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Ficha Técnica

Título: Os Filhos de Krondor - O Corsário do Rei


Autoria: Raymond E. Feist
Editor: Luís Corte Real
Esta edição © 2020 Edições Saída de Emergência
Título original The King’s Buccanneer © 2009 Raymond E. Feist
Publicado originalmente nos E.U.A. por Harper Voyager, 2009
Tradução: José Remelhe e Rui Azeredo
Revisão: Idalina Morgado
Design da capa: Saída de Emergência
Data de Edição E-Book: Abril,2020
isbn: 978-989-773-274-4
Edições Saída de Emergência
Taguspark - Rua Prof. Dr. Aníbal Cavaco Silva,
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2740-296 Porto Salvo, Portugal
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Dedicatória

Para o Ethan e para a Barbara


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Agradecimentos

Esta obra não existiria se não fossem as férteis imaginações dos originais
«Thursday Nighters», bem como dos «Friday Nighters», que a eles se
seguiram. Steve A., April, Jon, Anita, Rich, Ethan, Dave, Tim Lori, Jeff,
Steve B., Conan, Bob e dezenas de outros que a nós se juntaram ao longo
dos anos conferiram a Midkemia uma qualidade de riqueza que uma só
pessoa nunca conseguiria conceber. Obrigado pelo maravilhoso mundo com
o qual podemos jogar.
Obrigado à Janny Wurts por me deixar aprender com ela durante os
quase sete anos de colaboração. E ao Don Maitz pela sua visão, perícia e
maestria, e por apoiar as escolhas da Janny.
Ao longo dos anos, trabalhei com uma grande diversidade de editores na
Doubleday e na Grafton, hoje em dia integrada na HarperCollins.
Agradecimentos especiais à Janna Silverstein da Bantam Doubleday Dell
por tomar as rédeas da situação e à Jane Johnson e ao Malcom Edwards da
HarperCollins por me acolherem quando os seus predecessores partiram,
nunca perdendo uma pitada. Também àqueles que referi das duas editoras,
alguns já partidos para outras andanças, mas nenhum esquecido. Desde os
colaboradores dos departamentos de vendas, marketing, publicidade e
promoção, àqueles que simplesmente leram os livros e fizeram comentários
positivos sobre eles aos colegas, a todos vós os meus agradecimentos.
Muitos de vós superaram-se para que os resultados fossem positivos.
Gostaria de agradecer a algumas pessoas a quem nunca o fiz: a Tres
Andreson e aos seus colaboradores, ao Bob e à Phylis Weinber, e ao Rudy
Clark e à sua equipa, que fizeram mais do que vender livros – geraram
entusiasmo e ajudaram a que as obras se destacassem das demais logo
desde o início.
Como sempre, o meu obrigado ao Jonathan Matson e a toda a equipa da
Harold Matson Company por me darem muito mais do que bons conselhos
comerciais.
Acima de tudo, obrigado à Kathly S. Starbuck, que dedicou tempo a
garantir que este livro não descarrilaria. Não o teria conseguido sem o seu
amor, apoio e sabedoria.
Raymond E. Feist
San Diego, Califórnia; fevereiro de 1992
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Prólogo

Encontro

G
huda espreguiçou-se.
Ouviu-se uma voz de mulher vinda da porta atrás das suas
costas:
— Saiam daqui!
O antigo guarda e mercenário recostou-se na cadeira do alpendre da sua
estalagem e pousou os pés sobre a trave de prender os cavalos. Em segundo
plano, estava a começar a habitual serenata de final de tarde. Enquanto os
viajantes abastados ficavam hospedados nos grandes hotéis da cidade ou
nas estalagens palacianas ao longo das praias de prata, a Estalagem do Elmo
Amolgado, propriedade de Ghuda Bulé, servia uma clientela mais
turbulenta: carroceiros, mercenários, agricultores que levavam as colheitas
para a cidade e soldados rurais.
— Tenho de chamar a guarda da cidade? — gritou a mulher do interior
da sala comum.
Embora fosse um homem corpulento, Ghuda tivera trabalho suficiente a
gerir a estalagem, pelo que não engordara e ainda mantinha as suas armas
bem amoladas; mais vezes do que gostava de recordar, fora obrigado a
expulsar um ou outro cliente.
Os finais de tarde, antes do jantar, eram o seu momento do dia predileto.
Sentado na sua cadeira, conseguia ver o Sol a pôr-se sobre a baía de Elarial,
enquanto o fulgor ofuscante do dia se transformava num delicado rubor que
pintalgava os edifícios brancos de delicados tons de laranja e dourado. Era
um dos poucos prazeres que conseguia guardar para si mesmo numa vida
que, de outro modo, era bastante exigente. Ouviu-se um grande estrondo no
interior do edifício e Ghuda resistiu à urgência de ir ver o que se passava. A
sua mulher avisá-lo-ia quando fosse necessária a sua intervenção.
— Saiam daqui! Vão lutar lá para fora!
Ghuda desembainhou um punhal, um dos dois que geralmente trazia no
cinto, e começou a poli-lo distraidamente. O ruído de louça de barro a partir
ecoou do interior da estalagem. Logo de seguida ouviu-se o grito de uma
rapariga, e depois o som de corpos a lutar.
Ghuda contemplou o pôr-do-sol enquanto polia a lâmina. Quase com
sessenta anos, o seu rosto assemelhava-se a um mapa de couro envelhecido,
evidenciando anos de trabalho a guardar caravanas, lutas, tempo
demasiadamente mau, má alimentação e mau vinho, no qual se destacava
um nariz que já fora partido demasiadas vezes. Perdera grande parte do
cabelo no cocuruto, restando-lhe uma franja grisalha que lhe dava pelos
ombros e que começava a meia distância entre o alto da cabeça e as orelhas.
Embora nunca se pudesse dizer que fosse bem-parecido, ainda mantinha
algum do seu encanto: uma maneira de ser tranquila e franca que fazia com
que as pessoas confiassem e gostassem dele.
Deixou o olhar percorrer a baía, enquanto o cintilar prateado e rosáceo da
luz do Sol reluzia sobre águas de esmeralda e as aves marinhas grasnavam e
mergulhavam em caça da refeição. O calor do dia desaparecera, deixando
uma ténue brisa fresca que emanava da baía, delicada com vestígios do sal
do mar, e, por instantes, pensou se a vida poderia ser melhor para alguém
com as suas origens simples. Depois, semicerrou os olhos contra o brilho do
Sol enquanto este tocava o horizonte, pois vinda de oeste aproximava-se
uma silhueta caminhando decididamente na direção da pequena estalagem.
De início, não passava de um pequeno ponto negro que se entrepunha
entre o brilho do sol-pôr, mas não tardou a ganhar detalhe. Havia algo
naquela silhueta que pôs em sobressalto o canto mais recôndito do cérebro
de Ghuda, que fixou o olhar no desconhecido enquanto este ganhava forma.
Aproximou-se um homem esguio de pernas arqueadas envergando uma
túnica azul empoeirada e esfarrapada, amarrada por cima do ombro. Era um
isalani, um cidadão de Isalan, uma das nações do Sul do Império do Grande
Kesh. Trazia ao ombro uma velha mochila preta e usava um comprido
bordão como bengala.
Quando o homem se aproximou o suficiente para que fosse possível
identificar inequivocamente as suas feições, Ghuda disse em voz baixa:
— Por todos os deuses, ele não.
Ouviu-se um grito lancinante vindo do interior do edifício e Ghuda
levantou-se. O homem chegou junto do alpendre e tirou a mochila do
ombro. Uma coroa de lanugem circundava uma cabeça de outro modo
calva; um rosto de traços que faziam lembrar um abutre olhou solenemente
para Ghuda, depois abriu-se num largo sorriso. Abriu o velho saco
poeirento. Num tom de voz áspero e familiar, disse:
— Quereis uma laranja? — Enfiou a mão no saco e tirou de lá duas
grandes laranjas.
Ghuda agarrou o fruto que lhe foi atirado e perguntou:
— Nakor, pelos Sete Infernos Inferiores, o que vos traz aqui?
Kakor, o isalani, ocasional batoteiro e vigarista, sábio em certo sentido da
palavra, e inquestionável lunático segundo o entender de Ghuda, fora em
tempos companheiro do ex-mercenário. Nove anos antes, tinham-se
conhecido e viajado com um jovem vagabundo que convencera Ghuda (não
fora preciso convencer Nakor) a fazer uma viagem até à Cidade de Kesh,
uma jornada envolta em assassínio, política e tentativa de traição. Acabara-
se por saber que o vagabundo era o Príncipe Borric, herdeiro do trono do
Reino das Ilhas, e Ghuda lucrara com esse encontro ouro suficiente para
viajar e descobrir esta estalagem, a viúva do anterior proprietário e os
ocasos mais gloriosos que alguma vez vislumbrara. O seu desejo era nunca
mais ter de fazer uma viagem como aquela. Agora, com um aperto no
coração, percebeu que esse desejo provavelmente não iria realizar-se.
— Vim buscar-vos — disse o pequeno homem de pernas arqueadas.
Ghuda recostou-se na cadeira quando uma caneca de cerveja saiu a voar
pela porta. Nakor esquivou-se agilmente. — Está ali uma bela cena de
pancadaria — comentou. — Carroceiros?
Ghuda abanou a cabeça. — Hoje não temos hóspedes. São apenas os sete
filhos da minha mulher a destruir a sala comum, como é já hábito.
Nakor pousou a mochila, sentou-se na trave de prender os cavalos e
disse:
— Bem, dai-me algo que comer, e depois podemos partir.
Ghuda voltou a afiar o punhal. — Partir para onde? — perguntou.
— Para Krondor.
Ghuda fechou os olhos por instantes. A única pessoa que ambos
conheciam em Krondor era o Príncipe Borric. — Esta não é, de modo
algum, uma vida perfeita, Nakor, mas estou muito satisfeito aqui. Agora,
ide embora.
O pequeno homem trincou a laranja, arrancou um grande pedaço de
casca, e cuspiu-o. Mordeu com força a laranja e sorveu-a ruidosamente.
Limpou a boca com as costas da mão. — Satisfeito com o quê? —
perguntou, apontando para a entrada sombria, através da qual o choro de
uma criança acompanhava a generalidade dos berros e objetos a partir.
— Bem, às vezes é uma vida dura, mas raramente tenho alguém a tentar
matar-me — disse. — Sei onde vou dormir todas as noites e alimento-me
bem e tomo banho regularmente. A minha mulher é carinhosa e as
crianças… — Um novo berro estridente de uma criança foi interrompido
pelo choro enraivecido de outra. Ghuda olhou para Nakor e disse:
— Vou arrepender-me de perguntar, mas porque temos de ir a Krondor?
— Temos de ir visitar um homem — respondeu Nakor enquanto se
recostava na trave, passando um pé por detrás de um esteio para se
equilibrar.
— Uma coisa é certa, Nakor, vós nunca aborreceis ninguém com
pormenores desnecessários. Que homem?
— Não sei. Mas ficaremos a saber quando lá chegarmos.
Ghuda suspirou. — Da última vez que vos vi, íeis rumo a norte,
abandonando a Cidade de Kesh, na direção daquela ilha de magos,
Stardock. Leváveis vestida uma enorme capa e uma túnica azul de
qualidade magnífica, a vossa montada era um garanhão preto do deserto
que valia o soldo de um ano e leváveis uma bolsa cheia de ouro da
Imperatriz.
Nakor encolheu os ombros. — O cavalo comeu erva estragada, ficou com
cólicas e morreu. — Passou os dedos pela túnica azul esfarrapada que trazia
vestida. — A enorme capa estava sempre a apanhar bichos e tive de a deitar
fora. A túnica é esta que ainda estou a usar. As mangas eram muito
compridas, por isso arranquei-as. A cauda arrastava pelo chão e eu estava
sempre a tropeçar, por isso cortei-a com a minha adaga.
Ghuda contemplou a aparência andrajosa do antigo companheiro. —
Dispúnheis de fundos suficientes para irdes a um alfaiate — disse.
— Andei demasiado ocupado. — Olhou de relance para o céu azul-
turquesa, sarapintado de nuvens cor-de-rosa e cinzentas. — Gastei o
dinheiro todo e fartei-me de Stardock — disse. — Decidi ir para Krondor.
Ghuda sentiu-se a perder o controlo. — Da última vez que consultei o
mapa, a viagem de Stardock até Krondor via Elarial era considerada o
caminho mais longo — disse.
Nakor encolheu os ombros. — Precisava de vos encontrar. Por isso
regressei a Kesh. Havíeis dito que poderíeis ir para Jandowae, por isso fui
até lá. Depois disseram-me que havíeis ido para Faráfra, por isso lá fui eu.
Depois segui no vosso encalço até Draconi, Caralyan, e depois até aqui.
— Pareceis especialmente determinado em encontrar-me.
Nakor inclinou-se para a frente, e o seu tom de voz alterou-se. Ghuda já o
ouvira a falar neste tom e sabia que ele ia dizer algo importante. — Coisas
importantes, Ghuda. Não me pergunteis porquê; eu não sei. Mas digamos
que às vezes antevejo coisas.
»Tendes de vir comigo. Iremos a lugares onde poucos homens de Kesh
alguma vez foram. Agora, ide buscar o vosso gládio e a mala e vinde
comigo. Parte amanhã uma caravana rumo a Durbin. Arranjei-vos trabalho
como guarda; eles lembram-se de Ghuda Bulé. De Durbin, poderemos
apanhar um barco para Krondor. Devemos chegar lá em breve.
— Porque hei de dar-vos ouvidos? — indagou Ghuda.
Nakor sorriu e a sua voz assumiu outra vez aquele tom trocista e jovial
que era seu apanágio. — Porque estais aborrecido, não é assim?
Ghuda ouviu o seu enteado mais novo a chorar por causa de alguma
maldade feita por algum dos seis irmãos. — Bem, não se pode dizer que as
coisas por estas bandas sejam muito animadas… — Seguiu-se outro grito.
— Ou tranquilas… — acrescentou.
— Vinde. Despedi-vos da mulher e partamos.
Ghuda levantou-se com uma sensação ambígua de resignação e
ansiedade. — É melhor esperardes por mim no parque das caravanas —
disse, voltando-se para o homem mais pequeno. — Tenho de dar algumas
explicações à minha mulher.
— Casastes? — perguntou Nakor.
— Por uma razão ou outra nunca chegámos a esse ponto — respondeu
Ghuda.
Nakor sorriu. — Nesse caso, entregai-lhe algum ouro, se ainda o tendes,
dizei-lhe que regressareis e partamos. Dentro de um mês terá outro homem
sentado naquela cadeira e deitado na sua cama.
Ghuda permaneceu à porta durante algum tempo, contemplando a
luminosidade do Sol que desaparecera enquanto esta diminuía de
intensidade. — Vou sentir a falta dos ocasos, Nakor — disse.
O isalani continuou a sorrir enquanto saltava da trave de prender os
cavalos, pegava na mochila e a punha ao ombro. — Há ocasos sobre outros
oceanos, Ghuda. Paisagens deslumbrantes e grandes maravilhas para
contemplar. — Sem mais, virou-se para o caminho que conduzia à cidade
de Elarial e começou a caminhar.
Ghuda Bulé entrou para o salão da estalagem que fora a sua casa durante
quase sete anos e pensou se voltaria a passar por ali outra vez.
1

Decisão

O
vigia apontou.
— Barco à vista!
— O quê? — gritou Amos Trask, Almirante da frota do
Príncipe da Marinha do Reino.
O piloto do porto que estava ao lado do Almirante a orientar a nau
capitânia do Príncipe de Krondor, o Dragão Real, na direção das docas do
palácio, gritou para o ajudante:
— Mandai-os embora!
— Ostentam a insígnia real! — respondeu o ajudante do piloto, um
jovem de aparência irascível.
Sem cerimónias, Amos Trask afastou o piloto e avançou. Continuava a
ser um homem corpulento de pescoço grosso, agora sexagenário, e
apressou-se para a proa com o passo convicto de quem passou a maior parte
da vida no mar. Depois de zarpar e atracar em Krondor com a nau capitânia
do Príncipe Arutha durante quase vinte anos, conseguia atracar de olhos
vendados, mas os serviços alfandegários exigiam a presença de um piloto
de porto. Amos não gostava de conceder o comando da sua embarcação a
outra pessoa, muito menos a um oficioso e muito apresentável elemento da
equipa do Capitão do Porto Real. Amos suspeitava de que o segundo
requisito para se ocupar tal cargo era uma personalidade desagradável. O
primeiro requisito parecia ser o matrimónio com uma das várias irmãs ou
filhas do Capitão do Porto.
Amos chegou à proa e olhou para longe. Os seus olhos negros
estreitaram-se ao observar a cena que se desenrolava lá em baixo. Enquanto
a embarcação deslizava na direção do embarcadouro, um pequeno barco à
vela, com menos de quatro metros e meio de comprido, tentava passar pelo
espaço à sua frente. Toscamente atado ao topo do mastro estava uma
flâmula, uma pequena versão da insígnia naval do Príncipe de Krondor.
Dois jovens azafamavam-se com as velas e a cana do leme, um tentando
manter uma linha o mais a direito possível até à doca enquanto o outro se
dedicava à bujarrona. Estavam ambos a rir daquela corrida improvisada.
— Nicholas! — gritou Amos quando o rapaz que baixava a bujarrona lhe
acenou. — Seu idiota! Virai para trás! — O rapaz que segurava o leme
virou-se para olhar para Amos e sorriu-lhe com desfaçatez. — Já devia ter
calculado — disse Amos ao ajudante do piloto. — Harry — disse,
dirigindo-se ao rapaz que lhe sorrira. — Seu maluco! — Olhou de relance
para trás e constatou que a última vela tinha sido desfraldada.
— Estamos a atracar nas docas, não temos espaço para virar se
quisermos, e certamente não conseguimos parar — disse Amos.
Todas as embarcações que chegavam a Krondor largavam âncora no
centro do porto, enquanto esperavam que os escaleres as rebocassem até às
docas. Amos era o único homem suficientemente graduado para intimidar o
piloto do porto a deixá-lo baixar as velas no momento apropriado e a atracar
às docas. Orgulhava-se de chegar sempre ao local certo para lhes lançarem
as amarras e de nunca ter embatido contra as docas ou ter necessitado de
um rebocador. Em vinte anos, atracara cem vezes nesta rampa de embarque,
mas nunca com um par de jovens tresloucados na brincadeira diante do
navio. Amos olhou para a pequena embarcação, que agora abrandava ainda
mais depressa, e disse:
— Dizei-me, Lawrence, qual é a sensação de estar à proa da embarcação
que vai afogar o filho mais novo do Príncipe de Krondor?
O semblante do ajudante do piloto empalideceu quando este se virou para
a pequena embarcação. Começou a gritar estridentemente para que os
rapazes saíssem do caminho.
Amos voltou as costas para a cena que se desenrolava abaixo e encostou-
se à balaustrada. Passou a mão pela cabeça quase calva, com cabelo
grisalho à volta, outrora negro e encaracolado, e agora amarrado atrás com
um nó de marinheiro. Ao fim de algum tempo a tentar ignorar o que
estavam a fazer, Amos cedeu. Voltou-se e inclinou-se para a frente e para a
direita de modo a conseguir ver para além do gurupés. Nicholas estava
inclinado sobre o remo, com uma perna entrançada com firmeza na base do
mastro, e o remo encostado com firmeza à proa da embarcação. Parecia
aterrorizado. Amos conseguiu ouvi-lo gritar:
— Harry! É melhor virares para bombordo!
Amos concordou em silêncio com a cabeça, pois se Harry virasse
rapidamente para bombordo, o pequeno barco à vela passaria ao largo do
pesado navio, não sem antes lhe embater, talvez até ficar alagado, mas pelo
menos os rapazes estariam vivos. Por outro lado, se virassem rapidamente
para estibordo, não tardaria a que o barco fosse triturado entre o casco do
navio e os pilares da doca, que estavam cada vez mais perto.
— O Príncipe está a tentar impedir-nos a passagem — disse Lawrence, o
ajudante do piloto.
— Ah! — Amos abanou a cabeça. — Está mas é a deixar que os
empurremos contra as docas. — Juntou as mãos à volta da boca e gritou:
— Harry! Tudo para bombordo!
O jovem respondeu com um grito de guerra tresloucado enquanto se
debatia com a cana do leme na tentativa de manter o barco centrado na proa
do navio.
— É como tentar equilibrar uma bola na ponta de uma espada —
suspirou Amos. A julgar pela velocidade da embarcação e pela sua posição,
sabia que chegara a hora de preparar as amarras. Mais uma vez, virou as
costas para os rapazes.
Lá de baixo, ouviam-se os vivas e os gritos de exultação de Harry
enquanto o veloz navio empurrava o pequeno barco. — O Príncipe está a
dominar o barco à frente — disse Lawrence. — Está a debater-se, mas está
a conseguir.
— Preparar as amarras da proa! Preparar as amarras da popa! — Os
marinheiros que estavam à proa e à popa prepararam as amarras para serem
arremessadas aos estivadores que aguardavam na doca.
— Almirante! — disse Lawrence em tom de excitação.
Amos fechou os olhos. — Não quero saber.
— Almirante! Perderam o controlo! Estão a virar para estibordo!
— Eu disse que não queria saber — realçou Amos. Virou-se para o
ajudante do piloto, que ostentava uma expressão de pânico enquanto o ruído
da pequena embarcação a ser esmagada entre o navio e a doca lhes chegava
aos ouvidos. O estalar da madeira e o despedaçar das pranchas fez-se
acompanhar dos gritos dos homens que estavam nas docas.
— Eu não tive culpa — disse o ajudante do piloto.
— Eu testemunharei a vosso favor no vosso julgamento — disse Amos
com um sorriso hostil rasgando-lhe a barba de tons de prata e cinza. —
Agora, dai ordens para que lancem as amarras, caso contrário esmagamo-
nos contra o molhe. — Ao constatar que o homem não reagia devido ao
choque, Amos gritou:
— Prendei as amarras!
Logo de imediato, o piloto ordenou que prendessem as amarras da popa e
os marinheiros lançaram-nas para os outros na doca. O navio perdera quase
todo o movimento avante e quando as amarras esticaram, imobilizou-se
completamente. — Prendei todas as amarras! Lançai a prancha de
desembarque! — gritou Amos.
Virou-se para a doca e espreitou para a água que se agitava entre o navio
e a doca. Ao lobrigar bolhas por entre a madeira, cabos e velas a boiar,
gritou para os homens que estavam na doca:
— Lançai uma corda àqueles dois idiotas que estão a nadar por debaixo
da doca antes que se afoguem!
Quando Amos desembarcou, os dois jovens encharcados já tinham
subido para a doca. Amos foi ao encontro deles e contemplou o par
ensopado.
Nicholas, o filho mais novo do Príncipe de Krondor, estava de pé com o
peso ligeiramente desequilibrado para a direita. A sua bota esquerda tinha o
calcanhar elevado para compensar a deformidade do pé que tinha desde
nascença. Não fora isso, e Nicholas seria um jovem de dezassete anos bem
constituído e esguio. Tinha parecenças com o pai, de feições angulares e
cabelo escuro, mas faltava-lhe a intensidade do Príncipe Arutha, embora
rivalizasse com ele em rapidez de reação. Ostentava a natureza tranquila e
os modos delicados da mãe, o que de algum modo fazia com que os seus
olhos fossem diferentes dos do pai, embora tivessem a mesma cor castanha-
escura. Naquele momento, parecia extremamente embaraçado.
O seu parceiro já era outra coisa. Harry, assim conhecido na corte porque
o seu pai, Conde de Ludland, também se chamava Henry1, sorria como se
não tivesse sido o autor da brincadeira. Tinha a mesma idade de Nicholas,
mas era meia cabeça mais alto, tinha cabelos ruivos encaracolados e um
rosto corado, e a maioria das raparigas mais novas da corte achavam-no
atraente. Era um jovem brincalhão que deixava amiúde que a sua natureza
aventureira levasse a melhor sobre ele, e era frequente o seu sentido de
diversão fazer com que ultrapassasse os limites do bom senso. Na maioria
das vezes, Nicholas ultrapassava com ele essa fronteira. Harry passou a mão
pelo cabelo molhado e riu-se.
— Qual é a piada? — perguntou Amos.
— Desculpai aquilo do barco, Almirante — respondeu o jovem escudeiro
—, mas se tivésseis visto a cara do ajudante do piloto…
Amos franziu o cenho para os dois jovens, mas depois não conseguiu
conter o riso. — E vi. Foi digno de se ver. — Abriu os braços e Nicholas
deu-lhe um forte abraço.
— Fico feliz por estardes de volta, Amos. Lamento que tenhais perdido o
Festival do Solstício de Verão.
— Bah! Estais todo molhado — disse, afastando o Príncipe com um
empurrão de repulsa exagerada. — Agora tenho de mudar de roupa antes de
ir ao encontro do vosso pai.
Os três começaram a caminhar na direção do molhe adjacente ao palácio.
— O que há de novo? — indagou Nicholas.
— Está tudo tranquilo. Navios mercantes da Costa Extrema, Kesh e
Queg, e o tráfego habitual das Cidades Livres. Tem sido um ano pacífico.
— Estávamos com esperança de ouvir algumas histórias aliciantes de
aventuras — disse Harry num tom algo zombeteiro.
Amos deu-lhe uma palmada na nuca em jeito de brincadeira. — Eu já vos
dou a aventura, seu doido. Qual foi a vossa ideia?
Harry esfregou a nuca e tentou mostrar uma expressão ofendida. — Nós
tínhamos prioridade.
— Prioridade! — exclamou Amos, deixando de caminhar, incrédulo. —
No porto aberto, talvez, onde há espaço de manobra suficiente, mas a
«prioridade» não trava um vaso de guerra de três mastros que vai direto a
vós sem espaço para se desviar e nenhuma maneira de parar. — Abanou a
cabeça quando recomeçou a caminhar para o palácio. — Prioridade, pois
sim! — Virou-se para Nicholas. — O que estáveis a fazer na baía a esta
hora do dia? — perguntou. — Pensei que tivésseis de estudar.
— O Prelado Graham está em conferência com o pai — respondeu
Nicholas. — Por isso, fomos pescar.
— Apanharam alguma coisa?
Harry sorriu. — O maior peixe que o Almirante jamais viu.
— Agora que está novamente nas águas da baía, é o maior — disse Amos
com uma gargalhada.
— Não apanhámos nada que mereça a pena referir — disse Nicholas.
— Bem, ide lá vestir alguma coisa menos húmida — disse Amos. — Eu
vou reparar as forças e depois vou visitar o vosso pai.
— Estareis presente no jantar? — indagou o jovem Príncipe.
— Presumo que sim.
— Ótimo; a avó está em Krondor.
Amos alegrou-se com a novidade. — Nesse caso, não faltarei.
Nicholas contemplou Amos com um sorriso de soslaio em tudo
semelhante ao do pai. — Duvido que passe pela cabeça de alguém que seja
uma coincidência o facto de ela ter vindo visitar a mãe precisamente a
tempo de estar aqui para o vosso regresso.
Amos limitou-se a sorrir. — É devido ao meu irresistível charme. — Na
brincadeira, deu uma palmada nas cabeças dos dois rapazes. — Agora ide!
Tenho de me apresentar ao Duque Geoffrey, depois vou aos meus aposentos
vestir algo mais apropriado para o jantar com… o vosso pai. — Piscou o
olho a Nicholas e afastou-se a assobiar uma melodia desconhecida.
Nicholas e Harry estugaram o passo para os aposentos do Príncipe com
as meias encharcadas dentro das botas. Harry tinha um pequeno quarto
perto do de Nicholas, pois era oficialmente o Escudeiro do Príncipe
Nicholas.
O palácio do Príncipe em Krondor ficava sobranceiro à baía, e fora
outrora o bastião defensivo do Reino no Mar Amaro. As docas reais eram
separadas do resto do porto por uma área de orla costeira desimpedida que
se integrava nas muralhas do palácio. Nicholas e Harry cortaram caminho
pela extensão de praia desobstruída e acercaram-se do palácio pela água.
O palácio erguia-se majestosamente no cimo de uma colina, recortado
contra o céu da tarde, com uma série de apartamentos e corredores que se
estendiam desde a torre de menagem original, que continuava a ser o ponto
fulcral do complexo. Eclipsada por várias outras torres e cúspides
acrescentadas ao longo dos últimos séculos, a velha torre de menagem
ainda era o centro das atenções, uma recordação de tempos idos, quando o
mundo era um lugar muito mais perigoso.
Nicholas e Harry abriram um velho portão de metal que dava acesso ao
porto para os trabalhadores da cozinha. A pungência do porto, com os seus
odores a peixe, salmoura e alcatrão, deu lugar a aromas mais apetecíveis à
medida que se aproximavam da cozinha. Os rapazes passaram
apressadamente pela lavandaria e pela padaria, atravessaram um pequeno
quintal de legumes e desceram um pequeno lanço de escadas de pedra, que
cruzava as cabanas da criadagem.
Aproximaram-se da entrada dos criados para os apartamentos privados da
família real, na esperança de não se cruzarem com algum elemento da
equipa do Príncipe Arutha, ou, mais concretamente, com o próprio Príncipe.
Ao chegarem às portas que os criados utilizavam mais próximas dos seus
próprios aposentos, Nicholas abriu-as precisamente quando apareceram
duas criadas do palácio com montes de roupa branca dirigindo-se para a
lavandaria nas traseiras do palácio. Por respeito à pesada carga que
transportavam, deu-lhes passagem, embora a sua posição lhe conferisse
prioridade. Harry contemplou com uma espécie de sorriso dissoluto as duas
raparigas, apenas alguns anos mais velhas do que ele. Uma soltou
risadinhas e a outra fitou-o com um olhar de quem dá com um roedor na
despensa.
Quando as duas jovens se afastaram, conscientes do impacto que tinham
causado nos dois adolescentes, Harry sorriu e disse:
— Ela deseja-me.
Nicholas deu-lhe um empurrão com força que o fez atravessar a porta aos
tropeções.
— Tanto quanto eu desejo uma diarreia — comentou. — Continua a
sonhar.
Subiram apressadamente as escadas que conduziam aos aposentos da
família. — Não, ela deseja-me. Esconde-o, mas eu sinto-o — disse Harry.
— Harry, o mulherengo — disse Nicholas. — Krondor, trancai as vossas
filhas.
Depois do brilhante Sol da tarde, o corredor estava vincadamente
sombrio. Ao fundo do corredor, subiram por umas escadas que os levaram
desde a zona da criadagem até aos apartamentos da família real. Ao cimo
das escadas, abriram a porta e espreitaram. Como não viram nenhum
membro superior da hierarquia, os dois rapazes apressaram-se para as
portas dos respetivos aposentos, que se situavam a meio caminho do
corredor desde a porta dos criados. Entre esta porta e as suas, havia um
espelho, e ao ver o seu próprio reflexo, Nicholas disse:
— Ainda bem que o pai não nos viu.
Nicholas entrou para os seus aposentos, constituído por duas grandes
câmaras, com enormes armários e uma sala privada, pelo que não tinha de
sair de lá para se aliviar. Despiu rapidamente as roupas molhadas e secou-
se. Virou-se e viu o seu reflexo num enorme espelho, um luxo de valor
incalculável, já que fora fabricado em vidro prateado de Kesh. O seu corpo,
o corpo de um rapaz prestes a tornar-se homem, evidenciava um peito e
ombros largos; já tinha pelos próprios de um adulto, bem como a
necessidade de se barbear todos os dias. Mas o seu rosto continuava a ser o
de um menino, faltando-lhe aquele conjunto de traços que apenas o tempo
consegue conferir.
Quando acabou de se secar, olhou para o pé esquerdo, tal como fizera
todos os dias da sua vida. Uma bola de carne, com minúsculas
protuberâncias que deveriam ter sido dedos, estendia-se desde a base de
uma perna esquerda de outro modo perfeita. Aquele pé fora alvo da
medicina e da magia desde o seu nascimento, mas resistira a todas as
tentativas de cura. Embora não tivesse menos sensibilidade ao toque e à
sensação do que o pé direito, Nicholas sentia dificuldade para o controlar;
os músculos estavam ligados de modo incorreto a ossos do tamanho errado
para realizarem as tarefas que a natureza pretendia. Tal como a maioria das
pessoas com uma moléstia de nascença, Nicholas criara uma compensação
ao ponto de raramente dar pelo defeito. Mancava apenas ligeiramente ao
caminhar. Era um excelente espadachim, talvez igual ao pai, que era
considerado o melhor do Reino Ocidental. O Mestre de Armas do Palácio
considerava-o já melhor espadachim do que os dois irmãos mais velhos
eram com a sua idade. Sabia dançar, uma obrigação do seu posto, filho do
governante do Reino Ocidental, mas a coisa que não conseguia compensar
era uma terrível sensação de, de algum modo, ser menos do que aquilo que
deveria ser.
Nicholas era um jovem afável e ponderado que preferia a plácida solidão
da biblioteca do pai às atividades mais turbulentas da maioria dos rapazes
da sua idade. Era um exímio nadador, um belíssimo cavaleiro e um arqueiro
sofrível, além de ser hábil no manuseamento do sabre, mas toda a vida se
sentira deficiente. Uma vaga sensação de falha, e uma culpa que o
perseguia, parecia apoderar-se inesperadamente dele, e era frequente ter a
mente assoberbada por sombrios pensamentos. Quando tinha companhia,
era habitualmente alegre e apreciava uma piada como qualquer outro, mas
quando estava sozinho, a mente de Nicholas era acometida de
preocupações. Fora esse um dos motivos por que Harry fora para Krondor.
Enquanto se vestia, Nicholas abanou a cabeça divertido. O seu parceiro
do ano que passara, o Escudeiro Harry, potenciara uma súbita mudança nos
modos solitários de Nicholas, constantemente a arrastar o Príncipe para
alguma atividade disparatada ou outra. A vida de Nicholas tornara-se muito
mais sedutora desde a chegada do filho do meio do Conde de Ludland.
Dada a sua posição e dois irmãos competitivos, Harry era combativo e
esperava que lhe obedecessem, e praticamente não fazia caso da diferença
de posição entre ele e Nicholas. Apenas uma ordem direta relembrava
Harry de que Nicholas não era um irmão mais novo em quem podia
mandar. Considerando os modos dominadores de Harry, a corte do Príncipe
era provavelmente o único lugar para onde o seu pai o poderia mandar para
controlar a sua maneira de ser antes que ele se transformasse num
verdadeiro tirano.
Nicholas penteou o cabelo molhado que lhe dava pelo pescoço, com um
corte semelhante ao do pai. Secando-o com uma toalha e depois penteando-
o, alternadamente, lá conseguiu dar-lhe um aspeto de respeitabilidade.
Invejava os caracóis ruivos de Harry. Bastava-lhe secá-lo rapidamente e
uma penteadela e já estava.
Nicholas achou que já estava com a melhor aparência que conseguiria
dadas as circunstâncias e saiu dos seus aposentos. Ao aceder ao corredor,
encontrou Harry já vestido e pronto, tentando retardar outra serviçal, esta
vários anos mais velha do que ele, enquanto ela ia fazer algum recado.
Harry envergava o uniforme verde e castanho dos escudeiros do palácio
que, teoricamente, fazia dele um elemento da equipa de Mordomos Reais,
mas poucas semanas após a sua chegada, fora destacado para o serviço
pessoal de Nicholas. Cinco anos antes, os dois irmãos mais velhos de
Nicholas, Borric e Erland, haviam sido enviados para a Corte do Rei em
Rillanon, no intuito de se prepararem para o dia em que Borric herdaria a
coroa das Ilhas do seu tio. O único filho do Rei Lyam tinha-se afogado
quinze anos antes, e Arutha e o Rei haviam decidido que, no caso de Arutha
viver mais do que o irmão, Borric lhe sucederia no trono. Elena, a irmã de
Nicholas, casara recentemente com o primogénito do Duque de Ran,
deixando o palácio bastante vazio de companheiros de posição apropriada
para o jovem Príncipe antes de o pai de Harry o ter enviado para prestar
serviço.
Aclarando a garganta em tom alto, Nicholas chamou a atenção de Harry
o tempo suficiente para permitir que a serviçal seguisse o seu caminho. Fez
uma vénia de cortesia ao Príncipe, à qual juntou um sorriso de gratidão, e
apressou-se dali para fora.
Nicholas ficou a vê-la afastar-se. — Harry, tens de deixar de usar a tua
posição para apoquentares as criadas — disse.
— Ela não estava apoquentada — começou Harry.
— Isto não é uma opinião — disse Nicholas rispidamente.
Raramente se servia da sua posição para dar ordens a Harry relativamente
ao que fosse, mas nas raras ocasiões em que o fazia, este sabia que não
devia argumentar, principalmente quando o seu tom de voz se assemelhava
ao do Príncipe Arutha, um sinal inequívoco de que Nicholas não estava a
brincar. O escudeiro encolheu os ombros. — Bem, falta uma hora para o
jantar. O que havemos de fazer?
— Passar o tempo a combinar a nossa história, penso eu.
— Que história? — indagou Harry.
— A história que vamos contar ao pai para explicar por que razão o meu
barco está agora espalhado aos pedaços por todo o porto.
Harry olhou para Nicholas com um sorriso confiante e disse:
— Hei de lembrar-me de alguma coisa.

–N ão o vistes? — disse o Príncipe de Krondor enquanto olhava para


o filho mais novo e para o escudeiro de Ludland. — Como foi que
não vistes o maior vaso de guerra da frota de Krondor a trinta metros de
distância? — Arutha, Príncipe de Krondor, irmão do Rei das Ilhas, e
segundo homem mais poderoso do Reino, contemplou os dois rapazes com
um olhar estreitado e de censura que eles já conheciam bem. Arutha era um
homem ossudo que liderava com calma e vigor e raramente revelava as suas
emoções, mas para aqueles que eram próximos, velhos amigos e familiares,
as subtis mudanças de humor eram facilmente inteligíveis. E naquele
preciso momento ele não estava contente.
Nicholas virou-se para o seu parceiro de crime. — Bela história, Harry
— disse num murmúrio seco. — É evidente que passaste imenso tempo a
pensar numa desculpa.
Arutha voltou-se para a esposa, e a expressão de censura deu vez a uma
de resignação. A Princesa Anita fitou o filho com um olhar de repreensão
mitigado por divertimento. Estava zangada por os rapazes terem um
comportamento irrefletido, porém a atitude de inocência mal representada
de Harry fazia-a rir. Embora tivesse mais de quarenta anos, o seu riso ainda
mantinha uma qualidade infantil, que ela se esforçava por preservar no seu
íntimo. Os seus cabelos ruivos tinham raios de cinza e o rosto sardento
ostentava linhas de anos ao serviço da nação, mas os olhos continuavam
luminosos e brilhantes enquanto fitava afetuosamente o filho mais novo.
A refeição da noite foi informal e contou com a presença de poucos
funcionários da corte. Sempre que era possível, Arutha preferia manter a
informalidade na corte e a pompa só tinha vez quando era estritamente
necessário. A comprida mesa dos aposentos da família no palácio podia
acolher confortavelmente mais meia dúzia de pessoas do que as que lá se
sentavam esta noite. Enquanto o grande salão de Krondor abrigava a
maioria dos troféus de guerra e estandartes do Reino Ocidental, a sala de
jantar da família não albergava quaisquer artefactos que fizessem lembrar as
guerras, e estava decorada com retratos dos anteriores governantes e
paisagens de invulgar beleza.
Arutha estava sentado à cabeceira, com Anita à sua direita. Geoffrey,
Duque de Krondor e principal administrador de Arutha, estava no seu lugar
habitual à esquerda do Príncipe. Geoffrey era um homem pacífico e
benevolente, de quem todos gostavam, e um bom administrador. Servira
durante dez anos na corte do Rei antes de vir para Krondor há oito anos.
Ao seu lado estava o Prelado Graham, bispo da Ordem de Dala, Escudo
dos Fracos, um dos atuais conselheiros de Arutha. Professor brando mas
rigoroso, o Prelado garantira que Nicholas, tal como os seus irmãos antes
dele, se tornasse um homem de vasta instrução, com amplos conhecimentos
sobre arte e literatura, música e teatro, economia, história e arte da guerra.
Estava sentado ao lado de Nicholas e de Harry, e a julgar pela sua
expressão, não achava aquela desculpa minimamente engraçada. Embora
tivesse dado autorização para os rapazes se ausentarem enquanto
participava no conselho do Príncipe, esperara que eles fossem estudar, e não
despedaçar um barco numa batalha no porto.
Em frente aos rapazes estava a mãe de Anita e Amos Trask. O Almirante
e a Princesa Alicia mantinham um relacionamento travesso há anos que,
segundo os boatos que corriam pela corte, era muito mais íntimo do que um
simples galanteio. Alicia continuava a ser uma mulher atraente, tinha a
mesma idade de Amos e resplandecia graças à atenção que ele lhe votava.
As semelhanças de Anita com a mãe eram evidentes, embora os cabelos de
Alicia, outrora ruivos, fossem agora grisalhos e os seus traços revelassem o
passar dos anos. Mas quando Amos lhe dizia uma piada ao ouvido que a
fazia corar, os seus resplandecentes olhos e o riso de embaraço devolviam-
lhe o ar de menina.
Amos apertou a mão de Alicia enquanto lhe murmurava algo,
provavelmente algo indecente, e a Princesa de Dowager escondeu o riso
atrás do guardanapo. Anita sorriu ao aperceber-se, pois lembrava-se de
quanto a sua mãe tinha sofrido com a perda do pai após a sua morte, e de
como Amos fora um raio de luz bem-vindo à corte de Arutha após a Guerra
da Brecha. Anita gostava sempre de ver a mãe sorrir, e não havia ninguém
que a fizesse rir como Amos.
À esquerda do Almirante estava William, delegado do exército de
Arutha, Marechal da Corte de Krondor, primo da família real. O primo
Willie, como toda a gente da família o tratava, piscou o olho aos dois
rapazes. Há vinte anos que prestava serviço no palácio e, durante esse
período, vira os outros irmãos de Nicholas, Borric e Erland, descobrirem
todas as maneiras possíveis de fazerem com que o pai perdesse as
estribeiras. — Excelente estratégia, Escudeiro — disse William enquanto
apanhava um pedaço de pão. — Sem pormenores desnecessários a reter.
Nicholas tentou parecer devidamente castigado, mas não conseguiu.
Cortou rapidamente um pedaço de cordeiro e enfiou-o na boca para não se
rir. Olhou para Harry, que estava a esconder o seu regozijo atrás de um copo
de vinho.
— Teremos de pensar num castigo apropriado para ambos — disse
Arutha. — Algo que vos faça apreciar o valor de um barco e dos vossos
próprios canastros.
Harry mostrou a Nicholas um breve sorriso por detrás do copo de vinho;
os dois rapazes sabiam que havia boas probabilidades de Arutha esquecer
qualquer castigo sério se os assuntos da corte fossem importantes, o que
geralmente eram.
A corte do Príncipe era a segunda mais atarefada do Reino, seguindo de
perto a corte do Rei em termos de azáfama. Tratando-se efetivamente de um
reino à parte, o Reino Ocidental era governado a partir de Krondor, e apenas
as ordens genéricas eram dadas pela corte do Rei Lyam. No mesmo dia, era
possível que Arutha tivesse de receber duas dúzias de nobres importantes,
mercadores e enviados, e ler meia dúzia de documentos importantes, bem
como aprovar todas as decisões regionais referentes ao Principado.
Um rapaz envergando o uniforme roxo e amarelo dos pajens do palácio
entrou no salão e acercou-se do Mestre de Cerimónias Real, o Barão
Jerome. Murmurou-lhe algo ao ouvido e este dirigiu-se a Arutha. — Alteza,
estão dois homens à entrada do palácio e pedem para vos ver.
Arutha sabia que teriam de ser algo invulgares para que o sargento da
guarda os encaminhasse para o Mordomo-Mor da Casa Real, e para que
este viesse incomodar o Príncipe. — Quem são eles? — indagou Arutha.
— Alegam ser amigos do Príncipe Borric.
Arutha soergueu ligeiramente as sobrancelhas. — Amigos do Borric? —
Olhou de relance para a esposa. — Sabeis como se chamam? — perguntou.
— Disseram tratar-se de Ghuda Bulé e de Nakor, o isalani — respondeu
o Mestre de Cerimónias. Jerome, um homem solícito para quem a pompa e
a dignidade eram mais essenciais do que o ar e a água, conseguiu transmitir
uma dose de reprovação ao acrescentar:
— São keshianos, Alteza.
Arutha ainda estava a tentar compreender o que se passava, quando
Nicholas disse:
— Pai! São aqueles dois que ajudaram o Borric quando ele foi capturado
pelos traficantes de escravos em Kesh! Lembrais-vos de ele nos falar sobre
eles.
Arutha piscou os olhos e lembrou-se. — É claro. Mandai-os entrar
imediatamente — ordenou a Jerome.
Jerome fez sinal para que o pajem fosse transmitir a ordem à entrada do
palácio e Harry voltou-se para Nicholas. — Traficantes de escravos?
— É uma longa história — explicou Nicholas —, mas o meu irmão foi
enviado a Kesh há cerca de nove anos. Foi capturado por uns cavaleiros que
não sabiam que ele pertencia à Casa Real das Ilhas. Conseguiu fugir e ir até
à corte da Imperatriz a tempo de lhe salvar a vida. Estes dois homens
ajudaram-no a conseguir tal façanha.
Estavam todos a fitar ansiosamente a entrada quando o pajem entrou
seguido por dois homens andrajosos e imundos. A julgar pela indumentária,
o mais alto era um guerreiro: uma armadura de couro velha e maltratada e
um elmo amassado, uma espada bastarda às costas e dois compridos
punhais à cintura, um de cada lado. O companheiro era um sujeito de pernas
arqueadas, com uma expressão surpreendentemente infantil ao apreciar as
novidades que o rodeavam, e um sorriso encantador, embora não se pudesse
dizer que fosse bonito.
Acercaram-se da cabeceira da mesa e fizeram uma reverência, o
guerreiro constrangido e desajeitado, o homem mais baixo de uma maneira
casual e distraída.
— Bem-vindos — disse Arutha, levantando-se.
Nakor não parava de olhar para todos os pormenores do salão, absorto
nos seus pensamentos, por isso, decorrido um longo momento, Ghuda disse:
— Desculpai-nos o incómodo, Alteza, mas ele… — apontou para Nakor
com o polegar — insistiu. — Falava com pronúncia e lentamente.
— Não tem importância — disse Arutha.
Por fim, Nakor prestou atenção a Arutha e perscrutou-o por instantes
antes de falar. — Não vos pareceis com o vosso filho Borric.
Arutha esbugalhou os olhos estonteado com aquela franqueza e ausência
de expressão honorífica, mas acenou com a cabeça. Depois, o isalani olhou
para a Princesa e voltou a sorrir, mostrando uma fileira de dentes tortos que
lhe davam um ar ainda mais cómico. — Vós sois a mãe dele — disse. —
Ele sai a vós. Sois muito bela, Princesa.
Anita soltou uma gargalhada e olhou de relance para o marido. —
Obrigada, cavalheiro — disse.
— Chamai-me Nakor — disse, com um aceno da mão. — Fui em tempos
Nakor, o Cavaleiro Azul, mas o meu cavalo morreu. — Olhou em redor do
salão e fixou o olhar em Nicholas. O sorriso eclipsou-se ao perscrutar o
rapaz. Olhou fixamente para Nicholas durante tanto tempo que acabou por
se tornar embaraçoso, depois voltou a sorrir. — Este aqui é parecido
convosco!
Arutha ficou sem palavras, mas lá acabou por dizer:
— Posso saber o que vos traz aqui? Sois bem-vindos, pois prestastes um
grande serviço ao meu filho e ao Reino, mas… já lá vão nove anos.
— Quem me dera saber explicar, Alteza — disse Ghuda. — Mas há mais
de um mês que viajo com este lunático e o máximo que ele me disse foi que
tínhamos de vir ao vosso encontro e depois partir noutra jornada. — Nakor
estava outra vez alheado no seu mundo, aparentemente hipnotizado pelo
brilho dos candelabros e pelo bailado das luzes refletidas pelo enorme vitral
por detrás da cadeira do Príncipe. Ghuda suportou outro momento de
aflitivo silêncio. — Lamento, Alteza — disse. — Não deveríamos ter vindo
incomodar-vos.
Arutha percebeu o evidente desconforto do velho guerreiro. — Não,
quem apresenta as desculpas sou eu. — Reparou nas roupas andrajosas e
encardidas. — Tende a bondade. Deveis repousar — acrescentou. — Vou
mandar que preparem os vossos aposentos para que possais tomar um
banho e dormir uma noite reconfortante. Dar-vos-ão roupas lavadas.
Depois, de manhã, talvez eu possa ajudar-vos na missão que vos traz aqui.
Ghuda fez uma saudação desajeitada, sem saber bem o que responder. —
Já comestes? — perguntou Arutha. Ghuda olhou de relance para a mesa
farta. — Sentai-vos ali — disse Arutha. Fez sinal para que ocupassem as
cadeiras ao lado do Marechal da Corte, William.
Nakor despertou do seu devaneio ao ouvir falar em comida e, sem
cerimónias, apressou-se a ir para a cadeira indicada. Esperou que os criados
lhe servissem comida e vinho e lançou-se a ela como se estivesse
esfomeado.
Ghuda tentou ser o mais polido possível, mas era evidente que se sentia
constrangido na presença da realeza. Amos disse algo numa língua
desconhecida e o isalani soltou uma gargalhada. — A vossa pronúncia é
terrível — disse ele na língua do Rei. — Mas a anedota tem piada.
Amos soltou uma gargalhada em resposta. — Julgava que falava a língua
isalani bastante bem — disse, dirigindo-se aos outros. Encolheu os ombros.
— Já passaram quase trinta anos desde a última vez que fui a Shing Lai;
devo ter perdido o jeito — acrescentou, e voltou a sua atenção de novo para
a mãe da Princesa de Krondor.
Arutha sentou-se. Ficou absorto nos seus pensamentos. Havia algo no
aparecimento daqueles dois, o velho e fatigado guerreiro e o cómico
personagem de que os seus filhos lhe haviam falado, que lhe deixou uma
sensação de desconforto, como se a divisão tivesse ficado subitamente mais
fria. Uma premonição? Tentou afastá-la, mas não conseguiu. Fez sinal para
que os criados levassem o seu prato pois perdera o apetite.

D epois do jantar, Arutha foi caminhar pela sacada sobranceira ao porto.


