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FREUD

2º ano do Ensino Médio

Professor: Laerte Moreira dos Santos

Área de Sociedade e Cultura


(Filosofia, Sociologia, História, Geografia)

http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia
ou
http://www.geocities.com/sociedadecultura/filosofiaframe.html

(Observação: um item muito usado em seminários e aulas é o “textos para as aulas”)

2º bimestre de 2005º
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TEXTOS DE E SOBRE FREUD

A - Textos de autores sobre Freud

1. Tópicos da teoria psicanalítica freudiana

Prof. Laerte M. Santos

1. Freud nasceu em 1856 na Áustria e faleceu em 1939 em Londres.


2. Fundador da PSICANÁLISE ou TEORIA PSICANALÍTICA que é o campo de hipóteses sobre o funcionamento e
desenvolvimento da mente no homem. Se interessa tanto pelo funcionamento mental normal como pelo patológico.
3. Freud demonstrou que o homem não é apenas um ser racional. Há impulsos irracionais que nos influenciam.
4. Estes impulsos irracionais se manifestam através do INCONSCIENTE
5. INCONSCIENTE = parte maior de nossa psique, não é uma coisa embutida no fundo da cabeça dos homens e nem um
lugar e sim uma energia e uma lógica em tudo oposta à lógica da consciência que é a parte menor e mais frágil da nossa
estrutura mental. Podemos imaginar a consciência como a ponta de um iceberg e a montanha submersa abaixo como o
inconsciente. "A percepção que temos do mundo é consciência; as lembranças, inclusive a dos sonhos e devaneios são
consciência. A memória é consciência e só há memória de fatos mentais conscientes. " (pág. 46, O que é psicanálise,
Fábio Herrmann)
6. Características do INCONSCIENTE: opostas às características da consciência. Por isso desconhece o tempo, a
negação e a contradição. Suas manifestações não são percebidas diretamente pela consciência por isso requer
deciframento e interpretação. (Exemplo: nos sonhos o inconsciente se revela através de um conteúdo manifesto = o que
aparece na consciência - e de um conteúdo latente = o conteúdo real e oculto). "O inconsciente... é uma interpretação ao
contrário" (pág. 40, O que é psicanálise, Fábio Herrmann). Se como veremos o princípio básico do funcionamento da
mente é, segundo Freud, o de evitar desprazer, o INCONSCIENTE é então o lugar teórico das representações recalcadas
ou o próprio processo de recalcamento, que impede certas idéias de emergir na consciência.
7. A sexualidade tem uma importância fundamental na psicanálise mas não tem um sentido restrito, ou seja, apenas
genital. Tem um sentido mais amplo = toda e qualquer forma de gratificação ou busca do prazer. Então a sexualidade
neste sentido amplo existe em nós desde o nosso nascimento.
8. A partir deste sentido amplo da sexualidade podemos entender os princípios antagônicos que fazem parte da teoria
psicanalítica freudiana: A) EROS (do grego clássico, vida) X THANATOS (do grego clássico, morte) B) Princípio
do Prazer X Princípio da Realidade

- Eros = ligado às pulsões de vida, impulsiona ao contato, ao embate com o outro e com a realidade. Sendo a vida tensão
permanente, conflito permanente coloca-nos no interior de afetos conflitantes e pode não ser a realização do princípio do
prazer.
- Thanatos = é o princípio profundo do desejo de não separação, de retorno à situação uterina ou fetal, quer o repouso, a
aniquilação das tensões. Está vinculado às pulsões da morte pois somente esta poderá satisfazer o desejo de equilíbrio,
repouso e paz absolutos.
- Princípio do Prazer = é o querer imediatamente algo satisfatório e querê-lo cada vez mais. "É a tendência que, em busca da
descarga imediata da energia psíquica, não quer saber de mais nada - nem do real, nem do outro, nem mesmo da
sobrevivência do próprio sujeito" (pág. 95, "Sobre Ética e Psicanálise", Maria Rita Kehl). “... Se o Princípio do Prazer busca a
descarga imediata de qualquer excitação – e à recordação deste percurso que vai da carga de excitação (desprazer) à sua
descarga (prazer), chamamos desejo – isto eqüivale a dizer que busca um estado de não-tensão, de não-desejo, de repetição
de um eterno mesmo. (Maria Rita Kehl, “O Desejo”, Cia de Letras, pág. 370, 1990) .Não está necessariamente ligado a Eros
mas de forma mais profunda a Thanatos pois "se o desejo do homem for o repouso, o imutável, a fuga do conflito, somente a
morte (Thanatos) poderá satisfazer tal desejo." (pág. 63, "Repressão Sexual", Marilena Chauí)
- Princípio da Realidade = princípio que nos faz "compreender e aceitar que nem tudo o que se deseja é possível, que se for
possível nem sempre é imediato, que nem sempre pode ser conservado e muitas vezes não pode ser aumentado." (pág. 63, op.
Cit., Marilena Chauí). Impõe-nos limites internos e externos.

9. Psicanálise e Agressividade - Freud presumiu na nossa vida mental a existência de dois impulsos, o sexual e o
agressivo. Os dois impulsos se encontram normalmente fundidos. Assim um ato de crueldade pode possuir um
significado sexual inconsciente como um ato de amor pode ser um meio inconsciente de descarga do impulso agressivo.
A agressividade tem uma origem biológica e social na teoria freudiana. A agressividade faz parte das pulsões de morte
mas não está ligada exclusivamente a Thanatos. Está também ligada a Eros fazendo parte das pulsões eróticas. Isto
acontece por exemplo quando tentamos modificar o outro ou o mundo para torná-los mais compatíveis com o princípio
do prazer. No limite é uma tendência destrutiva mas também "representa a vocação humana para a rebeldia." (pág. 473,
Os sentidos da Paixão, Maria Rita Kehl). Toda civilização faz um pacto pelo qual se reprime grande parte da
agressividade em troca das vantagens da convivência humana. Mas o preço que pagamos é o de um rebaixamento geral
dos instintos de vida e o excesso de repressão pode levar às doenças psíquicas. O ideal para Freud " seria um equilíbrio
entre a realidade psíquica do homem e as exigências da vida em sociedade ". (pág. 116 da apostila, Texto: O caso de
Romualdo e a violência)
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10. A nossa vida psíquica tem três instâncias segundo Freud: 1ª) ID = parte inconsciente formada por instintos e
impulsos orgânicos e desejos inconscientes, (ou pulsões) que são regidas pelo Princípio do Prazer e são de natureza
sexual no sentido amplo já explicitado acima. O Centro do ID é o Complexo de Édipo. 2ª) SUPEREGO = parte
inconsciente. Instância repressora do ID e do EGO, proveniente tanto das proibições culturais e sociais interiorizadas
"quanto das proibições que cada um de nós elabora inconscientemente sobre os afetos." (M. Chauí, op. cit., pág. 66). É o
agente da civilização que tem o papel de dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo. Através dele a civilização
consegue inibir a agressividade humana introjetando-a para o interior do sujeito propiciando o SENTIMENTO DE
CULPA. 3ª) EGO = é a consciência submetida aos desejos do ID e repressão do SUPEREGO. Obedece ao Princípio da
Realidade. Vive sob angústia constante pois busca um equilíbrio entre os desejo do ID e a repressão do SUPEREGO,
busca satisfazer ao mesmo tempo o ID e o SUPEREGO. Quando o conflito é muito grande e o EGO não consegue
satisfazer o ID este é rejeitado determinando o processo chamado REPRESSÃO. Mas o que foi reprimido não permanece
no inconsciente e reaparece então sob a forma de SINTOMAS (=representantes do reprimido).
11. MECANISMOS DE DEFESA: O Ego não é somente consciência. Há funções inconscientes nele, os famosos
Mecanismos de Defesa. Através deles o EGO dribla as exigências do ID e do SUPEREGO. "Diante de uma pulsão
proibida, cuja satisfação daria prazer se o superego não se opusesse, há que convencer o princípio do prazer de que
sucederá dor. Para efetivar esse truque, o EGO aciona uma espécie de alarma, um pequeno sinal de angústia, sempre que
tal tipo de pulsão se lhe apresenta à porta. Como se dissesse ao ID: veja como isso que aparece bom, na verdade, dói. E o
ID, enganado até certo ponto, cede energias para contrariar seus próprios fins pulsionais. Basta então ativar os
MECANISMOS DE DEFESA, carregados dessa energia..." (O que é Psicanálise, Fábio Herrmann, pág. 52 e 53).
12. Segundo Freud há três fases da sexualidade humana (lembre-se do sentido amplo da sexualidade) que se
desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos: 1ª) Fase Oral = prazer através da boca (ingestão de
alimentos, sucção do seio materno, chupeta, etc...) 2ª) Fase Anal = prazer localizado primordialmente nas excreções e
fezes, brincar com massas e com tintas, etc... 3ª) Fase Genital ou Fálica = prazer principalmente nos órgãos genitais e
partes do corpo que excitam tais órgãos. Momento do surgimento do Complexo de Édipo.
13. COMPLEXO DE ÉDIPO = complexo de sentimentos e afetos com componentes de agressividade, fúria e medo,
paixões, amor e ódio, oriundos dos desejos sexuais em relação aos genitores de sexo oposto que acontece entre os 5 e 6
anos de idade. O complexo de Édipo se manifesta no menino desejando a mãe e querendo eliminar o pai, seu
concorrente. O medo da castração por parte do pai faz com que renuncie ao desejo incestuoso e aceite as regras ou a Lei
da Cultura. Na menina se manifesta pelo fato de descobrir que não tem o pênis-falo, e com isto, sente-se prejudicada, tem
"inveja do pênis". Ao perceber que a mãe também não o tem, passa a desvalorizá-la e, nessa medida, se dirige para a
figura do pai, dotado de FALO e, portanto, cheio de poder e fascinação.
14. A INVEJA DO PÊNIS-FALO - De acordo com a interpretação do psicanalista LACAN (nascido em Paris em 1901 e
falecido na mesma cidade em 1981), o que provoca inveja não é o pênis anatômico, mas o PÊNIS-FALO, o objeto
imaginário fálico, que tem o sentido de COMPLETUDE e de PLENITUDE NARCÍSICAS. Neste sentido o homem
também tem inveja do pênis-falo. Com este sentido o FALO está presente em todos os seres humanos de tal forma que a
falta do pênis nas meninas e mulheres simplesmente é negada. O falo é, em última análise, o significado da falta,
conforme o define Lacan.

“Tais conceitos são importantes para o esclarecimento da idéia - ou da acusação - de que Freud foi um machista impenitente,
defensor da superioridade do homem sobre a mulher. Freud fala da inveja do pênis, sem dúvida. A mulher teria inveja do
pênis, e sua ausência seria fonte de graves sentimentos de inferioridade. Entretanto, aquilo que provoca inveja não é o pênis
anatômico, mas o pênis-falo, o objeto imaginário fálico, apto como tal a investir quem o tenha de um valor de completude e
de plenitude narcísicas. Nessa medida, também o homem tem inveja fálica. Se o seu pênis é o falo, isto é, se fica preso à etapa
de desenvolvimento da libido, será sempre rondado - e roído - pelo medo da castração. Poderá perder o falo para ver-se
possuidor de um pênis apenas, com as chuvas e trovoadas eventuais que isso possa acarretar. O pênis-falo não pode ser
apenas potente: ele tem que ser onipotente. O homem, nessa medida, pode sentir -se inferiorizado - ou impotente - na medida
em que não alcance um rendimento sexual que testemunhe essa onipotência. A inveja fálica, de homens e mulheres, pode
deslocar-se para qualquer coisa que teria significado fálico, isto é: qualquer coisa que implique plena expansão narcísica e
pleno sentimento de completude. Esta coisa pode ser a inteligência, a beleza física, a força do corpo, a voz, a produção
artística, o canto, a fama, a glória, o dinheiro - o que quer que seja. Dado que o falo é um objeto mítico, imaginário,
impossível, urna vez que não existe nada que possa conferir a quem quer que seja a completude - a não ser a morte -, a inveja
fálica, que é o desejo de possuí-lo, será sempre presente, numa tentativa de retorno a uma atitude narcísica também
impossível. (Do livro: Os Sentidos da Paixão, Companhia das Letras, 1987, págs. 307-327)

- Mas apesar de o menino abandonar o desejo pela mãe por medo da castração ela não deixa de acontecer para ambos os
sexos e de forma simbólica de acordo com a interpretação de Lacan. CASTRAÇÃO no sentido simbólico significa a
impossibilidade de retorno ao estado narcísico do qual fomos expulsos com o nosso nascimento. CASTRAÇÃO significa a
perda, a falta, o limite imposto à onipotência do desejo. É um processo que já acontece desde o corte do cordão umbilical. A
rigor quem castra é a mãe. Se a mãe permite a independência da criança, negando formar um todo narcísico com ela, ela
castra. A castração é um evento absolutamente progressista na nossa vida e que torna possível a vida em sociedade e a nossa
autonomia. Através da CASTRAÇÃO introduz-se a LEI DA CULTURA que é produto de Eros e não de Thanatos. A Lei
não existe para aniquilar o desejo e sim para articulá-lo com a convivência social. "É a guardiã do desejo na medida em que o
encaminha no sentido de uma subordinação ao Princípio da Realidade" (pág. 312, Os Sentidos da Paixão, Hélio Pellegrino)
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- A CASTRAÇÃO nos faz sentir como seres incompletos, carentes. Mostra-nos que é da brecha entre tudo o que se quer e
aquilo que se pode (princípio de Realidade) que nascem as possibilidades de movimentos do desejo. Mas o seu exagero
pode trazer conseqüências negativas como as neuroses.

15. Psicanálise, razão e consciência - Descobrir a existência do inconsciente não é esquecer a consciência, a razão, e
abandoná-las como algo ilusório e inútil. É pela consciência, pela razão, que desvendamos e deciframos o inconsciente.
Em outras palavras, a razão não está descartada apesar das forças irracionais inconscientes. Longe de desvalorizar a
razão a psicanálise exige que o pensamento racional não "faça concessões às idéias estabelecidas, à moral vigente, aos
preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, em que os enfrente em nome da própria razão e do pensamento." (pág.
356, Convite à Filosofia, Marilena Chauí)
16. Psicanálise e Ética - A psicanálise mostrou que uma das causas dos distúrbios psíquicos é o rigor excessivo do
SUPEREGO, a CASTRAÇÃO excessiva. Quando isto acontece há dois caminhos não éticos: ou a transgressão violenta
de seus valores pelos sujeitos reprimidos ou a resignação passiva de uma coletividade neurótica, que confunde neurose e
moralidade." (pág. 356, op. Cit., Marilena Chauí). Não éticos porque a violência é introduzida: violência da sociedade
que exige dos sujeitos padrões de conduta impossíveis de serem realizados e, por outro lado, violência dos sujeitos contra
a sociedade, pois somente transgredindo e desprezando os valores estabelecidos poderão sobreviver. Em suma é
necessária a repressão dos desejos, da sexualidade, para ser possível a convivência social e a ética "mas por outro lado a
repressão excessiva destruirá primeiramente a ética e depois a sociedade." (pág. 356, op. Cit. Marilena Chauí). Segundo
Freud o sujeito da psicanálise é responsabilizado, sim, por seu inconsciente pois "quem mais, além de mim, pode se
responsabilizar por algo que, embora eu não controle, não posso deixar de admitir como parte de mim mesmo?
Responsabilidade difícil de assumir, esta - pelo estranho que existe em nós, age em nós e com o qual não queremos nos
identificar. No entanto, eticamente, é preferível que o sujeito arque com as conseqüências dos efeitos de seu
inconsciente, fazendo deles o início de uma investigação sobre o seu desejo, a que ele permita que tais efeitos se
manifestem apenas na forma do sintoma. Ou, o que é ainda mais grave, que o sujeito tente se desembaraçar do
inconsciente, por meio dos atos de intolerância que projetam no outro o que o eu não quer admitir em si mesmo. A
passagem por uma análise torna o sujeito não apenas mais responsável pelo desejo que o habita, mas também preserva
as pessoas que lhe são mais próximas, aquelas que dependem de seu afeto e de sua compreensão - filhos, parceiros,
subordinados etc -, de se tornarem objetos das projeções e das passagens ao ato de quem não quer assumir as condições
de seu próprio conflito." (pág. 32, Sobre Ética e Psicanálise, Maria Rita Kehl).

2. A psicanálise e o mundo de hoje

(Do livro: Para que serve a psicanálise? - de Denise Maurano, Jorge Zahar Editor, 2003, págs. 9-18 )

Há quem diga que "esse papo de Freud está ultrapassado. Com tantas mudanças em um século, Freud já era, ou ainda: "a
psicanálise já era". Não faz muito tempo, participei de uma mesa-redonda cujo tema era a subjetividade na
contemporaneidade. Nela um expositor, falando a respeito das novas tecnologias, mencionava o fato de vivermos na era da
simulação, argumentando que, se a aceleração das mudanças nos lança na incerteza quanto ao futuro, resta-nos antecipá-lo
levando a vida no interior de cenários virtuais. Assim, as novas tecnologias, aquelas de processamento e difusão de
informação, como internet, televisão, rádio e similares, seriam os efetivos espaços vivenciais contemporâneos, e, para ele,
falar a um analista sobre problemas, explorar idéias, reflexões, estaria ultrapassado frente ás noas inquietações e aos recursos
disponíveis em nossos tempos.

Seguramente eu não concordo com isso, e vou explicar por quê - afinal trata-se não apenas da questão "para que serve a
psicanálise", mas do que ela nos vale hoje. Para começar essa discussão, uma lembrança me vem à mente. Há algum tempo,
numa das entrevistas do programa Roda Viva, na televisão escutei um cientista americano, reconhecido pela quantidade de
novos inventos tecnológicos que produziu ao longo de sua vida, ser interpelado por um dos entrevistadores que imaginava
que, provavelmente, nada surpreendia esse grande inventor. O cientista replicou dizendo ter ficado espantado com o
desenvolvimento das telecomunicações no último século. Disse ter esperado que a tecnologia se desenvolvesse muito mais na
direção da facilitação do trabalho, execução de tarefas, e não tanto nesse outro sentido da comunicação entre os homens. Isso
o surpreendeu. Nesse mesmo sentido, é curioso observarmos as aspirações de desenvolvimento prospectadas no antigo
desenho animado - os Jetsons, de mais de trinta anos atrás, para apercebermos o quanto era exatamente a facilitação do
trabalho que ali era privilegiada. Congestionamento de trânsito, problemas com a empregada doméstica? Nem pensar... havia
tubos acopláveis às costas, robôs para fazer as tarefas de casa, absoluta praticidade na alimentação, e por aí era anunciado o
que se esperava para o futuro.

Eis que o futuro chegou, e o que tomou a frente da cena parece ter sido mesmo o que diz respeito à comunicação. Creio poder
dizer que, no fim das contas, o que mais se acelerou em nossos tempos foram os laços que nos ligam, ou tentam nos ligar, uns
aos outros. Afinal, a comunicação não visa isso? É verdade que mediados pela alta tecnologia - fios, eletricidade, dispositivos
ópticos ou qualquer outro processo eletromagnético -, mas o que está no centro da cena é o apelo á criação de laços com os
outros. Se em outros momentos da história da humanidade o homem apelava a outros valores para se haver com as
dificuldades da vida - como a constituição da lei, a fé em Deus, as luzes da razão -, na contemporaneidade parece ser no
anseio de criar laços, de comunicar-se, que o homem aspira a encontrar a salvação para suas dificuldades e, sobretudo, para o
seu desamparo. Ancorados uns nos outros buscamos obter algum apoio, mesmo que o outro ao qual nos ligamos esteja nas
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mesmas condições de desamparo que nós mesmos. Isso parece estar bem representado na pintura A parábola dos cegos, de
1568, do pintor flamengo Pieter Brueguel, chamado o Ancião, na qual uns tantos cegos, andando pela rua em fila, encontram-
se certamente uns apoiados nos ombros dos outros, porém todos juntos não sabem aonde vão chegar.

Eros e Comunicação

Esse apelo a se ligar aos outros participa obviamente da história da humanidade, mas o que chamo a atenção aqui é para o
fato de, na contemporaneidade, termos inflacionado essa estratégia. Assim, as pessoas recorrem mais facilmente a alguém ao
alcance da mão, ou ao alcance da linha telefônica, do que a um templo religioso para se amparar. Da mesma forma, também
não crêem mais nos poderes da racionalidade para encontrarem uma fórmula para melhor viver. Parece que estamos mesmo
sob o império de EROS. E Eros não é apenas o deus do amor, mas, tal como propôs a psicanálise, é sobretudo a tendência à
promoção de laços, tendência a estabelecer ligações.

É claro que a forma como isso se dá, tête-à-tête ou via internet, faz diferença, mas o elemento motivador e a natureza da
busca, creio estarem inalterados, pelo menos por enquanto. O que a psicanálise chamou de LIBIDO, energia de Eros, cobra
incansáveis investimentos, sobretudo no amor e na sexualidade, e traz em seu rastro a outra face da mesma moeda: o ódio.

Falta, linguagem e psicanálise

Foi a inquietação da falta, vivida na contemporaneidade como falta de amor, ou insatisfação sexual, que deu origem á
invenção da psicanálise. A psicanálise veio servir para tratar dos impasses decorrentes disso. Cedo, Freud percebeu que
aquilo que fazia sofrerem as mulheres que ele atendia, e lhes fazia produzir sintomas inexplicáveis aos olhos dos médicos de
seu tempo, não eram senão diferente expressões de um mal inexorável: o mal de amor. Cedo, ele se deu conta, também, de
que o tratamento para isso passava pela FALA, pelos efeitos do acionamento desse fantástico dispositivo que é a fala. Através
dela, nos incluímos nessa rede que nos envolve e tenta nos articular uns com os outros. E não importa se se trata de um surdo-
mudo: certamente este também está incluído na estrutura de relações tecidas pela LINGUAGEM.

É verdade que desde a invenção da psicanálise até agora muita coisa mudou. Mudaram os costumes, a sociedade certamente
não é mais a mesma, diferente recursos para se lidar com a vida dominam a cena contemporânea. Porém não creio que
tenhamos nos deslocado do apelo à libido como modo de operar com nossas inquietações . Muito pelo contrário, como bem
observou o inventor americano, acima mencionado, nunca se produziram tantos artifícios para ampliarmos nossos laços. O
sucesso das SALAS DE BATE-PAPO e toda a correspondência veiculada pela internet o atestam. Isso sem falar da
exploração que o marketing faz da questão, erotizando todo e qualquer objeto que se apresente ao consumo para melhor
veiculá-lo. Assim, diante da compatibilidade entre a natureza da inquietação que domina a cena atual e a natureza da
invenção psicanalítica, esta última continua sendo um recurso privilegiado em nossos tempos. Com isso, quero dizer que
diante dos inúmeros sintomas decorrentes do MAL DE AMOR, que constitui a tônica do mal-estar da atualidade, a
psicanálise apresenta-se como opção para tratar dessa questão. No que se refere a maneira de lidar com as inquietações
amorosas, as mudanças são acessórias, não fundamentais. Daí a pertinência da presença da psicanálise. Afinal, seja bem ou
mal falada, a psicanálise continua sempre sendo lembrada.

Inúmeras propostas apresentam-se a cada dia para responder a essa idéia de que o "bom exercício da libido" resolve as
dificuldades da vida. Desde o apelo ao consumo, seja de carros, mulheres, drogas, medicamentos, conhecimento, informação,
tecnologia e tudo quanto se suponha que o dinheiro possa comprar, até as terapias mais diversas, tudo vai no sentido de sanar
aparentemente, apaziguar imaginariamente, as pressões que movem esse apelo feito a Eros.

O que decorre dessa profusão de estratégias disponíveis na cena contemporânea é que o caminho que um sujeito trilha desde
a constatação de seu mal-estar até chegar a um tratamento psicanalítico é, freqüentemente, bastante alongado. Muitas vezes
ele só recorre à psicanálise depois de inúmeras tentativas fracassadas de suprimir seu mal-estar. É como se a sensação de
vazio e desamparo, que ocasionalmente experimentamos de maneira mais grave, fosse um indicativo de uma doença que
acomete a uns poucos desprivilegiados, da qual teríamos a todo custo que nos livrar o mais rápido possível. Tornamo-nos,
assim, presas fáceis de vendedores de ilusões. Não que eu tenha algo contra as ilusões, muito pelo contrário: elas são
alimentos fundamentais de nossas vidas. Sublinho apenas o rico da manipulação sórdida, cruel, que se faz nesse campo.

A psicanálise perante a incompletude humana

Na contracorrente dessas estratégias encontra-se a psicanálise. Por mais que em sua difusão ela tenha sido propagada das
formas mais estapafúrdias, sua proposta, desde seus suados primórdios no rigor da ética cunhada por Freud, foi a de ser uma
estratégia para tratar desse vazio, que na maior parte do tempo traduzimos por falta de alguma coisa ou falta de alguém. Sua
intenção não foi a de constituir-se como promessa de saná-lo. Aqui, o tratamento não é a cura, já que não podemos nos curar
da ferida de sermos humanos. Ou seja, substituindo a idéia de cura como o que estaria na finalização de um tratamento, por
meio da extirpação de um mal, entra em cena o procedimento investigativo do tratamento psicanalítico, que traz como uma
de suas conseqüências o efeito terapêutico. O vazio é impossível de ser extirpado, mas cabe-nos encontrar meios menos
nefastos de abordá-lo. Como li num folhetim: "Não se pode mudar a direção do vento, mas pode-se alterar a posição das
velas."
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Viver sem se haver com a dor da falta, seja esta identificada ao que quer que seja, é simplesmente inumano. Não podemos
nos livrar daquilo que constitui propriamente a nossa humanidade, a nossa diferença em relação aos outros animais. O que
pode ser alterado é a maneira como vivemos a experiência da vida, a posição que ocupamos ao nos defrontarmos com a falta
daquilo que supostamente iria nos tornar completos. Sugiro que a palavra "psicopatologia" - em sua origem grega, "psico-
pathos-logia" - seja traduzida ao pé da letra: busca de sentido (logia) daquilo que causa espanto (pathos) à alma (psico). Sem
dúvida que esta incompletude nos espanta, e podemos reagir a isso, neurótica, psicótica ou perversamente....

Não pensem que estou defendendo uma posição pessimista, do tipo que toma essa incompletude com um efeito de fabricação
com o qual teríamos que nos conformar. Não concordo com a idéia de que Freud ou Lacan - psicanalista francês, que se
propôs a retornar ao rigor de Freud - sejam pessimistas. Defendo, sim, essa orientação ética que funda a proposta
psicanalítica, acolhendo a vida não em uma dimensão ideal, como gostaríamos que ela fosse, mas em sua dimensão real .
Sofremos os efeitos desse real todas as vezes que nos confrontamos com o fato de que as coisas não estão ao alcance de
nossas mãos, como gostaríamos que estivessem.

Isso é duro? Certamente. A expressão brasileira "cair na real" é primorosa na indicação da queda de ilusões que decorre da
confrontação com o real, porém, enganar sua existência, na promessa de que pelas forças da mente ou do que quer que seja
poderemos escapar, intensificará, por conseqüência, nossa fragilidade - e não nossa força. Afirmar a vida com tudo o que nela
há, de alegria e de sofrimento, de leveza e de dureza, é não à mutilação de nenhum de seus componentes. Mas obviamente, se
é simples falar assim, não é simples viver dessa forma. Somos facilmente atraídos pela posição ressentida, "que injustiça
fizeram contra mim!". Ou, ainda, pelo vislumbre romântico que suspira por um ideal jamais passível de realização, sob pena
de, caso efetivado, perder todo o encantamento. Assim estamos nós em nossa radical humanidade, nessa condição de errantes,
suplicantes de algo que nos oriente, que nos complete e acene com a possibilidade de precisão na adequação de nossas ações,
dado que nunca sabemos direito se o que resolvemos fazer está certo ou não. Como humanos, subvertemos as determinações
do instinto. Não comemos meramente por fome, nossas atividades sexuais não se limitam ás funções biológicas, nosso sono
tampouco. Somos afetados por inúmeras variáveis.

Nosso universo de necessidades é intermediado pelo das representações. As coisas não são o que são, mas o que representam
para nós. Desta forma, podemos perder o apetite, ou comer demais, se ficamos tristes; podemos optar pela abstinência sexual
por uma razão ideológica ou moral; podemos perder o sono diante de uma preocupação. O que nos rege não é propriamente
um instinto, mas algo de outra natureza que, que Freud propõe chamar de PULSÃO.

A adequação de nossa percepção ao que existe de fato é permeada por esse universo que nomeamos como campo da
LINGUAGEM. Isso quer dizer que, se não temos um acesso direto e objetivo às coisas, inventamos um estratagema para
contornar esse abismo que nos separa do mundo: inventamos a linguagem. Ou seja, desenvolvemos, mas que qualquer outro
animal, nossa capacidade de nos comunicarmos por recursos simbólicos e imaginários. Inventamos palavras para designar as
coisas, nomear o que nos falta; criamos ícones para adorar, ideologias para nos salvar do desamparo.

Construímos, com o desenvolvimento da linguagem, uma rede de elementos através da qual encontramos meios de nos
referendar. Situamos, com isso, o Outro a quem nos dirigimos. Assim, eu não sou apenas Fulano de Tal, eu sou Fulano, filho
de Sicrano, neto de Beltrano, ou seja, sou parte de uma rede de relações, por onde apreendo algo da enigmática significação
de mim mesmo. Encontro-me dentro de uma estrutura de parentesco, na qual assumo funções diferentes conforme o elemento
com o qual me relaciono: em relação aos meus pais sou filha, em relação aos meus filhos ou mãe, e assim por diante.

Porém o universo de linguagem é também o universo da mais absoluta arbitrariedade, afinal as palavras não são as coisas, e
seu sentido deixa sempre margem a diferente interpretações. É por isso mesmo que os valores aos quais nos agarramos para
nos proteger não necessariamente nos protegem em definitivo. E isso vale tanto para as nossas vidas individuais como para a
história da humanidade.
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Narcisismo - Conta o mito que o jovem Narciso, belíssimo, nunca tinha visto sua própria imagem. Um dia, passeando por
um bosque, viu um lago. Aproximou-se e viu nas águas um jovem de extraordinária beleza e pelo qual apaixonou-se
perdidamente. Desejava que o outro saísse das águas e viesse ao seu encontro, mas como o outro parecei recusar-se a sair
do lago, Narciso mergulhou nas águas, foi às profundezas à procura do outro que fugia, morrendo afogado. Narciso morreu
de amor por si mesmo, ou melhor, de amor por sua própria imagem ou pela auto-imagem. O narcisismo é o encantamento e
a paixão que sentimos por nossa própria imagem ou por nós mesmos porque não conseguimos diferenciar o eu e o outro.

2b. AS DROGAS

(Tópicos da Palestra da psicanalista Rita Kehl no Café Filosófico da TV Cultura)

Necessidade de mecanismos de escape


. As drogas nos ajudam a problematizar todas as nossas relações na vida contemporânea.
 Não existe sociedade humana que não tenha criado seus mecanismos de escape. Escape da realidade crua, cotidiana.
Enfeitar um pouco a vida, fugir um pouquinho, sonhar um pouquinho é próprio de todas as culturas.
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 Freud: "É impossível enfrentar a realidade a todo momento sem um mecanismos de escape. Freud exemplifica com
a embriagues, a fantasia, com os vícios em geral.
 Sempre estamos imaginariamente melhorando a realidade a nosso favor tornando-a suportável, tentando nos
modificar .
 Mas a maioria das pessoas conseguem manter um equilíbrio entre a realidade como ela é e os mecanismos de
escape. Para outras a realidade é tão intolerável que eles não conseguem mais viver sem algum tipo de aditivo (isto
acontece com os psicóticos, alcoólatras etc...)
 Freud diz que a cura de qualquer vício simplesmente pelo imperativo de abstinência não funciona porque não vai a
fundo no que seria a fonte da paixão. No caso a fonte da paixão pelas drogas (o uso contínuo das drogas é uma
espécie de paixão).
 Cada toxicômano é um e cada um se vicia por razões e caminhos singulares.
 A toxicomania não é ela só, ela própria uma doença, é sintoma. Sintoma que pode estar resolvendo problemáticas
diferentes para cada um.
 Há psicanalistas que usam a expressão que vem do grego clássico: a droga como "farmacon" = aquele remédio que
ao mesmo tempo que é remédio se você aumenta a dose é veneno. (como o arsênico)
 Então a droga como tóxico é como se o sujeito ficasse transitando nesta linha até o limite em que o remédio (no
sentido de remédio para as suas angústias, dificuldade de enfrentar socialmente os outros etc) se torna veneno. Há aí
uma espécie de teste da sua onipotência imaginária. Há o sentimento de invulnerabilidade que produz namoro com a
morte. A psicanálise diria que há o sentimento de não castração, de situação sem falta.
 No momento do consumo há a ilusão de nada faltar ao sujeito. É como se o sujeito desaparecesse. (sujeito na
psicanálise = é o desejante, movido pelo seu inconsciente, ser humano em conflito, dividido, que desconhece uma
dimensão de si mesmo, que precisa pensar, simbolizar, que precisa dos outros)

Efeitos do uso da droga
 Na drogadição momentaneamente o sujeito desaparece deixando uma espécie de corpo que funciona (=que acolhe a
droga, que produz efeitos físicos, apaziguadores da dor de viver)
 Há a ilusão da plenitude. A droga apaga a minha questão subjetiva. É como se ficasse igual à droga. É como me
transformasse no efeito deste objeto que entra no meu corpo.
 Mas o efeito é momentâneo pois não existe vida sem sujeito. E por isso a angústia volta. E aí vem o vício com mais
droga. Quanto maior é a angústia de depois mais imperativa a necessidade de voltar às drogas.
 Um outro efeito da droga: Efeito da completude. Desaparece a descontinuidade entre a pessoa que se droga e o
GRANDE OUTRO (em psicanálise o grande outro é a entidade que é protetora, poderosa – exemplo: a mãe da
primeira infância)
 Depois que nos separamos da mãe, vida mais independente, continuamos com a fantasia de alguém que vai cuidar da
gente, nos proteger, nos dizer o caminho certo (pode ser Deus, professor, ser amado, etc...). Para outros, quando a
vida está muito difícil, vão descobrir que não tem ninguém que nos protegerá. E aí a vida fica difícil. Acreditar em
um outro que vela por nós já é uma espécie de escapismo.
 Desaparece isto que me separa desta figura imaginária poderosa que cuidava de mim. É quase voltar a ser um bebê
no colo da mãe.
 As vezes acontece o contrário: a relação com esta figura imaginária é tão sufocante, tão poderosa, tão opressiva que
o drogadito se droga para fugir desta relação perfeita que não possibilita a ele ser sujeito, um indivíduo separado.
(um tipo de relação mãe filho vão produzir este efeito).

O drogado perante o analista (psicanalista)

 O analista está sempre recebendo o sujeito e não o drogado.


 Mas o problema para o analista é que a pessoa se apresenta como drogado. Apresenta-se como que não tem que falar
por ele mesmo. A droga fez o que ele é. Acha que não tem o que falar, que não precisa se entender, é como se
tentasse apagar a sua subjetividade.
 Mas com o tempo vai perceber que é com sua fala, suas indagações, suas palavras que vai produzir alguma coisa.

Os objetos simbólicos para representar o desejo

 Na psicanálise não existe o objeto do desejo. Existe o desejar contínuo (o que move a vida humana) e que vai
criando objetos simbólicos (não é coisa palpável) para representar o desejo e não para satisfazer o desejo.
 A droga vai instalar um objeto de satisfação. Não objeto de desejo. Satisfação de necessidade. Para o viciado a droga
vai deixando de ser um objeto de prazer para ser um objeto de necessidade. Não é mais um objeto do qual disponho
como sujeito. Cria-se uma situação em que é o objeto que me tem e não eu o objeto. Este objeto de necessidade é um
objeto do qual eu sou escravo.
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Drogas e violência

 O objeto de necessidade é imperativo. Por isso há relação entre drogas e violência. No momento em que há a falta da
droga o viciado pode até bater, brigar e até matar. Está dominado pela necessidade de ter. Ninguém mata por um
objeto de prazer mas por um objeto de necessidade. Um objeto de prazer eu posso substituir. Não tenho cerveja tomo
vinho, etc.. Objetos de prazer tenho vários pela vida e as drogas poderiam se incluir entre eles.

Experiência do escritor William Burroughs descrita no seu livro "Junkie"


(junkie na gíria americana significa drogado)

 Conta a sua experiência com a heroína. Intercalava períodos de vício com períodos de desintoxicação.
 Conta que não se lembrava do período em que estava sob o efeito desta droga. Aí é apagamento do sujeito. Conta
como era a falta da droga, o sofrimento inclusive celular (as células doem, a heroína substitui um elemento celular).
Na desintoxicação o sujeito precisa de uma renovação de muitas células do corpo que morrem com o consumo da
heroína.
 Conta tudo o que fazia para conseguir a droga mas não relata em nenhum momento como se sentia quando estava
drogado. Não tem registro. É o momento do apagamento do sujeito. O momento em que encontra a droga é o
momento em que não é sujeito.
 Duas perguntas que surgem da sua experiência e que não aperecem: quem sou eu? O que me falta?
 Não consegue responder. É um corpo em abstinência à procura do objeto que vai resolver a sua abstinência. E isto
não resolve.
 Outra pergunta: o que me falta para que eu fique o tempo todo grudado neste objeto para que ele me complete? O
que falta não é a droga é o que falta para todo ser humano. Todo ser humano perdeu a sua completude. Todos somos
"faltantes" de alguma coisa. Na necessidade imperativa da droga perdeu a via de acesso ao seu desejo. Não sabe
fazer nada com o seu desejo. Nós fazemos muitas coisas com os nossos desejos apesar de não sabermos que desejos
são os nossos pois são inconscientes (nós conversamos, buscamos o nosso prazer, nos angustiamos, etc...)
 As drogas evitam que tenhamos que lidar com a dor de viver, que a vida é breve, que podemos perder as pessoas que
a gente ama. Viver é muito bom mas também dói.

Nossa cultura não produz modos de sofrer

 Nossa cultura acredita que é possível viver sem nenhuma dor. Esta é a boa vida, só de prazeres, de sucesso.
 Não produz modos de sofrer. Por exemplo o cristianismo produziu um modo de sofrer (a gente aceita o sofrimento
na religião cristã que Deus tem as suas razões para mandar os sofrimentos, etc...) Isto já é um certo conforto pois o
sofrimento faz sentido.
 Outro exemplo: o Romantismo: entende a vida como a nossa perda, separação da natureza, impossibilidade de
encontrar a comunhão com o todo. Então produz também um modo de sofrer.
 Na nossa cultura, muito individualista e muito hedonista, cultura dos prazeres, o sofrimento nos deixa em solidão
absoluta. Ficamos com vergonha de dizer que sofremos. Quem é esperto não sofre.
 No capitalismo do século XIX o eixo econômico era a produção. Por influência da ética protestante dizia para
renunciar ao prazer, se sacrificar e produzir trabalhando muito. Produzia-se então um sujeito reprimido e que foi
estudado por Freud.
 Já no capitalismo atual, do século XX e XXI, cujo eixo é o consumo, tem outro tipo de imperativo. Não propõe mais
o sacrifício, a renúncia aos prazeres. O imperativo é o consumo. Você tem direito, você merece. É claro que os
imperativos de consumo desta sociedade se dirigem a todos mas o consumo só é acessível a alguns.
 É aí que a droga entra. Substitui tudo o que a pessoa não pode ter.
 A ciência, o médico, o psiquiatra pode oferecer drogas legais (como prozac) para apaziguar o sofrimento, as
angústias. "Não precisa se deprimir por que alguém morreu, tome prozac." No entanto o luto não é depressão
patológica e sim normal, faz parte de nossa vida.
 Então da droga legal para a ilegal o caminho já está aberto. BEM ESTAR É VOCÊ ESTAR LIVRE DA
SUBJETIVIDADE.

