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RESUMO
Nosso objetivo é sugerir uma reflexão contraintuitiva sobre o conceito de Gewalt
(“violência”; “poder”) em Walter Benjamin, em torno do tema do poder
constituinte e do estado de exceção no Estado democrático de direito. Nosso
método se inspira na proposta benjaminiana de uma história política da literatura
feita a contrapelo, a partir da perspectiva de “história vista de baixo”. As fontes
deste estudo foram os textos de Benjamin: Para a Crítica da Violência (2013), de
1921, Origem do Drama Barroco Alemão (1984), escrito em 1925 e publicado
em 1928, e a Tese VIII de Sobre o Conceito de História (2012), escrita entre 1939
e 1940, e trazida à notoriedade somente após a morte do autor.
ABSTRACT
espanhola dos Pirineus com um grupo de refugiados, detidos pela polícia local
para averiguações. O filósofo havia acabado de conseguir um visto para os
Estados Unidos, por intermédio dos colegas Adorno e Horkheimer, que
emigraram com o Instituto Para Pesquisa Social para Nova York em 1934.
Benjamin teria preferido o suicídio por overdose de morfina a ser entregue pelos
franquistas espanhóis às autoridades alemãs para a deportação e a morte em
um campo de concentração nazista, um terror fundamentado na sua recente
experiência como prisioneiro por três meses em um campo de trabalhos forçados
em Nevers, França (WITTE, 2017, 137-143).
2 Conforme a nota da tradução: “O substantivo Gewalt provém do verbo arcaico walten: “imperar”,
“reinar”, “ter poder sobre”, hoje empregado quase exclusivamente em contexto religioso. Se o
uso primeiro de Gewalt remete a potestas, ao poder político e à dominação – como no
substantivo composto Staatgewalt, “autoridade ou poder do Estado” -, o emprego da palavra para
designar o excesso de força (vis, em latim) que sempre ameaça acompanhar o exercício do
poder, a violência, este se firma no uso cotidiano a partir do século XVI (daí, por exemplo,
Vergewaltigung, “estupro”). Por essa razão, Willi Bolle traduziu o título do ensaio “Zur Kritik des
Gewalt” como “Crítica da violência – Crítica do poder” [...] e João Barrento, como “Para uma
Pesquisador de pós-doutoramento na Universidade de São Paulo (USP) e Doutor em História
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com estágio de doutoramento na Université
Paris IV – Sorbonne. Professor do Mestrado Profissional em Administração Pública (PROFIAP)
da UFJF. Brasileiro, residente em Juiz de Fora (MG). E-mail: antonio.gasparetto@gmail.com
Pesquisador em estágio de pós-doutoramento com a Bolsa PPGH-PUCSP/PNPD-CAPES.
Número do Processo: 88887.373072/2019-00. Projeto: 88882.463217/2019-01 - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF) com estágio de doutoramento no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de
Lisboa (ICS-UL). Brasileiro, residente em Juiz de Fora (MG). E-mail: pidtanagino@gmail.com
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Cadernos Walter Benjamin 26
pode ser traduzido tanto como “violência”, quanto como “poder”) com a finalidade
de apresentar uma dupla reflexão sobre a oposição entre o “poder-como-
violência” do direito e do Estado, e a “violência-como-poder” da greve
revolucionária.
Benjamin (2013, 121-122) inicia esse ensaio defendendo que,
independentemente das suas causas, a violência só se constitui
verdadeiramente enquanto tal quando passa a interferir no núcleo ético das
relações sociais, cuja esfera é designada pelos conceitos de direito e de justiça.
Desse modo fica estabelecida a relação mais elementar de toda a ordenação do
direito, que é aquela entre os fins e os meios para se atingir esses fins, relação
a partir da qual surge a pergunta crucial para o autor: “se a violência é em
determinados casos meio para fins justos ou injustos”. Aqui, a crítica do autor
penetra os sedimentos das histórias de violência tanto do direito positivo quanto
do direito natural. De acordo com Derrida (2018, 75), o conceito de “violência”
(“Gewalt”) analisado por Benjamin “pertence à ordem simbólica do direito, da
política e da moral – de todas as formas de autoridade ou de autorização, ou
pelo menos de pretensão à autoridade”, e aqui, se debruça menos sobre a
violência física que sobre a violência simbólica mencionada.
Conforme Walter Benjamin, o direito natural nunca viu como um problema
a utilização de meios violentos para realização de fins considerados justos. Na
verdade, seu alicerce filosófico foi que forneceu ao período do Terror Jacobino
seu fundamento ideológico. O direito natural vê a violência como parte da
natureza, por isso a sua utilização só se torna um problema quando suas
finalidades são valoradas como “injustas”. Assim, conforme a teoria
contratualista do Estado, antes do indivíduo abrir mão do seu poder e cedê-lo ao
Estado, “ele exerce de jure todo e qualquer poder que ele de facto tem”. Com a
crítica do poder como violência” [...]. De todo modo, o que importa é ressaltar a dupla acepção
do termo Gewalt, que indica, em si mesmo, a imbricação entre poder político e violência que
constitui o pano de fundo da reflexão de Benjamin”. (BENJAMIN, 2013, 121-122).
Pesquisador de pós-doutoramento na Universidade de São Paulo (USP) e Doutor em História
pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) com estágio de doutoramento na Université
Paris IV – Sorbonne. Professor do Mestrado Profissional em Administração Pública (PROFIAP)
da UFJF. Brasileiro, residente em Juiz de Fora (MG). E-mail: antonio.gasparetto@gmail.com
Pesquisador em estágio de pós-doutoramento com a Bolsa PPGH-PUCSP/PNPD-CAPES.
