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O MERCADOR DE FRUTAS PODRES
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Primeiro Arco
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Somos ainda jovens,
ainda temos mais tempo
do que esses velhos políticos
que estão estragando nossos
dias.
Ainda temos muito
tempo, podemos juntos
transformar o mundo,
vamos preparar a terra
para as super-mulheres
e alguns homens.
Damos as mãos e
vamos mudar o jogo!
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Livro dedicado a Maria Suely de Quadros Amaral.
“Mãe, quando sua voz entra no meu coração é como tocar
em ouro, beijar um anjo, voltar a ter todo o tempo do
mundo…”
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Panorama 1
2001 – Capital
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roubar algo que já foi roubado?
***
Há uma velha que está apertando todos os tomates, por
enquanto não colocou nenhum no cesto, ela estragará todas as
minhas frutas. Certamente assisti-la é um exercício de paciência.
Preciso controlar a ansiedade.
Coloco a mão no queixo com o cotovelo apoiado no
balcão. As cabeças passeiam de um lado para o outro. E o tédio
pode ser pego no ar. Denso como o ar de um velório.
Um homem na casa dos 40 anos coloca o cesto ao lado
da balança. Deslizo o cotovelo pelo balcão até a balança, sem
tirar a mão do queixo, começo a pesar e precificar as frutas,
tubérculos e legumes. Ao mesmo tempo somo os valores na
velha calculadora que funciona com luz solar.
“São 44 com 50 centavos” digo para ele que retira sua
carteira do bolso traseiro e dela algumas cédulas, algumas
moedas. Conta e depois alcança.
Abro o caixa e atiro o dinheiro para dentro. O homem
me encara “não vai conferir as moedas?”
“Não precisa, confio no senhor” digo colocando suas
compras dentro das sacolas.
“Certo, muito obrigado” diz pegando as sacolas,
compenetrado caminha para a saída em passos rápidos.
Sei que a soma do dinheiro está incorreta, nas suas
compras sempre faltam alguns trocados, mas nunca o cobrei. Ele
não sabe que sei da sua vida. O homem está desamparado,
trabalha como servente de pedreiro, sustenta dois filhos e ainda
compra remédios para sua mãe. Eles moram numa modesta casa
no final da rua que por sinal está com o aluguel atrasado. Sua
esposa morreu no parto e desde então ele tenta prosseguir da
forma que dá. O inferno dele já arde demais, não preciso
dificultar ainda mais as coisas. Inclusive oferecerei um crédito
para ele que provavelmente não pagará, mas não faz mal. Espero
que passe por cima do seu orgulho e aceite o crédito.
A velha que apertava os tomates agora faz o mesmo com
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os chuchus, outro cliente coloca as compras sobre o balcão. É o
meu cliente mais assíduo, está aqui todos os dias e escapar de
uma conversa com ele é quase impossível. Tem técnicas muito
boas para puxar assunto.
“Como tem passado?” Pergunta ao esvaziar seu cesto.
“Muito bem e você?”
“Nada bem, Netúnio. Sabe aquelas dores na coluna que
comentei?”
“Lembro sim” na verdade não lembro.
“Passei no médico, são hérnias de disco, bem no meio,
na T7 e T8. Será necessário um longo tratamento.”
“Sinto muito, Rocha.”
“Não sinta. Sairei dessa” ele sorri, após completa com
uma piscadela.
Sei aonde ele quer chegar com a conversa. Foi a deixa
para poder recontar a história do seu “sangue”. De como os
Rochas são fortes e trabalhadores. O mesmo papo chato de um
homem de sessenta anos de classe média. Preparo meu espírito
para tanta chatice.
Por isso não respondo, começo a colocar os itens nas
sacolas. Ele parece frustrado. Sequer deixa eu falar o valor
devido. Leu na calculadora, retirou o dinheiro na carteira, virou
e saiu. Com isso ganho alguns minutos de silêncio.
A velha que amassava as frutas caminha até a porta e vai
embora sem levar nada. Deve ter deixado um prejuízo de meio
balde. Espero que ela tenha uma morte lenta e dolorida
engasgada com uma fruta amassada.
A Piveta de capuz entra, ela está aqui todos os dias, entra
de mansinho, nunca consigo ver seus olhos. Apesar do calor
infernal, ela sempre está de casaco com capuz sobre a cabeça.
Seu caminhar é leve como de uma gata. Passa pelas
frutas, coloca algumas maçãs nos bolsos. A Piveta é rápida,
movimentos de profissional. Os outros clientes não percebem,
mas tenho muita experiência, consigo vê-la. Jamais a repreendi,
além do mais, as maçãs que está roubando foram amassadas pela
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velha, logo faz um favor. Espero que mate sua fome.
Ela termina seu roubo diário e sai sem olhar na minha
direção.
***
Assim é esse simples dia que é como os outros dias. As
frutas, o dinheiro, o calor. Somos como personagens dentro de
um teatro no qual somos plateia e artistas ao mesmo tempo. É
sem dúvida a dramaturgia mais sem graça e triste de todas. A
vida comum não é um show. Por isso quase todos enlouquecem
um dia.
Como sempre os clientes vão desaparecendo, a luz solar
enfraquecendo, as frutas murchando.
Às 17h28min saio detrás do balcão/caixa, caminho até a
entrada e baixo a cortina de lata até a metade, para impedir a
entrada de mais clientes, encosto a porta de vidro.
Volto para trás do balcão, logo ao lado há uma pequena
cozinha. Entro, não passa de um cômodo de quatro metros
quadrados.
Enfim começo o preparo do café. Água dentro da
chaleira elétrica, fio na tomada, botão apertado. Café dentro da
xícara, mais cinco colheres de açúcar. Sei que meu futuro é
morrer de diabetes. As formigas sentem inveja de mim.
***
Termino o preparo e volto para o caixa. Sorvo o café
com prazer. É meu gole de vida. Ou melhor, de sobrevida.
Um cliente abaixa e coloca a mão no trinco, com um
sinal o impeço de entrar. O homem parece irritado, com o
indicador direito bate no vidro do relógio. Jogo os ombros para
cima e as palmas das mãos também. Ele mostra o dedo do meio
e parte para o comércio mais próximo. Alguns homens não
lidam bem com a derrota ou rejeição.
Sigo sorvendo o café. Perdido em pensamentos, centenas
de flashes, sangue, dor, gritos.
***
Quando os pensamentos obscuros invadem minha cabeça
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é melhor buscar distração. Embaixo da caixa registradora o
velho rádio repousa eternamente. Ele está coberto de poeira,
mais parece uma panela sem cabo. Acho que nem fabricam mais
esse modelo de rádio.
Coloco o plugue na tomada, ligo o aparelho, a luz que
anuncia que tudo está funcionando acende e apaga. Tento mais
uma vez. Liga e desliga. Não haverá música neste anoitecer.
Não deixarei o deus silêncio irritado.
Volto até a porta. Chaveio a fechadura. Já anoiteceu. As
luzes dos carros rebatem nos muros, nas paredes dos edifícios,
nas vidraças. Parecem procurar um pouco de vida onde existe
apenas zumbis.
18h26min, o telefone não tocou, não sei, talvez é um
motivo de alívio, mas meu dia foi tão metódico e paradoxal que
uma ligação não faria mal.
Caminho até o fundo, logo após as caixas de madeiras
vazias fica meu colchão. O cheiro de várias frutas traz um
perfume peculiar. Antes de deitar abro as janelas altas do
estoque, entrarão mosquitos, eu sei, mas é preciso renovar o ar
para diminuir o cheiro das frutas.
Retiro as roupas, um banho frio, então estou pronto para
encontrar os pesadelos. As dores afligirão o que tento ser.
***
Antes do despertador fazer seu trabalho, estou com os
olhos abertos. Como todas as outras noites, dormir foi um
sacrifício.
Fico olhando para o teto, as manchas de mofo dividem o
lugar com as goteiras. As infiltrações já devem comprometer a
estrutura. Será preciso gastar uma fortuna para a reforma. Não é
aconselhável na minha posição gastar dinheiro de uma forma
que não posso demonstrar. Devia ser como os outros e viver em
outro bairro para enfim ter algum luxo. Contudo não posso
esquecer que meu disfarce é de um comerciante falido com
frutas podres para vender.
Levanto, na pequena cozinha início o café. Para comer
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encontro um pão velho de três dias. Assim que conseguir,
preciso sair para comprar mantimentos.
***
Está na hora de abrir a fruteira. Abro a porta, volto para
trás do balcão. Não demora muito para o primeiro cliente
chegar.
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Panorama 2
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armas.
Abro o baú, coloco meu colete, na cintura um coldre,
outro também abaixo do braço. Confiro as armas e munições.
Faço isso com frequência, mesmo sabendo que não é necessário.
É um cacoete.
Abro a porta do estoque, os carros passando, nenhum
pedestre. Tiro o Maverick da garagem. Desço para puxar a
imensa porta de lata e chaveá-la.
Volto para o carro, quando entro vejo A Piveta que rouba
minhas frutas todos os dias. Ela está sentada no chão, abraça os
joelhos. Nossos olhos ficam na mesma linha, mesmo na
escuridão agora posso vê-los. É a primeira vez que consigo ver
uma parte do seu rosto e o que vejo é deprimente. Seus olhos
refletem apenas dor e abandono. Sei que ela dormirá na rua.
Entro no carro, dou a partida, começo a dirigir para meu
destino.
***
Aos poucos vejo os bares cheios de mesa que por sua vez
estão cheias de pessoas sentadas ao seu redor. Sobre as mesas
vejo garrafas de cerveja. Os clientes são patéticos. Seus sorrisos
refletem uma falsa alegria que chega a dar pena. São diferentes
da A Piveta. Eles têm o que precisam e mesmo assim estão
desesperados para encontrar o que não sabem. Triste geração
que procura o profundo no raso. Acabarão acordando do lado de
quem não conhecem depois de uma noite inconsequente de pura
ilusão.
A noite no Centro é cheia, entre os bares, embaixo das
árvores onde a fraca luz dos postes não conseguem clarear, os
traficantes abastecem os que não preenchem suas escuridões
apenas com o álcool e companhia.
Adiante os bares dão lugar aos restaurantes. Centenas de
casais sentados em mesas quadradas, a meia luz, pagam caro por
pouca comida e fazem a refeição num silêncio vexatório. Muitos
estão cansados, só querem voltar para casa, muitos estão em
chamas querendo a liberdade, mas não conseguem fugir de um
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relacionamento monótono, estacionados em viagens e
lembranças de quando eram jovens.
No final da refeição, ou antes, ou na sobremesa um deles
pegará o celular e tirará uma foto do “lindo” casal, jogará na
rede social onde todas as amigas já fizeram o mesmo com seus
sorrisos de Monalisa. Todos estão ocos por dentro. São apenas
enfeites.
Os restaurantes acabam, chego onde as poucas e
luxuosas casas do Centro estão.
Estaciono um pouco distante do posto informado. Não
vejo seguranças, as casas têm luzes acesas nas salas.
Parei no exato centímetro que marca meia légua. Olho
para frente, uma imensa mansão de três andares. As luzes estão
apagadas. Sobre a grade vejo arames farpados e outros de
choque. Decido voltar para o carro e esperar. Tento perceber
onde está o perigo.
***
Fico atento a qualquer movimento, mas os minutos
transformam o banco numa confortável cama. Minhas pálpebras
começam a ficar pesadas. O sono contamina. Justo agora que
não posso dormir. São as noites de pesadelos que cansam meu
corpo.
***
Abro os olhos, não sei quanto tempo passou, mas foi o
barulho produzido pelo motor do portão trabalhando que me
acordou.
Vejo um carro luxuoso entrando. Deve ser blindado.
Agora é o que os ricos costumam ter, mesmo assim é a minha
chance.
Desço em passos rápidos, ao redor apenas um gato pula
no muro. O resto é silêncio e escuridão. Onde estão os
seguranças?
O portão começa a fechar, sem seguranças, o serviço
será fácil demais. No caminho coloco os óculos de grau e equipo
a arma com o silenciador.
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Entro no pátio, não está parecendo os trabalhos comuns.
Está fácil demais.
Na entrada vejo um homem saindo do carro, avanço e
levanto a arma, a porta do carona abre, uma mulher desce.
“Você é o Antônio?!” Digo para chamar atenção. Ele
olha para a arma e fica apavorado.
“Sim, sou eu.” Responde nervoso.
Aperto o gatilho, acerto dois tiros no peito do homem e
mais dois na mulher. Ambos caem sem vida. Mais uma vez
sequer titubeio em matar. Ainda sou o mesmo.
Avanço com cautela, rente o muro lateral, miro para
todos os lados. Chego perto do homem, balanço seu corpo com
o pé, nenhum sinal de vida. Abaixo sem perder a mulher da
mira, procuro a carteira no bolso interno do seu paletó. Pego a
CNH, coloco no bolso.
Faço a volta no carro, pego a bolsa dela e cato a
identidade. Entro no carro para procurar o controle e reabrir o
portão para partir. Acendo a luz acima do retrovisor, observo o
painel e vejo o controle no console à frente do câmbio
automático.
Começo a sair do luxuoso carro quando escuto um
murmuro. Não estou habituado a ouvir esse som. Fico
preocupado. Olho para o corpo da mulher, mas está morta, pode
ser um gato. Escuto mais uma vez. Concentro, então consigo
distinguir. É um reclame de criança. Olho para o banco de trás
do carro e vejo um bebe. Ele está olhando e sorrindo.
“Desculpe, mas acabo de deixá-lo órfão.” Digo muito
sério. Ele segue sorrindo. Sou um sicário da velha escola, não
mato crianças.
Desligo a luz interna, espero que ele durma logo.
