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COMO AS INSTITUIÇÕES PENSAM MARY DOUGLAS


SUMÁRIO
Apresentação
Prefácio
Introdução
1.As Instituições Não Podem Ter Opiniões Próprias
2.Dar um Desconto à Pequena Escala
3.Como os Grupos Latentes Sobrevivem
4.As Instituições se Fundamentam na Analogia
5.As Instituições Conferem Identidade
6.As Instituições Lembram-se e se Esquecem
7.Um Exemplo de Esquecimento Institucional
8.As Instituições Operam a Classificação
9.As Instituições Tomam Decisões de Vida e Morte

Bibliografia
Índice remissivo
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PREFÁCIO
1. A necessidade de uma teoria das instituições que modifique a atual visão não-
sociológica da cognição humana
2. A necessidade de uma teoria cognitiva que ofereça um suplemento às
debilidades da análise institucional.
3. O controle social da cognição.
4. O livro focaliza a hostilização sofrida por Durkheim e pelos durkheimianos
quando se referiram às instituições ou grupos sociais como se eles fossem
indivíduos e à idéia de um sistema cognitivo suprapessoal.
5. A hostilidade mencionada é indício de que, acima do nível do indivíduo, outra
hierarquia de "indivíduos" está influenciando os membros que se situam num
nível mais baixo a reagirem violentamente contra essa ideia.
6. Em níveis mais elevados de organização, os controles sobre os membros que a
constituem, situados em níveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais
difusos.
7. O incômodo provocado pelo pensamento de que pensamos e conhecemos como
as instituições nos ensinam a fazê-lo.
8. Durkheim, Evans-Pritchard e Lévi-Strauss devem nisso ser seguidos.
9. A marca de Merton no tema coberto por esse livro

Introdução
1. Escrever sobre cooperação e solidariedade significa escrever, ao mesmo tempo,
sobre rejeição e desconfiança. A solidariedade envolve indivíduos prontos para
sofrer em benefício de um grupo mais amplo e sua expectativa de que cada
membro desse grupo faça o mesmo por eles. É difícil falar sobre essas questões
com distanciamento. Elas tocam em sentimentos íntimos de lealdade e
sacralidade.
2. Qualquer pessoa que tenha aceito a confiança, solicitado sacrifícios ou os tenha
praticado voluntariamente conhece o poder do laço social, que é colocado como
se fosse acima de qualquer questão. Há resistências às tentativas de o expôr à luz
do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado.
3. Toda pessoa é afetada pela qualidade da confiança que a cerca. Algumas vezes a
confiança tem breve duração e é frágil, dissolvendose facilmente e resultando
em pânico. Algumas vezes a suspeita é tão profunda que a cooperação toma-se
impossível.
4. O exemplo da medicina nuclear: nela há um registro magnífico de confiança e
cooperação mútuas. Os cientistas dispõem de meios aceitáveis de conferir
reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus métodos e têm fé nos
resultados, do mesmo modo que os pacientes e os médicos confiam um no outro.
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Se a força da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das realizações,
então dispomos de um exemplo eloquente. Rosalyn Yalow apresentou
recentemente (1985) um relatório sobre a história da subdisciplina à qual
dedicou sua vida profissional. O relatório foi inspirado por indícios de que o
trabalho está para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao temor dos
efeitos negativos da radiação nuclear. Nada do que os cientistas possam dizer em
sua defesa conseguirá dissipar a desconfiança.
5. Este livro não se preocupa em julgar se "o temor fóbico à radiação" é correto ou
não. A profunda discordância entre os cientistas que praticam a medicina
nuclear, de um lado, e um setor do público, de outro lado, ilustra a surdez
seletiva, na qual nenhum dos dois interlocutores conseguem, por ocasião de um
debate, ouvir o que o outro está dizendo.
6. A inabilidade da conversão a argumentos racionais se deve ao domínio exercido
pelas instituições em nossos processos de classificação e de reconhecimento.
7. A base compartilhada do conhecimento e dos padrões morais.
8. Os indivíduos em crise não tomam sozinhos decisões relativas à vida e à
morte. O raciocínio individual não consegue resolver tais problemas. Uma
resposta só parece ser correta quando apoia o pensamento institucional que já se
encontra na mente dos indivíduos enquanto eles procuram chegar a uma decisão.
9. O exemplo fictício do processo dos exploradores espeleólogos, para ilustrar
precisamente as respostas divergentes dos filósofos ao problema de se saber se
uma pessoa deve ser sacrificada em benefício das vidas alheias (Fuller 1949):
cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiram explorar uma caverna; a
queda de uma enorme rocha bloqueou a única entrada; uma grande equipe de
resgate começou a cavar um túnel através da rocha, mas o trabalho era árduo e
perigoso. Dez membros da equipe morreram na tentativa de salvação. No
vigésimo dia do desabamento foi estabelecido contato pelo rádio e os homens
aprisionados perguntaram quanto tempo demoraria para serem resgatados.
Estimou-se que o mínimo necessário seriam mais dez dias. Eles solicitaram
conselhos médicos sobre a insuficiência de suas rações e ficaram sabendo que
não poderiam esperar sobreviver por mais dez dias. Indagaram então se teriam
chances de sobreviver se consumissem a carne de um de seus companheiros e,
com muita relutância, lhes foi dito que sim, mas ninguém sacerdote, médico ou
filósofo se dispunha a aconselhá-los sobre o que fazer. Depois disso cessou a
comunicação pelo rádio. No trigésimo-segundo dia do desabamento o bloqueio
da entrada foi rompido e quatro homens saíram da caverna. Eles disseram que
um deles, Roger Whetmore, havia proposto a solução de comer a carne de um
dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita por meio de um lance de
dados. Mostrou então um dado que, por acaso, trouxera. Os outros acabaram
concordando e estavam para pôr o plano em ação quando Roger Whetmore
recuou, dizendo que preferia esperar mais uma semana. Eles, no entanto, foram
em frente, jogaram o dado quando chegou a vez dele, e sendo Roger Whetmore
indicado como vítima, mataram-no e comeram-no. Iniciando a discussão, o
presidente do Tribunal expressou a opinião de que o júri havia agido
corretamente ao declará-los culpados, pois, segundo a lei, não havia a menor
dúvida quanto aos fatos; eles, por vontade própria, haviam tirado a vida de outra
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pessoa. Ele propôs que o Supremo Tribunal confirmasse a pena e solicitasse


clemência à mais alta autoridade do Poder Executivo. Seguiram-se as
declarações de voto dos quatro outros juízes.
10. O primeiro juiz afirmou que seria uma iniquidade condená-los por homicídio.
Em vez de um pedido de clemência, propunha que fossem inocentados. Sua
argumentação invocava dois princípios distintos. Os homens, encurralados,
haviam sido geograficamente subtraídos da força da lei; separados por uma
sólida muralha de pedra, seria o mesmo que estar em uma ilha deserta, em
território estrangeiro. Em circunstâncias desesperadoras, encontravam-se moral
e legalmente no estado da natureza, e a única lei a que estavam sujeitos era o
acordo ou contrato que firmaram entre si. Já que a vida de dez trabalhadores
havia sido sacrificada para salvá-ios, quem quisesse condenar os acusados
deveria preparar-se para processar, pela morte daqueles homens, quem
organizou o socorro. Ele insistiu finalmente na diferença entre o texto da lei e a
interpretação de seus objetivos. Não fazia parte dos propósitos da lei definir o
homicídio para condenar aqueles homens famintos, que poderiam ter sido
movidos por uma atitude de autodefesa.
11. O segundo juiz discordou veementemente dessa colocação, perguntando:
"Baseados em que autoridade nos investimos em um Tribunal da Natureza?"
Absteve-se em seguida de tomar uma decisão.
12. O terceiro juiz também não concordou com o primeiro, insistindo que todos os
fatos demonstravam que os acusados haviam tirado a vida de seu companheiro
por vontade própria. Discordou igualmente da decisão do presidente do Tribunal
quanto ao pedido de clemência. Não cabia ao Poder Judiciário refazer a lei ou
interferir em outros departamentos do governo.
13. O último juiz concluiu que os acusados eram inocentes não em relação aos fatos
ou à lei, mas porque "os homens são regidos não por palavras escritas numa
folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens". Nesse caso
preciso, as pesquisas de opinião mostraram que 90% dos entrevistados estavam a
favor do perdão. Ele, entretanto, não apoiou a recomendação do presidente do
Tribunal por saber que o chefe do Executivo, entregue a si mesmo, recusaria o
perdão e estaria menos inclinado a conceder a clemência caso uma
recomendação nesse sentido partisse do Supremo Tribunal. Assim, ele não fez
recomendação alguma para o perdão, mas favoreceu uma absolvição. Somente o
presidente do Tribunal se mostrava favorável no sentido de solicitar clemência.
14. Dois juízes favoreceram a absolvição; dois eram a favor da condenação; um dos
juízes se absteve. Estando o Supremo Tribunal igualmente dividido, foi
confirmada a condenação do tribunal de primeira instância. Os homens foram
sentenciados e condenados a morrer na forca.
15. Os modos de pensar representados na parábola: o individualista, o sectário e o
hierárquicos (Douglas & Wildavsky 1982). Os juízes recorrem a seus
compromissos institucionais para chegar a uma reflexão e decisão.
16. Objetivo do livro: encorajar mais investigações em torno do relacionamento
entre as mentes e as instituições. Para enfocar ainda mais os princípios
elementares da solidariedade e da confiança, voltemos à história no ponto em
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que os cinco homens ficam sabendo que não conseguirão o sobreviver com o
alimento de que dispõem.
17. Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidária.
Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do último juiz com os
princípios hierárquicos – os parâmetros para a decisão de que seria sacrificado:
(a) o líder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a honra do
sacrifício. Como o líder exerce um papel importante na comunidade onde vivem,
os demais contestariam sua decisão. Eles jamais poderiam voltar a enfrentar a
luz do dia após matar e comer o juiz de paz, o pároco ou o líder dos escoteiros;
(b) o mais jovem e menos importante se proporia; os demais não concordariam
devido a sua juventude e a toda vida que ele teria pela frente; (c) o mais velho,
sob o pretexto de que sua vida havia chegado ao fim e, então, entraria em cena o
pai de uma numerosa família. Durante os dez dias de seu cativeiro eles
passariam o tempo todo procurando, com muita civilidade, um princípio
hierárquico satisfatório que designasse sua vítima, mas talvez jamais chegariam
a encontrá-la.
18. Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna são membros de uma
seita religiosa que estão passando juntos um feriado. Ao tomar conhecimento
de que 500 toneladas de pedra bloquearam a saída eles se rejubilam, pois se dão
conta de que chegou o dia do julgamento supremo e que estão irrevogavelmente
separados de Armagedon, para sua eterna salvação. Então passam o tempo de
espera entoando hinos de louvor. Somente os individualistas, a quem nenhum
laço liga mutuamente, que não estão imbuídos de nenhum princípio de
solidariedade, acolheriam o jogo do canibalismo como solução apropriada.
19. Até que ponto o pensamento depende das instituições. Trata-se de uma
argumentação complexa, que necessita quadros de referência muito claros.
Escolhi abordar a solidariedade e a cooperação por meio da obra de Émile
Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente
é possível na medida em que os indivíduos compartilhem as categorias de
seu pensamento.
20. Há una tendência de descartar Durkheim e Fleck porque eles parecem estar
afirmando que as instituições têm opiniões próprias. É claro que as
instituições não podem ter opiniões. Vale a pena dedicar um tempo à
compreensão do que esses pensadores realmente disseram.
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CAPÍTULO 1 - AS INSTITUIÇÕES NÃO PODEM TER OPINIÕES PRÓPRIAS


1. Somente pelo fato de ser legalmente constituído não se pode dizer que um
grupo "comporta-se" e muito menos que ele pensa ou sinta.
2. a teoria da escolha racional individual só encontra dificuldades ao abordar
o conceito de comportamento coletivo. É axiomático, para a teoria, que o
comportamento racional se baseia em motivos de autorreferenciação. O
indivíduo calcula o que é aquilo que melhor atende a seus interesses e age de
acordo com isso.
3. Nossa intuição nos diz que os indivíduos contribuem, sim, para o bem
público com generosidade, até mesmo sem hesitações, sem a intenção óbvia
de obter um benefício próprio.
4. Durkheim contra a teoria da escolha racional: o erro inicial está em negar
as origens sociais do pensamento individual. As classificações, as operações
lógicas e as metáforas que nos guiam são dadas ao indivíduo pela sociedade.
5. O senso da correção apriorística de algumas ideias e a ausência de sentido de
outras são lidadas como algo que faz parte do entorno social. Durkheim era de
opinião que a reação de indignação quando julgamentos estratificados são
desafiados é uma resposta visceral devida diretamente a um compromisso com
um grupo social No seu modo de ver, o único programa de pesquisa que
explicaria como um bem coletivo é criado seria trabalhar a questão da
epistemologia.
6. O modelo benthamita, segundo o qual uma ordem social é produzida
automaticamente devido a ações auto-interessadas de indivíduos racionais,
era por demais limitado, já que não explicava a solidariedade grupal.
7. A obra de Ludwik Fleck em tomo da filosofia da ciência coincide com um vivo
interesse pela teoria política, ao abordar as fontes do compromisso e do
altruísmo.
8. Concordâncias e divergências entre Durkheim e Fleck: (a) ambos eram
igualmente enfáticos em relação à base social da cognição.
9. Hume e a ideia de que em nossa experiência encontramos apenas sucessão e
frequência, mas nenhuma lei ou necessidade. Somos nós que atribuímos a
causalidade. Pensando essa prerrogativa de ver certas relações em coisas cujo
exame nada nos pode revelar, Durkheim argumentou que as categorias de
tempo, espaço e causalidade possuem uma origem social. Assim, a sociedade
não poderia abandonar as categorias relativas à livre escolha do indivíduo sem
abandonar a si mesma:
A sociedade lança mão de toda a autoridade que exerce sobre seus membros
para impedir dissidências (...) A necessidade com a qual as categorias nos são
impostas não é o efeito de simples hábitos, um jogo de que podemos livrar-
nos com pouco esforço; também não é uma necessidade física ou metafísica,
já que as categorias mudam em diferentes lugares e épocas; é um tipo
especial de necessidade moral, que representa, para a vida intelectual, aquilo
que a obrigação moral representa para a vontade. (Durkheim 1912, p.29-30)
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10. Fleck: a cognição é a atividade do homem mais socialmente condicionada e


o conhecimento é a suprema criação social. A própria estrutura da linguagem
apresenta uma filosofia impositiva, característica daquela comunidade e até
mesmo uma simples palavra pode representar uma teoria complexa (...) “é banal
toda teoria epistemológica que não leve em conta a dependência sociológica de
toda cognição, de maneira fundamental e detalhada”. (FLECK 1935, p. 42)
11. Contribuições de Fleck: é (a) a coletividade de pensamento (equivalente ao
grupo social de Durkheim) e seu estilo de pensamento (equivalente às
representações coletivas de Durkheim), que conduz e treina a percepção e
produz uma provisão de conhecimentos.
12. O estilo de pensamento estabelece as pré-condições para qualquer cognição
e determina o que pode ser considerado uma questão razoável e uma
resposta verdadeira ou falsa. Tal estilo propicia o contexto e fixa limites para
qualquer julgamento relativo à realidade objetiva. Seu traço essencial é que ele
está oculto dos membros da coletividade de pensamento.
13. Para Fleck, o estilo de pensamento é tão soberano para o pensador quanto a
representação coletiva o era na cultura primitiva, segundo defendia Durkheim.
Fleck, porém, não estava se referindo aos primitivos.
De acordo com Durkheim, nessas sociedades elementares, os indivíduos passam a
pensar da mesma forma, ao internalizar sua concepção de ordem social e ao sacralizá-la.
O caráter do sagrado é ser perigoso e estar exposto ao perigo, convocando todo bom
cidadão a defender seus baluartes. O universo simbólico compartilhado e as
classificações da natureza incorporam os princípios de autoridade e coordenação. Em
um sistema como esse, problemas de legitimidade são resolvidos porque os indivíduos
carregam a ordem social no seu íntimo onde quer que vão, projetando-a na natureza. No
entanto, uma divisão avançada do trabalho destrói essa harmonia entre a moralidade, a
sociedade e o mundo físico, substituindo-a por uma solidariedade que depende do
comportamento do mercado.
Durkheim não era de opinião que a solidariedade baseada em símbolos sagrados fosse
possível na sociedade industrial. Na época moderna a sacralidade foi transferida para o
indivíduo. Essas duas formas de solidariedade constituem a base da principal tipologia
na teoria de Durkheim (Durkheim 1893, 1895).
Fleck distinguia as comunidades de pensamento coletivo, compreendendo os
verdadeiros crentes, da comunidade de pensamento, anteriormente membros daquela
primeira, mas não necessariamente sujeitos às coerções do estilo de pensamento.
Admitia que as comunidades de pensamento coletivo variassem de acordo com sua
persistência ao longo do tempo, das formações mais transitórias e acidentais às
formações mais estáveis.
Julgava o estilo de pensamento das formações estáveis mais disciplinado e
uniforme, a exemplo do que ocorria nas associações, sindicatos e igrejas. Fleck se
deu ao trabalho de discutir a estrutura interna dos grupos. Uma elite interna, de
iniciados hierarquizados, existe no centro e a massa se localiza nas bordas. O
centro é o ponto que põe tudo em movimento. As bordas adotam suas idéias em um
sentido literal e inquestionável; a ossificação ocorre exatamente aí. Fleck divisava
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muitos universos de pensamento, cada um com seu centro e suas bordas,


interceptando, separando e se fundindo.
Era algo paralelo à densidade moral presente na teoria de Durkheim. Fleck reconhecia
que a quantidade de interação podia variar; o grau de concentração e energia no centro
depende da pressão da demanda por parte das bordas externas. Quando essa interação é
forte, a questão da divergência individual mal se coloca. Fleck não estava interessado na
sacralidade ou na evolução social. Ainda assim ele aplicava à sociedade moderna e até
mesmo à ciência a idéia durkheimiana de um estilo de pensamento soberano, o que
teria horrorizado Durkheim. Conforme disse Fleck, os durkheimianos ostentavam "um
respeito excessivo, que chegava aos limites de uma reverência pia, aos fatos científicos"
(p ). Ele ridicularizava essa atitude, achando que ela era um obstáculo simplório à
construção de uma epistemologia científica. As afirmações de Durkheim evocam
frequentemente uma mente grupal, misteriosa e supra-orgânica. Fleck, com toda certeza,
não pode ser acusado da mesma falha. Sua abordagem era inteiramente positivista.
Ao lidarmos com as críticas que afetam a ambos, a boa estratégia consiste em deixar
que Durkheim e Fleck realizem uma defesa comum. Algumas vezes Fleck tem a melhor
resposta, outras vezes, Durkheim. Lutando como aliados, de costas um para o outro,
cada um, com sua força, pode suprir a fraqueza do outro. Em seu prefácio, o
organizador-tradutor do livro de Fleck compara a rejeição inicial que ele sofreu por
parte dos resenhadores ao sucesso instantâneo e ruidoso alcançado por Logik der
Forschung, de Karl Popper, publicado quase na mesma época (Trenn 1979, p. X).
A diferença quanto à receptividade pode ser explicada em boa parte pelo relativo
vigor da coletividade de pensamento a que cada um desses escritores pertencia.
Popper era uma personalidade bastante conhecida na prestigiosa confraria de filósofos
vienenses e Fleck, um intruso em relação à filosofia, mas gozava de consideração. Um
esboço biográfico descreve Fleck como "um humanista com conhecimento
enciclopédico". Médico e bacteriologista, cujas publicações e pesquisas se referiam à
sorologia do tifo, da sífilis e de vários organismos patogênicos, ele não estava bem
posicionado para impressionar os filósofos.
Seria mais durkheimiano adotar o próprio conceito de Fleck, segundo o qual a
coletividade de pensamento, isto é, a organização social, explica a falta de atenção
com que ele foi acolhido inicialmente. Ainda assim, é interessante seguir a idéia do
organizador da edição, segundo a qual seu fracasso inicial foi uma questão de estilos de
pensamento incompatíveis.
Com efeito, parece que os primeiros resenhadores acusaram Fleck de uma minimização
reducionista do papel do cientista. Ele foi censurado por negligenciar as personalidades
individuais na história da ciência. Sua análise sociológica foi descartada por acrescentar
pouco àquilo que Max Weber já havia dito. No todo, foi criticado por toda sua
mensagem global e não por quaisquer elementos incidentais. O vigoroso apelo que fez
a favor da epistemologia sociológica e comparativa foi rejeitado. Os organizadores
das edições de seus livros acreditam que os tempos mudaram e que agora ocorreu uma
mudança decisiva no estilo de pensamento. Existe certamente um novo interesse por
distintos estilos de raciocínio na história da ciência. Galileu introduziu um novo estilo
de pensamento que tomou impossíveis antigas indagações. O capítulo "Language, Truth
and Reason" ("Linguagem, Verdade e Razão"), de Ian Hacking (1982), resenha
rapidamente inúmeros ensaios recentes e influentes na história da ciência sobre "novos
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modos de raciocínio que têm início e trajetórias específicas de desenvolvimento" (p.


51).
Na maioria dos casos, entretanto, a tendência é interessar-se pelo estilo de
pensamento e não por sua relação com o pensamento coletivo. Se a mudança de
direção, em Fleck, for criativa, ela não deverá separar estilo de pensamento de
coletividade de pensamento, o que, mais uma vez, levaria ao fracasso da parte
sociológica do empreendimento.
Thomas Kuhn foi o primeiro desde 1937 a chamar atenção para o livro de Fleck,
fazendo uma referência a ele (Kuhn 1962). Em seu prefácio à tradução inglesa, ele
exprime certas hesitações que ainda serão amplamente compartilhadas. A posição de
Fleck, afirmou, não está livre de problemas fundamentais. (...) para mim eles se
agrupam, conforme aconteceu na primeira leitura, em tomo do conceito de uma
coletividade de pensamento (...) Considero este conceito intrinsecamente equivocado e
uma fonte permanente de tensão no texto de Fleck.
Colocado de maneira resumida, a coletividade de pensamento parece funcionar como a
mente individual em larga escala, pelo fato de muitas pessoas o possuírem (ou serem
possuídas por ele). Com o intuito de explicar sua aparente autoridade legislativa, FIeck
recorre repetidamente a termos emprestados do discurso sobre os indivíduos (Kuhn
1979, p. X). Resumindo: pensamento e sentimento são para as pessoas, enquanto
indivíduos. Pode, entretanto, um grupo social pensar ou sentir? Este é o paradoxo
central, incongruente.
Kuhn aprecia no livro de Fleck inúmeras percepções, mas não a principal argumentação
deste autor. Ao rejeitá-la, Kuhn compartilha certo mal-estar com muitos liberais. A
filosofia da justiça de John Rawls fundamenta-se em total individualismo; na sua
opinião, "a sociedade constitui um todo orgânico, com vida própria, distinta e superior à
vida de todos seus membros em suas relações mútuas" (Rawls 1971, p. 264). É verdade
que existem agora vários movimentos de idéias em cuja direção Fleck apontava com
tamanha premência. Por exemplo, podemos lidar mais facilmente com termos
desconfortáveis. Os tradutores refletiam e rejeitavam várias alternativas para o termo
denkkollectiv: "escola de pensamento" ou "comunidade cognitiva", antes de adotarem a
tradução literal, "coletividade de pensamento".
Agora, porém, o termo "universo" adquiriu um sentido apropriado, embora universo
(incluindo os universos distinguíveis da teologia, da antropologia e da ciência), no lugar
de coletividade de pensamento, seria um termo fiel ao conceito essencial de Fleck,
ligando-o apropriadamente às obras Ways of Worldmaking, de Goodman (1978), e a Art
Worlds, de Becker (1982).
O tema de Fleck era a descoberta científica, o de Becker, a criatividade artística, e o de
Goodman, a cognição em geral. Cada um desses pensadores muito independentes tem
notável afinidade com os demais.
Becker insiste que o esforço coletivo produz uma obra de arte, embora ela seja atribuída
a determinado artista. Inclui no universo da arte, juntamente com o artista, a
colaboração anônima dos fornecedores, os fabricantes de telas e tintas, os moldureiros,
os distribuidores, os designers gráficos dos catálogos, as galerias e o público. É um
acaso histórico que faz com que uma classe de atores no mundo artístico da pintura
ocidental seja designada individualmente e celebrada como "artistas". Em outros
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universos, em outras épocas e lugares, a coletividade do estúdio ou a corporação de


ofícios sobrepuja a fama do indivíduo. Todos os universos da arte dependem da
existência de um público para a obra de arte. A interação com a solicitação do público
constitui uma parte fundamental e criativa do universo da música ou da pintura.
Fleck adotou o mesmo ponto de vista, enfatizando o papel da prática de laboratório e o
papel do apoio público. Se não fosse o insistente clamor da opinião pública a favor do
teste de sangue de Wassermann jamais teriam gozado daquele respaldo social
absolutamente essencial ao desenvolvimento da relação, à sua "perfeição técnica" e à
acumulação da experiência coletiva. Somente a prática laboratorial explica com
facilidade porque o álcool e, posteriormente, a acetona deveriam ser tentados, além da
água, tendo em vista o preparo do extrato, e porque deveriam ter sido usados órgãos
saudáveis, além de órgãos atingidos pela sífilis. Muitos investigadores realizaram essas
experiências quase simultaneamente, mas a verdadeira autoria se deve à coletividade, à
prática do trabalho cooperativo e em equipe (FIeck, 1935, p ).
Fleck chegou mesmo ao ponto de prescrever o anonimato e a modéstia a todos os
cientistas. Este ideal democrático pode explicar em parte por que ele escolheu o modelo
russo de uma fazenda coletiva para descrever os universos da ciência.  
Nelson Goodman coloca que a correção das categorias depende de como elas se
adequam a um universo. A correção, com o significado de adequação à ação e
adequação a outras categorias, corre paralelamente ao conceito de harmonia, elaborado
por Fleck, entre elementos pertencentes a um estilo de pensamento. Quase se equipara
ao conceito de Fleck, segundo o qual a verdade, em certo sentido, é feita de ilusões
(frase que perturbava Kuhn).
O modo pelo qual FIeck explicava a construção da realidade objetiva por meio das
experiências sociais da coletividade de pensamento está muito próximo da
explicação de Goodman, segundo a qual a correção se adequa à prática. Sem a
organização e a seleção de diferentes espécies, efetuada por uma tradição que se
desenvolve, não existe correção ou erros de categorização, validade ou invalidade da
referência indutiva, amostragem representativa ou não-representativa, uniformidade ou
disparidade entre as amostragens. Assim, justificar testes tendo em vista a correção
poderá consistir basicamente em demonstrar, não que eles sejam confiáveis, mas que
sejam fundamentados (Goodman 1978, pp. 138-39).
Os antropólogos têm empregado modos de pensamento para referir-se aos mesmos
universos e idéias fundamentalmente entrelaçados (Horton & Finnegan 1973). Agora é
mais fácil empregar as expressões universo da ciência, das artes, da música ou do
pensamento no lugar de coletividade de pensamento, para aquele agrupamento social
que é definido por seu estilo de pensamento próprio, pois invoca os contemporâneos
laços de apoio ao conceito básico de Fleck.
O cenário poderá estar bem preparado, mas o programa de Durkheim- Fleck relativo à
sociologia do conhecimento fracassará caso se baseie em um erro fundamental. Duas
graves objeções se levantam contra ele. A primeira delas diz respeito a explicações
funcionais imprecisas. A tese central de Durkheim, segundo a qual a religião mantém a
solidariedade do grupo social, é uma explicação funcional. Fleck tem sua própria versão
de um circuito funcional autossustentável: a estrutura geral de uma coletividade de
pensamento implica que a comunicação de pensamentos em uma coletividade,
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independentemente de conteúdo ou justificativa lógica, deveria levar, por razões


sociológicas, à corroboração da estrutura de pensamento (Fleck 1935, p. 103).
Ambos eram funcionalistas. Coloca-se uma interrogação: suas argumentações falham ao
não proporcionar os passos lógicos necessários? Caso contrário, poderia existir uma
argumentação funcionalista melhor que justificaria as correlações deles?
A segunda objeção diz respeito à base racional da ação coletiva. Presumindo-se que
os indivíduos sejam racionais e procurem seu próprio interesse, farão alguma vez
sacrifícios em benefício do grupo? E caso eles ajam contra seu próprio interesse, que
teoria de motivação humana explicaria esse comportamento? Durkheim recorre à
religião para oferecer algumas explicações. Para Fleck, qualquer sistema de
conhecimento é uma espécie de bem público, consequentemente, a própria religião
coloca os mesmos problemas. Para ambos, a verdadeira questão é a emergência da
própria ordem social.
As páginas que se seguem não dizem respeito a quem quer que afirme que a ordem
social nasce espontaneamente. A teoria da escolha racional proíbe que um engajamento
espontâneo se incorpore à argumentação, sob o disfarce da religião. O engajamento
que subordina os interesses individuais a um todo social mais amplo precisa ser
explicado.
Para muitos leitores de Durkheim, sua argumentação parece apoiar-se demais na
religião e se, tendo em vista os propósitos da epistemologia sociológica desses leitores,
a crença religiosa deve equacionar-se com qualquer outro sistema de conhecimento,
então a assertiva de Fleck, segundo a qual um estilo de pensamento reina soberano
sobre seu universo de pensamentos, também é algo que parece suspeito. Como foi que
surgiu essa soberania? É isso que os teóricos da escolha racional exigem que seja
explicado. Por outro lado, a teoria da escolha racional apresenta grandes limitações. As
pessoas não parecem agir de acordo com os princípios dela (Hardin 1982). O programa
de Durkheim e Fleck pode dar uma resposta à crítica funcionalista e à crítica da
escolha racional apenas quando desenvolve uma dupla visão do comportamento
social. Uma dessas visões é cognitiva: a existência individual de ordem, coerência e
controle da incerteza. A outra visão é transacional: a utilidade individual
maximiza a atividade descrita em um cálculo que envolve o custo-benefício.
Na maior parte deste volume, pouco diremos a respeito desta última visão, que já se
encontra muito bem representada nos escritos acadêmicos. O exemplo mal representado
é o papel desempenhado pela cognição na formação do laço social.

CAPÍTULO 2 - DAR UM DESCONTO À PEQUENA ESCALA


As sociedades em pequena escala são diferentes. Muitos daqueles que são bem
informados sobre a dificuldade de explicar a ação coletiva no bojo da teoria da escolha
racional contentam-se em abrir exceções. A pequena escala alarga o campo de ação dos
efeitos interpessoais. Todo o campo da psicologia localiza-se aqui, juntamente com as
emoções irracionais. Quando a escala das relações é suficientemente pequena para
ser pessoal qualquer coisa pode acontecer e a teoria da escolha racional reconhece
os limites de seus domínios.
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Em consequência, parece não existir um problema teórico em relação ao altruísmo


quando a organização social é muito pequena. Entretanto, um exame mais detido revela
que isentar as sociedades de pequena escala da força da análise racional é algo que não
resiste bem a uma crítica. Elas não podem ser mais isentas do que as organizações
religiosas.
O objetivo deste capítulo é ampliar os argumentos da escolha racional, de tal modo
a abrir aquelas áreas interditas onde não se supõe que a teoria penetre. Então a
teoria se desnuda. Ela enfrentará inelutavelmente dificuldades agudas que não podem
ser escamoteadas tomando como referência a escala ou fatores religiosos, emocionais ou
irracionais. Este passo é necessário para se confrontar o registro empírico
inoportuno.
Sabemos que
(1) os indivíduos submetem seus interesses particulares ao bem dos outros;
(2) que o comportamento altruísta pode ser observado;
(3) que os grupos exercem uma influência sobre o pensamento de seus membros;
(4) e até mesmo desenvolvem estilos de pensamento distintos.
Sabemos isso sem dispormos de uma teoria do comportamento que leve tal fato em
conta. Na sequência aplicaremos a análise da ação coletiva, realizada por Mancur
Olson, às questões habitualmente disfarçadas pelos efeitos da escala.
Em The Logic Of Collective Action (1965), Olson parte da teoria econômica dos bens
públicos, mas termina por uma teoria geral da ação coletiva. Os bens públicos
constituem um conceito híbrido na teoria econômica. O termo foi adaptado para definir
gastos governamentais legítimos. Se os impostos foram recolhidos para servir objetivos
públicos, estes devem se distinguir dos benefícios individuais e ser mantidos sob o
controle legislativo público.
Um bem público deve beneficiar a todos, conforme ocorre, por exemplo, com o ar
nãopoluído ou, pelo menos, deve ser acessível a todos, a exemplo de uma autoestrada
pública. Começando por exemplos escolhidos para ilustrar um determinado problema
político, o conceito se baseou em três formulações complexas e distintas:
(1) o suprimento de um bem não é diminuído pelo consumo individual;
(2) um dos lados não pode reivindicar um reembolso pelo fato de o ter produzido, já
que ele é propiciado pela coletividade; e
(3) nenhum membro da coletividade pode ser excluído de seu uso.
É, essencialmente, um tipo de bem que escapa ao mecanismo dos preços e, assim,
se esquiva da análise econômica padrão. Segundo a formulação geral de Olson, um
indivíduo que se comporta de acordo com o interesse próprio racional não contribuirá
para o bem coletivo e, do mesmo modo, não produzirá o benefício que deseja tendo em
vista seu próprio interesse. Isto ocorre por dois motivos distintos
13

(1) uma argumentação depende da natureza dos bens públicos, dos problemas que
surgem da necessidade de cooperação para providenciá-los e da impossibilidade
de excluir quem quer que seja de gozá-los, uma vez produzidos;
(2) a outra argumentação depende da diminuição dos retornos para cada pessoa que
contribuiu para a produção à medida que aumenta o número de pessoas que
gozam do produto.
O primeiro exemplo é muito eloquente. O segundo, baseado em efeitos de escala,
precisa ser qualificado. Separemos essas duas questões e comecemos apreciando o
primeiro conjunto de problemas que surgem da natureza dos bens públicos.
Olson argumenta que, na medida em que a contribuição dele não for suficiente para
produzir o bem coletivo e na medida em que, por definição, a produção desses bens
depende de muitos contribuintes, o cálculo racional do indivíduo tenderá a levá-lo a
deixar de proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua própria contribuição tem
consequências limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausência de sua pequena
contribuição não fará diferença, poderá também esperar pegar uma carona nas
contribuições dos outros. "Pode deixar que fulano faz" é o princípio do teorema da
inconsequência formulado por Olson.
Por outros motivos, ele pode esperar que os outros sucumbam à mesma tentação de
pegar uma carona e assim, se a contribuição deles não for acessível, sua própria
contribuição se desperdiçará. Nesses exemplos, a baixa probabilidade de uma
colaboração nada tem a ver com a escala. Estas argumentações explicam
convincentemente muitas das dificuldades enfrentadas pelas organizações voluntárias.
Embora as tenha analisado tão bem, o próprio Olson dá mais peso à argumentação
da escala. É verdade que, em certos casos, o benefício obtido por cada usuário é
diminuído por cada aumento do número total de usuários. Os parques e as estradas
públicas constituem nítidos exemplos de como o congestionamento, é um obstáculo à
fruição. Isto, porém, não se aplica a outros tipos de bens públicos, corno a defesa
nacional, a proteção de polícia, a iluminação pública, ou os sindicatos que negociam em
benefício dos trabalhadores em determinada indústria. Talvez não possa aplicar-se à
educação, se concedermos que os benefícios resultantes de cada pessoa escolarizada são
multiplicados por maiores oportunidades proporcionadas por um discurso escolarizado.
Certamente não se aplica à criação de uma ordem social. Quanto mais pessoas
puderem ser envolvidas no sistema de confiabilidade, mais vantagens resultarão
para cada uma delas. Esta é a saída mais eficaz que responde à interrogação de
como se pode explicar a ação coletiva.
O exemplo de Olson vale com muito mais eloquência para os problemas de confiança
gerados pela possibilidade de se pegar uma carona e isto se aplica a instâncias que são
de escala verdadeiramente muito pequenas.
De acordo com Olson, os problemas de ação coletiva tal como são colocados na
teoria da escolha racional só podem ser resolvidos
(1) por meio da coerção;
(2) por uma atividade que é um subproduto, de baixo custo, de ações
empreendedoras direcionadas para benefícios individuais seletivos; ou
14

(3) por uma mescla de ambas.


