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T I N T A‑ D A‑ C H I N A
MMXXII
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond ÍNDICE
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VA I, C A R L O S ! ~ 11
seria uma rima, não seria uma solução. INFÂNCIA a Abgar Renault
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Eu não devia te dizer Minha mãe ficava sentada cosendo.
mas essa lua Meu irmão pequeno dormia.
mas esse conhaque Eu sozinho menino entre mangueiras
botam a gente comovido como o diabo. lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais.
Só as igrejas
só as torres pontudas das igrejas
não brincam de esconder.
Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê. Esqueci um ramo de flores no sobretudo.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola. vii / rio de janeiro
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina. Fios nervos riscos faíscas.
As cores nascem e morrem
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável. com impudor violento.
Onde meu vermelho? Virou cinza.
Passou a boa! Peço a palavra!
v / s ã o j o ã o d e l ‑ r e i Meus amigos todos estão satisfeitos
com a vida dos outros.
Quem foi que apitou? Fútil nas sorveterias.
Deixa dormir o Aleijadinho coitadinho. Pedante nas livrarias…
Almas antigas que nem casas. Nas praias nu nu nu nu nu nu.
Melancolia das legendas. Tu tu tu tu tu no meu coração.
As ruas cheias de mulas sem cabeça Mas tantos assassinatos, meu Deus.
correndo para o Rio das Mortes E tantos adultérios também.
e a cidade paralítica E tantos tantíssimos contos do vigário…
no sol (Este povo quer me passar a perna.)
espiando a sombra dos emboabas
no encantamento das alfaias. Meu coração vai molemente dentro do táxi.
E todo me envolve
uma sensação fina e grossa.
VA I, C A R L O S ! ~ 207
Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou. um senhor e um ouvido que só não são alheios a esta estrutura
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta? porque desenham com nitidez a relação entre ser poeta e ser
torto, ou gauche. Ou não?
Lembrei‑me de começar por estes versos porque parecem — Acho que sim… mas inclino‑me a dividir o «Vai, Carlos…»
inscrever, no final do primeiro livro de Drummond, a ques‑ do primeiro verso entre uma injunção e um anúncio; ou, tal‑
tão central para este conjunto: a interrogação da possibilidade vez melhor, entre obrigação imposta e predestinação, que o dito
de alguém se descrever como poeta, ou de se assinar poeta. Carlos por condição não ouviria e se ouvisse nem entenderia.
O título Vai, Carlos!, aliás, procura responder a esse problema, É uma ficção, cena de origem, o começo de qualquer coisa, e o que
ou tomar as respostas a esse problema na obra do primeiro presumimos e acho que se presume há muito é o próprio poeta,
Drummond como determinantes para um entendimento da que assim a descreve, ou a poesia dele. Em todo o caso, ser gau-
sua poética. Mas já lá vamos. che, por vocação ou fatalidade, tornou‑se inevitável — isso parece
— Não, espera, acho que já lá estamos. Ao ler estes dois ver‑ certo. Portanto, o poeta ou a poesia obedecem a uma voz que vem
sos para começo de conversa, tropeço já no modo como apre‑ da sombra ou são movidos por alguma força anunciada por essa voz
sentam dois ecos distintos da primeira estrofe do «Poema de que vem da sombra — isso também parece certo. Segundo a ideia
sete faces», em que aparece o «Vai, Carlos!» que andamos a que formulaste, ser gauche na vida é escrever versos sem saber
perseguir. Por um lado, o ouvido que entorta recorda logo de antemão se pode vir a ser poeta e implicar necessariamente
o anjo torto que abre a estreia poética de Drummond com a nessa ignorância a chamada vida: vida e poesia não se separam,
injunção «Vai, Carlos! Ser gauche na vida», e que ressoará na num sentido preciso, autobiográfico: como se, diante da pergunta
declinação sempre interessante da palavra torto ao longo de «o que fazes na vida?», a resposta devesse ser «poeta», e ao mesmo
toda a obra. Por outro lado, se no fecho cómico de «Explica‑ tempo não poder ser essa senão por simulação ou conveniência.
ção» a relação é invertida — um poeta certo para um ouvido O anjo torto estaria assim na origem da própria vida e da poesia.
torto —, a estrutura que a arma também vira do avesso a inter‑ Mas, por outro lado, o nome próprio apresenta como individual o
pelação que abre o livro e que depois se repete insistente‑ que diríamos um problema geral, o do poeta e da poesia nas con‑
mente nos livros seguintes: na primeira estrofe de «Poema dições do modernismo; como se, acolhendo o problema, procu‑
de sete faces», é a voz do anjo torto que interpela o sujeito, rasse na figura do anjo torto a resposta própria, individual. Daí
dando‑lhe um nome — Carlos — e uma missão torta; e ao longo alguns dos traços idiossincráticos que vão permanecer na poesia
deste nosso livro, é insistente a figura de uma voz que vem de de Drummond, o que limita muito a acção das ideias de evolu‑
fora, que é vocativo e exclamação, convocando o sujeito imóvel ção, maturação, percurso, etc., a saber: a autobiografia, a ironia e
e determinando‑lhe a acção. Aqui, porém, Drummond inverte a melancolia. O poema que referiste, «Explicação», é, aliás, um
a assimetria violenta da sua apóstrofe fundadora, convocando caso singular de conjugação de todas elas.
José
Brejo das Almas
A bruxa 173 Rua do olhar 189
Aurora 83 Sol de vidro 88 O boi 175 Os rostos imóveis 192
Registro civil 85 Um homem e seu carnaval 89 Palavras no mar 176 José 195
Boca 86 O amor bate na aorta 91 Edifício esplendor 178 Noturno oprimido 198
Soneto da perdida esperança 87 Grande homem, pequeno soldado 93 O lutador 184 A mão suja 199
Tristeza no céu 188 Viagem na família 202