Os adolescentes e as drogas

 As crianças são instrumentalizadas para adquirir aptidões mas tem pouca vida anterior, pouco tempo de ócio, pouco
espaço para fantasia. E é isto que nos dá riqueza humana.
 Os adolescentes hoje são as maiores vítimas desse imperativo de gozo que perpassa a nossa cultura. A publicidade é
o porta voz mais importante deste imperativo do gozo sem limites. A figura privilegiada que representa esta
possibilidade do gozo é o jovem, o adolescente. Ele é eleito para gozar.
 O adolescente ele é aquele que chegou no potencial da vida adulta (tem maturidade sexual e uma certa autonomia
para consumo) e ao mesmo tempo não tem a responsabilidade da vida adulta.
 Estamos cercados nos meios de publicidade, nas capas de revista, etc... de adolescentes, de jovens gozantes.
Divertindo-se, bebendo, etc...
9
 Então o adolescente se identifica com esta imagem que propõem para ele. Imagem de gozo total.
 Mas ser adolescente é difícil. Não tem nada a ver com vida de gozo absoluto. É época de insegurança. Não está a
vontade em um corpo que está mudando, é a idade da turma etc...
 Então é muito fácil para o adolescente achar que resolverá os seus problemas, a sua insegurança, a sua fragilidade,
com o consumo das drogas. A maconha em alguns meios é o rito de passagem da infância para a adolescência,
facilita a aceitação na turma, dá relaxada no superego.
 Não é tão grave que adolescentes experimentem a maconha, fumem a maconha de vez em quando. Grave é que sem
maconha eles não se agüentam.
 Então tudo depende do que a cultura vai fazer: o esporte é uma solução?
 O esporte vai dar muitas coisas que as drogas dariam: desafios, segurança, prazer.
 Mas infelizmente o esporte é levado para o caminho da adrenalina, de ganhar de todo mundo. A publicidade usa o
esporte com esta imagem do super-homem. Há os anabolizantes para maior desempenho. Há aí também o mundo do
"no limits" que é também o mundo das drogas. Então pode não ser o contrário das drogas. A lógica é a mesma. Mas
o esporte pode ser vivenciado de outra maneira: menos violento, menos competitivo, uma coisa lúdica etc...
 Sendo hoje a vida do adolescente muita vazia fica fácil ser influenciado por tudo isto, adesão aos baratos. Mas em
muitos grupos de adolescentes faz-se muitas coisas interessantes em que as drogas até podem ser usadas mas não são
a sua razão de ser.
 A valorização das experiências de trocas grupais (grupos que fazem bandas, experiências políticas, grupos de
música, trabalho social etc...) nos faz ficar menos desamparados, menos sozinhos. Esta experiência grupal obriga ao
treino de não ter satisfação imediata no mínimo porque tem o outro com você com o qual tem que haver negociação.
 Nesta cultura individualista, muito competitiva, que nos coloca muito isolados, uns contra outros, a nossa relação
não fica dependendo dos nossos semelhantes mas de um objeto qualquer como a droga. A droga é este objeto de
satisfação imediata principalmente nesta cultura individualista.
 Nossa cultura é muito paradoxal: apela a todo tempo para o barato (prazer, gozo total) pela publicidade mas não
conversa sobre drogas porque é proibido.
 Precisamos criar grupos de referência para discutir, que falem das experiências, com prós e contras .

Legalizar ou não as drogas


 Freud fala que onde há proibição tem desejo pois que se não fosse bom não precisava proibir. Ninguém proíbe
ninguém de bater a cabeça na parede.
 A proibição indica um valor de gozo naquele objeto.
 A legalização das drogas não pode ser em um país só. Mas morre mais gente na guerra do tráfico do que de
overdose.
 A legalização acabaria com o crime do tráfico. Por isso os traficantes não tem interesse na legalização.
 Com a legalização fica mais claro que o drogado é um sujeito de suas escolhas. Está fazendo uma coisa que é
permitida, sobre a qual ele pode conversar. Apesar de ser um risco, de não ser boa para a saúde, iria morrer muito
menos gente em relação às pessoas que morrem hoje de bala perdida, etc...
 Esta questão é particularmente importante para uma sociedade hipócrita que diz o tempo todo: droguem-se, vivam
no barato, gozem.
 O que vamos fazer com o filho que fuma no fim de semana, volta da festa com o olho vermelho, com a boca seca?
Decidir que ele é maconheiro, que não vai mais para festas, que não sai mais com os amigos, interná-lo, mudar de
colégio ou dizer: vamos conversar sobre isto e começar a criar a possibilidade que ele tenha uma outra relação com a
droga pois a droga é um fato na vida dele? Não é questão de dizer que é bacana demonstrando cumplicidade. Pois
isto também é perigoso pois também o jovem quer se diferenciar de você. Se você acha bacana, se você quer fumar
com ele, ele acha que deve ir para uma droga mais pesada. Pai e mãe não têm que incorporar no sentido da
aprovação mas no sentido de entender que isto está na vida dele, está na vida do grupo, está na vida do país, ou do
Ocidente.
 Qual o destino que vai ser dado para isto? Uma opinião bem pessoal: a nossa cultura só oferece duas portas de
entrada para a vida adulta.
 Ou é a porta do Shopping ou é a porta da maconha. São as duas principais. (existem outras) Oras, a do Shopping é
muito mais chata do que a da maconha. Esse é o problema.
 Precisamos oferecer outras portas: informação, arte, consciência política, participação no mundo mais criativa.
 Mas não é só a publicidade que quer gozo para os adolescentes. Nós pais também somos influenciados por isto, por
esta cultura individualista, hedonista da pós modernidade. Achamos que tendo filhos temos que dar tudo para eles,
dar tudo o que eles querem.
 Nós depositamos nos nossos filhos as nossas fantasias, o que a gente queria ter gozado e não gozou.

ESTA NOSSA FANTASIA FAVORECE O CAMINHO DA DROGADIÇÃO.


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3. Freud: A consciência pode conhecer tudo? - Marilena Chauí
(Fonte: Filosofia, Ed. Ática, São Paulo, ano 2000, pág. 83-87)

Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e que as feridas atingiram o nosso
narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante
séculos, estivemos encantados. Que feridas foram essas?
A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do Universo e que os homens não
eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin, ao provar que os homens descendem de um primata, que são
apenas um elo na evolução das espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi
causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais fraca de nossa vida psíquica.
Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:

"A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa, mas também está reduzido a
contentar-se com informações raras e fragmentadas daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida
psíquica... A divisão do psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa
fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos patológicos, tão freqüentes
quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro da ciência... A psicanálise se recusa a considerar a
consciência como constituindo a essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo
coexistir com outras qualidades e até mesmo faltar. "

A psicanálise - Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época, usava a hipnose e a sugestão no tratamento
dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os resultados obtidos.

Certa vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de histeria, isto é, apresentava distúrbios físicos
(paralisias, enxaquecas, dores de estômago) sem que houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corpo rais de
problemas psíquicos. Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia com que Anna
relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao
ouvir a que ele dissera - posteriormente, Freud denominaria esse procedimento de "técnica de associação livre".

Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava aquela que lhe viera à cabeça,
censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele. Notou também que, em outras ocasiões, depois de fazer a
associação livre de palavras, Anna ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a
faziam chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar-se de fatos da infância, narrar um sonho que tivera na
noite anterior. Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos sonhos narrados e pelas lembranças infantis, Freud descobriu
que a vida consciente de Anna era determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam.
Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e os gestos de Anna chegaria a essa
vida inconsciente.

Freud descobriu, finalmente, que os sintomas histéricos tinham três finalidades:

1. contar indiretamente aos outros e a si mesma os sentimentos inconscientes;


2. punir-se por ter tais sentimentos;
3. realizar, pela doença e pelo sofrimento, um desejo inconsciente intolerável.

Tratando de outros pacientes, Freud descobriu que, embora conscientemente quisessem a cura, algo neles criava uma barreira,
uma resistência inconsciente à cura.
Por quê? Porque os pacientes sentiam-se interiormente ameaçados por alguma coisa dolorosa e temida, algo que haviam
penosamente esquecido e que não suportavam lembrar. Freud descobriu, assim, que o esquecimento consciente operava
simultaneamente de duas maneiras:

1. como resistência à terapia;


2. sob a forma da doença psíquica, pois o inconsciente não esquece e obriga o esquecido a reaparecer sob a forma dos
sintomas da neurose e da psicose.

Desenvolvendo com outros pacientes e consigo mesmo esses procedimentos e novas técnicas de interpretação de sintomas,
sonhos, lembranças, esquecimentos, Freud foi criando o que chamou de análise da vida psíquica ou psicanálise, cujo objeto
central era o estudo do inconsciente e cuja finalidade era a cura de neuroses e psicoses, tendo como método a interpretação e
como instrumento a linguagem (tanto a linguagem verbal das palavras quanto a linguagem corporal dos sintomas e dos
gestos).

A vida psíquica - Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria psicanalítica, abandonando alguns
conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a
história da formação da psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações.
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A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma consciente: o id, o superego e o ego
(ou o isso, o super-eu e o eu). Os dois primeiros são inconscientes; o terceiro, consciente. (observação importante do prof.
Laerte: tem também o aspecto inconsciente manifestado por exemplo pelos mecanismos de defesa)

O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que Freud designa como pulsões.
Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos desejos em
busca da realização desse princípio do prazer. É a libido.

Instintos, impulsos e desejos, em suma, as pulsões, são de natureza sexual e a sexualidade não se reduz ao ato sexual genital,
mas a todos os desejos que pedem e encontram satisfação na totalidade de nosso corpo.

Freud descobriu três fases da sexualidade humana que se diferenciam pelos órgãos que sentem prazer e pelos objetos ou seres
que dão prazer. Essas fases se desenvolvem entre os primeiros meses de vida e os 5 ou 6 anos, ligadas ao desenvolvimento do
id:

1. a fase oral, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente na boca e na ingestão de alimentos e o seio materno,
a mamadeira, a chupeta, os dedos são objetos do prazer;
2. a fase anal, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nas excreções e as fezes, brincar com massas e com
tintas, amassar barro ou argila, comer coisas cremosas, sujar-se são os objetos do prazer;
3. e a fase genital ou fase fálica, quando o desejo e o prazer localizam-se primordialmente nos órgãos genitais e nas partes
do corpo que excitam tais órgãos. Nessa fase, para os meninos, a mãe é o objeto do desejo e do prazer; para as meninas, o
pai.

No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud denominou de complexo de Édipo, isto é, o
desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o
sentido de nossas vidas. O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a cultura impõem ao id,
impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à
consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação,
pela produção da imagem do "eu ideal" isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou censura desenvolve-se num
período que Freud designa como período de latência, situado entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência.
Nesse período, forma-se nossa personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará
obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego.

O ego ou o eu é a consciência (observação do prof. Laerte: mas também marcado pelo inconsciente), pequena parte da vida
psíquica, submetida aos desejos do id e à repressão do superego. Obedece ao princípio da realidade, ou seja, à necessidade
de encontrar objetos que possam satisfazer ao id sem transgredir as exigências do superego. O ego, diz Freud, é "um pobre
coitado", espremido entre três escravidões:

1. os desejos insaciáveis do id,


2. a severidade repressiva do superego
3. e os perigos do mundo exterior.

Por esse motivo, a forma fundamental da existência para o ego é a angústia. Se se submeter ao id, torna-se imoral e
destrutivo; se se submeter ao superego, enlouquece de desespero, pois viverá numa insatisfação insuportável; se não se
submeter à realidade do mundo, será destruído por ele. Cabe ao ego encontrar caminhos para a angústia existencial. Estamos
divididos entre o princípio do prazer (que não conhece limites) e o princípio da realidade (que nos impõe limites externos
e internos).

Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o id, satisfazendo o superego, e
satisfazer o id, limitando o poderio do superego. A vida consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para
realizar sua dupla função. A loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja porque
o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente fraco.

O inconsciente, em suas duas formas, está impedido de manifestar-se diretamente à consciência, mas consegue fazê-lo
indiretamente. A maneira mais eficaz para a manifestação é a substituição, isto é, o inconsciente oferece à consciência um
substituto aceitável por ela e por meio do qual ela pode satisfazer o id ou o superego. Os substitutos são imagens (isto é,
representações analógicas dos objetos do desejo) e formam o imaginário psíquico, que, ao ocultar e dissimular o verdadeiro
desejo, o satisfaz indiretamente por meio de objetos substitutos (a chupeta e o dedo, para o seio materno; tintas e pintura ou
argila e escultura para as fezes, uma pessoa amada no lugar do pai ou da mãe).

Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também oferece outros substitutos, os
mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos. Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São
a satisfação imaginária do desejo.
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Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na realidade, sonhou com uma
relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos
surpreende, pois nada tem a ver com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma
rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo proibido.

A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas que nos rodeiam e entre os quais
vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As
coisas e os outros são investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É por esse motivo que certas coisas,
certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor, enquanto outros nos enchem de bem-estar,
sem que o possamos explicar. A origem das simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais
tenra infância, em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas fundamentais e o
complexo de Édipo.

Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica - substituições, sonhos, lapsos, atos falhos, prazer e desprazer com objetos e
pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou pessoas - indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à
consciência possuem dois níveis:

- o nível do conteúdo manifesto (escada, mar e incêndio, no sonho; a palavra esquecida e a pronunciada, no lapso; pé
torcido ou objeto partido, no ato falho; afetos contrários por coisas e pessoas)
- e o nível do conteúdo latente, que é o conteúdo inconsciente real e oculto (os desejos sexuais).

Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário. Somente uma análise psíquica e
psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo
latente que se dissimula sob o conteúdo manifesto.

Além dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para manifestar-se, e além dos recursos extremos e
dolorosos usados na loucura (nela, os recursos são os sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância para a vida
cultural e social, isto é, para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.

Na sublimação, os desejos inconscientes são transformados em uma outra coisa, exprimem-se pela criação de uma outra
coisa: as obras de arte, as ciências, a religião, a filosofia, as técnicas, as instituições sociais e as ações políticas. Artistas,
místicos, pensadores, escritores, cientistas, líderes políticos satisfazem seus desejos pela sublimação e, portanto, pela
realização de obras e pela criação de instituições religiosas, sociais, políticas, etc.

Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla função, também a sublimação pode não ser
alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo
de perversão, em vez de sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das imagens
de prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.

O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele grau da consciência como consciência passiva e consciência
vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais será consciente
diretamente, podendo ser captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação desenvolvidas pela
psicanálise.

A psicanálise descobriu, assim, uma poderosa limitação às pretensões da consciência para dominar e controlar a realidade e o
conhecimento. Paradoxalmente, porém, nos revelou a capacidade fantástica da razão e do pensamento para ousar atravessar
proibições e repressões e buscar a verdade, mesmo que para isso seja preciso desmontar a bela imagem que os seres humanos
têm de si mesmos.

Longe de desvalorizar a teoria do conhecimento, a psicanálise exige do pensamento que não faça concessões às idéias
estabelecidas, à moral vigente, aos preconceitos e às opiniões de nossa sociedade, mas que os enfrente em nome da própria
razão e do pensamento.

A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de desvendar e decifrar o
inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao conhecimento de que somos um caniço pensante, como
disse o filósofo Pascal.

4. Freud - .... um desejo terrível, egoísta, veio à tona dentro dela...


(Do livro: "O mundo de Sofia", Jostein Gaarder, Cia de Letras,1995, pág. 458-475)

Alberto - Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.

Sentaram-se à janela. Sofia olhou para o relógio e disse:


13
Sofia - Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.
Alberto - Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
Sofia - Ele foi um filósofo?
Alberto - Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou medicina na Universidade de Viena.
Passou a maior parte de sua vida naquela cidade, justamente durante um período em que a vida cultural vienense
experimentou uma fase de apogeu. Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de neurologia.
De fins do século passado até quase meados do nosso século, ele trabalhou na elaboração de sua psicologia profunda ou
psicanálise.
Sofia - Explique melhor.
Alberto - Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral, quanto um método de
tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos. Não pretendo fazer uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é
preciso conhecer um pouco de sua teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.
Sofia - Você já conseguiu despertar meu interesse. Vamos lá!
Alberto - Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio. Para ser mais exato, uma tensão, ou um
conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia dele. Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo
dos impulsos que regem a vida do homem. E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas, tão
importantes em fins do século passado.
Sofia - O que se entende por "impulso" do homem?
Alberto - Nem sempre é a razão que governa nossas ações. Consequentemente, o homem não é apenas o ser racional tão
defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos
sonhos e nossas ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que estão profundamente
enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual
do homem.
Sofia - Entendo.
Alberto - Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas necessidades básicas podiam vir à
tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos capazes de reconhecer sua origem. Assim disfarçadas, elas governariam
nossas ações, sem que tivéssemos consciência disso. Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm uma espécie de
sexualidade. A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou repulsa entre os refinados cidadãos de Viena e fez
de Freud um homem extremamente impopular.
Sofia - Não me surpreende.
Alberto - Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade era tabu. Freud chegara à
conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma
sólida base empírica para fundamentar suas afirmações. Freud também constatou que muitas formas de distúrbios psíquicos
eram devidas a conflitos ocorridos na infância. Aos poucos, então, Freud foi desenvolvendo um método de tratamento que
podemos chamar de uma espécie de "arqueologia da alma".
Sofia - O que você quer dizer com isso?
Alberto - O psicanalista pode "cavoucar" a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim de trazer à luz as experiências
e vivências que, em algum momento da vida passada, provocaram seu distúrbio psíquico. Para Freud, portanto, guardamos
bem no fundo de nós todas as lembranças do passado.
Sofia - Agora estou entendendo.
Alberto - E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o paciente sempre tentou esquecer,
mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba as forças. No momento em que tal "experiência traumática" é
trazida ao consciente e o paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode "se entender" com ela e se
curar.
Sofia - Isto parece lógico.
Alberto - Mas estou avançando rápido demais. Vamos ver primeiro como Freud descreve a psique humana. Você já viu um
recém-nascido?
Sofia - Tenho um primo de quatro anos.
Alberto - Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas de forma bastante direta e
desinibida. Se estão com fome, choram. E também choram quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar
bem claro que querem um pouco de calor humano e contato físico. Freud chama de id este "princípio do prazer" que existe
em nós. Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.
Sofia - Prossiga.
Alberto - O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos poucos vamos aprendendo a
controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de
prazer com o princípio da realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora. A
partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos simplesmente sentar e abrir o berreiro até que
nossos desejos ou necessidades sejam satisfeitos.
Sofia - É claro que não.
Alberto - Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio não aceita. O que acontece é
que muitas vezes reprimimos nossos desejos. Quer dizer, tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.
Sofia - Entendo.
Alberto - Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda crianças, somos confrontados com os
padrões morais de nossos pais e de nosso meio. Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem "Não faça isto!",
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ou então "Que vergonha!". E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e julgamentos morais. As
expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós
mesmos. É isto que Freud chama de superego.
Sofia - Superego seria para ele sinônimo de consciência?
Alberto - Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego como uma espécie de
consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos informa, por sim dizer, quando nossos desejos são
"sujos" ou "impróprios", e vale especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que tais
desejos surgem bem cedo na infância.
Sofia - Me explique melhor, por favor.
Alberto - Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos genitais. Podemos ver isto, por
exemplo, quando vamos à praia ou à piscina. Na época de Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse isto na frente dos
outros ganhava um belo tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: "Que coisa mais
feia!", ou "Não faça isso!", ou ainda "Deixe as mãos para fora das cobertas!".
Sofia - Revoltante...
Alberto - Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa. E como este sentimento de culpa é armazenado no
superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que
diz respeito ao sexo. Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades sexuais serem uma
parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara Sofia, temos aqui todos os elementos de que
necessitamos para um conflito entre prazer e culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.
Sofia - Você não acha que este conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?
Alberto - Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão intensa que chegaram a
desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando
sua irmã morreu ainda jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: "Agora ele está livre e
pode se casar comigo!". Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o seu superego. Era um pensamento
tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz. Quer dizer, ela o enterrou no inconsciente. Depois, aquela jovem senhora
ficou doente e passou a apresentar sérios sintomas de histeria. E quando Freud assumiu o tratamento dela, ficou claro que ela
tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e do desejo terrível, egoísta, que sentira vir à
tona dentro de si. Durante o tratamento, a paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que era a causa de
sua enfermidade e ficou curada.
Sofia - Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com "arqueologia da alma".
Alberto - Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um longo período de experiência com
pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência humana era apenas uma pequena parte da psique. A consciência
seria mais ou menos como a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água. Sob a superfície, ou sob o
limiar da consciência, está o inconsciente.
Sofia - Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua dentro de nós?
Alberto - Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as experiências que vivemos. Mas tudo o que
pensamos ou vivemos e tudo de que nos lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de "pré-consciente".
A expressão "inconsciente" significa, para Freud, tudo o que reprimimos. Quer dizer, tudo de que nós queremos nos esquecer
a qualquer preço porque consideramos desagradável, indecoroso ou repulsivo. Quando temos desejos e prazeres que para
nossa consciência, ou para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente as enfiamos no porão do inconsciente e
assim nos livramos deles.
Sofia - Entendo.
Alberto - Este mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas, porém, o ato de banir tais
pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta
forma continua tentando emergir para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter
tais impulsos longe da crítica do consciente. Em 1909, quando Freud proferiu algumas palestras nos Estados Unidos sobre a
psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples o funcionamento desse mecanismo de repressão.
Sofia - Que exemplo foi este?
Alberto - Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que perturbava a ordem e
desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão.
Chegaria, então, um momento em que o orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes
provavelmente se levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta afora, no corredor.
O indivíduo seria "reprimido", portanto, e o orador poderia continuar com sua palestra. Mas para evitar que o elemento
perturbador tentasse forçar sua entrada de novo no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam
suas cadeiras até à porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão. Freud concluiu dizendo
que se os ouvintes imaginassem o auditório como o "consciente" e o corredor como o "inconsciente", teriam uma boa imagem
de como funciona o processo de repressão.
Sofia - Também acho que a imagem é boa.
Alberto - Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de conferências, Sofia. Em todo
caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos
reprimidos, que tentam se libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na verdade "não
tínhamos a intenção de fazer". Dessa forma, o inconsciente também pode guiar nossos sentimentos e ações.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
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Alberto - Freud descreve vários desses mecanismos. Um deles é o chamado ato falho, ou seja, algo que dizemos ou fazemos
espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido. Ele faia, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um
brinde ao seu chefe, de quem ninguém gostava.
Sofia - Sim?
Alberto - O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: "Convido todos a arrotarem em homenagem a nosso chefe!".
Sofia - Legal!
Alberto - Não foi o que o chefe achou. Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha expressado o que realmente achava
de seu chefe. Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo abertamente a ele. Você quer mais um exemplo?
Sofia - Sim.
Alberto - Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas adoráveis e muito comportadas.
Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não
mencionassem nada a respeito do nariz do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas,
pois ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.
Sofia - E o que aconteceu?
Alberto - O bispo veio até à paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação, faziam todo o esforço possível
para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo
completamente. Só que elas ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha
oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: "O senhor aceita um pouco de açúcar no nariz?".
Sofia - Putz!
Alberto - Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos, e aos outros, que temos outros
motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa
maneira, simplesmente porque eles são constrangedores demais.
Sofia - Um exemplo, por favor.
Alberto - Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela. Para tanto, ordeno a você que se levante e abra a janela quando
eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo. Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela. Depois
pergunto a você por que você abriu a janela. Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro.
Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à minha ordem enquanto estava
hipnotizada. E o que você faz? Você "racionaliza", Sofia.
Sofia - Entendo.
Alberto - Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os outros.
Sofia - Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos. Acho que ele não têm muitos amigos para brincar, pois ele
sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo. Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe
estava me esperando. E sabe o que ele me disse?
Alberto - Não.
Sofia - "Sua mãe é uma chata", foi isso o que disse.
Alberto - Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino realmente não quis dizer que sua
mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil
verbalizar isto. Outra coisa que pode acontecer é que nós projetamos.
Sofia - Traduza, por favor.
Alberto - Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características que tentamos reprimir em nós
mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer
admitir que pensa muito em sexo geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.
Sofia - Entendo.
Alberto - Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes. Muitas vezes nos esquecemos do
nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando
de posição objetos aparentemente sem importância. Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e acabar trocando
letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes, mas que na verdade não são. Freud pelo menos não
considera essas coisas tão inocentes e casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas.
Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.
Sofia - Daqui para a frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.
Alberto - Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes. O segredo está em não se desgastar
demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você
pode até conseguir, mas com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a porta
entre o consciente e o subconsciente.
Sofia - Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós mesmos?
Alberto - Sim. Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa de banir de seu consciente tudo
aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir experiências bem específicas. São as chamadas "experiências
traumáticas", que eu já mencionei no início da nossa conversa, talvez um pouco cedo demais. Freud as chama de traumas. A
palavra "trauma" é grega e significa "ferida".
Sofia - Entendo.
Alberto - Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas trançadas; outras vezes, procurava
abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque
o paciente não tem consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como se diz em
psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.
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Sofia - E como o médico procede neste caso?
Alberto - Freud chamava este procedimento de técnica da livre associação. Isto significa que ele deixava o paciente deitado,
bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas
que elas lhe fossem. Para o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das resistências que
impedem a conscientização. Pois são exatamente os traumas que ocupam os pacientes o tempo todo, só que não de forma
consciente.
Sofia - Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente pensa inconscientemente nela?
Alberto - Exatamente. Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente. Para Freud, o "caminho real" que
leva para o inconsciente passa pelos sonhos. Por esta razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação
dos sonhos, publicado em 1900. Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos. Por meio dos sonhos, nossos
pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.
Sofia - Continue.
Alberto - Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho corri seus pacientes, e também depois de ter analisado os
seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos são a realização de desejos. Ele dizia que podemos observar isto
claramente nas crianças: elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com freqüência de
os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados. Isto acontece porque mesmo quando estamos dormindo uma
censura severa continua a determinar o que podemos nos permitir ou não. Quando estamos dormindo, esta censura, ou
mecanismo de repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para desfigurar no sonho os
desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.
Sofia - E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
Alberto - Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à lembrança na manhã seguinte, e o
seu verdadeiro significado. As próprias imagens oníricas, quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos,
ele as chamou de conteúdo manifesto do sonho. Mas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece
inacessível ao consciente. E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do sonho. As imagens oníricas e seus
requisitos são geralmente tiradas do passado mais próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior.
Os pensamentos ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa infância.
Sofia - Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.
Alberto - Sim. E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta. Mas não é o médico quem interpreta os sonhos.
Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente. O médico entra nessa situação apenas corno urna parteira socrática que ajuda
na interpretação.
Sofia - Entendo.
Alberto - O ato de reformular, de converter os "pensamentos latentes do sonho" em "conteúdo manifesto do sonho" é
chamado por Freud de trabalhar o sonho. Podemos falar de um "mascaramento" ou de uma "codificação" da verdadeira ação
que se desenrola no do sonho. Na interpretação do sonho temos de passar por um processo inverso. Temos de desmascarar ou
decodificar o verdadeiro "motivo" do sonho, a fim de podermos descobrir o verdadeiro "tema" do sonho.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
Alberto - Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos inventar um exemplo bem simples e
bem freudiano. Quando um rapaz sonha que sua prima lhe deu dois balões de ar...
Sofia - Sim?
Alberto - Não espere que eu continue. Você mesma deve tentar interpretar este sonho agora.
Sofia - Hmrn.... Neste caso, o "conteúdo manifesto do sonho" é exatamente isto que você disse: a prima dele lhe dá dois
balões de ar.
Alberto - Continue.
Sofia - E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das experiências vividas no dia
anterior. Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de
ar.
Alberto - Sim, pode ser. Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra "balão" ou visto alguma coisa que o
tenha feito lembrar de um balão.
Sofia - Mas o que são os "pensamentos latentes do sonho"? Eles não são aquilo de que o sonho realmente trata?
Alberto - Quem está interpretando sonhos aqui é você.
Sofia - Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?
Alberto - Não, isto é pouco provável. Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer um desejo no sonho. Só que
dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar
com isto.
Sofia - Então... acho que na verdade ele deseja a sua prima. E os dois balões são os seios dela.
Alberto - Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo embaraço, de modo que ele não
gosta de admiti-lo quando está acordado.
Sofia - Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões etc.?
Alberto - Sim. Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados. Pode ser que o que disfarçamos
tenha se modificado consideravelmente desde que Freud conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena.
Apesar disso, é possível que o mecanismo de disfarce continue intato.
Sofia - Entendo.
Alberto - Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no tratamento das neuroses. Além
disso, sua teoria do Inconsciente foi muito importante para a arte e a literatura.
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Sofia - Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental inconsciente do homem?
Alberto - Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do século passado, quando a
psicanálise de Freud ainda não era conhecida. Só estou querendo dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu
exatamente nesta época.
Sofia - Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?
Alberto - Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão, os atos falhos ou a
racionalização. Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria tais experiências humanas. Ele também soube
ilustrar muito bem sua teoria com exemplos extraídos da literatura. Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a
influenciar diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.
Sofia - De que forma?
Alberto - Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus trabalhos de criação. E isto vale
sobretudo para os chamados surrealistas.
Sofia - O que significa isto?
Alberto - A expressão "surrealismo" é francesa e significa algo como aquilo que está além do realismo". Em 1924, André
Breton publicou seu Manifesto surrealista. Nele, Breton declara que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só
assim a inspiração do artista estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um "super-realismo",
no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser muito importante para um artista eliminar a
censura do consciente, a fim de que palavras e imagens possam fluir livremente.
Sofia - Entendo.
Alberto - De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas. Afinal, um sonho é uma pequena
obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos. Para interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha
de abrir caminho através de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos um
quadro ou um texto literário.
Sofia - E nós sonhamos todas as noites?
Alberto - Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos dormindo é preenchido por sonhos.
Isto significa que sonhamos de duas a três horas por noite. Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com
nervosismo e irritação. Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de dar à sua
situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos. Somos nós quem dirigimos este "filme", juntamos
tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem
nada de arte são pessoas que se conhecem mal.
Sofia - Entendo.
Alberto - Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente humana. Seu trabalho com
pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões
podem ser trazidas à tona novamente. Todas as vezes em que nos dá "um branco" e, pouco depois, ficamos com o que
queremos lembrar "na ponta da língua", e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa "subitamente nos ocorre", estamos
falando de algo que estava no inconsciente e, de repente, encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o
consciente.
Sofia - Mas às vezes isto demora muito.
Alberto - Sim, todos os artistas sabem disso. Só que de repente todas as portas e gavetas do arquivo parecem se abrir. Tudo
flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece
quando deixamos a porta do inconsciente entreaberta. Podemos chamar isto de inspiração, Sofia. E então temos a sensação
de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.
Sofia - Deve ser um sentimento maravilhoso.
Alberto - Mas com certeza você mesma já o experimentou. Podemos observar facilmente este estado inspirado em crianças
que estão supercansadas. Neste estado, as crianças parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar,
tirando da memória palavras que elas ainda nem aprenderam. Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece que essas
palavras estavam "latentes" no seu consciente e só agora, quando o cansaço relaxa o policiamento e abole a censura, elas
podem vir à tona. Para o artista, a situação é diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não
exerçam um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e inconscientemente. Posso
contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?
Sofia - Claro!
Alberto - É uma fábula muito séria e muito triste.
Sofia - Pode começar.
Alberto - Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas cem perninhas. Quando ela dançava,
os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava
de assistir à dança da centopéia: uma tartaruga.
Sofia - Na certa porque tinha inveja.
Alberto - "Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?", pensava ela. Ela não podia simplesmente
dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois
ninguém iria acreditar. Então ela começou a bolar um plano diabólico.
Sofia - Que plano era esse?
Alberto - A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: "Oh, incomparável centopéia! Sou uma
devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna
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esquerda número 28 e depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e depois a
perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a tartaruga".
Sofia - Que coisa de doido!
Alberto - Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre o que fazia de fato quando
dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?
Sofia - Acho que a centopéia nunca mais dançou.
Alberto - Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento sufoca a imaginação.
Sofia - É triste mesmo esta história.
Alberto - Para um artista, portanto, pode ser muito importante "se deixar levar". Os surrealistas tentavam se aproveitar disso
e buscavam um estado em que tudo parecia brotar espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em
branco e começavam a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita automática. Na
verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um "médium" acredita que o espírito de alguém que já morreu está
dirigindo sua mão ao escrever... Mas acho melhor continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.
Sofia - Tudo bem.
Alberto - O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium. Ele é um médium de seu próprio subconsciente.
Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em todo processo criativo. Pois o que seria isto que chamamos de
"criatividade"?
Sofia - Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?
Alberto - Mais ou menos. E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação e razão. Na maioria das vezes,
a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem imaginação não é possível produzir nada de novo. Eu vejo a imaginação
como um sistema darwinista.
Sofia - Desculpe, mas esta eu não entendi.
Alberto - O Darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro. Mas a natureza só precisa de alguns
poucos desses mutantes. Só alguns poucos têm a chance de viver.
Sofia - E então?
Alberto - O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas e novas idéias. Nesse caso, nossa
cabeça produz um "pensamento mutante" atrás do outro. Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito
severa. Acontece que só vamos usar realmente alguns desses pensamentos. E é aqui que entra a razão, pois ela também tem
uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não podemos esquecer de escolher os peixes.
Sofia - Esta é uma ótima comparação.
Alberto - Imagine se tudo o que nos "ocorre", se cada lampejo de pensamento tivesse autorização para sair da nossa boca!
Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num
mar de idéias e lembranças casuais. E não haveria uma "seleção", Sofia.
Sofia - E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?
Alberto - Sim, ou você não acha? A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que realmente escolhe. Não é a
imaginação que "compõe". Uma composição, e toda obra de arte é uma composição, surge de uma admirável interação entre
imaginação e razão, ou entre sentimentos e pensamentos. O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade. Em
certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais. As ovelhas precisam ser soltas primeiro para
só depois o pastor poder vigiá-las. (...)
Alberto - (...) a imaginação também é importante para nós, filósofos. Para chegarmos a pensar alguma coisa nova, também
precisamos ter coragem de nos deixar levar.

5. Quando a sexualidade engatinha – Lulie Macedo


(Revista da Folha - Jornal Folha de São Paulo - Domingo, 07/09/2003)

Sexualidade e infância são assuntos que não se misturam, certo? Errado. Desde que o mundo é mundo, as crianças não
brincam de médico à toa: a aventura do descobrimento começa já nos primeiros meses, quando o bebê experimenta o prazer
de explorar o próprio corpo, e se acentua nos anos seguintes, quando sua atenção se volta para o corpo dos pais e de outras
crianças. Quase cem anos depois de Sigmund Freud descrever pela primeira vez o desenvolvimento da sexualidade infantil, o
comportamento exploratório dos pequenos continua produzindo uma legião de pais e mães desnorteados diante de perguntas
e cenas inesperadas - e aí pouco importa que sejam experiências que eles mesmos já tiveram na infância.

"Sexualidade, para o adulto, tem caráter estritamente erótico e está ligada apenas à realização desses desejos. Essa idéia não é
compatível com a imagem que fazemos da inocência infantil, por isso muitos de nós preferem ignorar", explica Marcos
Ribeiro, sexólogo e consultor do Ministério da Saúde e autor de diversos livros sobre o assunto. Mesmo pais que se definem
como modernos e liberais "travam" ao ter encarar na prática assuntos como masturbação e brincadeiras que envolvem os
órgãos genitais. "Muitas vezes, eles é que precisam de orientação sexual, porque ficam sem saber como lidar com essas
questões", afirma o psicólogo Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Sexualidade da Unesp.

Na maioria das vezes, a distância entre a moral do universo adulto e a ausência de pudor infantil resulta em ensinamentos
cheios de "tira a mão daí, aquilo não pode, isso é feio" - exatamente a atitude que psicólogos, professores e sexólogos
condenam. Os terapeutas são unânimes: tratar o assunto com naturalidade é condição fundamental.

Mas o que fazer, por exemplo, diante de duas crianças de três anos nuas, brincando com seus órgãos sexuais?
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"Claro que é um momento muito difícil para os pais, mas vejo dois caminhos: sair de perto e, se for o caso, comentar o
assunto com naturalidade depois, e aproximar-se e interromper educadamente a cena, convidando a criança para fazer alguma
outra atividade", recomenda Marcos Ribeiro. "Pode-se dizer, por exemplo, 'Vamos parar com a brincadeira porque agora o
papai (ou a mamãe) precisa da sua ajuda para uma tarefa'. Mas sem tom de bronca", ensina o sexólogo.

Traumatizar a criança com reações extremadas é pior, dizem os especialistas, porque ela dificilmente vai abandonar o que lhe
dá prazer, só o fará escondido. "O problema não está na exploração sexual do próprio corpo ou nas brincadeiras entre crianças
da mesma idade. Prejudicial é a repressão do adulto a essas atitudes, quando ele grita, proíbe, bate ou põe de castigo. Fazendo
isso ele transmite a noção de que aquilo é errado, quando na verdade essas atitudes são tão naturais quanto aprender a andar,
falar, brincar", afirma Maria Cecília Pereira da Silva, psicanalista e membro da ONG Grupo de Trabalho e Pesquisa em
Orientação Sexual.

Além disso, jogos sexuais entre crianças da mesma idade não costumam oferecer risco à integridade física de seus envolvidos
(antes da puberdade, meninos nem têm ereção suficiente para penetração). "A ameaça de ato sexual está apenas na mente
adulta, já que para as crianças menores a brincadeira tem a ver com a sensação que o toque proporciona", diz Marcos Ribeiro.

A dificuldade é conciliar a reação ideal almejada pelos especialistas com os valores morais de cada família. "Eles ficam
assustados, perguntam o que pode vir depois, se a criança já faz aquilo naquela idade", conta Sueli Gonçalves Gomes,
orientadora da educação infantil do colégio Santa Maria, no Jardim Marajoara, zona sul. Não virá nada, respondem os
especialistas. Por volta dos sete anos, as crianças entram na etapa chamada latência (veja quadro acima), quando a
sexualidade perde parte da importância. Com a chegada da fase escolar propriamente dita, a criança começa a se interessar
por atividades que antes não estava preparada para desempenhar. A pais renitentes ou assustados, a psicóloga Maria Cecília
lembra a definição da OMS (Organização Mundial de Saúde): "Sexualidade não é sinônimo de coito e não se limita à
presença ou não do orgasmo. Ela influencia pensamentos, sentimentos, ações e a saúde física e mental. Se saúde é um direito
humano fundamental, a saúde sexual também deveria ser considerada um direito humano básico". Para quem acha que o
discurso é bonito, mas não resolve na hora do susto, a Revista elencou as situações mais comuns e ouviu especialistas sobre a
melhor reação diante de cada uma. Confira a seguir.

Masturbação - Na escola infantil, Antônio, 2, roça o pênis no colchão até dormir. Na classe ao lado, a professora percebe que
Bernardo, 5, está se masturbando enquanto ela conta histórias.

