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Poesia de Tao Yuanming

(Tao Yuanming, Tao Quian, T’ao Ch’ien) --- (365-427)

Ao que consta e faço fé nas palavras escritas de António Graça de Abreu “não
há muitos anos, os deuses da poesia decidiram convidar os maiores poetas da China
para um banquete de príncipes e letrados, algures num terraço entre nuvens pendurado
numa das montanhas mágicas do velho Império do Meio. Vieram Qu Yuan (343 a.C –
278 a. C) nostálgico e triste, Tao Yuanming (365-427), precocemente envelhecido,
sereno, sobraçando um ramo de crisântemos, Li Bai, (701-762), imortal no exílio, com
uma botija de vinho, (...)” (Poemas de Han Shan, Prefácio de António Graça de
Abreu).

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BREVE INTRODUÇÃO À VIDA E À OBRA DO POETA TAO
YUANMING

A. Vida

1.
Tao Yuanming nasceu no ano de 365 na aldeia de Tsai sang (Chaisang em
Xunyang, modernamente designada por Jiujiang) que fica numa colina a escassos
trinta lis, ou seja, a cerca de quinhentos metros a sudoeste de Lu shan, concretamente
no monte Lu1. O Lu shan é um lugar sagrado para os homens que cultivam o tao, a via
de acordo entre o tempo e as coisas. No Clássico das montanhas e dos mares, afirma-
se que o Lu shan é a capital dos habitantes do céu, ou seja dos eremitas e dos monges
que vivem empoleirados nas montanhas. No décimo primeiro século antes da nossa
era, sete irmãos, que desejavam viver de acordo com o tao, construíram ali as suas
cabanas. Como eles se tornaram imortais, deu-se à montanha o nome de Lu shan, a
“Montanha das cabanas”. O Lu shan está cheio de cavernas, de nascentes, de cascatas,
de correntes de água, de lagos e de rochas. Nas falésias e nos flancos mais íngremes
das montanhas, pinheiros em forma de dragão ficam suspensos com as copas voltadas
para o abismo.
Desde há um século que reina na China a dinastia Chin. No ano de 316 uma
invasão bárbara obrigou o imperador a fugir para leste, tendo abandonado assim a
capital Lo yang e o vale do rio Amarelo, berço da civilização chinesa, indo então
instalar-se em Chien kang (Nan king), que assim se tornou a nova capital imperial dos
Chin de leste. Os bárbaros, em contrapartida, passaram a controlar desde o ano de 316
toda a China situada a norte do Grande rio. Desde então a vida política tornou-se
muito complicada, o imperador não é mais do que um joguete nas mãos das grandes
famílias e dos generais, verdadeiros senhores da guerra. Conspirações palacianas,
revoltas camponesas, banditismo e guerras civis agitam o império.
O bisavô paterno de Tao Yuanming, Tao Kan, era de uma família humilde. Num
dia de tempestade em que nevava abundantemente, um oficial, encarregado de
seleccionar jovens talentos para trabalhar na administração imperial, foi obrigado a
procurar abrigo na aldeia de Tao Kan. A mãe de Tao Kan cortou os seus próprios
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Cresceu pobre e pobre atingiu a velhice. Jamais ocupou lugares de grande monta ou vulto. Foi ele
próprio que disse: Não voltarei as costas aos meus princípios por cinco alqueires de grão. E por isso
mesmo toda a vida preferiu viver como agricultor do que seguir uma carreira de funcionário.

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cabelos para os vender e assim dispor de dinheiro para comprar vinho e carne, com os
quais preparou e serviu uma boa refeição ao oficial. Além disso cortou a enxerga onde
dormia para com a palha alimentar o seu cavalo. Impressionado com tanto zelo, o
oficial exclamou: “Se a mãe é assim, o filho não deverá ser menos”. Então, o oficial
recomendou Tao Kan, que começou, desse modo, uma brilhante carreira de mandarim.
Conhecido pelo seu carácter íntegro, veio a tornar-se Grande marechal dos Chin e
chegou mesmo a adquirir o título de duque de Chang sha. O seu filho, o avô paterno de
Tao Yuanming, foi governador de Wu chang, junto ao Grande rio. Quanto ao seu avô
materno, Meng Chia, conselheiro do generalíssimo Huan Wen, ficou célebre pelo seu
talento e humor livre e espontâneo, bem como pelo seu amor imoderado pelo vinho.
Na biografia que Tao Yuanming fez do avô, escreveu:
“Ele gostava muito de beber, e ultrapassava a conta sem contudo perder o
controle, deixando-se governar pelas emoções. Alegre, cheio de si, deixava transbordar
os sentimentos como se não houvesse nada nem ninguém à sua volta. Um dia, Wen
perguntou-lhe “afinal o que é que há de tão extraordinário no vinho, que faz com que
gostes tanto dele?”, ao que ele respondeu “meu senhor, tu nunca experimentaste o
prazer do vinho?”
O pai de Tao Yuanming, Tao Yi, morreu quando ele não tinha senão oito anos de
idade. A sua família sofreu então muitas privações. No ano de 381, instalou-se no Lu
shan o prestigiado sábio e filósofo budista Hui yuan que tinha nessa altura cinquenta
anos de idade e que era um conhecedor profundo e precioso tanto dos sutras budistas,
dos quais estimulou a tradução do sânscrito para o chinês, quanto dos clássicos taoistas
e confucianos, sendo ao mesmo tempo também um adepto apaixonado pela arte da
contemplação. Para Hui yuan, o governador da província de Chiang chou mandou
construir, na encosta leste do Lu shan, o famoso templo de Tung lin, o “Templo da
floresta oriental”. O templo acabou de ser construído no ano de 386. O prestígio e a
santidade de Hui yuan atraíam numerosos monges, eremitas, letrados confucianos,
livres pensadores taoistas e poetas para o templo de Tung lin que rapidamente se
tornou o lar budista mais acolhedor e vivo do sul da China. Hui yan nunca mais
deixou Lu shan, permanecendo aí mais de trinta anos durante os quais “nem a sua
sombra abandonou a montanha nem as suas pegadas chegaram alguma vez até ao
mundo de poeira e ilusão, de tal modo que quando ele acompanhava os visitantes, não
ia além da Torrente do tigre”, como reza a lenda. Se ele ultrapassava os limites da
torrente, o tigre rugia. Vivendo ao pé do Lu shan, Tao Yuanming, já por si muito

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versado no estudo dos clássicos e na poesia, irá aproveitar a irradiação cultural do
templo Tung lin para a sua própria formação espiritual.
No ano de 393, com vinte e nove anos, encontrando-se a sua família numa
situação de grande pobreza, a pior vivida até então, Tao Yuanming será obrigado,
contra o seu desejo e vontade, a deixar a sua aldeia natal para ir ocupar um cargo
oficial. Foi então nomeado Encarregado da Educação e dos Ritos da província de
Chiang chou cuja capital era Hsuan yang. Mas o seu carácter intransigente esteve
sempre em desacordo com o mundo dos negócios. E assim, pouco tempo depois da
entrada em funções, demitiu-se. Foi entretanto chamado para um lugar de secretário e
recusou. Neste ano nasceu o seu primeiro filho, Yen. No ano seguinte morreu a sua
mulher. E voltou a casar, agora com uma jovem mulher chamada Ti, cujo
“temperamento e projecto de vida eram os mesmos que os seus, ela sabia contentar-se
com pouco mantendo-se firme na pobreza, o marido lavrando à frente e a mulher
cavando atrás”, como relatam os anais. Viriam a ter quatro filhos. No ano de 400, Tao
Yuanming, com a idade de trinta e seis anos, partiu para Chiang ling, a montante do
Grande rio, no reino de Ch’u, afim de ocupar de novo um cargo oficial, como
conselheiro de Huan Hsuan, filho de Huan Wen, de quem o seu avô Meng Chia tinha
sido conselheiro. Aproveitando os conflitos entre os senhores da guerra, Huan Hsuan
acumulou um enorme poder e tornou-se governador das Oito províncias. Num certo
dia do quinto mês do ano keng tsi, Tao Yuanming foi enviado em missão à capital,
Chien kang.
Uma vez terminada a missão ele voltou a subir o Grande rio. Em Kuei lin, no
lago Po yang, foi bloqueado pelo vento. Um ano mais tarde, no princípio do Outono
do ano de 401, depois de uma estadia em sua casa, em Tsai sang, o poeta regressou à
província de Ching chou cuja capital era Chiang ling. Tinha decorrido apenas pouco
mais de um ano, depois de ter retomado as suas funções, quando a sua mãe morreu no
inverno do ano de 401. Despediu-se de Huan Hsuan e regressou a casa afim de
cumprir os três anos de luto estipulados pelo costume.
Durante o período de tempo em que Tao Yuanming esteve retirado em Tsai sang,
desde logo cumprindo o tempo de luto pela morte de sua mãe, a situação politica
alterou-se dramaticamente. Muito preocupada e inquieta com o fenómeno da crescente
influência de Huan Hsuan, de quem Tao Yuanming era conselheiro, como sabemos, a
corte imperial decidiu lançar uma expedição militar contra ele, mas Huan Hsuan
esmagou a expedição, dirigiu-se à capital e apropriou-se do poder. No décimo segundo
mês do ano de 403, declarou-se imperador da dinastia Ch’u. Entretanto dois meses

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mais tarde, apenas, Liu Yu, governador de Hsu chou, empreendeu uma nova expedição
para derrubar Huan Hsuan. E no terceiro mês do ano de 404 Liu Yu conseguiu retomar
Chien kang, a capital. Algum tempo depois, Huan Hsuan foi assassinado. Liu Yu foi
nomeado generalíssimo das forças armadas. Tao Yuanming, que tem agora quarenta
anos, sai do período de luto pela morte de sua mãe e regressa à actividade, agora como
conselheiro de Liu Yu, cujo quartel general fica em Ching ko, a leste da capital. Mas
Tao Yuanming não permaneceu junto de Liu Yu senão escassas semanas e foi
rapidamente nomeado conselheiro de Liu Ching hsuan, governador da província de
Chiang chou e general encarregado de melhorar a imagem do exército, instalado em
Hsun yang. Menos de um ano depois Liu Ching hsuan demitiu-se e Tao Yuanming
deixou o seu lugar e regressou a Tsai sang, contudo no oitavo mês de 405, acabou por
aceitar, muito por pressão da sua família, e também por recomendação de seu tio Tao
kui, ministro do protocolo e das cerimónias rituais, o lugar de governador civil do
distrito de Peng tse, nas margens do Grande rio e não muito longe de Hsuan yang.
Permaneceu aí oitenta dias. No décimo primeiro mês desse ano, ao tomar
conhecimento da morte da sua meia irmã à qual era muito ligado, demitiu-se e decidiu
pôr finalmente termo à sua carreira oficial. Aos quarenta e dois anos portanto, retirou-
se para Tsai sang, sua aldeia natal e compôs o famoso poema, acompanhado de uma
introdução, onde confessa os seus sentimentos. É neste poema sobretudo, mas também
noutros, que o poeta explana a sua ideologia de retiro, culto pela humildade e
modéstia.
Os primeiros poemas desta ampla antologia da poesia de Tao Yuanming foram
escritos no contexto destes anos de vida conturbada do poeta, desde o ano de 400,
tinha o poeta 36 anos, até ao ano de 406 que coincidiu com a elaboração do grande e
não menos célebre poema “Finalmente regresso a casa”, que acabámos de referir.

B. Obra

I. Generalidades

1. Apontamentos históricos comparativos


Haverá provavelmente uma afirmação que se pode fazer sem correr grandes
riscos, a de que Tao Yuanming ou Tao Qian (Tao Ch’ien), como se preferir, é o mais

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aclamado poeta chinês anterior à grande época poética da História da China que foi o
período da Dinastia Tang. É um dado adquirido que entre os séculos VII e X (618-
907), a China conheceu o apogeu de uma tradição poética que contudo possuía já
todos os seus alicerces. E um desses alicerces foi sem dúvida o grande Tao Yuanming.
O poeta da reclusão cultivou todos os grandes temas da tradição poética chinesa e fê-lo
em grande estilo. É portanto também um dado adquirido que antes da época que
imortalizou figuras como Li Po, Wang Wei, Po Chu yi (Bai Ju yi), Du Fu, Han Shan,
Chia Tao, Li He, e referi apenas os mais consensuais, costumam referir-se sempre dois
grandes poetas, que podem ombrear pela qualidade da obra com estes grandes vultos.
Estou a referir-me ao poeta Qu Yuan que viveu entre os séculos IV e III anteriores à
nossa era; e claro a Tao Yuanming que viveu como já sabemos entre os séculos IV e V
da nossa era.
Sabe-se ainda que Tao Yuanming tentou bastantes vezes afeiçoar-se a uma
carreira de funcionário por necessidade e, eventualmente pelo pudor que sentia
atendendo ao facto de poder ser condenado por levar uma vida demasiado ociosa; mas
jamais por vocação, pois essa estava reservada exclusivamente à poesia e à vida
campestre, como aparece claro em muitos momentos da sua obra. Até que
definitivamente venceu a propensão do poeta para uma vida retirada, discreta e em
larga medida contemplativa. E digo ‘em larga medida’ porque, de facto, o seu retiro foi
sempre acompanhado de afazeres rurais, pequenas coisas contudo, mais jardinagem do
que agricultura propriamente. Se eu tivesse que --- à semelhança dos modelos
ocidentais --- situar Tao Yuanming no quadro de uma pastoral do retiro, eu situá-lo-ia
mais no domínio da bucólica do que na geórgica, uma vez que os trabalhos agrícolas
têm o sabor de uma evasão e jamais a carga muito ocidental e cristã de ganhar a vida
com o suor do rosto. A geórgica ocidental evoluiu rapidamente do didactismo de os
Trabalhos e os Dias de Hesíodo e das Geórgicas de Virgílio, ainda didácticas mas já
muito poeticamente sublimadas, para uma perspectiva pós-adâmica e portanto pós
lapsária (após a queda), em que o trabalho, mesmo quando em contacto com a
natureza, ganha o sabor de um castigo, que nunca tem por exemplo na obra de Tao
Yuanming. Nem didactismo, a não ser moral, nem castigo e sofrimento, antes evasão e
entretenimento. Mas a verdade é que há trabalho rural e por vezes chega a ser do fruto
desse trabalho que o poeta sobrevive. E mesmo assim eu acho que se trata de um
trabalho evasivo, concebido como interlúdio entre o Ch’in e os livros, afinal tão
lúdicos uns quanto os outros.

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Mas, por outro lado, o trabalho da terra, o trabalho em contacto com a natureza
possui sempre o valor de uma purificação e de uma regeneração. No ocidente esta
purificação e esta regeneração têm tendência a dramatizar-se religiosamente numa
economia complexa do bem, do mal e da culpa. Na China não me parece. E esse
trabalho rural, quando não possui as características referidas, não possui senão o valor
de uma purificação moral e de um complemento saudável ao trabalho espiritual.
Convenhamos que há mais idílio e bucolismo do que qualquer outra dimensão
pastoral2. Contudo penso que o poeta de Lu Shan, na questão do retiro, oscilou sempre
entre uma ociosidade contemplativa que potencia a criatividade, a reflexão e o
pensamento e uma outra opção que daria preferência a uma espécie de frugalidade
existencial disciplinada pelo trabalho em contacto com a natureza e visando assim uma
espécie de regeneração moral, como já disse. E, tal como para muitos outros casos --- e
no caso de Tao Yuanming não seria nada estranho, tendo em conta a sua tendência para
evocar épocas douradas e sobretudo por causa do seu consagrado texto, A Fonte dos
Pessegueiros em Flor, --- abre-se por vezes uma terceira via em que sendo embora
retidas as ideias comuns de simplicidade e de locus amoenus se evita a ficção pastoril
por um lado e ‘os trabalhos e os dias’ por outro, recaindo esta opção no paradigma do
regresso à idade do ouro, quando a humanidade vivia sem esforço numa felicidade
eterna.
Atrevo-me contudo a pensar que em Tao Yuanming haveria também uma espécie
de auto-consciência pragmática de que o regresso ao campo poderia favorecer e
potenciar as energias criativas, no caso dele poéticas sobretudo, e nesse
enquadramento psicológico, muito particular, poderíamos falar também de uma
Pastoral On The Self, que na Europa culmina no século XVIII mas que teve em
Petrarca provavelmente o primeiro teórico e a primeira forma de realização.
Lembremo-nos do que Petrarca disse, na época em que já se havia decidido pelo seu
retiro em Vaucluse, em a Posteritati: "(...) Encontrei um pequeno vale, solitaá rio e
ameno chamado Vaucluse, a quinze milhas de Avignon. EÉ laá que nasce o Sorgue,
duma fonte que eá a rainha de todas as fontes. Encantado pelo charme deste lugar,
instalei-me aíá com todos os meus livros (...) ". E tambeá m o que pela mesma eá poca
confessava a um amigo: "Esperando curar na frescura destas sombras o meu
ardor juvenil que, tu o sabes me queimou durante tanto tempo, eu tinha o haá bito

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de me refugiar muitas vezes aqui desde a minha adolesceê ncia, como numa
fortaleza inexpugnaá vel”.

E, esta evocaçaã o ganha ainda mais sentido se tivermos em conta que Tao

Yuanming cultivou com denodo uma sempre continuada procura da solidaã o. Ora,

Vaucluse eá antes de tudo o mais, parece-me, a fundaçaã o do mito da vida solitaá ria,

que iraá marcar a cultura ocidental ateá aos nossos dias. Menos de dez anos depois

da sua chegada a Vaucluse, Petrarca escreveu o tratado De Vita Solitaria, que

entretanto dedicou ao seu amigo Philippe de Cabassole que possuíáa um castelo

sobre um dos flancos do vale. O caraá cter de isolamento assim como o

pragmatismo da escolha do lugar eá referido pelo poeta de uma forma inequíávoca

em 1351 num epigrama que enviou a Philippe de Cabassole: "Naã o haá lugar sobre
a terra que me seja mais querido que Vaucluse, nem lugar afastado que seja

melhor adaptado aos meus estudos". A prova de que a escolha do lugar naã o soá

obedeceu a esse criteá rio, mas ainda que tal escolha foi bem sucedida, estaá na

extrema produtividade do poeta durante o tempo que ali residiu. Aíá de facto

começou e acabou pelo menos numa primeira versaã o, obras taã o importantes

como: o De Vita solitária que ja referimos, o De Otio religioso, o Secretum, aleá m de

numerosas eá clogas do seu Bucolicum Carmen, cartas, epíástolas e ainda a segunda

versaã o do Canzoniere.

Em muitas outras circunstaê ncias e textos encontramos esta apologia da vida

solitaá ria como o ideal para que o poeta possa prosseguir o seu trabalho de

reflexaã o. Naã o nos admira, uma vez que isso estaá de acordo com o que ele pensava

da vida agitada das grandes cidades como Avinhaã o a quem ele chamou

depreciativamente a grande Babiloá nia, assim como das actividades que

preferencialmente aíá se desenvolvem: o negoá cio o carreirismo politico ou

eclesiaá stico com o seu cortejo tradicional: ganaê ncia, orgulho, vazio existencial,

baixeza, imoralidade, etc. E estaá ainda de acordo com as suas grandes paixoã es

culturais aà cabeça das quais eá justo colocar a Filosofia estoá ica em geral e o grande

filoá sofo romano Seá neca em particular. Muitas vezes, ao ler Tao Yuanming, eu senti

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que nele se exercita a mesma aversaã o pela cidade e pelas actividades que aíá

predominam.

Ora as comparaçoã es valem o que valem e quando saã o taã o diferentes as

situaçoã es, quer no tempo quer no espaço, devem ser olhadas com parcimoá nia.

Mesmo assim naã o deixo de enfatizar algumas coincideê ncias:

--- A procura da solidaã o.

--- O reconhecimento de que o retiro liberta tempo e paz para a criaçaã o.

--- O discurso sobre as babiloá nias deste mundo. Lugares que perturbam a

tranquilidade, corrompem moralmente, e ateá alienam aquilo que eá essencial.

Curiosamente, poreá m, eá o facto de que tanto em Petrarca como em Tao

Yuanming predomine uma certa tensaã o entre elementos claá ssicos e elementos

maneiristas e barrocos, continuando a utilizar as categorias temaá ticas e

periodoloá gicas europeias.

2. Recepção
A vida literária de um poeta, o seu lugar no panteão dos deuses humanos, é
sempre uma questão de recepção. As vicissitudes da recepção procuram e encontram
ou não um lugar nesse panteão. No caso de Tao Yuanming isso é absolutamente
evidente. Durante alguns séculos o poeta de Lu Shan foi simplesmente esquecido. Não
vou aqui estender-me por considerações, em particular de Jauss, que hoje são já
patrimoniais e que em minha opinião vieram ao encontro do mais elementar bom
senso. As obras são redescobertas através dos múltiplos horizontes de expectativa que
o tempo vai abrindo. Ora esse mesmo horizonte vai sendo desbravado em simultâneo
pela tradição e pela inovação. Poéticas redescobrem poéticas, tradições suportam obras
que por sua vez retroactivamente iluminam outras que tinham ficado numa semi-
obscuridade. Tao Yuanming, por exemplo, serviu de modelo a poetas posteriores e o
facto de ter influenciado a obra de poetas de génio conduziu retroactivamente a Tao
Yuanming ele próprio, pois o estudo da obra desses grandes poetas, seja da dinastia
Tang ou da dinastia Song ou ainda de qualquer outra época, ao encontrar os alicerces
redescobre por sua vez os poetas do passado que desses alicerces fazem parte. E aí,
nessa redescoberta, lá está o poeta da reclusão em toda a sua grandeza. Quer dizer, a

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redescoberta dos eventuais alicerces de uma poética potencia a redescoberta de
poéticas que ameaçavam adormecer no tempo, despertando-as de novo.
Os poetas da dinastia Tang e sobretudo os poetas da dinastia Song deram a Tao
Yuanming uma segunda vida, pois ao tentarmos descobrir quais as poéticas que teriam
influenciado os poetas a que me refiro, logo a poética de Tao Yuanming aparece nesse
passo. O encontro com o passado resulta de um cruzamento de caminhos, os caminhos
que esse passado abriu e os caminhos que procurando um regresso se fazem em
direcção a ele. Estes, são como rotas de viagem em que sentindo que nos perdemos
voltamos atrás para procurar outro destino, simplesmente essa viagem para trás
reencontra as paisagens já percorridas a uma luz nova, enquadradas de outra forma e
por vezes é aí que o verdadeiro caminho aparece de modo fulgurante. Esta como que
transfiguração da realidade é ainda mais radical quando abandonamos a parábola para
nos situarmos no domínio próprio da arte. A redescoberta de autores, que no seu tempo
e por vezes durante muito tempo permaneceram anódinos, deixa às vezes até um
sentimento de vergonha.

3. Modelos e paradigmas temáticos

A obra de Tao Yuanming, aquilo que chegou até aos nossos dias não é muito
vasta. Cento e vinte poemas, três rapsódias e dez textos em prosa de géneros diversos.
Relativamente aos poemas percebe-se que alguns possuem um carácter social,
enquanto a maior parte, felizmente, é constituída por meditações íntimas, no quadro
mental do seu prolongado retiro. No caso de Tao Yuanming isso não é nada
despiciendo, pois o essencial da sua obra reside nesse carácter muito autobiográfico
que leva geralmente (e levou no caso dele) a confundir por vezes o homem com a
obra.
A poesia de Tao Yuanming possui dois ingredientes que fazem o seu encanto
relativo, por um lado ela é dotada de um carácter muito clássico, na nossa acepção
ocidental, uma vez que é sempre muito do domínio do docere, o que significa que é
sempre muito didáctica, sentenciosa, descritiva, pedagógica mesmo e sendo assim,
pouco emotiva, pouco metafórica, e talvez mesmo excessivamente conformada com o
logos e com uma ideia de clareza substantiva, mas ao mesmo tempo e paradoxalmente
a sua poesia é, por outro lado, essencialmente subjectiva, no plano em que é muito
auto-referencial. Afinal, talvez esteja neste aparente paradoxo o encanto próprio de Tao
Yuanming, e aqui eu disse o nome do autor e não convoquei a sua poética como se isso
fosse uma espécie de lapsus linguae, deixando escapar inadvertidamente a natureza da

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minha relação, quero dizer da minha ligação a este poeta. Um grande estudioso da obra
de Tao, exclamou uma vez: “How could it be His poetry alone that I love? His person,
too, has moved me” (Su Shi, numa carta a seu irmão Su Che) 3 . Ora, foi isto que eu de
facto senti ao ler este grande poeta. E seria longa a lista de estudiosos que enfatizaram
as qualidades morais do autor a partir da análise da sua obra.
Como já referi, de todos os elementos estruturantes da sua obra, evidencia-se
essa constante obsessão pelo retiro ou reclusão (Yin). Este foi também o elemento
mais evidenciado pela recepção à obra de Tao Yuanming feita durante a dinastia Tang
pelos próprios poetas dessa época gloriosa, o que não significa que tivessem seguido o
poeta nesse ideal, pois oscilaram muito, por constrangimento relativamente às
obrigações e deveres da vida pública, já que não o podiam seguir na íntegra. Mas
também qual o poeta chinês que não enfrentou as mesmas contradições?! No plano de
uma história comparativa eu diria que essa mesma questão foi o grande denominador
comum da oposição estrutural entre a tradição estóica e a tradição epicurista na
cultura ocidental. E também aí, a contradição era mais prática do que teórica, pois os
pontos de aproximação entre as duas grandes escolas de pensamento era enorme e
tanto o epicurismo tardio quanto o estoicismo latino realizaram na prática essa
aproximação latente.
Mas o que era um problema para os Tang deixou de o ser para os Song, uma vez
que para estes havia consonância entre uma filosofia do retiro e as bases filosóficas
que segundo eles estruturavam a poética de Tao Yuanming, ou seja, neste caso, o
carácter próprio do poeta.
À medida que Tao Yuanming foi sendo descoberto, o homem e a sua obra e
sobretudo em particular o Yin (reclusão), foram-se tornando também elementos
estruturantes da vida moral dos literatos chineses. Na verdade ninguém antes de Tao
promoveu tanto os valores da vida retirada e quem quer que o tenha feito depois, foi à
sombra do seu exemplo e da sua obra. Claro que a paixão pelo retiro em Tao
Yuanming não residia na reclusão em si mesmo mas num certo contexto pragmático e
mesmo utilitário que afasta Tao Yuanming de uma interpretação que possa comparar-se
à lathe biosas epicurista, mas, e daí a sua notável modernidade, favorece antes uma
interpretação elitista no sentido estritamente literário da pastoral on the self, a que não
é alheia uma pontinha do horaciano odi profanum vulgus et arceo aproximando-se
aqui e ali da mesma posição tomada, por exemplo, por Séneca.

