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Universidade Federal Fluminense

Campus de Volta Redonda


Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Departamento de Psicologia

Curso de 2022.2
TEORIAS E SISTEMAS PSICOLÓGICOS I –
PSICANÁLISE

Prof. Claudia Henschel de Lima


(Laboratório de Investigação das Psicopatologias Contemporâneas –
LAPSICON.
Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos sobre
a Subjetividade e Emergências Humanitárias.)

Copr Claudia Henschel de Lima, 2020-2021

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Eixos conceituais da Psicanálise
Parte I.

1. Considerações Iniciais: as condições de possibilidade para a elaboração


dos conceitos de inconsciente e de pulsão.

Nas aulas anteriores, comecei a apresentar, ainda que de forma breve e pouco
precisa, as condições de possibilidade da elaboração do conceito de inconsciente por
Freud. Assim, se de um lado, apresentei para vocês a importância do contato de Freud
com a pesquisa realizada por Charcot, no Hospital da Salpétrière para a construção
de uma teoria sobre a histeria, se indiquei o tratamento de Anna O., por Joseph
Breuer, como central para a pesquisa que Freud iria conduzir em Viena – após seu
retorno dos estudos realizados com Charcot – de outro lado, apontei para o
distanciamento de Freud com relação a esses dois nomes, a partir da elaboração da
hipótese de que a etiologia da histeria reside na defesa psíquica contra ideias,
representações psíquicas investidas de afeto, investidas de sexualidade, investidas
de libido e da ruptura com o método da hipnose.
Tabela 1. Síntese das contribuições de Charcot, Breuer e Freud para a
investigação sobre a histeria.
Charcot Breuer Freud
1.Independência de seus sintomas 1.Hipótese etiológica sobre a 1. Hipótese etiológica sobre a
com relação ao aparelho genital histeria: Situações histeria: Defesa psíquica
feminino e sua ocorrência em traumáticas. (recalcamento) contra a
homens. sexualidade.
2.Independência de sua etiologia
com relação a ocorrência de uma 2. Direção de Tratamento – 2. Direção de Tratamento:
irritação dos órgãos genitais. método da catarse: Associação livre –
3. Localização do ponto de Hipnose – reprodução do descoberta da defesa (ideias
desencadeamento da histeria a acontecimento traumático recalcadas) e aceitação ou
partir da aura hysterica. esquecido para ab-reagir o desaprovação do recalcado.
4.Desenvolvimento do ataque afeto.
histérico em 4 fases: epileptoide,
clownismo, atitudes passionais e
delírio.
5.Ocorrência de sintomas positivos
como: perturbações da
sensibilidade (por ex.
hemianestesia).

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Tomando como referência um texto de Freud, datado de 1912, e intitulado Uma
Nota sobre o Inconsciente na Psicanálise (1912/19871), encontramos uma avaliação
bastante precisa de sua relação com o método da hipnose e da importância pontual
que esse método tivera, no final do século XIX, para evidenciar a presença do conflito
psíquico na base da formação do sintoma histérico. Nesse texto, então, Freud
(1912/1987) explica em que consistira o método hipnótico. Em linhas gerais, sugere-
se à um paciente sob hipnose (sugestão hipnótica), para que execute uma ação um
tempo depois de despertar. Quando o paciente desperta, não se lembra de nada.
Porém na hora estipulada durante a sugestão hipnótica, o paciente realiza
conscientemente a ação sem saber por que o faz. Ele qualifica a sugestão hipnótica,
de experimento em que se evidencia como uma ideia sugerida em hipnose se torna
ativa e se converte em ação:
Mas temos mais a aprender deste experimento. Somos levados da visão
puramente descritiva a uma visão dinâmica do fenômeno. A ideia da ação
ordenada na hipnose não apenas tornou-se objeto da consciência em
determinado momento, mas o aspecto mais notável do fato é que esta ideia
tornou-se ativa. (Freud, 1912/1987, p. 328).