Por detrás de portas fechadas, os criados azafamavam-se nos
preparativos dos quartos dos aposentos da família real. Amos Trask saiu do
edifício e foi até ao local onde Arutha estava a contemplar as luzes perto do
porto.
— Mandastes-me chamar, Arutha?
— Mandei — respondeu Arutha, voltando-se. — Preciso do vosso
conselho.
— Dizei.
— Qual é o problema do Nicholas?
O semblante de Amos revelou que não compreendera a pergunta. — Não
percebo o que quereis dizer.
— Ele não é como os outros rapazes da sua idade.
— O pé?
— Não acho que seja isso. Há alguma coisa nele…
— Que é prudente — concluiu Amos.
— Sim. É por isso que estou tentado a não o castigar nem ao Harry pela
brincadeira de hoje. Foi uma das poucas vezes que vi ou ouvi dizer que o
Nicholas tinha corrido algum risco.
Amos suspirou ao debruçar-se sobre o muro baixo. — Não pensei muito
sobre o assunto, Arutha. O Nicky é um bom menino e não está sempre a
pregar partidas e a arranjar problemas como os irmãos.
— O Borric e o Erland saíram cá um par de tratantes que até apreciei os
modos reservados do Nicholas. Mas agora transformou-se em indecisão e
cautela excessiva, algo que é perigoso para um governante.
— Nós dois já passámos por muita coisa, Arutha — disse Amos. — Já
vos conheço há… o quê, vinte e cinco anos? Preocupais-vos demasiado
com aqueles que amais. O Nicky é um bom menino e será um bom homem.
— Não sei — foi a surpreendente resposta. — Eu sei que ele não tem um
lado malévolo ou mesquinho, mas a precaução pode ser tão prejudicial
quanto a imprudência, e o Nicholas é sempre prudente. Ele vai ser
importante para nós.
— Outro casamento?
Arutha concordou. — Neste será mais do que isso, Amos. O Imperador
Diiagái fez saber que existe agora a possibilidade de estreitar laços com o
Reino. O casamento do Borric com a Princesa Yasmine foi um avanço nesse
sentido, mas os povos do deserto são uma raça contribuinte em Kesh.
Diiagái considera que é tempo de um casamento com uma Princesa de
puro-sangue.
Amos abanou a cabeça. — Os casamentos estatais são um assunto sério.
— Excetuando a Guerra da Brecha, Kesh sempre foi a maior ameaça para
o Reino — disse Arutha — e urge sermos precavidos. Se o Imperador de
Kesh tem uma sobrinha ou uma prima de puro-sangue que pretende casar
com o irmão do futuro Rei das Ilhas, é bom que aumentemos a segurança
nas nossas fronteiras antes de recusarmos.
— O Nicky não é o único candidato, ou é?
— Não. Também há os dois filhos da Carline, mas o Nicholas poderia ser
o melhor… se eu o achasse capaz.
Amos manteve-se em silêncio por instantes. — Ele ainda é jovem.
Arutha anuiu. — Mais jovem do que a idade que efetivamente tem. A
culpa é minha…
— Dizeis sempre isso — interrompeu-o Amos, com uma gargalhada
enérgica.
— …por protegê-lo demasiado. O pé deformado… a sua natureza
delicada…
Amos concordou com a cabeça e manteve-se outra vez em silêncio. —
Nesse caso, preparai-o — disse, por fim.
— Como? — perguntou Arutha. — Mando-o para os Barões Fronteiriços
como fiz aos irmãos?
— Na minha opinião isso seria uma preparação um pouco excessiva —
disse Amos, cofiando a barba. — Não, estava a pensar que talvez fosse boa
ideia mandá-lo para a corte do Martin durante uns tempos.
Arutha não reagiu, mas a julgar pela sua expressão, Amos percebeu que a
ideia tinha surtido algum efeito. — Crydee — disse Arutha brandamente.
— Seria um lar diferente para ele.
— No vosso caso e do Lyam os resultados foram positivos, e além disso
o Martin velaria pela segurança do rapaz sem o mimar. Por aqui, ninguém
ousa levantar a mão ou mesmo o tom de voz para o «filho aleijado do
Príncipe». — Os olhos de Arutha lampejaram ao ouvir aquela expressão,
mas não disse nada. — Enviai instruções nesse sentido para o Martin, e ele
não permitirá que o Nicky se sirva do pé afetado como desculpa para
qualquer coisa. O Príncipe Marcus tem mais ou menos a idade dele e do
Harry, por isso se enviardes esse desordeiro com eles, ele terá dois
companheiros de posição nobre que são um pouco mais turbulentos do que
o Nicky está habituado a ser. Poderá conseguir comandá-los, mas não se
intimidará. A Costa Extrema não tem comparação com o Castelo Altaneiro
ou a Passagem de Ferro, mas não é assim tão civilizada que não enrijeça um
pouco o Nicky.
— Terei de convencer a Anita — disse Arutha.
— Ela compreenderá, Arutha — disse Amos com uma risadinha. —
Acho que não vai ser difícil. Por muito que ela deseje proteger o rapaz,
compreenderá a necessidade.
— Rapaz. Já pensastes que eu era apenas três anos mais velho do que o
Nicholas quando assumi o comando da guarnição do meu pai?
— Eu estava lá. Eu lembro-me. — Pousou uma mão sobre o ombro de
Arutha. — Mas vós nunca fostes jovem, Arutha.
Arutha não conseguiu deixar de rir ao ouvir estas palavras. — Tendes
razão. Eu era do tipo sério.
— Continuais a sê-lo.
Amos virou-se para ir embora. — Pretendeis desposar a mãe da Anita?
— perguntou Arutha.
Amos voltou-se, surpreendido. Depois juntou os punhos às ancas e
sorriu. — Ora bem, com quem andastes a falar?
— Com a Anita — respondeu Arutha. — E ela tem andado a falar com a
Alicia. Há anos que correm pelo palácio rumores sobre vós: o Almirante e a
Princesa de Dowager. Vós tendes a posição social e os títulos honoríficos.
Se necessitardes de outro título, posso tratar disso com o Lyam.
Amos ergueu a mão. — Não, a posição social não tem nada a ver com o
caso. — Baixou o tom de voz. — Eu tive uma vida repleta de perigos,
Arutha. E sempre que embarco, não há garantias de um dia regressar. Posso
ser mauzinho, e não mais do que aquilo que sou quando estou em alto-mar.
Há sempre uma possibilidade de perder a vida algures.
— Estais a pensar em aposentar-vos?
Amos anuiu. — Desde os doze anos que a minha vida foi passada a
bordo de barcos, excetuando o conflito em que vos acompanhei e a Guy du
Bas-Tyra durante a Guerra da Brecha. Se vou casar, ficarei em casa com a
minha senhora, obrigado.
— Quando?
— Não sei — respondeu Amos. — É uma escolha difícil; bem sabeis o
que o mar pode fazer. — Recordaram ambos a sua primeira viagem juntos,
quando enfrentaram os Estreitos das Trevas no inverno, muitos anos antes.
A viagem transformara Arutha, pois além de ter enfrentado a morte no mar
e sobrevivido, atracara em Krondor e conhecera a sua amada Anita. — É
difícil abandonar o mar — prosseguiu Amos. — Talvez uma última viagem.
— O Martin pediu alguma ajuda nos preparativos para a nova guarnição
de Barran, na costa de Crydee — disse Arutha. — O Águia Real está no
porto, pronto para zarpar com armamento e aprovisionamentos suficientes
para equipar duzentos homens e cavalos durante um ano. Porque não o
comandais? Podeis levar o Nicholas até Crydee, continuar a subir a costa
até à nova guarnição, e depois visitar o Martin e a Briana durante uns
tempos antes de regressardes.
Amos sorriu. — Uma última viagem, para as bandas onde começou a
minha maldita sina.
— Maldita sina? — indagou Arutha.
— Conhecer-vos, Arutha. Desde que nos conhecemos, insistis em
destruir a minha diversão sempre que podeis.
Era uma velha piada que ambos partilhavam. — Portastes-vos bem para
um pirata impenitente.
Amos encolheu os ombros. — Bem, dei o meu melhor.
— Ide cortejar a vossa dama — disse Arutha. — Em breve irei juntar-me
à minha.
Amos deu uma palmada nas costas de Arutha, depois virou-se e foi
embora. Após a sua saída, Arutha continuou a contemplar as distantes luzes
do porto, absorto em pensamentos e recordações.
As reminiscências de Arutha foram interrompidas por uma presença
inesperada ao seu lado. Virou-se e deu com o estranho pequeno isalani ao
lado dele, observando a cidade ao fundo.
— Precisava de passar uns instantes convosco — disse Nakor.
— Como conseguistes passar pelos guardas do corredor? — quis saber
Arutha.
Nakor encolheu os ombros. — Foi fácil — limitou-se a responder.
Depois, pôs-se a contemplar as águas, como que a observar algo distante.
— Ides enviar o vosso filho numa viagem.
Arutha virou-se de viés, com os olhos fixos no isalani.
— O que sois vós? Um adivinho, um profeta ou um feiticeiro?
Nakor encolheu os ombros. — Sou um batoteiro. — Mostrou um baralho
de cartas aparentemente vindo do nada. — É assim que ganho a vida, por
vezes. — Meneou o pulso e o baralho desapareceu. — Mas às vezes tenho
visões. — Ficou em silêncio por instantes, depois prosseguiu: — Há anos,
quando conheci o Borric, senti-me atraído para ele, pelo que quando ele
simpatizou comigo, fiquei junto dele.
Fez uma pausa e, sem pedir licença, saltou para cima das pedras do baixo
muro, e sentou-se sobre as pernas. Olhou para o Príncipe e disse:
— Muitas coisas não têm explicação, Príncipe. Porque sei coisas e
consigo fazer coisas. Coisas a que chamo os meus truques. Mas confio nos
meus dons.
»Estou aqui para velar pela vida do vosso filho.
Arutha abanou a cabeça, um pequeno movimento de recusa. — Velar
pela vida dele?
— Ele terá de enfrentar um perigo.
— Que perigo?
Nakor encolheu os ombros. — Não sei.
— E se eu não o enviar? — indagou Arutha.
— Não podeis. — Nakor abanou a cabeça. — Não, isso seria um erro.
Não o deveis fazer.
— Porque não?
Nakor suspirou e o seu sorriso desvaneceu-se. — Há muito tempo,
conheci o vosso amigo James. Ele contou-me coisas sobre vós e sobre a
vossa vida, e sobre o que havia feito para merecer a vossa consideração.
Falou-me de um homem que viu coisas.
O suspiro de Arutha imitou o de Nakor. — Vi homens mortos
levantarem-se e matar, e vi magia estranha; conheci homens que nasceram
noutros mundos. Falei com dragões e vi visões impossíveis ganharem vida.
— Então confiai em mim — disse Nakor. — Fizestes uma escolha.
Tendes de a cumprir. Mas permiti que eu e o Ghuda acompanhemos o vosso
filho.
— Porquê o Ghuda?
— Para velar pela minha vida — disse Nakor, e o sorriso voltou.
— O Borric disse que sois um feiticeiro.
Nakor encolheu os ombros. — Por vezes, tenho interesse em fazer os
outros acreditar nisso. O vosso amigo Pug sabia que a magia não existia.
— Conheceis o Pug?
— Não. Mas ele era famoso antes de eu conhecer o Borric. Ele conseguiu
feitos extraordinários. E durante algum tempo vivi em Stardock.
Arutha cerrou os olhos. — Há uma dúzia de anos que não o vejo, e
constou-me que ele se mudou para a Ilha do Feiticeiro, e que não pretendia
ser contactado pelos seus velhos amigos. Eu respeitei esse desejo.
Nakor saltou do muro. — Chegou a hora de o desrespeitarmos. Teremos
de ir ao encontro dele. Informai o vosso capitão de que teremos de parar lá
durante a jornada rumo ao Ocidente.
— Sabeis para onde vou enviar o Nicholas?
Nakor indicou que não com a cabeça. — Só sei que quando reencontrei o
Ghuda ao fim de tantos anos, ele estava sentado a contemplar o pôr-do-sol.
Foi então que fiquei a saber que eventualmente iríamos viajar nessa direção.
— Nakor bocejou. — Agora vou deitar-me, Príncipe.
Arutha limitou-se a acenar enquanto o estranho homenzinho regressava
para o corredor que dava acesso à sacada. O Príncipe de Krondor
permaneceu em silêncio durante muito tempo, encostado ao muro enquanto
pensava no que fora dito. As palavras de Nakor ecoavam na sua mente
enquanto tentava entender a conversa.
De uma coisa estava certo: de todos aqueles que amava, Nicholas era o
menos capaz de cuidar de si mesmo caso tivesse de viajar em direção ao
perigo. Só muitas horas depois é que Arutha se foi deitar.
1 Harry é uma forma comum e familiar usada em alternativa ao nome Henry. (N. do T.)
2

Viagem

O
palácio estava em alvoroço.
Arutha passara uma manhã tranquila com a mulher, e quando
terminaram o pequeno-almoço, ela concordara que um ou dois
anos na companhia de Martin poderia ser a coisa certa para Nicholas. Ela
vivera em Crydee como hóspede de Arutha durante o último ano da Guerra
da Brecha e passara a gostar bastante daquela modesta vila na Costa
Extrema. Embora inóspita quando comparada com os padrões de Krondor,
fora ali que conhecera o seu amado Arutha, com todos os seus estados de
espírito sombrios e preocupações, bem como com os lados mais joviais do
seu ser. Ela compreendia as preocupações de Arutha em relação a Nicholas,
e o receio que ele tinha de o rapaz não ser capaz de lidar com a situação,
estando o destino de terceiros em jogo; ela também sabia que Arutha
encararia tal ocorrência como uma falha da sua parte. Embora fosse sentir
saudades do filho mais novo, cedeu, pois compreendeu que tal era para o
bem de Arutha, bem como para o de Nicholas. Por causa dela, Arutha
protegera Nicholas de muitas das realidades mais rígidas do mundo em que
vivia. O seu argumento era a simples afirmação de que Nicholas era o
terceiro na sucessão à coroa, atrás dos irmãos, e até agora nada na sua vida
o preparara para tal empreitada caso a sorte inesperadamente lhe pusesse a
coroa nas mãos, como acontecera ao seu tio Lyam.
Anita também adivinhara um segundo sentido nas suas palavras, mais do
que uma simples ansiedade associada a um filho mais novo que sai de casa
pela primeira vez, mas não conseguiu perceber bem o quê. Mas acima de
tudo, Anita compreendia que o marido ansiava por assumir o controlo, dar
orientações, proteção e apoio a Nicholas, e que deixá-lo ir era
provavelmente mais difícil para Arutha do que para ela.
Uma hora depois de Arutha informar Nicholas e Harry de que deveriam
partir para Crydee com Amos, os mil e um detalhes associados aos
preparativos para a viagem puseram a Casa Real num estado próximo do
pânico. Todavia, graças à prática adquirida em centenas de eventos estatais,
o Administrador Real e a sua equipa de escudeiros, pajens e criados
mostraram-se à altura da situação, e Arutha sabia que quando o barco
partisse no dia seguinte, tudo o que o Príncipe e o seu companheiro
precisariam estaria a bordo.
O Águia Real estava pronto para levar o armamento e os
aprovisionamentos necessários para a nova guarnição que o Duque Martin
estava a estabelecer. Amos estava a assumir o comando, e partiriam rumo a
Crydee com a maré da manhã, bem cedo. A decisão para uma partida tão
súbita fora tomada porque Arutha não queria que houvesse tempo para
reponderar a sua decisão, mas também para aproveitarem as condições
climatéricas favoráveis. Os infames Estreitos das Trevas estariam
navegáveis durante os meses que se avizinhavam, porém o outono desabaria
sobre Amos quando ele zarpasse para a viagem de regresso. Assim que o
mau tempo chegasse, os estreitos entre o Mar Amaro e o Mar Interminável
eram demasiado perigosos para navegar, a não ser em caso de necessidade
extrema.
Amos percorreu o comprido corredor que dava acesso aos aposentos dos
hóspedes. Durante os anos que vivera em Krondor, nunca se dera ao
trabalho de arranjar alojamento privado fora do palácio, ao contrário da
maioria dos outros colaboradores do Príncipe. Era o único membro do
círculo de conselheiros e comandantes do Príncipe que se mantinha solteiro
e não necessitava de um lugar para albergar uma família. Como passava
quase três quartos do tempo em alto-mar, a verdade é que também passava
pouco tempo no palácio.
Porém, agora debatia-se com a ideia de como a sua vida iria mudar após
esta viagem. Hesitou durante instantes, depois bateu à porta. Um criado
assomou prontamente à porta e, ao ver o Almirante, abriu-a completamente.
Amos entrou e viu Alicia sentada num divã diante de uma larga passagem
envidraçada que dava para a sua varanda privativa, aberta para deixar entrar
a brisa da manhã. Ela levantou-se e sorriu quando ele se encaminhou na sua
direção.
Ele tomou-lhe a mão e beijou-lhe o rosto. Embora os criados soubessem
que ele passara a noite neste mesmo apartamento, em nome do protocolo da
corte fizeram de conta que não sabiam. Amos esgueirara-se antes da
alvorada e regressara aos seus aposentos. Mudara de roupa e fora ao porto
para uma rápida inspeção ao Águia Real.
— Amos — disse a Princesa de Dowager. — Não esperava ver-vos antes
desta noite.
Amos não sabia o que dizer, o que deixou Alicia atónita. Na noite
anterior, percebera que ele estava a pensar em alguma coisa, pois embora se
tivesse mostrado fogoso, também lhe parecera algo alheado. Por várias
vezes, parecera-lhe que ele estivera na iminência de dizer algo, mas depois
acabava por fazer uma pergunta ou uma afirmação inconsequente.
Olhou em redor, e quando teve a certeza que estavam sós, sentou-se
pesadamente ao lado dela.
— Alicia, minha querida — disse, segurando-lhe a mão. — Pensei
bastante sobre o assunto…
— Que assunto? — interrompeu-o ela.
— Deixai-me acabar — disse. — Se não disser o que tenho para dizer,
ainda perco a cabeça, iço as velas e zarpo.
Ela tentou não rir, pois ele parecia bastante sério. Todavia, já imaginava o
que se seguiria.
— Não estou a ficar mais novo…
— Ainda sois um jovem — disse ela em jeito de brincadeira.
— Que raios, mulher, isto já é difícil sem que tenteis lisonjear-me! — O
seu tom era mais de exasperação do que de raiva, por isso ela não levou a
mal. Os seus olhos deixavam transparecer um brilho de felicidade embora
mantivesse um rosto impassível.
— Já fiz muitas coisas de que não me orgulho, Alicia, e algumas já vo-las
confessei. Outras, preferia esquecer. — Fez uma pausa, à procura das
palavras. — Por isso, se não quiserdes, eu compreendo e não ficarei
ofendido.
— Se não quiser o quê, Amos?
— Casar — disse Amos de rompante, quase enrubescendo.
Alicia soltou uma gargalhada e apertou-lhe as mãos com força. Inclinou-
se para a frente e beijou-o. — Seu tolo. Com quem mais iria eu casar? É por
vós que estou apaixonada.
Amos sorriu. — Pronto, sendo assim, está bem. — Passou os braços à
volta dela e cingiu-a com força. — Não vos ides arrepender, pois não?
— Amos, com a minha idade, já me arrependi de muita coisa, posso
afiançar-vos. Casei com o Erland porque ele era irmão do Rei e o meu pai o
Duque de Timons, não por sentir alguma coisa por ele. Acabei por amar o
meu marido, pois ele era um homem bondoso e adorável, mas nunca estive
apaixonada por ele. Quando ele morreu, parti do princípio que o amor seria
algo que iria apreciar noutras pessoas mais novas do que eu. Foi então que
vós entrastes na minha vida. — Amos recostou-se e ela segurou-lhe o
queixo com a mão, abanando-lhe a cabeça em jeito de brincadeira, como se
faz às crianças. Depois passou-lhe a mão pelo rosto e acariciou-o. — Não,
eu não tenho tempo suficiente para fazer escolhas erradas. Não obstante
todos os vossos defeitos, tendes uma mente alerta e um bom coração, e tudo
o que tenhais feito no passado já lá vai. Vós fostes o único avô que os meus
netos conheceram, embora eles saibam que não o devem dizer à vossa
frente, mas sabeis que é o que eles sentem. Não, isto não é um erro. — Ela
encostou-se aos seus braços e ele apertou-a outra vez com força. Amos
suspirou de felicidade.
Alicia sentiu lágrimas de felicidade assomarem-lhe aos olhos e
pestanejou para as conter. Amos nunca se sentira à vontade com
demonstrações manifestas de emoções. Há anos que mantinham uma
relação íntima, mas ela compreendera a renitência de Amos em declarar-se,
pois sabia-o um homem avesso a relações de proximidade. Era evidente que
gostava de Arutha e da sua família, porém havia sempre algo em Amos que
era distante. Ela sabia que ele se retraía, e não havia nada que pudesse fazer
para que se abrisse. A idade conferira-lhe uma sabedoria que muitas
mulheres mais jovens não compreenderiam. Não quisera afastar Amos
pedindo-lhe que escolhesse entre o seu amor por ela e o seu amor pelo mar.
Relutantemente, Amos deixou de a abraçar. — Bem, por muito que
gostasse de ficar um pouco, o marido da vossa filha destinou-me uma
missão.
— Partis novamente? Mas acabastes de chegar. — A sua voz revelava
uma desilusão genuína.
— Sim, é verdade. Mas o Nicholas tem de ir para a corte do Martin para
amadurecer durante um ou dois anos, e é preciso transportar alguns
aprovisionamentos para a nova guarnição de Barran na costa noroeste. —
Contemplou os olhos verdes de Alicia. — Será a minha última viagem, meu
amor — disse. — Não irei demorar muito, e depois não tardareis a ficar
saturada de me terdes constantemente à perna.
Ela abanou a cabeça e sorriu. — Não acredito. Tereis muito com que vos
ocupardes nas minhas propriedades. Teremos terras que gerir, caseiros que
supervisionar, e duvido que o Arutha vos deixe estar longe da corte mais de
um mês de cada vez. Ele aprecia as vossas perspetivas e opiniões.
Conversaram durante algum tempo até que Amos disse:
— Temos muito que fazer. Tenho de me certificar de que o navio está
preparado, e vós e a Anita irão certamente andar numa azáfama com os
preparativos para o casamento.
Separaram-se e Amos afastou-se dos aposentos de Alicia com uma
sensação de júbilo e um invulgar desejo de continuar a velejar para ocidente
depois de deixar Nicholas no seu destino. Amava Alicia como nunca amara
outra mulher, mas a ideia de casamento era um pouco assustadora para o
velho solteirão.
Quase deitou ao chão Ghuda Bulé ao dobrar uma esquina. O mercenário
de cabelos grisalhos recuou, fazendo uma reverência desajeitada. —
Perdoai-me, senhor.
Amos fez uma pausa. — Não tendes de pedir desculpa… — disse em
keshiano.
— Ghuda Bulé, senhor.
— Ghuda — repetiu Amos. — Eu ia a pensar noutras coisas e não estava
a prestar atenção.
— Perdoai-me, senhor, mas acho que vos conheço — disse Ghuda,
franzindo o cenho.
Amos esfregou o queixo. — Já fui uma ou duas vezes a Kesh.
Ghuda sorriu ironicamente. — Eu fui principalmente guarda de
caravanas; não há muita coisa em Kesh que eu não conheça.
— Bem, deve ter sido num porto, pois nunca segui para o interior de
Kesh mais do que o necessário — disse Amos. — Talvez em Durbin.
Ghuda encolheu os ombros. — Talvez. — Olhou em redor. — O meu
companheiro desapareceu, o que é bastante comum nele, por isso decidi
passear um bocado. — Abanou a cabeça. — Estive no palácio da Imperatriz
na Cidade de Kesh há alguns anos, quando viajei com o filho do vosso
Príncipe. — Olhou de relance para as altas janelas abobadadas sobranceiras
à zona florestal da cidade. — Isto aqui é muito diferente, mas vale a pena
ver.
Amos sorriu. — Nesse caso, aproveitai bem o passeio. Partiremos ao
romper da aurora para aproveitar a maré.
Ghuda franziu o cenho. — Partiremos?
O sorriso de Amos alargou-se. — Eu sou o Almirante Trask. Arutha
informou-me de que vós os dois irão viajar connosco.
— Para onde vamos? — indagou Ghuda.
— Ah! — exclamou Amos. — É óbvio que aquele vosso estranho amigo
não vos informou. Vós e ele irão acompanhar-nos até Crydee.
Ghuda voltou-se lentamente, falando com ele mesmo, mas também com
Amos. — É evidente que ele não me informou, nunca me informa sobre
nada.
Amos deu-lhe uma palmada amigável nas costas. — Bem, não sei bem
porquê, mas sois bem-vindo. Tereis de partilhar uma cabina com o
pequenote, mas já pareceis habituado à sua companhia. Encontramo-nos no
pátio amanhã de madrugada.
— Lá estaremos, sem dúvida. — Depois de Amos ir embora, Ghuda
abanou a cabeça. — Por que motivo vamos para Crydee, Ghuda? —
murmurou, num tom acre. — Não faço a menor ideia, Ghuda. Vamos
procurar Nakor, Ghuda? Com certeza, Ghuda. Depois estrangulamo-lo,
Ghuda? — Com um simples aceno de cabeça, respondeu a si mesmo.
— Com muito prazer, Ghuda.

N
Harry.
icholas estugou o passo ao longo do pátio de formatura dos soldados,
onde estava a realizar-se o exercício da tarde. Andava à procura de

O jovem escudeiro estava onde Nicholas esperara encontrá-lo, a ver a


equipa de Krondor preparar-se para uma partida de futebol contra a equipa
visitante de Ylith. Aquele desporto, que se jogava de acordo com as regras
do Príncipe de Krondor (sistematizadas cerca de vinte anos antes por
Arutha), tornara-se o jogo nacional do Reino Ocidental, e agora os
campeões de cada cidade enfrentavam-se com regularidade. Anos antes, um
comerciante empreendedor mandara construir um campo e bancadas perto
do palácio. Com o passar dos anos, realizara melhoramentos e expandira-o,
até ao ponto de ser atualmente um estádio com capacidade para receber
facilmente quarenta mil espetadores. Previa-se uma lotação esgotada no
seguinte Sexto Dia, data em que a partida se realizaria. A equipa visitante
de Ylith, os Ases da Ala Norte, vinha defrontar os campeões de Krondor, a
Associação dos Moleiros e Padeiros.
Nicholas chegou a tempo de assistir a uma jogada de ataque, na qual
cinco jogadores investiram contra o guarda-redes e três defesas e, com três
passes hábeis, marcaram golo. — Detesto perder o resto do jogo — disse
Harry ao virar-se.
— Eu também — disse Nicholas —, mas pensa bem: uma viagem pelo
mar!
Harry olhou para o amigo e divisou um entusiasmo que nunca antes vira
em Nicholas. — Queres mesmo ir, não queres?
— Tu não queres?
Harry encolheu os ombros. — Não sei. Crydee parece ser um sítio onde
nada acontece. Como será que são as raparigas de lá? — Sorriu ao proferir
estas palavras e Nicholas respondeu com um esgar. Porém, gostava de estar
perto de Harry quando este namoriscava as raparigas mais novas da corte e
as filhas da criadagem, porque pensava que poderia aprender alguma coisa,
desde que o escudeiro não as molestasse, conforme fizera no dia anterior.
Em certas ocasiões, Harry podia ser encantador, mas noutras era demasiado
agressivo para o gosto de Nicholas.
— Tu podes até sentir a falta de seres rejeitado pelas miúdas daqui, mas
eu sinto que me estão a libertar da jaula — disse Nicholas.
O habitual ar trocista de Harry desvaneceu-se. — É assim tão mau?
Nicholas virou as costas ao treino e começou a caminhar para o palácio, e
Harry seguiu a seu lado. — Sempre fui o mais novo, o mais fraco, o…
aleijado.
Harry franziu o sobrolho. — Grande aleijado. Eu já sofri mais contusões
e cortes nos treinos de espada contigo do que com todos os outros juntos, e
acho que não te toquei mais de duas vezes num ano.
— Fizeste um ou dois pontos — disse Nicholas com aquele sorriso
perverso que o fazia parecer-se com o seu pai.
Harry encolheu os ombros. — Estás a ver? Eu não sou mau, mas tu és
excecional. Como é que alguém pode achar que és um aleijado?
— A Cerimónia de Apresentação realiza-se em Ludland?
— Não — respondeu Harry. — Isso é apenas para a família real, certo?
Nicholas abanou a cabeça. — Não. Antigamente, todos os bebés da
nobreza eram apresentados ao povo trinta dias após o nascimento, para que
todos constatassem que a criança nascera imaculada.
»Caiu em desuso no Reino Oriental há muito tempo, mas no Ocidente era
prática comum. Os meus irmãos foram apresentados, bem como a minha
irmã, aliás todas as crianças da família real, até chegar a minha vez.
Harry anuiu. — Pronto, está bem, o teu pai não quis exibir-te ao povo. E
depois?
Nicholas encolheu os ombros. — Às vezes, não é aquilo que somos; é a
maneira como as pessoas nos tratam. Sempre me trataram como se eu
tivesse alguma coisa de errado. Isso dificulta as coisas.
— E achas que as coisas serão diferentes em Crydee? — perguntou Harry
enquanto abandonavam a área do estádio e chegavam ao portão do palácio.
À sua passagem, dois guardas fizeram continência ao Príncipe, e
Nicholas disse:
— Não conheço bem o meu tio Martin, mas gosto dele. Acho que posso
ter uma vida diferente em Crydee.
Harry suspirou ao entrarem para o palácio. — Espero que não seja muito
diferente — disse, quando ia a passar apressadamente uma criada
especialmente bonita. Ficou a observá-la até ela desaparecer por uma porta
lateral. — Aqui há tantas possibilidades, Nicky.
Nicholas abanou a cabeça resignado.

O s remadores remaram e o bote recuou, à medida que lançavam


pesados cordames para a popa do navio. Nas docas, Arutha, Anita e
uma hoste de funcionários da corte permaneciam de pé, despedindo-se do
Príncipe Nicholas. Anita tinha os olhos reluzentes, mas estava a conter as
lágrimas. Nicholas era o seu bebé, mas já testemunhara a partida de três
outros filhos, e isso permitia que mantivesse o equilíbrio. Não obstante,
segurava o braço do marido com força. Havia algo nos modos dele que a
deixavam inquieta.
Nicholas e Harry estavam de pé perto da proa a acenar para os presentes
nas docas. Amos estava por detrás deles, com os olhos fixos na sua amada
Alicia. Nicholas passou o olhar da avó para Amos e disse:
— Bem, devo começar a tratar-vos por «avô»?
Amos mirou Nicholas com um olhar funesto. — Se o fizerdes, ireis a
nado até Crydee. E assim que zarparmos, começareis a tratar-me por
«Capitão». Tal como eu disse ao vosso pai há mais de vinte anos, sendo
Príncipe ou não, a bordo de um navio quem manda é o capitão. Aqui, sou
sacerdote e rei, nunca o esqueceis.
Nicholas sorriu de esguelha para Harry, pois ainda não estava a acreditar
que Amos pudesse transformar-se numa espécie de tirano enraivecido uma
vez em alto-mar.
A tripulação do porto continuou a rebocar o enorme navio para longe do
embarcadouro real, depois afastou-se. Amos olhou de relance para o piloto
do porto. — Assumi o comando do leme, piloto chefe! — gritou. Depois
continuou, dirigindo-se à tripulação: — Içai as gáveas! Preparai as velas
grandes e os joanetes!
Quando içaram as três primeiras velas, o navio pareceu ganhar vida.
Nicholas e Harry sentiram o movimento debaixo dos pés. O navio adernou
ligeiramente para a direita enquanto o piloto procurava acertar o rumo.
Amos deixou os rapazes sozinhos e foi para a popa.
Lentamente, o navio deslizou pelo porto, passando majestosamente por
dezenas de outras embarcações menores. Nicholas observou cada detalhe
enquanto a tripulação se azafamava a dar resposta às ordens do piloto. Duas
embarcações mais pequenas da guarda costeira estavam a entrar na boca da
doca quando se aproximavam. Ao avistarem o pavilhão da Casa Real de
Krondor no mastro principal, acenaram o estandarte do Reino em gesto de
saudação. Nicholas acenou-lhes.
— Que gesto tão pouco decoroso, Vossa Majestade — comentou Harry.
Nicholas enfiou o cotovelo nas costelas de Harry, com uma gargalhada.
— Quem se importa?
O navio virou contra o vento ao passarem a boca da doca e quase se
imobilizou. Um pequeno bote a remos colocou-se ao lado e o piloto e o
ajudante apressaram-se a descer para lá, passando o comando da
embarcação para Amos.
Assim que a embarcação do piloto se afastou, Amos virou-se para o seu
primeiro ajudante, um homem chamado Rhodes, e gritou:
— Mareai as gáveas! Preparai as velas grandes e os joanetes!
Nicholas não conseguiu evitar agarrar-se à amurada, pois o navio pareceu
saltar para a frente quando o vento deu nas velas. Sob a enérgica brisa da
manhã, o navio avançou rapidamente sobre a água. O Sol começou a
queimar através da bruma da manhã e o céu assumiu tons de um azul
intenso. Lá no alto, as gaivotas voavam atrás do navio, à espera que
lançassem ao mar o lixo do dia.
Nicholas apontou para a ondulação provocada pelo casco do navio e
Harry avistou golfinhos a fazer uma corrida com a embarcação. Os dois
rapazes riram-se com aquilo.
Amos observou os marcos geodésicos da doca ficarem para trás, depois
consultou a posição do Sol por cima da doca. — Para oeste, Sr. Rhodes —
indicou, virando-se para o primeiro imediato. — Em direção à Ilha do
Feiticeiro.

D urante seis dias seguiram contra os ventos prevalecentes de Oeste, até


que o vigia gritou:
— Terra à vista!
— Em que direção? — gritou Amos.
— Dois graus além de estibordo, Capitão! É uma ilha!
Amos assentiu com a cabeça. — Procurai os promontórios, Sr. Rhodes.
Existe uma enseada a sudoeste onde podemos atracar. Fazei saber aos
outros que apenas nos demoraremos um dia ou pouco mais. Ninguém deve
abandonar o navio sem autorização.
— Ninguém vai querer desembarcar na Ilha do Feiticeiro sem uma ordem
direta, Capitão — disse o lacónico Rhodes.
Amos anuiu. Sabia quem ali vivia atualmente, mas as velhas superstições
perduravam. Durante anos fora o abrigo de Macros, o Negro, e era uma ilha
famosa por abrigar demónios e outros espíritos das trevas. Pug, um mago
que era familiar de Arutha por adoção e com quem Amos se encontrara por
diversas vezes, assentara arraiais na ilha há quase nove anos, e, por motivos
que só ele conhecia, eram muito poucos aqueles a quem recebia de braços
abertos. — Passai palavra para que se mantenham alerta — disse Amos
quase instintivamente.
Ao olhar à sua volta, Amos compreendeu que tal não era necessário.
Todos os tripulantes do navio tinham os olhos postos naquele ponto de terra
que se aproximava a cada minuto. Amos sentiu uma pequena ferroada de
ansiedade, pois embora soubesse que Pug pedira que ninguém o fosse
visitar, duvidava que ele atacasse um navio com o pavilhão real de Krondor.
Nakor e Ghuda tinham subido ao convés, e o pequeno homem apressou-
se até à proa, onde já estavam Nicholas e Harry. Nicholas sorriu para o
estranho homenzinho. Simpatizara com Nakor, que se revelara um
companheiro divertido numa viagem que, de outro modo, se tornaria
aborrecida.
— Agora ides presenciar certas coisas — disse Nakor.
— Vede, um castelo — disse Ghuda.
Sobre um promontório, conseguiram avistar a silhueta de um castelo
durante a aproximação. À medida que a distância diminuía, começaram a
distinguir os pormenores. Fora construído com pedras negras, e assentava
sobre uma língua rochosa de terra que se separava do resto da ilha por uma
estreita fissura através da qual o marulhar das ondas embatia. Por cima
desse intervalo, fora estendido um passadiço, mas mesmo com esse acesso,
aquele lugar não tinha nada de hospitaleiro. Uma janela solitária, bem no
alto de uma torre, emanava uma agoirenta luz azul.
O navio oscilou para sul dos rochedos que delineavam a base do
precipício por debaixo do castelo e não tardou a aproximarem-se de uma
pequena baía. Os rapazes, Ghuda e Nakor ouviram Amos ordenar:
— Baixai todas as velas! Lançai a âncora.
Em poucos minutos o barco imobilizou-se e Amos aproximou-se. —
Muito bem, quem mais vai a terra além destes dois? — perguntou,
indicando Nakor e Ghuda.
— Não sei bem o que estais a pedir, Amos… ehh, Capitão.
Amos pareceu olhar de viés para o rapaz com um olho quando disse:
— Bem, então parece que o vosso pai ainda vos disse menos do que a
mim. Tudo o que me disse foi que deveríamos vir à Ilha do Feiticeiro para
que vós visitásseis o vosso primo Pug. Pensei que estáveis a par do assunto.
Nicholas encolheu os ombros. — Não estou com ele desde muito
pequenino; mal o conheço.
— Vós vindes — disse Nakor. Apontou para Harry. — Vós também. —
A seguir virou-se para Amos. — Já vós, não sei. Acho que também deveis
ir, mas não tenho a certeza. O Ghuda acompanha-me.
Amos cofiou a barba. — O Arutha disse para eu fazer o que pedísseis,
Nakor, por isso também vou.
— Ótimo — disse o homenzinho com um sorriso. — Vamos lá. O Pug
está à espera.
— Ele sabe que nós estamos aqui? — disse Harry.
Ghuda abanou a cabeça. — Não, está a dormir ferrado e não reparou
neste enorme navio que há meio dia vem a aproximar-se.
Harry teve a decência de enrubescer e Nicholas riu-se. Amos dirigiu-se
aos elementos da tripulação, cuja maioria estava pendurada no cordame,
observando as luzes intermitentes do distante castelo. — Baixai um bote!
— ordenou.

A quilha do bote enterrou-se na areia e dois marinheiros saltaram para


fora e puxaram-no até terra. Nicholas e Harry saltaram e avançaram
com água a dar-lhes pelos tornozelos, e foram seguidos por Nakor, Ghuda e
Amos.
Nakor seguiu imediatamente por um caminho que conduzia a uma crista
sobranceira a uma enseada. — Aonde é que ides? — indagou Amos.
— Por ali — respondeu Nakor sem parar de caminhar, mas virando-se e
apontando para o topo do caminho.
Ghuda olhou para os outros, encolheu os ombros e começou a segui-lo.
Os rapazes hesitaram um instante, depois também começaram a avançar
pelo caminho.
Amos abanou a cabeça e virou-se para os marinheiros. — Regressai ao
navio. Informai o Sr. Rhodes de que deve manter-se atento; faremos sinal
quando quisermos que o bote venha buscar-nos.
Os dois marinheiros fizeram continência e voltaram a empurrar o barco,
enquanto os outros dois que ainda estavam lá dentro pegaram num par de
remos e começaram a remar contra a rebentação das ondas. Os dois que
estavam apeados saltaram lá para dentro e não tardou a que os quatro
marinheiros estivessem a remar na direção da segurança relativa do navio.
Amos arrastou-se lentamente no encalço dos outros quatro e foi encontrá-
los à espera dele no topo do caminho. Havia outro caminho na direção
oposta do que conduzia ao castelo e Nakor começou a seguir por esse.
— O castelo fica naquela direção, keshiano — avisou Amos.
— Isalani — corrigiu-o Nakor. — Os Keshianos são indivíduos altos e
escuros que andam de um lado para o outro quase despidos. E o Pug está
para este lado.
— É melhor não discutir com ele, Almirante — disse Ghuda, enquanto o
seguia. Os outros imitaram-no e foram atrás de Nakor, percorrendo uma
estreita passagem que subia até outra crista. Do topo da segunda crista
conseguiam ver para um pequeno vale. O vale estava pejado de arbustos
cerrados e árvores antigas. O caminho parecia acabar junto do bosque, no
sopé da colina.
— Aonde nos levais? — perguntou Ghuda.
Nakor quase saltitava ao caminhar, batendo com o bordão no caminho.
— Por aqui. Já não falta muito.
Os rapazes apressaram-se a segui-lo, quase a correr, e não tardou estavam
ao lado do isalani. — Nakor — disse Nicholas —, como sabeis que o Pug
está ali?
— É um truque — respondeu Nakor encolhendo os ombros.
Quando chegaram ao ponto onde a floresta começava, depararam-se com
um emaranhado de matagal de aspeto assustador e árvores tão próximas
umas das outras que a passagem parecia impossível. — E agora, por onde?
— quis saber Harry.
Nakor sorriu. — Vede. — Apontou para o caminho com o bordão. —
Vede ali. Não olheis para cima.
Começou a caminhar lentamente e virou-se de modo a seguir de costas,
arrastando a ponta do bordão pelo chão. Os rapazes seguiram-no, mantendo
os olhos fixos na ponta do bordão enquanto este levantava poeira do chão.
Seguiram lentamente, e passado algum tempo Nicholas percebeu que neste
ponto já deveriam estar presos no denso matagal, mas que na realidade o
caminho continuava desimpedido. — Não olheis para cima — repetiu
Nakor.
Estavam envoltos em trevas, mas conseguiam ver distintamente o
caminho no ponto onde o bordão lhe tocava. Depois, subitamente, ficou
claro e Nakor disse:
— Já podeis olhar.
Em vez de uma floresta cerrada, estavam diante de um enorme campo
por onde podiam passar, com algumas árvores de fruto bem tratadas nas
orlas. Do outro lado do campo havia ovelhas a pastar, e meia dúzia de
cavalos trotavam num imenso prado. Nicholas olhou para trás e viu Amos e
Ghuda a olhar à sua volta como se estivessem perdidos. — Eles são muito
lentos — comentou Nakor. — Vou buscá-los.
— Não é preciso — disse uma voz vinda das suas costas.
Nicholas voltou-se e viu um homem de manto negro, ligeiramente mais
baixo do que ele, a olhar para os três com uma expressão de perplexidade.
O Príncipe arregalou os olhos pois não era possível que aquele homem
estivesse ali instantes antes. O homem fez um movimento com a mão e,
subitamente, Amos e Ghuda estavam a olhar estupefactos com os olhos
esbugalhados. — Removi a ilusão — disse o homem.
— Eu bem disse: era um truque — disse Nakor.
O homem mirou os dois rapazes e Nakor, depois perscrutou Amos e
Ghuda enquanto estes se aproximavam. Passados uns instantes, o seu rosto
com barba relaxou e os anos pareceram esfumar-se quando disse:
— Capitão Trask! Não fazia ideia.
Amos encaminhou-se para ele com largas passadas e estendeu-lhe a mão.
— Pug, como é bom reencontrar-vos outra vez. — Enquanto apertavam as
mãos, Amos disse:
— Não estais muito diferente do que éreis após a Batalha de Sethanon!
— Já me tinham dito — afirmou Pug, transparecendo algum humor na
sua voz. — Quem são os vossos companheiros?
Amos fez sinal para que Nicholas avançasse. — Tenho o prazer de vos
apresentar o vosso primo, Príncipe Nicholas.
Pug sorriu calorosamente para o rapaz. — Nicky — disse —, não vos
vejo desde que éreis pouco mais do que um bebé.
— Este é Harry de Ludland, o seu escudeiro — prosseguiu Amos —, e
estes dois são Ghuda Bulé e…
Antes que conseguisse terminar, Nakor interveio:
— Eu sou Nakor, o Cavaleiro Azul.
Inesperadamente, Pug desatou à gargalhada. — Vós! Já ouvi falar de vós.
Sois muito bem-vindo à Villa Beata — disse, com genuíno regozijo .
Fez sinal para que o seguissem e conduziu-os até uma casa de aspeto
desusado. Um enorme edifício central, branco, com telhado de telhas
vermelhas, era rodeado por um muro de pedra branco e baixo, que guardava
um pomar de árvores de fruto e flores. No centro do jardim, um fontanário
de mármore representando três golfinhos jorrava para o alto um alegre
borrifo de água. Mais afastadas, conseguiam vislumbrar outras construções
exteriores.
— O que é a Villa Beata? — indagou Nicholas, estugando o passo para
seguir ao lado de Pug.
— É este lugar. Na língua daqueles que a construíram, significa
«abençoado lar», ou pelo menos foi isso que me disseram. E foi isso que
aqui encontrei.
Amos virou-se para Nakor. — Como sabíeis que não deveríamos ir para
o castelo? — perguntou.
O homenzinho sorriu e encolheu os ombros. — É para isso que eu sirvo.
— Se tivésseis ido para o castelo — disse Pug por cima do ombro —,
não teríeis encontrado ninguém, à exceção de algumas armadilhas
engraçadas na torre principal. Acho que ajuda a preservar a minha
privacidade ao manter viva a lenda do Feiticeiro Negro. Os alertas que lá
criei ter-me-iam informado da vossa chegada, mas deste modo poupastes
meio dia de tempo desperdiçado. — Olhou para Nakor e disse:
— Temos de conversar antes de partirdes.
Nakor acenou vigorosamente com a cabeça. — Gosto da vossa casa. Faz
todo o sentido.
Pug acenou em resposta.
Quando chegaram ao portão do muro baixo, Pug manteve-o aberto para
os outros passarem, e depois seguiu atrás deles. — Tende em atenção que
nem todos os meus criados são humanos, e alguns podem assustar-vos.
Porém, nenhum deles vos fará qualquer mal.
Como que a ilustrar o que acabara de dizer, uma criatura de alta estatura
assomou à porta principal da casa. Ghuda já desembainhara metade do
sabre quando se lembrou das palavras de Pug e voltou a guardá-lo. A
criatura parecia-se com um trasgo, embora fosse mais alta do que qualquer
um que Ghuda alguma vez vira. De um modo geral, os trasgos eram mais
baixos do que os humanos, mas não muito. A pele matizada de azul e verde
desta criatura era macia, e tinha uns olhos enormes e redondos, com íris
negras sobre globos amarelos. Além disso, tinha feições mais delicadas do
que os trasgos que Ghuda combatera, embora tivesse o sobrolho carregado
e o cómico enorme nariz típicos dos trasgos. Todavia, envergava vestes de
material e corte delicados e o seu porte só podia ser definido como digno.
Sorriu, mostrando uns dentes compridos que eram quase presas. Fez uma
respeitosa reverência e disse:
— Mestre Pug, preparei algo para beber.
— Este é o Gathis — explicou Pug —, o mordomo-mor da minha casa.
Tudo fará para que vos sentis confortáveis. — Olhando para o alto, disse:
— Creio que os nossos convidados ficarão para jantar e passar a noite.
Preparai quartos para eles. — Virou-se para os cinco visitantes. — Temos
espaço de sobra e creio que uma noite descansada vos faria bem — disse.
— Alteza, sois muito parecido com o vosso pai quando tinha a vossa idade
— acrescentou dirigindo-se a Nicholas.
— Conhecíeis o meu pai quando tinha a minha idade? — perguntou
Nicholas.
Pug, com o seu aspeto jovem, anuiu. — Bem, um dia terei de vos contar.
Vinde — disse, dirigindo-se a todos os outros. — Tomai algo para vos
refrescardes. Eu tenho de tratar de uns assuntos urgentes, mas juntar-me-ei a
vós depois de repousardes. — Depois de dizer estas palavras, desapareceu
pela porta que dava para a casa, deixando-os aos cuidados de Gathis.
A estranha criatura produzia um silvo ao falar, devido principalmente a
uma grande variedade de dentes, mas as suas palavras eram plenas de
cortesia. — Se precisardes de algo, cavalheiros, não hesiteis em pedir-me
que envidarei todos os esforços para suprir imediatamente as vossas
necessidades. Por obséquio, acompanhai-me.
Conduziu-os até um espaçoso átrio, onde havia um grande conjunto de
portas que davam para um enorme jardim central. Para a esquerda e para a
direita alongavam-se corredores. Conduziu-os para a esquerda, até à
primeira esquina, depois para a direita. Um pórtico prolongava-se a partir
de uma porta à esquerda deles, fazendo a ligação entre outro grande edifício
e o principal. — Estamos nos aposentos dos hóspedes, cavalheiros — disse
Gathis, enquanto os conduzia até ao edifício adjacente.
Ghuda esteve prestes a desembainhar outra vez o sabre quando apareceu
um troll a caminhar vagarosamente com um monte de roupa de cama. A
criatura vestia uma túnica simples e calças, mas era inequivocamente um
troll: formato humanoide, de baixa estatura, com ombros extremamente
largos e braços quase até ao chão. Tinha feições simiescas, com enormes
presas a espreitar pelo lábio inferior, e olhos pretos encovados escondidos
debaixo de enormes sobrancelhas salientes. Sem qualquer espalhafato, a
criatura encostou-se a uma parede e fez uma ligeira vénia, cedendo-lhes
passagem.
— Aquele é o Solunk — explicou Gathis —, o porteiro. Se precisardes
de toalhas lavadas ou de água quente, tocai a campainha e ele virá em vosso
auxílio. Não fala a língua do Reino, mas percebe o suficiente para dar
resposta aos vossos pedidos. Caso preciseis de algo que não compreenda,
ele irá chamar-me. — Indicou um quarto a cada um e deixou-os.
Nicholas estava num quarto bem apetrechado, mas não excessivamente
ornamentado. Uma cama simples com uma colcha grossa dominava um
canto, por debaixo de uma enorme janela que dava para os edifícios mais
pequenos nas traseiras da casa principal. Espreitou e avistou um homem e
outra criatura parecida com Gathis, mas mais pequena, a levar lenha para o
que parecia ser uma cozinha.
Nicholas virou-se para examinar que mais havia no interior do quarto.
Uma escrivaninha simples com uma cadeira, um enorme roupeiro e uma
cómoda. Abriu as gavetas da cómoda e viu roupa de cama lavada, enquanto
o roupeiro guardava um pequeno leque de vestes de diferentes cortes, cores
e tecidos, e de diversos tamanhos, como se determinado número de
hóspedes tivessem deixado ali ficar um ou dois artigos.
Alguém bateu à porta e Nicholas foi abri-la. À porta, estava Solunk, o
troll. Fez sinal para uma enorme banheira de metal transportada por dois
homens, e depois apontou para Nicholas. O rapaz compreendeu, assentiu
com a cabeça e abriu a porta para trás. Os dois homens entraram e Nicholas
não conseguiu deixar de os fitar fixamente. Os dois vestiam apenas umas
calças vermelhas e tinham a pele escura, mas ao contrário das pessoas de
pele negra de Krondor e de Kesh, estes homens não eram apenas negros.
Eram negros como se os seus corpos tivessem sido pintados com negro de
fumo ou tinta. Além disso, não tinham quaisquer pelos na cabeça ou no
rosto, e tinham uns olhos de um surpreendente azul-claro, sem que se visse
qualquer branco, que contrastavam com a pele farrusca.
Pousaram a banheira no centro do quarto e foram-se embora. O troll
abriu o roupeiro e, sem hesitar, escolheu umas calças e uma túnica que
pareciam ser do tamanho de Nicholas. De seguida, remexeu na cómoda, por
debaixo da roupa de cama, e tirou de lá umas cuecas e umas ceroulas. Os
dois homens de cor estranha regressaram com dois baldes e encheram a
banheira com água quente, e deixaram uma toalha, uma escova e uma barra
de sabão aromático.
O troll produziu um som inquiridor e fez o gesto de esfregar as costas de
Nicholas. — Não, obrigado — disse Nicholas. — Cá me arranjarei.
Com um grunhido que transparecia satisfação, o troll fez sinal para que
os outros saíssem, foi atrás deles e fechou a porta.
Nicholas abanou a cabeça num gesto de espanto mudo, depois despiu as
suas roupas imundas e enfiou-se na banheira. A água estava quente, mas
não demasiado, e deixou-se afundar lentamente. Quando ficou sentado,
permitiu-se um longo suspiro e recostou-se. Apreciou o luxo do banho de
água quente após uma semana no reduto de um navio. Conseguia ouvir
Harry a chapinhar na água ao fundo do corredor e decidiu começar a
esfregar-se antes que a água arrefecesse de mais. Não tardou a estar coberto
de espuma e a cantarolar em voz baixa uma melodia em resposta às
vocalizações mais turbulentas de Harry.
Depois de um demorado e revitalizante banho, Nicholas vestiu-se e
percebeu que as roupas que tinham escolhido para ele assentavam-lhe quase
tão bem como as suas. Calçou as botas e saiu do quarto. Não andava
ninguém no corredor e pensou se deveria perturbar os outros; o vozear de
Harry ainda se fazia ouvir.
Decidiu deambular um pouco e explorar. Entrou para a casa principal,
passando pelo corredor principal, e virou por uma passagem que dava para
o jardim central. Tal como aquele diante da casa, este jardim estava repleto
de árvores de fruto e flores, com pequenos caminhos que o atravessavam
desde quatro portas centrais do quadrado, formando uma cruz. No
cruzamento dos dois caminhos havia um fontanário idêntico ao que estava
na parte da frente da casa, e lá perto um pequeno banco de pedra branco.
Pug estava lá sentado a conversar com uma mulher.
Ao aproximar-se, Nicholas viu Pug erguer o olhar e levantar-se. —
Alteza, tenho o prazer de apresentar uma amiga, Lady Ryana. — Virou-se
então para a mulher. — Lady Ryana, este é o Príncipe Nicholas, filho de
Arutha de Krondor.
A mulher levantou-se e fez uma reverência perfeita, com uns formidáveis
olhos verdes fixos no rapaz. Era difícil adivinhar a sua idade, pois bem
podia ter pouco menos de vinte anos ou trinta e poucos; tinha feições bem
delineadas, e «aristocrática» era a única palavra que Nicholas conseguia
encontrar para a definir; na presença dela, Nicholas sentia que ele é que era
o subalterno e ela a soberana. Mas por muito bela que fosse, havia algo nas
suas maneiras e movimentos que só podia ser definido como estranho: os
seus cabelos não eram louros, mas antes verdadeiramente dourados, e a sua
pele era ebúrnea, mas quase resplandecia à luz do Sol. Nicholas hesitou por
instantes, depois fez uma reverência perfeita e disse:
— Minha senhora.
— A Ryana é filha de um velho amigo e veio estudar comigo durante uns
tempos — explicou Pug.
— Estudar?
Pug indicou que sim com a cabeça, e fez sinal para que Nicholas se
sentasse no seu lugar, enquanto ele foi sentar-se na berma do fontanário. —
Muitos dos que aqui residem são criados ou amigos, mas alguns são alunos
meus.
— Pensei que tínheis construído a academia de Stardock para esses
estudos — disse Nicholas.
Pug sorriu ligeiramente e, com alguma ironia na voz, disse:
— A academia é como muitas outras instituições humanas, Nicholas, o
que significa que, à medida que o tempo passa, ficará mais adaptada aos
seus moldes, mais preocupada com a «tradição», e com menos apetência
para evoluir. Eu próprio constatei os resultados dessas atitudes, e não desejo
que se repitam. Mas eu tenho uma influência limitada em Stardock. Já
passaram sete anos desde que lá fui pela última vez, e oito desde que deixei
de viver com os magos de lá. Parti de lá logo após a morte da minha
mulher. — Ergueu o olhar para o céu, perdido em pensamentos. — Os meus
velhos amigos Kulgan e Meecham também já morreram. Os meus filhos
cresceram e casaram. Não, há pouca coisa em Stardock que me incite a
visitá-la.
Acenou a mão num gesto abrangente. — Aqui, recebo qualquer um que o
mereça, e alguns vêm de outros mundos. Duvido que alguns dos que já
conhecestes fossem bem recebidos em Stardock.
Nicholas abanou a cabeça. — Presumo que tenhais razão. — Numa
tentativa de ser cortês, dirigiu-se a Ryana. — Minha senhora, vindes de um
desses mundos distantes?
A voz dela revelava nuances estranhas. — Não, nasci perto daqui, Alteza.
Nicholas sentiu a pele eriçar-se sem saber bem porquê. Aquela mulher
era de uma beleza inusitada para os padrões de qualquer um, porém era uma
beleza de outro tipo, algo que ele não conseguia compreender. Sorriu, pois
não conseguiu pensar em mais nada cortês para dizer.
Pug pareceu aperceber-se do seu desconforto, por isso perguntou:
— A que devo o prazer desta visita, Nicholas? Fui bastante inequívoco
quando pedi ao vosso pai que ninguém viesse perturbar-me aqui.
Nicholas corou. — A verdade é que não sei, Pug. O meu pai disse que o
Nakor insistiu, e por algum motivo sentiu-se impelido a ceder ao seu
desejo. Eu vou a caminho da corte do Martin em Crydee, para servir lá de
escudeiro durante algum tempo e… creio que para ganhar experiência na
fronteira.
Pug sorriu, e Nicholas sentiu outra vez a tranquilidade que aquele sorriso
transmitia. — Bem, é um sítio mais perigoso do que Krondor, mas não se
pode dizer que Crydee seja a fronteira. Constou-me que o burgo tem o
dobro do tamanho que tinha quando eu era jovem. E a guarnição de Jonril é
agora uma povoação importante. Há lá um ducado em crescimento. Creio
que ireis gostar.
— Espero que sim — disse Nicholas, com um sorriso, embora pouco
convicto. Tentava não o transparecer na sua expressão, mas nos últimos dias
fora acometido por uma inesperada saudade de casa. A novidade da jornada
dissipara-se e depois a entediante viagem, sem nada para fazer a não ser
ficar sentado na sua cabina ou andar pelo convés, estava a deixar nele as
suas marcas.
— Como correm as coisas na corte do vosso pai? — indagou Pug.
— Tranquilas — respondeu Nicholas. — E muita azáfama. O normal.
Não há guerras nem pragas ou outras crises, se é a isso que vos referis. —
Mirou o rosto de Pug e percebeu um olhar inquisitivo. Acenou com a
cabeça. — O vosso filho é atualmente Marechal da Corte de Krondor —
informou.
Pug acenou com a cabeça, e tinha uma expressão pensativa. — Eu e o
William desentendemo-nos por causa da escolha dele em seguir a vida
militar. Ele tem dons estranhos e poderosos.
— O pai disse-me algo sobre isso — contou Nicholas —, mas não sei se
percebo bem.
Pug voltou a sorrir. — Também não sei se percebo bem, Nicholas. É que
todos os meus dons, enquanto pai, não foram suficientes, pelo menos com o
William. Insisti que fosse estudar para Stardock, mas ele não quis saber. —
Pug abanou a cabeça e o seu semblante tornou-se pesaroso. — Eu fui
demasiado exigente, e ele partiu sem a minha autorização. O Arutha
concedeu-lhe um cargo por ele ser primo. Fico feliz por saber que ele é
alguém na vida.
— Deveríeis ir visitá-lo — disse Nicholas.
Pug sorriu outra vez. — Quem sabe.
— Eu queria perguntar-vos uma coisa — disse Nicholas. — Toda a gente
trata o William por «Primo Willie», e vós também vos referistes a ele como
meu primo. Mas eu sei que o meu avô Borric só teve três filhos e nenhum
sobrinho…? — Encolheu os ombros.
— Quando trabalhei na casa senhorial do vosso avô, prestei-lhe alguns
serviços. Eu era órfão, e quando ele me encontrou perdido, juntou o meu
nome aos arquivos da família em Rillanon. Como eu não fui formalmente
adotado como seu filho, o Rei não podia tratar-me por irmão, por isso
«primo» pareceu apropriado. Eu não falo sobre essas coisas, aqui ninguém
se preocupa com assuntos relacionados com patentes e títulos, mas para o
Reino eu sou considerado uma espécie de Príncipe.
Nicholas sorriu. — Bem, Alteza, a outra novidade é que a vossa filha deu
à luz o terceiro filho.
O sorriso de Pug cresceu. — Um menino?
— Finalmente — disse Nicholas. — O tio Jimmy adora as suas duas
meninas, mas desta vez queria mesmo um rapaz.
— Já não estou com eles desde o casamento — disse Pug. — Talvez
devesse ir a Rillanon visitar a família, nem que fosse para ver os meus
netos. — Fitou Nicholas com uma expressão amistosa. — Pensarei em ir
visitar a corte do vosso pai no regresso e quem sabe um pai teimoso e um
filho igualmente teimoso consigam ter alguma coisa a dizer ao outro.
Nakor e Ghuda assomaram à entrada para o jardim, o guerreiro com uma
camisa de seda requintadamente orlada e calças de balão enfiadas por
dentro das suas botas velhas e maltratadas. Deixara a espada bastarda no
quarto, mas trazia os punhais bem à vista de todos. O pequeno batoteiro
envergava um curto manto laranja-claro, que Nicholas achava berrante, mas
que ele parecia apreciar bastante. Aproximou-se e fez uma vénia a Pug. —
Obrigado por este belo manto.
Quando avistou Ryana, esbugalhou os olhos e o queixo caiu-lhe de
estupefação. Disse rapidamente algumas frases numa língua que Nicholas
não conhecia. Os olhos verdes da mulher arregalaram-se e ela olhou para
Pug com uma expressão que Nicholas só podia definir como de alarme. O
homenzinho dissera algo que a deixara bastante assustada.
Pug levou um dedo aos lábios num gesto que pedia silêncio e Nakor
olhou de relance para Ghuda e Nicholas. Soltando uma gargalhada de
embaraço, disse:
— Desculpai.
Nicholas olhou para Ghuda, que disse:
— Nunca faço perguntas.
— O Amos e o Harry não devem tardar — disse Pug. — Podemos passar
para a sala de jantar.
A sala de jantar consistia num grande salão quadrado ao lado do edifício
central mais afastado dos aposentos dos hóspedes. Ao centro, havia uma
mesa quadrada e baixa com almofadas a toda a volta. Pug falou quando
Amos e Harry chegaram. — Eu prefiro comer à moda dos tsurani; espero
que não vos importeis.
— Desde que haja comida, até como de pé se preciso for — disse Amos.
Ao ver Ryana, ficou imóvel, enquanto Pug fazia as apresentações.
Harry não conseguia desviar os olhos da mulher, e quase tropeçou numa
almofada ao aproximar-se de Nicholas. — Quem é aquela?
Nicholas falou em voz baixa. — Uma feiticeira, ou pelo menos é aluna
do Pug. E não cochiches, é falta de educação.
Harry ruborizou e ficou em silêncio quando entraram os dois estranhos
homens negros trazendo pratos com comida. Colocaram rapidamente pratos
diante de todos e foram-se embora, mas regressaram pouco depois com
copos de vinho.
— Já não sei bem como receber visitas, por isso espero que me perdoeis
caso falte alguma coisa — disse Pug enquanto serviam o jantar.
Amos respondeu em nome de todos: — Não vos informámos da nossa
vinda com antecedência, por isso, nada do que nos oferecerdes será pouco.
— Sois muito simpático, Almirante — disse Pug.
— Pensei que o meu pai tivesse alguma forma de vos contactar — disse
Nicholas.
— Apenas em caso de emergência, Alteza, e mesmo assim só num caso
extremo. Ainda não precisou de utilizar o dispositivo que lhe dei. O Reino
tem estado em paz desde a minha partida.
A conversa recaiu sobre intrigas da corte e outras trivialidades. Nakor
estava invulgarmente calado, tal como Lady Ryana. Pug era um anfitrião
sociável, e fazia um esforço para não excluir os dois rapazes das conversas,
mas não era demasiadamente óbvio.
Nicholas e Harry já bebiam vinho ao jantar desde que tinham idade
suficiente para se sentarem à mesa com os pais, mas tal como faziam à
maioria das crianças de berço nobre, o vinho era misturado com água. Esta
noite, estavam a beber um tinto de Kesh encorpado, e, após dois copos, os
dois rapazes já estavam alegres e riam às gargalhadas de duas histórias que
já tinham ouvido Amos contar muitas vezes.
Quando Amos começou a contar a terceira história de aventuras e
maravilhas, Pug interveio: — Dais-me licença por uns instantes? Nakor,
posso dar-vos uma palavra em particular?
O homenzinho pôs-se de pé de um pulo e apressou-se na direção da porta
que Pug lhe indicara. Entraram para outro dos muitos jardins da
propriedade. — Disseram-me que esta visita foi ideia vossa — disse Pug.
— Nunca esperei encontrar… — disse Nakor.
— Como sabíeis? — indagou Pug.
— Não faço ideia, simplesmente sei — respondeu o isalani com um
encolher de ombros.
Pug parou junto de um banco baixo. — Quem sois vós? — perguntou.
Nakor sentou-se no banco sobre as pernas. — Um homem. Sei coisas.
Faço truques.
Pug perscrutou-o em silêncio durante um longo momento. Sentando-se
na borda de um espelho de água, finalmente disse:
— O povo da Ryana aprendeu a confiar em mim. Ela é filha de um
dragão que conheci há vinte anos. São dos últimos da sua raça, e a maioria
dos homens pensam que não passam de uma lenda.
— Uma vez vi um — disse o atrevido homenzinho. — Seguia viagem na
estrada de Toowomba para Injune, nas montanhas. Quando o Sol se punha,
vi um ao longe, a descansar sobre o cume de uma montanha, a apanhar sol.
Achei estranho que estivesse ali sentado sozinho, mas depois pensei que ele
poderia achar estranho eu também estar ali sozinho; por isso, visto tratar-se
de uma questão de perspetiva, decidi não perturbar a sua meditação. Mas
fiquei a observá-lo alguns minutos. Era de uma beleza formidável, tal como
a vossa Lady Ryana. — Abanou a cabeça. — São criaturas maravilhosas.
Disseram-me que há homens que os consideram deuses. Gostaria de
conversar com um.
— A Ryana é jovem — explicou Pug —, só ganhou consciência há
alguns anos após uma existência de criatura selvagem, aos modos da sua
raça; mal consegue compreender a sua própria natureza ou o seu novo
poder. Melhor será se limitarmos o seu contacto com humanos durante
algum tempo.
Nakor encolheu os ombros. — Se o dizeis. Eu já a vi. É quanto basta,
creio.
Pug sorriu. — Sois um homem invulgar.
Nakor voltou a encolher os ombros. — Prefiro não ficar perturbado com
coisas sobre as quais não tenho qualquer controlo.
— Porque viestes visitar-me, Nakor?
O rosto geralmente sorridente do pequeno homem ficou com uma
expressão mais sombria. — Dois motivos. Eu queria conhecer-vos, pois
foram as vossas palavras que me levaram a Stardock.
— As minhas palavras?
— Em tempos dissestes a um homem chamado James que, caso ele
encontrasse alguém como eu, ele deveria dizer: «A magia não existe.» —
Pug assentiu com a cabeça. — Por isso, quando ele me disse tais palavras,
fui até Stardock à vossa procura. Havíeis partido, mas eu fiquei lá durante
algum tempo. Conheci muitos homens sérios que não compreendiam que a
magia são só truques.
Pug deu por si a sorrir. — Constou-me que deixastes o Watum e o Korsh
em choque.
O sorriso de Nakor regressou para enfrentar o de Pug. — São uns sujeitos
picuinhas, que levam a sua escola demasiadamente a sério. Eu andei pelo
meio dos alunos e foram muitos aqueles que concordaram com a minha
perspetiva. Autodenominam-se os Cavaleiros Azuis em minha honra e
uniram-se em resistência às perspetivas insulares daquelas duas velhinhas
que deixastes a comandar.
Pug soltou uma gargalhada. — Os irmãos Korsh e Watum foram os meus
melhores alunos. Acho que não iriam gostar que os tratásseis por velhinhas.
— E não gostaram — confirmou Nakor. — Mas comportam-se como se
o fossem. «Não façais isto; não façais aquilo.» Simplesmente não
compreendem que a magia não existe.
Pug suspirou. — Quando me pus a pensar naquilo que dez anos de
trabalho tinham criado em Stardock, vi uma repetição do passado, outra
Assembleia dos Grandiosos, tal como a que havia no mundo de Kelwan: um
grupo de homens que só queriam saber do seu poder e grandeza, à custa de
terceiros.
Nakor anuiu com a cabeça. — Gostam de andar envoltos em mistérios e
de fingir que são importantes.
Pug riu-se. — Oh, se me tivésseis visitado em Kelewan, há já tantos
anos, teríeis dito pior sobre mim.
— Eu conheci alguns dos Grandiosos — respondeu Nakor. — O portal
da brecha ainda funciona e nós ainda fazemos negócios com o Império.
Recebemos mercadorias tsurani e pagamos com metais. A Senhora do
Império é uma negociadora arguta e ambos os lados ficam contentes. De
quando em vez, recebemos a visita de um Grandioso Tsurani. E de alguns
magos estranhos de Chakahar. Não sabíeis?
Pug abanou a cabeça e suspirou. — Se houver magos cho-ja de Chakahar
em Stardock, o controlo da Assembleia sobre o Império terá terminado. —
Os olhos turvaram-se-lhe e disse:
— Há coisas que nunca pensei testemunhar na minha vida, Nakor. O fim
daquela tradição era o mais importante para eles… muito do que conferia à
Assembleia o seu poder baseava-se no medo e em mentiras: mentiras sobre
magos, mentiras sobre o Império, e mentiras sobre aqueles que estão para lá
das fronteiras do Império…
Nakor pareceu compreender as palavras de Pug. — As mentiras podem
perdurar. Mas não para sempre. Devíeis regressar para uma visita.
Pug abanou a cabeça, sem ter a certeza se o homenzinho se referia a
Kelewan ou a Stardock. — Há quase nove anos que deixei o passado para
trás. Os meus filhos aparentam uma idade igual à minha, e não tardarão a
envelhecer. Testemunhei a morte da minha mulher e dos meus professores.
Velhos amigos de dois mundos viajaram para o corredor da morte. Não
desejo ver os meus filhos envelhecer. — Pug levantou-se e deu alguns
passos. — Não sei se fui sábio, Nakor, só que eu temia aquilo mais do que
tudo.
Nakor acenou com a cabeça. — De certo modo, somos parecidos.
— Em que sentido? — perguntou Pug voltando-se e fitando o
homenzinho.
Nakor sorriu. — Já vivi três vezes a vida de um homem normal. O meu
nascimento foi registado num recenseamento de Kesh nos tempos do
Imperador Sajanjaro, bisavô da esposa do Imperador Diiagái. Vi a
Imperatriz, mãe da sua mulher, há nove anos. Era uma anciã que governara
durante mais de quarenta anos. Lembro-me de quando ela era bebé, e já
então eu tinha esta aparência. — Nakor suspirou. — Nunca fui de confiar
nas outras pessoas, talvez por força da minha profissão. — Mostrou um
baralho de cartas, aparentemente vindo do nada e, com uma mão, fez um
leque; depois, com um trejeito do pulso, as cartas desapareceram. — Mas
compreendo o que dizeis. Todos aqueles que conheci em criança já
morreram.
Pug voltou a sentar-se no fontanário. — Que outro motivo vos trouxe
aqui? — indagou.
— Eu vejo coisas — respondeu Nakor. — Não sei como, mas há
momentos em que sei. O Nicholas embarcou numa viagem que o vai levar
muito mais longe do que Crydee. E o futuro do rapaz está repleto de
perigos.
Pug manteve-se em silêncio durante imenso tempo, considerando as
palavras do homenzinho. — O que devo fazer para ajudar? — disse, por
fim.
Nakor abanou a cabeça. — Não sou inatamente um homem sábio. Já me
chamaram frívolo… o Watum e o Korsh, e mais recentemente o Ghuda. —
Pug sorriu ao escutar estas palavras. — Por vezes, não compreendo as
minhas capacidades. — Suspirou. — Vós sois um homem de grandes dons
e façanhas, como é sabido. Viveis na companhia de criaturas maravilhosas e
não achais que isso seja estranho. Testemunhei o trabalho que fizestes em
Stardock, e é impressionante. Seria presunção da minha parte dar-vos
conselhos.
— Presunção ou não, dai-os.
Nakor mordeu o lábio de cima enquanto pensava. — Acredito que o
rapaz seja um elo. — Fez um círculo vago com a mão. — Há forças do mal
em movimento que serão atraídas para ele — disse. — Nada podemos fazer
para o mudar, mas devemos estar preparados para o ajudar.
Pug ficou em silêncio durante muito tempo. Por fim, disse:
— Há quase trinta anos, o pai do Nicholas também era um elo, pois a sua
morte teria redundado numa vitória para as forças do mal.
— O povo serpentino.
Pug olhou estupefacto ao ouvi-lo.
Nakor encolheu os ombros. — Ouvi falar sobre a Batalha de Sethanon
muito depois de ter acabado. Porém, houve um rumor que achei
interessante, que o líder dos invasores do vosso reino tinha como
conselheiro um mago pantathiano.
— Sabeis da existência dos Pantathianos?
— Já me cruzei com os sacerdotes da serpente — disse Nakor,
encolhendo os ombros. — Presumo que independentemente do que os
vossos elfos negros do Norte tenham pensado, foram os Pantathianos os
responsáveis por toda a barafunda, mas além disso não compreendo muito
bem o que aconteceu.
— Ficaríeis ainda mais assombrado se compreendêsseis, Nakor — disse
Pug, que acenou com a cabeça. — Muito bem. Ajudarei o Nicholas.
Nakor levantou-se. — Devemos ir para a cama. Gostaríeis que
partíssemos amanhã.
Pug sorriu. — Quanto a vós, gostaria que ficásseis. Acho que seríeis uma
peça valiosa para a nossa comunidade, mas sei o que é ser-se atraído para o
próprio destino.
O semblante de Nakor toldou-se e Pug nunca antes o vira tão sério. —
Deste séquito, cinco cruzarão oceanos, na companhia de outros quatro que
ainda iremos encontrar. — O seu olhar esfumou-se, como se estivesse a
contemplar algo à distância. — Nove partirão, e alguns não regressarão.
Pug pareceu ficar preocupado. — Sabeis quem?
— Eu sou um desses nove — respondeu Nakor. — Nenhum homem pode
saber o seu próprio destino.
— Nunca conhecestes Macros, o Negro — comentou Pug.
Nakor sorriu e, subitamente, a atmosfera ficou mais leve. — Conheci,
mas isso é uma longa história.
Pug levantou-se. — Devemos regressar para junto dos meus hóspedes.
Um dia gostaria de ouvir essa história.
— E em relação ao rapaz? — indagou Nakor.
— Pelos motivos que acabei de referir, não me agrada a ideia de me
envolver com qualquer mortal, ainda que seja um familiar — disse Pug.
Abanou a cabeça como se estivesse zangado. — Porém, não posso
abandonar aqueles por quem nutro afeto. Quando o momento chegar,
ajudarei o rapaz.
— Ótimo — disse Nakor. — Foi por isso que eu disse ao pai dele que
tínhamos de vir aqui.
— Sois efetivamente um homem invulgar, Nakor, o Cavaleiro Azul —
disse Pug.
Nakor soltou uma gargalhada e anuiu com a cabeça em concordância.
Regressaram à sala de jantar e apanharam Amos a terminar mais uma das
suas histórias, que faziam as delícias de Ghuda e de Nicholas. Ryana
parecia abismada, e Harry completamente alheado, pois estava
absolutamente fascinado com ela.
Pug mandou que trouxessem café e um vinho licorado, e a conversa
voltou a versar sobre temas mundanos e rumores triviais de Krondor.
Passado algum tempo, alguns bocejos indicaram que os convidados
estavam prontos para se recolherem aos seus aposentos.
Pug desejou boas-noites aos convidados e deu a mão a Lady Ryana, a
quem acompanhou para fora da sala. Nicholas e os companheiros
levantaram-se e regressaram aos seus quartos. Nicholas encontrou a cama
aberta e velas acesas em cima das mesas de cabeceira. Estendida aos pés da
cama, para seu conforto, estava uma camisa de dormir.
Nicholas deitou-se e tinha acabado de adormecer quando uma mão o
abanou. Despertou com o coração a palpitar com força e deu com Harry
debruçado sobre ele. O rapaz vestia uma camisa de noite idêntica à sua.
— O que foi? — perguntou, meio a dormir.
— Nem vais acreditar nisto. Anda daí!
Nicholas saltou da cama e seguiu Harry até ao seu quarto que ficava ao
fundo do corredor. — Eu estava quase a adormecer quando ouvi um barulho
estranho — disse Harry.
Fez sinal para que Nicholas se aproximasse da janela. — Pouco barulho
— disse.
Nicholas espreitou pela janela do quarto de Harry e viu Lady Ryana de pé
no prado distante. — Ela estava a fazer uns barulhos estranhos, como se
fossem cânticos ou cantigas, mas não era bem isso — informou Harry. Não
havia como confundir aquele cabelo dourado, quase luzente sob a claridade
das duas luas de Midkemia. Nicholas deixou cair o queixo. — Está nua!
Harry olhou-a fixamente. — Ainda há instantes estava vestida, juro! —
Efetivamente, a dama estava despida e parecia estar numa espécie de transe.
Harry assobiou baixinho. — O que está ela a fazer?
Nicholas suprimiu um arrepio. Não obstante a espantosa beleza daquela
mulher no prado, não havia nada minimamente excitante ou erótico na sua
aparência. Sentiu-se um pouco desconfortável. Além de achar que estava a
meter-se onde não era chamado, também sentiu como se estivesse em
perigo.
— Já ouvi histórias de bruxas que acasalam com demónios sob a luz do
luar — disse Harry.
— Olha! — exclamou Nicholas.
A mulher foi envolvida por um halo de luz dourada, que não tardou a
tornar-se ofuscante. Os rapazes foram obrigados a desviar o olhar à medida
que a intensidade da luz aumentou. Durante longos momentos, a noite
pareceu suspensa por um feixe de luz solar, depois começou a diminuir de
intensidade. Voltaram a olhar e a luz tinha-se expandido várias vezes em
relação ao tamanho da mulher. Da dimensão de uma casa, depois da
dimensão do navio de Amos, o envoltório de luz cresceu, e, no seu âmago,
algo ganhava forma. Depois a luz diminuiu, e no local onde estivera Lady
Ryana, assentava agora uma majestosa criatura com lendárias asas que se
estendiam por quase cem metros. Escamas douradas reluziam com nuances
prateadas sob a luz do luar, e um comprido pescoço com uma crista
argêntea alongou-se, quando a cabeça de réptil olhou para o céu.
Harry agarrou Nicholas com tanta força que lhe deixou uma marca, mas
os dois rapazes ficaram petrificados. Quando ela desapareceu nos céus,
olharam um para o outro. Escorriam lágrimas pelos rostos de ambos,
lágrimas de pavor e de deslumbramento. Os grandes dragões não eram
reais. Havia uns répteis voadores mais pequenos a que chamavam dragões,
mas não passavam de dragões alados sem inteligência. Nenhum desses
vivia no Reino Ocidental, mas corriam rumores da sua existência na
cordilheira ocidental de Kesh. Todavia, os dragões dourados que sabiam
falar e fazer magia não existiam. Eram criaturas mitológicas, porém, ali, ao
luar, os rapazes tinham presenciado uma mulher com quem haviam jantado
a transformar-se na criatura mais majestosa e a levantar voo para os céus de
Midkemia.
Nicholas não conseguiu deter as lágrimas de tão comovido que estava
com o que tinham testemunhado. Finalmente, Harry logrou controlar-se. —
Deveríamos acordar o Amos? — perguntou.
Nicholas abanou a cabeça. — Nunca contes a ninguém. Compreendes?
Harry concordou com a cabeça, sem demonstrar qualquer sinal da sua
habitual jactância, e tinha o ar de um simples rapazinho assustado. — Não
conto.
Nicholas deixou o amigo e regressou para o seu quarto. Quando lá
entrou, o seu coração quase estacou ao ver Pug sentado na sua cama.
— Fechai a porta.
Nicholas obedeceu e Pug disse:
— A Ryana não conseguiria sobreviver durante muito tempo com os
parcos alimentos que ingeriu ao jantar e continuar a fazer de conta. Durante
as próximas horas, irá caçar.
Nicholas estava lívido. Pela primeira vez na sua vida sentiu-se longe de
casa e do conforto da proteção do seu pai e do amor da sua mãe. Sabia que
Pug era considerado como um elemento da família, mas também era um
mago de fantásticos poderes, e Nicholas presenciara algo que não era
suposto presenciar. — Não direi nada a ninguém — garantiu.
Pug sorriu. — Eu sei. Sentai-vos.
Nicholas sentou-se na cama ao lado de Pug. — Deixai-me ver o vosso pé
— disse Pug.
Nicholas não teve de perguntar qual e levantou a perna esquerda de modo
a que Pug pudesse examinar o pé deformado. Pug estudou-o durante algum
tempo, depois disse:
— Há anos, o vosso pai perguntou-me se eu conseguiria curar o vosso pé.
Ele contou-vos?
Nicholas abanou a cabeça. Ainda estava apavorado com o que acabara de
ver e receava que a sua voz não saísse caso tentasse falar.
Pug perscrutou o rapaz. — Nessa época, já me tinha constado sobre esta
deformidade e dos esforços envidados para a curar.
— Foram muitos os que tentaram — murmurou Nicholas.
— Eu sei. — Pug levantou-se e foi até à janela, olhando para a noite clara
reluzente de estrelas. De costas viradas para Nicholas, disse:
— Eu disse ao Arutha que não conseguia. Mas não era verdade.
— Porquê? — quis saber Nicholas.
— Porque por muito que o vosso pai vos ame, Nicholas — disse Pug —,
e o Arutha ama profundamente os seus filhos, ainda que sinta muita
dificuldade para o demonstrar, nenhum pai tem o direito de mudar a
natureza de um filho.
— Não sei se compreendo bem. — O medo que sentia começava a
esmorecer. — Porque é que curar-me seria algo errado? — indagou o rapaz.
— Não sei se conseguirei fazer com que compreendeis já, Nicholas —
disse Pug. Voltou-se e sentou-se ao lado do rapaz. — Cada um de nós tem
dentro de si a capacidade para se regenerar, se assim decidir. A maioria de
nós, além de nem sequer tentar, também não reconhece essa capacidade.
»Se bem compreendo a magia que possuo, a cura aplicada sobre vós em
criança deveria ter surtido um resultado positivo. Alguma coisa impediu
que esses feitiços fossem eficazes.
— Não compreendo — disse Nicholas franzindo o sobrolho. — Estais a
dizer que eu não deixei que me curassem?
Pug acenou afirmativamente com a cabeça. — Alguma coisa do género.
Mas não é assim tão simples.
— Eu daria tudo para ser normal — disse Nicholas.
— Daríeis? — disse Pug, levantando-se.
Nicholas permaneceu em silêncio algum tempo. — Acho que daria —
disse por fim.
Pug sorriu, restituindo a confiança. — Ide dormir, Nicholas. — Tirou
algo de um grande bolso do seu manto e pousou-o sobre a mesa de
cabeceira. — Ofereço-vos este amuleto. É muito parecido com o que dei ao
vosso pai. Se precisardes de mim para alguma coisa, agarrai-o com força
com a mão direita sem o tirardes, e repeti o meu nome três vezes. Eu irei
em vosso auxílio.
Nicholas pegou no amuleto e reparou que ostentava o símbolo dos três
golfinhos que vira nos fontanários espalhados pela propriedade do mago. —
Porquê?
O sorriso de Pug alargou-se. — Porque sou vosso primo, e amigo. E nos
tempos que se avizinham, podeis precisar de ambos. E porque vou deixar
que vós e o vosso amigo guardeis um segredo.
— Lady Ryana.
— Ela é muito jovem, e uma tonta por se deixar ver assim. Na sua raça,
as primeiras etapas da vida são passadas com pouco mais raciocínio do que
os animais comuns. A cada dez anos, os dragões escondem-se numa
caverna para mudarem de pele, emergindo sempre com uma cor diferente.
São bastantes os que sucumbem nesse processo, pois enquanto mudam de
pele na escuridão, estão indefesos. Apenas aqueles que conseguem mais
longevidade, sobrevivendo muitas vidas humanas, emergem com a pele
dourada e sabedoria. Quando a inteligência finalmente desponta, é algo
perturbador. A súbita consciência do próprio, e a noção de um universo
mais vasto, para uma criatura que, segundo os padrões dos humanos, já é
velha, revela-se um enorme choque. Nos tempos antigos, os seus
semelhantes tê-la-iam ensinado. — Pug abriu a porta. — Já não restam
muitos dos grandes dragões. A mãe da Ryana ajudou-me em tempos numa
missão, por isso eu ajudo a filha. Não seria sensato deixar que os homens
soubessem que entre eles andam outros que não são homens.
— O meu pai explicou-me que, com o passar do tempo, haveria muitas
coisas de que eu tomaria conhecimento e que não poderia revelar.
Compreendo.
Pug não disse nada ao fechar a porta. Nicholas deitou-se na cama, mas
demorou imenso tempo a adormecer.
3

