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PERCURSOS DO OLHAR:

COMUNICAÇÃO, NARRATIVA E MEMÓRIA

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MARIALVA CARLOS BARBOSA

PERCURSOS DO OLHAR:
COMUNICAÇÃO, NARRATIVA E MEMÓRIA

Editora da Universidade Federal Fluminense


Niterói, 2007

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Copyright © 2007 by Marialva Carlos Barbosa

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B238 Barbosa, Marialva Carlos.
Percursos do olhar: comunicação, narrativa e memória / Marialva Carlos
Barbosa. — Niterói : EdUFF, 2007.
172 p. ; 23 cm. (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004)
Bibliografias p. 165
ISBN 978-85-228-0446-7
1. Comunicação, Memória. I. Título. II. Série.
CDD 070.09

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Silvia Maria Baeta Cavalcanti
Vânia Glória Silami Lopes

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SUMÁRIO

PREFÁCIO, 7

INTRODUÇÃO, 9

O “FILÓSOFO DO SENTIDO” E A COMUNICAÇÃO, 13

PIERRE BOURDIEU E OS ESTUDOS DE COMUNICAÇÃO, 27

MEMÓRIA: UM PASSEIO TEÓRICO, 39

MEIOS DE COMUNICAÇÃO E COMEMORAÇÕES:


CONSTITUINDO A MEMÓRIA, 53

ARQUITETURA TEMPORAL, 63

TEMPORALIDADE: UMA QUESTÃO MIDIÁTICA, 79

REVOLUÇÃO, ESPAÇO E TEMPO: REFLEXÕES SOBRE O MUNDO


TECNOLÓGICO, 93

O ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO, 103

PÚBLICO E MULTIPLICIDADE DE SENTIDOS, 109

JORNALISMO SENSACIONALISTA OU DE SENSAÇÕES?, 121

A NARRATIVA DA TELEVISÃO E O UNIVERSO CULTURAL


DO PÚBLICO, 133

ÚLTIMO PERCURSO: A CONEXÃO JORNALISMO E HISTÓRIA, 153

REFERÊNCIAS, 165

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PREFÁCIO

A unidade temática e teórica dos textos principais de Marialva


Barbosa – apesar do evidente interesse acadêmico que certamente
despertarão as explicações sobre autores como Bourdieu e Ricoeur –
se encontra tanto na pesquisa quanto na reflexão sobre o problema
da memória no âmbito dos meios de comunicação social. É uma ques-
tão complexa e, mais do que nunca, atual, quando se considera que
jovens e adultos são hoje atravessados pelo fenômeno da desvalori-
zação da memória, como uma forma específica do tempo de seu “mun-
do da vida”. Expliquemo-nos: está em andamento uma destruição sis-
temática da memória coletiva (a obsolescência acelerada dos bens
de uso, o desgaste dos espaços urbanos, o desenraizamento das for-
mas de existência, etc.), que leva principalmente os jovens a identifi-
carem-se apenas com o presente, cada vez mais efêmero.
São grandes os reflexos desse fenômeno sobre o sistema infor-
mativo. De fato, num regime generalizado de temporalidade
condensada nesse presente contínuo e efêmero, a informação tende a
ser pontuada por sua própria operatividade técnica (a velocidade de
transmissão) e pelas características de instantaneidade, espaço ilimi-
tado e baixo custo da rede cibernética. Daí, a suspeita de que essa
nova face da informação ponha em crise a própria identidade do jor-
nalismo clássico como mediação discursiva ainda dependente de uma
temporalidade tradicional.
Em outras palavras, estamos sob o influxo de uma tecnologia
de representação do mundo em princípio mais comprometida com os
valores da sua própria eficácia técnica do que com os valores da Polis
humanista. No entanto, sabemos o quanto o prestígio do sistema in-
formativo público decorre de um compromisso histórico com a ética
do liberalismo, logo, com a memória dessa forma de pensar e organi-
zar politicamente o mundo. Tal é a memória que, desde os começos
do regime republicano europeu, tem educado o cidadão quanto à
representatividade de sua palavra e à sua liberdade civil de exprimir-
se publicamente. Tal é a virtude intrínseca da imprensa, esta mesma

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Prefácio

que sustenta eticamente o pacto implícito na relação entre os meios


de comunicação e a sua comunidade receptora. Com a prática com-
petente desta virtude, o jornalista justifica historicamente a sua fun-
ção.
Marialva Barbosa tem aqui o grande mérito de chamar a aten-
ção para “estratégias de atualização da memória”, portanto, para um
outro modo de pensar, como um imperativo atual dos meios de
comunicação, considerando-se que o jornalismo digital em voga ain-
da se ressente de enormes lacunas quanto à participação potencial
dos usuários no processo produtivo da informação. Estudos recentes
vêm indicando que “uma outra forma de pensar”, e não o mero uso de
tecnologias, faz a grande diferença entre os jornalistas do impresso e
aqueles que trabalham na Internet. A diferença decorre de um forma-
to multimídia (texto, vídeo e áudio), que obrigaria os profissionais a
criar narrativas não lineares (em que o leitor adota um roteiro parti-
cular de leitura) a partir de um contexto de interatividade com o pú-
blico.
Uma outra forma de pensar e novos tipos de público (prescri-
ções, aliás, freqüentes nos “observatórios de imprensa”, que se vêm
impondo na América Latina desde os anos 1990) são diretivas em po-
tencial para a constituição de um jornalismo “de qualidade” – analíti-
co, capaz de agendar os temas vitais para a cidadania –, alternativo à
informação imediata ou meramente “declaratória”, freqüente na tele-
visão ou na Internet. Não há realmente quaisquer impedimentos téc-
nicos para que um novo tipo de profissional utilize algoritmos
computacionais destinados a encadear fontes informativas relevan-
tes e a requalificar o material informativo. Mas pode haver impeditivos
conceituais, como o esquecimento da questão da memória coletiva.
Daí, o grande interesse de trabalhos como este, de Marialva Barbosa.
Muniz Sodré
Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro

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INTRODUÇÃO

Durante alguns anos fiz anotações sobre temas variados e que


foram objeto, sobretudo, de múltiplas aulas. Percursos de um olhar
de professor. Alguns desses textos foram produzidos como espécies
de ferramentas para tentar decifrar para os alunos autores considera-
dos, por eles, difíceis, ininteligíveis, complicados e outros adjetivos
que eram sobrepostos aos nomes dos teóricos. Esse é o caso do “filó-
sofo do sentido” Paul Ricoeur, nem sempre compreendido em toda a
sua abrangência e complexidade pelos que se iniciam na leitura de
sua obra. Não menos compreendido, mas por outras razões, é Pierre
Bourdieu, com quem convivi por um breve período em sala de aula.
Às acusações do reducionismo de sua obra contraponho uma argu-
mentação que mostra a complexidade de seu pensamento e, sobretu-
do, a pluralidade de conceitos que constrói um arcabouço de sentido
também fundamental para os estudos de comunicação.
Assim, a maioria desses textos que reúno agora – e que nomeio
como percursos – foi resultado de cursos ministrados, nos últimos
anos, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universi-
dade Federal Fluminense. Muitos deles já foram publicados isolada-
mente em revistas da área. Outros sobreviveram como inéditos (e,
como tal, apenas digitados), o que causava estranhamento e, algu-
mas vezes, indignação nos alunos que sequer sabiam como poderiam
citá-los.
Diante da demanda, muito mais afetiva, daqueles que me acom-
panharam nessa trajetória de 28 anos em sala de aula, resolvi reunir
em um único volume esses caminhos variados que procuram mapear
alguns paradigmas teóricos e conceituais fundamentais para os estu-
dos de comunicação.
Dividi o livro em 12 capítulos, começando exatamente por um
texto que procura descrever teoricamente o pensamento de Paul
Ricoeur, estabelecendo conexões desses aportes teóricos com os es-
tudos de comunicação.

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Introdução

O segundo capítulo é dedicado a Pierre Bourdieu. Passeando


em torno de alguns conceitos contidos em sua vasta obra, o texto
parte de uma experiência viva em sala de aula. O objetivo é tão-so-
mente aplacar a fúria com que alguns pesquisadores da área de co-
municação lançam seus olhares sobre as conceituações plurais
estabelecidas ao longo de sua trajetória teórica. Não tive a pretensão
de discorrer sobre a extensa obra de Pierre Bourdieu. Também não
me ancorei nas suas obras de vulgarização científica, como a maioria
dos seus críticos o faz, quando a partir de livros paradidáticos ten-
tam entrar na gênese de seu pensamento. O capítulo tem apenas uma
pretensão: discorrer sobre conceitos fundamentais para o estudo da
comunicação como processo complexo.
Memória é o percurso teórico escolhido para o terceiro capítu-
lo. Abordando múltiplos autores que, nos últimos anos, construíram
definições e análises primorosas, procuro responder a uma pergunta
central: estaríamos diante de um mundo em crise, no qual a operação
memorável construiria âncoras temporais e identitárias para o sujei-
to? E como os meios de comunicação produzem estratégias de
reatualização da memória?
Essa segunda pergunta é respondida no Capítulo 4. O foco recai
sobre as estratégias utilizadas pelos meios de comunicação – e no
caso dessa análise, a televisão – para reatualizar o passado em múlti-
plos gestos comemorativos. Como exemplo, as comemorações engen-
dradas pela TV Globo para os 500 anos de Descobrimento do Brasil
são analisadas.
Se a memória ganha sentido na formulação dos meios de comu-
nicação, também a arquitetura temporal de nossa época é constituí-
da pela ação midiática. O tempo simultâneo, ininterrupto, dos gran-
des acontecimentos, dos instantes que se sucedem, da velocidade,
da instantaneidade e da aceleração emerge no cotidiano dando senti-
do à existência. Esses aspectos são enfocados nos Capítulos cinco e
seis que, além de mapearem o conceito de temporalidade, procuran-
do caracterizar o sentido de tempo que atravessa o mundo, abordam
a formação de um tempo midiático que governa a nossa ação e, so-
bretudo, a nossa percepção.
Mais uma vez o tempo comparece no capítulo seguinte: breves
reflexões sobre um mundo tecnológico que naturaliza o conceito de

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Marialva Carlos Barbosa


revolução, o que faz com que o século XX seja designado como a épo-
ca de uma revolução cujo final ainda não se produziu. O objetivo, por-
tanto, é mostrar o significado histórico da palavra revolução e indicar
quais as razões de natureza política que levam à adoção do conceito
e, mais do que isso, à certeza de que vivemos a revolução mais singu-
lar de nossa história.
O acontecimento contemporâneo e a gênese do conceito de
público são os temas dos Capítulos oito e nove. Os percursos escolhi-
dos fogem à estreita definição para tentar compreender como os
meios de comunicação constituem o acontecimento e como a ques-
tão do público enfeixa uma multiplicidade de sentidos. Adjetivo, subs-
tantivo e verbo, falar em público é pressupor um lugar, uma ação e
uma atividade ou experiência.
No Capítulo dez – Jornalismo sensacionalista ou de sensações?
– a reflexão recai sobre a construção desse tipo de jornalismo, no
Brasil, sobretudo a partir dos anos 1920. Partindo da premissa de que
esse tipo de construção narrativa apela a um imaginário que navega
entre o sonho e a realidade, esse gênero de notícia descreve, por ou-
tro lado, conteúdos imemoriais, que aparecem e reaparecem periodi-
camente sob a forma de notícias. Mudam os personagens, não as situ-
ações. Existe, portanto, uma espécie de fluxo do sensacional que
permanece interpelando o popular a partir de uma narrativa que mes-
cla o ficcional com a suposição de um real. São temáticas que repe-
tem os mitos, as figurações, as representações que falam de crimes e
mortes violentas, de milagres, de desastres, enfim, de tudo o que foge
a uma idéia de ordem presumida, instaurando a desordem e a anor-
malidade.
O público é mais uma vez alvo das reflexões no Capítulo 11.
Partindo do pressuposto de que o público, como consumidor cultu-
ral, faz múltiplos usos dos materiais disponibilizados, pode-se dizer
que o papel da televisão – com suas imagens ininterruptas e que colo-
cam no ambiente do usuário narrativas plurais – não se reduz à cons-
trução da realidade social. Produzindo e reproduzindo significados
plurais, elaborando respostas, a narrativa da televisão estabelece ré-
plicas significativas e inteligíveis, dentro do universo cultural de seus
públicos.

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Introdução

E, finalmente, o último percurso do livro apresenta correlações


entre o jornalismo e a história. O objetivo, desta vez, é mostrar a im-
portância da adoção dos postulados fundamentais da teoria da histó-
ria para os estudos de jornalismo. Considerando cinco postulados – a
interpretação, a narrativa, o conhecimento como episthéme, a ques-
tão do tempo e do espaço –, destaca-se como esta aproximação pode
enriquecer as teorias em torno da notícia.
São, enfim, percursos de um olhar que focaliza primordialmen-
te a questão da narrativa, da memória e da comunicação.

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O “FILÓSOFO DO SENTIDO” E A COMUNICAÇÃO

Ainda que não tenha na sua obra uma reflexão que enfoque di-
retamente a questão da comunicação, Paul Ricoeur, ao desenvolver
um complexo aporte teórico em relação à questão da narrativa, ofere-
ce uma contribuição ímpar para se pensar a comunicação como pro-
cesso complexo.
Inscrita na teoria dos gêneros, a questão da narrativa, na obra
desse que foi um dos mais importantes filósofos do século XX e que é
chamado muitas vezes de “filósofo do sentido”, não se resume a uma
problemática lingüística. Para o pensador francês, narrar é uma for-
ma de estar no mundo e dessa forma entendê-lo. É por meio da narra-
tiva que se podem reunir e representar no discurso as diversas pers-
pectivas existentes sobre o tempo. Essa unificação se dá por uma
operação mimética.
Nos inúmeros trabalhos consagrados à função narrativa, mas
sobretudo em Tempo e narrativa, existem três preocupações essen-
ciais: “a de preservar a amplitude, a diversidade e a irredutibilidade
dos usos da linguagem”; a de associar as formas e as modalidades
que existem nos “jogos de narrar”; e, finalmente, a de “pôr à prova” a
capacidade de selecionar e de organizar a linguagem, quando esta se
estrutura em unidades textuais. Neste sentido, o texto se torna um
meio apropriado para fazer uma espécie de ponte entre o vivido e o
narrado (RICOEUR, 1987a).
A evidência de que a nossa cultura produz inúmeras definições
do ato de narrar, transformando-o em gêneros plurais, fez com que se
produzisse também uma dicotomia básica entre os textos: de um lado,
as narrativas com pretensão à verdade (o discurso da ciência e do
jornalismo, por exemplo) e, de outro, as narrativas ficcionais, sejam
as que utilizam a linguagem escrita (literatura), sejam as que utilizam
a imagem (filmes, fotografia, telenovelas etc.).
É contra esta “classificação sem fim” que Ricoeur constrói a
sua hipótese: a existência de uma unidade entre os múltiplos modos e
gêneros narrativos. Para isso parte do pressuposto de que o caráter

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O “filósofo do sentido” e a comunicação

temporal é o comum da experiência humana. “Tudo o que se narra


acontece no tempo, desenvolve-se temporalmente; e o que se desen-
volve no tempo pode ser contado” (RICOEUR, 1987a, p. 24).
Para ele, só se pode reconhecer o processo temporal porque é
narrado. O tema de Tempo e narrativa (1994, 1995 e 1996) é justamen-
te esta reciprocidade entre narratividade e temporalidade. E ao tratar
da qualidade temporal da experiência, como referência comum da his-
tória e da ficção, o que o autor está fazendo é constituir em um único
problema ficção, história e tempo.
A questão central é identificar a característica fundamental do
ato narrativo. Seguindo Aristóteles, Ricoeur designa como intriga
(muthos) a composição verbal que faz com que o texto se transforme
em narração. A organização da intriga consiste, pois, na operação de
seleção e organização dos acontecimentos (as ações contadas) a qual
permite à história contada (qualquer que seja ela) ser completa e una,
com começo, meio e fim.
Neste sentido, a ação é apenas o início de qualquer história,
que se converte em meio de provocar, na história contada, uma mu-
dança de destino, uma “peripécia” surpreendente, uma sucessão de
incidentes aterradores. E essa mesma história só constrói seu fim
quando conclui o curso da ação, desatando o nó inicial, selando, por
exemplo, o destino do herói, e produzindo no ouvinte a kátharsis da
piedade e do terror.
Nas ações mais cotidianas dos meios de comunicação e, parti-
cularmente, nos atos jornalísticos, observamos como a questão da
peripécia é fundamental para instaurar o acontecimento jornalístico.
Baseado em convenções de veracidade, o discurso jornalístico é acre-
ditado como verídico por antecipação, mas só se configura em algo a
ser publicizado se instaurar uma ruptura. A excepcionalidade do jor-
nalismo nada mais é do que a peripécia indicada por Ricoeur. Por
outro lado, as narrativas do cotidiano, sobretudo aquelas que apelam
aos valores imemoriais de contar as histórias – como é o caso, por
exemplo, das narrativas policiais, o jornalismo de sensações, como
classificamos –, os apelos à piedade, ao terror, às emoções são cons-
tituintes mesmos desses textos. Com essas narrativas se produz a
kátharsis do público, no sentido particularizado por Ricoeur.
Qualquer intriga possui inteligibilidade, sendo o conjunto de
combinações pelo qual os acontecimentos são transformados em his-

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tória ou uma história é tirada de acontecimentos (RICOEUR, 1987a, p.
26). A intriga é, pois, o mediador entre o acontecimento e a história.
Neste sentido, Ricoeur define acontecimento como aquilo que
contribui para a progressão de uma história: é mais do que algo que
acontece. O acontecimento é componente intrínseco da própria nar-
rativa.
Em suma, a intriga é unidade inteligível que conjuga circuns-
tâncias, finalidades, meios, iniciativas, conseqüências não desejadas,
ou, “o ato de tomar em conjunto” (conjugar) os ingredientes da ação
humana que, na experiência cotidiana, aparecem muitas vezes como
heterogêneos e discordantes.
A partir dessas pressuposições iniciais, Ricoeur vai analisar dois
conjuntos de textos considerados distintos, muito mais pelas conven-
ções culturais do que pelas particularidades narrativas: o histórico e
o ficcional.
A sua pressuposição primeira é a de que é impossível estruturar
a história que não seja de modo narrativo. Mesmo quando a história
se afasta do modo narrativo presente nas crônicas antigas, na histó-
ria eclesiástica ou política que conta batalhas, tratados, partilhas, ou
seja, mudanças de destino que afetam o exercício do poder por deter-
minados indivíduos, ela continua narrativa. Ainda que seja a história
da longa duração, ao tornar-se social, econômica, cultural, permane-
ce ligada ao tempo e procura enfocar múltiplas mudanças que ligam
sempre uma questão final à situação inicial. “Ao ficar ligada ao tempo
e à mudança, continua o autor, fica também ligada à ação dos homens
que, segundo Marx, fazem a história em circunstâncias que eles não
criaram” (RICOEUR, 1987a, p. 27).
A história é sempre a história dos homens que são portadores,
agentes, vítimas das forças, das instituições, das funções, dos lugares
onde estão inseridos. E é neste sentido que ela não pode romper com
a narração, já que seu objeto é a ação humana que implica agentes,
finalidades, circunstâncias e resultados.
Há de se entender ainda que o passado, mesmo se considerado
como real, é sempre inverificável. Na medida em que não mais existe,
só indiretamente é visado pelo discurso da história. Assim, tal como a
ficção, também a reconstrução histórica é obra da imaginação. Por
outro lado, também o historiador configura intrigas que os documen-

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O “filósofo do sentido” e a comunicação

tos autorizam ou proíbem, combinando sempre coerência narrativa e


conformidade aos documentos. É também essa combinação que faz
da história interpretação.
Quando analisa as narrativas de ficção, sua tese é a de que qual-
quer construção ficcional, mesmo aquelas consideradas “singulares”,
articula a sedimentação de padrões existentes anteriormente com a
inovação. É a ligação com a tradição, com os esquemas narrativos, já
de conhecimento do leitor, que permite o reconhecimento do desvio,
ou seja, da inovação. O desvio só pode existir se tiver como pano de
fundo a cultura tradicional que cria no leitor expectativas que o autor
estimula ou frustra. O que há, pois, é sempre um jogo de regras, aqui-
lo a que ele vai chamar imaginação regrada.
Tendo essas duas pressuposições como referências iniciais,
Ricoeur enfoca um terceiro problema: o da referência comum da his-
tória e da ficção tendo como pano de fundo a temporalidade da expe-
riência humana.
Classificando o problema como de “dificuldade considerável”,
procura mostrar que, embora possa parecer que apenas a história se
refira ao real, mesmo que este seja passado (ao pretender falar de
acontecimentos que efetivamente se produziram), não se pode dizer
que a ficção não tenha referência, já que todos os sistemas simbóli-
cos contribuem para configurar a realidade. São as intrigas que inven-
tamos que irão nos ajudar a configurar nossa experiência temporal
confusa e muda.
“O que é tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se mo per-
guntarem, eu deixo de saber”. A proposição emblemática de Santo
Agostinho (Livro XI, Confissões) indica a capacidade da ficção para
configurar a experiência temporal quase muda. Ou seja, se houver o
silêncio ou a falta de pergunta (da proposição narrativa) não há o ato
configurante. Mas se, ao contrário, produz-se articulação textual, há a
necessidade de configurar a imaginação criadora. O que existirá não
é mais o tempo em si mesmo, mas um discurso que constrói uma
idéia de tempo.
A função da intriga é, pois, esta capacidade da ficção de confi-
gurar a experiência temporal. Cria-se o laço entre muthos e mimesis
na Poética de Aristóteles: “é a fábula, diz ele, que é a imitação da ação”
(RICOEUR, 1987a, p. 29).

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Marialva Carlos Barbosa


Isso porque a fábula imita a ação, produzindo inteligibilidade,
utilizando os recursos da ficção. O mundo da ficção é uma espécie de
laboratório de formas no qual ensaiamos configurações possíveis da
ação, experimentando sua consistência e plausibilidade. É essa expe-
rimentação que Ricoeur chama de imaginação produtora.
Nesta fase primeira, a da experimentação, a referência ao mun-
do permanece em suspenso. A ação é apenas imitada, fingida, forjada.
O mundo da ficção é apenas o mundo do texto ou uma projeção do
texto como mundo.
Este momento, em que a referência ao mundo encontra-se em
suspenso, é intermediário entre a pré-compreensão do mundo da ação
e a transfiguração da realidade cotidiana operada pela própria ficção.
O mundo do texto, porque é mundo, vai entrar em colisão com o mun-
do real para o refazer, confirmando-o ou recusando-o.
Assim, seja no texto histórico, seja no texto ficcional, o que existe
é, no primeiro caso, referência indireta ao passado e, no segundo,
referência produtora de ficção. Nos dois casos representa-se a expe-
riência humana na sua dimensão temporal mais profunda. Há entre a
história e a ficção um jogo de referência cruzada que constitui o cerne
daquilo que Ricoeur chama “tempo humano”.
Em relação às três ordens de tempo – o tempo vivido subjetiva-
mente ou fenomenológico, o tempo histórico e o tempo vivido objeti-
vamente ou a perspectiva cosmológica –, é justamente a narrativa
histórica que oferece uma espécie de solução às dificuldades irreconci-
liáveis suscitadas pela especulação sobre o tempo. A dimensão narra-
tiva opera a mediação entre o tempo fenomenológico e o tempo
cosmológico, em um tempo de natureza histórica, isto é, vivido e per-
cebido numa espécie de arquitetura temporal de cada época.
Tal mediação pode ser observada, por exemplo, na idéia histó-
rica de calendário na qual a temporalidade subjetiva da vida cotidia-
na liga-se aos movimentos cósmicos dos corpos celestes: em suma, a
narrativa do calendário oferece uma interligação entre a idéia
cosmológica e a idéia fenomenológica ou subjetiva do tempo. Tam-
bém nos textos ficcionais podem ser percebidas estas mediações tem-
porais: a experiência subjetiva da morte – tempo como finitude da
condição humana –, por exemplo, aparece nos textos ficcionais de
forma representada. Por intermédio da ficção podemos experimentar

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O “filósofo do sentido” e a comunicação

a angústia da morte, para logo em seguida ver o personagem renasci-


do em outra história, experimentando uma espécie de eternidade do
tempo.
Analisando, pois, a função narrativa em duas ordens de textos
que considera fundamentais – a narrativa histórica e a de ficção (da
epopéia ao romance moderno) –, Ricoeur passa gradativamente da
configuração narrativa à refiguração narrativa.
Por configuração narrativa entende a organização interna de
qualquer texto cujos códigos podem ser identificados pela análise
estrutural. Já a refiguração narrativa define-se como o “poder que a
narrativa possui de reorganizar a nossa experiência temporal”, des-
cobrindo ao mesmo tempo “as profundezas dessa experiência” e trans-
formando a orientação que se imprime à vida a partir desse momento
(RICOEUR, 1994, passim).
Para Ricoeur há um caminho natural em qualquer texto que vai
de sua configuração interna à influência que passa a exercer fora dele
mesmo (refiguração, também chamada referência ou sentido). Todo
texto produz sentido e induz à ação. A partir da leitura há, pois, uma
mudança intrínseca em quem a realiza.
Preferindo o termo refiguração ao de referência – que vai
gradativamente abandonando ao longo de seus escritos –, Paul Ricoeur
aprofunda essa questão na sua obra seminal, Tempo e narrativa. A
hipótese principal do livro repousa sobre a questão da experiência da
narrativa. Para Ricoeur, a narrativa articula a nossa experiência do
tempo, da mesma forma que o tempo se torna humano pela narrativa.
A vida humana é, portanto, análoga a um texto. Assim como um
texto, também a vida expressa sentidos que podem ser explicitados
por meio da interpretação. A questão da leitura e da compreensão do
texto é, pois, uma espécie de metáfora na sua obra para todos os ti-
pos de compreensão, incluindo a dos fenômenos sociais e culturais.
O objetivo do autor é esclarecer a existência. Diz ele: “A eterni-
dade que as obras de arte opõem à fugacidade das coisas só pode se
constituir numa história?”, pergunta-se para a seguir se colocar outra
questão: “E a história só permanece histórica se, ao mesmo tempo
em que ocorre acima da morte, protege-se do esquecimento da morte
e dos mortos e permanece uma recordação da morte e uma memória
dos mortos?” Assim, a questão crucial do livro é “saber até que ponto

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Marialva Carlos Barbosa


uma reflexão filosófica sobre a narratividade e o tempo pode ajudar a
pensar juntas a eternidade e a morte” (RICOEUR, 1994, p. 131).
Nas suas próprias palavras, a transição entre configuração e
refiguração é preparada e construída em Tempo e narrativa por meio
de uma seqüência sinuosa de etapas (RICOEUR, 1990). Inicialmente,
ainda no Volume 1 da trilogia, procura construir o que pareceu ser
uma correspondência remarcável entre a questão do tempo, segun-
do as aporias de Santo Agostinho, e a estrutura da intriga, segundo
Aristóteles. Para ele há uma “correspondência surpreendente entre a
distentio animi de Santo Agostinho e a peripeteia d’Aristóteles”, o que
o leva a tratar o tempo em Santo Agostinho como uma espécie de
discordância concordante, da mesma forma que há concordância dis-
cordante no conceito de intriga desenvolvido por Aristóteles.
É esta relação que o encoraja a procurar uma afinidade funda-
mental entre atividade narrativa e experiência temporal, que ultra-
passa em muito os limites das Confissões de Santo Agostinho e da
Poética de Aristóteles.
A partir da transição entre configuração e refiguração narrativa,
Ricoeur procura reconstruir a noção aristotélica de mimese sobre
outras bases: por intermédio da tríplice mimesis. A mimesis I designa
a pré-compreensão na vida cotidiana, ou seja, a qualidade narrativa
intrínseca à própria experiência. A mimesis II é a auto-estruturação da
narrativa baseada em códigos narrativos internos ao discurso. E
finalmente a mimesis III, o equivalente narrativo da refiguração do real
pela metáfora. Nesta etapa é importante o papel de mediador exercido
pela leitura.
Outra tese central do autor no que diz respeito à questão narra-
tiva é a de que o texto se projeta além dele mesmo, por meio da simu-
lação da experiência vivida. A narrativa enfoca, assim, uma experiên-
cia que pode ser a do próprio leitor, já que os textos desenham um
mundo que mesmo sendo fictício continua sendo mundo. É o que o
autor chama mundo do texto, sempre ofertado à apropriação crítica
dos leitores. No ato de leitura se entrecruzam o mundo do texto e o
mundo do leitor. Se o mundo do texto é sempre imaginário, o mundo
do leitor é real, mas ao mesmo tempo capaz de remodelar a esfera do
imaginário.

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O “filósofo do sentido” e a comunicação

Neste sentido, a leitura torna-se campo de confronto entre o


autor e o leitor, cada um trazendo recursos opostos para o combate
(RICOEUR, 1990, p. 39). O leitor procura descobrir os lugares de
indeterminação no texto, preenchendo suas lacunas.
O texto, portanto, só se completa pelo itinerário da leitura, sen-
do o objeto literário constituído pela atividade de ler. A obra é uma
produção comum do autor e do leitor. “De um lado, prossegue, a obra
afeta o horizonte de expectativa sobre o qual o leitor aborda o texto.
De outro, suas esperas fornecem a chave hermenêutica do processo
de leitura tal como ele se desenrola” (RICOEUR, 1990, p. 40).
Há que se considerar ainda que a ação narrativa instaura o mun-
do das coisas contadas e o reino do “como se”. Conta-se o mundo
como se fosse real, como se o que é relatado de fato tivesse aconteci-
do daquela forma, como se tivesse existido. O mundo das coisas con-
tadas é sempre o “como se” da ficção e a experiência depende da voz
narrativa que contém invariavelmente a voz do narrador. Mas essa
voz não contém apenas a voz direta do autor, mas de todos aqueles
que são designados pelo seu ato de narrar. Na voz narrativa estão
contidos, portanto, múltiplos atos memoráveis. “Cada voz narrativa,
continua o autor, tem seu próprio tempo e seu próprio passado, de
onde emergem os acontecimentos recontados” (RICOEUR, 1990, p. 40).
Mas o mundo projetado pela obra é capaz de se cruzar com um
outro mundo, o mundo do leitor. Assim, a refiguração vai de um mun-
do a outro, do mundo fictício ao mundo “real”.
O ato de leitura torna-se, pois, medium decisivo e é por inter-
médio desse meio que se produz a transferência da estrutura da con-
figuração narrativa a sua refiguração e a transformação da ação hu-
mana passada ou futura.
O “como se” dessa experiência da leitura coloca em destaque a
questão da voz narrativa, que, como já dissemos, não é apenas a voz
narrativa do autor, mas uma voz que em essência é cultural (da tradi-
ção, do mundo onde ele se insere, das representações, das visões de
mundo sub-reptícias em relação ao texto). Esta é uma das razões pe-
las quais as histórias contadas parecem pertencer à memória de al-
guém que “fala” no e pelo texto.
Para Ricoeur também esta parece ser uma das razões pelas quais
os textos ficcionais são escritos freqüentemente no passado, já que

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Marialva Carlos Barbosa


não se refere ao tempo do calendário que rege a historiografia e a vida
cotidiana. “A voz narrativa tem antes de qualquer coisa seu tempo
próprio e seu próprio passado, de onde emergem os acontecimentos
recontados” (1990, p. 34).
Na obra de Ricoeur aparece com destaque, sempre em relação
à questão da narrativa, uma longa discussão sobre a fenomenologia
do tempo. Para ele existe uma dicotomia fundamental entre as duas
perspectivas principais do conceito de tempo: a primeira baseada na
cosmologia e a segunda na experiência humana.
Essas concepções na experiência humana não são excludentes,
mas complementares: trata-se da significação de viver o tempo. Dan-
do como exemplo o sentido da palavra, agora exemplifica:

De um lado, agora designa uma interrupção na continuidade do tempo


cosmológico e pode ser representado por um ponto sem extensão. De
outro lado, agora significa presente vivido, rico de um passado recente
e de um futuro iminente (RICOEUR, 1990, p. 34).

Não existe nenhuma ligação lógica entre essas duas interpreta-


ções do agora.
Esta aporia que nenhuma fenomenologia do tempo, segundo
sua tese, é capaz de resolver, pode ser resolvida na narrativa, pela
inclusão de uma resposta criativa. Neste sentido, propõe resolver a
questão por meio de uma poética da narrativa em lugar de uma
aporética da temporalidade. Para ele, cada forma narrativa tem a ca-
pacidade de responder e, ao mesmo tempo, corresponder a uma de
nossas experiências de tempo.
A história e a ficção construíram meios diferentes para lidar
com esta questão. A história, tendo como direção a construção de um
discurso “verdadeiro”, instaurou uma espécie de temporalidade mis-
ta, uma espécie de terceiro tempo: o tempo histórico situado entre o
tempo cosmológico e o tempo fenomenológico. Nesse modelo, o tem-
po-calendário funciona como matriz desse terceiro tempo. O agora
não é mais o instante pontual, nem o presente vivido. Transforma-se
em algo datado, capaz de dar ao presente um novo lugar no sistema
de datas estabelecidas pelo calendário. Instaura-se a data inicial, pon-
to zero do calendário, considerada evento fundador que cruza o ins-

01 O filosofo do sentido.pmd 21 6/9/2007, 15:46


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O “filósofo do sentido” e a comunicação

tante cosmológico e o presente vivido. A pretensão à verdade históri-


ca fica assim submetida aos contratos impostos pelos calendários e
pela noção de prova documental.
Em contrapartida, é por este mesmo movimento que o tempo
da ficção perde sentido. Naturalizando o tempo do calendário e figu-
rando as provas documentais como próprias da história, as narrati-
vas de ficção abrem-se a toda espécie de variações imaginativas, in-
cluindo combinações infinitas de aspectos cosmológicos e
fenomenológicos. A ficção está livre para explorar as inúmeras pro-
priedades qualitativas do tempo, ainda que apenas no plano da imagi-
nação. Dessa forma, a ficção transforma-se em uma espécie de labora-
tório para as experiências nas quais a imaginação ensaia soluções
plausíveis para o enigma da temporalidade.
Mas esse enigma só será resolvido no mundo do leitor. Começa
aí o último nível de argumentação de Ricoeur, quando procura desen-
volver uma espécie de história dos efeitos e da recepção das obras
literárias, sejam elas históricas ou ficcionais.
A dialética do fenômeno leitura inclui, de um lado, a estratégia
de persuasão desenvolvida pelo autor para atingir seu leitor poten-
cial. Para isso dispõe do recurso, só dele, de poder ler diretamente a
alma de seus personagens. De outro lado, há de se considerar o poder
de ilusão que se instaura pela estratégia de persuasão. Mas esta mes-
ma persuasão pode caminhar em uma outra direção: a retórica da
dissimulação ou da ironia pode, em vez de persuadir, produzir
estranhamento no leitor. É nesse sentido que a leitura se torna campo
de combate entre autor e leitor.
Mas esse combate pode ser ainda mais amplo. Como mostrou
Wolfgang Iser e Hans-Robert Jauss,1 em relação aos postulados da es-
tética da recepção, a resposta do leitor ao texto é uma atividade alta-
mente elaborada, estruturada por expectativas pessoais e culturais.
A perspicácia do leitor é, pois, descobrir incompletudes no texto, la-
cunas, lugares de indeterminação.
Diante dessa constatação, Ricoeur é definitivo: “somos tenta-
dos a dizer que é o leitor sozinho que elabora as frases do texto, e que
o objeto literário é constituído pela atividade mesma de ler”. E conti-
nua: “sem querer ir tão longe, eu prefiro dizer que aquilo que nós
chamamos obra é a produção comum de um texto e de um leitor”. De

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Marialva Carlos Barbosa


um lado, a obra afeta o horizonte de expectativa segundo o qual o
leitor aborda o texto. De outro, “essas esperas fornecem a chave
hermenêutica do processo de leitura tal como ele se desenrola” (1990,
p. 39-40).
Observamos em toda essa discussão sobre a questão da narra-
tiva, a partir da obra de Paul Ricoeur, cinco pontos centrais na sua
argumentação: a correlação tempo e narrativa; uma concepção sim-
bólica presente na idéia de temporalidade; o debate entre nominalismo
e uma dada visão que afirma ser a criação de sentido construída pelo
próprio homem; a narrativa como produto da ação humana; e o esta-
tuto epistemológico do tempo histórico e do tempo da narrativa.
Produzindo um ensaio modelar de interdisciplinaridade, Paul
Ricoeur toma como idéia central a seguinte questão: toda narrativa
(histórica ou de ficção) articula em discurso o caráter temporal da
experiência humana. Fazendo isso, figura o mundo sob a forma de
obra e transforma o tempo em algo intrínseco à esfera humana.
O que pretendeu Paul Ricoeur ao elaborar sua obra mais signi-
ficativa – Tempo e narrativa – a partir de dois diálogos fundamentais:
As Aporias do tempo de Santo Agostinho e a Poética de Aristóteles?
De maneira bastante abrangente podemos dizer que o seu ob-
jetivo foi submeter à prova tanto as disciplinas históricas, quanto a
narrativa de ficção, afirmando a identidade entre historiografia e nar-
rativa ficcional. Para ele, há nos dois regimes uma apropriação funda-
mental que recoloca o texto do mundo do autor no mundo do leitor.
Para construir sua fenomenologia da leitura, estabelece um
diálogo valioso, como vimos, com as investigações da Estética da Re-
cepção e do Efeito, desenvolvidas pela Escola de Konstag. Jauss e Iser
– os dois autores mais representativos dessa corrente teórica – pro-
puseram tentar retirar dos estudos literários, de um lado, a visão de
imanência (neutralidade científica) ou, de outro, sua filiação ao mar-
xismo reflexológico. Essas aproximações faziam com que a obra lite-
rária fosse primordialmente analisada a partir de uma visão que a
considerava fechada nela mesma, produzindo-se análises imanentes
ao texto.
Wolfgang Iser estudava o efeito produzido no leitor e sua res-
posta. Já Hans Robert Jauss procurava debruçar-se na resposta do
público em função de expectativas coletivas. Pela leitura individual,

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O “filósofo do sentido” e a comunicação

consideravam que o texto poderia revelar sua estrutura de apelo. A


diferença entre os autores do chamado estruturalismo de Praga é que
alguns vêem o leitor dentro da leitura, enquanto outros, como Jauss,
entendiam o leitor como figura empírica fora da obra.
Iser enfatizava o efeito da literatura ficcional em seus primeiros
estudos, supondo a existência de uma estrutura única para a obra
literária. Depois se interessa pela dimensão antropológica, questio-
nando a razão de o homem necessitar da ficção, baseando-se na ne-
cessidade interpretativa que atravessa a história humana. Já Jauss
tenta renovar a história da literatura, ao considerar que a significação
de uma obra literária baseia-se na relação dialógica instaurada entre
esta obra e seu público em cada época.
A questão da interpretação em Ricoeur torna-se hermenêutica,
isto é, arte da interpretação de decifração do sentido de textos, por
intermédio da compreensão e da explicação. Neste sentido compre-
ender não é conhecer, mas ser e relacionar-se com outros seres. A
hermenêutica é a filosofia da compreensão e não um conjunto de téc-
nicas de interpretação.
É neste sentido que os textos se transformam em meios de trans-
missão das experiências e os significados são produtos de julgamen-
to prático e do senso comum e não de uma teoria ou prova científica.
Sua hermenêutica partilha, portanto, a idéia do círculo hermenêutico,
isto é, a noção de que a compreensão ou definição de alguma coisa já
pressupõe uma compreensão ou definição daquela coisa.
Outro conceito fundamental na sua obra é o de intriga. Consi-
derar a intriga é perceber no ato poético o triunfo da concordância
sobre a discordância. Para Aristóteles é aparentemente paradoxal
perceber a narrativa como categoria que engloba o drama, a epopéia
e a história, pois o que Aristóteles chamava de história exercia ape-
nas o papel de contra-exemplo (discordância). Em Aristóteles apenas
um conceito era englobante (a mimese). A mimese podia englobar o
drama, a epopéia ou a história. Intriga, portanto, traz na sua essência
a idéia de operação de composição (enredo).
Refletindo sobre a noção aristotélica, Ricoeur define intriga
como representação da ação. O objeto de representação pode ser ela-
borado como intriga, caracteres, pensamento (forma de composição)

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Marialva Carlos Barbosa


e se expressa sob uma forma precisa (canto, espetáculo etc). A defini-
ção de intriga pressupõe também “o quê” da representação.
A fenomenologia do ato de ler, objetivo último da extensa obra
de Paul Ricoeur, é, portanto, resultado da associação entre
hermenêutica e estética da recepção. Ao se apropriar da construção
do grupo de Konstag, Ricoeur alarga suas propostas iniciais, colocan-
do como questão fundamental o aspecto inacabado do texto. Isso
porque todo texto oferece diferentes “vistas esquemáticas” que o lei-
tor deve concretizar (brechas ou lugares de indeterminação) e tam-
bém porque o texto é inacabado já que o mundo que ele propõe é
sempre incompleto. Neste sentido, o mundo, que afinal o texto é, não
passa de uma seqüência de frases que precisam ser transformadas
em um todo. Há um ponto de vista viajante em qualquer leitura, o que
faz com que nenhum texto possa ser percebido em sua totalidade de
uma só vez.