A hipnose é, então, considerada por Freud como um experimento. E não é pouca


coisa, essa afirmação: é bem diferente de considerar a hipnose como um método de
tratamento. Qualificar a hipnose como experimento, representa sua ruptura em
relação a outros médicos da época: é o caso específico de Ambroise-Auguste Liébault
e Hippolyte Bernheim - representantes da Escola de Nancy e defensores da sugestão
hipnótica na condução de tratamento da histeria.
Figura 1. Os principais nomes da Escola de Nancy (França).
Liébault Bernheim

Fonte: Institut d'Histoire de la Médecine de Zurich Fonte:https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bernheim.jpg

1Freud. S. Nota sobre o Inconsciente na Psicanálise (1912). In: Freud, S. Edição Standard das obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
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Trata-se de um experimento na medida em que, por meio da hipnose (da
sugestão hipnótica) era possível observar a ocorrência de representações psíquicas
não acessíveis fora do estado hipnótica e evidenciar que os sintomas histéricos eram
governados por essas representações psíquicas. Retomando, a monografia Estudos
sobre Histeria (1895[1893]/19872), anterior à publicação de A Interpretação dos
Sonhos (1900/19873) e de Uma Nota sobre o Inconsciente na Psicanálise
(1912/1987), observamos como, a partir da observação dessas representações
psíquicas, fora possível à Freud elaborar a hipótese da causalidade psíquica da
histeria, da etiologia psíquica da histeria.
Tabela 2. Estrutura da monografia estudos sobre Histeria (1895[1893]/1987).
Parte I - Escrito em parceria Parte II - Os estudos de caso. Parte III – A discussão
com Joseph Breuer. teórica
o estudo teórico sobre os 1.Fraulein Anna O. (Breuer). Hipótese da etiologia
processos psíquicos em jogo no 2.Frau Emmy Von N. (Freud). psíquica da histeria.
desencadeamento dos quadros 3.Miss Lucy R. (Freud).
de histeria. 4.Miss Katharina (Freud).
5.Fraulein Elisabeth Von R.
(Freud).

De acordo com a hipótese freudiana da etiologia psíquica da histeria, o sintoma


histérico estava associado a lembranças, a ideias, a representações psíquicas
esquecidas, situadas fora do campo da consciência. Consideremos uma passagem
do caso de Miss Lucy R. em que é claro esse estatuto da representação psíquica na
histeria: “– Não sabia (...) ou antes, não queria saber. Queria expulsar isso da minha
cabeça e não pensar mais no caso”. (Freud, 1895[1893]/1987, p. 144).
Essa passagem traduz os três eixos que serão centrais para a definição do
conceito de inconsciente, publicada em A Interpretação dos Sonhos (1900/1987):
1. A ocorrência de um conflito entre representações psíquicas.
2. O destino de determinadas representações psíquicas para fora das leis do
pensamento na consciência (identidade, terceiro excluído, não
contradição4).

2 Freud. S. Estudos sobre Histeria (1895[1893). In: Freud, S. Edição Standard das obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v.II, 1987.
3 Freud. S. A Interpretação dos Sonhos (1900). In: Freud, S. Edição Standard das obras Completas de

Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.


4 Em linhas breves, o princípio da identidade define que todo objeto é idêntico a ele mesmo. O terceiro

excluído define que a afirmação de uma proposição é verdadeira ou sua negação é verdadeira. O
princípio da não-contradição define que duas proposições não podem ser, simultaneamente,
verdadeiras.
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3. A ocorrência de um processo psíquico de negação, de defesa com relação
a determinadas representações psíquicas.
Mais uma vez, a defesa da hipótese da causalidade psíquica da histeria,
implicava um posicionamento político em relação a compreensão da histeria por parte
de alguns médicos e representantes de escolas de pensamento no campo da
psiquiatria do século XIX. É o caso de Pierre Janet, que em sua tese L'état mental des
hystériques, considerava a ocorrência do conflito entre representações psíquicas, na
base do sintoma histérico, como decorrente da fragilidade inata da capacidade de
síntese psíquica nos histéricos e indicativo de degeneração do funcionamento do
sistema nervoso.
Figura 2. Pierre Janet.

