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MAQUIAVEL
2º ano do Ensino Médio

Professor: Laerte Moreira dos Santos

Área de Sociedade e Cultura


(Filosofia, Sociologia, História, Geografia)

http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia
ou
http://www.geocities.com/sociedadecultura (clique em filosofia)

Maio/junho de 2005
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I - PENSAMENTO DE MAQUIAVEL EM TÓPICOS

1. Maquiavel escreve sobre o campo político - relação entre governo e governados - e portanto a aplicação do que
escreveu ao campo privado é indevida. Separa a moral da vida privada, Ética ou moral de princípios, da moral da
política. Esta tem outra moral: a Moral ou Ética da Responsabilidade.

a) Ética de Princípios e ou de valores: Nela seguimos valores ou princípios quase absolutos ou absolutos (absolutos no
caso da moral de princípios de Kant). A intenção conta muitas vezes mais do que o resultado da ação. Esse traço varia
na razão direta da intimidade que tenho com as pessoas com quem lido. Na ética de princípios o fracasso não é fracasso.
(Provérbio francês: “Quem perde, ganha”). A intenção desculpa o ato.
b) Ética da Responsabilidade: Diferentemente de Kant e outros filósofos que elaboraram uma ética das intenções o
filósofo Maquiavel, o sociólogo Max Weber (influenciado por Maquiavel) e outros pensadores propõem para a política
uma outra moral, uma outra Ética, a chamada “Ética da Responsabilidade”. Uma ética que leva em conta as
conseqüências e efeitos colaterais dos atos dos sujeitos agentes. É claro que Kant, ao destacar que o valor moral de uma
ação está na intenção ou no respeito à lei (imperativos categóricos), não está afirmando que os sujeitos devem ignorar
os resultados e as conseqüências. Está dizendo que elas não podem ser o fundamento determinante de uma ação que
pretende ter valor moral. O homem moralmente bom para ele é o que obedece a lei pela lei e não por causa das
conseqüências.

Mas na política não se pode perdoar o fracasso alegando a intenção. A intimidade não é levada em conta mas sim a
aparência externa dos atos. Não há desculpa para o fracasso. Por isso podemos dizer que a vida de quem age na política
é mais difícil. O que age na política é o que formula as leis ou regras, do que elabora o quadro institucional. Não é o caso
do cidadão comum que nele está enquadrado. O político diferentemente do homem comum não sabe em que dará sua
escolha. O desastre e a catástrofe rondam-no porque não tem quadro institucional a garanti-lo. O homem comum sem
responsabilidade de poder está numa situação melhor que a do político. Tem maiores condições de antever os resultados
de seus atos. Já o homem político, o príncipe, justamente por ter poder é menos poderoso sobre o futuro. ( o seu futuro é
o da criação de novas ordens, não o da mera repetição do que existe, que é o caso do homem comum). Por isso a pessoa
que não entende a ética da responsabilidade não entende o que é a ação política. A oposição e a esquerda tem criticado a
ética da ação política tomando o ponto de vista de quem está fora do Poder fazendo suas avaliações a partir de uma ética
de princípios ou valores. Se na vida privada os juízos morais devem ser universais na política não tem validade
universal.

Para a Ética da Responsabilidade serão morais as ações úteis à comunidade, e imorais aquelas que a prejudicam, e visam
os interesses particulares.

2. Maquiavel e a questão dos fins que justificam os meios: Maquiavel nunca falou ou escreveu que os fins justificam
os meios. Atribui-se a ele esta afirmação no capítulo XVIII do “O príncipe”. Mas isto é uma questão de tradução. Há
autores que traduziram desta forma a expressão italiana “si guarda al fine” mas tal tradução é questionável. Lembra o
que os italianos dizem: “Tradutore è traditore” (O tradutor é traidor).

Leia a tradução desta frase na tradução de Maria Júlia Goldwasser de “O príncipe”, Ed. Martins Fontes, São Paulo, ano
2001, pág. 85:

Todos vêem aquilo que pareces, mas poucos sentem o que és; e estes poucos não ousam opor-se à opinião da
maioria, que tem, para defendê-la, a majestade do estado. Como não há tribunal onde reclamar das ações de
todos os homens, e principalmente dos príncipes, o que conta por fim são os resultados.”

Agora leia esta tradução (questionável) de Sérgio Bath na edição do livro “O príncipe” pela Universidade de Brasília:

Todos vêem nossa aparência, poucos sentem o que realmente somos, e esses poucos não ousarão opor-se à
maioria que tenha a majestade do estado a defendê-la – na conduta dos homens, especialmente dos príncipes, da
qual não há recurso, os fins justificam os meios.

3. Virtù: tem virtù o governo que tem a capacidade de agir de acordo com as circunstâncias sem se deixar perturbar pela
diferença entre virtude e vício. Com a virtù diminui-se o impacto da “fortuna”. Não tem a ver a virtude cristã. Por isso a
VIRTÙ sempre é oscilante, flexível e só com ela pode ser enfrentada a FORTUNA. Para isso o príncipe tem que ser
prudente, autoconfiante, firme, decidido, não ser odiado, tomar partido e não se manter neutro, ser sábio.
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4. Exemplos de adotar valores de acordo com as circunstâncias:
a) avareza ou liberalidade? É melhor ser avaro – vício capital condenado pela tradição cristã - ou ter liberalidade –
virtude aceita pela tradição filosófica e cristã? Não se pode absolutizar nenhuma nem outra. Depende da
circunstância. Mas geralmente é melhor ser avaro na política. A atitude por exemplo de liberar dinheiro facilmente
pode prejudicar o governante.
b) O príncipe deve ser amado ou deve ser temido? Nas nossas relações familiares o amor é um valor considerado bom.
Mas na vida política o amor não é um valor universal. Por que? Para adotá-lo sempre na vida política implicaria que
os homens o vivenciassem sempre. Isto não acontece. Os homens tendem mais para o mal do que para o bem:
mentem, dissimulam. O melhor seria o governante ser amado e ser temido mas se não puder ser amado que seja
temido para impedir a violência na política. O ser amado não pode ser essencial na política pois se perderia uma das
dimensões da política que é a FORÇA.
c) Quando ser mal ou ser bom? Depende das circunstâncias. O fim sempre é o de preservar o poder, a ordem, a
segurança, evitar a violência civil, “desejo de servir não os seus interesses pessoais, mas os do público, de trabalhar
não em favor dos próprios herdeiros, mas para a pátria comum” (Comentários à primeira década de Tito Lívio, I,
9º). Por exemplo: O prefeito José Serra fez um mal neste ano. Aumentou o preço da tarifa de Ônibus. E Maquiavel
diz que se o governante tiver que fazer o mal deve fazer logo porque o povo esquece com o tempo e isto é facilitado
se mais adiante ele vê o bem ser feito. Mas este mal só pode ser feito em vista do coletivo e não do interesse
pessoal. A mesma coisa poderíamos dizer das taxas criadas pela prefeita Marta Suplicy. Outro mal que o governante
deve fazer de uma vez só e de forma radical, em benefício do seu governo, é o de afastar os elementos que
representaram os interesses dos antigos governantes.

“Alguém pode ser acusado pelas ações que cometeu, e justificado pelos resultados destas. E quando o
resultado for bom.... a justificação não faltará. Só devem ser reprovadas as ações cuja violência tem
por objetivo destruir, em vez de reparar.” (Comentários à primeira década de Tito Lívio, I, 9º)

5. Fortuna: é a imprevisibilidade. No final do livro “O príncipe” Maquiavel nos diz que a fortuna é árbitro de metade
nossas ações, a outra metade é originada por nosso livre arbítrio. Ele quer dizer com isto que o campo da política tem
uma indeterminação, está sujeito ao campo do imprevisto. A política não pode ser exercida com total saber. O campo da
história é o campo da imprevisibilidade. Mas com a virtù podemos diminuir o seu impacto.

6. Circunstâncias: tornam possível o aparecimento do homem de virtù: “Foi necessário que o povo de Israel estivesse
escravizado não Egito para reconhecer a virtude de Moisés; que os persas estivessem oprimidos pelos medas para saber
a grandeza de ânimo de Ciro...” (O príncipe, Capítulo XXVI, pág. 123 , Ed. Martins Fontes, ano 2001)

7. Não existe comunidade política: A sociedade é dividida entre os GRANDES, que querem oprimir, e os
PEQUENOS, o POVO, que não quer ser oprimido. Ou seja, apesar de Maquiavel não usar o termo classe podemos
afirmar que bem antes de Marx percebeu que a sociedade é dividida em classes sociais

8. O governo tem que ter apoio do povo para se manter no poder porque são em maior número. O povo consente em
obedecer para se livrar da opressão dos grandes e se for tratado bem pelo governo. A fortaleza do príncipe (governo)
está no povo. POVO para Maquiavel era a pequena e média burguesia ligada às corporações de ofício. Esta participava
politicamente nas cidades-estado republicanas. O mesmo não se pode dizer em relação ao popolo magro (desvinculado
de qualquer corporação, sem especialização, miseráveis).

9. Principais fundamentos do Estado: boas leis e boas armas.

10. Política: tem a ver com a verdade efetiva das coisas e não com a imaginação sobre elas. Antes de Maquiavel havia o
ideal da Sociedade ideal pela qual se pudesse regular as ações humanas. Maquiavel rompe com esta visão. Não deve se
trocar o que se faz pelo que se deveria fazer. A política exige EFICIÊNCIA, RESULTADOS.

