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A poetisa Sei
e
o samurai

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Era uma vez, no país onde o sol nasce, um samurai que colecionava as armas das
suas vítimas:

sabres de cavalaria,
catanas e wakizashi,
espadas, punhais, lanças,
cutelos, estiletes, dardos,
arcos de todos os tamanhos
com as suas flechas.

Tinha os cofres cheios.


No ano 1000, o seu nome, Minamoto Tsunefusa, fazia tremer de medo toda a corte
da imperatriz Sadako.
Era tão grande e forte que toda a gente se curvava diante dele. No entanto…
No entanto, o seu maior sonho não era ganhar combates. Este guerreiro
sanguinário acalentava um desejo, o sonho mais terno que se pode imaginar: gostaria
de escrever poesia em rolos de seda. Mas as suas mãos, habituadas aos combates, não
conseguiam manejar o pincel ou a pluma fina.
Não sabia escrever mas queria ser poeta.
E o samurai teria trocado de bom grado a glória das suas vitórias pelo segredo da
escrita.
Quem lho desvendaria? Quem poderia curar a sua alma?



No palácio, a imperatriz e as damas de honor abominavam o sangue derramado,


a guerra e o seu cortejo de horrores.
Não gostavam de se cruzar com Minamoto Tsunefusa, com o seu ar selvagem, o
olhar negro, o cheiro a sangue e a morte.
Quando o viam, os rostos brancos como marfim ficavam petrificados. Quando ele
partia, elas perfumavam os dedos com lotus rosa e queimavam incenso.
O samurai observava-as demoradamente e em silêncio.
De quem ele mais gostava não era da mais bonita, mas era da mais dada à poesia,
Sei Shônagon, de caráter intempestuoso e forte.

Muitas vezes a imperatriz Sadako pedia a Sei para ler o seu caderno, delicadamente
escrito.
E, para a ouvir melhor, Tsunefusa aproximava-se do biombo dourado, do seu
leque, do seu porte sábio.
As leituras agradavam ao homem guerreiro. Apesar da cabeça rapada e das
sobrancelhas de dragão, Sei não o temia mas sempre o repudiava.
E a senhora Sei Shônagon dizia assim:

As pessoas detestáveis são:


Aquelas que aparecem sem ser convidadas,
Aquelas que lêem às custas de outro,
Aquelas que têm uma péssima escrita.

Então Minamoto Tsunefusa dava meia volta, atravessava tristemente as catorze


portas do palácio e fugia no seu cavalo.
Só o imperador tinha uma grande estima pelo samurai e dizia:
— Eu vi-o a lutar, a conduzir um exército, a atacar um barco de guerra com tanta
coragem… E, nas batalhas, protege-me sempre!
E todos na corte respeitavam Minamoto Tsunefusa porque conheciam a afeição do
soberano pelo seu rude companheiro de combate.

Um dia, o samurai ofereceu um gatinho branco ao imperador. Tinha-o salvo de um


incêndio de uma casa pilhada pelos soldados.
O imperador apaixonou-se logo pelo gato. Levou-o para os seus aposentos, tratava
dele e dava grandes gargalhadas quando brincavam.



O imperador demorou tempo a encontrar um nome para o gato: Myobu No


Omoto, o que significa “o preferido” em japonês
e na língua dos gatos.
E o gatinho, de lindo pelo branco, gostava
muito de Minamoto Tsunefusa que o salvara.
Às vezes, tal como ele, desaparecia.
Estaria farto de tantas festas, de sorrisos
forçados e do laço que lhe puseram à volta do
pescoço? Quereria partir para a vida selvagem?
E o imperador, inquieto, ameaçava a todos
com os piores castigos se Myobu No Omoto não
fosse encontrado antes de anoitecer.
No entanto, podiam passar vários dias antes
do seu regresso. E era sempre seguindo os
passos do seu salvador, Minamoto Tsunefusa, que ele se dignava voltar para o palácio.

À volta da imperatriz trocavam-se bilhetinhos, pequenos poemas, cartas de amor


dobradas em graciosos origamis. Todos as recebiam, exceto o samurai que sonhava
com a carta que enviaria um dia à dona do seu coração.
O samurai olhava demoradamente para a imperatriz que também pintava, em seda,
poemas delicados. O próprio imperador pedia os seus pincéis e acrescentava:
Conhece-se o coração de uma mulher
Quando se observa o seu espelho ou o seu tinteiro

E o samurai invejava-o.