Quem trabalha com crianças tem sempre muitos casos como esses para contar. Descobrir o próprio corpo faz parte da tarefa
de tentar entender o mundo, e o prazer em manipular os órgãos sexuais é uma das primeiras descobertas. Em situações que
confortam e dão prazer - como a hora da alimentação ou da troca de fraldas - é comum ver bebês de ambos os sexos com
ereção; as meninas têm inclusive lubrificação vaginal, explica a sexóloga e hoje prefeita Marta Suplicy no livro "Papai,
Mamãe e Eu" (editora FTD, 88 págs., R$ 35,80), lançado em 1999 e até hoje um dos mais indicados pelos especialistas da
área. Isso acontece porque olhos, pele, boca, paladar, olfato e órgãos genitais integram um complexo nervoso que tem
conexões com o centro sexual do cérebro.

O prazer "inconsciente" do bebê do berçário e a masturbação do garoto mais velho são etapas diferentes do mesmo processo
de desenvolvimento. "Pais e professores devem encarar com naturalidade, sem repreender ou transmitir noções de sujeira ou
coisa errada. Se acontecer em público, os adultos devem explicar que aquele é um ato íntimo, e portanto deve ser feito em
lugar reservado", afirma o psicólogo Paulo Rennes, da Unesp. Mas nem por isso os pais devem ficar menos atentos ao
comportamento. "Se for compulsiva ou obsessiva, a masturbação pode indicar alguma frustração ou situação emocional
difícil e é preciso procurar ajuda especializada", alerta a psicóloga Maria Cecília Pereira da Silva, do GTPOS.

Além disso, nem toda manipulação dos genitais é sinônimo de masturbação. "Pode se tratar de algum incômodo físico, como
alergias, assaduras e até picadas de inseto", diz Ângela Maria Espínola de Castro, pediatra endocrinologista da Unifesp.

Marcos Ribeiro, consultor do Ministério da Saúde, recomenda cuidado maior no caso das meninas. "É preciso conversar e
informar, porque elas podem introduzir objetos na vagina e se machucar."

Jogos sexuais - Júnior, 5, diz para Léo, 4, que um chupar o "pipi" do outro é normal, porque os bebês fazem o mesmo com o
peito da mãe. O menor conta para o pai, que, desesperado, procura a professora da escola. Em situações como essa, os
adultos tendem a reagir mal, reprimindo, gritando e até batendo na criança, diz Paulo Rennes. Nada mais equivocado. Logo
depois de explorar o próprio corpo, a atenção infantil se volta para o corpo alheio: é a fase em que começam a perceber as
diferenças entre meninos e meninas, adultos e crianças. Não faça alarde, nem projete coisas do seu mundo no mundinho
deles, recomendam os profissionais.

"Os pais devem tentar agir com naturalidade, explicando que a criança não deve fazer nada que não queira com o próprio
corpo - nem com o corpo do outro. É bom aproveitar para dizer que, se ela se sentir desconfortável com alguma brincadeira,
deve procurar um adulto de confiança e contar", afirma Maria Cecília. Mas é bom apurar toda a história para conferir se é
realmente verdade: "Criança fantasia bastante", ressalva.
20

O problema pode se tornar mais sério quando ocorre entre crianças de idades muito diferentes - quatro, cinco anos a mais -,
porque pode envolver coerção e configurar abuso sexual. Os pais devem dizer que não é errado a criança brincar com
amiguinhos da mesma idade, mas nunca com os mais velhos ou adultos. Também não vale estigmatizar a criança mais velha,
transformando-a num quase tarado: nem sempre mais idade significa maturidade maior. Além disso, ela pode estar
enfrentando problemas no próprio desenvolvimento sexual e precisar de ajuda profissional.

Brincar de beijo na boca - Cássio, 4, corre atrás de Daniela, 5, e a beija na boca. Depois, chama a menina de "Helena",
personagem da novela da Globo. Em pleno processo de aprendizagem, a criança repete tudo o que vê. "O que esperar de
crianças expostas freqüentemente a cenas de beijos e carícias na TV", pergunta Paulo Rennes. "O estímulo à precocidade e a
comportamentos sexuais vem desse cotidiano." Marcos Ribeiro afirma que não há necessidade de reprimir a brincadeira,
desde que se observe a regra da mesma faixa etária. Também é importante ficar atento para ver se a criança não está sendo
forçada a alguma coisa.

De volta ao peito - Desmamada desde os nove meses, Luíza, 3, passa a reclamar o seio da mãe com insistência, em casa ou
lugares públicos. Ela cede uma vez, mas se incomoda com a freqüência. Quando recusa, a menina chora. Geralmente, é
necessidade de um contato afetivo mais estreito com a mãe, uma forma de voltar a um período gratificante da vida, dizem os
terapeutas, e ocorre principalmente quando nasce um irmãozinho, e a criança maior se sente em segundo plano.

"Se a mãe estiver amamentando o menor, pode deixar o maior experimentar, para que ele prove que o gosto não é lá essas
coisas. Mas os pais devem reforçar que ela já é grandinha e tem dentes para se alimentar, ao contrário do irmãozinho",
aconselha Maria Cecília. Se não estiver amamentando ou não se sentir confortável em dar o seio, deve explicar que não tem
mais leite e que o peito é uma parte íntima de seu corpo. "É uma boa hora para reforçar que não se deve deixar que mexam no
corpo da gente quando não queremos", lembra.

Marcos Ribeiro levanta outro ponto. "É importante que os pais atentem para o motivo. Em alguns casos, vítimas de algum
tipo de abuso sexual tentam 'voltar' a fases anteriores, em que se sentiam protegidas", diz.

Exibir os genitais - Basta chegar uma visita e Vítor, 4, vai para o quarto, tira a roupa e faz uma "entrada triunfal" na sala,
totalmente nu. O "exibicionismo" infantil faz parte da fase de exploração dos corpos. Como um brinquedo novo, a criança
quer mostrar aos outros o que já descobriu. Quanto à menina que adora levantar a roupa e mostrar o bumbum, por exemplo,
pode estar imitando algo que viu na TV. Em qualquer situação, cabe aos adultos começar a ensinar a noção de intimidade.

"Ela não sabe o que é certo ou errado, quais são os códigos sociais, a diferença entre o público e o privado. Cabe aos pais e
educadores ensinar que ali não é lugar para isso", afirma Maria Cecília. É também a hora de falar sobre respeito. "Alguns pais
acham que tudo que seu filho faz é uma gracinha, mas se esquecem de que aquela gracinha vai crescer e viver em sociedade.
Pais e professores devem mostrar que vivemos com outras pessoas, temos de respeitá-las e parte desse respeito é não ficar
mostrando seu órgão sexual para quem não quer ver", recomenda Marcos Ribeiro.

Ver o ato sexual - A porta do quarto estava só encostada, e Maria, 3, viu os pais transando. No dia seguinte, contou à
professora que, quando o casal está no quarto, seu pai fica tentando matar a mamãe. Tiago, 5, assiste a um filme pornô na TV
a cabo e depois quer fazer sexo oral com a prima da mesma idade.

Se a criança viu o ato sexual, mesmo que ela não pergunte, é fundamental falar sobre o assunto, para que ela não comece a
fantasiar. E não se esqueça: se isso aconteceu, foi por descuido dos adultos.
"Geralmente os pais reagem mal, põem a culpa no filho por ter visto 'algo que não devia'", conta Paulo Rennes.

No primeiro caso, Marcos Ribeiro sugere deixar a conversa para o dia seguinte. "Pai e mãe podem começar, informalmente,
perguntando: 'Acho que você viu a gente fazendo amor, tendo uma relação sexual. Você sabe o que é isso?' Fique atento à
reação. Se ela disser que sim, descubra o que realmente sabe e complemente, se necessário. Se não, fale brevemente sobre
namoro e relação sexual, explique que foi num momento como aquele que ela foi feita. Utilizar um livro infantil é uma boa
saída, mas não fale demais nem explique além do que ela quer saber."

No caso do filme pornô, é preciso perguntar o que ela viu e mostrar que a realidade das pessoas não é aquela. "Explique que
os filmes são feitos para despertar vontade nas pessoas, mas que sexo não é só aquilo, tem carinho e afeição. É importante
que a criança cresça fazendo essa associação", diz Marcos Ribeiro.

O caminho da sexualidade infantil

O primeiro a tratar do assunto foi Sigmund Freud, no início do século 20. Para o pai da psicanálise, a sexualidade infantil
passa por quatro fases: oral, anal, fálica e de latência. Até hoje esses conceitos formam a base do pensamento sobre a
sexualidade na infância, mas foram incrementados por outras linhas de pensamento. As faixas etárias de cada fase não são
absolutas, mas aproximadas
21
a) 0 a 2 anos - Oral - Nos primeiros meses, o prazer da criança se concentra na região da boca, sua atenção está voltada para
o que entra e sai de seu corpo via oral: ela suga o seio da mãe, chupa mamadeira, come papinha, regurgita (mas já é capaz de
ter sensações agradáveis nos órgãos genitais). A boca é sua forma de comunicação com o meio externo

NO CORPO - Até cerca de um ano, o bebê produz os mesmos hormônios da puberdade, em menor quantidade: meninas
fabricam estrogênio, meninos, testosterona, e ambos produzem hormônios hipofisários, responsáveis pela estimulação de
ovários e testículos. A partir de um ano, essa produção fica em "repouso" para retornar de forma intensa na adolescência

b) 2 a 3 anos - Anal - Quando começa a deixar as fraldas, a atenção da criança se volta para suas necessidades fisiológicas:
ela começa a perceber que pode controlar o esfíncter (músculo envolvido na evacuação), cujos movimentos também
proporcionam sensação de prazer. Ficam orgulhosas do que seu corpo produz, algumas nem querem dar a descarga. Pais e
professores também colaboram para o aumento de atenção nessa etapa, perguntando o tempo todo se a criança quer fazer
cocô ou xixi

NO CORPO - O crescimento físico desacelera em relação à fase anterior, fica mais lento, porém constante, e volta a se
intensificar na puberdade

c) 4 a 6 anos - Fálica - Começam a descobrir/explorar seus órgãos sexuais e a perceber as diferenças anatômicas entre
meninos e meninas. A curiosidade estimula a masturbação e as brincadeiras sexuais com outras crianças. O orgasmo é
possível, embora os meninos não ejaculem. Nessa fase a criança já tem total consciência de sua identidade sexual (noção
sobre seu sexo, diferente de orientação sexual, que pode ser homo, bi ou hétero). É também a fase das perguntas sobre sexo e
a origem dos bebês

NO CORPO - Aos seis anos, intensifica-se a produção de um hormônio da glândula supra-renal, que pode provocar leve odor
no corpo e nascimento moderado de pêlos superficiais

d) A partir dos 7 - Latência - Época que antecede a puberdade e a criança está se preparando psiquicamente para as intensas
mudanças que virão. Nessa fase, que coincide com o início da vida escolar, a sexualidade fica em segundo plano, em
detrimento de novas descobertas, especialmente no terreno intelectual. A curiosidade sexual não desaparece, mas fica latente

NO CORPO - Atualmente, a precocidade pode fazer com que a latência se misture à puberdade (principalmente nas
meninas), inaugurada pela maior produção hormonal e alterações físicas, como nascimento de pêlos, desenvolvimento dos
seios, polução noturna (as primeiras ejaculações)

6. Freud e Machado de Assis em “Memórias póstumas de Brás Cubas”


- As mulheres “pecadoras” de Machado de Assis -

(Do livro: Freud e Machado de Assis - uma interseção entre psicanálise e literatura, Editora Mauad, ano 2001, cap. IV, págs 79-107)

Luiz Alberto Pinheiro de Freitas

O medo que o homem sente da mulher é tão antigo quanto a história, mas foi só no século burguês que ele se transformou
num tema proeminente nos romances populares e tratados médicos. Atraiu a atenção de jornalistas, pregadores e políticos;
invadiu os sonhos dos homens e forneceu-lhes assunto para poemas e pinturas. A demonstração aberta e crescente que a
mulher fazia de seu poder parecia ser a contrapartida pública do poder que os homens exerciam privadamente, com uma
ansiedade cada vez maior, na segunda metade do século XIX: um e outro forneceram ao homem formidáveis argumentos
contra a emancipação da mulher. Para a maioria dos homens que se regalavam com a dominação, uma mulher que
abandonasse sua própria esfera constituía não apenas unia anomalia, unia mulher-macho; mais do que isso, levantava
incômodas questões quanto ao papel masculino, um papel que não se definia mais isoladamente, mas numa constrangedora
confrontação com o sexo oposto (Gay, Peter 1989, A educação dos sentidos, p. 128).

Machado de Assis foi um autor que escreveu para mulheres e sobre mulheres. Pode-se ver que não só em Brás Cubas, como
em Quincas Borba, existem várias passagens nas quais dialoga com uma leitora, isso mesmo, com uma leitora - no feminino,
Conforme sabemos, seus romances foram, alguns deles, primeiramente escritos em jornais para moças. Foi ele um escritor
que contribuiu para a libertação da mulher burguesa, condenada que estava a viver para a família, ou seja, casa, marido e
filhos. Seus textos, como os de Flaubert, punham a mulher sonhar - diríamos que da mesma forma que o Manual dos
confessores25 da Idade Média as punha também a pecar. É na sua chamada fase da maturidade que ele apresentará a questão
do pecado do adultério, que traz como subprodutos o ciúme E a disputa entre os homens por esta sedutoras de colos brancos,
de ombros desnudos, de olhos convidativos, de talhes garbosos; assim como diria o mestre: uma lascívia.
25
Os confessionais ou Manuais de confessores eram catálogos de pecados a serem usados no confessionário. "... muitas vozes
já se haviam levantado contra o critério do confessor interrogar o penitente com uma lista de pecados descritos em detalhes -
tanto quanto à ação, como quanto ao parceiro - entendendo que este procedimento induzia os ingênuos a seguir "as trilhas da
perdição" (Almeida, Ângela, 1992, p. 21)
22

Como afirmamos anteriormente, Machado foi um grande apreciador de Shakespeare, em suas obras existem várias passagens
em que se refere ao dramaturgo inglês. É curioso, inclusive, como sempre gostou de fazer referências a Otelo. E em quantas
passagens de seus personagens não surge a mesma temática - a traição? Em seu primeiro romance Ressurreição, Félix passa
grande parte de sua vida com a viúva Lívia a pensar na possibilidade de ser traído. Machado o faz desistir do casamento após
uma crise de ciúmes em que considerou a possibilidade de que Lívia já traía o marido morto; ele também o seria. A temática
já se apresentava nessa aurora. Estas situações triangulares vão também aparecer em outros personagens: Estevão, Luís Alves
e Guiomar, de A mão e a luva, em Jorge, Luís Garcia e Valéria, de Iaiá Garcia, se bem que, nestes romances, a temática se
restringe às possibilidades, ou seja, Estevão disputa com Luís Alves a preferência de Guiomar, contudo não há nenhuma
possibilidade de adultério, somente ciúmes. Já Valéria ama Jorge, mas por conveniências sociais casa-se com Luis Garcia. A
disputa é entre Valéria e Iaiá Garcia. O adultério, diríamos, é psicológico, ela ama, mas mantém-se completamente reprimida.
Entretanto, em Brás Cubas, a situação é completamente diferente, Marcela trai abertamente, por dever de ofício, é prostituta
de luxo, e a maravilhosa Virgília trai o marido Lobo Neves, mantendo com Brás Cubas uma casa na Gamboa para os
encontros amorosos. Em Quincas Borba, em que há o maior número de referências a Otelo, o adultério como possibilidade é
a tônica de todo o romance. Rubião está sempre à espera do sim de Sofia. Ela encarna a sedução - é a mais legítima
representante do comentário de Freud de que as histéricas sempre encantam nos salões. Se não chegam à vias de fato, no
entanto, a muitos, parece que sim. É a sedução consentida, é o triângulo que excita o marido, na sua admiração
homossexual pelo potencial amante, o ricaço de Barbacena. Como todos sabemos, o paroxismo da traição por adultério é
apresentado por Bento Santiago devido a sua posição de promotor de direito, que fez com que, inclusive durante muitos anos,
se tentasse, ingenuamente, chegar a uma condenação ou a uma absolvição de Capitolina. A ironia do nosso mestre foi de criar
um estado de espírito no leitor que o levasse a apaixonadamente tomar um partido. Ironicamente cutucava o leitor através dos
comentários do casmurro Santiago: "... minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois
um quatuor..." (DC, p. 738). Levou-se algum tempo para se perceber que Capitu não fala, não pode dizer nada sobre si - um
diário de outrem não pode ser apresentado como peça de acusação. A arte de Machado foi levantar a dúvida, talvez a
cutucada tenha sido a de se divertir, pois sabia o quanto é difícil para o homem conviver com a dúvida - possivelmente sabia
que o ser humano quer, sempre, dar sentido a tudo.

Voltemos à nossas heroínas, ou melhor, às heroínas que podemos afirmar estão mais diretamente envolvidas com a questão
do pecado: Virgília, Marcela, Sofia e Capitolina. Contudo, é necessário não nos esquecermos que, se incluiu em alguns
romances essas mulheres pérfidas, também as salvou em Fidélia e Carmo, de Memorial de Aires. Mulheres pobras, na qual os
exibicionismos histéricos os narcisismos exacerbados, não fazem parte do repertório de condutas dessas damas. Apesar de
Machado ter levantado, sobre a viúva Fidélia, a dúvida de que talvez traísse o noivo, quando ia ao cemitério visitar a tumba
do falecido marido. Todavia, coloca a questão mais para a insegurança de Tristão do que sobre um desvio de caráter da
mulher. Dona Carmo é o protótipo da mulher ideal, não trai, não desaponta, não levanta dúvidas - está acima de qualquer
suspeita, não há o que reparar. O tema é curioso, suscita questões que na época eram vistas como tabu. Machado tinha 17
anos quando Flaubert começou a publicar na Revue de Paris os primeiros capítulos de Madame Bovary, obra que também
aborda o tema do adultério. Tanto Machado quanto Flaubert participaram do que Maria Rita Kehl (1998) chamou invenção
do amor conjugal moderno.

"A mesma literatura que ajudou a inventar o amor conjugal moderno inventou o adultério como a verdadeira iniciação
erótica das mulheres casadas, como o lugar imaginário em que uma mulher estaria efetuando uma escolha a partir de
seu desejo, e não sendo "a escolhida" para realizar os desejos do futuro marido" (p. 117).

Machado pertencia a essa época em que o amor e o casamento eram as aspirações máximas de uma mulher. Não era dado às
mulheres o direito de se assumirem como independentes do homem - era a submissão ao pai e depois ao marido. Seus desejos
pessoais, freqüentemente, não eram levados em conta. Ficar solteira era, para a mulher, uma desqualificação, como cita
Machado nos pensamentos de D. Tonica de Quincas Borba: "os seus pobres olhos de trinta e nove anos, olhos sem parceiros
na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança" (QB, p. 582-3).

Freud, em Moral sexual "civilizada " e doença nervosa moderna (1908), comentava, aliando-se às idéias do professor de
filosofia de Praga, Christian von Ehrenfelds, que a moral sexual civilizada necessitava de reformas, visto que o cumprimento
de seus preceitos freqüentemente produzia sérias neuroses. As restrições feitas à atividade sexual tanto dos homens quanto
das mulheres - proibição de toda relação sexual, exceto dentro do casamento monogâmico - trazem para a saúde e a eficiência
dos indivíduos grandes prejuízos, podendo até comprometer a própria cultura no futuro. Contudo, é a mulher a que mais sofre
essas restrições, pois, como disse Freud, há que se admitir uma moral dupla. As sanções impostas às mulheres são muito mais
severas que as impostas ao sexo masculino.

"Essa moral 'dupla' que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor confissão de que a própria sociedade
não acredita que seus preceitos possam ser obedecidos" (p. 200).

Não se deveria deixar de considerar que as relações sexuais no matrimônio nem sempre proporcionaram os prazeres
prometidos na espera, bem como que, durante muito tempo, foram também consideradas indignas, num matrimônio legítimo,
certas práticas sexuais. A uma mulher honesta não deveria ser solicitado um sexo pervertido. O marido deveria ser o primeiro
a preservá-la. Entretanto, a lei existe exatamente para reprimir aquilo que o ser humano deseja fazer, e, como tal, surgem as
23
contestações, as quais são, naturalmente, mais aceitas no universo masculino. No entanto, o casamento há muito deixou de ser
uma forma terapêutica para os males femininos. Não é incomum que ele se tome um outro foco para o estabelecimento de
novos quadros neuróticos.

6.1 - VIRGÍLIA, ou o grão pecado da juventude

"[Virgília] contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida criatura da nossa raça, e, com
certeza, a mais voluntariosa. ( ... ) Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e
eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito
clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, - devoção, ou
talvez medo; creio que medo" (MPBC, p. 449-50).

Machado de Assis disse, por carta, a Mario de Alencar que escreveu Memórias póstumas de Brás Cubas porque se desiludira
dos homens. Já no prólogo, afirma que escreveu "com a pena da galhofa e a tinta da melancolia" (MPBC, p. 413). Talvez um
certo prazer sádico que resvalava, por vezes, para um quadro depressivo. Depressão decorrente do problema ocular que
perdurou de outubro a março de 1879: problema não só grave para um escritor, como para qualquer mortal, uma vez que as
sombras da cegueira produzem uma ferida narcísica impossível de ser cicatrizada. É necessário acrescentar que Machado já
estava casado, e que foi após o casamento que surgiram as crises de epilepsia, ou histéricas epileptiformes, o que não é
possível afirmar com certeza. No capítulo II, em que fala sobre o emplasto, Brás Cubas apresenta-o como destinado a ser um
remédio "anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade" (MPBQ p. 416). Se nos lembrarmos que a
melancolia está sempre referida a uma perda - o que teria perdido Machado? Teria perdido as ilusões? As ilusões do amor? A
vida íntima sem filhos? Teria se desiludido da sexualidade? Talvez a racionalizasse na sensualidade destas mulheres
sedutoras: Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, etc. Não o sabemos... Conjecturemos apenas... Era um lascivo como o disse de
vários personagens, e, se não lhe agradava o exercício do pecado, gozava, pondo os personagens a pecar.

Como o livro começa pela morte do autor, ele mesmo se cognomina um autor defunto, e a presença de Virgília incrédula ante
a morte do amante se faz notar, já no enterro, pelo padecimento maior que o dos parentes. Após esta cena, vem a visita ao
moribundo, que recordou: "Tinha 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína ( ... ) nos amamos, ela e eu, muitos anos
antes" (MPBC, p. 419). Nestas apresentações de Virgília, não só é o leitor convidado a conhecê-la, bem como é introduzido
nesta filosofia cética e proustiana:

"Creiam-me, o menos mau é recordar; ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota da baba de Caim.
Corrido o tempo e cessado o espasmo, então sim, então talvez se pode gozar deveras, porque entre uma e outra dessas
duas ilusões, melhor é a que se gosta sem doer" (MPBC, p. 419).

Machado vai introduzindo o leitor na paixão e na amargura, vai de início apresentando a vida como ela é, o realismo do
destino, o destino anatômico de Freud apud Napoleão. Vai tentando desencantar os discursos dos amantes, dos amores e das
dores, e que, se estão condenados à anatomia, não é para que não possam aproveitar o momento presente, mas para saberem
que na recherche du temps perdu se goza com mais serenidade - é melhor porque não dói. A elucubração sobre a vida,
passados os anos, é dura e de difícil digestão - é o realismo cético -, não há intensidade amorosa na velhice. É o que diz um
descrente Machado. Lúcia Miguel Pereira (1937) afirmava que Oliveira Lima havia privado com Machado, e dizia que o
personagem Brás Cubas era "a fotografia da sua alma" (p. 192).

"Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia
apenas dous corações murchos, devastados pela vida e saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados"
(MPBC, p. 420).

A moral do século XIX julgava o adultério feminino como algo muito mais grave do que o cometido pelos homens. A lei era
draconiana para com as mulheres, que poderiam, em alguns casos, ser mortas por seus maridos. O imaginário da época
acalentava a possibilidade da fuga; amor proibido e fuga vinham juntos em oposição ao tema da honra e do sangue. A honra
manchada deveria, obviamente, ser lavada em sangue, como uma satisfação à sociedade chauvinista, bem como um exemplo
àquelas que pretendiam não observar os ditames da cultura. Não havia muita escolha para a dita mulher desonrada - fugir ou
morrer -, dilema ao qual ficavam restritos os amantes.

".. perguntei-lhe se tinha coragem.

- De quê?

- De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande ou pequena, à tua vontade, na roça ou na cidade,
ou na Europa, onde te parecer, onde ninguém nos aborreça, e não haja perigos para ti, onde vivamos um para o outro...
Sim? fujamos. Tarde ou cedo, ele pode descobrir alguma cousa e estarás perdida... ouves? perdida... morta,.. e ele
também, porque eu o matarei, juro-te... ( ... ).

- Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do mesmo modo" (MPBC, p. 480).
24

Pode-se ver, no famoso livro V das Ordenações Filipinas26, que o marido tinha o direito de matar sua mulher caso a
encontrasse com outro.

"38. DO QUE MATOU SUA MULHER POR A ACHAR EM ADULTÉRIO

Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim ela como o adúltero, salvo se o
marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma
das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para África com
pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa que matar, não passando de três anos.

1 - E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adúltero que achar com ela em adultério, mas ainda os pode
licitamente matar sendo certo que lhe cometeram adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério
por prova lícita e bastante conforme o direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão
punidos segundo acima dito é" (Lara, Silvia H., Ordenações Filipinas, 1999, p. 151).

Trabalhar sobre o tema do adultério nem sempre era uma tarefa muito fácil, visto que, ainda dominados pela moral
preconizada pelas Ordenações, o homem novecentista não via com bons olhos tal assunto ser colocado ao alcance de
senhoras distintas ou de núbeis ingênuas. Caso semelhante ao de Flaubert que, em 1856, iniciou a publicação, em capítulos,
de Madame Bovary na Revue de Paris, Machado de Assis publicava, em 1880, na Revista Brasileira, as Memórias póstumas
de Brás Cubas, também em capítulos. Ambos trataram da traição feminina, contudo, o escritor brasileiro imprimiu ao texto
um tom de humor e cinismo às relações humanas que caracterizavam a alta burguesia carioca. Caracterizou, através dos
personagens, as mais corriqueiras situações do ser humano, apresentou-o através de seus mais comezinhos desejos, das
situações mais inesperadas e mesquinhas. Surgiu, como disse Lúcia Miguel Pereira (1937), "uma piedade irônica e
indulgente" (p. 194), e Brás Cubas foi "o primeiro dos tipos mórbidos em que Machado extravasou as próprias esquisitices de
nevropata" (p. 195).

A moral burguesa do século XIX apresentava o adultério feminino como algo abominável. Daí, ao colocar a bela Virgília
numa posição de trair o marido, depreende-se que Machado pretendia abordar um campo delicado para as hostes masculinas.
Virgília não só é descrita como adúltera, como terá seu egoísmo e ambição como defeitos do seu caráter destacados. Sua
posição social, suas aspirações a um título de nobreza governam a cena.

"Virgília perguntou ao Lobo Neves, a sorrir, quando ele seria ministro.

- Pela minha vontade, já; pela dos outros, daqui a um ano.

Virgília replicou:

- Promete que me fará baronesa?

- Marquesa, porque eu serei marquês" (MPBC, p. 462).

Uma cena na qual a hipocrisia e o cinismo estão sempre presentes em uma mulher que, apesar de conseguir amar, não
descurava das vantagens que a vida conjugal lhe proporcionava: respeitabilidade, posição social, dinheiro, etc. Não foi à toa
que Machado muitas vezes disse, através de seus personagens: nem sempre verdade e vantagem caminham juntas. Além de
mantê-la, aos olhos da moral social, denegrida, ele ainda a colocou como uma mulher com certa aversão 27 à maternidade, pois
esta poderia comprometer-lhe o corpo e a vida social, "Era medo do parto e vexame da gravidez. Quanto ao vexame,
complicava-se ainda da forçada privação de certos hábitos da vida elegante" (MPBC, p. 507). A situação é levada a extremos
por Machado, ao compor no seu entrecho um quadro de uma vida paralela em que o casal Brás e Virgília chegam a ter casa
montada, inclusive com uma criada. Se hoje a situação de uma mulher bem casada ter casa com outro homem já seria
calamitosa e inaceitável, imaginemos para a época.

O tema do adultério é logo insinuado no capítulo VI, no qual Machado deixa entrever que o encontro tem algo de estranho, de
proibido - "podíamos falar um ao outro, sem perigo" (MPBC, p. 420). Como o romance começa pela morte do autor defunto,
este capítulo inicial refere-se à visita que faz Virgília a Brás Cubas em seus últimos dias. Macha do, nesta cena, também
enfatiza a questão das conveniências sociais, a qual permeará toda a sua obra -"Estou velha! Ninguém mais repara em mim.
Mas, para cortar dúvidas, virei com o Nhonhô" (MPBC, p. 421). Nhonhô era o filho da nossa dama com Lobo Neves, o qual,
como disse Brás Cubas, durante muito tempo "fora cúmplice inconsciente de nossos amores" (MPBC, p. 420). Um filho em
qualquer cena empresta-lhe uma lisura de intenções, na medida em que o apelo à função materna sempre traz a suposição da
26
O mais bem feito e duradouro código legal português publicado com o pomposo título de Ordenações e leis do reino de
Portugal, recopiladas por mandado do mui alto, católico e poderoso rei Dom Felipe, o primeiro, foi promulgado em 1603,
vigorando plenamente no Brasil até 1830. O livro V é inteiramente dedicado ao direito penal.
27
Certa aversão - No início do romance Virgília tem um filho com Lobo Neves e somente ao final do texto Machado vai
esclarecer as restrições frente à maternidade.
25
maternidade como paradigma da fidelidade. O pai pode ser sempre traído, mas nunca em presença do filho. Contudo a ironia
machadiana avilta o próprio sentido da mulher-mãe, fazendo imperar a mulher-desejante, a da vida imaculada por ser senhora
do seu corpo e das suas fantasias, e que pode trair, inclusive, em presença do filho - e até enganá-lo de forma dissimulada. A
hipocrisia, até a das mães, era apresentada de forma impiedosa:

"Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que
pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e
talvez fossem raras. Como tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a
falar com desdém, e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua amiga. O filho sentia-se satisfeito,
ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse
nascido gavião..." (MPBC, p. 420).

Sabemos que na biblioteca de Machado não foi encontrado nenhum texto de Freud. Contudo, principalmente em Brás Cubas,
a solução para o casamento de interesses é a mesma que apresentou Freud, em 1908, para a cura das doenças nervosas
decorrentes do casamento - a infidelidade conjugal. Virgília, a heroína infiel, é descrita aos dezesseis anos como talvez a mais
atrevida criatura da nossa espécie, e, com certeza, a mais voluntariosa, pois, apesar de toda a educação repressiva que impedia
que as mulheres se ocupassem de temas sexuais, ela não seguia essas recomendações, ou as cumpria dentro do possível. A
curiosidade sexual, na época, era algo pouco feminino e um claro indício de um comportamento pecaminoso; tinha que ser
afastada do campo do pensamento da mulher. Quando muito, poderia vir atrelada à noção de um sexo de características
simplesmente reprodutoras - aspiração à maternidade, não ao sexo prazeroso. Este tipo de ignorância a que eram condenadas
as mulheres estendia-se, além do campo sexual. "Assim a educação as afasta de qualquer forma de pensar, e o conhecimento
perde para elas o valor" (Freud, 1908, p. 203). Não é à toa que Machado, apesar de preparar o terreno para as ações futuras de
Virgília, ao dizê-la "atrevida e voluntariosa", também nos diz: "faceira, ignorante, pueril" (MPBC, p. 450). Dentro deste
contexto de desvalorização do personagem feminino, a mãe de Brás Cubas seguia a norma: "uma senhora fraca, de pouco
cérebro e muito coração", aliados ao principal ingrediente: "o marido era na terra o seu Deus" (MPBC, p. 428). Uma tal mãe
não dignificaria muito a figura feminina, daí Brás nunca ter podido escolher uma mulher para, efetivamente, se casar.

Conforme afirmou Freud em Um tipo especial de escolha de objeto (19 10), existem certas condições necessárias ao amor,
cuja combinação é pouco compreensível, e, por vezes, só podem ser entendidas à luz da psicanálise. Uma das precondições
de que falava Freud era a de que um certo tipo de escolha amorosa feita pelos homens estava intimamente vinculado à
possibilidade de "existir uma terceira pessoa prejudicada" (p. 150) Este tipo de escolha implica que uma mulher solteira, sem
compromisso, não produz o mesmo tipo de desejo que uma que esteja apalavrada, noiva ou casada. Seu interesse prende -se à
existência de um terceiro, que "possa reivindicar direitos de posse" (p. 150). Em alguns casos mais evidentes, uma mulher
pode não despertar nenhuma intenção enquanto estiver livre e desimpedida, contudo "toma-se objeto de sentimentos
apaixonados, tão logo estabeleça um desses relacionamentos com outro homem" (p. 150). É um tipo de sintoma que traz o
gozo da vitória narcísica sobre o pai, a ilusória vitória que faz o amante sentir-se, de forma inconsciente, não mais um terceiro
excluído - o excluído é outro. Obviamente que qualquer escolha amorosa está marcada pelo objeto original desejado e
interditado, todavia a satisfação não pode jamais ser alcançada, daí a seqüência de objetos substitutivos que determi
nadas pessoas colocam em suas vidas. Estão sempre na ilusão de que vão, em determinado momento, encontrar o parceiro
ideal, esquecendo-se de que, ideal, só o objeto impossível. Esse deslizamento metonímico do desejo é nesses casos levado
ao extremo, já que a própria condição de manter uma série infindável de parceiros implica em não se ser fiel a nenhum; no
entanto, mantém-se a fidelidade ao primeiro, que está fora da série.

Brás Cubas foi caracterizado por Machado corno uma criança agressiva, era chamado de menino diabo. Era como contava:
"um do, mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso" (MPBC, p.427). Maltratava o moleque
Prudêncio, fazendo-o de cavalo, montava no dorso do escravo e fustigava-o com uma vara. Dava-lhe voltas; e a tudo o
escravo obedecia gemendo: "ai, nhonhô - ao que eu retorquia: Cala a boca, besta!" (MPBC, p. 427). Ao crescer tornou-se
"opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens" (MPBC, p. 427). Outrossim, interessou-se pela injustiça humana -
"inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das
circunstâncias e lugares" (MPBC, p. 427-8). Seu pai não punha limites às suas diatribes, ao contrário, achava graça, ao
mesmo tempo que lhe incutia uma moralidade baseada nas aparências, na regência do juízo do outro: "Teme a obscuridade
( ... ) Olha que os homens valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros homens"
(MPBC, p. 45 1). Sobre sua mãe sabemos que era uma mulher fraca, submissa, pouco inteligen te e religiosa. Em suma, havia
tido uma educação "no geral viciosa, incompleta, e, em partes negativa" (MPBC, p. 428).

"Como para Machado o ser humano é imperfeito por natureza (aqui é oportuno lembrar as palavras do narrador de
Esaú e Jacó: a ocasião faz o furto, o ladrão já nasce feito), a construção de suas personagens femininas se faz a partir
desse princípio ( ... ) Machado carrega nas tintas do ceticismo, construindo personagens ambíguas, dissimuladas,
quando não declaradamente traidoras" (Xavier, E., 1994, p. 53).

Machado, com seu texto, dessacralizava a instituição do casamento, colocava-o como um jogo de interesses, pelo qual antes
havia um sonho de Cinderela à espera. do príncipe, comum a um tipo de literatura para moças cujo fim era previsível,
açucarado e um pouco distante da realidade. "Ele apertou-a nos braços, apaixonadamente, murmurando num beijo: - Sempre
26
vieste a mim, menina, querida e cruel! Conseguiste, finalmente perdoar!" (Delly, M., 1938, p. 261) 28. Em princípio, Marcela e
Virgília jamais poderiam ser colocadas como heroínas de tal literatura, o pudor da época não permitiria. Contudo a literatura,
através de Machado, Flaubert, Balzac, Eça e outros, traz, juntamente com Freud, para o centro das discussões, a questão da
sexualidade feminina. Surge uma mulher que quer poder escolher a forma de gozar, apesar de, algumas vezes, ao não poder
dizer do seu desejo, fazer convergir para o corpo o protesto da sua sexualidade insatisfeita: foi o tempo das histerias. Todavia,
é bom lembrar que muitas mulheres que utilizaram o adultério nada mais conseguiram do que manter-se sob o domínio de
outro homem - submetida a dois senhores, aviltada psíquica e socialmente.

"Em uma esfera mais reflexiva, a mesma literatura que apontava o amor como a maior realização da vida feminina,
dava conta da pobreza e da frustração que advinha de se jogar todas as fichas no casamento, e revelava o desejo
ainda disforme de muitas mulheres, de se tomarem sujeitos de suas próprias vidas, "autoras" de suas aventuras
pessoais, em consonância com os ideais de autonomia e liberdade individual que a modernidade há muito tempo vi-
nha oferecendo aos homens" (Kehl, M. R. 1998, p. 118).

A literatura machadiana contribuía para a antecipação do novo mundo feminino. Esse tipo de leitura levava a mulher a
antecipar sua vida, identificando-se com as heroínas e anti-heroínas.

Virgília era o tipo de mulher que permitia uma fácil identificação das leitoras, já que, como a maioria das mulheres de sua
época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta era um casamento com o que se chamava um bom partido; se
houvesse amor, melhor, mas não era o principal. A questão do amor era secundária, como o foi durante muito tempo. Era um
luxo que muitas mulheres não tinham. A solução encontrada por Machado foi diferente. Não encontramos crises histéricas ou
paralisias, Machado fez Virgília apaixonar-se por Brás, criando assim uma possibilidade de cisão - amor/casamento - ou seja,
pelo fato de essas coisas não andarem juntas, não quer dizer que não se possa tê-las. É verdade que os riscos impõem certos
sobressaltos, contudo, entre ter um amante e um sintoma histérico, o autor preferiu o caminho do amante. É melhor gozar na
cama do que no sintoma. O outro lugar de gozo seria receber do imperador, através do marido, o título de marque sa. É um
outro tipo de gozo, um gozo narcísico em que ao procurar a admiração e a inveja do outro, através dessa insígnia fálica,
leva-se ao êxtase alguém que valoriza enormemente o juízo do outro, inflacionando de forma vã e chã o seu narcisismo
secundário.

Conforme afirmava Freud em Moral sexual "civilizada " e doença nervosa moderna (1908), a chamada moral sexual dupla,
em referência a uma diferença de moralidade entre homens e mulheres, era a prova mais evidente da impossibilidade de o
grupo social obedecer aos preceitos que estabelecia. Ou seja, a infidelidade feminina, apesar de moralmente inadequada, era
uma solução, que seria mais facilmente utilizável dependendo do tipo de educação que tivesse recebido uma jovem.

" ... a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento estaria na infidelidade conjugal; porém, quanto mais severa
houver sido a educação da jovem e mais seriamente ela se submeter às exigências da civilização, mais receará recorrer
a essa saída; no conflito entre seus desejos e seu sentimento de dever, mais uma vez se refugiará na neurose. Nada
protegerá sua virtude tão eficazmente quanto uma doença. Dessa forma o matrimônio, que é oferecido ao instinto
(pulsão) sexual do jovem civilizado como uma consolação, mostra-se inadequado mesmo durante o seu decurso, não
havendo sequer possibilidades de que possa compensar as privações anteriores" (p. 200).

