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Copyright © 2017 by Rubem Fonseca

 
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F747c
Fonseca, Rubem, 1925-
Calibre 22 [recurso eletrônico] / Rubem Fonseca. — 2. ed. — Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
recurso digital
 
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN: 9788520941355 (recurso eletrônico)
 
1. Ficção brasileira. 2. Livros eletrônicos. I. Título.
 
17-40448
CDD: 869.3
CDU: 821.134.3(81)-3
SUMÁRIO
Capa
Folha de rosto
Créditos
Fantasmas
Um homem de princípios
O idiota
Pródromo
O intrépido
Camisola e pijama
Colégio
Homem não pode bater em mulher
Réveillon
Gastronomia
Anuro
Carnaval
A morte do ministro
Inveja
Cibele
Amor proibido
O presente de natal
Ópera, foder e sanduíche de mortadela
Outro anão
O morcego, o mico e o velho que não era corcunda
O morcego, o mico e o velho que não era corcunda –
Parte II
O escorpião e outros animais
Satiríase e impotência
Corriqueiro
O chapéu-panamá
Mildred
A melhor profissão do mundo
A busca
Calibre 22
O autor
Colofão
FANTASMAS
O nome dela era Maria Lucia. O meu eu digo depois.
Maria Lucia era engenheira orestal. Engenharia orestal ou
engenharia silvícola é o ramo da engenharia que visa à
produção de bens oriundos da oresta ou de cultivos orestais.

Maria Lucia estudou na Alemanha, na Academia Florestal de


arandt, a primeira escola de engenharia orestal do mundo,
criada em 1811.
Um segredo: Maria Lucia nunca viu uma oresta na vida, a
não ser em fotogra as. Como eu sei? Fui psicanalista da
psicanalista dela. Por algum tempo. Para exercer bem a
pro ssão, o psicanalista deve regularmente consultar um
psicanalista, conforme ensinam vários psicanalistas
importantes, como Freud, Lacan, Klein, Winnicott, Bion, Dolto
e outros. A psicanalista de Maria Lucia era minha
psicanalisanda, chamava-se Silvia, e contava tudo sobre os
problemas da sua cliente.
“Maria Lucia sofre de um transtorno obsessivo-compulsivo
que a leva a ver fantasmas. Eles aparecem normalmente na
hora do almoço, quando ela come sozinha. Se estiver
almoçando com alguém, o fantasma não aparece”, disse Silvia.
Perguntei como era o fantasma.

“Ele muda de aparência. É sempre uma pessoa que utua


rente ao teto, às vezes é um homem magro, outras vezes gordo,
mas é sempre homem e sempre vestido de preto.”
“Você devia dizer a ela que gostaria de ver o fantasma.”
“Ele só aparece, como já disse, quando ela está almoçando
sozinha.”
“Diga a dona Maria Lucia que os fantasmas não se
incomodam de aparecer para psicanalistas.”
“Boa ideia”, disse Silvia.
Esse encontro com Silvia ocorrera de manhã bem cedo. Eu
tinha a minha agenda tomada para o dia inteiro, um cliente
atrás do outro, eu atendo durante quarenta e cinco minutos,
descanso quinze minutos e chega outro, e outro, e outro, até
sete horas da noite. Não vou dizer quanto eu cobro, mas sei que
nenhum outro psicanalista cobra mais do que eu. Troco de
carro todo ano, moro num prédio na praia, o andar inteiro,
tenho duas mulheres, amantes, elas querem casar comigo, ou
com qualquer outro, mulher quer casar, mas homem que se
casa é um idiota.

Creio que um mês depois, talvez mais de um mês, a Silvia,


numa das nossas sessões semanais, me disse:
“A Maria Lucia concordou em me levar à casa dela para ver o
fantasma. Vou na quinta-feira.”
“Quero saber tudo, quando você vier aqui.”

Na sexta-feira Silvia chegou ao consultório e antes mesmo de


deitar no sofá-divã — ela sempre deitava no divã durante a sua
análise —, disse:

“Eu fui ver o fantasma na casa da Maria Lucia.”


Silvia respirou fundo e se escarrapachou no sofá. Parecia
estar sentindo alguma dor.

“Tudo bem?”, perguntei.


“Por favor”, ela disse, “me arranja um copo de água”.

Esperei ela beber a água e se ajeitar no sofá. Depois de algum


tempo ela disse:
“Eu vi o fantasma.”

“Ele era o gordo ou o magro?”, eu perguntei naturalmente. Eu


vejo maluco todo dia e nada me surpreende.

“O magro. Amanhã vou ver o gordo. A Maria Lucia disse que


eu posso levar você. O fantasma gosta de psicanalista”, disse ela.
“Qual é o endereço?”

“Eu venho pegar você por volta de meio-dia”, respondeu


Silvia.

 
Tive que cancelar várias sessões, ia ter algum prejuízo, coisa
na verdade sem importância, meus investimentos crescem
mensalmente, não importa as despesas que efetuo.
Maria Lucia morava em uma casa no meio de um bosque,
coisa rara na cidade de arranha-céus em que vivemos. Era uma
mulher de cerca de quarenta anos, solteira. Recebeu-nos
amavelmente.
“Nós vamos almoçar rãs”, disse ela. “Vocês gostam de rãs?”

“Gosto muito”, respondi. E gosto mesmo.

Silvia cou calada. Não devia gostar. Ainda existe muito


preconceito contra comer rã. Na verdade, em nosso país, o
hábito de comer rã ainda não está muito difundido.

Na hora do almoço, numa sala larga e com um teto muito


alto, eu estava me deliciando com uma rã frita, roendo os
ossinhos, quando Maria Lucia disse:

“Vejam, vejam, no teto, no teto.”

“É o gordo, ah, que bom, eu queria ver o gordo”, disse Silvia.


“Olha, olha”, disse ela agarrando o meu braço, “olha o gordo,
vestido de preto, olha, olha!”.

Olhei.

“Está vendo? O gordo?”


“Estou”, respondi.

Mas eu não estava vendo fantasma nenhum voando no teto,


nem gordo nem magro, as duas mulheres estavam loucas.

 
Resumindo: Maria Lucia e Silvia estão internadas num
hospital psiquiátrico. Vivem reclamando que querem ver o
gordo e o magro. Estão tomando eletrochoque, que é muito
bom para doente mental, mas não param de pedir para ver os
fantasmas.

Esses nomes são todos ctícios, os fatos são verdadeiros. O


meu nome também é ctício. Como? Eu não disse o meu
nome? Melhor ainda.
Esqueci de dizer duas coisas importantes a meu respeito.
Primeira: eu nasci muito rico, meu pai era bilionário. Segunda:
eu terminei o curso ginasial e parei de estudar. Mas gostava de
ler, tudo o que sei aprendi sozinho lendo livros. Sempre fui
muito festeiro e falador. Vivia em festas e as pessoas me
perguntavam:

“Qual é a sua pro ssão?”

Eu respondia:
“Rico.”
“Qual a pro ssão? Estou falando sério.”

Quase sempre eram as mulheres que perguntavam.

Eu precisava ter uma pro ssão. Não podia dizer que era
dentista, teria de abrir um consultório com aquela parafernália
toda. Nem podia dizer que era médico, nada sei sobre
medicina, nem engenheiro. Então tive uma ideia genial. Passei
a dizer que eu era psicanalista. Aluguei duas salas num prédio
cheio de salas com psicanalistas, mobiliei com poltrona, sofá,
mesa etc. Coloquei na porta uma tabuleta elegante com o meu
nome e embaixo a palavra Psicanálise. Eu gostava de ir ler
naquela sala. Ia ler todos os dias.
Então aconteceu isso, nem sei que nome dar. Mas posso
descrever.

Um dia tocaram a campainha. Abri a porta e uma mulher


disse:

“Bom dia, vim consultar o doutor…”, e disse o meu nome.

“Tenha a bondade de entrar.”

Foi a minha primeira cliente.

Hoje sou, como já disse, um dos melhores e mais caros


psicanalistas da cidade.

Minha agenda está lotada.


UM HOMEM DE PRINCÍPIOS
Não gosto de matar barata, nem piolho, nem seres humanos.
Não mato por ódio, ciúme, inveja, medo, casos em que o
matador é também vítima desse sentimento, ou, se preferem,
dessa percepção, ou noção, ou senso, ou consciência. Não
conheço as pessoas que eu empacoto. Nada sinto por elas, mas
tenho meus princípios.

O Despachante, que eu nunca via pessoalmente — não sabia


se ele era branco ou preto, alto ou baixo, magro ou gordo —,
enviou para mim do celular descartável uma foto com o nome
e o endereço do freguês. O Despachante depositaria na minha
conta metade do pagamento adiantado e a outra metade depois
que eu zesse o serviço.
O freguês, um sujeito gordo, calvo, na faixa dos quarenta
anos, morava na Zona Sul, num prédio na quadra da praia, e
todos os dias saía de manhã para tomar um cafezinho e comer
pão de queijo, essa coisa engordativa, numa loja de
conveniência (acho esse nome idiota) que cava perto da praça
que tem o nome de um poeta e prosador português do século
XIX. Sei que as pessoas, em sua maioria, são ignorantes e não
sabem de qual poeta estou falando. Isso é bom.
O prédio tinha porteiro dia e noite. Eles se revezavam de oito
em oito horas. Ficavam atrás de vidros escuros, as pessoas da
rua não os viam, mas eles as viam nitidamente. Na porta de
entrada da grade que cercava o edifício havia uma pequena
caixa protegida da chuva que recebia e transmitia a voz, e um
pino de campainha para o visitante apertar. Se fosse um
morador, o porteiro acionava um comando eletrônico e abria a
porta. Mesmo sendo um parente do morador, o porteiro só o
deixava entrar se recebesse autorização expressa antes. No caso
de um desconhecido, o porteiro perguntava pelo alto-falante o
nome e o seu objetivo. Se o desconhecido dissesse um nome
que não constava da lista de todos os moradores que o porteiro
tinha à sua frente, ele respondia secamente, “não mora aqui”.
Esqueci de dizer que à noite uma luz se acendia com o foco
dirigido para a porta de entrada.
Resumindo: eu tinha que chumbar o freguês em outro local
que não fosse a sua casa.

Passei a ir bem cedo à loja de conveniência esperar o freguês.


Ele chegava impreterivelmente às dez da manhã, ia direto para
o balcão onde cava a máquina de fazer café e o forno que
assava o pão de queijo, fazia o seu pedido e sentava numa
mesa. Sempre a mesma mesa. A garçonete trazia o café, o
pacotinho de açúcar e o de chocolate e quatro pães de queijo.
Quatro! Barrigudo daquele jeito, ele certamente comia
escondido da mulher.

Sempre levo comigo a minha ferramenta, uma Beretta M9


com carregador de quinze balas, num coldre especial colocado
abaixo da axila, sob o blusão. A empunhadura da Beretta cava
para baixo. Dentro da loja eu não podia chumbar o freguês.
Meu desejo era que ele fosse para a praça do poeta, mas o
freguês voltava para casa. A mulher desses caras gordos sempre
manda neles. Aliás, todas as mulheres mandam no marido.
Minha mãe não mandava no meu pai porque ela morreu no
parto. Eu matei minha mãe? Meu pai também morreu cedo.
Isso tudo eu conto algum dia.

Na terceira manhã em que eu observava dissimuladamente o


gordo comer os pães de queijo no posto, ele se levantou para ir
à caixa pagar a despesa, mas, ao passar perto da minha mesa,
puxou uma cadeira e sentou-se dizendo “bom dia”.

Já disse que sou puta velha. Respondi calmamente:


“Bom dia.”

“Meu nome é Xavier”, ele disse, “com xis”.


“O meu é José. Muito prazer.”

A voz do freguês era tranquila, um pouco espessa.

“Vou ser breve. Percebi que o senhor nestes três dias aqui no
posto me observa dissimuladamente. Isso signi ca que tem um
objetivo, que eu suponho qual seja. Sei que o senhor é um…
um matador pro ssional.”

Meneei a cabeça.
“Tenho uma proposta a lhe fazer”, ele disse.

“Sim.”
“Posso fazer a proposta?”

“Sim.”

“Quero que você mate a minha mulher. Pago o dobro, o


triplo do que você iria receber se me matasse.”
Ele agora já não me tratava mais de senhor, acreditava que
como eu seria seu empregado, ou servidor, não precisava mais
ter deferência, consideração por mim.
“Quanto e onde?”, perguntei.

Ele tirou um maço de notas de cem dólares do bolso.

“Me paga depois. Onde será feito o serviço?”


“Na minha casa. Vamos juntos, eu toco a campainha, ela
espia pelo olho mágico, vê que sou eu e abre a porta. Ela não
abre a porta para ninguém. O senhor mata a minha mulher.
Sua arma tem silenciador?”

“Evidentemente”, respondi.

“Nós entramos, abrimos as gavetas e mexemos nos armários,


para ngir que foi um assalto.”

“Essa ideia é muito boa”, eu disse.

“Depois eu te pago e vamos embora. Eu vou ao


supermercado fazer umas compras, e você sai de novo
escondido no carro. Quando eu voltar, vejo a minha mulher
morta, chamo a polícia…”
“Perfeito. Quando?”

“Agora”, ele respondeu. “Vamos entrar pela garagem, o senhor


ca escondido no banco de trás. O carro está aqui no posto. Já
disse que vou ao supermercado e sempre volto carregado de
compras, inutilidades que a megera me obriga a comprar.”

Megera. O cara não gostava mesmo da mulher.


Entramos pela garagem, subimos, saltamos no hall do andar
dele.

Não sei se já disse, mas aquele prédio tinha apenas um


apartamento por andar. Tirei a minha Beretta do coldre.

“Um momento, não toca ainda a campainha”, eu disse,


“espera eu colocar o silenciador”.

Coloquei o silenciador, destravei a Beretta e dei um tiro na


cabeça do Xavier. Eu sei o lugar na cabeça que apaga o freguês.
Segurei-o para que não zesse barulho ao cair.
Saí pela garagem, usando os óculos escuros do morto. Os
vidros escuros não deixavam ver direito quem dirigia o BMW.
Esses ricos só usam carros bacanas.

Deixei o carro perto do supermercado.


Fui andando pela rua.

Eu tenho os meus princípios, já disse. Não mato mulher,


criança e anão. E sou honesto.
O IDIOTA
Angela chegou para mim e disse:
“Quero acabar o nosso namoro.”
Levei um susto.

“Como?”
“Você não gosta de mim. Só me dá uns beijinhos no rosto.”
“Angela, eu te amo.”
“Então prova.”

“Se eu tivesse um revólver dava um tiro na cabeça para


provar que te amo.”

“Um tiro na cabeça? Isso lá é maneira de mostrar amor?”


“Angela, eu te amo.”
Ela cou pensativa, me olhando. As mulheres têm uma
maneira enigmática de olhar, obscura, misteriosa, dá apenas
para perceber que estão pensando numa coisa importante;
importante para elas.

“Sinto muito, mas estou gostando de outro.”


“Quem?”
“Quer mesmo saber?”
“Sim, quero.”
“É o Alberto.”
“Que Alberto?”
“Alberto Bartolomeu. Você não o conhece.”
Ficamos calados. Ela tocou no meu ombro e disse com o
mesmo olhar misterioso:
“Adeus, boa sorte.”
E foi embora.

 
Durante uns dois dias quei inerte. Não escrevi um único
poema. Nem li, mesmo sendo viciado em leitura como sou.
Pensei em comprar um revólver e dar um tiro na cabeça. No
terceiro dia, após uma noite de insônia, decidi saber mais sobre
a minha situação. Eu sabia os telefones, endereços, até o nome
do banco onde Angela tinha dinheiro. Mas desse Alberto
Bartolomeu eu nada sabia. Lembrei-me de uma frase de
Descartes: “Daria tudo o que eu sei em troca de metade de
tudo que ignoro.”

Quem era Alberto Bartolomeu? Não era um nome muito


comum.

Resolvi mexer numa bolsinha que Angela esquecera em


minha casa quando foi embora e, entre dois batons e um vidro
de homeopatia, achei um cartão do sujeito. Pouca coisa, mas já
era um começo. Ele trabalhava com importação de cervejas.
Todo mundo gosta de cerveja. Na cidade havia umas
cervejarias muito frequentadas. Ele devia fornecer para várias
delas.
Fui na primeira cervejaria. Ninguém conhecia um sujeito
com esse nome. A mesma coisa na segunda. Vai ver esse
Alberto Bartolomeu não gosta de cerveja, pensei. Mas decidi
tentar mais uma cervejaria.
“Alberto Bartolomeu? O Beto Bartô? Claro, é frequentador da
casa. Agora vem acompanhado por uma mulher linda”, disse o
gerente do bar.

“O senhor sabe o nome dela?”


Um sujeito que estava ao lado foi quem respondeu: “O nome
dela é Angela.”
“Isso mesmo, Angela. O Beto Bartô me disse que ela
namorava um camarada que era, era… como é mesmo?, ah, já
sei, o sujeito era assexuado.”
“Isso é a mesma coisa que veado”, disse o sujeito ao lado.

“Virgilio, todo mundo para você é veado”, disse o gerente.


“Eu li em uma pesquisa cientí ca, veja bem, pesquisa
cientí ca, que quase quarenta por cento dos homens são
veados. Mas nem todos dão a bunda, é claro, alguns até se
casam, a maioria ca no armário, sabe como é, ngem que não
são.”

“Virgilio, o cara é assexuado, sabe o que é isso? Assexuado é


uma pessoa que não tem atração por pessoa do mesmo sexo
nem do sexo oposto.”

“Essa dona Angela quando vem aqui bebe cerveja?”,


perguntei.
“Não, ela ca triste. Meio… como direi?, encolhida, jururu,
enquanto o Beto Bartô enche a cara.”
Eu também estava triste, jururu, infeliz, ou seja lá o que fosse.
Tinha que fazer alguma coisa. Só podia ser uma, ou melhor,
duas. A segunda era matar o Beto Bartô. A primeira era fazer a
Angela sofrer.
Comprei um revólver. Fiquei rondando o apartamento da
Angela. Eu sabia que todo dia de manhã ela passeava com seu
cachorrinho vira-lata. Quando alguém pergunta a Angela qual
a raça do seu cachorro ela responde “SRD”. A maioria das
pessoas não sabe o que signi ca SRD e ca pensando que deve
ser uma raça especial. Na verdade, SRD signi ca Sem Raça
De nida, uma maneira esperta de caracterizar o vira-lata.

Ela vinha andando com o seu SRD quando eu a abordei,


encostando o revólver nas suas costas. “Entra com o Fernando
Pessoa” (esse era o nome do SRD dela).“Entra com o Fernando
Pessoa no meu carro, do contrário eu mato os dois agora.”

Angela e Fernando Pessoa entraram no meu carro. Nenhum


dos dois parecia assustado, o Fernando Pessoa cou me
cheirando, e a Angela com aquela cara enigmática.

Logo que chegamos ao meu apartamento, levei Angela para o


quarto e disse ao Fernando Pessoa: “Fica aqui na sala.”

No quarto, arranquei a roupa da Angela, camos os dois nus.


Eu a atirei na cama. Fodi Angela com um ardor intenso,
vulcânico. Tivemos um orgasmo simultâneo, eu sentia os
espasmos da vagina dela, um maravilhoso momento de êxtase,
arrebatamento, exaltação.

“Eu te amo”, ela disse.


Só então notei, pelo sangue que empapava o lençol, que
Angela era virgem.

“Você era virgem!”

“Sim, sim, sim e queria fazer amor com você…”


“Mas eu queria deixar para depois do casamento…”
“Eu não aguentava mais”, disse Angela.
“E esse Alberto Bartolomeu?”

“É um amigo de infância que armou essa história comigo


para te fazer ciúmes. Tive que arranjar um nome que você
conseguisse achar. Foi difícil. A nal, decidi por Alberto
Bartolomeu.”

“Você namorou ele?”

“Ele é gay, mas ainda está no armário.”


Fizemos sexo novamente, apesar de estarmos ensopados de
sangue.

Esperar o casamento? Eu era pior do que o príncipe Michkin.


PRÓDROMO
Um dia, creio que uma quarta-feira, eu estava em casa
sozinho —minha namorada fora a Teresópolis visitar a mãe —
quando tive uma tontura. Sentei-me num sofá e desmaiei.
Perdi os sentidos completamente. Isso demorou cerca de
quinze minutos. Depois, já me sentindo normal, levantei-me
do sofá, andei pela sala e peguei na estante um livro para ler.
Sou viciado em leitura.
Uns três ou quatro dias depois — So a já havia voltado da
serra —, ocorreu um episódio semelhante: tive uma leve
tontura, sentei no sofá e desmaiei. Quando recobrei os
sentidos, ouvi So a nervosa dizendo “você tem que ir ao
médico hoje mesmo”.
Naquele dia ela marcou consulta com um clínico geral, o
doutor Jorge.
O médico me examinou durante algum tempo e depois disse
“o senhor tem que fazer exames de sangue, fezes, urina”.
Fiz os exames. Tudo perfeito. Voltei ao consultório e o doutor
Jorge sentenciou:
“O senhor não tem problema algum.”
Quando chegamos em casa So a disse:
“Esse doutor Jorge é um imbecil. Vamos procurar um
especialista.”
Fomos a especialistas em (cito apenas alguns): alergia e
imunologia; gastrenterologia, angiologia, cancerologia,
cardiologia; hematologia e hemoterapia; endocrinologia,
metabologia; homeopatia e infectologia. Fiz ecodoppler e…
CHEGA!!!
Falei com So a.
“Minha querida, não quero mais ir a nenhum médico, por
favor. Outra coisa, esses desmaios súbitos que tenho só
acontecem à noite, quando já estou em casa, nunca
aconteceram durante o dia, quando estou no trabalho. Eles
duram pouco tempo e eu tenho um pródromo, uma espécie de
prenúncio do que vai acontecer, que me dá tempo de sentar na
poltrona.”
Mas So a é uma mulher muito teimosa.
“Então vamos à macumbeira.”
Ela foi dirigindo. Não sei em que lugar fomos parar, creio que
em um subúrbio distante.
A macumbeira era uma velha preta, toda encarquilhada, a
quem chamavam dona Benedita.

So a contou para ela o meu problema.

Dona Benedita colocou a mão direita sobre a minha cabeça,


depois a mão esquerda, fechou os olhos, abriu os olhos,
rodopiou pela sala com os braços estendidos para o alto,
falando palavras incompreensíveis, e caiu no chão. Levantou-se
e disse:

“Livrei o senhor de uma praga de urubu com farofa.”


So a pagou não sei quanto e me levou para casa. No
caminho, ela me disse:
“Querido, você cou bom, alguma pessoa muito má rogou
essa praga de urubu com farofa, mas a dona Benedita te curou.”
Já era noite. So a foi para a cozinha e eu para a sala de visitas.
Então peguei um livro e me aproximei do sof
O INTRÉPIDO
Sou maníaco. Mas não depressivo. Sou maníaco-expressivo.
O transtorno maníaco-depressivo, agora denominado
transtorno bipolar, é caracterizado por alterações de humor
que se manifestam com períodos de euforia e períodos de
depressão. O maníaco-expressivo se caracteriza por constante
vivacidade, animação e energia.

Estou sentado em frente ao computador escrevendo. Não sei


por onde começo. Pelo dia em que estava com a prancha sob o
braço e olhava o mar? Não, isso pode car para depois.
Não conheci o meu pai. Ele morreu quando nasci. Quem
morre é a mãe sempre. No meu caso foi o pai, ele teve um
colapso cardíaco. Minha mãe também não durou muito tempo.
Quem me criou foi o meu avô. Quando comecei a pegar onda
ele me contou a sua história. “Sabe no meu tempo como é que
a gente fazia isso que você chama de pegar onda? No meu
tempo se chamava pegar jacaré, e a prancha, sabe qual era a
prancha? O nosso peito. E o jacaré perfeito era aquele em que
você pegava a onda mais alta e ia como um pássaro, ou melhor,
um peixe no alto da onda até deslizar com o peito na areia.
Aqueles momentos no alto das ondas estão verrumados no
meu crânio.”
Meu avô morreu sem me ver ser campeão em Nazaré,
Portugal. Peguei a maior onda já surfada, 31 metros, eu e o
americano Garret MacNamara, no Canhão da Nazaré, em
2011. Para quem não sabe, canhão signi ca uma garganta ou
vale sinuoso e profundo, cavado por um curso de água. Está
registrado no Guinness Book of World Records. Reconheço que
o MacNamara é melhor do que eu, ele é o melhor do mundo.
Meu avô me deu um livro sobre a história do surfe.
Antigamente os primeiros sur stas, no Havaí, usavam prancha
de madeira. Mas isso foi antes da Grande Guerra de 1914. O
surfe é uma atividade mais antiga do que se pensa. Como
gostava de dizer um professor meu, nihil sub sole novum, que
signi ca não há nada de novo sob o sol, tudo o que existe,
existe há muito tempo.
Um dia eu tinha acabado de surfar quando me deu um tédio,
uma estranha vivência, e enterrei o bico da minha Quicksilver
(a melhor prancha do mundo) na areia, abandonei-a ali, ereta,
e fui embora.
Eu gostava de velocidade, e uma coisa boa para correr é
motocicleta. Não sei se já contei que quando o meu pai morreu
eu herdei muito dinheiro. Com a morte do meu avô herdei
mais ainda. Eu podia comprar a melhor motocicleta do
mundo.
Comprei uma Suzuki GSX 1300 Hayabusa, com um enorme
propulsor de quatro cilindros, refrigeração líquida, injeção
eletrônica, dupla borboleta de aceleração, capaz de produzir
184 cv de potência máxima a 9.500 rpm. O torque também
merece menção: 14,89 kg f.m a 7.20 rpm. Para quem não
entendeu essas informações, vou dar uma explicação simples: a
bicha é veloz e con ável.
De madrugada eu ia para a avenida Brasil e corria a 200
km/h. Isso no início. Em pouco tempo passei para 300. Aquele
vento no rosto era uma sensação muito prazerosa, aprazível,
deleitosa. Eu sentia uma espécie de… uma espécie de crise.
Alguém disse que em chinês a palavra crise compõe-se de dois
ideogramas: um representa perigo e o outro representa
oportunidade. Era essa a minha crise, eu precisava correr
perigo.

Então passei a correr a 300 km/h na avenida Brasil na hora de


maior movimento. Era emocionante, eu me esgueirava entre os
carros, subia na calçada, fazia zigue-zagues. Às vezes um carro
da polícia tentava me interceptar, mas o pobre-diabo nem
conseguia chegar perto.

Um dia aconteceu uma desgraça. Ao tentar uma manobra


muito arriscada eu bati com a moto num poste. Acordei no
hospital. Quando vi a cara do médico e da enfermeira ao lado,
me dei conta de que algo sério havia acontecido. Eu perdera as
duas pernas.
Como eu ia viver sem as duas pernas?

Logo que saí do hospital decidi que ia cometer suicídio.


Comprei pistola, comprei navalha, comprei veneno. Mas não
tive coragem. Então lembrei que li não sei onde que muitos
escritores eram suicidas e em seguida tinha uma lista com
nomes de escritores que se mataram. Não sei mais o nome
deles, acho que ninguém sabe, hoje ninguém lê livros de cção,
deve ser por isso que esses sujeitos se mataram. Se eu fosse
escritor, talvez tivesse coragem.

Então resolvi escrever um livro. Comprei um computador e


comecei a escrever. É fácil escrever um livro, surfar é muito
mais difícil. Quando passei de duzentas páginas, pensei: acho
que isso é suficiente. Fui numa editora de livros de cção, um
sobrado caindo aos pedaços. Perguntei quanto eles cobrariam
para editar o meu livro. O sujeito cobrou uma fortuna. Paguei.
Duas semanas depois, tempo que a grá ca levou para
imprimir os exemplares, cá estou eu, com meu livro nas mãos.
Chama-se O intrépido. Já tomei um vidro inteiro de pílulas.
Agora com licença que vou desligar o computador, deitar na
cama com o livro sobre o peito e esperar.
CAMISOLA E PIJAMA
O editor da revista chamou-me ao seu escritório.
“Onde está o conto, Zacarias? Eu tenho prazo para fechar a
revista.”
Fiquei calado.
“As pessoas só se interessam por crimes, roubalheiras
políticas e sexo”, disse o editor, de nome Alphonse. “Mas não é
fotogra a de mulher pelada, isso saiu de moda. Se o sujeito
quer ver mulher pelada é só ir à praia, à boate, até na rua se vê
mulher de calcinhas mínimas que mostram quase toda a
bunda. E os lmes de sacanagem que passam na televisão são
todos iguais, depois de algum tempo você começa a bocejar de
tédio. Não, não, as pessoas querem ler sobre sexo. Sabe qual foi
o autor mais vendido este ano? Sade. Donatien Alphonse
François de Sade, o Marquês de Sade, perseguido em sua época
como um escritor pervertido, encarcerado diversas vezes na
prisão da Bastilha. Do seu nome deriva o termo ‘sadismo’, que
denota o sentimento de prazer ou excitação provocado com a
humilhação ou o sofrimento físico de outrem. É chamado
pelos psicopatologistas, esses farsantes, de algolagnia ativa.”
O nome verdadeiro do editor não é Alphonse, é Afonso.
“Senhor Alphonse, estou terminando o texto, entrego ainda
hoje.”
Fui para minha casa. Sentei na frente do computador e
escrevi um conto ao qual dei o título de “História de amor.” É
um casal, um homem de aproximadamente quarenta anos, de
nome Pedro, e uma mulher um pouco mais jovem, a Lili. Eles
estão acabando de jantar. Descrevo a aparência dos dois, as
palavras que trocam. Chega um momento em que vão para a
cama.
“Vamos para a cama, meu amor?”
“Sim, sim,” diz Lili, com voz apaixonada. “Vou vestir minha
camisola.”
“E eu o pijama.”
Os dois estão no quarto. Vemos a cama de casal.
“Eu te amo”, diz Lili.
“Eu te adoro”, diz Pedro.

Pedro apaga a luz. O quarto ca em completa escuridão.


O conto termina assim. Com essa frase: “O quarto ca em
completa escuridão.”
Eu mal acabara de escrever quando recebi um telefonema do
chefe da grá ca, Manuel Araújo.

“Cadê o conto, Zacarias? Tenho que fechar a revista, ela tem


que ir para as bancas e para os assinantes ainda hoje. Só falta o
seu conto.”

“Vou enviar por e-mail”, eu disse.


No dia seguinte eu estava no meu apartamento, deviam ser
onze horas da manhã, quando ouvi alguém batendo
furiosamente na porta. Olhei pelo olho mágico. Era o
Alphonse, com a revista numa das mãos, na outra algo que
parecia uma arma.

