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Índice remissivo
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PREFÁCIO
1. A necessidade de uma teoria das instituições que modifique a atual visão não-
sociológica da cognição humana
2. A necessidade de uma teoria cognitiva que ofereça um suplemento às
debilidades da análise institucional.
3. O controle social da cognição.
4. O livro focaliza a hostilização sofrida por Durkheim e pelos durkheimianos
quando se referiram às instituições ou grupos sociais como se eles fossem
indivíduos e à idéia de um sistema cognitivo suprapessoal.
5. A hostilidade mencionada é indício de que, acima do nível do indivíduo, outra
hierarquia de "indivíduos" está influenciando os membros que se situam num
nível mais baixo a reagirem violentamente contra essa ideia.
6. Em níveis mais elevados de organização, os controles sobre os membros que a
constituem, situados em níveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais
difusos.
7. O incômodo provocado pelo pensamento de que pensamos e conhecemos como
as instituições nos ensinam a fazê-lo.
8. Durkheim, Evans-Pritchard e Lévi-Strauss devem nisso ser seguidos.
9. A marca de Merton no tema coberto por esse livro
Introdução
1. Escrever sobre cooperação e solidariedade significa escrever, ao mesmo tempo,
sobre rejeição e desconfiança. A solidariedade envolve indivíduos prontos para
sofrer em benefício de um grupo mais amplo e sua expectativa de que cada
membro desse grupo faça o mesmo por eles. É difícil falar sobre essas questões
com distanciamento. Elas tocam em sentimentos íntimos de lealdade e
sacralidade.
2. Qualquer pessoa que tenha aceito a confiança, solicitado sacrifícios ou os tenha
praticado voluntariamente conhece o poder do laço social, que é colocado como
se fosse acima de qualquer questão. Há resistências às tentativas de o expôr à luz
do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado.
3. Toda pessoa é afetada pela qualidade da confiança que a cerca. Algumas vezes a
confiança tem breve duração e é frágil, dissolvendose facilmente e resultando
em pânico. Algumas vezes a suspeita é tão profunda que a cooperação toma-se
impossível.
4. O exemplo da medicina nuclear: nela há um registro magnífico de confiança e
cooperação mútuas. Os cientistas dispõem de meios aceitáveis de conferir
reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus métodos e têm fé nos
resultados, do mesmo modo que os pacientes e os médicos confiam um no outro.
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Se a força da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das realizações,
então dispomos de um exemplo eloquente. Rosalyn Yalow apresentou
recentemente (1985) um relatório sobre a história da subdisciplina à qual
dedicou sua vida profissional. O relatório foi inspirado por indícios de que o
trabalho está para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao temor dos
efeitos negativos da radiação nuclear. Nada do que os cientistas possam dizer em
sua defesa conseguirá dissipar a desconfiança.
5. Este livro não se preocupa em julgar se "o temor fóbico à radiação" é correto ou
não. A profunda discordância entre os cientistas que praticam a medicina
nuclear, de um lado, e um setor do público, de outro lado, ilustra a surdez
seletiva, na qual nenhum dos dois interlocutores conseguem, por ocasião de um
debate, ouvir o que o outro está dizendo.
6. A inabilidade da conversão a argumentos racionais se deve ao domínio exercido
pelas instituições em nossos processos de classificação e de reconhecimento.
7. A base compartilhada do conhecimento e dos padrões morais.
8. Os indivíduos em crise não tomam sozinhos decisões relativas à vida e à
morte. O raciocínio individual não consegue resolver tais problemas. Uma
resposta só parece ser correta quando apoia o pensamento institucional que já se
encontra na mente dos indivíduos enquanto eles procuram chegar a uma decisão.
9. O exemplo fictício do processo dos exploradores espeleólogos, para ilustrar
precisamente as respostas divergentes dos filósofos ao problema de se saber se
uma pessoa deve ser sacrificada em benefício das vidas alheias (Fuller 1949):
cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiram explorar uma caverna; a
queda de uma enorme rocha bloqueou a única entrada; uma grande equipe de
resgate começou a cavar um túnel através da rocha, mas o trabalho era árduo e
perigoso. Dez membros da equipe morreram na tentativa de salvação. No
vigésimo dia do desabamento foi estabelecido contato pelo rádio e os homens
aprisionados perguntaram quanto tempo demoraria para serem resgatados.
Estimou-se que o mínimo necessário seriam mais dez dias. Eles solicitaram
conselhos médicos sobre a insuficiência de suas rações e ficaram sabendo que
não poderiam esperar sobreviver por mais dez dias. Indagaram então se teriam
chances de sobreviver se consumissem a carne de um de seus companheiros e,
com muita relutância, lhes foi dito que sim, mas ninguém sacerdote, médico ou
filósofo se dispunha a aconselhá-los sobre o que fazer. Depois disso cessou a
comunicação pelo rádio. No trigésimo-segundo dia do desabamento o bloqueio
da entrada foi rompido e quatro homens saíram da caverna. Eles disseram que
um deles, Roger Whetmore, havia proposto a solução de comer a carne de um
dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita por meio de um lance de
dados. Mostrou então um dado que, por acaso, trouxera. Os outros acabaram
concordando e estavam para pôr o plano em ação quando Roger Whetmore
recuou, dizendo que preferia esperar mais uma semana. Eles, no entanto, foram
em frente, jogaram o dado quando chegou a vez dele, e sendo Roger Whetmore
indicado como vítima, mataram-no e comeram-no. Iniciando a discussão, o
presidente do Tribunal expressou a opinião de que o júri havia agido
corretamente ao declará-los culpados, pois, segundo a lei, não havia a menor
dúvida quanto aos fatos; eles, por vontade própria, haviam tirado a vida de outra
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que os cinco homens ficam sabendo que não conseguirão o sobreviver com o
alimento de que dispõem.
17. Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidária.
Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do último juiz com os
princípios hierárquicos – os parâmetros para a decisão de que seria sacrificado:
(a) o líder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a honra do
sacrifício. Como o líder exerce um papel importante na comunidade onde vivem,
os demais contestariam sua decisão. Eles jamais poderiam voltar a enfrentar a
luz do dia após matar e comer o juiz de paz, o pároco ou o líder dos escoteiros;
(b) o mais jovem e menos importante se proporia; os demais não concordariam
devido a sua juventude e a toda vida que ele teria pela frente; (c) o mais velho,
sob o pretexto de que sua vida havia chegado ao fim e, então, entraria em cena o
pai de uma numerosa família. Durante os dez dias de seu cativeiro eles
passariam o tempo todo procurando, com muita civilidade, um princípio
hierárquico satisfatório que designasse sua vítima, mas talvez jamais chegariam
a encontrá-la.
18. Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna são membros de uma
seita religiosa que estão passando juntos um feriado. Ao tomar conhecimento
de que 500 toneladas de pedra bloquearam a saída eles se rejubilam, pois se dão
conta de que chegou o dia do julgamento supremo e que estão irrevogavelmente
separados de Armagedon, para sua eterna salvação. Então passam o tempo de
espera entoando hinos de louvor. Somente os individualistas, a quem nenhum
laço liga mutuamente, que não estão imbuídos de nenhum princípio de
solidariedade, acolheriam o jogo do canibalismo como solução apropriada.
19. Até que ponto o pensamento depende das instituições. Trata-se de uma
argumentação complexa, que necessita quadros de referência muito claros.
Escolhi abordar a solidariedade e a cooperação por meio da obra de Émile
Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente
é possível na medida em que os indivíduos compartilhem as categorias de
seu pensamento.
20. Há una tendência de descartar Durkheim e Fleck porque eles parecem estar
afirmando que as instituições têm opiniões próprias. É claro que as
instituições não podem ter opiniões. Vale a pena dedicar um tempo à
compreensão do que esses pensadores realmente disseram.
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(1) uma argumentação depende da natureza dos bens públicos, dos problemas que
surgem da necessidade de cooperação para providenciá-los e da impossibilidade
de excluir quem quer que seja de gozá-los, uma vez produzidos;
(2) a outra argumentação depende da diminuição dos retornos para cada pessoa que
contribuiu para a produção à medida que aumenta o número de pessoas que
gozam do produto.
O primeiro exemplo é muito eloquente. O segundo, baseado em efeitos de escala,
precisa ser qualificado. Separemos essas duas questões e comecemos apreciando o
primeiro conjunto de problemas que surgem da natureza dos bens públicos.
Olson argumenta que, na medida em que a contribuição dele não for suficiente para
produzir o bem coletivo e na medida em que, por definição, a produção desses bens
depende de muitos contribuintes, o cálculo racional do indivíduo tenderá a levá-lo a
deixar de proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua própria contribuição tem
consequências limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausência de sua pequena
contribuição não fará diferença, poderá também esperar pegar uma carona nas
contribuições dos outros. "Pode deixar que fulano faz" é o princípio do teorema da
inconsequência formulado por Olson.
Por outros motivos, ele pode esperar que os outros sucumbam à mesma tentação de
pegar uma carona e assim, se a contribuição deles não for acessível, sua própria
contribuição se desperdiçará. Nesses exemplos, a baixa probabilidade de uma
colaboração nada tem a ver com a escala. Estas argumentações explicam
convincentemente muitas das dificuldades enfrentadas pelas organizações voluntárias.
Embora as tenha analisado tão bem, o próprio Olson dá mais peso à argumentação
da escala. É verdade que, em certos casos, o benefício obtido por cada usuário é
diminuído por cada aumento do número total de usuários. Os parques e as estradas
públicas constituem nítidos exemplos de como o congestionamento, é um obstáculo à
fruição. Isto, porém, não se aplica a outros tipos de bens públicos, corno a defesa
nacional, a proteção de polícia, a iluminação pública, ou os sindicatos que negociam em
benefício dos trabalhadores em determinada indústria. Talvez não possa aplicar-se à
educação, se concedermos que os benefícios resultantes de cada pessoa escolarizada são
multiplicados por maiores oportunidades proporcionadas por um discurso escolarizado.
Certamente não se aplica à criação de uma ordem social. Quanto mais pessoas
puderem ser envolvidas no sistema de confiabilidade, mais vantagens resultarão
para cada uma delas. Esta é a saída mais eficaz que responde à interrogação de
como se pode explicar a ação coletiva.
O exemplo de Olson vale com muito mais eloquência para os problemas de confiança
gerados pela possibilidade de se pegar uma carona e isto se aplica a instâncias que são
de escala verdadeiramente muito pequenas.
De acordo com Olson, os problemas de ação coletiva tal como são colocados na
teoria da escolha racional só podem ser resolvidos
(1) por meio da coerção;
(2) por uma atividade que é um subproduto, de baixo custo, de ações
empreendedoras direcionadas para benefícios individuais seletivos; ou
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algo que apenas os primitivos podem fazer graças a suas crenças supersticiosas
na bruxaria e nos ancestrais, ou tais crenças precisam ser generalizadas de um
modo que também se aplique à sociedade moderna.
A interpretação antropológica ortodoxa, que foi aceita durante toda a década de 1960,
assumiu um modelo autoestabilizador, no qual cada item da crença exerce seu papel na
manutenção da ordem social. Entretanto, algumas sublevações interessantes neste
último quarto de século lançaram dúvidas sobre a existência de tendências que
contribuem para o equilíbrio nas sociedades estudadas pelos antropólogos.
Um fator é o desenvolvimento teórico do tema e o modo como ele lida com novas
descobertas. Entre estas, a mais relevante é o crescimento da antropologia marxista
crítica, cujo materialismo histórico rejeita a ênfase homoestática da geração anterior
(Abramson 1974; Bailey & LIobera 1981; Sahlins 1976; Terray 1969).
Outro fator importante é o fim do colonialismo.
Ainda outro é o desenvolvimento da pesquisa de campo na Nova Guiné, país que não
havia sido colonizado antes da pesquisa antropológica. Agora é possível pôr-se de lado
e avaliar o efeito do governo colonial sobre todos os incentivos individuais e sobre o
emprego da força. É claro que nas condições coloniais costumava ser mais fácil
imaginar uma comunidade não-coercitiva. Já não se permitia mais às populações
sujeitas ao poder colonial prosseguir seu lucrativo tráfico de armas, marfim e escravos.
Também não Ihes era mais possível competir pela glória na caçada às cabeças humanas,
nas ousadas expedições para o roubo do gado, já não podiam mais estender armadilhas,
roubar esposas ou executar vinganças violentas.
Na economia colonial, em que o único incentivo econômico ao trabalho era um baixo
rendimento proveniente dos pagamentos à vista pelas colheitas, era fácil supor que a
comunidade original não havia oferecido incentivos individuais ao lucro.
Os registros antropológicos atuais, mais sofisticados, mostram essas sociedades em
pequena escala numa posição jamais estática ou autoestabilizadora, mas sendo
continuamente estruturadas por um processo de negociações e trocas racionais.
As categorias do discurso político, as bases cognitivas da ordem social são
negociadas. Em qualquer momento desse processo em que o antropólogo acione sua
máquina fotográfica e ligue seu gravador, habitualmente, conseguirá registrar alguns
equilíbrios temporários de satisfação, quando o indivíduo se encontra
momentaneamente constrangido por outros e pelo ambiente que o cerca.
A análise de custo-benefício individual aplicava-se inexorável e esclarecedoramente à
menor das microtrocas, no que se refere tanto a eles quanto a nós. Os antropólogos
testam mutuamente a credibilidade dos relatos etnográficos examinando de perto o que
eles relatam sobre o equilíbrio das trocas recíprocas.
As evidências obtidas demolem o exemplo de princípios extra-racionais que produzem
uma comunidade, em um ponto não especificado de uma escala que diminui. E quando
eles fazem ameaças e oferendas que os indivíduos invocam com frequência o poder dos
fetiches, dos fantasmas e dos bruxos e bruxas para atender suas solicitações. A
cosmologia resultante não forma um conjunto separado de controles sociais. Na obra
de Durkheim todo o sistema de conhecimento é visto como um bem coletivo que a
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extremada que não lhe resta escolha, a não ser obedecer. Neste caso não existe uma
questão que envolva confiança mútua e não há problema algum em tomo da livre
cooperação. Quando não há escolha, já não nos deparamos mais com aquela situação à
qual se aplica a teoria da escolha racional. Além do mais, estender este exemplo a uma
amplo espectro de ações coletivas apenas serve para camuflar o problema. Isto também
nos propõe uma visão inaceitável da ação humana.
Apresenta-nos os seres humanos como agentes passivos, que atuam sob uma coerção
mais ou menos completa. Tal argumentação depende de uma forma de determinismo
sociológico que não confere iniciativa ou bom senso aos indivíduos. É em parte devido
a essa falha que o funcionalismo sociológico vem gozando de baixa reputação nos
últimos trinta anos. Ele não tinha lugar para a experiência subjetiva dos indivíduos, no
sentido do querer e da escolha. Supor que os indivíduos estão enredados na
armadilha de um mecanismo complexo que eles não ajudam a construir é imaginar
que eles sejam objetos passivos, como carneiros ou robôs.
O pior é que, em semelhante teoria, não existe possibilidade de explicar a mudança, a
menos que ela venha de fora, como uma força coercitiva irresistível. Presumir uma
estabilidade como esta nas relações sociais exige demais de nossa credulidade.
Dada a pobreza das explicações alternativas, cabe-nos procurar mais cuidadosamente
uma forma de argumentação funcionalista que evite tais armadilhas e, ainda assim,
satisfaça as necessidades do conceito de Durkheim e de Fleck relativo a um grupo
social que gera sua própria visão do mundo, desenvolvendo um estilo de
pensamento que sustente o padrão de interação.
Jon Elster declarou provocativamente que é quase impossível encontrar exemplos de
análise funcional na sociologia em que seja demonstrada a presença de todos os traços
logicamente exigidos de semelhante explicação (Elster 1983). Isto não acontece apenas
porque os sociólogos debatem desatentamente, mas porque acredita que a explicação
funcionalista não é apropriada ao comportamento humano.
Sua argumentação começa por uma revisão de tipos de explicação:
(1) as explicações causais e mecânicas se aplicam ao domínio da física
(2) no domínio da biologia, aplicam-se as explicações causais e funcionais. As
explicações funcionais são justificadas pela teoria da seleção natural.
(3) nenhuma teoria geral, equivalente à evolução biológica, se aplica ao
comportamento humano.
Devido a razões que Elster enumera sucintamente, os seres humanos podem fazer coisas
que os organismos biológicos não conseguem fazer:
(1) podem empregar estratégias de espera;
(2) podem dar um passo atrás a fim de dar dois passos à frente;
(3) podem executar outros movimentos evasivos.
dos seres humanos e decisões baseadas em teorias causais, mais ou menos consistentes,
contraditórias ou equivocadas.