Crydee

O
navio lançou a âncora.
Crydee fervilhava de atividade ao meio do dia enquanto os
estivadores da doca tratavam das amarras do Águia Real. Nicholas
perscrutou a sua nova terra, sorvendo a novidade de tudo. Os surtos de
saudades de casa tinham regressado durante a longa viagem, e só haviam
desaparecido enquanto transpunham os perigosos Estreitos das Trevas, o
que demorara um dia e meio repleto de peripécias. Depois tinham seguido
para norte e passado por Tulan e Carse, até virem atracar a Crydee.
O burgo crescera nos últimos vinte anos, e por toda a parte havia sinais
de expansão. Enquanto velejavam para norte, Amos indicara o local onde
uma aldeia piscatória havia crescido para sul do promontório a que chamara
Mágoa dos Marinheiros. Avistavam-se novos edifícios no alto de uma
distante colina para sudeste enquanto o navio dava entrada na doca.
Nicholas protegeu os olhos do Sol forte que se refletia nas fachadas brancas
dos edifícios. Avistou duas carruagens e um par de carroças aproximarem-
se e estacionarem diante de um edifício ataviado com um grande estandarte
real, pelo que calculou que deveriam ser ali os serviços alfandegários. Os
serviçais que seguiam sentados na parte de trás das carruagens saltaram dos
seus lugares e abriram as portas. Pela primeira, saiu uma mulher alta,
seguida de um homem ainda mais alto. Nicholas reconheceu neles a sua tia
e o seu tio. Seguiu-se um rebuliço enquanto os outros veículos
estacionavam.
Amos ordenou que lançassem o passadiço. Nicholas e Harry estavam ali
perto à espera para desembarcar. O Duque Martin, a Duquesa Briana e a
respetiva corte estavam a postos para receberem o Príncipe Real e a sua
comitiva. Amos reparou na receção mais abaixo e disse:
— Bem, sabemos que pelo menos um pombo conseguiu fazer a viagem
desde Ylith.
Durante os vinte e oito anos decorridos desde a Guerra da Brecha,
tinham-se mantido intactos os postos de substituição de mensageiros entre
Krondor e a Costa Extrema, incluindo cavalos velozes e pombos-correio.
Com a súbita decisão de enviar Nicholas apenas no dia anterior à partida, a
notícia da sua iminente vinda chegara a Crydee apenas alguns dias antes de
o navio ser avistado a partir do porto.
— Quem são aquelas raparigas? — perguntou Harry enquanto os
marinheiros se preparavam.
Nicholas reparara nas duas jovens raparigas que acompanhavam o
Duque. — Presumo que uma delas seja a minha prima Margaret. Não sei
quem é a outra — disse.
— Eu descubro — disse Harry, sorridente.
Quando o passadiço ficou pronto, Amos dirigiu-se a Nicholas com toda a
formalidade. — Vossa Majestade? — indicando que se esperava que
Nicholas fosse o primeiro a desembarcar.
Harry deu um passo em frente, mas Amos colocou-lhe uma mão no peito
com firmeza. — Por graduação, Escudeiro — disse, severamente.
Harry enrubesceu e recuou um passo.
Nicholas desceu para o cais e um homem alto aproximou-se dele. Martin,
o Duque de Crydee, sorriu calorosamente enquanto fazia a vénia ao
sobrinho. — Sua Alteza, temos muito prazer em receber-vos em Crydee. —
Martin tinha ligeiras parecenças com Arutha, mas era mais alto e mais
pesado. Tinha o cabelo quase totalmente grisalho, e o rosto vincado pelo sol
e pela idade, mas aparentava uma solidez maciça que não passava
despercebida a ninguém. Não se tratava de um nobre sedentário que
passava os dias a beber vinho e a dar ordens aos criados. Era um homem
que, não obstante a idade, ainda passava noites a dormir no chão sob céus
estrelados e que levava a caça às costas para casa.
Nicholas sorriu, ligeiramente embaraçado com o protocolo. — Tio —
disse —, é um prazer estar aqui.
Amos foi o segundo a desembarcar.
— Alteza — disse ao dar uma palmada rude no ombro de Martin.
Toda a formalidade se desvaneceu quando Martin lançou os braços à
volta de Amos. — Seu velho pirata — disse, soltando uma gargalhada. —
Já lá vão tantos anos. — Deram palmadas nas costas um do outro e
apertaram as mãos. Amos inclinou a cabeça na direção de Nicholas.
Martin voltou a atenção para o Príncipe. — Alteza. Permiti que vos
apresente a minha mulher, a Duquesa Briana. — Nicholas não a via desde
muito pequeno, e tinha dela uma memória muito vaga. Era como se a
estivesse a conhecer pela primeira vez. Uma mulher alta inclinou a cabeça
para Nicholas. Os seus cabelos, grisalhos com uma surpreendente risca
branca do lado esquerdo, fluíam para trás a partir de uma testa alta. A
Duquesa nada tinha de belo, mas era uma mulher surpreendente. Uns olhos
azuis ladeados por linhas vincadas das intempéries e da idade miraram o
Príncipe a partir de um rosto de outro modo isento de qualquer vestígio de
envelhecimento, embora já tivesse mais de cinquenta anos. Envergava umas
vestes muito práticas constituídas por um colete de pele sobre uma camisa
de seda e as calças enfiadas nas botas de cano alto. — Minha senhora —
disse Nicholas, tomando-lhe a mão estendida e apertando-a levemente num
cumprimento. O aperto que recebeu foi forte e Nicholas percebeu que as
histórias que ouvira acerca da estranha mulher do tio eram na sua essência
verdadeiras. Oriunda das cidades caídas de Armengar, onde as mulheres
eram soldados como os homens, Lady Briana conseguia montar, caçar e
combater melhor que a maioria dos homens, segundo davam conta todos os
relatos. Ao vê-la, Nicholas não teve dúvidas disso.
Martin prosseguiu com as apresentações. — Este é o meu filho, Marcus.
— Nicholas virou-se para o primo e hesitou; ele tinha algo de vagamente
familiar. Cabelo e olhos castanhos: Nicholas achou que lhe fazia lembrar
alguém de Krondor. Marcus era da mesma altura de Nicholas e usava o
cabelo com o mesmo comprimento que o do Príncipe. Porém, Marcus era
quase dois anos mais velho do que Nicholas e um pouco mais corpulento.
Marcus fez uma reverência rígida a Nicholas e recuou um passo.
— Primo — disse Nicholas com um aceno.
Amos foi colocar-se nas costas de Nicholas. — Lembrais-vos daquela
vez em que eu disse que éreis irmão do Arutha? — perguntou a Martin.
— Como o poderia esquecer? — respondeu Martin. — Foi a minha
primeira viagem e vós quase nos afogastes a todos.
— Quereis dizer que salvei os vossos coiros inúteis com a minha mestria
de velejador — respondeu Amos. Acenou com uma mão para Nicholas e
Marcus. — Mas se o mundo alguma vez duvidou da vossa ascendência, ali
está a prova. — Cofiou a barba. — Acho que vamos ter de pintar um de
verde para os conseguirmos distinguir.
Nicholas olhou para Amos sem compreender, mas o semblante de
Marcus era uma máscara indecifrável. — As parecenças… — disse Amos.
— Que parecenças? — indagou Nicholas.
— De um com o outro — respondeu o Almirante.
Nicholas virou-se para olhar para o primo — Achais…?
Marcus abanou ligeiramente a cabeça. — Eu não vejo… Alteza.
— Nunca o vereis — disse Amos com uma gargalhada.
Martin prosseguiu com as apresentações. — Alteza, esta é a minha filha
Margaret.
Uma das duas jovens fez uma vénia. Tinha os cabelos escuros como os
do irmão, mas era parecida com a mãe. A natureza contemplara-a com um
nariz reto e maçãs do rosto salientes, mas feições menos severas do que as
de Briana. Usava o cabelo comprido pelos ombros, como a mãe, sem
qualquer enfeite. Uns olhos escuros olharam de relance para o Príncipe. —
Muito prazer, prima — disse ele. Ela sorriu ao cumprimento e foi quanto
bastou para ele a achar adorável.
O olhar de Nicholas desviou-se para a jovem mulher que estava ao lado
de Margaret e sentiu um aperto no peito. Olharam-no uns olhos azuis
violáceos que pareciam os maiores que jamais vira. Subitamente, sentiu-se
desajeitado e inseguro. — Esta é a minha companheira, Lady Abigail, filha
do Barão Bellamy de Carse — explicou Margaret. A rapariga mais esbelta
fez uma reverência e Nicholas teve a certeza que nunca antes vira alguém
fazê-lo com tanta elegância. Ao contrário de Margaret, Abigail trazia o
cabelo apanhado num pequeno círculo prateado atrás da cabeça, de onde
pendia aos caracóis. Tinha a pele clara e límpida e feições delicadas. Sorriu
ao terminar a mesura e Nicholas limitou-se a sorrir em resposta. Passado
algum tempo, o sorriso transformou-se num esgar imbecil.
O som de alguém a aclarar a voz nas suas costas despertou Nicholas do
seu transe. — Minha senhora — disse, e a sua voz soou forçada aos seus
próprios ouvidos. Nicholas voltou-se para Margaret. — Este é o Harry, o
meu Escudeiro — explicou Nicholas enquanto o seu companheiro descia o
passadiço trazendo a bagagem de ambos. O rapaz largou-a no chão e fez
uma vénia dirigida ao Duque de Crydee. Ao avistar a Princesa e a amiga,
esboçou um largo sorriso.
Martin indicou que Nicholas deveria seguir na primeira carruagem com
ele e com a sua mulher. Harry começou a segui-los quando a mão de Amos
o agarrou pelo ombro. — A primeira carruagem é para o Príncipe, o Duque
e a Duquesa. A segunda para mim e para os filhos do Duque.
— Mas… — ia Harry dizer.
Amos apontou para as carroças. — Podeis certificar-vos de que a
bagagem do Príncipe está em ordem e que é descarregada e passada para
aquelas carroças. Depois, quando tudo estiver a postos, podeis seguir numa
delas.
Nakor e Ghuda desceram o passadiço. — Então e eles? — perguntou
Harry.
— Nós vamos a pé — disse Nakor a sorrir. — Não é assim tão longe. —
Apontou para o castelo na colina sobranceira ao porto.
— Fazia-me bem esticar as pernas — disse Ghuda.
Harry suspirou e levou os dois sacos para a primeira carroças. — Eh,
miúdo, o que vem a ser isto? — disse um tratador de animais.
Harry estava irritado e respondeu bruscamente: — São as bagagens do
Príncipe de Krondor. Eu sou o seu Escudeiro.
O homem fez uma continência indolente e continuou encostado à
carroça. — Nesse caso, onde ireis meter aquele monte, Escudeiro? — disse,
enquanto apontava.
Harry virou-se e viu o primeiro carregamento de bagagem a ser
descarregada do navio, enquanto dois marinheiros transportavam uma das
pesadas arcas de Nicholas pelo passadiço abaixo. Seguiram-se outros três
carregamentos idênticos. Enquanto o ranger da madeira e o zunir das cordas
encheram o ar, uma enorme rede de carga era majestosamente içada do
porão do navio. Mais uma dúzia de arcas e outras bagagens variadas foram
içadas pela borda e baixadas para a doca. Os ajudantes da doca
aproximaram-se e começaram a desapertar a rede.
— E presumo que saibais para onde vai aquele lote, Escudeiro? — disse
o tratador de animais.
Com um sinal de resignação, Harry foi ao vagão e tirou de lá os dois
sacos que tinham sido a fonte de roupas e artigos pessoais dele e de
Nicholas durante as semanas que tinham passado a bordo do navio.
Obviamente, deveriam ser a última mercadoria a ser carregada. — E é
suposto que eu faça a supervisão? — disse Harry abanando a cabeça.
Com um piscar de olho sapiente, o tratador de animais desencostou-se da
carroça. — Seria tudo mais rápido e mais fácil para todos nós, Escudeiro, se
fizésseis a supervisão a partir dali. — Apontou para uma entrada a dez
metros dali. — Tem boa cerveja e boas tartes de carne e podeis
supervisionar pela janela.
Harry sentiu água na boca ao pensar em tartes de carne depois da parca
ementa do navio. — Não, tenho as minhas obrigações — disse.
O tratador de animais abanou a cabeça. — Nesse caso fazei um favor a
ambos, Escudeiro, e supervisionai muito caladinho, se bem me faço
entender.
Harry concordou com a cabeça e afastou-se para um lado enquanto o
primeiro par de arcas era transportado para a carroça. Procurou uma sombra
debaixo do telhado saliente do edifício dos serviços alfandegários e
encostou-se à parede. Olhou de relance para a colina e reparou que Ghuda e
Nakor já estavam a sair da zona das docas e a entrar para uma rua larga que
cruzava o burgo em direção ao castelo. Era provável que chegassem ao
castelo uma hora antes de Harry. — Pensei que esta viagem fosse mais
interessante — resmungou Harry consigo mesmo.

Q uando a primeira carruagem entrou para o pátio do castelo, duas


fileiras de soldados puseram-se em sentido. Envergavam o tabardo
castanho e dourado de Crydee e ostentavam um escudo com a gaivota
dourada de Crydee sobre uma área castanha, e de cada alabarda pendia um
pingente castanho e dourado. As armaduras reluziam ao sol. Quando o
cocheiro abriu a porta e Nicholas desceu, um homem baixo de pernas
arqueadas, cabelos grisalhos e rosto coriáceo gritou:
— Sentido.
Prontamente, os soldados fizeram continência. As alabardas inclinaram-
se e, passados uns instantes, a companhia puxou-as para trás. Martin e os
outros desceram da carruagem, depois os cocheiros conduziram os cavalos
para o parque das carruagens nas traseiras.
Nicholas contemplou demoradamente a sua nova casa. O Castelo de
Crydee era pequeno em comparação com o que ele conhecia. Havia uma
torre de menagem antiga, à volta da qual tinha sido erigido um único
edifício, e mais tarde tinham construído outra ala para as traseiras. Nicholas
fez um cálculo rápido das distâncias e percebeu que quem erigira a parede
exterior deixara uma muralha externa relativamente estreita, algo que
reprovava. Se a parede alguma vez fosse ultrapassada, não havia muito que
impedisse o invasor de chegar à torre de menagem central.
Como se estivesse a ler o seu pensamento, Martin disse:
— O meu bisavô ficou com esta torre de menagem que era da guarnição
keshiana que aqui esteve aquartelada e mandou construir a muralha em
redor. — Com um esgar que fez Nicholas lembrar-se do pai, acrescentou:
— O meu avô mandou construir as duas muralhas adicionais, deixando
pouco espaço para ampliações. O meu pai tinha planeado derrubar a
muralha para permitir novas construções… mas nunca o chegou a fazer. —
Pousou a mão no ombro de Nicholas. — Eu também nunca tenho tempo.
Um enorme homem de pele escura e barba curta caminhava ligeiramente
atrás do homem baixo de cabelo grisalho enquanto os dois avançavam por
entre as fileiras de soldados na direção de Nicholas. Fizeram os dois uma
vénia para o Príncipe.
Amos sorriu para o homem baixo. — Mestre de Armas Charles!
— Alteza, este é o meu Mestre de Armas, Charles, e o seu Estribeiro-
Mor, Faxon — apresentou Martin.
— Alteza — disse Faxon.
Martin apresentou outros elementos da sua casa senhorial e quando as
formalidades terminaram, agarrou Nicholas pelo braço. — Se Vossa Alteza
quiser acompanhar-me.
Martin e Nicholas subiram os degraus para o castelo, seguidos pelos
filhos de Martin e por Abigail, que se dirigiam para os respetivos aposentos.
Briana voltou-se para Amos. — Hoje à noite há uma receção, mas,
entretanto, alguém irá mostrar-vos os vossos aposentos.
— Basta que me digais qual é o quarto, minha senhora — disse Amos. —
Vivi aqui demasiados anos para me perder.
Briana sorriu. — O vosso antigo quarto é outra vez vosso, Amos.
Amos olhou de relance para o portão principal do castelo, reparando nas
duas sentinelas nos seus postos. — Deveríeis informar aqueles jovens de
que dentro de alguns minutos avistarão um par de personagens muito
estranhos. Um é um louco baixinho de Shing Lai chamado Nakor, e o outro
é um mercenário de alta estatura de Kesh, e dá pelo nome de Ghuda Bulé.
Deixai-os entrar pois são companheiros do Nicky.
A única resposta de Briana foi erguer uma sobrancelha. Dirigiu-se ao
Mestre de Armas Charles. — Por favor, tratai do assunto — disse.
Ele fez continência e apressou-se a ir até ao portão informar os guardas.
— Quem são esses homens, Amos? — perguntou Briana.
— São o par mais insólito que jamais conhecereis — disse Amos,
tentando parecer despreocupado.
Briana pousou a mão no ombro de Amos. Haviam prestado serviço
juntos em Armengar, na sua terra, quando Amos ajudara a defendê-la contra
os exércitos da Irmandade da Senda das Trevas. — Conheço-vos
suficientemente bem para perceber que se passa alguma coisa. O quê?
Amos abanou a cabeça. — Apenas… uma coisa que o Arutha me disse
antes de eu partir. — Olhou de relance para a porta principal do castelo
através da qual Martin e Nicholas tinham acabado de entrar. — Ele disse
que, se algo acontecesse, seguisse os conselhos de Nakor.
Briana manteve-se em silêncio por instantes a pensar. — Não duvido que
«algo» signifique problemas.
Amos forçou uma gargalhada. — Bem, duvido que ele quisesse dizer que
deveria seguir os conselhos do feiticeiro caso houvesse uma festa-surpresa!
Briana respondeu com um sorriso. Abraçou Amos e beijou-o no rosto. —
Sentimos a vossa falta, e do vosso sentido de humor, Amos.
Amos olhou em redor, pensativo. — Vi demasiados homens a morrer
naquelas muralhas e passei demasiados dias a defendê-las para sentir a falta
de Crydee, Briana. — Depois beijou-a no rosto e cingiu-a num forte abraço.
— Mas maldito seja se não senti a vossa falta e de Martin.
Abraçados pela cintura, a esbelta Duquesa e o corpulento capitão subiram
as escadas que levavam ao Castelo de Crydee.

M artin fez sinal para que Nicholas se sentasse e contornou uma


enorme escrivaninha. O gabinete do Duque parecia pequeno em
comparação com o de Arutha em Krondor, e Nicholas olhou em redor.
Por detrás de Martin, na parede, encontrava-se o estandarte com a gaivota
de Crydee. Por cima da cabeça da ave vislumbravam-se os ténues contornos
de uma coroa, de onde um pedaço de material tinha sido removido.
Nicholas sabia que em tempos o seu avô ocupara este cargo, e que também
fora o segundo aspirante à coroa que o seu tio usava atualmente. Porém, a
descendência de Martin estava interdita por herança, devido a um
nascimento ilegítimo, e todas as marcas de tal sucessão haviam sido
removidas do escudo de armas da família.
— Este gabinete foi ocupado pelo vosso pai durante algum tempo
durante os anos da Guerra da Brecha, Nicholas — disse Martin. — Antes
disso, pertenceu ao vosso avô, e ao pai e ao avô dele.
Nicholas reparou que, além daquele estandarte, as paredes não
ostentavam quaisquer recordações pessoais ou troféus; apenas um enorme
mapa do Ducado e outro do Reino cobriam a pedra de outro modo despida.
A escrivaninha de Martin também estava bem organizada, com um solitário
tinteiro e uma pena, uma barra de cera vermelha para o sinete ducal e uma
vela. Dois pergaminhos enrolados prenunciavam assuntos inacabados, mas
de outro modo reinava uma impressão de organização naquela câmara,
como se o atual ocupante não gostasse de ir embora ao fim do dia com
qualquer assunto pendente ou deixado por resolver. Nicholas compreendeu
que isso tinha algo de familiar, pois tal desejo de ordem era também uma
marca distintiva do seu pai. Voltou a atenção para o tio, que o perscrutava
atentamente. Nicholas enrubesceu.
Martin sorriu. — Estais com a vossa família, Nicholas, nunca esqueçais
isso — disse.
Nicholas encolheu os ombros. — O meu pai já me falou sobre Crydee, e
o Amos conta intermináveis histórias de guerra, mas… — Olhou outra vez
à sua volta. — Acho que não sabia o que esperar.
— É por isso que estais aqui — explicou Martin. — O Arutha quis que
soubésseis algo sobre a vossa herança.
»Em comparação com Krondor, a nossa corte é mais rígida —
prosseguiu. — Quase primitiva, se comparada com a de Rillanon e outras
cortes do Oriente. Porém, considerá-la-eis suficientemente confortável em
relação ao que interessa.
Nicholas acenou afirmativamente com a cabeça. — O que é que eu vou
fazer concretamente?
— O Arutha deixou isso à minha consideração — revelou Martin. —
Acho que para já vou nomear-vos meu Escudeiro. Já sois um pouco velho
para o cargo, mas assim mantenho-vos por perto, e talvez passado algum
tempo, encontre um lugar mais útil para vós. O vosso amigo será nomeado
Escudeiro do Marcus.
Nicholas estava prestes a retrucar quando Martin acrescentou:
— Os escudeiros não têm escudeiros, Nicholas.
Nicholas anuiu.
— Hoje à noite haverá uma receção formal, na qual participará uma trupe
de músicos que está na vila. Amanhã começareis as vossas tarefas.
— Em que consistirão?
— O Mordomo-Mor Samuel explicar-vos-á algumas das vossas tarefas.
O Mestre de Armas Charles e o Estribeiro-Mor Faxon terão outras para
realizardes. Tereis vários afazeres para concluir diariamente, principalmente
com o fito de tornar o meu tempo mais eficiente na governação do Ducado.
É provável que tenhais reparado em novos edifícios por cima dos
alcantilados a sul e para lá deles. Crydee está a transformar-se numa
verdadeira metrópole pelos padrões da Costa Extrema. Há muito que fazer.
Agora, um criado irá indicar-vos os vossos aposentos.
— Obrigado, tio Martin. — Nicholas levantou-se enquanto Martin
contornava a escrivaninha e abria a porta, fazendo sinal para que um criado
se aproximasse.
— A partir de amanhã, Alteza, passareis a tratar-me por Vossa Graça. Eu
tratar-vos-ei por Escudeiro — disse Martin.
Nicholas ruborizou, sentindo-se embaraçado, mas sem saber porquê.
Acenou com a cabeça e seguiu o criado até aos seus aposentos.

N essa noite, Nicholas sentou-se entre o tio e o primo Marcus. O manjar


era abundante, ainda que simples, o vinho forte e saboroso, e o
entretenimento apropriado. Nicholas passou a maior parte da noite a olhar
de soslaio para lá da tia e do tio, para onde Abigail estava sentada ao lado
de Margaret. As duas raparigas pareceram ter estado a segredar durante a
maior parte da refeição e Nicholas sentiu-se enrubescer várias vezes sem
saber porquê. As poucas tentativas que fez para meter conversa com
Marcus redundaram em respostas breves e longos silêncios. Nicholas
começava a sentir que, por qualquer motivo, o seu primo não gostava dele.
Amos, Nakor e Ghuda Bulé encontravam-se na outra ponta da mesa, e
Nicholas não conseguia conversar com eles. Estavam obviamente a passar
um bom bocado enquanto trocavam histórias com o Mestre de Armas
Charles e o Estribeiro-Mor Faxon.
Nicholas espreitou para o fundo da mesa e viu Harry a tentar entabular
conversa com um jovem. Este parecia estar a falar em voz baixa, já que
Harry estava sempre a inclinar-se para o ouvir. O jovem não parecia ser
muito mais velho do que os rapazes. Teria talvez mais ou menos vinte anos.
Tinha uma cabeleira desgrenhada e loura que lhe chegava até aos ombros, e
as franjas do cabelo pareciam toldar-lhe a visão a cada instante, pois estava
constantemente a afastá-las com a mão. Tinha os olhos azuis e Nicholas
pensou que se ele alguma vez sorrisse, seria um fulano com quem se
poderia simpatizar.
— Primo, quem é aquele?
Marcus olhou para o lugar que Nicholas indicara. — É o Anthony. É um
mago.
— Deveras? — indagou Nicholas, satisfeito por ter finalmente
conseguido que o primo dissesse mais de uma frase. — O que faz ele aqui?
— Há alguns anos, o meu pai pediu ao vosso pai que intercedesse junto
dos mestres de Stardock para que nos enviassem um mago. — Marcus
encolheu os ombros. — Acho que teve alguma coisa a ver com o avô. —
Pousou o osso da costeleta que tinha estado a roer, mergulhou as mãos na
bacia preparada para as lavar e limpou-as a um guardanapo de linho. — O
vosso pai alguma vez vos falou sobre a existência de um mago na corte?
Aliviado por estarem finalmente a ter algo a que se poderia chamar uma
conversa, Nicholas encolheu os ombros. — Algumas histórias. Sobre o
Kulgan e o Pug, quero eu dizer. Encontrei-me com o Pug durante a viagem
para aqui.
Marcus manteve o olhar fixo no mago. — O Anthony é bom rapaz, disso
podeis ter a certeza, e é simpático depois de o conhecermos. Mas é muito
reservado, e das poucas vezes que o meu pai lhe pede conselhos, costuma
ser evasivo. Receio que os magos de Stardock o tenham enviado para aqui
para nos pregar uma partida.
— Deveras?
Marcus fitou Nicholas com um olhar irascível. — Estais sempre a dizer
«deveras» como se eu estivesse a inventar isto.
— Perdão — disse Nicholas, corando um pouco. — É um hábito que
tenho. O que eu quero dizer é: porque achais que os mestres de Stardock
quereriam fazer isso, mandá-lo para aqui para pregar uma partida?
— Porque ele não é um mago muito bom, a julgar pelo que me é dado a
entender.
Nicholas conteve-se precisamente quando estava na iminência de dizer
«deveras?», e em vez disso, disse:
— Interessante. Quero dizer, não se veem muitos magos, mas os poucos
que vieram à corte não praticam muitas magias, ou pelo menos não o fazem
à vista dos outros.
Marcus encolheu os ombros. — Presumo que tenha os seus hábitos, mas
há ali algo que me deixa de pé atrás. Ele tem segredos.
Nicholas riu-se. Marcus virou-se para ver se Nicholas se ria dele. —
Acho que isso faz parte do estratagema, sabeis? — disse. — Mover-se
furtivamente por entre trevas e mistérios e tudo o resto.
Marcus voltou a encolher os ombros, permitindo-se um ténue sorriso. —
Talvez. De qualquer modo, ele é conselheiro do meu pai, embora não dê lá
muitos conselhos.
Feliz por estar finalmente envolvido em algo para além de silêncio,
Nicholas prosseguiu a conversa. — Sabeis, eu conheci o pai do Estribeiro-
Mor Faxon. Não fazia ideia de que era tão parecido com o velho Duque.
Marcus fez um grunhido cauteloso. — O Gardan já era um velho quando
veio de Krondor para cá. Nunca reparei nisso.
Nicholas sentiu a conversa a esmorecer. — Fiquei muito triste quando
soube da sua morte no ano passado.
Marcus encolheu os ombros, um gesto que parecia ser a sua
exteriorização mais expressiva. — Não fazia muito mais além de pescar e
contar histórias. Era um velho. Até gostava dele, mas… — Encolheu os
ombros outra vez. — Envelhecemos e depois morremos. A vida é mesmo
assim, não é?
Foi a vez de Nicholas encolher os ombros. — Eu já não o via há quase
dez anos. Suponho que tenha envelhecido. — Percebendo imediatamente
que fora uma observação fútil, deixou que a conversa terminasse, e o
silêncio impôs-se durante o resto da refeição.
Quando a refeição terminou, Martin levantou-se e disse:
— Damos as boas-vindas ao nosso primo Nicholas. — A corte reunida e
os criados aplaudiram cortesmente. — A partir de amanhã, será meu
Escudeiro. — Ao ouvir estas palavras, Harry olhou de relance para o amigo
com uma expressão inquiridora. Nicholas encolheu os ombros.
— E o seu companheiro — prosseguiu Martin —, Harry de Ludland, será
o Escudeiro do meu filho.
Harry fez uma expressão como quem diz: «Pronto, está explicado.»
— Agora — disse Martin —, desejo-vos uma boa noite.
Estendeu a mão e Briana pousou a sua por cima, à maneira cerimonial, e
ele conduziu-a para fora da mesa. As damas Margaret e Abigail seguiram-
nos, e depois levantou-se Marcus. Virou-se para Harry e disse:
— Pois bem, se ides ser o meu Escudeiro, preciso que estejais acordado
uma hora antes do romper da aurora. Perguntai a um criado qualquer onde
ficam os meus aposentos e não vos atraseis. O meu pai também vos quererá
a pé a essa hora — acrescentou, dirigindo-se a Nicholas.
Nicholas não gostou muito do tom do primo, mas recusou-se a reagir de
outro modo que não fosse educado. — Lá estarei.
Marcus sorriu e isso foi um choque, pois era a primeira vez desde que o
conhecera que Nicholas o vira a fazer outra expressão além de um neutro
franzir de sobrolho. — Espero que sim. Indicai aos escudeiros os respetivos
aposentos — disse, com um aceno de mão para os criados.
Os rapazes seguiram dois criados, e quando iam a passar junto ao mago,
Harry disse:
— Até breve, Anthony.
O mago murmurou uma resposta.
— Aquele é o mago do Duque — explicou Harry depois de entrarem
para um comprido corredor.
— Eu sei — respondeu Nicholas. — O Marcus disse que não é muito
bom naquilo que faz.
Harry indicou que não tinha uma opinião sobre o assunto. — Parece ser
um tipo às direitas, ainda que um pouco tímido — acrescentou. — Fala um
pouco baixo.
Os criados conduziram os dois jovens até umas portas contíguas.
Nicholas abriu aquela que lhe indicaram e entrou para uma divisão que
poderia ser considerada uma cela. Tinha cerca de três metros de
comprimento por dois e meio de largura. Uma enxerga de palha no chão e
um pequeno baú para os objetos pessoais ocupava uma esquina da divisão.
Uma minúscula mesa, uma cadeira e uma candeia tosca em cima da mesa
eram os únicos objetos. Nicholas virou-se para o criado, que já estava a
afastar-se, e perguntou:
— Onde estão as minhas coisas?
— No armazém, Escudeiro — respondeu o criado. — Sua Graça disse
que não ireis precisar delas até estardes preparado para partir, por isso
mandou guardá-las na subcave. Encontrareis tudo aquilo de que necessitais
nesse baú.
Harry deu uma palmada no ombro do amigo. — Bem, Escudeiro Nicky, é
melhor recolhermos e dormirmos bem. Amanhã temos de nos levantar
cedo.
— Não me deixes dormir de mais — disse Nicholas, com um aperto no
estômago.
— Quanto é que estás disposto a pagar?
— Que tal não te dar um pontapé no traseiro? — disse Nicholas.
Harry pareceu ponderar sobre estas palavras por instantes. — Parece-me
justo — disse. — Não te preocupes — disse por entre uma gargalhada. —
Vais habituar-te a ser escudeiro. Olha para mim; saí-me bem como teu
escudeiro.
Entrou para o seu quarto e Nicholas ergueu o olhar para o céu como que
a dizer «porque nunca tiveste de realizar as tarefas de um escudeiro». Com
uma sensação de profundo mau agoiro, entrou para a sua cela, fechou a
porta e despiu-se. Apagou a vela e dirigiu-se para a enxerga na escuridão e,
depois de se deitar no saco cheio de palha, puxou para cima o único
cobertor. Passou o resto da noite agitado e às voltas, com pouco repouso e
um intenso sentimento de apreensão.