Notas

1
Cf., entre outros, JAUSS (1983) e ISER (1983).

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PIERRE BOURDIEU E OS ESTUDOS DE COMUNICAÇÃO

No palco do Collège de France surge um professor comum: bai-


xo na estatura, agitado na forma como entra em sala e começa a dis-
correr sobre um tema recorrente nas suas preocupações teóricas: as
regras da arte. O tema geral das múltiplas aulas é “as pesquisas recen-
tes sobre os campos”.
Sobraçando papéis, livros, escritos, o professor começa a falar
da construção daquilo que conceitua como campo artístico. A expli-
cação é extremamente clara. Pierre Bourdieu é um professor na
acepção mais ampla do termo.
Dessa experiência viva com Pierre Bourdieu e, mais ainda, a
partir das críticas muitas vezes injustas que sofre dos pesquisadores
da comunicação, que o conceituam negativamente como um estrutu-
ralista, surgiu a idéia deste capítulo.
Não pretendo aqui discorrer, como enfatizei na Introdução, so-
bre a extensa obra de Pierre Bourdieu, nem me ancorar nas suas obras
de vulgarização científica, quando a partir de livros paradidáticos al-
guns críticos querem apreender a gênese de seu pensamento. O obje-
tivo deste capítulo é tão-somente tentar desvelar conceitos de
Bourdieu que são fundamentais para o estudo da comunicação.
Uma das premissas básicas contidas na obra de Pierre Bourdieu
é a que considera as relações de comunicação como relações de po-
der. Não apenas de poder efetivo, mas sobretudo simbólico.
Para Bourdieu há sempre mediação entre o agente social e a
sociedade, e todos os seus estudos caminham para a particulariza-
ção dessas mediações. A partir dessa idéia central, procura superar a
dicotomia fundamental da questão epistemológica, que ora apela ao
objetivismo sem fim e ora destaca o subjetivismo (fenomenologia).
Seu trabalho visa produzir outro tipo de conhecimento, em que a arti-
culação entre ator e estrutura social seja efetuada de maneira dialética.
Essa preocupação com a construção do conhecimento, tendo
como premissa a questão dialética, já o afastaria a priori de uma con-
cepção de base estruturalista. O autor procura pensar a sociedade

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Pierre Bourdieu e os estudos de comunicação

como produção viva de agentes sociais, e para isso, se vale de múlti-


plos conhecimentos e métodos.
O culturalismo, o estruturalismo, o marxismo – métodos
objetivis- tas – são as premissas fundamentais de que lança mão para
pensar a exterioridade. Já para dar conta da interioridade se vale do
pensamento subjetivista e fenomenológico.
A obra de Bourdieu não reifica os processos sociais, nos quais
o indivíduo é apenas resíduo do coletivo. Da mesma forma, o sujeito
social não é mero portador da estrutura, algo que está objetivamente
programado e, sobretudo, fora dele, como acontece nas premissas
centrais da visão estruturalista. Para Bourdieu, o mundo social é per-
cebido de maneira dialética entre estrutura estruturada (sociedade)
e estrutura estruturante (sujeito em ação na sociedade).
O próprio Bourdieu realiza, em vários momentos da sua obra,
uma crítica à visão estruturalista. Diz ele: “a tradição estruturalista
privilegia o opus operatum, as estruturas estruturadas. É o que se vê
bem na representação que Saussure, o fundador desta tradição, for-
nece da língua”. Como sistema estruturado, a língua é tratada como
condição de inteligibilidade da palavra, como intermediário
estruturado que se deve construir para explicar a relação constante
entre som e sentido (BOURDIEU, 1989, p. 9). Para ele, ao contrário, os
instrumentos de conhecimento e comunicação (os sistemas simbóli-
cos) só podem exercer um poder estruturante, porque são
estruturados.
Aproximando-se da sociologia dos atores sociais de Weber ao
colocar no centro de suas análises o agente social, sua visão não pode
ser entendida como reprodução da fenomenologia por uma razão fun-
damental: em Bourdieu é central a noção de campo. E é nesses cam-
pos – em que as posições sociais já estão objetivamente estruturadas
– que os agentes sociais se comunicam. Daí os múltiplos
enfrentamentos existentes no mundo social.
O poder torna-se espaço de lutas a partir dos múltiplos
enfrentamentos do sujeito no mundo por busca de posições nos
campos. O mundo, para o sociólogo francês, não é pura intersubjetivi-
dade, como propugnam os fenomenologistas, já que o que está
permanentemente em jogo é a relação (e a mediação) entre ator social
e sociedade.

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Marialva Carlos Barbosa


Sobre o poder

Transpondo o modelo lingüístico para as ciências sociais, ain-


da que, para ele, a decifração do mundo social não possa ser reduzida
a uma cifra, código, língua ou cultura, Pierre Bourdieu percebe as re-
lações sociais, sobretudo, como simbólicas, isto é, como relações po-
líticas e de comunicação, nas quais estão envolvidas trocas lingüísti-
cas.
Assim, os chamados sistemas simbólicos – arte, língua, religião
e ciência – devem ser vistos, em primeiro lugar, como instrumentos
de conhecimento e construção do mundo, mas que atuam em rela-
ções de poder por estarem socialmente estruturados.
A partir dessa primeira síntese, percebe-se que considera o po-
der como mecanismo de construção de realidade, no qual predomi-
naria uma ordem, determinada por uma pré-noção de conhecimento,
e a partir do qual se construiria o sentido imediato do mundo social.
É nesse sentido que o poder é simbólico.
O autor afirma que “os símbolos são instrumentos por excelên-
cia de integração social e enquanto instrumentos de conhecimento e
comunicação tornam possível o consenso acerca do sentido do mun-
do social, contribuindo para a reprodução da ordem social”
(BOURDIEU, 1989, p. 10).
Ou seja, o que está considerando como premissa básica é que
as relações de comunicação (expressas nos sistemas simbólicos) são
mecanismos de poder simbólico que servem à reprodução da ordem
social e à sua própria manutenção.
Há, pois, nas relações de comunicação – que se manifestam para
o pesquisador por meio do primeiro sistema simbólico – uma função
política na qual é imposta ou legitimada a dominação. Por intermédio
dos sistemas simbólicos, um grupo assegura a sua dominação sobre
o outro (o que chama violência simbólica), contribuindo assim, apro-
priando-se da expressão de Weber, para a “domesticação dos domi-
nados” (BOURDIEU, 1989, p. 11).
Assim, os especialistas da produção simbólica (isto é, todos
aqueles que têm o poder de nomeação na sociedade, inclusive os
jornalistas) disputam o exercício do monopólio da violência simbólica
legítima, ou seja, o poder de impor ou inculcar instrumentos de conheci-

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Pierre Bourdieu e os estudos de comunicação

mento e de expressão, que, embora arbitrários, constroem a realidade


social.
Nesse jogo de forças, o grupo dominante exerce o papel de pro-
duzir a hierarquia do mundo social. A fração dominante, na sua fala,
cujo poder é assegurado pelo fato de deter capital (econômico, cultu-
ral ou simbólico), quer legitimamente impor a sua dominação por meio
da produção simbólica. Para isso se vale dos “letrados”, “intelectuais”
e “artistas” – segundo nomeação própria da época histórica em que
esta dominação é articulada – que, mesmo sendo fração dominada,
colocam seu capital específico a serviço de quem ocupa “o topo da
hierarquia” (BOURDIEU, 1989, p. 12).
Esta concepção – que considera os lugares simbólicos e reais
dos atores sociais em luta no mundo social – nada tem de estrutura-
lista. Ao contrário, aproxima-se em muito do materialismo dialético e,
sobretudo, do conceito de hegemonia (que inclui sempre a contra-
hegemonia) de Gramsci. Bourdieu está mais próximo do marxismo
revisionista de E. P. Thompson, Raymond Williams e mesmo de Anto-
nio Gramsci do que de qualquer teórico estruturalista. Dessa forma,
poderia ser acusado de culturalista, mas jamais de estruturalista.
As relações de comunicação são, para ele, sempre de poder e
dependem do poder material ou simbólico acumulado pelos agentes
nelas envolvidos. Essas relações se materializam em sistemas simbóli-
cos – instrumentos estruturantes e estruturados de comunicação – que
cumprem sua função política de impor ou de legitimar a dominação.
Para Bourdieu, esse poder quase invisível – o simbólico – atua
em todos os níveis da vida social, manifestando-se nos chamados sis-
temas simbólicos, construindo a realidade, estabelecendo o sentido
imediato do mundo social, não se reduzindo à função comunicativa,
tendo, para além dessa, função política. É nesse sentido que os sím-
bolos são instrumento de integração social, de conhecimento, de co-
municação e de dominação.
Nas relações de comunicação existe sempre uma certa relação
de forças simbólicas entre um produtor (com um certo capital
lingüístico) e um consumidor (ou mercado) que procura algum pro-
veito material ou simbólico.
Nesse sentido, discurso, para além de signos a serem decifra-
dos, são signos de riqueza a serem avaliados e signos de autoridades

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Marialva Carlos Barbosa


a serem acreditados e obedecidos. A troca lingüística é também eco-
nômica.
Na relação que estabelece entre linguagem e poder simbólico,
Bourdieu mostra que o poder da palavra é, sobretudo, do agente (“o
poder da palavra é o poder de quem tem essa palavra” – o seu discur-
so e a maneira de falar), a quem foi delegado esse poder. Assim é
preciso estar atento para a autoridade que se apresenta em torno da
linguagem: é ela que manifesta a linguagem, simbolizando-a por dele-
gação da instituição, ou seja, simbolizando as condições sociais de
produção e reprodução da língua legítima.
As características estilísticas da linguagem dos jornalistas, por
exemplo, decorrem da posição que ocupam no campo de concorrên-
cia entre esses chamados depositários de uma autoridade delegada.
A especificidade desse discurso, que é antes de tudo autoriza-
do, está no fato de ser reconhecido como tal e esse reconhecimento
se dá sob certas condições, que definem seu uso legítimo: ele deve
ser pronunciado por pessoa legitimada, conhecida e reconhecida como
habilitada e hábil para produzir esta classe particular de discurso (pro-
fessor, jornalista etc.). Deve também ser pronunciado em uma situa-
ção legítima, diante de receptores legítimos e ser anunciado em for-
mas legítimas (sintáticas, gramaticais etc.).
Assim, a eficácia simbólica das palavras só ocorre quando se
reconhece o autor como legítimo para usá-las, repousando, portanto,
na crença existente no mundo de relações sociais, do qual faz parte.
Visualizando a língua não apenas como código, mas como sis-
tema simbólico – como estrutura objetiva, independente da cons-
ciência e da vontade dos seus agentes e que é capaz de orientar ou
coagir suas práticas e representações (BOURDIEU, 1990, p. 149) –,
Bourdieu se autodefine como estruturalista construtivista, na medida
em que ele considera as estruturas objetivas e ao mesmo tempo os
esquemas de percepção, pensamento e ação. Esses últimos são
constitutivos do que chama, de um lado, habitus e, de outro, as estru-
turas sociais, denominadas de campos e grupos.
Outra noção de Bourdieu ajuda também a alinhar o discurso à
problemática mesma do poder: a de codificação. Percebendo os prin-
cípios geradores das práticas, normalmente codificados nas socieda-

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Pierre Bourdieu e os estudos de comunicação

des, como intencionalmente produzidos, despreza a idéia de que es-


ses esquemas informacionais são naturais.
Ligada intimamente à disciplina e à normalização das práticas,
a codificação é um processo de ordenação, mantendo a ordem simbó-
lica, que em geral compete a quem detém o poder de nomear.
Essas regras, esses jogos de formalização, são manifestações
expressas do poder. Assim sendo, deter o poder de nomeação, de ex-
pressar uma língua legítima, isto é, oficializada, formalizada, é deter,
em contrapartida, o poder de codificar socialmente a sociedade.
Alguns dos principais efeitos da codificação estão, pois, direta-
mente associados à escrita. Isso porque as produções simbólicas são
tornadas visíveis, públicas, conhecidas por todos, na medida da sua
oficialização sob a forma de documento escrito. O autor, no verdadei-
ro sentido, é aquele que torna público aquilo que a princípio parecia
confuso. É alguém com a infinita capacidade geradora de publicar o
implícito e assim realizar o verdadeiro trabalho de criação. Logo, a
publicação é ato de oficialização por excelência, que legaliza, porque
implica a divulgação, o desvendamento em relação ao público e a
homologação, o consenso de todos sobre o que foi revelado.
Mas a codificação implica também formalização, isto é, dar à
ação ou ao discurso a forma reconhecida como conveniente, legíti-
ma, aprovada.
Essas conclusões começam a deixar claras algumas das rela-
ções que se podem aferir entre poder e discurso, ou mais especifica-
mente, entre poder e discurso impresso, tornado público e elevado à
categoria de memorável.
Considerando que um texto sempre aponta para fora, isto é,
para o emissor ou para o receptor, sua mensagem revelaria aspectos
inerentes ao momento de sua produção ou à forma de sua apreensão
pelo leitor. O que circula pelo mercado lingüístico não é a língua, mas
discursos estilisticamente caracterizados pelos produtores e pelos
receptores das mensagens. Isso porque cada discurso é entendido de
forma diferenciada por aqueles que detêm esquemas de percepção
ou de apropriação diferentes (BOURDIEU, 1982).
Três pontos, portanto, são essenciais: as palavras de uma mes-
ma língua têm significados diferentes para “comunidades lingüísticas”
diversas; não existem palavras neutras; e cada palavra, cada locução

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33

Marialva Carlos Barbosa


pode tomar sentidos antagônicos na relação direta com o emissor ou
o receptor da mensagem.
A língua, ao produzir a existência, na medida em que cria uma
representação coletivamente reconhecida dessa existência, é, sem
dúvida, suporte por excelência de poder. Se a língua é suporte de po-
der, o que dizer, então, daqueles que detêm a autoridade de escrevê-
la, codificá-la, fixá-la?
Esse corpo de profissionais que produz e reproduz a língua le-
gítima, constituindo um mercado lingüístico dominado pela língua ofi-
cial (corpo de juristas, gramáticos, instrutores, professores, jornalis-
tas etc.) deve, portanto, possuir capital simbólico indispensável a este
papel e, sobretudo, o título escolar que lhes dá a performance lingüís-
tica desejável, como sujeito falante, para reproduzir essa língua.
O sistema escolar tem, pois, função determinante no processo
de elaboração, legitimação, imposição de uma língua oficial. Mas ain-
da existe diferenciação entre aqueles a quem se permite apenas re-
produzir oralmente a língua oficial e aqueles a quem se delega a pos-
sibilidade de publicar, oficializar o discurso escrito. O fato de produ-
zi-lo confere, a quem o exerce, poder não apenas sobre a língua, mas
sobre os que a utilizam, sobre o seu capital, ao mesmo tempo em que
possibilita distinção.
Na comunicação se estabelece uma certa relação de forças sim-
bólicas entre um produtor (dono de um capital lingüístico) e um con-
sumidor (mercado) que procura tirar algum proveito material ou sim-
bólico dessa relação.
Nessa visão, discurso não é apenas constituído de signos a se-
rem decifrados, mas de signos de riqueza (a serem avaliados) e sig-
nos de autoridade (a serem acreditados e obedecidos). Daí por que a
troca lingüística é também uma troca econômica.

Habitus e campo

No pensamento de Bourdieu destacam-se conceitos alicerçados


em uma concepção teórica que releva as condições materiais e
institucionais que presidem a criação e a transformação dos sistemas

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Pierre Bourdieu e os estudos de comunicação

de produção simbólicos, cujos bens deixam de ser vistos como me-


ros instrumentos de comunicação ou de conhecimento.
Dois conceitos formam a base de seu universo teórico: habitus
e campo. É a partir da relação entre campo (como posições objetivas
ocupadas pelos agentes) e habitus (disposições incorporadas por es-
ses mesmos agentes) que desenvolve toda a sua base teórica decor-
rente: capital, distinção, condição, posição de classe, entre outros.
O mundo social deve ser estudado de tal forma que se consiga
apreender a organização interna do campo simbólico – cuja eficácia
está em ordenar o mundo por meio de discursos, mensagens e repre-
sentações, na verdade alegorias que simulam a estrutura real das re-
lações sociais. Nesse sentido, é importante a percepção da função
ideológica e política existente nessa organização, visando legitimar
uma ordem arbitrária, fundada no sistema de dominação vigente.
Uma de suas preocupações centrais é construir uma teoria
da prática e, para isso, resgata a noção oriunda da escolástica –
habitus –, que valoriza a dimensão do aprendizado passado. Mas em
Bourdieu a noção é colocada no seio do embate entre objetivismo
versus fenomenologia, diferentemente da escolástica que via o hábito
como disposição para agir sempre em uma dada direção. Assim, habitus
coloca em cena o sistema de disposições duráveis, estruturas
estruturadas, aptas a funcionarem como estruturas estruturantes, ou
seja, algo que gera práticas e representações, passíveis de apreensão
objetiva, porém não necessariamente fruto de regras.
Recusando um certo determinismo existente nas ciências so-
ciais – “a da consciência (ou do sujeito) e do inconsciente, a do
finalismo e do mecanicismo etc.” (BOURDIEU, 1989, p. 60) –, visualiza
as práticas sociais como resultado de ação dialética entre estrutura –
que se manifesta por meio do habitus como modus operandi – e con-
juntura – dada a ver por meio da atualização desse habitus. Assim, o
conceito é concebido como forma de romper com o paradigma estru-
turalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência, colo-
cando em evidência as capacidades criadoras, ativas, inventivas do
habitus e do seu agente em ação.
Ao conceber o conceito, chama a atenção para o fato de que
este poder gerador não é o de um espírito universal, de uma natureza
ou de uma razão humana, sendo habitus um conhecimento adquirido

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Marialva Carlos Barbosa


e também um haver, um capital, indicando a disposição incorporada
(quase postural) de um agente em ação. E continua: “tratava-se de
chamar a atenção para o primado da razão prática de que falava Fichte,
retomando ao idealismo, como Marx sugeria nas Teses sobre Feuerbach,
o lado ativo do conhecimento prático que a tradição materialista, so-
bretudo com a teoria do ‘reflexo’, tinha abandonado” (BOURDIEU, 1989,
p. 61).
Habitus seria, pois, um conjunto de esquemas implantados des-
de a primeira educação familiar, constantemente reatualizados ao lon-
go da trajetória social, que demarcam os limites à consciência possí-
vel a ser mobilizada pelos grupos e/ou classes, sendo assim respon-
sáveis pelo campo de sentido em que se operam as relações de força.
Ao mesmo tempo em que orienta a ação, é fruto também de
relações sociais, garantindo a reprodução das relações que o engen-
draram. Os agentes interiorizam normas, valores, princípios sociais
assegurando a adequação entre ações do sujeito e realidade objetiva.
Mas o habitus se aplica aos valores e normas interiorizados e aos sis-
temas de classificação que preexistem às representações sociais. Ao
analisar o gosto, por exemplo, não o toma como mera subjetividade,
mas como objetividade interiorizada, pois supõe “esquemas
generativos” que orientam e determinam a escolha estética.
Bourdieu privilegia o estudo do habitus por meio de institui-
ções de socialização (escola, por exemplo), podendo os agentes ser
portadores de vários habitus (ainda que exista um que é primário, por
exemplo, o familiar, o escolar etc.). Habitus é a matriz de percepções,
apreciações e ações que se realizam em determinadas condições so-
ciais.
A sua teoria da prática considera as necessidades dos agentes,
a objetividade da sociedade e o lugar onde as posições dos agentes
são fixadas. Prática é, portanto, fruto da relação dialética entre uma
situação e um habitus.
Esse lugar onde as posições dos agentes estão fixadas é o cam-
po, seu segundo mais importante conceito. Tal como o de habitus, foi
concebido como uma espécie de recusa a uma interpretação interna
e explicação externa dada pelas ciências às chamadas obras cultu-
rais. Se, por um lado, a interpretação formalista particularizava uma
certa autonomia do objeto, por outro, as interpretações reducionistas

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Pierre Bourdieu e os estudos de comunicação

relacionavam diretamente as formas artísticas às sociais, ignorando


o campo de produção artístico como espaço social de relações objeti-
vas.
Em um primeiro momento, Bourdieu concebe a noção de cam-
po intelectual, como universo relativamente autônomo de relações
específicas. Partindo dessa noção, monta uma verdadeira teoria geral
da economia dos campos, que permite descrever e definir a forma
específica de que se revestem, em cada campo, os mecanismos e os
conceitos mais gerais (capital, investimento, ganho), evitando assim
toda espécie de reducionismo. O objetivo é perceber a gênese social
de um campo, apreender aquilo que faz a necessidade específica da
crença que o sustenta, o jogo de linguagem que nele se joga, as coisas
materiais e simbólicas que estão em jogo, para explicar os atos dos
produtores e as obras por eles produzidas.
Campo é o espaço em que se trava uma luta concorrencial en-
tre atores em função de interesses específicos da área de questão (cam-
po artístico, campo científico, campo intelectual etc). Dentro de um
campo é possível estudar as relações existentes – sempre de força –
bem como as estratégias usadas pelos agentes que o compõem e suas
mudanças de posição ou conservação nos lugares originais (ortodo-
xia e heterodoxia, os chamados “heréticos”).
Um campo é o espaço em que se manifestam relações de poder,
estruturando-se a partir de uma distribuição desigual de um quantum
social que determina a posição do agente dentro dele. Todo campo
pode ser apreendido a partir de dois pólos opostos: o dos dominan-
tes e o dos dominados, sendo o primeiro composto por aqueles que
possuem maiores capitais social, cultural e econômico. O segundo é
integrado pelos que não têm capital ou o possuem de maneira pouco
expressiva.
Para Bourdieu, cada grupo social ocupa uma posição na estru-
tura social, historicamente definida, e pode ser afetado pelas relações
de outros grupos: ou seja, possui propriedades de posição (por exem-
plo, prática profissional ou condições materiais de existência).
Ao considerar a questão da posição de classe na estrutura so-
cial, o autor insere o contexto histórico na análise: é preciso vê-la,
sempre, como posição relativa em um dado momento, como ponto da
trajetória social, como uma etapa no processo.

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Marialva Carlos Barbosa


Um grupo deve ser definido por sua situação na estrutura so-
cial, pelas relações que mantêm com outros grupos, mas também pe-
las relações simbólicas em que se envolve com indivíduos de outros
grupos. É assim que, além de diferentes posições e situações, expri-
me também distinções significantes. E a linguagem, a roupa, a pro-
núncia constituem exemplos palpáveis de traços distintivos que sim-
bolizam a posição dos agentes na estrutura social.
Termino este capítulo com um trecho, do próprio Bourdieu, que
exprime o lugar da produção legítima dos jornalistas, em particular, e
de todos aqueles que usam os meios de comunicação como lugar de
fala. Questões como capital e poder simbólico, reconhecimento, dis-
curso performativo e poder de nomeação são fundamentais para a
análise dos atos de comunicação tornados públicos como processo
complexo.

Como toda forma de discurso performativo, o poder simbólico deve


estar fundado na posse de um capital simbólico. O poder de impor às
outras mentes uma visão, antiga ou nova, das divisões sociais depende
da autoridade social adquirida nas lutas anteriores. O capital simbóli-
co é um crédito, é o poder atribuído àqueles que obtiveram reconheci-
mento suficiente para ter condição de impor o reconhecimento: assim,
o poder de constituição, poder de fazer um novo grupo, através da
mobilização, ou de fazer existir por procuração, falando por ele enquanto
porta-voz autorizado, só pode ser obtido ao término de um longo pro-
cesso de institucionalização, ao término do qual é instituído um man-
datário, que recebe do grupo o poder de fazer o grupo (BOURDIEU,
1990, p. 166).

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MEMÓRIA: UM PASSEIO TEÓRICO

Vestígios, restos, farrapos, trabalhos que se referem a um pas-


sado constituído no presente. Designação do passado como presença
viva e ativa de sujeito. Seletiva reconstrução do passado, sedimentada
em ações presentes. Construção fundamentada em percepções e no-
vos códigos por meio dos quais se delineia, simboliza e classifica o
mundo. Todas essas frases colocam em destaque a questão central
dessa reflexão: como definir memória? Como considerar a questão da
memória ou a necessidade de memória no mundo contemporâneo?
Estaríamos diante de um mundo em crise, no qual a operação memo-
rável construiria âncoras temporais e indentitárias para o sujeito?
Nos últimos anos o estudo do conceito de memória sob os mais
variados prismas possibilitou a construção de definições e análises
primorosas. Talvez o marco mais significativo desse movimento te-
nha sido a publicação da coletânea, coordenada por Pierre Nora, Os
lugares da memória (1984). Nesta obra, textos de autores variados
procuram dar conta de uma ampla reflexão sobre a operação memo-
rável, construindo a noção de lugares de memória.
Criticado pela abrangência do conceito, Nora, na introdução da
coletânea composta de três partes – A República, A Nação e As Franças
–, cada uma delas constituída de múltiplos volumes, chama a atenção
para o fenômeno da aceleração que domina a sociedade contemporâ-
nea, produzindo uma necessidade de memória. A volatilidade do pre-
sente e a presunção de unificação daquilo que se passa no mundo –
graças às tecnologias de comunicação que produzem a sensação de
instantaneidade – levam à perda das identidades em nome de uma
pretensa igualdade. Neste cenário torna-se urgente a necessidade de
criar âncoras memoráveis, multiplicando os chamados “santuários
de memória”. São esses “santuários”, com suas características fun-
cional, material e simbólica que Nora chama de lugares de memória.
Para ele, a valorização do futuro, uma espécie de marca da
atualidade, produz a dessacralização do passado, ao mesmo tempo
em que cria a ilusão de sua preservação, por meio da multiplicação
dos lugares de memória. Assim, na sua visão, na medida em que não

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Memória: um passeio teórico

há mais memória espontânea, seria necessário, então, ao mesmo tem-


po em que se registra o presente, relembrar o passado a cada instan-
te.
Existe uma espécie de consenso entre diversos autores que
visualizam a existência da necessidade de memória na sociedade con-
temporânea, indo exatamente na direção contrária aos chamados
teóricos da pós-modernidade. Fixados na tese de descentramento do
sujeito – como se tivesse havido alguma vez na história o sujeito
centrado e livre das dualidades, incertezas e contradições –, esses
últimos identificam a chamada pós-modernidade por rupturas, disso-
lução de laços, perda de referencialidade. O tempo presente seria
marcado pela destituição de marcos históricos e da memória. Centram-
se na presunção da existência da desconstrução temporal que domi-
naria a contemporaneidade e do apagamento dos laços fundadores
entre passado, presente e futuro.
Portanto, se não se considera a relação temporal, o caminho
natural é o abandono dos jogos da memória e a inclusão do esqueci-
mento como marca privilegiada. Por outro lado, a noção de pós acen-
tua a idéia de sentido único do tempo. Assim, podemos dizer que o
pós-modernismo corresponde em uma certa medida à espetaculariza-
ção da idéia de progresso que durante muito tempo orientou os com-
portamentos e as relações sociais.
Contrários a esta tese, outros autores identificam a existência
de uma espécie de dilatação do campo memorável na contem-
poraneidade, com a multiplicação de práticas voltadas para o exercí-
cio de reconstrução do passado. A restauração dos centros urbanos,
o sucesso das narrativas históricas e da literatura memorialista, a mul-
tiplicação dos espaços de comemoração, o crescimento de documen-
tários no cinema e na televisão são alguns exemplos do que se tem
chamado cultura da memória.
Outros vão mais além, identificando na contemporaneidade uma
espécie de cultura do arquivamento, a partir da sensação de que nada
pode ser destruído e que tudo deve ser constituído como arquivo.
Essa vontade de tudo guardar, de tudo armazenar e de nada perder é
reforçada pelo desenvolvimento das novas tecnologias de informa-
ção e comunicação, sobretudo a informática, que criam a possibilida-
de de um arquivo total e infinito (COLOMBO, 1991).

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Marialva Carlos Barbosa


A contemporaneidade, nesta perspectiva, inaugura um novo
regime de memória, multiplicando os espaços de rememoração, que
– ainda que transitórios e incompletos – refletem o desejo de ancorar
um mundo em crescente mobilidade e transformação e de compen-
sar a perda de elementos mais sólidos e concretos que, antes, ser-
viam de referência para os sujeitos.
Essa tese da memória como compensação é defendida, por
exemplo, por Joël Candeau (1998), que também considera a sua bus-
ca obsessiva como resposta à aceleração do tempo e, na
contemporaneidade, ao que já se chamou crise das identidades. Con-
siderando que a memória funciona como uma espécie de lugar de
nutrição da identidade, Candeau argumenta que é por meio da memó-
ria que as identidades coletivas são fundadas. Nas estratégias
indentitárias, os indivíduos operam escolhas em um repertório co-
mum: representações, mitos históricos, crenças, ritos, heranças, tudo
isso no interior de um registro memorial.
Assim, a identidade ou aquilo que Ricoeur define como “a ma-
nutenção de si mesmo através do tempo” implica uma espécie de proi-
bição do esquecimento. Afinal, sem lembrança, o sujeito não existe.
Por outro lado, é a memória que funda as identidades coletivas, cons-
tituindo-se como identidade em ato.
Da mesma forma que a memória funda as identidades coleti-
vas, pode também levar à ruína deste mesmo sentimento. É o que
ocorre, por exemplo, com a lembrança dos traumas e das tragédias,
que fabricam o esquecimento coletivo, o apagamento memorável do
acontecimento que instaurou a imagem traumática.
Em um mundo que vive uma espécie de vertigem patrimonial
(NORA, 1984), a paixão pela memória mostra ou rejeita as representa-
ções que fazemos da identidade, projetando no passado e no futuro a
imagem que se quer ter, construída a partir de traços (objetos, ruí-
nas, relíquias, vestígios), fazendo com que possamos dizer que a me-
mória é generativa da identidade, uma vez que participa da sua cons-
trução. Por outro lado é a identidade que possibilita ao indivíduo in-
corporar certos traços do passado, fazendo escolhas de memória.
Assim, identidade e memória são de tal forma indissociáveis que po-
demos afirmar que sua distinção ocorre apenas para fins conceituais.

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Memória: um passeio teórico

Em um mundo de mudanças sociais aceleradas e identidades


cambiantes, o que conduz à sensação de insegurança e de angústia, a
memória passa a ser crucial, porque permite atribuir sentidos à reali-
dade em meio à dispersão e à pluralidade.
Também para Andreas Huyssen (2000), o boom da memória está
relacionado às mudanças da modernidade e da contemporaneidade.
Trata-se de uma tentativa de compensar o ritmo acelerado das infor-
mações, de resistir à dissolução do tempo, de descobrir outras for-
mas de contemplação, para além da informação rápida. Trata-se de
afirmar territórios em um mundo marcado pela fragmentação.
Para o próprio Huyssen, no entanto, a memória contemporâ-
nea não pode ser entendida apenas por seu papel compensatório. Em
uma crítica direta a Pierre Nora, afirma que é preciso abandonar o
discurso conservador da perda e aceitar o deslocamento fundamen-
tal nas estruturas de sentimento, experiência e percepção que carac-
terizam o presente. É necessário lembrar que, na contemporaneidade,
a própria memória se espetaculariza e se torna objeto da sociedade
de consumo.
Dizer que as práticas mnemônicas são marcadas pela sua trans-
formação em mercadoria espetacularizada não significa – como lem-
bra Huyssen – que inevitavelmente se banalize o passado. Tudo de-
pende do contexto e das estratégias específicas de representação. Na
realidade, a questão está justamente em entender como a amnésia e a
memória podem coexistir e se relacionar, mesmo que de forma tensa
e contraditória.
Podemos pensar que essa vontade geral de registro e arquiva-
mento reflete também o processo de democratização e descentraliza-
ção da memória, ocorrido na modernidade e radicalizado na contem-
poraneidade. O arquivamento deixa de ser, como antes, exclusivida-
de de grupos sociais dominantes – entre eles a Igreja e o Estado – e
passa a ser prerrogativa também de um número muito maior de pes-
soas (NORA, 1984).
O enfraquecimento das chamadas “grandes narrativas”,
organizadoras da coesão social, levou à regressão das memórias for-
tes, gerais, totalizadoras, em proveito de memórias múltiplas e frag-
mentadas. A falta de princípio explicativo único, ao mesmo tempo,
promoveu todo objeto, toda narrativa – a mais humilde e improvável

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Marialva Carlos Barbosa


– à dignidade de histórica ou memorável. Alteraram-se, portanto, os
critérios de relevância social do passado.
Considerar, pois, a questão da memória é visualizar a complexi-
dade do conceito e as reflexões que contribuíram para construir defi-
nições plurais. Uma das questões centrais para a sua definição é a
dialética lembrança e esquecimento que inaugurou toda a discussão
subseqüente sobre a questão.
A rigor, complexifica Huyssen (2005) a partir da tese de
Heidegger, a memória só é possível a partir do esquecimento. Para ele
o problema não se resume à operação simplista entre lembrar e es-
quecer, esclarecendo que há diferentes formas de esquecimento (si-
lêncio, ausência de comunicação, desarticulação, apagamento, ero-
são, repressão). Citando Ricoeur (2000), exemplifica essa
multiplicidade de esquecimentos: o esquecimento como memória
impedida, como memória manipulada e como esquecimento coman-
dado. O primeiro caso ligar-se-ia ao inconsciente freudiano. No segun-
do grupo estaria a memória relacionada à narratividade, já que qual-
quer narrativa enseja uma seleção e, portanto, um certo esquecimen-
to contido em uma outra maneira de dizer. E, finalmente, o esqueci-
mento institucional.
Para Huyssen existe uma política de esquecimento público que
se contrapõe a uma vontade de memória politicamente desejável. Ne-
nhuma memória política pode funcionar sem o esquecimento.
Mas para colocar no centro do debate sobre a memória a pro-
blemática do esquecimento é preciso considerar as inúmeras refle-
xões que formularam, desde o final do século XIX, o conceito. Sobre-
tudo, as discussões ensejadas pela obra de Freud e a construção da
idéia de memória social de Habwachs, que irão desaguar nas refle-
xões e nos múltiplos discursos em torno das aproximações memória
e esquecimento, memória e identidade e memória e poder.

A dialética fundadora: Freud

A dialética lembrança e esquecimento, fundamental para se


pensar a questão da memória, é, na verdade, um dos pilares da obra
de Freud. Embora não negando completamente as teses da psicologia

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Memória: um passeio teórico

empirista do século XIX sobre a função reprodutora da memória, em


sua teoria dos traços mnêmicos, ele alterou o estatuto do registro
mnemônico. Entendendo que o objeto de recuperação são sempre os
traços e nunca o todo, a operação memorável jamais seria mera cópia
do passado e sim recuperação ou recalcamento desse mesmo passa-
do, sob a forma de sinais, emblemas, vestígios e traços.
Para Freud, a memória se realiza no sistema inconsciente
incluindo sempre e necessariamente o esquecimento ligado ao pro-
cesso de recalcamento. Seria o recalcamento o mecanismo que su-
postamente daria conta do processo da lembrança ou do esquecimen-
to. O ato defensivo seria, pois, não apenas esquecer, mas também
lembrar.
A psicanálise freudiana, portanto, recupera as funções atribuí-
das à deusa Mnemosine – registrar, evocar e esquecer – bem como as
distinções entre os lugares da memória e as imagens e os traços que
permitiriam a ocorrência da lembrança.
À medida que Freud evolui na construção de sua obra, fica ain-
da mais evidente a tese de que além de as imagens terem uma organi-
zação especial – obedecendo a direções diferentes conforme o esta-
do de vigília ou de sonho –, a memória teria basicamente uma outra
função: a de criar e recriar o “real”. Memória, em Freud, seria, pois,
revelação (e não registro) de algo que é vivido e representado psiqui-
camente, ao mesmo tempo que é, também, encobrimento (1898, 1899,
1925).
Para a psicanálise, a memória se faz no momento em que emer-
ge na consciência. Assim, jamais está concluída e freqüentemente ma-
nifesta-se como defesa no momento em que se vivencia uma experi-
ência afetiva nova. Não haveria lembrança do passado real a ser bus-
cado, nem do indivíduo, nem do social, mas apenas a lembrança do
passado fantasmático.
Após essa primeira reflexão fundamental para a construção do
conceito de memória também para as chamadas ciências sociais,
Maurice Halbawchs problematizou o tema, avançando da idéia de
memória como subjacente à categoria indivíduo e ampliando seu
espectro para o grupo e para toda a sociedade. A presunção de que
haveria uma memória comum à sociedade, ainda que possa ser con-
siderada como um conceito holístico (CANDAU, 1998), foi fundamen-

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Marialva Carlos Barbosa


tal para a ampliação e complexificação do conceito ao longo do sé-
culo XX.

A memória social: Halbawchs

A discussão em torno da memória social foi introduzida pelas


pesquisas de Maurice Halbawchs por intermédio de três obras funda-
mentais: Quadros sociais de memória (1925), Topografia legendária dos
evangelhos na Terra Santa (1942) e Memória coletiva (obra póstuma
de 1950). Nelas, propõe o tratamento da memória como fenômeno
social, considerando que há uma parte de nossa memória individual
construída pela sociedade e há uma parte da sociedade que funciona
como memória.
Herdeiro da sociologia francesa, Halbawchs prolonga os estu-
dos de Durkheim, ao mesmo tempo que se contrapõe às teorias de
Bérgson. Se para Durkheim os fatos sociais são exteriores ao indiví-
duo e dotados de poder coercitivo, para Halbawchs o que importa
não é a memória, mas os quadros sociais da memória. Na sua obra,
que parte de uma polêmica com Bérgson – para quem a concepção de
memória pura opõe espírito, lugar da memória, à matéria, lugar da
percepção –, afirma que a memória é, por natureza, social. A memória
individual estaria sempre construída em relação ao grupo do qual se
faz parte, em relação ao meio social e em relação a todos os que nos
cercam.
A linguagem, que possibilita a unificação da memória do grupo,
bem como o tempo e o espaço são quadros sociais privilegiados. O
sistema simbólico é a essência da memória coletiva. Já o espaço e o
tempo são meios pelos quais se servem diferentes memórias coleti-
vas para lembrar aquilo que está próximo ou distante.
Em suma, Halbawchs, ao se interrogar sobre a questão da me-
mória, enseja a fundação de uma verdadeira teoria da memória coleti-
va, possibilitando que se pensem as condições sociais da produção
da lembrança e do esquecimento e se visualizem as interações, sem-
pre dinâmicas, entre passado e presente, indivíduos e grupos, experiên-
cias vividas ou transmitidas e, por fim, usos sociais da história.

