democracia ideal é a direta, a moderna é a democracia
representativa, na qual, segundo Bobbio (2004), são representados os
135

interesses de determinados grupos e não os interesses da comunidade como


um todo. Na verdade, a democracia moderna não é a expressão da vontade
geral, do povo, como queria Rousseau, mas de grupos específicos,
contrapostos e concorrentes, com relativa autonomia diante do governo central.
É uma sociedade centrífuga, pluralista, poliárquica e não a centrípeta monista
rousseauniana74.
Contudo, embora historicamente a democracia política tenha sido
reduzida ao voto, em uma perspectiva instrumental da mesma, a noção de
democracia não se resume aos direitos políticos, ou seja, de votar e ser votado.
Mesmo Bobbio (2004), em sua definição mínima, defendia que a democracia
deveria ser pensada como uma democracia social, nas mais variadas esferas
da vida, e não como um regime específico da esfera política, em seu sentido
estrito, de política eleitoral-partidária.
Nesta perspectiva, pois, o liberalismo e a democracia liberal são
fenômenos jurídicos-filosóficos e a liberdade é um valor em si, ou, nas palavras
de Neal (2007), uma forma altamente qualificada de liberdade civil sob a
autoridade soberana do Estado, como na teoria de Hobbes e Locke.
De acordo com Bonavides (2004), o valor essencial do liberalismo não é
a comunidade, mas a liberdade criadora do indivíduo dotado de razão, que
exalta o indivíduo e sua personalidade e que despreza a coação estatal.
A teoria política liberal, portanto, estabelece os valores básicos e
fundamentais do liberalismo como um projeto moral e político, que se
fundamenta no eu autogovernado e em uma matriz institucional, na qual a
liberdade é um valor universal.
Para Foucault (2008a), contudo, o liberalismo não deriva de uma
reflexão jurídica ou de uma análise econômica, e tampouco foi a ideia de uma
sociedade política fundada em um vínculo contratual que lhe deu origem. A lei,
a regulamentação jurídica, não é inerente a ele, não se trata de um juridicismo
natural; a lei foi adotada por uma questão de economia governamental, por ser
mais eficaz, ao definir formas gerais de intervenção. O Estado de direito e o
sistema parlamentar representativo, a democracia, estiveram ligados ao
liberalismo, deste modo, não por afinidades apriorísticas, e sim pela busca da

74
Neste ponto, a crítica de Schmitt à democracia representativa tem uma influência fortemente
rousseauniana. Vide itens 2.4 e 2.7.3 desta tese.
136

eficácia.
É preciso, segundo Foucault (2008b), partir de uma outra perspectiva, a
histórico-estrutural, ou seja, da análise das tecnologias de controle que
instituem a subjetividade e as formas de controle que são definidas, por um
lado, pelo mercado e, por outro, pelo Estado e suas burocracias. Não é, desta
forma, uma doutrina mais ou menos coerente, mas uma forma de reflexão
crítica sobre uma prática governamental anterior, a Razão de Estado, e que,
aparentemente, surgiu na Inglaterra (FOUCAULT, 2008a).
Neste contexto, a liberdade não é algo particularizado no tempo e no
espaço, mas uma relação entre governantes e governado. No mesmo sentido,
afastando de uma compreensão jurídica do poder, a segurança deve ser
entendida em termos de práticas localizadas e a liberdade em termos de
práticas discursivas e não discursivas. São, assim, as práticas que definem os
limites da liberdade em termos de segurança.
Segundo Jabri (2010), não há, então, qualquer fundamento em defender
que certos contextos ou contingências demandam mais liberdade ou que a
liberdade possa ser limitada em condições de necessidade. Antes, o
liberalismo, como uma arte de governo, gera a liberdade, mesmo quando
assume que um certo número de liberdades realmente existe. É uma arte que
diz respeito ao gerenciamento da liberdade e de sua organização; e o governar
pela liberdade e pela segurança não deve ser construído em termos opostos,
mas que mutuamente se reforça.
Nas palavras de Foucault (2008b), “o liberalismo produz a liberdade,
mas este mesmo ato estabelece a fundação de limitações, controles, formas de
coerção, e obrigações dependendo das ameaças” (p. 64).
Assim, o liberalismo deve ser compreendido como uma forma de
governamentalidade, cujo paradoxo está no fato da produção do sujeito livre
dentro da economia estar condicionada ao governo da totalidade da vida. A
sociedade liberal deve, deste modo, ser entendida como um aparato de
segurança total, um governo das populações que inclui tecnologias
direcionadas aos indivíduos e às populações com o objetivo de moldar
expressões, identidades, gostos e mesmo concepções do que deve ser
governado (JABRI, 2010).
Neste contexto, o governo da vida ou biopolítica é a competência do
137

governo liberal institucionalizado em uma complexa arquitetura que incorpora


burocracias estatais e organizações supranacionais como União Europeia,
ONU, e agências privadas funcionando como organizações não
governamentais. A biopolítica na vida contemporânea é transnacional e,
através das instituições, envolve o setor público e privado. “Uma arquitetura,
em outras palavras, que envolve agências trabalhando localmente,
nacionalmente e transnacionalmente, constituindo o que pode ser considerado
um serviço civil internacional em geral” (JABRI, 2010, p. 241, tradução
nossa75).
Esta arquitetura alcançaria a saúde e a educação populares, os
movimentos, os estilos de vida, tecnologias de controle, sendo sustentadas e
reforçadas por uma complexa rede de práticas de vigilância que serve para
moldar e pacificar e que não inclui, necessariamente, a força. Antes, a função
última do governo liberal é a produção de “um autogoverno, um eu capaz de
autodisciplina e auto escrutínio, todos dentro dos limites da própria
governamentalidade liberal” (JABRI, 2010, p. 241, tradução nossa76).
E estes limites são estabelecidos e legislados pelo governo liberal. Desta
forma, por meio de uma lente histórica, como propõe Foucault, há uma
autolimitação jurídica, várias maneiras de negociação que buscam identificar
limites através da exclusão e da inclusão e da identificação do outro na
sociedade liberal e da cooptação de disciplinas e serviços, constituindo uma
“república” de interesses e de distribuição de direitos.
Não se trata do estabelecimento de limites e fronteiras existenciais
como analisado na teoria schmittiana, na qual a autoridade soberana
estabelece, no momento da decisão, o limite existencial, ou seja, a fronteira
77
amigo-inimigo . Linguagem esta retomada, segundo Jabri (2010), nos

75
“An architecture, in other words, that might involve agencies working locally, nationally, and
transnationally, constituting what might be referred to an international civil service at large”.
76
“self-governing self-capable of self-discipline and self-scrutiny, all within the limits of
governamentality itself”.
77
Segundo Huysmans (2006), a teoria de Schmitt é existencialista, constituindo uma
ultrapolítica. Esta seria caracterizada pela projeção global de um Estado no campo
internacional – uma tentativa de impor sua superioridade ideológica, espiritual, cultural ou racial
globalmente. A ultrapolítica foi praticada pelos nazistas no período entre guerras e na Segunda
Guerra, e hoje é praticada pelos EUA.
138

discursos políticos contemporâneos sobre a “guerra ao terror”. Foucault, não


alude, portanto, a uma decisão, mas a uma pluralidade de práticas de
inclusão/exclusão, referentes à produção da liberdade, seu gerenciamento e,
ao mesmo tempo, suas limitações e sua destruição.
O princípio do cálculo que sustenta a capacidade do liberalismo de
gerenciar a liberdade é a segurança e a cultura do medo; é a justaposição e a
dependência mútua entre estes dois conceitos, que, historicamente, gerou um
complexo rol de procedimentos que visam a constranger, controlar e coagir por
meio de técnicas da disciplina e de intervenções biopolíticas. Não se trata do
fim da soberania, mas da culminação de uma trajetória histórica de uma arte de
governo liberal, de uma forma de poder que é difuso e tudo engloba
(FOUCAULT, 2008b ).
No liberalismo, pois, a liberdade não é um ideal, mas uma prática e uma
função do governo liberal em todas as suas manifestações, sejam econômicas,
políticas ou pessoais. É um governo da liberdade, por meio de crescentes
técnicas disciplinares e de vigilância ao ponto de se tornar um governo da
população, no qual o aparato de segurança é o mecanismo essencial. A
liberdade, deste modo, deve ser compreendida dentro “das mutações e
transformações das tecnologias de poder” e nada mais seria que um
“correlativo da implantação dos dispositivos de segurança” (FOUCAULT,
2008b, p. 63).
Segurança e liberdade não podem, deste modo, serem pensadas em
termos de equilíbrio e nem se pode dissociar práticas de segurança como se
fossem, de certo modo, excepcionais às formas da lei. Na verdade, estas
práticas são constitutivas da sociedade liberal e são desiguais.
Não se deve, então, pensar o liberalismo como um conjunto de direitos,
como respeito à norma da lei e à autonomia do indivíduo, dentro de uma matriz
jurídico-institucional, mas sublinhar as desigualdades históricas e práticas
concebidas em noções hierárquicas de subjetividade que informa este governo
das populações. Há uma concepção desigual e hierárquica do sujeito no
liberalismo, que tem seu correspondente constitutivo na relação entre liberdade
e segurança e na desigualdade de sua distribuição.
Para Neal (2007), os discursos dos governos liberais democratas
mudaram e se tornaram mais sofisticados, conjugando liberdade e segurança.
139

A formação discursiva de oposição contemporânea entre liberdade-direitos-lei


foi recolonizada pelo Estado. Ao invés do Estado contra a liberdade, leis e
direitos, os governos têm redefinido o debate como sendo sobre liberdades e
direitos da maioria democrática que cumpre a lei contra liberdades e direitos de
uma minoria de suspeitos.
É uma tentativa de redefinir a segurança como um direito – o direito dos
cidadãos de não sofrerem violência, constituindo a segurança como a primeira
liberdade. É apenas uma “minoria” que vai sofrer as políticas antiterroristas
ilegais e, neste contexto, os discursos governamentais nada mais são que
maneiras de re-legitimar práticas iliberais e re-excluir os suspeitos das
liberdades democráticas (NEAL, 2007).
Contudo, este debate deve ir além da dicotomia legalidade e extra
legalidade. Em uma perspectiva foucaultiana, a lei tem historicidade e ontologia
e é mais que um problema formal de códigos legais. É preciso sair, na crítica
ao excepcionalismo, do campo jurídico-filosófico para o histórico-político. O
primeiro permite uma construção da política na qual a violência pode ser
considerada como algo excepcional, como na obra de Hobbes e Locke, para
quem a soberania jurídico-filosófica teria fundamentado seu direito e
legitimidade ou na lei natural ou na lei positiva e não (ostensivamente) na
violência, constituindo o chamado Estado de direito.
Logo, é necessária uma compreensão histórico-política da lei. Segundo
Foucault (2003), em períodos históricos-chave como a guerra civil inglesa ou a
França pré-revolucionária, existia um discurso de certos grupos subjugados,
que defendiam que as estruturas prevalentes eram, na verdade, os resultados
sedimentados das batalhas que eles tinham perdido. Estes discursos também
teriam sido essenciais para a identidade e mesmo para a ontologia de vários
grupos, o que seria o embrião de uma auto compreensão histórica dos
conceitos de raça e nação e mais tarde do de classes. Compreensão esta que
se reflete, contemporaneamente, no entendimento pelos grupos de sua
posição, atual ou histórica, como de subjugações e injustiças, como
frequentemente ocorre com as populações negras e muçulmanas dos países
ocidentais. Os grupos subjugados teriam, assim, uma visão diferente da lei dos
grupos dominantes, e, para eles, a violência excepcional dos Estados liberais
democráticos não seria tão excepcional assim.
140

(...) a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos


massacres, das conquistas que têm sua data e seus
heróis de horror; a lei nasce das cidades incendiadas,
das terras devastadas; ela nasce com os famosos
inocentes que morreram no dia que amanhece. (...) A lei
não é pacificação. (...) Não há sujeito neutro. Somos
inevitavelmente adversários de alguém. (...) Trata-se de
redescobrir o sangue que secou nos códigos.
(FOUCAULT, 2003, pp. 50, 56, tradução nossa78).

Este enquadramento histórico-político permitiria, então, compreender


que o problema da norma e da exceção é um produto dialético da tradição
política liberal e não uma anomalia histórica simplesmente. Uma ontologia
histórica da lei é uma condição de possibilidade do excepcionalismo soberano,
uma vez que a lei, mais que um problema de código e direito, é a afirmação da
identidade de determinados grupos, sendo central à afirmação da subjetividade
nacional e à mobilização desta subjetividade rumo a um fim político (NEAL,
2007). Aliás, segundo Jabri (2010), é a própria divisão racial das populações
que torna possível a violência do liberalismo e suas manifestações em termos
globais.
No liberalismo, portanto, a exceção não é, na verdade, excepcional, a
liberdade não pode ser pensada como um valor a-histórico, e nem a relação
entre liberdade e segurança pode ser pensada em termos de equilíbrio.

3.2.2- Liberalismo como governamentalidade

Segundo Foucault (2008a), o liberalismo não deve ser analisado como


uma teoria ou uma ideologia e, menos ainda, como uma maneira da sociedade
se representar, mas como uma prática, uma maneira de fazer, orientada para
determinados objetivos e regulado por uma reflexão contínua.
Para Jabri (2010), é uma leitura do liberalismo não como um conjunto de
direitos, de respeito à norma da lei e à autonomia do indivíduo, mas sim que
busca sublinhar as desigualdades, concebidas em noções hierárquicas da
subjetividade que informa o governo liberal das populações.

78
(…) the law is born of real battles, victories, massacres, and conquests which can be dated
and which have their horrific heroes; the law was born in burning towns and ravaged fields. It
was born together with the famous innocents who died at break of day. (…). Law is not
pacification (…) There is no such thing as a neutral subject. We are all inevitably someone’s
adversary (…) It is interested in rediscovering the blood that has dried in the codes.
141

Deste modo, o liberalismo pode ser definido como “princípio e método de


racionalização do exercício do governo – racionalização que obedece, e essa é
a sua especificidade, à regra interna da economia máxima” (FOUCAULT,
2008a, p.432). É, por conseguinte, uma prática governamental que visa
maximizar seus efeitos diminuindo, o máximo possível, seus custos, tanto
político quanto econômico. Ele parte do postulado de que o governo, a sua
atividade, não pode ser um fim em si mesmo e nem sua razão de ser; é uma
tecnologia particular de governo que parte do princípio (ou da suspeita) que
sempre se governa demais.
Mas como esta técnica de governo se tornou possível? Deve-se lembrar
de que Foucault, em sua análise sobre o liberalismo e o governo, em geral, não
procura uma gênese, uma origem para o mesmo, mas o que ele denominou, no
método arqueológico, de suas condições de possibilidade, de existência. O
liberalismo é um novo regime de verdade, uma nova demarcação de
verdadeiro/falso, que tem sua historicidade.
Em “O Nascimento da Biopolítica”, Foucault faz uma análise do
surgimento desta tecnologia, que é o campo mais amplo no qual se insere a
biopolítica. Para o autor, seria necessário “Estudar o liberalismo como quadro
geral da biopolítica” (FOUCAULT, 2008a, p.30).
Para tanto, o ponto de partida não é a análise do Estado, mas do
governo e do significado de governar ou da arte de governar. A metodologia
foucaultiana implica em abandonar, como objeto primeiro, noções universais
como Estado, soberano, súditos e povo, para explicar a prática governamental.
Ao invés de partir dos universais para deduzir os fenômenos concretos,
Foucault inverte a lógica, partindo das práticas concretas para então passar
aos universais. Na verdade, de acordo com Foucault (2008b), estes universais
sequer existiriam como um dado a priori; o Estado é aquilo que será
governado, que se apresenta como algo já existente, mas que será ao mesmo
tempo um objetivo a construir. Ele é “ao mesmo tempo o que existe e o que
ainda não existe suficientemente” (p.6). Ele não é um dado histórico-natural,
mas uma realidade descontínua e específica, sendo o correlato de um modo
determinado de governar.
É preciso, então, na metodologia da análise do Estado, a partir das
práticas governamentais, realizar três descentramentos: 1- passar pelo exterior
142

do Estado, substituindo-o pela perspectiva global da tecnologia de poder; 2-


substituir a abordagem interna da função pela externa das estratégias e táticas;
3- recusar-se a adotar o Estado como um objeto já pronto. São, portanto, três
generalidades: extra institucional, não-funcional e não objetiva.
Para Foucault (2008b), este método consiste em uma genealogia79 do
Estado, não como busca da gênese enquanto filiação, mas das redes de
aliança, comunicações e ponto de apoio. Esta abordagem genealógica
permitiria perceber em que e porque as relações de poder são instáveis, em
constante mobilidade e sujeitas a lutas dentro da instituição, a partir da
desinstitucionalização e da desfuncionalização destas relações. O Estado
dentro de uma tecnologia geral de poder, de uma racionalização, que teria
permitido seu desenvolvimento, transformação e funcionamento.
Neste sentido, segundo Foucault (2008a), o governo dos homens só
deve ser considerado na medida em que ele representa o exercício da
soberania política, constituindo sua arte em uma maneira pensada, em uma
reflexão sobre a melhor maneira de governar o melhor possível, com
determinadas regras. Em linhas gerais, é o estudo da “racionalização da prática
governamental no exercício da soberania” (p.4). É o modo de fazer o 'dever-
ser' do Estado tornar -se 'ser'.
E o liberalismo é, neste contexto, uma arte de governo, uma técnica
governamental, uma governamentalidade, que surge não como uma oposição,
mas como uma crítica a uma outra tecnologia específica – a Razão de Estado,
cujo objetivo é tornar o Estado sólido, permanente, rico e forte, ou seja, um
governo cujo fim é o próprio Estado, que existe para si mesmo e é sua própria
razão de ser.
Mas, antes da Razão de Estado, ainda no século XVI, já se colocava o
problema do como governar, ser governado e governar os outros. Isto ocorre
em um momento em que se estão se desfazendo as estruturas feudais, estão
sendo instaurados os grandes Estados territoriais, administrativos e coloniais e,
com a Reforma e a Contra Reforma, é posta em questão a maneira de como se
quer ser espiritualmente dirigido rumo à salvação. É um movimento, de um
lado, de concentração estatal e, do outro, de dispersão e dissidência religiosa.

79
Frequentemente, Foucault usa os termos arqueologia e genealogia de maneira indistinta.
143

E é no cruzamento destes dois movimentos que se coloca, com maior


intensidade a partir do século XVI, a questão do governo.
Mas o que significa governar? Segundo Foucault (2008b), não é o
mesmo que reinar, comandar ou fazer a lei; tampouco é o mesmo que ser
soberano, senhor, juiz ou general. Entre os séculos XIII e XV, esta palavra vai
abranger significados diversos, encontrados em dicionários e outras remissões
do período: 1- seguir um caminho ou fazer seguir um caminho; 2- sustentar
assegurando a subsistência; 3- tirar sua subsistência de alguma coisa. Ela
também vai ter outros sentidos dentro da ordem moral: 1- conduzir alguém, no
sentido de governo das almas; 2- com avaliação de uma conduta, equivalendo
o mau governo a uma má conduta; 3- dirigir alguém, controlá-lo; 4- falar com
alguém, entretê-lo; 5- comércio sexual.
Em todos estes sentidos, o que fica claro é que governar não se refere a
coisas ou objetos, mas pessoas, indivíduos ou coletividades. E a ideia deste
governo dos homens deve ser buscada no Oriente pré-cristão e,
posteriormente, no cristão, sob duas formas, o da organização de um poder do
tipo pastoral e o da direção da consciência, das almas.
Em relação ao poder pastoral, no Oriente, como entre os hebreus,
assírios e babilônicos, é um tema frequente comparar Deus, o rei ou o chefe a
um pastor, cujo rebanho seriam os homens. Não é, pois, um poder que se
exerça sobre um território, mas sobre um rebanho em constante movimento, no
qual o pastor busca a salvação de seus protegidos. É um poder benfazejo, de
cuidado, de zelo, sendo seu objetivo essencial fazer o bem ao rebanho,
garantindo sua subsistência e alimentação. A ovelha, por sua vez, tem uma
relação de total dependência em relação ao pastor.
É também um poder individualizante, uma vez que o pastor deve cuidar
de todo o rebanho, mas também de cada uma das ovelhas, devendo em
determinados momentos descuidar do grupo para salvar uma delas. Isto é o
que Foucault (2008b) denominou de paradoxo do pastor: o sacrifício de um
pelo todo e do todo por um.
Este poder pastoral teria sido introduzido no Ocidente pela Igreja cristã,
que, a partir dos temas específicos deste poder, criou mecanismos precisos e
instituições definidas, leis, regras, técnicas e procedimentos, organizando-o
como algo autônomo e implantando seus dispositivos no Império Romano. Há,
144

desta forma, uma institucionalização deste poder.


Na Igreja, o pastoreio implica em relações de autoridade baseadas em
privilégios, como também nas tarefas do pastor no cuidado com o rebanho. Isto
significa que as relações entre os membros da Igreja é uma organização que
se apresenta como pastoral e os seus poderes são organizados e justificados
como o poder do pastor em relação ao rebanho. Segundo Foucault (2008b), “O
poder religioso é, portanto, um poder pastoral” (p.203), tendo permanecido ao
longo do cristianismo, como distinto do poder político, embora tenha havido um
constante entrecruzamento entre ambos. Mas isto não quer dizer que não
tenha sido um poder sem intervenção na vida; pelo contrário, ele só se
encarrega da condução das almas dos indivíduos na medida em que isto
implica em uma intervenção permanente na condução do cotidiano, como
também nas riquezas, nos bens e nas coisas. Embora o fim do pastorado seja
a salvação, o além, ele é um poder terrestre.
Neste contexto, o poder pastoral vai constituir uma arte de governo, uma
vez que deu
(...) lugar a toda uma arte de conduzir, de dirigir, de levar,
de guiar, de controlar, de manipular os homens, uma arte
de segui-los e de empurrá-los passo a passo, uma arte
que tem a função de encarregar-se dos homens coletiva
e individualmente ao longo de toda a vida deles e no
cada passo da sua existência. (FOUCAULT, 2008b,
p.218).

Como a ovelha tem uma relação de dependência integral com o pastor,


no cristianismo também vai haver uma relação de submissão, mas de um
indivíduo em relação a outro, entre um que dirige e outro que é dirigido, em
uma individualização por sujeição. É o princípio da obediência cristã, de
colocar-se na dependência de alguém, não como um meio, mas como uma
finalidade em si mesma. “É simplesmente a obediência. Obedece-se para ser
obediente, para alcançar um estado de obediência” (FOUCAULT, 2008b,
p.234). É a humildade cristã, é saber que a vontade própria é algo ruim e que
se deve renunciar a ela. Mesmo o pastor, o padre, bispo ou abade, comandam
apenas porque receberam ordem de comandar, constituindo um campo
generalizado de obediência, no qual o poder pastoral busca destruir qualquer
noção de eu.
Mas o que se dirige nos indivíduos? O pastor deve cuidar do seu
145

rebanho e, para tanto, é necessário que ele ensine, de maneira global e com
seu exemplo, constituindo uma direção da conduta cotidiana. Ele deve
observar e vigiar o seu rebanho a todo momento e de maneira contínua,
construindo sobre esta vida cotidiana observada um saber sobre o
comportamento das pessoas e sua conduta, um discurso de verdade. É, antes
de tudo, uma direção de consciência, não episódica e circunstancial, mas
permanente, que vai além do controle, constituindo-se em uma dependência,
principalmente pelo uso do exame de consciência. Exame este, de si e dos
outros, que revelará a verdade oculta da alma e através do qual será exercido
o poder do pastor e a obediência individual.
Assim, é o pastorado cristão,
(...) uma forma de poder que, pegando o problema da
salvação em sua temática geral, vai introduzir no interior
dessa relação global toda uma economia, toda uma
técnica de circulação, de transferência, de inversão dos
méritos, e é isso seu ponto fundamental. (...) vai instaurar
um tipo de relação de obediência individual, exaustiva,
total e permanente. (FOUCAULT, 2008b, p. 241-242).

E é, portanto, esta arte de governar inaugurada pelo pastorado que vai


ser o pano de fundo do processo de nascimento do Estado moderno nos fins
do século XVI, quando a governamentalidade se torna uma prática política
baseada no cálculo e na reflexão, na racionalização.
É importante ressaltar que este poder enfrentou resistências, por meio
de “revoltas de conduta” ou “contra conduta”; movimentos de insubmissão, que
não eram meramente reativos, mas procuravam escapar da conduta dos
outros, dos procedimentos de condução, buscando uma maneira própria de se
dirigir. Entre a conduta e a contra conduta há uma relação não de reação, e sim
imediata e fundadora. Entre estes movimentos pode-se citar, pelo lado das
instituições religiosas, Lutero e a Reforma Protestante, e, do lado das
instituições políticas, a deserção dos exércitos, no momento em que a guerra
se torna uma ética e ser soldado uma conduta moral, de sacrifício a uma causa
comum. No campo médico, também objeto do pastorado, foram comuns
revoltas contra certas medicações e vacinações e uma recusa à racionalidade
médica, na adoção do uso de ervas, magnetismo e outros métodos
considerados “heréticos” dentro desta racionalidade.
Embora o pastorado tenha sido um “prelúdio de governamentalidade”
146

(FOUCAULT, 2008b), um sentido mais rigoroso, político, para a palavra


governar só começa a se formar nos séculos XVI e XVII, com a passagem da
pastoral das almas ao governo político dos homens em um clima de revoltas,
resistências e contra condutas. Isto não quer dizer, entretanto, que o pastorado
tenha desaparecido no século XVI. Na verdade, ele se intensificou,
aumentando seu controle sobre a vida individual no campo espiritual, material e
temporal, como efeito da Reforma e da Contra Reforma. O poder pastoral
passa a assumir toda uma série de questões referentes à vida material, à
higiene e à educação das crianças.
A questão da condução do homem estende-se, ainda, para além da
autoridade eclesiástica. Como conduzir e como se conduzir? É um problema do
qual vai se ocupar a filosofia, mas também o soberano. No domínio público, o
soberano terá uma nova tarefa – a condução das almas. Não é uma passagem
do pastorado a uma outra forma de conduta, mas a sua intensificação e
multiplicação, criando, com o século XVI, uma era das condutas, das direções
e dos governos.
E como deve o soberano governar? Qual deve ser sua racionalidade,
qual deve ser a razão governamental? Durante os séculos XVI e XVII, o que vai
ocorrer é justamente uma busca e uma definição de uma forma de governo que
seja específica ao exercício da soberania.
Entre os anos 1580 e 1650, há o que Foucault (2008b) denomina de
desgovernamentalização do cosmos, com o desaparecimento do governo
pastoral de Deus sobre o mundo. O cosmos passa a ser explicado pela razão,
pelos princípios da natureza e pelo domínio da ciência. Neste contexto, o tema
que se coloca não é mais o da soberania divina, mas do que é próprio do
soberano, no exercício da soberania, em relação a seus súditos. É preciso
separar o Estado de Deus e da natureza. O soberano tem agora uma tarefa
específica – governar, colocando, no fim do século XVI, a problematização da
res publica, da coisa pública. O governo é mais do que a soberania, é seu
suplemento, e é algo diferente do pastorado, “ e esse algo que não tem
modelo, que deve buscar seu modelo, é a arte de governar” (p.317). E o que é
esta arte?
No século XVI, governar vai significar fazê-lo de acordo com o modelo
da economia, sendo que naquele período, economia não tinha o sentido atual,
147

mas era, na sua “origem”, o governo da família, ou seja, era o administrar


corretamente os indivíduos. Deste modo, economia não era um campo de
intervenção específico do governo, mas uma forma de governo em si, que
consistia em “exercer em relação aos habitantes, às riquezas, à conduta de
todos e de cada um uma forma de vigilância, de controle, não menos atenta do
que o pai de família sobre suas casas e seus bens” (FOUCAULT, 2008b,
p.127).
No final do século XVI, o mundo vai perceber que está diante de uma
nova realidade – a Razão de Estado. Não que esta nunca tivesse existido, mas
era até então entendida como o mecanismo pelo qual os Estados funcionam. A
novidade está na Razão de Estado como uma nova arte de governo, que tem
por objetivo a conservação do próprio Estado, de sua integridade e de sua
existência.
O fim não é mais, como no pastorado, a salvação dos indivíduos, mas
do próprio Estado. E é, neste contexto, que se desenvolve a teoria do Golpe de
Estado80, não como tomada do poder, mas sim a interrupção das leis e da
legalidade, em um momento de necessidade, de urgência, para salvação do
Estado. O Golpe não é, então, uma ruptura com a Razão de Estado, e sim
parte dele, constituindo uma
Reafirmação da Razão de Estado –que afirma que o
Estado deve ser salvo de qualquer maneira, quaisquer
que sejam as formas que forem empregadas para salvá-
lo. Golpe de Estado, portanto, como manifestação da
Razão de Estado, como auto manifestação do Estado
(FOUCAULT, 2008b, p.350).

Como consequência, a política, apesar de utilizar as leis quando dela


necessita, não está inscrita em um sistema de leis, de legalidade – ela é algo
que tem relação com a necessidade, uma espécie de lei fundamental, cuja
razão é a salvação do Estado.
E, para governar, é preciso que o soberano conheça não apenas as leis,
mas os elementos que constituem o Estado, que vão possibilitar sua
manutenção, desenvolvimento e sua força, sua realidade, através da

80
Segundo Jabri (2010), esta é uma visão realista, próxima da de Schmitt, que não se conecta
com a leitura de Foucault sobre o liberalismo, na medida em que o Golpe de Estado é a
exceção, a violência justificada em termos de necessidade, quando o Estado se depara com
um perigo para sua sobrevivência. Na leitura foucaultiana do liberalismo, de acordo com a
autora, a violência não é uma exceção, mas parte constitutiva da governamentalidade liberal.
148

estatística. Esta nada mais é que o conhecimento das forças e dos recursos de
um dado Estado em um determinado momento; é, portanto, um conhecimento
técnico.
O elemento população ainda não estava presente nesta arte de
governar; nela há apenas o público, a opinião pública, mas, no final do século
XVII e ao longo do XVIII, ele vai ser elaborado por meio de um aparelho
utilizado para fazer a Razão de Estado funcionar – a polícia.
Mas também não se trata da polícia no significado atual; no século XVII,
ela vai significar um conjunto de mecanismos através dos quais é possível
aumentar a força do Estado, mantendo, ao mesmo tempo, a sua ordem. Ela
será o cálculo e a técnica que irão possibilitar o estabelecimento de uma
“relação móvel, mas apesar de tudo estável e controlável, entre a ordem
interna do Estado e o crescimento de suas forças” (FOUCAULT, 2008b, p. 421).
E a manutenção desta ordem interna é essencial ao equilíbrio europeu.
Através da Razão de Estado, será criado um mundo de uma pluralidade de
Estados que terão como finalidade apenas eles mesmos. E todo Estado
buscará o desenvolvimento pleno de suas forças e o domínio sobre outros
Estados, não na forma de um Império, que busca dominar territórios, mas da
concorrência e da composição das forças estatais em alianças políticas e
provisórias. É a tentativa de desenvolver as próprias forças sem uma ruptura
no conjunto, ou seja, mantendo um equilíbrio das forças; essa junção é o que
mais tarde, de acordo com Foucault (2008b), vai se chamar de mecanismo de
segurança.
Para o desenvolvimento destas forças e a manutenção do equilíbrio das
relações, ou, em outras palavras, do equilíbrio europeu, os Estados vão
desenvolver técnicas militares (como o exército permanente e a guerra) e
diplomáticas (como tratados e organizações). O objetivo é que, na Europa
plural, o Estado mais forte tente ditar sua lei a um mais fraco. É a busca pela
Balança da Europa, cujo resultado esperado é a paz.
É a primeira vez, segundo Foucault (2008a), que a Europa se percebe e
se apresenta como uma unidade, como um sujeito econômico, que vê o mundo
como seu domínio econômico. Neste contexto, de abertura de um mercado
mundial, há uma diferença de status e de natureza entre a Europa e o resto do
mundo, “os europeus é que serão os jogadores, e o mundo, bem, o mundo
149

será o que está em jogo. O jogo é na Europa, mas o que está em jogo é o
mundo” 81 (FOUCAULT, 2008a, p. 77).
E a polícia, ao buscar o crescimento das forças do Estado com ordem
interna, terá, como objetivo principal, o próprio equilíbrio europeu, já que é
necessário que o desenvolvimento entre as polícias estatais seja paralelo.
Nesta perspectiva, o instrumento comum vai ser a estatística. É necessário
saber os recursos, a população, a produção, o exército, o comércio, as
possibilidades e virtualidades do próprio Estado, bem como conhecer os dados
(alguns mantidos em sigilo em nome da Razão de Estado) dos outros Estados.
O que interessa à polícia é a atividade do homem, mas apenas aquelas
que têm relação com o Estado e o seu desenvolvimento. A polícia vai procurar,
então, integrar as atividades do indivíduo ao Estado, como também estimular,
determinar, orientar e regular esta atividade de modo que ela seja útil ao
Estado. É a criação da utilidade estatal, por meio da polícia, que, para atingir
seus objetivos, ou seja, para ter homens que possam trabalhar, deverá se
ocupar: 1- com o número de homens, pois disto depende a força estatal; 2-
necessidades da vida e, em especial, as imediatas como a subsistência; 3-
saúde cotidiana; 4- zelar para que os homens não fiquem ociosos; 5- propiciar
a circulação das mercadorias.
Assim, esta regulação da atividade humana pela polícia vai se ocupar,
em termos gerais, do problema da coexistência dos homens e da coexistência
densa. São questões que dizem respeito à cidade e ao mercado, constituindo
uma polícia essencialmente urbana e mercantil (FOUCAULT, 2008b). Ela foi
pensada para a urbanização do território, para sua transformação em cidade,
fazendo com que, em sentido estrito, policiar e urbanizar fossem a mesma
coisa.
Os mecanismos de ação e intervenção da polícia serão parecidos com o
do Judiciário embora não se confundam com o mesmo – serão o regulamento,
o decreto, a instrução e a proibição. Ela deve se ocupar perpetuamente dos
detalhes, criando um mundo do regulamento que pertence ao mundo da
disciplina, da tentativa de regulamentação geral dos indivíduos no território do

81
Esta relação entre a Europa e o resto do mundo foi bem desenvolvida por Schmitt (2005a,
1952,1962) em “O Nomos da Terra”, “Terra e Mar” e “A ordem do mundo depois da Segunda
Guerra Mundial”.
150

reino com um modelo de polícia essencialmente urbano.


Quanto ao mercado, a polícia não pode ser dissociada do mercantilismo,
que é
(...) uma técnica e um cálculo do fortalecimento do
poder, isto é dos Estados na competição europeia pelo
comércio, pelo desenvolvimento do comércio e pelo novo
vigor dado às relações comerciais (FOUCAULT, 2008b,
p. 454).

O comércio é, desta forma, o principal instrumento de força do Estado e


o mercantilismo se insere no contexto do equilíbrio europeu.
Entretanto, a arte de governar econômica viu-se bloqueada no século
XVII, em virtude de razões históricas – Guerra dos Trinta Anos, as grandes
revoltas urbanas e rurais e a crise financeira e dos meios de subsistência – e
de estruturas institucionais e mentais - a prevalência, como questão teórica e
princípio de organização política, da questão do exercício da soberania, que
bloqueou, em especial, o mercantilismo.
O mercantilismo teria sido a primeira racionalização do exercício do
poder como uma prática governamental e teria como objetivo o soberano e
como instrumento as ferramentas típicas da soberania – leis, decretos e
regulamentos. O que ele procurava era “fazer as possibilidades dadas por uma
arte refletida do governo entrarem numa estrutura institucional e mental da
soberania que a bloqueava” (FOUCAULT, 2008a,p. 136). Foi uma tentativa de
compor com a teoria da soberania, e é neste ponto que intervêm os juristas do
século XVII e sua teoria do contrato social. O contrato vai ser, neste sentido,
uma matriz a partir da qual se tentará deduzir princípios gerais de uma arte de
governar.
A arte de governar estava, portanto, presa entre o rígido modelo da
soberania e o frágil da família, do governo econômico. Era preciso desbloqueá-
la, e isto ocorreu, dentro de um quadro geral, com o desmantelamento do
Estado de polícia na primeira metade do século XVIII e com a emergência do
problema da população.
O desmantelamento deste Estado vai ocorrer por problemas econômicos
e pela questão da circulação dos cereais em particular. Se o mercantilismo
defendia que era necessária uma política de baixo preço de cereais para o
baixo salário dos operários, os fisiocratas, e os economistas em geral, vão, no
151

século XVIII, reintroduzir a agricultura como um elemento fundamental da


racionalidade governamental, como um objeto de intervenção. Se se quiser
cereais abundantes, é preciso que os mesmos sejam bem pagos. Se ele for
bem pago, se se deixar que o preço suba, em função da oferta e da demanda,
vai se obter um valor justo, ou seja, nem muito alto, nem muito baixo – o preço
justo. Como consequência, se questiona um princípio básico do sistema de
polícia, a regulamentação, que deixa de ser necessária ou útil, pois há uma
“regulamentação espontânea das coisas” (FOUCAULT, 2008a, p.463). Há uma
naturalidade no pensamento econômico, naturalidade dos mecanismos que
deixam que os preços subam, e que, sem intervenção, se detenham por conta
própria.
Além disto, a população e seus fenômenos específicos vão possibilitar o
afastamento do modelo da família e o recentramento da noção de economia. A
estatística, que já havia sido um instrumento da soberania, vai revelar as
regularidades da população (taxa de mortos, doentes, acidentes) e seus
efeitos, que são irredutíveis ao âmbito da família. Esta passa a ser um nível
inferior, um elemento no interior da população, mas que, ao mesmo tempo,
será o instrumento privilegiado do governo. Em suma, a população desbloqueia
a arte de governar na medida em que ela suprime o modelo da família.
Ela vai aparecer como a meta final do governo, que deve agir
diretamente (por meio de campanhas) e indiretamente (através de técnicas
como o controle da natalidade) sobre a mesma, aumentando sua riqueza,
duração da vida e saúde. A população torna-se, então, o fim e o instrumento do
governo,
(...) sujeito de necessidades, de aspirações, mas também
objeto nas mãos do governo. Ela aparece como
consciente, diante do governo, do que ela quer, e
também inconsciente do que a fazem fazer. O interesse
como consciência de cada um dos indivíduos que
constitui a população e o interesse como interesse da
população, quaisquer que sejam os interesses e as
aspirações individuais dos que a compõem, é isso que
vai ser, em seu equívoco, o alvo e o instrumento
fundamental do
governo das populações (FOUCAULT, 2008b, p. 140).

Para os economistas, a população não será vista como um bem, como


a necessidade de se aumentá-la indefinidamente para se ter uma força de
152

trabalho numerosa e dócil, tal qual se encontra no Estado de polícia. Para eles,
é necessário uma certa população, ou seja, nem pouco nem muito numerosa;
ela não é um valor absoluto, portanto, mas relativa. Há um número de pessoas
desejável em um determinado território em função de seus recursos e do
consumo necessário para sustentar os preços e a economia. E este número vai
ser alcançado também de maneira espontânea, sem regulação estatal.
Os economistas vão defender ainda a necessidade da concorrência, não
entre os Estados, como no modelo anterior, mas entre particulares. Para se
obter o preço justo, deve-se deixar que os indivíduos busquem o lucro máximo,
permitindo que a coletividade e o Estado embolsem, em certa medida, o ganho
da conduta dos particulares. Neste sentido, o bem de todos não vai depender
da regulamentação do Estado, da polícia, mas do bem de cada um, da busca
pelos interesses individuais.
É o nascimento, no século XVIII, do homo oeconomicus, o sujeito de
interesses que é irredutível ao sujeito de direitos. O sujeito de direito é aquele
que aceita renunciar a seus direitos naturais, quando aceita uma limitação e ou
transferência dos mesmos (teoria do contrato); o sujeito econômico, entretanto,
tem uma lógica diferente, já que o mercado nunca pede a ele a renúncia de
seus interesses. A multiplicidade de interesses torna o homo oeconomicus não-
totalizável, enquanto o sujeito de direitos pode ser totalizado na unidade
política, por meio da figura do soberano.
O sujeito de interesse, por conseguinte, funciona “em uma espécie de
mecânica bizarra (...) no interior de uma totalidade que lhe escapa, mas funda
a racionalidade das suas opções egoístas” (FOUCAULT, 2008a). E esta
mecânica bizarra, quando os indivíduos buscam seus interesses e, não se
sabe como (quase uma providência), produzem o bem comum, é o que Adam
Smith chamou de mão invisível. Para alcançar o bem de todos, não se deve
buscá-lo, uma vez que o mesmo não pode ser calculado em um estratégia
econômica, e este é o princípio da invisibilidade (FOUCAULT, 2008a).
Como consequência política, é necessário, então, deixar cada um fazer
(laissez-faire), sem a intervenção ou a criação de obstáculos por parte do
governo. O soberano, o governo, é necessariamente ignorante, no sentido em
que é impossível a ele conhecer a totalidade do processo econômico. É uma
desqualificação do soberano político pela afirmação da inexistência do
153

soberano econômico; é a recusa do Estado de polícia.


O Estado ganha, deste modo, um novo papel – no lugar do Estado de
polícia, regulamentador, um “regulador de interesses”, que deve “deixar o
melhor-estar de cada um, o interesse de cada um se regular de maneira que
possa de fato servir a todos” (FOUCAULT, 2008a, p. 466). Não só regulador,
mas também um manipulador de interesses, que são “no fundo, aquilo por
intermédio do que o governo pode agir sobre todas estas coisas que são, para
ele, os indivíduos, os atos, as palavras, as riquezas, os recursos, as
propriedades, os direitos, etc.” (FOUCAULT, 2008a, p.61). O Estado, pois, não
age diretamente sobre as pessoas e as coisas, mas sobre os interesses, ou
seja, na medida em que determinado bem, riqueza ou indivíduo se torna de
certo interesse para alguém ou para a coletividade.
Assim, a crítica ao Estado de polícia não é feita pelos juristas, mas pelos
economistas. A razão econômica passa não a substituir (continuam a subsistir
as questões do crescimento das forças estatais como ordem interna e o
equilíbrio europeu) a Razão de Estado, mas a dar um novo conteúdo a esta, e,
por conseguinte, novas formas de racionalidade ao Estado. Para Foucault
(2008a), se a governamentalidade dos políticos nos deu a polícia e a
artificialidade, a dos economistas introduziu a naturalidade e a regulação
espontânea, a racionalidade e a regra da evidência.
É, neste contexto, o nascimento de uma nova arte de governo, da
passagem, no século XVIII, de um regime dominado pelas estruturas de
soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, cujo
conhecimento científico correlato será a economia política, indispensável para
o exercício de um bom governo. É um conhecimento que liga as variações de
riquezas e de população em três eixos – produção, circulação e consumo- ,
sendo externo a esta nova arte de governar, mas de cujos resultados o governo
não pode prescindir.
Contudo, não se pode dizer que a sociedade da soberania é substituída
por uma sociedade do governo, ou que o problema da soberania é eliminado;
ele subsiste e passa a coexistir com a disciplina e com a gestão
governamental. O governo necessita da disciplina para administrar a população
com profundidade, sutileza e em detalhe.
Para tanto, o governo desenvolve toda uma série de aparelhos
154

específicos e de saberes, levando a um processo de governamentalização do


Estado, no qual o Estado da justiça da Idade Média se transforma em um
Estado administrativo. Para Foucault (2008b), este processo é o que permitiu a
sobrevivência estatal, que passa a existir graças à governamentalidade, ao
conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos,
análises e reflexões, os cálculos e as táticas que
permitem exercer essa forma bem específica, embora
muito complexa, de poder que tem por alvo principal a
população, por principal forma de saber a economia
política e por instrumento técnico essencial os
dispositivos de segurança (FOUCAULT, 2008b, p. 143).