11. Governante: misto de homem (leis) e animal (força). Animal: LEÃO (amedronta os lobos mas cai nos laços) e
RAPOSA (escapa dos laços mas não dos lobos)

12. Ser e aparência: Maquiavel foi o primeiro a mostrar a importância da imagem na política. Quando diz que não basta
ser mas precisa parecer não propõe que os homens sejam fingidores. Quer dizer que os homens nunca conseguirão
distinguir totalmente entre fingir e viver. Não existe o puro ser que se mostraria na política como também não há o puro
aparecer. Quando um governante diz que vai fazer uma coisa vende uma imagem, vende um aparecer. Mas será cobrado
pela imagem de si que apresentou.
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13. Parlamento: importante para controlar os grandes e favorecer os pequenos evitando exposição inconveniente do
príncipe (ou governo). Para Florença Maquiavel propõe um governo misto:
a) um governo vitalício de 65 cidadãos, ente os quais é escolhido o gonfaloneiro (espécie de magistrado supremo) b)
um senado composto de duzentos membros, o Conselho dos Escolhidos c) um Conselho Popular constituído de
seiscentos e mil cidadãos.
b)
14. O conflito – Maquiavel rompe com a tradição cristã, filosófica e política que se fundamentava na idéia de paz. Ele
diz: os homens desejam o conflito. Mas ele não é em si negativo, pode levar a melhores leis, a maior justiça e fortalecer
as instituições. A questão é evitar que ele se transforme em anarquia e destrua as instituições. Por isso a melhor forma
de regime político que permite os conflitos se extravasarem no campo institucional é a REPÚBLICA. A República
acolhe o conflito institucionalmente. Ao invés de os homens se caluniarem, se acusem, se processem nos tribunais que
são instituições políticas e republicanas.

15. República: O projeto político de Maquiavel é a construção de um Estado forte, unificado e voltado para o bem
comum, ou seja, propunha a instituição da REPÚBLICA (res: coisa + pública) caracterizada pela liberdade e
participação popular. Se é o BEM COMUM que engrandece as cidades este é observado somente nas Repúblicas (=
participação popular e liberdade).
Mas a constituição da República defronta-se com a NATUREZA MALIGNA dos homens. Os homens são “mais
propensos ao mal do que ao bem” (Comentários à primeira década de Tito Lívio). Por isso contra Aristóteles: não há
sociabilidade inata no homem. Tal natureza aliada à divisão na sociedade – entre os grandes e o povo – pode levar à
corrupção e à guerra civil. Então desafio do governante: considerando a realidade social – natureza humana e divisão de
classes – levar a sociedade para a vivência republicana (vivere civile).
A república é o regime mais estável mas devido à dinâmica da realidade política em constante movimento, tanto por
conta da natureza humana como pelos caprichos da FORTUNA que interfere nos rumos da sociedade, não tem garantias
da perpetuidade. Nenhuma solução política tem garantia absoluta para perpetuar-se.

16. A cidadania e a educação na República: possui essencialmente duas linhas: constrangimento ou coação (Lei e
força das armas) e persuasão (se respalda na imitação dos bons exemplos, no estudo da História e no amor à Glória). As
leis e a força das armas são o freio à corrupção e à violência. A desobediência à lei implica o castigo. Se os homens
sempre agissem bem, não haveria necessidade de coação.

“Quando alguma coisa por si mesma e sem a intervenção da lei funciona bem, a lei não é necessária; mas
quando falta esse bom costume, a lei é imediatamente necessária” (Comentários à primeira década de Tito
Lívio, I, 3:82).

O cidadão é aquele que tem afeição não à pessoa do governante mas às leis e instituições . A criação de laços pessoais
promove a particularização do que é público. É a política (arte política) que pode EDUCAR os homens para um
comportamento direcionado para o BEM COMUM (República). Povo virtuoso, que tem VIRTÙ: respeitador das leis,
consciente da coisa pública.

17. Equilíbrio de forças: A república perfeita caracteriza-se pelo EQUILÍBRIO DE FORÇAS que se torna real quando
os diferentes grupos sociais detêm uma parcela de poder, de modo que possam controlar-se mutuamente (Discorsi I,
2:81). “O poder dos tribunos da plebe foi grande em Roma e, como dissemos mais de uma vez, necessário, pois de outro
modo não teria sido possível frear a ambição da nobreza...” (Discorsi, III, 11:216). A sobrevivência do regime
republicano depende da capacidade do governante em estabelecer medidas que garantam a LIBERDADE. Esta tarefa
deve ser confiada à maioria, isto é, ao POVO: “nunca se deve permitir, numa cidade, que a minoria ( i pochi) possa
tomar alguma deliberação entre aquelas que ordinariamente são necessárias à manutenção da república” (Discorsi, I,
50:132)
Depende também da capacidade daqueles indivíduos que têm VIRTÙ, porque estes são capazes de agir visando o BEM
COMUM. Por isso a República leva vantagem em relação ao principado (monarquia) pois este último depende da virtù
de um homem só, quer dizer, da capacidade do príncipe de agir conforme as circunstâncias.
Quando um número grande indivíduos partilham o poder há maior possibilidade de adaptação à variação do tempo, há
maior possibilidade de se adaptar ás circunstâncias justamente por conta da diversidade dos cidadãos (Comentários...,
III, 9: 213). “Mudando os tempos – mesmo que os homens não alterem o modo de agir para o qual sua natureza os
inclina – pode-se mudar os homens, requisitando aquele cujo modo de proceder seja mais adequado à conjuntura
presente.” (Lídia Maria Rodrigo, Maquiavel – Educação e Cidadania, Ed. Vozes, 2002, pág. 54)
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18. Ideal Republicano: harmonizar o benefício privado e o bem de todos. Satisfazer apetites individuais ou de grupos
(natureza maligna do homem) sem torná-los incompatíveis com o bem comum. Visa o equilíbrio de forças entre os
grandes e o povo, nela os diferentes grupos sociais se equilibram mutuamente. Deve ter mecanismos de participação
popular como a possibilidade de acusação pública mas as calúnias não devem ser toleradas pois são perniciosas para a
República.

19. Reputação: Na República a manutenção da liberdade deve ser confiada à coletividade dos cidadãos e aos
excelentes, que tem boa reputação. A reputação é legítima. O perigo está em estar acima do bem coletivo. Por isso é boa
a reputação adquirida quando se age pelo bem comum. A reputação originada por via privada, através do "favor
popular", é perigosa e nociva à República pois pode introduzir o poder tirânico. Quanto a isto Maquiavel aprova o
procedimento que os romanos adotaram com relação a Spúrio Mélio, um rico cidadão. Numa ocasião em que houve
fome em Roma e as provisões públicas eram insuficientes para sanar o problema, Spúrio Mélio resolveu distribuir ao
povo suas reservas privadas de cereais. Com esse ato de liberalidade conquistou de tal modo o favor popular que o
Senado, pensando nos inconvenientes que poderiam nascer disso, nomeou contra Spúrio um ditador, que o fez executar
(Comentários... , III, 28:234) A respeito desse episódio Maquiavel comenta: “deve-se notar como muitas vezes as obras
que parecem boas e que não se podem sensatamente condenar, tornam-se cruéis e perigosíssimas para uma república
quando não são corrigidas a tempo”. A distinção maquiaveliana entre virtude moral e virtù republicana fica evidente
nessa passagem do texto: um ato moralmente bom em si mesmo pode não ser compatível com o bem comum.

20. Monarquia: Mas quando o governante se depara com um Estado corrompido a solução é a MONARQUIA. Só a
monarquia, com um poder forte, pode conter os grandes e acabar com a corrupção. ESTE É O CONTEXTO DE “O
PRÍNCIPE”. Mas mesmo assim Maquiavel prefere o PRÍNCIPE (monarca) NOVO ao PRÍNCIPE HEREDITÁRIO. O
príncipe novo para se manter precisa do apoio do povo: “aquele que, contra o povo e pelo favor dos grandes, se torna
príncipe, deve, antes de qualquer coisa procurar conquistar o povo” (O Príncipe, 9:272). Isto expressa a sua ruptura
com a estrutura política feudal. A Monarquia é aceita em períodos onde domina a corrupção e a desigualdade (=
domínio dos grandes). Mas após o saneamento deve vir a República.

21. Tirania: Maquiavel se coloca contra a TIRANIA que visa interesses particulares e egoístas.

22. As leis e instituições = É o que honra o governante. São os principais fundamentos do Estado.

23. Vida ativa x Vida contemplativa: Como outros renascentistas Maquiavel valoriza a vida ativa em detrimento da
contemplativa. O homem podem intervir no mundo. Por isso o ócio é negativo podendo produzir corrupção política, a
ruína política.

24. Imitação: Maquiavel propõe a imitação dos homens de virtù principalmente dos homens do passado, povos antigos
como os romanos. Mas apenas daqueles que pela sua grandeza merecem ser imitados. “um homem prudente deve trilhar
sempre os caminhos já percorridos pelos grandes homens e imitar os que se mostraram excelentíssimos...” (O príncipe,
6:264) Isto é possível porque há algo invariável na natureza humana (paixões, desejos humanos). Isto não quer dizer que
permaneçam sempre idênticos, não se manifestam sempre do mesmo modo. Então não se trata de reproduzir “fiel e
mecanicamente sua conduta, mas procurar assemelhar-se a eles na medida permitida e conveniente aos tempos
modernos” (Lídia Maria Rodrigo, op. Cit., pág. 67)21.