“Zacarias, abre a porta, você levou a minha revista à falência,


abre a porta! Foder de camisola e pijama num quarto escuro,
isto é um conto erótico, seu cretino?”, ele gritava, dando
murros na porta. Evidentemente não abri. Alphonse acabou
indo embora.

Claro que nesse dia não fui à sede da revista. Eu não queria
encontrar o Alphonse.
Manuel Araújo me telefonou dizendo que eu fora demitido.

“Passa aqui dentro de uns dois ou três dias para acertarmos


as contas.”

Peguei o meu carro velho e fui visitar uma amiga querida que
tinha um sítio na Serra da Bocaina. Fiquei lá quinze dias.

Quando cheguei em casa encontrei uma porção de cartas e


folhetos e recortes de jornal que haviam en ado debaixo da
porta. Um dos recortes era uma crítica de um importante
jornalista. “‘História de amor’ é uma história erótica cercada de
mistério. Faz o leitor participar ativamente da criação desse
maravilhoso conto. O que faz o casal no quarto escuro? Cada
leitor pode usar a sua imaginação de maneira irrestrita. Isso
sim é literatura, deixar lacunas para o leitor preencher.”
Então ouvi tocar a campainha.

Olhei pelo olho mágico. Era o Afonso/Alphonse.

“Zacarias, Zacarias, você é um gênio”, ele disse.


Abri a porta.

Ele entrou com uma garrafa de champanhe na mão.


“A revista esgotou nas bancas, o seu conto está fazendo o
maior sucesso, mandei rodar milhares de novos exemplares,
vamos brindar, traga dois copos.”
Alphonse/Afonso abriu a garrafa, um líquido borbulhante
saiu do gargalo.
“Os livros do Sade estão encalhados nas livrarias. Os críticos
estão dizendo que você criou uma nova literatura. As maneiras
de pensar, sentir, amar estão mudando. O mundo é muito
estranho, ele muda constantemente.”

O mundo era muito estranho, eu sabia, mas não mudava


constantemente. Eu não conhecia porra nenhuma de literatura,
mas essa história de preencher lacunas já tinha virado clichê.

Toda a literatura e tudo o que se escrevia era sempre a mesma


merda.
COLÉGIO
Moro no subúrbio e estudo na única escola pública próxima
da minha casa. Quer dizer, não é muito próxima, tenho que
andar uns quarenta minutos até chegar lá.
Os professores faltam muito. Também ganham uma porcaria
e devem ter outros empregos, senão morrem de fome. Na
minha casa tem sempre arroz com feijão, carne-seca, e minha
mãe faz umas sopas muito boas. Ela me enche de comida, diz
que sou muito magro e posso car tuberculoso. Eu digo que
ninguém mais morre de tuberculose hoje em dia, mas ela diz
que tinha um irmão magrelinho como eu que morreu
tuberculoso. Isso aconteceu há mais de não sei quantos anos,
mas não vou discutir com a minha mãe. Ela trabalha o dia
inteiro na casa, nós não temos empregada, e lava a nossa roupa,
passa a roupa com um ferro antigo aquecido a carvão, lava o
banheiro, a cozinha, e a cozinha ca sempre suja, o banheiro
também, e ela faz mais um montão de coisas. Eu vou para o
colégio e co lá coçando o saco. Meu pai é porteiro de um
prédio e ca o dia inteiro coçando o saco também enquanto a
minha mãe não para de trabalhar.
No meu colégio tem três garotos que andam sempre juntos, a
Gangue dos Tiradentes. Dizem: “nós somos a Gangue dos
Tiradentes, porque quando brigamos arrancamos os dentes do
cara que está brigando com a gente.” Os três são muito fortes,
quer dizer, um deles é muito gordo, mas um gordo muito
gordo é tão perigoso quanto um magro parrudo. Eu evito
passar perto deles. Quando isso acontece eles me empurram e
dizem “sai da frente, magrelinho de merda, quer levar
porrada?”. Eu me afasto o mais rápido possível. Sou mesmo
magrelinho, mas não sou de merda, tenho vontade de dizer
isso a eles, mas não tenho coragem.
Um dia eu estava no banheiro quando entrou o Ivo. Ele é
veado e não consegue ngir que não é, sabe aqueles trejeitos de
mão, a maneira de arrumar os cabelos? Eu me dou bem com
ele, não tenho nada contra veados, bom, mas não queria ter
um irmão veado, nem um primo veado, nenhum veado na
família.
Eu estava conversando com o Ivo quando apareceu no
banheiro a Gangue dos Tiradentes.
“Olha quem está aqui”, disse o Gordo, agarrando o Ivo pelo
pescoço.
Os outros dois, os Parrudos, tiraram a calça do Ivo e
começaram a en ar os dedos no cu dele.

“Você gosta de levar pica, não gosta”, disse um dos Parrudos


en ando dois dedos no cu do Ivo.

Ivo chorava. Eu saí de mansinho. Não tive coragem nem de ir


falar com seu Libório, da portaria.
Fui para casa, andando lentamente, e pensando, sou um
covarde de merda, covarde de merda, covarde de merda.
Demorei mais de uma hora para chegar em casa, creio que
andava como os covardes andam, devagar, covarde anda
devagar ou anda correndo. Eu era um covarde que andava
devagar.

Nessa noite não consegui jantar e minha mãe tinha


preparado uma carne-seca des ada, como eu gosto, e também
não consegui dormir, quei a noite inteira acordado virando na
cama de um lado para o outro.
No dia seguinte minha mãe perguntou:

“Que olheiras são essas, meu lhinho?” Virou-se para o meu


pai e disse: “Olha as olheiras do nosso lhinho.”
Meu pai olhou para mim e disse:

“Não vejo olheira nenhuma.” Pai não vê nada, quem vê é


mãe.

Esperei meu pai sair. Ele fazia a barba com navalha. Demorei
a achar onde ele a guardava. Coloquei a navalha no bolso.
Nesse dia cheguei no colégio em aproximadamente meia
hora.
Fui direto para o banheiro e quei lá, eu sabia que a Gangue
dos Tiradentes ia acabar aparecendo.

E foi o que aconteceu.


“Olha só quem está aqui”, disse o Gordo me agarrando pelo
braço, “o magrelinho de merda”.
Eu tirei a navalha do bolso e dei um leve corte na bochecha
do Gordo. Ele recuou, assustado. Os dois Parrudos também
recuaram.
“Seus lhos da puta”, eu disse, “com essa navalha já matei
dois, está na hora de matar três”, e avancei para cima deles.

“Pelo amor de Deus”, implorou o Gordo, apavorado, “não faz


isso com a gente”.

Dei outro corte na outra bochecha dele.


Desta vez, gritei, “não vou matar vocês, mas se sacanearam
mais uma vez o Ivo, uma vez apenas, eu corto a garganta dos
três”.
Dei uma navalhada na roupa dos dois Parrudos. Eles caram
imóveis, encagaçados. Esses caras que gostam de sacanear
veados, hostilizar magrelos etc. são todos covardes.

“Lembrem-se do que eu disse. Vou falar com o Ivo todos os


dias, se eu souber que vocês chegaram perto dele, apenas perto
dele, eu mato vocês, seus lhos da puta.”

Eles nunca mais chegaram perto do Ivo.

Nem de mim.
HOMEM NÃO PODE BATER EM MULHER
Eu trabalho desde os quatorze anos. Quer dizer, trabalhava,
me aposentei por invalidez quando tinha cinquenta. Eu
trabalhava como arquivista, não sei por que gostava de car
guardando pastas naqueles arquivos de metal. Eu não queria
me aposentar, mas fui obrigado. Tudo porque sempre fui muito
distraído. Andava nas ruas, não via nada do que estava
acontecendo, não via pessoas, nem bichos, nem prédios, nem
vitrines, nem carros. Resumindo, essa maneira distraída de não
ver as coisas em torno de mim acabou de uma maneira
desagradável. Fui atropelado por um carro ao atravessar uma
rua e, no pronto-socorro, cortaram a minha perna. Do joelho
para baixo. Ainda bem que foi a esquerda. A direita cou
intacta. Me puseram uma perna mecânica, uma beleza, eu
podia colocar e tirar a perna facilmente. Comprei uma muleta,
mas nunca precisei usá-la. Para falar a verdade, passei até a
dormir melhor sem uma perna. Talvez o sangue circulasse
melhor, sei lá. Outra coisa que aconteceu foi que passei a ver
tudo o que acontecia em torno de mim. No prédio onde eu
morava, um apartamento de sala, quarto, banheiro e um
armário com um fogão a gás de duas bocas e uma pequena
geladeira, havia um casal de velhinhos simpáticos que diziam
bom dia, boa tarde, quando eu passava, e possivelmente isso
acontecia desde os meus tempos de distraído. A minha sorte é
que ambos eram surdos e deviam pensar que eu respondia.
Havia também um casal, um homem grande de olhinhos
pequenos, mas ele não era chinês, talvez os olhos parecessem
pequenos porque a cabeça era muito grande, e a mulher era
magrinha de olhos grandes, talvez porque o seu rosto fosse
miúdo. Ela vivia com manchas roxas no rosto e nos braços. Um
dia passou perto de mim e eu perguntei, quer dizer, comecei a
perguntar, essas manchas no seu rosto…, e antes que eu
pudesse completar a frase essas manchas no seu rosto e nos
seus braços, ela saiu correndo. Por sorte nesse mesmo dia
encontrei o homem grande de olhinhos pequenos e perguntei,
essas manchas no rosto e nos braços da sua esposa são…, e
mais uma vez não pude completar a frase que era essas
manchas no rosto e nos braços da sua esposa são de alguma
doença? O senhor devia levá-la ao médico, quando cheguei na
palavra esposa ele me deu um soco no rosto e eu caí no chão,
acho mesmo que desmaiei. Os velhinhos me levaram para o
meu apartamento, me puseram na cama, dizendo, o senhor
devia ir à polícia, prestar queixa, esse homem é muito mau.
Então fui ao distrito policial, mas não falei que o sujeito tinha
me dado um soco, falei que ele batia na mulher. Odeio homem
que bate em mulher, se bater em mim eu me incomodo um
pouco, mas o sujeito que bate em mulher me enche de ódio.
Foi aberta uma ocorrência, o homem de cabeça grande e
olhinhos pequenos e a mulher foram chamados para depor. Ela
disse que o marido não batia nela, ele era um homem muito
bom, aquelas marcas eram do trabalho doméstico que ela fazia.
Quando fui à polícia para denunciar o homem de cabeça
grande e olhinhos pequenos eu não quis citar o nome do casal
de velhinhos como testemunhas, coitados, seria um transtorno
imenso para eles. Voltamos todos para o prédio. Naquela noite,
depois de deitar, tirar a perna e me estender na cama, já falei
que sem perna eu durmo melhor, co mais confortável no
colchão, e o meu colchão é muito bom, tive que economizar
durante meses para comprá-lo, mas como eu dizia, depois de
me deitar confortavelmente no meu colchão, ouvi o barulho do
homem de cabeça grande e olhinhos pequenos surrando a
mulher. Pensei em ir bater na porta deles e gritar para com
isso, covarde, homem não bate em mulher, mas ele ia me dar
outro soco e eu ia cair duro no chão. Então acendi a luz e olhei
a minha caderneta do banco para ver quanto dinheiro eu tinha
guardado. Dava para o que eu queria. Procurei o Antonio
Pinóquio, Pinóquio não era o nome dele, era um apelido,
porque o nariz dele era comprido e pontudo, mas ele não se
incomodava de ser chamado de Antonio Pinóquio. Eu o
conhecia porque trabalhamos juntos na mesma repartição, eu
como arquivista e ele como, como… já esqueci. En m, o
Antonio Pinóquio tinha o que eu precisava e disse, como você
sempre foi meu cupincha, vou te cobrar uma pechincha.
Coloquei a coisa dentro de uma saca que o Antonio Pinóquio
me deu e voltei para o meu prédio. Fiquei de olho, esperando o
momento propício. Demorou, mas aconteceu. O homem de
cabeça grande e olhinhos pequenos apareceu. Foi fácil dar um
tiro naquela cabeça grande. Ele caiu duro no chão do corredor.
Fui para o meu apartamento. Tirei a perna e deitei feliz. Dormi
como um anjo. Acordei com uma batida na porta, não sei se já
disse, mas a campainha do meu apartamento estava com
defeito. Em vez de colocar a perna mecânica, peguei a muleta e
abri a porta. Era um sujeito de terno, bigode e gravata. Sou
detetive da polícia, ele disse. Entre, entre, por favor, eu disse,
por favor, repeti me apoiando com di culdade na muleta. O
senhor ouviu algum barulho esta noite? O quê? O quê?, eu
disse. O senhor ouviu algum barulho aqui no prédio esta noite?
Por favor, fale mais alto, eu sou um pouco surdo. O detetive fez
um gesto como que dizendo, tudo bem, e outro gesto se
despedindo. O mistério da morte do homem de cabeça grande
e olhinhos pequenos nunca foi solucionado. Encontrei, tempos
depois, a mulher dele no corredor do prédio. Nenhuma
mancha no rosto ou nos braços. Ela sorriu para mim.
RÉVEILLON
As duas coisas que mais odeio são o Natal e o Ano-novo, o tal
de Réveillon. Não tenho nenhuma pendenga com Cristo, não
sou contra nem a favor, sou neutro.
O dia 31 de dezembro, essa merda conhecida como
Réveillon, é quando os lhos da puta grã- nos, os drogados, os
mendigos, os macumbeiros, dão gritos saudando o Ano-novo.
Voltando ao Natal. Matei um Papai Noel, e matar aquele
Papai Noel deu-me uma grande felicidade. Comprei um monte
de brinquedos e dei para as crianças do morro, com um cartão
em que escrevi Feliz Natal. Esta cidade nojenta está cercada de
morros cheios de favelados fodidos que não comem peru no
Natal, comem feijão com farofa.
Estou sendo discrepante ao dizer que escrevi Feliz Natal no
cartão que dei aos fodidos? Você acha? Então você que se foda.
Puta merda, nem falei do Réveillon e já estão me sacaneando?

Quem eu ia matar no Réveillon? Mendigo, não, o sujeito que


pensa poder viver da caridade alheia vai morrer cedo,
tuberculose, caganeira, porrada de playboys brincalhões que
gostam de matar mendigos. Drogado? Esse babaca vai morrer
de tanto cheirar, inalar, se picar. Um macumbeiro? De jeito
nenhum, macumbeiro é melhor do que padre e do que
psicanalista e muito menos trapaceiro. Tinha que ser um grã-
no lho da puta, todo grã- no é lho da puta, mesmo que a
mãe tenha morrido no parto.
E nesse dia não era difícil eu me vestir de grã- no, eles usam
roupas brancas, dizem que é uma tradição milenar. Eu tenho
calça branca e camisa branca ainda do tempo do hospital. Já
falei do hospital? Depois eu conto. Vesti a calça branca e a
camisa branca e fui para a praia em frente ao majestoso hotel
onde os granfas gordos e ricos — todo rico é gordo, os putos
comem essas merdas que engordam, caviar, foie gras, trufa
branca, bife de carne kuroge wagyu. Para quem não sabe eu
explico que carne é essa que os grã- nos compram pagando
uma fortuna pelo quilo: vem de um bovino, criado na região de
Kobe, no Japão, que só come grãos e é mimado até a morte. O
ruminante japonês passa seus dias bebendo cerveja, recebendo
massagem e ouvindo música. Tudo para garantir uma carne
com maciez e sabor inigualáveis. Vocês, seus bundas-sujas que
estão me lendo, nunca comeram nenhuma dessas porras.
Tenho a minha Walther 45 até hoje, mesmo depois que o
despachante morreu, ressuscitou e morreu de novo, mesmo
depois do hospital, eu sempre encontrei uma maneira de
esconder a minha Walther e depois achar de novo.

Mas, como estava dizendo, vesti uma calça e uma camisa


branca, coloquei a Walther na cintura e fui para o tal hotel
imponente em frente à praia. Foi fácil entrar no hotel e ir para a
imensa varanda cheia de gente que queria assistir à queima de
fogos. Procurei um sujeito gordo para matar, gordo e corado.
Gordo, corado e com cara de gringo. Não foi difícil de achar.

À meia-noite, os fogos na praia começaram a explodir.


Cheguei perto do meu gordo, que estava com um copo de
uísque na mão — esqueci de dizer que havia garçons servindo
aqueles sacripantas lhos da puta — e perguntei: “Você gosta
de fogos?” Ele rodou o indicador do dedo da mão direita em
volta do ouvido como que explicando que não estava
entendendo. “Vou te matar, lho da puta”, eu disse. O gordo,
sorrindo, repetiu o gesto e me deu um abraço. Eu sou mesmo
um sujeito sortudo. Tirei a Walther do cinto e, abraçado com o
gordo, dei um tiro na sua barriga cheia de merda. Ninguém
percebeu, todos aqueles babacas estavam fascinados olhando
os foguetes espocando no ar. Na varanda havia algumas mesas
com cadeiras. Coloquei o gordo numa cadeira. Calmamente
me afastei, saí do hotel, fui para a praia, eu precisava dar uma
mijada. Sentei na areia e tirei o pau pra fora, mas é complicado
mijar sentado, para mulher é fácil; para nós, homens, é difícil, a
gente tem que car em pé. Demorei um tempo enorme, mas
a nal consegui.
Já contei para vocês a minha vida no hospital? Não? Bem,
vamos deixar isso para depois.
GASTRONOMIA
A sensação agradável, eu diria até mesmo o deleite
proporcionado pela comida é, talvez, o prazer mais importante
da vida.
Em matéria de comida, cada pessoa tem a sua preferência. Eu
sempre gostei dos chamados miúdos. Tem gente que não sabe
o que são miúdos. O termo se refere a uma grande variedade
de parte de animais que não são considerados cortes de
primeira, ou seja, lé mignon não é miúdo. Aqui vai uma
relação dos principais miúdos: coração, fígado, rins, pulmões,
rabo, pés, miolo e língua. Para falar a verdade, o rabo não é
miúdo.

Quando era criança, a minha mãe me obrigava a comer


miolos dizendo que aquilo era bom para a minha saúde. Eu
odiava e ainda odeio miolos. De todos os outros miúdos eu
gostava. Pensando bem, só não gostava muito de rim e de
fígado. O resto eu adorava. Mas o que eu mais gostava mesmo
era de rabada. Não tinha coisa melhor do que uma boa rabada
com agrião! Eu cava horas comendo e chupando aquelas
carninhas gordurosas que se escondem no meio dos ossos do
rabo. O curioso é que nenhum restaurante tem rabada no
cardápio. Nenhum. Nem pé-sujo tem rabada. A que eu comia
era feita na minha casa, pela minha empregada, que é uma boa
cozinheira, mas os tais miúdos ela não sabia fazer, ou ngia
que não sabia, certa vez disse que língua de vaca era uma coisa
nojenta.

Gosto e textura dos miúdos dependem, evidentemente, do


tipo de órgão, da espécie do animal e de sua idade. Os miúdos
de bezerro são os mais delicados de todos, seguidos dos de
ovelha. Na minha cidade é muito difícil encontrar miúdos de
ovelha. Já miúdos de porco são fáceis de encontrar. Tripas eu
sempre preferi as de porco. Adorava tripas à moda do Porto.
Esse prato leva tripas, chouriço, orelheira, toucinho, salpicão,
carne de cabeça de porco, galinha, manteiga, cenoura, cebola,
banha, louro, sal e pimenta. A quantidade de cada ingrediente
eu não sei de cor, mas está tudo escrito no meu livro de
receitas, que escondo da minha mulher.
Mas, como eu disse, encontrar um lugar para comer bons
miúdos era muito difícil. Já contei que tenho um sítio na serra?
É um lugar adorável, pode estar fazendo um calor de cão na
cidade que lá você tem que dormir de cobertor.
Um dia apareceu lá no sítio um patrulheiro uniformizado
que me perguntou se eu havia notado alguma pessoa estranha
perto da minha casa. Disse que alguns porcos e vacas haviam
sumido de fazendas. E dois caçadores, também. A mochila de
um deles foi encontrada. Não é gente daqui. Uma jovem que foi
contratada para trabalhar na colheita de laranjas na fazenda do
seu Gumercindo também havia desaparecido.

“Talvez tenha voltado para casa, aquilo é muito cansativo. Por


estas bandas, seu guarda, não tem surgido ninguém que pareça
suspeito”, eu disse. “Além de tudo”, acrescentei, “minha casa é
bem provida de portas e janelas difíceis de arrombar e eu tenho
isto aqui.”
Abri a gaveta e mostrei um revólver para ele.

“É um Smith & Wesson 686 .38 Special”, eu disse. “Não saio


sem ele. Tenho licença para porte, o senhor quer ver? Eu ando
sempre com ele no cinto, escondido pelas blusas largas que
uso.”
O patrulheiro respondeu que não precisava ver a licença,
repetiu que coisas estranhas estavam acontecendo, agradeceu e
retirou-se. Ele estava querendo mostrar serviço: caçador
desaparecido, uma vaca, uma trabalhadora na lavoura?
Bem, mas como eu estava dizendo, era difícil encontrar um
bom lugar para comer miúdos. Perto do sítio havia um
restaurante que servia miúdos, mas não era grande coisa. Até
que um dia quando eu estava zanzando longe do sítio, lá no
alto da serra, vi um restaurante meio tosco que tinha na porta
escrito OS MELHORES MIÚDOS. A MELHOR RABADA DO
MUNDO.

Entrei. O restaurante estava vazio. Um sujeito de barba me


perguntou:

“Senhor, miúdos ou rabada?”


Pedi a rabada. Era uma maravilha. Achei melhor não me
empolgar muito com a rabada, os outros miúdos podiam ser
uma droga. Decidi que voltaria lá em outra ocasião para
conferir.
Minha mulher gostava de carne. Bife à milanesa, bife à
parmegiana, bife a cavalo, bife à rolê. Só comia macarrão se
tivesse um monte de carne moída.
Um dia apareceu em casa com um livro de um tal Donald
Watson. Ficou lendo o livro e andando com ele debaixo do
braço durante vários dias. Notei que ela só comia salada.
“Meu amor”, eu disse pra ela, “você é uma magrela, e agora só
come salada? Vai car uma caveirinha”.

Ela pegou minha mão e disse: “Querido, eu agora sou


vegana.”
“O que é isso?”

“Veganismo é um movimento de respeito aos animais. Por


muitos motivos, inclusive o de saúde. Está provado que as
pessoas que se alimentam de comidas de origem animal têm
mais probabilidades de terem doenças degenerativas,
principalmente doenças cardiovasculares. Todas as pesquisas
a rmam que a dieta vegana é a mais adequada em todas as
fases da vida. A palavra vegan, meu querido, é de origem
inglesa e foi criada em 1944 pelo Donald Watson, autor deste
livro”, e ela me mostrou o livro que carregava sempre de um
lado para outro. “Trata-se de uma corruptela da palavra
vegetarian, isto é, vegetariano, que signi ca uma forma de vida
que procura excluir todos os tipos de exploração e crueldade
com os animais, para alimentação ou qualquer outra
nalidade.”

“Entendi”, eu disse, brincando, “bife à milanesa não pode,


casaco de vison, não pode, e blusa de seda, pode? Ou o bicho-
da-seda não é animal?”

“Meu amor, você não tem a menor graça”, disse a minha


mulher se afastando com o livro do tal sujeito debaixo do
braço.
Eu amo a minha mulher, Elza, e, como queria apoiá-la,
conversamos e decidimos que não íamos almoçar ou jantar
juntos. Isso, é claro, em nada diminuiu o meu amor.
Continuamos indo para a serra no m de semana. Elza havia
criado no sítio um lugar para plantar frutas e legumes. Eu
sempre saía para comer fora.

Elza costumava se ausentar de casa para apanhar frutas


silvestres como abiu-preto, cajá-redondo, tapiá e outras que eu
nem provava. Ela saía pela manhã, levava uma mochila com
aquelas comidas dela e sumia o dia inteiro.

Certo dia em que a Elza estava procurando as tais frutas


silvestres, quando chegou a hora do almoço, eu decidi que não
ia comer no restaurante perto de casa. Fui àquele lugar no alto
da serra onde comera uma rabada deliciosa.

O restaurante estava fechado, mas saía uma fumaça da


chaminé do telhado. Bati na porta.

Ouvi uma voz dizer do interior “um momento.”

Esse momento demorou uns vinte minutos. Mas a rabada


não saía da minha cabeça e creio que esperaria uma hora.

O sujeito veio me receber.

“Temos miúdos”, ele disse, “fígado, rins, tripas…”

“Eu queria uma rabada.”


“Infelizmente hoje não temos.”

“Então tripas à moda do Porto. As tripas estão frescas?”

“Fresquíssimas”, ele respondeu.

As tripas estavam deliciosas. Eram nas, tenras, deviam ser


de um lhote de porco, bem novinho.

Bateram na porta.

O dono barbudo disse: “Com licença, vou ver quem é.”

Aproveitei que ele estava fora da sala e dei um pulo na


cozinha.

O barbudo demorou a chegar.


“Era o patrulheiro”, ele disse, “esse sujeito vive aparecendo
aqui, não gosto dele. Hoje cou perguntando sobre uma outra
mulher que sumiu”.

Tirei a pistola do cinto e dei um tiro na cabeça dele.

Ao ir à cozinha eu vira o corpo de uma jovem com o ventre


aberto, as vísceras à mostra. Devia ser a tal moça do laranjal.
Eu havia comido as tripas dela à moda do Porto.

Voltei para minha casa apressado.


Minha mulher estava com uma cesta cheia de frutos silvestres
na mão.

“Olha que beleza”, ela disse.

“Querida, vamos embora da serra. Sinto falta da cidade, não


aguento mais car aqui.”

“Meu amor, você sempre amou a serra.”

“Querida, por favor, vamos embora.”

Não tive coragem de contar para ela o que acontecera.


Elza notou que eu estava tão transtornado que fez as malas
apressadamente.

À medida que eu ia me aproximando da cidade, senti um


certo alívio. Quando cheguei à rua cheia de carros e
transeuntes pelas calçadas, quei feliz.

Tripas à moda do Porto nunca mais. Nem miúdos. Na


verdade me tornei vegano.
ANURO
Eu morava com minha mãe e meu pai em um sítio na serra.
Minha mãe era uma mulher esquisita, às vezes cava calada o
dia inteiro, outras vezes falava sem parar coisas que eu não
entendia muito bem. Nossa empregada, dona Romilda, dizia
que a minha mãe sofria de uma doença, uma espécie de mania.
Tudo isso eu só fui entender quando era adulto.

Meu pai passava a semana fora, trabalhando na cidade, e só


vinha para a serra no m de semana. Nem sempre. Era comum
ele telefonar e dizer que estava com muito trabalho na cidade e
que não iria subir naquele m de semana.
Minha mãe tinha crises nessas ocasiões e xingava meu pai de
todos os nomes feios, mas eu só me lembro bem de sacripanta.
Muito mais tarde descobri que sacripanta era o mesmo que
velhaco, patife, indigno.
Para falar a verdade, essas brigas do meu pai com a minha
mãe não me incomodavam muito. Eu tinha nove anos e a única
coisa que me interessava era o meu sapo. Havia um lago na
serra, cheio de sapos, mas o mais bonito era o meu, que se
chamava Nildo. E ele era meu amigo. Quando me via vinha aos
pulos para perto de mim, e eu fazia carinhos na cabeça e na
barriga dele.
Um dia eu estava conversando com o Nildo na beira do lago
quando minha mãe apareceu com uma pá e o matou.
“Esse bicho é perigoso, cheio de veneno, não é, dona
Romilda?”
“É verdade, morro de medo dele.”
Eu viria a descobrir que toda mulher tem medo de sapo.
Minha mãe morreu. Acho que se matou, pois dona Romilda
me contou, fazendo aquela cara mentirosa dela, que foi um
ataque cardíaco. Dona Romilda era uma mulher que só tinha
duas caras — a maioria das pessoas tem muitas —, uma cara
quando falava a verdade e uma cara quando mentia. Quando
falou que a minha mãe morreu de um ataque cardíaco, sua cara
era a de mentira. Anos depois eu soube que realmente a minha
mãe cometera suicídio.

Meu pai não durou muito mais. Teve um ataque cardíaco


fulminante.
Herdei muito dinheiro. Sujeito rico tem sempre um monte de
mulher querendo casar com ele. Por que o sujeito casa?
Conveniência?
En m, me casei. Minha mulher, Gilda, era uma loura bonita,
que gostava de viajar para Paris. Eu dizia que não podia ir,
inventava compromissos. Ela ia sozinha e voltava carregada de
compras. Ela nunca visitava um museu ou uma galeria de arte,
só magazines para fazer compras.

Eu gostava que Gilda viajasse. Eu cava só com o meu novo


sapo, Rafa. Ele também era meu amigo, quando me via vinha
aos pulos para perto de mim e eu fazia carinhos na barriga e na
cabeça. Rafa me olhava com aqueles olhos dele. Comprei um
livro e aprendi que, conforme os estudos realizados num sapo,
o que o olho diz resulta da soma do que informam as quatro
camadas da retina. A primeira camada detecta apenas
contornos pequenos e nitidamente destacados do fundo. A
segunda exige que o objeto seja convexo ou globular. A terceira
só detecta o que estiver em movimento. Assim, o sapo só vê o
que for pequeno, globoso, destacado ao fundo ou que esteja
voando. Se os insetos permanecerem imóveis, salvarão a sua
própria vida e o sapo morrerá de fome. A quarta é sensível a
bruscas diferenças de luz e sombra. Esta não é mais para a
alimentação, mas para a sobrevivência do sapo. Ela detecta a
chegada de algum animal de grande porte que possa esmagá-
lo. De ser engolido ele não tem medo.

Coisa estranha não ter medo de ser engolido. O autor do tal


livro não sabe explicar isso: como um ser vivo não tem medo
de ser engolido? Fiquei pensando: eu pre ro ser engolido ou
esmagado?

Estou virando sapo? Ou cando maluco igual a minha mãe?


A Gilda sempre me avisava pelo celular quando estava
voltando de Paris. Um dia, por qualquer motivo, ou ela se
esqueceu de avisar ou eu não chequei o meu celular, o certo é
que ela apareceu em casa quando eu estava conversando com o
Rafa na beira do lago. Gilda tinha uma faca na mão e atacou
Rafa, gritando histericamente “odeio sapos, odeio sapos”.

Rafa morreu com uma facada. Separei-me de Gilda.