Esta nova arte de governo, esta governamentalidade, é o liberalismo, no


qual o Estado assume como princípio fundamental respeitar os princípios
naturais da economia e da população, fazendo-os agir e agindo com eles. Não
se trata mais de uma intervenção reguladora, mas de uma gestão, permitindo
que as regulações necessárias e naturais atuem ou fazendo regulações que
possibilitem o funcionamento das naturais – a gestão das populações.
Para tanto, é preciso instituir mecanismos de segurança, cuja função é
garantir a segurança “dos fenômenos naturais que são os processos
econômicos ou os processo intrínsecos à população” (FOUCAULT, 2008b,
p.474), impedindo seu desvio. É preciso impedir a criminalidade e a
delinquência, e a polícia reguladora do século XVII se torna uma atividade
negativa, repressiva, o instrumento pelo qual a desordem será impedida.
E, neste momento, a liberdade deixa de ser apenas os direitos dos
indivíduos que são legitimamente opostos ao poder e aos abusos do soberano
ou do governo, e se torna um elemento indispensável à própria
governamentalidade. Para governar bem, é preciso respeitar a liberdade (ou
suas formas), sendo necessária a organização de um sistema jurídico para
garanti-la. “A integração das liberdades e dos limites próprios a essa liberdade
no interior do campo da prática governamental tornou-se agora um imperativo”
(FOUCAULT, 2008b, p. 475).
É um governo que, para evitar abusos e proteger as liberdades, será
limitado não a partir do exterior, mas que será autolimitado, limitado pela
sociedade civil. Mas não se trata da sociedade civil, nos termos de Locke
(1994), entendida como um conjunto de indivíduos ligados entre si por um
vínculo jurídico-político, o contrato, e fundada ao mesmo tempo em que a
155

sociedade política (no que não difere de Hobbes). A partir da segunda metade
do século XVIII, este conceito vai se transformar, adquirindo a acepção de um
conjunto, de uma síntese espontânea, no qual os indivíduos são ligados por
sentimentos, simpatias, instinto, compaixão, ou o que Foucault (2008a)
denominou de “interesses desinteressados”. É mais ampla que o egoísmo, mas
nela o vínculo econômico, dissociativo, também encontra seu lugar,
ameaçando sua existência ao introduzir um desequilíbrio. E, embora não se
confunda com a sociedade política, é a matriz permanente do poder político,
pela formação espontânea de vínculos de fato entre os indivíduos, e na qual
alguns terão uma supremacia natural sobre os outros. “Alguns vão dar sua
opinião. Outros vão dar ordens. Uns vão refletir, outros vão obedecer”
(FOUCAULT, 2008a, p. 413).
É a sociedade civil que obriga o liberalismo a permanentemente se
questionar se não governa demais. Assim, nesta razão governamental crítica,
que surge a partir da economia política, “Não é ao abuso do soberano que se
vai objetar, é ao excesso de governo” (FOUCAULT, 2008a). É a questão da
frugalidade do governo como questão central do liberalismo.
Portanto, para que este governo seja bom, ou seja, capaz de realizar
seus objetivos, é necessária uma limitação, que é de fato e não de direito,
geral, interna e que vai ser um limite à ação do governo não por meio da
demarcação nos súditos (liberdade reservada e submissão consentida), mas
no campo da própria prática governamental, no estabelecimento do que pode
ou não ser feito, da agenda e da non agenda. O liberalismo é, assim, uma
tecnologia de governo que busca sua própria limitação, uma autolimitação, na
medida em que está ligada à especificidade dos processos econômicos
(FOUCAULT, 2008a).
E, neste contexto, segundo Gómez (2010), em Foucault, a sociedade
civil não é uma realidade independente, mas o correlato da tecnologia liberal de
governo, uma objetivação histórica gerada a partir de uma
governamentalização; ela é o campo de intervenção no qual se pode governar,
ao mesmo tempo, os interesses individuais e os sociais, no qual a justiça é
uma consequência da liberdade.
A sociedade civil não é uma ideia filosófica. A sociedade
civil é, a meu ver, um conceito de tecnologia
156

governamental, ou antes, é o correlativo de uma


tecnologia de governo cuja medida racional deve indexar-
se juridicamente a uma economia de produção e da troca
(FOUCAULT, 2008a, p. 402).

Deste modo, a sociedade civil também é alvo de intervenção


governamental, não para restringir as liberdades que foram formalmente
concedidas, mas para produzir, multiplicar, gerir e garantir estas liberdades,
necessárias ao funcionamento do sistema liberal (FOUCAULT, 2008a).
É neste sentido que se pode afirmar que o laissez-faire liberal não é
simplesmente uma abstenção do intervir, mas uma gestão da população, da
sociedade civil e do mercado (GÓMEZ, 2010).
Em suma, os elementos desta nova arte de governar, do liberalismo,
serão a sociedade, a economia, a população, a segurança e a liberdade. E,
nela, a economia geral do poder está se tornando uma ordem da segurança,
uma sociedade da segurança.

3.2.3- Liberalismo como sociedade da segurança

(...) estratégias de segurança que são, de certo modo, o


inverso e a própria condição do liberalismo. A liberdade e
a segurança, o jogo liberdade e segurança – é isso que
está no âmago dessa nova razão governamental cujas
características gerais eu vinha lhes apontando. Liberdade
e segurança – é isso que vai animar internamente, de
certo modo, os problemas do que chamarei de economia
de poder próprio do liberalismo (FOUCAULT, 2008a, p.
89).

Segundo Foucault (2008a), no liberalismo, a liberdade não é um dado,


uma região que deveria ser respeitada, ainda que parcialmente, neste ou
naquele caso. Ela também não é um universal, que se realiza
progressivamente, que tem variações quantitativas e tem violações e
ocultações mais ou menos graves ou importantes. Ela é algo que é fabricada a
todo instante pelo próprio liberalismo, na relação entre governantes e
governados, cuja medida é o muito pouco da sua existência e o mais ainda do
que é pedido.
É uma governamentalidade que produz e gere a liberdade, por ser uma
consumidora da mesma – o liberalismo precisa da liberdade, ou melhor, das
157

liberdades para funcionar: liberdade do mercado, de propriedade e mesmo de


expressão e discussão. E é uma gestora da liberdade não pelo imperativo do
“seja livre”, mas do “vou produzir o necessário para tornar você livre”
(FOUCAULT, 2008a), ou, em outras palavras, é a liberdade de ser livre, a partir
de gestão e organização de certas condições.
E o princípio do cálculo do custo desta fabricação é o que se chama
segurança, ou seja, ao mesmo tempo em que a liberdade é produzida, também
é necessário que ela seja limitada e controlada. E a medida deste limite vai ser
dada pela avaliação de até que ponto os interesses individuais não constituem
um perigo para o interesse coletivo. O problema da segurança, portanto, é
exatamente o de proteger o interesse de todos contra os interesses particulares
e, ao mesmo tempo, proteger estes contra tudo o que puder ser um abuso por
parte do coletivo.
A segurança, segundo Foucault (2008b), difere da lei e da disciplina; a
lei determina o que é proibido, a disciplina prescreve o que se deve fazer e a
segurança é um mecanismo de regulação da realidade, ela tem
“essencialmente por função responder a uma realidade de maneira que essa
resposta anule essa realidade a que ela responde – anule, ou limite, ou freie,
ou regule” (p.61).
Deste modo, a segurança não trabalha no campo do imaginário e sim
sobre a realidade e este princípio, de que a técnica política não pode se
descolar da realidade, que é sobre ela e com ela que a política deve agir, está
intimamente ligado ao princípio geral do liberalismo – o laissez-faire, o deixar
os indivíduos fazerem e agirem, deixar que a realidade siga o seu caminho, de
acordo com as leis e seus mecanismos. Em outras palavras, a arte de governo
liberal precisa da liberdade para se desenvolver; e esta é uma técnica de
governo e deve ser compreendida no interior das mudanças e transformações
das tecnologias de poder.
A liberdade é, no liberalismo, um correlato, uma das faces, uma das
dimensões dos dispositivos de segurança, uma vez que estes precisam
daquela para funcionar e, em especial, necessitam da liberdade de movimento,
de circulação de coisas e de pessoas.
Assim, o liberalismo terá que, a todo momento, arbitrar a liberdade e a
segurança dos indivíduos, e isto será feito em torno de um conceito que é o do
158

perigo. Ser gestor da liberdade (e da segurança) significa ser também um


gestor dos perigos, afastando-os dos indivíduos e da coletividade. Criou-se, de
acordo com Foucault (2008a), no século XIX, uma cultura política do perigo,
“esse incentivo ao medo do perigo que é de certo modo a condição, o correlato
psicológico e cultural interno do liberalismo. Não há liberalismo sem cultura do
perigo” (FOUCAULT, 2008a, p.91).
É, neste sentido, que se pode dizer, segundo Bigo et al (2010), que
tradicionalmente no centro da relação entre liberdade, segurança e soberania
estão os conceitos de emergência e exceção. A alegação de que estamos
vivendo um momento histórico excepcional serve para legitimar procedimentos
há muito estabelecidos em nome da segurança. É o trunfo sobre a liberdade
que, ao mesmo tempo, redesenha, desloca, e reenquadra a localização das
fronteiras tradicionais, de maneira a criar uma forma de integração global mais
coerente que, no entanto, é dependente da autorização de fronteiras e
soberanias.
Na verdade, estes momentos de exceção não seriam um grande evento,
como afirmam os excepcionalistas, ou um grande momento singular ou
generalizado da exceção, mas produto de processos rotineiros de
(in)securitização gerados por práticas cotidianas de múltiplos atores em
diferentes lugares.
Este processo de (in)securitização, por sua vez, estaria embebido em
uma transformação mais ampla da relação entre autoridades nacionais e
internacionais. Os limites do Estado-Nação ainda funcionam como limites à
imaginação-ação política, através da diferenciação da burocracia nos territórios
nacionais. Para Bigo et al (2010), o que está ocorrendo atualmente é um
processo de des-diferenciação (e não uma unificação), ou seja, velhos limites
estão sendo remodelados e novas solidariedades estão surgindo entre
corporações transnacionais que triunfam sobre as solidariedades nacionais e a
efetividade da política nacional em várias áreas cruciais.
As consequências desta des-diferenciação estaria na crença de que a
integração da informação é a solução para a violência, a desordem e
transformações sociais induzidas pelo fluxo de pessoas ao redor do mundo, na
constituição de uma verdadeira tecnologia de prevenção.
Segundo Mattelart (2008), este projeto biopolítico se confunde com o
159

próprio liberalismo. Com a sociedade liberal, surge uma nova arte de governo,
uma nova racionalidade governamental, que tem por objeto a massa, a espécie
humana, o público, a população. Se a sociedade disciplinar age sobre os
corpos, a sociedade da segurança age sobre o conjunto da sociedade, na vida
dos homens, nos seus hábitos, costumes, comportamentos, crenças, opiniões.
A primeira é, portanto, centrípeta – o indivíduo, isolado em sua “cela”, que é
visto sem poder ver, que é o objeto de uma informação, mas não o sujeito de
uma comunicação; e a segunda, que é centrífuga – que amplia o horizonte
físico e mental (MATTELART, 2008).
A disciplina é essencialmente centrípeta (...)O na medida
em que isola um espaço, determina um segmento. A
disciplina concentra, centra, encerra. O primeiro gesto da
disciplina é, de fato, circunscrever um espaço no qual
seu poder e dos mecanismos do poder funcionarão
plenamente e sem limites. (...) os dispositivos de
segurança (...) tendem perpetuamente a se ampliar, são
centrífugos. Novos elementos são o tempo todo
integrados. (...) Trata-se, portanto, de organizar ou, em
todo caso, de deixar circuitos cada vez mais amplos se
desenvolverem (FOUCAULT, 2008b, p.59).

O laisser faire liberal, que se inscreve na utopia de um modo de


comunicação entre bens, corpos e mensagens sob o signo da fluidez e da
transparência. Utopia, uma vez que o paradoxo da sociedade da segurança é
que ela ao mesmo tempo em que busca liberar as forças virtuais dos fluxos de
comunicação, não cessa de reprimir suas consequências emancipadoras em
nome da Razão de Estado ou das lógicas do mercado (MATTELART, 2008).
Neste contexto, a sociedade disciplinar não é apagada ou substituída
pela da segurança – elas coexistem e são complementares, se integrando e se
articulando. Na verdade, coexistem não apenas a disciplina e a
segurança/biopolítica, mas também a soberania/lei. Tanto a lei, quanto a
disciplina e a segurança são exercidas em um determinado espaço, mas, de
acordo com Foucault (2008b), não se deve adotar uma perspectiva simplista,
de que a soberania se exerce em um território, a disciplina sobre o corpo e a
segurança sobre a população. Isto seria negar a multiplicidade destes
mecanismos, que utilizam o espaço de maneiras diferentes.
Soberania-disciplina-segurança - é o que Jabri (2010) denomina de
tríade foucaultiana. Segundo a autora, a formação histórica do liberalismo
160

procura reconciliar o imperativo do Estado territorial marcado por fronteiras e


pelo governo de sociedades bem delimitadas com o imperativo de mercado
que transcende tais fronteiras.
A teoria política liberal procura estabelecer valores éticos e fundamentais
desta doutrina como um projeto moral e político, cuja base ontológica remonta
a Hobbes e Kant. Nesta visão, a liberdade é algo universal, um valor a ser
alcançado e defendido dentro de uma matriz institucional. Contudo, se se parte
não de uma abordagem institucional, mas de uma histórica-estrutural, nos
moldes foucaultianos, a segurança passa a ser entendida em termos de
práticas localizadas e a liberdade em termos de práticas discursivas e não
discursivas. A liberdade se torna uma relação entre governantes e governados,
na qual as tecnologias de controle instituem a subjetividade e as formas de
controle são definidas pelo mercado por um lado e, por outro, pelo Estado e
suas burocracias. Há, assim, segundo Jabri (2010), “(...) um afastamento das
capitulações normativas e metafísicas do sujeito e mesmo da ideia de liberdade
como algo que é produto de um decreto soberano – você será livre (tradução
nossa, pg. 24082)”.
Desta maneira, a sociedade disciplinar e a sociedade da segurança, sem
excluir o aparato jurídico-legal, coexistem na sociedade liberal. Cada uma com
seus próprios dispositivos e seus conjuntos de mecanismos que são por elas
naturalizados. A disciplina classifica os indivíduos, separando os criminosos ou
delinquentes do corpo social e inspirando os biótipos. A tecnologia disciplinar
controla, adestra, demarca os inaptos e incapazes, o normal e o anormal; há
um modelo, um caráter prescritivo da norma, que busca um certo resultado. É o
que Foucault (2008b) denomina de normalização, ou melhor, de uma normação
disciplinar, já que a norma é anterior ao normal, e que tem por objetivo “tornar
as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal
precisamente quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem
não é capaz” (p.75).
Já a sociedade securitária cria um saber positivo sobre a reorganização
do corpo político, gerando uma tecnocracia, que substitui o governo das coisas
pelo governo dos homens. Nela não há normal ou anormal, mas uma

82
“a shift away from normative or metaphysical renditions on the subject, or even the idea that
liberty is somehow a product of the sovereign edict – you will be free.”
161

identificação das diferentes curvas de normalidade. Não há uma normação,


como na disciplina, mas uma normalização, em sentido estrito – uma tentativa
de fazer as diferentes distribuições de normalidade funcionarem umas em
relação às outras, buscando trazer as mais desfavoráveis ao nível das mais
favoráveis. Aqui o normal aparece primeiro e dele se deduz a norma.
Neste sentido, a sociedade da segurança, de acordo com Gómez
(2010), produz espaços de segurança, que se constituem em um meio
ambiente artificial, através de intervenções urbanísticas, arquitetônicas e
sanitárias sobre o espaço, buscando favorecer e regular certo tipo de
mobilidade e de conduta. Não se trata, deste modo, de uma intervenção direta
sobre o corpo, mas sobre o meio, normalizando as condições da conduta e
afetando as condições de vida da população.
Neste contexto, a biopolítica é o elemento chave dos dispositivos (a
racionalidade do conjunto) de segurança, uma tecnologia política que busca
vincular uma multiplicidade de indivíduos dentro de uma artificialidade na qual
existem biologicamente. É a criação das condições ambientais que favoreçam
a multiplicação dessa potência de vida.
Segundo Foucault (2008a, 2008b), portanto, a sociedade liberal é uma
sociedade da segurança, e esta arte de governar, ao lado da produção e
gestão das liberdades, também produz sua contrapartida, que será uma
“formidável extensão dos procedimentos de controle, de pressão, de coerção”,
no sentido que
as grandes técnicas disciplinares que se ocupam do
comportamento dos indivíduos no dia-a-dia, até em seu
ínfimos detalhes, são exatamente contemporâneas, em
seu desenvolvimento, em sua explosão, em sua
disseminação através da sociedade, da era das
liberdades (FOUCAULT, 2008a, p.91).

E Foucault (2008a) vai além, ao afirmar que no liberalismo os


mecanismos de controle são mais que um contrapeso às liberdades; eles
constituem o seu princípio motor, através de mecanismos que buscam produzir
e ampliar as liberdades, introduzindo um “a mais” destas através de um “a
mais” de controle e intervenção. Neste processo, a arte de governar liberal se
torna vítima de si mesma, através das crises de governamentalidade. Crises
estas que podem ocorrer por excesso de regulação, como no campo
162

legislativo; pelo aumento do custo econômico do exercício das liberdades; e


mesmo pela produção de efeitos destrutivos dos mecanismos produtores da
liberdade, dispositivos “liberógenos” que produzem efeito inverso. Assim, para
evitar o fascismo, o comunismo, o nazismo e o socialismo, seus inimigos
habituais, o liberalismo instalou mecanismos de intervenção econômica, que
acabaram por atingir outros campos, sendo tão nocivos à liberdade quanto os
regimes que buscou evitar.
Como consequência, liberalismo e excepcionalismo não devem ser
pensados como excludentes ou contraditórios. Na verdade, é possível pensá-
los como coexistentes, se se considera o excepcionalismo não como
suspensão “da lei” ou quebra da normalidade (nos termos de Schmitt e
Agamben). Aliás, esta denominação - estado de exceção permanente, ou
estado de exceção-como-regra, é algumas vezes utilizada apenas como um
atalho para se referir ao aumento do uso da declaração de emergência ou de
crise como forma de sustentar o domínio do Executivo e da governança
administrativa.
Nesta perspectiva, portanto, as práticas antiliberais não significam o
colapso do liberalismo ou da democracia, como apregoa Agamben.

3.2.4- Do liberalismo ao neoliberalismo

A tecnologia liberal de governo sofreu transformações ao longo do


século XIX, sendo que a mais importante foi a emergência da questão social,
que obrigou a uma reflexão sobre o papel que o Estado deve cumprir na arte
liberal de governar. Com o surgimento do Estado social, as artes liberais
passaram a implementar um tipo de governamentabilidade social como meio
de conter a expansão do pauperismo e da proletarização. E é contra a grande
transformação da racionalidade liberal que o neoliberalismo vai se colocar
(GÓMEZ, 2010).
Em “Nascimento da Biopolítica”, Foucault (2008a) faz uma análise do
neoliberalismo alemão ou ordoliberalismo e do neoliberalismo norte-americano
por meio de duas escolas de pensamento econômico – a Freiburger Schule e a
163

Escola de Chicago. Em ambas, o autor vai perceber uma “fobia do Estado” 83,
compartilhada pelos liberais clássicos, que se opõe de maneira direta às
políticas de welfare implementadas nos Estados Unidos da América (New Deal)
e na Europa (Welfare State).
O Estado social, com seu intervencionismo e tutela dos indivíduos, seria,
para os neoliberais, um retorno perigoso à Razão de Estado, que os liberais
clássicos haviam tentado superar, gerando uma cultura da dependência.
No entanto, como ressalta Foucault (2008a), o neoliberalismo não é
simplesmente uma tentativa de retorno ao liberalismo clássico, como formulado
nos séculos XVIII e XIX. Não se trata mais de apenas deixar a economia livre,
com o Estado fazendo seu papel de supervisor, mas de uma nova
racionalidade de governo, que abarca a vida econômica, bem como a vida
social e individual.
O neoliberalismo é, na análise foucaultiana, um liberalismo positivo, ou
seja intervencionista. Assim, esta nova racionalidade não vai se situar na lógica
do laissez- faire, mas sob o “signo de uma vigilância, de uma atividade, de uma
intervenção permanente” (FOUCAULT, 2008a, p. 182).
Se o problema dos liberais era abrir um espaço livre que seria o do
mercado, para os neoliberais, o problema é saber como se pode
regular o exercício global do poder político com base nos
princípios de uma economia de mercado. Não se trata,
portanto, de liberar um espaço vazio, mas de relacionar,
de referir, de projetar numa arte geral de governar os
princípios formais de uma economia de mercado
(FOUCAULT, 2008a, p.181)

Neste contexto, o mercado deixa de ser um dado primitivo e natural, se


tornando uma estrutura dotada de propriedades formais, que poderiam
assegurar a regulação econômica por meio do mecanismo dos preços. Há
aqui, então, uma dissociação entre a economia de mercado, o princípio
econômico do mercado e o princípio político do laissez-faire.
Além disto, uma segunda diferença está no fato de que se no liberalismo
a questão estava em demarcar as ações que deviam ou não ser executadas e

83
Gómez (2010) afirma que em Foucault também há esta fobia do Estado. Segundo Foucault,
sua crítica ao neoliberalismo não se faz em nome do Estado intervencionista, se afastando do
marxismo, ou mesmo a partir do Estado como um universal. Neste sentido, o neoliberalismo
não deve ser compreendido como um fenômeno de carência, de retirada do Estado.
164

em que áreas, no neoliberalismo se trata de saber como fazer. O problema,


pois, neste último não é de demarcação de agenda, mas governamental.
Para os neoliberais, segundo Foucault (2008a), o governo deve ter uma
atuação discreta nos processos econômicos, não tentando corrigir os efeitos
destruidores do mercado sobre a sociedade (como tentam as políticas sociais
do Estado social). Na verdade, ele tem que agir sobre a própria sociedade, a
fim de que os mecanismos concorrenciais possam exercer o papel de
reguladores. O objetivo final do neoliberalismo é, deste modo, criar um
regulador de mercado geral da sociedade, se constituindo não como um
governo econômico, mas como um governo de sociedade. O que se quer
reconstituir aqui, como homo oeconomicus, não é o homem da troca ou o
consumidor, mas o homem da empresa e da produção, em uma sociedade cujo
mecanismo regulador está nos mecanismos de concorrência e não no efeito-
mercadoria. “Não uma sociedade de supermercado – uma sociedade
empresarial” (FOUCAULT, 2008a, p. 201).
Em uma genealogia do neoliberalismo, Foucault (2008a) afirma que sua
emergência se deu na Alemanha nazista da década de 30, justamente pela
estatização da vida e desaparecimento das liberdades individuais, constituindo
o ordoliberalismo. Contudo, esta vertente neoliberal não floresce nesta época e
sim com o fim do nazismo. Neste momento, a Escola de Freiburg vai apontar a
necessidade de uma fundação econômica do Estado, a fim de evitar uma
recaída alemã no autoritarismo.
O neoliberalismo alemão terá uma concepção antinaturalista do
mercado, defendendo a intervenção do Estado nas regras do jogo, para
garantir as condições de concorrência, e não sobre os jogadores. É uma
defesa de ações reguladoras, estruturais e não uma intervenção direta sobre o
mercado; é uma ação sobre as condições de possibilidade da livre economia
de mercado, como a vida da população, dos conhecimentos científicos e
tecnológicos e a organização jurídico-política. Neste sentido, a função do
Estado não é a de proteger o cidadão, mas de criar condições para que o
próprio cidadão se converta em um ator econômico, independente, capaz de
gerir seus próprios riscos.
Nesta vertente, a política social, Sozialpolitik, estará presente não como
uma busca da igualdade ou da eliminação da pobreza relativa, mas como uma
165

tentativa de se acabar com a pobreza absoluta, entendida como a


incapacidade do indivíduo de começar a jogar nas regras do mercado. O que
se busca, então, é a equidade, a garantia de que todos os cidadãos tenham o
direito a jogar desde um ponto de partida mínimo (FOUCAULT, 2008a;
GÓMEZ, 2010).
A diferença do neoliberalismo norte-americano está no rompimento
realizado pela Escola de Chicago da dicotomia entre o econômico e o social,
que ainda persistia nos ordoliberais. Para os neoliberais americanos, o objetivo
estava em fazer do social uma economia, convertendo a vida social em um
mercado. Assim, o trabalho será analisado a partir do trabalho e de sua
racionalidade. Diferentemente dos marxistas e sua teoria da mais valia, o
trabalho será analisado como uma entrada, um aporte econômico, que pode
ser reutilizado a fim de se aumentar o capital inicial. Neste contexto, o próprio
trabalhador é um capitalista, um investidor, um empresário de si mesmo (teoria
do capital humano) e não uma vítima da lógica capitalista.
É uma radicalização da Sozialpolitik alemã. Para os americanos, o
indivíduo não é apenas um sujeito de interesses, mas ativo, calculista,
responsável, capaz de tirar o máximo de proveito do seu capital humano,
composto pelo elemento herdado, as potencialidades genéticas, e adquirido, as
ações estratégicas para potencializar o capital herdado ou para transmitir novo
capital.
Neste contexto, mesmo os afetos, a satisfação pessoal e o cuidado com
os outros (como o materno em relação à educação dos filhos), podem ser
vistos como variáveis econômicas, que aumentam o capital humano e,
portanto, podem ser quantificados e planejados. É a mercantilização da vida
social e pessoal, para que cada um se faça responsável e se converta em um
sujeito moral. É o esforço pessoal, o investir em si mesmo para se tornar
empregável, que torna os cidadãos livres (FOUCAULT, 2008a; GÓMEZ, 2010).
Segundo Gómez (2010), a formação do capital humano funciona na
racionalidade neoliberal como estratégias biopolíticas, sendo que esta relação
deve ser alcançada por meio de uma ampliação da análise de Foucault sobre o
liberalismo e a Razão de Estado, a partir do final do século XVIII.
Nesta perspectiva, de acordo com Gómez (2010), a biopolítica neoliberal
não se limita às variáveis biológicas como nascimento e morte, indo além e
166

atingindo a vida íntima das pessoas e suas decisões cotidianas a elas


referentes, como o cuidado do corpo, a educação dos filhos e a vida sexual. É,
pois, o governo da intimidade, em um nível molecular. E, para garantir a
repercussão no nível molar, do governo das populações, a racionalidade
neoliberal tem que criar um ambiente que favoreça a multiplicação dos
mercados, por meio da privatização do público e do desmonte sistemático da
confiança ontológica. Ou seja, é necessário criar um ambiente de insegurança
generalizado, já que o empreendimento requer inovações e criatividade. É a
geração do risco permanente, como proposta pela Escola de Chicago.
Uma segunda maneira de lidar com a biopolítica no neoliberalismo
remete ao Foucault de “Em Defesa da Sociedade”, quando ainda trabalhava
com o modelo bélico. Na análise do nazismo e do stalinismo, a biopolítica se
torna tanatopolítica na afirmação de que uma parte da população deve morrer
para que a outra viva. Neste contexto, é possível aplicar esta análise às
técnicas neoliberais? Para Gómez (2010), sim. É o darwinismo social
neoliberal, no qual sobrevivem os capazes de se adaptarem ao meio ambiente
de insegurança mediante inovação; é a limpeza social politicamente correta por
meio do mercado e não do Estado.

3.3- Epítome 2- Biopolítica: direito de fazer viver e de deixar morrer

Ao longos dos anos de 1978 e 1979, Foucault desenvolveu nos seus


seminários no Collège de France o que denominou de projeto sobre a história
da governamentalidade. Seu objetivo era o de analisar o surgimento do Estado
moderno, durante os séculos XVII e XVIII, a partir da racionalidade política
estatal como consequência da articulação entre diferentes tecnologias de
condução de comportamentos (a conduta individual se articulando com o poder
e o saber).
Trata-se, portanto, não da construção de uma teoria do Estado ou da
soberania, mas de uma análise do processo de governamentalização do
Estado; uma genealogia da governamentalidade, que se realizou também
como uma genealogia do liberalismo, da racionalidade política contemporânea
(FOUCAULT, 2008a, 2008b; GÓMEZ, 2010).
167

Abandonando seu modelo bélico nietzscheano anterior, e buscando


analisar o poder fora de uma matriz jurídica, Foucault em “Segurança,
Território, População” e “Nascimento da Biopolítica” adota a
governamentalidade como novo quadro de inteligibilidade do poder.
Neste contexto, o liberalismo, bem como o neoliberalismo, serão
interpretados enquanto uma arte de governo, como práticas racionais que
constituem uma tecnologia de governo, e que articulam, ao mesmo tempo, uma
tecnologia de poder (sujeição) e uma tecnologia do eu (subjetivação,
autorregulação dos indivíduos). É, deste modo, um conjunto de práticas, com
uma ratio de cálculo, para atingir determinados fins (a condução dos
comportamentos), tendo uma dimensão estratégica e não meramente
instrumental (FOUCAULT, 2008a, 2008b).
O verdadeiro foco do projeto foucaultiano é, então, o estudo da
governamentalidade, na qual a biopolítica se insere enquanto uma
racionalidade específica.
Se antes de 1978, Foucault (FOUCAULT, 1985) esboçou a biopolítica
como uma oposição ao paradigma da soberania, após, ambas passaram a ser
analisadas como racionalidades que, embora diferentes, encontram-se
superpostas. A soberania não mais como contraposta à biopolítica e sim ao
governo, buscando uma reinterpretação da biopolítica em termos de
governamentalidade (FOUCAULT, 2008a, 2008b).
Nesta perspectiva, o poder soberano, tal como na interpretação
schmittiana, é o velho direito de deixar viver e de fazer morrer; é, do ponto de
vista político-jurídico, o poder do soberano de aplicar a lei e de exigir a vida de
seus súditos em seu território.
No entanto, a partir dos séculos XVII e XVIII, se desenvolveu um novo
poder sobre a vida sob duas formas que se articulam em uma grande
tecnologia de poder – a disciplina e a biopolítica com seu projeto de sociedade
da segurança (a partir dos séculos XVIII e XIX). A primeira se constitui como o
poder sobre os corpos dos indivíduos, em um processo de vigilância,
adestramento, docilização e normação (adaptação a determinada norma). Já a
segunda, age não sobre os indivíduos, mas sobre o homem enquanto espécie,
sua vida biológica; é o governo das populações (entendidas não como
conjuntos de pessoas, mas de práticas), a gestão calculista da vida. Assim, se
168

a disciplina individualiza, a biopolítica massifica (FOUCAULT, 2003, 2004,


2008a, 2008b).
Contudo, é importante ressaltar que não existe, segundo Foucault , uma
era legal (da soberania), uma disciplinar e outra da segurança (biopolítica), mas
uma correlação na qual, em determinado momento, uma se torna dominante.
São, deste modo, técnicas complementares e coexistentes.
Desta forma, a biopolítica é o poder moderno de fazer viver e de deixar
morrer, mas que não substitui o antigo direito de soberania, mas o
complementa, perpassa e modifica. É o instrumento específico da sociedade
da segurança, que deve ser analisada dentro de uma forma específica de
governamentalidade, o liberalismo (como também, mais tarde, o
neoliberalismo); como um conjunto de processos que visa a regular e controlar,
por intervenções diretas e indiretas, estatísticas e cálculo, os acontecimentos
da vida, como nascimento, saúde e mortalidade. Seu objeto não é, portanto, os
fenômenos individuais, mas coletivos, no nível da massa, a população
(FOUCAULT, 2003, 2008a, 2008b).
Neste sentido, o liberalismo deve ser apreendido não como um
fenômeno político-jurídico, mas histórico-político, uma forma de
governamentalidade que almeja produzir um indivíduo livre dentro da
economia, ao mesmo tempo em que exerce um governo sobre a totalidade da
vida. É um conjunto de práticas, de maneiras de fazer, uma racionalidade
política, uma tecnologia sobre como governar os outros e a si mesmo. A
sociedade liberal é, deste modo, uma sociedade da segurança, que molda
expressões, gostos, produz subjetividades e modos de vida, articulando
segurança e liberdade; é o campo mais amplo no qual se insere a biopolítica –
o liberalismo como quadro geral da biopolítica.
Na sua genealogia do liberalismo, Foucault vai afirmar que esta arte de
governo moderna surgiu como uma crítica à Razão de Estado, feita não pelos
juristas, mas pelos economistas. A Razão de Estado era uma arte de governo
que tinha como fim o próprio Estado, que era, concomitantemente, um Estado
de polícia, que buscava regular a atividade humana, da cidade e do mercado,
por meio de mecanismos disciplinares (FOUCAULT, 2008b).
A partir do século XVII, este Estado de polícia vai ser desmantelado,
surgindo um Estado regulador de interesses, e realizando uma passagem, no
169

século XVIII, de um regime dominado pelas estruturas da soberania para um


dominado pelas técnicas de governo, cujo conhecimento científico correlato é a
economia política. Neste momento, a soberania passa a coexistir com a
disciplina e a gestão governamental, em um processo de governamentalização
estatal, e o sujeito de direitos dá lugar ao sujeito de interesses, o homo
oeconomicus.
Na nova arte de governo liberal, o Estado deve respeitar os princípios
naturais da economia e da população, substituindo a intervenção reguladora
por uma gestão, através do cálculo, da reflexão e da racionalização, sempre se
perguntando se não governa demais. Nesta perspectiva, o laissez-faire liberal
não é uma mera abstenção do intervir, mas uma gestão da população, da
sociedade civil (âmbito dos interesses desinteressados que serve como limite
ao governo) e do mercado (FOUCAULT, 2008a; GÓMEZ, 2010).
Ao longo do século XIX, a tecnologia liberal de governo sofre uma
transformação, especialmente com a emergência da questão social, gerando a
necessidade de uma nova forma de governamentalidade, o neoliberalismo.
Este, segundo Foucault (2008a), que surge na Alemanha nazista sob a forma
do ordoliberalismo, não seria um mero retorno ao liberalismo clássico, mas
uma nova forma de racionalidade – um liberalismo positivo, intervencionista.
Nele, o mercado deixa de ser algo natural, autorregulado; o governo deve,
então, criar um regulador de mercado geral da sociedade, constituindo não um
governo econômico, mas da sociedade.
Neste contexto, o homo oeconomicus neoliberal é não o sujeito de
interesses, mas, de acordo com o neoliberalismo norte-americano (Escola de
Chicago), o homem-empresário, que deve investir em si mesmo a fim de
aumentar seu capital humano. E, para Gómez (2010), é o capital humano a
estratégia biopolítica da racionalidade neoliberal, que vai além das variáveis
biológicas, como nascimento e morte, atingindo a vida íntima dos indivíduos; é
um governo da população (molar), mas também um governo da intimidade
(molecular). Além disto, o caráter biopolítico neoliberal também estaria presente
em seu darwinismo social, no filtro exercido pelo mercado em constante
mutação, excluindo, de maneira politicamente correta, aqueles incapazes de se
adaptarem às exigências e às mudanças.
170

Em suma, em Foucault, não se trata de afirmar o fim do direito


soberano de deixar viver e fazer morrer, mas de ir além dele, construindo uma
teoria pós-soberana do poder. Nela, coexistem e se articulam o poder soberano
e seu sistema legal, os mecanismos disciplinares individualizantes e a
biopolítica massificante, de gestão das populações com seus instrumentos
securitários.
E é a partir da interpretação schmittiana (e da crítica benjaminiana) do
poder soberano, através da exceção, e de sua leitura particular da biopolítica
foucaultiana, que Agamben vai procurar construir um terceiro caminho: entre o
poder soberano e a biopolítica.
171

SEGUNDA PARTE

4-GIORGIO AGAMBEN: ENTRE O PODER SOBERANO E A BIOPOLÍTICA

4.1- A metodologia agambeana

Em “Signatura Rerum”, obra na qual procura “sistematizar” 84 sua


metodologia, Agamben (2009), logo no prefácio, nos adverte que uma doutrina
só pode ser exposta legitimamente na forma de uma interpretação. Assim, o
seu método é explicitamente uma interpretação da metodologia foucaultiana a
partir de um framework benjaminiano. Ou seja, Foucault e Benjamin são, neste
ponto, sua maior fonte de inspiração.
Agamben ressalta, ainda, que é sempre difícil, embora essencial, saber
o que pertence ao autor e o que pertence ao intérprete, motivo pelo qual
prefere atribuir a outrem ao risco de assumir para si o que não é de sua autoria.
Neste contexto, Agamben (2009) resume seu método em 3 pontos: o
paradigma, a assinatura e a filosofia arqueológica, todos capturados da obra
foucaultiana.
O primeiro conceito, do paradigma, não é definido, bem como suas
funções, de maneira clara por Foucault. Para entender este termo, portanto,
Agamben propõe que se considere duas coisas – primeiro, o fato de que
Foucault busca abandonar as análises tradicionais do poder fundadas em
modelos jurídicos-institucionais ou em categorias universais, como Estado, lei e
teoria da soberania, focando nos mecanismos concretos do poder que
penetram no corpo dos indivíduos e governam suas formas de vidas; segundo,
que embora Foucault nunca tenha citado Thomas Kuhn de maneira explícita,
ele o leu e, desta forma, o paradigma também deve ser pensado por meio do
paradigma científico kuhniano.
Em uma entrevista a Ulrich Raulff em 2004, Agamben afirma que não é
historiador, como também não faz uma investigação sociológica. Nas suas
palavras, “trabalho com paradigmas”, os quais define como “algo como um

84
Não se trata propriamente de um sistema, já que a obra de Agamben é usualmente
fragmentária, mas de explicitar seu método e suas influências neste campo – Foucault e
Benjamin.
172

exemplo, um exemplar, um fenômeno historicamente singular” (RAULFF, 2004,


p. 610, tradução nossa85).
Neste contexto, para Agamben (2009), o conceito de paradigma se
refere a um caso particular que é isolado de seu contexto na medida em que,
exibindo sua própria singularidade, torna inteligível um conjunto, cuja
homogeneidade ele constitui. Assim, o paradigma se baseia em uma lógica
analógica do exemplo e não em uma transferência metafórica de sentido. Ele é
o termo que é desativado de seu uso normal, não para ser transferido para
outro contexto, mas para mostrar a regra de sua utilização. Através de seu uso,
portanto, Agamben busca construir um grupo mais amplo de fenômenos com o
objetivo de compreender uma estrutura histórica (RAULFF, 2004).
Deste modo, em Foucault, o paradigma é, ao mesmo tempo, um
exemplar e um modelo, que impõe a constituição de uma ciência normal, mas,
acima de tudo, é um exemplum, permitindo que práticas discursivas sejam
reunidas em um conjunto inteligível em um novo contexto problemático. Assim,
Foucault constrói o paradigma do panoptismo, partindo do conceito
benthamiano do panóptico86, um fenômeno histórico particular – o panóptico,
de modelo arquitetural, se torna um modelo generalizável de comportamento,
uma técnica do poder disciplinar, um paradigma, um objeto singular que define
a inteligibilidade do grupo do qual faz parte e, simultaneamente, o constitui
(AGAMBEN, 2009; FOUCAULT, 2004). E, nesta perspectiva, também são
paradigmas em Foucault a confissão, o exame, o cuidado de si, entre outros.
Em sua obra, Agamben reconhece como paradigmas o homo sacer, o campo
de concentração, o muçulmano, o estado de exceção e, mais recentemente, a
economia trinitária e as aclamações.
Em suma, segundo Agamben (2009), são características do paradigma:
- não é nem dedutivo nem indutivo, mas analógico; vai de uma
singularidade a outra;
- neutraliza a dicotomia entre geral e particular, a substituindo por um
modelo analógico bipolar;
- nunca é possível separar o exemplar de sua singularidade;
- o grupo paradigmático é imanente, e não o pressuposto, ao paradigma;

85
“something like an example, an exemplar, a historically singular phenomenon”.
86
Vide item 3.1.3 desta tese.
173

- o paradigma não tem origem ou arché, ou seja, cada fenômeno é a


origem. Portanto, ele não é uma hipótese ou tentativa de se encontrar uma
origem histórica;
- a historicidade do paradigma está no cruzamento entre a sincronia e a
diacronia.
O segundo elemento da metodologia foucaultiana é a assinatura. Esta
não indica uma homologia, e sim uma similitude adjacente que nos permita
reconhecer a primeira e a qual é revelado, por sua vez, por uma terceira. É
mais que uma forma intermediária da mesma semelhança. É um conceito que
Foucault também não define, o resolvendo na semelhança, uma vez que, para
ele, não há semelhanças sem assinaturas. O conhecimento das similitudes
está, assim, baseado na identificação e deciframento das assinaturas, de modo
que estas e aquilo que denotam possuem a mesma natureza.
Neste sentido, para Agamben (2009), a assinatura é um tipo de signo
sem signo, que permite a passagem, em Foucault, da semiótica (conhecimento
que nos permite reconhecer o que é ou não um signo) para a hermenêutica (o
conhecimento que nos possibilita descobrir o significado dos signos). Se na
Renascença a assinatura se referia à semelhança entre o signo e aquilo que
ele designa, na ciência moderna não se trata mais de um signo de caráter
individual, mas de suas relações com outros signos.
O último elemento do método de Agamben é a arqueologia, termo que
aparece pela primeira vez em Foucault, embora de forma discreta, na “Ordem
das Coisas”. Nesta obra, a arqueologia surge como uma dimensão
paradigmática, um tipo histórico a priori, um campo epistemológico. Não se
trata de uma história das ideias ou da ciência, mas uma interrogação a elas,
por meio de um “retorno” à história de suas formações discursivas, que
permitam descobrir de que forma o conhecimento e a teoria se tornaram
possíveis, ou seja, suas condições de possibilidade (AGAMBEN, 2009).
Não é, pois, uma busca por uma origem meta-histórica, mas uma
prática histórica, como fica mais claro na “Arqueologia do Saber”; é um
conjunto de relações que unem, em um dado período, as práticas discursivas
que dão origem a figuras epistemológicas, sistemas e ciências. O a priori da
história significa, então, as condições de possibilidade do conhecimento em
sua própria história em um nível específico, o nível ontológico de sua existência
174

em um tempo particular, de uma certa maneira. É o paradoxo que a


arqueologia deve descobrir – uma condição apriorística que está inserida em
uma história e que apenas se pode constituir a posteriori em relação a esta
história a qual interroga.
Há, ainda, uma questão temporal da arqueologia que, segundo
Agamben (2009), Foucault não responde. Para Agamben, o que está em jogo
neste ponto não é propriamente o passado, mas o momento de seu
surgimento; a arché da arqueologia é este momento que só se torna acessível
e presente quando a sua interrogação completar a sua operação, assumindo a
forma de um passado no futuro, de um futuro anterior. É o ter acesso ao
presente pela primeira vez, indo além da memória e do esquecimento, ou
melhor, no limite de sua indiferença; é o espaço que se abre em direção ao
passado e que é projetado no futuro.