25. Estudo da História: só tem sentido se for útil para o presente. Procura-se extrair lições do passado para aplicá-las no
presente e ao futuro. A história se converte em instrumento da educação.

26. Religião: Maquiavel viu na religião um dos principais agentes educativos para a vivência republicana. Interessa na
medida em que colabora para a ordem e paz na cidade. O mau uso da religião produz a descrença nas divindades e
consequentemente aumenta a tentação de os homens subverterem as instituições. “Não pode haver maior indício da
ruína de uma província do que o desprezo pelo culto divino” (Discorsi, I, 12: 95). Ou seja: a religião tem um caráter
instrumental. Esta visão é inspirada na religião romana. A religião pode operar tanto de forma coercitiva como
persuasiva. Por isso Maquiavel critica a religião que ao invés de favorecer a cidadania forte leva ao enfraquecimento dos
homens. Era o caso do cristianismo, do catolicismo de seu tempo. Ao pegar o desprezo pelas coisas mundanas,
exaltando a humildade e o apego aos valores da outra vida não colaborava para a participação republicana. “Parece que
este modo de viver tornou o mundo fraco, deixando-o entregue aos celerados, que se sentem à vontade para manipulá-
lo, vendo que os homens – para alcançarem o paraíso – estão mais dispostos a suportar os seus golpes do que a
vingarem-se deles” (1992 – Comentários..., II, 2: 149-150)
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II - TEXTOS DE OUTROS AUTORES SOBRE MAQUIAVEL

2.1 O bom cidadão no Regime Republicano - Texto de Lídia Maria Rodrigo (Maquiavel: Educação e Cidadania, Ed.
Vozes, 2002, 83-89)

O povo julga pelas aparências, deixando-se enganar por elas. Enquanto no principado esse fato não produz perturbação,
visto que a tomada de decisões permanece monopólio do príncipe, na república, ao contrário, representa problema
político da maior gravidade. Na perspectiva maquiaveliana, a república caracteriza-se por ser um regime político em que
a guarda da liberdade deve ser confiada à maioria, isto é, ao povo, a quem compete inclusive a distribuição de cargos e
dignidades. Na república o povo escolhe, tem poder de decisão, mas ele pode ser facilmente enganado e provocar a ruína
do Estado: "muitas vezes o povo, enganado por uma falsa imagem do bem, deseja sua ruína" (Machiavelli, 1992 -
Discorsi, I, 53: 134).

... (A) manutenção da liberdade através das instituições republicanas deve ser confiada à coletividade dos cidadãos e, de
modo muito especial, aos excelentes, aqueles que possuem qualidades e virtù para agir visando o bem comum. O
cidadão que assim se comporta fatalmente torna-se alvo do reconhecimento popular, conquistando fama, reputação e
glória. A reputação oriunda do "favor popular", por sua vez, redunda em autoridade e pode conduzir à ambição política,
uma vez que o desejo de poder, natural em todos os homens, faz-se particularmente presente nos indivíduos de mérito
que, além de ambicioná-lo, têm condições e oportunidade para alcançá-lo.

Portanto, é justamente pelas mãos daqueles com quem a república mais precisa contar na salvaguarda da liberdade - os
cidadãos virtuosos que a tirania pode instalar-se. Maquiavel explícita com todas as letras esse dilema: "sem cidadãos
reputados uma república não pode existir, nem governar-se bem de algum modo. Por outro lado, a reputação dos
cidadãos é causa da tirania nas repúblicas" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). A boa reputação contém um potencial tirânico,
contra o qual é necessário precaver-se.

A ambição pessoal por glórias e riquezas pode entrar em rota de colisão com o bem comum, mesmo num regime
politicamente sadio. Das duas finalidades que a ambição humana persegue com maior afinco - riquezas e honrarias -
Maquiavel reputa a primeira incompatível com o governo republicano, uma vez que ela contém a semente da corrupção.
Para que a riqueza sem virtudes não possa corromper (cf. 1992 - Discorsi, III, 16: 222), a pobreza se vê elevada à
dignidade de princípio político: "a república bem organizada deve manter o Estado (i] publico) rico e os cidadãos
pobres" (ibidem, I, 37: 119).

Existe, entretanto, flagrante contradição entre o preceito republicano de manter os cidadãos na pobreza e a natureza
ambiciosa dos homens em geral. Maquiavel sabe que não pode contar com uma atitude altruísta por parte dos cidadãos,
ou supor que abririam mão de interesses particulares em nome do bem coletivo, o que seria, inclusive, contraditório com
sua concepção da natureza humana. Resta uma alternativa: que a ambição por riquezas seja substituída por outro tipo de
satisfação ou recompensa pessoal - honra e glória - que também fazem parte dos apetites humanos. No plano individual,
a glória representava uma das mais altas aspirações do homem renascentista. Todavia, enquanto os escritores humanistas
concebiam a glória e a fama sob um prisma eminentemente individual, ligado à preocupação do indivíduo em perpetuar
seu nome no mundo, Maquiavel apropria-se desses valores humanistas para instrumentalizá-los em vista de um projeto
político coletivo.

Além de corresponder à realização de uma aspiração individual, a glória pode, simultaneamente, harmonizar-se com o
bem comum, ao contrário da riqueza.
Maquiavel reconhece como legítima a aspiração à reputação pessoal: o perigo está em sobrepô-la ao bem coletivo.

Promove-se, por assim dizer, um redirecionamento da ambição humana, canalizada para uma forma de satisfação
compatível com o vivere civile. Além dos meios coercivos destinados a controlar a natureza maligna do homem -
basicamente as armas e a lei - nas repúblicas a glória representa uma alternativa positiva à sua insatisfação inata. Ainda
assim, permanece a necessidade de encontrar formas de harmonizar a aspiração pessoal à glória, enquanto exaltação de
si mesmo, com a realização do bem comum.

Para satisfazer a legítima aspiração do cidadão à reputação pessoal sem danos ao bem comum, torna-se necessário
considerar os meios empregados para conquistá-la, que, segundo o autor, são fundamentalmente dois: um público, outro
privado. "O modo público é quando alguém adquire reputação aconselhando bem e, melhor ainda, agindo em benefício
comum" (1992 - Discorsi, III, 28: 235). Por esta via, o indivíduo procura ganhar destaque através de ações
extraordinárias, gestos e atos inusitados e espetaculares que, simultaneamente, visem o bem comum, a exemplo dos
romanos nos tempos áureos da república: "Assim agiram muitos romanos, ainda jovens, propondo que se promulgasse
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uma lei benéfica a todos, acusando algum cidadão poderoso como transgressor das leis ou fazendo outras coisas
semelhantes, novas e notáveis, que dessem o que falar." (1bidem, III, 34: 242).

Este caminho para a fama deve estar aberto a todos os cidadãos, que através dele podem satisfazer sua ambição pessoal
e, simultaneamente, beneficiar sua pátria; embora a honra e glória que disso resulta selam apropriadas individualmente,
quando obtidas por essa via não trazem nenhuma ameaça.

A via privada, ao contrário, consiste na aquisição da boa reputação através de ações individuais, cujos beneficiários são
também cidadãos particulares, visando, em última instância, com base no poder de influência acumulado, alcançar fins
privados.

A via privada consiste em fazer benefícios a outros cidadãos privados, emprestando-lhes dinheiro, apadrinhando-lhes o
matrimônio dos filhos, defendendo-os dos magistrados e fazendo-lhes favores particulares semelhantes, os quais
transformam os homens em partidários (partigiani) e dão ânimo - a quem é tão estimado - para corromper as instituições
públicas e violar a lei" (1992 - Discorsi, 111, 28: 235).

Sobre a reputação obtida por via privada o julgamento de Maquiavel é radical e categórico: ela é perigosa e nociva, Um
só ato dessa natureza que se deixe impune pode arruinar a república; por isso aprova o procedimento que os romanos
adotaram com relação a Spúrio Mélio, um rico cidadão.

Numa ocasião em que houve fome em Roma e as provisões públicas eram insuficientes para sanar o problema, Spúrio
Mélio resolveu distribuir ao povo suas reservas privadas de cereais. Com esse ato de liberalidade conquistou de tal modo
o favor popular que o Senado, pensando nos inconvenientes que poderiam nascer disso, nomeou contra Spúrio um
ditador, que o fez executar (cf. Machiavelli, 1992 - Discorsi, III, 28: 234).

A respeito desse episódio Maquiavel comenta: "deve-se notar como muitas vezes as obras que parecem boas (pie) e que
não se podem sensata mente (ragionevolmente) condenar, tornam-se cruéis e perigosíssimas para uma república quando
não são corrigidas a tempo" (Ibidem). A distinção maquiaveliana entre virtude moral e virtù republicana fica evidente
nessa passagem do texto: um ato moralmente bom em si mesmo pode não ser compatível com o bem comum.

O perigo da via privada para a obtenção da boa reputação reside no fato de que ela pode arruinar a liberdade republicana
pela instituição de um poder tirânico. Nos Discorsi manifesta-se, ao longo de toda a obra, a preocupação de exorcizar o
fantasma da tirania, estabelecendo salvaguardas para a liberdade, fundamento do Estado voltado para o bem comum.
Mesmo no melhor regime político - a república - a malignidade humana jamais é erradicada e a ambição privada sempre
pode sobrepor-se ao bem público. O preço da liberdade é a constante vigilância, particularmente sobre os indivíduos que
adquirem fama e reputação e por isso podem galgar cargos e magistraturas, para que "não possam fazer o mal à sombra
do bem, de modo que só tenham a reputação que beneficia a liberdade, não aquela que a prejudica" (1992 - Discorsi, I,
46: 129).