N icholas estava acordado quando ouviu bater à porta. Remexeu


atabalhoadamente às escuras e percebeu descoroçoado que não tinha
previsto qualquer maneira de acender a vela depois de a ter apagado.
Encontrou a maçaneta da porta na escuridão e abriu-a. — Estás a pensar ir
assim vestido? — perguntou Harry.
— Esqueci-me onde estão guardados o sílex e o aço — disse Nicholas,
sentindo-se envergonhado por estar apenas com a roupa interior.
— Estão em cima da mesa, por detrás da candeia, onde geralmente estão.
Eu acendo; tu vestes-te.
Nicholas abriu o baú e encontrou uma túnica simples e calças castanhas e
verdes, que pensou serem o uniforme dos escudeiros de Crydee, já que
Harry estava vestido de igual modo. Vestiu-as e percebeu que lhe
assentavam bastante bem. — Que história vem a ser esta de termos de
acordar antes do raiar do Sol? — perguntou enquanto calçava as suas botas.
Harry pousou a vela acesa e fechou a porta. — Agricultores, creio eu —
respondeu.
— Agricultores?
— Tu sabes, gente do campo. Acordam sempre de madrugada, deitam-se
com as galinhas.
Nicholas resmungou uma coisa qualquer sobre isso enquanto acabava de
calçar as botas. O seu pé esquerdo parecia ligeiramente inchado, o que
dificultou a operação de calçar a bota especial. — Que raios — disse —,
aqui deve ser mais húmido do que em casa.
— Reparaste! — disse Harry. — Queres dizer que o bolor que está a
crescer nas pedras ao lado da tua cama não te deu uma vaga ideia?
Nicholas esticou indolentemente o punho na direção de Harry, ao qual
este se esquivou facilmente. — Anda daí — disse, com uma gargalhada. —
Não seria nada bom chegarmos atrasados logo no primeiro dia.
Nicholas e Harry deram por si sozinhos no átrio e Harry perguntou
subitamente:
— Onde estão os criados?
— Nós é que somos os criados, seu pateta — disse Nicholas. — Acho
que sei onde ficam os aposentos da família.
Por tentativa e erro, os rapazes lá acabaram por descobrir o caminho até à
ala da família. Eram uns aposentos bastante modestos em comparação com
o que o Príncipe estava habituado a ver em casa, mas não deixavam de ser
consideravelmente mais confortáveis do que as celas em que tinham
passado a noite. Um par de criados estava a sair de dois quartos e, depois de
perguntar, Nicholas ficou a saber que eram efetivamente os aposentos de
Lorde Martin, de Lady Briana e do Menino Marcus.
Ocupando os seus postos junto às respetivas portas, os rapazes
esperaram. Passado algum tempo, Nicholas arriscou bater à porta baixinho.
A porta abriu-se e Martin espreitou e disse:
— Já vos atendo dentro de alguns minutos, Escudeiro.
Antes que Nicholas conseguisse responder «Sim, Vossa Graça», a porta
fechou-se na sua cara.
Harry sorriu e levantou a mão para bater à porta, mas antes que os nós
dos dedos tocassem a madeira, a porta abriu-se e Marcus saiu. — Estais
atrasado — disse em tom ríspido. — Vinde daí. — Desatou a caminhar
apressadamente pelo corredor e Harry quase teve de seguir aos saltos para o
acompanhar.
Alguns minutos depois, Martin assomou à porta do quarto e percorreu o
corredor sem proferir uma palavra. Nicholas seguiu no seu encalço. Em vez
de se dirigir para o vestíbulo principal, conforme Nicholas supusera, o
Duque seguiu pela tranquila torre de menagem até à entrada principal, para
onde ajudantes de estábulo estavam a levar cavalos. Quando um criado
atirou as rédeas na direção de Nicholas, Marcus e Harry iam a sair pelo
portão montados nos seus cavalos.
— Sabeis montar? — perguntou Martin.
— É claro… — disse Nicholas, apressando-se a acrescentar — Vossa
Graça.
— Ótimo. O que não nos faltam são cavalos jovens que precisam de uma
mão firme.
Ao montar, Nicholas viu-se imediatamente envolvido numa luta com o
cavalo. Um brusco puxão no freio e um aperto firme com as pernas foi o
bastante para controlar o irascível animal. O corcel era jovem e
provavelmente teria sido capado tardiamente, a julgar pela crina de
garanhão no pescoço e pelo comportamento agressivo. Nicholas também
não gostava da sela pesada, que dificultava o contacto com o animal.
Porém, Martin não lhe deu tempo para considerações sobre os aspetos
mais delicados da arte equestre, e virou a sua montada, seguindo para o
portão. Nicholas espetou os calcanhares nos quadris do cavalo e notou que
tinha de aplicar imenso as pernas para que este avançasse. Depois, foi a
explosão: o animal empinou com força antes de desatar a correr pelo pátio
fora. Nicholas agarrou-se prontamente com as pernas, afundando-se na sela
e puxando as rédeas com firmeza. Obrigou o cavalo a formar um círculo,
puxando as rédeas até o corcel se acalmar e encetar um trote rápido. Depois,
assim que chegou ao lado do Duque, abrandou o passo para um andamento
que lhe permitia acompanhar a sua montada.
— Dormistes bem, Escudeiro?
— Nem por isso, Vossa Graça.
— Os aposentos não são do vosso agrado? — indagou Martin.
Nicholas olhou para ver se estava a ser alvo de chacota, mas deu com um
semblante impassível a contemplá-lo.
— Não, são apropriados — respondeu, recusando-se a ser induzido a
lamentar-se. — Deve ser da novidade de tudo isto.
— Habituar-vos-eis a Crydee — disse Martin.
— Vossa Graça não costuma comer de manhã? — perguntou Nicholas
com o estômago já a dar pela falta do pequeno-almoço.
Martin sorriu, um ligeiro trejeito da boca, muito parecido com os esgares
do pai de Nicholas. — Oh, havemos de desjejuar, mas é costume
trabalharmos um par de horas antes do repasto, Escudeiro.
Nicholas acenou com a cabeça.
Chegaram à vila e Nicholas reparou que as ruas já fervilhavam de
movimento. As lojas podiam ainda ter as montras tapadas e as portas
fechadas, mas os trabalhadores já seguiam a caminho das docas, das
fábricas e de outros locais de trabalho. Viam-se barcos de pesca a sair das
docas sob a luminosidade pardacenta da aurora, pois o Sol ainda não
espreitara por cima da distante cordilheira. Odores deliciosos enchiam a
atmosfera enquanto os padeiros continuavam o trabalho que tinham
começado na noite anterior, preparando os produtos para vender durante o
dia.
Quando chegaram às docas, uma voz familiar cruzou o ar. — Preparai
essas redes! — gritou Amos.
Nicholas constatou que o Almirante estava a supervisionar o
carregamento de alguns suprimentos. Marcus dobrou uma esquina lado a
lado com uma carroça que avançava lentamente, e Harry seguia-o de perto.
— Este é o último, pai — referiu Marcus.
Martin não explicou a Nicholas o que estava a acontecer, mas o Príncipe
deduziu que estaria a completar o carregamento com destino à nova
guarnição mais a norte. — Amos, ides aproveitar a maré na manhã? —
perguntou o Duque.
— E ainda sobra tempo — berrou Amos em resposta —, se estes
primatas desajeitados conseguirem embarcar esta carga na próxima meia
hora.
Os estivadores pareceram ignorar o vozear, encarando-o com
naturalidade, enquanto continuavam eficientemente a carregar as redes de
carga. Quando ficaram cheias, a tripulação da grua levantou a carga e fê-la
deslizar até ficar por cima do porão do navio, baixando-a sem hesitações.
Amos acercou-se do local onde Martin e Nicholas observavam. — O
mais complicado vai ser descarregar aquela tralha. Presumo que os soldados
da guarnição possam dar-nos uma ajuda, mas vai demorar umas duas ou
três semanas a transportar tudo em barcaças.
— Tereis tempo para nos fazerdes uma visita na viagem de regresso?
— Sem dúvida — respondeu Amos com um sorriso. — Ainda que
demore um mês, posso passar aqui alguns dias antes de regressar a Krondor.
Se o descarregamento for rápido, posso dar uma semana de descanso aos
meus homens antes de enfrentarmos os estreitos.
— Estou certo de que ficarão gratos — disse Martin.
Quando a rede foi rapidamente carregada outra vez e a última remessa
içada, Martin virou-se para Nicholas. — Regressai ao castelo e informai o
Mordomo-Mor Samuel de que iremos tomar a refeição dentro de meia hora
— ordenou.
Nicholas começou a virar o cavalo. — Devo regressar aqui… Vossa
Graça?
— O que achais? — disse Martin.
Como não sabia o que pensar, a resposta de Nicholas soou a si próprio
desajeitada. — Não tenho a certeza.
O tom de Martin não foi de repreensão, mas também não foi amistoso. —
Sois o meu Escudeiro. O vosso lugar é ao meu lado até eu vos indicar o
contrário. Regressai aqui assim que terminardes a tarefa que vos foi
incumbida.
Sentindo-se de certo modo incompetente por não saber de tal, Nicholas
corou furiosamente. — É para já, Vossa Graça.
Enfiou os calcanhares nos flancos do corcel e afastou-se a galope das
docas. Ao aproximar-se das artérias apinhadas de gente da vila, foi forçado
a abrandar e a seguir a trote. Qualquer cavaleiro seria provavelmente um
nobre ou um soldado, por isso a maioria das pessoas abria passagem ao
ouvirem Nicholas aproximar-se pelas costas ou o viam a vir de frente. Não
obstante, tinha de avançar com cautela. Abrandando o passo, aproveitou
para ver o que o rodeava. As lojas estavam agora a abrir e os comerciantes
começavam a colocar as mercadorias nas montras enquanto os vendedores
ambulantes exibiam as suas verduras nas carroças e mais trabalhadores se
deslocavam para os locais de trabalho. Duas mulheres jovens, um ou dois
anos mais velhas do que Nicholas, murmuraram entre elas à sua passagem.
Nicholas achava que Crydee era uma terra estranha. Não era nada como
os bairros ricos de Krondor nem como os bairros de lata da cidade; era
outra coisa. Não havia mendigos como nas zonas comerciais de Krondor, e
também suspeitava que não haveria por ali larápios. Também duvidava que
fosse encontrar rameiras nas esquinas junto às tabernas ao final da tarde,
embora não questionasse o facto de que existiriam muitas vendedoras de
afeto naquelas que ficavam junto às docas. A indústria pesada, as grandes
fábricas, os tintureiros, os curtidores, os fabricantes de carroças, e todos os
outros, não eram visíveis. De certeza que havia tintureiros e curtidores em
Crydee, porém o mau cheiro característico não se fazia sentir como
acontecia junto às docas da cidade do Príncipe.
Não, Crydee era uma vila; uma vila grande, fervilhante e em
crescimento, mas não era uma cidade, e como tal era um lugar
simultaneamente notável e aterrador para Nicholas. A sua ansiedade por
estar longe de casa foi afastada por esta curiosidade em relação a um sítio
novo e aos seus habitantes.
Depois de transpor o limite oriental da vila, espetou os calcanhares nos
flancos do cavalo e seguiu a galope em direção ao castelo. O seu desejo de
ser eficiente no cumprimento da missão de que Martin o incumbira
assumira um segundo plano em relação a uma motivação mais básica: tinha
fome.
4

Escudeiro

N
icholas tropeçou.
— Depressa, ou o Samuel arranca-nos as orelhas — disse Harry ao
passar pelo amigo.
Na semana decorrida desde que tinham vindo servir para Crydee, os rapazes
conheceram a sua desgraça: o Mordomo-Mor Samuel. O velho despenseiro,
com quase oitenta anos, estava ao serviço da casa ducal de Crydee desde os
tempos do avô de Nicholas. E ainda conseguia manejar energicamente uma
chibata.
Na manhã após a partida de Amos, Harry interrompera a realização de um
recado para meter conversa com umas raparigas locais, e regressara
demasiadamente atrasado da incumbência, encontrando à sua espera um Samuel
de lábio franzido. Quando lhe mostrou a chibata, Harry tentou evitar o castigo
com uma piada, pois já não lhe batiam desde que deixara as propriedades do pai.
Assim que se tornou evidente que o velhote não estava a brincar, Harry aceitou
com indiferença o corretivo, até perceber que, embora Samuel fosse velho, a sua
chibata não tinha nada de delicada. Nicholas tentara esquivar-se à mesma
punição, mas ao terceiro dia conseguira fazer uma trapalhada com uma série de
tarefas para o Duque. Durante algum tempo, ainda tivera a esperança de que o
seu título o poupasse ao corretivo, mas tudo quanto Samuel dissera fora:
— No meu tempo, preguei uma vergastada ao vosso tio, o Rei, rapazote.
Os dois escudeiros atravessavam o pátio numa correria para se encontrarem
com o supervisor ao romper da aurora. O Mordomo-Mor informá-los-ia se havia
alguma tarefa invulgar a cumprir em vez de se apresentarem nos respetivos
postos à porta dos aposentos do Duque e de Marcus. Geralmente, deveriam estar
ao dispor de Martin e do seu filho para o caso de estes precisarem deles, mas às
vezes o Duque lembrava-se de alguma coisa para eles fazerem depois de já se
terem deitado; nesses casos, transmitia as instruções por intermédio do
Mordomo-Mor.
Ao chegarem ao corredor que conduzia ao gabinete do ancião, viram-no a
abrir a porta no preciso instante em que se aproximavam. A regra era simples:
se não estivessem lá no instante em que ele se sentava atrás da enorme mesa que
utilizava como escrivaninha de trabalho, estavam atrasados e seriam castigados.
Avançando apressadamente pelo corredor, os dois rapazes transpuseram a
soleira da porta no instante em que o velho escanifrado se sentou.
Erguendo uma sobrancelha quase branca, disse:
— Hoje foi mesmo à justa, não foi, rapazes?
Harry tentou sorrir, mas não conseguiu. — Alguma coisa especial, senhor?
Samuel estreitou um pouco os olhos enquanto pensava. — Harry, para as
docas ver se o paquete do correio de Carse chegou durante a noite — disse. —
Já cá devia ter chegado ontem, e o Duque deseja saber se ainda não chegou. —
Harry não esperou para saber se Nicholas tinha alguma tarefa especial; quando o
Mordomo-Mor dava uma ordem, um reles pajem ou escudeiro da corte não se
atrevia a delongar-se. Samuel prosseguiu: — Nicholas, ide para junto do vosso
amo.
Nicholas apressou-se a ir para os aposentos do Duque. Agora que não seguia
a toda a brida pelos corredores ainda na penumbra, sentiu-se subitamente muito
cansado. Não gostava de se levantar cedo. Aquela coisa de se pôr a pé antes do
romper do Sol estava a ter os seus efeitos.
Desde a manhã que se seguiu ao banquete de boas-vindas, a estranha noção
de estar naquele castelo da fronteira estava lentamente a ser substituída por uma
rotina familiar: andar num rebuliço ou estar de pé à espera. E o horário era
desde antes de o Sol raiar até depois da refeição da noite. O Príncipe esperara
que as coisas fossem ligeiramente diferentes, mas o impacto da diferença das
coisas começava a atormentar Nicholas.
Chegou à porta do quarto de Martin e de Briana e esperou. Com base na
experiência que adquirira nas últimas semanas, o Duque e a Duquesa estariam já
acordados a vestirem-se e assomariam à porta nos próximos minutos. Nicholas
virou-se e encostou-se à parede. Espreitou por uma janela sobranceira a um
pátio e da qual se conseguia avistar a cidade para lá da muralha. O tom
pardacento da manhã era profundo, e embora Nicholas começasse a habituar-se
aos marcos de Crydee, a luminosidade ainda mal dava para distinguir os
contornos. O Sol nasceria dentro de uma hora e a cidade estaria banhada num
brilho matinal, ou então ainda cinzenta por causa das nuvens. Nicholas
percebera que o clima por aquelas bandas era muito imprevisível.
Bocejou e desejou poder regressar para a sua enxerga. Não, pensando melhor,
preferia estar na sua própria cama em Krondor. Tinha de admitir que o cansaço
fazia com que o colchão de palha se tornasse tolerável, mas nunca o
consideraria confortável. Nicholas continuava a debater-se com as saudades de
casa, mas apenas em momentos como este, em que tinha tempo para pensar
sobre si. Nos outros momentos, estava demasiado ocupado.
Nicholas sentia-se pouco à-vontade junto do tio. Antes de vir para Crydee,
recordava-se de Martin como um homem grande com mãos delicadas que uma
vez o levara aos ombros durante uma visita a Krondor. Isso acontecera há quase
catorze anos. Martin visitara a corte do Príncipe mais uma vez desde então, mas
Nicholas estava de cama doente e Martin apenas o fora visitar durante cinco
minutos. Agora, a recordação tépida e positiva de um tio corpulento estava a ser
substituída pela realidade de um homem distante.
Ao contrário de Samuel, Martin parecia nunca perder as estribeiras ou
levantar o tom de voz. Mas tinha uma maneira de olhar para os rapazes que
fazia com que desejassem enfiar-se num buraco. Se Nicholas ou Harry não
cumprissem devidamente uma tarefa, ele não dizia nada, mas virava-lhes costas
com uma reprovação não proferida a pairar no ar. Cabia aos rapazes corrigir os
erros.
Harry pelo menos tinha Marcus, que estava sempre disposto a explicar-lhe em
que é que falhara. Alguns dos criados tinham explicado que parte da frieza de
Marcus em relação aos rapazes se devia parcialmente ao facto de ele próprio ter
sido o escudeiro do pai até pouco antes da chegada de Nicholas, pelo que
avaliava o desempenho deles em comparação com o seu. Certa vez Nicholas
caíra no erro de se queixar que não era justo repreendê-los por não saberem
onde estava alguma coisa quando tinham de fazer algum recado, e Marcus
virara-se para ele e dissera com frieza:
— Se não sabeis, tendes de a procurar, não é assim?
A porta abriu-se e Nicholas despertou. Briana saiu à frente do marido e
sorriu. — Bom-dia, Escudeiro.
— Minha senhora — disse Nicholas, fazendo uma vénia. As suas mesuras da
corte faziam-na sempre sorrir, e isso tornara-se uma espécie de jogo entre eles.
Martin fechou a porta depois de sair e disse:
— Nicholas, eu e a Duquesa hoje vamos sozinhos. Preparai os nossos
cavalos.
— Vossa Graça — disse Nicholas, e foi a correr pelo corredor. Samuel
informara-o de que quando Briana e Martin fossem andar a cavalo de
madrugada, geralmente demorariam duas ou três horas, pelo que o Escudeiro
sabia que iriam parar na cozinha para recolherem algumas provisões. Decidiu
que urgia alguma iniciativa e foi a correr à cozinha.
Quando lá chegou, viu os criados numa azáfama com os preparativos das
refeições para as quase duzentas pessoas que viviam dentro das muralhas do
Castelo de Crydee. O Chefe de Cozinha Megar, um ancião de sólida
constituição física, estava no centro da cozinha a supervisionar todos os
pormenores do trabalho da sua equipa. A sua velha mulher Magya andava às
voltas do forno com os olhos ainda perspicazes fixos sobre o que estava a ser
cozinhado. Nicholas abrandou o passo assim que entrou. — Chefe de Cozinha,
o Duque e a Duquesa vão andar a cavalo.
Megar sorriu com simpatia para Nicholas e acenou com a mão. A cozinha era
o único lugar do castelo onde Harry e Nicholas eram bem recebidos, pois o
velho cozinheiro e a mulher pareciam gostar imenso de rapazes. — Eu sei,
Escudeiro, eu sei. — Apontou para um alforge que estavam a encher com
comida. — Mas foi bem pensado — acrescentou com um sorriso. — Agora, ala
para a cavalariça!
Nicholas foi seguido por uma gargalhada amistosa ao sair apressadamente da
cozinha, e prosseguiu num frémito para a cavalariça. Uma vez lá chegado,
reparou que estava tudo calmo e percebeu que Rulf, o estribeiro chefe, ainda
estava a dormir. Nicholas não percebia como chegara a tal posição, embora lhe
tivessem dito que o pai dele ocupara o mesmo cargo antes dele. Enquanto o
rapaz avançava apressadamente pela escuridão da cavalariça, os cavalos
relincharam a saudá-lo e alguns enfiaram as cabeças pelas portas das baias, a ver
se ele lhes levaria alguma coisa para comer.
Na extremidade oposta da cobertura, quase foi de encontro a uma silhueta alta
que permanecera oculta pela penumbra. Um rosto escuro virou-se para ele e
uma voz delicada disse:
— Silêncio, Escudeiro.
O Estribeiro-Mor Faxon apontou pela porta e Nicholas viu deitado na sua
enxerga a figura espadaúda de Rulf, a ressonar tão alto que até fazia estremecer
os céus, pensou Nicholas.
— É uma pena perturbar tal tranquilidade, não achais?
Nicholas fez um esforço para não sorrir ao dizer:
— O Duque e a Duquesa vão andar a cavalo, Estribeiro-Mor.
— Bem, nesse caso… — disse Faxon enquanto pegava num balde de água;
avançou um passo na pequena divisão e esvaziou o conteúdo em cima da
silhueta adormecida. Rulf sentou-se arquejante e soltou um grito de pura
irritação. — Ah! Mas que…
— Seu idiota! — bradou Faxon, esvaindo-se dele toda a simpatia. — O Sol já
vai alto e estais para aí deitado a sonhar com as raparigas da vila!
Rulf soergueu-se a cuspir água, e quando viu Nicholas, os seus olhos
estreitaram-se por instantes, como se o rapaz fosse culpado da sua sorte. Depois,
despertou totalmente, avistou o Estribeiro-Mor e os seus modos alteraram-se. —
Perdoai, Mestre Faxon.
— O Duque Martin e a Duquesa Briana precisam dos seus cavalos! Se os
cavalos não estiverem selados e prontos quando o meu senhor e a senhora
chegarem aos degraus da torre de menagem, prego as vossas orelhas na porta do
estábulo!
O pesado homem levantou-se com um ar combalido. — É para já, Mestre
Faxon — limitou-se a dizer. Virou-se para o palheiro. — Tom! Sam! Seus
preguiçosos! Levantai-vos! Temos trabalho para fazer e vós não me acordastes
como vos mandei! — gritou.
Ouviram-se resmungos sonolentos em resposta vindos do palheiro e pouco
depois dois jovens desceram apressadamente o escadote.
A julgar pela aparência, fariam diferença de um ano de idade, que rondaria os
vinte e cinco anos, e eram os dois inconfundivelmente parecidos com Rulf. Este
praguejou e mandou-os buscar os cavalos indicados. — Estarão prontos não
tarda nada, Mestre Faxon — disse.
Nicholas voltou-se e viu Faxon a observá-lo. — Quem os visse nunca diria,
Escudeiro, mas eles são muito bons a tratar de cavalos. Quando eu era miúdo, o
pai do Rulf era o estribeiro do Estribeiro-Mor Algon.
— É por isso que continuais a empregar o Rulf? — indagou Nicholas.
Faxon acenou afirmativamente com a cabeça. — Ninguém diria, mas ele
revelou imensa coragem quando os tsurani sitiaram o castelo durante a Guerra
da Brecha. Levou muitas vezes água para os soldados – eu era um deles –
mesmo até ao meio da batalha, armado apenas com dois baldes.
— Deveras?
Faxon sorriu. — Deveras.
Nicholas ruborizou. — Tenho de deixar de dizer isto.
Faxon deu-lhe uma palmada no ombro. — Haveis de conseguir. — Olhou
para o outro lado da cobertura onde Rulf e os filhos estavam a selar os cavalos.
— Além isso, tenho pena do Rulf desde que a mulher dele morreu. Ela era a
única coisa boa que ele tinha na vida. Agora só tem os filhos e as cavalariças.
Têm aposentos na ala da criadagem, mas dormem quase sempre aqui.
Nicholas acenou com a cabeça. Nesse instante percebeu que sempre encarara
os serviçais como um dado adquirido, e havia aqueles que o tinham servido em
Krondor e sobre quem nada sabia. De algum modo, pensara que eles se
eclipsavam no armário dos serviçais e ficavam ali sossegadinhos até alguém
precisar deles. Despertou do devaneio. — É melhor ir para junto do Duque —
disse.
— Os cavalos estarão prontos — respondeu Faxon.
Nicholas foi a correr para a cozinha e lá encontrou Martin e Briana a
inspecionar os aprovisionamentos. O Duque e a mulher aprovaram a escolha de
alimentos. Briana fez sinal para que dois criados a seguissem e saiu da cozinha.
Martin dirigiu-se para o depósito de armas. Sem proferir palavra, Nicholas
seguiu-o. Chegados ao depósito de armas, um soldado que estava de sentinela
fez continência e abriu a porta a Martin e Nicholas.
Lá dentro, Martin esperou enquanto Nicholas acendia rapidamente uma
candeia para iluminar a eterna escuridão daquela câmara. Quando a luz se
acendeu, foi refletida de milhares de ângulos, adejando sobre o metal luzidio.
Todas as paredes abarrotavam de prateleiras de sabres e lanças, escudos e elmos.
Nicholas apressou-se até outra porta e abriu-a para Martin, prevendo tal
necessidade.
Martin entrou para a pequena divisão onde eram guardadas as suas armas
pessoais e escolheu um arco longo que estava pendurado numa parede. Passou-o
a Nicholas enquanto enchia uma aljava com compridas flechas de metro, assim
designadas porque mediam quase um metro. Nicholas nunca vira os efeitos de
um arco longo, pois todos os soldados de Krondor usavam bestas e pequenos
arcos utilizados pela cavalaria, mas já ouvira histórias sobre o terrível poder
daquela arma: que um arqueiro hábil poderia perfurar qualquer armadura com
uma flecha com ponta de aço.
Nicholas sabia que o seu tio fora o Monteiro-Mor do seu avô, nos tempos em
que o direito de herança de Martin fora escondido de todos à exceção de alguns
conselheiros de confiança do velho Duque. Mesmo antes da sua morte, Lorde
Borric legitimara o seu primogénito, elevando-o dos postos mais básicos até
acabar por chegar a Duque de Crydee, herdeiro do título do pai. Mas, antes
disso, Martin era reconhecido como um dos melhores arqueiros do Reino
Ocidental.
O Duque entregou a Nicholas a aljava com as setas. Inspecionou uma fila de
lâminas que estavam em cima de uma mesa, e depois escolheu duas grandes
facas de caça e entregou-as a Nicholas. A seguir, escolheu outro arco, destinado
à Duquesa Briana, e também o entregou a Nicholas. A última escolha recaiu
sobre uma aljava de flechas para o arco mais pequeno, e foram-se embora.
Quando chegaram ao pátio, encontraram Lady Briana de pé ao lado de dois
cavalos. Não foi preciso ninguém dizer a Nicholas que os senhores não iam dar
um simples passeio a cavalo, mas antes caçar. Era provável que o Duque e a
mulher fossem passar o dia fora, ou talvez até mais, caso decidissem pernoitar
na floresta.
Harry chegou a correr e, ofegante, disse:
— Vossa Graça. Ainda não há notícias do paquete com o correio de Carse.
O semblante de Martin toldou-se. — Dizei ao Marcus que escreva ao Lorde
Bellamy de Carse a perguntar se, por algum motivo, o barco regressou à base,
depois enviai a mensagem por pombo-correio.
Harry fez uma vénia e desatou a correr, mas Martin deteve-o. — Ah,
Escudeiro… — disse.
Harry parou e virou-se. — Sim, Vossa Graça.
— Da próxima vez que vos mandarem fazer algum recado às docas, levai um
cavalo.
Harry sorriu timidamente e fez uma vénia. — Vossa Graça — disse, e foi a
correr tratar do assunto que Martin lhe pedira.
Briana montou sem esperar por qualquer ajuda desnecessária e Nicholas
entregou-lhe um arco, uma aljava e uma faca. Depois de Martin montar,
Nicholas entregou-lhe as restantes armas.
— É possível que estejamos ausentes até ao final do dia de amanhã,
Escudeiro.
— Vossa Graça? — disse Nicholas.
— Hoje é o Sexto Dia, caso não saibais. — E ele não sabia. — Podeis tirar a
tarde de folga. Pedi mais instruções ao Mestre Samuel até ao nosso regresso.
— Sim, Vossa Graça.
Enquanto se dirigiam para o pátio, Nicholas suspirou. O Sexto Dia:
tradicionalmente meio dia de descanso para o pessoal de qualquer castelo ou
palácio. O Sétimo Dia era um dia de contemplação e veneração, embora
Nicholas tivesse reparado que havia sempre muitos criados disponíveis para
satisfazerem as suas vontades ao Sétimo Dia em Krondor. Ele e Harry tinham
chegado ao Sétimo Dia da semana anterior, por isso não fazia ideia do que fazer
com o primeiro tempo livre de que dispunha desde que desembarcara.

O uviu-se o ecoar de gritos de rapazes vindos do outro lado do pátio, perto


de um pequeno jardim, a que chamavam Jardim da Princesa. Fora o
refúgio da tia de Nicholas, a Princesa Carline, quando esta vivera em Crydee, e
o nome perdurara.
Estava a decorrer uma fervorosa partida de futebol que era arbitrada por um
soldado. As equipas eram constituídas pelos filhos dos criados do castelo,
alguns pajens e dois dos escudeiros mais jovens. Tinham marcado com giz na
terra uma área com as dimensões apropriadas e montado uma baliza com redes
esfarrapadas em cada extremidade. Podia não se comparar ao relvado verde-
esmeralda do estádio profissional de Krondor, mas era um campo de futebol.
Margaret, Abigail e Marcus estavam a assistir sentados num muro baixo que
circundava o jardim e tinha uma vista privilegiada. Nakor e Ghuda assistiam à
partida do lado extremo do campo, por entre um grupo de soldados, e acenaram
a Nicholas. Este respondeu-lhes com outro aceno.
Nicholas passara toda a manhã a fazer recados para o Mordomo-Mor, até que
finalmente conseguira esgueirar-se até à cozinha para um almoço rápido que
Magya preparara para os escudeiros, e depois fora ver como poderia ocupar o
tempo livre. Tinha pensado em regressar ao seu quarto para fazer uma sesta
quando o barulho da partida o desencaminhou.
Marcus acenou-lhe e as raparigas sorriram. Deu um pulo para se sentar no
muro ao lado de Margaret e inclinou-se para a frente para retribuir o
cumprimento de Marcus. Depois, olhou para Abigail, que lhe sorriu ternamente
e disse:
— Não vos tenho visto muito, Alteza, exceto quando andais a correr de um
lado para o outro.
Quando olhava para Abigail, Nicholas ficava com as orelhas a arder. — O
Duque não me dá descanso, minha senhora — disse, e concentrou as suas
atenções na partida. Aquilo que lhes faltava em termos técnicos, era mais do que
compensado em entusiasmo.
— Jogais futebol em Krondor, Escudeiro? — indagou Marcus, reforçando as
últimas palavras. Enquanto falava, pousou a mão sobre a de Abigail. Aquele
gesto de posse não passou despercebido a Nicholas.
Sentindo-se subitamente inseguro, Nicholas disse:
— Em Krondor temos equipas profissionais que são patrocinadas pelos
grémios, mercadores e alguns nobres.
— Mas vós jogais?
— Não jogo muito — respondeu Nicholas.
Marcus olhou de relance para o pé de Nicholas e acenou ligeiramente.
Nicholas não apreciou o gesto de Marcus; sentiu-se irritado com o
comportamento do primo.
Margaret desviou o olhar do irmão para Nicholas e a sua expressão mudou
ligeiramente de neutra para secamente divertida quando Nicholas disse:
— Mas quando tinha tempo, consideravam-me um bom jogador.
Marcus franziu o cenho. — Mesmo com o pé assim?
Nicholas sentiu-se enrubescer e, subitamente, ficou zangado. — Sim, mesmo
com o pé assim!
Harry apareceu com um pedaço de pão e de queijo na mão e Marcus só o
olhou de viés. O filho do Duque sabia que Harry era senhor do seu tempo desde
aquele instante até à manhã seguinte. Harry cumprimentou o grupo com um
aceno geral. — Como está o jogo? — perguntou.
— Nós vamos jogar — disse Nicholas saltando do muro baixo.
Harry abanou a cabeça. — Eu estou a comer.
— Eu jogo pela outra equipa para que fiquem equilibradas — disse Marcus
com um sorriso.
Harry fez um sorriso aberto enquanto saltava para trás para se sentar no lugar
que Nicholas deixara desocupado ao lado de Lady Margaret. — Faz-lhes ver
como é, Nicky — disse, jovialmente.
Nicholas despiu a túnica, sentindo na pele o sol quente e a brisa fresca do
mar. Praticamente não conhecia qualquer um dos jogadores, apenas dois pajens,
mas conhecia o jogo. Sentindo-se irritado com a atitude de Marcus, tinha de
expulsar a sua fúria.
Pouco depois, a bola transpôs as quatro linhas. Marcus foi buscá-la. — Eu
faço o lançamento — anunciou.
Nicholas foi a correr para o centro do terreno e olhou à sua volta. Fez sinal
para um moço de cozinha e perguntou:
— Como vos chamais?
— Robert, Alteza — respondeu o rapaz.
Nicholas franziu sobrolho. — Eu sou o Escudeiro do Duque. Quem é a nossa
equipa?
Robert indicou-lhe rapidamente os sete rapazes que formavam o resto da
equipa informal. — Eu faço a marcação ao Marcus — disse Nicholas.
— Ninguém disputará convosco o lugar, Escudeiro — disse Robert com um
sorriso e um aceno.
Subitamente, Nicholas estava em movimento, colocando-se à frente de um
rapaz que se preparava para receber a bola de Marcus. Lançando-se quase para
fora do recinto de jogo, conseguiu dar um pontapé na bola e passá-la para um
assustado colega de equipa. Passado um breve momento de hesitação, a refrega
começou.
— O Nicholas é dos melhores jogadores que já vi a fazer cortes — disse
Harry para as raparigas entre uma gargalhada.
Margaret observou o primo a levantar-se e a desatar a correr para reentrar no
jogo. — Aquilo deve doer — disse.
— Ele é resistente — respondeu Harry. — Ninguém quer apostar? —
perguntou, olhando de relance para as raparigas.
As raparigas entreolharam-se. — Apostar?
— No vencedor — disse Harry enquanto Marcus fazia um corte arrojado,
afastando a bola de modo a que um jogador da sua equipa a conseguisse
intercetar.
Abigail abanou a cabeça. — Não sei qual é o melhor.
Margaret soltou um grunhido pouco feminino de desprezo. — Ninguém é
«melhor», exceto aqueles que se matam mutuamente a tentar descobrir.
Abigail abanou a cabeça quando Nicholas foi abalroado por trás por um
colega de equipa de Marcus sem que o árbitro visse, ficando por marcar uma
grande penalidade. O rapaz acertara com o antebraço na nuca de Nicholas, o que
o deixou a ver estrelas por instantes. Marcus abanou a cabeça em jeito de
complacência enquanto Nicholas se recompunha e levantava. O rapaz que
derrubara Nicholas estava mais ao fundo do campo. — Tendes de estar mais
atento — gritou Marcus. — Este jogo não prima pela subtileza.
Ao ouvir estas palavras, Nicholas abanou a cabeça. — Já reparei — disse.
Depois os rapazes partiram atrás da bola.
— Com os diabos, eles são mesmo parecidos ali no campo, não são? — disse
Harry.
— Até parecem irmãos — concordou Abigail.
No fulgor da contenda, Marcus e Nicholas lançaram-se simultaneamente à
bola, na tentativa de a afastar da confusão, numa luta ombro a ombro, enfiando
os cotovelos nas costelas um do outro.
— Então, e que tal a aposta? — insistiu Harry perscrutando as raparigas.
Margaret olhou para Harry e esboçou um sorriso perverso. — Apostamos a
quê?
— Isso é fácil — disse Harry, tentando parecer espontâneo. — Disseram-me
que dentro de duas semanas haverá um festival. Vós necessitareis de
acompanhante.
Margaret sorriu e olhou de relance para Abigail. — Ambas?
Harry deu uma risadinha. — Porque não? Aqueles dois ficariam loucos de
inveja.
Margaret soltou uma gargalhada. — Grande amigo me saístes!
Harry encolheu os ombros. — Conheço bem o Nicholas, e, se não me engano,
ele e o Marcus estão apenas a iniciar uma longa e possivelmente colorida
rivalidade. — Olhou diretamente para Abigail. — Acho que estão os dois
enamorados, minha senhora — disse. Abigail teve a delicadeza de corar, mas o
seu semblante revelou que isso não era novidade para ela.
— E quais são as vossas ambições, Escudeiro?
A pergunta espontânea de Margaret apanhou Harry desprevenido. — Então,
nenhumas, acho eu — disse, embaraçado.
Margaret deu-lhe uma palmadinha na perna com naturalidade e Harry
percebeu que agora quem corava era ele. — Se o dizeis, Escudeiro — disse a
filha do Duque.
Harry sentiu o corpo num rebuliço e a arder ao sentir a mão dela no colo, e
subitamente apeteceu-lhe estar em qualquer outro lugar que não ao lado dela.
Nunca sentira dificuldades para conversar com as raparigas mais jovens da
criadagem do Príncipe de Krondor, quer fossem as serviçais que tinham a
desvantagem do cargo, ou as filhas dos nobres da corte que tinham a
desvantagem da juventude. Só que na atitude de Margaret nada havia de tímido
ou inexperiente. Esta rapariga tinha alguma coisa de positivamente mundano,
embora tivesse quase a mesma idade de Harry e Nicholas.
Abigail assistiu à partida com uma lealdade obviamente dividida, mas
Margaret demonstrou pouco interesse. Olhou em redor e avistou Anthony por
detrás deles no jardim e fez-lhe sinal para que se juntasse a eles.
O jovem mago foi até ao lugar onde se encontravam e fez uma vénia
desajeitada. Margaret sorriu-lhe. — Anthony, como tendes passado?
— Bem, minha senhora — respondeu delicadamente. — Achei boa ideia vir
apanhar um pouco de ar e de sol e assistir ao jogo de futebol.
— Sentai-vos ao lado da Abigail — disse Margaret na brincadeira. — Ela
precisa de apoio. Dois palermas estão a derramar sangue em honra dela.
Abigail ruborizou intensamente e o seu tom de voz foi gélido. — Isso não
teve piada, Margaret. — Elas nunca tinham sido especialmente amigas;
Margaret passara a maior parte da infância a brincar com o irmão e com os seus
rudes amigos. As poucas raparigas da vila, filhas dos mercadores mais ricos,
que haviam sido escolhidas para lhe fazer companhia tinham ficado tão
horrorizadas quanto os tutores de Margaret quando a filha do Duque mostrara
indiferença face à formação reservada às jovens senhoras da sua classe. Em
jovem, a sua mãe fora guerreira e não percebia o interesse de muitas das coisas
que tentavam ensinar a Margaret, à exceção de ler e escrever, e era frequente
poupar a filha aos castigos quando esta abandonava as aulas de costura para ir
andar a cavalo ou caçar.
Abigail não passava da mais recente de uma extensa lista de companheiras
para a rude filha do Duque, mas que não era mais compatível com ela do que as
outras, à exceção de que se irritava menos do que as restantes. De um modo
geral, Abigail tinha bom sentido de humor, que estava a ser cruelmente posto à
prova pela amiga quando, com um ar jovial, Margaret disse:
— Eu acho que teve.
Harry sorriu, satisfeito por as atenções já não recaírem sobre ele. Enquanto a
filha do Duque assistia ao jogo, ele perscrutou-lhe o perfil. À primeira vista, não
era uma jovem extremamente bonita, mas havia algo quase real no seu porte,
aprumado e altivo: não se tratava da postura de uma frívola dama da corte, mas
antes a mesma atitude que a mãe ostentava, a atitude de uma mulher que não
duvidava da sua própria capacidade ou do lugar que ocupava no mundo.
Subitamente, Harry sentiu-se profundamente desajustado.
Os jogadores corriam de um lado para o outro do campo, e Harry reparou
que, nos últimos cinco minutos, Nicholas ficara a sangrar do nariz. Procurou
Marcus e constatou que o filho do Duque não estava muito longe de Nicholas, e
que tinha o olho esquerdo inchado.
Harry chamou a atenção de Nakor, que estava do outro lado do campo, e o
homenzinho revirou os olhos para os céus e fez um gesto com o dedo junto à
cabeça indicando que alguém tinha perdido o juízo. Harry fez um sinal a
perguntar qual deles, e Ghuda, que tinha seguido a troca de sinais, fez sinal a
explicar que eram os dois. Harry desatou numa gargalhada.
— O que foi? — quis saber Margaret.
— O jogo é duro por estas bandas, não é?
Margaret soltou uma risada muito pouco feminina, só ao de leve mais
delicada do que um grasnido. — Apenas quando acham que têm de provar
alguma coisa, Harry — disse.
Harry nunca vira Nicholas jogar com tanta agressividade. O rapaz sempre
usara a cabeça e a sua rapidez natural em todos os desportos em que participava,
porém agora andava frenética e desesperadamente pelo campo, e as suas jogadas
quase roçavam a loucura, algo nunca visto.
Marcus deu um empurrão a Nicholas para o afastar e intercetou um passe,
partindo na direção da baliza que ficava na outra ponta do campo. Nicholas
perseguia-o de perto, e os espetadores aplaudiam arrebatadamente.
Margaret ria e Abigail estava sentada com as mãos cruzadas sobre o colo,
com uma expressão de franca preocupação estampada no rosto. Harry começou
a dar vivas, todavia o som morreu-lhe na garganta. Nicholas estava a coxear e
Harry sabia que ele nunca conseguiria ultrapassar Marcus. Nicholas empenhava-
se e esforçava-se, mas havia algo de errado na maneira como se movia.
Harry saltou do muro. — O que foi? — indagou Margaret.
Ignorando-a, desatou a correr para a outra ponta do campo, no preciso
instante em que Nicholas caiu desamparado, ignorado pelos outros jogadores
enquanto Marcus marcava habilmente o tento vitorioso. O árbitro informou que
o tempo acabara e o jogo terminou. Enquanto os vencedores se aglomeravam à
volta de Marcus, Harry chegou à beira de Nicholas.
Ajoelhou-se ao lado do amigo e perguntou:
— Nicholas, o que se passa?
O Príncipe tinha o rosto contorcido e pálido, e corriam-lhe lágrimas pelas
maçãs do rosto. Agarrou-se à perna esquerda e, ofegante, mal conseguiu falar.
— Ajuda-me a levantar.
— Não, que diabos, estás magoado.
Nicholas agarrou a túnica de Harry. — Ajuda-me a levantar — disse. A sua
voz não passou de um murmúrio irado, pejado de dor. Harry agarrou o braço de
Nicholas e ajudou-o a levantar-se.
Marcus e os outros rapazes aproximaram-se, enquanto Nakor e Ghuda
atravessavam o campo. — Estais bem? — indagou o filho do Duque.
Nicholas fez um sorriso forçado. — Torci o tornozelo, mais nada — explicou.
Harry quase não reconheceu a sua voz e, ao olhar para o amigo, o Escudeiro
constatou que este estava pálido. — O Harry ajuda-me a regressar aos meus
aposentos. Eu fico bem.
Antes que Marcus pudesse dizer alguma coisa, Nakor olhou-o fixamente. —
Partistes alguma coisa?
— Não, estou bem — disse Nicholas.
— Já vi cadáveres com melhor aspeto, filho — atalhou Ghuda. — É melhor
que permitis que vos ajude a regressar aos vossos aposentos.
Antes que o velho mercenário conseguisse aproximar-se, Anthony pegou no
outro braço de Nicholas. — Eu ajudo-o — disse.
As raparigas tinham chegado ao pé de Marcus e Margaret estava a olhar para
o primo sem quaisquer vestígios de sarcasmo. — Estais bem?
— Estou — respondeu Nicholas com um sorriso forçado.
Abigail permanecia em silêncio ao lado da filha do Duque, mas o seu olhar
transparecia preocupação enquanto Nicholas era levado apoiado nos ombros de
Harry e de Anthony.
Foi a cambalear entre os dois até contornarem o perímetro do jardim, quando
sucumbiu desmaiado.

N icholas recuperou a consciência quando chegaram ao seu quarto. Anthony


e Harry deitaram-no na enxerga. — O que foi que te aconteceu? —
perguntou Harry.
— Alguém pisou o meu pé aleijado e eu senti alguma coisa a partir —
respondeu Nicholas. Ainda tinha o rosto contorcido e o suor escorria-lhe pela
cara.
— É preciso descalçar a bota — disse Anthony.
Nicholas acenou com a cabeça e rangeu os dentes enquanto lhe descalçavam
a bota. A cabeça vacilou com a dor, mas não perdeu a consciência.
Anthony examinou o pé deformado. — Não creio que esteja algum osso
partido, mas está alguma coisa deslocada. Vede bem — disse. Nicholas apoiou-
se sobre os cotovelos e olhou para onde Anthony estava a apontar: uma
contusão violácea e feia que se estendia até metade da parte de cima do pé.
Anthony fez pressão com o dedo sobre a contusão e Nicholas gemeu de dor. O
mago continuou a exercer pressão. Um estalido audível foi acompanhado por
um resmungo de sobressalto de Nicholas. Depois mexeu o pé, meneando os
dedos atrofiados. Anthony pousou o pé delicadamente e Nicholas deixou-se cair
para trás com um enorme suspiro.
— Vou mandar um dos criados buscar um balde de água salgada às docas —
disse Anthony. — Enfiai lá o pé durante meia hora, depois mantende-o elevado
e quente durante o resto da noite. Vai doer, mas creio que podereis caminhar.
Vou pedir ao Duque que vos dê autorização para não trabalhardes amanhã e para
que não façais esforços durante algum tempo. Andareis a mancar bastante nos
próximos dias, meu amigo. — O jovem mago levantou-se. — Amanhã bem
cedo venho ver-vos outra vez.
— Para além de conselheiro, sois também o curandeiro do Duque? —
indagou Harry.
— Sim, por acaso até sou — respondeu Anthony com um aceno da cabeça.
— Pensei que os curandeiros eram sacerdotes — acrescentou Harry.
Anthony sorriu. — Na sua maioria são, mas alguns magos são bons
curandeiros. Amanhã venho ver-vos, Nicholas.
Enquanto o mago se encaminhava para a porta, Nicholas chamou:
— Anthony.
O mago parou e olhou para Nicholas.
— Sim?
— Obrigado.
Anthony fez uma pausa, depois sorriu, e não parecia ter mais idade do que
Nicholas ou Harry. — Eu compreendo.
Depois de ir embora, Harry virou-se para o amigo. — Mas compreende o
quê? — perguntou. Pegou no pequeno banco e sentou-se. Foi ao interior da
túnica e tirou de lá uma maçã, partiu-a ao meio e deu metade a Nicholas.
Nicholas recostou-se enquanto mastigava a maçã. — Ele compreende que eu
e o Marcus vamos andar às cabeçadas durante uns tempos — explicou.
— Aquilo não foi um jogo, Nicky. Aquilo foi uma guerra. Hoje levaste mais
pancada em metade de um jogo do que na última temporada inteira, e foram
treze jogos. E também nunca te vi a dar tantas cotoveladas e empurrões. Vocês
não estavam a jogar futebol, estavam a tentar matar-se um ao outro.
Nicholas suspirou. — Como é que me deixei chegar a este ponto?
— Tiveste a indelicadeza de desejar a mesma rapariga que o Marcus, e
embora estejas a fazer de Escudeiro, ele sabe que és um Príncipe Real do Reino
e que ele não passa do filho de um Duque.
— Não passa do filho de um Duque?
Harry abanou a cabeça. — Às vezes consegues ser estúpido, meu amigo. —
Acenando com a mão, disse:
— Se o Marcus chegasse de barco a qualquer cidade que não fosse Krondor
ou Rillanon, as raparigas locais atirar-se-iam aos seus pés para obter um pouco
de atenção. Aqui, na Costa Extrema, ele é o solteiro mais cobiçado, familiar do
Rei e tudo o mais. Mas tu, meu tímido amigo, és o rapaz mais cobiçado a norte
do Império de Kesh, agora que os teus irmãos casaram, e és irmão do próximo
Rei.
»A adorável Lady Abigail podia estar perdidamente apaixonada pelo Marcus,
mas assim que tu chegaste, ela teve de parar e pensar muito bem. — Encolheu
os ombros. — É o tipo de coisas que as pessoas fazem — acrescentou.
Ao ouvir o nome de Abigail, Nicholas suspirou. — E achas que ela está?
— Que ela está o quê?
— Apaixonada pelo Marcus.
Harry encolheu os ombros. — Não sei. Mas posso descobrir — acrescentou
depois com um sorriso.
— Não — disse Nicholas. — Não faças nada. Se começas a fazer perguntas,
ela fica a saber.
— Ah! Tens medo que ela descubra que gostas dela! — Harry riu-se do
desconforto de Nicholas. — Não te preocupes com isso, meu amigo. É tarde de
mais.
Nicholas resmungou. — Achas?
— Tenho a certeza — vincou Harry. — Dá sempre a ideia de que estás
prestes a desmaiar quando a vês a olhar para ti. Como é que achas que o Marcus
descobriu? E não achou piada nenhuma.
— Ele é um tipo atrevido — disse Nicholas com um misto de admiração e
antipatia.
Harry acenou com a cabeça. — Vocês são muito parecidos, mas ele é mais
reservado.
— Bem, toda a gente está sempre a dizer que somos parecidos, mas eu não
acho — comentou Nicholas.
Harry levantou-se. — Vá, mete o pé na água, põe-lhe uma ligadura e passa
uma boa noite. Mais logo trago-te alguma coisa de comer da cozinha.
— Onde vais?
— Vou outra vez ao jardim à procura da Abigail.
— Tu também? — resmungou Nicholas.
Harry acenou com a mão. — Nem pensar. Eu estou interessado na Margaret.
— Porquê? — perguntou Nicholas enquanto Harry fazia uma pausa junto à
porta.
— Bem, por um motivo. O Marcus é irmão dela, e embora os casamentos
entre primos da realeza não sejam novidade, no teu caso duvido que isso
acontecesse. Além disso, acho que a amo.
Nicholas ergueu o olhar com uma expressão de assombro incrédulo. — Pois.
— Estou a falar a sério. Ela provoca-me um nó no estômago. — Sem dizer
mais nada, deixou Nicholas sozinho.
Nicholas recostou-se a rir, mas a sua hilaridade não tardou a desaparecer, pois
compreendeu o exato significado das palavras de Harry. Abigail revirava-lhe o
estômago de uma forma nunca antes experimentada.
5