4.2 – Anjos racionais: a teologia econômica

Em o “Reino e a Glória”, Agamben (2011) se propõe a investigar o modo


pelo qual o poder no Ocidente assume a forma de um governo dos homens, de
uma economia, dando continuidade (e, segundo o autor, ampliando) à
genealogia foucaultiana da governamentalidade. Seu objetivo é prosseguir na
análise da natureza do poder, iniciada em “Homo Sacer”, a partir da articulação
entre Reino e Governo, oikonomia e glória, entre o poder como governo e
gestão eficaz e o poder enquanto cerimonial e liturgia.
Por que o poder precisa da glória? Qual a relação entre economia e
glória? Segundo Agamben (2011), estas são questões que Foucault, em sua
genealogia, não se coloca e que só podem ser respondidas devolvendo-as a
uma dimensão teológica.
A teologia cristã, é, neste contexto, a chave para se compreender dois
grandes paradigmas políticos, que são, ao mesmo tempo, antinômicos e
conexos: a teologia política, da qual deriva a filosofia política 87 e a moderna

87
Para Gómez (2010), é possível falar em uma filosofia política em Foucault, mais
especificamente em uma filosofia das tecnologias políticas, uma vez que os seminários de 78 e
79 oferecem uma reflexão, não normativa, sobre o modo como a política implica
necessariamente no começo de uma racionalidade técnica.
175

teoria da soberania; e a teologia econômica, da qual se origina a biopolítica


moderna e o triunfo da economia e do governo.
O primeiro paradigma, da teologia política, foi desenvolvido por Schmitt
(2006b) na “Teologia Política”, na sua afirmação de que os conceitos da
doutrina moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados 88 . Na
interpretação agambeana, a teologia schmittiana vai além dos limites do direito
público, envolvendo a economia e a concepção da vida reprodutiva das
sociedades humanas (o conceito implícito de biopolítica que Agamben
vislumbra no movimento schmittiano89).
No tocante à secularização, a estratégia de Schmitt é, de acordo com
Agamben (2011), inversa à de Weber. Enquanto para este a secularização é
parte de um processo moderno de desencantamento e desteologização do
mundo, para Schmitt, a teologia continua presente e atuante na modernidade,
em uma articulação com a política, como sua origem. Assim, a secularização
não é um conceito, mas, nos termos foucaultianos, uma assinatura, ou seja,
algo que em “um signo ou conceito, marca-os pare remetê-los a determinada
interpretação ou determinado âmbito, sem sair, porém do semiótico, para
constituir um novo significado ou um novo conceito” (AGAMBEN, 2011, p. 16).
Deste modo, a assinatura desloca os conceitos e os signos de uma
esfera para a outra, mas sem uma ressignificação semântica. No caso da
secularização, esta atua como uma assinatura que remete o moderno ao seu
passado teológico.
Quanto à teologia política, Agamben (2011) parte do debate entre Carl
Schmitt e o teólogo católico Erik Peterson, travado entre os anos de 1935 e
1970. Estes autores, como católicos, acreditavam na escatologia representada
pela parusia, a segunda vinda de Cristo à Terra, ou seja, no advento do Reino e
no fim do mundo – o eschaton. No entanto, ambos também concordavam que
existe alguma coisa que retarda e evita este momento; para Schmitt, é o poder
soberano do Império e para Peterson, a descrença do povo judeu em Cristo.
Segundo Schmitt (2005a), fazendo menção ao capítulo 2 da Carta aos
Tessalonicenses de São Paulo, o Império é a força histórica capaz de deter o
anticristo, o Kat-echon, e, neste contexto, o Império romano e sua continuidade

88
Vide item 2.7.1 desta tese.
89
Vide item 4.4.1 desta tese.
176

cristã perduram enquanto permanece esta ideia, conservando o eón90 frente ao


poder do mal. O Kat-echon é, portanto, o poder que pode adiar o fim da
história.
O fundamental do Império cristão não está no fato de
que seja um império eterno, e sim que tenha em conta o
seu próprio fim e o fim do eón presente e, no entanto,
seja capaz de possuir força histórica. O conceito decisivo
de sua continuidade, de grande poder histórico, é o de
Kat-echon (SCHMITT, 2005, p. 19, tradução nossa91).

Em Peterson, como consequência da não crença em Cristo, a


escatologia concreta foi eliminada, tornando o tempo histórico suspenso e
constituindo a fé no Deus único como a chave para a interpretação da história .
Portanto, para Agamben (2011), o que está em discussão entre estes
dois autores não é tanto a possibilidade ou não de uma teologia política, mas a
natureza e a própria identidade do Kat-echon.
Contudo, deve-se ressaltar que Peterson afirma de maneira explícita a
impossibilidade teórica de uma teologia política. Para o teólogo, a crença em
um dogma trinitário (Pai, Filho e Espírito Santo) é a decadência do monoteísmo
como um problema político, uma ruptura com a doutrina da monarquia divina,
de Deus como único rei no céu, e a liberação da fé cristã do Império romano. É,
em última instância, a ruptura com a teologia política, que só passa a poder
existir no judaísmo e no paganismo.
Agamben (2011) critica Peterson neste ponto afirmando que a teologia
trinitária por si não é suficiente para colocar fim a toda uma concepção
teológica da monarquia divina. Além disto, Peterson parece calar de maneira
proposital sobre a economia, discurso que está intimamente ligado ao da
monarquia nos autores que fundamentam o seu pensamento, como o teólogo
Eusébio e o jurista Gregório di Nazianzo. Aliás, tanto Peterson quanto Schmitt
tinham consciência desta “remoção” da economia da teologia, sendo que o
primeiro o fez de modo consciente, interrompendo as citações dos teólogos por
ele estudados justamente no momento em que aparecia o termo oikonomia em
suas obras (SACCO, 2005).

90
Vide item 2.8.1 desta tese.
91
Lo fundamental de este imperio cristiano es el hecho de que no sea un imperio eterno, sino
que tenga en cuenta su propio fin y el fin del eón presente, y a pesar de ello sea capaz de
poseer fuerza histórica. El concepto decisivo de su continuidad, de gran poder histórico, es el
de Kat-echon.
177

Em relação a Gregório de Nazianzo especificamente, Schmitt o


interpreta de maneira radicalmente diversa de Peterson; se neste último,
Nazianzo conferiu “a última profundidade teológica” ao Deus trino,
contrapondo-o à monarquia una, em Schmitt, ele introduziu uma estasiologia
na doutrina trinitária, utilizando por isto mesmo uma paradigma teológico-
político e não sua negação como quer Peterson.
Na interpretação de Agamben (2011), o que Nazianzo busca é conciliar
a metafísica da unidade divina, enquanto substância, com algo mais concreto,
que é a Trindade, as três hipóstases – Deus, Filho e Espírito Santo. Seu
objetivo, desta forma, é articular estes três elementos de maneira a não
introduzir em Deus uma stasis, uma cisão, uma guerra intestina, ou, na
concepção schmittiana, uma guerra civil.
De acordo com Vatter (2011), há dois sentidos possíveis para a teologia
política – uma que gira em torno do conceito de soberania e outro em torno da
destruição da soberania. Para Schmitt, o conceito de direito que se utiliza no
sistema jurídico moderno remonta aos séculos XII e XIII, com o direito
canônico, que é uma junção da tradição romana e da judaico-cristã. É um
direito que surge primeiro como canônico e depois é apropriado pelos príncipes
e soberanos que estabelecem o Estado contra a Igreja. A partir dos séculos
XVII e XVIII, o sistema de direito no Iluminismo e nas Revoluções Francesa e
Americana começa a tomar vida própria, se separando tanto da Igreja quanto
do Estado e se tornando autônomo.
É esta a narrativa por trás do conceito schmittiano da teologia política –
a que nasce do jurídico e se mantém no jurídico. Entretanto, em Peterson, a
origem da teologia política é outra, se localizando na teologia aristotélica. É,
deste modo, uma questão de teologia pagã, do monoteísmo pagão, como
também do monoteísmo judaico (Filón de Alexandria), terminando com o
discurso sobre a trindade. Neste sentido, é a teologia política, para Peterson,
uma espécie de “má teologia” (VATTER, 2011).
Em suma, para Agamben (2011), tanto Schmitt quanto Peterson buscam
fundamentar a política na fé cristã, mas enquanto o primeiro o faz por meio de
uma teologia política em sentido mundano, do Império cristão que age como
Kat-echon, o último o faz na liturgia, no culto glorioso dos anjos e dos santos,
na exclusão da ação terrena. O Kat-echon em Peterson não é, assim, uma
178

potência terrena, mas a recusa dos judeus em se converterem, a não crença


no Cristo. Neste sentido, a conversão judaica é a realização escatológica e,
portanto, a Igreja não pode ser indiferente ao extermínio dos judeus, o único
evento histórico importante teologicamente para Peterson, uma vez que a
eliminação ou sobrevivência deste povo está ligada, de maneira ambígua, à
própria existência da Igreja. E, para Agamben (2011), a única maneira de se
superar esta ambiguidade é resgatando a relação originária do Kat-echon com
a oikonomia divina e sua glória.
Oikonomia, no grego, significa a administração da casa e, na obra
aristotélica, está ligada à esfera da casa e da família, oikos, em contraposição
à esfera da polis. A administração da família, enquanto um complexo
heterogêneo de relações, é, em Aristóteles, um paradigma gerencial, que não
está ligado a um conjunto definido de normas, mas que se constitui em
decisões frente a problemas específicos no oikos. É, então, uma questão
funcional, de gestão e funcionamento da casa. Mesmo com a extensão do uso
deste termo para além do âmbito da casa, o mesmo não perdeu este conteúdo
doméstico.
Na época cristã, a oikonomia foi deslocada para a esfera teológica,
adquirindo o significado de um plano divino da salvação. Entretanto, um outro
sentido é encontrado na análise dos textos de São Paulo – a oikonomia como
um encargo, uma atividade, uma missão e não uma salvação em termos de
vontade divina. Paulo utiliza um vocabulário econômico e não político e é,
neste sentido, que se pode afirmar que os cristãos são “os primeiros homens
integralmente econômicos” (AGAMBEN, 2011, p.38), permitindo, por meio do
vocabulário paulino, uma articulação e uma conciliação provisória entre a
trindade e a unidade divina, que ocorre em termos econômicos e não
teológicos.
Em Paulo e sua “economia do mistério”, a economia é uma atividade
que tem por objetivo revelar o mistério da vontade e da palavra divina,
constituindo o plano divino de redenção. Contudo, esta expressão sofreu uma
inversão com Hipólito e Tertuliano, tornando-se o “mistério da economia”, ou
seja, a atividade agora é o próprio mistério, não sendo uma questão ontológica,
mas prática. Por conseguinte, não há mais uma economia do mistério, “uma
179

atividade voltada para cumprir e revelar o mistério divino, mas misteriosa é a


própria ‘pragmateia’, a própria práxis divina” (AGAMBEN, 2011, p. 53).
O conceito de oikonomia foi, posteriormente, vinculado ao tema da
providência, do significado oculto dos acontecimentos, principalmente por meio
da obra de Clemente de Alexandria. Nela, o termo se refere não à
administração da casa, mas das almas e de todo o universo; uma economia do
salvador, que se realizou com a paixão do filho e que mantém o significado de
atividade, uma vez que se refere ao salvador e não à salvação. O salvador e
sua profecia foram, em Clemente, um desígnio da providência.
Assim, segundo Agamben (2011), a teologia cristã não se constitui em
um relato sobre os deuses, mas em uma vinculação entre economia e
providência, entre “autorrevelação, governo e cuidado do mundo” (p.62). A
divindade se articula, desta maneira, em uma trindade, que é uma oikonomia,
uma administração, ao mesmo tempo, da vida divina e das criaturas.
É importante ainda analisar o significado de exceção presente na
oikonomia, a partir dos séculos VI e VII, em especial, a partir do direito
canônico da Igreja bizantina. Nele, o termo passa a significar a dispensa de se
aplicar os cânones de forma rígida, ou seja, é a exceção enquanto decisão de
não aplicar estritamente a lei, mas de fazer uso de uma economia, adaptando-
se a situações concretas. Aqui coincidem, então, na ideia de oikonomia, de
uma prática gerencial, o paradigma de governo e do estado de exceção.
Em suma, a oikonomia é um paradigma econômico-gerencial-
providencial, que permite manter um Deus transcendente, simultaneamente
uno, como substância, como ontologia e teologia, e trino, enquanto práxis e
governo do mundo, como economia, em uma cisão entre Deus e sua ação,
como forma de evitar o politeísmo. Não se trata, deste modo, de uma fratura
entre figuras divinas, mas entre ontologia e práxis, teologia e economia, entre
Deus e seu governo do mundo; o que é dividido não é a substância, o ser
divino, mas sua economia, sua atividade. E a ação divina e não a natureza de
Deus é agora o verdadeiro mistério, o “mistério da economia”. Esta fratura vai
ocorrer no final do mundo antigo e encontrar o seu lugar na teologia cristã
(AGAMBEN, 2011).
Assim, na teologia cristã, em especial em Santo Agostinho, ser e práxis
se articulam no primado da vontade divina, na livre ação de Deus. Mas, apesar
180

desta articulação, teologia e economia são dois discursos com racionalidade


diferentes e que não se confundem. Neles, Cristo se faz dois: homem,
enquanto economia da encarnação e da salvação, e divindade; a práxis divina
se realizando por meio de uma pessoa separada, o Logos ou Filho. E esta
práxis é anárquica, uma vez que não encontra fundamento no ser: o Filho não
tem arché, não tem princípio e nem se fundamenta no Pai, existindo de forma
absoluta e reinando, na forma da salvação, ao lado do Pai. E, sendo anárquica,
requer um governo, uma economia. Então, também a cristologia e a economia
são indissociáveis, e, portanto, as duas naturezas de Cristo coexistem, como a
racionalidade econômica e a teológica, a fim de evitar que venha a ser “negada
a economia do Filho nem se introduza em Deus uma cisão substancial”
(AGAMBEN, 2011, p. 78) .
Como consequência, a teologia cristã é, desde a sua origem, um
paradigma econômico e gerencial e não político-estatal, como afirma Schmitt.
Aqui, de maneira explícita, e em suas palavras, Agamben (2011) se coloca
“contra Schmitt” (p.80).
Desta forma, entre a teologia política e a biopolítica, Agamben propõe
uma teologia econômica, uma “teologia política de esquerda”, segundo Vatter
(2011), ou um “messianismo impolítico”, de acordo com Galindo (2009, 2011),
na qual o filósofo italiano radicaliza o messianismo judeu de Paulo em um
sentido antirrepublicano. O que ele pretende, então, em “O Reino e a Glória”, é
pensar uma relação entre a teologia política e a biopolítica, a vida nua que é
radicalmente mortal e a vida eterna que é radicalmente imortal. A relação
possível entre estas duas concepções está no conceito de genealogia, do
grego genos, espécie como animal; e é justamente por meio de uma
genealogia do governo dos homens que Agamben estabelece um diálogo entre
a teologia política schmittiana e a biopolítica foucaultiana, entre o reino e o
governo.
Schmitt (2006b), na “Teologia Política”, analisa o uso por parte de
Peterson, no seu tratado de 1935 sobre o monoteísmo político, da afirmação
segundo a qual o “rei reina, mas não governa”. Segundo Schmitt, esta foi a
maior contribuição que Peterson fez à teologia política, por ter sido capaz de
identificar a analogia entre o liberalismo, que distingue reino e governo, e a
teologia, que separa ontologia e práxis divina. Neste ponto, tanto Schmitt
181

quanto Peterson são contrários a esta fórmula liberal – o primeiro por ela ser
base da democracia liberal, que ele tanto critica92, e o último porque ela define
a teologia judaico-helenística que é o fundamento da teologia política que ele
nega.
Esta aversão de Schmitt pela separação entre reino e governo vai
aparecer inúmeras vezes em sua obra, e, em especial, em “Estado,
Movimento, Povo”93. Nela, Schmitt (2001) afirma que diante do soberano que
não governa, da República de Weimar, Hitler assume não só uma função de
governo, Regierung, mas uma nova figura do poder político, Führung, a
liderança. E é, neste sentido, que de acordo com Agamben (2011), o jurista
alemão vai realizar uma genealogia do governo dos homens, antecipando as
preocupações de Michel Foucault nos cursos do Collège de France.
Do mesmo modo que Foucault, Schmitt percebe o paradigma do
conceito moderno de governo no Pastorado da Igreja Católica – guiar não
significa apenas comandar, mas pastorear. A diferença entre o Führer e o
pastor estaria no fato de haver uma absoluta igualdade entre aquele e o seu
séquito, uma identidade étnica-racial, não havendo, deste modo, um caráter
transcendente em relação ao rebanho. É, portanto, a secularização do
paradigma pastoral-governamental pelo conceito de raça (SCHMITT, 2001) 94.
Conceito este que estará presente em “Em Defesa da Sociedade” de Foucault,
na qual ele afirma que o racismo se tornou o dispositivo por meio do qual o
poder soberano é reinserido no biopoder (AGAMBEN, 2011).
Em “Segurança, Território, População”, Foucault95 se dedica a realizar
uma genealogia da governamentalidade moderna, distinguindo três modos
históricos e coexistentes de poder: o Estado soberano territorial e normativo, o
sistema disciplinar e os contemporâneos dispositivos de segurança, do governo
dos homens. Estes três modos se relacionam e, em determinados momentos,
se sobrepõem uns aos outros. Assim, o declínio da função soberana é também
o nascimento da noção de população e a primazia dos dispositivos de
segurança, e esta nova governamentalidade é, em uma fórmula já utilizada por

92
Vide itens 2.4 e 2.7.3 deste trabalho, sobre a crítica schmittiana à democracia liberal.
93
Vide item 2.9 deste trabalho.
94
Para a utilização do conceito de raça e identidade étnica em Schmitt, vide itens 2.4 e 4.4.1.
95
Vide itens 3.2.2 e 3.2.3 deste trabalho.
182

Schmitt e Peterson, uma tecnologia, constituindo o governo, mais do que o


reino, o problema político moderno (AGAMBEN, 2011; FOUCAULT, 2008b).
Segundo Foucault (2008b), a origem das técnicas de governo estariam
no pastorado cristão, no governo das almas, ao mesmo tempo como indivíduo
e como um todo, culminando em um governo estatal simultaneamente
individualizante e totalizante. Além disto, esta técnica seria econômica, no
sentido de ser uma gestão ordenada a partir de um modelo familiar, de uma
oikonomia. Entretanto, Foucault parece ignorar as implicações teológicas deste
termo, que é precisamente o núcleo de o “Reino e a Glória” de Agamben -
analisar a presença da teologia na economia, ou seja, o fundamento teológico-
econômico da providência, do governo do mundo.
Se em Foucault o rompimento da continuidade entre soberania e
governo se dá no momento em que, no século XVI, novos paradigmas vêm
demonstrar que Deus não governa o mundo de modo pastoral, mas reina
segundo princípios imutáveis e universais, em Agamben, a cisão entre Reino e
Governo se dá por meio da fratura entre ser e práxis na criatura divina, na
oikonomia trinitária (AGAMBEN, 2011).
Agamben critica Foucault justamente por não fazer nenhuma menção à
providência, no momento em que busca explicar a passagem do pastorado
eclesiástico para o governo político por meio de contra condutas, de resistência
ao pastorado. Na interpretação agambeana, esta passagem pode ser mais
bem compreendida se vista como uma secularização da ordinatio e da
executio. Logo, “o governo se apresenta como a atividade que só pode ser
pensada se ontologia e práxis estiverem ‘economicamente’ divididas e
coordenadas entre si” (AGAMBEN, 2011, p. 129).
E é na doutrina da providência que o Deus como essência vai ceder
lugar ao Deus da ação, a um governo divino do mundo - um governo que só é
possível se Reino e Governo forem vistos não como uma oposição, mas como
parte de uma “máquina bipolar”, resultante da articulação entre providência
geral (princípios gerais ou universais providos por Deus) e providência especial
(providência divina nos detalhes), providência e livre-arbítrio humano. É a
máquina providencial, que encontra a solução da articulação da providência
geral e da especial na fórmula “Deus reina, mas não governa”.
183

Assim, o governo divino do mundo ocorre por meio da economia


imanente das coisas, pelo efeito colateral calculado, de modo que se pode
afirmar que a racionalidade governamental moderna
reproduz exatamente a dupla estrutura da providência.
Cada ato de governo tende a um objetivo primário, mas,
justamente, por isso, pode implicar efeitos colaterais
(collateral damages), previstos ou imprevistos nos
detalhes, mas de todo modo óbvios. O cálculo dos
efeitos colaterais, que até podem ser consideráveis (no
caso de uma guerra, implicam a morte de seres
humanos e a destruição de cidades), é, nesse sentido,
parte integrante da lógica do governo (AGAMBEN, 2011,
p. 135).

Portanto, o caráter duplo do governo está na articulação entre um


princípio transcendente e uma oikonomia imanente, entre a providência e o que
os antigos denominavam de destino. Nesta leitura, a providência soberana é a
razão divina, cuja decisão estabelece os princípios gerais que criam a ordem, é
o Reino, enquanto o Governo é o destino, a administração e execução, é o que
coloca as coisas em movimento no tempo e no espaço.
Providência e destino são, deste modo, duas faces de uma única ação
divina – o Reino funda o Governo e este torna eficaz a ordem estabelecida por
aquele. E o Estado moderno herda esta duplicidade por meio da distinção entre
poder Executivo ou de governo e poder Legislativo ou soberano. Governar é,
então, no paradigma econômico-governamental, deixar que se produzam os
efeitos particulares de uma economia geral. E é, neste sentido, que Agamben
(2011) vai afirmar, no que parece ser uma crítica a Schmitt, que este paradigma
é o paradigma do governo democrático, a herança teológica das teologias
modernas, enquanto o “teológico-político é o paradigma do absolutismo”
(p.159).
Em um outro texto, um breve tratado sobre os anjos, também de 1935,
Peterson realiza um estudo sobre o caráter político e público da cidade celeste
e da Igreja. Nesta obra, o teólogo defende que os cultos da Igreja são um meio
de se entrar em contato com os habitantes da cidade celeste, os anjos, e este
caráter cultual tem uma relação originária com o mundo político - é o conceito
de ordem e da hierarquia celeste. Assim, ao mesmo tempo em que nega a
possibilidade de uma teologia política, Peterson afirma o caráter político-
religioso da Igreja (AGAMBEN, 2011).
184

Os anjos são, desta forma, os “fiadores” da relação originária entre a


esfera política e a Igreja, do caráter público do culto. Segundo Agamben (2011),
a introdução da noção de hierarquia na angeologia é uma obra apócrifa, que
apresenta primeiro uma hierarquia celeste e depois uma eclesiástica, em uma
clara estratégia de hierarquizar os anjos e angelizar a ekklèsia. É a
transformação do mysterium em ministerium e do ministerium em mysterium.
Este paralelismo entre uma burocracia celeste e uma terrena é uma
estratégia governamental, uma vez que a hierarquia é o que efetua a salvação
e a deificação. É uma atividade de governo e sua origem está na Trindade,
motivo pelo qual tanto a hierarquia celeste quanto a terrena são triádicas; uma
thearchia que é o governo hierárquico do mundo. Assim, a oikonomia
providencial é aqui traduzida, hierarquicamente, em um poder sagrado, que
perpassa tanto o mundo divino quanto o humano.
Neste momento, a angeologia coincide com uma teoria do poder, na qual
o anjo é a figura do governo do mundo, que se divide em assistentes e
administradores, cantores da glória (hinos de louvor, de modo que a hierarquia
é também hinologia) e ministros do governo (AGAMBEN, 2011).
Em um tratado anterior, de 1926, Peterson, ainda não convertido ao
catolicismo, fez o que Agamben (2011) denominou de arqueologia da glória,
essencial para se entender a tensão entre glória e gubernatio, Reino e
Governo. Neste tratado, o teólogo explicita as relações entre cerimonial político
e liturgia eclesiástica por meio do exame da aclamação. O seu objetivo é,
portanto, o de entender o significado das aclamações e sua relação com a
liturgia cristã.
A aclamação, de acordo com Peterson, é uma exclamação de aplauso,
triunfo, louvor ou desaprovação, que era gritada pela multidão em
determinados momentos. Em algumas situações, a aclamação poderia adquirir
um significado jurídico, como no direito público romano, explicitando um nexo
essencial entre direito e liturgia.
Em um artigo de 1927, Schmitt96 se refere ao livro de Peterson, sobre o
significado político das aclamações. Neste artigo, o jurista alemão faz uma
defesa da aclamação, da expressão imediata do povo reunido, típica das

96
Para a análise da função da aclamação na teoria schmittiana, vide item 2.4 deste trabalho.
185

democracias diretas, em contraposição ao voto secreto individual das


democracias representativas, que retira do soberano o seu poder constituinte.
O que Schmitt faz é uma vinculação constitutiva entre povo e aclamação,
afirmando que não há Estado sem povo e nem povo sem aclamação. Segundo
Agamben (2011), a estratégia schmittiana é a de transpor para a esfera profana
a teoria de Peterson, contra a democracia liberal de Weimar. Em Schmitt, a
aclamação nas democracias contemporâneas sobrevive apenas na esfera da
opinião pública, que se tornou a forma moderna de aclamação.
A partir desta tese schmittiana, Agamben vai afirmar que a esfera da
glória não desaparece das democracias modernas, mas é deslocada para a
esfera da opinião pública, para o que Debord (2005) denominou de sociedade
do espetáculo ou democracia consensual. Assim, “A democracia
contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na
eficácia da aclamação multiplicada e disseminada pela mídia além do que se
possa imaginar” (AGAMBEN, 2011, p. 278). Uma democracia gloriosa. É, neste
sentido, sintomático que o termo grego doxa, glória, seja hoje utilizado também
para designar a opinião pública.
Deste modo, se a tese de Peterson sobre o efeito jurídico da aclamação
é correta, a glória-aclamação é, então, o fundamento jurídico do caráter
litúrgico, ou seja, público e político das celebrações cristãs em contraposição à
devoção privada – o espetáculo. Este caráter estaria ainda presente no uso de
símbolos e insígnias pelo poder, como coroas, roupas específicas e mesmo os
feixes do fascismo, e no cerimonial dos ritos e dos gestos. Na interpretação
agambeana, estes símbolos e o cerimonial não são uma demonstração ou
representação do poder, mas elementos que o constituem.
Na glória, portanto, coincidem o poder espiritual e o profano, a teologia e
a política. Em uma crítica a Schmitt, Agamben afirma que não se trata de dois
princípios claramente distinguíveis, mas de uma zona de indistinção, que na
teologia econômica se reencontram. “Nesse sentido, a teologia da glória
constitui o ponto de contato secreto pelo qual teologia e politica
incessantemente se comunicam e trocam seus papéis entre si” (AGAMBEN,
2011, p.214). Para o autor, a partir de seu uso do método foucaultiano, a glória
e seus símbolos e insígnias são uma assinatura, que marca politicamente e
teologicamente os corpos e substâncias, os deslocando de acordo com uma
186

oikonomia.
A glória, no sentido bíblico originário, kabod, continha uma ideia de
soberania e de senhorio de Deus, se referindo à aparição de YHWH97, com o
Reino e o Juízo Final. No judaísmo, a glória de Deus significa tanto sua
essência quanto sua glorificação; é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo,
glória e glorificação, realidade divina e práxis humana.
Já no Novo Testamento, kabod é traduzido pelo termo grego doxa, ou
glória, mas assume a forma de uma economia trinitária, estabelecendo, assim,
uma relação essencial entre doxa e oikonomia. É agora a glorificação recíproca
entre o Pai e o Filho (e, no sentido mais geral, também o Espírito Santo),
constituindo uma economia da glória, presente no Evangelho de São João.
Segundo o apóstolo, ao Filho coube uma economia da salvação, que é tanto a
obra de Cristo como também uma glorificação do Filho pelo Pai, em uma
circularidade. Se em João, a ênfase está na glorificação recíproca, na
economia trinitária, em Paulo, na Segunda Epístola da Carta aos Coríntios,
está na redenção messiânica, na irradiação da glória do Pai sobre o Filho e
todos os membros da comunidade messiânica.
Em suma, para Agamben (2011), há apenas uma economia, a economia
da glória na qual se conciliam a trindade econômica, de práxis salvífica, e a
trindade imanente, de substância divina, do ser; na qual teologia e economia se
encontram e o Reino e a Glória parecem coincidir.
Entretanto, há na glória uma dissimetria fundamental – apenas a práxis
pode ser completada, tendo um fim após o Juízo Final. Após o fim dos tempos,
a hierarquia e os ministérios angélicos são desativados; não há governo no
paraíso, apenas glória, uma vez que a trindade imanente é eterna, o ser que
sobrevive a sua economia. É a própria inoperosidade da vida humana como
essência, representada pelo sabatismo judaico.
Deste modo, em última instância, a doxologia se refere ao ser de Deus e
não a sua economia. Mas se o Reino é o que sobra quando se retira o Governo
e este é o que resta na autodestruição do Reino, então, Reino e Glória se
glorificam e se produzem mutuamente. São os dois polos da máquina
governamental.

97
Deus no hebraico antigo. Esta escrita não utilizava vogais.
187

98
Mas porque, se pergunta Agamben (2011), o poder precisa da
inoperosidade e da glória? Para a teologia, a resposta está na vida eterna, que
tem um sentido não apenas temporal, mas significa uma qualidade essencial
da vida, a transformação que a mesma sofre no mundo por vir. Em Paulo, é a
condição escatológica dos justos, a vida no tempo messiânico, no qual todas
as condições jurídicas e comportamentos sociais são desativados, ou seja, o
momento no qual nossa vida é tornada inoperosa.
A vida messiânica é a impossibilidade da vida coincidir
com uma forma predeterminada, a revogação de todo
bios para abri-lo para a zoé tou Iesou. E a inoperosidade
que aqui acontece não é a simples inércia ou repouso,
mas é, ao contrário, a operação messiânica por
excelência (AGAMBEN, 2011, p. 271).

A vida eterna é, deste modo, a vida contemplativa, a inoperosidade


interna de Espinoza, que vive em sua “vivibilidade”, enquanto a vida que
vivemos é apenas a vida através da qual vivemos. A vida eterna liberta o
homem e o devolve a uma vida política.
No final do “Homo Sacer”, Agamben propõe o pensar para além da
economia e da glória, realizando uma desarticulação inoperosa tanto do bios
quanto da zoé. No entanto, como ele mesmo afirma, em “O Reino e a Glória”,
esta é uma tarefa para uma investigação futura.

4.3- Estado de exceção: o poder soberano

Segundo Agamben (2004a), estado de exceção apresenta não só uma


dificuldade conceitual (as fronteiras do fato e do direito; do jurídico e do
político), mas também uma dificuldade terminológica. É a doutrina alemã, em
geral, que adota a expressão ‘estado de exceção’. A francesa e a italiana
preferem decreto de urgência e estado de sítio (político ou fictício) e a anglo-
saxônica, lei marcial e poderes de emergência.
A escolha da terminologia implica, de acordo com Agamben (2004a),
uma tomada de posição quanto à natureza do fenômeno que se propõe estudar
e quanto à lógica mais adequada à compreensão do mesmo. Portanto, a
escolha da terminologia não é algo neutro, mas “o momento propriamente
98
O messianismo em Agamben, a partir da leitura de Benjamin, será desenvolvido no item 4.6
desta tese.
188

poético do pensamento” (p.15). Neste sentido, Agamben adota o sintagma


estado de exceção como o termo técnico para “o conjunto coerente dos
fenômenos jurídicos que se propõe a definir” (p.15).
Segundo Arantes (2007), independente da denominação,
estado de sítio, estado de exceção, estado de
emergência ou urgência, plenos poderes, lei marcial e
etc.-, representa o regime jurídico excepcional a que uma
comunidade política é temporariamente submetida, por
motivo de ameaça à ordem pública, e durante o qual se
conferem poderes extraordinários às autoridades
governamentais, ao mesmo tempo em que se restringem
ou suspendem as liberdades públicas e certas garantias
constitucionais (p.154).

Na perspectiva schmittiana, como anteriormente analisada, o estado de


exceção não é um direito específico ou especial, mas a suspensão da ordem
jurídica por uma decisão soberana99. Uma medida excepcional, que embora
não seja prevista pelo direito, não está excluída do ordenamento jurídico. No
entanto, apesar desta posição de Schmitt, da impossibilidade de previsão pelo
direito, há Estados que regulamentam o instituto por meio da Constituição ou
de leis. Neste grupo se encontram a França e a Alemanha. Entre os que não
regulamentam o estado de exceção de maneira explícita estão Itália, Suíça,
Inglaterra e Estados Unidos.
Neste sentido, Agamben (2004a) afirma que o estado de exceção não é
“um direito especial (como o direito de guerra), mas, enquanto suspensão da
própria ordem jurídica, define seu patamar ou conceito-limite” (p.15). É um
vazio jurídico e não uma ditadura; um vazio de direito que parece essencial à
própria ordem jurídica e na qual o direito, para funcionar, deve se relacionar
com a anomia (AGAMBEN, 2002a).
É, deste modo, uma força de lei sem lei, o elemento místico da exceção
schmittiana, uma ficção, pela qual o direito tenta anexar a anomia. Como termo
técnico do direito, a força de lei significa a separação entre a eficácia da lei e
sua essência formal, se referindo aos decretos e medidas que não são
formalmente lei, mas têm a sua força. Assim, o estado de exceção é o regime
da lei no qual a norma vale mas não se aplica e atos sem valor de lei adquirem
sua força. Um regime no qual Executivo e Legislativo se confundem em um

99
Vide item 2.5 deste trabalho.
189

espaço de anomia (AGAMBEN, 2002a).


Segundo Agamben (2002a, 2004a), foi justamente Schmitt 100 quem
realizou a tentativa mais rigorosa de construção de uma teoria do estado de
exceção, principalmente nas obras do início dos anos 20 “A Ditadura” e
“Teologia Política”, que descrevem um paradigma que não só “permaneceu
atual, como atingiu, hoje, seu pleno desenvolvimento” (p.54).
Na “Ditadura”, Schmitt apresenta o estado de exceção através da figura
da ditadura, que embora compreenda o estado de sítio, é essencialmente
estado de exceção enquanto se apresenta como uma suspensão do direito. Na
ditadura, em cujo contexto se insere a exceção, se distinguem a ditadura
comissária, que tem por objetivo defender ou restaurar a constituição vigente,
na qual a lei não se aplica, mas permanece em vigor; e a constituição
soberana, na qual se alcança a “massa crítica” da exceção, representando um
estado em que a lei se aplica, mas não está formalmente em vigor (AGAMBEN,
2004a).
Há, aqui, de acordo com Agamben (2004a), uma confusão de conceitos
entre estado de exceção e ditadura, que impediu que Schmitt fosse capaz de
resolver as aporias do primeiro. Um erro “interessado”, uma vez que era mais
fácil justificar juridicamente a exceção inscrevendo-a na respeitada tradição da
ditadura romana que a restituindo a seu obscuro paradigma genealógico no
direito romano – o iustitium. Este era a suspensão do direito, um verdadeiro
vazio jurídico, decorrente da emissão pelo Senado romano de um senatus
consultum ultimum, que declarava o tumultus, ou seja, uma situação de
emergência, como uma guerra externa ou civil, que colocava em risco a
República romana. Através deste decreto, o Senado convocava os cônsules, os
pretores e tribunos da plebe em alguns casos, e, no limite, cada cidadão a
tomar qualquer medida que fosse necessária para salvar o Estado.
Já na “Teologia”, Schmitt substitui os termos ditadura e estado de sítio
por estado de exceção, deslocando a ênfase, pelo menos aparentemente, da
definição de exceção para a de soberania. Deste modo, para Agamben
(2004a), a estratégia schmittiana se dá em dois tempos. Nas duas obras
citadas, o objetivo de sua teoria é inscrever o estado de exceção em um

100
Vide o capítulo 2 deste trabalho, sobre o pensamento de Carl Schmitt, e, em especial, os itens 2.5 e
2.6.
190

contexto jurídico, em uma articulação entre estado de exceção e ordem


jurídica. E esta é paradoxal, na medida em que se trata de inscrever no direito
algo que é exterior a ele.
Na “Ditadura”, o operador desta inscrição é a distinção entre normas do
direito e normas de realização do direito na ditadura comissária e, na soberana,
a distinção entre poder constituinte e poder constituído. Na “Teologia”, o
operador é a distinção entre dois elementos fundamentais do direito: Norma
(Norm) e Decisão (Entscheidung). Assim, ao suspender a norma, o estado de
exceção mostra seu elemento formal puramente jurídico: a decisão. E é por
isto, de acordo com Agamben (2004a), que a teoria do estado de exceção pode
ser apresentada como uma teoria da soberania – soberano, que é quem decide
sobre o estado de exceção, o faz baseado na ordem jurídica embora a decisão
diga respeito à anulação da norma. A definição da soberania schmittiana,
portanto, se encontra no limite do direito e da política, entre o direito público e o
fato político, entre o direito e a vida (AGAMBEN, 2002a).
Mas ao afirmar que a soberania se apresenta sob a forma de uma
decisão sobre a exceção, Schmitt não se refere à expressão da vontade de um
sujeito hierarquicamente superior a qualquer outro, mas sim à inscrição no
corpo do nomos da exterioridade que o anima e lhe dá significado. Não é uma
decisão nem de direito nem de fato, mas sobre a relação entre direito e fato
(AGAMBEN, 2007).
Neste sentido, é que se pode afirmar que o estado de exceção é a
inclusão e captura daquilo que não está nem fora nem dentro,
Estar-fora e, ao mesmo tempo, pertencer: tal é a
estrutura topológica do estado de exceção, e apenas
porque o soberano que decide sobre a exceção é, na
realidade, logicamente definido por ela em seu ser, é que
ele pode também ser definido pelo oxímoro êxtase-
pertencimento (AGAMBEN, 2004a, p. 57).

A doutrina schmittiana do estado de exceção é, pois, marcada por


divisões no direito, como norma e decisão, norma e aplicação da norma, mas
que em sua articulação e oposição permitem que o mesmo funcione. Desta
maneira, o estado de exceção pode ser definido como o lugar em que “a
oposição entre a norma e sua realização atinge a máxima intensidade”, um
campo em que “o mínimo de vigência formal coincide com o máximo de
191

aplicação real e vice-versa” (AGAMBEN, 2004a, p.58).


O estado de exceção é, deste modo, uma zona de anomia, onde o que
está em jogo, de acordo com Agamben (2004a, 2007), é uma força de lei sem
lei, em uma radical separação entre potência e ato, entre a norma e sua
aplicação. Na perspectiva schmittiana, a aplicação da norma não está contida
na mesma e nem pode dela ser deduzida, produzindo um paradoxo – para
aplicar uma norma é preciso, em última instância, suspender sua aplicação,
produzindo uma exceção; a norma se aplica, desta forma, se desaplicando.
Ela é aquilo que não pode ser incluído no todo ao qual
pertence e não pode pertencer ao conjunto no qual está
desde sempre incluído. O que emerge nesta figura-limite
é a crise radical de toda possibilidade de distinguir com
clareza entre pertencimento e inclusão, entre o que está
fora e o que está dentro, entre exceção e norma
(AGAMBEN, 2007, p. 32).

Entretanto, para Agamben (2004a), o estado de exceção não pode ser


definido, como em Schmitt, como uma ditadura, seja comissária ou soberana,
mas como um vazio de direito. A partir do seu estudo sobre o iustitium romano,
Agamben (2004a) critica Schmitt, considerando “falaciosa” qualquer teoria que
tenta inscrever o estado de exceção, ainda que indiretamente, em um contexto
jurídico, baseando-se na divisão entre norma e decisão, norma e aplicação da
norma, poder constituinte e poder constituído. Para ele, o estado de exceção é
um estado sem direito, de anomia, no qual a suspensão da lei libera um
elemento místico, que é a força da lei sem lei – um imperium flutuante, que
pode ser apropriado tanto pelo poder quanto por seus adversários.
Em suma, para Agamben (2007), a soberania, e sua estrutura da
exceção, não é um conceito nem exclusivamente político nem jurídico; nem
uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma fundamental do
ordenamento jurídico (Kelsen): “ela é a estrutura originária na qual o direito se
refere à vida e a inclui em si através da própria suspensão” (AGAMBEN, 2007,
p. 35).
Utilizando um termo de Jean-Luc Nancy (1983)101, Agamben (2007) vai

101
O termo ban foi utilizado por Jean Luc Nancy e, posteriormente, reformatado por Agamben
em “Homo Sacer”. Segundo Nancy (1983), ban é a ordem, a prescrição, o decreto, a
permissão, e o poder que detém a livre disposição. “Abandonner” (à bandon, ou seja, ban) é
ceder, se entregar a tal poder soberano e também a sua exclusão. Aquele que é banni,
excluído, o é em relação à lei; é colocado à margem de sua jurisdição. A lei da exclusão exige
192

dizer que a relação de exceção é uma relação de bando, ou seja, de


banimento, de exclusão, tanto da comunidade quanto do comando do
soberano. Aquele que foi banido não foi apenas colocado fora da lei, mas foi
abandonado por ela, em um limiar entre a vida e o direito, não permitindo que
se saiba se ele está dentro ou fora do ordenamento jurídico. Neste sentido, a
relação originária da vida com a lei não é a da aplicação, mas a do abandono.
A soberania, deste modo, é a lei além da lei, e o ser é o ente abandonado a e
por uma lei.
Em uma analogia com a teologia, Agamben (1999) afirma que “o castigo
mais severo em que pode incorrer uma criatura, aquele contra o qual não há
mais mesmo nada a fazer, não é a cólera de Deus, mas o seu esquecimento”
(p.69). Se na teologia o maior castigo é o abandono divino, na soberania, é o
abandono da lei.
Entretanto, há uma diferença entre Agamben e Nancy - o fato de que o
primeiro acredita que o estado de abandono pode ser superado levando esta
experiência ao limite extremo, além da lei que está em vigor sem conteúdo,
sem significado, além da condição contemporânea do niilismo. Já em Nancy, o
abandono é a única lei, é o estar sem recurso e sem retorno (MILLS, 2004).
Segundo Mills (2004), neste ponto, é preciso distinguir entre dois tipos
de niilismo: o primeiro é o niilismo imperfeito de Nancy, o que anula a lei, mas
mantém o nada, o vazio da lei, em um estado indefinido e perpétuo de
validade; e o segundo, que vai influenciar Agamben, é o niilismo perfeito de
Benjamin, aquele que supera o nada e não permite a sobrevivência da validade
além do significado – estado real de exceção. Neste último, a redenção está na
superação do nada, que caracteriza o estado de exceção virtual da política
ocidental. Contudo, a superação da lei não implica aqui na criação de uma
nova lei ou na recuperação de uma lei antiga, o que significaria repetir a aporia
da política do abandono, mas na defesa de uma nova política, de uma política
vindoura.
Há, ainda, uma última dificuldade para a definição do estado de
exceção, segundo Agamben (2002a) – a relação que este mantém com a

que a lei se aplique se retirando; ela é a lei que faz a lei, uma ordem absoluta e solene que não
prescreve outra coisa que não a exclusão. Agamben desenvolveu este conceito mais como
uma questão de soberania e menos como uma questão de normalização ou exclusão. Para
Mills (2004), Nancy retirou este termo da obra de Martin Heidegger.
193

guerra civil, a insurreição e o direito de resistência. A guerra civil102, como o


contrário do estado normal, tende a se confundir com a situação de exceção.
Neste sentido, o século XX pode ser lido como um fenômeno paradoxal, o de
uma guerra civil legal. No caso específico da Alemanha nazista foi uma
exceção de 12 anos, na qual Hitler não era tecnicamente um ditador. Assim, o
totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, por meio da
exceção, de uma guerra civil legal que permite eliminar os adversários
políticos, como também categorias inteiras da população que não podem ser
integradas ao sistema político. E, desde então, esta prática se tornou essencial
nos Estados contemporâneos, inclusive nas democracias liberais.