Fonte: http://www.artfinding.com/images/svv/2/324/paul_marsan_dit_dornac__docteur_pierre_janet-115-1.jpg

Conflito psíquico e defesa psíquica serão os eixos centrais da formulação da


hipótese freudiana da causalidade psíquica da histeria: o sintoma histérico é produto
da defesa psíquica contra representações psíquicas conflituosas e incompatíveis com
a consciência.
2. Nos Estudos sobre Histeria, o desabamento do lugar privilegiado do ser
humano no sistema do mundo.
A clínica da histeria, em Freud, revela a dimensão mais fundamental do ser
humano e que, neste momento da aula, denominaremos de finitude. De fato, o
encontro de Freud com a clínica da histeria o colocou diante de uma nova concepção
de corpo: o corpo erógeno, desnaturalizado, manco. Um corpo que é cenário da
conversão do afeto a partir da defesa com relação às representações psíquicas (as
ideias) incompatíveis com a consciência. É o corpo das zonas histerógenas da
histeria, e não o corpo biológico. Tomando como referência o caso de Elisabeth Von

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Ritter (Freud, 1895[1893]/1987) a descoberta, por parte de Freud, do processo de
formação do sintoma deixava claro o que era o corpo na histeria.
Elisabeth era a terceira filha de um casamento, em que o pai concordara em
ter esse terceiro filho na expectativa de que fosse um menino. Sobre esse fato, a
paciente recordara à Freud que era ocupara o lugar deste filho desejado pelo pai
apesar de ser menina: cresceu insolente, rebelde não correspondendo ao ideal de
feminilidade de sua época. Da parte de Elisabeth, isso não era uma questão, já que
tinha críticas à esse ideal. Com a doença paterna, passa a se dedicar integralmente
aos cuidados do pai. Até que uma noite, ela teria sido encorajada pelo pai e pela mãe
à ir à uma festa em companhia de rapaz com quem se relacionava amorosamente. Ao
chegar bem tarde em casa, seu pai havia piorado muito de saúde e recrimina a si
própria por ter saído com o rapaz e chegado tão tarde. O primeiro sintoma conversivo
de Elisabeth surgiu dois anos após o falecimento de seu pai. Na época, sentira-se
muito doente, apresentado uma incapacidade para andar devido a dores terríveis na
perna direita. O trabalho associativo em análise, que levou Elisabeth à recordar a
festa, sua ligação amorosa com o rapaz e o agravamento da doença do pai, levaram
Freud à elaborar uma hipótese sobre a etiologia das dores histéricas na perna da
paciente (Freud,1895[1893/1987, p. 175): “No momento em que o círculo de ideias
que abrangia seus deveres para com o pai enfermo entrou em conflito com o conteúdo
do desejo erótico que estava sentindo na época”.
Tabela 3. O processo de formação do sintoma conversivo em Elisabeth Von
Ritter.
1. Conflito psíquico entre representações psíquicas eróticas (a festa, a ligação erótica com
um rapaz) e representações psíquicas da consciência (os deveres para com os cuidados
de seu pai).

2. Negação por parte da consciência de Elisabeth a entrar em acordo com as representações


psíquicas eróticas.

3. Recalcamento das representações psíquicas eróticas.

4. Conversão do afeto ligado às representações psíquicas eróticas para uma determinada


área do corpo da paciente (zona histerógena): no caso, a perna porque correspondia ao
local em que seu pai se apoiava para o cuidado de sua doença.

A hipótese sobre a causalidade psíquica da histeria permite que possamos


entender o impacto do funcionamento subjetivo sobre o corpo. Portanto, não é apenas
do corpo biológico que se trata na histeria, mas dessa mistura, desse amálgama, de

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sintoma conversivo e corpo, de afeto e corpo, de pulsão e corpo. O que levou Freud
a escrever o texto Neuropsicoses de Defesa (1894/19875) e a formular o primeiro
modelo nosográfico das neuropsicoses de defesa, em que:
1. Localiza a histeria como neuropsicose de defesa.
2. Define o campo das neuropsicoses de defesa para além da histeria.
3. Sistematiza seus traços diferenciais a partir do funcionamento da defesa.
Tabela 4. O primeiro modelo das neuropsicoses, com centralidade na defesa
(Freud, 1894/1987).
Neuropsicoses de Defesa Etiologia
(Tipos Clínicos) (Separação entre
representação psíquica e afeto)
Histeria 1. Separação entre representação psíquica e afeto.
2.Recalcamento da representação psíquica.
3.Conversão do afeto

Obsessão 1. Separação entre representação psíquica e afeto.