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Memória: um passeio teórico

Gerard Namer (1997), na edição comentada da obra de


Halbawchs, destaca que A memória coletiva longe de ser uma conti-
nuação ou uma reescrita nuançada dos Quadros sociais é, na verdade,
um segundo sistema que completa o primeiro sistema expresso na
obra de 1925. A memória coletiva, diz ele, é uma continuação, um com-
plemento dos quadros sociais da memória.
É preciso considerar que os textos e conceituações produzidos
por Halbawchs foram escritos entre 1922 e 1944 e são, portanto, data-
dos e inseridos nas problematizações e nas polêmicas que o sociólo-
go empreendeu com os autores da época. Segundo Namer, a sociolo-
gia da memória estruturada por Halbawchs nos Quadros sociais se
constitui numa espécie de batalha política e ao mesmo tempo
epistemológica contra Bérgson, estabelecendo novo racionalismo,
nova sociologia e nova teoria do progresso que para ele deveria ser
ao mesmo tempo psicológica e política (NAMER, 1987, p. 239).
Mas a obra de Halbawchs não se constrói apenas por meio de
sua polêmica com Bérgson. Também as críticas do fundador da École
des Analles, Marc Bloch – que desejava uma pesquisa dos mecanismos
de transmissão da memória coletiva e, sobretudo, da ação dos atores
sociais neste processo –, foram fundamentais para que ele reformu-
lasse sua primeira conceituação, isto é, a dos quadros sociais, em
direção à idéia de correntes de pensamento, restos do passado, plura-
lidade, passando a enxergar infinidades de memórias coletivas.
Esses escritos que inauguram o segundo período da sua obra
caracterizam-se pela concepção intelectualizada da memória coleti-
va, que passa a ser vista na sua dimensão cultural e simbólica, des-
prezando os aspectos normativos e afetivos que estavam presentes
no primeiro período. É desse segundo momento a noção de quadros
sociais, que constituem não só a forma, mas também os meios de
materialização da memória.
Neste percurso de desvelamento da obra de Maurice Halbawchs,
é preciso perceber de que forma ele conceitua memória social, me-
mória coletiva e memória individual. O que são, afinal, os quadros
sociais da memória e quais são os trabalhos da memória?
Ainda que utilize pouco o termo memória social ao longo de
sua obra, ao considerar que a origem da memória individual estaria
na sociedade, conceitua memória social como aquela que pertence a

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Marialva Carlos Barbosa


toda a sociedade e memória coletiva aquela de um grupo determina-
do. Para Halbawchs, mesmo a memória individual é por natureza so-
cial, uma vez que a memória do indivíduo conserva-se por meio da
memória dos outros.
Mas a memória individual é social por outras razões: a primeira
delas é que esta é sempre intelectual. Localizar uma lembrança é uti-
lizar a inteligência e as correlações imediatas. É por meio desse movi-
mento de dependência da sociedade que é possível ligar a imagem a
um lugar, a um nome, a uma reflexão. Por outro lado, a memória indi-
vidual utiliza noções que se reportam a todos os grupos que atraves-
sam a nossa existência.
O esforço de rememoração e de localização da lembrança é sem-
pre social, já que só se faz por associações culturais inscritas social-
mente. A memória é dialógica, uma vez que estabelece uma correla-
ção com o outro e com o tempo, isto é, com o par presença/ausência.
É a ausência do presente que produz o passado.
Por outro lado, o meio social exerce influência decisiva sobre a
memória do indivíduo. O sujeito é constituído nas relações sociais
(comunidades, grupos de pertencimento, de reconhecimento), e des-
sa forma a memória individual não diz respeito aos grupos, sendo
sempre social.
Outro conceito fundamental para o autor é o de memória cole-
tiva. Trata-se da memória vivenciada dentro dos grupos. Neste senti-
do, ela pode ser dominante, compartilhada ou ainda uma memória
dominada. A que fenômenos explicitamente se referia Halbawchs quan-
do evocava o conceito de memória coletiva?
Em seu uso mais corrente, memória coletiva se refere à memó-
ria partilhada em função de algo vivido em comum por diversas pes-
soas que formam uma coletividade (grande ou pequena, a família ou
os grupos de vizinhança, uma cidade, uma nação). Mas memória cole-
tiva é também o que classificamos como memória histórica, ou seja, a
presença dos grandes mitos coletivos – testemunhos, histórias de vida,
autobiografias – dos atores da história, que fornecem a ilusão de que
o passado pode ser tornado presente. Neste sentido, a memória cole-
tiva é igualada à memória nacional, ou seja, o conhecimento partilha-
do de datas e heróis da história.

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Memória: um passeio teórico

Assim, memória coletiva é, ao mesmo tempo, evocação, lem-


brança de um acontecimento vivido, testemunho, narrativa histórica
e escolha do passado, interpretação (muitas vezes instrumentalizada
politicamente), comemorações, monumentalização, restos da histó-
ria e traços do passado.
Para Halbawchs, portanto, a memória é lembrança, resto, evo-
cação do passado, mas é também um saber. E apenas pelo fato de que
o pensamento individual existe no que ele conceitua como quadros
sociais de memória (língua, tempo e espaço) é que somos capazes de
lembrar. Assim, a memória individual se realiza sempre em um qua-
dro social e lembramos em comum com outros, formando grupos hu-
manos que se instituem como tal pela conservação de um passado
em comum.
Suas duas questões centrais são: o passado conserva-se na me-
mória individual ou se reconstrói sempre a partir do presente? A
memória é um atributo dos indivíduos ou são os grupos que propõem
a seus membros os quadros coletivos, autorizando a lembrança?
No conceito de memória coletiva, essas interrogações se tor-
nam relacionais. Assim, para Halbawchs, a lembrança se reconstrói
sempre a partir do presente e é o grupo ao qual pertence o indivíduo
que fornece a ele meios de reconstruir o passado (os calendários, as
palavras que exprimem a lembrança, as convenções, os espaços, as
durações que dão ao passado sua significação). A seletividade da me-
mória nada mais é do que a capacidade de ordenar e dar sentido ao
passado, em função das representações, visões de mundo, símbolos
ou noções que permitem aos grupos sociais pensar o presente.
Os conceitos de memória social, memória individual e memó-
ria coletiva formam o que muitos autores classificam como o primei-
ro sistema criado por Halbawchs, antes das correções de rumo que
empreende e que vão desaguar na criação do seu segundo sistema
teórico. Este sistema é dominado pela noção de correntes de pensa-
mento sociais. Nele também estão conceituados os quadros sociais e
os trabalhos de memória.
A idéia fundamental da noção de correntes de pensamento é a
de que há a memória de um certo passado que atravessa a sociedade
e em um dado momento aparece na consciência de um determinado
grupo. Não se trata, portanto, da memória de um grupo, mas de uma

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Marialva Carlos Barbosa


memória que existe na sociedade, antes de ser uma memória coletiva
(reclamada por um grupo). São espécies de restos do passado que
são objetos de uma memória coletiva (de um grupo) hoje.
Outra conceituação fundamental de Halbawchs é a idéia de
quadros sociais. Os quadros sociais da memória seriam os instrumen-
tos de que a memória coletiva se serve para recompor a imagem do
passado, ligada em cada época ao pensamento dominante na socie-
dade. Esses instrumentos são, sobretudo, a língua, o tempo e o espa-
ço, quadros sociais privilegiados da memória.
Para ele, o indivíduo lembra graças a esses mecanismos dos
quais o grupo se serve para lembrar. Os quadros sociais da memória
individual são, pois, ao mesmo tempo, quadros sociais da memória
coletiva.
Cada grupo possui uma memória que evoca (quadros) quando
quer se lembrar de algo vivido dentro deste grupo. E esta evocação
diz respeito à simbolização realizada pela linguagem e à localização
espaço temporal da lembrança, essência mesma da memória.
Rememorar é, portanto, reconstruir o passado a partir dos quadros
da memória existentes na sociedade e não negar o passado e integrar-
se a ele por intermédio da interioridade (Bérgson). Para lembrar pre-
cisamente é preciso localizar, determinar a forma, nomear, mecanis-
mos fundamentais para dar sentido ao passado. Os quadros sociais
são constituídos pela linguagem e pelas imagens espaciais e tempo-
rais coletivas, isto é, comuns aos homens de um mesmo grupo, sendo
feitos de noções e de imagens.
A memória diz respeito, portanto, ao sistema de valores de um
grupo. E é porque temos essa memória que possuímos também a ilu-
são de que nossa memória nos fará afetivamente rever o passado. Ou
seja, somos atravessados pela ilusão da repetição.
Esses quadros sociais não são estáticos. Mudam na medida em
que o papel do indivíduo muda dentro do grupo. Um livro lido na in-
fância, por exemplo, terá hoje uma significação completamente dife-
rente daquela do passado. Mas o texto não mudou. O que mudou foi o
ponto de vista social de onde se parte para organizar a leitura.
Outro corpo conceitual que o autor trabalha é a noção de tra-
balhos da memória. Para Halbawchs, há pelo menos seis tipos de traba-

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Memória: um passeio teórico

lhos realizados pela memória social: acomodação e assimilação; mu-


dança e esquecimento; hierarquização e legitimação.
Ao partir do presente para reestruturar o passado, destacam-
se aspectos do presente e negligenciam-se outros. Há, portanto, um
processo de acomodação e assimilação. Por outro lado, sendo memó-
ria a reconstrução do passado, esta depende das escolhas, esqueci-
mentos e deformações que existem na memória do grupo. Sendo re-
construção a partir do presente, enseja também a experiência da
mudança. Assim, por exemplo, a memória da infância difere da me-
mória da vida adulta, porque há transformações nas idéias dominan-
tes que organizam esta memória. Essas unidades de organização e de
sentido cristalizam-se em um sistema de representação.
Ao destacar a questão da hierarquização das memórias, há que
se considerar a existência de memórias dominantes e memórias do-
minadas. Dentro de um mesmo grupo, opera-se, pois, o processo de
visibilização de determinadas memórias, em detrimento de outras que
são silenciadas, a quem não se permite organizar sentidos.
Por último refere-se ao trabalho de legitimação. A memória le-
gitima o novo que representa a continuidade, mas também o que trans-
forma esta realidade em uma nova realidade por um processo de “evo-
lução”.
No estudo de Halbawchs, visualizamos três proposições arti-
culadas: o passado se conserva e se reconstrói a partir do presente; a
memória do passado só é possível em função dos chamados quadros
sociais de referência dos indivíduos; e existe uma função social na
memória. O passado mitificado é lembrado para justificar as repre-
sentações sociais do presente.
A memória se inscreve em uma dada materialidade, em um es-
paço específico e em laços por meio dos quais os indivíduos se reco-
nhecem na sociedade. Neste sentido, a memória coletiva é sempre
plural, multiforme, existe na multiplicidade dos tempos sociais e em
espaços diferenciados nos quais os grupos se apóiam e se inscrevem.
Portanto, é apenas como uma metáfora que se desenvolve a idéia de
que uma sociedade ou um grupo possui lembranças, comemora seu
passado, celebra sua identidade, assegurando-se, com isso, uma fun-
ção de integração social.

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Marialva Carlos Barbosa


A memória é um processo complexo que articula lembranças e
esquecimentos, do consciente e do inconsciente. A memória aceita e
assume uma parte do passado que assim se torna desvendado. A me-
mória não é todo o passado, mas uma parte que continua viva e que é
tributária das representações e das preocupações do presente
(ROUSSO, 1989).
Paul Ricouer (1989a) define memória pela materialização de um
paradoxo fundamental: torna presente uma coisa ausente. No mesmo
texto, ele enfatiza a importância do documento, que marca a transpo-
sição para a escrita da problemática da memória e do testemunho. O
documento transforma-se na memória coletiva arquivada, porque fun-
damentalmente constitui-se em um conjunto de testemunhos vividos.
Ao se constituir como documento, podemos pensar os meios
de comunicação como um dos mecanismos contemporâneos de trans-
formação do ausente no presente e, portanto, como lugar fundador
da memória contemporânea. Por outro lado, ao possuir o estatuto de
texto, transforma-se em uma espécie de documento de época, regido
pela convenção de veracidade necessária aos documentos – monu-
mentos de memória.
Ao funcionar como espécie de memória escrita de uma deter-
minada época, a mídia procura reter aquilo que culturalmente é visto
como excepcional. Mesmo quando os fatos mais cotidianos aparecem
fixados sob a forma de notícias, há sempre um nexo da narrativa que
transpõe esses acontecimentos do lugar do comum para o do ex-
traordinário. Aprisionando o acontecimento em um suporte de
excepcionalidade, a mídia reproduz a memória do que é excepcional.
A fixação desses marcos por meio de mecanismos de preserva-
ção escritos ou visuais deve ser vista como um elemento básico de
construção seletiva da memória que engendra, sobretudo, a questão
do poder. Percebendo-a como seleção e como construção é necessá-
rio ver os agentes ou os senhores dessa operação como detentores
de poder: tornar-se senhor dos lugares e das agências da memória é
ser senhor da memória e também do esquecimento. Eternizar um dado
momento é domesticar e selecionar a memória. Ao selecionar o que
deve ser lembrado e ao esquecer o que deve ficar em zonas de som-
bra e de silêncio, os meios de comunicação tornam-se também se-
nhores da memória.

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Memória: um passeio teórico

Mas isto é objeto de uma outra reflexão. No próximo capítulo, o


mundo da mídia toma o lugar do mundo da memória, na sua correlação
fundamental.

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MEIOS DE COMUNICAÇÃO E COMEMORAÇÕES:
CONSTITUINDO A MEMÓRIA1

Periodicamente os meios de comunicação comemoram suas


datas significativas ou as datas que eles mesmos elegem como
emblemáticas para a história do país. Um bom exemplo para refletir
sobre a forma como os meios de comunicação, especialmente a tele-
visão, opera suas estratégias memoráveis foi a forma como a Rede
Globo de Televisão comemorou, em 2000, os 500 anos do Descobri-
mento.
A importância da data levou a principal emissora de televisão
do país a reafirmar, durante 24 meses ininterruptos, que se aproxima-
va o dia 22 de abril. O país precisava ser percorrido em gestos come-
morativos singulares que culminariam com o grande espetáculo da
nova Descoberta do Brasil.
O que chama a atenção neste acontecimento, elevado à catego-
ria de media events,2 é o fato de todas as cerimônias terem sido
construídas pela maior emissora de televisão que, assim, se tornou
promotora da visibilidade comemorativa da data fundadora do Bra-
sil.
Correlacionando dois momentos, os 500 anos do Descobrimen-
to do Brasil e a virada do século referendaram, durante este período,
a imagem de a maioridade significativa coincidir com a entrada em
um novo milênio. Se essa é a primeira idéia emblemática, inúmeras
outras foram sendo configuradas ao longo desses dois anos.
A Rede Globo de Televisão lançou, em abril de 1998, um projeto
grandioso que se chamava Brasil 500. Transformou, em seguida, seu
símbolo e todas as vinhetas divulgadas ao longo de sua programação
em uma imagem que evocava um instante particular e extremamente
representativo.
Subitamente, o símbolo da emissora – um círculo azul vazado –
transformava-se no número 500 que, verde, assumia também a forma
de círculo. Brasil 500 passava a ser marco temporal e redução narrati-

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Meios de comunicação e comemorações: constituindo a memória

va da própria emissora. Brasil 500 era produto da maior empresa de


comunicação do país.
O projeto, a rigor, tinha duas linhas representativas: a
espetacularização das comemorações em shows produzidos em
diversas cidades brasileiras, européias e americanas, e a demarcação
temporal estabelecida a partir da inauguração de 28 relógios em
diversas cidades e que marcariam o tempo de chegada aos 22 de abril
de 2000. Essa contagem regressiva, adjetivada como tempo virtual
pela própria emissora, ligava as comemorações ao presente, com toda
a carga de aceleração que este possui. Era mais uma vez e agora não
apenas o presente, mas também o passado, sendo reatualizado sem
cessar e produzindo novos acontecimentos em torno de um marco
fundador. Vivia-se, na prática, a partir de um evento singular – a
Descoberta do Brasil – a explosão de múltiplas descobertas do país.
O Descobrimento do Brasil, além disso, passava a ser construído de
forma regressiva, no próprio presente, a partir de uma temporalidade
elevada à categoria de absoluto.
Por outro lado, esta contagem regressiva – induzindo à idéia de
construção e, ao mesmo tempo, de conquista pessoal de um marco –
foi atrelada, na explicação da emissora, à idéia de congregação em
torno de um momento, no caso a espera, acelerada todos os dias até
o dia 22 de abril de 2000. Assim, a data da redescoberta do país se
tornava explicitamente um futuro construído no presente, a partir de
um passado.
Construindo-se todos os dias, durante exatos dois anos, o 22
de abril de 2000 não guardava mais nenhuma relação com a data
fundadora, ou seja, aquela da chegada de Pedro Álvares Cabral a Porto
Seguro. Os 500 anos não se referiam ao passado, mas o utilizava como
ícone, para, dessa forma, referendar idéias sempre correlacionadas a
uma expectativa futura. O que se esperava era a chegada do novo
milênio e com ele a nova redescoberta do Brasil, que, assim, entraria
em cena sobrecarregando ícones de uma nova modernidade: a do
terceiro milênio.
Nesse sentido, as comemorações serviram também à
construção de uma dada temporalidade, na qual futuro, presente e
passado se confundiam em torno da idéia de aceleração. O futuro era

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responsável pela eclosão do passado – Descobrimento do Brasil – e
construção do presente, voltada, sobretudo, para o futuro. “Os relógios
formam uma corrente mundial de comemoração dos 500 anos. É o
Brasil contando junto o tempo para a construção de um país melhor”.3
Podemos dizer, pois, que explicitamente a Rede Globo de Tele-
visão transformava-se em guardiã da própria lembrança do passado
brasileiro, mas sobretudo de sua data mais representativa. Mais do
que guardiã da lembrança, passava a ser promotora da redescoberta
do Brasil, da sua refundação.
Comemorando o Descobrimento do Brasil apropriava-se do
acontecimento e do tempo e estabelecia sua lógica narrativa entre a
unicidade do fato e a sua repetição, 500 anos depois.
A utilização de marcos comemorativos que reatualizam o pas-
sado é extremamente importante para a prática jornalística entendi-
da como prática social. Se a narrativa jornalística é marcada, sobretu-
do, pela identidade do instante, é preciso, também, criar mecanismos
em que se elimine o déficit existente em relação à alteridade tempo-
ral.
Nesse sentido, a comemoração é construída como acontecimen-
to, restabelecendo uma lógica narrativa na qual o passado pode ser
utilizado concomitantemente ao presente e, assim, moldar uma reali-
dade diferente daquela da transmissão direta, que por si só não cria-
ria este tipo de identificação.
Presentificando o passado, a retórica jornalística da comemo-
ração estabelece, em relação ao acontecimento, difundido como in-
formação e espetáculo, uma materialização da memória por meio da
montagem de uma verdadeira indústria da comemoração.
Se a memória histórica se condensa em torno dos lugares e dos
monumentos, também se sintetiza em torno das celebrações. E nesta
construção e, por extensão, na constituição de uma dada identidade
coletiva, a mídia desempenha papel essencial.
Graças à capacidade de tornar presente e de misturar presente
e passado, entendem-se as razões que levam os meios de comunica-
ção a assumirem o papel de verdadeiros guardiões das comemora-
ções e de construtores de uma dada materialização da memória.

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Meios de comunicação e comemorações: constituindo a memória

Passado do presente

Entender a lógica da construção comemorativa como processo


de reinstauração de uma dada memória nacional – lugar de coexistên-
cia das memórias coletivas atuais e reservatório daquilo que resta
das antigas memórias comemorativas – é compreender as razões que
levam ao estabelecimento de marcos singulares.
Sem dúvida, as comemorações fazem parte de um processo de
construção de poder, no qual o interesse político de dominar o tempo
assume papel primordial. Possibilita também a construção do acon-
tecimento e a sua valoração pública, o que leva os detentores deste
poder a serem publicamente proprietários de sua própria criação.
Por outro lado, não se pode esquecer o caráter comercial desses
media events. Transformada em produto, a comemoração é lucrativa,
ao mesmo tempo que se torna integradora do sagrado e do profano. As
festas comemorativas possuem essas duas dimensões: a praça pública
subversiva e profana e a dimensão sagrada, dos atos oficiais.
Essa dupla dimensão pode também ser facilmente detectada
nas comemorações dos 500 anos de Brasil. Shows em praças públicas
em diversas capitais do país se misturaram à missa campal, grandio-
sa, no lugar onde foi celebrada a primeira missa: Porto Seguro. Espe-
táculos esportivos – como um jogo de futebol entre a Seleção Brasilei-
ra e a Seleção do resto do Mundo – também foram integrados ao tér-
mino das comemorações, em abril de 2000. Mas a marca dominante
são os espetáculos em capitais, elevadas à categoria de resumo do
Brasil: o Brasil exótico e nativo, na Amazônia; o Brasil festa profana,
na Bahia; o Brasil industrial e moderno, em São Paulo e o Brasil espe-
táculo, no Rio de Janeiro.
Mas as fronteiras do Brasil, na construção das comemorações
de sua descoberta, não terminaram nos limites do extremo norte do
país ou no extremo sul. O mundo também deveria comemorar esta
data símbolo; pelo menos o mundo ressonância. Assim, shows foram
montados em capitais de diversos países: Lisboa, marco de partida
da construção da nova nação; Nova Iorque, símbolo da modernidade
mundo; e Paris, representante de um mundo em extinção, a velha
Europa que tentava se recompor sob a égide de um novo modelo

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econômico-político, na virada de um século mergulhado em guerras
étnicas.
O Brasil foi, assim, redescoberto 500 anos depois, em diversas
capitais mundiais e com a participação de uma Terra que se quer Pá-
tria e que se constrói como símbolo de um futuro no qual uma pretensa
igualdade reina num mundo pleno de conflitos.
Para a transformação dos 500 anos de Brasil num media events
foi necessário montar uma estratégia de comunicação que retirou da
comemoração seu estatuto de naturalidade. A Rede Globo de Televi-
são como promotora oficial do evento estabeleceu um contínuo entre
o passado – Descobrimento do Brasil – e o presente – 500 anos depois
– cuja função primeira foi, sem dúvida, a presentificação do passado.
Para isso, era necessário correlacionar a celebração da Descoberta
do Brasil a uma série de atos, dando a cada um deles a dimensão de
excepcionalidade.
Ao lado da edificação de monumentos ou da recriação de luga-
res com a atmosfera do momento fundador – como a reprodução da
primeira missa, agora 500 anos depois –, o Descobrimento do Brasil
foi criado como revelação de um fato incomum, para o qual era neces-
sário não apenas exumar lembranças, mas construir testemunhos.
Dando visibilidade às comemorações, a mídia desenvolveu e,
sobretudo, constituiu uma nova redescoberta, revelada como fato
incomum e, de acordo com seu interesse, transformando-a em excep-
cional. Conectando o passado ao presente, por outro lado, tornou-se
guardiã do fluxo temporal, atrelado à prática do instante. A comemo-
ração dos 500 anos do Brasil ofereceu, pois, ao público uma identida-
de idealmente reconstruída.
E nesta identidade sobressaiu o reforço da idéia de maturida-
de. O Brasil deixava de ser o país do futuro, para, ao idealizar seu
passado fundador, tornar-se lugar já inserido no futuro. Por outro lado,
a idéia do Descobrimento era freqüentemente atrelada a valores uni-
versais. As comemorações centraram-se nesta lógica, daí, por exem-
plo, o fato de as festas ultrapassarem as fronteiras, para se inserirem
em diversos lugares do mundo, como Nova Iorque ou Paris.
Além disso, as comemorações eram sintetizadas no ato funda-
dor e sagrado da missa, agora revestido de uma visão universal. O
papa, chefe supremo da Igreja Católica, deveria pessoalmente dirigir

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Meios de comunicação e comemorações: constituindo a memória

a missa que reproduzia o instante primeiro do país. Havia, pois, o


objetivo de inserir o país em uma modernidade mundo,
correlacionando-se um fato nacional (Comemoração dos 500 anos do
Brasil) à universalidade de um mundo pretensamente igual. E o Brasil
também deveria redescobrir-se 500 anos depois, na construção em-
preendida pela mídia, para o mundo.

Gestos comemorativos

Numerosos gestos comemorativos foram sendo, pois, estabele-


cidos em dois anos para criar uma nova ressignificação do Descobri-
mento do Brasil. A amplitude dos gestos, por outro lado, que deve-
riam açambarcar um território com a extensão de um continente, re-
ferendava a priori a idéia de grandiosidade, já que as comemorações
em sua totalidade reafirmavam a refundação do próprio Brasil. Uma
fundação inteiramente diversa da original e inserida em um novo tem-
po, no qual ícones de uma modernidade compulsória significavam
mais do que os de um passado imemorial.
Por outro lado, os promotores dos gestos comemorativos assu-
miam explicitamente uma função política, reafirmando-se, simbolica-
mente, como herdeiros e, sobretudo, como continuadores da desco-
berta. Um outro país, agora no limiar de um novo milênio e identifica-
do, pelo menos no discurso político das comemorações, com o futu-
ro, construído no presente, a partir de um passado apreendido de
maneira singular. O gesto fundador do Brasil, 500 anos atrás, era
relembrado para reforçar a imagem de permanente inserção no futu-
ro. A missa original, repetida meio século depois, assumia o aspecto
de festa profana e constituía-se como mais um momento de uma série
comemorativa, no qual os relógios do tempo tinham igual ou mais
significação do que eventos sacroprofanos.
Shows, desfiles, jogos, missa, todas as festas construíam o gran-
dioso espetáculo, mas ao mesmo tempo instituíam práticas sociais.
Nessa profusão de gestos comemorava-se o percurso singular desses
500 anos, mas, sobretudo, a integração e a amplitude de um territó-
rio, que precisava encontrar outra identidade, em um mundo no qual
as pretensas igualdades fazem frente às peculiaridades.

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Ao mesmo tempo que apontava para o futuro, cada um dos ges-
tos comemorativos reforçava a idéia de integração, também produto
da ação da mídia. Assim como só era possível mostrar a totalidade do
país por meio do trabalho das emissoras de televisão, também seria a
mais importante empresa de comunicação do país a responsável pelo
discurso de redescoberta e integração do Brasil, com a criação e a
divulgação dos gestos comemorativos. A televisão aparecia, pois, na
construção discursiva como a única capaz de integrar um país com a
extensão de um continente.
Chama a atenção, na construção dos numerosos gestos come-
morativos, a contagem permanente do tempo de chegada ao novo
milênio e, sobretudo, ao 22 de abril de 2000. Na construção da
redescoberta do Brasil, o milênio começaria não em 1o de janeiro, mas
na data fundadora do país, isto é, três meses depois.
Por outro lado, essa fixação da contagem regressiva mostrou
claramente a aceleração do passado em função de uma permanente
aceleração do presente. A rigor, os 500 anos foram construídos em
dois anos, período em que, por meio de gestos singulares, se marcou
o momento da nova redescoberta do Brasil. Esperava-se e contava-se
todos os dias o tempo que faltava para alcançar a data fundadora:
não mais 22 de abril de 1500, mas 22 de abril de 2000.
Percebe-se, pois, nessa construção a eclosão daquilo que Nora
(1974) classifica como “era patrimonial”, ou seja, a valoração cons-
tante do passado, ainda que o ritmo de acesso a este passado seja
marcado por permanente aceleração. O passado apresenta-se, a ri-
gor, cada vez mais próximo, sendo acelerado por um presente que
vive sob a égide do futuro. O passado é acelerado a tal ponto, que não
mais se localiza como ponto anterior, mas como momento de chega-
da, inserido em um futuro a ser desvendado.
Assim, ao mesmo tempo que era preciso relembrar as raízes – e
a repetição do gesto da primeira missa seria o momento mais impor-
tante –, era necessário repetir outros gestos em espetáculos que se
multiplicariam. Esses espetáculos, ao mesmo tempo que evocavam o
passado, reafirmavam a identidade territorial, enraizando-a nas no-
vas gerações e permitindo a agregação de novas comunidades histó-
ricas. Dessa forma, a identidade territorial, assim como a história do
próprio país, passava a ser também produto midiático.

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Meios de comunicação e comemorações: constituindo a memória

François Dosse (1998) reafirma a necessidade de se compreen-


der os gestos comemorativos dentro de um projeto de mudança do
regime de historicidade, no qual a relação entre passado, presente e
futuro assume papel primordial.4
Identificando três regimes de historicidade, Dosse afirma que
no primeiro, o passado é construído para esclarecer o presente, isto
é, como reservatório de exemplos singulares e emblemáticos que deve-
riam ser seguidos no presente. Concebendo-se a história como pro-
cesso cumulativo, a rigor desenvolve-se essa concepção no instante
em que o projeto passa a ser privilegiado em detrimento do tempo
anterior.
O segundo regime se impõe no século XIX, quando o passado
passa a ser concebido como momento de um processo, do qual o
presente é uma etapa ou uma ruptura. Nesse sentido, será o futuro o
responsável pelo esclarecimento do passado, permitindo sua
inteligibilidade.
O terceiro regime de historicidade, vivido na contempo-
raneidade, caracteriza-se pela construção do futuro como meio de
intensificar o presente. Assim, nas comemorações, não é o passado
que aparece, mas acentua-se um certo passado pitoresco, mostran-
do-o como se fosse o verdadeiro passado. O passado não é mais hori-
zonte de expectativa, cabendo ao futuro fornecer os meios necessários
à identificação do presente, envolto no ritmo desenfreado das mu-
danças. As comemorações antecipam o futuro e intensificam o pre-
sente, tomando como ícone, e apenas como tal, o passado.
Nesse sentido, o momento memorial aparece como intensifica-
ção do presente, dilacerado pelas utopias, e no qual os recursos à
tradição possuem apenas valor performativo.
Assim, a função dessa evocação do passado nas comemorações
não é redescobri-lo, mas construí-lo e, neste sentido, inventá-lo. O
passado é convocado ao presente para possibilitar a criação de no-
vas sociabilidades, ao mesmo tempo que se distingue do presente
intenso, pela nostalgia a ser preservada em lugares e momentos pró-
prios: lugares da museificação e momentos da celebração.
O passado, convocado para intensificar o presente, passa a ser
elemento de identificação, para todos os que participam do mesmo
gesto comemorativo e instaura-se como prenúncio do futuro. Conhe-

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cer a história (ainda que esta história particular construída no pre-
sente) significa inscrever-se no território, participando dessa instau-
ração. O território passa a ser algo também transformado no presen-
te, graças à ação midiática, que convoca o público, ainda que iluso-
riamente, a participar desta construção.
É graças, pois, à dialética, que se estabelece entre o discurso
da mídia e a apropriação do público, que se constrói paulatinamente
um novo território, marcado agora, 500 anos depois, por novos ges-
tos e outras significações.
A prática comemorativa serve, sobretudo, ao contrário do que
pode parecer, à fabricação da identidade local, substituindo uma iden-
tidade nacional em via de dilaceração frente à construção política e
ideológica de um mundo pretensamente igual. Há que se acrescentar
que, no caso latino, uma pretensa identidade do continente é, sobre-
tudo, ainda mal apreendida e compreendida. Contrariamente ao mito
do nacional, saturado de sentido e inscrito em uma dialética entre
universal e particular, a narrativa local não necessita da mesma am-
plitude.
Observam-se alguns recursos performativos, que constituem o
denominador comum desses discursos, em cada um dos gestos co-
memorativos: o pretenso interesse pelo passado, uma determinada
valorização da memória e, sobretudo, uma certa inquietude diante
das condições contemporâneas de transmissão.
A angústia do rompimento dos laços sociais, em uma socieda-
de marcada pela desigualdade social, pela desterritorialização e pela
afirmação do indivíduo produz o gesto comemorativo que se consti-
tui como transmissão de novas experiências.
Cada comemoração se inscreve, pois, em uma tensão entre dois
pontos: um responde a uma preocupação de sociabilidade, de cons-
trução ou de afirmação de uma identidade, e outro é de natureza pe-
dagógica, cuja preocupação é transmitir, fazer conhecer e incitar. Cada
comemoração é, pois, misto de sociabilidade e de pedagogia.
A mídia, ao ser criadora da comemoração e, nesse sentido, in-
ventora de um passado memorial, toma para si o papel de promotora
da identidade nacional e local e o sentido pedagógico do gesto come-
morativo.

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Meios de comunicação e comemorações: constituindo a memória

Fazendo da comemoração um acontecimento que comporta


uma surpresa e se inscreve em uma configuração histórica precisa,
os meios de comunicação transformam a Redescoberta do Brasil em
um ato jornalístico, produzindo sua significação a partir do próprio
discurso midiático. Sobretudo, a mídia transforma os atos comemo-
rativos, jornalísticos por excelência, em atos simbólicos revestidos
de novos gestos e significados.

Notas

1
Originalmente este capítulo foi publicado com o título “Tempo e memória na cons-
trução dos 500 anos de Brasil”, na Revista Eco – Publicação da Pós-Graduação em
Comunicação e Cultura, UFRJ, v. 4, n. 2, p. 42-47, 1999.
2
Daniel Dayan (1996) define media events como acontecimentos excepcionais que
possuem força suficiente para interromper a seqüência habitual da programação
das televisões, fazendo apelo às emissões diretas.
2
Boletim de Divulgação da Rede Globo de Televisão. Abril, 1998.
4
Cf. DOSSE (1998) e HERTOG ; LENCLUD (1993, p. 18-38).

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ARQUITETURA TEMPORAL

Os meios de comunicação constituem um dos principais


formuladores do sentido de tempo na contemporaneidade. O tempo
simultâneo, ininterrupto, dos grandes acontecimentos, dos instantes
que se sucedem, da velocidade, da instantaneidade e da aceleração
emerge no nosso cotidiano dando sentido à existência. A relação dos
meios de comunicação com o tempo é de tal ordem, que é possível
categorizá-la como sendo uma questão midiática. Não só porque par-
ticipam da sedimentação no imaginário de uma nova “temporalidade-
mundo”, mas porque a configuração narrativa da mídia – notadamente
audiovisual – se inscreve em uma relação de natureza, sobretudo, tem-
poral.
Mas o que é tempo? Como caracterizar o sentido de tempo que
nos atravessa no mundo hoje? Essas indagações percorrem a própria
história do homem e têm sido, ao longo dos séculos, uma das preocu-
pações mais prementes.

O sentido do tempo

Temporalidade ou a “forma como se inscrevem as atividades


na duração” é uma das maneiras como se pode conceituar a apropria-
ção temporal presente no imaginário humano. De tal forma que se
pode dizer que cada época produz uma arquitetura temporal própria.
Há que se considerar ainda que coexistem multiplicidades de
sentidos de tempo, determinando a construção dessa arquitetura: o
tempo individual ou o coletivo; o da natureza ou o da sociedade; o
qualitativo ou o quantitativo.
Na categorização, proposta por K. Pomian (1984), o tempo pode
ser agrupado em dois tipos de percepção: de um lado, o tempo
psicológico, e de outro, o solar, litúrgico e político. No primeiro grupo,
desenvolve-se um sentido de tempo que varia de indivíduo para
indivíduo. No segundo, emerge um tempo de natureza coletiva, isto é,
percebido de forma semelhante por diferentes indivíduos.

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Arquitetura temporal

A percepção psicológica do tempo permite dizer que para dife-


rentes indivíduos, em condições diversas, os minutos, as horas e os
dias – ainda que sejam metricamente idênticos – não são iguais, uma
vez que a extensão que se confere a essas medições subjetivamente
não coincide. O presente apreendido por cada indivíduo e o passado
que ele traz à memória, também em uma extensão variável, revelam
um tempo de natureza qualitativa, já que a percepção do presente,
como a do passado, varia em função da significação que a ele é atri-
buída.
O passado do indivíduo conhecido graças à transmissão oral é
recontado pelas gerações, que o dividem em intervalos desiguais e
heterogêneos, organizados em torno de personagens e acontecimen-
tos memoráveis. Fatos e gestos evocados pelos nomes, lugares, enfim
pelas relíquias, ressurgem nas festas familiares, nos aniversários, nas
cerimônias festivas. O passado pessoal e familiar só merece atenção
especial nesses momentos raros, solenes, excepcionais. O futuro, ao
contrário, é objeto de projetos, antecipações, esperanças e angústias,
intervindo no presente de tal forma, que se pode dizer que há sempre
um componente de futuro inscrito no presente.
Mas o grau de subordinação do presente ao futuro varia tam-
bém de acordo com os grupos sociais, com a idade e com o nível
cultural do indivíduo. Na juventude, o futuro é objeto de projetos e
antecipações, enquanto na velhice não há a construção desse hori-
zonte. O passado, ao contrário, figura cada vez mais como sonho
presentificado, testemunhando e dando sentido à existência.
Dividido em fases ou períodos que se sucedem em uma ordem
imutável – infância, adolescência, juventude, maturidade e velhice – o
tempo psicológico ganha contornos específicos à medida que a vida
avança. A partir de uma certa idade, acumula-se um número crescen-
te de lembranças e de esquecimentos, e o futuro pessoal passa a ser
cada vez mais objeto de limites. O tempo psicológico, compreendido
entre o nascimento e a morte, é irreversível e finito.
Se o tempo psicológico é, portanto, de natureza individual, os
tempos solar, litúrgico e político são de natureza coletiva. O sol pode
organizar as atividades cotidianas, que se desenvolvem – de maneira
coletiva – do momento em que este nasce até o instante em que se
põe. Da mesma forma, as precipitações climáticas e as variações sa-

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Marialva Carlos Barbosa


zonais de temperatura também são percebidas de maneira uniforme,
organizando a existência, as atividades diárias e as ações. O tempo
litúrgico – marcado por festas periódicas que indicam, por exemplo,
no cristianismo, rupturas e continuidades –, com seus períodos car-
regados de aura sagrada, também é percebido de maneira semelhan-
te. E, por último, o calendário político – com os feriados nacionais e
as festas ideológicas – marca todos os anos as significações
construídas em torno de determinados acontecimentos (POMIAN,
1984).
Portanto, a estrutura aparentemente simples de um ano resulta
da superposição desses três movimentos periódicos: variações da na-
tureza, alternância de períodos acentuados pela religião e a oscilação
da presença visível e audível da ideologia e da política.
Coletivas, essas temporalidades são de natureza diversa no que
diz respeito a outros aspectos. O tempo solar, por exemplo, é cíclico:
todos os dias haverá um novo nascer do sol e um novo poente. Já o
tempo litúrgico, ao contrário, é linear e orientado: um ano comporta-
rá uma seqüência progressiva de acontecimentos que se sucedem do
Natal à Assunção, projetando-se no ano solar. Mas o tempo litúrgico é
orientado em um sentido diferente, não do nascimento à morte, mas
do nascimento aqui na terra, passando pela morte carnal de Cristo
até a sua vida eterna. O nascimento marca o início do contar dos anos,
abrindo uma nova época na história do mundo (a.C. / d.C.).
Há, pois, no tempo religioso um presente intemporal que se
reatualiza na história litúrgica. Irreversível, tal como o tempo psicoló-
gico, o tempo religioso apresenta o fim de maneira completamente
diferente: enquanto no tempo psicológico o término (finitude) é fato
da experiência, ou seja, acontece com a morte, no tempo religioso é
apenas efeito de discurso, já que há a promessa da eternidade que,
enfim, contrastará com a duração do mundo.
O tempo político, para Pomian (1984), comporta elementos de
natureza cíclica, mas mesmo esses acontecimentos repetitivos se ins-
crevem em uma história linear e orientada: nas eleições, que ocorrem
a cada quatro anos, o passado é evocado para mostrar como se proje-
ta, por exemplo, o futuro de um possível mandato. Linear e orientado,
mas contendo elementos de natureza cíclica, o tempo político é tam-
bém irreversível: não haverá mais Descobrimento do Brasil, Indepen-

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Arquitetura temporal

dência, Abolição dos Escravos e Proclamação da República. As revo-


luções se conservarão no passado, como rupturas fundadoras a par-
tir das quais se ingressa em uma espécie de reino do contínuo. O tem-
po político é também aberto a um futuro infinito.
Há, pois, um múltiplo sentido qualitativo do tempo: finito, infi-
nito, linear, orientado, cíclico; individual ou coletivo; psicológico, da
natureza, da liturgia e da política. E no que diz respeito ao tempo quan-
titativo? É possível mensurar o tempo?
Para K. Pomian (1984), há pelo menos duas maneiras de pensar
a quantificação do tempo: o tempo usual dos relógios e o tempo da
ciência. Dessa forma, ele é ultracurto e ultralongo e ao mesmo tempo
microscópico. De um lado, tem-se o tempo medido pelo relógio, pelo
calendário, que instaura o tempo quantitativo da vida coletiva e da
própria história. Esse tempo é macroscópico, na medida em que sua
unidade é o segundo, e curto, pois se refere a alguns milênios. O tem-
po da ciência, ao contrário, é microscópico (medido em
nanossegundos e picossegundos) e ultralongo (já que a técnica do
carbono 14 possibilitou medidas extensivas de tempo, fazendo com
que a Terra passasse a ter quadrilhões de anos). Esse tempo da ciên-
cia provocou, assim, um alongamento impressionante da história.
Cada época, portanto, constrói uma dada apreensão do tem-
po, formulando a experiência temporal modulada por crenças e re-
presentações. Na sociedade contemporânea, há uma multiplicidade
de apreensões temporais, coexistindo tempos individuais, coletivos,
da natureza e qualitativos profundamente diversos. Essa figuração
humana do tempo é, por outro lado, resultado de um longo proces-
so, que só pode ser entendido se percorremos as idéias-síntese para
a sua formulação. Como entender a orientação para o futuro e a dila-
tação do tempo em que vivemos na contemporaneidade, sem enten-
der o movimento da temporalidade entre o visível e o invisível? Como
entender a miniaturização de nossas sensações em relação ao pre-
sente, ao lado das inúmeras projeções em relação ao futuro, sem
entender que a temporalidade foi objeto de domínio e poder? Como
entender a multiplicidade de tempos na qual estamos imersos sem
perceber como se construiu a idéia de tempo como universo
observável ou sensível?