4.3.1- Histórico do estado de exceção

Segundo Agamben (2004a), o conceito moderno de estado de exceção


surgiu na França a partir do instituto do estado de sítio. Este foi previsto pela
primeira vez pelo decreto de 08 de julho de 1791 da Assembleia Constituinte
francesa, ligado à situação de guerra – estado de sítio efetivo ou militar, que
previa a suspensão da constituição, sendo a cidade ou região em conflito
declarada hors la constituition. Com o tempo, o instituto se emancipou de suas
origens na guerra e se tornou uma medida extraordinária de polícia para casos
de desordens internas – estado de sítio fictício ou político. Napoleão também
se outorgou o direito de decretar o estado de sítio por meio do decreto de 24 de
dezembro de 1811. É importante salientar, nesta análise, que este instituto é
“uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição
absolutista” (AGAMBEN, 2004a, p.17).
Na França, o estado de sítio foi regulamentado pela Constituição de
1848, que previa as ocasiões, as formas e os efeitos do instituto. No início, o
mesmo só poderia ser decretado pelo Parlamento ou pelo chefe de Estado, de
maneira supletiva; mas com a ascensão de Napoleão III, a exclusividade
passou a ser do chefe de Estado, pela Constituição de 1852. Em 1878, o
Parlamento volta a ter o direito de decretá-lo, embora sem exclusividade.
Durante a Primeira Guerra Mundial, entre 02 de agosto de 1914 e 12 de

102
Vide o capítulo 2 desta tese, sobre Carl Schmitt e, em especial, os itens 2.7 e 2.8.
194

outubro de 1919, os franceses viveram em estado de exceção. Prática esta


adotada por inúmeras outras democracias europeias.
No que se refere à Primeira Guerra, este período teria sido um
verdadeiro laboratório para experimentação e aperfeiçoamento dos
mecanismos e dispositivos funcionais do estado de exceção enquanto
paradigma de governo. A progressiva expansão dos poderes do Executivo
durante as duas grandes guerras e a abolição provisória da distinção entre
poder Legislativo, Executivo e Judiciário, uma das características essenciais do
estado de exceção, passaram a ser uma técnica de governo e não mais uma
medida excepcional. É um período em que a legislação excepcional por meio
de decretos governamentais se tornou uma prática usual nas democracias
europeias (AGAMBEN, 2004a)103.
No período entre guerras, na França, a emergência militar deu lugar à
emergência econômica, com o Executivo requerendo plenos poderes em
matéria financeira; medidas estas que nos anos seguintes foram utilizadas
tanto pela direita quanto pela esquerda.
O estado de exceção viria a ser novamente instaurado na França
durante a Segunda Guerra Mundial. A atual Constituição francesa prevê o
instituto em seu art. 16, sendo que a última vez que este foi invocado foi em
abril de 1961, por De Gaulle, durante a crise argelina (AGAMBEN, 2004a).
Na Alemanha, o estado de exceção deve ser compreendido a partir do
104
art. 48 da Constituição de Weimar, analisado por Schmitt , que foi
extremamente utilizado entre os anos de 1919 e 1933 e é essencial para se
compreender a ascensão de Hitler ao poder.
Este artigo se seguiu à lei prussiana sobre o estado de sítio de 1851 e
ao art. 68 da Constituição bismarckiana, conferindo poderes excepcionais
extremamente amplos ao presidente do Reich, que poderia suspender de
maneira total ou parcial os direitos fundamentais caso a segurança e a ordem
pública estivessem ameaçadas. Este poder presidencial seria regulamentado
por uma lei específica, algo que nunca ocorreu. O uso continuado deste artigo

103
É importante salientar que, para Agamben (2004a), a ampliação dos poderes
governamentais e, em especial, a atribuição ao Executivo do poder de promulgar decretos com
força de lei, o chamado ‘plenos poderes’, é apenas uma das possíveis possibilidades de ação
do Executivo durante o estado de exceção, mas não se confunde com ele.
104
Vide itens 2.4 e 2.5 deste trabalho.
195

criou uma verdadeira ditadura presidencial, com a suspensão (e posterior


dissolução em 4 de junho de 1932) do funcionamento do Parlamento, o que
permitiu a ascensão de Hitler. Em 20 de julho de 1932, foi decretado o estado
de exceção na Alemanha, a que Schmitt denominou de ditadura
constitucional105, e esta ‘democracia protegida’ funcionou como uma fase de
transição para o totalitarismo (AGAMBEN, 2004a).
A atual constituição alemã não menciona a expressão estado de
exceção, mas, em 1968, foi votada uma lei de integração da constituição que
reintroduz o estado de exceção como estado de necessidade interna, para a
defesa da constituição liberal-democrata. Assim, a democracia protegida se
tornou a regra.
Na Suíça, a Assembleia Federal conferiu, em 1914, ao Executivo, o
Conselho Federal, um poder ilimitado não só para garantir a segurança e a
integridade da nação, mas também a sua neutralidade. É importante salientar
que este ato foi objeto de inúmeras ações de inconstitucionalidade
apresentadas por cidadãos suíços perante o Tribunal Federal. Os juristas da
época tentaram legitimar o ato a partir da própria Constituição ou por meio de
outros dispositivos legais e jurídicos.
Na Itália, a especificidade do estado de exceção está na utilização dos
decretos governamentais de urgência, os decretos-lei. Embora o estatuto
albertino não tivesse uma previsão explícita do instituto, este foi amplamente
utilizado pelos governos de Palermo, Sicília, Nápoles e Lunigiana na segunda
metade do século XIX. No início do século XX, o estado de sítio foi decretado
em virtude do terremoto de Messina e Reggio Calábria. Em 1926, o governo
fascista regulamentou os decretos-lei, de maneira expressa, por meio de uma
lei, permitindo seu uso, inclusive, para o estado de sítio.
O uso deste dispositivo foi tão abusivo que o próprio regime fascista
sentiu necessidade de limitá-lo em 1939. De acordo com o art. 77 da
Constituição Republicana, em casos de urgência e necessidade, o governo
pode adotar medidas provisórias com força de lei, que devem ser apresentadas
no mesmo dia às Câmaras, sob pena de perder sua eficácia se não
transformadas em lei no prazo de 60 dias. Atualmente, o governar por meio de

105
Para o conceito de ditadura em Schmitt, vide item 2.6.
196

decretos-lei continua a ser a regra na Itália, o que significa que, em parte, o


Executivo absorveu o poder Legislativo, que passou a ter o papel de ratificar os
referidos decretos (AGAMBEN, 2004a).
Na Inglaterra, o único instituto similar ao estado de sítio francês é a lei
marcial, originalmente utilizada apenas em períodos de guerra. Na Primeira
Guerra Mundial, os dispositivos de exceção se generalizaram. Após o início da
guerra, o governo requisitou a aprovação da várias medidas de emergência,
entre elas a Defence of Realm Act (D0RA), de 04 de agosto de 1914, que
conferia ao Executivo amplos poderes bem como restringia direitos
fundamentais dos cidadãos. Em 1920, é aprovado o Emmergency Power Acts,
que introduzia o estado de exceção no direito inglês, por meio de tribunais
especiais para os transgressores da lei, em um período de greves e de tensões
sociais, estendendo o dispositivo da exceção para além da guerra (AGAMBEN,
2004a).
Nos Estados Unidos, a história do estado de exceção está diretamente
ligada ao conflito entre os poderes do Presidente e do Congresso. O art. 1.o.
da Constituição, que limita o direito de habeas corpus em razão da segurança
pública, não nomeia a autoridade competente para decretar a suspensão do
mesmo, embora a opinião dominante seja que o artigo se dirige ao Congresso.
O conflito se apresenta também no art. 2.o., que dá ao Congresso o poder de
declarar a guerra e recrutar e manter as forças armadas e, ao mesmo tempo,
nomeia o presidente comandante-em-chefe das forças armadas106.
Este último artigo foi ignorado por Lincoln quando, em 15 de abril de
1861, durante a guerra civil americana, ele decretou o recrutamento de homens
para o exército, agindo como ditador pelas 10 semanas subsequentes. Em 04
de julho do mesmo ano, o presidente justificou, em um discurso, a violação da
constituição em caso de necessidade. Os atos inconstitucionais do governo
acabaram ratificados pelo Congresso. Em 22 de setembro de 1862, o
presidente declarou a libertação dos escravos e a extensão do estado de
exceção a todo território americano, se tornando a fonte da decisão soberana

106
George W. Bush comumente referia a si mesmo como comandante-em-chefe. O atual
presidente norte-americano, Barack Obama, adota o mesmo discurso – “Mas talvez o problema
mais profundo que cerca a entrega deste prêmio a mim seja o fato de que sou comandante-
em-chefe de um país que se encontra no meio de duas guerras (...)”. Obama, em 10 de
dezembro de 2009, durante o recebimento do Prêmio Nobel da Paz. Disponível em
www.ipoom.com.br.
197

sobre a exceção (AGAMBEN, 2004a).


Durante a Primeira Guerra, o presidente Woodrow Wilson concentrou
poderes em sua pessoa, mas, ao invés da exceção declarada, preferiu a
aprovação de leis excepcionais pelo Congresso que lhe delegassem poderes,
como a série de Acts entre 1917 e 1918.
O fundamento da concentração de poderes no Executivo estava na
situação de guerra e o mesmo argumento foi utilizado por Franklin Roosevelt
para assegurar poderes extraordinários em 1933, o que inclusive viabilizou o
New Deal, ao comparar o enfrentamento da grande depressão a uma
campanha militar. Com o início da Segunda Guerra, os poderes do presidente
americano foram estendidos com a declaração, em 08 de setembro de 1939,
de uma situação de emergência limitada, que se tornou ilimitada em 27 de
maio de 1941. Em 1942, a exceção permitiu, em 19 de fevereiro, a deportação
de 70 mil cidadãos norte-americanos de origem japonesa que residiam na
costa ocidental, a “violação mais espetacular dos direitos civis”, de acordo com
Agamben (2004a, p. 38).
Segundo Arantes (2007), a origem do estado de exceção nos EUA
estaria no constitucionalismo liberal americano, que criou um Executivo forte,
dotado de amplos poderes mesmo nos períodos de normalidade. Esta
característica permitiria ao presidente se tornar uma espécie de ditador
romano, mesmo na ausência de rupturas e abalos institucionais, “chamado a
gerir crises com poderes, a rigor, absolutos” (p. 157). Neste sentido, “Tudo se
passaria como se, desde a origem, a Constituição norte-americana fosse
concebida tendo em mente o estado de exceção” (ARANTES, 2007, p.157).
Bigo (2006a), entretanto, faz uma crítica à tentativa de Agamben de
realizar uma genealogia do conceito de estado de exceção. Para ele,
Agamben, enquanto filólogo e historiador107 das ideias, teria uma tendência a
fazer uma história dos conceitos como se os mesmos tivessem uma vida
independente das práticas sociais nos quais estão inseridos. Sua visão seria
quase uma abordagem evolucionista da terminologia estado de exceção. O que
ele faz, na verdade, é inventar um objeto, estado de exceção, como uma figura
discursiva, um ato discursivo, que se coloca como uma realidade independente

107
Agamben, como afirma em “Signatura Rerum”, não se considera um historiador. Vide
Agamben, 2009.
198

de tempo e de espaço.
Como observa Bigo (2006a), apesar de adotar uma perspectiva
foucaultiana em suas análises, Agamben, ao realizar a genealogia do estado
de exceção, o faz de maneira positivista, como se fosse um fenômeno
homogêneo, como se o discurso fosse apenas uma questão de semântica e
não de práticas, criando a ilusão de um “objeto natural” que esconderia a
heterogeneidade das práticas.
Portanto, para Bigo, o estado de exceção não é um programa e nem
uma atualização através da história de uma ideia do político. Ele é o resultado
específico, na sua forma atual, de inúmeros fatores e deve ser analisado não
como uma realidade atemporal e anacrônica, mas a partir de “son milieu, de
son pratiques” (BIGO, 2006a). Assim, no lugar de uma teoria geral do estado
de exceção ao longo da história ocidental, Bigo defende uma análise das
particularidades das práticas em momentos e sociedade determinadas. Para
ele:
Os estados de exceção decretados pelos juízes, pelos
políticos ou militares são diferentes formalmente (se são
declarados ou não), na meta (se são limitadas ou não)
que eles se atribuem, em seu impacto (que afetam os
direitos do homem, o jus cogens, a liberdade, a
integridade da vida) (BIGO, 2006a, p. 12, tradução
nossa108).

Esta crença de Agamben em uma situação de indeterminação criada


pela retórica estaria presente também na confusão que ele faz entre a
declaração legal do estado de exceção com o momento da exceção, entre o
paradigma da segurança e o Estado policial. Isto fica claro quando, ao analisar
o estado de exceção na França, afirma que este mecanismo foi utilizado pela
última vez por De Gaulle em 1961 e, desde então, “a declaração do estado de
exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem
precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo”
(AGAMBEN, 2004a, p. 27).
Para Bigo (2006a), esta ‘confusão’ ocorreria devido ao desejo de
Agamben de analisar o presente através do futuro possível de um ‘totalitarismo

108
Les états d’exception decretes par les juges, les politiques ou militaires sont différents
formellement (qu’ils soient declares ou non), dans le but (limité ou non) qu’ils s’assignent, dans
leur impact (qui affectent les droites de l’homme, les jus cogens, la liberté, l’intégrité de la vie).
199

biopolítico’; para tanto, sua estratégia estaria em aceitar a retórica dos


neoconservadores como se o dizer correspondesse ao fazer.

4.4 - O campo como matriz da exceção permanente: a biopolítica

Para nós, o Campo não é uma punição; para nós, não


está previsto um prazo; o Campo é apenas o gênero de
existência que nos foi atribuído, sem limites de tempo,
dentro da estrutura social alemã.

Primo Levi109

Segundo Agamben (2000, 2004b,2007), para se entender a política


moderna contemporânea é preciso olhar o fenômeno do campo não como uma
anomalia que ficou no passado, mas como a própria matriz do espaço político
no qual vivemos hoje. Neste sentido, o campo não é uma narrativa histórica,
mas uma tese filosófica, um paradigma político do ocidente, no qual passamos
de “Atenas a Auschiwtz”.
Assim, o campo, enquanto um paradigma, é “o espaço que se abre
quando o estado de exceção começa a tornar-se regra” (AGAMBEN, 2007, p.
175). É o espaço no qual o ordenamento jurídico normal é suspenso em nome
de uma pretensa situação de perigo – uma situação de fato. Entretanto, o que
era para ser o temporário, a exceção, torna-se regra, permanente, inaugurando
um estado de exceção desejado.
Nele [o campo], o estado de exceção, o qual era
essencialmente uma suspensão temporária do estado da
lei, adquire um arranjo espacial permanente que, como
tal, se mantém constantemente fora do estado normal da
lei (AGAMBEN, 2000, p. 38, tradução nossa110) .

Nele, o soberano não se limita a decidir sobre a exceção, mas “produz a


situação de fato como consequência da decisão sobre a exceção” (AGAMBEN,
2007, p.177). Não é mais o fato que cria o direito; no campo, fato e direito se
confundem e deixa de fazer sentido qualquer questionamento sobre legalidade
ou não dos atos que se cometem contra os deportados do campo.

109
Levi, 1988, p. 83-84.
110
In it, the state of exception, which was essentially a temporal suspension of the state of Law,
acquires a permanent spatial arrangement that, as such, remains constantly outside the normal
state of law.
200

Neste sentido, o campo é, por excelência, um espaço biopolítico, no qual


vida nua, a vida biológica, e norma se tornam indistintos; no qual o poder é
exercido sem qualquer mediação. É um espaço que tem um sentido para além
do territorial; ele se instala toda vez que se materializa o estado de exceção
permanente, que se suspendem direitos e garantias de parte ou mesmo de
toda uma população civil (AGAMBEN, 2007). O campo é extraterritorial, é mais
do que a possibilidade da suspensão do direito no interior de um Estado de
direito; ele excede a lógica “dentro-fora”, é o lugar da exclusão, no qual vida e
morte representam simples possibilidades biológicas e onde paz e guerra são
opções indiferentemente praticáveis e absolutamente reversíveis (RAHOLA,
2007).
Em termos históricos, não há um consenso sobre a origem dos campos.
Para alguns, os primeiros teriam sido os campos de concentraciones criados
pelos espanhóis em Cuba em 1896, como maneira de reprimir a população da
colônia. Para outros, a matriz estaria nos concentration camps criados pelos
ingleses no início do século XX para os bôeres. Populações inteiras de civis
submetidas a um estado de exceção relacionado à guerra colonial (AGAMBEN,
2000,2007). Para Rahola (2007), esta questão se complexifica quando se
considera as reservas nas quais foram confinados os povos autóctones da
América do Norte.
De qualquer modo, os campos seriam, historicamente e
geograficamente, segundo Rahola (2007), uma criação colonial. 111 O sujeito
colonial foi o primeiro sujeito “internável” e deportável – um povo “em excesso”,
uma humanidade descartável, que estaria na base do princípio do
confinamento. Assim, fazer uma genealogia dos campos é fazer uma
genealogia do excedente.
O campo é o lugar dos sujeitos deslocados, no qual se decreta a
existência de indivíduos passíveis de serem internados e detidos
administrativamente, independentemente de questões penais,
responsabilidades individuais e de fatores biográficos, pois estes representam

111
Bigo (2006a, p. 6) faz uma crítica a Agamben por sequer mencionar as práticas coloniais
como uma forma de estado de exceção, além de não realizar uma análise da relação entre
exceção, exclusão e práticas coloniais (estrangeiro e migrante). Entretanto, Agamben faz uma
referência às guerras coloniais como origem dos campos em Means without end. Vide
Agamben, 2000.
201

uma ameaça por sua própria existência. De acordo com Rahola (2007),
independente da denominação que se use, como zona de proteção temporária
ou centro de refugiados (para refugiados), centros de identificação (para os que
requerem asilo), centro de detenção temporária (para migrantes irregulares) ou
campo de internação (para prisioneiros), o que se destaca nesta forma-campo
é o caráter administrativo e supostamente temporário das detenções.
O campo é também o território da produtividade - no qual o poder se
produz e também produz a diferença, gerando os corpos dos internados.
Corpos estes que são disciplinados, assujeitados, administrados e tornados
clandestinos (RAHOLA, 2007). Sujeitos que vivem uma existência em trânsito,
que se reduz a uma simples reprodução biológica e a uma morte possível, cuja
manifestação mais extrema é o campo de extermínio.
É na Primeira Guerra Mundial que, no Ocidente, os campos serão
importados das colônias para os civis, sob a forma específica de estruturas de
detenção para prisioneiros de guerra e de campos de trabalho, em um primeiro
momento, e, em seguida, o local no qual eram internados os civis de
nacionalidade estrangeira. Nas décadas de 20 e 30, a Europa “adota” o cenário
colonial dos campos, inscrevendo a catástrofe de Auschwitz na história, o
espaço da mais notável experiência biológica e social com e do homem, na
definição de Levi (1988).
No caso específico da Alemanha, a base jurídica para o internamento
não era o direito comum, mas um estatuto jurídico de origem prussiana (lei
sobre estado de sítio, de 04 de junho de 1851), que permitia a detenção dos
indivíduos, sem considerar qualquer comportamento criminal relevante, como
uma medida cautelar, preventiva, exclusivamente para evitar um perigo para a
segurança do Estado. Este estatuto – Schutzhaft – foi a base para os primeiros
campos de concentração alemães, criados não pelos nazistas, mas pelos
governos socialdemocratas. Em 1923, os socialdemocratas internaram, com
base na Schutzhaft, militantes comunistas, e, no campo de Cottbus-Sielow,
judeus orientais, constituindo o primeiro campo para judeus do século XX
(AGAMBEN, 2007).
O fundamento da Schutzhaft era a declaração do estado de sítio ou de
202

exceção, o que ocorreu inúmeras vezes entre 1919 e 1924 112. O mais curioso,
no entanto, é que a base deste estatuto jurídico, as leis prussianas de 1851,
visava à proteção da liberdade dos indivíduos contra a suspensão da lei que
caracteriza o estado de exceção. Deste modo, o campo não nasce de uma lei
ordinária ou da transformação e desenvolvimento das leis sobre prisão; o
campo nasce fora do estado de exceção e da lei marcial (AGAMBEN, 2000).
Quando os nazistas chegaram ao poder, o estado de exceção foi
promulgado por Hitler logo que assumiu o governo, por meio do Decreto para a
Proteção do Povo e do Estado, em 28 de fevereiro de 1933. O decreto teria
sido uma reação ao incêndio no Reichstag (Parlamento alemão) por militantes
comunistas e resultou na suspensão de garantias constitucionais e na
supressão das liberdades individuais. É importante salientar que em nenhum
momento o Decreto utilizou a expressão ‘estado de exceção’, embora fosse, na
prática, a decretação do mesmo, com base no art. 48 da Constituição de
Weimar.
São autorizados, mesmo para além dos limites fixados
pela lei: as restrições e os atentados à liberdade
individual, ao direito de livre expressão, à liberdade de
imprensa, ao direito de reunião; também são autorizadas
as violações do segredo de correspondência e do
telefone (Decreto de 28 de fevereiro de 1933)113.

Entretanto, este decreto nunca foi revogado, tendo o Terceiro Reich se


constituído em um estado de exceção permanente, ‘uma noite de São
Bartolomeu’ que durou 12 anos114 (AGAMBEN, 2004a, 2007, 2008).
Este decreto não só criou uma “ditadura constitucional”, nos termos
schmittianos, em nome da urgência de defesa da sociedade contra seus
inimigos, mas também foi uma “ordem de proteção”, autorizando a “detenção
preventiva ou custódia protetora das referidas populações infectadas, proteção
assegurada por espaços juridicamente vazios: os campos” (ARANTES, 2007,
p. 195).
O primeiro campo de concentração nazista foi o de Dachau, ao qual se

112
A utilização do instituto do estado de exceção se tornou prática em inúmeros Estados
democráticos durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando se ampliaram os poderes do
Executivo em detrimento do Legislativo e do Judiciário (AGAMBEN, 2004a).
113
Disponível em www.slideshare.net.
114
Atualmente, o estado de exceção está previsto na Constituição alemã, tendo sido
introduzido por uma lei de 24 de junho de 1968, como um mecanismo de defesa da democracia
(AGAMBEN, 2004a).
203

seguiram rapidamente Sachenhausen, Buchenwald, Lichtenberg, criado em


março de 1933 por Himmler para prisioneiros políticos, e entregue às SS para
administração. Nele não vigorava as regras do direito penal ou do direito
carcerário. A fonte primária do direito era a palavra do soberano – do Führer.
Sua palavra não era um fato que se transformava em norma, mas a própria
norma e seu critério de aplicação, “uma lei vivente” (AGAMBEN, 2007).
Foi uma situação extrema, limite, que se transformou em cotidiano. Um
‘hábito’, que instaurou uma guerra civil legal, o inimigo interno nos termos
schmittianos, que deveria ser eliminado. “O estado de exceção cessa, assim,
de ser referido a uma situação externa e provisória de perigo fictício e tende a
confundir-se com a própria norma” (AGAMBEN, 2007, p.175).
Segundo Agamben (2008), o campo de Auschwitz foi o lugar em que o
estado de exceção e a regra, ao invés de serem fenômenos distintos no tempo
e espaço, se tornaram coincidentes, convertendo-se no paradigma do
cotidiano. A exceção não mais como a suspensão da norma, mas como a
própria norma; um estado de exceção permanente, cuja situação-limite era a
seleção para as câmaras de gás. E esta seleção, em um lugar em que
coincidiam os campos de concentração e de extermínio, era também a decisão
sobre o que era ou não humano, sobre quem estava salvo ou submerso (LEVI,
1988), sobre quem deveria ou não morrer – o poder soberano como a ameaça
da morte, o lugar no qual a vida nua se dissocia das diversas possibilidades de
vida e se torna o fundamento do poder político.
De acordo com Agamben (2000), os gregos possuíam dois termos,
semanticamente e morfologicamente distintos, para denominar a vida: zoé,
entendida como o simples fato de estar vivo, algo comum a todos os seres
viventes, humanos ou não; e bios, que denominava a vida peculiar a um grupo
ou indivíduo. Nas línguas modernas, esta diferenciação teria gradualmente
desaparecido, sendo substituída por um único termo – vida.
Agamben retoma esta diferenciação grega, por meio dos conceitos de
vida nua e da existência política ou formas de vida. Para ele, é esta dupla a
categoria fundamental da política ocidental e não a lógica do amigo-inimigo
schmittiana (AGAMBEN, 2000, 2004a, 2007).
Neste sentido, a vida humana poderia ser definida como uma conjunção
entre a vida nua, mera existência, e a possibilidade infinita de escolhas e
204

ações, de possibilidades de vida, ou formas de vida, que constituiriam a vida


política. E, o objetivo do viver estaria, em uma acepção benjaminiana, na busca
pela felicidade de cada ser humano.
Entretanto, o poder político, o poder soberano, se funda justamente na
negação desta conjunção. O que ele faz é separar a vida nua das outras
formas de vida e transformá-la, no estado de exceção, em seu fundamento
último. Portanto, para Agamben (2000), em uma perspectiva hobbesiana, o
poder do Estado não se fundamentaria na vontade política, mas na vida nua,
no poder do Leviatã de retirar a vida dos súditos e de protegê-los apenas na
medida em que se submetem ao seu poder (a relação hobbesiana entre
proteção e obediência). Ao invés do medo da morte, em relação a outros
indivíduos, o poder soberano é o medo da morte exclusivamente em relação ao
Estado.
E é esta vida nua, fundadora do poder soberano, que se tornou a forma
dominante de vida. No estado de exceção, que se tornou a norma, a zoé se
tornou “a” forma de vida. Em outras palavras, a zoé, que originariamente
estaria situada à margem do ordenamento, ingressou na esfera da polis; houve
uma politização da vida nua e este fato, é, segundo Agamben (2007), o evento
decisivo da modernidade.
Neste sentido, Agamben (2007), citando Foucault, afirma que:
o limiar de “modernidade biológica” de uma sociedade
situa-se no ponto em que a espécie e o indivíduo
enquanto simples corpo vivente tornam-se a aposta que
está em jogo nas suas estratégias políticas (p.11).

E é, por este motivo, que, de acordo com Agamben (2000), a teoria de


Foucault, segundo a qual a política se tornou biopolítica, é substancialmente
correta. E é também neste ponto que Agamben realiza uma crítica a Hannah
Arendt. Embora reconheça seu débito intelectual com a autora, em especial por
seus estudos sobre a estrutura dos Estados totalitários e dos campos, para
Agamben (2007) a obra de Arendt encontra seu limite justamente por lhe faltar
“qualquer perspectiva biopolítica” (p.125), ou seja, por ter sido incapaz de
perceber que a política totalitária só tomou tal proporção através da
transformação da política em biopolítica.
Nesta perspectiva, Agamben (2008), a partir principalmente dos relatos
de sobrevivência de Primo Levi, afirma que um aspecto essencial do campo
205

era seu caráter biopolítico. Se a soberania tradicional, territorial, era, segundo


Foucault (2003, 2008), o direito de fazer morrer e deixar viver, o século XVIII
presenciou o surgimento de um novo poder, que instala um novo direito – o de
fazer viver e de fazer morrer 115. É o biopoder que juntamente com o poder
disciplinar se completam no processo de fabricação dos sujeitos. O poder
disciplinar que individualiza, adestra e torna os corpos dóceis; e o biopoder,
que massifica, age sobre o homem espécie, e que afeta os processos próprios
da vida, como nascimento e morte, reprodução e longevidade. O primeiro age
sobre o indivíduo, o segundo na população116. Neste processo de transição, o
Estado passa a cada vez mais se preocupar com a saúde e com o cuidado da
vida de seus cidadãos.
Assim, para Agamben (2000), a vida se tornou um conceito meramente
biológico sob um discurso científico que, na verdade, é uma construção
política. Ocorreu uma medicalização das esferas da vida, com a representação
pseudocientífica do corpo, da doença e da saúde, cujo objetivo é o controle
político. A vida biológica se secularizou na vida nua e passou a se constituir
literalmente como forma de sobrevivência. Deste modo, a vida política, que
seria aquela construída na busca pela felicidade, a partir das múltiplas
possibilidades do viver, se vê separada da zoé pelo poder soberano.
O que Foucault faz, então, é uma análise das formas como o poder
penetra o corpo dos sujeitos, por meio do estudo das técnicas políticas e das
tecnologias do eu, abandonando o modelo jurídico-institucional, baseado na
definição da soberania e na teoria do Estado. Neste contexto, ele faz uma
crítica da teoria da soberania moderna, uma vez que esta pressupõe a
existência de sujeitos e relações de sujeição. No lugar de uma teoria da
soberania, o autor propõe uma teoria da dominação. Não se trata, portanto, de
entender os motivos da sujeição, mas em analisar como estas relações de
poder, efetivas, fabricam os sujeitos.
Agamben (2007), contudo, critica Foucault por não se preocupar em
entender como estas duas técnicas do poder, as individualizantes (políticas) e
os procedimentos totalizantes das tecnologias do eu se entrelaçam e
convergem para uma zona de indistinção, na qual não se pode mais distinguir

115
Vide os itens 2.8 e 3.3 desta tese.
116
Vide o capítulo 3 desta tese.
206

entre exclusão e inclusão, externo e interno, bios e zoé, direito e fato.


Deste modo, o que Agamben (2007) propõe é uma teoria que se situe no
ponto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico
do poder, a partir da concepção de que a biopolítica é tão antiga quanto a
exceção soberana; em outros termos – de que “a produção de um corpo
biopolítico seja a contribuição original do poder soberano” (AGAMBEN, 2007,
p.14). Quando o Estado moderno coloca a vida biológica no centro de suas
atividades, ele nada mais faz do que trazer à luz a relação entre o poder
soberano e a vida nua.
Assim, a soberania e o biopoder, que seriam paradoxais em sua relação,
podem, em alguns momentos, se integrar, se articulando em fenômenos como
o racismo, étnico e biológico, que estaria na origem das guerras. Neste sentido,
segundo Agamben (2008), o Estado Nazista seria o extremo dos dois poderes,
articulando o fazer viver do biopoder com o fazer morrer da soberania, “de tal
forma que a biopolítica coincide imediatamente com a tanatopolítica”
(AGAMBEN, 2008, p. 89). E, neste contexto, a primeira função do racismo seria
ser o critério do ‘corte’ na continuidade biológica das espécies. Um critério
impreciso, no limiar entre o direito e o fato, e fruto de uma decisão política
soberana (AGAMBEN, 2007).
O que é na verdade o racismo? Ele é primariamente um
modo de introduzir um corte no domínio da vida que está
sob controle do poder: o corte entre o que deve viver e o
que deve morrer. O aparecimento no continuum biológico
da espécie humana de raças, a distinção entre raças, o
fato de que certas raças são consideradas boas e outras,
pelo contrário, inferiores: tudo isto é um modo de
fragmentar o campo do biológico que o poder controla
(FOUCAULT, 2003, p. 255, tradução nossa117).

Sua segunda função seria permitir o estabelecimento da seguinte


relação: Se você quer viver, você deve tirar vidas, deve ser capaz de matar.
Entretanto, esta não seria uma lógica apenas do racismo; a lógica da guerra é
a mesma, podendo ser colocada em termos semelhantes: “Para viver, é
necessário destruir seus inimigos” (FOUCAULT, 2003, p.255). Mais uma vez,
117
What in fact is racism? It is primarily a way of introducing a break into the domain of life that
is under power’s control: the break between what must live and what must die. The appearance
within the biological continuum of the human race of races, the distinction among races, the
hierarchy of races, the fact that certain races are described as good and that others, in contrast,
are described as inferior: all this is a way of fragmenting the field of the biological that power
controls.
207

se aplica a teoria schmittiana: guerra é a relação política extremada, na qual o


inimigo deve ser fisicamente aniquilado.
Desta maneira, o racismo do Estado nazista, o seu biopoder,
estabeleceu o corte dos que deveriam viver e dos que deveriam morrer, quem
era ou não o inimigo. Um Estado racista, assassino e suicida 118 (FOUCAULT,
2003), ou uma máquina letal (AGAMBEN, 2000), que teve como consequência
a Solução Final, o extermínio de judeus e outras raças, incluindo, com o
Telegrama 71 de Hitler, de abril de 1945, o próprio povo alemão. O Estado
homicida do Reich se torna também um Estado suicida.
E o lugar por excelência da prática deste poder, como também o do
poder soberano tradicional, foram os campos de concentração e extermínio,
como Auschwitz – fazer viver e fazer morrer, uma ‘máquina biopolítica’’
(AGAMBEN, 2008, p. 91).
Nós temos, então, na sociedade nazista algo que é
realmente extraordinário: é a sociedade na qual o
biopoder foi generalizado em um sentido absoluto, mas
também na qual foi generalizada o direito soberano de
matar. Os dois mecanismos: o mecanismo clássico,
arcaico, que deu ao Estado o direito de vida e morte
sobre seus cidadãos, e o novo mecanismo organizado
em torno da disciplina e regulação, ou em outras
palavras, o novo mecanismo do biopoder – coincidem
exatamente (FOUCAULT, 2003, p. 260, tradução
nossa119).

Auschwitz foi um exemplo da desqualificação da morte promovida pela


biopolítica racista do nazismo, pelo fazer morrer. O campo promovia a morte
em dois sentidos. O primeiro era o sentido biológico, direto, da morte sem ritual
nas câmaras de gás, na qual a palavra cadáver era proibida pelos nazistas,
sendo substituída por Figuren (figuras). Um lugar no qual “a morte não pode
ser chamada de morte, nem mesmo os cadáveres podem ser chamados de
cadáveres” (AGAMBEN, 2008, p.77). O campo substituiu a morte individual
pela coletiva e se tornou uma máquina de produção de cadáveres, “Cadáveres
sem morte, não-homens cujo falecimento foi rebaixado a produção em série. É

118
Vide o item 3.1.2 desta tese.
119
We have, then, in Nazi society something that is really quite extraordinary: this is a society
which has generalized biopower in an absolute sense, but which has also generalized the
sovereign right to kill. The two mechanisms – the classic, archaic mechanism that gave the
State the right of life and death over its citizens, and the new mechanism organized around
discipline and regulation, or in other words, the new mechanism of biopower – coincide exactly.
208

precisamente a degradação da morte(...)” (AGAMBEN, 2008, p.78). A


especificidade de Auschwitz não estava na ofensa na dignidade da vida, mas
na dignidade da morte - na produção da morte em série.
Um segundo tipo de morte também ocorria neste campo. Uma forma de
morte indireta – o expor o indivíduo à morte, o aumentar incrivelmente o risco
de morte para determinado grupo de pessoas ou simplesmente uma morte
política, a rejeição (FOUCAULT, 2003, p. 256).
Neste segundo tipo se encontram os “muçulmanos”. Estes eram os
deportados, prisioneiros do campo, que se encontravam em fase aguda e
grave de desnutrição, a “fome do campo” (LEVI, 1988). Quando alcançavam
este ponto, os mesmos passavam a ter dificuldade de caminhar, falavam baixo
e respiravam com dificuldade. Eles se situavam no limiar entre a vida e a
morte, eram apáticos, sem vontade, deixavam de se relacionar com os outros
companheiros e passavam a ser invisíveis para estes. E era normalmente este
grupo que fornecia os ‘escolhidos’ para as câmaras de gás - a única saída
possível do campo, a “chaminé”, as seleções. E este trabalho também era
executado pelos prisioneiros, por meio do Sonderkommando, o Esquadrão
Especial, cujos membros ficavam isolados dos outros internos e eram
periodicamente eliminados, com a renovação total do grupo.
A origem da denominação ‘muçulmano’ para estes deportados é
controversa. Pode ter se originado do modo como caminhavam, de maneira
lenta e curvada, lembrando, quando observados de longe, árabes em oração
ou, como defende Agamben (2008), pode ter origem no termo árabe muslim. O
significado literal desta palavra seria aquele que se submete, de maneira
incondicional, à vontade de Deus; para muitos, base de um pretenso fatalismo
islâmico.
Na descrição de Levi (1988), era “um homem macilento, cabisbaixo, de
ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor
pensamento” (p.91). Eram fracos, ineptos, vazios, tendo perdido a “centelha
divina”, não tendo uma história; estavam submersos, além de qualquer
salvação, constituindo uma multidão anônima sempre renovada e sempre igual.
Eram homens que na “lei” do campo não poderiam oferecer qualquer vantagem
e, portanto, não valia a pena sequer trocar uma palavra com eles; eles estavam
de passagem, estavam próximo do fim.
209

O muçulmano era assim o morto-vivo, o cadáver ambulante, o não-


homem, reduzido à via nua, à zoé, a vida natural e ‘matável’ – o homo sacer
(AGAMBEN, 2007, 2008). Nas palavras de Levi (1988), “Hesita-se em chamá-
los vivos, hesita-se em chamar ‘morte’ a sua morte, que eles já nem temem,
porque estão esgotados demais para poder compreendê-las” (p.91).
Segundo Agamben (2007), a origem do homo sacer estaria no direito
romano e teria duas características fundamentais: a impunidade da sua morte e
o veto do sacrifício. O homem sacro ou sagrado é aquele que cometeu um
crime hediondo, além de qualquer punição e que, portanto, não pode ser
sacrificado segundo os ritos da punição (e purificação), sendo insacrificável.
Por outro lado, ele é um ser matável, ou seja, a sua morte não seria
considerada um crime ou um sacrilégio, não sendo seu assassino punido. Sua
morte, deste modo, não é “classificável nem como sacrifício e nem como
homicídio, nem como execução de uma condenação, nem como um sacrilégio”
(AGAMBEN, 2007, p.90).
Ele é a memória da exclusão originária que constituiu a dimensão
política. É neste sentido que se pode dizer que o espaço político da soberania
se constituiu em uma dupla exceção – como uma excrescência do profano no
religioso e do religioso no profano. É a zona de indiferença entre o sacrifício e o
homicídio.
Neste contexto, “soberana é a esfera na qual se pode matar sem
cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício, e sacra, isto é, matável e
insacrificável, é a vida que foi capturada nesta esfera” (AGAMBEN, 2007, p.91).
O poder soberano é, pois, aquele que produz a vida sacra, a vida nua, que
sujeita a vida a um poder de morte.
No campo, o muçulmano é o homo sacer, a vida matável e insacrificável.
De seu lugar era quase impossível retornar, e sobre ele os outros prisioneiros
não falavam ou tentavam ajudar. Eles estavam além de qualquer ajuda, não
tinham mais forças ou vontade, chegaram ‘ao fundo’. E, justamente, por terem
tocado o fundo, os muçulmanos são as únicas testemunhas integrais de
Auschwitz. Apenas eles realmente viram e sentiram o horror. E aqui se tem a
aporia do campo: aqueles que devem testemunhar não podem fazê-lo porque
estão mortos. É o ‘Paradoxo de Levi’ (AGAMBEN, 2008). Os sobreviventes não
viram realmente, só restando a eles testemunharem em nome dos
210

muçulmanos, nunca em nome próprio. “Os homens são homens enquanto dão
testemunho do não-homem” (AGAMBEN, 2008, p. 125). Contudo, este
testemunho por delegação não tem sentido algum, pois “os submersos nada
têm a dizer, nem têm instruções ou memórias a transmitir. Não têm ‘história’,
nem ‘rosto’ e, menos ainda, ‘pensamento’ ”(AGAMBEN, 2008, p.43). Assim, no
jargão do campo, o intestemunhável tem um nome – Der Muselmann.
Os judeus, como todas as outras minorias que adentraram os campos,
perderam qualquer forma de proteção jurídica. Eles seriam membros do povo
(os excluídos, os que não querem ou não podem ser assimilados) em
contraposição ao Povo (o corpo político) alemão. O extermínio seria uma
forma, biopolítica, de reconstituir esta fratura entre a bios e zoé nas formas de
vida, entre exclusão e inclusão, entre vida nua e existência política
(AGAMBEN, 2000).
O conceito de povo sempre contém uma fratura
biopolítica fundamental. Ele é o que não pode ser incluído
no todo do qual faz parte como também é aquele que não
pode pertencer ao todo no qual está incluído desde
sempre (AGAMBEN, 2000, p.31, tradução nossa120).

