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LEITURAS OBRIGATÓRIAS

Deixe o quarto como está (Amílcar


Bettega)
Profa. Maria
Prof. Rafa
Sobre o autor
Amílcar Bettega

- Nasceu em São Gabriel (1964) e vive em Porto Alegre;

- Formado em Engenharia, Doutor em Letras;

- Escritor, tradutor e professor;

- Autor dos livros O voo do trapezista (Movimento/IEL,


1994), Deixe o quarto como está (Companhia das Letras,
2002, vencedor do Prêmio Açorianos e menção honrosa
do Prêmio Casa de Las Américas, em Cuba, Os lados do
círculo (Companhia das Letras, 2004), vencedor do
Prêmio Portugal Telecom 2005, Barreira (Companhia das
Letras, 2013) e Prosa pequena (ZOUK, 2019, vencedor
do Prêmio Minuano.
Características de
suas obras Em meados do século XX, a produção
literária não se satisfez em descrever a
realidade. Há espaço maior para uma
- Domínio da técnica literária; proposta que vai além do retrato dos fatos
e costumes. De acordo com o crítico
literário Antonio Candido, a nova narrativa
- Mistura do banal com o fantástico;
da literatura brasileira, voltando-se à
realidade urbana, faz uma quebra com o
- Retrato de personagens buscando um pacto realista e não mais visa explicar o
sentido em meio a instabilidade da vida mundo com uma lógica realista.
urbana;
Desse modo, o fantástico surge para
- Escreve sem saber o que vai escrever (o traduzir a inquietude de um mundo
que reflete na consciência ou falta de contemporâneo intraduzível.
consciência de seus narradores e
personagens); Referência:
CANDIDO, Antonio. "A Nova Narrativa". In: A educação pela
noite e outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989, p. 199-215.
Características da obra
- Contos interligados (implícita ou explicitamente)

- Predominância de contos narrados em primeira


pessoa;

- Contos sobre situações banais com a presença de


elementos fantásticos que colocam em cheque a
veracidade dos relatos (os personagens estão ou não
delirando?);

- Narrativas circulares que retratam personagens


cansados e que não conseguem sair do lugar;
01. Autorretrato

Uma mulher e um homem estão em um jardim de uma casa grande. Ela, “a gorda”, está deitada no sol sem se mexer.
Ele, “o homem-cão”, está na sombra da árvore de vigia. Embora estejam no mesmo jardim, eles ocupam lugares
diferentes – a gorda no sol, o homem na sombra – o que já indica uma hierarquia, embora não saibamos o tipo específico
de relação deles. Quando dois meninos pulam o muro da casa e, sorrateiros, tentam invadir a casa, é que a narrativa
ganha movimento. O homem cão vai até os meninos, pega-os pelo cogote antes que eles consigam entrar na casa e
leva-os até a gorda, que continua estática. Em seguida, o homem pega a cabeça dos dois meninos, fazendo-as se
chocarem e, com um “ar paternal”, aguarda elas se recuperarem para levá-las até a gorda pela mão. A gorda, de maneira
muito sutil, se movimenta. “Sem mexer o resto do corpo, a gorda espicha o braço, assume um ar compungido, e roça os
nós dos dedos sob o queixo de cada um dos garotos, lentamente”. É por pouco tempo e é um movimento rápido, mas
esse gesto da gorda nos coloca uma grande interrogação, principalmente com o que vem a seguir, o que o narrador
talvez tenha visto: um possível choro da gorda. A gorda volta ao seu estado estático, o homem leva os meninos até o
portão, entrega uns doces a eles e deixa-os partir. Em seguida, acompanhamos somente o homem que pega um saco
de areia e começa a socar.
02. Exílio
O dono de uma loja anuncia que fechará a loja e partirá da cidade. Embora não revele o real motivo de sua partida,
podemos supor inicialmente que seja a falta de fregueses. O conto se passa no presente, mas apresenta um
flashback que nos mostra quem é o personagem, qual é sua rotina e como é a sua loja. É a partir de sua rotina que
podemos enxergar, ainda que com uma visão turva, pois jamais conseguiremos de fato alcançar a visão do todo, algo
desse personagem. Ele abre a loja, coloca-se atrás do balcão a espera de fregueses. Não tendo fregueses, logo, não
tendo dinheiro, ele não liga o ventilador e nem acende a luz, permanecendo o dia todo atrás do balcão no escuro. É
ali que almoça rápido, apresentando preocupações triviais que o humanizam, como a de não sujar seus dentes para
caso os clientes cheguem. Outra atitude do personagem é a de se esconder do sol. A sensação pós almoço, causada
pelo calor e pela digestão, é a de quem está ao mesmo tempo dormindo e em estado de alerta permanente. E é
nesse estado em que ele vê crianças invadindo sua loja e descobre, em uma das vezes, que na verdade eram cães.
Até então, não há outros personagens, como se as pessoas e a cidade estivessem desaparecendo. “É como se uma
grande borracha estivesse fazendo esse trabalho de apagar a cidade, principalmente as pessoas, os clientes,
deixando-a cada vez mais parecida com uma cidade fantasma.” Quando finalmente os clientes aparecem, não estão
interessados nos produtos, mas sim tomados por uma curiosidade que não podemos identificar. O aparecimento de
uma mulher que o furta e que o narrador simplesmente deixa sair, só realça a passividade do personagem. Quando
cai a tarde, ele fecha a loja e cumpre o prometeu no anúncio no início do conto. O trem em movimento é o único
momento de alegria do personagem. Porém, a alegria dura pouco. Ele dorme e acorda e continua atravessando a
cidade, até que decide, sem nenhuma resignação para tentar fugir, retornar para a cidade e a loja.
03. Aprendizado