O tipo explanatório, exclusivamente apropriado aos seres humanos, é intencional, mas
como Elster não abre espaço para processos que se autossustentam ou para
consequências inesperadas, que operam para fazer com que uma situação continue
existindo, este autor não tem como acolher o conceito de Durkheim e de FIeck de
um grupo social que gera, sem intenção de o fazer, pensamentos que mantêm sua
própria existência.
Elster, de modo muito claro e proveitoso, enunciou as condições que devem ser
preenchidas por uma análise funcional, corretamente fundamentada. Embora tais
condições pareçam inicialmente obscuras, elas esclarecem imensamente as questões.
Uma instituição ou padrão comportamental, X, é explicado por sua função, Y diz
respeito a um grupo e Z, se e apenas se: I. Y for um efeito de X; 2. Y for benéfico para
Z; 3. Y não for levado em linha de conta por ações que produzem X; 4. Y ou a reação
causal entre X e Y não for reconhecida por atores em Z; e 5. Y mantiver X por um
circuito completo, causal, que proporciona feed-back e passa através de Z.
Esta lista foi compilada da análise crítica de Merton ao funcionalismo (Merton 1949) e
das sugestões de Arthur Stinchcombe (1968, pp. 82&3). Reportando-nos ao ensaio
original de Merton e aos comentários subsequentes, é surpreendente verificar a
quantidade de argumentação funcionalista deficiente que existia naquele momento.
Não é de surpreender que ele se sentisse obrigado a operar com alguma cautela
metodológica. Algumas das citações mais arrebatadas se devem aos antropólogos;
alguns exemplos vívidos, a Karl Marx; algumas observações imprudentes, a sociólogos
Influenciados pelo funcionalismo estrutural de Tallcott Parson.
Segundo a visão de Elster, a principal explicação para o predomínio excessivo e
indefensável do funcionalismo nas ciências sociais é de caráter histórico. Ele se
deve ao prestígio dos modelos biológicos usados pela teoria evolutiva.
Elster empenha-se em assinalar as diferenças essenciais entre as explicações funcionais,
biológicas e sociológicas. Ele, no entanto, jamais distingue entre colocações
funcionalistas, com intenção autenticamente explanatória, e aquelas que são mais
retóricas. Todos os vívidos exemplos citados por Merton e encontrados nos escritos dos
antropólogos pertencem a esta última categoria. Eles foram usados para enfeitar o
ataque que os antropólogos quiseram desfechar, na década de 1950, contra a etnologia
antiquada (ou história conjectural, como era pejorativamente denominada). Não há
como negar que eles propunham um modelo cômico, merecedor das zombarias de
Merton e Elster.
De acordo com estes antropólogos, absolutamente tudo o que acontece tem uma
função na manutenção do sistema social existente. O método passo-a-passo, adotado
por Elster, é excelente, no sentido de que reduz uma argumentação ao essencial. Uma
dessas argumentações é a seguinte: (I) Y (mais atenção à produção de alimentos) é um
efeito de X (magia ligada à horticultura): (2) Y é benéfico para toda a comunidade Z,
que consome o alimento. Esta explicação funcionalista não tem êxito porque ninguém
imagina que a magia, ligada à horticultura, não tinha a intenção de aumentar o
fornecimento de alimentos. Da mesma forma, demonstrar que a magia ligada à pesca
não tinha a pretensão final de agir como uma tecnologia aperfeiçoada é uma explicação
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práticos. Infelizmente as religiões nem sempre tornam os crentes mais leais a seus
dirigentes ou mais industriosos em suas plantações e barcos, do mesmo modo que a
magia nem sempre traz peixes para suas redes. Algumas vezes isso pode acontecer e
outras vezes não. A acusação de irracionalidade à religião primitiva estava na mente
desses antropólogos (Firth 1938).
A única defesa que conseguiram imaginar para a religião das pessoas que eles
estudaram era que não se tratava de algo racionalmente inteligível, mas que apresentava
alguns efeitos colaterais de aumento da solidariedade, de indução à coragem e de
estímulo ao trabalho (Firth 1940). Esses antropólogos obtêm o pior de ambos os
mundos.
Não conseguem produzir um bom argumento funcionalista. Também têm dificuldades
com a crítica da teoria da escolha racional. O melhor que Radcliffe-Brown pôde fazer
para justificar a crença nos ancestrais foi elaborar um sistema inteiramente intencional
(Radcliffe-Brown 1945). Ele afirma que os fiéis colaboraram para criar algo que
desejavam, e presume que tenham sido bem-sucedidos. Acontece, porém, que é
precisamente isto que precisa ser explicado. Os sacerdotes e os devotos estão tentando
fazer exatamente aquilo que, segundo a teoria política de Olson, se supõe ser impossível
ou muito improvável. Eles querem partir para uma ação coletiva.
Os devotos dos ancestrais são indivíduos racionais, cada um deles com preferências
próprias em relação a como os outros deveriam tratá-lo e como ele os quer tratar. A
questão que se coloca é a seguinte: como é que eles conseguem criar aquele bem
coletivo, um acordo sobre os ancestrais?
A mesma indagação se aplica a uma crença, sobre a qual todos estão de acordo, aos
tabus ou à magia ligada à pesca, ao pecado ou aos sacramentos, a Deus ou à Santíssima
Trindade. Como é que eles constituem sua igreja coletiva, com suas doutrinas
peculiares, em vez de se perderem todos em uma destrutiva caça à heresia? Eles são
como os criadores que levam seus carneiros para pastar em terreno comum. Se cada
criador mandar para o pasto tantos carneiros quanto quiser, a terra se tornará
excessivamente usada e todos ficarão numa situação difícil. É interesse deles cooperar,
mas eles não podem confiar em seus companheiros para exercerem controle e, assim
sendo, cada um deles deve apoderar-se daquilo que puder, enquanto puder. Devido à
falta de confiança e de solidariedade, uma pastagem como essa será dizimada até a
última folha de capim.
Em outros contextos, proprietários de manufaturas que apreciam o ar não-poluído não
se encarregam voluntariamente de arcar com os custos de aperfeiçoar seus próprios
procedimentos. Não se pode contar com os proprietários das casas para removerem a
neve das calçadas, em frente dos degraus de suas próprias residências. Em questões de
doutrina religiosa, o exemplo equivalente é que cada indivíduo reivindique um
entendimento particular com Deus e rejeite as doutrinas que conflitam com suas crenças
preferidas.
O problema lógico e prático de como se alcançar a ação coletiva aplica-se tanto à
religião quanto a outras teorias do mundo. A religião não explica. A religião tem de
ser explicada.
Não podemos permitir que Durkheim, Fleck e seus amigos deixem o problema de lado
sem maiores justificativas. A exemplo de todo mundo, eles precisam explicar com
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o grupo latente sobreviva será vulnerável à ameaça de secessão por parte de outros
membros. Em consequência, os assuntos de um grupo latente serão conduzidos por
meio do veto e apoiados por ameaças de retirada. A liderança será fraca, devido à
tendência de os grandes serem explorados pelos pequenos. O primeiro passo consiste
em reformular o que foi colocado acima como uma explicação funcionalista para uma
liderança fraca. Ciclo A 1. Y (liderança fraca) é um efeito de X (ameaça crível, no
sentido de afastar-se de Z). 2. Y é útil para Z, ao capacitar os indivíduos racionais a
resistirem a solicitações indesejáveis a seus recursos particulares. 3. Y não é propositado
(e, na verdade, é deplorado). 4. Y é irreconhecível como um efeito de X. 5. Devido a um
nexo causal que não se percebe, Y (liderança fraca) mantém X (a tendência a fazer
ameaças, no sentido de retirar-se), porque impede o desenvolvimento de
regulamentações coercitivas. Isto explica uma dificuldade (liderança fraca) que um
grupo como esse enfrenta para poder alcançar seus objetivos comuns. Por outro lado, se
o fato de tomar a coerção impossível é algo que conta como uma realização, então o
grupo alcançou certo êxito. A esta altura, uma comunidade desse tipo faria bem em
instituir benefícios seletivos para os indivíduos, de acordo com Olson. Eles poderiam
planejar ter muitos outros objetivos comuns conquistados como produtos derivados de
um empreendimento auto-interessado. Talvez isto simplesmente não seja possível.
Muitas seitas, comunas e grupos sociais, cujas circunstâncias se conformam ao modelo
apresentado no Ciclo A, são encontrados na periferia de uma sociedade mais ampla e
rica ou então fora, em lugares ermos, onde uma iniciativa empreendedora não pode
obter igual recompensa. Neste caso, os indivíduos podem realizar uma ação alternativa
que terá como efeito fortalecer a base comunitária, continuando a atuar somente de
acordo com motivos que só lhe dizem respeito.
O próximo ciclo também reformula as colocações de Olson (Olson 1965, p. 41). Ciclo B
I. Y (um limite estável, bem definido, em tomo do grupo) é um efeito de X (insistir em
igualdade e em 100% de participação). 2. Y é benéfico para Z (consolidando a
participação). 3. Y não é propositado como um efeito de X. 4. Y é alcançado por um
fator causal que não se percebe. 5. O limite (Y) mantém X (a regra de igualdade) que é
instituído para controlar aqueles que pegam carona. O fato de eles terem conseguido
suficiente ação coletiva para elaborar uma regra pode parecer algo menor, mas é apenas
uma regra que cada um aplicará em seu próprio interesse, ao não querer ser trapaceado
por quem pega carona. Apresenta os efeitos de um autopoliciamento, conforme será
descrito no próximo capítulo. Esta participação de 100%, para que possa ser
eficientemente controlada, requer rígidas condições de admissão, o que constitui uma
barreira para aqueles que eventualmente pretendam participar. Como resultado deste
segundo ciclo qualquer possibilidade de benefícios individuais seletivos que possa ter
ocorrido é seriamente restringida. Os dois ciclos, A e B, nada mais fazem do que
explicar com clareza, nos termos de Elster, o relato de Olson sobre os problemas a que
os grupos latentes estão sujeitos e as soluções que ele descreve. Por estes dois ciclos, foi
definido um grupo social com uma forma precisa e distinta de organização, que não tem
poder coercitivo e não proporciona benefícios seletivos individuais de espécie material.
Segundo a teoria de Olson, é apenas um grupo latente. O obstáculo a sua teoria é que, na
experiência comum, os grupos sociais que correspondem perfeitamente a essa descrição
manifestam-se com muita eficácia e continuidade. Recorreremos agora a Elster para
justificarmos Durkheim, Fleck e os antropólogos funcionalistas e para suplementar a
teoria da ação coletiva, acrescentando o elemento cognitivo a fim de estabilizar e
legitimar o grupo social. Graças à clara descrição da forma da sociedade, podemos
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agora descrever determinado padrão de crenças que justificaria os primeiros dois ciclos,
os quais, presumivelmente, surgiriam ao mesmo tempo.
CicIo C I. Y (crença compartilhada em uma conspiração malévola) é um efeito de X
(acusações mútuas de traição dos princípios fundantes da sociedade). 2. Y é benéfico
para Z. 3. Y não é intencional. 4. Y depende de uma conexão causal que não é percebida
pelos membros. 5. O nexo causal oculto é o seguinte: devido a uma liderança fraca, não
se pode invocar consenso algum para formular ou aplicar leis ou punir os desviantes
(Ciclo A). A ameaça de separação pode ser controlada indiretamente por um limite
rigoroso (Ciclo B), que, automaticamente, garante que a saída terá um alto custo. Assim
sendo, apenas uma ação política indireta se toma possível; em consequência, existe uma
tendência a controlar um comportamento explorador acusando líderes incipientes de
facções de uma imoralidade de princípios. Não há nada mais de que se possa acusá-los,
já que não existem outras regras. A atividade de acusação, X, reforça a crença, Y, em
uma conspiração externa, porém Y mantém X.
Em vez de recorrer às crenças para explicar a coesão da sociedade, usamos a
sociedade para explicar as crenças, e elas certamente merecem melhor explicação
do que nos referenciarmos a conspirações cósmicas e perigos satânicos.
A excelente descrição que Lewis Coser faz das seitas como uma forma de "instituição
gananciosa" supõe que os perigos externos levam-nas a exigir o engajamento
incondicional de seus membros. Os perigos, entretanto, se apresentam sempre em todos
os lugares.
Todas as sociedades enfrentam perigos; nem todas são instituições gananciosas e nem
todas são bem-sucedidas em levar seus membros a reconhecer os perigos existentes.
Esta análise demonstra que o problema começa em um comprometimento hesitante e
não devido a um perigo exterior (Coser 1974). Agora o grupo corporativo começa a se
tomar plausível enquanto agente por si mesmo. Passa a assemelhar-se ao trapaceiro que,
no jogo de cartas, força os jogadores a pegar uma carta contra sua própria vontade. Este
determinado tipo de grupo social pensa de acordo com determinados hábitos
arraigados, tem opiniões próprias. Ao escolher participar desse bando idealista de
irmãos, ninguém opta por todo um conjunto de comportamento e de crenças. Eles,
porém, caminham juntos.
Todos os três ciclos se combinam da seguinte maneira: I. Y (C. a crença na conspiração)
é um efeito de X (A, liderança fraca e B, limites rígidos). 2. Y é benéfico ao manter a
comunidade, Z, existindo. 3. Y não faz parte das formulações de Z e, assim, nenhuma
acusação insultuosa de duplicidade se volta contra os crentes. 4. Os laços causais não
são percebidos. 5. Y mantém X ao dividir a comunidade ou ao recorrer a expulsões,
quando se suspeita de traição, criando uma história que deixa os possíveis líderes
nervosos.
A crítica antifuncionalista tem sido útil porque responde a objeções ao programa de
Durkheim-Fleck relativo à teoria da escolha coletiva. Os membros do grupo latente
não pretendem construir o estilo de pensamento que mantém a forma da
organização. É um produto coletivo. Por seu lado, a teoria da escolha coletiva tem
sido útil no sentido de reabilitar o funcionalismo. O nexo causal percorre toda a
organização, opondo claramente resistência às ações de seus membros. O único
pressuposto inicial necessário foi mínimo: eles gostariam de ver a comunidade
sobreviver sem desistir de sua autonomia individual. As restrições presentes na situação
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permitem apenas certas soluções. Ao adotarem a estratégia mais fácil, eles começam a
percorrer juntos uma senda que termina na construção conjunta de um estilo de
pensamento. Deve-se admitir que ele inclui elementos desagradáveis, tais como a crença
em um cosmos maligno e injusto, que abriga seres humanos perversos.
Ninguém, porém, pode esperar apreciar os resultados, quando começa a explicar a
origem da ordem social.
Além do mais, uma argumentação nesse sentido é algo que não provoca queixas contra
um reducionismo cínico. Não se trata de duplicidade. Ao reverter a argumentação de
consequencialidade formulada por Olson, a participação na construção do estilo de
pensamento escamoteia, para cada membro do universo de pensamentos, a
consequencialidade de suas próprias pequenas ações. Cada um deles acusará seu vizinho
de traição sem desconfiar que um padrão de crença, comumente compartilhado, se
fortalece com isso. Uma palavra final pode ser necessária para explicar por que o grupo
latente e seu estilo de pensamentos constituíram o enfoque deste capítulo. É devido ao
fato de que a latência concentra com maior clareza os problemas da ação coletiva no
âmbito dos pressupostos da escolha racional. Por um lado, 53
55 um sistema amplamente coercitivo, como uma prisão, não suscitaria problemas de
escolha coletiva. Por outro lado, um sistema regido por princípios particulares, que
busca o lucro, é facilmente compreendido, pois esse bem coletivo, tal como pode surgir,
pode ser atribuído aos produtos derivados da atividade empreendedora individual. Em
nenhum desses dois exemplos existe um grupo construído coletivamente e mantido pelo
sacrifício intencional de membros individuais. São estes últimos que suscitam os mais
graves problemas relacionados com a ação coletiva. O grupo latente constitui a forma
mais simples, e, portanto, mais conveniente para ilustrar a ação do estilo de pensamento
na manutenção do sistema. Entretanto, não seria verdadeiro afirmar que o mercado
depende inteiramente dos motivos individuais de auto-referenciação. Existe um
comprometimento normativo em relação ao próprio sistema de mercado, o elemento
fiduciário indispensável à manutenção dos preços e do crédito. Toma-se necessária uma
análise equivalente sobre o estilo de pensamento para explicar por que formas de
trapacear não destroem os processos do mercado. Mais uma vez uma hierarquia
complexa, combinação de coerção, múltiplas intersecções, convenções e interesses
próprios, explicam muita coisa, mas não tudo, sobre o comprometimento dos indivíduos
com o grupo mais amplo. Na maior parte das formas de sociedade sequências ocultas
aprisionam os indivíduos em armadilhas imprevistas e os fazem trilhar caminhos que
eles jamais escolheram. Os exemplos se acumulam. É realmente notável que Elster
tenha encontrado tão poucos. Com exceção de um exemplo anômalo, no campo da
economia, que preenche seus cinco critérios, e um no campo da ciência política, Elster
vê a paisagem social atulhada de argumentos funcionais incompletos. Até mesmo no
campo da antropologia, no qual se encontram os piores e mais abusivos argumentos, um
sólido conjunto de estudos empíricos exemplifica uma boa explicação funcionalista.