Nesta tentativa de desconstituir a fratura, os membros do povo foram


privados não só da proteção da lei como também tiveram destituídos seus
direitos da cidadania. É importante lembrar que uma das poucas regras que os
nazistas normalmente obedeciam era a de que os judeus (ou ciganos ou outro
grupo) só poderiam ser mandados para a Solução Final, para os campos de
extermínio, após serem totalmente desnacionalizados, com fulcro nas leis de
Nuremberg121. Eles perdiam, assim, o status de cidadãos de segunda classe e
se tornavam não cidadãos – mas também não humanos.
Como Agamben (2000) analisa, no Estado-nação o conceito de homem
sempre esteve ligado ao de cidadão. A própria Declaração dos Direitos do

120
The concept of people always already contains within itself the fundamental biopolitical
fracture. It is what cannot be included in the whole of which it is a part as well as what cannot
belong to the whole in which it is always already included.
121
É importante ressaltar que outros Estados também adotaram leis que permitiam a
desnacionalização de seus cidadãos, como a França em 1915, para os cidadãos de origem
inimiga; a Bélgica, em 1922, para os que tiveram comportamento antinacional durante a guerra;
a Itália fascista para os que não mereciam a cidadania italiana; a Áustria, em 1933, fez o
mesmo e, finalmente, em 1935, as leis de Nuremberg dividiram os alemães em duas classes
de cidadãos – os que tinham e os que não tinham direitos políticos. Deste modo, a partir da
Primeira Guerra Mundial, a Europa produziu uma massa de apátridas. Vide Agamben (2000,
2010).
211

Homem e do Cidadão (1789) seria ambígua no uso dos dois termos. Cidadão é
quem tem seus direitos protegidos por um poder soberano em um território,
ligando as ideias de nascimento e de nacionalidade122. Deste modo, o Estado-
nação significa o “Estado que faz da natividade, do nascimento (isto é, da vida
nua humana) o fundamento da soberania” (AGAMBEN, 2010, p. 4).
Assim, na passagem da soberania divina para a soberania nacional, o
nascimento, a vida nua natural tornou-se, pela primeira vez, o portador
imediato da soberania. Por uma ficção implícita, o nascimento tornou-se
imediatamente nação. E a figura originária desta inscrição são os direitos
humanos; os direitos dos homens que se tornam desprovidos de qualquer
tutela quando não se é mais possível configurá-los como cidadãos de um
Estado. Os refugiados são homens que perderam qualquer qualidade e relação
específica a não ser o fato de serem humanos, que quebraram a identidade
entre homem e cidadão (AGAMBEN, 2010). Os refugiados modernos são,
segundo Giacóia Jr. (2008), os ban-didos de nossos tempos; as figuras
centrais de nossa história política (AGAMBEN, 2010).
Mas o interno do campo, o deportado, é não só o não cidadão, mas
também o não homem. No momento de sua desnacionalização, o indivíduo é
sacralizado – o homo sacer no lugar do cidadão; a perda de todo o status
político, de toda proteção jurídica, o abandono, que o reduz completamente à
vida nua, a vida puramente biológica, sem nenhuma mediação; ele está aquém
(ou além) do direito, inclusive dos direitos humanos. Assim, o campo se torna o
quarto elemento da trindade nação, Estado e território.
Nesta perspectiva, “O campo é o paradigma do espaço político no ponto
no qual a política se torna biopolítica e o homo sacer se torna indistinto do
cidadão” (AGAMBEN, 2000, p.40, tradução nossa 123 ). Primeiro os campos
europeus de controle de refugiados após a Primeira Guerra, depois os campos
de internação, de concentração e, finalmente, de extermínio.
E este é o ponto de partida para entender o que aconteceu em
Auschwitz. Para Agamben (2000), é acrítico se perguntar como foi possível que
tais atrocidades fossem cometidas contra seres humanos; a questão a se

122
Vide Marshall (1967) e Vieira (2002).
123
“The camp is the paradigm itself of political space at the point in which politics becomes
biopolitics and the homo sacer becomes indistinguishable from the citizen”.
212

colocar, ao invés disto, é: como seres humanos puderam ser tão


completamente privados de seus direitos e prerrogativas ao ponto de que
qualquer ato cometido contra eles não fosse considerado crime.
No campo, se tornou impossível distinguir o homem do não homem;
criou-se um umbral extremo entre a vida e a morte que tinha um significado
político. O ato de matar significa suprimir o próprio poder, na medida em que
coloca fim à relação social; já o submeter o outro à fome e à degradação
significa fundar um terceiro reino entre a vida e a morte. E este reino começa
onde termina a dignidade, é o “fim e a ruína de qualquer ética da dignidade e
da adequação a uma norma. A vida nua, a que o homem foi reduzido, não
exige nem se adapta a nada: ela própria é a única norma, é absolutamente
imanente” (AGAMBEN, 2008, p. 76).
Como consequência, o muçulmano representa mais do que o limite entre
a vida e a morte; ele é o limiar entre o homem e o não homem. “Existe,
portanto, um ponto em que, apesar de manter a aparência de homem, o
homem deixa de ser humano. Esse ponto é o muçulmano, e o campo é, por
excelência, o seu lugar” (AGAMBEN, 2008, p.62).
Em suma,
(...) ele se apresenta como o não-vivo, como o ser cuja
vida não é realmente vida; (...) como aquele cuja morte
não pode ser chamada de morte, mas apenas de
fabricação de cadáveres. Por outras palavras, como a
inscrição na vida de uma zona morta e, na morte, de
uma zona viva. Em ambos os casos – já que o homem
assiste à destruição de seu vínculo privilegiado com o
que o constitui como humano, a saber, com a
sacralidade da morte e da vida – , o que está sendo
posto em jogo é a própria humanidade do homem.
(AGAMBEN, 2008, p.87).

Desta forma, Auschwitz foi o local onde a biopolítica se generalizou e se


tornou mais extrema; na qual o inimigo schmittiano foi aniquilado; o lugar no
qual o judeu se tornou muçulmano, e a morte se tornou a produção de
cadáveres, ou melhor, de “figuras”. É a degradação da vida, mas também da
morte.
Após este período, a figura do campo se dissipou pelo mundo, sem, no
entanto, desaparecer. Ela continuou a existir nos goulags soviéticos, nos
campos de trabalho forçados na China, na Europa oriental, e na África em
213

descolonização (RAHOLA, 2007).


E, atualmente, para Agamben (2007), este modelo biopolítico, no qual a
política é incapaz de reestabelecer a fratura entre bios e zoé, tornou-se a regra:
A nossa política não conhece hoje outro valor (e,
consequentemente, outro desvalor) que a vida, e até que
as contradições que isto implica não forem solucionadas,
nazismo e fascismo, que haviam feito da decisão sobre a
vida nua o critério político supremo, permanecerão
desgraçadamente atuais (p.18).

Na política contemporânea, o campo, a criação voluntária de um estado


de exceção permanente (como o eram as colônias), mesmo que não declarado
tecnicamente, se tornou uma prática nos Estados totalitários, mas também nos
Estados democráticos. No lugar do caso extremo, da situação de emergência
que requer uma medida excepcional e provisória, a atual política vê uma
transformação do estado de exceção em uma técnica de governo (AGAMBEN,
2007). A guerra civil intra-estatal avançado para uma guerra civil mundial 124, na
qual se apagam as fronteiras entre democracia e absolutismo; na qual a
metrópole se “provincializa” (RAHOLA, 2007).
Uma zona incerta, desterritorializada, que permite ver no USA Patriot Act
de 2001, decretado como parte da guerra americana ao terrorismo, ecos da
experiência do campo de Auschwitz – o estrangeiro, o inimigo, o outro que
precisa ser fisicamente aniquilado; o campo como o novo nomos biopolítico.
Para Agamben, o campo seria, por conseguinte, a matriz intelectual para
a compreensão do estado de exceção permanente. Um momento no qual a
biopolítica e a geopolítica convergem (DILLON, 2002), criando uma zona de
indistinção entre a política e o Estado de direito, uma situação paradoxal na
qual a exceção é uma forma legal que não pode ter forma legal, uma “terra de
ninguém, entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a
vida” (AGAMBEN, 2004a, p.12).
Um momento no qual a política se torna soberana e o jurídico e a lei se
limitam a ser uma técnica, uma mediação frequentemente destrutiva, uma
forma de biopolítica que restringe a possibilidade de uma vida enérgica. Uma
zona indistinta, inexistente, que cria suas próprias regras de existência nas
práticas cotidianas (BIGO, 2006a).
124
Esta expressão é utilizada por Agamben, mas já aparece na teoria do partisano de Carl
Schmitt. Vide Solomon, 2003.
214

O campo é o espaço no qual o interno e o externo se confundem,


formando um verdadeiro paradoxo, segundo Agamben (2000) – o campo é um
pedaço de território (mas vai além da questão espacial) colocado fora da ordem
jurídica normal, mas que, contudo, não é simplesmente um espaço externo. O
que está sendo excluído no campo é capturado fora dele e incluído em virtude
de sua exclusão. Deste modo, o que está sendo “capturado sob a regra da lei é
o próprio estado de exceção” (AGAMBEN, 2000, p.39, tradução nossa125). Se o
poder soberano é fundado, como afirma Schmitt (2006b), na capacidade de
decidir sobre a exceção, o campo é a estrutura na qual o estado de exceção é
permanentemente realizado. Nele se decide sobre quem é humano ou não,
permitindo que se separe o muçulmano do homem (AGAMBEN, 2008).
Neste contexto, a essência do campo está na materialização do estado
de exceção, com a consequente criação de um espaço para a vida nua. O
campo, mais do que um território, é o momento no qual tal estrutura é criada,
independente da natureza do crime ou da denominação e topografia específica
que ele possa ter. É, desta forma, um campo as zonas de espera nos
aeroportos internacionais da França (ou o Hotel Arcade 126 ), na qual os
estrangeiros que requisitaram o status de refugiado aguardam uma resposta. É
também Guantánamo um campo. São lugares nos quais a lei é suspensa e nos
quais atrocidades podem ou não ser cometidas, dependendo não da lei, mas
da civilidade e da ética da polícia que temporariamente age como poder
soberano (AGAMBEN, 2000, 2007).
O estado de exceção permanente seria, então, o totalitarismo moderno,
situado no limite do liberalismo e operando para além do mesmo, constituindo
uma forma de governo sem nenhuma previsibilidade, um governo de incertezas
e arbitrariedade, no qual é impossível distinguir entre a transgressão e a
execução da lei e cujo efeito é a instauração de uma guerra civil.
Diante do incessante avanço do que foi definido como
‘guerra civil mundial’, o estado de exceção tende sempre
mais a se apresentar como o paradigma de governo
dominante na política contemporânea. Esse

125
“what is being captured under the rule of law is first of all the very state of exception”.
126
Hotel perto do aeroporto de Paris-Orly na França, utilizado pelo Ministério do Interior francês
como zona de detenção de estrangeiros ou, nas palavras do governo, como zonas de trânsito
internacional. A detenção (ou, como prefere o governo, retenção) neste hotel, em lugar
separado dos demais hóspedes, foi justificada pela possibilidade dos estrangeiros escaparem
da vigilância da polícia e dos oficiais da imigração. Vide: www.unhcr.org
215

deslocamento de uma medida provisória e excepcional


para uma técnica de governo ameaça transformar
radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito
perceptível – a estrutura e o sentido da distinção
tradicional entre os diversos tipos de constituição. O
estado de exceção apresenta-se, nessa perspectiva,
como um patamar de indeterminação entre democracia e
absolutismo (AGAMBEN, 2004a).

Neste sentido, segundo Bigo (2006a), a teoria de Agamben teria o


mérito de deslocar a discussão atual das práticas iliberais nos regimes liberais
pós-11 de Setembro do campo positivista do direito. Sua análise permitiria
compreender estas práticas127, como Guantánamo, não como aberrações, mas
como o modelo de novas formas de governo.
O problema da teoria de Agamben estaria no uso da matriz do campo
para explicar o fenômeno da exceção permanente, tornando equivalentes as
experiências de Guantánamo e Auschwitz.
Para Bigo (2006a), Guantánamo está mais próximo dos centros de
detenção para estrangeiros na Europa do que do campo nazista de Auschwitz.
O campo seria uma falsa perspectiva para analisar o tempo presente, e mais
ainda o futuro. O que Agamben parece não perceber é que Guantánamo está
mais inserido nos mecanismos da democracia do que em uma tendência ao
totalitarismo, sendo mais ligado aos mecanismos de vigilância e de controle
das polícias e dos serviços de informação, a esta tendência de vigiar o futuro,
que a esta figura do passado, tornando o “futuro do campo” como a matriz do
estado de exceção (BIGO, 2006a, p. 5). O que Guantánamo faz, por
conseguinte, é intensificar uma lógica que é não só interna ao liberalismo, mas
que é controlada pelo mesmo 128.
Segundo Bigo (2006a), Agamben desistiu cedo demais da democracia e
adotou uma perspectiva na qual estamos caminhando de maneira lenta,

127
Em a “Tatuagem Biopolítica”, Agamben (2004b) afirma que as tatuagens biopolíticas (o
número tatuado no braço, as cores e símbolos nas camisas) surgiram nos campos como uma
maneira mais econômica e efetiva de organizar a inscrição e o registro dos internos. Mas as
técnicas que antes eram utilizadas apenas com as “classes perigosas” se estenderam a toda
humanidade. A humanidade se tornou perigosa. O que está em jogo, portanto, é uma nova
relação biopolítica supostamente normal entre os cidadãos e o Estado; a biometria, os
dispositivos tecnológicos que inscrevem e identificam a vida nua, como as digitais, criaram um
novo estatuto jurídico-político ou simplesmente biopolítico dos cidadãos nos Estados
supostamente democráticos. Sobre este tema, vide Mattelart, 2008.
128
Lógica esta que Foucault já havia percebido – o Estado liberal nasce como uma sociedade
da segurança. Vide item 3.2.3 deste trabalho.
216

homogênea e permanente em direção a um estado de exceção. Na abordagem


agambeana não há uma análise do papel do Estado de direito, dos juízes, da
separação de poderes (ainda que ameaçada ou mitigada) e, muito menos, dos
mecanismos pelos quais o exercício do poder cria simultaneamente as
condições de resistência. Em Agamben, o campo não é um locus de
resistência, mas de um exercício unidirecional do poder.
Assim, ao fazer uma apropriação da teoria foucaultiana, Agamben acaba
por desconstruir a filosofia processual de Foucault, realizando uma verdadeira
reificação do poder.
Em uma perspectiva processual e relacional, Foucault (1990) conceitua
o poder não em termos de soberania (subserviência dos cidadãos a um
determinado Estado) ou de reino da lei (modo legal de subjugação ou um
sistema geral de dominação de um grupo sobre outro), que nada mais seriam
que as formas terminais que o poder toma. Para ele, a visão estritamente legal
do poder, como uma forma de interdição, que requer, de um lado, um soberano
que faz o papel de interditar e, de outro, um sujeito que aceita ser interditado, é
essencialmente negativa (FOUCAULT, 1977), e se limita à forma binária do
dominante e dominado. Esta percepção seria incapaz de perceber o poder
como coextensivo ao corpo social e parte das demais relações na qual ele
exerce um papel, ao mesmo tempo, condicionante e condicionado.
Desta forma,
(...) o poder deve ser compreendido em primeiro lugar
como uma multiplicidade de relações de forças imanente
à esfera na qual operam e na qual constituem sua própria
organização; como um processo no qual, através de
confrontações e lutas incessantes, as transforma, as
reforça, ou as inverte; como um apoio no qual estas
relações de força se encontram, formando então uma
cadeia ou um sistema, ou ao contrário, as disfunções ou
contradições que as isolam; e, finalmente, como
estratégias nas quais elas produzem efeito, cujo desenho
geral ou cristalização institucional está encarnado no
status apparatus, na formulação da lei, nas várias
hegemonias sociais (FOUCAULT, 1990, p. 93, tradução
nossa129).

129
(...) Power must be understood in the first instance as a multiplicity of force relations
immanent in the sphere in which they operate and which constitute their own organization; as
the process which, through ceaseless struggles and confrontations, transforms strengthens ,or
reverses them; as the support which these force relations find in another, thus forming a chain
or a system, or on the contrary, the disjunctions and contradictions which isolate them from one
another.; and lastly, as the strategies in which they take effect, whose general design or
217

Logo, o poder não é algo que se adquire, não é uma “coisa”, uma
instituição ou uma estrutura, mas uma relação de forças heterogênea, instável,
desequilibrada e tensa. É uma situação estratégica complexa em uma
sociedade em particular, na qual não há um único centro de exercício do poder,
sendo, neste sentido, anônimo. Neste contexto, o poder está (e vem) em todo
lugar, ele é onipresente e trespassa todas as relações sociais; todas as
desigualdades e divisões sociais, sejam em relação ao conhecimento ou ao
sexo, por exemplo, são efeitos imediatos do poder, e conjuntamente, a
condição interna de exercício do mesmo. O poder, portanto, tem um papel
produtivo.
Além disto, a percepção do poder como interdição interpreta toda afronta
ao mesmo como uma transgressão, como se poder e resistência fossem
fenômenos opostos ou exteriores um ao outro. Entretanto, como afirma
Foucault (1977, 1990), onde há poder há necessariamente resistência. Esta
última não está “fora” da relação de poder; ao contrário, ela só pode existir em
relação ao mesmo, estando inscrita em seu campo estratégico de forças. Do
mesmo modo como o poder é múltiplo, também há pontos de resistência
presentes em toda parte, uma pluralidade de resistências que se apresentam
de inúmeras formas: como necessárias, possíveis, espontâneas, ora pacíficas
ora violentas, ora solitárias ora em grupos. Em suma, para Foucault (1990),
poder e resistência atravessam todas as estratificações sociais e todas as
unidades individuais.
E é justamente este caráter relacional do poder, capaz de produzir e
abrigar sua própria resistência, que, segundo Bigo (2006a), Agamben parece
“esquecer”. Na concepção do campo e na análise do estado de exceção de
Agamben não existe resistência, não existe a capacidade de “continuar sendo
humano e de subverter o desejo que o poder tem de tudo controlar” (p. 13,
130
tradução nossa ). Neste sentido, Agamben seria benthamiano e não
foucaultiano.
A exclusão em Agamben é determinada por sua relação com o
soberano, o poder que decide quem deve ser excluído e que cria o homo sacer,

institutional crystallization is embodied in the status apparatus, in the formulation of the law, in
the various social hegemonies.
130
“capacitor à continuer à être humain et à subvertir le rêve que le pouvoir a de tout contrôler”.
218

aquele que pode ser morto a qualquer momento sem honra ou ritual. A
consequência da decisão soberana é a criação da vida nua. Agamben adota
claramente a perspectiva schmittiana, se afastando de Foucault, que, por não
compreender o momento soberano, o verdadeiro momento político com a
declaração da exceção, seria incapaz de explicar fatos cruciais da
modernidade: a polarização do poder e da vida nua nos Estados liberais e nas
democracias, a tendência a reduzir a política ao momento da exceção absoluta
e específica da designação do inimigo e de sua eliminação, seja real ou virtual
(BIGO, 2006a).
Assim, Agamben, ao partir de uma situação limite, tende a superestimar
a capacidade do poder e não percebe que as formas de vida estão
constantemente em um processo de ressurgimento, mesmo no mais
“desperate of cases”, como foi o caso dos campos de concentração. As formas
de resistência sempre vão existir mesmo onde o poder parece ser unilateral
(BIGO, 2006b).
Bigo adota, neste ponto, a leitura da resistência de James C. Scott. Para
Scott (1990), a resistência pode se dar tanto por meio de uma oposição velada
quanto por uma resistência aberta. Entre a concordância e a revolta há, para
ele, um imenso terreno político que não se constitui apenas da ação ou
oposição política ostensiva, mas também de uma vida política “invisível” dos
grupos subordinados.
Para além do “public transcript”, das representações sociais e formas
sociais de relação aberta entre dominados e dominadores, há o “hidden
transcript”, o conjunto de discursos, de gestos e práticas que confirma,
contradiz ou dá inflexão ao que aparece no “public transcript”. Ou seja, há uma
diferença entre o que é “dito” na face do poder e o que é “dito” por trás. É um
jogo de dissimulação e vigilância entre o fraco e o forte; uma espécie de
performance, de deferência e consentimento dos subordinados e de comando
e superioridade dos poderosos. E, quanto mais ameaçador é o poder, mais
grossa é a máscara de dissimulação dos dominados, mais seu “public
transcript” será ritualizado e estereotipado.
Nesta perspectiva é que se pode ler a resistência no campo de
concentração na obra de Primo Levi. Não se trata, obviamente, de uma
resistência aberta e ostensiva, que seria inexoravelmente punida com a força
219

(a forca), mas de uma infrapolítica das vítimas. Um jogo entre dominantes, que,
mais que por sadismo, deveriam representar o “papel” de algozes, nos gestos e
nas falas, e dos dominados, representando a aquiescência. Mas havia no
campo o “hidden transcript”, que se dava no que Levi (1988) denominou de luta
pela sobrevivência. Nesta, era necessário representar a disciplina, mas não
segui-la integralmente na prática; se, verdadeiramente, o interno seguisse todo
o regulamento, agisse realmente apenas na esfera do “public transcript”, ele
não duraria mais do que 3 meses no campo. Sucumbir era mais fácil; bastava
se encaixar com perfeição à disciplina. A outra opção era buscar os “caminhos
da salvação”.
Para tanto, o interno poderia ascender na hierarquia, se tornando
“especial”, como um Organisator, Kombinator ou Proeminent, um funcionário
do campo, e, consequentemente, assumindo também uma certa representação
que por sua vez exigia exercer o papel de algoz. Basta lembrar que os
capatazes e os Kapos eram os próprios internos e não membros das SS. No
campo, não há solidariedade entre as vítimas, mas uma “luta extenuante de
cada um contra todos” (LEVI, 1988, p. 93), na lógica de resistir aos inimigos e
não ter pena dos rivais. Desta forma, todos estão cruelmente sós.
Outra forma de salvação estava nos roubos, nos contatos com
funcionários externos (o que era proibido) e nos chamados Kombinacjes, os
jeitinhos esporádicos. É nesta perspectiva que Levi (1988) conta as histórias de
Alfred L. e do ex-sargento Steinlauf. Ambos resistiram não de forma aberta,
mas através da preocupação de manter uma aparência de dignidade, de
civilização, um cuidado com o corpo e os gestos. Como dizia Steinlauf, embora
o campo quisesse transformá-los em animais, era preciso continuar homem. E
assim ele se mantinha barbeado e limpo, não porque o regulamento mandasse,
mas porque esta era sua forma de resistir – recusando o consentimento.
Era o que os tornava “salvos”, o que os impedia de submergir, de se
tornar um muçulmano. Especialmente porque as leis do campo, não os
regulamentos, mas as leis fáticas de funcionamento do campo que os internos
aprendiam com a experiência, prescreviam que “a quem já tem, será dado; de
quem não tem, será tirado” (LEVI, 1988, p. 89-90). Logo, manter a
representação de disciplinado, ao mesmo tempo, resistindo em se manter
homem, era necessário para conquistar funções, privilégios e vantagens e,
220

deste modo, sobreviver no campo, pelo menos até a próxima “seleção” (a


câmara de gás) ou o próximo inverno polonês.

4.4.1- Limiar: Movimento, biopolítica em Schmitt?

Segundo Agamben (2005a), movimento é um conceito usado tanto pela


esquerda quanto pela direita, permanecendo, usualmente, sem uma definição
por parte daquele que o utiliza. Neste contexto, a única pessoa que teria
tentado definir este termo no campo jurídico e político foi Carl Schmitt, no
ensaio “Estado, Movimento, Povo” (Staat, Bewegung, Volk), no qual o jurista
alemão tenta delinear a estrutura constitucional do Estado nazista. Entretanto,
analisar este conceito no pensamento schmittiano não é uma tarefa fácil,
requerendo lucidez e clareza para se evitar o que Agamben (2005a) denomina
de “promiscuidade terminológica” quando se trabalha com um autor nazista.
Em “Estado, Movimento, Povo”, Schmitt (2001) parte da ideia de que a
Constituição de Weimar não estaria mais em vigor durante o Reich nazista,
uma vez que o seu espírito foi abolido com o decreto do Presidente de 12 de
março de 1933, que suspendeu a liberdade política, de opinião, consciência e
ação, bem como o pluralismo partidário. Posteriormente, a Lei de
Empoderamento, de 24 de março de 1933, se constituiu em uma constituição
provisória, em um momento em que o mundo liberal-democrata entrava em
colapso. No art. 1.o. desta lei, devidamente aprovada pelo Parlamento, foi
cancelada a separação liberal entre Executivo e Legislativo, com o governo
assumindo um direito legislativo. Com o decreto de 04 de outubro de 1933,
convocando as eleições para novembro do mesmo ano, a Alemanha vivenciaria
o que Schmitt (2001) denominou de “verdadeiras eleições”, não liberais, e,
portanto, sem a necessidade de escolha entre programas e ideologias
incompatíveis, responsáveis pela divisão do povo alemão em partidos. A
solução, deste modo, estaria no partido único nacional-socialista, o corpo
político no qual o movimento encontraria sua forma específica.
O movimento, neste sentido, é um dos elementos do Estado Nazista, o
lado politicamente dinâmico do mesmo e que penetra e lidera os outros dois –
o Estado e o povo. O Estado é a parte politicamente estática, formada pelo
aparato estatal e o serviço civil, consistindo no exército e nos funcionários civis.
221

Já o povo, é o lado apolítico, de administração autônoma, compreendendo a


ordem social e econômica. “Estado, Movimento e Povo” constituem, desta
forma, a imagem triádica da unidade política do Reich, em que cada um dos
elementos denota o todo, ao mesmo tempo em que indica um aspecto
específico e particular do mesmo. Eles são distintos, mas se movem lado a
lado, se articulam e se encontram em pontos decisivos, de diferentes maneiras
em épocas diversas.
No entanto, nesta relação, Schmitt (2001) reconhece que é o “Partido
que lidera o Estado e o Povo” (p. 14, tradução nossa131), e, para isto, precisa
de uma liderança firme e de uma organização estrita. Em outras palavras,
enquanto organização do movimento, a liderança política realiza tanto o
aparato estatal e a ordem social e econômica quanto a unidade política como
um todo, levando a uma superação da visão binária antitética liberal – entre
Estado e povo, governo e povo, poder estatal e liberdade individual, esfera
política e esfera privada apolítica.
O Estado nazista, com o corpo político liderando, tem, neste contexto, a
tarefa de superar e prevenir estas antíteses, superando a mentalidade liberal-
democrática e a divisão e o dualismo entre Legislativo e Executivo. Por isto, a
repartição de responsabilidades liberal deve ser substituída pela clara
responsabilidade do líder e as eleições devem dar lugar às seleções. Neste
sentido, o povo não é simplesmente a soma dos eleitores não governantes e
tampouco é o servidor civil o oposto ao cidadão. “O servidor civil é agora um
companheiro do povo na unidade política baseada na identidade étnica”
(SCHMITT, 2001, p. 17, tradução nossa132).
Na perspectiva schmittiana, o nacional-socialismo, na forma do partido,
seria, então, o fundamento de um Estado forte, capaz de assegurar e cultivar
toda substância verdadeiramente nacional. Sua força estaria no fato de que ele
é imbuído, de cima abaixo, em cada “átomo do seu ser”, pela ideia de
liderança. Esta, em um conceito essencialmente alemão da palavra, não
significaria simplesmente o ato de comandar ou governar burocraticamente a
partir de uma norma. A liderança é um conceito que vem inteiramente do
pensamento concreto do Movimento Nacional-Socialista, não sendo, assim,

131
“Party that carries State and People”.
132
“The civil servant is now a comrade of the people in a political unity based on ethnic identity”.
222

nem uma alegoria barroca ou uma representação nem uma ideia geral
cartesiana. É uma presença real que implica em uma identidade étnica
absoluta entre o líder e seus seguidores, como fonte da lealdade mútua. Deste
modo, a identidade entre representante e representado que Schmitt defende no
seu conceito de democracia como expressão homogênea do povo, em
contraposição ao seu sentido liberal, assume, aqui, uma forma racista.
E é justamente esta identidade étnica do povo alemão, premissa e base
de sua liderança, o princípio capaz de evitar que o poder do líder se torne
tirânico e arbitrário. Sem ele, o Estado nazista não existiria e sua vida legal
seria inimaginável, razão pela qual a ideia de raça esteve presente no
Congresso dos Juristas Alemães Nazistas em 1933, em Leipzig e, em especial,
no “fascinante” discurso do líder da Frente Legal Alemã, Dr. Hans Frank
(SCHMITT, 2001).
Na interpretação de Agamben (2005a), este modelo triádico schmittiano
teria como consequência a definição do movimento como o conceito político
decisivo quando o conceito democrático de povo, enquanto um corpo político,
está em falência - quando a democracia termina os movimentos surgem. Neste
sentido, é que se pode afirmar que não há movimentos democráticos, ponto no
qual as tradições revolucionárias de esquerda concordam com o nazismo e
com o fascismo.
A segunda implicação da teoria schmittiana está no seu argumento de
que o povo é um elemento apolítico cujo crescimento o movimento deve
proteger e sustentar; é o povo, então, o lado que cresce “sob a proteção e na
sombra das decisões políticas” (SCHMITT, 2001, p. 12, tradução nossa 133 ).
Como observa Agamben (2005a), Schmitt usa a palavra Wachsen (traduzida
no inglês como grow), que significa o crescimento biológico de plantas e
animais. Portanto, neste contexto, o povo é compreendido com um elemento
que se desenvolve no sentido biológico do termo, o que permite a Agamben
(2005a) afirmar que em Schmitt há um conhecimento implícito que ele “nunca
ousa articular, que é o seu caráter biopolítico” (p.02, tradução nossa134).
Assim, como consequência do movimento, o povo foi transformado de
corpo político constitutivo em população: uma entidade demográfica e, como

133
“growing under the protection and in the shade of the political decision”.
134
“never dares to articulate, of its biopolitical character”.
223

tal, não política, que o movimento tem que proteger, sustentar e deixar crescer.
Por conseguinte, o povo é hoje estritamente uma entidade biológica no sentido
foucaultiano do termo e é isto que torna o conceito de movimento necessário.
Para Agamben (2005a), se nós queremos repensar a biopolítica, não
podemos utilizar o conceito de movimento de maneira acrítica. Segundo o
autor, se continuamos a ler Schmitt, nos deparamos com o que ele denomina
de “aporia ameaçadora”: na medida em que o movimento é o determinante
político e o elemento autônomo e o povo é apolítico, então o movimento
apenas pode encontrar o seu ser político atribuindo ao corpo não político uma
cisão interna que permite sua politização. E, em Schmitt, esta cesura é a
identidade de espécie, ou seja, o racismo. É neste ponto da sua teoria que
Schmitt alcança sua mais alta identificação com o racismo, e, de acordo com
Agamben (2005a), sua maior corresponsabilidade com o nazismo.
No movimento,
sua política apenas pode ser fundada em sua
capacidade de identificar um inimigo dentro do povo, no
caso de Schmitt um elemento racialmente estranho. O
que ocorre no movimento é sempre uma cisão que corta
e divide o povo, neste caso, identificando um inimigo
(AGAMBEN, 2005a, p. 03, tradução nossa135).

E o elemento que é excluído em Schmitt retorna como o que deve ser


decidido: o político deve, pois, decidir sobre o não político. Isto pode ser racial,
mas também pode ser uma função de governo do elemento não político que é
a população, o corpo biológico da humanidade que precisa ser governado.
Embora não defina movimento, Agamben (2005a) apresenta algumas
indicações para a conceituação do termo, como a percepção de que o
movimento é a constituição de um poder pelo poder. Deste modo, não se pode
pensá-lo como externo ou autônomo na relação com o povo, da mesma
maneira que ele não pode ser considerado como um sujeito de decisão,
organização e direção do povo ou elemento de politização do mesmo.
A partir da ideia aristotélica de movimento como um ato sem fim, não
terminado, Agamben (2005a) vai afirmar que este conceito é sempre a relação
constitutiva com a ausência, com a falta de um fim. Movimento, então, é a

135
Its politics can only be founded on its capacity to identify an enemy within the people, in
Schmitt’s case a racially extraneous element. Where there is movement there is always a
caesura that cut through and divides the people, in this case, identifying an enemy.
224

impossibilidade, a indefinição entre o excesso e a deficiência e a imperfeição


de toda a política.
Segundo Luisetti (2011), a implicação desta análise de Agamben é que
este busca a absorção do conceito de biopolítica no domínio jurídico-político do
estado de exceção. Esta tentativa pode ser encontrada tanto no “Homo Sacer”
como no “Reino e a Glória”. Na verdade, trata-se de uma “virada” de Agamben
em direção a Schmitt, de maneira a neutralizar a descontinuidade empírica
que, de acordo com Foucault, a modernidade introduziu por meio da politização
da vida biológica.
Este é, aliás, para Luisetti (2011), o gesto favorito de Agamben – se
apropriar das categorias políticas schmittianas e transformá-las em dispositivos
ontológicos cuja função primordial é criar um plano de indistinção. É, neste
sentido, que Luisetti (2011) afirma que o projeto teórico de Agamben, de
entrelaçamento dialético entre a filosofia política schmittiana e a biopolítica
foucaultiana, tem como objetivo subordinar o último a uma autonomia
previamente desconstruída do primeiro.
Não só Agamben, mas, de uma maneira geral, a teoria política
contemporânea parece estar aprisionada em uma aporia dialética entre Schmitt
e Foucault; entre os seguidores da biopolítica que consideram a vida biológica
como a fonte direta do fenômeno político e, por outro lado, os conceitos
schmittianos, compreendidos como instrumentos teóricos que filtram e
fluidificam a vida nua, preservando a separação entre os sujeitos pré-políticos e
as normas impostas a eles.
Segundo Esposito (2008), a noção de biopolítica se tornou o centro do
debate internacional, inaugurando uma nova fase no pensamento
contemporâneo. Neste contexto, a conceito de biopolítica tem sido objeto de
uma luta em torno de sua configuração e significado, produzindo várias
interpretações e “tonalidades”.
Entretanto, para Luisetti (2011), é preciso ir além. Para o autor, Schmitt
não só estava consciente do terreno bio-histórico que sustenta sua filosofia
política, como na sua concepção sobre a guerra, como também explicitamente
localiza a soberania na esfera não política da vida.
Em suma, a crítica a Agamben está no fato de que ele transforma a
defesa biopolítica schmittiana da atividade política, de uma política da
225

vitalidade, da vida contra a estetização da política, em uma máquina sem


corpo, a partir do momento em que ele atribui uma autonomia ontológica ao
poder soberano, apagando a diferença de intensidade entre as ações políticas
e a vida nua. Este ‘apagamento’ estaria explícito na acepção agambeana
segundo a qual a decisão soberana da exceção é a base da estrutura jurídico-
política, e nela o que está incluído na ordem jurídica e o que é excluído dela
adquirem seu significado. Portanto, a decisão no estado de exceção agora age
minando os conflitos vitais e a existência política dos grupos, evitando a
localização schmittiana da soberania nas perturbações biopolíticas da vida,
tornando o estado de exceção, em Agamben, “ilocalizável” (LUISETTI, 2011).
A escolha agambeana da realidade ontológica do movimento tem, então,
como consequência que a imanência da atividade vital – que é pressuposto
essencial tanto da biopolítica de Schmitt quanto de Foucault – é suspensa em
uma zona de indiferença, em uma fronteira de indeterminação de uma cisão
ontológica.
Segundo Negri (2003), em uma primeira interpretação, a definição de
estado de exceção em Agamben está postulada em uma ontologia
indiferenciada, ou cínica ou pessimista, na qual cada elemento é retomado em
um jogo de soma zero de igual negatividade. Aqui o estado de exceção
aparece como um fundo indiferente contra o qual “todas as perspectivas são
neutralizadas e descoloridas” (p.01, tradução nossa136), de modo a trazer de
volta uma ontologia capaz de produzir significado em termos não destrutivos.
Ou seja, em Agamben, a realidade não produz significados. Não há, neste
caso, diferença entre exceção e poder constituinte, pois ambos estão no
mesmo plano da indistinção.
Neste ponto, a definição da biopolítica de Agamben se coloca como
indiferente aos antagonismos; tudo o que ocorre na bios é reduzido ao
indistinto da natureza, zoé. O efeito desta análise é paradoxalmente a
interpretação de que tudo o que acontece no mundo hoje parece ter sido fixado
sob um horizonte estático ou totalitário, sob o nazismo. Mas, para Negri (2003),
vivemos em um estado de exceção porque vivemos em uma permanente
guerra civil, na qual o positivo e o negativo entram em choque, ou seja, não há

136
“all perspectives are neutralised and discoulored”.
226

espaço aqui, como quer Agamben, para indistinção e indiferença.


Entretanto, Negri (2003) reconhece que é possível uma interpretação
mais “original e poderosa” da exceção agambeana, na medida em que o autor
desconstrói a biopolítica e a dialética hegeliana é superada. A biopolítica deixa
de ser analisada a partir de fora, como uma realidade independente, em uma
crítica que percebe a impossibilidade de uma dialética dos opostos. Agamben
vai além do estado de exceção, caminhando através dele; demonstrando como
a imanência pode ser realista e revolucionária.
Já para Luisetti (2011), em nome das categorias jurídico-políticas
schmittianas e do messianismo judeu, herança de Walter Benjamin, o que
Agamben busca é minar a estrutura conceitual da biopolítica de Foucault. Nas
palavras do autor, em seus ensaios e monografias,
Agamben utiliza os principais conceitos e instrumentos
metodológicos de Foucault – aparato e genealogia,
évenementialisation e poder-saber, objetivando o
historicismo e vitalismo foucaultiano e o substituindo por
uma onto-teologia da vida contemplativa. O fundo
epistemológico do pensamento biopolítico de Foucault é,
então, enfraquecido nos domínios da teologia e da
exegese textual (p. 56, tradução nossa137).

Esta mesma estratégia é utilizada, por Agamben, em o “Reino e a


Glória”, no qual afirma, de maneira explícita, que seu estudo é uma tentativa de
expandir e completar a questão foucaultiana sobre a genealogia da biopolítica
e da governamentalidade. O que Agamben realmente faz nesta obra é, de
acordo com Luisetti (2011), se “livrar” de uma pressuposição chave de
Foucault, a de que a descontinuidade epistemológica foi introduzida quando, no
século XVIII, a vida biológica entrou na história, substituindo esta tese
genealógica pela vida eterna. Como implicação, a vitalidade natural se torna
subordinada a uma forma de vida mais elevada, théoria; a conexão entre poder
e saber se perde e a teoria de Agamben vai em direção do saber puro da
filosofia e da teologia, literatura e linguística, traindo, assim, a inspiração
arqueológica de Foucault e a sua preferência pela historicidade, disciplinas
positivas e eventos contingentes.
137
Agamben engages Foucault´s main concepts and methodological tools – apparatus and
genealogy, événenementialisation and pouvoir-savoir – targeting Foucauldian historicism and
vitalism and replacing them with an ontotheology of contemplative life. The epistemological
background of Foucault´s biopolitical thought is thus undermined and aborved into the domains
of theology and textual exegesis.
227

E, nesta eulogia da théoria agambeana, Luisetti (2011) reconhece, como


também no cabalismo benjaminiano, o romantismo político tão criticado por
Schmitt, no qual os conflitos externos são suspensos e estetizados. Assim, ao
situar as tensões biopolíticas no reino suspenso da vida nua, a dialética
negativa de Agamben no “Homo Sacer” atinge o objetivo último do romantismo
– ubi nihil vales, ibi nihil velis, ou seja, quando você não vale nada, você será
nada.

4.5- Da exceção à exceção-como-regra: o excepcionalismo agambeano

Segundo Huysmans (2008), Schmitt e Agamben são os dois autores-


chave no idioma da exceção nos estudos políticos e internacionais. Ambos
analisam as formas excepcionais da regra, apresentam concepções
particulares sobre a natureza geral da política, bem como falam o idioma da
exceção e servem como base para o excepcionalismo, ou seja, o conceito do
político que é investido deste idioma.
No entanto, para Huysmans (2008), os excepcionalismos destes autores
são diferentes – o trabalho de Schmitt fundamenta a política no conceito de
exceção, enquanto Agamben a fundamenta na concepção de exceção-como-a-
regra, cujo paradigma seria o campo e Auschwitz.
Deste modo, embora estes dois autores sejam normalmente citados de
maneira conjunta, suas teorias apresentam leituras diferentes da exceção.
Enquanto Schmitt trabalha com uma interpretação constitucionalista e legal da
exceção, Agamben tenta conceituar o que a política excepcional significa
quando estes conceitos constitucionais foram completamente demolidos.
Em particular, Agamben parte de dois pressupostos: a relação entre lei e
política, que é central na teoria schmittiana, entrou em colapso – lei e política
se tornaram sistemas independentes ou são unidos em uma “pessoa”, ou seja,
a lei ainda se refere à política, mas não é mais um suporte para ela; e o
problema chave para se entender da política não é, como colocava Schmitt,
compreender como manter a unidade política quando forças sociais em luta
ameaçam desintegrá-la, mas qual é a relação entre poder soberano e vida
biológica, sem qualquer mediação. Assim, enquanto Schmitt foca na
sociedade, nas forças sociais no reino da política, Agamben foca na vida como
228

tal (HUYSMANS, 2008).