Uma comunidade que não conta com nenhum desses estímulos é atormentada pela
indecisão e pela dissenção. Cada indivíduo racional que decida ser um membro, que
saiba que sanção alguma pode ser aplicada a ele e que não existem recompensas
especiais no serviço público, calculará se ele poderia sair-se melhor sozinho, contando
apenas consigo. Quando este é o caso para todos os membros, o grupo deve permanecer
latente. Enquanto tal, deve convocar um esforço combinado tendo em vista uma
atividade a curto prazo levantamento de fundos ou protestos, porém não muito mais do
que isto.
Olson isentou a organização religiosa de sua teoria geral. Vinte anos mais tarde,
entretanto, a isenção da organização religiosa constitui claramente um engano. A
história da religião corrobora sua teoria. Sempre que as organizações religiosas tiveram
acesso aos poderes coercitivos ou foram capazes de oferecer recompensas seletivas de
riqueza ou influência a seus membros mais dedicados, suas religiões tiveram uma
carreira estável e florescente. E sempre que elas estiveram ausentes, quaisquer que
fossem os motivos, ocorreu uma história de fricção e cismas contínuos (Douglas &
Wildavsky 1982). Não ajuda nossa compreensão da religião protegê-la de um
minucioso exame profano traçando em torno dela uma fronteira respeitosa. A
religião não deveria ser isenta de modo algum.
Olson também se mostra disposto a isentar pequenos grupos das implicações de
sua teoria. Ele confere uma influência decisiva à escala da organização (Chamberlin
1982) e espera que suas observações não se apliquem a um determinado ponto de uma
escala que decresce. Se as comunidades de pequena escala devem ser isentas assim
como as comunidades religiosas, então aquilo que Durkheim tem a dizer não seria
relevante, já que baseou sua argumentação em ambas.
Existe, além disso, a crença de que em algo denominado "comunidade" os indivíduos
podem colaborar desinteressadamente uns com os outros e construir um bem comum.
Em uma comunidade como esta as injunções da escolha racional não se aplicam. Trata-
se de uma idéia emotiva extraordinariamente vigorosa. Estas isenções aparentemente
melhores à investigação analítica representam um território não demarcado pelo qual
uma pessoa pode perambular conforme lhe agradar. Tal liberdade é prejudicial ao
projeto de Durkheim e de Fleck. As isenções não são de pouca monta ou carecem de
importância. Sua aceitação debilita a força de toda a investigação. Em particular, as
isenções desviam a atenção do interessante e pessimista conceito de Olson relativo ao
grupo latente.
Ninguém que esteja empenhado em explicar a ação coletiva pode descartar
superficialmente os formidáveis problemas enfrentados por uma pequena
comunidade que tenta continuar existindo tal como é. Pior ainda é identificar as
áreas isentas da vida social como aquelas que são pequenas em escala.
Isto implica afirmar que, na época moderna, ela são poucas e carecem de importância.
Porém, esta colocação é falsa. Estamos falando de coações sistemáticas à colaboração,
que se aplicam a uma extensa gama, que vai da Associação de Pais e Professores local
aos sindicatos, aos representantes do Poder Legislativo e à cooperação internacional
(Olson 1965, pp. 66-131).
15

É vasta a escala dos grupos latentes na sociedade; as consequências de seu fracasso em


se aglutinar são graves. Assim, deveríamos nos encorajar e entrar naquela reserva toda
cercada. A essa altura a religião pode ser parcialmente deixada de lado porque é por
demais óbvio que a organização religiosa não constitui exceção ao exemplo geral e
porque algumas coisas específicas serão ditas sobre a religião e a sacralidade em
capítulos posteriores.
Este é o ponto em que se devem concentrar os efeitos de escala. A argumentação falha
pode ser expressa da seguinte maneira: a escala pequena promove a confiança mútua; a
confiança mútua é a base da comunidade; a maior parte das organizações, caso não se
baseiem em benefícios individuais seletivos, têm seu início sob a forma de comunidades
pequenas e confiantes. Então, as características especiais da comunidade resolvem o
problema de como a ordem social pode aflorar.
Muitos mantêm que, após o nascimento inicial, por meio da experiência
comunitária, o restante da organização social pode ser explicado pelo complexo
entrelaçamento de sanções e recompensas individuais. O próprio Olson parece adotar
esta visão.
As duas grandes dificuldades em aceitá-las são de natureza empírica e teórica. Na
prática, as sociedades de pequena escala não exemplificam a visão idealizada da
comunidade. Algumas delas promovem a confiança e outras não. Alguém já escreveu
sobre este tema já viveu alguma vez em uma aldeia? Já leu romances? Já tentou
levantar fundos? É claro que existem comunidades bem-sucedidas, mas vai contra o
espírito da investigação racional selecionar apenas os exemplos que se adequam e
negligenciar tantos outros. Pode-se indagar se isto é uma forma de investigação, uma
ideologia ou uma doutrina quase religiosa. Ela fornecerá um exemplo pertinente de um
conjunto de idéias que adquirem sua validade e, portanto, seu poder mais pelos
usos reconhecíveis, no interior das instituições, do que pela força da razão.
A atração exercida pela comunidade pequena, idealizada, íntima, é forte na retórica
política. Michael Taylor apresenta o mérito especial de ter tratado a ordem social como
um bem público. Ele também se inclui entre muitos daqueles que acreditam que as
comunidades pequenas são uma forma de sociedade na qual o autointeresse racional não
impõe o desfecho das decisões (1982). Contanto que a comunidade seja suficientemente
pequena e estável, supõe-se que seus membros tenham a liberdade de fazer
contribuições que eles manteriam em aglomerações maiores e mais fluidas. Esta
fórmula é um tanto imprecisa, pois a questão consiste em saber como a comunidade
consegue ser estável.
Taylor analisou três espécies de comunidades:
(1) as comunas modernas (ou comunidades intencionais);
(2) as sociedades camponesas, que geraram toda uma indústria de pesquisa
acadêmica em torno da vida campestre;
(3) as sociedades tribais de pequena escala, descritas na literatura antropológica.
Todos os três tipos de comunidade possuem uma documentação tão vasta, variada,
repleta de detalhes, que a maior parte dos filósofos, em uma atitude compreensível, a
evitam e assim, o conceito segundo o qual as pequenas comunidades são isentas da
análise do comportamento racional, tende a escapar aos constrangimentos impostos pela
crítica.
16

Taylor começa localizando a comunidade no extremo, em pequena escala, de um


continuum de elementos, cada um deles vulnerável ao aumento da escala. Assim a
comunidade é, por definição, pequena, interage face a face e é multiforme em seus
relacionamentos. Em segundo lugar, a participação em seus processos de tomada de
decisão é ampla. Em terceiro lugar, os membros da comunidade apresentam crenças e
valores em comum; seu exemplo mais perfeito seria o consenso total. Em quarto lugar, a
comunidade se mantém enquanto tal devido a uma rede de trocas recíprocas. Taylor
afirma que tais disposições tornam inaplicável a análise da escolha racional. "Em muitas
comunidades de pequena escala não se necessita de 'incentivos seletivos' ou de
controles; é racional cooperar voluntariamente na produção do bem público da ordem
social" (Taylor 1982, p. 94).
Deixando de lado essa afirmativa tão pouco matizada, segundo a qual os indivíduos que
se beneficiariam do bem público na verdade combinam para produzi-lo, precisamos
saber quais são as etapas de suas negociações uns com os outros. Qualquer ordem
social envolve questões controvertidas de justiça e moral.
Taylor supõe que elas são resolvidas, em comunidades muito pequenas, ao se instituir a
igualdade econômica e a ampla participação nos negócios públicos. A fim de manter
essa posição em relação à sociedade tribal, Taylor precisaria excluir o governo que
opera pelas associações secretas, panelinhas e intrigas, o que equivale a grandes e
arbitrárias supressões de seus próprios exemplos de comunidade. Além disso, ele sugere
que, em uma comunidade real, a coerção física inexiste. Isto depende do que ele
considera coerção. A menos que se dê a este termo um significado muito restrito, seria
sensato eliminar desta definição muitas sociedades tribais de pequena escala. É verdade
que em muitos bandos errantes de caçadores, a igualdade e a participação estão bem
exemplificadas.
Nesses bandos, porém, não é especificamente a escala diminuta, mas outros fatores,
que criam as condições favoráveis para uma vida comunitária não-coercitiva. A
dispersão da população, a abundância de recursos destinados a satisfazer as
necessidades em um nível baixo e a fácil movimentação entre os bandos de
caçadores permite que o conflito se tome difuso graças à separação (Service, 1966;
Lee & DeVore 1968).
Muito provavelmente são estas as condições que a teoria de Olson espera que os grupos
latentes apresentem com abundância: o indivíduo não tem muito a ganhar ou a perder
permanecendo com o grupo; sua lealdade muda facilmente e ele resiste prontamente a
qualquer tentativa de coerção, ameaçando cindir-se. O baixo nível do dispêndio de
energia por parte desses grupos e o baixo grau em que sua existência pressionou os
recursos do meio ambiente sugere que, pelo menos, seja corroborada a tese, segundo a
qual, quando as condições são favoráveis ao indivíduo, não se obtém muita coisa em
termos de colaboração.
David Hume afirmou que o problema da ação coletiva pode ser melhor resolvido em
comunidades muito pequenas, já que elas possuem muito pouca coisa que seja objeto de
disputas. Isto também marca um ponto a favor de outro argumento: as comunidades
pequenas fracassaram ao criar evidências muito visíveis de um benefício coletivo.
Quando nos distanciamos do exemplo especial dos bandos de caçadores, outras
comunidades em pequena escala não são visivelmente bem-sucedidas ao criar uma
ordem social que proteja efetivamente as poucas pessoas e seus modestos haveres.
17

Na perspectiva da antropologia, os fatores favoráveis têm menos a ver com a escala


e mais com a proporção da população que tem acesso aos recursos, juntamente
com a possibilidade de satisfazer necessidades sem obrigar alguém a executar
aquele tipo de trabalho árduo, monótono e contínuo que tenta alguns a coagir
outros a prestar serviço.
Seria, entretanto, um grande erro qualificar essas comunidades como grupos latentes no
sentido empregado por Olson. Elas, na verdade, constituem comunidades morais,
persistentes e verdadeiras. Está ocorrendo algo que não desafia a análise e nada tem a
ver com a escala, mas que é deixado de lado devido à falsa plausibilidade dos efeitos
da escala.
Suponhamos que uma forma de ordem social tenha se realizado de certa forma; então,
no segundo estágio, Taylor enumera quatro maneiras pelas quais a comunidade
trabalha para manter essa ordem. Muitos outros escritores aderiram a essa lista.
Nenhuma dessas formas constitui um exemplo convincente.
(1) (formas extra-racionais de controle social) ameaças e ofertas. Elas não passam
de apelos ao interesse próprio do indivíduo, Este processo é, com efeito, muito
bem documentado pelos antropólogos, porém sua análise é por demais
compatível com a teoria predominante da escolha racional para poder isentar as
pequenas comunidades de seu vigor.
(2) a socialização é o segundo modo pelo qual se afirma, com frequência, que a
ordem social é mantida. Os adultos são expostos ao vexame público e as
crianças passam por iniciações dolorosas que as ensinam a tomar as atitudes
corretas. Podemos, entretanto, imaginar como os pais são induzidos a deixar
seus filhos passar por esses tormentos e indignidades, que fazem parte de um
padrão. As sanções coletivas são uma forma de ação coletiva. Retrair-se do
processo da socialização é outra maneira de não cooperar. O que acontece
quando uma mãe alega que seu filhinho é por demais sensível ou
excessivamente jovem? O que a impede de afastar seu filho e todas as outras
mães de afastar os seus, por meio de uma ação precipitada, que os subtrai à
socialização? A resposta está em seu compromisso com determinada ordem
social. Mas não é essa escolha coletiva o que estamos tentando explicar?
(3) pelas características estruturais daquelas sociedades. Trata-se de uma questão
sutil. Essas características não constituem mecanismos específicos de controle
social; não podem ser separadas daquilo que é controlado, mas fornecem uma
estrutura para os controles sociais. Elas são, essencialmente, os padrões de
reciprocidade, parentesco e casamento. Entretanto, tais padrões de troca
constituem a articulação da ordem social que, em si, é apenas uma articulação do
comportamento; assim, o argumento é circular. Pode ser salvo unicamente por
uma presunção funcionalista explícita de um sistema de atividades interligadas
que mantém a si mesmo.
(4) A característica mais amplamente demonstrada da sociedade primitiva que,
segundo se diz, mantém a ordem social, é a crença nas sanções sobrenaturais
como o medo à bruxaria, à feitiçaria ou aos ancestrais punitivos, Se outros
argumentos falham e se essas crenças carregam o principal fardo naquele
exemplo que separa a comunidade do resto do mundo, então toda a
argumentação submeteu-se a fatores irracionais. Ou a criação da comunidade é
18

algo que apenas os primitivos podem fazer graças a suas crenças supersticiosas
na bruxaria e nos ancestrais, ou tais crenças precisam ser generalizadas de um
modo que também se aplique à sociedade moderna.
A interpretação antropológica ortodoxa, que foi aceita durante toda a década de 1960,
assumiu um modelo autoestabilizador, no qual cada item da crença exerce seu papel na
manutenção da ordem social. Entretanto, algumas sublevações interessantes neste
último quarto de século lançaram dúvidas sobre a existência de tendências que
contribuem para o equilíbrio nas sociedades estudadas pelos antropólogos.
Um fator é o desenvolvimento teórico do tema e o modo como ele lida com novas
descobertas. Entre estas, a mais relevante é o crescimento da antropologia marxista
crítica, cujo materialismo histórico rejeita a ênfase homoestática da geração anterior
(Abramson 1974; Bailey & LIobera 1981; Sahlins 1976; Terray 1969).
Outro fator importante é o fim do colonialismo.
Ainda outro é o desenvolvimento da pesquisa de campo na Nova Guiné, país que não
havia sido colonizado antes da pesquisa antropológica. Agora é possível pôr-se de lado
e avaliar o efeito do governo colonial sobre todos os incentivos individuais e sobre o
emprego da força. É claro que nas condições coloniais costumava ser mais fácil
imaginar uma comunidade não-coercitiva. Já não se permitia mais às populações
sujeitas ao poder colonial prosseguir seu lucrativo tráfico de armas, marfim e escravos.
Também não Ihes era mais possível competir pela glória na caçada às cabeças humanas,
nas ousadas expedições para o roubo do gado, já não podiam mais estender armadilhas,
roubar esposas ou executar vinganças violentas.
Na economia colonial, em que o único incentivo econômico ao trabalho era um baixo
rendimento proveniente dos pagamentos à vista pelas colheitas, era fácil supor que a
comunidade original não havia oferecido incentivos individuais ao lucro.
Os registros antropológicos atuais, mais sofisticados, mostram essas sociedades em
pequena escala numa posição jamais estática ou autoestabilizadora, mas sendo
continuamente estruturadas por um processo de negociações e trocas racionais.
As categorias do discurso político, as bases cognitivas da ordem social são
negociadas. Em qualquer momento desse processo em que o antropólogo acione sua
máquina fotográfica e ligue seu gravador, habitualmente, conseguirá registrar alguns
equilíbrios temporários de satisfação, quando o indivíduo se encontra
momentaneamente constrangido por outros e pelo ambiente que o cerca.
A análise de custo-benefício individual aplicava-se inexorável e esclarecedoramente à
menor das microtrocas, no que se refere tanto a eles quanto a nós. Os antropólogos
testam mutuamente a credibilidade dos relatos etnográficos examinando de perto o que
eles relatam sobre o equilíbrio das trocas recíprocas.
As evidências obtidas demolem o exemplo de princípios extra-racionais que produzem
uma comunidade, em um ponto não especificado de uma escala que diminui. E quando
eles fazem ameaças e oferendas que os indivíduos invocam com frequência o poder dos
fetiches, dos fantasmas e dos bruxos e bruxas para atender suas solicitações. A
cosmologia resultante não forma um conjunto separado de controles sociais. Na obra
de Durkheim todo o sistema de conhecimento é visto como um bem coletivo que a
19

comunidade partilha em conjunto. É este processo que precisamos enfocar


particularmente nos próximos capítulos.
A esta altura o conceito comum de uma comunidade anárquica utópica pode ser deixado
de lado como uma ilusão acalentada. A evidência antropológica, obtida de sociedades
de pequena escala, apóia a vasta extensão da principal tese de Mancur Olson,
segundo a qual, os indivíduos são facilmente desencorajados de contribuir para o
bem coletivo. Tal tese não sustenta o ponto de vista desse autor, o qual afirma que
a escala é o fator principal.
Qualquer tentativa no sentido de investigar as bases da ordem social faz emergir as
bases paradoxais do pensamento. A esse nível de abstração não é a circularidade auto-
referencial que está errada. Ao acreditar nos efeitos da escala, a argumentação foi
derrotada. Ela deixou de dar aquele passo lógico anterior que questionaria como
nascem os sistemas de conhecimento.
Há muito boas razões para acreditar que a teoria de escolha racional é inadequada
para explicar o comportamento político. Ocorre algo nos negócios cívicos que a
teoria da escolha natural não apreende.
De acordo com a posição de Durkheim e Fleck, o erro é ter ignorado o problema
epistemológico. Em vez de supor que um sistema de conhecimento passa a existir
mais fácil e naturalmente, a abordagem desses autores amplia o ceticismo quanto à
possibilidade de um conhecimento e de crenças compartilhados. Esta dúvida mais
abrangente sobre as bases da comunidade indica o caminho para uma resposta.
CAPÍTULO 3 - COMO OS GRUPOS LATENTES SOBREVIVEM
Se a escala diminuta não dá conta da origem das comunidades cooperativas, talvez algo
mais o faça. Para explicar o fato, sem apoiar explicitamente a abordagem funcionalista
intrínseca às colocações de Durkheim e de Fleck, várias sugestões psicológicas e
sociológicas foram apresentadas. Entretanto, as explicações psicológicas precisam ser
rejeitadas caso ultrapassem os quadros axiomáticos nos quais o problema se coloca.
Assim, podemos descartar qualquer invocação de processos que encorajem o auto-
sacrifício, pois isto satisfaz a necessidade psíquica de manter a autoestima ou
proporciona o prazer de dar prazer aos outros. Estas satisfações psíquicas em seu
funcionamento não são suficientemente confiáveis para carregar o peso da explicação.
Se algumas vezes funcionam e algumas vezes não, a interrogação retrocede e então
indaga-se o que desencadeia as vigorosas atitudes emocionais públicas.
Outra forma de explicação faz com que a ação coletiva dependa do complexo
entrelaçamento das múltiplas trocas recíprocas, diretas e indiretas. De acordo com
a forma forte desta explicação, o indivíduo racional está atado a um complexo conjunto
de relações, nas quais precisa agir munido de confiança já que não lhe resta alternativa.
Na forma fraca, ele tem alguma escolha e se escolher não cooperar acabará estragando o
espetáculo. Surge então a reação: as sanções sociais serão aplicadas a fim de penalizar o
comportamento não-cooperativo. No entanto, aplicar sanções, conforme vimos no
exemplo das sociedades de pequena escala, é uma forma de ação coletiva e necessita
igualmente de uma explicação. A objeção à forma forte nasce do conceito de alguém
que se encontra em uma situação em que a escolha não é possível. Claro que é possível,
e até mesmo acontece com frequência, que uma pessoa se encontre sob uma coerção tão
20

extremada que não lhe resta escolha, a não ser obedecer. Neste caso não existe uma
questão que envolva confiança mútua e não há problema algum em tomo da livre
cooperação. Quando não há escolha, já não nos deparamos mais com aquela situação à
qual se aplica a teoria da escolha racional. Além do mais, estender este exemplo a uma
amplo espectro de ações coletivas apenas serve para camuflar o problema. Isto também
nos propõe uma visão inaceitável da ação humana.
Apresenta-nos os seres humanos como agentes passivos, que atuam sob uma coerção
mais ou menos completa. Tal argumentação depende de uma forma de determinismo
sociológico que não confere iniciativa ou bom senso aos indivíduos. É em parte devido
a essa falha que o funcionalismo sociológico vem gozando de baixa reputação nos
últimos trinta anos. Ele não tinha lugar para a experiência subjetiva dos indivíduos, no
sentido do querer e da escolha. Supor que os indivíduos estão enredados na
armadilha de um mecanismo complexo que eles não ajudam a construir é imaginar
que eles sejam objetos passivos, como carneiros ou robôs.
O pior é que, em semelhante teoria, não existe possibilidade de explicar a mudança, a
menos que ela venha de fora, como uma força coercitiva irresistível. Presumir uma
estabilidade como esta nas relações sociais exige demais de nossa credulidade.
Dada a pobreza das explicações alternativas, cabe-nos procurar mais cuidadosamente
uma forma de argumentação funcionalista que evite tais armadilhas e, ainda assim,
satisfaça as necessidades do conceito de Durkheim e de Fleck relativo a um grupo
social que gera sua própria visão do mundo, desenvolvendo um estilo de
pensamento que sustente o padrão de interação.
Jon Elster declarou provocativamente que é quase impossível encontrar exemplos de
análise funcional na sociologia em que seja demonstrada a presença de todos os traços
logicamente exigidos de semelhante explicação (Elster 1983). Isto não acontece apenas
porque os sociólogos debatem desatentamente, mas porque acredita que a explicação
funcionalista não é apropriada ao comportamento humano.
Sua argumentação começa por uma revisão de tipos de explicação:
(1) as explicações causais e mecânicas se aplicam ao domínio da física
(2) no domínio da biologia, aplicam-se as explicações causais e funcionais. As
explicações funcionais são justificadas pela teoria da seleção natural.
(3) nenhuma teoria geral, equivalente à evolução biológica, se aplica ao
comportamento humano.
Devido a razões que Elster enumera sucintamente, os seres humanos podem fazer coisas
que os organismos biológicos não conseguem fazer:
(1) podem empregar estratégias de espera;
(2) podem dar um passo atrás a fim de dar dois passos à frente;
(3) podem executar outros movimentos evasivos.

O tipo explanatório, exclusivamente apropriado ao comportamento humano, é


intencional. De acordo com Elster, a combinação de teorias causais e intencionais
deveria ser suficiente para explicar tudo aquilo que precise ser explicado no
comportamento humano. Existem teorias causais tomadas em consideração pelos seres
humanos e eles podem estar mais ou menos equivocados. Existem também intenções
21

dos seres humanos e decisões baseadas em teorias causais, mais ou menos consistentes,
contraditórias ou equivocadas.
O tipo explanatório, exclusivamente apropriado aos seres humanos, é intencional, mas
como Elster não abre espaço para processos que se autossustentam ou para
consequências inesperadas, que operam para fazer com que uma situação continue
existindo, este autor não tem como acolher o conceito de Durkheim e de FIeck de
um grupo social que gera, sem intenção de o fazer, pensamentos que mantêm sua
própria existência.
Elster, de modo muito claro e proveitoso, enunciou as condições que devem ser
preenchidas por uma análise funcional, corretamente fundamentada. Embora tais
condições pareçam inicialmente obscuras, elas esclarecem imensamente as questões.
Uma instituição ou padrão comportamental, X, é explicado por sua função, Y diz
respeito a um grupo e Z, se e apenas se: I. Y for um efeito de X; 2. Y for benéfico para
Z; 3. Y não for levado em linha de conta por ações que produzem X; 4. Y ou a reação
causal entre X e Y não for reconhecida por atores em Z; e 5. Y mantiver X por um
circuito completo, causal, que proporciona feed-back e passa através de Z.
Esta lista foi compilada da análise crítica de Merton ao funcionalismo (Merton 1949) e
das sugestões de Arthur Stinchcombe (1968, pp. 82&3). Reportando-nos ao ensaio
original de Merton e aos comentários subsequentes, é surpreendente verificar a
quantidade de argumentação funcionalista deficiente que existia naquele momento.
Não é de surpreender que ele se sentisse obrigado a operar com alguma cautela
metodológica. Algumas das citações mais arrebatadas se devem aos antropólogos;
alguns exemplos vívidos, a Karl Marx; algumas observações imprudentes, a sociólogos
Influenciados pelo funcionalismo estrutural de Tallcott Parson.
Segundo a visão de Elster, a principal explicação para o predomínio excessivo e
indefensável do funcionalismo nas ciências sociais é de caráter histórico. Ele se
deve ao prestígio dos modelos biológicos usados pela teoria evolutiva.
Elster empenha-se em assinalar as diferenças essenciais entre as explicações funcionais,
biológicas e sociológicas. Ele, no entanto, jamais distingue entre colocações
funcionalistas, com intenção autenticamente explanatória, e aquelas que são mais
retóricas. Todos os vívidos exemplos citados por Merton e encontrados nos escritos dos
antropólogos pertencem a esta última categoria. Eles foram usados para enfeitar o
ataque que os antropólogos quiseram desfechar, na década de 1950, contra a etnologia
antiquada (ou história conjectural, como era pejorativamente denominada). Não há
como negar que eles propunham um modelo cômico, merecedor das zombarias de
Merton e Elster.
De acordo com estes antropólogos, absolutamente tudo o que acontece tem uma
função na manutenção do sistema social existente. O método passo-a-passo, adotado
por Elster, é excelente, no sentido de que reduz uma argumentação ao essencial. Uma
dessas argumentações é a seguinte: (I) Y (mais atenção à produção de alimentos) é um
efeito de X (magia ligada à horticultura): (2) Y é benéfico para toda a comunidade Z,
que consome o alimento. Esta explicação funcionalista não tem êxito porque ninguém
imagina que a magia, ligada à horticultura, não tinha a intenção de aumentar o
fornecimento de alimentos. Da mesma forma, demonstrar que a magia ligada à pesca
não tinha a pretensão final de agir como uma tecnologia aperfeiçoada é uma explicação
22

causal pura e simples. A argumentação preferida de A. R. Radcliffe-Brown, segundo a


qual os rituais possuem funções que intensificam a solidariedade, poderia ser detalhada
da seguinte maneira: I. Y (solidariedade da linhagem) é um efeito de X (culto dos
ancestrais). 2. Y mantém a paz interna e a defesa externa e assim é boa para os devotos
(Z): Assim, os produtores de X não pretendem manter Y: Eles também não reconhecem
qualquer ligação causal pela qual Y mantém X. Esta tentativa de explicação funcional
fracassa. Qual é exatamente o fator causal oculto? Ele depende de fatores psicológicos
(aquilo que Radclliffe- Brown denominava "atitudes rituais"). Supõe-se que a realização
deste culto desperte aquele tipo de emoções que contribui para a solidariedade. O
exemplo de rituais que estimulam emoções é pobre.
Existe alguém que jamais não tenha se entediado numa igreja? É importante observar
que isto vai contra os princípios do método sociológico de Durkheim (Durkheim 1895),
Os fatos sociais têm de ser explicados pelos fatos sociais. Empenhar-se em buscar
explicações no nível psicológico era o que o método de Durkheim pretendia evitar.
Durkheim desviou-se de suas próprias regras metodológicas fazendo com que o
sagrado, para sua vitalidade, dependesse da excitação emocional que nascia das
grandes aglomerações.
Fleck recorreu ao princípio mais coerente, segundo o qual a confiança e a
responsabilidade são pré-requisitos da comunicação; assim, evitava a inconsistência de
suspender a racionalidade a fim de explicar a origem do pensamento racional em
emoções efervescentes, despertadas por rituais públicos em grande escala.
É mais seguro adotar os ensinamentos de Durkheim no lugar de sua prática e rejeitar a
explicação funcional, baseada em emoções que mantêm a continuidade do sistema.
Rejeitar aqueles fatores causais que consistem em emoções também excluiria muitos
ramos bem-estabelecidos da sociologia. Por exemplo, a teoria do desvio coloca,
algumas vezes, que ser relegado a uma posição socialmente marginal (X) produz
emoções (Y) que levam os indivíduos marginalizados a um comportamento anti-social;
assim, as emoções criam um feedback, mediante o qual a atividade retaliatória dos
indivíduos marginalizados proporciona à comunidade o benefício (não-intencional) de
normas clarificadas (Cohen 1980). O argumento funcional depende do fator não-
convincente que liga os efeitos sociais e psicológicos. Além do mais é difícil contestar
que as normas clarificadas não faziam parte do resultado que se pretendia alcançar.
Um exame detido das alegadas funções sociais do culto aos ancestrais evidencia os
mesmos pontos fracos. Alguma vez foi plausível imaginar que os devotos não tivessem
a intenção de produzir a solidariedade social? É claro que eles agem assim. Orando ao
pé do altar, os devotos do culto aos ancestrais declaram explicitamente que os ancestrais
estão irados com as brigas entre seus descendentes. Estão se dirigindo um ao outro por
meio de evasivas. Em vez de uma argumentação débil e incompleta sobre mecanismos
ocultos de auto-sustentação, agora reconhecemos uma colocação de nível sobre os
esforços intencionais no plano da persuasão. Não temos razões, entretanto, para
acreditar que as declarações públicas sobre a solidariedade a promoverão. Se os rituais
não produzem as emoções que se requer, os ritualistas poderiam estar perdendo seu
tempo.
Parece ser muito difícil para esses primeiros antropólogos durkheimianos elaborar uma
explicação funcional completa. Os antropólogos citados por Merton e por aqueles que
citam as citações de Merton estavam tentando justificar a religião pelos seus efeitos
23

práticos. Infelizmente as religiões nem sempre tornam os crentes mais leais a seus
dirigentes ou mais industriosos em suas plantações e barcos, do mesmo modo que a
magia nem sempre traz peixes para suas redes. Algumas vezes isso pode acontecer e
outras vezes não. A acusação de irracionalidade à religião primitiva estava na mente
desses antropólogos (Firth 1938).
A única defesa que conseguiram imaginar para a religião das pessoas que eles
estudaram era que não se tratava de algo racionalmente inteligível, mas que apresentava
alguns efeitos colaterais de aumento da solidariedade, de indução à coragem e de
estímulo ao trabalho (Firth 1940). Esses antropólogos obtêm o pior de ambos os
mundos.
Não conseguem produzir um bom argumento funcionalista. Também têm dificuldades
com a crítica da teoria da escolha racional. O melhor que Radcliffe-Brown pôde fazer
para justificar a crença nos ancestrais foi elaborar um sistema inteiramente intencional
(Radcliffe-Brown 1945). Ele afirma que os fiéis colaboraram para criar algo que
desejavam, e presume que tenham sido bem-sucedidos. Acontece, porém, que é
precisamente isto que precisa ser explicado. Os sacerdotes e os devotos estão tentando
fazer exatamente aquilo que, segundo a teoria política de Olson, se supõe ser impossível
ou muito improvável. Eles querem partir para uma ação coletiva.
Os devotos dos ancestrais são indivíduos racionais, cada um deles com preferências
próprias em relação a como os outros deveriam tratá-lo e como ele os quer tratar. A
questão que se coloca é a seguinte: como é que eles conseguem criar aquele bem
coletivo, um acordo sobre os ancestrais?
A mesma indagação se aplica a uma crença, sobre a qual todos estão de acordo, aos
tabus ou à magia ligada à pesca, ao pecado ou aos sacramentos, a Deus ou à Santíssima
Trindade. Como é que eles constituem sua igreja coletiva, com suas doutrinas
peculiares, em vez de se perderem todos em uma destrutiva caça à heresia? Eles são
como os criadores que levam seus carneiros para pastar em terreno comum. Se cada
criador mandar para o pasto tantos carneiros quanto quiser, a terra se tornará
excessivamente usada e todos ficarão numa situação difícil. É interesse deles cooperar,
mas eles não podem confiar em seus companheiros para exercerem controle e, assim
sendo, cada um deles deve apoderar-se daquilo que puder, enquanto puder. Devido à
falta de confiança e de solidariedade, uma pastagem como essa será dizimada até a
última folha de capim.
Em outros contextos, proprietários de manufaturas que apreciam o ar não-poluído não
se encarregam voluntariamente de arcar com os custos de aperfeiçoar seus próprios
procedimentos. Não se pode contar com os proprietários das casas para removerem a
neve das calçadas, em frente dos degraus de suas próprias residências. Em questões de
doutrina religiosa, o exemplo equivalente é que cada indivíduo reivindique um
entendimento particular com Deus e rejeite as doutrinas que conflitam com suas crenças
preferidas.
O problema lógico e prático de como se alcançar a ação coletiva aplica-se tanto à
religião quanto a outras teorias do mundo. A religião não explica. A religião tem de
ser explicada.
Não podemos permitir que Durkheim, Fleck e seus amigos deixem o problema de lado
sem maiores justificativas. A exemplo de todo mundo, eles precisam explicar com
24

clareza os passos mágicos de sua colocação ou aceitar a acusação de misticismo e apelo


ao irracional. Forçá-los a empreender uma defesa comum apresenta uma vantagem
singular.
Durkheim podia evitar a questão da ação coletiva porque estava lidando com primitivos
e com religião. O que ele dizia a respeito desses tópicos supostamente não se aplicaria a
crenças seculares no mundo moderno. Ele, porém, deixa de ser um ponto de referência
quando se trata de compreender nossa própria ação coletiva. Durkheim jamais tentou
aplicar sua teoria a nós.
Podemos ser tentados a explicar, como ele, que as idéias científicas forçam suas
evidências em relação a nossas experimentações. Sabemos que isso vai contra a história
da ciência e ao delineamento de estilos de pensamento distintos. Fleck estava mais
atualizado, ao insistir que um fato científico não acua os pesquisadores e exige
concordância. Ele nos mostrou que foi preciso quatro séculos antes para que os
avanços científicos em outros campos fossem suficientemente importantes para
estabelecer uma distinção definitiva entre diferentes doenças, originalmente
agrupadas como doenças venéreas:
"Semelhante estreiteza de pensamento prova que não foi a assim denominada
observação empírica que levou à construção e fixação do conceito" (Fleck 1935, p. 3).
Uma abordagem à epistemologia que combine Durkheim e FIeck impede que se
conceda à ciência ou à religião um privilégio excessivo. Ciência e religião são
igualmente produtos conjuntos de um universo de pensamento; ambas são
empreendimentos improváveis, a menos que possamos explicar como os
pensadores individuais combinam para criar um bem coletivo.
Uma das críticas às colocações de Olson é a evidência prática de que grupos que, de
acordo com sua demonstração, deveriam ser considerados latentes e, portanto, só
deveriam manifestar sua existência esporadicamente, na verdade sobrevivem, criam e
mantêm alguma realização cultural comum.
Os bandos de caçadores da Austrália, Boméu e das bacias do Congo e do Amazonas não
podem ser considerados grupos latentes. Eles, na realidade, criaram uma cultura comum
que talvez não seja rica em realizações materiais, mas que também não pode ser
ignorada.
Graças à orientação proporcionada por Elster quanto ao funcionalismo, podemos
elaborar uma verdadeira argumentação funcionalista no estilo durkheimiano para
explicar por que surgem certas crenças que devem ser mantidas em comum e que,
assim, capacitam os grupos latentes a atingir algum grau de eficiência comunitária.
A colocação que se segue poderá parecer elíptica. Ela depende de uma documentação
que já foi discutida, relativa às crenças na bruxaria e na feitiçaria, e às crenças sectárias
em uma conspiração do mal, de âmbito cósmico (Douglas 1963; Douglas & Wildavsky
1982; Douglas 1986).
A primeira dificuldade com que se depara o grupo latente de Olson é o fato de que seus
membros, por definição, não têm qualquer interesse pessoal forte em permanecer nele.
Se os custos decorrentes da pertença ao grupo aumentam acima dos benefícios
esperados, a ameaça de se retirar é seu principal trunfo em uma negociação. Seus
membros podem usar esse fato contra quem quer que pretenda extrair deles mais
contribuições do que eles querem dar. Qualquer membro que deseje particularmente que
25