Uma das formas de vigiar a liberdade, para que esta não sucumba à tirania, consiste em adotar uma conduta política
baseada na severidade e no rigor. O dilema crueldade/piedade, já abordado em O Príncipe, reaparece formulado em
termos republicanos: "Se a clemência (l'ossequio) é mais necessária do que o rigor (la pena) para governar a multidão"
(1992 - Discorsi, III, 19: 225).

Depois de tecer longas considerações baseadas nos exemplos dos capitães romanos, Maquiavel conclui que, numa
república, é mais louvável e menos perigoso adotar uma conduta mais rígida e severa, pois nesse procedimento tudo se
dá em favor do público, em nada favorecendo à ambição privada; porque desse modo não se pode conquistar partidários
(partigiani), isto é, mostrando-se sempre áspero com cada um, e amando só o bem comum; quem assim age não
conquista amigos particulares (particolari amici), aos quais, mais acima, chamamos de partidários (partigiani) (Ibidem,
III, 29: 229).

Nos regimes republicanos, o vínculo do cidadão com o Estado deve estabelecer-se fundamentalmente pelas vias
institucionais; a criação de laços pessoais cria partidários, ou seja, promove a particularização do que é publico,
principio elementar de toda tirania, e, portanto, ameaça à liberdade; o cidadão ambicioso pode aproveitar-se da
reputação adquirida para usurpar o poder e instituir uma tirania.

Como a bondade, humanidade, piedade, clemência e outras qualidades análogas se prestam ao estabelecimento de
vínculos de afeição pessoal, os comportamentos que se pautam por elas devem ser vigiados e postos sob suspeita, a
exemplo do caso de Spúrio Mélio. Ao contrário do que ocorre no principado, a educação para a cidadania no interior do
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regime republicano implica em levar o indivíduo a afeiçoar-se mais às leis e instituições do que à pessoa dos
governantes e autoridades.

2.2 O Elogio ao conflito - Texto de Maria Lúcia de Arruda Aranha (Do livro: Maquiavel: a lógica da força, Ed.
Moderna, 1993, pág. 72 e 73)

...(H)á algo absolutamente novo na interpretação de Maquiavel e que representa uma verdadeira ruptura, já que, para a
tradição, a estabilidade e a paz eram consideradas padrões para avaliar as boas formas de governo.

Ao considerar as forças opostas da aristocracia e do povo, Maquiavel não espera que os conflitos possam desaparecer,
mas sim que a relação entre as forças antagônicas seja sempre de equilíbrio tenso.

A posição de Maquiavel foi duramente criticada. Diz o cientista político inglês Quentin Skinner: "Esse elogio à
discórdia horrorizou os contemporâneos de Maquiavel. Guicciardini falava por todos eles ao replicar, em suas
Considerações sobre os Comentários, que 'elogiar a desunião é como louvar a doença de um enfermo pelas virtudes do
remédio a ele aplicado'.

O argumento de Maquiavel ia contra toda a tradição do pensamento republicano de Florença, uma tradição em que a
crença de que toda discórdia deve ser banida como sediciosa, ao lado da crença de que toda luta de facção constitui a
mais mortal das ameaças à liberdade cívica, havia sido enfatizada desde o fim do século XIII, quando Remigio, Latini,
Compagni e sobretudo Dante haviam feito veementes denúncias contra seus concidadãos, aos quais acusavam de colocar
em perigo suas liberdades, recusando-se a viver em paz. Assim, insistir no assombroso julgamento segundo o qual -
como expressa Maquiavel as desordens de Roma merecem os mais altos elogios era repudiar uma das mais caras idéias
do humanismo florentino".

A característica inovadora da proposta maquiaveliana está no reconhecimento de que a política se faz a partir da
conciliação de interesses divergentes, e o conflito é inerente à atividade social humana, o que supõe a moderna
concepção de ordem, não mais hierárquica, mas que resulta do confronto. Para Maquiavel, as divergências entre
aristocratas e povo em Roma, longe de provocar a decomposição da república, a fortaleceram. É importante haver
mecanismos no Estado por meio dos quais o povo possa expressar seus desejos e realizar seus anseios. Do mesmo modo,
devem existir formas de controlar os excessos.

Segundo Norberto Bobbio, pensador italiano contemporâneo, "Maquiavel faz uma afirmativa destinada a ser
considerada como uma antecipação da noção moderna de sociedade civil, segundo a qual a condição de saúde dos
Estados não reside na harmonia forçada, mas sim na luta, no conflito, no antagonismo (mais tarde, dir-se-á: no processo
histórico) - que correspondem à primeira proteção da liberdade".

2.3 O governo misto - Texto de Maria Lúcia de Arruda Aranha (Do livro: Maquiavel: a lógica da força, Ed. Moderna,
1993, pág. 71 e 73)

... Maquiavel, tal como diversos autores, defende o governo misto como condição de se estabelecer a força da lei capaz
de manter a república. Afirma que os legisladores mais sábios sempre escolhem o sistema de governo do qual participam
todas as formas já referidas, o que o toma mais sólido e estável: "se o príncipe, os aristocratas e o povo governam em
conjunto o Estado, podem com facilidade controlar-se mutuamente". Lembra o exemplo de Licurgo cuja legislação
tornou Esperta estável por oitocentos anos, de tal forma soube contrabalançar o poder do rei, da aristocracia e do povo. E
critica Sólon, legislador de Atenas que não reprimiu "a insolência dos aristocratas e a licença da multidão".

De início, os cônsules e os senadores representavam a mistura da monarquia e a aristocracia, mas, com o tempo, as
desavenças entre patrícios e plebeus fizeram com que aqueles cedessem para não perder tudo devido ao ressentimento
do povo. Surgiram então os tribunos da plebe, instituição representativa do governo popular. É Maquiavel quem diz: "A
sorte favoreceu Roma de tal modo que, embora tenha passado da monarquia à aristocracia e ao governo popular,
seguindo a degradação provocada pelas causas que estudamos, o poder real não cedeu toda a sua autoridade para os
aristocratas, nem o poder destes foi todo transferido para o povo. O equilíbrio dos três poderes fez, assim, com que
nascesse uma república perfeita".

Maquiavel reitera essa posição quando nota que, no seu tempo, a república de Veneza e a monarquia inglesa são estáveis
porque têm um governo misto. Os governos simples, ao contrário, são "pestíferos" pela breve duração. Por isso, defende
a reforma do Estado de Florença em um texto enviado a Leão X, propondo a seguinte divisão:

 um governo vitalício de 65 cidadãos, entre os quais é escolhido o gonfaloneiro;


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 um Senado composto de duzentos membros, o Conselho dos Escolhidos;
 um Conselho Popular constituído de seiscentos a mil cidadãos.

Embora se possa reconhecer a importância do governo misto, nem sempre ele sozinho é garantia para a preservação da
liberdade. Se considerarmos que Maquiavel admite o conflito como o estofo permanente da ação política, o equilíbrio
das forças deve resultar da habilidade em administrar os antagonismos. Isso significa que é muito fácil acontecer o 1 dos
Comentários, Maquiavel examina as causas do desejo de liberdade e diz: "um pequeno número excessivo crescimento
de poder em um determinado setor, encaminhando-se para a perda da liberdade. Mesmo porque nem sempre é igual a
intenção das pessoas quando aspiram à liberdade. No capítulo 16 do livro deseja a liberdade para poder comandar, mas
um número infinitamente maior de cidadãos quer a liberdade apenas para poder viver em segurança".

Ora, a verdadeira liberdade civil deveria significar a possibilidade de agir visando o bem comum. Toda vez que o
interesse coletivo é desviado para o atendimento de desejos egoístas, o governo degenera, e a corrupção se torna
obstáculo ao "viver livre".

Por isso é preciso estar atento aos sinais de degradação da virtú do cidadão. Entre os diversos riscos, Maquiavel lembra o
crescimento da ambição e poder das pessoas proeminentes e a influência perniciosa dos homens excessivamente ricos,
como é o caso da família Medici em Florença.
Em todos esses casos, só a força das instituições, e sobretudo das leis, pode impedir a corrupção.

2.4 Saber popular e Cidadania - Texto de Lídia Maria Rodrigo (Maquiavel: Educação e Cidadania, Ed. Vozes, 2002,
102-108)
 
A intenção de ensinar o povo a escolher bem torna manifesto um interesse pedagógico ausente da teoria Política relativa
ao principado. Segundo Maquiavel, o que leva o povo a favorecer alguém, atribuindo-lhe cargos ou magistraturas, é sua
fama ou reputação; por isso, o autor examina com cuidado as razões da fama de um cidadão. Em lugar de dar lições ao
Príncipe, procura agora ensinar ao povo como discernir a verdadeira virtú de sua falsa aparência, a fim de não conceder
fama a quem não possui mérito.

Como julga com base naquilo que vê, torna-se necessário precaver o povo contra o engano, pois muitas vezes a
aparência de virtú, em lugar de constituir seu signo, promove apenas a ocultação de sua ausência, ou seja, parecer e ser
não coincidem.