Começo a caminhar no sentido da casa. Não sei o que
pensar. Talvez seja por causa do bebê que o ATRAVESSADOR
indicou esse trabalho, sabe que não mato crianças. Caramba, ele
terá uma vida difícil sem os pais, pelo menos, terá uma boa
situação financeira para o resto dos seus dias. Não terá a mesma
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infância que a minha, não será um garoto de rua. Herdará
alguma coisa. Deve ter algum parente para criá-lo.
Dou dois passos para trás, dois tiros na porta. O vidro
fica craquelado. Com um chute quebro o restante. O alarme
começa a soar. É muito irritante. Devo ter alguns minutos até o
agente de segurança chegar aqui.
Subo direto para os quartos. A casa parece ainda maior
por dentro. É um verdadeiro palácio.
Começo a entrar nos cômodos. Abro a porta, acendo a
luz, vasculho o perímetro e saio. Banheiro, quarto, biblioteca,
sala de televisão. Subo para o segundo andar. Nem sinal de outra
pessoa. Falta uma porta, no final do corredor.
Abro a porta, acendo a luz, é o quarto do bebê. Leio na
parede o nome Antônio.
A informação é surpreendente. O homem que matei
chama Antônio, ele deve ser… pego a CNH que coloquei no
bolso, leio o nome Antônio Pereira Never, falta o Júnior. Meu
coração dispara. Então meu alvo é o bebê? Não posso acreditar.
O ATRAVESSADOR sabe que não mato crianças. Sei que
alguns assassinos da nova geração matam qualquer um, mas sou
das antigas. Ainda tenho um pouco de ética no coração.
***
Saio do quarto, não sei o que farei. Não posso matá-lo.
Chego no carro. Abro a porta traseira. Agora o bebê
chora com intensidade. O barulho do alarme o assustou. Seus
pequenos braços e pernas movem-se com rapidez. Ele está preso
no acento especial para bebês.
Fecho os olhos, penso em matá-lo. Sei que não fazer isso
é sinal de muitos problemas. No ano passado o Mr. Brown não
matou um alvo. Era uma moça grávida. Ele recusou, o
ATRAVESSADOR sabia que ele não faria aquilo. Então a
agência o perdoou e passou a reaceitar a nossa lei, evitando
muitos problemas com o Sindicato dos Sicários.
Abro os olhos, o bebê suspira, seu rosto está molhado.
Algo vem na mente. Nunca mais vi Mr. Brown depois que foi
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perdoado pela Agência dos Sicários. Sequer esteve presente no
encontro anual dos Sicários. Sei que seu disfarce é preparar
cachorros-quentes na praça Central. Preciso encontrá-lo para
saber como devo proceder depois de recusar esse trabalho.
O agente de segurança chegou. Cometi um erro. Não
posso deixar que veja meu rosto. Não gosto de matar quem não
está envolvido com o serviço, mas para ele não tenho escolha.
Olho mais uma vez para o bebê. Estou numa situação
complicada. Não posso deixar as coisas saírem do controle.
Espero mais alguns segundos. Preciso fazer alguma
coisa. Tomar uma atitude sensata. O segurança já abriu o portão.
Olho na sua direção. Veste o uniforme patético da empresa
Milton Security.
“Ei, senhor” ele diz evoluindo na minha direção. Então
vê os corpos no chão “caramba, o que houve aqui?”
Ele tenta sacar a arma, talvez seja de choque. Não pago
para ver. Levanto a arma e acerto dois tiros. Ela cai sem vida.
Logo outros aparecerão quando ele não responder ao
rádio. Não posso ficar aqui parado matando quantos homens
chegarem. Chegou a hora da verdade, terei que tomar uma
atitude sem volta.
Poderia deixar o bebê aqui, mas isso significaria sua
morte. De qualquer forma seria ruim. Outro assassino chegaria
aqui e o mataria. E certamente iria atrás de mim, pois não
completei o serviço. Pelo menos comigo ele estará vivo.
Coloco a arma no coldre. Caminho no sentido do carro,
pego o pequeno com cuidado. Ele parece mais calmo quando
sente minhas mãos.
O deixei órfão. Matei o que ele tinha de mais precioso,
nada mais justo que dar a ele uma chance de vingança. Fui
muito inocente em aceitar um serviço imediato sem tempo para
investigar a vida do alvo, e acreditei que o ATRAVESSADOR
não passaria por cima da lei dos Sicários.
O carrego pelo caminho, sem jeito. Não lembro de ter
feito isso antes. Seu pequeno corpo é quente e macio.
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Na rua os vizinhos já estão com as luzes acesas. Muitos
olham curiosos. O barulho da porta de vidro quebrando deve ter
os alertado. E como o segurança não sai da casa, logo chamarão
a polícia. Observaram um estranho sequestrando o bebê. Entro
no carro e coloco o bebê com cuidado ao meu lado.
Ainda não sei o que farei com ele, mas tenho a certeza
que o manterei vivo.
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Panorama 3
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“Na verdade não é bem assim. Com a morte do velho,
assumi os negócios e percebi que a agência precisa de uma boa
reciclada. Os serviços estão cada vez mais escassos, não
podemos dar ao luxo de recusá-los por causa de frivolidades.”
“Como assim? Somos o sindicato, qualquer mudança
deve ser informada. Quando os novos decidiram matar mulheres
e crianças não fomos contra, sabíamos que o mundo havia
mudado e com ele os serviços. Contudo fizemos inúmeras
campanhas de conscientização. Ainda estamos aqui. O Sindicato
dos Sicários sempre teve representatividade nas decisões. Não
será agora que mudaremos nossa conduta.”
“Na verdade isso também mudou. Você é o único
membro do sindicato que ainda está vivo. Os novos não
aderiram ao sindicato, logo você não representa nada.” O único
vivo? Reflito, por isso nunca mais vi o Mr. Brown, bem como o
Pescador e o Barbeiro, éramos os sindicalistas mais ativos.
“Então Mercador” ele diz após um longo silêncio “você sempre
foi um sicário exemplar. Nada está perdido. Mate o garotinho e
esqueço seu erro.”
O pequeno está quieto, dorme profundamente “não posso
matá-lo. Ele precisa crescer para que um dia possa vingar a
morte de seus pais. Isso é o que todos integrantes do Sindicato
dos Sicários desejariam.”
“Sabe que não cumprir um serviço é um erro grave.
Haverá consequências.”
“Sei disso, ATRAVESSADOR!” Ele fica em silêncio.
Estou exausto, preciso arrumar as coisas e ainda deixar o
pequeno em algum lugar onde ele esteja protegido. Sei a
consequência para quem não cumpre um serviço para a Agência
dos Sicários. Um sicário incapaz de cumprir um serviço é
desprezado. A Agência oferece dos próprios cofres o dobro do
valor do serviço não feito. E designa seus melhores sicários para
matar o tratante, pois é preciso dar exemplos. “Sabe que mandar
outros sicários no meu encalço fará as coisas acabarem muito
mal.”
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“Desculpe Mercador, mas são as regras…”
“Parece que segue as regras só quando convém.”
Nesse momento o bebê recomeça a chorar. Encerro a
ligação.
Essa criança precisa de leite, talvez água. Não sei como
fazer. Não faço ideia do que faz parte da sua dieta. Necessito de
uma mamadeira, e o leite certamente deverá ser especial, afinal
ele é tão pequeno, com certeza mamava no peito.
O pequeno rosto, o choro, os olhos desesperados. Sou
um monstro. Sou um sicário.
***
Preciso manter o controle. Sei que os vizinhos devem
estar assustados. Os minutos estão passando, não quero que o
bebê morra de inanição. Jamais me perdoarei caso isso aconteça.
Pego o celular no caixa, não há outra saída. Primeiro
preciso resolver o caso do bebê. Sei que a Agência esperará
algumas horas para acionar os outros sicários. Lançará minha
cabeça a prêmio por 1,6 milhão, o dobro do serviço tratado e
não cumprido. Para resolver esse problema será necessário
passar por cima do meu orgulho.
Encontro o nome de Angelina e inicio a ligação. Depois
de quatro toques ela atende. Sei que está pensando em alguma
frase forte para me fazer sentir culpado. Estou com o espírito
preparado para ouvir desaforos.
“Parece que ainda não conseguiram acabar com a sua
raça” diz muito irada “só quero saber porque ligou para mim.”
“Desculpe, mas estou num momento complicado. Peço
que escute…”
“Seu desgraçado. Quer ajuda? Há quase dez anos fui
deixada por você plantada na frente do padre e dos meus poucos
amigos. Você já ficou no passado Netúnio. Agora estou tentando
viver em paz.”
“Se fiquei no passado por que atendeu minha ligação? E
mais, como ainda sabe meu número?” Ela fica em silêncio.
Quero dizer para ela que sou um monstro, durante os últimos 20
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anos vivi num mundo de mortes onde eu era o ceifador. Isso
acabou deixando meu ego antipático, praticamente um robô.
Tive que dizer para ela que não posso amar. Não consigo
dedicar meu tempo a outra pessoa. O problema é que escolhi o
pior momento para isso.
Fiquei assim por muito tempo, mas essa situação mudou,
e foi agora que a ficha caiu. Ver esse bebê trouxe uma
humanidade adormecida. “Não matei um alvo” digo e posso
ouvir seu suspiro. Ela sabe que estou encrencado.
“Seu babaca. Sempre foi um dos melhores. Jamais
imaginaria que isso poderia acontecer. Como aconteceu?”
“O Padrinho morreu” outra vez a escuto suspirar “e a
princípio com ele as leis dos sicários. Meu alvo era uma criança.
Acho que o ATRAVESSADOR armou para mim. Sou o último
membro vivo do sindicato. Preciso de sua ajuda, mas não é para
mim. Posso dar um jeito em alguns deles” neste momento o
bebê acorda e começa a chorar. Ela escuta pela primeira vez sua
vozinha.
“Enlouqueceu? Além de não completar ainda salvou seu
alvo. Deveria ter o deixado lá, outro sicário daria um jeito e
quem sabe seria perdoado. Sempre foi o sicário mais
respeitado.”
“Ele é apenas um bebê. Não podia deixá-lo lá. O
matariam mais dia ou menos dia.”
“Essa é a ideia.”
“Mas é errado. O proteja, por favor, e quando a poeira
baixar deixe ele dentro de um cesto na frente de algum orfanato.
Quero que ele cresça e possa um dia vingar a morte dos seus
pais.”
“Sabe, sempre achei que morreria antes de mim. O que
mais desejo é chorar sobre seu caixão. Você quebrou meu
coração, seu monte de fezes. Sabe quanto custou para alugar
aquele vestido?”
“Você era uma das secretárias do Padrinho, dinheiro
nunca foi o problema.”
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“Não interessa” ela grita “aquilo estragou meu sonho.
Fiquei cinco anos fazendo terapia.”
“Já pedi desculpas. Agora preciso salvar a vida dessa
criança. Passe por cima desse orgulho bobo, só dessa vez.”
“Orgulho? Tirou minha dignidade naquela tarde
ensolarada. Por Deus, Netúnio. Seu desgraçado, traga esse bebê
e fique vivo para que eu possa matá-lo. Mas saiba que eu ainda
te odeio.”
“Obrigado, Angelina.”
***
Agora a minha corrida é contra o tempo. Retiro a coberta
do carro. Deixo o bebê sobre o banco do carona. Entro no
banheiro. Pego o baú dos meus armamentos. Ele é bem pesado.
Tento levantá-lo, mas minha coluna estrala. Decido não tentar.
Por isso arrasto o pesado baú até o porta-malas. Abro o baú,
abro o porta-malas. Começo a colocar as armas para dentro.
Abro a porta do estoque. Volto para o carro, ligo o motor
e saio. Vejo A Piveta ladra. Nossos olhares cruzam. Tenho uma
ideia.
“Ei, Piveta” ela olha assustada “quer ganhar uma boa
grana?” Ela segue abraçando as pernas. Não responde “estou
falando com você garota.”
“Não quero, não senhor” diz hesitante.
Fico surpreso, todos os pivetes de rua sempre estão atrás
de dinheiro para comer ou comprar drogas.
“Vamos garota. É pegar ou largar. Só preciso que cuide
da entrada da Fruteira. Caso alguém entrar enquanto eu estiver
fora quero que avise quando eu retornar. O que acha?”
“Não quero seu dinheiro, mas aceito ajudá-lo com uma
condição.”
“E qual é?”
“Quero dormir dentro do estoque e comer algumas
frutas” ela desabraça as pernas e levanta “não aguento mais ficar
na rua.”
As palavras da A Piveta são outro clarão de humanidade.
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Onde estive durante todos esses anos amortecido por tudo? Eu a
entendo. Já fui um moleque de rua. E por vezes desejei ter uma
cama e refeições frequentes. O dinheiro era um mero símbolo de
poder.
“Fechado” vejo um sorriso nascer no seu rosto triste
“volto em duas horas.”
Fecho o portão do estoque, entro no carro e parto. Ela
volta para sua antiga posição.
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A Piveta
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um item do seu antigo enxoval.
Nunca disse para ela o porquê fugi do altar, mas deve
imaginar. Fui e sou um homem solitário. Com uma exceção, a
amizade com o Tonho. Foi o único homem que era uma boa
companhia.
Aprendi a matar para sobreviver. Não consegui
acostumar com os luxos que o dinheiro poderia dar. Sou urbano
demais para deixar apenas um símbolo vislumbrar o que penso.
As ruas te ensinam que o dinheiro só serve para comprar fugas.
Então percebi que minha vida não tinha sentido, e que
apenas ser um sicário trazia um sentimento de utilidade e
pertencimento.
Por isso a ideia de viver junto com alguém, ou pior, e
junto com ela construir outra vida e assim formar uma família,
era aterrorizador demais. A hipótese parecia uma tragédia.