3
Swartz 2008: 9.

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Tudo aquilo que enche o vazio da reclusão, ou seja a música, os livros, a
produção poética, o ócio e a liberdade e finalmente o vinho, como única nota mais
propriamente hedonista, isso sim é que conforma uma ideologia moral mas estratégica
da prossecução de um ideal. O busílis está justamente em afirmar sem receio e sem
perplexidade a natureza desse ideal. Neste ponto é que a divisão se instalou sempre e
neste plano é que, sobretudo, são evidentes as variáveis históricas da recepção.
Há um aspecto que deve ficar desde já muito claro. Apesar de eu me inclinar
para situar Tao Yuanming no quadro de uma pastoral on the self isso não significa que
à semelhança de alguns poetas ou intelectuais ou mesmo figuras públicas do ocidente
ele tenha promovido o retiro de uma forma essencialmente pragmática. Eu penso que a
sua natural propensão para o retiro era profundamente séria, autêntica e nada encenada
e também nada instrumental. De facto, Tao Yuanming era por natureza um homem não
mundano. Era em ambiente rural e campesino que ele se sentia bem. Se os seus retiros
foram conjunturais, e foram-no apenas por necessidade, a sua paixão pelo retiro, essa,
foi sempre estrutural e estruturante quer da sua vida quer da sua arte. Se Tao Yuanming
reunisse as condições materiais para que pudesse viver sempre no campo ele teria
optado por esse modo de vida sem qualquer hesitação. Porém, saber quais eram e
foram as coordenadas ideológicas, para me exprimir de um modo genérico, que
alimentavam e alimentaram a sua propensão sagrada, isso é que é mais difícil. O
grande motor terá sido existencial, sem mais, ou terá sido a necessidade de levar por
diante a sua vocação artística. Ou será que as duas ambições se confundiam!? E, por
outro lado, esse retiro é essencialmente prático ou será mesmo uma espécie de fugere
mundus e de comtemptus mundi? Faltam-nos textos mais confessionais e
autobiográficos para poder ter certezas a esse título. Restam-nos intuições, e essas vão
no sentido de que o aguilhão que se enterra permanentemente no coração do homem é
o desejo da escrita e o desespero de que lhe falta tempo quando se encontra em
funções oficiais para se dedicar ao que mais ama, a poesia, e claro a todas as
actividades que não sendo imediatamente produtivas criavam a atmosfera existencial
que conduzia à produção poética. Neste último plano pode inferir-se alguma
concepção instrumental de tipo consequencialista, mas ficaremos sempre com dúvidas
uma vez que o poeta não nos hierarquiza nem as ambições pessoais, nem as
funcionalidades recíprocas respectivas. Em Petrarca, como se viu, por exemplo, na
célebre carta a um amigo, ele diz claramente que Vaucluse era o lugar ideal para a

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prossecução das suas actividades literárias, Tao Yuanming jamais o diz de forma tão
clara.
Se me for perdoada a imodéstia eu por mim diria que Tao Yuanming mais do que
pretender ser um grande poeta, que contudo foi, pretendeu sobretudo deixar um
legado, um testemunho moral, ao mesmo tempo que percebeu, que esse testemunho
teria que ser indissolúvel da escrita e aí sim lucidamente à escrita tudo sacrificou, quer
dizer não foi directamente à escrita, a escrita foi instrumental relativamente ao
testemunho cívico ético e moral. E isso percebe-se bem se tivermos em conta
justamente a faceta clássica de Tao Yuanming, as suas preocupações didácticas e quase
informativas, por vezes mais próprias de um cronista que de um poeta, embora tudo se
complique quando aparece de repente através de um rasgão súbito feito na sua obra, e
quase sempre por ele mesmo, o Tao Yuan pessoa e poeta, íntimo, subjectivo,
confessional até. E é este paradoxo que em minha opinião alimenta o seu génio. O
poeta tornou-se naquilo em que se tornou a partir da recepção porque ele e a sua obra
são esquivos a uma reapropriação elementar e académica. Tao Yuanming é muito, em
aparentemente tão pouco. Aparentemente tão pouco pois a sua obra é curta e pouco
variada, muito porque nessa escassez e repetição repete-se obsessivamente uma
contradição, um paradoxo mesmo. E eu diria ainda, mais do que um paradoxo e do que
uma contradição são dois Tao Yuanming que se enfrentam em todas as pregas obscuras
da sua obra, o funcionário chinês que lhe estava destinado e o eremita que a sua alma
ambicionava. Repare-se que eu não considero que existisse um conflito entre o
funcionário e o artista num plano prático e exterior, posto em cena, ou seja meramente
fenomenológico. Não, o problema é muito mais dramático porque é essencialmente de
natureza ontológica. Tao Yuanming deveria ser um pai de família, ganhar a vida como
funcionário, por exemplo, etc. ser previsível, comezinho, prosaico até, ser como os
outros e ele esforçou-se por sê-lo, mas na sua alma --- disponível para o mundo e para
as coisas e as suas relações --- habitava, e esperavam que eu dissesse um poeta, mas
não digo, pois mais ainda do que um poeta habitava nele um pária, um marginal. E foi
essa marginalidade constitutiva que o levou à escrita.
Durante algum tempo senti alguma desilusão perante o facto de que constatava
em Tao Yuanming a ausência de figuras de estilo genuinamente poéticas e desde logo a
força retórica da metáfora e da metonímia, tropos por excelência da escrita poética, até
que alguém me chamou a atenção para o facto de que as características essenciais da
poética do poeta da reclusão foram a evenness, blandness, naturalness, e finalmente a

13
directness, ou seja, uniformidade, insipidez, naturalidade e franqueza. Aos poucos fui
interiorizando que Tao Yuanming era seguramente um clássico avesso ao sentimento e
à obscuridade. O movere e o delectare não eram o seu forte até por que não era esse o
seu programa.
Todos sabemos como é mais fácil fazer o apelo de um poeta que cede aos
caprichos da sentimentalidade e da emoção mais ou menos lírica mais ou menos
patética e todos sabemos como não sendo à primeira vista tão cativantes, as poéticas
despojadas e rigorosas colhem menos. Mas eu sou suspeito, pois gosto muito de
Horácio, Ronsard, Quevedo e já agora de Ricardo Reis4 comparativamente a Álvaro de
Campos por exemplo. E sempre apreciei que a poesia fosse para além do mais uma
expressão ainda do logos, do dizer, e como na tradição chinesa os elementos
gnómicos, sentenciosos, os quase apotegmas didácticos, sempre me encantaram, a
relação com Tao Yuanming foi um caso de amor à primeira vista, ou seja à primeira
leitura. Assim se compreende que a secura de Tao Yuanming não me tenha
incomodado nada, ... Mas, e aos leitores!? Enfim terão que aprender a gostar.
Na tradição chinesa opõe-se geralmente Tao Yuanming a Xie Lingyun, nos
termos em que podemos opor um clássico a um maneirista ou a um barroco ou mesmo
a um poeta romântico. E é disso que justamente se trata.
Vejamos!

a. O pano de fundo
Se eu pudesse sintetizar a atmosfera existencial que a poesia de Tao Yuanming
exprime apenas numa só expressão, diria que ela é enformada por uma estrutural e
permanente saudade do campo.
É claro que essa saudade aparece declinada de formas diversas assim como o
próprio campo. E as metamorfoses possíveis não dispersam o tema, antes o
aprofundam. O campo pode simbolizar a natureza tout court o que se conforma em
absoluto com o papel da natureza tanto na arte quanto no pensamento chinês,
dominante. Mas campo pode significar a aldeia natal ou mesmo a casa onde o poeta
nasceu. E pode significar, por essa via, as múltiplas formas de paisagem que a aldeia e
a casa da infância convocam para a memória, ou que são pela memória convocadas, os

4
E serve de modelo para a secura que aprecio e que exalto aqui, este paradigmaá tico e amplamente citado
carpe diem pessoano: Tão cedo passa tudo quanto passa! / Morre tão jovem ante os deuses quanto / Morre! Tudo
é tão pouco! / Nada se sabe, tudo se imagina. / Circunda-te de rosas, ama, bebe / E cala. O mais é nada.

14
bosques, as montanhas, os rios e os lagos, todos entrevistos a partir da casa. Na cultura
chinesa a presença do elemento natural é, mais do que uma metafísica da paisagem ou
mesmo de um espírito do lugar, um elemento imediatamente apofântico, o que quer
dizer que vale por si. Se no ocidente a paisagem provoca, convoca, sublinha, na China
a paisagem é por si mesma e a relação entre o homem e a natureza encontra-se na
cultura chinesa invertida relativamente à mesma relação na cultura europeia.
Contudo, na tradição ocidental a natureza sofreu profundas mutações desde os
clássicos até à modernidade, passando de um simples décor, fundo panorâmico em que
a vida se inscreve, até culminar num nada conceptual vazio e abstracto, passando
entretanto no momento romântico por uma profunda revolução gnoseológica.
Voltando á cultura chinesa, percebe-se que, tal como no ocidente, a relação com
a natureza pode envolver uma dimensão bucólica, quer dizer idílica e contemplativa,
ou mais genuinamente geórgica, empreendedora e laboriosa. No caso europeu existe
uma relação evidente entre os elementos geórgicos e os elementos religiosos,
propriamente cristãos, no caso chinês as coordenadas mentais são outras e será preciso
descobri-las um dia.

b. Teoria
Na cultura europeia, com o Romantismo, a ideia de natureza sofreu uma
mutaçaã o radical, chegando a ser legíátimo falar de antropomorfismo romaê ntico,
processo mediante o qual o eu poeá tico acaba por assimilar a realidade atraveá s de
um processo de interiorizaçaã o, muito habitual por exemplo jaá em Wordsworth. Os
teoá ricos e filoá sofos romaê nticos tudo fizeram para compreender a natureza desta
interiorizaçaã o, mas o mais que conseguiram foi a produçaã o de metaá foras
desesperadas, porque lhes faltava uma perspectiva moderna acerca do
processamento da realidade em noá s que soá a fenomenologia veio a alcançar.
Existe entre o eu produtivo fichteano e a consciência transcendental
husserliana, uma diferença de peso, a saber, que tambeá m a conscieê ncia eá
produtiva mas soá a partir da sua ingeá nita intencionalidade fenomenoloá gica. O
mundo eá processado embora naã o seja passivo. O mundo desafia intencionalmente
a intencionalidade fenomenoloá gica da conscieê ncia.
Contrariamente aà ideia de uma indeterminaçaã o e de um caraá cter vago do eu
romaê ntico eu partilho a ideia de que o eu soá se torna indeterminado e vago por
um processo de feed back, o que significa que aà força de proceder aà assimilaçaã o
triunfante da realidade, ele proá prio pode acabar por se diluir nessa mesma

15
realidade. E aliaá s eu naã o penso que o eu romaê ntico se dilua na realidade, o que se
dilui saã o as fronteiras entre a realidade e o eu romaê ntico.
EÉ verdade que Keats disse que o poeta naã o possui nenhuma identidade e
que se encontra sempre na emineê ncia de se tornar ou ser uma outra
personalidade. Contudo naã o eá este o sentido do Eu em Fichte e no romantismo
alemaã o, embora seja verdade que os alemaã es falam muito de desdobramento da
personalidade («Les romantiques furent les deá couvreurs de l'inconscient.» (cf.
Richard Huch), reconhecendo-se que eá na dualidade interior que repousa em
definitivo a possibilidade da conscieê ncia de si mesmo, «car nul ne se connaíêt s'il
n'est rien autre que lui-meê me et s'il n'est pas en meê me temps un autre» como
sabiamente dizia Novalis o que tambeá m foi dito por Freá deá ric Schlegel dans sa
Lucinde de uma forma aproximada : «Le moi ne peut sentir pleinement son
infinie uniteá qu'en donnant la reá plique aà son toi».
Mudou muito, como jaá disse, a ideia de natureza na cultura europeia. Para os
poetas heleníásticos por exemplo, a natureza era sobretudo um lugar de acçaã o,
logo naã o possuíáa uma força sacralizada nem produtora, reduzindo-se a simples
paisagem. A sua presença naã o era mais do que um simples esquema ceá nico.
E eá neste ponto que a natureza na arte chinesa e na poesia chinesa claá ssica
oferece uma perspectiva completamente diferente do ocidente. Ela naã o eá nem
ceá nica, nem sacralizada. Ela eá esmagadoramente presente. Ela eá a metaá fora por
exceleê ncia do cosmos e do mundo.
Mas, na cultura ocidental, entre o momento greco-latino e o momento
romaê ntico inscreveu-se, um esforço para subjectivizar a paisagem, de modo a que
a natureza naã o ficasse estaticamente como cenaá rio e pano de fundo, tendendo,
pelo contraá rio, a converter-se num contraponto de auteê ntica intensidade
dramaá tica, como eá o caso em Petrarca. Mas jaá agora, fazendo de advogado do
diabo, naã o teria sido este o primeiro passo para, afinal, o eu, elemento subjectivo,
se apropriar da natureza fazendo-a de novo e agora definitivamente passar para
segundo plano? Na cultura chinesa, em contrapartida, a ideia de paisagem naã o
oscila. Ela eá sempre ao mesmo tempo lugar de convergeê ncia das linhas de fuga da
perspectiva e centro do cenaá rio. Ela eá omnipresente, incontornaá vel e irredutíável. O
eu precisa sempre desse elemento fíásico mas coá smico; pois se eá verdade que o
tempo eá o elemento comum aà natureza e ao eu, o eu dificilmente teria a noçaã o do

16
tempo se ele naã o se materializasse, se ele naã o encontrasse um ecraã para sentir a
passagem do tempo, quer dizer o seu peso, a sua densidade, a sua materialidade.
Dir-se-aá que o eu pode divagar atraveá s do tempo dentro de um espaço fechado e
escuro, isto eá deslocado de um enquadramento natural. Mas tambeá m eá verdade
que essa divagaçaã o --- mesmo sem o ruíádo das aá rvores, o sussurro das aá guas etc.,
sem o sileê ncio da natureza que afinal nunca eá completo, ---- tambeá m devolve a
materialidade, a espessura, a simples passagem do tempo, aà sua maneira. Poreá m,
essa divagaçaã o sem ruíádo de nenhuma espeá cie, naã o provoca no eu a mesma
sensaçaã o do tempo mas apenas aquilo a que Leá vinas chamou o terror do <<il y
a>>. Quando o eu naã o encontra esse ecraã ouve apenas o seu proá prio rumor,
insensato e desprovido de sentido.
A presença obsessiva da natureza na poesia chinesa em particular e na arte
chinesa em geral possui, penso, esse significado essencial que eá o de trazer ao eu a
dimensaã o existencial do tempo. E nesse encontro do tempo que a natureza
transporta consigo e a intencionalidade fenomenoloá gica da conscieê ncia, ou seja
do eu, aparece, como naã o podia deixar de ser, a narrativa, ou seja a necessidade
propriamente ontoloá gica de nomear o mundo. EÉ este o sentido do descritivismo
natural chineê s, por vezes obsidiante. O descritivismo antes de ser cientíáfico,
cultural, didaá ctico ou didascaá lico eá constitutivamente narrativo e ontoloá gico. E se
eá , entaã o seraá preciso analisar sempre a questaã o do descritivismo a partir do papel
que a natureza desempenha nele. A natureza e o eu. No descritivismo romaê ntico a
natureza naã o se limita a um papel passivo e realista, como realidade que se
oferece aà descriçaã o (ou seja: onde a natureza eá ainda um segundo plano), mas ao
descrever a natureza o poeta descreve outra coisa, um estado de espíárito, poeá tico,
um sentimento, uma emoçaã o. E desse modo sentimento e emoçaã o por um lado e
natureza por outro saã o recriados e tornam-se indissociaá veis um do outro. Este
descritivismo animado pelo sentimento poeá tico naã o eá rigoroso, nem realista aà
maneira de um retrato mas obedece mais aos poderes da imaginaçaã o. E eá por isso
que o tempo se desmultiplica em tempos e dentro desses tempos o presente tem
apenas uma funçaã o pragmaá tica, a de momentaneamente circunscrever o que seria
em si mesmo fluido e vago. EÉ a natureza que permite a divagaçaã o porque ela
oferece permanentemente ao barco do tempo o elemento atraveá s do qual o tempo
deixa de ser uma abstracçaã o incompreensíável e irrisoá ria para adquirir um sentido.

17
Como diz Jorge de Sena, a natureza oferece ao tempo a possibilidade de se
imobilizar e se tornar presente, mas, e acrescentaria eu, ela oferece tambeá m, uma
vez interiorizada, a ruptura com o presente e a entrada no proá prio processo de
divagaçaã o poeá tica. Se ela permanecesse no exterior ofereceria o presente apenas,
o instantaê neo, isto eá a possibilidade de um quadro. Ao ser apropriada pelo eu
poeá tico ela oferece a sucessaã o de presentes, que de algum modo jaá naã o saã o seus
mas saã o produto do psiquismo sentimental do poeta, ou, se preferirmos e parece-
me melhor, ela oferece o enquadramento para que a imaginaçaã o do poeta nela vaá
vazando o fluxo das suas emoçoã es e sentimentos, ateá um ponto em que ambos se
confundiraã o de tal modo que a dada altura seraã o os elementos naturais que
exprimiraã o e no limite desencadearaã o as emoçoã es que no iníácio eram exclusiva
propriedade da imaginaçaã o poeá tica. Entaã o pode acontecer que o poeta possa
exprimir os seus sentimentos e emoçoã es metaforicamente atraveá s de imagens ou
simples refereê ncias naturais. Quando tal acontece o poeta jaá naã o descreve a
natureza, mesmo que poeticamente, mas eá pela linguagem da natureza descrito
ele proá prio, e eá a sua proá pria poeá tica que se deixa transcrever pela poeá tica da
natureza, tendendo-se assim para um estado de fusaã o entre o eu e o cosmos;
fusaã o essa que espiritualiza a natureza ou mesmo a diviniza, partindo contudo
como se viu de um processo antropomoá rfico.
Eu correria imediatamente atraá s de uma perspectiva assim para
compreender a íántima comunhaã o na poesia claá ssica chinesa entre o eu e a
natureza, a paisagem. Mas infelizmente confesso toda a relutaê ncia, pois naã o eá de
nada disso que se trata. A obsessaã o descritiva ateá poderia induzir a essa anaá lise,
mas o eu poeá tico naã o me parece maduro para poder realizar o processo de
antropomorfismo referido acima. Ainda assim o tema eá aliciante e a ele voltarei
no futuro. Entaã o, nessa altura, seraá necessaá rio ir ao encontro das coordenadas
ideoloá gicas proá prias dos poetas chineses em causa. A consideraçaã o do taoismo
por exemplo parece-me inevitaá vel, embora no caso de Tao Yuanming o segredo
esteja na combinatoá ria sui generis que o poeta fez dos seus elementos formativos:
taoismo, confucionismo e budismo. Penso contudo que Tao Yuanming foi sobretudo
um poeta taoista. Os seus escritos estão profundamente ligados à natureza. E neste
ponto ele preparou o caminho para todos os poetas posteriores que dedicaram o
essencial das suas obras ao elogio da natureza e em particular aos poetas da dinastia

18
Tang, mesmo se ele foi mais profundamente reconhecido pelos poetas da dinastia
Song, como já se viu a propósito da problemática da recepção.
Em síntese e neste meu esforço para compreender a poesia chinesa a partir de
critérios que lhe são exteriores, baseando a minha análise na convicção de que há
invariantes estruturais da alma humana, a poesia de Tao Yuanming pode ler-se, se bem
que com cautela, à luz de paradigmas que eu considero que, sendo europeus, são
sobretudo operatórios à escala global. Em conformidade com este pressuposto procurei
enquadrar os poemas de Tao Yuanming segundo uma grelha temática que eu de todo o
modo considero universal. Relativamente a uma ideia de natureza, porém, atrevo-me a
dizer que ela não aparece na poesia chinesa do modo como aparece no ocidente seja
em que época for. Assim; ela não é nunca apenas cenário, ela não é nunca um
contraponto com intensidade dramática e ela não é nunca interiorizada por um
processo antropomórfico. Ela é outra coisa! Mas por ora ainda não sou capaz de dizer
o que é que ela é. Ficará assim para outras núpcias.

II. Análise dos paradigmas dominantes da sua obra a partir de uma análise
comparativa com a poesia clássica greco-latina.
Esta opção é, parece-me, uma opção legítima, desde que se entenda que não se
pretende reduzir a originalidade e especificidade da cultura chinesa em geral e da
poesia chinesa em particular. Contudo esta opção também confessa inequivocamente a
profunda convicção de que há invariantes estruturais da alma humana e que, embora a
partir de pressupostos ontológicos e metafísicos próprios, a poesia chinesa dá conta de
anseios e de modos de vida semelhantes a concepções clássicas da cultura europeia.
Mas por se tratar de Tao Yuanming há porém uma consideração prévia. Ele é o poeta
da reclusão, da solidão e do retiro. E foi assim que ficou para a posteridade. E é essa a
marca que o torna ímpar e influente para as gerações posteriores. Nessa medida, a
minha estratégia de abordar aqui a sua obra subordinando-a a uma grelha que
individualiza alguns paradigmas temáticos não pode ser interpretada na perspectiva de
que o poeta possa ter segmentado a sua obra segundo este critério ou ainda que ele
tivesse a consciência temática e estilística que a minha organização pode fazer intuir.
De facto, não se trata de nada disso. Em boa verdade, praticamente toda a poesia de
Tao Yuanming anda em torno de uma obsessão estrutural e estruturante e que é a
problemática da reclusão solitária. A problemática do retiro está sempre presente. O
retiro é o leitmotiv dinâmico da produção poética deste grande poeta chinês. E sendo

19
assim, em boa verdade, eu até poderia arrumar os poemas que aqui vos trago apenas
segundo esse critério. E nessa altura não haveria subdivisões ou capítulos, pois em
todas as partes fossem elas quais fossem, os poemas escolhidos mostrariam como
mostram sempre a obsessão, a marca cega bloomiana, dinâmica e estruturadora. Mas,
por uma questão de racionalização mínima, a opção que prevaleceu foi no sentido da
subdivisão segundo paradigmas temáticos. Ao arrumar os textos segundo um critério
plural eu pretendi apenas evidenciar uma poética mais rica e diversificada do que à
primeira vista possa parecer. Os poemas que eu seleccionei para ilustrar o tema do
carpe diem5, por exemplo, de facto evidenciam esse tema, mesmo se são poemas que
carregam as obsessões tradicionais e recorrentes do poeta. O mesmo se passa com os
poemas sobre a pobreza e a mediocridade. Sendo poemas em que se pode ler o culto
da mediania, da mediocridade e mesmo da pobreza tout court, estão geralmente
estruturados tendo como pano de fundo a questão do retiro e da solidão em cenário
rural. Sempre. Se prevaleceu em mim a ideia de organizar os poemas segundo estes
três grandes temas, Carpe diem, Aurea mediocritas e Vida retirada, não significa
porém que não tenha sentido dois tipos de escrúpulo e constrangimento relativo, a
saber: desde logo o sentimento de que só há verdadeiramente um tema na poesia de
Tao Yuanming, e esse tema é o tema da reclusão, do regresso ao campo, do retiro e da
solidão portanto. E em segundo lugar a certeza de que a utilização de paradigmas
5
Uma das primeiras figurações do modelo temático aparece no Gilgamesh: O carpe diem que decorre
do diálogo de Gilgamesh com Sidouri, a taberneira divina, consagra um dos momentos decisivos na
construção da tradição deste paradigma temático. A escatologia mesopotâmica é desde o início marcada
por um acentuado pessimismo. No além, os mortos subsistem num estado reduzidos a sombras, sem
alegria como aparece muito bem exposto no sonho e invocação de Enkidou no Gilagamesh. Aí se chega
a dizer que lá no além-túmulo os mortos alimentam-se de poeira e de lama e permanecem longe da luz e
completamente rodeados de trevas. E é talvez amedrontado por esta perspectiva tão sombria que leva
Gilgamesh a procurar o seu antepassado, o herói do dilúvio Uta-Napishtim, que a título totalmente
excepcional foi poupado ao sinistro lugar dos mortos e habita numa ilha maravilhosa algures no
Ocidente para lá das portas do Sol. Gilgamesh quer saber dos seus próprios lábios qual o segredo da
vida e da imortalidade portanto. No caminho Gilgamesh encontra Shamash, o Deus do Sol que o afronta
rudemente perguntando-lhe com ironia e sarcasmo: “O que é que te faz correr Gilgamesh? A vida que tu
procuras, tu não a encontrarás”. Esta apóstrofe não fez recuar Gilgamesh. Mais à frente Sidouri, a taberneira
divina, dá-lhe conselhos que vão no sentido em que na nossa cultura acabou por se fixar o paradigma do carpe
diem. Sidouri refere-lhe os aspectos mais sensíveis e mais imediatos da existência e da vida: “Gilgamish, why
runnest thou, (inasmuch as) the life which thou seekest, Thou canst not find? (For) the gods, in their (first) creation
of mortals, Death allotted to man, (but) life they retain’d in their keeping. Gilgamish, full be thy belly, Each day and
night be thou merry, (and) daily keep holiday revel, Each day and night do thou dance and rejoice; (and) fresh be
thy raiment, (Aye), let thy head be clean washen, (and) bathe thyself in the water, Cherish the little one holding thy
hand; be thy spouse in thy bosom Happy — (for) this is the dower [of man]”, in The Epic of Gilgamesh, tr.
Campbell Thompson [1928], at sacred-texts.com/ane/eog//eog 12. Htm [p. 46] (Logo que os deuses criaram a
humanidade, fixaram-lhe também aí a morte como destino e guardaram a imortalidade apenas para eles próprios!
Oh Gilgamesh! Alimenta-te! diverte-te dia e noite! ... Veste roupa limpa e apropriada, lava a cabeça e banha-te!
Alegra-te com a criança que levas pela mão! Que a tua esposa encontre prazer no teu seio ! É isso que cabe em sorte
à humanidade).

