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Esta obra não existiria se não fossem as férteis imaginações dos originais
«Thursday Nighters», bem como dos «Friday Nighters», que a eles se
seguiram. Steve A., April, Jon, Anita, Rich, Ethan, Dave, Tim Lori, Jeff,
Steve B., Conan, Bob e dezenas de outros que a nós se juntaram ao longo
dos anos conferiram a Midkemia uma qualidade de riqueza que uma só
pessoa nunca conseguiria conceber. Obrigado pelo maravilhoso mundo com
o qual podemos jogar.
Obrigado à Janny Wurts por me deixar aprender com ela durante os
quase sete anos de colaboração. E ao Don Maitz pela sua visão, perícia e
maestria, e por apoiar as escolhas da Janny.
Ao longo dos anos, trabalhei com uma grande diversidade de editores na
Doubleday e na Grafton, hoje em dia integrada na HarperCollins.
Agradecimentos especiais à Janna Silverstein da Bantam Doubleday Dell
por tomar as rédeas da situação e à Jane Johnson e ao Malcom Edwards da
HarperCollins por me acolherem quando os seus predecessores partiram,
nunca perdendo uma pitada. Também àqueles que referi das duas editoras,
alguns já partidos para outras andanças, mas nenhum esquecido. Desde os
colaboradores dos departamentos de vendas, marketing, publicidade e
promoção, àqueles que simplesmente leram os livros e fizeram comentários
positivos sobre eles aos colegas, a todos vós os meus agradecimentos.
Muitos de vós superaram-se para que os resultados fossem positivos.
Gostaria de agradecer a algumas pessoas a quem nunca o fiz: a Tres
Andreson e aos seus colaboradores, ao Bob e à Phylis Weinber, e ao Rudy
Clark e à sua equipa, que fizeram mais do que vender livros – geraram
entusiasmo e ajudaram a que as obras se destacassem das demais logo
desde o início.
Como sempre, o meu obrigado ao Jonathan Matson e a toda a equipa da
Harold Matson Company por me darem muito mais do que bons conselhos
comerciais.
Acima de tudo, obrigado à Kathly S. Starbuck, que dedicou tempo a
garantir que este livro não descarrilaria. Não o teria conseguido sem o seu
amor, apoio e sabedoria.
Raymond E. Feist
San Diego, Califórnia; fevereiro de 1992
Mapa
Prólogo
Encontro
G
huda espreguiçou-se.
Ouviu-se uma voz de mulher vinda da porta atrás das suas
costas:
— Saiam daqui!
O antigo guarda e mercenário recostou-se na cadeira do alpendre da sua
estalagem e pousou os pés sobre a trave de prender os cavalos. Em segundo
plano, estava a começar a habitual serenata de final de tarde. Enquanto os
viajantes abastados ficavam hospedados nos grandes hotéis da cidade ou
nas estalagens palacianas ao longo das praias de prata, a Estalagem do Elmo
Amolgado, propriedade de Ghuda Bulé, servia uma clientela mais
turbulenta: carroceiros, mercenários, agricultores que levavam as colheitas
para a cidade e soldados rurais.
— Tenho de chamar a guarda da cidade? — gritou a mulher do interior
da sala comum.
Embora fosse um homem corpulento, Ghuda tivera trabalho suficiente a
gerir a estalagem, pelo que não engordara e ainda mantinha as suas armas
bem amoladas; mais vezes do que gostava de recordar, fora obrigado a
expulsar um ou outro cliente.
Os finais de tarde, antes do jantar, eram o seu momento do dia predileto.
Sentado na sua cadeira, conseguia ver o Sol a pôr-se sobre a baía de Elarial,
enquanto o fulgor ofuscante do dia se transformava num delicado rubor que
pintalgava os edifícios brancos de delicados tons de laranja e dourado. Era
um dos poucos prazeres que conseguia guardar para si mesmo numa vida
que, de outro modo, era bastante exigente. Ouviu-se um grande estrondo no
interior do edifício e Ghuda resistiu à urgência de ir ver o que se passava. A
sua mulher avisá-lo-ia quando fosse necessária a sua intervenção.
— Saiam daqui! Vão lutar lá para fora!
Ghuda desembainhou um punhal, um dos dois que geralmente trazia no
cinto, e começou a poli-lo distraidamente. O ruído de louça de barro a partir
ecoou do interior da estalagem. Logo de seguida ouviu-se o grito de uma
rapariga, e depois o som de corpos a lutar.
Ghuda contemplou o pôr-do-sol enquanto polia a lâmina. Quase com
sessenta anos, o seu rosto assemelhava-se a um mapa de couro envelhecido,
evidenciando anos de trabalho a guardar caravanas, lutas, tempo
demasiadamente mau, má alimentação e mau vinho, no qual se destacava
um nariz que já fora partido demasiadas vezes. Perdera grande parte do
cabelo no cocuruto, restando-lhe uma franja grisalha que lhe dava pelos
ombros e que começava a meia distância entre o alto da cabeça e as orelhas.
Embora nunca se pudesse dizer que fosse bem-parecido, ainda mantinha
algum do seu encanto: uma maneira de ser tranquila e franca que fazia com
que as pessoas confiassem e gostassem dele.
Deixou o olhar percorrer a baía, enquanto o cintilar prateado e rosáceo da
luz do Sol reluzia sobre águas de esmeralda e as aves marinhas grasnavam e
mergulhavam em caça da refeição. O calor do dia desaparecera, deixando
uma ténue brisa fresca que emanava da baía, delicada com vestígios do sal
do mar, e, por instantes, pensou se a vida poderia ser melhor para alguém
com as suas origens simples. Depois, semicerrou os olhos contra o brilho do
Sol enquanto este tocava o horizonte, pois vinda de oeste aproximava-se
uma silhueta caminhando decididamente na direção da pequena estalagem.
De início, não passava de um pequeno ponto negro que se entrepunha
entre o brilho do sol-pôr, mas não tardou a ganhar detalhe. Havia algo
naquela silhueta que pôs em sobressalto o canto mais recôndito do cérebro
de Ghuda, que fixou o olhar no desconhecido enquanto este ganhava forma.
Aproximou-se um homem esguio de pernas arqueadas envergando uma
túnica azul empoeirada e esfarrapada, amarrada por cima do ombro. Era um
isalani, um cidadão de Isalan, uma das nações do Sul do Império do Grande
Kesh. Trazia ao ombro uma velha mochila preta e usava um comprido
bordão como bengala.
Quando o homem se aproximou o suficiente para que fosse possível
identificar inequivocamente as suas feições, Ghuda disse em voz baixa:
— Por todos os deuses, ele não.
Ouviu-se um grito lancinante vindo do interior do edifício e Ghuda
levantou-se. O homem chegou junto do alpendre e tirou a mochila do
ombro. Uma coroa de lanugem circundava uma cabeça de outro modo
calva; um rosto de traços que faziam lembrar um abutre olhou solenemente
para Ghuda, depois abriu-se num largo sorriso. Abriu o velho saco
poeirento. Num tom de voz áspero e familiar, disse:
— Quereis uma laranja? — Enfiou a mão no saco e tirou de lá duas
grandes laranjas.
Ghuda agarrou o fruto que lhe foi atirado e perguntou:
— Nakor, pelos Sete Infernos Inferiores, o que vos traz aqui?
Kakor, o isalani, ocasional batoteiro e vigarista, sábio em certo sentido da
palavra, e inquestionável lunático segundo o entender de Ghuda, fora em
tempos companheiro do ex-mercenário. Nove anos antes, tinham-se
conhecido e viajado com um jovem vagabundo que convencera Ghuda (não
fora preciso convencer Nakor) a fazer uma viagem até à Cidade de Kesh,
uma jornada envolta em assassínio, política e tentativa de traição. Acabara-
se por saber que o vagabundo era o Príncipe Borric, herdeiro do trono do
Reino das Ilhas, e Ghuda lucrara com esse encontro ouro suficiente para
viajar e descobrir esta estalagem, a viúva do anterior proprietário e os
ocasos mais gloriosos que alguma vez vislumbrara. O seu desejo era nunca
mais ter de fazer uma viagem como aquela. Agora, com um aperto no
coração, percebeu que esse desejo provavelmente não iria realizar-se.
— Vim buscar-vos — disse o pequeno homem de pernas arqueadas.
Ghuda recostou-se na cadeira quando uma caneca de cerveja saiu a voar
pela porta. Nakor esquivou-se agilmente. — Está ali uma bela cena de
pancadaria — comentou. — Carroceiros?
Ghuda abanou a cabeça. — Hoje não temos hóspedes. São apenas os sete
filhos da minha mulher a destruir a sala comum, como é já hábito.
Nakor pousou a mochila, sentou-se na trave de prender os cavalos e
disse:
— Bem, dai-me algo que comer, e depois podemos partir.
Ghuda voltou a afiar o punhal. — Partir para onde? — perguntou.
— Para Krondor.
Ghuda fechou os olhos por instantes. A única pessoa que ambos
conheciam em Krondor era o Príncipe Borric. — Esta não é, de modo
algum, uma vida perfeita, Nakor, mas estou muito satisfeito aqui. Agora,
ide embora.
O pequeno homem trincou a laranja, arrancou um grande pedaço de
casca, e cuspiu-o. Mordeu com força a laranja e sorveu-a ruidosamente.
Limpou a boca com as costas da mão. — Satisfeito com o quê? —
perguntou, apontando para a entrada sombria, através da qual o choro de
uma criança acompanhava a generalidade dos berros e objetos a partir.
— Bem, às vezes é uma vida dura, mas raramente tenho alguém a tentar
matar-me — disse. — Sei onde vou dormir todas as noites e alimento-me
bem e tomo banho regularmente. A minha mulher é carinhosa e as
crianças… — Um novo berro estridente de uma criança foi interrompido
pelo choro enraivecido de outra. Ghuda olhou para Nakor e disse:
— Vou arrepender-me de perguntar, mas porque temos de ir a Krondor?
— Temos de ir visitar um homem — respondeu Nakor enquanto se
recostava na trave, passando um pé por detrás de um esteio para se
equilibrar.
— Uma coisa é certa, Nakor, vós nunca aborreceis ninguém com
pormenores desnecessários. Que homem?
— Não sei. Mas ficaremos a saber quando lá chegarmos.
Ghuda suspirou. — Da última vez que vos vi, íeis rumo a norte,
abandonando a Cidade de Kesh, na direção daquela ilha de magos,
Stardock. Leváveis vestida uma enorme capa e uma túnica azul de
qualidade magnífica, a vossa montada era um garanhão preto do deserto
que valia o soldo de um ano e leváveis uma bolsa cheia de ouro da
Imperatriz.
Nakor encolheu os ombros. — O cavalo comeu erva estragada, ficou com
cólicas e morreu. — Passou os dedos pela túnica azul esfarrapada que trazia
vestida. — A enorme capa estava sempre a apanhar bichos e tive de a deitar
fora. A túnica é esta que ainda estou a usar. As mangas eram muito
compridas, por isso arranquei-as. A cauda arrastava pelo chão e eu estava
sempre a tropeçar, por isso cortei-a com a minha adaga.
Ghuda contemplou a aparência andrajosa do antigo companheiro. —
Dispúnheis de fundos suficientes para irdes a um alfaiate — disse.
— Andei demasiado ocupado. — Olhou de relance para o céu azul-
turquesa, sarapintado de nuvens cor-de-rosa e cinzentas. — Gastei o
dinheiro todo e fartei-me de Stardock — disse. — Decidi ir para Krondor.
Ghuda sentiu-se a perder o controlo. — Da última vez que consultei o
mapa, a viagem de Stardock até Krondor via Elarial era considerada o
caminho mais longo — disse.
Nakor encolheu os ombros. — Precisava de vos encontrar. Por isso
regressei a Kesh. Havíeis dito que poderíeis ir para Jandowae, por isso fui
até lá. Depois disseram-me que havíeis ido para Faráfra, por isso lá fui eu.
Depois segui no vosso encalço até Draconi, Caralyan, e depois até aqui.
— Pareceis especialmente determinado em encontrar-me.
Nakor inclinou-se para a frente, e o seu tom de voz alterou-se. Ghuda já o
ouvira a falar neste tom e sabia que ele ia dizer algo importante. — Coisas
importantes, Ghuda. Não me pergunteis porquê; eu não sei. Mas digamos
que às vezes antevejo coisas.
»Tendes de vir comigo. Iremos a lugares onde poucos homens de Kesh
alguma vez foram. Agora, ide buscar o vosso gládio e a mala e vinde
comigo. Parte amanhã uma caravana rumo a Durbin. Arranjei-vos trabalho
como guarda; eles lembram-se de Ghuda Bulé. De Durbin, poderemos
apanhar um barco para Krondor. Devemos chegar lá em breve.
— Porque hei de dar-vos ouvidos? — indagou Ghuda.
Nakor sorriu e a sua voz assumiu outra vez aquele tom trocista e jovial
que era seu apanágio. — Porque estais aborrecido, não é assim?
Ghuda ouviu o seu enteado mais novo a chorar por causa de alguma
maldade feita por algum dos seis irmãos. — Bem, não se pode dizer que as
coisas por estas bandas sejam muito animadas… — Seguiu-se outro grito.
— Ou tranquilas… — acrescentou.
— Vinde. Despedi-vos da mulher e partamos.
Ghuda levantou-se com uma sensação ambígua de resignação e
ansiedade. — É melhor esperardes por mim no parque das caravanas —
disse, voltando-se para o homem mais pequeno. — Tenho de dar algumas
explicações à minha mulher.
— Casastes? — perguntou Nakor.
— Por uma razão ou outra nunca chegámos a esse ponto — respondeu
Ghuda.
Nakor sorriu. — Nesse caso, entregai-lhe algum ouro, se ainda o tendes,
dizei-lhe que regressareis e partamos. Dentro de um mês terá outro homem
sentado naquela cadeira e deitado na sua cama.
Ghuda permaneceu à porta durante algum tempo, contemplando a
luminosidade do Sol que desaparecera enquanto esta diminuía de
intensidade. — Vou sentir a falta dos ocasos, Nakor — disse.
O isalani continuou a sorrir enquanto saltava da trave de prender os
cavalos, pegava na mochila e a punha ao ombro. — Há ocasos sobre outros
oceanos, Ghuda. Paisagens deslumbrantes e grandes maravilhas para
contemplar. — Sem mais, virou-se para o caminho que conduzia à cidade
de Elarial e começou a caminhar.
Ghuda Bulé entrou para o salão da estalagem que fora a sua casa durante
quase sete anos e pensou se voltaria a passar por ali outra vez.
1
Decisão
O
vigia apontou.
— Barco à vista!
— O quê? — gritou Amos Trask, Almirante da frota do
Príncipe da Marinha do Reino.
O piloto do porto que estava ao lado do Almirante a orientar a nau
capitânia do Príncipe de Krondor, o Dragão Real, na direção das docas do
palácio, gritou para o ajudante:
— Mandai-os embora!
— Ostentam a insígnia real! — respondeu o ajudante do piloto, um
jovem de aparência irascível.
Sem cerimónias, Amos Trask afastou o piloto e avançou. Continuava a
ser um homem corpulento de pescoço grosso, agora sexagenário, e
apressou-se para a proa com o passo convicto de quem passou a maior parte
da vida no mar. Depois de zarpar e atracar em Krondor com a nau capitânia
do Príncipe Arutha durante quase vinte anos, conseguia atracar de olhos
vendados, mas os serviços alfandegários exigiam a presença de um piloto
de porto. Amos não gostava de conceder o comando da sua embarcação a
outra pessoa, muito menos a um oficioso e muito apresentável elemento da
equipa do Capitão do Porto Real. Amos suspeitava de que o segundo
requisito para se ocupar tal cargo era uma personalidade desagradável. O
primeiro requisito parecia ser o matrimónio com uma das várias irmãs ou
filhas do Capitão do Porto.
Amos chegou à proa e olhou para longe. Os seus olhos negros
estreitaram-se ao observar a cena que se desenrolava lá em baixo. Enquanto
a embarcação deslizava na direção do embarcadouro, um pequeno barco à
vela, com menos de quatro metros e meio de comprido, tentava passar pelo
espaço à sua frente. Toscamente atado ao topo do mastro estava uma
flâmula, uma pequena versão da insígnia naval do Príncipe de Krondor.
Dois jovens azafamavam-se com as velas e a cana do leme, um tentando
manter uma linha o mais a direito possível até à doca enquanto o outro se
dedicava à bujarrona. Estavam ambos a rir daquela corrida improvisada.
— Nicholas! — gritou Amos quando o rapaz que baixava a bujarrona lhe
acenou. — Seu idiota! Virai para trás! — O rapaz que segurava o leme
virou-se para olhar para Amos e sorriu-lhe com desfaçatez. — Já devia ter
calculado — disse Amos ao ajudante do piloto. — Harry — disse,
dirigindo-se ao rapaz que lhe sorrira. — Seu maluco! — Olhou de relance
para trás e constatou que a última vela tinha sido desfraldada.
— Estamos a atracar nas docas, não temos espaço para virar se
quisermos, e certamente não conseguimos parar — disse Amos.
Todas as embarcações que chegavam a Krondor largavam âncora no
centro do porto, enquanto esperavam que os escaleres as rebocassem até às
docas. Amos era o único homem suficientemente graduado para intimidar o
piloto do porto a deixá-lo baixar as velas no momento apropriado e a atracar
às docas. Orgulhava-se de chegar sempre ao local certo para lhes lançarem
as amarras e de nunca ter embatido contra as docas ou ter necessitado de
um rebocador. Em vinte anos, atracara cem vezes nesta rampa de embarque,
mas nunca com um par de jovens tresloucados na brincadeira diante do
navio. Amos olhou para a pequena embarcação, que agora abrandava ainda
mais depressa, e disse:
— Dizei-me, Lawrence, qual é a sensação de estar à proa da embarcação
que vai afogar o filho mais novo do Príncipe de Krondor?
O semblante do ajudante do piloto empalideceu quando este se virou para
a pequena embarcação. Começou a gritar estridentemente para que os
rapazes saíssem do caminho.
Amos voltou as costas para a cena que se desenrolava abaixo e encostou-
se à balaustrada. Passou a mão pela cabeça quase calva, com cabelo
grisalho à volta, outrora negro e encaracolado, e agora amarrado atrás com
um nó de marinheiro. Ao fim de algum tempo a tentar ignorar o que
estavam a fazer, Amos cedeu. Voltou-se e inclinou-se para a frente e para a
direita de modo a conseguir ver para além do gurupés. Nicholas estava
inclinado sobre o remo, com uma perna entrançada com firmeza na base do
mastro, e o remo encostado com firmeza à proa da embarcação. Parecia
aterrorizado. Amos conseguiu ouvi-lo gritar:
— Harry! É melhor virares para bombordo!
Amos concordou em silêncio com a cabeça, pois se Harry virasse
rapidamente para bombordo, o pequeno barco à vela passaria ao largo do
pesado navio, não sem antes lhe embater, talvez até ficar alagado, mas pelo
menos os rapazes estariam vivos. Por outro lado, se virassem rapidamente
para estibordo, não tardaria a que o barco fosse triturado entre o casco do
navio e os pilares da doca, que estavam cada vez mais perto.
— O Príncipe está a tentar impedir-nos a passagem — disse Lawrence, o
ajudante do piloto.
— Ah! — Amos abanou a cabeça. — Está mas é a deixar que os
empurremos contra as docas. — Juntou as mãos à volta da boca e gritou:
— Harry! Tudo para bombordo!
O jovem respondeu com um grito de guerra tresloucado enquanto se
debatia com a cana do leme na tentativa de manter o barco centrado na proa
do navio.
— É como tentar equilibrar uma bola na ponta de uma espada —
suspirou Amos. A julgar pela velocidade da embarcação e pela sua posição,
sabia que chegara a hora de preparar as amarras. Mais uma vez, virou as
costas para os rapazes.
Lá de baixo, ouviam-se os vivas e os gritos de exultação de Harry
enquanto o veloz navio empurrava o pequeno barco. — O Príncipe está a
dominar o barco à frente — disse Lawrence. — Está a debater-se, mas está
a conseguir.
— Preparar as amarras da proa! Preparar as amarras da popa! — Os
marinheiros que estavam à proa e à popa prepararam as amarras para serem
arremessadas aos estivadores que aguardavam na doca.
— Almirante! — disse Lawrence em tom de excitação.
Amos fechou os olhos. — Não quero saber.
— Almirante! Perderam o controlo! Estão a virar para estibordo!
— Eu disse que não queria saber — realçou Amos. Virou-se para o
ajudante do piloto, que ostentava uma expressão de pânico enquanto o ruído
da pequena embarcação a ser esmagada entre o navio e a doca lhes chegava
aos ouvidos. O estalar da madeira e o despedaçar das pranchas fez-se
acompanhar dos gritos dos homens que estavam nas docas.
— Eu não tive culpa — disse o ajudante do piloto.
— Eu testemunharei a vosso favor no vosso julgamento — disse Amos
com um sorriso hostil rasgando-lhe a barba de tons de prata e cinza. —
Agora, dai ordens para que lancem as amarras, caso contrário esmagamo-
nos contra o molhe. — Ao constatar que o homem não reagia devido ao
choque, Amos gritou:
— Prendei as amarras!
Logo de imediato, o piloto ordenou que prendessem as amarras da popa e
os marinheiros lançaram-nas para os outros na doca. O navio perdera quase
todo o movimento avante e quando as amarras esticaram, imobilizou-se
completamente. — Prendei todas as amarras! Lançai a prancha de
desembarque! — gritou Amos.
Virou-se para a doca e espreitou para a água que se agitava entre o navio
e a doca. Ao lobrigar bolhas por entre a madeira, cabos e velas a boiar,
gritou para os homens que estavam na doca:
— Lançai uma corda àqueles dois idiotas que estão a nadar por debaixo
da doca antes que se afoguem!
Quando Amos desembarcou, os dois jovens encharcados já tinham
subido para a doca. Amos foi ao encontro deles e contemplou o par
ensopado.
Nicholas, o filho mais novo do Príncipe de Krondor, estava de pé com o
peso ligeiramente desequilibrado para a direita. A sua bota esquerda tinha o
calcanhar elevado para compensar a deformidade do pé que tinha desde
nascença. Não fora isso, e Nicholas seria um jovem de dezassete anos bem
constituído e esguio. Tinha parecenças com o pai, de feições angulares e
cabelo escuro, mas faltava-lhe a intensidade do Príncipe Arutha, embora
rivalizasse com ele em rapidez de reação. Ostentava a natureza tranquila e
os modos delicados da mãe, o que de algum modo fazia com que os seus
olhos fossem diferentes dos do pai, embora tivessem a mesma cor castanha-
escura. Naquele momento, parecia extremamente embaraçado.
O seu parceiro já era outra coisa. Harry, assim conhecido na corte porque
o seu pai, Conde de Ludland, também se chamava Henry1, sorria como se
não tivesse sido o autor da brincadeira. Tinha a mesma idade de Nicholas,
mas era meia cabeça mais alto, tinha cabelos ruivos encaracolados e um
rosto corado, e a maioria das raparigas mais novas da corte achavam-no
atraente. Era um jovem brincalhão que deixava amiúde que a sua natureza
aventureira levasse a melhor sobre ele, e era frequente o seu sentido de
diversão fazer com que ultrapassasse os limites do bom senso. Na maioria
das vezes, Nicholas ultrapassava com ele essa fronteira. Harry passou a mão
pelo cabelo molhado e riu-se.
— Qual é a piada? — perguntou Amos.
— Desculpai aquilo do barco, Almirante — respondeu o jovem escudeiro
—, mas se tivésseis visto a cara do ajudante do piloto…
Amos franziu o cenho para os dois jovens, mas depois não conseguiu
conter o riso. — E vi. Foi digno de se ver. — Abriu os braços e Nicholas
deu-lhe um forte abraço.
— Fico feliz por estardes de volta, Amos. Lamento que tenhais perdido o
Festival do Solstício de Verão.
— Bah! Estais todo molhado — disse, afastando o Príncipe com um
empurrão de repulsa exagerada. — Agora tenho de mudar de roupa antes de
ir ao encontro do vosso pai.
Os três começaram a caminhar na direção do molhe adjacente ao palácio.
— O que há de novo? — indagou Nicholas.
— Está tudo tranquilo. Navios mercantes da Costa Extrema, Kesh e
Queg, e o tráfego habitual das Cidades Livres. Tem sido um ano pacífico.
— Estávamos com esperança de ouvir algumas histórias aliciantes de
aventuras — disse Harry num tom algo zombeteiro.
Amos deu-lhe uma palmada na nuca em jeito de brincadeira. — Eu já vos
dou a aventura, seu doido. Qual foi a vossa ideia?
Harry esfregou a nuca e tentou mostrar uma expressão ofendida. — Nós
tínhamos prioridade.
— Prioridade! — exclamou Amos, deixando de caminhar, incrédulo. —
No porto aberto, talvez, onde há espaço de manobra suficiente, mas a
«prioridade» não trava um vaso de guerra de três mastros que vai direto a
vós sem espaço para se desviar e nenhuma maneira de parar. — Abanou a
cabeça quando recomeçou a caminhar para o palácio. — Prioridade, pois
sim! — Virou-se para Nicholas. — O que estáveis a fazer na baía a esta
hora do dia? — perguntou. — Pensei que tivésseis de estudar.
— O Prelado Graham está em conferência com o pai — respondeu
Nicholas. — Por isso, fomos pescar.
— Apanharam alguma coisa?
Harry sorriu. — O maior peixe que o Almirante jamais viu.
— Agora que está novamente nas águas da baía, é o maior — disse Amos
com uma gargalhada.
— Não apanhámos nada que mereça a pena referir — disse Nicholas.
— Bem, ide lá vestir alguma coisa menos húmida — disse Amos. — Eu
vou reparar as forças e depois vou visitar o vosso pai.
— Estareis presente no jantar? — indagou o jovem Príncipe.
— Presumo que sim.
— Ótimo; a avó está em Krondor.
Amos alegrou-se com a novidade. — Nesse caso, não faltarei.
Nicholas contemplou Amos com um sorriso de soslaio em tudo
semelhante ao do pai. — Duvido que passe pela cabeça de alguém que seja
uma coincidência o facto de ela ter vindo visitar a mãe precisamente a
tempo de estar aqui para o vosso regresso.
Amos limitou-se a sorrir. — É devido ao meu irresistível charme. — Na
brincadeira, deu uma palmada nas cabeças dos dois rapazes. — Agora ide!
Tenho de me apresentar ao Duque Geoffrey, depois vou aos meus aposentos
vestir algo mais apropriado para o jantar com… o vosso pai. — Piscou o
olho a Nicholas e afastou-se a assobiar uma melodia desconhecida.
Nicholas e Harry estugaram o passo para os aposentos do Príncipe com
as meias encharcadas dentro das botas. Harry tinha um pequeno quarto
perto do de Nicholas, pois era oficialmente o Escudeiro do Príncipe
Nicholas.
O palácio do Príncipe em Krondor ficava sobranceiro à baía, e fora
outrora o bastião defensivo do Reino no Mar Amaro. As docas reais eram
separadas do resto do porto por uma área de orla costeira desimpedida que
se integrava nas muralhas do palácio. Nicholas e Harry cortaram caminho
pela extensão de praia desobstruída e acercaram-se do palácio pela água.
O palácio erguia-se majestosamente no cimo de uma colina, recortado
contra o céu da tarde, com uma série de apartamentos e corredores que se
estendiam desde a torre de menagem original, que continuava a ser o ponto
fulcral do complexo. Eclipsada por várias outras torres e cúspides
acrescentadas ao longo dos últimos séculos, a velha torre de menagem
ainda era o centro das atenções, uma recordação de tempos idos, quando o
mundo era um lugar muito mais perigoso.
Nicholas e Harry abriram um velho portão de metal que dava acesso ao
porto para os trabalhadores da cozinha. A pungência do porto, com os seus
odores a peixe, salmoura e alcatrão, deu lugar a aromas mais apetecíveis à
medida que se aproximavam da cozinha. Os rapazes passaram
apressadamente pela lavandaria e pela padaria, atravessaram um pequeno
quintal de legumes e desceram um pequeno lanço de escadas de pedra, que
cruzava as cabanas da criadagem.
Aproximaram-se da entrada dos criados para os apartamentos privados da
família real, na esperança de não se cruzarem com algum elemento da
equipa do Príncipe Arutha, ou, mais concretamente, com o próprio Príncipe.
Ao chegarem às portas que os criados utilizavam mais próximas dos seus
próprios aposentos, Nicholas abriu-as precisamente quando apareceram
duas criadas do palácio com montes de roupa branca dirigindo-se para a
lavandaria nas traseiras do palácio. Por respeito à pesada carga que
transportavam, deu-lhes passagem, embora a sua posição lhe conferisse
prioridade. Harry contemplou com uma espécie de sorriso dissoluto as duas
raparigas, apenas alguns anos mais velhas do que ele. Uma soltou
risadinhas e a outra fitou-o com um olhar de quem dá com um roedor na
despensa.
Quando as duas jovens se afastaram, conscientes do impacto que tinham
causado nos dois adolescentes, Harry sorriu e disse:
— Ela deseja-me.
Nicholas deu-lhe um empurrão com força que o fez atravessar a porta aos
tropeções.
— Tanto quanto eu desejo uma diarreia — comentou. — Continua a
sonhar.
Subiram apressadamente as escadas que conduziam aos aposentos da
família. — Não, ela deseja-me. Esconde-o, mas eu sinto-o — disse Harry.
— Harry, o mulherengo — disse Nicholas. — Krondor, trancai as vossas
filhas.
Depois do brilhante Sol da tarde, o corredor estava vincadamente
sombrio. Ao fundo do corredor, subiram por umas escadas que os levaram
desde a zona da criadagem até aos apartamentos da família real. Ao cimo
das escadas, abriram a porta e espreitaram. Como não viram nenhum
membro superior da hierarquia, os dois rapazes apressaram-se para as
portas dos respetivos aposentos, que se situavam a meio caminho do
corredor desde a porta dos criados. Entre esta porta e as suas, havia um
espelho, e ao ver o seu próprio reflexo, Nicholas disse:
— Ainda bem que o pai não nos viu.
Nicholas entrou para os seus aposentos, constituído por duas grandes
câmaras, com enormes armários e uma sala privada, pelo que não tinha de
sair de lá para se aliviar. Despiu rapidamente as roupas molhadas e secou-
se. Virou-se e viu o seu reflexo num enorme espelho, um luxo de valor
incalculável, já que fora fabricado em vidro prateado de Kesh. O seu corpo,
o corpo de um rapaz prestes a tornar-se homem, evidenciava um peito e
ombros largos; já tinha pelos próprios de um adulto, bem como a
necessidade de se barbear todos os dias. Mas o seu rosto continuava a ser o
de um menino, faltando-lhe aquele conjunto de traços que apenas o tempo
consegue conferir.
Quando acabou de se secar, olhou para o pé esquerdo, tal como fizera
todos os dias da sua vida. Uma bola de carne, com minúsculas
protuberâncias que deveriam ter sido dedos, estendia-se desde a base de
uma perna esquerda de outro modo perfeita. Aquele pé fora alvo da
medicina e da magia desde o seu nascimento, mas resistira a todas as
tentativas de cura. Embora não tivesse menos sensibilidade ao toque e à
sensação do que o pé direito, Nicholas sentia dificuldade para o controlar;
os músculos estavam ligados de modo incorreto a ossos do tamanho errado
para realizarem as tarefas que a natureza pretendia. Tal como a maioria das
pessoas com uma moléstia de nascença, Nicholas criara uma compensação
ao ponto de raramente dar pelo defeito. Mancava apenas ligeiramente ao
caminhar. Era um excelente espadachim, talvez igual ao pai, que era
considerado o melhor do Reino Ocidental. O Mestre de Armas do Palácio
considerava-o já melhor espadachim do que os dois irmãos mais velhos
eram com a sua idade. Sabia dançar, uma obrigação do seu posto, filho do
governante do Reino Ocidental, mas a coisa que não conseguia compensar
era uma terrível sensação de, de algum modo, ser menos do que aquilo que
deveria ser.
Nicholas era um jovem afável e ponderado que preferia a plácida solidão
da biblioteca do pai às atividades mais turbulentas da maioria dos rapazes
da sua idade. Era um exímio nadador, um belíssimo cavaleiro e um arqueiro
sofrível, além de ser hábil no manuseamento do sabre, mas toda a vida se
sentira deficiente. Uma vaga sensação de falha, e uma culpa que o
perseguia, parecia apoderar-se inesperadamente dele, e era frequente ter a
mente assoberbada por sombrios pensamentos. Quando tinha companhia,
era habitualmente alegre e apreciava uma piada como qualquer outro, mas
quando estava sozinho, a mente de Nicholas era acometida de
preocupações. Fora esse um dos motivos por que Harry fora para Krondor.
Enquanto se vestia, Nicholas abanou a cabeça divertido. O seu parceiro
do ano que passara, o Escudeiro Harry, potenciara uma súbita mudança nos
modos solitários de Nicholas, constantemente a arrastar o Príncipe para
alguma atividade disparatada ou outra. A vida de Nicholas tornara-se muito
mais sedutora desde a chegada do filho do meio do Conde de Ludland.
Dada a sua posição e dois irmãos competitivos, Harry era combativo e
esperava que lhe obedecessem, e praticamente não fazia caso da diferença
de posição entre ele e Nicholas. Apenas uma ordem direta relembrava
Harry de que Nicholas não era um irmão mais novo em quem podia
mandar. Considerando os modos dominadores de Harry, a corte do Príncipe
era provavelmente o único lugar para onde o seu pai o poderia mandar para
controlar a sua maneira de ser antes que ele se transformasse num
verdadeiro tirano.
Nicholas penteou o cabelo molhado que lhe dava pelo pescoço, com um
corte semelhante ao do pai. Secando-o com uma toalha e depois penteando-
o, alternadamente, lá conseguiu dar-lhe um aspeto de respeitabilidade.
Invejava os caracóis ruivos de Harry. Bastava-lhe secá-lo rapidamente e
uma penteadela e já estava.
Nicholas achou que já estava com a melhor aparência que conseguiria
dadas as circunstâncias e saiu dos seus aposentos. Ao aceder ao corredor,
encontrou Harry já vestido e pronto, tentando retardar outra serviçal, esta
vários anos mais velha do que ele, enquanto ela ia fazer algum recado.
Harry envergava o uniforme verde e castanho dos escudeiros do palácio
que, teoricamente, fazia dele um elemento da equipa de Mordomos Reais,
mas poucas semanas após a sua chegada, fora destacado para o serviço
pessoal de Nicholas. Cinco anos antes, os dois irmãos mais velhos de
Nicholas, Borric e Erland, haviam sido enviados para a Corte do Rei em
Rillanon, no intuito de se prepararem para o dia em que Borric herdaria a
coroa das Ilhas do seu tio. O único filho do Rei Lyam tinha-se afogado
quinze anos antes, e Arutha e o Rei haviam decidido que, no caso de Arutha
viver mais do que o irmão, Borric lhe sucederia no trono. Elena, a irmã de
Nicholas, casara recentemente com o primogénito do Duque de Ran,
deixando o palácio bastante vazio de companheiros de posição apropriada
para o jovem Príncipe antes de o pai de Harry o ter enviado para prestar
serviço.
Aclarando a garganta em tom alto, Nicholas chamou a atenção de Harry
o tempo suficiente para permitir que a serviçal seguisse o seu caminho. Fez
uma vénia de cortesia ao Príncipe, à qual juntou um sorriso de gratidão, e
apressou-se dali para fora.
Nicholas ficou a vê-la afastar-se. — Harry, tens de deixar de usar a tua
posição para apoquentares as criadas — disse.
— Ela não estava apoquentada — começou Harry.
— Isto não é uma opinião — disse Nicholas rispidamente.
Raramente se servia da sua posição para dar ordens a Harry relativamente
ao que fosse, mas nas raras ocasiões em que o fazia, este sabia que não
devia argumentar, principalmente quando o seu tom de voz se assemelhava
ao do Príncipe Arutha, um sinal inequívoco de que Nicholas não estava a
brincar. O escudeiro encolheu os ombros. — Bem, falta uma hora para o
jantar. O que havemos de fazer?
— Passar o tempo a combinar a nossa história, penso eu.
— Que história? — indagou Harry.
— A história que vamos contar ao pai para explicar por que razão o meu
barco está agora espalhado aos pedaços por todo o porto.
Harry olhou para Nicholas com um sorriso confiante e disse:
— Hei de lembrar-me de alguma coisa.
Viagem
O
palácio estava em alvoroço.
Arutha passara uma manhã tranquila com a mulher, e quando
terminaram o pequeno-almoço, ela concordara que um ou dois
anos na companhia de Martin poderia ser a coisa certa para Nicholas. Ela
vivera em Crydee como hóspede de Arutha durante o último ano da Guerra
da Brecha e passara a gostar bastante daquela modesta vila na Costa
Extrema. Embora inóspita quando comparada com os padrões de Krondor,
fora ali que conhecera o seu amado Arutha, com todos os seus estados de
espírito sombrios e preocupações, bem como com os lados mais joviais do
seu ser. Ela compreendia as preocupações de Arutha em relação a Nicholas,
e o receio que ele tinha de o rapaz não ser capaz de lidar com a situação,
estando o destino de terceiros em jogo; ela também sabia que Arutha
encararia tal ocorrência como uma falha da sua parte. Embora fosse sentir
saudades do filho mais novo, cedeu, pois compreendeu que tal era para o
bem de Arutha, bem como para o de Nicholas. Por causa dela, Arutha
protegera Nicholas de muitas das realidades mais rígidas do mundo em que
vivia. O seu argumento era a simples afirmação de que Nicholas era o
terceiro na sucessão à coroa, atrás dos irmãos, e até agora nada na sua vida
o preparara para tal empreitada caso a sorte inesperadamente lhe pusesse a
coroa nas mãos, como acontecera ao seu tio Lyam.
Anita também adivinhara um segundo sentido nas suas palavras, mais do
que uma simples ansiedade associada a um filho mais novo que sai de casa
pela primeira vez, mas não conseguiu perceber bem o quê. Mas acima de
tudo, Anita compreendia que o marido ansiava por assumir o controlo, dar
orientações, proteção e apoio a Nicholas, e que deixá-lo ir era
provavelmente mais difícil para Arutha do que para ela.
Uma hora depois de Arutha informar Nicholas e Harry de que deveriam
partir para Crydee com Amos, os mil e um detalhes associados aos
preparativos para a viagem puseram a Casa Real num estado próximo do
pânico. Todavia, graças à prática adquirida em centenas de eventos estatais,
o Administrador Real e a sua equipa de escudeiros, pajens e criados
mostraram-se à altura da situação, e Arutha sabia que quando o barco
partisse no dia seguinte, tudo o que o Príncipe e o seu companheiro
precisariam estaria a bordo.
O Águia Real estava pronto para levar o armamento e os
aprovisionamentos necessários para a nova guarnição que o Duque Martin
estava a estabelecer. Amos estava a assumir o comando, e partiriam rumo a
Crydee com a maré da manhã, bem cedo. A decisão para uma partida tão
súbita fora tomada porque Arutha não queria que houvesse tempo para
reponderar a sua decisão, mas também para aproveitarem as condições
climatéricas favoráveis. Os infames Estreitos das Trevas estariam
navegáveis durante os meses que se avizinhavam, porém o outono desabaria
sobre Amos quando ele zarpasse para a viagem de regresso. Assim que o
mau tempo chegasse, os estreitos entre o Mar Amaro e o Mar Interminável
eram demasiado perigosos para navegar, a não ser em caso de necessidade
extrema.
Amos percorreu o comprido corredor que dava acesso aos aposentos dos
hóspedes. Durante os anos que vivera em Krondor, nunca se dera ao
trabalho de arranjar alojamento privado fora do palácio, ao contrário da
maioria dos outros colaboradores do Príncipe. Era o único membro do
círculo de conselheiros e comandantes do Príncipe que se mantinha solteiro
e não necessitava de um lugar para albergar uma família. Como passava
quase três quartos do tempo em alto-mar, a verdade é que também passava
pouco tempo no palácio.
Porém, agora debatia-se com a ideia de como a sua vida iria mudar após
esta viagem. Hesitou durante instantes, depois bateu à porta. Um criado
assomou prontamente à porta e, ao ver o Almirante, abriu-a completamente.
Amos entrou e viu Alicia sentada num divã diante de uma larga passagem
envidraçada que dava para a sua varanda privativa, aberta para deixar entrar
a brisa da manhã. Ela levantou-se e sorriu quando ele se encaminhou na sua
direção.
Ele tomou-lhe a mão e beijou-lhe o rosto. Embora os criados soubessem
que ele passara a noite neste mesmo apartamento, em nome do protocolo da
corte fizeram de conta que não sabiam. Amos esgueirara-se antes da
alvorada e regressara aos seus aposentos. Mudara de roupa e fora ao porto
para uma rápida inspeção ao Águia Real.
— Amos — disse a Princesa de Dowager. — Não esperava ver-vos antes
desta noite.
Amos não sabia o que dizer, o que deixou Alicia atónita. Na noite
anterior, percebera que ele estava a pensar em alguma coisa, pois embora se
tivesse mostrado fogoso, também lhe parecera algo alheado. Por várias
vezes, parecera-lhe que ele estivera na iminência de dizer algo, mas depois
acabava por fazer uma pergunta ou uma afirmação inconsequente.
Olhou em redor, e quando teve a certeza que estavam sós, sentou-se
pesadamente ao lado dela.
— Alicia, minha querida — disse, segurando-lhe a mão. — Pensei
bastante sobre o assunto…
— Que assunto? — interrompeu-o ela.
— Deixai-me acabar — disse. — Se não disser o que tenho para dizer,
ainda perco a cabeça, iço as velas e zarpo.
Ela tentou não rir, pois ele parecia bastante sério. Todavia, já imaginava o
que se seguiria.
— Não estou a ficar mais novo…
— Ainda sois um jovem — disse ela em jeito de brincadeira.
— Que raios, mulher, isto já é difícil sem que tenteis lisonjear-me! — O
seu tom era mais de exasperação do que de raiva, por isso ela não levou a
mal. Os seus olhos deixavam transparecer um brilho de felicidade embora
mantivesse um rosto impassível.
— Já fiz muitas coisas de que não me orgulho, Alicia, e algumas já vo-las
confessei. Outras, preferia esquecer. — Fez uma pausa, à procura das
palavras. — Por isso, se não quiserdes, eu compreendo e não ficarei
ofendido.
— Se não quiser o quê, Amos?
— Casar — disse Amos de rompante, quase enrubescendo.
Alicia soltou uma gargalhada e apertou-lhe as mãos com força. Inclinou-
se para a frente e beijou-o. — Seu tolo. Com quem mais iria eu casar? É por
vós que estou apaixonada.
Amos sorriu. — Pronto, sendo assim, está bem. — Passou os braços à
volta dela e cingiu-a com força. — Não vos ides arrepender, pois não?
— Amos, com a minha idade, já me arrependi de muita coisa, posso
afiançar-vos. Casei com o Erland porque ele era irmão do Rei e o meu pai o
Duque de Timons, não por sentir alguma coisa por ele. Acabei por amar o
meu marido, pois ele era um homem bondoso e adorável, mas nunca estive
apaixonada por ele. Quando ele morreu, parti do princípio que o amor seria
algo que iria apreciar noutras pessoas mais novas do que eu. Foi então que
vós entrastes na minha vida. — Amos recostou-se e ela segurou-lhe o
queixo com a mão, abanando-lhe a cabeça em jeito de brincadeira, como se
faz às crianças. Depois passou-lhe a mão pelo rosto e acariciou-o. — Não,
eu não tenho tempo suficiente para fazer escolhas erradas. Não obstante
todos os vossos defeitos, tendes uma mente alerta e um bom coração, e tudo
o que tenhais feito no passado já lá vai. Vós fostes o único avô que os meus
netos conheceram, embora eles saibam que não o devem dizer à vossa
frente, mas sabeis que é o que eles sentem. Não, isto não é um erro. — Ela
encostou-se aos seus braços e ele apertou-a outra vez com força. Amos
suspirou de felicidade.
Alicia sentiu lágrimas de felicidade assomarem-lhe aos olhos e
pestanejou para as conter. Amos nunca se sentira à vontade com
demonstrações manifestas de emoções. Há anos que mantinham uma
relação íntima, mas ela compreendera a renitência de Amos em declarar-se,
pois sabia-o um homem avesso a relações de proximidade. Era evidente que
gostava de Arutha e da sua família, porém havia sempre algo em Amos que
era distante. Ela sabia que ele se retraía, e não havia nada que pudesse fazer
para que se abrisse. A idade conferira-lhe uma sabedoria que muitas
mulheres mais jovens não compreenderiam. Não quisera afastar Amos
pedindo-lhe que escolhesse entre o seu amor por ela e o seu amor pelo mar.
Relutantemente, Amos deixou de a abraçar. — Bem, por muito que
gostasse de ficar um pouco, o marido da vossa filha destinou-me uma
missão.
— Partis novamente? Mas acabastes de chegar. — A sua voz revelava
uma desilusão genuína.
— Sim, é verdade. Mas o Nicholas tem de ir para a corte do Martin para
amadurecer durante um ou dois anos, e é preciso transportar alguns
aprovisionamentos para a nova guarnição de Barran na costa noroeste. —
Contemplou os olhos verdes de Alicia. — Será a minha última viagem, meu
amor — disse. — Não irei demorar muito, e depois não tardareis a ficar
saturada de me terdes constantemente à perna.
Ela abanou a cabeça e sorriu. — Não acredito. Tereis muito com que vos
ocupardes nas minhas propriedades. Teremos terras que gerir, caseiros que
supervisionar, e duvido que o Arutha vos deixe estar longe da corte mais de
um mês de cada vez. Ele aprecia as vossas perspetivas e opiniões.
Conversaram durante algum tempo até que Amos disse:
— Temos muito que fazer. Tenho de me certificar de que o navio está
preparado, e vós e a Anita irão certamente andar numa azáfama com os
preparativos para o casamento.
Separaram-se e Amos afastou-se dos aposentos de Alicia com uma
sensação de júbilo e um invulgar desejo de continuar a velejar para ocidente
depois de deixar Nicholas no seu destino. Amava Alicia como nunca amara
outra mulher, mas a ideia de casamento era um pouco assustadora para o
velho solteirão.
Quase deitou ao chão Ghuda Bulé ao dobrar uma esquina. O mercenário
de cabelos grisalhos recuou, fazendo uma reverência desajeitada. —
Perdoai-me, senhor.
Amos fez uma pausa. — Não tendes de pedir desculpa… — disse em
keshiano.
— Ghuda Bulé, senhor.
— Ghuda — repetiu Amos. — Eu ia a pensar noutras coisas e não estava
a prestar atenção.
— Perdoai-me, senhor, mas acho que vos conheço — disse Ghuda,
franzindo o cenho.
Amos esfregou o queixo. — Já fui uma ou duas vezes a Kesh.
Ghuda sorriu ironicamente. — Eu fui principalmente guarda de
caravanas; não há muita coisa em Kesh que eu não conheça.
— Bem, deve ter sido num porto, pois nunca segui para o interior de
Kesh mais do que o necessário — disse Amos. — Talvez em Durbin.
Ghuda encolheu os ombros. — Talvez. — Olhou em redor. — O meu
companheiro desapareceu, o que é bastante comum nele, por isso decidi
passear um bocado. — Abanou a cabeça. — Estive no palácio da Imperatriz
na Cidade de Kesh há alguns anos, quando viajei com o filho do vosso
Príncipe. — Olhou de relance para as altas janelas abobadadas sobranceiras
à zona florestal da cidade. — Isto aqui é muito diferente, mas vale a pena
ver.
Amos sorriu. — Nesse caso, aproveitai bem o passeio. Partiremos ao
romper da aurora para aproveitar a maré.