O conto inicia em um quarto de motel fedendo a mofo com o narrador descrevendo uma mulher sentada se penteando na cama.
Nos dois primeiros parágrafos, após uma descrição da mulher, somos apresentados a duas informações essenciais para a
narrativa: o personagem será despedido e a mãe dele morrerá. Com uma narração com um tom oral, acompanhamos um dia
desse personagem. Aos poucos vamos percebendo uma característica marcante dele: a incapacidade para solucionar seus
problemas. Por exemplo, o personagem reconhece a necessidade de levar a mãe ao hospital, mas não tem dinheiro para isso. A
caminhada do personagem do motel para a casa mostra algo estranho sobre ele e que assume com naturalidade: ele nunca tem
sono e nunca dorme. Ao mesmo tempo, a consciência que tem de si mesmo, a de que é apenas parte da rua, mostra que vive
como se estivesse dormindo. Nesse sentido, ele está tão distante de tudo que consegue se ver como se fosse um personagem.
Ao chegar em casa, sua realidade social é escancarada. Dentro da geladeira há apenas uma sopa aguada e sem cor e a único
alimento para ele são uns farelos de pão sobre a toalha e que, com a ajuda dos dedos, ele divide com o pai. Pai que revela que a
mãe está pior. O máximo que o personagem consegue é pedir ajuda para um homem que trabalha em uma farmácia veterinária
e ficar alguns minutos na fila de um posto de saúde. O personagem revela um desejo que se estende até o final do conto: quer
tomar café. Contudo, ele não consegue realizá-lo, pois, segundo ele, sua mãe não o ensinou a preparar e, como ela está
morrendo, ela não sabe realizar tal tarefa.
04. Insistência