Inclusive no livro de Robert Merton, no qual Elster localizou os principais
delineamentos de seu exemplo, existem explicações funcionalistas bem acabadas. Por
exemplo, Merton descreve uma comunidade que manipula os fundos destinados à
educação e acredita na inferioridade mental dos negros. Sua crença os justifica, quando
eles impedem a escolarização das famílias negras e se mostram ingenuamente
encantados quando as bolsas obtidas por seus próprios filhos 54
28
questão com a qual se deve lidar em primeiro lugar. De acordo com sua teoria, o laço
social elementar só se forma quando os indivíduos inserem em suas mentes um modelo
da ordem social. Ele e Ludwick Fleck criaram problemas quando escreveram que a
sociedade se comportava como se fosse uma mente em ponto grande. Está mais no
espírito de Durkheim modificar a trajetória e pensar na mente individual aparelhada
como uma sociedade em ponto pequeno. Apropriar-se de uma idéia é um processo
social. É compatível com o conceito que prevalece na filosofia da ciência, segundo o
qual uma teoria é apropriada devido a sua coerência com outras teorias. No entanto, o
fardo desta argumentação é que todo o processo de se apropriar de uma teoria é tão
social quanto cognitivo. Inversamente, a apropriação de uma instituição constitui, em
sua essência, um processo intelectual, tanto quanto um processo econômico e político.
Um enfoque nas formas mais elementares da sociedade faz emergir aquela fonte de
legitimidade que jamais aparecerá quando se trata de equilibrar os interesses
individuais. A fim de adquirir legitimidade, toda instituição precisa de uma fórmula que
encontra sua correção na razão e na natureza. Metade de nossa tarefa consiste em
demonstrar este processo cognitivo na fundamentação da ordem social. A outra metade
da tarefa é demonstrar que o processo cognitivo mais elementar do indivíduo depende
das instituições sociais. No mínimo uma instituição não passa de uma convenção. A
definição de David Lewis é esclarecedora: uma convenção surge quando todos os lados
têm um interesse comum na existência de uma regra que assegure a coordenação,
quando nenhum deles apresenta interesses conflitantes e quando nenhum deles se
desviará, a menos que a desejada coordenação se tenha perdido (Lewis 1968).
Assim, nessa medida, por definição, uma convenção se autopolicia. O fato de a aldeia A
realizar seu mercado na sextafeira ou no sábado é indiferente, contanto que ele não
aconteça no mesmo dia que o da aldeia vizinha B. Ninguém se importa qual lado da
estrada é a regra para os que guiam, mas todos querem que exista uma regra.
O conceito segundo o qual as instituições contam, desde o início, com um
autopoliciamento, é mais convincente do que o conceito que afirma que todos os
problemas se dispersam, quando a escala é suficientemente pequena.
Porém, Thomas Schelling, que tanto fez para chamar atenção para a coordenação
(1960), também reuniu muitos exemplos de quão facilmente as convenções que se
apóiam em uma base de autopoliciamento podem ser abaladas (1978). Queremos que
existam convenções sobre como os pedestres devem atravessar a rua, mas nós mesmos
as violaremos se pudermos fazê-lo impunemente. Um número de pedestres suficiente
para criar uma massa crítica atravessará a rua e fará os carros parar, desafiando os sinais
de trânsito.
As condições para que surjam convenções estáveis são muito mais estritas do que pode
parecer. As comunidades não crescem, transformando-se em pequenas instituições e
essas não se transformam em grandes instituições seguindo qualquer processo contínuo.
Para que uma convenção passe a ser uma instituição social legítima é necessário uma
convenção cognitiva paralela que lhe dê apoio. A economia institucional não diz
praticamente nada sobre a legitimação, embora a autoridade seja discutida algumas
vezes (Arrow 1974).
A fim de tornar disponíveis para esta nova e importante discussão os conceitos de
Durkheim-Fleck sobre a legitimação, é aconselhável uma mudança da terminologia.
Tanto Durkheim como Fleck escreveram sobre o grupo social. O termo se aplicava a
30
todo nível de organização grupal. No restante deste volume, a expressão instituição será
usada no sentido de um agrupamento social legitimado. A instituição em questão pode
ser uma família, um jogo ou uma cerimônia. A autoridade legitimadora pode ser
pessoal, tal como um pai, um médico, um juiz, um árbitro ou um maftre d'hôtel. Ou
então pode ser difusa, baseada na concordância comum em torno de algum princípio
fundante. O que está excluído do conceito de instituição, nestas páginas, é qualquer
arranjo prático puramente instrumental ou provisional, reconhecido enquanto tal.
Aqui, presume-se que a maior parte das instituições mais estabelecidas, quando
desafiadas, sejam capazes de concatenar suas reivindicações à legitimidade com sua
adequação à natureza do universo. Uma convenção é institucionalizada quando se
indaga: "Por que você age assim?". Embora a primeira resposta possa ser enquadrada
em termos de uma conveniência mútua em relação a um questionamento maior, a
resposta final se refere ao modo como os planetas são fixados no céu ou como os
planetas e os seres humanos se comportam naturalmente. Em nossa época está na moda
afirmar que as instituições sociais codificam a informação. A elas se dá o crédito de
tomar decisões rotineiras, resolver problemas rotineiros e produzir regularmente
pensamentos em favor dos indivíduos. Este trabalho recente é de grande pertinência. No
entanto verificamos que existem muitas maneiras de falar a respeito das instituições
enquanto organizadoras da informação. Algumas vezes trata-se de um recurso a ser
comprado e vendido. Esta é a abordagem adotada pelos economistas institucionais.
O. E. WiIliamson (1975) renovou o tema por meio de sua teoria dos efeitos exercidos
pelo fornecimento da informação sobre o mercado. Em relação a esta teoria, dois fatores
contam. Um deles é como é difícil ou custoso obter uma informação precisa sobre o
mercado. O outro é o número de firmas. Se as firmas são numerosas e a informação
pode ser obtida gratuitamente, então vale a pena ser um empreendedor independente.
Caso ocorra o contrário (poucas firmas e elevado custo de informações), então as
despesas com a transação tomam-se por demais elevadas e com pensa assumir um
emprego em uma grande empresa que possa reduzir os custos da transação e o controle
da informação. Deste modo a escolha de um indivíduo entre trabalhar como um
empreendedor independente, tendo em vista o lucro, ou trabalhar em troca de um
salário, no interior de uma hierarquia, é tomada a partir de uma base racional depois que
ele pesquisou o ambiente econômico e, sobretudo, os custos da informação. Esta análise
foi inspirada pela famosa queixa de H. A. Simon relativa à teoria da escolha racional, a
qual atribui ao agente racional uma capacidade grotescamente irrealista de lidar com a
informação (Simon 1955). A racionalidade humana é inerentemente limitada. A
organização institucional hoje é amplamente tratada como uma maneira de resolver os
problemas que decorrem da racionalidade limitada.
Recorrendo à análise de Oliver Williamson como ponto de partida, Andrew Schotter
(1981) reescreveu a descrição das instituições em termos de informação teórica. Neste
sentido, não é uma commodity mais ou menos disponível; é qualquer coisa que valha a
pena ser noticiada. Quanto mais previsível for um componente do comportamento,
menos informação ele transmite. O foco do estudo deslocou-se do fluxo da informação
(que mais se assemelha a um fluxo de commodities, no sentido de WiIliamson) ao
estudo da quantidade de informações transmitidas por um determinado componente,
visto contra o pano de fundo de expectativas padronizadas. Esta análise, baseada no
modelo de informação elaborado por E. E. Shannon, trata as estruturas institucionais
como formas de complexidade no âmbito da informação. A experiência passada é
encapsulada nas regras de uma instituição, de tal modo a agir como um guia daquilo que
31
a um acordo sobre as categorias básicas. Nada mais, a não ser as instituições, podem
definir a uniformidade. A similaridade é uma instituição. Os elementos são designados
para conjuntos nos quais as instituições encontram suas próprias analogias na natureza.
Por um lado, a energia emocional para criar um conjunto de analogias emana de
preocupações sociais. Por outro lado, existe uma tensão entre os incentivos para que as
mentes individuais dispendam seu tempo e energia na resolução de problemas difíceis e
entre a tentação de recolher-se e deixar que as analogias fundantes da sociedade que nos
rodeia se sobreponham. É algo que lembra a colocação de Williamson sobre os custos
da transação, só que, neste exemplo, todas as vantagens estão em juntar-se a um esforço
conjunto para fazer com que as analogias operem. Há muito poucas vantagens no ato do
corsário que age seguindo apenas sua própria bandeira. Por mais que eles tentem isolar
seu trabalho, os cientistas nunca estão completamente livres das pressões de suas
próprias sociedades contemporâneas, que são necessárias a um esforço criativo. A teoria
científica é o resultado de uma luta entre as classificações que estão sendo
desenvolvidas por um grupo de cientistas tendo em vista objetivos profissionais e as
classificações que são operadas em um entorno social mais amplo. Ambas são revesti
das de emocionalidade. Ambos os tipos de classificação dependem da interação social.
Uma delas (a dos cientistas) realiza um determinado esforço para especializar e refinar
seus conceitos de modo a torná-los adequados para serem usados em um discurso que
difere das ideias entrincheiradas de um grupo social mais amplo, abrangente, embora
esteja contido nelas. Não era exatamente isso que FIeck descrevia ao historiar a
emergência de uma ideia científica a partir de um entrincheiramento místico, moral e
social? Conforme veremos no próximo capítulo, as fórmulas científicas que surgem
sempre trazem as marcas de suas origens sociais. No trabalho de tentar compreender, a
desordem e a incoerência são mais prováveis. Quando é encontrado um elevado grau de
lógica e de complexidade, esta é uma questão que provoca surpresa e precisa ser
explicada. A complexidade não significa o isomorfismo repetitivo que recria a mesma
metáfora básica em todos os contextos. Uma ordenação verdadeiramente complexa é o
resultado de um esforço contínuo. Deve existir alguma indução para explicar por que o
esforço é realizado. Fleck acreditava que a oferta de esforço intelectual na ciência se
devia à demanda, não apenas no que se referia à quantidade de trabalho dispendido, mas
também no que dizia respeito à seleção dos problemas a ser pesquisados (Fleck 1935, p.
78). Presumamos que na ausência de uma forte demanda (isto é, na ausência de
induções a uma concentração especializada), a classificação satisfará necessidades
mínimas, ao seguir a trajetória do mínimo esforço. Tal trajetória levará rapidamente a
uma coleção imprecisa de analogias sociais direcionadas para a natureza e lá ela
repousará em paz. De acordo com Geoffrey LIoyd, isto descreve o estado da antiga
ciência e medicina grega. Muitos afirmariam que é uma questão de lealdade para com a
ciência grega admitir que as analogias sociais extraídas da natureza formaram a base da
maior parte da medicina praticada no mundo inteiro até os últimos cem anos ou pouco
mais. As características do antigo pensamento especulativo grego, conforme LIoyd o
descreve, baseiam-se em dois esquemas. Um deles era um "apelo periódico a pares de
opostos de vários tipos, ambos encontrados na doutrina cosmológica geral, e em relatos
sobre fenômenos naturais" (LIoyd 1966, p. 7). O macrocosmo do mundo foi construído
a partir de contrastes: ar e terra, fogo e água, calor e frio. O outro esquema ocorreu por
analogia, imprecisamente compreendida. LIoyd afirma que houve pouco esforço para se
distinguir entre a similaridade e a identidade ou entre graus de diferença entre modos de
oposições, que formam alternativas exclusivas e exaustivas, e aqueles que não as
formam. Em relação a este tema, os antropólogos demonstraram que o macrocosmo do
mundo é construído sobre o modelo da sociedade. Seria necessário um grande esforço
36
para pôr em seu devido lugar as analogias sociais intrusivas. O reconhecimento dos
diferentes graus de similaridade e diferença é um exercício muito especializado de
lógica, inteiramente separado do uso da lógica para tornar a ordem social manifesta.
Lloyd assinala corretamente que muitas sociedades primitivas empregam classificações
dicotômicas da realidade que espelham sua organização dualista. Ao discutirmos
anteriormente a convenção, argumentamos que até mesmo as convenções que se auto-
reforçam e que todo mundo gostaria que se mantivessem, têm poucas oportunidades de
sobrevivência, a menos que possam fundamentar-se na razão e na natureza. Em um
determindo ponto, próximo do ápice de qualquer organização, a estrutura se baseia, em
última análise, numa oposição equilibrada, a exemplo do que ocorre no nível mais
elevado dos sistemas nacionais ou internacionais. No entanto, se não houver instituições
coordenadoras ou outros ordenamentos mais complexos, a imobilização das forças
hostis será a realização coletiva mais significativa que pode ocorrer nesse nível. A
ampla distribuição, em todo o mundo, de povos caçadores organizados em metades e
outros sistemas duais atesta os esforços de se produzir algum bem coletivo, embora as
tentativas nesse sentido não sejam muito eficazes. Um sistema totêmico naturaliza o
princípio do equilíbrio mas não o conceito de relações hierárquicas que governam os
diferentes clãs totêmicos (Lévi-Strauss 1963). Por falta de incentivos ou de
oportunidade para fazer mais, os povos organizados na base das metades decidiram
equilibrar seu conflito em potencial. Em um meio ambiente difícil isto pode ser
reconhecido como uma realização notável, mas, em termos absolutos, não passa de um
pequeno triunfo enquanto organização. Nossa primeira argumentação foi levada tão
longe quanto podia ir. As intenções individuais no sentido de construir uma instituição
podem ser muito boas. Os indivíduos podem dar força a suas próprias resoluções e
tentar controlar mutuamente as ações individuais recorrendo a analogias baseadas na
natureza. A esta altura o argumento paira no ar. As mesmas tendências fissíparas são
nocivas ao bem comum não só no nível intelectual como também no nível da
colaboração social. Como uma analogia construída por alguém vence outra analogia nas
mesmas condições? Como um sistema de conhecimento entra em órbita? Como a boa
idéia de alguém compete com a de outro alguém? Trata-se de uma questão fundamental
na história da ciência. Ter transferido os problemas do bem coletivo para a esfera
intelectual não os resolve, embora seja necessário proceder à transferência. Os
problemas relativos ao excesso de carneiros que congestionam os pastos e de carros que
congestionam as estradas deveriam ser reequacionados como problemas relativos a
idéias que se congestionam mutuamente, sempre competindo e sempre destruindo as
bases necessárias de uma investigação. Começando tudo de novo no que diz respeito à
cognição, reflita o quanto a idéia lógica mais elementar depende da interação social.
Trata-se da idéia da similaridade ou parecença. Quando várias coisas são reconhecidas
como membros da mesma classe, o que constitui sua uniformidade? Alegar que a
similaridade explica como as coisas são classificadas juntas parece ser uma colocação
evasiva. É ingenuidade tratar a qualidade da uniformidade que caracteriza os membros
de uma classe como se ela fosse uma qualidade inerente às coisas ou como um poder de
reconhecimento inerente à mente. Os antropólogos têm um interesse profissional na
classificação de folk. Ela conduz a muitos níveis taxonômicos e, finalmente, a
julgamentos de natureza política e moral. Uma cultura estrangeira pode funcionar sem
ter uma boa classificação científica. Os sentidos em que ela funciona são políticos,
econômicos, sociais, ecológicos. Tendo em vista o entrelaçamento de propósitos
práticos, a classificação de folk constitui um mundo que é confiavelmente inteligível e
suficientemente previsível para que se possa viver nele. Os objetivos da classificação de
folk são muito diferentes dos objetivos da classificação científica. Esta se desenvolve
37
inata das propriedades termais. Quine é sagaz demais para fazer isto. Ele sabe que o
conceito de corpo ou objeto precisa de mais explicações. Sempre parece surpreendente
que as discussões contemporâneas sobre o conceito de espécies naturais deveriam
escolher como exemplos de percepções elementares objetos isolados, tais como uma
maçã, um corpo, um objeto ou um animal. A idéia de que é menos complicado
reconhecer objetos do que relações abstratas remonta a muito longe. A citação de
Jevons vai mais além: "O cachorro consegue reconhecer seu dono [...] A dignidade do
intelecto começa quando se separam pontos de concordância e pontos de diferença [...]
