Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA
NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte
desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou
processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação
etc., sem a permissão do detentor do copirraite.
EDITORA NOVA FRONTEIRA PARTICIPAÇÕES S.A.
Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso
Rio de Janeiro – RJ – CEP: 21042-235
Tel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21) 3882-8212/8313
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
F747c
Fonseca, Rubem, 1925-
Calibre 22 [recurso eletrônico] / Rubem Fonseca. — 2. ed. — Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
recurso digital
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN: 9788520941355 (recurso eletrônico)
1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
17-40448
CDD: 869.3
CDU: 821.134.3(81)-3
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Fantasmas
Um homem de princípios
O idiota
Pródromo
O intrépido
Camisola e pijama
Colégio
Homem não pode bater em mulher
Réveillon
Gastronomia
Anuro
Carnaval
A morte do ministro
Inveja
Cibele
Amor proibido
O presente de natal
Ópera, foder e sanduíche de mortadela
Outro anão
O morcego, o mico e o velho que não era corcunda
O morcego, o mico e o velho que não era corcunda –
Parte II
O escorpião e outros animais
Satiríase e impotência
Corriqueiro
O chapéu-panamá
Mildred
A melhor profissão do mundo
A busca
Calibre 22
O autor
Colofão
FANTASMAS
O nome dela era Maria Lucia. O meu eu digo depois.
Maria Lucia era engenheira orestal. Engenharia orestal ou
engenharia silvícola é o ramo da engenharia que visa à
produção de bens oriundos da oresta ou de cultivos orestais.
Tive que cancelar várias sessões, ia ter algum prejuízo, coisa
na verdade sem importância, meus investimentos crescem
mensalmente, não importa as despesas que efetuo.
Maria Lucia morava em uma casa no meio de um bosque,
coisa rara na cidade de arranha-céus em que vivemos. Era uma
mulher de cerca de quarenta anos, solteira. Recebeu-nos
amavelmente.
“Nós vamos almoçar rãs”, disse ela. “Vocês gostam de rãs?”
Olhei.
Resumindo: Maria Lucia e Silvia estão internadas num
hospital psiquiátrico. Vivem reclamando que querem ver o
gordo e o magro. Estão tomando eletrochoque, que é muito
bom para doente mental, mas não param de pedir para ver os
fantasmas.
Eu respondia:
“Rico.”
“Qual a pro ssão? Estou falando sério.”
Eu precisava ter uma pro ssão. Não podia dizer que era
dentista, teria de abrir um consultório com aquela parafernália
toda. Nem podia dizer que era médico, nada sei sobre
medicina, nem engenheiro. Então tive uma ideia genial. Passei
a dizer que eu era psicanalista. Aluguei duas salas num prédio
cheio de salas com psicanalistas, mobiliei com poltrona, sofá,
mesa etc. Coloquei na porta uma tabuleta elegante com o meu
nome e embaixo a palavra Psicanálise. Eu gostava de ir ler
naquela sala. Ia ler todos os dias.
Então aconteceu isso, nem sei que nome dar. Mas posso
descrever.
“Vou ser breve. Percebi que o senhor nestes três dias aqui no
posto me observa dissimuladamente. Isso signi ca que tem um
objetivo, que eu suponho qual seja. Sei que o senhor é um…
um matador pro ssional.”
Meneei a cabeça.
“Tenho uma proposta a lhe fazer”, ele disse.
“Sim.”
“Posso fazer a proposta?”
“Sim.”
“Evidentemente”, respondi.
“Como?”
“Você não gosta de mim. Só me dá uns beijinhos no rosto.”
“Angela, eu te amo.”
“Então prova.”
Durante uns dois dias quei inerte. Não escrevi um único
poema. Nem li, mesmo sendo viciado em leitura como sou.
Pensei em comprar um revólver e dar um tiro na cabeça. No
terceiro dia, após uma noite de insônia, decidi saber mais sobre
a minha situação. Eu sabia os telefones, endereços, até o nome
do banco onde Angela tinha dinheiro. Mas desse Alberto
Bartolomeu eu nada sabia. Lembrei-me de uma frase de
Descartes: “Daria tudo o que eu sei em troca de metade de
tudo que ignoro.”
Claro que nesse dia não fui à sede da revista. Eu não queria
encontrar o Alphonse.
Manuel Araújo me telefonou dizendo que eu fora demitido.
Peguei o meu carro velho e fui visitar uma amiga querida que
tinha um sítio na Serra da Bocaina. Fiquei lá quinze dias.