Número do Processo: 88887.373072/2019-00. Projeto: 88882.463217/2019-01 - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. Doutor em História pela Universidade Federal de Juiz de
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Lisboa (ICS-UL). Brasileiro, residente em Juiz de Fora (MG). E-mail: pidtanagino@gmail.com
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razão dos fins que essa violência objetiva, “mas por sua mera existência fora do
direito”, conclui o autor. Benjamin toma o exemplo do “grande criminoso”, sendo
a fonte da admiração que lhe é dada pela multidão não um fruto da admiração
pelo seu ato em si, mas sim “à violência de que seu ato dá testemunho” como
diz Benjamin. Isto é, é finalmente percebida a violência fundadora do direito,
reconhecida como ato legítimo de fundação3, ainda que na forma de um
sentimento fugaz gerado pelo ato do “grande criminoso”.
Destarte, Benjamin apresentara uma distinção entre duas “violências”, a
violência fundadora e a violência conservadora, de um modo que o autor se viu
obrigado a admitir que uma não pode ser tão diametralmente oposta à outra,
posto que a violência fundadora carece do mesmo instinto de autopreservação
que a violência conservadora. E aqui é importante lembrar que o conceito de
Gewalt (em que pese a influência da filosofia heideggeriana que foi fundamental
neste ponto tanto para Benjamin quanto para Schmitt) significa, além de
“violência” fundadora, que destrói o antigo direito e funda um novo, é também “o
domínio ou a soberania do poder legal, a autoridade autorizante ou autorizada:
a força de lei” (DERRIDA, 2018, 73), um tema benjaminiano que tem recebido
cada vez mais atenção dos estudiosos da filosofia do direito, especialmente
daqueles que se dedicam aos limites da democracia burguesa e as
possibilidades de uma democracia radical4.
Como exemplo do aparecimento dessas duas concepções, o autor estuda
o caso da greve geral revolucionária, como a que viu na Alemanha durante a
revolução de 1918, vencida pela socialdemocracia: “a classe trabalhadora
invocará sempre seu direito à greve, mas o Estado chamará este apelo de abuso
3 A Nota do Editor neste trecho também nos é importante: “A temática do grande criminoso e da
atração que ele exerce sobre o povo é um tema comum à filosofia do direito (por exemplo, em
Hegel, no parágrafo 95 da Filosofia do Direito, embora numa direção contrária à de Benjamin) e
à literatura, em particular ao Dostoiévski de Crime e Castigo, livro que Nietzsche tanto admirou
e que Benjamin lia na época. Benjamin enxerga nessa atração, um indício da suspeita, mesmo
inconsciente, que a ‘multidão’ experimenta com relação à justiça do direito vigente, portanto, uma
suspeita que aludiria à origem violenta do direito”. (BENJAMIN, 2013, 127).
4 Sobre isso, uma boa abordagem pode ser encontrada em Souza (2020).
(pois o direito de greve não foi pensado “dessa maneira”) e promulgará seus
decretos de emergência” (BENJAMIN, 2013, 129). Por fim, seguindo essa linha
de reflexão, Benjamin conclui que a greve mostra que a violência é capaz de
fundamentar e modificar relações de direito, e qualquer objeção a esta hipótese
poderia ser refutada ao se considerar o caso da violência da guerra, um dos
poderes constituintes mais tradicionais.
CONCLUSÃO
A investigação de Benjamin em Para a Crítica da Violência foi formulada
a partir da crítica a diferentes tradições do direito positivo e do direito natural, em
um contexto histórico no qual versões radicalizadas dos pensamentos de Hegel
e Maquiavel fundamentavam a ideologia e a filosofia política de movimentos e
regimes totalitários. Essa radicalização atingiu seu paroxismo com a formação
de um novo paradigma político, o “paradigma do campo de concentração” que
impera do período Entreguerras até nossos dias (AGAMBEN, 2004). Isto é, o
paradigma de governo formado na transformação radical do conceito de “estado
de exceção” em “Estado de exceção”, imposto por militantes partidários,
políticos, intelectuais e, especialmente, por juristas, como o fundamento do novo
conceito de “soberania” que os regimes totalitaristas procuravam erigir, como foi
o caso de Carl Schmitt no nazismo a partir de 1933.
Em Origem do Drama Barroco Alemão, o autor procurou demonstrar como
a violência sempre esteve entrelaçada ao exercício e representação do poder na
Alemanha e, através do método comparativo, em quase todo mundo Ocidental.
A questão do poder soberano em decretar ou revogar o estado de exceção e o
papel da “alegoria” barroca no Antigo Regime alemão se colocam na obra do
autor como uma crítica ao seu próprio presente.
A percepção desse processo na história política de seu tempo parece ter
levado Benjamin a concluir na tese VIII Sobre o Conceito de História, que, se as
forças conservadoras, se o totalitarismo, se as classes que sempre oprimiram e
subjugaram as classes trabalhadores, se a burguesia e o Capital se armam da
prerrogativa de criar e aplicar as leis, o mesmo direito, por razão da força de uma
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2ed. São Paulo:
Boitempo, 2004.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses
“Sobre o conceito de história. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant; Jeanne
Marie Gagnebin; Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.
SOUZA, Joyce Karine de Sá. Desalienar o Poder, Viver o Jogo: uma crítica
situacionista ao direito. São Paulo: Max Limonad, 2020.
WITTE, Bernd. Walter Benjamin: uma biografia. Trad. Romero Freitas. Belo
Horizonte: Autêntica, 2017.