Para ensinar o povo a operar tais distinções, Maquiavel leva a cabo uma espécie de fenomenologia. da imagem, cujo
inventário vai das formas mais frágeis e inconsistentes até culminar na coincidência entre aparência e verità effettuale.
Investigando os indícios nos quais: o povo costuma basear-se para reconhecer um indivíduo dotado de virtù, o autor
afirma existirem duas formas baseadas na opinião, e uma terceira fundada nos atos do próprio indivíduo.

Um primeiro indício pelo qual o Povo costuma pautar-se para julgar consiste na reputação dos antepassados, pois "tendo
sido grandes e valorosos, acredita-se que seus descendentes sejam semelhantes a eles, até que seu comportamento prove
o contrário" (Machiavelli, 1992 - Discorsi, 111, 34: 241). Maquiavel pensa, entretanto, não constituir esse um parâmetro
confiável, na medida em que tal juízo assenta-se numa presunção de semelhança entre o indivíduo e seus antepassados,
que pode ser falsa.

O mesmo problema envolve a segunda forma, quando a avaliação deriva das companhias que o indivíduo freqüenta: se
costuma andar na companhia de homens sérios, de bons costumes, reconhecidos por todos como sábios, "adquire bom
nome, porque é impossível que não tenha alguma semelhança com aqueles" (Ibidem). Como a forma anterior, esta
também se baseia na idéia de semelhança, cuja presunção é igualmente infundada, visto não conter nenhuma prova ou
garantia de sua validade.

A estas duas primeiras opõe-se um terceiro modo de conquistar fama, que não se apóia apenas na opinião, mas nas ações
do próprio indivíduo: "também se pode conquistar 'pública fama' por alguma ação extraordinária e notável, mesmo que
de cunho privado, que tenha um resultado honroso" (Ibidem). Neste último caminho, substancialmente distinto dos
anteriores, o juízo avaliativo, respalda-se na excelência do próprio indivíduo - e não na semelhança com as qualidades de
outro - não presumida, mas verificada na efetividade de suas ações. Instaura-se, assim, a possibilidade de um julgamento
confiável que, diferentemente da mera opinião, inclui a garantia de sua validade objetiva na medida em que é abolida a
distância entre aparecer e ser. Em lugar de falsa semelhança há verdadeira coincidência entre ambos, visto que o juízo
apreciativo alicerça-se na verità effettuale.
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Pode-se concluir que essa fenomenologia da imagem culmina num certo resgate do valor do saber popular baseado nas
aparências, uma vez que se estabelecem as condições e possibilidades de sua veracidade. Ao assegurar que a
convergência entre ser e aparecer produz uma imagem confiável, apta a embasar juízos bem fundamentados, Maquiavel
acaba por sustentar e justificar a validade epistemológica do saber popular que julga com base nas aparências e nos
resultados da ação. Enfim, na república a imagem não é necessariamente enganosa, ou - como assegura o autor - quase
nunca é enganosa, uma vez que nesse regime político são dadas condições para que a aparência se configure como uma
aparição da verità effettuale, ou para que haja coincidência entre ser e aparecer.

Ao discorrer sobre o regime republicano, Maquiavel. visivelmente esforça-se para detectar no povo alguma capacidade
de discernimento que o abone a participar do governo republicano.

Não é sem razão que se compara (assomiglia) a voz do povo à voz de Deus: porque vê-se a opinião universal produzir
efeitos tão maravilhosos em suas predições, que parece haver nela uma virtù oculta para prever o seu mal e o seu bem.
No que concerne ao julgamento das coisas, quando escuta dois oradores de igual talento sustentando posições contrárias,
é raro que não abrace logo a melhor opinião, mostrando-se capaz de discernir a verdade daquilo que ouve (1992 -
Discorsi, 1, 58: 141).

Os argumentos podem não ser muito consistentes mas, enfim, cumprem sua função: reforçar as credenciais do povo para
a participação política. Apesar de todas as precauções, não está completamente eliminada a possibilidade do engano.

"Pode ocorrer que o povo se engane quanto à fama, opinião e aos atos de um homem, estimando-os maiores do
que efetivamente são, o que não aconteceria com um Príncipe porque seria advertido por seus conselheiros"
(1992 - Discorsi, III, 34: 242).

Para remediar tal inconveniente, as repúblicas bem constituídas determinaram que qualquer cidadão poderia denunciar
os vícios de um eventual candidato a cargo público, de modo que, bem aconselhado, o povo pudesse julgar
corretamente.

Sensível à falsa aparência do bem, o povo só pode enfrentar o engano a que é induzido pelos homens ou pelos
acontecimentos se tiver a sorte de encontrar alguém que seja sábio e confiável para esclarecê-lo sobre o que é bom e o
que é mau (cf. Maquiavel, 1992 - Discorsi, I, 53: 134). No principado, os homens esclarecidos desempenhavam a função
de conselheiros do príncipe; na república, eles se convertem em conselheiros do povo.

Ao nível da Prática também há necessidade de orientação. Entregue aos seus impulsos passionais, a multidão, segundo
Maquiavel, costuma ter um comportamento paradoxal.

"Por um lado, se não há nada mais forte do que uma Multidão sem freio e sem chefe, nada existe, Por outro
lado, de mais frágil." (1992 - Discorsi, 1, 57: 140).

Isso porque, sob o domínio das paixões, a massa pode produzir grandes tumultos e desordens; Porém, torna-se fácil
contê-la, pois, como age sob impulso, basta proteger-se de sua primeira arremetida que os ânimos logo se arrefecem e
ela perde a confiança na sua própria força. Uma vez dispersa, a multidão tende a tornar-se fraca e covarde.

"A multidão que deseja evitar tais perigos deve escolher logo um chefe que a corrija, a mantenha unida, e pense em sua
defesa" (Ibidem). Enfim, na concepção rnaquiaveliana a multidão precisa de conselheiros para distinguir a verdade da da
aparência enganosa, e de um chefe para dirigi-la ou comandá-la na ação, dada sua incapacidade de autodisciplina e auto-
organização.

Não deixa de chamar atenção o contraste entre a retórica laudatória, que chega a afirmar que a voz do povo assemelha-se
à voz de Deus - como justificativa da participação popular no governo da república -, e o discurso sobre sua
incapacidade para pensar e agir sem a tutela de um homem sábio ou virtuoso. As oscilações do discurso maquiaveliano
sobre as massas populares talvez possam ser parcialmente explicadas pelo momento histórico em que o autor viveu,
quando o Estado moderno nascente ainda ensaiava a construção de sua identidade. Nesse sentido, Paul Larivaille
observa que "Maquiavel intuiu a necessidade de uma participação ativa do povo na vida político-social, mas está longe
de ter tirado dessas premissas todas as implicações que deveriam logicamente decorrer delas" (1982: 127). O que,
convenhamos, seria muito difícil para um pensador que viveu pelo menos dois séculos e meio antes da Revolução
Francesa. Mas, com certeza, a explicação mais plausível para as flutuações na avaliação das qualidades populares deve
ser buscada nas razões apresentadas pelo próprio autor: na diferença que ele estabelece entre uma multidão solta
(sciolta), sem freio, e a multidão regulada pelas leis, como a romana (cf. Machiavelli,1992-Discorsi,I,58:141).
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Não se deve perder de vista o significado do termo povo no contexto italiano da época, com os limites que ele implica
em termos de exercício da cidadania. Os direitos inerentes à cidadania não se estendiam ao conjunto da população, nem
mesmo nas repúblicas, caracterizadas como regime amplo, onde o povo tinha a oportunidade de manifestar-se como
vontade coletiva através de órgãos colegiados.

A idéia de participação popular deve ser referida ao segmento organizado ou popolo grasso. A representação da plebe
ou popolo magro, em geral, era muito reduzida e variável conforme a ficando a multidão desordenada completamente
excluída de qualquer participação. Portanto, em relação à população total, a proporção dos cidadãos que efetivamente
exerciam direitos políticos acabava sendo bem pequena.

Ainda assim, o regime republicano era o ponto máximo que se podia alcançar em termos de partilha do poder,
especialmente se lembrarmos que a alternativa italiana a esse regime, ou "governo de muitos", era o principado,
identificado como "governo de um". Maquiavel não se cansa de enumerar as vantagens da república, regime cuja
manutenção e duração dependem, em ampla medida, do acerto das escolhas e decisões populares, o que justifica sua
preocupação com a capacidade de discernimento do povo.

Em suma, a educação para a cidadania instaura a possibilidade da convivência entre os homens porque cria formas de
controle sobre seus impulsos egoístas através do acionamento do duplo mecanismo - constrangimento e persuasão.
 
Contudo, tal educação, ainda que bem sucedida, tem seus limites, posto que jamais triunfa definitivamente sobre a
natureza dos homens; pode moldá-la, mas não alterá-la substancialmente. Maquiavel reconhece explicitamente tais
limites ao analisar episódios da história romana que evidenciam como os homens podem facilmente corromper-se,
mesmo quando receberam uma boa educação: "Nota-se ainda, em relação ao decenvirato, com que facilidade os homens
se corrompem e tornam-se de índole contrária, mesmo quando são bons e bem adestrados (ammaestrati)" (1992 -
Discorsí, 1, 42: 126).