Esperei meu pai sair. Ele fazia a barba com navalha. Demorei
a achar onde ele a guardava. Coloquei a navalha no bolso.
Nesse dia cheguei no colégio em aproximadamente meia
hora.
Fui direto para o banheiro e quei lá, eu sabia que a Gangue
dos Tiradentes ia acabar aparecendo.
Nem de mim.
HOMEM NÃO PODE BATER EM MULHER
Eu trabalho desde os quatorze anos. Quer dizer, trabalhava,
me aposentei por invalidez quando tinha cinquenta. Eu
trabalhava como arquivista, não sei por que gostava de car
guardando pastas naqueles arquivos de metal. Eu não queria
me aposentar, mas fui obrigado. Tudo porque sempre fui muito
distraído. Andava nas ruas, não via nada do que estava
acontecendo, não via pessoas, nem bichos, nem prédios, nem
vitrines, nem carros. Resumindo, essa maneira distraída de não
ver as coisas em torno de mim acabou de uma maneira
desagradável. Fui atropelado por um carro ao atravessar uma
rua e, no pronto-socorro, cortaram a minha perna. Do joelho
para baixo. Ainda bem que foi a esquerda. A direita cou
intacta. Me puseram uma perna mecânica, uma beleza, eu
podia colocar e tirar a perna facilmente. Comprei uma muleta,
mas nunca precisei usá-la. Para falar a verdade, passei até a
dormir melhor sem uma perna. Talvez o sangue circulasse
melhor, sei lá. Outra coisa que aconteceu foi que passei a ver
tudo o que acontecia em torno de mim. No prédio onde eu
morava, um apartamento de sala, quarto, banheiro e um
armário com um fogão a gás de duas bocas e uma pequena
geladeira, havia um casal de velhinhos simpáticos que diziam
bom dia, boa tarde, quando eu passava, e possivelmente isso
acontecia desde os meus tempos de distraído. A minha sorte é
que ambos eram surdos e deviam pensar que eu respondia.
Havia também um casal, um homem grande de olhinhos
pequenos, mas ele não era chinês, talvez os olhos parecessem
pequenos porque a cabeça era muito grande, e a mulher era
magrinha de olhos grandes, talvez porque o seu rosto fosse
miúdo. Ela vivia com manchas roxas no rosto e nos braços. Um
dia passou perto de mim e eu perguntei, quer dizer, comecei a
perguntar, essas manchas no seu rosto…, e antes que eu
pudesse completar a frase essas manchas no seu rosto e nos
seus braços, ela saiu correndo. Por sorte nesse mesmo dia
encontrei o homem grande de olhinhos pequenos e perguntei,
essas manchas no rosto e nos braços da sua esposa são…, e
mais uma vez não pude completar a frase que era essas
manchas no rosto e nos braços da sua esposa são de alguma
doença? O senhor devia levá-la ao médico, quando cheguei na
palavra esposa ele me deu um soco no rosto e eu caí no chão,
acho mesmo que desmaiei. Os velhinhos me levaram para o
meu apartamento, me puseram na cama, dizendo, o senhor
devia ir à polícia, prestar queixa, esse homem é muito mau.
Então fui ao distrito policial, mas não falei que o sujeito tinha
me dado um soco, falei que ele batia na mulher. Odeio homem
que bate em mulher, se bater em mim eu me incomodo um
pouco, mas o sujeito que bate em mulher me enche de ódio.
Foi aberta uma ocorrência, o homem de cabeça grande e
olhinhos pequenos e a mulher foram chamados para depor. Ela
disse que o marido não batia nela, ele era um homem muito
bom, aquelas marcas eram do trabalho doméstico que ela fazia.
Quando fui à polícia para denunciar o homem de cabeça
grande e olhinhos pequenos eu não quis citar o nome do casal
de velhinhos como testemunhas, coitados, seria um transtorno
imenso para eles. Voltamos todos para o prédio. Naquela noite,
depois de deitar, tirar a perna e me estender na cama, já falei
que sem perna eu durmo melhor, co mais confortável no
colchão, e o meu colchão é muito bom, tive que economizar
durante meses para comprá-lo, mas como eu dizia, depois de
me deitar confortavelmente no meu colchão, ouvi o barulho do
homem de cabeça grande e olhinhos pequenos surrando a
mulher. Pensei em ir bater na porta deles e gritar para com
isso, covarde, homem não bate em mulher, mas ele ia me dar
outro soco e eu ia cair duro no chão. Então acendi a luz e olhei
a minha caderneta do banco para ver quanto dinheiro eu tinha
guardado. Dava para o que eu queria. Procurei o Antonio
Pinóquio, Pinóquio não era o nome dele, era um apelido,
porque o nariz dele era comprido e pontudo, mas ele não se
incomodava de ser chamado de Antonio Pinóquio. Eu o
conhecia porque trabalhamos juntos na mesma repartição, eu
como arquivista e ele como, como… já esqueci. En m, o
Antonio Pinóquio tinha o que eu precisava e disse, como você
sempre foi meu cupincha, vou te cobrar uma pechincha.