2. Recalcamento da representação psíquica.
3.Deslocamento do afeto para outras representações psíquicas.

Psicose 1.Rejeição, por parte do eu, da representação psíquica e do afeto,


ligada a ela (sem a separação da representação e do afeto, que
ocorre nas neuroses) fazendo com que a representação em questão
não tivesse ocorrido.
2. Desconhecimento quanto à ocorrência da representação (é como
se ela nunca tivesse ocorrido), desligamento da realidade e
confusão alucinatória.

No entanto, encontramos em Projeto para uma Psicologia Científica


(1950[1895]/1987), uma teorização sobre o funcionamento subjetivo que, à primeira
vista, aparentemente, parece contrariar o conteúdo das descobertas de Estudos sobre
Histeria (1895[1893]/1987), parece contrariar a hipótese da causalidade psíquica –
afinal, encontramos, no texto, termos como neurônio e energia. Mas, não nos
enganemos quanto a isso. Em Projeto para uma Psicologia Científica
(1950[1895]/1987), encontramos um Freud antibiológico e antimetafísico um Freud
que vai localizar na origem do ataque histérico e, no próprio funcionamento da
subjetividade, a ausência de um fundamento que oriente a ação humana, a ausência
da referência ao Ser. E, neste sentido, podemos afirmar que é um dos mais relevantes
tratados antimetafísicos sobre a subjetividade, da história do pensamento no século

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Freud. S. Neuropsicoses de defesa (1894). In: Freud, S. Edição Standard das obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. II, 1987.

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XX. A fim de entendermos a dimensão deste debate, consideramos com amior
aprofundamento a marca da finitude humana em Freud.

3. A noção de desamparo fundamental e a marca da finitude humana.


Finalmente, o mais profundo sedimento da superpopulação relativa habita a
esfera do pauperismo. Abstraindo vagabundos, delinqüentes, prostitutas, em
suma, o lumpemproletariado propriamente dito, essa camada social consiste
em três categorias. Primeiro, os aptos para o trabalho. Basta apenas observar
superficialmente a estatística do pauperismo inglês e se constata que sua
massa se expande a cada crise e decresce a toda retomada dos negócios.
Segundo, órfãos e crianças indigentes. Eles são candidatos ao exército
industrial de reserva e, em tempos de grande prosperidade, como, por
exemplo, em 1860, são rápida e maciçamente incorporados ao exército ativo
de trabalhadores. Terceiro, degradados, maltrapilhos, incapacitados para o
trabalho. São notadamente indivíduos que sucumbem devido a sua
imobilidade, causada pela divisão do trabalho, aqueles que ultrapassam a
idade normal de um trabalhador e finalmente as vítimas da indústria, cujo
número cresce com a maquinaria perigosa, minas, fábricas químicas etc., isto
é, aleijados, doentes, viúvas etc. O pauperismo constitui o asilo para inválidos
do exército ativo de trabalhadores e o peso morto do exército industrial de
reserva. (Karl Marx. O Capital6).

Tenho à minha frente apenas a trincheira, a borra dos dias, a área dos
combatentes, a arena dos loucos, o sulco dos campos, arados com tiros de
canhão, os fascínoras, os deslocados, os delinquentes, os genialoides, os
ociosos, os playboys pequeno-burgueses, os esquizofrênicos, os
negligenciados, os desaparecidos, os erráticos, os notívagos, os ex-
presidiários, os reincidentes, os anárquicos, os sindicalistas incendiários, os
gazeteiros desesperados, uma boemia política de veteranos, oficiais e
suboficiais, homens hábeis no manejo de armas de fogo ou cortantes,
aqueles que se redescobriram violentos em face da normalidade do retorno,
os fanáticos incapazes de ver com clareza as próprias ideias, os
sobreviventes que acreditando serem heróis consagrados à morte,
confundem uma sífilis mal curada com um sinal do destino. (Antonio Scuratii.
M. O Filho do Século7).