Segundo Freud (1929-30), o ser humano está sempre em busca de "poder, sucesso e riqueza" (p. 81), bem como admira e
inveja os que possuem aquilo a que aspira. Ele é governado por paixões, com um ego que mantém relações conflituosas com
o id e o superego. Um ego a princípio de prazer e posteriormente, tendo que se render às imposições do princípio de
realidade, provocando infindáveis frustrações e sofrimentos. Surge para o homem a necessidade de fazer o ego afastar-se de
todo o sofrimento e desprazer, bem como de ter sensações de prazer de modo mais amplo - ser feliz. Contudo, a observação
nos mostra que esses momentos de satisfação plena são fortuitos, são, "por sua natureza, possível apenas como uma
manifestação episódica" (p. 95). Os sofrimentos nos ameaçam a partir de três direções: do nosso próprio corpo, do mundo
externo e das relações com os outros homens. Conforme lembrava Freud, este último, o das relações com os outros, era o
mais penoso de todos. Sabemos que um dos maiores sofrimentos a que está condenado o homem é a perda daquele a quem
ama.

"... ele se tomou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo externo, isto é, de seu objeto
amoroso escolhido, expondo-se a um sofrimento extremo, caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através
da infidelidade ou da morte" (p. 122).

A civilização vai insistir, na questão das restrições quanto ao amor e ao gozo sexual, na legitimidade e na monogamia. Para
ela, os amores sexuais só podem encontrar sua realização numa relação de vínculo único, em que fica ressaltada a propagação
da espécie em detrimento do puro prazer. Contudo, sabemos que a imposição de qualquer regra implica em sua desobediência
latente. Um casal apaixonado não necessita de um filho para torná-lo feliz, já dizia Freud em 1930. Entretanto, ao lado dessa
disposição amorosa presidida por Eros, trabalha, em silêncio, envolvida com esse mesmo Eros, Tanatus. A disposição
agressiva já estava assinalada há muito por Freud que, em O instinto gregário (1921), afirmava que, na base da fraternidade,
28
Este romance foi traduzido e editado em 1938 no Rio de Janeiro, contudo, pode-se afirmar .que é uma literatura do início
do século.
27
estava o ódio, a rivalidade narcísica, base dos quadros paranóides, como também, em O mal-estar na civilização
(1929-30), dizia que o outro era alguém com uma grande dose de agressividade, que poderia atacá-lo, escravizá-lo, abusar do
seu corpo, humilhá-lo, torturá-lo e matá-lo - "Homo homini lupus!" (p. 133).

Brás Cubas é rejeitado por Virgília em favor de Lobo Neves, contudo sua ferida narcísica é suturada quando se torna amante
da mulher do rival. O que a princípio aparecera como despeito e mal-estar, tornou-se satisfação e vitória. O preceito da luta e
da competição inerentes à espécie humana se faz presente - "a hostilidade primária dos seres humanos" (p. 134).

"O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor ( ... ) Virgília era um belo erro, e é tão fácil
confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a princípio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores;
mas, palavra de honra! Sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira..." (MPBC, p. 496).

Se a civilização impõe grande quantidade de sacrifícios não só à agressividade das pessoas, como também à sua sexualidade,
como já dissemos, a lei existe para regular estes dois desejos. Temos que considerar a questão do juízo do outro, ou, em
linguagem corrente, a opinião pública. Qualquer cultura estabelece normas pelas quais o homem deve se balizar para ter a
aceitação dos demais e como um dos aspectos de seu acesso à felicidade. Ter o respeito dos outros é uma meta desejável e à
qual todos aspiram. Claro está que tem que se trocar um pouco de felicidade por segurança, e que a segurança implica em
certas privações. Para se ter o reconhecimento, o amor dos pais, a criança teve que procurar se conformar e adequar aos
parâmetros apresentados por eles -estabeleceu-se um ideal pelo qual deveria balizar-se para, na introjeção desses ideais, saber
como se comportar na sociedade. A fruição narcísica decorrente dos delírios de onipotência infantis oriundos do sadismo
desta fase tem que encontrar um limite no discurso das ameaças parentais, que possibilitará a construção de uma instância
crítica - o superego -. portador tanto das interdições quanto dos ideais. A civilização vai tentar dar uma organização a essas
pulsões destrutivas. " ... a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, se opõe a esse programa da
civilização" (Freud, 1929-30, p. 145).

No texto machadiano, o sentimento de culpa, inerente ao descumprimento das leis da cultura, parece inexistente tanto em
Brás Cubas quanto em Virgília. "Às vezes sentia um dentezinho de remorso; parecia-me que abusava da fraqueza de uma
mulher amante e culpada, sem nada sacrificar nem arriscar de mim próprio..." (BC, p 493). Machado dá muito pouca
relevância à questão da culpa - num reformador como ele, talvez quisesse chocar, dando às leitoras, na contestação à ordem
estabelecida, à moral vigente, uma sensação de normalidade. A questão da opinião pública é o discurso do juízo do outro
frente às exigências de uma idêntica conduta sexual para todos, a qual pode ser cumprida por uns sem muitas dificuldades,
por outros com mais dificuldades, e não cumprida por muitos. Brás e Virgília situam-se na classe de

"pessoas que habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes prometa prazer, enquanto se sentem
seguras de que a autoridade nada saberá a respeito, ou não poderá culpá-las por isso; só têm medo de serem
descobertas" (Freud, 1929-30, p. 148).

Brás e Virgília têm medo de que Lobo Neves saiba do caso amoroso, contudo, ao saber do romance, o marido não quer
acreditar, a princípio; todavia, mesmo sabendo, através de uma carta anônima, não consegue agir, com medo da crítica social:

" ... a suspeita era pública. Esse homem, aliás intrépido, era agora a mais frágil das criaturas. Talvez a imaginação lhe
mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião. A fitá-lo sarcasticamente, com ar de pulha; talvez a boca invisível lhe
repetiu ao ouvido as chufas que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo, porque
tudo lhe perdoaria" (MPBC, p. 508).

Machado apresenta Lobo Neves como um homem que, em virtude do medo de ser publicamente ridicularizado, não consegue
reagir à traição da mulher, aceita o que o destino lhe impôs. Isto fez com que as preocupações de Brás fossem aos poucos
diminuindo. Como assinalava Freud, enquanto tudo corre bem com um homem, a sua consciência é lenitiva e permite que o
ego faça todo o tipo de coisas. Entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém, ele busca sua alma, reconhece sua
pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência, impõe-se abstinência e se castiga com penitências. Curva-se ante o
superego, o destino e o agente parental. Entretanto, o superego, que fustiga o ego pecador e fica à espreita para poder
castigá-lo de uma forma exemplar tão logo seja possível, ao que parece não se manifestou muito claramente, produ ziu apenas
uma certa ansiedade nos amantes. Para Brás, o fim do romance com Virgília apenas provoca uma sensação de perda: "a
partida de Virgília deu-me uma amostra da viuvez" (MPBC, p. 520). No entanto, ao que parece, não foi um luto penosamente
elaborado.

Há um comentário que não pode deixar de ser feito, pois denota de forma clara, o quanto Machado conseguia, através de uma
forma. extremamente concisa, mostrar as diferenças nesse tipo de romance.

"E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de indiscretas, e não quero acabar o
livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou
negavam a custo, de um modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam aos
Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a mulher (salva a hipótese do capítulo CI e
outras) entrega-se por amor, ou seja o amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por
28
exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o homem, - falo do homem de
uma sociedade culta e elegante, - o homem conjuga sua vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre
aos casos defesos), a mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de
dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem, sentindo-se causa da infração e vencedor
de outro homem, fica legitimamente orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, - essa
boa fatuidade, que a transpiração luminosa do mérito" (MPBC, p. 531-2).

Machado, por já estar com uma acentuada percepção do funcionamento do psiquismo humano, não valorizou a questão da
culpa, pelo contrário, tentou fazer, não um juízo crítico, mas um juízo compreensivo do triângulo amoroso. Ele mostra, na
passagem citada acima, a diferença entre homens e mulheres na questão do amor adulterino. O homem junta ao amor a
necessidade de ser admirado por suas conquistas. A mulher toma-se um troféu que, por vezes declaradamente, e por outras
mais timidamente, gosta de, vaidosamente, exibir. As suas conquistas são para serem apreciadas, o que lhe aumenta a
importância como macho ao produzir não só a admiração, como a inveja dos outros homens. Conforme assinala Machado, os
homens nem sempre primam pela discrição. A mulher, quando ama um homem que não é o seu, não pode declarar de público
e sofre mais por isso. Sofre não só pela depreciação social a que fica sujeita, bem como seu superego a açoita por transgredir
as normas societárias. Fica estabelecida uma guerra entre a repressão e o desejo. Uma guerra, visto que o adultério é uma
ação que obedece a dois desejos: o de amar e o de contestar; pois, em termos freudianos, teríamos uma fusão da pulsão
erótica com a pulsão tanática. Sou livre para amar quem quero, mesmo contra as ordens daqueles que fazem as leis - pais e
maridos, no entanto essa liberdade no amor vai, através da repressão, produzir sanções, sejam internas, do seu mundo
psíquico, sejam da sociedade.

Machado não se ateve às questões morais, pelo contrário, critica-as por todo o texto. Ele torna-se importante, neste final, pela
agudeza da percepção dos aspectos da subjetividade do ser. Faz sobre o homem um juízo compreensivo, em detrimento de
um juízo crítico.

6.2 - MARCELA, uma dama espanhola

"... mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim os olhos cobiçosos. De todas
porém a que me cativou logo foi uma... não sei se diga; este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é
castíssimo. Mas vá lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a linda
Marcela, como lhe chamavam os rapazes do tempo. ( ... ) Marcela não possuía a inocência rústica, e mal chegava a
entender a moral do código. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que
não permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de
rapazes. ( ... ) um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se acha nas mulheres puras"
(MPBC, p. 433).

Em 1910, Freud, em Um tipo de escolha de objeto feita pelos homens, afirmou que a respeitabilidade e a pureza são atributos
maternos, são qualidades do objeto interditado.

" ... a mulher casta e de reputação irrepreensível nunca exerce atração que a possa levar à condição de objeto amoroso,
mas apenas a mulher que é, de uma ou outra forma, sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão
postas em dúvida" (p. 150).

Explicitando melhor: a qualidade do respeitável, do puro, é uma qualidade que o ser humano oferece a sua instância
superegóica, visando disfarçar e negar o incontrolável desejo que o objeto materno lhe proporciona. A paixão arrebatadora
pelo ser maternal necessita de uma sublimação, sendo necessário dar outro destino a essa pulsão. O desejo intenso sofre uma
repressão, impossibilita totalmente o incesto, mantendo a libido que se fixou nesse objeto primário, inconsciente. Novas
fantasias são assim erigidas, dirigindo as cargas libidinais a objetos substitutos. O dito popular de que a mulher deve ser uma
prostituta na cama é ilustrativo dessa cisão a ser feita, visando a se poder usufruir do sexo sem o fantasma do desejo pela
mãe.

Segundo Nickie Roberts, as prostitutas são mulheres interessantes e "foram as primeiras a dizer "Não" ao domínio patriarcal"
(p. 17). As hipóteses de Roberts são consubstanciadas em sua própria experiência como prostituta, bem como em fartas
referências, pelas quais pretende demonstrar que uma abordagem imediata e simplista sobre o tema não pode dar conta de
toda a sua significação para a sociedade. Não é preciso dizer que a proposta maniqueísta de uma divisão entre honestas e
desonestas é muito anterior às Contribuições à psicologia do amor (1910) de Freud. O amor à prostituta em evidente
oposição ao amor edípico interditado é algo presente desde tempos remotos. O código de Lipit-Ishtar, existente na Suméria
em 2000 a.C., já preconizava uma clara distinção entre a esposa e a prostituta, recomendando explicitamente, entre outras
regras, que: "enquanto a esposa viver, a prostituta não deverá morar na casa junto com a esposa" (Roberts, p. 27). A crescente
influência do pensamento religioso na sociedade, seu envolvimento com as práticas políticas, fez com que a divisão fosse
sendo cada vez mais acentuada. O casamento de modelo patriarcal, no qual a mulher tornava-se propriedade privada do
homem, contribuía para afastar do cenário doméstico essas mulheres sem dono. As esposas, mulheres domesticadas,
controladas e abusadas sexualmente, não tinham direito a reivindicar um pleno gozo sexual caso o marido fosse impotente - e
não era incomum a sífilis que a provocava. Ela teria que se contentar, e de forma muito disfarçada, com a masturbação, sendo
29
vista como perfeitamente saudável uma completa abstinência sexual. Ou teria que sublimar a pulsão sexual através da
dedicação aos filhos, à igreja, aos pobres, como regra. Impensável seria a escolha de um outro parceiro; aceitava -se, muito a
contragosto, um outro casamento.

Contudo, nunca é demais lembrar que, mesmo em nossa cultura cosmopolita do século XX, há bem pouco tempo, por volta
dos anos cinqüenta, as escolas religiosas das grandes capitais brasileiras não aceitavam filhos de casais desquitados. Como
sempre, o peso maior recaía sobre a mulher desquitada. Esta tornava-se o símbolo da ameaça sexual, sendo sua entrada
vetada em lares distintos, honestos e católicos.

Aos homens era permitido, caso tivessem uma esposa frígida ou se sentissem entediados, recorrer às relações sexuais com
prostitutas. Estas sempre ficavam, no discurso masculino, numa posição desqualificada. No entanto, por outro lado, eram
mulheres que, pelos mais diversos motivos, não haviam se submetido à autoridade patriarcal, não haviam se rendido à
domesticação. Apesar de, no discurso masculino, elas se apresentarem rebaixadas e sem nenhum valor, ao mesmo tempo,
geram uma ameaça exatamente por terem contestado as normas vigentes. Ou seja, elas passam, no imaginário masculino, a
ser um objeto desejado e temido.

Entretanto, num exame mais profundo do psiquismo dessas mulheres que se dedicam à prostituição, percebe-se que a grande
maioria é originária de classes que não tiveram oportunidades de acesso aos bens da cultura e, como tal, poucas são as
revolucionárias que apregoa Roberts. A maioria quer um marido, um lar e filhos - aspira a ser aceita como esposa e honesta,
sair da dita (pelos homens) vida fácil.

A prostituição parece ser mais uma forma de se submeter às exigências de uma sociedade machista e exploradora, que
encontra nas mulheres o barro com que molda um brinquedo para os homens. Conforme disse Peter Gay, durante o século
XIX a prostituição estava presente em quase todos os lugares, nas ruas, nos cafés, nos teatros - "o sexo venal era uma
presença conspícua e perturbadora" (Gay, Peter. 1986, p. 305). Naquele tempo, contudo, a prostituição era uma atividade que
envolvia uma grande parcela de fantasia, alimentando um imaginário social em que predominavam, no chamado demi-monde,
fantasias de grandes prostitutas, maravilhosas mulheres que ganhavam dinheiro fácil junto a príncipes e banqueiros. Estas
grandes horizontales de fato existiam, contudo sua carreira não era tão cintilante quanto preconizavam os comentários da
época. Esses discursos eram formas disfarçadas de se apresentar a questão: na verdade, predominava uma classe de mulheres
que havia iniciado sua vida de prostituição por volta dos quatorze anos, após a menarca. Um negócio que oferecia um largo
espectro de atividades, para os mais diferentes gostos e bolsos. No entanto, infelizmente, como disseram G. S. Rousseau e
Roy Porter (1987), havia aspectos que sempre estavam presentes nesse tipo de mundo: bebedeiras, crimes, cafetões,
ambientes inseguros, enfim, perigos de todas as ordens.

Marcela está mais para uma cortesã de luxo do que para uma prostituta de bordel, não sofre as agruras de uma vida em que a
tônica é uma série de sofrimentos: degradação psíquica, prisões, alcoolismo, doenças venéreas, abortos, filhos indesejáveis e
morte prematura. Tudo isso é muito diferente do tipo de prostituta apresentada pela literatura machadiana. Talvez Machado a
tenha assim colocado em virtude não só do contexto de classe média alta em que se situa Brás Cubas, como também porque
se imagina que não era freqüentador de bordéis. Conforme comentou Ingrit Stein (1984), o número de mulheres marginali-
zadas nos romances de Machado é pequeno, estando presentes, de forma secundária, nos cinco primeiros romances. A vida de
Marcela não se parece muito com a vida da maioria das prostitutas no Rio de Janeiro em 1822, onde grande parte não tinha
aposentos para levar os clientes, utilizava a hospedaria mais próxima ou a rua mesmo. Marcela vivia muito bem:

"A casa onde morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de jacarandá lavrado, e todas as
demais alfaias, espelhos, jarras, baixela, - uma linda baixela da índia, que lhe havia dado um desembargador. Baixela
do diabo, deste-me grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava o tédio que me
faziam esses e outros despojos de seus amores de antanho" (MPBC, p. 435).

Conforme afirmou ainda o historiador Peter Gay, no decorrer do século XVIII, a prostituta teve uma ascensão social, um
novo papel na sociedade, em virtude de uma reorganização dos papéis masculino e feminino quanto aos modelos de
casamento e de criação dos filhos, bem como também devido ao surgimento de cidades com mais de 500 mil habitantes. As
mulheres casadas que, inicialmente, "eram consideradas prostitutas em potencial" (p. 99) e necessitavam ser vigiadas, foram
deixando de sê-lo, ou seja, este papel social da mulher começou a ganhar novos contornos. Alia-se o fato de que algumas
moças solteiras começaram a ir para as ruas trabalhar como prostitutas. Muitas moças tiradas das ruas de Londres pelos juízes
eram órfãs, filhas de pobres e que se iniciaram entre 12 e 14 anos, muitas ficando grávidas ou doentes, devido aos tristes
efeitos da prostituição.

Não se pode deixar de associar ao tema da prostituição um dos maiores fantasmas do mundo dos homens - a impotência. Em
suas Contribuições à psicologia do amor, Freud (1910) assinalou que a impotência psíquica é um sintoma decorrente da
impossibilidade de se combinarem as correntes afetiva e sexual no amor, devido à pregnância das fantasias incestuosas frente
ao objeto do desejo atual. Essas fantasias, resultantes de severas fixações infantis e da realidade do tabu do incesto, são uma
"condição universal da civilização e não uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos" (p. 167). Contudo, se todos os
homens estão condenados a este sintoma, a impotência, que fala de uma permanente ameaça de castração, sabemos que
alguns sucumbem de forma muito mais ruidosa e perturbadora que outros. Devido à intensidade das fantasias, não puderam
30
encontrar uma força egóica suficientemente contendora para mantê-las, pelo menos, a maior parte do tempo, afastadas da
consciência, ou melhor, da pré-consciência, já que a sua ação não é assim tão clara. Ele fica impotente quando frente ao
objeto, algo o remete ao passado, fazendo-o retornar a fantasias que deveriam ter permanecido inconscientes. Fantasias que
surgem em virtude de algum enganchamento do objeto do desejo atual no objeto arcaico incestuoso.

"... o estranho malogro, demonstrado na impotência psíquica, faz seu aparecimento sempre que um objeto, que foi
escolhido com a finalidade de evitar o incesto, relembra o objeto proibido através de alguma característica,
freqüentemente imperceptível" (p. 166).

Isso ocorre com aqueles que, quando amam, não podem desejar, e quando desejam, não amam - são aqueles que levam muito
longe a neurose do amor à prostituta. Amar as prostitutas é mais seguro, dizem os homens ao imaginarem estar protegendo a
instituição do matrimônio e a família. Elas nada exigem, paga-se e terminou; contudo, não se dão conta de que a única e
importante proteção que oferecem as prostitutas é ao desejo incestuoso.

Brás Cubas apaixonou-se, ainda jovem, por Marcela, uma prostituta a quem o pai ajudava a sustentar, numa clara
condescendência para com o filho homem,

"... Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo.
Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repressão, sem demora, sem
frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também" (MPBC, p. 435).

Machado nos fala de uma condescendência, contudo os gastos desmedidos poderiam denunciar mais que um estouvamento
juvenil, poderiam comprometer o nome da família numa ligação apaixonada e duradoura, todavia, moralmente indesejável -
"Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar pelo nome dos seus?" (MPBC, p. 437). Podiam-se, na burguesia de Brás
Cubas, ter prostitutas, manter-se numa vida de rapaz solteiro. Conforme assinala Marilena Chauí, o pai de família dos anos
20, da alta burguesia, solucionava, muitas vezes, o problema da iniciação sexual dos seus filhos homens, contratando uma
preceptora alemã para, cuidadosamente, e de "modo higiênico, afetuoso, hábil, lento, gradual e seguro" (Chauí, M., 1984, p.
81), iniciá-lo nas delícias do sexo. Entretanto, não se podiam permitir, e o pai o fez voltar à realidade, exibições narcísicas de
poder com o dinheiro paterno.

"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai logo que teve a aragem dos onze
contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para
homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: - Gatuno, sim, senhor; não é outra
cousa um filho que me faz isto..." (MPBC, p. 437).
Extravagâncias eram aceitas, mas até certo ponto, porque essas extravagâncias financeiras podiam ser indícios de paixões
juvenis perigosas, indesejáveis, inconseqüentes. "Toda a natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo" (MPBC, p.
438). Sabemos que jovens apaixonados, costumeiramente, não avaliam a situação com critérios sensatos. Necessitam criar a
ilusão de serem amados, imaginam-se amados com a mesma intensidade juvenil com que amam. Negam o numerário
despendido, através do seu protesto viril, nos grandiosos presentes que oferecem à suas amadas em seus romances, como nos
mostra Machado.

"Certo é que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade; mas não é menos certo que uma dama bonita pode
muito bem amar os gregos e seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos, mas
amava-me" (MPBC, p. 439).

Estas paixões adolescentes também podem muitas vezes levar a soluções exasperadas, inflacionando neste quadro
tragicômico o lado trágico.

"Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma idéia fixa... Malditas idéias fixas!
A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela" (MPBC, p. 439).

As políticas eugênicas do século XIX, em razão principalmente da sífilis, levaram, no entanto, a uma associação entre
prostituição e doença - a prostituta era sempre uma mulher cheia de doenças. Émile Zola (s/d) encerra seu romance Naná com
uma descrição que nos mostra o quanto essa associação era dominante no pensamento da sociedade novecentista: "os vírus
colhidos por ela nas sarjetas, nos contatos malsãos que suportara, o fermento com que envenenara um povo, lhe subiam ao
rosto e lhe apodreciam a beleza" (p. 347). Machado, homem do seu tempo, socialmente puritano, também não fugiu à regra, e
Marcela aparece carcomida pela varíola e pela vida libertina que havia levado. Apesar de ser um crítico da sociedade, ele não
encontrou outra saída para a personagem se não a do castigo no corpo, ou seja, o corpo que havia servido voluptuosamente
aos homens agora era objeto de repugnância.

"Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada urna mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à
primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via -se que
31
fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas
tinha sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encamas, declives e aclives, e davam uma sensação
de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mu-
dou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais da loja.
Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-los-eis, pósteros? essa mulher era Marcela" (MPBC, p.
458).

E, como que para fechar o capítulo referente a urna prostituta em fim de carreira, Machado, para que o leitor não se envolva
em um clima piedoso a respeito da personagem, não fique compungido frente à sorte de Marcela, ao tornar conhecimento do
mal-estar de Brás Cubas diante do velha paixão juvenil - "eu me sentia pungido e aborrecido ( ... ) e ansiava por me ver fora
daquela casa" (MPBC, p. 459), deu um toque final enfatizando não mais o pecado da luxúria, mas o da cobiça.

"Disse ela que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que mais tarde ou mais cedo era
natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou
uma metáfora delicada e transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que
tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor
daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois" (MPBC, p. 459).

Marcela "mal chegava a entender a moral do código" (MPBC, p. 433). Código criado pelos homens que permitiam que se
estabelecesse, de forma ambígua, a prostituição. Numa sociedade que valorizava o sexo procriativo vinculado à família,
necessitava-se de mulheres que pudessem oferecer prazer sexual aos jovens solteiros e aos casados insatisfeitos.

"Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações sexuais fora do casamento) é socialmente
condenada. Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até mesmo estimulada nas sociedades que defendem a virgindade
das meninas púberes solteiras, de um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frustrações sexuais dos jovens
solteiros e dos homens que se consideram mal casados ou que foram educados para jamais confundirem suas honestas
esposas com amantes voluptuosas e desavergonhadas" (Chauí, M, 1984, p. 80).

Freud, em 1910, trouxe uma interessante contribuição para que se pudesse entender um pouco mais a respeito das escolhas de
objeto que fazem os homens, notadamente no que diz respeito ao que chamou o amor à prostituta. Sabemos que,
conscientemente, os adultos pensam em suas mães como pessoas de conduta ilibada, de moral inatacável. Em conseqüência
disso, uma das mais desagradáveis ofensas é ser chamado por outrem de filho da puta. No homem, o seu mundo interno
também por vezes o ataca, ao colocar em sua fantasia algum aspecto luxurioso de sua mãe. Contudo, Freud irá investigar o
desenvolvimento desses dois complexos, a relação inconsciente que está presente, de forma constante, na fantasia do homem:
o da mãe e o da prostituta, que estão em oposição inclusiva. Desde a pré-puberdade, quando começa a receber informações
sexuais, se bem que da forma mais crua e desordenada, um menino se rebela contra a idéia de que seus pais fazem sexo. Este
é um tema muitas vezes insuportável, já que o lança de forma muito incômoda em seu próprio desejo incestuoso - e sabemos
que nada é mais terrível que este tipo de desejo. A solução dada por Sófocles a seu personagem é a daquele que se inflige um
castigo, se cegar, em virtude da prática incestuosa, algo tão hediondo! Ao ser iniciado nas conversas e piadas de cunho
sexual, o menino torna conhecimento de que existem mulheres que vivem do sexo, o que lhe permite direcionar todo o seu
mundo sexual fantasioso para este tipo de possibilidade, fazendo com que, em oposição ao discurso adulto corrente, ele as
veja como desejadas e perigosas, ou, como disse Freud:

"... tão logo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes ( ... ) as considera com um misto de desejo e
horror. Quando, depois disto, já não pode mais nutrir qualquer dúvida que tornem seus pais uma exceção às normas
universais e odiosas da atividade sexual, diz-se a si próprio, com lógica cínica, que a diferença entre sua mãe e uma
prostituta não tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma coisa" (1910, p. 154).

Machado de Assis havia percebido, de forma inconsciente, o que Freud (1912) afirmava a respeito: a proibição da vida
erótica das mulheres é comparável à necessidade que têm os homens de depreciar seu objeto de escolha sexual - "...um corpo
esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se achara nas mulheres puras" (MPBC, p. 433) -, já que os desejos
pela mãe ao esbarrarem na lei da interdição o fazem, conscientemente e inconscientemente, estabelecer uma separação entre a
mãe e a prostituta. Lembremo-nos de que a mãe de Brás Cubas era "uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração,
assaz crédula, sinceramente piedosa" (MPBC, p. 428), nada denotando sensualidade - é para ser amada sem ser desejada.

No curso da vida erótica, o ser humano, em virtude do interdito incestuoso, deverá modificar seus desejos sexuais em relação
aos pais, transformando-os em sentimentos afetuosos. Na puberdade poderá surgir um deleite por mulheres a quem respeita,
no caso dos homens, mas que não o excitam, mostrando-se sequioso de sexo com as que não ama. Na esfera do amor,
verifica-se uma conjugação das correntes sensuais com as afetuosas, podendo-se medir a seriedade do amor pelo exame das
partes das pulsões sexuais, inibidas em seu objetivo. Nas questões de amor, a idealização do objeto estará sempre presente -
livre de toda crítica o objeto é puro, é desejado pelos valores espirituais que possui; a sensualidade fica, em muitos casos,
francamente escamoteada. A idealização do objeto aponta para uma conjugação do ego com o objeto.

Sabemos que o objeto materno é cindido exatamente porque está impregnado de um insuportável desejo. Pode-se então dizer
32
que o discurso machadiano, através de Brás Cubas, nada mais é do que uma denegação da sensualidade materna. Dividindo o
objeto do desejo, a imago materna fica preservada do inaceitável desejo, e ele pode deslocá-lo para mulheres, por vezes mais
velhas, com isso podendo desejá-las de forma ardorosa e sem limites.

Não podemos ser ingênuos e pensar que a prostituição é apenas uma invenção masculina. Ela é uma oportunidade a mais que
o homem encontra para purgar as sua fantasias edípicas. A prostituição está a serviço, de forma totalmente inconsciente, do
horror ao incesto. Uma situação resolutiva na medida em que produz, como afirma Freud (1910), um "contraste agudo entre a
mãe e a prostituta" (p. 153).

Conforme afirmou ainda o historiador Peter Gay, no decorrer do século XVIII, a prostituta teve uma ascensão social, um
novo papel na sociedade, em virtude de uma reorganização dos papéis masculino e feminino quanto aos modelos de
casamento e de criação dos filhos, bem como também devido ao surgimento de cidades com mais de 500 mil habitantes. As
mulheres casadas que, inicialmente, "eram consideradas prostitutas em potencial" (p. 99) e necessitavam ser vigiadas, foram
deixando de sê-lo, ou seja, este papel social da mulher começou a ganhar novos contornos. Alia-se o fato de que algumas
moças solteiras começaram a ir para as ruas trabalhar como prostitutas. Muitas moças tiradas das ruas de Londres pelos juizes
eram órfãs, filhas de pobres e que se iniciaram entre 12 e 14 anos, muitas ficando grávidas ou doentes, devido aos tristes
efeitos da prostituição.

Não se pode deixar de associar ao tema da prostituição um dos maiores fantasmas do mundo dos homens - a impotência. Em
suas Contribuições à psicologia do amor, Freud (1910) assinalou que a impotência psíquica é um sintoma decorrente da
impossibilidade de se combinarem as correntes afetiva e sexual no amor, devido à pregnância das fantasias incestuosas frente
ao objeto do desejo atual. Essas fantasias, resultantes de severas fixações infantis e da realidade do tabu do incesto, são uma
"condição universal da civilização e não uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos" (p. 167). Contudo, se todos os
homens estão condenados a este sintoma, a impotência, que fala de uma permanente ameaça de castração, sabemos que
alguns sucumbem de forma muito mais ruidosa e perturbadora que outros. Devido à intensidade das fantasias, não puderam
encontrar uma força egóica suficientemente contendora para mantê-las, pelo menos, a maior parte do tempo, afastadas da
consciência, ou melhor, da pré-consciência, já que a sua ação não é assim tão clara. Ele fica impotente quando frente ao
objeto, algo o remete ao passado, fazendo-o retomar a fantasias que deveriam ter permanecido inconscientes. Fantasias que
surgem em virtude de algum enganchamento do objeto do desejo atual no objeto arcaico incestuoso.

"... o estranho malogro, demonstrado na impotência psíquica, faz seu aparecimento sempre que um objeto, que foi
escolhido com a finalidade de evitar o incesto, relembra o objeto proibido através de alguma característica,
freqüentemente imperceptível" (p. 166).

Isso ocorre com aqueles que, quando amam, não podem desejar, quando desejam, não amam - são aqueles que levam muito
longe a neurose do amor à prostituta. Amar as prostitutas é mais seguro, dizem os homens ao imaginarem estar protegendo a
instituição do matrimônio e família. Elas nada exigem, paga-se e terminou; contudo, não se dão conta de que a única e
importante proteção que oferecem as prostitutas é ao desejo incestuoso.

Brás Cubas apaixonou-se, ainda jovem, por Marcela, uma prostituta a quem o pai ajudava a sustentar, numa clara
condescendência pai.. com o filho homem,

"... Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro, multiplicá-lo, inventá-lo.
Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o que eu lhe pedia, sem repressão, sem demora, sem
frieza; dizia a todos que eu era rapaz e que ele o fora também" (MPBC, p. 435).

Machado nos fala de uma condescendência, contudo os gastos desmedidos poderiam denunciar mais que um estouvamento
juvenil, poderiam comprometer o nome da família numa ligação apaixonada e duradoura, todavia, moralmente indesejável -
"Vês, peralta? é assim que um moço deve zelar pelo nome dos seus?" (MPBC, p. 437). Podiam-se, na burguesia de Brás
Cubas, ter prostitutas, manter-se numa vida de rapaz solteiro. Conforme assinala Marilena Chauí, o pai de família dos anos
20, da alta burguesia, solucionava, muitas vezes, o problema da iniciação sexual dos seus filhos homens, contratando uma
preceptora alemã para, cuidadosamente, e de "modo higiênico, afetuoso, hábil, lento, gradual e seguro" (Chauí, M., 1984, p.
81), iniciá-lo nas delícias do sexo. Entretanto, não se podiam permitir, e o pai o fez voltar à realidade, exibições narcísicas de
poder com o dinheiro paterno.

"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai logo que teve a aragem dos onze
contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso excedia as raias de um capricho juvenil.

- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente Coimbra; quero-te para
homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse um gesto de espanto: - Gatuno, sim, senhor; não é outra
cousa um filho que me faz isto..." (MPBC, p. 437).

Extravagâncias eram aceitas, mas até certo ponto, porque essas extravagâncias financeiras podiam ser indícios de paixões
juvenis perigosas, indesejáveis, inconseqüentes. "Toda a natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo" (MPBC, p.
33
438). Sabemos que jovens apaixonados, costumeiramente, não avaliam a situação com critérios sensatos. Necessitam criar a
ilusão de serem amados, imaginam-se amados com a mesma intensidade juvenil com que amam. Negam o numerário
despendido, através do seu protesto viril, nos grandiosos presentes que oferecem à suas arriadas em seus romances, como nos
mostra Machado.

"Certo é que os diamantes corrompiam-me um pouco a felicidade; mas não é menos certo que uma dama bonita
pode muito bem amar os gregos e seus presentes. E depois eu confiava na minha boa Marcela; podia ter defeitos,
mas amava-me" (MPBC, p. 439).

Estas paixões adolescentes também podem muitas vezes levar a soluções exasperadas, inflacionando neste quadro
tragicômico o lado trágico.

"Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma idéia rixa... Malditas idéias fixas!
A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o nome de Marcela" (MPBC, p. 439).

As políticas eugênicas do século XIX, em razão principalmente da sífilis, levaram, no entanto, a uma associação entre
prostituição e doença - a prostituta era sempre uma mulher cheia de doenças. Émile Zola (s/d) encerra seu romance Naná com
uma descrição que nos mostra o quanto essa associação era dominante no pensamento da sociedade novecentista: "os vírus
colhidos por ela nas sarjetas, nos contatos malsãos que suportara, o fermento com que envenenara um povo, lhe subiam ao
rosto e lhe apodreciam a beleza" (p. 347). Machado, homem do seu tempo, socialmente puritano, também não fugiu à regra, e
Marcela aparece carcomida pela varíola e pela vida libertina que havia levado. Apesar de ser um crítico da sociedade, ele não
encontrou outra saída par. personagem se não a do castigo no corpo, ou seja, o corpo que ha servido voluptuosamente aos
homens agora era objeto de repugnância

"Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e bexiguento não se destacava logo, à
primeira vista; mas logo que se destacava era um espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que
fora bonita, e não pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As bexigas
tinha sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas, declives e aclives, e davam uma
sensação de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante,
que mudou, entretanto, logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os portais
da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-los-eis, pósteros? essa mulher era Marcela"
(MPBC, p. 458).

E, como que para fechar o capítulo referente a uma prostituta em fim de carreira, Machado, para que o leitor não se envolva
em um clima piedoso a respeito da personagem, não fique compungido frente à sorte de Marcela, ao tomar conhecimento do
mal-estar de Brás Cubas diante do velha paixão juvenil - "eu me sentia pungido e aborrecido ( ... ) e ansiava por me ver fora
daquela casa" (MPBC, p. 459), deu um toque final enfatizando não mais o pecado da luxúria, mas o da cobiça.

"Disse ela que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que mais tarde ou mais cedo era
natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou
uma metáfora delicada e transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia), que
tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor
daquela existência; foi isso mesmo que me disseram depois" (MPBC, p."459).

Marcela "mal chegava a entender a moral do código" (MPBC, p. 433). Código criado pelos homens que permitiam que se
estabelecesse, de forma ambígua, a prostituição. Numa sociedade que valorizava o sexo procriativo vinculado à família,
necessitava-se de mulheres que pudessem oferecer prazer sexual aos jovens solteiros e aos casados insatisfeitos.

"Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações sexuais fora do casamento) é socialmente
condenada. Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até mesmo estimulada nas sociedades que defendem a virgindade
das meninas púberes solteiras, de um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frustrações sexuais dos
jovens solteiros e dos homens que se consideram mal casados ou que foram educados para jamais confundirem suas
honestas esposas com amantes voluptuosas e desavergonhadas" (Chauí, M, 1984, p. 80).

Freud, em 1910, trouxe uma interessante contribuição para que se pudesse entender um pouco mais a respeito das escolhas de
objeto que fazem os homens, notadamente no que diz respeito ao que chamou o amor à prostituta. Sabemos que,
conscientemente, os adultos pensam em suas mães como pessoas de conduta ilibada, de moral inatacável. Em conseqüência
disso, uma das mais desagradáveis ofensas é ser chamado por outrem de filho da puta. No homem, o seu mundo interno
também por vezes o ataca, ao colocar em sua fantasia algum aspecto luxurioso de sua mãe. Contudo, Freud irá investigar o
desenvolvimento desses dois complexos, a relação inconsciente que está presente, de forma constante, na fantasia do homem:
o da mãe e o da prostituta, que estão em oposição inclusiva. Desde a pré-puberdade, quando começa a receber informações
sexuais, se bem que da forma mais crua e desordenada, um menino se rebela contra a idéia de que seus pais fazem sexo. Este
é um tema muitas vezes insuportável, já que o lança de forma muito incômoda em seu próprio desejo incestuoso - e sabemos
que nada é mais terrível que este tipo de desejo. A solução dada por Sófocles a seu personagem é a daquele que se inflige um
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castigo, se cegar, em virtude da prática incestuosa, algo tão hediondo! Ao ser iniciado nas conversas e piadas de cunho
sexual, o menino toma conhecimento de que existem mulheres que vivem do sexo, o que lhe permite direcionar todo o seu
mundo sexual fantasioso para este tipo de possibilidade, fazendo com que, em oposição ao discurso adulto corrente, ele as
veja como desejadas e perigosas, ou, como disse Freud:

"... tão fogo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes ( ... ) as considera com um misto de desejo e
horror. Quando, depois disto, já não pode mais nutrir qualquer dúvida que tomem seus pais uma exceção às normas
universais e odiosas da atividade sexual, diz-se a si próprio, com lógica cínica, que a diferença entre sua mãe e urna
prostituta não tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma coisa" (1910, p. 154).

Machado de Assis havia percebido, de forma inconsciente, o que Freud (1912) afirmava a respeito: a proibição da vida
erótica das mulheres é comparável à necessidade que têm os homens de depreciar seu objeto de escolha sexual . - "...um
corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se achara nas mulheres puras" (MPBC, p. 433) -, já que os
desejos pela mãe ao esbarrarem na lei da interdição o fazem. conscientemente e inconscientemente, estabelecer uma
separação entre a mãe e a prostituta. Lembremo-nos de que a mãe de Brás Cubas era "uma senhora fraca, de pouco cérebro e
muito coração, assaz crédula, sinceramente piedosa" (MPBC, p. 428), nada denotando sensualidade - é para ser amada sem
ser desejada.