Um grupo tenta invadir uma propriedade vigiada por seguranças. Aqueles que estão fora, dentre eles o
narrador do conto, estudam estratégias de como entrar na propriedade. Eles se dão conta, por exemplo, que
não adianta conversar com os seguranças e que, embora eles tivessem direito de estar ali, o resultado seria
sempre o mesmo: o grupo que queria entrar apanharia dos seguranças que querem impedi-los que entrem.
Aos poucos, os que estão do lado de fora vão ficando numerosos, mas ainda assim a estratégia adotada – a
de ir em grupos e ir para o confrontamento – para o narrador é vista como equivocada. Ele propõe alterá-la,
mas ideia que não é bem quista por um dos líderes. Contudo, cansado de sempre apanhar, o narrador, em
uma das pancadarias, acaba batendo em um dos “caras” do seu grupo e acaba mudando de lado. Por um
momento, o personagem central se sente realizado, pois ali do outro lado há momentos de descanso,
momentos que o fazem se sentir bem. No entanto, após um comando que não se sabe de onde vem, ele e
seu grupo precisam sair rapidamente atrás dos “caras”. É importante perceber como o único desejo do
personagem – e que é satisfeito, mas por um tempo muito curo – é o de descansar. Ao desacatar a ordem, o
personagem acaba sendo excluído de sua função e perdendo o direito de descanso. Do ponto de vista
formal, é muito importante reparar em como o texto, ao apresentar parágrafos longos, com pouquíssimos
pontos finais, apresenta uma narração contínua e acelerada que parece acompanhar o ritmo da história. Do
ponto de vista temático, temos um conto que mostra as dificuldades de organização de grupos e de como
certas brigas assumem uma circularidade e nunca mudam, como o narrador mesmo percebe. Além do mais,
o conto apresenta alguns mistérios que não são resolvidos: que propriedade é aquela? Por que o grupo quer
entrar nela? Por que o outro grupo quer expulsá-los?
05. Hereditário
Este conto apresenta a história de um homem que perdeu o pai e que, como herança ganhou uma caixa
com uma esfera pequena e maleável que ele chama de “geleia”. A caixa não era um segredo. Seu pai
quase tinha aberto para ele uma vez e outras tantas vezes andou com ela, prestes a mostrar para ele, mas
seu filho não o levava a sério. Alguns elementos que devemos chamar atenção diz respeito à relação que o
passa a ter com a geleia, como se aquele objeto estivesse dentro dele. Aos poucos, o personagem começa a
apresentar sentimentos ambíguos em relação à geleia, tanto o prazer em experimentá-la em suas mãos
quanto o desejo de se livrar dela. Suas tentativas de jogá-la no rio são em vão, uma vez que ela não caiu
quando ele a arremessou. Logo percebemos sua grande preocupação e o que fará o personagem se
esconder: o que as pessoas iriam pensar se o vissem com a geleia nas mãos? É importante perceber o
espaço da narrativa, um quarto que fica dentro de um porão, mostrando a clausura do personagem. Assim,
o personagem nos diz que passava a maior parte do tempo deitado. Quando consegue levantar da cama,
decide mostrar a geleia às pessoas, mas a pessoa para quem ele mostra, o primeiro que viu na rua não
conseguia enxergar a geleia. A partir de então, o personagem começa a pensar no pai e em como ele
tentara, muitas vezes, conversar sobre a geleia. Teria o pai falado com outras pessoas? Por que não insistiu
mais com ele? Podemos retomar o título e pensar que hereditário era a geléia deixada pelo pai, a geleia
que causa não só a vergonha, o isolamento e as dores internas, mas também a incapacidade de conversar
com alguém sobre um problema ou até mesmo de pedir ajuda.
06. O crocodilo

O conto inicia com um homem recebendo a visita de um crocodilo. Ainda que a chegada seja estranha para ele,
ele jamais se assusta com a presença do animal, pois associa aquela visão à uma loucura inevitável. Inevitável e
obsessiva, uma vez que ele já pensou sobre ela outras vezes, tendo certeza de que ficaria louco no verão. Nesse
sentido, o calor é um elemento importante do conto, uma vez que o personagem passa boa parte do conto sentindo
calor e tentando se refrescar. Um aspecto importante para a composição do personagem diz respeito aos
movimentos restritos do personagem, pois revelam o único movimento feito pelo personagem, o de se deitar e o
de se levantar. Não demora até o personagem apresentar uma relação contraditória com a presença do animal. Se
de início parece indiferente com o crocodilo, pensando que se o ignorasse ele iria embora rapidamente, ele mesmo
não tem certeza se gostaria ou não que ele partisse. O personagem, em um dos únicos momentos em que não é
passivo, acaba chutando a barriga do crocodilo, que chora. Após o seu choro – e podemos pensar na expressão
“lágrimas de crocodilo” que denota um choro fingido, um choro de um animal que chora ao devorar sua caça – o
crocodilo passa a se aproximar do personagem cada vez mais, até ficar dentro dele. E não só está nele, mas faz as
coisas por ele, como atender o interfone, ajudá-lo a se levantar, partir com ele quando o personagem é expulso por
não pagar as contas. E assim, podemos identificar uma dependência do personagem pelo animal quando está na
rua e decide comprar um cinto para amarrar o crocodilo. Na medida em que caminha, com a ajuda do crocodilo, o
narrador passa ver outros animais nas costas das pessoas.
07. A cura