Coloquei a coisa dentro de uma saca que o Antonio Pinóquio
me deu e voltei para o meu prédio. Fiquei de olho, esperando o
momento propício. Demorou, mas aconteceu. O homem de
cabeça grande e olhinhos pequenos apareceu. Foi fácil dar um
tiro naquela cabeça grande. Ele caiu duro no chão do corredor.
Fui para o meu apartamento. Tirei a perna e deitei feliz. Dormi
como um anjo. Acordei com uma batida na porta, não sei se já
disse, mas a campainha do meu apartamento estava com
defeito. Em vez de colocar a perna mecânica, peguei a muleta e
abri a porta. Era um sujeito de terno, bigode e gravata. Sou
detetive da polícia, ele disse. Entre, entre, por favor, eu disse,
por favor, repeti me apoiando com di culdade na muleta. O
senhor ouviu algum barulho esta noite? O quê? O quê?, eu
disse. O senhor ouviu algum barulho aqui no prédio esta noite?
Por favor, fale mais alto, eu sou um pouco surdo. O detetive fez
um gesto como que dizendo, tudo bem, e outro gesto se
despedindo. O mistério da morte do homem de cabeça grande
e olhinhos pequenos nunca foi solucionado. Encontrei, tempos
depois, a mulher dele no corredor do prédio. Nenhuma
mancha no rosto ou nos braços. Ela sorriu para mim.
RÉVEILLON
As duas coisas que mais odeio são o Natal e o Ano-novo, o tal
de Réveillon. Não tenho nenhuma pendenga com Cristo, não
sou contra nem a favor, sou neutro.
O dia 31 de dezembro, essa merda conhecida como
Réveillon, é quando os lhos da puta grã- nos, os drogados, os
mendigos, os macumbeiros, dão gritos saudando o Ano-novo.
Voltando ao Natal. Matei um Papai Noel, e matar aquele
Papai Noel deu-me uma grande felicidade. Comprei um monte
de brinquedos e dei para as crianças do morro, com um cartão
em que escrevi Feliz Natal. Esta cidade nojenta está cercada de
morros cheios de favelados fodidos que não comem peru no
Natal, comem feijão com farofa.
Estou sendo discrepante ao dizer que escrevi Feliz Natal no
cartão que dei aos fodidos? Você acha? Então você que se foda.
Puta merda, nem falei do Réveillon e já estão me sacaneando?
Bateram na porta.
Quis dizer alguma coisa, mas estava sem voz. Pensei que ia
desmaiar.
Repeti: “Entendeu?”
“Sim, senhor.”
Fui para minha casa. A casa estava vazia, a minha mulher,
quer dizer, a mulher que vivia comigo, me abandonou. No
princípio foi até bom, mas depois de algum tempo eu quei
com saudades. Maria era o nome dela, eu gosto desse nome. Os
nomes de mulher mais comuns no mundo são Maria e Ana.
Maria era muito ciumenta, eu raramente mijava fora do penico,
quer dizer, dava uma bimbada fora de casa, mas eu estava
tomando um cafezinho com essa dona, que tinha a mania de
car me agarrando em qualquer lugar em que estivéssemos, o
nome dela era Juliana, mas como eu disse estávamos no
shopping tomando um cafezinho, ela é viciada em café, e estava
me agarrando, beijando a minha mão, e nós tínhamos acabado
de dar uma trepada, mas mulher é assim, depois de foder elas
querem car meiguinhas fazendo carinho no macho, que só
quer se livrar da fêmea, en m, ela estava beijando a minha mão
quando a Maria apareceu.
Era o Chicão.
“Você liquidou a puta?”
“Que puta?”
“Não saio de casa sem o meu trabuco”, disse ele batendo com
a mão espalmada no coldre.
Na porta, antes de sair, Chicão repetiu:
“Por quê?’
“Não sei. Os homens são muito esquisitos.”
“Quando?”
“Amanhã de manhã. Aqui o meu cartão com o endereço.”
Parou ao pé da escada.