No curso da vida erótica, o ser humano, em virtude do interdito incestuoso, deverá modificar seus desejos sexuais em relação
aos pais, transformando-os em sentimentos afetuosos. Na puberdade poderá surgir um deleite por mulheres a quem respeita,
no caso dos homens, mas que não o excitam, mostrando-se sequioso de sexo com as que não ama. Na esfera do amor,
verifica-se uma conjugação das correntes sensuais com as afetuosas, podendo-se medir a seriedade do amor pelo exame das
partes das pulsões sexuais, inibidas em seu objetivo. Nas questões de amor, a idealização do objeto estará sempre presente -
livre de toda crítica o objeto é puro, é desejado pelos valores espirituais que possui; a sensualidade fica, em muitos casos,
francamente escamoteada. A idealização do objeto aponta para uma conjugação do ego com o objeto.

Sabemos que o objeto materno é cindido exatamente porque está impregnado de um insuportável desejo. Pode-se então dizer
que o discurso machadiano, através de Brás Cubas, nada mais é do que uma denegação da sensualidade materna. Dividindo o
objeto do desejo, a imago materna fica preservada do inaceitável desejo, e ele pode deslocá-lo para mulheres, por vezes mais
velhas, com isso podendo desejá-las de forma ardorosa e sem limites.

Não podemos ser ingênuos e pensar que a prostituição é apenas uma invenção masculina. Ela é uma oportunidade a mais que
o homem encontra para purgar as sua fantasias edípicas. A prostituição está a serviço, de forma totalmente inconsciente, do
horror ao incesto. Uma situação resolutiva na medida em que produz, como afirma Freud (1910), um "contraste agudo entre a
mãe e a prostituta" (p. 153).

7. O Ego e os mecanismos de defesa

(Do Livro: Freud Básico, pensamentos psicanalíticos para o século XXI, Michael Kahn,
Editora Civilização Brasileira, 2003, pág. 159 .... )

Praticamente desde o começo de nossas vidas nos deparamos com conflitos inevitáveis. Existem impulsos imperiosos
demandando satisfação. Postado à frente deles, temos o mundo exterior, que ameaça de punição a tentativa de satisfazer
vários desses impulsos. Esse é o primeiro conflito, sendo, com diferentes disfarces, vitalício. Durante a infância, uma outra
força se desenvolve, e é preciso lidar com ela: o superego, a consciência, que ameaça punir com a culpa. A psicanálise é o
estudo desses conflitos e do modo como se lida com eles.

No quadro freudiano da vida mental, ... os impulsos se originam no id e o ego é aquela parte da personalidade encarregada de
manejar os conflitos entre o id, o mundo exterior e o superego. O ego tem de tentar nos manter longe do perigo, enquanto
busca conseguir que ao menos alguns dos impulsos sejam satisfeitos. Deve tentar manter a dor psíquica na intensidade
mínima. Acima de tudo, deve impedir que sejamos subjugados pelas três variedades de ansiedade: a realista, a moral e a
neurótica. Não é uma missão fácil de cumprir. A própria antecipação da satisfação de alguns desses impulsos evoca o
espectro da punição e, desse modo, gera muita ansiedade. Uma decisão consciente de privar-se do impulso, no entanto, pode
ser extremamente frustrante.

Freud deu o nome de mecanismos de defesa às muitas tentativas do ego de solucionar esses dilemas. Repetidamente, ele disse
que os mecanismos de defesa eram a pedra fundamental da teoria psicanalítica. Se os compreendêssemos, compreenderíamos
como a mente funciona. Embora ele tenha acrescentado que por meio disso compreenderíamos também a neurose, é
importante observar que nem Freud nem nenhum dos seus seguidores acreditavam que o emprego dos mecanismos de defesa
era necessariamente patológico. Pelo contrário, todos nós os utilizamos; não poderíamos levar a vida sem eles. Esses
mecanismos só se tornam um problema ao serem utilizados pelo ego de modo excessivo ou inflexível.

Observa-se corriqueiramente na medicina que o corpo algumas tenta encontrar alívio para uma doença ou ferimento com
excessivo entusiasmo e produz uma condição pior ainda. A afirmação de Freud de que os mecanismos de defesa são a chave
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da neurose contém a mesma implicação. Em uma tentativa de se proteger da ansiedade, as pessoas algumas vezes instauram
medidas defensivas excessivas que se tornam componentes pertinazes e gravemente onerosos do seu caráter.

Dos vários mecanismos de defesa, o primeiro que Freud focalizou foi o RECALQUE, ......Mais tarde, Freud acrescentou
outros mecanismos, mas nunca escreveu um relatório sistemático sobre eles. Essa tarefa coube à sua filha, Anna Freud, que
em 1936 publicou O ego e os mecanismos de defesa, até hoje um dos livros clássicos da psicanálise sobe o assunto. Dos
escritos do pai, ela selecionou uma lista de defesas e, em seguida, acrescentou outras; cogitaremos as mais importantes aqui.

Gostaria de propor uma definição de mecanismo de defesa que se afasta das definições clássicas.... Ela tem, espero, a
vantagem de ser simples: Um mecanismo de defesa é uma manipulação da percepção que tem como intuito proteger o
indivíduo da ansiedade. A percepção pode ser de episódios internos, tais como os sentimentos e impulsos, ou de episódios
exteriores, tais como os sentimentos dos outros ou as realidades do mundo.

1. Recalque - .... Recalcar significa excluir um impulso ou um sentimento da consciência. Portanto, é a manipulação da
percepção de um episódio interior.

O desejo erótico por uma pessoa proibida é perigoso. Se a pessoa que eu desejo é um progenitor ou filho ou irmão, ou talvez
(se me defino como heterossexual) uma pessoa do mesmo sexo, ter a consciência desse desejo me colocaria em risco de sentir
dolorosos sentimentos de culpa. Se eu revelasse o desejo incorreria em novo risco, o de ser humilhado ou punido. Se tenho
consciência do impulso e consigo mantê-lo inteiramente oculto, tenho de lidar não apenas com a culpa, mas também com a
frustração de uma forte necessidade que nunca pode ser satisfeita. Parece claro que para mim é uma vantagem não ter
consciência do meu desejo.

O mesmo é verdadeiro para os impulsos agressivos. Para muitos de nós, é difícil ter consciência dos sentimentos de raiva que
guardamos em relação a pessoas próximas. Par alguns de nós, é difícil aceitar sentimentos de raiva em relação a qualquer
pessoa. Assim como em relação aos sentimentos eróticos, parece melhor não estar ciente deles.

Essa opção está disponível; é a opção do recalque. Encontramos de novo nosso velho amigo, o vigia que toma conta da sala
de visitas da consciência. Ele examina o desejo que busca ser admitido na consciência e decide expulsá-lo, mantê-lo no hall
de entrada. Se de algum modo esse desejo consegue entrar na sala de visitas, ele o acompanha até a saída novamente. Na
linguagem da teoria dos mecanismos de defesa, o ego reconheceu essa dupla demanda do id:

- que o desejo seja reconhecido pela consciência e


- que seja satisfeito por meio de ação.

O ego sabe bem que, se qualquer dessas demandas for concedida, o superego atacará coma culpa. Ele também sabe que
provavelmente haverá respostas negativas do mundo exterior, se o desejo for revelado. Portanto, recalca o desejo, ou seja,
mantém-no longe da consciência, mantém-no aprisionado no inconsciente, e, ao fazer isso, protege-se da ansiedade, da
antecipação do desamparo diante do perigo........ Ao menos no caso da agressão, isso é uma vitória pirrônica. O superego não
será mitigado porque os sentimentos agressivos se tornaram inconscientes. No exemplo anterior, a percepção de um episódio
anterior (desejo) foi bloqueada. Ainda desejo a pessoa ou ainda quero magoá-la, mas esse desejo é agora inconsciente,
invisível, não mais percebido por mim....

... O recalque é indispensável. Os desejos incestuosos são um bom exemplo disso. Como poucos de nós estamos planejando
violar os tabus e arcar com as conseqüências, a consciência desses impulsos seria dolorosa, frustrante e provocaria ansiedade.
O mesmo pode ser dito a respeito de boa parte dos desejos eróticos e dos impulsos agressivos que sentimos. Se não os
recalcássemos de todo, sentir-nos-íamos oprimidos pela profusão de fantasias e impulsos que incidiriam sobre a consciência.

... A maioria de nós recalca mais do que seria desejável. Se não posso ter plena consciência dos meus sentimentos amorosos -
tanto dos afetuosos quanto dos passionais -, da minha jocosidade, da minha assertividade e da minha dor e tristeza, minha
vida fica truncada e distorcida. Embora o recalque seja indispensável quando aplicado aos impulsos apropriados em doses
apropriadas, quando excessivo, é a causa de graves problemas na vida.

Há uma importante lição sobre a criação dos filhos que pode ser tirada disso. A muitos de nós foi ensinado que havia não
apenas boas e más ações, mas bons e maus sentimentos também. São raros os pais que encorajam os filhos a fazerem uma
distinção entre sentimentos e comportamentos, apoiando o direito deles de sentir tudo que sentem, ao mesmo tempo em que
lhes ensinam que certos comportamentos são proibidos. O encorajamento dessa distinção, no entanto, seria um avanço, no
sentido de proteger a criança de um recalque excessivo em sua vida futura.

Sigmund e Anna Freud entendiam que o recalque era o mecanismo de defesa básico e o mais propenso a causar sérias
dificuldades neuróticas. Veremos que alguns dos outros podem ser muito destrutivos, se utilizados em excesso, mas em sua
maior parte fazem parte da vida mental normal. À medida que prosseguimos, consideraremos os mecanismos rotulados de
negação, projeção, formação reativa, identificação com o agressor, deslocamento, e voltando-se contra o self.
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2. Negação - O recalque é a manipulação da percepção de um episódio interno. O mecanismo da negação é a manipulação
mental de um episódio externo.

A negação significa que eu me protejo da ansiedade, deixando de perceber ou percebendo equivocadamente algo no mundo
exterior aos meus próprios pensamentos ou sentimentos. Assim que saímos da infância, a negação apresenta um problema
para o ego. Uma das missões do ego é o teste de realidade. Sobrevivemos graças à capacidade do ego de avaliar a realidade, e
é através dessa capacidade que maximizamos as nossas gratificações.

É o ego que nos lembra que, por mais que tenhamos prazer em dirigir rápido, a realidade é que podemos ser presos ou mortos
por causa de uma velocidade muito alta. Para o ego, o uso de um mecanismo de defesa que distorce a realidade, como, por
exemplo, achar que não existe perigo na alta velocidade, lhe apresenta um problema. Entretanto, mesmo o ego mais maduro e
flexível dá um jeito de, às vezes, fazer exatamente isso.

Um exemplo clássico de negação em nosso mundo contemporâneo é a persistente falta de disposição de amplas parcelas da
população de reconhecer conhecidos riscos à saúde, mais flagrantemente, o hábito de fumar. Para fumar sem um forte sen-
timento de ansiedade, é necessário encobrir a consciência do perigo.

No auge do impasse nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, todos os habitantes do planeta estavam sob per-
manente ameaça de uma catástrofe de proporções inimagináveis. Tenho a impressão de que, para todos, algum grau de
negação era necessário para viver sem uma ansiedade paralisante. A maioria das pessoas parecia ter conseguido uma boa
dose de negação. Mesmo os ativistas antinucleares precisavam negar de alguma forma, para continuar em atividade.

Jogadores contumazes empregam a negação, a um custo considerável. As chances de não ganhar uma das loterias que pagam
prêmios elevados são estarrecedoras. Tenho um amigo que vive falando de ganhar a loteria; quando alguém diz que não sabia
que ele jogava, ele diz: "Eu não jogo, mas tenho tanta chance de ganhar quanto as pessoas que jogam." Isso está muito
próximo da verdade, porém não há falta de fregueses para os bilhetes lotéricos. Jogadores envolvidos com máquinas caça-ní-
queis não poderiam continuar jogando se não negassem a alta
probabilidade desfavorável a eles. Mesmo os jogadores de dados, que enfrentam as probabilidades menos ruins de um cassi-
no, precisam negar a pequena chance que têm de sair vitoriosos ao final do jogo.

A maioria de nós utiliza a defesa da negação ao menos ocasionalmente. Certa vez, no meu trabalho, eu desejava muito uma
determinada atribuição, e, durante várias semanas, fui o principal candidato a ela. Um amigo meu, preocupado com a possibi-
lidade de uma reação negativa de minha parte quando a realidade fosse revelada, chamou-me de lado e disse, gentilmente,
que todos, menos eu, estavam percebendo que eu não tinha a menor chance - o meu supervisor vinha indicando isso. Eu não
tinha me permitido enxergar esses indícios,

Algumas vezes, empregamos a negação em nossos relacionamentos, quando, por exemplo, estamos motivados para não
enxergar que o nosso amor não é correspondido ou, caso contrário, quando o relacionamento é tão agradável que nos re-
cusamos; a enxergar que estamos nos envolvendo mais profundamente do que planejávamos.

A negação pode ser muito perigosa, como no caso do fumo. No entanto, às vezes pode ser adaptativa. Uma amiga minha
precisava fazer uma biópsia que, ela disse, poderia produzir um diagnóstico inofensivo ou catastrófico. A biópsia estava
marcada para dali a sete dias. Ela continuou fazendo o que tinha de fazer na semana, parecendo bastante animada. Comentei
com um culto psicólogo amigo nosso que estava preocupado com a negação dela, temendo que não estivesse preparada para a
catástrofe, caso esta de fato ocorresse. Ele me disse para deixá-la em paz e me dar por contente por. ela ter um ego
suficientemente forte para negar o perigo, quando não havia nada que pudesse fazer a respeito. Nunca me esqueci desse
conselho. Incidentalmente, a história teve um final feliz.

3. Projeção - O mecanismo de defesa com o qual manipulamos uma percepção interna e uma percepção externa é chamado
de projeção. A projeção refere-se a uma forma de proteção contra a ansiedade por meio do recalque de um sentimento e da
percepção equivocada desse sentimento em uma outra pessoa. Eu recalco a minha raiva e acho que você está com raiva de
mim. Recalco o meu desejo sexual e acho que você está me desejando.

Essa forma de projeção, incidentalmente, está sempre presente na homofobia. Eu recalco meus anseios homossexuais e
acredito que outro homem, talvez um que identifico como gay, está tentando me seduzir. É possível que muitas das acusações
políticas contra os homossexuais tenham suas raízes na projeção. Por exemplo, diz-se freqüentemente que não se deveria per-
mitir que homens homossexuais dessem aulas nos colégios ou fossem chefes de escoteiros, porque poderiam incentivar um
estilo de vida gay ou mesmo seduzir os meninos. Não há evidências para se afirmar isso, portanto a teoria da projeção leva a
deduzir que pode ser o acusador quem tema correr o risco de ser seduzido ou de seduzir. O leitor não terá dificuldade para
entender por que tantos soldados heterossexuais se opõem veementemente a que haja homossexuais em suas unidades. Freud
acreditava que a homofobia podia explicar muitos casos de paranóia.

Um dos meus clientes, Jay, estava fazendo um doutorado e havia tempo tentava terminar sua dissertação. Os meses se
passavam, e ele ia ficando cada vez mais enfurecido com os professores da banca, alegando que eles sempre conseguiam
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inventar um novo obstáculo para colocar no seu caminho. Por fim, concluiu que eles não queriam que ele obtivesse o titulo e
estavam conspirando para derrotá-lo, Ao longo de todo esse período, fui ficando cada vez mais convencido de que Jay estava
sabotando a dissertação e inconscientemente determinado a não terminá-la. Seu pai tinha sido um operário que fizera
verdadeiros sacrifícios para que o filho pudesse estudar e tinha morrido assim que ele começara os estudos na faculdade. Jay
falava com freqüência do amor que sentia pelo pai, de sua gratidão por ter sido encorajado a estudar e de sua tristeza pelo fato
de o pai não estar vivo para vê-lo concluir os estudos. Aos poucos, foi ficando claro que também se sentia muito culpado por
suplantar o pai. A culpa decorria de diversos fatores, já que a morte do pai deixara a mãe só para ele. Todo esse complexo de
emoções era tão assustador para Jay, que a solução que encontrou foi projetar nos professores seu senso de desvalor e o
desejo de fracassar.

Todos nós empregamos versões moderadas da projeção durante uma boa parte do tempo, e nunca nos damos conta disso, a
não ser quando ela afeta um relacionamento o suficiente para chamar a atenção para a sua existência. Não é incomum a pes -
soa projetar no parceiro a fantasia da infidelidade, e em seguida acusá-lo de infiel.

Quando eu estava na faculdade, um amigo meu que era muito íntimo do seu companheiro de quarto convenceu -se de maneira
inabalável de que sua noiva planejava ter um caso com ele, durante o tempo em que estaria fora da cidade. Em meio a uma
intensa confrontação, sua noiva, que era muito ponderada e requintada, lhe disse: "Alguém está 'com desejo de dormir com o
Ted, muito bem, e não sou eu." Meu amigo ficou completamente abalado. Mais tarde, ele me disse que até aquele momento
acreditara firmemente que sua heterossexualidade era absoluta. Durante um curso de psicologia, ao ouvir alguém falar da
teoria de que todas as pessoas eram inconscientemente bissexuais, ele pensara: "Menos eu."

Essa situação acabou se provando um problema brando (e muito instrutivo). A projeção levada aos extremos pode se trans -
formar num problema muito grave, que se deteriora até se tornar uma paranóia plenamente desenvolvida.

4. Formação reativa - A formação reativa é um mecanismo de defesa com o qual nos protegemos da ansiedade,
manipulando uma percepção interna. Significa perceber equivocadamente um sentimento como o seu oposto.
Freqüentemente, significa transformar amor em agressão ou agressão em amor.

Um dos episódios mais fascinantes e emocionantes da vida de Beethoven envolveu o seu sobrinho Karl e a sua cunhada
Johana, mãe de Karl. Beethoven desenvolveu um ódio irracional por Johana e uma firme convicção de que deveria resgatar
Karl de sua influência. Maynard Solomon, o biógrafo mais sofisticado do compositor, psicologicamente falando, levanta a
hipótese convincente de que o ódio obsessivo de Beethoven por Johana representava uma atração passional inconsciente por
ela.

Uma forma extremamente importante de formação reativa é confundir um desejo com um medo. É um modo comum de se
proteger da culpa decorrente de um desejo.

Minha cliente Marian estava preocupada com a segurança física do filho de dez anos. Mantinha-o sob rédea curta, restrin-
gindo sua liberdade consideravelmente, mais do que o faziam as mães dos seus amigos. Vivia ansiosa, achando que algo terrí-
vel lhe aconteceria. Antes do nascimento desse seu único filho, conforme seu relato, era uma pessoa animada e despreocupa -
da. Uma prolongada depressão pós-parto seguiu-se à morte do filho. Seria a primeira de uma série de depressões
dolorosamente severas. Ela mencionava freqüentemente o quanto amava esse menino e o quanto se preocupava com a sua
segurança. Passaram-se vários meses antes de ela ter condições de aceder em explorar a possibilidade de que também sentisse
raiva. E só muitos meses depois disso foi que ela me permitiu dizer-lhe: "Ambos sabemos que ele não desejava lhe fazer
nenhum mal. Apesar disso, me parece inevitável que de vez em quando você possa desejar que ele seja de algum modo
punido, por tê-la machucado tanto."...................

Os terapeutas psicodinâmicos aprenderam que, ao se confrontar com um medo do cliente que consideram enigmático, devem
refletir, ao menos para si, sobre que desejo aquele medo pode estar mascarando.

A forma oposta da formação reativa é a contrafobia, em que o indivíduo se protege de ter de confrontar um medo, perce-
bendo-o equivocadamente como um desejo.

Sou fascinado por cutelarias. Existe uma cadeia delas em Nova York, com amplas vitrines exibindo uma infindável cole ção
de facas brilhantes, canivetes e tesouras. Posso ficar horas diante de uma dessas vitrines, embora certamente não necessite de
mais uma faca militar suíça. O leitor que me acompanhou até aqui reconhecerá uma resposta contrafóbica a um caso grave de
ansiedade de castração.

5. Identificação com o agressor - Um dos conteúdos mais importantes do livro de Anna Freud é o capítulo sobre
identificação com o agressor. Embora Sigmund Freud tenha descrito o fenômeno em diversos contextos, nunca o isolou e
nomeou.

A confrontação com alguém mais poderoso que você, que tem intenções agressivas a seu respeito, reais ou supostas, pro voca
muita ansiedade. Possuir intenções agressivas em relação a essa pessoa poderosa também pode provocar ansiedade, devido ao
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medo da retaliação. A identificação com o agressor é uma defesa elaborada para proteger o sujeito contra a ansiedade de -
corrente do conflito com uma pessoa poderosa ou de estar à mercê dessa pessoa.

...A identificação com o agressor desempenha um papel importante na resolução do complexo de Édipo, na formação da
identidade do adolescente e na formação do superego.

A psicanalista Nancy MacWilliams assinalou que a análise que Anna Freud fez desse fenômeno teria sido mais clara se ela o
tivesse chamado de "introjeção do agressor", porque era claramente isso o que ela queria dizer. A identificação em geral
implica uma defesa menos automática e inconsciente do que a introjeção. As crianças se identificam com os pais, mentores e
colegas de maneiras muito óbvias: forma de vestir, atitudes e maneirismos. Também introjetam aspectos deles, como na reso-
lução do complexo de Édipo. A introjeção implica a suposição inconsciente de que existe em mim um determinado atributo
ou conjunto de atributos da outra pessoa. No entanto, manteremos a terminologia empregada por Anna Freud, já que esta tem
aparentemente um lugar permanente na linguagem.

A identificação com o agressor me permite aumentar o poder que percebo em mim por meio da introjeção de algum aspecto
da pessoa perigosa. Posso introjetar uma ou mais de suas características pessoais; posso introjetar a agressividade; posso
introjetar ambas. Na resolução edipiana clássica, eu me torno igual ao meu progenitor do mesmo sexo, ao me definir corno
heterossexual e partir em busca do meu próprio parceiro. É provável que eu também me torne igual àquele progenitor, de
urna série de outras maneiras. Uma parte importante da minha identidade é construída por meio dessa introjeção.

Ao utilizar essa defesa, posso também projetar. Projeto as minhas intenções agressivas na outra pessoa para me proteger
contra a ansiedade superegóica, ou seja, para me proteger da culpa. Desse modo, não percebo minha agressividade em relação
ao meu pai; percebo apenas que tenho medo dele. Como introjetei o seu poder, o medo é administrável. As crianças que
brincam de super-heróis onipotentes empregam uma versão cotidiana adaptada dessa defesa. Elas estão, é claro, identifican-
do-se com uma pessoa poderosa que as amedronta, freqüentemente com um progenitor.

Em seu livro sobre os campos de concentração nazistas, o psicanalista Bruno Bettlelheim, ele mesmo um sobrevivente do
holocausto, fornece um exemplo comovedor dessa defesa. Os prisioneiros judeus se identificavam com os guardas nazistas.
Eles imitavam a maneira de os guardas andarem e se apossavam de uma parte descartada do uniforme deles, como se fosse
um objeto de valor.

6. Deslocamento e voltando-se contra o self - Anna Freud conta de um paciente do sexo feminino cujas tentativas de lidar
com a ansiedade ilustram dois mecanismos de defesa que ainda não consideramos:

Quando criança, essa paciente sentia inveja e ciúme intenso do tratamento especial que acreditava ser concedido por sua mãe
aos irmãos dela. Isso se transformou eventualmente em uma impetuosa hostilidade contra a mãe, e ela se tornou uma crian ça
abertamente raivosa e desobediente. Mas seu amor pela mãe era igualmente forte, o que fez com que adquirisse um severo
conflito. Temia que a raiva lhe custasse o amor da mãe, de que ela tanto necessitava. Ao entrar no período de latência, sua
ansiedade e conflito se tornaram cada vez mais intensos. A primeira tentativa de dominar essa ansiedade foi através do
emprego do mecanismo de deslocamento. Para solucionar o problema da ambivalência, ela deslocou o ódio para uma série de
mulheres. Sempre havia em sua vida uma segunda mulher importante que ela odiava violentamente. Isso produzia uma culpa
menor do que o ódio que sentia pela mãe, mas não eliminava a culpa. Portanto, o deslocamento não era uma solução ade-
quada.

O seu ego agora recorreu a um segundo mecanismo [que Sigmund Freud chamou de voltando-se contra o self]: interiorizou o
ódio que até então estava relacionado exclusivamente a outras pessoas. Ela se torturava com auto-acusações e sentimentos de
inferioridade. Ao longo da adolescência e já adulta, fez tudo que podia para se colocar em desvantagem e prejudicar seus
interesses, sempre abdicando dos seus desejos em forma das demandas dos outros em relação a ela.

Como os outros mecanismos, o deslocamento e o voltar-se contra o self são comuns na vida cotidiana, mas relativamente
inofensivos, contanto que sejam brandos e de curta duração. O deslocamento é uma defesa tão comum, que adquiriu um
apelido geral: "Chutar o cachorro." Se o meu patrão me tratou mal, é claro que não posso manifestara raiva que sinto dele. O
que é mais sutil: posso não me permitir senti-la plenamente, porque isso tornaria a minha vida profissional desagradável e
poderia estimular uma culpa inconsciente relacionada à raiva que sinto de um progenitor. Nessas ocasiões, meus entes
queridos mais próximos me fornecem um amplo ancoradouro; eles são alvos mais seguros.

Minha cliente Victoria, quando criança, aprendeu que as conseqüências de expressar a raiva eram terríveis, freqüentemente
dias de tratamento silencioso. Ela cresceu praticamente sem poder até mesmo sentir raiva, quanto mais manifestá-la. Sua
resposta a qualquer dificuldade interpessoal era se sentir bastante deprimida. Demorou muito até ela ser capaz de perceber a
depressão como raiva voltada contra si mesma, o único lugar seguro para onde podia dirigi-la.

No começo deste capítulo, propus uma definição de mecanismo de defesa: uma manipulação da percepção, com o objetivo de
proteger a pessoa da ansiedade. A percepção pode ser de episódios interiores, tais como os sentimentos e impulsos, ou de
episódios exteriores, tais como os sentimentos dos outros ou as realidades do mundo. Afirmei que ela diferia das definições
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clássicas. Essa diferença dá margem a uma questão fascinante.

Anna Freud escreveu que "os processos defensivos, tais como o deslocamento... ou o voltar-se contra o self, afetam o próprio
processo pulsional; o recalque e a projeção apenas o impedem de ser percebido. O que ela queria dizer com isso era que a
criança, no exemplo anterior retirado do seu livro, deixou realmente de odiar a mãe e começou a odiar primeiro as outras
mulheres, e depois a si mesma. A mudança não foi meramente perceptiva. A definição que proponho infere que o ódio da
mãe ainda está presente inconscientemente, sendo simplesmente recalcado, ou seja, não percebido.

Não é incomum trabalhar com um cliente que deslocou seus anseios eróticos edipianos para outra pessoa, e então falseia a
evidência inconfundível de que o anseio original continua a existir, inconscientemente.

Quando Freud elaborou a sua segunda teoria da ansiedade, em 1926, ela exerceu um impacto na sua teoria das defesas. O
leitor lembrará que a teoria de 1926 descrevia a ansiedade como um sinal, um aviso de desamparo iminente diante do perigo.
As defesas têm a função de proteger o indivíduo dessa sensação de desamparo. A ansiedade adulta, como acreditava Freud,
era exacerbada por servir como um lembrete das situações traumáticas mais primitivas, quando intensidades traumáticas de
estimulação inundavam o recém-nascido, o bebê ou a criança. Portanto, uma função importante do mecanismo de defesa era
repelir essa estimulação traumática.

Um dos três tipos de ansiedade com os quais as defesas têm de contender é a ansiedade moral, o medo do superego. Isso traz
à tona uma das principais questões da psicologia psicodinâmica: o problema da culpa.

Outros mecanismos de defesa


(Fonte internet: http://psicanalisefreudiana.vilabol.uol.com.br/mecanismosdedefesa.html)

Atos falhos ou falhados - São aqueles que praticamos aparentemente sem querer e de modo inexplicável. É comum
cometermos enganos, trocarmos palavras, esquecermos objetos, etc. Os atos falhos são causados pelos impulsos reprimidos
que procuram se descarregar de qualquer modo, mesmo interferindo em nossas ações não submetidas à repressão.

Um exemplo de ato falho seria o seguinte caso: Um presidente da câmara austríaca, ao abrir a sessão, numa noite em que
todos temiam um escândalo, disse: “Senhores deputados, está encerrada a sessão” em vez de “está aberta a sessão”.
É freqüente perdermos objetos que nos foram dados por pessoas de quem não gostamos, enganar-nos com o itinerário ou
perdermos a condução quando vamos aborrecidos a algum lugar.

Racionalização - É o mecanismo pelo qual a nossa inteligência apresenta razões socialmente aceitáveis para nossas ações
que, na realidade, foram motivadas pelos impulsos do Id. Racionalizar é inventar pretextos, razões para desculpar, diante da
sociedade e de nós mesmos, os nossos atos cujos motivos reais não percebemos.

Por exemplo: um rapaz compra um carro, realizando uma despesa exagerada em relação a sua situação financeira e a suas
necessidades profissionais, porém tranqüiliza sua consciência e justifica-se diante dos outros afirmando que o carro vai ser
muito útil para seu trabalho e vai facilitar as atividades de suas irmãs e de seus pais já idosos. A finalidade da racionalização é
manter o auto-respeito e reduzir as tensões resultantes da frustração e dos sentimentos de culpa.

Conversão – é a transformação de conflitos emocionais em sintomas físicos. Por exemplo, os “tiques” em crianças, que
acontecem sem se perceber, podem ser sintomas de problemas emocionais

Regressão – é o processo psíquico em que o Ego recua, fugindo de situações conflitivas atuais, para um estágio anterior. É o
caso de alguém que depois de repetidas frustrações na área sexual, regrida, para obter satisfações, à fase oral, passando a
comer em excesso.

Isolamento – é um processo psíquico típico da neurose obsessiva, que consiste em isolar um comportamento ou um
pensamento de tal maneira que as suas ligações com os outros pensamentos, ou com o autoconhecimento, ficam
absolutamente interrompidas, já que foram (os pensamentos, os comportamentos), completamente excluídos do consciente.
Certos doentes defendem-se contra uma idéia, uma impressão, uma ação, isolando-as do contexto. Ele se manifesta inclusive
no tratamento psicanalítico. Um meio de evidenciá-lo é através da associação livre.

Substituição - Processo pelo qual um objeto valorizado emocionalmente, mas que não pode ser possuído, é
inconscientemente substituído por outro, que geralmente se assemelha ao proibido..

Texto VII - Destinos da sexualidade na era tecnológica

(Trechos de um workshop com a presença da psicanalista Maria Rita Kehl – psicanalista lacaniana)
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Ciro - Para discutir os temas que vinculam sexualidade à sociedade tecnológica, o Centro de Estudos e Pesquisas em Novas
Tecnologias, Comunicação e Cultura tem hoje como convidada Maria Rita Kehl, psicanalista e ensaísta bastante conhecida
do público brasileiro.......

Mulher e psicanálise hoje

Maria Rita Kehl - (.......) Minha tese é a de que a histérica que chega ao consultório freudiano, se a considerarmos como
fenômeno social e não como fenômeno clínico, é uma mulher em crise com os padrões de feminilidade do final do século
XIX, com os padrões vitorianos de feminilidade, vamos dizer assim. A histérica seria um sintoma, não só no sentido do
sintoma neurótico individual, mas uma espécie de sintoma social, de que as mudanças promovidas na sociedade, no sistema
familiar - as possibilidades que se abrem para que a mulher possa sair do ambiente doméstico, as alternativas que surgem
com o começo da ascensão de uma nova classe, a burguesia -, colocam a mulher européia do século XIX em crise com aquilo
que teriam sido os padrões de feminilidade. Estes, até então, pressupunham para a sexualidade da mulher um destino muito
limitado (não vou dizer recalcado, mas reprimido), visto que a sociedade condicionava o início da vida sexual ao casamento,
confinando a mulher em geral a esta instituição, a não ser em caso de transgressões, sempre mais perigosas para a mulher.

A histérica seria uma espécie de sintoma social de que todas as alternativas que surgem com o começo da ascensão de uma
nova classe, a burguesia, colocam a mulher européia do século XIX em crise com aquilo que teriam sido os padrões de
feminilidade.
A mulher vivia em função de uma dependência paterna que se deslocava para uma fixação no marido, sendo que
praticamente inexistia a possibilidade de sublimar quaisquer insatisfações ou os excessos da sexualidade. O homem, além de
ter a alternativa de uma vida sexual mais diversificada do que a que o casamento permite, tem uma série de possibilidades
sublimatórias oferecidas, no final do século XIX, por sua condição social. Ele tem acesso à cultura, tem condições de
sublimações em sociedade, no trabalho político, social.

A mulher permanece incapacitada de realizar esta sublimação, pois a vida doméstica oferece poucas possibilidades. O acesso
à cultura e à vida pública mantém-se bastante limitado e ela tem de se satisfazer com a sexualidade que o casamento oferece e
jogar um pouco no escuro, pois ao se casar virgem não sabia o que poderia suceder. É evidente que isto é uma caricatura mas,
de qualquer maneira, o que resta a esta mulher como identidade social? Ela é mãe. Discuto este aforismo lacaniano, o de que
a mulher não existe, quando Lacan afirma que a mulher só está inscrita no inconsciente como mãe . Não existe inscrição para
o feminino, já que este está identificado à falta. Em termos lógicos, tendo a concordar, mas na prática prefiro outra hipótese, a
que levantou Bento Prado há alguns anos, em um seminário da Unesp, em Araraquara, que achei tão boa que até hoje estou
tentando desenvolver. Ele dizia: "talvez a mulher não exista, por não ter, historicamente, se inscrito na cultura a não ser como
mãe." Ou seja, o homem está inscrito na cultura não só como FALO, no sentido de símbolo sexual, mas como obra, trabalho,
realização e civilização. A mulher só está inscrita como mãe. Ela não existe, não por não ter o falo, mas por não ter a FALA.

Ficamos brincando com essa idéia de falo e de fala, com a hipótese de que a mulher não existe até o século XIX por não ter o
falo da fala e não o falo do homem, que realmente não deveria ter. A idéia da qual parto... é a de que Freud estuda uma
mulher em crise com a feminilidade, este é seu sintoma e seu sofrimento. Utilizo freqüentemente o paradigma de Emma
Bovary para tentar compreender quem é essa mulher do século XIX. Por uma coincidência muito interessante, Emma Bovary
nasce literariamente, ou seja, começa a ser publicada na Revue de Paris, no ano em que Freud nasce. São contemporâneos.
Como dizia Freud, o artista antecipa o cientista, tem antenas que captam fenômenos que o cientista demora a entender.
Flaubert cria Emma Bovary quarenta anos antes de Freud inventar a sua histérica e mesmo assim estamos diante da mesma
mulher. Com isso, não quero clinicar sobre Emma Bovary, afirmando que ela é uma histérica. Quero dizer: a histérica é uma
Emma Bovary. A histérica é aquela mulher que deseja um destino para o qual não fora preparada, sendo que a própria
mudança social que está vivenciando anuncia esta possibilidade. No caso da personagem Bovary, como pode ela trilhar este
novo caminho, se está destinada ao casamento? Ela só poderá cumprir um destino diferente daquele oferecido por seu
pequeno casamento de província através de outro casamento ou de uma aventura amorosa. E é muito interessante considerar-
se delirante essa personagem. Acompanhando as cartas de Flaubert, quando está escrevendo Madame Bovary - ele está
sempre escrevendo cartas, é um missivista incansável -, notamos a afirmação de que o burguês é um delirante. E qual o
delírio do burguês? Mudar de vida, subir na vida, alterando seu destino. Hoje, este é um delírio compartilhado, 150 anos
depois de Flaubert e de Emma Bovary. Não sei se Flaubert estava certo ou se nós o estamos. Mas a idéia de que é possível
mudar de vida, não só através de um amante, mas pelos nossos próprios recursos, é um delírio hoje compartilhado. Vivemos
em uma sociedade burguesa absolutamente estabelecida, na qual isto não é algo que cause estranhamento, como ocorria com
Flaubert em 1856. A idéia de que é possível mudar de vida, não só através de um amante, mas pelos nossos próprios recursos,
é um delírio hoje compartilhado. Vivemos em uma sociedade burguesa absolutamente estabelecida, na qual isto não é algo
que cause estranhamento.

Me chama a atenção Flaubert querer escrever sobre a burguesia - ele foi um crítico implacável dos sonhos e delírios dos
burgueses - realizando um romance sobre uma mulher. Ao longo da história de Emma Bovary, existe um personagem
secundário, absolutamente caricato, que é o farmacêutico Homais, perfeita encarnação do burguês que muda de vida. Mas ele
é um homem. Com uma série de truques e manipulações, pois é muito oportunista e esperto, desenvolve sua trajetória
individual ancorada nos recursos oferecidos pela sociedade a um homem de negócios, possibilidade que Emma não tem. E
chama a atenção o fato de o naufrágio absoluto de Emma Bovary, culminando com seu suicídio, não encerrar o romance. Este
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alonga-se por alguns capítulos - discorrendo sobre a desgraça de Charles Bovary - e termina com o sucesso de Homais. A
última frase de Madame Bovary refere-se ao fato de que ele, Homais, acabou de receber a Cruz de Honra. É interessante que
dois personagens igualmente delirantes - uma mulher e um homem - tenham destinos tão diversos. Essa mulher tenta realizar
seu delírio através da vida amorosa com outro homem que a leve aonde ela quer - já que não pode ir sozinha - e naufraga. O
outro personagem delirante é um filisteu, pessoa desinteressante, com sonhos absolutamente materialistas, um embusteiro,
pois se apresenta como grande filósofo e é um blefe, terminando o romance homenageado, recebendo a Cruz de Honra,
tornando-se uma grande autoridade na pequena província. Fiz esse longo percurso para dizer que essa é a mulher que Freud
assiste em plena crise de infelicidade com seu destino. É curioso que o termo bovarismo, vindo da psiquiatria do início do
século XX, designe uma espécie de doença mental, um sintoma psiquiátrico e não cultural. Bovarismo para Jules Gaultier,
psiquiatra que inventou o termo, está relacionado à síntese de sintomas daqueles que sonham ser o que não são, exatamente o
que ocorria com Emma Bovary. A possibilidade de mobilidade social, que explode com a modernidade, permite a todos nós
sonhar ser o que não somos. Como esse sonho se fundamenta, como lidamos com ele, é outra história. Mas o fato é que
ninguém mais nasce com o destino marcado pelo seu gênero, pela classe social em que nasceu ou grupo cultural a que
pertence.

Fiz todas essas referências para dizer que Freud tenta, com seus padrões vitorianos de julgamento moral - isto não é uma
crítica mas uma constatação - curar a histérica reconciliando-a com a feminilidade. Supõe-se que esteja em crise porque tem
fantasias fálicas, de masculinidade, fantasias que não aceitam a castração feminina ou então sofra de inveja do pênis e deva
ser reconciliada com sua condição. Até hoje, essa contradição permanece na psicanálise. Ou seja, a psicanálise foi o primeiro
dos discursos modernos que deu plena voz à mulher, à subjetividade, ao sofrimento, às fantasias e à sexualidade femininos e,
neste sentido, inaugura a possibilidade do falo da fala - que a mulher tenha uma fala tornada pública. Por outro lado, a
psicanálise é absolutamente incapaz, nos modelos freudianos, de dar conta desse sofrimento porque, se a mulher estava em
crise com a feminilidade, a última coisa que deveria acontecer era a recompatibilização com aqueles padrões de feminilidade.