A abstração lógica, em suma, se põe em movimento e a mente torna-se capaz de
raciocinar [...] Surgem, ao mesmo tempo, conceitos gerais de classes de objetos". Dada
a persuasão do princípio de Quine as espécies são partes da teoria em funcionamento e
não elementos independentes - não esperaríamos que os objetos surgissem antes que
uma teoria do mundo começasse a classificá-los. E seríamos mais consistentes com a
teoria de Quine ao não focalizarmos a questão de espécies naturais, direcionando-a para
itens que já foram classificados em espécies por nossa própria cultura. O problema das
espécies naturais certamente começa com os processos elementares de classificação e os
princípios empregados para se proceder à classificação. Uma teoria do mundo precisaria
começar pela divisão, não pela classificação. 76 Ao relatar as primeiras tentativas de um
bebê em encontrar ordem no mundo, Melanie Klein nos diz que a preocupação
dominante não é verificar os espaçamentos de qualidade (Klein 1975). Talvez seja
importante começar a indagar: "Este estado é mais quente do que aquele? Aquele estado
é mais frio do que este?" O bebê, entretanto, vê-se, desde o início, confrontado com o
problema de uma correção indutiva. Ele precisa escolher, dentre a multiplicidade de
sensações presentes, algumas bases práticas para projetar mais além (para empregar um
termo de Nelson Goodman) uma versão do mundo que funcione (Goodman 1983). O
bebê não tem hábitos em que se apoiar e não há uma versão existente a ser refeita.
Exemplos semelhantes não levarão a descri minar as espécies. De acordo com Klein, o
urgente é saber quais são as experiências dolorosas e agradáveis que surgem de dentro e
quais as que surgem de fora. A primeira base das espécies projetáveis é a diferença entre
o self e o não-self (Klein 1975). Este sensação gostosa, ampla, que me proporciona a
comida é algo que produzi por mim mesmo? Ou, na realidade, incorporei algo que era
exterior a mim? A próxima confrontação terminará, como já aconteceu algumas vezes,
por meio de uma incorporação bem-sucedida e do ato de dormir? Ou será uma cena
tempestuosa que terminará, conforme ocorreu algumas vezes, em rancor e aflição? John
Stuart Mill cita o relato de Coleridge, quando este analisou a política contemporânea
para o Morning Post, recorrendo à comparação entre concordância e diferenças; ele
estabeleceu um paralelo entre a França sob Napoleão e Roma sob os primeiros Césares,
a Revolução Espanhola e a guerra das Províncias Unidas contra Felipe II e daí por
diante. MiII não era de opinião que o sistema de concordância e diferença fosse um
método seguro de se chegar a uma previsão militar, devido à escolha não-sistemática de
analogias (MiII 1888). Para o bebê, uma classificação como esta é o único método de
diferenciar gradualmente o outro e o self. As perguntas que ele formula assemelham-se
à inteligência militar. Ele precisa saber se a fonte do leite, caso seja externa, é um seio
ou vários e, sendo vários, como distinguir os aliados dos inimigos? É o seio bom ou o
seio mau? Ele está a meu favor ou contra mim? A mais antiga interação social coloca as
bases para polarizar o mundo em classes. A sobrevivência depende de se ter suficiente
energia 75
77 emocional para levar adiante esse empreendimento classificatório elementar por
meio do árduo trabalho necessário para construir um mundo coerente, viável. A
40
interação social fornece aquele elemento que está ausente do relato da história natural,
quando ele se refere ao início da classificação. Agora a outra metade da argumentação
está colocada. Os requisitos ntelectuais que precisam ser atendidos para que as
instituições sociais sejam estáveis combinam-se com os requisitos sociais da
classificação. Ambos são necessários às bases de uma epistemologia sociológicas e
nenhum eles é suficiente. A instituição funciona como tal ao adquirir um terceiro apoio
da energia moral de seus membros. Desenvolverei este tema no capítulo 9. Esses três
processos operam simultaneamente. Os indivíduos, à medida em que procuram e
selecionam entre as analogias existentes na natureza aquelas a quem darão crédito,
procuram e selecionam, ao mesmo tempo, seus aliados e adversários, bem como o
padrão de suas futuras relações. Ao constituir sua versão da natureza, eles estão
controlando a constituição de sua sociedade. Em resumo, eles estão construindo uma
máquina de pensar e de tomar decisões em seu próprio interesse. A esta altura podemos
começar a acompanhar os efeitos de se ligar o pensamento individual a um piloto
automático. Em primeiro lugar, ocorre uma poupança da energia, decorrente da
codificação e da inércia institucionais. Esse princípio tem paralelo em uma característica
bem conhecida da linguagem. O uso frequente torna algumas palavras resistentes e não
apenas as palavras, como também suas declinações, resistem aos desenvolvimentos
sistemáticos que estão acontecendo o tempo todo. As línguas encontram-se em
constante estado de mudança, porém suas palavras mais comuns permanecem imunes às
novas inflexões. Por exemplo, o substantivo inglês man (homem), com seu plural
arcaico, men (homens), resistiu ao ímpeto progressivo dos plurais terminados em s. Do
mesmo modo as analogias sociais mais comuns estão presentes e resistem à mudança.
Elas estão prontas para preencher vácuos nas cadeias causais, quando a exigência por
um raciocínio denso não é suficientemente forte para evocar uma classificação
complexa. Graças ao peso da inércia institucional, imagens mutanles são consideradas
suficientemente equilibradas para que a comunicação se tome possível. 76
78 As instituições conferem uniformidade. Analogias socialmente fundamentadas
atribuem itens disparatados às classes e as sobrecarregam com um conteúdo moral e
político. Por exemplo, as séries que Lévi-Strauss tomou familiares recentemente, em
1984, começam por meio da natureza que se distingue da cultura e prosseguem em
direção a vários níveis. Elementos que se encontram do mesmo lado, na taxonomia,
inevitavelmente são classificados juntos: os homens com a cultura, as mulheres com a
animalidade. cultura : natureza natureza humana: natureza animal masculino : feminino
A classificação submersa justifica uma determinada atribuição prescrita às mulheres na
divisão do trabalho, seja como trabalhadoras agrícolas e carregadoras de carga ou como
coisinhas lindas, incapazes de pensar. Justifica também o comportamento feminino da
espontaneidade, lágrimas fáceis, carências inconsistentes e cuidados com os filhos. A
teoria feminista, na antropologia, tem muito a dizer a respeito dessas equações como
justificativas da sujeição das mulheres (Strathern 1980). Mesmo quando o gênero
feminino é associado ao lado mais estimado, ainda assim pode ser usado para justificar
o fato de as mulheres executarem as tarefas fisicamente mais pesadas. Por exemplo, os
homens de Bamenda, nos Camarões, costumavam deixar suas mulheres realizar todo o
trabalho agrícola pesado com o pretexto de que apenas elas e Deus podiam fazer as
coisas crescer (Kaberry 1952). Os valores elevados podem situar-se à esquerda ou à
direita; quanto a seu valor, o padrão pode receber maior ou menor peso em qualquer
desses dois polos. Um ocidental moderno, orientado para a tecnologia, daria maior peso
ao lado direito e um cristão ou muçulmano fundamentalista escolheria o lado esquerdo
41
intelectual, aquilo que Lévi- Strauss denominou a mente selvagem distribui a ampla
gama de paralelos e inversões sagazes, com elaboradas transformações em seu
sortimento de analogias. Lévi-Strauss aceita que a bricolage intelectual também se
encontra na sociedade moderna, mas em esconderijos e fendas protegidos da pressão
em favor da mudança. Embora ele não o tenha ampliado, seu conceito de bricabraque
descreve bem as analogias recorrentes e os estilos de pensamento que caracterizam
qualquer civilização. O determinismo biológico é um desses elementos recorrentes na
história intelectual do Ocidente. Encontra-se sempre disponível, sob uma ou outra
forma, para provar que uma onda de imigrantes ou um desprivilegiado social são
prejudicados por sua hereditariedade, enquanto os privilegiados possuem uma
constituição física mais favorável para transmitir a seus herdeiros (Gould 1981).
Recorrendo a outro exemplo, aquilo que é gradual, paulatino, é colocado repetidas vezes
em oposição a uma mudança súbita e descontínua. A natureza, Deus, a Bíblia, são
invocados para apoiar um ou outra. Os defensores do status quo tendem a achar que a
natureza está a favor da continuidade e os defensores da reforma radical fazem uma
leitura um tanto diferente da natureza. Assim, até mesmo a ciência, muito
cuidadosamente protegida das preocupações políticas comuns por sua terminologia, sua
formação e seus locai.s de trabalho segregados, demonstra a mesma tendência em
basear suas instituições em analogias com a natureza e em achar que as estruturas mais
gerais de suas controvérsias correspondem ao debate político contemporâneo. Há uma
argumentação permanente sobre o valor da urbanidade em oposição à rusticidade ou,
para colocar a questão em outros termos, sobre a cidade como um poço de iniquidades
em oposição à simplicidade e excelência da vida rural. Este conjunto de oposições que
invocam a natureza versus a cultura é constantemente renovado recorrendose ao que
sobra do bricabraque do último debate com a finalidade de propiciar analogias naturais
para qualquer novo debate que esteja politicamente em primeiro plano. Como a
construção das analogias, a partir da natureza, com a finalidade de apoiar o sistema
social existente, é muito conhecida dos antropólogos e de outros, as novas colocações
feitas neste capítulo precisam ser reformuladas. Não é inusitado aplicar a idéia de
bricolage como forma de pensamento institucional a problemas de escolha racional. Os
dois campos da investigação, a antropologia simbólica e a teoria da escolha racional, em
geral são mantidos bem distanciados um do outro. Em segundo lugar, vale a pena
insistir nesta questão não somente porque ela proporciona uma nova maneira de abordar
os 80
82 problemas da ação coletiva, mas também porque modifica nossa maneira de pensar
sobre a cognição humana. A abordagem à cognição humana só pode se beneficiar ao
reconhecer o envolvimento do indivíduo com a construção de uma instituição a partir do
início do empreendimento cognitivo. Até mesmo os simples atos de classificar e
lembrar são institucionalizados.
43
descoberta não deverá ficar chocado ao constatar que não é o primeiro; de uma forma
ou de outra é quase certo que esse problema já havia sido notado. Em um alentado
ensaio irônico, intitulado On the Shoulders of Giants (1965), Merton reflete sobre a falta
de sentido de indagar quem foi que disse a primeira coisa. As melhores idéias e as
citações mais famosas parecem ter estado sempre presentes. O próprio Merton, tão
distanciado de reivindicar prioridades, notou que Francis Bacon, 83
85 há 350 anos, esboçou uma hipótese que desse conta das múltiplas e independentes
redescobertas de uma idéia. Os antropólogos tendem a abordar essa questão de outra
maneira. São menos inclinados a perguntar por que as pessoas esquecem. Para eles,
lembrar é a coisa especial que precisa ser explicada. A antropologia herdou um antigo
critério de adiantamento intelectual baseado na tecnologia da guerra. O que causava
estranheza era o fato de que os povos que dispunham unicamente de flechas primitivas
como armas não se lembravam de nada. A tecnologia não é um mau critério. Existem
realizações no campo da engenharia que não poderiam ser executadas antes que o
cálculo diferencial fosse inventado e, no campo da contabilidade, triunfos
administrativos que dependem de uma partida dobrada. Algumas técnicas básicas de
discriminação, cálculo e conservação da memória podem ser um pré-requisito para
qualquer forma particular de conhecimento. Os antropólogos sempre prestaram atenção
a quaisquer habilidades, quando se trata de contar. Mostraram-se especialmente
fascinados pelas pessoas que parecem se dar bem sem ser capazes de contar além de
três. Os antigos escritores mostraram-se muito interessados em grandes feitos da
memória desempenhados por pessoas que demonstravam baixo nível de competência
técnica. Pensava-se geralmente que o segredo estava no aprendizado automático
(Bartlett 1932, Colby & Cole 1973). Isto se ajustava ao pressuposto de que os
verdadeiros avanços intelectuais (e que, presumivelmente, levavam a equipamentos
mais sofisticados) resultavam do fato de os indivíduos se libertarem das peias
institucionais. No entanto, esta concepção traz as marcas de um forte entrave, conforme
veremos no próximo capítulo. Levando-se em conta as formulações opostas dessa
questão, a convergência de Robert Merton e de Evans-Pritchard quanto à mesma
solução énotável. O primeiro ficou intrigado ao observar que as múltiplas descobertas
científicas eram continuamente esquecidas; intrigou ao segundo o fato de fixar-se com
toda segurança na memória um número tão grande de nomes que abrangiam incontáveis
gerações de ancestrais. Ambos tomavam o sistema social como sua unidade. Merton
considerava o esquecimento sistemático como parte integral da organização da ciência;
Evans-Pritchard 84
86 achava que a lembrança contínua fazia parte integral da organização de um povo
pastoril no Sudão. Que cientistas e que ancestrais são lembrados é a mesma questão
geral. É clássico o estudo de Evans-Pritchard de como os processos cognitivos dos Nuer
se prendem a suas instituições sociais. No contexto de sua tecnologia muito simples, é
notável que eles, em geral, consigam lembrar-se de nove a onze gerações de seus
ancestrais. Será, porém, que se recordam de tudo isto quando, na luta, empregam apenas
lanças e porretes? Um estudo mais detido mostra que eles mais se esquecem do que se
lembram. Em se tratando de suas genealogias pessoais eles alegam remontar ao início
dos tempos, mas o intervalo de onze gerações sequer chega a dar conta de sua história
na região que habitam. Tem havido muito esquecimento. Outro fato curioso é que,
apesar do contínuo surgimento de novas gerações, o número de progenitores conhecidos
permanece constante. Em algum momento, ao longo das gerações, muitos ancestrais são
eliminados da lista. Em algum momento, depois do fundador da tribo, de seus dois
filhos, de seus quatro netos e de seus oito bisnetos, a memória tribal criou um buraco
45
sem fundo e múltiplos ancestrais estão caindo dentro dele de ponta-cabeça. Eles não
estão sendo esquecidos assim, sem mais nem menos. As forças e as fraquezas da
recordação dependem de um sistema mnemônico que é toda a ordem social. O estudo
sobre os Nuer foi uma demonstração explícita de como as instituições dirigem e
controlam a memória. As páginas que se seguem são um resumo de três livros de
Evans- Pritchard (1940, 1951 e 1956), que foram analisados em outro volume (Douglas
1980). Eis como a coisa funciona. Entre os Nuer, o equivalente a um processo de
validação, geralmente aceitável, é a equação fundamental: 40 cabeças de gado ratificam
um casamento. Se houvesse alguma hesitação quanto a essa quantia fixa, as transações
baseadas em sua correção teriam de ser renegociadas. Partindo-se dessa base, todos os
demais direitos são computáveis. Para se avaliar qual a recompensa correta por se ter
matado um homem, a fórmula é ampliada: 1 mulher e sua progênie = 40 cabeças de
gado = vida de um homem. Várias definições legais derivam dessa fórmula básica. Sob
condições específicas 1 mulher = 1 homem, de tal forma que uma linha feminina pode
ser tratada como uma linha masculina. Vazios e saltos na 85
87 genealogia são atenuados para que possam apresentar uma sucessão ininterrupta de
homens. Uma ficção semelhante permite que um homem morto conte como um pai
legal para uma criança gerada após sua morte. As regras Nuer de contagem permitem a
flexibilidade, sem ambiguidade ou contradição. A memória pública dos Nuer ilustra um
princípio de coerência, entrelaçando fórmulas de ratificação, poupando a energia
cognitiva. Se estivermos interessados em saber como algumas teorias adquirem sua
longevidade, Fleck nos faria notar o serviço que elas prestam nas transações
particulares. Alguns poucos procedimentos aceitos para se fazer reivindicações
individuais controlam o conhecimento que a sociedade tem de seu próprio passado. Os
casamentos Nuer constituem pontos nodais em um padrão regular de trocas, que
classifica e introduz uma variedade de transações em um tipo uniforme de contrato. Os
Nuer têm um bom incentivo para comparecer a casamentos e exercer em público seus
relacionamentos precisos. Um Nuer que se apresenta num casamento ou espera ganhar
uma vaca, ou terá que contribuir com um destes animais. Aqueles que contribuíram para
as despesas do noivo reivindicarão uma vaca quando a noiva se casar daí a uma geração.