o grupo latente sobreviva será vulnerável à ameaça de secessão por parte de outros
membros. Em consequência, os assuntos de um grupo latente serão conduzidos por
meio do veto e apoiados por ameaças de retirada. A liderança será fraca, devido à
tendência de os grandes serem explorados pelos pequenos. O primeiro passo consiste
em reformular o que foi colocado acima como uma explicação funcionalista para uma
liderança fraca. Ciclo A 1. Y (liderança fraca) é um efeito de X (ameaça crível, no
sentido de afastar-se de Z). 2. Y é útil para Z, ao capacitar os indivíduos racionais a
resistirem a solicitações indesejáveis a seus recursos particulares. 3. Y não é propositado
(e, na verdade, é deplorado). 4. Y é irreconhecível como um efeito de X. 5. Devido a um
nexo causal que não se percebe, Y (liderança fraca) mantém X (a tendência a fazer
ameaças, no sentido de retirar-se), porque impede o desenvolvimento de
regulamentações coercitivas. Isto explica uma dificuldade (liderança fraca) que um
grupo como esse enfrenta para poder alcançar seus objetivos comuns. Por outro lado, se
o fato de tomar a coerção impossível é algo que conta como uma realização, então o
grupo alcançou certo êxito. A esta altura, uma comunidade desse tipo faria bem em
instituir benefícios seletivos para os indivíduos, de acordo com Olson. Eles poderiam
planejar ter muitos outros objetivos comuns conquistados como produtos derivados de
um empreendimento auto-interessado. Talvez isto simplesmente não seja possível.
Muitas seitas, comunas e grupos sociais, cujas circunstâncias se conformam ao modelo
apresentado no Ciclo A, são encontrados na periferia de uma sociedade mais ampla e
rica ou então fora, em lugares ermos, onde uma iniciativa empreendedora não pode
obter igual recompensa. Neste caso, os indivíduos podem realizar uma ação alternativa
que terá como efeito fortalecer a base comunitária, continuando a atuar somente de
acordo com motivos que só lhe dizem respeito.
O próximo ciclo também reformula as colocações de Olson (Olson 1965, p. 41). Ciclo B
I. Y (um limite estável, bem definido, em tomo do grupo) é um efeito de X (insistir em
igualdade e em 100% de participação). 2. Y é benéfico para Z (consolidando a
participação). 3. Y não é propositado como um efeito de X. 4. Y é alcançado por um
fator causal que não se percebe. 5. O limite (Y) mantém X (a regra de igualdade) que é
instituído para controlar aqueles que pegam carona. O fato de eles terem conseguido
suficiente ação coletiva para elaborar uma regra pode parecer algo menor, mas é apenas
uma regra que cada um aplicará em seu próprio interesse, ao não querer ser trapaceado
por quem pega carona. Apresenta os efeitos de um autopoliciamento, conforme será
descrito no próximo capítulo. Esta participação de 100%, para que possa ser
eficientemente controlada, requer rígidas condições de admissão, o que constitui uma
barreira para aqueles que eventualmente pretendam participar. Como resultado deste
segundo ciclo qualquer possibilidade de benefícios individuais seletivos que possa ter
ocorrido é seriamente restringida. Os dois ciclos, A e B, nada mais fazem do que
explicar com clareza, nos termos de Elster, o relato de Olson sobre os problemas a que
os grupos latentes estão sujeitos e as soluções que ele descreve. Por estes dois ciclos, foi
definido um grupo social com uma forma precisa e distinta de organização, que não tem
poder coercitivo e não proporciona benefícios seletivos individuais de espécie material.
Segundo a teoria de Olson, é apenas um grupo latente. O obstáculo a sua teoria é que, na
experiência comum, os grupos sociais que correspondem perfeitamente a essa descrição
manifestam-se com muita eficácia e continuidade. Recorreremos agora a Elster para
justificarmos Durkheim, Fleck e os antropólogos funcionalistas e para suplementar a
teoria da ação coletiva, acrescentando o elemento cognitivo a fim de estabilizar e
legitimar o grupo social. Graças à clara descrição da forma da sociedade, podemos
26

agora descrever determinado padrão de crenças que justificaria os primeiros dois ciclos,
os quais, presumivelmente, surgiriam ao mesmo tempo.  
CicIo C I. Y (crença compartilhada em uma conspiração malévola) é um efeito de X
(acusações mútuas de traição dos princípios fundantes da sociedade). 2. Y é benéfico
para Z. 3. Y não é intencional. 4. Y depende de uma conexão causal que não é percebida
pelos membros. 5. O nexo causal oculto é o seguinte: devido a uma liderança fraca, não
se pode invocar consenso algum para formular ou aplicar leis ou punir os desviantes
(Ciclo A). A ameaça de separação pode ser controlada indiretamente por um limite
rigoroso (Ciclo B), que, automaticamente, garante que a saída terá um alto custo. Assim
sendo, apenas uma ação política indireta se toma possível; em consequência, existe uma
tendência a controlar um comportamento explorador acusando líderes incipientes de
facções de uma imoralidade de princípios. Não há nada mais de que se possa acusá-los,
já que não existem outras regras. A atividade de acusação, X, reforça a crença, Y, em
uma conspiração externa, porém Y mantém X.
Em vez de recorrer às crenças para explicar a coesão da sociedade, usamos a
sociedade para explicar as crenças, e elas certamente merecem melhor explicação
do que nos referenciarmos a conspirações cósmicas e perigos satânicos.
A excelente descrição que Lewis Coser faz das seitas como uma forma de "instituição
gananciosa" supõe que os perigos externos levam-nas a exigir o engajamento
incondicional de seus membros. Os perigos, entretanto, se apresentam sempre em todos
os lugares.
Todas as sociedades enfrentam perigos; nem todas são instituições gananciosas e nem
todas são bem-sucedidas em levar seus membros a reconhecer os perigos existentes.
Esta análise demonstra que o problema começa em um comprometimento hesitante e
não devido a um perigo exterior (Coser 1974). Agora o grupo corporativo começa a se
tomar plausível enquanto agente por si mesmo. Passa a assemelhar-se ao trapaceiro que,
no jogo de cartas, força os jogadores a pegar uma carta contra sua própria vontade. Este
determinado tipo de grupo social pensa de acordo com determinados hábitos
arraigados, tem opiniões próprias. Ao escolher participar desse bando idealista de
irmãos, ninguém opta por todo um conjunto de comportamento e de crenças. Eles,
porém, caminham juntos.
Todos os três ciclos se combinam da seguinte maneira: I. Y (C. a crença na conspiração)
é um efeito de X (A, liderança fraca e B, limites rígidos). 2. Y é benéfico ao manter a
comunidade, Z, existindo. 3. Y não faz parte das formulações de Z e, assim, nenhuma
acusação insultuosa de duplicidade se volta contra os crentes. 4. Os laços causais não
são percebidos. 5. Y mantém X ao dividir a comunidade ou ao recorrer a expulsões,
quando se suspeita de traição, criando uma história que deixa os possíveis líderes
nervosos.
A crítica antifuncionalista tem sido útil porque responde a objeções ao programa de
Durkheim-Fleck relativo à teoria da escolha coletiva. Os membros do grupo latente
não pretendem construir o estilo de pensamento que mantém a forma da
organização. É um produto coletivo. Por seu lado, a teoria da escolha coletiva tem
sido útil no sentido de reabilitar o funcionalismo. O nexo causal percorre toda a
organização, opondo claramente resistência às ações de seus membros. O único
pressuposto inicial necessário foi mínimo: eles gostariam de ver a comunidade
sobreviver sem desistir de sua autonomia individual. As restrições presentes na situação
27

permitem apenas certas soluções. Ao adotarem a estratégia mais fácil, eles começam a
percorrer juntos uma senda que termina na construção conjunta de um estilo de
pensamento. Deve-se admitir que ele inclui elementos desagradáveis, tais como a crença
em um cosmos maligno e injusto, que abriga seres humanos perversos.
Ninguém, porém, pode esperar apreciar os resultados, quando começa a explicar a
origem da ordem social.
Além do mais, uma argumentação nesse sentido é algo que não provoca queixas contra
um reducionismo cínico. Não se trata de duplicidade. Ao reverter a argumentação de
consequencialidade formulada por Olson, a participação na construção do estilo de
pensamento escamoteia, para cada membro do universo de pensamentos, a
consequencialidade de suas próprias pequenas ações. Cada um deles acusará seu vizinho
de traição sem desconfiar que um padrão de crença, comumente compartilhado, se
fortalece com isso. Uma palavra final pode ser necessária para explicar por que o grupo
latente e seu estilo de pensamentos constituíram o enfoque deste capítulo. É devido ao
fato de que a latência concentra com maior clareza os problemas da ação coletiva no
âmbito dos pressupostos da escolha racional. Por um lado, 53
55 um sistema amplamente coercitivo, como uma prisão, não suscitaria problemas de
escolha coletiva. Por outro lado, um sistema regido por princípios particulares, que
busca o lucro, é facilmente compreendido, pois esse bem coletivo, tal como pode surgir,
pode ser atribuído aos produtos derivados da atividade empreendedora individual. Em
nenhum desses dois exemplos existe um grupo construído coletivamente e mantido pelo
sacrifício intencional de membros individuais. São estes últimos que suscitam os mais
graves problemas relacionados com a ação coletiva. O grupo latente constitui a forma
mais simples, e, portanto, mais conveniente para ilustrar a ação do estilo de pensamento
na manutenção do sistema. Entretanto, não seria verdadeiro afirmar que o mercado
depende inteiramente dos motivos individuais de auto-referenciação. Existe um
comprometimento normativo em relação ao próprio sistema de mercado, o elemento
fiduciário indispensável à manutenção dos preços e do crédito. Toma-se necessária uma
análise equivalente sobre o estilo de pensamento para explicar por que formas de
trapacear não destroem os processos do mercado. Mais uma vez uma hierarquia
complexa, combinação de coerção, múltiplas intersecções, convenções e interesses
próprios, explicam muita coisa, mas não tudo, sobre o comprometimento dos indivíduos
com o grupo mais amplo. Na maior parte das formas de sociedade sequências ocultas
aprisionam os indivíduos em armadilhas imprevistas e os fazem trilhar caminhos que
eles jamais escolheram. Os exemplos se acumulam. É realmente notável que Elster
tenha encontrado tão poucos. Com exceção de um exemplo anômalo, no campo da
economia, que preenche seus cinco critérios, e um no campo da ciência política, Elster
vê a paisagem social atulhada de argumentos funcionais incompletos. Até mesmo no
campo da antropologia, no qual se encontram os piores e mais abusivos argumentos, um
sólido conjunto de estudos empíricos exemplifica uma boa explicação funcionalista.
Inclusive no livro de Robert Merton, no qual Elster localizou os principais
delineamentos de seu exemplo, existem explicações funcionalistas bem acabadas. Por
exemplo, Merton descreve uma comunidade que manipula os fundos destinados à
educação e acredita na inferioridade mental dos negros. Sua crença os justifica, quando
eles impedem a escolarização das famílias negras e se mostram ingenuamente
encantados quando as bolsas obtidas por seus próprios filhos 54
28

56 corroboram suas crenças, justificam o modo como eles distribuem as verbas e


mantêm seu controle. A sociologia pode se permitir tão pouco caminhar sem a
argumentação funcionalista que uma pessoa começa a encarar com desconfiança a
plataforma antifuncionalista. Por que, por exemplo, as arrebatadas declarações dos
principais antropólogos surgem com tamanho destaque nos textos de Merton? Por volta
de 1949 as pretensões de Malinowski já haviam sido colocadas em sua exata dimensão
pela diatribe de Max Gluckman contra ele (Gluckman 1947). Por que os
pronunciamentos já desacreditados de Bronislaw Malinowski e A. R. Radcliffe-Brown
ainda merecem um exame detalhado? O modo como Elster usa a antropologia sugere
uma resposta: a antropologia é pitorescamente antiquada e divertida. Merton citou o rito
da chuva dos índios hopi como exemplo de um ritual que exerce a função social latente
de despertar emoções que apóiam a solidariedade. A dança não produz chuva para o
deserto crestado, mas exerce uma função social latente. Dando sequência à mesma
argumentação, com a mesma ilustração, Elster referencia a Dança de Chuva dos hopi
aos trobriandeses, que vivem em ilhas férteis, bem irrigadas. Desconfiamos que se ele
referenciasse a magia da pesca oceânica dos trobriandeses aos hopi, que habitam em
terras do interior, isso não teria importado em nada. A antropologia não importa. Não é
sequer suficientemente interessante para ser lida. Neste debate, ela serve apenas como
um pretexto para uma discussão mais séria, qualquer que seja ela. Talvez minha posição
seja enviesada. Talvez a antropologia seja um grupo latente que sobrevive graças à
crença em uma conspiração exterior. Uma coisa é certa: a sociologia ao aceitar que
nenhum argumento funciona é como cortar o nariz de alguém ou cuspir em seu rosto.
Sem uma forma funcionalista de argumentação, não podemos começar a explicar como
um universo de pensamento constrói o estilo de pensamento que controla sua
experiência. Vale a pena notar que os detalhes que interessam tão apaixonadamente os
antropólogos são entediantes para os filósofos da ciência. Para mim, enquanto
antropóloga, os detalhes da organização tribal não parecem intrinsecamente mais
enfadonhos do que os que se encontram na história da medicina. Os relatos
antropológicos de adultério e incesto não são mais indecorosos do que os detalhes de
uma doença venérea, nem são mais 55
57 fisicamente íntimos ou repulsivos. Os nomes dos povos estrangeiros não são mais
difíceis de se pronunciar do que gonorréia, sífilis, cancro mole e linfogranuloma
inguinal. Os filósofos da ciência empenham-se muito em aprender a terminologia e as
teorias da relatividade da física quântica. Eles, no entanto, prestam escassa atenção ao
grupo social que é o portador de um estilo de pensamento. Ao classificar as descobertas
no campo da física ou da biologia como o principal objeto de sua pesquisa, os filósofos
da ciência já adotaram uma teoria implícita do conhecimento. Trata-se até mesmo de
algo que já foi experimentado e rejeitado em outros âmbitos: a daquele que percebe
passivamente. Eles, implicitamente, relegaram a um segundo plano o conceito de uma
mente ativamente organizadora que, em geral, se considera mais útil para se estudar a
percepção. Assim, eles tomaram as coisas mais difíceis para si mesmos. A partir desse
ponto de partida, por eles escolhido, não conseguirão suscitar aquela quantidade maciça
de detalhes que os atormenta, da mesma forma que atormenta os antropólogos. Ambas
as investigações estão por demais atoladas em baixos níveis de abstração para poderem
lidar com as questões suscitadas por Durkheim-Fleck. 56
AS INSTITUIÇÕES SE FUNDAMENTAM NA ANALOGIA
Como um sistema de conhecimento alça vôo é o mesmo problema de como qualquer
bem coletivo é criado. Na visão de Durkheim, a base coletiva do conhecimento é a
29

questão com a qual se deve lidar em primeiro lugar. De acordo com sua teoria, o laço
social elementar só se forma quando os indivíduos inserem em suas mentes um modelo
da ordem social. Ele e Ludwick Fleck criaram problemas quando escreveram que a
sociedade se comportava como se fosse uma mente em ponto grande. Está mais no
espírito de Durkheim modificar a trajetória e pensar na mente individual aparelhada
como uma sociedade em ponto pequeno. Apropriar-se de uma idéia é um processo
social. É compatível com o conceito que prevalece na filosofia da ciência, segundo o
qual uma teoria é apropriada devido a sua coerência com outras teorias. No entanto, o
fardo desta argumentação é que todo o processo de se apropriar de uma teoria é tão
social quanto cognitivo. Inversamente, a apropriação de uma instituição constitui, em
sua essência, um processo intelectual, tanto quanto um processo econômico e político.
Um enfoque nas formas mais elementares da sociedade faz emergir aquela fonte de
legitimidade que jamais aparecerá quando se trata de equilibrar os interesses
individuais. A fim de adquirir legitimidade, toda instituição precisa de uma fórmula que
encontra sua correção na razão e na natureza. Metade de nossa tarefa consiste em
demonstrar este processo cognitivo na fundamentação da ordem social. A outra metade
da tarefa é demonstrar que o processo cognitivo mais elementar do indivíduo depende
das instituições sociais. No mínimo uma instituição não passa de uma convenção. A
definição de David Lewis é esclarecedora: uma convenção surge quando todos os lados
têm um interesse comum na existência de uma regra que assegure a coordenação,
quando nenhum deles apresenta interesses conflitantes e quando nenhum deles se
desviará, a menos que a desejada coordenação se tenha perdido (Lewis 1968).
Assim, nessa medida, por definição, uma convenção se autopolicia. O fato de a aldeia A
realizar seu mercado na sextafeira ou no sábado é indiferente, contanto que ele não
aconteça no mesmo dia que o da aldeia vizinha B. Ninguém se importa qual lado da
estrada é a regra para os que guiam, mas todos querem que exista uma regra.
O conceito segundo o qual as instituições contam, desde o início, com um
autopoliciamento, é mais convincente do que o conceito que afirma que todos os
problemas se dispersam, quando a escala é suficientemente pequena.
Porém, Thomas Schelling, que tanto fez para chamar atenção para a coordenação
(1960), também reuniu muitos exemplos de quão facilmente as convenções que se
apóiam em uma base de autopoliciamento podem ser abaladas (1978). Queremos que
existam convenções sobre como os pedestres devem atravessar a rua, mas nós mesmos
as violaremos se pudermos fazê-lo impunemente. Um número de pedestres suficiente
para criar uma massa crítica atravessará a rua e fará os carros parar, desafiando os sinais
de trânsito.
As condições para que surjam convenções estáveis são muito mais estritas do que pode
parecer. As comunidades não crescem, transformando-se em pequenas instituições e
essas não se transformam em grandes instituições seguindo qualquer processo contínuo.
Para que uma convenção passe a ser uma instituição social legítima é necessário uma
convenção cognitiva paralela que lhe dê apoio. A economia institucional não diz
praticamente nada sobre a legitimação, embora a autoridade seja discutida algumas
vezes (Arrow 1974).
A fim de tornar disponíveis para esta nova e importante discussão os conceitos de
Durkheim-Fleck sobre a legitimação, é aconselhável uma mudança da terminologia.
Tanto Durkheim como Fleck escreveram sobre o grupo social. O termo se aplicava a
30

todo nível de organização grupal. No restante deste volume, a expressão instituição será
usada no sentido de um agrupamento social legitimado. A instituição em questão pode
ser uma família, um jogo ou uma cerimônia. A autoridade legitimadora pode ser
pessoal, tal como um pai, um médico, um juiz, um árbitro ou um maftre d'hôtel. Ou
então pode ser difusa, baseada na concordância comum em torno de algum princípio
fundante. O que está excluído do conceito de instituição, nestas páginas, é qualquer
arranjo prático puramente instrumental ou provisional, reconhecido enquanto tal.
Aqui, presume-se que a maior parte das instituições mais estabelecidas, quando
desafiadas, sejam capazes de concatenar suas reivindicações à legitimidade com sua
adequação à natureza do universo. Uma convenção é institucionalizada quando se
indaga: "Por que você age assim?". Embora a primeira resposta possa ser enquadrada
em termos de uma conveniência mútua em relação a um questionamento maior, a
resposta final se refere ao modo como os planetas são fixados no céu ou como os
planetas e os seres humanos se comportam naturalmente. Em nossa época está na moda
afirmar que as instituições sociais codificam a informação. A elas se dá o crédito de
tomar decisões rotineiras, resolver problemas rotineiros e produzir regularmente
pensamentos em favor dos indivíduos. Este trabalho recente é de grande pertinência. No
entanto verificamos que existem muitas maneiras de falar a respeito das instituições
enquanto organizadoras da informação. Algumas vezes trata-se de um recurso a ser
comprado e vendido. Esta é a abordagem adotada pelos economistas institucionais.
O. E. WiIliamson (1975) renovou o tema por meio de sua teoria dos efeitos exercidos
pelo fornecimento da informação sobre o mercado. Em relação a esta teoria, dois fatores
contam. Um deles é como é difícil ou custoso obter uma informação precisa sobre o
mercado. O outro é o número de firmas. Se as firmas são numerosas e a informação
pode ser obtida gratuitamente, então vale a pena ser um empreendedor independente.
Caso ocorra o contrário (poucas firmas e elevado custo de informações), então as
despesas com a transação tomam-se por demais elevadas e com pensa assumir um
emprego em uma grande empresa que possa reduzir os custos da transação e o controle
da informação. Deste modo a escolha de um indivíduo entre trabalhar como um
empreendedor independente, tendo em vista o lucro, ou trabalhar em troca de um
salário, no interior de uma hierarquia, é tomada a partir de uma base racional depois que
ele pesquisou o ambiente econômico e, sobretudo, os custos da informação. Esta análise
foi inspirada pela famosa queixa de H. A. Simon relativa à teoria da escolha racional, a
qual atribui ao agente racional uma capacidade grotescamente irrealista de lidar com a
informação (Simon 1955). A racionalidade humana é inerentemente limitada. A
organização institucional hoje é amplamente tratada como uma maneira de resolver os
problemas que decorrem da racionalidade limitada.
Recorrendo à análise de Oliver Williamson como ponto de partida, Andrew Schotter
(1981) reescreveu a descrição das instituições em termos de informação teórica. Neste
sentido, não é uma commodity mais ou menos disponível; é qualquer coisa que valha a
pena ser noticiada. Quanto mais previsível for um componente do comportamento,
menos informação ele transmite. O foco do estudo deslocou-se do fluxo da informação
(que mais se assemelha a um fluxo de commodities, no sentido de WiIliamson) ao
estudo da quantidade de informações transmitidas por um determinado componente,
visto contra o pano de fundo de expectativas padronizadas. Esta análise, baseada no
modelo de informação elaborado por E. E. Shannon, trata as estruturas institucionais
como formas de complexidade no âmbito da informação. A experiência passada é
encapsulada nas regras de uma instituição, de tal modo a agir como um guia daquilo que
31

se deve esperar do futuro. Quanto mais amplamente as instituições abrigam as


expectativas, mais elas assumem o controle das incertezas, com um efeito a mais: o
comportamento tende a conformar-se à matriz institucional. Se tamanho grau de
coordenação for alcançado, a confusão e a desordem desaparecem. Schotter apresenta as
instituições como dispositivos que minimizam a entropia. Elas começam estabelecendo
regras e normas e, eventualmente, podem acabar acumulando todas as informações
úteis. Quando tudo está institucionalizado, nenhuma história ou nenhum outro
dispositivo de acumulação são necessários: "A instituição diz tudo" (Schotter 1981, p.
139). Isto é bom e extremamente compatível com uma análise durkheimiana. A única
dificuldade é que não nos diz como as instituições começam e adquirem suficiente
estabilidade para fazer tudo isto. Schotter é de opinião que elas se desenvolvem com
muita facilidade a partir das convenções e de outras estratégias descritas na teoria do
jogo. Supõe que elas se desenvolvem naturalmente, partindo de um equilíbrio entre
poderes e interesses conflitantes. Schotter é um entre muitos que subscrevem esta
versão contemporânea do funcionalismo, a qual presume, nas forças sociais, um
impulso em direção ao equilíbrio. Os antropólogos, entretanto, enfrentaram esta questão
nos anos 50 e devem sentir uma certa dubiedade quanto ao fato de pressupor qualquer
impulso direcionado ao equilíbrio. Se este impulso existe, sua realização é muito
precária. O equilíbrio não pode ser pressuposto; ele deve ser demonstrado e com
diferentes demonstrações para cada tipo de sociedade. Schotter lembra-nos que a
desordem é mais provável do que a ordem. Antes que ela possa realizar seu trabalho, no
sentido de reduzir a entropia, a instituição incipiente precisa de algum princípio
estabilizador que detenha sua abdicação prematura. Tal princípio estabilizador é a
naturalização das classificações sociais. É necessário existir uma analogia por meio da
qual a estrutura social de um conjunto fundamental de relações sociais será encontrada
ou no mundo físico ou no mundo sobrenatural ou na eternidade ou em qualquer outro
lugar, contanto que não seja encarada como um arranjo socialmente elaborado. Quando
a analogia é aplicada de um determinado conjunto de relações sociais a outro e vice-
versa, e destes conjuntos à natureza, sua estrutura formal recorrente toma-se facilmente
reconhecida e revestida de uma verdade que se autolegitima. Podem surgir convenções
sobre a divisão do trabalho, mas elas, provavelmente, serão desafiadas o tempo todo, a
menos que seu princípio justificador possa fundamentar-se em algo mais do que as
convenções. Por exemplo, cada pessoa pode compartilhar a idéia de que deveria haver
uma divisão fixa do trabalho, de tal modo que ele não precise ser renegociado toda vez
que existe uma tarefa a ser executada. Todas essas pessoas provavelmente terão fortes
preferências no sentido de não realizar um trabalho monótono, repetitivo, de baixo
prestígio (Douglas & Isherwood 1979). A natural distinção entre os sexos especializa as
mulheres no que diz respeito à gestação e criação dos filhos. Pressões quanto à
eficiência e a distribuição do poder podem muito bem sobrepor-se às preferências
individuais, de tal modo a produzir uma divisão sexual do trabalho, mas sempre que a
coerção relaxar, o princípio será desafiado. A analogia com a complementariedade da
mão esquerda e da mão direita e com a complementariedade do gênero constitui um
grande recurso retórico (Needham 1973). Assim, a equação "o feminino está para o
masculino assim como a esquerda está para a direita" reforça o princípio social por meio
de uma analogia física. Embora a divisão do trabalho em si não nos leve muito longe no
que se refere à organização da sociedade, esta analogia constitui um bloco básico no
sentido de uma elaboração. Vejase, por exemplo, o seguinte: feminino esquerda povo
masculino direita rei De uma simples complementariedade derivou uma hierarquia
política. Outras elaborações metafóricas sobre a direita e a esquerda distinguem as
divisões setentrionais e meridionais do reino; elas podem organizar os dispositivos do
32

conselho e determinar quem deve sentar-se à esquerda e à direita do rei. Agora as


principais divisões territoriais e as funções políticas foram justificadas, baseadas em
prolongamentos da mesma analogia (Gluckman 1941). Além disso, o emprego repetido
dos mesmos princípios constitui um reforço mútuo para cada contexto. Em última
análise, o sistema está fundado na natureza, na preeminência da mão direita sobre a mão
esquerda, do norte sobre o sul, do leste sobre o oeste etc. As instituições se prendem a
uma analogia elaborada a partir do corpo. Quanto mais primitiva a divisão do trabalho,
mais a mesma analogia pode ser transposta de um contexto social a outro. Na moderna
sociedade industrial a relação analógica da cabeça com a mão foi usada frequentemente
para justificar a estrutura de classe, as desigualdades do sistema educacional e a divisão
do trabalho entre o trabalhador manual e o trabalhador intelectual. A analogia
compartilhada é um instrumento para legitimar um conjunto de instituições frágeis
(Shapin.& Barnes 1976). Para saber como isto acontece temos que observar os conflitos
particulares sendo resolvidos em um fórum público. Então veremos como cada uma das
partes mobiliza a opinião pública a fim de justificar suas ações contra a outra parte e
observamos os espectadores, que não têm um interesse especial no caso, e que ouvem
um princípio geral com o qual podem ter empatia. A analogia favorita generaliza a
convenção preferida de cada pessoa. No último capítulo, a crença religiosa surgia como
uma expressão não necessariamente eficaz dos desejos individuais no sentido de que
devesse existir solidariedade. Nenhuma razão de tipo funcional demonstrava que o culto
aos ancestrais pudesse produzir solidariedade. Parecia que o tempo e os recursos gastos
em ritos de sacrifício eram desperdiçados. Desta vez, um tipo diferente de argumento se
articula. Os ancestrais que agem do outro lado do 62
64 mundo proporcionam aquela analogia naturalizante que ratifica as convenções
sociais. O enfoque não deve ser direcionado para a questão de como eles simbolizam a
estrutura da sociedade, mas como eles intervêm nela. Poder-seia dizer que refestelar-se
e receber o culto é, habitualmente, aquilo que menos tempo consome entre os deveres
de um ancestral. Uma descrição ampla incluirá um controle ativo e contínuo das
atividades diárias em resposta à solicitação pública. Fleck insistiu no fato de que a
identificação da sífilis foi impedida em determinado estágio e, em outro estágio, forçada
devido à preocupação pública. A solicitação da cura da sífilis foi mais insistente do que
a solicitação da cura da tuberculose, embora esta última, na realidade, matasse mais
vítimas. Fleck insistiu em que o desenvolvimento do conhecimento depende de como se
espera que esse conhecimento intervenha na vida prática. Pensar tem mais a ver com a
intervenção do que com a representação (Hacking 1923). O mesmo se aplica aos
ancestrais: eles são conhecidos por suas intervenções. Para reconhecer como a
instituição dos ancestrais constitui um mecanismo para a intervenção regular na vida
social basta referenciar-se a uma biblioteca repleta de boas etnografias. Muitos dos
problemas dos filósofos relativos às origens sociais da crença religiosa se devem ao fato
de se tratar a religião como algo que se desenrola numa igreja. Um engano paralelo seria
isolar o culto aos ancestrais de todo o complexo social. Afirmar que isto é uma boa
metáfora da sociedade não explica por que algumas metáforas operam cataliticamente
para promover a ação coletiva e outras não o fazem. A metáfora é apenas uma imagem e
não estamos compromissados com uma teoria do conhecimento que seja puramente
representativa. O modelo ancestral somente se toma eficiente quando as ações dos
ancestrais se articulam com o processo social. Quando os ancestrais intervêm, eles,
habitualmente, fazem parte de um sistema que confirma as leis de herança locais.
Qualquer pessoa que queira validar suas próprias pretensões tem de traçar sua
ascendência; qualquer pessoa interessada em contestar essas pretensões tem de
33

questionar a genealogia. Os ancestrais se situam onde, aparentemente, a ação está mais


quente, controlando a fraude e o vício, como se fossem uma polícia armada ou
vigilantes organizados por cada linhagem. Eles, em primeiro lugar, são 63
65 guardiões do direito de propriedade e, em segundo lugar, da moralidilde geral, à
semelhança de uma repartição oficial que cuida dos impostos. A atividade deles é
conhecida pela taxa de dor que eles cobram devido à inadimplência. É claro que uma
repartição é servida por pessoas de carne e osso, ao passo que os ancestrais são mortos
por definição. Os vivos Ihes estão atribuindo ações. Achamos incompleta a primeira
tentativa de uma análise funcional dos ancestrais. Agora chegamos a um tipo marxista
de posição: os ancestrais constituem uma invenção socialmente necessária. O culto
muito se assemelha a um epifenômeno de certas relações de produção. Isto melhora
nossas explicações de como as crenças podem ser aceitas? Dificilmente, pois, ao
adotarmos uma posição marxista, fizemos da piedade um mero subproduto das
reivindicações à propriedade. Descrevemos fiéis que preferem viver numa sociedade na
qual a hierarquia e a propriedade são herdadas; cada um deles consubstancia
coniventemente suas reivindicações, invocando um ancestral poderoso. Eles tramam e
inventam seres imortais que punirão os relapsos. Recorrendo a esta abordagem, a
religião deles é uma trapaça e, por extensão, tal argumentação insulta todos os crentes.
Este novo veio com que nos deparamos é a antiga objeção ao cinismo, nas explicações
reducionistas da crença religiosa. Examinando mais de perto, até mesmo esta fórmula
cínica não funciona. Quando cada pessoa tem um ancestral que a defende, todos os
ancestrais são desvalorizados. Suas respectivas forças se invalidam. Por que alguém
deveria tomar conhecimento deles? Enquanto alternativa, a explicação convencionalista
realiza uma longa trajetória. Ela se iniciaria por meio de pontos de equilíbrio, nos quais
todo mundo quer ver alguma espécie de classificação do parentesco. Poder-se-ia
começar supondo uma necessidade comum mínima de cada membro da sociedade no
sentido de ter alguma área de autonomia respeitada por outros descendentes de um
bisavô. Digamos que cada um queira ser protegido da interferência de tios e tias, primos
e irmãos. Por meio de uma convenção cognitiva emergente será concedida a cada um
credibilidade, quando a pessoa invoca seu pai morto para que ele proteja seu espaço
pessoal, contanto que ele respeite a mesma reivindicação, quando ela parte de seus
irmãos. A maioria dos cultos aos ancestrais abrange apenas convenções 64
66 mínimas; eles não necessitam de sanções coercitivas para protegê-los. Para seu
autopoliciamento basta saber que o ponto em que o domínio dos ancestrais é negado é o
ponto no qual um conflito, que eles prefeririam evitar, tem todas as condições para
irromper. Mas por que envolver os mortos? Este exemplo pragmático é forte em si. Por
que simplesmente não evitar a violência, pois, caso contrário, o conflito se
desencadearia? A resposta é que a convenção social é por demais transparente. Ela
precisa de um princípio naturalizador, a fim de conferir o brilho da legitimidade àquilo
que eles querem fazer. A analogia com a natureza opera assim: o que o progenitor
natural (digamos o lobo, no lugar do leão) representa para sua cria natural (filhotes), o
pai vivo representa para o filho vivo e o pai morto representa para o filho morto.
Retrocedendo esta colocação, ela pode justificar a mesma relação que se invoca entre o
pai do pai do pai do morto com o pai do pai do morto e com o pai do morto, de acordo
com a escala das pessoas vivas, pronta para ser envolvida nos arranjos sociais
legitimados. Assim, as instituições sobrevivem àqueles estágios em que eram
convenções frágeis. Elas se baseiam na natureza e, em consequência, na razão. Sendo
naturalizadas, fazem parte da ordem do universo e, assim, estão prontas para
fundamentar a argumentação. Foram dados dois exemplos de princípios naturalizados
34

de organização social. Um deles é a fundamentação de um estado primitivo a partir da


analogia entre a relação entre fep1inino e masculino e a relação entre a esquerda e a
direita. Outro é a fundamentação de uma linhagem, baseada na analogia da relação do
progenitor com sua prole. Muitas outras analogias como estas, que conferem status
natural às relações sociais, abundam na literatura antropológica. Na história da lógica
pensa-se comumente, de acordo com Mill, que a idéia de semelhança comporta dois
aspectos. Um deles se baseia na semelhança matemática da reações, por exemplo,
2:4::3:6. Os números são diferentes, mas a analogia se mantém porque as relações
formais são as mesmas. Em contraste com isto, existe um emprego mais vago da
semelhança entre as palavras, aberta a todos os tipos de interpretação arbitrária. Ensina-
se também que a semelhança só por si mesma é apenas uma base precária para a
inferência. As semelhanças superficiais são enganosas. Por exemplo, a classe de itens
comestíveis inclui muitos que 65
67 parecem tóxicos e vice-versa. O tomate, hoje indispensável na dieta do Ocidente, era
outrora classificado como um dos vários outros frutos vermelhos e venenosos, tais como
os morangos, amoras, framboesas etc. A semelhança superficial constitui uma base em
que não se pode confiar para uma inferência sobre o mundo. No entanto as semelhanças
que proporcionam analogias sociais favoráveis são constituídas basicamente para
legitimar as instituições sociais, e não se pretende que, a partir delas, se façam
inferências sobre as coisas físicas. Além disso, o empenho em fortalecer instituições
sociais frágeis assentando-as na natureza é derrotado tão logo seja reconhecido
enquanto tal. É por isso que as analogias fundantes precisam ser ocultas e que o domínio
do estilo de pensamento sobre o mundo do pensamento tem de ser secreto. Deixemos,
porém, de lado o conceito de que essas analogias se fundamentam em semelhanças
fortuitas. Suas propriedades matemáticas formais constituem a base para a rica
variedade de construções que se fazem em tomo delas. De Soto demonstrou (1960) em
uma série de experiências psicológicas que os indivíduos são muito capazes de
reconhecer em suas situações sociais as propriedades matemáticas da similaridade,
complementaridade, transitividade, exclusão e inclusão. Ao recorrer a analogias formais
que inserem uma estrutura abstrata de convenções sociais em uma estrutura abstrata
imposta sobre a natureza, as instituições vão além das dificuldades iniciais da ação
coletiva. Agora examinaremos como as analogias derivadas da natureza são encontradas
e, acima de tudo, como se chega a um acordo em relação a elas. Isto nos leva de volta a
uma questão logicamente anterior: como os indivíduos concordam que duas coisas são
semelhantes ou dessemelhantes? Onde se encontra a uniformidade? A resposta está no
fato de que a uniformidade é conferi da àquele conjunto misturado de itens que contam
como membros de uma categoria; sua uniformidade é conferida e fixada pelas
instituições.
5 AS INSTITUIÇÕES CONFEREM IDENTIDADE
Já se afirmou com muita propriedade que os indivíduos sofrem devido à limitação
imposta por sua racionalidade e é verdade que, ao estruturarem as organizações, eles
ampliam sua capacidade de lidar com as informações. Já se demonstrou como as
instituições precisam ser estabelecidas por meio de um aparato cognitivo. A
conveniência múltipla, em várias transações, não cria certeza suficiente sobre as
estratégias empregadas por outra pessoa. Ela não justifica a confiança necessária. O
aparato cognitivo fundamenta as instituições na natureza e na razão, ao descobrir que a
estrutura formal das instituições corresponde a estruturas formais em domínios não-
humanos. Em primeiro lugar, para que o discurso seja possível, é preciso que se chegue
35