Nunca me des z do sítio na serra. Tinha todo tipo de árvore,
inúmeras árvores frutíferas, um jardim de ores, um lago
lindo.
Fiquei solteiro um ou dois anos até que conheci uma mulher
por quem me apaixonei. O nome dela era Lívia, mas todos a
chamavam de Lili. Era muito bonita, inteligente, generosa e me
amava. Nos casamos.

Mas havia um problema. Eu tinha um sapo novo, Peter. Se


Lili descobrisse seria uma desgraça horrível, mulheres odeiam
sapos.

“Lili, se você quiser ir à cidade fazer compras o motorista te


leva.”
“Eu adoro a serra, gosto de viver aqui, meu amor, ao seu
lado.”

Estava cada vez mais difícil ver o Peter.

Lili gostava de ler. Um dia me disse: “Li todos os livros do


Dickens, menos Tale of two cities.”

Encomendei o livro. Quando ele chegou, Lili começou a lê-lo


imediatamente.
Era a minha chance de ver o Peter. Quando me viu, ele saiu
pulando do lago e veio para o meu lado. Estava distraído
fazendo festas na barriguinha dele quando ouvi a voz de Lili:
“Você tem um sapo?”

Quis dizer alguma coisa, mas estava sem voz. Pensei que ia
desmaiar.

“Eu adoro sapos”, disse Lili. “Posso pegar nele?”


Lili cou fazendo carinhos no Peter.

Sou o homem mais feliz do mundo.


CARNAVAL
Eu vivo de vender coisas na rua, biscoito, sorvete, pipoca, o
que aparecer. Mas no Carnaval eu tiro a barriga da miséria.
Vendo lata de cerveja. Não vendo no tal sambódromo, ali só
tem gente grã- na, todas as empresas importantes têm
camarotes em que servem bebidas e comidas chiques para os
convidados. Não, eu vendo minhas latas de cerveja nos blocos.
Com o calor, a turma toma cerveja sem parar, até as meninas
novas de saiotes curtinhos que deixam aparecer um pedaço da
bunda enchem a cara. Os homens se encostam num muro ou
numa árvore e mijam. As mulheres se sentam na calçada e
fazem o mesmo. Homem não consegue mijar sentado e mulher
não consegue mijar em pé, vê como homem e mulher são
diferentes.
Era sábado e eu estava num bloco em Ipanema vendendo
minha cerveja quando o Wilson se aproximou de mim e disse,
“Zeca, puta merda, você está vendendo a sua cerveja pela
metade do meu preço, está me tirando a freguesia, caralho”. Eu
respondi, “Wilson, meu preço é o justo, nós temos que ser
justos”. “Justos é o caralho”, respondeu Wilson, “esses putos têm
dinheiro, porra, encarece a tua lata”. Eu disse, “Wilson, vou
manter o meu preço”. Ele me olhou enviesado e então veio a
bateria, e eu adoro ouvir a bateria dos blocos, co abobalhado,
e assim nem percebi que Wilson se aproximou de mim e me
deu uma facada, pegou na perna, acho que ele queria furar a
minha barriga, senti uma dor do cão, caí no asfalto, o Wilson
sumiu, eu quei zonzo, as latas sumiram e eu consegui me
levantar e fui me arrastando até o meu barraco na Rocinha.
Elvira, a minha mulher, me colocou na cama e olhou o
ferimento. Contei a ela o que tinha acontecido. Com algodão
ensopado em álcool ela lavou a ferida. “Zeca”, ela disse, “o
Wilson queria acertar os teus colhões, se acertasse você ia car
brocha, já imaginou você brocha? A melhor coisa do mundo é
o que a gente faz de noite na cama, não é? E a gente não ia
poder fazer mais”.
Eu não fui ao pronto-socorro nem fui dar queixa na polícia
porque antes de vender picolé eu vendia pó e erva. Os tiras
descobriram que havia um sujeito fazendo isso na Zona Sul e
eu parei de vender, pois eles iam acabar me pegando, quem faz
coisa fora da lei sempre se fode, e eu parei de fazer coisas fora
da lei.
“O Wilson queria te ferrar, cortar os teus colhões”, repetiu
Elvira, “essa é a maior maldade que se pode fazer no mundo,
cortar os colhões de um homem, você tem que ir à forra”.
As mulheres são vingativas. Ela falava trincando os dentes.
“Tenho uma amiga aqui no morro que tem um revólver, um
Esmiteston. Vou lá pegar com ela.”
Não demorou e ela voltou com um revólver preto dentro da
bolsa.
“Olha, você vai fazer o seguinte. Procura o Wilson num
desses blocos que soltam foguetes. Na hora do foguete você se
aproxima dele, bem pertinho, e dá um tiro nos colhões. Depois
dá outro tiro, na barriga. Um cara mau desse merece morrer.”
O bloco era grande, bateria enfezada, a turma cantava
botando os bofes para fora. Wilson se aproximou e eu disse
para ele, “estou vendendo pelo seu preço”, e ele respondeu,
“beleza, beleza”. Quando soltaram os fogos eu quei juntinho
do Wilson e dei um tiro nos colhões dele e outro na barriga.

Ninguém percebeu nada, nesses blocos de mijões está todo


mundo de porre. Eu estava nervoso pra caralho, mas me afastei
lentamente e voltei para casa carregando um monte de latas
cheias.

“Pegou o lho da puta nos colhões?”


“Peguei”, respondi.

Abrimos duas latas de cerveja e bebemos.

“Porra”, disse Elvira, agora sem trincar os dentes, “o lho da


puta queria fazer essa coisa horrível com o meu homem?
Vamos para a cama, meu amorzinho, vamos fazer o que a gente
gosta”.
A MORTE DO MINISTRO
Atendi o telefone. Era o Chicão.
“O ministro bateu as botas. Infarto.”
“Sim. E daí?”

“Ele estava no apartamento de uma vadia. A lha da puta


entrou em pânico e ligou para a polícia. Ainda bem que temos
essa gente no bolso. Resolve o problema. Anota aí o endereço.
A coisa é urgente.”
O apartamento cava em Ipanema. Um edifício modesto.
Falei para o porteiro, “sou da polícia.” O babaca nem pediu
para ver a minha carteira, ainda bem, pois não sou polícia
porra nenhuma.
A vadia abriu a porta. Toda puta tem a mesma cara, falo da
cara do fundo, atrás da maquiagem, do cabelo pintado, da
cirurgia estética, a cara verdadeira. Os homens para esconder a
cara verdadeira deixam a barba crescer.

“Qual é o seu nome?”

“Kelly”, disse ela.


“Quero o nome verdadeiro.”
“Sebastiana. Acho esse nome feio.”
Toda puta usa pseudônimo.
O ministro — esqueci de dizer que o nome dele era Ronaldo
Freitas Brandão e era ministro da Justiça — estava caído na
cama, apenas de cueca. Eu o reconheci logo. Era avesso a dar
entrevistas, principalmente na televisão, e suas fotos raramente
apareciam nos jornais.
“Conte o que aconteceu”, eu disse.
“Ele tomou a pílula, ele sempre tomava a pílula, uma pílula
que carregava no bolso, tirou a roupa e deitou na cama. Eu
quei nua e, quando deitei ao lado dele, notei que não
respirava. Daniel, Daniel”, eu disse, “mas ele não respondeu”.
“O nome dele é Daniel?”
“É, Daniel Gomes, freguês antigo, meu e da Glicilda, digo,
Hildete, ela não gosta de ser chamada de Glicilda.”
“O senhor Daniel trabalhava onde?”
“Numa repartição pública. Não sei qual.”
Revistei os bolsos do ministro. Dinheiro, um molho de
chaves, uma delas era de automóvel. Mais nada. Ele não queria
ser identi cado.
“Me ajuda a vestir o seu Daniel”, eu disse.

Nunca pensei que vestir um cadáver desse tanto trabalho.


Calça, meia, sapato, camisa, gravata, paletó. Demoramos um
tempão. Quando acabamos, eu disse:

“Vou levar o min…, seu Daniel, comigo.”

Tirei a pistola do bolso, encostei no nariz da Kelly-


Sebastiana.
“Presta atenção. Se você comentar com alguém, com
qualquer pessoa, cafetão, mãe, lho, padre, qualquer pessoa, o
que aconteceu aqui, eu dou um tiro nos seus cornos,
entendeu?”
Ela cou calada.

Repeti: “Entendeu?”
“Sim, senhor.”

Liguei para o Chicão.


“Preciso de um cara para me ajudar o tirar o… o… corpo
daqui.”

“Dez minutos”, respondeu Chicão.


O puto demorou meia hora. O nome dele era Milcíades.

Tiramos o ministro do apartamento carregando-o em pé,


entre nós, como se estivesse bêbado. O carro do Milcíades
estava na porta do prédio. Colocamos o corpo do ministro no
carro. Tirei do seu bolso a chave. Eu sabia que o carro do
ministro era um Hyundai. Estava perto.
Entrei no Hyundai e fui até onde estava o carro do Milcíades.
Colocamos o corpo do ministro no Hyundai.
“Vamos lá para o Ministério”, eu disse.

Entramos na garagem do Ministério, eu dirigindo e o


ministro sentado ao meu lado. Ninguém viu a nossa chegada.
Onde estava a porra do garagista? Esses funcionários públicos
são uns merdas.

“Guenta as pontas”, eu disse para o Milcíades, “vou lá em


cima falar com o vice-ministro”.

Eu detestava esse tal vice-ministro. Não sei se o título dele era


esse, sei que era depois do ministro a pessoa com mais
autoridade no Ministério. Era um lho da puta corrupto,
conhecia as trapalhadas do ministro e se aproveitava disso.

Contei os detalhes para ele.


“A puta era mulata, não era? Ele só gostava de puta mulata.
Vai ver era porque a mulher dele é loura legítima.”
“Estou precisando da carteira de identidade do ministro.”

“Está aqui na mesa dele”, disse o vice. Esqueci de dizer que o


nome dele era Hanibal e sempre que o lho da puta era
apresentado a alguém ele dizia “Hanibal, com H, com H.”

O puto do Hanibal-com-H trouxe a carteira.

“Vou fazer o seguinte. Vou pôr a carteira no bolso do


ministro, colocá-lo ao volante, saio da jogada com o Mílciades
e você vai encontrá-lo lá, infartado etc.”

“Deixa comigo”, disse o Hanibal-com-H.

 
Fui para minha casa. A casa estava vazia, a minha mulher,
quer dizer, a mulher que vivia comigo, me abandonou. No
princípio foi até bom, mas depois de algum tempo eu quei
com saudades. Maria era o nome dela, eu gosto desse nome. Os
nomes de mulher mais comuns no mundo são Maria e Ana.
Maria era muito ciumenta, eu raramente mijava fora do penico,
quer dizer, dava uma bimbada fora de casa, mas eu estava
tomando um cafezinho com essa dona, que tinha a mania de
car me agarrando em qualquer lugar em que estivéssemos, o
nome dela era Juliana, mas como eu disse estávamos no
shopping tomando um cafezinho, ela é viciada em café, e estava
me agarrando, beijando a minha mão, e nós tínhamos acabado
de dar uma trepada, mas mulher é assim, depois de foder elas
querem car meiguinhas fazendo carinho no macho, que só
quer se livrar da fêmea, en m, ela estava beijando a minha mão
quando a Maria apareceu.

“Zé, você é muito sem-vergonha, então é isso que você faz


quando diz que vai trabalhar com o Chicão?”
Percebi que ela chorava, o que me deixou muito triste.
“Não quero te ver nunca mais”, disse Maria.

Agora estou sozinho e a casa parece enorme. Fiquei com


raiva da Juliana. Não quero saber mais de mulher nenhuma.
Acho que brochei.

Liguei a televisão. Só merda. Tem gente que gosta de ler, mas


detesto livro, é uma merda pior do que a televisão. Só leio o
jornal esportivo. Quando a Maria dormia comigo, o que
acontecia todos os dias, eu pegava no sono logo. Ela cava
lendo. Porra, lendo livro! Eu dormia logo, mesmo com a luz da
cabeceira acesa. Agora tinha que tomar um remédio de tarja
preta que para comprar na farmácia só com receita médica. Eu
tomava a dose mais forte e mesmo assim demorava a dormir.

Tomei o remédio e fui para a cama. Mal me deitei e a


campainha do telefone xo tocou. Foda-se, pensei, não vou
atender essa merda. Mas o lho da puta que estava ligando não
desistia. Acabei atendendo.

Era o Chicão.
“Você liquidou a puta?”

“Que puta?”

“Aquela que estava com o ministro no dia em que ele


morreu.”
“Porra, Chicão, por que eu iria matar aquela infeliz?”

“Ela apareceu morta, Beretta 45, ponta oca. Arma e munição


que você usa.”

“Puta merda, Chicão, você sabe que eu não mato mulher.


Nem criança. Nem cachorro.”
“Você jura pela sua mãe morta?”

“Vai se foder, Chicão.”


“Vou passar aí para conversarmos.”

Eu durmo pelado. Ouvi dizer que dormir nu faz bem para a


saúde. Mesmo no tempo em que a Maria morava comigo eu
dormia pelado. Ela também.

Vesti uma calça e uma camisa. Peguei a Beretta na gaveta.

Chicão não demorou. Quando abri a porta e ele me viu com


a Beretta na mão, disse:
“Epa, epa!”

“Cheira”, eu disse dando a Beretta para ele, “vê se tem cheiro


de que foi disparada recentemente. Não atiro com a Beretta há
mais de dois meses”.

Chicão pegou a pistola, tirou o carregador, cheirou o cano.

“É”, disse ele.

Chicão cou pensativo.

“Me arranja um cafezinho”, ele disse.


Fervi um pouco de água e joguei um punhado daquele pó
granulado que chamam de café instantâneo.

Chicão bebeu o café.


“É”, disse ele.

“É o quê, porra?”, perguntei.

“Não sei”, ele disse.


Chicão não era um sujeito de muita conversa, mas naquele
dia ele estava, como se diz, ele estava… tem uma palavra boa
para essa coisa de falar pouco, mas eu esqueci a porra da
palavra.

“Já vou”, disse Chicão se levantando e dando um toque no


meu braço.
Tirei a roupa, voltei para a cama e quei virando de um lado
para o outro. O sono tinha ido para o beleléu.
 

Dois dias depois, Chicão voltou a me procurar.


“Zé, como é o nome daquela amiga da puta que foi morta
com um tiro de Beretta ponta oca?”

Tenho boa memória. Sei o nome de todos os livros que a


Maria gostava de ler. Eu dizer que todo livro era uma porcaria
deixava a Maria muito irritada.

“O nome dela é Glicilda, mas, como toda puta, tem um outro


nome, Hildete.”
“É mulata?”

“O ministro só gostava de mulatas, você já esqueceu?”


Chicão tirou um papel do bolso. Leu o que estava escrito:
“Glicilda de Souza, 28 anos. Tiro de Beretta ponta oca. O
cadáver foi encontrado pelo ca fa que explorava ela. O polícia
suspeitou dele, encheram o cara de porrada, mas acabaram
concluindo, depois de muitos socos e pontapés e coronhadas,
que não foi ele. Quem me contou isso foi o Turco, que trabalha
na Homicídios. Zé, o mesmo cara matou as duas. Isso não é
coincidência, é conexão.”

Ficamos os dois calados.


“Zé, olho vivo, não estou gostando, estou preocupado, não sei
a razão, mas estou preocupado.”
Chicão abriu o paletó — ele sempre andava de paletó — e
mostrou a pistola no coldre, uma Taurus 45.

“Não saio de casa sem o meu trabuco”, disse ele batendo com
a mão espalmada no coldre.
Na porta, antes de sair, Chicão repetiu:

“Olho vivo, Zé.”


No dia seguinte recebi outro telefonema do Chicão.
“Mataram o…”

Não entendi o resto. Chicão sussurrava.


“Não entendi, Chicão, fala mais alto.”

“Mataram o Milcíades”, ele repetiu.


“Puta merda”, eu disse.
“Beretta 45, ponta oca.”

“Puta merda”, repeti.


“Tudo está ligado ao ministro, às putas, ao Milcíades. Nós
estamos no pacote.”
“Puta merda”, repeti.
Eu gosto de dizer puta merda, me tranquiliza.

“A Cleide, você sabe quem é a Cleide, não sabe?”


“Sei, secretária do Hanibal-com-H.”

“A Cleide me disse que o chefe dela anda se gabando que o


presidente da República vai nomeá-lo ministro, na vaga do
Ronaldo Freitas Brandão. Ele, o vice, está limpando a barra, se
vazar que agenciava putas para o ministro Ronaldo ele se fode,
o presidente não o nomeia. Nós dois estamos na lista negra.
Mas eu tenho uma ideia, você topa?”
“Que ideia?”

Esta era a ideia do Chicão. Ele sabia que às seis horas em


ponto a Cleide saía do escritório e Hanibal-com-H cava
sozinho, trabalhando mais umas duas horas. Então por volta
das sete nós iríamos ao escritório dar um aperto no lho da
puta.
Topei.

“Hoje mesmo, certo?”


“Certo”, respondi.

Às sete horas chegamos ao escritório do Hanibal-com-H. Ele


estava sentado, sua mesa cheia de papéis.
Quando nos viu, levou um susto. Fez um gesto para abrir a
gaveta, mas Chicão se antecipou agarrando os braços do lho
da puta.
Dentro da gaveta estava uma Beretta 45. Peguei a pistola e
examinei a munição. Ponta oca.

“Por favor, eu não ia…”, começou a dizer Hanibal-com-H.


Não terminou. Chicão, com a sua Taurus, deu um tiro na
cabeça do lho da puta. O barulho foi fraco. Vi que o Chicão
colocara um silenciador na sua peça.
“Vou dar outro na boca, ele vivia se gabando que tinha dentes
lindos.”

O tiro na boca estraçalhou os cornos do puto.


“Vamos embora”, eu disse.
 
Chicão foi para sua casa — ele tinha mulher e três lhas,
mulher de mais para um cidadão aturar — e ao nos
despedirmos disse:
“Vamos esquecer isso tudo.”
“Já esqueci”, respondi.

Cheguei à minha casa, tirei a roupa, tomei a pílula de tarja


preta e fui para a cama, onde quei rolando acordado, como
sempre.

Então a campainha tocou.


Vesti uma cueca, peguei a minha Beretta e abri a porta.
Puta merda, que maravilha. Era Maria, a minha mulher
amada, com dois livros na mão.
“Não posso viver sem você”, ela disse.

Abracei-a com força. Ela deixou os livros caírem no chão.


Fomos para a cama.
Eu amava a Maria. Faria tudo por ela. Até leria livros.
Quantos? Ah, o amor…
INVEJA
Antes de mais nada, quero recapitular um acontecimento que
alvoroçou jornais, revistas, televisão, internet. Uma jovem
artista plástica chamada Margareth Mitry foi estuprada e
assassinada com requintes de crueldade. Um detetive da
Delegacia de Homicídios chamado Guedes foi encarregado do
inquérito policial destinado a reunir os elementos necessários à
apuração da prática daquele crime. Guedes era um detetive
honesto e inteligente. Mediante suas investigações, apurou que
Margareth Mitry era amante de Gabriel Alencastro, um
banqueiro multimilionário, conhecido não só por sua
lantropia — diziam que ele contribuía, sozinho, com quantias
que eram o dobro das doações combinadas dos Jafet, da família
Safra e do senhor Castro Maia, sabidamente bem generosos —,
mas também era famoso por suas atividades esportivas: além
de campeão de hipismo, ganhou duas medalhas de ouro para o
Brasil em provas de iatismo nas Olimpíadas Mundiais.

Margareth Mitry, em sua primeira exposição, vendeu a


totalidade dos seus quadros. O detetive Guedes descobriu que
todos haviam sido adquiridos por Gabriel Alencastro por meio
de intermediários. Guedes continuou fuçando e encontrou
uma amiga de Margareth Mitry, uma jovem modelo de nome
Kate Kelly (na verdade um pseudônimo, o seu nome
verdadeiro era Benedita Magalhães), que prestou informações
importantes para o inquérito.
“Dona Kate, a senhora era muito amiga da dona Margareth
Mitry?”
“Desculpe, seu delegado, mas a letra A do meu nome se
pronuncia EI, é inglês, sabe como é que é, uma língua
diferente.”
“Obrigado pela informação. A senhora era amiga da dona
Margareth Mitry?”
“Na verdade eu era a única amiga que ela tinha. Nós nos
conhecemos no shopping. Eu adoro ir ao shopping, não é para
comprar, não, é para ver as coisas, as pessoas, tomar um
cafezinho, tomo puro, sem açúcar. O senhor põe açúcar no
café?”
“Prossiga, dona Kate. Vocês se conheceram no shopping. E
depois?”

“Ela estava também tomando um cafezinho e eu lhe disse que


até cinco xicrinhas de café por dia faziam bem, mais do que
isso fazia mal. O senhor sabia disso?”

“Sabia, dona Kate. Continue. E depois?”


“Ficamos conversando e viramos amigas. Então começamos
a contar coisas íntimas, quer dizer, ela contava, mas eu não
dizia nada da minha vida. Eu sou muito na moita. Depois de
algum tempo, Kate me contou que seu Gabriel não queria e
não deixava que ela tivesse amigas. A gente se encontrava
escondido, quer dizer, no meio de um monte de gente, mas
escondido. Na véspera de ela aparecer morta, a Marga, era
assim que eu a chamava, me disse que ia sair de casa, que o seu
Gabriel tratava ela mal e que ela estava apaixonada por outro
homem.”
“Como que ela estava apaixonada por outro homem? Ela via
esse homem quando?”
“Logo depois de se encontrar comigo no shopping ela corria
para ver o namorado. Ele cava escondido, não queria ser visto
por mim.”

“Por quê?’
“Não sei. Os homens são muito esquisitos.”

“A senhora me disse que o senhor Gabriel tratava a dona


Margareth mal. Mal, como?”
“A Marga me disse que ele batia nela.”

“Mas o exame de corpo de delito não encontrou marcas de


espancamento.”

“Marga me disse que ele dava socos na cabeça dela enrolando


uma toalha na mão. Já viu o cabelão dela? Aquele monte de
cabelo e a toalha evitavam as marcas. A Marga me disse que
doía muito. Ele batia nela por qualquer motivo, se ela saísse
sem autorização, se não zesse na cama aquilo que ele queria.
Um dia bateu nela porque a Marga ligou a televisão sem ser
autorizada.”
“Dona Kate, eu gostaria que a senhora fosse à Delegacia de
Homicídios para prestar depoimento.”
“Depoimento?”

“Dizer isso que a senhora me disse a um escrivão que vai


colocar num papel que a senhora vai assinar.”

“Quando?”
“Amanhã de manhã. Aqui o meu cartão com o endereço.”

O Gabriel Alencastro era detestado por todos os seus


empregados domésticos. Uma delas ajudou as investigações do
detetive Guedes. Levou à delegacia um martelo de aço com
manchas de sangue. O médico-legista concluíra em seu exame
que a vítima fora assassinada com golpes de martelo, além de
estrangulamento. O delegado da Homicídios, que também o
detestava, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente (um pequeno
parênteses, as pessoas em sua maioria sentiam essa aversão por
Gabriel Alencastro por invejarem sua riqueza, sua elegância,
seu prestígio social, ou seja, um sentimento que faz mal a quem
o abriga, a inveja), resolveu indiciá-lo no inquérito que
instaurou.

Vou parar de contar essa história tentando ser interessante.


Um empregado do Gabriel, como disse, entregou à polícia um
martelo com vestígios de sangue, o exame pericial comprovou
que o sangue era da Margareth Mitry, o delegado de
Homicídios pediu a prisão preventiva de Gabriel. O juiz
decretou, mas xou uma ança ridícula que Gabriel pagou e
cou livre aguardando o julgamento.

Em nosso país os crimes contra a vida são julgados por um


júri. O advogado do Gabriel era um dos mais importantes
criminalistas do Brasil. O promotor, um novato inseguro. Isso
sem dúvida tinha sido articulado pela defesa do criminoso.
Dinheiro compra tudo.

O julgamento foi uma farsa. Não havia testemunha de


acusação. A Kate-Benedita-Magalhães-Kelly sumiu.
Comprada? Morta? Uma testemunha de defesa, a mesma
empregada que entregou o martelo à polícia, declarou que
“dona Margareth costumava pregar pregos na parede para
colocar quadros e às vezes feria os dedos”.

Resumindo: Gabriel Alencastro foi absolvido por


unanimidade.

Lembram que a Kate Kelly contou que a Margareth Mitry se


encontrava com o namorado na saída do shopping? O
namorado era eu. Naquele último dia em que a vi,
combinamos que ela abandonaria o Gabriel Alencastro e
passaria a viver comigo. Eu a convenci de que ela não podia
levar aquela vida apenas para ter joias e roupas nas. Não sei
por que me apaixonei por ela, uma pessoa muito ingênua, tola.
Na verdade, eu já não sentia vontade de viver com Margareth.
Mas a sua morte mudou tudo. Eu odiava o Gabriel
Alencastro, na verdade eu o invejava. Sei que inveja é uma
coisa nojenta, mas todo mundo sente, é irrefreável.
Comprei uma pistola com um silenciador, um dispositivo
xado na boca do cano da pistola para abafar o som do
disparo. Como disse, neste país você pode comprar tudo.

Li no jornal que Gabriel Alencastro participaria de uma


prova de equitação na hípica no sábado, ou seja, no dia
seguinte.

No sábado chequei se a minha pistola estava devidamente


preparada, vesti o meu melhor traje esporte e fui à hípica.
Apurei qual era a baia em que cava o cavalo de Gabriel. Eu
lera no jornal que antes da prova de equitação ele gostava de
car algum tempo a sós com o seu cavalo. “É uma forma de
comunhão”, dizia o crápula.

Era um alazão lindo. O animal que eu mais aprecio é o


cavalo. Gostaria de ter um. Ver aquele cavalo aumentou a
minha vontade de matar o Gabriel Alencastro, ou seja,
aumentou a minha inveja, e inveja, como todos sabem, é um
sentimento maior do que o ódio, maior do que o amor.

Fiquei escondido no fundo da baia. A nal, o crápula


apareceu.
“Alô, Pégaso”, disse ele fazendo um carinho na cernelha do
animal.

Dei um tiro na nuca do lho da puta. Depois dei outro na


boca, para ele car feio. Ah, a inveja…
CIBELE
Eu namorava Eliane, uma garota muito bonita, corpo lindo,
idade certa, mas tinha um problema. Não quero falar mal dela,
é uma boa pessoa, ingênua e não tem culpa — que palavra
horrível essa, culpa —, en m, ela não tem responsabilidade por
ser… ser…
Resumindo a história. Um dia Eliane me perguntou:
“Meu amorzinho, a Rapunzel é espanhola ou portuguesa?”
“Rapunzel? Rapunzel?”

“É, aquela princesa que prenderam num castelo. Castelos só


existem em Portugal e Espanha, não é verdade, amorzinho?”

Como demorei tanto tempo a perceber as limitações da


minha namorada? Confesso que não sou muito arguto, falta-
me certa sagacidade.
Então conheci Cibele. Eu queria namorar Cibele, mas ela
dizia que queria ser apenas minha amiga.
Ela era o oposto de Eliane. Falava sobre qualquer assunto.
Um dia eu lhe disse que gostaria de visitar a ilha de Brocoió.
“Já estive lá duas vezes. Na primeira vez, há muitos anos, a
ilha me impressionou pela sua beleza. Havia faisões e pavões
soltos no enorme casarão projetado pelo francês Joseph Gire,
mesmo arquiteto do Copacabana Palace. Um verdadeiro
palácio de conto de fadas. Voltei lá há dois anos. Não existiam
mais nem pavões nem faisões. Brocoió lamentavelmente está
abandonada. Dizem que há um projeto do governo para
recuperar a ilha.”
“Mas eu queria conhecer Brocoió, o meu pai falava muito
nessa ilha. Você vai comigo?”
Ela relutou um pouco, mas acabou concordando.
Quando chegamos à ilha, Cibele me levou para visitar o
antigo palácio do francês. “Nos áureos tempos”, disse ela, “o
som do grande órgão alemão no alto da escada de madeira
enchia os salões e era ouvido até na ilha de Paquetá. E dentro
dele ainda havia um vasto acervo de partituras clássicas que,
encaixadas num mecanismo do instrumento, eram executadas
automaticamente. E ainda há pinturas clássicas, muitas.”
Em frente a uma dessas pinturas, Cibele perguntou se eu
podia lhe emprestar algum dinheiro. Respondi que sim.
Quando perguntei qual a nalidade, ela disse que depois me
explicava.
“No casarão do subsolo ao sótão”, continuou Cibele, “há
outras surpresas: no andar inferior, um banheiro de praia,
usado após o banho de mar como entrada independente,
ostenta mosaicos com motivos árabes (precisando de reparos)
e até um bar. Ao lado dele, as enormes cozinha, copa e
despensa, com desenhos no piso. No hall principal, de pé-
direito duplo, a atração é a claraboia. A luz suave chega ao
salão de estar, que tem, de um lado, a sala de jantar e, de outro,
a de leitura. Os três cômodos têm boiseries (painéis de madeira
adornados por molduras) nas paredes e bonitos móveis de
época. Tudo em mau estado, é claro.”

Parou ao pé da escada.
“Mas, meu caro amigo, é no andar de cima, o dos quartos,
que está o ambiente de mais personalidade da casa: o banheiro
art déco da suíte do governador, com uma vista deslumbrante
para o Rio. A banheira, escavada num bloco maciço de
mármore de Lioz, domina o ambiente amarelo, com direito a
torneiras de bronze na forma de pássaros, in uência do art
nouveau. A suíte”, disse Cibele, “tem dois quartos e um
escritório, onde um jornalista político, Carlos Lacerda, adorava
despachar”.
Abri a torneira da banheira e não saiu qualquer água.

Perguntei a Cibele se ela estava gostando.

“Mais ou menos. Gostei muito da primeira vez, mas agora…”


Então caiu uma tempestade cheia de trovões e raios, uma
coisa linda o ribombar estrondeante dos trovões.

Eu disse para a Cibele: “Creio que devemos entrar no mar


sem roupas.”

“Nus?
“Sim”, respondi.

“Você não vai gostar de me ver nua.”


“Por quê?”

“Olha, eu não sinto vergonha de ser quem sou.”

“Nem tem motivos para isso.”


“Exatamente.”

Nesse momento um relâmpago cortou o céu, gerando uma


onda de choque sônica, que se propagou pela atmosfera. Eram
as reverberações do ribombar do trovão, uma coisa
deslumbrante.