Uma das cabeças de gado distribuídas por ocasião de um casamento é destinada a um
parente situado na quinta geração, após o que outras reivindicações não serão
reconhecidas. Os casamentos e a distribuição do gado ordenam a memória do passado
até o pai do pai do pai em todas as direções. É uma proeza impressionante da memória,
caso tivesse de ser realizada por apenas uma pessoa, mas os padrões repetidos oferecem
muitos incentivos para que não sobrevenha o esquecimento e sua afirmação pública
distribui o fardo que é o ato de recordar. Assim, um conjunto de nomes, tais como os do
pai do pai de meu pai, de suas irmãs e irmãos e sua descendência, não estarão perdidos
se passarem a fazer parte da estratégia de se validar reivindicações particulares. Uma
teoria a respeito de como o mundo deve ser governado sobreviverá à competição se for
mais do que uma teoria, por exemplo, se puder intervir a fim de apoiar estratégias
individuais que objetivem criar um bem coletivo. A teoria Nuer de descendência
patrilinear presta este serviço. A família Nuer depende do homem para os deveres
ligados ao pastoreio e da mulher para o que diz respeito à extração e aproveitamento do
leite; ela 86
88 precisa pertencer a uma aldeia. Evocando, porém, os problemas decorrentes da livre
iniciativa e as tentações de deixar as tarefas coletivas serem executadas por todo mundo,
perguntaríamos como a aldeia poderia recrutar os homens para conduzir expedições
guerreiras e providenciar a defesa? A resposta é a seguinte, como um subproduto da
46
herança: os rapazes só poderão conseguir o gado de que necessitam para poderem casar
se puderem provar ligações com o ancestral correto. A herança os obriga a deixar clara
sua lealdade para com o grupo. Suas coalizões políticas se baseiam no princípio da
descendência de quatro gerações de um ancestral fundador, de seus filhos, netos e
bisnetos, cada um dos quais fundou uma unidade política. O nível de sua organização
intensifica ainda mais a recordação que eles têm de seus ancestrais. O reconhecimento
de uma fidelidade política, que passa de uma geração para outra, registra o nome de
quatro a seis gerações afastadas. A estratégia destinada a operar reivindicações
individuais registra cinco gerações próximas, num reconhecimento que parte da direção
oposta, de baixo para cima. Naquele ponto de intersecção, situado entre o limite mais
baixo de uma geração e o limite mais alto da próxima geração situa-se o vácuo no qual
sucessivas gerações de ancestrais vivem desaparecendo. Não se trata apenas de que não
existe um motivo especial para recordar certos nomes. Existe mesmo uma forte pressão
em contrário. A fórmula bem-sucedida é predatória. A simples consistência do uso a
reveste de poder e ela poderá até mesmo engolir a competição. O conceito Nuer de
ancestral idade possui todas estas qualidades. Ele também enraíza seu conhecimento na
natureza, pois os ancestrais remontam a antes do início da sociedade humana. Tal
conceito também se harmoniza com sua sensibilidade política. Os Nuer são
ardentemente igualitários, individualistas e independentes. O estratagema do ancestral
que desaparece põe todo mundo em plano de igualdade com todo mundo. A eles não
convém saber mais a respeito da história passada individual. Se o sistema político que
melhor Ihes assentava fosse uma chefia hereditária, eles teriam se lembrado de mais
ancestrais ou pelo menos isso teria acontecido com alguns deles. A realeza necessita de
uma longa linhagem para reivindicar pretensões dinásticas. 87
89 Os discípulos de Evans-Pritchard desenvolveram o tema da memória
institucionalizada pública ao comparar estruturas sociais que podiam e não podiam
sustentar uma profundidade genealógica. A parte mais fascinante dessa pesquisa põe a
nu os procedimentos mediante os quais a história genealógica é recortada, prolongada e
uniformizada (Bohannon 1952, Barnes 1954). O início desse trabalho apóia uma
tendência da sociologia da ciência, a saber, o trabalho em torno da escrita de um texto
que segue Merton, quando ele se debruça sobre a questão das profecias que se auto-
realizam (1949), e Thomas Kuhn, quando ele se refere à ciência normal (1962). Um dos
motivos pelos quais foi importante percorrer passo a passo essas remotas situações
consiste em notar a eficácia pragmática da memória pública. Isto deveria ser suficiente
para que se parasse de invocar uma coesão mística para as comunidades de pequena
escala. Uma comunidade funciona porque as transações se equilibram. O risco de uma
ação independente é controlado pelo sistema de contabilidade. As contas são verificadas
e as dívidas são cobradas do mesmo modo que Deus ou a natureza punem os devedores
por meio da doença e da morte. O estilo de pensamento mantém o mundo do
pensamento em forma ao direcionar sua memória. Voltemo-nos agora para os cientistas
físicos em nossa própria sociedade e observemos sua descrença quando se confrontam
com fatos históricos que não entraram para a memória pública. Seu irado repúdio à
possibilidade de que outro cientista pudesse ter verificado o mesmo fato anteriormente
ou elaborado em primeiro lugar a mesma teoria mereceu de Robert Merton uma fina
análise sociológica em torno de um ponto cego amnésico. Ela se encontra em uma série
de publicações, começando por '''Prioridades na descoberta científica" (1957), "Únicos e
múltiplos na descoberta científica" (1962) e "Resistência ao estudo das múltiplas
descobertas na ciência". A questão está em saber por que o mesmo fato, com as
hipóteses a ele associadas, permanece durante décadas e séculos "numa condição
47
imitou os arqueólogos obtendo as informações que desejavam a partir das latas de lixo
doméstico (Rathje 1975). Os restos de comida revelam dados mais concretos sobre a
dieta alimentar do que respostas a questionários. A teoria do desvio social constitui
outro tipo de abordagem indireta à sociologia cognitiva. Ela examina os refugos. Pode-
se aplicar um excesso de interpretação a declarações positivas sobre qual tipo de
comportamento é mais prestigiado. O estudo da aversão nos fornece evidências muito
mais claras. As regras para se evitar o comportamento repreensível bem como a punição
e a purificação após um contacto reprovável são mais claramente conhecidas e mais
fáceis de omitir (Douglas 1966). Uma teoria sociológica da rejeição pode ter bases mais
seguras do que uma teoria sociológica do valor devido à natureza pública das
penalidades e proibições que se seguem às atitudes negativas. O mesmo é verdade no
que diz respeito a nosso problema. A possibilidade de se pensar a ordem social é
revestida de infinito retomo. As influências institucionais tomam-se aparentes por um
enfoque naquilo que não se pode pensar e 90
92 naquilo que não se pode recordar, acontecimentos que podemos notar ao mesmo
tempo que os observamos esgueirando-se para um outro plano, que se situa além da
lembrança. Uma vez que um sistema social se baseia na razão e na natureza, podemos
perceber como a energia cognitiva é poupada, acompanhando-se a carreira de uma
teoria bem-sucedida. Em primeiro lugar, baseando-se no princípio da coerência
cognitiva, uma teoria que vai obter um lugar permanente no repertório público daquilo
que é conhecido precisará entremear-se aos procedimentos que garantem outros tipos de
teorias. Na base de qualquer empreendimento cognitivo amplo encontram-se algumas
fórmulas básicas, equações de uso comum e maneiras práticas de se proceder. Na
ciência, essas técnicas compartilhadas de validação perpassam diferentes subdisciplinas.
Por exemplo, a matemática da lixiviação é empregada na mineralogia e na oftalmologia.
Do mesmo modo os Nuer recorrem a essa fórmula para o casamento e as dívidas de
sangue. Firmar um conjunto de teorias em um determinado campo confere autoridade a
um outro conjunto, caso ele possa ser firmado mediante os mesmos procedimentos. Isto
é tão verdadeiro para as formas sociais de validação quanto para as formas científicas.
Os ancestrais esquecidos e as descobertas científicas esquecidas encontram-se na
mesma situação. Os precursores científicos desaparecem de vista porque jamais tiveram
a oportunidade material de abrir caminho até a superfície da memória pública. Os
descobridores esquecidos são como muitos ancestrais esquecidos. O padrão de seu
malogro não é aleatório. As estratégias destinadas a validar as reivindicações dos
cientistas usam a originalidade como o principal critério para a concessão de prêmios e
atribuições. A crença em um primeiro descobridor nada é sem os prêmios e o renome. O
costume de designar concede imediatamente uma grande vantagem a uma originalidade
que se reivindica e uma desvantagem ao fato da descoberta. Aquilo que parece
disfuncional, quando cientistas exasperados dão demonstrações públicas de sua vaidade,
pode ser encarado como o custo que se deve pagar para se manter a corrida aberta
àqueles que são velozes. A competição, entretanto, sempre tem um preço elevado, em
termos humanos. Num contexto como esse, o princípio da redescoberta não 91
93 apresenta fortes qualificações que lhe permitam ser lembrado. Boa parte das teorias
redescobertas apontam para o fato de que não foram estruturadas originalmente a partir
de uma infra-estrutura cognitiva corrente e, assim, deixaram de fazer economias, no que
se refere à energia. Frequentemente, quando uma nova descoberta científica foi rejeitada
e deixada em estado de inércia até mais tarde, trata-se precisamente de uma idéia
desprovida de um entrelaçamento formal com os procedimentos normais de validação.
A melhor possibilidade de sucesso está em confrontar as grandes preocupações públicas
49
adiante por Condorcet e não existe nenhum corpus ativo de literatura que suscite
questões comparáveis. (Arrow, 1984, p. 129). 93
95 A descoberta de Condorcet permaneceu na sombra durante 160 anos, até que em
1948 e 1949, surgiram, respectivamente, dois escritos de Black e uma monografia de
Keneth Arrow. "Nem Black, nem eu tínhamos conhecimento desse fato, quando
escrevemos sobre a literatura precedente" (Arrow, 1984, p. 129). A explicação para o
fato de a literatura de Condorcet ter sido esquecida não se deve a que o aparato da
matemática, disponível no século XVIII, fosse inadequado. A explicação para isto
encontra-se em um clima diferente de idéias, políticas e filosóficas, no qual ele elaborou
suas provas. Para Condorcet o objeto da teoria da votação consistia em encontrar a
verdadeira opinião, a verdadeira escolha social, independente dos desejos dos eleitores.
O efeito de se tomar uma decisão, por meio da votação, era encontrar uma solução bem
embasada. O papel dos eleitores consistia em expressar o grau de entendimento que eles
tinham da verdade que estava sendo procurada. Condorcet levava em consideração o
tipo de negociações que seriam feitas, quando se contasse com um grande número de
eleitores, alguns dos quais eram ignorantes, mas, pelo menos, capazes de apresentar
uma ampla gama de experiências, e que se opunham a alguns poucos especialistas, com
maiores conhecimentos individuais. Sua descoberta foi que com mais de duas
alternativas e mais que dois votos seria possível alcançar um ordenamento circular, mas
uma alternativa como essa não poderia satisfazer a maioria do eleitorado. Quando se
reconhece que uma maioria poderia preferia A a B e B a C, mas C a A, a confiança na
vontade de algo denominado "a maioria" fica comprometida. Mas por que uma
descoberta como esta teria sido importante no século XVIII? A matemática recôndita da
votação circular pouco importava em um país que estava a ponto de mergulhar na
revolução e, mais tarde, a mensagem contida naquela teoria dificilmente seria bem
acolhida pelos políticos do século XIX, cuja preocupação era ampliar as franquias e
limitar o controle político elitista. Ela ainda deve ser acolhida como algo negativo por
aqueles que depositam fé nas decisões majoritárias. O consenso liberal baseia-se no
princípio benthamita, segundo o qual a maior felicidade do maior número de pessoas é
um resultado significativo e único. A teoria só se tornará 94
96 relevante para a ciência política no final do século XX, quando a franquia será
universal e não poderá mais ser ampliada, quando o pluralismo fará com que o consenso
seja mais difícil de se alcançar e quando será abundante o questionamento sobre os
alicerces da sociedade democrática. Uma nova descoberta terá de ser compatível com os
pressupostos políticos e filosóficos, caso ela deva alçar vôo, para não mencionar o fato
de que, mais tarde, ela será lembrada. Não basta ficar repetindo que a memória é
socialmente estruturada. Ter chegado tão longe é um convite para se dar um passo
adiante. Em seguida, é preciso descobrir quais qualidades da vida institucional exercem
efeitos distintos sobre a recordação. Assim como cada diferente tipo de sistema social se
apóia em um tipo específico de analogia, derivado da natureza, os sistemas sociais
competitivos são mais débeis, em sua atuação sobre a memória, do que os sistemas
atributivos. Isto deve ocorrer porque a competição afasta alguns participantes e coloca
os novatos no topo, além do que, a cada mudança de dinastia, a memória pública
necessariamente se rearranja. Em contraste, a sociedade hierárquica complexa precisará
evocar muitos pontos de referência do passado. No entanto, a lista dos pais fundadores
será apenas tão longa quanto a lista das unidades sociais que eles fundaram. Os tratados
de paz serão referências que consignarão um status relativo a inimigos incorporados. Na
medida em que houver pressão em relação a princípios coerentes de organização, as
histórias justificatórias do passado serão amalgamadas e racionalizadas, como parte do
51
completa individualização do estudo da atitude (Jaspers & Prazer 1981, p. 116). Deve
existir centenas de queixas e percepções isoladas e de descobertas independentes como
esta. Elas tiveram um destino adverso. Existe uma aversão profissional aos modelos de
controle que inevitavelmente cheiram a engenharia social, determinismo sociológico e a
apoteose do Grande Irmão, prefigurada em 1984, de Orwell. Em 1975, Donald
Campbell pôs o dedo na ferida. Ele afirmou que os psicólogos são de tal forma
comprometidos com o pressuposto de que o desenvolvimento psíquico individual é
restringido por convenções sociais, que eles vêem todas as restrições convencionais e
institucionais como algo errôneo. Ele fez os psicólogos parecerem um bando romântico
de cavaleiros errantes que procuram livrar os fracos e os inválidos das reivindicações
ilegítimas impostas pela vida e pela sociedade. Para os psicólogos, é impensável o
conceito de que fatores estabilizadores poderiam ser úteis ao desenvolvimento
emocional 97
99 e cognitivo. Campbell afirma com todas as letras que, na psicologia, é
profissionalmente impossível afirmar o conceito de que constrangimentos institucionais
podem ser benéficos ao indivíduo. Semelhante conceito é passível de exploração, mas
não pode integrar o memorável corpus dos fatos. A fim de contrapor a esse viés, ele
recomendava veementemente que se concedesse prioridade às fontes institucionais da
estabilidade (Campbell 1975). Acontece, porém, que ele provou o que afirmava
esquecendo-se instantaneamente de seus bons conselhos. Agora ele está à procura de
fatores estabilizadores em nossa constituição biológica. No entanto, seu dedo está
apontando para a idéia que devemos explorar, a fim de compreendermos por que nosso
autoconhecimento é tão evasivo. Essa idéia é a de que o fardo de se pensar é transferido
para as instituições. Seu próprio exemplo sugere que se trata de uma idéia inerentemente
instável e, com toda certeza, deveríamos esperar que assim fosse, tendo em vista o que
já conhecemos sobre as dificuldades de um programa de investigação auto-reflexivo.