“Mas, meu caro amigo, é no andar de cima, o dos quartos,
que está o ambiente de mais personalidade da casa: o banheiro
art déco da suíte do governador, com uma vista deslumbrante
para o Rio. A banheira, escavada num bloco maciço de
mármore de Lioz, domina o ambiente amarelo, com direito a
torneiras de bronze na forma de pássaros, in uência do art
nouveau. A suíte”, disse Cibele, “tem dois quartos e um
escritório, onde um jornalista político, Carlos Lacerda, adorava
despachar”.
Abri a torneira da banheira e não saiu qualquer água.
“Nus?
“Sim”, respondi.
Notei que o meu pai e a minha mãe envelheciam de maneira
diferente. Ele tinha setenta anos e ela, cinquenta e cinco, mas
parecia mais velha do que ele. Creio que as honrarias e
reverências rejuvenesciam o meu pai.
Terminei o curso de engenharia que fazia na universidade e
arranjei um emprego.
Minha mãe passava o dia inteiro sozinha. Não gostava de ler,
nem de televisão.
“Minha lha”, ela disse com uma voz em que lamúria e ódio
se combinavam, “o seu pai tem uma amante jovem”.
“Quero ver ele tocar. Eu não vendo para qualquer um, quero
ver ele tocar”, disse o anão com voz rouca.
Ele tirou o violão do pacote que carregava nas costas e disse:
“Toca, anda, toca, quero ouvir.”
“Seu, seu…”
“Seu Damião, prometo, juro que vou cuidar muito bem dele.”
Nem me lembro mais da quantia que paguei. Assinei um
cheque, cumprimentei o anão, dei um abraço no Bauduco.
Acho que eu não havia dito qual era o meu nome. É José.
Meu nome é José.
“Otávio, quem é esse maluco?”
“Ele… ele…”
“Você o conhece?”
Fechei a janela.
Voltei à janela.
Fui à polícia.
“Qual é o nome do seu amigo?”
“Otávio Cromildo.”
“Onde é o necrotério?”
O policial me deu o endereço.
Fui ao necrotério.
“Na geladeira?”
“Sim, na geladeira. Sabe quantos cadáveres estão na geladeira
aguardando a autópsia? Mais de cinquenta. E esse número
aumenta todo dia, esta cidade está cheia de criminosos. O
bandido mata para roubar um celular, mata para roubar a
carteira do pobre-diabo que está andando de noite na rua.”
“E o meu amigo Otávio Cromildo?”
“Não sei quem matou o seu amigo. Ele escreveu “bichinha”
com tinta vermelha na testa do seu amigo. Brincadeira idiota.”
“Bichinha?”
“Isso. Bichinha.”
Fui para casa. O Zé Mico já estava no o perto da janela. Dei
uma banana para ele. Coloquei a banana madura num lugar
escuro, onde o Zé Morcego gostava. Depois abri a gaveta e
peguei a minha Taurus.
Eu sabia onde o Agnaldo morava. Num sobrado de quatro
andares. Ele morava no quarto andar. Não tinha elevador. Subi
pelas escadas, a Taurus no cinto, debaixo da blusa.
Bati na porta do Agnaldo. Ele abriu.
Entramos no banco.
A Maria João foi em direção a um dos caixas.
“Não tenho esse dinheiro aqui, vou ter que ir ao cofre, espere
um momento”, disse o caixa.
A doutora Jéssica se levantou e se sentou na cadeira que
cava no escritório, escreveu várias folhas de receita e as
estendeu para mim.
“O senhor deve fazer esses exames e trazer os resultados, por
favor.”
“Sim?”
Ficamos algum tempo calados, eu indeciso, ela expectante.
Calei-me novamente.
“Não…”
Vivendo e aprendendo.
Depois descobri que ela furtava dinheiro da minha carteira.
“Sim, um presente.”
“Posso pedir uma coisa?”
“Não.”
“Tem silenciador?”
“Evidentemente. Sem esse dispositivo o estrondo é, é…”
“É uma merda.”
“Isso, uma merda.”
“Quanto?”
“Não sei. Fui convidado, mas não topei.”
“Por quê?”
“Cagaço. O cara é perigoso. Estou velho…”
“Eu sei.”
“Mas voltando à vaca fria. Eu chumbo o fodão. Quem é o
contato?”
“Vou lhe dar o telefone dele. Pode dizer que falou comigo. Ele
marca o encontro. Trata o cara com respeito. Ele não merece, é
um bom lho da puta, mas o pedinte é você.”