Instrução

N
icholas estremeceu.
Estivera deitado todo o dia anterior, e embora o pé ainda lhe
doesse, conseguia caminhar. Por isso, antes do nascer do Sol, já
estava no seu posto à porta do quarto do Duque, quase imóvel.
A porta de Marcus abriu-se e este assomou, fazendo sinal para que Harry
o seguisse. Pouco depois, foi a vez de a porta do quarto de Martin se abrir e
por ela passaram Briana e Martin. — Como está o vosso pé, Nicholas?
Nicholas conseguiu esboçar um sorriso de esguelha. — Sobreviverei —
disse. — Ainda dói, minha senhora, mas já consigo andar.
— Os acidentes acontecem — interveio Martin. — Não sereis muito útil
para fazer recados; ide perguntar ao Mordomo-Mor se ele tem algum
serviço apropriado para hoje.
— Vossa Graça — disse Nicholas e foi-se embora a coxear.
Enquanto seguia pelos corredores a caminho da ala dos criados, onde se
situava o gabinete de Samuel, sentiu-se extremamente desgostoso consigo
mesmo. O jogo do Sexto Dia fora um desastre. Como passara o dia inteiro a
remoer deitado na enxerga, percebera que tinha feito figura de parvo.
Ao longo dos anos, visto ser o filho mais novo do Príncipe de Krondor,
Nicholas encontrara-se em várias situações às quais teria preferido abster-
se; não havia como escapar ao escrutínio do público quando o protocolo
obrigava a que estivesse num palanquim durante um festival, ou presente na
corte. Mas, noutros casos, Nicholas preferia deixar os outros, o Harry por
exemplo, assumir as rédeas da situação. No futebol, Nicholas granjeara a
reputação, absolutamente justificada, aliás, de ser um temeroso defesa, hábil
a intercetar a bola e a passá-la para um colega antes que o adversário
conseguisse compreender o que acontecera, mas no que dizia respeito a
marcar golos, deixava sempre que fossem os outros a ficar com os louros.
Há dois dias fora a primeira vez que se lançara ao ataque, lutara pela posse
de bola a cada oportunidade e tentara dominar apenas pela força da vontade.
E a cada passo que dera, Marcus não o largara.
Sentira uma ténue satisfação ao perceber que fora tão eficaz a bloquear
os esforços de Marcus como este fora a bloquear os seus; o jogo fora mais
ou menos equilibrado e, não fora a lesão do seu pé, Marcus não teria
conseguido marcar o golo.
Enquanto descia cautelosamente um lanço de escada, Nicholas estava
mais ciente do seu defeito de nascença do que era habitual. Tal como a
maioria das pessoas que nasceram com deformações idênticas, adaptara-se
a ela e aprendera a compensar sem pensar nisso. Por ser filho de Arutha,
fora poupado à troça que qualquer criança de classe mais baixa teria de
suportar, porém tivera o seu quinhão de chacota, bem como fora alvo de
mais olhares e murmúrios do que gostaria. Todavia, hoje era o primeiro dia
em que sentia que o seu pé era efetivamente uma deficiência. Tinha a
certeza que se não fosse o pé, teria vencido Marcus. Praguejou em voz
baixa, zangado com o mundo inteiro, mas principalmente com ele próprio.
Chegou à porta do gabinete de Samuel. — Mordomo-Mor? — chamou.
Samuel fez-lhe sinal para que entrasse. Nicholas estivera lá há apenas
meia hora e Samuel informara-o de que não havia tarefas especiais. O
Mordomo-Mor olhou em redor como que à procura de inspiração antes de
falar. — Não há nada para fazer, Escudeiro. Porque não regressais para o
vosso quarto e descansais esse pé?
Nicholas disse que sim com a cabeça e foi-se embora, mas não tinha
muita vontade de passar outro dia deitado na cama. Regressou ao quarto e
deixou-se cair sobre o colchão de palha. Como dormira praticamente todo o
dia anterior, não tinha muita vontade de descansar e a palha fazia-lhe
comichão. Além disso, estava zangado.
Passados alguns minutos, levantou-se da enxerga e dirigiu-se à cozinha.
Quando lá chegou, o cheiro que preenchia o corredor fez-lhe crescer água
na boca. Magya estava atarefada a supervisionar a equipa de cozinheiros,
andando por detrás deles como um general a passar revista às tropas. Sorriu
para Nicholas e fez-lhe sinal para que se aproximasse.
— Sentis-vos melhor hoje, Escudeiro? — perguntou a anciã. Embora
fosse roliça, conseguia andar pela cozinha com rapidez e eficiência, não
obstante a idade e o peso.
— Sim, mas segundo o Duque, ainda não estou apto para voltar ao
trabalho.
Ela deu uma risadinha. — Mas suficientemente apto para terdes fome?
Ele sorriu-lhe em resposta. — Qualquer coisa assim.
— Acho que se arranja qualquer coisa para vós antes de o Duque e a
Duquesa desjejuarem — disse ela dando-lhe uma palmadinha no ombro.
Indicou-lhe um tabuleiro e Nicholas pegou nele. Tirou uma colherada de
uma papa grossa que estava a ferver numa caçarola, polvilhou-a com um
pouco de canela, deitou-lhe um pedaço de mel no meio e depois despejou
leite por cima de tudo. Pousou a tigela no tabuleiro, cortou uma fatia de pão
quente e uma grossa fatia de fiambre e fez sinal para que Nicholas a levasse
até uma pequena mesa que havia a um canto.
Megar chegou à cozinha seguido por dois ajudantes de cozinha, cada um
deles com um balde de ovos. Mandou os rapazes realizarem as suas lidas e
foi sentar-se à mesa com a mulher e Nicholas, com quem o velho chefe de
cozinha, um homem corpulento de sorriso franco e simpático, simpatizara
logo no primeiro encontro. — Bom-dia, Escudeiro — disse Megar com um
sorriso amigável estampado no rosto franco e enrugado.
— Vistes o Ghuda e o Nakor? — perguntou Nicholas. — Não os vejo
desde o jogo.
Megar e Magya trocaram olhares. — Quem? — indagou Megar.
Nicholas descreveu-os. — Ah, esses dois — disse Magya. — Eu vi o
baixinho a conversar com o Anthony algumas vezes na semana passada. O
soldado corpulento foi fazer uma patrulha, só pela diversão, segundo ele.
Partiu ontem de manhã.
Nicholas suspirou. Não eram propriamente amigos, mas conhecia-os
melhor do que qualquer outra pessoa no castelo, à exceção de Harry.
Embora o cozinheiro e a mulher fossem bastante simpáticos, não os
conhecia assim muito bem e sabia que eles só estavam a dedicar-lhe alguns
momentos por cortesia, e que assim que acabasse de comer, teriam de ir
preparar as outras refeições do dia.
Enquanto Nicholas comia, eles falaram. Perguntaram-lhe como é que
estava a adaptar-se à vida de Crydee, e depois quiseram saber sobre a
viagem. Quando lhes falou sobre Pug, ambos mostraram sorrisos
melancólicos, simultaneamente tristes e felizes. — Ele era como um filho
para nós — disse Megar. — Sabíeis que ele foi nosso filho adotivo, há já
muitos anos?
Nicholas abanou a cabeça em sinal de que não sabia, e Megar começou a
falar-lhe de Pug, e também do verdadeiro filho dele e de Magya, Tomas,
que fora o melhor amigo de Pug. À medida que a história das suas vidas se
revelava, uma mistura de reminiscência e discussão jovial sobre quem se
lembrava do quê corretamente, ia-se formando um quadro na imaginação de
Nicholas.
Amos contara-lhe histórias sobre a Guerra da Brecha, e de vez em
quando alguém conseguia convencer o seu pai a revelar alguns pormenores
sobre a sua participação na mesma, mas o simples relato de Megar e Magya
era de longe o mais cativante que jamais ouvira. A maneira como narravam
tudo o que acontecera nas suas próprias referências, o número de baldes que
os ajudantes de cozinha transportaram até às muralhas, o número de rações
adicionais que tiveram de preparar, como se desenvencilharam sem isto ou
aquilo, quando as refeições eram comidas frias porque os ajudantes de
cozinha estavam a tratar dos feridos… tudo isso criava uma imagem muito
mais realista na mente de Nicholas do que mesmo a narrativa mais pitoresca
de Amos.
Nicholas fez uma ou duas perguntas e, subitamente, despontou-lhe uma
imagem de Pug em criança. Nicholas sorriu quando Megar explicou a
dificuldade que ele tivera em criança por ser o mais baixo da sua idade, e
como Tomas se tornara protetor. Quando as histórias acabaram, Nicholas já
comera tudo o que lhe tinham posto à frente. Os olhos de Magya brilhavam
enquanto explicava a aparência de Tomas no dia em que se tornara um
homem, no Dia da Escolha, aquele ritual antigo em que todos os rapazes
são entregues aos mestres que os irão ensinar.
O nome Tomas tinha algo de familiar, mas Nicholas não percebeu bem o
quê. — Onde está o vosso filho? — indagou.
Arrependeu-se imediatamente de fazer a pergunta, pois uma expressão de
pesar toldou o semblante de ambos. Pensou que o jovem tivesse sucumbido
na guerra.
Porém, para sua surpresa, Megar afirmou:
— Vive com os elfos.
Subitamente, Nicholas fez a associação. — O vosso filho é o consorte da
Rainha dos Elfos!
Magya acenou afirmativamente com a cabeça. — Não o vemos muitas
vezes — disse, resignada. — Desde o nascimento do menino, visitou-nos
uma vez, e manda uma mensagem de vez em quando.
— Menino?
— O nosso neto — explicou Megar. — O Calis.
A expressão de Magya alegrou-se. — É um bom menino. Visita-nos duas
vezes por ano. Sai mais ao pai do que àqueles elfos com quem vive —
afiançou, com convicção. — Queria tanto que ele viesse viver aqui para
Crydee.
A conversa esmoreceu e Nicholas despediu-se e saiu pela porta que dava
para o pátio. Recordou o que o seu tio Laurie lhe havia contado sobre os
últimos dias da Guerra da Brecha e de pormenores que Amos lhe revelara.
Tomas não era humano. Pelo menos, Nicholas ficara com essa impressão;
ele era outra coisa, relacionada com os elfos, mas diferente. Nicholas
pensou que se os pais dele eram humanos, principalmente sendo pessoas tão
simpáticas como Megar e Magya, ele deveria ter sido bastante parecido
com as outras crianças da torre de menagem. Nicholas ficou a cismar no
que poderia ter provocado a mudança.
Vagueou pelo Jardim da Princesa, com a ténue esperança de lá encontrar
Abigail e Margaret. A julgar pela hora, estariam provavelmente no salão a
desjejuar com o Duque Martin, porém, não obstante, Nicholas tinha
esperanças.
Ao invés das duas jovens, Nicholas ficou espantado ao encontrar Nakor e
Anthony, deitados de barriga para baixo, a espreitar para alguma coisa que
estava debaixo de um banco de pedra.
— Ali, vedes? — disse Nakor.
— Aquele? — perguntou Anthony.
— Sim.
Quando se levantaram, sacudiram-se. — Deveis certificar-vos de que tem
aquelas pintinhas cor de laranja. Se forem vermelhas, são mortíferos. Se
forem de outra cor qualquer, são inúteis.
Anthony reparou na presença de Nicholas e fez uma ligeira vénia. —
Alteza.
Nicholas sentou-se no banco para debaixo do qual eles tinham estado a
espreitar, retirando o peso de cima do pé. — Escudeiro — corrigiu-o.
Nakor fez o seu sorriso de esguelha. — No presente, Escudeiro, mas
sempre Príncipe. O Anthony bem o sabe.
Nicholas ignorou a observação. — O que estavam os dois a fazer?
Anthony pareceu embaraçado. — Bem, há umas plantas parecidas com
cogumelos que se podem encontrar em lugares húmidos e escuros…
— Debaixo do banco — interveio Nakor.
— …e o Nakor estava a explicar-me como os identificar corretamente.
— Para fazer poções mágicas? — perguntou Nicholas.
— Para fazer um fármaco — retrucou Nakor. — Para induzir o sono, se
preparado convenientemente. É muito útil quando se tem de arrancar uma
flecha de um soldado, ou extrair um dente podre.
Nicholas aproveitou o ensejo para se divertir. — Pensei que os magos só
tinham de fazer um gesto com a mão para fazer uma pessoa adormecer.
Anthony encolheu os ombros, como que a dizer que não era um mago lá
muito bom, mas Nakor interveio:
— Vedes, isto é o que dá deixar as crianças crescerem sem educação. —
Abriu o saco e tirou de lá uma laranja. — Quereis uma? — indagou.
Nicholas assentiu com a cabeça e Nakor atirou-lhe o fruto. Deu outro a
Anthony. Depois, entregou o saco a Nicholas. — Vede lá dentro.
Nicholas examinou a enorme mochila. Achou-a um objeto simples:
material negro, parecido ao toque com lã comum com feltro. Um cordão de
couro fora cosido à volta da abertura do saco, e um pedaço de madeira
servia de fivela. O saco não tinha nada dentro. Nicholas devolveu-o e disse:
— Está vazio.
Nakor meteu a mão lá dentro e tirou de lá uma serpente que se contorcia.
Anthony esbugalhou os olhos e Nicholas agachou-se no banco até embater
na parede nas suas costas. — É uma víbora!
— Isto? Não passa de um pau — comentou Nakor com um menear de
mão.
Tinha na mão um simples pedaço de madeira, que voltou a meter dentro
do saco; de seguida, atirou o saco outra vez para Nicholas, que o examinou
atentamente.
— Está vazio — disse, e devolveu o saco a Nakor. — Como fizestes
isso?
Nakor voltou a sorrir. — É fácil para quem sabe o truque.
Anthony abanou a cabeça. — Ele faz coisas extraordinárias, mas insiste
que a magia não existe.
Nakor acenou com a cabeça. — Talvez um dia vos explique, mago. O
Pug sabe.
Nicholas espreitou por cima do ombro para as muralhas sobranceiras ao
pátio. — Hoje toda a gente fala sobre o Pug — disse Nicholas.
— Ele é uma espécie de lenda por estas bandas — referiu Anthony. —
Em Stardock também. Já tinha saído de lá quando me juntei à comunidade.
— Então não deveis ter sido membro durante muito tempo; ele só saiu de
lá há cerca de oito anos — comentou Nicholas.
Anthony sorriu. — Receio ser ainda um mago muito jovem. Os mestres
acharam…
— Mestres! — disse Nakor com desdém. — Aqueles presunçosos do
Korsh e do Watoom! — Abanando a cabeça, sentou-se junto de Anthony.
— Foi por causa deles que deixei Stardock. — Enquanto olhava para
Nicholas, apontou para Anthony. — Este rapaz era bastante dotado, mas é
aquilo a que aqueles palermas chamam de mago «menor». Se eu lá tivesse
permanecido, tê-lo-ia tornado num dos meus Cavaleiros Azuis! — Sorriu
para Anthony. — Eu dei-lhes que fazer, não dei?
Anthony soltou uma gargalhada e Nicholas viu-o parecer tão jovem
quanto ele e Harry. — É bem verdade. Os Cavaleiros Azuis são a fação
mais famosa de Stardock, e há lutas azedas…
— Lutas! — exclamou Nicholas. — Magos a lutar?
— Rixas de estudantes, para ser mais exato — disse Anthony. — Há uns
aprendizes mais velhos, autodenominados Fiéis de Korsh – embora ele não
lhes ligue nada –, que criam confusão amiúde nas tabernas de Stardock.
Nenhum provoca graves danos, os mestres não o permitiriam, mas de vez
em quando aparecem umas cabeças partidas. — Suspirou, ao lembrar-se. —
Eu não estive lá tempo suficiente para me envolver a sério nessas políticas.
Já tinha problemas suficientes com os estudos. Foi por isso que me
mandaram para aqui, a pedido do Duque Martin, porque não sou um mago
lá muito bom.
Nakor abanou a cabeça e fez uma careta. — Se não sois muito parecido
com eles, isso é uma coisa boa. — Pôs-se de pé. — Vou à floresta procurar
umas coisas. Encontramo-nos ao jantar. — Apontou para Anthony. —
Ponde algum bálsamo no pé do rapaz para amanhã já estar melhor.
— Tenho umas coisas que podem ajudar — disse Anthony.
Sem mais dizer, Nakor disparou para fora do jardim, deixando o jovem
mago a sós com o Escudeiro.
Nicholas foi o primeiro a falar. — Acho que nunca conheci ninguém tão
estranho.
— Eu conheci algumas pessoas estranhas em Stardock, mas nenhuma
que se compare ao Nakor — concordou Anthony.
— Ele foi um dos vossos mestres em Stardock, antes de se ir embora?
Anthony abanou a cabeça e sentou-se no lugar que Nakor ocupara. —
Não propriamente. Não sei bem qual era o papel dele lá, além de criar
problemas ao Watoom e ao Korsh. Reza a história que chegou lá um dia
com uma missiva do Príncipe Borric e a prerrogativa de que o Pug o
mandara ir para Stardock. Permaneceu por lá três ou quatro anos, e fez
algumas coisas muito estranhas, principalmente converter muitos alunos à
noção de que qualquer um pode aprender magia, ou aquilo a que ele chama
de «truques», alegando que os magos não eram muito inteligentes por não
conseguirem compreender isso. — Anthony suspirou. — Nessa altura, eu já
tinha os meus problemas, e não prestei muita atenção. Eu era um aluno
novo e só vi o Nakor duas ou três vezes na ilha.
— É verdade que vos enviaram para aqui porque não sois muito bom? —
indagou Nicholas.
— Suspeito que sim — respondeu Anthony. — Há em Stardock alunos
muito mais dotados do que eu, e não menos mestres magos de renome.
O semblante de Nicholas toldou-se. — Isso é quase insultuoso, sabeis?
Anthony ruborizou. — Não sabia.
— Não vos quero menosprezar, Anthony — disse Nicholas. — Podeis
até ter mais dons do que pensais. Pelo menos, é o que o Nakor diz —
apressou-se a acrescentar. Ambos sabiam que se tratava de uma fraca
tentativa de atenuar a observação anterior. — Todavia, o irmão do Rei pediu
um mago para ocupar um posto outrora ocupado pelo professor do Pug.
Deveriam ter enviado um dos melhores.
Anthony levantou-se. — Talvez. — Estava hirto, apanhado entre o
embaraço e o insulto. — Receio que Stardock considere que não deve muita
lealdade ao Reino — disse, ruborizando um pouco. — Se o Pug ainda
estivesse lá, seria diferente, sendo ele primo do Rei e tudo, mas, nas atuais
circunstâncias, o Korsh e o Watoom exercem muita influência sobre os
mestres e são de Kesh. Presumo que pretendam manter Stardock
politicamente isenta em relação aos dois lados.
— Isso pode até não ser má ideia, acho eu, mas não deixa de ser
ofensivo.
— Se quiserdes acompanhar-me, tenho uns bálsamos que acelerarão a
vossa recuperação — disse Anthony. — Pelo menos não farão mal, mesmo
que não façam bem.
Nicholas seguiu o jovem mago. Olhou de relance pelo jardim e lamentou
o facto de não haver sinais das raparigas.

A s semanas sucederam-se com uma rapidez surpreendente. Cada dia


era preenchido com tarefas da manhã à noite, e Nicholas percebeu que
gostava daquele ritmo agitado. Ao estar atarefado, não tinha tempo para
cismar, um traço que herdara do pai. A extenuante rotina de andar sempre
numa azáfama, de ter sempre tarefas físicas para desempenhar, também
estava a enrijecer a sua jovem compleição. Sempre apto a montar e a treinar
com a espada, estava agora a ganhar força para aliar à sua rapidez. Ao fim
do primeiro dia a transportar armas e armaduras para serem limpas e de ter
de as guardar outra vez no depósito de armas, pensou que ia morrer. Agora,
conseguia transportar o dobro da carga sem fazer um grande esforço.
Harry também parecia gostar do trabalho, embora não hesitasse em
queixar-se sempre que podia. Nas três semanas desde que tinham chegado a
Crydee, os rapazes não tinham tido muito tempo para estar com Margaret e
Abigail, embora Harry tivesse conseguido mais algum do que Nicholas.
Adorava implicar com a ansiedade de Nicholas em relação à jovem
acompanhante, deixando-o por vezes completamente irritado. Mas a maior
parte do seu tempo era dedicado à aparentemente interminável rotina da
corte de Crydee. Até ao momento, a única ocasião que Nicholas tinha para
cortejar Abigail eram as tardes do Sexto Dia, e para seu despeito Marcus
estava sempre por perto. Os habitantes do Castelo de Crydee comportavam-
se de maneiras diferentes com os rapazes de Krondor. O pessoal da cozinha
era simpático, os outros serviçais respeitadores e distantes. As criadas mais
novas encaravam Harry com um misto de diversão e estranheza, enquanto
algumas votavam a Nicholas uma admiração espontânea, uma atenção que
ele considerava algo perturbadora. O Mestre de Armas Charles era
interessante, mas sempre formal no discurso e na sua conduta. Faxon era
franco e simpático, e Nicholas achava-o um bom ouvinte. Nakor e Ghuda
raramente sobressaíam, e parecia que arranjavam sempre alguma coisa com
que ocuparem o tempo na vila ou na floresta. Lentamente, a sensação
estranha que perturbara Nicholas aquando da sua chegada estava a dissipar-
se, e embora Crydee nunca pudesse alguma vez assemelhar-se a casa,
estava a tornar-se familiar. Além disso, Abigail ocupava mais os
pensamentos de Nicholas do que qualquer outra rapariga que jamais
conhecera. Nas raras ocasiões em que conseguia estar com ela sem a
intrusão de Marcus, ela era calorosa e galante, e deixava-o com sentimentos
conflituosos, pois tanto achava que estaria a fazer figuras tristes, como
pensava que ela efetivamente apreciava a sua companhia.
Praticamente um mês após o jantar de receção, Nicholas e Harry
voltaram a jantar com a corte do Duque. Uma vez que eram membros da
casa senhorial, não era nada de estranhar, mas era a primeira vez desde que
tinham chegado a Crydee que os rapazes estavam isentos de tarefas, o que
lhes permitiu fazer a refeição ao mesmo tempo que todos os outros.
Estavam sentados ao fundo da mesa, suficientemente afastados do Duque e
da família para que não conseguissem ouvir mais do que pequenos trechos
de conversa. Além de toda a casa senhorial, também vários membros
importantes de grémios e confrarias da vila estavam sentados à mesa do
Duque, enquanto alguns comerciantes e negociantes ficaram espalhados
pelo salão.
Nicholas estava sentado do outro lado do salão fitando, especado,
Abigail, que parecia estar a ouvir absortamente alguma coisa que Marcus
lhe dizia. Ocasionalmente, ela olhava de relance para Nicholas, e ruborizava
e baixava os olhos quando os seus olhares se cruzavam.
— A miúda gosta de ti — comentou Harry.
— Como é que sabes? — perguntou Nicholas.
Harry sorriu enquanto bebia um trago de vinho. — Está sempre a olhar
para ti.
— Se calhar, acha que eu tenho um ar esquisito — disse Nicholas num
tom receoso.
Harry soltou uma gargalhada. — Considerando que tu e o Marcus são
muito parecidos, e que são evidentemente os únicos a quem ela presta o
mínimo de atenção, eu diria que ela tem uma preferência por determinado
tipo. — Dando uma palmadinha no ombro do amigo, acrescentou:
— Ela gosta de ti, palerma.
O jantar decorreu por entre trivialidades com os dois jovens que se
sentaram ao lado de Nicholas. Um deles era um comerciante de pedras
preciosas que procurava patrocínio para uma expedição até uma região da
Cordilheira das Torres Cinzentas; afirmava que havia lá reservas de pedras
preciosas que nunca tinham sido descobertas por anões ou mineiros
humanos. Nicholas sabia que ele iria sofrer uma desilusão, pois o Reino não
tinha qualquer domínio sobre as Torres Cinzentas para além dos
contrafortes da montanha; o comerciante de pedras preciosas teria de
transacionar com Dolgan, o Rei dos anões do Ocidente, na aldeia de
Caldara, a uma semana ou mais de viagem para o interior.
O outro homem era um viajante de Queg que comercializava sedas
delicadas e perfumes raros, e que ocupara a maior parte da tarde das
raparigas a mostrar-lhes a sua mercadoria, motivo pelo qual Nicholas não
lhes pusera a vista em cima o dia todo. Margaret gostava mais de couro para
a caça e de túnicas simples, aparentemente tal como a mãe, embora usasse
vestidos e joias apropriadas na corte; mas Abigail e a maioria das filhas dos
comerciantes mais ricos da cidade tinham comprado um volume suficiente
da mercadoria do viajante que lhe valiam uma deslocação rentável antes de
visitar Carse e Tulan no regresso a casa.
O viajante chamava-se Vasarius e algo nele irritara Nicholas. Talvez
fosse o modo como o apanhara a olhar para Margaret e Abigail, que
Nicholas só conseguia considerar como cobiça. Quando isso acontecera, ele
limitara-se a desviar o olhar das raparigas, ou sorrira para Nicholas como se
estivesse meramente a olhar à sua volta.
Após o jantar, os mercadores reuniram-se defronte do Duque e da sua
senhora, ao que se seguiu um breve período de socialização, antes de serem
escoltados até ao exterior do castelo. Nicholas reparou que, enquanto os
outros mercadores tentavam chamar a atenção de Martin, Vasarius estava a
cavaquear amistosamente com Charles e Faxon.
Nicholas estava prestes a comentar o caso com Harry quando Marcus se
aproximou. — Amanhã vamos caçar — disse. — Vós os dois deveis
começar a preparar tudo aquilo de que necessitaremos. Pedi a dois serviçais
que vos acompanhai.
Nicholas anuiu com a cabeça, enquanto Harry mal suprimiu um
resmungo. Apressaram-se a afastar-se e fizeram sinal para que dois
serviçais os seguissem. Nicholas espreitou por cima do ombro e reparou
que Abigail estava a dar conta da sua partida. Ela acenou-lhe, desejando-lhe
as boas-noites em silêncio, e ao virar-se Nicholas avistou Marcus a observá-
la com uma expressão de desgosto. Com um ténue sorriso, Nicholas sentiu-
se melhor do que alguma vez sentira desde que chegara a Crydee.
á era tarde quando Nicholas e Harry acabaram de organizar o equipamento

J para a caçada. Só estariam fora dois ou três dias, mas a comitiva


incluiria meia dúzia de pessoas — Martin, Marcus, Nicholas, Harry,
Ghuda e Nakor — pelo que era preciso preparar uma boa quantidade de
equipamento e provisões. Depois de andarem atarantados durante um
minuto, os rapazes deixaram que os criados mais experientes assumissem o
comando das operações e ficaram principalmente a observar, exceto no que
tocava à escolha das armas. Ambos os escudeiros sabiam que eram os
responsáveis por essas opções, e já tinham a noção daquilo que Martin e
Marcus precisariam. Tal como o pai, Marcus era um excelente arqueiro, e
preferia o arco longo.
Quando tudo estava preparado, Nicholas e Harry regressaram ao salão de
banquetes. Nicholas deixou o amigo e acercou-se do Duque. Martin
terminou a conversa com um dos mercadores locais. — Sim, Escudeiro? —
disse.
— Está tudo pronto para amanhã, Vossa Graça — disse Nicholas.
— Ótimo. Não preciso mais de vós esta noite, Escudeiro. Partiremos aos
primeiros raios de Sol.
Nicholas fez uma reverência e afastou-se, deixando Martin com os
convidados. Aparentemente, Harry também estava por sua conta, pois
atravessou apressadamente o salão para se juntar a ele. — Onde vais?
— Pensei ir deitar-me. Amanhã temos de nos levantar cedo.
— A Lady Margaret disse que iria dar um passeio pelo Jardim da
Princesa.
— Então vai tu — disse Nicholas. — É a tua oportunidade.
Harry arreganhou os dentes. — A Abigail foi com ela.
Nicholas respondeu-lhe com um sorriso rasgado. — De que estamos à
espera?
Ignorando de todo as convenções sociais, os rapazes saíram
apressadamente do grande salão, quase a correr.
Quando os rapazes subiram os três degraus que davam para o Jardim da
Princesa, Margaret e Abigail trocaram olhares e sorrisos. Margaret estava
confiante e divertida; Abigail tímida e agradada.
Os dois rapazes estacaram abruptamente e fizeram uma vénia plena de
decoro e cortesia.
— Boas-noites, minhas senhoras — disse Nicholas com um sorriso
constrangido.
— Boas-noites, Escudeiro — respondeu Margaret.
— Boas-noites, Alteza — disse Abigail em voz baixa.
Os dois rapazes sentaram-se, Nicholas ao lado de Abigail e Harry ao lado
de Margaret. Os rapazes mantiveram-se em silêncio durante um instante,
depois começaram a falar os dois ao mesmo tempo. As raparigas desataram
numa gargalhada e eles tiveram a decência de parecerem embaraçados.
Seguiu-se outro longo silêncio, e depois Harry e Nicholas começaram a
falar outra vez.
— Eu sei que vocês os dois parecem não conseguir estar um minuto
longe um do outro, mas porque não vindes comigo até ali, Escudeiro Harry?
Harry olhou de relance para Nicholas e ostentava uma expressão mista de
surpresa, prazer e pânico quando Margaret lhe pegou com firmeza na mão e
o conduziu até um pequeno banco ao lado das rosas em flor.
Nicholas e Abigail foram a caminhar lentamente até à extremidade
oposta do pequeno jardim, onde havia outro banco, no qual se sentaram. —
Pareceis estar a adaptar-vos à vida em Crydee, Majestade — disse Abigail
ternamente.
— Aqui sou «Escudeiro», minha senhora — salientou Nicholas, que
ruborizou um pouco. — Eu… acho que gosto. De algumas coisas. — Fitou-
a, espantado com a delicadeza das suas feições, semelhantes às de uma
boneca. Tinha a pele clara e suave sem as manchas habituais em raparigas
da sua idade. Estava certo de que nunca antes vira olhos tão grandes e tão
azuis, quase luminosos sob a luz ténue dos archotes na parede. Tinha o
cabelo puxado para trás, apanhado com uma argola de prata, que depois
tombava sobre os ombros numa cascata de seda dourada. Baixou o olhar. —
Há aqui coisas que considero muito mais agradáveis do que outras — disse.
Ela corou um pouco, mas sorriu. — Vossa Graça está a dar-vos
demasiadas tarefas? — perguntou. — Raramente vos vejo no castelo.
Trocámos pouco mais de uma dúzia de palavras em semanas.
— Tenho muito que fazer — disse Nicholas —, mas para dizer a verdade,
acho isso mais interessante do que ter de ir às aulas, ou ter de ir à corte do
meu pai e ter de marcar presença nos desfiles, apresentações e receções que
estão sempre a acontecer em Krondor.
— Eu acho que isso seria uma vida maravilhosa — disse ela, num tom de
voz que transparecia desilusão. — Não consigo imaginar nada mais
emocionante do que ser apresentada à corte do vosso pai, ou à corte do Rei.
— Mantinha os olhos muito abertos e uma expressão fervorosa ao falar. —
Os importantes lordes e as belas damas, os embaixadores de terras
distantes… parece-me tudo tão maravilhoso. — Ela parecia resplandecer
aos olhos de Nicholas ao dizer estas palavras.
— Costuma ter muito colorido — disse Nicholas, tentando não parecer
demasiado indiferente às novidades do mundo. Na realidade, ele
considerava todas as exigências da pompa da corte extremamente
aborrecidas. Mas tinha a certeza que não era isso que Abigail desejava ouvir
e naquele preciso momento a última coisa que pretendia era deixá-la
desiludida. Ela olhou-a com uns olhos tão abertos que ele pensou que
poderia cair dentro deles; obrigou-se a inspirar, como se nos últimos
instantes se tivesse esquecido de respirar. — Talvez um dia possais visitar
Krondor ou Rillanon.
O seu semblante deixou de ser pensativo e mostrou-se resignado. — Sou
filha de um Barão da Costa Extrema. Se o meu pai levar a dele avante, terei
de desposar o Marcus em breve; já serei uma velha com filhos antes de ter a
oportunidade de visitar Krondor, e nunca verei Rillanon.
Nicholas não sabia o que dizer; só percebeu que um aperto na garganta e
no estômago pareceu atingir proporções dolorosas quando ela falou no
casamento com Marcus. Finalmente, disse:
— Não tendes de o fazer.
— Fazer o quê? — perguntou ela, com um ténue sorriso nos lábios.
— Casar com o Marcus contra a vossa vontade — disse ele,
atabalhoadamente. — O vosso pai não vos pode obrigar.
— Pode fazer com que me seja muito difícil recusar — explicou,
baixando os olhos e observando-o por debaixo de umas pestanas de um
comprimento impossível.
Sentindo as suas mãos rígidas como tábuas, pegou nas mãos dela.
Segurando-as sem jeito com uma mão e dando-lhes palmadinhas com a
outra, disse:
— Eu poderia…
Ternamente, os olhos dela fitaram os seus. — O quê, Nicky? — indagou.
Sentindo que estava a engasgar-se com as palavras, prosseguiu:
— Poderia pedir ao meu pai…
— Nicky, sois maravilhoso! — disse Abigail. Aproximou-se dele e
colocou-lhe a mão por trás do pescoço, puxando o seu rosto para junto do
dela.
Subitamente, Nicholas deu por si a ser beijado. Não sabia que um beijo
podia ser tão delicado, sensual e agradável. Os lábios dela encaixaram na
perfeição nos seus, e o seu hálito era doce como as rosas. Sentiu a cabeça a
andar à roda quando começou a beijá-la e o seu corpo a aquecer quando a
puxou para si, apercebendo-se da delicadeza dela debaixo das suas mãos.
Ela mexia-se de uma maneira que parecia fundir-se nele, embebendo-se
perfeitamente no círculo dos seus braços.
Ela afastou-o abruptamente. — O Marcus! — murmurou e, antes que
Nicholas conseguisse recuperar a consciência, desapareceu. Pestanejou no
meio da confusão, sentindo-se como se alguém lhe tivesse despejado água
gelada pela cabeça abaixo. Um instante depois, Marcus apareceu, entrando
para o jardim pelos degraus das traseiras, os que davam para o campo de
futebol. Nicholas fora de tal modo absorvido pelo beijo que não escutara os
passos do primo a aproximar-se.
Quando Marcus avistou Nicholas sentado no banco, a sua expressão
toldou-se. — Escudeiro — disse, com frieza.
— Marcus — respondeu Nicholas, sentindo-se extremamente
abespinhado.
— Não suponho que Lady Abigail esteja aqui.
Nicholas percebeu que não gostava da maneira como Marcus o fitava e,
mais do que isso, não gostava de ouvir o nome dela nos lábios dele. — Ela
não está aqui.
Marcus olhou em redor. — Porém, a menos que agora useis a colónia
dela, ela esteve aqui há pouco tempo. — Franziu o cenho. — Onde está ela?
Nicholas levantou-se. — Está ali, penso eu.
Marcus afastou-se, e Nicholas quase teve de dar um salto para o
acompanhar. Atravessaram juntos para o outro lado do Jardim da Princesa,
onde foram encontrar Harry sentado no jardim. O Escudeiro de Ludland
estava furiosamente ruborizado.
Levantou-se e acenou com a cabeça para Marcus e Nicholas.
— Suponho que estivésseis a conviver com a minha irmã.
O rubor de Harry intensificou-se, atingindo proporções heroicas. — Não
sei bem — disse. Olhou para os lados do castelo, a direção que as raparigas
haviam obviamente seguido. — Ela é uma rapariga extraordinária —
acrescentou.
Marcus afastou-se e voltou-se de modo a encarar os dois. — Estava na
esperança de que vocês os dois percebessem sozinhos, mas é evidente que
não. Pois bem, as coisas são assim.
Apontou para Harry e disse:
— A minha irmã sabe tratar de si mesma, mas está talhada para algo
melhor do que um insignificante romance com o filho de um Conde
inferior.
O rosto de Harry ficou vermelho de raiva, e os seus olhos raiados de
cólera, mas permaneceu em silêncio.
Marcus virou-se então para Nicholas. — E vós, primo… a Abigail não
precisa que um janota da corte venha aqui impressioná-la, e depois a
abandone quando regressar a casa. Estamos entendidos?
Nicholas avançou um passo. — Aquilo que eu faço, Marcus, quando o
vosso pai não tem tarefas para eu realizar, só a mim diz respeito. E quem a
Abigail escolhe para passar o seu tempo só a ela diz respeito.
Parecendo na iminência de entrarem em vias de facto, os dois primos
foram separados por Harry, que se meteu entre eles. — Não será bom para
ninguém se vocês os dois andarem à bulha — disse, deixando transparecer a
raiva e a irritação na voz. Dando mostras de que desejaria um motivo para
começar ele mesmo uma bulha, deitou um olhar desafiador a Marcus. — O
Duque não iria gostar nada, pois não?
Marcus e Nicholas olharam para Harry momentaneamente surpreendidos,
e depois prenderam o olhar um no outro.
— Partimos com os primeiros raios de Sol, Escudeiro — disse Marcus.
— Tratai de que tudo esteja pronto. — Virou-se e afastou-se, com as costas
direitas como poste.
— Ele vai criar problemas — disse Nicholas.
— Tu é que já criaste problemas — respondeu Harry.
— Ela não o ama — disse Nicholas.
— Oh, ela disse-te isso? — perguntou Harry.
— Não com tantas palavras, mas…
— Conta-me isso a caminho dos quartos. Temos de nos preparar para
amanhã.
— Uma coisa é certa, ela não quer ficar aqui com o Marcus — disse
Nicholas enquanto caminhavam.
Harry assentiu com a cabeça. — Então estás a pensar levá-la contigo para
Krondor?
— Porque não? — disse Nicholas com a fúria a transparecer-lhe na voz.
— Sabes bem porque não — respondeu Harry. — Porque tu vais casar
com uma Princesa qualquer da corte de Roldem, ou com a filha de algum
Duque, ou com uma Princesa de Kesh.
Com raiva na voz, e a memória do beijo de Abigail fresca no
pensamento, disse:
— E se eu não quiser?
— E se o teu Rei to ordenar? — disse Harry com um suspiro.
Nicholas cerrou os dentes, mas não respondeu. Sofria de frustração, a
frustração do abraço interrompido e a frustração de querer encostar o punho
à cara de Marcus. — O que fez a Margaret que te deixou tão afogueado? —
perguntou, por fim.
Harry enrubesceu outra vez. — Ela é… fantástica. — Inspirou
profundamente e expeliu o ar teatralmente. — Começou por me perguntar
como é que os homens de Krondor beijam, depois pediu-me que lhe
mostrasse. Uma coisa levou à outra. — Parou, como se estivesse a ordenar
as ideias. Com as maçãs do rosto completamente ruborizadas, prosseguiu:
— Ela tornou-se arrojada e… — Fez uma pausa, após o que continuou
impulsivamente. — Nicholas, ela perguntou-me se eu já tinha estado com
uma mulher!
— Não acredito — exclamou Nicholas, entre um riso e um gemido.
— É verdade! Depois…
— O quê?
— Depois perguntou-me como é que era!
— Não acredito!
— Queres parar de dizer isso? É verdade.
— E o que foi que lhe disseste?
— Disse-lhe como é que era.
— E?
— Ela riu na minha cara! Depois disse: «Quando souberdes do que falais,
Escudeiro, vinde falar comigo. Estou curiosa.» Depois voltou a beijar-me e
a roçar-se em mim de uma maneira que até pensei que ia explodir! Depois a
Abigail passou a correr e disse que o Marcus vinha aí e foram-se as duas
embora numa correria.
— Extraordinário — disse Nicholas, sentindo a raiva e a frustração a
diminuírem ao saber com estupefação a novidade sobre a sua invulgar
prima Margaret.
— Ela é assim — disse Harry.
— Ainda achas que estás apaixonado? — perguntou Nicholas na
brincadeira.
— O meu estômago dói mais do que nunca, mas…
— O quê?
— A tua prima Margaret mete-me um medo dos diabos.
Nicholas soltou uma gargalhada e desejou boa-noite a Harry. Enquanto
regressava aos seus aposentos, recordou os lábios delicados, o perfume
cálido e os olhos mais incríveis que jamais contemplara. Sentiu o corpo
aquecer, e uma dor incrível no estômago.
6

Ataque-Surpresa

M
artin fez sinal.
O grupo deteve-se quando ele se virou e disse:
— Esperai todos aqui. Há algo ali à frente.
Os dois rapazes ficaram satisfeitos por parar. Estavam com os pés
doridos e exaustos. Tinham partido ao amanhecer dos limites do burgo de
Crydee. Martin estivera a tansmitir aos dois rapazes da cidade alguns
ensinamentos sobre madeira, pelo que fizeram todo o caminho a pé. O
destino deles, as margens do Rio Crydee, ficava ainda a mais um dia de
caminho. Aguardaram com Nakor e Ghuda enquanto Martin e Marcus se
embrenhavam nos bosques, desaparecendo em silêncio.
— Como é que eles fazem aquilo? — perguntou Nicholas.
— O vosso tio tanto foi criado pelos elfos como pelos monges da Abadia
de Silban que o encontraram — esclareceu o Monteiro-Mor Garret —, e
ensinou ao Marcus e a mim próprio tudo o que sabemos. — Nicholas
conhecera o Monteiro-Mor do Duque, Garret, na noite anterior.
Nakor acenou distraidamente para o bosque. — Estamos a ser observados
— alertou.
— Há já quase meia hora — disse Ghuda, com a mão descontraidamente
assente na sua espada.
Nenhum deles pareceu preocupado. Nicholas olhava em redor, quando
Harry disse:
— Não vejo nada.
— Tendes de saber para onde olhar — ouviu-se uma voz vinda da
esquerda deles.
Um jovem emergiu do bosque, movimentando-se de forma tão furtiva
quanto Martin e Marcus. — E já lá vai praticamente uma hora —
acrescentou. Usava uma túnica de pele e umas calças tingidas de verde-
escuro. O seu cabelo era louro, mas em vez de ser como o de Anthony, cor
de palha desbotada, era quase de um dourado como o Sol. Chegava-lhe aos
ombros, mas estava cortado dos lados, deixando entrever umas orelhas
normais, não fosse pela ausência dos lóbulos. Os seus olhos eram azuis,
mas quase excessivamente claros, e movia-se de uma forma que deixava
adivinhar grande força, apesar da silhueta esguia.
E então, com um sorriso que o fez parecer anos mais novo, disse:
— Isto é um jogo entre o Martin e nós.
— Nós? — perguntou Nicholas.
O rapaz fez sinal e três outros vultos emergiram do bosque. — Elfos —
disse Nicholas.
— Chamo-me Calis — apresentou-se o jovem humano.
Os três elfos deixaram-se estar ali próximos em silêncio, até que um se
voltou repentinamente quando Martin e os outros apareceram. — Não
pensastes que fomos enganados pela pista errada, pois não? — perguntou
Marcus, meio a sorrir.
Martin fez o que pareceram ser gestos discretos na direção dos elfos, que
assentiram levemente, ou terá erguido uma sobrancelha. Garret segredou
para Nicholas e para os outros: — Quando querem, recorrem a um discurso
subtil parco em palavras.
E depois Martin falou em voz alta. — Este é o Nicholas, filho do meu
irmão, Arutha, e os seus companheiros, Harry de Ludland, Nakor, o Isalani,
e Ghuda Bulé, de Kesh.
Calis fez uma vénia. — Saudações. Dirigis-vos a Elvandar?
Martin abanou a cabeça. — Não. O Garret regressou ontem ao castelo,
com notícias de que estaríeis a sul do rio, pelo que me pareceu uma boa
desculpa para que conhecêsseis o meu sobrinho enquanto caçávamos.
Talvez no futuro leve o Nicholas à vossa corte.
— E a mim — salientou Nakor.
Calis sorriu e coçou a têmpora, passando uma mão pelo seu longo cabelo.
Nicholas ficou surpreendido por Calis ter aspeto de humano e falar
exatamente como se o fosse.
Martin mostrou-se ligeiramente carrancudo, mas Nakor disse:
— Nunca falei com um Urdidor de Feitiços e gostaria de o fazer.
Calis e Martin entreolharam-se, mas foi Nakor quem continuou a falar.
— Sim, eu tenho conhecimento dos vossos Urdidores de Feitiços e não, não
sou um mago.
Os três permaneceram aparentemente imóveis por uns momentos e
depois Calis sorriu mostrando os dentes. — Como é que sabeis tanto?
Nakor encolheu os ombros. — Estou atento quando as outras pessoas
estão na tagarelice — explicou. — Pode aprender-se muito estando-se
calado. — Enfiou a mão na sua omnipresente mochila. — Quereis uma
laranja?
Dividindo a peça de fruta em quatro pedaços, atirou-os a Calis e aos
elfos. Calis trincou a fruta e deitou fora um bocado de casca, para depois
sugar o sumo. — Já não comia uma laranja desde a última vez que visitei
Crydee.
Os outros elfos provaram o fruto e assentiram em concordância na
direção de Nakor. — Gostava de perceber como é que conseguis enfiar
tantas laranjas nessa mochila — comentou Harry.
Nakor ia dizer algo, mas foi interrompido por Nicholas. — Já sei. É um
truque.
Nakor riu-se. — Talvez um dia vos mostre.
— Porque foi que a vossa Rainha vos enviou para sul do Rio Crydee? —
quis saber Martin.
— Estamos a desleixar-nos nas nossas patrulhas, Lorde Martin. Há
demasiado tempo que reina a paz nas nossas fronteiras.
— Há problemas? — perguntou Martin, prontamente em estado de alerta.
Calis encolheu os ombros. — Nada que mereça ser falado. Há uns meses,
um bando de moredhel atravessou o rio para oriente das nossas fronteiras,
dirigindo-se rapidamente para sul, mas não invadiram as nossas terras, pelo
que os deixámos em paz. — Nicholas conhecia os primos das trevas dos
elfos, chamados pelos humanos de Irmandade da Senda das Trevas. A
última aparição deles acontecera aquando da Batalha de Sethanon. —
Tathar e os outros Urdidores de Feitiços falam de leves sinais dos poderes
das trevas, mas não sentem nada que nos ameace diretamente. Por isso,
colocámos patrulhas mais ativas e aventuramo-nos para mais longe de casa
do que alguma vez fizemos nos últimos anos.
— Mais alguma coisa?
— Um relato de um avistamento estranho junto à vossa nova fortaleza
acima de Barran, junto ao Rio Sodina — disse Calis. — Uma noite, já há
umas semanas, alguém atracou um escaler na boca do rio. Encontrámos
marcas na lama e pistas de homens para a frente e para trás.
O rosto de Martin refletiu a sua preocupação, pois por momentos
manteve-se em silêncio. — Nenhum contrabandista quereria aproximar-se
tanto de uma guarnição; além disso, não há ninguém com quem negociar
assim tão longe para norte.
— Batedores? — questionou Marcus.
— A mando de quem? — perguntou Nicholas.
— Não temos vizinhos a norte, a não ser os trasgos e os moredhel —
salientou Martin. — E desde Sethanon que têm andado bem sossegados.
— Não demasiado sossegados — contrapôs Calis. — Houve algumas
escaramuças ao longo das fronteiras a norte de Elvandar.
— Eles estão a preparar-se para uma nova invasão? — perguntou
Marcus.
— Não há nada que o indique — esclareceu Calis. — O meu pai passou
por lá a cavalo e acha que não passam de migrações devidas a colheitas mal
sucedidas ou a guerras de clãs. Mandou alertar os anões da Montanha de
Pedra para a eventualidade de em breve terem vizinhos indesejados.
De repente, Nicholas uniu as pontas dos nós: este era o neto de Megar e
Magya. O pai dele era Tomas, o lendário guerreiro da Guerra da Brecha.
Martin assentiu com a cabeça. — Daremos instruções para que o Dolgan
seja avisado de que eles podem igualmente estar a regressar às Torres
Cinzentas. Já passaram mais de trinta anos desde a grande migração; os
moredhel podem estar a regressar às suas terras abandonadas.
— Trinta anos não é muito tempo no que toca aos elfos — observou
Garret.
— Ter os Irmãos das Trevas de novo nas Torres Cinzentas e no Coração
Verde é sinónimo de graves problemas.
— Também mandaremos avisar o comandante de Jonril — anunciou
Martin. — Se os Irmãos das Trevas estabeleceram povoações no Coração
Verde, todas as caravanas e comboios de mulas de Carse para Crydee
estarão em risco.
Marcus olhou em redor. — É melhor acamparmos, pai. Há cada vez
menos luz.
— Calis, juntais-vos a nós? — perguntou Martin.
Calis olhou para o céu, verificando o desaparecimento da luminosidade, e
depois para os seus companheiros, que a Nicholas pareceram manter-se
imóveis, e após um momento respondeu:
— Teríamos todo o gosto em partilhar a fogueira convosco.
Martin dirigiu-se a Nicholas e Harry. — É melhor começarem a juntar
lenha, Escudeiros. Vamos acampar.
Harry e Nicholas entreolharam-se, mas ambos sabiam que seria fútil
perguntar onde se poderia encontrar lenha. Afastaram-se da clareira e
começaram à procura. Havia à vista muitos ramos caídos e algumas árvores
mortas. Quando Nicholas começou a recolher ramos tombados, sentiu uma
mão a tocar-lhe no ombro. Endireitando-se praticamente com um pulo,
voltou-se e deparou-se com Marcus atrás de si, com uma machadinha na
mão. — Assim pode ser mais fácil, em vez de se tentar arrancar os ramos à
mão — referiu. Passou outra machadinha a Harry.
Sentindo-se um idiota, Nicholas observou o primo a regressar para junto
dos outros. — às vezes era mesmo capaz de aprender a odiá-lo — disse.
Harry começou a retalhar a madeira tombada. — Ele também não parece
gostar lá muito de ti.
— Já estive mais longe de pegar na Abigail e regressar a Krondor com o
Amos.
Harry riu-se. — Oh, o que eu daria para ser uma mosca quando
explicasses isso ao teu pai.
Nicholas calou-se e continuou a retalhar a lenha. Quando prepararam um
carregamento, juntaram-na e regressaram à clareira. Martin já acendera uma
fogueira com galhos e algum musgo e alimentou o fogo com os ramos. —
Ótimo, é um bom começo. Trazei-nos três carregamentos iguais e teremos
lenha suficiente para a noite.
Com um resmungo mal disfarçado, os sujos e suados escudeiros
regressaram para junto da árvore caída e recomeçaram a retalhá-la.

A sentinela debruçou-se para o lado de fora da torre. Algo se movia


através da água na direção da entrada do porto. O seu posto no topo
do farol da Ponta Longa era o mais importante do Ducado, pois Crydee era
mais vulnerável a partir do mar do que de outro quadrante qualquer, uma
lição aprendida a muito custo durante a Guerra da Brecha. Bastaram pouco
mais de trinta homens para os tsurani incendiarem metade da povoação.
E foi então que ele viu: seis formas baixas a deslizarem pela água. Cada
um dos barcos de calado raso era impulsionado a remos por uma dúzia de
homens, com outros doze posicionados no meio, armados e a postos.
O soldado tinha ordens para despejar um pote de uma pólvora especial no
fogo que tornaria as chamas vermelhas; depois deveria fazer soar um
gongo. Estavam salteadores a entrar no porto! Quando se voltou, foi
lançada abruptamente uma corda com um peso numa ponta e, antes de
poder dar um passo que fosse, o seu pescoço estava partido.
O assassino escondera-se sob a janela da torre, agachando-se sobre a viga
mestra, que sobressaía apenas uns cinco centímetros da rocha. Impulsionou-
se de pronto pela janela e retirou os ganchos metálicos que usara para trepar
a parede, encaixando as pontas na argamassa entre as pedras. Desceu
apressadamente as escadas de caracol, abatendo mais dois guardas pelo
caminho. Todas as noites havia três homens de serviço na torre, com mais
três de prevenção numa pequena barraca na base. Quando chegou à barraca,
o assassino viu três corpos curvados sobre uma mesa, enquanto um par de
vultos vestidos de negro se afastava. Apanhou-os rapidamente e os três
assassinos apressaram-se a percorrer o caminho em terreno húmido
chamado Ponta Longa que ligava o burgo ao farol. Um dos assassinos
vestido de preto olhou de relance para o porto. Mais uma dúzia de pinaças
seguiam o primeiro grupo de seis e o verdadeiro ataque não tardaria a
iniciar-se. Ainda não soara o alarme e tudo decorria conforme o planeado.
A Ponta Longa crescera, com uma doca baixa de um lado e lojas e
armazéns do outro. Barcos silenciosos descansavam ao longo do cais, com
sentinelas pouco alertas a dormitar nos seus tombadilhos superiores. Uma
porta abriu-se quando os três assassinos passaram e saiu de lá aos tropeções
o último cliente de um bar das docas. Já estava morto antes de dar dois
passos, assim como o estalajadeiro que lhe mostrara a porta de saída. Um
dos três assassinos espreitou pela porta e a mulher do estalajadeiro morreu
vítima de uma faca lançada por um especialista antes de se aperceber de que
estava um estranho à entrada em vez do marido.
A missão deles era deitar fogo às docas e destruir os barcos ancorados,
mas ainda era cedo para isso. Iria alertar o castelo, e o ataque, para ter
sucesso, necessitava que a guarnição não despertasse antes que os portões
da torre de menagem fossem abertos.
Os três assassinos chegaram às docas principais. Passaram por um último
barco ancorado e detetaram movimento na proa. Um assassino puxou de
uma faca de arremesso pronto a matar quem quer que pudesse fazer soar
prematuramente o alarme, mas um vulto familiar vestido de preto acenou
por uma vez e trepou a amurada, descendo pela bolina, segurando-se
alternadamente com os pés e mãos, para se juntar aos três companheiros. Os
guardas daquela embarcação já estavam todos mortos. Prosseguiram a
caminhada rumo a sul ao longo das docas, até se depararem com os
pequenos barcos que aportavam. Dois outros homens vestidos de preto
estavam à espera. Mantiveram-se à distância dos homens armados que
trepavam silenciosamente desde os barcos rasos amarrados mais abaixo.
Era uma tripulação de assassinos, homens sem lealdade e com um único
fito: matar e saquear. Os seis homens de negro não sentiam nenhuma
afinidade com aqueles salteadores.
Mas mesmo aqueles homens duros se afastaram, temerosos, para abrir
alas para o vulto de capuz e manto que subiu do derradeiro barco. Avançou
na direção do castelo e os seis assassinos sombrios apressaram-se a subir o
caminho na direção da torre de menagem. A missão deles era esperar por
uma brecha na última defesa de Crydee.
O homem do manto fez sinal e um pequeno grupo afastou-se do corpo
principal. Este fora o bando escolhido para ser o primeiro a atravessar os
portões. Eram os homens que julgou mais capazes de se desenrascarem e de
seguirem ordens durante os primeiros momentos frenéticos do combate.
Mas para fazer passar bem a mensagem, disse-lhes:
— Recordai as vossas ordens. Se alguém me desobedecer, irei
pessoalmente arrancar-lhe o fígado e comê-lo à sua frente antes que a vida
se esvaia.
Sorriu, e mesmo o mais duro dos homens sentiu um arrepio, pois os
dentes dele estavam afiados, a marca de um canibal de Skashakan. O líder
retirou o capuz, revelando uma cabeça desprovida de cabelo. A sua enorme
testa parecia quase disforme, assim como o queixo protuberante. Os lóbulos
das orelhas estavam furados e esticados, formando compridas presilhas de
carne que caíam sobre os ombros, com fetiches de ouro lá presos. Uma
argola dourada servia de ornamento ao nariz e a sua pele clara estava
coberta de tatuagens púrpura, que tornavam ainda mais assustadores e
aterradores os seus olhos azuis.
O capitão olhou de relance por cima do ombro para o porto, onde a
terceira vaga de pinaças deveria estar a surgir, trazendo mais trezentos
homens. O silêncio já não era um grande problema para a terceira vaga,
pois ele estava plenamente convencido de que o alarme soaria antes de o
terceiro bando de salteadores chegar às docas.
Aproximou-se um outro homem. — Capitão, estão todos a postos —
anunciou.
Dirigiu-se ao grupo mais próximo de si. — Ide, os portões abrir-se-ão
quando lá chegardes — disse. — Lutai até à morte. — A seguir, falou com
o homem que se aproximara. — Toda a gente percebeu as ordens?
O homem assentiu com a cabeça. — Sim. Podem matar os velhos e as
velhas e qualquer criança demasiado nova para sobreviver à viagem, mas
todos os que forem jovens e saudáveis devem ser capturados, e não mortos.
— E as raparigas?
— Os homens não gostam da ideia, Capitão. Uma pequena violação já é
tradição. Há quem diga que é a melhor parte — acrescentou, com um
sorriso dengoso.
O capitão lançou de repente a mão para a frente e agarrou a camisa do
homem. Puxando-o até suficientemente perto para que o seu hálito doentio
enchesse as narinas do homem, falou num tom levemente ameaçador. —
Vasarius, tendes as vossas ordens. — Afastou rudemente o homem e
apontou para onde estava meia dúzia de homens a observar em silêncio.
Sandálias de ligas cruzadas demasiado leves para aqueles climas mais
frescos eram a única proteção que tinham nos pés, e com a exceção dos
arneses de couro preto que formavam um H nas costas e no peito, assim
como as máscaras de couro no rosto, não usavam mais roupa além dos kilts
de couro preto. Permaneceram imóveis no ar fresco da noite, ignorando
qualquer desconforto que os outros homens pudessem sentir. Eram
esclavagistas do grémio de Durbin e a sua reputação bastava para intimidar
mesmo uma tripulação dura como o bando de degoladores do Capitão
Render.
Render disse:
— Já imagino bem quem pôs nas cabeças dos homens essa ideia de
reclamar. Desejais demasiado sentir a carne das jovens para serdes um bom
traficante de escravos, quegan, portanto anotai isto: se uma dessas raparigas
for violada, mato o violador e, para jogar pelo seguro, corto-vos a cabeça.
Com o vosso quinhão de ouro, podeis comprar uma dúzia de jovens assim
que chegardes a Kesh. Agora, tratai dos vossos homens!
Fez sinal ao pirata de Queg para que se afastasse e voltou-se para os
restantes salteadores, a postos para atacarem.
Manteve a mão no alto, indicando aos homens nas docas que
permanecessem em silêncio. Aguardaram que o som dos combates chegasse
até eles. Decorreu um longo momento e de repente soou um alarme oriundo
da torre de menagem. O capitão pirata fez sinal e o aglomerado de
degoladores rugiu em uníssono e desatou a correr na direção da vila. Em
poucos minutos, chamas iluminavam a noite, ateadas por tochas colocadas
em edifícios estratégicos.
O Capitão Render soltou uma ruidosa gargalhada de puro deleite,
consciente de que a em tempos pacífica vila de Crydee estava a
transformar-se num caos. Ele sentia-se no seu elemento e, tal como um
mestre de cerimónias numa grandiosa gala palaciana, deleitou-se com todos
os pormenores de um evento que decorria conforme o planeado.
Desembainhando a sua própria espada, deu a volta e correu na peugada dos
seus homens ao ataque, com o intuito de recolher o seu quinhão de
assassínios.