Com uma escrita segura e célere, a Senhora Sei Shônagon enchia inúmeras páginas
de um simples papel de arroz. Pediam-lhe que lesse e sorriam quando ela, gracejando,
fazia a lista das coisas que enchem de alegria:

Uma noite de lua cheia.


Pardais que dão de comer aos seus filhotes.
O regresso do soldado depois da batalha.

E também:

Ao recebermos uma carta que vem de longe de alguém que amamos.


E sofremos deliciosamente ao tentarmos abrir o envelope que a cera insiste em
manter fechado.

O samurai escutava.
Toque suave de sedas, o som de páginas que se viravam e um leve pestanejar.
Quando ousaria escrever à poetisa? Quando conseguiria escrever com um bambu
talhado sobre uma folha sem a furar, sem se sujar de tinta?
A quem ousar perguntar o segredo da escrita quando se é um ilustre mestre de
armas, quando se é somente um simples mestre de armas?
Por detrás dos seus leques, as damas de honor não se ririam mais dele!
Até a Senhora Sei Shônagon sorriria para ele.

E assim o samurai foi-se desinteressando da sua coleção de guerreiro vitorioso.


Como todos aqueles que frequentavam a corte, o samurai começou a procurar outros
instrumentos, outras armas.
E escolheu cuidadosamente os mesmos pincéis usados no palácio:
De pelo de lobo,
De cabra cinzenta,
De rabo de raposa
De crina de cavalo,
E até de barba de rato!

Além disso, já não colecionava sabres e lanças mas rolos de papel de arroz.
Albergariam os seus cofres o segredo da escrita?
Com um pincel novo, pôs-se de joelhos diante da página branca. Mas a mão
recusava-se a obedecer-lhe. Não lhe saía nada.
Com os instrumentos dos melhores calígrafos do Império, o grande samurai não
conseguia ser um poeta.



Nesse mesmo dia, por detrás do seu leque, talvez a Senhora Sei Shônagon se tenha
rido dele…
Humilhado, Minamoto Tsunefusa abandonou a corte numa noite sem luar.
Viajou todo o inverno por caminhos cheios de neve, pelas encostas do monte Fu
Ji. Por onde passava, pedia humildemente:
— Ensinai-me a escrever!
Questionou alguns pintores.
Pegou no pincel de um menino calígrafo a quem a sua espada assustava.
Seguiu um monge que o levou a isolar-se na montanha sagrada. Com ele, imóvel
e ao frio, fez meditação.
No branco puro da neve nas terras altas, olhando pensativo o voo dos grous
cinzentos, sentiu-se finalmente poeta.

Minamoto Tsunefusa entrava pouco a pouco na beleza das coisas.


Deixou que a neve caísse sobre os seus pensamentos, e escreveu:

Os rios vermelhos correm sobre o gelo branco,


Sobre os grandes pinheirais, a lua solitária erra,
Sobre as folhas geladas, o som das patas de um pardal …
Na corte, o ambiente estava pesado. Exércitos de soldados estavam prestes a partir
para o mar da China.
Os cavalos relinchavam, gritavam-se ordens e
as armas retiniam.
Ao longe, barcos de guerra estavam alinhados
e iluminados. O som dos búzios sobressaltava a
imperatriz.
Bruscamente, de junto dela, o imperador
partiu com os seus capitães.
Nesse mesmo dia, o tão venerado gato
desapareceu e já não se ouvia miar nos pinheiros
do palácio.
Teria saído do jardim? Fugido para o rio? Os
cães tê-lo-iam afugentado?
Chamavam-no de todos os lados. Nos terraços, punham-se pedacinhos de peixe
em taças de porcelana. O que diria o imperador quando voltasse?
Sua majestade Sadako temia-o. Ainda não tinha quinze anos quando o imperador
casou com ela. Infelizmente, o tempo das festas, da música, das libélulas douradas
terminara com o ruído da guerra.
Mas onde se teria escondido o gato?

Durante esse tempo, na ausência dos homens que foram chamados para os
exércitos, a imperatriz Sadako e as suas damas de honor fecharam-se no palácio.
Sem parar, a neve caía nos jardins. Arrepiadas de frio, matavam o tempo como
podiam, cansadas de rever os aspetos desoladores daquela dura estação do ano:

Vento frio que corre por debaixo das portas,


Neve suja de tanto ser calcada
Tinteiros gelados, dedos entorpecidos,
Pincéis abandonados.