Ghuda franziu o cenho. — Partiremos?
O sorriso de Amos alargou-se. — Eu sou o Almirante Trask. Arutha
informou-me de que vós os dois irão viajar connosco.
— Para onde vamos? — indagou Ghuda.
— Ah! — exclamou Amos. — É óbvio que aquele vosso estranho amigo
não vos informou. Vós e ele irão acompanhar-nos até Crydee.
Ghuda voltou-se lentamente, falando com ele mesmo, mas também com
Amos. — É evidente que ele não me informou, nunca me informa sobre
nada.
Amos deu-lhe uma palmada amigável nas costas. — Bem, não sei bem
porquê, mas sois bem-vindo. Tereis de partilhar uma cabina com o
pequenote, mas já pareceis habituado à sua companhia. Encontramo-nos no
pátio amanhã de madrugada.
— Lá estaremos, sem dúvida. — Depois de Amos ir embora, Ghuda
abanou a cabeça. — Por que motivo vamos para Crydee, Ghuda? —
murmurou, num tom acre. — Não faço a menor ideia, Ghuda. Vamos
procurar Nakor, Ghuda? Com certeza, Ghuda. Depois estrangulamo-lo,
Ghuda? — Com um simples aceno de cabeça, respondeu a si mesmo.
— Com muito prazer, Ghuda.
N
Harry.
icholas estugou o passo ao longo do pátio de formatura dos soldados,
onde estava a realizar-se o exercício da tarde. Andava à procura de
Crydee
O
navio lançou a âncora.
Crydee fervilhava de atividade ao meio do dia enquanto os
estivadores da doca tratavam das amarras do Águia Real. Nicholas
perscrutou a sua nova terra, sorvendo a novidade de tudo. Os surtos de
saudades de casa tinham regressado durante a longa viagem, e só haviam
desaparecido enquanto transpunham os perigosos Estreitos das Trevas, o
que demorara um dia e meio repleto de peripécias. Depois tinham seguido
para norte e passado por Tulan e Carse, até virem atracar a Crydee.
O burgo crescera nos últimos vinte anos, e por toda a parte havia sinais
de expansão. Enquanto velejavam para norte, Amos indicara o local onde
uma aldeia piscatória havia crescido para sul do promontório a que chamara
Mágoa dos Marinheiros. Avistavam-se novos edifícios no alto de uma
distante colina para sudeste enquanto o navio dava entrada na doca.
Nicholas protegeu os olhos do Sol forte que se refletia nas fachadas brancas
dos edifícios. Avistou duas carruagens e um par de carroças aproximarem-
se e estacionarem diante de um edifício ataviado com um grande estandarte
real, pelo que calculou que deveriam ser ali os serviços alfandegários. Os
serviçais que seguiam sentados na parte de trás das carruagens saltaram dos
seus lugares e abriram as portas. Pela primeira, saiu uma mulher alta,
seguida de um homem ainda mais alto. Nicholas reconheceu neles a sua tia
e o seu tio. Seguiu-se um rebuliço enquanto os outros veículos
estacionavam.
Amos ordenou que lançassem o passadiço. Nicholas e Harry estavam ali
perto à espera para desembarcar. O Duque Martin, a Duquesa Briana e a
respetiva corte estavam a postos para receberem o Príncipe Real e a sua
comitiva. Amos reparou na receção mais abaixo e disse:
— Bem, sabemos que pelo menos um pombo conseguiu fazer a viagem
desde Ylith.
Durante os vinte e oito anos decorridos desde a Guerra da Brecha,
tinham-se mantido intactos os postos de substituição de mensageiros entre
Krondor e a Costa Extrema, incluindo cavalos velozes e pombos-correio.
Com a súbita decisão de enviar Nicholas apenas no dia anterior à partida, a
notícia da sua iminente vinda chegara a Crydee apenas alguns dias antes de
o navio ser avistado a partir do porto.
— Quem são aquelas raparigas? — perguntou Harry enquanto os
marinheiros se preparavam.
Nicholas reparara nas duas jovens raparigas que acompanhavam o
Duque. — Presumo que uma delas seja a minha prima Margaret. Não sei
quem é a outra — disse.
— Eu descubro — disse Harry, sorridente.
Quando o passadiço ficou pronto, Amos dirigiu-se a Nicholas com toda a
formalidade. — Vossa Majestade? — indicando que se esperava que
Nicholas fosse o primeiro a desembarcar.
Harry deu um passo em frente, mas Amos colocou-lhe uma mão no peito
com firmeza. — Por graduação, Escudeiro — disse, severamente.
Harry enrubesceu e recuou um passo.
Nicholas desceu para o cais e um homem alto aproximou-se dele. Martin,
o Duque de Crydee, sorriu calorosamente enquanto fazia a vénia ao
sobrinho. — Sua Alteza, temos muito prazer em receber-vos em Crydee. —
Martin tinha ligeiras parecenças com Arutha, mas era mais alto e mais
pesado. Tinha o cabelo quase totalmente grisalho, e o rosto vincado pelo sol
e pela idade, mas aparentava uma solidez maciça que não passava
despercebida a ninguém. Não se tratava de um nobre sedentário que
passava os dias a beber vinho e a dar ordens aos criados. Era um homem
que, não obstante a idade, ainda passava noites a dormir no chão sob céus
estrelados e que levava a caça às costas para casa.
Nicholas sorriu, ligeiramente embaraçado com o protocolo. — Tio —
disse —, é um prazer estar aqui.
Amos foi o segundo a desembarcar.
— Alteza — disse ao dar uma palmada rude no ombro de Martin.
Toda a formalidade se desvaneceu quando Martin lançou os braços à
volta de Amos. — Seu velho pirata — disse, soltando uma gargalhada. —
Já lá vão tantos anos. — Deram palmadas nas costas um do outro e
apertaram as mãos. Amos inclinou a cabeça na direção de Nicholas.
Martin voltou a atenção para o Príncipe. — Alteza. Permiti que vos
apresente a minha mulher, a Duquesa Briana. — Nicholas não a via desde
muito pequeno, e tinha dela uma memória muito vaga. Era como se a
estivesse a conhecer pela primeira vez. Uma mulher alta inclinou a cabeça
para Nicholas. Os seus cabelos, grisalhos com uma surpreendente risca
branca do lado esquerdo, fluíam para trás a partir de uma testa alta. A
Duquesa nada tinha de belo, mas era uma mulher surpreendente. Uns olhos
azuis ladeados por linhas vincadas das intempéries e da idade miraram o
Príncipe a partir de um rosto de outro modo isento de qualquer vestígio de
envelhecimento, embora já tivesse mais de cinquenta anos. Envergava umas
vestes muito práticas constituídas por um colete de pele sobre uma camisa
de seda e as calças enfiadas nas botas de cano alto. — Minha senhora —
disse Nicholas, tomando-lhe a mão estendida e apertando-a levemente num
cumprimento. O aperto que recebeu foi forte e Nicholas percebeu que as
histórias que ouvira acerca da estranha mulher do tio eram na sua essência
verdadeiras. Oriunda das cidades caídas de Armengar, onde as mulheres
eram soldados como os homens, Lady Briana conseguia montar, caçar e
combater melhor que a maioria dos homens, segundo davam conta todos os
relatos. Ao vê-la, Nicholas não teve dúvidas disso.
Martin prosseguiu com as apresentações. — Este é o meu filho, Marcus.
— Nicholas virou-se para o primo e hesitou; ele tinha algo de vagamente
familiar. Cabelo e olhos castanhos: Nicholas achou que lhe fazia lembrar
alguém de Krondor. Marcus era da mesma altura de Nicholas e usava o
cabelo com o mesmo comprimento que o do Príncipe. Porém, Marcus era
quase dois anos mais velho do que Nicholas e um pouco mais corpulento.
Marcus fez uma reverência rígida a Nicholas e recuou um passo.
— Primo — disse Nicholas com um aceno.
Amos foi colocar-se nas costas de Nicholas. — Lembrais-vos daquela
vez em que eu disse que éreis irmão do Arutha? — perguntou a Martin.
— Como o poderia esquecer? — respondeu Martin. — Foi a minha
primeira viagem e vós quase nos afogastes a todos.
— Quereis dizer que salvei os vossos coiros inúteis com a minha mestria
de velejador — respondeu Amos. Acenou com uma mão para Nicholas e
Marcus. — Mas se o mundo alguma vez duvidou da vossa ascendência, ali
está a prova. — Cofiou a barba. — Acho que vamos ter de pintar um de
verde para os conseguirmos distinguir.
Nicholas olhou para Amos sem compreender, mas o semblante de
Marcus era uma máscara indecifrável. — As parecenças… — disse Amos.
— Que parecenças? — indagou Nicholas.
— De um com o outro — respondeu o Almirante.
Nicholas virou-se para olhar para o primo — Achais…?
Marcus abanou ligeiramente a cabeça. — Eu não vejo… Alteza.
— Nunca o vereis — disse Amos com uma gargalhada.
Martin prosseguiu com as apresentações. — Alteza, esta é a minha filha
Margaret.
Uma das duas jovens fez uma vénia. Tinha os cabelos escuros como os
do irmão, mas era parecida com a mãe. A natureza contemplara-a com um
nariz reto e maçãs do rosto salientes, mas feições menos severas do que as
de Briana. Usava o cabelo comprido pelos ombros, como a mãe, sem
qualquer enfeite. Uns olhos escuros olharam de relance para o Príncipe. —
Muito prazer, prima — disse ele. Ela sorriu ao cumprimento e foi quanto
bastou para ele a achar adorável.
O olhar de Nicholas desviou-se para a jovem mulher que estava ao lado
de Margaret e sentiu um aperto no peito. Olharam-no uns olhos azuis
violáceos que pareciam os maiores que jamais vira. Subitamente, sentiu-se
desajeitado e inseguro. — Esta é a minha companheira, Lady Abigail, filha
do Barão Bellamy de Carse — explicou Margaret. A rapariga mais esbelta
fez uma reverência e Nicholas teve a certeza que nunca antes vira alguém
fazê-lo com tanta elegância. Ao contrário de Margaret, Abigail trazia o
cabelo apanhado num pequeno círculo prateado atrás da cabeça, de onde
pendia aos caracóis. Tinha a pele clara e límpida e feições delicadas. Sorriu
ao terminar a mesura e Nicholas limitou-se a sorrir em resposta. Passado
algum tempo, o sorriso transformou-se num esgar imbecil.
O som de alguém a aclarar a voz nas suas costas despertou Nicholas do
seu transe. — Minha senhora — disse, e a sua voz soou forçada aos seus
próprios ouvidos. Nicholas voltou-se para Margaret. — Este é o Harry, o
meu Escudeiro — explicou Nicholas enquanto o seu companheiro descia o
passadiço trazendo a bagagem de ambos. O rapaz largou-a no chão e fez
uma vénia dirigida ao Duque de Crydee. Ao avistar a Princesa e a amiga,
esboçou um largo sorriso.
Martin indicou que Nicholas deveria seguir na primeira carruagem com
ele e com a sua mulher. Harry começou a segui-los quando a mão de Amos
o agarrou pelo ombro. — A primeira carruagem é para o Príncipe, o Duque
e a Duquesa. A segunda para mim e para os filhos do Duque.
— Mas… — ia Harry dizer.
Amos apontou para as carroças. — Podeis certificar-vos de que a
bagagem do Príncipe está em ordem e que é descarregada e passada para
aquelas carroças. Depois, quando tudo estiver a postos, podeis seguir numa
delas.
Nakor e Ghuda desceram o passadiço. — Então e eles? — perguntou
Harry.
— Nós vamos a pé — disse Nakor a sorrir. — Não é assim tão longe. —
Apontou para o castelo na colina sobranceira ao porto.
— Fazia-me bem esticar as pernas — disse Ghuda.
Harry suspirou e levou os dois sacos para a primeira carroças. — Eh,
miúdo, o que vem a ser isto? — disse um tratador de animais.
Harry estava irritado e respondeu bruscamente: — São as bagagens do
Príncipe de Krondor. Eu sou o seu Escudeiro.
O homem fez uma continência indolente e continuou encostado à
carroça. — Nesse caso, onde ireis meter aquele monte, Escudeiro? — disse,
enquanto apontava.
Harry virou-se e viu o primeiro carregamento de bagagem a ser
descarregada do navio, enquanto dois marinheiros transportavam uma das
pesadas arcas de Nicholas pelo passadiço abaixo. Seguiram-se outros três
carregamentos idênticos. Enquanto o ranger da madeira e o zunir das cordas
encheram o ar, uma enorme rede de carga era majestosamente içada do
porão do navio. Mais uma dúzia de arcas e outras bagagens variadas foram
içadas pela borda e baixadas para a doca. Os ajudantes da doca
aproximaram-se e começaram a desapertar a rede.
— E presumo que saibais para onde vai aquele lote, Escudeiro? — disse
o tratador de animais.
Com um sinal de resignação, Harry foi ao vagão e tirou de lá os dois
sacos que tinham sido a fonte de roupas e artigos pessoais dele e de
Nicholas durante as semanas que tinham passado a bordo do navio.
Obviamente, deveriam ser a última mercadoria a ser carregada. — E é
suposto que eu faça a supervisão? — disse Harry abanando a cabeça.
Com um piscar de olho sapiente, o tratador de animais desencostou-se da
carroça. — Seria tudo mais rápido e mais fácil para todos nós, Escudeiro, se
fizésseis a supervisão a partir dali. — Apontou para uma entrada a dez
metros dali. — Tem boa cerveja e boas tartes de carne e podeis
supervisionar pela janela.
Harry sentiu água na boca ao pensar em tartes de carne depois da parca
ementa do navio. — Não, tenho as minhas obrigações — disse.
O tratador de animais abanou a cabeça. — Nesse caso fazei um favor a
ambos, Escudeiro, e supervisionai muito caladinho, se bem me faço
entender.
Harry concordou com a cabeça e afastou-se para um lado enquanto o
primeiro par de arcas era transportado para a carroça. Procurou uma sombra
debaixo do telhado saliente do edifício dos serviços alfandegários e
encostou-se à parede. Olhou de relance para a colina e reparou que Ghuda e
Nakor já estavam a sair da zona das docas e a entrar para uma rua larga que
cruzava o burgo em direção ao castelo. Era provável que chegassem ao
castelo uma hora antes de Harry. — Pensei que esta viagem fosse mais
interessante — resmungou Harry consigo mesmo.
Escudeiro
N
icholas tropeçou.
— Depressa, ou o Samuel arranca-nos as orelhas — disse Harry ao
passar pelo amigo.
Na semana decorrida desde que tinham vindo servir para Crydee, os rapazes
conheceram a sua desgraça: o Mordomo-Mor Samuel. O velho despenseiro,
com quase oitenta anos, estava ao serviço da casa ducal de Crydee desde os
tempos do avô de Nicholas. E ainda conseguia manejar energicamente uma
chibata.
Na manhã após a partida de Amos, Harry interrompera a realização de um
recado para meter conversa com umas raparigas locais, e regressara
demasiadamente atrasado da incumbência, encontrando à sua espera um Samuel
de lábio franzido. Quando lhe mostrou a chibata, Harry tentou evitar o castigo
com uma piada, pois já não lhe batiam desde que deixara as propriedades do pai.
Assim que se tornou evidente que o velhote não estava a brincar, Harry aceitou
com indiferença o corretivo, até perceber que, embora Samuel fosse velho, a sua
chibata não tinha nada de delicada. Nicholas tentara esquivar-se à mesma
punição, mas ao terceiro dia conseguira fazer uma trapalhada com uma série de
tarefas para o Duque. Durante algum tempo, ainda tivera a esperança de que o
seu título o poupasse ao corretivo, mas tudo quanto Samuel dissera fora:
— No meu tempo, preguei uma vergastada ao vosso tio, o Rei, rapazote.
Os dois escudeiros atravessavam o pátio numa correria para se encontrarem
com o supervisor ao romper da aurora. O Mordomo-Mor informá-los-ia se havia
alguma tarefa invulgar a cumprir em vez de se apresentarem nos respetivos
postos à porta dos aposentos do Duque e de Marcus. Geralmente, deveriam estar
ao dispor de Martin e do seu filho para o caso de estes precisarem deles, mas às
vezes o Duque lembrava-se de alguma coisa para eles fazerem depois de já se
terem deitado; nesses casos, transmitia as instruções por intermédio do
Mordomo-Mor.
Ao chegarem ao corredor que conduzia ao gabinete do ancião, viram-no a
abrir a porta no preciso instante em que se aproximavam. A regra era simples:
se não estivessem lá no instante em que ele se sentava atrás da enorme mesa que
utilizava como escrivaninha de trabalho, estavam atrasados e seriam castigados.
Avançando apressadamente pelo corredor, os dois rapazes transpuseram a
soleira da porta no instante em que o velho escanifrado se sentou.
Erguendo uma sobrancelha quase branca, disse:
— Hoje foi mesmo à justa, não foi, rapazes?
Harry tentou sorrir, mas não conseguiu. — Alguma coisa especial, senhor?
Samuel estreitou um pouco os olhos enquanto pensava. — Harry, para as
docas ver se o paquete do correio de Carse chegou durante a noite — disse. —
Já cá devia ter chegado ontem, e o Duque deseja saber se ainda não chegou. —
Harry não esperou para saber se Nicholas tinha alguma tarefa especial; quando o
Mordomo-Mor dava uma ordem, um reles pajem ou escudeiro da corte não se
atrevia a delongar-se. Samuel prosseguiu: — Nicholas, ide para junto do vosso
amo.
Nicholas apressou-se a ir para os aposentos do Duque. Agora que não seguia
a toda a brida pelos corredores ainda na penumbra, sentiu-se subitamente muito
cansado. Não gostava de se levantar cedo. Aquela coisa de se pôr a pé antes do
romper do Sol estava a ter os seus efeitos.
Desde a manhã que se seguiu ao banquete de boas-vindas, a estranha noção
de estar naquele castelo da fronteira estava lentamente a ser substituída por uma
rotina familiar: andar num rebuliço ou estar de pé à espera. E o horário era
desde antes de o Sol raiar até depois da refeição da noite. O Príncipe esperara
que as coisas fossem ligeiramente diferentes, mas o impacto da diferença das
coisas começava a atormentar Nicholas.
Chegou à porta do quarto de Martin e de Briana e esperou. Com base na
experiência que adquirira nas últimas semanas, o Duque e a Duquesa estariam já
acordados a vestirem-se e assomariam à porta nos próximos minutos. Nicholas
virou-se e encostou-se à parede. Espreitou por uma janela sobranceira a um
pátio e da qual se conseguia avistar a cidade para lá da muralha. O tom
pardacento da manhã era profundo, e embora Nicholas começasse a habituar-se
aos marcos de Crydee, a luminosidade ainda mal dava para distinguir os
contornos. O Sol nasceria dentro de uma hora e a cidade estaria banhada num
brilho matinal, ou então ainda cinzenta por causa das nuvens. Nicholas
percebera que o clima por aquelas bandas era muito imprevisível.
Bocejou e desejou poder regressar para a sua enxerga. Não, pensando melhor,
preferia estar na sua própria cama em Krondor. Tinha de admitir que o cansaço
fazia com que o colchão de palha se tornasse tolerável, mas nunca o
consideraria confortável. Nicholas continuava a debater-se com as saudades de
casa, mas apenas em momentos como este, em que tinha tempo para pensar
sobre si. Nos outros momentos, estava demasiado ocupado.
Nicholas sentia-se pouco à-vontade junto do tio. Antes de vir para Crydee,
recordava-se de Martin como um homem grande com mãos delicadas que uma
vez o levara aos ombros durante uma visita a Krondor. Isso acontecera há quase
catorze anos. Martin visitara a corte do Príncipe mais uma vez desde então, mas
Nicholas estava de cama doente e Martin apenas o fora visitar durante cinco
minutos. Agora, a recordação tépida e positiva de um tio corpulento estava a ser
substituída pela realidade de um homem distante.
Ao contrário de Samuel, Martin parecia nunca perder as estribeiras ou
levantar o tom de voz. Mas tinha uma maneira de olhar para os rapazes que
fazia com que desejassem enfiar-se num buraco. Se Nicholas ou Harry não
cumprissem devidamente uma tarefa, ele não dizia nada, mas virava-lhes costas
com uma reprovação não proferida a pairar no ar. Cabia aos rapazes corrigir os
erros.
Harry pelo menos tinha Marcus, que estava sempre disposto a explicar-lhe em
que é que falhara. Alguns dos criados tinham explicado que parte da frieza de
Marcus em relação aos rapazes se devia parcialmente ao facto de ele próprio ter
sido o escudeiro do pai até pouco antes da chegada de Nicholas, pelo que
avaliava o desempenho deles em comparação com o seu. Certa vez Nicholas
caíra no erro de se queixar que não era justo repreendê-los por não saberem
onde estava alguma coisa quando tinham de fazer algum recado, e Marcus
virara-se para ele e dissera com frieza:
— Se não sabeis, tendes de a procurar, não é assim?
A porta abriu-se e Nicholas despertou. Briana saiu à frente do marido e
sorriu. — Bom-dia, Escudeiro.
— Minha senhora — disse Nicholas, fazendo uma vénia. As suas mesuras da
corte faziam-na sempre sorrir, e isso tornara-se uma espécie de jogo entre eles.
Martin fechou a porta depois de sair e disse:
— Nicholas, eu e a Duquesa hoje vamos sozinhos. Preparai os nossos
cavalos.
— Vossa Graça — disse Nicholas, e foi a correr pelo corredor. Samuel
informara-o de que quando Briana e Martin fossem andar a cavalo de
madrugada, geralmente demorariam duas ou três horas, pelo que o Escudeiro
sabia que iriam parar na cozinha para recolherem algumas provisões. Decidiu
que urgia alguma iniciativa e foi a correr à cozinha.
Quando lá chegou, viu os criados numa azáfama com os preparativos das
refeições para as quase duzentas pessoas que viviam dentro das muralhas do
Castelo de Crydee. O Chefe de Cozinha Megar, um ancião de sólida
constituição física, estava no centro da cozinha a supervisionar todos os
pormenores do trabalho da sua equipa. A sua velha mulher Magya andava às
voltas do forno com os olhos ainda perspicazes fixos sobre o que estava a ser
cozinhado. Nicholas abrandou o passo assim que entrou. — Chefe de Cozinha,
o Duque e a Duquesa vão andar a cavalo.
Megar sorriu com simpatia para Nicholas e acenou com a mão. A cozinha era
o único lugar do castelo onde Harry e Nicholas eram bem recebidos, pois o
velho cozinheiro e a mulher pareciam gostar imenso de rapazes. — Eu sei,
Escudeiro, eu sei. — Apontou para um alforge que estavam a encher com
comida. — Mas foi bem pensado — acrescentou com um sorriso. — Agora, ala
para a cavalariça!
Nicholas foi seguido por uma gargalhada amistosa ao sair apressadamente da
cozinha, e prosseguiu num frémito para a cavalariça. Uma vez lá chegado,
reparou que estava tudo calmo e percebeu que Rulf, o estribeiro chefe, ainda
estava a dormir. Nicholas não percebia como chegara a tal posição, embora lhe
tivessem dito que o pai dele ocupara o mesmo cargo antes dele. Enquanto o
rapaz avançava apressadamente pela escuridão da cavalariça, os cavalos
relincharam a saudá-lo e alguns enfiaram as cabeças pelas portas das baias, a ver
se ele lhes levaria alguma coisa para comer.
Na extremidade oposta da cobertura, quase foi de encontro a uma silhueta alta
que permanecera oculta pela penumbra. Um rosto escuro virou-se para ele e
uma voz delicada disse:
— Silêncio, Escudeiro.
O Estribeiro-Mor Faxon apontou pela porta e Nicholas viu deitado na sua
enxerga a figura espadaúda de Rulf, a ressonar tão alto que até fazia estremecer
os céus, pensou Nicholas.
— É uma pena perturbar tal tranquilidade, não achais?
Nicholas fez um esforço para não sorrir ao dizer:
— O Duque e a Duquesa vão andar a cavalo, Estribeiro-Mor.
— Bem, nesse caso… — disse Faxon enquanto pegava num balde de água;
avançou um passo na pequena divisão e esvaziou o conteúdo em cima da
silhueta adormecida. Rulf sentou-se arquejante e soltou um grito de pura
irritação. — Ah! Mas que…
— Seu idiota! — bradou Faxon, esvaindo-se dele toda a simpatia. — O Sol já
vai alto e estais para aí deitado a sonhar com as raparigas da vila!
Rulf soergueu-se a cuspir água, e quando viu Nicholas, os seus olhos
estreitaram-se por instantes, como se o rapaz fosse culpado da sua sorte. Depois,
despertou totalmente, avistou o Estribeiro-Mor e os seus modos alteraram-se. —
Perdoai, Mestre Faxon.
— O Duque Martin e a Duquesa Briana precisam dos seus cavalos! Se os
cavalos não estiverem selados e prontos quando o meu senhor e a senhora
chegarem aos degraus da torre de menagem, prego as vossas orelhas na porta do
estábulo!
O pesado homem levantou-se com um ar combalido. — É para já, Mestre
Faxon — limitou-se a dizer. Virou-se para o palheiro. — Tom! Sam! Seus
preguiçosos! Levantai-vos! Temos trabalho para fazer e vós não me acordastes
como vos mandei! — gritou.
Ouviram-se resmungos sonolentos em resposta vindos do palheiro e pouco
depois dois jovens desceram apressadamente o escadote.
A julgar pela aparência, fariam diferença de um ano de idade, que rondaria os
vinte e cinco anos, e eram os dois inconfundivelmente parecidos com Rulf. Este
praguejou e mandou-os buscar os cavalos indicados. — Estarão prontos não
tarda nada, Mestre Faxon — disse.
Nicholas voltou-se e viu Faxon a observá-lo. — Quem os visse nunca diria,
Escudeiro, mas eles são muito bons a tratar de cavalos. Quando eu era miúdo, o
pai do Rulf era o estribeiro do Estribeiro-Mor Algon.
— É por isso que continuais a empregar o Rulf? — indagou Nicholas.
Faxon acenou afirmativamente com a cabeça. — Ninguém diria, mas ele
revelou imensa coragem quando os tsurani sitiaram o castelo durante a Guerra
da Brecha. Levou muitas vezes água para os soldados – eu era um deles –
mesmo até ao meio da batalha, armado apenas com dois baldes.
— Deveras?
Faxon sorriu. — Deveras.
Nicholas ruborizou. — Tenho de deixar de dizer isto.
Faxon deu-lhe uma palmada no ombro. — Haveis de conseguir. — Olhou
para o outro lado da cobertura onde Rulf e os filhos estavam a selar os cavalos.
— Além isso, tenho pena do Rulf desde que a mulher dele morreu. Ela era a
única coisa boa que ele tinha na vida. Agora só tem os filhos e as cavalariças.
Têm aposentos na ala da criadagem, mas dormem quase sempre aqui.
Nicholas acenou com a cabeça. Nesse instante percebeu que sempre encarara
os serviçais como um dado adquirido, e havia aqueles que o tinham servido em
Krondor e sobre quem nada sabia. De algum modo, pensara que eles se
eclipsavam no armário dos serviçais e ficavam ali sossegadinhos até alguém
precisar deles. Despertou do devaneio. — É melhor ir para junto do Duque —
disse.
— Os cavalos estarão prontos — respondeu Faxon.
Nicholas foi a correr para a cozinha e lá encontrou Martin e Briana a
inspecionar os aprovisionamentos. O Duque e a mulher aprovaram a escolha de
alimentos. Briana fez sinal para que dois criados a seguissem e saiu da cozinha.
Martin dirigiu-se para o depósito de armas. Sem proferir palavra, Nicholas
seguiu-o. Chegados ao depósito de armas, um soldado que estava de sentinela
fez continência e abriu a porta a Martin e Nicholas.
Lá dentro, Martin esperou enquanto Nicholas acendia rapidamente uma
candeia para iluminar a eterna escuridão daquela câmara. Quando a luz se
acendeu, foi refletida de milhares de ângulos, adejando sobre o metal luzidio.
Todas as paredes abarrotavam de prateleiras de sabres e lanças, escudos e elmos.
Nicholas apressou-se até outra porta e abriu-a para Martin, prevendo tal
necessidade.
Martin entrou para a pequena divisão onde eram guardadas as suas armas
pessoais e escolheu um arco longo que estava pendurado numa parede. Passou-o
a Nicholas enquanto enchia uma aljava com compridas flechas de metro, assim
designadas porque mediam quase um metro. Nicholas nunca vira os efeitos de
um arco longo, pois todos os soldados de Krondor usavam bestas e pequenos
arcos utilizados pela cavalaria, mas já ouvira histórias sobre o terrível poder
daquela arma: que um arqueiro hábil poderia perfurar qualquer armadura com
uma flecha com ponta de aço.
Nicholas sabia que o seu tio fora o Monteiro-Mor do seu avô, nos tempos em
que o direito de herança de Martin fora escondido de todos à exceção de alguns
conselheiros de confiança do velho Duque. Mesmo antes da sua morte, Lorde
Borric legitimara o seu primogénito, elevando-o dos postos mais básicos até
acabar por chegar a Duque de Crydee, herdeiro do título do pai. Mas, antes
disso, Martin era reconhecido como um dos melhores arqueiros do Reino
Ocidental.
O Duque entregou a Nicholas a aljava com as setas. Inspecionou uma fila de
lâminas que estavam em cima de uma mesa, e depois escolheu duas grandes
facas de caça e entregou-as a Nicholas. A seguir, escolheu outro arco, destinado
à Duquesa Briana, e também o entregou a Nicholas. A última escolha recaiu
sobre uma aljava de flechas para o arco mais pequeno, e foram-se embora.
Quando chegaram ao pátio, encontraram Lady Briana de pé ao lado de dois
cavalos. Não foi preciso ninguém dizer a Nicholas que os senhores não iam dar
um simples passeio a cavalo, mas antes caçar. Era provável que o Duque e a
mulher fossem passar o dia fora, ou talvez até mais, caso decidissem pernoitar
na floresta.
Harry chegou a correr e, ofegante, disse:
— Vossa Graça. Ainda não há notícias do paquete com o correio de Carse.
O semblante de Martin toldou-se. — Dizei ao Marcus que escreva ao Lorde
Bellamy de Carse a perguntar se, por algum motivo, o barco regressou à base,
depois enviai a mensagem por pombo-correio.
Harry fez uma vénia e desatou a correr, mas Martin deteve-o. — Ah,
Escudeiro… — disse.
Harry parou e virou-se. — Sim, Vossa Graça.
— Da próxima vez que vos mandarem fazer algum recado às docas, levai um
cavalo.
Harry sorriu timidamente e fez uma vénia. — Vossa Graça — disse, e foi a
correr tratar do assunto que Martin lhe pedira.
Briana montou sem esperar por qualquer ajuda desnecessária e Nicholas
entregou-lhe um arco, uma aljava e uma faca. Depois de Martin montar,
Nicholas entregou-lhe as restantes armas.
— É possível que estejamos ausentes até ao final do dia de amanhã,
Escudeiro.
— Vossa Graça? — disse Nicholas.
— Hoje é o Sexto Dia, caso não saibais. — E ele não sabia. — Podeis tirar a
tarde de folga. Pedi mais instruções ao Mestre Samuel até ao nosso regresso.
— Sim, Vossa Graça.
Enquanto se dirigiam para o pátio, Nicholas suspirou. O Sexto Dia:
tradicionalmente meio dia de descanso para o pessoal de qualquer castelo ou
palácio. O Sétimo Dia era um dia de contemplação e veneração, embora
Nicholas tivesse reparado que havia sempre muitos criados disponíveis para
satisfazerem as suas vontades ao Sétimo Dia em Krondor. Ele e Harry tinham
chegado ao Sétimo Dia da semana anterior, por isso não fazia ideia do que fazer
com o primeiro tempo livre de que dispunha desde que desembarcara.
Instrução
N
icholas estremeceu.
Estivera deitado todo o dia anterior, e embora o pé ainda lhe
doesse, conseguia caminhar. Por isso, antes do nascer do Sol, já
estava no seu posto à porta do quarto do Duque, quase imóvel.
A porta de Marcus abriu-se e este assomou, fazendo sinal para que Harry
o seguisse. Pouco depois, foi a vez de a porta do quarto de Martin se abrir e
por ela passaram Briana e Martin. — Como está o vosso pé, Nicholas?
Nicholas conseguiu esboçar um sorriso de esguelha. — Sobreviverei —
disse. — Ainda dói, minha senhora, mas já consigo andar.
— Os acidentes acontecem — interveio Martin. — Não sereis muito útil
para fazer recados; ide perguntar ao Mordomo-Mor se ele tem algum
serviço apropriado para hoje.
— Vossa Graça — disse Nicholas e foi-se embora a coxear.
Enquanto seguia pelos corredores a caminho da ala dos criados, onde se
situava o gabinete de Samuel, sentiu-se extremamente desgostoso consigo
mesmo. O jogo do Sexto Dia fora um desastre. Como passara o dia inteiro a
remoer deitado na enxerga, percebera que tinha feito figura de parvo.
Ao longo dos anos, visto ser o filho mais novo do Príncipe de Krondor,
Nicholas encontrara-se em várias situações às quais teria preferido abster-
se; não havia como escapar ao escrutínio do público quando o protocolo
obrigava a que estivesse num palanquim durante um festival, ou presente na
corte. Mas, noutros casos, Nicholas preferia deixar os outros, o Harry por
exemplo, assumir as rédeas da situação. No futebol, Nicholas granjeara a
reputação, absolutamente justificada, aliás, de ser um temeroso defesa, hábil
a intercetar a bola e a passá-la para um colega antes que o adversário
conseguisse compreender o que acontecera, mas no que dizia respeito a
marcar golos, deixava sempre que fossem os outros a ficar com os louros.
Há dois dias fora a primeira vez que se lançara ao ataque, lutara pela posse
de bola a cada oportunidade e tentara dominar apenas pela força da vontade.
E a cada passo que dera, Marcus não o largara.
Sentira uma ténue satisfação ao perceber que fora tão eficaz a bloquear
os esforços de Marcus como este fora a bloquear os seus; o jogo fora mais
ou menos equilibrado e, não fora a lesão do seu pé, Marcus não teria
conseguido marcar o golo.
Enquanto descia cautelosamente um lanço de escada, Nicholas estava
mais ciente do seu defeito de nascença do que era habitual. Tal como a
maioria das pessoas que nasceram com deformações idênticas, adaptara-se
a ela e aprendera a compensar sem pensar nisso. Por ser filho de Arutha,
fora poupado à troça que qualquer criança de classe mais baixa teria de
suportar, porém tivera o seu quinhão de chacota, bem como fora alvo de
mais olhares e murmúrios do que gostaria. Todavia, hoje era o primeiro dia
em que sentia que o seu pé era efetivamente uma deficiência. Tinha a
certeza que se não fosse o pé, teria vencido Marcus. Praguejou em voz
baixa, zangado com o mundo inteiro, mas principalmente com ele próprio.
Chegou à porta do gabinete de Samuel. — Mordomo-Mor? — chamou.
Samuel fez-lhe sinal para que entrasse. Nicholas estivera lá há apenas
meia hora e Samuel informara-o de que não havia tarefas especiais. O
Mordomo-Mor olhou em redor como que à procura de inspiração antes de
falar. — Não há nada para fazer, Escudeiro. Porque não regressais para o
vosso quarto e descansais esse pé?
Nicholas disse que sim com a cabeça e foi-se embora, mas não tinha
muita vontade de passar outro dia deitado na cama. Regressou ao quarto e
deixou-se cair sobre o colchão de palha. Como dormira praticamente todo o
dia anterior, não tinha muita vontade de descansar e a palha fazia-lhe
comichão. Além disso, estava zangado.
Passados alguns minutos, levantou-se da enxerga e dirigiu-se à cozinha.
Quando lá chegou, o cheiro que preenchia o corredor fez-lhe crescer água
na boca. Magya estava atarefada a supervisionar a equipa de cozinheiros,
andando por detrás deles como um general a passar revista às tropas. Sorriu
para Nicholas e fez-lhe sinal para que se aproximasse.
— Sentis-vos melhor hoje, Escudeiro? — perguntou a anciã. Embora
fosse roliça, conseguia andar pela cozinha com rapidez e eficiência, não
obstante a idade e o peso.
— Sim, mas segundo o Duque, ainda não estou apto para voltar ao
trabalho.
Ela deu uma risadinha. — Mas suficientemente apto para terdes fome?
Ele sorriu-lhe em resposta. — Qualquer coisa assim.
— Acho que se arranja qualquer coisa para vós antes de o Duque e a
Duquesa desjejuarem — disse ela dando-lhe uma palmadinha no ombro.
Indicou-lhe um tabuleiro e Nicholas pegou nele. Tirou uma colherada de
uma papa grossa que estava a ferver numa caçarola, polvilhou-a com um
pouco de canela, deitou-lhe um pedaço de mel no meio e depois despejou
leite por cima de tudo. Pousou a tigela no tabuleiro, cortou uma fatia de pão
quente e uma grossa fatia de fiambre e fez sinal para que Nicholas a levasse
até uma pequena mesa que havia a um canto.
Megar chegou à cozinha seguido por dois ajudantes de cozinha, cada um
deles com um balde de ovos. Mandou os rapazes realizarem as suas lidas e
foi sentar-se à mesa com a mulher e Nicholas, com quem o velho chefe de
cozinha, um homem corpulento de sorriso franco e simpático, simpatizara
logo no primeiro encontro. — Bom-dia, Escudeiro — disse Megar com um
sorriso amigável estampado no rosto franco e enrugado.
— Vistes o Ghuda e o Nakor? — perguntou Nicholas. — Não os vejo
desde o jogo.
Megar e Magya trocaram olhares. — Quem? — indagou Megar.
Nicholas descreveu-os. — Ah, esses dois — disse Magya. — Eu vi o
baixinho a conversar com o Anthony algumas vezes na semana passada. O
soldado corpulento foi fazer uma patrulha, só pela diversão, segundo ele.
Partiu ontem de manhã.
Nicholas suspirou. Não eram propriamente amigos, mas conhecia-os
melhor do que qualquer outra pessoa no castelo, à exceção de Harry.
Embora o cozinheiro e a mulher fossem bastante simpáticos, não os
conhecia assim muito bem e sabia que eles só estavam a dedicar-lhe alguns
momentos por cortesia, e que assim que acabasse de comer, teriam de ir
preparar as outras refeições do dia.
Enquanto Nicholas comia, eles falaram. Perguntaram-lhe como é que
estava a adaptar-se à vida de Crydee, e depois quiseram saber sobre a
viagem. Quando lhes falou sobre Pug, ambos mostraram sorrisos
melancólicos, simultaneamente tristes e felizes. — Ele era como um filho
para nós — disse Megar. — Sabíeis que ele foi nosso filho adotivo, há já
muitos anos?
Nicholas abanou a cabeça em sinal de que não sabia, e Megar começou a
falar-lhe de Pug, e também do verdadeiro filho dele e de Magya, Tomas,
que fora o melhor amigo de Pug. À medida que a história das suas vidas se
revelava, uma mistura de reminiscência e discussão jovial sobre quem se
lembrava do quê corretamente, ia-se formando um quadro na imaginação de
Nicholas.
Amos contara-lhe histórias sobre a Guerra da Brecha, e de vez em
quando alguém conseguia convencer o seu pai a revelar alguns pormenores
sobre a sua participação na mesma, mas o simples relato de Megar e Magya
era de longe o mais cativante que jamais ouvira. A maneira como narravam
tudo o que acontecera nas suas próprias referências, o número de baldes que
os ajudantes de cozinha transportaram até às muralhas, o número de rações
adicionais que tiveram de preparar, como se desenvencilharam sem isto ou
aquilo, quando as refeições eram comidas frias porque os ajudantes de
cozinha estavam a tratar dos feridos… tudo isso criava uma imagem muito
mais realista na mente de Nicholas do que mesmo a narrativa mais pitoresca
de Amos.
Nicholas fez uma ou duas perguntas e, subitamente, despontou-lhe uma
imagem de Pug em criança. Nicholas sorriu quando Megar explicou a
dificuldade que ele tivera em criança por ser o mais baixo da sua idade, e
como Tomas se tornara protetor. Quando as histórias acabaram, Nicholas já
comera tudo o que lhe tinham posto à frente. Os olhos de Magya brilhavam
enquanto explicava a aparência de Tomas no dia em que se tornara um
homem, no Dia da Escolha, aquele ritual antigo em que todos os rapazes
são entregues aos mestres que os irão ensinar.
O nome Tomas tinha algo de familiar, mas Nicholas não percebeu bem o
quê. — Onde está o vosso filho? — indagou.
Arrependeu-se imediatamente de fazer a pergunta, pois uma expressão de
pesar toldou o semblante de ambos. Pensou que o jovem tivesse sucumbido
na guerra.
Porém, para sua surpresa, Megar afirmou:
— Vive com os elfos.
Subitamente, Nicholas fez a associação. — O vosso filho é o consorte da
Rainha dos Elfos!
Magya acenou afirmativamente com a cabeça. — Não o vemos muitas
vezes — disse, resignada. — Desde o nascimento do menino, visitou-nos
uma vez, e manda uma mensagem de vez em quando.
— Menino?
— O nosso neto — explicou Megar. — O Calis.
A expressão de Magya alegrou-se. — É um bom menino. Visita-nos duas
vezes por ano. Sai mais ao pai do que àqueles elfos com quem vive —
afiançou, com convicção. — Queria tanto que ele viesse viver aqui para
Crydee.
A conversa esmoreceu e Nicholas despediu-se e saiu pela porta que dava
para o pátio. Recordou o que o seu tio Laurie lhe havia contado sobre os
últimos dias da Guerra da Brecha e de pormenores que Amos lhe revelara.
Tomas não era humano. Pelo menos, Nicholas ficara com essa impressão;
ele era outra coisa, relacionada com os elfos, mas diferente. Nicholas
pensou que se os pais dele eram humanos, principalmente sendo pessoas tão
simpáticas como Megar e Magya, ele deveria ter sido bastante parecido
com as outras crianças da torre de menagem. Nicholas ficou a cismar no
que poderia ter provocado a mudança.
Vagueou pelo Jardim da Princesa, com a ténue esperança de lá encontrar
Abigail e Margaret. A julgar pela hora, estariam provavelmente no salão a
desjejuar com o Duque Martin, porém, não obstante, Nicholas tinha
esperanças.
Ao invés das duas jovens, Nicholas ficou espantado ao encontrar Nakor e
Anthony, deitados de barriga para baixo, a espreitar para alguma coisa que
estava debaixo de um banco de pedra.
— Ali, vedes? — disse Nakor.
— Aquele? — perguntou Anthony.
— Sim.
Quando se levantaram, sacudiram-se. — Deveis certificar-vos de que tem
aquelas pintinhas cor de laranja. Se forem vermelhas, são mortíferos. Se
forem de outra cor qualquer, são inúteis.
Anthony reparou na presença de Nicholas e fez uma ligeira vénia. —
Alteza.
Nicholas sentou-se no banco para debaixo do qual eles tinham estado a
espreitar, retirando o peso de cima do pé. — Escudeiro — corrigiu-o.
Nakor fez o seu sorriso de esguelha. — No presente, Escudeiro, mas
sempre Príncipe. O Anthony bem o sabe.
Nicholas ignorou a observação. — O que estavam os dois a fazer?
Anthony pareceu embaraçado. — Bem, há umas plantas parecidas com
cogumelos que se podem encontrar em lugares húmidos e escuros…
— Debaixo do banco — interveio Nakor.
— …e o Nakor estava a explicar-me como os identificar corretamente.
— Para fazer poções mágicas? — perguntou Nicholas.
— Para fazer um fármaco — retrucou Nakor. — Para induzir o sono, se
preparado convenientemente. É muito útil quando se tem de arrancar uma
flecha de um soldado, ou extrair um dente podre.
Nicholas aproveitou o ensejo para se divertir. — Pensei que os magos só
tinham de fazer um gesto com a mão para fazer uma pessoa adormecer.
Anthony encolheu os ombros, como que a dizer que não era um mago lá
muito bom, mas Nakor interveio:
— Vedes, isto é o que dá deixar as crianças crescerem sem educação. —
Abriu o saco e tirou de lá uma laranja. — Quereis uma? — indagou.
Nicholas assentiu com a cabeça e Nakor atirou-lhe o fruto. Deu outro a
Anthony. Depois, entregou o saco a Nicholas. — Vede lá dentro.
Nicholas examinou a enorme mochila. Achou-a um objeto simples:
material negro, parecido ao toque com lã comum com feltro. Um cordão de
couro fora cosido à volta da abertura do saco, e um pedaço de madeira
servia de fivela. O saco não tinha nada dentro. Nicholas devolveu-o e disse:
— Está vazio.
Nakor meteu a mão lá dentro e tirou de lá uma serpente que se contorcia.
Anthony esbugalhou os olhos e Nicholas agachou-se no banco até embater
na parede nas suas costas. — É uma víbora!
— Isto? Não passa de um pau — comentou Nakor com um menear de
mão.
Tinha na mão um simples pedaço de madeira, que voltou a meter dentro
do saco; de seguida, atirou o saco outra vez para Nicholas, que o examinou
atentamente.
— Está vazio — disse, e devolveu o saco a Nakor. — Como fizestes
isso?
Nakor voltou a sorrir. — É fácil para quem sabe o truque.
Anthony abanou a cabeça. — Ele faz coisas extraordinárias, mas insiste
que a magia não existe.
Nakor acenou com a cabeça. — Talvez um dia vos explique, mago. O
Pug sabe.
Nicholas espreitou por cima do ombro para as muralhas sobranceiras ao
pátio. — Hoje toda a gente fala sobre o Pug — disse Nicholas.
— Ele é uma espécie de lenda por estas bandas — referiu Anthony. —
Em Stardock também. Já tinha saído de lá quando me juntei à comunidade.
— Então não deveis ter sido membro durante muito tempo; ele só saiu de
lá há cerca de oito anos — comentou Nicholas.
Anthony sorriu. — Receio ser ainda um mago muito jovem. Os mestres
acharam…
— Mestres! — disse Nakor com desdém. — Aqueles presunçosos do
Korsh e do Watoom! — Abanando a cabeça, sentou-se junto de Anthony.
— Foi por causa deles que deixei Stardock. — Enquanto olhava para
Nicholas, apontou para Anthony. — Este rapaz era bastante dotado, mas é
aquilo a que aqueles palermas chamam de mago «menor». Se eu lá tivesse
permanecido, tê-lo-ia tornado num dos meus Cavaleiros Azuis! — Sorriu
para Anthony. — Eu dei-lhes que fazer, não dei?
Anthony soltou uma gargalhada e Nicholas viu-o parecer tão jovem
quanto ele e Harry. — É bem verdade. Os Cavaleiros Azuis são a fação
mais famosa de Stardock, e há lutas azedas…
— Lutas! — exclamou Nicholas. — Magos a lutar?
— Rixas de estudantes, para ser mais exato — disse Anthony. — Há uns
aprendizes mais velhos, autodenominados Fiéis de Korsh – embora ele não
lhes ligue nada –, que criam confusão amiúde nas tabernas de Stardock.
Nenhum provoca graves danos, os mestres não o permitiriam, mas de vez
em quando aparecem umas cabeças partidas. — Suspirou, ao lembrar-se. —
Eu não estive lá tempo suficiente para me envolver a sério nessas políticas.
Já tinha problemas suficientes com os estudos. Foi por isso que me
mandaram para aqui, a pedido do Duque Martin, porque não sou um mago
lá muito bom.
Nakor abanou a cabeça e fez uma careta. — Se não sois muito parecido
com eles, isso é uma coisa boa. — Pôs-se de pé. — Vou à floresta procurar
umas coisas. Encontramo-nos ao jantar. — Apontou para Anthony. —
Ponde algum bálsamo no pé do rapaz para amanhã já estar melhor.