20
temáticos genuinamente europeus, pode parecer preconceito europocêntrico. O que
não é o caso. Espero que estes avisos cheguem a bom porto.
Em conformidade com tudo o que entretanto fui dizendo, compreende-se que
tenha deixado para o capítulo do Retiro todos os textos em que o tema do retiro é
absolutamente explícito e tratado de uma forma que podemos considerar assertiva. São
assim os poemas em que o retiro é promovido, ou em que o poeta confessa a sua
paixão pela vida solitária. Sempre que o tema não é tão imperioso e sempre que outros
elementos tomem conta do texto optei por juntá-los segundo outras afinidades. Para
além da mediocritas, do carpe diem e da vida retirada criei um capítulo com o título
genérico de Com um sabor barroquizante, pois as linhas de força ideológicas do
barroco poético estão lá sem ambiguidades e finalmente, o ciclo Bebendo Vinho, uma
vez que os poemas de beber, na poesia chinesa, são simplesmente incontornáveis.
Mas comecemos pelo Carpe diem.

1. O CARPE DIEM
a. Breve introdução ao paradigma ressalvando os seus fundamentos na
cultura ocidental
É sem qualquer receio que designo assim um conjunto muito significativo de
poemas de Tao Yuanming uma vez que os elementos dominantes do paradigma se
encontram nesses poemas de uma forma iniludível. E não são apenas os elementos
formais pois que o aprofundamento do conteúdo dos poemas logo nos leva de imediato
aos fundamentos ontológico-metafísicos desse paradigma temático e formal.
Por exemplo no poema da página?????, é muito clara a exaltação do quotidiano
assim como das suas ocupações banais e despretensiosas, como ter por companhia ao
longo de cada jornada um pouco de vinho e de música, mas é mais atrevido que o
equivalente latino pois desliza para um tom um pouco mais sibarítico com a inclusão
do prazer sexual, que obviamente não é alheio à poesia clássica do ocidente mas que
não aparece a timbrar o paradigma do carpe diem no poeta que melhor o definiu,
Horácio6.
O epicurismo moderado do poeta venusino no contexto conturbado da crise da
República desautorizava excessos hedonistas. No poema chinês para melhor captar o
tom sibarítico de fundo o poeta alude ainda ao culto de uma ociosidade um pouco
desregrada, “levantar-me tarde /, deitar-me cedo a maior parte das vezes” 7. E para que

6
Recorde-se a Ode XI do Livro I : «sois sage, filtre tes vins et réduis à la mesure de ta brève durée les
longs espoirs. (…) Cueille le jour, en te fiant le moins possible au lendemain».
7

21
se perceba que o carpe diem não é senão uma das formas de expressão do ideal de
mediania o poeta não deixa de condenar o elemento inimigo da apolinicidade por
excelência e que é a ambição apostrofando-a de não ser mais do que pura ilusão, “mas
se ao fim de cem anos no máximo / todos regressamos à terra / ter por guia uma fama
passageira / é ilusão em que não caio. Esses, os arrebatados, dados ao culto da ambição
e de todas as ilusões relacionadas com a fama, esses têm o coração de gelo ou de fogo.
Repare-se como o poeta define bem o contrário da mediania, ao escolher os elementos
mais extremos, o fogo e o gelo estão nas antípodas do carácter tépido, temperado,
moderado, sensaborão até, por que não!?, da mediania e do espírito apolíneo onde o
tema do carpe diem encontrou o melhor acolhimento e o melhor enquadramento
ideológico. É que o poeta que cultiva o meio termo é naturalmente frugal tanto nos
apetites quanto nos desejos. Facilmente se sacia aquele que optou por uma existência
de onde se expurgou o arrebatamento da ambição e do desejo de grandeza que mais
facilmente aniquila do que satisfaz verdadeiramente. Por isso o poeta exalta a
frugalidade, quando diz que “para evitar o frio e a fome, / basta um golo de vinho e
uma bola de arroz // até porque não ouso pedir mais / para encher a barriga / desejo
apenas que o arroz / me não falte// um pano grosseiro para me precaver / do frio
invernal /e uma peça de linho em bruto / para me proteger do Sol” 8. Quer dizer a
frugalidade como é óbvio opõe-se ao luxo, e o luxo ao conectar com um ideal de
grandeza, remete para o culto de um excesso que a mediania jamais poderia
contemplar. O verso ‘até porque não ouso pedir mais’ é exemplar para a urdidura do
espírito moderado da mediania, se tivermos em conta que aquilo que caracteriza
estruturalmente o modelo é a falta de ousadia (ambição / desejo). Como se vê o
paradigma está bem esboçado, de forma coerente e explorando as várias linhas
ideológicas de clivagem. Mas o poeta sente a necessidade de acolher outro elemento
estruturante do modelo. Ele confessa que por vezes nem essa frugalidade está ao seu
alcance, e então reforça a componente ideológica existencial ao enfatizar o sentido da
resignação e, sendo assim, acaba por dizer que “é preciso aceitar as coisas tal como
são / e com igual resignação / ir bebendo um copo / de vez em quando” 9. Ora,
convenhamos, estes elementos possuem um inequívoco sabor do carpe diem clássico.
Para não destoar do registo equilibrado até a promoção do vinho aparece neste texto
muito comedida e breve, parece-me, muito fiel portanto ao sentido da moderação que
8

22
todavia na poesia chinesa nem sempre se manteve quer na obra quer na vida dos seus
maiores poetas. Mas aqui aparece de uma forma irrepreensível. Não há excesso, não há
paroxismo maneirista, o paradigma é exercitado à maneira clássica, quer dizer, através
de um hedonismo suave.
Em contrapartida num outro poema o poeta experimenta um pathos de
sofrimento relativamente à passagem do tempo, .... “passeio nas imediações da minha
velha casa / ... os vizinhos, raros são os que estão vivos / pé ante pé procuro sinais que
deixei aqui e ali / e em certos lugares fico pensativo // Tantos anos e tantas ilusões /
estações alternaram, o tempo passou / e apesar do vigor e do ímpeto pressinto por
vezes / com temor a grande provação”, aqui sim, ainda que sem drama ou
empolamento subjectivo aflora-se um pessimismo ontológico que é mais do
maneirismo e do barroco que do classicismo. E através desse pessimismo promovem-
se os lexemas que subordinam a existência a uma constitutiva fugacidade, .... Afinal os
leitmotives do Barroco são de sempre e de qualquer cultura.
Se ainda pudéssemos alimentar dúvidas acerca do sentido ideológico destes
textos onde o paradigma temático do carpe diem se manifesta com alguma
exuberância bastaria o poema, tão célebre de resto, sobre o duplo nove. É o dia de
Outono em que os chineses bebem vinho de crisântemos e lembram os seus mortos. É
seguramente um dia que convida a um sentimento pungente e nostálgico e sobretudo
doloroso e como os mortos não podem estar ausentes dessa reflexão sofrida aí se
explora a inexorabilidade e a inelutabilidade da morte. E como a questão da morte não
é ainda um tema por si mesmo mas um epifenómeno da mudança, e da condição do
homem transeunte (homo viator), do Dasein, do homem lançado no mundo e no
tempo, esse grande escultor como lhe chamou Marguerite Yourcenar e sobre o qual
Santo Agostinho escreveu textos fundamentais10.. Vale a pena neste caso citar todo o
poema de Tao Yuanming desde o primeiro verso até ao último e reparar como o poema

10
10 Na cultura Ocidental foi sem dúvida Santo Agostinho o primeiro pensador a explorar a dimensão
ontológica do tempo. Este texto pode servir de exemplo: “Chaque fois que tu vois succéder aux fleurs
printanières les moissons de l'été, et au soleil estival la fraîcheur de l'automne, et aux vendanges automnales la
neige de l'hiver, dis-toi: «Tout cela passe, mais pour revenir une autre fois. Moi, au contraire, je m'en vais pour
ne revenir jamais». Chaque fois que tu vois le soleil baisser à l'horizon et les ombres des monts s'allonger, dis-
toi: «Maintenant la vie s'enfuit et l'ombre de la mort s'étend, mais demain le soleil reparaîtra et sera toujours le
même, mais ce jour sera passé pour moi irrévocablement...» Comme le nocher de la flotte troyenne, en te
levant au coeur de la nuit, observe toutes les étoiles qui passent dans le ciel silencieux et sache que tandis que
tu les observes passer rapidement vers l'occident, tu es entramé avec elles et que ton seul espoir de demeurer
fermement repose dans Celui qui perdure immobile et ne connait pas de crépuscule” (Santo Agostinho in Dotti
1991: 147).

23
termina pela expressão substantiva do conteúdo ideológico do paradigma, constituindo
assim um belíssimo exemplo do que tenho vindo a dizer:

O Outono lentamente chega ao fim


o vento e a geada são tão frios agora
o prado e a vinha já perderam a graça
desfolhadas estao já as árvores no jardim

o ar puro assenta a poeira, imenso e vasto fica o céu,


já não se ouve a litania pungente das cigarras
os gansos selvagens gritam em pleno voo
rasgando o azul do céu

e sob este céu as coisas várias e imensas


seguem o seu curso inalterável
tudo nasce e tudo morre inelutavelmente
e é isso que dói no coração quando se pensa

como serenar meus sentimentos?


com uns copos de vinho, espero
se o futuro está para além do que eu posso saber
o melhor será gozar o dia que passa.

Ser-me-á perdoado mas não posso passar sem chamar a atenção para os
seguintes versos:
1. (as coisas) seguem o seu curso inalterável, ...
2. tudo nasce e tudo morre inelutavelmente
3. se o futuro está para além do que eu posso saber / o melhor será gozar o dia
que passa. ?????
Os dois primeiros versos possuem um inequívoco savor barroquizante mas o
fecho do poema não possui dramatismo e a injunção entre a ignorância e o carpe diem
é essencialmente clássica. (????????????)
Já o disse mas reitero, o paradigma temático do carpe diem inscreve-se num
complexo ideológico mais vasto onde pontuam elementos de tipo ora estóico ora

24
epicurista e onde se declina uma propedêutica para uma vida boa, .... Poderia enumerar
alguns elementos que são recorrentes nos poetas clássicos tais como a impassibilidade,
a imperturbabilidade, a tranquilidade da alma etc. culminando tudo numa espécie de
autarcia psicológica e moral feita de resignação e serenidade. São esses elementos que
abundam na poesia de Tao Yuanming, e em particular no poema da página ????
“... deve viver-se a vida / à espera do fim humildemente / que a vida corra bem
ou corra mal, / eu deixo que o meu ânimo / se mantenha imperturbável”, e quase que
se poderia dizer que invariavelmente estes elementos aparecem associados a uma
consciência do fluxo do tempo, que é inelutável, como é evidente quando o poeta
sublinha que “dias e noites alternam, o tempo corre / O ano mal começa e já lá vai
metade” ou em particular quando se faz a associação com a morte: “tudo o que chega
deve partir um dia”, ... ou talvez ainda de uma forma mais redundante no poema da
página ...??? quando o poeta exclama: “O ano, mal começa, e já cinco dias se foram /
minha vida depressa acabará”. Ora o desenlace que estas reflexões sobre o tempo
preparam é sempre a promoção do dia que passa que é afinal o único bem seguro, a
única certeza nesta voragem insensata do devir:

“pego no jarro de vinho


e sirvo os meus companheiros
de copos cheios, bebemos e brindamos à vez
sem sabermos se amanhã ainda estaremos aqui
um pouco já alegres deixamos falar o coração
esquecendo as agruras da vida
não hesites, goza hoje
preocupações!? amanhã poderás não ter nenhumas”

No poema da página ???? o poeta torna-se mais expressivo ainda soletrando a


passagem rápida de tudo, a caducidade vertiginosa, a fugacidade ???? e, como em
muitos outros lugares da sua obra, estabelecendo, desse modo, o nexo inevitável com o
retiro. Mas eu já sublinhei que o paradigma da vida retirada domina toda a poesia de
Tao Yuanming e é ele a base construtiva do modelo estrutural do culto da mediania.

“O tempo corre sem parar,


retirado? sempre estive!

25
dentro de anos, o corpo, mas também a fama,
terão desaparecido ambos”.

De todos os textos poéticos de Tao Yuanming aquele em que a prosódia própria


do paradigma temático do carpe diem mais se aproxima da sua formalização clássica é
o poema da página ??? que cito por inteiro sublinhando os versos mais expressivos:

“aos tombos, errante como o pó dos caminhos,


logo se dispersa,
levado pelo vento que no ar rodopia
a vida de um homem

são todos irmãos os que chegam a ser


procriados ou não pelos mesmos pais
seus corpos não são coisas duráveis
é preciso gozar o momento que passa

se tens um jarro de vinho,


convida o teu irmão
a oportunidade pode não se repetir,
e o dia só amanhece uma vez

quando chega a hora


de te entregares ao outro
e ao mundo
aproveita-o que o tempo não espera”.

Enfim, parece-me que o conteúdo substantivo deste poema assim como o modo
que o poeta escolheu para o dizer configuram inequivocamente a possibilidade de uma
aproximação temática e estilística à literatura europeia e em particular à poesia
elegíaca e augustiniana. Estou a pensar em poetas como Tibulo, Propércio, Virgílio,
mas sobretudo Horácio.

2. Mediocridade e pobreza

26
a. Breve introdução ao paradigma. Ressalvando os fundamentos na cultura
ocidental11

Nada na poesia de Tao Quian se aproxima de um estilo grandioso, elevado,


através de uma utilização lírica ou épica dos tropos da linguagem. Tao Yuanming é um
poeta da media rés, inequivocamente. Nem mesmo quando se refere à solidão e à
reclusão ele exagera relativamente às virtudes que fomentam esse modo de vida. É um
poeta da mediocridade no que diz respeito ao estilo e no que diz respeito aos temas
predominantes. O seu estilo só se exalta um pouco quando exprime com ênfase a sua
luta intelectual e moral para se situar no plano dos seus émulos, os sábios da
antiguidade; isto é para se sentir digno do seu exemplo. Em tudo o resto, o seu
profundo cepticismo filosófico, a sua lealdade para com os amigos próximos e família,
a sua vulnerabilidade interior, que não esconde mesmo se atinge ou ultrapassa a
fronteira do pudor, ainda assim aceitável todavia, para um poeta; e talvez sobretudo o
seu realismo sem atenuantes relativamente à dureza do dia a dia, dureza que jamais
procura sublimar de outro modo que não seja a aceitação resignada, mitigada através
da poesia, da música e dos prazeres do vinho. Em tudo o resto, dizia eu, Tao
Yuanming, pelas qualidades que sublinhei, cultiva um estilo contido, parcimonioso nas
metáforas e apenas prolixo no seu pendor descritivo. É claramente um poeta do docere
e quase nada um poeta do delectare e do movere. Quase nada e quase nunca.
O estilo pouco loquaz, a simplicidade da sua escrita, adequam-se muito bem à
sua formação. É sabido que desde a juventude se cultivou, e bem, nos clássicos do
Confucionismo e do Taoismo e que numa idade já avançada privou com um sábio
budista, isto numa época em que o budismo ainda não se tinha tornado muito

11
Deixo aqui, embora sumariamente, uns quantos versos que de uma forma expressiva mostram a força
do paradigma na tradição clássica europeia: Arquíloco: Não me importa o ouro de Giges, nem me
domina a ambição, nem invejo as acções dos deuses. Não desejo a tirania poderosa. Longe dos meus
olhos está tudo isso. Anacreonte: Eu não queria a cornucópia / de Amalteia / nem século e meio ser rei /
de Tartessos. Teógnis: Não te esforces demasiado, o meio é sempre o melhor. Assim possuirás um
mérito que é difícil alcançar. Cecílio: Vive, pois, como podes, já que não és capaz de viver como queres.
(mediocridade). Tibulo: Riquezas outro para si amontoe de amarelo ouro / e possua leiras muitas de
campo cultivado, / a quem uma inquietação constante atemorize / (…) a mim minha frugalidade me leve
ao largo de uma vida tranquila. Tibulo: poder desfrutar tranquilo, (…) meus humildes desejos. Séneca:
Audaz em demasia quem primeiro os mares / traidores sobre tão frágil navio sulcou / e, as terras suas
deitando-as para trás das costas / confiou a vida a brisas inconstantes. Marcial: deseja ser o que és, não
prefiras nada. Estácio: pede só o que seja justo ou que pareça bom. Estácio: Foge do que é exagerado e
regozija-te com o que é pequeno. A nave é mais segura quando navega com vento suave. Claudiano:
Feliz quem passa toda a vida nos seus próprios campos. Como se verá, tudo isto, mediocridade,
mediania, carpe diem, vida simples, retirada, etc., está ligado ao conceito motor, ou seja o conceito de
limite, porque é o limite que se opõe ao excesso e impõe a medida.

27
importante na cultura chinesa. Mas a chegada do budismo à cultura confucionista e
taoista de Tao Yuanming não alterou significativamente o sentido da sua obra12.
Muito importante também para a compreensão do carácter céptico e
desencantado, desiludido e resignado da obra deste poeta foi seguramente a
instabilidade do tempo em que viveu. A natureza conturbada, e perigosa mesmo, da
época em que viveu, estimulou nele uma amargura e um desencanto que de facto
reforçou a sua inclinação céptica por um lado e solitária por outro. A insegurança, fruto
das guerras e do caos, endureceu o seu carácter, provavelmente já de si dado à solidão
e ao retiro13. Na história da literatura latina há dois casos exemplares em que as
vicissitudes políticas também condicionaram ou reforçaram o carácter dos poetas em
questão. Estou a pensar nesses dois gigantes da poesia europeia que foram Virgílio e
Horácio. Tao Yuanming é quase quatro séculos posterior a estes dois grandes vultos,
mas há semelhanças biográficas e estéticas, e sobretudo temáticas. Também Virgílio e
Horácio inflectiram na sua obra, a partir de uma determinada idade da vida, para
temas mas também para comportamentos onde a vocação solitária e détaché se
intensificaram. Basta recordar que Virgílio se auto-exilou para a sua Villa de Posilipo e
Horácio passou grande parte da sua vida nas suas propriedades rurais de Sabina ou de
Tivoli.
Virgílio foi, tal como Horácio, muito sensível ao carácter destrutivo das
dissensões e dos conflitos que minaram a República romana. Ele viveu durante o
período sangrento da guerra civil entre César e Pompeu, consequência da oposição
entre César e o Senado, órgão no qual residia a vitalidade republicana, e assistiu ao
triunfo de César e portanto à morte anunciada da República. Ele assistiu ainda, após o
assassinato de César, às guerras civis que foram dizimando a aristocracia romana entre
43 e 31 a.C. e que não eram mais do que o desespero republicano contra os arautos da
nova ordem imperial, já sonhada por César, ou seja, Marco António e Octávio. E
finalmente ainda assistiu à contenda entre os dois anteriores aliados que terminou com

12
E isto apesar de que os budistas não eram propriamente muito admiradores de poesia, se fizermos fé
nas palavras sibilinas de Huang-bo, que viveu no século IX e que num texto célebre condenou sem
apelo a poesia, quando a propósito de um poema que lhe foi apresentado terá dito: “Estas figuras de
papel e de tinta o que é que elas têm a ver com a nossa doutrina?” (cf. P. Demiéville: 339). É que de
facto, sendo em última instância a palavra o veículo por excelência do pensamento ou da lógica, nada de
mais avesso portanto ao espírito do budismo e em particular do budismo zen. Mas em nome da verdade
devo acrescentar que se sabe como nos meios budistas, até os mais ortodoxos, sempre se exprimiu
dominadora uma perspectiva de grande simpatia pela a arte poética.
13
O poeta nasceu e viveu uma parte muito significativa da sua vida durante a dinastia Jin (317-420).
Situada entre os Han e os Sui, esta foi uma das épocas mais caóticas, violentas e instáveis da História da
China.

28
a vitória de Octávio sobre Marco António em Actium. Pelo que se pode dizer que
Virgílio foi um espectador privilegiado do fim da República e do nascimento muito
conturbado do Império. Sedento, como deveria estar, de paz e harmonia acolheu a
nova ordem fazendo, tal como Horácio, parte do séquito intelectual de Augusto, quero
dizer de Octávio César Augusto.
Mas esta formação nos bancos da dura escola da experiência foi sedimentando,
creio, um lastro de desilusão ao mesmo tempo que frequentava as aulas do epicurista
Siro. Tudo no seu conjunto terá, como se compreende, estimulado em Virgílio uma
rejeição inequívoca pelos negotia, para o dizer de uma forma genérica, que traduz
globalmente uma hostilidade ao universo da ubris e uma adesão incondicional ao
universo da mediania e até do retiro, tão caro à cultura mental da tradição epicurista.
Por um lado, mesmo que o paradigma possa não estar devidamente estudado
relativamente à ligação que é ou será possível estabelecer, na cultura chinesa, entre
pobreza, mediocridade e mediania, por um lado, e os elementos ontológico-metafísicos
que os estruturam penso que é para já possível afirmar que existe pelo menos uma
relação entre a preferência por uma vida simples (“Sou humilde, como qualquer
campónio” p. ?????) e modesta, a roçar eventualmente a pobreza, e o culto de uma
mediania que se furta ao universo da ambição, dos negócios, do poder, das carreiras,
etc. com o seu concomitante arsenal de intrigas, e mesmo de sacrifício dos valores
éticos e morais. Aquilo a que Tao Yuanming chama o mundo de poeira não é mais do
que o mundo em que predomina a ilusão e a alienação do ser, ou seja o império de uma
vida inautêntica. É a isso que o poeta se quer poupar, para que a sua alma poética e os
seus ideais, congruentes com os mesmo ideais dos sábios da antiguidade, que tanto
ama e admira, possam realizar a sua obra e levar coerentemente a bom porto os
sonhos e os projectos que a alimentam. A vida pública, a vida cortesã, os negócios, as
intrigas, as carreiras, tudo isso desvia a atenção do que é essencial.
E o que é essencial é apenas espiritual pelo que o suporte material, não passa
disso mesmo, de um suporte minimalista e daí naturalmente frugal ou até ascético. Na
cultura europeia o ascetismo evoluiu a partir de uma verificação do mesmo género.
Cícero14, penso eu, antes de qualquer outro percebeu que o mundo do ter, da posse, da
14
Tal como em Cícero é a problemática de uma vida boa que anima os ideais de Tao Yuanming. E boa
de uma forma múltipla e com mais do que um sentido. A procura do bem possui uma dimensão ideal
nos planos ético e moral e também pragmática no sentido da realização da felicidade. Esta felicidade
perfeita só pode designar-se por beatitude. E é uma espécie de beatitude que os sábios chineses
almejam, com outros nomes e com outro alcance espiritual e religioso. Na tradição europeia é a partir de
Cícero (De natura deorum), que se desencadeia de facto a evolução do conceito de beatitude no sentido

29
abundância, e já agora do excesso onde se satisfazem os desejos de glória, de luxo e de
poder, não passa de uma ilusão. Em boa verdade isso não é mais do que poeira.
Perdoem-me o plebeísmo, mas apetece dizer que Tao Yuanming poderia um dia ter
dito desse mundo que lhe propunham, esse mundo de vanidade e de ilusão, “por favor
não me atirem terra para os olhos”, enfim, como soe dizer-se.
Um dia, talvez que eu possa procurar deslindar as coordenadas temáticas da
filosofia poética de Tao Quian em articulação com as suas convicções ideológicas,
taoistas, confucionistas e ao que parece, pelo menos a partir de uma determinada
altura, budistas também. Agora limitar-me-ei a fixar as utilizações várias dos
paradigmas e neste capítulo da minha introdução, do paradigma mediano da
mediocridade e da pobreza.
Em Tao Yuanming a rejeição da grandeza e da glória é muitas vezes repetida nos
seus poemas, e algumas vezes de uma forma muito expressiva como quando diz por
exemplo que inveja “apenas os eremitas / que vivem do que a terra dá” (p. ?????) ou
a terminar este poema o modo como rejeita os cargos oficiais já que “mesmo a mais
digna função / se opõe aos meus ideais, / pois numa cabana humilde / melhor me
realizo// e afinal “não sujar o meu nome / é o meu único desejo”. (p. ?????)
Na maior parte das vezes, e já o disse, o conteúdo dos poemas do poeta da
reclusão, não obedece a uma linha temática muito restritiva. Poemas sobre a pobreza,
são também poemas sobre o retiro e assim por diante. Todos os poemas são pluri
temáticos, até os poemas sobre o vinho. Eu arrumei-os segundo uma espécie de
intuição sensível, inclinando-me pelas emoções mais fortes ou por partes do poema
que mais me impressionaram. É o caso do texto escrito para Ching yuan, primo do
poeta. É verdade que o poeta começa por assinalar que “para a humilde morada me
de uma parcimónia e frugalidade. Afasta-se ligeiramente mas progressivamente de uma leitura próxima
da etimologia, para fixar na palavra uma acumulação de bens e uma expurgação de todos os males. Mas
aquilo que estou a insinuar é que mais do que um deslocamento se opera uma verdadeira inversão
conceptual, na medida em que começando por significar etimologicamente acumulação, a ideia de
beatitude se vai transformando até ao ponto de chegar a exprimir esvaziamento. Mais importante do que
acumular bens é purgar dos males, porque só assim os bens acumulados são verdadeiramente bens. Os
bens só são bens na condição da total separação do mal que lhe é próximo. Implícita, mas ainda não
teorizada, está uma ideia de ascese, que se pode expressar através da ideia de ascensão e leveza: “Per
ascendere bisogna divenir leggeri” (Natoli 1994: 30). Se o bem e o mal coabitam, a lógica evolutiva do
que vimos afirmando acabará por culminar na suspeita de que a ideia de acumulação e enchimento é
uma armadilha e que portanto será, pelo contrário, numa atitude de nulificação, que se logrará preparar a
morada do bem. Esta evolução está bem patente na expressão medieval «nihil habentes et omnia
possidentes». Uma ideia que não posso deixar de fixar já é que a mediania, na sua dupla acepção de
mediocridade e de retiro, encontrará terreno fértil para se enraizar nesta atmosfera de ascese e de
pobreza. A ideia de que a felicidade se obtém por esvaziamento e não por cúmulo de bens fomenta, de
uma forma clara, tanto o retiro como a vida simples, mediocre, modesta, pobre mesmo. E neste plano
essencial eu encontrei muitas semelhanças entre a ascese ocidental e o culto da pobreza de muitos
sábios chineses. Em particular em Tao Yuanming.