Imaginei que não era necessário levá-la para o altar. Sei
que fui um filho da puta. Parecia importante para ela e não sei
explicar porque fui tão longe antes de desistir, só sei que estou
arrependido. Não que deveria ter proposto o casamento, mas
sim, sido sincero desde o princípio.
Ela colocou a criança sobre um travesseiro e desde então
está dormindo como um pequeno anjo.
Termina o preparo numa frigideira. Ela juntou pedaços
de carne, bacon e repolho. O cheiro está maravilhoso. Fiquei
atento aos seus movimentos para ter certeza que não seria
envenenado. Para depois ficar arrependido. Ela pode me odiar,
mas não o suficiente para cometer tal atrocidade. Sou eu o
sicário aqui.
“Para onde pretende levá-lo?” Ela pergunta deixando o
prato à minha frente e sentando ao meu lado.
“Não sei. Depois que tudo isso acabar, quem sabe um
orfanato ou um convento.”
“E se… você sabe” diz sem jeito “haverá uma guerra,
mandarão muitos no seu encalço, talvez não consiga levá-lo…”
“Quer dizer caso eu morra? É isso que está querendo
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dizer? Caso eu não sobreviva pode deixar o pequeno num
orfanato. Posso contar com isso?”
“Tudo bem.”
“E tem mais” retiro a carteira, pego dois cartões “nestas
duas contas estão todo o meu dinheiro que guardei durante anos.
É uma quantia muito considerável. Suborno os gerentes para
mantê-las longe do foco da polícia federal. Direi para eles que
você será a responsável caso eu morra. A senha de ambos é
198711, e as letras EGU. Gostaria que usasse o dinheiro para
tutelar o pequeno, doe a grande parte, mas pode pegar uma
porcentagem para você, sabe, a título de indenização pelo que
fiz.”
“Não preciso do seu dinheiro, mas pode ter certeza,
muitas pessoas necessitadas receberam de bom grado. Quanto ao
que fez, estou muito bem agora. Segui meu caminho, não fiquei
presa ao passado.”
“Tudo bem. De qualquer forma devo-lhe desculpas.”
“Não aceitarei suas desculpas. E coma logo, não quero
que deixe a comida esfriar” diz levantando e caminhando na
direção do bebê.
“Aliás, como é o nome desse prato?” Digo dando mais
uma garfada, está delicioso.
“Pode chamar de a última refeição de um sicário morto,
porque você sabe que as próximas horas serão tensas.”
Não respondo. Sigo comendo de cabeça baixa. Angelina
tem toda razão.
***
Não sei o que deveria ter feito.
Talvez o melhor teria sido tomá-la nos meus braços e
beijá-la como nos filmes românticos. Confesso que tive vontade,
mas fiquei parado, pensando nas hipóteses que poderia usar para
matá-la caso resolvesse me atacar. Até que decidi partir.
Essa é a natureza que introduziu no meu coração, por
tanto tempo, a escuridão. Sou apenas um sicário sempre
calculando as minhas chances de matar a próxima vítima.
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Estaciono a duas quadras da Fruteira, com a arma em
punho caminho rente a parede. Sei que o alerta da Agência dos
Sicários já está valendo. Na madrugada apenas as luzes
amareladas dos postes e as baratas e ratos entre as latas de lixo.
Não sei quem a agência mandará primeiro. Estou por
fora das novidades, não tenho ideia de quem possa ser o melhor
sicário do momento. Não fui na reunião semestral dos sicários,
não conheci quem são os novos talentos.
Nunca passei por isso, mas sei como funcionará.
Primeiro mandarão seus melhores assassinos para acabar
comigo. Eles têm ordem para levar minha cabeça dentro de uma
caixa para servir de exemplo aos outros. Esses geralmente são
muito egoístas, sempre agem sozinhos.
Caso os melhores fracassem, então mandarão sicários em
pequenos pelotões, talvez de quatro ou cinco. Serão em maior
número para equilibrar as coisas. Caso haja a falha, por fim
mandarão tantos quantos conseguirem. O efetivo que estiver à
disposição. Chegando vivo até então, a morte estará tão próxima
quanto jamais esteve.
Para passar das três fases será preciso um milagre.
Conseguindo matar todos estarei livre.
Poucos assassinos conseguiram tal façanha. Baleado, na
Capital, foi o primeiro, Marceneira foi a segunda, a batalha
aconteceu no Distrito, mas morreu depois. E ela teve ajuda de
uma agente da inteligência.
O que estou prestes a iniciar é uma guerra contra a maior
organização de sicários da América Latina. A Agência dos
Sicários é tão temida que até fez com que chefes de Estados
reforçassem suas proteções, pois muitos milionários não querem
líderes políticos que pensem diferente dos demais. E os
milionários não brincam em serviço, mandam matar sem
pestanejar.
Cada vez mais perto, olhando cada centímetro da rua e
dos telhados com muita atenção. Não faço ideia da especialidade
do sicário que virá me matar, mas pode ser a de tiro a distância.
32
Avanço pelo outro lado da rua, vejo A Piveta, ainda está
no mesmo lugar, capuz sobre o rosto, tentando fabricar calor
para seu esquálido corpo. Ela percebe meu avanço, então retira o
capuz. Caminho ao seu encontro, sem o capuz ela parece ainda
mais jovem. Com o rosto lindo, cabelos encaracolados e a pele
perfeitamente negra. Olha para minha arma curiosa, não
esperava que um Mercador patético pudesse usar isso.
“Ficou aqui o tempo todo?”
“Sim, senhor.”
“Muito bem Piveta. Logo receberá sua recompensa. Uma
cama quente e o que comer.”
“Certo, fico grata.”
“Quantos entraram na fruteira?”
“Só uma mulher. Usou umas ferramentas para abrir a
porta.”
“Ótimo, e como ela é?”
“Está com roupas pretas e justas, seu cabelo é curto, até
aqui” mostra com a mão no meio do pescoço “é preto e
brilhante, sua pele é muito branca.”
Então penso. Parece que não estou tão desinformado
assim. Acho que a conheço. Se é quem estou pensando
realmente a Agência e o ATRAVESSADOR não estão
brincando em serviço e mandaram a melhor sicária atrás de
mim. Não lembro seu nome verdadeiro, mas a chamam de A
Matadora. Conversamos uma vez. Foi num encontro anual, há 5
anos, ela pareceu fazer jus a alcunha, perigosa e fatal. Na época
recebeu o prêmio de terceira colocada no número de serviços, o
primeiro era eu.
“Obrigado” digo para ela “caso essa mulher saia logo
depois que eu entrar, espere alguns minutos, então entre, logo
abaixo do balcão tem uma caixa de sapatos, ali tem dinheiro
suficiente para recomeçar sua vida bem longe daqui. Pode pegar,
o dinheiro, ele já é seu.”
“Obrigada, senhor. Quanto a cama e as refeições?”
“Você estará por conta agora. Caso eu não saia é porque
33
morri. Então o mais seguro é pegar o dinheiro e comprar seu
próprio cantinho.”
Caminho na direção da porta sem olhar a reação dela.
Coloco a mão no trinco e abro. Aponto a arma em várias
direções. Vejo apenas os trilhos cheios de caixa de frutas podres.
A sensação não é boa. Estou velho demais para brincar de gato e
rato. Ainda mais quando sou o rato e há dezenas de gatos no
meu caminho. Já são 4 décadas tentando sobreviver nesse
mundo maluco.
Avanço devagar. Caminhando rente a parede. O vento
move a porta e ela fecha com força. O barulho é estrondoso.
Seja como for, caso A Matadora ainda não tivesse visto meu
avanço, agora sabe mais ou menos minha posição.
A fruteira não é grande. Tem 150 metros quadrados.
Prevejo que avançando ficarei ainda mais vulnerável. É hora de
usar a minha experiência. É preciso jogar um jogo que sempre
pratiquei.
“Vejo que o ATRAVESSADOR não está para
brincadeira” digo em voz alta que ecoa nas paredes “enviou uma
excelente sicária. Como está Matadora?” Sei que ela ficará
desconcertada ao saber que lembro do seu nome e que não temo
que saiba minha posição “sabe como é” prossigo “sou um
sicário da antiga. O ATRAVESSADOR sabia disso e mesmo
assim fui enviado para um trabalho no qual o alvo era um bebê.
Ele sabia que eu não executaria a tarefa, a culpa é dele. Agora
vamos entrar numa guerra por causa de um erro. Resta descobrir
porque ele queria que eu não o cumprisse.”
“Não foi um erro” escuto sua voz. Tento perceber da
onde vem o som da sua fala.
“Não foi um erro!” Era o que temia, ela apenas provou
que estava certo.
“Não?” Percebo de onde vem o som da sua voz. Ela está
abaixada no final do corredor dos legumes. Apesar da escuridão,
sua silhueta pode ser vista. Sigo a passos lentos e silenciosos ao
seu encontro. “Quer dizer que ele sabia do alvo?”
34
“Sim” ela levanta. Não consigo vê-la com nitidez. Faz
um bom tempo que a minha visão não está perfeita e esqueci os
óculos de grau dentro do Maverick. Pode ter sido um erro
mortal. Seus braços se movem. Ela joga alguma coisa na minha
direção. Por instinto meu reflexo, que um dia foi mais apurado,
entra em ação. Desvio, escuto quando o objeto bate na parede.
Era uma lâmina.
“Então ele esperava que eu não cumprisse o trabalho”
digo ficando de cócoras e mirando para o lado que ela correu.
“Sim, Mercador. É o único integrante do Sindicato ainda
vivo. Ele o quer fora do caminho.”
“Mas porquê? Jamais prejudiquei a agência.”
“O Sindicato com suas regras. São uns velhos patéticos.
Sempre prejudicaram a Agência. Depois que o velho Padrinho
morreu, o ATRAVESSADOR decidiu renovar as coisas e
queimar os antigos preceitos. A renovação era necessária” ela
levanta por um breve tempo para espiar minha posição. Atiro na
sua direção, ela recolhe o corpo a tempo.
“Então é isso? Não passa de um rompante para o
herdeiro da Agência?”
“Na verdade o ATRAVESSADOR não é o herdeiro
ainda. Ainda não sabe? É por isso que estou aqui. O velho
Padrinho deixou um testamento no qual deixa o comando da
Agência para o Sindicato. Queria ter certeza que teria seu desejo
realizado, por isso enviou várias cópias pelo correio, ao velho
estilo, para os principais tratantes, fornecedores e líderes de
outras Agências de Sicários do País. Por isso o Sindicato precisa
desaparecer antes que possam reivindicar o testamento.”
Ela levanta, corre para a esquerda. Atiro na sua direção.
Então era isso. O Padrinho deixou o comando para o
Sindicato e o ATRAVESSADOR está matando os Sindicalistas.
Sabe que assumindo a Agência pressionariam todos a acatar os
desejos do Código dos Sicários. Padrinho era merecedor,
trabalhou duro no início e foi durante décadas o principal
homem à frente dos sicários. O velho era muito respeitado, sabia
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que sua morte representaria deixar a Agência a mercê de pessoas
gananciosas demais para seguirem regras. O ATRAVESSADOR
era seu principal assessor, Padrinho o conhecia como ninguém.
Sabia que sua ganância prejudicaria a Agência.
Avanço na direção da Matadora, meus joelhos começam
a doer. Caramba, preciso voltar para a acadêmia. Já não consigo
levantar ou sentar com agilidade.
Nós, os sicários profissionais, não temos o hábito de
conversar com nossos alvos, nem contar segredos dos algozes. A
Matadora respondeu porque tem certeza que acabará comigo
nessa noite. Não duvida de suas capacidades. Sou velho com
métodos e conhecimentos obsoletos. Há os jovens com seus
óculos eletrônicos com visão noturna, drones, artes marciais.
Contudo a confiança pode cegar. Sei que posso morrer, em
algum grau não acho uma má ideia, mas não quero isso agora e
farei tudo para que não aconteça. Sabendo que posso morrer, um
instinto de sobrevivência deixa meus sentidos em alerta. Para ela
é como passear no parque e garanto que não pensa que posso
derrotá-la.
Ela jogou a lâmina com a mão direita, logo a esquerda
não tem a mesma habilidade. Por isso preciso atacar pela
esquerda. Ficará mais fácil desarmá-la antes que consiga me
matar. Tenho certeza que sairei ferido, por isso respiro fundo,
busco coragem. Chegou a hora.
Levanto, caminho rápido, nem sinal dela. Chego perto,
aponto para onde ela estava, mas de alguma forma milagrosa ela
desapareceu.
“Ei, velhote” escuto sua voz às minhas costas.
Viro o mais rápido possível, ela joga mais uma lâmina na
minha direção, tento desviar, mas a lâmina crava um pouco
abaixo do meu ombro direito. Outra lâmina atinge meu pulso na
mão que seguro a arma. A mão abre e a arma cai, a lâmina
cravada no meu pulso. Caramba, ela é tão habilidosa que
desviou suas lâminas do colete a prova de balas.
Logo ela pega outra lâmina, joga na direção do meu
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pescoço. O protejo com a mão esquerda. A lâmina crava
atravessando minha mão, posso ver a ponta da lâmina na palma
da mão.
Estou assustado, a garota é muito boa. Não posso
acreditar que estou sendo derrotado na minha primeira batalha.
Ela pega mais uma lâmina, antes que possa jogá-la eu salto para
o lado.
No chão respiro fundo, tenho pouco tempo para pensar.
Decido arriscar, levanto e salto na direção da arma, a pego e rolo
para o lado, outra lâmina passa muito perto.
As lâminas cravadas começam a doer sobremaneira. Já
estive em situação semelhante, não morrerei disso. Por um breve
momento penso que ela pode ter envenenado as lâminas, mas
logo a ideia vem abaixo. Conheço um sicário de verdade, para
ela é questão de honra acabar comigo com ferimentos e depois
cortar minha cabeça.