E jogavam aos dados ou ao gamão.


Com a ilustre e venerada Sei Shônagon, a imperatriz fazia partidas de gamão que
nunca terminavam.
A neve caía ininterruptamente. Para onde teria fugido o gato do rei?
A imperatriz Sadako e as suas damas de honor prolongavam a cerimónia da hora
do chá, hesitavam entre os mesmos chás vindos de longe.
— Chá preto ou chá verde?
— Chá de açafrão ou chá “orange pekoe”?
E, com gestos lentos, bebiam pequenos goles.

Mas que tédio! A Senhora Shônagon disfarçava mal as palpitações por detrás do
seu leque nacarado. Como apressar a chegada da primavera? Como apressar o
regresso dos homens tão amados?
Na vida, o que ela mais gostava era de escrever.
Anotava tudo e não se importava que o seu pincel se gastasse.
No palácio, escrevia para agradar à corte. Durante o dia, fazia aquelas listas
intermináveis do que gostava e do que não gostava:

Coisas que fazem bater o coração,


Coisas secretas,
Coisas que queremos logo ver ou ouvir,
Coisas raras e preciosas, inesquecíveis,
Coisas dificeis de dizer…

E acrescentou, porque ela amava Myobu no Omoto:

Coisa muito assustadora:


O gato que não volta.

À noite, na sua casinha ao fundo do jardim imperial, a Senhora Shônagon escrevia


ainda, umas páginas mais secretas, só para si própria, ao correr do pincel:

Notas de sonho,
Notas íntimas,

Notas sobre a lua enigmática depois da chuva,


notas de música,
notas de cabeceira.
E escondia esse caderninho debaixo do seu caro travesseiro de madeira que
segurava o penteado de erudita. Não queria que ninguém descobrisse o que escrevia
à noite!

O inverno gelado não chegava ao fim.


No dia mais escuro da estação, o samurai, sozinho, dirigiu-se para o palácio. A
imperatriz Sadako não o recebeu bem. Sorriu com as damas de honor porque o
samurai ainda não tinha aprendido a manejar o pincel.
A Senhora Sei Shônagon evitava olhar: nunca se dignaria partilhar com ele os
segredos da sua arte. Teria ele de lhos arrancar à força?
Perante tanto silêncio, a fúria gritava no coração de Minamoto Tsunefusa.



Uma noite, não aguentando mais, bateu violentamente à porta da Senhora Sei sem
ter sido convidado. Tinha um pretexto: trazia-lhe o gato branco que saíra do seu
esconderijo para receber o samurai, o seu salvador.
Apesar dos gritos da poetisa, saiu de lá com
um estranho embrulho debaixo do braço.
Montou no seu cavalo negro e desapareceu
com o caderno roubado.
Abrindo-o, fixou o seu olhar na página das
coisas que ela detestava:

A partida dos soldados para a guerra,


O sangue derramado,
Uma carta mal redigida.

Estaria a falar dele?


O senhor Minamoto Tsunefusa nunca mais foi
visto na corte.
Por fim o imperador voltou com os seus capitães, anunciando que o nobre
Tsunefusa tinha partido para a guerra.
Ia travar, sozinho, os mais violentos combates.


Por seu lado, por precaução e mesmo apesar
de ter ficado zangada, a senhora Sei Shônagon não
contou nada a ninguém sobre a inconveniente
visita do grande samurai. Mas guardou
segredo sobre sua majestade o gato que, numa
noite, viera à procura de um refúgio junto dos seus
pincéis, dos tinteiros e das suas delicadas folhas de
papel de arroz.

Coisa que eu amo — então escreveu —


O gosto do gato pelo poeta e pelos seus
papéis.

E a senhora Sei escondia o motivo da sua inquietação.


Raramente era vista.

Um dia, transpôs para sempre as catorze portas do palácio.


A poetisa sentiu-se livre.
Longe do palácio, Sei, sentada sobre os calcanhares lisos, fez meditação, e deixou
que a sua ira passasse.
Na montanha azul, procurou a companhia dos gamos, observou as trutas nos rios,
tomou notas sobre as quatro estações do ano.

Na primavera, é a aurora que prefiro — escreveu —


Gosto também da paisagem no calor escaldante do verão.