30
retiro / mantenho fechado o portão/ envolvido por ramagens // quem me compreende
neste lugar afastado / onde rompi com o mundo?” (p. ?????), porém o que mais me
impressionou foi a leitura dos versos carregados de sofrimento e dramatismo onde fala
da sua imensa pobreza, da fome e do desconforto provocado pelo frio, “diante dos
olhos apenas a distância branca / o ar gelado através das roupas acaricia o corpo / nem
uma pobre refeição consigo // só, desolado nesta casa vazia, / nada nem ninguém me
conforta” (p. ????)
Um exemplo em que a promiscuidade temática é muito evidente é no notável
poema sobre o regresso a casa. Todo o poema é sobre a profunda atracção do poeta
pelo campo, por uma vida longe da multidão (à l’écart de la foule) como escreveu
Horácio. E a verdade é que até o odi profanum vulgus et arceo assoma de dentro
deste texto de Tao Yuanming através do verso “mastigo um desdém imenso pelo
mundo”. Mas o que predomina é o culto da simplicidade, de uma certa mediocridade e
até de alguma pobreza “quem com pouco se contenta com pouco se satisfaz”. A
verdade é que eu também poderia ter incluído este poema no ciclo subordinado ao
carpe diem pois este poderoso texto tudo desenvolve com grande acutilância
ideológica mas também com grande beleza emocional. Repare-se na exactidão
temática e na elegância formal destes versos:

“ (...)
É tão pouco o tempo
que aos homens é dado sobre a terra

enfim, é a vida! por quanto tempo ainda?


então sigamos apenas a voz do coração

a gente afadiga-se, a gente agita-se,


e onde é que isso nos leva!?

não tenho desejos de riqueza


e nem quero alcançar o céu

não quero mais que aproveitar os dias,


fazendo cera,

e andar por aí sozinho


a caminho dos cimos assobiando alegremente,

por margens de ribeiros de águas límpidas


ou mesmo fazendo poemas
(...)” (p. ????????)

31
Em muitos momentos Tao Yuanming atinge uma elevada perfeição ao nível do
docere, mas raras vezes o conteúdo didáctico e sentencioso se equilibra tão bem, com
uma emoção tão sentida e de tão grande contenção formal, como neste texto. É claro
que o poema é dominado por um sentimento medíocre, muitíssimo bem expresso
quando diz: “não tenho desejos de riqueza / e nem quero alcançar o céu”; mas logo
transita para um carpe diem muito suave e nada hedonista de tipo genuinamente
clássico quando acresenta, “não quero mais que aproveitar os dias, / fazendo cera”,
para terminar com uma resignação impassível e imperturbável provavelmente de
natureza taoista e que na cultura europeia se assemelha à apatheia estóica e à ataraxia
epicurista. Contudo o lançamento desta parte do poema, a sua ideologia propedêutica,
é genuinamente barroco pois exacerba a caducidade de tudo e da vida em particular e o
sem sentido da agitação existencial. É de facto um poema notável a vários títulos, este
que figura como uma das maiores referências da obra de Tao Yuanming. E pelo seu
carácter, enquanto emblemático da sua obra, mostra todas as valências ideológicas e
temáticas dessa obra. A pedra de toque de toda a sua ideologia, a marca cega do seu
génio está lapidarmente gravado neste poema também como não poderia deixar de ser.
“(...) tudo fiz para romper com o mundo, / ele e eu nunca nos demos bem / para quê
alimentar ilusões? Não há nada a procurar”. Em minha opinião está tudo aqui e foi isto
que eu comecei por dizer.
Exactamente! Parece uma contradição, mas não é, pois quando o poeta se refere
ao facto de que tudo fez para romper com o mundo, até parece que não o conseguiu,
mas é o contrário, ele tudo fez para se adequar ao mundo mas a sua relação com o
mundo jamais o permitiu e desde criança que o seu destino estava todo lá fixado na sua
imagem de menino com os cabelos apanhados com chinó. (p. ????)
Em alguns poemas deste grupo, nem sempre é a pobreza o tema, mas antes as
delícias de uma vida simples e modesta que nos aparece convocada através de
adereços semânticos iniludíveis: “a casinha de campo”, “a cabana de colmo”, “vestido
com uma peça grosseira, aqueço-me ao sol da varanda”, etc. E assim os poemas
intitulados “elogio da pobreza” nem precisam de carregar nas tintas pois através dos
recursos estilísticos e do léxico é de simplicidade que se fala sempre. E quando o poeta
cita outras figuras da cultura chinesa que viveram em total indigência sente-se que no
essencial procura legitimar e conferir dignidade ao seu estatuto. Estou a pensar no
velho Yong que tocava ch’in com alegria apesar de não ter mais do que uma peça de
roupa grosseira atada à cintura com uma corda, ou o letrado Yuan Hsien que cantava

32
baladas simples alegremente apesar de o frio entrar pelos seus sapatos rotos e
esburacados e muitos outros vestidos tão andrajosamente que os farrapos nem davam
para tapar os braços ou finalmente ainda aquele se alimentava tão mal que até na canja
chegava a faltar o arroz. (p. ?????)
Mas a imagem mais pungente é dada no elogio da pobreza da página ?????
quando referindo-se a Chian Lou nos diz que quando morreu apenas lhe “restava uma
mortalha esfarrapada / que mal lhe cobria os restos mortais”. (p. ???) E mesmo apesar
da miséria extrema em que viveu jamais se conheceu um homem tão bom, pois
“começava o dia treinando a compaixão e a justiça / e ao entardecer o coração estava
já limpo / de quaisquer remorsos”. E qual é afinal de contas a razão para tanto
desprezo relativamente às condições materiais!? Antes de mais porque é o tao que
decide dessas coisas e sobretudo porque de facto o tao não tem nada a ver com isso.
Ou seja riqueza ou prosperidade é condição da qual não decidimos nós e uma vez que
uma sorte nos cabe em sorte, viver de acordo com o tao é incólume a condicionalismos
desses. Tanto se pode viver de acordo com o tao numa situação ou noutra, embora se
possa matar a fome respigando uns grãos silvestres e até dormir quentinho no feno
(p. ????). A verdade é que os mestres espirituais de Tao Yuanming não temiam nem
fome nem frio e eu atrevo-me a concluir que a referência do poeta a estas figuras
lendárias (Mestre Chuan e Yuan An) significa uma caução moral para a sua própria
condição. Afinal “a nobre virtude de um reinava no seu país natal” , enquanto que “a
integridade do outro iluminava a Passagem de Oeste”. (p. ????) E isso que eu intuí o
próprio poeta o diz num poema de grande concisão e rigor. Neste caso cito o poema
por inteiro pois vale a pena tanto no plano estético quanto no plano programático:

“Chong wei gostava de viver escondido


avesso a qualquer vida social,
fechado numa casa
rodeada de maleitas
mas a fazer poemas era mesmo bom
contudo ninguém no mundo o conhecia
a não ser Liu Kong
Porque viveria este homem numa solidão tão grande?
pouca coisa partilhava com os demais, decerto
e eram raros também os que tinham

33
os sonhos que ele tinha
Intransigente e sereno contentava-se
com a sua vocação
e os seus prazeres não oscilavam com os golpes da fortuna

como para os afazeres do mundo


eu sou tão canhestro quanto ele
O melhor é mesmo seguir o seu exemplo” (p. ????)

Fazendo notar porém alguns versos:


--- os primeiros dois porque aí se explicita um dado fundamental da vida, quer
dizer da aspiração existencial, de Tao Yuanming, uma vez que, tudo leva a crer, nunca
viveu esse sonho completamente. Estou a referir-me desde logo aos versos “Chong
wei gostava de viver escondido / avesso a qualquer vida social”, pois o viver
escondido é o que mais se aproxima da lathe biosas epicurista e segundo o meu
entendimento tanto o viver escondido como a relação com o vinho, esboçam um
sensualismo timbrado de um hedonismo muito suave à maneira de Epicuro.
--- O terceiro verso é a exclamação, que me parece de enorme respeito, “mas a
fazer poemas era mesmo bom”, respeito através do qual se desenha uma espécie de
mimetismo e emulação.
--- Depois, um verso que para mim representa um achado de grande alcance pois
vai ao encontro do sentido de uma autarcia que muito se assemelha ao legado
ocidental, neste caso tanto estóico quanto epicurista da resistência do sábio à deusa
Tyche, ou seja à deusa da fortuna, deusa caprichosa por natureza. Dizer que os
“prazeres não oscilavam com os golpes da fortuna” --- e pode-se substituir os prazeres
por felicidade --- é o mesmo que dizer que a felicidade está ao alcance do sábio pois
ele é o senhor de si mesmo, é o mesmo que dizer enfim que ele possui um elevado
grau de autarcia, de auto-domínio e de auto-governo.
E finalmente ainda os versos onde melhor se concretiza a minha intuição, de que
Tao Yuanming usa o exemplo destes letrados para melhor veicular a sua própria
filosofia de vida, “como para os afazeres do mundo / eu sou tão canhestro quanto ele /
o melhor é mesmo seguir o seu exemplo” (p. ????).
Esta perspectiva de comparar os comportamentos e os acasos existenciais de
grandes figuras da cultura letrada chinesa mais antiga com o seu próprio caso culmina

34
no poema da página ???????, o sexto da minha antologia, intitulado elogio da pobreza.
A referência escolhida foi Huang Tzu, personalidade da qual se perdeu literalmente o
rasto. As vicissitudes da vida de Huang Tzu parecem decalcadas das ocorrências da
vida do próprio Tao Yuanming. Tomar posse de cargos e depois abandoná-los, viver
pobremente, passar fome, regressar às origens, etc. Daqui colhe o poeta mais um
grande exemplo pois Huang Tzu, mesmo num estado de absoluta miséria, recusou a
compaixão, seguramente porque seria caro o preço de tal cedência. O poeta fecha o
poema de forma exemplar no plano dos princípios:

“certo dia encontrou ele Hui Sun


que lhe testemunhou a sua compaixão,
mas ele recusou as prendas luxuosas
continuar fiel aos seus princípios
mesmo em estado de carência
deve ser muito difícil,
devemos portanto essa lição
aos Sábios de antigamente” (p. ????)

3.
RETIRO
a. Breve introdução ao paradigma. Ressalvando os fundamentos na cultura
ocidental

Há pelo menos um texto do grande poeta Wang Wei em que este presta
homenagem a Tao Yuanming, transliterando, enquanto referência por citação, a utopia
poética da fonte dos pessegueiros em flor. O poema em prosa a que aludo ficou como
a fábula por excelência dos paraísos terrestres sob a forma de uma utopia radical. “Un
pays de cocagne”, uma terra de absoluta abundância reforçada por uma dimensão de
utopia social, onde se concebe um sociedade feita de harmonia e felicidade plena,
tanto para cada indivíduo em particular como para o conjunto da sociedade. Felicidade
individual e colectiva numa sociedade harmoniosa, pacífica, etc. Esta evocação de Tao
Yuanming aconteceu quando Pei Ti, grande amigo de Wang Wei, o visitou e lhe contou
uma história admirável que ocorreu no contexto de uma rebelião datada do ano de 755

35
e liderada por um general de ascendência iraniana An Lu Shan. Pei Ti visitou Wang
Wei no Templo de Dodhi, onde o poeta se tinha enclausurado, é o termo, e aí lhe
contou que os rebeldes, depois de terem tomado a cidade decidiram mandar tocar
música nas margens geladas do lago de esmeraldas, e foi então, ao que consta, que ao
começarem a tocar todos os músicos se desfizeram em lágrimas. Quando Pei Ti deixou
Wang Wei, este, vivamente impressionado com esta história, escreveu dois poemas e
num deles diz a dada altura:

O que é que posso fazer para me livrar


do mundo ilusório, desta poeira
deste ensurdecedor ruído
e a meu belo prazer, de bengala na mão
regressar à fonte dos pessegueiros em flor?

Toda a temática é à maneira de Tao Yuan, assim como os próprios recursos


metonímicos, culminando nessa referência maior da obra do poeta do monte Lu Shan
que é a utopia poética designada, como já disse, como a Fonte dos pessegueiros em
flor. E este mito é provavelmente o texto mais ilustrativo, no plano simbólico, da obra
de Tao Yuanming no que diz respeito à sua maior obsessão, ou seja, ao seu gosto
reiteradamente glosado pela reclusão, uma vida completamente à margem das
contradições mundanas; uma vida penetrada pelo silêncio e por um constitutiva
solidão; pois nós sabemos que aquele texto é a grande utopia poética de Tao
Yuanming, onde ele descreve a vida campestre de uma comunidade aldeã de uma
forma idílica vivendo isolada do mundo desde há várias gerações e que tem duas
características muito originais relativamente às utopias ocidentais:
--- A primeira é que os seus membros forjaram este lugar tendo fugido do mundo
considerado normal uma vez que as guerras, a insegurança e as dificuldades de toda a
ordem tornaram aí a vida simplesmente irrespirável.
--- A segunda é que, ao que parece, deitaram fora, tanto a chave da porta de entrada no
seu mundo, como do mapa que a ele poderia conduzir, justamente para que esse
mundo não fosse descoberto e assim devassado.
Aí conservaram uma enorme simplicidade tanto nos modos de vida, quanto no
próprio coração isto é na vida íntima: moral e cívica.
A crítica e a história da recepção têm mostrado que é possível destacar alguns
poemas do conjunto da obra de Tao Yuanming. Há três ou quatro poemas que são
habituais em todas as antologias e entre todos eles ainda destacaria com uma rede mais
fina os dois poemas que melhor exprimem a idéia de retiro. O poema que eu designei
por Enfim, regresso a casa e o texto em prosa poética A fonte dos pessegueiros em

36
flor. Estes dois textos, ambos longos, complementam-se e, no seu conjunto, mostram a
relação profunda do poeta com a solidão, num caso através de uma saída utópica para
fora do mundo, uma forma de fugere mundus mas jamais de contemptus mundi, no
outro caso, uma saída para o campo numa perspectiva de evasão mas também de
rusticidade através da qual o poeta por um lado exalta a natureza e por outro lado
enfatiza também as fainas campesinas, oscilando assim permanentemente entre uma
atitude bucólico-contemplativa e uma atitude geórgica, utilizando mais uma vez as
categorias temáticas da história da poesia europeia. Em qualquer dos casos, há fuga,
porém neste poema a fuga é menos radical e exprime apenas uma espécie de fugere
orbis. Mas, e é bom que se diga desde já, não me parece que haja, em ambos os textos,
o mínimo sinal de misantropia ou de desprezo pelo vulgo. Mesmo se o poeta chega a
dizer que se dá com “pouca gente aqui no campo”, uma vez que logo confessa que de
vez em quando “abrindo caminho entre as ervas / procuro a casa de alguns vizinhos, /
mas quando a gente se encontra falamos apenas /de como medram as amoreiras e o
cânhamo // pois a amoreira e o cânhamo medram a olhos vistos / e a horta prospera de
igual modo...”. É que Tao Yuanming deveria ser de poucas falas, como se depreende,
mas a vida social e a ausência de preconceitos relativamente ao vulgo são evidentes e
estão na sua obra de uma maneira que não oferece dúvidas. Em qualquer dos casos, o
poeta reconstitui, formas de amizade e de convívio social, bastante abertas e amplas. O
poeta de Lu Shan não é um cínico, simplesmente precisa de paz, tempo, serenidade e
de silêncio sobretudo. É ele que o diz sem problemas “Na minha humilde cabana, há
um ch’in e livros / sinto-me bem a jogar e a ler, sem outras motivações / a viver
retirado é que eu sou feliz”.
Tao Yuanming é um homem do campo que por vezes foi obrigado a abandonar o
campo. Um estudo interessante deveria passar por esta análise da estrutura mental dos
poetas chineses resistentes aos desafios do cosmopolitismo. O campo é o lugar de
onde se veio e ao qual se aspira regressar obsessivamente diria eu.

“lá longe ficou também o junco solitário / e em mim / o obsessivo pensamento


do regresso, / esta insidiosa nostalgia”.

Um estudo sociológico sobre a estrutura demográfica e sobre o povoamento na


época deste poeta poderiam ajudar muito sobre essa tão cantada nostalgia pelo mundo
rural. É que para lá da consciência própria do poeta, a realidade económica e social
assim como a estrutura demográfica poderiam ajudar-nos a compreender a escassa

37
existência de cosmopolitismo na poesia chinesa antiga. De qualquer modo o poeta
avisa-nos para o que julga ser uma dimensão idiossincrática de si mesmo. Nem todos
seriam tão ávidos de solidão, de silêncio e de retiro e sobretudo do cenário em que
esses modos de vida melhor se adequam, o campo. Ao dizer, indo ao encontro da
minha dúvida,

“Na minha juventude eu não era como os outros


amava mais as montanhas e os campos” (p. ?????)

o poeta não se limita a um comportamento tradicional, mas antes pelo contrário vinca
uma especificidade pessoal. É por demais evidente que Tao Yuanming
independentemente das condições sociais ama o campo, tantas vezes ele o justifica e
de mil modos. E a coerência dos argumentos, que apesar de variados vão sempre num
mesmo sentido, faz-nos crer que a questão é íntima, pessoal, própria e de algum modo
única. O poema da página ?????? é muito ilustrativo de tudo o que Tao Yuanming
procurava e desejava. Neste caso e mais uma vez vale a pena transcrever todo o texto:

“Na minha juventude eu não era como os outros


amava mais as montanhas e os campos

um dia também eu caí na armadilha,


e quando me dei conta já lá iam treze anos

mas o pássaro em cativeiro tem saudades da floresta


e o peixe no seu aquário anseia pelas águas revoltas de outrora

eu limpo as minhas terras mantendo-me rude,


e levo uma vida simples, pois regressei ao campo

o lugar onde moro não vai além de uns casais


onde tenho uma casita com alguns aposentos

colmos e salgueiros dão sombra ao alpendre das traseiras


pessegueiros e pereiras podem ver-se da sala

lá ao longe, o casario de uma aldeia perdida e vaga

38
o fumo de chaminés subindo para o céu

cães que ladram em becos distantes e baldios


galos que cantam empoleirados em arbustos

no coração da casa nem o mínimo tumulto


o silêncio mobila os quartos

tanto tempo estive em cativeiro


que alegria por voltar a ser livre “

Quando alguém diz que só num determinado espaço e modo de vida se sente
livre sentindo que tudo o resto é prisão e cativeiro, então não podem subsistir dúvidas
acerca da autenticidade do desejo.
A profunda atracção pelo silêncio, a que aludi, aparece logo no poema da
página ???? quando pensa justamente em silêncio na sua casa e nos ermos em volta,
pensamentos que o levam a outro, permanente e obsidiante pensamento, o de que se
deveria afastar do mundo. Já vimos contudo que esta fuga do mundo nunca ganhou os
contornos radicais de um desprezo pelo mundo, à semelhança dos anacoretas ou
eremitas numa lógica de purga ou purificação. Tao Yuanming era um homem sereno e
afável, ora o contemptus mundi pressupõe uma relação exasperada de natureza
religiosa com uma parte de si mesmo. No caso do ocidente isso ocorre no contexto de
dualismos radicais e de dramatização da condição humana, aquilo a que Paul Ricoeur
designava como o patético da miséria15, da miséria ontológica é claro. Um chinês
como Tao Yuanming formada na confluência do confucionismo com o taoismo e
reforçado mais tarde pelo budismo não é palco para tal dramatização.

Última nota
Na cultura europeia o idílio aparece bem diferenciado da geórgica pois há
elementos que estabelecem uma separação inquestionável. Só a bucólica pode ser
ociosa e só a bucólica pode ser anacreôntica. Onde há contemplação pura e ociosa não
é da geórgica que se fala. Onde há eventualmente tendência hedonista mais ou menos
sibarítica também não pode haver lugar para uma pastoral que nasce e se desenvolve
sob o signo de Saturno. O mundo geórgico é o mundo da regeneração pelo trabalho em
15
Ricoeur: 1988.

39
cenário rural, em contacto com a terra que é fonte de regeneração em si mesmo.
Ganharás o pão com o suor do rosto, disse Deus a Adão, após a queda. A geórgica foi
criada por Virgílio no contexto da idade do ferro e é no âmbito de uma cultura pós
lapsária que se desenvolverá. Ora, o curioso é que a cultura chinesa pressupõe a
coabitação pacífica dos dois elementos justamente porque não possui o elemento
religioso nos mesmos termos. Falta à cultura chinesa uma agónica encenação religiosa
da queda e do pecado e da culpa o que torna imediatamente os comportamentos menos
exasperados, menos dramáticos. Onde falta dramatismo tanto expressivo e formal
quanto imanente e real, sobra serenidade, tranquilidade, resignação. Que me seja
permitido dizê-lo assim, na cultura chinesa clássica esbraceja-se menos e contempla-se
mais. Embora, e também é justo dizê-lo, a promoção do trabalho pode chegar por outra
via, psicológica ou cívica, pois “o labor traz consigo alguma paz”. Percebe-se melhor
o significado da troca da cidade pelo campo, percebe-se melhor que não há fuga do
mundo, mas tão só dos negócios (“Desde a juventude que não me atraem os /
negócios do mundo”) (p. ????), das honrarias (“e todas estas coisas dão um prazer /
que me faz esquecer quaisquer honrarias”), (p. ????) e de tudo o que elas significam
para se alcançarem, quando escutamos a melodia suave e encantada deste poema que
tenho de citar por inteiro:

Como é belo o pequeno bosque diante da sala de estar,


mesmo no pino do Verão enche o ar de frescura

o vento sul chega na época própria, o seu murmúrio


abre ligeiramente a camisa e refresca o peito

retirado do mundo, gozo o abandono; deito-me,


levanto-me, leio, dedico-me ao ch’in, assim ao ‘deus dará’

na horta felizmente há legumes de sobra,


e da última colheita ainda há qualquer coisita

se há um limiar para provisões


não desejo ir além dessa soleira

descasquei algum arroz para fazer vinho


está agora pronto para eu me servir,

o meu filho mais novo brinca ao meu lado


balbucia as primeiras palavras

e todas estas coisas dão um prazer


que me faz esquecer quaisquer honrarias.

40
ao longe nuvens brancas oferecem-se à contemplação.
Ah! como é profunda a nostalgia do tempo que já passou

É porém muito mais ambíguo o poema da página ??????????? uma vez que a
articulação de dois versos permite e autoriza uma injunção possível entre um certo
desprezo pelo mundo e também pelo vulgo, O poeta diz “para a humilde morada me
retiro / mas mantenho fechado o portão / envolvido por ramagens // quem me
compreende neste lugar afastado / onde rompi com o mundo?”
De facto o poeta fecha-se ao mundo pois desconfia que não haja quem o possa
entender, além de que aqui se confessa uma ruptura com o mundo e não um
afastamento. Mas penso que são apenas lapsus linguae, necessidades formais e
estilísticas, pois nada o pressupõe no sentido dominante da sua obra. E até o resto do
poema não vai nessa direcção, aparentemente tão radical.

41
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44
I. POBREZA E MEDIOCRIDADE
(Fugere orbis, fugere mundus e mesmo contemptus mundi)

45
Versão chinesa --- páginas 13 e 14
Página 13 / No 3º mês do ano yi si, em missão à capital na minha qualidade de
conselheiro do general encarregado de restaurar o brasão do exército, ao passar
por Chian si ...

desde que abandonei estes lugares,


os anos passaram depressa
e agora tenho de novo todo o dia
para olhar
as montanhas e o rio

tudo é como sempre foi,


uma chuva ligeira lavou os picos
mais altos do bosque
o vento está fresco, contudo agreste,
os pássaros surgem das nuvens de repente

ah! como eu admiro


este mundo tão variado,
esta harmonia
o modo como circula o vento,
natural e benigno

por que terei eu de fazer o que faço!


os desejos mais antigos
não se alteraram nada
e todos os dias sonho
com o campo e com a casa

é difícil ficar longe tanto tempo


por isso ao longo do dia
o meu pensamento
tem a forma do junco
que me há-de levar de volta;

a minha tenacidade é igual à dos ciprestes

46
também eles desafiam a geada.