Agamben se aproxima bastante de Schmitt em sua leitura da soberania,
a conceitualizando como o limite entre a lei e a anomia. A soberania é tanto
parte como também é externa ao sistema constitucional legal, ou seja, é uma
aporia. Para Agamben, o poder soberano tem algo de arbitrário e uma
capacidade de impor a norma sem mediação. O que caracteriza a soberania,
portanto, é a relação dialética entre o poder político legalmente mediado e o
poder político não mediado.
Neste sentido, na teoria de Agamben, são duas as concepções que
articulam o limite constitucional entre lei e anomia na política – a relação entre
poder constituído e poder constituinte, e a tensão entre a capacidade soberana
de suspender a lei e a capacidade legal de trazer a suspensão de volta para
dentro da lei (HUYSMANS, 2008). A questão central, deste modo, é sobre as
condições sob as quais pode ser legitimado o exercício do poder que
ultrapassou o limite e perdeu sua legalidade. Quando o reconhecimento da
legalidade falha, normalmente se recorre a prerrogativas extralegais como a
ética e a segurança nacional, como comprovam os inúmeros casos em que o
direito internacional foi desrespeitado.
Entretanto, apesar desta proximidade de Schmitt na definição da
soberania, para Agamben, não se trata de como fazer política no interstício
entre lei e anomia e nem é uma questão de politização intensificada de
problemas constitucionais, mas de natureza da política quando o limite se torna
irrelevante e a política se transforma de exceção em exceção-como-regra.
Para Huysmans (2008), as diferenças entre Agamben e Schmitt ficam
mais claras quando se analisa a leitura do primeiro sobre o debate entre este
último e Walter Benjamin (entre 1925 e 1956), em especial, sobre a anomia.
Segundo o autor, Schmitt tenta trazer a anomia de volta para o campo da lei ao
posicionar a soberania como aquela que, ao mesmo tempo, ordena a vida
anômica e a legal e que, então, tem a capacidade de impor regras na vida
anômica. Em outras palavras, a anomia nada mais é que um vácuo normativo
que precisa ser colocado em um quadro normativo, e, para tanto, o poder
soberano pode agir fora das normas e da lei a fim de constituir uma ordem
constitucional onde esta não existe. O poder soberano trabalha no limiar entre
a lei e a anomia.
229

Benjamin, no entanto, retira a anomia completamente do âmbito da lei. A


anomia é vida pura, é a emancipação da vida da lei, é uma forma de violência.
Se Schmitt traz a violência para um contexto jurídico, incluindo a violência no
direito por sua própria exclusão, em Benjamin, ela é pura e anômica
(AGAMBEN, 2004a), e o estado de exceção é uma zona de absoluta
indeterminação entre lei e anomia, na qual as duas deixaram de se relacionar e
de estruturar a prática política e societária (HUYSMANS, 2008).
Diante do estado de exceção nazista, que nunca foi revogado, Schmitt
via uma ditadura soberana que levaria ao fim da Constituição de Weimar e à
instauração de uma nova constituição. Mas Schmitt não admitia que o estado
de exceção se confundisse inteiramente com a regra (afinal, era um
dualista138), passando esta última a viver única e exclusivamente da exceção.
Para Schmitt, a ordem jurídica se baseia no dispositivo da exceção, ou seja, na
possibilidade de tornar a norma aplicável, suspendendo, de maneira provisória,
sua eficácia. Mas quando regra e norma se tornam indiscerníveis, como ocorria
no Terceiro Reich, a “regra devora a si mesma” e a decisão soberana se torna
incapaz de realizar o seu papel (AGAMBEN, 2004a, p.91).
Contra Schmitt, Benjamin afirma que estado de exceção é o que
“vivemos” e que não pode ser diferenciado da regra. Não há elo entre violência
e direito, mas apenas uma zona de anomia na qual age uma violência pura,
entendida não como algo substancial, mas relacional, na sua (não) relação com
algo exterior, como um não meio quanto a um fim.
Em suma, para Agamben (2004a), o debate sobre o estado de exceção
entre Schmitt e Benjamin pode ser resumido como:
A discussão se dá numa mesma zona de anomia que, de
um lado, deve ser mantida a todo custo em relação com o
direito e, de outro, deve ser também implacavelmente
libertada dessa relação. O que está em questão na zona
de anomia é, pois, a relação entre violência e direito – em
última análise, o estatuto da violência como código da

138
Para Pasquino (2003), a exceção significa a existência de uma norma (no direito público, a
Constituição ou governo regular), a derrogação desta norma e a sua justificação por meio da
urgência ou emergência de uma situação e do princípio superior da necessidade de se
defender a Constituição ainda que com o sacrifício das leis. Há, deste modo, uma dicotomia – o
governo regular e o governo de exceção. É a escola dualista, que se contrapõe à escola
monista, segundo a qual, há uma identidade entre a ação do governo e o princípio de que a
saúde do povo é a única e suprema lei. Desta última fazem parte os autores absolutistas, entre
eles Thomas Hobbes.
230

ação humana. Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta


reinscrever a violência no contexto jurídico, Benjamin
responde procurando, a cada vez, assegurar a ela –
como violência pura – uma existência fora do direito (p.
92).

Assim, seguindo a linha benjaminiana, Agamben realiza uma cisão


radical entre lei e política, que se tornaram simplesmente práticas de vida que
podem se referir uma a outra, mas que não estão, na verdade, relacionadas.
Não há mais dialética entre lei e anomia e o debate sobre a suspensão de
direitos em momento de ameaça severa, sobre o equilíbrio entre liberdade e
segurança, afirmando a necessidade de uma decisão do Executivo em face de
uma crise severa, é ilusório. Entretanto, este debate tem um papel ideológico –
alimentar a ideia que a lei ainda tem algum controle sobre a vida e a política,
enquanto as práticas que são implantadas são separadas radicalmente de
qualquer embasamento legal. A relação entre lei e política se tornou
ontologicamente irrelevante. A exceção se tornou exceção-como-regra e isto
significa que a política não mais precisa da lei para se legitimar e que a
normalização da exceção se constitui nas práticas que separam, de maneira
radical, poder e violência da lei (AGAMBEN, 2004a, HUYSMANS, 2008).
Contudo, apesar das discordâncias com a teoria schmittiana da
soberania, a exceção-como-regra de Agamben acaba produzindo efeitos
similares à teoria que ele critica. Tanto em Schmitt quanto em Agamben, o
societal é excluído do diagrama político.
Em Schmitt, o foco da soberania está na tensão entre a lei e a
necessidade de uma transgressão governamental e na absorção das pessoas
na figura do líder por meio do nacionalismo e da política do medo. A sociedade
perde sua capacidade política se tornando um povo cuja existência se dá pelo
medo do inimigo e na figura do Führer. É o que Huysmans (2008) denomina de
espectro da ditadura. No entanto, apesar da despolitização da sociedade,
permanecem na abordagem schmittiana da política as categorias sociais e as
mobilizações, isto porque na época o significado político e a constituição do
societal era uma questão crucial da batalha política entre posições
conservadoras e progressivas tanto na teoria política quanto na própria política.
Como resultado, em Schmitt, o significado político da sociedade pode ser
contestado e debatido, mas não ontologicamente apagado do quadro político,
231

como vai ocorrer em Agamben (HUYSMANS, 2008).


Em Agamben, o espectro da ditadura é substituído pelo espectro da vida
pura ou nua ou anômica; é a vida que tem significado político e precedência
sobre as categorias sociais, como classe, exclusões socioeconômicas e o
pluralismo de interesses. Estas últimas categorias não são excluídas da
política, mas ressignificadas em termos biopolíticos, com a distinção entre vida
anômica e vida mediada. A primeira é a vida nua, não mediada, não
relacionada a fatores externos, sendo seu significado independente dos fins
que busca atingir. É a vida dos excluídos politicamente, e isto requer a
destruição de qualquer possibilidade de ordem compreendida em termos de
uma sociabilidade política estruturada por meio de vários processos que fazem
uma mediação entre a vida e os fins coletivos.
Já a vida mediada, dos cidadãos politicamente incluídos, constitui-se em
inúmeras subjetividades políticas-sociais, como classes e grupos de interesses,
por meio da mediação dos interesses, de relações socioeconômicas e da
nacionalidade (HUYSMANS, 2008).
A exceção de Agamben, com sua vida não mediada, não apenas
despolitiza a história das lutas sócio-políticas, como também os lugares destas
lutas.
A metafísica da vida pura busca apagá-los
ontologicamente. O resultado é uma visão política
apocalíptica na qual não o medo do inimigo, mas o
colapso da ordem em uma vida anômica, auto
referenciada é a definição dos princípios políticos.
Agamben o faz se referindo à emergência da vida pura
como uma ‘catástrofe’ que destrói a ordem político-
jurídica e sua concepção de soberania (HUYSMANS,
2008, p. 175, tradução nossa139).

A política da exceção é, então, uma luta entre uma vida que é objeto de
uma governança sem qualquer mediação generalizada e a liberdade da vida
como anomia, fundamentalmente contingente e não mediada. A escolha, em
Agamben, é, desta forma, entre duas formas de poder político – o campo, no
qual o poder age diretamente sobre os corpos e os reduz a uma vida

139
The methaphysics of pure life seeks to ontologically erase them. The result is an apocalyptic
political vision in which not fear of the enemy but the collapse of order into anomic, self-
referential life is the defining principle of politics. Agamben captures this by referring to the
emergence of pure life as a ‘catastrophe’ that collapses the juridical-political order and its
conception of sovereignty.
232

meramente física; e a anomia como a matriz revolucionária (violência


benjaminiana) de uma política de vida, na qual a vida não é um objeto, mas um
sujeito do poder (HUYSMANS, 2008).
O estado-de-exceção como regra de Agamben é, assim, o limite da
política de exceção, na qual já não há mais relação dialética entre lei e anomia,
e de sua realização, quando a exceção define, de maneira autônoma, o
político.

4.5.1- Limiar: Foucault contra Foucault. Uma crítica foucaultiana ao


excepcionalismo

O discurso não é a vida: seu tempo não é o de vocês;


nele, vocês não se reconciliarão com a morte; é possível
que vocês tenham matado Deus sob o peso de tudo o
que disseram; mas não pensem que farão, com tudo o
que vocês dizem, um homem que viverá mais que ele
(FOUCAULT, 2010, p.236).

As práticas antiliberais atuais nos regimes liberais, especialmente após o


11 de setembro, têm sido analisadas a partir do que Huysmans (2008)
denominou de jargão da exceção – o excepcionalismo. O conceito de estado
de exceção e do inimigo público schmittiano têm sido largamente utilizados na
análise destas práticas e um dos pontos centrais do debate é a ideia de que a
exceção não é mais a exceção e sim a norma. O estado de exceção-como-
norma de Agamben, no qual não há mais dialética entre norma e exceção, lei e
anomia, poder constituído e poder constituinte.
No entanto, enquanto Schmitt endossa o excepcionalismo como uma
escolha política, Agamben analisa a exceção como um diagnóstico de nossos
tempos, uma provocação sobre o que está errado no mundo e sobre o que a
política não deveria ser. Segundo Huysmans (2008), mais do que um
diagnóstico, Agamben introduz uma concepção particular da política e
estabelece parâmetros para a mesma - é a tensão entre o poder biopolítico
soberano, cuja matriz é o campo, e o poder da vida anômica que o desafia, a
anomia que significa meios sem um fim.
A implementação deste jargão da exceção e, em particular, da
concepção de Agamben, teve consequências nefastas – a perda do significado
233

político do povo como uma multiplicidade de relações sociais que condicionam


a política e são constituídas pela mediação de formas e processos variados,
tais como tecnologia, ciência, instituições. O diagnóstico da exceção-como-
regra é, em vasta medida, portanto, despolitizante. A vida nua não é política e
se refere apenas à vida concreta, sem mediações socioeconômicas, entre
outras.
Lendo a política de exceção como a lente central da
concepção da política moderna, como Agamben e
Schmitt o fazem, apaga do conceito de política uma
história rica e constitutiva as lutas sociopolíticas,
tradições de pensamento ligadas a esta história, e
lugares-chave e temporalidades da política como também
os processos centrais através dos quais as resistências
corporais individualizadas ganham seu significa
sociopolítico (HUYSMANS, 2008, p.177, tradução
nossa140).

Na política de Agamben não há lugar para resistência, em uma


perspectiva da biopolítica que contrasta com Foucault. Se para o primeiro, a
biopolítica produz a vida nua, para o último, a vida biológica não é vazia, um
espaço não mediado. Pelo contrário, a vida é constituída pelas mediações, pelo
que Foucault denominou de dispositivos biopolíticos.
Ao invés da vida nua e anômica, a vida biopolítica é constituída por meio
de uma mediação extremamente detalhada do ser individual e social e
mergulhado em uma história multidimensional de interações estratégicas e
táticas – dispositivos de estratégias múltiplas que conectam meios e fins e que
têm sido praticados e defendidos em diferentes tempos e lugares. Assim,
enquanto a característica da biopolítica de Agamben é a anomia, a de Foucault
“são mediações extremamente detalhadas e fragmentadas que produzem,
reproduzem e mudanças estratégicas, práticas governamentais e resistências a
ela” (HUYSMANS, 2008, p. 178, tradução nossa141). Se o jargão da exceção
interpreta a política em seu limite, Foucault a interpreta a partir das práticas que
a constituem.
Mas a grande questão está no fato de que o idioma da exceção e,

140
Reading the politics of exception as the central lens onto modern conceptions of politics. As
both Agamben and Schmitt do, erases from the concept of politics a rich and constitutive
history, and key sites and temporalities of politics as well as the central processes through
which individualized bodily resistances gain their political socio-political significance.
141
“extremely detailed and fragmented mediations that produce, reproduce, and shift strategic,
governamental practice and resistance to it.”
234

principalmente, da exceção-como-regra, buscam compreender a natureza da


política democrática a partir da perspectiva de seu colapso. Para Agamben, o
ponto de referência dos governos democráticos europeus desde meados do
século XX é o conceito limite de campo. Já Schmitt define a política a partir do
espectro da ditadura. Ambos, portanto, conceitualizam a política a partir do
limite absoluto da governança democrática, tanto em sua forma liberal quanto
socialdemocrata. Não é surpresa, deste modo, segundo Huysmans (2008), que
o povo, categoria central da democracia, seja excluído do jargão da exceção.
O presente que Agamben diagnostica e o futuro que prevê é o da
democracia liberal caminhando rumo a um totalitarismo biopolítico cujo
paradigma é o campo, no qual, diferentemente da biopolítica foucaultiana, não
há espaço para a resistência e para a mudança.
Um outro grande problema do excepcionalismo, segundo Neal (2006), é
que esta perspectiva considera o 11 de Setembro como um grande evento, um
break, um momento excepcional que, desta forma, requer medidas
excepcionais. A ideia do “evento” nada mais seria que parte do processo de
legitimação das táticas excepcionais, por meio do discurso da ameaça, da
urgência, da emergência e da exceção.
Entretanto, o que se coloca como o “novo” apenas reafirma o mesmo – a
permanência das prerrogativas do poder soberano excepcional, ou seja, as
figuras do novo e do mesmo, segundo Neal (2006) se reforçam. “O novo, a
ruptura, o evento, a exceção, têm sido usados para revelar a continuidade do
mesmo do poder soberano” (p.35, tradução nossa142).
Neste contexto, o que Schmitt faz é usar a contingência do evento, a
possibilidade real da exceção para reafirmar a necessidade política e
metafísica do excepcional do poder soberano estatocêntrico nacional. A
exceção como “um limite contingente e estrutural do positivismo”, na qual o
“executivo soberano deve poder agir sem constrangimentos legais ou
constitucionais" (NEAL, 2007, p. 2, tradução nossa 143 ). O soberano, nesta
perspectiva, é elevado a uma posição transcendental, acima da própria
contingência, decidindo, na lógica circular schmittiana, não só a reação à

142
“The new, the rupture, the event, the exception, has been used to reveal the continuing
sameness of sovereign power”.
143
“the contigent and structural limit of positivism”. “The sovereign executive must be able to act
without constitutional or legal constraints”.
235

exceção, mas a própria existência da mesma.


(...) O soberano de Schmitt irá dominar a contingência tão
logo não haja constrangimentos ao poder soberano
excepcional. Portanto, há, no trabalho de Schmitt, um
argumento normativo mal dissimulado, segundo o qual o
soberano deve ter prerrogativas excepcionais ilimitadas
(e autodeclaradas) em tempos de exceção. Se o
soberano falha em demonstrar a capacidade para o
poder soberano excepcional, então, outro que o possa
emergirá, estruturalmente. O detentor da soberania pode
mudar, mas a soberania nunca morre (NEAL, 2007, p.2,
tradução nossa144).

Da mesma forma, Agamben considera o problema do excepcionalismo


soberano como o grande destino histórico-transcendental do Ocidente. Deste
modo, em ambos, há nesta transcendência uma reificação do soberano e da
soberania.
Contudo, segundo Foucault (2003), é preciso cortar a “cabeça do rei”, do
Leviatã, o personagem central de todo o arcabouço jurídico ocidental e da
teoria da soberania. A recuperação do direito romano durante a Idade Média
nada mais foi que um instrumento teórico que permitiu a constituição de um
poder monárquico, autoritário, administrativo e absoluto. Durante este período,
a função do direito é o de fixar a legitimidade do poder. Em outras palavras, o
problema central em torno do qual se organiza a teoria do direito é o problema
da soberania, seja para revestir o poder do rei como absoluto, baseado em um
direito fundamental, seja para limitar este mesmo poder.
Esta teoria da soberania foi eficaz como um mecanismo de poder efetivo
na monarquia feudal, contribuiu para a formação das grandes monarquias,
sendo que nos séculos XVI e XVII foi parte do discurso dos que buscavam
limitar e dos que buscavam fortalecer o poder régio e, finalmente, no século
XVIII, vai ser, em Rousseau e em outros teóricos da época, uma arma para
construção, contras as monarquias administrativas, autoritárias ou absolutas,
de um modelo alternativo – as democracias parlamentares (FOUCAULT, 2003).
E, mesmo com o aparecimento das disciplinas nos séculos XVII e XVIII

144
(...) Schmitt’s sovereign will conquer contingency so long as there are no constraints on
exceptional sovereign power. Therefore there is a barely concealed normative claim in Schmitt’s
work that the sovereign should have unlimited exceptional prerrogatives in (self-declared) times
of exception. If the nominal sovereign fails to demonstrate the capacity for exceptional
sovereign power, then another will emerge, structurally, who can. The barer of sovereignty may
change, but sovereignty never dies.
236

e, posteriormente, com a biopolítica, a teoria da soberania continuou a existir. E


a sobrevivência deste “soberanocentrismo” é o que Neal (2006, 2007) critica no
excepcionalismo de Schmitt e Agamben.
Assim, de acordo com Neal (2006):
(...) são as próprias abordagens teóricas que perpetuam
as estruturas soberanas dos discursos. Discursos de
excepcionalismo reificam uma certa visão da soberania:
relato de decisão sob condições de contingência;
nomeação, interpretação e representação por meio de
processos autoritários; a autorização da autoridade de
acordo com certas condições de necessidade; resolução
ao ponto da contradição; soberania de julgamento no
limite do normal e do excepcional. É como se o discurso
do excepcionalismo contivesse um discurso oculto, um
retorno ao mesmo, um ato transcendental que lhes dá
origem (NEAL, 2006, p. 36, tradução nossa145).

Mas se os acontecimentos após o 11 de Setembro não podem ser lidos


como uma ruptura no regime liberal ou um sinal de uma distopia biototalitária,
como fazê-lo? Segundo Neal (2006), através de uma leitura na qual as
transformações e as recorrências sejam descritas no nível da aparência e não
através do recurso à ruptura transcendental, à contingência metafísica ou à
necessidade objetiva. A política contemporânea não deve ser descrita nem
como uma quebra na história, na qual tudo mudou, nem como uma
confirmação da identidade formal de soberania, segurança e política moderna.
A solução proposta por Neal (2006) é uma abordagem arqueológica da
questão, o que significa rejeitar oposições dualísticas ou dialéticas de ruptura e
continuidade, de norma e exceção, do original e do banal, do regular e do
irregular; considerar os discursos (no sentido foucaultiano) não como uma
irrupção repentina, mas em termos de condições históricas de possibilidade,
que são discursivas e não formais.
O método arqueológico foucaultiano é, portanto, aquele que busca um
descentramento, a não possibilidade de um sistema único de diferenças, que
se dividem e se reconstroem em um dando momento repentino, por meio de

145
(...) it is the theoretical approaches themselves that perpetuate the ‘sovereign’ structures of
discourses. Discourses of exceptionalism reify a certain vision of sovereignty: accounts of
decision under conditions of contingency; naming, interpretation and representation through
authoritative processes; the authorization of authority according to certain conditions of
necessity; resolution at limit/threshold/border of the normal and the exceptional. It is as if the
discourse of exceptionalism contains a ‘hidden discourse’, a return of the ‘same’, a
‘transcendental act that gives them origin.
237

um evento. Para a arqueologia, “o mesmo, o repetitivo, e o ininterrupto


constituem um problema tanto quanto as rupturas; (...) o idêntico e o contínuo
não são aquilo que é preciso reencontrar no fim da análise” (FOUCAULT, 2010,
p. 195).
A arqueologia não é um instrumento interpretativo, mas descritivo, que
não busca as origens, os atos fundadores, ou uma fenomenologia histórica, e
sim a descoberta de uma série da fatos empíricos. Seu objetivo é estabelecer
limiares, rupturas e transformações, buscando a especificidade das práticas
discursivas.
É um discurso sobre discursos, mas não pretende neles
encontrar uma lei oculta, uma origem recoberta que só
faltaria libertar; não pretende tampouco estabelecer, por
si mesmo e a partir de si mesmo, a teoria geral da qual
eles seriam os modelos concretos. Trata-se de
desenvolver uma dispersão que nunca se pode conduzir
a um sistema único de diferenças, e que não se relaciona
a eixos absolutos de referência; trata-se de operar um
descentramento que não permite privilégio a nenhum
centro (FOUCAULT, 2010, p. 230).

É uma análise empírica, da prática, do aparecimento (e não origem) dos


discursos e não do “ser” do homem, do sujeito consciente, do “autor” e suas
intenções.
Neste sentido, Foucault (2010) nega uma transcendência discursiva e se
recusa, no momento da descrição do discurso, a relacioná-lo a uma
subjetividade. Não é, entretanto, uma negação do problema do sujeito, mas da
sujeição transcendental. O que a arqueologia busca é fazer um
descentramento do sujeito, refutando sua soberania e procurando definir as
posições e as funções que o mesmo pode ocupar na diversidade dos
discursos. O sujeito é, então, situado e dependente, mas não pode ser
considerado titular; o eixo arqueológico não é o da consciência-conhecimento-
ciência, e sim o da prática discursiva-saber (domínio constituído por diferentes
objetos que podem ou não adquirir um status científico) – ciência.
Por conseguinte, segundo Foucault (2010), as principais características
deste método seriam : 1- não é interpretativo ou formalizador, buscando definir
os discursos enquanto práticas que obedecem a regras, e não representações,
imagens ou discursos “ocultos” dentro do discurso; 2- procura definir o discurso
em sua especificidade, em sua identidade, no sentido em que o jogo das regras
238

que utiliza é irredutível a qualquer outro; 3- não é ordenado pela figura


soberana da obra, pois o sujeito criador, enquanto sua razão de ser e princípio
de sua unidade, lhe é estranha. Além disto, a obra é uma “unidade” construída,
não sendo imediata, certa ou homogênea; 4- não busca a origem e nem quer
reconstituir o que foi pensado, almejado ou desejado pelo homem no instante
em que proferiram o discurso.
O método arqueológico não é, deste modo, teleológico nem busca
invenções ou a originalidade e sim a regularidade dos enunciados 146 , sem
hierarquia de valor - os campos homogêneos de regularidades enunciativas. O
que ele quer é estabelecer um campo efetivo de aparecimento, as regras de
formação e as condições de possibilidade do discurso, ou seja, das condições
de sua realização, nas quais se exerce a função enunciativa.
A arqueologia também não é a-histórica, ou seja, Foucault (2010) não
nega a história, mas sim sua abordagem como algo contínuo, teleológico,
causal, portadora de uma consciência constituinte. Foucault não busca uma
estrutura (e, portanto, rejeita o rótulo de estruturalista, embora reconheça o uso
deste método no “Nascimento da Clínica”), um discurso universal a todos os
homens de uma época, mas as diferenças, as opiniões opostas e as escolhas
contraditórias dentro de uma mesma prática discursiva. Ele recusa qualquer
tentativa de uma periodização totalitária das formações discursivas 147 , de
criação de épocas – na verdade, o que existe são períodos enunciativos, uma
vez que a ordem arqueológica “não é nem a das sistematicidades, nem a das
sucessões cronológicas” (FOUCAULT, 2010, p. 167), mas de paralelismos.
Deste modo, para Neal (2006), o que Foucault oferece é uma forma de
análise que permite combinar a descrição de formações discursivas

146
Os enunciados são, segundo Foucault (2010), a unidade elementar do discurso, não sendo
o equivalente da frase e nem requerendo, necessariamente, uma proposição. É composto de
signos, mas também não se resume a eles; não é inteiramente linguístico e nem
exclusivamente material. É um modo singular de existência, que exerce uma função – uma
função de existência que pertence aos signos; a função enunciativa.
147
Foucault (2010) define as formações discursivas como “No caso em que se puder
descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso
em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder
definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (p. 43).
“(...) uma formação discursiva se define (pelo menos quanto a seus objetos) se se puder
estabelecer um conjunto semelhante; se se puder mostrar como qualquer objeto do discurso
em questão aí encontra seu lugar e sua lei de aparecimento; se se puder mostrar que ele pode
dar origem, simultânea ou sucessivamente, a objetos que se excluem, sem que ele próprio
tenha que se modifica” (p.50).
239

historicamente situadas com uma compreensão de como estas configurações


dispersas são transformadas em sua expressão e exercício contemporâneo.
Não é, entretanto, uma simples questão de sucessões, progressos ou
evoluções ou de reduzir o novo à continuidade, mas de
descrever o novo em termos de uma relação específica e
complexa de regularidades temporalmente e
espacialmente dispersas como horizontes plurais e não
singulares. O arquivo não é um determinante fixo, mas
um corpo amorfo e fungível de condições históricas e de
possibilidades para declarações contemporâneas,
eventos e transformações (NEAL, 2006, p. 37, tradução
nossa148).

A arqueologia, então, procura descrever o histórico e não o formal, ideal


ou transcendental, suprimindo os temas da expressão e do reflexo, da
expressão e da simbolização; o discurso não é pura idealidade. O que ela
busca são as condições de possibilidade histórica para o surgimento de
práticas discursivas149 e enunciados, o que os tornou possíveis, as relações
específicas e regularidades do objeto, afirmações, conceitos e estratégias que
constituem o arquivo – a lei do que pode ser dito, o sistema que governa a
aparência das declarações como eventos únicos, ou o que Foucault (2010)
denominou de sistema geral de formação e transformação dos enunciados.
Em suma, a arqueologia tem como objetivo descrever discursos, que
não são obras ou teorias, mas conjuntos, unidades autônomas, com regras e
sem sujeitos. É a descrição do domínio das coisas ditas, em sua
especificidade, sua condição de surgimento, as formas de seu acúmulo e
encadeamento, não causais e não evolutivas, e suas regras de transformação
e suas descontinuidades.
O foco está, desta maneira, na análise dos discursos, o que não significa
um foco exclusivo na linguagem. Discurso é linguagem, mas também
estruturas extra discursivas, práticas e posições de autoridade. Segundo
Foucault (2010), “Trata-se de revelar as práticas discursivas em sua

148
Describe the new in terms of a complex and specific relation of temporally and spatially
dispersed regularities with plural, not singular, horizons. The archive is not a fixed determinant,
but an amorphous and fungible body of historical conditions of possibility for contemporary
statements, events and transformations.
149
“(…) conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço,
que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica,
geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 2010,
p. 133).
240

complexidade e em sua densidade; mostrar que falar é fazer alguma coisa (...)”
(p. 234). “(...) de não mais tratar os discursos como conjuntos de signos
(elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas
como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam” (p.55).
Aplicando ao excepcionalismo, a arqueologia não buscaria descrevê-lo
em termos de unicidade ou de identidade ou de reduzi-lo a um horizonte
analítico único de norma e exceção, política e lei, ou política e segurança. Pelo
contrário, seu objetivo seria o de “pluralizar” os horizontes. Ao invés de buscar
unidade, origens escondidas ou expressões de uma consciência soberana nas
formações discursivas, a análise está nas relações e suas transformações
entre objetos, declarações, conceito e estratégias; em descrever correlações
dentro de sua particularidade, especificidade e positividade histórica. É tentar
compreender como determinados “eventos” emergiram, e não outros, ou seja,
suas condições históricas de possibilidade. Segundo Foucault (2010), a
arqueologia é multiplicadora e não unificadora.
Mas porque utilizar a arqueologia e não a genealogia na crítica
foucaultiana ao excepcionalismo?
Segundo Neal (2006), esta escolha pode ser justificada por 4 motivos: 1-
por ser a arqueologia mais próxima à estrutura dos argumentos de Agamben e
Schmitt, autores que critica pelo excepcionalismo. Agamben, inclusive, faz uma
leitura arqueológica e não genealógica de Foucault; 2- a ideia de força e do
campo de forças da genealogia está presente no excepcionalismo e, portanto,
não seria cabível como instrumento de sua crítica; 3- Foucault, posteriormente,
se afasta da ideia genealógica (e ambígua para Neal) da história como
imposição de violência e dominação (hipótese Nietszsche); 4- genealogia e
suas tecnologias do poder são insuficientes para explicar o excepcionalismo,
pois este traz questões profundas sobre o funcionamentos dos princípios
políticos e dos discursos.
De qualquer modo, como lembra Neal (2006), a arqueologia não
trabalha exclusivamente com discursos e a genealogia com práticas e, antes
de serem excludentes, se completam e, muitas vezes, se sobrepõem 150 .

150
É interessante perceber que Foucault, por diversas vezes, usa os termos arqueologia e
genealogia de maneira indistinta. Em “O Nascimento da Biopolítica”, ele se propõe a fazer uma
genealogia de regimes veridicionais a partir dos discursos. “Tratar-se-ia da genealogia de
241

Arqueologia é um método que analisa as discursividades locais enquanto a


genealogia é uma tática que traz à tona, após estas análises, os
conhecimentos que foram liberados por elas (FOUCAULT, 2003).
Assim, do mesmo modo que Foucault nega a análise do poder por meio
da sucessão soberania-disciplina-biopolítica, argumentando que elas coexistem
e se articulam, o mesmo pode ser dito em relação a suas “fases”:
estruturalismo-arqueologia-genealogia. A crítica ao excepcionalismo em Neal
(2006) é, então, uma crítica arqueológica, embora a arqueologia de Foucault
não possa ser totalmente dissociada de outros elementos do seu pensamento.
Neste contexto, de acordo com Neal (2006), Schmitt e Agamben têm
uma perspectiva que contrasta com um princípio básico da arqueologia,
segundo o qual o discurso não é um ideal, algo a-histórico. Estes autores
trabalham a categoria do excepcional como um fenômeno unificado e contínuo
e não disperso e particular, conservando as categorias binárias, e realizando
uma reificação da exceção e do excepcionalismo. Apesar de Agamben,
conforme ele mesmo afirma em “Signatura Rerum” (2009), fazer uso do método
arqueológico, ele não realiza descentramentos e mantém as dualidades.
Em uma entrevista em 2006 (COSTA, 2006), Agamben assume o uso do
método arqueológico em sua trilogia “Homo Sacer”, afirmando que em suas
pesquisas as antinomias não desaparecem, mas se transformam em tensões
polares. No entanto, a sua arqueologia seria próxima, mas não coincidente com
a de Foucault, constituindo o que ele denomina de método arqueológico
paradigmático.
Para Agamben151, a arqueologia é a única via de acesso ao presente,
para compreender a situação em que vivemos por meio das dicotomias que
estruturam nossa cultura. Isto não significa, entretanto, uma lógica binária, mas

regimes veridicionais, isto é, da análise da constituição de certo direito da verdade a partir de


uma situação de direito, com a relação direito/verdade encontrando sua manifestação
privilegiada no discurso, o discurso em que se formula o que pode ser verdadeiro ou falso; de
fato, o regime de veridição não é uma certa lei da verdade, mas sim o conjunto das regras que
permitem estabelecer, a propósito de um discurso dado, quais enunciados poderão ser
caracterizados, nele, como verdadeiros ou falsos” (FOUCAULT, 2008a, p. 49). Não seria,
então, uma arqueologia?
Além disto, temas recorrentes na genealogia nietzscheana já estão presentes em “Arqueologia
do Saber”(FOUCAULT, 2010) – descentramento do sujeito (p. 14-15) e a crítica à unidade da
obra e do autor (p. 27).
Talvez fosse mais correto, portanto, dizer que o método foucaultiano é arquegenealógico.
151
Para a discussão do método em Agamben, vide o item 4.1 desta tese.
242

o transformar as dicotomias em bipolaridades, e a lógica da substância em uma


lógica do campo, percorrido por forças e tensões (genealogia que ele afirma
utilizar no volume 2 de Homo Sacer). É uma lógica na qual é impossível
desenhar claramente uma linha e separar duas substâncias diferentes,
constituindo zonas de indiferença e indecibilidade, nas quais a polaridade está
presente e age em cada ponto do campo. Neste sentido, “o estado de exceção
é uma destas zonas” (AGAMBEN, 2004a, p. 612, tradução nossa152).
E é paradigmático porque busca trabalhar com paradigmas, ou seja, “um
fenômeno particular que enquanto tal, vale por todos os casos do mesmo
gênero e adquire assim a capacidade de construir um conjunto problemático
mais vasto” e “anulando a falsa dicotomia entre universal e particular” (COSTA,
2006, p. 2). Neste sentido, são paradigmas o panóptico de Foucault, como
também o homo sacer e o muçulmano de Agamben.
Entretanto, uma abordagem arqueológica da exceção requer, segundo
Neal (2006), ir além, colocando este fenômeno em questão e o
problematizando. O excepcionalismo, apesar de certas regularidades, é uma
superfície fraturada, um arranjo disperso de aparências que utiliza um arquivo
do que já foi dito. Ao invés de buscar imperativos metafísicos como Schmitt ou
destinos transcendentais como Agamben, a arqueologia descreve o arquivo e o
discurso. Não há verdades a serem descobertas ou uma continuidade
soberana, mas uma descrição histórica e discursiva das condições de
possibilidade do excepcionalismo, a fim de enfatizar que as declarações de
exceção que tiveram êxito só foram possíveis porque já existia uma formação
discursiva de objetos, posições subjetivas, modalidades de enunciados,
conceitos e estratégias. Não é um retorno ao mesmo a partir da irrupção do
novo, mas um arquivo disperso de falas e práticas históricas que tornam
possíveis as invocações e representações do excepcionalismo (NEAL, 2006).
Nesta perspectiva, a questão do excepcionalismo contemporâneo
apenas veio à tona no discurso político após o 11 de Setembro, o que não
significa que as práticas da exceção surgiram “de repente” com este evento ou
que o excepcionalismo é uma conjunto coerente e contínuo de práticas.
Segundo Neal, “é impossível identificar, sem um violento grau de redução ou

152
“The state of exception is one of those zones”.
243

sobredeterminação, uma prática discursiva do excepcionalismo única,


unificada, em um espaço político ou territorial” (NEAL, 2006, p. 45, tradução
nossa153).
O excepcionalismo não é um fenômeno formal, centrado na soberania e
distinto da norma, como analisam Schmitt e Agamben, mas um conjunto de
aparências dispersas, que devem ser descritas (positividade descritível de
Foucault), e não analisadas a partir das dicotomias legalidade/extra legalidade,
normalidade/necessidade, coerência/contradição, continuidade/irrupção.
Dicotomias e dualismos, como liberdades civis x necessidades do
Estado, direitos humanos x limites excepcionais, que são tipicamente liberais, e
que se tornaram linguagem corrente após o 11 de Setembro, em especial no
debate entre liberdade e segurança.
As condições de possibilidade do excepcionalismo são, portanto,
históricas e não a priori, filosóficas; não é uma unidade, mas um campo de
contradições, oposições, correlações, recorrências, acumulações e
complementaridades e sobre o qual cabe apenas uma compreensão parcial e
nunca totalizante.
Segundo Foucault (2010), o problema para a arqueologia é tentar
explicar como pode haver permanências e repetições, sendo estas tão
importantes quanto as rupturas; é mostrar como o contínuo é formado segundo
as mesmas condições e de acordo com as mesmas regras que a dispersão. É
um método que trata não das mudanças, categoria geral e vazia, princípio
abstrato da sucessão dos acontecimentos, mas das transformações – é uma
análise das diversas transformações, uma transformação geral de relações em
uma formação discursiva, que não implica na alteração de todos os elementos.
Significa que os enunciados obedecem a novas regras de formação e não que
todos os objetos, conceitos, enunciações e escolhas teóricas desapareceram e
foram substituídas por outros. Ao contrário, a partir destas novas regras, é
possível descrever fenômenos de continuidade, retorno e repetição. A
transformação não significa que uma positividade desaparece e uma nova
surge, pronta e acabada, com elementos totalmente diferentes da anterior. Na

153
“It is not possible to identify, without a violent degree of reduction or overdetermination, a
single, unified discursive practice of exceptionalism in territorial or political space”.
244

verdade, não há uma transformação e sim diversos tipos, um sistema de


transformações e não um processo homogêneo.
Neste sentido, a ruptura não é, para a arqueologia, seu ponto de apoio
analítico; ela faz atuar o contínuo e o descontínuo um contra o outro. Tampouco
é a ruptura um corte que divide de uma só vez, em um momento específico,
todas as formações discursivas, que seriam interrompidas em um único
movimento e igualmente reconstituídas.
(...) a ruptura não é um tempo morto e indiferenciado que
se intercalaria – não mais que um instante – entre duas
fases manifestas;
não é o lapso sem duração que separaria duas épocas e
desdobraria, de um lado e de outro uma falha, dois
tempos heterogêneos; é sempre, entre positividades
definidas, uma descontinuidade especificada por um
certo número de transformações distintos (FOUCAULT,
2010, p. 196).

O que a arqueologia busca, então, é desarticular estes cortes; o corte


arqueológico procura não dividir épocas, mas descrever a dispersão das
próprias descontinuidades. Assim, para a arqueologia, a ruptura não é o
evento, que surge do nada e sucede a uma época, mas “o nome dado às
transformações que se referem ao regime geral de uma ou várias formações
discursivas” ( FOUCAULT, 2010, p. 198).
Neste sentido, o 11 de Setembro não é “um grande acidente”, uma “falha
na geologia da história” ou um acontecimento exterior aos discursos, tampouco
tem um efeitos divisor entre épocas, alterando todas os elementos de uma
positividade e fazendo surgir outra, inteiramente nova, como quer o
excepcionalismo. É uma descontinuidade dispersa, é um conjunto descritível e
articulado de transformações que deixa intactos certos elementos e fixa outros,
estabelecendo outras positividades, que não constituem, entretanto, uma
sucessão linear de acontecimentos.
Em suma, segundo Neal (2007), o 11 de Setembro e suas
consequências trouxeram uma notável transformação na prática e nos
discursos políticos, com a utilização do idioma da exceção, mas não pode ser
analisado como algo exógeno e novo às sociedades democráticas liberais e
sim como uma questão que emerge dos limites e paradoxos da própria
democracia liberal.
245

Para Dean (2002), a racionalidade liberal e medidas autoritárias estão


longe de serem incompatíveis. Pelo contrário, seria absolutamente claro que a
regra nos Estados liberais tem sido rotineiramente produzir estas medidas; o
que não é tão claro, segundo este autor, é o que torna isto possível. Para
Foucault (2008b) 154 , a resposta estaria em um deslocamento da análise do
liberalismo – de um fenômeno jurídico-filosófico a uma técnica de
governamentalidade, na qual estes episódios autoritários (ou iliberais) são, na
verdade, “características constantes das abordagens liberais de governo,
prontamente ilustradas pelas genealogias da economia, polícia, pobreza e
bem-estar, e sujeitas atualmente a certas transformações” (DEAN, 2002, p. 40).

4.6- Schmitt e Benjamin: Agamben e a “luta de gigantes”

4.6.1- Tempo, história e messianismo

Corso

Segundo Mills (2004), em Agamben, a captura da biopolítica da vida é


coexistente com as operações da soberania; a vida capturada pelo banimento
soberano é a vida nua e, como tal, a vida é exposta à força da morte que
caracteriza a soberania. Neste sentido, a relação originária da lei com a vida
não é a sua aplicação, mas o abandono. E aqui é possível encontrar o caráter
messiânico da obra agambeana. No fim do “Homo Sacer”, como base de uma
nova forma de vida, Agamben propõe uma política vindoura, contra o nexo
sangrento entre a violência soberana e a biopolítica. É, na interpretação de
Mills, a derrubada da condição do abandono como aquela necessária para a
redenção da captura biopolítica – é a redenção messiânica.
Para a autora, o trabalho de Agamben na biopolítica pode ser lido como
uma tentativa de estender ou preencher a crítica de Benjamin à teoria da
soberania de Schmitt. Em Agamben, a compreensão da soberania, da lei e da
violência, ocorre, por um lado, com a teorização da soberania de Schmitt como
a decisão sobre a exceção e, de outro, a crítica de Benjamin a Schmitt na

154
Para a análise de Foucault sobre o liberalismo enquanto sociedade da segurança, vide os
itens 3.2.2 e 3.2.3.
246

oitava tese sobre a história, na qual ele defende que a exceção se tornou a
regra.
A teoria de Agamben é, portanto, segundo Mills (2004) uma tentativa de
mediação entre Benjamin e Schmitt, por meio de uma obra fragmentada,
interativa, composta de ensaios curtos e limiares, mas que possuem um
consistência interna de argumentação.
O ponto de partida de Agamben é, neste contexto, a análise do aparente
paradoxo da soberania apresentado por Schmitt, de um soberano que está, ao
mesmo tempo, dentro e fora da ordem jurídica. A soberania como um conceito-
limite, que também é adotado por Agamben. Para ele, a característica da
soberania está no fato de que o soberano é quem determina quando a lei é
aplicável e ao que ela deve ser aplicada, e, fazendo isto, ele cria as condições
necessárias para que a lei opere, já que esta exige uma condição normal para
sua operação. O soberano, desta forma, opera no limite da ordem e da
exceção, determinando o alcance da lei e o espaço no qual a ordem político-
jurídica tem validade. A exceção é, deste modo, criada por meio da suspensão
da lei mediante um determinado caso extraordinário e, ao mesmo tempo,
constituindo a eficácia da lei naquela determinação (MILLS, 2004).
Agamben, contudo, ressalva que a suspensão da lei não significa que a
exceção não tem relação com a lei, ou seja, que está excluída do alcance da
mesma, mas que precisamente esta relação se dá por meio de sua exclusão.
Como consequência, a exceção confirma a regra e a força da lei está na sua
capacidade de se manter na relação com a exterioridade. É o “ban” de Nancy,
a capacidade da lei de se aplicar não se aplicando. O fora da lei é o
abandonado, o sujeitado pela força de lei enquanto a lei se afasta do sujeito.
Assim, o abandonado não é apenas excluído do reino da lei, mas entregue à
ela na sua retirada; o que é banido está, então, dentro e fora da ordem jurídica.
A partir das leituras de Benjamin e Schmitt, Agamben vai defender que o
que é capturado pelo abandono soberano é a própria vida. Mais - que no
estado de exceção, a lei coincide com a própria vida em uma indistinção entre
fato e norma. A lei perdeu aqui todo o seu conteúdo, se tornando indistinta da
vida. E o principal protagonista deste exclusão inclusiva é a vida nua, aquela
que é irremediavelmente exposta à morte, constituindo o elemento político
originário. Adotando a ideia de conceito-limite schmittiano, em Agamben, a vida
247

nua é o conceito limite entre polis e oikos; a vida nua que indica a exposição da
vida natural à força de lei no abandono, expressão última do direito de morte do
soberano (MILLS, 2004).
A vida nua não é, assim, uma invenção moderna, mas uma relação
originária na política ocidental. Aqui, em uma integração entre poder soberano
e biopoder, e, contra Foucault, Agamben vai defender que a inclusão da política
na vida nua na esfera política constitui o núcleo original da soberania. Neste
sentido, a biopolítica é tão antiga quanto o poder soberano, e a política
moderna não deve ser vista como a ruptura com a soberania clássica, mas
como extensão e generalização do estado de exceção que funda o poder
soberano.
E, é a partir da oitava tese benjaminiana, que Agamben vai afirmar que
este estado se tornou a regra e, deste modo, a captura da vida nua já não é
mais a exceção, mas a condição geral de existência. Regra e exceção,
inclusão e exclusão, direito e violência não podem mais ser distinguidos. Sob o
regime da biopolítica, todos os homens são potencialmente homo sacers, o que
significa que todos estão potencialmente, senão efetivamente, abandonados
pela lei e expostos à violência como uma condição constitutiva da existência
política. Por conseguinte, o que distingue a democracia moderna da clássica é
o fato de que aquela falhou em reconciliar bios e zoé, mantendo a vida incluída
na política por meio da exceção.
A aporia da política contemporânea está, portanto, em Agamben, na
tentativa de se superar a captura da vida no poder soberano através do recurso
à vida natural, que necessariamente repete e reinstala esta captura na
politização desta vida. Neste ponto, de acordo com Mills (2004), Agamben
rejeita o gesto de Foucault em direção a uma economia dos corpos e dos
prazeres ao afirmar que o corpo é sempre o corpo biopolítico e a vida nua.
Em Agamben, a superação do abandono soberano que caracteriza a
política moderna apenas pode acontecer pela inauguração de uma nova forma
de vida ou vida feliz (happy life). Uma nova concepção de vida que busca
superar a distinção entre bios e zoé e na qual nunca é possível isolar a vida
nua como sujeito político; uma vida que encontra sua unidade em sua pura
imanência. E tanto no conceito de vida nua quanto no de vida feliz, Agamben
está em débito com Benjamin. A primeira, bare life, é “inspirada” pela mere life
248

(Bloβ Leben) benjaminiana, enquanto a vida feliz pode ser remetida à relação
entre o tempo histórico e o messiânico presente nos “Fragmentos Teológicos-
Políticos” de Benjamin (MILLS, 2004).
A vida feliz em Agamben é a vida profana (AGAMBEN, 2005c), que
permite que a lei em vigor sem conteúdo, sem significado, a força de lei sem
lei, possa ser revogada, de modo que o nada mantido pela lei é eliminado e a
humanidade possa alcançar sua própria realização na sua transparência
consigo. É a esperança de redenção, que é externa à biopolítica. A vida feliz
tem fundamento em uma política vindoura, é o estado real de exceção de
Benjamin e, como tal, proporciona a passagem para a redenção messiânica.