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Marialva Carlos Barbosa


No início era o tempo...

Das formulações sobre a questão temporal da Antiguidade Clás-


sica podemos dizer, acompanhando a qualificação de Pomian (1984),
que estas figuram o tempo entre o visível e o invisível. Se Platão insis-
tia sobre a permanência do tempo como totalidade,1 Aristóteles afir-
mava sua característica de contínuo, mas como movimento e mudan-
ça. Afirmando o primado do presente, destacava sua característica
duradoura: era o presente o momento ativo, kairos, ou o bom momen-
to, o momento de fazer.
Para Aristóteles, o universo era formado pela Terra, em repou-
so absoluto, em torno da qual giravam, em um movimento circular, as
esferas expressões da perfeição: as estrelas, a lua, o sol e os planetas.
O cosmo seria, então, finito e fechado, construído em torno da Terra,
centro privilegiado do mundo. Além das estrelas fixas, estaria o reino
de Deus, onde não existia nem espaço, nem matéria, nem tempo.
A multiplicidade do movimento possibilitava a existência de um
tempo eterno. O primeiro movimento, considerado por Aristóteles,
era circular, movimento perfeito e válido para as esferas astrais. Ha-
via, pois, um mundo supralunar, eterno, animado por um movimento
circular e regular: um mundo divino. No topo estava a eternidade imó-
vel do Primum movens. Depois uma espécie de tempo eterno, mate-
maticamente claro e, finalmente, um tempo degradado, pleno de aci-
dentes, passível de medição.
A cronosofia aristotélica se organizava, portanto, em torno de
três conceitos de tempo: o tempo psicológico ou vivido, o tempo cós-
mico, do qual o tempo solar da vida cotidiana é o último vestígio, e o
tempo religioso. O primeiro era curto, linear, regressivo e irreversível.
O segundo, longo e cíclico, com retornos periódicos reservados para
alguns, e o terceiro (a eternidade) imutável e estacionário.
Assim, a definição aristotélica de tempo não valia para tudo
aquilo que chamamos mundo. Até porque esse mundo uniforme, rei-
no de um determinismo único, ainda não existia: ele é uma invenção
da época moderna. O sistema filosófico grego afirmava, pois, uma vi-
são circular do tempo, fundada sobre um tempo primordial ou grande
tempo e sobre o retorno eterno dos ciclos do tempo humano: o mito
da idade de ouro perdida.

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Arquitetura temporal

Esse movimento de construção de uma apreensão de sentido


do tempo, entre a visibilidade do conceito e sua própria invisibilidade,
continua com as formulações de Santo Agostinho em torno da idéia
do tempo da alma e as de São Tomas de Aquino em termos de aevum
e aeternitas.
Santo Agostinho, no livro XI de suas Confissões, apresenta, ao
lado do tempo divino transcendente, o tempo humano, como suces-
são de instantes pontuais e inalcançáveis. O presente – lugar do agir
humano – é caracterizado pela transitoriedade, diluindo-se na dura-
ção. Somente o horizonte transcendente da eternidade divina recom-
poria o que Santo Agostinho chama “o presente das coisas presentes,
o presente das coisas passadas e o presente das coisas futuras” (2005,
p. 328). Segundo Ricoeur (1994, p. 20), a análise agostiniana do tempo
oferece um caráter altamente interrogativo e aporético, que nenhu-
ma das teorias antigas realizou. Tentando responder à pergunta “O
que é, com efeito, o tempo?”, Santo Agostinho considera as formula-
ções anteriores, à medida que novas dificuldades são introduzidas na
sua reflexão. Esse avanço do seu pensamento faz eclodir sempre no-
vos embaraços, coloca-o na vizinhança dos céticos (aqueles que não
sabem) e dos platônicos e neoplatônicos (os que sabem).
Deve-se considerar também que sua reflexão sobre o tempo está
inserida em uma meditação maior sobre a eternidade, ainda que, se-
gundo Ricoeur (1994, p. 21-22), isole na sua argumentação a questão
do tempo. A partir de um argumento cético, Santo Agostinho afirma
que o tempo não tem ser, uma vez que o futuro ainda não é, da mesma
forma que o passado não é mais e que o presente não permanece.
Apesar disso, falamos do tempo como um tendo a ser: as coisas por
vir serão, as passadas foram, e as presentes passam. Assim, é a lin-
guagem que sustenta a tese do não-ser.
A concepção de tempo em Santo Agostinho revela a existência
de um tríplice presente e a idéia da extensão de algo que, em princí-
pio, não teria extensão. É preciso pensar o tríplice presente como
distensão e a distensão como o tríplice presente (RICOEUR, 1994, p.
34). Ou seja, é exatamente quando o tempo passa que podemos medi-
lo: o que medimos não é o futuro que não é, nem o passado que não é
mais, nem o presente que não tem extensão, mas os tempos que pas-
sam. Assim, não se medem nem as coisas futuras, nem as passadas,

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mas sua espera e sua recordação. São essas impressões que apresen-
tam uma espécie de especialidade mensurável, sendo essa ação
tríplice, distendendo-se na medida em que se estende. Santo Agosti-
nho correlaciona assim a extensão do tempo à distensão da alma, ligan-
do-a àquilo que não cessa de se enunciar no tríplice presente: entre o
presente do futuro, o presente do passado e o presente do presente.
Assim, conclui Ricoeur (1994, p. 41), “ele vê a discordância nascer e
renascer da própria concordância, entre os desígnios da expectativa,
da atenção e da memória”.
Segundo Pomian (1984, p. 251-252), Agostinho elimina o tempo
cósmico, tornando o tempo da alma o da História Sagrada. Dessa for-
ma, concilia a eternidade divina com a eliminação de duas dimensões
temporais (a da história e a cósmica). Para ele, havia o tempo e a
alma. Tempo religioso como eternidade e tempo da História Sagrada
que recebe o nome de aevum.

O renascimento: O tempo como círculo

Abandonando a concepção linear do tempo, vigente até então


no mundo ocidental, o homem do Renascimento passou a perceber a
temporalidade como possibilidade do eterno retorno. O tempo deixa
de ser uma linha para se tornar um círculo.
Mas essa opção não pode ser explicada exclusivamente pela
adoção dos parâmetros da Antiguidade Clássica pelos pensadores do
Renascimento, sendo mais complexa do que o simples reviver da dou-
trina aristotélica da eternidade do mundo. Na verdade, a concepção
linear de tempo trazia dificuldades para o terreno político. Por outro
lado, a dualidade evidente desse homem renascentista – em que a
racionalidade cede, por vezes, espaço ao irracional, o mágico convi-
ve com a técnica e a ciência, o desejo de liberdade se confunde com
utopias, mas em que também se caminha em direção a uma mentali-
dade experimental e científica – transformou a sua visão de mundo
em um momento de duração eterna, no qual também o tempo estava
aberto a um futuro infinito.
A partir do século XIII, uma reformulação nas teorias dominan-
tes sobre a temporalidade se impôs. São Tomás recupera a noção de

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Arquitetura temporal

aevum, o tempo dos anjos, uma forma de eternidade que, sem com-
partilhar a eternidade divina, introduzia no mundo dos homens uma
seqüência temporal não sujeita à destruição.
De um lado, o movimento de luta contra a Igreja e o Império
precisava de leis eternas. As constituições republicanas só seriam le-
gítimas se pudessem não ser finitas, sujeitas à mortalidade e à insta-
bilidade. De outro lado, não era possível preconizar um retorno às
fontes gregas e romanas e conservar a concepção cristã da história e
do tempo. Como Aristóteles não fornecia um modelo adequado, os
humanistas recorreram a Políbio. Mas isso não quer dizer que a Idade
Média tenha negado Aristóteles.
Para Políbio, todas as formas – monarquia, oligarquia, tirania,
aristocracia, democracia, anarquia – estavam destinadas ao término
em uma ordem conhecida a priori. O que condenava os regimes a gi-
rar eternamente no círculo da história eram as suas virtudes que não
resistiam aos vícios engendrados pelos homens que se acostumavam
a um certo tipo de comportamento. Eram as particularidades das for-
mas que as tornavam prisioneiras do tempo.
Tornava-se, pois, necessário dar um rosto à eterna instabilida-
de das coisas humanas. Escolheu-se o da deusa romana Fortuna, res-
ponsável pelo cumprimento do ciclo da história.
A história passava a girar em uma ordem preestabelecida, já
que a Fortuna poderia apenas fazer girar a roda que estava em seu
poder, mas não criar algo novo, uma vez que o mundo estaria conde-
nado à eterna repetição.
Com a revitalização dessa imagem, apagou-se a dicotomia en-
tre ação e contemplação, que caracterizava o pensamento medieval.
A vida não era mais o resultado de uma condenação advinda da falta
primitiva. O presente adquiriu nova significação em relação à Idade
Média: a cidade, longe de ser o lugar da condenação, passava a ser
vista como o espaço em que a natureza humana se desenvolvia e pro-
duzia os mais belos frutos (BIGNOTTO, 1994).
Esse homem, voltado para os valores da cidade e na busca do
reconhecimento de outros cidadãos, tinha consciência de que sua vida
estava submetida a um círculo inexorável, do qual não era possível
fugir. A Fortuna não era, como a Providência Divina, uma intervenção
direta de Deus nos negócios humanos. Seus atos refletiam a

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Marialva Carlos Barbosa


circularidade do tempo, deixando aberta a porta para tentar vencê-la,
preservando, no futuro, os frutos de suas ações.
A volta aos modelos clássicos, entretanto, não representou a
ruptura total com o pensamento medieval. Em primeiro lugar, porque
esse humanismo cívico foi um fenômeno restrito a algumas cidades,
tendo convivido com a Igreja, que havia recuperado seu poder tem-
poral, e com a expansão das monarquias em toda a Europa, bem como
com cidades italianas que abraçaram a causa monárquica e/ou tirâni-
ca. Por outro lado, os humanistas continuaram a professar a fé cristã
e, assim, a conviver com uma série de valores contraditórios. As con-
cepções de vida humana provisória e da vinda de Cristo, negadas por
Leonardo Bruni, por exemplo, pareciam contradição diante da idéia
de repetição da história. Aceitar a revelação da verdade de Deus e,
concomitantemente, visualizar a Fortuna como obstáculo maior para
as ações humanas foi típico de uma época que não se preocupou em
produzir um sistema fechado de idéias.
Mas como conciliar a imagem de um homem conquistador e
disposto a tudo com a de prevalência da contingência, reduzindo os
esforços a nada, quando é chegada a hora de girar a roda do tempo?
Somente o turbilhão do período explicaria a aparente contradição, na
qual convivem, no campo das idéias, fragmentos do pensamento gre-
go, ruptura com as concepções medievais e quadros de pensamento
daquele presente histórico.
Ao negar a lógica aristotélica, os homens da Renascença tive-
ram de criar novo ordenamento do mundo, no qual a credulidade e a
perspectiva de que tudo é possível se sobressaía.
Nicolau de Cusa, por exemplo, afirmava – concordando com os
pensadores medievais – que os poderes de Deus eram infinitos. As-
sim, o universo criado por Ele não poderia ser finito como afirmava
Aristóteles ou os tomistas. Seu pensamento estava associado a duas
premissas básicas: a idéia de infinito só se aplicava rigorosamente a
Deus e à concepção de universo ilimitado. Assim, ao mundo limitado
e harmônico dos medievais, Cusa opôs um universo complexo e não
hierarquizado, no qual as noções de alto e baixo, de lugar natural e de
centralidade da Terra não tinham mais sentido.
Entretanto, a aceitação da idéia de um universo infinito não foi
assim tão fácil. Galileu, por exemplo, ainda manifestava dúvidas quanto

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Arquitetura temporal

à possibilidade de conceber um espaço cujas fronteiras eram desco-


nhecidas. Todavia, também Galileu não era mais um homem do
Renascimento.
O homem do Renascimento atuava em um universo que não se
extingue. Tudo controlava, tudo podia, e essa infinita potencialidade
se amparava no conceito de unidade do ato (de ser e de pensar) em
face de um universo de infinitas possibilidades (GARIN, 1981).
O tempo e o espaço do homem do Renascimento humanizavam-
se, e o infinito tornava-se realidade social. O passado, o presente e o
futuro passavam a ser criações humanas. Mas, embora houvesse essa
percepção, a história continuava sendo algo externo ao homem: ele
podia criar o mundo, mas não recriava a humanidade (HELLER, 1982).
Até que uma nova ontologia fosse elaborada – e essa se deu a
partir de Galileu – não havia limites para este homem. Ao acreditar
em tudo e ao destruir a lógica até então existente, abriu espaço para a
formação das idéias científicas. O movimento começara com os filó-
sofos, como Nicolau de Cusa, ao destruir a concepção de que a natu-
reza determinava o lugar dos objetos. A idéia inversa abriu caminho
para novas formas de pensar (formulação heliocêntrica, concepção
de unificação do universo, natureza do universo de Kepler e a con-
cepção do universo infinito de Giordano Bruno).
Essas formulações, embora empíricas, desaguarão em Galileu,
que, dessa forma, não pode ser caracterizado como um homem da
Renascença, já que foi antes de tudo um antimágico, valendo-se da
física e matemática e reduzindo o real ao geométrico. Ao descobrir as
leis do movimento da queda livre dos corpos –, a aceleração da gravi-
dade dos corpos em um dado lugar da Terra não depende da massa
nem da natureza dos corpos –, sepultou a dualidade dessas leis: leis
divinas do movimento dos corpos celestes e leis teleológicas dos cor-
pos sobre a Terra. Abolindo as esferas celestes e o espaço fechado,
abriu o mundo para o universo infinito.
Época de rupturas e criações dificilmente conciliáveis, o
Renascimento produziu uma notável abertura que exigia um novo
conceito de tempo e uma nova forma de pensar a história. Por outro
lado, os homens desse mundo cheio de contradições e povoado de
idéias mágicas abriram caminho para concepções que levaram às

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Marialva Carlos Barbosa


teorias galilelianas ou às de Newton, a síntese científica do século
XVII (KOYRÉ, 1982).
Assim, como bem particulariza K. Pomian (1984, p. 252), os prin-
cipais problemas concernentes ao tempo, em função do encontro da
razão aristotélica com a revelação cristã, foram discutidos entre os
séculos XIII e XV. Entretanto, as mudanças que ocorrem no século
XVI, como vimos antes, produziram efeitos no pensamento, mudando
a significação do conceito de tempo, impondo uma nova problemáti-
ca.
A cada época, portanto, uma dada arquitetura temporal contém
virtualmente questões concernentes ao tempo, e a articulação dos
elementos dessa arquitetura nunca é perfeita, colocando, sempre, no-
vos problemas. Esta arquitetura é enunciada e pensada em função da
experiência que se tem do tempo, modulada pelas crenças e represen-
tações que fazem com que seja não só conhecida, como assimilada.
Em relação ao tempo quantitativo, Pomian coloca em destaque
o fato de a escrita, a partir do século XI, ao deixar de ser monopólio
da Igreja e se propagar entre a população urbana de maneira conside-
rável, fazer o passado ingressar no interior do presente, desmentindo
a noção de que as ações dos homens e seus produtos seriam restos
ao sabor do vento. A eternidade dos documentos, fixando as ações
dos homens, tornou o passado objeto de conhecimento, produzindo a
primeira ruptura com identificação de conhecimento com o imediato.
Rompe-se também com a idéia de tempo que se colava apenas ao pre-
sente.
Por outro lado, ao se insistir cada vez mais no caráter
indestrutível da escrita, constroem-se os textos como existindo em
uma duração que possui um início e terá um fim, ainda que este não
introduza nenhuma mudança substancial. Esse status privilegiado atri-
buído ao texto modificou a atitude em relação ao passado e à forma
como se visualizava o futuro. Se o saber é indestrutível, cada geração
herda o que as outras precedentes adquiriram. Nesta visão, conheci-
mento é cumulativo ao infinito, e o futuro torna-se profano e não mais
transcendente. A vida passa, por outro lado, a ser cada vez mais enca-
rada como preciosa. A ostentação da idade na lápide do morto, se-
gundo Pomian (1984, p. 258), é um exemplo de como a idade passa a
ser signo da preciosidade da vida.

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Arquitetura temporal

Também a difusão das moedas contribui para minar o


imediatismo do mundo e modificar a atitude perante o tempo. Opera-
dor suscetível de converter o qualitativo em quantitativo, ao dar va-
lor ao objeto, as moedas quantificam o tempo, mesmo antes de ele
ser medido pelos relógios. O tempo passa a ter um preço a partir do
século XIII, quando nas vilas mercantis italianas as atividades econô-
micas operacionalizam esta quantificação.
Essa construção do tempo como passível de medição e como
uniforme foi estimulada, portanto, pelo surgimento da economia mo-
netária. Enquanto o poder se concentrou na posse de terras, o tempo
era vivido como abundante, sendo associado ao ciclo inalterável do
solo. Com a crescente circulação de dinheiro e a organização das re-
des comerciais, a ênfase se deslocou para a mobilidade. O tempo já
não era associado apenas a cataclismos e festividades, mas à vida
diária. A medida transformou-se em economia, contabilização e ra-
cionalização do tempo.
A partir do século XII há, pois, uma mudança significativa na
arquitetura temporal: ao lado da eternidade, do tempo litúrgico, com
seus espaços universal e individual, e do tempo cósmico, há o apare-
cimento do tempo dos relógios (mecânicos, já no século XIII). Além
dos efeitos no desenvolvimento científico, há que se considerar os
produzidos social e politicamente: a capacidade de afixar o tempo,
marcando horas, dia e noite, é determinante para as cidades euro-
péias que ostentarão, sobretudo no decorrer do século XIV, seus reló-
gios nos campanários das igrejas ou nos palácios reais. O relógio
torna-se uma espécie de signo de eficiência governamental. Charles
V, por exemplo, ordena em 1370 que todos os pobres de Paris regulem
suas vidas pelo relógio do Palais Royal que bate as horas e os quartos
de horas. O tempo novo torna-se, assim, o tempo do Estado (POMIAN,
1984, p. 262).

Relativizando o conceito…

Em 1666 e 1667, anos de peste na Inglaterra, Newton elaborou


os fundamentos das suas descobertas: o cálculo infinitesimal, as leis
de movimento, a gravitação universal. Em seu Principia mathematica,

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Marialva Carlos Barbosa


podem ser encontradas explicitamente as concepções de espaço e de
tempo: o tempo absoluto e matemático e sem relação com nada de
exterior flui uniformemente e se chama duração. O espaço absoluto,
sem relação com as coisas externas, permanece sempre similar e imó-
vel (LOPES, 1994).
Durante mais de dois séculos, os debates da ciência e dos
filosóficos foram marcados por essas concepções acerca de um tempo
absoluto, que existe em si e por si mesmo como duração pura, indepen-
dentemente dos objetos materiais e dos acontecimentos. Para Newton,
tanto o tempo, como o espaço não têm outros lugares senão eles
mesmos, sendo os lugares de todas as coisas. Tanto o tempo, como
os lugares e os movimentos seriam absolutos. No início do século XX,
a teoria da relatividade modificou esse quadro.
Há duas fases na abordagem das noções filosóficas e científicas
do tempo: a primeira, dominada pelas concepções de Newton, se es-
tende de fins do século XVII até o final do século XIX, e a segunda, liga-
da à relatividade e à teoria quântica, domina o século XX (CARDOSO,
1988).
Para Newton, acontecimentos separados no espaço, mesmo por
enormes distâncias, poderiam ser absolutamente simultâneos, e as
forças agiriam à distância de maneira instantânea. A mecânica
newtoniana admitia tanto o movimento absoluto no espaço e no tem-
po, quanto o repouso absoluto. O tempo seria, assim, uma substância
espacial imutável, autodeterminada, ontologicamente independente
da matéria, de estrutura uniforme em todo o universo, sendo duração
pura. A concepção newtoniana continha um aspecto materialista, ao
admitir a existência objetiva do tempo, e metafísico, ao vislumbrar a
possibilidade dessa existência independentemente de qualquer con-
teúdo material.

O novo tempo do século XX

A idéia de temporalidade sofreu mutações consideráveis no


curso do século XIX. A teoria da relatividade, exposta por Einstein
entre 1905 e 1916, e, ainda, o surgimento da física quântica (1900),
aliado ao progresso da estrutura do átomo, foram decisivos para as

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Arquitetura temporal

enormes mudanças nas idéias científicas a respeito do tema. Com a


teoria da relatividade, houve a refutação definitiva da noção de
metafísica e do tempo absoluto, independente das coisas e dos pro-
cessos. As suas propriedades não são as mesmas em qualquer lugar,
invariáveis, autodeterminadas, e, sim, variam na dependência dos ob-
jetos materiais, suas relações e seus movimentos.
Expondo a teoria da relatividade em duas etapas – a relativida-
de restrita aos sistemas em movimento uniforme, uns em relação aos
outros (1905), e a relatividade generalizada dos corpos em movimen-
to não uniforme, ou seja, submetidos a acelerações (1912-1916) –,
Einstein primeiramente estabeleceu a inexistência de um tempo e es-
paço absolutos, ou seja, que pudessem ser objeto de medidas absolu-
tas. O universo real, com a noção de contínuo espaço-temporal, pas-
sou a ser perceptível segundo um modelo com quatro dimensões, mas
a dimensão do tempo não intervém nas equações da mesma maneira
que as três dimensões do espaço.
No que se refere à teoria da relatividade geral, esta se constitui
em uma teoria da gravitação, vista como propriedade do espaço-tem-
po, que se deforma, ou se “curva”, na vizinhança de massas conside-
ráveis. O tempo decorre mais lentamente perto de um objeto de gran-
de massa e se dilata nas velocidades que se aproximam à da luz.
Einstein atribuía a um campo de gravitação a causa da maior
aceleração e reduzia este campo à forma da geometria do espaço-
físico induzida pela matéria, de tal maneira que, quanto mais forte
fosse o campo de gravitação, menos o tempo passaria, sendo tam-
bém válido o inverso: quanto menos forte fosse o campo de gravitação,
mais o tempo passaria (LEHMANN, 1994). Dessa forma, a teoria da
relatividade significou a refutação definitiva da noção metafísica de
tempo absoluto e a vinculação do espaço e do tempo às idéias de
campo, substância, movimento, interconexão entre massa-energia.
Portanto, da concepção de Kepler e Galileu, no século XVII, e
de Newton até a teoria da relatividade e a física quântica um enorme
caminho foi percorrido em direção à formulação de uma concepção
de tempo. Em Newton, encontram-se explicitamente as concepções
de espaço e tempo como absolutas, isto é, verdadeiras e matemáti-
cas, sem relação com nada exterior, que fluem uniformemente e que
se chamam duração. O espaço absoluto, sem relação com a

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Marialva Carlos Barbosa


exterioridade, permanece sempre similar e imóvel, enquanto o mo-
vimento absoluto é a translação dos corpos de um lugar absoluto
para outro com esta mesma propriedade. Já o movimento relativo é
a translação de um lugar relativo para outro, também dessa nature-
za. E ainda hoje, muito de nossa concepção de tempo é tributária
dessa idéia de absolutização.
O tempo é, portanto, característica fundamental da experiên-
cia humana. Nossa experiência direta do tempo é sempre presente,
surgindo da reflexão sobre essa experiência. E nosso sentido de tem-
po envolve a consciência da duração e as diferenças que estabelece-
mos também via traço memorável entre passado, presente e futuro.
Podemos dizer, portanto, que não é apenas a história que é um
produto do tempo, mas o próprio tempo é produto da história, já que
são as relações sociais no seio de estruturas que criam apropriações
diferenciadas do tempo, construindo arquiteturas temporais próprias
a cada época. Há que, portanto, ter-se em primeiro lugar a dimensão
da pluralidade do conceito e, em segundo lugar, que essa pluralidade
é marcada pela corrente de idéias de uma determinada época.
Diante de uma sociedade que temporaliza a história e historiciza
o tempo, como podemos caracterizar a arquitetura temporal da
contemporaneidade? E até que ponto os meios de comunicação de-
sempenham papel central na formatação dessa percepção temporal
das ações humanas hoje?

Notas

1
Ao produzir uma associação entre tempo e universo, Platão considerou o tempo
como produzido pelas revoluções da esfera celeste. Um legado permanente de sua
teoria do tempo, segundo Whitrow, é que este e o universo são inseparáveis. Ou seja,
para ele, o tempo não existe por direito próprio, sendo uma característica do univer-
so (WHITROW, 1993, p. 57).

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TEMPORALIDADE: UMA QUESTÃO MIDIÁTICA

Qual é o “espírito do tempo” de nossa época e que papel de-


sempenha a ação da mídia na construção desse espírito?
Ítalo Calvino destaca em suas Leçons américaines (1989) os moti-
vos dominantes deste final de milênio – “rapidez, exatidão, visibilida-
de, multiplicidade e consistência” – ao mesmo tempo que sublinha as
conseqüências da “chuva ininterrupta de imagens” sob a qual vivemos.

A mídia não cessa de transformar o mundo em imagem, multiplicando-


o numa fantasmagoria de jogos de espelhos: essas imagens,
freqüentemente, são desprovidas da necessidade interna que deveria
caracterizar toda imagem, ao mesmo tempo que é forma e significado,
impondo atenção e sentidos virtuais (CALVINO, 1989, 99-100).

Sublinhando seu caráter transitório, acrescenta que grande par-


te dessas imagens se dissolve como os sonhos; ao mesmo tempo que
não deixa nenhum traço na memória, deixa uma sensação de estra-
nheza e mal-estar.
Também Régis Debray observa que a compressão do tempo,
abolindo as distâncias entre os continentes, modifica nossa relação
com a cultura e com o consumo dos objetos de conhecimento (1991,
p. 242). O homem do mundo contemporâneo quer adquirir uma baga-
gem cultural tão rapidamente como consome um almoço num fast-
food. E a mídia forja essa aceleração, na medida em que, para con-
quistar o público, é necessário informar, cada vez mais, em tempo
real, isto é, no instante mesmo em que se desenrola o fato jornalístico.
O jornalismo, particularmente, está situado em uma tensão
permanente entre o mundo e o tempo. Os acontecimentos ganham
sentido pela apropriação e interpenetração dos grandes sistemas de
mediação, movimento obrigatório para chegar ao público que, assim,
forma opinião e uma representação do mundo.
Até bem pouco tempo, o objetivo dos meios de comunicação
era informar o mais rapidamente possível. Hoje os meios técnicos de

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Temporalidade: uma questão midiática

captação e transmissão possibilitam que o acontecimento seja


midiatizado enquanto se desenrola.
Essa aceleração do tempo da mídia, utilizando-se da simulta-
neidade, é acompanhada pelos efeitos da virtualidade e da
interatividade que também desempenham enorme influência sobre
as visões de mundo do público. O real pode ser, pela ação do indiví-
duo, mesmo à distância, objeto de mudança, o que dá ao presente
uma visão de transitoriedade absoluta. O presente não mais “emerge
do tempo”,1 mas é construído na interatividade virtual.
O presente passa a ser o fato no momento de sua transforma-
ção em acontecimento, dando ao espectador a impressão de estar
diante da realidade e da vida e permitindo-lhe, também, ter a sensa-
ção de participar mais intensamente, ao lado de um vasto auditório,
da constituição do próprio acontecimento.
O segundo aspecto que cria um enorme interesse pelas chama-
das transmissões em tempo real é a imprevisibilidade: o que aconte-
ce está sendo escrito no momento mesmo da transmissão, o que pode
significar surpresas.

Tempo e narrativa

Refletir sobre o tempo midiático é, também, analisar a relação


intrínseca entre tempo e narrativa. A forma que determinadas narrati-
vas assumem induz ao como desta relação, ou seja, a forma como o
público se comporta diante da mensagem.
A narrativa da televisão, por exemplo, caracterizada pela frag-
mentação, leva à apropriação igualmente fragmentada, permitindo uma
pluralidade de ações no instante da recepção. Assim, se por um lado,
na contemporaneidade o público se expõe por longos períodos à
mensagem televisiva, esta exposição se dá em uma lógica de fragmen-
tação e de divisão da atenção. Pode-se ler, enquanto se vê televisão,
pode-se conversar, enquanto se desenvolve a trama narrativa ficcional
ou informacional, entre inúmeras outras ações.
O sistema midiático, por outro lado, funciona segundo as mes-
mas leis das narrativas míticas e literárias, nas quais desempenham
papel fundamental o tratamento retórico e estilístico próprio, a ges-

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tão da temporalidade pela narrativa e, sobretudo, a liberdade de cria-
ção do receptor.
A narrativa tem dupla função na sociedade: uma próxima ao
que podemos chamar de real, fazendo parte da vida cotidiana, impon-
do papéis e decisões aos indivíduos e determinando seus comporta-
mentos, e outra de natureza mítica e que corrobora com as crenças
do grupo, produzindo uma certa tranqüilidade dos indivíduos no pla-
no ontológico.
Esta narrativa é construída, também, pelo sistema midiático,
que fabrica, assim, uma espécie de “renarratização” do mundo. Se
levarmos em conta que cada indivíduo constrói sua identidade gra-
ças à estruturação temporal, que é assegurada por esta mesma narra-
ção do mundo, podemos dizer que o sistema midiático organiza nos-
sa relação com o real e, por meio deste filtro, damos sentido ao mun-
do, sob a forma de mito ou de realidade. A questão temporal estaria,
pois, no cerne da construção textual dos meios de comunicação e,
com ela, a reconfiguração da narrativa empreendida pelo receptor.
A narrativa midiática, por outro lado, está inscrita no tempo
por obedecer à temporalidade construída, na qual ordem, duração e
freqüência são as constantes. Cada programa televisivo, por exem-
plo, segue uma ordem preestabelecida, dura um certo número de mi-
nutos e é exibido em uma freqüência que se repete. Transformar o
tempo abstrato em uma forma concreta que informa sobre este mes-
mo tempo é materializar uma idéia preferencial e considerar a posi-
ção do leitor/espectador no ato de recepção.
Ler um jornal, ver uma emissão de televisão, escutar um pro-
grama de rádio é estar intrinsecamente inserido no tempo, não só
porque se desvenda o acontecimento e sua forma textual, mas por-
que esta narrativa está inserida na temporalidade do leitor e/ou es-
pectador, pois é a partir da apropriação que o acontecimento se trans-
forma em experiência vivida.
Assim, a narração dos meios de comunicação que, em princí-
pio, seria composta por fragmentos do “real”, ganha sentido e valor –
de acontecimento – na operação de apropriação ou quando é resti-
tuída ao tempo de agir, marcando a inter-relação do mundo do texto e
do mundo do auditório.

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Temporalidade: uma questão midiática

Falar de um tempo midiático é, pois, refletir sobre como a


temporalidade mudou a forma narrativa da mídia, mas também como
esta nova configuração dissemina uma visão preferencial de tempo
no universo do público.
A temporalidade contemporânea transformou a aceleração e a
interatividade em atributos narrativos dos meios de comunicação,
mudando a maneira como se opera a construção dos acontecimen-
tos. Estes atributos, entretanto, estão no universo de produção, mas
também no de recepção.
Construindo sua narrativa, valorizando esses dois aspectos, a
mídia elege uma dada visão de temporalidade que se dissemina no
universo do auditório. Se é necessária, cada vez mais, a difusão do
acontecimento no instante de sua produção, se é quase obrigatória a
interatividade do auditório, em que se transforma o tempo
extratextual, um dos componentes do ato de leitura? E o mais impor-
tante: se a cada minuto é imprescindível um outro acontecimento, em
tempo real, haveria espaço para o extratextual?
Podemos dizer, pois, que aceleração do tempo, longe de ser
apenas produção, é criação da mídia. O tempo midiático é um
continuum de aceleração e de transformação do futuro no instante. Se
o futuro se transforma permanentemente em presente, na lógica
construída não há futuro e sim um presente que se atualiza sem ces-
sar.
A urgência impede a reorganização da narrativa e os seus múl-
tiplos jogos de temporalidade. É nesse sentido que se torna também
essencial para os meios de comunicação sublinhar o que é memorá-
vel ou não, já que o passado é apresentado sempre como imóvel e
inacessível.
Se grande parte dessas imagens se dissolve como no sonho ou
na ilusão de sua própria profusão, é necessário construir também a
memória. E se ela não mais existe, precisa igualmente ser elaborada e
esse passa a ser atributo natural da mídia.

Imagem real

A ilusão de uma temporalidade direta se sobrepõe à de imagem


real. Ao ser possível difundir o acontecimento no momento de sua

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produção, constrói-se a idéia da mídia como guardiã da mais absoluta
autenticidade e verdade. A imagem é a “real”, já que o acontecimento
não é mais recontado.
Da mesma forma que a eclosão da transmissão direta mudou a
relação entre narrativa e temporalidade, os sistemas virtuais
embaralharam as antigas categorias de ficcional, histórico e
jornalístico. Mostrando os acontecimentos no instante mesmo de seu
desenvolvimento, os meios de comunicação transformam-se não ape-
nas em arquivos para o futuro, mas em arquivos permanentes do pre-
sente. E a narrativa que produzem não é mais a mescla de ficcional
com o informacional; é a narrativa histórica do imediato.
A virtualidade foi acrescentada à lógica da interatividade que
produz a ilusão de ter a imagem em tempo real e o poder de modificá-
la por controle direto. Com isso, cria-se a certeza de ser capaz de
construir não apenas o futuro, mas o presente, já que este pode ser
modificado, a partir de um ato de vontade. A interatividade tem, pois,
uma relação intrínseca com as novas lógicas temporais.
Todos os dados do mundo podem estar accessíveis, hoje, em
linha direta e em tempo real a partir de um computador pessoal. A
metáfora da navegação, com que freqüentemente designamos a ges-
tão desses programas, mostra que o sentido é desafiar a inércia e
abolir o espaço e o tempo.
Ilusão participativa ou revolução da nossa relação com o mun-
do e o conhecimento? “Ainda é cedo para julgar se esses acessos em
tempo real aos bancos de dados de uma aldeia global nos levará a
uma melhor forma de mediar o real ou aos labirintos das bibliotecas
de Babel, como diz Borges” (LITS, 1995, p. 59).
Mas a relação temporalidade e mídia não se dá exclusivamente
na configuração da narrativa midiática. Diversas são as interseções
de natureza temporal que o leitor/espectador estabelece, algumas
bastante concretas.
Para algumas pessoas, estar diante de um programa de televi-
são ou escutar uma emissão radiofônica pode ter o sentido de “pas-
sar o tempo”, e a televisão responde perfeitamente a esta expectati-
va. Para outras, ao contrário, significa gerir o tempo, de forma racio-
nal, permitindo fazer diversas outras coisas, em um período limitado,
e que antes seria dedicado exclusivamente a uma atividade. Olhar a

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Temporalidade: uma questão midiática

televisão pode parecer “tempo perdido”, e neste sentido reveste-se a


qualificação mais uma vez de um valor pessoal.
Por outro lado, a percepção concreta que temos sobre o tempo e
a divisão que estabelecemos das horas do dia e da noite tendem a se
modificar sob a influência da mídia. Jacques Attali, em sua Histoires du
temps (1982), lembra que a definição do tempo universal ligada ao
meridiano de Greenwich é de 1885 e que no século XIV o dia não era
dividido em 24, mas em sete horas canônicas. Mesmo hoje não se vive
de maneira unívoca a mesma relação temporal. Uma série de estudos
publicados pela Unesco mostra a permanência de divisões tradicio-
nais do tempo em numerosas regiões (Índia, África, mundo muçulma-
no etc.).
Mas a mídia permite, sob certo aspecto, a utilização dissemina-
da de um mesmo corte temporal. Se, no século XIX, o desenvolvimen-
to das estradas de ferro e, em um segundo instante, do telégrafo, tor-
nou imperativa a unificação da hora, o rádio, a partir dos anos 1920, e
depois a televisão permitiram a difusão da hora oficial de maneira
ainda mais extensiva para a população. Não se pode também abstrair
o fato de ser hoje a televisão uma espécie de relógio contemporâneo
que rege o tempo na vida cotidiana. Jantamos antes ou depois do jor-
nal das oito, saímos para o trabalho antes ou depois do noticiário da
manhã e marcamos nossos encontros após a emissão das telenove-
las.
A mídia tende, pois, a se apropriar do tempo, de tal modo, que
transforma a hora real em abstrata. Assim, programas de televisão,
como “Jô Soares 11 e meia”, são difundidos à meia-noite e, por vezes,
até mais tarde, mas o tempo real continua sendo 23 horas e 30 minu-
tos. Por outro lado, a hora passa a ser construída como se fosse uma
particularidade da emissora x ou y: são 7 horas da manhã na rádio x
ou na televisão y.
A estruturação do tempo nas grades de programação dessas
emissoras se impõe de maneira imperativa, com o mesmo rigor do
horário de trabalho, tendo sentido de ritualização. Regis Debray (1991,
p. 322) remarca esta função religiosa da televisão. Para ele, os progra-
mas distribuídos em uma grade de horários rígidos ritmam o tempo
cotidiano e semanal, como no passado ocorria com as rezas matinais
nos mosteiros.

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Marialva Carlos Barbosa


Para além de tudo isso, a mídia veicula uma temporalidade
que lhe é extremamente própria. Ao olharmos um filme, uma novela
de época, utilizamos parte de nosso tempo disponível para entrar-
mos em um outro tempo. Os meios de comunicação fazem, assim,
uma espécie de buraco na realidade do tempo e nos inserem em um
tempo imaginário.
Assim como procuram informar o que está acontecendo no
mundo agora, os meios de comunicação audiovisuais preocupam-se
em difundir imagens de um passado, mais ou menos distante, apre-
sentado como imutável e inacessível, dando a impressão de presença
no tempo, de participação, criando nova relação do público com este
passado. Essa relação resulta em uma outra modificação – extrema-
mente profunda – da relação com o tempo e que tem reflexos na pró-
pria forma como se representa a morte.
Reconstruindo o passado, seja na ficção, seja no discurso infor-
mativo, a televisão sugere para o espectador do presente que o pas-
sado não desapareceu, já que, ao torná-lo accessível, faz com que con-
tinue a existir de alguma forma. E ao dar a aparência de vida ao passa-
do, sugere também que o presente e o futuro são predeterminados,
tal como os filmes.
Por outro lado, ao associar o presente à realidade concreta – o
tempo real – relega o futuro à não existência. Se o passado pode ser
reconstruído, e o presente se constitui de instantes que são substi-
tuídos sem cessar, a idéia de futuro se dilui no presente. A aceleração
do tempo da contemporaneidade, portanto, longe de ser apenas uma
categoria utilizada pela mídia, constitui-se em uma construção em-
preendida pelos meios de comunicação.
Assim, enquanto a difusão direta acentua o presente, em acon-
tecimentos que se transformam em multiplicidades de possíveis – na
imprevisibilidade do tempo real –, a ficção, primordialmente, reenvia
ao passado. Que conteúdo nos abre para o futuro?
A percepção generalizada da temporalidade que não anula o
seu sentido particularizado permite, pois, afirmar que o mundo hoje
é marcado por um sentimento do tempo ou, como diz Ítalo Calvino,
por um certo “espírito do tempo”. Essa afirmação supõe uma espécie
de adesão à consciência coletiva de um tempo, soberano e simplifica-
do, que rege as relações sociais.