Este conto traz a história de um grupo de doentes, contaminados por uma doença desconhecida, que se mantém isolado da
cidade. Não ficamos sabendo exatamente onde fica o lugar em que os personagens estão, pois estamos limitados à
consciência do narrador. Só sabemos que há uma cidade de onde o Doutor e sua equipe médica vem e hospital para onde os
doentes vão. Sobre o Doutor e sua equipe, percebemos, desde o início do conto, uma confiança depositada de que eles os
ajudarão. Percebemos também algumas dúvidas do narrador, como a se o vírus teria causado a degradação deles ou se a
insalubridade do meio teria causado a degradação do o vírus, reflexão que aponta que, mesmo antes do vírus, a degradação
já existia. Não se sabe a origem do vírus e o único sintoma que ele causa é o cansaço. Não se trata de um cansaço normal,
mas um cansaço que aniquila, um cansaço que os deixa jogados no chão. Mas antes que a ajuda chegue, muitas pessoas
morrem. Da janela do hospital pode-se ver os corpos se empilhando e aumentando ainda mais a insalubridade do lugar. Além
das mortes e da solução que não chega, um outro problema os assola: quando chove o lixo transborda. A solução é a de
construir um rio, que afasta o lugar dos enfermos e evita que o vírus se espalhe. É importante mencionar que o narrador fala
em nome dos doentes, assumindo que se trata de um drama coletivo e não espaço para apenas a história de um “eu”. Ainda
que o título do conto indique a solução do problema, ela não virá e os personagens, cansados demais, só podem aguardar.
Logo, o conto é sobre a espera, pois os doentes não podem fazer nada a não ser torcer que o doutor e sua equipe venham
com a notícia boa. É interessante ver como os personagens apresentam uma memória incerta e vaga de que já foram um
bairro da cidade, mas eles não têm certeza disso. Assim, podemos pensar no conto como uma alegoria das metrópoles
contemporâneas que ilumina o contraste visível e desigual entre centro e periferia.
08. O crocodilo II

O conto mostra um homem que ganhou um cargo importante em uma instituição, segundo o narrador, porque o
homem responsável pela promoção – o Doutor – que também tem um crocodilo, mas esse já “velho” e
“esquelético”, nas costas. Em seguida, o narrador está na praia quase deserta com a esposa grávida e o filho.
Enquanto caminha com o filho, escuta de seu herdeiro que ele gostaria de ter um crocodilo como o pai. Prevendo
o futuro do filho, ele imagina a vida do pequeno com um crocodilo em suas costas. O final do conto assume um
tom melancólico, com o crocodilo soltando “seu riso asmático” que se transforma num “acesso de tosse rouca e
meio catarrenta” e o narrador anunciando que será uma noite difícil.
09. O rosto

Este conto apresenta a história de um homem em sua casa perseguindo um rosto. Trata-se de uma perseguição
difícil, pois o rosto pode facilmente camuflar-se em qualquer objeto, como em um dos quadros, em uma folha
de caderno, na fotografia de uma revista ou na estampa de uma toalha de mesa. Contudo, o narrador diz
conhecer a casa como ninguém. Se de início era o rosto que o perseguia, agora é o narrador quem o persegue.
O motivo? De acordo com o narrador, para ter o domínio da casa. Contudo, percebemos que o narrador não
pode ter esse domínio. Dessa maneira, podemos pensar no conto como uma alegoria do indivíduo enclausurado
em uma casa que, na verdade, representa a sociedade do consumo e da acumulação em que os objetos se
multiplicam e do qual não conseguimos escapar, um mundo em que tudo se torna objeto e mercadoria. Deste
modo, não seria estranho pensar que essa perseguição é ao seu rosto. Primeiro, porque o narrador diz ser ele
quem mais conhece a casa, logo, ele também saberia exatamente como se esconder; segundo, porque quando o
narrador se coloca em frente à janela, consegue ver através do reflexo os cômodos e objetos atrás de si e mundo
exterior, mas jamais o seu próprio reflexo. Terceiro, porque quando ele finalmente captura o rosto, um rosto de
criança que o prende dentro de uma gaiola e o alimenta, o narrador descreve a alegria do rosto da criança que
reflete na alegria dele próprio. Quando o rosto foge da gaiola e deixa apenas um buraco da janela, resta a
dúvida: teria ela fugido pra fora ou ainda estaria dentro da casa? A partir de então, tentando reencontrar o rosto e
talvez estabelecer uma relação amigável, o narrador decide agir exatamente como o rosto, atirando-se da escada.
No final do conto, coloca a cabeça entre o buraco do vidro da janela. Essa imagem final mostra ele se
transformando em um objeto da casa. A janela como moldura e o seu rosto como uma pintura.
10. A visita