Freud resume muito bem: feminilidade seria a possibilidade de a mulher aceitar uma posição passiva na relação sexual,
perdendo as ilusões de ter um pênis e aceitando ter uma vagina, abandonando o prazer clitoridiano pelo prazer vaginal,
aceitando o destino da maternidade e aquele de ser mulher de um único homem.

É exatamente isso que a mulher do século XIX não pode mais conciliar. Apesar de existirem possibilidades sempre abertas,
este já não poderia mais ser considerado como todo o campo oferecido à mulher. Isto já estava destruído e o interessante é
que a psicanálise contribuiu para essa destruição, ao dar voz à mulher. E, até hoje, parece que a psicanálise fica nesse impasse
de tentar criar uma mulher feminina nos padrões do século XIX, considerando que seu sintoma é a histeria. Esse é um aspecto
que discutirei em outro momento porque, de lá para cá, além da psicanálise, que considero uma técnica moderna, apesar de
seus cem anos, outro fenômeno vem nos tirar ainda mais do eixo. Apesar de também ter, pelo menos em termos de difusão
popular, quase 50 anos, é um fenômeno do qual ainda não nos demos conta. Trata-se da difusão de métodos
anticoncepcionais em escala popular, desvinculando a sexualidade da procriação.

Tenho a impressão de que uma das formas de alienação mais visíveis que a era tecnológica produz, pela extrema velocidade
que nos propicia, é a quebra dos padrões de contemplação e de reflexão e sua substituição por padrões de velocidade. Esta é
uma digressão sobre a quantidade de fenômenos que nos ultrapassam sem termos tempo de nos darmos conta deles.

Estou dizendo isso porque acredito que nós, mulheres e homens, ainda não nos demos conta, passados 30, 40 anos da
revolução sexual do fim dos anos 50, 60, do que representa - não só para o inconsciente mas para a identidade sexual das
mulheres - essa possibilidade, perfeitamente instalada entre nós, de separar vida sexual de procriação. Só depois de os
métodos anticoncepcionais nos darem alguma segurança torna-se possível, por exemplo, abrir mão totalmente do tabu da
virgindade. Ele garantia, como todos sabem, a linhagem hereditária dos filhos. Temos 30, 40 anos de vida sexual fora dos
padrões de tabu da virgindade, o que ainda é muito pouco.

Além disso, a mulher é jogada no que vou chamar de "mercado sexual" de uma hora para outra, de uma geração para outra.
Isso significa que, sem que nossas mães - digo "nossas" para mulheres de 40 anos, como eu - possam nos dizer o que isso
representa, porque viveram outra situação, a mulher é jogada no mercado sexual em condições absolutamente iguais de
escolha em relação ao homem. Ou seja, ela não tem mais que escolher seu parceiro sexual pensando que este vai ser seu
marido, pai dos seus filhos e o homem que vai sustentá-la para o resto da vida. São três coisas que se separam: se ele vai ser o
marido, o pai dos filhos e seu sustentáculo econômico. Acrescente-se a isso a entrada da mulher no mercado de trabalho
também em condições de quase igualdade, ao menos para mulheres de classe média. Ocorre, portanto, a possibilidade de a
mulher escolher seu companheiro erótico sem que seja necessariamente o amor da sua vida, o pai de seus filhos ou decidir se
quer ou não ter filhos - opção que só era dada, há 50 anos, para mulheres que não se casavam - e escolher se vai depender ou
não economicamente de um homem.

As conseqüências são tão devastadoras, a crise na masculinidade e nos padrões desejantes é tão devastadora que nós ainda
não nos demos conta disso. Estou muito longe ainda,..., de conseguir refletir sobre, por exemplo, sexualidade através de
realidade virtual. Ainda não entendemos o que aconteceu há 50 anos, imagine o que está acontecendo agora... Podemos dar
alguns palpites, mas...
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A sexualidade hoje na era da informática: imperativo do gozo
(.... ) Sinto-me sempre olhando para trás, e, por falta de velocidade, não consigo acompanhar o imediato. Todas essas
mudanças afetam as identidades masculina e feminina. Quer dizer, o que é ser uma mulher, e o que é ser uma mulher
adaptada (não sei se é possível usar essa palavra) ao seu sexo biológico é algo absolutamente explodido hoje, para o bem e
para o mal. Para o mal, no sentido da crise que isso nos coloca - o que temos a dizer, a propor aos nossos parceiros - mas
também para o bem, pelo campo que se abre à nossa frente. Ao mesmo tempo, agora estou sendo mais otimista, as sociedades
de mercado em geral, as sociedades modernas, pós-modernas - tenho escrúpulos com esse termo, pós-moderno - têm uma
vantagem, criada sem querer, que é a de uma extrema tolerância. Essa tolerância é necessária, uma vez que numa sociedade
em que o valor maior se identifica com a máxima circulação de mercadorias, a lei que rege todas nossas escolhas morais é
uma lei que costumo chamar, com Lacan, de imperativo do gozo.

O superego hoje

No momento de acumulação do capital, no momento weberiano do capitalismo, o importante não era gozar mas sacrificar,
acumular, trabalhar. Hoje, ao contrário, o importante é dispender, gozar, você tem direito ao gozo.

Como conseqüência temos, por exemplo, a cultura do narcisismo, como diria Christopher Lasch, na qual o sujeito está
comprometido em se proporcionar o máximo de gozo. Mas isso gera uma enorme angústia, pois o gozo é impossível,
principalmente esse gozo pleno que nos exige a cultura da sociedade de mercado: gozar sempre e muito, tudo que se puder.
Cria-se uma dívida com o superego, pois o mesmo superego que cobra que você não goze, que se sacrifique, cobra que você
goze.

Hoje o importante é dispender, gozar, você tem direito ao gozo. Mas isso gera uma enorme angústia, pois o gozo é
impossível, principalmente esse gozo pleno que nos exige a cultura da sociedade de mercado: gozar sempre e muito, tudo que
se puder.

Lacan tem um texto chamado "Kant com Sade", no qual ele fala desse duplo imperativo do superego que paralisa, porque é
impossível de se solucionar. Já é impossível cumprir um dos dois, não gozar ou gozar ininterruptamente. Cumprir os dois ao
mesmo tempo nos paralisa. De qualquer maneira, o imperativo do gozo como princípio que rege a vida social produz, por um
lado, uma sociedade de máxima tolerância. É espantoso quando vemos, como apareceu no caderno Mais!, da Folha de São
Paulo, aquela reportagem enorme que Contardo Calligaris fez nos Estados Unidos sobre um congresso do qual participaram
sadomasoquistas. Eles estavam presentes com um aparato de amarrar, bater, surrar, etc., constituindo um mercado, com
pessoas que se interessam por ele. Chega uma hora em que isso é aceito, que encontra seu lugar. Então, podemos pensar neste
fato como indício desta sociedade de máxima tolerância.

Ao mesmo tempo, justamente pelas leis que organizam a sociedade de mercado, temos uma sociedade de máxima
discriminação. Discriminação não só no sentido de não aceitar o outro, mas pelo fato de as sexualidades terem de ser
declaradas. Tenho de dizer não só se sou homem ou mulher, se sou hetero, bi ou homossexual, mas também, dentro da
heterossexualidade, qual é a minha modalidade. É como se o IBGE viesse fazer sua pesquisa e perguntasse se sou do tipo que
usa couro ou corrente. Isto também tem de estar na minha ficha, pois a indústria quer saber se há mais gente interessada em
consumir chicote de couro ou corrente. Esta é a sociedade da máxima tolerância e da máxima discriminação. A máxima
tolerância é interessante porque a tecnologia desvincula cada vez mais sexualidade, em termos de modalidades de prazer, da
sexualidade biológica. Isto começa com o anticoncepcional, mas é apenas o começo.

Quer dizer, a mulher pode ter vida sexual e não procriar. Então, a mulher já não é mais, sendo mulher, mãe. Ela pode ser mãe
e também várias outras coisas. Mas ainda é só o começo. A mulher pode ser mãe, mulher, bissexual, algo que está no
inconsciente de todos nós. Pode ser mãe, mulher e homossexual, ocorrendo uma ruptura entre sexo e natureza, condição
sexual e condição natural.

Sexualidade humana

Freud, livre pensador que era, já dizia no fim do século XIX: "não vamos considerar moralmente a perversão, vamos chamar
de perversão aquilo da sexualidade que foge dos padrões da procriação." Não estamos julgando a perversão no sentido moral.
Um beijo na boca pode ser tão perverso quanto uma relação homossexual, uma vez que não é necessário para a procriação.
Isto é interessante, pois Freud não considera a perversão um caso de polícia ou de escândalo. Ele está dizendo que a
sexualidade humana é polimorfa, admite modalidades de prazer que não têm nada a ver com aquilo que é o sexo biológico e
genital, garantia da continuidade da espécie. Tenho impressão, se isto não nos assustar demais, e existem ondas de avanço e
retrocesso, que estamos no limiar, que podemos chegar a uma condição, que é também o que Contardo Calligaris diz, na qual
haverá uma sexualidade para cada ser humano. Isto, na verdade, é o que somos.

Quer dizer, em termos psíquicos, existe uma sexualidade para cada ser humano, ainda que possamos fazer coisas mais ou
menos parecidas. Mas naquilo que isto representa fantasmaticamente, podemos encontrar um casal heterossexual padrão que,
na relação de troca - nem sempre de forma consciente -, inverta os papéis do homem e da mulher. Isto do ponto de vista
sexual, não me refiro ao fato de a mulher trabalhar e o homem ficar em casa cuidando dos filhos. Estou falando das
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REPRESENTAÇÃO FÁLICAS. De fato, a possibilidade de uma sexualidade para cada pessoa é dada pela condição humana,
porque somos seres de linguagem e a linguagem nos permite todos os discursos.

A impossibilidade da completude e a angústia na era tecnológica

Faço aqui uma menção à tecnologia, não àquela dos aparatos - isto é pouco importante, embora o fetichismo vá se ligar à
tecnologia dos aparatos, sendo uma de suas diversas modalidades -, mas à tecnologia no que ela nos permite em relação à
imagem que temos do uso de nossos corpos. Ao mesmo tempo - isto tudo está parecendo muito otimista -, temos inúmeros
fatores, também produzidos pela sociedade tecnológica e de mercado, que vão contra toda essa abertura de um campo para a
fruição, que parece maravilhosa. É o caso, por exemplo, da velocidade, da impossibilidade da contemplação, que é talvez um
dos maiores prazeres eróticos que o ser humano pode ter, desde os tempos de Aristóteles, que dizia: "prazeres do corpo,
prazeres do consumo imediato, prazeres sensuais ou sexuais estão todos abertos para nós. Mas o prazer da contemplação é o
prazer." Esse é mais do que humano, é o prazer que nos iguala aos deuses.

Este prazer está praticamente fora de nosso alcance.

A alienação que essa fé na tecnologia produz, além daquela causada pela velocidade, reside no fato de começarmos a
acreditar que é possível não contar mais com a possibilidade da morte, ela se torna algo terrível e nós não a enfrentamos.

Temos, teoricamente, todas as possibilidades de fruição. Aí talvez se encaixe a idéia de Baudrillard, de que existe um excesso
sem substância, sem consistência, porque todo excesso e todo rompimento de limites nos defrontam com a angústia de
castração, com a idéia da morte, de romper definitivamente nosso limite humano, que é o da vida.

É como se tentássemos criar excessos - falsos - nos quais não nos deparássemos com a angústia, mas eles só nos levassem ao
vazio. É o excesso dos aparatos, dos objetos, do consumo e de tudo aquilo que teoricamente podemos controlar e que não tem
fundo, porque não nos remete à nossa própria condição. Utilizando com liberdade essa metáfora, de que as doenças são
também sintomas das relações sociais, é incrível que neste momento surja a Aids. Quer dizer, a Aids é uma doença - quase de
linguagem, do código no qual os vírus interferem - que vem reintroduzir a morte no campo da sexualidade e do erotismo, de
onde parecia ter sido banida. Sabemos, com Georges Bataille, que o campo do erotismo e da morte estão sempre próximos.
Tentamos bani-la, mas ela volta de outro jeito.

Por último, tenho impressão de que outro empecilho para que possamos desfrutar esse campo que foi aberto pela
modernidade é vivenciarmos uma espécie de impossibilidade de fazer qualquer coisa que tenha um fim em si mesma.
Acredito que o erotismo seja uma espécie de arte pela arte. Quando esse outro fim, que seria a procriação, fica optativo e é
secundário - podemos ter dois ou três filhos, mas não é isso que orienta nossa vida erótica -, o erotismo se afirma como uma
criação de linguagem que aponta para si mesma. Ele não aponta necessariamente para a criação de um vínculo duradouro
entre duas pessoas, não necessariamente para uma vida feliz, cheia de filhos, nem para um futuro garantido, preocupação das
mulheres até a geração de nossas mães. Resta uma espécie de arte pela arte e, em nossa sociedade, que é uma sociedade de
resultados, somos praticamente incapazes de criar algo nesses termos.
Acredito, ainda, que vivemos uma sexualidade de resultados, o que significa o fim do erotismo.

Quando esse outro fim, que seria a procriação, fica optativo e é secundário, o erotismo se afirma como uma criação de
linguagem que aponta para si mesma. Em nossa sociedade, que é uma sociedade de resultados, somos praticamente incapazes
de criar algo nesses termos.

Neste ponto, defendo Madonna como símbolo. Apesar de sua vida sexual pessoal provavelmente significar uma sexualidade
de resultados - com isso ela está fazendo carreira, ganhando dinheiro -, ela representa um pouco este sem-sentido do
erotismo, essa possibilidade de poder fazer tudo e daí?...

E este "e daí, reticências", que nos angustia, é exatamente o "e daí, reticências" que representa o vazio, a falta de objeto que
está no centro do erotismo.

Não existe um objetivo ou um objeto final, isto é insaciável. Ela estar com dois homens, pisando com uma bota em cima de
um cara, sendo pisada, chicoteada, é como se ela dissesse que seu corpo pode ser todos os corpos, que ela não se limita mais a
ser uma mulher, mas também não é um homem, e daí...? Neste sentido, ela é paradigmática, ela nos angustia e provavelmente
se angustia, recuando. É como se Madonna fosse um paradigma arriscado do que pode se apresentar no horizonte. Se a gente
quer isso ou não é outra história, mas ela tem essa coragem, ela se expõe e a seu corpo como uma espécie de "corpo erótico
modelo 2000", um estande de demonstração daquilo que pode vir a ser. É corajosa.

O pornô é indexado pelas tecnologias avançadas. As indústrias do ramo oferecem para a população a possibilidade e o
fascínio de um tecno-sexo virtual, uma viagem rumo ao paraíso do finalismo da libido, da teleologia do desejo e do orgasmo,
uma seção "fílmica" individualizada.........................

Texto VII I - O REVERSO DO AMOR: ÓDIO OU INDIFERENÇA?


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Renata Pedrosa e Silva - Psicóloga


(Fonte: http://www.planetapsi.hpg.ig.com.br/reverso_do_amor.html)

"É com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano; e esta inserção é como um segundo nascimento, no qual
confirmamos e assumimos o fato original e singular do nosso aparecimento físico original". (Hannah Arendt)

Introdução

Há muito discute-se sobre o amor e o casal. Estes temas sempre foram explicitados em livros, músicas e na arte. A
psicanálise, como sendo uma forma de reflexão e prática, tenta compreender e estabelecer a forma como se opera esta díade
homem-mulher, fundamentada na interação de desejos e necessidades de cada um dos parceiros. Entra em cena para iluminar
o que está por trás dos ornamentos do imaginário.
O início do amor é marcado pela tentativa de completar-se, pela crença de um amor esférico, pela ânsia de ser inteiro. É a
visão imaginária do objeto de amor, buscando no outro aquilo que falta, como se esse, fosse um outro reparador.
Entretanto, o amor do qual, aqui, se pretende falar, é aquele calcado na ambivalência, cujo mesmo objeto que satisfaz é o
mesmo que frustra. Pode-se pensar então, que o encontro amoroso aponta para a desilusão, para a perda das fantasias, a perda
dos domínios da infância onipotente. Uma desilusão que coloca o sujeito diante da condição de ser-humano, ser mortal e
incompleto. Uma vez compreendida as determinações fundamentais da condição humana, uma vez rompidas as fantasias,
abrem-se as possibilidades para o amor, o mais vasto território por onde o desejo pode se mover.
O estudo aqui empreendido apóia-se, num primeiro momento nos textos de Freud e em suas bases conceituais. Estas bases
freudianas serão trabalhadas não deixando de estar intimamente vinculadas à sua clínica. FREUD (1930),apesar de não ter
teorizado diretamente sobre o casal, teceu considerações importantes que contribuíram para dissertar sobre o encontro
amoroso e a perda do objeto de amor. Lacan por sua vez, em seus seminários, buscou novos paradigmas, novas possibilidades
teóricas, na tentativa de demarcar aquilo que é da ordem do amor.
A proposta deste estudo vai além da tentativa de dissertar sobre o encontro amoroso, vai dizer da impossibilidade de
manutenção deste primeiro momento, desta ilusão de completude, deste amor esférico. Propõe-se aqui, pensar na díade
homem-mulher e no término do amor. Para tanto, o estudo irá direcionar-se para o questionamento do que possibilita o
encontro amoroso e inferir sobre o que desencadeia o desencontro, pensando ainda sobre o final do amor.
O procedimento metodológico escolhido para orientar a realização do trabalho é a pesquisa bibliográfica, tendo em vista, que
esta poderá propiciar a oportunidade de buscar maiores informações sobre o objeto.
A partir das limitações teóricas e práticas, observou-se uma escassez de bibliografia a respeito do assunto proposto. A
monografia foi organizada em dois capítulos: o primeiro capítulo, A Fantasia de Completude, vem dizer do primeiro
momento do encontro amoroso, procurando estruturá-lo a partir da fusão narcísica inicial da criança e sua mãe. Pensando
também no mito dos seres colados como uma metáfora para dizer deste primeiro encontro.
O segundo capítulo, A desilusão do amor, trás formulações a respeito do encontro com o desencontro, com a falta, com a
impossibilidade de se fazer Um. Traz também formulações a respeito de Eros e Thanatos, a partir de Freud, pensando os dois
como sendo a matéria prima de que se originam as paixões. O capítulo finaliza-se com os opostos do amor: o ódio e a
indiferença, e caminha para possíveis formulações acerca do final do amor.

A FANTASIA DE COMPLETUDE

1.1 O encontro amoroso


A criança conserva em sua fantasia a fusão narcísica inicial com a mãe até que alguma experiência de separação venha
desiludi-la. Para o pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom e prazeroso, é sentido como parte de si
mesmo, somente quando alguma coisa frustra a criança, é que ela a sente como parte do mundo externo. A ilusão da criança
de que ela e a mãe são Um, de que ela é tudo o que a mãe deseja se rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar.
Neste instante a criança percebe que o Grande Outro não é tudo, que não pode estar sempre presente e a realidade se instala
entre os dois que tentavam ser Um.
As fantasias e necessidades de uma criança recém-nascida estão sob o pleno domínio da paixão, assim como também, o
primeiro momento do encontro amoroso. Na fusão narcísica inicial com o corpo da mãe, assim como na paixão, o mundo
desaparece, o ser é o mundo e o mundo é extensão do ser.
Todas essas situações vividas pela criança em seus primeiros contatos com suas demandas pulsionais e as formas
apaixonadas que estas vão adquirindo no decorrer da história de vida podem ser revividas no primeiro momento do encontro
amoroso. A fantasia que surge neste instante é a de restauração do narcisismo primário. Esta diz respeito a reencontrar no ser
amado sua total completude. "Esse narcisismo primário está sempre presente em todo relacionamento humano em busca do
semelhante. Ele tende sempre a união, apagando os limites entre os indivíduos". (NEVES, 1990; p.17) Espera-se que este ser
que completa, possa tirar o outro da condição solitária que é a própria condição humana.
Ainda em NEVES (1990), pode-se pensar que neste momento, o casal não se opõe, não há objeções e desacordo. Portanto, se
por um acaso se deparam com situações de desentendimentos, isto é colocado para o exterior. Enfim, não há limitação, os
casais apaixonados vivem num mundo próprio, não havendo uma linha de demarcação entre um e outro. "Tal como na
relação mãe e filho, no início da vida, não há oposição... não há discriminação - ficam reduzidas quaisquer possibilidade de
discernir o eu do não eu..." (NEVES, 1990; p.17)
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Desta forma, há que se considerar, que neste primeiro momento, a ilusão de completude apresenta-se e isto nada mais é do
que o desejo de fusão, de dois formarem Um. Este momento é instantâneo, os sujeitos sentem-se maravilhados por terem
achado alguém que depois de muito procurar acaba se encaixando em suas fantasias. "O encontro faz com que o sujeito
apaixonado já capturado, sinta a vertigem de um acaso sobrenatural..." (BARTHES, 1998; p.81)
Neste sentido, as fantasias presentes no início de uma relação, não concedem existência própria ao outro, que se torna
depositário das fantasias mais primitivas, um outro eu que deseja as mesmas coisas e que resgata o sujeito da condição da
falta em que se encontra.

Na sua metade colo minha metade - O baile de máscaras

Durante o momento do encontro amoroso, os sujeitos apostam que não há limites para se completarem e todas as suas
fantasias são tecidas no sentido de encontrarem o par ideal. Apostam terem encontrado a tão sonhada completude e a eterna
felicidade. O amor nascido deste momento cria a ilusão de fusão e cada sujeito busca no outro a sua metade.
"O mito do casal perfeito que insiste desde a infância parece ter encontrado um ancoradouro. Os sonhos infantis, nesse tempo,
ensaiam uma realização ao depositar nesse encontro a esperança de felicidade eterna e completude".(OTONI DE BARROS,
1996, p. 21)
Os sujeitos enamorados apostam que podem conhecer o parceiro por inteiro, que se completam e que formam o Um. Isto
pode ser perfeitamente explicitado no Mito dos Seres Colados que Aristófanes apresenta em O Banquete, PLATÃO (1987).
Neste mito, duas criaturas viviam unidas numa total fusão e completude até que são condenadas a viverem separadas uma da
outra. Construir o Um, neste sentido, seria colar algo no lugar daquilo que foi perdido. Algo que possa enfim anular a
diferença, tamponar a falta e destituir a angústia de castração.
É justamente o objetivo de se fazer o Um que impede a relação de dois, pois jamais de dois formou-se Um. Se o objetivo de
dois sujeitos tiver como base a completude, o Um, instaura-se o fracasso do amor, "... pois o amor é a possibilidade da
inscrição de dois... é a possibilidade de apresentar o dois como um e um, enlaçados na disjunção, suporte da falta e da
diferença." ( OTONI DE BARROS, 1966, p. 25).
Em LACAN, (1985) pode-se ler sobre a narrativa do Baile de Máscaras, a qual será usada para ilustrar este momento, em que
o traço tão procurado, se revela na ordem do impossível. Em um baile de máscaras, duas pessoas se encontram e extasiadas
pela presença uma da outra, dançam a noite toda. Cada um esculpe no outro suas fantasias, estão encantados pela máscara, até
que... de repente, no fim do baile, as máscaras caem. Neste instante irrompe a descoberta de que o outro não era o que
realmente eles imaginavam. É o encontro com o desencontro, com o desamparo e com a desilusão do amor. Neste cair das
máscaras, o sujeito se apresentará como castrado. Portanto, o amor lacaniano, que implica nessa dimensão da falta, assim
como do reencontro sempre faltoso, transforma este primeiro momento em mascarado e obscuro. Neste ponto, o grande
passo, foi vincular o objeto com a castração, fazendo desta o nome da falta que nenhum objeto pode tamponar.

A DESILUSÃO DO AMOR

Os desencontros do amor

"O pedaço de mim


Oh! Metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
E assim como uma fisgada
No membro que já perdi"
(CHICO BUARQUE, Pedaço de mim)

O momento de felicidade plena também pode ser de angústia, já que tem-se a impressão que o outro lhe escapará, o amor
então irá reviver a decepção do recém- nascido que perde a condição de único no desejo da mãe. A realidade se instala entre
os dois que tentavam ser o Um e revela o que estava sendo negada, a falta. "Ao retirar os óculos com o qual a paixão decora a
realidade, revela-se a distância entre o objeto desejado e o encontrado, restando dessa revelação as diferenças e o
desencontro" (OTONI DE BARROS,1996,p.22)
Este amor depara-se então com as diferenças, com a impossibilidade, com a frustração. Não existe objeto que satisfaça
plenamente o desejo e é justamente por isso que ele não pára de renascer. Dessa decepção revivida no encontro, há uma
reedição das primeiras frustrações infantis, ou seja, dessa decepção aparece o desencontro. Portanto, o encontro amoroso é
uma tensão, na medida em que o que o sujeito não encontra em um lugar, busca em outro.
"A esta impossibilidade de manutenção do estado narcísico, do qual fomos expulsos com o nascimento, a psicanálise
denomina castração que significa perda, falta, ou seja, o limite que é imposto à onipotência do desejo."
"Toda escolha de objeto amoroso tem na sua base um movimento pulsional que busca encontrar o objeto perdido e, nessa via,
a escolha amorosa é uma tentativa, através do semelhante, de alcançar a completude e tamponar essa falta do objeto. Assim, o
amor traz a ilusão do reencontro com o objeto" (CARAM, 1995: p.92)".
Entretanto esta falta, remete à diferença anatômica entre os sexos que apenas simboliza na infância esta perda do pênis e
favorece para o menino a ilusão de completude ao mesmo tempo em que o atira à angústia diante da possibilidade da perda
do pênis. No entanto, favorece à menina em relação à sua desilusão de completude. Ao mesmo tempo em que a leva à inveja
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do pênis, a atira também as tentativas fálicas de restauração do narcisismo, uma vez que, a menina acha que "tinha e perdeu
ou então que ainda vai crescer". Na verdade, não há solução para a verdade: castrados todos são.
Uma vez instaurado o desencontro, nem todos toleram a mudança na relação e nem todos sobrevivem a elas. Não só no
sentido de se manterem juntos, mas sobretudo, no sentido de desenvolver uma relação posterior à ruptura desse pacto inicial
inconsciente onde predominavam o desejo de uma perfeita fusão, onde um é espelho do outro. Neste momento, os casais
reclamam a falta de amor entre eles, e no entanto, o que falta é a possibilidade de aceitar a separação em relação ao outro, de
aceitar a própria individualidade. Há que se pensar em um certo grau de dependência que precisa existir para que a relação
continue sendo necessária. "O amor é o anseio constante por chegar ao uno, mas se o uno existisse seria a negação do amor.
Morreremos sós, como metades, sós." (PEREZ,1987;p.87)

Eros x Thanatos

"Agora só nos resta esperar que o outro dos dois Poderes Celestes o eterno Eros desdobre suas forças para se firmar na luta
com seu não menor imortal adversário. Mas quem pode prever com que sucesso e com que resultado?" (FREUD, 1930,
p.170).
Pode-se pensar que a matéria-prima de que se origina as paixões são as pulsões em duas grandes vertentes: Eros (pulsões de
vida) e Thanatos (pulsões de morte). Eros procura o calor, o repouso, o alimento de uma forma tão intensa que contamina e
erotiza as pulsões de vida. Segundo FREUD (1915), as manifestações mais primitivas das pulsões de vida são as das defesas
de sobrevivência do indivíduo, que buscam manter o organismo num estado de preservação. A estas se mesclam as pulsões
eróticas que buscam manter o organismo num estado de preservação.
"A distinção entre pulsões sexuais e pulsões de autoconservação não deve, contudo levar a uma oposição demasiadamente
rígida quanto ao estatuto de seus objetos: contingente num caso, rigorosamente determinado e especificado no outro. Além
disso, Freud mostrou que as pulsões sexuais funcionavam apoiando-se nas pulsões de auto conservação, o que significa
nomeadamente que estas indicam às primeiras o caminho do objeto" (LAPLANCHE E PONTALIS: 1983, p.408-409)
Portanto, todas as funções vitais são carregadas de erotismo pela vida afora, a tal ponto de se poder pensar o Eros como o
conjunto das pulsões de vida.
"Também parece estranho que entre as pulsões eróticas se encontre a agressividade. A tendência agressiva não é apenas como
poderia parecer, um componente das pulsões de morte, uma vez que, o que impele uma pessoa ao contato com outra não são
somente os impulsos amorosos. A agressividade pode ser uma tentativa de mudar o outro, para torná-lo mais compatível com
o princípio do prazer."
"... agressividade, amor e ódio, esse é o paradoxo ao qual estão destinados os sujeitos desejantes, submetidos às condições
dos encontros e desencontros amorosos" (CARAM, 1995, p.52)
FREUD (1930) considera a agressividade como sendo uma defesa que o outro pode representar. Nesse sentido, um dos pactos
fundamentais de toda forma de convivência social, é aquela que propõe o recalque de grande parte da agressividade em troca
de vantagens de convivência. "Assim, para fugir ao desprazer, o homem se movimenta em direção à formação de laços
sociais, mas não fica livre de um certo mal-estar" (CARAM, 1995, p.52)
Desta forma, o preço que se paga pelo pacto da não agressão que funda nossa civilização é o de um rebaixamento das
pulsões. É este processo que ocasiona boa parte dos sofrimentos e o mal-estar presente na nossa civilização.
Enquanto o vetor erótico impulsiona a vida humana ao contato, o outro vetor da trama pulsional impele o ser humano ao
repouso. É Thanatos, a pulsão de morte que quer a abolição das tensões, o grau zero de energia. A pulsão de morte "designa
uma categoria fundamental de pulsões que se contrapõe a pulsões de vida e que tendem para a redução completa das tensões,
isto é, tendem a reconduzir o ser vivo ao estado anorgânico".(LAPLANCHE E PONTALIS, 1983; p.407).
A vida é uma vitória sobre a força conservadora do inorgânico. Sobrevive-se porque o organismo uma vez "jogado na vida"
quer se conservar e fazer seu próprio percurso até a morte.
"Eros, força que pretende a união, não consegue dominar inteiramente a pulsão e morte, silenciosa, mas sempre presente. As
forças de união, desunião, amor, ódio, geram tensão e impasses constantes, aos sujeitos submetidos à condição amorosa".
(CARAM, 1995: p.52)
Esta é a razão pela qual, Thanatos não impera soberano sobre Eros. Isso porque a representação mais próxima que se tem no
inconsciente, do repouso absoluto não é a morte, e sim o estado de fusão com a mãe. É por isso que o ser humano no
momento do encontro amoroso busca o retorno a um estado anterior prazeroso, a uma ilusão de um estado de fusão narcísica
com o outro. Encontra-se aí o conceito de morte, conforme foi estabelecido por FREUD (1915) , como pulsão de morte,
relacionado com o amor, na medida em que, o reconhecimento da morte, do ser mortal, não deixa de ser uma referência ao
limite e principalmente à castração. Neste ponto, a cada procura pelo objeto amado, o sujeito defronta-se com a possibilidade
de sua morte, que, no mínimo, é uma referência à sua divisão e ao desencontro amoroso.

Os opostos do amor: o ódio e a indiferença

"Que amor é esse...


Como é que pode ser
Tão puro e tão vulgar assim
Que me faz bem e me faz mal
Como é que eu sou
Capaz de te odiar e te querer cada vez mais"
(Chico Roque - Carlos Colla)
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Uma pulsão não pode ser totalmente satisfeita e por isso há um excedente de energia que não obtém descarga. Este excedente
de excitação pode ser considerado o que constitui a matéria-prima do amor e o recurso que o sujeito utiliza para lidar com isto
é o recalque. "Uma pulsão não pode ser nem destruída, nem inibida, uma vez tendo surgido, ela tende de forma coercitiva
para a satisfação".(GARCIA-ROSA, 1988; p.126)
No entanto, FREUD (1915) vai dizer que, a pulsão nunca se dá por si mesma, nem ao nível consciente, nem ao nível
inconsciente. O que dela se conhece são os seus representantes: a idéia e o afeto. O recalcado não é o afeto, é a idéia que a ele
se associa. A idéia é o que constitui o conteúdo inconsciente. O afeto e a idéia são independentes. Os destinos do afeto são
diferentes dos destinos da idéia.
Segundo LAPLANCHE E PONTALIS (1983), a separação entre o afeto e a representação está na origem do recalcamento, o
que leva a descrever um destino diferente para cada um desses elementos e a encarar a ação e o processo como sendo
distintos: a representação é recalcada e o afeto liga-se a outros conteúdos formando os sintomas. Ou seja, o recalque é um
mecanismo insuficiente para dar conta do excesso de energia que não encontra meios de descarga.
De forma geral, a pulsão tem apenas um objetivo: a satisfação. Porém, a satisfação não ocorre de forma direta e imediata, mas
por exigência da censura há sempre uma modificação da pulsão. Por isso, os destinos da pulsão são apontados por FREUD
(1915) como modalidades de defesa.
A pulsão, como já foi dito, possui dois representantes e cada um deles segue um mecanismo diferente de transformação, os
destinos do representante ideativo podem ser a reversão ao seu oposto, retorno em direção ao próprio eu, o recalcamento e a
sublimação.
O retorno da pulsão em direção ao próprio eu caracteriza-se por uma mudança do objeto, permanecendo inalterado o objetivo.
Encontra-se em FREUD (1915) os exemplos privilegiados de reversão do objetivo e do objeto da pulsão, nos pares de
opostos: sadismo/masoquismo, voyeurismo/exibicionismo.
Um aspecto importante da dinâmica das transformações das pulsões, é que não ocorrerá um esgotamento nos pares de
opostos. Então, na reversão da atividade para a passividade há uma quantidade de atividade ao lado da passividade, o mesmo
ocorrendo com o retorno ao próprio eu. Portanto, um sádico é concomitantemente um masoquista. Através de uma
identificação com o outro, o sádico, frui masoquisticamente da dor infligida ao outro, como o masoquista frui do prazer que o
outro sente ao exercer a violência. Da mesma forma, o exibicionista goza com o olhar do outro. FREUD (1915) ainda supõe a
presença de uma alternância do predomínio dos pares de opostos ao que denomina ambivalência.
Voltando-se à questão da reversão ao seu oposto, afirma-se que esta pode manifestar-se de duas maneiras: como reversão do
objetivo da pulsão, ou seja, uma mudança da atividade para a passividade, ou como reversão do conteúdo que se encontra no
exemplo isolado da transformação do amor em ódio.
O segundo modo de reversão ao seu oposto é a reversão do conteúdo. Este é o que interessa, pois diz respeito à questão da
transformação do amor em ódio (ambos ativos). Fazendo-se então pensar que onde há amor, há o ódio e assim um possível
investimento libidinal se faz presente. "O ódio, que se mescla ao amor, provém de fases preliminares do amar não
inteiramente superadas..." (FREUD, 1915; p.161)
FREUD (1915) vai dizer que o amor admite opostos e que estas polaridades, articulam-se entre si, sendo responsáveis pelos
destinos da pulsão. São eles: amar-odiar e amar-indiferença.
Para se entender estas polaridades, é preciso dizer do período compreendido pelo narcisismo, quando o objeto de
investimento das pulsões é o próprio eu, e que este se caracteriza por uma satisfação auto-erótica. FREUD serve-se deste
período, para evidenciar as possibilidades de posicionamento do sujeito ou como tal ou como objeto, fazendo com que a ação
possa visar tanto o campo exterior, (ou o outro), como o ego; fazendo com que as pulsões visem tanto o eu quanto o objeto.
Sendo assim, o mundo externo é indiferente aos propósitos de satisfação, pois o ego ama apenas a si próprio e em si é
encontrada a fonte de prazer.
Esta fase do desenvolvimento é representativa de uma das formas de oposição assinaladas para o amor: a do amar-ser
indiferente. Nesta forma de oposição, o sujeito do ego coincide com o prazer e o mundo externo como indiferente. No
entanto, tal forma de satisfação auto-erótica só é possível quando se trata das pulsões sexuais. As pulsões de autoconservação
não se satisfazem de forma fantasmática, exigindo um objeto externo. É então por exigência do princípio do prazer que o ego
é obrigado a introjetar os objetos do mundo externo que se constituem em fonte de prazer e a projetar sobre o mundo externo
aquilo que é causa de desprazer. O que é projetado no mundo externo é vivido como hostil e assustador e não mais
indiferente. Essa é a outra forma de oposição assinalada para o amor; amar-odiar.
Com relação ao ódio, FREUD (1915) deixa claro que é mais antigo que o amor. Só existe ódio primordialmente, em relação
ao objeto, uma vez que o mundo externo não tem importância, sendo indiferente. É no lugar de uma ausência de relação,
ausência de qualquer forma relacional (narcisismo), que pode se apreender a noção de ódio. O que é próprio do amor virá
posteriormente, quando o eu empreender um deslocamento ao objeto. O amor deriva-se da capacidade de se satisfazer auto-
eroticamente. É originalmente narcisista, passando em seguida, a se vincular a objetos. O ódio provém do repúdio primordial
do eu narcisista ao mundo externo. Sem tomar conhecimento, indiferente a ele, o ódio é a expressão da reação de desprazer e
permanece intimamente ligado às pulsões de autoconservação. Por fim, via sentimento de desprazer o mundo passa a ser
reconhecido e não é concebido mais como indiferente.

"O ego sente desprazer tanto em relação aos estímulos externos quanto aos internos. Graças ao desprazer transforma
o suposto investimento libidinal em si mesmo (auto -erótico), terminando por estabelecer um campo assim o mundo
transforma-se num local próprio às projeções de desprazer; e nesse lugar instaurará, também, suas fontes de prazer.
Essa nova forma de vínculo permite o reconhecimento do mundo exterior".(LOPES, 1997, p72).
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Fazendo uma analogia e voltando-se ao encontro amoroso, constata-se assim que quando não há investimento libidinal no
outro, sendo este indiferente, pode-se dizer que não há amor. Quando se coloca em questão o que é próprio do amor, há um
deslocamento para a posição do ódio que aparece na díade homem-mulher como uma constante. Os conflitos moldam-se
tendo como tema alguma parte da vida infantil (o mesmo que satisfaz é o que frustra) ama-se e odeia-se o mesmo objeto, o
que não quer dizer que o amor não exista neste momento. A relação de desprazer com o qual se vincula o ódio faz parte do
desencontro amoroso. Dessa forma é possível compreender que nas relações amorosas a manifestação da ambivalência, faz-
se presente. A indiferença seria, portanto colocada como aquilo que instaura o fim do amor, como aquilo que narra, sem
palavras, o que o encontro não consegui dizer: da tentativa de formar o Um.
CONCLUSÃO

Resta agora concluir o que se sabe sobre a origem do amor e do ódio. Vale ressaltar que o amor deriva da capacidade do ego
em satisfazer algumas de suas necessidades pulsionais de obtenção de prazer, é de origem narcisista passando então para
objetos externos no decorrer do desenvolvimento.
No primeiro momento do amor, há a abolição da existência separada do objeto, o qual, pode ser descrito como o momento de
ilusão de completude. No entanto, há riscos no amor e a ferida narcísica é reaberta. Neste sentido, a manutenção do
narcisismo e a negação da falta, são vistas dentro do contexto amoroso como ameaça, porque reintroduzem a evidência da
falta.
A proposta do estudo foi além da tentativa de dissertar sobre o encontro, disse da impossibilidade de manutenção deste
primeiro momento do amor, desta ilusão de completude, até a total falta de investimento libidinal que é a indiferença.
Pensando nos opostos do amor, o ódio, enquanto relação com objetos é considerada mais antigo que o amor. Ele provém do
repúdio primordial do pequeno ser narcisista em contato com os primeiros sentimentos de desprazer. Portanto, o objeto que
satisfaz é o mesmo que frustra; o amado e o odiado são um só. Esta ambivalência nos acompanha a vida toda. Por isso, pode-
se dizer que esta é a essência de toda relação amorosa e o absoluto não se recupera mais. Enquanto há investimento libidinal
de pulsão de ódio, ainda há amor. Analisando as origens do amor, é possível compreender porque se percebe com tanta
freqüência nas relações amorosas, a manifestação desta ambivalência, ou seja, o amor acompanhado pelos impulsos de ódio.
Então amar-odiar colocados lado a lado, não colocam em jogo a questão do amor. O ódio é uma negação e não uma renúncia
ao amor.
Apesar da teoria freudiana colocar o amor-ódio e amor-indiferença como opostos, há que se considerar que o ódio faz parte
da problemática do casal, neste caso as pulsões podem estar adormecidas ou simplesmente deslocadas para outro lugar e de
acordo com essa pesquisa, o final do amor caracteriza-se pela indiferença.
Portanto, se uma relação de amor for rompida, logo o ódio se instaurará, dando a impressão de uma transformação do amor
em ódio. Mas os laços amorosos são de uma outra natureza, que continuam de uma forma não declarada, por vezes agressiva.
As juras perduram, mas agora são tecidas em letras estranhas, palavras de desamor. Entretanto, o amor continua, pois o
avesso do amor não é o ódio, e sim a indiferença.
Embora, sem nenhuma dúvida, a psicanálise abra feridas no imaginário do amor, só ela pode criar caminhos para a
compreensão da experiência de frustração e castração do amor. Este só pode ser efetivamente vivido, quando sobrevive à
sombra do que foi sonhado e quando se depara com a incompletude fundante do ser humano.