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Temporalidade: uma questão midiática

Mas para que exista essa adesão é preciso criar figurações e


abstrações que possam ser compreendidas de forma extensiva pela
sociedade. E essas reduções são estabelecidas pela mídia, não só
reconfigurando a temporalidade na sua narrativa, mas difundindo a
mesma presença do tempo, imperceptível e imemorial.
Por outro lado, ao construírem e tornarem visíveis novas
temporalidades – tempo real, tempo mundo, tempo mutacional da
interatividade –, os meios de comunicação desempenham papel úni-
co na construção da subjetividade coletiva em torno de uma mesma
relação com o tempo.
Além disso, ao selecionar o que deve ser objeto de duração, ao
interferir mesmo na sua lógica, podemos dizer que estabelecem um
movimento próprio do tempo que espelha a imagem e a vivência de
culturas específicas.
Estabelecer a idéia de constituição de subjetividade tempo-
ral pela ação dos meios de comunicação não significa negar que a
idéia unívoca do tempo é criada e difundida, sobretudo, pelos mo-
dos de produção. Foi antes de tudo uma disciplina do trabalho, a
divisão das horas do dia entre tempo livre, do lazer, e tempo do
trabalho, da produção, que produziu toda uma dada construção
de temporalidade.
Entretanto, a entrada em cena de novas tecnologias ensejou
novas construções e, sobretudo, novas reduções metafóricas da idéia
de tempo. A informatização, a robotização, as técnicas genéticas e a
energia nuclear mudaram os modos de intervenção humana nos pro-
cessos de produção, modificando também a noção de tempo.
Gradativamente, de maneira discreta e inconsciente, vai-se for-
mando essa nova concepção. As novas tecnologias realizam total
dissociação do tempo do homem do da máquina. As qualidades que
esses aparelhos, engenhos da modernidade, pedem são, sobretudo,
mentais e inscritas em uma nova duração. Exigindo o tempo calmo da
atenção, da reflexão e do comando, introduzem o homem em uma
dupla temporalidade: a da reflexão necessária ao controle das
tecnologias e a da lógica da aceleração, que permite a construção do
presente como o futuro. Se a primeira temporalidade se dá no espaço
da produção e é destinada a poucos, a segunda é de natureza genéri-
ca e se distribui de forma massificada pela sociedade.

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Marialva Carlos Barbosa


Banalização do tempo

Se o jogo tecnológico produz a total dissociação do tempo do


homem do da máquina, é preciso considerar a importância das rela-
ções de produção na construção da idéia preferencial de
temporalidade.
A lógica do capitalismo foi fundada na criação do distanciamento
em relação ao tempo da natureza. A divisão do trabalho, a marcação
rígida do horário de produção por meio de sinetas e relógios, que infor-
mavam milimetricamente o tempo do lazer e o da inserção no mundo
do trabalho – ou seja, a lógica de uma economia do tempo, como re-
marca Thompson (1986) – eram signos desta dissociação.
Como assinala Attali, não é exagero dizer que a difusão dos re-
lógios constitui uma das medidas mais exatas do desenvolvimento da
sociedade mercadológica a partir do século XVIII. Marcando e delimi-
tando o lugar do trabalho e da vida, passou-se a viver o “tempo das
máquinas”, decomposto em períodos de produção, interrompido pe-
las pausas necessárias à restauração da força das máquinas e indis-
pensáveis à aceleração da produção (ATTALI, 1982, p. 188-193).
As leis de produção se impõem a toda a sociedade, pensada
como máquina, na qual é necessário, sobretudo, valorizar o tempo e
em que se passa a trocar o dinheiro recebido pelo trabalho executa-
do. Ganhando o sentido do progresso, o tempo passa a ser cortado
por uma outra espécie de pausa: a do repouso das máquinas.
Observa-se na lógica da temporalidade capitalista da socieda-
de industrial nova configuração no ritmo dos acontecimentos: as notí-
cias são difundidas de maneira mais rápida, graças ao advento do
correio e à modernização dos sistemas de difusão da informação. A
tecnologia possibilita a produção em massa dos jornais e a queda de
seu preço, aumentando o seu raio de influência. A impressão a vapor
permite enorme desenvolvimento da literatura periódica, que se mul-
tiplica nos jornais diários. E os folhetins que essa imprensa divulga
tratam da velocidade, da ambição, da urgência em ganhar dinheiro,
ou seja, de uma nova temporalidade. Por outro lado, velocidade, am-
bição e urgência significavam caminhar em direção ao progresso, ob-
sessão dos bem nascidos do início do século XX.

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Temporalidade: uma questão midiática

Hoje, entretanto, outras marcas lembram constantemente ao


homem uma nova inserção temporal, caracterizada pela banalização
do tempo. As máquinas distribuidoras de dinheiro, operando dia e
noite, os lugares públicos abertos permanentemente e, sobretudo, os
programas de rádio e de televisão sucedendo-se num continuum assi-
nalam que as 24 horas do dia não se dividem pelo ritmo natural, nem
pelo ritmo do tempo social, mas sobretudo que não existe mais esta
delimitação. Com isso cria-se uma permanente banalização do tempo
(CHESNEAUX, 1996, p. 44-45).
Os meios de comunicação produzem, ao veicular informações
em profusão, a saturação e a banalização da informação. Por outro
lado, esta mesma saturação impõe a invenção de novas fórmulas de
narrar os acontecimentos.
As notícias que, de repente, interrompem a programação das
emissoras de rádio e televisão e passam a transmitir em tempo real o
desenrolar dos fatos são fórmulas para chamar a atenção do público,
saturado de informação, e, ao mesmo tempo, traduções da inscrição
da nova temporalidade narrativa dos meios de comunicação.
As notícias em tempo real interrompem a lógica temporal das
transmissões e inserem o acontecimento em uma nova dimensão e
em um novo tempo. E as marcas desta singularidade estão presentes
na forma como são narradas: veiculação paulatina que se desenvolve
em um crescendo até o clímax da emissão.
As marcas distintivas da nova temporalidade – que emerge, as-
sim, em um presente ainda mais atual – aparecem, também, na forma
como são transmitidas: a música que antecede, a repetição de pala-
vras e, por vezes, o congelamento temporário da imagem. Tudo como
símbolo de um novo instante temporal que emerge na transmissão,
constituindo-se no principal atrativo da informação. O que importa
não é mais o conteúdo do que está sendo transmitido, mas o fato de o
acontecimento ter emergido na duração e invadido – criando uma nova
temporalidade – o espaço de transmissão. O que interessa é a idéia de
ruptura de um tempo em permanente atualização que emerge dessas
narrativas em tempo real.
Por outro lado, esses acontecimentos carregam em si mesmos
uma dimensão cerimonial que os afeta, em parte ou em sua totalida-
de. O espectador coloca-se numa posição particular. Fixando toda a

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sua atenção no acontecimento que emerge, passa a ter uma espécie
de dívida para com a informação. O acontecimento dramatizado e
excepcional induz à sociabilidade que afeta as circunstâncias da re-
cepção. Os espectadores se agrupam e formam comunidades de in-
terpretação (DAYAN, 1989, p. 143-153).
Como menciona Daniel Dayan (1989, p. 146), torna-se necessá-
rio assistir ao acontecimento, atestando-o e recriando-se nova identi-
ficação deste grupo em torno daquilo a que assiste. O quadro de refe-
rência transpõe-se para o interior de uma ação ritualizada.
Cotidianamente, as marcas de que a tecnologia e a economia
do mundo projetam uma pretensa uniformização do tempo estão pre-
sentes em outras ações extremamente banais. Nos supermercados,
por exemplo, acham-se durante todo o ano frutas das mais variadas
estações. Acaba-se, na prática, com a demarcação temporal inscrita
pelas mudanças climáticas.
A comunicação instantânea suprime os prazos inerentes às dis-
tâncias. Os espaços se sucedem no turbilhão de uma mesma
temporalidade. Mas nada disso se dá naturalmente. A banalização do
tempo afeta a subjetividade pessoal em vários níveis.
Nas cidades, como assinala Chesneaux (1986), “próteses natu-
rais”, animais de estimação e plantas de apartamento fazem lembrar
constantemente que existem outros ritmos na natureza, ainda que
artificialmente plantados em diferentes esferas da cotidianidade.
A vida pessoal neste universo da banalização do tempo passa a
ser pensada em termos de planos e programas. Programam-se as com-
pras, o lazer, a expectativa de um objetivo profissional. Programa-
se, em suma, o futuro. E este condicionamento começa desde a infân-
cia. O tempo pessoal é submetido às mesmas obrigações do tempo
social.
No mundo contemporâneo, ritmo frenético passa a ser signo
de distinção. A disponibilidade de tempo, durante séculos atributo
das elites, deixou de ser ícone de poder. Hoje, os dominantes, os que
possuem o poder de decisão, são aqueles cujas atividades se mate-
rializam em ritmo frenético.
E entre esses estão os jornalistas, a quem cabe informar – em
tempo real – o que se passa no mundo. Com este poder simbólico,
eles devem reconfigurar a existência sob nova dimensão temporal.

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Temporalidade: uma questão midiática

Para isso é preciso inscrever sua própria atividade em uma outra lógi-
ca, na qual não há espaço disponível para o intervalo. É preciso trans-
formar – imediatamente – o evento em acontecimento, mostrando-o
no instante mesmo de sua produção. O jornalismo se transforma, as-
sim, em uma das profissões consagradoras do tempo-mundo e do
tecnocosmo, já que esta atividade se identifica, sobretudo, com a
desrealização.
Isso, entretanto, não se faz sem traumas, pois, em uma espécie
de dualidade, o meio natural continua a ter ingerência sobre a subje-
tividade do jornalista. Entre a temporalidade abstrata e universal e as
realidades locais – a alternância entre o dia e a noite, os horários da
vida familiar, o calendário, as atividades sociais –, a sua vida distribui-
se entre o tempo cotidiano e o tempo profissional. O primeiro, regula-
do por uma lógica particular, e o segundo, por um ritmo que não co-
nhece pausa e intervalo. O tempo passa a ser, mais do que banaliza-
do, desrealizado.
Tudo isso leva a uma espécie de estresse da temporalidade. O
tempo pessoal, projeção da vida cotidiana, é pressionado pelos impe-
rativos econômicos e pelas obrigações técnicas. Dois tipos de angústia
se conjugam: o medo diante do tempo livre e diante das incertezas do
futuro.
Em meio a tudo isso, cria-se uma nova categoria de exclusão: a
dos excluídos do tempo. Refugiando-se na não-duração, os drogados,
os portadores de doenças incuráveis, as galeras dos subúrbios, as
tribos urbanas, que se multiplicam, estão inscritas duplamente no grau
zero da cidadania e da temporalidade.
O modelo dominante de temporalidade, estruturado e
instrumentalizado, de maneira decisiva, pelos meios de comunicação,
projeta a subjetividade também através das chamadas idades da vida,
cada qual com suas características peculiares. Na emissão dos pro-
gramas e da publicidade vê-se o desfile de estereótipos da própria
existência. A vida é distribuída em modelos funcionalistas: juventu-
de, idade madura e velhice. Cada qual se sucede em uma ordem imu-
tável e organiza-se segundo modelos sociais dominantes, construídos
e referendados pela mídia, nos espaços sociais na qual está inserida e
dentro de lógicas culturais próprias.

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Ser jovem é, assim, associado à prática de atividades esporti-
vas, à dedicação às novas tecnologias, particularmente às da
informática. Por outro lado, cabe ao velho o lugar de repouso, o silên-
cio e a solidão de casa, diante da tela da TV. Observando-se os perso-
nagens das séries e das novelas televisivas, esses estereótipos apare-
cem bem delimitados, mostrando que idade-tipo cada um deve
encarnar para ser aceito socialmente.
Se a mídia projeta a banalização do tempo – marca da
contemporaneidade –, fixa, também, os modelos das chamadas ida-
des da vida, mostrando a irreversibilidade do tempo e as marcas ine-
lutáveis de sua presença.
Assim, se toda cultura organiza o tempo como universal e re-
versível, toda representação do tempo é dependente da ordem social
que a estrutura. O tempo não se reduz à medida, tendo existência
irredutível à sua duração, isto é, à ordem, à nominação, à classifica-
ção e à domesticação. A medida do tempo muda com a ordem social e
com a relação que cada sociedade estabelece com o mundo.
Deve-se considerar ainda que separar, sincronizar comporta-
mentos, substituir o reversível pelo irreversível, eliminar ou criar o
passado e reconfigurar um ciclo é uma ação de natureza política. O
ato de nomear o passado e religar datas em uma dada memória, dan-
do sentido às sociedades, é estabelecer subjetivamente uma dura-
ção, inscrita em uma temporalidade própria.
Cada época se caracteriza por um quadro de referência essen-
cial para o enquadramento do tempo. E é neste sentido que alguns
autores classificam este quadro do mundo contemporâneo como “tem-
po dos códigos”,2 no qual o homem torna-se relógio, programado nos
mínimos detalhes, achando a sua medida de tempo na vida e vivendo,
em conseqüência, a solidão de um mundo que coloca a individualida-
de também como artefato.

Notas
1
A expressão é de H. Arendt, no prefácio da edição francesa de La crise de la culture.
Paris: Gallimard, 1974.
2
A expressão é de Attali (1982).

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REVOLUÇÃO, ESPAÇO E TEMPO: REFLEXÕES SOBRE O
MUNDO TECNOLÓGICO1

Interatividade, hipertextualidade, fluxo informacional, simula-


ção, virtualidade e convergência tecnológica são conceitos-chave para
entender a sociedade em que vivemos, definida por alguns como a
“sociedade da informação”, por outros como “sociedade da comuni-
cação”, na sua configuração conceituada ora como pós-moderna, ora
como pós-tradicional.2
A rigor, quando se considera o princípio da convergência
tecnológica, parte-se da análise que visualiza um sistema em constan-
te mutação, com relações dinâmicas envolvendo não apenas a ques-
tão tecnológica, mas também as convergências econômicas, sociais e
culturais.
Por convergência tecnológica entende-se, pois, o ponto no qual
esses novos artefatos do progresso do século XXI, suas linguagens e a
própria sociedade parecem estar em tal integração (fusão mesmo), o
que produz uma espécie de ausência de fronteiras.
Aliás, a questão da ausência de fronteiras, modificando radical-
mente a concepção de espacialidade até então existente, é chave nes-
te debate, assim como também o é a própria temporalidade, cuja
apreensão de sentido em sua apropriação contemporânea também
muda.
Entretanto é preciso perceber, em primeiro lugar, que estas ino-
vações tecnológicas – chamadas por muitos como Revolução
Tecnológica, e este é o ponto que queremos frisar – pertencem a múl-
tiplas realidades sociais e, portanto, múltiplas culturas. As mutações
tecnológicas não são do domínio do indivíduo ou das empresas, mas
são resultados diretos da cultura deste início de século. Afinal, não é
a técnica que determina a sociedade, são os processos sociais, eco-
nômicos e políticos do mundo atual que produzem o social. De tal
forma que a cultura encontra-se hoje envolta pela tecnologia.
Essa sociedade tecnológica aparece nomeada de várias formas.
Para alguns, é a sociedade da informação, em um discurso quase sem-

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Revolução, espaço e tempo: reflexões sobre o mundo tecnológico

pre valorativo das potencialidades das chamadas indústrias da infor-


mação, que produziriam quase que mecanicamente uma melhor qua-
lidade de vida dos cidadãos. Outros preferem chamá-la de sociedade
da comunicação, fazendo da comunicação e de seus artefatos elemen-
tos centrais para o seu próprio dinamismo. Esta sociedade
disponibilizaria uma quantidade enorme de informações transmitidas
com rapidez e continuidade, em proporções verdadeiramente espe-
taculares. No plano econômico, as atividades ligadas ao setor de co-
municação passam a representar uma parte cada vez maior do Produ-
to Nacional Bruto dos países industrializados. Tudo isso produzindo
uma convergência tecnológica sob a qual repousa a noção de futuro
nessas sociedades, mas, sobretudo, produzindo, do ponto de vista
cultural, mutações extraordinárias também na maneira como se pas-
sa a perceber a espacialidade e a construir as temporalidades.
Antes de aprofundar um pouco mais esta questão que nos pa-
rece central – ou seja, uma nova concepção espaço-temporal domi-
nante nesse mundo pós-tradicional, para usar a expressão de Anthony
Giddens (1997) –, parece-nos fundamental refletir sobre por que esse
momento é demarcado pelo epíteto revolução. O que é, afinal, revolu-
ção e por que se afirma com tanta recorrência que se vive o primado
da mais extraordinária revolução de natureza tecnológica?

Revolução tecnológica?

Evidentemente o significado da palavra revolução não se reduz


a seu emprego fraseológico atual. Revolução, no significado construído
por meio de uma semântica do tempo histórico, possui duas acepções
exemplares: de um lado, pode significar guerra civil e, de outro, mu-
dança profunda que se enraíza na vida cotidiana em relação a aconte-
cimentos ou estruturas. Pressupõe, portanto, idéia de ruptura com o
período anterior, quando se refere às mudanças políticas e sociais ou
quando diz respeito às inovações científicas.
É neste sentido, pois, que se conceitua o presente como sendo
o momento em curso de uma revolução, de natureza tecnológica, em
função das mudanças que ocorrem no campo da ciência.

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Quando se concebe, a partir de uma idéia também preconcebi-
da como global, que o mundo como um todo vive uma revolução,
parte-se do pressuposto de que este conceito é de natureza geral,
encontrando de antemão um consenso prévio, não havendo variações
de sentido de um espaço social a outro ou de um campo político a
outro. Assim, o termo revolução parece em si mesmo habitado por
uma dinâmica a priori revolucionária, suficiente para englobar o que
ocorre em todo o mundo.
Comumente designamos o século XX como a época das revolu-
ções, uma revolução cujo final ainda não se produziu. Mas, a rigor, o
termo revolução é um produto lingüístico de nossa era. Somente de-
pois da Revolução Francesa a expressão adquiriu as significações ex-
tensivas, ambivalentes e onipresentes que ainda são observadas hoje.
Inicialmente o conceito possuía em seu cerne uma noção de
retorno, guardando seu significado latino, no qual está embutida a
idéia de reenviar ao início de um movimento. Sendo assim, revolução
designava um movimento circular. Somente no decorrer do século XVII,
a partir do seu uso na obra de Copérnico sobre os movimentos circu-
lares dos corpos celestes – De Revolutionibus orbium caelestium –, o
conceito passa a designar uma experiência quase natural. Inicialmen-
te difundida no domínio astrológico, é posteriormente estendida ao
político, pressupondo a idéia de que, tal como as estrelas que descre-
vem sua órbita independentemente dos seres humanos ainda que os
influenciando, também as revoluções se faziam para além daqueles
que dela participavam, embora cada um continuasse a ser prisionei-
ro de suas leis.
No emprego moderno que fazemos do termo, reencontramos
essa dupla significação, ainda que se tenha perdido a idéia de cons-
ciência de retorno, como indica o prefixo re existente na palavra. Re-
sumidamente, quais são as características que delimitam, pois, o cam-
po conceitual de revolução depois de 1789?
A primeira delas é a sua construção como um singular coletivo,
contendo todas as revoluções particulares. Nesse sentido, torna-se
um conceito meta-histórico. Desprendendo-se do seu sentido origi-
nal, inclui no seu cerne a idéia de ordenar historicamente as experiên-
cias resultantes de mutações drásticas.

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Revolução, espaço e tempo: reflexões sobre o mundo tecnológico

O conceito de revolução adquire uma dimensão transcendental,


tornando-se princípio regulador para o conhecimento e para a ação.
O processo revolucionário e a consciência da revolução são, pois,
indissociáveis. Todos os signos distintivos do conceito moderno de
revolução se nutrem desta significação que figura em segundo plano.
Por outro lado, é preciso considerar que se encontra no âmago
do conceito a experiência da aceleração do tempo, parte de nossa
experiência cotidiana. Graças à explosão demográfica, à capacidade
técnica, mas também às mudanças de regimes políticos, o horizonte
natural da história é abandonado, e a experiência da aceleração for-
nece novas perspectivas que marcam também o conceito de revolu-
ção. (KOSELLEK, 1998)
Com esse direcionamento aberto para o futuro, o olhar sobre o
passado se transforma. O passado torna-se campo de experiência. O
futuro é horizonte de expectativa, construído no momento presente,
já que se vive a aura de uma revolução em constante construção. As-
sim, para que ela exista de fato, abre-se o futuro a múltiplas expectati-
vas, que são delineadas no presente, enquanto o passado passa a ser
momento singular da experiência. Nesse sentido, vive-se uma espécie
de irreversibilidade da revolução.3
Uma das características mais contundentes existentes no con-
ceito de revolução é a perspectiva de tê-la como produtora da eman-
cipação de todos os homens, numa espécie de redenção. A revolução
é, assim, mundial e permanente, até que seu objetivo seja atingindo.
Há, pois, também no conceito uma idéia de continuidade.
E, finalmente, se a revolução é descrita como categoria meta-
histórica, servindo para definir fatos sociais e industriais como um
processo em vias de aceleração, torna-se reivindicação consciente
daqueles iniciados nas chamadas leis progressistas. O termo se mul-
tiplica em neologismos, e revolução passa a ser produto direto da
ação humana, embutindo-se nesta idéia a certeza de que os seres hu-
manos podem fazer as revoluções.
Percebe-se, pois, na idéia de que vivemos uma Revolução
Tecnológica em curso, cuja perspectiva de término não se configura,
a presunção de redenção pelo uso dos modernos artefatos produzi-
dos pela ciência. Por outro lado, sob essa perspectiva, embute-se tam-
bém a noção de que essas mutações acontecem de forma unívoca em

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todas as sociedades e de maneira igualitária para todos os homens.
Cria-se, pois, uma noção de igualdade a partir da pretensa participa-
ção em uma mesma comunidade – a do mundo atual –, na qual o pri-
mado da tecnologia reinaria uniformemente para todos.
Nesse sentido, em um mundo globalizado todos viveriam sob a
égide de um movimento sempre crescente, em direção a um futuro,
no qual a cada momento novos artefatos científicos seriam adiciona-
dos para produzir novas mudanças, em uma permanente revolução.
Não há como fugir dessa espécie de predestinação, não tendo como
escapar de suas artimanhas, sendo pois um processo irreversível. Além
disso, no cerne da idéia contemporânea de revolução tecnológica
embute-se também a construção permanente em direção ao futuro,
de tal forma que mesmo o presente é aberto aos múltiplos significa-
dos do devir.
Segundo Giddens (1997), a sociedade pós-tradicional é a pri-
meira sociedade global, já que se vive em um mundo em que ninguém
é “forasteiro” e no qual as tradições preexistentes não podem evitar o
contato com modos de vida alternativos. Globalização é essencial-
mente ação à distância, na qual a ausência predomina sobre a presen-
ça, graças à reestruturação da noção de espaço.
Nesse sentido, novos paradigmas orientam a ação das próprias
mídias, atores centrais nesse processo de produção da chamada Re-
volução Tecnológica.

Espaço e tempo: novos atores da comunicação

A sociedade contemporânea seria impensável sem os meios de


comunicação. A influência de sua ação hoje é de tal ordem, que pode-
mos dizer que as atividades econômicas, políticas e sociais são
midiatizadas pela sua atuação e pela adoção de um novo modelo
informacional.
Ainda que se tenha em mente que a inovação não é produto de
uma cultura universal, os meios de comunicação contribuem para a
percepção do mundo atual como o habitat de um tempo tecnológico.
A rigor podemos dizer que as mídias são fundamentais para o estabe-

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Revolução, espaço e tempo: reflexões sobre o mundo tecnológico

lecimento e, sobretudo, para a difusão dos conceitos de espaço e tem-


po dentro de nova configuração.
Ao se trabalhar com suportes ópticos e ao se estabelecer
intercomunicações por meio de rede, produz-se uma mutação na apre-
ensão do espaço geográfico, sobretudo psíquica. Contatar interlocu-
tores que estão a milhares de quilômetros de distância, em segundos,
evidentemente altera o sentido tradicional da noção de espaço. Qui-
lômetros são percorridos em segundos. Por outro lado, ao produzir a
sensação de uma nova simultaneidade – pode-se estar em um lugar e
simultaneamente em outro, com o uso dos artefatos tecnológicos –
altera-se novamente a configuração não só da categoria espaço, mas
também da categoria tempo.
Tudo parece movido por um constante movimento: novas má-
quinas tecnológicas, sob a pressão de um mercado implacável e de
uma lógica simbólica que transformam em ultrapassado tudo o que
não é a última novidade, pedindo assim renovação constante. O mun-
do passa a ser regido por nova lógica temporal também apreendida
de forma única.
Em um mundo dominado pelo fluxo informacional, essa
espacialidade e essa temporalidade particular são construídas não
só pela ação dos meios de comunicação, mas sobretudo pela dinâmi-
ca de uma convergência tecnológica que produz a sensação de perfei-
to entrosamento entre máquinas, a linguagem produzida por elas e a
sociedade que sofre seus efeitos. Portanto, podemos dizer que as
tecnologias de informação e comunicação criam no mundo contem-
porâneo uma nova cultura: a cultura digital.
Assim, novas formas de escrever, de ler, de relatar, individuais
e coletivas, se apresentam. Vive-se também sob o signo das imagens,
imagens que possuem um nível de sedução sobre a própria realidade.
Aliado a tudo isso, acrescente-se a virtualidade, a relação com o cor-
po e um tecido social que aparece como rede. A informação ganha
lugar estratégico e difunde-se a imagem de que sobretudo ela – a in-
formação – pode ser fundamental para a destruição ou a sobrevivên-
cia da humanidade.
Por outro lado, ao tornar visíveis os acontecimentos, fazendo o
presente emergir na duração, a mídia transforma-se em uma espécie
de produtora do tempo presente. Ao lado disso, a forma narrativa dos

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meios de comunicação, particularmente os audiovisuais, inscreve-se
em uma relação temporal específica, que se distribui pela sociedade,
criando nova percepção espaço-temporal da contemporaneidade.
A televisão, por exemplo, com suas imagens que se sucedem,
em um ritmo sincopado e cada vez mais acelerado, em uma instantanei-
dade singular, inibe, em princípio, o retorno do pensamento e a pausa
necessária à reflexão. A forma como constrói sua narrativa imagética
– em mensagens que se sucedem em um turbilhão –, ignorando o que
precede e o que sucede, leva à inscrição imaginária do momento vivi-
do como único.
A relação de convergência entre temporalidade e meios de co-
municação não se limita, entretanto, a esta permanente tensão ao cons-
tituir os acontecimentos. A partir de sua apropriação e interpenetra-
bilidade nos sistemas de opinião é que os acontecimentos contempo-
râneos ganham inteligibilidade.
Os meios de comunicação constroem, pois, duas tipologias de
tempo: a do presente, transformado em instante e renomeado tempo
real, e a do passado, retransformado em acontecimento presente, por
meio das celebrações ou através do discurso ficcional, que instaura
nessas narrativas o tempo mítico de antes.

E o futuro?

Assim, o futuro passa a ser o próprio presente aberto a múlti-


plas construções e sobretudo regido pela idéia de que novos atores
de uma revolução tecnológica incessante serão colocados em cena.
Apesar disso, a distribuição e a utilização dessas tecnologias
midiáticas não se fazem de maneira igualitária. Em 2001, por exemplo,
apenas 10% da população latino-americana contava com telefone e
apenas 3% tinha um computador. Somente 1,5% de todos os habitan-
tes do continente estão plugados na Internet (O Globo, 10 mar. 2001,
p. 15).
Mas a questão não é apenas colocar a tecnologia ao alcance de
muitos. É preciso mais: que os usuários tenham nível de alfabetização
suficiente para poder responder aos princípios da interatividade e da
real fluidez da comunicação.

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Revolução, espaço e tempo: reflexões sobre o mundo tecnológico

Somente com a revolução tecnológica na educação e nos prin-


cípios políticos de utilização desses artefatos se produzirá a verda-
deira revolução social. A interatividade deve partir dos usuários. Cada
indivíduo deve estar suficientemente preparado para expressar suas
necessidades utilizando, de forma plena, a sua liberdade. É necessá-
rio não só ter a impressão de participar dessa comunidade imaginá-
ria, mas de fato adentrar nesse mundo de sistemas avançados de in-
formação e comunicação. Só assim se pode falar em convergência,
interatividade e revolução informativa.
O princípio mesmo da convergência tecnológica é fundamental
para isso. Com o acesso à Internet por meio dos sistemas de televisão
por cabo, poder-se-á reduzir a porcentagem dos excluídos da
tecnologia. A televisão de alta definição, que se instala rapidamente
em vastas regiões da América Latina, tem entre suas possibilidades
novas formas de acesso à rede. O mesmo princípio da convergência
tecnológica permitirá que cada vez mais telefones móveis tenham a
Internet entre seus serviços.
Quais são as perspectivas para o futuro? Evidentemente o acesso
extensivo às possibilidades tecnológicas das mídias é uma questão
de natureza política. Trata-se de incluir ou de excluir enormes parce-
las da população não do acesso, não do consumo, mas sobretudo da
capacidade de interatividade real com esses meios, o que só se dá
por intermédio da anterior inclusão social.
É preciso desconfiar do discurso que de antemão vê
potencialidades redentoras no novo modelo, uma verdadeira utopia
democrática imposta pela tecnologia. É preciso relativizar igualmen-
te o discurso pessimista que enxerga as mutações, a adoção de novos
paradigmas, como momento de quebra de valores, de tradições, ca-
paz de construir um mundo incompreensível.
A história vem mostrando há séculos que as rupturas estão sem-
pre presentes em todos os processos sociais. Cabe a nós interpretá-
las como processos históricos e não como rupturas, já que a adoção
de uma linha de pensamento que enxerga um momento como unívoco
em relação ao predecessor é apenas uma entre múltiplas interpreta-
ções.
Visualizar o início do século XXI como um processo, no qual a
própria idéia de revolução é também uma construção engendrada pelo

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discurso sobre o contemporâneo, talvez ajude também a construção
de um futuro ainda desconhecido, mas sobretudo mais igualitário.

Notas

1
Este texto foi originalmente apresentado no VIII Simpósio de Pesquisa em Comunica-
ção da Região Sudeste, realizado na Universidade Federal do Espírito Santo, em Vitó-
ria-ES, em março de 2001.
2
Querendo romper com a idéia de pós-moderno, Anthony Giddens (1997) prefere
classificar a sociedade cuja principal característica é ter de fazer os elos sociais e
não mais herdá-los do passado, como pós-tradicional. Nessa sociedade, vive-se ou-
tra lógica, havendo a dissolução da tradição e também não há mais espaço para a
rotinização a não ser quando ligada a processos da reflexividade institucional. O que
é chamado por alguns como pós-moderno para o sociólogo é a radicalização da
modernidade, na qual ainda se encontram os princípios dinâmicos da modernidade:
expansão do capitalismo, efeitos transformadores da ciência e da tecnologia, expan-
são da democracia de massa. Para refletir sobre esse processo é fundamental, para
ele, falar em uma modernidade reflexiva. Só se pode refletir sobre a modernidade
por meio da reflexão sobre ela mesma.
3
Horizonte de expectativa e campo de experiência são dois conceitos formulados pelo
historiador alemão Reinhart Kosellek (1998). Resumidamente define-os como cate-
gorias históricas, imbricados em si mesmos, já que um não pode ser considerado
sem o outro: não existe expectativa, sem experiência e vice-versa. O par experiência-
expectativa indica fatos humanos, tendo a rigor um sentido antropológico
preexistente. A experiência é o passado atual, cujos acontecimentos integrados po-
dem agora ser rememorados. Nela se junta a elaboração racional, isto é, a própria
construção da história tornada oficial, bem como comportamentos inconscientes
que não estão obrigatoriamente presentes no saber. Cada experiência transmitida
pelas gerações ou instituições contém e guarda uma experiência que lhe é estranha.
Já o horizonte de expectativa contém o presente e o futuro atualizado, englobando
tudo aquilo que ainda não é do campo da experiência. A esperança, a crença, o dese-
jo e a vontade, mas também a análise racional ou a curiosidade, tudo isso entra na
sua composição e constitui a expectativa.

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O ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO

Se para alguns autores o acontecimento moderno pode ser lo-


calizado nos últimos 30 anos do século XIX (NORA, 1974), haveria
hoje uma espécie de acontecimento contemporâneo, cuja atualiza-
ção permanente é a marca mais singular? Nesse tipo de acontecimen-
to, além de uma continuidade que se instaura sem cessar, a atualiza-
ção permanente também se sobreporia? Com isso, o presente passa
a ser possuído de um sentido supra-histórico, produzindo a sensação
de que existiria uma espécie de circulação geral dessa percepção histó-
rica no próprio presente e, mais do que isso, de maneira permanente.
Acontecimento, neste sentido, deve ser definido por um duplo
aspecto: ruptura e conhecimento. Acontecimento seria algo que emer-
ge na duração, irrompendo a cena e estabelecendo uma distinção en-
tre aquele instante e o imediatamente anterior. Mas não basta a rup-
tura para a produção do acontecimento. É necessário que ele seja
conhecido. Por um lado, necessita-se da diferença, da
excepcionalidade que cria, mas, para se constituir como tal, é preciso
que uma ampla maioria de pessoas tome conhecimento da sua exis-
tência.
Se uma espécie de “acontecimento monstruoso” (NORA, 1974)
emerge desde o final do século XX, fazendo com que este – antes domí-
nio da história positivista, objetiva e passadista – seja resultante do
imediatismo histórico provocado pela mídia, agora se acrescenta um novo
corolário: a atualização permanente instaurando o presente contínuo.
Por outro lado, é preciso salientar que a atualidade é comandada
pela ordem do sensacional. Um mundo convulsionado e, ao mesmo
tempo, comunicante: tem-se a sensação de que as crises podem sub-
verter a vida. Levadas ao conhecimento do público, essas crises provo-
cam angústia e aflição. E é esta característica imediata da comunicação
que impõe ao jornalismo o papel de construtor da história imediata,
diante de uma multidão alucinada por informação (LACOUTURE, 1990).

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ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO

O jornalismo torna-se produtor do tempo presente, no qual os


acontecimentos sucedem-se em uma velocidade alucinante. Nada pode
ser passado. Tudo deve ser absolutamente novo.
Assim, a televisão assume um papel singular, e a construção
das chamadas cerimônias televisuais (DAYAN, 1996) instaura, de ma-
neira emblemática, o instante de ruptura e, ao mesmo tempo, de per-
manente reconfiguração de um mesmo acontecimento. Múltiplas de-
O

finições emergem desde a década de 1970 sobre a questão do aconte-


cimento. De um lado, os estruturalistas debatiam as relações entre
estrutura e acontecimento que, na história, ganham por vezes defini-
ções imprecisas: estruturas históricas profundas, de um lado, fatos
superficiais, de outro; história “acontecimental” e história fundamen-
tal profunda. Há também, nos últimos anos, o retorno do aconteci-
mento e o renascimen- to da narrativa.
Também as diversas correntes da filosofia e das ciências so-
ciais tentaram formular e esclarecer os principais problemas de uma
teoria do acontecimento. A filosofia analítica – que propõe a adoção
de uma espécie de ontologia dos acontecimentos, entidades de base
do mundo, tal como os objetos e as pessoas – procurou analisar as
condições de individualização desses acontecimentos, assumindo
lugar central nessas análises a questão da natureza dos acontecimen-
tos.
Na historiografia, o grande debate em torno da questão do acon-
tecimento ocorreu em prol da chamada história das estruturas. Os
historiadores, em vez de narrar os acontecimentos, deveriam analisá-
los e também as estruturas, diziam Braudel e Febvre; eram como “a
superfície no oceano da história” e só ganhariam significação na me-
dida em que poderiam revelar as correntes mais profundas (BRAUDEL,
1978). Durante os anos 1980, o debate prosseguiu com a publicação
de algumas obras que se detinham naquilo que Emmanuel Le Roy
Ladurie chamava o acontecimento criador, aquele que é capaz de des-
truir as estruturas tradicionais, substituindo-as por outras. Mas, des-
de os anos 1990, o movimento inverteu-se, passando-se a apregoar o
retorno da narrativa histórica. As obras passam também a enfocar
acontecimentos particulares, uma vez que revelam dados sobre a cul-
tura na qual ocorreram. No outro lado da trincheira, os defensores da

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Marialva Carlos Barbosa


narrativa observam que a análise das estruturas é estática e, portan-
to, não histórica.
Entretanto, qual a diferença entre acontecimento e aconteci-
mento histórico? Paul Ricoeur (1994) enfatiza o fato de ter-se produzi-
do efetivamente no passado. Ter acontecido fornece ao acontecimen-
to uma espécie de ontologia da diferença, fazendo com que seja radi-
calmente oposto daquele que não ocorreu. A atualidade do passado é
considerada, pois, como propriedade absoluta, inscrita no próprio
passado, independentemente das construções e reconstruções. Os
acontecimentos históricos seriam ainda obra de agentes semelhan-
tes: são sujeitos históricos que o fazem acontecer ou que sofrem sua
ação. O acontecimento é, assim, inalienável dos agentes e da ação
humana. A terceira característica é a de que o passado humano e ab-
soluto adquire uma espécie de estatuto da alteridade ou da diferença
em relação ao presente. O que caracteriza o acontecimento histórico
é um triplo pressuposto: absolutização, ação humana passada e
alteridade.
Contudo, esta absolutização é apenas um pressuposto
ontológico, na medida em que ao ser reconstruído também por um
agente humano, haveria sempre escolha na explicação e na com-
preensão do passado. Não há possibilidade de existência daquilo que
realmente aconteceu, uma vez que a compreensão não é intuição di-
reta, mas sempre reconstrução.
Essas reconstruções acentuam a ruptura em relação à objetivi-
dade: o passado, como a soma do que realmente aconteceu, está fora
do alcance do historiador. Por outro lado, estando ele mesmo impli-
cado no acontecimento histórico, também não pode se propor a tare-
fa de reatualizar o passado. Se o passado fosse acessível seria presen-
te, confuso, multiforme, inteligível. A história só se torna conhecimento
quando estabelece a relação entre o passado vivido pelos homens de
outrora e o presente do historiador (RICOEUR, 1994, p. 142). A histó-
ria não é reminiscência do passado, constituindo-se da relação do his-
toriador com o passado.
A questão da objetividade também é central quando se enfoca
o acontecimento contemporâneo. Também para o jornalismo o pre-
sente não é aquilo que realmente aconteceu e a descrição realizada

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ACONTECIMENTO CONTEMPORÂNEO

pelo jornalista é reconstrução. O narrador da atualidade presente, por


outro lado, está implicado na própria construção do fato jornalístico
e submetido aos limites ideológicos do seu tempo. O acontecimento
jornalístico só se configura na relação entre a descrição do fato e a
interpretação realizada pelo jornalista. Assim como a história não per-
tence ao documento, sendo feita pelo próprio historiador na crítica
que produz sobre o documento, também o acontecimento jornalístico
O

não pertence à realidade. Este só se constitui pela interpretação reali-


zada pelo jornalista no instante em que transporta um fato para a
categoria de acontecimento.
No centro do debate sobre a absolutização do acontecimento
está também a sua constituição como narrativa. Se para se produzir
como acontecimento é necessário pensar a noção de singularidade –
acontecimentos são únicos em lugares e épocas específicas – não é
possível pensar a sua dinâmica discursiva sem atrelá-lo à noção de
narrativa.
Acontecimento e narrativa estão, a rigor, como afirma Paul
Ricoeur, naturalmente entrelaçados. A narrativa produz uma configu-
ração temporal particular caracterizada pela mediação do tempo vi-
vido entre o campo da ação e da recepção. A descrição de um aconte-
cimento não o aprisiona naquela lógica temporal, mas atravessa o
passado e o futuro. Assim, narrar o acontecimento é entrar em um
campo de experiência, no qual traços do passado são rememorados e
transmitidos. Mas também é ingressar em um horizonte de expectati-
vas. A narrativa é construída para um outro, dentro desse horizonte,
envolvendo, por exemplo, vontade, análise racional, contemplação
receptiva ou curiosidade (KOSELECK, 1998).
Nas ciências sociais desenvolveram-se, também, diversos es-
tudos buscando a conceituação do acontecimento a partir de uma
explicação construtivista. Exemplo dessa abordagem é o estudo de
Eliseo Véron sobre o acidente nuclear de Three Miles Island,
intitulado Construire l’ événement (1981). Neste trabalho, o semiólogo
argentino mostra como um acontecimento emerge na cena pública
por intermédio da ação efetuada pela mídia, via dispositivos
informacionais e formatos discursivos, a partir dos telegramas emi-
tidos pelas agências de notícias. A idéia central deste grupo de pes-
quisas construtivistas é a de que as mídias não descrevem, mas cons-

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Marialva Carlos Barbosa


troem a realidade. Assim, o mundo configurado pelas notícias é sem-
pre uma realidade construída.
Considera-se, pois, o acontecimento, não como ocorrência
espacial e temporal, mas como algo que, ao ser editado, selecionado,
escolhido, recebe sentidos atribuídos pelos chamados operadores da
mídia. Nesta perspectiva, portanto, os acontecimentos públicos
seriam produto ou resultado das atividades, das práticas rotineiras e
das estratégias de um certo número de atores sociais.
Mas a idéia de construção midiática e social dos acontecimen-
tos é, no mínimo, simplista, já que raramente é contextualizada e con-
ceituada. Na maioria das vezes, tira-se proveito da polissemia dos ter-
mos construção e acontecimento ou utiliza-se metaforicamente sua
significação. E assim se reduz o processo de constituição simbólica
dos acontecimentos aos diapositivos e às práticas midiáticas, colo-
cando em evidência quem constrói ou produz as notícias e com elas
os acontecimentos.
Os pesquisadores esquecem muitas vezes aspectos relevantes
como a questão cultural, o estabelecimento de laços entre o mundo
social e a realidade configurada pela narrativa e também o simbolis-
mo dos acontecimentos inseridos em um mundo sempre de natureza
cultural.
A adoção do construtivismo parece anunciar um novo positivis-
mo, distribuindo fatos brutos e sua interpretação. Aquilo que seria a
narrativa midiática é, pois, da ordem dos fatos brutos, definidos a
priori, como se não houvesse também uma constituição primeira na
narrativa da mídia.
Perceber que a mídia eleva um fato à categoria de aconteci-
mento parece importante, mas o mais relevante é caracterizar o pró-
prio acontecimento contemporâneo: imprevisível, dramático, violen-
to. Quais as razões da existência dessas marcas? Sem dúvida, ela é
resultado de uma lenta estruturação cultural e de fatos sociais reais:
a emergência de um jornalismo especializado, o debate cultural em
torno de um assunto presentificado, uma nova apreensão temporal
do mundo contemporâneo e a configuração do imaginário social, en-
tre tantas outras nuanças. Entretanto, colocar em relevo essas carac-
terísticas não deve significar reduzir a questão da construção social
do acontecimento a uma problemática midiacêntrica.