* Tao Yuanming não fica mais do que algumas semanas com Liu Yu. É muito
rapidamente nomeado conselheiro de Liu Ching hsuan, governador da província de
Chiang chou e general encarregado de restaurar o brasão do exército, instalado em
Hsun yang.
Página 14 Finalmente regresso a casa
A minha família era muito pobre e os trabalhos campestres não eram
suficientes para sustentar a família. A casa estava cheia de crianças e de arcas vazias. E
a verdade é que eu não vislumbrava nenhum caminho para assegurar os proventos
necessários à sobrevivência de todos. Por estes motivos, as pessoas mais próximas
aconselhavam-me insistentemente para que retomasse um lugar na administração
distrital. Mas como consegui-lo? O meu tio, ao ver-me em tal estado de penúria,
conseguiu que me fosse entregue um lugar num pequeno distrito. O que mais temia era
um lugar demasiado afastado, mas felizmente Peng tse não ficava a mais do que cem

47
lis da minha aldeia. Como o pedaço de terra associada à função garantia também uma
boa ração de vinho, decidi aceitar. Alguns dias depois de tomar posse já eu estava
morto por regressar. E porquê? Porque sou assim, e recuso o conformismo por instinto.
Ainda que a fome e o frio apertassem, viver contrariado punha-me doente. Não era a
primeira vez que estava mergulhado em obrigações mundanas, dominado pela
necessidade da sobrevivência. Desmoralizado, abatido e revoltado, sentia uma
vergonha infinita por estar a trair o grande sonho da minha vida. Esperei, portanto,
apenas o tempo de uma colheita para voltar a fazer as malas e durante a calada da noite
escapulir-me. Pouco tempo depois desta decisão, a minha irmã mais jovem, esposa de
Ch’eng, faleceu em Wu chang. As minhas emoções entraram em galope acelerado. E
demiti-me logo que pude. Não foram mais do que oitenta dias, desde o meio do
Outono até ao princípio do Inverno, os dias em que estive em funções. E como o
desenvolvimento dos factos coincidiu finalmente com o meu desejo, eu intitulei esta
composição “finalmente regresso a casa”.

* Contudo, menos de um ano depois Liu Ching hsuan demite-se. Tao Yuanming
abandona o seu lugar e regressa a casa em Tsai sang. No mês de Agosto de 405,
acaba por aceitar tomar posse como chefe do distrito de Peng tse, instado pelos seus
familiares e amigos, a recomendação do seu tio Tao Kui, que era ministro do
protocolo e das cerimónias rituais. Peng tse fica nas margens do rio comprido (???)
não muito longe de Hsun yang. Tao Yuanming permanece aí oitenta dias. No mês de
Novembro, porém, ao tomar conhecimento da morte da sua irmã (meia irmã), à qual
era particularmente ligado, demite-se e decide pôr definitivamente fim à sua carreira
oficial. Com apenas quarenta e dois anos retira-se para Tsai sang, a sua aldeia natal,
compondo na circunstância um longo e célebre poema, ilustrado com um prefácio no
qual desenvolve o seu sentimento profundo.

No 11º mês do ano yi si.


Enfim! Regresso,
os campos e o quintal já devem estar cobertos de mato
porque não regressei mais cedo?
porque deixei que o corpo abusasse da alma?
é inútil ficar abatido, desiludido com a sorte
pois sei que se não há remédio para o passado,
é pelo menos possível tentar mudar o futuro
enfim, estou certo de que não perdi o rumo ainda
escolhi apenas o caminho errado,

o barco desliza protegido por uma brisa suave,


sinto-a através da roupa

48
interrogo quem passa para não me perder,
lamentando a indecisão matutina da luz
quando de repente vislumbro
sob uma luz crepuscular
a cabana, minha humilde morada
e logo desato a correr em viva excitação
o criado jovem, alegre vem ao meu encontro,
os meus filhos esperam-me na soleira da porta
os caminhos foram invadidos por ervas daninhas
e quase desapareceram
mas os pinheiros e os crisântemos estão intactos
de mãos dadas com as crianças entro em casa
onde me espera um jarro de vinho
na sala bebo um copo sozinho
ao ver as árvores e os campos alegra-se meu coração
apoiado no parapeito da janela que dá para sul
mastigo um desdém imenso pelo mundo
e deixo correr a felicidade
quem com pouco se contenta com pouco se satisfaz
ao longo dos dias por puro prazer passeio pelo jardim
a cancela continua fechada
de bengala na mão ando, passeio e descanso
de vez em quando levanto a cabeça e olho para longe
as nuvens aparecem e desaparecem, sem tréguas,
no cimo das montanhas
os pássaros invadidos pelo temor
sabem que é a altura de voltar a casa
a luz do Sol diminui, o pôr do Sol está breve
encosto-me, com melancolia, a um pinheiro solitário

agora sei que regressei ao lar


que tudo fiz para romper com o mundo,
ele e eu nunca nos demos bem
para quê alimentar ilusões? Não há nada a procurar
agrada-me mais uma boa conversa com a família e os amigos,
gozo o ch’in e os livros, são eles que curam as preocupações
quando a Primavera chega, os camponeses dão-me conselhos
é preciso trabalhar os campos a Oeste
às vezes dou uma volta numa pequena carroça
outras, remo um pouco na minha barca solitária
seguindo as águas mansas e serenas
ou penetrando ravinas profundas,
até ao inesperado de fontes silenciosas
é uma maravilha o mundo com tanta beleza
os ciclos inexoráveis da natureza
e comovo-me ao pensar que a minha vida
também se aproxima do fim, mas sem drama,

É tão pouco o tempo


que aos homens é dado sobre a terra,

49
enfim, é a vida! por quanto tempo ainda?
então sigamos apenas a voz do coração
a gente afadiga-se, a gente agita-se,
e onde é que isso nos leva!?
não tenho desejos de riqueza
e nem quero alcançar o céu
não quero mais que aproveitar os dias,
fazendo cera,
e andar por aí sozinho
a caminho dos cimos assobiando alegremente,
por margens de ribeiros de águas límpidas
ou mesmo fazendo poemas

sigo o curso das coisas até ao fim,


e se me regozijo com a ordem do céu
o que é que pode preocupar-me deveras?

Página 22 Depois do incêndio a meio de Junho do ano wu sheng

A minha casinha de campo


ficava situada numa alameda afastada
foi por minha decisão que renunciei a mordomias
um dia em pleno Verão, levantou-se de súbito
um vento forte e violento,
as casas, rodeadas de árvores,
de repente ficaram em chamas
nem um só tecto, o fogo poupou

50
só o barco diante da casa ficou para nos abrigar16
foi tão longa, tão longa essa noite
de um Outono inesperado
e a lua tão alta, tão alta e quase cheia
as árvores de fruto e os legumes
mal começavam a desabrochar,
assustados os pássaros não regressaram
no meio da noite, durante um breve espaço de tempo
fiquei de pé a contemplar a distância
com um golpe do olhar abracei os nove céus
desde criança, com os cabelos ainda em chinó
a minha pose já estava toda lá
e sem dar por isso já passei os quarenta

afinal o meu corpo segue o curso da natureza


mas o coração mantém-se livre e íntegro,
pois adamantina é a minha vocação
mais dura e resistente que uma pedra de jade
penso agora na época em que reinou Tung Hu17,
quando podíamos amontoar grão abundante
na borda dos campos
as pessoas, de barriga cheia,
viviam então sem medo
pela aurora, levantavam-se,
reentravam em casa para dormir ao anoitecer

uma vez que não nasci nesse tempo dourado,


não há nada a fazer
senão mesmo ir regar a horta.

16
Durante mais de dois anos Tao Yuanming viveu com a família em abrigos de circunstância, num
barco ao princípio. No início de 410, instalou-se em Nan chuan, a aldeia do Sul, perto de Hsuan yang, a
cinquenta lis ao Norte de Lu shan.
17
Na época mítica do reino de Tung Hu, ninguém roubava nada a ninguém. E ninguém temia pela sua
colheita amontoada à beira dos campos.

51
* Anos mais tarde, durante o Verão de 408, um incêndio destruiu inteiramente a
sua casa.
Página 50 Adeus a Tin, de Chin an
Quando Yin era secretário no distrito sul de Chin an, ele morava em Hsun
yang. Como acaba de ser nomeado conselheiro do Ministro da defesa
(Assuntos Militares) está a mudar-se com a família para Leste. Eu fiz este
poema que agora lhe dedico.

A nossa amizade não é muito antiga,


porém desde o primeiro dia nasceu entre nós
um sentimento sincero e profundo
em duas noites seguidas confessámos
os mais puros sonhos
e desse modo ficámos muito próximos
foi no ano passado que me mudei
para uma aldeia do Sul
fomos portanto vizinhos muito pouco tempo
pegávamos no bastão e andávamos
pelos campos à deriva
esquecendo tantas vezes a noite e o dia

porém sabíamos que cedo ou tarde


nos iríamos separar
e sem nos darmos conta
o momento da separação chegou
é Primavera
o vento do oeste sopra para longe
e para longe na mesma direcção seguem as nuvens
separadas por mil lis, para lá das montanhas e dos rios
raras irão ser as ocasiões para rir e discutir
um homem com o teu talento não se retira do mundo,
o mundo está cheio de homens humildes e pobres
mas se passares por aqui não te esqueças
de vir saudar este velho amigo
* Primavera de 411, na Aldeia do Sul. “Falar ou calar-se”, quer dizer ocupar-
se com a coisa pública ou viver retirado. Liu Yu acaba de ser nomeado Grande
Ministro dos assuntos militares. (Liu Yu acaba de ser nomeado ministro da
defesa). (Assuntos Militares)
Página 99 A nove do nove, vivendo eu retirado
Eu amo o dia nove de Setembro, ainda por cima aqui neste retiro. Os crisântemos
espalharam-se por todo o pátio. Já que não tenho meios para comprar vinho o melhor é
esquecer a sua promessa de vida eterna. Então é às palavras que eu confio os meus
sentimentos.

52
A vida é curta,
constantes e muitos os desejos
e as pessoas sonham com a imortalidade! ...
os dias e os meses passam,
as estações do ano sucedem-se,
mas toda a gente gosta do nome desta festa
o orvalho fica gelado, o vento doce já lá vai
o tempo torna-se mais claro, o céu mais luminoso
partiram já as andorinhas, sem deixar o mínimo rasto
os gansos selvagens passam,
fica no ar o clamor do seu grito

só o vinho pode apagar


as nossas preocupações,
mas não todas
e os crisântemos podem travar o declínio próprio da idade
mas se vives numa cabana de colmo
contemplando sem esperança a mudança das estações ...
o copo cheio de pó diante do jarro vazio,
e este esplendor gelado de flores para a solidão ...

ajeito a minha roupa e em total quietude


vou cantarolando uns poemas
absorvido por antigas memórias,
um sentimento profundo toma conta de mim
para tanta maravilha tão curta a vida
* Durante as festividades do dia 9 de Setembro, 9 do 9, duplo nove, no ano de 418,
subimos a um ponto alto para pensar naqueles que nos deixaram e bebe-se um copo
de vinho de crisântemos (as flores de crisântemo têm a reputação de prolongar a
vida). Nove e eterno pronunciam-se na língua chinesa da mesma maneira.

Página 101 Elogio da pobreza (Poema 2)

其二∶

53
凄厉岁云暮,拥褐曝前轩。南圃无遗秀,枯条盈北园。
倾壶绝馀沥,闚灶不见烟。诗书塞座外,日昃不遑研
闲居非陈厄,窃有愠见言。何以慰吾怀,赖古多此贤。
O fim do ano chega frio e amargo
vestido com uma peça grosseira,
aqueço-me ao Sol da varanda

a verdura desapareceu no pomar ao Sul


a norte só restam ramos mortos
e do jarro de vinho não sobra uma gota sequer

olho para o forno e nem fumo


os livros de poesia estão por aí empilhados
mas a verdade é que nem ler consigo

o pôr-do-sol está por um fio


e eu neste retiro, não me vejo em apuros
como Confúcio no país de Chan

se a amargura se apodera de nós


como é que se pode consolar o coração?
ora! convocando os Sábios dos tempos antigos.

* Em 420. Série de seis poemas. No pais de Chan, ninguém ofereceu hospitalidade a


mestre Kong (Confúcio) que ficou assim dez dias sem comer.

Página 103 Elogio da pobreza


o velho Yong, com uma corda atada à cintura
tocava ch’in com alegria
o letrado Yuan Hsien, com os sapatos rotos,
cantava alegremente baladas simples no estilo shang

54
Chong e Hua estão agora muito longe
letrados pobres houve em todo tempo
vestidos com farrapos que nem tapavam os braços
e na canja de galinha chegava a faltar o arroz

não quer dizer que desdenhassem uma farpela ligeira,


mas obtê-la sem escrúpulos isso era outra coisa
já Tzu Kong, vã era a sua eloquência,
jamais os compreendeu.

* Quando o mestre Kong (Confúcio) encontrou Yong Ch’i chi, este, com a idade de 90
anos, vestido com uma pele de cervo e com apenas uma corda pela cintura, tocava
ch’in e cantava. Yuan Hsien era um discípulo de mestre Kong que vivia numa extrema
pobreza por recusa de qualquer tipo de compromisso. Quando Tzu kong, outro
discípulo de Confúcio, conhecido pela eloquência e pelas suas maneiras mundanas,
encontrou Yuan Hsien, não foi capaz de compreender que ele vivesse assim tão
miseravelmente. Chong e Hua são os cognomes dos lendários imperadores Sábios Yao
e Shun (2.200 a. C.)

Página 105 Elogio da pobreza


Deve um homem contentar-se na pobreza,
e continuar humilde pela vida fora,

55
em tempos que já lá vão viveu Chian Lou
homem bom que não se perdia por prendas ou luxos,

quando um dia a sua vida chegou ao fim


restava dele uma mortalha esfarrapada
que mal lhe cobria os restos mortais

ele não era indiferente à pobreza extrema,


mas como não tinha nada a ver com o tao,
estava-se nas tintas

desde então,
e já passaram quase mil anos
jamais foi visto outro homem como ele

começava o dia treinando a compaixão e a justiça


e ao entardecer o coração estava já limpo
de quaisquer remorsos
* Chian Lou (3ème s. A. C.) era um homem com um carácter nobre e intransigente.
Apesar de tentadoras e sumptuosas ofertas, recusou sempre servir os soberanos de
Ch’i e de Lu que lhe propunham lugares de ministro. Na sua morte, Tseng tzu veio
prestar-lhe homenagem, ao que consta. A mortalha era demasiado pequena para
cobrir os restos mortais de Chian Lou, a cabeça e os pés ficavam de fora. Quando
Tseng tzu perguntou à viúva de Chian Lou que nome póstumo lhe dar, ela respondeu
“Kang” (rico). Tseng tzu lembrou-lhe então que enquanto vivo lhe chegou a faltar de
que comer e com que se vestir e que na sua morte a própria mortalha nem cobria
inteiramente o seu corpo, pelo que ela não podia designá-lo assim. Mas ela
respondeu-lhe que “este homem contentou-se durante a vida terrena terra com
sabores frugais e com uma vida simples e humilde. Ele não se preocupava com a
pobreza ou com a miséria, e não se esforçou por granjear riqueza ou glória. Procurou
toda a vida a compaixão e conseguiu-a. Procurou sempre a lealdade e atingiu-a.
Sendo assim por que é que não seria ajustado chamar-lhe Kang (rico)? Mestre Kong
disse um dia “o homem virtuoso é aquele que se preocupa com o tao, ele não se
preocupa com a pobreza” e disse mais, “aquele que logo pela manhã compreende o
tao pode morrer ao entardecer desse mesmo dia sem remorsos”.
Página 106 Elogio da pobreza
Yuan An,
encurralado pela neve, recusou pedir ajuda
por orgulho

56
Mestre Chuan,
quando uma vez tentaram corrompê-lo,
nesse mesmo dia abandonou o emprego, ...

afinal dorme-se quentinho no feno,


e respigar uns grãos silvestres dá para
um dia de comida

pode parecer duro e penoso, é verdade


mas eles não temiam
nem fome nem frio

pobreza e prosperidade podem ser inimigas,


mas como é o tao que decide,
nunca se preocuparam

a virtude de um reinava no seu país natal


a integridade do outro iluminava
a Passagem de Oeste

* Yuan viveu durante o reino dos Han de Leste (25-220). Mestre Chuan, que não
sabemos ao certo quando viveu, nasceu na Passagem de Oeste.

Página 107 Elogio da pobreza (Poema 6)

其六∶

57
仲蔚爱穷居,绕宅生蒿蓬。翳然绝交游,赋诗颇能工
举世无知者,止有一刘龚。此士胡独然?实由罕所同
介然安其业,所乐非穷通。人事固以拙,聊得长相从。

Chong wei gostava de viver escondido


avesso a qualquer vida social,

fechado numa casa rodeada de maleitas


mas a fazer poemas era mesmo bom

contudo ninguém no mundo o conhecia


a não ser Liu Kong

Porque viveria este homem numa


solidão tão grande?

pouca coisa partilhava com os demais,


decerto

e eram raros também os que tinham


os sonhos que ele tinha

Intransigente e sereno contentava-se


com a sua vocação

e os seus prazeres não oscilavam


com os golpes da fortuna

58
como para os afazeres do mundo
eu sou tão canhestro quanto ele

O melhor é mesmo
seguir o seu exemplo

* Liu Meng kong (dinastia dos han de Leste 25-220) foi de facto o único homem do
seu tempo que verdadeiramente compreendia e visitava Chang Chong wei, um letrado
que vivia retirado.
Página 108 Elogio da pobreza
O que se sabe de Huang Tzu
é que em tempos idos
limpou o pó do seu boné

59
e foi servir num distrito conhecido

mas um dia abandonou o lugar


e regressou às origens
acabando tão pobre e desprotegido
como nenhum outro

passava fome todo o ano,


e a mulher, pessoa sensata diga-se,
banhada em lágrimas,
implorava

“ um homem, mesmo movido


pelas mais nobres aspirações,
não deve deixar mulher e filhos
em tal aflição”

certo dia encontrou ele Hui Sun


que mostrou por ele sentida pena,
só que ele recusou
as prendas luxuosas

fiel aos seus princípios


mesmo na mais dura miséria
não é para qualquer um,
essa lição nós devemos aos Sábios antigos

* De Huang Tzu perdeu-se o rasto.

II.

REGRESSO AO CAMPO. VIDA RETIRADA

60
O texto em chinês está na página 4
Página 4 / No quinto mês do ano keng tsi, ao voltar da capital fui bloqueado
pelo vento em Kuei lin

as viagens oficiais são perigosas


e aborrecem

61
sempre foi assim
e afinal só hoje sei porquê
as montanhas e os rios são imensos,
as vagas são imprevisíveis,
o clamor das ondas
chega a sacudir o próprio céu
incessante é o vento
mas viajando há tanto,
afinal mais uma vez senti saudades
no meio da tempestade! Porquê?
… já devia estar habituado
em silêncio penso no quintal
de minha casa
e nos ermos em volta,
saudosos ambos

e penso também que me deveria


afastar do mundo,

quantos anos vigorosos


me restam ainda?

se os sonhos costumam aparecer-me nítidos


qual a razão de ser das minhas hesitações!?

A versão chinesa está na página 6 (seis) / Página 5 / No sétimo mês do ano


hsin chow, no final das minhas férias ao regressar a Chiang ling, passei a
noite em Tu kou.

vivi ociosamente durante trinta anos,


indiferente aos negócios

os clássicos e a poesia
alimentaram as minhas inclinações

e nos jardins ou nos campos


eu esquecia a vulgaridade do mundo

(como é que poderei ignorar tudo isso


e ir assim para tão longe, para Ching chou?)

Numa noite de luar,


no princípio do Outono,

62
quando á beira do rio
me apresto para entrar no barco

em pensamentos digo adeus


aos meus amigos;

levanta-se um vento fresco,


a noite está por um fio
a paisagem é límpida, vasta, vazia,
a superfície lisa do rio cintila,
enquanto a abóbada celeste
surge luminosa,

preocupado com a minha vida


nem consigo adormecer
e no meio da noite
num mar de tristeza
continuo a navegar
tão só com a minha solidão

servir o país a este preço


nunca foi o meu sonho,
eu invejo apenas os eremitas
que vivem do que a terra dá
ah! e se eu deitasse fora a carreira oficial
e regressasse ao meu canto

mesmo a mais digna função


se opõe aos meus ideais,
pois é numa cabana humilde
que melhor me realizo

E não sujar o meu nome


é o meu único desejo

63
*Poema escrito , no princípio do ano 401, quando, depois de uma estadia em
sua casa em Tsai sang, o poeta regressa à província de Ching Chou, cuja
capital é Chiang ling.
A versão chinesa está na página 7 e 8
Página 7 Resposta ao secretário Kuo

Como é belo o pequeno bosque diante da sala de estar,


mesmo no pino do Verão enche o ar de frescura

o vento sul chega na época própria, o seu murmúrio


abre ligeiramente a camisa e refresca o peito

retirado do mundo, gozo este abandono; deito-me,


levanto-me, leio, ... dedico-me ao ch’in, ao ‘deus dará’

na horta felizmente há legumes de sobra,


e da última colheita sobrou qualquer coisita

se há um limiar para provisões


não desejo ir além dessa soleira

descasquei algum arroz para fazer vinho


está agora pronto para eu me servir,

o meu filho mais novo brinca ao meu lado


balbucia as primeiras palavras

e todas estas coisas dão um prazer


que me faz esquecer quaisquer honrarias.

ao longe nuvens brancas oferecem-se à contemplação.


Ah! como é profunda a nostalgia do tempo que já passou

*Em pleno Inverno do ano de 401, quando tinha acabado de aceitar um cargo
importante, embora a contra gosto, Tao Yuanming recebe a dolorosa notícia da
morte da mãe. O poeta e alto funcionário regressa então a Tsai sang, afim de
observar os três anos de luto, segundo o costume chinês. Pedindo dispensa do
cargo em Huan Hsuan.

Nota. A propósito deste poema costuma citar-se um Parágrafo de Chuang tzu:


“Yao visitou Hua. O guarda fronteiriço disse a Hua:
‘Temos aqui um sábio, por favor permita-me que invoque uma prece em sua
honra, desejo-lhe uma longa vida!’ Ao que Yao respondeu:
‘Não, obrigado!’,
‘Então que você tenha muita riqueza’,

64
‘Não, obrigado’,
‘Então desejo-lhe uma numerosa descendência!’,
‘Não, obrigado’, ‘Uma longa vida, muitos filhos e riqueza, é o que todas as
pessoas desejam, porque é que você não deseja nada disto?,
‘Muitos filhos implica muitas preocupações, riqueza implica muitos problemas,
e uma vida longa só traz vergonha consigo. Nenhuma destas três coisas
contribui para uma vida virtuosa e é por isso que as rejeito’.
‘Ao princípio acreditei que você fosse um sábio, mas afinal você não passa de
um simplório. O céu produz um sem número de vidas e a todas garante sustento,
por que é que haveríamos de nos preocupar? Se tem riquezas pode compartilhá-
las com os outros, que problemas poderiam trazer? Quanto aos Sábios... vivem
como o faisão (que permanece no bosque sem ter um lugar), alimenta-se como
um borracho (depende do que a mãe lhe põe na boca), viaja como um pássaro
(que não deixa pegadas). Quando o mundo está nos carris, ele prospera. Quando
o mundo perde o rumo, ele cultiva a virtude e vive ocioso. Após mil anos,
quando já está cansado do mundo, afasta-se e vive como um imortal. Galopando
as nuvens chega até à moradia dos deuses. Os três inconvenientes que você
mencionou não o afectam e a sua vida decorre sem problemas, Que motivo para
vergonha poderíamos apontar-lhe?’ E o guarda deixou Yao em paz. Este seguiu-
o e tentou interpelá-lo: ‘Posso perguntar-lhe ...’ --- ‘Siga o seu caminho!’
ripostou o guarda.

A versão chinesa está na página 9

Página 8 / No 12º mês do ano Kui mao, composto pelo meu primo Ching
yuan

para a humilde morada me retiro

65
mantenho fechado o portão
envolvido por ramagens

quem me compreende neste lugar afastado


onde rompi com o mundo?

o fim do ano está a chegar, o vento está frio


o tempo mal-humorado,
neva agora o dia todo

escuto emocionado,
nem um gemido se ouve

diante dos olhos apenas a distância branca


o ar gelado através das roupas acaricia o corpo
nem uma pobre refeição consigo

só, desolado nesta casa vazia,


nada nem ninguém me conforta

de relance percorro
milhares de anos de literatura
tropeçando em figuras abençoadas
cuja virtude nem me atrevo
a sonhar

basta-me aceitar a pobreza com resignação


o caminho direito
de uma carreira oficial
que desde há muito faço
mas que já não desejo

se os bons exemplos não podem seguir-se,


quem se atreve a condenar este retiro?
ao silêncio confio os sentimentos

se não fores tu
quem é que poderá compreender-me?

66
* O ch’in é o instrumento do letrado por excelência. O ch’in é formado por uma
mesa de forma alongada feita de madeira preciosa sobre a qual se encontram
tensas as sete cordas de seda.
Versão chinesa--pág. 12.

Página 11 Composto quando passei por Ch’u a no princípio do exercício


da minha função de conselheiro do Chefe do Estado Maior das Forças
Armadas.

Desde a juventude que não me atraem os


negócios do mundo,
partilho a paixão entre o ch’in e os livros,
e vestido com roupa grosseira, é que me sinto feliz,

por vezes nem tenho nada para comer,


mas isso não me rouba a paz

entretanto voltei à vida citadina,


contra o meu desejo

arrumei a bengala,
mandei preparar as malas e fui-me embora
deixando para trás o campo,
a horta e a casa

67
lá longe ficou também o junco solitário
e em mim
o obsessivo pensamento do regresso,
esta insidiosa nostalgia

Vou assim para tão longe?


mais de mil lis18
sempre a subir e a descer,
os olhos doem-me já

são tantas as mudanças da paisagem,


enquanto o coração sonha
com as montanhas e os lagos
da minha aldeia

ao olhar para o céu,


confundem-me os pássaros,
à beira da água intrigam-me os peixes
e o modo como nadam

a minha vocação é só uma


porque é que ela
é prisioneira do corpo?
e pura permanece no fundo da alma

se bem que deixando


que as coisas sigam o seu curso
acabarei por alcançar de novo
a cabana de Pan, o grande Sábio 19

* Durante o tempo em que Tao Yuanming, retirado em sua casa em Tsai


sang, cumpre escrupulosamente o período de luto por sua mãe, a
situação politica altera-se. A corte imperial, inquieta pela influência
crescente de Huan Hsuan, do qual Tao Yuanming foi conselheiro, lança
uma expedição militar contra ele. Mas Huan Hsuan esmaga a expedição
e acaba por se dirigir à capital e tomar o poder. No 12º mês de 403, ele
declara-se imperador e inaugura a dinastia Ch’u. Dois meses mais
tarde, Liu Yu, governador de Hsu chou, promove outra expedição para
fazer capitular Huan Hsuan. Finalmente no 3º mês de 404 Liu Yu
reconquista a capital Chien kang. E pouco tempo depois Huan Hsuan
acaba por morrer.