“É o senhor Beto?”
“Deu detalhes?”
“Não, senhor.”
“Sim, senhor.”
“Sim”, respondi.
Ele sentou-se.
“Meu nome”, disse ele, com um ademane afrescalhado, “é
Gervasio Laborguini”.
“Muito prazer”, respondi.
Na portaria do edifício do Beto, eu disse que era scal do
Imposto de Renda e precisava falar com ele. Esses sonegadores
contumazes morrem de medo dos scais do Imposto de Renda.
Subi. Ele mesmo abriu a porta.
“Chega, mamãe, eu não vou seguir a sua pro ssão. Vou ser
enfermeira. Já estou estudando enfermagem.”
Minha mãe cou calada. Eu não a criticava por ser prostituta.
Creio que ela gostava.
“Gracinha, a prostituição é uma das mais antigas pro ssões
do mundo, documentos de dois mil e quatrocentos anos antes
de Cristo comprovam isso. Alguns países já reconhecem
legalmente a prostituição como pro ssão, como por exemplo a
Alemanha.”
Atendi. Weksler.
“Descon o”, disse Ari, “que esta carta me foi enviada por
Percílio Gonçalo, dono da revista Estilo. Fui à polícia, mostrei a
carta ao delegado que me atendeu. Ele disse que podia ser
apenas uma brincadeira de mau gosto. Mas eu sinto que a
ameaça é séria, que eu corro perigo”.
Voltei para casa correndo. Quando cheguei, Elisa tinha ido
embora. Na parede da sala desenhara com batom vermelho um
enorme coração trespassado por uma echa.
2
Fiz várias pesquisas, dei telefonemas, passei e-mails etc. A
revista Nova no início tinha um nome quilométrico: Vida Nova
– uma Nova Vida para a Mulher. O pai de Ari era um estroina
e quando morreu só deixou dívidas para o lho. Mas a segunda
mulher de Ari era muito rica e resolveu investir na revista, que
passou a usar na capa apenas a palavra Nova. Em pouco tempo
tornou-se a revista mais vendida, assinaturas e vendas avulsas
cresceram, metade das suas inúmeras páginas era de anúncios
de todo tipo. Uma pesquisa revelou que os homens também
liam Nova, o que fez a publicidade de produtos masculinos
aumentar muito. Enquanto isso, a revista Estilo, por falta de
anunciantes e devido à baixa venda de exemplares, estava
praticamente falida.
“Já falei com ele que tudo não passa de uma brincadeira
idiota. E achei um exagero ter ido à polícia e contratar um
advogado…” Ela se tornara uma terceira pessoa.
“Mas Heloisa…”
“Cala a boca, Ari! Desculpe, doutor Mandrake, mas o meu
marido com a sua paranoia me faz perder a paciência.
Agradeço a sua visita, mas o senhor está dispensado.”
Dona Heloisa me estendeu a mão como quem diz, pode ir
embora.
Despedi-me dos dois.
3
O escritório da Estilo demonstrava a fase desfavorável que a
revista atravessava.
Percílio Gonçalo era um homem de aproximadamente
sessenta anos, gordo, calvo.
“Em que posso ajudá-lo doutor… doutor…”
“Mandrake.”
“Ari Silva a rma que o senhor lhe enviou uma carta anônima
dizendo que ia lhe dar um tiro na cabeça, como zeram com o
Jaime Partagás.”
De volta ao escritório, contei a Weksler a conversa que tivera
com Heloisa e Percílio Gonçalo.
Ao chegar ao apartamento tirei os sapatos — sapato é algo
insuportável, por que nós, os homens, não podemos usar
sandálias como as mulheres? —, sentei numa poltrona e acendi
um charuto. Pensei que a inebriante sensação do fumo do
Partagás na minha boca me ajudaria a formular hipóteses,
deduções, soluções, mas apenas deixou-me extasiado,
embriagado ou seja lá o que fosse.
Ouvi a campainha da porta tocar. Olhei pelo olho mágico.
Era uma mulher, se fosse um homem eu não abriria a porta. A
única coisa boa no mundo, além dos charutos, eram as
mulheres.
Uma mulher jovem, bonita. Logo a reconheci, era uma das
secretárias da revista Nova. Usava óculos sem aro, tinha olhos
azuis, lábios nos, sem batom.
Fiz um gesto para que ela entrasse. Hesitou.
“Franca?”
“Falar a verdade. Não pode car escondendo coisas de mim.”
Calou-se novamente.