O Tempo e o Messias

Em “O Tempo que resta”, Agamben (2006) procura restituir as Cartas de


Paulo ao seu contexto, como um dos textos messiânicos fundamentais do
Ocidente. Em Paulo, o tempo, em seu sentido e forma interna, é definido como
ho nyn kairós, o momento breve; um momento que é o tempo restante, uma
radical abreviação do tempo, o único real, que é o tempo messiânico.
E este tempo tem uma exigência, que não ignora nem tenta exorcizar a
contingência. Ao contrário, esta vida, mesmo que tenha sido totalmente
esquecida, exige permanecer “inesquecível”. A exigência é aqui uma relação
entre o que é e o que foi e sua possibilidade; ela não se refere propriamente à
memória, ao ser recordado, mas ao que permanece inesquecível. O que se
perde, da vida individual e coletiva, embora havendo esforços dos historiadores
e dos arquivistas, é mais do que se pode guardar nos arquivos da memória.
Deste modo, o que exige o que foi perdido não é o “ser recordado ou
comemorado, e sim permanecer em nós e conosco enquanto esquecido,
enquanto perdido, e unicamente assim, como inesquecível” (AGAMBEN, 2006,
p. 47). E esta exigência também significa que é insuficiente com o esquecido
restituí-lo à memória, conservá-lo em arquivos ou monumentos da história ou
de construir para ele outra história, a dos oprimidos, que não se difere
substancialmente da dos dominantes.
Portanto, o que o esquecido deseja não é a memória nem o
conhecimento, mas justiça. E, segundo Agamben (1999), a justiça não é a
249

vingança, mas a tradição do esquecido; não a transmissão da memória, mas a


transmissão do esquecimento.
Segundo Löwy (2005), juntamente com o romantismo alemão e o
marxismo materialista, é o messianismo fonte da filosofia da história
benjaminiana. Não faz sentido, deste modo, a tentativa de se separar um
Benjamin moço e místico, e um de idade mais madura, materialista e marxista.
Assim, as teses sobre a história podem ser lidas como uma tentativa de união
entre o materialismo histórico e temas teológicos e messiânicos. É um
pensamento profundamente marcado pela tradição teológica judaico-cristã,
mas que se mantém distante de uma crítica da religião 155 e do religioso
(GAGNEBIN, 1999). Neste ponto, é inegável a influência de Walter Benjamin
na obra de Agamben.
Em Benjamin, o messianismo é uma crítica ao tempo contínuo,
homogêneo e vazio. Neste sentido, suas teses sobre a história constituem um
tipo de testamento sobre sua concepção messiânica sobre a mesma; a história
como um processo de transformações, no qual as soluções não são definitivas.
O progresso “irresistível” como o responsável pela catástrofe que só pode ser
redimida por meio da revolução, da violência pura (AGAMBEN, 2006).
Na filosofia da história do autor alemão (1986), o passado é uma fonte
inacabada, que exerce influência sobre o presente (tese II). É, preciso, então,
analisar o passado não em busca de uma verdade histórica, por aquilo que foi,
mas capturar uma imagem como ela, de modo inesperado, se coloca para o
sujeito histórico em um momento de perigo. É necessário evitar o conformismo
e o uso da história como instrumento de dominação (tese VI). E a citação é o
meio de se relacionar com o passado; nada está perdido, as gerações
presentes e passadas devem se encontrar por meio da rememoração, da
narrativa do passado. O não esquecer; o efeito redentor da narrativa, do que
aconteceu e do que poderia ter acontecido (tese III).
Mas isto não significa ficar preso ao passado. O que se deve é
compreender novamente a história para liberar as forças messiânicas de

155
Em Benjamin, religião e teologia são distintas. A primeira se refere a um conjunto de
doutrinas e práticas que visam integrar o homem ao mundo, na aceitação do sofrimento e da
morte, pelo reconhecimento de um sentido transcendente. Já a teologia, é um discurso ou
saber sobre Deus, consciente de que seu objeto está aquém de qualquer objetividade e,
portanto, lhe escapa; é a incapacidade constitutiva e transcendental da linguagem de
apreender seu próprio objeto (GAGNEBIN, 1999).
250

libertação. O presente deve, desta forma, liberar as forças de um passado que


espera por redenção. Em Benjamin (1986), a exigência do lembrar se alia à
ação política; o tempo de agora é o modelo do tempo messiânico.
De acordo com Löwy (2005), é por este motivo que Benjamin escolhe
como método de interpretação da história a perspectiva dos vencidos, por meio
do materialismo histórico (tese IV), cabendo à classe operária o papel do
sujeito histórico (tese XVII).
Na tese XIII, Benjamin (1986) realiza uma crítica ao progresso por meio
da crítica do tempo. Para o autor, o progresso requer a imagem de um tempo
linear e contínuo, um tempo que marcha, homogêneo e vazio. No entanto, a
história está carregada de atualidade, do tempo de agora (tese XIV), no qual
passado e presente se relacionam e se encontram um no outro. A história é,
nesta perspectiva, fruto de uma construção e, logo, devemos intervir,
subvertendo o tempo.
Agamben foi o editor italiano das obras de Benjamin, tendo encontrado
um fragmento inédito das teses em suas pesquisas sobre o autor alemão.
Neste fragmento, Benjamin apresenta a noção de kairós, que substitui o de
tempo cronológico. Em Agamben (2006), a reflexão sobre o tempo messiânico
também o é sobre a relação entre kairós e chronos. Sob inspiração
benjaminiana, o filósofo italiano afirma que kairós não é a evocação de um
outro tempo, mas apenas a ratificação de um chronos contraído e abreviado,
capturado. Deste modo, o tempo cronológico e o messiânico não se excluem,
constituindo a estrutura do acontecimento messiânico. É uma relação dialética,
que permite iluminar o passado, lançando luz no presente. Neste processo, que
inclui uma recapitulação, uma rememoração do passado, o tempo messiânico é
também um tempo de cura, de justiça – ele é o contemporâneo, o que vive sua
época sem coincidir inteiramente com ela (AGAMBEN, 2010).
Na leitura de Agamben (2006) sobre a tese XVIII, ele recupera, portanto,
a tradição rabínica do kairós; nesta, o kairós é o tempo da revelação, da
intervenção de Deus na história. Na interpretação do autor, isto significa que o
tempo messiânico é mais uma contração do tempo contínuo que uma ruptura
do tempo cronológico. O tempo messiânico não é o escatológico; este
contempla o fim do tempo, e aquele, o tempo do fim. O tempo messiânico é
aquele que se contrai e começa a findar, é o tempo que resta, o tempo que leva
251

para o tempo terminar.


Utilizando o conceito de tempo operativo de Gustave Guillaume,
Agamben (2006) vai representar o tempo não como uma linha contínua que
une presente, passado e futuro, mas como uma figura tridimensional, que
envolve o tempo em seu estado potencial (in posse), no seu processo de
formação (in fieri) e no seu estado constituído (in esse).
Para Guillaume, a mente humana tem a experiência do tempo, mas não
de sua representação; assim, para representá-lo, se recorre a construções de
ordem espacial. A representação, denominada imagem, como uma linha
infinita, composta do passado e do futuro, separada pelo corte do presente, é
insuficiente por ser demasiada perfeita. Nela está o tempo sempre já
construído, mas não o ato de construí-lo no pensamento. E é para representar
as fases de construção que Guillaume introduz o conceito de tempo operativo –
aquele que a mente emprega para realizar uma imagem tempo; é uma nova
representação, não linear, mas a já referida tridimensional, do tempo
cronogenético.
No tempo messiânico, kairós e chronos não são uma oposição, mas dois
tempos que compõem a estrutura unitária do evento messiânico – um tempo
operativo e um representado, unidos, mas que não coincidem com um instante
cronológico, mas o captura e o leva ao cumprimento a partir do seu interior.
É, assim, uma tentativa de se transformar o tempo cronológico a partir
de dentro, nos tornando os promotores do tempo e não mais espectadores
impotentes; uma interpretação do tempo messiânico como paradigma histórico.
O tempo operativo é, desta maneira, aquele que urge no tempo cronológico,
que o elabora e o transforma; é o tempo do qual temos necessidade para
construir o tempo. É “O tempo que o tempo nos dá para acabar” (AGAMBEN,
2006, p. 72, tradução nossa156). É aquele no qual somos nós mesmos, no qual
aprendemos e completamos nossa representação do tempo.
Neste sentido, o filósofo italiano utiliza, para compreender o evento
messiânico, a fórmula “como se não”, presente nos versículos 29 a 39 do
capítulo 7 da Primeira Carta aos Coríntios de Paulo:
aqueles que possuíam mulheres deveriam viver como se
não as possuíssem, aqueles que choravam, como se

156
El tiempo que el tiempo nos da para acabar.
252

não chorassem, aqueles que se alegravam, como se não


se alegrassem, aqueles que compravam, como se não
possuíssem, aqueles que usavam desse mundo, como
se não o fizessem (1Co:7, 29-39).

Esta fórmula significa um tensionamento das coisas sobre si mesmas,


sem identificação, mas também sem revogação ou alteração; o messiânico
prepara o fim. Contudo, em uma leitura benjaminiana, segundo Löwy (2005),
este fim implica em uma ruptura e não em um fim da história.
Para Agamben (2006), em Paulo, a tradição messiânica anula,
sobretudo, o sujeito. A vinda do Messias significa que todas as coisas estão
prisioneiras do “como se não”, chamadas e revogadas no mesmo gesto. O
autor continua sua crítica do tempo, diferenciando o “como se não” do “como
se” ; esta última fórmula representa a centralidade da ficção na cultura
moderna, representando o fim da experiência.
Paulo decompõe a estrutura unitária do evento messiânico em dois
tempos: a ressurreição e a parusia (segunda vinda de Jesus). É uma tensão
paradoxal entre um “já” e um “não ainda” que define a concepção paulina de
salvação. Neste contexto, a parusia não é um complemento ou um segundo
evento messiânico. O Messias é quem faz o seu tempo, o faz e o cumpre. O
evento já se cumpriu, mas sua presença (tradução do grego parousía) contém
em si outro tempo, que estende a parusia para torná-la apreensível.
O tempo messiânico é, deste modo, uma recapitulação sumária do
passado, que produz uma plenitude e um cumprimento do kairós. É uma
abreviação e uma antecipação do cumprimento escatológico, a relação de cada
instante com o Messias, a relação do passado com o presente, na qual o
passado está sumariamente contido no presente.
Assim, a recordação é uma antecipação da salvação. Com a
recapitulação messiânica, o passado se torna possível de algum modo e os
homens se preparam para dizer adeus para sempre “ à memória na eternidade
que não conhece passado nem repetição” (AGAMBEN, 2006, p. 81, tradução
nossa157).
Em Paulo, a salvação não implica, portanto, em olhar para o futuro e
para o eterno. A recapitulação significa o tempo presente, uma contração do

157
“al recuerdo en la eternidad que no conoce pasado ni repetición”.
253

passado e do presente, no qual, em um momento decisivo, devemos acertar as


contas com o passado. Não é, desta maneira, um apego ou nostalgia em
relação ao passado, mas um juízo sumário sobre este.
E na concepção messiânica da história, Agamben (2006) também vai
analisar o estado de exceção schimittiano. Para o autor, Schmitt é
explicitamente anti-messiânico, um “apocalíptico da contrarrevolução”. Todavia,
há nele um elemento messiânico ao compará-lo com o horizonte da katárgesis,
cujo significado é o fazer inoperante, suspender a eficácia - é a desativação
messiânica da lei. Paulo, segundo Agamben (2006), radicaliza o estado de
exceção, no qual a lei se aplica desaplicando e já não há um dentro nem fora
(como em Schmitt). A esta lei que se aplica desaplicando corresponde a fé, que
a faz inoperante e a leva ao seu cumprimento. O estado de exceção
messiânico é, então, a lei da fé; é, na leitura paulina, o cumprimento da justiça
sem lei.
Este estado teria ainda mais duas características do estado de exceção
schmittiano – a impossibilidade de distinção entre o cumprimento e
transgressão da lei, já que ela está vigente na forma de sua suspensão, e a
informulabilidade da lei, uma vez que ela não contém nem uma prescrição nem
uma proibição. No estado de exceção paulino, estas características aparecem
como uma consequência necessária da exclusão efetuada pela lei da fé. Em
Rm 3, 9-20, o que se depreende é justamente o princípio messiânico da
incapacidade de se cumprir a lei.
(...) como está escrito: Não há justo, nem sequer um (...).
Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que
estão debaixo da lei o diz, para que se cale toda boca e
todo o mundo fique sujeito ao juízo de Deus; (...)
porquanto pelas obras da lei nenhum homem será ante
dele; pois o que vem pela lei é o pleno conhecimento do
pecado (Rm 3, 10,19-20).

Já em Rm 7,7, se encontra a informulabilidade da lei: “Que diremos


pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Contudo, eu não conheci o pecado
senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não
dissesse: Não cobiçarás”.
254

4.6.2- Soberania e (In) decisão

Em sua obra “Estado de exceção”, Agamben, destaca que o debate


contemporâneo sobre a exceção remete a dois autores principais – Carl
Schmitt e Walter Benjamin 158 , e seu diálogo, às vezes explícito, às vezes
encoberto sobre o tema da violência, em especial entre 1925 e 1926. O seu
objetivo na referida obra é justamente tentar fazer uma leitura da teoria
schmittiana da soberania como uma resposta à crítica benjaminiana da
violência.
Segundo Seligmann-Silva (2005), o dossiê Benjamin-Schmitt 159 seria
composto por uma citação de Benjamin sobre a “Teologia Política” na “Origem
do Drama Barroco Alemão”, pela carta de Benjamin a Richard Weissbach de 23
de março de 1923, no qual ele diz que esqueceu seu livro a “Teologia Política”
com Richard e que precisaria dele para escrever o “Drama Barroco”, da carta
de Benjamin a Schmitt, de caráter formal, mas que expressa uma admiração
contida pelo jurista alemão, e por uma breve passagem em que Benjamin cita
Schmitt em um curriculum vitae de 1928.
Este dois autores, para Seligmann-Silva (2005), teriam estabelecido um
diálogo intelectual, marcado por uma admiração recíproca distanciada e crítica,
com continuidades e pontos em comum, como a crítica ao parlamentarismo e
ao liberalismo (embora por motivos diferentes), a atração pela teoria da

158
Agamben (2004a) ressalta a admiração que Benjamin tinha pelo “teórico fascista do direito
público”, como fica claro na carta do primeiro a Schmitt de dezembro de 1930, e que Adorno
retirou do arquivo das correspondências de Benjamin que tinha ficado ao seu cuidado (BENTO,
s.d.). Segundo Weber (1992), esta carta causou certo mal-estar entre os intelectuais
justamente por reconhecer um débito a um pensador conservador católico nazista.
Como escreve Benjamin,
“Caro senhor professor,
Nos próximos dias, receberá do editor um exemplar do meu livro Der Ursprung des deutschen
Trauerspiels (A origem do drama barroco alemão). Com estas linhas, não quero apenas
anunciar-lho, mas expressar-lhe a minha alegria por me sentir autorizado a enviar-lho por
recomendação do senhor Albert Salomon. Reparará o senhor de imediato o quanto este livro
lhe deve na sua apresentação da teoria da soberania no século XVII. Permita-me ainda que lhe
diga que, graças aos seus métodos de investigação em filosofia do Estado, descobri, nas suas
obras ulteriores, em particular em Die Diktatur (A Ditadura), uma confirmação dos meus
métodos de investigação em filosofia e história da arte. Se a leitura do meu livro lhe permitir dar
conta deste sentimento, a intenção de lhe o enviar terá sido atendida.
Com a expressão da mais alta consideração.
O seu devotado Walter Benjamin (BENTO, s.d., p.10)”
159
Mcquillan (2011) denomina este dossiê de esotérico, afirmando que se ele não é autêntico,
pelo menos é no sentido filosófico uma suposição útil para clarear as diferenças políticas entre
Benjamin e Schmitt.
255

soberania do século XVII e a “paixão metodológica” pelo estudo de fenômenos


extremos. Neste último ponto, de acordo com Weber (1992), Benjamin estaria
em débito com Schmitt, uma vez que o primeiro adota o “extremismo
metodológico” do último, no qual a afirmação de um conceito é,
paradoxalmente, mas necessariamente dependente de um encontro, enquanto
um extremo (borderline), com uma singularidade que excede.
Neste contexto, de acordo com Ruiz (2011), em “A origem do drama
barroco”, Benjamin assume a influência de Schmitt na sua obra e desenvolve o
conceito de estado de exceção. Segundo Agamben (2004a), a descrição do
soberano barroco nesta obra seria uma resposta à teoria schmittiana da
soberania.
No “Drama Barroco”, ao invés de uma teoria da soberania e sua
legitimação no estado de exceção, como na interpretação de Schmitt, Benjamin
dá a esta situação uma dimensão histórica tão radical, que acaba por destruir o
reino sobre o qual o soberano poderia reinar. É a catástrofe do presente que
será finalizada com uma catástrofe futura. O que resta, então, é o jogo-lutuoso
(literalmente, Trauer-spiel) com as ruínas do mundo, no qual o alegorista é
aquele que coleciona os escombros e, ressignificando-os, os salva
(SELIGMANN-SILVA, 2005).
Segundo Benjamin (1984), em consonância com Schmitt, o conceito
moderno de soberania é o resultado, a partir do século XVII, do exercício pelo
príncipe de um poder Executivo supremo; como consequência de uma
confrontação final com a doutrina de justiça da Idade Média pela doutrina do
poder do monarca, fruto da Contra Reforma e do protestantismo que
denunciava as pretensões teocráticas da Igreja. Já o conceito barroco de
soberania nasce de uma discussão sobre o estado de exceção, pela
consideração de que a função mais importante do príncipe era justamente
evitá-lo.
Assim, pela origem deste poder, é que se pode afirmar que “Quem reina
está desde o início a exercer poderes ditatoriais, num estado de exceção,
quando este é provocado por guerras, revoltas, ou catástrofes” (BENJAMIN,
1984, p. 89). É uma atitude típica da Contra Reforma, o elemento despótico e
mundano, o ideal da estabilização completa, eclesiástica e estatal.
Neste sentido, é possível perceber a obsessão barroca pela ideia de
256

catástrofe, como antítese ao ideal histórico da Restauração sobre o qual se


constrói a teoria do estado de exceção. No barroco, há uma tensão entre o
mundo e um desejo de transcendência, uma ausência de escatologia, que
exaltas as coisas terrenas antes que sejam entregues a sua consumação.
A concepção barroca de soberania desenvolve-se, portanto, a partir do
debate sobre o estado de exceção e atribui ao príncipe sua exclusão. A sua
atribuição, desta forma, é excluir e não decidir sobre o estado de exceção, uma
vez que o soberano não pode decidir sobre a exceção incluindo-a na ordem
jurídica, mas excluindo-a de toda ordem. É a teoria da indecisão soberana, na
qual o soberano está permanentemente impossibilitado de decidir, em uma
antítese entre o poder do governante e a sua capacidade de governar, e cuja
consequência é a barbárie – uma zona de indeterminação em que a criação e a
própria ordem jurídica são arrastadas para a mesma catástrofe (BENJAMIN,
1984).
Se em Schmitt a decisão é o que une soberania e estado de exceção,
em Benjamin, o poder soberano está separado de seu exercício, e o soberano
barroco está, constitutivamente, impossibilitado de decidir. “O príncipe que,
durante o estado de exceção tem a responsabilidade de decidir, revela-se, na
primeira oportunidade, quase inteiramente incapacitado de fazê-lo”
(BENJAMIN, 1984, p. 94).
E esta cisão entre o poder soberano e sua realização corresponde à
separação entre normas do direito e normas de sua realização, que era a base
da ditadura comissária schmittiana. A resposta de Benjamin (1984), desta
forma, é uma crítica a esta distinção de Schmitt na “Ditadura”160.
Em Benjamin, entre o poder e seu exercício, abre-se uma distância que
nenhuma decisão é capaz de preencher. Logo, há um novo deslocamento – o
estado de exceção não é mais o milagre da teologia política schmittiana, mas
uma catástrofe. É a “escatologia branca” barroca, na intepretação de Agamben
(2004a), do fim de um tempo sem redenção na terra ou além, que fratura a
correspondência entre soberania e transcendência e entre monarca e Deus da
teologia de Schmitt. Assim, enquanto neste autor o soberano é identificado com
Deus, em Benjamin, o soberano é o senhor das criaturas, mas permanece

160
Vide item 2.6 deste trabalho.
257

criatura.
Como resposta a Benjamin, dezesseis anos após sua morte, Schmitt
(2006a) escreve “Hamlet ou Hecuba”, uma obra que, segundo o filósofo
alemão, aponta para uma providência cristã. Nela, Schmitt se refere à carta
enviada por Benjamin, demonstrando um profundo respeito por ele.
Em “Hamlet ou Hecuba”, Schmitt critica Benjamin por não ter
considerado o desenvolvimento histórico particular da Inglaterra em sua análise
do príncipe em Hamlet, o “paradigma do melancólico”, na leitura benjaminiana
(1984, p.165).
Para Schmitt (2006a), Hamlet não é um teatro político no senso concreto
que o Estado e a política adquiriram no continente como resultado do
desenvolvimento da soberania nos séculos XVI e XVII. Hamlet tampouco é
cristão, nem mesmo quando se refere à questão da providência, estando no
centro da demonologia da disputa entre católicos e protestantes.
Deste modo, o que Benjamin faz no “Drama”, é subestimar a diferença
entre a Inglaterra insular, dos Tudor, uma potência marítima, e a Europa
continental, em relação a sua situação geral e, ao mesmo tempo, a diferença
entre o teatro inglês e o barroco alemão do século XVII. Neste último ponto,
Schmitt ressalta que não é possível apreender o cerne da peça a partir de
categorias de arte e de história da cultura, como Renascença e Barroco, mas
sim através da antítese entre o bárbaro e o político.
Segundo Schmitt (2006a), a peça shakespeariana coincide com o
primeiro estágio da Revolução Inglesa (1588-1688), sendo a indecisão e a
melancolia de Hamlet um emblema do fracasso dos Stuart em deixar para trás
a barbárie e seguir o curso da modernidade (McQUILLAN, 2011).
No continente europeu, no século XVII, emergiu uma nova ordem
política de neutralização das guerras de religião; o Estado soberano,
diametralmente oposto às formas medievais e aos métodos de dominação
medievais, significando o fim de uma era, da lei e da tragédia dos heróis.
Nestas circunstâncias, o termo política 161 adquire um significado concreto,
antitético ao bárbaro.
O Estado moderno é, desta forma, uma entidade absolutamente nova,

161
Para o conceito de política de Schmitt e sua relação com o estatal, vide itens 2.4 e 2.5 desta
tese.
258

de modo que seria “inadmissível e confuso chamar de Estado outras formas de


sistemas comunitários ou estruturas de poder na história mundial” (SCHMITT,
2006a, p. 54, tradução nossa162). O Estado transformou velhas instituições e,
através do Exército, da polícia, da finança e da justiça, se tornou capaz de
estabelecer a tranquilidade pública, a ordem e a justiça, criando as condições
para uma existência policiada, contra o fanatismo eclesiástico e a anarquia
feudal, ou seja, contra a barbárie medieval.
E a Inglaterra dos Tudor tinha, na sua civilização de Estado moderno,
um estilo de vida específico - marítimo, constituindo um império mundial
ultramarino, a partir do comércio, de piratas e de corsários, além de ser o país
de origem da Revolução Industrial. Mas não é a esta Inglaterra que Hamlet
pertence e sim à Inglaterra bárbara, pré-estatal, da primeira fase da revolução.
Em suma, se Benjamin viu Hamlet como uma figura alegórica da
inabilidade do soberano em decidir para além das circunstâncias históricas,
Schmitt o apresenta como uma figura trágica representativa do fracasso
histórico de um regime particular. Apesar disto, Schmitt foi forçado a admitir que
o conceito moderno e, mais propriamente, político da soberania que sucedeu a
barbárie, representada por Hamlet, foi também um fracasso, como se torna
aparente no seu estudo sobre Hobbes e o destino de seu Leviatã163.
A obra de Schmitt sobre Hobbes, segundo o próprio jurista alemão, na
carta a Hanjörg Viesel, em 1973, foi uma resposta a Benjamin. Na sua
discussão sobre o desenvolvimento do conceito moderno de soberania, Schmitt
concorda com Benjamin sobre a ineficácia do soberano, na sua incapacidade
em estabelecer a ordem política e legal pretendida, na medida em que o
Leviatã, o magnus homo, foi destruído, a partir de dentro, durante o século
XVIII pelo constitucionalismo e o Estado liberal.
Para Benjamin, o conceito de soberania é fundamentalmente falho,
fingindo uma autoridade e uma eficácia que nunca possuiu porque é
essencialmente incapaz de evitar o estado de emergência. Já para Schmitt, o
fracasso da soberania ocorreu por circunstâncias históricas e pela sagacidade
da crítica liberal. Neste sentido, o inimigo mais proeminente da soberania foi o

162
“inadimissible and only confounding to call state other forms of community systems or power
structures in world history”.
163
Vide item 2.3 deste trabalho.
259

“judeu liberal” Spinoza, por sua defesa da liberdade de consciência e da


separação da Igreja e do Estado, representativa da tentativa liberal de
estabelecer uma esfera privada apolítica não sujeita à decisão soberana. Como
consequência, foi aberta uma “fenda” no corpo político, que se agravou ao
longo do século XVIII, transformando o Estado em um mero garantidor dos
direitos individuais e titular simbólico dos poderes públicos (SCHMITT, 1990;
McQUILLAN, 2011).
Para os filósofos liberais164, o soberano é um servo do povo e a defesa
das liberdades civis pelo Estado não pode interferir no exercício destas
liberdades pelos cidadãos. O soberano, portanto, se torna dependente de algo
fora dele, precisando da constituição para sua legitimação e dos interesses do
povo para justificar suas ações, tornando suas decisões subordinadas à ordem
legal e jurídica. Para Benjamin, o constitucionalismo liberal não eliminou o
problema da soberania e muito menos do estado de emergência em que
vivemos; em sua tentativa de limitar o exercício da decisão soberana, o
liberalismo apenas enfatizou seu caráter excepcional, tornando mais óbvio que
há casos em que a lei não se aplica. Neste sentido, os limites liberais apenas
definem exatamente que tipos de poder o soberano está autorizado a exercer e
sob quais circunstâncias pode utilizar estes poderes (McQUILLAN, 2011).
Em “Homo Sacer”, o que Agamben (2004) faz é justamente demonstrar
que o liberal constitucionalismo não levou à total despolitização apregoada por
Schmitt; pelo contrário, o estado de exceção continua a ter papel importante
nos debates políticos contemporâneos. A tentativa liberal de restringir o
exercício do poder soberano, na verdade, reconheceu que, em certos casos e
sob certas circunstâncias, medidas excepcionais fossem justificadas e direitos
individuais temporariamente suspensos.

4.6.3- Direito e Violência

A partir da ideia do dossiê Benjamin-Schmitt, o ensaio clássico


benjaminiano, “Crítica da Violência: crítica do poder”, é considerado, por
muitos, inclusive Agamben (2002a) como uma resposta à obra de Schmitt “A

164
Vide itens 2.4 e 3.2.1 desta tese.
260

Ditadura”. Nesta, Schmitt estabelece, como já analisado, uma diferença entre


ditadura comissária e ditadura soberana165. Enquanto na primeira o estado de
exceção visa defender ou restaurar a constituição vigente e, para tanto,
suspende seu efeito, na segunda, a ordem jurídica existente é anulada, mas no
lugar de um vazio anárquico, vigora o estado de exceção, em que a vontade
soberana é lei para a nova ordem.
Segundo Ruiz (2011), o ensaio benjaminiano é trespassado por uma
ambiguidade – no alemão, o título do trabalho é Zur Kritik der Gewalt, sendo
que esta última palavra pode significar tanto poder quanto violência, levantando
a questão se todo poder é violento e/ou toda violência é poder.
Nesta sua resposta a Schmitt, Benjamin (1999) vai reconhecer a
existência de duas formas de violência – a violência mítica, que institui e
conserva o direito ; e a violência divina, que depõe o direito, constituindo uma
violência revolucionária. O foco deste autor está na possibilidade de se pensar
uma violência (ou poder, Gewalt), fora do direito que não se limita nem a criá-lo
nem a conservá-lo, mas que pode instaurar uma nova época histórica. É,
portanto, uma violência pura, proveniente não da decisão soberana e sim de
uma ação humana; uma violência divina, pura ou, na esfera humana,
revolucionária; uma violência exterior à lei e que esta não pode suportar
(AGAMBEN, 2004a).
Em Schmitt, ao contrário, esta violência fora do direito não seria
possível, uma vez que na exceção que suspende o direito a violência se
encontra incluída pela sua própria exclusão. Assim, para o jurista alemão, não
há absolutamente no direito uma violência exterior ao nomos; o direito
necessita da exceção, da zona anômica, para poder fundar sua relação com a
vida. E é na vontade soberana que se concentra a potência para toda a
violência (AGAMBEN, 2002a).
De acordo com Agamben (2004a), a doutrina da soberania que Schmitt
desenvolve na “Teologia Política” é uma resposta precisa 166 ao ensaio de
Benjamin; se este visa assegurar uma violência anômica e pura, Schmitt
procura inscrever tal violência em um contexto jurídico. E o estado de exceção

165
Para a discussão schmittiana da ditadura, vide item 2.6 deste trabalho.
166
Segundo Mcquillan (2011), isto é pouco provável, pois, na época, Schmitt estava mais
preocupado com o positivismo/legalismo de Kelsen. A “Teologia Política”, neste sentido, pode
ser uma resposta schmittiana à “Teoria Pura do Direito”.
261

é justamente o lugar no qual Schmitt procura capturar a violência pura


benjaminiana e inscrever a anomia no corpo do nomos.
A relação entre os dois textos é, segundo Agamben (2004a), ainda mais
estreita. Na “Teologia”, Schmitt abandonou a distinção entre poder constituinte
e poder constituído, base da ditadura soberana, substituindo-a pelo conceito de
decisão. E esta substituição é, na leitura agambeana, um contra-ataque à
crítica benjaminiana, uma vez que a contraposição violência que funda o direito
e a que o conserva corresponde justamente àquela oposição schmittiana.
Portanto, na interpretação de Agamben (2002a, 2004a, 2007), a teoria da
soberania de Schmitt foi uma tentativa de neutralizar a violência pura de
Benjamin, na medida em que esta escapa da dialética poder
constituinte/constituído, garantindo uma relação entre a anomia e o contexto
jurídico.
Assim, pode-se afirmar que “A violência soberana na Politische
Theologie responde à violência pura do ensaio benjaminiano por meio da figura
de um poder que não funda nem conserva o direito, mas o suspende”
(AGAMBEN, 2004a, p.86).
Segundo Bento (s.d), Benjamin interpretou o ‘fermento’ da vontade de
violência que surgia, então, como uma violência divina e destruidora, que dava
a morte a um mito com a potência de outro, para que, desta maneira, pudesse
“apenas resplandecer por sobre a Terra a majestade de um Deus único, um
Deus que reinaria na catástrofe global do mundo, verdadeiro estado de
excepção do tempo” (p.11).
Como consequência desta redefinição da função soberana, há também
uma mudança no estado de exceção. Este deixa de ser o limiar que garante
a articulação entre um dentro e um fora, entre a anomia
e o contexto jurídico em virtude de uma lei que está em
vigor em sua suspensão: ele é, antes, uma zona de
absoluta indeterminação entre anomia e direito, em que
a esfera da criação e a ordem jurídica são arrastadas em
uma mesma catástrofe (AGAMBEN, 2004a, p. 89).

Na tese VIII sobre o conceito de história, Benjamin (1986) afirma que o


estado de exceção em que vivemos, tanto o fascismo quanto a exclusão dos
direitos fundamentais, se tornou a regra, e que precisamos de um conceito de
história que corresponda a este fato. A exceção e a normalidade se tornaram
262

indiscerníveis e a distinção entre violência e direito desapareceu, surgindo uma


zona de anomia na qual age uma violência sem roupagem jurídica. A decisão
schmittiana é agora incapaz de realizar sua tarefa – a regra devora a si mesma.
Para Benjamin (1999), é preciso, então, pensar uma exceção livre do
direito, uma zona de anomia na qual a vida humana não esteja sob a violência
soberana; é a exceção da exceção, uma suspensão da violência sobre a vida
humana exercida como violência mítica do direito, que a captura sob uma
ordem e a mantém nela.
Se Schmitt quer reinscrever a violência em um contexto jurídico,
Benjamin busca uma violência pura, além do direito, que possibilitaria à vida
humana existir por si mesma, sem submissão à violência institucional. Violência
esta que não reside na essência das coisas, mas na relação que as constitui. É
uma busca da purificação, do debate entre violência pura e violência mítica
para algo exterior – a crítica da violência há que ser definida, para Benjamin
(1999), em sua relação com o direito e a justiça. Portanto, a violência pura não
é substancial, mas relacional.
No direito, a violência está sempre envolvida na lógica dos fins e dos
meios; no jusnaturalismo, a violência se legitima pela noção de fim justo; e, no
positivismo, a legitimidade está nos meios pelos quais ela se torna legítima. É a
violência, pois, um meio para um fim, a defesa do direito e da ordem social.
Mas o que significa esta distinção? Qual o critério para a legitimação?
Se esta se dá pelos seus meios, então a esfera de sua aplicação deve ser
criticada em relação ao seu valor, o que requer uma visão histórico-filosófica da
lei, para além do jusnaturalismo e do positivismo. Neste contexto, o significado
da distinção entre a violência legítima e a ilegítima não é explícita.
O que Benjamin (1999) propõe é a exclusão do fins como também a
questão do critério de justiça para o estudo da violência. Ao invés disto, o foco
deve estar no modo como são justificados certos meios que constituem a
violência e isto não pode ser decidido pelos princípios do direito natural. O
ponto de partida do autor é, desta forma, o direito positivo e não o natural, uma
vez que aquele realiza uma distinção fundamental entre violência legitimada e
não legitimada.
Pelo direito positivo, o sistema legal limita os fins naturais em nome dos
fins legais, que apenas podem ser realizados pelo poder legal e não pelos
263

indivíduos. Analisando a Europa contemporânea, Benjamin (1999) afirma que a


máxima da legislação destes Estados está na ideia de que os fins naturais dos
indivíduos colidem com os fins legais se forem buscados com maior ou menor
grau de violência, ou seja, pela lei, a violência nas mãos dos indivíduos é vista
como um perigo que mina o sistema legal. O que se condena, por conseguinte,
não é a violência em si, mas aquela que é direcionada a fins ilegais, pela
persecução individual de fins naturais.
Este é um dogma positivista, que pode, no entanto, ser contestado se se
considera a possibilidade de que o interesse da lei no monopólio da violência
em relação aos sujeitos não pode ser explicada pela intenção da preservação
dos fins legais, e sim pela preservação da própria lei. Em suma, que a
violência, quando não está nas mãos da lei, ameaça não pelos objetivos que
busca, mas pela sua mera existência fora da lei.
Isto fica evidente nos casos em que o exercício da violência, mesmo no
sistema legal atual, é permitido. Como exemplo, Benjamin (1999) cita a luta de
classes, sob a forma do direito de greve do trabalhador. Para o autor, a
organização trabalhista, além do Estado, é o único sujeito legal autorizado a
exercer a violência, embora se possa alegar que a greve, enquanto uma não-
ação, não pode ser descrita como violência.
Neste sentido, pela ótica estatal e legal, o direito de greve não é
especificamente um direito de exercer a violência, mas de fugir de uma
violência indiretamente praticada pelo empregador. Contudo, pela perspectiva
do trabalhador, é sim o direito de usar a força para a realização de certos
objetivos. O momento da violência é necessariamente introduzido, de acordo
com Benjamin (1999), quando, na forma de extorsão, a ação-omissão ocorre
“no contexto de uma disposição consciente para retomar a ação suspensa sob
certas condições, que nada tem a ver com esta ação ou que apenas a modifica
superficialmente” (p.282, tradução nossa167).
E a antítese entre estas duas concepções emerge na greve geral
revolucionária – entre o direito de greve e o que o Estado pode considerar
como um abuso, como um ato ilegal, no qual se faz necessário medidas

167
“in the context of a conscious readiness to resume the suspended action under certain
circumstances that either have nothing whatever to do with this action or only superficially
modify it”.
264

emergenciais. Neste caso, portanto, mesmo uma conduta envolvendo o


exercício de direitos pode, em certos momentos, ser descrita como violenta –
quando ativa, se exercida com o objetivo de derrubar o sistema legal que a
permitiu; se passiva, se ela se constitui no sentido da extorsão. É, deste modo,
uma contradição na situação legal, mas não uma contradição lógica na lei,
quando a lei enfrenta os grevistas, que exercem a violência, com violência.
Esta mesma contradição objetiva na situação legal também é
encontrada na lei militar. A violência militar é, assumidamente, uma violência
predatória, exercida diretamente sobre seus fins, fins naturais, da mesma forma
que na violência do direito de greve. E, segundo Benjamin (1999), é inerente a
esta violência a característica de lawmaking. Isto explicaria a tendência
moderna da lei de destituir o indivíduo, pelo menos enquanto sujeito legal, de
toda violência, ainda que seja aquela direcionada apenas para os objetivos
naturais. O Estado, então, teme esta violência por sua capacidade de declarar
uma nova lei, sendo obrigado a reconhecer este caráter sempre que poderes
externos o forçam a conceder o direito de conduzir uma guerra ou às classes o
direito de greve.
Além da função de buscar fins naturais, a violência militar ainda teria
uma outra – a de ser um meio para fins legais, para objetivos do Estado. A
subordinação dos cidadãos à lei, em especial à lei geral do recrutamento
militar, é um fim legal, e, neste caso, a violência não se constitui como a
declaração de uma nova lei, mas como a preservação da mesma. E este
caráter de preservação da violência também é passível de crítica. Mas, para
Benjamin (1999), não se trata de criticá-la simplesmente em nome de uma
liberdade que não se consegue definir ou especificar ou de atacar
determinadas leis ou práticas legais ao invés de atacar as raízes do sistema
legal.
Para Ruiz (2011), nesta perspectiva, a vida humana fica capturada pela
ameaça da violência e, deste modo, deve se manter submissa ao direito e à
ordem, para não sofrê-la. Se em Schmitt a vida está enclausurada no direito,
em Benjamin ela se encontra fora do direito, na justiça não mítica, não
contaminada pela lei, a justiça divina, que é a violência pura que redime a vida
de toda a violência.
A exceção jurídica é o dispositivo jurídico-político que suspende a lei,
265

deixando-a em vigor, porém sem validade. É, para Ruiz (2011), uma “vigência
sem significado” (p.2). No caso da exceção soberana, o inverso ocorre; ela
anula toda a ordem jurídica, e a lei que não vigora (porque anulada) tem
validade plena no arbítrio da vontade soberana. “Na exceção plena, a vontade
soberana é lei, nesse caso a lei que não vigora (porque não está formulada
juridicamente) se aplica imediatamente no arbítrio soberano” (RUIZ, 2011, p. 2).
A lei que vigora mas não se aplica atinge diretamente a vida humana, a
vida nua (bloβ Leben), segundo Benjamin, suspendendo o que a favorece, os
direitos que possibilitam sua defesa e emancipação. Em Benjamin (1999), a
vida além do direito, não coagida, é a verdadeira exceção, e dispensa o direito
porque o torna desnecessário. O direito, assim, não é mais a justiça, mas
apenas a porta que leva a ela, através de sua desativação e inatividade.
De acordo com Ruiz (2011), é neste sentido que Agamben analisa a tese
de Foucault, segundo a qual é preciso pensar um novo direito livre de toda
disciplina e de toda soberania. Mas como pensar uma vida sem direito? Esta
questão teria sido formulada tanto pelo cristianismo primitivo, em especial na
Carta dos Romanos de São Paulo, como pela tradição marxista.
Em São Paulo, a lei existe como um meio para culpar a vida.
Ora, nós sabemos que tudo que a Lei diz é dito para os
que estão sob a Lei, a fim de que toda a língua se cale, e
todo o mundo se reconheça culpado diante de Deus.
Pois, pelas obras da Lei, ninguém será justificado diante
dele. De fato, pela Lei só se chega ao reconhecimento
do pecado (Rm 3, 19-20).