O s olhos de Briana abriram-se. Algo de errado se passava. Filha de


Armengar, uma cidade constantemente em estado de guerra,
aprendera a dormir com uma espada à mão antes mesmo de se tornar adulta.
Já com mais de sessenta anos, ainda se levantava da cama com a
graciosidade fluida de uma mulher com metade da sua idade. Sem pensar,
retirou a espada da bainha pendurada na cavilha de parede mais próxima do
seu toucador. Vestida apenas com uma fina camisa de noite e com o cabelo
grisalho tombado sobre os ombros, encaminhou-se para a porta dos seus
aposentos.
Um grito ecoou pelo corredor e Briana correu para a porta. Esta abriu-se
quando lá chegou, e ela saltou para trás, erguendo a espada. À frente dela
estava um desconhecido, com uma espada apontada na sua direção. Uma
voz rude gritou desde o fundo do corredor e os sons distantes de combates
vieram de outros locais algures na torre de menagem. Não dava para
distinguir as feições do vulto à porta, pois um outro estava atrás dele com
uma tocha, tornando o homem da frente em nada mais do que uma silhueta.
Briana ergueu a espada, pôs-se em posição e aguardou.
A figura ensombrada deu um passo em frente: era um homem pequeno
com cabelo louro cortado rente, com uns olhos azuis, sob espessas
sobrancelhas, que mostraram alguma loucura quando lhe sorriu. — Não
passa de uma avozinha com uma espada — lamentou-se, com a voz a mais
parecer uma lamúria. — Demasiado velha para vender. Vou matá-la. —
Atacou violentamente com a espada. A Duquesa esquivou-se sem
dificuldade, fazendo deslizar a sua lâmina em volta da dele e investindo
contra a posição defensiva dele para o atingir debaixo do braço com um
veloz golpe mortífero.
— Ela matou o Pequeno Harold! — gritou o homem que transportava a
tocha. Passaram a correr por ele três homens, que depois se abriram em
leque. Briana recuou, de olhos fixos no que estava ao centro, embora
permanecendo atenta aos outros dois. Sabia que o opositor do centro seria
aquele que, provavelmente, simularia o ataque, enquanto a verdadeira
investida viria de um, ou de ambos, nos flancos. A sua única esperança era
que esses homens não tivessem prática de combate em modo ordenado e
que se atrapalhassem mutuamente.
Tal como ela previra, o espadachim ao meio saltou para a frente e depois
para trás. O homem à esquerda, o lado mais fraco dela, avançava na sua
direção, com o seu enorme alfange erguido para desferir um golpe
contundente. Briana agachou-se sob a lâmina dele, empalando-o com a
espada. Quando as pernas do homem ficaram frouxas, agarrou a mão livre
dele. Girando-o para a sua direita, lançou-o no caminho do atacante que
vinha desse lado.
O atacante ao centro foi o seguinte a morrer, pois pensou que ela ficasse
ocupada com os seus companheiros e não foi capaz de prever o seu ataque.
Briana atacou violentamente com a espada e cortou-lhe a garganta, levando-
o a cair para trás, incapaz de produzir um som enquanto o sangue jorrava da
ferida aberta sob o queixo. O último homem morreu a tentar libertar-se do
corpo do seu companheiro, tendo sido atingido com um golpe profundo na
parte de trás do pescoço exposto, que o matou de imediato.
Briana baixou-se e retirou uma adaga comprida do cinto do último
homem a morrer, pois percebeu que não teria tempo para vestir uma
armadura ou procurar um escudo. O salteador que ficara em frente à porta a
segurar a tocha estava a espreitar para o fundo do corredor, à espera que os
outros três eliminassem a mulher sozinha no quarto. Morreu antes de ter
tempo para se voltar e verificar se o crime já teria sido cometido.
O homem moribundo tombou sobre a tocha, apagando-a. Briana virou-se
espantada ao verificar que o resto do corredor permanecia iluminado. Uma
luz enfurecida vermelha e amarela iluminou o corredor e ela constatou que
a ponta mais distante estava em chamas. Um grito levou Briana a virar as
costas às chamas e a correr o mais depressa que pôde na direção dos
aposentos da filha.
Pés descalços embateram ruidosamente nas lajes enquanto a Duquesa de
Crydee corria para a extremidade mais distante do corredor. Aí, Abigail
estava acocorada junto a uma porta, com a camisa de noite meio rasgada
pelos ombros. Tinha os olhos arregalados de pavor e voltou a gritar. Aos
seus pés jazia um salteador morto, e ao seu lado estava Margaret, agachada,
com uma adaga comprida empunhada e pronta a defender-se. Um homem
ferido fitou-a circunspectamente e Margaret não deu sinal de se ter
apercebido da aproximação da mãe, para que ele não desse conta. Morreu
um segundo depois, atingido pelas costas por Briana.
Margaret pegou na espada do homem abatido e sopesou-a. Abigail
levantou-se e Margaret atirou-lhe a adaga, com o punho virado para ela.
Abigail olhou para baixo para a arma ensanguentada e estendeu a mão
para lhe pegar, e depois agarrou o tecido que ia a cair, pois a camisa de
noite deslizou-lhe do ombro.
— Raios, Abigail, preocupai-vos mais tarde com o pudor. Se viverdes o
tempo suficiente.
Abigail pegou na adaga e a camisa de noite rasgada caiu-lhe até à cinta.
Tapou os seios com o braço esquerdo e agarrou atabalhoadamente no punho
ensanguentado. Depois, agarrou o tecido da camisa de noite e tentou tapar-
se.
Briana apontou para o fundo do corredor. — Para já aqui terem chegado
é porque já mataram os nossos soldados nos pisos inferiores — disse. — Se
nos aguentarmos na torre até que o resto da guarnição abra caminho desde
as casernas até à torre de menagem, talvez sobrevivamos.
As três mulheres encaminharam-se para a porta mais distante, que dava
acesso à torre sul. Mas antes de chegarem a meio do caminho, avistaram
uma meia dúzia de homens. Briana deteve-se e fez sinal à filha e a Abigail
para que regressassem aos seus aposentos, enquanto se punha a postos para
as defender.
Margaret deu um passo em frente e deteve-se quando sentiu mais homens
atrás delas. Ela rodou sobre si própria e pôs-se de costas com costas com a
mãe. — Não vai ser possível — anunciou.
Briana olhou para trás dela. — Tentai aguentar o mais que puderdes —
disse.
Margaret empurrou Abigail para a sua esquerda. — Eles vão tentar
apanhar-me pelo meu lado mais fraco — avisou. Apercebendo-se de que
Abigail parecia confusa, explicou-se. — O meu lado esquerdo. Não vos
preocupeis com a vossa direita. Espetai tudo o que se mexa à vossa
esquerda.
A assustada rapariga empunhou desajeitadamente a sua arma, com os nós
dos dedos extremamente brancos devido à força com que o fazia. Apertou o
braço esquerdo com força junto ao peito, segurando a parte de cima do
vestido de noite esfarrapado. Os homens em ambos os lados do corredor
aproximaram-se cautelosamente. Pararam quando ficaram ao alcance de
uma espada e aguardaram.
A seguir, os que estavam de frente para Margaret e Abigail afastaram-se
para o lado, para abrirem passagem a três homens enormes com máscaras
negras, que se colocaram à frente. O líder dos três homens fitou
prolongadamente as mulheres. — Matai a mais velha, mas poupai as duas
jovens — ordenou.
Com uma rapidez surpreendente, um dos três homens atacou
violentamente com a mão em baixo, onde segurava um pesado chicote
preto. A tira de couro do esclavagista enroscou-se no braço de Margaret que
segurava a espada. Ela rodou instintivamente o pulso com um golpe
defensivo para baixo, mas aquilo não era uma espada que tentava deter. A
tira desenroscou-se num movimento sinuoso e de repente estalou no seu
braço, com um golpe penetrante que a deixou sem fôlego. Couro áspero
apertou-se em redor do seu antebraço quando o enorme traficante de
escravos deu um puxão ao chicote. Margaret era uma jovem forte, mas
desequilibrou-se e gritou ao cair.
Briana rodou sobre si própria para ver o que se passava de errado com a
filha e deparou-se com Abigail especada, de olhos arregalados de terror,
enquanto Margaret era arrastada pelo chão pelo grande traficante de
escravos. Briana deu um salto para a frente, de lâmina em riste, para tentar
cortar a tira do chicote.
Margaret rebolou sobre as suas costas, e gritou para Abigail: — Cortai-a!
E então viu o olhar de espanto de Briana. Atrás dela estava um salteador
e Margaret apercebeu-se de que ele aproveitara o momento para atacar
pelas costas. — Abby! Cortai a tira! — berrou Margaret, mas a sua
companheira estava completamente subjugada pelo medo, de costas coladas
à parede.
— Mãe! — gritou Margaret quando Briana tombou de joelhos. Um outro
homem destacou-se dos restantes e agarrou a Duquesa pelos cabelos,
puxando-lhe a cabeça para trás para desferir um golpe fatal. Briana inverteu
a sua espada e deu uma estocada forte para a retaguarda. O homem que lhe
agarrava o cabelo gritou de dor, soçobrando enquanto o sangue lhe jorrava
pelos dedos ao tentar agarrar a virilha.
O homem que inicialmente atingira Briana não hesitou. Puxou para trás a
sua espada e enterrou-a de novo com força nas costas dela. Mãos duras
agarraram o braço de Margaret e torceram-no cruelmente, obrigando-a a
largar a espada. — Mãe! — gritou outra vez quando os olhos de Briana
perderam expressividade e ela caiu para a frente no chão de pedra.
O terceiro esclavagista avançou rapidamente e agarrou em Abigail pelo
cabelo, levantando-a com brusquidão, para a obrigar a ficar em bicos de
pés. Ela gritou de terror, a adaga tombou-lhe da mão quando levantou o
braço para aliviar a dor de estar a ser içada pelas tranças e o vestido caiu-lhe
até à cinta.
Os homens uivaram e riram de prazer ao verem o seu peito desnudado.
Um deles começou a avançar na sua direção, pisando o corpo inerte da
Duquesa, mas um dos traficantes gritou:
— Tocai-lhe e sois um homem morto!
Os homens puxaram Margaret do chão, que estava a espernear e a
arranhar, e ataram rapidamente os pulsos da rapariga, para depois lhe
prenderam os pés de modo a que não pudesse pontapear. O traficante de
escravos que a chicoteara encaixou uma vara nas cordas que lhe prendiam
os pulsos e ordenou aos dois homens que a erguessem. Margaret, tal como
Abigail, teve de se aguentar em pontas dos pés, o que lhe restringiu a
possibilidade de resistir. O líder dos traficantes esticou a mão e arrancou o
corpete do vestido de Margaret. Ela cuspiu-lhe, mas, por detrás da sua
máscara negra, ele ignorou a saliva. Agarrando-a pela cinta, arrancou o
resto da roupa e ela ficou nua perante ele. Com um olhar de entendido,
avaliou-a. Tocou-lhe nos pequenos seios e passou-lhe a mão pela barriga
lisa. — Voltai-a — ordenou. Os dois homens rodaram Margaret para que
ficasse de costas para o esclavagista. Ele inspecionou-a como o faria um
comerciante de cavalos face a uma potencial aquisição. Acariciou-lhe o
traseiro e passou-lhe a mão ao longo das pernas compridas, bem
musculadas de cavalgar e correr. Com um grunhido de satisfação, declarou:
— Esta não é bonita, mas ainda tem uma pele sedosa. Há mercado para
raparigas fortes que saibam lutar. Alguns compradores gostam delas
agressivas e duras de roer. Ou então pode ganhar a vida a lutar nas arenas.
Olhou então para trás, para Abigail. Fez sinal e um outro traficante que
lhe arrancou toda a roupa. Os homens riram-se apreciativamente ao ver o
resto do corpo dela e vários queixaram-se abertamente por não poderem
possuí-la já ali.
Os olhos do traficante apreciaram demoradamente as formas voluptuosas
da jovem. — Esta é invulgarmente bela — referiu. — Valerá facilmente
vinte e cinco mil ecus de ouro, ou talvez até cinquenta mil, caso seja
virgem. — Alguns dos homens riram-se e outros assobiaram ao ouvirem
aquela verba; nem conseguiam imaginar tal riqueza. — Tapem-nas a ambas
para que as suas peles não sofram marcas. Se vejo um arranhão que seja que
não estivesse lá agora, vou perceber que não foram tratadas com cuidado e
matarei o homem que lhes deixou as marcas.
Os outros dois traficantes improvisaram dois mantos macios disformes,
dispostos de modo a que fosse possível amarrá-las em redor dos ombros e
pelo pescoço, para que as prisioneiras pudessem ser tapadas sem que
entretanto lhes libertassem braços e pernas. Abigail chorou copiosamente e
Margaret deu luta quando mãos rudes passaram vagarosamente pelo corpo
delas enquanto as cobriam. Um dos homens acariciou Abigail mesmo
depois de o manto ter sido devidamente apertado.
— Basta! — gritou o esclavagista. — Não tarda nada, ides estar com
ideias e então terei de vos matar! — Apontando para os homens que
bloqueavam o acesso à torre, disse:
— Terminai a vossa busca.
O homem no chão gemeu de dor e o traficante virou-se para trás para o
perscrutar enquanto atavam as mãos de Abigail a uma vara sobre a cabeça.
— Já não há nada a fazer. Matai-o.
— Lamento, John Alto — disse um dos seus companheiros. — Vamos
usar o vosso quinhão de ouro para tomar uma bebida em vossa honra. — E
cortou destramente a garganta do homem. Enquanto a vida se esvaía dos
olhos do homem moribundo, o que o abateu limpou a lâmina na túnica do
morto. — Vemo-nos no inferno um dia destes — disse, de modo amistoso.
Surgiu um homem a correr proveniente da ponta mais distante do
corredor. — O incêndio está a alastrar! — gritou.
— Está na hora de partir! — ordenou o esclavagista. Levou dali o seu
grupo e as duas prisioneiras. Amarradas a uma vara, cujas pontas seguiam
assentes nos ombros de um homem à frente e de outro atrás, e com os pés
presos, Margaret, ainda assim, recusou-se a seguir caminho submissamente.
Agarrou-se à vara e pontapeou com ambos os pés o homem que seguia atrás
dela, atirando-o ao chão. Ela desequilibrou-se e deu por si sentada sobre a
laje a olhar para trás. — Carregai-a, se for preciso — gritou o líder dos
esclavagistas. Os pés dela foram rapidamente atados à vara e ficou
dependurada como um troféu de caça. Da forma como era carregada,
conseguiu ver para trás ao longo do corredor. Por entre as lágrimas de raiva
e dor que lhe marejavam os olhos, viu a mãe tombada no chão de rosto para
baixo sobre as pedras frias, com o sangue a formar uma poça à sua volta.

U m resmungo de irritação despertou Nicholas e então apercebeu-se de


uma voz interrogadora. — O quê?
O rapaz levantou-se e, sob a ténue luz do luar, viu Nakor debruçado sobre
Martin, a abanar-lhe o ombro. — Temos de partir. Já!
Marcus e os restantes também estavam a despertar e Nicholas estendeu a
mão e sacudiu Harry. Os olhos de Harry abriram-se de pronto. — Huh? —
perguntou, aborrecido.
— O que é que se passa? — perguntou Martin.
Nakor virou-lhe costas e olhou para sudeste. — Algo de errado. Ali —
apontou.
No céu noturno era possível distinguir-se um ligeiro brilho.
— O que é? — quis saber Harry.
Martin já se levantara e estava a reunir rapidamente os seus pertences. —
Fogo — limitou-se a dizer.
Calis falou rapidamente para os três elfos. Um deles assentiu com a
cabeça e os três apressaram-se a partir na direção da escuridão do
amanhecer. Calis voltou-se para Martin. — Vou convosco. Isto pode ter
algo a ver com aqueles avistamentos estranhos.
Martin limitou-se a assentir e Nicholas apercebeu-se de repente de que
ele estava praticamente pronto para se pôr a caminho, assim como Marcus.
— Se não nos apressarmos, seremos deixados para trás — disse Nicholas,
dando uma cotovelada a Harry.
Os dois escudeiros guardaram rapidamente os seus pertences e quando
estavam a postos para partir, Martin e Marcus já haviam abandonado a
clareira, acompanhados por Calis. — Farei com que regresseis em
segurança, mas o Lorde Martin não podia esperar — explicou Garret.
Nicholas compreendeu; reparara numa determinação severa na reação de
Martin ao clarão no céu. Para ser um incêndio assim tão grande, capaz de
iluminar os céus e ser visto a meio dia de distância a pé, só poderia implicar
uma destruição terrível, ou dos bosques junto à vila, ou da própria vila.
Ghuda e Nakor aguardaram pelos rapazes, e então os cinco elementos
restantes do grupo de caça partiram. — Mantende uma única fila atrás de
mim, todos vós — indicou Garret. — Vou seguir o carreiro, mas há muitos
lugares onde vos podeis magoar no escuro se não fordes cautelosos. Se
seguir demasiado rápido e não conseguirdes acompanhar-me, avisai-me.
— Necessitais de luz? — perguntou Nakor.
— Não — respondeu Garret. — Uma tocha ou uma lanterna não
serviriam para iluminar suficientemente ao longe e fariam com que se
tornasse mais difícil ver o arvoredo à frente.
— Não, refiro-me a uma boa luz! — disse o pequeno homem. Abriu a
sua mochila e tirou de lá uma bola que lançou ao ar. Em vez de descer, a
bola rodou e começou a brilhar, primeiro tenuemente, mas depois com um
fulgor cada vez mais intenso. Conforme se tornava mais brilhante, subiu até
ficar a pairar a cerca de cinco metros sobre as cabeças deles, iluminando o
carreiro no bosque uns noventa metros para diante e para trás.
Garret olhou para o objeto azul-esbranquiçado e abanou a cabeça. —
Vamos — disse.
Partiu em passo acelerado, não propriamente a correr, e os outros
acompanharam o ritmo. Apressaram-se a percorrer os bosques, iluminados
com grande contraste e acompanhados por sombras completamente negras
geradas pelo estranho brilho. Nicholas tinha a esperança de que
alcançassem rapidamente Martin e os outros, mas isso nunca aconteceu.
A jornada transformou-se numa série de imagens aparentemente
desligadas entre si de um carreiro completamente iluminado que os levava
para a escuridão, com obstáculos ocasionais, uma armadilha para trepar, um
pequeno regato para saltar ou um afloramento rochoso a circundar. Ainda
cansado devido à marcha da véspera e ao sono interrompido, Nicholas
esforçou-se por não pedir para parar. Tinha os nervos afetados pelo cansaço
e a tensão; os rostos de Martin e de Marcus refletiam expressões severas,
algo que ele nunca vira antes, e sentiu o estômago a revirar-se face ao
receio do que aí vinha.
Os minutos transformaram-se em horas e a dada altura Nicholas
apercebeu-se de que a luz de Nakor desaparecera e que todo o bosque
estava iluminado pelo tom pardacento do amanhecer. Assim tão perto da
costa, a luz oriunda de oriente misturava-se com as neblinas marítimas
transportadas para terra através das depressões e vales que circundavam
Crydee. Nicholas sabia que a névoa se dissiparia por volta do meio da
manhã se o dia não permanecesse nublado.
Mais tarde, Garret ordenou uma paragem e Nicholas encostou-se a uma
árvore. Estava ensopado em suor e tinha o pé esquerdo a latejar devido ao
esforço e às mudanças climatéricas. — Vem aí uma tempestade — avisou
descontraidamente.
Garret assentiu com a cabeça. — Doem-me as articulações. Acho que
tendes razão, Escudeiro.
Enquanto recobravam o fôlego numa pequena clareira, a neblina
dissipou-se e Harry disse:
— Olhai!
A sudoeste, uma pluma gigante de fumo erguia-se para o céu, um terrível
sinal de destruição. — A julgar pela aparência, foi pelo menos metade da
povoação — disse o velho mercenário.
Sem comentar, Garret retomou o passo e os outros seguiram-no.

J á era perto do meio-dia quando Nicholas subiu com os outros até ao


cimo de uma colina, para conseguirem ver a torre de menagem e o burgo
atrás. Conforme se aproximavam, a dimensão da coluna de fumo pareceu
crescer. Quando olharam para baixo para Crydee, confirmaram-se os piores
receios.
O castelo não passava de uma carcaça de pedra esburacada e enegrecida,
com o fumo ainda a sair da torre central. O que em tempos fora uma
tranquila povoação costeira, não passava agora de uma paisagem
carbonizada com troncos de madeira fumegantes entremeados com fogos
ainda incontrolados. Apenas nas distantes colinas a sul era possível ver uns
quantos edifícios incólumes.
— Destruíram a vila inteira — murmurou Harry, com a voz enrouquecida
pelo cansaço e pelo fumo acre que picava os olhos e os pulmões.
Garret esqueceu os outros enquanto se dirigia a correr para a vila. Eles
avançaram a metade da velocidade dele, e Harry e Nicholas ficaram
praticamente em choque face ao cenário de destruição que tinham diante
dos olhos.
Nakor abanou a cabeça e murmurou algo para si mesmo e Ghuda
esquadrinhou todos os quadrantes à procura de sinais de problemas.
Passaram uns bons cinco minutos antes de Nicholas reparar que o keshiano
tinha a espada desembainhada e a postos. Reagindo tardiamente, Nicholas
empunhou a sua faca de caça. Não sabia o que mais fazer, mas ter uma arma
na mão fê-lo sentir-se, de alguma forma, mais bem preparado para lidar
com o que quer que encontrassem pela frente.
Na orla da vila, numa estrada entre o que em tempos haviam sido casas
modestas pertencentes a trabalhadores e às suas famílias, Nicholas e os
outros acharam o cheiro pestilento da madeira enegrecida quase demasiado
forte para suportar. Com os olhos a arder, estugaram o passo, até chegarem
a uma das mais pequenas praças de mercado que davam para a praça
principal no centro da vila. Pararam lá, pois depararam-se com uma enorme
quantidade de corpos espalhados pelo chão.
Harry levou o seu tempo a interiorizar a visão dos corpos enegrecidos e
mutilados, e depois virou costas e vomitou. Nicholas engoliu em seco para
impedir o seu estômago de se revoltar e Harry deu ideia de estar prestes a
desmaiar. Ghuda estendeu a mão e com um aperto firme no braço, susteve o
jovem escudeiro.
— Isto é uma barbárie — comentou Nakor.
— Quem será o responsável por isto? — sussurrou Nicholas.
Ghuda largou o braço de Harry e examinou os corpos. Moveu-se por
entre eles, inspecionando o modo como tinham caído, e depois observou os
edifícios circundantes. — Foram uns estupores bem cruéis — disse por fim.
Apontou para as casas. — Incendiaram aqueles edifícios e esperaram aqui.
Os que fugiram primeiro foram despedaçados aos bocadinhos e os que
ficaram dentro de casa acabaram por sair quando o fogo se tornou
insuportável. — Limpou o suor do rosto. — Ou morreram carbonizados.
Nicholas constatou que tinha lágrimas nos olhos. Não sabia se se deviam
ao fumo ou ao medo. — Quem eram eles?
— Não eram soldados normais — esclareceu Ghuda, olhando em redor.
Observou os corpos junto a si e os outros espalhados pela rua. — Não sei
— acabou por confessar.
— Onde é que estavam os nossos soldados? — perguntou Harry,
incrédulo.
— Também não sei responder a isso — reconheceu Ghuda.
Começaram a avançar por entre os corpos rumo ao mercado da vila e à
entrada do castelo. Um odor doentio e adocicado assaltou os sentidos de
Nicholas e de repente percebeu que cheirava a carne queimada. Incapaz de
se controlar, voltou-se e despejou o conteúdo do seu estômago, tal como
Harry fizera pouco antes.
Harry continuava a avançar aos tropeções, meio aturdido, como se a sua
mente não conseguisse aceitar o que jazia em redor dele. — Vinde — disse,
com firmeza, Ghuda. — Vamos ser precisos.
Abanando a cabeça para não perder os sentidos, Nicholas virou-se e
seguiu o mercenário. A cada passo, depararam-se com devastação. Nicholas
ficou espantado quando deu com um estranho objeto que de algum modo
logrou sobreviver intacto à destruição. Uma taça azul de barro jazia no meio
da rua e, sem saber porquê, ele passou-lhe por cima, para a manter
incólume. Uma boneca de trapos e palha estava sentada muito direita sobre
um pedaço de uma parede de tijolos que permanecera intacto, parecendo
observar em silêncio aquela insanidade.
Nicholas olhou para Harry e viu que o seu rosto pálido estava raiado com
lágrimas, traços brancos que cruzavam as faces cobertas de fuligem.
Olhando para Ghuda e Nakor, verificou que também os rostos deles se
apresentavam agora cinzentos devido à nuvem de fumo que pairava no ar.
Nicholas observou as suas próprias mãos, constatando que estavam cobertas
por uma fina camada de fuligem escura, e tocou na sua própria cara; os
dedos ficaram húmidos e quase desistiu de seguir em frente, tão subjugado
se sentia pelo desamparo.
Conforme se aproximavam do castelo, a situação foi piorando. A maioria
dos habitantes da vila fugira para a esperada segurança da torre de
menagem do Duque, mas fora-lhes barrado o caminho junto ao seu
santuário falhado. Três homens jaziam no chão onde se intercetavam duas
ruas, com os corpos crivados de setas.
Nicholas e Harry viram pela primeira vez sinais de vida ao passarem
junto aos destroços do mercado principal da vila. Uma criança ainda
pequena estava sentada num silêncio aturdido junto ao corpo da sua mãe.
Tinha os olhos arregalados de puro terror e o rosto coberto de sangue seco.
Nakor ergueu a criança, que pareceu nem reparar. — Ferimento no cimo
da cabeça. — Cacarejou para o miúdo, que reagiu agarrando com as duas
mãos a túnica azul andrajosa. — Não está muito mal. Parece pior do que é.
Provavelmente, foi isso que lhe salvou a vida, acharam que já estava morto.
— A criança, que não poderia ter mais de quatro anos, manteve o olhar fixo
em Nakor, que por fim lhe colocou momentaneamente a mão livre no rosto.
Quando a retirou, a criança fechou os olhos e tombou sobre o peito do
isalani. — Vai dormir. É melhor para ele. É demasiado novo para tanto
horror.
Harry falou com uma voz estrangulada. — Todos somos demasiado
novos para isto, Nakor.
Transportando a criança imóvel, o homenzinho prosseguiu caminho na
direção da torre de menagem. Houve sons que os alertaram para a presença
de mais sobreviventes, alguns chorando de forma audível, outros gemendo.
Nicholas e o seu grupo detiveram-se ao chegarem ao portão principal da
torre de menagem. Numa cena saída das profundezas do Inferno, a torre
central não passava de uma carcaça negra de pedra, iluminada por dentro
por chamas ainda enfurecidas. No pátio central defronte dela, os feridos
jaziam onde quer que houvesse lugar enquanto os poucos sobreviventes
capazes de se moverem tentavam dar-lhes o máximo de conforto possível.
Nicholas e Harry abriram caminho por entre o cenário de feridos e de
humanidade moribunda e avistaram Martin, Marcus e Calis. Martin estava
ajoelhado sobre um vulto caído no solo.
Apressando-se na direção do ponto onde estavam reunidos, Nicholas deu
com o Mestre de Armas Charles deitado no chão, com a sua camisa de noite
enrijecida pelo sangue seco. O rosto do antigo soldado tsurani estava
ensopado em suor e praticamente desprovido de cor devido às dores e aos
ferimentos. Ninguém precisou de dizer a Nicholas que estava a morrer. As
suas pernas inertes e torcidas sob a camisa de noite e a mancha carmesim a
meio da camisa indicaram ao jovem que o Mestre de Armas de Crydee
tinha sido mortalmente ferido no estômago.
O rosto de Martin era uma máscara de pedra, embora os seus olhos
revelassem a dor que sentia. Debruçou-se sobre Charles. — E o que mais?
— perguntou.
Charles engoliu em seco e respondeu num sussurro rouco: — Alguns dos
salteadores… eram tsurani.
— Renegados de LaMut? — questionou Marcus.
— Não, não eram soldados de guerra. Da Seita de Brimanu. — Tossiu e
depois engasgou-se. — Assassinos. Criminosos contratados. Não tinham…
honra… — Cerrou os olhos por uns momentos e a seguir abriu-os de novo.
— Isto foi… combate… sem honra… Foi… chacina. — Gemeu, os seus
olhos fecharam-se e a sua respiração tornou-se superficial.
Anthony apareceu, a coxear e com o braço esquerdo ao peito. Na mão
direita trazia um balde de água. Harry foi a correr na direção dele e pegou
no balde. O mago ajoelhou-se a custo junto a Charles e examinou-o. Pouco
depois, olhou para Martin e abanou a cabeça. — Não vai despertar.
Martin ergueu-se lentamente, sem tirar os olhos do Mestre de Armas. —
O Faxon? — perguntou a seguir.
— Morreu na cavalariça com alguns dos soldados — informou Anthony.
— Estavam a tentar defender a cavalariça enquanto o Rulf e os filhos
retiravam os cavalos. Também morreram, a combater com martelos de
ferreiro e forquilhas.
— O Samuel?
— Não o vi. — Anthony olhou em volta e por momentos Nicholas
pensou que ele ia deixar-se ir abaixo, mas o jovem mago respirou fundo e
prosseguiu. — Eu estava a dormir. Ouvi sons de lutas. Não percebi se
vinham do interior ou do exterior da torre de menagem. Fui a correr para a
janela e olhei para fora. — Olhou em redor para a carnificina. — Então,
entrou de repente alguém no meu quarto e atirou-me algo… um machado,
penso eu. — Franziu o sobrolho ao tentar recordar. — Caí da janela. Aterrei
em cima de… alguém. — Quase pareceu envergonhado quando
acrescentou:
— Ele estava morto. Não parti nada, mas fiquei inconsciente por uns
momentos. Lembro-me de recobrar os sentidos e sentir este calor horrível.
Arrastei-me para longe dele. Não me lembro de muita coisa depois disso.
— Marcus, a vossa família? — perguntou Nicholas.
O primo dele respondeu num tom monocórdico: — A minha mãe ainda
está ali. — Apontou para o incêndio feroz no lugar que ainda no dia anterior
era a fortaleza da família.
A dor foi de pronto substituída pela raiva, e depois pela inquietação. —
Margaret! Abigail?
— Alguém disse que as raparigas foram levadas — explicou Anthony. —
Alguns dos jovens também, parece-me. — Fechou os olhos, como se de
repente tivesse sido assolado por uma dor. — E da vila também; levaram à
força rapazes e raparigas — acrescentou.
Ouviu-se a voz de um soldado que estava ali perto, apoiado numa lança
partida. — Vi-os a levarem alguns prisioneiros, Vossa Graça. — Apontou
para a muralha. — Eu estava ali de plantão — esclareceu. — Ouvi alguém
no pátio e olhei para lá, e depois fui atingido por trás. Quando recobrei os
sentidos, dei por mim dependurado numa das ameias; acho que alguém me
tentou atirar por cima da muralha. Levei uns golpes, mas consegui içar-me.
— Depois prosseguiu: — Havia um par de homens mortos aqui perto, mas
o castelo já estava em chamas. Espreitei para a vila e vi homens a
conduzirem rapazes e raparigas na direção do porto.
— Vistes quem eram? — perguntou Ghuda.
— Estava iluminado como se fosse dia, na altura mais de metade da vila
já ardia. Eram entre quatro ou seis deles; homens grandes, com arneses,
kilts e máscaras de couro preto, e todos tinham chicotes.
— A Guilda dos Esclavagistas de Durbin — constatou Ghuda.
— Resolveremos isso mais tarde — disse Martin —, agora temos feridos
para tratar.
Nicholas e Harry assentiram e partiram apressadamente, para poucos
minutos depois regressarem com baldes de água. Passaram o dia a ajudar os
que conseguiam movimentar-se a irem abrigar-se nos onze edifícios que
haviam escapado aos danos na extremidade sul da vila. Outros foram
transportados para a aldeia piscatória que ficava a mil e quinhentos metros
de distância ao longo da costa.
Lentamente, a população chocada e despedaçada que restara de Crydee
deu início à tortuosa tarefa de retomar a vida. Entretanto, morreram mais
pessoas, que foram levadas para uma pira que estava a ser instalada no
mercado da vila.
Nicholas ajudou um soldado com a cabeça ligada a levantar outro corpo
para cima do aglomerado de mortos, empilhados sobre lenha trazida da
floresta, e reparou que entretanto, e quase sem dar por isso, a noite chegara.
Apareceu um outro soldado, com uma tocha. — É o último — anunciou. —
Provavelmente, amanhã iremos encontrar mais, mas agora é melhor parar.
Nicholas assentiu silenciosamente com a cabeça e afastou-se dali aos
tropeções, no momento em que encostaram a tocha à pira. Quando as
chamas se ergueram para reduzir a cinzas os mortos, encaminhou-se pesada
e laboriosamente até à extremidade mais afastada de Crydee, para junto das
luzes acolhedoras e do som de vozes. Ele achou que as reservas de dor se
tinham esgotado, mas enquanto se arrastava por entre os restos
carbonizados daquele que em tempos fora um burgo próspero, deu por si a
tentar reprimir as lágrimas. A sua mente rechaçou as imagens grotescas, os
corpos parcialmente carbonizados que foram transportados para a pira, as
crianças mutiladas até à morte, cães e gatos atingidos por setas sem razão
aparente. O comentário amargo, por parte de um soldado, de que os
soldados os haviam dispensado de uma grande carga de trabalhos, pois
metade da população já fora cremada, atingiu Nicholas em cheio quando
este estava sozinho no meio de uma parcela de terreno vazia, uma pequena
praça de um mercado. Dobrou-se para a frente, com as mãos apoiadas nos
joelhos, e começou a tremer, embora a noite não estivesse propriamente
fria. Tremendo a ponto de os dentes começarem a bater, o rapaz inspirou
profundamente o ar fumarento e soltou um gemido grave e assanhado.
Obrigando o pé direito a mover-se para a frente, endireitou-se e ordenou ao
seu corpo que avançasse. Tinha a sensação de que se parasse outra vez antes
de chegar ao local onde Martin e os outros aguardavam, poderia nunca mais
se mover.
Arrastou-se até chegar ao maior edifício que sobrevivera. Estava
destinado a ser uma nova estalagem assim que a construção terminasse. As
paredes erguiam-se para a escuridão e o primeiro piso – que cobria apenas
metade do salão comum – já fora erigido, mas ainda não tinha telhado, pelo
que parte das instalações continuavam a céu aberto. Uma vintena de
pessoas da vila amontoou-se sob o beiral do primeiro andar, enquanto
Martin e os companheiros comiam silenciosamente sob as estrelas, em volta
de um pequeno forno em barro onde o fogo ardia intensamente. Alguns dos
pescadores providenciaram um estufado de peixe e pão retirados das suas
parcas provisões.
Nicholas avançou atabalhoadamente até onde Harry estava sentado, ao
lado de Marcus, e abanou a cabeça quando lhe ofereceram uma taça de
estufado. Não tinha fome e achou que nunca mais iria livrar-se do cheiro a
fumo que tinha no nariz.
— Já regressaram uma dúzia de batedores e habitantes da floresta, Vossa
Graça — estava Garret a dizer. — O resto deve chegar amanhã ao despontar
do dia.
— Mandai-os sair de novo — ordenou Martin. — Quero o máximo de
caça que possam arranjar na próxima semana. Quase não temos comida e
em menos de dois dias teremos muita gente esfomeada. Os pescadores não
podem pescar muito mais depois de terem perdido tantos barcos.
Garret assentiu com a cabeça. — Alguns dos soldados poderiam ajudar
nas caçadas.
Martin abanou a cabeça. — Já me resta menos de uma vintena de homens
capazes na guarnição.
— Já tivemos aqui mais de um milhar de homens ao serviço, pai —
salientou Marcus.
Martin assentiu com a cabeça. — A maioria morreu nas casernas. Os
salteadores mataram quase toda a gente junto à muralha, abriram o portão,
barricaram as portas das casernas em ambos os lados e deitaram fogo ao
telhado. A seguir, lançaram pelas janelas potes de barro cheios de nafta. Foi
um inferno lá dentro antes de a maior parte dos soldados acordar. Uns
quantos conseguiram sair pelas janelas e foram abatidos por arqueiros.
Outros, na torre de menagem, foram mortos nas lutas sala a sala. Temos
mais uma centena deles a deambular por aí feridos e quando uns quantos se
curarem, podemos dispensar alguns para irem à caça. O outono está a
chegar depressa e a caça dirige-se para sul. Vamos depender de Carse e de
Tulan para aguentarmos o inverno. — Martin trincou um pedaço de pão
antes de prosseguir. — Há mais ou menos uma outra centena às portas da
morte. Não imagino quantos sobreviverão. O Anthony disse que os que
estão mais gravemente queimados por certo morrerão, pelo que aquando
das primeiras quedas de neve, poderão restar apenas cento e cinquenta
homens ao serviço.
— Há ainda os duzentos homens de Barran — salientou Marcus.
Martin assentiu com a cabeça. — Posso ordenar que regressem. Mas
vejamos o que o Bellamy pode enviar-nos antes disso.
Harry passou a Nicholas um naco de pão, cheio de manteiga e mel, e este
começou a comê-lo instintivamente. De repente, sentiu-se esfomeado e fez
sinal à mulher que servia o estufado de que afinal de contas iria querer uma
taça.
Nicholas não abriu a boca enquanto comeu, escutando as conjeturas
sinistras do que ocorrera na noite anterior. Durante o dia alguém
mencionara que a Duquesa matara uma meia dúzia de salteadores antes de
ser por fim dominada e abatida enquanto tentava salvar a filha e as outras
jovens. Um soldado ferido, que fugia ao incêndio na torre de menagem,
vira-a tombada morta em frente ao quarto de Margaret. As chamas eram
demasiado intensas e ele estava demasiado ferido para retirar a Duquesa do
fogo.
Nicholas aguardou que alguém revelasse o destino das raparigas, mas
Martin e os outros abordaram somente preocupações imediatas. Conforme
as pessoas vinham para prestar informações e partiam de novo, formou-se
na mente de Nicholas uma imagem de destruição. De uma vila próspera
com quase dez mil habitantes, restavam menos de dois mil, e muitos desses
não sobreviveriam a mais uma semana por causa dos ferimentos. De um
milhar de soldados, um em cada cinco homens poderia sobreviver para
servir de novo o Reino. Todos os edifícios desde o Farol da Ponta Longa até
à extremidade sul do burgo velho tinham sido destruídos e metade dos
novos haviam desaparecido. Não sobreviveu nenhum negócio. Dos diversos
mestres de ofícios, apenas sobreviveram um ferreiro, dois carpinteiros e um
moleiro. Uma meia dúzia de trabalhadores e uma vintena de aprendizes
estariam disponíveis para ajudar à reconstrução. A maior parte dos
sobreviventes eram pescadores e lavradores. Seriam chamados ao serviço
quando necessário, mas, no futuro imediato, Crydee estava reduzida a uma
povoação rudimentar, um enclave primitivo na Costa Extrema do Reino.
Nicholas escutou Martin dizer:
— E teremos de pedir ao Bellamy e ao Tolburt em Tulan que nos enviem
artesãos. Temos de começar imediatamente a reconstruir o castelo.
Nicholas não conseguiu aguentar mais. — E as raparigas? — perguntou
em voz baixa.
Pararam todas as conversas e todos os olhares no círculo incidiram nele.
Com uma amargura mal disfarçada, Marcus disse:
— O que tendes em mente?
Nicholas não soube o que responder.
— Incendiaram todos os navios no porto. Incendiaram quase todas as
embarcações — realçou Marcus. — Devemos pegar num esquife de pesca e
remar até Durbin?
Nicholas abanou a cabeça. — Mandai dizer…
— Ao vosso pai? — perguntou Marcus, amargamente. — Está a meio
caminho da outra ponta do Reino! Sobrou algum pombo vivo? Há algum
cavalo em condições de cavalgar até Carse? Não! — A sua dor e fúria
motivadas pela sua perda focaram-se no único alvo à mão, Nicholas.
Martin pousou a mão no ombro do filho, para o deter, e Marcus calou-se.
— Amanhã falaremos disso.
Nicholas não pediu autorização para sair, limitou-se a erguer-se e
afastou-se do calor da pequena fogueira. Encontrou um lugar relativamente
abrigado sob as escadas que levavam ao primeiro piso e comprimiu-se lá.
Após uns minutos, sentiu uma necessidade extrema de estar em casa, com a
sua mãe e o seu pai, e irmã e irmãos, os seus professores e todos aqueles
que sempre o haviam protegido e amado. Pela primeira vez em anos, sentiu-
se novamente um rapazinho, com medo dos rapazes que o atormentavam e
gozavam quando os seus protetores não estavam presentes. Sentindo-se
triste e envergonhado, Nicholas virou a cara para a parede e chorou.
7

Escolhas

R
ebentou uma tempestade.
Nicholas foi despertado pela humidade no rosto. O seu sono fora
profundo e sem sonhos; acordou tenso e ainda exausto. Sentiu-se
por momentos desorientado ao acordar, e depois apercebeu-se subitamente
de onde estava e do que sucedera.
Foi assolado pelo desespero quando a chuva começou a tombar pela
abertura sobre o salão comum. Os que dormiam encostados à parede ou sob
as estrelas entraram rapidamente com os que estavam amontoados por
debaixo do beiral do primeiro piso. O frio húmido foi acompanhado por um
frio ainda mais profundo e penetrante com o regresso das recordações dos
horrores da véspera.
Nicholas apercebeu-se de que a luz do dia, apesar da chuva, estava a
surgir, e percebeu que já deveria ter nascido o Sol. Harry abriu
cautelosamente caminho por entre os que tentavam manter-se secos e sentiu
o cabelo já todo ensopado e colado à cabeça. — Vamos lá, temos muito
trabalho pela frente.
Nicholas assentiu com a cabeça e levantou-se desastradamente. Doía-lhe
o pé e coxeou quando se obrigou a enfiar-se debaixo do aguaceiro. Em
poucos segundos ficou ensopado até aos ossos. O único alívio
providenciado pelo temporal foi ter diminuído a fetidez do queimado da
noite anterior.
Ao chegarem à porta aberta da estalagem, os rapazes dirigiram-se ao
exterior até ao local onde estava Martin. A única proteção deste face à
chuva era um oleado que resguardava o seu arco e um outro pousado sobre
a aljava das setas. — Temos de encontrar o máximo possível de lenha,
Escudeiro — disse ele a Nicholas.
Nicholas assentiu e virou-se para o local onde estavam três homens
comprimidos sob um pequeno beiral, que proporcionava apenas uma
proteção ilusória face ao mau tempo. — Vós os três — gritou Nicholas
sobre o rufo da chuva —, estais feridos?
Os três homens abanaram a cabeça. — Mas estamos encharcados,
Escudeiro — salientou um deles.
Nicholas fez-lhes sinal para que se juntassem a eles. — Não ides ficar
mais molhados por trabalharem. Preciso de vós.
Um dos homens olhou para Martin, que assentiu uma vez com a cabeça,
e os três homens levantaram-se e seguiram Nicholas.
Durante o resto do dia, andaram a recolher coisas no meio dos destroços
de Crydee, encontrando madeira aqui, umas quantas tábuas ali, e levando os
artigos que pudessem ser úteis até à estalagem. A localização das peças
maiores foi anotada para uso posterior.
Por volta do meio-dia o temporal amainou. Nicholas e os seus três
companheiros – um agricultor cuja casa na extremidade mais distante da
vila ardera e dois irmãos que haviam trabalhado no moinho – tinham
conseguido encontrar uma meia dúzia de barris de pregos, algumas
ferramentas de carpinteiro intactas e madeira suficiente para erigir uma
dúzia de abrigos rudimentares. O carpinteiro que sobrevivera ao ataque
inspecionou as ferramentas e anunciou que deveriam procurar madeira e
cortá-la, para ele poder terminar o telhado da estalagem no prazo de uma
semana com a ajuda de três homens capazes. Martin disse que iriam
verificar se tinha sobrado suficiente material de corte para derrubar árvores.
Durante o dia, Nicholas constatou uma coisa: a antiga tradição de fazer
com que cada um dos rapazes da torre de menagem aprendesse uma
variedade de ofícios antes de ser finalmente selecionado na Escolha para o
seu ramo estava a revelar-se uma bênção. Embora aqueles homens não
fossem carpinteiros ou pedreiros, conheciam as bases dessas artes e
demonstraram uma extraordinária capacidade para recordarem o que
haviam aprendido em rapazes.
Ao cair da noite, Nicholas estava de novo exausto e cheio de fome. A
comida não tardaria a revelar-se um problema, mas para a segunda noite a
aldeia piscatória providenciara alimento suficiente para todos. Um soldado,
que coxeava apoiado numa muleta improvisada, entrou na estalagem
enquanto Nicholas comia e relatou a Martin que fora encontrada uma meia
dúzia de cavalos junto ao rio. Martin pareceu ter ficado agradado com a
perspetiva de poder formar uma pequena patrulha que levasse uma
mensagem ao Barão Bellamy em passo de corrida. Um barco de pesca fora
enviado para Carse naquela tarde, mas iria demorar demasiados dias a
descer a costa.
Harry veio sentar-se junto ao amigo e mergulhou a colher na taça com o
estufado quente. Entre várias colheradas, disse:
— Nunca me tinha apercebido de que o estufado de peixe podia saber tão
bem.
— Estás esfomeado — realçou Nicholas.
— Não. Deveras? — respondeu Harry, amargamente.
— Também não estou com disposição para isto — avisou Nicholas —,
mas se não descarregares a tua má disposição em cima de mim, Harry,
também não despejo a minha em cima de ti.
— Desculpa — disse Harry, acenando com a cabeça.
Nicholas olhou momentaneamente para o vazio. — Achas que alguma
vez vamos voltar a vê-las? — perguntou.
Harry suspirou. Não teve de perguntar a quem se referia Nicholas. —
Ouvi o Martin e o Marcus hoje mais cedo. Dizem que se o Bellamy fizer
chegar as informações a Krondor suficientemente depressa, a nossa armada
pode montar bloqueio a Durbin antes que os salteadores lá regressem. Eles
acham que o teu pai pode obrigar o Governador de Durbin a entregar todos
os prisioneiros.
Nicholas suspirou. — Quem me dera que o Amos regressasse. Ele
percebe destas coisas. Em tempos foi capitão em Durbin.
— Também gostava que ele cá estivesse — concordou Harry. — Há aqui
muita coisa que não faz sentido. Porque é que mataram tanta gente e
reduziram tudo a cinzas?
Olhando em redor para a miserável companhia que tinham na estalagem,
Nicholas viu-se obrigado a concordar. E então, de repente, ocorreu-lhe algo.
— Onde é que está o Calis? Não o vejo desde que o Charles morreu.
— Regressou a Elvandar — informou Harry. — Disse que tinha de
contar à mãe o que se passara.
Nicholas ficou alarmado. — Por todos os deuses. E os avós dele? — Não
vira Magya e Megar entre os sobreviventes.
— Hoje mais cedo, pareceu-me ver o Megar lá em baixo na outra ponta
da aldeia dos pescadores. Parecia mesmo ele. Estava a supervisionar a
confeção desta comida para toda a gente.
Nicholas riu-se pela primeira vez desde que saíra para caçar. — Só podia
ser ele.
Robin, um pajem que trabalhara para o Mordomo-Mor Samuel, abriu alas
por entre a sala cheia de gente e sentou-se junto aos dois escudeiros. Os três
rapazes compararam impressões sobre o que tinham visto durante o dia e o
retrato era tão lúgubre quanto haviam temido. Todo o pessoal do castelo,
com a exceção de Megar e Magya, outro cozinheiro e um rapaz da copa,
dois outros escudeiros e uma mão-cheia de pajens e criados, foi morto
durante o ataque ou falecera pouco depois em virtude dos ferimentos.
Durante a noite e a manhã, mais uma dúzia de soldados morrera dos
ferimentos e grande parte das pessoas da vila estava doente ou ferida.
Após a refeição, Nicholas, Harry e Robin foram ter ao local onde Martin
estava a falar com Anthony. — Já haveis comido? — perguntou Martin,
quando os rapazes chegaram.
Os três assentiram com a cabeça.
— Ótimo — disse Martin. — A chuva apagou os fogos, por isso mal
amanheça, dirigi-vos ao castelo e ajudai-me a ver o que é possível resgatar.
Agora, ide dormir.
Nicholas e Harry olharam em redor da sala à procura de espaço livre
onde pudessem dormir e viram uma pequena abertura junto à parede mais
distante. Os três rapazes abriram caminho por entre os cidadãos
adormecidos e acotovelaram-se junto à massa de corpos. Nicholas deu por
si a dormir entre Harry e um velho pescador que ressonava muito alto. Em
vez de se incomodar com o barulho, sentiu-se reconfortado pela
proximidade e pelo calor.

O s dias passaram e a vida recomeçou em Crydee. O carpinteiro e os


seus ajudantes terminaram a instalação do telhado da estalagem, que
se tornou o quartel-general do Duque, embora Martin se tenha recusado a
dormir em qualquer dos quartos do primeiro andar, cedendo-os aos feridos e
aos doentes mais necessitados de abrigo e conforto. Cerca de cem cidadãos
e soldados morreram dos ferimentos ou de doença, apesar de todos os
talentos de Anthony e Nakor. O conhecimento da tragédia acabou por
chegar à Abadia de Silban na ponta de Elvandar e meia dúzia de monges
daquela ordem chegaram para prestar auxílio.
Harry tornou-se o estalajadeiro improvisado, pois o homem que estava a
construir a nova estalagem morrera durante o ataque. Ele verificou os
alimentos existentes, resolveu discussões e manteve tudo em ordem. Apesar
da sua atitude irreverente antes do ataque, Harry demonstrou um talento
inesperado para negociar e mediar. Tendo em conta o quanto toda a gente
em Crydee estava irritadiça e emocionalmente desgastada, Nicholas ficou
impressionado com a sua habilidade. Harry mostrou ter o condão de
despertar o lado racional nas pessoas que não estavam com disposição para
agir racionalmente. Nicholas anotou mentalmente que um dia, quando
regressassem a casa para um mundo menos insano do que aquele, Harry
daria um valioso administrador na corte do Príncipe.
Nicholas acompanhara Martin e Marcus à torre de menagem e não
descobriram lá nada intacto. Entre a nafta usada para iniciar os fogos e o
material combustível na torre de menagem, as chamas tornaram-se tão
quentes que dizimaram tudo o que encontraram pela frente. O fogo tornara-
se de tal forma quente que muitas das pedras seculares tinham estalado ou
explodido, e mesmo os suportes de metal dos apliques das tochas se tinham
fundido.
Avançando por entre as paredes enegrecidas, deram com o piso superior
totalmente carbonizado, sem nada que desse para identificar. Martin e
Marcus demoraram-se à porta do quarto de Margaret, a olhar para baixo
para as lajes chamuscadas e fendidas e para os pedaços das dobradiças
fundidas onde antes havia portas penduradas. Dos que tinham morrido não
restaram vestígios, pois o fogo intenso reduzira a cinzas pretas os seus
ossos. Umas quantas poças de metal, agora endurecido como pedra,
mostraram onde haviam sido deixadas para trás as armas.
Lá em baixo, na cave mais profunda, sobreviveram umas quantas
provisões utilizáveis: alguma roupa, capas e mantas que tresandavam a
fumo, e diversos baús de roupa velha, assim como botas, cintos e vestidos
velhos.
Harry descobriu provisões de combate; Martin inspecionou a comida.
Constatou que já ali devia estar desde a Guerra da Brecha. A carne de vaca
curada estava enegrecida e dura como couro velho; o pão duro esfarelava-se
como pó. Mas três barris eram de épocas mais recentes, e estavam selados
com papel e cera. Quando um deles foi aberto, encontraram lá dentro maçãs
secas ainda comestíveis. E, para regozijo de toda a gente, descobriram
também meia dúzia de pipos de excelente aguardente keshiana. Estavam
todos marcados para serem transportados para a vila, sob supervisão de
Nicholas.
Assim que saíram do castelo, Nicholas permaneceu em silêncio: esperara
por algum comentário de Martin ou Marcus sobre a morte da Duquesa, mas
nem o marido nem o filho proferiram uma palavra que fosse.

O s dias arrastaram-se e a vila começou a curar-se lentamente. Um


segundo e depois um terceiro edifício foram reparados e quando os
feridos recuperaram a saúde, juntaram-se ao trabalho árduo, acelerando a
reconstrução.
Mais tarde nessa semana, Calis regressou, acompanhado por uma dúzia
de elfos carregados de caça. Tinham esfolado três veados que eram
transportados em varas, enquanto traziam codornizes e coelhos em molhos
amarrados pelas patas. As pessoas esfomeadas de Crydee agradeceram aos
elfos e cozinharam todas aquelas oferendas.
Calis passou uma hora com os seus avós e depois juntou-se ao grupo de
Martin para cear. Nicholas e Harry comeram bifes de veado enquanto
ouviam o jovem elfo falar. — A minha mãe e o meu pai ficaram muito
perturbados com este ataque, e trago mais más notícias. A vossa fortaleza
em Barran também foi atingida.
Martin arregalou os olhos. — O Amos?
Calis assentiu com a cabeça. — O barco dele também foi atingido,
embora ele tenha escorraçado os que tentaram incendiá-lo. Procedeu a umas
reparações e deve chegar cá dentro de um dia ou dois.
— Quanto mais sabemos, menos sentido faz tudo isto — constatou
Martin. — O que é que levaria esclavagistas a atacar uma guarnição de
soldados?
— O meu pai acha que pode ser para vos impedir de os perseguir —
avançou Calis.
Marcus abanou a cabeça. — Porque é que desperdiçaríamos semanas a
perseguir esses esclavagistas até Durbin quando poderíamos enviar
instruções a Krondor, através dos pombos do Bellamy, para que lhes
cortassem o caminho?
Calis estreitou os olhos, fazendo uma expressão de preocupação. — Já
vos chegaram notícias de Carse? — perguntou.
Martin pousou a costeleta que estava a comer. — Por todos os deuses! —
exclamou. — O paquete de Carse. Nunca chegou.
— Se o Bellamy foi atacado… — disse Marcus.
Martin ergueu-se e olhou em volta para a sala. Ao ver um rosto familiar,
chamou um dos soldados da guarnição. — Mal o Sol nasça, quero um par
de cavaleiros a dirigirem-se para Carse. Caso se cruzem com homens de
Carse trazendo notícias de um ataque, que prossigam até junto do Bellamy,
troquem de cavalos, e depois vão procurar o Tolburt em Tulan. Quero, o
mais rápido possível, relatórios detalhados sobre o que se passou. — O
soldado fez a continência e partiu. Os cavalos restantes estavam presos a
estacas no exterior da estalagem e teve lugar uma série de preparativos para
organizar um par de cavaleiros.
Martin voltou a sentar-se. Ghuda e Nakor entraram na estalagem e
dirigiram-se para o lugar onde Martin estava sentado a refletir. — Acho que
a maior parte dos que ainda vivem vão recuperar — anunciou o
homenzinho.
— Finalmente boas notícias — comentou Marcus.
Martin fez sinal para que se sentassem e comessem, e um pouco depois,
disse:
— Tenho a impressão de que ainda só vimos o começo de algo bem
maior do que um ataque-surpresa.
— Já vi o modo de trabalhar dos esclavagistas de Durbin, meu lorde —
disse Ghuda —, e não tem nada a ver com isto. Isto foi uma carnificina. —
Abanou a cabeça. — Só pelo gozo, se é que é possível acreditar nisso.
Martin cerrou momentaneamente os olhos, como se tivesse dores de
cabeça, e depois voltou a abri-los. — Já não sentia este desassossego desde
a Guerra da Brecha — confessou.
— Achais que os tsurani estão outra vez a voltar as atenções para nós? —
perguntou Marcus.
Martin abanou a cabeça. — Não. A Senhora do Império tem as coisas
bem firmes nessa matéria. Já demonstrou ser uma parceira comercial astuta
desde que o seu filho se tornou Imperador, mas justa. Uns quantos
mercadores clandestinos, enfiando-se de algum modo pela brecha para
negociar metais, é algo que posso aceitar. Mas isto — descreveu um arco
com a mão que abarcou toda a vila — não faz grande sentido caso se tratem
de renegados tsurani.
— Mas o Charles disse que alguns dos salteadores eram tsurani, pai… —
fez notar Marcus.
— O que é que ele lhes chamou? — perguntou Ghuda. — Seita?
— Seita de Brimanu — esclareceu Nakor. — Significa «Irmandade da
Tempestade Dourada».
— Compreendeis tsurani? — quis saber Martin.
Nakor assentiu. — O suficiente. Eram assassinos. Noitibós tsurani, se
preferirdes: um grémio de assassinos que mata a troco de dinheiro. A
Senhora do Império eliminou a seita mais poderosa, os Hamoi, há quinze
anos, mas há outros.
Martin abanou a cabeça e beliscou a ponta do nariz. — O que é que tudo
isto significa?
— Significa, meu amigo, que estais metido numa grande embrulhada —
ouviu-se uma voz familiar vinda da porta da estalagem.
Todos se viraram e viram o contorno volumoso na entrada quando ele
entrou.
— Amos! — exclamou Martin. — Chegastes mais cedo do que eu
pensei.
— Desfraldei todas as velas que pude e obriguei os meus homens a
trabalharem até à exaustão — explicou Trask enquanto atravessava o salão
comum, despindo uma capa impermeável. Atirou-a para o chão e sentou-se
ao lado de Martin.
— O que é que aconteceu em Barran? — perguntou o Duque.
Amos retirou o gorro de lã, enfiou-o no bolso e bebeu uma caneca de chá
quente que lhe fora oferecida por Harry. Onde Harry encontrara o chá,
ninguém o sabia, mas no fresco da noitinha toda a gente apreciou aquele
bem-estar pungente. — Fomos atacados há sete noites, o que significa a
noite anterior a terdes aqui chegado, segundo me parece. — Martin
assentiu. — Desde a minha contenda com os tsurani durante a guerra,
mantive vigilância redobrada durante a noite quando lanço âncora. É uma
boa ideia, porque a maioria das sentinelas morreu antes de soar o alarme.
Contudo, um dos meus homens acordou-nos a tempo e matámos todos os
malditos que tentaram deitar fogo ao meu barco. — Suspirou. — Já a
guarnição não teve tanta sorte. Tínhamos acabado de descarregar a maior
parte das armas e das provisões; mais um dia e teríamos terminado. O vosso
Tenente da Corte, Edwin, parou o seu trabalho na paliçada para ajudar a
descarregar o barco, pelo que o portão não estava encerrado. Os salteadores
estavam no interior a matar homens nas casernas antes de o alarme soar.
Ainda assim, atacámos os malditos antes de deitarem fogo ao forte.
— O forte ardeu? — perguntou Marcus.
— Até à base — confirmou Amos.
— E a guarnição? — quis saber Martin.
— Não tive escolha. Trouxe-os comigo.
Martin assentiu com a cabeça. — Quantos sobreviveram?
Amos suspirou. — Pouco menos de uma centena, lamento dizer. O
Edwin está a desembarcá-los agora. Quando ele aqui chegar, faz-vos um
relatório completo.
»Conseguimos resgatar alguns bens de entre os destroços, e ainda havia o
pouco que não chegou a ser desembarcado, mas a maior parte das armas e
das provisões foram destruídas. Não havia fortaleza e com o inverno a
chegar, pareceu-nos mais prudente abandonar a ideia até à próxima
primavera. — Amos passou a mão pelo rosto. — De qualquer modo, e
tendo em conta o aspeto de Crydee, ides precisar de todas as mãos capazes
que conseguirdes encontrar.
— É verdade — concordou Martin. Informou Amos sobre o que sabiam
do ataque e enquanto o punha a par dos factos, a expressão deste tornou-se
sombria.
Quando chegaram à altura da descrição dos barcos dos salteadores, feita
por um dos pescadores, Amos disse:
— Isso não faz sentido!
— Não sois o primeiro a afirmá-lo, Amos — salientou Marcus.
— Não, não me refiro apenas ao ataque — esclareceu Amos. — Seja
como for, continuai.
Martin prosseguiu o seu relato do ataque, composto com informações
recolhidas junto de testemunhas desde o regresso do Duque. Levou mais
meia hora para concluir a narração.
Amos levantou-se e tentou dar uma volta pela apinhada estalagem, com a
mão a cofiar a barba do queixo enquanto refletia. — Pelo que me haveis
dito — disse por fim —, terá estado envolvido perto de um milhar de
homens só nesta parte do corso.
— Corso? — interrogou Harry.
— Trabalho, projeto, iniciativa — acrescentou Nakor com um sorriso
irónico. — Linguagem de criminoso.
— Oh — disse o Escudeiro.
— E então? — inquiriu Marcus.
Amos voltou-se para ele. — Isso significaria pelo menos seis, mas
provavelmente oito, capitães de Durbin a trabalharem juntos. Já não sucedia
nada assim desde que me vim embora.
— Deveras? — disse Martin secamente. O passado longínquo de Amos
era-lhe conhecido; ele fora em tempos o mais temido salteador do Mar
Amaro, o Capitão Trenchard, A Adaga dos Mares. Com o passar dos anos,
a história pessoal de Amos mudou, tal como ele disse, pelo que agora tinha
orgulho em dizer que era um corsário, a trabalhar para o Governador de
Durbin.
— Sim, a sério! — exclamou Amos. — Os Capitães da Costa são um
grupo turbulento e não cooperam em quase nada. A única razão por que
lhes permitem permanecer na cidade é por manterem os quegan ao largo, e
isso é bom para Kesh, pois o Império não quer pagar para ter ali uma
armada. — Depois, dirigiu-se a Martin. — E como Almirante do vosso
irmão, sinto-me muito mais confortável com uma dúzia de capitães piratas
conflituosos que possa atormentar pessoalmente do que face a uma
esquadra imperial de Kesh. A política, meu querido Martin, pode tornar
respeitável praticamente qualquer outra coisa.
— Então eles puseram de lado as suas habituais divergências e uniram-se
para um assalto? — perguntou Ghuda.
Amos abanou a cabeça. — Não exatamente. Um ataque a Carse e a
Crydee? Assim como à nova guarnição lá em cima em Barran? Aposto que
também não sobra um barco de águas profundas em Tulan. — Pousou com
força a mão no balcão, ao qual se encostou. — O que eu daria por uma
aguardente — murmurou.
— Bem, estava a guardar isto para o Anthony e o Nakor usarem com os
enfermos — disse Harry, levando a mão à parte debaixo do balcão para de
lá retirar uma pequena garrafa de aguardente keshiana. Encheu um copo e
Amos levantou-o.
Amos fez estalar os lábios. — Por causa disto, tendes direito a um lugar
no Paraíso, rapaz. — Regressou para perto do grupo de Martin, junto ao
qual se ajoelhou. — Olhai, isto não se tratou de um ataque exterior a
Durbin.
— Os esclavagistas… — contestou Marcus.
Amos ergueu a mão. — Não quero saber. É uma pista falsa, filho. Os
esclavagistas iriam a uma aldeia e atacá-la-iam, raptando crianças saudáveis
e homens e mulheres em boa forma física. Eles não andam por aí a
incendiar tudo o que veem. Não querem criar guerras e não raptam as
sobrinhas dos reis. Isso costuma trazer-lhes demasiados problemas. —
Esfregou o queixo. — Se eu soubesse quem esteve envolvido, qual dos
capitães…
— Um dos soldados disse que o chefe era um homem alto de pele clara
com a cara coberta de tatuagens.
— Com os dentes afiados e olhos azuis? — perguntou Amos.
Nicholas assentiu com a cabeça.
Amos arregalou os olhos e sussurrou: — Render. Pensei que estivesse
morto.
Martin inclinou-se para a frente. — Quem é esse Render?
Amos falou calmamente, com um tom de espanto na voz. — Um sórdido
filho do demónio. Perdeu-se nos arquipélagos ocidentais quando era
marinheiro. Ele e o resto da sua tripulação foram capturados pelos Ilhéus de
Skashakan. O Render conseguiu conquistar a confiança deles e adotaram-no
na sua tribo. Foi o único sobrevivente da sua tripulação. Foi coberto da
cabeça aos pés por tatuagens do clã e os dentes foram afiados no ritual que
fez dele membro do clã. Para ser iniciado, teve de comer um dos seus
camaradas de bordo. Os Ilhéus de Skashakan são canibais.
Amos sentou-se. — Conheci-o no Porto de Margrave. Era primeiro
imediato no barco do Capitão Misericórdia.
— Misericórdia? — questionou Martin, rindo-se sem querer acreditar.
— A maior parte dos Capitães da Costa são conhecidos por nomes falsos
— explicou Amos. — Eu era Trenchard, e o Trevor Hull era o Olho-
Branco; o Gilbert de Gracie era o Capitão Misericórdia; ele em tempos fora
iniciado no Templo de Dala, a Misericordiosa. Obviamente que não sentiu o
apelo, mas o nome ficou. — Amos virou costas, fazendo um olhar
carregado.
— O que se passa, Amos? — perguntou Martin.
— O Render estava a par do tráfico de escravos, pois era um dos
passatempos do Piedade, mas nunca foi capitão de Durbin, Martin. Nem
sequer era capitão quando o conheci; da última vez que ouvi falar dele,
integrava a tripulação do John Avery, e o Avery traiu Durbin em favor de
uma armada de Queg. O Render é um homem morto se voltar a pôr um pé
em Durbin.
— Desculpai, Almirante, mas dissestes de Queg? — perguntou um dos
soldados que estava ali perto.
Martin virou-se para o soldado. — O que foi?
— Meu senhor, só agora me lembrei, mas houve outro homem que me
pareceu conhecido, embora no meio de todo aquele caos mal o tenha visto.
Recordais-vos daquele comerciante de Queg que apareceu umas poucas
noites antes de partirdes para caçar? Estava com uns salteadores.
— Vasarius — disse Nicholas. — Não gostei do modo como ele olhou
para a Abigail e para a Margaret.
— E fez um monte de perguntas ao Mestre de Armas e ao Estribeiro-Mor
sobre o castelo e como estávamos em termos de guarnições — referiu o
soldado.
— De modo amistoso, mas provavelmente estaria a avaliar as defesas.
— Isto está a tornar-se cada vez mais complicado — comentou Amos. —
Os salteadores de Durbin não se envolvem neste tipo de corso. É uma
declaração de guerra. A reputação deles assenta em parte em apanharem as
suas presas com cautela, e em evitarem aqueles que têm capacidade para
retaliar. O único motivo para um ataque desta dimensão era impedir que
alguém os seguisse, pois é obvio que se trata da única coisa que temem.
Martin pareceu baralhado. — O que quereis dizer?
— As vossas gentes relataram a presença de esclavagistas de Durbin
entre os grupos de atacantes. E se não fossem reais? E se os atacantes
quisessem que achásseis que eles iam para Durbin? Saberiam por certo que
teríeis meios para enviar mensagens mais depressa do que eles
conseguiriam regressar para o Mar Amaro. Poderíeis enviar cavaleiros pelas
montanhas e para as Cidades Livres e dispor de um barco rápido para vos
levar a Krondor e preparar a armada para uma emboscada na costa de
Durbin no momento em que eles a conseguissem descer e atravessar os
Estreitos das Trevas nesta época do ano. Não, eles não se dirigem a Durbin,
e não querem que os sigamos.
— E como é que os poderíamos seguir? — quis saber Nicholas. — Ou
seja, não há rasto no mar.
Amos sorriu mostrando os dentes. — Porque sei onde é que eles vão
primeiro, Nicky.
Martin levantou-se de imediato. — Para onde é que eles levam a minha
filha, Amos?
— Para Porto Livre. O Render é um homem das Ilhas do Ocaso – pelo
menos, foi o que me disseram – e pelo que me contastes sobre os barcos
que eles usaram, é o mais longe que conseguem chegar.
— Não percebo — confessou Marcus. — O que é que têm os barcos?
Amos falou para Martin. — Lembrais-vos de quando vos disse que não
fazia sentido?
Martin assentiu com a cabeça. — Estava a referir-me aos barcos. Eram
pinaças. São pequenas, estreitas, com um único mastro, que pode ser
baixado. Nenhum grande barco poderia ter-se aproximado de Crydee para
desembarcar uma tal força sem ser avistado pelas vossas sentinelas na Ponta
Longa e mais abaixo na Mágoa dos Marinheiros. Pelo que dissestes,
desembarcou aqui cerca de um milhar de homens, e tivemos mais duas
centenas a morder-nos os calcanhares lá em cima, em Barran. O único lugar
de onde esse tipo de barcos poderia vir sem que a escumalha que os
tripulava morresse à fome durante a viagem era das Ilhas do Ocaso.
— Mas já há anos que os piratas das Ilhas do Ocaso andavam sossegados
— salientou Marcus.
Amos assentiu com a cabeça. — Alguém os espicaçou. Essa é a outra
coisa que me incomoda.
— O quê? — indagou Martin.
— Se todos os corações sombrios que viveram nas Ilhas do Ocaso desde
que eu era miúdo desembarcassem, e trouxessem as suas avozinhas e os
gatos das avozinhas, ainda assim não conseguiriam formar uma força de
mais de quinhentos elementos. Estamos a falar de mais do dobro disso,
incluindo alguns assassinos tsurani treinados e talvez alguns genuínos
esclavagistas de Durbin e um renegado quegan.
Martin assentiu. — Então, de onde vieram todos esses salteadores, e
quem os enviou?
— Poderá ser esse tal Render a estar por detrás de tudo? — perguntou
Nicholas.
Amos abanou a cabeça. — Não, a não ser que tivesse mudado mais do
que mudara nos trinta anos anteriores. Não, este corso foi montado por
alguém com ideias mais vastas do que as do Render. E também custou
dinheiro. Fazer passar esses assassinos tsurani pela brecha desde
Kelewan… alguém foi subornado, provavelmente gente de ambos os lados.
E os esclavagistas de Durbin exigem garantias. Nem vendendo todas as
raparigas bonitas e rapazes no mercado ao máximo preço lograriam pagar
os custos de participar nesta aventura.
— Temos de partir — disse Martin.
Amos concordou. — Vai levar uns dias a preparar o barco.
— Onde é que vamos? — perguntou Nicholas.
— Às Ilhas do Ocaso — esclareceu Amos. — É onde vamos reencontrar
o rasto deles, Nicholas.