Torna-se notório o caráter circunstancial da bondade humana edificada através da ação educativa. Justamente porque o
desejo infinito produz constante insatisfação, a associação humana tem de alicerçar-se no respeito à lei e aos bons
costumes, para os quais a educação pode contribuir. Todavia, permanece aberta a possibilidade de que a "insolência" do
povo ultrapasse os limites estabelecidos pela coação das leis e das armas, como também a do fracasso da retórica em sua
tarefa de persuadir o governante a optar por um poder com glória ao invés da tirania.

Em última instância, a educação para a cidadania jamais comporta garantias definitivas quanto ao seu resultado; incapaz
de modificar substancialmente a natureza humana, a boa educação cria condições para a convivência dos desejos
conflitantes num determinado momento - o que já é um ganho, considerando o contexto histórico dado - mas não
elimina a necessidade da constante vigilância sobre a ambição e maldade naturais em todos os homens.

2.4 A virtù, a fortuna e a oportunidade em Maquiavel - Texto de João Virgílio Tagliavini - Fonte:
http://www.virgilio.com.br/)

Para saber o que é virtù é preciso saber o significado dos termos fortuna e oportunidade (occasione).

Em síntese:

Virtù: é uma qualidade do homem de realizar mudanças.


Fortuna: é o acaso, o fatalismo, o destino, a necessidade natural.
Oportunidade: (occasione) – possibilidade de resistir à fortuna, através da virtù.

A virtù é uma deusa pagã. Ele utiliza o termo em italiano, no singular. O nome latino, cristão, seria virtutes, ou virtudes,
no plural. Maquiavel usa o termo para expressar a "qualidade do homem que o capacita a realizar grandes obras e
feitos" E, para ele, "grandes obras e feitos" são as obras políticas, na condução dos destinos da república.
Cheios de virtù, os líderes, sozinhos ou em grupo, são capazes de mudar os rumos da fortuna, (destino) ou daquilo que
os cristãos chamam de "providência divina".
De um lado está a necessidade (fortuna) e de outro a virtù que, com senso de oportunidade (occasione) realiza a
mudança com a liberdade proporcionada pelo livre-arbítrio.
Para Maquiavel, no início da história de uma república, há um equilíbrio entre virtù e fortuna, com certa vantagem para
a fortuna. Fazer história é vencer os traçados do destino. Nesse sentido, Maquiavel nutre grande admiração pelos
grandes homens, grandes conquistadores como Ciro, Rômulo, Teseu etc. É a história dos heróis vencedores e não dos
fracos entregues à sua própria fortuna.
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Isso não nos lembra Geraldo Vandré? Vem, vamos embora que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera
acontecer...
Enquanto a boa fé de gente simples formada na religião diz "é vontade de Deus, vamos nos conformar", Maquiavel diz
"é preciso agir, transformar a história, conduzir a história".
Isso nos lembra também Max Weber, o grande cientista social alemão que viveu até o início do século XX.
Weber distingue uma ética de convicção e uma ética de responsabilidade.
Ética de convicção: agir de acordo com a consciência.
Ética de responsabilidade: ação que mede as conseqüências.
Maquiavel defende a ética de responsabilidade, que se preocupa mais com as conseqüências do que com a consciência.
Nesse sentido, "maquiavélico" acabou transformando-se termo pejorativo para dizer que "os fins justificam os meios".
Pode-se dar um exemplo de ética de responsabilidade. Imaginem que um alto funcionário do governo tenha informações
seguras de que uma instituição bancária está à beira da falência, mas ainda pode ser salva. Se ele for questionado sobre
isso, deverá negar até o fim. Porque, se ele afirmar a verdade que está na sua consciência, no mesmo instante aquela
instituição quebra porque todos tirarão de lá o seu capital.
O Príncipe de Maquiavel é o livro de cabeceira de todos os líderes que necessitam da virtù da ação política.

2.5 Maquiavel e a separação entre Ética e Política - Texto de Marilena Chauí - (Do livro: Filosofia, Marilena Chauí,
Ed. Ática, ano 2000, SP, pág. 200-204)

À volta dos castelos feudais, durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade como um
todo prevalecia a relação de vassalagem - juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia
proteger o vassalo -, nos burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social, a corporação de
ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos, comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os
membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca.
Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas entre
seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com outras corporações, todos eram considerados
livres e iguais. As corporações fazem surgir uma nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tomar-se
economicamente dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida dos burgos.

Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades
surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam
poderosas as corporações e as famílias de comerciantes enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir.

As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo,
não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por
franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de
reivindicações políticas: as cidades desejam independência diante dos barões, reis, papas e imperadores.

Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das
antigas teorias políticas, suscita um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de
papas e imperadores.

Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as
técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem
adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito.

Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricas, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o
que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado.

Esparta, Atenas e Roma são tornadas como exemplos da liberdade republicana. imitá-las é valorizar a prática política, a
vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana
e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana.

Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O
príncipe, de Maquiavel.

Antes de "O Príncipe" - Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas
operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não
podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de
que o poder seria uma graça ou um favor divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra
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idéia qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de
Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política.

Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs,
poderemos perceber certos traços comuns a todas elas:

1. encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para alguns, o
fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na
Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem
natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que
existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política. Há,
pois, algo - Deus, Natureza ou razão - anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;
2. afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou
justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são
vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem a qualquer preço, ser afastados da
comunidade e do poder;
3. assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional,
portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;
4. classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia
hereditárias entre os primeiros e identificando com o os segundos o poder obtido por conquista e usurpação,
denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de
um governante vicioso e perverso.
Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.

Maquiavélico, maquiavelismo - Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo.. São


usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política como aos políticos, e a certas atitudes das pessoas, mesmo
quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa
professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc... ).
Quando ouvimos ou empregamos essas expressões? Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém
desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente malévolo, que brinca com sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a
eles promessas que sabe que não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio proveito.
Falamos num "poder maquiavélico" para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores, mantendo suas
intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais,
violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os
jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição.
Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso, sedutor e enganador, que
sabe levar as pessoas a fazer exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Como se nota,
maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado diabólico.
Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em
Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo?

A revolução maquiaveliana - Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular
teorias políticas, e diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para
construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo.

Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, viu as lutas européias de centralização monárquica (França,
Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo via a
fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja.

A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma nova
concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença.
Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova,
que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos
acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.

Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política,
observaremos por onde passa a ruptura maquiaveliana:

1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele
em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar
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e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma
comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é
tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse
pólo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma
unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais;
2. Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o
ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente
dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa
imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social
para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e
todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade. A finalidade da política não é, como diziam os pensadores
gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e
manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais
deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera
do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional
da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei;
3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das
virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtú, mas esta é propriamente política, referindo-
se às qualidades do dirigente para tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a
astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel
afirma que o príncipe não pode ser odiado. Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido - o
que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser amado, por isso o faria um pai
para a sociedade e, sabemos, um pai conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe
aparecerá na qualidade das instituições que souber criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as
ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;
4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas
formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo
seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político - tenha a forma que tiver e tenha
a origem que tiver - poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e
a ilegitimidade, é a liberdade.

Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga
o povo é ilegítimo; caso contrário, é legítimo.

Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de
garantir o único princípio que rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do
povo.

O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força, o poder.
Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é, só é
legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de
particulares.

A tradição grega tornou ética e política inseparáveis, a tradição romana colocou nessa identidade da ética e da política na
pessoa virtuosa do governante e a tradição cristã transformou a pessoa política num corpo místico sacralizado que
encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da
política, orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de idéias e imagens é demolido por Maquiavel.
Um dos aspectos da concepção rnaquiaveliana que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe
virtuoso.

No estudo da ética, a questão central posta pelos filósofos sempre foi: O que está e o que não está em nosso poder?
"Estar em nosso poder" significava a ação voluntária racional livre, própria da virtude, e "não estar em nosso poder"
significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação. Esse
conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de
fortuna.

A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma oposição se
fez presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da
caprichosa e inconstante fortuna.
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Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido Inteiramente novo. A virtú do príncipe não consiste num
conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtú é a capacidade do príncipe para
ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que
agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá
virtú alguma.

Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois
somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas
ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em alguns, ser
inflexível.
O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.

A fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferece-se como um presente a todo aquele que
tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la. Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a
inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptar-se às
circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.

A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral do
ponto de vista da ética privada pode ser virtú política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores
políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada
dos indivíduos.

O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a
lógica real do poder.

Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural,
Maquiavel só poderia ter sido visto como "maquiavélico". As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século
XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as
máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.
Para o Ocidente cristão do século XVI, O Príncipe maquiaveliano, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só
poderia ser diabólico. À sacralização do poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa
imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo
designam.