A verdadeira vida, a salvação teológica, existe além da lei, alcançando a


vida sua plenitude. A vida plena suspende definitivamente a lei e esta é o
estado de exceção verdadeiro. “(...) É que sem a lei, o pecado é coisa morta.
Eu, sem a lei, estava vivo outrora (...)” (Rm 7,8-9).
Em São Paulo, o que se vê é a tensão entre o viver na ordem do
império, da lei, com a expectativa da nova ordem da vida salva, sem lei.”(...) eu
sou o mesmo que, com o espírito sirvo a lei de Deus e, com a carne, a lei do
pecado” (Rm 7,25). A solução, para ele, é, então, viver na ordem sem se
acomodar a ela, confiando na nova ordem que virá. Para tanto, a melhor forma
de invalidar a lei do império para os cristãos é superá-la com a vida, indo além
das leis, através da prática do amor. “(...) Pois quem ama o próximo cumpre
266

plenamente a lei” (Rm 13,8).


A segunda formulação da questão da exceção ocorre na tradição
marxista. Nela, a exceção tornou-se um problema político central. O
comunismo dispensa o Estado e seus dispositivos jurídicos de poder/violência.
No entanto, a ditadura do proletariado, que é o estado de exceção, pensada
como transitória para se alcançar o comunismo, tornou-se a regra.
Historicamente, esta transição não se realizou, sendo o stalinismo tão criticado
por Benjamin (1986) como o fascismo.
Para Benjamin (1986), a história deve ser compreendida como uma
totalidade e não como o encadeamento de acontecimentos, em uma visão
progressista. Esta visão, como o dogmatismo socialdemocrata, sem qualquer
vínculo com a realidade, é a tempestade que impele, de maneira irresistível,
para o futuro e impede que vejamos a catástrofe única, as ruínas, os
fragmentos, os mortos do passado.
A história é a possibilidade de ruptura a qualquer momento, e o Messias
é o instante em que a ruptura pode ocorrer, e que abre a possibilidade de uma
passagem para a justiça, que não é a anulação do direito, mas sua
desativação, de modo a dar lugar a um outro uso. É a justiça divina, a exceção
da exceção, a definitiva. É preciso partir, para um conceito da história, do ponto
de vista dos dominados, criando um estado de exceção na história, que seria a
tomada pelo poder dos vencidos. Ou o que Benjamin (1986) denomina, na tese
XVII, de oportunidade revolucionária de lutar por um passado oprimido.
E é esta justiça divina que é capaz de nos oferecer uma solução radical
ao estado de emergência em que vivemos. A este estado, fictício ou político,
Benjamin (1986) nos convoca a criar um real estado de exceção. É a
desativação da ficção da soberania; é a passagem que nos permite chegar à
justiça definida como um mundo que não pode ser apropriado pelo jurídico, é a
liberdade (AGAMBEN, 2007). O estado de exceção real, portanto, surge
quando a ficção que dá legitimidade ao poder soberano e a necessidade da
fundação política na lei são expostas e desfeitas. É a violência divina, pura, que
depõe cada autoridade constituída.
Na leitura de Agamben sobre Benjamin, a distinção tradicional entre
estado de exceção real e ficcional ou político permite que um soberano declare
um estado de exceção quando, por exemplo, um inimigo ameaça uma cidade,
267

mas ainda não está nos “portões”. Se esta ameaça não é ainda real, ela se
torna pela declaração do soberano. Deste modo, para Agamben, é um trabalho
de ficção que torna real o que é essencialmente irreal. O poder soberano é,
assim, uma tentativa de anexar a anomia por meio da exceção, de estabelecer
uma relação entre violência anômica e lei quando aquela não existe
(McQUILLAN, 2011).
Para Benjamin e Agamben, então, o poder soberano é
fundamentalmente diferente da violência revolucionária, que é essencialmente
anômica. E quando se retira da soberania suas ficções legais, que fundam sua
soberania, sua violência se torna gratuita, não em um sentido de excesso, mas
por não ter qualquer legitimidade particular. Ela se torna nada mais que alguma
coisa que alguns fazem e outros resistem, de acordo com seu desejo e
capacidades, individual ou coletivamente (McQUILLAN, 2011).
É neste momento que, segundo Ruiz (2011), Benjamin remete às
potencialidades teológicas da política. A teologia como o anão corcunda,
escondido debaixo do tabuleiro da história, o mestre do xadrez que ninguém
vê, e que, no entanto, maneja os fios do fantoche, a política. Aquele que pode
enfrentar qualquer desafio, mas que não ousa mostrar-se, sendo
reconhecidamente pequeno e feio (BENJAMIN, 1986). A teologia como a
possibilidade de se pensar uma vida política que “se realiza além da
normatização biopolítica ou do controle violento da exceção jurídica” (RUIZ,
2011, p. 3).
Benjamim (1999), em uma veia schmittiana, realiza uma crítica dos
parlamentos liberais a partir do momento em que os mesmos cultivam
compromissos que ignoram a presença latente da violência nas instituições
legais, incluindo o contrato, ou seja, que ignoram a relação permanente entre
lei e violência.
Para ir além da violência legal, é preciso procurar um tipo de violência
que não esteja relacionado com a justificação dos meios ou a preservação dos
fins da lei. Em um primeiro momento, Benjamim a busca na violência dos
Deuses gregos, a violência mítica, que, no entanto, replica a estrutura da
violência, do fazer a lei, trabalhando através da culpa e da retribuição para
aqueles que desafiam o destino. É a violência envolvida no fazer da ordem
jurídica, o poder sangrento sobre a vida para o seu próprio fim. Já a violência
268

soberana é a violência divina, verdadeiramente destruidora da lei, mas que


ataca sem sangue, de um modo que é puro ao direito. É a violência que pode
purificar a vida e a culpa da própria lei.

4.6.4- Política e Violência: para além de Benjamin

No início, era a violência.


G. Agamben168

Em fevereiro de 1970, Giorgio Agamben enviou a Hannah Arendt o


ensaio “Sobre a violência”, em um reconhecimento à influência da autora em
sua obra. Neste ensaio, Agamben (2009), se afastando de Benjamin, busca
analisar a relação da violência com a política e não com o direito, em uma
tentativa de encontrar os limites (se é que existem) que separam a violência da
esfera da cultura.
Em um primeiro momento, a relação entre política e violência pode
parecer uma contradição em termos. Para os gregos, a política era fundada na
palavra, na persuasão (pólis) e não na violência ou na força. A característica
essencial da política grega, era, portanto, a associação da política com a
linguagem, que é fundamentalmente não violenta. Como Benjamin bem
percebeu, a persuasão não era uma técnica, mas uma qualidade fundamental
da verdade. Porém, os filósofos gregos, quando ameaçados pela violência,
como a condenação de Sócrates, passaram a buscar a verdade fora da esfera
política temporal, retirando das verdades qualquer possibilidade de violência
(AGAMBEN, 2009).
Atualmente, e o que delimita a linha divisória entre nossa experiência da
política e a dos gregos, é que a violência foi introduzida na linguagem, indo
além da esfera política, como demonstram a pornografia e, mais recentemente,
a propaganda169.
Segundo Agamben (2009), não é possível justificar a violência por algo
externo a ela, como a ideia de um fim superior, o que a tornaria “justa”, no
sentido de que os fins justificam os meios. Para Benjamin, esta ideia pode
justificar a aplicação da violência, mas não o seu princípio. Desta forma, o
filósofo italiano busca não uma justificativa, mas uma violência que não precisa
168
“In the beginning, there was violence” Agamben (2009).
169
Vide Agamben, 2005c e Debord, 2005.
269

ser justificada, que exista por ela mesma; seu objetivo é quebrar o ciclo
meios/fins da violência revolucionária benjaminiana, uma vez que esta não é
uma violência de meios que apenas procura uma negação do sistema
existente. Ela é uma violência que nega tanto o eu como o outro, que cria a
consciência da morte. É a aporia da classe revolucionária – saber que a
violência contra o outro é inevitavelmente a morte do eu; é uma autonegação e
um auto sacrifício.
Assim, tanto a violência repressiva, que impõe a lei, quanto a que
desafia a lei não são diferentes daquela que objetiva estabelecer novas leis e
um novo poder. Nestes casos, a negação do outro é a negação do eu. São,
deste modo, violências impuras, independente de seus fins. No arcabouço
messiânico benjaminiano, é apenas a violência revolucionária que pode
inaugurar uma nova cronologia, uma nova experiência de temporalidade, uma
nova história (BENJAMIN, 1999). Mas, no momento em que ela tem com
finalidade instituir uma nova ordem, ela mantém o caráter teleológico que
Agamben (2009) critica.
O que Agamben propõe, então, é que a violência revolucionária seja
compreendida sob a luz de sua relação com a morte, o que nos permite
indagar sobre a relação daquela com a cultura, na medida em que “toda cultura
aspira a superar a morte” (AGAMBEN, 2009, p. 109, tradução nossa170). É esta
a base de nossa tendência a separar violência e linguagem – é o único espaço
possível de reconciliação com a morte. A cultura nos transporta para uma
região em que vida e morte, criação e negação, estão intimamente ligados, nos
levando aos limites das culturas linguísticas; ela nos leva ao limiar do que não
pode ser conhecido pela linguagem e, logo, exaure sua função. Uma vez que
busca nos reconciliar com a morte, a cultura não pode ir além sem negar a si
mesma.
Nesta leitura, a violência revolucionária é a única que pode ultrapassar
esta fronteira, na realização da unidade indissolúvel entre vida e morte, em
uma esfera além da linguagem, capaz de libertar o eu. Deste modo, os vivos só
podem reconhecer sua proximidade basilar com a morte negando a si mesmos;

170
“every culture aspires to overcome death”.
270

é a morte que guarda o mistério mais profundo e sagrado da existência


humana (AGAMBEN, 2009).

4.7 – Epítome 3- Entre o poder soberano e a biopolítica

Segundo Vatter (2008), em “Homo Sacer”, Agamben procura estabelecer


uma relação entre poder soberano e biopolítica. Para o autor, o projeto de
dominação total sobre a vida, com sua forma de poder totalitária e biopolítica,
depende da lógica da soberania. De acordo com esta lógica, cada sistema
legal, de modo a fazer cumprir suas normas, deve capturar a vida nua de seus
destinatários em um estado virtual de exceção de suas próprias leis.
Neste sentido, em Benjamin, o uso mítico da lei a fim de empregar a
violência sobre a vida é uma forma de biopoder, de um poder que determina a
vida nua como culpada antes que tenha cometido qualquer violação. Tanto a
violência mítica quanto a divina seriam manifestações deste poder sobre a
vida, da biopolítica - a primeira buscaria o biopoder como um fim, procurando
manter tudo o que vive no contexto da culpa e da necessidade de punição; já a
segunda, buscaria este poder como uma maneira de expiar a culpa da vida nua
e, então, colocar um fim ao reino da lei sobre a vida.
O poder sobre a vida nua não tem, desta forma, apenas um caráter
mítico e mortal, mas também contém as bases de um poder “positivo” que
preserva a vida e cuja manifestação é a violência sem o sangue do divino, a
punição expiatória. A vida nua como o limiar entre um estado de ser dominado
e uma nova condição de liberdade.
A questão que motiva Benjamin é, portanto, teoricamente, a redenção ou
emancipação da vida nua do seu poder mítico e, para Vatter (2008), o
pensamento político de Agamben é uma continuação deste projeto.
Entretanto, Agamben vai focar seu estudo da biopolítica em um sentido
negativo, baseado em Schmitt e não em Benjamin ou Foucault, embora seu
ponto de partida seja o filósofo francês. Segundo Murray (2008), em Foucault,
a mudança da biopolítica clássica para a moderna se dá com a passagem de
uma política de “tirar a vida ou deixar viver” para uma de “fazer viver e deixar
morrer”. A biopolítica moderna tem, pois, um caráter produtivo e dúplice, de
uma morte que se torna uma consequência, ao mesmo tempo em que uma
271

parte necessária da vida. Tal morte, contudo, pode ser facilmente negada e
omitida, já que oficialmente ninguém é morto, nenhuma morte é causada, mas
meramente permitida, um evento passivo, um dano colateral. Assim, para que
“nós” possamos viver, “eles” têm que morrer, em uma distinção entre o cidadão
virtuoso e os outros, excluídos como vida nua, uma vida descartável.
Neste contexto, para Murray (2008), a concepção de biopolítica de
Agamben não é radical o suficiente, uma vez que ela é informada pela lógica
jurídica da exceção schmittiana; o filósofo italiano foca exclusivamente na vida
e em sua negação pelo decisionismo jurídico (tirar a vida e deixar viver), em
direção a uma tanatopolítica, uma política da morte.
Entretanto, é preciso repensar esta política de morte, repensando a
biopolítica de uma maneira produtiva; para além da linha da vida e da morte,
nós devemos aceitar os vivos e os mortos, como co-pertencimento de um
modo que frustra a concretização da identidade.
Nós deveríamos apreciar na morte uma ética comunitária
pré-política que é mais que uma negação da vida ou o
fracasso moral de viver, mas que é a produção
biopolítica da vida que é presumidamente fundacional
(MURRAY, 2008, p. 207, tradução nossa171).

Nesta mesma linha crítica, Dean (2004) afirma que a combinação


“virtuosa” de soberania e biopolítica em Foucault teria dois instrumentos para
restringir o imperativo irrestrito do biopoder e evitar uma possível tendência
totalitária desta articulação – um da economia política, o governar
economicamente, através de processos sociais e econômicos externos ao
governo, com eficiência; e o outro, próprio da soberania, a liberdade e os
direitos individuais, o governar através e em relação com a liberdade. Neste
sentido, as democracias liberais avançadas conseguem diferenciar sua
biopolítica dos Estados totalitários modernos e o Estado de polícia anteriores.
No entanto, Dean (2004) afirma que, de algum modo, a fonte e o ponto
de articulação da soberania e da biopolítica parecem escapar à inteligibilidade.
A questão que se coloca é – o que cria o potencial demoníaco ou virtuoso
desta articulação? Como consequência, quais são as possibilidades e as
problematizações possíveis? A soberania sempre retorna a uma forma atávica

171
We might appreciate in death a pre-political community ethic that is more than the negation
of life, more than the production of biopolitical life that is presumed to be foundational.
272

como no nazismo ou o liberalismo pode revelar seu lado liberal? Ou talvez a


biopolítica simplesmente coloque seus incríveis meios tecnológicos (armas
químicas, biológicas, atômicas, organização militar, aplicações da biociência e
da biomedicina) a serviço dos poderes soberanos, um tipo de conta
biotecnológica do genocídio?
O que Dean (2004) critica em Foucault é o fato deste autor ter
identificado o problema, mas não como e porque estes elementos formam o
problema. É preciso, por conseguinte, questionar a ideia de que o liberalismo
pode agir como um controle à administração totalitária da vida – por um lado, a
racionalidade econômica que dá um limite ao governo se refere antes de tudo
aos meios de manutenção da vida; por outro, a soberania individual tem
direitos, em especial na era dos direitos humanos internacionais, simplesmente
em virtude do mero viver.
Para ele, portanto, “quanto mais o liberalismo e os movimentos
modernos de direito buscam nos defender dos perigos dos biopoderes, ao que
parece, mais eles tornam possível sua extensão” (DEAN, 2004, p. 21-22,
tradução nossa172).
O problema em Foucault, de acordo com Dean (2004), é que ele foca
em um limiar temporal e termina com um tipo de indeterminação não resolvida.
Em primeiro lugar, ele tem a tendência cognitiva de compreender a política
como meio de pensar sobre a decisão ao invés do conflito sobre a regra que
recorre a elementos emocionais como cognitivos. É uma tendência a minimizar
a possibilidade que o não racional, o obscuro e o misterioso possa ter para a
constituição das formas políticas.
Além disto, na perspectiva de Dean (2004), Foucault nega que a vida é
fundamentalmente ligada aos conceitos políticos, exceto nos tempos
modernos, e exclui a investigação dos poderes soberanos sobre a vida a não
ser como uma função da decisão de deixar viver.
Em contraposição a este caráter temporal, Agamben afirma que a
conexão entre política e vida é fundamental para a tradição ocidental e há uma
ligação originária entre a soberania e estas políticas de vida. Em Agamben, a
exploração sobre os poderes soberanos remontam à Grécia e às dimensões

172
The more liberalism and modern rights movements seek to defend us from the dangers of
bio-powers, it would seem, the more they make possible its extension.
273

não cognitivas da política, definindo a estrutura da soberania através de uma


série de limiares que contêm o potencial do que ele chama de zonas de
indistinção.
Agamben baseia-se em textos, leis e mitos da antiguidade, bem como
na teoria crítica e legal moderna para especificar os limites de inclusão e
exclusão, regra e exceção, lei e natureza, violência e justiça, fato e vida, e,
talvez, de maneira mais central, vida nua e vida política e moral.
Neste contexto, o paradoxo da soberania seria definido como a
capacidade de suspender a regra no estado de exceção, o que significa que
estas distintas categorias não podem deixar de entrar em um espaço no qual
as diferenças se decompõem em uma zona de indistinção. A questão em
Agamben, desta forma, não é definir o ponto de interseção das racionalidades
heterogêneas (a indeterminação não resolvida de Foucault), mas delinear as
coordenadas desta obscura zona filosófica (DEAN, 2004).
A política está, então, desde sempre interligada com a vida e possui
duas concepções da mesma – a zoé ou vida nua e a bíos ou vida politicamente
e moralmente qualificada, uma forma de vida particular de uma comunidade,
cuja constituição é possível pela exclusão da vida nua da vida política que,
simultaneamente, faz da zoé uma condição da bíos. Portanto, na perspectiva
agambeana, a vida está incluída na política não pela emergência da biopolítica
no século XVIII, mas pela própria gênese do conceito ocidental da política, em
um ato que é também de exclusão.
Em comum, tanto Foucault como Agamben rejeitam a preocupação
sobre quem tem o poder dentro da ordem política. Para este último autor, é
necessário examinar o papel da soberania como constituinte do limiar da
ordem jurídico-política. A política sempre foi a vida , e a boa vida da qual fala
Aristóteles deve ser o objetivo da comunidade política; já as questões de
existência básica, uma vez satisfeitas pela associação humana, devem ser
colocadas como externas às preocupações propriamente políticas (DEAN,
2004).
E este limiar agambeano sobre limite e origem da soberania deve ser
compreendido a partir do conceito schmittiano, segundo o qual soberano é
aquele que decide sobre o estado de exceção. Assim, o poder soberano é
aquele que define a lei e os limites da lei, a lei e os casos aos quais não se
274

aplica a mesma, que pode ser suspensa - o estado de exceção. A soberania


está, por conseguinte, dentro e fora da lei, é uma estrutura de inclusão e
exclusão simultânea.
De acordo com Dean (2004), este conceito de soberania de Schmitt
ajudaria, ainda, a clarear a discussão de Foucault sobre as modernas
racionalidades de governo. Foucault justapõe a circularidade autorreferente da
soberania, como encontrada em Hobbes, com a arte de governo produtiva dos
pensadores da Razão de Estado e dos cameralistas alemães que tiveram
sucesso em dar um conteúdo à procura da ordem pública e da segurança. Para
Dean (2004), Foucault estaria correto em identificar estas formações
intelectuais como uma contribuição para as racionalidades modernas de
Estado. Entretanto, Schmitt nos lembra de que tais observações não podem
colocar a soberania fora deste quadro – a soberania decide não apenas o que
são os fins do governo, mas também como entender tais fins e o conteúdo
prático quando aplicado à vida.
Deste modo, uma discussão sobre as várias racionalidades de governo,
incluindo o liberalismo e a biopolítica, não podem evitar a soberania como uma
estrutura de decisões que define o princípio no qual ordem e segurança são
obtidos e como eles podem ser aplicados à vida. Logo, os poderes modernos
sobre a vida e a conduta individual e coletiva não podem ser realizados sem a
soberania, pelo menos quando se trata do Estado. Onde Foucault tende a
identificar o governo da vida e o viver como uma característica distintiva das
formações políticas modernas, Schmitt vê a soberania como já contendo uma
noção de poder interessada na vida (DEAN, 2004).
Segundo Schmitt (2006b),
Toda norma geral exige uma configuração normal das
condições de vida nas quais ela deve encontrar
aplicações segundo os pressupostos legais, e os quais
ela submete à sua regulação normativa. (...) Não existe
norma que seja aplicada ao caos. A ordem deve ser
estabelecida para que a ordem jurídica tenha um sentido.
Deve ser criada uma situação normal, e soberano é
aquele que decide, definitivamente, sobre se tal situação
normal é realmente dominante (p.13).

Assim, a soberania é a estrutura que decide o que é esta vida normal


cotidiana e se esta é ou não efetiva. Como consequência, a estrutura soberana
da lei refere não apenas à ordem política ou jurídica ou a um poder que é
275

externo à lei, mas como a vida é, ela mesma, capturada por ela. Então, para
Schmitt, a lei sempre se refere a um padrão normal de existência. Ela tem um
caráter regulatório e é a regra não pelo que ordena e proscreve, mas porque
deve, antes de tudo, criar a esfera de sua própria referência na vida real e fazer
desta algo regular. A soberania schmittiana é a decisão sobre a forma de vida
na qual as suas regras são aplicáveis e como regularizá-la, como fazê-la
governável, através da exclusão da exceção.
Na perspectiva agambeana, a soberania é a estrutura originária na qual
a lei se refere à vida e a inclui suspendendo-a. A força da lei, então, é o que
detém a vida no seu banimento pelo seu abandono. A relação de exceção é um
dos banimentos – ao abandonar indivíduos, a lei não apenas os coloca em uma
esfera de indiferença, como também os deixa expostos e ameaçados no limite
no qual vida e lei, inside e outside, se tornam indistinguíveis. Ser banido é,
deste modo, ser colocado fora da ordem político-jurídica que define o
parâmetro do normal da vida de uma comunidade política. Mas, nesta mesma
ação, aquele que é banido, é também incluído no poder que o coloca lá. Em
suma, segundo Dean (2004), Schmitt, como Agamben, traz a noção de vida ao
conceito de soberania e de lei. Em Agamben, a produção da vida nua é a
atividade originária da soberania.
E esta noção de vida também é trazida por Walter Benjamim para a
relação com a soberania, o sagrado, a vida nua e o homo sacer. Para
Benjamim, há uma relação irredutível entre lei e violência, a partir de duas
formas desta última – a violência do fazer a lei e a violência da preservação da
lei. É a oscilação entre elas que define o surgimento e a queda do vários tipos
de poder do Estado.
De acordo com Dean (2004), Agamben evita a estrutura bipolar de
Foucault. Neste último, a política pode ser analisada apenas como a
articulação ou o deslocamento de polos de uma série de oposições: o direito de
morte e o direito de vida, soberania e biopolítica, caráter individualizante e
totalizante dos poderes modernos, técnicos de governo e técnicas do eu,
Razão de Estado e liberalismo, entre outros. Contudo, o ponto no qual se
ligam, se sobrepõem, interagem ou entram em uma zona de indistinção, é
difícil discernir na obra foucaultiana. Agamben, por outro lado, propõe uma
topografia possível do estado de exceção no qual o banimento soberano
276

captura a vida na ordem política, mas fora da comunidade política, tornando


zoé e bíos indistintos.
Isto também indica, para Dean (2004), que Foucault subestimou a
extensão, o alcance na qual as formas do poder soberano foram constituídas
na relação com as noções de vida, além de não distinguir entre os diferentes
conceitos da mesma. O que Agamben faz, por sua vez, é contribuir para a
análise de como as concepções de soberania das democracias modernas já
contêm premissas sobre a vida na relação com a política, que as abrem para
uma pronta, como também oculta, colonização por imperativos biopolíticos.
Enquanto Foucault tem uma visão “otimista” das políticas liberais
democráticas, cujos direitos democráticos e humanos seriam utilizados para
restringir o avanço da biopolítica, em Agamben, as declarações de direitos
representam não o locus de resistência à biopolítica, mas o ponto de inscrição
da vida nua na ordem político-jurídica do Estado-nação, o qual, então, se torna
indistinto do direito político dos cidadãos.
O homo sacer agambeano está, portanto, presente em todas as
instâncias históricas e mesmo na sociedade contemporânea. Nesta
perspectiva, não seria, de acordo com Dean (2004), um essencialismo de
Agamben, uma busca por uma forma trans-histórica de soberania? Não faltaria
a ele a ruptura identificada por Foucault no século XVIII?
Pode-se, então, afirmar que a biopolítica captura a vida nua (ou a zoé,
que era a exceção do poder soberano) e a faz um problema da vida política
(bíos)?
Para Foucault, a natureza da ruptura é o deslocamento, a articulação ou
reinscrição da soberania dentro de uma forma de política particularmente
moderna, a biopolítica. Porém, esta captura do governo do Estado pelos
biopoderes já estaria presente na própria estrutura da soberania.
Já em Agamben, o paradigma da política moderna não é a liberdade do
governo liberal, mas a articulação entre o poder soberano e a biopolítica na
forma do campo de concentração, a forma material de se estabilizar o estado
de exceção. Ele é estabelecido por lei como um espaço de exceção, não
estando submetido à ordem, mas apenas ao comando policial direto. É o
espaço de desordem ordenada na qual a vida nua entra em uma zona de
indistinção com a ordem legal.
277

Quanto ao caráter trans-histórico da obra de Agamben, Galindo (2009,


2011) afirma que seus argumentos, em especial em o “Reino e a Glória”,
implicam em um alto grau de abstração, que resultam em metáforas descritivas
cujo vínculo com o real é mais débil que os tipos ideais weberianos; uma
grande abstração, fruto de uma subestimação das características que permitem
diferenciar os conceitos e, acima de tudo, as experiências que eles contêm. A
metodologia agambeana consiste, deste modo, em adotar um ponto de vista no
qual as descrições prescindem de considerar as diferenças que singularizam
as realidades sociais, produzindo objetos como “a política ocidental” ou “o
direito ocidental”.
E é a partir desta perspectiva que Agamben analisa os conceitos
políticos modernos do Ocidente – com um aberto anti-historicismo, buscando
questionar a racionalidade destes conceitos e o condicionamento da ação
política atual, e estabelecendo continuidades conceituais e abstrações
igualadoras. É uma opção teórica, mas também crítica e política. E a de
Agamben passa por uma “aposta decidida pela pressuposição e reconstrução
de ambiciosas continuidades. A história do Ocidente é tratada como um friso de
cuja homogeneidade seria indicador - e elemento – do léxico político”
173
(GALINDO, 2009, p. 73, tradução nossa ).
Como resultado, tem-se a problemática continuidade essencial,
diacrônica e sincrônica, de Agamben entre as diferentes formas estatais e de
governo; a vida nas sociedades democráticas contemporâneas interpretada
como substancialmente idênticas à vida que não merecia viver para os
nazistas.
Por conseguinte, para o filósofo italiano, os conceitos políticos modernos
ocidentais, como poder constituinte e governo, devem ser abandonados ou,
pelo menos, repensados desde o princípio. Neste sentido, a genealogia
agambeana do poder político no Ocidente continua a tradição que subtrai todo
valor da política e a vê como mera violência organizada, demonstrando a
atualidade do vínculo entre soberania e violência.

173
“apuesta decidida por la presuposición y la reconstrucción de ambiciosas continuidades. La
historia de Occidente es tratada com un friso de cuya homogeneidad sería índice – y factor – el
léxico político”.
278

Assim, a introdução da perspectiva biopolítica seria justamente o que


permite a Agamben vincular esta concepção da soberania às análises de
Foucault, remetendo a essência da política moderna à gestão da vida. E a
categoria benjaminiana “vida nua” é a escolhida para ser a portadora do nexo
entre violência e direito que define a estrutura da soberania – a vida ordenável
produzida pelo Estado como referência a partir da qual e sobre a qual se
legitima (GALINDO, 2009).
Destarte, se a vida é aquilo que é posto em “bando” pela lei, que é
elaborado e gestado pelo direito, o cidadão é o homo sacer. E esta lógica,
biopolítica, estaria presente tanto no Estado nazista quanto nas democracias
liberais contemporâneas, que têm seu paradigma no campo e seu escopo na
politização da zoé. Mais uma abstração agambeana, que embora se refira a
fenômenos sociais, parece apenas indiretamente informada por eles e somente
para testemunhar o “desastre”.
Neste contexto, a partir de suas abstrações, as alternativas que
Agamben propõem são, na concepção de Galindo (2009), contrafáticas,
parecendo se reduzir a uma problematização dos conceitos com sugestões
gerais sobre repensar os mesmos como a chave para superar os seus efeitos.
É por isto que Galindo (2009, 2011) denomina o messianismo agambeano de
impolítico - a adoção de uma perspectiva que permite subtrair todo valor do
político-estatal, que é visto como mera violência.
O messianismo impolítico agambeano pode ser considerado como o
oposto da teologia política, que, também enquanto tipo ideal174, é caracterizada
pela representação e publicidade, pela dimensão jurídica e pela sacralidade
católica. E é messiânico uma vez que, a partir do paulinismo benjaminiano, e
mesmo da consciência messiânica schmittiana (do Kat-echon), procura
demonstrar a ilegitimidade e a não fundamentação de todo ordenamento
jurídico, em busca de uma desativação radical da lei. Finalmente, impolítico
porque usa a retórica para questionar o nomos e problematizar os pilares que
174
Galindo (2011) também critica a teologia política, do mesmo modo que o messianismo
impolítico, por realizar abstrações e generalizações, afirmando que nenhum deles é uma opção
política viável ou efetiva, ficando no campo da teoria. O autor, como alternativa, apresenta sua
política do “terceiro liberalismo”, de base foucaultiana, que não busca verdade alguma, nem
teológica nem mística, nem proto-totalitária nem proto-anarquista, mas que esteja à altura da
finitude humana e da contingência. Uma política liberal, mas que não renuncie à regulação do
poder, contribuindo para a sobrevivência e convivência do homem. Nem totalitarismo nem
anarquia. Nem soberano nem messias. Vide Galindo (2009, 2011).
279

sustentam a política moderna – os mecanismos de representação (as


mediações racionais) e a crença na potencialidade emancipadora da ação
(GALINDO, 2011).
Como consequência, o objetivo geral de Agamben está em pensar uma
política que seja livre do bando soberano, que tenha sua essência em si
mesma, pois a vida não precisa ser politizada já que inclui em si o político. Uma
bíos que é também sua zoé. Uma política que vem, que é sua própria forma de
vida e na qual a única obrigação é existir enquanto tal. Uma política que vem
que é, portanto, impolítica, porque deve renunciar a introduzir qualquer tipo de
negação na potencialidade humana, devendo apenas reconhecê-la.
E esta política que vem requer uma comunidade que vem, que é
diferente do Estado. É o comunitarismo agambeano. A defesa messiânica e
impolítica (GALINDO, 2009, 2011) de uma comunidade que carece de
pertencimento, que não exclui e nem se deixa representar, que é, assim,
“irrepresentável e não identificável, passiva e impotente. Uma comunidade que,
como a figura do messiânico, excede e desativa todo nomos” (GALINDO, 2009,
p. 72, tradução nossa175). É a inação (mais uma abstração, já que não se trata
de viver em estado vegetativo); o viver messianicamente, no hos me (como se),
despojando o homem de toda propriedade e de toda identidade. Uma vida
liberada do governo teológico-político e da biopolítica que o acompanha.
E o modo de desativar este governo, e explicar seu atual domínio e da
economia sobre uma soberania popular vazia de sentido, está, segundo
Agamben, na arqueologia que ele realiza, explicitando, como em “O Reino e a
Glória”, a relação entre a teologia e o poder político. A “cura” através da mera
descrição da “etiologia dos sintomas do mal” (GALINDO, 2009, p. 75, tradução
nossa176).
Entretanto, Galindo (2009) reconhece a importância política e filosófica
de uma história conceitual como a de Agamben – uma crítica que contribui para
nos mostrar os perigos da teologização do político, as aporias e aderências
teológicas do poder, ao mesmo tempo em que colabora para a sua

175
“irrepresentable e inidentificable, pasiva e impotente. Una comunidad que, al igual que la
figura de lo mesiánico, rebasa y desactiva todo nomos”.
176
“etiología de los síntomas del mal”.
280

autolimitação e estimula a renovação do direito e das instituições, evidenciando


sua falibilidade e contingência.
281

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se, segundo Agamben (2009), só é possível a uma doutrina existir


legitimamente enquanto interpretação, então, a teoria agambeana é uma
construção a partir de sua leitura das obras de Schmitt e Foucault. Ou seja, não
se trata, meramente, do uso que o filósofo italiano faz dos conceitos de poder
soberano e biopolítica, mas da maneira como eles os interpreta.
Deste modo, para seus críticos, o grande problema de Agamben está na
sua desconstrução dos conceitos schmittianos e foucaultianos e sua
ressignificação em busca de um “terceiro caminho”. Para tanto, Agamben faz
uma leitura de Schmitt, e neste framework analisa a biopolítica foucaultiana;
como consequência, tem-se um poder biopolítico soberano ou uma biopolítica
schmittiana.
Enquanto para Foucault a biopolítica surge no século XVIII, passando a
coexistir com o poder soberano e a disciplina, para Agamben, a biopolítica é
tão antiga quanto a exceção soberana. Não há, assim, para este autor, uma
ruptura ou descontinuidade, mas uma continuidade. E esta é resultado de sua
metodologia, que parte de Foucault, utilizando o paradigma, a assinatura, e a
arqueologia, mas obtém um resultado diverso – se a arqueologia foucaultiana é
historicista, uma análise de práticas, a de Agamben é anti-historicista,
reduzindo pela filosofia, teologia e filologia, a história a universais como a
“política ocidental” e produzindo grandes abstrações, tanto na sua investigação
quanto em suas proposições. Desta forma, o que em Foucault é um momento
particular, um caso específico, como o nazismo, em Agamben se torna uma
matriz de interpretação, o campo. Em Agamben, portanto, a biopolítica e o
poder soberano coincidem no domínio jurídico-político do estado de exceção.
Além disto, enquanto Foucault percebe a biopolítica como uma
tecnologia positiva, ou seja, produtiva, de gestão da vida, em Agamben, ela é
primordialmente negativa, se focando na morte e convergindo para uma
tanatopolítica. Uma política que não tem espaço para resistência, consistindo
em um poder unidirecional, ao contrário do caráter relacional do poder
foucaultiano.
A leitura peculiar de Foucault em Agamben se deve ao fato de que este
continua, em sua herança schmittiana, estatocêntrico, adotando o discurso do
282

excepcionalismo. Mas se em Schmitt, o excepcionalismo é uma escolha


política, em Agamben, é um diagnóstico, pessimista, de nosso tempo. Se o
liberalismo como governamentalidade de Foucault é capaz de se auto limitar,
impedindo um deslize rumo ao totalitarismo, e reconhecendo que as medidas
iliberais são imanentes a esta arte de governo, enquanto sociedade da
segurança, em Agamben, se apagam as diferenças entre as democracias
liberais contemporâneas e os regimes totalitários, construindo um continuum.
Para o filósofo italiano, as práticas iliberais são um evento, uma ruptura, sendo
um sintoma do caráter biopolítico totalitário das atuais democracias. Não há,
assim, diferença entre Auschiwtz e Guantánamo.
Neste contexto, Agamben abandona o dualismo entre poder soberano e
biopolítica, que se torna o poder soberano biopolítico, e passa a contrastá-lo
com o poder da vida anômica de Benjamin. Agamben retira, assim, o jurídico
do estado de exceção (“contra” Schmitt e sua captura da anomia no campo da
lei) e busca uma violência redentora, uma anomia da vida pura, que só é
possível fora do direito.
Deste modo, Agamben vai propor, na sua leitura benjaminiana e
messiânica, uma nova política – uma política que vem, para uma comunidade
que vem. Também uma grande abstração e, para seus críticos, sem efeitos
práticos. Mas o que significa “o que vem” de Agamben? Qual a sua alternativa?
No direito romano, sagradas eram as coisas retiradas do livre comércio e
uso dos homens, pertencendo, de algum modo, aos deuses. Eram, pois, as
coisas indisponíveis, e sacrílego era todo ato que violasse esta sua
característica especial. Assim, consagrar constituía o ato de retirar as coisas da
esfera do direito humano, enquanto profanar significava restituí-las ao livre uso
dos homens, tornando-as puras, livres e profanas.
Consagrar é um ato de separação e seu locus é, primordialmente, o da
religião, no qual aquilo que é separado, lugares, animais, coisas ou pessoas, é
transferido para uma outra esfera. É neste sentido que Agamben (2005c)
afirma que “não há religião sem separação, como toda separação contém ou
conserva em si um núcleo genuinamente religioso” (p.65). E o dispositivo que
realiza e regulamenta esta separação é o sacrifício, um conjunto de rituais que
estabelece a passagem do profano para o sagrado, da esfera humana para a
283

divina. Além disto, o que foi consagrado pode ser restituído, também pelo rito,
ou pelo jogo, que é a inversão do sagrado, mas sem o abolir, à esfera profana.
No entanto, é preciso distinguir entre profanação e secularização. Esta
última é uma forma de deslocamento, que na esfera política significa a
transmutação da monarquia celeste na terrena, deixando, porém, intacto o seu
poder (AGAMBEN, 2005C, 2011). Já o profanar, significa neutralizar aquilo que
se profana; após este ato, aquilo que estava separado é devolvido ao seu
(re)uso. Ambas as operações são políticas, mas a secularização se refere ao
exercício do poder, remetendo-o a um modelo sagrado, enquanto a profanação
desativa os dispositivos do poder e os restitui ao uso comum os espaços que
havia capturado.
Profanare, do latim, significa tanto tornar profano quanto sacrificar. É
uma ambiguidade que, para Agamben (2005c), parece inerente ao vocabulário
do sagrado e é, nesta interpretação, que ele utiliza o adjetivo sacer. O homo
sacer é, então, aquele que é consagrado a Deus, mas que também é o
excluído. Deste modo, na esfera divina, ele não pode ser sacrificado e está
excluído do culto, já que sua vida é uma propriedade dos deuses, e ainda sim
sobrevive, levando uma existência aparentemente profana. Assim, “Sagrado e
profano representam, pois, na máquina do sacrifício, um sistema de dois polos,
no qual um significante flutuante transita de um âmbito para outro sem deixar
de se referir ao mesmo objeto” (AGAMBEN, 2005c, p. 69).
No mundo contemporâneo, no qual o capitalismo é, em uma linguagem
benjaminiana, uma religião, de culto permanente, de culpa e desespero, que
não tende para uma redenção, mas destruição do mundo, a separação, a
consagração, é realizada na sua forma mais pura. Não há nada mais a se
separar. A profanação absoluta coincide aqui com uma consagração integral.
Tudo foi separado e deslocado para a esfera do consumo, da vivência como
espetáculo, a sociedade do espetáculo de Debord, na qual as coisas são
exibidas em sua própria separação. Aqui consumo e espetáculo constituem a
mesma impossibilidade de se usar e, portanto, se torna impossível profanar;
não se pode profanar, devolver ao uso, aquilo que não se pode utilizar. A
religião capitalista criou o Improfanável (AGAMBEN, 2005c, DEBORD, 2005).
É preciso, por conseguinte, e é este desafio que Agamben nos coloca,
profanar o Improfanável; é esta a tarefa da geração política que vem, da
284

“Comunidade que vem”. Uma nova comunidade, sem essência, messiânica,


restaurada em sua potencialidade, uma comunidade que nunca foi ainda
(MILLS, 2004).
Profanar é, assim, tentar uma nova política, um novo ser humano, uma
nova comunidade, e Agamben nos convida a este ato de restituição, de
devolução à esfera do humano daquilo que foi separado.
É preciso libertar o que foi consagrado, não pela recuperação do uso
antigo, mas pela criação de um novo uso. O desafio agambeano, portanto, é o
da ação política, de libertação da asfixia capitalista. É preciso, nesta
empreitada, ser contemporâneo ao nosso tempo. Ser contemporâneo, o tempo
intempestivo nietzscheano – pertencer ao seu tempo, sem coincidir com este;
ser inatual, mas exatamente por isto ser capaz de perceber e apreender este
tempo. É preciso aderir e, ao mesmo tempo, criar distância; é uma relação com
o tempo particular que a este adere por meio de uma dissociação, como
também de um anacronismo.
E é esta distância, esta não coincidência, que permite que sejamos
capazes de manter o olhar fixo no nosso tempo, procurando suas luzes, mas,
principalmente, a sua escuridão, pois
Todos os tempos são, para quem deles experimenta
contemporaneidade, obscuros. Contemporâneo é,
justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que
é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do
presente (AGAMBEN, 2010, p. 62-63).

E o escuro, não é, na interpretação agambeana, simplesmente a


ausência de luz, uma não-visão, não é algo passivo, mas a exigência de uma
ação, a de neutralizar as luzes, que podem nos cegar, e desenvolver um tipo
especial de visão, que nos permita ver neste escuro. Descobrir as suas trevas,
a sua sombra, e interrogá-las. É por isto que Agamben (2010) afirma que os
contemporâneos são raros – contemporaneidade exige coragem, de interpelar
um presente que se afasta continuamente de nós e que não podemos alcançar.
É intempestivo. Não tem lugar no tempo cronológico; é o anacronismo, de
modo que o muito cedo já é muito tarde e o já é também um ainda não.
O presente é também o passado, tem uma assinatura do arcaico, uma
arché que não é chronos, mas o devir histórico. O acesso ao presente só é
possível por meio de uma arqueologia (AGAMBEN, 2009, 2010), que não é a
285

busca de um passado remoto, de uma origem, mas do não vivido, do que não
conseguimos viver. É voltar ao presente no qual jamais estivemos.
O contemporâneo é o tempo messiânico (AGAMBEN, 1993, 2006), o
tempo operativo, o kairós que vive no chronos contraído. É ho nyn kairos, o
tempo de agora. Neste contexto, o reino messiânico será como o mundo é
agora, mas um pouco diferente; é o pequeno deslocamento produto da história,
que não se refere ao estado das coisas, mas ao seu sentido e aos seus limites.
A revelação aqui não é do caráter sagrado do mundo, mas de seu caráter
irreparavelmente profano – o mundo como ele é. E a salvação começa neste
ponto, da salvação do caráter profano do mundo, do seu “ser assim”, e não
uma tentativa de (re)sacralização da vida.
A redenção não é, neste sentido, o acontecimento no qual o profano se
torna sagrado e o que era perdido é encontrado, mas “a perda irreparável do
perdido, o definitivo carácter profano do profano” (AGAMBEN, 1993, p. 83).
Nós só podemos ter esperança naquilo que não tem remédio; a única
passagem para fora do mundo está em contemplar o sem remédio enquanto
tal. O “ser assim”, o próprio modo de ser, a não causalidade.
O tempo de agora, por conseguinte, exige não apenas que o
interroguemos, mas também que sejamos capazes de transformá-lo, de colocá-
lo em relação com outros tempos, de ler de outra maneira a história. Uma
exigência a qual este tempo não pode responder. Mas já é um começo.
286

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