“Dona Mercedes, passe amanhã no meu escritório. Se eu não
puder atendê-la, o meu sócio, doutor Weksler…”
“Não, não, o Ari disse para eu falar com o senhor!”
“Então fala.”
Voltou a roer a unha com os olhos fechados. Aquilo
começava a me irritar.
“Onde vocês vão arranjar dinheiro para isso… fugir para
longe? Quanto mais longe, mais caro.”
“Meu trabalho é cuidar da parte nanceira. Tenho desviado
dinheiro sem que a… a… a dona Heloisa perceba. Dá para
fugir para bem longe.”
4
Durante uma semana quei trabalhando no escritório e
levando duas mulheres para a cama. Não consigo ter uma
mulher apenas, gosto de três, no mínimo duas, uma só jamais.
De jeito nenhum. Agora só tenho duas. A que desenhou o
coração na parede eu rifei.
Então aconteceu.
“Mandrake, o Raul está no telefone. Quer falar com você”,
disse o Weksler.
Atendi.
“Mandrake. Posso passar aí?”
“Agora estou ocupado. Que tal almoçarmos? Naquele
restaurante português do centro? Meio-dia e meia?”
Quando cheguei ao restaurante, Raul já estava lá.
Pedimos uma bacalhoada com vinho tinto.
5
Cheguei em casa, tomei um banho, vesti uma bermuda e uma
camiseta, peguei meu caderninho de endereços.
A alemã chama-se Ruth, é judia, o nome dela em hebraico
signi ca “amiga”. Ela diz que seu nome é de uma personagem
bíblica, que tem sua história contada no livro de Rute, presente
no Antigo Testamento. Rute era uma moabita, natural de uma
região antiga que atualmente seria localizada na Jordânia, e
conta no seu livro ser descendente do rei Davi. O avô e a avó da
minha Ruth morreram num campo de concentração em
Belsen. Dos nove milhões de judeus que residiam na Europa,
cerca de dois terços foram mortos, mais de um milhão de
crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens
na carni cina nazista. O pai de Ruth escapou porque estava
visitando uns parentes na Suíça. Quando a guerra acabou, o pai
veio para o Brasil, conheceu uma moça judia, casou com ela e
nasceu a Ruth. Ruth gosta de ler e faz regime, diz que se
engordar eu a abandono, o que é verdade, não gosto de mulher
gorda. (Já tive uma namorada judia chamada Berta Bronstein.
Gosto de mulher inteligente, e as judias são inteligentes. Eu e a
Berta jogávamos xadrez todos os dias, pelo menos três
partidas. Ela ganhava sempre as duas primeiras e eu ganhava a
terceira, quer dizer, ela deixava eu ganhar. Eu não era
adversário para a Berta. Eu amava Berta, mas a minha satiríase
impelia-me a amar outras mulheres simultaneamente. Berta
descobriu e sumiu da minha vida. Nunca mais joguei xadrez.
Nem sei onde estão o tabuleiro e as peças.) Tenho medo que
Ruth descubra a existência da minha outra namorada. As
mulheres judias são muito ciumentas. Elas são muito tudo.
Minha outra namorada chama-se Elvira, mas detesta o seu
nome e gosta de ser chamada de Vivi. Diz que é carioca da
gema e frequenta o bar Carioca da Gema, na Lapa. Come todos
os acepipes do bar, bolinho de bacalhau, enroladinho de queijo
prato, sanduíches de pernil, lé mignon e peito de peru; e
pratos quentes, como penne à bolonhesa e casquinha de
bacalhau. A sobremesa é sempre a mesma: torta de chocolate.
Bebidas ela traça todas, cerveja, chope, caipirinhas de frutas,
cachaça. Mas essas porcarias não fazem efeito nela, é magra,
muito magra, um biótipo que deve ser hereditário.
Ou seja, são duas mulheres inteiramente diferentes. Aliás,
não tem sentido o cara ter duas mulheres parecidas.
Fiquei olhando o meu caderninho de endereços. Na dúvida
para qual delas ligaria, Ruth ou Vivi, escolhi Ruth. Notei pelo
som de sua voz que ela cou feliz quando a convidei para vir à
minha casa. Perguntou se podia demorar umas duas horas. Eu
disse que estava bem.
Peguei um livro de poesias para ler. Não sei se já disse que
gosto muito de duas coisas, mulher e poesia. Peguei o Ferreira
Gullar na estante e quei lendo.
Então o telefone tocou. Era o Raul.
“Mandrake, você conhece uma moça chamada Mercedes?”
“Não, acho que não.”