Entretanto, visto que é importante, poderíamos nos aprofundar nas fontes de suas
fraquezas. Sir Frederick Bartlett nasceu em 1886 e tomou-se diretor do Laboratório de
Psicologia de Cambridge, sendo editor do British Journal of Psychology durante muito
tempo. Suas pesquisas e suas atividades didáticas firmaram, com muito sucesso, uma
importante visão: a importância dos elementos seletivos e construtivos na percepção
humana. Isto era apenas metade do que ele se propunha a fazer. A outra metade
permaneceu irrealizada. Quando Bartlett foi para o St. John's ColIege, W. H. R. Rivers
encontrava-se lá. Ele era um antropólogo, fisiólogo e psicólogo muito influente. Rivers
havia sido editor do British Journal of Psychology de 1904 a 1913. Participou da grande
expedição ao Estreito de Torres em 1898, na companhia de outros famosos psicólogos e
doutores, incluindo C. S. Myers, William McDougalI e C. S. Seligman. Era objetivo da
expedição fazer um estudo multidisciplinar da evolução da cognição humana, baseado
na população da Melanésia. A equipe era liderada por A. C. Haddon, biólogo marinho
de formação, mas que tomou-se etnólogo especializado em Melanésia e especialista na
evolução da arte primitiva. Bartlett sempre afirmou que sua própria pesquisa era
profundamente 98
100 influenciada por Rivers e Haddon, ambos antropólogos. De Rivers adotou o
conceito segundo o qual as emoções e a cognição individuais são institucionalizadas em
formas sociais. Da investigação de Haddon sobre a arte melanésia adotou o conceito de
que um estudo experimental da cognição deveria enfocar o processo de padronização ou
de convencionalização. Em 1913, foi contratado pela Cambridge University Press para
escrever um livro sobre a convencionalização. Acredito que ambas as intenções estavam
condenadas ao fracasso desde o início. Talvez seja difícil convencer o leitor de que esse
53
psicólogo tão renomado jamais tenha estado à procura de uma teoria sociológica da
percepção. Grande parte das evidências dependem do uso que Bartlett fez da obra
lnstinct and the Unconscious (1920), de Rivers. Rivers estava imbuído da idéia de que o
desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da sociedade seguiam os mesmos
processos evolutivos. Ele apresentava uma teoria da mente, que era também uma teoria
da sociedade. Sua formação intelectual se dera no campo da medicina e da psicologia
experimental. Suas publicações se referiam à visão, fadiga, ilusões ópticas, efeito das
drogas e outros fatores que afetavam a consciência. Ele, ao mesmo tempo, era um
expedicionário antropólogo de campo, tendo ido para a Melanésia em 1898, para a Índia
em 1902 e para a Oceania em 1908 e 1914. Buscar os instintos humanos e os colocar em
padrões de cultura eram duradouras fontes de especulação para Rivers. Sua técnica, em
se tratando de relacionar o indivíduo com a sociedade, consistia simplesmente em usar
um único modelo desenvolvimentista, no qual se poderiam detectar fendas, encontrando
paralelos entre as relações existentes entre os níveis mais elevados e os mais baixos. Seu
pensamento havia amadurecido e já tinha 39 anos quando associouse a Henry Head,
festejado neurologista na pesquisa sobre o sistema nervoso. Numa famosa experiência,
Head ofereceu o próprio braço, um cirurgião fez incisões nele e Rivers formulou
perguntas sobre as sensações nos diferentes pontos, registrando as respostas de Head.
Dado seu forte comprometimento com a teoria da evolução, não foi surpreendente que a
descrição da experiência feita por Rivers (em Brain 1908) demonstrou que ela encerrava
férteis implicações evolucionistas. A pesquisa, que tornou-se 99
101 paradigmática para os escritos ulteriores de Rivers, relatou a descoberta de dois
tipos de nervos sensoriais. O primeiro, que Rivers e Head denominaram sensibilidade
protopática pontilhada, deu uma resposta do tipo tudo ou nada. Ela ocorria em um nível
mais baixo de organização neural e possuía funções difusas de localização. Cortando
aqueles nervos, o paciente torna-se menos capaz de dizer sim ou não, em se tratando das
sensações que ele experimenta e dos limites dessas sensações, mas mesmo com os
nervos intactos, ele não consegue dizer com precisão onde a dor se localiza. Em nível
mais elevado de organização, o outro tipo de nervos sensoriais, que Rivers e Head
denominaram sensibilidade epicrítica refinada, era capaz de operar discriminações
sutilmente graduadas e de uma localização precisa. No mesmo relatório, Rivers sugeriu
um meio de elaborar um modelo evolucionista, demonstrando o desenvolvimento da
humanidade a partir de um sistema nervoso herdado ou instintivo, dominado pela
função protopática em estágio primitivo e indo em direção a um sistema que, com o
avanço da evolução, movimentava-se gradualmente no sentido de ficar sob o controle
da função epicrítica. Evitando qualquer análise técnica mais árdua, Rivers foi capaz de
especular. Ele parecia acreditar na herança de características adquiridas e, com toda
certeza, jamais arriscou qualquer teoria que desse conta da alegada transformação
evolucionista dos seres humanos. Ele foi bem-sucedido em sua geração, pois em vez de
um instrumento analítico empregava uma varinha mágica que usava para vencer seus
opositores e para desenvolver metáforas elegantemente aceitáveis, relativas à mente e à
sociedade. A metáfora preferida, recorrente em tudo o que ele escreveu, é um modelo de
controle no sistema nervoso, que se estende para o controle da mente e para o controle
social. Ele explica isto com muita clareza em Dreams and Primitive Culture (1918), em
que compara o mecanismo da produção dos sonhos nos indivíduos com o mecanismo da
produção dos mitos na cultura primitiva, sempre reconhecendo sua dívida para com a
genialidade de Freud. O primitivo, em geral, sai empobrecido dessa comparação. Os
povos primitivos são representantes de estágios infantis anteriores do progresso humano
54
(Rivers 1918, p. 406). Este é um pensamento institucional que traz consigo uma
vingança, e constitui um ótimo exemplo para nossa coleção de velharias. 100
102 O modelo é uma caixa com dois compartimentos sobrepostos, tendo na parte de
cima uma pequena secção, onde a função nervosa epicrítica controla os instintos
protopáticos. Ele põe o desenvolvimento do cicio vital do indivíduo na mesma caixa,
ficando a ordem e a razão na parte de cima e as emoções desordenadas na parte inferior.
Isto se aplica à sociedade civil, estando as instituições soberanas de controle na parte de
cima, e a revolução e as insurreições caóticas na parte de baixo. Isto também se aplica
aos administradores coloniais (compartimento de cima) que tentam controlar os nativos
(compartimento de baixo). Em um anexo introduzido por Rivers em 1922, ele adaptou a
conceituação freudiana da censura ao sistema nervoso e ao sistema social, tudo dentro
de um quadro evolucionista. Ele ensinou que cada um deles estava disposto de tal forma
que, "no que se refere à função, eles se dispõem em inúmeros níveis, um em cima do
outro, formando uma hierarquia na qual cada nível controla o que está abaixo e, por sua
vez, é controlado por aqueles que estão acima." (Rivers 1922, p. 229). Rivers pressupôs
que a história de vida de uma psique humana desenvolve uma hierarquia de controles
semelhante sobre a experiência inconsciente. A histeria deveria ser explicada por um
processo que coloca os níveis mais elevados em estado de latência, e dá livre expansão
aos níveis mais baixos, instintivos. Isto está muito próximo do atual modelo de
crescimento em direção à maturidade moral, que ainda merece créditos na psicologia
desenvolvimentista. Rivers, entretanto, foi bastante explícito quanto a seu
comprometimento com uma teoria evolucionista e também tentou acrescentar uma
dimensão social. Bartlett não aceitou o legado integral das idéias de Rivers ou as
manteve intactas. Por exemplo, o conceito cibernético de Rivers da relação entre psique
e sociedade é fortemente autoritário. Quando Bartlett escreveu Psychology and the
Soldier (1927), ele baseou seu escrito em lnstinct and the Unconscious, de Rivers, e
usou os principais termos deste autor instintos, tendências grupais e mecanismos
inibitórios, mas referindo-se a uma teoria de feedback da relação entre o indivíduo e a
sociedade, ele democratizou o modelo com a finalidade de demonstrar que o controle
pode ser consensual (Bartlett 1927, p. 113). Em um livro anterior, Psychology and
Primitive Culture (1923), Bartlett 101
103 havia ensinado enfaticamente que o indivíduo sempre é um ser social e que as
influências sociais controlam seletivamente a cognição e a emoção. Ele já recorria
amplamente ao trabalho de Rivers e comparava algo que ele e Rivers denominavam a
"camaradagem primitiva" com a "consciência coletiva" dos escritores de L'Année
Sociologique. Descrevia como, na sociedade primitiva, o conflito é evitado por uma
separação instituída uma idéia fértil e como a curiosidade é colocada sob o controle
institucional. Um dos motivos pelos quais seu interesse pelo controle institucional sobre
o pensamento jamais se tornou algo além de uma especulação, se encontra
indubitavelmente em certos pressupostos evolucionistas atuais. Bartlett e Rivers
pensavam, juntamente com Durkheim, que o controle social da curiosidade dos
indivíduos, livre de quaisquer peias, era mais forte na sociedade primitiva. O indivíduo
primitivo era menos um indivíduo e mais um autômato, que obedecia a sugestões do
grupo. Esse pressuposto evolucionista era bastante apropriado ao período do império
colonial, e municiava este último com analogias naturalizantes. Era uma auto-evidência
o fato de que o homem moderno havia perdido sua sensibilidade natural em favor dos
sinais do grupo, assim como a raça humana perdera o sentido do olfato, tão útil nas
ordens animais inferiores. Outro pressuposto contemporâneo era o de que a memória
visual também constituía uma relíquia de um estágio menos evoluído da mente humana.
55
Supunha-se geralmente que Freud não havia empregado sua imaginação visual e ele
designou Charcot como un type visuel, com uma ponta de depreciação (Lewin 1969, p.
7). WiIliam James já havia notado uma tendência, no ciclo de vida, a perder a
capacidade de visualizar. Ele provavelmente não estava gracejando ao afirmar que
"Quanto mais velhos os homens e quanto mais eficazes, enquanto pensadores, mais eles
perderam sua capacidade de visualização, como regra geral [...] Este, segundo o sr.
Galton, era o caso de membros da Royal Society" (James 1890, I:266). Raymond Firth
(1968) observa que Rivers declarava muitas vezes possuir fraco imaginário visual. Ele,
entretanto, não se sentia excluído. Frequentemente as imagens mediante as quais os
pensamentos nos sonhos se exprimem são muito mais vívidas do que as da vida. quando
102
104 estamos despertos. embora certas pessoas, nas quais o imaginário sensorial é quase
ou totalmente ausente, quando em estado de vigília. possam ver e ouvir as ocorrências
de um sonho como se elas, definitivamente, formassem parte da vida real. Do mesmo
modo há motivos para se acreditar que o imaginário sensorial é mais vívido e necessário
ao selvagem do que às pessoas civilizadas [...] entre os povos selvagens [...] [existe] um
interesse quase exclusivo pelo concreto, com elevado grau de desenvolvimento de seus
poderes de observação e com a precisão e a plenitude de recordação dos detalhes mais
concretos (1920, p. 396). O relato de Bartlett em relação à memória entre os povos
africanos contemporâneos sugere um misterioso processo de osmose, bastante
dessemelhante do que ele considerava ser o puro raciocínio dos modernos (Bartlett
1932), mas um tanto próximo dos processos místicos invocados por aqueles que
acreditam que a pequenez da escala, em si, resolve problemas de ação coletiva. Como,
na sua opinião, essa faculdade quase instintual era menos adaptada à vida moderna,
Bartlett eximiu-se tacitamente da tentativa de estudá-ia, embora continuasse, no final,
enfatizando a importância da contribuição social à percepção. É o que se pode dizer da
influência de Rivers sobre os interesses sociológicos de Bartlett. Voltemo-nos agora
para Haddon, o outro antropólogo a quem Bartlett prezava especialmente. O trabalho de
Haddon sobre a convencionalização na arte da Melanésia influenciou a escolha de
Bartlett em relação ao lugar da pesquisa. O poder da convenção cultural em controlar a
percepção e a recordação foi, inicialmente, o problema fundamental de Bartlett. Ele
queria descobrir como a atenção é direcionada. Esperava que os processos perceptivos
do indivíduo fossem ligados às emoções mais profundas desse mesmo indivíduo. Tais
emoções, de acordo com Rivers, são determinadas pela forma das instituições. Bartlett
parece ter estado à beira de um colapso nervoso ao tentar escrever seu livro tão
prometido sobre a convencionalização. Ele havia lido todos os trabalhos da GestaIt
sobre a memória e chegou à conclusão de que os psicólogos alemães não poderiam
prosseguir o caminho que estavam trilhando. Bartlett queria realizar experimentos sobre
a percepção de um todo no lugar de fazer experimentos sobre a faculdade da memória
exerci da em um disparate desordenado. James Ward já o aconselhara a pesquisar
sequências de percepções (Bartlett 103
105 1932, p. 63). Tornou-se claro, porém, que ele estacou durante muito tempo,
enquanto procurava delinear um projeto experimental. Em 1913, Norber Wiener, que
naquela época tinha dezenove anos e já possuía um doutorado em filosofia defendido na
Universidade de Harvard, foi a Cambridge trabalhar com Bertrand Russell. Bartlett
confiou seu caderno de pesquisas ao jovem e Wiener sugeriu o método experimental
que haveria de tornar Bartlett famoso: o método de reprodução serial do "escândalo
russo". A técnica consistia em usar sequências de percepção com algum elemento
faltando ou acrescentado a um padrão, tomando nota, em seguida, de como os
56
sentido de o remediar. Uma pesquisa de pouco fôlego que liga um fator social a uma
espécie de viés não se qualifica e muito menos uma pesquisa que mostre espaços locais
105
107 lacunosos, em se tratando da cognição. É bem verdade que existe muita
investigação sendo feita sem um esquema teórico bem fundamentado. Muitas pesquisas
embarcam nesse mesmo problema, sem identificar um sistema sociallimitado, do
mesmo modo que Merton identificou um sistema de organização da ciência e, enquanto
antropólogo, identificou um grupo social. A teoria em questão, falida, procuraria
conectar de maneira sistemática a ordem social com os processos cognitivos de seus
membros. Um único termo resume todas as qualidades que possibilitam que uma
especulação se firme e então escape ao esquecimento: o princípio da coerência. É
essencial empregar a mesma metodologia entrelaçada que mantém unidos outros blocos
de atividade científica. Tendo isto assegurado, muito mais coisas serão acrescentadas;
os pesquisadores, em nível individual, saberão como ratificar suas reivindicações
particulares e como atrair colaboradores para uma ação coletiva; saberão o que pode ser
deixado de lado, com toda segurança, e o que precisa ser lembrado. O princípio da
coerência não se satisfaz com um dispositivo puramente tecnológico e cognitivo. Ele
também tem de basear-se em analogias com a natureza, já aceitas. Isto significa que ele
precisa ser compatível com os valores políticos predominantes, eles próprios
naturalizados. A ciência do século XIX recebeu grande estímulo para a pesquisa sempre
que os cientistas enxergavam em seu trabalho uma analogia global que se combinava
com a natureza. Inevitavelmente, se parecer que a analogia combina com a natureza,
isto se deve ao fato de que a analogia já está em uso para que se possam firmar
pressupostos políticos dominantes. Não é a natureza que opera a combinação, mas a
sociedade. A teoria de Ernst Haeckel segundo a qual a árvore da vida (Gould 1981, p.
114) poderia ser lida a partir do desenvolvimento embrionário de formas mais elevadas
levou a uma ampla experimentação especulativa com a idéia da "recapitulação", aquilo
que Gould denominou uma das idéias mais influentes do final do século XIX (1981).
Gould nota que Freud e Jung eram recapitulacionistas convictos e que Herbert Spencer
emprestou sua autoridade à colocação de que "os traços intelectuais dos incivilizados
[...] são os tratos recorrentes nos filhos dos civilizados [...] o corpo e a alma das
mulheres são fileticamente mais antigos e mais primitivos [...] enquanto o homem é
mais moderno" (Gould 1981, pp. 89-106
108 90). Se Rivers alcançou grande sucesso devido a seu modelo colonial de controle
psíquico, e se Bartlett negligenciou o projeto de identificar as pressões sociais sobre a
cognição do homem moderno, o sucesso obtido por um deles e o desvio da intenção do
outro podem ser explicados pelo poder de uma metáfora naturalizante e predominante.