Inicio esta parte da aula dedicada à noção de objeto perdido com duas citações,
que cobrem o final do século XIX e o período do pós - I Guerra. A primeira citação, de
Marx, estabelece quase que uma nosografia das formas da superpopulação no final
do século XIX. Essa citação cumpre uma função: dar à nós a exata imagem de quem
éramos no século XIX, de quem habitava as ruas, as casas miseráveis das cidades
europeias sendo denominado de superpopulação. A segunda citação foi extraída da
biografia de Benito Mussolini, um personagem da política italiana no final da I Guerra
Mundial, responsável pelo fascismo. Comparando as duas citações, temos um retrato
da modernidade no quadro da ascensão do capitalismo. E em nenhuma delas, é

6 Marx, K. O Capital. Volume II. Capítulo XXIII- A Lei Geral da Acumulação Capitalista. Coleção Os
Economistas. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996, p. 262.
7 Scurati, A. M. O Filho do Século. Rio de Janeiro: Intrínseca, Ed, 2019, p. 13.
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mencionada qualquer forma, mais sublime, da humanidade e nem qualquer lugar
privilegiado ao ser humano. O homem moderno, conforme afirma Michel Foucault em
As Palavras e as Coisas. Uma Arqueologia das Ciências Humanas (1966/1983), é
determinado pela finitude das condições históricas de sua determinação.
A psicanálise não foge desta determinação histórica que localiza o homem na
finitude. Conforme estudaremos, a temática da finitude humana comparece na Obra
de Freud de forma profundamente teorizada, por meio dos conceitos de inconsciente
e pulsão. Ambos os conceitos definem uma condição ontológica para o ser humano,
fundamentada no desamparo fundamental (Hilflosigkeit).
A noção metapsicológica de desamparo está presente desde o início da obra
freudiana. No entanto, sua definição é efetivamente elaborada nos seguintes textos
de Freud:
1. Inibições, sintomas e angústia (1926[1925]/20068).
2. O Futuro de uma Ilusão (1927/20069).
3. O Mal-estar da Civilização (1930[1929]/200610).
O termo em português desamparo é considerado como sendo uma tradução
precisa para o termo hilflosigkeit, utilizado por Freud, pois designa a ausência de
proteção originária do ser humano, que o faz se reportar ao outro. A imagem que
Freud irá utilizar no texto Projeto para uma Psicologia Científica (1895[1950]/198711)
é a do ser humano que precisa do próximo, desde o nascimento, para obter algum
suporte para apaziguar suas próprias necessidades. Essa imagem, na verdade,
exprime o quanto a experiência de desamparo é originária, exprime a marca da
finitude que atravessa a modernidade. Como, então, Freud define o próximo, em
Projeto para uma Psicologia Científica (1895[1950]/1987)? E como o próximo se
articula á experiência de desamparo?
Freud (1895[1950]/1987) define o próximo como uma complexo: o complexo do
próximo (Nebenmensch):
Suponhamos que o objeto apresentado pela percepção se pareça com o
próprio sujeito – com um outro ser humano. Nesse caso, o interesse teórico
[que se lhe dedica] fica explicado também pelo fato de que um objeto

8 Freud, S. (1926[1925]). Inibições, sintomas e angústia. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago, v. XX.
9 Freud, S. (1927). O Futuro de uma Ilusão. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago, v. XXI.


10 Freud, S. (1930[1929]). O Mal-estar da Civilização. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras

Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago, v. XXI.


11 Freud. S. Projeto para uma Psicologia Científica (1895[1950]). In: Freud, S. Edição Standard das

obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. I, 1987.