Este conto descreve a visita de um homem à casa da Duquesa. O motivo da visita não é revelado ao leitor de imediato, só
sabemos que o narrador está substituindo o seu irmão. Antes de sabermos o que ele foi fazer, caminhamos juntos com o
narrador e lá encontramos uma casa enorme e uma série de situações estranhas. Outros personagens que aparecem são o
Capitão, a filha da duquesa, um pianista bêbado e um jovem “afeminado”. Eles jantam, mas nem esperam a sobremesa, pois
a Duquesa tem pressa para lhe mostrar a casa. Trata-se, de uma casa ampla e bem decorada, como a das revistas de interiores,
uma casa em que o narrador se depara com diferentes situações a cada porta que é aberta, como homens e mulheres comendo
e bebendo em uma festa ou um grupo de homens nus se exercitando. Enquanto atravessam a casa, o narrador vai percebendo
uma mudança nela, como se o luxo fosse diminuindo. Segundo a Duquesa, eles se aproximavam de uma zona da casa que era
“uma das falhas dos arquitetos”. Em seguida, eles chegam à cozinha, o espaço da casa silencioso, com menos luminosidade e
de onde sai das paredes uma fuligem espessa e negra. Da mesma cor que a pele, as saias e o lenço na cabeça das cozinheiras.
Importante mencionar como o narrador tem consciência do significado da violência do que via. Ainda assim, apesar de ser
tomado por um sentimento de sufocamento, apesar de desejar reclamar algo à Duquesa, ele continua caminhando até passar
por um pátio descampado, um galpão e finalmente chegar no lugar em que veio visitar: uma espécie de arena onde um
homem magro com um coleira que parece ter uma doença mental e que lhe oferece um chicote. Se no começo ele parece
demonstrar alguma reação, não demora até que ele aceite a tarefa. Assim, o conto parece funcionar como o retrato de um
mundo de aparências que se revela, à medida que se avança por ele, como um mundo cruel de exploração e crueldade.
11. O encontro

Este conto retrata a história de um casal recém-chegado em uma cidade misteriosa. O motivo da viagem já nos é
revelado no início do conto: eles vieram para “o encontro”, que segundo o narrador “não deveria tardar”. Trata-se de um
conto que aos poucos vai revelando sua atmosfera labiríntica e claustrofóbica. A primeira caminhada deles já dá uma
pista muito sútil a eles e a nós leitores: eles são tomados por uma sensação desconfortável e uma dificuldade de se
orientar. Diferente da maioria dos contos, esse é narrado em terceira pessoa e apresenta um tom de conto de fadas. Um
exemplo disso é o nome dado pelo narrador aos outros personagens da história: Velha Que Se Dizia Cantora,
Homenzinho Sorridente Que Vendia Bugigangas na Calçada, Jovem Com Olhar de Espanto, Mulher de Meia Idade e Ar
Distraído. Apesar de conseguirem caminhar todos os dias, seus passos são sempre desorientados. Quando, com
dificuldades, acham a casa em que “o encontro” seria realizado, descobrem que devem voltar na próxima semana. Aos
poucos, os habitantes da cidade vão desaparecendo e os lugares também. A casa do “encontro” já não existe mais, nem
um café para que eles se aqueçam. Quando pela manhã o homem vai comprar pão, não encontra nem habitantes nem
lugares. A partir de então, ele dá de frente com uma muralha, não encontrando mais o caminho de casa, sozinho e sem a
mulher que, a essa altura, ele não sabe onde está. É importante mencionar como, aos poucos, a muralha vai ficando
perceptível, mas somente para o homem, antes de tomar conta da cidade. Assim, por ser tão decisiva na narrativa,
podemos considera-la também como uma personagem. No final do conto, o único encontro que se concretiza é o do
personagem e a muralha, o personagem e a solidão.
12. Correria