— Tenho umas coisas que podem ajudar — disse Anthony.
Sem mais dizer, Nakor disparou para fora do jardim, deixando o jovem
mago a sós com o Escudeiro.
Nicholas foi o primeiro a falar. — Acho que nunca conheci ninguém tão
estranho.
— Eu conheci algumas pessoas estranhas em Stardock, mas nenhuma
que se compare ao Nakor — concordou Anthony.
— Ele foi um dos vossos mestres em Stardock, antes de se ir embora?
Anthony abanou a cabeça e sentou-se no lugar que Nakor ocupara. —
Não propriamente. Não sei bem qual era o papel dele lá, além de criar
problemas ao Watoom e ao Korsh. Reza a história que chegou lá um dia
com uma missiva do Príncipe Borric e a prerrogativa de que o Pug o
mandara ir para Stardock. Permaneceu por lá três ou quatro anos, e fez
algumas coisas muito estranhas, principalmente converter muitos alunos à
noção de que qualquer um pode aprender magia, ou aquilo a que ele chama
de «truques», alegando que os magos não eram muito inteligentes por não
conseguirem compreender isso. — Anthony suspirou. — Nessa altura, eu já
tinha os meus problemas, e não prestei muita atenção. Eu era um aluno
novo e só vi o Nakor duas ou três vezes na ilha.
— É verdade que vos enviaram para aqui porque não sois muito bom? —
indagou Nicholas.
— Suspeito que sim — respondeu Anthony. — Há em Stardock alunos
muito mais dotados do que eu, e não menos mestres magos de renome.
O semblante de Nicholas toldou-se. — Isso é quase insultuoso, sabeis?
Anthony ruborizou. — Não sabia.
— Não vos quero menosprezar, Anthony — disse Nicholas. — Podeis
até ter mais dons do que pensais. Pelo menos, é o que o Nakor diz —
apressou-se a acrescentar. Ambos sabiam que se tratava de uma fraca
tentativa de atenuar a observação anterior. — Todavia, o irmão do Rei pediu
um mago para ocupar um posto outrora ocupado pelo professor do Pug.
Deveriam ter enviado um dos melhores.
Anthony levantou-se. — Talvez. — Estava hirto, apanhado entre o
embaraço e o insulto. — Receio que Stardock considere que não deve muita
lealdade ao Reino — disse, ruborizando um pouco. — Se o Pug ainda
estivesse lá, seria diferente, sendo ele primo do Rei e tudo, mas, nas atuais
circunstâncias, o Korsh e o Watoom exercem muita influência sobre os
mestres e são de Kesh. Presumo que pretendam manter Stardock
politicamente isenta em relação aos dois lados.
— Isso pode até não ser má ideia, acho eu, mas não deixa de ser
ofensivo.
— Se quiserdes acompanhar-me, tenho uns bálsamos que acelerarão a
vossa recuperação — disse Anthony. — Pelo menos não farão mal, mesmo
que não façam bem.
Nicholas seguiu o jovem mago. Olhou de relance pelo jardim e lamentou
o facto de não haver sinais das raparigas.
Ataque-Surpresa
M
artin fez sinal.
O grupo deteve-se quando ele se virou e disse:
— Esperai todos aqui. Há algo ali à frente.
Os dois rapazes ficaram satisfeitos por parar. Estavam com os pés
doridos e exaustos. Tinham partido ao amanhecer dos limites do burgo de
Crydee. Martin estivera a tansmitir aos dois rapazes da cidade alguns
ensinamentos sobre madeira, pelo que fizeram todo o caminho a pé. O
destino deles, as margens do Rio Crydee, ficava ainda a mais um dia de
caminho. Aguardaram com Nakor e Ghuda enquanto Martin e Marcus se
embrenhavam nos bosques, desaparecendo em silêncio.
— Como é que eles fazem aquilo? — perguntou Nicholas.
— O vosso tio tanto foi criado pelos elfos como pelos monges da Abadia
de Silban que o encontraram — esclareceu o Monteiro-Mor Garret —, e
ensinou ao Marcus e a mim próprio tudo o que sabemos. — Nicholas
conhecera o Monteiro-Mor do Duque, Garret, na noite anterior.
Nakor acenou distraidamente para o bosque. — Estamos a ser observados
— alertou.
— Há já quase meia hora — disse Ghuda, com a mão descontraidamente
assente na sua espada.
Nenhum deles pareceu preocupado. Nicholas olhava em redor, quando
Harry disse:
— Não vejo nada.
— Tendes de saber para onde olhar — ouviu-se uma voz vinda da
esquerda deles.
Um jovem emergiu do bosque, movimentando-se de forma tão furtiva
quanto Martin e Marcus. — E já lá vai praticamente uma hora —
acrescentou. Usava uma túnica de pele e umas calças tingidas de verde-
escuro. O seu cabelo era louro, mas em vez de ser como o de Anthony, cor
de palha desbotada, era quase de um dourado como o Sol. Chegava-lhe aos
ombros, mas estava cortado dos lados, deixando entrever umas orelhas
normais, não fosse pela ausência dos lóbulos. Os seus olhos eram azuis,
mas quase excessivamente claros, e movia-se de uma forma que deixava
adivinhar grande força, apesar da silhueta esguia.
E então, com um sorriso que o fez parecer anos mais novo, disse:
— Isto é um jogo entre o Martin e nós.
— Nós? — perguntou Nicholas.
O rapaz fez sinal e três outros vultos emergiram do bosque. — Elfos —
disse Nicholas.
— Chamo-me Calis — apresentou-se o jovem humano.
Os três elfos deixaram-se estar ali próximos em silêncio, até que um se
voltou repentinamente quando Martin e os outros apareceram. — Não
pensastes que fomos enganados pela pista errada, pois não? — perguntou
Marcus, meio a sorrir.
Martin fez o que pareceram ser gestos discretos na direção dos elfos, que
assentiram levemente, ou terá erguido uma sobrancelha. Garret segredou
para Nicholas e para os outros: — Quando querem, recorrem a um discurso
subtil parco em palavras.
E depois Martin falou em voz alta. — Este é o Nicholas, filho do meu
irmão, Arutha, e os seus companheiros, Harry de Ludland, Nakor, o Isalani,
e Ghuda Bulé, de Kesh.
Calis fez uma vénia. — Saudações. Dirigis-vos a Elvandar?
Martin abanou a cabeça. — Não. O Garret regressou ontem ao castelo,
com notícias de que estaríeis a sul do rio, pelo que me pareceu uma boa
desculpa para que conhecêsseis o meu sobrinho enquanto caçávamos.
Talvez no futuro leve o Nicholas à vossa corte.
— E a mim — salientou Nakor.
Calis sorriu e coçou a têmpora, passando uma mão pelo seu longo cabelo.
Nicholas ficou surpreendido por Calis ter aspeto de humano e falar
exatamente como se o fosse.
Martin mostrou-se ligeiramente carrancudo, mas Nakor disse:
— Nunca falei com um Urdidor de Feitiços e gostaria de o fazer.
Calis e Martin entreolharam-se, mas foi Nakor quem continuou a falar.
— Sim, eu tenho conhecimento dos vossos Urdidores de Feitiços e não, não
sou um mago.
Os três permaneceram aparentemente imóveis por uns momentos e
depois Calis sorriu mostrando os dentes. — Como é que sabeis tanto?
Nakor encolheu os ombros. — Estou atento quando as outras pessoas
estão na tagarelice — explicou. — Pode aprender-se muito estando-se
calado. — Enfiou a mão na sua omnipresente mochila. — Quereis uma
laranja?
Dividindo a peça de fruta em quatro pedaços, atirou-os a Calis e aos
elfos. Calis trincou a fruta e deitou fora um bocado de casca, para depois
sugar o sumo. — Já não comia uma laranja desde a última vez que visitei
Crydee.
Os outros elfos provaram o fruto e assentiram em concordância na
direção de Nakor. — Gostava de perceber como é que conseguis enfiar
tantas laranjas nessa mochila — comentou Harry.
Nakor ia dizer algo, mas foi interrompido por Nicholas. — Já sei. É um
truque.
Nakor riu-se. — Talvez um dia vos mostre.
— Porque foi que a vossa Rainha vos enviou para sul do Rio Crydee? —
quis saber Martin.
— Estamos a desleixar-nos nas nossas patrulhas, Lorde Martin. Há
demasiado tempo que reina a paz nas nossas fronteiras.
— Há problemas? — perguntou Martin, prontamente em estado de alerta.
Calis encolheu os ombros. — Nada que mereça ser falado. Há uns meses,
um bando de moredhel atravessou o rio para oriente das nossas fronteiras,
dirigindo-se rapidamente para sul, mas não invadiram as nossas terras, pelo
que os deixámos em paz. — Nicholas conhecia os primos das trevas dos
elfos, chamados pelos humanos de Irmandade da Senda das Trevas. A
última aparição deles acontecera aquando da Batalha de Sethanon. —
Tathar e os outros Urdidores de Feitiços falam de leves sinais dos poderes
das trevas, mas não sentem nada que nos ameace diretamente. Por isso,
colocámos patrulhas mais ativas e aventuramo-nos para mais longe de casa
do que alguma vez fizemos nos últimos anos.
— Mais alguma coisa?
— Um relato de um avistamento estranho junto à vossa nova fortaleza
acima de Barran, junto ao Rio Sodina — disse Calis. — Uma noite, já há
umas semanas, alguém atracou um escaler na boca do rio. Encontrámos
marcas na lama e pistas de homens para a frente e para trás.
O rosto de Martin refletiu a sua preocupação, pois por momentos
manteve-se em silêncio. — Nenhum contrabandista quereria aproximar-se
tanto de uma guarnição; além disso, não há ninguém com quem negociar
assim tão longe para norte.
— Batedores? — questionou Marcus.
— A mando de quem? — perguntou Nicholas.
— Não temos vizinhos a norte, a não ser os trasgos e os moredhel —
salientou Martin. — E desde Sethanon que têm andado bem sossegados.
— Não demasiado sossegados — contrapôs Calis. — Houve algumas
escaramuças ao longo das fronteiras a norte de Elvandar.
— Eles estão a preparar-se para uma nova invasão? — perguntou
Marcus.
— Não há nada que o indique — esclareceu Calis. — O meu pai passou
por lá a cavalo e acha que não passam de migrações devidas a colheitas mal
sucedidas ou a guerras de clãs. Mandou alertar os anões da Montanha de
Pedra para a eventualidade de em breve terem vizinhos indesejados.
De repente, Nicholas uniu as pontas dos nós: este era o neto de Megar e
Magya. O pai dele era Tomas, o lendário guerreiro da Guerra da Brecha.
Martin assentiu com a cabeça. — Daremos instruções para que o Dolgan
seja avisado de que eles podem igualmente estar a regressar às Torres
Cinzentas. Já passaram mais de trinta anos desde a grande migração; os
moredhel podem estar a regressar às suas terras abandonadas.
— Trinta anos não é muito tempo no que toca aos elfos — observou
Garret.
— Ter os Irmãos das Trevas de novo nas Torres Cinzentas e no Coração
Verde é sinónimo de graves problemas.
— Também mandaremos avisar o comandante de Jonril — anunciou
Martin. — Se os Irmãos das Trevas estabeleceram povoações no Coração
Verde, todas as caravanas e comboios de mulas de Carse para Crydee
estarão em risco.
Marcus olhou em redor. — É melhor acamparmos, pai. Há cada vez
menos luz.
— Calis, juntais-vos a nós? — perguntou Martin.
Calis olhou para o céu, verificando o desaparecimento da luminosidade, e
depois para os seus companheiros, que a Nicholas pareceram manter-se
imóveis, e após um momento respondeu:
— Teríamos todo o gosto em partilhar a fogueira convosco.
Martin dirigiu-se a Nicholas e Harry. — É melhor começarem a juntar
lenha, Escudeiros. Vamos acampar.
Harry e Nicholas entreolharam-se, mas ambos sabiam que seria fútil
perguntar onde se poderia encontrar lenha. Afastaram-se da clareira e
começaram à procura. Havia à vista muitos ramos caídos e algumas árvores
mortas. Quando Nicholas começou a recolher ramos tombados, sentiu uma
mão a tocar-lhe no ombro. Endireitando-se praticamente com um pulo,
voltou-se e deparou-se com Marcus atrás de si, com uma machadinha na
mão. — Assim pode ser mais fácil, em vez de se tentar arrancar os ramos à
mão — referiu. Passou outra machadinha a Harry.
Sentindo-se um idiota, Nicholas observou o primo a regressar para junto
dos outros. — às vezes era mesmo capaz de aprender a odiá-lo — disse.
Harry começou a retalhar a madeira tombada. — Ele também não parece
gostar lá muito de ti.
— Já estive mais longe de pegar na Abigail e regressar a Krondor com o
Amos.
Harry riu-se. — Oh, o que eu daria para ser uma mosca quando
explicasses isso ao teu pai.
Nicholas calou-se e continuou a retalhar a lenha. Quando prepararam um
carregamento, juntaram-na e regressaram à clareira. Martin já acendera uma
fogueira com galhos e algum musgo e alimentou o fogo com os ramos. —
Ótimo, é um bom começo. Trazei-nos três carregamentos iguais e teremos
lenha suficiente para a noite.
Com um resmungo mal disfarçado, os sujos e suados escudeiros
regressaram para junto da árvore caída e recomeçaram a retalhá-la.
Escolhas
R
ebentou uma tempestade.
Nicholas foi despertado pela humidade no rosto. O seu sono fora
profundo e sem sonhos; acordou tenso e ainda exausto. Sentiu-se
por momentos desorientado ao acordar, e depois apercebeu-se subitamente
de onde estava e do que sucedera.
Foi assolado pelo desespero quando a chuva começou a tombar pela
abertura sobre o salão comum. Os que dormiam encostados à parede ou sob
as estrelas entraram rapidamente com os que estavam amontoados por
debaixo do beiral do primeiro piso. O frio húmido foi acompanhado por um
frio ainda mais profundo e penetrante com o regresso das recordações dos
horrores da véspera.
Nicholas apercebeu-se de que a luz do dia, apesar da chuva, estava a
surgir, e percebeu que já deveria ter nascido o Sol. Harry abriu
cautelosamente caminho por entre os que tentavam manter-se secos e sentiu
o cabelo já todo ensopado e colado à cabeça. — Vamos lá, temos muito
trabalho pela frente.
Nicholas assentiu com a cabeça e levantou-se desastradamente. Doía-lhe
o pé e coxeou quando se obrigou a enfiar-se debaixo do aguaceiro. Em
poucos segundos ficou ensopado até aos ossos. O único alívio
providenciado pelo temporal foi ter diminuído a fetidez do queimado da
noite anterior.
Ao chegarem à porta aberta da estalagem, os rapazes dirigiram-se ao
exterior até ao local onde estava Martin. A única proteção deste face à
chuva era um oleado que resguardava o seu arco e um outro pousado sobre
a aljava das setas. — Temos de encontrar o máximo possível de lenha,
Escudeiro — disse ele a Nicholas.
Nicholas assentiu e virou-se para o local onde estavam três homens
comprimidos sob um pequeno beiral, que proporcionava apenas uma
proteção ilusória face ao mau tempo. — Vós os três — gritou Nicholas
sobre o rufo da chuva —, estais feridos?
Os três homens abanaram a cabeça. — Mas estamos encharcados,
Escudeiro — salientou um deles.
Nicholas fez-lhes sinal para que se juntassem a eles. — Não ides ficar
mais molhados por trabalharem. Preciso de vós.
Um dos homens olhou para Martin, que assentiu uma vez com a cabeça,
e os três homens levantaram-se e seguiram Nicholas.
Durante o resto do dia, andaram a recolher coisas no meio dos destroços
de Crydee, encontrando madeira aqui, umas quantas tábuas ali, e levando os
artigos que pudessem ser úteis até à estalagem. A localização das peças
maiores foi anotada para uso posterior.
Por volta do meio-dia o temporal amainou. Nicholas e os seus três
companheiros – um agricultor cuja casa na extremidade mais distante da
vila ardera e dois irmãos que haviam trabalhado no moinho – tinham
conseguido encontrar uma meia dúzia de barris de pregos, algumas
ferramentas de carpinteiro intactas e madeira suficiente para erigir uma
dúzia de abrigos rudimentares. O carpinteiro que sobrevivera ao ataque
inspecionou as ferramentas e anunciou que deveriam procurar madeira e
cortá-la, para ele poder terminar o telhado da estalagem no prazo de uma
semana com a ajuda de três homens capazes. Martin disse que iriam
verificar se tinha sobrado suficiente material de corte para derrubar árvores.
Durante o dia, Nicholas constatou uma coisa: a antiga tradição de fazer
com que cada um dos rapazes da torre de menagem aprendesse uma
variedade de ofícios antes de ser finalmente selecionado na Escolha para o
seu ramo estava a revelar-se uma bênção. Embora aqueles homens não
fossem carpinteiros ou pedreiros, conheciam as bases dessas artes e
demonstraram uma extraordinária capacidade para recordarem o que
haviam aprendido em rapazes.
Ao cair da noite, Nicholas estava de novo exausto e cheio de fome. A
comida não tardaria a revelar-se um problema, mas para a segunda noite a
aldeia piscatória providenciara alimento suficiente para todos. Um soldado,
que coxeava apoiado numa muleta improvisada, entrou na estalagem
enquanto Nicholas comia e relatou a Martin que fora encontrada uma meia
dúzia de cavalos junto ao rio. Martin pareceu ter ficado agradado com a
perspetiva de poder formar uma pequena patrulha que levasse uma
mensagem ao Barão Bellamy em passo de corrida. Um barco de pesca fora
enviado para Carse naquela tarde, mas iria demorar demasiados dias a
descer a costa.
Harry veio sentar-se junto ao amigo e mergulhou a colher na taça com o
estufado quente. Entre várias colheradas, disse:
— Nunca me tinha apercebido de que o estufado de peixe podia saber tão
bem.
— Estás esfomeado — realçou Nicholas.
— Não. Deveras? — respondeu Harry, amargamente.
— Também não estou com disposição para isto — avisou Nicholas —,
mas se não descarregares a tua má disposição em cima de mim, Harry,
também não despejo a minha em cima de ti.
— Desculpa — disse Harry, acenando com a cabeça.
Nicholas olhou momentaneamente para o vazio. — Achas que alguma
vez vamos voltar a vê-las? — perguntou.
Harry suspirou. Não teve de perguntar a quem se referia Nicholas. —
Ouvi o Martin e o Marcus hoje mais cedo. Dizem que se o Bellamy fizer
chegar as informações a Krondor suficientemente depressa, a nossa armada
pode montar bloqueio a Durbin antes que os salteadores lá regressem. Eles
acham que o teu pai pode obrigar o Governador de Durbin a entregar todos
os prisioneiros.
Nicholas suspirou. — Quem me dera que o Amos regressasse. Ele
percebe destas coisas. Em tempos foi capitão em Durbin.
— Também gostava que ele cá estivesse — concordou Harry. — Há aqui
muita coisa que não faz sentido. Porque é que mataram tanta gente e
reduziram tudo a cinzas?
Olhando em redor para a miserável companhia que tinham na estalagem,
Nicholas viu-se obrigado a concordar. E então, de repente, ocorreu-lhe algo.
— Onde é que está o Calis? Não o vejo desde que o Charles morreu.
— Regressou a Elvandar — informou Harry. — Disse que tinha de
contar à mãe o que se passara.
Nicholas ficou alarmado. — Por todos os deuses. E os avós dele? — Não
vira Magya e Megar entre os sobreviventes.
— Hoje mais cedo, pareceu-me ver o Megar lá em baixo na outra ponta
da aldeia dos pescadores. Parecia mesmo ele. Estava a supervisionar a
confeção desta comida para toda a gente.
Nicholas riu-se pela primeira vez desde que saíra para caçar. — Só podia
ser ele.
Robin, um pajem que trabalhara para o Mordomo-Mor Samuel, abriu alas
por entre a sala cheia de gente e sentou-se junto aos dois escudeiros. Os três
rapazes compararam impressões sobre o que tinham visto durante o dia e o
retrato era tão lúgubre quanto haviam temido. Todo o pessoal do castelo,
com a exceção de Megar e Magya, outro cozinheiro e um rapaz da copa,
dois outros escudeiros e uma mão-cheia de pajens e criados, foi morto
durante o ataque ou falecera pouco depois em virtude dos ferimentos.
Durante a noite e a manhã, mais uma dúzia de soldados morrera dos
ferimentos e grande parte das pessoas da vila estava doente ou ferida.
Após a refeição, Nicholas, Harry e Robin foram ter ao local onde Martin
estava a falar com Anthony. — Já haveis comido? — perguntou Martin,
quando os rapazes chegaram.
Os três assentiram com a cabeça.
— Ótimo — disse Martin. — A chuva apagou os fogos, por isso mal
amanheça, dirigi-vos ao castelo e ajudai-me a ver o que é possível resgatar.
Agora, ide dormir.
Nicholas e Harry olharam em redor da sala à procura de espaço livre
onde pudessem dormir e viram uma pequena abertura junto à parede mais
distante. Os três rapazes abriram caminho por entre os cidadãos
adormecidos e acotovelaram-se junto à massa de corpos. Nicholas deu por
si a dormir entre Harry e um velho pescador que ressonava muito alto. Em
vez de se incomodar com o barulho, sentiu-se reconfortado pela
proximidade e pelo calor.
Acidente
N
icholas atacou.
Marcus pulou para trás, detendo o golpe, e depois libertou-se e
ripostou. Nicholas deteve-o facilmente e obrigou-o a recuar mais
um passo.
Nicholas também recuou. — Basta. — Os jovens estavam a respirar com
dificuldade e encharcados em suor. Ambos tinham deixado crescer a barba
e os dois exibiam um ar tremendamente sinistro.
Harry saiu da estalagem e foi ter ao lugar onde os primos estavam a
treinar. — O que é que achais? — perguntou.
Até o habitual comportamento estoico de Marcus não resistiu ao ver a
vistosa figura. Harry usava umas calças púrpuras enfiadas em botas grandes
com dobras, e uma faixa amarela em volta da cinta. A camisa era verde,
com um brocado dourado desbotado quase até ao rosto e nos punhos das
mangas em balão; por cima tinha um colete de couro cor de vinho, atado à
frente com um único cordão e um alamar de madeira, e sobre a cabeça um
gorro comprido de malha vermelho e branco inclinado para a direita, num
ângulo engraçado.
— Tens um ar assustador — comentou Nicholas.
— O que é suposto parecerdes? — perguntou Marcus.
— Um corsário! — exclamou Harry. — O Amos disse que eles têm uma
inclinação para roupas coloridas.
— Bem, nesse caso estás perfeito — admitiu Nicholas.
Nakor apareceu, a comer uma laranja. Olhou para Harry e desatou a rir.
Harry também deixara a sua barba crescer, mas esta surgira fina e desigual.
— De qualquer modo, o que é um corsário? — quis saber Harry.
— É uma palavra de Bas-Tyra, já muito antiga — explicou Nakor. —
Originalmente, era cursar, que significava alguém que acendia fogueiras
nas praias para iludir as embarcações ao largo, provocadores de naufrágios,
ladrões, piratas.
— Tantas palavras para definir a mesma coisa — disse Harry —,
salteador, bucaneiro, pirata…
— Muitas línguas — disse Nakor. — Este Reino é como Kesh, erigido
assente em conquistas. Antigamente, homens do Paul Negro e homens de
Rillanon não conseguiam comunicar uns com os outros. — Assentiu com a
cabeça e piscou um olho, deliciado por estar a partilhar trivialidades.
— Espero que o Amos não insista para que nos vistamos todos assim —
disse Marcus. A seguir voltou-se para Nicholas. — Mais uma?
Nicholas abanou a cabeça. — Não. Dói-me a perna e estou cansado.
De repente, Marcus estava a avançar, com um golpe traiçoeiro, na
direção da cabeça de Nicholas. — O que é que acontece quando alguém vos
ataca e vos sentis cansado? — Nicholas só a custo travou o golpe, que teria
causado graves lesões se lhe tivesse acertado. Marcus insistiu no ataque e
Nicholas caiu para trás.
— As pessoas tentam matar-vos nas alturas mais inconvenientes —
berrou Marcus, executando uma combinação de ataques por cima e por
baixo.
Os dois primos estavam a usar sabres, uma arma estranha a ambos. Com
o florete, ninguém batia Nicholas em Crydee, mas, com a arma mais
volumosa, ataques fustigantes eram bem mais importantes, e Marcus era
rápido e forte.
Nicholas grunhiu devido ao esforço quando travou uma punhalada
dirigida à virilha, e depois, com um grito, contra-atacou. Uma saraivada de
ataques violentos, por cima e por baixo, levou Marcus a recuar, até que
Nicholas o apanhou num movimento que o cercou e lhe fez saltar o punho
das mãos. Encostando-se para trás a um muro baixo de tijolos, recentemente
reconstruído, Marcus deu com Nicholas de pé à sua frente, com a ponta da
espada a tocar-lhe na garganta. Marcus recuou e caiu sobre o muro baixo,
aterrando de traseiro no chão. Nicholas dobrou-se para a frente, sempre com
a ponta do sabre encostada à garganta de Marcus.
Harry ia dar um passo em frente, mas deteve-se. Os olhos de Nicholas
estavam arregalados e não escondia a sua raiva. — Percebi bem o que
queríeis dizer, primo — disse friamente. Manteve-se calado por um bom
segundo e depois recuou, baixando a lâmina. Riu-se sarcasticamente. —
Muito bem, aliás — acrescentou. Estendeu a mão e ajudou Marcus a
levantar-se.
Ouviu-se a voz de uma outra pessoa. — Sabeis muito bem, Marcus, que
irritar um espadachim melhor do que vós é meio caminho para a morte.
Os três jovens e Nakor voltaram-se e viram Amos a sair da estalagem. O
Almirante pusera de parte o seu uniforme azul-escuro esbatido e usava
agora um par de pesadas botas pretas, com umas largas faixas de couro
vermelho trabalhado a envolver o topo dos canos. As calças largas e o
colete curto eram de um azul esbatido, com o colete ornamentado com um
brocado prateado baço nos punhos e nas lapelas. Usava uma camisa que em
tempos fora branca, mas que estava amarelecida, com folhos de renda em
seda a caírem pela frente. Sobre a cabeça, via-se um chapéu com três cantos
enfeitado com dourados, no cimo do qual havia uma pluma amarela mal-
arranjada. Um alfange pesado estava pendurado num cinturão que cruzava o
ombro. Oleara o cabelo e a barba, pelo que tinha a cara cercada por
caracóis.
Retirando o chapéu, Amos passou a mão pela careca. — Limitai-vos ao
vosso arco, Marcus — aconselhou. — O vosso pai nunca teve o dom para a
espada que o vosso tio Arutha tem, e o Nicky é melhor espadachim do que
todos vós. — Virou-se para Nicholas. — Como é que vai o pé?
Nicholas fez um esgar. — Ainda dói.
— É uma «dor fantasma» — explicou Nakor. — Só dói na cabeça dele.
Nicholas coxeou um pouco quando foi sentar-se junto a Marcus, que
estava com um ar carrancudo.
— Dor fantasma? — questionou Amos. — Isso não faz lá muito sentido.
— Bem, dói como se fosse real — admitiu Nicholas. — O Nakor garante
que deixará de doer quando eu por fim perceber as lições que aprendi na
torre naquela noite.
— E é verdade — disse o pequeno homem. — Quando ele perceber de
verdade, deixará de haver dor.
— Bem, então é melhor que percebais depressa. Partimos com a maré da
manhã.
Marcus assentiu. — Tenho algumas coisas para fazer antes de partirmos
— anunciou.
Depois de ele ter ido embora, Amos voltou a falar. — Vós não gostais
mesmo um do outro, pois não?
Nicholas olhou para o chão, mas foi Harry quem respondeu. — Vai ser
assim até que a Abigail escolha entre os dois.
— Se puder fazê-lo — comentou Nicholas, com amargura. — Vou
arrumar as minhas coisas. — E afastou-se.
Amos voltou-se para Harry. — Porque é que tenho a impressão de que se
eles não encontrarem um pretexto para fazerem as pazes, mais cedo ou mais
tarde um deles vai matar o outro?
— É assustador, não é? — comentou Harry. Apoiou-se na parte do muro
que ainda se aguentava de pé e prosseguiu: — Eles são muito parecidos um
com o outro; nenhum deles vai ceder um milímetro. — Olhou para a porta
da estalagem. — O Nicholas sempre foi um rapaz muito descontraído,
Almirante. Já o conheceis há mais tempo, mas penso que o conheço melhor.
— Amos concordou. — Há algo no Marcus que transforma um rapaz afável
num verdadeiro chato.
Nakor riu-se.
— O Marcus também está a comportar-se como um palerma — disse
Amos, que depois deu uma palmada nas costas de Harry. — E é melhor que
começais a chamar-me «Capitão», Harry, e não «Almirante». Sou outra vez
Trenchard, o Pirata — acrescentou. Com um sorriso ameaçador, sacou da
faca que tinha no cinto e começou a experimentar o fio com o polegar. —
Estou uns anos mais velho e um pouco mais lento, mas aquilo que os anos
levaram é mais do que compensado pela astúcia. — De repente, tinha a faca
apontada ao nariz de Harry. — Algo a dizer em contrário?
Harry ganiu ao saltar um passo para trás. — Não, senhor! Capitão!
Senhor!
Amos riu-se. — No meu antigo ofício, o capitão era o estupor mais
malvado da tripulação. Era assim que se era escolhido. Assustava-se a
tripulação para que votasse em nós.
Harry sorriu abertamente e fez uma pergunta. — Foi assim que vos
tornastes capitão tão jovem?
Amos assentiu com a cabeça. — Isso e matar o porco de um timoneiro
quando ainda era um criado de bordo. — Apoiou-se no muro e recolocou a
faca no cinto. — Eu tinha doze anos quando me fiz pela primeira vez ao
mar. Na minha segunda viagem, o segundo imediato, um homem chamado
Barnes, achou que tinha de me bater por algo que eu não fizera. Portanto,
matei-o. O capitão improvisou logo um julgamento sumário…
— Sumário? — perguntou Harry.
— Logo ali em frente à tripulação. Nada de subtilezas legais. Faz-se a
defesa e a tripulação decide. Acontece que a maioria dos homens detestava
o Barnes e eu deixei bem claro que andava a ser açoitado por algo de que
não tinha culpa. O culpado assumiu o que fez e disse ao capitão que eu não
fizera aquilo de que era acusado… — O olhar de Amos perdeu-se no
horizonte. — Engraçado, não é? Não me lembro do que fui acusado. De
qualquer modo, o culpado foi castigado, embora o capitão tenha sido
brando com ele por ter sido honesto e salvado a minha vida. Fui promovido
a terceiro imediato. Quando já estava há quatro anos ao serviço naquele
barco, já era primeiro imediato.
»Com vinte anos cheguei a capitão, Harry. Corri quase todos os portos do
Mar Amaro, exceto Krondor e Durbin, antes de chegar aos vinte e seis anos.
Aos vinte e nove, endireitei-me. — Riu-se. — E na minha primeira viagem
honesta, os tsurani incendiaram-me o barco e deixaram-me triste e
abandonado aqui em Crydee. Isso já foi há mais de trinta anos. Portanto,
aqui estou eu, com mais de sessenta e de novo pirata! — Voltou a rir-se. —
Que raio de círculo, não é?
Harry abanou a cabeça, num total espanto. — Que bela história.
Amos olhou para cima, para a carcaça do que em tempos fora o Castelo
de Crydee. No dia anterior, chegara um par de pedreiros de Carse e estavam
a dar início às inspeções preliminares dos terrenos para a reconstrução.
Martin estava a acompanhá-los, dando-lhes instruções para que os trabalhos
arrancassem assim que as neves desaparecessem, tivesse ele regressado ou
não. — Quando vim pela primeira vez a esta torre de menagem, conheci
algumas pessoas espantosas. — Olhou para baixo, pensativo. — Mudaram a
minha vida. Devo-lhes muito. Costumava censurar o Arutha por não tirar
partido da vida, e, verdade seja dita, ele consegue ser muito carrancudo. —
Amos olhou de novo para a estalagem e voltou a falar. — Mas é um homem
fantástico, em muitos aspetos, e a minha primeira escolha para companheiro
caso tivesse de viajar por mares tempestuosos. Adoro-o como a um filho,
mas ser filho dele não é tarefa fácil. O Borric e o Erland têm muitos dons,
nenhum deles muito diferente dos do pai, mas o Nicholas…
Harry assentiu. — É igualzinho a ele.
Amos suspirou. — Nunca confessei isto a ninguém, mas o Nicky sempre
foi o meu preferido. É um rapaz amável e, mesmo tendo muito do vigor do
pai, tem os modos afáveis da mãe. — Amos desencostou-se do muro. —
Rezo para que consiga devolvê-lo incólume à família. Não me imagino com
força para contar à avó dele que deixei que algo de mal lhe acontecesse.
— Rezo para que sentis o mesmo em relação a mim e a contar ao meu
pai, Capitão — disse Harry.
Amos dirigiu um olhar malicioso a Harry. — Não vou casar com o vosso
pai, Escudeiro. Estais por vossa conta.
Harry riu-se, mas não foi completamente convincente. Então soou um
grito do alto da colina quando um dos pedreiros de Carse veio a descer a
encosta, praticamente de cabeça perdida. Gritou algo e Amos olhou para
Harry.
— Não entendo… — confessou Harry.
E então o homem gritou de novo, e Amos disse:
— Oh, não, por todos os deuses.
— O que foi? — quis saber Harry.
— Houve um acidente — informou Nakor. Desatou a correr na direção
do castelo.
De repente, Harry percebeu. Havia apenas três pessoas no castelo: dois
pedreiros e o Duque. — Vou chamar o Marcus e o Nicholas — anunciou
Harry. Saiu disparado para a estalagem.
Antes de ir para o castelo, Amos gritou para Harry: — E vede se
descobris o Anthony! Vamos precisar de um curandeiro.
M arcus estava furioso. — Porque é que ele pediu para falar com o
Nicholas?
Harry encolheu os ombros. — Sei tanto quanto vós. — Harry observou o
jovem de quem fora escudeiro nos últimos meses. Ainda não conhecia
Marcus muito bem, mas conhecia-o o suficiente para ver que dentro dele
havia muita raiva acumulada, que só a custo era controlada. Primeiro, por
causa da rivalidade na luta pelo afeto de Abigail, depois, a morte da mãe e o
rapto da irmã, e por fim a recusa de Nicholas em continuar a desempenhar o
papel de Escudeiro do Duque para se afirmar como Príncipe de Krondor – a
combinação desses elementos deixara, na última semana, Marcus na
iminência de rebentar.
Nicholas surgiu nas escadas e acenou para Anthony, Nakor e para o
monge. Eles reentraram no quarto enquanto Marcus subia os degraus dois a
dois. Harry apercebeu-se da expressão concentrada do amigo. — O que é
que se passa? — perguntou.
— Preciso de apanhar ar — respondeu Nicholas.
Harry seguiu o amigo até ao exterior da estalagem e, interpretando mal a
expressão de Nicholas, perguntou:
— O Duque…?
— A perna dele partiu acima e abaixo do joelho e o Anthony diz que há
hemorragias internas — explicou Nicholas.
— Ele vai… — Harry quase proferiu a palavra «morrer», mas travou a
tempo — …ficar bem?
— Não sei — reconheceu Nicholas. — Ele é mais velho do que eu
pensava, mas ainda é bastante rijo. — Nicholas continuou a caminhar na
direção do mar.
— Passa-se mais qualquer coisa, não passa? — indagou Harry.
Nicholas anuiu.
— O quê?
— Não posso dizer-te.
— Nicky, pensei que fôssemos amigos — atirou Harry.
Nicholas parou e fitou o companheiro. — E somos, Harry. Mas há coisas
que só a família real pode saber.
Algo no tom dele impediu Harry de prosseguir. Parou, hesitante, e depois
colocou-se de novo ao lado de Nicholas. — É grave?
Nicholas assentiu com a cabeça. — Posso dizer-te isto: há forças lá fora a
trabalhar para nos destruir e tudo – e quero dizer mesmo tudo – aquilo que
amamos. E podem ser essas forças que estão por detrás do que aqui
sucedeu.
Da escuridão, soou uma voz. — Assim é.
Harry e Nicholas voltaram-se de pronto, e este último já tinha a espada
meio desembainhada antes de reconhecer Calis. O filho da Rainha dos Elfos
saiu das sombras. — Acho que tive uma conversa com o meu pai idêntica à
que tivestes com o vosso tio, Príncipe Nicholas — disse.
— Sabeis das serpentes? — perguntou Nicholas.
— Um dos nossos grupos de batedores encontrou um bando de moredhel
junto à fronteira com a Montanha de Pedra e houve uma escaramuça —
informou Calis. — O anel da serpente foi encontrado no corpo de um
moredhel. Pode ser algo dos tempos da Grande Ascensão, quando o falso
Murmandamus marchou sobre Sethanon. Se for, não há nada a temer…
Nicholas anuiu. — Mas se não for…
— Então vai haver problemas.
— E o que é que o Tomas e a vossa mãe sugerem que se faça? —
perguntou Nicholas.
Calis encolheu os ombros. — Para já, nada. Não faz parte de nós, reagir
face a suposições. Mas como pode haver algum risco oculto nas trevas,
viajarei convosco.
Nicholas sorriu. — E porquê vós?
Calis retribuiu o sorriso. — Porque tenho tanto de humano quanto de
elfo. A minha aparência não me trairá como o faria a qualquer outro de
Elvandar. — Olhou em volta para as ruínas de Crydee. — Verei que tipo de
homem é capaz de uma coisa destas. — Dirigiu novamente o olhar para
Harry e Nicholas. — E aprenderei mais sobre o meu legado humano. — Pôs
o seu arco ao ombro. — Acho que devo passar esta noite com os meus avós.
Tal como as coisas estão, tenho-os visto pouco, e, tendo isso em conta,
poderemos estar fora por muito tempo. — Sem mais para dizer, foi embora.
Harry deixou passar uns momentos antes de falar. — Que história é essa
do anel?
Nicholas pegou no anel e passou-o a Harry, para que este o observasse.
Na penumbra parecia ter um brilho próprio. — É uma joia muito feia —
comentou Harry, fazendo uma careta.
— Pode ser mais do que isso — referiu Nicholas. Voltou a guardá-lo na
bolsa do cinto. — Anda daí — disse. — Temos uma série de coisas para
fazer antes de partirmos.
Porto Livre
A
rapariga teve um acesso de choro.
— Podeis calar-vos, por favor? — pediu Margaret. O seu tom
de voz não era ameaçador, nem autoritário; tratava-se somente de
um pedido para uma pausa nas quase constantes lamúrias e choros de uma
ou outra das raparigas, ou rapazes, da vila.
A filha do Duque Martin deu luta durante todo o caminho, durante o qual
foi transportada como um troféu de caça até ao barco que aguardava no
porto. Tinha gravada na mente a imagem da mãe deitada de cara para baixo
no castelo da família, com as chamas a iluminarem o corredor mais
distante, e isso deixou-a ainda mais furiosa.
Os dias que se seguiram não foram menos tormentosos, mesmo não
passando de uma mancha difusa. Os prisioneiros foram divididos por
idades, desde os sete, oito anos até uns quantos já perto dos finais dos vinte.
A maioria tinha entre doze e vinte e dois anos, eram jovens, fortes e sem
dúvida alcançariam um bom preço nas docas de escravos em Durbin.
Margaret não duvidava de que estes assassinos iriam deparar-se com uma
armada real à espera para os intercetar entre os Estreitos das Trevas e
Durbin. O pai dela de certeza que teria feito chegar a informação ao tio
dela, o Príncipe Arutha, e seria salva juntamente com todos os outros
prisioneiros. Por isso, até a ajuda chegar, concentrou-se em proteger aqueles
que a rodeavam.
A primeira noite fora a pior. Foram todos enfiados juntos nos cárceres de
dois enormes navios, ancorados no horizonte de Crydee. Uns quantos dos
barcos mais pequenos já tinham partido, mas a maioria estava ao largo em
águas profundas, com as tripulações a encherem os conveses das
embarcações maiores para a viagem rumo ao seu destino. Margaret já
estivera em barcos suficientes para saber que não poderiam estar a viajar
para longe, pois não via por perto provisões que chegassem para as
tripulações e prisioneiros.
Abigail alternava entre sestas irregulares com a mente atormentada pelos
horrores que testemunhara e especulações assustadoras sobre o que lhes
reservava o destino. Por vezes, mostrava alguma vivacidade, mas muito
rapidamente desabava sobre ela o peso do que a rodeava, reduzindo-a a
lágrimas e, por fim, ao silêncio.
Após o primeiro dia, foi estabelecida uma espécie de ordem, pois os
prisioneiros arrumaram o melhor que puderam os seus aposentos exíguos.
Não havia privacidade e toda a gente foi obrigada a aninhar-se num canto
do cárcere para dar espaço à pilha de dejetos humanos que se acumulava no
fundo do porão. O fedor tornara-se uma presença implícita no fundo da
consciência de Margaret, desagradável, mas nada mais do que isso, tal
como o omnipresente ruído de fundo do casco de madeira a ranger, de
pessoas a chorar ou a praguejar, e das conversas em voz baixa. O que a
preocupava eram os prisioneiros com problemas de estômago ou
constipações e febre. Não se estavam a dar bem com as restrições do
cativeiro, e ela tentou pô-los bem mais confortáveis. Ordenou aos que
estavam aprisionados para que se movimentassem, de forma a que os
doentes dispusessem de um pouco de conforto. Entre a sua posição e a sua
confiança nata, obedeceram-lhe sem reservas.
Uma das raparigas mais velhas da vila murmurou:
— Eles são os sortudos. Vão morrer em breve. Os restantes de nós
estamos condenados à escravidão ou à prostituição para o resto da vida.
Bem podemos habituar-nos à ideia: não vai chegar ajuda.
Margaret voltou-se e deu uma forte bofetada na cara da mulher. De olhos
semicerrados, impôs-se sobre a mulher agora aninhada de medo. — Se mais
alguém volta a proferir essa ladainha, arranco-lhe a língua.
Ouviu-se uma outra voz, esta masculina. — Minha senhora, sei que agis
de boa-fé, mas nós presenciámos o ataque! Todos os nossos soldados
morreram. De onde poderá vir a ajuda?
— Do meu pai — afirmou ela com convicção. — Ele regressará da sua
caçada e enviará de pronto notícias para Krondor, e o meu tio, o Príncipe,
terá toda a armada de guerra krondoriana à nossa espera antes que
aportemos em Durbin. — Depois, o tom de voz dela suavizou, para se
tornar implorativo. — Temos de aguentar. Só isso. Apenas sobreviver e, se
pudermos, ajudarmo-nos mutuamente a sobreviver.
— Peço perdão, minha senhora — disse a mulher que manifestara as suas
incertezas.
Margaret nada disse, mas afagou o braço da mulher de modo
conciliatório. Sentando-se no espaço exíguo que lhe coube em sorte,
Margaret viu Abigail de olhar fixado em si.
— Achais mesmo que nos irão encontrar? — sussurrou Abigail, com
uma ténue esperança a começar a evidenciar-se no seu olhar.
Margaret limitou-se a assentir, mas mentalmente disse para si própria:
Espero que sim.
Descobertas
U
ma gaivota grasnou.
Marcus, Calis e Harry encaminharam-se para o porto enquanto
o Sol se erguia acima do horizonte. Para o jovem semielfo, que
não parecia mais velho do que Harry apesar de ter trinta anos, Porto Livre
era um estranho aglomerado de vistas e sons. Ele permanecera em silêncio,
satisfeito por deixar os seus companheiros entabularem todas as conversas
necessárias, mas observou, escutou e pareceu fascinado com a diversidade
de géneros humanos que habitava a ilha. Harry confidenciara a Nicholas na
noite anterior que era completamente possível esquecer a presença do
jovem elfo até ele decidir mover-se ou falar, pois adorava manter-se calado
e quieto.
Harry estava prestes a fazer-lhe uma pergunta quando uma silhueta
franzina surgiu de repente de detrás de um barco voltado e se pôs ao lado
deles. Calis já tinha a faca empunhada antes de os outros se conseguirem
voltar. Harry quase saltou com o susto, com aquela súbita aparição. — Por
todos os deuses! O que queres?
— Mais concretamente — sussurrou a voz —, o que quereis vós os três?
O vulto franzino estava vestido com uma túnica e calças disformes;
dedos sujos espreitavam de debaixo das calças demasiado compridas. Os
braços magros que saíam de mangas esfarrapadas estavam tão sujos quanto
os pés e a cara mostrava-se apenas ligeiramente mais limpa. Um queixo
afiado e uma boca pequena eram encimados por maçãs do rosto salientes e
uns enormes olhos azuis. Um cabelo ruivo-acastanhado comprido e
irregular estava espetado em todas as direções.
— Vai embora, miúdo — disse Marcus, impaciente.
— Miúdo! — vociferou o mendigo. Após um violento pontapé na canela
de Marcus, a rapariga recuou com um saltinho. — Só por causa disso, ides
pagar o dobro pelas informações.
Marcus retraiu-se com a pancada e Harry ficou mudo de espanto. —
Então vai embora, miúda — disse Calis calmamente.
Retomaram o seu caminho, mas a rapariga perseguiu-os e pôs-se a andar
às arrecuas ao lado de Marcus. — Sei muita coisa. Perguntai a quem quer
que seja em Porto Livre e irão dizer-vos: «Quereis saber algo? Perguntai à
Brisa.»
— E tu és a Brisa? — inquiriu Harry.
— Claro.
Marcus e Calis não abriram a boca, mas Harry falou. — O nosso Capitão
anda à procura de uma ilha para construir uma casa.
Brisa deixou de seguir às arrecuas e pôs-se mesmo à frente de Marcus. —
Pois — disse ela, ironicamente.
Marcus viu-se obrigado a parar, enquanto os outros passaram pela direita.
Olhou para baixo para ela. — Sim, é isso mesmo — afirmou.
Ela sorriu abertamente e Marcus ficou espantado ao constatar que fazia
covinhas. — Sim, é isso mesmo — repetiu, não escondendo a sua irritação,
após o que tentou contorná-la.
Ela acompanhou-o, cortando-lhe o caminho.
— Não tenho tempo para estas brincadeiras — disse ele, tentando passar
pelo outro lado.
Ela recuou meio passo e prendeu o calcanhar numa corda enrolada.
Caindo para trás, aterrou em cima do traseiro. Marcus sorriu e Harry riu-se
às gargalhadas, enquanto Calis se mantinha impassível. Brisa fez um som
de repugnância quando Marcus passou por ela, e depois gritou: — Muito
bem! Quando estiverdes cansados de navegar aos círculos, vinde ter
comigo!
Marcus voltou-se para trás na direção dela e num atípico momento de
divertimento, acenou-lhe. Até Calis sorriu, enquanto Harry continuava a rir.
M ais tarde nessa noite, Harry, Calis e Marcus treparam a escada onde o
barco à vela deles fora amarrado e depararam-se com Brisa sentada
sobre uma pilha de velas, a comer uma maçã. — Cansados? — questionou.
Olharam uns para os outros e passaram pela rapariga, mas ela saltou para
baixo e apareceu ao lado deles, a caminhar com as mãos atrás das costas.
Como uma criança na brincadeira, cantarolou:
— Sei o que procurais.
— Já te dissemos… — ameaçou Marcus.
— Não andais, não — disse ela numa voz de canto.
— Não o quê?
— À procura de uma ilha para o vosso capitão. — Deu uma última
dentada na maçã e atirou o caroço por cima do ombro, para o mar. As
gaivotas grasnaram e mergulharam atrás dela.