III - TEXTOS DE MAQUIAVEL

3.1 O Amor à Liberdade


Percebe-se facilmente de onde nasce o amor à liberdade dos povos; a experiência nos mostra que as cidades crescem em
poder e em riqueza enquanto são livres. É maravilhoso, por exemplo, como cresceu a grandeza de Atenas durante os
cem anos que se sucederam à ditadura de Pisístrato. Contudo mais admirável ainda é a grandeza alcançada pela
república romana depois que foi libertada dos seus reis. Compreende-se a razão disso: não é o interesse particular que
faz a grandeza dos Estados; mas o interesse coletivo. E é evidente que o interesse comum só é respeitado nas repúblicas:
tudo o que pode trazer vantagem geral é nelas conseguido sem obstáculos. Se uma certa medida prejudica um ou outro
indivíduo, são tantos os que ela favorece, que se chega sempre a fazê-la prevalecer, a despeito das resistências, devido
ao pequeno número de pessoas prejudicadas.” (Do Livro: "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", II, 2º)

3.2 Observância da Lei


Não observar uma lei é dar mau exemplo, sobretudo quando quem a desrespeita é o seu autor; é muito perigoso para os
governantes repetir a cada dia novas ofensas à ordem pública. ....É perigoso para uma república ou para um príncipe
manter os cidadãos em regime de terror contínuo, atingindo-os sem cessar com ultrajes e suplícios. Nada há de mais
perigoso do que esse tipo de procedimento, porque os homens que temem pela própria segurança começam a tomar
todas as precauções contra os perigos que os ameaçam. Depois, sua audácia cresce, e em breve nada mais pode conter
sua ousadia. Por isso, é necessário ou não atacar ninguém ou então cometer ao mesmo tempo todas as ofensas, dando
garantias, em seguida, aos cidadãos, para restaurar sua confiança e a tranqüilidade geral . (Comentários sobre o primeira
década de Tito Lívio, 1, 45º)

3.3 O que o povo deseja?


São verdadeiramente infelizes os príncipes que, tendo a multidão como inimiga, são, obrigados a usar meios
extraordinários para afirmar seu poder. De fato, aquele que só tem um pequeno o número de inimigos pode viver seguro
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sem muita preocupação; mas quem é objeto do ódio geral nunca pode ter certeza de qualquer coisa. Quanto maior
crueldade demonstra, mas se enfraquece seu poder. O caminho mais seguro é, portanto, procurar ganhar a afeição do
povo. (Comentários, I, 16º)
3.4 A apoio do povo
Chegamos agora ao caso do cidadão que se toma soberano não por meio do crime, ou da violência intolerável, mas pelo
favor dos seus concidadãos: é o que se poderia chamar de governo civil. Chegar a essa posição dependerá não
inteiramente do valor ou da sorte, mas da astúcia assistida pela sorte . Chega-se a ela com o apoio da opinião popular ou
da aristocracia. Em todas as cidades se podem encontrar esses dois partidos antagônicos, que nascem do desejo do povo
de evitar a opressão dos poderosos, e da tendência destes últimos para comandar e oprimir o povo . Desses dois
interesses que se opõem surge uma de três conseqüências: o governo absoluto, a liberdade ou a desordem. [... ] quem se
tornar um príncipe pelo favor do povo deve manter sua amizade - o que não lhe será difícil, pois a única coisa que o
povo pede é não ser oprimido. Mas aquele que chega ao poder apoiado pelos nobres, contra os desejos do povo, deve
acima de tudo procurar conquistar a amizade deste - o que conseguirá facilmente, se o proteger. Os homens que
recebem o bem quando esperavam o mal se sentem ainda mais obrigados com relação ao benfeitor; por isso a massa
logo se tornará ainda mais bem disposta em relação ao príncipe do que se ela própria lhe tivesse dado o poder. O
príncipe poderá ganhar a simpatia do povo de muitas formas, de acordo com as circunstâncias, pois nesse ponto não há
regra que possa ser estabelecida, razão pela qual não insistirei no assunto. Direi apenas, concluindo, que é necessário que
o príncipe tenha o favor do povo; senão, lhe faltarão recursos na adversidade. (Do livro: "O príncipe", IX)

3.5 O direito de acusação pública


Não se pode dar aos guardiães da liberdade num Estado direito mais útil e necessário do que o de poder acusar, perante o
povo, ou diante de uni magistrado ou tribunal, os cidadãos que tenham atentado contra essa liberdade. Essa medida tem,
numa república, dois efeitos extremamente importantes: o primeiro é que os cidadãos, temendo ser acusados, não ousam
investir contra a segurança do Estado; se tentam fazê-lo, recebem imediatamente o castigo merecido . O outro é o de se
constituir numa válvula de escape à paixão que, de um modo ou de outro, sempre fermenta contra algum cidadão.
Quando essa paixão não encontra um meio legal de vir a superfície, assume uma importância extraordinária, que abala
os fundamentos da república. Nada a enfraquecerá tanto, todavia, quanto organizar-se o Estado de modo tal que a
fermentação de paixões possa escapar por um canal autorizado. É o que se prova com muitos exemplos, e sobretudo pelo
que Tito Lívio relata a propósito de Coriolano. (Do Livro: "Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio", I, 7º)

3.6 Os conflitos na República


Não quero silenciar sobre as desordens ocorridas em Roma, entre a morte dos Tarquínio e o estabelecimento dos
tribunos. Mas não aceitarei as afirmativas dos que acham que aquela foi uma república tumultuada e desordenada,
inferior a todos os outros governos da mesma espécie a não ser pela boa sorte que teve, e pelas virtudes militares que lhe
compensaram os defeitos. Não vou negar que a sorte e a disciplina tenham contribuído para o poder de Roma; mas não
se pode esquecer que uma excelente disciplina é a conseqüência necessária de leis apropriadas, e que em toda parte onde
estas reinam, a sorte, por sua vez, não tarda a brilhar.Examinemos, porém, as outras particularidades de Roma. Os que
criticam as contínuas dissensões, entre os aristocratas e o povo parecem desaprovar justamente as causas que
asseguraram fosse conservada a liberdade de Roma, prestando mais atenção aos gritos e rumores provocados por tais
dissensões do que aos seus efeitos salutares. Não querem perceber que há em todos os governos duas fontes de
oposição: os interesses do povo e os da classe aristocrática. Todas as leis para proteger a liberdade nascem da sua
desunião, como prova o que aconteceu em Roma, onde, durante os trezentos anos e mais que transcorreram entre os
Tarquínio e os Graco, as, desordens havidas produziram poucos exilados, e mais raramente ainda fizeram correr o
sangue. Não se pode, portanto, considerar essas dissensões como funestas, nem o Estado como inteiramente dividido,
pois durante tantos anos tais diferenças só causaram o exílio de oito ou dez pessoas, e a morte de bem poucos cidadãos,
sendo alguns outros multados. Não se pode de forma alguma acusar de desordem uma república que deu tantos
exemplos de virtude, pois os bons exemplos nascem da boa educação; a boa educação das boas leis; e estas, das
desordens que quase todos condenam irrefletidamente. De fato, se se examinar com atenção o modo como tais desordens
terminaram, ver-se-á que nunca provocaram o exílio, ou violências prejudiciais ao bem público, mas que, ao contrário,
fizeram nascer leis e regulamentos favoráveis à liberdade de todos. (Do Livro: "Comentários sobre a primeira década
de Tito Lívio", I, 4º)
3.7 Agir de acordo com as necessidades do momento
“....se acontece que o tempo e as circunstâncias são favoráveis a quem age com cuidado e prudência, o resultado será
bom; mas se mudam as circunstâncias e o tempo, a mesma pessoa se arruinará, se não alterar seu procedimento. Não há
homem tão prudente que possa adaptar-se a esse fato - ou porque não se consegue desviar do rumo a que o inclinou a
natureza, ou porque, tendo sempre prosperado no único caminho utilizado, não se convence de que será oportuno
abandoná-lo. “
Não se pode, contudo, chamar de valor o assassínio dos seus compatriotas, à traição dos amigos, a conduta sem fé,
piedade e religião; são métodos que conduziu ao poder, mas não à glória. Se considerarmos o valor demonstrado por
Agátocles em enfrentar e superar perigos, e sua grandeza de ânimo ao suportar e vencer obstáculos, não há razão para
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julgá-lo inferior a qualquer um dos capitães mais afamados. Contudo sua desumanidade, sua crueldade bárbara,
juntamente com as atrocidades incontáveis que praticou, não permitem nomeá-lo entre os homens mais famosos. Não se
pode de qualquer forma atribuir ao valor ou à sorte o que ele conseguiu prescindindo de ambos. (Do Livro: "O príncipe,
XXV)
3.8 A conquista do poder pelo crime
A alguns pode espantar o fato de que após tantas traições e tão grande crueldade, Agátocles - e outros como ele -
pudesse viver em segurança no seu país durante muitos anos, defendendo-se contra inimigos estrangeiros sem ser
vitimado por qualquer conspiração. Isso, não obstante muitos outros príncipes não terem podido manter sua posição em
tempos de paz, para não falar dos tempos incertos de guerra, devido à sua crueldade. Creio que a diferença reside no uso
adequado ou não da crueldade. No primeiro caso, estão aqueles que a usaram bem (se é que se pode qualificar um mal
com a palavra bem), uma só vez, com o objetivo de se garantir, e que depois não persistiram nela, mas, ao contrário, a
substituíram por medidas tão benéficas a seus súditos quanto possível. As crueldades mal-empregadas são as que, sendo
a princípio poucas, crescem com o tempo, em vez de diminuir. Os que aplicam o primeiro método podem remediar de
alguma forma sua condição, diante de Deus e dos homens, como Agátocles. Quanto aos outros, não lhes é possível
manter-se. De onde se deve observar que, ao tomar um Estado, o conquistador deve praticar todas as suas crueldades ao
mesmo tempo, evitando ter que repeti-las a cada dia; assim tranqüilizará o povo, sem fazer inovações, seduzindo-o
depois com benefícios. Quem agir de outra forma, por timidez . ou maus conselhos, estará obrigado a permanecer de
arma em punho, e nunca poderá depender dos seus súditos que, devido às contínuas injurias, não terão confiança no
governante. As injúrias devem ser cometidas todas ao mesmo tempo, de modo que, sendo sentidas por menos tempo,
ofendam menos. As vantagens, por sua vez, devem ser concedidas gradualmente, de forma que sejam melhor apreciadas.
Acima de tudo, o soberano deve ter tais relações com seus súditos que nenhum acidente, bom ou mau, o afaste do seu
rumo; porque, como a necessidade surge em circunstâncias adversas, não deixará tempo para a prática do mal; e se fizer
o bem, nada lucrará com isso, pois se pensará que foi forçado a fazê-lo. (O príncipe, VIII)

3.9 É melhor ser amado ou temido?