A metáfora do progresso evolucionista na natureza era tão apropriada que qualquer
pesquisa nela baseada poderia reivindicar os benefícios de uma coerência geral. 107
109 8 AS INSTITUIÇÕES OPERAM CLASSIFICAÇÃO Quando as instituições
operam classificações para nós, parece que perdemos parte daquela independência que,
concebivelmente, poderíamos ter tido. Enquanto indivíduos, possuímos todos os
motivos para nos contrapormos e resistirmos a esse pensamento. Vivendo juntos,
assumimos uma responsabilidade individual que se estende a todos os membros da
comunidade. Assumimos a responsabilidade por nossos atos e ainda mais
voluntariamente por nossos pensamentos. Nossa interação social consiste em boa parte
em comunicarmos uns aos outros o que estávamos pensando naquele determinado
momento e em censurarmos os pensamentos equivocados. Com efeito, é assim que
58
secularização implica nítida perda para a religião. No entanto, retirar a vida religiosa das
instituições seculares pode acontecer sem perda da fé de cada um. O ganho, em se
tratando da fé particular, e a perda da cerimônia pública não acontecem necessariamente
no mesmo processo, conforme assinalaram muitos comentaristas. Ao abordar a história
religiosa de Israel, China e Índia, Weber emprega a estrutura institucional da sociedade
ocidental. Isto lhe possibilita recorrer ao nosso atual conceito de nossa experiência
histórica em 111
113 vez de reportar-se a qualquer teoria causal da mudança. No panorama das grandes
civilizações cada uma delas começa em uma comunidade primitiva (que continua não
sendo examinada). Em seguida, todas elas, em diferentes períodos, atravessam os
mesmos estágios: o estágio feudal, no qual o equivalente da nobreza se distingue dos
equivalentes do campesinato e do qual um setor comercial emergente acabará por
desviar todo o sistema para uma cena urbana. O início é revestido de sacralidade e
pasmo; a urbanização introduz os mercados, a intelligentsia, a burocracia, o sacerdócio
e também os grupos de párias. As instituições crescerão e convergirão para aquele ponto
que agora vivenciamos e deploramos. A história se conclui com o rasgar dos véus, a
perda do encantamento, o questionamento e o fim da legitimidade. A inverossímil
narrativa proposta por um pensamento institucional como este é que a legitimidade
sempre existiu sem ser questionada, onde quer que fosse. Que outrora tenha havido um
período de legitimidade inquestionável é uma idéia que nossas instituições usam para
estigmatizar os elementos subversivos. Por meio desse esperto recurso passa a idéia de
que a incoerência e a dúvida é algo que acaba de chegar, juntamente com os bondes e a
luz elétrica; são intrusos nada naturais naquela confiança primeva na pequenina
comunidade idílica, porém é mais plausível que a história da humanidade esteja repleta,
desde o início, de pregos cravados nos caixões locais da autoridade. O pesar de Weber
pela passagem da infância da humanidade é adoçado pela exaltação. O movimento
moderno em direção à liberdade intelectual significa o desafio colocado por um mundo
adulto, livre de sacerdócios, magia e outras tiranias. Os novos medos, por mais
aterrorizantes que possam ser, são medos reais e não falsas superstições; eles acarretam
responsabilidades e privilégios reais e não ilusões. A alvorada dourada de Weber é uma
contrapartida ao mitológico livro de Frazer, O Ramo Dourado, e ao modelo colonial da
psique elaborado por River (1920). Se eles falavam em coro é porque as mesmas
instituições estavam operando seus pensamentos. Na introdução à Ética Protestante
(1905), Weber afirmou que havia lido o mais que pudera para apresentar sua
argumentação com o máximo de clareza, mas desculpou-se por haver negligenciado a
etnografia. No contexto parece, com toda certeza, uma omissão bem menor. Como é
que aquelas 112
114 pequeninas tribos exóticas, que tanto intrigaram Durkheim e Mauss, poderiam
apresentar qualquer relevância para seu tema? Aqui, mais uma vez, ele está fazendo eco
para aquilo que seus leitores sentem ser a verdade. Ele (e eles) acreditam realmente que
uma profunda divisão separa a experiência que temos da sociedade daqueles povos que
existem unicamente nos registros dos exploradores, missionários e antropólogos. O
mesmo acreditaram os sociólogos desde então. A crença é criada por uns dois rápidos
acenos de mão. No primeiro aceno Weber nos ensinou a encarar a sociedade em termos
dos setores institucionais que conhecemos; tais setores são povoados por sacerdotes,
juízes, intelectuais, elites, proprietários de terra, arrendatários e proscritos. Nesse
cenário os problemas da racionalidade são colocados como problemas que apenas
surgem com o crescimento e conflito dessas instituições. Assim, aqueles povos cuja
sociedade não diferencia claramente os juízes, os sacerdotes, os proprietários de terras e
61
outros setores não podem ser relevantes para a história moderna. A Índia, a China e
Israel são relevantes porque sua história pode ser apresentada em termos de equilíbrio
ou desequilíbrio entre esses setores institucionais. Os aborígenes australianos e os
esquimós apenas escorregam entre as malhas da rede da investigação. Passemos ao
segundo aceno. O arcabouço hegeliano do modelo de Weber pressupõe que a história
das instituições do mundo registra a constante evolução da autoconsciência. Benjamin
Nelson (1981) apresenta um sério e claro relato sobre os pressupostos weberianos da
consciência humana em desenvolvimento. Enquanto nosso interesse girar em torno do
interesse final, então haverá pouco a se ganhar do exame das fases iniciais do
movimento. Aqui oculta-se outra idéia convincente, isto é, o esnobismo do mundo da
escrita. Os povos que não registraram por escrito suas meditações filosóficas não podem
possuir princípios articulados que Ihes possibilitem refletir sobre a ordem social. Na
qualidade de contemporâneo, Durkheim caiu em todas essas armadilhas institucionais.
Ele partiu da mesma distinção básica entre primitivos e modernos, e também as encarou
pelo emprego que elas fazem de diferentes procedimentos mentais. Seria uma tolice
sugerir que ele, igualmente com sentimentos confusos, também não subscrevesse a idéia
de 113
115 uma alvorada dourada da humanidade. Para ele, a graça salvacionista não estava no
interesse pela reconstrução das várias fases da evolução que se desenrolaram do início
até agora. Assim, sua teoria não é tão sobrecarregada de pressupostos institucionalmente
estabelecidos. Seu modelo evolucionista apresenta apenas dois estágios: o estágio
primitivo da solidariedade mecânica, baseada em classificações compartilhadas, e o
estágio moderno de solidariedade orgânica, baseado na especialização econômica e na
troca. Se retirarmos as escoras evolucionistas da teoria de Weber, não sobra nada, com
exceção das séries hierárquicas de instituições. Se as retirarmos da teoria de Durkehim,
sobram-nos duas formas de comprometimento social, uma delas ciassificatória e a outra
econômica. Até mesmo Durkheim não acreditava que a solidariedade classificatória
estava associada unicamente a estágios subdesenvolvidos da divisão do trabalho, pois
dispensava muita atenção às idéias estandartizadas do que é certo e do que é errado na
sociedade moderna. Ler isoladamente As Formas Elementares da Vida Religiosa do
restante da obra de Durkheim é garantir sua compreensão equivocada, já que o
pensamento deste autor era um arco simples, no qual cada publicação relevante era um
pronunciamento necessário. Ele batia sempre na mesma tecla, isto é, a perda da
solidariedade classificatória. Deplorava a impossibilidade de a substituir e as crises da
identidade individual que decorrem da ausência de classificações vigorosas que prestem
apoio publicamente compartilhadas e particularmente internalizadas. Durkheim ensinou
que as idéias publicamente padronizadas (representações coletivas) constituem a ordem
social. Reconhecia que o domínio que elas exercem sobre o indivíduo varia quanto à
força. Denominando-a densidade moral, ele tentou medi-ia e avaliar os efeitos de suas
fraquezas. De acordo com Durkheim, o método sociológico requer que as reações
individuais sejam tratadas como fatos psicológicos a ser estudados em um quadro de
referência da psicologia individual. Somente as representações coletivas constituem
fatos sociais e estes contam mais do que os fatos psicológicos porque a psique
individual é constituída por classificações socialmente construídas. Como a mente já é
colonizada, deveríamos pelo menos tentar examinar o processo colonizador. 114
116 Quando Durkheim escreveu com Marcel Mauss o ensaio sobre a classificação
primitiva (1903), aquilo que já era uma convicção a longo prazo (isto é, o ato de que a
solidariedade se baseia em classificações compartilhadas) começou a tomar-se um
método. É verdade que Weber relacionou estilos diferenciados de raciocínio com tipos
62
verificando como o mundo físico transforma-se em uma projeção do mundo social. Para
nós é o mesmo que ocorre com os esquimós e australianos. Precisamos usar o mesmo
método de construir o norte e o sul, a esquerda e a direita, todos eles repletos de padrões
de dominação, congregação e dispersão, não apenas para nós como também para os
chineses e os índios zuni. É de se reconhecer que Durkheim jamais articulou semelhante
programa a moderna sociedade industrial. O estilo de pensamento de sua época 116
118 comemorava com tamanha ênfase a evolução social que ele só enxergava em tomo
de si a marca da modernização com o inevitável acompanhamento de uma incoerência
cada vez maior. Aceitava aquela idéia popular segundo a qual o homem moderno
escapou do controle das instituições, compartilhada pela maioria de seus
contemporâneos. Um discípulo que queira defender a tese principal de Durkheim, ainda
que hesitando em aplicá-ia aos modernos, pelo menos dispõe do método deste autor
como um instrumento para a descoberta de nossas próprias representações coletivas. O
grande triunfo do pensamento institucional é tomar as instituições completamente
invisíveis. Quando os grandes pensadores de uma determinada época concordam que os
dias atuais não se assemelham a nenhum outro período e que um grande abismo nos
separa de nosso passado, temos um primeiro vislumbre de uma classificação
compartilhada. Como todas as relações sociais podem ser analisadas como transações de
mercado, a penetração deste mesmo mercado alimenta em nós, com grande sucesso, a
convicção de que escapamos dos antigos controles institucionais, que não se referiam ao
mercado, e conquistamos uma liberdade nova e perigosa. Quando também acreditamos
que somos a primeira geração que não é controlada pela idéia do sagrado e a primeira na
qual seus componentes se vêem cara a cara uns com os outros enquanto indivíduos reais
e que, em consequência, somos os primeiros a alcançar uma ampla autoconsciência,
então existe, incontestavelmente, uma representação coletiva. Ao reconhecer este fato,
Durkheim teria de admitir que a solidariedade primitiva, baseada numa classificação
compartilhada, não se perdeu completamente. Para analisarmos nossas próprias
representações coletivas deveríamos relacionar aquilo que é compartilhado em nosso
equipamento mental com nossa experiência comum em relação à autoridade e ao
trabalho. Para saber como nos contrapormos às pressões classificatórias de nossas
instituições, gostaríamos de iniciar um exercício classificatório independente.
Infelizmente todas as classificações de que dispomos para pensar são pouco originais,
juntamente com nossa vida social. Para pensarmos sobre a sociedade temos à mão as
categorias que empregamos como membros da sociedade, que dialogam uns com os
outros sobre nós mesmos. Essas categorias de ator funcionam em todos os níveis
possíveis. No topo se situariam as regras 117
119 sociais mais gerais e, na base, as mais particulares. Quando tentamos designar itens
a esse nível básico de classificações sociais gerais, mínimas, poderemos surpreender-
nos pensando em situações domésticas e enumerando os papéis das crianças, dos
adultos, dos homens e das mulheres. Partindo desse ponto, reproduziremos
automaticamente o esquema de autoridade e a divisão do trabalho no lar, mas será muito
diferente se um indiano ou um americano estiver pensando, conforme observou com
muita sagacidade Ravindra Khare, antropólogo indiano que ensina nos Estados Unidos
(Khare 1985, p. 43). Poderemos também começar abordando os papéis desempenhados
por aqueles menos envolvidos na organização social, os vagabundos, por exemplo, e
nos deslocarmos da periferia para os centros de influência. Poderemos ainda começar
pelos bebês e subirmos na estrutura etária. Em cada caso adotaremos as categorias
usadas pelos nossos administradores para recolher impostos, operar recenseamentos da
população e avaliar a necessidade de escolas ou prisões. Nossas mentes já estarão
64
não são as palavras que fazem as coisas para as pessoas. O rótulo não é motivo para que
elas modifiquem sua postura e recomponham seus corpos. A aplicação de injeções
tóxicas também poderia matar as pessoas e os micróbios não são menos receptivos às
palavras do que os seres humanos. Tendo em vista uma comparação justa, o processo de
rotulação, em ambos os casos, faz parte de uma ação coatora mais ampla e as plantas, os
animais e os micróbios reagem ainda mais veementemente do que os seres humanos. É
bem verdade que o bacilo pode morrer, mas, em um período muito curto, surgem novas
cepas, não para se conformarem com os rótulos, mas para os desafiarem. Surgem
milhões de novos bacilos, jamais imaginados, mas imunes aos ataques desfechados
contra eles e que recorrem a antigos rótulos. Do mesmo modo que os pervertidos
sexuais, os histéricos ou os maníaco-depressivos, os seres vivos que interagem com os
seres humanos transformam-se para se adaptar ao novo sistema representado pelos
rótulos. A diferença real pode ser que a vida fora da sociedade humana transforma-se,
afastada dos rótulos, em atitude de autodefesa, enquanto a vida na sociedade humana
transforma-se, aproximando-se dos rótulos, na esperança de obter alívio ou vantagens.
O mérito especial de se chamar a atenção para a receptividade aos nomes consiste em
convidar os filósofos a modificar seu enfoque. Em vez de se concentrar na nominação
como um modo de indicar determinados itens, sistemas completos de conhecimento são
esclarecidos, mediante a abordagem de Foucault. A relação entre as pessoas e as coisas
que elas nomeiam jamais é estática. Conforme diz Nelson Goodman, a relação ocorre
no interior de um sistema que evolui (1978). A nominação é apenas um conjunto de
inputs; ela se situa na superfície do processo de classificação. A interação que Hacking
descreve dá voltas e vai das pessoas que fazem as instituições para as instituições que
operam as classificações, para as classificações que acarretam ações, para as ações que
buscam nomes e para as pessoas e outras criaturas vivas que reagem à nominação de
modo positivo ou negativo. 120
122 Tendo aceitado que as pessoas classificam, também podemos reconhecer que sua
classificação pessoal possui algum grau de autonomia. As comunidades classificam de
maneira diferente. Conforme já vimos, as instituições sobrevivem atrelando todo o
processo de informação à tarefa de se afirmarem. A comunidade instituída bloqueia a
curiosidade pessoal, organiza a memória pública e impõe heroicamente a certeza ou a
incerteza. Ao delimitar suas próprias fronteiras, ela afeta todos os níveis inferiores de
pensamento de tal modo que as pessoas se dão conta de suas próprias identidades e
classificam umas às outras por meio da afiliação à comunidade. Como ela usa a divisão
do trabalho como fonte de metáforas no intuito de afirmar-se, o autoconhecimento e o
conhecimento que a comunidade tem do mundo deve passar por mudanças quando a
organização do trabalho muda. Quando ela alcança um novo nível de atividade
econômica, novas formas de classificação devem ser conceituadas, mas as pessoas não
controlam individualmente a classificação. Trata-se de um processo cognitivo que as
envolve da mesma maneira com que elas são envolvidas com as estratégias e resultados
finais do cenário econômico na constituição da linguagem. As pessoas, individualmente,
fazem escolhas no interior das classificações. Algo mais governa suas escolhas, isto é,
alguma necessidade de uma comunicação mais fácil, um impulso para um novo
enfoque, tendo em vista a precisão. A mudança será uma réplica à visão de um novo
tipo de comunidade. Por exemplo, por que motivo os vinhos tiveram seus rótulos
subitamente modificados? Os fregueses do Chesse Cellar, em Evanston, selecionam
agora seus vinhos de acordo com os nomes das variedades de uva. Será esta uma
escolha autêntica? Será que algum restaurateur tomou a decisão de não mais oferecer os
vinhos de Bordeaux, Bourgogne, Loire ou Reno, St. Emilion ou Sauterne? O que
66
tangível mas, de modo algum, limitam seu alcance. Firmado na natureza, o sagrado
reluz a partir de pontos proeminentes para defender todas as classificações e teorias que
sustentam as instituições. Para Durkheim o sagrado é essencialmente um artefato da
sociedade. É um conjunto necessário de convenções que repousam sobre determinada
divisão do trabalho e que, é claro, produz a energia indispensável para esse tipo de
sistema (Durkheim 1893). O sagrado oferece um esteio no qual a natureza e a sociedade
se equilibram, refletindo-se mutuamente e mantendo aquilo que se conhece de cada uma
delas. Ninguém tem muitos problemas com este conceito do sagrado. Reflita-se sobre os
totens australianos e os emblemas sagrados dos reis medievais. Porém, de modo
inconsistente, o ensinamento de David Hume, segundo o qual a justiça é uma virtude
artificial, leva a muita confusão. O conceito de que a justiça é uma construção social,
necessária, apresenta um paralelismo exato com o conceito que Durkheim tem do
sagrado, mas Hume refere-se claramente a nós, a nossas pessoas. Ele submete nosso
conceito do sagrado a um exame minucioso. Nossa reação defensiva contra Hume é
exatamente aquilo que Durkheim teria previsto. Não podemos permitir que nossos
preceitos de justiça dependam do artifício. Semelhante ensinamento é imoral, constitui
uma ameaça a nosso sistema social, com todos seus valores e classificações. A justiça é
aquela instância que firma a legitimidade. Por este mesmo motivo é difícil pensar nela
imparcialmente. Apesar de 132
134 uma ampla crença na moderna perda do mistério, o conceito de justiça ainda
permanece, até os dias de hoje, obstinadamente mistificado e recalcitrante à análise. Se
fosse o caso de pensarmos contra as pressões exercidas por nossas instituições, este é o
espaço mais difícil de se fazer essa tentativa, pois énele que a resistência é mais forte.