— Então, de que é que andamos à procura? — perguntou Harry,
impaciente, após um dia a navegar por entre uma meia dúzia de ilhas
desertas.
Brisa cruzou os braços. — Quanto vale encontrardes o que procurais? —
perguntou.
Marcus abanou a cabeça. — Não temos tempo para espertezas, miúda.
O trio começou a caminhar mais depressa. — Eu sei para onde foram os
esclavagistas de Durbin — anunciou Brisa.
Eles pararam de pronto. Entreolharam-se e viraram-se para trás. Calis
dirigiu-se de volta ao lugar onde a rapariga estava à espera e agarrou-a com
firmeza pelo braço. — O que é que sabes? — inquiriu Marcus.
— Au! — gritou ela, retorcendo-se para se libertar, mas Calis agarrou-a
rapidamente de novo. — Largai-me ou não vos digo nada! — ameaçou ela.
Marcus pousou a mão sobre o braço de Calis. — Soltai-a.
Calis assim o fez e a rapariga afastou-se. Esfregando o braço dorido, fez
beicinho. — A vossa mãe não vos ensinou que há formas melhores de
cativar uma rapariga? — Fazendo incidir um olhar furioso sobre Marcus,
disse:
— Não sois assim tão mal parecido para um salteador mal vestido,
embora me pareça que ficásseis melhor sem a barba. Eu ia ser simpática,
mas agora o meu preço subiu.
— Olha lá, o que é que sabes e o que é que queres? — disse Harry.
— Sei que há um mês uns homens estranhos vieram à cidade; imensos.
Muitos mais reuniram-se nas ilhas aqui perto, esforçando-se por não serem
vistos por quem mora em Porto Livre. Falavam na sua maioria keshiano,
mas com um sotaque estranho, um que eu nunca ouvira antes. Vieram
outros à cidade comprar mantimentos. Não todos de uma vez, mas o
suficiente para me espicaçar a curiosidade. Por aqui, não sucede nada fora
do vulgar que eu não repare. Pelo que decidi bisbilhotar um pouco. — Ela
sorriu. — Sou boa a descobrir coisas.
Harry não logrou travar um sorriso. — Assim me parece.
— E então, temos acordo? — quis ela saber.
— Qual é o teu preço? — perguntou Marcus.
— Cinquenta reais de ouro.
— Não ando por aí a passear com tanto ouro — disse Marcus.
— E se for isto? — perguntou Harry.
Estendeu um anel, com um rubi facetado encaixado em ouro.
— Onde é que arranjastes isso? — perguntou Marcus.
Harry abanou levemente a cabeça. — Esqueci-me. — Dirigiu-se então à
rapariga. — Vale o dobro do que pediste.
— Muito bem — disse ela. — Segui um grupo, assinalei a rota deles e
velejei depois do pôr-do-sol. Descobri onde se reuniram. Estava lá o maior
barco que alguma vez vi, ancorado ao largo. Era preto e parecia uma galé de
Queg, com castelos da proa e da popa altos, velas principais enormes e vaus
grandes como o raio. Estava com o casco muito acima, pelo que calculei
que estivesse vazio, mas os homens iam e vinham da ilha constantemente.
Não podiam navegar o barco grande até lá, pelo que passaram dias a
transportar homens e provisões em embarcações pequenas. Pelo que tinham
na praia, pareciam estar a preparar-se para uma longa viagem, talvez até à
ponta mais longínqua de Kesh. Também tinham patrulhas cá fora, e tive de
me escapulir.
»Umas semanas mais tarde havia alguns barcos a circular pelas ilhas,
mas sempre longe de Porto Livre. — Antes de prosseguir, a rapariga exibiu
um sorriso radioso. — Fiquei curiosa e regressei à ilha e vi que a maioria
dos homens estava a ser transportada para o navio grande. Mas uma dúzia
de barcos mais pequenos largou uma série de prisioneiros na ilha. Estavam
lá seis esclavagistas de Durbin a tomar conta.
— Como é que sabes que é isso que nos interessa? — perguntou Harry,
com o anel pendurado à frente dela.
— Chegastes num navio do Reino e todos os prisioneiros falam a Língua
do Rei. Um capitão famoso apareceu ao fim de trinta anos… para mim, é
muita coincidência. O vosso capitão é genuíno, mas os restantes de vós sois
demasiado limpos e educados; sois a Armada do Reino. Viestes à procura
dos prisioneiros, certo?
Harry lançou o anel ao ar e Brisa apanhou-o. — Para onde é que levaram
os prisioneiros? — perguntou Harry.
— Duas ilhas para ocidente, a sotavento — disse ela, indo de imediato
embora a correr. — E assim que regresseis, poderei contar-vos mais —
disse por cima do ombro.
— Como é que te encontramos? — gritou Harry.
— Perguntai pela Brisa em qualquer lado! — ouviu-se a resposta
enquanto a rapariga desaparecia por entre dois edifícios.
Perseguição
M
argaret foi acometida por um arrepio.
— O que foi? — quis saber Abigail.
— Outra vez aquela… sensação estranha. — Margaret cerrou
os olhos.
— E mais? Dizei-me — exigiu Abigail.
Desde há um mês, uma ou duas vezes por dia, Margaret fora visitada por
uma sensação estranha. Às vezes, parecera-lhe um arrepio; outras vezes,
uma sensação de formigueiro que lhe atormentava todo o corpo. Não era
doloroso, nem ameaçador, mas estranho.
— Está mais perto — anunciou Margaret.
— O que é que está mais perto?
— O que quer que seja que me leva a sentir assim. — Margaret levantou-
se e encaminhou-se para a enorme janela. Tinham-lhes facultado um
camarote na ré do navio, sobre a casa do leme. Não era grande, estava um
ou dois níveis abaixo do camarote do capitão, mas tinha a vantagem de ser
maior do que a minúscula escotilha no primeiro camarote delas. Havia um
divã aos pés das duas camas, que tinham a cabeceira sob a janela e uma
pequena mesa no meio. As refeições eram servidas por homens silenciosos
que se recusavam a alinhar mesmo na mais insignificante das brincadeiras.
Eram levadas ao convés duas vezes ao dia, se o tempo o permitisse, e
deixavam que apanhassem sol e esticassem as pernas.
O tempo estava a mudar, a tornar-se cada vez mais quente. Margaret
achou aquilo estranho, dado que se aproximavam do início do inverno, mas
a tripulação pareceu não estranhar os dias brandos. E os dias estavam a
tornar-se cada vez maiores. Margaret refletiu em voz alta sobre todas
aquelas coisas estranhas, mas Abigail não demonstrou o mínimo interesse.
Margaret trepou para a cama e abriu a pequena janela. Conseguia enfiar a
cabeça e olhar para baixo para o enorme leme enquanto a água girava em
torvelinho atrás. Foi bem-vinda a possibilidade de manter o ar puro no
camarote após os dias passados no porão das embarcações mais pequenas.
Pensava frequentemente como se estariam a aguentar os prisioneiros menos
afortunados, pois apesar de lhes terem sido facultados pequenos beliches
individuais, não havia ar puro nos conveses dos esclavagistas, assim como
era escassa a iluminação.
A porta abriu-se e surgiu um rosto familiar. Arjuna Svadjian fez uma das
suas estranhas vénias, com as mãos unidas e as pontas dos dedos em frente
ao rosto. — Quero crer que estais bem — disse, naquilo que, sabiam as
raparigas, se tratava de uma saudação formal.
Margaret e Abigail tinham sido visitadas diariamente por este homem e
todos os dias ele encetara o que se parecera com conversas fúteis. Não
havia nada de ameaçador no seu comportamento ou aparência: era de
estatura média, mantinha uma barba cuidadosamente aparada e as suas
roupas eram confecionadas com tecidos caros, mas com um corte simples.
Tinha o aspeto de um próspero homem de negócios e poderia até passar por
um mercador de um porto distante de Kesh, se andasse a viajar pelo Reino.
De início, as conversas revelaram-se uma agradável distração face à
monotonia dos dias. O camarote podia ser mais confortável dos que os
anteriores aposentos, mas não deixava de ser uma cela. As raparigas
passaram por uma fase em que se mostraram relutantes, dando respostas
sem sentido às perguntas dele, ou contradizendo-se propositadamente. Ele
pareceu indiferente a ambas as estratégias, limitando-se a absorver o que
diziam.
De vez em quando, surgia acompanhado por outro homem, um que
haviam conhecido no primeiro dia e que se chamava Saji, que pouco falou.
Por vezes, fazia uma pausa para escrever algo numa tabuinha com
pergaminho que levava consigo, mas de resto limitava-se a observar.
— Hoje, gostaria que me falásseis mais sobre o vosso tio, o tal Príncipe
Arutha — solicitou Arjuna.
— Para quê? Para vos preparardes melhor para encetardes guerra contra
ele?
O homem não demonstrou irritação nem divertimento face à acusação. —
É difícil travar uma guerra através de um mar tão vasto — disse. Não fez
mais comentários sobre o assunto, mas perguntou:
— Conheceis bem o Príncipe Arutha?
— Não muito bem — respondeu ela.
Não era um homem para revelar qualquer tipo de sentimento às
raparigas, mas algo no modo como se moveu ligeiramente para a frente deu
a Margaret a impressão de que ficou agradado com aquela resposta.
— Mas já estivestes com ele?
— Quando eu era uma criança — respondeu Margaret.
Ele dirigiu-se então a Abigail. — E quanto a vós? Já estivestes com esse
Príncipe Arutha?
Abigail abanou a cabeça. — O meu pai nunca me levou à corte.
Arjuna sussurrou algo a Saji numa língua estranha e o pequeno homem
tomou nota de algo na sua tabuinha.
A entrevista prosseguiu. As perguntas aparentemente não tinham nada a
ver com as colocadas em entrevistas anteriores. Depois de decorrida a
maior parte da manhã, as raparigas ficavam aborrecidas, cansadas e
frustradas, mas Arjuna nunca pareceu cansar-se durante as entrevistas. Ao
meio-dia, era servida uma refeição ligeira às raparigas, mas ele não comia,
limitando-se a abrandar o ritmo da entrevista para que pudessem comer os
biscoitos, carnes secas e uma taça de vinho. Perceberam desde o início que
deveriam tragar toda a comida que eles lhes levavam, depois de um dia
Abigail se ter recusado a tocar na sua refeição. Dois dos homens silenciosos
apareceram e um segurou-a enquanto o outro a forçou a comer. Arjuna
limitara-se a dizer: «Tendes de manter a vossa força e bem-estar.»
Após a refeição, pediu licença e escutaram-no a entrar no camarote ao
lado. Margaret dirigiu-se a correr ao tabique que separava os
compartimentos e tentou escutar, como fazia sempre que ele lá ia. Havia um
passageiro misterioso com quem Arjuna reunia de tempos a tempos, mas
mais ninguém alguma vez entrara nesse camarote. Margaret uma vez
perguntara com ousadia quem lá estava, mas Arjuna ignorara a questão e
ripostara com uma das suas perguntas.
Era possível ouvir um murmúrio de vozes muito baixo, mas não deu para
perceber as palavras. De repente, Margaret foi de novo visitada por aquele
estranho formigueiro, desta feita mais intenso do que nunca. No mesmo
instante, ouviu-se uma voz assustada no camarote anexo, e através do
tabique escutaram-se passos na direção da parte de trás.
Margaret olhou lá para fora pela pequena janela, para a esquerda, e viu
um vulto encapuzado a debruçar-se à janela. O vulto esticou um braço,
apontando para debaixo da janela e exclamando:
— She-cha! Ja-nisht souk Svadjian!
Margaret puxou a cabeça de novo para dentro, com o rosto lívido e os
olhos arregalados.
— O que é que se passa? — perguntou Abigail ao aperceber-se da
expressão dela.
Margaret aproximou-se, pegou na mão de Abigail e apertou-a com força.
— Vi o nosso vizinho — anunciou. — Ele… pôs a mão para fora. Está
coberta de escamas verdes.
Abigail arregalou os olhos, que se encheram de lágrimas. — Se ides
começar a chorar, esbofetear-vos-ei com tal força que tereis um motivo real
para o fazer — avisou-a Margaret.
— Estou assustada — explicou Abigail, com uma voz tremente.
— E achais que eu não estou? — questionou a outra rapariga. — Não
podemos permitir que eles saibam que sabemos.
— Vou tentar — disse Abigail.
— Há outra coisa.
— O quê?
— Estamos a ser seguidos.
Abigail arregalou de novo os olhos e pela primeira vez desde que haviam
sido capturadas, pareceu esperançosa. — Como é que sabeis? Quem é?
— Aquela coisa na divisão ao lado sentiu o que quer que seja que eu
tenho andado a sentir ultimamente — explicou Margaret —, e queixou-se
de que alguém estava prestes a alcançar-nos.
— Ouvistes isso?
— Ouvi o tom, e não era de agrado. E há algo naquela estranha sensação
que me tem assolado que finalmente me fez sentido.
— O quê?
— Sei quem nos persegue.
— Quem é?
— O Anthony.
— O Anthony? — comentou Abigail num tom de desapontamento.
— Não está sozinho, garanto-vos — afiançou Margaret. — Deve tratar-se
de alguma da magia dele que tenho sentido. — A sua expressão tornou-se
meditativa. — Gostaria de saber por que razão eu a sinto e vós não.
Abigail encolheu os ombros. — Quem é que compreende a magia?
— Achais que vos conseguis espremer pela janela?
Abigail olhou para lá. — Poderia, se não tivesse este vestido —
respondeu.
— Então vamos despir os vestidos — disse Margaret.
— Em que estais a pensar? — indagou Abigail.
— Assim que vir um barco a seguir-nos, a minha ideia é saltar borda fora
deste. Sois boa nadadora?
Abigail abanou a cabeça e pareceu receosa em responder.
— Não sabeis nadar de todo? — perguntou Margaret, incrédula.
— Sei dar umas braçadas se o mar estiver mais ou menos calmo.
— Viveu toda a vida junto ao mar e sabe dar umas braçadas — comentou
Margaret. Fitou seriamente a amiga. — Ireis dar umas braçadas, e se
necessário for, dar-vos-ei uma ajuda. Se vier um barco a seguir-nos, não
permaneceremos muito tempo dentro de água.
— E se eles não nos virem?
— Na altura preocupar-nos-emos com isso — foi a resposta de Margaret.
Margaret sentiu de novo o estranho formigueiro. — Vêm aí — comentou.
Desastre
O
vigia apontou para algo.
— Barco à vista!
— A que distância? — quis saber Amos.
— Mesmo à frente, Capitão!
Amos colocou-se na proa com os outros enquanto o Sol se erguia a custo por
trás deles. Um nevoeiro cerrado escurecia o horizonte a ocidente, mas uns
minutos após o vigia ter identificado o barco preto, Calis disse:
— Estou a vê-lo.
Amos falou em voz baixa. — Tendes olhos mais jovens do que os meus, elfo.
Calis não ripostou, mas arriscou um sorriso ao ser chamado de elfo. E a seguir
apontou. — Ali!
Naquela manhã de um azul-acinzentado era possível avistar um pequeno
ponto, uma mancha negra que foi reconhecida como um barco e velas apenas por
aqueles que já há muito cruzavam os mares. — Maldição — praguejou Amos. —
Não estamos a ganhar lá muito terreno.
— Quanto? — perguntou Marcus.
Amos voltou as costas e dirigiu-se à escada de acesso ao convés principal. —
A este ritmo, necessitaremos de uma semana para os alcançar. — Olhou para
cima. — Três graus para estibordo, Sr. Rhodes — gritou, com tanto de frustração
como de necessidade de se fazer ouvir. — Mareai as velas! Quero-o o mais
possível alinhado com o vento!
— Sim, Capitão — ouviu-se em resposta e, sem que lhes fosse ordenado, os
soldados saltaram e treparam as enfrechaduras até à enxárcia para marear as velas
nos mastros, enquanto os do convés içavam escotas para mover enormes portalós
e vergas.
Nicholas foi ter com Amos ao convés principal. — Achei que éramos mais
rápidos, Amos.
— E somos — respondeu ele, trepando a escada para o tombadilho superior.
— Mas o nosso barco é de um tipo diferente. É mais rápido com o vento em
pleno. Somos ainda mais velozes fora dessa linha, com uma bolina mais cerrada,
mas nessa rota onde eles seguem agora… bem, somos mais rápidos, mas não
muito mais.
— E se velejarmos em largo aberto, para depois nos aproximarmos e nos
atravessarmos no caminho deles?
Amos sorriu. — Isto não é uma corrida de barcos no porto, Nicky. Há muito
mar ali fora e quando tivéssemos chegado ao local onde esperaríamos que eles
estivessem, o capitão deles poderia ter mudado de rota e estar a milhas de
distância. Não, vai ter de ser sempre perseguição em linha reta.
— E uma perseguição em linha reta é uma longa perseguição — comentou
Nicholas, repetindo uma máxima de velho lobo-do-mar.
Amos riu-se. — Onde é que ouvistes isso?
Nicholas fez um sorriso rasgado. — Estais sempre a dizê-lo de cada vez que
contais a história de quando ajudastes a minha mãe e o meu pai a fugir de
Krondor, quando o Jocko Radburn tentou passar-vos à frente.
Amos retribuiu o sorriso. — Raios me partam! Prestastes atenção a essas
histórias. — Envolveu Nicholas com um braço e na brincadeira deu-lhe um soco
no estômago com a outra mão. — Sois agora o meu futuro neto preferido —
declarou. Depois, afastou-o para o lado. — Agora, saí do meu tombadilho e não
regresseis cá sem pedir permissão, Vossa Alteza.
— Sim, Capitão — disse Nicholas, entre gargalhadas. Abandonou o
tombadilho, satisfeito com aquela pausa momentânea na tensão.
Regressou ao convés e ainda lá estava toda a gente, de olhos fixos no ponto
preto que tinham defronte. Calis e Marcus estavam tão quietos que pareciam
estátuas, enquanto Harry murmurava uma canção sem nome. Brisa tinha uma
mão pousada sobre o ombro de Marcus e ele pareceu não ter reparado. Ghuda
tinha a espada na mão e estava a poli-la com um trapo que nunca largava. Nakor
e Anthony limitavam-se a observar.
Nicholas observou atentamente o rosto de Anthony. A expressão do mago
revelava concentração, como se tentasse discernir algo ao longe.
D urante três dias vigiaram constantemente o barco que seguia à frente. Todas
as manhãs, Nicholas e os outros apressavam-se para o convés para ver que
distância haviam encurtado. Agora já conseguiam ver nitidamente o contorno das
velas e do casco. Era um navio enorme e cruzava o mar como uma rainha
majestosa, mas para quem seguia a bordo do Raptor, aquilo não tinha nada de
adorável.
Por volta do meio da manhã, o vigia deu o alerta. — Está a mudar de rota,
Capitão!
— Para que direção? — indagou Amos.
— Para bombordo!
— Levai-nos um pouco para bombordo, Sr. Rhodes — indicou Amos.
— O que é que eles estão a fazer? — gritou Nicholas desde o convés.
Amos abanou a cabeça, indicando que não sabia. Depois, voltou a dirigir-se ao
vigia. — Mantende-vos particularmente atento aos baixios! — A seguir
transmitiu instruções ao primeiro imediato. — Quero mais vigias nos mastros e
no convés, Sr. Rhodes.
Em poucos minutos, havia marinheiros posicionados no convés e nas vergas, a
observar minuciosamente as águas, à procura de alterações de cor que indicassem
a presença de baixios. — Vede se conseguimos voltar a alinhar-nos por eles, Sr.
Rhodes. Se estão a avançar por entre bancos de areia, quero que nos indiquem o
caminho.
— A cor da água está a mudar, Capitão! — gritou um homem no convés.
Amos foi a correr para o convés e pendurou-se de tal maneira borda fora que
Nicholas se sentiu compelido a segurá-lo pelo cinto. — Está a tornar-se pouco
fundo — informou Amos enquanto se içava de novo para o convés —, mas ainda
não está demasiado raso.
Os outros tinham-se reunido junto a ele. — Penso que estaremos prestes a
avistar terra — disse Amos. — Ilhas, ou talvez o tal continente assinalado no
mapa. — Gritou para o vigia: — Prestai atenção à popa daquele navio. Se marear
as velas ou mudar de rota, avisai!
— Sim, Capitão.
Amos fez sinal a Nicholas e aos companheiros para que se juntassem em redor
dele. — Aqui o Ghuda tem grande experiência como soldado, pelo que vos
aconselho a que permaneçais junto dele. — Depois, fitou Nicholas, Marcus e
Harry, a quem dirigiu a palavra. — Não vos entusiasmeis, nem tenteis vencer isto
sozinhos. É um barco enorme e pode transportar uma boa centena de homens
armados além da tripulação regular. — Depois olhou por cima do ombro para a
tripulação atarefada no convés. — Os meus rapazes têm tanto de durões como de
capazes — acrescentou —, pelo que saberão tratar de si próprios. — Fitou o
barco ao longe. — Este tipo de coisas pode mudar repentinamente. Se forem
forçados a mudar para uma mareação diferente a favor do vento, podemos de
repente estar em cima deles, pelo que a luta pode começar a qualquer momento.
Boa sorte.
Voltou-se e foi-se embora; Nicholas virou-se para Ghuda. — Já servi antes na
marinha — disse-lhe o velho mercenário. Depois, olhou por cima do ombro de
Nicholas para o navio ao longe. — É uma besta enorme — comentou —, a
navegar mais alto do que nós, o que é mau. Tanto podemos lançar-nos lá para
dentro a partir do cordame ou trepar por cabos com ganchos. É mais rápido se
nos lançarmos, mas os que vão balouçar têm de se agarrar à amurada para que os
outros possam trepar sem que lhes cortem as cabeças. Mantende-vos chegados e
cuidai uns dos outros, pois não há frente de batalha. O homem atrás de vós pode
ser um deles. — A seguir falou com Nakor e Anthony. — Provavelmente, será
melhor que permaneceis por aqui por um bocado, e depois avançai para tratar dos
feridos.
— Conheço um ou dois truques que podem ajudar — realçou Nakor.
— Não duvido — disse secamente Anthony, só que assentiu em concordância
com a sugestão de Ghuda.
Ghuda dirigiu-se então a Calis e Marcus. — Vós os dois podeis ser mais úteis
indo para o cordame com os vossos arcos. Selecionai os vossos alvos, pois se
aquele navio transporta guardas, de certeza que terão arqueiros no cordame.
— Os nossos arcos têm mais alcance do que qualquer besta — anunciou Calis.
Marcus concordou. — Se eles tiverem arqueiros com bestas, estarão mortos
antes de ficarmos em cima deles.
Ghuda falou então para todos. — Sei que será difícil, mas tentai descansar
agora o mais que puderdes. Quando a batalha se iniciar, tereis de ser o mais
astutos que conseguirdes, e um soldado cansado comete erros. — Dizendo isto,
agachou-se junto à antepara, envolveu-se no seu casaco e preparou-se para passar
pelas brasas.
Harry e Nicholas afastaram-se do mercenário. — Como é que ele consegue
fazer aquilo? — perguntou Harry.
Marcus meneou a cabeça em sinal de concordância. — Já passou por isto
antes, pelo que para ele não encerra grandes mistérios ou surpresas.
— Talvez — ripostou Harry —, mas acho que nem assim conseguiria alhear-
me de tudo e adormecer sem mais nem menos.
— Vi-te fazê-lo em Crydee — alegou Nicholas.
Harry viu-se forçado a anuir. Referiu que o extremo cansaço que
experimentaram – aparentemente sem perspetiva de repouso – ao ajudarem os
que foram deixados com vida após o ataque os colocara a todos num estado
melancólico. Até Brisa, que se mantinha ligeiramente à parte e em silêncio, não
fez piadas nem teceu comentários.
Nicholas observou o navio ao longe e pensou no que encontrariam quando se
desse a abordagem. Afastou os pensamentos desagradáveis e regressou ao seu
camarote, para tentar descansar um pouco.
B risa soltou um gemido de irritação. — Pensei que sem vento implicaria uma
acalmia2. — Olhando de lado para os seus companheiros, comentou:
— Este barulho está a deixar-me louca.
Nicholas olhou compreensivamente para Harry. Compreenderam o que sentia a
rapariga. Poucos minutos depois de ter sido aplicada a magia que lhes roubou o
vento, todos se aperceberam de uma enormidade de sons nos quais nunca haviam
reparado. O som da proa a cortar a água, o zunido dos cabos e o ruído dos
homens envolvidos nas suas tarefas eram os únicos sons notados quando fazia um
vento intenso.
Agora, os cabos caíam soltos dos mastros e as lonas das velas balouçavam nas
vergas. O navio balouçava indolentemente com a subida e descida das vagas
altas. O casco rangia com as tábuas e as madeiras a moverem-se e a fletirem.
Uma centena de roldanas e polés rodopiava em cabos soltos, embatendo em
mastros ou uns nos outros, provocando um estrépito constante. Estalaram tábuas,
chiaram dobradiças e esteve sempre presente o som distante da rebentação na
costa.
Os remadores puxaram, sem descanso, o barco ao longo de quase cinco milhas.
Nakor constatou que o feitiço acompanhava a deslocação do barco e não soube
como contorná-lo. — É um ótimo truque — foi tudo o que logrou comentar.
Durante o resto do dia, observaram frustrados o barco preto a velejar para
longe. Amos ordenou a substituição da tripulação do escaler e o navio vogava
agora ao sabor da corrente enquanto os do barco mais pequeno remavam para trás
para o entregarem aos seus substitutos. Praguejou e deu voltas pelo tombadilho
superior, antes de regressar para junto de Nicholas e dos outros na proa. — Há
algo que possais fazer? — perguntou a Nakor.
O pequeno homem encolheu os ombros. — Talvez — disse —, se tiver tempo
para pensar. Talvez não. É difícil de dizer.
— Há um feitiço que estudei — referiu Anthony —, mas nunca recorri a ele:
um encantamento de controlo do tempo. Mas pode não funcionar.
Amos fitou-o com um olhar ameaçador. — E que mais?
— É perigoso.
— Fazer truques que não se sabe fazer é sempre perigoso — realçou Nakor.
Amos cofiou a barba. — O que achais do feitiço em que estamos encurralados?
— É o mesmo tipo de magia… — ia dizer Anthony.
— Truque — interrompeu Nakor.
— …que me proponho a usar. Se nada fizermos, persistirá durante pelo menos
mais um dia, ou talvez até mais. Se o mago que o lançou for particularmente
dotado ou erudito, pode até durar uma semana.
Amos praguejou. — Que alternativa temos? — questionou.
— Se alcançarmos aquele barco antes de aportarem ou não muito depois,
temos alguma esperança de descobrir os prisioneiros — referiu Nicholas. — Mas
se chegarem ao porto uns dias à nossa frente, pode revelar-se impossível
encontrá-los.
Amos não pareceu satisfeito, mas assentiu em sinal de concordância. —
Precisais de algo em especial? — perguntou então a Anthony.
— Apenas de toda a sorte que conseguirdes reunir — respondeu Anthony.
— Quero todos os homens no convés, Sr. Rhodes — gritou Amos.
Quando a tripulação se reuniu, Amos dirigiu-se a eles desde a cobertura da
proa. — Homens, vamos tentar quebrar este feitiço que nos privou do vento. Não
fazemos ideia de quais serão as consequências, pelo que vos quero a todos nos
vossos postos prontos para desempenhar qualquer tarefa que vos seja requisitada.
— Mais não disse e o Sr. Rhodes ordenou aos homens que se preparassem para
um tempo tempestuoso.
Alguns dos marinheiros fizeram uma pequena pausa para uma oração
silenciosa dedicada às suas divindades, mas já estavam todos a postos quando
Amos fez um aceno na direção de Anthony.
— Nakor, se podeis dar-me uma ajuda, é chegada a hora — disse-lhe Anthony.
Nakor encolheu os ombros. — Não conheço este truque, pelo que não saberei
se o estareis a fazer corretamente — disse. — O melhor é fazê-lo e crer que os
deuses hoje não estejam demasiado zangados connosco.
Anthony fechou os olhos. — Na minha mente vejo a matriz e na matriz está
guardado o poder — começou. — A chave para a matriz é a minha vontade, e na
matriz a minha vontade torna-se o poder. — Repetiu o cântico e o volume da sua
voz baixou de intensidade, até que Nicholas e os outros deixaram de o ouvir. Os
lábios dele continuaram a mover-se e ele oscilou ritmadamente.
Nicholas sentiu uma leve lufada na face e olhou para os outros. Marcus e Brisa
olharam ambos para o mastro acima deles. Nicholas também olhou para cima e
viu as lonas começarem a agitar-se.
Com o que se assemelhou a um suspiro de alívio, o vento reanimou-se e o
barco começou a rodar quando o vento encheu as velas.
— Mareai as velas, Sr. Rhodes, e estabelecei uma rota na senda do navio preto!
O vigia avisou que ainda conseguia distinguir a quase impercetível forma do
enorme barco no horizonte a sul, e indicou a posição. — Todos os vigias nos
mastros — rugiu Amos. — Mantende-vos bem atentos aos recifes!
Anthony prosseguiu com o encantamento e Nicholas deitou uma olhadela a
Nakor. O homenzinho encolheu os ombros. — Eu disse que não conhecia este
truque.
O vento bateu com força. — Estai atento ao tempo, Sr. Rhodes — ordenou
Amos.
Nicholas olhou para trás deles. — Olhai! — gritou.
A nordeste, uma massa de nuvens escuras em movimento formava-se onde
antes estivera um céu azul. Como se alguém as tivesse despejado de uma taça, as
nuvens tombaram e espalharam-se atrás do barco, formando no ar uma linha de
fúria negra.
Uma gota atingiu a face de Nicholas e ele começou a ver chuva a cair das
nuvens, soprada na direção deles pelo vento cada vez mais intenso. Amos
ordenou que as velas fossem mareadas para uma tempestade e os homens
deslocaram-se atabalhoadamente no cordame, enfiando as velas maiores nos rizes
e mareando as restantes.
Lá em baixo, os homens saíram a correr e regressaram para começar a instalar
cabos de tempestade por todo o convés, enquanto outros passavam capas
impermeabilizadas para proteger da chuva. O céu escureceu conforme as nuvens
negras se espalhavam lá em cima e durante todo esse processo Anthony
permaneceu imóvel, de olhos fechados e mexendo os lábios.
Nicholas gritou sobre a ventania cada vez mais intensa. — Nakor! Será melhor
detê-lo?
— Como? — questionou o homenzinho. — Não imagino o que estará ele a
fazer.
— Às vezes, a melhor solução é perguntar diretamente — disse Ghuda.
Agarrou Anthony pelo ombro e chamou-o. O mago não respondeu. Ghuda
sacudiu-o com força e ainda assim não conseguiu despertar a atenção do mago
louro, agora completamente encharcado. — Se a tempestade não o desperta,
também não vão ser os meus gritos a fazê-lo.
— Fazei outra coisa qualquer! — exigiu Brisa, que pareceu então
tremendamente aterrorizada. O vento já duplicara a sua fúria e ondas maiores
estavam a sacudir o Raptor tão facilmente quanto uma criança faria a um
brinquedo, e os solavancos do convés, que parecia escapar-se-lhe de debaixo dos
pés, eram algo que ela não conseguia suportar. — Fazei algo!
Os marinheiros nos mastros apressaram-se a meter as velas nos rizes, pois
tinham demasiada lona para um vento que a cada segundo soprava mais forte.
Mastros e vergas rangeram em protesto face ao esforço quando o vento começou
a uivar por entre o cordame.
Nicholas juntou-se a Ghuda e sacudiu Anthony, chamando por ele. Um grito
oriundo da popa levou-os a todos a voltarem-se e a voz de Amos cortou a fúria do
vento como se fosse uma lâmina. — Banath, protegei-nos!
Estava a formar-se a nordeste uma vaga maior do que as anteriores. — Tudo
para bombordo, Sr. Rhodes. Colocai-o a favor do vento! — A seguir, gritou
instruções para quem estivesse ali próximo: — Agarrai-vos a algo e com muita
força! Se aquela vaga nos atingir no flanco, vamos perder um mastro, ou pior.
Nicholas agarrou-se à amurada ali perto e ficou, num misto de fascínio e
horror, a olhar para a água a erguer-se cada vez mais enquanto se aproximava
deles. Parecendo uma parede negra, a água avançou enquanto a tripulação se
esforçava por voltar a proa do barco para a frente, de modo a enfrentá-la.
A massa de água atingiu-os quando o barco ainda não estava devidamente
alinhado. O navio pareceu tentar escalar a água, com a proa a erguer-se no ar
conforme se inclinava para o lado, para estibordo. Brisa gritou, agarrada em
desespero a um cabo que se soltara de um gaviete. Marcus esticou o braço e
agarrou-a pela cinta, puxando-a para si enquanto se segurava a um cabo do
convés.
O barco continuou a tentar escalar a água e Nicholas ficou a olhar espantado
enquanto o mundo parecia inclinar-se. Quase caiu de costas, ou assim lhe
pareceu, quando o navio prosseguiu a sua tentativa de trepar a vaga, e de repente
foi tudo lançado para a frente.
Uns homens gritaram ao serem projetados do cordame, enquanto outros
vociferaram ao agarrarem-se ao que quer que tivessem à mão, para se salvarem.
Nicholas viu então o barco a descer na direção da depressão entre as ondas, num
ângulo tão inclinado quanto na ascensão, e compreendeu que a magia estava a
alterar as leis do mar: aquela onda era quase tão íngreme para lá da crista como
na frente. E então viu água a inundar a proa do barco.
O navio mergulhou na água e Nicholas percebeu naquele mesmo instante que
estavam condenados. Fechou os olhos quando a água lhe passou por cima,
atingindo-o como se fosse uma parede dura, ameaçando arrancar-lhe os braços
dos ombros enquanto se mantinha agarrado à amurada. Deu por si a sentir-se
repentinamente pesado quando o convés se elevou debaixo dele.
Desequilibrou-se e caiu, mas sempre agarrado à amurada enquanto era
fustigado debaixo de água, e de repente deu por si de novo fora da água, que se
espalhava em todas as direções enquanto a proa do barco irrompia à superfície do
mar.
Arquejando, Nicholas abriu e fechou os olhos para se libertar da água salgada e
olhou em volta. Ainda estava toda a gente à vista, agarrada a alguma parte da
embarcação. Ghuda mantinha-se firme como uma rocha a enfrentar a maré, a
segurar Anthony pela cinta com um braço e agarrado a um cabo com a outra mão.
O navio continuou a adernar para estibordo e então, quando pareceu estar prestes
a tombar de lado, inclinou de novo para bombordo e todos se agarraram
desesperadamente para se manterem a bordo. A seguir, endireitou-se e por
momentos pareceu ter parado de balançar.
— Olhai! — gritou um marinheiro ali perto.
Nicholas voltou-se para ver outra onda, maior do que a anterior, a encaminhar-
se na direção deles. — Fazei algo! — gritou para Ghuda assim que a proa
começou de novo a empinar.
Ghuda assentiu com a cabeça e largou Anthony. Antes que o mago se
afastasse, o grande mercenário atingiu-o com um soco em cheio no maxilar.
Anthony desabou inconsciente no convés.
O céu ficou de novo instantaneamente límpido, mas, para horror de Nicholas, a
parede de água continuou a aproximar-se deles enquanto a proa do Raptor se
erguia para a enfrentar. — Agarrai-vos — foi tudo o que conseguiu gritar quando
o barco mais uma vez iniciou a sua escalada impossível.
Escutaram-se de novo gritos e berros quando os homens foram mais uma vez
projetados dos seus postos e ecoaram pelo ar parado ruidosos estrépitos quando o
material atado ao convés se soltou e se esmagou contra o mastro ou o tombadilho
superior.
O navio trepou cada vez mais alto e desta feita Nicholas sentiu ainda mais
pavor, pois pôde ver tudo com nitidez, dado que já não havia chuva a cegá-lo.
Apenas um borrifo proveniente da montanha de água em aproximação encheu o
ar enquanto o navio se debatia para se manter à tona. Nicholas apercebeu-se
vagamente de Brisa aos berros e Marcus a praguejar e compreendeu que, desde a
vaga anterior, deixara de ver Calis.
E então, quando pareceu que o barco iria tombar para trás como uma tartaruga
de patas para o ar, ultrapassaram a crista da onda. Desceram precipitadamente
pelo outro lado e a voz de Nicholas juntou-se à dos restantes em gritos de terror
incoerentes. A ausência de magia privou o mar da sua força motriz sobrenatural
e, em vez de se seguir outra vaga em ascensão, o mar apresentou o seu
nivelamento normal. Sem que isso fosse esperado, a água estava a regressar ao
seu anterior estado calmo, em vez de prosseguir com o temido ataque devastador,
pelo que, após terem sobrevivido ao pior da vaga gigantesca, a sua dissipação
estava a acrescentar ímpeto ao mergulho descendente do barco. Nicholas lobrigou
os bancos de areia e os recifes no mar lá em baixo, como se estivesse a olhar
através de um vidro verde. Teve a certeza que não sobreviveriam ao mergulho,
pois não havia água suficiente para amortecer a proa do navio.
O leito do oceano aproximou-se velozmente e Nicholas sentiu a água a atingi-
lo como se fosse um golpe desferido pela mão de um gigante. Sentiu o barco a
desaparecer-lhe de debaixo dos pés quando a água chamou por ele, e depois o
embate doloroso da madeira nas rochas. O navio gemeu ao morrer, um uivo
impetuoso de madeira e ferro, ao qual se juntaram os gritos da sua tripulação.
E então Nicholas afundou-se sob a espuma branca. Sustendo a respiração o
melhor que pôde, sentiu-se a ser arrastado para o fundo. Cego devido à água que
tinha no rosto, Nicholas foi arrastado para baixo por uma força que nunca
experimentara. Foi levado para um mundo de sons e vibrações, passando de um
lado para o outro tão violentamente que perdeu a noção das direções. Esperneou
o mais que pôde contra a corrente quando o volume do barco criou um vácuo em
seu redor, sugando tudo o que estava ali perto.
De súbito, sentiu os pés a atingirem madeira, como se tivesse aterrado com
força no chão do seu quarto. Uma dor intensa percorreu-lhe o pé esquerdo e
arquejou. De repente, a boca e o nariz encheram-se de água. Nicholas sentiu os
pulmões a arder quando se engasgou com a água do mar. Debateu-se, com a água
a agitar-se à sua volta, obrigando-o a ajoelhar-se sobre o convés e a penetrar cada
vez mais fundo nos seus pulmões. Num chocante momento de lucidez, percebeu
que ia morrer. Uma inesperada sensação de paz tomou conta de Nicholas e
conseguiu sentir o sangue a ser bombeado nas suas têmporas e peito como se
fosse algo distante, e o ardor nos pulmões não passava de um reflexo débil da dor
que suportara pouco antes.
E então, de repente, deu por si a subir a uma velocidade vertiginosa, como se
uma mão gigante o tivesse içado. O navio saltara do leito do mar e subira de novo
à superfície graças ao ar encurralado no casco. Disparou para cima, percorrendo
os menos de quinze metros entre o leito do mar e a superfície.
O navio emergiu e Nicholas foi projetado no ar. Arfou, cuspindo a água
salgada que lhe entrara para os pulmões, e agitou os braços como se pretendesse
voar. E então o barco inclinou-se de novo com a ondulação e embateu na água.
Enquanto o barco se endireitava, Nicholas foi rastejando e nadando para a
amurada, onde se agarrou para se salvar. Como um animal ferido, o Raptor deu a
bombordo, com a água a encher o seu porão e a fazê-lo afundar.
Nicholas cuspiu e tossiu, e de seguida arquejou dolorosamente, para depois
voltar a tossir, vomitando o resto da água. Expeliu água salgada do nariz, limpou
a cara com uma mão e olhou em volta. Os três mastros tinham sido
despedaçados, com o mastro do traquete lançado sobre a verga grande e os outros
para baixo. O convés estava atulhado de destroços, corpos e algas do mar. Levou
praticamente um minuto até que tudo se imobilizasse.
Marcus e Calis agarraram-se ambos ao que sobrara de um cabo preso ao lado
de fora da amurada e Brisa estava abraçada a Marcus pela cintura. Ghuda ainda
segurava Anthony com força com um dos braços, enquanto o outro envolvia um
cabrestante. Escorria-lhe sangue pelo rosto, oriundo de uma ferida feia no couro
cabeludo. Nakor estava enredado no que sobrara de uma das enfrechaduras do
mastro do traquete e gritava para que alguém o soltasse.
E então Nicholas apercebeu-se de quem estava em falta. — Harry! — berrou.
De repente, sentiu uma contração no estômago e vomitou água do mar.
O barco gemeu e rolou e Amos saltou de debaixo de um mastro partido.
Levantando-se, olhou em volta para avaliar os danos. Aproximou-se de Nicholas
para lhe dar uma ajuda. — Que confusão — comentou. — De seguida, voltou-se
para a popa da embarcação. — Sr. Rhodes! — chamou.
Não obteve resposta. Amos acabou de examinar o seu barco e rapidamente
voltou para junto de Nicholas. — Reuni toda a gente no convés principal e
recuperai tudo o que puderdes. Juntai o máximo possível de pipas de água e odres
nos escaleres, assim como toda a comida que conseguirdes reunir. Estamos a
afundar.
— Há algo que possamos fazer? — perguntou Nicholas.
Amos abanou a cabeça e virou costas. Nicholas foi para o local onde Calis
estava a libertar Nakor do emaranhado de cabos que o prendiam. — Toda a gente
para o convés principal — indicou. — Vamos abandonar o barco.
Foi rapidamente passada palavra e Marcus e Nicholas dirigiram-se aos seus
camarotes, onde já se via a água a infiltrar-se por entre as tábuas do convés.
Deitaram a mão ao que puderam no meio da confusão e regressaram de pronto
para cima. Calis recuperara o seu arco e setas, ambos protegidos por um oleado,
mas o arco de Marcus perdera-se. Sabendo que estavam prestes a ficar à deriva
numa costa hostil, Nicholas abriu caminho por entre um amontoado de destroços
e corpos e entrou no camarote de Amos. Abriu o pequeno alçapão e pegou na
bolsa de ouro que Amos lhe mostrara quando Brisa fora levada a bordo. Já ia a
sair quando se lembrou de algo e, por entre a água ascendente, dirigiu-se à
secretária de Amos. Abriu-a e encontrou um diário de bordo com uma capa de
couro vermelho, no qual pegou. Guardando o ouro na túnica e o diário debaixo
do braço, dirigiu-se à escada que ligava o convés às camaratas e viu água a
rodopiar. O navio estava a afundar rapidamente.
Subindo a correr a escada até ao convés principal, Nicholas sentiu mais uma
pontada de dor no pé e quase deixou cair o diário de bordo. Chegou ao convés a
tempo de ver uns quantos marinheiros sobreviventes a saltarem da balaustrada
para a água. Amos estava de pé no convés e fez-lhe sinal para que se
aproximasse.
Ao chegar junto de Amos, Nicholas entregou-lhe o diário de bordo. —
Também retirei o ouro do vosso camarote. Provavelmente iremos precisar dele.
— Que os deuses vos abençoem, rapaz, pois não perdestes a lucidez. — Cingiu
o livro no peito. — Com isto, um dia poderemos regressar a casa.
Nicholas subiu à amurada e viu um escaler à espera apenas um metro e meio
mais abaixo. — Olhou para cima. — Amos? — chamou.
— Já vou, Nicky. — Deu uma última espreitadela ao convés. — Já vou.
Desceram para o escaler e Ghuda e um marinheiro empurraram com muita
força para afastar o mais possível o escaler do barco agonizante.
Quando estavam a menos de um quarto de milha de distância, o Raptor,
antigamente Águia Real, orgulho da armada krondoriana, rolou sobre si próprio e
afundou-se.
— Raios, detesto perder barcos — comentou Amos com amargura.
Nicholas não percebeu porquê, mas achou tremendamente engraçado aquele
comentário, e, por muito que se tivesse esforçado, não conseguiu evitar rir-se.
Tentou conter-se, mas num instante estava às gargalhadas. Amos ficou indignado,
mas Brisa e Ghuda imitaram Nicholas e nem Marcus conseguiu conter-se. Nakor
nunca pareceu necessitar de pretextos para se rir, pelo que nem sequer tentou
disfarçar o seu regozijo. Passado um minuto, apenas o vulto inconsciente de
Anthony e um furibundo Amos Trask não estavam a rir-se.
— Onde está a maldita graça? — exigiu saber Amos.
— Quantos barcos já perdestes? — perguntou Ghuda. Tinha o rosto coberto de
sangue, mas de resto parecia estar bem.
— Três — esclareceu Amos. E então, de repente, o seu rosto abriu-se num
largo sorriso e deu por si contagiado quando os outros no escaler não resistiram
ao escutar aquela resposta.
De fora da embarcação ouviu-se uma voz rouca. — Sem querer estar a estragar
a vossa diversão, não poderíeis dar-me aqui uma mãozinha?
Nicholas olhou borda fora e viu dentro de água um vulto conhecido agarrado a
um mastro partido. — Harry — gritou, e inclinou-se para fora para ajudar o
amigo a subir para o barco apinhado de gente.
— Pensei que te tinhas afogado — disse Nicholas.
Estremecendo devido a uma mágoa latente algures dentro de si, Harry não
resistiu a fazer um comentário. — Dá para ver que isso te provocou um grande
pesar.
A expressão de Nicholas tornou-se melancólica. — Estávamos só um pouco
apalermados por termos escapado — justificou-se.
Harry anuiu. — Fui lançado borda fora. Vi a proa a ressaltar vinda do fundo e
pensei que todos vós tivésseis morrido.
— Estou surpreendido por não ter morrido mais gente — confessou Amos. —
Olhai. — Apontou e eles voltaram-se para ver mais um par de escaleres a avançar
na direção deles. Quando ficaram ao alcance da voz, Amos gritou:
— O Sr. Rhodes está convosco?
— Vi um mastro arrancar-lhe a cabeça, Capitão — respondeu um marinheiro.
— Sem dúvida que morreu.
— Quantos sois vós?
— Vinte e sete neste barco e dezanove no seguinte, senhor.
— Provisões?
— Neste barco nada, senhor.
Um marinheiro gritou desde o segundo barco. — Temos uma barrica de porco
e outra com maçãs secas, Capitão.
Amos voltou a falar depois de olhar em volta. — Bem, precisamos de nos
aproximar da costa. Vai escurecer dentro de algumas horas e não quero vogar
inutilmente sem destino. — Gesticulou para que os outros barcos se
posicionassem. — Segui-nos — ordenou.
Ghuda e um marinheiro começaram a remar. — Calis — disse Amos —,
mantende-vos atento às rochas à vossa frente. Olhai para a rebentação e verificai
se há água a saltar em duas direções, pois, se assim for, é sinal de que haverá
rochas sob a superfície.
Remaram na direção das enormes escarpas. — O que haverá lá em cima? —
questionou-se Nicholas.
— Talvez bosques ou silvados, ou planícies — disse Calis. — Um lugar onde
eu possa caçar.
— Ou talvez lá haja uma cidade — arriscou Harry, ainda completamente
encharcado.
— Um lugar onde possa arranjar uma blusa limpa — disse Brisa.
— E algo para comer — arriscou Nakor, sorrindo sem grande convicção.
Abriram caminho por entre diversas rochas para acederem a um lugar onde a
água corria apressadamente e seguiram aquela pequena corrente até às vagas de
rebentação. Subindo até ao topo de uma onda, deixaram depois que esta os
embalasse até à praia.
— Rochas! — gritou de súbito Calis. — Virai à direita. — Assim que Ghuda,
sentado à esquerda, começou freneticamente a tentar recuar com o seu remo,
ecoou um som cortante e o barco deteve-se como se tivesse embatido numa
parede. Calis e Marcus foram lançados pela proa e Brisa gritou.