6
Fui para o escritório levando os chocolates de dona Matilde.
Matilde, como sempre nervosa, saiu da sua mesa na sala de
espera e me disse, gaguejando (esqueci de dizer que ela quando
cava nervosa gaguejava) que dona Raimunda das Dores
estava na sala do doutor Weksler.
Dona Raimunda estava sentada numa cadeira em frente à
mesa do Weksler. Os dois estavam calados. Quando me viu,
dona Raimunda se levantou e me deu um abraço. O trabalho
do nosso escritório para ela era pro bono, ou seja, nada
recebíamos.
“Dona Raimunda, a senhora pode ir para a sala do doutor
Mandrake”, disse Weksler.
Por alguns instantes quei com Weksler, em sua sala.
“Mandrake, deixa pelo menos ela tratar dos dentes. Não
consigo nem olhar para o rosto da dona Raimunda, aqueles
dentes todos partidos, além do rosto inchado das pancadas que
recebeu…”
“Weksler, vou repetir. O marido, Zenóbio das Dores, batia
nela quase que diariamente, um dia na cozinha ela foi se
defender e usou a chaleira que tinha na mão. O marido dela,
que como sempre estava embriagado de cachaça, ao se afastar,
escorregou no assoalho molhado, bateu com a cabeça na beira
da pia e morreu. Ela está sendo processada e eu quero que
quando for prestar depoimento em juízo apareça assim toda
escalavrada, entendeu?”
Era uma jovem muito bonita, vestida de maneira discreta.
“Doutor Mandrake, o meu nome é Julia, sou lha de Ari
Silva.”
“Tenha a bondade”, eu disse, puxando a cadeira para ela
sentar.
Julia estava muito nervosa.
“Minha mãe sumiu…”
“O senhor Ari me disse que a sua mãe havia morrido.”
“Ele disse isso?”
“Sim, disse.”
A Roubos e Furtos cava num prédio velho no centro. O
delegado nos recebeu, o nome dele era Jonas.
7
Fui direto para casa e liguei para Ruth.
Ela não demorou a chegar. Fomos correndo para a cama.
Fazíamos amor, parávamos por um momento, líamos um
pouco de poesia, fazíamos amor, repetíamos essa maravilha
várias vezes. Antes de dormirmos, Ruth leu para mim um
poema em hebraico de Yehuda Amichai e depois traduziu para
o português. Confesso que achei ainda mais bonito em
hebraico, conquanto não entenda a língua de Abraão, sei
apenas algumas palavras como Shalom, Mazel tov, L’ chayim.
Enquanto dormíamos, como sempre acontece, Ruth grudou
em mim e toda vez que eu tentava me desvencilhar, mesmo
dormindo, ela me agarrava com mais força. Todas as mulheres
fazem isso quando amam os homens com quem acabaram de
fazer amor.
Levantei da cama todo dolorido.
Estava tomando café com Ruth quando o meu celular tocou.
Era o anão.
“Doutor Mandrake, preciso falar muito com o senhor.”
“Vou dar uma passada na Roubo e Furtos.”
“Não estou mais lá. O juiz não decretou a prisão preventiva
solicitada pelo doutor Jonas. Eu e o Capenga vamos ser
processados em liberdade.”
“Então comporte-se, senhor Nefelibata, deixe de viver nas
nuvens”, eu disse, achando graça no que dizia.
“Não entendi, doutor Mandrake.”
“Eu estava brincando.”
“Doutor Mandrake, tenho que contar uma coisa para o
senhor.”
“Pode contar.”
“Tem que ser pessoalmente.”
“Está bem. Onde?”
8
Às 14h45 eu já estava na Lapa, nos Arcos. Gosto da Lapa,
lembro-me do bondinho deslizando por um trilho nos Arcos,
construído há centenas de anos para servir de aqueduto. Fiquei
olhando para os Arcos, sentindo uma emoção agradável. Tem
gente, esse pessoal da zona sul, da Barra, que nunca viu os
Arcos, aliás, esses putos nem conhecem o Centro da cidade.
9
Durante algum tempo quei livre do assassino do Calibre 22.