a um acordo sobre as categorias básicas. Nada mais, a não ser as instituições, podem
definir a uniformidade. A similaridade é uma instituição. Os elementos são designados
para conjuntos nos quais as instituições encontram suas próprias analogias na natureza.
Por um lado, a energia emocional para criar um conjunto de analogias emana de
preocupações sociais. Por outro lado, existe uma tensão entre os incentivos para que as
mentes individuais dispendam seu tempo e energia na resolução de problemas difíceis e
entre a tentação de recolher-se e deixar que as analogias fundantes da sociedade que nos
rodeia se sobreponham. É algo que lembra a colocação de Williamson sobre os custos
da transação, só que, neste exemplo, todas as vantagens estão em juntar-se a um esforço
conjunto para fazer com que as analogias operem. Há muito poucas vantagens no ato do
corsário que age seguindo apenas sua própria bandeira. Por mais que eles tentem isolar
seu trabalho, os cientistas nunca estão completamente livres das pressões de suas
próprias sociedades contemporâneas, que são necessárias a um esforço criativo. A teoria
científica é o resultado de uma luta entre as classificações que estão sendo
desenvolvidas por um grupo de cientistas tendo em vista objetivos  profissionais e as
classificações que são operadas em um entorno social mais amplo. Ambas são revesti
das de emocionalidade. Ambos os tipos de classificação dependem da interação social.
Uma delas (a dos cientistas) realiza um determinado esforço para especializar e refinar
seus conceitos de modo a torná-los adequados para serem usados em um discurso que
difere das ideias entrincheiradas de um grupo social mais amplo, abrangente, embora
esteja contido nelas. Não era exatamente isso que FIeck descrevia ao historiar a
emergência de uma ideia científica a partir de um entrincheiramento místico, moral e
social? Conforme veremos no próximo capítulo, as fórmulas científicas que surgem
sempre trazem as marcas de suas origens sociais. No trabalho de tentar compreender, a
desordem e a incoerência são mais prováveis. Quando é encontrado um elevado grau de
lógica e de complexidade, esta é uma questão que provoca surpresa e precisa ser
explicada. A complexidade não significa o isomorfismo repetitivo que recria a mesma
metáfora básica em todos os contextos. Uma ordenação verdadeiramente complexa é o
resultado de um esforço contínuo. Deve existir alguma indução para explicar por que o
esforço é realizado. Fleck acreditava que a oferta de esforço intelectual na ciência se
devia à demanda, não apenas no que se referia à quantidade de trabalho dispendido, mas
também no que dizia respeito à seleção dos problemas a ser pesquisados (Fleck 1935, p.
78). Presumamos que na ausência de uma forte demanda (isto é, na ausência de
induções a uma concentração especializada), a classificação satisfará necessidades
mínimas, ao seguir a trajetória do mínimo esforço. Tal trajetória levará rapidamente a
uma coleção imprecisa de analogias sociais direcionadas para a natureza e lá ela
repousará em paz. De acordo com Geoffrey LIoyd, isto descreve o estado da antiga
ciência e medicina grega. Muitos afirmariam que é uma questão de lealdade para com a
ciência grega admitir que as analogias sociais extraídas da natureza formaram a base da
maior parte da medicina praticada no mundo inteiro até os últimos cem anos ou pouco
mais. As características do antigo pensamento especulativo grego, conforme LIoyd o
descreve, baseiam-se em dois esquemas. Um deles era um "apelo periódico a pares de
opostos de vários tipos, ambos encontrados na doutrina cosmológica geral, e em relatos
sobre fenômenos naturais" (LIoyd 1966, p. 7). O macrocosmo do mundo foi construído
a partir de contrastes: ar e terra, fogo e água, calor e frio. O outro esquema ocorreu por
analogia, imprecisamente compreendida. LIoyd afirma que houve pouco esforço para se
distinguir entre a similaridade e a identidade ou entre graus de diferença entre modos de
oposições, que formam alternativas exclusivas e exaustivas, e aqueles que não as
formam. Em relação a este tema, os antropólogos demonstraram que o macrocosmo do
mundo é construído sobre o modelo da sociedade. Seria necessário um grande esforço
36

para pôr em seu devido lugar as analogias sociais intrusivas. O reconhecimento dos
diferentes graus de similaridade e diferença é um exercício muito especializado de
lógica, inteiramente separado do uso da lógica para tornar a ordem social manifesta.
Lloyd assinala corretamente que muitas sociedades primitivas empregam classificações
dicotômicas da realidade que espelham sua organização dualista. Ao discutirmos
anteriormente a convenção, argumentamos que até mesmo as convenções que se auto-
reforçam e que todo mundo gostaria que se mantivessem, têm poucas oportunidades de
sobrevivência, a menos que possam fundamentar-se na razão e na natureza. Em um
determindo ponto, próximo do ápice de qualquer organização, a estrutura se baseia, em
última análise, numa oposição equilibrada, a exemplo do que ocorre no nível mais
elevado dos sistemas nacionais ou internacionais. No entanto, se não houver instituições
coordenadoras ou outros ordenamentos mais complexos, a imobilização das forças
hostis será a realização coletiva mais significativa que pode ocorrer nesse nível. A
ampla distribuição, em todo o mundo, de povos caçadores organizados em metades e
outros sistemas duais atesta os esforços de se produzir algum bem coletivo, embora as
tentativas nesse sentido não sejam muito eficazes. Um sistema totêmico naturaliza o
princípio do equilíbrio mas não o conceito de relações hierárquicas que governam os
diferentes clãs totêmicos (Lévi-Strauss 1963). Por falta de incentivos ou de
oportunidade para fazer mais, os povos organizados na base das metades decidiram
equilibrar seu conflito em potencial. Em um meio ambiente difícil isto pode ser
reconhecido como uma realização notável, mas, em termos absolutos, não passa de um
pequeno triunfo enquanto organização. Nossa primeira argumentação foi levada tão
longe quanto podia ir. As intenções individuais no sentido de construir uma instituição
podem ser muito boas. Os indivíduos podem dar força a suas próprias resoluções e
tentar controlar mutuamente as ações individuais recorrendo a analogias baseadas na
natureza. A esta altura o argumento paira no ar. As mesmas tendências fissíparas são
nocivas ao bem comum não só no nível intelectual como também no nível da
colaboração social. Como uma analogia construída por alguém vence outra analogia nas
mesmas condições? Como um sistema de conhecimento entra em órbita? Como a boa
idéia de alguém compete com a de outro alguém? Trata-se de uma questão fundamental
na história da ciência. Ter transferido os problemas do bem coletivo para a esfera
intelectual não os resolve, embora seja necessário proceder à transferência. Os
problemas relativos ao excesso de carneiros que congestionam os pastos e de carros que
congestionam as estradas deveriam ser reequacionados como problemas relativos a
idéias que se congestionam mutuamente, sempre competindo e sempre destruindo as
bases necessárias de uma investigação. Começando tudo de novo no que diz respeito à
cognição, reflita o quanto a idéia lógica mais elementar depende da interação social.
Trata-se da idéia da similaridade ou parecença. Quando várias coisas são reconhecidas
como membros da mesma classe, o que constitui sua uniformidade? Alegar que a
similaridade explica como as coisas são classificadas juntas parece ser uma colocação
evasiva. É ingenuidade tratar a qualidade da uniformidade que caracteriza os membros
de uma classe como se ela fosse uma qualidade inerente às coisas ou como um poder de
reconhecimento inerente à mente. Os antropólogos têm um interesse profissional na
classificação de folk. Ela conduz a muitos níveis taxonômicos e, finalmente, a
julgamentos de natureza política e moral. Uma cultura estrangeira pode funcionar sem
ter uma boa classificação científica. Os sentidos em que ela funciona são políticos,
econômicos, sociais, ecológicos. Tendo em vista o entrelaçamento de propósitos
práticos, a classificação de folk constitui um mundo que é confiavelmente inteligível e
suficientemente previsível para que se possa viver nele. Os objetivos da classificação de
folk são muito diferentes dos objetivos da classificação científica. Esta se desenvolve
37

para expressar uma teoria especializada, gerada em instituições especializadas, que


também possuem suas idéias fundantes e também se baseiam na natureza. Cada grupo
de cientistas é capaz de resistir à tentação de confiar nas analogias fundantes da
sociedade exterior apenas até o limite em que essas analogias são isoladas dessa
sociedade. As misteriosas complexidades da teoria econômica são exemplos de
esquemas conceituais que só podem desenvolver-se quando se apóiam em um
isolamento acadêmico, ainda que se proponham a lidar com os problemas da sociedade
mais ampla. Ainda assim, e paradoxalmente, os economistas, quer queiram quer não, se
vêem produzindo provas técnicas altamente especializadas de opiniões que não derivam
em absoluto da teoria econômica. Por exemplo, Francis Edgeworth inspirou-se em
ingressar na economia matemática na década de 1880 devido a sua convicção de que a
teoria da utilidade era perigosamente igualitária em sua interpretação usual (Mackenzie
1980). A comparação das culturas torna claro que nenhuma uniformidade superficial
das propriedades explica como certos itens são atribuídos às classes. Tudo depende de
quais propriedades são selecionadas. Assim, o improvável trio composto pelo camelo, a
lebre e o texugo são classificados no Levítico 11 como ruminantes e, portanto,
pertenceriam à classe dos ungulados ruminantes; como, porém, suas patas não são
fendidas como as do restante de sua classe, são excluídos dela. No mesmo capítulo, o
porco é incluído na classe dos ungulados; é a única criatura cuja pata é fendida e que
não rumina. No entanto, esta classificação religiosa arcaica e muitas outras
classificações contemporâneas conhecidas dos antropólogos devem suas divisões muito
mais a sua capacidade de modelar as interações dos membros da sociedade do que a
uma curiosidade desinteressada sobre o funcionamento da natureza. Ocorre uma
mudança fundamental, que parte de uma classificação socialmente inspirada em direção
a uma classificação científica. O esforço pela objetividade constitui precisamente uma
tentativa no sentido de não permitir que classificações socialmente inspiradas não se
sobreponham à investigação. Não pode haver uma transição suave de uma classificação
socialmente inspirada para uma classificação científica. A primeira não pode direcionar-
se para a segunda ao pressionar cada vez mais sob a superfície das coisas em sua busca
do conhecimento, já que este não é um de seus objetivos (Lévi Strauss 1962). Os
antropólogos mostram-se bem dispostos a seguir o ensinamento de Quine, segundo o
qual a identidade ou a uniformidade é conferi da aos objetos por eles se manterem no
âmbito de uma estrutura teórica. Conforme sustenta David Bloor, as teorias matemáticas
são instituições e vice-versa. Acrescentaríamos que as instituições desempenham as
mesmas tarefas que a teoria. Elas também conferem uniformidade. Uma vez
desenvolvido um esquema teórico, elementos que no estágio pré-teórico tinham dupla
posição perdem sua ambiguidade. Eles adquirem definição quando seu funcionamento
regular no interior do sistema é demonstrado. O convincente ataque de Quine ao status
independente da similaridade remonta a 1960 ou mais. A uniformidade não é uma
qualidade que possa ser reconhecida nas próprias coisas; ela é conferida aos elementos
dentro de um esquema coerente. Em seus escritos sobre os usos da similaridade, Nelson
Goodman afirma que ela é "uma fingidora, uma impostora, uma charlatã. Ela tem, sim,
seu lugar e seus usos, porém é encontrada com frequência onde não pertence,
professando poderes que não possui" (1972, p. 437). Medin e Murphy (1985)
contribuem com um valioso exame do trabalho psicológico sobre a coerência
conceitual, particularmente útil na medida em que, para eles, esse trabalho é necessário
para dizer a seus colegas psicólogos que a uniformidade não é uma qualidade que pode
ser reconhecida nas próprias coisas é conferida a elementos dentro de um esquema
coerente. O conceito de uma qualidade de similaridade continua a aflorar porque
conjuntos de coisas semelhantes estão de tal forma bem estabelecidos em determinada
38

cultura que sua uniformidade tem a autoridade da auto-evidência. Construir a


uniformidade é uma atividade intelectual essencial que se mantém inobservada. Quine
nos proporciona uma agradável especulação sobre a história natural relativa ao
crescimento da classificação científica. Ele imagina que esta última parte de padrões
inatos de similaridade e pelos erros e ensaios não-guiados, caminha em direção a
melhores teorias e classificações. O conceito de similaridade inata compartilhado por
nós com os animais reconhece graus de diferença entre as qualidades sensoriais, por
exemplo, a capacidade de reconhecer gradações de cor ou de espaçamento. Quine trata
como um desenvolvimento homogêneo esse movimento que parte de conceitos de
similaridade inata para a teorização, com novos agrupamentos das coisas em espécies.
Em algum ponto essa argumentação apresenta uma falha. Como é possível que a
capacidade de discriminar tons de amarelo, elaborar outros julgamentos de proximidade
ou de distância ou outras diferenças de qualidade, poderá levar a agrupar itens em
classes? Reconhecer uma classe de coisas significa polarizar e excluir. Envolve
estabelecer fronteiras, uma atividade bem diferente do nivelamento. Vai uma grande
distância entre reconhecer graus de diferença e criar uma classe de similaridades. Uma
atividade jamais pode levar a outra, assim como as instituições não podem evoluir para
uma completa organização da informação, ao começar por convenções espontâneas de
autopoliciamento. Quine imagina um padrão primitivo de similaridade que, por
exemplo, apresenta o conceito de peixe, que passa a fazer parte de um padrão de
similaridade modificado, com uma classe para os peixes que exclui as baleias e as
toninhas. Recorrendo a outro exemplo, ele propõe um padrão de similaridade
modificado que vai além dos aspectos superficiais ao agrupar ratos marsupiais e
cangurus, excluindo ratos comuns. Mas de onde surgem as classes primitivas de ratos e
peixes? Ele sugere um processo de amadurecimento. O sentido de similaridade ou o
sentido das espécies desenvolve-se, modifica-se e até mesmo torna-se múltiplo à medida
que um indivíduo amadurece, contribuindo talvez para uma previsão cada vez mais
confiável. Estabelecem-se finalmente padrões de similaridade que se acoplam à ciência
teórica [u.] As coisas são semelhantes no sentido teórico, na medida em que constituem
partes intercambiáveis da máquina cósmica revelada pela ciência (Quine 1969, p. 143).
Ele então passa a discutir as experiências de se combinar os julgamentos de similaridade
com as relações objetivas no mundo. Examina até que ponto os diferentes ramos da
ciência necessitam de diferentes medidas de similaridade. Aborda a idéia de que os
ramos da ciência poderiam ser classificados segundo o conceito de similaridade relativa,
próprios a cada um desses ramos, e até que ponto suas diferentes sistematizações da
natureza são compatíveis e capazes de mesclar-se (p. 136). Finalmente, Quine nota que
existe um estágio final para "a maturidade de um ramo da ciência que já não necessita
mais de um conceito irredutível de similaridade e espécie. É o estágio final, quando o
vestígio animal é inteiramente incorporado à teoria" (p. 138). A história natural do
crescimento e declínio das idéias de similaridade apenas explicaria uma versão contínua
do mundo. Uma ou outra qualidade perceptiva poderia subitamente ligar-se ou desligar-
se enquanto outras se desvanecem suavemente, porém jamais todas ao mesmo tempo.
No fluxo contínuo da sensação, distintos objetos não aflorarão necessariamente. Quine
deixou sem explicação o conceito de significado lógico, a começar por um estado que é
em si, único, e não é outro estado. A transição, enganosamente suave, para uma
classificação científica é paralela à transição, enganosamente suave, de Schotter, e que
parte das convenções para as instituições estáveis. Em seu Treatise on Logic and
Scientific Method (1874) disse W. S. Jevons: "A criança mais nova sabe qual é a
diferença entre um corpo quente e um corpo frio" (Jevons 1874, p. 24). Ao fazer esta
afirmação, ele, com muita habilidade, introduziu o conceito de corpo na classificação
39

inata das propriedades termais. Quine é sagaz demais para fazer isto. Ele sabe que o
conceito de corpo ou objeto precisa de mais explicações. Sempre parece surpreendente
que as discussões contemporâneas sobre o conceito de espécies naturais deveriam
escolher como exemplos de percepções elementares objetos isolados, tais como uma
maçã, um corpo, um objeto ou um animal. A idéia de que é menos complicado
reconhecer objetos do que relações abstratas remonta a muito longe. A citação de
Jevons vai mais além: "O cachorro consegue reconhecer seu dono [...] A dignidade do
intelecto começa quando se separam pontos de concordância e pontos de diferença [...]
A abstração lógica, em suma, se põe em movimento e a mente torna-se capaz de
raciocinar [...] Surgem, ao mesmo tempo, conceitos gerais de classes de objetos". Dada
a persuasão do princípio de Quine as espécies são partes da teoria em funcionamento e
não elementos independentes - não esperaríamos que os objetos surgissem antes que
uma teoria do mundo começasse a classificá-los. E seríamos mais consistentes com a
teoria de Quine ao não focalizarmos a questão de espécies naturais, direcionando-a para
itens que já foram classificados em espécies por nossa própria cultura. O problema das
espécies naturais certamente começa com os processos elementares de classificação e os
princípios empregados para se proceder à classificação. Uma teoria do mundo precisaria
começar pela divisão, não pela classificação. 76 Ao relatar as primeiras tentativas de um
bebê em encontrar ordem no mundo, Melanie Klein nos diz que a preocupação
dominante não é verificar os espaçamentos de qualidade (Klein 1975). Talvez seja
importante começar a indagar: "Este estado é mais quente do que aquele? Aquele estado
é mais frio do que este?" O bebê, entretanto, vê-se, desde o início, confrontado com o
problema de uma correção indutiva. Ele precisa escolher, dentre a multiplicidade de
sensações presentes, algumas bases práticas para projetar mais além (para empregar um
termo de Nelson Goodman) uma versão do mundo que funcione (Goodman 1983). O
bebê não tem hábitos em que se apoiar e não há uma versão existente a ser refeita.
Exemplos semelhantes não levarão a descri minar as espécies. De acordo com Klein, o
urgente é saber quais são as experiências dolorosas e agradáveis que surgem de dentro e
quais as que surgem de fora. A primeira base das espécies projetáveis é a diferença entre
o self e o não-self (Klein 1975). Este sensação gostosa, ampla, que me proporciona a
comida é algo que produzi por mim mesmo? Ou, na realidade, incorporei algo que era
exterior a mim? A próxima confrontação terminará, como já aconteceu algumas vezes,
por meio de uma incorporação bem-sucedida e do ato de dormir? Ou será uma cena
tempestuosa que terminará, conforme ocorreu algumas vezes, em rancor e aflição? John
Stuart Mill cita o relato de Coleridge, quando este analisou a política contemporânea
para o Morning Post, recorrendo à comparação entre concordância e diferenças; ele
estabeleceu um paralelo entre a França sob Napoleão e Roma sob os primeiros Césares,
a Revolução Espanhola e a guerra das Províncias Unidas contra Felipe II e daí por
diante. MiII não era de opinião que o sistema de concordância e diferença fosse um
método seguro de se chegar a uma previsão militar, devido à escolha não-sistemática de
analogias (MiII 1888). Para o bebê, uma classificação como esta é o único método de
diferenciar gradualmente o outro e o self. As perguntas que ele formula assemelham-se
à inteligência militar. Ele precisa saber se a fonte do leite, caso seja externa, é um seio
ou vários e, sendo vários, como distinguir os aliados dos inimigos? É o seio bom ou o
seio mau? Ele está a meu favor ou contra mim? A mais antiga interação social coloca as
bases para polarizar o mundo em classes. A sobrevivência depende de se ter suficiente
energia 75
77 emocional para levar adiante esse empreendimento classificatório elementar por
meio do árduo trabalho necessário para construir um mundo coerente, viável. A
40

interação social fornece aquele elemento que está ausente do relato da história natural,
quando ele se refere ao início da classificação. Agora a outra metade da argumentação
está colocada. Os requisitos ntelectuais que precisam ser atendidos para que as
instituições sociais sejam estáveis combinam-se com os requisitos sociais da
classificação. Ambos são necessários às bases de uma epistemologia sociológicas e
nenhum eles é suficiente. A instituição funciona como tal ao adquirir um terceiro apoio
da energia moral de seus membros. Desenvolverei este tema no capítulo 9. Esses três
processos operam simultaneamente. Os indivíduos, à medida em que procuram e
selecionam entre as analogias existentes na natureza aquelas a quem darão crédito,
procuram e selecionam, ao mesmo tempo, seus aliados e adversários, bem como o
padrão de suas futuras relações. Ao constituir sua versão da natureza, eles estão
controlando a constituição de sua sociedade. Em resumo, eles estão construindo uma
máquina de pensar e de tomar decisões em seu próprio interesse. A esta altura podemos
começar a acompanhar os efeitos de se ligar o pensamento individual a um piloto
automático. Em primeiro lugar, ocorre uma poupança da energia, decorrente da
codificação e da inércia institucionais. Esse princípio tem paralelo em uma característica
bem conhecida da linguagem. O uso frequente torna algumas palavras resistentes e não
apenas as palavras, como também suas declinações, resistem aos desenvolvimentos
sistemáticos que estão acontecendo o tempo todo. As línguas encontram-se em
constante estado de mudança, porém suas palavras mais comuns permanecem imunes às
novas inflexões. Por exemplo, o substantivo inglês man (homem), com seu plural
arcaico, men (homens), resistiu ao ímpeto progressivo dos plurais terminados em s. Do
mesmo modo as analogias sociais mais comuns estão presentes e resistem à mudança.
Elas estão prontas para preencher vácuos nas cadeias causais, quando a exigência por
um raciocínio denso não é suficientemente forte para evocar uma classificação
complexa. Graças ao peso da inércia institucional, imagens mutanles são consideradas
suficientemente equilibradas para que a comunicação se tome possível. 76
78 As instituições conferem uniformidade. Analogias socialmente fundamentadas
atribuem itens disparatados às classes e as sobrecarregam com um conteúdo moral e
político. Por exemplo, as séries que Lévi-Strauss tomou familiares recentemente, em
1984, começam por meio da natureza que se distingue da cultura e prosseguem em
direção a vários níveis. Elementos que se encontram do mesmo lado, na taxonomia,
inevitavelmente são classificados juntos: os homens com a cultura, as mulheres com a
animalidade. cultura : natureza natureza humana: natureza animal masculino : feminino
A classificação submersa justifica uma determinada atribuição prescrita às mulheres na
divisão do trabalho, seja como trabalhadoras agrícolas e carregadoras de carga ou como
coisinhas lindas, incapazes de pensar. Justifica também o comportamento feminino da
espontaneidade, lágrimas fáceis, carências inconsistentes e cuidados com os filhos. A
teoria feminista, na antropologia, tem muito a dizer a respeito dessas equações como
justificativas da sujeição das mulheres (Strathern 1980). Mesmo quando o gênero
feminino é associado ao lado mais estimado, ainda assim pode ser usado para justificar
o fato de as mulheres executarem as tarefas fisicamente mais pesadas. Por exemplo, os
homens de Bamenda, nos Camarões, costumavam deixar suas mulheres realizar todo o
trabalho agrícola pesado com o pretexto de que apenas elas e Deus podiam fazer as
coisas crescer (Kaberry 1952). Os valores elevados podem situar-se à esquerda ou à
direita; quanto a seu valor, o padrão pode receber maior ou menor peso em qualquer
desses dois polos. Um ocidental moderno, orientado para a tecnologia, daria maior peso
ao lado direito e um cristão ou muçulmano fundamentalista escolheria o lado esquerdo
41

como ideal, no seguinte conjunto de pares opostos: passividade atividade permanência


mudança antiguidade modernidade 77
79 Existem muitos exemplos instrutivos no que se refere à autodefinição de várias
profissões. Os economistas são os teóricos mais vigorosos no campo das ciências
sociais. As instituições que os cercam baseiam-se em muitas relações de pares
ordenados. Seu próprio esquema da cultura muitas vezes é assim descrito: espiritual
poesia e religião filosofia especulativa metáfora vaga intangíveis material economia
ciência aplicada teoria rigorosa economistas Este conjunto de analogias emparelha o
trabalho científico com as coisas físicas, as coisas mensuráveis e as teorias científicas.
Algumas vezes os economistas devem determinar uma escala das necessidades
humanas, mas não reconhecem que atingiram os limites de sua competência
profissional. Em vez de admitir paridade com os leigos, eles prosseguem falando com
autoridade profissional, ao mesmo tempo em que se apóiam nas analogias instituídas da
cultura ocidental (Douglas & Isherwood 1979). Isto resulta em um desenvolvimento
hierárquico do espiritual: oposição material. espiritual : físico luxos (música, arte) :
necessidades outras necessidades (psíquicas) : necessidades primárias (comida, abrigo)
O resultado é que os elaboradores da política e os administradores prestam atenção nos
déficits periódicos da disponibilidade dos alimentos em vez de se voltarem para o
equilíbrio das trocas que se dão na sociedade inteira. De acordo com A. K. Sen, isto
resulta em decisões desastrosas quando a fome se manifesta (Sen 1981). Recorreu-se a
dois exemplos: o lugar das mulheres no mundo e o lugar dos economistas no esquema
das profissões. Cada um deles é escolhido para ilustrar como a divisão do trabalho
fornece autoridade a uma analogia que localiza firmemente na natureza uma situação
social estruturada. Enquanto analogia, não seria imune às dificuldades que cercam as
coisas naturais. As analogias podem ser vistas em qualquer lugar e em todos os lugares.
Quando, porém, uma analogia compara uma estrutura de autoridade ou precedência,
então o padrão social reforça os padrões lógicos e dá proeminência a essa estrutura.
Dois esforços, um social e outro intelectual, sustentam-se mutuamente. Padrões de
autoridade ou de precedência gozam de um status privilegiado porque, conforme bem
disse Thomas Schelling, suas menores partes indivisíveis são as pessoas (Schelling
1978). Uma pessoa não pode ser dividida, não pode estar simultaneamente em dois
lugares, não pode ser ao mesmo tempo superior e inferior no mesmo contexto, não pode
ter um bolo e comê-io. Em algum momento existe um fim para possíveis recomposições
de padrões que envolvem as pessoas. Os padrões de autoridade ou precedência também
são privilegiados porque somos animais sociais, treinados desde a infância para
reconhecermos os materiais elementares da metáfora e da analogia em nossa própria
experiência social. À semelhança do bricabraque, esses elementos prototeóricos estão à
nossa volta, prontos para ser postos a serviço com a finalidade de promover as
preocupações sociais mais profundas do pensador ou simplesmente para que a eles se
recorra, sendo usados toda vez que a energia necessária a um trabalho c1assificatório
independente se esgota. Lévi-Strauss (1962) inventou a imagem do pensador como um
bricoleur, o artesão amador que transforma o relógio de parede quebrado em uma
prateleira para cachimbos, a mesa quebrada em uma chapeleira, a chapeleira em uma
lâmpada e tudo em outra coisa. O bricoleur usa tudo o que existe para realizar
transformações, recorrendo a um repertório de suprimentos. A bricolage, de acordo com
Lévi- Strauss, caracteriza o pensamento primitivo. Numa sociedade onde a tecnologia e
a divisão do trabalho foram fixadas em certo nível durante gerações, as pessoas podem
deixar seu pensamento especulativo correr solto, mas ele não pode ir além dos limites
impostos pela tecnologia estável e pelo padrão de trabalho. Sob a forma de um jogo
42

intelectual, aquilo que Lévi- Strauss denominou a mente selvagem distribui a ampla
gama de paralelos e inversões sagazes, com elaboradas transformações em seu
sortimento de analogias. Lévi-Strauss aceita que a bricolage intelectual também se
encontra na sociedade moderna, mas em esconderijos e fendas protegidos da pressão
em favor da mudança. Embora ele não o tenha ampliado, seu conceito de bricabraque
descreve bem as analogias recorrentes e os estilos de pensamento que caracterizam
qualquer civilização. O determinismo biológico é um desses elementos recorrentes na
história intelectual do Ocidente. Encontra-se sempre disponível, sob uma ou outra
forma, para provar que uma onda de imigrantes ou um desprivilegiado social são
prejudicados por sua hereditariedade, enquanto os privilegiados possuem uma
constituição física mais favorável para transmitir a seus herdeiros (Gould 1981).
Recorrendo a outro exemplo, aquilo que é gradual, paulatino, é colocado repetidas vezes
em oposição a uma mudança súbita e descontínua. A natureza, Deus, a Bíblia, são
invocados para apoiar um ou outra. Os defensores do status quo tendem a achar que a
natureza está a favor da continuidade e os defensores da reforma radical fazem uma
leitura um tanto diferente da natureza. Assim, até mesmo a ciência, muito
cuidadosamente protegida das preocupações políticas comuns por sua terminologia, sua
formação e seus locai.s de trabalho segregados, demonstra a mesma tendência em
basear suas instituições em analogias com a natureza e em achar que as estruturas mais
gerais de suas controvérsias correspondem ao debate político contemporâneo. Há uma
argumentação permanente sobre o valor da urbanidade em oposição à rusticidade ou,
para colocar a questão em outros termos, sobre a cidade como um poço de iniquidades
em oposição à simplicidade e excelência da vida rural. Este conjunto de oposições que
invocam a natureza versus a cultura é constantemente renovado recorrendose ao que
sobra do bricabraque do último debate com a finalidade de propiciar analogias naturais
para qualquer novo debate que esteja politicamente em primeiro plano. Como a
construção das analogias, a partir da natureza, com a finalidade de apoiar o sistema
social existente, é muito conhecida dos antropólogos e de outros, as novas colocações
feitas neste capítulo precisam ser reformuladas. Não é inusitado aplicar a idéia de
bricolage como forma de pensamento institucional a problemas de escolha racional. Os
dois campos da investigação, a antropologia simbólica e a teoria da escolha racional, em
geral são mantidos bem distanciados um do outro. Em segundo lugar, vale a pena
insistir nesta questão não somente porque ela proporciona uma nova maneira de abordar
os 80
82 problemas da ação coletiva, mas também porque modifica nossa maneira de pensar
sobre a cognição humana. A abordagem à cognição humana só pode se beneficiar ao
reconhecer o envolvimento do indivíduo com a construção de uma instituição a partir do
início do empreendimento cognitivo. Até mesmo os simples atos de classificar e
lembrar são institucionalizados.
43