Uma espiral de rocha com pouco mais de dois centímetros projetava-se na proa
do escaler e já havia água a acumular-se em redor. — Temos um rombo — gritou
Amos. — Deitai a mão ao que conseguirdes e saltai borda fora e nadai!
Voltou-se e gritou para os outros barcos: — Batemos em rochas! Dai a volta!
O marinheiro que seguia na proa do segundo barco acenou em resposta para
demonstrar que compreendera e desviaram-se para a esquerda do escaler de
Amos, evitando-o.
Nicholas agarrou um par de odres e saltou por um dos lados. Nadou com
facilidade até ter pé, e depois avançou até à costa. Toda a gente chegou bem
enquanto os outros barcos tentavam acostar.
O segundo barco embateu de lado num baixio e os marinheiros praguejaram
por também eles terem sido obrigados a abandonar o barco. O terceiro barco foi
avisado a tempo e chegou à praia sem danos.
Amos deu ordens a alguns dos seus marinheiros para que nadassem até ao
segundo barco para verificar se poderia ser retirado das rochas. — Se não o
conseguirmos fazer, as ondas irão despedaçá-lo ali mesmo.
Mais de uma dúzia de homens, todos eles exaustos, avançaram com
dificuldade através da rebentação e nadaram até ao segundo barco. Empurraram e
puxaram, tentando mover o enorme escaler, mas sem resultado.
Por fim, Amos fez sinal para que regressassem. Quando estavam de novo na
praia, o marinheiro que falara com Amos desde a proa daquele barco, disse:
— Entrou água, Capitão, está tão preso àquele rochedo como um abutre a um
cão morto.
— Raios. — Amos voltou-se e inspecionou as imediações. As sombras das
enormes escarpas que se empinavam sobre eles já haviam atingido a água, e
sentiu um certo frio. — Tentai encontrar madeira para uma boa fogueira — disse,
dirigindo-se a Nicholas, Marcus, Calis e Brisa. — Vai ficar frio muito em breve e
não temos uma única manta. — Fez as contas rapidamente: quarenta e nove
soldados e marinheiros, e Nicholas e os seus companheiros, cinquenta e oito
sobreviventes no total; de uma companhia de mais de duzentos. Entoou uma
pequena oração a Killian, a Deusa dos Marinheiros, pedindo-lhe clemência para
os homens que perdera.
Após um suspiro de resignação, dirigiu-se à sua tripulação. — Espalhai-vos e
vede se deu à costa algo que tenha utilidade. — Olhou em volta. — Ainda temos
um par de horas de luz, portanto, vamos ver onde estamos.
Os homens obedeceram e a maioria espalhou-se pela praia, alguns avançando
para norte, outros para sul, ao longo das rochas. Uns quantos, demasiado feridos
para caminharem, sentaram-se simplesmente na areia, em silêncio no seu suplício
encharcado.
Amos viu-os partir e falou com Nakor e Ghuda, que ainda sustinha o
inconsciente Anthony. — Despertai-o se possível, mas ajudai a vasculhar as
cercanias. Tenho a sensação de que vamos necessitar de tudo aquilo a que
conseguirmos deitar a mão caso pretendamos sobreviver.
Ghuda pousou o mago inconsciente no chão e sacudiu-o, mas ele não se
moveu. Após um momento, Ghuda levantou-se e deixou-o ficar, juntando-se aos
outros que procuravam algo que pudesse ter dado à costa. Nakor voltou-se para
Amos. — Lamento pelo vosso barco — disse-lhe.
Amos assentiu. — Também eu.
Nakor enfiou a mão na mochila, mas retirou-a abruptamente, como se tivesse
sido picado. — Oh, isto é mau — afirmou.
— O que é? — quis saber Amos.
— Há um mercador em Ashunta que vai ficar muito aborrecido quando
descobrir que a sua fruta foi arruinada por água salgada. — Sacudindo
pesarosamente a cabeça, o homem de pernas arqueadas afastou-se do Capitão e
começou a vasculhar no meio das rochas.
Sozinho, Amos voltou-se para o local onde o seu barco jazia tombado de lado
na água, afundando-se lentamente para lá da linha de rebentação. Sentindo uma
tristeza que ia para lá do que conseguiria descrever, manteve o olhar fixo no
barco enquanto ele desaparecia para lá das ondas.
2 No original surge na realidade o termo «becalmed», que tanto significa «privado de vento»
como «acalmado». É um jogo de palavras que em português não resulta. (N. do T.)
13
Escalada
O
fogo era pouco intenso.
Brisa abraçou-se a si própria numa tentativa vã de se manter
quente, pois não lhe bastavam as brasas quase extintas. Outros
amontoaram-se em redor de duas outras pequenas fogueiras ou dedicaram-
se a andar para a frente e para trás pela praia tentando manter-se aquecidos.
No dia anterior, haviam explorado a costa para cima e para baixo. A cada
curva na costa nada mais encontraram do que mais praias e rochas, e uma
aparentemente interminável parede de pedra nas suas costas. A reduzida
quantidade de madeira que encontraram já havia sido consumida, e se por
ali os dias eram abrasadores, à noite fazia um frio de rachar. Uma boa
quantidade de destroços tinha dado à costa, pelo que foi possível montar um
coberto feito a partir das velas e de mastros partidos, mas a madeira que
surgira na praia oriunda do barco estava demasiado húmida para fazer mais
do que aguentar um pouco o fogo. O porco salgado estragara-se, mas as
maçãs secas estavam comestíveis. Havia um bom suprimento de água e
suficiente material resgatado para permitir a uns quantos marinheiros pescar
nas rochas. Alguns peixes ficavam encurralados em poças quando a maré
descia, mas sem um tacho para os cozinhar, de pouco serviam. Quase não se
viam aves marinhas e as poucas que apareciam a voar sobre as cabeças
deles não davam a ideia de terem ninhos ali perto.
Anthony recuperara a consciência na manhã seguinte, recordando-se de
pouco do que sucedera depois de ter tentado anular o feitiço que os
apanhara. Ficou horrorizado e abalado ao descobrir que se perdera o navio e
só pareceu recuperar do choque quando se tornou óbvio que eram
necessários os seus talentos de curandeiro.
Amos foi ter com Nicholas quando estava a despontar a segunda manhã.
— Estamos a morrer — disse em voz baixa. — Se há no mundo alguma
faixa costeira menos hospitaleira do que esta, nunca a vi.
— Como é que desejais proceder? — perguntou Nicholas.
— Um escaler não vai conseguir transportar cinquenta e oito pessoas.
Temos duas opções. Ou escolhemos uma equipa para tentar remar para sul,
passar as escarpas, até descobrir nas imediações qualquer passagem para a
civilização, regressando com ajuda para os que ficarem, ou tentamos todos
escalar a vertente da escarpa. Ou ambas.
— Não, mantemo-nos unidos — disse Nicholas.
Amos pareceu estar disposto a contestar, mas acabou por sacudir a
cabeça. — Tendes razão. Uma coisa é certa: não podemos ficar aqui.
Morreremos à fome.
— É melhor começarmos a procurar um caminho para subir — disse
Nicholas.
Amos assentiu. — Sou o mais velho dos que aqui estão, e não me agrada
a escalada, mas é a escarpa ou nada.
Nicholas suspirou. — Não sou muito experiente em escaladas. O meu
pé… — Voltou-se para Calis e Marcus. — Vós os dois reconheceríeis um
caminho por estas falésias acima se o vísseis?
Marcus franziu o sobrolho, mas Calis assentiu e levantou-se. — Por
onde?
— Ide por aquele lado — indicou Nicholas, apontando para norte.
Depois, voltou-se para Marcus. — E vós, ide no sentido oposto. Não vos
afastais mais longe do que meio dia de viagem. Quando o Sol estiver lá no
alto, deveis regressar.
Ambos assentiram e puseram-se a caminho, andando com determinação,
mas contendo-se no ritmo para não esgotarem forças que não lograssem
restaurar. Toda a gente estava com fome e Nicholas tinha a noção de que se
não houvesse em breve comida fresca, iriam começar a morrer. Havia pelo
menos uma dúzia de marinheiros feridos ou doentes em consequência do
naufrágio, tanto por causa de água nos pulmões como de lesões internas.
Nakor e Anthony esforçaram-se imenso para os pôr confortáveis, mas
pouco havia a fazer sem o saco de curativos de Anthony. Nicholas sentiu
compaixão deles; tinha dores e pisaduras piores do que as que até então
alguma vez sofrera e sabia que os menos afetados entre eles estavam tão
maltratados quanto ele. Ficou surpreendido por não haver mais ferimentos
graves, mas concluiu amargamente que quem quer que tivesse sido
gravemente ferido durante o naufrágio não sobrevivera.
Enquanto Calis e Marcus estiveram fora, os outros elaboraram um
inventário do pouco que haviam recuperarado dos restos do naufrágio que
tinham dado à praia. Dispunham apenas de umas quantas armas: Nicholas e
Ghuda tinham as suas espadas, Calis o seu arco e estavam na posse de uma
série de punhais e facas. Havia um saco de biscoitos secos que sobrevivera
num pequeno barril que dera à costa, para juntar às maçãs secas. Havia
cordas espalhadas pela praia, pelo que Nicholas pôs os homens a recolhê-
las e a separarem as que pudessem ser usadas para trepar as escarpas, pondo
de parte as menos fiáveis.
Nicholas ficou aflito ao constatar que o inventário levou menos de uma
hora a ser feito. Ignorando a sua própria fome, sentou-se em frente à
fogueira já extinta e aguardou.
Brisa aproximou-se e sentou-se ao lado dele; fitou Nakor e Harry, ambos
a tentarem recuperar forças através de um sono retemperador.
Ela voltou-se para Nicholas. — Posso perguntar-vos uma coisa?
Ele fez sinal que sim. — O quê?
— O Marcus… — disse ela, após o que se calou.
— O que tem?
— Conhecei-lo bem… — retomou a palavra.
Nicholas interrompeu-a. — Mal o conheço.
— Achei que fôsseis irmãos — revelou ela.
— Pensei que soubesses — referiu Nicholas.
— Soubesse o quê?
— Quem é o Marcus.
— É o filho de um duque qualquer, pelo menos foi isso que me contou o
Harry. Não percebi se deveria acreditar nele.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Ele não é meu irmão — informou. —
É meu primo.
— Mas dissestes que mal o conhecíeis — contrapôs Brisa.
— E é verdade. Só o conheci umas poucas semanas antes de te conhecer.
Eu não vivo na Costa Extrema.
— Onde viveis?
— Em Krondor — respondeu ele.
Ela assentiu. — Tive a esperança de que pudésseis falar-me dele.
Nicholas teve pena da rapariga, pois compreendeu que o interesse dela
em zombar com Marcus ocultava um sentimento mais profundo. — Não sei
o que possa dizer-te. Nós, na sua maioria, somos de Krondor. Talvez um
dos soldados…
Ela encolheu os ombros. — Não interessa. De qualquer modo,
provavelmente não conseguiremos escapar daqui.
— Não digas isso — exclamou Nicholas. O seu tom foi cortante e
imperativo.
Ela fitou-o com os olhos arregalados, e entretanto Harry sentou-se, ainda
ensonado. — O quê?
Ele percebeu que tinha falado alto. — Quero dizer, não o digas, mesmo
que o penses. O desespero é uma praga. Se desistirmos aqui, acabaremos
por morrer. Não há outra alternativa que não seja seguir em frente.
Brisa deitou-se para trás, junto ao ressonar de Nakor. — Eu sei — disse.
Nicholas fitou a praia de uma ponta à outra, constatando que ainda era
demasiado cedo para que Marcus ou Calis regressassem. Só lhes restava
esperar.
Bandidos
O
vento começou a soprar.
Nicholas estava deitado no chão a dormir uma sesta, com um
pau encaixado no braço, que servia de suporte a um abrigo
improvisado por cima dele. Ghuda insistira para que toda a gente
encontrasse um modo de se manter à sombra durante o dia, recorrendo ao
que quer que tivessem à mão e mantendo um espaço vazio entre o material
e a pele. Todos contribuíram com a roupa que possuíam, com exceção das
túnicas e das calças. Todas as vestes, capas grandes e pedaços de velas –
tudo o que os protegia do implacável frio noturno, até sacos de comida –
foram recuperados para preparar coberturas para a cabeça. Até retiraram as
roupas aos que morreram na primeira noite no deserto. Ao tentar repousar
no segundo dia de calor implacável, Nicholas compreendeu por que razão
Ghuda se revelara tão insistente em vincar que a proteção dos vivos era de
longe mais importante do que qualquer preocupação com a dignidade dos
mortos. Todos precisavam de ter as cabeças à sombra e de proteção para os
pés. A areia era mais quente do que Nicholas alguma vez imaginara.
O deserto não tinha nada a ver com aquilo que Nicholas esperara. Tal
como a maioria dos habitantes do Reino, sabia da existência do Deserto de
Jal-Pur na fronteira mais a norte do Império do Grande Kesh, mas nunca o
vira. Imaginara-o como sendo uma grande extensão de areias instáveis.
Em vez disso, aquele deserto era praticamente constituído por pedras
rachadas e superfícies lisas de sal, com suficientes restos de areia no meio
que levaram Nicholas a ficar agradecido por não ser tudo areia. Sempre que
avançavam pela areia, ouvia-se um ruidoso gemido de pelo menos metade
dos elementos do grupo. A viagem durou mais do dobro do tempo previsto,
pois as pernas exaustas tinham frequentemente de procurar onde pousar os
pés, para não pisarem em falso.
O vento era enervante; era uma coisa seca, que sugava a humidade do
corpo mesmo estando frio. E havia sempre poeira, uma areia de tal forma
fina que por mais que estivessem tapados, não era possível mantê-la
afastada do rosto, cabelo e roupas. A fricção constante da poeira fina
causara arranhões nos braços e pernas, assim como levara a que, ao
mastigarem, sentissem um ranger nos dentes.
Tinham partido há duas noites e progrediram lentamente, mas com
firmeza. Ghuda assumira a tarefa de circular por entre o grupo, de modo a
assegurar que ninguém parava ou quebrava o ritmo da marcha, nem bebia
antes de ser permitido. Todos sabiam que quem quer que caísse seria
deixado para trás. Não havia simplesmente força suficiente entre eles para
transportar quem quer que fosse.
À noite no deserto estava um frio de rachar tão cortante como o que
haviam experimentado na altura em que tinham pernoitado na praia, e
caminhar mantinha toda a gente quente, mas a exposição aos elementos
estava a cobrar o seu preço. E, então, quando o Sol se erguia, o calor
aparecia em ondas.
Nicholas recordou a véspera. De início, o céu iluminou-se, e quando o
Sol se colocou por cima do planalto, secou tudo. Assim que o Sol passou
para lá dos penhascos, Ghuda ordenara uma paragem. Acocorara-se e
sacara de um dos paus – um galho comprido cortado de uma planta do oásis
– e mostrara como se deveriam sentar muito direitos com o pau a suster a
capa sobre a cabeça, como se fora uma tenda. Depois, apressara-se a
verificar se toda a gente estava a seguir bem as suas instruções.
Quando o Sol se pusera na noite anterior, Ghuda ordenara a todos que se
levantassem, indicando que deveriam perscrutar o horizonte à procura de
qualquer sinal de água, fossem pássaros a voar ou alterações no padrão do
calor. Não viram vestígios dela e constataram a morte de mais três homens.
Eram então quarenta e três. Nicholas sabia que quando se levantassem para
a terceira noite de caminhada, era bem provável que houvesse mais homens
a não despertar. Sentiu uma dor sombria de frustração por não ser capaz de
fazer mais por eles.
Nicholas dormitou um pouco, mais foi incapaz de dormir. Quando por
fim caiu momentaneamente num sono mais profundo, o movimento do pau
despertou-o. Uns quantos tinham tentado escavar buracos ou prender os
paus com pedras, mas estavam assentes sobre crosta calcária, tão dura
quanto pedra. Ghuda garantira que, apesar de se sentirem cansados,
descansariam o suficiente durante o dia. Mas Nicholas já começava a
duvidar. Quando espreitou para a superfície do deserto, ondas de calor
elevaram-se num brilho tremeluzente que distorceu o horizonte.
Nicholas deixou a sua mente vaguear enquanto tentava adormecer. O
deserto fê-lo recordar a história do seu irmão Borric de ter sido levado
como prisioneiro através do Jal-Pur, mas nada do que ele contara a Nicholas
se podia comparar àquilo. Desde que haviam partido do oásis, não
avistaram sinais de vida no planalto. Nicholas pensou nos irmãos e do
quanto haviam mudado durante a sua jornada à corte da Imperatriz na
Cidade de Kesh. Tinham caído no meio de uma rebuscada tentativa de
destruir a família imperial que consistira em empurrar o Império para uma
guerra com o Reino. Borric fora capturado por esclavagistas e escapara, e
durante as suas viagens, conhecera Ghuda e Nakor. Houve também uma
outra pessoa, um rapaz chamado Suli-Abul, que fora morto ao tentar ajudar
Borric. Aquela experiência levara Borric a ter em mais consideração o seu
irmão mais pequeno, com quem até então gozara sem piedade. Nicholas
sentiu uma pontada de nostalgia e despertou por completo. Sentiu-se outra
vez, e de repente, muito jovem, um rapazinho no seio da sua família,
escudado das duras realidades do mundo por uma mãe afetuosa e gentil e
por um pai forte e protetor.
Nicholas fechou os olhos e tentou desesperadamente dormir. As suas
memórias desvaneceram-se e rapidamente deu por si a pensar em Abigail,
mas no seu sonho ele não conseguiu formar muito bem o rosto dela. Sabia
que era bela, mas os pormenores já eram algo incertos na sua memória e de
repente já lhe parecia uma criada de Krondor ou uma rapariga a que deitara
o olho na povoação de Crydee.
Uma voz intrometeu-se no seu sonho acordado. — Está na hora.
Sacudindo-se para despertar, Nicholas desentorpeceu o corpo e levantou-
se, enrolando a pequena capa solta em redor dos ombros. Pegou no pau com
a mão esquerda. Sem que lho tivessem dito, começou a perscrutar o
horizonte, em direção a poente, à procura de qualquer sinal de aves que se
dirigissem à água. Os outros olharam para diferentes quadrantes, mas
ninguém anunciou a presença de aves.
Nicholas olhou em redor deles e reparou que mais dois vultos
permaneciam deitados no chão. Consciente, com amargura, do que aquilo
significava, foi examinar os dois e por momentos sentiu uma pontada de
medo quando se apercebeu de que um deles era Harry. Ajoelhou-se junto ao
seu amigo e sentiu um tremendo alívio quando escutou um leve ressonar. —
Está na hora — disse-lhe, sacudindo-o ligeiramente.
Harry despertou lentamente, piscando os olhos inchados pelo calor e pela
falta de água. — Huh?
— Está na hora de partir.
Harry ergueu-se relutantemente.
— Não sei como é que consegues adormecer por completo — comentou
Nicholas.
— Quando te cansas a sério, dormes — respondeu Harry secamente.
— Mais um morto — anunciou Ghuda, que apareceu junto deles.
Eram agora quarenta e dois. Outros rapidamente os despiram e passaram
as roupas para os que necessitavam de uma proteção adicional face ao sol.
Ghuda passou um cantil de pele a Nicholas, que com um sacudir de cabeça,
deu a entender que não precisava.
— Bebei — ordenou o mercenário. — É crime beber mais do que a nossa
parte, mas é suicídio não beber quando é hora. Já vi homens recusarem a
sua ração e morrerem duas horas depois, antes de terem oportunidade de a
pedirem.
Nicholas pegou no cantil e no instante em que a água lhe tocou nos
lábios, apesar de quente e azeda, começou a beber. — Apenas duas goladas
— avisou Ghuda.
Nicholas obedeceu e passou o cantil a Harry, que também bebeu a sua
porção, para depois fazê-lo passar pelos outros. Nicholas estava satisfeito
por os homens serem da Armada Real, pois a disciplina deles impedia que
uma situação de desespero se tornasse irremediavelmente perdida. Sabia
que todos eles desejavam sorver o máximo de água possível, mas todos
seguiram as ordens e limitaram as suas doses a duas goladas.
Nicholas deitou uma olhadela a Amos, que estava imóvel a observar três
homens a colocarem pedras sobre o morto. Nicholas tinha noção de que ele
vira perecer muitos dos seus tripulantes ao longo dos anos, mas estava
duplamente perturbado com a morte daqueles homens, que haviam largado
de Krondor com a perspetiva de uma viagem simples até à Costa Extrema
para depois regressarem para o casamento do almirante deles.
Nicholas tentou imaginar como estaria a sua avó a suportar a ausência de
Amos. Tinha a noção que a notícia dos ataques já chegara por aquela altura
a Krondor e o mais provável era o seu pai estar a comandar uma frota de
navios de auxílio rumo à Costa Extrema, pronto a percorrer os Estreitos das
Trevas mesmo face à eventualidade de o clima do fim do outono e início de
inverno os poder travar. A ajuda chegaria também pela Passagem Norte
através da Cordilheira das Torres Cinzentas, desde Yabon.
Nicholas pensou então em como é que estaria o seu tio Martin. Estaria
ainda vivo? Ao pensar em Martin, voltou-se para Marcus. Este mudara
radicalmente o seu comportamento face a Nicholas desde que haviam
escalado os penhascos. Apesar de ninguém poder apontar o seu primo como
um homem expansivo, Nicholas conseguia aperceber-se da diferença nele
quando falavam. Poderiam até nunca vir a ser amigos, mas já não eram
rivais. Ambos tinham a noção de que quem quer que Abigail escolhesse,
iriam respeitar a opção.
Ghuda fez sinal e puseram-se em marcha. Avançaram para sul, pela
mesma razão por que haviam viajado nessa direção ao longo da praia; sem
nenhuma opção que se revelasse mais vantajosa, optaram pela rota que os
levava mais diretamente ao seu destino principal.
Uma hora após o pôr-do-sol, o ar já estava frio. Os caminhantes
começaram a envolver-se nos seus conjuntos de camisas, túnicas e capas.
Tentaram reduzir ao mínimo as pausas para descanso, mas era-lhes
impossível avançar continuamente durante a noite. Um facto que Amos
deduziu pela posição das estrelas e pelo nascer e pôr do sol era que as
estações do ano ali eram efetivamente ao contrário, e os dias estavam a
alongar-se, consoante a primavera se aproximava do verão — o que
implicava que os dias se iriam tornar mais quentes. Nicholas calculou que
ao ritmo que avançavam, caso não encontrassem abrigo e água no prazo de
dois dias, iriam todos morrer.
Marcharam longa e penosamente pela noite fora.
Revelação
N
icholas fez sinal.
Vários homens rapidamente se ordenaram em posições defensivas
atrás das carroças, enquanto outros sacavam as espadas e os arcos aos
bandidos mortos. Marcus juntou-se a Nicholas, tendo na mão um arco. — Não
faz o meu género — observou Marcus, testando a corda do arco —, mas
servirá.
— Jeshandi! — disse Tuka, apontando para a dúzia de homens a cavalo.
— São amigos? — perguntou Nicholas.
O homenzinho pareceu nitidamente preocupado com a pergunta. — Haver
um tratado de paz em função do Encontro da Primavera, onde todos podem ir e
negociar. Mas o encontro terminou e estamos do lado deles do rio.
— Do lado deles do rio? — questionou Harry, empunhando um gládio já
bem gasto.
Tuka assentiu com a cabeça. — Do Pouso de Shingazi para norte, e depois
para ocidente até onde o Rio da Serpente se aproxima para se juntar ao Vedra, e
do rio até ao deserto, as pradarias são o lar dos jeshandi. Ninguém pode passar
sem a autorização deles. Por vezes, a hospitalidade deles não tem limites, mas,
noutras alturas, podem baixar ao nível de uns verdadeiros salteadores. Aquele
que está à frente, com as borlas vermelhas sobre a rédea, é um Hetman, ou seja
um vulto muito importante.
— Bem, podemos esperar o tempo que eles esperarem — referiu Nicholas.
E então apareceram mais dois grupos, cada um deles composto por uma
dúzia de homens, nas extremidades norte e sul da crista. — Afinal, talvez não
possamos esperar — corrigiu Nicholas.
Trepou para cima de uma carroça e elevou bem alto a sua espada, para que a
pudessem ver bem. E então, ostensivamente, embainhou-a no flanco. Nicholas
saltou da carroça. — Ghuda, vinde comigo — disse. — Marcus, vós e o Calis
estai a postos para nos darem cobertura se tivermos de regressar a correr.
Ghuda juntou-se a Nicholas e os dois encaminharam-se até um ponto a meio
caminho entre as carroças e a crista. Dois cavaleiros saíram de junto dos outros
e lentamente desceram a crista.
Quando se aproximaram, Nicholas observou-os atentamente. Cada um dos
cavaleiros transportava um arco e uma aljava, assim como um conjunto de
espadas e facas. Usavam compridas capas escuras sobre as túnicas e calças, e
nas cabeças traziam chapéus cónicos índigo ou vermelhos, alguns com
coberturas para o pescoço. Tinham os rostos protegidos do sol por panos que
deixavam expostos apenas os olhos.
Quando chegaram junto de Nicholas e Ghuda, obrigaram os cavalos a seguir
a passo. Nicholas bateu com a mão na testa, coração e estômago, imitando os
modos dos homens do deserto de Jal-Pur, e proferiu a saudação formal deles:
— Que a paz esteja convosco.
— Tendes um sotaque terrível — disse um dos cavaleiros, falando na
variante de keshiano que parecia ser a língua comum naquela terra. Apeou-se
do cavalo. — Mas tendes boas maneiras — acrescentou. A seguir acenou. —
Que a paz esteja também convosco. — Aproximou-se então de Nicholas, que
entreviu um par de olhos azuis brilhantes sob a cobertura índigo. — O que se
passa ali? — perguntou, apontando para as carroças.
Nicholas contou-lhe do ataque e de como se apossaram das carroças. Quando
terminou, declarou:
— Estávamos a deixar as terras dos jeshandi e não pretendíamos
desrespeitar-vos. Esta caravana seguia o seu caminho vinda do Encontro da
Primavera.
Esperou ter sido convincente na sua pretensão de que qualquer vínculo de
paz que tivesse efeito no encontro perdurasse até que os lá presentes
abandonassem o território jeshandi.
O cavaleiro que falou retirou a sua proteção do rosto e Nicholas viu um rosto
jovem, dominado por maçãs do rosto salientes e olhos penetrantes. Algo
familiar despertou a atenção de Nicholas, que de repente se apercebeu do que
se tratava.
Virou-se para as carroças. — Calis! É melhor virdes até aqui — chamou.
— O que foi? — perguntou Ghuda, enquanto o jovem elfo saltava da
carroça.
— Olhai para o rosto dele — disse Nicholas.
— Gozais com a minha cara? — perguntou o cavaleiro. Ficou tenso e
pareceu estar disposto a resolver de imediato a questão.
— Não, só não esperávamos encontrar por aqui alguém da vossa espécie,
nestas circunstâncias.
O tom de voz do cavaleiro tornou-se nitidamente beligerante quando se
inclinou para a frente e fitou Nicholas nos olhos. — E o que pretendeis dizer
com «alguém da vossa espécie»? — indagou.
Calis chegou junto deles a tempo de ouvir a última troca de palavras, e
interveio. — Ele quis dizer que não esperava encontrar aqui um dos edhel.
O cavaleiro pareceu confuso. — O que quer que seja que essa palavra
signifique, devereis dirigir-vos a mim pelo meu nome e título.
Calis não conseguiu ocultar o seu espanto. — O vosso nome e título?
— Sou Mikola, Hetman dos Cavaleiros Zakoshi dos Jeshandi.
Nicholas fez uma vénia, distraindo o Hetman da perplexidade de Calis. —
Eu sou Nicholas, Capitão desta companhia e inimigo de nenhum homem que
pretenda ser meu amigo.
— Bem dito — disse Mikola, com um amplo sorriso. — Mas não me
interessam os problemas dos homens da cidade. — Apontou um dedo acusador
a Nicholas e o sorriso desvaneceu-se. — O que me preocupa é quem me vai
pagar pelas minhas cabras!
— As vossas cabras? — inquiriu Nicholas.
— Com certeza. Não vistes as tatuagens nas orelhas das cabras adultas? Não
reconhecestes a minha marca? Não me digais que não reparastes quando as
chacinaram e comeram. E o que fazíeis tão perto das bordas do mundo? — Sem
esperar a resposta de Nicholas, prosseguiu: — Acamparemos aqui para discutir
muitas matérias. Mas, acima de tudo, discutiremos o vosso pagamento das
nossas cabras.
Voltou a montar o seu cavalo e subiu a elevação, gritando ordens aos seus
companheiros.
— O que é que se passou aqui? — quis saber Ghuda.
— Ele é um elfo — disse Nicholas.
— Não reparei em nada, e as orelhas dele estavam escondidas — referiu
Ghuda. — Além disso, antes do Calis, nunca tinha visto nenhum.
Calis anuiu. — Podeis não ter conhecido ninguém do povo da minha mãe,
mas ele é um elfo. Pertence aos edhel, e mais, ele não sabe o significado da
palavra. — Calis procurou o cavaleiro com o olhar, claramente preocupado.
U ma hora após Nicholas ter saído de junto da Ranjana, uma das criadas
tentou deixar a carroça, mas o guarda impediu-a. Isso gerou uma ruidosa
discussão entre o guarda e duas das raparigas e obrigou Nicholas a lá regressar.
Já sem paciência para aquilo, com mão firme empurrou as raparigas outra vez
para dentro, fechou a porta e ordenou que esta fosse barrada.
Quando saiu, reparou que Brisa estava a observar com uma expressão que só
poderia ser considerada de intoleravelmente bem divertida. Com a contenda
que se adivinhava iminente, Nicholas não estava com disposição para
enfatuamentos. — Dá-me um pretextozinho e enfio-te lá dentro com elas.
Brisa desembainhou a adaga e passou a ponta pelo polegar, só para se armar.
— Oh, por favor, bravo Capitão. Por favor.
Nicholas, enfastiado, gesticulou para que ela se afastasse. Ouviu-se um grito
oriundo do acampamento dos jeshandi e de repente gerou-se uma grande
agitação.
— Estão a levantar o acampamento deles — anunciou Amos, que veio ter
com Nicholas.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Também é melhor pormo-nos a caminho.
O Tuka diz que se avançarmos todo o dia e mais uma hora já noite dentro,
poderemos chegar a esse tal pouso pelo pôr-do-sol do dia seguinte.
Amos coçou o queixo. — Discuti isso com o Ghuda, mas acho que seria
mais sensato se não esticássemos tanto a corda e aparecêssemos antes pelo
amanhecer do dia a seguir.
Nicholas ponderou a proposta. Era um truísmo de batalha que lhe fora
incutido pelos seus professores que os homens estavam na sua pior forma no
despontar do dia. Ainda adormecidos ou cansados devido à longa, aborrecida e
tranquila vigilância, estavam pouco alertas ao nascer do Sol. — Falarei com
Ghuda.
Uns minutos depois de ter sido dada ordem para avançar, todas as tendas dos
jeshandi já haviam sido desmontadas e a comunidade estava em movimento.
Nicholas ficou impressionado. Antes de a sua pequena caravana estar a postos,
já eles tinham desaparecido completamente da vista.
O calor ao longo do rio era mais suave do que sobre o planalto, mas não
muito. E o que fora conquistado em termos de temperaturas mais moderadas,
era mais do que subjugado pelas picadelas de moscas implacáveis. Nicholas
viajou na segunda carroça, a da Ranjana, acompanhado por Ghuda, que se
revelou um homem experiente a conduzir cavalos. Assim que as quatro
carroças se puseram em movimento, Nicholas escutou as queixas da Ranjana a
ecoarem desde a carroça dela. A rapariga já parecera ter esquecido que, ainda
poucas horas antes, dezasseis bandidos a tinham feito prisioneira e que um
morrera por ter desejado deleitar-se com os corpos delas.
Decorridos uns minutos, Nicholas sobressaltou-se ao sentir um toque no
ombro. Quase saltou da carroça, mas manteve-se suficientemente composto
para se virar e deparar com um rosto a olhar pela abertura na lona que havia à
frente. — A minha senhora queixa-se do calor — disse uma das criadas.
— Ótimo — comentou Nicholas. Algo na rapariga o irritara mais do que
qualquer outra pessoa que ele já tivesse conhecido, além da sua irmã mais
velha, que se revelara uma verdadeira praga desde que ele era um rapazinho.
Mas até Elena se tornara num ser humano razoável desde que Nicholas lhe
deixara de pregar partidas de miúdo.
Pouco depois, a queixa repetiu-se. Nicholas voltou-se e viu uma outra
rapariga na janela. — Se a vossa senhora tivesse modos para vir pedir-me
pessoalmente e com simpatia para baixar as laterais da lona, eu poderia pensar
no assunto.
Ouviu-se no interior um burburinho e voltou a aparecer a primeira das
criadas. — A minha senhora solicita, com toda a sua humildade, que sejam
removidos os flancos para que possa entrar mais ar.
Optando por não deixar o assunto avançar mais, Nicholas saltou para fora da
carroça. Dado que avançavam a um ritmo lento para permitir aos que seguiam a
pé que os acompanhassem, não lhe foi difícil caminhar ao lado e desatar as
cordas que prendiam os flancos de lona. Puxou então as cordas que sustinham a
lona e desamarrou-as.
Uma criada particularmente bela inclinou-se para o exterior. — A minha
senhora agradece ao bravo Capitão.
Nicholas lançou um olhar levemente irritado sobre o ombro e viu a Ranjana a
olhar para lá da estrada, ignorando-o. Concluiu que a criada optara por ser
educada em nome da Ranjana.
O dia decorreu sem incidentes e Nicholas avaliou a situação em que estavam
envolvidos, discutindo com Ghuda diversas opções.
— Há uma coisa relativa àqueles rapazes que me preocupa — disse a dada
altura o velho combatente.
— O quê? — perguntou Nicholas.
Ghuda zurziu as rédeas. — Não eram aquilo que pareciam ser — disse. —
Quando os enterrámos, olhei com atenção, e não eram soldados.
— Bandidos?
— Não. — Ghuda pareceu preocupado. — Se o Tuka estava a contar a
verdade, o ataque foi bem conduzido, nada espalhafatoso mas eficaz. A
companhia destacada para guardar este comboio de carroças era boa, de acordo
com o Tuka. Mas os quinze que apanhámos eram o bando mais inexperiente
que alguma vez vi no terreno. Bons espadachins, capazes de lutar
individualmente, pareceu-me, mas completamente desordenados em equipa. —
Abanou a cabeça. — Metade deles… tinham as mãos macias, e, apesar das
roupas, não eram uns pobres bandidos. Pareceram-me mais rapazes ricos
disfarçados.
Nicholas abanou a cabeça. — E o que vos parece?
— Acho que alguém queria que essas carroças fossem descobertas, talvez
pelos jeshandi. — Ghuda coçou o queixo. — Acho que só estamos a ver uma
pequena parcela do que há para ver.
— Então achais que pode não haver ninguém à espera desses homens no
Pouso de Shingazi? — perguntou Nicholas.
— Ou que estará lá alguém para assegurar que, na eventualidade de eles
aparecerem, já não vão mais longe.
Nicholas anuiu. Desceu da carroça e correu para a que seguia na dianteira,
onde Tuka seguia sentado ao lado de Marcus. — Tuka — chamou Nicholas.
O homenzinho olhou para baixo. — Sim, Encosi.
— Há algum lugar entre aqui e o Pouso de Shingazi que daria um bom local
para uma emboscada?
Tuka refletiu no assunto. — Sim, Encosi — acabou por responder. — Haver
lugar maravilhoso meio dia à nossa frente, onde um pequeno grupo poderia vir
a causar dificuldades a um exército.
— Maravilhoso — comentou Nicholas. — Parai — indicou a Marcus.
Acenou para as carroças que seguiam atrás e correu na direção da terceira, onde
Calis viajava com Harry. Dirigiu-se ao semielfo. — O Tuka diz que há um
excelente lugar para nos montarem uma emboscada meio dia à nossa frente e o
Ghuda acha provável que isso suceda.
Calis assentiu com a cabeça e, sem proferir palavra, saltou para o chão,
afastando-se em passo rápido. Dirigindo-se à quarta carroça, onde seguiam
Amos e Brisa, Nicholas informou-os do motivo daquela paragem inesperada.
Amos saltou para o chão. — Bem, uma coisa é certa — disse —, o Ghuda
sabe do seu ofício.
Nakor e Anthony seguiam na retaguarda da última carroça, acompanhando
os homens necessitados de cuidados. Vieram até ao exterior. — O Ghuda sabe o
suficiente para liderar a sua própria companhia, caso assim o entendesse —
comentou Nakor, após o que olhou em redor. — Anthony, este lugar é tão bom
quanto qualquer outro.
— Para quê? — quis saber Nicholas.
— Para ver se consigo localizar de novo os prisioneiros — respondeu
Anthony. — Não tentei fazê-lo desde o naufrágio.
Nicholas assentiu e Anthony cerrou os olhos. Decorreu um longo minuto até
voltar a falar. — É fraco, mas por ali. — Apontou para sul.
— Bem, é mesmo para onde vamos — comentou Nicholas.
Rio
U
m homem tossiu.
Nicholas e os outros voltaram-se para o local de onde veio o
som e aproximaram-se rapidamente. Dois homens jaziam
atordoados encostados à parte exterior da parede e Ghuda ajudou dois dos
soldados a puxarem-nos para mais longe do fogo.
Um tinha um golpe na cabeça que sangrava copiosamente e o outro tinha
uma flecha de besta cravada no ombro.
O homem com a flecha no ombro estava inconsciente, mas o do
ferimento no escalpe começou a mexer-se. — Passai-me água — pediu
Ghuda.
Um dos soldados passou-lhe um cantil e Ghuda limpou o rosto do
homem. — Por todos os deuses! — exclamou Ghuda. — Se não é o homem
mais feio que alguma vez vi…
Cuspindo a água, o homem piscou os olhos e sacudiu a cabeça. — Ohhh
— disse, levando uma mão à têmpora. — Estais enganado. — Abriu de
novo os olhos e fitou todos um a um. — Também não sois propriamente o
meu ideal de beleza — disse, virado para Amos.
O homem tinha uma testa que mais parecia uma extrusão de granito.
Estava tapada por pelos escuros, uma sobrancelha que formava um único
traço sobre os olhos do homem – duas covas negras, afundadas bem abaixo
da cana do nariz e separadas por um nariz bolboso, que em tempos poderia
ter tido uma forma mas que de tantas vezes partido já não deixava entrever
vestígios do que fora no passado. Uma barba irregular cobria a maior parte
do maxilar, mas era notório que crescia de modo pugnaz, e os lábios do
homem tinham um aspeto estranho, como se tivessem sido tantas vezes
atingidos que o inchaço fosse permanente. A pele que conseguiram ver sob
a barba tinha marcas de varicela e cicatrizes e, à luz do fogo, era manchada
e sarapintada. Ele era, pensou Nicholas, o que Amos dissera: o homem mais
feio que alguma vez vira.
O seu companheiro sem sentidos, por seu lado, tinha tanto de belo como
o outro de feio. Cabelo escuro, um bigode muito bem aparado e uma
silhueta encantadora eram bem visíveis à luz do fogo.
Ghuda estendeu a mão ao homem feio para o ajudar a erguer-se. — O
que é que sucedeu? — perguntou.
O homem levou a mão à cabeça. — Todo o tipo de traições assassinas. —
Observou o grupo que o rodeava. — E não me parece que isso para vós seja
surpreendente, a ver pelo modo como estais armados.
Nicholas, vendo que todos os seus soldados permaneciam de armas
empunhadas, fez-lhes sinal para que as baixassem.
— Quem sois vós? — perguntou Marcus.
— Eu sou Prajichetas — anunciou o homem — e este é o meu amigo
Vajasiah. Podeis chamar-nos Praji e Vaja.
— Fazíeis parte deste grupo de mercenários? — perguntou Ghuda.
— Não, caso contrário já teríeis dado por isso — explicou. —
Andávamos à procura de transporte para subir o rio, rumo às guerras…
— Guerras? — questionou Nicholas.
— Quem é este? — perguntou Praji a Ghuda.
— É o Capitão.
— Ele? Não passa de um rapaz…
— Falai comigo — exigiu Nicholas.
— Ele é o Capitão — confirmou Harry.
Praji voltou-se para Ghuda. — Vou crer que é vosso filho, ou a vossa
mascote, ou o vosso…
Nicholas encostou a ponta da espada à garganta do homem. — Sou o
Capitão — disse, baixinho.
Praji fitou-o de alto a baixo, após o que, cautelosamente, afastou a ponta
da espada para o lado com a mão. — Seja como for, Capitão — disse,
dirigindo-se a Nicholas —, íamos subir o rio rumo às guerras…
— Que guerras? — interrompeu Amos.
O homem voltou-se bruscamente para mirar Amos e levou a mão à
cabeça. — Isto não foi nada boa ideia — disse, fechando os olhos. —
Alguém tem por aí uma bebida?
— Lamento, mas só temos água — respondeu Nicholas.
— Terá de dar para o gasto — disse Praji. Pegou no cantil de pele que lhe
passaram e bebeu imensa água. Anthony aproximou-se e examinou o amigo
dele, abrindo-lhe a túnica. — Não é nada grave — avaliou. — Tem uma
camisa de cota de malha por baixo da túnica. Suportou bem o impacto. —
Conseguiu retirar a flecha de besta do ombro do homem e estancou o
sangue com um trapo que tinha numa bolsa que preparara para fazer face às
consequências do ataque. — Vai sobreviver.
— Excelente — comentou Praji. — Já passámos por muito para que esse
sacana morresse sem mim.
— Faláveis de guerras — disse Marcus.
Prendendo o olhar no dele com um ar interrogativo, disse:
— Falava?
— Pretendíeis subir o rio — recordou Amos.
— E procurávamos transporte para uma povoação chamada Nadosa,
entre Lanada e Khaipur, no Vedra. Arranjámos boleia com um mercador de
lã que nos largou a uns quilómetros daqui e viemos a pé. Íamos seguir
viagem para as águas a montante do rio, a oeste – há sempre caravanas de
carroças a saírem de lá para Khaipur –, só que nos deparámos com este
bando de degoladores e rapazes dos clãs e, quando as bebidas começaram a
jorrar, juntámo-nos a eles. Alguém estava a pagar rodadas, e eu não sou
esquisito no que toca a cerveja à borla.
— Então, não acompanháveis este grupo? — inquiriu Nicholas.
— Se assim fosse — disse —, estaríamos ali. — Indicou os corpos
fumegantes junto à parede em chamas da estalagem.
— O que é que aconteceu? — perguntou Nicholas.
O homem suspirou. — Estávamos sentados e a beber com um bando de
crianças tolas e com alguns matricidas, e o tipo que ofereceu toda aquela
cerveja aproximou-se e segredou-nos que haveria trabalho para nós e que
nos deveríamos juntar aos outros soldados profissionais no exterior da
estalagem. Não gostámos do modo como aquilo soou, pelo que viemos cá
fora, mas afastámo-nos um pouco dos outros, mantendo o grosso do pessoal
entre nós e o tipo que nos chamou.
»De repente, ouviu-se uma gritaria e por todo o lado começaram a voar
flechas de bestas. O Vaja e eu saltámos por cima do muro e caímos mal. Vi-
o ser atingido e de repente ficou tudo escuro. — Franziu o sobrolho e enfiou
a mão dentro da túnica. Apalpou o interior e encontrou aquilo que
procurava, sacando de uma bolsa. — Ótimo — disse, ao abrir o cordão.
Retirou de lá um minúsculo pergaminho enrolado, com menos de oito
centímetros de largura, e um pedaço de madeira muito bem afiado. Lambeu
a ponta do pau, que, reparou Nicholas, fora escurecida, e desenrolou o
pequeno pergaminho. Fitando uma linha de gatafunhos, assentou a
ferramenta de escrita sobre o pergaminho. — Suserano escreve-se com uma
ou duas palavras? — perguntou.
Cidade
N
icholas ficou tenso.
O Rio da Serpente correu por terrenos pantanosos durante uma
hora e agora estavam a atravessar um lago enorme. A tripulação
do barco começou a remar fervorosamente assim que acederam ao lago,
pois as correntes eram incertas naquele grande curso de água. O homem do
leme agarrou-se com força à vara e o barco virou, rumo ao esvaziamento do
rio do lago para oriente. Nicholas endireitou-se para poder observar
atentamente a cidade ao longe. — Onde é que estamos? — perguntou a
Praji.
— No Lago dos Reis — respondeu.
— Porque é que lhe chamam assim? — perguntou Nicholas.
Praji recostou-se apoiando-se num fardo de carga enquanto Vaja dormia
ali ao lado; raramente se separavam, reparou Nicholas. — A cidade, há
imenso tempo, não passava de um ponto de encontro para as tribos do sul
das Terras de Leste. Com o passar dos anos, a cidade cresceu e agora é até
difícil dizer que os homens da cidade são da família dos jeshandi e das
outras tribos das planícies. — Praji começou a limpar as unhas com a ponta
da adaga. — Cada tribo tem um rei, percebestes?, e todos os anos cabe a
uma tribo diferente presidir à reunião anual. Isso resultou em que a cada
ano a cidade tenha um rei tremendamente empenhado em vingar-se do que
quer que os outros reis tenham feito aos da sua tribo nos treze anos
passados. Há catorze grandes tribos, estais a ver?
»Seja como for, os tipos que viviam na cidade fartaram-se daquilo ao fim
de duas centenas de anos e estalou uma grande revolta, e, quando esta
terminou, todos os catorze reis e um bom número dos seus parceiros foram
lançados a este mesmo lago. Por isso ficou conhecido pelo Lago dos Reis.
— E o que é que lhes sucedeu? — perguntou Nicholas, quando Marcus e
Harry se sentaram junto a eles para ouvirem. Seguiam então a cerca de
meio caminho na travessia do lago e viram outro rio a esvaziar de lá, um rio
que pareceu contornar a parte leste da cidade.
— Bem, durante uns tempos, tentaram aguentar-se sem governantes, mas
depois de uns quantos grandes incêndios e alguns tumultos que provocaram
a morte de centenas de pessoas, concluíram que se tratava de uma ideia
estúpida, e decidiram que os chefes dos clãs poderiam formar um Conselho.
Como havia membros do mesmo clã em mais de uma tribo, aquilo pareceu-
lhes justo, e ninguém ficou muito aborrecido, e as coisas correram muito
bem, tanto quanto sei, por uns bons cem anos.
— E depois apareceu o Suserano? — questionou Harry.
— Bem, acho que ele já por aí andava há uns tempos — referiu Praji.
Coçou o queixo. — Ouvi umas quantas histórias aqui e acolá sobre quem
ele era, mas ninguém tem a certeza. Em muitos lugares, é melhor não fazer
perguntas.
— Agentes secretos? — perguntou Nicholas.
— Chamam-lhes a Rosa Negra, se conseguis engolir essa. Liderados por
alguém conhecido apenas por «O Controlador», e ninguém sabe quem ele é.
Alguns tipos pensam que é isso que domina o Dahakon, outros acham que o
Dahakon é o próprio Controlador. Ninguém que eu conheça o sabe, essa é
que é essa.
Praji levantou a sua faca. — Aqui vai o que sei do Suserano. Chama-se
Valgasha, o que não é um nome jeshandi, nem de nenhum local onde eu
alguma vez tenha estado. É um homem alto, pois vi-o uma vez num dia de
desfile no Festival do Fim do Verão. Grande como o vosso amigo Ghuda,
diria. Aparenta ter cerca de trinta anos, mas ouvi dizer que tem o mesmo
aspeto que tinha quando se apoderou do poder, e com essas histórias de ele
ser mago, quem o poderá saber? Tem uma águia domesticada que caça
como um falcão. Há quem diga que é uma ave mágica.