“Algumas teorias cientí cas consideram”, disse Cibele, “que


essas descargas elétricas podem ter sido fundamentais no
surgimento da vida, além de auxiliar na sua manutenção. Na
história humana, foi possivelmente a primeira fonte de fogo,
fundamental no processo da evolução. Dessa forma, os raios
despertaram fascínio, sendo incorporados em inúmeras lendas
e mitos representando o poder dos deuses.”
“Vou amar ver você nua, Cibele.”

Ela deu uma gargalhada.

Cibele começou tirando a blusa e vi os seios. Eram um pouco


volumosos, pareciam sólidos. Pre ro mulheres de seios
pequenos, mas mesmo assim quei excitado. Tirei o meu
calção. Ela viu o meu membro ereto sem demonstrar surpresa.

“Tira o short”, eu pedi.


Cibele virou-se de costas para mim e tirou a short. A bunda
dela era muito bonita. Então ela virou-se de frente e, surpreso,
vi um pênis pequeno.
“Preciso fazer uma ablação peniana total, pênis, saco escrotal,
tudo, e depois uma neovaginoplastia.” Cibele sorriu. “Uma
bocetinha arti cial…”
Eu não sabia o que dizer. Não via os raios nem ouvia os
trovões. Eu estava, eu estava… pasmo.

“Meu nome era Sílvio. Mas Cibele já está registrado. Vamos


nadar?”

Cibele pulou no mar e saiu nadando.

Fiquei sentado na areia pensando em Eliane.


AMOR PROIBIDO
O nome da minha mãe é Eugenia Lobo. O meu é Flor Bela
Lobo. Quem escolheu foi meu pai. Ele era muito instruído,
sabia até latim. Explicou que eu me chamava assim por causa
de uma importante poeta portuguesa, que assinava Florbela,
como um nome só. Fucei na internet e vi que o nome dela era
exatamente igual ao meu, Flor Bela Lobo, e era lha de pai
desconhecido, como eu, mas o meu pai só é desconhecido na
certidão de batismo. Eu o vejo sempre que ele visita a minha
mãe, o que ocorre pelo menos uma vez por semana.

Meu pai me explicou que não podia me reconhecer como


lha, pois era padre e não queria ter que renunciar, primeiro
porque sua fé mantinha-se inabalada e ele sabia que Deus o
perdoara por ter rompido, apenas uma vez, o seu voto
eclesiástico, e, em segundo lugar, ele pretendia um dia ser
bispo, e como bispo teria ainda melhores condições de oferecer
a mim, e à minha mãe, uma vida mais confortável.
“Além do mais”, continuou meu pai, “Jesus Cristo jamais
proferiu algo contrário ao casamento de religiosos, e alguns de
seus apóstolos tiveram esposas e lhos. A Igreja Católica
durante um longo tempo considerou aceitável a ordenação de
homens casados. No século IV, por exemplo, bispos como
Gregório de Nazianzo e Gregório de Nissa eram casados, e 39
dos papas tiveram esposa e lhos. Essa situação devia ter
permanecido até hoje, minha lha querida, e eu teria me
casado com a sua mãe.”

Apurei também que a tal Flor Bela, que assinava como


Florbela Espanca, cometera suicídio aos 36 anos de idade. Ou
seja, em comum tínhamos apenas o nome. Eu não escrevia
poemas e certamente nunca cometeria suicídio.
Meu pai, a nal, foi sagrado bispo. Minha mãe fez um
banquete na nossa casa, bebemos vinho, e creio que o meu pai
cou ligeiramente embriagado; ele falou ainda mais do que o
normal.

“São Pedro, para o cristianismo católico”, disse ele, “foi o


primeiro bispo e o primeiro papa da Igreja de Jesus Cristo em
Roma. O episcopado é o último e supremo grau do Sacramento
da Ordem. O bispo é também a autoridade máxima de uma
circunscrição eclesiástica. Autoridade máxima, entenderam?”
“Sim”, respondemos eu e a minha mãe.
“Os pré-requisitos para um padre ser bispo são: fé sólida
eminente; piedade; zelo; boa reputação; ter ao menos 35 anos
de idade; ser sacerdote ao menos há cinco anos; e ter mestrado
ou doutorado em área teológica. Os bispos católicos apõem ao
respectivo brasão de armas a cruz episcopal e o capelo verde de
doze borlas.”

Orgulhosamente o meu pai tirou de uma caixa que carregava


quando chegou em casa o que ele chamou de “meu capelo”, um
grande chapéu anguloso adornado por borlas.

 
Notei que o meu pai e a minha mãe envelheciam de maneira
diferente. Ele tinha setenta anos e ela, cinquenta e cinco, mas
parecia mais velha do que ele. Creio que as honrarias e
reverências rejuvenesciam o meu pai.
Terminei o curso de engenharia que fazia na universidade e
arranjei um emprego.
Minha mãe passava o dia inteiro sozinha. Não gostava de ler,
nem de televisão.

Um dia ela me perguntou:


“Sabe como eu conheci o seu pai? Na missa. Desde o
primeiro dia, quei impressionada com a beleza dele. Se é
bonito ainda hoje, imagina quando moço. Um dia, no
confessionário, eu disse a ele: ‘Eu estou apaixonada, apaixonada
por um padre’. ‘Um padre?’, ele perguntou. ‘Sim’, respondi, ‘e
esse padre é o senhor’. Ele cou algum tempo em silêncio e
depois mandou-me rezar três padres-nossos e três ave-marias,
que eu seria perdoada. Foi assim, minha lha, que tudo
começou. Os seus avós haviam morrido, deixaram-me bons
rendimentos e esta bela casa. Até você nascer, o Carlos vinha
aqui todos os dias, e nós…nós…”

Minha mãe cou calada.


Quando voltou a falar, sua voz soava triste.

“Bem, depois você nasceu, cresceu, ele passou a vir aqui


apenas uma vez por semana e agora nem uma vez por mês…”

“Mamãe, ele, como bispo, tem um palácio para morar,


múltiplas atividades diárias…”
“Não, minha lha… Quando me olho no espelho e vejo uma
velha, enrugada, feia…”
“A senhora tem recursos, por que não faz uma cirurgia
plástica?”

“No corpo inteiro? Você precisa me ver nua. Vai morrer de


pena.”
Notei pela primeira vez que a minha mãe parecia uma velha
encarquilhada.

“Minha lha”, ela disse com uma voz em que lamúria e ódio
se combinavam, “o seu pai tem uma amante jovem”.

“Mamãe, isso é uma suposição sem fundamento, meu pai…”

Minha mãe me interrompeu: “Na última vez em que ele


esteve aqui, quando foi tomar banho, ele sempre tomava banho
nos dias calorentos, lembra? Quando ele foi ao banheiro eu
revistei os seus bolsos e encontrei na carteira a foto de uma
mulher jovem em cujo verso estava escrito, ‘Carlos, meu amor,
espero que o ardor da nossa paixão nunca termine. Mara.’”

“Você não vai brigar com ele, vai?”


“Não, claro que não.”

Papai almoçou com a gente. Ele estava alegre, brindou a


minha mãe com uma bela saudação. Minha mãe sorriu feliz.

No dia seguinte eu vi na televisão que o bispo da cidade


amanhecera morto em sua mansão. Os peritos da polícia
diziam que ele havia ingerido alguma substância venenosa.
Suicídio?

Eu e minha mãe não fomos ao funeral do papai.

Até hoje a morte do bispo, a morte do meu pai, permanece


um mistério.

Minha mãe fez operação plástica no rosto. Remoçou, cou


muito bonita.
O PRESENTE DE NATAL
“Misi a”, disse mãe Zeférina das Dores, “o Capeta jogou uma
praga nos home, mardição antiga, desde o tempo do Adão, que
comeu a maçã e deixou os restos para a Eva. Até hoje os home
têm o Diabo no corpo e não adianta hóstia, água benta, reza,
subir as escada da Penha de joelho, Lúcifer não vai embora, ele
tá na carne, no sangue e nos osso dos home. E o seu home, eu
tô sentindo na mão ao segurar o anel dele, o seu home tá
endemoniado.”
“Mãe Zeférina, o que devo fazer?”
Mãe Zeférina abriu os braços, rodopiou e caiu dura no chão.
Mas logo abriu os olhos, se levantou e disse:
“Misi a, con a em mim. Sabe de onde eu vim? De Codó, lá
no Maranhão, donde tem mais terreiro que no resto do mundo.
Meu mestre foi o Bita. Então presta atenção: tive uma
revelação, vi o Mistério e a Vontade do Pai. Tenho que falar no
seu ouvido.”
Mãe Zeférina, com um bafo ao mesmo tempo quente e frio,
segredou algo que só a mulher ouviu, algo que fez balançar o
pendente de brilhantes em sua orelha.
A mulher pagou e saiu do barraco da mãe Zeférina no morro
do Pavão. Na porta, o seu motorista particular, um homem
grande, troncudo, mal-encarado, a esperava. Ele segurou a
patroa pelo braço e desceu o morro. Nem assaltante, nem
mendigo, nem tra cante teve coragem de abordá-los.

O carro entrou na garagem de um prédio na praia do Leblon.


A mulher, que se chamava Lina, entrou no seu apartamento,
jogou a bolsa em cima de uma mesa e sentou-se numa
poltrona. Estava cansada. Na véspera fora a uma cartomante
que, depois de colocar as cartas sobre a mesa, a rmou “posso
lhe desvendar o passado, o presente e o futuro”, e Lina
respondera, “quero apenas o futuro”. A cartomante lhe dissera o
mesmo que a macumbeira, em outras palavras, evidentemente.
No dia de Natal, elas previram que Paulo, o seu marido, ia
cortar o seu pescoço com uma navalha.
Lina e Paulo estavam casados há sete anos. Comemoravam o
aniversário de casamento no dia 25 de dezembro. Sete anos,
como disse a mãe Zeférina, mata o amor, o número sete é
maldito. Já a cartomante, que era mais loquaz, dissera que o
número sete era poderoso. Como disse Pitágoras, o pai da
numerologia, era um número mágico, místico, indicava o
processo de passagem do conhecido para o desconhecido.

Lina e Paulo tinham vários convites para o dia de Natal, mas


ambos decidiram passar em casa juntos, apenas os dois.

O dia 25 chegou. Lina deixou as empregadas irem para as


respectivas casas comemorar com as suas famílias. O motorista
também foi dispensado. Ficaram apenas Lina e Paulo. Quando
ceavam, Lina notou que Paulo tinha um ar misterioso. Ele
supõe que eu não sei o que vai fazer, pensou ela acariciando a
faca que tinha na mão.
“Tenho um presente para você”, disse Paulo. “Fecha os olhos.”

Lina ngiu que fechava os olhos. Quando Paulo se


aproximou, ela en ou a faca em seu peito. Ele caiu no chão. O
colar que Paulo tinha na mão ao bater no assoalho se rompeu e
as pérolas pularam, tilintando ao lado do morto.
ÓPERA, FODER E SANDUÍCHE DE MORTADELA
Sou do tempo em que as pessoas gostavam de ópera, de foder
e de sanduíche de mortadela. Eu me lembro de quando eu era
claquer, termo francês que signi ca aplaudir, em português é
claquista, aquele sujeito que cava na galeria do eatro
Municipal durante a representação de uma ópera para bater
palmas no momento em que o chefe da claque mandasse. Eu
tinha quatorze anos, mas parecia ter vinte, e o seu Marcondes,
o chefe da claque, me viu na porta do Municipal lendo os
cartazes e me perguntou “você gosta de ópera?”. “Muito,
muito.” Ele então me chamou para participar da claque. Seu
Marcondes me dava não me lembro quantos mirréis, era assim
que eu chamava o dinheiro naquela época, o dinheiro vive
mudando de nome, mas eu dizia alguns mirréis por cada vez.
Eu não me importava com o dinheiro apesar de não ter
dinheiro nem para ir ao cinema poeira, mas se eu tivesse
dinheiro ia assistir ópera. Eu era muito feliz, confesso.

Com o surgimento da televisão, o termo claque passou a


denominar também aqueles contratados para aplaudir ou rir
durante programas de auditório ou humorísticos. E as pessoas
que assistem televisão, na maioria idiotas, acreditam que são
pessoas rindo.
Ópera? Acho que não tem nem mesmo no Scala de Milão.
Outro dia eu li no jornal um anúncio da Carmen, de Bizet.
Fiquei na maior alegria. Mas li errado, não enxergo muito bem,
na verdade estava escrito Carmen de Bidê. Uma “sátira
pornográ ca”.
Sanduíche de mortadela? Você entra em qualquer botequim,
botequim não, botequim também acabou, tem esses bares, na
maioria deles você é atendido no balcão, e eles só vendem
hambúrgueres, cheeseburguers e outras merdas desse tipo.
Média com pão e manteiga? Média, média? O garçom
perguntou, o que que é isso?
Foder? As pessoas não fodem mais, como diz Evaristo, um
amigo meu, acabrunhado, infeliz, pois o lho dele que se
chamava Antônio fez uma operação e hoje se chama Antônia.
A mãe de Antônia sabia desde cedo que o lho se sentia uma
lha, mas escondia do marido. Mães são assim, compreendem
os lhos, amam os lhos. Os pais, como todos os homens, são
uns cretinos. Eu conheci a mãe Jerusa, anos atrás, e a lha
Antônia, recentemente. Ótimas pessoas. Antônia era uma
jovem inteligente, sensível, generosa e muito bonita. Foi uma
pena Jerusa ter morrido.

Hoje, diz o Evaristo, só os pederastas fodem, eles estão saindo


do armário aos borbotões, dizem que metade da população do
mundo é de lésbicas, gays, transexuais e por aí afora.

“Evaristo”, eu digo, “as pessoas têm o direito de ser aquilo que


elas querem ser”. Ele responde, “e o sujeito que quer ser ladrão
tem o direito de ser ladrão?”. “Ser ladrão é contra a lei.” “O meu
lho devia estar na cadeia”, ele grita e ca sem ar, tem uma
espécie de ataque e cai no chão.

Estávamos em um botequim. “Chamem uma ambulância”,


gritei, “chamem uma ambulância!”.

Mas quando chegaram, os enfermeiros constataram que o


Evaristo estava morto.
O Evaristo era viúvo. Quando a mulher dele morreu, o lho
Antônio tinha dez anos. O sonho dele era que o lho mais
tarde se casasse e lhe desse uma porção de netos. Ele, que a
vida inteira tivera apenas um lho, queria ter muitos netos. No
mínimo oito, dizia. Então eu podia imaginar o sofrimento de
Evaristo quando descobriu que o lho ia virar lha e não lhe
daria netos.
A morte do Evaristo foi uma lição para mim. Acabou a
ópera? Muito bem, não vou me estressar por isso. Posso
comprar mortadela num desses mercados espalhados pela
cidade — já repararam como tem mercados e farmácias nesta
cidade? Outro dia passei numa rua, um quarteirão apenas, e
tinha seis farmácias —, mas, como eu dizia, posso fazer o
sanduíche em casa. Dei adeus a óperas ao vivo, as que eu mais
conhecia e que possuía em discos, como La Traviata, Rigoletto,
Aida, Nabuco, de Verdi; Don Giovanni, A Flauta mágica, de
Mozart; Carmen, de Bizet; Norma, de Belini; Gianni Schicchi,
de Puccini; Orfeu e Eurídice, de Gluck; Salomé, de Strauss,
estão juntas, en leiradas e empoeiradas na estante. Dei adeus a
todas elas.

Agora, dar adeus às mulheres eu não dou, pre ro morrer do


que deixar de foder. Isso de que só os pederastas fodem é papo
furado do Evaristo.
OUTRO ANÃO
Acho que já contei para alguém que quando eu tinha nove
anos a minha mãe me perguntou o que eu queria de presente
de aniversário. Eu respondi que queria um anão.
Não ganhei o anão de presente.

Na minha história, quer dizer, na história da minha vida tem


sempre um anão. Claro que não é sempre o mesmo. Um vai
embora e logo depois aparece outro.
Cuidado com essas histórias de anões. Me contaram que
havia um lugar onde anualmente ocorria um concurso
chamado arremesso de anão, quem arremessasse o anão mais
longe ganhava um prêmio. Isso é mentira. Tudo que as pessoas
dizem, ou quase tudo, é mentira. É mentira também o que você
ouve no rádio, na televisão, lê no jornal, na revista, no zapzap, é
tudo mentira. Mas esta história que vou contar é verdadeira.
Como disse Buda, uma mentira pode salvar seu presente, mas
condena seu futuro. Todo mundo sabe que o verdadeiro nome
do Buda é Sidarta Gautama, ele foi um príncipe da região do
atual Nepal que se tornou professor espiritual, fundando o
budismo. Buda signi ca “o desperto”.
Mas deixem eu contar a história do meu último anão.
Ele era preto. Mas antes de falar do meu anão preto eu vou
falar um pouco sobre a história dos anões. Isso todo mundo
sabe, está em todas as redes sociais, mas eu vou repetir. O saber
não ocupa lugar, como disse um sábio cujo nome esqueci. Eu
sei que me chamam de prolixo, abundante. De prolixo eu não
me importo, mas quando me chamam de abundante co
irritado, detesto essa palavra.
A crença de que os anões surgiram dos ossos e do sangue do
gigante Blain (de uma lenda germânica) foi sem dúvida a mais
popular de todas; até o século XVIII, na Islândia, os
camponeses mostravam rochedos e colinas a rmando, com a
mais absoluta convicção, que lá moravam verdadeiros
formigueiros de pequeninos anões do mais agradável aspecto.
Eram os mineiros os mais afeitos a tais crenças, pois,
trabalhando sob a terra, estavam no território em que se
acreditava habitarem esses pequeninos seres, que eram,
igualmente, os senhores dos metais; por isso dizia-se que,
quando um mineiro encontrava um anão nas galerias
subterrâneas, era sinal de que um bom e belo “ lão” estava
próximo, pois pensava-se que os anões só trabalhavam onde a
terra escondia preciosos tesouros. Eu, prolixo? Claro que não.
Eu vivo passeando nas ruas, adoro andar nas ruas, de dia e de
noite, dizem que a cidade está cheia de malfeitores que
assaltam as pessoas, mas nunca fui assaltado e também nunca
vejo anões.
Não se vê anões nas ruas porque eles vivem numa pequena
vila da periferia, não vou dizer o nome nem onde ca, e de lá
os anões não se afastam. Eles executam várias tarefas, uns são
tapeceiros, outros montam violões, violinos, violoncelos etc.
Um vendedor de origem cigana vende para os anões as cordas
e as madeiras para fazer esses instrumentos. Para executar esse
trabalho os anões têm uma o cina. Eles também encadernam
livros, um trabalho primoroso, tenho vários livros
encadernados pelos anões e sempre que uma pessoa vê um
deles diz “que encadernação linda, quem foi que fez?”.
Respondo que não sei. Outra coisa que eles fazem: sapatos, tão
bem-feitos que o comerciante que fornece a matéria-prima e
faz as encomendas vende os sapatos como se fossem
importados da França. Eu não disse que as pessoas são
mentirosas? E desonestas, principalmente.

Eu tenho uma namorada chamada Lenora (o pai dela era


louco pelo Edgar Allan Poe, batizou-a com o nome do poema
“Lenora”, de Poe, e sempre o recitava para a lha; de tanto ouvi-
lo, ela acabou decorando e repetia para mim “ah! Foi partida a
taça de ouro, o espírito fugiu” etc.). Lenora me pede sempre
que eu toque violão e cante para ela antes de irmos para a
cama. Modéstia à parte (desculpem este clichê), eu canto e toco
violão muito bem. Mas a minha namorada é muito ciumenta e
um dia teve um acesso de ciúme, dizendo que me vira na rua
de braço com outra mulher, pegou o violão e quebrou-o
pulando em cima dele de pés juntos. Isso foi de noite. No dia
seguinte, de manhã, ela disse que estava arrependida, que a sua
psicanalista a havia alertado para que se controlasse, que não
deixasse de tomar o remédio que receitara, que ela se esquecera
de tomar a pílula, en m, pediu que eu voltasse a tocar violão e
cantar para ela.
Procurei o Bauduco e pedi a ele que me arranjasse um violão
igual ao que me vendera.

“Chefe”, ele disse, “aquele violão não vende em loja, não é


fácil encontrar, não é um Tagima, um Hofma, um Eagle, uma
porcaria dessas, é uma peça especial, feita sob medida, chefe,
sob medida”.
“Pago o que for preciso.”

“Vou falar com o anão”, disse Bauduco.


“Que anão? Que anão?”
“Calma, chefe, maneira, hoje mesmo lhe dou uma resposta.”

No dia seguinte o Bauduco me procurou.

“Chefe, o anão disse que não vende o instrumento dele para


qualquer um. Ele quer conhecer o senhor.”

“Por que não disse que era para você?”

“Porque ele só faz um violão para cada pessoa, e o meu, sem


ele saber, eu vendi para você e sua namorada destruiu.”
“Disse que eu pago o que ele quiser?”

“Disse, chefe, amanhã venho aqui com o Damião. É o nome


do anão. Anão também tem nome, o senhor não sabia?”

“Sei, sei, eu tenho pressa, Bauduco, a minha namorada…”


“Maneira, chefe, amanhã eu venho aqui com o Damião.”

Nessa noite eu não dormi. A minha namorada, Lenora,


chorou dizendo-se arrependida e depois me agarrou como
uma sanguessuga, creio que era uma maneira de pedir perdão.

No dia seguinte o Bauduco apareceu com o… Esqueci o


nome dele.
O anão carregava nas costas um pacote que era do seu
tamanho. Ele era preto e careca. Eu nunca havia visto um anão
preto. Ah, tinha visto sim, seu nome era José, mas era chamado
de Zé.

“Damião”, disse Bauduco, “esse é o seu Henrique, que quer


comprar o seu violão”.
O anão me olhou com um ar inquiridor.

“Quero ver ele tocar. Eu não vendo para qualquer um, quero
ver ele tocar”, disse o anão com voz rouca.
Ele tirou o violão do pacote que carregava nas costas e disse:
“Toca, anda, toca, quero ouvir.”

O violão era lindo. A madeira era diferente, parecia ser feito


de uma celulose e uma lignina diferente da dos outros violões
que eu tivera. Confesso que quei nervoso. Peguei o violão,
pigarreei, tive vontade de tirar meleca do nariz, senti coceira
no pescoço. Não sei quanto tempo quei nesse estado de
ânimo; a nal, me enchi de coragem e comecei a tocar. E depois
passei a cantar, da maneira que eu canto para Lenora.
Quando acabei, o anão disse:

“Promete que vai cuidar bem dele.”

“Seu, seu…”

“Damião”, disse Bauduco, me socorrendo.

“Seu Damião, prometo, juro que vou cuidar muito bem dele.”
Nem me lembro mais da quantia que paguei. Assinei um
cheque, cumprimentei o anão, dei um abraço no Bauduco.

Quando Lenora chegou da faculdade (ela estuda a tarde


inteira), eu peguei o violão e cantei para ela. Depois zemos
amor.

Bendito violão, bendito anão.


O MORCEGO, O MICO E O VELHO QUE NÃO ERA
CORCUNDA
Eu estava na la do supermercado para pagar a conta dos
artigos que havia comprado — um pacote de macarrão,
duzentos e cinquenta gramas de lentilha para fazer sopa e
bananas para os dois Zés.
Então um sujeito passou na minha frente e a moça da caixa
disse, apontando para mim:
“Este senhor está na sua frente.”
Nos supermercados e nas farmácias as pessoas que trabalham
na caixa são sempre mulheres. Por que será? As mulheres são
mais atentas, cuidadosas? Mais honestas? Recebem salários
menores do que os dos homens?

O homem que havia tentado passar na minha frente disse:


“Este ancião? Com meia dúzia de bananas para pagar? Eu
estou com este carrinho cheio de mercadorias e este velho
corcunda…”

Sou velho, mas não sou corcunda.


A moça do caixa chamou o segurança. Então o sujeito cou
quieto. Ele era agressivo com velhos e mulheres, mas ao ver o
segurança cou acovardado. Esse cara com o carrinho cheio de
compras tinha um bigodinho à Clark Gable, ninguém hoje
sabe quem foi Clark Gable, um ator de cinema, má gura, que
estuprou Loreta Young, atriz, mas hoje também ninguém sabe
quem foi Loreta Young.
Repito: sou velho, mas não sou corcunda.
Chegando em casa, separei as bananas para os dois Zés. Um
só comia banana muito madura e de madrugada, quando todo
mundo estivesse dormindo e as luzes, apagadas. O outro comia
a qualquer hora.
Moro num sobrado que ca perto da mata. Uma rua antiga
cheia de postes e os.

O Zé Mico vem pelo o. Ele tem o rabo muito comprido e


quando me vê faz uma espécie de saudação com o rabo, como
se dissesse bom-dia.
O Zé Morcego só vem de noite. E a banana tem que estar
muito madura, sabe como é, com a casca escura em algumas
partes. Ele tem os dentes ninhos e os crava apenas na parte
escura.
Tem gente que odeia morcego. Dizem que ele chupa sangue.
Isso é uma burrice. A maioria dos morcegos é frugívora. Come
frutas.
Eu tenho uma revista que fala de morcegos. Diz a revista que
o morcego é um animal mamífero da ordem Chiroptera, cujos
membros superiores (braços e mãos) têm formato de asas
membranosas; são os únicos mamíferos naturalmente capazes
de voar. O meu morcego é frugívoro, ou seja, alimenta-se de
frutas. Ele não é um morcego hematófago. Os frugívoros, como
o meu, contribuem substancialmente para a estrutura e a
dinâmica dos ecossistemas, pois atuam como polinizadores,
dispersores de sementes. O cocozinho deles é uma sementinha.
Quando cai na terra nasce uma árvore frutífera.
O Zé Mico vem pelo o. Quem também vem pelo o às vezes
é um ouriço. Vem em paz, pois os seus espinhos não estão
eriçados. O meu ex-vizinho Otávio, que é homossexual, talvez
por isso seja tão simpático e culto, diz que o ouriço tem cerca
de seis mil espinhos aguçados e com cerca de dois a três
centímetros, que cobrem o dorso e os ancos do seu corpo.
Ainda bem que o ouriço não se irrita comigo.
Mas voltando aos meus amigos. Tenho três amigos: o Zé
Morcego, o Zé Mico e o Otávio. Otávio mora na minha casa
desde que foi demitido da escola onde ensinava por ser
homossexual. Neste mundo nojento homossexuais e mulheres
são discriminados, vítimas de uma intolerância asquerosa. Está
sendo difícil para Otávio encontrar outra escola onde ensinar.
Enquanto isso ele me dá aulas de português e história, é
fundamental saber português e história. Ele é uma boa pessoa.
Além disso, gosta de morcegos e de micos.
Velho, mesmo não sendo corcunda como eu, não arranja
amigo nem namorada. Eu trabalhava numa revista
especializada em armas, revólveres, pistolas, carabinas. Muitas
vezes o anunciante, principalmente o de armas manuais, nos
dava uma amostra de presente. Eu quei com uma Taurus,
uma pistola que pesa quase um quilo. Andar com ela é difícil,
ainda mais para um velho como eu. Repito, sou velho, mas não
sou corcunda. Atirar com a Taurus .45 também é difícil. Ela,
quando dispara, dá um coice que chega a machucar as mãos.
Coice não é só de cavalo, é também recuo violento de arma de
fogo quando detona. Quando digo machucar as mãos é porque
para atirar com qualquer arma, principalmente um trabuco
como a Taurus .45, você tem que atirar com as duas mãos. Essa
coisa de atirar com apenas uma das mãos é outro blablablá do
cinema americano.
Mas, en m, resumindo essa coisa que eu estou contando, um
dia eu estava em casa quando ouvi uma voz na rua gritando
“bichinha, bichinha”.

Fui à janela. Um sujeito de cabelo tão preto que parecia


pintado ao me ver disse:
“Diz à bichinha que quero falar com ela.”

“Bichinha? Que bichinha? O senhor deve estar enganado.”

“Bichinha, velho gagá, é esse pederasta chamado Otávio que


mora na sua casa.”
Saí da janela. Otávio estava em pé no meio da sala.

“Desculpa, seu José”, ele disse.

Acho que eu não havia dito qual era o meu nome. É José.
Meu nome é José.
“Otávio, quem é esse maluco?”

“Ele… ele…”

“Você o conhece?”

“Ele é… era… era… meu namorado. O nome dele é Agnaldo.


Eu briguei com ele. Se eu dava pouco dinheiro, ele batia em
mim… Mas agora, desempregado, como posso dar dinheiro a
ele?”

Fui até a janela.

“Seu Agnaldo”, gritei, “é melhor o senhor ir embora, do


contrário vou chamar a polícia”.
“Essa bicha é minha, velho gagá lho da puta, essa bicha está
me devendo dinheiro, ouviu, velho gagá?”

Fechei a janela.

Liguei para a polícia. Contei o que estava acontecendo.


“Como é o seu nome?”
“José de Matos Soares.”

“Seu José, nós estamos atendendo dois assassinatos, vinte


furtos, cinquenta arrombamentos, cento e vinte, ouviu bem,
cento e vinte assaltos na rua, e o senhor acha, seu José, que nós
temos tempo de atender o seu pedido? Um homem gritando na
rua? Seu José, passe bem.”
E o tira desligou na minha cara.

Voltei à janela.

“Seu Agnaldo, o policial da delegacia me disse que vai enviar


uma patrulha, o senhor vai ser preso.”

Imediatamente o seu Agnaldo sumiu.

Otávio estava sentado numa poltrona da sala, com um ar


abatido.
“Desculpe, seu José”, ele disse.

“Você não tem motivo para se desculpar. Fica tranquilo.


Onde o tal de Agnaldo mora?”

Otávio disse o endereço. Sou velho, mas não sou corcunda


nem sou demente. Depois de velho ou sua memória piora ou
você ca com uma memória de elefante. É o meu caso.

Notei que Otávio estava chorando. Os homossexuais,


principalmente os masculinos, sofrem muito. Li num livro que
ninguém sabe quando uma mulher é homossexual, a não ser
que ela queira. Uma mulher pode viajar com outra mulher, as
duas sozinhas, pode morar com outra mulher, as duas
sozinhas, todo mundo acha natural. Dois homens viajarem
sozinhos? Todo mundo ca com uma pulga atrás da orelha.
Ninguém mais usa essa expressão, uma pulga atrás da orelha, é
antiga, signi ca “ car descon ado.” Aliás, hoje as pessoas não
sabem nada, o Otávio me disse que o número de alunos de
literatura na faculdade cada ano ca menor. No último ano em
que lecionou, havia na sua turma apenas doze alunos. As
pessoas escrevem nos celulares meia dúzia de palavras.
Ninguém tem lápis, caneta, computador, máquina fotográ ca,
nada disso, elas têm celulares.