Miro para todos os lados enquanto rastejo de costas até a
parede. Em um segundo largo a arma e arranco a lâmina cravada
na mão esquerda. Aperto os dentes e espero a dor diminuir.
Concentro para tentar ouvir os movimentos, mas ela é
como uma gata caminhando sobre telhados. Caramba, não posso
ser derrotado, não sem dar uma lição merecida no
ATRAVESSADOR.
Levanto, posso ver toda a fruteira, as filas de caixas de
frutas. Nem sinal dela. Deve estar escondida no estoque.
Preparando uma emboscada.
Caminho com cautela, chego no caixa, abaixo e pego a
caixa de dinheiro para A Piveta e o aparelho celular. Não
conseguirei derrotá-la, não agora, ferido e sem meus óculos de
grau. Preciso estar preparado. Saber a hora certa de contra-atacar
é um sinal de humildade e força.
Disco o número 190 e início a ligação “acabo de ligar
para a polícia” falo para a escuridão, retiro o silenciador da
arma, miro para o nada e atiro duas vezes. Os estouros
reverberam na noite “Fruteira do Mercador, Nº 157, tentativa de
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homicídio” digo no fone.
Pronto, agora é só ficar vivo por mais oito minutos. É o
tempo que a polícia demora para atender alguma chamada neste
lado da Capital.
Sei que ela sabe disso. Depois de dois minutos escuto
passos, a porta abre, atiro, mas não acerto. Ela escapou. Pelo
menos, sua fuga antes do previsto me fez ganhar tempo.
Pego a caixa de sapato e caminho para a saída. É a minha
vez de fugir. Não posso ficar vulnerável e ser preso pelos
policiais. Ficaria atrasado e sem armas.
Ao sair vejo A Piveta que parece preocupada. Caminha
ao meu encontro. Olha para meus ferimentos.
“Toma” alcanço a caixa “ai deve ter o suficiente para
comprar quatro paredes, uma cama confortável e refeições por
muitos anos. É uma chance para que possa recomeçar.”
“Obrigada, senhor.”
“Tome cuidado até estar em segurança e fique longe das
drogas.”
“Tudo bem, não sou usuária.”
Preciso partir, dou-lhe as costas e caminho na direção do
Maverick. A dor é enorme, estou perdendo muito sangue.
38
A Piveta
Caminho
39
amplo estica os pontos, o que provoca muita dor.
Termino de jogar as garrafas sobre o banco traseiro.
Abro a porta e saio do carro. Em pé minha cabeça lateja de dor.
Abro o porta-malas, visto o colete a prova de balas. Pego
duas pistolas e uma calibre 12.
Volto para o banco do motorista. Fico pensando quem
mais está no meu encalço além da A Matadora. O Italiano é um
bom assassino, talvez o Cara de Areia.
Pego o celular, disco o número do ATRAVESSADOR.
Em três toques sou atendido.
“Ainda estou vivo seu desgraçado.”
“Não por muito tempo. O preço por sua cabeça foi
dobrado.”
“Tudo bem. Estou pronto. Nos veremos em breve.”
Encerro a ligação.
***
Ligo o motor e começo a dirigir para o Centro. Preciso
ganhar tempo e contra-atacar.
Vou na direção da Agência, lá eu e o
ATRAVESSADOR poderemos acertar as contas.
Então vejo pelo retrovisor uma motocicleta robusta.
Pilotando vejo um homem com a viseira de seu capacete aberta,
seu olhos são maus, pelo pedaço do rosto exposto posso ver que
tem barba branca, calçando botas, veste calça jeans, camiseta
branca e por cima um colete a prova de balas preto. Em alguns
segundos mais três motos ficam alinhadas com ela.
Já ouvi falar deles. São um grupo de sicários que agem
juntos e depois dividem o pagamento. Eles não são bons. São
extrapolados, sempre um ou outro acaba preso, o que é uma
vergonha para nossa categoria. Eles são chamados de
Motoqueiros. Não são unanimidade na Agência, na verdade são
do segundo escalão, logo penso que o ATRAVESSADOR não
os mandaria. Estão atrás de mim porque o valor pela minha
cabeça está tentador. Qualquer um arriscará a vida pelo
montante.
40
Não demora para acelerarem na minha direção. O velho
de barba grisalha é o líder. Sinaliza para os outros prepararem o
ataque.
Aperto fundo no acelerador, ultrapasso alguns carros,
corto a frente de outros que buzinam desesperados. As motos
também ganham velocidade, vêm em zigue-zague entre os
carros.
As motos são potentes, diminuem a distância em poucos
segundos. Mais perto vejo pelo retrovisor esquerdo, um deles
tira uma garrucha da cartucheira. Uma arma um tanto quanto
excêntrica. Aponta na minha direção e atira. Abaixo e tento
manter o carro alinhado sem ver a pista. O tiro explodiu o para-
brisa traseiro. Outro no lado direito atira e o vidro lateral
explode.
Levanto para olhar a pista, tomo um susto, estou quase
colidindo com outro carro. Desvio, o motoqueiro percebe e
aponta sua garrucha mais uma vez. Estou na sua frente. Por isso
aperto o freio. Ele não contava com essa manobra. Com o
impacto meu corpo solavanca e bato o rosto no volante. O
motoqueiro acertou em cheio na traseira, o impacto faz ele voar
sobre o carro e cair a 20 metros a frente.
Com a batida um corte no supercílio esquerdo é
fabricado. Agora estou feliz por estar sem óculos.
As outras motos passam e freiam logo a frente. Eles
viram na minha direção. Olham para o companheiro morto
como um boneco de pano, um membro para cada lado. Então
nos encaramos.
Os três sacam suas garruchas, aceleram e vêm ao meu
encontro. São muito velozes. Não tenho tempo para fugir.
Abaixo. Eles passam atirando. Abro a porta do carona e saio. Os
tiros furam toda a lateral do carro, furam os pneus.
Esse carro é de estimação. Demorei muito para comprá-
lo, não pelo dinheiro, pois não gasto sequer 10% da fortuna que
ganho como sicário, e sim porque é uma relíquia. Comprei
direto de um colecionador.
41
Saco a arma, vejo eles retornando ao longe, os carros
começam a dar ré, depois contornam e seguem na contramão.
Desesperados pela fuga. Logo a rua estará livre para que
possamos batalhar. E o movimento prejudicará o avanço da
polícia.
Eles aceleram, todos com armas em punho, então lembro
que estou mais uma vez sem óculos. Droga, onde foi que
coloquei isso? Miro para o mais próximo. Eles atiram, eu atiro e
logo abaixo, buscando abrigo atrás do carro.
Escuto quando uma das motos arrasta pelo asfalto.
Acertei um deles. Então eu lembro onde estão os malditos
óculos. Dentro do porta-luvas que está ao alcance das minhas
mãos. O abro, estico o braço e pego.
Ao colocá-los consigo ver em alta definição. É como ter
olhos novos. Fico pensando o que teria feito com A Matadora
caso estivesse com eles.
Levanto. Olho para a estrada. Posso ver os motoqueiros
que estão vivos ao longe. Fazem o retorno preparando mais um
ataque. Saio do meu abrigo. Aponto a arma para eles que ainda
não levantaram suas garruchas.
Atiro no da esquerda bem no peito, ele larga o guidão, a
moto cai e o arrasta pelo chão. O outro é o líder da barba branca,
prepara seu ataque, por um momento fiquei distraído e
vulnerável.
Ele aponta sua arma, mas sou mais rápido, puxo o
gatilho algumas vezes. Ele cai para um lado a moto para o outro.
Acabo de destruir os Motoqueiros.
Sei que tenho pouco tempo. Os policiais devem estar
perto. Olho para meu carro, está inutilizável. Com tantos furos
chamaria muito atenção. E os pneus furados. Os veículos dos
comuns estão muito longe. Minha única chance de fuga é a moto
do líder que parece em bom estado.
Caminho ao seu encontro e retiro seu capacete. Levanto
a moto que é muito mais pesada do que parecia.
A chave na ignição, aperto o botão de partida. O motor
42
volta a roncar perfeitamente. É possante.
Dou a volta e sigo na mão correta o mais rápido possível.
O meu armamento pesado ficou no carro. Isso não é um
bom sinal. A partir de agora qualquer um que atravessar meu
caminho pode ser um Sicário.
A cada ultrapassagem analiso com cuidado os ocupantes
de cada veículo.
43
CENTRO/Shopping
45
de sacolas das boutiques. Homens com mais de 40 anos
provando sua masculinidade bebendo chopp bem no centro da
praça de alimentação.
Sempre indaguei, será que todos ou, pelo menos, alguns
deles sabem o que passa por trás das cortinas da sociedade? Dos
conchavos, dos líderes do governo e empresas que contratam os
serviços da Agência dos Sicários para chegarem aos seus
objetivos?
Há uma guerra política ou de egos lá fora, bem abaixo
dos seus narizes, mas eles estão mergulhados num destino
traçado desde seus nascimentos, distraídos demais para
perceberem que suas distrações são fornecidas para os manterem
anestesiados.
Decido não pensar nisso agora, eles que fiquem nos seus
mundinhos. Algum dia eles saberão da verdade. Dou mais
algumas garfadas no meu Yakisoba. Está delicioso.
Já olhei tempo demais para o lado esquerdo, mudo a
cadeira de lugar. Preciso cuidar de todos os flancos. Pode ser
que um assassino mais ganancioso decida arriscar tudo e atacar
aqui mesmo, arriscando ser preso.
O alimento traz a energia necessária para prosseguir.
Sigo sorvendo o refrigerante. Entre as pessoas surge uma figura
incomum nesse cenário tão popular.
É um homem trajando um terno azul completo, sapatos
marrons brilhantes, cabelos bem cortados e jogados para o lado
direito, a barba está feita, seus olhos são de um azul quase cinza,
ao perceber que está sendo observado, sorri e quando o faz
mostra um lindo sorriso com dentes perfeitos.
Na sua mão direita traz uma maleta executiva. Em
alguns segundos puxa a cadeira do outro lado da mesa. Coloca a
maleta à sua frente. Pego a arma na cintura e aponto na sua
direção por baixo da mesa.
Ainda bem que decidi deixar o colete a prova de balas
após comprar um casaco na primeira loja que encontrei no
caminho. Está quente, as pessoas devem pensar que sou louco
46
por vestir isso, mas assim me ferir mortalmente fica mais difícil.
“Olá” ele diz mantendo o sorriso.
“Quem é você?”
“No nosso mundo sou chamado de Advogado” fecha o
sorriso e me encara.
Sim, foi o que pensei. Ele é um sicário e veio tentar
acabar comigo. É bem ousado. Pensei que esperariam no lado de
fora. Nem aqui dentro entre testemunhas e câmeras estou em
paz.
“Desculpe, não o conheço.”
“Mas eu o conheço, Mercador. Quero que saiba, é uma
honra conhecê-lo. Não é sempre que tenho a satisfação de
conhecer um sicário tão famoso. Sabe o que dizem do senhor
por aí?”
“O que dizem?”
“Que é o melhor de todos. E quem o matar será
lembrado para sempre.”
“Então essa é sua motivação, não é só pelo dinheiro.”
“Nunca foi. Para isso bastaria prosseguir na advocacia
que mataria muitos e ganharia muito dinheiro. Salvar a pele de
alguns gângsteres da cidade e ter tudo. Contudo, estou a procura
de status.”
“Compreendo. Na sua idade pensava a mesma coisa.
Então parei de subestimar meus alvos e parei de tomar tiros.”
“Seguirei seu conselho, mas não hoje.”
“Então, Advogado, qual é o seu plano?”
“O matarei aqui mesmo. Corro até o estacionamento, em
15 minutos estarei fora do radar da polícia.”
“Com todas essas câmeras? Um assassino que mostra
seu rosto. Isso não parece muito profissional.”
“Tudo bem. Estou disposto a pagar o preço. Posso
trabalhar mascarado pelo resto da vida.”
“Garoto, não sabe as regras, não é mesmo? Depois que
um assassino mostra o rosto, automaticamente passa para o fim
da fila dos trabalhos. O ATRAVESSADOR só passará serviços
47
ruins, estará dentro do lixo da Agência, mesmo sendo o
assassino do Mercador.”
“Está blefando” o seu sorriso já não existe mais.
“Não, garoto. Está na cartilha dos sicários, caso tivesse
lido saberia. É por isso que existe o sindicato, para informar aos
interessados seus direitos e deveres. O artigo 13, parágrafo L
informa: Todo sicário que, por ventura, vier a ter seu rosto ou
identidade vazada para a imprensa ou polícia, automaticamente
deixará a fila comum dos sicários, e passará a fazer parte dos
sicários não prioritários e receberá trabalhos somente rejeitados
pelos outros. Ou seja, garoto. Como deve ter conhecimento,
somente os trabalhos ruins que pagam pouco são rejeitados. A
sua fama de ser o assassino do Mercador desaparecerá muito em
breve.” Ele parece tocado, certamente seu ego inflado jamais
deixará que isso atrapalhe seu sonhos de ser um sicário lendário.
Sei que não desistirá. “Sabe a nossa diferença?” Pergunto para o
Advogado que não responde, apenas levanta as sobrancelhas
esperando a resposta “é que eu não estou mais interessado em
status. Não dou importância para os próximos trabalhos, porque
a chance disso acontecer é mínima. Entretanto, sei que tirando
você do caminho ganharei mais tempo.”
Puxo o gatilho da arma abaixo da mesa. Os tiros acertam
em cheio seu abdômen. Ele não usa colete a prova de balas. Sua
camisa é muito bem cortada para utilizar um EPI tão vital por
debaixo dela.