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PÚBLICO E MULTIPLICIDADES DE SENTIDOS1

A noção de público engendra uma multiplicidade de sentidos


que coloca em relevo a polifonia e a polimorfia do termo e também os
processos de construção de sentidos. Falar em público é referir-se a
um substantivo, mas ao mesmo tempo a um adjetivo e a um verbo.
Público, multidão, massa e espectador são substantivos que se refe-
rem a um lugar e a uma temporalidade inserida na narrativa. Pode-se,
pois, distinguir o público em que ele se encontra: próximo ou distan-
te, compacto ou dispersivo, mundial ou local.
Mas público é também verbo. Falar em público é pressupor uma
audiência, o que induz a pesar a ação. É referir-se ao como do proces-
so, ao espectador como alguém que realiza uma atividade, produzin-
do uma experiência. Mas é também adjetivar, isto é, pensar em ques-
tões como a da esfera pública e da publicização.
Deve-se pensar ainda em uma dimensão reflexiva: todo público
é olhado por um outro, a partir de um olhar difuso. Portanto, as re-
gras construtoras da noção de público são sucessivas e mutáveis.
Mas como definir público, noção ambígua na sua essência, e
que ocupa o centro dos debates sobre a mídia há mais de um século?
Originária do latim – no qual a raiz publicus significa literalmen-
te vindo do povo – a noção, a partir da invenção da impressão no
século XV, adquire outra concepção.
Ao criar uma máquina capaz de reproduzir idéias, conheci-
mentos e informações, o homem do Renascimento mostrou que na
mentalidade daquele tempo existia algo além do desejo de dominar
a natureza. Existia a necessidade de difundir como esse domínio se
realizava.
A infinita vontade de conhecer, de reproduzir o mundo sob ou-
tra ótica – ainda que melancólica – mostrou para este homem que o
saber, tal qual o conhecimento, poderia ser difundido. Os manuscri-
tos que os eruditos copiavam laboriosamente não atendiam mais ao
mundo moderno. Os livros – ou seja, a possibilidade de difundir idéi-
as e o próprio conhecimento – não mais manuscritos, mas impressos
às centenas e milhares, tornaram-se necessidade fundamental.

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Público e multiplicidades de sentidos

Apenas o ethos econômico, bem como as condições sociais e


políticas a ele relacionadas não seriam capazes de possibilitar o apa-
recimento da impressão, se não houvesse uma nova maneira de
visualizar o mundo.
Só a mentalidade que se formou ao longo da época moderna –
na qual a racionalidade cede por vezes espaço ao irracional, o mágico
convive com a técnica e a ciência, e o desejo de liberdade se confunde
com utopias, mas em que também se caminha em direção a uma men-
talidade experimental e científica, como já enfatizamos anteriormen-
te – seria capaz de criar um instrumento de troca abstrato. Ao lado da
troca concreta de mercadorias, a impressão se constituía na troca de
uma possibilidade: a de o homem ser detentor de uma informação
com valor além da esfera individual (GARIN, 1981).
Surge nos espaços sociais envolvidos nesse processo o verbo
publicar (publier, to publish) que significava precisamente tornar pú-
blico. Por outro lado, a extraordinária mudança da cultura ocidental
com a difusão da impressão, do século XVI ao XVIII, tem papel defini-
tivo na separação entre o político e o social, viabilizando a mutação
da noção de esfera pública e privada e contribuindo para a formação
daquilo que também H. Arendt chama “sociedade das massas”. Se-
gundo a pensadora alemã, nesta sociedade, expressão maior do
declínio da esfera pública, o que se procura é a opinião unânime, ao
mesmo tempo que o indivíduo é definido por sua posição funcional
dentro da sociedade. A esfera social passa a controlar, com igualdade
de forças, todos os membros de uma mesma comunidade (ARENDT,
1983, p. 68).
A ligação etimológica entre a noção de público e os atos públi-
cos de comunicação é anterior à própria conceituação de público como
ator social, surgida com as revoluções inglesa e francesa dos séculos
XVII e XVIII. Na França, por exemplo, bem antes de 1789, já se falava
do público dos espetáculos.
As mudanças nos conceitos e nas funções do público e do pri-
vado na era moderna inserem-se no germe da própria mentalidade da
época. Se nas origens, o conceito de privatizar embutia a idéia de pri-
vação – entendida como privar o indivíduo de alguma coisa, inclusive
de sua capacidade humana – na modernidade, a partir da intensa va-
lorização do individualismo, há o enriquecimento dessa esfera, que

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Marialva Carlos Barbosa


passa a se opor não mais ao conceito de público, mas ao de social
(HABERMAS, 1984, p. 15-17).
As categorias de público e privado, segundo Habermas, têm ori-
gem grega e foram transmitidas ao Ocidente em sua versão romana.
Na cidade grega desenvolvida, a esfera da polis, comum aos cidadãos
livres, era rigorosamente separada do oikos, particular a cada indiví-
duo. Esse modelo ideológico de esfera pública helênica manteve-se
intacto, e na Idade Média foi difundido por meio do Direito Romano.
Com o surgimento do Estado moderno, há a separação da esfera pú-
blica burguesa da privada. E, à medida que a esfera pública se amplia,
adquirindo aparentemente cada vez mais importância, sua função
passa a ser cada vez menor (HABERMAS, 1984, p. 15).
A própria passagem da economia doméstica à esfera púbica –
quando o trabalho deixa de ser executado no âmbito restrito da casa
e passa a ocupar lugar próprio –, que se consolida na época moderna,
evidencia que este lugar público nada mais era do que um lugar so-
cial.
Ao longo desse período, o conceito de público passa por brus-
cas transformações. Pressupondo de antemão uma idéia de divulga-
ção – condição indispensável para tornar-se público – embute-se na
noção uma outra idéia: público também é o que é aceitável e digno de
admiração.
Apesar de estar no cerne da modernidade, a mudança do lugar
e do conceito de esfera pública e privada faz-se de maneira lenta e
durante longo período esfera pública se confundia, na prática, com a
privada.
Quando o domínio ainda estava nas mãos dos senhores feu-
dais, embora existisse uma representação pública, havia nitidamente
uma contradição entre o que seria público e o que poderia ser classi-
ficado como privado. Para H. Arendt (1983, p. 79), essa contradição,
típica dos estágios iniciais da época moderna, foi um fenômeno tem-
porário e trouxe a extinção da diferença entre as esferas pública e
privada e a submersão de ambas ao social.
Os poderes feudais, a Igreja, a nobreza e a realeza decompõem-
se havendo nítida cisão entre os elementos privados e os públicos.
Com a Reforma, a ligação da Igreja com a autoridade divina passa a
ser privada. A burocracia, o exército e, em parte, a justiça mostram

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Público e multiplicidades de sentidos

claramente a existência de instituições do poder público perante uma


esfera cada vez mais privada. A autoridade do Príncipe, por outro
lado, separava gradativamente o que era público dos bens privados
dos senhores de terra. À medida que se consolidam as corporações
urbanas, há a sua inclusão na esfera pública, que, como já frisamos,
será suplantada pelo social.
Além dessas mudanças econômicas, sociais e políticas, a modi-
ficação do espaço ocupado por essas duas esferas se dá também nas
mentalidades.
Quando a salvação passa a ser atributo das realizações terrenas,
quando desaparece a preocupação com a mortalidade, os valores in-
dividuais passam a ser mais cultuados, trazendo como conseqüência
a relevância da esfera privada. A relação entre esta esfera e a pública
se dá mediante a formação do social. A sociedade transforma-se em
uma outra forma de vida conjunta, em que o indivíduo é independen-
te em relação aos outros, em função de sua própria sobrevivência e
não em função de um significado público (ARENDT, 1983, p. 80).
Ao acompanhar o processo vivido pela imprensa no Ocidente,
a partir das primeiras formas de divulgação, utilizadas na época mo-
derna até a sua explosão no século XVIII, observa-se que também nes-
sas transformações encontravam-se os conceitos de público, privado
e social.
Em um primeiro momento, a imprensa era constituída de cor-
respondências privadas com divulgação restrita. Mais tarde, por jor-
nais manuscritos, submetidos a rígido controle, e que se tornariam
públicos ao adquirirem anonimato, passando a divulgar fatos, que se
transformam na própria realidade. A realidade era, portanto, apenas
o divulgado e distinguia-se do individual, tornando-se pública. Final-
mente, os jornais transformam-se em instrumentos de divulgação das
idéias. Não é mais o privado que adquire o caráter público, mas o
público se transforma em publicidade, isto é, instrumento de divulga-
ção de opiniões individuais, caracterizadas como sociais e submeti-
das a julgamento público (HABERMAS, 1984, p. 40-43).
É preciso considerar ainda que a difusão da imprensa não signi-
ficou o desaparecimento dos jornais manuscritos que permaneceram
sendo o lugar de publicização do político, instrumentos de uma
oralidade e da própria teatralidade da leitura em voz alta desses libe-

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Marialva Carlos Barbosa


los em cafés. Lugares públicos que eram sobretudo lugares de mani-
festação política.2
Se todas essas considerações são importantes para se com-
preender a construção, como apropriação do conceito de público,
igualmente fundamental é refletir sobre o surgimento de uma outra
categoria: a de opinião pública.

O “público fantasma”

Segundo Raboy (1998, p. 99), a idéia de opinião pública como


informação, sentimento religioso, facilidade de comunicação e rique-
za material dos indivíduos que compõem uma mesma comunidade,
isto é, interligando os conceitos de comunicação e difusão da infor-
mação, aparece pela primeira vez no início do século XIX em Londres,
em um panfleto intitulado On the Rise, Progress and Present State of
Public Opinion in Britain and Other Parts of de World. Esse tratado,
segundo o autor, elogiava a superioridade moral e política da socieda-
de britânica em função de sua posição dominante como potência mun-
dial, o que era atribuído ao fato de o Estado governar para a opinião
pública.
Ainda no século XIX, o marxismo revolucionário enfatizará a
noção de luta de classes, deixando pouco espaço à noção clássica de
público. O conceito de opinião pública será durante muito tempo alvo
de denúncias, visto como construção ideológica a serviço da classe
dominante. No programa marxista, encontra-se, entretanto, uma no-
ção de poder popular – isto é, um público – ainda que seja identifica-
do como uma classe social em particular: o proletariado.
Utilizada com claro intuito político, a noção de público passa a
ser, a partir da metade do século XIX, central na formulação dos pro-
jetos de legitimação dos Estados Nacionais. Em nome do público, os
Estados multiplicam intervenções, de forma a implantar medidas que
visavam sobretudo assegurar a expansão do capitalismo industrial
(RABOY, 1998, p. 100).
Deve-se levar em consideração também que os últimos decê-
nios do século XIX são marcados pela explosão de novas tecnologias
de comunicação. A chegada do telégrafo e da telefonia, com apenas

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Público e multiplicidades de sentidos

30 anos de intervalo, entre 1845 a 1875, foi decisiva para que se pas-
sasse a considerar o potencial emancipador da comunicação. Antes
mesmo do aparecimento das “redes comunicacionais”, como enfatiza
A. Mattelart (1994, p. 101), a imagem de rede – introduzida com as
estradas de ferro e com a eletricidade – presidiu a primeira formula-
ção de uma ideologia redentora da comunicação. As redes de comuni-
cação passaram a ser visualizadas como criadoras de um novo laço
universal.
Jesus Martin-Barbero (1998) salienta que a idéia de uma socie-
dade de massas é bem mais velha do que costumam indicar os manu-
ais de comunicação. Se inicialmente esta concepção era marcada pela
idéia do medo das turbas ou das multidões, em função da visibilidade
que estas passaram a ter sob os efeitos da industrialização, houve
todo um movimento intelectual com o intuito de compreender o que
de fato se produzia no tecido social. A teoria sobre as novas relações
das massas com a sociedade, continua Barbero, “constituirá um dos
pivôs fundamentais da racionalização com que se recompõe a
hegemonia e se readequa o papel de uma burguesia que, de revolu-
cionária, passa nesse momento a controlar e a frear qualquer revolu-
ção” (BARBERO, 1998, p. 44).
É preciso considerar também que se vivia um período de cres-
cimento da alfabetização e da urbanização, o que possibilitava que
um maior número de pessoas pudesse ter acesso ao conjunto da pro-
dução impressa. A implantação do cinema, por outro lado, anunciava
a chegada de uma época nova para a diversão e o lazer e provocava
debates em torno dos usos sociais e culturais dessa nova tecnologia.
O medo das multidões revolucionárias, representadas pelos
movimentos populares dos quais a Comuna de Paris tornou-se sím-
bolo, fez com que eclodisse uma série de estudos, a partir do final do
século XIX e início do século XX, cujo sentido primeiro era a com-
preensão e, sobretudo, o controle das massas adjetivadas como irracio-
nais. Exemplo disso são os trabalhos de Gabriel Tarde, sobretudo,
L’opinion et la foule, publicado em 1901, e A psicologia da multidão (La
psycologie de la foule), de Gustave Le Bon. Para este último, a civiliza-
ção industrial não era possível sem a formação de multidões, e o modo
de sua existência era a turbulência, comportamento que aflorava, tor-
nando visível a “alma coletiva” da massa (BARBERO, 1998, p. 47).

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Marialva Carlos Barbosa


Enquanto para Le Bon a multidão era uma ameaça à civilização,
devendo compreender de que forma se poderia manipular a sua psi-
cologia, seduzindo-a com imagens, Tarde enfatizava a constituição de
um público – antes falava em multidão – em decorrência das novas
tecnologias de comunicação. As correntes de opinião, formadas de
idéias partilhadas, mesmo entre pessoas que não se conheciam, eram
decorrentes do desenvolvimento dessas tecnologias, representadas
pela imprensa e pelo telégrafo, tornando possível a constituição do
público.
Em L’opinion et la foule, a massa era convertida em público e as
crenças em opinião. Público seria a comunidade que aderia mental-
mente às crenças divulgadas à distância. O público das feiras popula-
res e do teatro – livre, agitado e ruidoso – passaria a público passivo
de uma cultura espetáculo, tornando-se massa silenciosa e assustada
(BARBERO, 1998, p. 51).
Outro teórico importante do período é o sociólogo americano
Robert E Park, que, por volta de 1900, refletiu sobre a questão a partir
do exame crítico da imprensa. Para Park, a informação da mídia de-
sempenhava para o público o mesmo papel que a percepção possuía
para o indivíduo. A informação era a base da opinião pública, tornan-
do possível a sociedade política, mas cada indivíduo evoluía dentro
do seu próprio universo. A opinião pública, portanto, só se formaria
quando podiam ser confrontadas diversas interpretações da realida-
de (RABOY, 1998, p. 102).
Os acontecimentos dos primeiros 30 anos do século XX irão
conduzir o pensamento sobre a sociedade a um paradoxo. A guerra
dos 40 anos, como classifica Hobsbawn, e todas as guerras existentes
dentro dela – a revolução bolchevique, o surgimento e o avanço do
fascismo – vão colaborar para a difusão generalizada do medo do de-
sastre definitivo que o mundo estaria na iminência de viver. É nesse
contexto que se situam os estudos de Walter Lippmann, nos quais
ocupa lugar privilegiado a reflexão sobre o papel do público em regi-
mes políticos democráticos.
Enxergando a multidão irresponsável de Le Bon, Lippmann anun-
cia o papel do “povo” nas democracias: escolher bem os representan-
tes. Nos seus estudos seguintes, essa idéia de cidadão soberano en-
tra em crise. Para Lippmann, a opinião pública seria uma espécie de

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Público e multiplicidades de sentidos

reserva de forças a ser mobilizada quando acontecia alguma crise.


Nesse sentido, o público se transforma apenas em uma abstração te-
órica e, portanto, em um fantasma (1925).
Com o deslocamento da primazia política e econômica da Euro-
pa para os Estados Unidos, após a II Grande Guerra, há também mu-
dança no eixo central de discussões em torno da questão do público.
Enquanto na Europa, a sociedade de massas representava, na refle-
xão corrente, a degradação e a negação da cultura, para os teóricos
norte-americanos dos anos 1940-1950, a cultura de massas significava
a afirmação da própria democracia.
Nos Estados Unidos, as pesquisas centralizaram-se em torno
do Bureau of Applied Social Research, na Universidade de Columbia,
dirigido por Paul Lazarsfeld. Desde os anos 1940, estudando o papel
da comunicação de massa nos processos de decisão, as pesquisas de
Lazarsfeld tinham como premissa os efeitos que os meios de comuni-
cação poderiam trazer ao público, destacando, entretanto a depen-
dência das variáveis de situação e de predisposição: idade, história
familiar e pertencimento político.
Deve-se referir também às teorias de Wright Mills, um sociólo-
go que gravitava em torno de Lazarsfeld e um dos pioneiros da cha-
mada sociologia crítica norte-americana. Mills irá contrapor a noção
clássica de público à de massa, conceito fundamental nos escritos
dos autores da Escola de Frankfurt, notadamente Adorno. A mídia,
para Mills, desempenhava papel fundamental na constituição da so-
ciedade de massa, tendendo a substituir uma comunidade de públi-
cos (MILLS, 1956). Esta comunidade de públicos possibilita que haja
a expressão da opinião daquela que a recebe, enquanto na sociedade
de massa a comunicação da maneira que é organizada torna difícil,
senão impossível, a eficaz e pronta resposta do indivíduo. São as au-
toridades que organizam e canalizam as ações, fazendo com que as
massas não tenham qualquer autonomia. Continuando o paralelo en-
tre os dois conceitos, Mills acrescenta que na comunidade de públi-
cos o meio de comunicação é a discussão, enquanto na sociedade de
massa a mídia organizar-se-á como comunicação dominante. Os pú-
blicos transformam-se em mercados da mídia, formados por todos os
homens expostos ao conteúdo dos diversos meios de comunicação
(MILLS,1956, p. 310-311).

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Marialva Carlos Barbosa


Habermas e sua arqueologia do público

A obra seminal de Jürger Habermas, publicada em 1962, rece-


beu o nome Mudança estrutural na esfera pública, em português; cons-
titui a mais densa reflexão produzida nos anos 1960 sobre a questão
do público. Nas palavras do próprio autor, trata-se de produzir uma
arqueologia do público, procurando identificar como se deu a forma-
ção e a desintegração dos lugares nos quais questões de interesse
geral eram debatidas. No pensamento de Habermas, tal esfera públi-
ca já existira, mas foi transformada em função de suas ligações aos
interesses táticos ou de mercado.
Herdeiro da tradição de H. Arendt, Habermas centra sua análi-
se na idéia da morte da política, a partir do desenvolvimento de uma
esfera pública. Com a subordinação da democracia à política e à ativi-
dade econômica, no instante em que o acesso à informação, via insti-
tuições de difusão, se faz presente, cria-se a esfera pública burguesa.
O espaço público passa a ser domínio mediado entre sociedade, eco-
nomia e Estado, no qual o público produz uma opinião, suscetível de
influenciar a vida pública.
Com a mercantilização da comunicação, iniciada com a difusão
da imprensa, há a transformação do espaço público. Os auditórios
perdem sua capacidade crítica, tornando-se produto da cultura de
massa, e o público passa a ser espaço de consumo. Se no modelo
liberal as instituições públicas estavam ao abrigo da intervenção do
poder, à medida que passam a estar submetidas aos efeitos da
comercialização e concentração, tornam-se detentoras de um poder
social. Ao estarem sob controle privado, há ameaça à crítica e ao fun-
cionamento da imprensa no sentido mais amplo.
Os meios de comunicação adquirem eficácia, sendo responsá-
veis diretos pelo domínio público. A grande quantidade de interesses
privados representados na mídia provoca transformações nessa esfe-
ra pública, de tal forma que os interesses de pessoas privadas são
apresentados como públicos. E na medida em que a publicidade co-
mercial se ampara nessa esfera pública, certas pessoas privadas co-
meçam a exercer sua influência, como proprietárias, sobre o conjun-
to de pessoas privadas, formando o público.

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Público e multiplicidades de sentidos

Essa é, grosso modo, a tese de Habermas e percebe-se nesse


pensamento preocupações pessimistas, tais como aquelas de
Lippmann, Mills e Park. E não podia ser diferente para um herdeiro
direto da Escola de Frankfurt.
Trinta anos mais tarde, no prefácio da 17ª edição alemã de
Strukturwandel der Offentlichkeit, Habermas (1992, p. 188) escrevia:

Se eu fizesse hoje de novo a análise da transposição estrutural do espaço


público, eu não iria determinar as conseqüências para uma teoria da
democracia. Talvez esta análise oferecesse uma avaliação menos pes-
simista e apresentaria uma perspectiva simplesmente hipotética.

Depois de seu aparecimento, a tese de Habermas foi duramen-


te criticada, notadamente por ter construído uma esfera pública cuja
existência decorria de uma hipótese. Uma esfera que, fictícia e não
histórica, excluía exatamente os chamados excluídos da história: as
mulheres, os pobres, os povos colonizados.
Entretanto, a sua idéia mais importante é a de que o público
pode influenciar os processos políticos, tornando-se elemento funda-
mental na elaboração de uma teoria da democracia: não se pode falar
em democracia sem espaço público.

O público ganha voz e lugar

A revisão sobre a questão do público ganhou nos últimos 30


anos um espaço de maior relevância, quando se introduz na reflexão
a questão da sua liberdade criadora, isto é, a possibilidade de se con-
siderar as formas da apropriação das mensagens que certamente não
se reduzem às expectativas dos produtores.
Influenciados pelos estudos realizados a partir da década de
1960, na Inglaterra, os estudos culturais, cuja reflexão inicial de E. P.
Thompson, de Raymond Williams e de R. Hoggart foram fundamen-
tais, passou-se a considerar a possibilidade de o público inventar sig-
nificados ou se apropriar de maneira diferenciada das mensagens que
lhe chegavam via mídia. A liberdade criadora, a possibilidade de

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Marialva Carlos Barbosa


caçar significados e de empregar táticas no meio das estratégias, para
utilizar expressões extremamente caras a Michel De Certeau (1994),
ganha destaque.
Ao inserir na análise a história do povo comum, parodiando
uma expressão de Thompson, enfatizou-se também a possibilidade
de construção de significados ou de leituras plurais desses atores
sociais. Colocou-se em destaque as “culturas do povo” e suas leitu-
ras, suas maneiras de estabelecer significados, que variam de cultura
para cultura. Considerou-se o público como aquele que produz dis-
cursos no cotidiano, interpretando e produzindo narrativas de sua
própria existência. Afinal, a interpretação depende não apenas das
relações que se estabelecem entre o autor e a obra, mas decorre da
própria significação do enunciado em um sistema no qual ele está
incluído. Assim, em todo enunciado pode-se isolar de um lado um ato
de locutor – o arranjo lingüístico – e de outro a evocação de uma
certa realidade, cuja existência é conferida pelo próprio enunciado
(TODOROV, 1979, p. 41-61).
Com isso, o público passa a ser, como dissemos na introdução
deste livro, não apenas um adjetivo, mas sobretudo um substantivo e
um verbo. Alguém inserido em uma narrativa, produzindo significa-
dos a partir de uma ação histórica.
Considera-se o público como usuário, no sentido empregado por
De Certeau, visualizam-se as mediações, no sentido construído
por Barbero, ou percebe-se sua operação de tradução, de interpreta-
ção, no sentido de Paul Ricoeur. A proposição central é a de que os
usuários, ou o público, se apropriam ativamente das mensagens cultu-
rais que lhe são destinadas, não sendo receptores passivos. O público
passa a ser usuário, realizando interpretações. Ou, nas palavras de De
Certeau, atividades de leitura. Leituras de um cotidiano cultural rico e
plural.

A atividade de leitura apresenta todos os traços de uma produção si-


lenciosa: derivada através das páginas, metamorfoseada do texto pelo
olho do viajante, improvisação de significações induzidas de algumas
palavras, embricamentos de espaços escritos, dança efêmera (DE
CERTEAU, 1994, p. 72).

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120
Público e multiplicidades de sentidos

E continua:

O leitor insinua as rotas do prazer e uma representação no texto de um


outro: ele braconne, ele se transporta para o texto, ele se faz plural com
os barulhos do corpo. Rotas, metamorfoses, combinação. Esta produ-
ção é também uma invenção da memória. O lisível muda em memorá-
vel. Um mundo diferente (aquele de leitor) se introduz no lugar do au-
tor (DE CERTEAU, 1994, p. 72).

Quando produz esse jogo narrativo, quando ele passeia caçan-


do significados, se transforma em público, com o sentido que esta
palavra carrega, após cinco séculos de construção de significados.

Notas

1
Este texto foi originalmente publicado na Revista Signo y Pensamiento, Bogotá,
v. 23, n. 45, p. 105-113, jul./ dic. 2004.
2
Sobre o tema, cf. sobretudo DARNTON (1987).

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JORNALISMO SENSACIONALISTA OU DE SENSAÇÕES?1

Haveria um tipo de jornalismo que podemos definir como po-


pular e que se oporia a um outro jornalismo não classificado nesta
categoria? Que construção narrativa seria prioritária nestes textos?
Haveria um jornalismo sensacionalista?
Ao colocar em lados distintos duas tipologias de notícias, uma
cujo conteúdo interpela o gosto popular – com apelo ao extraordiná-
rio, àquilo que foge ao comum, que se aproxima do inominável, o sen-
sacional – e outra cujo primado seria a objetividade e a “seriedade”,
estaríamos definindo um lugar para o gosto popular e um outro cujo
gosto não é determinado pelos mesmos cânones culturais. Estaría-
mos reproduzindo uma dicotomia que revela valores preconceituosos.
É como se de um lado estivesse o mau gosto (exatamente o gosto
popular), e, de outro, o bom gosto, daqueles que possuem capital sim-
bólico e político suficientes para fazer com que mesmo os gostos se
tornem hegemônicos.
O popular muitas vezes é incompreensível aos nossos olhos,
que interditam, em um processo de dupla exclusão, os valores, os
entendimentos, as preferências de um público pertencente a um dado
universo cultural.
O popular é formado, na longa duração, pela mescla dos dra-
mas cotidianos, pelos melodramas, pelas estruturas narrativas que
apelam a um imaginário que navega entre o sonho e a realidade. Pela
identificação sonhadora com uma realidade cotidianamente roman-
ceada para conseguir ser vivenciada.
O popular apela ao grotesco, ao mesmo tempo que está circun-
dado pelos valores de uma cultura que perpassa todos os níveis da
sociedade. O popular se nutre também dos gostos, dos apelos, dos
desejos de outros grupos, em um processo de circularidade da cultu-
ra, tão bem estudado por Bakthin (1996). A partir da explosão dos
meios de comunicação de massa como operadores da realidade so-
cial, o popular também se realiza no massivo.

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Jornalismo sensacionalista ou de sensações?

Se essa é a primeira questão que se coloca, há ainda uma se-


gunda. O que estamos chamando de jornalismo sensacionalista? Este
termo seria apropriado para estabelecer uma conceituação teórica
ou, como aponta Amaral (2005), a sua abrangência leva inevitavel-
mente a equívocos?
Chamamos habitualmente de jornalismo sensacionalista um tipo
de notícia que apela às sensações, que provoca emoção, que indica
uma relação de proximidade com o fato reconstruído exatamente a
partir de uma memória dessas sensações.
O termo sensacionalismo, entretanto, possui diversas apro-
priações. No senso comum, serve como uma espécie de acusação,
sendo usado muitas vezes como sinônimo de imprecisão e de distorção
das informações (ANGRIMANI, 1995). Para Amaral (2005), o conceito
de sensacionalismo, freqüentemente utilizado para definir os produ-
tos jornalísticos populares, é amplo ao extremo, o que leva a equívo-
cos teóricos. Segundo a autora, o sensacionalismo corresponde mais
à perplexidade diante do desenvolvimento da indústria cultural no
âmbito da imprensa, do que a um conceito capaz de traduzir os pro-
dutos midiáticos populares. Sendo assim, a palavra passa a designar
com freqüência o jornalismo que privilegia a superexposição da vio-
lência por intermédio da cobertura policial e da publicação de fatos
considerados chocantes, distorcidos, usando uma linguagem que não
raras vezes apela a gírias, palavrões e inclui no seu repertório expres-
sões de fácil entendimento para os grupos populares.
Outros autores (SERRA, 1986; MARCONDES FILHO, 1989) atri-
buem uma função alienante a essa tipologia de notícia, arrogando à
imprensa sensacionalista uma radical mercantilização das sensações,
que assim se presta a satisfazer as necessidades instintivas do públi-
co e a desviá-lo de sua realidade. Daí o seu suposto potencial alienador.
Partindo do pressuposto de que o jornalismo constitui-se em
um instrumento iluminador da esfera pública, essas interpretações
ressaltam que, ao exagerar as informações, o jornalismo produz
distorções, fazendo com que a realidade pareça mais palatável em
comparação com o cotidiano midiático apresentado. Marcondes Fi-
lho (1989) vai mais além ao acreditar que as notícias de crimes ser-
vem para canalizar a rebeldia potencial das classes subalternas, asse-
gurando a normatização da sociedade a partir de uma narrativa mo-

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Marialva Carlos Barbosa


ral na qual o crime não compensa. Por meio desses jornais, o público
poderia transgredir a ordem simbolicamente, identificando-se
momentaneamente com o criminoso.
Para Amaral (2005), é simplista considerar o pressuposto de
que o jornalismo “mexe com as sensações físicas e psíquicas”, tal como
foi explicitado há mais de três décadas por profissionais e teóricos
que participaram na Semana de Estudos de Sensacionalismo, realiza-
da na Universidade de São Paulo (USP). Naquele encontro, Alberto
Dines (1971, p. 68-9), por exemplo, enfatizou o pressuposto de que
todo processo de comunicação é sensacionalista, já que o jornalismo
sublinha sempre os elementos mais palpitantes da história com o in-
tuito de seduzir o leitor.
Evidentemente que, quando estamos considerando o jornalis-
mo como sensacionalista, ou melhor, de sensações, não o fazemos ape-
nas porque esses textos apelam para as sensações físicas e psíquicas.
As sensações a que nos referimos encontram-se na relação da leitura
com o extraordinário, com o excepcional, aproximando esse tipo de
notícia do inominável. São sensações contidas nas representações
arquetípicas do melodrama e que continuam subsistindo nos modos
narrativos dessas tipologias de notícias. Tal como os gostos e anseios
populares – formados na longa duração – também as sensações desse
tipo de narrativa mesclam os dramas cotidianos – os melodramas –
em estruturas narrativas que apelam ao imaginário que navega entre
o sonho e a realidade.
Esse tipo de jornalismo pode ser caracterizado como de sen-
sações também porque estabelece como central a construção nar-
rativa de mitos, figurações, representações de uma literatura que
subsiste há séculos. Uma literatura que falava de crimes violentos,
mortes suspeitas, milagres, ou seja, de tudo o que fugia à ordem
instaurando um modelo de anormalidade. Mas uma anormalidade
baseada na presunção de uma normalidade também sensorial.2 Há,
portanto, permanências de um imaginário da longa duração que faz
com que os conteúdos dessa mídia reproduzam ainda hoje mitos de
um passado imemorial.
Se nos Estados Unidos, a origem do sensacionalismo – a cha-
mada penny press, em uma clara referência ao modesto preço de ven-
da avulsa – é localizada no final do século XIX, no contexto da rivali-

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Jornalismo sensacionalista ou de sensações?

dade entre o New York World e o Morning Journal, no Brasil, desde o


final do século XIX, a imprensa do Rio de Janeiro de grande tiragem
passou a incluir nas suas páginas os chamados crimes de sensação
ou as “notas sensacionais”, como se adjetivava na época.
A pergunta que devemos fazer é: por que os jornais só se tor-
nam populares quando privilegiam tal tipo de notícia?

O jornalismo dos anos 1920

Desde os anos 1910, as notas sensacionais invadiram as pági-


nas das principais publicações, mas foi na década de 1920, com o apa-
recimento de jornais diários dedicados inteiramente a esse tipo de
conteúdo, que as tragédias e sensações passaram a ser responsáveis
diretas pelo sucesso dessas publicações.3 Abandonando as longas di-
gressões políticas, os jornais passaram a exibir em manchetes, em
páginas em que editavam, em profusão, ilustrações e fotografias, os
horrores cotidianos.

É corrente entre certos jornais ilustrados do Rio a exibição de horro-


res. Qualquer crime ou acidente serve de pretexto para gravuras repe-
lentes: crânios abertos, braços decepados, olhos esgazeados e mãos
crispadas pela dor. Se é demasiado consagrar a notoriedade dos crimi-
nosos pela divulgação do retrato – a não ser nos casos em que tal publi-
cidade auxilie a ação policial – não se compreende essa maneira de
interessar os leitores. Que sadismo barato esse que se pretende atri-
buir ao nosso público! (O Paiz, 2 nov. 1916, p. 2).

O texto publicado no jornal O Paiz em 1916 é exemplar da po-


pularidade dessas notícias, que apelavam a toda ordem de sensações
do público. Envolvendo crimes, desastres, roubos, incêndios, enfim,
as tragédias diárias transportam para os textos um Rio de Janeiro
construído de lugares existentes e personagens perfeitamente
identificáveis. A sociedade parece de tal forma contida nessas narra-
tivas, que o leitor tem a impressão de ser partícipe daquela realidade.
Compondo o texto a partir de um mundo, o repórter gera um novo
mundo: um mundo que mescla realismo e romance, uma vez que a

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Marialva Carlos Barbosa


estrutura narrativa lembra a dos romances folhetins, ainda que os
personagens sejam retirados da realidade.
Podemos dizer que o que dá coerência a esses textos são os
leitores, que assim os constroem como unidades de sentido.

Abro os jornais à noite. Os jornais, no capítulo sensacional do crime,


ainda são o reflexo exato da curiosidade, do horror ou da piedade dos
leitores. Procuro os pormenores, a ânsia informativa em torno do crime
da porta do teatro Phenix. Notícias reprisadas e o ar enfadado que as
reportagens tomam, quando perdem interesse. Nada mais. O crime im-
pressionou nulamente o público. Por quê? (O Paiz, 2 dez. 1916, p. 1,
grifos nossos).

A crônica “Tragédia falha”, de João do Rio, ilustra o destaque


que os jornais dão ao “capítulo sensacional do crime”, o que para ele
reflete um sentimento ou uma apropriação da leitura de forma a apla-
car a curiosidade, manifestar o horror ou despertar a piedade dos
leitores.
Ao procurar transpor a realidade para a narrativa, o autor des-
sas notícias procura construir personagens e representações
arquetípicas. Quando consegue, faz com que a narrativa represente a
existência, atingindo diretamente o público. Não é a representação de
dados concretos que produz o senso de realidade, mas a sugestão de
uma certa generalidade. O público é, assim, movido tanto pelo inusi-
tado da trama, quanto pela participação – ainda que indireta – na vida
daqueles personagens. Essas notícias podem também inseri-lo em
ambientes estranhos. Podem também remontar à realidade como um
conto folhetinesco ou uma cena dos cinematógrafos. Produzem, en-
fim, elos de identificação com o público.
A edição fantasiosa deve, entretanto, ser apresentada dentro
de determinados parâmetros, entre os quais a verossimilhança é o
principal. É preciso construir narrativas em um meio termo, no qual a
realidade fique envolta numa atmosfera de sonho. Os elementos
passionais não podem ser ocultados, sob pena de não despertar o
interesse do leitor, mas ao mesmo tempo não é possível exagerar nas
tintas descritivas, sob pena de transportar a notícia para o lugar do
folhetim.

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Jornalismo sensacionalista ou de sensações?

Construindo textos-documentos, na esteira de um naturalismo


realista que também triunfa na literatura, os jornais procuram con-
vencer e seduzir, criando uma espécie de intimidade com o público,
interlocutor reconhecido e, sobretudo, identificado, que existe naquele
contexto comunicativo. A experiência do texto evoca a interação
discursiva permanente entre os veículos e o seu público.
Essa tipologia de notícia passa a ser, quase sempre, entremeada
por pequenos subtítulos que resumem o conteúdo, motivando a leitu-
ra ou possibilitando o entendimento a partir da visualização de bre-
ves elementos textuais. Não basta mais estampar na manchete a “Ex-
plosão Formidável”. É preciso particularizar, resumindo seu conteú-
do em pequenos subtítulos: “morteiro em estilhaços; um morto; mais
de trinta vítimas, a festa da Lapa dos Mercadores; como se deu o de-
sastre; no local; as providências; a polícia age” (Correio da Manhã, 6
set. 1912, p. 1).
As crônicas de época reproduzem com minúcias os sentimen-
tos e as sensações dos repórteres que trabalham na construção des-
sas tramas narrativas. O trabalho na redação de A Manhã, jornal que
faz dos crimes de sensação a razão de seu sucesso junto ao público
nos anos 1920, é retratado por Nelson Rodrigues.

No meu primeiro mês de redação, houve um desastre de trem que as-


sombrou a cidade. Morreram cem pessoas. Quando nós, da reporta-
gem, chegamos, muitos ainda agonizavam; e uma moça, com as duas
pernas esmagadas, pedia pelo amor de Deus: – Me matem, me matem.
Eu via, atônito, os vagões trepados uns nos outros. Lá estava a locomo-
tiva entortada. Um trem cavalgando outro tem. E o pior era a promis-
cuidade de feridos e mortos. De vez em quando, uma mão brotava das
ferragens. E um colega tropeçou numa cabeça sem corpo (RODRIGUES,
1977, p. 201-202).