“Otávio”, eu disse, “você precisa espairecer, vai dar uma volta,


toma um cafezinho naquele lugar que também vende doces, e
depois vem para casa. Mas não passa na rua daquele tal de
Agnaldo”.
“Prometo que não passo na rua dele.”

Às seis horas da tarde Otávio ainda não havia voltado do


cafezinho. Comecei a car preocupado. Fui para a cama
preocupado. Dormi muito mal, velho dorme mal, todo mundo
sabe. Repito: sou velho, mas não sou corcunda.

De manhã, fui até a confeitaria que vende doces e serve


cafezinhos puros ou com leite e perguntei se o seu Otávio tinha
aparecido.

“Sim”, respondeu o garçom, “ele esteve aqui com um amigo”.


“Que amigo?”

“Não sei o nome.”

“Como é que ele é: branco, preto, chinês?”

“Branco de cabelo preto comprido. Já estiveram aqui juntos


outras vezes.”
Pensei com os meus botões, o Otávio é um pateta. Aliás, um
dia eu perguntei ao Otávio qual era a origem desta expressão,
pensar com os meus botões, e ele respondeu que ela se
originou provavelmente porque os botões servem para
esconder a partes íntimas das pessoas. Eu acho que a frase
surgiu antes do fecho éclair.
Fui para casa, anoiteceu, deitei, dormi mal. Otávio não
apareceu.

Fui à polícia.
“Qual é o nome do seu amigo?”
“Otávio Cromildo.”

O policial olhou o computador. De onde estava eu não via a


tela.

“Otávio Cromildo. Está no necrotério, aguardando autópsia.”


“Ele está morto?”
“Autópsia só é feita em cadáver. Claro que está morto.”

“Onde é o necrotério?”
O policial me deu o endereço.
Fui ao necrotério.

“Otávio Cromildo?”, perguntou um sujeito de avental azul


sujo. “Está na geladeira.”

“Na geladeira?”
“Sim, na geladeira. Sabe quantos cadáveres estão na geladeira
aguardando a autópsia? Mais de cinquenta. E esse número
aumenta todo dia, esta cidade está cheia de criminosos. O
bandido mata para roubar um celular, mata para roubar a
carteira do pobre-diabo que está andando de noite na rua.”
“E o meu amigo Otávio Cromildo?”
“Não sei quem matou o seu amigo. Ele escreveu “bichinha”
com tinta vermelha na testa do seu amigo. Brincadeira idiota.”
“Bichinha?”
“Isso. Bichinha.”

 
Fui para casa. O Zé Mico já estava no o perto da janela. Dei
uma banana para ele. Coloquei a banana madura num lugar
escuro, onde o Zé Morcego gostava. Depois abri a gaveta e
peguei a minha Taurus.
Eu sabia onde o Agnaldo morava. Num sobrado de quatro
andares. Ele morava no quarto andar. Não tinha elevador. Subi
pelas escadas, a Taurus no cinto, debaixo da blusa.
Bati na porta do Agnaldo. Ele abriu.

Entrei e dei um tiro na cabeça dele. Depois outro tiro, no


peito.

Desci e fui para casa.


Minha mão cou doendo uns dez dias. Aquela Taurus
matava, mas era horrível para quem atirava.
O MORCEGO, O MICO E O VELHO QUE NÃO ERA
CORCUNDA – PARTE II
Depois que matei o homofóbico, tomei duas decisões:
Primeira: não mataria mais ninguém. Não que eu sentisse
remorso, quem maltrata homossexuais e mulheres não merece
viver. Mas porque matar alguém, além de dar muito trabalho,
faz você correr riscos, alguém pode querer se vingar, você pode
ser preso e condenado. (Não sei se estou falando a verdade,
acho que mataria, sim.) Escondi a Taurus num lugar, num
lugar… digamos, recôndito, que depois de algum tempo seria
esquecido por mim. (Claro que não esqueci. Sou velho, mas
não sou corcunda e tenho memória de elefante. Acho que já
disse isso.)

Segunda decisão: meus únicos amigos seriam o Zé Mico e o


Zé Morcego. Sim, eu sei que o Zé Morcego é muito retraído e
tem hábitos noturnos que o tornam ainda mais reservado. Mas
sei também que ele gosta de mim e sabe que eu gosto dele.
Já disse que sou velho, e um velho, mesmo não sendo
corcunda, nunca arranja uma namorada. Mas um dia… um dia
aconteceu algo fortuito. Creio que nunca usei essa palavra
antes. Fui ao dicionário, nunca uso esse livro velho e bolorento,
e achei um monte de sinônimos: incalculável, intempestivo,
ocasional, episódico, impensável, impremeditado, adventício,
impensado, súbito, acidental, casual, fortuito, surpreendente,
extraordinário, extemporâneo, imprevisto, inopinado,
repentino, subitâneo…
Caramba! Bem que o Otávio me havia dito que a nossa
língua, a língua portuguesa, era uma das mais ricas do mundo,
inclusive tinha palavras que não existiam em nenhum outro
idioma no mundo, como saudade, feitiço e outras que não me
lembro.

Bem, vamos voltar para o fortuito.


Eu estava andando pela rua e uma mulher me interpelou. Ela
devia ter mais de trinta, mas ainda não passara dos quarenta.
Era bonita, loura (devia pintar os cabelos), olhos azuis, altura
mediana e estava muito bem-vestida.
“Cavalheiro”, disse ela, “o senhor sabe onde ca a agência de
banco mais próxima?”

“A senhora entra na primeira rua, à esquerda. O banco ca


logo a seguir.”
“Muito obrigado, senhor…”
“José. Meu nome é José.”

“Muito prazer, senhor José. O meu é Maria João.”


Ela me estendeu a mão. Apertamos as mãos. A mão dela
estava quente. As minhas estão sempre frias. Seja verão ou
inverno. Sou muito friorento. Acho que também já disse isso.
“Mas antes, senhor José, eu queria tomar um cafezinho. Sei
que vou car muito tempo no banco e antes…”

“Tem um café muito bom aqui perto. Vou levar a senhora.”

Na verdade era uma confeitaria. Acho que já falei que os


botequins acabaram, os armazéns, os açougues. Mas essa é
outra história.
Sentamos numa mesa da calçada. Eu queria entrar, minhas
mãos estavam geladas. Já disse, sou velho, não sou corcunda e
tenho memória de elefante, mas sou muito friorento.
Ficar na mesa da calçada tinha uma vantagem. Eu podia
olhar as mulheres que passavam. Gosto de olhar as mulheres
andando. Paradas também. Gosto do Zé Mico e do Zé
Morcego, mas gosto também de mulher.
As mulheres que passavam na calçada eram, na maioria,
obesas. Li não sei onde que esse problema era universal.

O café estava muito bom.


Dona Maria João tocou de leve no meu braço.

“Seu José”, ela disse, “eu quero lhe pedir um favor”.

“Terei o maior prazer em atendê-la, dona Maria João.”


“Não precisa ser tão formal, senhor José. Diga apenas Maria
João.”

“Muito bem”, eu disse. “Maria João, pode tirar o senhor da


frente do meu nome.”

Sou velho, mas não sou corcunda nem tímido com as


mulheres. Ainda mais as bonitas, como a Maria João.
Ela apertou o meu braço com mais força.

“Eu queria que o senhor, digo, você fosse ao banco comigo.


Vou retirar da minha conta uma grande quantia e tenho medo
de andar sozinha com a bolsa cheia de dinheiro.”

Evidentemente respondi que sim, teria o maior prazer em


ajudá-la.

Entramos no banco.
A Maria João foi em direção a um dos caixas.

“Por favor, José, me espere aqui”, disse ela, ainda distante do


caixa.
Embora velho, ouço cada vez melhor, tenho um ouvido de
elefante.

Ouvi o caixa perguntar a Maria João:


“Dona Elizabeth Coimbra?”

“Sim”, respondeu a Maria João.

“E aquele lá atrás é o seu marido?”

“Sim”, respondeu Maria João, “o doutor Ernesto Coimbra. Ele


tem di culade de locomoção, por isso está sentado lá. Está aqui
a cópia da identidade dele”.

Vi o cara me olhando de alto a baixo de onde estava.

“A senhora vai levar essa quantia toda em dinheiro?”


“Sim, em dinheiro, por favor.”

“Não tenho esse dinheiro aqui, vou ter que ir ao cofre, espere
um momento”, disse o caixa.

Maria João olhou para mim e sorriu. O sorriso dela era


bonito. Ela era toda bonita, e eu posso ser velho, mas não sou
corcunda nem tenho di culdade de locomoção.
Fiquei triste por ter que prejudicar daquela maneira uma
mulher tão bonita.

Quando o guarda de plantão no banco, todo banco tem um


guarda armado no local onde cam os guichês, agarrou Maria
João, ou seja lá que nome ela tivesse, pelo braço dizendo que
ela estava presa, o sorriso dela desapareceu. Mas ela continuava
bonita.

Será que na cadeia ela ia car obesa?


O ESCORPIÃO E OUTROS ANIMAIS
Quando eu era pequeno, gostava de ir escondido da minha
mãe ao porão da minha casa (antigamente as pessoas moravam
em casas), onde tinha aranha-caranguejeira, ratos, lacraias,
escorpiões. Eu gostava de olhar os escorpiões, eles só se
encontravam para brigar, era uma luta de ódio que sempre
acabava com a morte de um deles. Demorei muito a descobrir
que a luta entre os escorpiões não era uma luta de ódio, mas de
amor, que terminava com a fêmea matando o macho logo
depois que o amor se consumava.

Antes de mais nada, quero dizer que o meu interesse pela


vida dos artrópodes e outros animais fez com que eu me
tornasse biólogo. Fiz mestrado em Harvard e morei dois anos
na cidade de Boston. Tenho um interesse especial pela morte
dos seres vivos em geral, gosto de determinar local e tempo dos
incidentes de acordo com a fauna encontrada no cadáver e o
estágio de desenvolvimento desta. Em documentos históricos,
existem vários relatos da aplicação e experimentação da
biologia e o conceito desta remonta a meados do século XIII.
No entanto, apenas nos últimos trinta anos a biologia forense
tem sido sistematicamente explorada como uma fonte
verossímil de evidência em investigações criminais. Por suas
observações da relação artrópodes/morte e experimentos,
Francesco Rebombolo, Pierre d’Arbois, Jean Cavalier e o
famoso médico israelita D. Ackerman ajudaram a estudar a
biologia de insetos e outros artrópodes, minha área de
especialidade.
A biologia médico-legal examina evidências suscetíveis
baseada em estudos de artrópodes em eventos como
assassinato, suicídio, estupro, abuso físico e contrabando em
investigações que apuram quando e onde os insetos
depositaram ovos, e em que ordem aparecem nos cadáveres.
Isso pode ajudar a determinar o intervalo post mortem (IPM) e
o local da morte em questão. Como a maioria dos insetos exibe
certo grau de endemismo (só existem em determinados locais),
ou uma fenologia bem de nida (são ativos somente em uma
dada estação, ou etapa do dia), sua presença, associada a outras
evidências, pode demonstrar potenciais ligações ao tempo e
local de onde o evento pode ter ocorrido.
Por exemplo, o escorpião. Ele é um animal invertebrado (não
possui coluna vertebral) e artrópode (as patas são formadas
por diversos segmentos). Até o presente momento já foram
catalogadas mais de mil e quinhentas espécies de escorpiões.
As mais perigosas (possuem venenos fatais) são: o africano e o
dourado. Possuem hábitos noturnos, ou seja, utilizam a noite
para procurar alimento. São carnívoros, alimentando-se
principalmente de cupins, moscas, grilos, baratas e outros tipos
de insetos. Quando falta alimento em sua região, costumam
praticar o canibalismo (alimentam-se de outros animais da
mesma espécie). Após o acasalamento, a fêmea costuma comer
o macho que a fecundou.
Também descobri que isso de matar o macho após o
acasalamento acontecia com outros animais, como o louva-a-
deus. Um inseto fascinante, o louva-a-deus. Está presente no
mundo todo e pode ser um excelente animal de estimação. Até
aqueles que não gostam de insetos podem ser persuadidos pelo
jeito como o louva-a-deus vira a cabeça e olha por trás dos
ombros à procura do dono (na realidade, ele é o único inseto
que faz isso!). Não tenha medo de afagar seu louva-a-deus.
Alguns gostam de ser acariciados na parte de cima do tórax (na
altura em que as patas se conectam ao corpo).

Há também o caso do polvo. Está provado que, da mesma


forma que os porcos são os animais mais espertos entre as
espécies domesticadas, os polvos são os mais inteligentes entre
os invertebrados. Testes com labirintos e resolução de
problemas provaram que esses octópodes possuem memória
de fatos recentes e remotos. Eles conseguem abrir frascos,
apertar parafusos e até pegar um sanduíche dentro de uma
cesta. São os únicos invertebrados capazes de usar ferramentas.
Alguns foram vistos pegando cascas de coco e transformando-
as em abrigos.

Tenho uma namorada. O nome dela é Luiza. É uma mulher


linda, tem um pouco mais de trinta anos. Era minha aluna de
biologia e mudou-se para minha casa para me ajudar nas
minhas investigações. Ideia dela. Diz que tem muito interesse
pelos meus textos e traz sempre com ela cópias de meus
escritos nas quais anota e sublinha o que acha relevante. Diz
que qualquer hora vai me mostrar suas próprias conclusões a
respeito dos meus estudos sobre os artrópodes e outros
animais.

Certa manhã ela me disse:

“José, meu querido, quero lhe pedir um favor.”


“Qual é o favor?”, perguntei.

“Queria que você parasse de usar o preservativo. Eu estou


usando a pílula, não quero engravidar. Mas o preservativo…”

“Está bem, minha querida.”


Algum tempo depois, Luiza saiu dizendo que ia fazer umas
compras. Ela era meticulosa, fazia tudo pormenorizadamente,
tinha um caderno com datas em que anotava tudo. Naquele dia
ela saiu apressadamente e esqueceu o caderno de notas. Sem
muita curiosidade, li a folha referente àquele dia. Confesso que
me surpreendi. Mas a surpresa maior foi quando abri a gaveta
da mesa da sala de estar.

Sentei-me numa poltrona e esperei.


Luiza chegou. Sua cara era de felicidade.

“Fez as compras, querida?”, perguntei.

“Esqueci uma coisa”, disse ela abrindo a gaveta da sala de


estar.
Luiza apanhou o revólver e apontou-o para mim.

“Fui ao laboratório, o ultrassom con rmou que vou ter um


lho seu. Isso me deu uma grande alegria. Desculpe, querido,
vou ter que dar um tiro na sua cabeça. Vou dizer à polícia que
cheguei em casa e você estava morto. Assassinado por um
ladrão. Desculpe, querido.”
Luiza acionou o gatilho, uma, duas, três vezes. Sua sionomia
cou atônita.

“Tirei os projéteis, Luiza. E chamei a polícia.”


O detetive que estava escondido no quarto apareceu.

“Dona Luiza Halen, a senhora está presa por tentativa de


homicídio.”

Esta história tem um nal trágico. Luiza se matou na


carceragem do Distrito Policial, enforcando-se com uma
echarpe. Não me venham falar de Isadora Duncan.
Preservativo, eu nunca, nunca mais vou deixar de usar.
Continuo a exercer o meu trabalho de biólogo. Mas estou
investigando outro animal, que não é o escorpião, não é o
louva-a-deus, não é o polvo.
É o Homo sapiens.
SATIRÍASE E IMPOTÊNCIA
Eu, como todo mulherengo, vivia frustrado. Não por falta.
Por excesso. Queria ter apenas uma mulher, mas não
conseguia, já tive quatro mulheres ao mesmo tempo e achava
pouco. É claro que era uma mão de obra dos demônios, e eu
dizia, nas raras vezes em que cava sozinho, preciso acabar
com isso, mas — raios! — arranjava outra.

Fui a um psicanalista. Sempre considerei os psicanalistas uns


espertalhões que iludem os patetas fazendo caras pensativas
quando na verdade nem ouvem o que os parvos dizem, e agora
estava eu querendo ir a um desses astuciosos trapaceiros.
Uma das… das… minhas amigas me deu um cartão com o
nome J. Adler. Pesquisei esse nome, Adler. Era o nome de um
psiquiatra judeu (eu gosto dos judeus. Em geral são
inteligentes, competentes, honestos) que trabalhou com Freud,
mas depois de algum tempo afastou-se dele achando que
superestimava o fator sexual. Não gostei de saber disso, mas
mesmo assim decidi procurar o doutor J. Adler.

Marquei com a secretária uma consulta.


O consultório do doutor Adler cava num prédio todo, ou
quase todo, ocupado por médicos. No corredor do vigésimo
andar, veri quei o nome na porta, J. Adler. Toquei a
campainha.
Ouvi uma voz dizendo “Sim?”.
“Tenho hora marcada com o doutor Adler.”
“Seu nome, por favor.”

Disse o meu nome.


A porta se abriu com um pequeno ruído. Um controle
remoto devia ter sido acionado.
Entrei. Era uma sala de espera ampla e confortável, com sofás
e poltronas.
“Bom dia”, disse a secretária, uma mulher jovem e bonita,
loura. Contemplando a sua blusa imaginei os seus seios,
depois, mesmo sem vê-las, as suas pernas, e depois — raios! eu
era mesmo uma pessoa doente.
Sentei-me numa das poltronas. Ao lado, uma cesta com
revistas em várias línguas. Apanhei uma em inglês, gosto da
língua inglesa, pela sua simplicidade. A nossa língua é cheia de
intransitividades. Fiquei pensando nos verbos das duas línguas,
nos adjetivos etc.
Minhas elucubrações foram interrompidas pela secretária,
que disse, abrindo uma porta:

“O senhor pode entrar.”

Entrei. Uma mulher jovem me recebeu.


“Estou procurando o doutor Adler”, eu disse.

“Eu sou a doutora Jéssica Adler”, ela respondeu.


Não quei boquiaberto porque quando co estupefato —
como naquele momento, ao veri car que o J. não era de Jacob,
nem de Josué, nem de Jeremias, nem mesmo de José, era de
Jéssica —, quando co pasmo eu não abro a boca, pelo
contrário, fecho e trinco os dentes.

Entrei. A doutora Jéssica, dava para eu perceber, tinha seios


pequenos, nádegas rmes, coxas… raios! Fechei os olhos.
Tropecei em uma cadeira, em alguma coisa, não sei o que era,
eu estava de olhos fechados. A doutora Jéssica me segurou pelo
braço e me colocou numa poltrona. Eu sempre de olhos
fechados.

“O senhor está sentindo alguma coisa?”


“Fraqueza, fraqueza, doutora…”

Continuei de olhos fechados e quando abri os olhos vi que ela


estava sentada em frente a mim.

“Qual será a causa dessa sua fraqueza?”, ela perguntou,


sublinhando de maneira quase imperceptível a palavra
fraqueza. Desdém? Menosprezo? Ironia?

 
A doutora Jéssica se levantou e se sentou na cadeira que
cava no escritório, escreveu várias folhas de receita e as
estendeu para mim.
“O senhor deve fazer esses exames e trazer os resultados, por
favor.”

Peguei os pedidos de exames, que ela colocou num envelope,


e saí apressadamente do consultório, creio que nem me
despedi.

Na rua parei perto de uma lixeira, arranquei os pedidos de


exame do envelope, rasguei o envelope e joguei-o na lixeira,
um recipiente de metal xo em um poste. Em seguida dobrei as
folhas dos pedidos de exame, para que entrassem facilmente na
abertura da lixeira, mas não consegui. Minha mão cou
paralisada. A nal, num recuo tão intenso que quase me fez
perder o equilíbrio, afastei-me da lata de lixo com os papéis na
mão.
 

Uma semana mais tarde, com os resultados dos exames,


voltei ao consultório da doutora Jéssica Adler. Eu usava óculos
escuros que não permitiam que o meu interlocutor visse os
meus olhos.

Ela examinou as várias folhas do laboratório.


“Senhor José, os resultados dos seus exames indicam que a
sua saúde é perfeita.”

“Doutora Jéssica… eu… eu…”

“Sim?”
Ficamos algum tempo calados, eu indeciso, ela expectante.

“Sim?”, disse Jéssica.

“Eu sofro de… sofro de…”

Calei-me novamente.

Ficamos ambos, eu e Jéssica, em silêncio.


Uma semana mais tarde voltei ao consultório da doutora
Jéssica Adler na hora marcada por ela. Eu usava óculos escuros
que não permitiam que o meu interlocutor visse os meus
olhos.

Depois de sentados, ela perguntou:

“E então, senhor José?”


“Eu sofro de satiríase, doutora Jéssica. Na mitologia grega,
Sátiro era considerado um semideus sensual, libertino, com
metade do corpo de homem e metade de bode, com chifres,
habitante das orestas. É assim que me sinto ultimamente.
Quero um remédio para car impotente. A senhora conhece o
cineasta Luis Buñuel?”

“Sim, vi vários lmes dele. O meu preferido é Esse obscuro


objeto do desejo. Por motivos freudianos, é claro.”
“A senhora sabia que ele disse que o momento de maior
felicidade da sua vida foi quando ele cou impotente?”

“Não…”

“Eu quero sentir essa felicidade. Minha vida pessoal e


pro ssional está sendo prejudicada, eu vou ao escritório
unicamente para satisfazer as minhas compulsões, em vez de
clientes, recebo mulheres para atos sexuais, durmo mal, tenho
pesadelos, por favor, doutora Jéssica Adler, por favor, me dá
um remédio.”

“Senhor José” — esqueci de dizer que o meu nome é José —,


“senhor José, impotência é um sintoma patológico como a
satiríase”.

“Mas certamente não é tão estressante.”

“Quero lhe fazer uma proposta. Como o senhor sabe, eu sou


judia, e nós, judeus, temos uma sede insaciável de
conhecimento.”

“Sei, sei”, respondi.

“Eu gostaria de investigar a sua síndrome. Não vai demorar


muito, apenas três sessões semanais durante algum tempo. Não
cobrarei pelas consultas, na verdade, eu é que carei em débito
com o senhor. Garanto que cará curado…”
A promessa de cura me fez aceitar na hora o que a doutora
Jéssica me propôs.
Nas nossas reuniões — vamos chamá-las assim —, a doutora
Jéssica não cava calada, como eu supunha ser o
comportamento dos analistas. Depois de algum tempo, tirei os
óculos escuros e pela primeira vez pude olhar o rosto de uma
mulher, eu sempre via seios, nádegas, vaginas, agora eu
conseguia ver os olhos azuis da doutora Jéssica, seu nariz, seu
cabelo. Depois de algum tempo, ela me chamava de José, sem o
senhor, e eu a chamava de Jéssica, sem o doutora. E depois de
mais algum tempo nós saímos juntos para ir ao cinema. E
depois de mais algum tempo nos casamos.

Voltei a trabalhar. Contratei dois assistentes. Meu escritório


vive cheio de clientes.
Satiríase? Impotência? Isso é coisa de doente. Tenho uma
mulher apenas, uma, sou feliz e nossa vida sexual é
maravilhosa.
Psicanalistas não são espertalhões. Nem os clientes são
patetas.
CORRIQUEIRO
Eu tinha uma empregada, de nome Rizoleta. Ela morava no
morro da Rocinha, em uma casa que eu dei para ela, com uma
laje em que, todo sábado, fazia um churrasco e convidava os
amigos. Eu dava o dinheiro para ela comprar os alimentos e a
cerveja, churrasco tem que ser acompanhado por cerveja.
Rizoleta devia ter uns quarenta anos. Quando assinei a sua
carteira de trabalho não olhei a data do nascimento, que
interesse isso teria para mim?

Ela tinha uma lha de quinze anos de idade.


Rizoleta não cozinhava mal. Mas tinha dois problemas. Não
sabia fazer rã, e eu sou louco por rã frita, a rã inteira. Fico
horas comendo e chupando aqueles ossinhos. Fritar rã é a coisa
mais fácil do mundo, basta colocar na frigideira com um pouco
de azeite.
Creio que ela tinha nojo. Isso é comum, gente que não gosta
de comer rã, pensa que rã é sapo. O outro problema é que
Rizoleta tinha a mania de colocar cebola na minha comida e
desde criança odeio cebola. Ela tentava disfarçar a cebola de
várias maneiras, moendo, misturando, mas não adiantava, eu
dizia irritado “isto tem cebola”, e ela dizia, “patrão, cebola é um
dos melhores alimentos que existem, todo mundo sabe, faz
bem para a saúde”, e eu dizia, “se colocar cebola na minha
comida novamente você será despedida”.
Um dia Rizoleta disse que estava namorando um rapaz muito
bom, que ela conhecera na igreja evangélica. Os católicos estão
desaparecendo. Pessoas que nunca frequentam ou raramente
vão à igreja dizem que são católicas, essa coisa de querer
pertencer à maioria. O problema é que os católicos verdadeiros
estão desaparecendo. Se não acredita, vá à igreja mais próxima
da sua rua e veja quem são os frequentadores. Velhotas e
velhinhos. Além dos mendigos na porta, que também estão
diminuindo. E depois dê um pulo numa igreja evangélica e veja
a multidão lá dentro. Os padres tentaram modi car essa
situação, deixaram de realizar missas em latim, passaram a
celebrar a Eucaristia de frente para os éis. Isso não está
adiantando de nada.
Rizoleta estava feliz em ter um namorado evangélico como
ela.
“Ele dizia que era motoboy. Em um domingo chegou na
minha casa e disse: ‘meu amorzinho, acabei de sofrer um
desastre horrível, horrível, vou ter que arranjar um novo
emprego, estou sem dinheiro para pagar o aluguel de onde
moro, posso morar aqui na casa do meu amorzinho?’ Eu disse
que não.”

“Por que, Rizoleta?”


“Primeiro porque ele estava mentindo. Sofre um desastre que
destrói a motocicleta e não rasga nem a roupa? Mas a razão
não é essa, todo mundo mente, eu minto, minha mãe mente, o
papa mente. A razão não é essa. Eu não quero ele na minha
casa.”

Insisti: “Por que, Rizoleta?”


“Ele vai comer a minha lha.”

“Comer a sua lha?


“Eu sei que isso é normal, acontece sempre, não é nada de
mais, mas não quero.”
Fiquei pensando. Então, para muita gente, não sei se em
todas as áreas sociais, o padrasto comer a enteada era normal.

Vivendo e aprendendo.
Depois descobri que ela furtava dinheiro da minha carteira.

Talvez para comprar presentinhos para a lhinha.


Fingi que não sabia. Era pouco dinheiro. Não ia despedi-la
por causa disso. Mas se pusesse cebola na comida de novo, eu
não a perdoaria.
O CHAPÉU-PANAMÁ
Um escritor disse que viver é muito perigoso. Alguém me
disse isso, deve ter sido uma das falastronas inteligentes, eu
odeio ler. Acho que viver não é perigoso, é muito chato.
Tenho dinheiro, sou relativamente jovem, quarenta anos,
antigamente eu era um velho, os homens morriam com
cinquenta anos e as mulheres com sessenta. Hoje os homens
morrem com cem anos e as mulheres, creio que as mulheres
nem morrem.

Voltando ao início. Sou rico, jovem, e como disse o poeta


(novamente coisa de uma das falastronas inteligentes), tenho as
mulheres que eu quero na cama que escolho, pode ser na
minha casa ou no hotel. As mulheres são fáceis, quanto mais
inteligentes mais fáceis, ao contrário do que se pensa. E quanto
mais inteligentes, mais chatas, falam pelos cotovelos.
“Você acha que eu falo pelos cotovelos?”, me perguntou um
dia uma dessas inteligentes.
“Como assim?”

“Falar pelos cotovelos”, respondeu ela, “se aplica àquela


pessoa muito faladora, que nunca está calada. Ou seja, que fala
muito e com desembaraço, fazendo-o incessantemente, não
apenas pela boca, mas também com uma grande gesticulação
dos braços, encurtando-os, esticando-os, levantando-os ou
baixando-os. A presença dos cotovelos nesta locução parece
indicar o propósito de caracterizar as gesticulações
exuberantes, típicas dos faladores excessivos.”
A chata inteligente cou falando e gesticulando durante meia
hora sobre o que era falar pelos cotovelos. Se fosse uma chata
burrinha falaria dois minutos.
É por isso que fodo uma chata inteligente no máximo
durante uma semana. Depois, dou um presente muito bom e
despacho. A chata burrinha eu despacho depois de foder duas
semanas, dou um bom presente, é claro. Eu descubro o que elas
querem perguntando “o que você mais gostaria de ter na sua
vida?”. As respostas quase sempre são joias. Eu dou.
Vou confessar uma coisa. A única coisa que gosto é de foder.
Experimentei drogas. Toda droga é uma droga, maconha, coca,
heroína, tudo uma droga para bestalhões. Tem gente que diz
que gosta de ler. Eu acho ler uma merda, o sujeito tem que ser
cretino para car sentado olhando as páginas de um livro.
Cinema? Todo lme é feito para débeis mentais. Viajar? Fazer
mala é uma merda, transportar a mala é uma merda, e todos os
lugares do mundo são mais bonitos na internet. Comer? O
quê? Já comi tudo, foie gras, o fígado gordo de pato ou ganso
assassinados depois de serem empanturrados à força; atum
barbatana azul; Wagyu, aquela raça bovina originária do Japão;
caviar Almas, que em russo signi ca “diamante”, da ova do
esturjão beluga; cogumelos Matsutake cultivados no Japão, que
me custaram 2 mil dólares por quatrocentos e cinquenta
gramas; queijo de leite de alce, da Suécia, pelo qual paguei mais
de seiscentos dólares por cerca de meio litro. Já comi todas
essas porcarias, a merda que eu defecava era igual à merda que
eu expelia depois de comer rabada com agrião. Aliás, rabada
com agrião, que custa apenas alguns níqueis, é muito mais
saborosa que todas as porcarias que eu mencionei.
Então aconteceu uma coisa, uma coisa… Calma, vou contar
em detalhe.
Um dia encontrei uma chata inteligente que falava pouco. O
nome dela era Maria. Ela preferia ouvir. Eu provocava,
perguntava e ela respondia fazendo outra pergunta, e a nal
quem falava era eu.
Notei que eu já estava com ela há mais de trinta dias, trinta
dias! Aquilo não podia continuar.

“De que joia você gosta?”, perguntei.


“Não gosto de joias”, ela respondeu.

“E a sua situação nanceira?”

“Querido, você está precisando de algum dinheiro? Sou


muito rica, arranjo qualquer quantia que você precisar, não se
preocupe.”