83 6 AS INSTITUIÇÕES LEMBRAM-SE E ESQUECEM A mais ou menos cada dez


anos os livros didáticos tornam-se desatualizados. Precisam de revisão parcial devido a
novos avanços da ciência ou a pesquisas mais aprofundadas dos historiadores. Isto
também se deve ao fato de que a ciência, ao que parece, tornou-se excessivamente
religiosa ou escandalosamente irreligiosa (Nelkin 1977), ou porque a história da última
década nos transmite um sentimento político equivocado (Fitzgerald 1979). Nesse
período alguns lemas e chavões tomaram-se risíveis, algumas palavras tomaram-se
vazias e outras por demais sobrecarregadas, encerrando um excesso de amargura ou de
crueldade para os ouvidos modernos. Algumas palavras contam mais e as que contam
menos devem ser postas de escanteio. O esforço revisionista não objetiva produzir o
nivelamento óptico perfeito. O espelho, caso a história o seja, distorce tanto após a
revisão quanto o fazia antes. O espelho, porém, é uma pobre metáfora da memória
pública. Aquele que busca a verdade histórica não está tentando obter uma imagem mais
nítida de sua própria face ou até mesmo uma imagem mais lisonjeira. Remendar
conscientemente e refazer são apenas uma pequena parte da moldagem do passado.
Quando observamos mais de perto a construção do passado, verificamos que o processo
tem muito pouco a ver com o passado e tudo a ver com o presente. As instituições criam
lugares sombreados no qual nada pode ser visto e nenhuma pergunta pode ser feita. Elas
fazem com que outras áreas exibam detalhes muito bem discriminados, minuciosamente
examinados e ordenados. A história surge sob uma forma não-intencional, como
resultado de práticas direcionadas a fins imediatos, práticos. Observar essas práticas
estabelecerem princípios seletivos que iluminam certos tipos de acontecimentos e
obscurecem outros significa inspecionar a ordem social agindo sobre as mentes
individuais. A memória pública é o sistema de armazenagem da ordem social. Pensar
sobre ela é o mais próximo que podemos chegar de uma reflexão sobre as 82
84 condições de nosso próprio pensamento. Podemos acompanhar as operações lógicas,
mas é extremamente difícil pensar criticamente sobre elas. Estamos recorrendo a um
conjunto exaustivo de categorias públicas nas quais as operações lógicas são
executadas? Serão elas as categorias corretas para nossas indagações? O que significa a
correção das categorias? À parte aquelas que submetemos a uma análise, o que devemos
dizer a respeito daquelas outras que deixamos de lado? E o que dizer de outras ordens
sociais que poderiam ter despontado para a existência mas não o fizeram? Não há como
enfrentar diretamente tais indagações. Podemos evitar enigmas insolúveis e ainda assim
obter uma resposta examinando os processos da memória pública. Alguns padrões de
acontecimentos públicos ficam armazenados nela, outros são rejeitados. O conceito de
amnésia estrutural se fez presente na antropologia social da Grã-Bretanha em 1940, com
a publicação do livro de Evans Pritchard, The Nuer (1940). A pesquisa de campo em
que ele se baseou situa-se no início da década de 1930. Os antropólogos já estavam
alertados para a relação entre a ordem social e a memória pela escola francesa de
L'Année Sociologique e sobretudo pelo trabalho de Halbwachs sobre a memória
coletiva (1950). É claro que Marx e Hegel já haviam chegado antes. Uma disputa sobre
a primazia da descoberta não faz parte deste capítulo. Acontece, porém, que no mesmo
período dois pensadores contemporâneos convergiram em relação ao mesmo problema,
tratando-o em termos muitos semelhantes e apresentaram explicações muito
comparáveis. Um deles é EvansPritchard e o outro, Robert Merton, no campo da
sociologia. Merton indagava por que os cientistas vivem se esquecendo de algo que é
muito óbvio e por que ficam tão surpreendidos quando isto passa a ser objeto de sua
atenção. O fato óbvio é que a ciência é um empreendimento coletivo. Os problemas
difíceis e as boas soluções se entremeiam há séculos e se alguém realizar uma
44

descoberta não deverá ficar chocado ao constatar que não é o primeiro; de uma forma
ou de outra é quase certo que esse problema já havia sido notado. Em um alentado
ensaio irônico, intitulado On the Shoulders of Giants (1965), Merton reflete sobre a falta
de sentido de indagar quem foi que disse a primeira coisa. As melhores idéias e as
citações mais famosas parecem ter estado sempre presentes. O próprio Merton, tão
distanciado de reivindicar prioridades, notou que Francis Bacon, 83
85 há 350 anos, esboçou uma hipótese que desse conta das múltiplas e independentes
redescobertas de uma idéia. Os antropólogos tendem a abordar essa questão de outra
maneira. São menos inclinados a perguntar por que as pessoas esquecem. Para eles,
lembrar é a coisa especial que precisa ser explicada. A antropologia herdou um antigo
critério de adiantamento intelectual baseado na tecnologia da guerra. O que causava
estranheza era o fato de que os povos que dispunham unicamente de flechas primitivas
como armas não se lembravam de nada. A tecnologia não é um mau critério. Existem
realizações no campo da engenharia que não poderiam ser executadas antes que o
cálculo diferencial fosse inventado e, no campo da contabilidade, triunfos
administrativos que dependem de uma partida dobrada. Algumas técnicas básicas de
discriminação, cálculo e conservação da memória podem ser um pré-requisito para
qualquer forma particular de conhecimento. Os antropólogos sempre prestaram atenção
a quaisquer habilidades, quando se trata de contar. Mostraram-se especialmente
fascinados pelas pessoas que parecem se dar bem sem ser capazes de contar além de
três. Os antigos escritores mostraram-se muito interessados em grandes feitos da
memória desempenhados por pessoas que demonstravam baixo nível de competência
técnica. Pensava-se geralmente que o segredo estava no aprendizado automático
(Bartlett 1932, Colby & Cole 1973). Isto se ajustava ao pressuposto de que os
verdadeiros avanços intelectuais (e que, presumivelmente, levavam a equipamentos
mais sofisticados) resultavam do fato de os indivíduos se libertarem das peias
institucionais. No entanto, esta concepção traz as marcas de um forte entrave, conforme
veremos no próximo capítulo. Levando-se em conta as formulações opostas dessa
questão, a convergência de Robert Merton e de Evans-Pritchard quanto à mesma
solução énotável. O primeiro ficou intrigado ao observar que as múltiplas descobertas
científicas eram continuamente esquecidas; intrigou ao segundo o fato de fixar-se com
toda segurança na memória um número tão grande de nomes que abrangiam incontáveis
gerações de ancestrais. Ambos tomavam o sistema social como sua unidade. Merton
considerava o esquecimento sistemático como parte integral da organização da ciência;
Evans-Pritchard 84
86 achava que a lembrança contínua fazia parte integral da organização de um povo
pastoril no Sudão. Que cientistas e que ancestrais são lembrados é a mesma questão
geral. É clássico o estudo de Evans-Pritchard de como os processos cognitivos dos Nuer
se prendem a suas instituições sociais. No contexto de sua tecnologia muito simples, é
notável que eles, em geral, consigam lembrar-se de nove a onze gerações de seus
ancestrais. Será, porém, que se recordam de tudo isto quando, na luta, empregam apenas
lanças e porretes? Um estudo mais detido mostra que eles mais se esquecem do que se
lembram. Em se tratando de suas genealogias pessoais eles alegam remontar ao início
dos tempos, mas o intervalo de onze gerações sequer chega a dar conta de sua história
na região que habitam. Tem havido muito esquecimento. Outro fato curioso é que,
apesar do contínuo surgimento de novas gerações, o número de progenitores conhecidos
permanece constante. Em algum momento, ao longo das gerações, muitos ancestrais são
eliminados da lista. Em algum momento, depois do fundador da tribo, de seus dois
filhos, de seus quatro netos e de seus oito bisnetos, a memória tribal criou um buraco
45

sem fundo e múltiplos ancestrais estão caindo dentro dele de ponta-cabeça. Eles não
estão sendo esquecidos assim, sem mais nem menos. As forças e as fraquezas da
recordação dependem de um sistema mnemônico que é toda a ordem social. O estudo
sobre os Nuer foi uma demonstração explícita de como as instituições dirigem e
controlam a memória. As páginas que se seguem são um resumo de três livros de
Evans- Pritchard (1940, 1951 e 1956), que foram analisados em outro volume (Douglas
1980). Eis como a coisa funciona. Entre os Nuer, o equivalente a um processo de
validação, geralmente aceitável, é a equação fundamental: 40 cabeças de gado ratificam
um casamento. Se houvesse alguma hesitação quanto a essa quantia fixa, as transações
baseadas em sua correção teriam de ser renegociadas. Partindo-se dessa base, todos os
demais direitos são computáveis. Para se avaliar qual a recompensa correta por se ter
matado um homem, a fórmula é ampliada: 1 mulher e sua progênie = 40 cabeças de
gado = vida de um homem. Várias definições legais derivam dessa fórmula básica. Sob
condições específicas 1 mulher = 1 homem, de tal forma que uma linha feminina pode
ser tratada como uma linha masculina. Vazios e saltos na 85
87 genealogia são atenuados para que possam apresentar uma sucessão ininterrupta de
homens. Uma ficção semelhante permite que um homem morto conte como um pai
legal para uma criança gerada após sua morte. As regras Nuer de contagem permitem a
flexibilidade, sem ambiguidade ou contradição. A memória pública dos Nuer ilustra um
princípio de coerência, entrelaçando fórmulas de ratificação, poupando a energia
cognitiva. Se estivermos interessados em saber como algumas teorias adquirem sua
longevidade, Fleck nos faria notar o serviço que elas prestam nas transações
particulares. Alguns poucos procedimentos aceitos para se fazer reivindicações
individuais controlam o conhecimento que a sociedade tem de seu próprio passado. Os
casamentos Nuer constituem pontos nodais em um padrão regular de trocas, que
classifica e introduz uma variedade de transações em um tipo uniforme de contrato. Os
Nuer têm um bom incentivo para comparecer a casamentos e exercer em público seus
relacionamentos precisos. Um Nuer que se apresenta num casamento ou espera ganhar
uma vaca, ou terá que contribuir com um destes animais. Aqueles que contribuíram para
as despesas do noivo reivindicarão uma vaca quando a noiva se casar daí a uma geração.
Uma das cabeças de gado distribuídas por ocasião de um casamento é destinada a um
parente situado na quinta geração, após o que outras reivindicações não serão
reconhecidas. Os casamentos e a distribuição do gado ordenam a memória do passado
até o pai do pai do pai em todas as direções. É uma proeza impressionante da memória,
caso tivesse de ser realizada por apenas uma pessoa, mas os padrões repetidos oferecem
muitos incentivos para que não sobrevenha o esquecimento e sua afirmação pública
distribui o fardo que é o ato de recordar. Assim, um conjunto de nomes, tais como os do
pai do pai de meu pai, de suas irmãs e irmãos e sua descendência, não estarão perdidos
se passarem a fazer parte da estratégia de se validar reivindicações particulares. Uma
teoria a respeito de como o mundo deve ser governado sobreviverá à competição se for
mais do que uma teoria, por exemplo, se puder intervir a fim de apoiar estratégias
individuais que objetivem criar um bem coletivo. A teoria Nuer de descendência
patrilinear presta este serviço. A família Nuer depende do homem para os deveres
ligados ao pastoreio e da mulher para o que diz respeito à extração e aproveitamento do
leite; ela 86
88 precisa pertencer a uma aldeia. Evocando, porém, os problemas decorrentes da livre
iniciativa e as tentações de deixar as tarefas coletivas serem executadas por todo mundo,
perguntaríamos como a aldeia poderia recrutar os homens para conduzir expedições
guerreiras e providenciar a defesa? A resposta é a seguinte, como um subproduto da
46

herança: os rapazes só poderão conseguir o gado de que necessitam para poderem casar
se puderem provar ligações com o ancestral correto. A herança os obriga a deixar clara
sua lealdade para com o grupo. Suas coalizões políticas se baseiam no princípio da
descendência de quatro gerações de um ancestral fundador, de seus filhos, netos e
bisnetos, cada um dos quais fundou uma unidade política. O nível de sua organização
intensifica ainda mais a recordação que eles têm de seus ancestrais. O reconhecimento
de uma fidelidade política, que passa de uma geração para outra, registra o nome de
quatro a seis gerações afastadas. A estratégia destinada a operar reivindicações
individuais registra cinco gerações próximas, num reconhecimento que parte da direção
oposta, de baixo para cima. Naquele ponto de intersecção, situado entre o limite mais
baixo de uma geração e o limite mais alto da próxima geração situa-se o vácuo no qual
sucessivas gerações de ancestrais vivem desaparecendo. Não se trata apenas de que não
existe um motivo especial para recordar certos nomes. Existe mesmo uma forte pressão
em contrário. A fórmula bem-sucedida é predatória. A simples consistência do uso a
reveste de poder e ela poderá até mesmo engolir a competição. O conceito Nuer de
ancestral idade possui todas estas qualidades. Ele também enraíza seu conhecimento na
natureza, pois os ancestrais remontam a antes do início da sociedade humana. Tal
conceito também se harmoniza com sua sensibilidade política. Os Nuer são
ardentemente igualitários, individualistas e independentes. O estratagema do ancestral
que desaparece põe todo mundo em plano de igualdade com todo mundo. A eles não
convém saber mais a respeito da história passada individual. Se o sistema político que
melhor Ihes assentava fosse uma chefia hereditária, eles teriam se lembrado de mais
ancestrais ou pelo menos isso teria acontecido com alguns deles. A realeza necessita de
uma longa linhagem para reivindicar pretensões dinásticas. 87
89 Os discípulos de Evans-Pritchard desenvolveram o tema da memória
institucionalizada pública ao comparar estruturas sociais que podiam e não podiam
sustentar uma profundidade genealógica. A parte mais fascinante dessa pesquisa põe a
nu os procedimentos mediante os quais a história genealógica é recortada, prolongada e
uniformizada (Bohannon 1952, Barnes 1954). O início desse trabalho apóia uma
tendência da sociologia da ciência, a saber, o trabalho em torno da escrita de um texto
que segue Merton, quando ele se debruça sobre a questão das profecias que se auto-
realizam (1949), e Thomas Kuhn, quando ele se refere à ciência normal (1962). Um dos
motivos pelos quais foi importante percorrer passo a passo essas remotas situações
consiste em notar a eficácia pragmática da memória pública. Isto deveria ser suficiente
para que se parasse de invocar uma coesão mística para as comunidades de pequena
escala. Uma comunidade funciona porque as transações se equilibram. O risco de uma
ação independente é controlado pelo sistema de contabilidade. As contas são verificadas
e as dívidas são cobradas do mesmo modo que Deus ou a natureza punem os devedores
por meio da doença e da morte. O estilo de pensamento mantém o mundo do
pensamento em forma ao direcionar sua memória. Voltemo-nos agora para os cientistas
físicos em nossa própria sociedade e observemos sua descrença quando se confrontam
com fatos históricos que não entraram para a memória pública. Seu irado repúdio à
possibilidade de que outro cientista pudesse ter verificado o mesmo fato anteriormente
ou elaborado em primeiro lugar a mesma teoria mereceu de Robert Merton uma fina
análise sociológica em torno de um ponto cego amnésico. Ela se encontra em uma série
de publicações, começando por '''Prioridades na descoberta científica" (1957), "Únicos e
múltiplos na descoberta científica" (1962) e "Resistência ao estudo das múltiplas
descobertas na ciência". A questão está em saber por que o mesmo fato, com as
hipóteses a ele associadas, permanece durante décadas e séculos "numa condição
47

estática, como se fosse permanentemente condenado a uma repetição sem


prolongamentos" e então volta a surgir subitamente. A análise demonstra que os
cientistas que alcançaram o status de estrelas, normalmente afáveis e generosos,
renegam furiosamente uma 88
90 descoberta anterior ou convergente, pois suas paixões são movidas pelo modo como
a ciência é organizada. Merton liga a emoção, a cognição e a estrutura social a um
sistema. Na ciência, as grandes recompensas vão para a inovação a que se dá crédito. O
conceito de descoberta original está incrustado em todas as formas da vida institucional,
juntamente com os prêmios e a designação das plantas, animais, medidas e até mesmo
doenças, por parte dos cientistas. As relações interpessoais dos cientistas são
governadas por uma competição institucionalizada, na qual todos perdem algo:
acadêmicos que, em outros contextos, se mostram magnânimos, são amesquinhados por
seu próprio ódio destrutivo ao saberem que um competidor reivindica precedências;
mostram-se desconcertados ao se deparar com fatos discordantes que não se adequam às
suas próprias categorias; a profissão sofre uma perda devido à práticas ligadas ao
segredo, o que contradiz a abertura intelectual; a política da ciência é induzida em erro
pela falácia de que a duplicação é evitável e constitui um desperdício. Mantendo-se
calmamente fora da controvérsia, Merton demonstra como uma ordem social distinta
gera os próprios padrões de valores, engaja os corações de seus membros e cria uma
miopia que, certamente, parece ser inevitável. Como Merton não é um cientista social,
ele pode pensar coisas sobre a ordem social desses cientistas que são impossíveis para
quem é de dentro. Após descrever as viseiras que eles usam, podemos perguntar como
esses cientistas podem ter dado crédito ao conceito de descobertas múltiplas. Mesmo
quando Ihes falaram a respeito dessas descobertas, como é possível que eles continuem
a mantê-ias? Os pensamentos dos cientistas se mantêm sob o controle da rigorosa
instituição da ciência, assim como os nossos se mantêm sob o controle de outras
instituições. Eles não conseguem refletir calmamente sobre essa questão e nós também
não. Precisamos de uma técnica que nos possibilite afastarmo-nos de nossa própria
sociedade, transformando o pequeno modelo cibernético em um grande modelo com
vários compartimentos que lidam com as paixões inerentes às diferentes formas de
organização social e que demonstrem o controle que as motivações socialmente
reforçadas exercem sobre a visão individual. Uma boa argumentação funcionalista não
precisa invocar o estado patológico para explicar o esquecimento. Em 1957, Merton
encarava a 89
91 resistência às múltiplas descobertas como uma reação normal a uma instituição mal
integrada. Recorrendo a termos freudianos, ele definiu a resistência como uma negação
motivada de uma realidade acessível, mas dolorosa. Em escritos posteriores, essa parte
da argumentação foi abandonada. É mais instrutivo esperar que os efeitos peculiares de
uma organização social sobre a memória sejam mais funcionais do que disfuncionais.
Para que qualquer sistema cognitivo possa operar, certas coisas precisam ser esquecidas.
Não há como se prestar completa atenção a tudo. Note-se que Merton realizou uma
abordagem indireta ao problema. Ele não está indagando: "Como é que as pessoas
pensam sobre as restrições que a ordem social impõe a seu pensamento?". Ele pergunta:
"Como elas são impedidas de pensar? Quais são os pensamentos impossíveis?". Merton
demonstra que os pensamentos são descartados pelo sistema. É mais uma pista sobre
como devemos proceder a fim de irmos adiante. Abordagens indiretas a indagações
difíceis podem ser formuladas de um modo que escapa ao dilema auto-referenciador.
Pergunte às pessoas que alimentos elas comem e elas responderão o que pensam que
você pensa que elas deveriam comer. Uma equipe de nutricionistas do Arizona certa vez
48

imitou os arqueólogos obtendo as informações que desejavam a partir das latas de lixo
doméstico (Rathje 1975). Os restos de comida revelam dados mais concretos sobre a
dieta alimentar do que respostas a questionários. A teoria do desvio social constitui
outro tipo de abordagem indireta à sociologia cognitiva. Ela examina os refugos. Pode-
se aplicar um excesso de interpretação a declarações positivas sobre qual tipo de
comportamento é mais prestigiado. O estudo da aversão nos fornece evidências muito
mais claras. As regras para se evitar o comportamento repreensível bem como a punição
e a purificação após um contacto reprovável são mais claramente conhecidas e mais
fáceis de omitir (Douglas 1966). Uma teoria sociológica da rejeição pode ter bases mais
seguras do que uma teoria sociológica do valor devido à natureza pública das
penalidades e proibições que se seguem às atitudes negativas. O mesmo é verdade no
que diz respeito a nosso problema. A possibilidade de se pensar a ordem social é
revestida de infinito retomo. As influências institucionais tomam-se aparentes por um
enfoque naquilo que não se pode pensar e 90
92 naquilo que não se pode recordar, acontecimentos que podemos notar ao mesmo
tempo que os observamos esgueirando-se para um outro plano, que se situa além da
lembrança. Uma vez que um sistema social se baseia na razão e na natureza, podemos
perceber como a energia cognitiva é poupada, acompanhando-se a carreira de uma
teoria bem-sucedida. Em primeiro lugar, baseando-se no princípio da coerência
cognitiva, uma teoria que vai obter um lugar permanente no repertório público daquilo
que é conhecido precisará entremear-se aos procedimentos que garantem outros tipos de
teorias. Na base de qualquer empreendimento cognitivo amplo encontram-se algumas
fórmulas básicas, equações de uso comum e maneiras práticas de se proceder. Na
ciência, essas técnicas compartilhadas de validação perpassam diferentes subdisciplinas.
Por exemplo, a matemática da lixiviação é empregada na mineralogia e na oftalmologia.
Do mesmo modo os Nuer recorrem a essa fórmula para o casamento e as dívidas de
sangue. Firmar um conjunto de teorias em um determinado campo confere autoridade a
um outro conjunto, caso ele possa ser firmado mediante os mesmos procedimentos. Isto
é tão verdadeiro para as formas sociais de validação quanto para as formas científicas.
Os ancestrais esquecidos e as descobertas científicas esquecidas encontram-se na
mesma situação. Os precursores científicos desaparecem de vista porque jamais tiveram
a oportunidade material de abrir caminho até a superfície da memória pública. Os
descobridores esquecidos são como muitos ancestrais esquecidos. O padrão de seu
malogro não é aleatório. As estratégias destinadas a validar as reivindicações dos
cientistas usam a originalidade como o principal critério para a concessão de prêmios e
atribuições. A crença em um primeiro descobridor nada é sem os prêmios e o renome. O
costume de designar concede imediatamente uma grande vantagem a uma originalidade
que se reivindica e uma desvantagem ao fato da descoberta. Aquilo que parece
disfuncional, quando cientistas exasperados dão demonstrações públicas de sua vaidade,
pode ser encarado como o custo que se deve pagar para se manter a corrida aberta
àqueles que são velozes. A competição, entretanto, sempre tem um preço elevado, em
termos humanos. Num contexto como esse, o princípio da redescoberta não 91
93 apresenta fortes qualificações que lhe permitam ser lembrado. Boa parte das teorias
redescobertas apontam para o fato de que não foram estruturadas originalmente a partir
de uma infra-estrutura cognitiva corrente e, assim, deixaram de fazer economias, no que
se refere à energia. Frequentemente, quando uma nova descoberta científica foi rejeitada
e deixada em estado de inércia até mais tarde, trata-se precisamente de uma idéia
desprovida de um entrelaçamento formal com os procedimentos normais de validação.
A melhor possibilidade de sucesso está em confrontar as grandes preocupações públicas
49

e em explorar as grandes analogias em que se apóia o sistema sociocognitivo. O


exemplo dos Nuer faz mais pela teoria social da memória do que o exemplo dos
cientistas. A memória institucionalizada dos Nuer explica não só por que apenas alguns
ancestrais serão lembrados, mas quais serão definidos para a posteridade, quais
desaparecerão e depois de quantas gerações. Essa memória explica a questão relativa à
sensibilidade política, bem como a dependência em relação às técnicas aceitas de
validação. A postura dos cientistas conscientes de seu nome depende unicamente, para
seu valor explanatório, da falta de adequação entre as convenções do sistema de
nomeação e a real situação do conhecimento compartilhado. Isto sugere que a
argumentação desenvolvida nesta capítulo apóia-se excessivamente em um exemplo
exótico. Necessita-se de outro exemplo moderno, que não o dos cientistas, a fim de
ilustrar a influência do entorno social mais amplo e das técnicas existentes de validação.
Kenneth Arrow descreveu sua própria descoberta relativa à dificuldade de se conceituar
o bem-estar social (1984). Note-se que esta descoberta, o teorema da impossibilidade,
permaneceu inativa, na sombra, despertando o interesse de apenas algumas pessoas
durante uns vinte anos e, subitamente, tornou-se um dos conceitos dominantes da
ciência no Ocidente. Sua biografia pessoal começa com uma infância passada na época
da depressão, um interesse, quando estudante, em planejamento econômico, bem como
na lógica e na coerência; ele sentiu-se atraído pelo pressuposto da teoria do equilíbrio
geral, segundo a qual toda atividade econômica está conectada com todas as demais.
Arrow começou pela matemática dos mapas da indiferença do consumidor e aplicou-a à
teoria da firma. O que aconteceria se a firma 92
94 tivesse muitos proprietários em vez do único proprietário postulado pela teoria?
Suponhamos que eles alimentassem diferentes expectativas quanto ao futuro: então
teriam diferentes preferências em relação aos investimentos. Suponhamos que tivessem
tentado chegar a uma decisão pela votação: rapidamente ficou claro que que o voto
majoritário não levaria necessariamente a uma ordenação. A partir disso suas reflexões
voltaram-se, em 1948, para o contexto político no qual o voto majoritário era o modo
normal de conciliar as diferenças. Daí a um mês ele deparou-se com a mesma percepção
publicada por Duncan Black no Journal of Po/itical Economy (1948). Foi então levado a
reconhecer que havia um paralelismo quanto aos problemas relativos às relações
internacionais. Examinando um espectro tão amplo de comportamento sob uma rubrica,
partindo da economia para a política nacional e chegando ao cenário internacional, ele
foi capaz de elaborar uma generalização ousada: nem o voto majoritário, nem qualquer
outro modo de agregar preferências funcionaria no sentido de definir um ordenamento.
Assim, ele formulou as condições sob as quais é impossível agregar preferências
individuais. É claro que ele enxergava as coisas a partir de um ponto de vista muito
elevado. É claro que ele se beneficiava dos procedimentos matemáticos existentes. O
mistério não está em como ele chegou a seu teorema ou como ele e Black convergiram
sobre essa questão no mesmo ano. O mistério que ele escolheu para comentar foi o
seguinte: por que a descoberta de J. C. de Borda, em 1781, e a formulação de Condorcet
sobre a mesma descoberta, em 1785, haviam sido tão completamente esquecidas
(Condorcet 1785)? Arrow afirma que quando se deu conta, pela primeira vez, de que o
voto majoritário não levaria necessariamente a uma ordenação: Estava convencido de
que aquilo que, atualmente, denominamos o paradoxo de Condorcet não era novo.
Sinto-me incapacitado para identificar a fonte de minha crença, agora que conheço a
literatura anterior, já que não poderia ter visto qualquer parte desse material obscuro
antes de 1946 [...] ao contrário de alguns exemplos de múltipla descoberta, este ainda
continua surpreendendo-me. A matemática, afinal de contas, poderia ter sido levada
50

adiante por Condorcet e não existe nenhum corpus ativo de literatura que suscite
questões comparáveis. (Arrow, 1984, p. 129). 93
95 A descoberta de Condorcet permaneceu na sombra durante 160 anos, até que em
1948 e 1949, surgiram, respectivamente, dois escritos de Black e uma monografia de
Keneth Arrow. "Nem Black, nem eu tínhamos conhecimento desse fato, quando
escrevemos sobre a literatura precedente" (Arrow, 1984, p. 129). A explicação para o
fato de a literatura de Condorcet ter sido esquecida não se deve a que o aparato da
matemática, disponível no século XVIII, fosse inadequado. A explicação para isto
encontra-se em um clima diferente de idéias, políticas e filosóficas, no qual ele elaborou
suas provas. Para Condorcet o objeto da teoria da votação consistia em encontrar a
verdadeira opinião, a verdadeira escolha social, independente dos desejos dos eleitores.
O efeito de se tomar uma decisão, por meio da votação, era encontrar uma solução bem
embasada. O papel dos eleitores consistia em expressar o grau de entendimento que eles
tinham da verdade que estava sendo procurada. Condorcet levava em consideração o
tipo de negociações que seriam feitas, quando se contasse com um grande número de
eleitores, alguns dos quais eram ignorantes, mas, pelo menos, capazes de apresentar
uma ampla gama de experiências, e que se opunham a alguns poucos especialistas, com
maiores conhecimentos individuais. Sua descoberta foi que com mais de duas
alternativas e mais que dois votos seria possível alcançar um ordenamento circular, mas
uma alternativa como essa não poderia satisfazer a maioria do eleitorado. Quando se
reconhece que uma maioria poderia preferia A a B e B a C, mas C a A, a confiança na
vontade de algo denominado "a maioria" fica comprometida. Mas por que uma
descoberta como esta teria sido importante no século XVIII? A matemática recôndita da
votação circular pouco importava em um país que estava a ponto de mergulhar na
revolução e, mais tarde, a mensagem contida naquela teoria dificilmente seria bem
acolhida pelos políticos do século XIX, cuja preocupação era ampliar as franquias e
limitar o controle político elitista. Ela ainda deve ser acolhida como algo negativo por
aqueles que depositam fé nas decisões majoritárias. O consenso liberal baseia-se no
princípio benthamita, segundo o qual a maior felicidade do maior número de pessoas é
um resultado significativo e único. A teoria só se tornará 94
96 relevante para a ciência política no final do século XX, quando a franquia será
universal e não poderá mais ser ampliada, quando o pluralismo fará com que o consenso
seja mais difícil de se alcançar e quando será abundante o questionamento sobre os
alicerces da sociedade democrática. Uma nova descoberta terá de ser compatível com os
pressupostos políticos e filosóficos, caso ela deva alçar vôo, para não mencionar o fato
de que, mais tarde, ela será lembrada. Não basta ficar repetindo que a memória é
socialmente estruturada. Ter chegado tão longe é um convite para se dar um passo
adiante. Em seguida, é preciso descobrir quais qualidades da vida institucional exercem
efeitos distintos sobre a recordação. Assim como cada diferente tipo de sistema social se
apóia em um tipo específico de analogia, derivado da natureza, os sistemas sociais
competitivos são mais débeis, em sua atuação sobre a memória, do que os sistemas
atributivos. Isto deve ocorrer porque a competição afasta alguns participantes e coloca
os novatos no topo, além do que, a cada mudança de dinastia, a memória pública
necessariamente se rearranja. Em contraste, a sociedade hierárquica complexa precisará
evocar muitos pontos de referência do passado. No entanto, a lista dos pais fundadores
será apenas tão longa quanto a lista das unidades sociais que eles fundaram. Os tratados
de paz serão referências que consignarão um status relativo a inimigos incorporados. Na
medida em que houver pressão em relação a princípios coerentes de organização, as
histórias justificatórias do passado serão amalgamadas e racionalizadas, como parte do
51

processo social. A coerência e a complexidade, em se tratando da memória pública,


tenderão a corresponder à coerência e à complexidade no nível social. Foi o que
Halbwachs ensinou. Segue-se o oposto: quanto mais as unidades sociais forem simples
e isoladas, mais simples e mais fragmentada será a memória pública, com menos
referências e menos níveis de ascensão ao início dos tempos (Rayner 1982). Quando
mais a organização social for um grupo latente, consciente dos problemas
organizacionais detalhados no terceiro capítulo, mais seus membros invocarão uma
história de perseguições e resistência. A sociedade competitiva exalta seus heróis, a
hierarquia exalta seus patriarcas e a seita, seus mártires. 95
97 7 UM EXEMPLO DE ESQUECIMENTO INSTITUCIONAL Seja ela débil ou forte,
a memória é apoiada pelas estruturas institucionais. Cientistas, matemáticos e
comunidades pastoris, mencionados no último capítulo, são tipos de comunidades muito
especializadas. A questão atinge o alvo com maior precisão se nos voltarmos para o
exemplo de um psicólogo eminente que se especializou na questão da lembrança.
Frederick Bartlett pretendia estudar amplamente os efeitos institucionais da cognição.
Sua própria instituição o desviou do projeto. De acordo com o estilo de pensamento de
sua época, era improvável que as coerções institucionais exercessem muita influência
sobre os modernos e, assim, não valeria muito a pena investigá-ias. De qualquer modo,
as condições experimentais em que ele trabalhava não permitiam apreender os efeitos
institucionais. Sua carreira é um exemplo auto-referenciador da alegação, segundo a
qual os psicólogos são institucionalmente incapazes de lembrar que os seres humanos
são seres sociais. Assim que tomam consciência desse fato, esquecem-no.
Frequentemente recordam entre si como são artificiais os parâmetros por eles
estabelecidos em relação a seu objeto de estudo. Psicólogos famosos vivem censurando
seus colegas por desprezarem ou ignorarem os fatores institucionais, em se tratando da
cognição. A literatura das ciências sociais nos fornece inúmeros exemplos das redes
cobertas desse conceito. Leon Festinger escreveu em 1948 sobre a relação entre a
difusão da informação e o grau de integração em um grupo. Uma certa medida de
integração poderia tomar-se a base de inúmeras teorias sobre a relação entre o
conhecimento e a sociedade, mas nada se fez a esse respeito. James Coleman é outro
exemplo de destaque, na década de 1950, no sentido de tratar as qualidades da situação
social como princípios seletivos para se obter uma informação aceitável. Comparando
os julgamentos dos médicos em relação às inovações na medicina, ele e seus colegas 96
98 averiguaram que os médicos que estavam inseridos em uma rede profissional
integrada tomavam decisões de adotar ou não um novo remédio mais rapidamente do
que seus colegas que trabalhavam isoladamente em suas clínicas. Esperava-se que essa
pesquisa inaugurasse uma nova abordagem nas ciências sociais na qual os
relacionamentos sociais e as estruturas sociais seriam as unidades de análise. Coleman
anteviu que a nova abordagem enfocaria o destino da informação transmitida pelas
redes sociais mais e menos integradas (Coleman 1957). No entanto, a análise referente
às redes procedeu-se sem levar a análise paralela e necessária das atitudes e valores às
mesmas alturas da sofisticação e nenhuma teoria sistemática de sintetização foi
desenvolvida. Mais recentemente, J. M. F. Jaspers escreveu sobre o uso do conceito de
atitudes na psicologia cognitiva. Ele descobriu que a natureza social das atitudes tem
sido completamente deixada de lado. Jaspers liga o atual aumento da insatisfação à
pesquisa sobre a atitude: Perdemos de vista a natureza coletiva das atitudes porque elas
têm sido encarceradas pela psicologia social e convertidas em disposições que se
prendem a respostas individuais e de natureza avaliadora, estimativa. Recentes
mudanças na pesquisa sobre a atitude e nas técnicas de escalamento levaram a uma
52

completa individualização do estudo da atitude (Jaspers & Prazer 1981, p. 116). Deve
existir centenas de queixas e percepções isoladas e de descobertas independentes como
esta. Elas tiveram um destino adverso. Existe uma aversão profissional aos modelos de
controle que inevitavelmente cheiram a engenharia social, determinismo sociológico e a
apoteose do Grande Irmão, prefigurada em 1984, de Orwell. Em 1975, Donald
Campbell pôs o dedo na ferida. Ele afirmou que os psicólogos são de tal forma
comprometidos com o pressuposto de que o desenvolvimento psíquico individual é
restringido por convenções sociais, que eles vêem todas as restrições convencionais e
institucionais como algo errôneo. Ele fez os psicólogos parecerem um bando romântico
de cavaleiros errantes que procuram livrar os fracos e os inválidos das reivindicações
ilegítimas impostas pela vida e pela sociedade. Para os psicólogos, é impensável o
conceito de que fatores estabilizadores poderiam ser úteis ao desenvolvimento
emocional 97
99 e cognitivo. Campbell afirma com todas as letras que, na psicologia, é
profissionalmente impossível afirmar o conceito de que constrangimentos institucionais
podem ser benéficos ao indivíduo. Semelhante conceito é passível de exploração, mas
não pode integrar o memorável corpus dos fatos. A fim de contrapor a esse viés, ele
recomendava veementemente que se concedesse prioridade às fontes institucionais da
estabilidade (Campbell 1975). Acontece, porém, que ele provou o que afirmava
esquecendo-se instantaneamente de seus bons conselhos. Agora ele está à procura de
fatores estabilizadores em nossa constituição biológica. No entanto, seu dedo está
apontando para a idéia que devemos explorar, a fim de compreendermos por que nosso
autoconhecimento é tão evasivo. Essa idéia é a de que o fardo de se pensar é transferido
para as instituições. Seu próprio exemplo sugere que se trata de uma idéia inerentemente
instável e, com toda certeza, deveríamos esperar que assim fosse, tendo em vista o que
já conhecemos sobre as dificuldades de um programa de investigação auto-reflexivo.
Entretanto, visto que é importante, poderíamos nos aprofundar nas fontes de suas
fraquezas. Sir Frederick Bartlett nasceu em 1886 e tomou-se diretor do Laboratório de
Psicologia de Cambridge, sendo editor do British Journal of Psychology durante muito
tempo. Suas pesquisas e suas atividades didáticas firmaram, com muito sucesso, uma
importante visão: a importância dos elementos seletivos e construtivos na percepção
humana. Isto era apenas metade do que ele se propunha a fazer. A outra metade
permaneceu irrealizada. Quando Bartlett foi para o St. John's ColIege, W. H. R. Rivers
encontrava-se lá. Ele era um antropólogo, fisiólogo e psicólogo muito influente. Rivers
havia sido editor do British Journal of Psychology de 1904 a 1913. Participou da grande
expedição ao Estreito de Torres em 1898, na companhia de outros famosos psicólogos e
doutores, incluindo C. S. Myers, William McDougalI e C. S. Seligman. Era objetivo da
expedição fazer um estudo multidisciplinar da evolução da cognição humana, baseado
na população da Melanésia. A equipe era liderada por A. C. Haddon, biólogo marinho
de formação, mas que tomou-se etnólogo especializado em Melanésia e especialista na
evolução da arte primitiva. Bartlett sempre afirmou que sua própria pesquisa era
profundamente 98
100 influenciada por Rivers e Haddon, ambos antropólogos. De Rivers adotou o
conceito segundo o qual as emoções e a cognição individuais são institucionalizadas em
formas sociais. Da investigação de Haddon sobre a arte melanésia adotou o conceito de
que um estudo experimental da cognição deveria enfocar o processo de padronização ou
de convencionalização. Em 1913, foi contratado pela Cambridge University Press para
escrever um livro sobre a convencionalização. Acredito que ambas as intenções estavam
condenadas ao fracasso desde o início. Talvez seja difícil convencer o leitor de que esse
53

psicólogo tão renomado jamais tenha estado à procura de uma teoria sociológica da
percepção. Grande parte das evidências dependem do uso que Bartlett fez da obra
lnstinct and the Unconscious (1920), de Rivers. Rivers estava imbuído da idéia de que o
desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento da sociedade seguiam os mesmos
processos evolutivos. Ele apresentava uma teoria da mente, que era também uma teoria
da sociedade. Sua formação intelectual se dera no campo da medicina e da psicologia
experimental. Suas publicações se referiam à visão, fadiga, ilusões ópticas, efeito das
drogas e outros fatores que afetavam a consciência. Ele, ao mesmo tempo, era um
expedicionário antropólogo de campo, tendo ido para a Melanésia em 1898, para a Índia
em 1902 e para a Oceania em 1908 e 1914. Buscar os instintos humanos e os colocar em
padrões de cultura eram duradouras fontes de especulação para Rivers. Sua técnica, em
se tratando de relacionar o indivíduo com a sociedade, consistia simplesmente em usar
um único modelo desenvolvimentista, no qual se poderiam detectar fendas, encontrando
paralelos entre as relações existentes entre os níveis mais elevados e os mais baixos. Seu
pensamento havia amadurecido e já tinha 39 anos quando associouse a Henry Head,
festejado neurologista na pesquisa sobre o sistema nervoso. Numa famosa experiência,
Head ofereceu o próprio braço, um cirurgião fez incisões nele e Rivers formulou
perguntas sobre as sensações nos diferentes pontos, registrando as respostas de Head.
Dado seu forte comprometimento com a teoria da evolução, não foi surpreendente que a
descrição da experiência feita por Rivers (em Brain 1908) demonstrou que ela encerrava
férteis implicações evolucionistas. A pesquisa, que tornou-se 99
101 paradigmática para os escritos ulteriores de Rivers, relatou a descoberta de dois
tipos de nervos sensoriais. O primeiro, que Rivers e Head denominaram sensibilidade
protopática pontilhada, deu uma resposta do tipo tudo ou nada. Ela ocorria em um nível
mais baixo de organização neural e possuía funções difusas de localização. Cortando
aqueles nervos, o paciente torna-se menos capaz de dizer sim ou não, em se tratando das
sensações que ele experimenta e dos limites dessas sensações, mas mesmo com os
nervos intactos, ele não consegue dizer com precisão onde a dor se localiza. Em nível
mais elevado de organização, o outro tipo de nervos sensoriais, que Rivers e Head
denominaram sensibilidade epicrítica refinada, era capaz de operar discriminações
sutilmente graduadas e de uma localização precisa. No mesmo relatório, Rivers sugeriu
um meio de elaborar um modelo evolucionista, demonstrando o desenvolvimento da
humanidade a partir de um sistema nervoso herdado ou instintivo, dominado pela
função protopática em estágio primitivo e indo em direção a um sistema que, com o
avanço da evolução, movimentava-se gradualmente no sentido de ficar sob o controle
da função epicrítica. Evitando qualquer análise técnica mais árdua, Rivers foi capaz de
especular. Ele parecia acreditar na herança de características adquiridas e, com toda
certeza, jamais arriscou qualquer teoria que desse conta da alegada transformação
evolucionista dos seres humanos. Ele foi bem-sucedido em sua geração, pois em vez de
um instrumento analítico empregava uma varinha mágica que usava para vencer seus
opositores e para desenvolver metáforas elegantemente aceitáveis, relativas à mente e à
sociedade. A metáfora preferida, recorrente em tudo o que ele escreveu, é um modelo de
controle no sistema nervoso, que se estende para o controle da mente e para o controle
social. Ele explica isto com muita clareza em Dreams and Primitive Culture (1918), em
que compara o mecanismo da produção dos sonhos nos indivíduos com o mecanismo da
produção dos mitos na cultura primitiva, sempre reconhecendo sua dívida para com a
genialidade de Freud. O primitivo, em geral, sai empobrecido dessa comparação. Os
povos primitivos são representantes de estágios infantis anteriores do progresso humano
54