Chegamos assim à questão do saber se é melhor ser amado do que temido. A resposta é que é preciso ser ao mesmo
tempo amado e temido mas que, como isso é difícil, é muito mais seguro ser temido, se for preciso escolher. De fato,
pode-se dizer dos homens, de modo geral, que são ingratos, volúveis, dissimulados; procuram escapar dos perigos e são
ávidos de vantagens; se o príncipe os beneficia, estão inteiramente do seu lado; como já observei, oferecem seu próprio
sangue, o patrimônio, sua vida e os filhos quando a necessidade é remota; quando ela é iminente, revoltam-se. Estará
perdido o príncipe que confiar somente nas suas palavras, sem fazer outros preparativos, porque a amizade conquistada
pela compra, e não pela grandeza e nobreza de espírito, não é segura - não se pode contar com ela. Os homens têm
menos escrúpulos em ofender quem, se faz amar do que quem se faz temer, pois o amor é mantido por uma corrente de
obrigações que se rompe quando deixa de ser necessária já que os homens são egoístas; mas o temor é mantido pelo
medo da punição, que nunca falha. (Do livro: "O príncipe", XVII)

3.10 O papel da religião


Nossa religião... só santifica os humildes, os homens inclinados à contemplação, e não à vida ativa. Para ela, o bem
supremo é a humildade, o desprezo pelas coisas do mundo. Já os pagãos davam a máxima importância à grandeza
d’alma, ao vigor do corpo, a tudo, enfim, que contribuísse para tornar os homens robustos e corajosos. Se a nossa
religião nos recomenda hoje que sejamos fortes, é para resistir aos males, e não para incitar-nos a grandes
empreendimentos. Parece que essa moral tornou os homens mais fracos, entregando o mundo à audácia dos celerados.
Estes sabem que podem exercer, sem medo a tirania, vendo os homens prontos a sofrer sem vingança todos os ultrajes,
na esperança de conquistar o paraíso.

3.11 A conduta dos príncipes e governantes


Todos sabem que é louvável que o príncipe mantenha a palavra empenhada, e viva com integridade e não com astúcia.
Contudo a experiência dos nossos tempos mostra que os príncipes que tiveram pouco respeito pela boa-fé puderam com
astúcia confundir os espíritos e chegaram a superar os que basearam sua conduta na lealdade. Como sabemos, pode-se
lutar de duas maneiras: pela lei e pela força. O primeiro método é o dos homens; o segundo, o dos animais. Porém, como
o primeiro pode ser insuficiente, tem-se que recorrer ao segundo. É necessário, portanto, que o príncipe saiba usar bem
tanto o processo dos homens como o dos animais. .... Sendo obrigado a agir como um animal, deve o príncipe imitar a
RAPOSA e o LEÃO, pois o leão não se pode defender das armadilhas, e a raposa não consegue defender-se dos lobos. É
preciso, portanto, ser raposa para reconhecer as armadilhas, e leão para assustar os lobos. ...Não é necessário que um
príncipe tenha todas as qualidades...mas é muito necessário que as aparente todas. .... Assim é bom ser misericordioso,
leal, humanitário, sincero e religioso – como é bom parecê-lo; mas é preciso ter a capacidade de se converter aos
atributos opostos, em caso de necessidade. (O príncipe, XVIII)
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3.12 Ter liberalidade ou ser avarento?

... Não podendo um príncipe usar da virtù da liberalidade sem prejuízo próprio e sem danos, de forma que seja
divulgada, deverá, se for prudente, não se preocupar com a fama de miserável, porque com o tempo será considerado
cada vez mais liberal, ao verem que, graças à sua parcimônia, suas receitas lhe bastam, que pode defender-se dos que lhe
movem guerra e realizar seus empreendimentos sem onerar o povo. Assim, usará de liberalidade para com todos de
quem nada tira, que são inúmeros, e de sovinice para com aqueles a quem não dá coisa alguma, e que são poucos, Em
nosso tempos, só temos visto fazerem grande coisa os que têm sido considerados avarentos; os outros se
arruinam. ....Portanto, para não ter de roubar os súditos, poder defender-se e para não ficar pobre e desprezível, e para
não ser obrigado a se tornar rapace, um príncipe deve temer pouco incorrer na fama de miserável, porque este é um dos
vícios que lhe permitem governar.” (O príncipe, pág. 76, Ed. Martins Fontes, ano 2001)

3.13 A lógica da força


“.... todos os profetas armados vencem, e são vencidos os desarmados. Porque, ...a natureza dos povos é lábil: é fácil
persuadi-los de uma coisa, mas é difícil que mantenham sua opinião. Por isso, convém ordenar tudo de modo que,
quando lhes falte a crença, se lhes possa fazer crer pela força.
Desarmados, Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam podido fazer com que as normas que propunham fossem
observadas por muito tempo: isso aconteceu em nossos dias ao frei Jerônimo Savonarola, cuja nova ordem se arruinou
inteiramente quando a multidão começou a perder a fé, e ele não achou modo de manter firmes seus seguidores, nem
maneira de fazer crer aos descrentes. Os homens como ele têm que enfrentar grandes dificuldades; seu caminho está
cheio de perigos, e é necessário que tenham o valor suficiente para superá-los. Quando o conseguem, são venerados,
depois de suprimir os que tinham inveja das suas qualidades, e se tornam poderosos, seguros, honrados e felizes. (Do
Livro: "O Príncipe", VI)
3.14 A verdade efetiva dos fatos
Falta ainda considerar como um príncipe deve conduzir-se com os súditos e os aliados. Como sei que muitos já
escreveram sobre o assunto, temo que estas palavras possam parecer presunçosas, por discreparem, especialmente nesse
ponto, das opiniões de outras pessoas. Mas, como minha intenção é escrever o que tenha utilidade para quem estiver
interessado, pareceu-me mais apropriado abordar a verdade efetiva das coisas, e não a imaginação.
Muitos já conceberam repúblicas e monarquias jamais vistas, e que nunca existiram na realidade; de fato, a maneira
como vivemos é tão diferente daquela como deveríamos viver que quem despreza o que se faz pelo que deveria ser feito
aprenderá a provocar sua própria ruína, e não a defender-se.
Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a penar, entre tantos que não são bons. É
necessário, portanto, que o príncipe que deseja manter-se aprende a agir sem bondade, faculdade que usará ou não, em
cada caso, conforme seja necessário.
Deixando de lado, assim, o que diz respeito a príncipes imaginários, e falando dos que existem realmente, pode-se
observar que todos os homens - especialmente os soberanos, colocados em posição mais elevada - têm a reputação de
certas qualidades, que lhes valem elogios ou vitupérios. Assim, alguns são tidos como liberais, outros por miseráveis
(para usar um termo toscano, mísero, que designa o que usa de má vontade o que é seu, enquanto avaro se refere entre
nós a quem deseja possuir roubando); um é considerado generoso; o outro, ávido; um, cruel; o outro, misericordioso;
um, efeminado e pusilânime; e outro, bravo e corajoso; humanitário ou altaneiro; lascivo ou casto; franco ou astuto;
difícil ou fácil; sério ou frívolo; religioso ou incrédulo; e assim por diante.
Naturalmente, seria muito louvável que um príncipe possuísse todas as boas qualidades acima mencionadas, mas como
isso não é possível, pois as condições humanas, não o permitem, é necessário que tenha a prudência necessária para
evitar o escândalo provocado pelos vícios que poderiam fazê-lo perder seus domínios, evitando os outros se for possível;
se não for, poderá praticá-los com menores escrúpulos. Contudo não deverá preocupar-se com a prática escandalosa
daqueles vícios sem os quais é difícil salvar o Estado; isto porque, se se refletir bem, será fácil perceber que certas
qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da
segurança e do bem-estar. (Do livro: "O príncipe", XV)
3.15 Nenhum regime tem garantia de estabilidade absoluta
Costumam as províncias, as mais das vezes, nas mudanças a que são submetidas, da ordem vir à desordem, e novamente,
depois, passar da desordem á ordem: porque não estando na natureza das coisas deste mundo o deter-se, quando chegam
à sua máxima perfeição, não mais podendo se elevar, convém que precipitem; e de igual maneira, uma vez caídas e pelas
desordens chegadas à máxima baixeza, necessariamente não podendo mais cair convém que se elevem: assim, sempre
do bem se cai no mal e do mal eleva-se ao bem (Maquiavel, 1994, História de Florença, V, I:223)
3.16 O Estado controlando a natureza má dos homens
E compete à lei ou a uma força maior refrear aquele que se conduz “pelo movimento próprio e pela própria paixão” – o
instinto natural; de modo que a força das paixões vem a ser a estrutura fundamental que, com uma força maior, a política
está destinada a enfrentar (Comentários..., 1994:7)

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