Ou ainda:

No outono, comove-me a voz do veado que vem dos bosques sombrios.


No inverno, não gosto das agulhas de granizo,
Mas adoro ah! as montanhas de neve pura.

A imperatriz Sadako, que ficara triste desde que ela partira, suplicava-lhe que
voltasse para o palácio.
O imperador escrevia-lhe num tom mais ameaçador.
Numa flor de lotus, Sei respondia, delicadamente, com alguns versos:

Mesmo que me venham procurar,


Como poderei esquecer o orvalho nestas flores de lotus tão iguais
E voltar para o vosso mundo inconstante e fútil?

E várias luas sucederam-se.


Naquela primavera, que tempo mais magnífico!
No silêncio de uma noite de maio, a poetisa recebeu uma longa carta, à qual estava
amarrado um ramo de ameixoeira em flor.
Myobu No Omoto ouviu a sua dona com atenção.

Iustre Sei Shônagon,


Passaram-se tantas estações ...
Hoje estou curado depois de muito procurar e é a vós que me confio.
Venho de muito longe: eu, um samurai, que andava à procura do segredo da
escrita. Procurei-o em todos os lugares, na vida, na morte.
No largo do mercado, questionei o menino calígrafo, tão hábil com o seu papel
de arroz. Ele ensinou-me a ser paciente.
Na montanha dos Quatro Céus, encontrei-me com o venerado monge Yuko.
Ensinou-me a escutar o estalar das folhas, os passos de um gato branco, o
silêncio.
Regressei, então, ao palácio, para voltar para junto da poetisa dos meus
sonhos e dos suaves pincéis. Mas desesperava perante a página em branco e
os pincéis virgens.
O meu coração tinha tanto para dizer e eu nada cconseguia escrever.
A vergonha levou-me ainda a fugir ao nascer do dia. Levou-me para longe,
para os campos de batalha mais violentos, à frente do meu exército, às ordens
do nosso imperador. Em mim, o criminoso procurava ser ferido. Finalmente,
fui ferido no ombro direito. Estive quase a morrer ao perder o meu sangue e,
com ele, a minha força de guerreiro.
Ilustre Sei Shônagon, acreditai no que vos conto! A minha ferida transformou-
me. Sou outro homem. Nas pontas dos meus dedos, sou capaz de sentir a
suavidade de uma porcelana, do lóbulo de uma orelha, da penugem de um
pintainho amarelo.
Curei-me a mim próprio.
Lentamente, com dedos frágeis, consegui desenrolar o papel de seda. E
comecei a escrever. Finalmente, a minha mão obedecia ao pincel. Narrei o meu
longo caminho até à cura, agradeci ao menino calígrafo, ao monge silencioso,
ao guerreiro que me feriu.
Que longo caminho até chegar ao poema que nos acalenta a alma! Que longo
caminho para chegar até vós, senhora e dona dos meus pensamentos!
Permitis-me que vos veja e vos possa restituir o manuscrito? Peço-vos também
desculpa com todo o arrependimento de um coração quase curado.

Minamoto Tsunefusa,
que depõe a vossos pés todas as suas armas.



A senhora Sei Shônagon meditou durante muito tempo à sombra de um velho


olmeiro.
Pensou na sua dor quando o caderno lhe foi arrancado.
Mas esse furto não a teria também transformado?
Afastando-se da corte, que viagem tinha realizado para se encontrar a si própria!
Escolheu o papel mais fino, o pincel mais suave para escrever uma carta ao homem
ferido.

Assim, trocastes as armas das vossas vítimas pelos humildes


instrumentos de um calígrafo. Já não gostais de fazer guerra, incendiar,
roubar, matar, honrado Minamoto Tsunefusa?
Agora, sois um verdadeiro samurai, ao serviço da paz e do nosso povo.
Quereis vir saborear um chá novo e diferente?
Talvez possamos partilhar os nossos pincéis sob o olhar do gato branco…
Sei Shônagon atou uma fita de seda vermelha à carta e mandou-a entregar ao
samurai.

E ficou à espera.

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Acaba de ler uma história verdadeira, a de uma mulher escritora


que viveu por volta do ano 1000 na corte do imperador do Japão.
Sei Shônagon observava e tomava notas no seu precioso diário.

Françoise Kerisel
La poétesse Sei et le samouraï
Paris, L’Harmattan, 2011
(Tradução e adaptação)

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