“Não, não, não estou precisando de dinheiro, também sou


muito rico. Eu queria lhe dar um presente.”
“Um presente?”

“Sim, um presente.”
“Posso pedir uma coisa?”

“O que você quiser.”

“Eu quero um chapéu-panamá”, ela disse.


“Você conhece a história do chapéu-panamá, por que ele se
chama ‘chapéu-panamá’?”

E eu comecei a falar, já disse que quem falava era eu.


“Eu podia falar horas sobre o canal, mas tenho que falar do
chapéu. O chapéu tem esse nome porque uma foto famosa
mostra o presidente americano eodore Roosevelt no canal
do Panamá usando um chapéu de palha. E todo chapéu de
palha passou a ser chamado de chapéu-panamá. Mas o
verdadeiro chapéu de palha que o presidente Roosevelt usava
sabe de onde era?”

“Não.”

“Do Equador. Bem, acho que chega de cultura de internet,


quero dizer, de chapéu-panamá.”
“Adoro ouvir você falar”, disse Maria.

E ela realmente sempre ouvia o que eu falava com grande


interesse.

“Gostaria que você me zesse um favor”, ela disse uma tarde.


“Que favor?”, perguntei, escabreado.

Ela sempre tinha um livro na mão.

“Que lesse este livro”, disse Maria colocando um livro na


minha mão.
Peguei o livro. Era de um tal de Qualquer-coisa-Bandeira.

Apesar do ódio que eu sentia, acabei lendo o livro. Uma coisa


que eu não sei de nir… Interessante? Engraçada?
Maria me deu outro livro, e depois outro, e depois outro, e
depois outro. Vou lhes contar uma coisa. Leiam um livro, não é
tão horrível assim. Mas é viciante.
Estou viciado em livros e em Maria. Ela está morando
comigo há quatro anos. Não quero saber de nenhuma outra
mulher.
MILDRED
Depois que aconteceram aquelas desgraças… Não quero
relembrá-las, não quero, não quero.

Fiquei algum tempo vagamundeando, mas car sem nada


fazer é pior, você ca mergulhado na sua essência, no seu ego,
isso é péssimo. Eu precisava voltar a trabalhar. Mas eu só sabia
fazer uma coisa.
Foi difícil encontrar o Martin. Eu sabia que ele estava na
ativa, e nesses casos o sujeito ca invisível, igual ao personagem
do lme baseado no livro do H.G. Wells, um lme antigo, com
Claude Rains, tenho uma cópia em DVD. Como já disse, sou
viciado em livros e lmes. Mas não frequento cinemas nem
bibliotecas, vejo os lmes em casa, tenho centenas de DVDs, e
leio os livros em casa, tenho milhares de livros.

Mas, voltando ao Martin. Deu um trabalho danado, mas


a nal descobri onde ele morava: rua San Martin. Eu nunca
moraria numa rua com o meu nome, mas essa rua também
não existe.

Toquei a campainha. Martin não abriu a porta nem olhou


pelo olho mágico. Quem está do lado de fora, se for esperto,
sabe quando o olho mágico foi usado, mesmo que a sala esteja
escura. Quem está do lado de dentro sabe que há outras
maneiras de ver quem está na porta. É fácil comprar um visor
digital.
Martin abriu a porta. Na mão, uma Glock. Ele havia
engordado. Barriga grande.
“Jonas”, ele disse, com uma voz neutra. Ele não queria que eu
notasse que pensamentos varavam a sua cabeça.
“Martin”, eu disse com o mesmo tom de voz.
“Pensei que você tinha batido as botas.”
“Estou vivo. Guarda a ferramenta, vim pedir um conselho.”
“Entra”, disse Martin.
O visor digital era de boa qualidade. Mesmo se o corredor
estivesse completamente às escuras o visor mostraria uma
imagem nítida de quem passasse por ali, até mesmo se fosse
um gato. (Um rato, não sei…)

Martin preparou dois uísques. Uísque engorda, dá fome,


comer engorda, a barriga aumenta.
“Martin, quero voltar a trabalhar.”
“Jonas, tem matador de aluguel aos montes no país inteiro. Só
na minha lista tenho mais de dez, todos aqui desta cidade.”

“Martin, estou fodido, me arranja um serviço.”


“Você ainda tem a Walther PPK?”

“Durmo com ela.”

“Tem silenciador?”
“Evidentemente. Sem esse dispositivo o estrondo é, é…”

“É uma merda.”
“Isso, uma merda.”

“Estão pagando um bom preço para chumbar um


bambambã.”

“Quanto?”
“Não sei. Fui convidado, mas não topei.”

“Por quê?”
“Cagaço. O cara é perigoso. Estou velho…”

“Você está é barrigudo.”


“Eu sei. A Regina me disse que se eu continuasse barrigudo
ela me dava um pé na bunda.”

“Você gosta mais de comer porcarias do que de comer a


Regina. Ela agiu bem.”

“Eu sei.”
“Mas voltando à vaca fria. Eu chumbo o fodão. Quem é o
contato?”

“O Beto Bicheiro. Mas ele não gosta de ser chamado de


Bicheiro, deixou de bancar o bicho, agora vive na Zona Sul,
mora em cobertura no Leblon e diz que trabalha em
importações de máquinas. Descon o que o negócio dele agora
é pó. Cada dia aumenta mais o número das pessoas que
cheiram.”
“Onde eu encontro o Beto Bi… o Beto?”

“Vou lhe dar o telefone dele. Pode dizer que falou comigo. Ele
marca o encontro. Trata o cara com respeito. Ele não merece, é
um bom lho da puta, mas o pedinte é você.”

Liguei na manhã do dia seguinte. Atendeu uma voz de


homem. Uma voz grossa, pastosa.

“Eu queria falar com o senhor Beto.”


“Pode falar.”

“É o senhor Beto?”

“Eu disse que pode falar. Fala.”


O cara era um pentelho. Tive vontade de mandar ele tomar
no cu, mas eu precisava trabalhar.

“Quem me deu o seu telefone foi o Martin. Disse que o


senhor precisa de alguém para fazer um serviço.”

“Deu detalhes?”

“Não, senhor.”

“Liga para mim novamente à tarde.”


Tec. Desligou o telefone na minha cara. O puto ia checar com
o Martin.

Fiquei zanzando dentro de casa. A Mildred também me tinha


dado um pé na bunda, mas eu não era barrigudo, o meu erro
foi mijar fora do penico e ela descobrir. As mulheres são muito
ciumentas.
Quatro horas da tarde. Liguei.

“Senhor Beto? É o Jonas, amigo do Martin.”

“Vou mandar as instruções e a primeira parcela do dinheiro


pelo correio, envelope lacrado. Serviço feito, você recebe o
resto. Você não me conhece nem eu te conheço, entendeu?”

“Sim, senhor.”

Tec. Filho da puta.


Não consegui dormir. Pensava na Mildred, eu era louco por
ela, por que fui dar aquela pirocada na loura oxigenada, uma
trepada de merda?
Fiquei sentado na poltrona, olhando o meu relógio de pulso
comprado no camelô, um Cassio japonês feito na China, hoje
em dia é tudo feito na China, dizem que até as camisinhas. O
sol apareceu na janela.

O envelope foi entregue por um mensageiro. Dos Correios?

O dinheiro estava em dois pacotes grossos de notas de cem.


Em um dos pacotes havia um envelope com um retrato, um
nome e um endereço embaixo.

O nome era Armindo Silva Ortega. A foto de um homem que


devia ter mais de sessenta anos.

Armindo Silva Ortega… Eu tinha uma vaga lembrança de


que já vira aquele nome em algum lugar. Entrei na internet:
Armindo Silva Ortega, um milionário que nanciava várias
organizações que lutavam pelos direitos de homossexuais,
transgêneros…

Eu concordava com ele, a pessoa tem o direito de ser quem


ela é. Ser homossexual é uma normalidade, não é um defeito
físico ou mental ou social ou moral ou outra porra qualquer.
Aquele sujeito não merecia morrer. O problema é que eu
precisava de dinheiro.
Foi fácil. Ele frequentava várias associações de defesa dos
veados. Toda sexta-feira ia a uma delas, a Arco-íris. Ele mesmo
dirigia o seu carro. Chumbar o infeliz foi moleza. Não vou
entrar em detalhes. Tiro na nuca, não queria que ele sofresse.

A notícia saiu em todos os jornais. Só elogios e lamentações.


Para falar a verdade eu também lamentava, de certa maneira, o
que havia feito, mas, como já disse, eu precisava de dinheiro.

Recebi outro envelope com a segunda parte do pagamento.


Depositei quase toda a grana na minha conta bancária, eu
queria comprar um apartamento para a Mildred. Não era uma
forma de pedir perdão e Mildred voltar para mim. Ela não
saberia da tramoia que eu combinara com a irmã dela, que
diria que comprara o apartamento para elas com dinheiro que
ganhara na loteria. A Mildred era muito bonita e inteligente,
mas era uma pateta, acreditava nos outros, não descon ava de
ninguém. Quer dizer, de mim ela descon ava e eu acabei me
fodendo em copas.

Uma semana depois recebi outro envelope. Os pacotes de


notas, um retrato, um nome e um endereço. Gervasio
Laborguini. Um homossexual famoso. A foto que recebi
mostrava um sujeito de cerca de trinta anos, todo maquiado.
Laborguini era um veado assumido, nem precisei entrar na
internet. Bastava consultar nos principais jornais as colunas
sociais, onde ele era mencionado diariamente.
Mandar o veado pro beleléu deu mais trabalho do que
chumbar o milionário Ortega. Os homossexuais estão sempre
entrançados num entourage, até quando vão para a cama. Eu
gosto de dormir só ou com a Mildred. Por falar na mulher que
eu amava e me deixou, um dia perguntei a ela:
“Mildred. Esse nome é raro, é inglês, não é?”

“Não, americano. É um livro, que um americano gordo, cujo


nome esqueci, escreveu e depois zeram um lme com uma
atriz que meu avô adorava. Não é do nosso tempo. Meu avô era
louco por ela, foi ele que me deu esse nome.”

“Meu nome Jonas também foi escolhido pelo meu avô. O


mundo não é cheio de coincidências?”
Eu não disse a Mildred que o avô dela tinha certamente visto
o lme Alma em Suplício, no original Mildred Pierce, dirigido
por Michael Curtiz, com Joan Crawford no papel principal,
baseado no livro de James M. Cain, que escreveu e Postman
Always Rings Twice, Double Indemnity e outros livros, além de
vários roteiros de cinema. Li os livros e vi os lmes. Já disse que
sou louco por cinema e por livros. E pela Mildred, que me
mandou lamber sabão.

Voltando ao Gervasio Laborguini. O jornal de hoje, como


sempre, falava sobre ele na coluna social.
Gervasio Laborguini jogou uísque, há quem diga que foi
champanhe, no rosto de um indivíduo cujo nome a coluna não
soube, que o chamou de Lamborghini.“Eu não sou marca de
automóvel”, gritou ele, saindo da mesa furioso.

Confesso que não gostei de liquidar a bicha. Todos os


homossexuais que conheço são pessoas boas, con áveis,
generosas. Mas como já disse, várias vezes, eu precisava de
dinheiro.

Fui a um dos bares frequentados pelo GL (cansei de escrever


o nome, ainda mais depois da notícia do GL dizendo que não
era marca de automóvel, o problema é que o nome
Lamborghini é de uma pessoa, Ferruccio Lamborghini, que
criou a marca de automóvel com o seu nome, ou seja, o GL
estava errado; en m, isso tudo me deu um certo ânimo pra
mandar o GL pras cucuias). Mas, como eu dizia, fui a um dos
bares frequentados pelo GL. Lá estava ele, em uma mesa com
três sujeitos, tudo bicha. Sentei-me numa mesa próxima. As
bichas caram me olhando. Depois de algum tempo, GL
levantou-se e aproximou-se da minha mesa.
“Posso me sentar?”

“Sim”, respondi.
Ele sentou-se.
“Meu nome”, disse ele, com um ademane afrescalhado, “é
Gervasio Laborguini”.
“Muito prazer”, respondi.

Outro trejeito. “E o seu, qual é?”


“Eu me chamo Jeremias.”
“Nome bíblico”, disse ele. Novo gesto com as mãos, seria um
tique nervoso?
Ficamos calados algum tempo. Esqueci de dizer que eu estava
com uma cabeleira postiça, barba postiça e óculos escuros.
Para falar a verdade, eu cara bonito com esses disfarces.
“Eu moro aqui perto”, disse ele. “Quer dar um pulo na minha
casa? Você será devidamente compensado.”

“Está bem”, respondi.


“Levo junto um dos meus amigos?”
“Não, só nos dois.”

“Eu vou na frente. Você me segue. O prédio não tem porteiro,


vou deixar a porta aberta. O meu andar é o último.”

“Qual o número do apartamento?”


“É um por andar.”
Um prédio como aquele não tinha porteiro? Devia ser um
macete do GL. Provavelmente seriam matadouros.
Segui o GL. Subi. Entrei no apartamento. Era um matadouro,
é fácil ver isso. Lugar sem livros, poltronas, tela grande de TV,
lmes de sacanagem empilhados ao lado.
“Quanto você quer?”, GL perguntou.

Confesso que senti pena dele. Que merda, eu precisava do


dinheiro.
“Fecha os olhos, vou dizer no seu ouvido”, eu disse.

Ele fechou os olhos, agora gesticulando com as duas mãos.


Tiro na nuca. O silenciador da Walther não permitia que o
ruído do disparo fosse ouvido além da sala.
Coloquei o infeliz num sofá. Ele não sentira dor, nem
surpresa. Surpresa talvez, uma coisa rápida, duração de um
segundo. Não sei, porra.
Saí do prédio.
Na primeira rua deserta tirei a cabeleira e coloquei no bolso
do terno. Em outra rua deserta tirei a barba. Em outra rua,
deserta, é claro, tirei o bigode. Tudo no bolso
Não consegui dormir. Ainda bem que gosto de ler. Passei a
noite lendo.
Uma semana ou duas depois recebi outro pacote. Que merda,
o Martin tinha dito que havia matador de aluguel aos montes,
eu cara famoso?
Abri o pacote. Grana presa em elásticos, foto, nome e
endereço. Lucas Alberto Carcis, presidente da LGBTFREE. Não
vou entrar em detalhes. Estrunchei o cara, tiro na nuca, foi
fácil.
Consultei o saldo no banco. Faltava pouca grana para
comprar um puta apartamento na praia. A Mildred ia car
feliz.

Então chegou outro pacote. O tutu empacotado com elástico,


foto, nome, endereço. Puta merda. Outro veado?
Procurei o Martin.

Ele estava cada vez mais barrigudo.


“E a Regina?”, perguntei, antes de entrar no assunto que me
interessava.

“Acho que arranjou outro encosto”, respondeu ele abrindo a


geladeira e tirando de lá uma garrafa de cerveja. “Quer?”
“Não, obrigado.”

Martin colocou o gargalo na boca e enxugou metade da


garrafa.
“Preciso falar com o Beto. Me dá o endereço dele.”

“Você está louco?”, perguntou ele, emborcando a outra


metade da garrafa.

“Foda-se se estou louco. Me dá a porra do endereço.”


Martin apanhou mais uma garrafa na geladeira e
sofregamente bebeu metade.

Peguei a Walther. Encostei na barriga dele.


“Me dá o endereço senão te ferro aqui mesmo.”
“Você está louco?”

“Estou, porra, estou louco, puta merda, me dá o endereço,


caralho, estou louco”, eu disse empurrando com força a ponta
do silenciador na barriga enxundiosa do Martin.
Ele me deu o endereço.
Deixei o infeliz arriado num sofá.
“Não se preocupe, esse tal de Beto não vai te incomodar.”

 
Na portaria do edifício do Beto, eu disse que era scal do
Imposto de Renda e precisava falar com ele. Esses sonegadores
contumazes morrem de medo dos scais do Imposto de Renda.
Subi. Ele mesmo abriu a porta.

Não perdi tempo. Saquei a Walther do coldre.


“Sabe quem eu sou?”
“Não, não”, disse ele apavorado.

“Eu sou o sujeito que você escolheu para matar veados e


agregados.”

Ele teve um princípio de desmaio e quase caiu no chão. Eu o


segurei e o coloquei num sofá.
“Eu sou apenas um intermediário”, ele disse. Estava prestes a
chorar.
“Quem dá as ordens? Quem?”, eu disse encostando o cano da
Walther na orelha dele.

Ele disse. E acrescentou: “Ele é um homofóbico doente.”


Naquele dia matei o Beto. Tiro na testa.
O homofóbico era o comendador Moura Barros, diretor-
presidente da Associação de Proteção dos Valores Morais.
Fui à Associação. Um secretário deu-me vários folhetos em
que se mencionava a decadência da sociedade devido à
in uência negativa de homossexuais depravados.
“O comendador está?”

O secretário disse que ele estava no seu gabinete.


O gabinete do comendador Moura Bastos era mobiliado com
sobriedade. Eu disse que desejava contribuir com a Associação,
o comendador pediu-me que eu me sentasse na cadeira a sua
frente.
Estávamos a sós na sala. Dei um tiro nas fuças do
homofóbico. O disparo da Walther com silenciador tinha o
som mais baixo do que um peido.
Mas a jogada com a Mildred não deu certo ela descobriu.

Mildred descobriu tudo, chamou a irmã de traiçoeira. A


traíra pediu desculpas. Continuam morando juntas.
O dinheiro está no banco.

Eu estou lendo. Tenho milhares de livros. Acho que já disse


isso.
A MELHOR PROFISSÃO DO MUNDO
Meu nome é Graça. Quando eu z dezesseis anos minha
mãe, Alice, me fez sentar ao seu lado num sofá que tínhamos
na sala da nossa casa e disse:
“Minha lha, vou me aposentar ainda este ano. Por este
motivo quero lhe dizer, minha querida, que quando você
começar a trabalhar terá que seguir cinco normas
fundamentais. A primeira é não se deixar explorar por nenhum
desses indivíduos conhecidos como cáens. A segunda…”

“Chega, mamãe, eu não vou seguir a sua pro ssão. Vou ser
enfermeira. Já estou estudando enfermagem.”
Minha mãe cou calada. Eu não a criticava por ser prostituta.
Creio que ela gostava.
“Gracinha, a prostituição é uma das mais antigas pro ssões
do mundo, documentos de dois mil e quatrocentos anos antes
de Cristo comprovam isso. Alguns países já reconhecem
legalmente a prostituição como pro ssão, como por exemplo a
Alemanha.”

“Mamãe, não estamos na Antiguidade nem na Alemanha.”


“Deixa eu acabar de falar, minha lha querida. No Egito
antigo, as prostitutas eram consideradas grandes
sacerdotisas…”
“Mamãe, estamos no século XXI, XXI!”
“Gracinha…”

“Não me chame de Gracinha. Não gosto do nome Graça, de


Gracinha então…”
“Minha lha, o mundo não muda, você precisa aprender isso,
o mundo não muda. O seu pai…”
“Não quero saber do meu pai. Ele não quer saber de mim, e
eu também não quero saber dele”, eu disse.
 
Minha mãe e eu morávamos numa casa confortável num
bairro elegante da cidade. Ela tivera um amante que ao morrer
lhe deixara uma grande fortuna. Mesmo sendo muito rica não
abandonara a pro ssão. Seus clientes eram poucos, mas todos
muito abastados. O mais novo tinha mais de sessenta anos.
Todos tomavam uma dessas pílulas para disfunção erétil antes
de irem para a cama com ela. Eu não queria brigar com a
minha mãe e achei que a melhor maneira era sair de casa, ir
morar sozinha.
 

Aluguei um pequeno apartamento mobiliado num subúrbio


da cidade. Tinha que pegar um ônibus e o metrô para ir para a
escola. Telefonava para minha mãe, ela dizia que estava
morrendo de saudades e eu respondia que também estava, mas
era mentira. Achava muito bom morar sozinha. Minha mãe
depositava todo mês, na minha conta bancária, uma quantia
que dava apenas para eu viver de maneira modesta. Comia
sanduíches com batata frita e Coca-cola, mas isso não me fazia
mal, eu continuava magra, como a minha mãe.
Quando terminei o curso de enfermagem, fui trabalhar num
hospital público.

Os médicos faltavam muito, pois recebiam salários ridículos


e tinham que arranjar outros empregos. Apenas um dos
médicos cumpria o seu horário, na verdade, o doutor Ulisses
até trabalhava mais tempo do que era a sua obrigação. Já podia
se aposentar, mas dizia que não se aposentava por dois
motivos: gostava de trabalhar e a aposentadoria era uma
miséria. Era viúvo e não tinha lhos. Ele tinha a cabeça toda
branca, era um pouco gordo e culpava o chocolate por sua
obesidade.

“Sou um chocólatra, dona Graça”, ele dizia, “uma pessoa com


compulsão por doce, como há os compulsivos por drogas,
jogos e internet. Eu como escondido e tenho sempre uma barra
de chocolate no bolso. Eu não posso viver sem chocolate, se eu
não comer co nervoso. É um vício e não tem cura.”

Sempre que tinha uma dúvida eu consultava o doutor Ulisses.

“Dona Graça”, ele dizia, “este hospital é do município, que


não tem dinheiro, e por isso não temos medicamentos para
cuidar dos nossos pacientes, todos muito pobres, sem
condições de ter seguro de saúde ou ir a um hospital particular.
Nossa obrigação é tratar todos com carinho e muita atenção. É
um trabalho difícil, é quase uma espécie de sacrifício. Se o Céu
existisse nós íamos direto para lá”.
“O Céu não existe, doutor Ulisses?”

Os doentes eram quase todos pessoas velhas, homens e


mulheres cheios de rugas e pelancas, uns com a pele cheia de
cravos, enormes, escuros, que eram espremidos com força para
serem extraídos, outros sofrendo de diarreia crônica, outros
sofrendo de prisão de ventre. Esses eram os piores, pois muitos
criavam fecalomas, umas massas de fezes empedradas e
endurecidas, de tamanhos variáveis, localizadas no reto. O
tratamento do fecaloma consiste na remoção da massa de fezes
ressecadas. Como o hospital não possuía laxantes ou
supositórios, a remoção do fecaloma tinha que ser feita
manualmente por nós, enfermeiros, introduzindo o dedo
enluvado no ânus do paciente para liberar as fezes. Isso era
demorado, os velhos gemiam dizendo que estavam sentindo
dores e eu en ava o dedo, e mais gemidos e mais fedor.

Trabalhei naquele hospital miserável seis meses. Seis meses


que me pareceram seis anos. Só aguentei aqueles anos, digo,
meses todos devido à companhia do doutor. Um dia eu disse a
ele:

“Doutor Ulisses, vou pedir demissão do hospital. Minha mãe


me convidou para trabalhar com ela.”

“Qual o trabalho da sua mãe? Tem alguma ligação com a


medicina?”
“Não, ela é corretora de imóveis.”

O doutor Ulisses me deu um abraço, tentando esconder as


lágrimas do rosto. Confesso que eu também quei triste. Se eu
tivesse pai queria que fosse como ele.

Liguei para minha mãe.

“Quero voltar para casa, mamãe, ser enfermeira é muito,


muito, muito…”

“Gracinha, querida, vem, estou morrendo de saudades.”

Quando cheguei à casa da minha mãe, à minha casa, senti


uma alegria, uma enorme sensação de prazer, de felicidade.
 

Meus clientes, todos com mais sessenta anos, também tomam


a pílula.
Estou muito feliz. Toda semana eu compro uma caixa de
chocolates belgas e levo para o doutor Ulisses. Quando não
acho o belga, levo chocolate suíço.
A BUSCA
Tenho quinze anos de idade. Meu pai, Pedro de Albuquerque,
morreu quando eu tinha nove. Minha mãe, Mariana, morreu
durante o meu parto, ela e o meu pai não haviam se casado. O
meu pai era muito bom, me tratava com muito carinho. Nossa
casa era grande, o meu pai era muito rico, morava numa das
alas da casa e eu em outra, mas era comum ele me apresentar
de manhã uma mulher, cada mês uma diferente, dizendo “essa
é a minha amiga Fulana de Tal”, esqueci os nomes. Eram
mulheres bonitas que me davam presentes, doces e beijinhos
no rosto.
Meu pai morreu quando eu tinha nove anos. Quem cou
tomando conta de mim foi Zulmira, que tinha sido minha
babá. Quando z quatorze anos chamei Zulmira e disse que
queria ter uma conversa com ela. “Você vai deixar de usar esse
uniforme de babá. Vou lhe dar dinheiro para comprar roupas e
joias, esse seu relógio é muito ordinário. Aliás, vou lhe dar uma
boa mesada para você ir ao cabelereiro e fazer essas coisas que
as mulheres fazem. E você vai morar num dos quartos da casa,
um desses com sala de vestir e banheiro privativo.” Zulmira
cou surpresa e disse: “Seu Joãozinho, eu sou empregada, eu
sou negra…” “Você era empregada, agora não é mais. Vai
contratar três empregadas, uma para cozinhar e duas para
arrumar a casa. E qual o problema de ser negra?” Isso tudo
aconteceu, como eu disse, no ano passado. Zulmira fez o que
eu mandei, contratou três empregadas brancas, resolveu
despedir o motorista negro e contratar um motorista branco,
passou a se vestir com roupas compradas nas melhores
butiques, uma exigência minha, frequentava o melhor salão de
cabelereiro e ia à manicure, outra exigência minha. Eu era um
bom estudante, gostava de praticar esportes, de ler e de ir a
exposições de arte. Estava apaixonado por uma colega do
colégio, Elisa, mas tinha um problema, quando ela se
aproximava de mim e perguntava “você está bem?”, eu apenas
meneava a cabeça a rmativamente e me afastava. Quando
tentava falar com ela, eu gaguejava. Contei isso para Zulmira e
ela respondeu que eu tinha que ir ao médico, um psicanalista.
Passei a ir três vezes por semana ao doutor Renan, mas a
minha gagueira quando tento falar com Elisa piorou. Com as
outras pessoas eu não gaguejo. O doutor Renan me explicou
que existem comprovações cientí cas da presença de genes
envolvidos no surgimento e manutenção da gagueira, por isso é
comum ter mais de um membro da mesma família com a
condição e me perguntou: “O seu pai era gago?” Respondi que
não. “E a sua mãe?” Respondi que não sabia, eu não a
conhecera, ela morrera durante o parto. O doutor Renan
mandou-me fazer um monte de exames, minha gagueira podia
ser resultado do que ele chamava um AVC, ou então de
traumatismo cranioencefálico, ou ainda de outros problemas
como febre reumática. Quando eu expliquei que só gaguejava
quando queria falar com a Elisa, o doutor Renan começou a
dar explicações ainda mais incompreensíveis. En m, deixei de
frequentar o consultório do doutor Renan.
Mas nada disso é importante. O que realmente interessa
aconteceu num sábado de manhã. Eu disse a Zulmira que ia à
cidade ver uma exposição. “Seu Joãozinho”, ela nunca deixou
de me chamar de seu Joãozinho, “o motorista está de folga
hoje, você não pode ir sozinho, eu vou junto”. Respondi
“Zulmira, eu vou e volto de táxi, não se preocupe.” “Mas seu
Joãozinho…” Eu cortei a fala de Zulmira dizendo que já estava
decidido. Ela calou-se, a ita.

Esperei um táxi passar, z sinal, ele parou e quando abri a


porta notei ao meu lado uma mulher gorda, fumando um
cigarro. “O táxi parou pra mim ou pra você?”, ela perguntou. “A
senhora tem preferência”, eu disse. “Para onde você vai?”
Respondi que ia para a cidade. Ela disse que podíamos ir
juntos. Fomos.
A mulher era muito gorda. Não era feia. Que idade teria?
Nunca fui muito bom em julgar a idade dos outros.

“Você se incomoda se eu fumar aqui?” Respondi que não.


“Dizem que fumar emagrece, mas eu co cada vez mais gorda.
E o crápula, eu vim aqui hoje procurar o crápula, me
abandonou porque eu quei gorda. Ele também não quis ter o
lho. Eu era magra e bonita e rica. O crápula também era rico e
magro e bonito. Nossas famílias eram inimigas, e o meu
romance com ele era secreto. Quando quei grávida contei
para minha mãe e ela disse para eu fazer um aborto. Fui com o
crápula para outra cidade fazer o aborto, mas não consegui. Eu
e ele alugamos uma casa, onde camos morando sem
conhecimento das respectivas famílias, gente rica é assim, só
pensa em dinheiro, você é rico?, não precisa responder, isso
não me interessa, mas ninguém das nossas famílias sequer
tentou nos visitar, é bem verdade que eu e o crápula
inventamos que havíamos mudado de cidade, mas quando
meu lho nasceu, um menino, eu, que não gostava de comer,
passei a ter uma fome compulsiva, comia doces,
principalmente doces bem melados, comia o dia inteiro e fui
engordando. O crápula me disse, ‘você está engordando, pare
com isso’, mas eu não parava — posso fumar outro cigarro? —,
eu não parava, e fui engordando cada vez mais, e fumava como
uma chaminé, pois diziam que fumar fazia as pessoas
emagrecerem, tudo mentira. E o crápula me ameaçava, dizia,
‘se você engordar mais eu te abandono’. Um dia, quando
voltava da loja de doces — todo dia eu ia comer doces nessa
loja, tinha os melhores doces da cidade, do mundo —, quando
voltava da loja carregando uma sacola com mais doces, cheguei
em casa e o crápula tinha sumido com o meu lhinho. Há mais
de uma década procuro o crápula, contratei detetives
particulares e um deles me disse que alguém lhe disse que um
homem com essas características, com um lho pequeno,
morava aqui. Comprei este revólver, está vendo? Vim aqui
matar o crápula, mas não o encontrei. Não vou desistir, quero
matar o crápula e quero viver com o meu lho João, que deve
ser um adolescente bonito de uns quinze anos.”
Tentei falar, mas fui acometido por uma gagueira que não
permitia que eu pronunciasse as palavras. “Fala direito,
menino.” A nal consegui. “Como é o seu nome?”, perguntei.
“Mariana”, ela respondeu. Minha gagueira aumentou. A gorda,
meu Deus, não posso mais pensar nela assim, acendeu outro
cigarro. A nal, consegui falar. “Como era o nome do, do, do…”
Ela deu uma longa baforada no cigarro. “Do crápula? Pedro de
Albuquerque.”
CALIBRE 22
Certa ocasião uma mulher, com quem eu havia rompido o
relacionamento, chamou-me de femeeiro. Eu sabia o
signi cado desse termo, um macho que busca incessantemente
a fêmea. Era verdade, mesmo quando estou apaixonado por
uma mulher eu não resisto ao encanto de outras.
Moro num apartamento pequeno, mas confortável, e da
janela do quarto eu vejo o mar. Tenho todo tipo de bebida,
principalmente champanhe da melhor qualidade, as mulheres
gostam de champanhe. À tarde uma empregada vem, limpa a
casa e vai embora. Minhas refeições, café da manhã, almoço e
jantar, são sempre feitas na rua, em restaurantes, de preferência
portugueses, acompanhadas de um bom vinho tinto.
Estava na cama com uma bela mulher chamada Elisa, de pele
acetinada, pescoço modiglianesco, dentes perfeitos, olhos
avelanados. Nem havíamos nos desnudado, quando o telefone
tocou.