Em seguida completa: “Houve um momento em que me encos-


tei num poste e tranquei os lábios, em náuseas medonhas. Um colega
achou graça: – Seja homem” (RODRIGUES, 1977, p. 201-202).
Na descrição percebe-se que os repórteres, em bando, dirigiam-
se rapidamente aos locais das tragédias, para transcrever nos jornais
as cenas visualizadas em toda a sua intensidade. Não havia tempo

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para a emoção, mesmo diante da dor e da agonia. Era preciso descre-
ver a tragédia urbana e estampá-la com as cores da violência nos
periódicos da cidade.
Segundo Nelson Rodrigues, a imprensa, naquele início dos anos
1920, “gostava de sangue. O futebol ainda não se instalara na primeira
página [...] A reportagem invadia o necrotério, a alcova, e fazia um
saque de fotografias e cartas íntimas” (RODRIGUES, 1993, p. 88).
O que levava esses periódicos a destacarem cada vez mais esta
tipologia de notícias? O que fazia com que fossem agora quase que
inteiramente dedicados às “tragédias que apaixonavam a cidade”
(RODRIGUES, 1977, p. 203)? Que tipo de sensação estas notícias cau-
savam no público? Por que se inundava a cidade, no limiar dos anos
1920, com notícias que descreviam toda sorte de barbaridades e hor-
ror?
As tragédias cotidianas descrevem conteúdos imemoriais, que
aparecem e reaparecem periodicamente sob a forma de notícias. Mu-
dam os personagens, não as situações. De tal forma que podemos
dizer que existe uma espécie de fluxo do sensacional que permanece
interpelando o popular a partir de uma narrativa que mescla o ficcional
com a suposição de um real presumido. São temáticas que repetem
os mitos e as representações que falam de crimes e mortes violentas,
de milagres, de desastres, enfim, de tudo o que foge a uma idéia de
ordem presumida, instaurando a desordem e um modelo de anorma-
lidade.

Comecei fazendo atropelamento [...]. Um dia, mandaram-me fazer um


pacto de morte na Pereira Nunes. Com mais confiança em mim mesmo,
inundei de fantasia a matéria. Notara que, na varanda da menina, havia
uma gaiola com respectivo canário. E fiz do passarinho um persona-
gem obsessivo (RODRIGUES, 1977).

A memória de Nelson Rodrigues, descrevendo sua introdução


no mundo do jornalismo, mostra que as narrativas fantasiosas dão o
tom das matérias policiais. Mesclando realidade e fantasia, devem des-
crever com minúcias todos os detalhes da trama, para que o leitor
possa se identificar e presumir – a partir da sua imaginação criadora
– a cena dramática colocada em evidência.

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Jornalismo sensacionalista ou de sensações?

Descrevi toda a história – a menina, em chamas, correndo pela casa e o


passarinho, na gaiola, cantando como um louco. Era um canto áspero,
irado, como se o passarinho estivesse entendendo o martírio da dona.
E forcei a coincidência: – enquanto a menina morria no quintal, o caná-
rio emudecia na gaiola (RODRIGUES, 1977).

À dramaticidade da cena era preciso acrescentar um aspecto


inusitado, algo que apelasse à fantasia do leitor. O passarinho não
poderia entender o martírio da dona, mas a descrição da imagem,
com o inusitado da proposta, traria aspectos fantásticos para a narra-
tiva e que não se explicam baseados no ideal racional. O irracional é a
marca principal dessas narrativas.
Entretanto, como pertence ao mundo do jornalismo, é necessá-
rio mesclar o ficcional e o imemorial com dados de uma pretensa rea-
lidade objetiva. A morte do canário seria, sem dúvida, um efeito ma-
gistral para a construção da carga dramática da notícia. Mas repre-
sentaria também a inclusão da inverdade, o que, do ponto de vista
das convenções do jornalismo, seria um desastre. A ficção jornalística,
como diz Nelson Rodrigues, obrigou a sobrevivência do canário.

Quase, quase matei o canário. Seria um efeito magistral. Mas como matá-
lo, se a rua inteira iria vê-lo feliz, cantando como nunca? O bicho sobre-
viveu na vida real e na ficção jornalística. E foi um sucesso no dia se-
guinte (RODRIGUES, 1977).

Os detalhes que apelam ao improvável voltam periodicamente


na trama relatada. Nelson Rodrigues-repórter vai buscar na sua me-
mória os elementos presentes na sua narrativa. Um repórter de su-
cesso naquela época tinha também imaginado a morte de um canário
em um incêndio que pela falta de carga dramática não poderia se cons-
tituir como texto memorável. Assim, Castelar de Carvalho inventou –
como ele agora fazia – o canário.

Entre parênteses, a idéia do canário não era lá muito original. Direi


mesmo: – não era nada original! Eu a tirara de uma velha e esquecida
reportagem de Castelar de Carvalho. Anos antes, ele fora cobrir um
incêndio. Mas o fogo não matara ninguém e a mediocridade do sinistro

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irritara o repórter. Tratou de inventar um passarinho. Enquanto o
pardieiro era lambido, o pássaro cantava, cantava. Só parou de cantar
para morrer (RODRIGUES, 1977, p. 202-203).

O jornalista-narrador conta “o que se passou efetivamente” ou


explica de que forma tomara conhecimento daqueles fatos, mas, so-
bretudo, transporta para o relato algo que já é, de alguma forma, do
conhecimento do público. Outra característica é a ênfase nos deta-
lhes singulares. Ao particularizar esses detalhes, o narrador constrói
uma seqüência textual na qual o leitor também pode se visualizar.
Lugares conhecidos, relatos comoventes de fatos que adquirem a mar-
ca da excepcionalidade. O fato e a trama evocam uma realidade, tra-
gédias que não puderam ser presenciadas, mas que foram sentidas
por intermédio da narrativa produzida pelos repórteres, que passam
a ver e ouvir por delegação e outorga desses mesmos leitores.
No processo de identificação induzido, o leitor/espectador se
comove e se aproxima – na dor e no medo – das vítimas. Está
construída a cena dual: o mau contra o bom ou a pessoa indefesa que
diante do inesperado pode perder a vida; o amor versus o ódio ou a
compaixão diante da dor alheia; a frieza em contraposição à inocên-
cia ou a certeza de que os limites entre ser vítima ou não dependem
meramente do acaso. Estão em cena os ingredientes fundamentais do
jornalismo sensacional, que apela para valores culturais, para o ima-
ginário e para as sensações de uma memória social e coletiva.
Narram-se acontecimentos que se constituem pelo seu aspecto
causal e pela coincidência. Existindo, perturbam a ordem pelo inusi-
tado, por estabelecer uma ruptura, produzindo anormalidade. São de-
sastres, assassinatos, raptos, agressões, acidentes, roubos, tudo o “que
remete ao homem, à sua história, à sua alienação, a seus fantasmas,
aos seus sonhos e aos seus medos” (BARTHES, 1965, p. 19). As notí-
cias construídas sobre esse tipo de conteúdo convertem-se em espé-
cie de grade de sentido, manejando em seu interior a idéia de destino
inexorável.
É preciso, pois, considerar essas publicações e seu conteúdo
no espaço da recepção, já que é neste universo que as mensagens
adquirem sentido. Assim, o leitor recebe um segundo tipo de instru-
ção contido no próprio texto: a edição. A disposição na página, a ilus-

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Jornalismo sensacionalista ou de sensações?

tração, os cortes produzidos na narrativa, a tipologia empregada, a


diagramação, tudo indica um leitor e uma forma de leitura.
O destaque dado à ilustração neste tipo de notícia mostra a
tradição existente no Ocidente ligando quase que obrigatoriamente o
texto à imagem, articulando o visível sobre o lisível (CHARTIER, 1993),
e também materializa a necessidade de este leitor produzir um texto
a partir da leitura que faz do visível.
Existe, pois, um protocolo de leitura que esses dispositivos tex-
tuais tendem a impor. Toda escrita inscreve nos textos convenções
sociais e literárias que permitem uma espécie de pré-compreensão, e
as formas narrativas escolhidas provocam efeitos de leituras quase
que obrigatórios. Esses protocolos induzem a maneiras de ler. Um
texto entrecortado, com o uso de expressões correntes, reproduzin-
do fragmentos de um cotidiano familiar faz supor um leitor que pro-
curava naquelas páginas a emoção, a sensação de veracidade, ainda
que entremeada por um mundo de sonho.
A dialética do fenômeno leitura inclui estratégias de persuasão
desenvolvidas pelo autor para atingir seu leitor potencial. Para isso
dispõe do recurso, só dele, de poder ler diretamente a alma de seus
personagens. De outro lado, deve-se levar em consideração o poder
de ilusão que se instaura pela estratégia de persuasão. Mas esta mes-
ma persuasão pode caminhar em uma outra direção: a retórica da
dissimulação ou da ironia pode, em vez de persuadir, produzir
estranhamento no leitor (RICOEUR, 1995).
Simulando a experiência vivida, essas narrativas se projetavam
fora delas mesmas. A narrativa falando de um outrem enfoca a rigor a
experiência do próprio leitor.
Trazendo seu mundo para as páginas daquela publicação,
ofertando seus sentidos para transformar a realidade sob a forma de
um texto, o leitor começava a preencher as lacunas deste antes mes-
mo de sua produção. O confronto existente entre autor e leitor come-
çava antes mesmo da produção textual. Caso a informação do leitor
fosse validada pelo jornal – transformando-se em notícias – seu mun-
do real se transformava em ficção impressa, passando a ser de um
universo abrangente de leitores.
Esses, por sua vez, preencheriam os vazios do texto, descobrin-
do lugares de indeterminação. Assim, o texto completaria seu itinerá-

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rio pela leitura, tornando-se obra, isto é, produção comum do autor e
do leitor. Essa leitura induziria a novas formas de ver o mundo, de
configurar a realidade, ao produzir interpretações que muitas vezes
retornavam às páginas do jornal sob a forma de novos textos, em um
círculo interminável de produção / leitura.
Narrativas emocionadas criam um mundo imaginado, fazendo
o público sentir-se participativo daquela realidade mitificada. Ao mes-
mo tempo que se informa sobre o mundo, o leitor estabelece relação
com o periódico. Pode admitir que os fatos descritos pelo jornal são
homólogos à realidade ou perceber exagero na descrição, de tal for-
ma que podemos afirmar que as relações estabelecidas entre o públi-
co e os periódicos se fazem em função das táticas e estratégias de
recepção.
Para construir um mundo tido como real, os periódicos irão
multiplicar as estratégias para transformar o verossímil. Se a criação
da verossimilhança se faz em um primeiro momento pela aproxima-
ção com as narrativas familiares, comuns e cotidianas, em um segun-
do instante verossímeis são esses textos que falam de um mundo co-
nhecido, mas que por ser semelhante é real e, portanto, verdadeiro.
Entre as convenções narrativas fundamentais estão aquelas que se
configuram como testemunho autêntico.
Deve-se considerar, ainda, que a notícia possui uma perenida-
de, fazendo com que cada texto tenha no subseqüente uma espécie
de continuação, oferecendo ao leitor a oportunidade de se familiari-
zar com aquela rede de textos. Dessa forma, pode em cada história
recapitular uma outra história.
As narrativas sensacionais produzem heróis isolados da socie-
dade, que podem ou não ser reincorporados ao mundo social, graças
ao seu poder de ação. Assim, as notícias deslocam a centralidade do
herói para o mundo comum. Descrevendo seres ordinários – como os
leitores – elevam também a sua capacidade de construir valores
miméticos (o leitor ora se identifica com o herói da tragédia, ora se
revolta com a iniqüidade do vilão), aumentando a idéia de
plausibilidade do fato narrado e o poder de verossimilhança da narra-
tiva.
Essa tipologia de notícias que tanto sucesso faz nos anos 1920,
na cidade do Rio de Janeiro, constrói heróis patéticos, perdedores,

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Jornalismo sensacionalista ou de sensações?

que, tais como os leitores, estão em posição inferior. De tal forma que
se deixam vencer pela trama narrativa. Seu fim normalmente é trági-
co. A morte materializa sua inferioridade em poder e inteligência.
Essa rede de textos ganha, portanto, significações múltiplas que
dependem fundamentalmente da tessitura da intriga construída
(RICOEUR, 1994, 1995), do grau de proximidade que estabelece com o
leitor, da possibilidade de instaurar uma espécie de modelo de mun-
do a partir das descrições. Cada começo induz a um fim esperado ou
inesperado que reproduz, em certa forma, a intriga grandiosa do mun-
do. Essas notícias de sensação são uma espécie de narrativa imanente,
cujo começo já pressupõe um desfecho esperado. Fazem parte, por-
tanto, de um fluxo imemorial, que reaparece, das mais diversas for-
mas, todas as vezes que tais estratégias narrativas ligadas às sensa-
ções são acionadas.

Notas

1
Este texto (com algumas alterações) foi apresentado originalmente no VI Congresso
Internacional Lusocom 2006, em conjunto com a professora Ana Lucia Silva Enne,
em Santiago de Compostela, em abril de 2006.
2
Essas temáticas que estão no centro desses relatos do jornalismo popular repetem,
com as inflexões necessárias ao tempo de sua construção, os mitos, as figurações, as
representações de uma literatura popular existente na Europa Ocidental, desde o
século XVI. Essa literatura popular falava dos crimes violentos, das mortes suspei-
tas, dos enforcamentos, dos milagres, ou seja, de tudo o que fugia à ordem instauran-
do um modelo de anormalidade. Roger Chartier (1987, 1991, 1993), ao estudar este
tipo de publicação, sublinha as múltiplas reconfigurações narrativas que estes tex-
tos sofreram para se adaptar aos padrões e hábitos de leitura do público em larga
escala.
3
Entre essas publicações, podemos citar Manhã, fundada por Mário Rodrigues, no
Rio de Janeiro, em 1925, e Crítica, criada pelo mesmo jornalista três anos depois.

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A NARRATIVA DA TELEVISÃO
E O UNIVERSO CULTURAL DO PÚBLICO

Partindo do pressuposto de que o público como consumidor


cultural realiza múltiplos usos dos materiais disponibilizados, pode-
mos dizer que o papel da televisão na sociedade contemporânea –
com suas imagens ininterruptas que colocam no ambiente do usuário
narrativas plurais – não se reduz a conformar a realidade social. Pro-
duzindo e reproduzindo significados plurais, elaborando respostas, a
narrativa televisual constrói réplicas significativas e inteligíveis den-
tro do universo cultural de seus públicos.
Apesar dessa constatação inicial, não podemos retirar dos
meios de comunicação seu papel de elaborador de um discurso
consoante a realidade social. Ao difundir uma narrativa do mundo
(ainda que selecionada entre múltiplas possibilidades factuais), a mídia
não é mero espelho da realidade, fazendo sempre um trabalho de
produção de significados, determinantes na constituição daquilo que
chamamos realidade.

Televisão e “Trabalhos de memória”

Os meios de comunicação realizam “trabalhos de memória”,


classificando o mundo para o público, selecionando e ordenando a
realidade social, tornando-se, dessa forma, “senhores da memória”
da sociedade. A primeira operação é selecionar o que será narrado.
Produzem, assim, escolhas, classificando o mundo, retendo assuntos
com os quais, em princípio, o público se identifica.
Em um primeiro momento, o mundo é apresentado como um
amontoado de fatos desconexos sem nenhuma lógica racional inter-
na. Nos noticiários, crimes aparecem ao lado de espetáculos popula-
res, da vitória grandiosa de um time de futebol, da felicidade daque-
les que ganharam um prêmio milionário. As tragédias cotidianas, pro-
duzidas pela revolta da natureza ou pela revolta social, são

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

entremeadas por narrativas que enfatizam particularidades


dissonantes do cotidiano. Entre essas peculiaridades figuram o exóti-
co, o exógeno e os desvios de uma espécie de destino inelutável. São
notícias sobre o nascimento em cativeiro de bichos que estavam em
extinção, de pessoas que saltaram, pelos desígnios da sorte, da con-
dição de miseráveis para a de afortunadas, entre múltiplos outros te-
mas.
Ao mesmo tempo, a narrativa considerada como verídica é
entremeada por outras que são colocadas de maneira apriorística no
mundo do ficcional. A grade de programação da televisão alterna o
texto que se refere ao mundo com aquele que constrói deliberadamen-
te um outro mundo. Mas mesmo com esta divisão e classificação dos
gêneros televisuais, observa-se um embaralhamento de sentidos.
O ficcional reproduz dados da realidade objetiva, da mesma forma
que o informacional contém réplicas de um mundo figurado. Mas essa
mistura constitui para o público uma representação conhecida e re-
conhecida da existência. Também o mundo em que ele vive não sepa-
ra em lugares estanques o sério e o risível, o real e o ficcional.
Após o ato de seleção memorável, realiza-se a segunda opera-
ção: a construção narrativa. Selecionando entre uma cadeia de fatos
aqueles que ganham significação e elaborando sobre eles um texto
inteligível para o público, produzem, diuturnamente, acontecimentos,
apresentados como rupturas. A partir de um modelo de normalidade,
considerado a priori, nas narrativas com pretensão a informar, pro-
duz-se a anormalidade, ao elevar um fato à condição de acontecimen-
to jornalístico.
Quando o universo narrativizado é o ficcional, também é a anor-
malidade o fio condutor da construção narrativa. Após mortes, julga-
mentos, heróis e vilões, céu e inferno, o mundo continuará nas mãos
dos sobreviventes esgotados. O tempo de crise é substituído pela res-
tauração da ordem. Mas os terrores que o precederam permanecem
na memória do público, esperando sua continuidade em outras nar-
rativas que reproduzirão o mesmo modelo. O fim que o ficcional colo-
ca na tela é compreendido pelo telespectador que, ao decifrar a men-
sagem, coopera com a construção da obra, tornando-se ele mesmo
autor.

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135

Marialva Carlos Barbosa


É evidente que o fato de realizar uma operação memorável que
os transforma em senhores da memória e do esquecimento dá aos
meios de comunicação, de maneira geral, o poder de fixar o presente
para um futuro próximo ou distante. Ao legitimar o acontecimento,
ao produzir a narrativa, divulgando-a, impõem uma visão de mundo
que atua outorgando poder.
Há que se considerar ainda que é dado ao produtor do discurso
o direito de falar de fatos, eventos, ocorrências que não foram
registrados na sua presença. Quando produz um discurso revestido
da carga informacional, os meios de comunicação são a priori produ-
tores de um discurso crível. Se a Igreja, o Estado, a Ciência puderam,
ao longo dos séculos, falar do passado, sendo seu discurso conside-
rado crível, aos jornalistas é dado no presente o estatuto de produ-
ção de um discurso acreditado como verídico.
Quando esse discurso é veiculado na televisão, a imagem ou-
torga à representação a presunção de reprodução do real, graças ao
estatuto privilegiado de sua construção ao longo de séculos como
reprodução da existência, como algo que figura o real. Mas se a ima-
gem na televisão figura o real, também figura o ficcional, materializan-
do o próprio imaginário social.
A narrativa imagética, por outro lado, instaura um paralelismo
sem precedente na temporalidade em cena pelo ato de narrar. Há a
construção da coincidência entre o tempo do ato de narrar e o tempo
do texto de contar. A ação se dá no instante da produção do ato
elocutório, fazendo com que o narrador seja associado aos eventos,
transformando-o em testemunha.
A narrativa da televisão – seja ela de que gênero for – produz a
transição entre a experiência que precede a construção do texto e a
experiência que lhe é posterior (a do público) e só ganha sentido
quando passa a figurar nesse novo mundo. Introduz uma espécie de
suspensão do tempo – o presente do telespectador – por um passa-
do que agora está na tela e é apresentado como presente vivido,
instaurando “o mundo das coisas contadas” (RICOEUR, 1995, p. 115-
116). Neste sentido, não há diferença entre narrativa ficcional ou
não ficcional. Daí também o embaralhamento de significações que o
público produz em relação aos gêneros televisuais, misturando
ficcional e factual.

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136
A narrativa da televisão e o universo cultural do público

Assim, a operação memorável não se esgota na construção da


narrativa pelos meios de comunicação. A última etapa do processo (a
terceira operação memorável) é a refiguração da narrativa pelo públi-
co, no instante em que se apropria da mensagem e produz uma outra
significação.
Só pode haver compreensão, se o significado produzido puder
ser aprisionado pelo leitor que dele fará múltiplos usos. E é nesse
sentido que dizemos que a televisão é produtora de significados e
não mera operadora que coloca em circulação mensagens destinadas
ao público, também ele produtor de significados. É o público, portan-
to, que, imaginando o tempo do ato (a partir do tempo contado), pre-
cipita a narrativa, condensando em eventos exemplares seus traços
duradouros.
É, portanto, na interação com o público, da relação que estabe-
lece entre o tempo da narração e o tempo da vida, por intermédio do
ato de contar, que a televisão operacionaliza seus textos. É neste ato
do contar que ocorre o diálogo do público com os meios de comuni-
cação, produzindo o que Barbero (1998) classifica como mediações.
Mediações como lugares dos quais provêm as construções que deli-
mitam e configuram a materialidade social e a expressividade cultu-
ral da televisão. É nos atos cotidianos do público, portanto, que se
pode enxergar as mediações, como atos configurantes e produtores
de novos sentidos.

A narrativa televisual

Na casa do telespectador, na sua rotina diária, irrompem ima-


gens que colocam em cena o ficcional, com todos os jogos temporais,
interpelando-o a partir desse lugar, e construindo uma tessitura que
remete às exigências dos leitores e atende às necessidades de expres-
são nas suas experiências privadas. Neste sentido, podemos dizer que
o tom coloquial, a produção de diálogos e a construção de persona-
gens arrancados do mundo comum não devem ser explicados apenas
como simulação do que é familiar para o público, e sim como exigên-
cia dos telespectadores, que a partir do texto compõem sua própria
expressividade.

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Marialva Carlos Barbosa


Essa expressividade faz das práticas da oralidade a forma mais
contundente do diálogo da televisão. Assim, a sua construção imagé-
tica se estrutura sempre em modos que recuperam a materialidade
da oralidade. Mesmo nas narrativas que têm a pretensão de informar,
o lócus de produção discursiva se dá em um ambiente que reproduz
cenas da oralidade. Nos telejornais, por exemplo, os locutores-jorna-
listas apresentam-se sempre em dupla, reproduzindo um diálogo no
qual o público é peça fundamental. Falam olhando diretamente para
o telespectador que é imaginado na cena. Nos últimos anos, essa es-
tratégia foi exacerbada com a construção de cenários que reprodu-
zem salas de visita, onde os locutores principais (sempre em dupla)
esperam a entrada em cena de um novo personagem: o comentarista
especializado. Os três, na sala de visita do telejornal, reproduzem
diálogos múltiplos, conversas, que materializam cenas cotidianas e
diárias de um mundo oralizado.
Outro ponto central da narrativa da televisão é a instauração
de uma temporalidade particular e de contornos em torno do tempo
de contar e do tempo levado para contar (RICOEUR, 1995). A simulta-
neidade dos diálogos com a produção do próprio acontecimento, nas
narrativas jornalísticas da TV, muitas vezes produz um hiato no tem-
po, fazendo com que se produza uma espécie de coincidência entre o
ato de contar e o tempo que o narrador leva para contar. O passado
torna-se presente na cena e provoca uma suspensão no presente vivi-
do pelo telespectador que passa a figurar na narrativa, compondo um
novo presente: o presente contado da narrativa.
O improviso da cena, como recurso ao tempo presente, se, por
um lado, produz a sensação de imediatismo, por outro permite trans-
crever quase que simultaneamente os sentimentos experimentados e
suas circunstâncias. A retórica do improviso, construída de maneira
freqüente pela televisão, promove a aproximação do texto ao senti-
mento. Daí a permissividade para a emoção, para sentimentalismos
que irrompem muitas vezes na narrativa informacional que, em prin-
cípio, precisaria de um distanciamento. Mas a narrativa da televisão
entremeia esse improviso com uma idéia generalizada de documenta-
ção, sobretudo nos textos com pretensão à verossimilhança, conside-
rando, portanto, a falibilidade da memória do narrador e a necessida-
de de recorrer ao escrito como prova material da existência.

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

Ainda que a televisão seja dependente da idéia de fluxo televisual


(WILLIAMS, 1990), da qual o zapeamento é a lógica mais evidente, o
público é capaz de regular seu tempo vivido pela grade de programa-
ção das emissoras. O relógio contemporâneo é o relógio midiático,
que faz com que cotidianamente possamos produzir uma demarca-
ção temporal a partir da lógica narrativa da televisão, como já
enfatizamos anteriormente. Saímos antes ou depois do Jornal Nacio-
nal, jantamos antes ou depois da novela das oito, acordamos para ver
o primeiro telejornal do dia.
A programação que se repete – todos os dias haverá as nove-
las, os mesmos telejornais, e todas as semanas os programas se dis-
tribuem de maneira fixa pelos dias certos na grade de programação
das emissoras – introduz uma temporalidade particular marcada
inexoravelmente por novos começos. Assim, a matriz cultural do tem-
po organizado pela televisão é dependente da lógica da repetição e
do fragmento. Instaura-se, portanto, o tempo ritual que é ao mesmo
tempo rotina.
A televisão tem como fundamento a repetição, que causa a sen-
sação de durabilidade. Sabemos que o telejornal durará 20 minutos,
que a telenovela terá exatos 30 minutos e assim por diante. Além dis-
so, cada um desses programas – mesmo os não ficcionais – voltará no
dia seguinte, continuando a narrativa da véspera, produzindo a idéia
de continuidade. Para o público, portanto, cada um daqueles textos
replica e reenvia aos anteriores, pertencentes ao mesmo gênero
televisual. Há, pois, múltiplos tempos incluídos na grade da progra-
mação: o tempo do telejornal, o tempo da telenovela, o tempo dos
programas humorísticos, e assim por diante. Os tempos são
construídos pelas tipologias narrativas que aparecem nos mesmos
dias da semana e nos mesmos horários.
Finalmente, deve-se considerar o que Jesus Martin-Barbero
(1998) denomina de competência cultural. Ou seja, existe um lugar
próprio para a televisão e é deste lugar que ela fala com o público e,
sobretudo, produz a especificidade das suas narrativas. Como per-
tencente à cultura de massa, a televisão vai-se adequar às regras esté-
ticas de seu gênero e atuar culturalmente por meio delas. O público
irá reconhecer nos múltiplos textos produzidos gêneros plurais, ati-
vando competências culturais a partir da produção narrativa. É por

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Marialva Carlos Barbosa


esta razão que Barbero enfatiza o fato de os gêneros constituírem uma
forma de mediação fundamental entre os sistemas produtivos e os de
consumo, acionando modos de ler e usos diferenciados.

Práticas culturais

Pensar a narrativa da televisão é trazer para o centro do debate


primeiramente a questão da cultura e, em segundo lugar, a reflexão
sobre o popular e visualizar que toda cultura requer uma atividade,
um modo de apropriação, uma adoção e uma transformação, ou seja,
um intercâmbio instaurado na sociedade.
Por outro lado, falar em cultura de massas é perceber a cultura
no plural tal como concebe Michel De Certeau.1 Não se trata de colo-
car de um lado competências culturais populares e de outro compe-
tências culturais de grupos considerados inseridos em outro lugar na
sociedade. Há que se entender que a cultura é plural também no sen-
tido de que sempre haverá trocas culturais múltiplas entre os vários
grupos na mesma sociedade. Ainda que haja na sociedade dicotomia
cultural, há sempre influxo reflexivo de uma cultura sobre a outra.
O esforço de De Certeau em ultrapassar uma visão que
sedimenta as exclusões sociais, também a partir do olhar que postula
uma teoria verdadeira, é semelhante ao que foi realizado por Bakthin.
Ambos procuraram desmanchar a tradição que construía o conceito
de cultura dividido em níveis hierárquicos. Essa cultura partida entre
os grupos sociais que detinham ou não o poder na sociedade era em
grande medida decorrente de uma pré-conceituação que dividia as
significações das ações humanas em níveis diferenciados: de um lado
o erudito e de outro o popular.
A partir da disseminação da obra de M. Bakthin (1987), que co-
loca em cena o conceito de circularidade da cultura, passou-se, cada
vez mais, a considerar na análise não mais a subordinação de uma
cultura a outra, mas trocas recíprocas entre os diversos grupos so-
ciais. Ainda que com resistência, como mostra Carlo Ginzburg, no pre-
fácio de O queijo e os vermes (1987), decorrente da persistência da
concepção aristocrática de cultura.

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

Com freqüência, diz ele, as idéias originais são consideradas


como produzidas pelas classes superiores e sua difusão pelas classes
subalternas como algo raro e sem maior interesse. A maioria das ve-
zes considera-se que essa migração produz deterioração e deforma-
ção das idéias durante o processo de transmissão.
Bakthin mostra, ao analisar a obra de Rabelais, que embora haja
naquele mundo uma dicotomia cultural, há também circularidade, in-
fluxo recíproco entre cultura subalterna e cultura hegemônica (1987,
p. 17-21). A partir dessa idéia mestra, Ginzburg procura produzir uma
etnografia do mundo popular, ainda que faça isso a partir da escrita
transformada em documentos por aqueles que detinham o poder da
palavra na Europa pré-industrial.
A noção de circularidade da cultura coloca em cena a idéia cen-
tral de que em uma dada sociedade os grupos sociais produzem re-
presentações de mundo, crenças, significações, que são transmitidas
dialogicamente a outros grupos, em um processo nítido de constru-
ção de hegemonia e contra-hegemonia, no sentido gramsciniano do
termo.
Se cada discurso possui em si mesmo múltiplas vozes, também
o discurso que se materializa em significações (símbolos, tradições,
maneiras de ver e expressar o mundo, valores) pelos quais os ho-
mens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas
atitudes perante a vida, ou seja, a cultura, também carrega dentro
dessas significações vozes dialógicas.
Sem querer definir e nem mesmo enfocar as múltiplas discus-
sões que se desenvolvem em torno da conceituação de cultura, e par-
tindo da premissa da complexidade do conceito (WILLIAMS, 2000),
procuramos estabelecer filiações teóricas que possibilitam o alarga-
mento do olhar sobre a questão cultural. Neste sentido, a noção de
circularidade de Bakthin é fundamental para se enfeixar as múltiplas
acepções do conceito de cultura, identificando-o como modo de vida
ou modo de luta, se quisermos empregar a conceituação clássica de
Thompson (1961). A cultura é a experiência comum, a forma como
cotidianamente desenvolvemos nossas ações – como processos – na
sociedade.
Adotando-se a premissa de Michel De Certeau (2001), a cultura
não é um tesouro a ser protegido, nem um conjunto de valores a ser

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Marialva Carlos Barbosa


definido. A cultura é um trabalho que é realizado em toda a extensão
da vida social. Abandona-se a celebração da cultura no singular por
uma outra centrada no plural, identificando-se, na atividade cotidia-
na, a expressão cultural.

De Certeau e a liberdade “gazeteira” das práticas

Para De Certeau, as expressões culturais são produzidas com o


vocabulário das ferramentas, dos utensílios, das vestimentas e dos
gestos cotidianos. Assim, não seria possível estabelecer como norma
da cultura a forma literária ou artística, “digamos elitista, que toma
essa prática do desvio”. “Mas essa morada, o traje, a bricolagem, a
cozinha, as mil atividades urbanas ou rurais, entre familiares ou ami-
gos, as formas múltiplas do trabalho profissional constituem também
campos onde a criação surge por toda parte”. E conclui:

O cotidiano está semeado de maravilhas, espuma tão fascinante, nos


ritmos prolongados da língua e da história, quanto a dos escritores ou
dos artistas. Sem nome próprio, todas as espécies de linguagens dão
origem a essas festas efêmeras que surgem, desaparecem e retornam
(2001, p. 245).

Central para a definição dessa cultura no plural, como “manei-


ras de fazer” das invenções e criatividades cotidianas, é a construção
de dois outros conceitos: estratégias e táticas.
Para De Certeau, a construção de um novo modelo de com-
preensão da realidade social e das ações nela desenvolvidas, procu-
rando superar os limites do padrão científico dominante, passa ne-
cessariamente pela definição dessas duas noções. Diz ele: “chamo de
estratégia o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se
torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e
poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição cien-
tífica) pode ser isolado”.
A estratégia “postula um lugar suscetível de ser circunscrito
como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações
com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os con-

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

correntes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e


objetos da pesquisa etc.)”. Estratégicas, portanto, são as ações e con-
cepções próprias de um poder na gestão de suas relações com o seu
“outro”.
Em relação às táticas, De Certeau as define como ações calcula-
das e determinadas pela ausência de um próprio, sendo o movimento
que se executa dentro do espaço de ação do inimigo e por ele contro-
lado. Elas não têm, portanto, a possibilidade de criar um projeto glo-
bal, nem de dominar o adversário num espaço distinto, visível e
objetivável. Operam golpe por golpe, lance por lance. Aproveitam as
ocasiões e delas dependem, sem base para estocar benefícios, aumen-
tar a propriedade e prever saídas (2001, p. 99-101).
O que as táticas ganham não se conserva. Este não-lugar lhe
permite, sem dúvida, mobilidade, mas em uma docilidade aos azares
do tempo, para captar no vôo as possibilidades oferecidas por um
instante. “Tem que utilizar, vigilante, as falhas que as conjunturas par-
ticulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar.
Cria ali surpresa. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia”. A
tática é comandada pelos acasos do tempo e determinada pela ausên-
cia de poder, assim como a estratégia é organizada pelo postulado de
um poder (DE CERTEAU, 1994, p. 100-101).
Ao discutir a ação criativa cotidiana, De Certeau produz uma
crítica ao binômio poder versus resistência, postulado por Michel
Foucault (1982). Ao apresentar as estratégias do poder disciplinar (os
dispositivos), procedimentos técnicos minúsculos que atuam sobre
detalhes, distribuídos nos espaços e nos corpos, Foucault produz –
apesar de visualizar a questão da resistência – uma visão de poder
enquanto lugar de forças dominantes. Esse poder opaco se define pela
falta de proprietário, de lugar privilegiado, de hierarquias, de ativida-
de repressiva, tornando-se eficaz por sua capacidade tecnológica de
distribuir, classificar, analisar e individualizar. A partir dessa
constatação, procura denominar e classificar as regras gerais, as con-
dições de funcionamento, as técnicas e os procedimentos, as opera-
ções, os mecanismos, princípios elementares que compõem a sua
microfísica do poder. Ao designar o binômio poder-resistência,
Foucault supõe um vínculo indelével para dinamizar os lugares, as

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Marialva Carlos Barbosa


posições, que assim passam a depender do poder como princípio e
fim absoluto.
Contrário a esta dinâmica explicativa, De Certeau considera a
pluralidade de resistências, que não dependem unicamente do poder.
Os procedimentos populares, minúsculos e cotidianos se articulam
com os mecanismos de disciplina nas dobras e nos vínculos, nas fím-
brias imperceptíveis, armando-se para transformá-los. E esses proce-
dimentos constroem-se criativamente como aparentemente mudos da
voracidade do poder. Essas maneiras de fazer proliferam contaminan-
do quase que microscopicamente o interior das estruturas tecno-
cráticas, modificando-as mediante multiplicidade de técnicas tendo
como base o cotidiano. Esses procedimentos, essas táticas, essas as-
túcias criam, por fim, uma atmosfera de antidisciplina.
De Certeau acredita na liberdade interior dos não-conformis-
tas, mesmo quando estão reduzidos ao silêncio. Silenciosamente mo-
dificam ou desviam a liberdade imposta. Respeita a resistência e a
mobilidade que esta introduz, já que crê firmemente na “liberdade
gazeteira das práticas”. Esses usuários instituem usos diferenciados
dos produtos e regras, desenvolvendo táticas desviantes, que, “em-
bora sejam relativas às possibilidades oferecidas pelas circunstâncias,
não obedecem à lei do lugar”.
O que distingue as táticas das estratégicas são os “tipos de ope-
rações” realizadas nos espaços nos quais as estratégias existem para
produzir, mapear e impor. Contrapondo-se às imposições, as táticas
utilizam esses modelos, mas produzindo alterações.
Procurando construir um outro modelo para a explicação cien-
tífica, no qual a separação entre o saber que contém o discurso e o
corpo mudo que o sustenta (1983, p. 15) não se estabeleça, De Certeau
influencia decisivamente os estudos de comunicação, instaurando um
modelo de análise que considera os “usos” que o público faz da mídia,
realizando operações de tradução, de integração, de construção de
proposições relativas aos seus universos cotidianos. Assim, “à pro-
dução racionalizada, expansionista e centralizada, ruidosa e espeta-
cular da televisão”, diz ele, corresponde sempre outra produção astu-
ta, silenciosa e quase invisível, que opera com as maneiras como os
sujeitos dela se utilizam e como as consomem.

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

Na Invenção do cotidiano (1994), De Certeau jamais emprega a


expressão usuários para designar aqueles que utilizam a mídia. Sua
preocupação é analisar os usos, aquilo que ele chama “maneiras
de fazer” que os indivíduos produzem a partir dos materiais que os
meios de comunicação colocam à disposição. Quando se refere aos
indivíduos, fala de consumidores culturais ou praticantes.
As mensagens que chegam a esses praticantes são alvo de in-
venções e criatividades cotidianas, que aparecerão nos seus gestos
mais simples e corriqueiros. Essas operações correspondem a uma
arte muito antiga de “fazer com”. A esse “fazer com” De Certeau (1994)
dá o nome de usos. Ao pesquisador cabe reconhecer nesses usos as
ações que têm suas formalidades e inventividades próprias e que or-
ganizam em silêncio o trabalho cotidiano do consumo. A idéia central
é a de que o público se apropria ativamente das mensagens culturais
que lhe são destinadas, sem ser receptor passivo. Ao contrário, são
consumidores culturais ativos que fabricam sentidos com as imagens
que lhes são oferecidas pelos meios de comunicação.
Em relação à televisão, diz textualmente:

A análise das imagens difundidas pela televisão (suas representações)


e os tempos dedicados a assistir televisão (um comportamento) de-
vem ser completados pelo estudo daquilo que esse consumidor cultu-
ral fabrica durante essas horas e com essas imagens (1994, p. 93).

Portanto, nas análises sobre a televisão é fundamental recupe-


rar o terceiro trabalho de memória, aquele que é realizado pela apro-
priação criativa do público.
Constatando a existência de uma espécie de fosso entre as re-
presentações oferecidas pelas mensagens e aquelas apropriadas pe-
los usuários, a posição metodológica de Michel De Certeau consiste
precisamente em tentar descrever esses usos. Para isso, apóia-se na
distinção introduzida pela lingüística entre performance e competên-
cia, aplicando esses conceitos ao conjunto de práticas corriqueiras
de comunicação e de consumo.
Na lingüística, performance não é competência. O ato de falar
(e todas as táticas enunciativas que ele introduz) não se reduz ao
conhecimento da língua. Na perspectiva da enunciação, há o ato de

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Marialva Carlos Barbosa


falar – que opera no campo de um sistema lingüístico – mas há tam-
bém a apropriação e a reapropriação da língua por locutores, instau-
rando um presente relativo a um momento e lugar precisos, colocan-
do um ator em contato com um outro (interlocutor), em uma rede de
lugares e relações.
Essas características do ato enunciativo – o ato de falar, a apro-
priação da língua pelos locutores, a instauração de uma determinada
temporalidade, operacionalizada em um espaço, pressupondo neste
contato com outro uma rede de relações e lugares sociais – podem
ser encontradas, segundo ele, em outras práticas, como andar, cozi-
nhar, ver televisão, ler, entre inúmeras outras presentes no cotidiano.
A arte operatória dos usuários – que consiste, a maior parte do
tempo, em agir de maneira diferente do que esperam os responsáveis
pela difusão e pela programação dos mercados culturais – leva à cria-
ção de espaços de incertezas e de invenções permanentes. Os usuá-
rios têm o poder de transformar, abandonando o que é sugerido pela
indústria cultural.
A análise das práticas de leitura constitui um dos exemplos
favoritos do autor. Duvidando da passividade da leitura, vê esse tipo de
construção como ideológica (a do consumo-receptáculo), necessária
em uma sociedade que distingue e privilegia os produtores do discurso.
Suas descrições das atividades de leitura realizadas pelos
usuários ilustram, de maneira decisiva, de que forma estes se des-
viam e se movimentam de maneira própria nesses lugares de signos
heterogêneos. “Percursos através da página, metamorfoses do texto
pelo olho que viaja, vôos imaginários ou meditativos a partir de algu-
mas palavras, transposições de espaços sobre as superfícies militar-
mente dispostas do escrito, danças efêmeras” (DE CERTEAU, 1994,
p. 265-271). Não é possível na sua concepção separar a leitura e o
texto legível (livro, imagem etc.). O texto só se completa pela ativida-
de de leitura, tornando-se texto somente na relação com o leitor, “por
um jogo de implicações e de astúcias entre duas espécies de expecta-
tivas combinadas” (DE CERTEAU, 1994, p. 265-271). De um lado aque-
la que organiza o espaço legível (uma literalidade) e de outro a que
organiza a competência necessária para efetuar a obra (uma leitura).
Ler é, portanto, produzir ainda que silenciosamente. Uma pro-
dução que deriva das páginas, metamorfoseada do texto pelo olho do

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

viajante. O mesmo olho que improvisa significações a partir de algu-


mas palavras constrói sentidos nos espaços escritos e nos vazios,
produzindo a dança efêmera da leitura. O leitor se transporta para o
texto, fazendo-se plural com os barulhos do seu corpo. Rotas, meta-
morfoses, combinações. A produção do texto, como leitura, é tam-
bém uma invenção da memória, transformando o lisível em memorá-
vel. Um mundo diferente (o do leitor) se introduz no lugar do autor
(DE CERTEAU, 1994, p. 265-271).
Reconhecendo a atividade inventiva e criativa do leitor, enfatiza
o fato de este não se reduzir a simples consumidor passivo da mídia.
A noção de consumo, por outro lado, toma um sentido diferente da-
quele que lhe atribui o modelo clássico de economia de mercado. O
consumo constitui-se como prática de criação de significados cultu-
rais, associado às formas e aos conteúdos das mensagens com as quais
os usuários são colocados em contato por intermédio dos meios de
comunicação. Essa visão mostra o ato comunicacional como proces-
so de co-produção simbólica, no qual o ator-sujeito-receptor é cha-
mado a se movimentar em uma floresta de signos e de símbolos de
consumo. Movimento que pressupõe uma prática e uma transforma-
ção do objeto, desenvolvidas, quase de maneira invisível, em atos,
muitas vezes não compreendidos. Os atores-consumidores se trans-
formam, por meio do processo de consumo cotidiano (seja midiático
ou não), em sujeitos autônomos.
A passividade dos consumidores é substituída pela convicção
de que há criatividade nos gestos mais simples. Criatividade escondi-
da em caminhos por vezes silenciosos e sutis, de tal forma que “cada
um inventa uma maneira própria de caminhar através da floresta dos
produtos impostos”. Os usuários podem, pois, aceitar ou negociar as
significações das mensagens dominantes da indústria cultural (Idem,
ibidem).
Tal como os produtores, também os usuários realizam um tra-
balho específico, no qual são construídas diversas traduções que
permitem a aproximação entre os seus universos e os dispositivos
técnicos, uns e outros claramente delimitados. Os objetos são os
mesmos, mas os dispositivos técnicos apenas ganham sentido, quan-
do colocados em relação aos usos, ao entorno, ou seja, em relação à
cultura. São os processos, as ferramentas e os atores sociais que

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dão sentido aos dispositivos. Deve haver nessa relação materialida-
des das práticas e apropriações realizadas pelos atores sociais envol-
vidos nesses processos.