(Rivers 1918, p. 406). Este é um pensamento institucional que traz consigo uma
vingança, e constitui um ótimo exemplo para nossa coleção de velharias. 100
102 O modelo é uma caixa com dois compartimentos sobrepostos, tendo na parte de
cima uma pequena secção, onde a função nervosa epicrítica controla os instintos
protopáticos. Ele põe o desenvolvimento do cicio vital do indivíduo na mesma caixa,
ficando a ordem e a razão na parte de cima e as emoções desordenadas na parte inferior.
Isto se aplica à sociedade civil, estando as instituições soberanas de controle na parte de
cima, e a revolução e as insurreições caóticas na parte de baixo. Isto também se aplica
aos administradores coloniais (compartimento de cima) que tentam controlar os nativos
(compartimento de baixo). Em um anexo introduzido por Rivers em 1922, ele adaptou a
conceituação freudiana da censura ao sistema nervoso e ao sistema social, tudo dentro
de um quadro evolucionista. Ele ensinou que cada um deles estava disposto de tal forma
que, "no que se refere à função, eles se dispõem em inúmeros níveis, um em cima do
outro, formando uma hierarquia na qual cada nível controla o que está abaixo e, por sua
vez, é controlado por aqueles que estão acima." (Rivers 1922, p. 229). Rivers pressupôs
que a história de vida de uma psique humana desenvolve uma hierarquia de controles
semelhante sobre a experiência inconsciente. A histeria deveria ser explicada por um
processo que coloca os níveis mais elevados em estado de latência, e dá livre expansão
aos níveis mais baixos, instintivos. Isto está muito próximo do atual modelo de
crescimento em direção à maturidade moral, que ainda merece créditos na psicologia
desenvolvimentista. Rivers, entretanto, foi bastante explícito quanto a seu
comprometimento com uma teoria evolucionista e também tentou acrescentar uma
dimensão social. Bartlett não aceitou o legado integral das idéias de Rivers ou as
manteve intactas. Por exemplo, o conceito cibernético de Rivers da relação entre psique
e sociedade é fortemente autoritário. Quando Bartlett escreveu Psychology and the
Soldier (1927), ele baseou seu escrito em lnstinct and the Unconscious, de Rivers, e
usou os principais termos deste autor instintos, tendências grupais e mecanismos
inibitórios, mas referindo-se a uma teoria de feedback da relação entre o indivíduo e a
sociedade, ele democratizou o modelo com a finalidade de demonstrar que o controle
pode ser consensual (Bartlett 1927, p. 113). Em um livro anterior, Psychology and
Primitive Culture (1923), Bartlett 101
103 havia ensinado enfaticamente que o indivíduo sempre é um ser social e que as
influências sociais controlam seletivamente a cognição e a emoção. Ele já recorria
amplamente ao trabalho de Rivers e comparava algo que ele e Rivers denominavam a
"camaradagem primitiva" com a "consciência coletiva" dos escritores de L'Année
Sociologique. Descrevia como, na sociedade primitiva, o conflito é evitado por uma
separação instituída uma idéia fértil e como a curiosidade é colocada sob o controle
institucional. Um dos motivos pelos quais seu interesse pelo controle institucional sobre
o pensamento jamais se tornou algo além de uma especulação, se encontra
indubitavelmente em certos pressupostos evolucionistas atuais. Bartlett e Rivers
pensavam, juntamente com Durkheim, que o controle social da curiosidade dos
indivíduos, livre de quaisquer peias, era mais forte na sociedade primitiva. O indivíduo
primitivo era menos um indivíduo e mais um autômato, que obedecia a sugestões do
grupo. Esse pressuposto evolucionista era bastante apropriado ao período do império
colonial, e municiava este último com analogias naturalizantes. Era uma auto-evidência
o fato de que o homem moderno havia perdido sua sensibilidade natural em favor dos
sinais do grupo, assim como a raça humana perdera o sentido do olfato, tão útil nas
ordens animais inferiores. Outro pressuposto contemporâneo era o de que a memória
visual também constituía uma relíquia de um estágio menos evoluído da mente humana.
55

Supunha-se geralmente que Freud não havia empregado sua imaginação visual e ele
designou Charcot como un type visuel, com uma ponta de depreciação (Lewin 1969, p.
7). WiIliam James já havia notado uma tendência, no ciclo de vida, a perder a
capacidade de visualizar. Ele provavelmente não estava gracejando ao afirmar que
"Quanto mais velhos os homens e quanto mais eficazes, enquanto pensadores, mais eles
perderam sua capacidade de visualização, como regra geral [...] Este, segundo o sr.
Galton, era o caso de membros da Royal Society" (James 1890, I:266). Raymond Firth
(1968) observa que Rivers declarava muitas vezes possuir fraco imaginário visual. Ele,
entretanto, não se sentia excluído. Frequentemente as imagens mediante as quais os
pensamentos nos sonhos se exprimem são muito mais vívidas do que as da vida. quando
102
104 estamos despertos. embora certas pessoas, nas quais o imaginário sensorial é quase
ou totalmente ausente, quando em estado de vigília. possam ver e ouvir as ocorrências
de um sonho como se elas, definitivamente, formassem parte da vida real. Do mesmo
modo há motivos para se acreditar que o imaginário sensorial é mais vívido e necessário
ao selvagem do que às pessoas civilizadas [...] entre os povos selvagens [...] [existe] um
interesse quase exclusivo pelo concreto, com elevado grau de desenvolvimento de seus
poderes de observação e com a precisão e a plenitude de recordação dos detalhes mais
concretos (1920, p. 396). O relato de Bartlett em relação à memória entre os povos
africanos contemporâneos sugere um misterioso processo de osmose, bastante
dessemelhante do que ele considerava ser o puro raciocínio dos modernos (Bartlett
1932), mas um tanto próximo dos processos místicos invocados por aqueles que
acreditam que a pequenez da escala, em si, resolve problemas de ação coletiva. Como,
na sua opinião, essa faculdade quase instintual era menos adaptada à vida moderna,
Bartlett eximiu-se tacitamente da tentativa de estudá-ia, embora continuasse, no final,
enfatizando a importância da contribuição social à percepção. É o que se pode dizer da
influência de Rivers sobre os interesses sociológicos de Bartlett. Voltemo-nos agora
para Haddon, o outro antropólogo a quem Bartlett prezava especialmente. O trabalho de
Haddon sobre a convencionalização na arte da Melanésia influenciou a escolha de
Bartlett em relação ao lugar da pesquisa. O poder da convenção cultural em controlar a
percepção e a recordação foi, inicialmente, o problema fundamental de Bartlett. Ele
queria descobrir como a atenção é direcionada. Esperava que os processos perceptivos
do indivíduo fossem ligados às emoções mais profundas desse mesmo indivíduo. Tais
emoções, de acordo com Rivers, são determinadas pela forma das instituições. Bartlett
parece ter estado à beira de um colapso nervoso ao tentar escrever seu livro tão
prometido sobre a convencionalização. Ele havia lido todos os trabalhos da GestaIt
sobre a memória e chegou à conclusão de que os psicólogos alemães não poderiam
prosseguir o caminho que estavam trilhando. Bartlett queria realizar experimentos sobre
a percepção de um todo no lugar de fazer experimentos sobre a faculdade da memória
exerci da em um disparate desordenado. James Ward já o aconselhara a pesquisar
sequências de percepções (Bartlett 103
105 1932, p. 63). Tornou-se claro, porém, que ele estacou durante muito tempo,
enquanto procurava delinear um projeto experimental. Em 1913, Norber Wiener, que
naquela época tinha dezenove anos e já possuía um doutorado em filosofia defendido na
Universidade de Harvard, foi a Cambridge trabalhar com Bertrand Russell. Bartlett
confiou seu caderno de pesquisas ao jovem e Wiener sugeriu o método experimental
que haveria de tornar Bartlett famoso: o método de reprodução serial do "escândalo
russo". A técnica consistia em usar sequências de percepção com algum elemento
faltando ou acrescentado a um padrão, tomando nota, em seguida, de como os
56

observadores "elaboravam um projeto terminal antes de chegar a ele e como relatavam


ter visto detalhes que, na verdade, não estavam presentes ali" (Bartlett 1958, p. 142).
Essa pesquisa o capacitou a demonstrar conclusivamente a organização ativa da
percepção por parte daquele que percebia, mas ela estava projetada de tal modo que
jamais poderia descobrir ou avaliar as influências sociais que dirigem a atenção. Bartlett
tornou-se um grande elaborador de experimentos. Temos conhecimento de como eles se
tomaram cada vez mais rigorosos, sutis e sujeitos a uma classificação objetiva. É bem
verdade que o projeto de pesquisa enfocava o processo de convencionalização, mas a
hipótese original de Rivers sobre a influência institucional jamais pôde ser testada. O
rigor experimental exigia que as diferenças particulares do interesse emocional que
afetava cada indivíduo fossem estritamente excluídas. A dimensão social da experiência
era afastada dos sujeitos da pesquisa. Broadbent, que registrou a comunicação de
Bartlett no Dictionary of National Biography (1970), observou que a contribuição
especial desse autor à psicologia consistiu em mostrar que a percepção e a lembrança
são controladas por algum processo sensível aos propósitos e interesses daquele que
percebe. Entretanto, todas as ambições que Bartlett exprimira anteriormente sobre a
análise do processo seletivo foram frustadas. Sua história é repleta de ironias. O
entendido em memória tinha conseguido esquecer seus próprios ensinamentos. Ele, que
ensinava que as intenções guiam a cognição, olvidou suas próprias intenções.
Procurando um sistema cibernético, teve a sorte extraordinária de conhecer o futuro
inventor da cibernética. Sempre estava acontecendo algo que perturbava sua visão.
Aquelas idéias, boas e frágeis, submergiram nas águas 104
106 do esquecimento à espera da próxima fase no cicio das redescobertas. Se
examinarmos sua descoberta esquecida à luz de nossa prescrição para que um fato seja
bem-sucedido, descobriremos que ela já estava condenada desde o primeiro requisito.
Nunca houve e jamais existiu, desde então, um modo de inserir sua percepção sobre os
princípios seletivos institucionalizados nas fórmulas aceitas da pesquisa psicológica. Os
instrumentos analíticos que Rivers legou a Bartlett tinham a consistência de uma geléia.
Aquelas idéias de Bartlett que foram bem-sucedidas exploravam um conjunto já
existente de instrumentos. Para levar adiante seu trabalho ele não precisaria modificar
profundamente o capítulo que C. S. Myers escreveu sobre o método estatístico em A
Textbook of Experimental Psychology (1911). A análise da variação, já significativa em
outros ramos da psicologia, demografia, sociologia e economia, estava ali à mão, e
tomava-se cada vez mais sofisticada. Um instrumento bem instituído pode facilmente
arruinar a carreira de uma teoria que não consegue empregá-lo. Um método unificador
bem conectado pode descartar uma idéia que não depende de sua fórmula já autorizada.
Em nível profissional restrito a contribuição de Bartlett foi completamente positiva. No
entanto, a perda de sua percepção inicial sobre o controle social da cognição foi
contraprodutiva para nossa compreensão da cognição, bem como do tecido social.
Quem sustentaria seriamente que é errado para a sociologia tentar desenvolver uma
abordagem sistemática a fatores sociais que influenciam a cognição? Os pressupostos
que corroboram nossa teorização sociológica se impõem de maneira um tanto pesada a
esse tópico para que ele seja posto de lado como algo trivial. Parece bastante razoável
que as disciplinas aplicadas, tais como a pesquisa de mercado, reflitam sobre as
conexões entre as atitudes e as pressões sociais. Parece até mesmo razoável que os
economistas deixem as motivações a outros especialistas mas a quem, a não ser os
sociólogos? Afinal, trata-se do esquecimento socialmente estruturado. O ônus da prova
recai sobre aqueles que sustentam que existe uma vasta quantidade de trabalho sobre
este tema. Se o problema é bem conhecido, não estão sendo dados passos ativos no
57

sentido de o remediar. Uma pesquisa de pouco fôlego que liga um fator social a uma
espécie de viés não se qualifica e muito menos uma pesquisa que mostre espaços locais
105
107 lacunosos, em se tratando da cognição. É bem verdade que existe muita
investigação sendo feita sem um esquema teórico bem fundamentado. Muitas pesquisas
embarcam nesse mesmo problema, sem identificar um sistema sociallimitado, do
mesmo modo que Merton identificou um sistema de organização da ciência e, enquanto
antropólogo, identificou um grupo social. A teoria em questão, falida, procuraria
conectar de maneira sistemática a ordem social com os processos cognitivos de seus
membros. Um único termo resume todas as qualidades que possibilitam que uma
especulação se firme e então escape ao esquecimento: o princípio da coerência. É
essencial empregar a mesma metodologia entrelaçada que mantém unidos outros blocos
de atividade científica. Tendo isto assegurado, muito mais coisas serão acrescentadas;
os pesquisadores, em nível individual, saberão como ratificar suas reivindicações
particulares e como atrair colaboradores para uma ação coletiva; saberão o que pode ser
deixado de lado, com toda segurança, e o que precisa ser lembrado. O princípio da
coerência não se satisfaz com um dispositivo puramente tecnológico e cognitivo. Ele
também tem de basear-se em analogias com a natureza, já aceitas. Isto significa que ele
precisa ser compatível com os valores políticos predominantes, eles próprios
naturalizados. A ciência do século XIX recebeu grande estímulo para a pesquisa sempre
que os cientistas enxergavam em seu trabalho uma analogia global que se combinava
com a natureza. Inevitavelmente, se parecer que a analogia combina com a natureza,
isto se deve ao fato de que a analogia já está em uso para que se possam firmar
pressupostos políticos dominantes. Não é a natureza que opera a combinação, mas a
sociedade. A teoria de Ernst Haeckel segundo a qual a árvore da vida (Gould 1981, p.
114) poderia ser lida a partir do desenvolvimento embrionário de formas mais elevadas
levou a uma ampla experimentação especulativa com a idéia da "recapitulação", aquilo
que Gould denominou uma das idéias mais influentes do final do século XIX (1981).
Gould nota que Freud e Jung eram recapitulacionistas convictos e que Herbert Spencer
emprestou sua autoridade à colocação de que "os traços intelectuais dos incivilizados
[...] são os tratos recorrentes nos filhos dos civilizados [...] o corpo e a alma das
mulheres são fileticamente mais antigos e mais primitivos [...] enquanto o homem é
mais moderno" (Gould 1981, pp. 89-106
108 90). Se Rivers alcançou grande sucesso devido a seu modelo colonial de controle
psíquico, e se Bartlett negligenciou o projeto de identificar as pressões sociais sobre a
cognição do homem moderno, o sucesso obtido por um deles e o desvio da intenção do
outro podem ser explicados pelo poder de uma metáfora naturalizante e predominante.
A metáfora do progresso evolucionista na natureza era tão apropriada que qualquer
pesquisa nela baseada poderia reivindicar os benefícios de uma coerência geral. 107
109 8 AS INSTITUIÇÕES OPERAM CLASSIFICAÇÃO Quando as instituições
operam classificações para nós, parece que perdemos parte daquela independência que,
concebivelmente, poderíamos ter tido. Enquanto indivíduos, possuímos todos os
motivos para nos contrapormos e resistirmos a esse pensamento. Vivendo juntos,
assumimos uma responsabilidade individual que se estende a todos os membros da
comunidade. Assumimos a responsabilidade por nossos atos e ainda mais
voluntariamente por nossos pensamentos. Nossa interação social consiste em boa parte
em comunicarmos uns aos outros o que estávamos pensando naquele determinado
momento e em censurarmos os pensamentos equivocados. Com efeito, é assim que
58

construímos as instituições, amoldando nossas idéias e as dos outros em um formato


comum de tal modo que possamos provar nossa correção simplesmente por meio das
cifras que revelam uma aquiescência independente. A tal ponto esta reivindicação à
independência intelectual é reconhecida como base de nossa vida social, que a filosofia
moral toma uma posição exatamente aí. Por isso é tão repugnante o conceito de
Durkheim, segundo o qual o grupo social age como uma única mente. Aqui o
julgamento da história encobre um paradoxo. Quanto mais se demonstra que um
pensador influente vem repetindo os lemas favoritos de sua época, mais severamente ele
será denunciado por esse mesmo motivo pela próxima geração. Sua altissonante
grandeza não passava de um simples eco do que todo mundo estava dizendo. Ele não
era um original, simplesmente copiava. Ele deveria ter-se contraposto à sua época. Não
passava de uma simples flauta, um instrumento passivo no qual o espírito de seu tempo
soprava sua balada. O desprezo é revestido particularmente de um julgamento moral;
não depunha a seu favor o fato de aderir passivamente às últimas mudanças da opinião
sobre a escravidão, a insanidade, a eugenia ou 108
110 o império colonial. É a postura de superioridade moral mais fácil de se adotar
porque a crítica das instituições do passado está ajudando as estruturas institucionais
nascentes da época desse autor a estruturar sua própria defesa contra o passado. Esta é a
crítica marxista à razão, que resulta frequentemente em relativismo histórico. Cada
período é marcado por seu próprio estilo de pensamento, ajustado às preocupações da
classe dominante. Em cada período, uma determinada história do gênero humano abafa
versões múltiplas e contraditórias. No mesmo espírito crítico, Michel Foucault, em sua
arqueologia do pensamento ocidental, atacou todas as instituições significativas,
demonstrando como elas aprisionavam as mentes e os corpos em camisas-de-força
(1970). Ele demonstrou como o pensamento é transferido diretamente para as
instituições ou vice-versa, e como as instituições passam por cima do pensamento
individual e adaptam a forma do corpo a suas convenções. Uma instituição, entretanto,
não pode ter propósitos. Já vimos isto nas críticas do ensaio de Fleck sobre a gênese de
um fato. Somente os indivíduos podem intentar, planejar conscientemente e elaborar
estratégias oblíquas. Para que o insight de Foucault retenha seu vigor é necessário que
ele seja elevado a um novo patamar. No estágio da pertinência, quando a soberania
espúria de um estilo de pensamento do passado é demonstrado, a opinião crítica perde
seus fundamentos, a menos que possa encontrar um modo de distinguir a influência do
atual estilo de pensamento sobre seu próprio pensamento e ainda justificar seus próprios
julgamentos. As instituições dirigem sistematicamente a memória individual e
canalizam nossas percepções para formas compatíveis com as relações que elas
autorizam. Elas fixam processos que são essencialmente dinâmicos, ocultam a
influência que eles exercem e suscitam emoções relativas a questões padronizadas e que
alcançam um diapasão igualmente padronizado. Acrescente-se a tudo isso que as
instituições revestem-se de correção e agem no sentido de que sua mútua corroboração
flua por todos os níveis de nosso sistema de informação. Não é de admirar que elas nos
recrutem facilmente para que nos juntemos à sua autocontemplação narcisista.
Quaisquer problemas sobre os quais tentemos refletir são transformados
automaticamente nos próprios problemas organizacionais dessas instituições. As
soluções que elas 109
111 oferecem provêm unicamente da limitada gama de sua experiência. Se a instituição
é daquelas que dependem da participação, à nossa frenética interrogação ela responderá:
"Mais autoridade!". As instituições têm a patética megalomania do computador, cuja
única visão do mundo é seu próprio programa. Para nós, a esperança de uma
59

independência intelectual está na resistência e o primeiro passo necessário na resistência


está em descobrir como o controle institucional é imposto à nossa mente. A teoria social
de Max Weber e a de Durkheim ilustram respectivamente as vantagens mistas de se
deixar as instituições operar suas próprias classificações (Weber) e as dificuldades de
inspecionar como elas o fazem (Durkheim). Weber exerceu mais influência do que
Durkheim. Ele estabeleceu os termos para que se pudesse pensar sobre o modernismo e
o pósmodernismo. Seu sucesso se deve principalmente ao amplo quadro no qual
sintetizou aquilo que já era o pensamento de sua geração. Ele ofereceu aos intelectuais
de sua época uma visão da história de outras grandes civilizações em termos das
próprias instituições familiares desses mesmos intelectuais. Durkheim e Weber
focalizaram sua investigação na racionalidade e, especificamente, na relação entre idéias
e instituições. Para ambos o interesse principal era a emergência do individualismo
enquanto princípio filosófico. No caso de Durkheim a tarefa consistia em explicar a
indagação geral do comprometimento com a ordem social, isto é, a questão da
solidariedade, que é a mesma que a ação coletiva. Ele descobriu a resposta na
classificação compartilhada. O trabalho de Durkheim sobre a origem social da
classificação possibilita um método independente de auto-inspeção. Ele proporciona
uma técnica para a análise que poderia constituir-se em uma prova contra a distorção
institucional. Para Weber, a tarefa consistia em explicar o predomínio de determinadas
idéias e ideais em um determinado estágio de desenvolvimento institucional. Estas
observações já mostram que Durkheim havia situado sua investigação em um nível mais
elevado de abstração. Na época de Weber, as opções intelectuais instituídas eram ou de
um tipo hegeliano de idealismo (difícil e implausível, dado o clima de opinião existente
na sociologia) ou de um tipo marxista de determinismo sociológico. Ele escolheu um
meio caminho entre o idealismo e o determinismo. Tendo em vista sua monumental
contribuição à compreensão da racionalidade e das 110
112 formas institucionais, não deixou a seus seguidores um método sistemático que
possibilitasse analisar essa relação com maior sutileza. Na realidade, legou-ihes
muitíssimos problemas relativos ao que queria dizer realmente com o espírito do
protestantismo ou o espírito da época. O modelo básico da sociedade em Weber é um
equilíbrio entre os diferentes setores institucionais. Sua principal explicação para a
mudança é a descrição das forças históricas que contribuem para o desequilíbrio. O
pensamento secular divide-se em dois setores, um deles dominado pelas instituições do
mercado e o outro pela burocracia. A racionalidade do mercado caracteriza-se por um
raciocínio prático, individual, em torno dos meios e dos fins; a racionalidade burocrática
é caracterizada pelo pensamento institucional, isto é, pela abstração e o estabelecimento
de uma rotina. A dicotomia de Weber ainda domina a teoria política e conferiu um viés
inamovível a nossas maneiras habituais de refletir sobre as organizações (ver Douglas
1986). Em se tratando da sociologia da religião, Weber estabelece uma distinção entre a
vida religiosa e a vida secular. Ele aparta o comportamento secular do comportamento
religioso, situando-o em um compartimento institucional próprio. A classificação
weberiana da religião sempre segue a classificação tradicional dos papéis religiosos, que
faz parte da diferenciação regular, da vida real, das instituições religiosas. Um pensador
que classifique os fenômenos para que sejam examinados de acordo com instituições
conhecidas e visíveis poupa-se o trabalho de justificar a classificação. Já é o esquema
conceitual normal para aqueles que vivem e pensam por meio de semelhantes
instituições. Entretanto, ao proceder assim, Weber nos propõe um intricado problema
relativo à sociologia da religião. Como a religião tem sido definida institucionalmente, e
a secularização pelo desengajamento da religião em relação às instituições, a
60

secularização implica nítida perda para a religião. No entanto, retirar a vida religiosa das
instituições seculares pode acontecer sem perda da fé de cada um. O ganho, em se
tratando da fé particular, e a perda da cerimônia pública não acontecem necessariamente
no mesmo processo, conforme assinalaram muitos comentaristas. Ao abordar a história
religiosa de Israel, China e Índia, Weber emprega a estrutura institucional da sociedade
ocidental. Isto lhe possibilita recorrer ao nosso atual conceito de nossa experiência
histórica em 111
113 vez de reportar-se a qualquer teoria causal da mudança. No panorama das grandes
civilizações cada uma delas começa em uma comunidade primitiva (que continua não
sendo examinada). Em seguida, todas elas, em diferentes períodos, atravessam os
mesmos estágios: o estágio feudal, no qual o equivalente da nobreza se distingue dos
equivalentes do campesinato e do qual um setor comercial emergente acabará por
desviar todo o sistema para uma cena urbana. O início é revestido de sacralidade e
pasmo; a urbanização introduz os mercados, a intelligentsia, a burocracia, o sacerdócio
e também os grupos de párias. As instituições crescerão e convergirão para aquele ponto
que agora vivenciamos e deploramos. A história se conclui com o rasgar dos véus, a
perda do encantamento, o questionamento e o fim da legitimidade. A inverossímil
narrativa proposta por um pensamento institucional como este é que a legitimidade
sempre existiu sem ser questionada, onde quer que fosse. Que outrora tenha havido um
período de legitimidade inquestionável é uma idéia que nossas instituições usam para
estigmatizar os elementos subversivos. Por meio desse esperto recurso passa a idéia de
que a incoerência e a dúvida é algo que acaba de chegar, juntamente com os bondes e a
luz elétrica; são intrusos nada naturais naquela confiança primeva na pequenina
comunidade idílica, porém é mais plausível que a história da humanidade esteja repleta,
desde o início, de pregos cravados nos caixões locais da autoridade. O pesar de Weber
pela passagem da infância da humanidade é adoçado pela exaltação. O movimento
moderno em direção à liberdade intelectual significa o desafio colocado por um mundo
adulto, livre de sacerdócios, magia e outras tiranias. Os novos medos, por mais
aterrorizantes que possam ser, são medos reais e não falsas superstições; eles acarretam
responsabilidades e privilégios reais e não ilusões. A alvorada dourada de Weber é uma
contrapartida ao mitológico livro de Frazer, O Ramo Dourado, e ao modelo colonial da
psique elaborado por River (1920). Se eles falavam em coro é porque as mesmas
instituições estavam operando seus pensamentos. Na introdução à Ética Protestante
(1905), Weber afirmou que havia lido o mais que pudera para apresentar sua
argumentação com o máximo de clareza, mas desculpou-se por haver negligenciado a
etnografia. No contexto parece, com toda certeza, uma omissão bem menor. Como é
que aquelas 112
114 pequeninas tribos exóticas, que tanto intrigaram Durkheim e Mauss, poderiam
apresentar qualquer relevância para seu tema? Aqui, mais uma vez, ele está fazendo eco
para aquilo que seus leitores sentem ser a verdade. Ele (e eles) acreditam realmente que
uma profunda divisão separa a experiência que temos da sociedade daqueles povos que
existem unicamente nos registros dos exploradores, missionários e antropólogos. O
mesmo acreditaram os sociólogos desde então. A crença é criada por uns dois rápidos
acenos de mão. No primeiro aceno Weber nos ensinou a encarar a sociedade em termos
dos setores institucionais que conhecemos; tais setores são povoados por sacerdotes,
juízes, intelectuais, elites, proprietários de terra, arrendatários e proscritos. Nesse
cenário os problemas da racionalidade são colocados como problemas que apenas
surgem com o crescimento e conflito dessas instituições. Assim, aqueles povos cuja
sociedade não diferencia claramente os juízes, os sacerdotes, os proprietários de terras e
61

outros setores não podem ser relevantes para a história moderna. A Índia, a China e
Israel são relevantes porque sua história pode ser apresentada em termos de equilíbrio
ou desequilíbrio entre esses setores institucionais. Os aborígenes australianos e os
esquimós apenas escorregam entre as malhas da rede da investigação. Passemos ao
segundo aceno. O arcabouço hegeliano do modelo de Weber pressupõe que a história
das instituições do mundo registra a constante evolução da autoconsciência. Benjamin
Nelson (1981) apresenta um sério e claro relato sobre os pressupostos weberianos da
consciência humana em desenvolvimento. Enquanto nosso interesse girar em torno do
interesse final, então haverá pouco a se ganhar do exame das fases iniciais do
movimento. Aqui oculta-se outra idéia convincente, isto é, o esnobismo do mundo da
escrita. Os povos que não registraram por escrito suas meditações filosóficas não podem
possuir princípios articulados que Ihes possibilitem refletir sobre a ordem social. Na
qualidade de contemporâneo, Durkheim caiu em todas essas armadilhas institucionais.
Ele partiu da mesma distinção básica entre primitivos e modernos, e também as encarou
pelo emprego que elas fazem de diferentes procedimentos mentais. Seria uma tolice
sugerir que ele, igualmente com sentimentos confusos, também não subscrevesse a idéia
de 113
115 uma alvorada dourada da humanidade. Para ele, a graça salvacionista não estava no
interesse pela reconstrução das várias fases da evolução que se desenrolaram do início
até agora. Assim, sua teoria não é tão sobrecarregada de pressupostos institucionalmente
estabelecidos. Seu modelo evolucionista apresenta apenas dois estágios: o estágio
primitivo da solidariedade mecânica, baseada em classificações compartilhadas, e o
estágio moderno de solidariedade orgânica, baseado na especialização econômica e na
troca. Se retirarmos as escoras evolucionistas da teoria de Weber, não sobra nada, com
exceção das séries hierárquicas de instituições. Se as retirarmos da teoria de Durkehim,
sobram-nos duas formas de comprometimento social, uma delas ciassificatória e a outra
econômica. Até mesmo Durkheim não acreditava que a solidariedade classificatória
estava associada unicamente a estágios subdesenvolvidos da divisão do trabalho, pois
dispensava muita atenção às idéias estandartizadas do que é certo e do que é errado na
sociedade moderna. Ler isoladamente As Formas Elementares da Vida Religiosa do
restante da obra de Durkheim é garantir sua compreensão equivocada, já que o
pensamento deste autor era um arco simples, no qual cada publicação relevante era um
pronunciamento necessário. Ele batia sempre na mesma tecla, isto é, a perda da
solidariedade classificatória. Deplorava a impossibilidade de a substituir e as crises da
identidade individual que decorrem da ausência de classificações vigorosas que prestem
apoio publicamente compartilhadas e particularmente internalizadas. Durkheim ensinou
que as idéias publicamente padronizadas (representações coletivas) constituem a ordem
social. Reconhecia que o domínio que elas exercem sobre o indivíduo varia quanto à
força. Denominando-a densidade moral, ele tentou medi-ia e avaliar os efeitos de suas
fraquezas. De acordo com Durkheim, o método sociológico requer que as reações
individuais sejam tratadas como fatos psicológicos a ser estudados em um quadro de
referência da psicologia individual. Somente as representações coletivas constituem
fatos sociais e estes contam mais do que os fatos psicológicos porque a psique
individual é constituída por classificações socialmente construídas. Como a mente já é
colonizada, deveríamos pelo menos tentar examinar o processo colonizador. 114
116 Quando Durkheim escreveu com Marcel Mauss o ensaio sobre a classificação
primitiva (1903), aquilo que já era uma convicção a longo prazo (isto é, o ato de que a
solidariedade se baseia em classificações compartilhadas) começou a tomar-se um
método. É verdade que Weber relacionou estilos diferenciados de raciocínio com tipos
62

diferenciados de instituições e, portanto, é verdade que este é também seu programa. No


entanto, seus avisos de que o sagrado havia sido afugentado e que agora os indivíduos
permanecem em um território sem legitimação, bem como seu tributo ao espírito da
época, exerceram um efeito soporífico. A pesada tarefa de classificar tipos de sistemas
de classificação e as atitudes morais a eles associadas mal foi encetada. Enquanto todos
os demais adotavam posturas institucionalmente prescritas sobre a modernidade, a perda
da legitimidade, o maravilhamento e a sacralidade, Durkheim e Mauss propunham
analisar até que ponto as classificações mundanas que empregamos são projeções da
estrutura social que participam da aura da sacralidade. O sagrado de que os weberianos
sentiam falta era uma mística impossível de se analisar. O sagrado, para Durkheim e
Mauss, eram classificações mais misteriosas e ocultas do que compartilhadas,
profundamente acalentadas e violentamente defendidas. Isto não é tudo: esse conceito
do sagrado é passível de análise. Ao escrever sobre o sagrado Durkheim tentava
averiguar como as instituições operam a classificação. Não era seu pensamento que o
poder sagrado cintila como uma propriedade inerente às constituições e aos reis, mas
exatemente o contrário. Os povos que escolheu para representar as formas sociais
elementares não possuem constituições, reis ou qualquer autoridade coercitiva
superordenada. Para os australianos, o sagrado só pode retirar seu poder de seu próprio
consenso. Sua força coercitiva, que arma o universo inteiro com tabus punitivos com o
objetivo de reforçar o comprometimento oscilante do indivíduo, baseia-se em
classificações existentes na cabeça desse mesmo indivíduo. Baseia-se essencialmente
em classificações que dizem respeito à divisão do trabalho. Assim, a teoria do sagrado
em Durkheim não diz respeito apenas a civilizações que desaparecem mas também se
refere aos modernos, já que nós temos uma sociedade baseada na divisão do trabalho. O
livro sobre o suicídio (1897) e o desenvolvimento do conceito de anomia constituem a
melhor demonstração 115
117 de que Durkheim esperava que aprendessemos sobre nós mesmos a partir das
sociedades etnográficas. O programa de pesquisa de Durkheim inicia-se com a
possibilidade de que existe uma boa ou má adequação entre as classificações públicas e
privadas. Se a adequação é má, isto pode ocorrer por dois diferentes motivos: o
indivíduo pode rejeitar as classificações públicas e recusar a permitir que elas exerçam
qualquer domínio sobre seus próprios julgamentos ou pode aceitar o mérito das
classificações públicas, mas sabe ser incapaz de dar conta dos padrões esperados.
Finalmente as classificações públicas podem ser relativamente coerentes ou estar em
estado de incoerência. De acordo com Durkheim, essas relações entre o estado de
espírito do indivíduo e as expectativas padronizadas de sua sociedade têm sido muito
consideradas pelos sociólogos como fontes de anomia, dando lugar a um
comportamento desviante. Com efeito, o conceito de anomia possui abundante
literatura. No entanto, o desvio geralmente não tem sido identificado pelo exame
sistemático das normas, mas pelos sinais de rejeição por parte da sociedade principal. O
desvio que resulta em mudança não é contado como anomia. Os sociólogos têm
demonstrado tendência para assimilar a complexa argumentação do livro de Durkheim
sobre o suicídio, bem como As Regras do Método Sociológico para uma distinção, entre
os de dentro e os de fora. O programa de pesquisa é relativamente simples: observar os
membros de um grupo reclassificando seus membros desviantes, dando-ihes o status de
quem está de fora. Em Classificação Primitiva os co-autores sugerem um programa
muito diferente. Aquilo que constitui o desvio não pode ser auferido enquanto as
dimensões da conformidade não forem delineadas. Para avaliar graus de conformidade
entre nós mesmos precisamos fazer a mesma contagem meticulosa de categorias,
63