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semelhante foi, ao mesmo tempo, o primeiro objeto satisfatório [do sujeito],
seu primeiro objeto hostil e também sua força auxiliar (...). Desse modo, o
complexo do ser humano semelhante se divide em duas partes, das quais
uma dá impressão de ser uma estrutura que persiste coerente como uma
coisa, enquanto que a outra pode ser compreendida por meio da atividade da
memória – isto é, pode ser reduzida a uma informação sobre o próprio corpo
[do sujeito]. (Freud, 1895[1950]/1987, p.438).
A citação de Freud mostra a matéria que compõe o complexo do próximo. Ele
se divide em duas partes:
1. A presença de uma relação de coincidência entre as percepções que se
tem do outro e a lembrança que o sujeito possui de certas impressões
visuais que advêm de seu próprio corpo – uma identificação pela imagem.
2. A presença de uma estrutura constante, invariável, mas obscura,
incognoscível – Freud denominará essa parte do complexo do próximo de
A Coisa (Das Ding).
Essa divisão do próximo, que traz em si a presença de um núcleo invriável e
constante de obscuridade (Das Ding), impõe um verdadeiro limite à relação do sujeito
com seu próximo e, consequentemente, à própria ação humana. Como o próprio
termo sugere, o próximo não é idêntico, ainda que se trate de dois seres humanos: há
algo que, no próximo, se constitui como um núcleo inapreensível, como coisa, de
modo que toda relação humana traz em si um caráter de incompletude sob a ótica de
uma perda. Dessa forma, a experiência do desamparo, que leva o ser humano à se
reportar ao outro, ao próximo, permanece ao se defrontar com esse núcleo de Das
Ding. Em uma outra passagem de Projeto para uma Psicologia Científica
(1895[1950]/1987), Freud se refere à experiência de desamparo que habita um
paciente histérico:
Ataques de vertigem e acessos de choro – tudo isso tem como alvo uma outra
pessoa – mas, na sua maior parte, uma outra pessoa pré-histórica,
inesquecível, que nunca é igualada por nenhuma outra posterior. (...) Um dos
meus pacientes ainda se lamuria, no seu sono, como costumava fazê-lo – ser
levado para a cama, ser mimado para dormir, por sua mãe, que morreu
quando ele tinha 22 meses de idade.” (Freud, 1895[1950]/1987, p. 324).
Assinalo, aqui, o objeto do choro do paciente de Freud: a perda da mãe quando
tinha 22 meses de vida. Freud posicionará a estrutura da neurose na vertente da
tradução subjetiva da condição ontológica de desamparo: a neurose traduz essa
experiência intimamente articulada a ocorrência de um limite dado por Das Ding, como
perda do objeto.
Antes de avançarmos um pouco mais, gostaria de destacar que a experiência
de desamparo fundamental já atravessa o texto de Freud de 1895, ao definir o
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complexo do próximo com um limite de apreensão pelo ser humano localizando esse
limite na presença de uma estrutura constante, invariável, mas obscura,
incognoscível. Esse limite de apreensão tem uma leitura subjetiva em termos de perda
do objeto. Tais formulações serão radicalizadas ao longo de toda a obra freudiana,
ganhando aprofundamento com a ocorrência da I Guerra e seu impacto sobre o
funcionamento psíquico e com o aprofundamento do antisemitismo na Europa. Esses
dois acontecimentos históricos, impuseram à Freud, um deslocamento muito
fundamental de sua temática da sexualidade na direção de uma agressividade
originária que marca a relação do ser humano com seu próximo. Com o intuito de,
neste momento, apenas destacar, a forma como o complexo do próximo se apresenta
a partir da formulação do conceito de pulsão de morte, destaco a seguinte passagem
do texto de Freud, O Mal-estar da Civilização (1930[1929]/2006, p.13312):
(...) os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no
máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas
entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em conta uma poderosa quota de
agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é para eles não apenas um
ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a
satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de
trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente, sem o seu
consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, tortura-lo e mata-lo. Homo homini lúpus.

4. A Coisa-em si freudiana.
O texto Projeto para uma Psicologia Científica (1895[1950]/1987) apresenta um
vocabulário alinhado ao modelo da neurofisiologia da época: neurônios, energia
circulante entre neurônios, descarga da energia física circulante nos neurônios. Tudo
parece indicar que Freud trabalharia no sentido de reduzir a experiência psíquica ao
funcionamento dos neurônios. Entretanto, ressalto que Freud estabelece uma
distinção entre uma resposta, uma reação, à um estímulo ambiental e o ataque
histérico: o ataque histérico é uma ação orientada pela tentativa de resgatar, de
reproduzir uma cena de enorme prazer. Para que tenhamos a exata dimensão desta
diferença, reproduzirei a citação já comentada anteriormente:
Ataques de vertigem e acessos de choro – tudo isso tem como alvo uma outra
pessoa – mas, na sua maior parte, uma outra pessoa pré-histórica,
inesquecível, que nunca é igualada por nenhuma outra posterior. (...) Um dos
meus pacientes ainda se lamuria, no seu sono, como costumava fazê-lo – ser
levado para a cama, ser mimado para dormir, por sua mãe, que morreu
quando ele tinha 22 meses de idade.” (Freud, 1895[1950]/1987, p. 324).