8. Transgressão e violência na atualidade


Maria Regina Prata
(Fonte: http://www.estadosgerais.org/gruposvirtuais/prata-transgressao.shtml)

Freud e a pulsão de morte - Em 1920, Freud construiu o conceito de pulsão de morte, dando-lhe um caráter negativo. A
pulsão de morte foi definida como um poder demoníaco que continha uma tendência regressiva e conservadora da
mesmidade, podendo efetuar, de forma silenciosa, um trabalho destrutivo. Ela foi relacionada à desorganização de formas
constituídas e remetida à energia livre ou desligada. Em oposição à pulsão de morte, surge a pulsão de vida ou sexual, que
tende a produzir formas organizadas e não destrutivas, consistindo a vida no conflito entre essas duas pulsões.

O primeira aspecto que podemos discutir são as noções de conservação e transgressão quando relacionadas à pulsão de morte.
Em realidade, a idéia de conservação de formas se contrapõe à característica transgressora dessa pulsão, que a põe no campo
do mais além, do ultrapassamento do princípio do prazer. Assim, ainda que possamos reconhecer a compulsão à repetição do
mesmo aliada ao trabalho conservador da pulsão de morte, é necessário também que apontemos que a força da desordem
possibilita a produção de formas diferenciadas.

A aparente oposição entre desordem e criação foi trabalhada experimentalmente por Prigogine, que demonstrou que se pode
produzir ordem no caos, que a desorganização nem sempre é sinônimo de desperdício de energia: a ordem e a desordem
mostram-se não opostas entre si, mas indissociáveis (Prigogine & Stengers, 1984). A dissipação de energia, portanto, que
geralmente é associada à perda de rendimento e à evolução para a desordem, torna-se fonte de novos estados de matéria.
Nesse contexto, a grandeza do grau de desorganização da energia de um sistema nem sempre precisa ser relacionada à
degradação e ao desperdício.
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Pulsão de morte e civilização - Em 1930, Freud publicou "O mal-estar na civilização" e discutiu as restrições que a
civilização moderna impõe ao livre funcionamento das pulsões sexuais e destrutivas, o que provocaria mal-estar na
subjetividade. Daí viriam as limitações da vida sexual e também o mandamento "ama ao próximo como a ti mesmo",
necessário à manutenção da civilização e que funcionaria como defesa contra a agressão ao outro.

Se a força da pulsão de morte implica uma recusa da ordem civilizatória, a transgressão pode se articular à violação e à
desobediência, ou ainda à perversão social. Mas será essa a única forma de pensarmos a pulsão de morte? Há uma dimensão
criadora e transgressiva nessa pulsão?

Articular pulsão de morte e criação não é uma tarefa fácil. A psicanálise tem sua clínica, diriam alguns. Nessa clínica, diriam
os mesmos ou outros, não há como não reconhecer algo que parece trabalhar contra o sujeito, que talvez se pudesse chamar
de destrutividade.

É verdade. No fim do artigo "A negativa" (1925), quando relacionou a capacidade de julgamento ao dualismo pulsional,
dando a essa dualidade uma característica criadora, Freud lembrou do negativismo dos psicóticos, remetendo-o à desfusão
pulsional e, conseqüentemente, ao trabalho solitário das pulsões de morte (Freud 1925: 256-7). Essa desfusão poderia
realmente levar o sujeito à morte (Prata 2000).

Se quisermos manter certa fidelidade a Freud - e aqui faço questão de sublinhar essa idéia de certa fidelidade, e não fidelidade
religiosa, que levaria ao fundamentalismo -, parece-me que não podemos abrir mão do conflito das pulsões. Para que as
pulsões de morte possam produzir um trabalho de criação, é necessário que haja uma ligação com as pulsões de vida, o que
implica uma ligação libidinal com o outro.

É o caso da sublimação.... (E)m "O mal-estar na civilização", Freud afirmou que a sublimação seria um destino pulsional que
atenderia às exigências psíquicas e civilizatórias, tal como uma negociação que intensificaria a produção do prazer a partir
das fontes de trabalho psíquico e intelectual. Aqui se expressariam, por exemplo, "a alegria do artista em criar, em dar corpo
às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades" (Freud 1930: 98). A questão que se
apresenta, portanto, é quando a transgressão pode se transformar em subjetivação.

É importante dizer, já que falamos da violação que a violência contra o outro concretiza, que nem sempre o conflito pulsional
produz criação ou destinos sublimatórios. Nesse sentido, pode-se tentar distinguir desordem de violência: a desordem
impelida pela força da pulsão de morte pode, por um lado, adquirir uma perspectiva criadora, e por outro, ter uma perspectiva
puramente dissimilatória. Dito de outro modo, a violência seria uma tentativa de expulsão da pulsão de morte. Assim, a
suposição não é de uma necessária contraposição entre desordem e criação, ou entre transgressão e criação, mas entre
violência dissimilatória e criação. .....................
Temporalidade contemporânea, desamparo psíquico e consumo - Pode-se distinguir a temporalidade contemporânea
caracterizando-a pelo imediatismo, pela recusa a se fixar em compromissos a longo prazo e em relações duradouras (Bauman
1997), o que faria com que o sujeito inevitavelmente se confrontasse com a solidão do desamparo e consequentemente com a
necessidade de auto-suficiência. Nessa perspectiva, podemos dizer que o desamparo é incrementado na atualidade e muitas
vezes promove um sofrimento que não traz um destino criador à subjetividade.

O tema do desamparo, apesar de estar presente desde o início do discurso freudiano, ganha mais profundidade com o conceito
de pulsão de morte, uma vez que este põe em pauta uma força constante que impulsiona ao desequilíbrio e pode ser sempre
atualizada. O estado de desamparo pode ser precipitado na vida nas diversas situações de perigo e de perda de amor (Freud
1925), e ao mesmo tempo é constituinte da subjetividade.

Ainda que o desamparo possa adquirir positividade, uma vez que seu reconhecimento pode produzir alguma transformação e
faz parte da condução do processo psicanalítico, isso não descaracteriza o horror que seu confrontamento provoca - daí a
multiplicação, na atualidade, das estratégias de camuflamento do desamparo. A atitude religiosa, por exemplo, ocupa um
lugar importante na proteção contra o desamparo, e pode ser remontada ao desamparo infantil e à necessidade de proteção
paterna (Freud 1930: 90).

Consumismo - A religião não é a única estratégia de tamponamento do desamparo. Uma outra talvez se apresente no
CONSUMISMO, que pode se ligar tanto à apropriação de coisas e sensações quanto à valorização da cultura da imagem e do
espetáculo prevista por Debord (1967), na qual o ter e o parecer ocupam o lugar do ser. Para ele, a origem do espetáculo é a
perda da unidade no mundo, que separa o homem daquilo que produz. Não obstante o possível sujeito "puro e uno" de
Debord, pode-se ressaltar aqui o pioneirismo de sua interpretação sobre a imperiosidade do parecer hoje (Fridman 2000: 35).

Talvez seja justamente por causa da fragmentação subjetiva - que pode ser ampliada por meio da fragmentação das
instituições modernas, como o Estado, a família e a escola, que outrora ocuparam importante lugar de amparo -, bem como da
perda da soberania do indivíduo - que se ligava ao projeto identitário da modernidade que aparentemente garantia uma
individualidade centrada e unificada que emergiria no nascimento e se desenvolveria na existência (Hall 1992) -, que as
imagens unificadas de sucesso, beleza e prazer tenham tanto efeito na subjetividade contemporânea. Em nosso mundo, não há
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lugar para o sofrimento, pois vivemos sob o signo do prazer imediato e temos ao nosso alcance inúmeras estratégias de
satisfação e esquecimento da dor. Mais ainda, devemos ser auto-suficientes e não dar vestígios de nossas fragilidades.

Pode-se situar aqui o consumo, uma vez que ele produz sensações de curta duração, caracterizando a identidade
contemporânea em sujeitos convocados a serem colecionadores de experiências, sensações e objetos:

[...] quando muitas pessoas correm simultaneamente na mesma direção, é preciso perguntar duas coisas: atrás de quê
e do quê estão correndo? Os consumidores podem estar correndo atrás de sensações - táteis, visuais ou olfativas -
agradáveis, ou atrás de delícias do paladar prometidas pelos objetos coloridos e brilhantes expostos nas prateleiras
dos supermercados, ou atrás das sensações mais profundas e reconfortantes prometidas por um conselheiro
especializado. Mas estão também tentando escapar da agonia chamada insegurança. Querem estar, pelo menos uma
vez, livres do medo do erro, da negligência ou da incompetência. Querem estar, pelo menos uma vez, seguros e
confiantes; e a admirável virtude dos objetos que encontram quando vão às compras é que eles trazem consigo (ou
parecem por algum tempo) a promessa de segurança (Bauman 2001: 95-6, grifos do autor).

Ampliando a idéia de consumo e incluindo a temática da violência, pode-se conjeturar que o consumo também se apresenta
por meio do canibalismo utilitário e instrumental que marca as relações, no qual não somente o outro não é reconhecido em
sua dimensão alteritária, como sua destruição passa a ser necessária.

Dessa maneira, o valor do outro é ligado ao usufruto que possa se obter dele. Nessa medida, o outro é um unicamente um
objeto de uso, podendo ser eliminado se não se prestar ao consumo. Esse não-reconhecimento da alteridade é enriquecido,
nas palavras de Bauman, pela precariedade das condições econômicas e sociais, que treinam os sujeitos a perceber "o mundo
como um contêiner cheio de objetos descartáveis, objetos para uma só utilização; o mundo inteiro, inclusive os outros seres
humanos (ibid.: 186, grifos do autor).

Nesse contexto, a violência como afirmação da força sublinha a fragilidade dos laços sociais e a lógica da "lei do mais forte".
Assim, se a vida é marcada pela abertura à criação, a violência que destrói essa possibilidade também é avassaladora . Pode-se
mesmo dizer que a velocidade pela qual a violência se instala nos tira, assustadoramente, do lugar de espectadores: não mais
assistimos à violência, mas nos tornamos participantes dela, não somente quando respondemos com violência à violência,
mas quando não a percebemos. É aí que se instaura, em realidade, o que pode ser chamado de naturalização da violência.

Percebe-se aqui uma franca queda dos laços sociais, uma vez que, para que estes prevaleçam, é preciso que o sujeito
reconheça que não é auto-suficiente, necessitando do outro para sobreviver (Birman, 2000). Então, pode-se dizer que seria
necessário o reconhecimento do desamparo.

Destruição, laço social e reconstrução - O vínculo social se apresenta, em princípio, como um vínculo trágico: ele nos faz
compreender que os outros não existem só como objetos possíveis para nossa satisfação, mas como sujeitos de seus desejos,
podendo nos rejeitar ou amar, e representar perigos permanentes ao nosso narcisismo e sobrevivência (Enriquez, 1990). No
outro, fundamos nossas esperanças, alianças e rivalidades. Esse duplo aspecto, de violência e de amor, é característico de
nossos vínculos alteritários. Estaríamos então fadados à decadência, uma vez que, ao mesmo tempo em que somos
insuficientes, também temos uma poderosa quota de agressividade? Lembremos as palavras de Freud:

Por trás disso tudo, há um efetivo fragmento de realidade que se pretende desmentir; o ser humano não é um ser
manso, amável e que, no máximo, pode defender-se quando o atacam [...]. Em conseqüência, o próximo não é
somente um possível auxiliar e objeto sexual, senão uma tentação para satisfazer sobre ele a agressão, explorar sua
força de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, apoderar-se de seu patrimônio,
humilhá-lo, causar-lhe dores, torturá-lo e assassiná-lo (Freud 1930: 108).

Apesar dos inúmeros exemplos que confirmam o realismo freudiano, vale indicar que, anos antes de escrever "O mal-estar na
civilização", ao conversar com Rilke sobre a propensão de tudo que é belo e perfeito estar sujeito à decadência, Freud (1916)
já reconhecia a destruição inevitável da vida, dos homens e a fragilidade das coisas. Ainda não havia criado o conceito de
pulsão de morte nem vivia sob o signo do imediatismo, mas já percebia a presentificação da decadência na vida.

Diante da descrença de Rilke e de sua própria, Freud resguardava certo otimismo, indicando que a vida é um exercício
constante de reconstrução, mesmo perante a desilusão da guerra. A transitoriedade do belo não implica a perda de seu valor, e
é justamente dessa fragilidade que podemos extrair a preciosidade da vida. Ao perceber a caduquez de coisas que pareciam
permanentes, Freud apostou no valor da transitoriedade.

O complicado hoje é a transitoriedade das parcerias, pois o laço humano é como um objeto de consumo a ser substituído, algo
de que se espera satisfação imediata e que se rejeita quando não satisfizer (Bauman 2001: 188). Para Bauman, contudo, há
uma outra ligação entre a "consumização" de um mundo precário e a desintegração dos laços, pois, ao contrário da produção,
o consumo é uma atividade irremediavelmente solitária, que não requer cooperação, mesmo quando realizada na companhia
de outros (ibid.: 189).
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Por fim, pode-se dizer que se a violência e a destruição se presentificam de forma assustadora, os laços sociais nos mantêm
vivos e menos solitários, e portanto devemos insistir em recriá-los, mesmo quando somos alimentados continuamente pela
violência no cotidiano.

O exercício, assim, seria a negociação com o compromisso da não-negação ou da supressão das diferenças (ibid.: 204),
reconhecendo que o bem comum é apresentado por meio de múltiplas versões (Vaz, 2001). Pode-se lembrar aqui Foucault
(1964), quando afirmou que o trabalho do pensamento busca provocar, tanto quanto possível, o descaminho daquele que
conhece, e não a legitimação do que já se sabe.

9. Narcisismo, televisão, consumismo e sociedade do espetáculo

(Seleção de partes de palestra proferida pelo psicanalista Sérgio Telles)


(Fonte: http://www.estadosgerais.org/gruposvirtuais/telles_sergio-mal-estar_na_civilizacao.shtml)

(O título original é: De novo e sempre mal estar na civilzação)

Em O MAL ESTAR NA CIVILIZAÇÃO, Freud diz que na pulsão destrutiva, agressiva, advinda da pulsão de morte, está o
maior perigo à civilização. Além da identificação e das relações amorosas, a única forma de contornar, controlar e reprimir a
agressividade humana é através do processo de sua internalização. Desta forma, a agressão ao invés de ser dirigida para fora,
se volta para dentro de cada um de nós. Isto se dá através da ambivalência do complexo de Édipo reforçada pela pulsão de
morte, pelos processos de identificação, responsáveis pela formação do super-ego, que - entrando em tensão com o ego -
estabelece o sentimento de culpa.

O sentimento de culpa seria o mal-estar da cultura, o preço de vivermos em sociedade, reprimindo a sexualidade e a
agressividade. Sob esta ótica, o mal-estar é estrutural, próprio dos processos de organização do psiquismo do homem, do fato
de ele existir, de ser, pois ele só pode ser e existir como homem dentro da civilização. A existência humana é problematizada
por não mais ser natural. Em relação a ela, as leis da natureza são substituídas pelas leis da cultura. Por esta razão, se - por um
lado - a civilização em si, provoca um mal-estar, por outro lado, sem civilização não haveria humanidade, seríamos apenas
outros primatas regidos pela natureza. A primeira e maior lei cultural, aquela que nos separa definitivamente dos outros
animais, é o tabu do incesto, a regulamentação das relações sexuais, com a conseqüente organização das relações de
parentesco, presentes em qualquer sociedade humana, mesmo naquelas ditas primitivas.

Sendo assim, vê-se que o mal-estar independe das estruturas sociais externas para se organizar como tal.

Era por ter essa visão da importância das pulsões e da forma como se constitui o sujeito que Freud via com grande ceticismo
as afirmações do marxismo-leninismo que, supervalorizando a noção da importância dos fatores econômicos na organização
social humana, acreditava estar construindo um homem novo ao abolir a propriedade privada, tida como a corruptora de sua
natureza originalmente boa.

Diz Freud:

"A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a
propriedade ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha
abandonado sua forma anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre as pessoas (com a única
excessão, talvez, do relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os direitos pessoais sobre a
riqueza material, ainda permanecem, no campo das relações sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da
mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de
igualdade".

A agressividade, e alguns aspectos anais da propriedade, se assentam no arcaico desejo de posse do objeto amoroso, da posse
do outro, dialética que se instala nos momentos de estruturação do sujeito. São sentimentos que não são abalados por
mudanças superestruturais. Além do mais, a idéia de que a distribuição equitativa da propriedade seria possível, de que com
isso se poria fim às diferenças entre os homens, base das lutas, lembra Freud, não passa de uma fantasia, de um desejo
distante da realidade. Diz ele:

"Quem quer que tenha provado as desgraças da pobreza em sua própria juventude e experimentado a indiferença e a
arrogância dos abastados, deveria achar-se a salvo da suspeita de não ter compreensão ou boa vontade para com os
esforços destinados a combater a desigualdade de riqueza entre os homens e tudo a que ela conduz. Certamente, se
se fizer uma tentativa para basear esta luta numa exigência abstrata, em nome da justiça, da igualdade para todos os
homens, existirá uma objeção muito óbvia a ser feita: a de que a natureza, por dotar os indivíduos com atributos
físicos e capacidades mentais extremamente desiguais, introduziu injustiças contra as quais não há remédio" (grifos
meus). Ou seja, a forma absolutamente aleatória e injusta com que a natureza distribui os dons de beleza e
inteligência continuaria gerando privilegiados e desprivilegiados, mantendo motivos para a competição, a rivalidade,
a inveja e a luta entre os homens.
52

Sendo o malestar estrutural, independente das organizações sociais, implicaria isso um niilismo político freudiano? Todos os
modelos políticos sociais seriam igualmente enganosos e ilusórios? Tanto faz um regime totalitário como uma democracia?
Mais ainda, sendo o mal-estar estrutural, implicaria também um niilismo terapêutico da psicanálise?

Claro que não, pois ao acreditar que a única salvação do homem está na aceitação da civilização como uma de nossas maiores
conquistas ........, Freud disto faz decorrer uma série de consequências das mais importantes... Exige-se pois um Estado
iluminista, que permita o crescimento intelectual de seus cidadãos, para que possam desenvolver suas potencialidades ao
máximo, afastando-os de uma tutela infantilizadora e castradora. Neste novo iluminismo, evidentemente, se inclui o
conhecimento da importância do inconsciente e de sua presença em todo ato humano.

Do ponto de vista terapêutico, Freud sustenta que somente ao superar as amarras narcísicas onipotentes, o que possibilita o
assumir sua verdadeira dimensão trágica de ser-para-morte, o homem pode desabrochar plenamente em todas as suas
possibilidades.

Se Freud criticava a URSS por acreditar que o final da propriedade privada acabaria com a agressividade, sem reconhecer que
esta tem bases na posse do objeto amado, na analidade, o que pensaria ele hoje da sociedade capitalista, onde a "propriedade
privada", travestida de e estilhaçada em "objetos de consumo" é estimulada incessantemente pela mídia e pela propaganda,
fetichizando-a a mais não poder? A ilusão alimentada pela ideologia é que consumir, comprar, ter a propriedade dos mais
diversos objetos trará a felicidade, a desejada completude narcísica perdida.

Narcisismo e Sociedade do espetáculo - O que diria de nossa sociedade atual, denominada por Debord como "sociedade do
espetáculo"? Essa sociedade onde o poder - seja qual for sua inclinação - para se perpetuar em sua situação de privilégio
instala o "espetáculo", onde a realidade é totalmente escamoteada pela manipulação das massas através da midia e da
propaganda, tornadas onipresentes e oniscientes, ambas a venderem ilusões e mistificações? Nesta sociedade, a mídia, em
aparente pletora de informação, na verdade desinforma sistematicamente na medida em que não expõe, ou o faz de forma
distorcida, justamente aquilo que efetivamente interessa saber e informar. Ambas - midia e propaganda - se empenham em
fragmentar o raciocínio lógico e destruir a noção de história, promovendo um eterno e autônomo presente, na ignorância ou
na negação de um passado ligado ao futuro. Nesta sociedade, a irracionalidade a tudo permeia, a produção econômica é
regida por demandas artificialmente criadas e a única lógica vigente é a da permanência do poder, que usa de todos os
recursos para se perpetuar. "O espetáculo confundiu-se com a relidade, ao irradiá-la", diz Debord. .......

Por dificultar o acesso à realidade, por alimentar sistematicamente ilusões, por negar a castração simbólica, essa "sociedade
do espetáculo" dá margem ao que muitos chamam de "novas formas de subjetivação", que poderiam ser entendidas como
novos transtornos de caráter, os transtornos de ordem narcísica, as personalidades borderline.

Birman afirma que as "depressões", "síndromes do pânico" (essas duas grandes vedetes dos consultórios atuais) e as
toxicomanias decorreriam da frustração narcísica. A necessidade de manter a satisfação narcísica alimentaria o narcotráfico e
a própria ênfase atual da psiquiatria na farmacologia, a seu ver, seria uma contrapartida, um movimento próximo ao do
narcotráfico, por enfatizar a crença na possibilidade de ter rápidas e fáceis satisfações químicamente condicionadas,
ignorando a importância do mundo simbólico do paciente.

Drogas e narcisismo - Vejo a grande incidência dos distúrbios narcísicos atuais de uma forma um tanto diferente. Se
entendemos o narcisismo como o momento de fusão com o objeto primário, as disfunções narcísicas apontam para a
existências de sujeitos nos quais a castração simbólica não operou adequadamente, deixando-os permanentemente numa
atitude de adição frente a suprimentos narcísicos dos quais não podem abrir mão, sem os quais não podem subsistir . Esses
suprimentos narcísicos poderão ser fornecidos pela droga ou pelo outro, ao qual há uma aderência, uma dependência fusional
pouco reconhecida. Nesses casos não há o reconhecimento de uma efetiva alteridade, pois o sujeito não se discrimina
inteiramente do objeto, está nele entranhado sem o reconhecer e sem se reconhecer. Aparentemente ele "usa" o outro, na
verdade ele necessita vitalmente deste outro, não poderia existir sem ele.

Ao lado da superestrutura constituída pela "sociedade do espetáculo", que outras explicações teríamos para o aparente
aumento destas patologias narcísicicas? Seria - como muitos dizem - a decadência do nome-do-pai, da lei, o que resultaria
numa castração simbólica evitada? A família - por vários motivos - não estaria mais exercendo sua função primordial de lugar
onde se estrutura a subjetividade, onde se constitui o sujeito humano, onde a função materna e a função paterna tomam corpo
e são exercidas, proporcionando as matrizes identificatórias essenciais, mediando os padrões culturais da sociedade para as
novas gerações?

Televisão e narcisismo - Como já foi dito, esse mundo da patologia narcísica é largamente alimentado pela "sociedade do
espetáculo". A mídia, especialmente a toda-poderosa televisão, nos bombardeia initerruptamente com imagens de sucesso
sexual e financeiro, mostrando um novo olimpo, onde desfilam os atuais deuses cheios de beleza, juventude, dinheiro e fama.
Ela promete a acesso a este Olimpo, desde que sigamos suas instruções de consumo, insistemente propagadas através da
publicidade. Isso tem um efeito altamente nocivo. Sabemos que a publicidade em si é enganosa, é uma falácia. Para vender
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seu produto, apela para a fantasia de todos, promete a realização de secretos desejos inconscientes. Sabemos de tudo isso,
mas, como diz Mannoni, "mesmo assim", seguimos as instruções de consumo, na impossível esperança de atingir o paraíso
prometido. Quando se esgota a denegação e a realidade se impõe, resta apenas uma grande frustração com as promessas não
cumpridas, um aumento das feridas narcísicas, um imenso incremento da inveja frente aos felizes habitantes do Olimpo.

Dizendo de outra forma, a televisão impõe padrões narcísicos absolutamente irrealísticos veiculados massivamente através da
publicidade, frente aos quais todos nós reagimos desenvolvendo uma forma perversa de pensar, como disse Mannoni..

Frente ao narcisismo inevitavelmente ferido pela realidade, só restam duas alternativas. A primeira alternativa é tentativa
desesperada de restaurá-lo, numa insana procura de subsídios narcísicos. Drogas, relações fusionais, negação da alteridade,
intolerância, projeção do insuportável, o querer acreditar que tudo se resolve fácil e rapidamente. Às vezes me parece que a
psiquiatria, como diz Birman, talvez inadvertidamente, entre por esta via, acreditando tudo poder fazer com as drogas,
dispensando a dimensão humana, subjetiva, simbólica do paciente. Todas estas medidas estão intrinsecamente ligadas à
forma de funcionamento da "sociedade do espetáculo".

A outra alternativa é a que aquela que a psicanálise oferece, indo na contra-mão do espírito do tempo, nadando contra a atual
maré, afrontando a "sociedade do espetáculo". É proporcionar o confronto com a inevitável ferida narcísica da castração,
única via para uma integração maior do psiquismo e um contato mais efetivo com a realidade interna e externa de cada um.
Não deve nos produzir muita admiração, constatar que os compradores de ilusão, e eles são legião, não se interessam muito
por tal mercadoria.

10. Paixões, amor, repressão, Eros e Thanatos - Maria Rita Kehl

(Fonte: "Os Sentidos da Paixão", Cia das Letras, 1987, São Paulo, 472-482)

A matéria-prima de que se originam as paixões são as pulsões em duas grande vertentes: Eros (pulsões de vida) e Thanatos
(pulsões de morte). Nos parece evidente a relação entre pulsão e vida mas não a outra associação, pulsão/morte. Mesmo
sabendo que a morte é a única certeza que temos sobre o destino de tudo o que é vivo. Mesmo constatando (Freud) que toda
matéria viva tende a voltar ao estado inorgânico. Mesmo constatando que é a vida, e não a morte, que representa uma espécie
de milagre, de improbabilidade da matéria......
Ainda que a vida, e não a morte, seja o fruto de ima improbabilidade extrema, nos parece mais fácil compreender as pulsões
de vida do que as de morte. Por quê? porque estamos vivos, e a vida, "em seu caminho inevitável para a morte" (Gil) quer se
perpetuar tanto quanto possível. Freud outra vez: "o organismo quer morrer - mas 'à sua maneira' "...
As manifestações mais primitivas das pulsões de vida são as da defesa da sobrevivência do indivíduo - que buscam manter o
organismo nesse estado de preservação (e movimento) da forma. Que buscam o sono, o alimento, a excreção de toda a
matéria tóxica do organismo; que buscam a água, o ar, o calor. A estas se mesclam as pulsões eróticas que buscam de certa
forma estas mesmas coisas, em seu estado de fusão inicial com o corpo materno. O calor, o repouso, o alimento que Eros
procura, ele procura sob a forma de contato com outro ser vivo - e seu poder de irradiação é tão violento que ele contamina
(erotiza) o grupo das pulsões de vida. De tal forma que todas as funções vitais vão sendo carregadas de erotismo pela vida
afora; e a tal ponto que a psicanálise batizou de Eros o conjunto das pulsões de vida.

Também parece estranho que entre as pulsões eróticas se encontre a agressividade. A tendência agressiva não é apenas, como
poderia parecer, um componente das pulsões da morte; ao mesmo tempo, o que impele uma pessoa ao contato com outra(s),
ou com o mundo em geral, não são somente impulsos amorosos, de fusão e aceitação. O contato agressivo pode ser, por
exemplo, uma tentativa de modificar o outro, ou o mundo, para torná-los mais compatíveis com o princípio do prazer. que é,
no limite, urna tendência destrutiva, mas também representa a vocação humana para a rebeldia. Corno disse Helio Pellegrino
em sua palestra aqui: o homem é aquele ser para o qual "o mundo, tal como está, não serve"...
Outra função - a mais evidente - dos impulsos agressivos é a defesa perante a ameaça que o outro pode representar. Neste
sentido um dos pactos fundamentais de toda forma de convivência social dita civilizada é aquele que propõe (pela força ou

pelo consenso; mas, em geral, o que é consenso algum dia se impôs pela força) a repressão de grande parte da agressividade
em troca das vantagens da convivência. Mas os instintos não moram em departamentos estanques: ao contrário, formam uma
espécie de trama sobre a qual se estrutura a psique. Assim, o preço que pagamos pelo pacto-de-não-agressão que funda a
nossa (entre outras) civilização é o de um rebaixamento geral dos instintos de vida. Em "O por que da guerra?", Freud
compara o processo de civilização da humanidade com o da domesticação de certos animais: "A este processo devemos o
melhor do que alcançamos e também boa parte do que ocasiona nossos sofrimentos. Suas causas e origens são incertas; sua
solução, duvidosa. [ ... ] Talvez leve à desaparição da espécie humana (grifo meu) pois inibe a função sexual em mais de um
sentido"...
Enquanto o vetor erótico impulsiona a vida humana ao contato, ao embate com o outro e com a realidade - impulsos, como se
pode constatar, geradores de constantes tensões -, o outro vetor da trama pulsional impele o ser humano ao repouso, à
entropia. É Thanatos, o grupo das pulsões de morte, que quer a abolição das tensões, o grau zero de energia. Quando Freud se
pergunta sobre o que está "mais além do princípio do prazer", o que nos move para atividades re petitivas onde aparentemente
não há satisfação de nenhum desejo, surge uma das hipóteses mais discutidas e freqüentemente mal-entendidas da
psicanálise: mais além do princípio do prazer está a tentativa do organismo de retornar ao inorgânico. Já que a vida é tensão,
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excitação, irritação da matéria. já que o desejo não encontra satisfação definitiva e não pára de renascer de suas satisfações
efêmeras, Thanatos deseja a abolição do desejo; o retorno à matéria inanimada da qual um dia, por um acaso extremo, a vida
se gerou da coesão improvável, e até hoje misteriosa, entre algumas moléculas.
A vida é uma espécie de vitória sobre alguma coisa - sobre a força conservadora do inorgânico . Somos todos sobreviventes
de nossa "vontade" de morrer. Sobreviventes porque o organismo, uma vez jogado à vida, quer se conservar assim e fazer seu
próprio percurso até a morte. Morremos antes de saber como seria este percurso. As atividades da vida nos tiram a vida antes
que possamos saber qual seria o caminho ideal da matéria viva para a morte, a acomodação suave para este repouso que não
conhecemos, mas que está representado no inconsciente por todas as fantasias nirvânicas de relaxamento, de abolição das
tensões, de paz.

E aqui está por que Thanatos não impera soberano sobre Eros. Porque a representação mais próxima do repouso absoluto que
temos marcada pela experiência no nosso inconsciente não é a morte - já que ainda não morremos - e sim a vida intra-uterina:
a fusão perfeita com a corpo materno, quando não há desejo porque todas as necessidades estão sendo supridas
continuamente. É desses nove meses de perfeição que o ser vivo tira a "memória" do repouso; e é por isso que, enquanto
busca o repouso que pode ser a morte, está buscando também o repouso do contato, da fusão com o outro.
É porque Eros e Thanatos no limite buscam a mesma coisa - o retorno a um estado anterior , prazeroso -, que não é um, nem
outro, que move a vida, mas a tensão constante, dialética (Freud não usou esta palavra) entre os dois. O que mantém ligada a
trama das pulsões é que eles todos são conservadores: e enquanto Thanatos busca o repouso Eros busca o estado de fusão
narcísica com o outro (representante da mãe, no inconsciente) que nos promete a abolição da confrontação cansativa e
ameaçadora com o mundo, inaugurada com o nascimento e só abolida na morte. Na fusão narcísica inicial com o corpo da
mãe (assim corno em momentos privilegiados da paixão ... ) o mundo desaparece: eu sou o mundo, o mundo é uma extensão
de mim.
O estado narcísico da vida intra-uterina, que a criança conserva na fantasia nos primeiros meses de vida até que alguma
experiência de separação venha desiludi-la, é um estado em que o amor ainda não tem lugar. Diz Melanie Klein que, para o
pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é recebido como bom e prazeroso ele sente como sendo parte de si mesmo. Só quando
alguma coisa frustra a criança é que ela a sente como sendo parte do mundo externo. "O bom sou eu; o mau é o não -eu" - é
este o mundo do narcisismo. O primeiro sentimento de diferenciação criança-mundo é o ódio, Ela só vem a sentir amor por
um objeto fora de si mesma depois de ter sido frustrada algumas vezes pela mãe. Só depois de algumas frustrações é que a
criança consegue perceber que o objeto gratificante que ela pensava ser parte dela mesma não é. O objeto que satisfaz é o
mesmo que frustra. O amado e o odiado são um só - ambivalência que nos acompanha pela vida toda. Ambivalência que é da
essência de toda relação amorosa, pois todo objeto que satisfaz também frustra, e o absoluto não se recupera mais...

Se a frustração na vida adulta mobiliza às vezes todo o ódio de que somos capazes, nos é difícil imaginar (ou "lembrar?") a
magnitude desse ódio no recém-nascido. A criança pequena é absolutamente dependente dos cuidados da mãe ou de seus
substitutos, e a falta ou a demora desses cuidados é sentida por ela como uma ameaça à sua vida. A fome, por exemplo, uma
sensação que o recém-nascido não conheceu na vida intra-uterina, aparece para ele com uma violência aterradora; e o ódio
que ele sente por não ser imediatamente alimentado/aplacado é diretamente proporcional a este terror. São demônios atacando
o bebê a partir de dentro dele mesmo.
As fantasias e necessidades de uma criança recém-nascida estão sob o pleno domínio das paixões em seu "estado bruto", e, ao
contrário da valorização romântica que costumamos fazer a respeito das paixões desenfreadas, a irrupção dessas excitações
sem nenhum mecanismo psíquico mediador, controlador de sua intensidade, é sentida como extremamente desprazerosa. Daí
que uma certa dose de repressão, de contenção das paixões é uma necessidade interna da psique, e o papel ideal dos adultos
seria simplesmente o de ajudar a criança a lidar, a dar continente e ter um certo controle sobre suas emoções.

Como a repressão que a sociedade nos obriga a fazer em geral é bem maior do que aquela necessária para lidarmos com
nossas paixões, mantemos uma espécie de mistificação nostálgica do "estado natural" em que desejos, terrores e ódios são
intensos. Em função de nossa pequena capacidade de sentir prazer, vivemos saudosos de um estado primitivo em que a
satisfação dos desejos também era intensa, e ignoramos que fomos nós os primeiros agentes da contenção de nossas paixões:
uma necessidade própria do ser humano, necessidade de sobrevivência psíquica do pequeno ser que teme naufragar no mar
furioso de suas demandas furiosas.

Estou tentando descrever os sofrimentos que são conseqüência dos primeiros embates do pequeno narcisista com o mundo,
num momento da vida em que o desejo do absoluto ainda não foi abandonado e nem sequer abalado em sua onipotência. O
desejo quer o repouso, o desejo quer o absoluto. Esse absoluto que foi a vida intra-uterina, e depois, definitivamente perdido,
sobrevive e renasce sempre nas fan tasias inconscientes. Se pudesse, o desejo nos conduziria de volta à fusão total com o ser
amado: se pudesse. Mas não pode. Porque a realidade, nossa inimiga desde sempre, é também a contraposição à onipotência
do desejo e nos obriga a barganhar o absoluto em troca de muitas, de infinitas outras satisfações não absolutas que podemos
obter pela vida. A realidade é inimiga da satisfação absoluta do desejo, mas o princípio de realidade dentro de nós, aliado do
princípio do prazer, nos ensina os caminhos para a vida e para o amor em troca do abandono do narcisismo primário.

É dessa brecha entre o tudo que se quer e aquilo que se pode que nascem as possibilidades de movimento do desejo,
movimento que não cessa enquanto a vida não cessa. Não existe objeto que satisfaça plenamente o desejo e é justamen te por
isso que ele não pára de renascer de cada pequena satisfação, de cada pequeno repouso: é justamente por isso que a vida é
tensão permanente, é movimento permanente: o que não encontro aqui, vou buscar noutro lugar; se não encontro o absoluto,
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sigo perseguindo tudo o que se aproxima das minhas representações da perfeição.
A esta impossibilidade de manutenção do estado narcísico do qual fomos expulsos com o nascimento a psicanálise chama
castração. Freud começou a utilizar este conceito a partir da observação de fantasias angustiantes de seus pacientes, que
expressavam literalmente o medo da perda do pênis, e este foi o primeiro sentido do complexo de castração.
As associações pênis-falo/ falo-significante da falta nos levam a entender a castração como um outro corte: o corte que nos
separou da nave-mãe e nos expôs nossa incompletude diante do universo. É o pensamento de Lacan que nos ajuda a trazer
este conceito para o terreno simbólico.

Castração é perda, é falta, é limite imposto à onipotência do desejo. A diferença anatômica entre os sexos apenas simboliza,
na infância, essa perda e favorece para o menino a ilusão de completude ao mesmo tempo em que o atira à angústia diante da
possibilidade da perda (perda que ele já sofreu, mas nega) - enquanto favorece para a menina a desilusão em relação à sua
completude no mesmo tempo em que a atira à inveja e às tentativa fálicas de restauração do narcisismo ferido. Mas na
verdade não há solução para esta perda: castrados somos todos.