Em relação a isso, os antropólogos ocupam uma posição privilegiada, pois eles
registram muitas formas sociais diversas, cada uma delas venerando seu próprio
conceito de justiça. O conceito das virtudes artificiais em Hume é fundamental para seu
programa cético (1739, 1751). Fazia parte de seu ataque todas as teorias de conceitos
inatos, quer se referissem à causalidade, lei natural ou propriedade privada. Seu
construtivismo radical faz dele exatamente o filósofo dos antropólogos. Quando se trata
da questão de encontrar estruturas lógicas na natureza, Hume afirma que tudo que
vemos são frequências e, a partir delas, criamos hábitos e expectativas. Quando se trata
da justiça natural, tudo o que podemos saber é que precisamos de interações
regulamentadas; para satisfazer a essa necessidade, desenvolvemos princípios. Do
mesmo modo o conceito de justiça não é a mesma reação natural que se tem em relação
a uma emoção ou a um desejo. Enquanto sistema intelectual, possui uma espécie de
naturalidade de segunda categoria, pois é uma condição necessária para a sociedade
humana. Elaborado precisamente com o objetivo de justificar e estabilizar as
instituições, esse conceito baseia-se em convenções, exatamente de acordo com o
mesmo sentido acima citado encontrado em David Lewis (1969). Assim, nenhum único
elemento da justiça possui uma correção inata; para ser correto ele depende de sua
generalidade, de sua coerência esquemática e adequa-se a outros princípios gerais
aceitos. A justiça é um sistema intelectual mais ou menos satisfatório, cujo propósito é
garantir a coordenação de um determinado conjunto de instituições. Se isto acabar se
revelando ser logicamente incontestável e, ainda assim, inaceitável para os filósofos
que, por outro lado, são muito consistentes no que se refere à lógica, enxergaremos
nesse fato uma outra instância do poder que tem o sagrado de suscitar uma defesa
emocional. Por exemplo, o filósofo vitoriano que editou com dedicação as obra Inquiry
e Treatise, de Hume, rejeitou sem a menor hesitação seu conceito de justiça, tratandoo
como uma aberração, como a travessura provocadora de um enfant terrible 133
72
que podemos sentir melhor a comoção provocada por aquele relato histórico e pelo
fracassso mútuo em compreender, por parte do Antigo Oriente e do Novo Ocidente (p.
49). Posto que a qualidade, como um direito natural ou como um princípio universal,
ainda constitui a mais destacada diferença entre o sistema ocidental e muitos outros
sistemas de justiça, não basta simplesmente deixar os últimos de lado, considerando-os
obviamente injustos. E, no entanto, existem muitos filósofos proeminentes que agem
exatamente assim. Consideremos a tentativa de Alan Gewirth no sentido de estabelecer
um supremo princípio de moralidade, do qual dependem todos os demais 135
137 princípios morais, e de recorrer a esse princípio para provar que a desigualdade é
injusta. A argumentação de Reason and Morality (1978) é acadêmica, impressionante e
verdadeiramente sedutora. Sua estratégia consiste em desencavar aquilo que está
logicamente embutido no conceito de um agente racional. Os agentes querem alcançar
seus objetivos e, portanto, querem liberdade para agir e o bem-estar necessário à ação.
As carências são intrínsecas ao conceito de ação e, assim, as carências dos agentes
transformamse em reivindicações. Reconhecendo que suas próprias reivindicações são
válidas em contraposição aos demais agentes, o agerite racional, tendo em vista a
consistência, precisa admitir que as mesmas exigências, feitas por outros agentes, são
válidas em relação às suas. Não reconhecer aquilo que está implicado em uma ação
natural significa agir contra a razão. A partir desta base lógica, o esquema de Gewirth
estende-se a princípios morais substantivos, incluindo a qualidade necessária dos
agentes. Tomando como premissa os desejos de um agente racional, Gewirth formulou
uma argumentação baseada em carências logicamente derivadas e em uma adequação
semelhante àquela empregada pelos teólogos do século XII. Com a finalidade de
resolver uma controvertida questão - teria a Virgem Maria nascido sem o pecado
original? - eles propuseram em primeiro lugar que Deus haveria de querê-ia concebida
sem mácula, como algo incrustado no conceito de Deus; em segundo lugar, recorreram
à argumentação de que Deus é onipotente, e daí decorre que teria sido perfeitamente
possível para Ele fazer o que queria. Isto levou à triunfal conclusão de que Ele agiu
nesse sentido. Uma forma enfatiza seu desejo: potuit, voiuit, fecit. Outra enfatiza a
adequação implícita no esquema lógico: potuit, decuit, ergo fecit. Já se afirmou que
Alan Gewirth é refratário a objeções padronizadas ao argumento ontológico que postula
a existência de Deus (Nielson 1984). Ele e os escolásticos possuem uma argumentação
que depende de se desvelar as implicações lógicas de certas palavras - o que mais a
lógica poderia fazer? Dissemos, porém, o suficiente em capítulos anteriores para
demonstrar que o conjunto de idéias que constituem o significado de uma palavra é o
produto do pensamento institucional. A partir de sua publicação PrincipIe of Generic
Consistency, Gewirth espera elaborar não só apenas a correção da igualdade mas
também deixar 136
138 patente o erro que é o assassinato e a escravidão (1978). Mas a que se refere o
assassinato? O autor afirma que ele diz respeito ao ato de matar seres humanos
inocentes que tem por motivo ou como natureza apenas o proveito e a gratificação do
desejo. E a que se refere a inocência? Se as outras categorias do pensamento são
culturalmente definidas, então permite-se que a culpa, a inocência, a opressão e a
coerção constituam exceções? Conforme assinala Lena Jayyusi, as categorias da lei se
inserem em um quadro normativo e moral, ligado a responsabilidades, e imersos na
ordem prática cotidiana (Jayyusi 1984, p. 4). Ela argumenta, por exemplo, que
descontextualizar os conceitos de coerção e opressão, tais como foram desenvolvidos no
Ocidente, e aplicá-los às instituições soviéticas é uma colocação fora do lugar, sob o
ponto de vista da lógica. O emprego do termo "coerção" pressupõe a relevância de
74
dar rações diminutas aos que se encontram em desvantagem, aos marginais, aos
politicamente ineficazes. Proteger aqueles que estão no comando e aqueles que já
gozam de vantagens resulta em que as instituições fundamentais serão preservadas e os
habituais canais de comunicação serão mantidos abertos. O efeito é conservar alguns
níveis mínimos de operações. À medida que a crise se aprofunda, e Torry observa, ele
testemunha, horrorizado, uma destruição sistemática de certas categorias de pessoas. Ele
consegue reconhecer quem está predestinado a morrer de inanição, o mesmo
acontecendo com as vítimas. Ele percebe como se dará a vitimação pelos processos de
seleção do sistema social existente. Quaisquer que sejam os princípios normativos de
exclusão dos privilégios ou da segurança - seja devido ao nascimento, à profissão, ao
sexo, ou por definições em torno do desvio e da criminalidade essas exclusões habituais
apontam para quem receberá menos, à medida que os recursos diminuem, e quem
finalmente será excluído ou deixado para trás, a fim de morrer de fome. Para grande
surpresa de Torry, as vítimas pré-estabelecidas aceitam seu destino com docilidade.
Quando a carestia chega ao fim, algumas dentre elas podem ter sobrevivido, mas, com
toda certeza, terão perdido filhos e parentes. Torry observa como a vida comunitária é
retomada. Dada a cruel iniquidade do que aconteceu, ele se põe a imaginar se os
sobreviventes demonstrarão ressentimento contra quem os explorou. Não é o caso. Eles
reconhecem que o fado de suas famílias é adequado e parte normal das condições de
crise. Compreendem que a elite jamais correu perigo. Retomam com gratidão seus
antigos relacionamentos de prestação de serviços, sem ressentimentos. A aceitação de
que foram vítimas indica, para Torry, que ele testemunhou não a destruição da ordem
social, mas sua afirmação. Será esta uma história sinistra? Torry fica a imaginar se a
moralidade dessa crise tomou o desastre maior ou menor do que seria, caso tivesse
acontecido o contrário. O fato de parecer que a recuperação foi mais rápida expressa um
dilema favorito dos filósofos morais. Deveríamos atentar para as 144
146 consequências de nossas escolhas ou deveríamos fazer aquilo que é inelutavelmente
correto? Se todos, em um barco salva-vidas, acabarão morrendo caso a água for
distribuída igualmente, e se houver uma boa oportunidade de que alguns serão salvos,
caso a distribuição seja restrita, então o que deveria ser feito? E se a seleção for correta,
quem deveria ser salvo? A elite hereditária? Os mais talentosos? Os mais valentes? Os
mais fracos? Este é o problema com que se debateram aqueles exploradores prisioneiros
na caverna, sem alimento. É o tipo de problema insolúvel, se for apresentado aos
indivíduos como um enigma intelectual. Em primeiro lugar, o exemplo é isolado de
todo contexto institucional. A justiça nada tem a ver com casos isolados. Em segundo
lugar, os indivíduos normalmente encaminham tais decisões às instituições. Nenhum
raciocínio elaborado por particulares pode encontrar a resposta. As mais profundas
decisões relativas à justiça não são tomadas pelos indivíduos enquanto tal, por
indivíduos que pensam no interior ou em nome das instituições. A única maneira
segundo a qual um sistema de justiça existe é pelo desempenho cotidiano das
necessidades institucionais. Se isto for reconhecido, pareceria que os filósofos que
defendem a escolha racional fracassam em enfocar aquele ponto em que é exercida a
escolha racional. Em se tratando desta argumentação, escolher racionalmente não
significa escolher intermitentemente entre crises ou preferências particulares, mas
escolher continuamente entre instituições sociais. Segue-se que a filosofia moral é um
empreendimento impossível se, desde o início, não colocar restrições ao pensamento
institucional. Portanto, que ninguém se reconforte com a reflexão segundo a qual os
primitivos pensam através de suas instituições, enquanto os modernos tomam as grandes
decisões individualmente. Este pensamento é um exemplo de como deixar as
79
eficaz do que pregar contra o álcool e o abuso das drogas, o racismo ou o sexismo.
Somente as instituições que passam por um processo de mudança podem ajudar.
Deveríamos nos dirigir a elas e não aos indivíduos, e nos dirigirmos a elas
continuamente, não apenas em situações de crise. Assim, deveríamos perguntar o que
acontece com a diplomacia quando diferentes tipos de instituições entram em conflito.
Entre instituições do mesmo tipo, baseadas nas mesmas analogias a partir da natureza, e
firmadas nos mesmos conceitos de justiça, a diplomacia tem uma chance. No entanto, a
diplomacia entre diferentes tipos de instituições geralmente fracassará. Os avisos serão
interpretados erroneamente. Os apelos à natureza e à razão, que comprometam uma das
partes, parecerão infantis ou fraudulentos à outra parte. Uma vez reconhecido que as
instituições legitimadas tomam as grandes decisões, muito mais coisas seriam
modificadas. Os psicólogos não mais poderiam afirmar que esta ampliação das funções
cognitivas é um assunto banal, que deve permanecer sem ser estudado, em favor do
crescimento moral e perceptual, em estado de incultura, das crianças. Uma vez
reconhecido que as grandes decisões sempre implicam princípios éticos, então os
filósofos não enfocariam, com um único propósito, os dilemas morais individuais.
Michael Sandel escreveu eficazmente contra o viés que presenteia a teoria social como
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149 um agente individual, desonerado, aistórico. Ele demonstra como a teoria apóia a
autocontradição, no interesse amor a defender os pressupostos da filosofia liberal
(Sandel 1982). Uma teoria da justiça tem de alcançar o equilíbrio entre as teorias da
ação humana, por um lado, e as teorias da comunidade, por outro lado. Se, na teoria da
justiça, a assim denominada comunidade é de uma espécie que jamais penetra nas
mentes de seus membros, se sua experiência compartilhada não faz diferença quanto a
suas necessidades e em nada contribui para sua auto-definição ou para seus conceitos de
mérito, então muita coisa está errada com a teoria. Seu conceito do eu desintegra-se e
seu conceito de comunidade se contradiz ao longo da argumentação. Sandel contrapõe
esta crítica ao livro Theory of Justice, de autoria de John Rawls (1971), mas ela se
aplica amplamente a muitas atuais discussões sobre a justiça, a comunidade e o eu.
Rawls descreve duas teorias da comunidade, ambas individualistas e nenhuma delas
suficiente para corresponder à experiência ordinária da ação humana. E, afinal de
contas, a premissa dos princípios da justiça precisa "denotar alguma semelhança com as
condições de criaturas discernivelmente humanas" (Sandel 1982, p. 430). No primeiro
relato instrumental sobre a comunidade, de autoria de Rawls, as pessoas que cooperam
são governadas unicamente por motivações que obedecem ao autointeresse, e o bem da
comunidade consiste em elas alcançarem seus objetivos individuais. De acordo com
esse relato, a própria comunidade é externa às aspirações e interesses desses indivíduos.
No segundo relato de Rawls, a visão que ele adota é denominada por Sandel conceito
sentimental da comunidade. Ela é, em parte, interna àqueles que se sujeitam à
cooperação, pois atinge seus sentimentos. Ambas as concepções pressupõem que o
sujeito é individuado separadamente ou antes da experiência comunitária, de tal modo
que as fronteiras do eu do sujeito são fixadas independentemente das situações e,
presumivelmente, são incapazes de se modificar. Sandel, por sua vez, procura um
terceiro conceito, mediante o qual o eu seria profundamente penetrado pela
comunidade, e assim a identidade seria até mesmo constituída por ele. De acordo com
esta vigorosa visão, afirmar que os membros de uma sociedade são ligados por um
sentido de comunidade não significa 148
150 simplesmente dizer que muitos desses membros professam sentimentos
comunitários e perseguem objetivos comunitários, mas sim que eles concebem sua
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identidade [...] como algo definido, até certo ponto, pela comunidade de que fazem
parte. Para eles, a comunidade descreve não apenas o que eles possuem, enquanto
concidadãos, mas também o que eles são, não um relacionamento que eles escolheram
(como ocorre em uma associação voluntária), mas uma ligação que eles descobrem, não
meramente um atributo. mas algo que constitui sua identidade. Em contraste com os
conceitos instrumentais e sentimentais de comunidade, poderíamos descrever esta
vigorosa visão como um conceito constitutivo (SandeI1982. p. 150). A vigorosa visão
requer uma completa revisão do vocabulário e uma modificação de pressupostos. Em
vez de a filosofia moral começar por um conceito do indivíduo como agente soberano,
para quem a livre escolha constitui a condição essencial, Sandel sugere que o agente
humano é essencialmente alguém que precisa descobrir (não escolher) seus fins, e que a
comunidade propicia os meios de autodescoberta. Em vez de estar centrado nas
condições da escolha, um diferente tipo de filosofia moral se centraria nas condições em
que se dá o autoconhecimento. Para quem quer que tenha se interessado pela teoria do
conhecimento de Durkheim, isto não deixa de ser reconfortante. Durkheim e Fleck
ensinaram que cada tipo de comunidade é um mundo de pensamentos, que se expressa
em seu próprio estilo de pensar, penetrando as mentes de seus membros, definindo a
experiência deles, e estabelecendo os polos de sua compreensão moral. Este programa
sempre pareceu cru, não experimentado e precisava de muito trabalho para tomá-io
aceitável. Apesar de toda sua percepção e de sua correção, a tendência que a ele se
contrapunha parecia forte demais. Sandel, porém, remete o programa a eras passadas:
estar engajado na autodescoberta, procurar na comunidade com o objetivo de encontrar
os próprios fins, é ser um ente humano "como os antigos o concebiam" (Sandel 1982, p.
22). A tradição é antiga e esses cenários já foram desenhados antes, na literatura e na
filosofia. Somente por meio de um viés proposital e de um esforço extraordinariamente
disciplinado foi possível erigir uma teoria do comportamento humano cujo relato formal
do raciocínio somente considera os motivos que dizem respeito à própria pessoa e uma
teoria que não tem meios possíveis de incluir mentes direcionadas para a comunidade
ou o altruísmo e muito menos para o heroísmo, exceto como 149
151 uma aberração. O programa de Durkheim-FIeck aponta para um caminho de
retomo. Por bem ou por mal os indivíduos compartilham seus pensamentos e eles, até
certo ponto, harmonizam suas preferências. Eles não têm outros meios de tomar as
grandes decisões a não ser na esfera das instituições que eles constroem. 150