verificando como o mundo físico transforma-se em uma projeção do mundo social. Para
nós é o mesmo que ocorre com os esquimós e australianos. Precisamos usar o mesmo
método de construir o norte e o sul, a esquerda e a direita, todos eles repletos de padrões
de dominação, congregação e dispersão, não apenas para nós como também para os
chineses e os índios zuni. É de se reconhecer que Durkheim jamais articulou semelhante
programa a moderna sociedade industrial. O estilo de pensamento de sua época 116
118 comemorava com tamanha ênfase a evolução social que ele só enxergava em tomo
de si a marca da modernização com o inevitável acompanhamento de uma incoerência
cada vez maior. Aceitava aquela idéia popular segundo a qual o homem moderno
escapou do controle das instituições, compartilhada pela maioria de seus
contemporâneos. Um discípulo que queira defender a tese principal de Durkheim, ainda
que hesitando em aplicá-ia aos modernos, pelo menos dispõe do método deste autor
como um instrumento para a descoberta de nossas próprias representações coletivas. O
grande triunfo do pensamento institucional é tomar as instituições completamente
invisíveis. Quando os grandes pensadores de uma determinada época concordam que os
dias atuais não se assemelham a nenhum outro período e que um grande abismo nos
separa de nosso passado, temos um primeiro vislumbre de uma classificação
compartilhada. Como todas as relações sociais podem ser analisadas como transações de
mercado, a penetração deste mesmo mercado alimenta em nós, com grande sucesso, a
convicção de que escapamos dos antigos controles institucionais, que não se referiam ao
mercado, e conquistamos uma liberdade nova e perigosa. Quando também acreditamos
que somos a primeira geração que não é controlada pela idéia do sagrado e a primeira na
qual seus componentes se vêem cara a cara uns com os outros enquanto indivíduos reais
e que, em consequência, somos os primeiros a alcançar uma ampla autoconsciência,
então existe, incontestavelmente, uma representação coletiva. Ao reconhecer este fato,
Durkheim teria de admitir que a solidariedade primitiva, baseada numa classificação
compartilhada, não se perdeu completamente. Para analisarmos nossas próprias
representações coletivas deveríamos relacionar aquilo que é compartilhado em nosso
equipamento mental com nossa experiência comum em relação à autoridade e ao
trabalho. Para saber como nos contrapormos às pressões classificatórias de nossas
instituições, gostaríamos de iniciar um exercício classificatório independente.
Infelizmente todas as classificações de que dispomos para pensar são pouco originais,
juntamente com nossa vida social. Para pensarmos sobre a sociedade temos à mão as
categorias que empregamos como membros da sociedade, que dialogam uns com os
outros sobre nós mesmos. Essas categorias de ator funcionam em todos os níveis
possíveis. No topo se situariam as regras 117
119 sociais mais gerais e, na base, as mais particulares. Quando tentamos designar itens
a esse nível básico de classificações sociais gerais, mínimas, poderemos surpreender-
nos pensando em situações domésticas e enumerando os papéis das crianças, dos
adultos, dos homens e das mulheres. Partindo desse ponto, reproduziremos
automaticamente o esquema de autoridade e a divisão do trabalho no lar, mas será muito
diferente se um indiano ou um americano estiver pensando, conforme observou com
muita sagacidade Ravindra Khare, antropólogo indiano que ensina nos Estados Unidos
(Khare 1985, p. 43). Poderemos também começar abordando os papéis desempenhados
por aqueles menos envolvidos na organização social, os vagabundos, por exemplo, e
nos deslocarmos da periferia para os centros de influência. Poderemos ainda começar
pelos bebês e subirmos na estrutura etária. Em cada caso adotaremos as categorias
usadas pelos nossos administradores para recolher impostos, operar recenseamentos da
população e avaliar a necessidade de escolas ou prisões. Nossas mentes já estarão
64

percorrendo as velhas trilhas. Como é possível pensarmos sobre nós mesmos na


sociedade a não ser usando as classificações estabeleci das em nossas instituições? Se
nos voltarmos para os vários cientistas sociais verificaremos que suas mentes estão
ainda mais profundamente cativas. Seus objetos de estudo se inserem em categorias
administrativas, nas quais a arte está separada da ciência, o afeto da cognição, a
imaginação do raciocínio. Tendo em vista fins de controle jurídico e administrativo,
encontramos pessoas rotuladas de acordo com níveis de capacidade e verificamos que o
pensamento está classificado como racional, insano, criminoso e criminosamente
insano. A tarefa de classificação, que já é realizada por nós, é executada como um
serviço para profissões instituídas. Ao mesmo tempo em que as instituições produzem
rótulos, existe um feedback que se refere ao conceito de auto-realização, enunciado por
Robert Merton. Os rótulos estabilizam o fluxo da vida social e até mesmo criam, até
certo ponto, as realidades a que eles se aplicam. Ian Hacking abordou a relação entre o
rótulo e a realidade a partir de pistas sugeri das pelo estudo de Michel Foucault sobre a
"constituição dos sujeitos". A este processo Hacking denomina "a construção da
pessoa", ao rotulá-ias e ao assegurar, de várias maneiras, que elas se conformarão aos
rótulos (1985). Trabalhando 118
120 com as estatísticas do século que focalizavam o desvio e o controle dos desviantes,
ele sugere que a construção das pessoas é de origem recente. O antropólogo inclina-se
imediatamente a contestar. As pessoas sempre rotularam umas às outras, com as
mesmas consequências os rótulos pegam. Hacking, porém, deve estar com razão ao
acrescentar que "a mera proliferação de rótulos durante o século XIX pode ter
engendrado, de modo vasto, mais tipos de pessoas do que o mundo até então
conhecera." Uma verdadeira avalanche de cifras começou a surgir nas agências
governamentais que se dedicavam à estatística na Europa por volta de 1820. O exercício
da contagem, uma vez iniciado, gerou milhares de subdivisões. Com a mesma
velocidade com que novas categorias médicas, que até então não haviam sido
imaginadas, ou novas categorias criminais, sexuais ou morais foram inventadas, novos
tipos de pessoas apresentaram-se em hordas para aceitarem os rótulos e viverem de
acordo com eles. A receptividade a novos rótulos sugere uma extraordinária presteza a
se encaixar em novos nichos e a deixar que o conceito do eu seja redefinido. Não é
como a nominação que, de acordo com os filósofos nominalistas, cria uma versão
particular do mundo, ao distinguir certo tipo de coisas, por exemplo, dar nome às
estrelas, colocando algumas em primeiro plano e deixando outras desaparecer de vista.
Trata-se de um processo muito mais dinâmico, pelo qual nomes são enunciados e, sem
demora, emergem novas criaturas que a eles correspondem. A colocação de Hacking é
que as pessoas não recebem simplesmente um novo rótulo e voltam a adquirir
proeminência, mas ainda se comportando como se comportariam caso levassem esse
rótulo ou não. As novas pessoas se comportam de maneira diferente de seu
comportamento no passado. Elaborando a diferença entre as pessoas e as coisas,
diremos que aquilo que os camelos, as montanhas e os micróbios estão fazendo não
depende de nossas palavras. O que acontece com os bacilos da tuberculose depende se
os matamos com a vacina BCG, mas não depende da maneira como os descrevemos [...]
é a vacina que mata, não nossas palavras. A ação humana é mais estreitamente ligada à
disciplina humana do que a ação bacteriana (Hacking 1985. p. 13). Hacking está
estabelecendo uma distinção entre o efeito da descrição 119
121 sobre os objetos inanimados e o efeito dos nomes sobre os seres humanos. A
aplicação de injeções pode matar os micróbios: "as possibilidades para os micróbios são
delimitadas pela natureza, não pelas palavras." O contraste, porém, não é tão claro, pois
65

não são as palavras que fazem as coisas para as pessoas. O rótulo não é motivo para que
elas modifiquem sua postura e recomponham seus corpos. A aplicação de injeções
tóxicas também poderia matar as pessoas e os micróbios não são menos receptivos às
palavras do que os seres humanos. Tendo em vista uma comparação justa, o processo de
rotulação, em ambos os casos, faz parte de uma ação coatora mais ampla e as plantas, os
animais e os micróbios reagem ainda mais veementemente do que os seres humanos. É
bem verdade que o bacilo pode morrer, mas, em um período muito curto, surgem novas
cepas, não para se conformarem com os rótulos, mas para os desafiarem. Surgem
milhões de novos bacilos, jamais imaginados, mas imunes aos ataques desfechados
contra eles e que recorrem a antigos rótulos. Do mesmo modo que os pervertidos
sexuais, os histéricos ou os maníaco-depressivos, os seres vivos que interagem com os
seres humanos transformam-se para se adaptar ao novo sistema representado pelos
rótulos. A diferença real pode ser que a vida fora da sociedade humana transforma-se,
afastada dos rótulos, em atitude de autodefesa, enquanto a vida na sociedade humana
transforma-se, aproximando-se dos rótulos, na esperança de obter alívio ou vantagens.
O mérito especial de se chamar a atenção para a receptividade aos nomes consiste em
convidar os filósofos a modificar seu enfoque. Em vez de se concentrar na nominação
como um modo de indicar determinados itens, sistemas completos de conhecimento são
esclarecidos, mediante a abordagem de Foucault. A relação entre as pessoas e as coisas
que elas nomeiam jamais é estática. Conforme diz Nelson Goodman, a relação ocorre
no interior de um sistema que evolui (1978). A nominação é apenas um conjunto de
inputs; ela se situa na superfície do processo de classificação. A interação que Hacking
descreve dá voltas e vai das pessoas que fazem as instituições para as instituições que
operam as classificações, para as classificações que acarretam ações, para as ações que
buscam nomes e para as pessoas e outras criaturas vivas que reagem à nominação de
modo positivo ou negativo. 120
122 Tendo aceitado que as pessoas classificam, também podemos reconhecer que sua
classificação pessoal possui algum grau de autonomia. As comunidades classificam de
maneira diferente. Conforme já vimos, as instituições sobrevivem atrelando todo o
processo de informação à tarefa de se afirmarem. A comunidade instituída bloqueia a
curiosidade pessoal, organiza a memória pública e impõe heroicamente a certeza ou a
incerteza. Ao delimitar suas próprias fronteiras, ela afeta todos os níveis inferiores de
pensamento de tal modo que as pessoas se dão conta de suas próprias identidades e
classificam umas às outras por meio da afiliação à comunidade. Como ela usa a divisão
do trabalho como fonte de metáforas no intuito de afirmar-se, o autoconhecimento e o
conhecimento que a comunidade tem do mundo deve passar por mudanças quando a
organização do trabalho muda. Quando ela alcança um novo nível de atividade
econômica, novas formas de classificação devem ser conceituadas, mas as pessoas não
controlam individualmente a classificação. Trata-se de um processo cognitivo que as
envolve da mesma maneira com que elas são envolvidas com as estratégias e resultados
finais do cenário econômico na constituição da linguagem. As pessoas, individualmente,
fazem escolhas no interior das classificações. Algo mais governa suas escolhas, isto é,
alguma necessidade de uma comunicação mais fácil, um impulso para um novo
enfoque, tendo em vista a precisão. A mudança será uma réplica à visão de um novo
tipo de comunidade. Por exemplo, por que motivo os vinhos tiveram seus rótulos
subitamente modificados? Os fregueses do Chesse Cellar, em Evanston, selecionam
agora seus vinhos de acordo com os nomes das variedades de uva. Será esta uma
escolha autêntica? Será que algum restaurateur tomou a decisão de não mais oferecer os
vinhos de Bordeaux, Bourgogne, Loire ou Reno, St. Emilion ou Sauterne? O que
66

significa para a teoria da classificação que os fregueses agora estejam solicitando o


Zinfandel, o Gamay e o Sauvignon, embora o vinho possa proceder de Bordeaux? A
mesma moda deu novo nome aos tecidos. Eles costumavam ser classificados pelos
nomes dos lugares de sua proveniência: o xantungue e o crepe da China vinham da
China, o paisley, de Paisley, a popelina, de Avignon, a cambraia, de Cambrai, a Iila, de
Lille, o cashmere, da Caxemira, a 121
123 seda de Macclesfield, de Macclesfield. Agora eles são rotulados como algodão
puro, seda pura, lã pura, náilon, poliéster ou rayon. Os sinestes de ouro e de prata
baseiam-se em seu lugar de origem, mas hoje o simples peso muitas vezes nos diz mais.
Os livros de zoologia destinados às crianças ainda classificam as aves e os animais por
regiões, as enciclopédias de mitologia apresentam os mitos como provenientes de
Grécia, Roma, da orla celta ou da Índia. A estatística global, um sofisticado exercício
interpretativo, ainda em sua infância, recorre à abordagem do atlas mundial. Na Bíblia
os rótulos judeu, nazareno ou samaritano diziam muito sobre a pessoa. Agora, porém, as
classificações baseadas na constituição genética e status educacional, psiquiátrico ou
ocupacional fazem uma diferença. Lawrence Rosen expressou claramente o contraste no
conceito da pessoa como uma identidade negociada no âmbito de uma comunidade. No
Marrocos, a identidade social começa com a idéia do lugar, não simplesmente o lugar de
origem, mas também a soma total das negociações e redes espacialmente delimitadas
que uma pessoa estabeleceu. Uma parte muito considerável do caráter de um indivíduo
é constituída pelo meio social do qual ele retira sua formação. Para os marroquinos, as
regiões geográficas são espaços habitados, domínios nos quais as comunidades se
organizam para ganhar a vida e forjar um grau de segurança [...] seu principal enfoque
está na identidade das pessoas in situ porque o próprio lugar é um contexto social
através do qual o indivíduo acostuma-se aos meios de criar um espaço vivido. Estar
ligado a um lugar significa, portanto, não só ter um ponto de origem, mas também
possuir aquelas raízes sociais, aquelas realizações humanas que são distintivas para o
tipo de pessoa que alguém é (1984, p. 23). Em outra passagem, Rosen contrasta esta
visão da pessoa como alguém que tem raízes em um grupo e em um lugar com uma
visão moderna. Assim, quando um americano pode, antes de mais nada, querer situar
um outro, perguntando o que ele faz (isto é. a que ocupação se dedica) porque tal
informação transmite todo um conjunto de implicações para as atitudes econômicas,
sociais e políticas, no Marrocos a principal indagação é "onde estão suas origens?", pois
é essa informação que, inicialmente, transmite um grau de previsibilidade sobre os tipos
de laços possíveis de se estabelecer com esse homem. 122
124 Alguma coisa acontece dentro de nossas cabeças quando um diferente tipo de
organização tornou obsoletas as antigas classificações segundo os lugares. A mudança
não é uma escolha proposital ou consciente. As instituições ocultam sua influência de
tal maneira que mal notamos qualquer mudança. Uma dessas modificações do
pensamento se acha registrada na trajetória do Dictionnaire Universal du Commerce, de
Savary des Bruslon. Savary era um funcionário da real alfândega, no reinado de Luís
XIV. Seu dicionário do comércio foi a primeira tentativa de sistematizar o
conhecimento acumulado pelos mercadores, produtores, funcionários do governo e
consumidores. A partir dela, William Reddy tenta compilar "a paisagem mental do
comércio têxtil no início do século XVllI" (Reddy 1986). "Editado pela primeira vez
entre 1723 e 1730 e reeditado, pirateado e traduzido pelo menos mais seis vezes, entre
1741 e 1784," obteve um sucesso inicial extraordinário, mas, por volta de 1784, a nova
edição era pouco mais do que uma inconsistente colcha de retalhos, tantas haviam sido
as revisões. Tantas coisas aconteceram em 43 anos que se necessitava de um dicionário
67

completamente novo, organizado de acordo com um novo esquema racional,


correspondente às mudanças ocorridas no comércio e na manufatura. No entanto, às
vésperas da revolução, uma tal mudança era impensável. Para escrever esses
documentos ciassificat6rios como guias e dicionários, as instituições que estão a postos
operam elas mesmas as classificações. Para descrever os meandros do comércio têxtil
no século XVIII, Savary necessitou toda a perícia de um entendido. Toda pessoa que se
dedicava ao comércio exercia um conhecimento complexo, focalizado na comunidade,
baseado nos nomes dos lugares, das guildas e dos selos graças aos quais seus produtos
podiam ser reconhecidos e ter sua qualidade garantida. Após a revolução fracassaram
várias tentativas no sentido de editar e atualizar um dicionário até 1837, quando
Guillaumin Publishers lançou um novo dicionário, escrito por uma grande equipe de
professores, comerciantes e banqueiros. Após 50 anos de experiência com o livre
comércio, a regulamentação já não se apresenta mais como um problema: "nada se
interpõe entre o produtor e o comprador; o próprio processo de produção é, 123
125 portanto, a única possível fonte de distinções para determinar o que é um tecido". A
essa altura as guildas já não existiam mais. Os resultados que elas garantiam e que
constituíam a principal preocupação de Savary foram substituídos no dicionário por
processos, materiais e custos, organizados alfabeticamente. Novas categorias foram
designadas e páginas e mais páginas são dedicadas às matérias-primas, às plantas, a seus
lugares de origem e à fibra (suas propriedades químicas e mecânicas e o estágio de sua
transformação em fio). Algumas categorias de tecido foram ampliadas; há menos a se
dizer a respeito de variedades específicas de tecido. A produção constitui a principal
preocupação. Reddy descreve o dicionário de 1837 como uma imensa tarefa de
reelaboração do pensamento. O próprio conceito de mercadoria havia mudado e cada
mercadoria específica usada na Europa tinha de ser concebida novamente. À medida em
que Reddy analisa as diferentes categorias nos dois dicionários, ele põe a nu um
determinado tipo de mudança na economia. A fabricação do tecido há muito foi
desligada das instituições do antigo regime. Já não corresponde mais ao gosto, no trajar,
de uma sociedade estratificada, nem às regulamentações e privilégios de um corpo de
tecelões e comerciantes urbanos, nem aos hábitos de produtores camponeses que
trabalham no interior, nem aos métodos operacionais do governo em Versalhes. As
instituições da indústria têxtil alcançaram um nível de organização tal que um dicionário
pode organizar uma lista de seus processos e materiais independentemente daqueles
pertencentes ao setor manufatureiro de uma economia de mercado. E o que dizer do
comércio de vinhos franceses? Foi a indústria de vinhos da Califórnia, seguindo
semelhantes processos de industrialização, que forçou de tal modo a mudança da
nomenclatura que a abordagem da classificação do vinho, em forma de atlas, que
funcionou bem na Europa, já não é mais apropriada. Os dois diagramas a seguir
mostram a diferença. Seis dos mais renomados produtores de Bordeaux e seis dos mais
ambiciosos produtores de vinhos do Vale de Napa, na Califórnia, foram escolhidos para
se comparar um com o outro, não apenas quanto à qualidade de seus vinhos mas
também no que se refere à escala. Do lado francês, a escala da produção vai de 3750 a
30000 caixas por ano. Alguns estabelecimentos vinícolas da Califórnia produzem acima
de 1.000.000 caixas anualmente, mas não é difícil 124
126 emparelhar-se com a escala francesa de produção. Isso demonstra que a escala não
constitui uma diferença decisiva na mudança a ser descrita. A produção californiana é
altamente diferenciada. Cada estabelecimento vinícola produz uma grande variedade de
vinhos, cada um de uma diferente uva, enquanto os produtores franceses tendem a
especializar-se em um ou dois vinhos e em uma mistura de uvas. Na classificação
68

francesa o fator geográfico é proeminente. Pode-se começar afirmando que Bordeaux é


uma região da França; no território de Bordeaux existem regiões menores (Médoc, St.
Emilion, Graves, Côtes); os círculos concêntricos focalizam os chateaux. Surge então
um princípio de qualidade. Médoc tem uma classificação baseada no preço médio
alcançado pelo vinho ao longo dos cem anos anteriores a 1855. É fora de dúvida que
essa classificação identificava a terra mais apropriada aos vinhedos. A classificação de
acordo com a qualidade reconhece a primeira, a segunda, a terceira e a quarta safra e, na
base da escala, está um Cru Bourgeois. Abaixo desse nível situam-se safras sem
classificação. Seguindo esse critério de qualidade, o chateau é considerado não tanto
uma propriedade rural quanto uma certa marca, de cuja reputação o proprietário é
extremamente zeloso. Como os proprietários do Médoc herdaram sua posição
hierárquica da classificação de qualidade efetuada em 1855, eles estão sujeitos a
padrões auto-impostos. Em St. Emilion, a qualidade é verificada por um comitê; alguns
dos chateaux mais famosos, os Premiers Grands Crus, têm de renovar seu direito a um
posto mais elevado na classificação a cada dez anos. Outros, os Grands Crus, têm de
submeter cada safra aos provadores de vinho. Nos dois casos, a grande preocupação em
se manter a qualidade e em se manter um nome assemelha-se à preocupação, nesse
mesmo sentido, das guildas de tecidos. E, a exemplo das guildas, cada chateau fabrica
seu próprio produto. Dar o nome ao vinho, segundo a região e o chateau, significa
condensar uma informação que só pode ser desvendada por quem é conhecedor do
assunto. O nome traz em si um processo que já foi experimentado, uma mistura
tradicional de uvas, um solo, o declive de um vale e um clima. Ele desafia qualquer
outra racionalização. E, a exemplo das guildas de tecidos, é uma instituição
monopolística que protege o produtor. Ela pertence a um sistema de controle
alfandegário e tributário. Na Califórnia, o chateau e os nomes 125
127 regionais não poderiam ser ligados aos vinhos sem violar um direito de
propriedade. Foi esse um dos motivos pelos quais os vinhos da Califórnia só poderiam
denominar-se do tipo Bordeaux ou Bourgogne. Eles, porém, não se viram tentados a
estabelecer um vinho do tipo Vale de Napa. Com toda certeza teriam tido condição de
agir assim, se o vinho californiano tivesse sido desenvolvido em um período anterior,
antes da comercialização em larga escala, abrangendo todo um continente, fizesse parte
de seus objetivos. Quem poderá afirmar se, a exemplo dos vinhos Bordeaux, seu
produto teria sido capaz de firmar uma identidade em tomo do Napa, inconfundível,
padronizada e, ainda assim, variada? Em vez disso eles escolheram, ou foram levados a
percorrer, a trilha da diversificação. Sua classificação baseiase no tipo de uva. Em nosso
diagrama, dois estabelecimentos vinícolas usam, cada um, três tipos de uva para três
tipos de vinho. Um deles usa doze. A 126
128 amplitude da variedade dos tipos na indústria vinícola da Califórnia muito nos diz a
respeito da especialização de um estabelecimento vinícola. Se acompanhássemos os
métodos de vinicultura ou o tratamento do vinho nos vários estágios ou as técnicas de
engarrafamento e arrolhamento, a mesma exibição de processos experimentais e a
produção de tipos especializados de vinhos seria colocada a nosso alcance. Surgiu
aquilo que Weber denominou um tipo de racionalidade pragmática, que envolve meios e
fins, orientada para o mercado. Cada estabelecimento vinícola está 127
129 procurando um espectro diversificado de vinhos especializados, em um mercado
altamente diversificado. The World Atlas of Wines (Johnson 1981), que usa tão bem a
questão do lugar para explicar os vinhos franceses, é tão irrelevante para o cenário
californiano quanto o dicionário de comércio de Savary o era para descrever os têxteis
69

franceses na estrutura pósrevolucionário do século XIX, e pelos mesmos motivos. Os


processos industriais em larga escala são suas próprias instituições. Eles não podem ser
encaixados nos padrões de um controle local, da comunidade. É assim que os nomes se
modificam e é assim que as pessoas e as coisas são remodeladas para se adequarem a
novas categorias. Inicialmente as pessoas são tentadas a sair de seus nichos devido às
novas possibilidades de se exercer ou evitar o controle. Em seguida elas elaboram novos
tipos de instituições, as instituições elaboram novos rótulos e os rótulos elaboram novos
tipos de pessoas. O próximo passo na compreensão de como entendemos a nós mesmos
consistiria em classificar tipos de instituições e tipos de classificações que elas usam de
maneira muito própria. É provável que haja um tipo de processo classificatório distinto,
que pertence a instituições religiosas, além de outros tipos distintos, que se prendem a
instituições médicas, pedagógicas, militares e a outras instituições. Os dicionários da
indústria têxtil francesa mostram que as classificações que emanam das instituições
administrativas possuem uma base territorial, enquanto aqueles que emanam das
instituições manufatureiras focalizam a produção. O que as classificações podem ou não
fazer e a que objetivo elas atendem é algo diferente, em cada caso que se apresenta.
Uma classificação de estilos classificatórios seria um primeiro passo positivo para se
pensar sistematicamente sobre os distintos estilos de raciocínio. Seria também um
desafio à soberania de nosso próprio estilo de pensamento institucionalizado. A
comparação das classificações como um índice de outras coisas que estão acontecendo
em nossa sociedade propicia uma pequena e provisória rota de fuga do círculo de auto-
referência. Podemos observar nossas próprias classificações da mesma forma que
podemos observar nossa própria pele e nosso sangue em um microscópio. Podemos
reconhecer as regularidades que surgem em conjuntos inteiros de operações
classificatórias do mesmo modo que os gramáticos podem estudar as regularidades nas
mudanças da sintaxe 128
130 e da fonética. Não existe nada autocontraditório ou absurdo em lançar um olhar
sistemático nas classificações que nós mesmos operamos. As dificuldades lógicas
começam quando tentamos desenvolver idéias, livres de valor, sobre a boa sociedade.
Tais dificuldades, porém, precisam ser enfrentadas se não quisermos deixar nossas
buscas mergulhadas em um caldo de relativismo filosófico. Não é de modo algum
objetivo deste livro postular que devido ao fato de as instituições elaborarem uma parte
tão grande de nosso pensamento, não possa haver comparações entre diferentes versões
do mundo, e muito menos se pretende ensinar que todas as versões são igualmente
certas ou erradas. 129
131 9 AS INSTITUIÇÕES TOMAM DECISÕES DE VIDA E MORTE Uma idéia
reconfortante, porém falsa, sobre o pensamento institucional adquiriu recentemente
certa aceitação. Trata-se do conceito de que as instituições apenas realizam o
pensamento rotineiro, de baixo nível, do dia a dia. Andrew Schotter, que descreveu tão
bem as instituições como máquinas para pensar, acredita que as decisões de menor
importância são encaminhadas para um processamento institucional, enquanto a mente
do indivíduo fica livre para ponderar questões importantes e difíceis (Schotter 1981, p.
149). Não há motivos para se acreditar em tão benevolente isenção. É mais provável que
prevaleça o contrário. O indivíduo tende a deixar as decisões importantes para suas
instituições, enquanto se ocupa com as táticas e os detalhes. Para demonstrar este fato é
melhor reformular a questão inicial. Insistimos acima que é altamente improvável que
as instituições poderiam emergir, sem empecilhos, de uma uma situação momentânea de
interesses convergentes e de uma mescla, não especificada, de coerção e convenções. A
experiência, aliás vasta, nos mostra o quão facilmente elas se fragmentam e entram em
70

colapso. O que resta a ser explicado é como as instituições começam a se estabilizar.


Tornar-se estável significa assumir alguma forma reconhecível. É admirável como as
instituições passam a apresentar tipos estáveis que podemos reconhecer em diferentes
épocas e circunstâncias. O fato de podemos falar de uma burocracia de complexidade
bizantina ou de que podemos reconhecer os instrumentos monetários sob uma forma
exótica é a prova da existência de tipos de instituições resistentes. A economia
institucional sugere por que uma determinada forma institucional faz mais sentido para
os indivíduos racionais em determinado entorno econômico do que em outro. Ela não
explica o processo mediante o qual a instituição se mantém, bem como aquilo que a
cerca, com suficiente 130
132 estabilidade para ser reconhecida pelo indivíduo que faz uma escolha racional. A
teoria da informação chama particularmente nossa atenção para os padrões divergentes.
Ela pressupõe que para qualquer padrão toma-se necessária uma base anterior de
energia. Um padrão de determinada complexidade, uma vez estabilizado, emprega
menos energia do que aquela de que se necessitava para fazê-lo existir. Vejamos, por
exemplo, o que acontece com o calor por debaixo de uma vasilha com água: decorre
algum tempo antes que a água comece a rodopiar e borbulhar. Se mais energia for
empregada, ela terá de ser usada por novos padrões de complexidade. Deve existir
algum meio de dissipar qualquer energia que se mostre excessiva em relação àquilo que
é necessário para manter o padrão (Prigogine 1980). Acima e abaixo de certo ponto, o
aporte extra de energia não conseguirá ser absorvido por uma complexidade cada vez
maior e haverá uma mudança radical em todo o padrão. Por exemplo, a água se
transformará em vapor. Escrever sobre as instituições como padrões complexos de
informação, como faz Schotter, e pensar na relativa eficiência de seus canais de
comunicação, a exemplo do que faz O. E. Williamson, deveria fazer com que se levasse
em conta a quantidade de energia usada para estruturar determinado tipo de instituição e
como ela é distribuída em um padrão mais ou menos complexo. A partir disso, chegar-
se-ia a avaliar o volume de transações que essa energia é capaz de manejar. Caso
contrário a teoria da informação, na ciência política, será meramente um objeto de
decoração de vitrina, uma nova metáfora em voga, que substituirá a metáfora
funcionalista datada dos anos de 1950. Qualquer instituição que vai manter sua forma
precisa adquirir legitimidade baseando-se de maneira muito nítida na natureza e na
razão. Então ela propiciará a seus membros um conjunto de analogias por meio das
quais se poderá explorar o mundo e com as quais se justificará a naturalidade e a
razoabilidade dos papéis instituídos, e ela poderá manter sua forma contínua,
identificável. Assim, qualquer instituição começa a controlar a memória de seus
membros; ela os leva a esquecer experiências incompatíveis com aquela imagem de
correção que eles têm de si mesmos e traz para suas mentes acontecimentos que apóiam
uma visão da natureza que lhe é complementar. 131
133 A instituição propicia as categorias dos pensamentos de seus membros, estabelece
os termos para o autoconhecimento e fixa as identidades. Tudo isto não basta. É preciso
garantir o edifício social sacralizando os princípios de justiça. Esta é a doutrina do
sagrado tal como é enunciada por Durkheim. Todos os demais controles exercidos pelas
instituições são invisíveis, mas não o sagrado. De acordo com Durkheim, o sagrado
deve ser reconhecido por estas três características: em primeiro lugar, ele é perigoso. Se
o sagrado for profanado, coisas terríveis acontecerão. O mundo explodirá e o profanador
será esmagado. Em segundo lugar, qualquer ataque ao sagrado suscita emoções em sua
defesa. Em terceiro lugar, ele é invocado explicitamente. Existem palavras e nomes
sagrados, lugares, livros, bandeiras e totens sagrados. Tais símbolos tomam o sagrado
71

tangível mas, de modo algum, limitam seu alcance. Firmado na natureza, o sagrado
reluz a partir de pontos proeminentes para defender todas as classificações e teorias que
sustentam as instituições. Para Durkheim o sagrado é essencialmente um artefato da
sociedade. É um conjunto necessário de convenções que repousam sobre determinada
divisão do trabalho e que, é claro, produz a energia indispensável para esse tipo de
sistema (Durkheim 1893). O sagrado oferece um esteio no qual a natureza e a sociedade
se equilibram, refletindo-se mutuamente e mantendo aquilo que se conhece de cada uma
delas. Ninguém tem muitos problemas com este conceito do sagrado. Reflita-se sobre os
totens australianos e os emblemas sagrados dos reis medievais. Porém, de modo
inconsistente, o ensinamento de David Hume, segundo o qual a justiça é uma virtude
artificial, leva a muita confusão. O conceito de que a justiça é uma construção social,
necessária, apresenta um paralelismo exato com o conceito que Durkheim tem do
sagrado, mas Hume refere-se claramente a nós, a nossas pessoas. Ele submete nosso
conceito do sagrado a um exame minucioso. Nossa reação defensiva contra Hume é
exatamente aquilo que Durkheim teria previsto. Não podemos permitir que nossos
preceitos de justiça dependam do artifício. Semelhante ensinamento é imoral, constitui
uma ameaça a nosso sistema social, com todos seus valores e classificações. A justiça é
aquela instância que firma a legitimidade. Por este mesmo motivo é difícil pensar nela
imparcialmente. Apesar de 132
134 uma ampla crença na moderna perda do mistério, o conceito de justiça ainda
permanece, até os dias de hoje, obstinadamente mistificado e recalcitrante à análise. Se
fosse o caso de pensarmos contra as pressões exercidas por nossas instituições, este é o
espaço mais difícil de se fazer essa tentativa, pois énele que a resistência é mais forte.
Em relação a isso, os antropólogos ocupam uma posição privilegiada, pois eles
registram muitas formas sociais diversas, cada uma delas venerando seu próprio
conceito de justiça. O conceito das virtudes artificiais em Hume é fundamental para seu
programa cético (1739, 1751). Fazia parte de seu ataque todas as teorias de conceitos
inatos, quer se referissem à causalidade, lei natural ou propriedade privada. Seu
construtivismo radical faz dele exatamente o filósofo dos antropólogos. Quando se trata
da questão de encontrar estruturas lógicas na natureza, Hume afirma que tudo que
vemos são frequências e, a partir delas, criamos hábitos e expectativas. Quando se trata
da justiça natural, tudo o que podemos saber é que precisamos de interações
regulamentadas; para satisfazer a essa necessidade, desenvolvemos princípios. Do
mesmo modo o conceito de justiça não é a mesma reação natural que se tem em relação
a uma emoção ou a um desejo. Enquanto sistema intelectual, possui uma espécie de
naturalidade de segunda categoria, pois é uma condição necessária para a sociedade
humana. Elaborado precisamente com o objetivo de justificar e estabilizar as
instituições, esse conceito baseia-se em convenções, exatamente de acordo com o
mesmo sentido acima citado encontrado em David Lewis (1969). Assim, nenhum único
elemento da justiça possui uma correção inata; para ser correto ele depende de sua
generalidade, de sua coerência esquemática e adequa-se a outros princípios gerais
aceitos. A justiça é um sistema intelectual mais ou menos satisfatório, cujo propósito é
garantir a coordenação de um determinado conjunto de instituições. Se isto acabar se
revelando ser logicamente incontestável e, ainda assim, inaceitável para os filósofos
que, por outro lado, são muito consistentes no que se refere à lógica, enxergaremos
nesse fato uma outra instância do poder que tem o sagrado de suscitar uma defesa
emocional. Por exemplo, o filósofo vitoriano que editou com dedicação as obra Inquiry
e Treatise, de Hume, rejeitou sem a menor hesitação seu conceito de justiça, tratandoo
como uma aberração, como a travessura provocadora de um enfant terrible 133
72