A ilusão do pequeno narcisista de que ele é um com a mãe, de que ele é tudo o que a mãe deseja e a mãe é tudo o que ele
deseja, essa ilusão se rompe quando o desejo da mãe se move para outro lugar - um lugar a que chamamos pai, mas que pode
ser qualquer outra instância da cultura que interdite o idílio entre a criança e a mãe. O pai é o agente da castração - mas , a
rigor, quem castra é a mãe. Se a mãe recusa formar um todo narcísico com o filho; se a mãe aceita sua incompletude e
permite que seu desejo não se detenha todo na criança; se a mãe suporta essa perda que é o parto quando a criança deixa de
ser posse sua para se tornar posse da vida - então, ela castra. A mãe psicótica, a mãe que recusa sua incompletude e faz do fi-
lho seu falo, não castra. E mantém no inconsciente de seu filho, intacto, o narcisismo primário, diminuindo muito as chances
de que o pai possa interditar sua onipotência. Pois, se mãe quer se fazer de completa com o filho, ela não deseja o pai; e o pai
não-desejado irrompe na cena idílica mãe-criança, ou corno rival desprezível ou corno inimigo aterrador - não como o
portador amigável de um convite para que a criança renuncie ao mundo da natureza (do incesto) em troca do imenso
repertório de possibilidades que é o mundo da cultura e do amor por outros seres humanos.
A castração é, portanto, essa ferida "moral", essa perda de uma ilusão paradisíaca em troca da qual se ganha a possibilidade
de continuar vivendo - já que a manutenção da ligação umbilical com a mãe só pode levar à psicose ou à morte.
(A castração é a perda de um privilégio que já se desfrutou, perda que abre em troca um leque de possibilidades de se viver o
novo. A conservação do narcisismo é que é a verdadeira perda porque é a manutenção (ilusória, ainda por cima, um mau
negócio!) de um estado antigo que não permite que o desejo se mova. Nesses termos, a castração é um evento absolutamente
progressista na nossa vida.
Mas é preciso relativizar a castração, que pode ocorrer de maneiras diferentes na história de vida de cada um. A situação
extrema de castração - o abandono, o desamor, a mãe que não encontra absolutamente nenhuma gratificação narcísica
contemplando a criança (a mãe para quem os filhos só representam evidências de sua própria castração); e do outro lado o pai
que é portador de interdições absolutas e não aponta nenhuma saída para o desejo da criança, o pai opressi vo, o pai
indiferente, que abandona e não dá amor - essas situações de extrema castração não trazem nenhum beneficio progressista
para a vida da criança. Ao contrário, apresentam-lhe o mundo como um panorama tão ameaçador e/ou tão interditado que a
libido infantil só encontra saída encerrando-se em si própria e abandonando ou rebaixando ao máximo todas as suas
pretensões eróticas. São situações em que a castração não representa urna saída para o narcisismo da criança.
Todas essas situações vividas pela criança em seus primeiros contatos com suas demandas pulsionais e com as formas
apaixonadas que essas pulsões vão adquirindo são revividas na paixão amorosa. A primeira fantasia que surge nas relações
apaixonadas da vida adulta é a da restauração de nosso narcisismo primário; a primeira esperança do (a) apaixonado (a) é a
de reencontrar no ser amado sua total completude. Na paixão amorosa espero encontrar este ser que me completa, cujos
desejos são meus desejos - este ser que é igual a mim e que chegou para me salvar da condição solitária que é a própria
condição humana: cada um de nós é um ser único diante do mundo. Só quando a paixão nesse primeiro momento,
mergulhada em suas fantasias, sofre as primeiras desilusões, é que o amor pode se instaurar.
Não quero com isso endossar a oposição ideológica que se faz entre amor e paixão, em que a paixão é representada como um
momento fulgurante - mas impossível - do encontro entre duas pessoas, enquanto o amor é visto como a água morna do
dia-a-dia cinzento, com o qual somos obrigados a nos conformar. A verdade é que as fantasias do início de uma relação
apaixonada não concedem existência própria ao outro, que se torna um depósito das fantasias mais arcaicas, um representante
da possibilidade de restauração do narcisismo ferido, um outro eu-mesmo que deseja as mesmas coisas que eu e me resgata
para sempre da condição da falta em que me encontro (que é a própria condição humana) para me elevar à condição dos
deuses: a recuperação da onipotência.
Mas passado este momento de felicidade plena (que também pode ser de intensa angústia, já que eu já "sei", por experiência,
que o outro me escapará), a paixão amorosa tem que reviver a decepção infantil do recém-nascido que perde a condição de
único no desejo da mãe: o outro volta a se mover. Ganha corpo, existência concreta para além das minhas fantasias
apaixonadas. O outro não pode estar sempre; o outro não pode dar tudo; e, o que é pior: eu não posso lhe dar tudo. A
realidade se instala mais uma vez entre os dois-que-tentavam-ser-um e revela o que estava sendo negado: a falta; mais uma
vez e sempre, a falta.
Dessa decepção revivida na paixão amorosa - uma reedição das primeiras frustrações infantis - o outro pode ganhar vida
própria, independência, existência para além do meu desejo onipotente. Ou seja, dessa decepção revivida pode nascer o amor .
Ou não: da segunda vez em que o apaixonado se desencanta (revivendo sua primeira experiência de castração) ele pode
escolher a morte. O "amor que mata", na verdade "paixão que mata", símbolo do amor romântico e re cusa do morno e
conformado amor burguês, é o amor que quis se manter apaixonado mas não aceitou a evidência de sua incompletu de.
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Lamartine (um romântico!): "Um único ser vos falta e tudo rica despovoado".
O mundo da desolação pela perda ou afastamento do ser amado que vive sua independência em relação a mim - o ser amado
"absoluto" de quem o apaixonado passa a depender de maneira tão completa que sua falta faz do mundo um verdadeiro
deserto -, este mundo pode ganhar vida, e o apaixonado pode descobrir que também tem condições de se mover dentro dele,
se ele conseguir suportar a desilusão fundamental de não formar um todo indissociável com o objeto de seu amor . Do
contrário, ele pode preferir a morte a viver num deserto. A sua morte, ou a morte do outro. A morte pode ser a outra face do
princípio do prazer, quando ele não consegue se associar ao princípio de realidade. O domínio absoluto do princípio do prazer
não propicia satisfações ao desejo a não ser na fantasia; fora da fantasia o mundo é um deserto onde o desejo não consegue
encontrar seus objetos.

Entre as aspirações de satisfação total das pulsões e a satisfação parcial que a vida nos permite, há um excedente de energia
que não obtém descarga - um excedente de excitação que não se aquieta porque não encontra o que o satisfaça plenamente.
Quais os destinos desse excesso da energia que constitui a matéria-prima das paixões? Um recurso da psique para lidar com o
excedente de energia que não pode ser descarregado - que não obtém repouso - já se incorporou ao repertório do senso
comum: a repressão. Dela só se tem notícia quando é malsucedida. A repressão bem-sucedida não deixa traços. A malsu-
cedida deixa os sintomas, tentativas canhestras da psique de dar ex, pressão ao que não pode ser dito, de trazer à luz oque está
mantido; à força, na obscuridade.
A histeria fundou a psicanálise, "doença" do desejo reprimido que se manifesta no corpo, onde o médico não encontra doença
alguma. O "ataque histérico", misterioso para a medicina, foi para Freud a ponta do fio de Ariadne que ele seguiu para
investigar o labirinto da alma humana. Falar da histeria como uma "doença da alma" para a medicina do século XIX era o
mesmo que propor que a ciência recuasse às práticas de feitiçaria - mas foi a partir de conceitos desse tipo que a psicanálise
nasceu como ciência nova de um objeto recémdescoberto: o inconsciente. E então as falas do corpo da histérica, as falas dos
rituais "ridículos" do neurótico obsessivo começaram a fazer sentido como tentativas de retorno do reprimido.

O reprimido não e o afeto, a energia do desejo. Reprimida é a idéia a que o desejo se associa. O afeto não se reprime; fica
livre e dissociado de seu conteúdo, ligando-se a outros conteúdos e desse modo formando os sintomas. A repressão dissocia o
desejo de seu conteúdo, o que eqüivale a dizer que o neurótico anseia, mas não sabe pelo quê . Ainda que pense saber (os
mecanismos de defesa do ego conseguem criar uma certa coerência entre a personalidade e seus "sintomas") - mas então, não
entende por que não encontra prazer.

Ou seja: a repressão é um mecanismo insuficiente para dar conta do excesso de energia que não encontra meios de descarga .
A repressão dissocia, aliena, faz da pessoa uma cega para seus desejos, ignorante sobre o que é bom para ela. Uma presa fácil
de líderes totalitários, dos grandes pais autoritários que prometem alívio para as angústias de prazer que acompanham todas
as tentativas de retorno do reprimido, em troca da obediência, da adesão total à sua liderança. A repressão é a condição da
obediência: quem não sabe o que quer, quer aquilo que lhe dizem que ele deve querer.

É tão simples assim, e é partindo desse raciocínio simples que Reich veio a entender a adesão do pobre povo alemão ao
nazismo. A energia do reprimido desvinculada da idéia que lhe dá significado constitui a matéria burra das paixões: paixão
alienada de seus conteúdos eróticos, facilmente capturável por propostas tanáticas: o "viva la muerte" do fascismo, a morte
aos judeus (ao outro, ao diferente de mim) do nazismo, o suicídio romântico (ainda a melhor saída dentre essas três) do amor
proibido.

Outro mecanismo de canalização do desejo que às vezes se combina com a repressão, mas não se confunde com ela, é o
desvio de objeto, em que a idéia que representa o afeto não é abolido mas dirige-se a um objeto socialmente permitido - ou
possível - em troca do objeto interditado. O terceiro destino das paixões é a transformação em seu contrário, que consistiria
uma espécie de base psíquica para a hipocrisia. Transforma-se ódio em amor, amor proibido em repulsa, desejo sexual
perverso em nojo. O ódio que ameaça o próprio sujeito do ódio (que pode ser punido, ser odiado em igual medida ou, o que é
pior, pode destruir o objeto de seu amor que freqüentemente é o mesmo objeto de sua agressividade) não pode ter sua energia
eliminada mas pode ter seu conteúdo invertido, e então se transforma nesse tipo de amor excessivo, obsessivo, extremamente
ativo que precisa de toda esta atividade para impedir que irrompa sua verdadeira face. É claro que as pessoas que "amam"
segundo esta modalidade são capazes das formas de crueldade mais refinadas e mais sutis, assim como os ascetas reativos em
relação a seus desejos considerados perversos são capazes das formas mais elaboradas e sutis de perversão. Porque nenhuma
dessa formas de repressão, desvio ou negação das paixões são tão eficientes quanto deveriam ser para que elas
desaparecessem sem deixar sinais de vida.

B - TEXTOS DE FREUD

1. Os sonhos

(Do livro: “Cinco lições de psicanálise”, Sigmund Freud, pág. 28-32, Abril Cultura, Coleção “Os Pensadores”, 1974)
(sublinhado: Laerte)

Acompanhem-me agora numa rápida excursão pelo campo dos problemas do sonho. Quando acordados, costumamos tratar
os sonhos com o mesmo desdém com que os doentes rejeitam as idéias soltas despertadas pelo psicanalista. Desprezamo-los,
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olvidando-os em geral rápida e completamente. O nosso descaso funda-se no caráter exótico apresentado mesmo pelos
sonhos que possuem clareza e nexo, e sobre a evidente absurdez e insensatez dos demais; nossa repulsa explica-se pelas
tendências imorais e menos pudicas que se patenteiam em muitos deles. É de todos sabido que a antigüidade não
compartilhou tal desapreço para com os sonhos. As camadas baixas do nosso povo, mesmo hoje, não estão totalmente
desnorteadas na apreciação do valor dos sonhos, dos quais esperam, como os antigos, a revelação do futuro. Confesso-lhes
que não tenho necessidade de nenhuma hipótese mística para preencher as falhas de nossos conhecimentos atuais e por isso
nunca pude descobrir nada que confirmasse a natureza profética dos sonhos. Coisa muito diferente disso, embora assaz
maravilhosa, se pode dizer a respeito deles.

Em primeiro lugar, nem todos os sonhos são estranhos, incompreensíveis e confusos para a pessoa que sonhou. Examinando
os sonhos de criancinhas, desde um ano e meio de idade, verificarão que eles são extremamente simples e de fácil explicação.
A criancinha sonha sempre com a realização de desejos que o dia anterior lhe trouxe e que ela não satisfez. Não há
necessidade de arte divinatória para encontrar solução tão simples; basta saber o que se passou com a criança na véspera ("dia
do sonho"). Estaria certamente resolvido, e de modo satisfatório, o enigma do sonho, se o do adulto não fosse nada mais que
o da criancinha: realização de desejos trazidos pelo dia do sonho. E o é de fato. As dificuldades que esta solução apresenta
removem-se uma a uma, mediante a análise minuciosa dos sonhos.

A primeira objeção e a mais importante é a de que os sonhos dos adultos via de regra têm um conteúdo ininteligível, sem
nenhuma semelhança com a satisfação de desejos. Resposta: estes sonhos estão distorcidos, o processo psíquico
correspondente teria originariamente uma expressão verbal muito diversa. O conteúdo manifesto do sonho, recordado
vagamente de manhã e que, não obstante a espontaneidade aparente, se exprime em palavras com esforço, deve ser
diferenciado dos pensamentos latentes do sonho que se têm de admitir como existentes no inconsciente. Esta deformação
possui mecanismo idêntico ao que já conhecemos desde quando examinamos a gênese dos sintomas histéricos; e é uma prova
da participação da mesma interação de forças mentais tanto na formação dos sonhos como na dos sintomas. O conteúdo
manifesto do sonho é o substituto deformado para os pensamentos inconscientes do sonho. Esta deformação é obra das forças
defensivas do ego, isto é, das resistências que na vigília impedem, de modo geral, a passagem para a consciência, dos desejos
reprimidos do inconsciente; enfraquecidas durante o sono, estas resistências ainda são suficientemente fortes para só os
tolerar disfarçados. Quem sonha, portanto, reconhece tão mal o sentido de seus sonhos, como o histérico as correlações e a
significação de seus sintomas.

De que há pensamentos latentes do sonho e que entre eles e o conteúdo manifesto existe de fato o nexo aludido, os presentes
se convencerão pela análise de sonhos, cuja técnica se confunde com a da psicanálise. Pondo de lado a aparente conexão dos
elementos do sonho manifesto, procurarão os senhores evocar idéias por livre associação, partindo de cada um desses
elementos e observando as regras da prática psicanalítica. De posse deste material chegarão aos pensamentos latentes do
sonho com a mesma perfeição com que conseguiram surpreender no doente o complexo oculto, por meio das idéias sugeridas
pelas associações livres a partir dos sintomas e lembranças. Pelos pensamentos latentes do sonho, descobertos desse modo,
pode-se ver sem mais nada como é justo equiparar o sonho dos adultos ao das crianças. O que agora, como verdadeiro sentido
do sonho, substitui o seu conteúdo manifesto — e isto é sempre claramente compreensível — liga-se às impressões da
véspera e se patenteia como a realização de um desejo não-satisfeito. O sonho manifesto que conhecem no adulto graças à
recordação pode então ser descrito como uma realização velada de desejos reprimidos.

Podem agora os ouvintes, por uma espécie de trabalho sintético, examinar o processo mediante o qual os pensamentos
inconscientes do sonho se disfarçam no conteúdo manifesto. Esse processo, que denominamos "elaboração onírica", é digno
de nosso maior interesse teórico, porque em nenhuma outra circunstância poderíamos estudar melhor do que nele os
processos psíquicos, não-suspeitados, que se passam no inconsciente, ou, mais exatamente, entre dois sistemas psíquicos
distintos, como consciente e inconsciente. Entre tais processos psíquicos recentemente descobertos ressaltam notavelmente o
da condensação e o do deslocamento. A elaboração onírica é um caso especial da influência recíproca de agrupamentos
mentais diversos, isto é, o resultado da divisão psíquica, e parece essencialmente idêntico ao trabalho de deformação que
transforma em sintomas os complexos cuja repressão fracassou.

Pela análise dos sonhos descobrirão os senhores ainda mais, com surpresa, porém do modo mais convincente possível, o
papel importantíssimo e nunca imaginado que os fatos e impressões da tenra infância exercem no desenvolvimento do
homem. Na vida onírica a criança prolonga, por assim dizer, sua existência no homem, conservando todas as peculiaridades e
aspirações, mesmo as que se tornam mais tarde inúteis. Com força irresistível apresentar-se-lhes-ão os processos de
desenvolvimento, repressões, sublimações e formações reativas, de onde saiu, da criança com tão diferentes disposições, o
chamado homem normal — esteio e em parte vítima da civilização tão penosamente alcançada.

Quero ainda fazer notar que pela análise de sonhos também pudemos descobrir que o inconsciente se serve, especialmente
para a representação de complexos sexuais, de certo simbolismo, em parte variável individualmente e em parte tipicamente
fixo, que parece coincidir com o que conjeturamos por detrás dos nossos mitos e lendas . Não seria impossível que essas
últimas criações populares recebessem, portanto, do sonho, a sua explicação.

Impende-nos adverti-los finalmente de que não se deixem desorientar pela objeção de que aparecimento de pesadelos
contradiz o nosso modo de entender o sonho como satisfação de desejos. Além de que é necessário interpretar os pesadelos
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antes de sobre eles poder firmar qualquer juízo, pode dizer-se de modo geral que a ansiedade que os acompanha não depende
assim tão simplesmente do conteúdo onírico, como muitos imaginam por ignorar as condições da ansiedade neurótica. A
ansiedade é uma das reações do ego contra desejos reprimidos violentos, e daí perfeitamente explicável a presença dela no
sonho, quando a elaboração deste se pôs excessivamente a serviço da satisfação daqueles desejos reprimidos.

Como vêem, o estudo dos sonhos já estaria em si justificado, pelo fato de que proporciona conclusões sobre coisas de que por
outros meios dificilmente chegaríamos a ter noção. Foi todavia no decorrer do tratamento psicanalítico dos neuróticos que
chegamos até ele. Pelo que até agora dissemos podem compreender facilmente que a interpretação de sonhos, quando não a
estorvam em excesso as resistências do doente, leva ao conhecimento dos desejos ocultos e reprimidos, bem como dos
exemplos entretidos por este.

2. Sentido da vida, felicidade e princípio de prazer

(Do Livro: “O mal estar na civilização”, Sigmund Freud, pág. 23-35)


(sublinhados: Prof. Laerte)

A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu resposta satisfatória e talvez não
a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram que, se fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta
perderia todo valor para eles. Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de descartar
a questão, já que ela parece derivar da presunção humana, da qual muitas outras manifestações já nos são familiares.
Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais, a menos, talvez, que se imagine que ele resida no fato de os animais se
acharem a serviço do homem. Contudo, tampouco essa opinião é sustentável, de uma vez que existem muitos animais de que
o homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de
animais escaparam inclusive a essa utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para
elas. Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida. Dificilmente incorreremos em erro ao
concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e desmorona com o sistema religioso.

Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu
comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar?
A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa
empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e
de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‘felicidade’
só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em
duas direções, segundo busque realizar — de modo geral ou mesmo exclusivamente — um ou outro desses objetivos.

Como vemos, o que decide o propósito da vida é simplesmente o programa do princípio do prazer. Esse princípio domina o
funcionamento do aparelho psíquico desde o início. Não pode haver dúvida sobre sua eficácia, ainda que o seu programa se
encontre em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo. Não há possibilidade
alguma de ele ser executado; todas as normas do universo são-lhe contrárias. Ficamos inclinados a dizer que a intenção de
que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito
provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível
apenas como uma manifestação episódica. Quando qualquer situação desejada pelo princípio do prazer se prolonga, ela
produz tão-somente um sentimento de contentamento muito tênue. Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer
intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas.

Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito
menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do
mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos
relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que
qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos
fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.

Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se tenham acostumado a moderar suas
reivindicações de felicidade — tal como, na verdade, o próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se
transformou no mais modesto princípio da realidade —, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque
escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque a de obter prazer
em segundo plano. A reflexão nos mostra que é possível tentar a realização dessa tarefa através de caminhos muito diferentes
e que todos esses caminhos foram recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos em prática pelos
homens.

Uma satisfação irrestrita de todas as necessidades apresenta-se-nos como o método mais tentador de conduzir nossas vidas;
isso, porém, significa colocar o gozo antes da cautela, acarretando logo o seu próprio castigo. Os outros métodos, em que a
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fuga do desprazer constitui o intuito primordial, diferenciam-se de acordo com a fonte de desprazer para a qual sua atenção
está principalmente voltada. Alguns desses métodos são extremados; outros, moderados; alguns são unilaterais; outros atacam
o problema, simultaneamente, em diversos pontos. Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a
defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. A felicidade passível de ser
conseguida através desse método é, como vemos, a felicidade da quietude. Contra o temível mundo externo, só podemos
defender-nos por algum tipo de afastamento dele, se pretendermos solucionar a tarefa por nós mesmos. Há, é verdade, outro
caminho, e melhor: o de tornar-se membro da comunidade humana e, com o auxílio de uma técnica orientada pela ciência,
passar para o ataque à natureza e sujeitá-la à vontade humana. Trabalha-se então com todos para o bem de todos.

Contudo, os métodos mais interessantes de evitar o sofrimento são os que procuram influenciar o nosso próprio organismo.
Em última análise, todo sofrimento nada mais é do que sensação; só existe na medida em que o sentimos, e só o sentimos
como conseqüência de certos modos pelos quais nosso organismo está regulado.

O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a intoxicação. Não creio que
alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém, que existem substâncias estranhas, as quais, quando
presentes no sangue ou nos tecidos, provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as
condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos desagradáveis. Os dois efeitos
não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja
substâncias na química de nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhantes pois conhecemos pelo menos um
estado patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem administração de qualquer droga
intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica normal apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e
outra comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída ou aumentada, ao desprazer. É
extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço
prestado pelos veículos intoxicantes na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um
benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na economia de sua libido. Devemos a
tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas também um grau altamente desejado de independência do mundo
externo, pois sabe-se que, com o auxílio desse ‘amortecedor de preocupações’, é possível, em qualquer ocasião, afastar-se da
pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições de sensibilidade. Sabe-se igualmente
que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos. São
responsáveis, em certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser empregada para o
aperfeiçoamento do destino humano.

A complicada estrutura de nosso aparelho mental admite, contudo, um grande número de outras influências. Assim como a
satisfação do instinto eqüivale para nós à felicidade, assim também um grave sofrimento surge em nós, caso o mundo externo
nos deixe definhar, caso se recuse a satisfazer nossas necessidades.

Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos
instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais ao aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes
internas de nossas necessidades. A forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito
pela sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha êxito, o indivíduo, é verdade, abandona
também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e, por outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude.
Seguimos o mesmo caminho quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa
vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores são os agentes psíquicos superiores, que se sujeitaram ao princípio da
realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum, abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o
sofrimento no sentido de que a não-satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob dependência
como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso, existe uma inegável diminuição nas potencialidades de satisfação. O
sentimento de felicidade derivado da satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é
incomparavelmente mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado. A irresistibilidade dos
instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas encontram aqui uma explicação econômica.
Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que nosso aparelho mental possibilita
e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de
maneira que eludam a frustração do mundo externo.

Para isso, ela conta com a assistência da SUBLIMAÇÃO DOS INSTINTOS.

Obtém-se o máximo quando se consegue intensificar suficientemente a produção de prazer a partir das fontes do trabalho
psíquico e intelectual. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Uma satisfação desse tipo, como, por
exemplo, a alegria do artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do cientista em solucionar problemas ou descobrir
verdades, possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia poderemos caracterizar em termos metapsicológicos.
Atualmente, apenas de forma figurada podemos dizer que tais satisfações parecem ‘mais refinadas e mais altas’. Contudo, sua
intensidade se revela muito tênue quando comparada com a que se origina da satisfação de impulsos instintivos grosseiros e
primários; ela não convulsiona o nosso ser físico. E o ponto fraco desse método reside em não ser geralmente aplicável, de
uma vez que só é acessível a poucas pessoas. Pressupõe a posse de dotes e disposições especiais que, para qualquer fim
prático, estão longe de serem comuns. E mesmo para os poucos que os possuem, o método não proporciona uma proteção
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completa contra o sofrimento. Não cria uma armadura impenetrável contra as investidas do destino e habitualmente falha
quando a fonte do sofrimento é o próprio corpo da pessoa. Enquanto esse procedimento já mostra claramente uma intenção de
nos tornar independentes do mundo externo pela busca da satisfação em processos psíquicos internos, o procedimento
seguinte apresenta esses aspectos de modo ainda mais intenso. Nele, a distensão do vínculo com a realidade vai mais longe; a
satisfação é obtida através de ilusões, reconhecidas como tais, sem que se verifique permissão para que a discrepância entre
elas e a realidade interfira na sua fruição. A região onde essas ilusões se originam é a vida da imaginação; na época em que o
desenvolvimento do senso de realidade se efetuou, essa região foi expressamente isentada das exigências do teste de realidade
e posta de lado a fim de realizar desejos difíceis de serem levados a termo. À frente das satisfações obtidas através da fantasia
ergue-se a fruição das obras de arte, fruição que, por intermédio do artista, é tornada acessível inclusive àqueles que não são
criadores. As pessoas receptivas à influência da arte não lhe podem atribuir um valor alto demais como fonte de prazer e
consolação na vida. Não obstante, a suave narcose a que a arte nos induz, não faz mais do que ocasionar um afastamento
passageiro das pressões das necessidades vitais, não sendo suficientemente forte para nos levar a esquecer a aflição real.

Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a realidade como a única inimiga e a fonte de todo
sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas
as relações com ela. O eremita rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso;
pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus aspectos mais insuportáveis sejam
eliminados e substituídos por outros mais adequados a nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio
desesperado, se lance por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é demasiado forte
para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio.
Afirma-se, contudo, que cada um de nós se comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto
do mundo que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade. Concede-se especial
importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um
remodelamento delirante da realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da
humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário dizer que todo aquele que partilha
um delírio jamais o reconhece como tal.

Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se esforçam para conseguir a felicidade
e manter afastado o sofrimento; sei também que o material poderia ter sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um
processo — não por esquecimento, mas porque nos interessará mais tarde, em relação a outro assunto. E como se poderia
esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível por uma notável combinação de aspectos
característicos. Naturalmente, visa também a tornar o indivíduo independente do Destino (como é melhor chamá-lo) e, para
esse fim, localiza a satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da libido que já
mencionamos.

Mas ela não volta as costas ao mundo externo; pelo contrário, prende-se aos objetos pertencentes a esse mundo e obtém
felicidade de um relacionamento emocional com eles. Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer, uma meta,
poderíamos dizer, de cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao esforço original e apaixonado em
vista de uma consecução completa da felicidade. Na realidade, talvez se aproxime mais dessa meta do que qualquer outro
método. Evidentemente, estou falando da modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em
amar e ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós; uma das formas através da
qual o amor se manifesta — o amor sexual — nos proporcionou nossa mais intensa experiência de uma transbordante
sensação de prazer, fornecendo-nos assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do
que persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez? O lado fraco dessa técnica de viver
é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer
outro. É que nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente
infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor. Isso, porém, não liquida com a técnica de viver
baseada no valor do amor como um meio de obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito.

Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida é predominantemente buscada na
fruição da beleza, onde quer que esta se apresente a nossos sentidos e a nosso julgamento — a beleza das formas e a dos
gestos humanos, a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A atitude estética em
relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo
bastante. A fruição da beleza dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não conta
com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade cultural sua. Apesar disso, a civilização não
pode dispensá-la. Embora a ciência da estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem
sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da beleza, e, tal como geralmente acontece,
esse insucesso vem sendo escamoteado sob um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente,
também pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo do sentimento sexual. O amor
da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua finalidade. ‘Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente,
atributos do objeto sexual. Vale a pena observar que os próprios órgãos genitais, cuja visão é sempre excitante, dificilmente
são julgados belos; a qualidade da beleza, ao contrário, parece ligar-se a certos caracteres sexuais secundários.
A despeito da deficiência [de minha enumeração, ..., aventurar-me-ei a algumas observações à guisa de conclusão para nossa
investigação. O programa de tornar-se feliz, que o princípio do prazer nos impõe, ..., não pode ser realizado; contudo, não
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devemos — na verdade, não podemos — abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de
outra. Caminhos muito diferentes podem ser tomados nessa direção, e podemos conceder prioridades quer ao aspecto positivo
do objetivo, obter prazer, quer ao negativo, evitar o desprazer. Nenhum desses caminhos nos leva a tudo o que desejamos. A
felicidade, no reduzido sentido em que a reconhecemos como possível, constitui um problema da economia da libido do
indivíduo. Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo
específico ele pode ser salvo. Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de
quanta satisfação real ele pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele, e,
finalmente, de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo, a fim de adaptá-lo a seus desejos. Nisso, sua
constituição psíquica desempenhará papel decisivo, independentemente das circunstâncias externas. O homem
predominantemente erótico dará preferência aos seus relacionamentos emocionais com outras pessoas; o narcisista que tende
a ser auto-suficiente, buscará suas satisfações principais em seus processos mentais internos; o homem de ação nunca
abandonará o mundo externo, onde pode testar sua força. Quanto ao segundo desses tipos, a natureza de seus talentos e a
parcela de sublimação instintiva a ele aberta decidirão onde localizará os seus interesses. Qualquer escolha levada a um
extremo condena o indivíduo a ser exposto a perigos, que surgem caso uma técnica de viver, escolhida como exclusiva, se
mostre inadequada. Assim como o negociante cauteloso evita empregar todo seu capital num só negócio, assim também,
talvez, a sabedoria popular nos aconselhe a não buscar a totalidade de nossa satisfação numa só aspiração. Seu êxito jamais é
certo, pois depende da convergência de muitos fatores, talvez mais do que qualquer outro, da capacidade da constituição
psíquica em adaptar sua função ao meio ambiente e então explorar esse ambiente em vista de obter um rendimento de prazer.
Uma pessoa nascida com uma constituição instintiva especialmente desfavorável e que não tenha experimentado
corretamente a transformação e a redisposição de seus componentes libidinais indispensáveis às realizações posteriores,
achará difícil obter felicidade em sua situação externa, em especial se vier a se defrontar com tarefas de certa dificuldade.
Como uma última técnica de vida, pelo que menos lhe trará satisfações substitutivas, é-lhe oferecida a fuga para a
enfermidade neurótica, fuga que geralmente efetua quando ainda é jovem. O homem que, em anos posteriores, vê sua busca
da felicidade resultar em nada ainda pode encontrar consolo no prazer oriundo da intoxicação crônica, ou então se empenhar
na desesperada tentativa de rebelião que se observa na psicose.

Religião e felicidade

A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a
aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o
quadro do mundo real de maneira delirante — maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por
fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a
muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que
podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a
religião não consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‘desígnios inescrutáveis’ de
Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma
submissão incondicional. E, se está preparado para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.

3. Amor ao próximo, agressividade, repressão da Sociedade

(Do livro citado acima, pág. 64- 73 )

O trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são precisamente aquelas que as pessoas conhecidas
como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em seus sintomas satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam
sofrimento em si próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus relacionamentos com o
meio ambiente e a sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil de compreender; o primeiro nos apresenta um novo
problema. A civilização, porém, exige outros sacrifícios, além do da satisfação sexual.

Abordamos a dificuldade do desenvolvimento cultural como sendo uma dificuldade geral de desenvolvimento, fazendo sua
origem remontar à inércia da libido, à falta de inclinação desta para abandonar uma posição antiga por outra nova. Dizemos
quase a mesma coisa quando fazemos a antítese entre civilização e sexualidade derivar da circunstância de o amor sexual
constituir um relacionamento entre dois indivíduos, no qual um terceiro só pode ser supérfluo ou perturbador, ao passo que a
civilização depende de relacionamentos entre um considerável número de indivíduos. Quando um relacionamento amoroso se
encontra em seu auge, não resta lugar para qualquer outro interesse pelo ambiente; um casal de amantes se basta a si mesmo;
sequer necessitam do filho que têm em comum para torná-los felizes. Em nenhum outro caso Eros revela tão claramente o
âmago do seu ser, o seu intuito de, de mais de um, fazer um único; contudo, quando alcança isso da maneira proverbial, ou
seja, através do amor de dois seres humanos, recusa-se a ir além.

Até aqui, podemos imaginar perfeitamente uma comunidade cultural que consista em indivíduos duplos como este, que,
libidinalmente satisfeitos em si mesmos, se vinculem uns aos outros através dos elos do trabalho comum e dos interesses
comuns. Se assim fosse, a civilização não teria que extrair energia alguma da sexualidade. Contudo, esse desejável estado de
coisas não existe, nem nunca existiu. A realidade nos mostra que a civilização não se contenta com as ligações que até agora
lhe concedemos. Visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os
meios. Favorece todos os caminhos pelos quais identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da
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comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal
através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. Não
conseguimos, porém, entender qual necessidade força a civilização a tomar esse caminho, necessidade que provoca o seu
antagonismo à sexualidade. Deve haver algum fator de perturbação que ainda não descobrimos.

A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da sociedade civilizada.

Diz ela: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Essa exigência, conhecida em todo o mundo, é, indubitavelmente, mais
antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto
excessivamente antiga; mesmo já em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua
para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um sentimento de surpresa e
perplexidade.

Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como conseguiremos agir desse modo? Como
isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me
impõe deveres para cujo cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela tem de
merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso que dela posso fazer, nem sua possível
significação para mim como objeto sexual, de uma vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão
onde o preceito de amar meu próximo se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante a mim, em
aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de tal modo mais perfeita do que eu, que nela
eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self). Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que
este sentiria se algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também — eu teria de partilhá-lo. Mas, se essa pessoa for um
estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios valores, ou por qualquer significação que já possa ter
adquirido para a minha vida emocional, me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu
amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um
estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele
também é um habitante da Terra, assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que sóuma
pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte — e não, em hipótese alguma, tanto quanto, pelo julgamento de minha
razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu
cumprimento não pode ser recomendado como razoável?
Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente esse estranho é, em geral, indigno
de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não
parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder
auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida
contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma
vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me
caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com
certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso mostre
consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em todo e qualquer caso e inteiramente
fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele imponente mandamento dissesse ‘Ama a teu próximo como este te
ama’, eu não lhe faria objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que desperta em
mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‘Ama os teus inimigos’. Refletindo sobre ele, no entanto,
percebo que estou errado em considerá-lo como uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa.
Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‘É precisamente porque teu próximo não é digno de amor,
mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti mesmo’. Compreendo então que se trata de um caso
semelhante ao do Credo quia absurdum. Ora, é muito provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como
a si mesmo, responda exatamente como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não tenha os mesmos
fundamentos objetivos para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho. Ainda assim, o comportamento dos seres humanos
apresenta diferenças que a ética, desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‘boas’ ou ‘más’.
Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas exigências éticas acarreta prejuízos aos
objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos
deputados francesa, quando a pena capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a
abolição dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma voz vinda do plenário exclamou:
‘Que messieurs les assassins commencent!
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a repudiar , é que os homens não são
criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas
entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo
é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a
sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. — Homo homini lupus. Quem, em face
de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade
espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido
alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando as forças mentais contrárias que
normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma
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besta selvagem, a quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre as atrocidades
cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos povos conhecidos como mongóis sob a chefia de
Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente
guerra mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade dessa opinião.
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente
nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado
dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê
permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões
instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer
limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas .
Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificações e relacionamentos amorosos inibidos em
sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo,
mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A
despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos
mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a
lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em
que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes,
e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria
injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente
indispensáveis. Mas oposição não é necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião
para a inimizade.

Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo eles, o homem é inteiramente
bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A
propriedade da riqueza privada confere poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o
homem excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor.

Se a propriedade privada fosse abolida, possuída em comum toda a riqueza e permitida a todos a partilha de sua fruição, a má
vontade e a hostilidade desapareceriam entre os homens. Como as necessidades de todos seriam satisfeitas, ninguém teria
razão alguma para encarar outrem como inimigo; todos, de boa vontade, empreenderiam o trabalho que se fizesse necessário.
Não estou interessado em nenhuma crítica econômica do sistema comunista; não posso investigar se a abolição da
propriedade privada é conveniente ou vantajosa. Mas sou capaz de reconhecer que as premissas psicológicas em que o
sistema se baseia são uma ilusão insustentável. Abolindo a propriedade privada, privamos o amor humano da agressão de um
de seus instrumentos, decerto forte, embora, decerto também, não o mais forte; de maneira alguma, porém, alteramos as
diferenças em poder e influência que são mal empregadas pela agressividade, nem tampouco alteramos nada em sua natureza.
A agressividade não foi criada pela propriedade. Reinou quase sem limites nos tempos primitivos, quando a propriedade
ainda era muito escassa, e já se apresenta no quarto das crianças, quase antes que a propriedade tenha abandonado sua forma
anal e primária; constitui a base de toda relação de afeto e amor entre pessoas ( com a única exceção, talvez, do
relacionamento da mãe com seu filho homem). Se eliminamos os direitos pessoais sobre a riqueza material, ainda
permanecem, no campo dos relacionamentos sexuais, prerrogativas fadadas a se tornarem a fonte da mais intensa antipatia e
da mais violenta hostilidade entre homens que, sob outros aspectos, se encontram em pé de igualdade. Se também
removermos esse fator, permitindo a liberdade completa da vida sexual, e assim abolirmos a família, célula germinal da
civilização, não podemos, é verdade, prever com facilidade quais os novos caminhos que o desenvolvimento da civilização
vai tomar; uma coisa, porém, podemos esperar; é que, nesse caso, essa característica indestrutível da natureza humana seguirá
a civilização.
Evidentemente, não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem
confortáveis. A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um
escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável
número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. Em
outra ocasião, examinei o fenômeno no qual são precisamente comunidades com territórios adjacentes, e mutuamente
relacionadas também sob outros aspectos, que se empenham em rixas constantes, ridicularizando-se umas às outras, como os
espanhóis e os portugueses por exemplo, os alemães do Norte e os alemães do Sul, os ingleses e os escoceses, e assim por
diante. Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’, denominação que não ajuda muito a explicá-lo.
Agora podemos ver que se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através
da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. Com respeito a isso, o povo judeu, espalhado por
toda a parte, prestou os mais úteis serviços às civilizações dos países que os acolheram; infelizmente, porém, todos os
massacres de judeus na Idade Média não bastaram para tornar o período mais pacífico e mais seguro para seus semelhantes
cristãos. Quando, outrora, o Apóstolo Paulo postulou o amor universal entre os homens como o fundamento de sua
comunidade cristã, uma extrema intolerância por parte da cristandade para com os que permaneceram fora dela tornou-se
uma conseqüência inevitável. Para os romanos, que não fundaram no amor sua vida comunal como Estado, a intolerância
religiosa era algo estranho, embora, entre eles, a religião fosse do interesse do Estado e este se achasse impregnado dela.
Tampouco constituiu uma possibilidade inexeqüível que o sonho de um domínio mundial germânico exigisse o anti-
semitismo como seu complemento, sendo, portanto, compreensível que a tentativa de estabelecer uma civilização nova e
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comunista na Rússia encontre o seu apoio psicológico na perseguição aos burgueses. Não se pode senão imaginar, com
preocupação, sobre o que farão os soviéticos depois que tiverem eliminado seus burgueses.

Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade,
podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em
situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por
qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade
por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da
liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria
que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas vantagens era, portanto, levada a seus extremos.
Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de
maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais
severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno.
Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por atender de forma tão inadequada às
nossas exigências de um plano de vida que nos torne felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que
provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição,
estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar,
gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas.
Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que
não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas de restringir os instintos, para as quais estamos
preparados, reivindica nossa atenção o perigo de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‘pobreza psicológica dos
grupos’. Esse perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos pelas
identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de um líder não adquirem a importância
que lhes deveria caber na formação de um grupo. O presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos
proporcionaria uma boa oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a
tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de que eu mesmo estou empregando
métodos americanos.

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