Este conto retrata a corrida de um personagem. Desde o início sabemos: o personagem está sofrendo e deseja parar. O
narrador está tão cansado que não tem forças para xingar o amigo, nem outro homem que surge, a quem o narrador chama
de “gordo Soares” e por quem nutre um sentimento de ódio e que igualmente tenta motivá-lo. Ao seu entorno,
percebemos uma torcida formada por famílias que grita e agita bandeirinhas. Aos poucos, outras vozes – das quais o
narrador não reconhece – começam surgir ao seu lado na corrida com gritos de apoio. A partir de então, ele toma uma
decisão: irá correr o máximo que pode até que algo aconteça com ele. Quando ele finalmente tropeça e cai, prestes a
realizar o que deseja, ele é colocado novamente na corrida por uma mão que o segura. Ainda que não saibamos que
corrida é realizada durante o conto, o que podemos tirar do conto é o sentimento do narrador em relação à corrida: o
desejo e a impossibilidade de parar, mesmo quando ele tropeça e cai. Mais uma vez, se enxergamos os elementos
estranhos do conto, nesse caso a corrida e a mão que o coloca de volta a correr, podemos pensar no modo de vida
contemporâneo que exige dos indivíduos que se mantenham correndo e competindo uns com os outros.
13. Espera

Este conto traz a história de um homem que revela escutar da cama uma mulher cantando no banheiro. As primeiras
frases do conto já demonstram a ambiguidade entre delírio versus realidade. “Ela canta. Mas nem parece que está
logo ali, atrás daquela parede. Sua voz está tão longe”. Ambiguidade que, aos poucos, se dissolve e se torna a certeza
de que o narrador está delirando. É importante ressaltar que esse narrador passa o conto todo deitado, logo, o que ele
descreve é algo que não está ao alcance de sua visão. Além do mais, frequentemente ele dorme e sonha ou enxerga a
mulher de olhos fechados, outros sinais de que a presença se materializa somente na sua cabeça. Assim, é muito
importante perceber o recurso do contista ao usar o presente do indicativo (“ela canta”, “estendo o braço”) no conto,
pois ele é capaz passar o efeito de realidade, presentificando, com descrições muito ricas, seu delírio. Vale destacar
também o desejo do personagem em se manter pensando nela, revelada nos momentos de desespero em que o
narrador não a escuta cantar.
14. Para salvar Beth

O conto traz a história de um homem que conseguiu um emprego novo: o de levar, todos os dias, a cachorrinha Beth, que
está doente e precisa fazer um tratamento, para o pet-shop. O personagem, além de levá-la e trazê-la, precisa ficar
esperando. O porquê do personagem ter aceitado o emprego, de acordo com o narrador deu-se pela vida do personagem
ter entrado “na descendente”. Ele estava desempregado há mais de um ano, estava endividado, teve que se mudar com a
esposa para uma “kitchenette minúscula e mal cuidada" e estava com problemas no casamento. De início, o personagem
se mostra surpreso com a quantidade de serviço que um pet-shop pode oferecer. Aos poucos, enquanto espera Beth, o
personagem vai se sentindo bem naquele lugar a ponto de conseguir dormir lá e brincar com os brinquedos destinados
para os cachorros. Em um dia de folga da esposa, ele a leva para visitar seu trabalho. É importante ver a reação que ela
tem, achando engraçado que ele consiga ficar bem ali apenas esperando. Mais graça ela acha quando ele deita em um
colchonete e quando ele a convida para jogar bola com ele. Quando o estado de Beth se agrava e ela precisa ficar por
mais tempo no pet shop, o personagem se sente responsável pela cachorrinha e não consegue mais esquecê-la. É então que
ele acorda no meio da noite, lembrando que falaram a ele que a cachorrinha ficaria 24 horas sob supervisão, e decide ir,
tarde da noite, até o pet shop. A imagem final é como se ele, sentindo-se abandonado, fosse um cachorro querendo estar
dentro daquele lugar que ele tanto se sentia bem.
Trechos da entrevista de Amílcar
Bettega sobre a obra Deixe o quarto
como está para o Jornal da
Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (acesso à entrevista completa em
https://www.ufrgs.br/jornal/escrevo-p
orque-nao-sei-diz-escritor-amilcar-bett
ega/ )
Algumas questões para
ajudar nos estudos

1) De que forma o fantástico se coloca nos contos?


2) De que forma os contos dialogam com a sociedade contemporânea?
3) O que a imobilidade e o cansaço dos personagens diz sobre eles e sobre a cidade construída por Amílcar
Bettega?
4) O que a predominância da narração em primeira pessoa pode indicar sobre os contos?
5) Como são apresentados os espaços e atmosfera de cada conto e como eles se relacionam com os
personagens?
6) O que a falta de nomes dos personagens (ou o nome apenas de alguns) indica sobre eles?
7) Quais relações podem ser feitas entre os contos?
UFRGS (2022)

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