O barulho dos tiros provocam desespero e correria. A
multidão corre para todos os lados em pânico.
Ele coloca a mão no abdômen olhando nos meus olhos,
está apavorado. Apenas o assisto morrer. Quando percebo que
não provoca mais perigo, que não levarei um tiro pelas costas,
levanto e corro para o meio da multidão.
***
Preciso redobrar os cuidados, o garoto teve peito para
tentar o enfrentamento em público. Sei que outros tentarão.
Sigo caminhando. Fora do shopping algumas viaturas
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estacionam. Os policiais descem com as armas nas mãos. Como
sempre são ríspidos com as pessoas. Entram no shopping apenas
por uma única porta. São amadores.
Ainda tenho um longo trajeto para caminhar.
A Capital está um caos. Um prato cheio para os jornais
sensacionalistas. Já devo ser notícia nas plataformas.
Agora além de cuidar de todas as pessoas, meu rosto
deve estar em processo rápido para parar na edição de algum
jornal e nos registros policiais. Meu tempo diminuiu
sobremaneira.
Toda vez que vejo uma viatura viro na primeira esquina
atrasando ainda mais meus planos.
Passos apressados ultrapassando os pedestres. Então uma
viatura dobra a esquina como que soubesse onde eu estou indo.
Coloco a mão dentro do casaco, seguro a arma, mas não
a saco. A viatura para logo à minha frente, titubeio, estou
preocupado. Era só o que faltava, iniciar um tiroteio com a
polícia é praticamente ultrapassar o limite do aceitável.
Matar um policial significa deixar todos os outros irados,
até aí não é um problema difícil de resolver. Agora, com azar,
posso matar um corrupto, então não só os policiais ficaram
inconformados, como os traficantes, cafetões e qualquer coisa
que usa de suas alianças corruptas.
Todo sicário sabe que não é aconselhável um confronto
com a polícia. Ser eficiente é ser silencioso e invisível.
O vidro está refletindo o sol, não consigo enxergar o
motorista.
Mais um passo à frente e a janela começa a abrir. Fico
pronto para o confronto. Aos poucos vejo a careca preta, depois
os olhos grandes, o nariz arredondado, os lábios grossos. Então
o meio sorriso debochado de sempre aparece, o mesmo que só
muitos anos como policial é capaz de construir.
“Dia difícil” ele diz enquanto a janela termina de abrir.
“Então quer dizer que todos já sabem?”
“Pode ter certeza. Armou um enorme circo e todos estão
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querendo assistir. E o pior, você é o animal dentro da jaula.”
“Também quer terminar comigo?”
“Não, Netúnio. Velhos amigos não matam velhos
amigos. Vamos, anda logo, mexa esse traseiro antes de tomar
um tiro no meio da testa.”
Resolvo entrar. Ele é minha melhor chance “é bom rever
um rosto conhecido” digo ao entrar, fecho a porta.
50
Tonho
52
decide alguma coisa. Estou pedindo para aumentar as suas
chances de vitória. Por favor, Netúnio. Escute seu irmão de rua.”
Ele segue falando, não presto atenção no que diz. Prefiro
deixar o sol bater no rosto e olhar para os galhos das árvores
balançando com os ventos. Lembrar do rosto de Angelina. De
como ela era e é. De como ainda é uma linda mulher.
***
Consegui chegar até aqui porque, de certa forma, mesmo
sozinho sempre pude contar com Tonho.
O conheci num dos tantos orfanatos que frequentei.
Lembro que ele era muito franzino, com as pernas finas e a
cabeça grande. Por sua aparência “frágil”, sempre foi alvo dos
aproveitadores que andavam em bando. Apanhava quase todo
dia. Nos primeiros meses tentei ficar afastado. Já tinha
problemas demais e ainda precisava descobrir o melhor jeito de
fugir do orfanato. Contudo, vê-lo apanhar todos os dias era
demais. Ele simplesmente não reagia e as surras começaram a
ser cada vez mais longas.
Então resolvi ajudá-lo. Um dia levantei e derrubei os
valentões. Quando os garotos estavam no chão, Tonho começou
a chutar seus corpos e cabeças. Chutava sem parar. Alguns até
perderam a consciência.
Ele tinha muita raiva dentro do seu coração e fui eu que
a libertei. Foi como limpar a dor da sua alma. E as substituiu por
raiva e rancor. Eu reiniciei seu coração.
Pensei que ele poderia matar alguns dos moleques a
chutes, por isso resolvi segurá-lo. No mesmo dia passamos de
desconhecidos para melhores amigos. Sempre fomos assassinos.
A diferença é que ele conseguiu dominar sua fera interior.
Depois de alguns meses fugimos juntos, passamos três
anos nas ruas. Roubando e brigando por nossa sobrevivência.
Éramos um time. Juntos praticamente invencíveis.
Num dia frio, devíamos ter 13 anos, uma assistente
social veio conversar conosco. Disse que poderia nos tirar das
ruas. Ainda havia tempo para encontrar pais adotivos.
53
Obviamente neguei qualquer ajuda, não confiava em
ninguém, mas Tonho estava cansado de tudo aquilo. Naquele
mesmo dia ele juntou seus trapos e foi embora com a assistente
social.
Segui meu caminho. Sou assim, não é possível trancafiar
um animal selvagem por muito tempo. Acabaria fugindo de um
novo lar, deixando triste e acabando com os planos de duas
pessoas que sonhavam em ser pais.
Voltaria a reencontrar meu irmão de rua aos 18 anos. Por
coincidência estávamos na mesma seção para o alistamento
militar. Não houve rancor. Éramos irmãos de rua. Usamos as
horas para colocar a conversa em dia. Era como os velhos
tempos, parecia que nem tínhamos ficado tantos anos afastados.
Ele estava muito animado com o alistamento, eu só
queria voltar para o barraco que agora morava.
Reatamos a velha amizade, juntos aprendemos a atirar,
lutar e dirigir. Foi um período seguro, sem nenhum problema
maior do que brigar por comida nas ruas. Éramos milicos
destaques. Durões, inquebráveis. Viemos da rua, os outros de
seus apartamentos e bairros de classe média.
Decidimos engajar. Chegamos a cabo e no final do
quarto ano foi a minha vez de abandoná-lo. O tédio de ser um
cativo do exército foi demais. Pedi minha baixa e voltei para as
ruas. Contudo, dessa vez eu já era um homem com
conhecimentos importantes para manter meu corpo inteiro.
Não demorou muito para o maior traficante local
descobrir meu talento, fui contratado como seu sicário. Matei
muitos homens por motivos banais e um dia a lei acabou com a
minha alegria. Conseguiram fazer de eu culpado por dois
crimes, fui condenado a 15 anos de reclusão. Aprendi da pior
forma que quando se é um sicário, ser invisível é questão de
sobrevivência.
A lei da rua e da cadeia são muito parecidas. Os homens
de lá também querem ver outros homens mortos, mas não tem
coragem para fazerem com suas próprias mãos.
54
Outra vez me tornei o matador. Fiquei famoso, até o dia
que fui apresentado ao Padrinho. Estava na galeria, muito bem
vestido. Os policiais nos colocaram em fila na sua frente. Nos
faziam sentar numa cadeira e ficarmos a dois metros de distância
do velho. Tivemos uma breve conversa como foi com os outros.
“É ele” um dos guardas falou quando chegou minha vez.
Rapidamente o Padrinho mudou seu comportamento,
disse que eu deveria relaxar. Ofereceu uma bebida. Sorria
amistosamente o tempo todo enquanto os outros presidiários
estavam inquietos na fila.
“Então é você o rapaz das mortes?”
“Sim, sou eu.”
“Sua fama é muito grande lá fora.”
“É mesmo? Pois não importa nada. Morrerei aqui nesse
inferno.”
“Não morrerá. Posso tirá-lo daqui num piscar de olhos,
mas preciso que aceite minha oferta de trabalho.”
“Sair daqui sem cumprir a pena? Sem fuga?”
“Isso mesmo.”
“Qual é sua proposta?”
“Estou iniciando um negócio promissor. Uma agência de
sicários. Cuidarei de tudo. Armamento, dinheiro, novas
identidades, a saúde dos sicários e suas famílias. Em troca
ficarei com a minha parte em cada trabalho.”
“Quanto por cento?”
“5 por cento…”
“Aceito, mas eu quero sair hoje. Quero sair agora!” Ele
apenas sorriu, foi a primeira figura paternal que conheci.
Até hoje não sei quem o Padrinho subornou. Certo é que
era muito influente. Na mesma tarde estava na rua.
***
“Então” ele explicou no carro “cada matador terá um
codinome e terá um posto de disfarce em local estratégico da
cidade. O seu será Mercador e sua fachada será uma fruteira. É
como ir ao trabalho. Pode viver uma vida de luxo em qualquer
55
canto da Capital, mas deverá estar todos os dias no seu posto,
esperando por trabalho.”
Não entendi nada, mas estava livre, era o que importava.
Segui fazendo o meu trabalho, matando muitos alvos.
Com o dinheiro fiz viagens, comprei bons carros, usei as
melhores drogas. Foi neste período que eu e mais alguns sicários
formamos o sindicato.
Depois de alguns anos, num trabalho no qual o alvo era o
chefe da polícia, reencontrei Tonho que agora era um policial
em início de carreira. Também havia cansado do exército.
Decidiu virar policial inspetor.
Na noite do crime, quando invadi a casa do tal chefe da
polícia, por coincidência, Tonho estava com ele na sala. Bebiam
um drinque e conversavam sobre uma difícil investigação.
Matei o chefe da polícia com um tiro na nuca. E com
Tonho na minha mira, após reconhecê-lo, expliquei que agora
era um sicário, e sob sua mira ele explicou como abandonará o
exército.
Depois de alguns minutos discutindo contou que casou e
esperava o primeiro filho.
Baixei a arma e disse “meu trabalho por aqui terminou.
Caso queira me prender será necessário atirar, pois jamais
voltarei para a cadeia” dei as costas. Ele não atirou. Nossa
ligação ainda era forte e intacta.
Desde então reatamos nossa estranha amizade e nunca
mais falamos sobre seu antigo chefe de polícia. Mais tarde
descobri que o antigo chefe estava no time dos corruptos e
Tonho dos honestos, o que o leva a ser um dia meu alvo.
Prometi que jamais o mataria, bem como não mais mataria seus
superiores.
***
“Para onde estamos indo?” Pergunto quando percebo que
já estamos saindo da região central na direção contrária da
Agência.
“Para um lugar seguro.”
56
O CHEFE
58
e porta-retratos.
Atrás da mesa um velho careca, gordo, sua pele tem um
tom rosa engraçado. Seu uniforme é apenas uma camisa social
não engomada com os dois primeiros botões abertos. A primeira
coisa que consigo ouvir é a sua respiração forte de fumante.
“Boa tarde, Chefe” diz Tonho que para a sua frente em
posição de sentido.
“Boa tarde” responde levantando o rosto, seus olhos são
tristes e melancólicos como um relógio sem pilha. O rosto é
redondo e doentio. “Vi o reflexo de seus pés pela fresta da porta.
Esse é o…”
“O famoso Mercador” Tonho o interrompe.
“Certo, a vontade” diz para Tonho que desfaz o sentido
“podem sentar.”
Puxamos as cadeiras e sentamos. O velho está atento aos
meus movimentos. Sabe que não cometerei nenhuma besteira
com tantos policiais ao lado de fora, mas o medo fala mais alto
no seu corpo. Já matei tantos policiais de alta patente que sou
temido mais do que qualquer coisa.
“Então” digo “o que tem a oferecer?”
“É um sicário bem direto” diz, ele não esperava a minha
segurança na voz. Parece nervoso. Demora para confabular a
primeira fase “queremos oferecer ajuda.”
“Por favor, seja mais específico.”
É a vez de Tonho assumir a palavra “nos dê a Agência e
estará livre para recomeçar a vida em outro lugar. Terminando
com a Agência dos Sicários certamente enfraquecerá seus
aliados. Você é a nossa chance.”
“É mesmo?” Olho para os dois “e como pretendem fazer
isso?”
“Temos um limite de ação” diz o Chefe “podemos
protegê-lo, mas não podemos acompanhá-lo até a Agência.
Somos submissos ao governo e às suas ordens. O Governador
proibiu qualquer ação no raio de um quilômetro de lá. Ele é
aliado da Agência como tantos outros políticos. Tem medo de
59
ser um alvo e decidiu ajudá-los em troca de jamais ser uma
vítima. Por isso nossa jurisdição termina praticamente na porta
da Agência. Não podemos entrar, caso um dos meus soldados
honestos morrer lá dentro serei remanejado para uma pequena
cidade no interior como qualquer outro chefe que tentou
enfraquecer a Agência, a luta contra os verdadeiros vilões estará
perdida e os poucos policiais honestos estarão perdidos.”
“Então querem que eu entre na Agência, mate o
ATRAVESSADOR e todos os sicários que por ventura
estiverem por lá, em troca oferecem a liberdade” começo a rir
“isso só pode ser brincadeira” o encaro “sou um sicário e sabe
que estou acima da sua lei. A liberdade é algo que já tenho.”
“Então o que deseja?”
“Entrarei e enfraquecerei a Agência dos Sicários e o
resto é com vocês. Meu desejo é simples. Há um garoto. É por
ele que estamos aqui. Seu nome é Antônio, apenas um bebê. Ele
está com a minha ex-noiva. Quero que ele cresça, seja treinado
pelos melhores homens na arte da luta e tiro para que um dia
possa vingar a morte dos seus pais. E que Angelina tenha a
guarda permanente, seja sua mãe aos olhos da lei.”
“Isso é bizarro” diz o velho “não podemos criar uma
criança para matá-lo.”