— Quanto tempo falta para chegarmos à cidade? — perguntou Nicholas.
— Já falta pouco — disse Praji. Apontou para um arvoredo ao longe, na
margem mais distante. — O lago escoa por ali, no rio que contorna a
cidade. — Praji manteve-se em silêncio por um bom bocado, antes de
prosseguir. — Quando lá chegarmos, é melhor encontrar-vos um lugar onde
vos alojeis; uma Companhia deve dispor de um local onde potenciais
empregadores a possam encontrar. — E concluiu com uma pergunta: —
Tendes alguma objeção em levar uma vida simples?
— Não — respondeu Nicholas. — Porquê?
— Bem — respondeu Praji —, tendes mais ouro do que seria
aconselhável, pelo que pude aperceber-me, e uma Companhia pequena a
viver com demasiada riqueza é um isco para sarilhos. Não resultaria
instalar-vos na hospedaria mais cara da cidade e ter uns duzentos
combatentes a visitar-vos na segunda ou terceira noites. Mas se levardes
uma vida simples, o pessoal vai achar que estais falidos ou sois reles. —
Refletiu no assunto por um minuto antes de prosseguir. — Penso que
conheço o lugar ideal. Logo à saída do bazar. Modesto, não demasiado
imundo, e o estalajadeiro não vos intrujará.
Nicholas sorriu. — Assumo que será um lugar onde poderemos escutar
uma ou outra coisa?
— Podeis assumir tudo o que pretenderdes — disse Praji com o seu
sorriso desdentado —, mas o segredo não está em escutar, antes em separar
o trigo do joio no que toca a rumores e a verdades. — Bocejou. — Em vinte
anos na estrada, posso garantir-vos que nunca vi algum lugar como a
Cidade do Rio da Serpente. Vede, por exemplo, o caso de Maharta. Cidade
limpa, boa para fazer negócios, muito orgulho cívico. Chamam-lhe a
Cidade Rainha do Rio, e, não obstante, um homem pode lá ser morto por
causa de uma moeda de cobre tão facilmente como em qualquer outro lugar.
— Praji continuou a especular sobre as forças e as fraquezas das diferentes
cidades que visitara, enquanto Nicholas observava o burgo cada vez mais
próximo a ganhar forma ao longe. Onde antes apenas se via no horizonte
uma mancha cinzenta difusa, agora surgiam à vista torres e muros.
Havia pântanos em todo o redor do lago, assim como ajuntamentos de
juncos baixos, pelo que se tornou difícil perceber onde acabava a água e
começava terra. Algures para lá das margens do lago, erguia-se uma série
de pequenos montículos de terra, todos eles áridos, a não ser pela presença
de umas quantas plantas de aspeto rijo. À direita, no lado ocidental do lago,
o terreno sobressaía do meio dos pântanos. Alguma alvenaria indicava que
em tempos existira ali uma construção, mas a área estava completamente
deserta. Mais acima via-se a encosta de uma escarpa, aí com uns quinze
metros de altura, e lá Nicholas apercebeu-se de alguma atividade, embora
estivesse demasiado longe para perceber do que se tratava.
— Quintas — disse Praji, parecendo ter lido a mente de Nicholas. —
Ireis ver imensas, das pequenas, junto à cidade, por uma questão de
proteção. E umas quantas carbonizadas na margem mais distante do rio. É
uma terra difícil de defender e os soldados do Suserano não se mexem a não
ser que alguém ataque as muralhas ou que a ele lhe apeteça. — Cuspiu
borda fora.
Passado um bocado, entraram no rio oriental e ganharam velocidade com
a força redobrada da corrente. Enquanto perscrutavam as bordas da cidade,
viram uma granja carbonizada na margem oriental. — Estou a perceber o
que queríeis dizer — comentou Nicholas.
— Não foram os salteadores os responsáveis por aquilo — esclareceu
Praji. Apontou para uma colina a uns oitocentos metros de distância, sobre
a qual se erguia uma herdade, cercada por um muro alto. — É a herdade de
Dahakon. Quando não está no palácio do Suserano, é onde o encontrareis,
embora me ultrapasse o facto de alguém o pretender visitar. — Fez um sinal
de boa sorte. — Ele achou que a quinta estava demasiado próxima das suas
terras e ordenou aos Exterminadores Escarlates que lhe deitassem fogo.
Depois de terem passado sob uma ponte que dava para a herdade do
mago, acederam a uma área de cabanas e casas flutuantes amontoadas em
ambas as margens do rio. Pelo aspeto das coisas, ali habitavam os pobres,
pescadores, trabalhadores da cidade que não tinham posses para lá viver, e
alguns lavradores com um pequeno terreno nas traseiras das cabanas. Havia
aqui e ali pequenos barcos a moverem-se rapidamente, desempenhando
tarefas ou transportando alimentos. A bordo de diversos botes viram-se
crianças a acenar e a rir à passagem da fila de barcos, e Nicholas
correspondeu aos acenos.
Quanto mais desceram o rio, mais barcos se juntaram em redor deles.
Junto a terra, Nicholas viu que alguns dos edifícios ribeirinhos eram velhos,
com dois ou três pisos. Do alto das varandas de diversos deles, estavam
sentadas mulheres vestidas com mais ou menos roupa, exibindo-se e
gritando os seus nomes aos homens do rio.
— Prostitutas — referiu Praji, com indiferença.
Nicholas corou quando uma delas o chamou e lhe sugeriu fazer algo que
ele até então achara ser impraticável. Praji viu-o a enrubescer e riu-se. —
Capitão — disse ele, secamente.
A margem oriental afastou-se quando a boca do rio alargou e entraram
num estuário. Mantendo-se firmemente próximos da margem esquerda,
percorreram o seu contorno até se depararem com o primeiro de um lote de
docas e cais. Um pequeno barco atravessou-se à frente da proa deles,
dirigindo-se a uma embarcação ancorada em águas mais profundas, e o
timoneiro de Nicholas insultou o homem que seguia ao leme do bote, pois
só por pouco não colidiram.
Nicholas seguiu a pequena embarcação com o olhar, até que os seus
olhos pousaram em algo no porto. — Marcus — chamou.
Marcus avançou na direção dele. — O que foi?
— Dizei ao Amos para olhar para além — apontou.
Marcus olhou e depois assentiu com a cabeça, antes de regressar à popa.
Gritou para o segundo barco, onde Amos seguia sentado. — O Nicholas
pede que olhais para acolá.
Amos gritou em resposta: — Dizei-lhe que já vi. É o mesmo.
Marcus regressou para junto de Nicholas. — O Amos diz que é o mesmo.
Nicholas anuiu. — Assim me pareceu.
Ancorado e com grande parte do casco bem acima da superfície, por se
encontrar já sem carga, o navio preto atraiu-lhes a atenção. Nicholas voltou-
se para Marcus. — Tomámos a decisão acertada.
Marcus pousou a mão no ombro de Nicholas e não disse nada.
C erca de duas horas após o Sol se ter posto, o salão estava repleto, tanto
por causa dos homens da Companhia de Nicholas como devido à
presença de desconhecidos. Ele escolheu uma mesa junto ao corredor que
dava para os quartos de dormir. Harry, Anthony e Brisa ainda não tinham
regressado e ninguém pôs a vista em Nakor desde antes de terem chegado à
hospedaria. Nicholas começava a ficar preocupado.
Por duas vezes aproximaram-se mercenários a perguntar se havia espaço
para novos recrutas na Companhia de Nicholas. Ele mostrou-se cauteloso e
disse que dependeria de um eventual contrato e que o melhor seria
regressarem nos próximos dias.
A comida que foi servida era satisfatória e quente, embora não
particularmente saborosa, e o vinho estava acima da média, o que agradou a
todos os da Companhia; era um grande melhoramento face aos feijões e pão
que haviam comido todas as noites nos barcos, juntamente com uma porção
fria de porco salgado. Harry, Anthony e Brisa regressaram por fim enquanto
eles comiam.
— O que é que vos demorou tanto? — perguntou Nicholas assim que os
outros se sentaram.
Harry sorriu. — É uma cidade grande.
— Tínheis de a ver toda num único dia? — perguntou Amos, sorridente.
— Não vimos nem um décimo — revelou Harry —, mas descobrimos
umas coisas interessantes, ou, para ser mais objetivo, o Anthony e a Brisa
descobriram.
— Descobri um homem que vende encantamentos lá em baixo junto às
docas — revelou Anthony. — É uma fraude, naturalmente, e as bugigangas
dele são inúteis, mas deixou escapar alguns mexericos sobre o Suserano e o
seu Grão-Conselheiro.
Nicholas inclinou-se para a frente quando Anthony baixou o tom de voz.
— O Praji não estava a brincar quanto à interdição da magia. Uma das
coisas que o vendedor de bugigangas me contou é que há uma proteção
sobre a cidade que alerta o Dahakon se alguém recorrer à magia dentro das
muralhas do burgo. Pelo menos, é isso que consta. Ele alegou que uma das
propriedades especiais dos seus berloques era a capacidade que tinham de
trabalhar sem alertar o Conselheiro. — Anthony abanou a cabeça. —
Alguém quer isto? — perguntou, pegando num fetiche de aspeto invulgar
que tinha no bolso. Era um homem com um pénis gigante. — É suposto
tornar qualquer um irresistível às mulheres. — Corou quando Brisa desatou
a rir, com a mão à frente da boca.
— Anthony, tendes de ser meu — disse ela jocosamente.
Nicholas não estava para brincadeiras. — Pousai isso. O que isso
significa é que não podeis usar os vossos poderes para encontrar as
raparigas.
— Raparigas? — perguntou Harry.
— As prisioneiras — esclareceu Anthony, que continuava corado. —
Cheguei a conseguir localizar a Margaret e a Abigail — informou.
Nicholas percebeu que ele estava a esticar ligeiramente a verdade devido
ao interesse de Harry em Margaret, mas achou que isso era no momento de
somenos importância. — O que mais descobristes? — quis saber.
— Há por aí uma espécie de organização de larápios — informou Brisa.
— Sois de Krondor, por isso já ouvistes falar dos Mofadores.
Nicholas assentiu com a cabeça.
— É uma coisa assim do género, mas dá-me a ideia, tendo em conta
aquilo que vimos, que são bem menos eficazes e provavelmente menos
poderosos.
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Nunca vi na minha vida tantos homens armados num quilómetro
quadrado, nem sequer em Porto Livre, e metade deles pertence a um clã ou
outro, ou ao Suserano.
— Ela tem razão, Nicky — disse Harry. — Há soldados por todo o lado e
toda a gente tem um guarda-costas ou guardas em casa, ou mercenários. Tal
como o Ghuda disse, isto aqui é uma zona de guerra.
Nicholas refletiu por uns momentos. Krondor tinha o seu quinhão de
guardas privados e mercenários a soldo de mercadores e nobres, mas a
maioria dos cidadãos andava desarmada por quase todo o lado, exceto no
Bairro Pobre ou nas docas à noite, pois os vigilantes da cidade ou a
guarnição do Príncipe mantinham a paz e controlavam de certo modo os
Mofadores. Também soubera pelo pai que o Grémio de Larápios apreciava
que tudo andasse na ordem, pois qualquer lei marcial prejudicar-lhes-ia
severamente o negócio.
— Descobriste alguma coisa no mercado de escravos? — perguntou
Nicholas.
— Nada de jeito — respondeu Harry. — Foi difícil. Se não estivesses a
comprar, olhavam-te com desconfiança. Há uma coisa, a parede atrás do
mercado de escravos está marcada com um traço branco a uns dez metros
de distância. Viste?
— O Calis e eu andámos por lá a vaguear, mas não reparei — disse
Nicholas.
— É o limite — explicou Harry.
Nicholas assentiu com a cabeça. Sabia que aquilo significava que havia
arqueiros no alto dos muros ou soldados no mercado com ordem para matar
quem quer que cruzasse a linha. — O Suserano não quer que ninguém
liberte os condenados — disse Nicholas.
— Ou não quer visitas de surpresa — sugeriu Brisa.
— Se governásseis esta cidade de degoladores, quereríeis? — questionou
Amos.
— Se a governasse, tudo seria diferente — comentou Nicholas.
Amos riu-se. — Não sois o primeiro a afirmar isso antes de desempenhar
o cargo. Perguntai ao vosso pai como foram os acordos que estabeleceu
com os Mofadores logo no início do seu reinado.
Nicholas voltou-se para Brisa. — Achas que consegues contactar os
larápios da terra?
— Pode levar um par de dias — respondeu. — Metade das pessoas daqui
têm um ar de cão acossado. — Ela baixou ainda mais o tom de voz. — A
minha opinião é que já tendes aqui neste salão uma meia dúzia de
informadores e espiões. Nesta cidade não se confia em ninguém.
— Bem, comei, bebei e alegrai-vos… — disse Nicholas, interrompendo-
se antes de terminar o velho adágio.
Segredos
N
icholas olhou para cima.
O carroceiro, Tuka, estava a atravessar o salão, acompanhado por
um homem com uma barriga imponente e com o rosto corado e que
vinha a arquejar. Apresentava-se vestido com uma grande variedade de cores:
uma sobretúnica amarela, uma camisa em xadrez, calças vermelhas, faixa
verde e um chapéu púrpura como os que se viam na zona, com uma ampla aba
enrolada para cima em ambos os lados, a abraçar a copa.
— Harry, alguém vos roubou as roupas na noite passada? — perguntou
Ghuda.
Harry bocejou, ainda mal desperto depois de ter ingerido uma quantidade
pouco habitual de cerveja. — Parece que sim — disse o Escudeiro de
Lundland. — Mas a minha era de melhor gosto.
Ghuda e Amos refrearam-se nos comentários e observaram o estranho par
enquanto este se abeirava deles.
— Encosi — disse Tuka —, com toda a humildade, estou a apresentar-vos
Anward Nogosh Pata, representante do meu amo na cidade.
Sem pedir permissão, o homem sentou-se na única cadeira livre na mesa de
Nicholas. — É verdade? — murmurou.
— É verdade o quê? — reagiu Harry.
Nicholas ignorou a pergunta de Harry. — Sim — respondeu. — Temos a
rapariga connosco.
O homem soprou todo o ar que tinha nas bochechas e tamborilou com os
dedos na mesa. — Conheço o Tuka há anos e apesar de não ser de fiar, como
qualquer outro carroceiro, não é suficientemente inteligente para inventar
sozinho uma história tão rebuscada de traição e crime. — Debruçando-se por
cima da mesa, baixou ainda mais o tom de voz. — O que pretendeis pedir?
Resgate? Recompensa?
Nicholas franziu o sobrolho. — O que preferiríeis que eu fizesse? —
perguntou.
O homem parou com o tamborilar na mesa. — Não tenho bem a certeza. Se
o meu senhor foi vítima de uma conspiração para criar atrito entre os clãs –
muitos dos quais têm laços fortes com importantes casas de comércio aqui e
noutras cidades —, poucos desses homens dos clãs poderão estar inclinados a
recordarem-se que o meu senhor foi apenas um lorpa no meio de algo bem
maior. — Descreveu um amplo arco com as mãos enquanto encolhia os
ombros. — E, verdade seja dita, o meu senhor não ficaria nada agradado em
ser apelidado de lorpa, pois apesar de todas as suas virtudes, não deixa de ter a
sua vaidade, e o efeito que tal cognome teria no seu negócio não poderia ser
encarado como salutar.
— Há assuntos importantes para mim e para os meus homens que podem ter
impacto nesta matéria — avisou Nicholas.
— E o que propondes? — inquiriu Anward.
— Não fazer nada durante uns dias — respondeu Nicholas. — Suspeitámos
que se for a mão do Suserano a estar por detrás da série de ataques e crimes, a
vida da rapariga não terá valor, mas se ela for o troféu principal de um jogo que
não compreendemos, este pode ser para ela o lugar mais seguro do mundo.
Permiti-me que vos coloque uma questão: qual seria a reação do vosso amo se
a enviássemos de volta?
— Não ficaria agradado, mas esse descontentamento seria devido ao
fracasso do compromisso, e se o compromisso estivesse condenado desde o
início devido à duplicidade, ficaria pouco inclinado em atribuir culpas
desnecessariamente.
— O pai da rapariga seria capaz de a castigar?
— O pai dela tem muitas filhas, é certo, mas a todas dá valor. Não, não lhe
faria mal. Porque perguntais?
Raciocinando rapidamente, Nicholas respondeu:
— Só me quero assegurar de que compreendo tudo o que está em jogo.
— E quanto às preciosas oferendas que acompanhavam a Ranjana?
— Está tudo a salvo — referiu Nicholas.
— Enviarei uma carroça e guardas para recuperar as mercadorias do meu
senhor.
Nicholas levantou a mão. — Preferiria que esperásseis um pouco. Acho que
ninguém que nos viu chegar suspeitará que temos algo a ver com todos os
crimes ocorridos rio acima, mas nunca se pode ter a certeza. Se estivermos a
ser vigiados, não quero anunciar que encontrámos qualquer tesouro ou a
Ranjana. Deixai-os pensar que as raparigas que estão connosco são as que
acompanham a nossa comitiva. — Anward lançou-lhe um olhar de
desconfiança. — Tendes a minha palavra — garantiu Nicholas. — Quando a
Ranjana sair daqui, levará com ela todo o seu ouro e joias.
O consignatário ergueu-se. — Serei cauteloso — disse —, mas deverei
procurar informar-me sobre quem será o verdadeiro responsável por este
tormento. Permanecereis aqui entretanto?
— Uns dias.
Anward fez uma vénia respeitosa. — Desejo-vos um ótimo dia, Capitão.
Vendo que Tuka não o seguiu, Ghuda perguntou:
— Fostes demitido?
O pequeno carroceiro encolheu os ombros. — Assim foi, Saíbe. Sou
dispensado do serviço após ter fracassado ao proteger a mercadoria do meu
amo, mas por ter regressado para anunciar que a presença da Ranjana na
cidade, não ser espancado ou morto.
— Pelo que percebi, é difícil arranjar trabalho por aqui? — questionou
Marcus.
— Deve ser — comentou Amos —, a ver pelo modo como tratam os
trabalhadores.
— Muito difícil, Saíbe — respondeu Tuka. Pareceu profundamente abatido.
— Talvez tenha de me dedicar à ladroagem para poder comer.
Nicholas não conseguiu evitar um sorriso ao ver a postura do homenzinho.
— Não me parece que tenhais esse dom. — Tuka assentiu em concordância e
Nicholas prosseguiu: — Ora bem. Fostes de grande utilidade para nós, portanto
porque não trabalhais para nós enquanto estivermos na cidade? Assegurar-nos-
emos de que não passareis fome.
O rosto de Tuka iluminou-se. — O Encosi necessita de um carroceiro?
— Não, se não já teríeis reparado — realçou Nicholas. — Mas preciso de
alguém que saiba desenvencilhar-se nesta terra, e não conhecemos lá muita
gente por estas bandas. O que é que eles vos pagavam?
— Um pastoli de cobre do Rio da Serpente por semana e a minha
alimentação, e permissão para dormir debaixo da carroça.
Nicholas franziu o sobrolho. — Não estou familiarizado com a moeda local.
— Retirou umas quantas moedas da sua bolsa, uma delas recolhida no Pouso
de Shingazi. Espalhou-as sobre a mesa. — Qual é o pastioli? — perguntou.
Tuka arregalou os olhos ao ver as moedas. — Esta, Encosi. — Apontou para
a moeda de cobre mais pequena do lote.
— E as outras? — questionou Ghuda.
Se Tuka achou estranho que mercenários não soubessem o valor das moedas
locais, nada deixou transparecer. — Esta é o stolesti — informou, apontando
para uma moeda maior de cobre. — Valer dez pastiolis. — Passou para as
outras, o kathanri de prata de vinte stolesti e o drakmasti de ouro, ou
simplesmente, drak. O resto eram moedas de outras cidades e Tuka explicou
que havia tanta moeda de fora que era tão comum pagar pelo tipo de moeda e
peso como pelo valor oficial; a maioria dos mercadores tinha os seus próprios
modos de avaliar e não havia quem se dedicasse ao negócio dos câmbios.
Nicholas passou-lhe um stolesti. — Ide comprar algo para comer e uma túnica
lavada — disse.
O homenzinho fez uma vigorosa vénia. — O Encosi é imensamente
generoso — disse, antes de sair apressadamente do salão.
— Achei que os pobres no Reino não tinham muito — comentou Marcus —,
mas isto é que é pobreza.
— Pagam aos condutores de carroças cerca de um décimo daquilo que se
paga em Kesh — salientou Ghuda.
Nicholas ficou com um ar carregado. — Nunca me interessei muito pelo
comércio, mas penso que todas as lutas e perturbações comerciais implicam
menos emprego e uma grande pressão para se obter lucro. — Encolheu os
ombros. — Trabalho barato.
Ghuda assentiu com a cabeça.
— O que significa uma coisa boa — disse Amos.
— O quê? — perguntou Nicholas.
— Os subornos são comuns por estas bandas — disse com um sorriso. — E
isso significa que não ficámos apenas bem remediados com o tesouro do
Shingazi, nós ficámos ricos, muito ricos.
— Isso é bom — concordou Nicholas —, mas não nos aproxima mais dos
prisioneiros.
— Isso é verdade — disse Amos.
— Onde é que estão o Harry e a Brisa? — perguntou Nicholas. — Já
deveriam ter regressado. — Mandara-os ir de novo ao bazar para ver se Brisa
conseguia encetar contacto com os larápios e os mendigos locais. — E onde
raio se enfiou o Nakor?
Ghuda encolheu os ombros. — O Nakor? Ele aparece. Aparece sempre.
M arcus preparou o seu arco, embora estivesse certo de que era Calis quem
se aproximava. Poucos homens, talvez apenas o pai de Marcus e alguns
entre os Guardas Florestais Nataleses, conseguiriam aperceber-se da sua
aproximação na escuridão do amanhecer.
— Pousai o vosso arco — sussurrou Calis.
Marcus levantou-se e pôs-se em marcha sem ser preciso que lho indicasse.
Teriam de ser muito discretos se pretendiam regressar pelo rio sem serem
vistos. Assim que se misturassem, em segurança, com o restante tráfego de
barcos no rio não passariam de uma embarcação entre muitas, mas alguém
avistado a sair daquela margem tão próximo da herdade do Grão-Conselheiro
seria considerado suspeito.
Assim que chegaram ao barco, Marcus começou a remar. — Encontrastes
alguma coisa? — perguntou.
— Nada de relevante. Uma coisa estranha: pareceu-me não haver guardas,
assim como poucos criados.
— Numa herdade daquele tamanho?
Calis encolheu os ombros. — A minha experiência com herdades humanas é
muito limitada. — Mostrando um sorriso forçado sob a luz prévia ao
amanhecer, acrescentou:
— Esta foi a primeira que vi.
— Pela dimensão daqueles muros e pela distância a que se estendem, achei
que lá dentro haveria uma cidade — comentou Marcus.
— Mas não há. Muitos jardins, edifícios vazios e vestígios estranhos.
— Vestígios?
— Pegadas como nunca vi antes, mais pequenas do que as de um homem
mas com uma forma de algum modo humana. Com riscos à frente dos dedos.
Marcus não precisou que lhe fosse dito que aquilo significava garras. —
Homens-serpente?
— Não saberei até ver um — referiu Calis.
— Pretendeis lá regressar?
— Tem de ser. Há muitos lugares que tenho de explorar se queremos
encontrar os prisioneiros e descobrir o que está aqui a ser orquestrado. —
Sorriu para sossegar o seu amigo. — Serei cauteloso e metódico. Explorarei
toda a herdade por fora antes de me dedicar ao interior. E explorarei isso antes
de me aventurar na casa grande.
Marcus não se sentiu tranquilizado, mas sabia que Calis era veloz e forte,
calmo e perspicaz. — Quanto tempo? — perguntou, referindo-se ao tempo que
demoraria a exploração.
— Talvez mais umas três ou quatro noites. A não ser que os encontre antes
de entrar na casa grande.
Marcus suspirou e não disse nada enquanto remava de regresso às docas na
outra margem do rio.
19
Explorações
A
pareceu um guia.
Marcus escolhera Amos e Ghuda para o acompanharem,
enquanto Harry e Brisa andavam a bater a cidade à procura de
pistas relativas ao destino dos prisioneiros. O relatório de Calis perturbara
Nicholas; a ausência de guardas e criados era apenas mais uma coisa que
não fazia sentido. Havia em tudo aquilo demasiados mistérios para o gosto
do Príncipe. A única possibilidade credível era a pista de que poderia estar
envolvido um sacerdote da serpente pantathiano, o que pouco sossegava
Nicholas. Não ficou também agradado com o plano de Calis de lá regressar,
mas não encontrou nenhuma boa razão para o impedir.
Anthony ficaria na hospedaria com Praji, Vaja e os outros homens, para
ouvirem e verem todas as coscuvilhices locais que pudessem descobrir.
Praji e Vaja optaram por ficar na hospedaria em troca de um bom
pagamento por parte de Nicholas, dado que ele ainda não revelara aos
mercenários locais todos os factos relativos à sua demanda, mas apenas os
suficientes para os satisfazer, aparentemente. Praji estava certo de que pelo
menos uma meia dúzia de agentes de outras companhias, os misteriosos
Rosa Negra, e de outros clãs andavam pelo salão a fazer perguntas
discretas.
Nicholas e os seus dois companheiros saíram da hospedaria. A
caminhada levou quase uma hora, o que deu a Nicholas a possibilidade de
observar melhor a Cidade do Rio da Serpente.
O bazar e os quarteirões dos mercadores que o rodeavam, assim como as
docas, eram uma espécie de território neutro, onde homens de todos os clãs
e alianças passeavam em liberdade; a paz era assegurada por uma guarnição
de guardas pessoais do Suserano. Esses soldados vestidos de negro
andavam aos pares por todo o lado e ocasionalmente era possível ver uma
patrulha de uma dúzia a passar rapidamente por entre a multidão.
Mas assim que saíram da zona comercial da cidade, tornou-se evidente
que estavam a entrar em algo parecido com uma zona de conflito. Tinham
sido erigidas barricadas nas extremidades das ruas, obrigando carroças e
cavaleiros a contornarem-nas lentamente para as transpor, de modo a que se
tornasse complicado encetar um ataque. Os homens viajavam em grupos.
As mulheres nunca eram vistas sem escolta. Muitas vezes, os transeuntes
passavam para o outro lado da rua em vez de confiarem na possibilidade de
Nicholas e os seus amigos serem inofensivos.
Nicholas reparou que todos aqueles que passavam usavam distintivos de
algum tipo. A maioria consistia em cabeças de animais, e estes, percebeu
ele, eram os símbolos de clã de que tanto Tuka como Praji haviam falado.
Os outros eram símbolos de mercenários, indicando a que Companhia eram
leais. Nicholas pensara em ter distintivos para os seus homens, mas teve a
esperança de que abandonassem a cidade de regresso a casa antes de ser
necessário dar esse passo. No seu entender, já ali estavam há demasiado
tempo.
Quando se aproximaram da casa do seu anfitrião, o lar familiar do Clã
Leão, Nicholas viu mais um exemplo do tipo de vida que suportavam os
habitantes daquela cidade: era um acampamento militar, e havia sentinelas a
vários quarteirões de distância da casa. A habitação tinha três pisos, com
uma torre de observação no alto do terceiro andar. Havia homens nas
plataformas de arqueiros e o muro exterior tinha mais de dois metros de
altura. Entraram pelo portão e Amos exclamou:
— Uma paliçada!
A área aberta entre o muro exterior e o interior estendia-se e dava a volta
aos cantos da propriedade. O muro interior erguia-se até aos três metros e
meio e a distância entre os dois muros era de quase dez metros.
— Há duzentos anos o Clã Rato e os seus aliados forçaram a entrada na
casa — informou o guia. — O chefe de clã da época foi exilado devido à
vergonha; o seu sucessor erigiu os dois muros para que isso nunca mais
voltasse a acontecer.
Vaslaw Nacoyen recebeu-os à entrada, acompanhado por uma dúzia dos
seus guerreiros do clã. Nicholas ficou grato por já terem conhecido antes os
jeshandi, pois era capaz de ver a relação entre aqueles dois povos. Os
homens de clãs da cidade podiam envergar trajes de seda fina e banharem-
se em águas perfumadas, mas estavam ainda unidos na forma de vestir e no
tipo de armamento. Os homens no alto do telhado tinham pequenos arcos de
montar a cavalo; não havia uma única besta ou arco longo à vista. Os
homens tinham o mesmo penacho de guerreiro que Mikola usara no seu
yurt e a maior parte deles usava bigodes compridos e pendentes ou barbas
cuidadosamente aparadas.
Vaslaw encaminhou-os para uma sala grande que mais parecia uma
câmara de reuniões do que uma sala de jantar. Uma mesa comprida
atravessava-a de um lado ao outro, posta para o jantar, com criados à
espera. Vaslaw fez sinal a Nicholas e aos seus convidados para que se
sentassem. O velho apresentou o seu único filho sobrevivente, Hatonis, e as
suas duas filhas. Yngya, a mais velha, parecia estar na fase final de uma
gravidez, e estava de pé de mão dada com um homem que Nicholas
assumiu ser o seu marido. A rapariga mais jovem, Tashi, com cerca de
quinze anos, corou e manteve os olhos apontados para baixo. A seguir,
Vaslaw apresentou Regin, o marido de Yngya.
Quando todos se sentaram, os criados começaram a servir uma série de
pratos distintos, pequenas porções em diversas travessas, e Nicholas
assumiu que era suposto experimentarem um pouco de tudo. Variados
vinhos foram servidos em cálices à direita de cada comensal, para serem
degustados com os diferentes pratos.
Durante o jantar, Nicholas aguardou que o seu anfitrião iniciasse as
conversas. O velho manteve-se calado durante a primeira parte do jantar. —
Viestes de longe, Capitão? — acabou por perguntar Regin.
Nicholas assentiu com a cabeça. — De muito longe. Estou, calculo eu,
entre os primeiros do meu povo a visitar esta cidade.
— Sois das Terras de Oeste? — perguntou Yngya.
O continente de Novindus estava grosseiramente dividido em terços. As
Terras de Leste, onde eles foram parar, eram compostas pelas Terras
Quentes, como era conhecido o deserto, e as Grandes Estepes, a terra dos
jeshandi, assim como pela Cidade do Rio da Serpente. As Terras dos Rios
compreendiam o coração do continente, e eram o território mais populoso
de Novindus. O Rio Vedra corria de sudeste, desde as Montanhas Sothu, até
esta rica zona agrícola. A oeste do rio ficava a Planície de Djams, uma
pradaria relativamente inóspita povoada por nómadas, mais primitivos do
que os jeshandi. Do outro lado, ficava uma larga cordilheira montanhosa, as
Ratn’gary – o Pavilhão dos Deuses – que corria para norte desde o mar até à
enorme Floresta de Irabek, que ficava entre as Ratn’gary e as montanhas
Sothu. Era para lá desta barreira norte-sul de montanhas e floresta que
ficavam as Terras de Oeste. O habitante comum das Terras de Leste pouco
sabia sobre as Terras de Oeste e quem lá vivia. Ainda menos era sabido do
Reino Insular de Pa’jkamaka, que ficava do outro lado, a oitocentos
quilómetros. Apenas uma mão-cheia de mercadores mais arrojados visitara
ocasionalmente essas cidades longínquas.
— Para quando esperais o vosso bebé? — perguntou Ghuda, libertando
Nicholas da obrigação de responder.
— Para breve — respondeu Yngya, sorridente.
Assim que foram levadas as travessas do prato de entrada, Nicholas
tomou a palavra. — Vaslaw, falastes na noite passada da minha necessidade
de aprender alguma história.
O velho assentiu enquanto sugava o último pedaço do recheio de uma
amêijoa e pousava a concha na travessa para que o criado a pudesse levar.
— Sim — respondeu. — Sabeis muita coisa sobre a história da cidade?
Nicholas revelou-lhe o que aprendera até então e o velho assentiu com a
cabeça. — Durante séculos, após nos termos livrado dos Reis, a assembleia
de chefes de clãs governou bem e a cidade viveu em paz. Muitas contendas
antigas foram resolvidas e tivemos muitos casamentos entre clãs, pelo que
com o passar do tempo estávamos a formar um povo unificado. — Fez uma
pausa para ordenar os pensamentos. — Somos um povo muito tradicional.
Na nossa própria língua, somos chamados de Pashandi, o que significa «O
Povo Justo».
— Sois da família dos jeshandi — observou Amos.
— Isso significa «Povo Livre». Mas nós somos, apenas, Shandi, «o
Povo». É-nos difícil largar as velhas tradições. Ainda é importante ser
caçador e guerreiro antes de tudo o mais. Sou um mercador bem-sucedido,
com barcos e comboios fluviais a partirem e a chegarem durante todo o ano.
Já fiz negócio nas Terras de Oeste duas vezes na minha vida, uma vez até
cheguei ao Reino de Pa’jkamaka, e a todas as terras do Vedra, mas a minha
riqueza não tem importância na assembleia do meu clã; foi o meu olhar
apurado e o meu talento com o arco, a minha capacidade de aproximação
furtiva à caça e o ser bom cavaleiro, a minha força com a espada, que me
outorgaram o poder de liderar.
O seu filho fitou-o com orgulho, assim como as suas filhas e genro. —
Mas ser o melhor com a espada e com o arco ou a montar não implica que
um homem seja um líder mais sábio — reconheceu Vaslaw. — Ao longo
dos anos, muitos chefes de clãs fizeram disparates por razões de orgulho e
honra, e muitas vezes os seus clãs sofreram por isso. A assembleia detinha a
última palavra na governação da cidade, mas só um chefe de clã podia
liderar o seu próprio clã. — Abanou a cabeça. — E então, há quase trinta
anos, começaram a acontecer coisas más.
— Coisas más? — perguntou Nicholas.
— Rivalidades tornaram-se rixas e foi derramado sangue e declarada
guerra aberta entre clãs. Há catorze clãs dos pashandi, Nicholas. No pico
das contendas, seis clãs – Urso, Lobo, Corvo, Leão, Tigre e Cão – estavam
unidos numa luta contra outros cinco – Chacal, Cavalo, Touro, Rato e
Águia. Alce, Búfalo e Texugo tentaram manter-se à parte da luta, mas
foram para lá arrastados.
»No pico da contenda, um capitão mercenário chamado Valgasha e a sua
companhia tomaram o edifício da assembleia. Anunciou que falava pelas
pessoas da cidade que não pertenciam a clãs e declarou que o bazar e as
docas estavam sob sua proteção. Matou todos os membros de clãs que
apareceram armados nessas áreas. Quase uniu os clãs contra ele, mas, antes
de podermos montar a nossa ofensiva, enviou mensageiros pedindo tréguas.
Reunimos com ele e convenceu-me e aos outros chefes a terminar com os
combates; assumiu o título de Suserano. Desde então, comportou-se como
árbitro e pacificador com os clãs, embora tenha havido muitos assuntos por
resolver desde então e as contendas prossigam.
— Estava convencido de que ele era o governante absoluto da cidade —
comentou Nicholas.
— E é, mas na altura ele parecia uma alternativa mais razoável às lutas
constantes. Quando a paz regressou, o poder dele cresceu. Primeiro,
transformou a Companhia de Mercenários dele em vigilantes da cidade, que
começaram por patrulhar o bazar e as docas, e depois o bairro de
mercadores. A seguir, criou um exército permanente, promovendo os seus
soldados mais antigos e leais a guarda privada, a Guarda Pessoal do
Esplendoroso, e expandiu o velho palácio dos reis e apoderou-se dele. E
então apareceu Dahakon. — Vaslaw praticamente cuspiu o nome. — Esse
porco assassino de coração negro foi o responsável por a cidade se
transformar num Principado, com Valgasha como Príncipe. Criou os
Exterminadores Escarlates, que são fanáticos que precisam de ser
retalhados aos pedacinhos, pois não pararão de lutar enquanto andarem à
solta.
— Quando é que tudo isso aconteceu? — perguntou Amos.
— Os problemas começaram há vinte e sete anos; há vinte e quatro, o
Suserano tornou-se senhor absoluto.
Nicholas olhou de soslaio para Amos, que assentiu com a cabeça. — E
em relação a esse ataque em que tropeçámos? — perguntou Nicholas.
Vaslaw anuiu com a cabeça na direção do genro. Regin disse:
— Alguns dos guerreiros mais jovens procuraram minar o domínio do
Suserano sabotando o pacto dele com um consórcio comercial para o Norte,
e agiram sem autorização dos seus chefes de clãs.
O velho suspirou. — Foi uma tontice, por muito valentes que tenham
sido. Tal revés representa pouco mais do que uma irritação para o Valgasha.
— Acho que temos uma causa comum — referiu Nicholas. — Tal como
eu disse, penso que o Suserano, ou alguém com poderes na sua corte, foi o
responsável pela morte dos vossos filhos. — Nicholas voltou a contar a
história que relatara na noite anterior, sobre o ataque, a presença do elmo de
um Exterminador Escarlate e a chegada dos soldados privados do Suserano,
mas com mais pormenores.
Foi Hatonis quem colocou a primeira questão. — Uma coisa: o que
estáveis lá a fazer?
Nicholas olhou de relance para Ghuda, que encolheu os ombros, e para
Amos, que deu a entender a Nicholas que deveria continuar a falar. —
Preciso que jureis que aquilo que vos contarei não sai desta sala — disse
Nicholas.
Vaslaw anuiu.
— Sou o filho do Príncipe de Krondor.
— O meu pai disse que o vosso pai governava uma cidade — comentou
Hatonis. — Nunca ouvi falar de Krondor. Fica nas Terras de Oeste, tal
como perguntou a minha irmã?
— Não — respondeu Nicholas. Durante uma hora, falou-lhes do Reino
das Ilhas e do Império do Grande Kesh, e da jornada deles através do mar e
dos ataques.
Quando acabou o seu relato, a refeição terminara e saboreavam
aguardentes e café adocicado. — Não vou chamar mentiroso a um
convidado meu, Nicholas — disse Vaslaw —, mas é-me difícil acreditar no
vosso relato. Só posso imaginar tais terras como as que descreveis se
inventadas por um contador de histórias; reinos longínquos, e exércitos de
dezenas de milhares de homens. Mas na vida real? Isso, acho impossível de
crer. No passado, tivemos a nossa quota de candidatos a conquistadores; na
altura em que vivíamos os nossos problemas, o Rei-Sacerdote de Lanada
tentou conquistar outras cidades ao longo do rio. O Suserano aliou-se ao
Rajá de Maharta para travar as suas ambições. Não, tais homens são sempre
detidos.
— Nem sempre — contestou Nicholas. — Os meus antepassados eram
conquistadores, mas hoje em dia são heróis da nossa História. — Deitou
uma olhadela a Amos. — Mas nós escrevemos a História — disse.
Amos sorriu mostrando os dentes. — O Nicholas nada mais diz do que a
verdade. Um dia, tendes de pegar num barco e visitar-nos, Vaslaw. Podereis
achar estranho, não duvido, mas é verdade.
Foi Regin quem colocou a pergunta seguinte. — Muito bem, o que
levaria uma entidade misteriosa a encetar uma guerra para lá de um mar tão
vasto, aquele a que chamam Mar Azul, por causa de saques e escravos,
quando há bens valiosos aqui tão perto?
Nicholas dirigiu-se a Vaslaw. — Dissestes que havia catorze tribos, que
nomeastes. Houve em tempos uma décima quinta?
O rosto de Vaslaw tornou-se carrancudo. Fez sinal aos criados para que
saíssem. Depois dirigiu-se aos seus outros convidados e às filhas. —
Também vós deveis sair.
Tashi pareceu prestes a protestar por ser excluída, mas o pai nem lhe deu
tempo e interpôs-se com um berro:
— Ide!
Quando ficaram na sala apenas Nicholas e os seus amigos e Vaslaw, o
seu filho e o genro, o velho disse:
— Hatonis é o meu último herdeiro homem e Regin deverá ser o novo
chefe do clã assim que eu morrer. Mas ninguém deve ouvir mais do que
falais. O que quereis dizer, Nicholas?
Nicholas retirou o talismã da bolsa e passou-o a Vaslaw. O velho fitou-o
atentamente. — Os Cobras estão de volta — afirmou.
— Cobras, pai? — disse Hatonis. Regin também pareceu perdido.
O velho pousou o talismã. — Quando eu era rapaz, o meu pai, que foi
chefe antes de mim, falou-me do Clã Cobra. — Permaneceu por momentos
em silêncio, e depois voltou a falar. — Em tempos, éramos uma vintena de
clãs. Três extinguiram-se, o Lobisomem, o Dragão e o Lontra, e mais outros
dois desapareceram em rixas de clãs ou guerras, o Falcão e o Javali.
Segundo se recordava o pai do meu avô, os Cobras, tal como nós, viviam
aqui na cidade. Houve uma traição e uma desonra tão sinistra que a nenhum
homem foi permitido falar do assunto, e os Cobras foram perseguidos, até
ao último homem, assim se pensou, e exterminados. — Baixou o tom de
voz. — Entendeis ao que nos referimos quando dizemos «até ao último
homem?» — Nicholas não precisou de responder. — Todos os homens,
mulheres e crianças de sangue Cobra foram perseguidos implacavelmente e
soçobraram pela espada, não importando a sua juventude ou inocência.
Irmãos mataram as suas próprias irmãs que desposaram Cobras. —
Reordenou os seus pensamentos. — Aqui, sois de fora, pelo que há muito
sobre os clãs que não compreendeis. Estamos unidos pelos nossos totens de
clã. Aqueles de entre nós que praticaram magia assumiram a forma deles, e
tomaram conhecimento da sabedoria deles. Falámos com eles e orientaram
os nossos jovens nas suas buscas. Algo sucedeu ao Clã Cobra, que em
tempos foi dos mais poderosos. Algo os levou para as trevas e para maus
caminhos, e tornaram-se uma maldição para os seus semelhantes.
— Olhai para isto — disse Nicholas, exibindo o anel. — Foi retirado da
mão de um moredhel, da família daqueles que conheceis como os de «longa
vida», junto ao lar do meu tio.
Vaslaw fitou demoradamente Nicholas. — O que é que nos estais a
ocultar? — perguntou por fim.
— Há uma coisa sobre a qual nunca poderei falar, pois custar-me-ia a
vida — referiu Nicholas. — Fiz um juramento, tal como o fizeram os meus.
Mas há agora algo que nos une, aqueles que comigo atravessaram o mar, e
vós, aqui. Temos inimigos comuns, e são eles que estão por detrás de tudo
isto que aconteceu, tenho a certeza.
— Quem? — perguntou Hatonis. — O Suserano e o Dakhanon?
— Talvez, mas se calhar algo acima desses dois — respondeu Nicholas.
— O que sabeis dos sacerdotes da serpente pantathianos?
A reação de Vaslaw foi instantânea. — Impossível! Estais a inventar
ainda mais histórias. São seres lendários e vivem numa terra misteriosa,
Pantathia, algures para oeste… cobras que caminham e falam como
homens. Essas criaturas só existem em histórias contadas por mães para
assustarem crianças malcomportadas.
— Não são uma lenda — afirmou Amos. Vaslaw fitou o velho lobo--do-
mar. — Já vi um. — Falou-lhes sucintamente do cerco de Armengar,
quando Murmandamus marchou sobre o Reino.
— Mais uma vez sinto-me tentado a chamar mentiroso a um convidado
meu — comentou Vaslaw.
Amos sorriu, mas não foi de modo caloroso. — Resisti à tentação, meu
amigo. Sou conhecido por de vez em quando efabular um pouco as coisas,
mas nisto, tendes a minha palavra: é verdade. E nunca sobreviveu nenhum
homem que me tenha acusado de faltar à verdade.
— Como reparastes, nada sei dos vossos costumes — realçou Nicholas.
— Mas, nesses tempos passados, terá sido possível que essa unicidade com
o totem deles pudesse tornar o Clã Cobra vulnerável à influência dos
pantathianos?
— Ninguém vivo conhece o horror que levou à obliteração do Clã Cobra,
Nicholas. Esse segredo obscuro morreu com os tais chefes de clãs que os
fizeram desaparecer.
— Mas por mais terrível que tenha sido esse ato, poderá ter sido algo
relacionado com os pantathianos, certo?
O velho pareceu abalado. — Mas se o povo Cobra está na raiz dos atuais
problemas, como poderemos resistir? Eles são fantasmas e não há nenhum
homem que alguma vez os tenha visto. Corremos em todas as direções, à
procura deles?
— Não perdemos a esperança — disse Amos.
— Porquê? — quis saber Regin.
— Porque também vi um pantathiano morrer.
— São criaturas mortais — disse Nicholas. — Ainda desconheço os
planos deles e sei apenas que o meu propósito deve ser encontrar aqueles da
minha terra e levá-los de volta. Mas, ao fazê-lo, acredito que essa simples
ação vai frustrar essas criaturas Cobra e levar a que me procurem.
— E o que pretendeis do Clã Leão? — questionou Vaslaw.
— Para já, paz — respondeu Nicholas. — Ficarei feliz se vos vingardes
dos responsáveis pela morte da vossa gente. Será condicente com o meu
plano, tenho a certeza. E posso necessitar da vossa ajuda.
— Se pudermos, assim o faremos — disse o velho. — Todos os chefes de
clã têm de fazer uma série de juramentos ao aceitar este cargo, mas há um
juramento particularmente importante, superior a todos, exceto proteger o
clã até à morte. Esse juramento implica perseguir qualquer Cobra. É
proferido como um ritual e em quatro gerações nenhum chefe de clã
esperou ter de o honrar. — Passou os dedos pelo talismã da cobra. — Até
agora.
M argaret tentou correr, mas os seus pés não se mexeram. Olhou por
cima do ombro, mas não conseguiu ver o que a perseguia. Mais à
frente viu o seu pai; abriu a boca para gritar a pedir ajuda, mas não
conseguiu produzir nenhum som. Sentiu o pânico crescer dentro dela e mais
uma vez tentou gritar. A coisa atrás dela estava quase a alcançá-la.
Conforme foi tomada pelo terror, ela abriu a boca.
Acordou aos gritos. O som espantou as duas criaturas no quarto, que se
afastaram. Margaret estava a transpirar abundantemente. A sua camisa de
noite colou-se ao corpo quando afastou a roupa da cama e passou para a
cama de Abigail. Mal se aguentava em pé, mas pela primeira vez em dias
tinha a mente completamente desperta.
Sentou-se na beira da cama de Abigail e sacudiu-a. — Abby! — chamou,
mas mantendo a voz baixa.
Abigail mexeu-se, mas não acordou. — Abby! — repetiu, enquanto a
abanava.
Uma mão pousou então no ombro de Margaret e ela sentiu o coração
saltar. Girou para ameaçar a criatura, mas, em vez de um ser estranho, era
Abby quem estava atrás dela. Margaret levantou-se e encostou-se à parede,
com os olhos arregalados de medo. A segunda Abby estava nua, e perfeita
em todos os pormenores. Margaret já tomara banho suficientes vezes com a
sua amiga para reconhecer o pequeno sinal de nascença sobre o umbigo, e a
cicatriz no joelho provocada quando, em criança, um irmão a empurrara.
Tudo na segunda Abby era perfeito, a não ser os olhos. Estavam mortos.
Num sussurro distante, a segunda Abby disse:
— Regressai para a cama.
Margaret deitou uma olhadela para trás de si enquanto se dirigia à sua
própria cama e viu que a segunda criatura se estava a sentar, de boca
escancarada, no canto. Os olhos de Margaret arregalaram-se quando se viu
a si própria, também nua, do outro lado do quarto. O grito de Margaret
rasgou a noite.
20
Planos
N
icholas olhou para cima.
Nakor entrou na estalagem, ainda a pingar por ter atravessado o
rio a nado. O homenzinho atravessou o salão cheio de gente e
sentou-se à mesa com Nicholas, Amos, Harry e Anthony. Praji, Vaja, Ghuda
e Brisa estavam sentados na mesa ao lado.