M ais tarde nessa noite, Martin pediu a Harry e a Nicholas que o


acompanhassem ao exterior com Marcus e Amos. Quando se
colocaram a uma distância suficiente para que ninguém os escutasse, Martin
disse:
— Nicholas, decidi que vós e o Harry ficarão aqui em Crydee. O Tenente
da Corte, Edwin, vai precisar de ajuda e quando chegar aqui um barco de
Tulan ou Krondor, podereis regressar à corte do vosso pai.
Martin virou costas como se fosse o fim da conversa, mas Nicholas disse:
— Não.
— Não estava a pedir a vossa concordância, Escudeiro — ripostou
Martin.
Nicholas permaneceu uns instantes em silêncio, prendendo o olhar do tio,
e depois inspirou profundamente. — Alteza, ou Príncipe Nicholas, Lorde
Martin.
Marcus resfolegou. — Ides onde o meu pai vos mandar… — disse.
Nicholas não gritou, mas o seu tom foi frio e cortante. — Vou onde bem
me apetecer, Senhor Marcus — afiançou.
Marcus avançou um passo, como se fosse bater em Nicholas, mas Amos
interrompeu-os. — Parai com isso! — Marcus deteve-se. — Em que é que
estais a pensar, Nicky? — quis saber Amos.
Nicholas olhou de rosto em rosto e depois prendeu o olhar em Martin. —
Tio, fizestes um juramento, assim como eu — começou. — Quando me foi
outorgado o meu cargo no meu décimo quarto aniversário, jurei proteger e
defender o Reino. Como é que poderei reclamar ter mantido tal promessa se
agora fugir para casa?
Martin não abriu a boca, mas Amos sim. — Nicholas, o vosso pai
mandou-vos aqui para aprenderdes algo sobre as diferenças entre a fronteira
e a corte real, não para irdes perseguir esclavagistas através dos mares.
— O meu pai enviou-me aqui para eu aprender a ser um Príncipe do
Reino, Almirante — destacou Nicholas. — Sou tanto um Príncipe de
Sangue Real quanto o Borric e o Erland, e tenho tanto quanto eles a
obrigação de zelar pela segurança e bem-estar dos nossos súbditos. Com a
minha idade, o Borric e o Erland já andavam há um ano a combater na
fronteira com o Lorde Castelo Altaneiro. — Fitou Martin e prosseguiu: —
Não vos estava a pedir permissão para vos acompanhar, meu lorde Duque.
Estava a dar-vos uma ordem.
Marcus abriu a boca de espanto e estava prestes a dizer algo, mas Martin
pousou-lhe a mão no ombro de modo a detê-lo. — Estais certo disso,
Nicholas? — perguntou calmamente.
Nicholas olhou para Harry. Aquele rapaz de Ludland que em tempos fora
seu amigo de brincadeira estava imundo devido a dias de trabalho na vila
coberta de fuligem e tinha olheiras devido ao cansaço. Assentiu uma vez
com a cabeça.
— Não tenho dúvidas, tio — respondeu Nicholas.
Martin agarrou Marcus pelo ombro. — Temos de respeitar o nosso
juramento… — disse, antes de acrescentar: — Vossa Alteza.
Marcus estreitou os olhos, mas não abriu a boca quando se virou para
seguir o pai. Amos aguardou que desaparecessem, antes de atirar:
— Pensei que vos tinha criado para serdes mais esperto do que isto,
Nicky.
— A Margaret e a Abigail estão algures por aí, Amos, e se houver forma
de as encontrar, é o que farei — explicou Nicholas.
Amos abanou a cabeça. Olhando em redor para a vila destruída ao luar,
suspirou resignado. — Adoro-vos como se fôsseis meu neto, Nicky, mas, se
me dessem a escolher, preferiria beneficiar de um pouco de magia nesta
viagem do que ver um Príncipe imberbe a dar ordens.
— O Pug! — exclamou Nicholas.
— O que é que tem? — perguntou Amos.
Procurando algo dentro da túnica, o rapaz disse:
— Deu-me isto para a eventualidade de precisarmos.
— Bem, não posso imaginar que haja mais necessidade do que agora —
comentou Amos.
Nicholas agarrou o talismã na mão direita e proferiu três vezes o nome de
Pug. O pequeno amuleto de metal aqueceu na mão de Nicholas, mas foi o
único sinal de que estivesse a ser empregue magia.
Pouco depois, Nakor saiu da estalagem. — O que é que estais a fazer? —
perguntou.
— Sentistes isto? — questionou Harry.
— Senti o quê?
— A magia.
— Bah. A magia não existe — disse, acenando em negação. — Vi o
Martin e o Marcus a entrarem na estalagem e não me pareceram lá muito
satisfeitos.
— O termo militar correto é «puxar dos galões» — explicou Amos. — O
nosso jovem Príncipe decidiu acompanhar-nos, sem querer saber do que diz
o tio.
— E é suposto fazê-lo — disse Nakor.
— O quê? — perguntou Harry.
O isalani encolheu os ombros. — Não sei porquê, mas, sem o Nicholas, o
que quer que seja que nos aguarda lá fora irá vencer.
— Ele é o filho do Senhor do Ocidente — proferiu uma voz vinda de
trás.
Todos se voltaram a tempo de ver Pug a sair das sombras. Estava vestido
com uma capa castanha-escura com capuz, que puxou para trás para revelar
um rosto com uma expressão apreensiva. — Ia perguntar porque me
convocastes — olhou em redor para o cenário reduzido a cinzas —, mas
acho que é óbvio.

P ug e Martin conversaram demoradamente, fora do alcance do ouvido


dos outros. Amos voltou a chamar Martin ao exterior da estalagem a
pedido de Pug. Agora, ele e os que tinham testemunhado a chegada de Pug
esperaram para ver o que aconteceria a seguir.
— Achais que ele pode desejar que elas regressem cá? — perguntou
Harry.
— É um homem muito poderoso. Mas não me parece que desejos tenham
muito a ver com isso. Veremos — respondeu Nakor.
Pug e Martin regressaram para junto dos outros. — Vou tentar localizar a
Margaret e a amiga — anunciou Pug. Olhou em volta. — Preciso de algum
espaço à minha volta. Por favor, ficai aqui.
Afastou-se da estalagem em direção a um grande espaço aberto em frente
ao qual estava prevista a construção de um novo mercado. Agora, não
passava de um pedaço de terreno coberto de ervas, com uma grande rocha
saliente ao centro. Pug subiu para a rocha e levou as mãos à cabeça.
Nicholas foi atingido por uma vaga impressão, como um sussurro
longínquo, e olhou para Harry, que acenou com a cabeça para indicar que
sentira o mesmo. Após um longo minuto, Anthony saiu da estalagem e
juntou-se aos outros. — É o Pug? — perguntou o jovem mago em voz
baixa.
Nakor assentiu com a cabeça. — Está à procura das raparigas. É um
truque muito bom, se o conseguir concretizar.
A sensação de vibração incrementou-se, até que Nicholas sentiu como se
tivesse algo a rastejar dentro da pele. Resistiu à tentação de se coçar.
— O que é aquilo? — perguntou Anthony.
Nicholas espreitou para o local indicado pelo mago e viu uma ténue luz
vermelha ao longe, cerca de um palmo acima da cabeça de Pug. Parecia
estar a tornar-se cada vez mais brilhante.
— Baixai-vos! — gritou Nakor pouco depois.
Vendo Anthony a hesitar, Nakor puxou-o pela manga, forçando-o a
baixar-se, e depois puxou igualmente o braço de Nicholas. — Para o chão!
Tapai os olhos! Não olhai! Já!
Fizeram o que ele pediu, mas Nicholas olhou para cima para ver a luz
vermelha aproximar-se a grande velocidade.
Nicholas sentiu a mão de Nakor sobre a sua cabeça, obrigando o seu
rosto a voltar-se para o chão. — Não olheis! Tapai a cara!
De repente, na escuridão, Nicholas sentiu calor. Uma sensação
abrasadora atingiu-lhe a cabeça e os ombros, como se em frente a eles
estivesse uma fornalha ou um forno abertos de súbito. O impacto do calor
roubou-lhe o ar dos pulmões. Quase abriu os olhos, só que Nakor
continuava a repetir o seu aviso.
E então a onda de calor desapareceu. — Olhai! — gritou Nakor.
Pug permanecia petrificado, cercado por uma auréola crepitante de forças
rubras, com centelhas de luz que pareciam explodir ao longo da superfície
enquanto pequenos flocos prateados dançavam no interior. Nakor já se
levantara e corria na direção dele.
Os outros estavam apenas uns passos atrás. Quando Nakor ficou a um
braço de distância de Pug, deteve-se e estendeu os braços para avisar os
outros para não se aproximarem demasiado.
Pug estava imobilizado dentro do campo de forças vermelhas, uma
estátua de braços erguidos. Nakor circundou por completo o estranho
invólucro de luz vermelha e abanou a cabeça.
— O que é aquilo? — perguntou Amos.
— Magia muito poderosa, Almirante — esclareceu Anthony.
Nakor fez um gesto de desdém com a mão. — Ah! A magia não existe.
Trata-se de um aviso bem claro: não vos aproximeis! — Assentiu com a
cabeça. — E mais — acrescentou.
— O que mais? — quis saber Martin.
— Tendes mais problemas do que pensávamos! — Começou a caminhar
de regresso à estalagem.
— Ides deixá-lo ali? — perguntou Harry.
— O que pretendeis que faça? — disse Nakor. — Não há nada que possa
fazer pelo Pug que ele não esteja já a fazer por si próprio. Ele vai ficar bem.
Vai só precisar de um tempo para se livrar da armadilha.
— Não deveríamos esperar? — perguntou Nicholas.
— Podeis esperar, se assim o desejais — respondeu Nakor —, mas eu
tenho frio e quero comer qualquer coisa. Tenho a certeza que o Pug entra
quando terminar.
— Terminar o quê? — perguntou Amos, enquanto o seguia.
— O que quer que seja que está ali a fazer. De certeza que não lhe
tomaria muito tempo libertar-se, se fosse apenas isso que pretendesse. —
Com isso, o homenzinho deitou a mão à porta da estalagem e abriu-a. Os
outros seguiram-no logo atrás, exceto Anthony, que optou por esperar ali
perto e observar.

P ug avançou por entre as sombras. Encaminhara os seus sentidos mais


para sudoeste, em direção às ilhas que Amos alegara serem o local
mais provável para onde tivessem levado Margaret e as suas amigas, para
serem mantidas cativas. Detetou facilmente as ilhas, pois havia uma grande
cidade, e as energias das pessoas eram como uma grande fogueira numa
praia deserta.
E então soou um alarme. Teve a perceção de que estava a ser atacado.
Erigiu as suas defesas mentais quando as forças rubras lançaram o ataque.
As defesas estavam mais do que à altura da tarefa. Pug não resistiu ao
ataque, além de se proteger a si próprio. Poderia ter destruído a magia que o
aprisionava, mas para o fazer teria inevitavelmente avisado o lançador do
feitiço de que estava livre. Optou antes por investigar.
Como acontece com todas estas transmissões, ficava um rasto de magia
desde a origem até ao alvo. Pug examinou-o, avaliou a direção de onde
viera e como fora erigido, e depois criou a sua sombra.
Não era bem uma sombra, mas era como Pug a via, como concebeu a
entidade. A sombra era uma construção mágica, uma criatura não-real que
existira apenas como uma ligação para a consciência de Pug. Suspeitou que
a sua intuição o levara a pensar numa sombra, pois assim ocultaria esta
criatura nesses locais sombrios e informes ao longo do rasto da magia, onde
o lançador do feitiço hostil seria incapaz de detetar tal ser.
Assim que formou a sombra, enviou-a para seguir sorrateiramente o rasto
de magia, ocultando-se em não-lugares, misturando-se em vazios sombrios
ao longo do caminho. A busca levaria tempo, mas ele teria mais
probabilidades de descobrir a fonte e identidade do seu ataque.
Pug iniciou a sua busca.

J á era quase de madrugada quando Pug apareceu livre da luz. Anthony


estava a dormitar ali perto, com uma capa bem apertada em volta dos
ombros e sobre a cabeça. Não demorou a despertar por completo ao ver Pug
a afastar-se cambaleante da luz. O casulo permaneceu no seu lugar, com as
centelhas brancas a cintilar ao longo do vermelho; no interior, permaneceu
uma sombra parecida com Pug na posição em que ele ali estivera uns
momentos antes.
Anthony levantou-se e agarrou Pug pelo braço. — Sentis-vos bem?
— Apenas cansado — respondeu, fechando momentaneamente os olhos.
Inspirou profundamente e abriu os olhos. — Os outros? — perguntou,
inspecionando as forças vermelhas que se mantinham na forma de um
obelisco rubi.
— Lá dentro — respondeu Anthony.
Pug assentiu com a cabeça, tocando com um dedo na luz vermelha
enquanto observava a sombra com a sua própria forma. — Para já, isto
basta — disse. Voltou-se e começou a caminhar na direção da estalagem.
Assim que Anthony o seguiu, Pug perguntou-lhe:
— Conheço-vos?
Anthony apresentou-se.
— Então, sois aquele destinado a substituir-me? — disse Pug.
Anthony corou. — Ninguém vos pode substituir, mestre.
— Chamai-me Pug — disse. — Se houver tempo, lembrai-me para vos
contar a nulidade miserável que eu era quando vivia aqui em Crydee. —
Anthony conseguiu apenas esboçar um sorriso débil, com uma expressão
que revelava que não acreditava em tal coisa. — Falo a sério — insistiu
Pug. — De início, era um mago horrível.
Pug abriu a porta e Martin acordou instantaneamente. Marcus e os outros
despertaram de imediato com um safanão ou umas palavras. Harry
levantou-se a espreguiçar-se e a bocejar. — Acho que ainda tenho café —
anunciou. — Vou verificar. — Avançou, ainda meio a dormir, na direção do
bar.
Pug agachou-se junto de Martin. — Acho que a suspeição do Amos está
correta — disse. — O ataque foi para dissimular algo.
— O que era aquela luz vermelha lá fora? — perguntou Martin.
— Uma armadilha muito boa.
Nakor assentiu com a cabeça. — Um aviso, certo?
— Sim, isso também — disse Pug.
— E a Margaret e as outras? — quis saber Martin.
— Estão onde o Amos suspeitava — indicou Pug. — Não sei dizer
exatamente onde, pois fui atacado assim que as localizei. Só sei dizer que é
uma divisão grande e escura. Talvez um armazém. Senti a disposição delas.
Estão todas terrivelmente assustadas e notei um grande desespero. — E
depois Pug sorriu. — Embora a vossa filha também esteja terrivelmente
enfurecida.
Martin não conseguiu esconder o seu alívio. — Temi…
Pug assentiu com a cabeça. — Pelo menos na noite passada estava bem.
— Quem é que vos tentou encurralar? — perguntou Nakor.
— Desconheço. — Pug meditou por uns momentos. — O ataque não
veio de onde estão as raparigas. Veio de outro lugar bem mais distante e foi
concebido por alguém de grande talento e poder. Foi enviado em resposta à
minha busca pelos prisioneiros.
Nakor suspirou. — Portanto, quem quer que o tenha lançado está a
avisar-vos para vos meterdes na vossa vida.
Pug assentiu com a cabeça. — A minha sombra ali idealizada vai
colapsar em breve. Planeio estar bem longe daqui quando isso acontecer,
para que quando ataquem de novo, eu não faça incidir a ira deles sobre
qualquer outra pessoa. Eu posso defender-me, mas não sei quantos de vós
posso proteger se alargarem ou intensificarem as investidas deles.
Nakor mordeu os lábios. — Então, teremos de prosseguir sem vós.
Martin estreitou os olhos. — Não estou a perceber.
— O aviso — disse Nakor. — O Pug está a ser comedido, não quer
preocupar-vos mais. — Voltou-se para o mago de barbas. — É melhor
explicar-lhe — aconselhou.
— Explicar-me o quê? — quis saber Martin.
Pug abanou a cabeça quando Harry se aproximou com um tabuleiro cheio
de canecas com café quente. Distribuiu-as e, depois de um trago, Pug falou:
— Não sei como é que aqui o nosso excêntrico amigo o possa saber, mas
houve um aviso juntamente com este ataque: se eu tentar seguir os
prisioneiros, se recorrer à magia para ajudar à fuga deles, se algo indiciar
uma perseguição por parte do Reino, as raparigas e os rapazes serão mortos,
um de cada vez até que aqueles que os seguem desistam. Não são apenas
prisioneiros, são também reféns.
Amos encheu as bochechas de ar ao exalar lentamente. — O que
significa que se eles virem uma vela no horizonte e uma bandeira do Reino,
vão começar a cortar gargantas.
— Exatamente — anuiu Pug.
— Como é que percebestes? — perguntou Harry a Nakor.
O isalani encolheu os ombros. — Não percebi. Parti desse princípio. Era
lógico que eles soubessem que o Pug era familiar do Duque e pudesse ir em
socorro da sua filha. Ameaçar matar os prisioneiros é algo lógico.
— Mas quem foi que lançou o feitiço? — perguntou Anthony.
— Foi um desconhecido — esclareceu Pug. — Nunca vi nenhum da sua
espécie. — Fitou Martin. — Se há algo que prova que o Amos está certo
quanto a isto não ser um mero ataque para arranjar escravos, é este feitiço
— acrescentou.
Nakor assentiu e o seu semblante, habitualmente risonho, tornou-se
sorumbático. — Estes esclavagistas têm aliados muito poderosos, Lorde
Martin.
O silêncio impôs-se na sala.
E então o rosto de Amos iluminou-se lentamente quando um genuíno
sorriso se manifestou por entre o cinzento e o negro da sua barba. — Já sei
— disse, com nítido regozijo.
— O quê? — perguntou Martin.
— Já sei como é que poderemos navegar para Porto Livre sem que façam
mal aos prisioneiros.
— Como? — quis saber Pug.
Amos explicou-se, a sorrir como um miúdo que acabou de descobrir um
brinquedo novo. — Cavalheiros, a partir de hoje sois todos corsários.

O s trabalhadores pareciam formigas a movimentarem-se furiosamente


no Águia Real. Seguindo as instruções de Amos, faziam tudo o que
ele podia imaginar para alterar a aparência do barco. Amos temeu que os
sobreviventes do ataque ao navio em Barran se pudessem recordar dele, e,
se fosse reconhecido antes de alcançarem a segurança de Porto Livre, a
missão redundaria em fracasso.
Um par de aprendizes de carpinteiros estavam a modificar a figura de
proa, transformando a águia num falcão. Amos gritara-lhes durante horas
até eles estarem prestes a desistir, mas por fim achou que o pássaro estava
suficientemente diferente. Ordenou a seguir que a figura de proa branca e
dourada fosse pintada de um preto sinistro, com olhos vermelhos. O nome
Águia Real foi raspado da proa e popa e um pintor estava a tentar eliminar
todos os sinais da raspagem.
Foram recolocadas vergas onde quer que fosse possível, e os mastros
foram mudados. Foi acrescentada uma amurada falsa a meio da
embarcação; não passaria numa inspeção de perto, mas Amos não estava a
planear ter visitas a bordo. Das docas, parecia integrar a estrutura original,
assim como um par de plataformas de balistas que antes estavam na proa e
que tinham sido deslocadas de cada um dos lados do navio. Foram retiradas
dos mastros as plataformas dos arqueiros, pois só os barcos do Reino as
usavam. No seu lugar foram penduradas entre os mastros cordas e eslingas
das velas – onde podiam sentar-se homens armados com bestas para
dispararem sobre as tripulações inimigas. O gurupés foi içado e enformado,
para que um homem pudesse sentar-se na proa debaixo dele.
Um outro grupo de trabalhadores esforçava-se a «sujá-lo de cima a
baixo», como indicou Amos. Relutantes em ver a beleza e a disciplina da
Armada Real posta de parte, muitos marinheiros tiveram de ser obrigados à
força a raspar a tinta, permitindo ao ar marítimo enferrujar o metal, e dando
ao navio o aspeto geral de que só tinha sido feito o menor esforço possível
para que estivesse em condições de navegar. Amos não duvidou de que a
uma distância razoável o barco parecia muito diferente do que parecera
antes da remodelação.
Martin, Pug e Nicholas pararam no molhe, o único lugar de onde podiam
observar sem interferir. Ainda havia uma grande quantidade de destroços e
lixo ao longo do cais, em resultado dos danos provocados pelos atacantes.
Amos acenou quando se aproximaram.
— Como é que está a correr? — perguntou Martin.
— Está a começar a parecer uma galdéria em vez da verdadeira donzela
que é — disse Amos. Virou-se e inspecionou o trabalho, esfregando o
queixo enquanto observava a embarcação. — Poderia disfarçá-la por
completo se dispusesse de mais uma semana, mas tendo em conta que esses
salteadores que a viram o fizeram durante a noite… isto deve servir.
— Espero bem que sim — disse Martin.
— Quando é que partimos? — perguntou Nicholas.
Amos abanou a cabeça. — Sei que decidistes vir connosco, Nicky, mas
gostaria que reconsiderásseis.
— Porquê? — desafiou-o.
Amos suspirou. — Sabeis que vos adoro como se fôsseis meu neto, mas
deveis pensar como um Príncipe e não como uma criança perdida de amor.
— Ergueu a mão antes que Nicholas pudesse ripostar. — Poupai-me. Eu vi
o modo como olhastes para a Lady Abigail na noite em que lá chegastes.
Numa situação normal, desejar-vos-ia boa sorte e dir-vos-ia que levásseis a
rapariga para a cama assim que fosse possível, mas isto é uma parada muito
alta, Nicky. — Pousou a mão sobre o ombro do rapaz. — Já vos vistes ao
espelho ultimamente?
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Porque sois a cara do vosso pai. Ele não é propriamente um tipo
desconhecido, sabeis? Já é Príncipe em Krondor há quase trinta anos e mais
do que um desses degoladores que por aí andam já lhe pôs a vista em cima.
Nicholas franziu o sobrolho. — Posso mudar a minha aparência. Deixo
crescer a barba…
— Olhai para baixo, Nicky — pediu suavemente Amos, com algum
pesar.
Nicholas olhou para baixo e, de repente, apercebeu-se do que Amos
queria dizer. A bota deformada, com o pé que compensava, era um sinal
óbvio da sua identidade. Amos praticamente sussurrou quando voltou a
dirigir-se a ele. — Esse pé é quase tão famoso quanto o vosso pai, Nicholas.
Não é segredo que o filho mais novo de Arutha é igualzinho ao pai, a não
ser pelo seu pé esquerdo disforme.
Nicholas sentiu as orelhas e as faces a arder. — Eu posso… — ia dizer.
Martin pousou a mão sobre o outro ombro de Nicholas. — Não é algo
que possais ocultar, Nicholas.
O rapaz afastou-se deles. Primeiro, olhou para Amos, e depois para
Martin, e por fim para Pug. Algo na expressão do mago prendeu a atenção
de Nicholas. — O que foi? — perguntou.
Pug olhou de rosto em rosto, e depois fitou Nicholas nos olhos. — Eu
posso ajudar — disse com firmeza.
Deu-se uma pausa significativa, até que Nicholas voltou a falar. — E
então?
— Posso ajudar — disse Pug —, mas só se tiverdes mais coragem do que
aquela que me parece que tereis.
Nicholas sentiu-se indignado. — Dizei-me o que preciso de fazer! —
exigiu.
— Precisamos de privacidade — anunciou Pug. Pousou a mão no ombro
de Nicholas, levando-o para longe dos outros. Entretanto, dirigiu a palavra a
Martin. — Vou levá-lo para o castelo. Vou necessitar de ajuda. Podeis pedir
ao Nakor e ao Anthony que se juntem a nós? — Martin assentiu e Pug
levou Nicholas dali com mão firme.
O Príncipe seguiu o mago em silêncio, até que chegaram muito perto do
castelo carbonizado. Nicholas teve uma oportunidade para ponderar sobre
as suas exigências impetuosas e no facto de o seu pé disforme ter sido
frequentemente um gatilho para alterações de humor pouco razoáveis.
— Esperemos pelos outros — disse Pug, quando chegou ao portão e se
voltou.
Nicholas manteve-se em silêncio por uns momentos e depois expirou
prolongadamente enquanto a sua raiva se desvanecia.
— Como é que vos sentis? — perguntou Pug, após mais um minuto de
silêncio.
— Quereis a verdade? — disse Nicholas.
Pug assentiu. Nicholas olhou para o lado, para o porto longínquo, onde
pouco restava que lembrasse a bela vila que ele vira na sua primeira noite
em Crydee. — Tenho medo.
— De quê? — quis saber Pug.
— De fracassar. De partir e levar a falhar homens melhores do que eu.
De fazer com que as raparigas sejam mortas. De… muitas coisas.
Pug assentiu com a cabeça. — O que é que mais temeis?
Nicholas ponderou demoradamente. — Não ser tão bom quanto seria
suposto ser.
— Então, tendes uma hipótese, Nicholas — disse Pug.
Nada mais foi dito até Anthony e Nakor se aproximarem, depois de
subirem a colina em passadas firmes. Quando chegaram ao portão, foi
Anthony quem falou. — O Duque Martin disse que pedistes a nossa
presença.
Pug fez que sim com a cabeça. — O Nicholas vai experimentar uma
coisa, e vai precisar da nossa ajuda.
Nakor assentiu, mas Anthony disse:
— Não compreendo.
— O Pug vai pôr o meu pé em condições — anunciou Nicholas.
— Não — corrigiu Pug.
— Mas eu pensei… — disse Nicholas.
Pug levantou a mão. — Mais ninguém pode tratar do vosso pé, Nicholas.
— A não ser vós mesmo — acrescentou Nakor.
Pug assentiu com a cabeça. — Tudo o que podemos fazer é ajudar. Se
quereis efetivamente que o façamos.
— Não percebo — reconheceu Nicholas.
— Vinde — disse Pug —, que já vos explicamos.
Entraram pelo átrio calcinado, percorreram o corredor para a torre mais a
norte e depois subiram os degraus de pedra carbonizados. — Este foi em
tempos o meu quarto — anunciou Pug —, e o meu mestre Kulgan vivia por
cima.
— Este é o meu quarto… — referiu Anthony —, ou era, até à semana
passada. Optei por este em vez do de cima por causa daquele estranho
fogão — apontou para um buraco na parede por onde escorrera metal —,
ali. Mantinha o quarto aquecido.
Pug assentiu com a cabeça. — Fui eu que o fiz. — Olhou em redor para o
quarto e por momentos Nicholas, Nakor e Anthony viram-no acometido de
memórias. — Então serve a dobrar — referiu Pug. Fez sinal a Nicholas para
que entrasse. — Sentai-vos junto à janela — disse. — Descalçai as botas.
Nicholas sentou-se no chão enegrecido e tirou as botas. Pug sentou-se à
sua frente, ignorando a fuligem que se agarrou à sua túnica e mãos; Nakor e
Anthony ficaram do outro lado. Pug falou. — Nicholas, deveis
compreender algo sobre a vossa natureza, algo que partilhais com a maior
parte das pessoas.
— O quê?
— A maior parte de nós passa pela vida com poucas hipóteses de
aprender muito sobre si próprio — começou. — Sabemos algumas coisas
de que gostamos e algumas coisas de que não gostamos, temos umas
quantas ideias sobre aquilo que nos faz felizes e morremos ignorando aquilo
que é mais profundo sobre nós mesmos.
Nicholas meneou a cabeça em concordância.
Pug prosseguiu: — As coisas acontecem por alguma razão, como o vosso
pé deformado à nascença, razões que muitas vezes nos são
incompreensíveis. Há imensas teorias, especialmente quando se fala com os
sacerdotes dos diversos templos, mas ninguém tem certezas.
— Talvez o vosso pé seja uma lição para vós nesta vida, Nicholas —
acrescentou Nakor.
Pug concordou. — Muitos acreditam nisso.
— O que posso aprender a partir de um pé deformado? — quis saber
Nicholas.
— Muitas coisas — respondeu Pug. — Limites, ultrapassar adversidades,
humildade, orgulho.
— Ou nada — acrescentou Nakor.
— Sei que o vosso pai tentou curar-vos o pé quando éreis uma criança —
disse Pug. — Recordais-vos disso?
Nicholas abanou a cabeça. — Ligeiramente, mas não muito. Só que doeu.
Pug pousou a mão sobre a de Nicholas. — Assim me pareceu. — Os seus
olhos castanhos estabeleceram contacto com os de Nicholas e a sua voz
tornou-se tranquilizadora. — Deveis saber que sois o único com o poder de
sarar o que está imperfeito dentro de vós. Compreendeis o medo?
Nicholas sentiu os olhos a pesar. — Não sei… Medo? — disse.
— O medo prende-nos, restringe-nos e impede-nos de crescer, Nicholas.
— A voz de Pug tornou-se insistente. — Destrói diariamente uma pequena
parcela nossa. Mantém-nos presos ao que sabemos e impede-nos de ver o
que é possível, e é o nosso pior inimigo. O medo não se anuncia a si
próprio; está disfarçado e é subtil. É escolher o caminho mais seguro; a
maioria de nós acha ter motivos «racionais» para evitar correr riscos. —
Sorriu de modo tranquilizador. — O homem corajoso não é aquele que não
teme, mas aquele que faz o que tem de fazer apesar de ter medo. Para terdes
sucesso, deveis estar disposto a arriscar um fracasso total; tendes de
aprender isso.
Nicholas sorriu. — O meu pai disse-me em tempos algo parecido com
isso. — As suas palavras estavam a tornar-se pouco claras, como se
estivesse embriagado e meio adormecido.
— Nicholas, se tivésseis desejado ser curado em criança, os sacerdotes,
os magos e os curandeiros teriam posto o vosso pé em condições. Mas algo
dentro de vós se agarrou ao vosso medo; algo dentro de vós adora o vosso
medo e impõe-no como uma mãe ou uma amante. Tendes de confrontar
esse medo e bani-lo; deveis abraçá-lo e permitir que ele vos devore. Só
então conhecereis o vosso medo; só então podereis curar-vos. Estais
disposto a tentar?
Nicholas constatou que não conseguia falar, pelo que meneou a cabeça
em concordância enquanto os seus olhos se tornavam demasiado pesados
para os conseguir manter abertos. Deixou que se fechassem.
A alguma distância, Pug disse:
— Dormi. E sonhai.

N icholas flutuou num lugar escuro e acolhedor. Sabia que estava


seguro. E então uma voz acedeu-lhe à mente.
Nicholas?
Sim?
Estais pronto?
Uma sensação de perplexidade. Pronto?
Pronto para conhecer a verdade.
Uma pontada de pânico e de repente o local já não era acolhedor. Após
algum tempo, disse: Sim.
Foi açoitado por uma luz ofuscante e flutuou numa sala. Debaixo dele viu
um rapazinho a soluçar nos braços de uma mulher ruiva, e os lábios dela
mexeram-se. Não conseguia ouvi-la, mas percebeu o que ela disse; já ouvira
aquilo antes. Ela disse que enquanto ali estivesse, nada poderia magoá-lo.
Foi atingido por uma pontada intensa de dor. Ela mentira! Ele magoara-
se inúmeras vezes. A imagem desapareceu e de repente ali estava de novo o
rapaz, desta vez uns anos mais velho, a percorrer atabalhoadamente, para a
frente e para trás, o extenso corredor que dava para o seu quarto.
Apareceram dois pajens e, quando passou por eles, segredaram algo.
Percebeu que estavam a falar dele, a escarnecer da sua deficiência. Foi a
correr para o quarto, com lágrimas a escorrerem-lhe pelas faces. Fechou
violentamente a porta atrás dele e jurou que nunca mais sairia do quarto.
Estava enfurecido, enraivecido e tomado pela dor e chorou sozinho até
aparecer um pajem para o avisar de que o seu pai estava a chegar.
Saltou da cama e lavou a cara na bacia da mesinha de cabeceira. Quando
a porta se abriu outra vez, o rapaz já se recompusera; sabia que o pai não
gostava de o ver a chorar. Arutha fez sinal ao rapaz para que fosse fazer
algo ao grande salão de receções e o rapaz obedeceu. Um assunto de Estado
exigia a sua atenção e esqueceu a promessa de nunca mais abandonar o seu
quarto. Mas tratava-se de uma promessa que fizera centenas de vezes e que
faria umas centenas de vezes mais, pois era um rapaz de apenas seis anos.
A imagem desvaneceu-se e deu por si diante de dois jovens altos, com o
cabelo de cor idêntica ao da sua mãe. Gozaram-no, arreliando-o e fazendo
de conta que não o viam ou chamando-lhe «macaco», e fugiu deles, mais
uma vez assolado por uma dor agonizante.
Surgiram outras imagens: uma irmã demasiado ocupada com a tarefa de
ser uma jovem Princesa para dispor de tempo para um irmão mais pequeno.
Pais cujo tempo era ditado pela política e pelo protocolo e que não podiam
estar sempre presentes para uma criança tímida e assustada. Criados que
eram respeitadores, mas que não sentiam afeto pelo filho mais novo do seu
suserano.
Durante anos muitas imagens ficaram gravadas na mente de Nicholas e
quando regressou ao presente, ouviu a voz de Pug: — Estais pronto para
enfrentar a vossa dor?
Nicholas foi tomado pelo pânico. Murmurou, meio adormecido:
— Pensei… que era o que estava… a fazer.
A voz de Pug era suave e reconfortante. — Não. Estáveis a recordar. A
vossa dor está neste momento convosco. Deveis arrancá-la e enfrentá-la.
Nicholas sentiu uma tremura a percorrer-lhe o corpo. — Devo?
— Sim — respondeu a voz, e ele tombou ainda mais fundo no vazio
sombrio.
Chegou uma voz até ele. Era suave, calorosa e familiar. Tentou abrir os
olhos, mas não conseguiu, e de repente podia ver. Uma jovem com cabelo
dourado dirigiu-se a ele, ao longo de um corredor vagamente definido. O
vestido dela era translúcido, insinuando um corpo maduro e bem
constituído por debaixo da roupa fina. As feições dela tornaram-se
percetíveis quando ela lhe estendeu a mão. Abigail?, disse ele.
Ela riu-se e ele sentiu, mais do que ouviu, o som. Sou quem quer que
desejais que seja. A sensualidade da voz dela provocou-lhe um arrepio no
corpo. E depois sentiu-se a chorar, pois na rapariga havia algo de
aterrorizador e de sedutor.
De repente, a mãe dele apareceu-lhe à frente, mas tal como ele a
conhecera quando era muito pequeno. Braços brancos e macios estenderam-
se para baixo para lhe pegar, e ela aninhou a criança no peito, murmurando-
lhe ao ouvido sons tranquilizadores. Ele sentiu a respiração quente dela no
pescoço e achou-se seguro.
Soou um alerta e ele afastou-se. Não sou uma criança!, gritou, e sob a
sua mão, um seio firme preencheu-lhe a palma. Uns olhos meigos azuis
fixaram os dele e apartaram-se uns lábios vermelhos e macios. Afastou
Abigail e gritou: O que sois?
De repente, deu por si sozinho na escuridão, com um calafrio a percorrer-
lhe o corpo. Não estava prestes a surgir nenhuma resposta, mas sentiu outra
presença nas trevas. Tentou ver, mas não havia nada na escuridão, embora
soubesse que não estava sozinho.
Recorrendo à sua força de vontade, impôs-se e a sua voz soou-lhe nos
próprios ouvidos: O que sois?
A grande distância, escutou a voz de Pug. — É o vosso medo, Nicholas.
É o motivo para o agarrardes. Encarai-o como ele realmente é.
Nicholas sentiu o peito comprimido e assustou-se. — Não — sussurrou.
De repente, estava algo junto de si; aquela presença distante era agora
uma ameaça que ali pairava. Estava para vir algo que poderia magoá-lo;
estava para vir algo que tinha capacidade para lhe despedaçar as defesas e
destruí-lo.
Uma escuridão crescente cercou-o, pressionando e comprimindo-o.
Tentou abrir caminho por um lado, por outro, mas quanto mais se esforçava,
mais a pressão aumentava por todos os lados, restringindo-lhe os
movimentos, até que foi imobilizado.
Uma sensação de asfixia assolou-o e arquejou, mas não sentiu ar a
encher-lhe os pulmões. Foi subjugado por uma sensação de desamparo e
sufocou. Morreu-lhe um grito na garganta e soluçou suavemente quando as
lágrimas lhe escorreram pela face.
Nicholas, chamou a voz calorosa e reconfortante. Mãos macias
estenderam-se até ele e distinguiu as belas feições da sua mãe… não, de
Abigail, a aproximarem-se. Vinde a mim, disse a voz suave.
E então foi Pug quem lhe falou. — O que é na verdade, Nicholas?
As mulheres que estavam à frente dele desapareceram e deu por si
sozinho no quarto na torre. Atrás dele, o dia desaparecera e a noite
impusera-se, fria e indiferente. Estava sozinho.
Pôs-se de pé e deu voltas pelo quarto, mas não encontrou a porta.
Olhando para o exterior pela janela, viu que já lá não havia Crydee. Nem
sequer as cinzas da vila tinham ficado, nem o resto do castelo; apenas
restara aquela torre. Lá em baixo havia uma planície maldita de pedra e
areia, sem vida nem esperança. O mar era negro, com ondas oleosas a
rolarem sem força para rebentarem com indiferença em rochas tão estéreis
que nem sequer lá crescia musgo.
— O que vedes? — ouviu-se a voz distante.
Nicholas debateu-se para falar, até que por fim encontrou a sua voz. —
Fracasso.
— Fracasso?
— Completo e absoluto fracasso. Nada sobrevive.
— Então ide até lá! — ordenou a voz distante de Pug.
Nicholas passou imediatamente para a planície maldita, e o som lúgubre
das ondas sem vida ecoou no ar estagnado. — Aonde devo ir? — perguntou
ao céu morto.
— Aonde desejais ir? — questionou Pug.
De repente, percebeu. Apontando para lá da baía em direção a oriente,
disse:
— Ali. Quero ir para ali!
— O que é que vos impede? — questionou Pug.
Nicholas olhou em volta. — Isto, acho eu — respondeu.
Pug apareceu de pronto ao lado dele. — O que receais, Nicholas?
Nicholas olhou novamente em seu redor. — Isto. O fracasso total.
Pug assentiu. — Falai-me de fracasso.
Nicholas inspirou profundamente. — O meu pai… — começou. Deu por
si a chorar e com a voz embargada. — Ele ama-me, eu sei. — Depois,
deixou que a dor lhe percorresse o corpo, antes de acrescentar algo. — Mas
não me aceita.
— E? — incentivou-o Pug.
— E a minha mãe teme por mim.
— E? — perguntou Pug.
Nicholas olhou para o exterior, para o mar enegrecido. — Ela assusta-me.
— Como?
— Leva-me a pensar que eu não consigo… — Calou-se.
— Não conseguis?
— Não consigo… fazer o que eu tenho de fazer.
— E o que tendes de fazer?
Nicholas chorou copiosamente. — Não sei. — De repente, lembrou-se de
algo que fora dito pelo Mordomo-Mor Samuel, e o seu choro transformou-
se em gargalhadas. — É isso! Preciso de descobrir o que tenho de fazer.
Pug sorriu e de repente saiu um peso de cima dos ombros de Nicholas.
Olhou para Pug. — Tenho de saber o que tenho de fazer — repetiu.
Pug fez sinal ao jovem para que o seguisse. — Porque temeis tanto o
fracasso, Nicholas?
— Porque o meu pai o detesta mais do que a qualquer outra coisa, acho
eu — respondeu.
— Não dispomos de muito tempo — disse Pug. — As coisas andam a
bom ritmo e devo partir em breve. Confiais em mim para vos ensinar algo?
— Penso que sim, Pug — disse Nicholas.
De repente, Nicholas estava de pé numa elevação rochosa, bem acima do
mar. Lá em baixo, as rochas chamavam por ele e as ondas embatiam na face
da escarpa. Foi acometido de vertigens e sentiu os joelhos a cederem. —
Dai um passo em frente — ouviu-se a voz de Pug.
— Apanhais-me? — perguntou, com uma voz que lhe soou demasiado
juvenil aos ouvidos.
— Dai um passo em frente, Nicholas.
Nicholas assim o fez, e de repente estava a cair. Gritou.
As rochas correram na direção dele para o acolher e percebeu que ia
morrer. Foi assolado por uma dor paralisante e gemeu quando aterrou nas
rochas firmes, com as ondas a passarem por cima dele.
Engasgado e a cuspir água salgada, disse debilmente:
— Estou vivo.
Pug estava em cima das rochas à frente dele, de mão estendida. — Sim,
estais.
Nicholas agarrou-a e de repente estava de novo em cima da escarpa. —
Avançai um passo — indicou Pug.
— Não! — disse Nicholas. — Tomais-me por louco?
— Avançai um passo! — ordenou Pug.
Hesitando, Nicholas cerrou os olhos e deu um passo em frente. Fechar os
olhos não foi de grande ajuda, quando caiu velozmente pelo ar até embater
de novo nas rochas. Momentaneamente baralhado, ficou espantado ao dar
por si ainda consciente. Pug estava outra vez defronte dele, a ajoelhar-se. —
Estais pronto?
— Para quê? — perguntou ele, hesitantemente.
— Tendes de o fazer de novo.
— Porquê? — perguntou, soluçando.
— Tendes de aprender algo.
Nicholas agarrou a mão de Pug e de repente estava na escarpa. —
Avançai um passo — disse Pug suavemente.
Nicholas deu um passo em frente, mas o seu pé fundiu-se com a rocha da
escarpa. Sentiu um vazio no estômago ao cair desamparado no nada, mas o
pé esquerdo manteve-o firmemente preso à escarpa.
Uma dor penetrante atormentou-lhe a perna enquanto esteve ali
pendurado, de pernas para o ar e voltado para a encosta. Pug apareceu de
súbito à frente dele. — Dói, não dói?
— O que é que está a acontecer? — perguntou Nicholas.
— Eis a vossa dor, Nicholas. — Pug apontou para o pé na rocha. — É o
amor da vossa mãe e a vossa amante. Eis a vossa desculpa. Por causa disto,
não podeis falhar.
— Mas eu estou sempre a falhar — disse Nicholas com amargura.
O sorriso de Pug era implacável. — Mas tendes um motivo para falhar,
não é assim?
Nicholas sentiu uma forte pontada no estômago. — O que quereis dizer?
— perguntou.
— Falhais não por serdes incapaz, mas por serdes o filho aleijado. — Pug
flutuou no ar à frente de Nicholas. — Tendes duas opções, Príncipe do
Reino. Podeis ficar aqui até serdes velho, sabendo que há muitas formas de
fazer várias coisas grandiosas: salvar inocentes, encontrar a mulher dos
vossos sonhos, proteger os vossos súbditos… caso não tivésseis um pé
aleijado. Ou podeis libertar-vos dessa desculpa.
Nicholas tentou endireitar-se, mas não tinha onde se apoiar.
Pug apontou um dedo acusatório. — Já embatestes nas rochas! Sabeis o
que é.
— Dói! — gritou Nicholas.
— Claro que dói — ralhou Pug —, mas tendes de ultrapassar isso. Não
passa de dor. Não estais morto e podeis tentar de novo. Não podereis ter
sucesso a não ser que queirais arriscar o fracasso. — Apontou para o ponto
onde o tornozelo se fundiu com a rocha. — Isto é uma desculpa — disse. —
Todos nós as arranjamos se assim o quisermos. Tendes dons que vos tornam
especial mais do que vos lesa esta deformidade banal!
Uma certeza poderosa atingiu Nicholas. — O que devo fazer?
Pug levantou-se. — Já o sabeis. — E partiu.
Nicholas estendeu a mão e agarrou a perna esquerda. Sentiu a cabeça a
latejar e os músculos da perna esquerda a rasgarem-se quando se impeliu
para cima. Obrigando-se a dobrar-se para a frente, esgaravatou a rocha com
os dedos, aproximando-se uns centímetros enquanto gritava de dor e de
frustração.
De repente, estava sentado na beira da escarpa, com o pé ainda fundido à
rocha. Ao seu lado, onde antes não havia nada, tinha agora uma faca.
Compreendeu. Pegou na faca e hesitou por momentos, e depois golpeou
o seu próprio tornozelo. A dor subiu-lhe pela perna e sentiu o pé a arder.
Agonizando de dor, obrigou-se a cortar. O tornozelo foi cortado como pão
grosso, não como se fosse osso e tendões, mas a dor disparou pelo corpo
dele como relâmpagos.
Ao cortar a derradeira fibra da sua própria carne, Nicholas deu por si de
pé. Levou a faca à garganta da sua própria mãe. Pestanejando, recuou. A
figura de Anita, Princesa de Krondor, disse:
— Nicholas! Porque é que me quereis magoar? Amo-vos.
E então, Abigail apareceu à frente dele, com um vestido diáfano. De
olhos vendados e lábios sensuais, disse:
— Nicholas! Porque é que me quereis magoar? Amo-vos.
O jovem ficou aterrorizado e, por momentos, paralisado. — Não sois a
Abigail! Nem a minha mãe! Sois algo diabólico que me prende! — gritou.
Uma expressão de tristeza perpassou o rosto da aparição, que disse:
— Mas eu amo-vos.
Nicholas gritou palavras incoerentes e atacou violentamente. A faca
golpeou a mulher, transformando-a em sombra e vapor.
A dor explodiu atrás dos olhos de Nicholas e ele gritou. Algo preciso foi-
lhe arrancado do peito e ele foi acometido por uma terrível sensação de
perda. De repente, saiu-lhe um peso de cima e, com um alívio vertiginoso,
entrou na escuridão.

N icholas abriu os olhos, e Nakor e Anthony ajudaram-no a sentar-se.