Fico o encarando “não quero que diga sua opinião sobre
isso. Quero sua palavra sobre o menino. Quero que apenas
faça.”
“Já sou velho, Mercador” diz o chefe passando um
guardanapo na testa suada “em alguns anos estarei aposentado.
Outro assumirá a chefia e sabe Deus qual será a sua índole. Não
tenho saúde para prometer isso.”
“Quem são?” Aponto para os quadros atrás do velho.
“Minha família.” Ele diz cabisbaixo.
“O que aconteceu?”
“Todos foram mortos numa emboscada. Mulher, filha e
netos. Tentar prender os maiores traficantes desse Estado não
traz boas consequências.”
60
“Então crie o garoto” ele fica assustado com a minha
proposta “sua família morreu por causa do crime. Trabalhou a
vida inteira para no fim da carreira contar com a ajuda de um
fora da lei e um investigador suicida. Não tem o que perder. Crie
o garoto junto com Angelina como um homem honesto, mas não
somente isso. O transforme num sicário do bem. Diga a ele que
o mal precisa ser combatido. Então sua parte estará feita.
Seguindo a lei, jamais acabarão com o mal.”
“Isso é loucura. Quer que o transformamos num herói?”
Respondo apenas balançando a cabeça. Ele segue
encarando. Um sicário que mata sicários. Seu rosto suado,
velho, cansado. Seus olhos mortos, mas quem sabe ainda haja
brio dentro dele.
Sei que Angelina sempre estará por perto. Seu grande
desejo sempre foi ser mãe e de um jeito torto realizei seu desejo.
Isso foi um dos motivos para fugir do altar. Eu simplesmente
não tenho capacidade para cuidar de um filho. Tonho também
estará presente na vida do garoto, será um ótimo conselheiro. O
garoto será melhor do que eu, será um herói.
Levanto e estendo a mão na sua direção. O velho Chefe
demora alguns segundos para decidir. Então coloca sua mão ao
lado da minha. As unimos e balançamos. O trato está selado.
61
Homicida
63
velho não reage, parece que está hipnotizado “vamos senhor
Léo. Precisamos da sua ajuda. Nós podemos acabar com aquele
maluco, mas para isso preciso do acesso à galeria das armas
apreendidas.”
Os tiros seguem. Logo o homem descobrirá o corredor
que dá acesso ao estoque de armas.
“Vamos senhor Léo” eu digo “precisamos de sua ajuda
para matá-lo” vejo na mesa a sua frente uma foto dele abraçado
com outro homem. Parecem felizes, estão com o uniforme
formal da corporação. Provavelmente é a formatura. A foto é
preta e branca “quem é ele?” Pergunto apontando para a foto.
“Esse é o Cássio” diz Tonho, o velho parece
emocionado “ele e o senhor Leó eram companheiros. Foram
casados por muitos anos. Até o dia que ele morreu num tiroteio
no subúrbio. Desde então o velho policial ficou desolado e o
chefe o colocou aqui.”
“É isso” penso alto, é seu companheiro falecido que
causará a reação que precisamos “por favor, senhor Léo. Nos
ajude a acabar com esses marginais. Vingaremos Cássio.”
Então o velho levanta os olhos que faíscam de raiva,
levanta o braço e aponta para a frente “a senha” ele para, são
segundos nervosos. Percebo que os tiros pararam. Significa que
o homicida está em movimento “311818920. É o nome dele.”
Num breve cálculo percebo que os números são a
posição que as letras do nome do seu amado estão no alfabeto.
“Obrigado” diz Tonho, avança para os fundos do
estoque. Na frente de um pequeno teclado numérico começa a
digitar a senha. Com um sinal sonoro a porta abre. Ele entra e o
sigo.
A sala é pequena, há prateleiras nas quais armas de
diversos calibres estão etiquetadas. A maioria dessas armas são
melhores do que as armas dos policiais. Isso é uma vergonha.
Ele começa a caminhar no apertado espaço entre as
prateleiras, olhando para todos os lados. Mais uma rajada de
tiros, dessa vez muito perto. Já está no corredor.
64
“Seja lá o que estiver procurando, precisa encontrar
logo” digo com pressa, miro minha arma no sentido da porta.
Tonho segue procurando, parece mais calmo. O homem
aparece na entrada do estoque. Não tenho uma mira ideal para
matá-lo, e não posso errar, caso ele mire na nossa direção nos
partirá ao meio.
O homicida fica olhando para o senhor Léo. Espera que
o velho suplique por sua vida, mas apenas segue cabisbaixo.
“Achei” diz Tonho, o homem escuta e olha na nossa
direção.
Abaixo. Acho que ele não nos viu. Vejo meu amigo
segurando uma bazuca de uso exclusivo do exército. Coloca o
equipamento sobre o ombro e caminha na minha direção.
Caramba, isso é uma loucura. Inacreditável que a polícia tenha
apreendido tal armamento.
Levanto, o homem agora segura sua imensa arma
apontada para o senhor Léo. Neste momento Tonho levanta e
puxa o gatilho. O barulho é ensurdecedor. Depois de tantas
décadas escuto o barulho potente desta arma mais uma vez.
O clarão!
***
O tiro arrebentou o homicida, o tiro passou muito perto
do senhor Léo que permanece na mesma posição. Está vivo, mas
deve estar praticamente surdo.
Tonho larga a arma no chão e massageia o ombro que
sofreu o solavanco.
“Vamos, Netúnio. Precisamos sair. Caso o peguem aqui
será preso e eu terei que dar muitas explicações.”
Começamos a correr para a saída.
65
Matadora
67
Passei bons momentos com Angelina. Gostávamos dos
mesmos discos, livros e filmes. Durante a maior parte do tempo
era uma companhia agradável. Lembro de como era bom vê-la
dormindo. Ainda tenho algo para dizer.
“Tem o número dela?”
“Óbvio, Netúnio. Adivinha para quem ela ligava quando
precisava chorar por ter sido abandonada no altar? E ela é
madrinha do meu segundo filho.”
“Fiz muito mal a ela.”
“Fez sim, mas quem pode julgá-lo?”
Ele para no acostamento. Tira o celular do bolso, move
os dedos pela tela, então passa o telefone.
Coloco ao lado da orelha. Está chamando. No quarto
pulso ela atende.
“Olá, Tonho” ela diz muito simpática.
“Não sou o Tonho” respondo. Ela reconhece minha voz.
“Olá, Netúnio” prossegue depois de alguns segundos.
“Olá, Angelina” olho para Tonho que parece curioso
para ouvir a conversa. Abro a porta e saio da viatura. Preciso de
privacidade “como está o bebê?”
“Muito bem. Dorme a maior parte do tempo e quando
está acordado pouco chora, sempre está sorrindo.”
“Que bom. Ele será um bom homem.”
“Pode ter certeza que sim.”
“Terá ajuda para criá-lo. O Chefe da polícia entrará em
contato. O bebê será legalmente seu, desde que conte toda a
verdade quando ele tiver idade para tal.”
“Sério?” Ela parece muito feliz “não posso acreditar que
poderei ficar com ele. Sabe, eu sempre quis…”
Ela não termina a frase. Sei que diria que seu sonho
sempre foi ser mãe. Eu era parte desse sonho e acabei partindo.
Fui egoísta e medroso.
“Cuide bem dele.”
“Cuidarei com todo o amor do mundo.”
“Caso um milagre aconteça, e eu fique vivo, quero que
68
ele saiba toda a história. Quero que ele queira vingar seus pais
biológicos.”
“Tudo bem, é o seu desejo.”
“Tem mais uma coisa.”
“O que é?”
“Eu te amei” um silêncio mortal acontece. Posso escutar
sua respiração, então alguns soluços. Ela está chorando. Jamais
havia dito essas palavras. Mesmo nos melhores momentos eu
segurava a onda. Não tinha o direito de amar, pois eu não
buscava o amor. Era apenas a escuridão. E as palavras ficavam
presas na garganta.
“Eu também te amei, Netúnio. E nunca mais amei outro
homem.”
“Queria poder vê-la agora e dizer que fui feliz naqueles
anos, mas é tarde demais. Adeus Angelina.”
“Adeus Netúnio. Desejo que o milagre aconteça, pois
quero vê-lo novamente.”
Então vejo ao longe um caminhão vindo na nossa
direção. Está com as luzes altas para evitar que possamos ver
quem dirige.
Aproxima muito rápido. Abaixo o aparelho e grito para
Tonho.
“Saia do carro!”
Ele olha pelo retrovisor. O caminhão está muito perto.
Vejo quando abre a porta. Salta para o lado, o caminhão atinge
em cheio a viatura, arrasta ela por muitos metros.
Fico aliviado quando vejo Tonho no chão ao meio da
pista. Ele conseguiu escapar.
O caminhão para. A porta abre. Primeiro vejo as pernas
finas dentro de uma calça justa de vinil. Depois o resto do corpo
curvilíneo e magro. É a Matadora.
“Tonho, corra o mais rápido que conseguir” digo
sacando a arma. Então lembro que os outros armamentos estão
na viatura. Definitivamente deixar armas nos carros não é
vantajoso para mim.
69
“Não fugirei, vamos agir juntos. Como nos velhos
tempos” diz levantando e sacando sua arma.
A chance de estar em ação junto com meu único amigo é
extasiante, por hora estou satisfeito. Então lembro que ele agora
é um pai de família e não pode morrer.
Atiramos na direção da Matadora. Como uma ninja dá
uma cambalhota e fica atrás do caminhão.
“Vamos nos separar” digo “um de cada lado e ela estará
cercada” ele concorda balançando a cabeça.
Avançamos. Olho atentamente, ela segue atrás do
caminhão.
O caminhão é muito extenso. Deve ter, pelo menos, 25
metros. Os carros que passam reduzem a velocidade. São
curiosos, mas quando veem nossas armas resolvem partir.
Mais um pouco, há muita fumaça saindo do motor da
viatura que está bem amassada. O caminhão estragou pouco.
Chegamos na frente, nem sinal da Matadora “ei rapazes”
ela diz. Olhamos para cima e a vemos. Em menos de um
segundo ela atira três lâminas, duas cravam no antebraço de
Tonho, a outra na altura do bíceps. Atiro, mas ela não está mais
lá. Com certeza a próxima lâmina seria fatal.
Já saltou, no chão ela dá um chute na altura da arma de
Tonho que voa para longe. Atiro, mas ela já saiu do lugar. Ao
meu lado segura a arma e com a outra mão atinge meu rosto por
cinco vezes. É o suficiente para me fazer largar a arma. Caio no
chão. Minha cabeça gira. Meus óculos caíram, espero que
fiquem inteiros.
Tento levantar, mas com uma rasteira volto para o chão.
Tonho levantou, avança em guarda. O sangue escorre abundante
pelos ferimentos. A Matadora sequer levanta a sua guarda. O
espera atacar e quando faz ela esquiva com facilidade. São
vários golpes que passam no vazio.
Então ela desfere dois socos no estômago, ele baixa a
guarda e toma mais dois no rosto. Cai vencido.
Preciso me concentrar, ela deve ter um ponto fraco. Não
70
posso ser derrotado tão facilmente. A Matadora é uma pedra no
meu sapato.
Então lembro como era quando enfrentava os oponentes
mais complicados. A luta nunca foi o meu forte, mas sempre
superei as dificuldades. Penso no estilo de luta da Matadora. É
muito eficiente, mas segue sempre a mesma lógica. Desfere
golpes diretos e sempre o segundo é igual ao primeiro só que
com outra mão.
Conseguindo ficar em pé, posso deixar que acerte o
primeiro golpe e no segundo defenderei. Isso dará uma margem
para contra-atacar.
Ela retira mais uma lâmina da bota, caminha na direção
de Tonho que tenta tomar distância arrastando-se pelo chão. Ele
tinha razão, será como nos velhos tempos, pois sem ele aqui não
conseguiria ter tempo para estudar o modo de luta da Matadora.
Levanto, ela percebe, sem olhar atira a lâmina, já
esperava, por isso desvio, a lâmina passa muito perto do meu
pescoço, chega a cortá-lo superficialmente.
Vejo que ela não esperava minha expertise. Com um
meio sorriso vem ao meu encontro. Levanto a guarda no melhor
estilo pugilista Cubano. Chegou a hora de descobrir se minha
teoria está correta.
Espero que chegue bem perto. Ela estuda meu estilo,
então levanta uma guarda ao estilo Muay Thai. Para evitar que
ataque com chutes, encurto nossa distância, rapidamente ela
muda para o guarda de Wrestling. Sem dúvida é uma excelente
lutadora. Esses jovens são sempre muito dedicados quando o
assunto é lutar. Na minha época resolvíamos tudo na bala. Sei
que tentará me derrubar.
Em dois segundos ela resolve atacar, como previ, um
soco com a mão esquerda, pelo que percebo é a sua mão mais
fraca.
Deixo que aceite o primeiro golpe em cheio, pega na
lateral do meu rosto. Tonteio, mas aprumo a tempo para
conseguir bloquear o próximo.
71
Seu braço para no meu. Olho para ela que parece
assustada. Puxo a mão e acerto um gancho bem no seu queixo.
Com o impacto ela dá três passos atrás. Quando apruma o corpo
uma linha de sangue escorre no seu rosto até o pescoço.
Ela limpa o sangue com o antebraço, respira fundo e vem
ao meu encontro. Está muito furiosa. Sei que pará-la agora será
difícil.
Mais perto sou atingido por golpes variados. Tentar
bloqueá-los é uma tarefa hercúlea.
Aos poucos fico mais fraco, não sei como farei para
resistir. Ela parece feliz, e ao mesmo tempo alucinada. É muito
mais que uma sicária, é uma psicopata.