12Freud, S. (1930[1929]). O Mal-estar da Civilização. In Freud, S. Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago, v. XXI.
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Por isso, Freud (1950[1895]/1987) denominará de ação específica: o ataque
histérico é uma ação específica cujo objetivo é a reprodução do prazer. Estamos,
então, diante da primeira afirmação antibiológica escrita nas entrelinhas de Projeto
para uma Psicologia Científica (1950[1895]/1987): o ser humano age e sua ação
específica tem como objetivo a reprodução de uma experiência de prazer perdida,
recalcada pela defesa. E da primeira afirmação antimetafísica: a ação humana tem,
em seu fundamento, uma representação psíquica dotada de afeto, investida de libido,
e não o Ser. Essas duas afirmações conferem o peso ao que o próprio Freud, alguns
anos mais tarde em Uma Dificuldade da Psicanálise (1917/2010, p.250-251), afirmará
quando revela o lugar da psicanálise no conhecimento e no mundo:
(...) esses dois esclarecimentos, de que a vida pulsional da sexualidade não
pode ser inteiramente domada em nós, e de que os processos mentais são
inconscientes em si e apenas acessíveis e submetidos ao Eu através de uma
percepção incompleta e suspeita, equivalem à afirmação de que o Eu não é
senhor em sua própria casa. Juntos eles representam a terceira afronta ao
amor-próprio humano, que eu chamaria de psicológica.13.

A terceira ferida narcísica que psicanálise impôs ao mundo foi a descoberta de


que a consciência, não é senhor em sua própria casa e que a pureza dos grandes
ideais, dos sentimentos mais elevados são feitos da mesma matéria da sexualidade.

Tabela 5. A posição da psicanálise em relação a tradição metafísica e a ciência


biológica
Antimetafísica A ação humana tem, em seu fundamento, uma representação
psíquica dotada de afeto, investida de libido, e não o Ser
Antibiológica O ser humano age e sua ação específica tem como objetivo a
reprodução de uma experiência de prazer perdida, recalcada
pela defesa.
É preciso, ainda, distinguir o que Freud, em Projeto para uma Psicologia
Científica (1950[1895]/1987), define como o complexo do próximo e como a dimensão
incognoscível deste complexo, na forma de A Coisa (Das Ding). De que são feitas as
recordações da histeria? De pessoas, de alteridade, do que Freud (1950[1895]/1987)
denominou de complexo do próximo. É por isso, que em O Inconsciente
(1915/198714), Freud distinguirá as representações psíquicas da seguinte forma:

13 Freud, S. Uma Dificuldade da Psicanálise (1917). In: Freud, S. Obras Completas. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010, v, 14, p.250-251.
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Freud. S. O Inconsciente (1915). In: Freud, S. Edição Standard das obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, v. XIV, 1987.
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1. Wortvorstellung (representação-palavra): situadas no sistema pré-
consciente-consciente.
2. Sachevorstellung (representação-objeto): as representações-objeto estão
no inconsciente e se ligam às representações-palavra.
3. Dingvorstellung (representação-coisa): Fora do mundo das palavras,
incognoscíveis.
Caminhamos para a mudança radical da terminologia empregada por Freud em
Projeto para uma Psicologia Científica (1895[1950]/1987). E o marco desta mudança
se localiza no ano de 1900, com a escrita e publicação de A Interpretação dos Sonhos
(1900/1987).
5. A elaboração dos conceitos fundamentais da psicanálise.
Estamos em 1900: marco do advento da Psicanálise como uma das maiores –
e, certamente, a mais singular – obra que o século XX teve a oportunidade de
testemunhar. Seu caráter original situa-se no fato de oferecer-se como interrogação
aos olhares mais diversos – desde mães, amantes e enfermos, até o religioso mais
dedicado em sua crença ou o filósofo mais cético – abordando os enigmas do sexo e
da morte com uma precisão e simplicidade que, tanto nos fascina, como nos deixa
imersos na mais profunda perplexidade diante da constatação de sua importância
para a compreensão da existência humana. Protestando contra a idealização
romântica, os sentimentos oceânicos ou o entusiasmo ingênuo que, não raras as
vezes, acompanham a humanidade ao longo de sua vida, Freud não nos deixa
mensagens, não nos oferece um testamento sobre a virtude e nem nos concede uma
resposta direta para a questão que ainda angustia cada um de nós, hoje, em
continuamos colocando a pergunta de orientação ética: qual o propósito de nossas
vidas?
Nesta perspectiva, a investigação sobre o processo de elaboração de dois
conceitos fundamentais da psicanálise - os conceitos de pulsão e inconsciente – entre
os anos de 1900 e 1919 é, para mim, o justo caminho para dimensionar o traço de
originalidade da elaboração ética presente na obra freudiana.
Tabela 3. Os conceitos fundamentais da psicanálise.
Inconsciente
Pulsão
Recalcamento
Transferência

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O ano de 1900 ganha, na história do pensamento, uma importância singular:
ele é contemporâneo da produção do conceito de Inconsciente e, portanto, da própria
especificidade da Psicanálise, no que diz respeito a seu domínio de estudo. Mas, em
que sentido o conceito de Inconsciente confere esta especificidade? No sentido
mesmo de constituir-se, fundamentalmente, como um sistema psíquico, ou ainda,
como um outro lugar, irredutível aos processos conscientes. O conceito de
Inconsciente introduz, assim, uma implicação que – poder-se-ia dizer – situa-se a meio
caminho entre a impossibilidade e a potência:
1. Impossibilidade de se estabelecer um ato de reflexão sobre si mesmo, já
que o inconsciente – ao ganhar o estatuto de lugar – não é passível de ser
traduzido para a consciência.
2. Em função mesmo desta impossibilidade, o Inconsciente expressa sua
potência ao engendrar um saber que não se sabe a si mesmo e que
inviabiliza qualquer tentativa de estabelecer uma coincidência entre o ser e
o pensar. Dessa forma, a tese do Inconsciente impõe o deslocamento do
Cogito Cartesiano, através da disjunção entre o ser e o pensar.

Se por um lado, o Inconsciente expressa a impossibilidade do próprio


pensamento em coincidir consigo mesmo, por outro lado, libera a potência de uma
atividade de pensar que se situa fora dos limites da consciência e já observada por
Freud por ocasião de Estudos sobre Histeria (1895[1893]/1987). Ao pôr como
definitiva – através do conceito de Inconsciente – a impossibilidade de se estabelecer
uma atividade de reflexão do pensamento sobre si mesmo, a Psicanálise tornou-se
inseparável de uma ferida narcísica que destitui a razão de seu lugar de primazia
sobre a ação humana. Nesse espaço de total ignorância do homem em relação a si
próprio, o objeto perdido é o testemunho da ausência de uma natureza humana que
funcione como fundamento de nossas ações. Neste sentido, a ação humana – seja
ela a mais louca, ou a mais normal – é governada, não pelo Ser ou por uma exigência
instintual biológica, mas por um imperativo inconsciente.
O derivativo ético que, dessa afirmação, podemos extrair não deixa de ser
outro: por mais que se mobilizem sanções que julguem nossas ações como boas ou
más, justas ou injustas, estas encontram-se – de um ponto-de-vista interno a elas
próprias – sob o jugo de um único imperativo: o reencontro com o objeto. Ao término
de A Interpretação dos Sonhos (1900/1987, p. 659), Freud nos oferece – dessa
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questão – uma breve centelha: “(...) é instrutivo vir a conhecer o terreno muito
palmilhado o qual nossas virtudes orgulhosamente brotam. Muito raramente a
complexidade de um caráter humano, impulsionado para cá e para lá por forças
dinâmicas, submete-se a uma escolha entre simples alternativas, como nossa
antiquada moralidade nos teria feito crer.”

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