Atendi. Weksler.

“Mandrake, tenho um assunto sério para conversar com


você.”
“O quê? Estou ocupado, Weksler.”
“É urgente, urgente.” Weksler parecia nervoso. “Estou aqui no
escritório, vem logo.”
Expliquei para Elisa que tinha que ir ao escritório, para ela
esperar um pouco, que eu não demoraria.
 
Quando cheguei ao escritório, dona Matilde estava nervosa
na sala de espera. Dona Matilde era nossa secretária. Era vesga
e um pouco corcunda, mas conhecia tudo de informática,
taquigra a, inglês e português. Tudo era feito no computador e
no escâner dela. Eu tinha um laptop na minha mesa, o Weksler
outro na mesa dele, mas nunca os usávamos. Esqueci de dizer
que além de vesga e corcunda Matilde tinha uma perna mais
curta do que a outra. Por isso calçava um sapato especial que
corrigia essa anomalia e sempre usava calças compridas para
esconder os sapatos. Ela era uma maravilha de superação. Vez
por outra eu levava para ela um pacote com chocolates
recheados com licor. Dona Matilde fora escolhida pelo
Weksler. Todas as candidatas bonitas foram recusadas ab initio,
Weksler nem as entrevistava. Será que pensava que eu ia me
envolver com uma secretária bonita? Isso seria impossível,
acho nojento, crapuloso essa coisa de comer secretária.

“Temos um novo cliente, um caso complicado que envolve


um homicídio”, disse Weksler.
Um sujeito chamado Ari Silva, dono da famosa revista de
moda Nova, cujo nome completo era Aristófanes Santos Silva,
viera ao nosso escritório dizendo que alguém queria assassiná-
lo. O sujeito não gostava que o chamassem de Aristófanes,
escondia esse nome, exigia ser chamado de Ari.

“O pai de Aristófanes, de nome João Silva, era um homem


muito rico. Nunca leu o autor grego da Antiguidade que
escreveu As rãs. As únicas rãs que João Silva conhecia eram as
que comia de vez em quando no almoço, fritas em azeite
português…”
“Weksler, eu estava ocupado e você me chama para ouvir
histórias de rãs?”

“… não sabia que fora registrado como Aristófanes ao nascer.


Todos em casa o chamavam de Ari e só quando precisou da
certidão de nascimento é que descobriu. Ele nunca trabalhou,
era um notívago, dormia o dia inteiro e à noite ia para clubes
beber, jogar, ver as mulheres. Como se tornou dono da Nova?
Dizem que um dia o seu pai, ao sair, lhe perguntou, ‘Ari, você
quer que eu lhe compre alguma coisa?’, e ele respondeu, ‘papai,
me compra uma revista’. E o pai lhe comprou a revista, com a
sede, a conta bancária etc.”

“Weksler, essa é uma lorota antiga, já contada com diversos


personagens diferentes.”

“Deixa eu falar, Mandrake. O Ari gostou de ser dono de uma


revista. A história é longa, e o Ari, por favor não o chame de
Aristófanes, deve estar chegando.”
 

Ari Silva era um homem elegante. Idade inde nida. Fazia


implante de cabelo. Não tinha uma ruga, nem ao lado dos
olhos verdes e nem das comissuras labiais. Botox. Vestia-se
com apuro. Usava gravata de seda francesa, eu sei quando uma
gravata é de seda e francesa.
Sentou-se em uma poltrona, em frente à mesa de Weksler.
Fiquei na poltrona ao lado.
“Posso fumar um charuto?”, ele perguntou. “Me acalma.”

Gostei logo dele.


“Claro”, respondi, “ que à vontade”.
Ele tirou uma pequena carteira de couro do bolso e sacou um
Partagás 4, curto.

“Tabaco de Vuelta Abajo, Pinar del Rio, o melhor tabaco do


mundo”, eu disse. “E o Partagás é um dos melhores puros dessa
região.”

Dentro da carteira havia outro Partagás.


“Vejo que também gosta de charutos, tenha a bondade de me
acompanhar”, ele disse, dando-me o outro Partagás. Em
seguida tirou do bolso um cortador de charutos Apex e uma
caixa de fósforos. Depois de cortar cuidadosamente a ponta do
charuto começou a acendê-lo segurando-o num ângulo de 45
graus e girando-o ao redor da chama. Ele sabia o que estava
fazendo, sabia que charuto se acende com fósforo.

Para desgosto de Weksler, acendi o Partagás seguindo o


mesmo ritual e quando o fumo do puro afagou minha abóbada
palatina e minhas gengivas, senti um prazer harmonioso, uma
espécie de júbilo.
“O senhor deve conhecer a história do homem que criou esta
maravilha”, disse Ari, “Dom Jaime Partagás, de origem catalã.
Uma morte trágica. Em 1864, Dom Jaime morreu assassinado
ao receber um tiro em uma das suas plantações em Vuelta
Abajo”.
“Vamos ao que interessa”, disse Weksler, abanando a mão
nervosamente à frente do rosto, como se o delicioso aroma do
fumo o estivesse incomodando.
“Exatamente”, disse o senhor Ari, tirando um envelope do
bolso.
No envelope estava escrito “Aristófanes” em letras vermelhas.
Dentro dele havia uma folha de papel em que estava escrito:
“Aristófanes, verme infame, misógino nojento, seu m será
igual ao de Jaime Partagás, um tiro nessa cabeça indigna.”

“Misoginia é um sentimento execrável”, disse Weksler,


vingando-se dos Partagás.

“Não sou misógino, pelo contrário, sou lógino, tenho um


grande apreço pelas mulheres”, disse Ari. “Eu amo a minha
mulher, Heloisa. É a minha segunda esposa, a primeira
morreu, de um colapso cardíaco. Tenho uma lha, do primeiro
casamento, chamada Julia. Está com vinte e quatro anos.”

Um homem que gosta de charutos e de mulheres tem que ser


uma boa pessoa, pensei.

“Descon o”, disse Ari, “que esta carta me foi enviada por
Percílio Gonçalo, dono da revista Estilo. Fui à polícia, mostrei a
carta ao delegado que me atendeu. Ele disse que podia ser
apenas uma brincadeira de mau gosto. Mas eu sinto que a
ameaça é séria, que eu corro perigo”.

“Sim, sim”, disse Weksler, “e depois?”.

“Um amigo me disse que procurasse a sua ajuda, doutor


Mandrake.”
“Senhor Ari”, disse Weksler, “o doutor Mandrake vai cuidar
do seu caso, com licença, vou tratar de outros assuntos”.

Weksler saiu da sala.

Combinei com o senhor Ari Silva que iria visitá-lo na sede da


revista no dia seguinte.

 
Voltei para casa correndo. Quando cheguei, Elisa tinha ido
embora. Na parede da sala desenhara com batom vermelho um
enorme coração trespassado por uma echa.

A sala era toda forrada de papel de parede importado. Aquilo


tinha que ser apagado antes que as outras vissem. Liguei para a
empresa de decoração que havia posto o papel. Eles estavam
muito ocupados e só podiam me visitar dentro de uma
semana. Creio que estava na moda entre os corruptos do
governo — e eles são muito numerosos — usar papel de parede
em suas casas e nas das suas amantes.

2
Fiz várias pesquisas, dei telefonemas, passei e-mails etc. A
revista Nova no início tinha um nome quilométrico: Vida Nova
– uma Nova Vida para a Mulher. O pai de Ari era um estroina
e quando morreu só deixou dívidas para o lho. Mas a segunda
mulher de Ari era muito rica e resolveu investir na revista, que
passou a usar na capa apenas a palavra Nova. Em pouco tempo
tornou-se a revista mais vendida, assinaturas e vendas avulsas
cresceram, metade das suas inúmeras páginas era de anúncios
de todo tipo. Uma pesquisa revelou que os homens também
liam Nova, o que fez a publicidade de produtos masculinos
aumentar muito. Enquanto isso, a revista Estilo, por falta de
anunciantes e devido à baixa venda de exemplares, estava
praticamente falida.

A Nova ocupava o último andar de um prédio na praia de


Botafogo. No grande saguão de entrada havia uma mesa com
um atendente que pedia aos visitantes um documento de
identi cação. Em troca, este recebia um cartão que permitia
que ele passasse por uma roleta e chegasse ao hall dos
elevadores.

Uma secretária, bem vestida, elegante, me atendeu e me levou


à sala do senhor Ari Silva. Antes passamos por um largo
recinto com várias mesas ocupadas por mulheres com
computadores e escâneres e impressoras.
A sala de Ari Silva era grande, com quadros de pintores
famosos na parede. Ele estava acompanhado.

“Doutor Mandrake, está é a minha mulher, Heloisa”.


Heloisa parecia ser mais jovem do que o marido. Mas é difícil
saber a idade de uma mulher, toda mulher tem o seu cirurgião
plástico, sua academia de ginástica, seu personal trainer, seu
massagista e seu nutricionista.
Ela usava um colar de pérolas e, ao ver que eu olhava a joia
em seu pescoço, disse, casualmente:
“Estas pérolas têm uma esfera quase perfeita, apresentam
uma variação no diâmetro de no máximo 2%. São as pérolas
mais raras e mais caras encontradas no Taiti, dizem que podem
durar com todo o seu esplendor mais de cento e cinquenta
anos. Mandrake? É um sobriquet?”, ela perguntou, de maneira
simpática, afável.
“Não, não é um apelido, dona Heloisa. O meu bisavô
português, que se chamava José Mandrágora, foi estudar na
Inglaterra. Por algum motivo traduziu o seu nome para a
língua inglesa. Mandrake em inglês é o mesmo que
Mandrágora, uma planta. A mandrágora é também usada,
creio que no Himalaia, em rituais de magia, pois o formato de
suas raízes tuberosas sugere um ser humano. Eu podia me
chamar José Mandrágora, mas me chamo José Mandrake.
Tenho um amigo cujo sobrenome é Castanheiro e outro com
sobrenome Trigo. Ia esquecendo de duas amigas, uma chamada
Tâmara e outra que tem Cajueiro como nome de família.”

Não sei se tudo o que estou contando sobre mim é verdade.


Há pessoas que mentem e sabem que mentem e outras que
mentem sem saber que estão mentindo. Acho que estou nessa
segunda categoria. O que fazer?

“Entre Mandrágora e Mandrake, concordo com o seu bisavô”,


disse dona Heloisa com um sorriso.
Uma das secretárias entrou na sala e falou algo em voz baixa
para dona Heloisa.
“Não, diga que falou comigo e que o orçamento não será
reduzido de forma alguma”, disse ela de maneira ríspida.
Parecia outra pessoa. Qual era a verdadeira? A gentil ou a
ríspida? Uma pessoa pode ser as duas que aparenta, ou mesmo
mais de duas. Lembrei-me de Walt Whitman: Do I contradict
myself? Very well, then I contradict myself, I am large, I contain
multitudes.
“O que a senhora achou da carta ameaçando o seu marido?”

“Já falei com ele que tudo não passa de uma brincadeira
idiota. E achei um exagero ter ido à polícia e contratar um
advogado…” Ela se tornara uma terceira pessoa.

“Mas Heloisa…”
“Cala a boca, Ari! Desculpe, doutor Mandrake, mas o meu
marido com a sua paranoia me faz perder a paciência.
Agradeço a sua visita, mas o senhor está dispensado.”
Dona Heloisa me estendeu a mão como quem diz, pode ir
embora.
Despedi-me dos dois.
 

Chegando ao escritório, dei a Matilde um pacote grande de


chocolates recheados com licor. Ela cou feliz e eu também. Eu
cada vez gostava mais dela.

“Matilde, por favor, pede ao doutor Weksler para passar na


minha sala.”

Contei o que tinha acontecido.


“O que você acha disso tudo?”
“Vocês fumaram aqueles charutos nojentos?”

“Não. O que acha?”


“Não acho nada.”

“Está de mau humor?”


“Estou.”
“Creio que há alguma coisa… alguma coisa… Vou visitar o
tal Percílio Gonçalo, o dono da revista Estilo.”
“Isso, vai car anando…”
“Enquanto você carrega o escritório nas costas.”

“Mandrake, eu não sei por que gosto de você…”


“Eu também não sei por que gosto de você, Weksler.”

Fomos almoçar juntos.

3
O escritório da Estilo demonstrava a fase desfavorável que a
revista atravessava.
Percílio Gonçalo era um homem de aproximadamente
sessenta anos, gordo, calvo.
“Em que posso ajudá-lo doutor… doutor…”
“Mandrake.”

“Sim, estou às suas ordens.”


“O senhor conhece o dono da revista Nova, Ari Silva?”
“Sim, sim…”

“O que acha dele?”


“Não é má pessoa. O problema é a mulher dele. Ela é uma…
uma… como direi, uma jararaca. Uma cobra venenosa. Quem
manda é ela, o Ari é um fraco. A jararaca tirou da minha
revista os melhores redatores, fotógrafos, modelos, desenhistas,
ela quer me destruir. Acho até que já me destruiu. Olha estas
mesas todas vazias…”
Apenas duas mesas estavam ocupadas por mulheres que
lixavam as unhas e folheavam revistas.

“Ari Silva a rma que o senhor lhe enviou uma carta anônima
dizendo que ia lhe dar um tiro na cabeça, como zeram com o
Jaime Partagás.”

“Quem é esse cara?”


“Partagás?”

“Isso. É um grego? Turco?”


“Não exatamente. O senhor gosta de charutos?”
“Deus me livre. Charuto, cigarro, maconha, tudo isso é
veneno. Não como nem carne. Cuido da minha saúde. Quem
gosta de charuto é o Ari.”

 
De volta ao escritório, contei a Weksler a conversa que tivera
com Heloisa e Percílio Gonçalo.

“O meu amigo Raul diz que o investigador tem que trabalhar


partindo de hipóteses.”
“Hipótese?”, disse Weksler, “você sabe o que é hipótese? É
mera suposição que se faz de alguma coisa possível ou não, e
da qual se tiram as consequências a veri car. Ou seja, mera
conjetura”.

“Ou seja, tenho que supor…”


“A palavra mais exata é deduzir. Todos os homens são
mortais, Sócrates é homem, Sócrates é mortal. Entendeu?”

“Weksler, vou comprar uma caixa de Pimentel para fumar


aqui no escritório, você vai morrer envenenado.”

“Eu tenho uma hipótese”, disse Weksler.


“Hipótese?”
“Sim, uma especulação, uma formulação provisória com
intenção de ser posteriormente demonstrada ou veri cada,
constituindo uma suposição…”
“Weksler, você é um judeu falastrão pretensioso…”

“E você é um… um… um mulherengo doentio. Na verdade


eu tenho três hipóteses. Quer ouvi-las?”
“Pode começar”, eu disse, sentando-me na poltrona e tirando
do umidor que estava na gaveta um Partagás 4, robusto.

“Se for acender essa porcaria eu saio da sala.”


“Está bem, está bem.”
Coloquei o charuto de volta no umidor.

“Primeira hipótese: a carta é verdadeira e seu cliente…”


Cortei: “Nosso cliente.”

“Nosso cliente está correndo risco de vida. Segunda hipótese:


a carta é uma brincadeira e não devemos perder tempo com
isso. Terceira hipótese: a carta foi escrita pelo próprio Ari
Silva.”

“Por ele? Com que objetivo?”


“Isso exige uma nova especulação. Lembre-se: testar as
hipóteses exige raciocínios dedutivos.”

“Pra mim chega, Weksler. Vou para meu apartamento fumar


um Partagás.”

 
Ao chegar ao apartamento tirei os sapatos — sapato é algo
insuportável, por que nós, os homens, não podemos usar
sandálias como as mulheres? —, sentei numa poltrona e acendi
um charuto. Pensei que a inebriante sensação do fumo do
Partagás na minha boca me ajudaria a formular hipóteses,
deduções, soluções, mas apenas deixou-me extasiado,
embriagado ou seja lá o que fosse.
Ouvi a campainha da porta tocar. Olhei pelo olho mágico.
Era uma mulher, se fosse um homem eu não abriria a porta. A
única coisa boa no mundo, além dos charutos, eram as
mulheres.
Uma mulher jovem, bonita. Logo a reconheci, era uma das
secretárias da revista Nova. Usava óculos sem aro, tinha olhos
azuis, lábios nos, sem batom.
Fiz um gesto para que ela entrasse. Hesitou.

“Entre, por favor.”


Ela entrou e cou imóvel no centro da sala.
“Quer beber alguma coisa?”
“Um copo de água.”
Como bebem água, as mulheres.

Pedi que ela se acomodasse numa das poltronas e trouxe um


copo de água para ela, que bebeu com sofreguidão, como
alguém que estivesse abandonado no deserto.
“Doutor Mandrake… meu nome… meu nome é…
Mercedes… Eu trabalho…”
“Eu sei, você trabalha na revista Nova. Eu estive lá e a vi…”
“Doutor Mandrake, Ari e eu estamos apaixonados e
queremos fugir juntos para bem longe…”
“O senhor Ari vai abandonar a mulher? O dinheiro da Nova é
da dona Heloisa, ele não tem dinheiro, pelo que sei…”
“Eu… eu…”
Calou-se. Encolhida, parecia ter diminuído de estatura, como
se tivesse tirado os sapatos de salto alto que usava. Notei que
roía as unhas, com os olhos fechados. Quando os abriu
estavam foscos.
“O que a senhora ia dizer?”
“Queremos que o senhor nos ajude…”
“Para poder ajudá-los, a senhora tem que ser franca comigo.”

“Franca?”
“Falar a verdade. Não pode car escondendo coisas de mim.”
Calou-se novamente.
“Dona Mercedes, passe amanhã no meu escritório. Se eu não
puder atendê-la, o meu sócio, doutor Weksler…”
“Não, não, o Ari disse para eu falar com o senhor!”
“Então fala.”
Voltou a roer a unha com os olhos fechados. Aquilo
começava a me irritar.
“Onde vocês vão arranjar dinheiro para isso… fugir para
longe? Quanto mais longe, mais caro.”
“Meu trabalho é cuidar da parte nanceira. Tenho desviado
dinheiro sem que a… a… a dona Heloisa perceba. Dá para
fugir para bem longe.”

“Para que essa encenação toda? Vocês estão com dinheiro, é


só comprar duas passagens para Tanganika e pronto. Dizem
que lá tem um lago muito bonito.”
“Ela acha a gente até onde o Judas perdeu as botas.”
“Com quem a senhora aprendeu essa frase?”

“Com a minha avó. Ela dizia isso quando falava de um lugar


longe.”
“Dona Mercedes, sinto muito, mas não posso fazer isso.”
Ela me olhou como se fosse chorar. Não posso ver uma
mulher chorando, corta o meu coração.
“Eu… eu…”
“Peço que a senhora se retire, estou esperando uma visita, e
tenho que trocar de roupa”, eu disse olhando para o relógio,
sem coragem de encará-la.

Saí da sala. Entrei no meu quarto, fechei a porta. Estava


sentindo… nem sei o que estava sentindo, arrependimento,
tristeza, remorso? Tudo isso. Deitei na cama. Demorou uma
eternidade para eu ouvir a porta da sala sendo fechada. Olhei o
relógio. Dois minutos apenas foi o tempo que Mercedes
demorou para sair.

4
Durante uma semana quei trabalhando no escritório e
levando duas mulheres para a cama. Não consigo ter uma
mulher apenas, gosto de três, no mínimo duas, uma só jamais.
De jeito nenhum. Agora só tenho duas. A que desenhou o
coração na parede eu rifei.

Então aconteceu.
“Mandrake, o Raul está no telefone. Quer falar com você”,
disse o Weksler.

Atendi.
“Mandrake. Posso passar aí?”
“Agora estou ocupado. Que tal almoçarmos? Naquele
restaurante português do centro? Meio-dia e meia?”
 
Quando cheguei ao restaurante, Raul já estava lá.
Pedimos uma bacalhoada com vinho tinto.

“Minha mulher me botou para fora de casa. Esqueci no bolso


um bilhete de uma dona que eu comia, ela viu e fez um
escarcéu dos diabos. Estou morando num apart-hotel perto da
sua casa.”
“Era isso que você queria me contar?”
“Não, só estou desabafando. O que eu queria conversar com
você é o seguinte: uma mulher foi encontrada morta, com um
tiro no peito, pelo marido. Ele chamou a polícia e os peritos
encontraram no bolso da calça comprida que ela usava quando
foi morta um papel em que estava escrito Mandrake.”
“Que mulher é essa?”
“O nome dela é Heloisa Silva. É, era casada com…”
“Eu sei quem é. Quando ela foi morta?”
“Ontem à noite. Como sou delegado da Homicídios, assumi o
caso. Só existe um Mandrake no mundo: você.”
Contei para Raul a história do Ari Silva. Não falei da
Mercedes.
“Um mistério interessante”, disse Raul. “O que o Weksler
acha?”
“Ele ainda não sabe. Quando acabarmos o almoço vamos
para o escritório contar para ele.”
 
Quando chegamos ao escritório, Weksler me recebeu com
aquela cara de encarcerado em Buchenwald.
“Está duro carregar sozinho o escritório nas costas”, disse
Raul, sorridente.
Weksler manteve a cara triste, fechada.
“Conta tudo para ele, Raul.”

Weksler ouviu, calado.


“Tiro no peito? Que calibre?”
“Calibre 22”, respondeu Raul.
“Você falou com o marido?”
“Falei. Disse que foi jantar com um cliente da Nova, um
anunciante, e quando voltou encontrou a mulher morta. Ele
está muito deprimido.”
“Está ngindo”, disse Weksler.
“O cliente é um tal de Silvério Santiago, dono da fábrica de
perfumes Bougainville. Ele con rmou que esteve com o Ari
Silva das 21 às 23 horas. O perito calculou que a dona Heloisa
deve ter sido morta às 22 horas. Eu pedi ao seu Ari que me
acompanhasse ao Laboratório da Polícia Cientí ca e ele
voluntariamente se submeteu ao exame pericial para ver se
havia resíduos de pólvora nas suas mãos. No caso do Ari deu
negativo.”
“Quem teria atirado nela?”
“Raul, o problema é seu. Eu e o Mandrake nada temos a ver
com isso”, disse Weksler.
Protestei: “Eu estou muito interessado nesse caso, Lejb
Weksler.”
“Weksler”, disse Raul ironicamente, “o Mandrake vai me
ajudar, enquanto isso você carrega o escritório nas costas
sozinho”.
Weksler saiu da sala.
Raul foi embora.
Fui até a sala do Weksler.
“Weksler, você é o meu melhor amigo.”

“Você não tem amigos”, ele respondeu. “Nem amigas. Suas


amigas na verdade são… são…”
Estávamos em pé no meio da sala. Dei um abraço nele. Vi
que isso o havia comovido.

5
Cheguei em casa, tomei um banho, vesti uma bermuda e uma
camiseta, peguei meu caderninho de endereços.
A alemã chama-se Ruth, é judia, o nome dela em hebraico
signi ca “amiga”. Ela diz que seu nome é de uma personagem
bíblica, que tem sua história contada no livro de Rute, presente
no Antigo Testamento. Rute era uma moabita, natural de uma
região antiga que atualmente seria localizada na Jordânia, e
conta no seu livro ser descendente do rei Davi. O avô e a avó da
minha Ruth morreram num campo de concentração em
Belsen. Dos nove milhões de judeus que residiam na Europa,
cerca de dois terços foram mortos, mais de um milhão de
crianças, dois milhões de mulheres e três milhões de homens
na carni cina nazista. O pai de Ruth escapou porque estava
visitando uns parentes na Suíça. Quando a guerra acabou, o pai
veio para o Brasil, conheceu uma moça judia, casou com ela e
nasceu a Ruth. Ruth gosta de ler e faz regime, diz que se
engordar eu a abandono, o que é verdade, não gosto de mulher
gorda. (Já tive uma namorada judia chamada Berta Bronstein.
Gosto de mulher inteligente, e as judias são inteligentes. Eu e a
Berta jogávamos xadrez todos os dias, pelo menos três
partidas. Ela ganhava sempre as duas primeiras e eu ganhava a
terceira, quer dizer, ela deixava eu ganhar. Eu não era
adversário para a Berta. Eu amava Berta, mas a minha satiríase
impelia-me a amar outras mulheres simultaneamente. Berta
descobriu e sumiu da minha vida. Nunca mais joguei xadrez.
Nem sei onde estão o tabuleiro e as peças.) Tenho medo que
Ruth descubra a existência da minha outra namorada. As
mulheres judias são muito ciumentas. Elas são muito tudo.
Minha outra namorada chama-se Elvira, mas detesta o seu
nome e gosta de ser chamada de Vivi. Diz que é carioca da
gema e frequenta o bar Carioca da Gema, na Lapa. Come todos
os acepipes do bar, bolinho de bacalhau, enroladinho de queijo
prato, sanduíches de pernil, lé mignon e peito de peru; e
pratos quentes, como penne à bolonhesa e casquinha de
bacalhau. A sobremesa é sempre a mesma: torta de chocolate.
Bebidas ela traça todas, cerveja, chope, caipirinhas de frutas,
cachaça. Mas essas porcarias não fazem efeito nela, é magra,
muito magra, um biótipo que deve ser hereditário.
Ou seja, são duas mulheres inteiramente diferentes. Aliás,
não tem sentido o cara ter duas mulheres parecidas.
Fiquei olhando o meu caderninho de endereços. Na dúvida
para qual delas ligaria, Ruth ou Vivi, escolhi Ruth. Notei pelo
som de sua voz que ela cou feliz quando a convidei para vir à
minha casa. Perguntou se podia demorar umas duas horas. Eu
disse que estava bem.
Peguei um livro de poesias para ler. Não sei se já disse que
gosto muito de duas coisas, mulher e poesia. Peguei o Ferreira
Gullar na estante e quei lendo.
Então o telefone tocou. Era o Raul.
“Mandrake, você conhece uma moça chamada Mercedes?”
“Não, acho que não.”

“Você está começando a se enrascar, Mandrake, isso me deixa


preocupado.”
“Raul, quem ca enrascado é peixe”, eu disse.

“Mandrake, não estou brincando. Essa Mercedes, nome


completo Mercedes Penido, trabalhava na revista Nova.”
“Ah, sim, tenho uma leve lembrança.”

“Morreu assassinada. Tiro de 22 na nuca. Na mesinha de


cabeceira do quarto dela havia um papel com o seu nome e
endereço.”
“Porra, Raul, isso está parecendo o tal jogo da velha.”
“Passa aqui na delegacia. Estou te esperando.”

Puta merda. Liguei para Ruth, senti o desapontamento na sua


voz. Expliquei que um cliente estava detido na polícia, um
problema que eu tinha que resolver etc.
A caminho da delegacia, quei recordando a visita que
Mercedes me zera, pedindo-me que participasse de uma
tramoia para iludir a mulher do Ari, para poder fugir com ele,
tudo muito esquisito. Agora a bomba explodia na minha mão,
mais uma vez. O morto ou morta sempre me conhecia ou tinha
um papel no bolso com o meu nome. Puta merda.
“Puta merda”, eu disse em voz alta no meio da rua. Senti um
certo alívio quando disse o palavrão, o doutor Sigmund deve
ter uma boa explicação para isso.
Cheguei na delegacia. O Raul estava nervoso.
“Caralho, Mandrake, que diabos está havendo?”
“Raul, estou mais confuso do que você. Eu conhecia todas
essas pessoas, o Ari, a Heloisa, mulher dele, a Mercedes, que
era funcionária da Nova, mas que motivos eu tinha para matar
as duas mulheres e tentar assassinar o Ari? E não tenho nem
nunca tive um revólver calibre 22. Acho essa arma uma merda,
só gosto de 45.”
Contei para Raul a visita que a Mercedes me zera, sua
proposta, minha recusa.
“Puta que pariu, Mandrake, agora você esconde coisas de
mim. Você comia essa Mercedes? Eu vi o corpo antes da
necropsia no Instituto Médico Legal e mesmo morta ela era
bonita.”
“Nem peguei na mão dela.”
“Pra comer não precisa pegar na mão.”
“Raul, estou dizendo que não comi, palavra de honra.”
Contei novamente para o Raul a visita que recebera da
Mercedes, a nossa conversa etc.
“Essa história podia ser a de um desses lmes em que de
repente aparece um zumbi, disco voador, saci-pererê.”
“Raul, não tem lme com saci-pererê.”
“Acabei de instaurar um inquérito policial, autor ou autores
desconhecidos. Não sei se vou conseguir tirar você dessa
enras… complicação. Vamos almoçar lá no portuga, com um
Alvaralhão? Sabia que o Eça de Queiroz bebia esse vinho? Você
leu A ilustre casa de Ramires, não leu?”
Antigamente nós tomávamos vinho Faísca ou Periquita. Mas
isso eu não comentei com Raul.
“Raul, hoje eu não posso. Fica marcado para outro dia.”

6
Fui para o escritório levando os chocolates de dona Matilde.
Matilde, como sempre nervosa, saiu da sua mesa na sala de
espera e me disse, gaguejando (esqueci de dizer que ela quando
cava nervosa gaguejava) que dona Raimunda das Dores
estava na sala do doutor Weksler.
Dona Raimunda estava sentada numa cadeira em frente à
mesa do Weksler. Os dois estavam calados. Quando me viu,
dona Raimunda se levantou e me deu um abraço. O trabalho
do nosso escritório para ela era pro bono, ou seja, nada
recebíamos.
“Dona Raimunda, a senhora pode ir para a sala do doutor
Mandrake”, disse Weksler.
Por alguns instantes quei com Weksler, em sua sala.
“Mandrake, deixa pelo menos ela tratar dos dentes. Não
consigo nem olhar para o rosto da dona Raimunda, aqueles
dentes todos partidos, além do rosto inchado das pancadas que
recebeu…”
“Weksler, vou repetir. O marido, Zenóbio das Dores, batia
nela quase que diariamente, um dia na cozinha ela foi se
defender e usou a chaleira que tinha na mão. O marido dela,
que como sempre estava embriagado de cachaça, ao se afastar,
escorregou no assoalho molhado, bateu com a cabeça na beira
da pia e morreu. Ela está sendo processada e eu quero que
quando for prestar depoimento em juízo apareça assim toda
escalavrada, entendeu?”