Vejo Tonho avançando pelas costas da Matadora que
está distraída. Ele tem uma lâmina, a levanta e crava nas suas
costas. Mais uma vez ela parece muito surpresa. Não demonstra
dor. Vira para ele. Retira a lâmina das costas e a joga na direção
dele. A lâmina crava bem no meio do seu peito.
Não posso deixar que o mate. Ele não pode morrer, é um
ótimo homem. Tem uma família para fazer feliz. O mundo
precisa mais dele do que mim.
Olho para trás, minha arma está a cinco metros. Começo
a correr para ela. Pego impulso e salto para cima da arma. Ela
percebeu e jogou uma lâmina sobre a arma antes que eu
conseguisse pegá-la. Caio de cara com a arma fora do meu
alcance. Ela chega perto.
“Vire-se” ordena.
Viro lentamente. A Matadora não parece mais a
superassassina de antes. Está ferida e acredito que ela não tenha
passado por isso antes. Seja como for, fomos adversários difíceis
de vencer.
Ela retira mais uma lâmina da bota. A levanta, está
prestes a jogá-la na minha direção. Caramba, chegou a hora de
morrer. Nunca imaginei que seria assim.
Então olho para Tonho que conseguiu pegar sua arma e
está apontando para a Matadora. Ela percebe, vira para ele, mas
72
não tem tempo. É atingida por muitos tiros, a maioria pega no
colete a prova de balas. Por sorte um acerta seu pescoço e dois o
rosto. Ela cai morta ao meu lado. O sangue esguicha do pescoço
e forma uma poça.
Tonho larga a arma e fica imóvel no chão. Levanto com
dificuldade e caminho ao seu encontro. Fico de joelhos ao seu
lado.
“Como nos velhos tempos” ele diz sorrindo.
“Por que não atirou antes?”
“Ela saberia, foi melhor assim.”
Analiso seus ferimentos que não parecem mortais “fique
imóvel até a ambulância chegar e viverá. A lâmina parece que
passou abaixo do coração.”
“Pode deixar, Netúnio. Não irei a lugar algum. Parece
que está sozinho mais uma vez.”
“É, e distante da Agência. A viatura está inutilizável.”
“Então use o caminhão.”
Sim, como não havia pensado nisso? O caminhão
fornecerá a força e proteção que preciso para entrar na Agência.
“Adeus meu velho amigo.”
“Adeus, sem você talvez não vivesse tempo suficiente.
Obrigado pela proteção. É um orgulho ser amigo do grande
Mercador de Frutas Podres.”
Acaricio seu rosto. Mais uma vez está surpreso. Não
esperava um gesto carinhoso da minha parte.
Levanto e caminho até a viatura, tento abrir o porta-
malas onde estão as armas, mas a lataria está muito amassada. É
necessário equipamento de resgate para abri-lo.
Decido desistir. Não tenho tempo a perder. Estou apenas
com uma pistola e algumas balas. Procuro meus óculos. Eles
estão perto do corpo da Matadora, apenas uma das lentes está
rachada. Coloco no bolso.
Subo no caminhão. Mesmo amassado, logo o motor
pega. Fico aliviado. Está na hora de acabar com isso. Em ré ele
desprende da viatura. Manobro com cuidado para não passar por
73
cima de Tonho.
Alinho o grande caminhão na pista rumo a agência.
Estou indo rumo a morte…
74
Sicários
76
com diversas mesas espalhadas que vi pela primeira vez
Angelina. Não posso afirmar que foi amor à primeira vista, mas
sempre foi agradável olhar para ela.
Ainda lembro do sorriso quando ela alcançou meu
cheque de pagamento. Sempre recebia em cheque, contas
bancárias só traziam dor de cabeça até que consegui encontrar
meus gerentes corruptos.
O segundo andar está vazio. As secretárias não
trabalham a noite. Por isso o ATRAVESSADOR ligou direto no
meu telefone naquela noite. Volto para a escada, mais dois
lances, chego no andar de reuniões. Aqui aconteciam os
encontros anuais onde o Padrinho demonstrava o balanço anual
da Agência e o quanto tinha lucrado para os interessados. O
Sindicato sempre estava presente. Éramos bem recebidos pelo
velho, fazia questão de nos convidar. Só que agora tudo mudou.
Preciso tomar cuidado, sinto frio na barriga, estou em alerta.
A sala de armamentos fica no subsolo, lá o velho
Armador deixa tudo pronto. Qualquer tipo de armamento pode
ser encontrado lá, até as lâminas superafiadas da finada
Matadora. Sei que não é necessário descer até lá. É um local
pouco frequentado pelo ATRAVESSADOR.
O andar de reuniões também está vazio, apenas a grande
mesa e as cadeiras.
***
Volto para a escada, faltam apenas dois lances para meu
destino ser selado. Tudo até agora foi surpreendente. Afinal, no
que o ATRAVESSADOR pensou para acabar comigo? Já era
para meu corpo estar cravejado de bala.
***
Chego no quarto andar e último. À minha frente apenas a
pesada porta onde ficava o Padrinho. E agora está sendo
desonrada pelo ATRAVESSADOR.
Coloco a mão no trinco, giro e empurro. A pesada porta
abre rangendo. Miro para dentro e o que vejo prova que posso
ser surpreendido ainda mais.
77
Entro. Na minha frente estão o Doctor, Mestre, Reitor e
Pastor. Já os vi antes em alguns vídeos institucionais. Eles são
líderes de suas Agências de Sicários, são os líderes dos sicários
da região sudoeste e sul do País. Padrinho era um deles no
passado.
“Baixe a arma, rapaz” diz Pastor, o líder da Agência do
Estado de Janeiro.
“O que está acontecendo?” Pergunto baixando a arma.
“Exatamente o que está vendo” fala Doctor, o líder da
Agência do Estado San Paolo.
“É uma reunião entre os líderes” diz Mestre, o líder do
Estado do Paranavaí.
“E só estávamos esperando por você” conclui o Reitor, o
líder da Agência do Estado de Sant Catarine.
“Acredito que o motivo dessa reunião é a bagunça que
fiz espalhando sangue pela cidade e lutando contra o líder desta
agência.”
“Na verdade não” prossegue Mestre “estamos aqui por
causa de uma denúncia.”
“Espera aí, onde está o ATRAVESSADOR?” Pergunto
percorrendo pela sala com o olhar.
“Calma rapaz” fala Doctor “ele está num lugar seguro.”
“Como estava falando” diz Mestre “estamos aqui por
causa de uma denúncia.”
“Uma respeitável ex-secretária” prossegue Pastor “ligou
para o SAC da minha Agência e denunciou a conduta do
ATRAVESSADOR, atual líder temporário disto tudo.”
“O nome dela é Angelina. Você a conhece?” Pergunta
Reitor.
“No passado ela quase foi minha esposa. Ela me odeia.
A abandonei no altar.”
“Instigante” diz Doctor sorrindo “parece que ela não o
odeia tanto assim.”
“O que ela disse?”
“Que o atual líder desta Agência desrespeitou uma lei
78
magna imposta pelo antigo líder, e que também não respeitou a
vontade do mesmo” diz Mestre “e por coincidência, nosso velho
amigo nos enviou sua carta testamento antes da morte. Sabíamos
que ele desejava que os Sicários do Sindicato assumissem a
Agência. O ATRAVESSADOR é um homem muito ganancioso,
incapaz de seguir regras que não o agradam e não são
vantajosas. Ele não realizou o desejo de seu velho líder.”
“Ele matou todos meus amigos do Sindicato. Apenas eu
estou vivo.”
“Todas as Agências têm um Sindicato que representa os
Sicários” segue o Reitor “só existimos por causa de vocês e
precisamos ouvi-los, negociar reajustes e benefícios. Sem o
Sindicato apenas o patronado tem poder e isso não é bom para
nossos negócios. Sicários descontentes causam rebeliões e isso
só atrasa nossa evolução.”
Só percebo agora como eles estão bem-vestidos, cada um
com seu estilo distinto.
“Então Mercador” prossegue Doctor “acho que devemos
um pedido de desculpas. Viemos organizar essa bagunça e
ficamos felizes de vê-lo vivo depois de tantas batalhas.”
“Sem dúvida é um grande sicário” completa o Pastor.
“Por isso nos diga” segue Mestre “como o último
sindicalista vivo pode reivindicar a liderança desta Agência de
Sicários. Ficaríamos honrados em tê-lo como colega.”
Penso no que significa e representa ser o líder de uma
agência. Eles são velhos. Parecem limpos e saudáveis, mas isso
não é para mim. Ficar atrás de uma mesa esperando alguns
homens matarem outros para que eu possa ganhar uns trocados
parece muito tedioso. Seria muito infeliz fazendo, ou melhor,
não fazendo isso. Sou um sicário, é isso que eu faço.
“Não quero ser o Agenciador. Não tenho capacidade
para isso. Só desejo que as leis do Sindicato dos Sicários sigam
sendo respeitadas. Tenho certeza que os senhores encontrarão
alguém melhor do que eu para prosseguir com o que o Padrinho
construiu.”
79
“Tudo bem” diz o Pastor “acataremos o seu desejo, até
porque pensamos da mesma forma.”
“Muito bem” diz Mestre “acho que essa reunião chegou
ao fim” olha para seu relógio “satisfação conhecê-lo
pessoalmente Mercador” caminha na minha direção, estende o
braço direito, faço o mesmo, nos cumprimentamos com um forte
aperto.
Assim um a um vem ao meu encontro. Cumprimento a
todos.
Eles caminham para a porta, fico olhando para a imensa
sala que um dia Padrinho recepcionava sorrindo os sicários que
precisavam falar com ele. Nunca impôs barreiras para isso,
sempre estava disponível.
Estou muito aliviado e surpreso, quase morri no
caminho, e agora a guerra que eu esperava não aconteceu. Estou
contente, o legado do Padrinho está a salvo. Eu estou a salvo…
Não precisei lutar numa batalha que certamente
morreria. Estou vivo, não sei como será o futuro, só sei que
preciso de longas férias.
“Ei” diz Pastor, ele é o último que está saindo. Olho na
sua direção “temos uma surpresa para você dentro do banheiro.”
Ele fecha a pesada porta.
Olho para a porta do banheiro. O que devo esperar?
Avanço até o banheiro, saco a arma. Coloco a mão na
fechadura, com a outra miro. Giro a maçaneta. Algo diz que
empunhar a arma é desnecessário.
Abro a porta por completo, vejo o ATRAVESSADOR,
está nu, hematomas pelo corpo, braços e pernas amarradas, a
boca tampada com fita cinza. É isso, os velhotes jamais o
deixariam sair impune. Aposto que o espancaram com as
próprias mãos.
Quando sou visto ele tenta levantar e acaba caindo no
piso frio de lajota. Resmunga muito. Estou sem os óculos, mas
acho que vejo lágrimas caindo dos seus olhos. Tiro os óculos do
bolso e os coloco.
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Caminho ao seu encontro, ele tenta rastejar para longe,
abaixo e tiro a fita da sua boca. Ele grita socorro muitas vezes
até cansar e perceber que é inútil.
“Por favor, Mercador! Não me mate. Foi um mal
entendido, eu perdoo seu erro” não respondo, apenas o assisto
chorar e suplicar por sua vida.
“Não perca seu tempo, ATRAVESSADOR. Por muito
pouco não conseguiu o que desejou, mas o bom senso
prevaleceu. Somos animais, matamos por dinheiro. Muitos de
nós sequer merecem viver, mas até nós precisamos ter regras
éticas e morais. Um sindicato já é muito importante para a
sociedade normal, sem ele as pessoas viram escravos. Imagina
para os sicários como seria sem a presença de um sindicato?”
“Eu subestimei as coisas. Não queria que chegasse a esse
ponto. Consegue entender? Estou arrependido.”
“Não queria, mas caso tivesse conseguido acabar comigo
o caminho estaria livre para seguir. Por sorte, seus sicários não
conseguiram me matar. Quanto estava o lance?”
“3,5 milhões por sua cabeça.”
“Caramba, por isso eles cometeram tantas loucuras.
Alguns até sequer esconderam seus atos em público. Foi uma
verdadeira guerra. A mídia deve estar louca com tanta
manchete.”
“Mercador, por favor, me solte! Prometo desaparecer.”
“Não. Você é como um político corrupto. O deixando
por aí, mais cedo ou mais tarde voltará ao poder. É como uma
praga. Por isso não o deixarei viver. Preciso cortar a anomalia
pela raiz. Nos vemos no inferno, ATRAVESSADOR.”
Apenas um tiro bem no meio da testa. O sangue
escorrendo entre o rejunte das lajotas.
A adrenalina começa a baixar. As dores pelo corpo
reaparecem. São muito fortes. Descubro que caminhar passa a
ser uma tarefa difícil.
Saio do banheiro, começo a mancar. Os ferimentos de
lâminas estão ardendo, por dentro da carne pulsam em úlcera.
81
Preciso de alguns comprimidos. Não consigo acreditar que tudo
acabou assim e ainda estou vivo. Parece que recebi uma segunda
chance e preciso consertar alguns erros do passado.
***
Um degrau por vez. Sem pressa. Nas costas, sobre o
quadril, outra dor explode. Meu corpo já não é mais o mesmo.
Acho que é o momento de pensar em aposentadoria.
Termino de descer as escadas, no saguão onde o
caminhão está atravessado vejo dezenas de sicários. Todos estão
armados e equipados com o que convém. Suas armas estão nos
coldres, dentro das bainhas ou apontadas para o chão.
Conheço alguns deles, são do tempo no qual eu era
apenas um iniciante e outros são tão jovens que desconfio se
realmente já tem idade para serem sicários.
Paro de avançar, não estou entendendo nada. Contudo,
agora acabou, acho que eles não atacarão. Certo é que jamais
poderia derrotar todos eles.