— Há alguma coisa quente para comer? — perguntou, com um sorriso
nos lábios.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Harry, podes arranjar qualquer coisa
de comer para o Nakor? — Harry levantou-se. — Por onde é que andastes?
— perguntou Nicholas.
— Por aí. Em montes de lugares. Vi muita coisa. Coisas interessantes.
Mas não devemos falar delas aqui. Depois de eu comer.
Nicholas assentiu. Harry regressou com um prato de comida quente e
uma caneca de cerveja e toda a Companhia se sentou em silêncio a ver o
homenzinho comer. Não mostrou desconforto por ser objeto de tanto
escrutínio silencioso. Quando terminou, levantou-se. — Nicholas,
precisamos de falar — anunciou.
Nicholas ergueu-se. — Amos? — disse.
Amos anuiu e seguiu-os. Entraram no quarto de Nicholas. — Acho que
sei onde estão os prisioneiros — anunciou Nakor.
— O Calis encontrou-os — revelou Nicholas. Reproduziu o que Calis lhe
contara.
— Mas não a Margaret e a Abigail — acrescentou Amos.
Nakor assentiu vigorosamente com a cabeça, com o rosto amplamente
sorridente. — Eu sei que o Calis lá esteve. Vi as pegadas dele. Ele é muito
bom. Mesmo um bom batedor não as teria visto, mas eu estava deitado a
esconder-me e fiquei com o nariz a uns milímetros. — Riu por entre dentes.
— Como é que entrastes naquela herdade? — quis saber Nicholas.
— Descobri uma passagem desde o palácio que passa sob o rio.
Amos e Nicholas entreolharam-se boquiabertos de espanto. — E como é
que entrastes no palácio? — perguntou Amos.
Nakor contou-lhe como o fez e algumas das coisas que viu. — Esse tal
Suserano é um homem estranho. Preocupa-se com coisas muito parvas:
cerimónias e raparigas bonitas.
Amos sorriu. — Bem, em parte tendes razão, as cerimonia são parvas.
— Acho que ele não passa de um instrumento — revelou Nakor. — Acho
que esse tal Dahakon e a sua amiga são quem controla tudo. O tal Suserano
age como um homem a quem controlam a mente; ele desempenha o seu
papel. A mulher que está com o Dahakon… é muito interessante.
— Isso não me interessa — referiu Nicholas. — E quanto à Margaret e à
Abigail?
Nakor encolheu os ombros. — Devem estar algures na casa grande. Não
vi. Posso regressar e procurar.
Nicholas abanou a cabeça. — Esperai até que o Calis regresse. Não vos
quero por lá a tropeçar um no outro.
Nakor sorriu. — Isso não acontecerá. Há coisas nele que são muito
especiais e sei como esconder-me.
— Seja como for, esperai até amanhã — disse Nicholas. — Se ele as
encontrar, não precisais de lá voltar.
A expressão de Nakor tornou-se séria. — Não. Eu vou regressar.
— Porquê? — perguntou Amos.
— Porque sou o único que pode enfrentar a amiga do Dahakon e
sobreviver.
— É uma feiticeira? — perguntou Nicholas.
— Não — respondeu Nakor. — Como é que vamos regressar a casa?
Amos esfregou o queixo. — Há dois barcos no porto, qualquer um deles
serve; são cópias de navios do Reino.
— Tudo isto é muito estranho — referiu Nakor. — O Dahakon está a
fazer cópias de pessoas.
— Cópias? — questionou Nicholas.
— Sim. Fez uma cópia de si mesmo. Foi o que vi quando o Suserano
estava a anunciar o seu casamento com a Ranjana. Era uma cópia muito boa
de ver, se não vos aproximásseis demasiado, mas é estúpido. Não consegue
falar, pelo que a sua amiga falou por ele. Cheira muito mal. Acho que em
breve deve fazer um novo.
— Como é que ele cria as cópias? — perguntou Amos.
Lembrando-se da divisão com os corpos, Nakor respondeu:
— A partir de mortos. Na verdade, não quereis saber.
— Mas os prisioneiros não estão mortos — referiu Nicholas.
Nakor assentiu. — Essa é a parte estranha. Truques diferentes. O
Dahakon é um necromante. Os truques que o Calis viu não são truques de
morte, mas… — encolheu os ombros — outra coisa qualquer. São truques
para manipular criaturas vivas. Estas cópias não serão estúpidas e não
cheirarão mal. Não, é esse o truque do Dahakon.
— Bem, uma coisa é evidente — comentou Amos.
— A mim, nada me parece evidente — confessou Nicholas. — O que é?
— Eles vão levá-los para casa.
— Aos prisioneiros? — perguntou Nicholas.
— Não — respondeu Nakor. — Às cópias.
Amos afagou o queixo. — Mas não sabemos porquê.
— Espiões? — indagou Nicholas.
— Muito trabalho para tão pouco ganho — disse Amos. — Se o Gaivota
Real velejar para um porto do Reino, será levantada uma série de questões,
e essas cópias não vão escapar a um escrutínio atento. É muito mais fácil
infiltrar um par de tipos em Krondor ou Crydee, ou onde quer que seja,
como o mercador quegan que foi a Crydee antes do ataque. Não, trata-se de
outra coisa qualquer.
— Podemos descobrir — disse Nakor. — Só que vai levar algum tempo.
— Acho que o tempo está a esgotar-se — comentou Nicholas.
— Porquê? — perguntou Amos.
— É uma sensação que tenho. O Calis disse que muitos dos prisioneiros
já morreram. Não sabemos se tal se deve a essas cópias, mas, se
pretendemos salvar alguns deles, temos de agir rapidamente.
Amos encolheu os ombros. — Tanto quanto o Calis disse, não estarão em
grandes condições de fugir.
— Nakor, que distância vai desde o lugar onde estão cativos os
prisioneiros até ao túnel? — perguntou Nicholas.
— Não é muito longe — respondeu. — Mas será difícil. Os prisioneiros
terão de passar para a casa grande, passar pela cozinha e chegar até junto
dos aposentos do Dahakon.
— Quantos criados e guardas vistes por lá? — perguntou o Príncipe.
— Não muitos, mas pode haver mais por perto.
— O Calis diz que não — referiu Nicholas. — Acima de tudo, o
Suserano e o seu Conselheiro parecem ambos sustentar o seu poder na
reputação, e não em centenas de homens armados.
— Talvez não desejem um monte de testemunhas e não disponham assim
de tantos homens em quem possam confiar — arriscou Amos.
— Assim que o Calis localizar as raparigas, acho que estará na hora de
deixarmos esta cidade — referiu Nicholas. — Se conseguirmos encaminhar
os prisioneiros para aquela casa incendiada e ter lá alguns barcos à espera,
podemos descer o rio rumo ao mar, e recolhê-los.
— O que significa que teremos de roubar um daqueles navios — disse
Amos.
— Podemos fazê-lo?
Amos mostrou um ar carrancudo. — Não dispomos de homens
suficientes. Com trinta e cinco homens… Preciso de pelo menos duas
dúzias para lá ir e retirar o barco do porto, e só poderão ser tão poucos se
houver apenas um posto de vigia a bordo e o resto da tripulação andar pela
cidade. Se tiverem uma dúzia que seja de homens a bordo, será uma luta
renhida, e posso não ter pessoal suficiente para escapar antes de os outros
aparecerem.
— Isso deixar-me-á apenas com onze homens para tirar de lá os
prisioneiros — disse Nicholas.
— Podeis obter alguma ajuda — disse Nakor.
— Talvez o Vaslaw possa ajudar — disse Nicholas.
— Os homens dele provavelmente serão excelentes guerreiros no que
toca a cavalgar e a fazer uma grande barulheira — disse Amos —, mas
precisamos de gente habituada a andar pela calada para entrar e sair da
herdade.
— Talvez a Brisa possa falar com os larápios? — sugeriu Nicholas.
Amos, frustrado, esfregou a mão no rosto. — Talvez, mas, pelo que ela
disse, eles parecem ser um bando algo tímido e miserável; nada que se
pareça com os nossos Mofadores. Talvez o Praji e o Vaja consigam
encontrar-nos uma meia dúzia de rapazes de confiança que demonstrem
alguma coragem em troca de uma justa quantia de ouro.
— Ides encontrar alguém — afiançou Nakor. — Vai correr bem. —
Voltou-se para a porta.
— Onde ides? — indagou Nicholas.
— Vou dormir — respondeu com um sorriso. — Não tarda nada, vai
haver muito barulho e confusão, com muitas pessoas a correr para a frente e
para trás.
Foi-se embora, e Amos abanou a cabeça. — É o homem mais estranho
que alguma vez conheci, e já tive a minha dose de homens estranhos.
Nicholas não conseguiu travar o riso. — Mas tem sido de uma grande
ajuda.
Amos recordou as cautelas de Arutha em relação a dar ouvidos a Nakor e
sentiu o seu próprio sorriso a esmorecer. Havia algo de sombrio a
aproximar-se deles, e a grande velocidade, e Amos sabia que, das vezes em
que sentira isso antes, bons homens tinham morrido.
Sem dizerem mais nada, regressaram ao salão.
N icholas saiu da cama. Faltava uma hora para o Sol nascer, mas já não
conseguia dormir. Dirigiu-se ao quarto grande, onde dormia uma
dúzia de homens, seis camas encostadas a cada parede, e abriu caminho até
à enxerga onde dormia Praji. Vaja estava deitado do outro lado da divisão.
Nicholas sacudiu gentilmente o ombro de Praji e o mercenário acordou de
pronto.
Nicholas fez-lhe sinal para que o seguisse e Praji assim o fez. Não se deu
ao trabalho de calçar as botas ou vestir a capa, dado que Nicholas estava
também descalço e não usava roupa quente apropriada para sair.
— Vamos ter de tomar algumas decisões, nós os dois — revelou Nicholas
no salão deserto.
— Ides contar-me a verdade? — perguntou Praji.
— Trata-se de uma história muito comprida. Sentai-vos.
Praji puxou de uma cadeira enquanto se espreguiçava e bocejou. — Que
seja interessante, Capitão — disse, ao sentar-se pesadamente. — Não gosto
de ser acordado muito cedo. Na maior parte das vezes implica que as
pessoas precisam de matanças inesperadas. — O seu sorriso não era uma
visão agradável na obscuridade que antecedia o amanhecer.
Nicholas contou-lhe tudo, exceto o relativo à Pedra da Vida e ao Oráculo
de Aal, que a guardava bem nas profundezas da cidade de Sethanon. Mas
falou-lhe do seu pai, e do Reino e do ataque a Crydee. Assim que terminou,
a aurora já rompera e Keeler já estava no salão, a preparar mais um dia de
trabalho. Pouco depois, foi distribuído pão quente da padaria duas portas
abaixo, assim como fruta e queijo. Sem interromper, trouxe uma refeição
para Nicholas e Praji, movendo-se suficientemente rápido de modo a não
poder ser acusado de ouvir o que era dito em sussurros. Keeler era
suficientemente experiente com o modo como funcionavam as Companhias
de Mercenários para saber que a ignorância muitas vezes significava poder
manter-se no negócio ou, mais importante, vivo.
Quando terminou, Nicholas disse:
— Preciso de uma dúzia de homens… vinte seria melhor; devem ser de
confiança, e entretanto garantirei que valerá a pena o esforço. Devem estar
prontos a velejar connosco e a serem lançados na costa, pelo que terão de
ser suficientemente rijos para poderem regressar sem problemas. Conseguis
tratar disso?
— A questão não está em conseguir, está em querer. O que quereis dizer
com valerá a pena o esforço?
— Quanto achais que seria justo para roubar algo muito precioso ao
Suserano e ao seu feiticeiro?
Praji sorriu abertamente. — Por mim, seria um prazer fazê-lo só pelo
gozo. O nome desse sacana ainda está presente na minha lista. Se não posso
matá-lo cara a cara, posso pelo menos irritá-lo. Mas para convencer o
pessoal a enfrentar os soldados dele, especialmente tratando-se dos
Exterminadores Escarlates, isso sairá bem caro.
— Quanto?
— Um ano de salário de um guarda de caravana, penso eu. Digamos uma
centena de draks… talvez seja melhor pensar num pouco mais.
Nicholas tentou calcular quanto seria isso em grosso modo e quanto ouro
teria trazido do Pouso de Shingazi. — Se vos responsabilizardes pela
lealdade deles, oferecerei duzentos draks a cada homem, com mais cem
extra para vós e Vaja para garantir que eles são de confiança e seguem
ordens. Não quero agentes dos Rosa Negra infiltrados entre nós.
Praji anuiu. — Graças aos meus anos na estrada, conheço o dobro dos
tipos rijos necessários. Nenhum deles será, com certeza, um agente. Posso
levar o dia inteiro a encontrá-los e vou ter de mentir àqueles que não quero
que venham.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Dizei-lhes que estamos a preparar-
nos para transportar um mercador abastado e respetiva família pelo rio
acima, dez barcos com pessoal doméstico e criados. Dizei-lhes que o
mercador é muito picuinhas e exige a vossa garantia pessoal, pelo que não
podeis contratar ninguém que não conheçais. — E depois Nicholas
acrescentou:
— Gostaríeis de ser capitão?
— Ter a minha própria Companhia? — Coçou o queixo. — Não me iria
fazer mal.
— Ótimo, então dizei a quem quiser saber que o mercador vos dará o
suficiente para formardes a vossa própria Companhia e que só desejais
homens que vos são bem conhecidos.
Praji sorriu e assentiu. — Sois um estupor manhoso, Capitão. Poucos
homens desejam associar-se a uma Companhia que dá os primeiros passos,
a não ser que sejam velhos amigos. E agora, onde quereis que reúna os
homens?
— Dizei-lhes que se mantenham por perto. Alojai-os em estalagens nas
redondezas, em grupos de dois e três, e tende-os preparados para avançar
assim que eu der ordem.
— Bem, é melhor eu ir acordar o Vaja e deixá-lo comer algo… ele parece
uma velhota rabugenta se não tomar o pequeno-almoço de manhã. Deixai
que vos diga, torna-se difícil pô-lo de pé durante um cerco.
— Dizei também ao Tuka que venha ter comigo — pediu Nicholas.
Praji assentiu com a cabeça e foi-se embora. Conforme o dia ia nascendo,
outros começaram a entrar no salão e, quando Tuka apareceu, a coçar a
cabeça ainda meio estremunhado, Amos e Nicholas estavam à mesa a
comer com Nicholas.
— Hoje, vou precisar dos vossos talentos — anunciou Nicholas.
— O que devo fazer, Encosi? — perguntou Tuka.
— É muito difícil arranjar dez barcos fluviais para uma viagem rumo a
norte?
— Nem por isso, Encosi.
— E quanto tempo leva?
— Até ao meio-dia posso arranjar-vos esses barcos. Assegurar-me de que
conseguem fazer a viagem levará o resto do dia.
— Fazei-o em metade do tempo. Pelo pôr-do-sol quero-os atracados nas
docas, completamente aprovisionados.
Amos pousou o cotovelo na mesa, com o queixo apoiado na mão. —
Vamos partir?
— Em breve — anunciou Nicholas. — Fazei uma lista para o Harry e a
Brisa. — Depois, dirigiu-se a Harry. — Vai acordar a Brisa. Vocês os dois
vão com o Tuka. Inspeciona os barcos com ele; depois vai comprar
provisões. Assegura-te de que tudo o que conseguires arranjar é entregue
nas docas durante a tarde e que pelo pôr-do-sol já está tudo a bordo. Vou
pôr alguns soldados a guardá-los toda a noite. Quero que tudo esteja pronto
a partir uma hora depois de eu ordenar.
Harry assentiu com a cabeça. Entre a sua habilidade para a pedinchice e
regatear, e o à-vontade de Brisa para se desenrascar nas ruas, deveriam ser
capazes de obter rapidamente o que queriam, sem darem muito nas vistas.
Na Cidade do Rio da Serpente havia suficientes estrangeiros com sotaques
desconhecidos a encetar negócios, pelo que, com um pouco de recato,
passariam relativamente despercebidos.
Nicholas dirigiu-se a Amos. — Assim que o Marcus e o Calis regressem,
quero que vós e o Marcus ides pescar.
Amos assentiu e levantou-se da mesa. — Penso que a vossa ideia será
vermos como morde junto daqueles dois navios de guerra?
— Exatamente. Tudo isto será em vão se não nos apoderarmos de um
daqueles dois barcos e navegarmos para a boca do rio para recolher as
provisões e os prisioneiros dos barcos.
— Já tendes homens?
— Quando o Sol se puser, o Praji já nos terá arranjado uma vintena deles.
— Ainda assim, são escassos — constatou. — Vou necessitar da maioria
dos homens de Crydee para me apoderar daquele navio. Não posso contar
com espadachins contratados e poucos deles terão experiência de vida a
bordo.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Eu fico com o Ghuda, o Marcus e o
Calis, mas levai todos os que precisardes. Vou deixar os barcos fluviais
entregues ao Harry.
Amos olhou em volta conforme o salão se enchia de soldados e
marinheiros esfomeados. — Bem, a maioria dos rapazes ficará satisfeita por
entrar em ação. A espera estava a deixá-los nervosos. Para já ainda não
houve brigas, apenas algumas discussões feias e alguns deles mais
irritadiços.
— Acho que em breve terão muito com que se manter ocupados —
comentou Nicholas.
Fuga
H
arry correu para o quarto.
— O que foi? — perguntou Nicholas.
Ele respondeu já praticamente sem fôlego. — Um destacamento
de soldados do Suserano dirige-se para aqui.
— Para aqui? — perguntou Marcus, levantando-se e arrastando para trás a
sua cadeira.
— Talvez. Não sei. Estão a atravessar o bazar e a descer a rua. E não
parecem nada contentes.
— Brisa, vai lá acima ao telhado e grita se eles vierem para aqui — ordenou
Nicholas. Gritou ordens aos homens de Crydee, que se apressaram a
retransmiti-las. Era meio-dia e havia uma meia dúzia de desconhecidos no
salão.
— Se há aqui alguém que não deseje ver-se envolvido numa luta, o que tem
a fazer de melhor é pôr-se já a andar! — gritou Nicholas.
Um par de homens saiu a correr pela porta, enquanto outros partiram mais
languidamente. De repente, ouviu-se Nakor a gritar: — Nicholas! Aquele
homem! Não permitis que ele saia!
Nicholas rodopiou rapidamente enquanto um homem magro com uma roupa
singela de trabalhador se apressava na direção da porta. Nicholas saltou para o
deter, desembainhando a adaga. O homem sacou de uma adaga que levava no
cinto e atacou violentamente. Vaja pôs-se atrás do homem, elevou bem alto a
sua espada e bateu com o guarda-mão na cabeça pequena dele. Ele caiu ao
chão, com a adaga a tombar-lhe dos dedos frouxos. Ghuda e Praji rapidamente
ergueram o homem, que estava a sangrar um pouco da cabeça.
— Levai-o daqui — disse Amos. — Alguém que limpe essa porcaria.
Ghuda e Praji arrastaram o atacante semi-inconsciente até um quarto nas
traseiras. Harry ajoelhou-se e limpou o sangue com um trapo do bar, e depois
atirou-o a Keeler, que o escondeu atrás do balcão.
— O que é que foi aquilo? — perguntou Nicholas a Nakor.
— Dir-vos-ei assim que os soldados saiam — respondeu Nakor enquanto se
apressava rumo ao quarto nas traseiras.
— Marcus, vós, o Calis e o Harry, esperai nas traseiras com o Ghuda e o
Praji. Vaja, ficai por perto — indicou Nicholas. — Tentai todos parecer
surpreendidos quando entrarem os soldados, mas assim que eu der ordem…
— Estaremos a postos — afiançou Marcus enquanto se dirigiam para as
traseiras.
No salão, sentaram-se, mas com as mãos pousadas junto aos punhos das
espadas e inspecionaram o espaço, anotando a posição das mesas e
antecipando as melhores linhas de ataque na eventualidade de terem de sair
apressadamente das suas cadeiras. Havia quatro homens ao balcão, a olhar
para canecas meio vazias, com as adagas escondidas mas prontas a serem
desembainhadas. Atrás do balcão, Keeler engatilhou uma besta grande.
Nicholas ouviu uma voz feminina ofendida e percebeu que a Ranjana se
estava a queixar de algo. Já ia levantar-se da cadeira para ver o que se passava
quando a porta se abriu violentamente e um oficial e quatro guardas entraram
no salão. O oficial envergava um uniforme igual ao usado pelos vinte homens
que Nicholas encontrara no Pouso de Shingazi.
— Quem manda aqui? — perguntou em voz alta.
Nicholas continuou a levantar-se. — Sou eu — respondeu. — O Capitão
Nicholas.
Os olhos do homem incidiram de pronto nos pés de Nicholas. O Príncipe
sentiu a eriçarem-se os pelos na parte de trás do pescoço, mas obrigou-se a
acalmar-se. Tudo o que o capitão viu foram duas botas normais.
— Ouvimos dizer que tendes convosco uma rapariga — disse o capitão,
pausadamente, com uma voz profunda e escolhendo cuidadosamente as
palavras. — Se ela é quem pensamos que seja, podeis candidatar-vos a uma
recompensa.
Nicholas forçou um sorriso. — Rapariga? Não temos nenhuma rapariga
entre nós.
O capitão fez sinal aos seus guardas para que se dividissem. — Vasculhai
todos os quartos.
Nicholas colocou-se entre o guarda mais próximo e o corredor de acesso às
traseiras. — Tenho um par de homens doentes lá atrás; não quero que sejam
incomodados. Já disse que não temos nenhuma rapariga. — Falou em voz alta
e pronunciou claramente as palavras. Pousou a mão na faca que tinha ao cinto.
Os soldados da guarda olharam por cima do ombro dele, à espera de
instruções. O capitão voltou-se para o homem mais próximo da porta e
assentiu com a cabeça. O soldado abriu a porta e entrou mais uma dúzia de
homens no salão. — Preferimos verificar por nós próprios — disse o capitão
após a entrada dos seus homens.
— Eu preferiria que não o fizésseis — ripostou Nicholas.
— Que barulheira é essa? — ouviu-se uma voz feminina perguntar desde lá
de trás.
Nicholas voltou-se e viu Brisa aparecer pela porta de acesso às traseiras. Ele
deitou uma olhadela a Amos e Anthony, os quais olhavam fixamente para a
rapariga. Não trazia a sua habitual camisa de homem ou blusa e usava apenas
um vestido, que estava aberto e deixava entrever um peito muito mais farto do
que Nicholas alguma vez imaginara, uma cinta fina e uma barriga lisa. Em
volta das ancas via-se uma saia fina, unida num nó grande numa das ancas e
precariamente pendente na outra, desenhando todas as curvas da coxa e da
perna ao caminhar. Tinha o cabelo desgrenhado e bocejou. Avançou
languidamente pelo salão, abanando exageradamente as ancas. Ao chegar
junto de Nicholas, enfiou o braço no dele. — A que se deve esta gritaria toda,
Nicky?
— Mentistes-me! — disse o capitão da guarda.
— Eu disse que não tínhamos connosco nenhuma rapariga — defendeu-se
Nicholas. — Esta é a minha esposa. — Quando um guarda se dirigiu ao
corredor, Nicholas insistiu:
— Continuo a não vos querer lá atrás.
— Oh, eu não me importo — disse Brisa, dirigindo-se depois ao capitão. —
O nosso quarto está uma desarrumação, por isso tende cuidado.
Nicholas olhou para ela, que correspondeu assentindo levemente com a
cabeça. — Muito bem — disse ele.
Meia dúzia de soldados dirigiram-se às traseiras da hospedaria, para
reaparecerem uns minutos mais tarde. — Não há sinais de mais mulheres,
Capitão. Apenas alguns homens doentes deitados lá atrás numas camaratas.
O capitão brindou Nicholas com um olhar prolongado e depois virou costas
e partiu sem mais comentários. Nicholas assentiu com a cabeça na direção de
um dos seus homens, que espreitou pelas portadas da janela. — Estão a ir-se
embora, Capitão — relatou.
Nicholas dirigiu-se a Brisa. — Onde é que elas estão?
— Lá em cima no telhado — indicou a rapariga, com uma expressão de
alívio. — O Nakor e o Calis estão lá com elas.
Nicholas sorriu abertamente. — És brilhante.
— Isto não foi ideia minha — realçou ela, com o tom de voz a revelar
irritação quando reparou que todos os homens no salão estavam especados a
mirá-la. Apertou o minúsculo vestido à frente e depois cruzou os braços ao ver
que a pequena peça de vestuário não conseguiu tapá-la adequadamente. — O
Nakor ouviu-vos a berrar com o capitão. O estuporzinho puxou-me da escada
quando comecei a subir para o telhado, como me dissestes. A seguir,
empurrou-me para o quarto da Ranjana e disse ao Calis, ao Marcus e ao Harry
que levassem as raparigas para cima e empurrou a escada pelo alçapão no teto.
Depois, agarrou a minha camisa e abriu-a; arrancou todos os botões e num
piscar de olhos despiu-ma! Antes de me conseguir mexer, puxou-me as calças
até aos tornozelos e fiquei ali completamente despida! Então, atirou-me para
cima do monte de roupa daquela bruxa e disse-me para vestir algo bem curto e
sair para distrair toda a gente por uns minutos.
Amos sorriu com todos os dentes. — Bem, minha linda catraia, não há
dúvida de que o fizeste.
Tremendamente corada, a rapariga voltou-se e regressou para os aposentos
da Ranjana. — Nunca na vida me senti tão envergonhada… andar por aí a
pavonear-me meia despida como uma bailarina de taberna keshiana. Vou
matar aquele macaquinho!
Nicholas viu-a desaparecer no corredor, observando o modo como as ancas
dela se meneavam sob a minúscula saia. Amos pousou-lhe a mão no ombro e
ouviu-o dizer:
— O Harry é um sortudo. Ela é uma jovem muito bem-parecida.
Nicholas sorriu por momentos, mas depois a sua expressão tornou-se séria.
— Temos de partir esta noite. Vistes o modo como aquele capitão olhou para o
meu pé quando lhe disse o meu nome?
— Sim. Andam à vossa procura e de quem mais possa ter vindo de Crydee.
— Esfregou o queixo. — Lembrai-vos, a não ser que tenham enviado alguém
para trás para averiguar, não sabem que o Raptor se afundou. Podem estar à
espera que aqueles que não mataram em Crydee apareçam atrás deles a
qualquer momento. Se o Nakor estiver certo e essa tal Lady Clovis estiver por
detrás de tudo, ela pode suspeitar que estivésseis na embarcação a perseguir o
navio preto. Os salteadores dela provavelmente tinham uma descrição de toda
a gente importante de Crydee fornecida por aquele comerciante de Queg, o
Vasarius. Sabem quem não foi morto durante o ataque. Se o Martin estivesse
aqui a comandar… — Abanou a cabeça. — Quem sabe o que poderia ter
acontecido.
— Ainda bem que não viram o Marcus e o Harry — disse Nicholas. —
Dois primos que parecem irmãos e um ruivo da mesma idade seria uma grande
coincidência. Eles ainda podem voltar.
— E alguém lhes contou que a Ranjana está aqui — salientou Amos. —
Talvez aquele Anward Nogosh Pata estivesse a tentar reparar alguns dos danos
causados aos negócios do seu amo com o Suserano.
Um grito levou Nicholas e Amos a correrem para as traseiras, onde se
depararam com Brisa a bater com uma mão na cabeça e nos ombros de Nakor,
enquanto com a outra tentava manter o vestido fechado. O homenzinho estava
meio a rir quando gritou:
— Eu coso os botões! Trato já disso!
A disposição da Ranjana não era melhor do que a de Brisa. Deitou um olhar
sombrio a Nicholas. — Aquele homem pôs-me as mãos em cima! — queixou-
se a Nicholas. Apontou para Calis, que exibiu um amplo sorriso, algo que
Nicholas não se lembrava de alguma vez ter visto. — Ele empurrou-me pela
escada acima e pôs as mãos no meu traseiro! — disse a rapariga, indignada.
— Vou fazer com que seja pisado por elefantes!
Calis encolheu os ombros. — Ela não foi tão rápida quanto as criadas, e
ouvi o capitão a ordenar a busca.
— Rapariga — disse Nicholas —, aqueles homens ter-vos-iam levado daqui
para o palácio do Suserano e acho que não teríeis sobrevivido para ver o Sol
pôr-se. Agora acalmai-vos, ide para os vossos aposentos e preparai as malas.
— Vamos partir?
Nicholas anuiu. — Amanhã, mas bem cedo. Por isso, fazei com que as
vossas criadas tenham tudo pronto esta noite à hora da refeição. Agora, ide!
Brisa empurrou Nakor para o lado. — Eu própria os coso — disse —, mas
ainda temos um assunto por resolver.
Ela desapareceu no quarto da Ranjana, atrás desta, e bateu com a porta.
Nakor sorriu abertamente. — Foi divertido.
Observando por momentos a porta, e pensando no quanto Brisa era atraente
quando não estava enfiada em roupas de homem sem formas, a Nicholas nada
mais ocorreu dizer que não fosse:
— Imagino que sim.
— Sois um homem estranho — disse Amos a Nakor, rindo-se.
— Como é que percebestes que não deveríamos deixar sair aquele homem?
— perguntou Nicholas a Nakor quando Marcus e Harry desceram a escada
desde o telhado.
— Pelo cheiro — disse Nakor, fazendo-lhes sinal para que o seguissem.
Levou-os de volta para a camarata, onde Ghuda e Praji estavam sentados em
camas, uma de cada lado do homem inconsciente. Nakor aproximou-se dele e
abriu-lhe a camisa. Puxou uma pequena bolsa que tinha presa a uma tira de
couro em redor do pescoço. — Vedes?
Nicholas pegou na bolsa e sentiu um odor familiar pungente. — Cravinho?
Nakor anuiu. — Já o tinha cheirado nele, da primeira vez que o vi no salão,
há um dia ou dois. E depois senti de novo o cheiro quando ele tentou sair.
Amos abriu a bolsa e despejou de lá cravinho. — E para que é isto tudo?
— Cravinho3. Clovis. Óbvio.
— Continuo a não compreender — disse Amos.
— Sabeis qual é o nome dado ao cravinho no dialeto delkiano de Kesh?
— Não — respondeu Amos.
— Rosa negra. Perguntai a qualquer mercador de especiarias a sul da Faixa
de Kesh. Levei algum tempo a aperceber-me — admitiu Nakor. — Não
consegui entender por que razão este homem cheirava a cravinho. Mas
finalmente fez-se luz. — Tirou o saco das mãos de Amos. — Se eles deixam
uma mensagem para outro agente, digamos, num local previamente acordado,
põem junto um destes cravinhos, e o outro agente sabe que é verdadeira.
Simples.
— Bastante — comentou Nicholas.
— Demasiado simples — acrescentou Amos.
— Para governar e conquistar — disse Nicholas —, mas lembrai-vos com
quem estamos a lidar e que motivações têm, e vereis que são bem eficientes.
Amos assentiu com a cabeça. Recordou o que Nicholas lhe dissera e o que
vira na Batalha de Sethanon. Os pantathianos não estavam preocupados com
conquistas e governação. Eram um culto da morte empenhado em convocar a
sua deusa através da Pedra da Vida. Se a morte fosse o único objetivo, não
seria preciso ser tão esperto, pensou Amos.
— O que é que fazemos com este? — perguntou Ghuda, apontando para o
agente inconsciente.
— Atai-o e colocai-o algures num lugar seguro — indicou Nicholas. —
Dizei ao Keeler para o libertar um dia depois de termos partido. Estaremos
longe e em segurança ou… já não interessará.
Os outros aquiesceram. Perceberam exatamente o que ele queria dizer com
aquilo.
A ssim que a noite caiu, Calis saltou por cima do muro da herdade.
Apressou-se, sem se preocupar com a eventualidade de ser visto. Já
estava habituado à vigilância insuficiente em condições normais e a
mensagem de Nicholas relativa ao facto de os prisioneiros terem sido levados
para o navio levou a que se tornasse ainda mais improvável que houvesse
alguém na herdade.
Assim que dobrou a esquina de uma grande vedação, parte de um pátio
ajardinado entregue às ervas, quase tropeçou num guarda. Antes de o homem
conseguir reagir, Calis golpeou-o com a palma da mão, atingindo-o na
garganta e esmagando-lhe a traqueia. O guarda tombou para trás, desabando
no chão. Calis seguiu rapidamente em frente, não ficando para o ver morrer.
Calis não era dado a amaldiçoar em vão a sorte ou o destino, mas apesar da
fraca probabilidade de ficar para trás um guarda para patrulhar a herdade,
continuava a ter a noção de que o tempo era mais importante do que agir pela
calada. O estado dos prisioneiros da última vez que os vira significava que os
captores não tiveram outras preocupações que não fosse mantê-los vivos para
fazerem as suas cópias, e dado que a tarefa parecia estar agora concluída, não
havia razões para permanecerem com vida.
O som de botas a esmagar a gravilha anunciou a aproximação de outro
guarda e Calis agachou-se no chão atrás de um pequeno barracão de
jardinagem. Quando o soldado passou, Calis levantou-se e aproximou-se
rapidamente dele, agarrando o homem pelo queixo e pela parte de trás da
cabeça. Antes de o espantado soldado conseguir erguer as suas próprias mãos,
Calis partiu-lhe o pescoço.
Calis desatou a correr. Chegou ao lado do pátio murado onde os prisioneiros
tinham sido mantidos e saltou, aterrando em cima do muro. Agachando-se, viu
os prisioneiros ainda deitados nas suas enxergas, abandonados pelos seus
guardiões e pelas criaturas que haviam sido transformadas em imitações.
Calis apercebeu-se de que estavam inconscientes, todos eles, mas ainda
vivos. Saltou para dentro do recinto e aproximou-se do prisioneiro mais
próximo. Ajoelhando-se junto a um jovem, magro e imundo, tentou erguê-lo.
O homem resmungou debilmente, mas não chegou a despertar.
Olhando para cima, reparou que algo mudara desde a última vez que
estivera no recinto. O jovem elfo pôs-se de pé e caminhou apressadamente
para a outra ponta do espaço. Estava ali uma estátua em tamanho real, de algo
que de início lhe parecera um elfo mas que, após uma observação mais
cuidada, se revelou algo completamente diferente. Calis sentiu então os seus
pelos do pescoço e braços a arrepiarem-se e foi assolado por um afluxo de
medo. Nunca na vida se sentira tão aterrorizado, mas jamais se deparara com o
que tinha naquele momento à sua frente. O ídolo era um valheru, um ícone dos
há muito desaparecidos senhores de Midkemia. E algo elementar e profundo
no ser de Calis reagiu. Podia ser de nascença apenas semielfo, mas essa
metade gritou de medo face a algo nunca visto por alguma criatura viva.
Somente o seu pai, Tomas, tinha conhecimento privilegiado dos valheru e
apenas por ser o legatário de tal herança. Do tempo em que fora tanto homem
como Senhor dos Dragões e em que as suas memórias eram as de uma criatura
morta há milhares de anos.
Calis circundou a estátua, examinando-a. Era uma valheru fêmea, com
armadura e capacete. O padrão era o das serpentes, gravado em relevo no
capacete e no escudo que ela transportava. Calis percebeu então que o pior
receio de Nicholas era bem fundamentado: os sacerdotes da serpente
pantathianos estavam por detrás de tudo o que até então sucedera, sem dúvida
nenhuma. Aquela era Alma-Lodaka, a valheru que criara os pantathianos há
vários milénios, outorgando consciência e inteligência às serpentes, para que a
servissem no seu lar, criaturas divertidas mas banais. Mas nos séculos
decorridos desde que os valheru abandonaram Midkemia, tais criaturas
evoluíram, tornando-se um culto da morte que adorava a sua deusa perdida,
Alma-Lodaka, acreditando que se conspirassem para a trazer de volta a este
mundo, todos eles deveriam morrer para a servir, e os pantathianos seriam
elevados à posição de semideuses como recompensa pela lealdade.
Calis despertou dos seus devaneios e abandonou o recinto. Empurrou e
abriu uma das portas duplas e olhou pela primeira vez para o interior do
edifício quadrado. Estava vazio, exceto pela presença de mais correntes e
algumas ferramentas abandonadas.
Calis apressou-se, pois precisava de transmitir a informação a Marcus e, do
outro lado do rio, a Harry. Sabia que se não regressasse rapidamente para junto
dos prisioneiros para os ajudar, iriam acabar por morrer.
Emboscada
H
arry apontou.
— O que é? — quis saber Brisa.
— Fogo — respondeu Praji. — E dos grandes, pelo modo como
ilumina o céu.
Seguiam a bordo do barco que liderava a coluna rumo à granja
incendiada, onde encontrariam os prisioneiros à espera de serem recolhidos.
Harry começou a sentir uns suores frios. — Não tarda nada e as coisas vão
começar a aquecer por aqui.
— Sem dúvida — concordou Praji. — Haverá soldados para ver o que se
passa lá em cima. Se começarem a espreitar cá para baixo, iremos ter luta.
Um barqueiro disse algo a Tuka, que se voltou para Harry. — Saíbe,
vamos acostar.
Harry assentiu e fez sinal ao barco que seguia atrás. Apesar de ser difícil
ver na escuridão, cada um dos barcos tinha um observador na proa e na
popa especificamente para retransmitir ordens. O barco da frente encostou à
margem com um rangido grave e os outros imitaram-no, até todas as dez
embarcações estarem seguras.
Harry saltou da proa e correu para a granja. O disfarce do buraco fora
deslocado para o lado, e estava a sair de lá, com alguma dificuldade, um
homem. Harry agarrou-o pelo braço e ajudou-o a subir. — Harry — ouviu-
se chamar em voz baixa desde as ruínas da granja, e Calis emergiu,
acenando-lhe. Harry prestou assistência ao homem debilitado e, quando ele
chegou à casa, deixou-o sentar-se no chão.
— Só agora chegastes? — perguntou Harry.
— Está a demorar mais do que pensáramos — explicou Calis. — O
Marcus e os outros estão lá em baixo, a ajudar os prisioneiros a subir, mas é
muito demorado. Estão fracos e alguns terão de ser içados.
Praji juntou-se a eles e Harry deu-lhe instruções. — Ide buscar corda e
aparelhai uma eslinga, e depois trazei quatro homens fortes para içar os
prisioneiros mais debilitados pelo buraco.
Praji saiu a correr. — Ou é uma coisa ou outra — comentou Harry —, ou
esperamos aqui ou lá fora na baía.
Calis anuiu. — O Nicholas e o Amos devem estar por esta altura a chegar
junto do tal navio.
— Desejo-lhes sorte. — Harry olhou para o céu, onde subia a segunda
das três luas de Midkemia. A terceira apareceria dentro de uma hora. —
Não tarda nada vai estar muito iluminado por aqui. — Três luas cheias era
um fenómeno raro e o termo «três luas a brilhar» significava ser
praticamente de dia. — Não vamos ter muita sorte se andarmos por aí pela
calada esta noite. O que é aquele fogo? — perguntou Harry.
— Notícias terríveis, temo — respondeu o semielfo. — O Anthony diz
que uma peste negra foi ali criada e só o fogo a destruiria. Se não
tivéssemos incendiado a herdade do Dahakon, ele diz que toda a gente desta
cidade morreria no espaço de um mês, dois no máximo, e todos os que
saíssem da cidade transportariam consigo a praga. Ele acha que a praga
pode matar metade da população deste continente antes de ser exterminada.
— Por todos os deuses! Isso é perverso. — Harry abanou a cabeça,
indignado. — Bem — disse, olhando de través para o fogo distante —, não
tarda nada vamos ter por aqui alguns soldados curiosos. — Observou os
cerca de vinte prisioneiros de ar debilitado e reconheceu um deles, um
pajem com quem jogara futebol. Ajoelhou-se ao pé dele. — Edward, como
estais? — perguntou.
— Não muito bem, Escudeiro — respondeu, tentando sorrir com bravura
—, mas vou recuperar agora que estamos livres. — Tinha o rosto abatido e
Harry percebeu que estava mal, tanto mental como fisicamente. Fora
prisioneiro e testemunhara horrores inimagináveis na sua jovem vida
anterior ao ataque-surpresa. Libertá-lo das correntes não o libertou dessas
recordações.
— A vossa ajuda seria útil — disse Harry. — Estais pronto para isso? —
O pajem assentiu afirmativamente com a cabeça. — Começai a ajudar a
encaminhar os outros para os barcos. Sede um bom moço e começai por
aquele ali mais longe.
O rapaz levantou-se e foi ajudar outra prisioneira, uma jovem que fitava
o vazio com um olhar distante. — De pé, todos vós — indicou o pajem —,
ouvistes o Escudeiro. Temos de chegar aos barcos. Vamos para os barcos.
— Esta última parte foi dita quase entre soluços, mas resultou.
Os outros prisioneiros levantaram-se e começaram a cambalear na
direção dos barcos que os aguardavam. Saiu outra figura do buraco e Harry
apressou-se a encaminhá-lo para o barco.
Harry gritou então para o interior da abertura. — Estamos aqui com os
barcos! Podeis apressá-los?
Da escuridão lá em baixo ecoou a voz de Marcus. — Vamos tentar, mas
estão muito fracos.
— Estamos a aparelhar uma eslinga e içaremos os que não lograrem
subir.
— Excelente.
O tempo arrastou-se conforme os prisioneiros enfraquecidos avançavam
lentamente pela escada. Quando Praji, Vaja e mais dois homens chegaram
com a eslinga de corda, foi baixada pelo buraco e os prisioneiros incapazes
de subir foram içados.
Harry dirigiu-se aos barcos e falou com Tuka. — Quando eu der ordem,
partis com os barcos já cheios e dirigi-vos ao porto. Ide para a boca da baía
e esperai pelo Nicholas.
— E por que não subir o rio, Saíbe? — questionou o homenzinho.
— Depois, meu amigo, depois. – A seguir, algo ausente, acrescentou:
— Ainda temos mais uma paragem para efetuar.
Ambos se mantiveram ali uns momentos em silêncio, a observarem a
longínqua herdade de Dahakon, o mago, o Grão-Conselheiro do Suserano, a
ser aparatosamente consumida pelas chamas.
–O
Nicholas.
que é aquilo? — perguntou Amos.
— Parece um incêndio do outro lado da baía — respondeu
— Espero que não sejam más notícias para os nossos amigos — disse
Amos.
— Não nos vamos preocupar com isso — recomendou Nicholas. —
Olhai!
Amos viu para onde estava a apontar Nicholas. — Todos a postos —
disse bem alto. — Preparai-vos para avançar.
A begala era um barco de recreio, pertença de um mercador que tanto a
usava para negócios como para diversão. Poderia ser confortável com sete
ou oito pessoas nas três pequenas cabinas e tinha um espaço razoável para
carga lá em baixo. Com bolina cerrada, era lenta, mas ao sabor do vento,
revelava-se bastante veloz. Amos estava a dar-lhe mais velocidade para se
encostar ao segundo navio a deixar o porto.
O primeiro surgira à vista poucos momentos antes, era a cópia do
Gaivota Real. Entretanto, avistaram a imitação do Águia Real e Amos
voltou o seu barco para o alinhar. Calculara como um capitão sábio retiraria
um barco daquele porto, mantendo-se bem junto ao vento para se afastar
dos rochedos potencialmente perigosos dos promontórios que se
transformavam numa vasta península que traçava os limites orientais do
porto protetor. Apesar de as luas brilhantes serem um entrave ao desejo de
Harry de se manter oculto, eram uma bênção para Amos.
Os membros da tripulação trataram de imediato de desempenhar as suas
funções. Não estavam familiarizados com aquele barco. Mas eram todos
marinheiros experientes e desde que haviam embarcado, aproveitaram todos
os momentos para se habituarem aos apetrechos e cordame. Os dois guardas
derrubados quando Nicholas e o seu grupo treparam a bordo foram
amarrados lá em baixo, ilesos, mas profundamente aterrorizados.
A begala avançou como um predador. Ghuda ficou na proa com um cabo
e um gancho de abordagem, tendo três homens junto de si. No total, uma
dúzia dos trinta homens de Nicholas estavam prontos a unir os dois navios
enquanto os outros tratavam do assalto. Nicholas rezou para que o efeito
surpresa os auxiliasse a subjugar a resistência antes que a tripulação do
barco assaltado pudesse reagir. Não faziam ideia de qual seria a totalidade
da tripulação, mas Amos achou que não seriam menos de trinta marujos,
acompanhados por uma quantidade desconhecida de guardas e de
prisioneiros falsos.
Ouviu-se, oriundo de cima, um grito de alerta quando um dos vigias
avisou do avistamento de uma embarcação que se colocava ao lado. Um
arqueiro na proa silenciou-o enquanto Ghuda fazia girar o seu cabo e o
lançava. Instantaneamente, os outros com os cabos seguiram o seu exemplo
e uma meia dúzia de homens no cordame da begala saltaram por cima do
convés mais alto, com facas e espadas empunhadas enquanto procuravam
opositores. Nicholas subiu uma enfrechadura e depois deu um salto de um
metro e vinte por cima da água para se agarrar à amurada do outro barco.
Já estava a postos quando um marinheiro se lançou a ele com um alfange.
Nicholas matou o marujo vestido de negro antes de este poder atacar. Em
seu redor, ouviu o som da luta por entre a escuridão e escutou debilmente o
que lhe pareceu ser um grito inquiridor oriundo do primeiro navio.
Nicholas confiou que todos estariam a desempenhar as suas funções e
apressou-se a entrar no camarote da ré. Se houvesse a bordo pantathianos
ou os seus lacaios mais poderosos, era ali que deveriam estar. Deu um
pontapé na porta do camarote do capitão e ouviu o baque de uma flecha de
besta a cravar-se na madeira do caixilho da porta. O capitão baixou
calmamente a besta e desembainhou uma espada. — Entregai o vosso
navio! — ordenou Nicholas, mas o capitão não respondeu quando avançou
de trás da secretária.
De repente, Nicholas teve de se defender, pois o homem lançou um
ataque furioso. Nicholas recuou e depois contra-atacou e iniciou-se um
intenso duelo. Nicholas era mais jovem e mais lesto, mas o capitão, mais
velho, era nitidamente hábil e experiente. Nicholas tentou focar-se no
adversário, mas não conseguiu deixar de se preocupar com a evolução do
resto da batalha. Sabia que o plano consistia em libertar os dois guardas lá
em baixo na begala, para que pudessem pelo menos tentar manter o barco
afastado das rochas, enquanto Amos e todos os outros saltariam para esta
embarcação. Era um jogo de tudo ou nada, pois se Nicholas e os outros
atacantes fossem forçados a recuar, não teriam para onde ir.
Nicholas deu uma estocada e apanhou o braço do capitão, obrigando-o a
deixar cair a espada. Apontando a ponta da sua espada ao capitão, disse:
— Rendei-vos!
O homem sacou de uma faca que tinha no cinto e atirou-se a Nicholas,
que instintivamente investiu com a sua espada. A espada entrou abaixo do
esterno do homem, penetrando mais acima no coração, e o homem
desfaleceu.
A sensação que percorreu o braço de Nicholas não foi distinta da que
experimentara ao matar Render, e não se revelou menos perturbadora, a
fricção do aço no osso e no tendão. Nicholas retirou a lâmina e voltou-se.
Havia mais dois camarotes naquele piso, com as portas uma em frente à
outra, defronte da do capitão. Nicholas optou pela porta à direita.
Pontapeou-a com força com o pé direito, e depois agachou-se à esquerda, já
aprendida a lição. Não tendo voado nenhuma seta disparada do interior,
espreitou lá para dentro.
O camarote estava vazio. Repetiu os procedimentos com a outra porta, e
saiu de lá disparada uma seta, que só por pouco não lhe acertou. Se não se
tivesse esquivado para o lado, aquela por certo que o teria trespassado.