**Liu Yu é nomeado Chefe do Estado maior das forças armadas.


Entretanto Tao Yuanming termina o período de luto, reocupa uma
função oficial, agora como conselheiro de Liu Yu, cujo Quartel General
fica em Ching ko, a leste da capital.
18
Um li representa 500 metros.
192
Mestre Pan é o historiador Pan Ku (32-92), que escreveu a propósito de seu pai: “Ele conseguiu
preservar-se e transmitiu-me o segredo: escolher por morada a cabana do homem com o coração cheio
de bondade”.

68
其二

和澤週三春,清涼素秋節。露凝無遊氛,天高肅景澈。陵岑
聳逸峰,遙瞻皆奇絕。芳菊開林耀,青松冠岩列。懷此貞秀
姿,卓為霜下傑。銜觴念幽人,千載撫爾訣。檢素不獲展,
厭厭竟良月。

A Primavera quente e húmida já se foi


chegou o Outono claro e frio
as neblinas terminaram, o orvalho congela,
um céu infinito cobre esta crua claridade
as montanhas estendem-se na distância
com os cumes salientes.
perfumados crisântemos crescem
nas clareiras dos bosques,
o verde dos pinheiros domina nas alturas
a gelada austeridade
não será o coração mesmo da beleza?

enquanto bebo penso nos mestres retirados do mundo.

Um século depois trabalho nos vossos segredos


a vossa verdadeira natureza ilude-me,
mas vou manter esse mistério até o fim.

69
Página 39 QUATRO POEMAS / POEMA 1

Na minha juventude eu não era como os outros


amava mais as montanhas e os campos

um dia também eu caí na armadilha,


e quando me dei conta já lá iam treze anos

mas o pássaro em cativeiro tem saudades da floresta


e o peixe no seu aquário anseia pelas águas revoltas de outrora

eu limpo as minhas terras mantendo-me rude,


e levo uma vida simples, pois regressei ao campo

o lugar onde moro não vai além de uns casais


onde tenho uma casita com alguns aposentos

colmos e salgueiros dão sombra ao alpendre das traseiras


pessegueiros e pereiras podem ver-se da sala

lá ao longe, o casario de uma aldeia perdida e vaga


o fumo de chaminés subindo para o céu

cães que ladram em becos distantes e baldios


galos que cantam empoleirados em arbustos

no coração da casa nem o mínimo tumulto


o silêncio mobila os quartos

tanto tempo estive em cativeiro


que alegria por voltar a ser livre

* No ano de 406, Em Shang ching


Página 40 POEMA 2

70
Dou-me com pouca gente aqui no campo
no meu cantinho cavalos e carroças raramente passam
durante o dia o portão fica fechado
e na sala vazia o mundo vazio não entra

de vez em quando abrindo caminho entre as ervas


procuro a casa de alguns vizinhos,
mas quando a gente se encontra falamos apenas
de como medram as amoreiras e o cânhamo

pois a amoreira e o cânhamo medram a olhos vistos


e a horta prospera de igual modo
temo apenas a geada e o granizo, ervas daninhas
que numa só noite, podem arruinar tudo.

Página 41 /POEMA 3

71
Nas encostas voltadas a sul semeei uns feijões
as ervas daninhas cresceram bem mas os feijões não tanto
levanto-me cedo e aproveito para mondar o quintal
de sacho aos ombros, regresso a casa em companhia da lua

o caminho é estreito no meio das ervas e da mata cerrada


o orvalho do crepúsculo molha-me a roupa
mas isso não me incomoda, já que não me contraria

trair os sonhos, isso é que é preocupante.

* Wu-Wei: Não rejeitar aquilo que o destino nos traz , receber com equanimidade o
que nos cabe em sorte.
** As semelhanças com a filosofia moral do Poá rtico saã o evidentes (MAC).

Página 43 / POEMA 4

Durante muito tempo troquei


as montanhas e os lagos por ocupações e cargos

72
mas agora palmilho montes e rios longamente
pois charnecas e bosques é o que mais me agrada

levo comigo uma criança pela mão abrindo caminho


entre arbustos e ruas de uma aldeia em ruínas

por entre túmulos divago meio perdido


detendo-me apenas nos lugares outrora habitados

poços e casas deixaram vestígios


silvedos e bambus, pastos e cepos apodrecidos.

perguntei a um lenhador:
toda esta gente, o que é feito dela?

e ele responde voltando-se para mim


estão todos mortos, nem um ficou

uma geração basta para que mude tudo, a corte e o povo


ah! como é certeiro este ditado

a vida humana é apenas uma partida de mau gosto


acabamos todos por voltar ao nada

Página 45 / POEMA 5

Entristecido, por escarpas e matagais


apoiado no meu cajado reentro em casa sozinho

73
o carreiro de água da montanha é límpido e pouco profundo
aí passo os pés por água

decanto um pouco de vinho novo


mato um frango e convido um vizinho
de repente o sol põe-se, a sala fica sombria
e só a luz das brasas nos ilumina

mas quando a alegria reina, ...


lamenta-se apenas que o serão tenha passado tão depressa
agora que a madrugada ameaça amanhecer
é doce o modo como esta alegria nos invade.

POEMA 6*

nas sementeiras que fiz nos terraços levantinos


as plantas crescem, a transbordar os canteiros
farto de andar de picareta às costas
sei bem como me alegrar com aguardente de arroz

74
depois do pôr do Sol, enxada no carrinho de mão
pela rua obscura em que o dia se esconde
regresso até ao lume da lareira
desde criança que assisto a tudo, debaixo de um tecto

se alguém perguntar o que é que eu pretendo


até aos cem anos terá que penar!
ao menos que o cânhamo e a seda se desenvolvam bem;
como bichos da seda assim tecemos e daqui nos vamos

É simples o meu coração


aberto às amizades profundas!

* Revista de estudos franceses. É contudo discutível que este poema seja de Tao Yuanming.

Pag. 128 Resposta ao conselheiro P’ang


Na minha humilde cabana, há um ch’in e livros
sinto-me bem a jogar e a ler, sem outras motivações
a viver retirado é que eu sou feliz

de manhã rego o quintal, à tarde repouso na minha cabana


aquilo em que muitos pensam como tesouros
a mim não me interessa nada
quando não temos as mesmas paixões
o melhor é nem nos aproximarmos

mas os verdadeiros amigos acabam por se cruzar

um dia encontrei uma alma gémea


ah! como em perfeita comunhão ficaram felizes
os nossos corações
somos afinal vizinhos
eu penso voltar a vê-lo
como tu cultivas sem descanso a virtude
e eu tenho em casa um bom vinho
guardo-o para nos divertirmos

75
enquanto falamos de assuntos que nos emocionam
chegamos até a fazer poemas novos
e é tão difícil não pensarmos um no outro
nos dias em que não nos vemos

afinal uma amizade sincera não se esgota

porém teremos que nos separar em breve


acompanhar-te-ei até à estrada,
beberei contigo um último copo mas sem alegria agora

E lá vais tu em direcção ao antigo e indistinto reino de Ch’u,


assim como se afastam as nuvens em direcção a oeste
assim tu partiste
esta conversa infinita, voltaremos a ela?
quando nos deixámos começaram a cantar os papa-figos
agora que nos reencontramos cai com abundância neve e granizo
a paz não a tens correndo atrás de ilusões
uma vida tranquila e pacata é o que preferes
como eu sei tão bem
o sol de inverno é triste, tão triste
e o vento cortante, tão agreste
para levante avança o grande junco tão depressa
balança no meio do rio,
coragem, errante peregrino,
de tão longe se pode prever um desenlace
mas aproveita os momentos propícios, meu amigo
e cuida bem de ti para meu sossego

* No ano de 424. Tao e P’ang foram vizinhos em Hsuan yang durante dois anos até
que P’ang foi nomeado para uma função em Chiang ling, a montante do Grande Rio
(rio comprido), no reino de Ch’u,

76
PÁGINA 72
Em meados do 8º mês do ano bing chen, colhendo em arrozais alagados

Sou humilde, como qualquer campónio


dependo de sementeiras e colheitas
entrego-me ao cultivo de uma leira encravada na floresta
mas da dureza dos trabalhos agrícolas não me queixo

temor é poder trair os sonhos


uma colheita má resolve-se
aquele que passa fome fica contente
com qualquer refeição que lhe ponha fim
ajusto o cinto e espero pelo canto do galo
atento aos remos atravesso a placidez do lago
seguindo a corrente límpida através do vale sinuoso

densa é a montanha selvagem,


o grito dos símios é longo e melancólico
o vento severo prefere as noites calmas
e os pássaros parecem felizes quando nasce o dia
desde que eu me retirei,
três vezes quatro anos a estrela de fogo declinou
os meus tempos de glória já lá vão, estou velho reconheço

mas os trabalhos do campo não os abandonei


antigamente eu saudava o velho
que passava por mim de enxada às costas
retirei-me e estou feliz por ter seguido o seu exemplo

No Outono de 416. A Estrela de fogo declina a partir do sétimo 7º mês. O velho Ho


tiao, 2o ancião que leva a sua enxada”, é um eremita contemporâneo de Confúcio.

Página 49 Meados do nono mês do ano Keng Shu, no campo a oeste eu apanho
o arroz tardio.
um homem é a sua vida e algumas normas
não basta alimentação e roupa
mas o labor traz consigo alguma paz
a começar que seja com a primavera
a colheita será de monta

77
pela manhã saio e o destino começa
o quotidiano é a minha vocação
quando o sol se deita
de enxada às costas volto a casa
a geada e o orvalho cobrem a terra
custa mais este frio que chega cedo
mas a vida de um camponês custa
os trabalhos fatigam o corpo, ...
que grande avaria!
mas como ficar livre deles?
de aborrecimentos sociais
também nos livramos
lavo as mãos e os pés
e repouso debaixo de um toldo
um copito de vinho põe no rosto
e na alma um sorriso velado
ah! como estão longe! tão longe
os antigos Chang Chu e Chieh Ni
mil anos nos separam já e contudo
em comunhão se encontram nossas almas
e só desejo continuar assim
consagrado ao cultivo
e sem um suspiro que se veja

* Outono de 410, em Shang Ching. Chang Chu e Chieh Ni são dois eremitas do
período (época) da Primavera e do Outono (722 a. C. - 481 a. C.)
III. O BEBEDOR DE VINHO

78
Páginas 9 e 10

連雨獨飲 運生會歸盡,終古謂之然。世間有松喬,
於今定何間。故老贈餘酒,乃言飲得仙。試酌百情遠
重觴忽忘天。天豈去此哉,任真無所先。雲鶴有奇翼
八表須臾還。自我抱茲獨,僶俛四十年。形骸久已化
心在複何言。

POEMA 1
Chuva incessante, e eu bebendo só

A vida depressa caminha para o nada,


sempre assim foi e será
e se neste nosso mundo viveram imortais
como o Pinheiro Vermelho e Wang Chiao,
onde estão eles agora?
um ancião ofereceu-me vinho, garantindo-me a imortalidade
sendo assim bebo um pouco, não tenho nada a perder
aos primeiros golos deixei de sentir
ao fim de uns quantos copos até do céu me esqueci

79
mantém-te mas é fiel ao momento que passa
e às suas próprias coisas
pássaros de asas mágicas, viajam através das nuvens,
em oito direcções preparam a viagem de volta
eu por mim consagro-me a viver em solidão
já faz quarenta anos que a isso me dedico
com devoção e de acordo com a sábia natureza
o meu corpo envelheceu há muito tempo
mas os meus sentimentos continuam intactos,
por isso nada tenho a lamentar.

POEMA CINCO

其五
結廬在人境,而無車馬喧。問君何能爾,心遠地
自偏。采菊東籬下,悠然見南山。山氣日夕佳,飛鳥
相與還。此中有真意,欲辨已忘言。
Página 26 2. bebendo vinho
Edifiquei a minha cabana
no meio dos homens
porém não se ouve lá o clamor
de carroças ou cavalos

como é que isso é possível?


quando o coração se ausenta,
até os lugares se afastam também
abrindo caminho para a solidão

Colho crisântemos junto da cerca,


que ao nascer do sol se oferece
e daí vejo tão quieta a montanha do Sul,
que é apenas um brilho belo e sereno

na distância que alcanço


no clarão do crepúsculo
vejo os pássaros em bandos
a voar para os ninhos

para lá regressam tudo leva a crer


e há em tudo isto uma verdade profunda
mas ao querer dizê-la
já não encontro palavras

80
Página 54
3.

1. O corpo dirige a palavra à sombra


O céu e a terra não vão desaparecer
as montanhas e os rios jamais mudam
ervas e árvores seguem regras imutáveis,
se a geada as engelha,
logo o orvalho as torna viçosas de novo
o homem gaba-se da sua divina razão,
porém ele é o único que mal começa
a sua viagem neste mundo,
logo parte sem data de regresso

alguém se apercebeu de que ele falta?


pais e conhecidos pensarão nele ainda?
subsistem só os objectos que lhe pertenceram,
quando o olhar os cruza, aflito,
derrama-se em lágrimas

eu por mim não tenho o dom da imortalidade,


à mudança estou sujeito
irei morrer, sobre isso não há a mínima dúvida
segue portanto o meu conselho,
se tens por aí um bom vinho,
não o recuses assim sem mais nem menos
* Esta série de três poemas foi escrita em 413 em resposta a um poema de Hui yuan,
o mestre budista do Templo ling de Lu shan, acerca da imortalidade da alma.
Corpo, sombra e alma.
Nobre e humilde, sábio e tolo, todos se esforçam por preservar a sua vida. Isso
sempre me deixou perplexo. Depois que o corpo e a sombra tiverem exposto o seu
tormento, a alma, de acordo com a lei da natureza virá explicar-se também. Todos
aqueles que se costumam preocupar com estas questões encontrarão aqui, talvez,
alguma inspiração.

Página 57
4. A sombra responde ao corpo
A vida eterna!? Sobre isso não posso falar
estar vivo já nos torna tristes e tontos
quanto mais
preservar a saúde, hélas! Faltam-me meios
gostaria tanto de viajar pelos montes Kun e Hua,
mas o caminho é obscuro,
e é impossível ir lá contigo,
desde o dia em que nos encontrámos,
partilhamos sem descanso
alegrias e tristezas
quando repousas sob a copa de uma árvore
até parece que nos separámos

81
mas sob o Sol nunca nos separamos
esta companhia não irá durar para sempre
lívidos ambos desaparecemos um atrás do outro,
e logo que te apagues o teu renome apaga-se também
ah! pensar nisso põe em rebuliço os meus cinco sentidos
vejamos o que se pode fazer
restam as boas acções que sempre perduram
e ficam depois de nós algumas gerações
o vinho, ainda que afogue as mágoas,
comparado com o que disse
não te parece insignificante?

* Os montes Kun lu e Hua são sítios taoistas muito célebres. Os cinco sentimentos
são a alegria, a cólera, a tristeza, o contentamento e o ressentimento.

Página 59
5. Explicação da alma
O grande oleiro
não concede favores particulares

dentro do complexo mundo das coisas,


cada uma por si só cresce e se distingue

se o homem prospera, entre céu e a terra,


não é graças a mim?

Apesar das nossas diferenças


nós nascemos ligados e inseparáveis andaremos,

para o bem e para o mal partilhamos


um destino comum

o melhor é irmos conversando com regularidade,


não te parece?!

Os três imperadores, apesar de Sábios,


onde é que estão agora?

Pong tzu entregou-se inteiro à arte da imortalidade


mas nem mesmo ele conseguiu

velhos ou jovens, todos morrem


e da mesmíssima morte

e quando esta chega

82
a diferença entre sábios e néscios dissolve-se logo

é verdade que se pode esquecer bebendo


e dessa maneira entrar em perfumado êxtase
mas também é verdade que o vinho
para o túmulo nos leva mais depressa

quanto aos actos louváveis,


serão valorosos, mas quem os louvará?

Ora! este tipo de elogios e esforços


sabemos que dá cabo da vida

o melhor ainda é que um homem se confie


ao curso natural das coisas

ao grande mistério da transformação


sem alegria e sem medo

quando chegar o fim, aceite-se esse fim


que será também o fim do pesadelo.

* Peng tzu é um personagem lendário que não comia senão pau de canela e
cogumelos mágicos. Terá vivido oitocentos anos, durante o segundo milénio a.
C.
Página 61 Parei de beber
止酒 居止次城邑,逍遙自閑止。坐止高蔭下,
步止蓽門裏。好味止園葵,大懽止稚子。平生不

83
止酒,止酒情無喜。暮止不安寢,晨止不能起。
日日欲止之,營衛止不理。徒知止不樂,未知止
利己。始覺止為善,今朝真止矣。從此一止去,
將止扶桑涘。清顏止宿,奚止千萬祀。
Aqui parei, neste lugar
parando com a vida na cidade
e com a vagabundagem
que parou também

antes parava em qualquer lugar


em que houvesse uma sombra
e ainda hoje quando passeio
paro às vezes debaixo da ramada do portão

o meu prazer favorito pára


no triste e desleixado jardim
e com os rebentos mais novos
a alegria também parou

toda a vida bebi sem parar


sabendo que se parasse,
ficaria privado de alegria

tentei parar ao crepúsculo,


mas não conseguia dormir em paz
tentei parar ao amanhecer,
mas não era capaz de me levantar

todos os dias porém, devo confessar


eu pretendi parar de beber

mas se o fizesse,
tudo deixaria de estar em seu lugar
e o próprio prazer acabaria por parar

por isso eu não pensava


que parar de beber fosse desejável

mas acabo por reconhecer afinal


que parar de beber terá algumas vantagens

e assim esta manhã tomei uma decisão,


vou parar de beber de uma vez por todas

afinal brevemente pararei também

84
na ribeira de Fu sang,

um brilho claro vai parar no meu rosto


para sempre, para toda a eternidade

vamos lá ver!, eu nunca pararia por apenas


mil ou dois mil anos.

*No ano de 413. Fu sang, a árvore mítica por cima da qual se levanta o Sol,
encontra-se numa ilha lendária do mar da China onde descansam os imortais.

Página 74 Bebendo vinho

Vivo á margem do mundo, raros são os prazeres,


como as noites se tornaram longas
e tenho bom vinho em casa,
não há anoitecer sem uns quantos copos.

Enquanto vigio a sombra solitária bebendo,


depressa me embebedo. Embriagado,
aproveito para fazer uns versos,
também para me distrair, confesso.

As folhas escritas acumulam-se


sem ordem que se veja;

pedi a um amigo para as passar a limpo,


o resultado até pode vir a ser engraçado

quem sabe!?

85
No ano de 417, na Aldeia do Sul, há cinquenta e dois anos. Série de poemas com prefácio.

Página 75 (POEMA 1 DO ESPANHOL)


Bebendo vinho

其一衰榮無定在,彼此更共之。邵生瓜田中,寧似東
陵。寒暑有代謝,人道每如茲。達人解其會,逝將不
復疑。忽與一樽酒,日夕歡相持。
Glória ou declínio? Quem sabe ao certo!
cada um com a sua sorte
mas ambos se interpenetram
o senhor Shao no seu campo de Melões,
terá alguma coisa a ver com o tempo
em que era duque de Tung lin?

Se frio e calor, verão e inverno


se sucedem sem parar,
o mesmo acontece com a fortuna dos homens
tudo isto me parece óbvio,
por isso sabiamente se retira
aquele que para a vida despertou

Se a fortuna se confunde
com um copo de vinho
não o desperdices
pois estarás todo o serão
em boa companhia

* Shao Ping foi, na parte final da dinastia Ch’in, duque de Tung lin. Quando os Ch’in
foram substituídos pelos Han (206 a. C.), ele ficou pobre e dedicou-se então a
cultivar Melões, os famosos Melões de Tung lin.
Página 76
Bebendo vinho
Virtude e recompensa devem estar unidos
contudo Po yi e Shu ch’i morreram de fome
na montanha sagrada

se ao bem e ao mal não se faz justiça,

86
as sentenças morais tornam-se inúteis

Quanto ao velho Yong,


aos noventa anos andava com uma corda à cintura
e sofria, como nunca, de fome e de rio,

mas neste tempo adverso


a glória do seu nome não cessa de crescer

(e de geração em geração, verdade seja dita)

* Po yi e Shu ch’i, os dois filhos do rei de Shang, na altura da mudança de dinastia


pelos Chou, em 1122 a. C., com vergonha de comer o grão dos Chou, retiraram-se
para a montanha Shou yang. Na montanha não havia Senão fetos para comer e por
isso morreram de fome. Quando o mestre Kong (Confucius) um dia encontrou Yong
Ch’i chi, tinha este a idade de noventa anos, estava vestido com uma pele de cervo
atada com uma corda à cintura e jogava ch’in enquanto cantava.

Página 77

Bebendo vinho
Desde há milhares de anos que a virtude
já não é o que era
deu lugar à ruína
e avaro se tornou o coração

tão ocupados que estão com a fama,


o mais precioso bem de cada um,
que nem um copito de vinho bebem

É este o perfil do nosso tempo


e a vida, quanto dura?
tão rápida quanto um raio ela passa

87
(tens cem anos para mostrar o que vales
aproveita-os, senão será tarde de mais...)

se o tempo gastares em vãos negócios


o rumo do teu caminho perderás

Página 78

Bebendo vinho

其四棲棲失群鳥,日暮猶獨飛。徘徊無定止,夜夜聲
轉悲。厲響思清遠,去來何依依。因值孤生松,斂翮
遙來歸。勁風無榮木,此蔭獨不衰。托身已得所,千
載不相違。

Inquieto, indeciso, um pássaro, perdido em pleno voo,


ao Sol do crepúsculo continua voando,
de cá para lá não encontra lugar onde poisar o repouso
noite após noite angustiado grita,
o seu canto implora pelo amanhecer
voa para longe, mas para onde?

Finalmente encontra um pinheiro solitário


recolhe as asas, enfim o descanso, tão esperado,
para a solidão

88
é então que o vento se torna violento, sacudindo as flores
mas o seu ramo continua de pé
ele confiou-lhe o corpo, ele sabe que não o abandonará,
nem daqui por mil anos,
este que é agora o seu único refúgio.

Página 79
Bebendo vinho
O comportamento das pessoas é tão variado,
como saber de que lado está a razão?
Certo ou errado, levianamente julgamos tantas vezes
é como o som da trovoada, que significado tem!?
na parte final das Três dinastias todas estas coisas
se tornaram correntes
mas o homem sensato não se comporta assim
ele deixa falar os tontos e as suas vulgaridades
e tal como os eremitas Huang e Ch’i ,
prefere o silêncio
seguindo assim os bons exemplos

89
* No fim das três dinastias Hsia, Shang e Chou (2205-249) começou o reinado da
dinastia Ch’in. Para se porem ao abrigo do despotismo do primeiro imperador Ch’in,
os anacoretas Hsia Huang kong e Ch’i Li chi retiraram-se para a montanha Shang.

Página 80

其七
秋菊有佳色,裛露掇其英。汎此忘憂物,遠我遺
世情。一觴雖獨進,杯盡壺自傾。日入群動息,歸鳥
趨林鳴。嘯傲東軒下,聊複得此生。
Bebendo vinho

crisântemos de Outono de cores fascinantes


eu vos colho carregadas de orvalho,
e mergulho no vinho
para esquecer as mágoas
e os pensamentos do mundo

só, atiro-me a um jarro de vinho


a taça esvazia-se, bebo do jarro
até ficar vazio
assim como o sol se deita
assim cessam todas as agitações
aves da minha intimidade cantam na floresta

assobio debaixo da janela,


onde espero o nascer do sol,
a minha súbita alegria
contente por descobrir de novo
o sentido da vida.

Página 81

90
其八青松在東園,眾草沒其姿,凝霜殄異類,卓然見
高枝。連林人不覺,獨樹眾乃奇。提壺撫寒柯,遠望
時複為。吾生夢幻間,何事絏塵羈。

Bebendo vinho
No jardim onde o sol primeiro brilha
cresce um pinheiro
a sua beleza verde
está agora oculta pelos arbusto intensos
mas quando chega o tempo gelado e tudo definha
majestosamente aparecem
os seus ramos altos

ninguém repara num pinheiro


no meio da floresta
mas assim isolado, torna-se imponente

... mando vir uma garrafa de vinho


e ato-a a um ramo frio
contemplo a distância e começo a beber
a vida só é vida se for sonho e ilusão
para quê ficar cativo nas malhas
deste mundo de poeira.

Página 83 Bebendo vinho

Manhã cedo, ouço bater á porta


meio vestido e négligé vou abrir
é um camponês idoso,
vem de longe fazer-me uma visita munido
de um jarro de vinho,
ele desaprova que eu esteja em desacordo
com o nosso tempo
“ ... roupas em farrapos
debaixo de um tecto de colmo,
viver assim retirado não é digno

91
de um senhor como vós ...,
afinal todos vamos na corrente
porque não um homem deixar-se levar
tal como vão na enxurrada os aluviões?”
foi o que ele disse, ...
“Mas a minha natureza não está nada de acordo
com este mundo ilusório
claro que não seria difícil fingir e entrar no jogo;
mas trair os meus sonhos seria perder-me!
vá lá, o melhor ainda é beber alegremente
este vinho em sua companhia
ao contrário da sua carroça
a minha já não saberia fazer meia volta, ” .
foi o que eu lhe respondi, ...

Página 84

Bebendo vinho

em tempos que já lá vão


fiz uma longa viagem!
em direcção ao nascer do Sol
até à beira mar
uma longa, longa caminhada

tempestades e vagas ergueram-se


ao longo do meu caminho
e afinal o que é que me fazia
correr assim?
a fome, ao que parece;

dar cabo do corpo


para depois encher a barriga!?
era demais para mim
e não me parece que seja
um modo de vida feliz

parei a carroça e voltei para trás


para uma vida mais ociosa.