Eles encaram. Faço o mesmo, mas seus olhos não estão
sedentos por sangue. É outra coisa que demonstram.
Então uma jovem mais a frente começa a bater palmas,
logo os outros fazem o mesmo. Um nó é instaurado na minha
garganta, mas logo domino a emoção.
Levanto os braços com as palmas das mãos para baixo os
fazendo parar com a salva. Isso é estranho, o que houve aqui não
é motivo para isso. Foi apenas um homem matando outro.
“Discurso!” Grita o Armoeiro, o reconheço mais ao
fundo. Ele está velho, seu cabelo embranqueceu.
“É isso aí!” Grita uma sicária logo à esquerda.
“Discurso, discurso, discurso” gritam em coro.
Caramba, isso é loucura. Não tenho nada a falar para
eles. Começo a desconfiar da capacidade psíquica deles. Não é
certo idolatrar outro homem, pois ninguém é perfeito para
merecer tal coisa.
Mais uma vez levanto os braços e os faço ficarem
quietos. Espero até o burburinho cessar. Penso no que falar.
82
Preciso deixá-los satisfeitos. Começo a mover os lábios. Todos
olham atentos.
“Organizem um novo Sindicato dos Sicários, pois sem
ele nós estamos perdidos. E quando isso for feito, além das
velhas regras, a partir de agora, é proibido matar policiais
honestos. Isso deve ser uma lei magna.”
Termino a frase, todos parecem satisfeitos com meu
pequeno discurso. O recado foi dado. Começo a avançar
lentamente. Aos poucos eles abrem caminho num corredor
humano.
Pelo lado de fora as dezenas de seguranças do
conglomerado, entre eles vejo Tonho e o Chefe. Agora eles
podem entrar aqui sem morrer.
Meu velho amigo sorri ao me ver. Sua roupa não é mais
a mesma. Há um colar cervical, braços enfaixados, alguns
hematomas pelo corpo. Caminho até eles.
“Bom trabalho, Netúnio” diz Tonho.
“Bom trabalho, Mercador” diz o Chefe.
“Obrigado senhores.”
“E agora?” Pergunta o Chefe.
“Preciso de longas férias, já fiz minha parte, eles não
irão mais matá-los” respondo “espero que consigam resolver
seus problemas e um dia quem sabe, acabem com a Agência,
porque ela não acaba aqui.”
“Nós sabemos” prossegue Tonho “estamos preparados
para a luta, mas sabendo que não morreremos pelo simples fato
de sermos honestos é um ótimo começo.”
“Boa sorte. Agora, por favor, preciso de uma carona.
Estou exausto e tenho uma linda mulher para visitar.”
Tonho sorri, faço o mesmo. Então o Chefe também sorri
num misto de alívio e preocupação. Essa batalha acabou.
FIM
83
Panorama 4
2013, Litoral Sul
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matei seus pais.
“Vem filho” diz Angelina para ele, estende a mão
“vamos para a água tirar toda essa areia.”
Ele levanta contente. Correm de mãos dadas, ao entrar na
água Angelina calcula errado e cai de cara na água, Antônio tem
um ataque de riso. Ela levanta e afunda a cabeça dele na água.
Eles são felizes juntos, mas não é apenas isso. Sou feliz
ao lado deles.
O que acontecerá amanhã só pertence ao amanhã. Vou
me permitir viver esse momento. Sem armas, sem medo do
próximo passo.
Levanto, tiro a camisa, as pessoas ao redor embaixo dos
guarda-sóis olham curiosas para minhas cicatrizes de tiros e
cortes.
Deixo o sol bater no meu corpo. Fecho os olhos e viro o
rosto para cima. Satisfeito, olho para Antônio e Angelina que
agora estão boiando. Corro ao encontro deles.
Entro aos saltos. Mergulho e sinto todo o poder curativo
da água do mar.
Fico parado perto deles que perceberam meu avanço.
Ficamos olhando para o alto-mar deixando as ondas nos
acertarem. Contemplando nosso tempo.
86
Panorama 5
Capital 2018
88
Aos poucos os mais velhos começam a partir, os casais
com filhos pequenos também. Apenas eu e Angelina ficamos,
temos que pagar o DJ e os garçons. Será preciso enfrentar a
madrugada.
Sentamos ao fundo, nas mesas onde a luz não ilumina
direito. Não queremos deixar os jovens chateados com nossa
adulta e quadrada presença.
Angelina fica surpresa quando Antônio beija uma garota.
Tiro os óculos para não ver os detalhes. Olho para o chão e
lembro do meu primeiro beijo.
Damos as mãos, falar algo é inútil. Estamos juntos nessa
viagem matriarcal.
89
Aniversário de 20 anos do Antônio
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talvez fosse embora. Não queria que fosse embora.”
“Não entendo” meus braços caem ao lado do corpo,
estou em choque. Ele sabe da verdade há 10 anos e sempre me
tratou com tanto carinho.
“Uma vez por semana” ele prossegue “eu e mamãe
vamos ao túmulo dos meus pais. Levamos flores e fizemos
orações. Sabe por que encomendaram minha morte?”
“Nunca dizem os motivos dos trabalhos.”
“Procurei muitas informações, descobri que tenho alguns
parentes na região sul da cidade. Os visitei uma certa manhã.
Uma tia acreditou em mim, falou deles, porém nada que levasse
ao verdadeiro motivo.”
“Nesses anos nunca teve vontade de me matar?”
“Só nas vezes que não queria que o chamasse de pai.”
Fico sem jeito. Essa palavra sempre faz meu corpo estremecer.
Como posso ser o que nunca tive? Minha vida foi uma luta, não
teve espaço para o carinho de um pai, muito menos de uma mãe.
Ele prossegue “mamãe o ama muito. Ela quer que fique
conosco.”
“Ela sempre cuidou muito bem de nós dois.”
“Eu também o amo” olha nos meus olhos, não tenho
coragem de encará-lo “diga como poderia matar meu pai?”
Esse momento é estranho, estou com 60 anos. Já passei
há muito tempo da metade da minha vida e somente agora
descubro essa outra verdade. O AMOR. Meu coração acelera.
“Acho que também amo vocês” digo com nó na
garganta.
“Tudo bem, pai. Sei que o senhor não aprendeu a amar,
mas podemos ensiná-lo.”
“Acho que já ensinaram.”
“Então” ele sorri “comprou algum presente?”
“Na verdade não, sabe, pensei que você…”
“Pensou que eu o mataria.”
“Sim, isso mesmo.”
“Até parece que não conhece seu filho. Lembra o quanto
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odiava caçar? Matar é algo repugnante para mim.”
É verdade. Para ele a vida sempre foi mágica. Algo raro.
Parece que toda a facilidade que tenho em matar refletiu ao
contrário nele.
“Desculpe por tentar transformá-lo em algo que não é.
Sabe, tenho minha própria lei. No seu lugar mataria o algoz dos
meus pais.”
“Mesmo que ele seja o homem que mais admiro?”
“É, parece que estraguei as coisas.”
“Vamos superar isso.” Ele pega minha mão “então,
como não o matei e não comprou um presente. Tenho um
pedido.”
“Tudo bem, qual é o seu pedido?”
“Por favor, deixe-me chamá-lo de pai.” Ele sorri, em
alguns segundos percebo que faço o mesmo. Ele tem o poder de
me fazer sorrir. Seus braços levantam, chega perto e enlaça meu
pescoço. Aperta, sinto seu perfume que, aliás, é o mesmo que o
meu. “O amo” diz ao meu ouvido.
Pela primeira vez sinto uma lágrima caindo dos meus
olhos. É muito bom. É como ultrapassar uma barreira que a
pouco tempo era intransponível. Não lembro de ter chorado na
vida.
“Também te amo, meu filho.”
Olho para a porta, vejo Angelina, Tonho e o Chefe dos
Policiais. Parecem contentes com o desfecho. Parece que a
morte não será o mais importante. Celebraremos a vida. E mais
uma vez escapei da morte…
93
ANGELINA
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de todos. Invadi o quarto da UTI no qual ela está. É madrugada.
Quando chego perto não seguro as lágrimas. Ela está
muito debilitada, mas de forma incompreensível ela abre os
olhos. Um sorriso miúdo nasce nos seus lábios que estão
embaixo do respirador. Aperto a sua mão.
“Olá” digo, ela tenta falar, mas precisa poupar suas
energias “não fale. Eu vim aqui agradecer por ter dado para mim
algo que não tinha direito. Arruinei centenas de famílias e
mesmo assim tive a sorte, graças a você, de ter a minha” vejo as
lágrimas saírem dos seus olhos e deslizarem pela bochecha,
desviarem na orelha e morrerem na fronha do travesseiro. “Eu te
amo” quando digo isso seus olhos arregalam. Então pego a
caixinha que guarda o lindo anel.
Pego o anel e o levanto na altura dos seus olhos, ela está
em prantos. Então pego sua mão esquerda e começo a colocar o
anel “Angelina Dezev, eu te aceito como minha esposa. Prometo
amá-la e respeitá-la até meu último suspiro. Será para sempre o
único amor da minha vida.” Ela não consegue responder, mas
sei que ela diria sim caso fosse possível.
Agora enfim estamos casados. Beijo seu rosto, sento na
cadeira dos acompanhantes e segurando a sua mão, fecho os
olhos e adormeço.
96
Primeiro Arco
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Abro a porta do carro, entro e fecho a porta evitando
fazer barulho. Não quero acordar Antônio.
Fico olhando para a escuridão. O que será de nós agora?
Já estou velho demais para recomeçar.
“Do que a mamãe morreu?” Pergunta Antônio, não
percebi que está acordado.
“Tumor agressivo nos rins. Tudo aconteceu rápido
demais. A consumiu em poucos meses.”
“Ela andava muito estranha nas últimas semanas.”
“Ela estava morrendo meu filho.”
“Caramba, por que não nos contou?”
“Quem sabe ela quis nos poupar de um sofrimento mais
demorado.”
“O que faremos agora?”
“Não sei. Quem sabia o nosso cronograma familiar era
sua mãe. Sem ela não temos compromissos.”
“Pai…”
“O que?”
“Vamos enterrá-la no Cemitério da Colina. Acho que ela
gostaria de ficar perto das árvores.”
“Tudo bem. Não sei ao certo, talvez ela fosse cristã. De
qualquer forma, amanhã falarei com o padre para rezar uma
missa para ela.”
Dou partida no motor. Começo a rodar. Estamos longe
de casa, as luzes batendo contra as árvores. A linha amarela
central da estrada.
Não sei dizer, Antônio continua de olhos fechados. Não
o vi chorar depois que entramos na ambulância. Alguma coisa
endureceu seu coração.
***
Abro os olhos. A luz do sol prejudica a visão até que
possam aferir a claridade.
Ainda estou no carro, Antônio não está mais ao meu
lado. Estacionei na frente da nossa casa. Lembro, quando
chegamos ele desceu, mas segui olhando para o nada até meus
99
olhos exaustos fecharem.
Entrarei em casa, pegarei algumas roupas e partirei para
longe. Nada mais prende minhas pernas aqui. Antônio tem
dinheiro o suficiente para viver sem necessitar trabalhar. Pode
até ostentar certos luxos. Poderá conviver com sua tia biológica.
Manterei contato, só não posso mais ficar aqui.
Vejo a porta da casa abrir. Antônio carrega uma mala
pesada no ombro e outra menor na mão esquerda. Está barbeado
e com roupas limpas.
Abre a porta traseira do lado do carona e joga a mala
sobre o banco. Abre a porta do carona e senta ao meu lado.
“Vai viajar?”
“Não, pai. Ficarei na cidade.”
“Então por que essas malas?”
“Estou saindo de casa. Jamais conseguirei ficar aqui,
mamãe faz muita falta.”
“E para onde vai?”
“Ainda não sei. Tudo dependerá do meu disfarce.”
“Disfarce?”
“Sim. O disfarce que a Agência de Sicários fornece. A
partir de hoje serei um sicário como o senhor. Não era esse seu
desejo?”
“Enlouqueceu?”
“Não. Fui treinado para isso durante minha vida inteira e
nunca reivindiquei minha profissão em respeito a mamãe. Agora
que ela foi embora seguirei um antigo desejo do meu pai.”
“Veja bem, não sabe o que está dizendo. É muito
perigoso, nem todos os alvos são fáceis.”
“Fáceis como matar meus pais biológicos?”
Não respondo. Essa não é a vida que Angelina sonhou
para ele, mas foi a vida para qual eu o treinei. Ele é um sicário
desde sempre. Destaque nas lutas e armas. Só que era para ser
um assassino de sicários.
“Mas odeia armas e mortes.”
“Posso superar…”
100
Vejo muita raiva nos seus olhos, algo que jamais vi “isso
é loucura. É necessário refletir.”
“Não é loucura. Apenas serei o que sempre fui. Durante
todos esses anos fui treinado para ser um sicário. Seguir fazendo
logomarcas para empresas é como enjaular uma fera. Não sou
um designer, sabe disso. E ainda faltam dois anos para acabar a
faculdade de geografia. Sei que posso ser bom. Assim como o
senhor foi um dia.”
“Eu nunca fui muito bom, principalmente em lutas.”
“O tio Tonho disse que o senhor era o melhor. O homem
que salvou a Agência dos Sicários.”
“Então já sabe disso também.”
“Sim. A lenda do Mercador. É como ser filho de uma
estrela. Por favor, pai. Deixe-me ser o que fui treinado para ser.”
Ligo o motor. Começo a rodar pela Capital.
Ele segue o resto da viagem em silêncio. Confesso que o
orgulho preenche meu coração. Parece loucura, mas é a única
coisa que sabemos fazer.
Contudo, ele não foi treinado para ser um sicário e sim
para matar os sicários…
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