E o popular?

Não é possível pensar as práticas cotidianas que a televisão


instaura e a forma como também no cotidiano suas mensagens são
compreendidas sem pensar na constituição do massivo a partir do
popular. Como produtos culturais polissêmicos, os textos televisuais
oferecem ao público ampla significação e, sobretudo, amplo entendi-
mento que inclui a forma como essas mensagens são ressignificadas
a partir do popular.
Também na forma como deve ser visto o popular, a partir das
mensagens midiáticas, a noção de circularidade da cultura de Bakthin
(1987) é fundamental. O popular está no massivo, nos interpelando,
como diz Barbero (1998), como também o massivo interpela o popu-
lar. Não se trata, pois, de definir o conteúdo televisivo como sendo de
bom ou mau gosto, a partir de parâmetros previamente definidos. Tra-
ta-se de enxergar nas narrativas da televisão esses lugares de produ-
ção textual, mas, sobretudo, de reconhecimento.
As narrativas da televisão apelam para valores caros ao popu-
lar, tal como a dramatização do real, a materialização do universo das
emoções sempre apelando para o sensorial, para os jogos na forma
de dizer. Narra-se de forma exagerada, utiliza-se o paradoxo, a paixão,
a emoção. Tudo o que a pretensa alta cultura chama de mau gosto.
Daí o reconhecimento dos grupos populares, presentes nessas narra-
tivas que de certa maneira recriam o seu cotidiano.
Daí também a presença de narrativas que têm como base o exa-
gero, do qual o melodrama é o exemplo mais bem acabado. Pode-se
pensar também, como Barbero, que a melodramatização de tudo, tal
como aparece na televisão, é uma espécie de vingança que os grupos
populares impõem pela abstração na qual as suas vidas foram coloca-
das. Assim, o melodrama seria uma espécie de recuperação da me-
mória popular pela indústria cultural e ao mesmo tempo metáfora

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

indicativa dos modos de presença do povo na massa (BARBERO, 1998,


p. 320).
Para De Certeau (1994), a cultura popular manifesta-se como
forma singular de resistência, uma resistência astuciosa que remete à
idéia de jogo, trapaça, mecanismos de recusa de estratégias e ao mes-
mo tempo construção de táticas para assimilação. Prevê a existência
de um usuário que faz com, que utiliza – com esperteza e sabedoria –
as referências culturais produzidas na sociedade e transforma, a par-
tir de seus próprios recursos, essas referências, realizando aquilo que
vai classificar como as artes de fazer. Tal como Gramsci (1987), tam-
bém De Certeau está considerando o popular como uma posição
(construída de forma conflituosa) frente ao hegemônico. A diferença
é que Certeau vê saídas nos gestos simples empreendidos no cotidia-
no. A saída está na produção de táticas, a partir das estratégias colo-
cadas em cena pelo grupo hegemônico.
O que chamamos de linguagem televisiva é, pois, o resultado
de um processo de entrelaçamentos de múltiplas linguagens e gêne-
ros midiáticos – considerando a produção de discursos hegemônicos
e contra-hegemônicos ou, se quisermos, estratégias e táticas que re-
metem ao exercício das artes de fazer produzido pelo público – ten-
do, como pano de fundo, duas outras questões fundamentais: a ima-
gem e o imaginário. Nessa linguagem, observa-se o amálgama de prá-
ticas culturais que se revelam em modos próprios de contar histó-
rias, ora dependente da convenção de veracidade, ora dependente da
convenção de ficcionalidade.
Essas dependências, entretanto, não invalidam o embaralhamen-
to de fronteiras que remete à produção dos discursos cotidianos, na
qual também se contam histórias em que o informacional é revelado
pelo exagero das formas do ficcional. Esses regimes são dependentes
de estratégias narrativas produzidas em regimes de historicidade pró-
prios. No caso brasileiro, a televisão organiza o imaginário, em redes
híbridas, nas quais se entrelaçam o real e o fantástico, a vida e a ima-
ginação.
A lógica da vida em capítulos – um dia após o outro –, como a
própria existência, é remontada pela narrativa da televisão, que as-
sim produz uma estratégia fundamental de ilusão da realidade, ao
mesmo tempo que se torna presença obrigatória no cotidiano. Tal

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como a vida que ocorre dia após dia, também a televisão constrói sua
narratividade dia após dia, acompanhando em progressão a vida e,
por isso mesmo, sendo parte constitutiva da própria existência.

Imagem e imaginário

Lorenzo Vilches, em seu livro La lectura de la imagem (1995),


afirma que nenhuma imagem é um espelho virgem porque contém
previamente a imagem do espectador. As imagens na comunicação
são textos culturais que contêm um mundo possível, incluindo a
imagem do espectador. Os textos revelam ao leitor sua própria ima-
gem.
Ao fazer essa afirmação, Vilches está propondo que a imagem é
um construto da realidade de natureza cultural e que contém elemen-
tos que possibilitam não apenas o entendimento, mas também o re-
conhecimento do telespectador.
A imagem é, pois, um texto visual que contém aspectos formais
e temáticos que obedecem a regras e estratégias precisas de elabora-
ção. São essas estratégias que constituem uma espécie de modo de
organização que permite o reconhecimento do telespectador.
As imagens a que assistimos na televisão possuem diversas ma-
térias significantes compreensíveis para o público: sinais visuais (ima-
gens múltiplas que constroem o movimento), sinais auditivos (fala,
música, ruídos, silêncio) que com freqüência ajudam a criar a ilusão
de mundo natural ou real.
A produção de imagem, algo eminentemente humano, é uma
atividade dialética que continuamente supera a si mesma no ato de
sua existência e nos nexos estabelecidos com o que chamamos cultu-
ral e historicamente de realidade. De percepção aberta e polivalente,
as imagens originam-se na argúcia ativa e ordenadora, por meio da
qual aquele que a produz só ganha existência pela presença do outro
que a vê. Nesse jogo de espelhos, surgem interpretações plurais, fa-
zendo das imagens não objetos passivos de visualização, mas elemen-
tos ativos de interpretação.

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

A imagem é, portanto, uma narrativa que gera estímulo, que


permite aos sentidos perceber e também diz respeito ao imaginário
relativo a uma determinada realidade histórica.
Etimologicamente, imaginário deriva de imagem. Podemos dizer
que as imagens constituem espécies de armaduras indispensáveis ao
imaginário, mesmo não o reduzindo apenas às representações sensí-
veis. Observa-se em cada imagem uma mistura de elementos nos quais
figuram aspectos que chamamos “reais” e outros que pertencem à or-
dem do ficcional e que precisamente constituem a lógica do imaginá-
rio.
Mas como definir imaginário e, sobretudo, como considerar a
questão do imaginário? A partir de uma idéia, que coloca em evidên-
cia arquétipos imemoriais que nada têm a ver com a estrutura objeti-
va e material da existência humana? Ou a partir das mudanças que
consideram ser fundamental a formulação de estruturas imaginárias
a partir das modificações que se operam na base material da socieda-
de?
Sem querer tomar partido de uma ou de outra posição, pode-
mos considerar que a contemporaneidade produziu medos específi-
cos que são decorrentes de condições materiais e mentais que forja-
ram algumas expectativas: o medo do fim inelutável decorrente da
base tecnológica da sociedade é um deles. Como diz Lucian Bóia
(1998), o dilúvio contemporâneo é a guerra nuclear.
Deve-se também suplantar a dicotomia entre real e imaginário
e renunciar à idéia de razão como medida de todas as coisas. O imagi-
nário se mistura àquilo que consideramos realidade e se confronta
com ela. Aí acham seus pontos de apoio e ao mesmo tempo o seu
meio hostil. Devemos pensar também que cada época histórica pro-
duz reações similares do homem diante da vida e do mundo, fundan-
do uma espécie de unidade mental, estruturada por mitos ou repre-
sentações arquetípicas. São essas representações fundamentadas,
sobretudo, em imagens (mentais ou “reais”) que chamamos imaginá-
rio.
Em relação à “realidade”, o imaginário desempenha uma espé-
cie de papel compensatório. Trata-se de criar estratégias narrativas
compensando as desilusões, construindo uma espécie de tela contra
os medos e inventando soluções alternativas. Fim do mundo,

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milenarismo, utopias, exacerbação das alteridades, personagens pro-
videnciais, práticas ocultas e tantos outros cenários construídos para,
de certa forma, fazer com que a desesperança seja ultrapassada pelo
regime da imaginação que o imaginário instaura.
Estudar as imagens da televisão significa também enfocar es-
sas estruturas do imaginário que aparecem nos seus textos, cons-
truindo uma ordem social envolta em uma atmosfera de sonho. E,
nesse sentido, é debruçar-se sobre o imaginário entendido como pro-
dução de representações de ordem social, por atores sociais em rela-
ção no mundo (hierarquias, domínios, obediência, conflito etc.).
Falar em linguagem televisual é, pois, colocar em cena o imaginário e
referir-se a aspectos que manifestam as representações do público.
Na medida em que o imaginário torna-se inteligível e comunicá-
vel por meio de textos, nos quais figuram as representações coleti-
vas, tendo a obra como instrumento, podemos dizer que a televisão
atua diretamente sobre ele construindo um sistema simbólico a par-
tir da experiência social de seu público, de seus desejos, aspirações,
medos, inseguranças, anseios e recusas.
O imaginário na organização imagética do mundo constrói a
realidade, que é apreendida e comunicada. Como categoria de análise
é composto de duas partes: a primeira recolhe na produção de ima-
gens de um tempo e lugar (o já-dito) os sentidos possíveis que atuali-
zam aquele discurso na sua singularidade e historicidade. E a segun-
da reflete a realidade por meio do que já foi produzido.
A nova imagem é, assim, sempre matizada por imagens laten-
tes, fazendo com que novos sentidos sejam adquiridos em situações
particulares, mas ao mesmo tempo enunciem traços anteriores. Um
exemplo que podemos dar é a figuração da morte na contemporanei-
dade. Se ao mesmo tempo há a convicção de que o corpo material do
ser humano é sempre um duplo, constituído de uma parte material e
outra imaterial (corpo e alma), a idéia de morte carrega uma rede de
sentidos permanentemente atualizados. A morte é finitude, mas é tam-
bém a possibilidade de volta imaterial. A separação entre o mundo
dos vivos e o dos mortos jamais é absoluta. Existem espécies de
portas que permitem a passagem de um lado para o outro (o que
é explorado pelas narrativas midiáticas, caracterizando uma
espécie de êxtase mítico). Os espíritos podem estar entre nós –

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A narrativa da televisão e o universo cultural do público

nessas narrativas figuradas – criando espécies de almas que voltam


para cumprir um destino que se quebrou antes do tempo.2
Ao lado desse aspecto que opera o já dito, o imaginário possui
uma dimensão criativa, estabelecendo novos comportamentos e nor-
mas sociais. Quando se reflete hoje, por exemplo, sobre a representa-
ção feminina, podemos pensar na imagem de Eva como uma espécie
de evocação do pecado, da sensualidade, do mal. Mas nessa figura
mitológica há ainda uma rede de sentidos que remete à Antiguidade:
serpente, árvore, mulher, nudez, vegetal, símbolos associados à figu-
ra de uma Deusa onipotente e criadora. No símbolo da mulher que
cria o ser, figura uma série de sentidos acumulados, fazendo com que
o símbolo seja uma espécie de amálgama de significados. Assim, o
imaginário é criador daquilo que chamamos realidade, ao mesmo tem-
po que é também criado, em uma circularidade de ação, que impede
de dizer onde está o instituidor e onde está o instituído.
A televisão, com suas construções diárias e cotidianas, tam-
bém produz uma espécie de realidade a partir de uma criação inces-
sante e indeterminada de formas, figuras, imagens a partir das quais
se pode falar de alguma coisa. Assim, a televisão, mais do que ima-
gem, é imaginário.

Notas

1
Cultura no plural é o nome de um livro de Michel De Certeau que reúne artigos produ-
zidos entre 1968 e 1973, reunidos em um volume com este título, cuja primeira edi-
ção é de 1974. Em essência, como define Luce Giard no prefácio, o objetivo do autor
é enfocar a vida social e a inserção da cultura nessa vida (2001, p. 9).
2
Estamos nos referindo explicitamente à novela Alma gêmea (Rede Globo de Televi-
são, 2006, 18 horas) cujo enredo destaca a volta de um espírito no corpo de uma
nova mulher, para, dessa forma, reencontrar em outra vida a sua alma
gêmea, representada pelo grande amor de sua vida.

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ÚLTIMO PERCURSO: A CONEXÃO JORNALISMO E HISTÓRIA1

O desenvolvimento dos estudos de mídia nos últimos anos tem


sido considerável. Se até os anos 1980, o jornalismo foi tema freqüen-
te de pesquisas que procuravam demarcar, desde o final do século
XIX, as práticas profissionais e a construção narrativa dos periódi-
cos, sob os mais variados aspectos, a partir da década de 1980 procu-
rou-se sistematizar o acúmulo de conhecimentos de quase um século
em torno do que ficou conhecido como as Teorias do Jornalismo ou
Teorias da Notícia, como conceitua Nelson Traquina (1993, 2001).
Essas teorias se valeram, sobretudo os estudos em torno do
jornalismo, da aproximação com as teorias sociológicas. Assim, a so-
ciologia forneceu uma espécie de legado teórico que serviu de base
para a construção dessas reflexões em torno do fazer jornalístico.
Essa base sociológica foi determinante para que se privilegias-
se o viés cultural, relegando a segundo plano, sobretudo, nos últimos
anos, a questão ideológica que envolve, necessariamente, a proble-
mática da construção das notícias, via constituição dos acontecimen-
tos.
A aproximação dos estudos de jornalismo da sociologia possi-
bilitou uma série de estudos inovadores, e, sobretudo, serviu de base
para o estabelecimento do que alguns consideram teorias específicas
voltadas para o campo jornalístico. Não pretendemos fazer um inven-
tário destas teorias, nem do caminho do seu desenvolvimento ao lon-
go do século XX, trabalho já realizado de forma profícua por alguns
autores (TRAQUINA, 2001; SOUZA, 2002). O que pretendemos é mos-
trar como a teoria da história pode ser fundamental para a complexi-
ficação dos estudos de jornalismo.

A interpretação

A primeira razão de a aproximação com a história ser funda-


mental para os estudos de jornalismo diz respeito às perguntas que o

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Último percurso: a conexão jornalismo e história

pesquisador faz ao empreender a sua pesquisa. Se a aproximação com


a sociologia forneceu referenciais teóricos indispensáveis para des-
crever os múltiplos fenômenos agregados à ação jornalística, essa
base não se preocupa em empreender uma análise no sentido de res-
ponder aos porquês dessas ações, essencialmente relacionados aos
regimes de historicidade. A maioria dos estudos constata o que acon-
tece, não destacando a questão da interpretação, que envolve as ra-
zões de tal fato ocorrer dessa e não de outra forma.
Assim, o que estamos enfatizando é o fato de a história se preo-
cupar com as razões, as causas, os porquês. E a inclusão dos porquês
nos estudos de jornalismo pode levar as pesquisas a um outro pata-
mar. Não se trata apenas de dizer que a mídia pode determinar como
pensar ou sobre o que pensar,1 mas por que isso acontece em um espa-
ço social considerado, com determinadas especificidades, que difere
fundamentalmente do que ocorre em outro espaço. Neste sentido, o
historicismo é fundamental.
Considerar a história não é necessariamente realizar estudos
históricos, mas se valer da teoria da história para empreender a aná-
lise. E o principal postulado da historiografia refere-se à questão da
interpretação: não se trata de recuperar o que de fato ocorre (até por-
que o que de fato ocorre não pode jamais ser recuperado, como vere-
mos mais adiante ao discutir a questão da verossimilhança), mas de
interpretar – a partir da subjetividade do pesquisador – as razões de
uma determinada ação social.
Deve-se ter consciência histórica, uma vez que o homem em si
mesmo, como enfatiza Agnes Heller (1993), é historicidade. E consciên-
cia histórica é consciência da mudança. É preciso visualizar o aqui e o
agora, do ponto de vista da concepção de um presente que se liga ao
ontem e ao anteontem, sempre em contraposição ao hoje. É nesse pro-
cesso que visualizamos a mudança, base essencial de qualquer teoria.
Aliás, foram ações de comunicação – e atos jornalísticos em
particular – que instauraram o palco da difusão da consciência do
mundo histórico. A divulgação de maneira massiva das questões hu-
manas possibilitou a inauguração de um estágio da consciência histó-
rica: a consciência de um mundo universal. Na nossa época, como
enfatiza Heller, é conveniente comparar nossos mesquinhos assuntos
privados com a imensa escala da história universal, e o jornalismo,

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Marialva Carlos Barbosa


neste sentido, exerce papel fundamental. Com isso, acabam-se as his-
tórias no plural e passa a existir apenas a história, a história univer-
sal, a história do mundo, e a consciência do mundo histórico passa a
ser a da universalidade. É o que Heller (1993, p. 33) chama de o quinto
estágio da consciência histórica: a da universalidade refletida ou cons-
ciência do mundo histórico.
O jornalismo trabalha com um tempo fundamentalmente dife-
rente do da história. A presunção dos atos jornalísticos é ocorrer no
tempo presente, o tempo real, razão pela qual é necessário construir
textualidades que se valem fundamentalmente da argumentação. Se o
presente prova, em certa medida, o futuro, ele precisa ser conhecido,
descrito e, ao mesmo tempo, constituir-se como objeto de reflexão.
Daí também a importância dos estudos que envolvem questões
jornalísticas, encharcados dessa consciência do presente e, portan-
to, da consciência da universalidade refletida, se considerarmos como
norteadora da análise a teoria da história.

A narrativa ou “tempo de contar e tempo contado”

A segunda questão importante de uma aproximação dos estu-


dos de jornalismo da teoria da história diz respeito ao fato de tanto o
produto da história como o do jornalismo, em um certo sentido, se-
rem os mesmos: uma narrativa.
Assim, o jornalismo como a história contam histórias. Na His-
tória, o passado, seja remoto ou recente, próprio ou de outrem, é o
relato. A história é uma história (HELLER, 1993, p. 71). Também o jor-
nalismo é uma história, já que, se valendo de um sentido de tempo
presente, conta histórias em relação a este nosso aqui agora.
Contar uma história, acrescenta Heller (1993), significa estar
no mundo. É dessa forma que se organiza a informação a respeito do
mundo em que o evento ocorreu,3 podendo-se, a partir dessa organi-
zação, informar de modo coerente sobre o que, como e por que o
evento ocorreu daquela forma. Se o jornalismo faz exatamente esse
exercício, no desvendamento de sua ação interpretativa, o pesquisa-
dor deve recuperar na sua análise a questão da narratividade ou, como
enfatiza Paul Ricoeur (1995), reflexões em torno do tempo de contar e

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Último percurso: a conexão jornalismo e história

do tempo contado. Ao relatar um acontecimento ou ao transformar


um evento em acontecimento, a partir de sua publicização, o jornalis-
mo instaura – tal como o texto ficcional também o faz – o mundo con-
tado.4
O mundo contado é estranho ao locutor (no caso, jornalista) e
ao ouvinte. O jornalista presente no palco do acontecimento relata o
que viu ou ouviu, mas não é ele em si mesmo construtor da ação. É
por meio da sua narrativa que o leitor se insere no mundo das coisas
contadas. Por outro lado, a perspectiva de locução marca na narrati-
va, pelo emprego dos tempos verbais, a diferença entre o tempo do
ato (o que ocorreu) e o tempo do texto (tempo contado). Esta é uma
das razões pela qual o jornalismo utiliza invariavelmente nos textos
informativos tempos verbais que marcam a defasagem da ação em
relação à produção do texto (passado simples, por exemplo).
A ação descrita pelo jornalista no presente é, por outro lado,
retrospectiva, fazendo com que o passado se prolongue no aqui ago-
ra. Comentando os fatos passados, o jornalismo retém esses mesmos
fatos no presente, ainda que seja fundamental acrescentar nos textos
do mundo contado marcas que distinguem a verdade da ficção: os
documentos, por exemplo.5
O texto jornalístico, portanto, é uma narrativa que recupera um
tempo vivenciado por um outrem, narrado por um locutor, que ins-
taura o tempo das coisas contadas. Esse mesmo narrador seleciona
de um conjunto de acidentes uma história completa e una, ou “tece a
intriga” para utilizar a expressão cara a Paul Ricoeur (1994, 1995, 1996).
Pressupor, portanto, a questão da narrativa nos estudos de jor-
nalismo é instaurar uma discussão fundamental em torno da questão
da temporalidade e das convenções narrativas formadas em regimes
de historicidades precisos. O que o jornalismo pretende é compor
um texto que reproduz o que se passa no mundo. Poderíamos então,
repetindo a frase de Ricoeur (1995, p. 23), perguntar: “Quantas con-
venções e quantos artifícios serão necessários para escrever a vida,
compondo um simulacro persuasivo?”

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Marialva Carlos Barbosa


Um conhecimento como episthéme

O terceiro aspecto a ser considerado como um possível legado


que a teoria da história pode fornecer aos estudos de jornalismo diz
respeito à consciência crítica que está mesmo no cerne de seus pos-
tulados mais fundamentais.
Quando o homem é capaz de questionar e criticar seu presente
(o nosso agora mesmo, nas palavras de Heller), rejeitando-o e denun-
ciando-o como sem sentido, do ponto de vista do passado e de um
ideal futuro imaginado, pode distinguir então entre o presente históri-
co e a idade presente. Dar sentido a alguma coisa, continua a pensa-
dora alemã, significa mover os fenômenos e as experiências para den-
tro do nosso mundo, transformando o desconhecido em conhecido,
o inexplicável em explicável, produzindo uma alteração no mundo a
partir de ações significativas (1993, p. 86).
Mas essa consciência crítica, quando aplicada à construção de
uma teoria fundamental, não quer dizer tomar uma atitude concreta.
Está aí exatamente a diferença entre conhecimento verdadeiro
(episthéme) e a simples opinião (doxa). Queremos saber o que presu-
midamente ocorreu no século XIX não para punir ou reprovar o res-
ponsável. Também o que nos move não é curiosidade, nem diversão.
Ou seja, não há necessariamente um sentido pragmático na produção
de conhecimento. O que faz o conhecimento verdadeiro não é voltar-
se para um comportamento de uso prático imediato. A história não
serve de lição para o presente.
O que produz o conhecimento verdadeiro, construindo, assim,
a teoria, é exatamente a visão crítica. E é essa visão crítica que trans-
forma a teoria da história em uma espécie de médium para lidar com
os problemas do passado. A mesma visão crítica, se aplicada aos es-
tudos de jornalismo, pode transformar sua teoria em uma espécie de
médium para lidar com os problemas do presente.
Aqui se coloca um segundo aspecto no que diz respeito à rele-
vância. Assim como a historiografia não decide o que é passado – já
que depende fundamentalmente do grau de consciência histórica que
vai opor o novo ao velho, construindo, desta forma, o passado histó-
rico –, qualquer outra teoria também não decide sozinha o que pos-
sui relevância no presente. O que será objeto de estudo – mesmo que

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Último percurso: a conexão jornalismo e história

a reflexão refira-se ao nosso aqui agora – está na dependência do grau


de consciência que faz desse presente o presente histórico.
Mas o que será decifrado, pela interpretação, está sempre loca-
lizado no presente. É neste sentido que a história trabalha com vestí-
gios que chegam ao presente sob a forma de mensagens e sinais. Sem
vestígios, não há passado. Compreendendo o vestígio como mensa-
gem, vinculando-o à possibilidade de conter uma mensagem, no pre-
sente, atribuindo um valor a esses vestígios no presente, produz-se a
interpretação indispensável na ação histórica. Para contar uma histó-
ria devem existir vestígios, a predisposição para ler e a leitura, isto é,
a interpretação crítica. A historiografia implica, pois, em leituras de
mensagens sobre algo considerado como ausente no nosso aqui ago-
ra, a disponibilidade para visualizar nos indícios a mensagem (méto-
do) e sua leitura (a crítica). Para a teoria da história é fundamental o
que aconteceu, como aconteceu e, sobretudo, por que aconteceu. Essa
é, talvez, a principal contribuição que a utilização dos postulados da
teoria da história pode fornecer aos estudos em torno de questões de
comunicação e do jornalismo em particular. Deve-se pensar em uma
dimensão histórica e perceber que a ação jornalística se dá em um
presente encharcado de um grau de consciência refletida sobre a
história.

Particularidades ou princípios orientadores

Outro aspecto que gostaríamos de enfatizar diz respeito à


questão das generalizações. Particularizar é um dos princípios
orientadores da teoria da história. Ao proceder uma interpretação,
não se pode generalizar as conclusões para todos os contextos, já
que cada espaço social possui uma conformidade histórica, uma
trajetória particular.
A produção da interpretação histórica está intimamente rela-
cionada à conformação de um espaço social particular. Pensar histo-
ricamente pressupõe contextualizar os espaços sociais em uma ca-
deia de fatos, eventos, ocorrências, costumes, instituições que se con-
formam como um fluxo (antes e depois).

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Marialva Carlos Barbosa


Esse tipo de olhar impede generalizações que muitas vezes não
se aplicam aos espaços sociais considerados. Apenas a título de
exemplo, não podemos dizer que no Brasil o jornalismo, enquanto
atividade remunerada, se desenvolveu no bojo do princípio da
liberdade de imprensa. Se nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, o processo de industrialização da sociedade, com o avanço
da escolarização, urbanização, inovações tecnológicas, ao lado da
implantação de regimes políticos nos quais o princípio da liberdade
da imprensa era sagrado, foram fundamentais para o desenvolvimento
profissional da atividade jornalística, no Brasil deve-se considerar as
especificidades de seu próprio regime de historicidade. Assim, a
profissionalização se deu exatamente pelo vínculo estreito com a
sociedade política em regimes de completa falta de liberdade de
imprensa.
A rigor, o que possibilitou o desenvolvimento profissional do
jornalismo no país foi a construção de seu papel como o único inter-
mediário possível entre o público e o poder público, construindo-se
simbolicamente como o elo de ligação indispensável entre a fala de
um público, sem voz, e a sociedade política. Com isso, transformou-
se em uma instância privilegiada de poder real e simbólico. Além dis-
so, construindo textos que apelavam para valores emocionais e para
o cotidiano dos grupos populares, a imprensa, a partir do início do
século XX, fazia das sensações uma arma fundamental para alcançar
o gosto do público. Ficcional e real se mesclavam em textos que cons-
truíam uma narrativa próxima dos regimes de ficcionalidade, mas que
falavam de um real presumido. Observa-se, pois, que, no país,
profissionalização não quis dizer autonomização do campo literário
ou político, ao contrário. Isso nem na primeira fase de sua
profissionalização, nem em um segundo momento, já na década de
1950.6
Por outro lado, a construção de um ideal de neutralidade do
texto – fazendo com que as convenções narrativas da informação se
fizessem presentes – não impediu a valorização permanente da opi-
nião, o que pode ser explicado, também, em função de sua dependên-
cia do chamado bacharelismo ilustrado. A influência do direito nos
primeiros tempos deixou marcas históricas indeléveis na conforma-
ção da narrativa jornalística, das quais, por exemplo, o valor da opi-

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Último percurso: a conexão jornalismo e história

nião é talvez a mais significativa. Nesse processo, deve-se levar em


consideração o analfabetismo da sociedade, o que favoreceu o apa-
recimento de práticas de leitura oralizada e a valoração da opinião
como conformadora essencial da narrativa jornalística.
Assim, mais do que servir à democracia, o ethos profissional do
jornalista desenvolve-se na esteira do papel de intermediário possí-
vel (e outorgado) entre o poder e o público. Já que não há cidadania
suficiente para a população falar e chegar às cercanias do poder, cabe
ao jornalismo o papel auto-instituído de intermediar as chamadas
causas do povo. A relação estreita com a política também é explicável
a partir do modelo de cultura profissional desenvolvida historicamen-
te, ou seja, a sedimentação de seu papel como o intermediário dos
temas políticos, decifrados para um público não só sequioso de novi-
dades, mas, sobretudo, sequioso de ser incluído – ainda que apenas
ao tomar conhecimentos dos fatos – no mundo da política.
A explicação histórica nos leva necessariamente a entender as
questões sociais dentro das dimensões de espaço e tempo, ou seja,
perceber as mudanças espaço-temporais de uma questão social. Pen-
sar socialmente os atos jornalísticos significa, em outras palavras, re-
construir, interpretar, dar um sentido presumido a essas questões em
uma dimensão espaço-temporal.

Temporalidade ou “os jogos com o tempo”

Não é somente porque existe no ethos profissional de jornalista


uma maneira própria de sentir o tempo (SCHLESINGER, 1993), ou por-
que os jornalistas devem mobilizar seu saber profissional em tempo
útil (deadlines) que a questão da temporalidade é importante para os
estudos de jornalismo. Não se trata apenas de constatar que os jorna-
listas têm uma relação particular com o tempo.7
A questão da temporalidade envolve uma gama muito mais com-
plexa do que a constatação de que a cultura profissional do jornalista
governa uma determinada apropriação particular da categoria
temporalidade.
Assim, é preciso considerar, em primeiro lugar, que
temporalidade é uma categoria conceitual que pode ser definida como

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o modo de inscrição das atividades humanas na duração. O
pertencimento ao tempo (e o seu uso) é a relação que as pessoas e a
sociedade estabelecem com a duração e o fluxo do tempo (POMIAN,
1984). O tempo é, portanto, um processo histórico que se constrói
como uma arquitetura, dentro de regimes de historicidade. Tal como
a história é humana, também o tempo é algo dos homens.
Como mostra K. Pomian, há sempre uma superposição de tem-
pos. Ao lado do tempo coletivo – solar, religioso e político –, o tempo
biológico ou psicológico. Ao lado do tempo da natureza (biológico e
físico), o tempo da sociedade. Ou ainda, o tempo pode ser quantitati-
vo, presumidamente mensurável, como o tempo da física, ou qualita-
tivo, repleto de valores e significações próprias. É essa multiplicidade
de tempos que constitui a arquitetura temporal de cada época,
construída a partir das experiências humanas, modeladas por cren-
ças e representações.
Neste sentido, também na sociedade contemporânea há uma
multiplicidade de apreensões temporais, o que constitui a arquitetu-
ra temporal de nossa civilização. Para Pomian, deve-se considerar essa
construção arquitetônica dos seres humanos como um processo no
qual têm importância as idéias de cada época, determinadas pela ação
do ser no mundo. E é nesse fluxo processual que temos a sensação de
que vivemos hoje orientados para um futuro infinito, o que produz
uma espécie de dilatação do tempo e a necessidade de atualização
permanente (tempo real) do que se passa no mundo. Neste sentido, o
jornalismo é uma das instituições conformadoras daquilo que
Chesnaux (1996) chama tempo-mundo.
Se o jornalismo é responsável direto pela construção dessa ar-
quitetura temporal da civilização contemporânea (ao lado de outras
instâncias, como, por exemplo, os atores do mercado financeiro), a
sua prática profissional só poderia ser cada vez mais governada por
uma idéia particular de tempo. Pensar assim, isto é, os ditames da
cultura profissional em relação ao contexto de sua produção, é, pois,
pensar historicamente a questão do tempo.
Por outro lado, a narrativa – e o texto jornalístico é uma narra-
tiva no sentido conceituado por Paul Ricoeur – instaura a experiência
do tempo. Ao produzir o texto, o que se faz é mediar a experiên-
cia cotidiana antes e depois da narrativa. Pressupõe-se, pois, uma re-

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Último percurso: a conexão jornalismo e história

lação mimética entre o tempo da narração e o vivenciado, que não


está presente no discurso.
É por intermédio do texto que se suspende o presente vivido
pelo passado da narrativa. A narrativa pertence, sempre, ao mundo
das coisas contadas, não havendo, pois, diferença entre ficcional e
não ficcional. A diferença está nas convenções. Enquanto o jornalis-
mo é governado pela convenção de veracidade, as narrativas literá-
rias são governadas por convenções de ficcionalidade.
Historicamente, o jornalismo é governado pela convenção do
verossímil. Transformado em testemunho, transvertido da idéia de
testemunho autêntico, o verossímil passa a ser igual a verdadeiro.
Como testemunha autêntica, o jornalista deve desenvolver a habili-
dade de se fazer acreditar. É necessário, pois, multiplicar não só as
convenções narrativas, como também as convenções profissionais.
Por outro lado, o ato da narrativa torna o ausente presente e
inclui nele mesmo duas temporalidades distintas: o tempo levado para
contar e o tempo contado. Deve-se levar em consideração ainda que
contar é um ato memorável que implica em eleição, exclusão, sele-
ção.
O ato de contar histórias pressupõe, sobretudo, ouvintes e quan-
to mais significativa e marcante for a personalidade do narrador, mais
seremos levados por ele a acreditar que a história se passou exata-
mente como está sendo contada. É preciso considerar ainda que toda
história é contada na perspectiva de seu epílogo.
O jornalismo trabalha o tempo todo contando histórias que pres-
supõe importantes para o nosso agora. Neste sentido, norteia-se por
um dos postulados mais fundamentais da teoria da história: a conjun-
tividade (HELLER, 1993). Sendo narrativas históricas, no sentido lato
do termo, possuindo as prerrogativas da conjuntividade no seu pró-
prio âmago, o estudo de jornalismo, entretanto, pouco tem-se valido
do que a teoria da história coloca ao seu alcance.
Com isso esquecemos também que, no instante em que viemos
ao mundo, fomos colocados dentro de um presente histórico, que exis-
te como uma espécie de arcabouço no interior de um fluxo (passado
– presente). Não temos, portanto, possibilidade de rejeitar esse pre-
sente histórico. Nossas experiências, ações e interpretações são sem-
pre modeladas por ele. Situá-las, conceituá-las, expressá-las significa

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Marialva Carlos Barbosa


produzir sentido. E é isso que se espera de qualquer produção cientí-
fica de conhecimento.

Notas

1
Originalmente apresentado no II Congresso Luso-Brasileiro de Estudos Jornalísticos
e IV Congresso Luso-Galego de Estudos Jornalísticos, no âmbito da Universidade
Fernando Pessoa, Porto, em Portugal, em março de 2005.
2
Como enfatiza Traquina (2001, p. 64-65), as propostas apresentadas por diversos
teóricos para compreender o jornalismo e responder à pergunta básica inicial – por
que as notícias são como são? – são mais complexas do que a explicação fornecida
no início dos anos 1950 pela teoria do gatekeeper. Assim, segundo o autor, depois de
muitos estudos realizados sobre o jornalismo, ao longo de várias décadas, é possível
“esboçar a existência de várias teorias, que tentam responder à pergunta por que as
notícias são como são, reconhecendo o fato de que a utilização do termo teoria é
discutível porque pode também significar aqui somente uma explicação interessan-
te e plausível e não um conjunto elaborado e interligado de princípios e proposi-
ções”.
3
Numa simplicidade estonteante, Heller explica: “Naquele tempo havia um homem; e
nós contamos sua história. Naquele tempo havia um rei que tinha três filhos; e narra-
mos suas histórias miraculosas. Naquele tempo havia um caçador que acertou a
caça, levou-a para casa, cozinhou e a comeu – e nós contamos suas histórias tri-
viais.” Mais adiante, mostra com uma clareza digna de nota, como o relato se cons-
trói como unidade organizada de informação, indicando ao homem que ele está no
mundo: “O caçador atirou na caça, assim ficamos sabendo sobre sua espingarda.
Cozinhou-a e nos informamos de que tinha como acender fogo. Os filhos do rei en-
contraram o lobo, o dragão, a fada, a princesa. No campo de concentração, nossos
pais encontraram outros prisioneiros de guerra, carcereiros e guardas (bons e maus);
tiveram de enfrentar punições, fome e um frio gélido [...] Uma história significa um
‘estar-no mundo’”. (HELLER, 1993, p. 71).
4
Segundo Harald Weinrich (1973), os tempos verbais distribuem-se de acordo com
três eixos de comunicação: a situação de locução, na qual existem dois mundos, o
mundo contado e o mundo comentado; a perspectiva da locução, produzindo uma
defasagem entre o tempo do que ocorreu (do ato) e o tempo do texto; a questão do
relevo dado ao texto, quando por intermédio da narrativa se destacam certos con-
tornos, rejeitando-se outros para pano de fundo.
5
Consideram-se documentos tudo o que está revestido de uma função de registro e
fixação do real presumido, tal como os testemunhos, os textos de todas as ordens,
os monumentos e também os vestígios inscritos em inúmeros objetos.
6
Sobre a historicidade da profissionalização da imprensa no início do século XX, ver
Barbosa (2000). E sobre a segunda fase, isto é, os anos 1950, ver Ribeiro (2000).
7
Schlesinger(1993, p. 189) enfatiza que os jornalistas têm uma relação fetichista com
o fator tempo, produto de uma cultura profissional própria.

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Coleção Biblioteca EdUFF

O cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-1920)


Norberto Osvaldo Ferreras

Em busca da boa sociedade


Selene Herculano

História do anarquismo no Brasil - V. 1


Rafael Borges Deminicis e Daniel Aarão Reis Filho (orgs.)

O poder de domar do fraco: construção de autoridade e poder


tutelar na política de povoamento do solo nacional
Jair de Souza Ramos

Cruéis paisagens
Ângela Maria Dias de Brito Gomes

Literalmente falando
Solange Coelho Vereza

Rotas atlânticas da diáspora africana: da baía do Benim


ao Rio de Janeiro
Mariza de Carvalho Soares (organizadora)

Terras Lusas: a questão agrária em Portugal


Márcia Maria Menendes Motta (organizadora)

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Este livro foi composto nas fontes: Cheltenham e Swiss swa.
Impresso na gráfica Estúdio Gráfico Quatro Pontos,
em papel Reciclatto 75g (miolo) e Cartão Supremo 250g (capa).
Esta edição foi impressa em agosto de 2007.
Tiragem: 500 exemplares.

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