92
Página 85

十一

顏生稱為仁,榮公言有道。屢空不獲年,長饑至於老
雖留身後名,一生亦枯槁,死去何所知,稱心固為好
客養千金軀,臨化消其寶,裸葬何必惡,人當解意表。

Bebendo vinho

Yen Hui ficou célebre pelo seu despojamento,


e o velho Yong ficou conhecido pelo seu acordo com o tao
a fome pôs termo à vida de um e perseguiu o outro
até à velhice
os seus nomes sobreviveram à morte mas a que preço
e o renome quase nada significa diante da morte
ter seguido os desejos teria sido bem melhor, parece-me
podemos viver rodeados de ouro
mas somos apenas peregrinos
logo a morte de tudo se apropria
aquele que em vida se enterrou,
quem se atreve a lançar-lhe a primeira pedra
melhor seria se tentássemos compreender
a sua razão profunda.

*Yen Hui, discípulo de mestre Kong (Confucius), morreu de fome aos 29 anos. Yong
Ch’i chi, contemporâneo de mestre Kong, aos noventa anos andava sempre vestido
com uma pele de cervo com apenas uma corda pela cintura. Yang Wang Sun (2º
milénio a. C.), por uma questão de simplicidade apenas, enterrou-se ele próprio na
terra. O tao é o curso das coisas.

93
Página 86

Bebendo vinho
Chang kong serviu como oficial, mas foi Sol de pouca dura
fechou-se em casa
e jamais abandonou o seu retiro até à morte,
do mundo fez umas férias
foi quando Yong Chong li se retirou para a região dos lagos
que a sua fama começou a espalhar-se
um homem deve saber retirar-se
pode haver dúvidas sobre esse ponto?
aos ziguezagues, não sabendo que caminho escolher,
é próprio de pessoas vulgares
desde sempre
eu, por mim, afastei-me desse mundo
de conversa fiada,
e vivi a vida à minha maneira
ou seja, como muito bem quis.

*Chang Chang kong é um eremita do tempo dos Han de Oeste (206 a. C.- 8 d. C).
Yang Chong li, que é do tempo dos Han de Leste (25-220), retirou-se para ensinar na
região dos lagos.

Página 87

Bebendo vinho
dois homens partilham a mesma casa
cada um rejeita aquilo de que o outro gosta
vivem em mundos opostos
um está sempre embriagado,
o outro sempre sóbrio
ambos, zombam um do outro
só nisso estão de acordo
embora nenhum deles compreenda
seja o que for das palavras do outro

ser circunspecto! não será isso estúpido?


e ser exaltado? não será muito mais judicioso?

94
só um conselho para aquele que se dedica ao vinho
e assim se embriaga,
quando o Sol se deitar que ele não se esqueça
de acender as velas.

Página 88

十四故人賞我趣,挈壺相與至。班荊坐松下,數斟已
複醉,父老雜亂言,觴酌失行次,不覺知有我,安知
物為貴,悠悠迷所留,酒中有深味。
Bebendo vinho
Velhos amigos partilham comigo a pobreza
com uma garrafa de vinho me visitam
debaixo de uns pinheiros,
em cima de um tapete de folhas
esvaziamos e enchemos copos
sei lá quantas vezes
até ficarmos embriagados
o que, diga-se, não demora muito tempo

velhos como somos, falamos confusamente


e todos ao mesmo tempo
a beber até perdemos o decoro
eu por mim já nem sei de que terra sou...

e que sentido tem o valor que atribuímos às coisas?


abandonamo-nos ao vinho perdidamente

95
aturdidos que estamos
caramba! no vinho reside um sabor profundo.

Página 89

十五
貧居乏人工,灌木荒餘宅。班班有翔鳥,寂寂無
行跡。宇宙一何悠,人生少至百。歲月相催逼,鬢邊
早已白。若不委窮達,素抱深可惜。
Bebendo vinho
Vivo humildemente, sem ninguém que me ajude
o matagal tomou já conta do meu quintal
reina o silêncio, os pássaros esvoaçam,
nem sinais de outra vida

quando céu e terra são eternos,


a vida de um homem parece tão curta
os meses e os anos apressam o meu passo
a caminho do fim
cabelos brancos tingem já as minhas fontes
se eu não tivesse acabado
por relativizar tudo
provavelmente lamentaria agora
a não realização dos meus sonhos.

96
Página 90

十六少年罕人事,遊好在六經。行行向不惑,淹留遂
無成。竟抱固窮節,饑寒飽所更。敝廬交悲風,荒草
沒前庭。披褐守長夜,晨雞不肯鳴。孟公不在茲,終
以翳吾情。
Bebendo vinho
jovem ainda, cultivava pouco os temas mundanos
aos seis clássicos me dedicava inteiro
aos quarenta anos cheguei num abrir e fechar de olhos
sem ter logrado obra que se visse,
mantive-me fiel, até na pobreza,
e firme na adversidade, justiça me seja feita,
e assim, sem vacilar, fome e frio suportei

Na minha cabana miserável sopra um vento desolado


o matagal tomou conta do pátio
agasalhado com um pano grosseiro,
de vigília fico noites a fio
e até parece que o galo se recusa a cantar
Ainda por cima Meng kong já cá não está

... devo manter este luto por mim para sempre

*Os seis clássicos são os Poemas, a História, a Mudança, os Ritos, a Música e os


Anais da Primavera e do Outono. Liu Meng kong (Han de leste, 25-220) era o único
que apreciava e visitava Chang Chong wei, um letrado que vivia retirado, num lugar
invadido por ervas altas.

Página 91
Bebendo vinho

97
Yang Hsiung era perdido por vinho
como era pobre, nem sempre o podia comprar
mas alguns levavam-lhe o delicioso néctar
em troca de sábios pareceres
copo servido, copo bebido
esvaziado de um só trago
questão posta, resposta dada
e satisfatória
mas por vezes recusava-se a responder,
temas belicosos, preconceitos de valor duvidoso, ...
essas coisas não eram o seu forte
pois o homem virtuoso usa o coração,
e nunca se engana,
quer quando fala
quer mesmo quando se cala.

*Yang Hsiung (Han de Oeste, 206 a. C. – 8 d. C.) era um grande erudito, poeta e filósofo.

Página 93

Bebendo vinho
Já fui esmagado pela fome, em tempos idos, tantas vezes…
e tive que abandonar a enxada e partir de casa
para ocupar um cargo qualquer
eu nem sempre conseguia alimentar a família como deve ser
e todos fomos fustigados pela fome e pelo frio sem clemência
para minha vergonha

98
confesso que me sinto mal por vezes
por ter traído os meus sonhos
mas, um dia,
fiel à solidão
acabei por arrumar a farpela oficial
e regressar aos campos da minha aldeia
e pouco a pouco voltaram as estrelas e as estações,

... tudo isso está já longe, doze anos passaram já,


os caminhos deste mundo são longos e sem cessar se bifurcam,
e foi por isso que Yang Chu se imobilizou de súbito

ainda que eu não possua o gesto magnânimo daquele que


chega a ser displicente com o ouro
posso sempre aproveitar um pouco de vinho não filtrado...

*Aos trinta anos Tao Yuanming ocupou o lugar de encarregado da educação e dos
ritos da província de Chang chou. Yang Chu (440-360 a. C.), um dos filósofos mais
influentes da sua época (Os Reinos Combatentes), ao ter-se uma vez encontrado
numa encruzilhada, e não sabendo para onde ir, imobilizou-se e pôs-se a chorar.

Página 94 / Bebendo vinho


Fu hsi e Shen nung estão já
muito longe de nós agora
e desde então contam-se pelos dedos
as pessoas que deram provas
de tanta simplicidade

o ancião do país de Lu esforçou-se


por restaurar os costumes antigos
mesmo se Fénix ainda não tenha entrado em cena,

mas os ritos e a música têm vindo a conhecer uma renovação


depois que entre Chu e Ssu se tenha calado
o eco deste ensinamento profundo

O tempo passou, falo-vos agora


do crime dos Ch’in que num só dia
reduziram a cinzas e poeira os Poemas e a História

99
felizmente que outros mestres
se consagraram de novo
ao ensinamento dos Clássicos

o estranho
é que desde o fim dos Han,
ninguém os tenha estudado!

O dia é uma canseira intensa,


as carroças umas atrás das outras
a caminho do cais de embarque como autómatos

se eu não bebesse
todo o meu pecúlio
trairia a minha verdadeira vocação

e eu apenas temo que na música dos meus poemas


se possam ouvir algumas dissonâncias
será que me perdoam!?
é que pode ser do vinho.

100
* Fu hsi e Shen nung foram dois dos três soberanos Sábios da antiguidade. Fu hsi
inventou a escrita da arte divinatória através dos oito trigramas, Shen nung inventou
a agricultura, a pastorícia e a pesca. O aparecimento de Fénix coincide com um reino
de paz no mundo. O ancião do país de Lu foi mestre Kong (Confúcio), que nasceu e
ensinou entre a Chu e a Ssu, duas ribeiras do país de Lu. Um dia, andando em
viagem, mestre Kong encontrou dois eremitas que começavam o seu trabalho, e
perguntou-lhes onde ficava o porto de embarque. O primeiro imperador da dinastia
Ch’in (221-207 a. C.) mandou queimar os Seis clássicos. O boné em questão é a coifa
distintiva do letrado que Yuan ming usava para filtrar o vinho.

IV. COM UM SABOR AO BARROCO


(A fugacidade do tempo, a brevidade da vida, a caducidade de tudo, a inexorabilidade da
morte, a inelutabilidade tingida de pessimismo e fatalidade, a estéril e ilusória vanidade.
Enfim: A essencial precariedade ou fragilidade existencial e ontológica)

101
Página 67
Antigamente quando ouvia falar os velhos, ...
de facto nem os podia ouvir, tal era o desconforto
seja como for, com os meus cinquenta agora
cá estou onde estavam eles,

foi num abrir e fechar de olhos


e penso nas alegrias do meu esplendor
mas nada posso reviver

o tempo corre, cada vez mais depressa


a vida não se pode recomeçar
e eu desbaratei muitos anos em prazeres
para quê lembrar os tempos que se foram

tenho filhos aos quais não deixarei pecúlio


mas também para quê fazer previsões
para além da morte!

102
Página 69
Lembro-me tão bem,
eu era jovem e cheio de força
e mesmo que não houvesse motivos era feliz
a minha ambição possuía a grandeza dos “quatro mares”
levantava as asas e acreditava que podia voar
mas os anos passaram sem preocupações,
e este ardor aos poucos foi amolecendo
já nada me entusiasma agora
muitas vezes fico abatido
pois o poder enfraquece pouco a pouco
e já me esmorece o ânimo
tudo piora de dia para dia é o que eu penso

o barco vai na corrente sem um só instante de repouso


e leva-me, e é impossível detê-lo
que futuro me cabe ainda em sorte?
Mas eu nem sei onde atracar
os antigos, esses, viviam intensamente
o momento que passa
mas eu, só de pensar nisso
fico agoniado.

Página 70
O Sol e a Lua não se demoram,
as quatro estações entre si se apressam
o vento frio sacode os ramos despidos,
folhas mortas cobrem o caminho

enfraquecido, o corpo
vai ficando flácido com o tempo
as fontes antes sombrias já ficaram brancas,
o futuro é como um sinal branco

103
na cabeça colocado
e que de dia para dia diminui
a casa alberga agora um viajante
em vias de partir para a grande viagem
partir? mas para onde?
para a montanha do sul, é lá que se encontra
a minha morada eterna.

Página 115
Poema ao estilo antigo, contudo com um claro sabor barroco

拟古九首

其四∶迢迢百尺楼,分明望四荒,暮作归云宅,朝为
飞鸟堂。山河满目中,平原独茫茫。古时功名士,慷
慨争此场。一旦百岁後,相与还北邙。松柏为人伐,
高坟互低昂。颓基无遗主,游魂在何方!

荣华诚足贵,
亦复可怜伤。

Espectacular é a vista do pavilhão de cem pés, tão alto


refúgio para as nuvens que ali regressam ao entardecer
e descanso para as aves em seus longos voos matutinos
os olhos abraçam as montanhas e o rio
a planície estende-se a perder de vista

nesta lonjura, homens de tempos passados


por glória e fama até à morte se bateram
mas um belo dia, anos mais tarde,
todos regressaram às colinas do Norte
e desde então pinheiros e ciprestes foram derrubados

104
e quanto aos imponentes túmulos, alguns desmoronaram-se,
outros foram levantados
as colunas desabaram, não há mais descendentes
as almas errantes, onde estarão agora
se honra e riqueza são invejáveis,
no fim de contas tudo acaba
numa solidão desoladora

* Os túmulos dos imperadores Han, Wei e Chin encontram-se numa colina a Norte,
perto da capital Lo yang. Perto dos túmulos foram plantados pinheiros e ciprestes.

V. A FAZER LEMBRAR OS CARPE DIEM

PÁGINA 66

105
其四丈夫志四海,我願不知老。親戚共一處,子孫還
相保。觴弦肆朝日,樽中酒不燥。緩帶盡歡娛,起晚
眠常早。孰若當世時,冰炭滿懷抱。百年歸丘壟,用
此空名道。
os quatro mares são a medida
de qualquer ambição que se veja
eu só queria, era não envelhecer,
manter a família unida e ensinar que devemos
tomar conta uns dos outros
um copo de vinho e de música por companhia
ao longo de cada jornada
e já agora que o vinho nunca me falte
abrir o robe e fazer a coisa à minha maneira
levantar-me tarde,
deitar-me cedo a maior parte das vezes, ...

ou será que seria melhor


parecer-me com os outros
com corações feitos de gelo e de fogo
mas se ao fim de cem anos no máximo
todos regressamos à terra
ter por guia uma fama passageira
é ilusão em que não caio

* “Os Quatro mares”, ou seja o Império situado entre os quatro mares.

PÁGINA 71
Substituir o cultivo por um cargo público
não era esse o meu desejo,
a minha paixão são os campos
e os bichos da seda

agora que me entreguei de novo à agricultura,


jamais irei abandoná-la
para evitar o frio e a fome,
basta um golo de vinho e uma bola de arroz

até porque não ouso pedir mais


para encher a barriga

106
desejo apenas que o arroz
me não falte

um pano grosseiro para me precaver


do frio invernal
e uma peça de linho em bruto
para me proteger do Sol

e afinal nem isso tenho


o que me deprime confesso
os outros possuem tudo o que desejam
mas eu sou um pouco desastrado

é preciso aceitar as coisas tal como são


e com igual resignação
ir bebendo um copo
de vez em quando.

Página 27

Voltando à minha antiga morada

Parece que vivi em Shang ching uma vida


mas afinal só estive longe de casa seis anos
regressei hoje, tanto abandono e tamanha pena
até parece que a tristeza anda por aqui ao deus dará

os campos e os terrenos de cultivo estão como antes


só as casas mudaram e algumas até desapareceram

passeio nas imediações da minha velha casa


... os vizinhos, raros são os que estão vivos
pé ante pé procuro sinais que deixei aqui e ali
e em certos lugares fico pensativo

Tantos anos e tantas ilusões


estações alternaram, o tempo passou
e apesar do vigor e do ímpeto pressinto por vezes
com temor a grande provação

deixo-me ir até que esqueço tudo


ah! como voam os pensamentos!
Só uns copitos me trazem
de volta à vida.

107
* Durante o ano de 416 Tao Yuanming regressa pela primeira vez a Shang Ching, à
aldeia onde vivia antes do incêndio de 408.

Página 47

己酉岁九月九日

靡靡秋已夕,凄凄风露交,蔓草不复荣,园木空自凋。
清气澄馀滓,杳然天界高。哀蝉无留响,丛雁鸣云霄
万化相寻绎,人生岂不劳!

从古皆有没,念之中心焦
何以称我情,浊酒且自陶。千载非所知,聊以永今朝。
O NONO DIA DO NONO MÊS DO ANO Shi Yu (ano do galo)
O Outono lentamente chega ao fim
o vento e a geada são tão frios agora
já perderam a graça, o prado e a vinha
e as árvores do jardim ficaram desfolhadas

o ar puro assenta a poeira, imenso e vasto fica o céu,


já não se ouve a litania pungente das cigarras
mas os gansos selvagens gritam em pleno voo
rasgando o céu azul

e sob este céu as coisas imensas e várias


seguem o seu curso inalterável
tudo nasce e tudo morre inelutavelmente
e é isso que dói no coração quando se pensa

como serenar meus sentimentos?


com uns copos de vinho, espero
se o futuro está para além do que eu posso saber
o melhor será gozar o dia que passa.

108
* Outono de 409, em Shang Ching. A nove do nove, bebe-se vinho de crisântemos ao
mesmo tempo que pensamos nos que nos deixaram.
Página 53
Primeiro dia do quinto mês, poema feito em resposta ao secretário Tai

quando o barco está vazio,


os movimentos dos remos
são alegres e rápidos
dias e noites alternam, o tempo corre
O ano mal começa e já lá vai metade
a janela voltada a sul enche-se
de tudo o que lembra a Primavera
e a floresta do Norte é densa e vivaz

do mar do céu cai a chuva propícia


a cor do amanhecer
anuncia o sabor do vento
tudo o que chega deve partir um dia
a vida dos homens observa
o mesmo princípio
deve viver-se a vida
à espera do fim humildemente

a resignação não se opõe ao Tao


que a vida corra bem ou corra mal,
eu deixo que o meu ânimo
se mantenha imperturbável
e se a compreensão das coisas é exigente
não há necessidade
de escalar Hua e Song,
essas montanhas sagradas

* Verão de 413, na Aldeia do Sul. Hua shan é a montanha sagrada de Oeste, Song
shan é a montanha sagrada do Centro.

Página 109

遊斜川

辛酉正月五
日,天氣澄和,風物閑美,與二三鄰曲,
同遊斜川。臨長流,望曾城。魴鯉躍鱗於將夕,水鷗
乘和以翻飛。彼南阜者,名實舊矣,不復乃為嗟歎。
若夫曾城,傍無依接,獨秀中皋。遙想靈山,有愛嘉

109
名。欣對不足,率爾賦詩。悲日月之遂往,悼吾年之
不留。年疏年紀鄉里,以記其時日。

Passeio ao longo do rio Hsie (poema com prefácio)


Quinto dia do primeiro mês do ano do boi

No dia cinco de Janeiro do ano hsin yu, o tempo estava fresco e claro e a
paisagem era tranquila e serena. Com mais dois ou três vizinhos, fui dar um passeio
ao longo do rio Hsie. Seguindo a margem do longo curso de água pode contemplar-se
a montanha alcantilada. Sargos e carpas saltam na água, e entretanto anoitece. As
gaivotas esvoaçam planando, levadas pelo vento. A fama da Montanha do Sul é muito
antiga, é inútil insistir nos elogios. A montanha de pisos sobrepostos, isolada,
evidencia-se solitária e majestosa no meio dos campos inundados. De longe faz
lembrar a Montanha mágica. Eu gosto muito do seu nome que é delicioso. Mesmo
assim não me satisfaz completamente e por isso resolvi fazer um poema. Sendo
deprimente o facto de que dias e meses passem tão rapidamente e sendo ainda
lamentável que o tempo não possa ser parado! Cada um deve ter presente a idade, a
terra natal e o dia que passa.

O ano, mal começa, e já cinco dias se foram


minha vida depressa acabará,
ah! como este pensamento me perturba
aproveito o tempo para passear
o ar é doce, o céu sereno
ao lado uns dos outros,
sentamo-nos na margem
deste rio que de tão longe vem

o rio corre devagar, as carpas agitam a corrente


e no vale imenso as gaivotas
planam majestosamente e gritam
enquanto nós espraiamos o nosso olhar
por sobre as águas do vasto lago, atónitos,
contemplamos os terraços desenhados na montanha

110
e ainda que não tenha o esplendor dos Nove Andares,
é única nas redondezas

pego no jarro de vinho


e sirvo os meus companheiros
de copos cheios, bebemos e brindamos à vez
sem sabermos se amanhã ainda estaremos aqui
um pouco já alegres deixamos falar o coração
esquecendo as agruras da vida
não hesites, goza hoje
preocupações!? amanhã poderás não ter nenhumas

* Em 421. A muralha em andares é um dos picos do Lu shan, a Montanha do Sul. A


Montanha mágica com nove andares encontra-se nas lendárias montanhas Kun lun.
Página 63

Resposta a Liu de Tsai sang

Se sinto o apelo das montanhas e os dos lagos


o que é que eu faço aqui?

é só por causa da família e de alguns amigos,


que eu não sou capaz de viver retirado

a beleza exalta-me, de cajado na mão lá fui eu


à procura da minha casita de campo

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naqueles caminhos abandonados e perdidos
nada nem ninguém me acompanhava

de vez em quando avistava uma aldeia abandonada


um tecto de colmo recentemente reparado, ruínas

mas a minha cabana mantinha-se firme e


os campos desbastados e limpos,

quando o vento do vale se torna frio


um golo de vinho novo acalma a fome e a fadiga

ainda que fraquito e pouco encorpado,


mas para me consolar é bem melhor que nada

mais agitados são os negócios do mundo


dos quais me afastei há muitos e muitos anos

arar e tecer é tudo o que preciso


e quem necessita de mais!?

O tempo corre sem parar,


retirado? sempre estive!

dentro de anos, o corpo, mas também a fama,


terão desaparecido ambos.

112
* Primavera do ano de 414, de regresso a Nan chan, a aldeia do Sul, a cinquenta lis a
oeste de lu shan onde acaba de pernoitar. Liu Yi min, antigo perfeito de Tsai sang
(aldeia natal de Tao Yuanming), retirou-se há já cinco anos atrás, para o Lu shan
onde vive como eremita. Ele convida Tao Yuanming para que este se encontre com Hui
yuan, Sábio budista do templo Tung lin, assim como os outros monges e eremitas de
Lu shan.

Página 64
Resposta a Liu de Tsai sang

酬劉柴桑

窮居寡人用,時忘四運周。櫚庭多落葉,慨然知已秋。
新葵鬱北牖,嘉穟養南疇。今我不為樂,知有來歲不。
命室攜童弱,良日登遠遊。

vivo à margem, dou-me com muito pouca gente


até nem dou pela mudança das estações, às vezes

de súbito uma tristeza, o pátio recorda-me a chegada


do Outono com seu tapete de folhas,

Do lado Norte as flores de girassol assomam à janela


e nos campos a Sul cresce uma bela seara

113
por que é que não hei-de estar contente?
no ano que vem poderei já nem estar aqui

e para que as crianças gozem este dia tão belo


decidi dar com elas um grande passeio.

*Outono de 414. Segundo poema de resposta a Liu Yi min de Lu shan.

Página 65
No ano 414, na aldeia do sul. Poema sem título

雜詩八首 其一人生無根蒂,飄如陌上塵。分散逐風
轉,此已非常身。落地為兄弟,何必骨肉親。得歡當
作樂,鬥酒聚比鄰。盛年不重來,一日難再晨。及時
當勉勵,歲月不待人。
aos tombos, errante como o pó dos caminhos,
logo se dispersa,
levado pelo vento que no ar rodopia
a vida de um homem

são todos irmãos os que chegam a ser


procriados ou não pelos mesmos pais
seus corpos não são coisas duráveis
é preciso gozar o momento que passa

se tens um jarro de vinho,


convida o teu irmão
a oportunidade pode não se repetir,
e o dia só amanhece uma vez

quando chega a hora

114
de te entregares ao outro
e ao mundo
aproveita-o que o tempo não espera.

VI. POEMAS AO ESTILO ANTIGO

115
Página 113

Poema ao estilo antigo

No segundo mês da Primavera


logo que o primeiro trovão
se ouve como um estrondo a leste,
chega a estação das chuvas

os seres mostram um semblante aterrorizado


ervas e ramos voam em todas as direcções
as andorinhas que acabaram de chegar,
só elas se agitam de alegria

um casal de andorinhas entra na minha cabana


mas consegue regressar à antiga morada
o ninho que deixaram continua intacto
desde que nos separámos,

o pátio vai-se aos poucos cobrindo


de vegetação rasteira
se é verdade que o meu coração é uma rocha
de que é feito o sentimento?

Página 117

116
Poema ao estilo antigo

A oriente existe um letrado


mal vestido e andrajoso
num mês não come mais
do que nove refeições

de há dez anos a esta parte


sempre com o mesmo boné
pobreza assim nunca se viu,
num rosto tão radiante muito menos

ansioso por conhecer este homem,


saio de casa pelo amanhecer,
atravesso o rio e sigo por uma vereda
entre pinheiros verdes

nuvens brancas repousam


por cima da varanda de sua casa
satisfeito pela visita
pega no alaúde e toca para mim

começa pela “extraordinária garça azul”


e termina com “a Fénix solitária”
ah! eu podia ficar a morar com ele,
até chegar o inverno.

* O ch’in, versão chinesa da cítara, é o instrumento próprio do homem de cultura


(letrado). Mestre Kong (Confúcio) insistiu sobre o facto de que é na estação fria,
quando a vegetação adormece, que aparece então em todo o seu esplendor o pinheiro,
majestoso na sua solidão.

Página 119
Poema ao estilo antigo
Quando eu era jovem, robusto e ardente,
de espada na mão procurei a solidão dos caminhos
fui de Chang yi até Yu chow
e agora atrevam-se a dizer que a viagem foi curta

esfomeado, comi fungos da montanha Shou yang,


morto de sede, bebi água do rio Yi
mas não encontrei homens com quem falar,
vi apenas os túmulos antigos

à beira do caminho, dois altos mausoléus,


de Po Ya e de Chuang Chou
homens da sua estirpe

117
são hoje tão difíceis de encontrar

mas e eu!? ...


viajava para procurar
verdadeiramente o quê?