Nesse momento, depois do episódio do Bata, estou aqui em
casa descansando. Ter duas mulheres é mais complicado do
que ter três ou quatro. Quando só tem duas você ca
descuidado, negligente, desatento, e isso é foda. As mulheres
têm uma espécie de radar, um sistema de detecção que capta a
existência de outra mulher na cabeça do seu homem. Parece
coisa de maluco, mas se você tem mais de duas mulheres na
verdade você não pensa em nenhuma delas, mas, se só tem
duas, você pensa nelas o tempo todo. Não, não tem nenhuma
explicação cientí ca para isso. Mas a ciência não desvenda
todos os mistérios, muitos lhe são incompreensíveis,
inexplicáveis, indevassáveis, enigmáticos. Mas o fato é que
neste momento estou pensando em Ruth e em Vivi e não sei
para qual das duas devo telefonar. Se tivesse três ou quatro
mulheres não teria dúvidas, seria fácil decidir. Entenderam?
Não? Eu também não, creio que tomei Alvaralhão demais.
Eu estava dormindo, embriagado, no sofá da sala quando a
campainha tocou. A primeira coisa que vi foi a garrafa de
Alvaralhão vazia. A campainha continuou a tocar. Era o
celular.
“Mandrake. Passa aqui na delegacia, rápido, não quero falar
pelo telefone.”
“A essa hora?”
“Porra, são oito horas, a noite mal começou.”
Porre é uma merda.
“Já estou indo, Raul.”
Eu já estava vestido. Troquei a camisa e saí.
Raul estava nervoso.
“Se eu contar você não acredita. Não acredita”, ele disse.
“Nefelibata.”
“Isso, Nefelibata, mas ele tinha visto o meu rosto quando eu
acabara de destruir aquela virago, a Heloisa. Esse Ne qualquer
coisa está pesando na minha consciência.”
“E o outros?”
“Os outros? O Ari era um canalha, me largou para casar com
aquela milionária nojenta, inventou que eu havia morrido. A
Mercedes, porque era uma farsante, inventou que o Ari queria
casar com ela para dar um golpe em você e não sei mais em
quem.”
“E a Mirtes?”
“Ela fez a minha lha se tornar homossexual.”
“Isso não tem nada de mais.”
“Como não tem? Homossexualidade é uma doença. O senhor
está com uma sionomia incrédula. Não acredita no que digo?”
Hesitei em responder.
“Acredito.”
“Olha aqui, José, o problema do crer-ou-não-crer é seu. O
Assassino do Calibre 22 vai desaparecer. E o senhor vai car
com cara de besta, como se diz lá em Minas. Passe bem.”
Dona Juraci levantou-se e foi embora.
Estou passando o problema de crer-ou-não-crer adiante.
Vou tomar um Alvaralhão com o Raul.
O AUTOR
Contista, romancista, ensaísta, roteirista e “cineasta
frustrado”, Rubem Fonseca precisou publicar apenas dois ou
três livros para ser consagrado como um dos mais originais
prosadores brasileiros contemporâneos. Com suas narrativas
velozes e so sticadamente cosmopolitas, cheias de violência,
erotismo, irreverência e construídas em estilo contido, elíptico,
cinematográ co, reinventou entre nós uma literatura noir ao
mesmo tempo clássica e pop, brutalista e sutil — a forma
perfeita para quem escreve sobre “pessoas empilhadas na
cidade enquanto os tecnocratas a am o arame farpado”.
Carioca desde os oito anos, Rubem Fonseca nasceu em Juiz
de Fora, em 11 de maio de 1925. Leitor precoce porém atípico,
não descobriu a literatura (ou apenas o prazer de ler) no Sítio
do Pica-pau Amarelo, como é ou era de praxe entre nós, mas
devorando autores de romances de aventura e policiais de
variada categoria: de Rafael Sabatini a Edgar Allan Poe,
passando por Emilio Salgari, Michel Zévaco, Ponson du
Terrail, Karl May, Julio Verne e Edgar Wallace. Era ainda
adolescente quando se aproximou dos primeiros clássicos
(Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Cervantes) e dos
primeiros modernos (Dostoiévski, Maupassant, Proust). Nunca
deixou de ser um leitor voraz e ecumênico, sobretudo da
literatura americana, sua mais visível in uência.
Por pouco não fez de tudo na vida. Foi office boy,
escriturário, nadador, revisor de jornal, comissário de polícia
— até que se formou em direito, virou professor da Escola
Brasileira de Administração Pública e de Empresas da
Fundação Getulio Vargas e, por m, executivo da Light do Rio
de Janeiro. Sua estreia como escritor foi no início dos anos
1960, quando as revistas O Cruzeiro e Senhor publicaram dois
contos de sua autoria.
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro
EDITORA RESPONSÁVEL
Janaína Senna
PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
André Marinho
REVISÃO
Taís Monteiro
DIAGRAMAÇÃO
Filigrana
EDIÇÃO DIGITAL
S2 Books