“Só os dentes, o rosto inchado ca…”


“Weksler, os dentes são fundamentais.”
Ele fez a sua cara Buchenwald e eu saí rápido da sala.
Fui para a minha sala. Dona Raimunda estava sentada no
sofá e se levantou quando entrei.
Eu me sentei e z com que ela se sentasse ao meu lado.
“Dona Raimunda, amanhã a senhora vai depor em juízo. A
senhora terá apenas que dizer a verdade, não invente nada, não
minta, apenas a verdade. E não sinta vergonha de contar tudo o
que o seu marido fazia com a senhora, esse pessoal da justiça
está acostumado com histórias piores do que a da senhora.”
“Sim, senhor, doutor Mandrake, pode deixar.”
Pelo interfone pedi a Matilde que trouxesse um cafezinho
para a dona Raimunda.
 
Logo depois que Raimunda saiu, Matilde entrou e disse que
na sala de espera estava uma moça que queria falar comigo.
“Qual é o nome dela?”
“Não disse. Parecia muito nervosa. Pobrezinha…”
“Está bem. Manda entrar.”

 
Era uma jovem muito bonita, vestida de maneira discreta.
“Doutor Mandrake, o meu nome é Julia, sou lha de Ari
Silva.”
“Tenha a bondade”, eu disse, puxando a cadeira para ela
sentar.
Julia estava muito nervosa.
“Minha mãe sumiu…”
“O senhor Ari me disse que a sua mãe havia morrido.”
“Ele disse isso?”
“Sim, disse.”

“Minha mãe estava internada em uma casa de saúde. Aliás,


ótima, um quarto só para ela, excelentes atendentes, uma
biblioteca com todo tipo de livro… Ela era alta funcionária de
uma grande empresa e tinha um excelente plano de saúde.
Recebe uma boa aposentadoria.”
“Qual é o problema dela…?”
“Mamãe é maníaco-depressiva. Hoje eles chamam de
transtorno bipolar.”
“Eu sei o que é isso. Ela sumiu como?”
“Deixou um bilhete dizendo que ia visitar o canal de Panamá.
Ela tem humor. A questão é que ela vinha retirando dinheiro
da sua conta bancária, na agência perto da casa de saúde.”
“Ela podia sair sozinha?”
“Ia acompanhada de uma atendente. Não tenho a menor
ideia de onde ela pode ter ido. Já vi que o meu pai não vai
ajudar em nada, inventou que ela morreu… A enfermeira disse
que ela devia estar completamente vestida, de casaco comprido
e uma pequena mala. Levou todos os sapatos. Dois pares.”
Toda mulher gosta de sapatos. Até as malucas. Uma amiga
minha disse que comprou um sapato por seis mil dólares na
Bergdorf Goodman em Nova York. O Weksler a rma que isso
é mentira, que ela viu isso num documentário que passou
exaustivamente na televisão. Será que além de gostar de sapatos
toda mulher mente?

“Contou ao seu pai isso tudo?”


“Não, nós estamos brigados.”
“Quem lhe deu o meu endereço?”
“A advogada Mirtes Assis. Ela disse que só entende de direito
comercial e que eu devia procurar um advogado criminalista.”
“A doutora Mirtes é uma advogada muito e ciente”, eu disse.
“Nós estamos noivas, pensamos em nos casar ainda este ano.
Nos Estados Unidos.”
“Meus parabéns antecipados”, eu disse sinceramente. “Mas
não sei se a senhora sabe que o reconhecimento entre pessoas
do mesmo sexo no Brasil como entidade familiar, por analogia
à união estável, foi declarado possível pelo Supremo Tribunal
Federal em 2011. Desta forma, no Brasil, são reconhecidas às
uniões estáveis homoafetivas todos os direitos conferidos às
uniões estáveis entre um homem e uma mulher.”
“A Mirtes me disse isso. Mas vamos casar nos Estados Unidos
e aproveitamos para fazer a nossa viagem de núpcias.”
“Dona Julia, deixe por favor os seus endereços, telefones, e-
mails etc. com a minha secretária. Eu vou falar com os meus
amigos da polícia e volto a conversar com a senhora.”
 
Liguei para o Raul. Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele
me falou que precisava muito conversar comigo. Pessoalmente.
Pediu-me para passar na delegacia, o mais rápido possível.
Quando cheguei à delegacia, Raul me disse que o pessoal da
Roubos e Furtos havia prendido um receptador de nome
Pedro, apelidado Pedro Capenga, que tentara vender um colar
de pérolas numa loja de joias dizendo que era da sua mãe, que
acabara de falecer. O dono descon ara e chamara a polícia. O
tira que prendeu Pedro Capenga cou impressionado com o
colar e apertou o receptador, que contou que quem lhe
repassara a joia para vender fora o ladrão Bata. Eles prenderam
o Bata.
“Sabe de quem ele roubou o colar? Da dona Heloisa Silva.
Vamos lá na Roubos e Furtos.”

 
A Roubos e Furtos cava num prédio velho no centro. O
delegado nos recebeu, o nome dele era Jonas.

“Jonas, este é o doutor Mandrake, nós viemos ver o Bata e o


Capenga.”
“Já pedi ao juiz a prisão preventiva de ambos”, disse Jonas.

Em seguida, pediu a um tira que fosse ao xadrez e trouxesse o


Bata e o Capenga.

O Bata era um anão careca. Pensei que não existisse anão


careca, só no circo. Nos meus casos sempre existe um anão,
pode ser no princípio, no meio ou no m. É só no m do caso
que eu sei que é o m.
“Bata, conta para o doutor Mandrake a história do furto do
colar.”
O anão disse que invadiu a casa para roubar e viu a mulher
morta, cou amedrontado e furtou apenas o colar, depois fugiu
com medo de também levar um tiro.
Jonas me mostrou o colar. Nas mãos as pérolas mostravam
que eram seres do mais profundo e negro mar do mundo.
“Veja como as coisas acontecem, um colar de valor
incalculável, constantemente exibido pela dona Heloisa, some
quando ela é assassinada e ninguém percebe”, eu disse.
“Puta merda”, disse Raul.
“Doutor, posso ter uma palavrinha em particular com o
senhor?”, disse o Bata, para mim.
“Palavrinha particular é o caralho”, disse Raul.
“Calma Raul… Delegado, posso falar com ele?”
“Pode”, disse Jonas.
Eu e o anão fomos para um canto da sala.
“O senhor sabe, doutor, que os anões ouvem e veem melhor
do que os outros. Não sabe?”
“Não, senhor… Bata. Nome estranho”, eu disse.
“Meu pai era um homem muito culto, eu tenho o ginásio
completo, o meu nome é Nefelibata, mas só uso o
diminutivo… Doutor, quando entrei no quarto da mulher
morta, senti que havia mais alguém lá. Ouvi o som da
respiração da pessoa. Por um instante uma luz rápida passou
no quarto e pude ver uma parte do rosto e os olhos da pessoa,
não deu para ver se era homem ou mulher, mas aqueles olhos
eu jamais esquecerei. Eu peguei o colar e saí correndo, nós
anões quando sentimos medo corremos mais rápido do que
um cão raivoso. Estou com medo. Essa pessoa me viu, pode
querer acabar comigo pensando que posso identi cá-la.”
Fiquei preocupado. Já disse que em muitos dos meus casos eu
conheci anões. Não me lembro de todos, mas lembro que
alguns morreram assassinados.
“Raul. Fica de olho no nosso…”
“No anão?”
“Eu ia dizer nosso baixote.”
“Ele não é problema meu, é do Jonas.”
“Vou pedir a prisão preventiva dele e do Capenga”, disse
Jonas.

7
Fui direto para casa e liguei para Ruth.
Ela não demorou a chegar. Fomos correndo para a cama.
Fazíamos amor, parávamos por um momento, líamos um
pouco de poesia, fazíamos amor, repetíamos essa maravilha
várias vezes. Antes de dormirmos, Ruth leu para mim um
poema em hebraico de Yehuda Amichai e depois traduziu para
o português. Confesso que achei ainda mais bonito em
hebraico, conquanto não entenda a língua de Abraão, sei
apenas algumas palavras como Shalom, Mazel tov, L’ chayim.
Enquanto dormíamos, como sempre acontece, Ruth grudou
em mim e toda vez que eu tentava me desvencilhar, mesmo
dormindo, ela me agarrava com mais força. Todas as mulheres
fazem isso quando amam os homens com quem acabaram de
fazer amor.
Levantei da cama todo dolorido.
Estava tomando café com Ruth quando o meu celular tocou.
Era o anão.
“Doutor Mandrake, preciso falar muito com o senhor.”
“Vou dar uma passada na Roubo e Furtos.”
“Não estou mais lá. O juiz não decretou a prisão preventiva
solicitada pelo doutor Jonas. Eu e o Capenga vamos ser
processados em liberdade.”
“Então comporte-se, senhor Nefelibata, deixe de viver nas
nuvens”, eu disse, achando graça no que dizia.
“Não entendi, doutor Mandrake.”
“Eu estava brincando.”
“Doutor Mandrake, tenho que contar uma coisa para o
senhor.”
“Pode contar.”
“Tem que ser pessoalmente.”
“Está bem. Onde?”

“O senhor sabe onde é a Lapa?”


“Claro, todo mundo sabe.”
“Embaixo dos Arcos. Amanhã às três horas?”
“Combinado. Quinze horas. Três horas.”
O anão estava muito nervoso. Quando um anão ca nervoso
ele rói as unhas. Eu ouvia o barulho do Bata roendo as unhas.
Ou pensava que ouvia.
“Quem era?”, perguntou Ruth.
“Um cliente.”
Fizemos amor mais uma vez e eu disse a Ruth que precisava
ir ao escritório.
 
Weksler me recebeu nervoso.
“É hoje a audiência de instrução e julgamento da dona
Raimunda. Ela está na sua sala.”
Dona Raimunda me recebeu com um sorriso. Os dentes da
frente estavam todos partidos, mesmo assim o seu sorriso foi
bonito. Ela estava bem arrumada, com uma bolsa ordinária a
tiracolo.
Fomos de táxi para a Vara Criminal que cava no centro da
cidade, na avenida Venezuela, perto da Gamboa.
O juiz vestia uma toga preta, também conhecida como beca.
Era um homem ainda jovem, por volta dos quarenta. Eu sabia
como a coisa se realizaria, o juiz ouviria as declarações de uma
testemunha, uma vizinha de dona Raimunda chamada Maria
Pereira, e nalmente da acusada Raimunda das Dores.
O promotor era um jovem recém-formado, simpático.
Resumindo. Depois que dona Raimunda depôs, naquele
estado deplorável, o próprio promotor aceitou a tese da
legítima defesa. Eu falei no máximo cinco minutos. O juiz
exarou logo a sentença absolvendo dona Raimunda.

Levei dona Raimunda e a vizinha, dona Maria, para casa. Dei


um bolo de dinheiro para dona Raimunda. “Para consertar os
seus dentes”, eu disse. Ela agradeceu, beijando as minhas mãos.
 
Quando cheguei ao escritório, Weksler estava lendo um livro
na sala dele.
“Este livro é sobre metafísica”, Weksler disse. “Sou um
ontológico, ontológico aristotélico.”
“Vai plantar batatas, Weksler. Vamos ao que interessa: o juiz
absolveu dona Raimunda. Outra coisa, amanhã vou me
encontrar na cidade com o Bata.”
“Ele não está preso?”
“O delegado pediu, mas o juiz não decretou a prisão
preventiva. Ele e o Capenga vão ser processados em liberdade.”
“Por que ele não vem aqui ao escritório?”
“Ele disse que tem medo de você.”
“Mandrake, você pensa que é muito engraçado. Deixa eu ler
o meu livro em paz.”
 
Quando cheguei ao meu apartamento, liguei para a Vivi. Eu
gosto de ter no mínimo duas mulheres, já disse isso. Li, não me
lembro onde, um artigo de um cientista alemão que dizia que o
cara que não consegue ter apenas uma mulher sofre de uma
espécie de impotência. Essa forma de impotência me agrada,
espero sofrer dessa síndrome durante muitos anos.
Vivi não estava. Ruth também não. Ter apenas duas mulheres
pode causar esse tipo de problema.
Decidi usufruir do meu segundo melhor prazer: ler poesia.
Escolhi seis livros na estante de poesia, três em português, dois
em inglês e um em espanhol, idiomas que domino igualmente
bem. Para ler poesia você tem que conhecer muito bem a
língua em que lê.

8
Às 14h45 eu já estava na Lapa, nos Arcos. Gosto da Lapa,
lembro-me do bondinho deslizando por um trilho nos Arcos,
construído há centenas de anos para servir de aqueduto. Fiquei
olhando para os Arcos, sentindo uma emoção agradável. Tem
gente, esse pessoal da zona sul, da Barra, que nunca viu os
Arcos, aliás, esses putos nem conhecem o Centro da cidade.

Esperei mais de uma hora e o Nefelibata não apareceu.


Sempre pensei que os anões fossem pontuais. Em matéria de
nomes próprios, o meu caso estava complicado, um Nefelibata,
um Aristófanes, um Percílio…
Meu celular tocou. Era o Raul.
“Mandrake, onde você se meteu? Estou aqui no seu
escritório, preciso muito falar com você.”
“O Weksler não disse que saí para encontrar o Nefelibata?”
“É sobre esse anão que eu quero falar com você.
Pessoalmente. Urgentemente. Puta merda.”
“Já estou indo, chego em poucos minutos.”
Peguei um táxi.
Quando cheguei ao escritório, o Raul me recebeu dizendo:
“Puta merda, mataram o anão.”
Confesso que quei surpreso.
“Como?”
“Ele estava sozinho no sobrado onde morava, numa rua
perto da Riachuelo, no Centro. Dois tiros de .22, na cabeça.”
“Puta merda.” Desta vez o puta merda foi meu. “O anão viu,
ou melhor, vislumbrou quem matou dona Heloisa, no
momento em que roubou o colar de pérolas. Ia falar comigo
sobre isso em nosso encontro.”

“Por que ele não contou logo?”


“Não sei.”
“E como o assassino…”
“Ou assassina, não se esqueça, pode ser uma mulher. E uma
.22 é arma de mulher.”
“Ou de um homem que quer ngir que é uma mulher. Seja lá
quem for, como é que sabia que o anão ia revelar a sua
identidade?”

“Boa pergunta, Raul.”


“O tal Capenga, temos que falar com esse cara. Sei onde ele
mora, na ladeira do Castro, no Centro. Vou lá agora. Você quer
ir? A camionete da polícia está aqui na sua rua.”
 
Entramos na camionete, um verdadeiro calhambeque, guiado
por um tira gordo. O trânsito estava horrível. Cada vez tem
mais carro atravancando as ruas, buzinando, motoristas
suando e xingando.
Paramos o carro no início da ladeira do Castro e fomos
andando, Raul e eu, até o prédio onde o Capenga morava. Era
um sobrado, a pintura descascando, as escadas com corrimãos
partidos. Raul bateu na porta. Sem resposta. Bateu com mais
força. Idem.
Raul empurrou a porta com o ombro e quebrou a fechadura.
“Tudo aqui é ordinário, um pirralho arrombava essa porta”,
disse.
Era um quarto e sala, que tinha um banheiro com chuveiro e
latrina. Havia uma cômoda com algumas roupas.
“O Capenga é um fodido que só tem um par de sapatos”, disse
Raul, “o puto saiu com eles”.

Voltamos para a camionete da polícia.


“Onde será que esse puto se meteu?”
“Não tenho a menor ideia”, respondi.
Quando a camionete começava a se afastar da ladeira do
Castro, o Raul viu o Capenga.
“Olha ele ali”, disse Raul.
O Capenga carregava uma saca na mão.
“Capenga”, gritou Raul, saltando do carro que havia parado.
Fomos ao encontro dele.
“Você tem notícias do Bata?”, perguntou Raul.
“Ele foi se encontrar com o doutor Mandrake.”
“Bata não apareceu.”
“Não sei aonde ele pode ter ido. Ele disse alguma coisa para o
senhor?”
“Não, nada”, respondi.
“Você pode passar na Delegacia de Homicídios amanhã?”
“Posso. A que horas?”
“À tarde.”
“Quer que o Bata vá também?”
“Ele não precisa ir, só você.”
Entramos na camionete novamente.
“Ele não sabe porra nenhuma”, disse Raul. “Eu tenho pensado
muito neste assunto e a nal tenho um suspeito. Quer saber
quem é?”
“Diga logo. Está querendo fazer suspense?”
“Ari Silva. Ele foi o maior bene ciário da morte da mulher. A
grana era dela, a mulher controlava ele, acho até que de vez em
quando dava umas porradas nele.”
“O exame de resíduo de pólvora nas mãos dele deu negativo.”
“Eu soube que só zeram o exame em uma das mãos, na
direita, ele é destro. Estou lembrando agora que o perito me
disse que zeram um teste na mão do suspeito, veja bem, na
mão, ele não disse nas mãos. Esse teste é complicado, ta
adesiva, rodizonato de sódio, reagentes colorimétricos e o
caralho a quatro, é uma coisa demorada e o laboratório está
assoberbado de trabalho, então examinaram só a mão direita. E
se o puto atirou com a mão esquerda, hein?”
“E a morte da Mercedes?”
“A garota que disse que eles eram amantes, que iam fugir,
aquela história de novela das seis? Muito simples. Ele comia a
Mercedes inventando que queria casar com ela etc. etc. Papo
furado, truque barato para comer mulher otária. Talvez ela
fosse cúmplice, en m, ela criaria problemas. Tiro na nuca
resolveu. O Bata deve ter reconhecido ele. Tiro na nuca. Agora
o puto está com a faca e o queijo na mão.”
“Não sei não, Raul. Estou achando sua história… como direi,
boa demais.”
“E boa, para você, só mulher. Quantas mulheres você está
comendo?”
“Duas.”
“Duas? Só duas? Epa, isso é o começo da brochura. O que
você vai fazer quando car brocha?”
“Me atiro da ponte. Acho bacana morrer afogado e sumir.”

9
Durante algum tempo quei livre do assassino do Calibre 22.
Nesse momento, depois do episódio do Bata, estou aqui em
casa descansando. Ter duas mulheres é mais complicado do
que ter três ou quatro. Quando só tem duas você ca
descuidado, negligente, desatento, e isso é foda. As mulheres
têm uma espécie de radar, um sistema de detecção que capta a
existência de outra mulher na cabeça do seu homem. Parece
coisa de maluco, mas se você tem mais de duas mulheres na
verdade você não pensa em nenhuma delas, mas, se só tem
duas, você pensa nelas o tempo todo. Não, não tem nenhuma
explicação cientí ca para isso. Mas a ciência não desvenda
todos os mistérios, muitos lhe são incompreensíveis,
inexplicáveis, indevassáveis, enigmáticos. Mas o fato é que
neste momento estou pensando em Ruth e em Vivi e não sei
para qual das duas devo telefonar. Se tivesse três ou quatro
mulheres não teria dúvidas, seria fácil decidir. Entenderam?
Não? Eu também não, creio que tomei Alvaralhão demais.
Eu estava dormindo, embriagado, no sofá da sala quando a
campainha tocou. A primeira coisa que vi foi a garrafa de
Alvaralhão vazia. A campainha continuou a tocar. Era o
celular.
“Mandrake. Passa aqui na delegacia, rápido, não quero falar
pelo telefone.”
“A essa hora?”
“Porra, são oito horas, a noite mal começou.”
Porre é uma merda.
“Já estou indo, Raul.”
Eu já estava vestido. Troquei a camisa e saí.
 
Raul estava nervoso.
“Se eu contar você não acredita. Não acredita”, ele disse.

“Então conta logo.”


“Mataram a Mirtes, a sua amiga advogada. Calibre 22.”
Era mesmo inacreditável.
“Calibre 22?”
“Isso, o mesmo assassino lho da puta. E nós sabemos quem
é. O Ari Silva. Matou a namorada da lha dele. Já intimei o
cara para vir à delegacia e vou arrancar os colhões dele. Ele
deve chegar daqui a meia hora.”
“Raul, você não tem nenhuma prova de que foi ele.”
“É uma dedução lógica.”

“Dedução é a mesma coisa que palpite. Mera suspeita.”


“Não se meta, Mandrake. Eu sou o delegado.”
Resolvi esperar o Ari Silva chegar.
Ele foi pontual. Estava acompanhado do advogado criminal
Barros Mendonça, um fodão.
Barros Mendonça era um homem de cerca de setenta anos,
ainda em forma. Diziam que era muito mulherengo, devia ser
essa a razão, mulher deixa o sujeito em bom estado físico. E
mental, é claro.
“Gostaria de saber o propósito deste… convite para
comparecer à delegacia. O meu cliente, o senhor Ari Silva,
apenas se pronti cou a vir por ser um homem educado.”
“O motivo é uma investigação criminal. Seu cliente é
suspeito.”
“Isso é ridículo!”, exclamou Ari.
Barros Mendonça fez um gesto para ele se acalmar.
“Então, doutor… como é o seu nome mesmo?”, perguntou o
advogado.
“Delegado Raul. Sou o titular da Homicídios.”
“Então, doutor Raul, faça o favor de enviar ao meu cliente
uma intimação legal, de acordo com os procedimentos
jurídicos. Vamos embora, senhor Ari.”
Ari e o seu advogado se retiraram, após uma saudação fria,
um meneio de cabeça do advogado. Raul cou com cara de
besta, me olhando.
“Eu falei, Raul. Você tem que ser mais paciente.”
“Paciente”, esbravejou ele, “quantas pessoas já foram
assassinadas por esse lho da puta? Cinco. Vou esperar ele
matar a sexta?”

“Raul, só quatro pessoas foram assassinadas”.


“Porra, qual é a diferença, quatro ou cinco, caralho, tenho
que prender esse, esse…”

“A Mirtes era uma boa amiga minha”, eu disse. “A Julia já


sabe?”

“Ela está viajando”, respondeu Raul.


 
Dois dias depois, apenas dois dias depois, uma bomba. Ari
Silva, o suspeito favorito do Raul, foi assassinado no seu
apartamento. Ele estava na cama. Tiro na nuca, calibre 22. O
assassino entrara e saíra do apartamento sem que quaisquer
dos inúmeros empregados percebesse.
Fui à Delegacia de Homicídios levando um Partagás D4 para
o Raul. Ele estava jururu, macambúzio. O Partagás deu-lhe
algum ânimo, não muito. Se ele exclamasse, como costumava,
um puta merda! bem sonoro, seria um bom sinal. Nem mesmo
depois que acendemos os charutos ele saiu da sua prostração.
 

A Julia chegou de viagem. Veio ao meu escritório, chorou


muito. Entre soluços, dizia, “estava tudo preparado para o
nosso casamento”. Fiquei com muita pena dela, não sabia o que
dizer, segurei sua mão, gostaria de saber chorar, mas eu não
sabia, quanto mais infeliz e triste eu co, menos consigo chorar.
Julia me contou ainda que a sua mãe havia voltado para a
casa de saúde, dizendo que queria me conhecer.
“Ela estava onde?”
“Niterói. Disse que queria muito conhecer Niterói, andar na
barca.”
 
Os crimes do Assassino do Calibre 22, como ele era
conhecido, causaram um grande alvoroço na mídia. Jornais,
televisões, internet agitavam-se entusiasmados com aquela
atraente matéria, as vítimas em sua maioria eram pessoas ricas
ou importantes, a sociedade gosta de saber da desgraça dos
outros, uma mistura de inveja e maldade, algumas das
características básicas do ser humano.
Para frustração da mídia, as mortes cessaram. O Assassino do
Calibre 22 saiu das manchetes. Em pouco tempo não aparecia
nem nas páginas internas dos jornais. Na televisão, foi sumiço
instantâneo. Não demorou muito para até o Raul chutar o
Assassino do Calibre 22 para corner. Fomos comer uma
bacalhoada com Alvaralhão, depois fumamos uns Partagás e
nem tocamos no assunto.
 
Julia continuava me azucrinando, dizendo que sua mãe
queria muito conversar comigo. Acabei concordando.
Fui levado por Julia até o local onde sua mãe residia. Julia
estava com outro aspecto. Creio que tinha arranjado uma nova
namorada. Werther é pura cção.
A casa de saúde parecia um hotel cinco estrelas. A mãe de
Julia, que se chamava Juraci, era uma mulher de uns sessenta
anos, muito simpática.
“Vou deixar vocês sozinhos, tenho uma porção de coisas para
fazer”, disse Julia se despedindo.
Juraci pegou o meu braço e disse, “vamos para aquela sala lá
fora”.
Era um terraço, com mesas e cadeiras de vime almofadadas.
“A senhora sumiu e deixou todo mundo preocupado”, eu
disse quando nos sentamos.
“O senhor conhece Niterói?”
“Claro, já estive lá várias vezes.”
“Eu não conhecia. Gostei muito. Fui com outro objetivo, mas
acabei tendo essa surpresa prazerosa. Eu peguei a barca para
jogar a minha pistola .22 no mar, o que z, é claro, depois saltei
em Niterói e acabei passando o dia lá.”

Vários pensamentos voltearam pela minha cabeça: essa


mulher é louca; ela sabe da arma .22, isso saiu em todos os
jornais etc. etc. Mas quei calado.
“O senhor… como é o seu nome mesmo?”
“Mandrake.”
“Nome estranho esse. O senhor devia mudar o seu nome
para José.”
“José é o meu primeiro nome.”
“Eu não gosto do meu nome. Juraci é um nome indígena. Eu
tenho cara de índia?”

“Não, não tem. Mas a senhora jogou o revólver no mar. E


depois?”
“Missão cumprida, entendeu?”

“Não, não entendi.”


“Eu já tinha matado quem devia ser morto. Só quei com
pena de matar aquele gatuno, o tal de… esqueci o nome dele.”

“Nefelibata.”
“Isso, Nefelibata, mas ele tinha visto o meu rosto quando eu
acabara de destruir aquela virago, a Heloisa. Esse Ne qualquer
coisa está pesando na minha consciência.”
“E o outros?”
“Os outros? O Ari era um canalha, me largou para casar com
aquela milionária nojenta, inventou que eu havia morrido. A
Mercedes, porque era uma farsante, inventou que o Ari queria
casar com ela para dar um golpe em você e não sei mais em
quem.”
“E a Mirtes?”
“Ela fez a minha lha se tornar homossexual.”
“Isso não tem nada de mais.”
“Como não tem? Homossexualidade é uma doença. O senhor
está com uma sionomia incrédula. Não acredita no que digo?”
Hesitei em responder.
“Acredito.”
“Olha aqui, José, o problema do crer-ou-não-crer é seu. O
Assassino do Calibre 22 vai desaparecer. E o senhor vai car
com cara de besta, como se diz lá em Minas. Passe bem.”
Dona Juraci levantou-se e foi embora.
Estou passando o problema de crer-ou-não-crer adiante.
Vou tomar um Alvaralhão com o Raul.
O AUTOR
Contista, romancista, ensaísta, roteirista e “cineasta
frustrado”, Rubem Fonseca precisou publicar apenas dois ou
três livros para ser consagrado como um dos mais originais
prosadores brasileiros contemporâneos. Com suas narrativas
velozes e so sticadamente cosmopolitas, cheias de violência,
erotismo, irreverência e construídas em estilo contido, elíptico,
cinematográ co, reinventou entre nós uma literatura noir ao
mesmo tempo clássica e pop, brutalista e sutil — a forma
perfeita para quem escreve sobre “pessoas empilhadas na
cidade enquanto os tecnocratas a am o arame farpado”.
Carioca desde os oito anos, Rubem Fonseca nasceu em Juiz
de Fora, em 11 de maio de 1925. Leitor precoce porém atípico,
não descobriu a literatura (ou apenas o prazer de ler) no Sítio
do Pica-pau Amarelo, como é ou era de praxe entre nós, mas
devorando autores de romances de aventura e policiais de
variada categoria: de Rafael Sabatini a Edgar Allan Poe,
passando por Emilio Salgari, Michel Zévaco, Ponson du
Terrail, Karl May, Julio Verne e Edgar Wallace. Era ainda
adolescente quando se aproximou dos primeiros clássicos
(Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Cervantes) e dos
primeiros modernos (Dostoiévski, Maupassant, Proust). Nunca
deixou de ser um leitor voraz e ecumênico, sobretudo da
literatura americana, sua mais visível in uência.
Por pouco não fez de tudo na vida. Foi office boy,
escriturário, nadador, revisor de jornal, comissário de polícia
— até que se formou em direito, virou professor da Escola
Brasileira de Administração Pública e de Empresas da
Fundação Getulio Vargas e, por m, executivo da Light do Rio
de Janeiro. Sua estreia como escritor foi no início dos anos
1960, quando as revistas O Cruzeiro e Senhor publicaram dois
contos de sua autoria.

Em 1963, a primeira coletânea de contos, Os prisioneiros, foi


imediatamente reconhecida pela crítica como a obra mais
criativa da literatura brasileira em muitos anos; seguida, dois
anos depois, de outra, A coleira do cão, a prova de nitiva de
que a cção urbana encontrara seu mais audacioso e incisivo
cronista. Com a terceira coletânea, Lúcia McCartney, tornou-se
um best-seller e ganhou o maior prêmio para narrativas curtas
do país.
Já era considerado o maior contista brasileiro quando, em
1973, publicou seu primeiro romance, O caso Morel, um dos
mais vendidos daquele ano, depois traduzido para o francês e
acolhido com entusiasmo pela crítica europeia. Sua carreira
internacional estava apenas começando. Em 2003, ganhou o
Prêmio Juan Rulfo e o Prêmio Camões, o mais importante da
língua portuguesa. Com várias de suas histórias adaptadas para
o cinema, o teatro e a televisão, Rubem Fonseca já publicou 16
coletâneas de contos, uma antologia e 12 outros livros, entre
romances e novelas. Em 2013, lançou Amálgama, vencedor do
Jabuti de contos e crônicas. Em 2015, cou entre os nalistas
na mesma categoria com seu Histórias curtas. Agora, em 2017,
chega ao público seu livro mais recente, Calibre 22.
DIREÇÃO GERAL
Antônio Araújo

 
DIREÇÃO EDITORIAL
Daniele Cajueiro

EDITORA RESPONSÁVEL
Janaína Senna

PRODUÇÃO EDITORIAL
Adriana Torres
André Marinho

REVISÃO
Taís Monteiro

DIAGRAMAÇÃO
Filigrana

EDIÇÃO DIGITAL
S2 Books

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