* Foi para a montanha Shou yang que Po yi e Shu ch’i, filhos do rei de Shang, se
retiraram quando a dinastia foi derrubada pelos Chou, em 1122 a. C., recusando
assim a esmola de Chou. Não tendo mais do que raízes e sementes para se alimentar,
acabaram por morrer de fome. Po Ya é o famoso tocador de ch’in que deixou de tocar
quando o seu grande amigo Chong Chi morreu, o único que verdadeiramente
apreciava a sua música. Chuang Chou é outro nome pelo qual é conhecido Chuang
tzu, o sábio e filósofo taoista do século IV a. C. que por sua vez deixou de filosofar
quando morreu o seu amigo Hui shi. Chang yi situa-se a Oeste da China, Yu chow e o
rio Yi ficam no Norte. O rio Yi foi onde o príncipe de Yan se despediu de Jin Ke
quando o mandou assassinar o rei de Qin.

VIII. Testamentos, epitáfios e um elogio fúnebre.

118
Página 132 Testamento para os meus filhos Yen, Ssu, Pin, Yi e Tong
O céu e a terra é que nos concedem a vida. Se há vida, deve haver morte. Desde
tempos imemoriais que ninguém, nem mesmo os sábios, escapou a esta lei inelutável. Tzu
Hsia disse: «Se a morte e a vida dependem naturalmente do destino, a riqueza e a nobreza
dependem do céu». Tzu Hsia foi, como se sabe, um dos quatro discípulos de Confúcio que
receberam directamente o ensinamento do mestre por via oral e o espalharam. Se assim é,
não será inútil a preocupação com a pobreza ou a prosperidade assim como inútil a
expectativa relativamente a uma vida longa ou a uma morte precoce? Já passei os cinquenta
anos. Desde a minha juventude fui sempre pobre e vivi sempre com dificuldades. Por causa
das dificuldades caseiras, tive que andar sempre de um lado para o outro à procura de um
lugar na administração. Mas o meu carácter intransigente e o medíocre talento estavam em
desacordo permanente com os negócios mundanos. Reflecti no que seria melhor para mim.
Eu ia claramente numa direcção que me conduziria a qualquer coisa de catastrófico. E,
portanto, acabei por decidir-me a abandonar as ilusões do mundo. Por causa disso, todos
vós, meus filhos, desde tenra idade, sentistes as agruras da fome e do frio. Perturbado, pensei
tantas vezes na célebre frase da mulher de Wang Po: «mesmo vestido com roupa esfarrapada
e em tiras, tu não tens nada que ter vergonha diante dos teus filhos. Eu procurava convencer-

119
me de que era assim que devia pensar também e só lamentava o facto de não ter tido os dois
Chong por vizinhos, nem a mulher do velho Lai em minha casa. Mas como era dotado de
forte espírito crítico, por vezes, lá bem no fundo sentia vergonha. Em jovem estudei o Ch’in
e os clássicos.
Eu apreciava também, de vez em quando, a calma e a quietude. Quando abria um livro
e alguma coisa me tocava, ficava tão contente que até me esquecia de comer. Olhar as
árvores, o seu modo de fabricar as sombras, ouvir o canto das aves, o modo como muda de
estação em estação, era aí que se encontrava a minha felicidade. No quinto e no sexto mês,
quando eu me deitava sob a janela voltada para norte e por momentos sentia o vento fresco,
eu até me considerava um ‘homem da época de Fu Hsi’. Como os meus conhecimentos eram
superficiais, pensei que podia continuar a viver sempre assim. Quantos mais dias e meses se
passaram mais a vida de cortesão se me tornou estranha. Este passado fica agora longe e
completamente desfocado. Desde que fiquei doente sinto-me cada vez mais fraco e a minha
saúde deteriora-se. Familiares e amigos não me abandonam e, muitas vezes, trazem-me
medicamentos para eu me tratar. Mas eu temo que o meu fim está para chegar. Desde a vossa
infância que a nossa casa é pobre e vocês chegaram muitas vezes a ter de carregar madeira e
água. Quando é que vocês serão poupados disso? Pensar nisso pesa-me no coração, mas que
posso fazer? Vocês não nasceram da mesma mãe, mas pensai bem no que significa serem
irmãos no interior dos ‘quatro mares’. Pao Shu e Kuang Chong partilhavam o mesmo
dinheiro sem ciúme de qualquer espécie. Kui Cheng e Wu Chu sentaram-se num prado para
falar de outros tempos, e assim transformavam os fracassos em sucessos e as humilhações
em glória. Se as coisas se passaram assim com os outros, para homens filhos do mesmo pai a
questão nem se devia pôr. No que diz respeito a Han Yuan cheng, o letrado célebre da fase
final dos Han que ocupava o lugar na administração central e morreu aos oitenta anos, os
seus irmãos viveram com ele até à morte. Quanto a Fan Chi chun, de Ch’i pei, um homem
de elevada conduta moral da época Chin, na sétima geração o património da sua família
ainda não tinha sido dividido pois qualquer tentativa encontra a oposição de, pelo menos um
membro da família. No clássico dos poemas reza assim:
A alta montanha contempla-se a partir do seu sopé
A grande virtude deve-se seguir
E ainda que seja difícil atingir esse grande objectivo, é preciso concentrar aí todas as
nossas energias espirituais. Cuidem-se, não tenho mais nada a acrescentar.

120
*Este texto foi escrito no ano de 426, quando Tao Yuanming tinha sessenta e dois anos.
Wang Po (Han do leste 25-220), dotado de um carácter nobre e intransigente, recusou
sempre qualquer função oficial. Um dia o filho de Tzu Po, que veio a ser grande ministro do
reino de Ch’u, fez-lhe chegar uma carta. Ao ver o comportamento refinado e a pose elegante
deste jovem, e não podendo evitar a comparação com o seu filho, um jovem de cabelos
hirsutos e modos grosseiros, Wang Po sentiu vergonha. Foi então que a mulher aproveitou
para lhe dizer: decidiste não aceitar funções oficiais, não procuras nem riqueza nem glória.
Mas a riqueza de Tzu po, não se compara à tua nobreza. Tu semeias para nos poderes
alimentar, o teu filho tem os cabelos crespos e os dentes desalinhados, … pois, é assim.
Como é que podes esquecer afinal os votos que fizeste? Mesmo coberto de uma roupa
andrajosa e esfarrapada, não deves ter vergonha diante dos teus filhos.
Wang Po e sua mulher viveram sempre retirados.
O velho Lai (3º século a.C.) retirou-se para a vertente sul da montanha Mong para
cultivar. O rei de Ch’u convidou-o a que abandonasse a vida retirada e o servisse. A mulher
deteve-o, dizendo-lhe “eu tenho ouvido dizer que todo aquele a quem se pode encher o cu
com carne e vinho também se pode comê-lo”
Que, aquele que se deixa comprar também se pode facilmente vender. Se te pões a
beber vinho e a comer carne que a outro pertence, se te pões debaixo da pata de alguém,
como é que vais conseguir evitar chatices no futuro? Ora o velho Lai viveu sempre retirado,
a sul do Grande Rio, na companhia da mulher.
Yang Chong e Chiu Chong são dois eremitas dos Han O seu vizinho Chiang, depois de
ter servido na Corte, retirou-se não frequentando senão a casa dos dois Chong. Ele abriu
três caminhos no meio dos bambus. Desde aí os «Três Caminhos» passaram a simbolizar a
vida de eremita.
Fu Hsi, um dos três sábios lendários, foi o inventor da escrita. Pao Shu e Kuang
Chong do reino de Ch’i por um lado; Kui Sheng e Wu Chu do reino de Ch’u por outro lado,
ficaram célebres pelo exemplo de sólida e infalível amizade que souberam dar ao mundo.

121
Página 136
Elogio fúnebre
Em Setembro, o céu fica frio, as noites longas e o vento assustador. Os gansos
selvagens que emigram passam ao longe, as ervas e as folhas empalidecem e caem. Mestre
Tao está prestes a deixar esta morada transitória e voltar à morada original. Entes queridos
lamentar-se-ão, combalidos, à noite reunir-se-ão à volta de uma mesa para uma refeição de
despedida. Bons pratos, melhor vinho, oferendas. Tentarei olhar para os seus rostos, mas
verei tudo desmaiado. Vou procurar escutar o que dizem, mas será cada vez mais indistinto o
som das suas vozes. Hélas? Vastos são os caminhos do mundo, sem princípio nem fim. Fica
tão longe o azul do céu visto daqui.
Assim como o tempo gerou a complexidade do mundo assim me tornei homem. E
desde que me tornei homem a minha vida tem sido privação, de tal modo que o açafate do
arroz e a celha de água estão muitas vezes vazios. Em pleno Inverno eu não tenho mais do
que um pano grosseiro por cima do pelo, porém feliz na mesma quando encho de água o
cântaro no rio e carrego para casa uma faixa de lenha, cantando de alegria. O portão de
minha casa, envolto por ramadas, era muito simples. De manhã à noite eu entretinha-me
com afazeres domésticos. Na Primavera e no Outono as fainas alternavam, mas era no
quintal que eu trabalhava mais tempo, arrancava ervas, sachava, etc. A verdade é que as
plantas cresceram, e a pequena horta prosperou. Exaltei-me muitas vezes com os livros e
outras vezes com o ch’in de sete cordas. No Inverno aquecia-me ao Sol e no Verão tomava
uns banhos no açude do rio. Diligente mas sem exagerar, procurei a quietude interior.
Contentava-me com o que o destino me oferecia, indo assim ao sabor da sorte, até que se
passaram os anos. A longevidade!? Quem é que a não adora, mas os homens, temendo
sempre nada ter realizado, afadigam-se numa só jornada, avaros mesmo com o tempo de
uma hora. Ao viver, pensam nas honrarias, uma vez mortos, na ilusão da eternidade. Hélas!
Solitário, nunca cuidei dessas ilusões. Ser admirado! A glória não é isso para mim, não
mudaria de cor por me pintar. Na minha cabana senti-me sempre humilde mas digno e bebi à

122
minha vontade e fiz poesia, seguindo a ordem natural das coisas, consciente do meu destino
e sem ilusões ou fantasias. Vou morrer brevemente, sem remorsos.
Estou agora com quase cem anos, o corpo sente o desejo de se retirar. Tudo no meu
corpo aspira ao repouso. Envelhecer, morrer, nada de mais normal. O frio e o calor alternam,
mas o morto, esse, jamais voltará à vida. Para o meu enterro, a família virá logo de manhã,
enquanto os bons amigos virão à tarde. Irei ser sepultado no campo, a alma repousará na
natureza selvagem. Ah! longínqua e terrível viagem, enquanto por cima do meu túmulo
crescem folhas, esse rumor. Pretensioso e estúpido foi Huan Tiu, ridículo e parcimonioso
Wang Sun! Volto assim à imensidão, já sinto a emoção da distância. Quero a coisa em campa
rasa, nem árvores à beira da sepultura, desejo. O Sol e a Lua continuarão com as suas vidas.
Se não dei importância a salamaleques em vida, o que é que faria com eles depois da morte.
A vida de um homem é bem difícil, mas a morte, hélas!

* Tudo leva a crer, este elogio fúnebre foi escrito em Setembro do ano de 427,quando
o poeta tinha 63 anos, a dois meses portanto, da sua morte.
Huan Tiu (Reino Song, 770-475 a. C.) mandou fazer um caixão em pedra. Foram
precisos mais de três anos para esculpi-lo.
Quanto a Yang Wang sun (Han de Oeste, 206-80 a. C), ele pediu para ser enterrado
directamente na terra, para como ele disse, «voltar à sua condição».

Página 139
Canção para o meu funeral

123
Se nascemos, devemos morrer, ...
mas o destino não se apressou a matar-me cedo
ainda ontem eu pertencia ao número dos vivos,
e esta madrugada entrei para o registo dos mortos

dispersou-se a minha alma, onde estará agora?


o meu canastro acomoda-se ao caixão
os filhos amados gritam pelo pai inconsoláveis
os amigos mais próximos acariciam-me chorando

triunfos ou fracassos já não fazem sentido


ter razão ou não, será que faço ideia disso?
Dentro de milhares de anos, quem poderá preocupar-se
com a minha desonra ou com a minha glória?

A única coisa que lamento é que na minha


passagem pelo mundo nem de vinho me saciei

* No ano de 427, dois anos antes da sua morte.

Página 140
Canção para o meu funeral
Ainda ontem me queixava de não ter vinho suficiente
hoje um copo ali está cheio mas em vão

um vinho novo com borras a flutuar ainda


quando poderei voltar a prová-lo?

À minha frente uma travessa de carnes sortidas


A meu lado familiares e velhos amigos que choram

gostaria de falar, mas não sai nem uma só palavra


apetece-me ver, mas falta a luz no meu olhar

antigamente eu dormia no quarto grande


agora vou esticar-me no imenso país dos prados silvestres

foi esta madrugada que eu atravessei a porta e parti


para sempre e sem bilhete de regresso

124
Página 141 / Canção para o meu funeral
As ervas daninhas
vou perder de vista
o sussurro dos vidoeiros “siao siao”
em Setembro a geada é severa

o funeral atravessa uma paisagem distante


nem uma casa nas redondezas
os túmulos vêm-se logo
imponentes e altos

o cavalo que puxa a carreta


empina-se
em direcção ao céu
sopra um vento sepulcral

o jazigo escurece uma vez fechado


ah! não ver nunca mais um amanhecer
um só amanhecer que seja

custa muito essa verdade


mas se até cientistas e sábios
nada podem fazer,

as pessoas que acompanharam


o cortejo fúnebre
irão todos regressar a casa

os familiares esses
ficarão mais tristes que os demais,
os outros, não tarda nada, começarão a cantar

o que é que se pode dizer mais, está morto e basta


entrego o meu corpo à montanha
que ela o receba no seu seio

125
POEMAS SOLTOS SOBRE TEMAS DIVERSOS

devidamente enquadrados histórica e

ideologicamente.
p. 21, 22, 24, 25, 29, 120

126
Página 21

责子 白发被两鬓,肌肤不复实。虽有五
男儿,总不
好纸笔。阿舒已二八,懒惰故无匹。阿宣行志学,而
不爱文术。雍端年十三,不识六与七
。通子垂九龄,
但觅梨与栗。天运苟如此,且进杯中物。
Caricaturando os seus cinco filhos
Cabelos brancos cobrem-me as fontes,
músculos flácidos e pele enrugada
ainda que tenha cinco filhos
nem um se dedica à pintura

Shu, com dezasseis anos


não tem rival em matéria de preguiça,

Shuan, que está próximo dos quinze,


não gosta mesmo nada de ler e escrever

Yung e Tuan têm treze anos


e ainda não conseguem distinguir o seis do sete

Tong, que caminha para os nove,

127
só pensa em comer castanhas e nozes

se a vontade do céu se opõe aos meus sonhos


o melhor é beber já a taça até ao fim.

Página 24
Dois poemas sobre o tema da “Mudança de casa”

移居二首

其一∶ 昔欲居南村,非为卜其宅。闻多素心人,乐
与数晨夕。怀此颇有年,今日从兹役。敝庐何必广,
取足蔽床席。邻曲时时来,抗言谈在昔。奇文共欣赏
疑义相与析
1.
Houve um tempo em que desejaria
ter vivido na aldeia do sul

nada de divinatório ou assim,


apenas por ter ouvido dizer

... que havia lá gente simples e bondosa,


com quem poderia conviver tardes e serões

foi um desejo que persistiu um bom par de anos


e acabo agora de realizar esse projecto antigo

uma cabana humilde, é inútil que seja espaçosa


pois basta que nela caiba uma cama e um tapete

bastas vezes me visitam os vizinhos e com alegria


falamos do passado e da boa literatura

e uma ou outra dificuldade, uma ou outra dúvida

128
também a resolvemos conversando

Página 25

其二∶春秋多佳日,登高赋新诗。过门更相呼,有酒斟酌之。农务各自归,闲暇
辄相思。相思则披衣,言笑无厌时。此理将不胜,无为忽去兹衣食当须纪,力
耕不吾欺。

2.
A Primavera e o Outono dão-nos dias favoráveis
para escrever poemas e subir as colinas

de cada morada vem uma saudação e se houver


um pouco de vinho, bebe-se um copo

quem se dedica à labuta das terras


aprecia o descanso e a boa companhia

combinam-se encontros, falamos, rimos,


até parece que nunca nos cansamos

Não há melhor vida que esta


e não a troco por nada deste mundo

e como de roupas e de comida sempre precisamos


não me fartarei de trabalhar no campo

Nota: Tudo leva a crer que os poemas que se seguem acompanhados de perto pelos poemas do
ciclo das canções do vinho correspondem a um período da vida de Tao Yuanming, em que o
poeta encontrou um sólido equilíbrio existencial, quer dizer mental e psicológico.

129
«[Sabendo contentar-se na pobreza, tendo cessado de “distinguir o pobre daquele que o vulgo
considera bem sucedido”, assim livre um homem (o poeta) viveu a seu belo prazer,
cultivando, bebendo vinho e fazendo poemas onde pôde exprimir o sentimento próprio das
coisas e o seu humor do momento]»

Página 29 / Poema concebido sob o efeito da emoção


O stock de grão está quase esgotado, o novo ainda não foi colhido. O velho camponês
que eu sou acaba de conhecer um ano agrícola catastrófico. Os dias são longos,
preocupações e desgraças não acabam mais. A colheita foi má e o que havia dava e deu
para as necessidades mais elementares até agora. O lume na lareira vai apagar-se não
tarda nada. Desde há já uns quinze dias que a fome e a carência se fazem sentir. O ano
aproxima-se do fim e é com profunda emoção que escrevo este testemunho. Se não o
fizesse os meus descendentes não iriam conhecer nunca o drama tal como se passou.

Quando eu era jovem


a minha família já vivia mal

agora que a velhice chegou,


é maior a tormenta da fome

feijões e pão, é tudo o que desejo,


nem ouso sonhar com uma boa refeição

estou esfomeado, mas menos do que aquele


que comia apenas nove pratos por mês

em pleno verão estou cansado de usar ainda


as roupas próprias do inverno

a minha vida está já no crepúsculo,


não será isso doloroso quanto baste?

sempre louvaremos o coração


daquele que oferece um prato de sopa,

e quem esconde com vergonha o rosto


por detrás da esmola, ... merece louvor?

deverá o mendigo por pudor


abandonar-se a uma morte inútil?

entregar-me a actos vulgares não é o meu desejo


continuar inteiro mesmo na pobreza foi sempre o meu lema

E é verdade que tenho fome!?


Paciência, muitos tiveram fome antes de mim.

130
* Tzu Ssu, discípulo de mestre kong (Confúcio), era tão pobre que não tomava mais do
que nove refeições por mês
** No reino de Ch’i (séc. III a. C.) houve uma época de grande fome. Um senhor instalou
um processo de distribuição de sopa à beira dos caminhos. Ao notar que um homem
esfomeado escondia a cara por detrás da sua mão estendida enquanto pedia esmola
hesitando aproximar-se, ele saudou-o com condescendência. O outro por orgulho foi-se
embora e morreu de fome.

Pag. 120

嬴氏亂天紀,賢者避其世。黃綺之商山,伊人亦雲逝
往跡浸複湮,來徑遂蕪廢。相命肆農耕,日入從所憩
桑竹垂餘蔭,菽稷隨時藝。春蠶收長絲,秋熟靡王稅
荒路曖交通,雞犬互鳴吠。俎豆獨古法,衣裳無新制
童孺縱行歌,班白歡遊詣。草榮識節和,木衰知風厲
雖無紀曆志,四時自成歲。怡然有餘樂,于何榮智慧
奇蹤隱五
百,一朝敞神界。淳薄既異源,旋複還幽蔽
借問游方士,焉測塵囂外。願言躡清風,高舉尋吾契。
A fonte das flores de pessegueiro
Na eá poca do reino da dinastia Chin, durante a era Tai yuan (376-396) um
homem de Wu ling, pescador de profissaã o, subia uma ribeira
despreocupadamente. De repente, chegou a uma floresta de pessegueiros que se
situava nas duas margens do rio. Dentro da floresta naã o havia nada para aleá m
dos pessegueiros. Sobre ervas aromaá ticas, belas e viçosas peá talas de flores
caíáam abundantemente. O pescador, muito intrigado, decidiu avançar e explorar

131
a floresta ateá ao fim. No lugar onde a floresta acabava junto aà nascente de um
rio, apareceu-lhe de suá bito uma montanha. No flanco dessa montanha havia
uma pequena abertura, dir-se-ia que apareceu, vinda da luz. Ele deixou aíá o seu
barco e deslizou para dentro da abertura. Ao princíápio a abertura era muito
estreita, apenas o espaço suficiente para passar uma pessoa. Ele avançou uns
quantos passos quando bruscamente a passagem se alargou e desembocou
numa enorme planíácie; onde se viam casas bem alinhadas, campos belíássimos,
um lago deslumbrante, amoreiras, bambus e muitas outras aá rvores do mesmo
geá nero. Os caminhos cruzavam-se e podiam ouvir-se galos e caã es. Pessoas iam e
vinham como se estivessem de folga e andassem por ali sem ocupaçaã o. Homens
e mulheres vestidos como toda a gente. Os velhos e as crianças com um ar
contente e feliz invariavelmente. Os primeiros a encontrar o pescador ficaram
surpreendidos e perguntaram-lhe de onde eá que ele vinha. E ele respondeu a
todas as perguntas. Depois convidaram-no para casa deles e mataram um
frango e prepararam vinho e ofereceram-lhe uma boa refeiçaã o. Quando na
aldeia a notíácia sobre este homem se espalhou, todos vieram querer saber
coisas e obter informaçoã es. Entretanto, eles, pelo seu lado, contaram-lhe que os
seus antepassados para evitar o caos da eá poca Ch’in, fugiram com as suas
mulheres e com os seus filhos, ateá que chegaram finalmente ali, aà quelas terras
esquecidas do mundo. E a verdade eá que nunca mais voltaram, vivendo assim
definitivamente desligados do mundo. Eles aproveitam a oportunidade para lhe
perguntar qual a dinastia que reinava atualmente e confessaram naã o ter
conhecido os Han e ainda menos os Wei e os Chin. O pescador contou
detalhadamente tudo o que sabia e todos ficaram abalados e suspiraram de
alíávio. Uns atraá s dos outros, todos acabaram por convidar o pescador para as
suas casas, e ofereceram-lhe de comer e de beber. Ele ficou laá durante vaá rios
dias. Antes de partir, as pessoas pediram-lhe para que naã o falasse nem deles
nem daquele lugar aos do mundo exterior. Logo que saiu, o pescador encontrou
o seu barco e seguiu o caminho pelo qual tinha vindo, mas cuidando de deixar
sinais atraá s dele. Quando chegou aà cidade, foi logo a casa do chefe de distrito e
contou-lhe a sua aventura. Imediatamente, o chefe de distrito encarregou alguns
homens de voltar com o pescador ao síátio por ele designado. Ele procurou os
seus antigos sinais, mas perdeu-se e naã o conseguiu encontrar o caminho. Liu

132
Tzu chi de Nan Yang, um homem de grande nobreza ao ouvir falar desta histoá ria,
entusiasmou-se com a ideá ia de encontrar aquele lugar, mas jamais conseguiu
realizar o seu projeto e um dia adoeceu e morreu. Desde entaã o, ningueá m se
atreveu a procurar o caminho.

como o claã Ying alterou a ordem do Ceá u,


os mais saá bios abandonaram o reino
Se Huang e Ch’i se retiraram para a montanha Shang,
os antepassados daquele povo foram-se embora tambeá m

os caminhos abandonados vaã o-se apagando


tal como a memoá ria
matagais crescem a esmo e atravancam a fuga
saudade que aos poucos se abandona

No exíálio se ajudam os trabalhos saã o duros e


quando o sol se poã e voltam para casa e repousam
Enquanto isso as amoreiras e os bambus
daã o uma sombra abundante

E os cinco cereais continuam a ser cultivados


na eá poca apropriada
na primavera separam os bichos da seda dos casulos
E naã o pagam impostos no outono

Mas agora o caminho desapareceu


ouve-se apenas o canto dos galos
e o ladrar dos caã es,
e toda a comunicaçaã o se perdeu para sempre

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os ritos e os sacrifíácios
saã o realizados
segundo velhos costumes
e vestem-se aà moda antiga sem modas

as crianças essas, sempre alegres,


laá vaã o cantando
enquanto os mais velhos
andam felizes e despreocupados

quando as ervas proliferam


eles sabem que eá a estaçaã o mais doce,
quando as aá rvores hibernam,
eles percebem o quaã o severo eá o vento,

mesmo sem calendaá rio,


o ano faz-se de quatro estaçoã es
andam felizes, transbordam de alegria
e nada pode obscurecer as suas mentes

este milagre dura haá cinco seá culos


longe dos olhares do mundo
um dia contudo o tempo abriu-se
para logo se fechar de novo

nem vale a pena falar deste lugar aà s pessoas


neste mundo de ruíádo e poeira
pois que nada podem ver
para laá da penumbra que os cega

mas eu por mim, confesso, gostaria

134
de procurar este lugar maravilhoso
talvez voando aos ombros de um vento
suave mas ligeiro.

* No ano 421. Wu ling é hoje Chang te (Hunan). Liu Tzu chi foi um eminente letrado
contemporâneo de Tao Yuanming, que, no contexto das suas viagens frequentes por
todo o país, coleccionava ervas medicinais raras. Huang e Ch’i foram dois eremitas
da dinastia Ch’in (221-207 a.C.), dirigida pelo clã Ying.

A MUDANÇA DAS ESTAÇÕES


Conjunto de poemas submetidos ao tema da felicidade e baseados no modo como
o tópico é abordado nos Analectos de Confúcio. Em particular na primeira parte
de XI.26.

Os poemas sob a designação genérica de “mudança das estações” abordam um


passeio no fim da Primavera. Com roupas ajustadas à estação apreciando com
benevolência o cenário primaveril, saí sozinho campo fora, seguido apenas pela
minha sombra. Angústia e alegria enchiam ambas o meu coração.

1.

No carpe diem têm que entrar as canções de beber. E estabelecer uma dicotomia entre
os dois carpe diems: UM MAIS ASCÉTICO (MAIS CLÁSSICO) OUTRO MAIS
HEDONISTA (ANACREÔNTICO) E EVENTUALMENTE BARROCO. Embora em Tao
Yuanming nunca pareça haver a ironia barroca. As canções de beber são autênticas.

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