Saltou para a porta, mas sentiu um ombro a embater-lhe no estômago
quando o primeiro imediato se lançou a ele. Nicholas ouviu tecido a rasgar-
se e sentiu algo a roçar-lhe as costelas, e bateu violentamente com a parte
de trás do punho da sua espada no crânio do homem. Um grunhido de dor
foi a única resposta obtida, e sentiu mais um arranhão nas costelas quando
bateu na cabeça do homem. De repente, o primeiro imediato perdeu os
sentidos e Nicholas afastou-o.
Nicholas pôs-se de pé e sentiu um ardor na ilharga esquerda. Levou lá a
mão, que ficou húmida. Olhou para o chão e viu a faca com que o primeiro
imediato tentara matá-lo manchada de sangue. Nicholas examinou a sua
camisa e viu que a lâmina lhe roçara nas costelas, cortando a pele, mas sem
ser em profundidade. Inspirou profundamente e combateu um acesso de
vertigens quando o seu flanco começou a arder e a latejar.
Nicholas regressou ao convés principal, onde Ghuda e os soldados
pareciam estar em vantagem. Os defensores foram subjugados pela
brusquidão do ataque, e a maior parte deles estava estendida no convés.
Olhando para a sua direita, viu Amos encurralado num canto por dois
homens que se aproximavam dele. Nicholas correu na sua direção para o
ajudar, mas assim que Amos travou o golpe de um dos homens, ele
prendeu-lhe a arma, mantendo-a em cima, o que permitiu ao outro enfiar a
espada no estômago de Amos.
— Amos! — gritou Nicholas assim que golpeou e matou o homem que
sustivera a espada do seu amigo. A seguir, aguentou um ataque do segundo
homem e, com uma riposta, enfiou a ponta da sua espada no corpo dele.
Com um pontapé, afastou para o lado o homem ferido e ajoelhou-se junto
de Amos. Estava inconsciente e respirava a custo, de forma rasa. Nicholas
olhou em redor e viu Ghuda a matar o homem com quem se debatia. A luta
não tinha tréguas.
Nicholas saiu apressadamente de junto de Amos e sentiu uma mão a
agarrar-lhe o tornozelo. Nicholas rebolou e atacou violentamente com a
bota, atingindo o marinheiro ferido no rosto. Ouviu-se o som de ossos a
esmigalharem-se sob o seu calcanhar e o homem urrou de dor.
Nicholas levantou-se de um pulo e espetou a ponta da espada no pescoço
do homem. Rodopiou na altura em que Ghuda gritava: — Eles são
fantásticos, não se rendem!
Nicholas gritou veementemente: — Sem quartel! — Sabia que aquilo
implicava matar todos os homens a bordo. Sentiu um sabor amargo a ácido
na boca e cuspiu, e depois correu a atacar um marinheiro vestido de preto
que, apesar dos ferimentos, estava a erguer-se por detrás de um dos homens
de Nicholas, para o atacar de novo.
O combate pareceu durar interminavelmente e, por duas vezes, Nicholas
poderia jurar que estava a matar homens que já enfrentara antes. De
repente, fez-se silêncio.
— Já se foram todos — anunciou Ghuda.
Nicholas assentiu apaticamente. Estava ensopado em suor e sangue e os
joelhos tremiam-lhe devido ao cansaço. O seu pé esquerdo doía-lhe
pesadamente e tinha a ilharga a arder. E de repente lembrou-se. — Amos!
Correu de volta para o local onde jazia o Almirante tombado e, aliviado,
constatou que ainda respirava. Ghuda ajoelhou-se junto a Nicholas. — Ele
está muito mal — comentou. — Precisamos do Anthony e dos talentos dele.
— Levai-o para o camarote do capitão — indicou Nicholas.
Dois marinheiros pegaram cuidadosamente em Amos e levaram-no para
dentro. Nicholas olhou em volta e viu que todos estavam a fitá-lo. De
repente, percebeu que, com Amos gravemente ferido, teria de ser ele a
comandar o navio. Olhou para lá de Ghuda para um dos marinheiros. —
Quem é o mais velho? — perguntou.
— O Pickens, acho eu, Alteza — respondeu o homem.
— Pickens! — chamou Nicholas, ouvindo em resposta uma voz vinda da
coberta da proa.
— Presente! — Um homem, com trinta e muito anos, desceu
apressadamente da coberta da proa. — Sim, Capitão — disse.
— Sois o primeiro imediato, Pickens. Deitai estes corpos borda fora.
— Sim, Capitão — disse o marujo recentemente promovido. Voltando-se
para a tripulação, exausta e ensanguentada, deu as suas ordens. — Ouvistes
o Capitão! O que esperais? Lançai estes corpos borda fora!
— Estais bem? — perguntou Ghuda.
Nicholas deitou uma olhadela à camisa ensanguentada que tinha vestida.
— Não é nada — respondeu. — É com o Amos que estou preocupado.
— Ele é rijo — referiu Ghuda, embora tivesse sido evidente que também
ele estava preocupado.
— Aprendi muito com o Amos nesta viagem e já antes tinha navegado
bastante — salientou Nicholas. — Só espero estar à altura.
Ghuda respondeu já num tom mais baixo: — Dizei apenas ao vosso Sr.
Pickens o que quereis feito e deixai-o afligir-se com isso.
Nicholas sorriu e crispou-se em simultâneo. — Parece-me bem.
Um marinheiro subiu apressadamente ao convés. — Alt.. ah… Capitão,
há prisioneiros lá em baixo — anunciou.
Nicholas seguiu-o. — Sr. Pickens! — chamou.
— Sim, Capitão?
— Quando terminardes a limpeza, dai meia-volta e dirigi-vos à cidade!
— Sim, Capitão.
Nicholas esboçou um sorriso amargo. — Isto até pode resultar — disse a
Ghuda.
Foram apressadamente para a escotilha principal, de onde olhou para
baixo. De três conveses mais abaixo, uma dúzia de rostos espreitou para
eles. Ninguém falou.
— São dos nossos ou cópias? — questionou Ghuda.
— Não sei — respondeu Nicholas. Sentindo-se subjugado, disse:
— Trancai-os. Resolveremos isso quando descobrirmos os outros.
Pôs-se muito direito e sentiu o barco a rolar sob os seus pés enquanto a
tripulação terminava de empurrar os corpos por cima da amurada, e
regressou à tarefa de fazer navegar o navio. Ghuda deu-lhe uma cotovelada
e apontou, e Nicholas compreendeu. Relutantemente, regressou à escada
que liga o convés às camaratas, de onde acedeu ao tombadilho superior,
para daí supervisionar o barco, dado que era agora o capitão.
Trepando a escada, deu com Pickens em frente à roda do leme, que era
manobrada por um marinheiro. — Marear as velas para mudar de direção
— gritou o imediato. Depois voltou-se para o homem do leme. — Virai a
estibordo. — Por fim, gritou a todos em geral: — Vai virar!
Nos mastros, os marinheiros dirigiram-se a correr para os respetivos
postos. — Este navio é uma cópia perfeita do original, Capitão — disse
Pickens. — Não consigo distingui-lo, Capitão, e velejei no Águia durante
dez anos.
— Qual é o balanço? — perguntou Nicholas.
— Seis feridos, três mortos. Mais dez minutos e teríamos encalhado. Mas
estamos em boas condições.
— Espero que estejais certo — disse Nicholas suavemente.
Quando Nicholas estava imóvel no convés, a acompanhar com o corpo o
balanço do barco, ouviu-se um grito de alerta vindo de cima a anunciar que
havia outro barco por perto. Nicholas sentiu as batidas do coração a
acelerar, mas a mesma voz acalmou-o. — Não há problema, Capitão. Não
vou passar por cima da begala no regresso. — Depois elevou o tom de voz:
— Estai alerta!
Nicholas sorriu e o seu recentemente empossado primeiro imediato disse:
— Porque não ides lá abaixo dar uma vista de olhos a esse ferimento?
Nicholas anuiu. — O leme é vosso, Sr. Pickens.
— Sim, senhor! — disse ele, fazendo de imediato continência.
Nicholas abandonou o tombadilho superior e foi para o local onde os
soldados tratavam dos feridos. Um deles viu-o e, instintivamente, ajudou-o
a despir a túnica. Nicholas olhou para o lado enquanto o homem examinava
o ferimento e depois ergueu as mãos enquanto ele lhe envolvia as costelas
com uma ligadura limpa.
Silenciosamente, rezou para que Harry e os outros estivessem a executar
sem problemas a parte deles do plano.
Perseguição No Mar
O
uviu-se o grito do vigia.
— Barco à vista!
Nicholas desembaraçou-se das intermináveis declarações de
amor eterno da Ranjana. — Aonde? — questionou.
— Completamente à popa.
Levou apressadamente a mão ao peito da rapariga e afastou-a com força
suficiente para a fazer cair, no que foi detida pelas suas criadas. Correu para
a popa e subiu ao tombadilho superior, de onde perscrutou o horizonte.
Passado um bocado, viu uma pequena mancha negra.
— Sr. Pickens — disse —, quanto tempo para desembarcar os barqueiros
e os mercenários?
O primeiro imediato vasculhou a costa. — Se pararmos, uma hora ou
mais, mas se abrandarmos para um ritmo lento e largarmos um escaler,
quinze minutos.
Nicholas dirigiu-se a todos os que estavam no convés. — Podemos enfiar
todos num único barco?
— Não se quisermos que passe a rebentação, Capitão. Três viagens,
embora o ideal fosse quatro.
Nicholas praguejou. — Quanto tempo leva esse navio a alcançar-nos?
— É difícil dizer — referiu o marinheiro. — Se se tratar do navio que
tentou intercetar-nos há duas noites, cerca de uma hora. Se for outro… —
Não terminou o pensamento.
— Muito bem. — Nicholas tomou uma decisão. — Preparai-vos para pôr
toda a gente em alerta, Sr. Pickens. — A seguir, gritou para os que estavam
no convés inferior: — Preparar para lançar um escaler ao mar!
Marinheiros apressaram-se a desengatar um dos barcos grandes atado de
pernas para o ar na cobertura da escotilha da ré. Foi lançado um botaló e o
barco foi rapidamente erguido, transportado para o flanco e depois baixado.
Os barqueiros e os mercenários mais ansiosos por partirem lançaram
rapidamente um par de escadas de corda, com dois marinheiros. Quando
chegaram ao barco, remaram furiosamente em direção à costa e Nicholas
viu, preocupado, quando entraram nas vagas de rebentação e depois
cortaram as ondas rumo à praia. Dois dos barqueiros ajudaram a colocar o
barco de novo na água e os dois marinheiros esforçaram-se para conseguir
transpor as vagas.
— Isto está a demorar muito — comentou Nicholas, olhando para o
ponto no horizonte onde a embarcação perseguidora se revelava cada vez
maior. O barco chegou ao flanco do Águia e a segunda leva de barqueiros e
mercenários apressou-se a descer.
Quando o escaler chegou à praia, o vigia chamou. — Capitão, já lhe vejo
as cores.
Nicholas observou o navio em aproximação e viu que tinha uma bandeira
negra. — Qual é a insígnia? — questionou.
— Tem uma bandeira preta com uma serpente dourada.
— É do Suserano — anunciou Praji.
Nicholas fitou fixamente o barco em aproximação e o ângulo da sua
progressão. — Sr. Pickens, não sou um veterano em águas profundas, mas
diria que aquele navio avança contra o vento.
O marinheiro observou-o por uns instantes. — Sim, Capitão —
confirmou. — Não sois um veterano, mas ele efetivamente avança contra o
vento.
Pouco depois, foi o vigia quem gritou. — Capitão, tem um esporão de
metal na proa.
— Uma galé de guerra. Pode ignorar o vento e remar bem na nossa
direção — disse Nicholas. — Nunca vi nenhuma no porto.
Praji gritou desde o convés principal: — O Suserano tem um lago
particular alimentado pelo estuário; tem lá a sua armada privada.
— E que lago — comentou Ghuda.
— É o droman do Suserano — explicou Praji. — Um banco de
remadores de cada lado e um esporão e uma rampa de abordagem na proa.
Tem uma catapulta no castelo da popa e também uma balista à frente do
mastro.
— Preparai-vos para velejar, Sr. Pickens — ordenou Nicholas. — Não
vou permitir que aquela cabra se aproxime o suficiente para disparar contra
nós. — Passou para a amurada sobranceira ao convés principal e gritou lá
para baixo. — Quando o escaler estiver encostado, levai para lá a Ranjana e
as criadas e quem quer que lá caiba e os restantes de vós tereis de ir a nado.
Vamos partir.
Marcus olhou em volta. — Nicholas, a rapariga não está aqui — disse.
— Encontrai-a! — berrou Nicholas. — Não temos tempo para as
parvoíces dela.
Marcus dirigiu-se rapidamente ao camarote das raparigas e quando o
escaler já estava de novo junto ao navio, os últimos barqueiros e dois
mercenários desceram apressadamente a escada. Irromperam gritos vindos
do camarote por baixo do tombadilho superior e Calis e Ghuda foram de
pronto ver o que se passava. A Ranjana, contorcendo-se, pontapeando,
mordendo e arranhando, estava a ser puxada por Marcus, enquanto Brisa,
Abigail e Margaret reuniam as criadas atrás dela. — Dai-lhe algum ouro
para pagar o regresso a casa e ponde-a borda fora! — ordenou Nicholas.
— Não vou para casa! — guinchou a rapariga, esforçando-se ao máximo
para se desembaraçar do aperto de Marcus. — O Rahajan vai matar-me!
— Lá se foi o amor eterno — disse Brisa, olhando de soslaio para
Margaret com um sorriso perverso.
Um grito proveniente do escaler e chapes na água levaram um marinheiro
a espreitar para fora. — Capitão — chamou —, os mercenários
apoderaram-se do escaler.
Outros dois mercenários de Praji olharam por cima da amurada e
gritaram, e depois treparam e saltaram para a água atrás do barco em fuga.
— Devemos lançar outro barco, Capitão? — quis saber Pickens.
— Não, já não há tempo para isso — disse Nicholas, fitando a galé de
guerra cada vez mais próxima do Águia.
— Atiro-a borda fora? — perguntou Marcus.
— Não! — gritou a rapariga. — Não sei nadar! Vou afogar-me!
Nicholas ergueu as mãos dando mostras de resignação. — Não — disse.
— Pousai-a. — Profundamente irritado, resmungou algo. — Tirai-nos
daqui, Sr. Pickens — disse. — A todo o pano!
— A postos com todas as escotas e ovéns! — berrou o primeiro imediato.
— Içar âncora.
De início devagar, o Águia avançou e depois, já com as velas a ondear e
ao sabor do vento, progrediu como um golfinho.
Nicholas olhou para o navio perseguidor. — Estão suficientemente perto
para disparar sobre nós? — perguntou.
Como que em resposta, uma bola de fogo descreveu um arco desde o
convés do droman e tombou com um chape sibilante uns dez metros atrás
do barco. — Bem, esperemos não ficar sem vento antes que eles percam a
força — disse calmamente Pickens.
Através do mar, Nicholas conseguiu escutar o som débil do tambor usado
para impor o ritmo aos remadores. — Não vão conseguir manter aquele
ritmo de ataque por muito tempo — afirmou, virando costas ao outro navio.
— Os escravos vão começar a fraquejar nos remos.
Pickens assentiu. — Ainda dispõem da sua própria vela, Capitão.
Nicholas olhou de novo para trás, para onde ondeava ao vento a
aterradora vela preta e dourada. — O vento não lhes chega para nos
alcançarem.
— Não, Capitão, mas podem manter-se suficientemente perto para nos
darem problemas se o vento esmorecer.
— Então, rezai por um vento forte, Sr. Pickens. Temos um longo
caminho a percorrer até casa.
— Sim, Capitão.
Nicholas regressou ao convés principal e confrontou a Ranjana, que
estava parada de mãos nas ancas com um ar desafiador. — Não ides lançar-
me borda fora! — ordenou ela.
Nicholas deteve-se, começou a falar, parou e resmungou de novo
qualquer coisa. Virou-lhe costas e dirigiu-se ao seu camarote.
— Ainda bem que ele não me ordenou que vos deitasse borda fora,
rapariga — comentou Marcus, examinando os arranhões que ela lhe fizera.
A Ranjana voltou-se e sacou de uma adaga incrustada de joias de dentro
da ampla cinta da sua saia. — Sim, ainda bem! — vociferou, brandindo a
arma na direção de Marcus.
Lançou a adaga ao chão, tendo ficado cravada a tremer no convés entre
as botas de Marcus. Ela girou sobre si própria e com gestos instruiu as suas
criadas para que a seguissem até ao camarote. Brisa riu-se. — É um poço de
surpresas, não é?
— Acho que o Nicholas vai descobrir isso muito em breve — comentou
Harry.
Margaret e Abigail ficaram a olhar espantadas. — Dissestes que ela era
complicada, mas nada a quanto ser feroz — disse Margaret.
Abigail aproximou-se de Marcus e fez sons carinhosos, para vergonha
dele, enquanto lhe examinava os arranhões. — O que queríeis dizer com
isso, Harry, que o Nicholas ia descobrir em breve? — perguntou Abigail.
Foi Brisa quem respondeu. — Digamos apenas que a rapariga há de
encontrar um modo de levar o Nicholas a fazer o que ela desejar. Ela é
muito dissimulada.
Harry aquiesceu. — E o Nicholas não tem lá muita experiência com
mulheres.
— E vós tendes, Escudeiro? — perguntou Margaret. — Isto vindo do
rapaz que corou quando eu me meti com ele no jardim?
— Muita coisa se passou desde a última vez que nos vimos, irmã —
comentou Marcus.
— Meu amigo, tendes um dom para perceber as coisas — disse Harry,
após o que desatou a rir. Pouco depois, Ghuda imitou-o, e rapidamente
todos no grupo desataram a rir às gargalhadas.
Batalha
N
icholas ficou a observar.
O Gaivota Real de imitação estava a marear as velas,
abrandando num convite provocatório ao Águia para que atacasse.
Amos estava parado no tombadilho superior. Praticamente não saíra de lá
nas duas últimas semanas, mas ainda não solicitara a Nicholas que lhe
devolvesse o comando.
Nicholas fora franco quanto aos seus escassos conhecimentos em termos
de comandar um navio, mas era um aluno aplicado e entre a sua curta
experiência em pequenas embarcações, o tempo em que trabalhara no
Raptor e o que logrou aprender com o imediato Pickens e depois com
Amos, estava a transformar-se num marinheiro de excelência de águas
profundas. Amos dissera-lhe que, ao ritmo a que estava a aprender, daria
um criado de bordo de primeira categoria num ou dois anos. Nicholas
percebeu que o praticamente lendário capitão estivera apenas a gozar, mas
os seus sucessos eram constantemente contrabalançados pela ideia
enervante de que a sua sorte estaria prestes a expirar.
— Eles na verdade não estão a convidar-nos para que ataquemos —
refletiu Amos.
Nicholas concordou. — Eles sabem que não o desejamos… para já. Mas
não imagino qual será a ideia deles.
Amos gritou para cima, para os mastros: — Alguma coisa à popa?
— Nada, Almirante — respondeu o vigia.
Já tinham ultrapassado os Estreitos das Trevas na semana anterior e
seguiam para norte de Durbin. — Não estais efetivamente à espera de
avistar nada lá atrás, pois não? — perguntou Nicholas.
— Nunca se sabe — disse Amos. Cuspiu sobre a amurada. — As
serpentes geraram magia suficiente para criar aqueles transmissores de
pragas e dispuseram de anos para planear isto: provavelmente começaram a
traçar este plano no instante em que o Murmandamus morreu em Sethanon.
Não me espantaria que tivessem forma de fazer aquele estupor do birreme
atravessar o oceano. — Sorriu. — Mais do que isso… não me espantaria
que tivessem um navio de reserva algures no Mar Amaro na eventualidade
de as coisas correrem para o torto. E o abrandamento deles faria todo o
sentido se esperassem ajuda.
— É um risco pelo qual fico grato — disse Nicholas.
Nesse instante surgiu novo alerta do vigia. — Barco à vista!
— Aonde? — gritou Nicholas.
— Mesmo a estibordo, Capitão!
Nicholas e Amos transpuseram a amurada e olharam, e um minuto depois
avistaram uma vela. — Aproxima-se rapidamente — comentou Nicholas.
— Uh-huh, cúter de Kesh — disse Amos. — Corsário saído de Durbin.
Está na hora de hastear a bandeira.
A imitação do navio de guerra do Reino transportava um conjunto
completo de bandeiras e insígnias. — Hasteai a bandeira do Reino e a
insígnia real — ordenou Nicholas.
— Colocai também o meu galhardete, já agora — disse Amos.
Nicholas ordenou que fosse acrescentada a bandeira do Almirante e
rapidamente se viram a esvoaçar grandes e coloridas bandeiras no mastaréu
da gávea e no mastro da mezena.
O cúter keshiano aproximou-se rapidamente deles e de repente desviou-
se para bombordo. Amos riu-se. — O capitão assustou-se ao ver dois navios
de guerra do Reino a regressar de uma patrulha, um deles com o Almirante
da Frota e com um membro da Casa Real a bordo. Por isso, evitou-nos.
O dia arrastou-se e Nicholas manteve a distância face ao Gaivota Real. A
perseguição assemelhou-se a um duelo renhido numa corrida, só que numa
em que o propósito era não apanhar o outro, nem ficar para trás, apenas
manter a distância ideal.
Por altura do pôr-do-sol, o Gaivota desfraldou mais velas. — O filho da
mãe vai tentar escapar-se na escuridão — disse Amos. — Será que não
percebeu que conheço demasiado bem estas águas? Sei por onde deve
regressar para se dirigir a Krondor.
— E se ele não pretender dirigir-se a Krondor? — questionou Nicholas.
— Não tem outra hipótese — respondeu Amos. — Podia seguir para
Sarth ou para o Termo da Terra, mas para quê dar-se ao trabalho? O vosso
pai quase de certeza que anda na Costa Extrema, a tentar perceber a
confusão que criámos em Porto Livre. Acho que esse foi o propósito do que
nos pareceu um ataque desnecessário a Carse, Tulan e Barran. Com aquele
nível de destruição, o vosso pai levaria a maior parte da frota de Krondor
diretamente para a Costa Extrema assim que ultrapassasse os Estreitos.
Depois, seguiria para Porto Livre. — Ponderou por uns momentos. —
Estará provavelmente a decidir se recua aqui ou se segue já atrás de nós.
— Está a virar para norte! — avisou Nicholas.
— Acho que é uma finta — disse Amos. — Esperar um momento,
desenrolar velas, seguir e, assim que escureça e estivermos fora de vista,
regressar a esta rota para Krondor. Aposto tudo o que tenho que iremos vê-
los a menos de uma milha de distância amanhã pelo amanhecer.
— Sei de algo melhor do que cobrir essa aposta — disse Nicholas,
pousando a mão no ombro de Amos. — Vamos comer qualquer coisa?
— Porque não? — disse Amos.
O velho Almirante continuava ainda um pouco vacilante no fim do dia;
no entanto, Anthony considerou que estava completamente recuperado do
ferimento provocado pela espada. A sua força regressaria aos poucos, mas
estaria em forma e em boas condições físicas quando chegassem a Krondor.
Ao descerem a escada para o convés principal, Amos resmungou algo. —
Se navegássemos em linha reta, poderíamos estar em casa em quatro dias.
Mas esta viragem de bordo, como numa corrida de barcos num porto, é um
grande desperdício de vento.
Nicholas concordou. — Estou ansioso por ver isto terminado, mas acho
que sabemos que são reduzidas as hipóteses de aqueles cães assassinos nos
fazerem a vontade.
O vigia gritou lá do alto. — Fumo, Capitão!
— Aonde?
— Mesmo à popa!
Nicholas e Amos regressaram a correr ao convés e espreitaram para o Sol
poente. Uma coluna de fumo erguia-se como uma bandeira esfarrapada. —
Aquele cúter de Kesh deparou-se com alguém.
— Sim, é verdade, mas com quem? — questionou Nicholas.
Casamento
O
s convidados deram vivas.
Lyam, Rei das Ilhas, bebeu depois de ter brindado à noiva e ao
noivo. Amos estava de pé a sorrir, quase irreconhecível nos seus
trajes formais da corte; camisas com laços e fraques tinham-se tornado
moda no Reino naquele ano. Apenas o desejo da sua amada Alicia de que
ele se arranjasse o melhor possível no dia do casamento deles poderia levá-
lo a enfiar-se num daqueles a que chamava de «fatos disparatados». A sua
alternativa era o uniforme de almirante, que desprezava ainda mais, pelo
que assentiu no desejo dela e vestiu-se a rigor.
Nicholas sentou-se com os outros convidados na cabeceira da mesa do
salão de banquetes do palácio do Príncipe em Krondor. À sua direita, a sua
irmã, Elena, e o marido dela estavam a conversar com Erland, um dos seus
irmãos, e com a esposa deste, a Princesa Genevieve. Borric, o gémeo de
Erland, conversava com a esposa, Yasmine, enquanto Alicia olhava em
frente.
A mãe de Nicholas ficou tremendamente emocionada quando viu o seu
filho mais novo a entrar na corte, sem o coxear que o marcara toda a vida.
Nicholas percebera que durante a última batalha estivera tão preocupado em
garantir que tudo estivesse a postos na eventualidade de as coisas correrem
mal, que, se o pé lhe doeu, nem reparou. Nakor referira que a sua
recuperação estava concluída.
Levara meses a planear o casamento e a ter toda a gente reunida em
Krondor. O Rei teve de se deslocar desde a sua corte real em Rillanon para
assistir ao casamento e chegou à corte de Arutha antes de este regressar. A
novidade chegou finalmente ao Príncipe de Krondor quando o Barão
Bellamy de Carse enviou um pequeno barco para Porto Livre, onde Arutha
e a sua armada aguardavam. Amos acertou quase em cheio; após um longo
debate consigo próprio, Arutha decidira não seguir Nicholas e os seus
companheiros.
Na altura em que Arutha regressou a Krondor, Nicholas e Amos
contaram-lhe, assim como ao Rei, toda a história, desde o ataque-surpresa
até à destruição dos dois navios a norte do Termo da Terra. Lyam enviou
um mensageiro especial à Ilha do Feiticeiro, para ver se Pug poderia ser
localizado, e mandou Nicholas e Borric a Sethanon, pois apenas a um
membro da família real poderia ser dado conhecimento da missão.
Nicholas e o seu irmão regressaram duas semanas mais tarde com a
informação de que tudo estava bem em Sethanon, e Nicholas não escondeu
o seu assombro por ter conhecido o Oráculo de Aal. Para sua surpresa, a
Pedra da Vida não estava à vista, pois encontrava-se disfarçada por uma
distorção mágica de tempo lançada por Pug. Ainda assim, o conhecimento
estava lá e vulnerável, apesar de a sua proteção não ter impressionado
Nicholas por aí além depois do que vivera no ano anterior.
O mensageiro enviado à Ilha do Feiticeiro regressou com uma mensagem
de Pug, por intermédio de Gathis, o seu representante, a indicar que o mago
contava marcar presença no casamento. Todos os convidados se reuniram
por fim a horas e teve lugar a cerimónia.
A celebração prosseguiu e Nicholas deu por si descontraído pela primeira
vez em muito tempo. Olhou de relance para a sua companhia naquele dia, e
sorriu. Verificou que Iasha se estava a adaptar bem à corte e o domínio da
língua do Rei era todos os dias mais evidente. Entendeu-se bem com as
damas da corte. A sua criada ferida recuperou e com a ajuda da magia de
Anthony foi poupada às cicatrizes mais graves. As outras três raparigas
eram já o centro das atenções de muitos dos jovens da corte. A história que
corria é que eram cinco irmãs de uma terra distante, filhas de um Príncipe
poderoso, e as raparigas não mostraram grande interesse em contrariar tal
ideia.
Marcus sentou-se com o seu pai e a sua irmã, que apertava com força a
mão de Anthony. Marcus, contudo, desconhecia o hábito de Abigail de
atrair os olhares dos mais elegantes cortesãos do salão. Nicholas reparou
que Abigail estava a namoriscar praticamente às claras com o filho do
segundo filho do Duque de Ran, o cunhado de Elena.
O Duque Martin envelhecera, o seu cabelo passara a ser praticamente
todo grisalho, e o seu porte ereto e passo determinado praticamente haviam
desaparecido. Aquilo que a idade não levara, a mágoa roubara.
Infelizmente, Nicholas constatou que a sua alegria de viver perecera com a
sua esposa. Ele já pusera a hipótese de se retirar em benefício de Marcus
enquanto Duque. Nicholas sabia que teriam lugar longas discussões entre o
Rei, Arutha e Martin antes que lhe fosse permitido dar esse passo. Ainda
assim, Martin pareceu profundamente aliviado por ter os seus filhos de
volta. Tentou expressar a sua gratidão a Nicholas, forçando um encontro
embaraçoso entre ambos. Nicholas percebeu que terá sido uma
convalescença angustiante para Martin estar à espera de notícias dos filhos.
Nicholas apenas conseguiu dizer: «Era o que teríeis feito no meu lugar.»
Martin nada mais logrou fazer que não fosse aquiescer, com lágrimas nos
olhos; e então abraçou o sobrinho. Nicholas compreendeu o quanto aquela
abertura lhe fora difícil.
As gargalhadas de Abigail despertaram Nicholas dos seus devaneios.
Recostou-se para trás, e, nas costas de Iasha, dirigiu-se a Harry. — Durante
quanto tempo achas que o Marcus vai aguentar aquilo?
Harry sorriu. — Neste preciso momento, acho que ele agradeceria que
alguém o livrasse da Abby.
Brisa deu um toque a Harry por debaixo da mesa. — Vós os dois parai
com isso.
Iasha sorriu. — A Abby só está a assegurar-se de que o Marcus não toma
as coisas por garantidas. Ele foi o primeiro amante dela, mas ela não quer
que ache que não tem mais opções. — Riu-se. — O mais certo é acabarem
por casar; ela ama-o de verdade. — Brisa observou Marcus por uns
momentos. — Ele é bem atraente, no seu jeito carrancudo, como o vosso
pai. — Olhou de soslaio para Nicholas. — A ambos lhes faz falta a vossa
natureza bondosa. — E depois prosseguiu num tom jocoso: — Além disso,
ao vosso primo falta-lhe a vossa… imaginação.
Nicholas teve o pudor de corar. A seguir fez uma expressão sombria. —
Como é que…
Brisa sorriu mostrando os dentes. — Foi a Abby. Após a primeira vez
dela, sentiu a necessidade de falar com alguém. Vós, homens, tendes uma
ideia errada daquilo que as mulheres falam quando não estais por perto.
Nicholas levou a mão à cara, tapando os olhos. — Pobre Marcus. — E
depois os seus olhos arregalaram-se quando se virou para Brisa e Iasha. —
Que dizeis vós as duas?
Brisa voltou a sorrir abertamente, mas manteve-se em silêncio. Passado
um bocado, Nicholas não conseguiu deter um sorriso. A rapariga da rua
tinha um ar deslumbrante. O seu cabelo ruivo-escuro crescera o suficiente
desde a viagem, de modo que Anita e as suas criadas tinham conseguido
penteá-lo bem para cima, ornamentado com prata e pérolas. Usava um
vestido verde-escuro feito para a ocasião, que lhe realçava claramente os
olhos e a pele.
Iasha optara por um vestido azul-escuro e era sem dúvida uma das
mulheres mais belas da corte. Continuava a falar em arranjar um marido
rico, mas Nicholas constatou que não parecera muito apressada em fazê-lo.
Quando o jantar se aproximou do seu final, Borric aproximou-se e
pousou a mão no ombro do irmão. — Maninho, é requerida a vossa
presença, e a da vossa amiga, nos aposentos privados da família —
sussurrou. Depois, virou-se para Harry. — Assim como a vossa, Escudeiro,
e a da vossa senhora.
Conforme os convidados iam saindo, alguns para regressarem de
carruagem à cidade, outros para se dirigirem aos quartos de hóspedes
preparados para os receber durante a visita a Krondor, a família do Rei
reuniu-se nos aposentos familiares reais. Com todos os primos, tias e tios e
parentes por afinidade presentes, a «família» reunida era uma multidão
quase tão barulhenta quanto o fora quase todo o casamento.
Ao entrar no grande salão, Nicholas meneou a cabeça na direção da sua
tia Carline, uma mulher ainda bela com o seu cabelo grisalho prateado. O
seu marido, Laurie, Duque de Salador, sorriu e piscou o olho a Nicholas.
Nicholas sabia que antes de a noite terminar, Laurie seria o centro das
atenções, cantando e interpretando no seu velho alaúde que levava para
todo o lado. Não sendo já o trovador impetuoso que fora na sua juventude,
Laurie era ainda um excelente cantor capaz de prender a atenção de uma
audiência durante horas. A filha deles e os dois filhos estavam sentados
num canto, a planear uma espadela até à cidade com alguns dos cortesãos
mais jovens do palácio assim que fosse aceitável pedirem autorização para
sair. Nicholas mal conseguiu acreditar que tinha a mesma idade deles;
sentiu como se tivesse envelhecido uma década no último ano.
Gunther, o filho mais velho do Duque de Ran, segurava a mão de Elena,
que estava sentada junto à sua mãe. Prestes a dar à luz o seu primeiro
rebento, irradiava uma alegria plena. Anita rejubilou na presença dos seus
netos e provavelmente faria tudo para manter a família em Krondor por
mais alguns dias além do planeado.
Borric e a sua esposa, a Princesa Yasmine, entraram e as portas
fecharam-se atrás deles. Diversas crianças estavam ausentes e Nicholas
sabia que toda a gente achava que elas se iriam revelar demasiado
rabugentas e agitadas durante a celebração familiar mais discreta. Estava a
ficar tarde e rapidamente os dois filhos mais velhos de Borric e Yasmine
teriam de ser levados para a cama.
Além da família, entre os convidados contavam-se Harry, Brisa, Iasha,
Abigail e o seu pai, o Barão Bellamy. Os dois filhos de Bellamy não tinham
aparecido por terem ficado a supervisionar a reconstrução de Carse e
Crydee.
Abriu-se uma segunda porta e entrou Nakor, com um manto azul
maravilhosamente confecionado, com uma capa curta magnífica
ornamentada com um complexo desenho de linhas brancas e prateadas.
Atrás dele surgiu um homem vestido de preto, escoltando uma bela mulher
de cabelo dourado.
Nicholas e Harry ficaram imóveis, prestes a abrirem a boca de espanto.
— Pug. Ryana! — exclamou Nicholas. Recompôs-se. — Lady Ryana, é um
prazer.
A bela mulher, apesar de estranha, assentiu com a cabeça na direção de
Nicholas e trocaram sorrisos. A seguir entraram Prajichetas, bastante
inibido, e Vajasiah, elegantemente vestido. Calis foi o último a entrar e a
porta foi de novo fechada atrás deles.
O Rei, que apesar da idade mantinha o seu ar imponente, estava junto a
uma lareira enorme, mas apagada, pois a tarde de verão apresentou-se
quente. O seu cabelo louro estava apenas ligeiramente grisalho e com o
passar dos anos, tornara-se mais claro, quase branco, e o seu rosto
evidenciava as rugas das pressões do cargo. Aliviado, Lyam retirou o
pequeno anel do seu posto. Olhou para baixo para a sua esposa, a Rainha
Magda. — Nós vivemos para estes momentos informais — disse, sorrindo,
parecendo até rejuvenescido. — Agora, por um bocado, o «nós» pode
passar a ser «eu». — Martin e Arutha foram colocar-se junto do irmão, com
o primeiro ainda a coxear um pouco devido ao ferimento.
Entrou um porteiro que manteve a porta aberta para abrir caminho a uma
fila de criados, transportando canecas de vinho. Antes de tomar a palavra,
Lyam aguardou que fossem distribuídas por todos os presentes. — Muitos
de vós estais ao corrente do que se ouviu falar no último ano ao longo da
Costa Extrema. Apenas alguns conhecem toda a história. Mas o que desejo
que todos saibam é que o meu sobrinho, o Príncipe Nicholas, fez algo
notável. — Fez uma pequena pausa enquanto todos os olhares incidiam em
Nicholas. — Na sua expedição para ir resgatar a sua prima e os outros que
foram ilicitamente levados da sua terra, navegou meio mundo e, contra
todas as expectativas, regressou com todos os que logrou salvar.
»Gostaria de ter proposto este brinde durante a cerimónia do casamento,
para que toda a gente do Reino pudesse tomar conhecimento desta
extraordinária façanha, mas como o momento era do Amos e da Alicia,
achei melhor esperarmos até que nós, a família e os amigos de Nicholas,
estivéssemos a sós. Proponho então um brinde ao Nicholas, que traz
orgulho e honra ao nome conDoin.
— Ao Nicholas — disseram todos, e beberam das suas canecas.
Quando os criados saíram da sala, Nicholas viu todos os olhos postos em
si. Enrubesceu e teve dificuldade em engolir, e os seus olhos ameaçaram
verter lágrimas. Aclarou a garganta. — Obrigado a todos — disse. Apertou
a mão de Iasha antes de prosseguir. — Mas o que fiz, fi-lo com a ajuda de
bons homens e mulheres, muitos dos quais não estão aqui hoje entre nós. —
Ergueu a sua caneca. — Aos amigos ausentes.
— Aos amigos ausentes — repetiram todos, e beberam.
A reunião mais pequena apartou-se em grupos de pessoas a conversarem
sobre família e amigos, perguntando pela saúde de familiares mais velhos
ou pelo crescimento das crianças. Nicholas ficou espantado por constatar
que, excetuando a dimensão da reunião e o poder das pessoas presentes, não
era muito diferente de qualquer outra reunião familiar.
Pug aproximou-se e encaminhou Nicholas para um recanto mais
afastado. — É a primeira oportunidade de que dispomos para conversar.
Fizestes tudo aquilo que vos poderia ser pedido, Nicholas, e ainda mais do
que isso.
— Obrigado.
— Calculo que desejeis colocar algumas perguntas — disse Pug.
— O Dahakon? — perguntou Nicholas.
— Verdadeiramente morto — esclareceu Pug. — Ele era perigoso e ao
mantê-lo ocupado durante os meses que durou a vossa viagem, debilitei-lhe
os poderes. Usou praticamente tudo o que lhe restou para enviar aquele
navio de guerra atrás de vós. A Ryana tornou-se demasiado forte para ele,
assim que o Calis o distraiu com aquela haste de madeira.
— O Nakor mostrou ao Anthony como fazê-lo. — Nicholas sorriu. —
Estou surpreendido por terdes trazido a Ryana.
Pug retribuiu o sorriso. — Faz parte da educação dela — explicou
calmamente. — Não é fácil para alguém da espécie dela fazer-se passar por
humano.
Nicholas olhou para o local onde Vajasiah estava a conversar com Ryana,
com todos os seus gestos e expressões especialmente concebidos para a
seduzir. — Parece-me que neste preciso momento estará a ter uma
interessante lição.
Pug sorriu. — Não se comparará à que ele irá ter se ela entender
escapulir-se com ele. Há nuances do comportamento humano que ela ainda
não entende. Apesar da idade e do poder, em muitos aspetos não passa para
já de uma criança.
— Uma questão — pediu Nicholas.
— Qual?
— Quando fui pela primeira vez à vossa ilha, quanto do que estava em
curso era já do vosso conhecimento?
— Alguma coisa — respondeu Pug. Depois, baixou ainda mais o tom de
voz. — Recebi uma mensagem do Oráculo de Aal a avisar de um padrão
em aproximação. Em função do que fizéssemos, havia vários desfechos
possíveis.
»Poderia ter destruído os salteadores, se tivesse sabido que eles viriam,
mas então não teria sabido nada do envolvimento dos pantathianos e do
perigo da praga. Se tivesse ido atrás dos prisioneiros, mesmo aqueles
poucos que salvastes ter-se-iam perdido e os pantathianos poderiam
continuar a procurar outros para servirem de molde para os seus portadores
de pragas.
— Há uma coisa que não percebo — disse Nicholas. — Porquê este
trabalho todo? Porque não enviar simplesmente uns portadores de pragas
para Krondor?
— Se a praga irrompesse na cidade, todos os magos de Stardock e dos
Templos se encarregariam de assegurar que o Príncipe e os seus pares de
posições mais elevadas seriam poupados — explicou Pug. — A liderança
deles é muito importante. Mas se a praga irrompesse no palácio, imaginai a
confusão que seria se o vosso pai e os conselheiros dele, os comandantes de
patente mais elevada, os mercadores e líderes dos grémios… se todos
figurassem entre os primeiros a sucumbir.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Então foi por isso que nos deixastes
seguir em frente e descobrir o plano.
— Achei que era melhor ameaçar o mago mais poderoso deles,
deixando-vos a vós arruinar o resto do plano. Senti que estaríeis no âmago
deste obscuro confronto e o Nakor confirmou o meu julgamento. — Pug
olhou por cima do ombro. — Que mente fascinante ele tem. Estou a tentar
convencê-lo a regressar à Ilha do Feiticeiro por uns tempos.
Nicholas suspirou. — E a Lady Clovis?
— Daquilo que o Nakor me contou — disse Pug —, ainda deverá estar
viva lá em baixo, a conspirar. Ainda teremos novidades dela.
— Ou dos pantathianos — acrescentou Nicholas.
Pug fitou o jovem Príncipe. — Já conheço essa expressão — disse. — Já
a vi suficientes vezes no vosso pai. Escutai: um dia alguém vai travar a
ameaça deles, mas ninguém disse que teríeis de ser vós. — Sorriu. — Já
fizestes mais do que seria de esperar de toda a vossa vida. — Pug olhou de
soslaio para o grupo de jovens raparigas que estavam a conversar. — Ides
desposar aquela vossa amiga?
Nicholas sorriu abertamente. — Às vezes, acho que sim, outras vezes,
acho que não. Ela não para de falar em encontrar um marido rico, pois não
acredita que o meu pai, ou o Rei, autorizem tal desenlace. — Baixou de
novo o tom de voz. — E, verdade seja dita, às vezes é o que eu desejo, mas
outras vezes ando à procura de um marido rico para ela.
Pug riu-se. — Conheço a sensação. Quando era muito jovem, a vossa tia
Carline fez-me sentir frequentemente da mesma maneira.
Nicholas arregalou os olhos. — O tio Laurie sabe disso?
— Quem é que achais que os apresentou? — disse Pug.
— Tenho um anúncio a fazer — declarou o Rei. Todos os olhares
incidiram nele. — O meu Lorde Henry de Ludland informa-me que o seu
filho, Harry, está para casar — disse.
Houve vivas e aplausos na sala e as mulheres juntaram-se em redor de
Brisa, abraçando-a. Nicholas e Pug abriram caminho até ao local onde
estava um corado Harry a receber os parabéns, e Nicholas apertou-lhe a
mão. — Seu sacana — atirou, rindo-se —, nunca disseste nada.
Ele inclinou-se para a frente de modo a que apenas Nicholas conseguisse
ouvi-lo. — Sou o filho do meio de um pequeno Conde; tive de a pedir em
casamento antes que o filho de algum Duque rico ma roubasse. Quando a
conhecemos, alguma vez achaste que seria tão bela? — Nicholas não teve
argumentos para o contestar. — Além disso, vamos ter um bebé —
segredou Harry.
Nicholas riu-se. — Será que devo dizer ao tio Lyam para que também
anuncie isso? — perguntou.
Harry fez um esgar e ergueu a mão. — Isso levaria o meu pai à cova.
Esperaremos uma semana ou duas após o casamento, obrigado.
— Quando será?
— Assim que seja possível, dadas as circunstâncias — revelou Harry.
Nicholas concordou, entre gargalhadas.
E então Lyam tomou de novo a palavra. — O meu irmão Arutha tem algo
para vos comunicar.
Arutha esboçou um raro sorriso. — O meu filho e o Harry — Amos
aclarou nitidamente a garganta — …com a ajuda do Almirante Trask,
conseguiram efetuar a primeira conquista de novos territórios desde que o
meu avô se apoderou da Costa Extrema. Com uma agradável ausência de
sangue, devo acrescentar. — Ergueu a sua caneca para uma saudação. —
Como agora precisamos de alguém que governe Porto Livre, com a
permissão do meu irmão, nomeio Harry, antigo escudeiro do meu filho,
novo Governador de Porto Livre e das Ilhas do Ocaso.
— E será promovido ao posto de Baronete da Corte do Príncipe —
acrescentou Lyam.
Mais uma vez, todos deram os parabéns a Harry e Arutha fez sinal a
Nicholas para que se colocasse ao seu lado. — E vós? — perguntou ao seu
filho mais novo. — Já pensastes no que gostaríeis de fazer? Não vos posso
enviar de novo para Crydee como escudeiro, pois não?
— Já pensei no assunto, pai — revelou Nicholas. — Gostaria de
regressar ao mar. Gostaria de ter um barco.
Amos riu-se. — Disse ao Arutha que poderíeis estar interessado no meu
cargo agora que me vou reformar.
Nicholas também se riu. — Amos, ainda não estou preparado para me
chamar a mim próprio Almirante.
— Com o tráfego que vai começar a passar por Porto Livre, Carse em
breve tornar-se-á um grande entreposto comercial — referiu Amos. — É o
melhor porto da Costa Extrema. Vai haver muitos fracos de espírito a
tentarem a sua sorte na pirataria, por isso precisaremos de homens fortes em
veleiros lá fora.
— Vamos ter de manter uma esquadra em Porto Livre — acrescentou
Arutha. — O Amos tem razão, com esse acordo imbecil de comércio livre
que sancionastes, ides ter todos os mercadores e contrabandistas das três
nações a rastejar para essas ilhas. O vosso Patrick Duncastle parece ser
muito capaz no que toca a partir cabeças, um bom Alto Xerife do Rei, mas
vamos necessitar de administradores, e é por isso que vou enviar o Harry. O
Amos diz que ele é o indicado para lidar com mercadores e larápios.
— É verdade — confirmou Amos. — Se eu voltasse a navegar, iria
querê-lo de pronto a bordo do meu barco; é um intrometido de primeira
categoria e tem cá um jeito para resolver discussões. E a Brisa de certeza
que sabe movimentar-se bem naquela cidade.
— Então muito bem — disse Arutha a Nicholas. — Vou enviar o Águia
para se juntar aos dois barcos que deixei em Porto Livre. Dar-vos-emos o
vosso posto de Capitão e ficareis a comandar aquela esquadra de piratas que
o William Andorinha está lá a organizar. Do que já ouvi, sereis um
oponente à altura daqueles salteadores, pois ultimamente já tentastes a
vossa sorte na pirataria.
Nicholas sorriu abertamente. — Por assim dizer.
— O Lyam vai nomear o Marcus Administrador do Ocidente quando o
Martin se retirar, por isso respondereis perante ele — prosseguiu num tom
levemente jocoso. — Ia promover-vos a Barão da Corte do Príncipe, o que
vos daria uma posição que permitiria verificar se o Harry não se desviaria
muito da rota, mas talvez deva convencer o Lyam a criar um título especial
para vós… digamos, o Corsário do Rei?
Nicholas riu-se. — Capitão serve muito bem, pai — afiançou. — Avisar-
vos-ei quando achar que posso tentar ser Almirante.
Arutha riu-se e colocou o braço sobre os ombros do filho. — Deixais-me
orgulhoso, Nicky.
Anita juntou-se a eles e abraçou o filho. — Gosto da vossa amiga,
Nicholas — disse. — Tem um modo de estar pouco comum.
— Ela é… diferente — comentou Nicholas.
Riram-se todos e regressaram à festa. Com o decorrer da noite, foram
partilhadas recordações e expressas esperanças, e uma família que conheceu
a alegria e a tristeza sentiu um grande prazer pelo simples facto de estar
reunida.
FIM
Biografia