135 L.A. Selby-Bigge achou que a argumentação de Hume em relação à justiça era


inábil, desajeitada, ininteligível e desnecessária: "Fica bem claro sua pretensão de que
essa argumentação fosse ofensiva" (Selby-Bigge 1893 p. XXVIII). A abordagem de
Hume não nos permite recusar o nome de justiça a um sistema simplesmente porque não
se harmoniza com nosso sistema. Sob o risco de parecerem preconceituosos,
dificilmente os filósofos poderão descartar todas as civilizações que precedem a nossa,
considerando-as carentes de julgamento moral. Em outros contextos eles não permitem
uns aos outros recorrer à intuição ou a um inefável senso de retidão. Quando Hercules
Poiret surpreendeu a Condessa Rossakoff com jóias roubadas, ela negou qualquer
justiça intuitiva inerente à propriedade privada: "Eis o que sinto: por que uma pessoa
deve possuir algo mais do que outra?" (Christie 1935). O problema, ao se tentar
defender um princípio imutável da justiça, não está no fato de que todo mundo enxerga
uma coisa auto-evidente. Regras que para nós, modernos, hoje parecem
monstruosamente injustas não chocavam nossos ancestrais como sendo algo errôneo. A
escravidão e a sujeição das mulheres são vulneráveis aos mesmos argumentos que
Hume empregou contra o direito intuitivo à propriedade. A posse já não é mais a
questão política proeminente em nossos dias. Nossas próprias instituições colocaram a
igualdade como uma prioridade suprema. Como seria o contrário, numa sociedade que
dispersou os direitos à propriedade privada entre acionistas e companhias de seguro e
está caminhando para uma organização vertical das profissões? Os segmentos verticais
necessitam recrutar e promover o talento: a igualdade de oportunidades constitui sua
condição necessária (Perkin 1969). As instituições requerem que a igualdade de acesso
seja incorporada aos princípios fundamentais, legitimadores. Elas invocam a falta da
igualdade para deslegitimar os regimes rivais. Elas enumeram sociedades odiosas,
estratificadas segundo camadas horizontais, que se dispõem como uma pirâmide, com
seu topo. Este é, no entanto, outro modo de organizar, recorrendo a outra energia e a
outra base de comunicação, com seus próprios princípios legitimadores apropriados.
Sempre que as nações ocidentais colonizam uma antiga civilização, este 134
136 conflito entre conceitos de justiça acarreta tensões. Em Bali, os colonizadores
holandeses se depararam com dois sistemas de justiça: ao nível das aldeias a igualdade
era mantida pelo antigo sistema balinês; em outros níveis os códigos legais expressavam
a influência de um sistema hindu hierárquico. O primeiro exemplo era aceitável para os
administradores holandeses e o último era horrendo. Em se tratando dos códigos legais,
alguém que: cometesse uma ofensa contra alguém de uma casta elevada engendrava
circunstâncias agravantes, ao passo que na situação oposta presumiamse circunstâncias
atenuantes. Um sudra que ofendesse seriamente um brahmana era condenado à morte; a
um brahmana que ofendesse um sudra simplesmente se solicitava o pagamento de umas
poucas moedas. Se um inferior causa um dano corporal a um superior, disso resulta uma
punição por meio da mutilação, tal como cortar as mãos ou os pés (Boon 1977, p. 49,
citando a Encyclopedia of the Dutch East lndies, publicada em 1917). James Boon
observa que essas punições severas e prejudiciais consternavam os observadores
ocidentais e que: lendo nas entrelinhas dos relatórios posteriores a 1849, torna-se óbvio
que nenhuma explicação simples em torno de uma opressão cega poderia explicar o
apoio plebeu a tais diferenças. Os estratos mais baixos pareciam acreditar que seus
superiores meceriam penalidades mais amenas ao praticarem ostensivamente a mesma
ofensa. Os administradores holandeses em Bali poderiam ter tido a capacidade de
aceitar uma hierarquia radical no que se referia aos títulos, à instrução, à propriedade, ao
mérito religioso e assim por diante, porém jamais a aceitariam em se tratando de
procedimentos legais, sobretudo os criminais. No conflito entre dois sistemas legais é
73

que podemos sentir melhor a comoção provocada por aquele relato histórico e pelo
fracassso mútuo em compreender, por parte do Antigo Oriente e do Novo Ocidente (p.
49). Posto que a qualidade, como um direito natural ou como um princípio universal,
ainda constitui a mais destacada diferença entre o sistema ocidental e muitos outros
sistemas de justiça, não basta simplesmente deixar os últimos de lado, considerando-os
obviamente injustos. E, no entanto, existem muitos filósofos proeminentes que agem
exatamente assim. Consideremos a tentativa de Alan Gewirth no sentido de estabelecer
um supremo princípio de moralidade, do qual dependem todos os demais 135
137 princípios morais, e de recorrer a esse princípio para provar que a desigualdade é
injusta. A argumentação de Reason and Morality (1978) é acadêmica, impressionante e
verdadeiramente sedutora. Sua estratégia consiste em desencavar aquilo que está
logicamente embutido no conceito de um agente racional. Os agentes querem alcançar
seus objetivos e, portanto, querem liberdade para agir e o bem-estar necessário à ação.
As carências são intrínsecas ao conceito de ação e, assim, as carências dos agentes
transformamse em reivindicações. Reconhecendo que suas próprias reivindicações são
válidas em contraposição aos demais agentes, o agerite racional, tendo em vista a
consistência, precisa admitir que as mesmas exigências, feitas por outros agentes, são
válidas em relação às suas. Não reconhecer aquilo que está implicado em uma ação
natural significa agir contra a razão. A partir desta base lógica, o esquema de Gewirth
estende-se a princípios morais substantivos, incluindo a qualidade necessária dos
agentes. Tomando como premissa os desejos de um agente racional, Gewirth formulou
uma argumentação baseada em carências logicamente derivadas e em uma adequação
semelhante àquela empregada pelos teólogos do século XII. Com a finalidade de
resolver uma controvertida questão - teria a Virgem Maria nascido sem o pecado
original? - eles propuseram em primeiro lugar que Deus haveria de querê-ia concebida
sem mácula, como algo incrustado no conceito de Deus; em segundo lugar, recorreram
à argumentação de que Deus é onipotente, e daí decorre que teria sido perfeitamente
possível para Ele fazer o que queria. Isto levou à triunfal conclusão de que Ele agiu
nesse sentido. Uma forma enfatiza seu desejo: potuit, voiuit, fecit. Outra enfatiza a
adequação implícita no esquema lógico: potuit, decuit, ergo fecit. Já se afirmou que
Alan Gewirth é refratário a objeções padronizadas ao argumento ontológico que postula
a existência de Deus (Nielson 1984). Ele e os escolásticos possuem uma argumentação
que depende de se desvelar as implicações lógicas de certas palavras - o que mais a
lógica poderia fazer? Dissemos, porém, o suficiente em capítulos anteriores para
demonstrar que o conjunto de idéias que constituem o significado de uma palavra é o
produto do pensamento institucional. A partir de sua publicação PrincipIe of Generic
Consistency, Gewirth espera elaborar não só apenas a correção da igualdade mas
também deixar 136
138 patente o erro que é o assassinato e a escravidão (1978). Mas a que se refere o
assassinato? O autor afirma que ele diz respeito ao ato de matar seres humanos
inocentes que tem por motivo ou como natureza apenas o proveito e a gratificação do
desejo. E a que se refere a inocência? Se as outras categorias do pensamento são
culturalmente definidas, então permite-se que a culpa, a inocência, a opressão e a
coerção constituam exceções? Conforme assinala Lena Jayyusi, as categorias da lei se
inserem em um quadro normativo e moral, ligado a responsabilidades, e imersos na
ordem prática cotidiana (Jayyusi 1984, p. 4). Ela argumenta, por exemplo, que
descontextualizar os conceitos de coerção e opressão, tais como foram desenvolvidos no
Ocidente, e aplicá-los às instituições soviéticas é uma colocação fora do lugar, sob o
ponto de vista da lógica. O emprego do termo "coerção" pressupõe a relevância de
74

direitos cuja infringência motiva a descrição. Se um sistema político e social nega


direitos à acumulação privada do capital, então o fato de uma pessoa ser privada daquilo
para o qual não existe um direito anterior não se configura como algo opressivo ou
coercitivo no mesmo sentido que esses termos assumiriam em outros contextos. O
programa que Jayyusi advoga estudará a prática ligada ao diálogo e as regras que
apresentem relevância. É uma lástima que isso dependa tanto da fala e não inclua as
estruturas de poder e os padrões de interação. Sem essa dimensão, a construção moral
presente nos conceitos verbais não pode ser atribuída a outra fonte de evidências e,
assim, a interpretação de tais conceitos não pode ser validada de maneira independente.
Lena Jayyusi está dando apenas um passo preliminar em direção à classificação dos
sistemas de categoria. Um exercício de maior abrangência classificaria ao mesmo tempo
a ordem social. Sem recorrer à religião, ao intuitivismo ou às idéias inatas, é muito
difícil defender um princípio substantivo de justiça como algo universalmente correto.
Brian Barry é outro conhecido filósofo que quer defender o princípio da igualdade e
discorda do conceito de justiça tal como é elaborado por Hume, que vê nela uma virtude
artificial. De acordo com a teoria de Hume, a necessidade de um conceito de justiça
surgiria apenas sob certas circunstâncias. Ele jamais se faria presente em condições de
perfeita tranquilidade e afluência, pois não haveria necessidade de um princípio 137
139 regulador universal. Ele jamais despontaria quando um dos lados fosse detentor de
um poder irresistível, pois os poderosos não se dispõem a permitir que princípios gerais
afetem suas ações motivadas pelo auto-interesse. Para Hume, os padrões formais e
padronizados de justiça somente são exercidos entre iguais e que se encontram em
situação de proximidade. Barry verifica que pode aplicar de maneira expressiva tais
padrões a relações desiguais e que sua aplicabilidade demonstra que a justiça se baseia
em princípios, não em convenções. Quando tomamos padrões de justiça em relação aos
quais haveria concordância por um grupo de iguais e os aplicamos para condenarmos
uma sociedade permeada por sistemática discriminação grupal, estamos, em certo
sentido, fazendo uso de critérios externos e independentes (Barry, 1978, p. 225). Para
Barry, a possibilidade de podermos discutir a exploração desenfreada em termos de
justiça constitui um ponto decisivo contra Hume. O fato de podermos aplicar o conceito
de injustiça demonstra, em sua opinião, que esse conceito é universal e independe de
circunstâncias locais. Alguém poderá, por exemplo, consentir livremente em um acordo
injusto por acreditar, de modo incorreto, que ele é exigido pela justiça. Suponhos que,
em determinada sociedade, fosse universalmente aceito que algumas pessoas, devido ao
nascimento, tivessem direito a privilégios econômicos e sociais. Não haveria conflitos
em torno da distribuição e, no entanto, diríamos, com toda certeza, que esse sistema
social era injusto (Barry 1978, p. 219). Nessas opiniões, Barry está expressando os
princípios legitimadores das convenções criadas para manter um determinado conjunto
de instituições, isto é, aquelas da sociedade ocidental industrial. Para nós, entretanto,
que internalizamos a justiça dessas instituições, essa desigualdade é claramente injusta.
Quanto maior for a discriminação causada pelo nascimento e a brecha que separa os
interesses das diferentes classes, mais condenaremos sua desigualdade. No entanto, por
maior que seja a veemência com que sustentamos nossos princípios de justiça, eles
ainda são os princípios que se fizeram presentes nos últimos duzentos anos, ao lado da
emergência de um 138
140 sistema econômico baseado no contrato individual. Voltando-se de um padrão
horizontal de integração para um padrão vertical, que depende de elevar os indivíduos
independentes da base para o topo, todo o sistema de informação tem de ser
transformado. Quando a perturbação atingiu determinado ponto, as estruturas
75

dissipadoras já não conseguem mais manter o padrão. Em primeiro lugar, as analogias


fundantes precisam ser revistas. Louis Dumont detectou os esforços realizados no
século XVIII no sentido de reenfocar sua ideologia, afastando-a das metáforas
orgânicas. Ele mostra que a parábola da abelha industriosa, que se encontra em
Mandeville, significou um marco, em se tratando de subtrair o pensamento ocidental aos
modelos hierárquicos da sociedade, direcionando-o para uma justificativa do
individualismo (Dumont 1977, pp. 83-104). Quando a analogia com a natureza é
modificada, o sistema de justiça também necessita uma revisão. Agora ele tem de
promover o movimento vertical dos indivíduos, em vez de contê-ios em suas camadas
horizontais. O resultado foi a sacralização de uma sociedade baseada num uso
extravagante da energia, sem precedentes na história mundial. Trata-se de uma
sociedade que usa a igualdade dos indivíduos para justificar-se, mas nas comparações
da justiça, efetuadas em âmbito mundial, sua ascendência econômica e seus esforços
para manter sua vantagem desigual tomam-se difíceis de justificar pelos seus próprios
princípios de legitimação. Podemos juntarnos a Barry no sentimento da indignação, da
pena e da vergonha diante da exploração dos fracos. Nossos sentimentos humanos nada
fazem para deixar de lado a argumentação de Hume. De acordo com Hume, as virtudes
artificiais serão conhecidas por sua coerência interna em um sistema abstrato que
harmoniza as interações cotidianas em determinada sociedade. Barry está defendendo
um conceito absoluto de justiça. Onde mais se poderá encontrá-io, a não ser na intuição?
Ele afirma: Se alguém conseguir ler uma história da colonização européia na Austrália e
nas Américas ou uma história da escravidão negra sem admitir que está lendo a história
de uma injustiça monstruosa, duvido que qualquer coisa que eu possa dizer terá a
possibilidade de convencê-io (Barry 1978, p.22). 139
141 Em outras palavras, esse sentimento é, em última análise, incomunicável. Se
Gewirth recorreu ao argumento ontológico em nome da igualdade, Barry, em se
tratando da mesma causa, adotou algo muito semelhante àjustificativa de Rudolph Otto,
quando esse se refere à experiência mística. Se o leitor jamais passou por uma
experiência mística, se jamais sentiu o Mysterium Tremelldum, se o sentido do
numinoso lhe é estranho, então, declara Otto, o teólogo luterano, nada do que eu puder
dizer o convencerá: o sentimento é incomunicável. A resposta de Hume à Condessa
Rossakoff, bem como a resposta dada aos filósofos que tinham intuições contrárias,
seria a de recordar que o funcionamento de uma sociedade depende, até certo ponto, da
coerência, e que um resumo abstrato dos princípios interligados sobre os quais ela
repousa promove a coordenação. Uma vez formulado, o artifício adquire
venerabilidade. Durkheim conseguia explicar por que, a exemplo de um muro coberto
de hera, em uma universidade nova, a justiça parece estar presente desde sempre. Ela
teria de existir muito antes que os seres humanos viessem ao mundo e, assim, ela parece
antiga e imutável, como um dos artefatos da natureza, e acima dos desafios. A essa
altura a questão relativa ao relativismo moral torna-se urgente. Teria essa argumentação
destruído os alicerces em que se apóia? Colocando a coisa em termos bem crus, o fato é
que as opiniões morais são preparadas pelas instituições sociais. É muito raro e difícil
para um indivíduo escolher uma postura moral a partir de uma base racional individual.
Nesse caso, nossos próprios julgamentos estão igualmente preparados em nossas
próprias instituições sociais. Assim, a questão é que não temos como comparar seu
valor: tudo o que podemos fazer é descrever. Jamais podemos afirmar que a justiça
requer a igualdade, defende a propriedade privada ou censura a escravidão. Reduzimos
todos os julgamentos morais a expressões das diferentes sociedades. Várias questões
parecem estar misturadas. O pior de tudo é a responsabilidade de se cair em
76

contradições e absurdos. Ainda em termos de negatividade segue-se o conceito de que a


total tolerância a qualquer tipo de comportamento surgiria em uma sequência lógica. O
menos prejudicial é o conceito de que, por termos afirmado que as idéias morais
constituem parte essencial das instituições sociais, elas não podem ser comparadas ou
140
142 julgadas, o que também não é verdade. Baseando-nos nos princípios de Hume,
podemos dizer que um sistema é mais justo do que outro. Podemos afirmá-lo a partir de
duas avaliações, uma delas lógica e a outra, prática. De acordo com seus ensinamentos,
um sistema de justiça é concebido expressamente para proporcionar princípios coerentes
a partir dos quais se possa organizar o comportamento social. Assim, podemos
comparar sistemas de justiça em relação à sua coerência. Esta é a tarefa habitual da
jurisprudência histórica. A reforma judicial é frequentemente justificada sob o pretexto
da incoerência entre os princípios que estão sendo usados. De acordo com Hume, a
arbitrariedade derrota o objetivo essencial da justiça. Podemos comparar a quantidade
de regras arbitrárias. Assim, não há problema quanto a esta questão. Quanto à avaliação
prática, podemos começar indagando com que eficiência um sistema de justiça realiza a
tarefa de proporcionar princípios abstratos para regulamentar o comportamento. Ele
seria por demais misterioso, secreto e ramificador para ser compreendido. Mediante
testes simples podemos decidir se o sistema de justiça de determinado país, digamos de
uma potência colonial, se relaciona com suficiente precisão ao contexto de outro lugar,
digamos a África. Por exemplo, será que a antiga lei da era Tudor, relativa à prática da
bruxaria na Inglaterra, ajudava os policiais locais a lidar com acusações de bruxaria no
Sudão? As leis ocidentais contra a bigamia funcionam bem no sentido de regrar
questões entre os poiígamos muçulmanos em Londres? Ou, em outro tipo de teste
prático, será o sistema de justiça eficiente? Os tribunais não serão por demais
distanciados dos centros da população? Os juristas fazem estas e outras comparações de
sistemas de justiça o tempo todo. Ao agir assim não são obrigados, em absoluto, a
aplicar os princípios corroborantes de suas próprias instituições. Os testes de coerência e
não arbitrariedade, complexidade e praticidade, não são preferências subjetivas. É tão
correto estudar objetivamente os sistemas humanos de justiça quanto medir o
comprimento do pé humano, desde o calcanhar até o dedão. Os sistemas podem ser
comparados como sistemas. A única coisa impossível de se fazer é atribuir
determinadas virtudes; a bondade, por exemplo, aos animais ou aos idosos, ou então a
igualdade e encontrar um meio de provar que ela é sempre indiscutivelmente certa e
melhor. 141
143 Finalmente, reconhecer a origem social dos conceitos de justiça não nos obriga a
deixarmos de estabelecer julgamentos entre os sistemas. Eles podem ser julgados
melhores ou piores, de acordo com a compreensão que tivermos de seus pressupostos.
Suponhamos que um sistema de justiça presumisse que apenas um terço da população
que se submetesse a suas regras fosse inteiramente humano. Seríamos objetivos em se
tratando dos motivos que teríamos para pensar que os outros dois terços eram seres
humanos. A essa altura a questão do relativismo moral fundiu-se com indagações sobre
o que é real e o que é ilusório no mundo. Espero que não haja necessidade de recorrer à
argumentação sobre o realismo. O que foi dito acima não coloca em dúvida que se trata
de testes objetivos das versões certas e erradas do mundo e como ele funciona. Por
exemplo, imagine-se um sistema de justiça que punisse as pessoas por aquilo que se
afirmou que elas fizeram nos sonhos de outras pessoas. Não seria difícil demonstrar que
semelhante sistema delimita as responsabilidades de acordo com uma versão errônea da
realidade e uma versão errônea da responsabilidade humana, a tal ponto que não poderia
77

ser organizado coerentemente em torno de qualquer questão prática. O modo como os


seres humanos são, o fato de que eles caminham eretos e não podem estar em dois
lugares ao mesmo tempo, são incorporados como parte de qualquer sistema de justiça.
Algumas experiências e o estudo das condições da vida se reportaram ao plano de fundo
da existência. Tudo o que está sendo colocado aqui e em todo este livro é que a
experiência cumulativa do mundo deveria incorporar explicitamente a natureza social da
cognição e do julgamento. O pressuposto preferido, que sugere que os seres humanos
não são essencialmente seres sociais, é suficientemente forte para impedir-nos de ver
como eles se comportam de fato. O que acontece quando a lei é revogada? A natureza
assume tudo? Temos dito que a natureza é culturalmente definida, que as mentes
individuais são povoadas com atitudes culturalmente determinadas. E então o que
acontece? O próprio Hume supôs que, por ocasião de uma situação em que a fome
reinasse, cada um se apropriaria daquilo de que necessitasse para sobreviver, mandando
às favas o conceito de propriedade privada. Parte da demonstração que Hume fazia de
sua artificialidade consistia em demonstrar que os critérios de justiça seriam 142
144 suspensos, em se tratando de uma situação de inanição. Outros filósofos
concordam. No entanto, as pessoas famintas não se sublevam e se apoderam do
alimento que está diante delas. A mera existência da força não é tudo que as impede de
saquear as lojas. Em uma família ou em uma aldeia que passa por semelhante crise
quem passa fome e morre, ou quem come e vive, não é algo inteiramente fortuito, nem
depende da força. As pessoas mais fortes e mais numerosas nem sempre se apoderam de
tudo quando chegam as crises trágicas. A história mostra que a fome não revoga
automaticamente as convenções. Ela não introduz algo como uma lei natural de direitos
iguais. Ao adotarmos semelhante pressuposto, explicamos pelas leis naturais nossas
próprias idéias de equidade. É como se admitíssemos que, quando a natureza se impõe,
faz aquilo que sabíamos que deveríamos ter feito o tempo todo, isto é, distribuir
igualmente. O comportamento, numa situação de crise, depende de quais padrões de
justiça foram internalizados, do que as instituições legitimaram. Algumas vezes se
observou um conflito entre agências internacionais de ajuda e funcionários locais. Os
agentes internacionais do Ocidente industrializado tentam distribuir alimentos de
maneira equitativa. A igualdade dos direitos à sobrevivência é um princípio
inquestionável. Consternados, eles verificam que não conseguem recrutar representantes
das instituições locais para ajudá-los em seu trabalho. Para dar a comida tão
rapidamente quanto possível os existentes canais de distribuição seriam os mais
eficientes e os mais aceitáveis para um país atingido pela fome. Mas não! Assim que os
habitantes locais são incluídos no esquema que Ihes proporcionará alívio, o alimento é
desviado. Os mais pobres sempre são os mais vulneráveis em uma situação de fome. A
comida, porém, não chega até eles. O açambarcamento, o roubo, a exploração, a
recriminação e a indignação hipócrita fazem parte da sinistra história do socorro à fome.
William Torry é um antropólogo que vem estudando respostas e reações à fome (Torry
1984). Ele observou-a em contextos de aldeias ou províncias isoladas, onde nenhuma
ajuda estrangeira é disponível. Tal experiência levouo a questionar se a crise calamitosa
está provocando uma ruptura das normas. Em vez disso ele verificou que a comunidade
deixa de lado seu conjunto regular de princípios morais e adota um conjunto regular de
emergência. O 143
145 sistema de emergência não é uma revogação de todos os princípios. Torry não vê
um colapso das convenções. Pelo contrário, o sistema de emergência começa por um
gradual tensionamento e estreitamento dos princípios distributivos normais. Já se antevê
que não haverá comida suficiente para todo mundo. O sistema de emergência começa a
78

dar rações diminutas aos que se encontram em desvantagem, aos marginais, aos
politicamente ineficazes. Proteger aqueles que estão no comando e aqueles que já
gozam de vantagens resulta em que as instituições fundamentais serão preservadas e os
habituais canais de comunicação serão mantidos abertos. O efeito é conservar alguns
níveis mínimos de operações. À medida que a crise se aprofunda, e Torry observa, ele
testemunha, horrorizado, uma destruição sistemática de certas categorias de pessoas. Ele
consegue reconhecer quem está predestinado a morrer de inanição, o mesmo
acontecendo com as vítimas. Ele percebe como se dará a vitimação pelos processos de
seleção do sistema social existente. Quaisquer que sejam os princípios normativos de
exclusão dos privilégios ou da segurança - seja devido ao nascimento, à profissão, ao
sexo, ou por definições em torno do desvio e da criminalidade essas exclusões habituais
apontam para quem receberá menos, à medida que os recursos diminuem, e quem
finalmente será excluído ou deixado para trás, a fim de morrer de fome. Para grande
surpresa de Torry, as vítimas pré-estabelecidas aceitam seu destino com docilidade.
Quando a carestia chega ao fim, algumas dentre elas podem ter sobrevivido, mas, com
toda certeza, terão perdido filhos e parentes. Torry observa como a vida comunitária é
retomada. Dada a cruel iniquidade do que aconteceu, ele se põe a imaginar se os
sobreviventes demonstrarão ressentimento contra quem os explorou. Não é o caso. Eles
reconhecem que o fado de suas famílias é adequado e parte normal das condições de
crise. Compreendem que a elite jamais correu perigo. Retomam com gratidão seus
antigos relacionamentos de prestação de serviços, sem ressentimentos. A aceitação de
que foram vítimas indica, para Torry, que ele testemunhou não a destruição da ordem
social, mas sua afirmação. Será esta uma história sinistra? Torry fica a imaginar se a
moralidade dessa crise tomou o desastre maior ou menor do que seria, caso tivesse
acontecido o contrário. O fato de parecer que a recuperação foi mais rápida expressa um
dilema favorito dos filósofos morais. Deveríamos atentar para as 144
146 consequências de nossas escolhas ou deveríamos fazer aquilo que é inelutavelmente
correto? Se todos, em um barco salva-vidas, acabarão morrendo caso a água for
distribuída igualmente, e se houver uma boa oportunidade de que alguns serão salvos,
caso a distribuição seja restrita, então o que deveria ser feito? E se a seleção for correta,
quem deveria ser salvo? A elite hereditária? Os mais talentosos? Os mais valentes? Os
mais fracos? Este é o problema com que se debateram aqueles exploradores prisioneiros
na caverna, sem alimento. É o tipo de problema insolúvel, se for apresentado aos
indivíduos como um enigma intelectual. Em primeiro lugar, o exemplo é isolado de
todo contexto institucional. A justiça nada tem a ver com casos isolados. Em segundo
lugar, os indivíduos normalmente encaminham tais decisões às instituições. Nenhum
raciocínio elaborado por particulares pode encontrar a resposta. As mais profundas
decisões relativas à justiça não são tomadas pelos indivíduos enquanto tal, por
indivíduos que pensam no interior ou em nome das instituições. A única maneira
segundo a qual um sistema de justiça existe é pelo desempenho cotidiano das
necessidades institucionais. Se isto for reconhecido, pareceria que os filósofos que
defendem a escolha racional fracassam em enfocar aquele ponto em que é exercida a
escolha racional. Em se tratando desta argumentação, escolher racionalmente não
significa escolher intermitentemente entre crises ou preferências particulares, mas
escolher continuamente entre instituições sociais. Segue-se que a filosofia moral é um
empreendimento impossível se, desde o início, não colocar restrições ao pensamento
institucional. Portanto, que ninguém se reconforte com a reflexão segundo a qual os
primitivos pensam através de suas instituições, enquanto os modernos tomam as grandes
decisões individualmente. Este pensamento é um exemplo de como deixar as
79

instituições elaborar o pensamento. Na rica sociedade industrial do Ocidente, um novo


avanço médico pode criar o mesmo dilema que a fome ou o que acontece no barco
salvavidas. Existe hoje uma literatura significativa sobre a reação de diferentes países à
escolha política suscitada por ocasião do início da história da diálise renal. O Centro do
Rim Artificial de Seattle adotou os seguintes princípios: 145
147 Julgava-se que uma pessoa "merecedora" de ter sua vida preservada por um
tratamento caro e raro, tal como a diálise crônica, teria qualidades tais como a decência
e a responsabilidade. Qualquer história de desvio social, tal como um prontuário
criminal, qualquer sugestão de que a vida conjugal da pessoa não era intacta e livre de
escândalos, constituiriam suficiente contra-indicações para a seleção. O candidato
preferencial seria uma pessoa que teria demonstrado realizações por sua dedicação ao
trabalho e sucesso em sua profissão, que frequentava a igreja, participava de grupos e
era ativamente envolvido com questões comunitárias (Fox & Swarez 1974, p. 247).
Supondo que houvesse muitas pessoas na iminência de morrer devido à ausência de
tratamento, então não se poderia aplicar um critério discriminatório. Qual será a melhor
política? Existem duas grandes diferenças entre a situação na moderna Seattle industrial
e as pequenas comunidades assoladas pela fome, que lutam contra aquilo que,
formalmente, constitui o mesmo problema. Em primeiro lugar, o Comitê de Seattle era
secreto. Talvez, por esse motivo, ele mereceu o comentário de um psiquiatra e de um
advogado, segundo o qual "a justiça exige um método mais imparcial do que as
consciências descontroladas, os vieses incorporados e as fantasias de um comitê
secreto" (Barry 1978, pp. 212-13). Em segundo lugar, a diálise dos rins era uma
invenção novíssima e, assim, não havia instituições que estabelecessem as prioridades.
Presumivelmente, no exemplo da comunidade assolada pela fome, que recorre a uma
justiça de emergência, todo mundo internalizou as regras. Algo muito semelhante à
decisão do Comitê de Seattle provavelmente seria aplicada sem questionamentos, caso o
presidente dos Estados Unidos se tornasse vítima de uma doença dos rins. Ele seria
passado para o primeiro lugar da fila e ninguém protestaria. A consciência do exemplo
de Seattle parece fantástica e descontrolada porque ninguém aceita seus julgamentos
sobre o sucesso e o escândalo como algo legítimo. O que teria sido realmente
fantástico? Talvez reservar o tratamento somente para salvar as vidas dos detentos que
cumpriam condenações perpétuas, de tal modo que a justiça não fosse derrotada por
suas mortes desnecessárias. Mas o que mais poderia ser levado em conta enquanto
fantasia sobre a justiça, numa comunidade que teria concordado sobre a legitimidade de
suas instituições? Bem ou mal, uma comunidade pode fazer com que suas vítimas pré-
146
148 estabelecidas consigam suportar o impacto da crise e resolver suas decisões quanto
à designação, permitindo que suas instituições façam a escolha, mas somente quando ela
conferiu legitimidade a essas instituições. Não é de se estranhar que Guido Calabresi
(Calabresi & Babbitt 1978, p. 36), acredita que a designação, por meio de instituições
políticas responsáveis e confiáveis, seja insatisfatória. É o preço que se paga por se
viver numa sociedade plural, na qual a legitimidade é sempre objeto de dúvida. Quando
os indivíduos discordam sobre a justiça elementar, seu conflito mais insolúvel se dá
entre instituições baseadas em princípios incompatíveis. Quanto mais grave o conflito,
mais útil será compreender as instituições que estão elaborando a maior parte do
pensamento. A exortação não ajudará. A promulgação de leis contra a discriminação de
nada valerá. Não ajudou as mulheres africanas o fato de a Liga das Nações adotar
resoluções contra à poligamia e a clitoridectomia. Pregar contra o espancamento das
esposas e o abuso praticado contra crianças não tem mais possibilidades de mostrar-se
80

eficaz do que pregar contra o álcool e o abuso das drogas, o racismo ou o sexismo.
Somente as instituições que passam por um processo de mudança podem ajudar.
Deveríamos nos dirigir a elas e não aos indivíduos, e nos dirigirmos a elas
continuamente, não apenas em situações de crise. Assim, deveríamos perguntar o que
acontece com a diplomacia quando diferentes tipos de instituições entram em conflito.
Entre instituições do mesmo tipo, baseadas nas mesmas analogias a partir da natureza, e
firmadas nos mesmos conceitos de justiça, a diplomacia tem uma chance. No entanto, a
diplomacia entre diferentes tipos de instituições geralmente fracassará. Os avisos serão
interpretados erroneamente. Os apelos à natureza e à razão, que comprometam uma das
partes, parecerão infantis ou fraudulentos à outra parte. Uma vez reconhecido que as
instituições legitimadas tomam as grandes decisões, muito mais coisas seriam
modificadas. Os psicólogos não mais poderiam afirmar que esta ampliação das funções
cognitivas é um assunto banal, que deve permanecer sem ser estudado, em favor do
crescimento moral e perceptual, em estado de incultura, das crianças. Uma vez
reconhecido que as grandes decisões sempre implicam princípios éticos, então os
filósofos não enfocariam, com um único propósito, os dilemas morais individuais.
Michael Sandel escreveu eficazmente contra o viés que presenteia a teoria social como
147
149 um agente individual, desonerado, aistórico. Ele demonstra como a teoria apóia a
autocontradição, no interesse amor a defender os pressupostos da filosofia liberal
(Sandel 1982). Uma teoria da justiça tem de alcançar o equilíbrio entre as teorias da
ação humana, por um lado, e as teorias da comunidade, por outro lado. Se, na teoria da
justiça, a assim denominada comunidade é de uma espécie que jamais penetra nas
mentes de seus membros, se sua experiência compartilhada não faz diferença quanto a
suas necessidades e em nada contribui para sua auto-definição ou para seus conceitos de
mérito, então muita coisa está errada com a teoria. Seu conceito do eu desintegra-se e
seu conceito de comunidade se contradiz ao longo da argumentação. Sandel contrapõe
esta crítica ao livro Theory of Justice, de autoria de John Rawls (1971), mas ela se
aplica amplamente a muitas atuais discussões sobre a justiça, a comunidade e o eu.
Rawls descreve duas teorias da comunidade, ambas individualistas e nenhuma delas
suficiente para corresponder à experiência ordinária da ação humana. E, afinal de
contas, a premissa dos princípios da justiça precisa "denotar alguma semelhança com as
condições de criaturas discernivelmente humanas" (Sandel 1982, p. 430). No primeiro
relato instrumental sobre a comunidade, de autoria de Rawls, as pessoas que cooperam
são governadas unicamente por motivações que obedecem ao autointeresse, e o bem da
comunidade consiste em elas alcançarem seus objetivos individuais. De acordo com
esse relato, a própria comunidade é externa às aspirações e interesses desses indivíduos.
No segundo relato de Rawls, a visão que ele adota é denominada por Sandel conceito
sentimental da comunidade. Ela é, em parte, interna àqueles que se sujeitam à
cooperação, pois atinge seus sentimentos. Ambas as concepções pressupõem que o
sujeito é individuado separadamente ou antes da experiência comunitária, de tal modo
que as fronteiras do eu do sujeito são fixadas independentemente das situações e,
presumivelmente, são incapazes de se modificar. Sandel, por sua vez, procura um
terceiro conceito, mediante o qual o eu seria profundamente penetrado pela
comunidade, e assim a identidade seria até mesmo constituída por ele. De acordo com
esta vigorosa visão, afirmar que os membros de uma sociedade são ligados por um
sentido de comunidade não significa 148
150 simplesmente dizer que muitos desses membros professam sentimentos
comunitários e perseguem objetivos comunitários, mas sim que eles concebem sua
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identidade [...] como algo definido, até certo ponto, pela comunidade de que fazem
parte. Para eles, a comunidade descreve não apenas o que eles possuem, enquanto
concidadãos, mas também o que eles são, não um relacionamento que eles escolheram
(como ocorre em uma associação voluntária), mas uma ligação que eles descobrem, não
meramente um atributo. mas algo que constitui sua identidade. Em contraste com os
conceitos instrumentais e sentimentais de comunidade, poderíamos descrever esta
vigorosa visão como um conceito constitutivo (SandeI1982. p. 150). A vigorosa visão
requer uma completa revisão do vocabulário e uma modificação de pressupostos. Em
vez de a filosofia moral começar por um conceito do indivíduo como agente soberano,
para quem a livre escolha constitui a condição essencial, Sandel sugere que o agente
humano é essencialmente alguém que precisa descobrir (não escolher) seus fins, e que a
comunidade propicia os meios de autodescoberta. Em vez de estar centrado nas
condições da escolha, um diferente tipo de filosofia moral se centraria nas condições em
que se dá o autoconhecimento. Para quem quer que tenha se interessado pela teoria do
conhecimento de Durkheim, isto não deixa de ser reconfortante. Durkheim e Fleck
ensinaram que cada tipo de comunidade é um mundo de pensamentos, que se expressa
em seu próprio estilo de pensar, penetrando as mentes de seus membros, definindo a
experiência deles, e estabelecendo os polos de sua compreensão moral. Este programa
sempre pareceu cru, não experimentado e precisava de muito trabalho para tomá-io
aceitável. Apesar de toda sua percepção e de sua correção, a tendência que a ele se
contrapunha parecia forte demais. Sandel, porém, remete o programa a eras passadas:
estar engajado na autodescoberta, procurar na comunidade com o objetivo de encontrar
os próprios fins, é ser um ente humano "como os antigos o concebiam" (Sandel 1982, p.
22). A tradição é antiga e esses cenários já foram desenhados antes, na literatura e na
filosofia. Somente por meio de um viés proposital e de um esforço extraordinariamente
disciplinado foi possível erigir uma teoria do comportamento humano cujo relato formal
do raciocínio somente considera os motivos que dizem respeito à própria pessoa e uma
teoria que não tem meios possíveis de incluir mentes direcionadas para a comunidade
ou o altruísmo e muito menos para o heroísmo, exceto como 149
151 uma aberração. O programa de Durkheim-FIeck aponta para um caminho de
retomo. Por bem ou por mal os indivíduos compartilham seus pensamentos e eles, até
certo ponto, harmonizam suas preferências. Eles não têm outros meios de tomar as
grandes decisões a não ser na esfera das instituições que eles constroem. 150

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