Encostou as costas às frias pedras pretas da parede da torre. Estava
escuro, pois o Sol punha-se. — Quanto tempo estive eu aqui? — perguntou.
Tinha a voz áspera e sentia a garganta a arranhar.
— Um dia e meio — disse Anthony. Passou-lhe um cantil de couro e
Nicholas percebeu que estava a morrer de sede.
Bebeu profusamente. — Tenho a garganta inflamada — disse.
— Estivestes muito tempo a gritar e a berrar, Nicholas — informou-o
Anthony. — Travastes uma luta terrível.
Nicholas assentiu e sentiu a cabeça à roda. — Estou zonzo — disse.
Nakor ofereceu-lhe uma laranja. — Tendes fome — disse.
Nicholas arrancou um pedaço de casca, cravou os dentes na peça de
fruta, deixando o sumo escorrer-lhe pelo queixo, e mastigou o recheio
macio. — Sinto-me como se tivesse perdido algo — disse, depois de
engolir.
Anthony assentiu e Nakor afirmou:
— Os homens adoram os seus medos. É por isso que se agarram a eles
com tanto fervor. Aprendestes algo ainda muito novo, Príncipe, algo que até
os homens mais velhos raramente compreendem. Aprendestes que o medo
não é uma coisa de aspeto terrível, mas sim algo amoroso e sedutor.
Nicholas assentiu em concordância e acabou de devorar a laranja. Nakor
passou-lhe outra. Enquanto a descascava, revelou algo. — Matei a minha
mãe, ou a Abigail… ou algo que tinha a aparênia delas.
— Nem uma coisa nem outra — explicou Nakor —, matastes o vosso
medo.
Nicholas cerrou os olhos. — Apetece-me chorar e rir ao mesmo tempo.
Nakor riu-se. — Precisais apenas de comer e dormir.
Suspirando, Nicholas perguntou:
— O Pug?
— A sombra que ele concebeu colapsou e a coisa vermelha desapareceu
— informou Nakor. — O Pug disse que ia ser perseguido em breve por
coisas más e não queria estar próximo de pessoas. Pegou no vosso talismã e
passou-o ao Anthony. — Nicholas ergueu a mão e descobriu que haviam
desaparecido a tira de couro e o símbolo do golfinho. Anthony levou a mão
à gola da sua túnica e mostrou a Nicholas que agora era ele que o usava.
— Não sei porquê, mas ele disse que devia ser eu a guardá-lo por uns
tempos, mas para não o usar a não ser em último recurso.
Nakor assentiu. — E então despediu-se e partiu.
Na escuridão, Nicholas espreitou para baixo, para a sua perna esquerda.
Algo estranho sobressaía no seu tornozelo esquerdo. Experimentou e
constatou que conseguia mexer os dedos do pé. Escorreram-lhe lágrimas
dos olhos. — Por todos os deuses! — exclamou. Olhou para o pé saudável e
bem formado e pela primeira vez na vida era igual ao seu parceiro.
— A transformação foi difícil — afirmou Anthony. — Não sei o que fez
o Pug, mas vós e ele estiveram em transe durante imensas horas. Vi os
ossos e a carne a esticarem-se e a mexerem-se enquanto isso sarava. Foi
espantoso. Mas a dor deve ter sido terrível, pois chorastes e gritastes com
uma voz áspera.
Nakor levantou-se. Esticou a mão para baixo, Nicholas pegou-lhe e o
homenzinho mostrou-se surpreendentemente forte ao ajudá-lo a erguer-se.
Testando o seu peso sobre o pé acabado de sarar, Nicholas equilibrou-se
com dificuldade, estranhando a situação. — Tenho de me habituar a isto.
Nakor olhou para baixo para o pé bem formado na perna esquerda de
Nicholas e abanou a cabeça. — Tivestes de o fazer do modo mais difícil,
não foi?
Nicholas levou as mãos ao pescoço do homenzinho e riu-se. Riu tanto
que até lhe doeram as costelas. Passado um bocado, afastou-se. Com
lágrimas a escorrerem-lhe pelo rosto, disse:
— Sim, tive.
Martin olhou para cima quando Anthony, Nakor e Nicholas se dirigiram
a ele. Nicholas avançou cautelosamente sobre as rochas e fez um esgar
como se estivesse a pisar algo que provocasse dor.
Martin ia dizer algo ao soldado que estava ao lado dele quando reparou
que Nicholas estava descalço. Mais do que isso, ambos os pés de Nicholas
eram normais!
O Duque de Crydee afastou-se do soldado e foi apressadamente ter com
o sobrinho. Fitou Nicholas bem fundo nos seus olhos e tentou compreender
o que lá viu. — O que posso fazer? — perguntou por fim.
Nicholas exibiu um sorriso rasgado. — Dava-me jeito um novo par de
botas — disse.
8

Acidente

N
icholas atacou.
Marcus pulou para trás, detendo o golpe, e depois libertou-se e
ripostou. Nicholas deteve-o facilmente e obrigou-o a recuar mais
um passo.
Nicholas também recuou. — Basta. — Os jovens estavam a respirar com
dificuldade e encharcados em suor. Ambos tinham deixado crescer a barba
e os dois exibiam um ar tremendamente sinistro.
Harry saiu da estalagem e foi ter ao lugar onde os primos estavam a
treinar. — O que é que achais? — perguntou.
Até o habitual comportamento estoico de Marcus não resistiu ao ver a
vistosa figura. Harry usava umas calças púrpuras enfiadas em botas grandes
com dobras, e uma faixa amarela em volta da cinta. A camisa era verde,
com um brocado dourado desbotado quase até ao rosto e nos punhos das
mangas em balão; por cima tinha um colete de couro cor de vinho, atado à
frente com um único cordão e um alamar de madeira, e sobre a cabeça um
gorro comprido de malha vermelho e branco inclinado para a direita, num
ângulo engraçado.
— Tens um ar assustador — comentou Nicholas.
— O que é suposto parecerdes? — perguntou Marcus.
— Um corsário! — exclamou Harry. — O Amos disse que eles têm uma
inclinação para roupas coloridas.
— Bem, nesse caso estás perfeito — admitiu Nicholas.
Nakor apareceu, a comer uma laranja. Olhou para Harry e desatou a rir.
Harry também deixara a sua barba crescer, mas esta surgira fina e desigual.
— De qualquer modo, o que é um corsário? — quis saber Harry.
— É uma palavra de Bas-Tyra, já muito antiga — explicou Nakor. —
Originalmente, era cursar, que significava alguém que acendia fogueiras
nas praias para iludir as embarcações ao largo, provocadores de naufrágios,
ladrões, piratas.
— Tantas palavras para definir a mesma coisa — disse Harry —,
salteador, bucaneiro, pirata…
— Muitas línguas — disse Nakor. — Este Reino é como Kesh, erigido
assente em conquistas. Antigamente, homens do Paul Negro e homens de
Rillanon não conseguiam comunicar uns com os outros. — Assentiu com a
cabeça e piscou um olho, deliciado por estar a partilhar trivialidades.
— Espero que o Amos não insista para que nos vistamos todos assim —
disse Marcus. A seguir voltou-se para Nicholas. — Mais uma?
Nicholas abanou a cabeça. — Não. Dói-me a perna e estou cansado.
De repente, Marcus estava a avançar, com um golpe traiçoeiro, na
direção da cabeça de Nicholas. — O que é que acontece quando alguém vos
ataca e vos sentis cansado? — Nicholas só a custo travou o golpe, que teria
causado graves lesões se lhe tivesse acertado. Marcus insistiu no ataque e
Nicholas caiu para trás.
— As pessoas tentam matar-vos nas alturas mais inconvenientes —
berrou Marcus, executando uma combinação de ataques por cima e por
baixo.
Os dois primos estavam a usar sabres, uma arma estranha a ambos. Com
o florete, ninguém batia Nicholas em Crydee, mas, com a arma mais
volumosa, ataques fustigantes eram bem mais importantes, e Marcus era
rápido e forte.
Nicholas grunhiu devido ao esforço quando travou uma punhalada
dirigida à virilha, e depois, com um grito, contra-atacou. Uma saraivada de
ataques violentos, por cima e por baixo, levou Marcus a recuar, até que
Nicholas o apanhou num movimento que o cercou e lhe fez saltar o punho
das mãos. Encostando-se para trás a um muro baixo de tijolos, recentemente
reconstruído, Marcus deu com Nicholas de pé à sua frente, com a ponta da
espada a tocar-lhe na garganta. Marcus recuou e caiu sobre o muro baixo,
aterrando de traseiro no chão. Nicholas dobrou-se para a frente, sempre com
a ponta do sabre encostada à garganta de Marcus.
Harry ia dar um passo em frente, mas deteve-se. Os olhos de Nicholas
estavam arregalados e não escondia a sua raiva. — Percebi bem o que
queríeis dizer, primo — disse friamente. Manteve-se calado por um bom
segundo e depois recuou, baixando a lâmina. Riu-se sarcasticamente. —
Muito bem, aliás — acrescentou. Estendeu a mão e ajudou Marcus a
levantar-se.
Ouviu-se a voz de uma outra pessoa. — Sabeis muito bem, Marcus, que
irritar um espadachim melhor do que vós é meio caminho para a morte.
Os três jovens e Nakor voltaram-se e viram Amos a sair da estalagem. O
Almirante pusera de parte o seu uniforme azul-escuro esbatido e usava
agora um par de pesadas botas pretas, com umas largas faixas de couro
vermelho trabalhado a envolver o topo dos canos. As calças largas e o
colete curto eram de um azul esbatido, com o colete ornamentado com um
brocado prateado baço nos punhos e nas lapelas. Usava uma camisa que em
tempos fora branca, mas que estava amarelecida, com folhos de renda em
seda a caírem pela frente. Sobre a cabeça, via-se um chapéu com três cantos
enfeitado com dourados, no cimo do qual havia uma pluma amarela mal-
arranjada. Um alfange pesado estava pendurado num cinturão que cruzava o
ombro. Oleara o cabelo e a barba, pelo que tinha a cara cercada por
caracóis.
Retirando o chapéu, Amos passou a mão pela careca. — Limitai-vos ao
vosso arco, Marcus — aconselhou. — O vosso pai nunca teve o dom para a
espada que o vosso tio Arutha tem, e o Nicky é melhor espadachim do que
todos vós. — Virou-se para Nicholas. — Como é que vai o pé?
Nicholas fez um esgar. — Ainda dói.
— É uma «dor fantasma» — explicou Nakor. — Só dói na cabeça dele.
Nicholas coxeou um pouco quando foi sentar-se junto a Marcus, que
estava com um ar carrancudo.
— Dor fantasma? — questionou Amos. — Isso não faz lá muito sentido.
— Bem, dói como se fosse real — admitiu Nicholas. — O Nakor garante
que deixará de doer quando eu por fim perceber as lições que aprendi na
torre naquela noite.
— E é verdade — disse o pequeno homem. — Quando ele perceber de
verdade, deixará de haver dor.
— Bem, então é melhor que percebais depressa. Partimos com a maré da
manhã.
Marcus assentiu. — Tenho algumas coisas para fazer antes de partirmos
— anunciou.
Depois de ele ter ido embora, Amos voltou a falar. — Vós não gostais
mesmo um do outro, pois não?
Nicholas olhou para o chão, mas foi Harry quem respondeu. — Vai ser
assim até que a Abigail escolha entre os dois.
— Se puder fazê-lo — comentou Nicholas, com amargura. — Vou
arrumar as minhas coisas. — E afastou-se.
Amos voltou-se para Harry. — Porque é que tenho a impressão de que se
eles não encontrarem um pretexto para fazerem as pazes, mais cedo ou mais
tarde um deles vai matar o outro?
— É assustador, não é? — comentou Harry. Apoiou-se na parte do muro
que ainda se aguentava de pé e prosseguiu: — Eles são muito parecidos um
com o outro; nenhum deles vai ceder um milímetro. — Olhou para a porta
da estalagem. — O Nicholas sempre foi um rapaz muito descontraído,
Almirante. Já o conheceis há mais tempo, mas penso que o conheço melhor.
— Amos concordou. — Há algo no Marcus que transforma um rapaz afável
num verdadeiro chato.
Nakor riu-se.
— O Marcus também está a comportar-se como um palerma — disse
Amos, que depois deu uma palmada nas costas de Harry. — E é melhor que
começais a chamar-me «Capitão», Harry, e não «Almirante». Sou outra vez
Trenchard, o Pirata — acrescentou. Com um sorriso ameaçador, sacou da
faca que tinha no cinto e começou a experimentar o fio com o polegar. —
Estou uns anos mais velho e um pouco mais lento, mas aquilo que os anos
levaram é mais do que compensado pela astúcia. — De repente, tinha a faca
apontada ao nariz de Harry. — Algo a dizer em contrário?
Harry ganiu ao saltar um passo para trás. — Não, senhor! Capitão!
Senhor!
Amos riu-se. — No meu antigo ofício, o capitão era o estupor mais
malvado da tripulação. Era assim que se era escolhido. Assustava-se a
tripulação para que votasse em nós.
Harry sorriu abertamente e fez uma pergunta. — Foi assim que vos
tornastes capitão tão jovem?
Amos assentiu com a cabeça. — Isso e matar o porco de um timoneiro
quando ainda era um criado de bordo. — Apoiou-se no muro e recolocou a
faca no cinto. — Eu tinha doze anos quando me fiz pela primeira vez ao
mar. Na minha segunda viagem, o segundo imediato, um homem chamado
Barnes, achou que tinha de me bater por algo que eu não fizera. Portanto,
matei-o. O capitão improvisou logo um julgamento sumário…
— Sumário? — perguntou Harry.
— Logo ali em frente à tripulação. Nada de subtilezas legais. Faz-se a
defesa e a tripulação decide. Acontece que a maioria dos homens detestava
o Barnes e eu deixei bem claro que andava a ser açoitado por algo de que
não tinha culpa. O culpado assumiu o que fez e disse ao capitão que eu não
fizera aquilo de que era acusado… — O olhar de Amos perdeu-se no
horizonte. — Engraçado, não é? Não me lembro do que fui acusado. De
qualquer modo, o culpado foi castigado, embora o capitão tenha sido
brando com ele por ter sido honesto e salvado a minha vida. Fui promovido
a terceiro imediato. Quando já estava há quatro anos ao serviço naquele
barco, já era primeiro imediato.
»Com vinte anos cheguei a capitão, Harry. Corri quase todos os portos do
Mar Amaro, exceto Krondor e Durbin, antes de chegar aos vinte e seis anos.
Aos vinte e nove, endireitei-me. — Riu-se. — E na minha primeira viagem
honesta, os tsurani incendiaram-me o barco e deixaram-me triste e
abandonado aqui em Crydee. Isso já foi há mais de trinta anos. Portanto,
aqui estou eu, com mais de sessenta e de novo pirata! — Voltou a rir-se. —
Que raio de círculo, não é?
Harry abanou a cabeça, num total espanto. — Que bela história.
Amos olhou para cima, para a carcaça do que em tempos fora o Castelo
de Crydee. No dia anterior, chegara um par de pedreiros de Carse e estavam
a dar início às inspeções preliminares dos terrenos para a reconstrução.
Martin estava a acompanhá-los, dando-lhes instruções para que os trabalhos
arrancassem assim que as neves desaparecessem, tivesse ele regressado ou
não. — Quando vim pela primeira vez a esta torre de menagem, conheci
algumas pessoas espantosas. — Olhou para baixo, pensativo. — Mudaram a
minha vida. Devo-lhes muito. Costumava censurar o Arutha por não tirar
partido da vida, e, verdade seja dita, ele consegue ser muito carrancudo. —
Amos olhou de novo para a estalagem e voltou a falar. — Mas é um homem
fantástico, em muitos aspetos, e a minha primeira escolha para companheiro
caso tivesse de viajar por mares tempestuosos. Adoro-o como a um filho,
mas ser filho dele não é tarefa fácil. O Borric e o Erland têm muitos dons,
nenhum deles muito diferente dos do pai, mas o Nicholas…
Harry assentiu. — É igualzinho a ele.
Amos suspirou. — Nunca confessei isto a ninguém, mas o Nicky sempre
foi o meu preferido. É um rapaz amável e, mesmo tendo muito do vigor do
pai, tem os modos afáveis da mãe. — Amos desencostou-se do muro. —
Rezo para que consiga devolvê-lo incólume à família. Não me imagino com
força para contar à avó dele que deixei que algo de mal lhe acontecesse.
— Rezo para que sentis o mesmo em relação a mim e a contar ao meu
pai, Capitão — disse Harry.
Amos dirigiu um olhar malicioso a Harry. — Não vou casar com o vosso
pai, Escudeiro. Estais por vossa conta.
Harry riu-se, mas não foi completamente convincente. Então soou um
grito do alto da colina quando um dos pedreiros de Carse veio a descer a
encosta, praticamente de cabeça perdida. Gritou algo e Amos olhou para
Harry.
— Não entendo… — confessou Harry.
E então o homem gritou de novo, e Amos disse:
— Oh, não, por todos os deuses.
— O que foi? — quis saber Harry.
— Houve um acidente — informou Nakor. Desatou a correr na direção
do castelo.
De repente, Harry percebeu. Havia apenas três pessoas no castelo: dois
pedreiros e o Duque. — Vou chamar o Marcus e o Nicholas — anunciou
Harry. Saiu disparado para a estalagem.
Antes de ir para o castelo, Amos gritou para Harry: — E vede se
descobris o Anthony! Vamos precisar de um curandeiro.

Q uando todos chegaram ao castelo, um dos monges da Abadia de


Silban estava a cuidar de Martin. Este estava inconsciente deitado no
chão, numa porção de terra desimpedida, com o rosto crispado e lívido
enquanto o monge verificava os ferimentos.
— O que é que aconteceu? — perguntou Marcus aos berros enquanto se
colocava apressadamente ao lado do pai.
O pedreiro mais velho explicou. — Cedeu uma secção do parapeito e Sua
Graça caiu. Eu disse-lhe que aqui em cima era perigoso. — Os seus modos
demonstravam que estava mais empenhado em sacudir as culpas do que em
qualquer outra coisa.
Marcus olhou para o monge. — É grave?
O monge assentiu com a cabeça e Anthony e Nakor ajoelharam-se ao
lado de Martin. Sussurraram algo, após o que Anthony tomou a palavra. —
Temos de o levar para a estalagem.
— Será melhor improvisarmos uma padiola? — perguntou Nicholas.
— Não há tempo para isso! — exclamou Anthony.
Harry, Nicholas e Marcus ergueram Martin e levaram-no lentamente pela
encosta da colina, avançando pelo caminho mais clemente.
Na estalagem, levaram Martin para um dos quartos mais pequenos do
segundo piso. Anthony fez sinal aos outros para que saíssem, e ele e Nakor
fecharam a porta.
Os outros ficaram ali às voltas junto à porta do quarto de Martin por uns
momentos, até que Amos disse:
— Não vale a pena esperar aqui. Temos uma centena de coisas para fazer
antes que chegue o dia de amanhã.
— Amanhã? Não podeis estar a falar a sério — indignou-se Marcus.
Amos parou e fitou o filho de Martin. — Claro que estou a falar a sério.
Partimos amanhã com a maré da manhã.
Marcus, furioso, deu um passo em frente. — O meu pai não estará em
condições de viajar amanhã.
— Até à primavera, o vosso pai não estará em condições de viajar,
Marcus — disse Amos. — Não podemos esperar por ele.
Marcus começou a protestar e Nicholas tomou a palavra. — Um
momento. Como é que sabeis? — perguntou a Amos.
— Durante a minha vida, Nicky — começou Amos —, já vi homens
caírem das vergas e embaterem violentamente nas cobertas. — Virou-se
para o primo de Nicholas. — Marcus, o Martin está mais perto dos setenta
do que dos sessenta anos, embora olhando para ele isso não se perceba.
Homens mais novos do que ele morreram em resultado desses ferimentos.
Ninguém vos vai mentir e dizer que o vosso pai não corre perigo. Mas
também o corre a vossa irmã e os outros prisioneiros. A nossa espera aqui
não vai trazer melhoras ao vosso pai, mas a cada dia que aguardarmos,
maior será o perigo que corre a vossa irmã. Partimos amanhã.
Amos deu a volta e deixou os três jovens na entrada, em silêncio. —
Lamento, Marcus — disse, por fim, Nicholas.
Marcus olhou de través para Nicholas; e então, sem dizer nada, desceu
impetuosamente as escadas.

C alis entrou na estalagem, abrigando-se da chuvada repentina. Sacudiu


a cabeça quando despiu a capa com capuz e a pendurou num cabide
junto à porta. A estalagem continuava repleta de gente, mas já não tanto
como da última vez em que o jovem elfo estivera em Crydee, pois tinham
sido erigidos diversos novos abrigos.
Ao ver Nicholas e Harry sentados numa mesa ao longe, apressou-se a ir
sentar-se junto deles. — Trago mensagens para o vosso tio, Príncipe
Nicholas.
Nicholas contou-lhe do acidente. Calis escutou impassivelmente antes de
falar de novo. — São péssimas notícias.
Anthony apareceu junto à escadaria e, ao ver Nicholas, apressou-se na
direção da mesa. — Sua Graça recuperou a consciência; onde está o
Marcus?
Harry levantou-se de um pulo. — Vou procurá-lo.
Anthony fez sinal com a cabeça na direção de Calis. — Trago mensagens
para o Duque — disse este.
— Podeis falar com ele por uns minutos — anunciou Anthony.
Nicholas também se ergueu, mas o mago disse:
— Apenas um de cada vez.
O filho da Rainha dos Elfos seguiu Anthony pelas escadas acima e
poucos minutos depois Marcus e Anthony entraram na estalagem. — O
meu pai está acordado? — perguntou Marcus, quando Nicholas se
aproximou dele.
Nicholas assentiu com a cabeça. — O Calis trouxe uma mensagem da
Rainha dos Elfos e está agora com ele. Podeis subir assim que sair.
Calis apareceu no alto das escadas e Marcus subiu. O jovem elfo travou-o
com uma mão no ombro. — Sua Graça pretende falar com o Nicholas.
Os olhos de Marcus faiscaram, mas não abriu a boca quando Nicholas
subiu apressadamente os degraus e passou por ele. Entrou no quarto e
encontrou Martin com uma proteção no pescoço e com um pesado cobertor
pousado sobre o peito.
Anthony, Nakor e o monge que o haviam tratado estavam junto a ele. —
Tio? — chamou Nicholas.
Martin estendeu o braço e Nicholas pegou-lhe na mão, apertando-a por
uns instantes. A voz de Martin soou tremendamente débil. — Necessito de
falar convosco, Nicholas — anunciou. — A sós.
Nicholas olhou na direção dos outros. — Esperamos lá fora — disse
Anthony.
Martin cerrou os olhos e deitou-se para trás, notando-se a testa
transpirada. Depois de ouvir a porta fechar-se, começou a falar. — O Calis
trouxe-me isto.
Estendeu um anel na direção de Nicholas, no qual o Príncipe pegou para
examinar. Era em metal preto e prateado e cintilava friamente. Havia no seu
desenho algo de repelente, duas serpentes entrelaçadas, cada uma delas
mordendo a cauda da outra. Ia devolvê-lo a Martin, mas este impediu-o. —
Não, é para vós.
Nicholas guardou-o numa pequena bolsa que usava no cinto.
— O que é que o vosso pai vos contou sobre Sethanon? — quis saber
Martin.
Nicholas foi apanhado de surpresa pela pergunta. — Alguma coisa —
respondeu. — Ele não fala disso muitas vezes, e, quando o faz, tende a ser
modesto quanto à sua intervenção. No entanto, o Amos contou-me muita
coisa.
Martin mostrou um sorriso débil. — Não duvido. Mas há muitas coisas
relativas a essa batalha que o Amos desconhece. — Fez sinal ao jovem para
que se sentasse na beira da cama. — Posso estar a morrer — disse Martin
quando ele se sentou.
Nicholas ia contestar, mas Martin interrompeu-o. — Não há tempo para
protestos sem sentido, Nicholas. Está muita coisa em jogo. Posso estar a
morrer, ou posso sobreviver; será segundo a vontade dos deuses… embora
sem a Briana… — Pela primeira vez, Nicholas apercebeu-se da dor de
Martin infligida por aquela perda. E, a seguir, o tio mostrou um semblante
sombrio. — Deveis tomar conhecimento de algumas coisas e pouco fôlego
me resta.
Nicholas assentiu com a cabeça e Martin descansou um pouco antes de
prosseguir. — Em tempos idos, o nosso mundo foi governado por uma raça
poderosa. — Nicholas pestanejou, surpreendido. Martin prosseguiu: —
Chamavam-se a eles próprios valheru. As nossas lendas chamavam-lhes
Senhores dos Dragões…

M arcus estava furioso. — Porque é que ele pediu para falar com o
Nicholas?
Harry encolheu os ombros. — Sei tanto quanto vós. — Harry observou o
jovem de quem fora escudeiro nos últimos meses. Ainda não conhecia
Marcus muito bem, mas conhecia-o o suficiente para ver que dentro dele
havia muita raiva acumulada, que só a custo era controlada. Primeiro, por
causa da rivalidade na luta pelo afeto de Abigail, depois, a morte da mãe e o
rapto da irmã, e por fim a recusa de Nicholas em continuar a desempenhar o
papel de Escudeiro do Duque para se afirmar como Príncipe de Krondor – a
combinação desses elementos deixara, na última semana, Marcus na
iminência de rebentar.
Nicholas surgiu nas escadas e acenou para Anthony, Nakor e para o
monge. Eles reentraram no quarto enquanto Marcus subia os degraus dois a
dois. Harry apercebeu-se da expressão concentrada do amigo. — O que é
que se passa? — perguntou.
— Preciso de apanhar ar — respondeu Nicholas.
Harry seguiu o amigo até ao exterior da estalagem e, interpretando mal a
expressão de Nicholas, perguntou:
— O Duque…?
— A perna dele partiu acima e abaixo do joelho e o Anthony diz que há
hemorragias internas — explicou Nicholas.
— Ele vai… — Harry quase proferiu a palavra «morrer», mas travou a
tempo — …ficar bem?
— Não sei — reconheceu Nicholas. — Ele é mais velho do que eu
pensava, mas ainda é bastante rijo. — Nicholas continuou a caminhar na
direção do mar.
— Passa-se mais qualquer coisa, não passa? — indagou Harry.
Nicholas anuiu.
— O quê?
— Não posso dizer-te.
— Nicky, pensei que fôssemos amigos — atirou Harry.
Nicholas parou e fitou o companheiro. — E somos, Harry. Mas há coisas
que só a família real pode saber.
Algo no tom dele impediu Harry de prosseguir. Parou, hesitante, e depois
colocou-se de novo ao lado de Nicholas. — É grave?
Nicholas assentiu com a cabeça. — Posso dizer-te isto: há forças lá fora a
trabalhar para nos destruir e tudo – e quero dizer mesmo tudo – aquilo que
amamos. E podem ser essas forças que estão por detrás do que aqui
sucedeu.
Da escuridão, soou uma voz. — Assim é.
Harry e Nicholas voltaram-se de pronto, e este último já tinha a espada
meio desembainhada antes de reconhecer Calis. O filho da Rainha dos Elfos
saiu das sombras. — Acho que tive uma conversa com o meu pai idêntica à
que tivestes com o vosso tio, Príncipe Nicholas — disse.
— Sabeis das serpentes? — perguntou Nicholas.
— Um dos nossos grupos de batedores encontrou um bando de moredhel
junto à fronteira com a Montanha de Pedra e houve uma escaramuça —
informou Calis. — O anel da serpente foi encontrado no corpo de um
moredhel. Pode ser algo dos tempos da Grande Ascensão, quando o falso
Murmandamus marchou sobre Sethanon. Se for, não há nada a temer…
Nicholas anuiu. — Mas se não for…
— Então vai haver problemas.
— E o que é que o Tomas e a vossa mãe sugerem que se faça? —
perguntou Nicholas.
Calis encolheu os ombros. — Para já, nada. Não faz parte de nós, reagir
face a suposições. Mas como pode haver algum risco oculto nas trevas,
viajarei convosco.
Nicholas sorriu. — E porquê vós?
Calis retribuiu o sorriso. — Porque tenho tanto de humano quanto de
elfo. A minha aparência não me trairá como o faria a qualquer outro de
Elvandar. — Olhou em volta para as ruínas de Crydee. — Verei que tipo de
homem é capaz de uma coisa destas. — Dirigiu novamente o olhar para
Harry e Nicholas. — E aprenderei mais sobre o meu legado humano. — Pôs
o seu arco ao ombro. — Acho que devo passar esta noite com os meus avós.
Tal como as coisas estão, tenho-os visto pouco, e, tendo isso em conta,
poderemos estar fora por muito tempo. — Sem mais para dizer, foi embora.
Harry deixou passar uns momentos antes de falar. — Que história é essa
do anel?
Nicholas pegou no anel e passou-o a Harry, para que este o observasse.
Na penumbra parecia ter um brilho próprio. — É uma joia muito feia —
comentou Harry, fazendo uma careta.
— Pode ser mais do que isso — referiu Nicholas. Voltou a guardá-lo na
bolsa do cinto. — Anda daí — disse. — Temos uma série de coisas para
fazer antes de partirmos.

navio deixou o porto e Amos ordenou que desfraldassem todas as velas. O


O
dia nascera límpido e quente, um início auspicioso, esperou Nicholas.
Estava de pé no alto do castelo da proa, a observar um marinheiro ágil
a romper numa correria ao longo da prancha do lado de fora da amurada,
ajustando os ovéns no calcês. Nicholas olhou para baixo para a água
espumosa que passava velozmente. Golfinhos, que pareciam ir a brincar,
saltavam acima da esteira da embarcação.
— Um bom presságio — afirmou o marinheiro que desceu a custo da
amurada. Aterrou suavemente, descalço, e apressou-se a desempenhar a sua
tarefa seguinte.
Nicholas avaliou o aspeto da tripulação e comparou-o com o que se
lembrava da sua viagem para Crydee. Na altura, todos os marinheiros
vestiam o mesmo tipo de uniforme da Armada do Reino: calças azuis,
camisa às riscas azuis e brancas e um gorro azul de lã. Agora usavam a
coleção de trapos e berloques emprestados mais extravagante que alguma
vez vira. Os pescadores da povoação trocaram com gosto as suas calças e
túnicas imundas pelas peças de roupa resistentes e quentes da marinha. Do
fundo de velhos baús que havia nas caves do castelo, saíram jaquetas e
calças de seda, camisas de linho, chapéus de diversos formatos, alguns com
plumas e outros enfeitados com borlas. Tendo em conta o estilo e o corte, o
vestuário pertencera a Lorde Borric, o avô de Nicholas, e ao Rei Lyam e ao
pai de Nicholas, quando eles foram rapazes em Crydee. Uma dúzia de
vestidos que terão pertencido à Princesa Carline ou à sua mãe, Lady
Catherine, também foram postos a uso, pois Amos deixara bem claro que
berloques extravagantes era uma das imagens de marca da Irmandade dos
Corsários, tal como eles se autointitulavam. Portanto, os marinheiros
comuns do Reino estavam agora a usar túnicas que trinta anos antes haviam
pertencido a um jovem que era actualmente Rei das Ilhas, e cosidos sobre
os punhos e golas havia brocados e laços que em tempos haviam adornado
os vestidos da atual Duquesa de Salador, a irmã do Rei.
Nicholas teve de sorrir. Optara por vestir algumas das velhas roupas do
pai; o tamanho e o corte indicavam claramente que haviam pertencido a
Arutha. Usava um par de botas de montar pretas de cano alto com uma
joelheira de couro. Calças lisas pretas, suficientemente largas para facilitar
os movimentos, eram completadas com uma camisa branca e lisa, de gola
larga e mangas em balão. Por cima, tinha um colete de couro preto que
facultava alguma proteção face à ponta de uma espada. A sua única
concessão às escolhas extravagantes da tripulação era uma banda vermelha
em redor da cinta. Sobre o ombro direito estava pendurado um cinturão para
a espada confecionado em couro preto, com um desenho de uma série de
vinhas entrelaçadas. Aqui, estava pendurado um sabre, não a arma que
Nicholas teria escolhido, mas uma bem mais comum do que o espadim, em
toda a parte conhecido como a arma preferida do Príncipe de Krondor e dos
seus filhos. No cinto, tinha pendurado um punhal comprido.
Nicholas deixou a cabeça destapada. O seu comprido cabelo fora puxado
para trás num rabicho, atado com uma fita vermelha, e a sua barba já tinha
agora quase dez dias.
Harry continuava a usar a sua fantasiosa panóplia de cores, mas por
insistência de Amos deixou que se sujassem e descolorassem ao sol.
Queixou-se, mas Amos insistiu que apesar de coloridos, os corsários, por
norma, eram uma gente imunda.
Marcus apareceu no convés e Harry riu-se. O filho do Duque vestiu-se de
um modo muito parecido com o de Nicholas, só que a sua faixa na cinta era
azul e usava o cabelo solto caído sobre os ombros, trazendo na cabeça um
gorro de lã azul. No flanco, usava um alfange, a arma de eleição para
abordar um navio durante uma batalha, quando a luta era renhida. —
Pareceis mesmo irmãos… — ia dizer Harry, antes de se interromper ao ser
brindado pelos primos com um par de olhares furiosos.
— Como é que estava o vosso pai? — perguntou Nicholas.
— Pouco me falou — explicou Marcus. — Sorriu e desejou-me sorte, e
depois adormeceu profundamente. — Pousando as mãos na amurada,
agarrou-a com força. — Passei toda a noite ao seu lado… mas ainda estava
a dormir quando saí esta manhã.
— É um homem muito forte, para a idade que tem — afirmou Nicholas.
Marcus limitou-se a anuir. Após um prolongado silêncio, voltou-se para
encarar Nicholas. — Vamos ser claros numa coisa. Não confio em vós. Não
me interessa o que fizestes desde que chegastes a Crydee; assim que o
panorama se tornar sangrento, acho que ides fugir. Não tendes estômago
para aquilo que em breve teremos de fazer.
Face àquela acusação, Nicholas sentiu a face a enrubescer, mas manteve-
se calmo. — Não me interessa se confiais ou não em mim, Marcus, desde
que me obedeceis. — Virou-lhe costas e saiu dali.
Marcus gritou-lhe: — Ninguém poderá acusar-me de quebrar um
juramento, Nicholas, mas se causardes algum mal à minha irmã ou à
Abigail… — Não completou a ameaça.
Harry desceu apressadamente a escada que ligava o convés às camaratas
para alcançar Nicholas. — Isto tem de ter um fim — disse-lhe.
— O quê? — indagou Nicholas.
— A rivalidade com o Marcus. Ainda vai levar a que alguém morra se
não tiveres cuidado.
Nicholas desviou-se para o lado quando um par de marinheiros puxou
uma pesada corda junto a eles, para repor uma verga. Amos gritou
instruções desde o tombadilho superior.
— Enquanto o Marcus não desistir de me odiar, ou pelo menos de
desconfiar de mim, não há nada que eu possa fazer — salientou Nicholas.
— Olha, ele não é assim tão mau tipo — disse Harry. — Já passei tempo
suficiente perto dele para perceber isso. Em algumas coisas, é muito
parecido com o teu pai. — Nicholas estreitou os olhos ao ouvir aquele
comentário. — Não, a sério; o teu pai é um homem muito duro, mas é justo.
O Marcus só não encontra motivos para ser justo contigo, nada mais. Faz
algo que lhe dê a hipótese de fazer o que está certo, e ele fá-lo-á.
— O que é que sugeres?
— Não sei, mas a dada altura vais ter de descobrir uma forma de o fazer
perceber que não és inimigo dele. O verdadeiro inimigo está por ali —
realçou, apontando com o polegar sobre o ombro para ocidente.
Pensando nas coisas incríveis que o tio lhe contara na noite anterior,
Nicholas foi forçado a concordar. — Então, acho que posso ter a solução.
— Bem, vou falar com o Marcus e tentar fazer com que ele seja razoável
— anunciou Harry. — Se pensares em algo que possa ajudar, não hesites,
todos vamos precisar uns dos outros lá fora antes de pormos fim a isto,
disso não duvido.
Nicholas sorriu com todos os dentes. — Quando é que te tornaste tão
esperto, Harry de Ludland?
Harry retribuiu o sorriso rasgado. — Quando as coisas deixaram de ser
divertidas.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Vou falar com o Amos. Faz com que
o Marcus vá ao camarote dele daqui a uns minutos, está bem?
Harry assentiu e saiu disparado, enquanto Nicholas regressava ao
tombadilho superior. Quando chegou junto a Amos, disse:
— Precisamos de falar.
Amos fitou o rosto de Nicholas e deparou-se com uma expressão bastante
séria. — Em privado?
— É melhor se for no vosso camarote, Amos.
Amos virou-se para o seu primeiro imediato. — Assumi o comando, Sr.
Rhodes.
— Sim, Capitão — berrou o imediato.
— Mantende a rota. Estarei no meu camarote.
Dirigiram-se ao camarote do Capitão. Na escada de ligação do convés às
camaratas, espreitaram por uma porta aberta que dava para o camarote que
Marcus partilhava com Nakor, Calis, Ghuda e Anthony. Estes últimos
quatro estavam deitados nos seus beliches, satisfeitos com a oportunidade
de descansarem após uma longa noite de preparativos e antecipando os dias
agitados que teriam pela frente. Nicholas acenou-lhes quando passou com
Amos.
Amos abriu a porta do seu camarote e assim que entrou, dirigiu-se a
Nicholas. — O que se passa, Nicky?
— Temos de esperar pelo Marcus.
Decorridos uns minutos, alguém bateu, e Nicholas abriu a porta. — O
que é que se passa? — perguntou Marcus ao entrar.
— Sentai-vos — disse Nicholas.
Marcus olhou para Amos e o Capitão anuiu.
— Sei o que se passou em Sethanon — anunciou Nicholas, e olhou para
Amos.
— Já vos contei isso, Nicky — salientou Amos. — Onde pretendeis
chegar?
— Quero dizer que o tio Martin me contou tudo.
Amos assentiu com a cabeça. — Há coisas relativas a essa batalha que o
vosso pai e tios sabem que são desconhecidas mesmo por aqueles de nós
que lá estiveram. Optei por não fazer perguntas. Se eles acham que é
suficientemente importante para não falar… — Deixou o pensamento a
meio.
Nicholas dirigiu-se diretamente a Marcus. — O que é que o vosso pai vos
disse?
Marcus fitou Nicholas com um ar carrancudo. — Estou a par da Grande
Ascensão dos moredhel. Estou a par da batalha, e da ajuda de Kesh e dos
tsurani.
Nicholas inspirou profundamente. — Há um segredo, do conhecimento
apenas do Rei e dos seus irmãos. O meu irmão Borric conhece-o porque
será o próximo Rei. O meu irmão Erland conhece-o, porque será Príncipe
de Krondor a seguir ao meu pai. E agora também eu o conheço.
Marcus estreitou os olhos. — Que segredo vos revelou o meu pai que a
mim me negou saber?
Nicholas tirou o anel da bolsa que trazia ao cinto e passou-o a Marcus,
que o observou minuciosamente e por sua vez o passou a Amos. — Estas
malditas cobras — resmungou Amos.
— O que é isto? — perguntou Marcus.
— Tendes de me prometer segredo — avisou Nicholas. — O que vos vou
dizer não sai deste camarote. Concordais?
Marcus anuiu, assim como Amos.
— O que poucas pessoas sabem é que a Grande Ascensão, quando o
falso profeta Murmandamus invadiu o Reino, foi orquestrada por outros —
revelou Nicholas.
— Outros? — perguntou Marcus.
— Os sacerdotes da serpente pantathianos — esclareceu Amos.
Marcus pareceu confuso. — Nunca ouvi falar deles.
— Poucos ouviram — realçou Nicholas. — O Murmandamus era um
falso profeta, e de diversas formas. Não só não era o líder há muito falecido
regressado para comandar o seu povo contra nós, como nem sequer era um
genuíno elfo negro. Era um sacerdote da serpente que, de algum modo, fora
transformado por magia para se assemelhar ao lendário líder. Os moredhel
foram intrujados e nunca souberam da fraude.
— Estou a ver — disse Marcus. — Mas porque é que isto é tão secreto?
Seria levado a pensar que nos seria útil ao longo das nossas fronteiras
nortenhas que os moredhel soubessem que foram liderados por um
impostor.
— Porque há muito mais em jogo — explicou Nicholas. — No interior
da cidade de Sethanon está um artefacto. É uma pedra grande, concebida
por uma raça antiga conhecida por valheru.
Ao ouvir isto, os olhos de Marcus arregalaram-se, e Amos assentiu com a
cabeça como se estivesse a ver as peças de um puzzle a colocarem-se no
seu devido lugar. — Os Senhores dos Dragões? — perguntou Marcus.
Amos olhou para Marcus, que estava completamente espantado. Nicholas
prosseguiu: — Os pantathianos são uma espécie de raça de homens-lagarto,
isto pelo que conta o vosso pai, Marcus. Veneram uma das antigas valheru
enquanto deusa e desejam deitar a mão à Pedra da Vida para usar o seu
enorme poder para a fazer regressar a este mundo.
— Mas Sethanon foi abandonada — disse Amos. — Corre o rumor de
que a cidade foi amaldiçoada. Ninguém lá vive. Há alguma razão para essa
coisa preciosa não estar a ser guardada?
— O Martin disse que havia um guardião, um grande dragão que é
também um oráculo. Nada mais me contou a não ser dizer-me para lá ir um
dia. Depois de regressarmos desta viagem, pedirei ao meu pai permissão
para visitar o oráculo.
— E porque é que o meu pai não me contou isto pessoalmente? —
indagou Marcus.
— O vosso pai está preso por um juramento feito ao Lyam — esclareceu
Nicholas. — Apenas o Rei, o meu pai, o vosso pai e o Pug sabem da
existência desta pedra e do guardião.
— O Macros sabia — disse Amos —, de certeza.
— Macros, o Negro, desapareceu após a batalha — respondeu Calis ao
abrir porta.
Amos rugiu. — Não batestes!
O Príncipe Elfo encolheu os ombros. — A minha audição é mais apurada
do que as outras e as paredes deste camarote não são tão grossas quanto
gostaríeis. — Encostou-se à porta. — E o meu pai também tem
conhecimento do dragão que guarda a pedra, pois ela em tempos foi amiga
dele, e ele contou-me da batalha em Sethanon. Mas porque quebrastes o
vosso juramento, Nicholas?
— Porque o Marcus é do meu sangue e da família real — explicou
Nicholas —, mesmo tendo o pai dele renunciado a qualquer pretensão ao
trono para a sua linhagem. E o Amos vai casar-se com a minha avó, pelo
que também fará parte da família. Mas, mais importante do que isso, porque
confio neles e porque, se algo me acontecer, outros devem estar a par do que
está aqui em jogo. Parece estar em risco mais do que as vidas dos que foram
levados, por muito que os amemos. Pode chegar a altura em parecerá
prudente desistir da perseguição, e se eu aqui não estiver, quero que saibais
por que razão nunca podereis desistir. — Nicholas fez uma pausa, como se
estivesse a sopesar as suas próprias palavras. Depois, dirigiu-se a Marcus.
— O vosso pai não é um tipo de homem dado a exageros, mas custa-me a
crer no que ele disse no final. Esta coisa, a Pedra da Vida, está de alguma
forma ligada a todos os seres vivos de Midkemia. Se os pantathianos lhe
deitarem a mão, tentarão libertar a sua senhora, aquela que consideram uma
deusa, mas, fazendo-o, estarão a destruir todos os seres vivos deste mundo.
Tudo, disse-me ele, desde o mais poderoso dos dragões até ao mais
minúsculo dos insetos. Todo o nosso mundo seria reduzido a um lugar sem
vida, onde apenas passeariam os fantasmas regressados dos Senhores dos
Dragões.
Marcus abriu os olhos de espanto e olhou de relance para Calis. O
semielfo disse:
— Também o meu pai me alertou. Também ele não é dado a exagerar as
coisas. Deve ser verdade.
A voz de Marcus mais parecia um murmúrio. — Porque é que estes
pantathianos fariam tal maldade? Também morreriam?
— Eles são um culto da morte — explicou Nicholas. — Veneram a
valheru que lhes deu forma e inteligência, pois, anteriormente, não
passavam de serpentes. — Abanou a cabeça, incrédulo com o que ele
próprio afirmara. — Quem me dera ter sabido disto antes de o Pug ter
partido. Há questões que gostaria de colocar. Seja como for, eles acham que
ela virá para governar tudo e que eles ascenderão ao seu lado, enquanto
semideuses, e todos os que partiram antes, todos os que morreram, também
irão aparecer, como seus servos.
»Mesmo que soubessem a verdade, não temem a morte. Dariam as boas-
vindas à destruição do mundo para evocar a «deusa» deles. Agora
compreendeis porque temos de seguir em frente, mesmo que alguns de nós
pereçam na causa?
As últimas palavras foram dirigidas diretamente a Marcus, que anuiu. —
Compreendo.
— Então sabeis quando é que a obediência cega se torna uma idiotice? —
perguntou Calis, após o que sorriu.
— Percebeis que não pode haver disputas entre nós?
Marcus ergueu-se. — Sim — respondeu. Estendeu a mão. Apertaram as
mãos e de repente Nicholas viu nele um sorriso enigmático idêntico ao do
seu próprio pai. — Mas quando isto terminar, e a Abigail estiver em casa,
em Crydee, em segurança, mantende-vos atento, Príncipe do Reino.
O desafio foi feito meio a brincar e meio a sério, e Nicholas encarou-o
como tal. — Quando ela estiver em casa em segurança, com a vossa irmã e
os restantes.
Voltaram a apertar as mãos e Nicholas e Marcus saíram do camarote.
Calis olhou de relance para Amos, que mostrava um sorriso tímido. — O
que é que achais tão divertido, Capitão?
Amos suspirou. — Estou apenas a apreciar um par de rapazes a
tornarem-se homens, meu caro. O destino do mundo talvez dependa do que
façamos, mas ainda assim eles encontram tempo para competir por uma
rapariga bonita. — A sua expressão tornou-se então sombria, quando rugiu
para Calis. — E se tornardes a entrar sem autorização no meu camarote,
penduro as vossas orelhas na minha porta como troféu! Compreendido?
Calis sorriu. — Compreendido, Capitão — afirmou.
Sozinho no seu camarote, Amos Trask recordou os dias sombrios da
Guerra da Brecha e da Grande Ascensão que se seguiu. Morreram muitas
pessoas que conhecera, a bordo do seu barco Sidónia, durante o cerco de
Crydee, e mais tarde quando o Andorinha Real foi incendiado por trasgos e
ele e Guy du Bas-Tyra foram capturados. Depois, seguiram-se os anos em
Armengar e o permanente estado de guerra entre o povo de Briana e os
elfos negros nas terras do Norte, que culminaram na Batalha de Sethanon.
Suspirando com essas memórias, Amos Trask dirigiu uma pequena
oração a Ruthia, a Deusa da Sorte, seguida da injunção:
— Não permitis que suceda de novo, sua bruxa caprichosa.
Pensar em Briana deixou-o triste, e esperou que Martin recuperasse.
A seguir, impaciente com todas aquelas recordações e pensamentos
mórbidos, obrigou-se a levantar-se da cadeira e saiu do camarote. Tinha um
navio para capitanear.
9

Porto Livre

A
rapariga teve um acesso de choro.
— Podeis calar-vos, por favor? — pediu Margaret. O seu tom
de voz não era ameaçador, nem autoritário; tratava-se somente de
um pedido para uma pausa nas quase constantes lamúrias e choros de uma
ou outra das raparigas, ou rapazes, da vila.
A filha do Duque Martin deu luta durante todo o caminho, durante o qual
foi transportada como um troféu de caça até ao barco que aguardava no
porto. Tinha gravada na mente a imagem da mãe deitada de cara para baixo
no castelo da família, com as chamas a iluminarem o corredor mais
distante, e isso deixou-a ainda mais furiosa.
Os dias que se seguiram não foram menos tormentosos, mesmo não
passando de uma mancha difusa. Os prisioneiros foram divididos por
idades, desde os sete, oito anos até uns quantos já perto dos finais dos vinte.
A maioria tinha entre doze e vinte e dois anos, eram jovens, fortes e sem
dúvida alcançariam um bom preço nas docas de escravos em Durbin.
Margaret não duvidava de que estes assassinos iriam deparar-se com uma
armada real à espera para os intercetar entre os Estreitos das Trevas e
Durbin. O pai dela de certeza que teria feito chegar a informação ao tio
dela, o Príncipe Arutha, e seria salva juntamente com todos os outros
prisioneiros. Por isso, até a ajuda chegar, concentrou-se em proteger aqueles
que a rodeavam.
A primeira noite fora a pior. Foram todos enfiados juntos nos cárceres de
dois enormes navios, ancorados no horizonte de Crydee. Uns quantos dos
barcos mais pequenos já tinham partido, mas a maioria estava ao largo em
águas profundas, com as tripulações a encherem os conveses das
embarcações maiores para a viagem rumo ao seu destino. Margaret já
estivera em barcos suficientes para saber que não poderiam estar a viajar
para longe, pois não via por perto provisões que chegassem para as
tripulações e prisioneiros.
Abigail alternava entre sestas irregulares com a mente atormentada pelos
horrores que testemunhara e especulações assustadoras sobre o que lhes
reservava o destino. Por vezes, mostrava alguma vivacidade, mas muito
rapidamente desabava sobre ela o peso do que a rodeava, reduzindo-a a
lágrimas e, por fim, ao silêncio.
Após o primeiro dia, foi estabelecida uma espécie de ordem, pois os
prisioneiros arrumaram o melhor que puderam os seus aposentos exíguos.
Não havia privacidade e toda a gente foi obrigada a aninhar-se num canto
do cárcere para dar espaço à pilha de dejetos humanos que se acumulava no
fundo do porão. O fedor tornara-se uma presença implícita no fundo da
consciência de Margaret, desagradável, mas nada mais do que isso, tal
como o omnipresente ruído de fundo do casco de madeira a ranger, de
pessoas a chorar ou a praguejar, e das conversas em voz baixa. O que a
preocupava eram os prisioneiros com problemas de estômago ou
constipações e febre. Não se estavam a dar bem com as restrições do
cativeiro, e ela tentou pô-los bem mais confortáveis. Ordenou aos que
estavam aprisionados para que se movimentassem, de forma a que os
doentes dispusessem de um pouco de conforto. Entre a sua posição e a sua
confiança nata, obedeceram-lhe sem reservas.
Uma das raparigas mais velhas da vila murmurou:
— Eles são os sortudos. Vão morrer em breve. Os restantes de nós
estamos condenados à escravidão ou à prostituição para o resto da vida.
Bem podemos habituar-nos à ideia: não vai chegar ajuda.
Margaret voltou-se e deu uma forte bofetada na cara da mulher. De olhos
semicerrados, impôs-se sobre a mulher agora aninhada de medo. — Se mais
alguém volta a proferir essa ladainha, arranco-lhe a língua.
Ouviu-se uma outra voz, esta masculina. — Minha senhora, sei que agis
de boa-fé, mas nós presenciámos o ataque! Todos os nossos soldados
morreram. De onde poderá vir a ajuda?
— Do meu pai — afirmou ela com convicção. — Ele regressará da sua
caçada e enviará de pronto notícias para Krondor, e o meu tio, o Príncipe,
terá toda a armada de guerra krondoriana à nossa espera antes que
aportemos em Durbin. — Depois, o tom de voz dela suavizou, para se
tornar implorativo. — Temos de aguentar. Só isso. Apenas sobreviver e, se
pudermos, ajudarmo-nos mutuamente a sobreviver.
— Peço perdão, minha senhora — disse a mulher que manifestara as suas
incertezas.
Margaret nada disse, mas afagou o braço da mulher de modo
conciliatório. Sentando-se no espaço exíguo que lhe coube em sorte,
Margaret viu Abigail de olhar fixado em si.
— Achais mesmo que nos irão encontrar? — sussurrou Abigail, com
uma ténue esperança a começar a evidenciar-se no seu olhar.
Margaret limitou-se a assentir, mas mentalmente disse para si própria:
Espero que sim.

U m som de algo a raspar despertou Margaret. Durante o dia, a luz


entrava pela escotilha gradeada, a única fonte de oxigénio no de outro
modo fétido cárcere. De noite, o débil luar fazia incidir uma luz ténue em
parte do cárcere, enquanto o resto permanecia numa escuridão total.
Margaret voltou a escutar o arranhar e viu lá em cima um fio de luz do luar.
Viu uma corda a ser lançada e o contorno de uma figura a descê-la. Um dos
salteadores aterrou entre dois prisioneiros adormecidos, com um punhal
entre os dentes.
Dirigiu-se a uma jovem ali perto e colocou-lhe a mão sobre a boca. Os
olhos dela arregalaram-se de espanto e tentou afastar-se, mas foi mantida no
lugar pelos corpos ao seu lado e pelo peso do homem. Ele sussurrou-lhe ao
ouvido: — Tenho uma faca, queridinha. Um som e é morte certa,
percebestes? — A rapariga aterrorizada mirou-o com olhos arregalados e
luminosos naquela luz débil. Ele encostou-lhe a ponta do punhal à barriga.
— Ou vos espeto com isto ou com algo mais amistoso — avisou. — Para
mim é igual.
A rapariga, ainda quase uma criança, não logrou reagir devido ao medo.
Margaret levantou-se, equilibrando-se enquanto o barco subia e descia ao
transpor a ondulação. — Deixai-a em paz — sussurrou. — Ela não
compreende aquilo de que os homens gostam.
O homem voltou-se, apontando o punhal a Margaret. Todos os
prisioneiros usavam as mesmas vestes: uma única peça de tecido com um
buraco para enfiar a cabeça e amarrada na cinta. Margaret desapertou a tira
que tinha à cinta e despiu a roupa, ficando nua. O homem hesitou,
nitidamente capaz de ver o gesto dela na luz débil. Sorrindo ao potencial
violador, ela deu um passo em frente para o luar, para que ele a pudesse ver
melhor. — Ela é uma criança. Iria limitar-se a ficar deitada — realçou ela.
— Vinde até mim e mostrar-vos-ei como montar o belo pónei.
Mesmo não sendo uma rapariga bela, Margaret era ainda assim atraente,
e anos a cavalgar, a caçar e um estilo de vida invulgarmente rigoroso
deixaram-na com um corpo firme e em forma, que exibiu em todo o seu
esplendor ao manter-se ali em pé de modo ostensivo. Sob a luz débil, tinha
um ar nitidamente convidativo, com os ombros atirados para trás e um
sorriso encorajador.
O homem fez um sorriso rasgado, revelando dentes enegrecidos por
cáries ao soltar a rapariga que ameaçara. — Boa — disse ele. — Matar-me-
iam por me meter com uma virgem, mas é óbvio, minha querida, que isto
para vós já não é novidade. — Aproximou-se dela, com o punhal à frente.
— Agora, não façais barulho e aqui o velho Ned vai dar-vos o melhor que
tem para dar — disse —, e ambos passaremos um bom bocado. E depois eu
subo e o meu amigo pode descer para vos saltar também para cima.
Margaret sorriu e estendeu a mão para lhe tocar ternamente na bochecha.
E então, agarrou de repente o punho da mão onde ele segurava a faca e
baixou a outra mão para lhe dar um forte apertão no meio das pernas. Ned
uivou de dor. Apesar de ser maior do que a rapariga, não era muito mais
forte e não conseguiu libertar-se daquele aperto doloroso.
Os prisioneiros começaram a gritar. Rapidamente, um par de guardas e
um esclavagista desceram pela corda. Os guardas afastaram o candidato a
violador. O esclavagista olhou para a rapariga despida e para Ned. —
Levai-o para cima para o convés — ordenou. — E prendei o que o deixou
abrir a escotilha. Prendei-os, fazei-lhes golpes profundos nos braços e
pernas para que sangrem e atirai-os aos tubarões. Farei saber que ninguém
pode desobedecer às nossas ordens e permanecer impune.
Foi baixada outra corda e os dois guardas içados pelos que estavam no
convés, cada um deles segurando firmemente o soluçante Ned.
O esclavagista voltou-se para Margaret. — Ele magoou-vos? —
perguntou.
— Não.
— Possuiu-vos?
— Não — respondeu ela.
— Então tapai-vos. — O esclavagista voltou-se quando foi baixada mais
uma daquelas cordas. Rapidamente, os prisioneiros ficaram de novo a sós.
Margaret deu com os seus olhos fixados na ténue língua de luar enquanto o
esclavagista trepava por ela. A escotilha gradeada arranhou sonoramente e
encaixou com estrondo no seu lugar, com um tom definitivo que sublinhou
o desamparo deles.

O barco lançou âncora uma semana após o ataque e vozes lá em cima


gritaram aos prisioneiros que se preparassem para sair. A escotilha foi
retirada para o lado e baixada uma escada de corda. A semana com toda a
gente amontoada e escassa comida e água tivera o seu custo; quando
Margaret ajudou os prisioneiros de pernas vacilantes a subirem a escada,
começou a reparar nos que haviam morrido durante a noite. Todas as
manhãs, um par de esclavagistas descera para agarrar nos que haviam
morrido e levá-los para um lugar sob a escotilha onde estava pendurada
uma corda com um laço. Prendiam a corda sob os braços do morto e eles
eram içados. Um dos homens referira que havia sempre tubarões a seguir o
barco, e então ela percebera porquê.
Margaret estava a ajoelhar-se ao lado de dois cidadãos, um homem e uma
mulher, demasiado fracos para subirem a escada de corda. Sentiu uma mão
dura a tombar-lhe sobre o ombro. — Estais doente? — ouviu-se uma voz.
Sem tentar ocultar o seu desprezo por aqueles homens, respondeu:
— Não, porco, mas estes estão.
O esclavagista que tinha a mão no ombro dela empurrou-a na direção da
escada. — Já para o convés. Nós tratamos deles.
Enquanto subia a escada, viu um outro esclavagista ajoelhar-se ao lado da
mulher e, com um movimento rápido, envolveu-lhe uma corda na garganta.
Enrolou-a uma vez e esmagou a traqueia da mulher. Ela contorceu-se,
estremeceu e morreu.
Margaret olhou para cima, recusando-se a ver o homem morrer. O céu
azul lá em cima era ofuscante após aquela semana na escuridão, pelo que os
que já estavam no convés não se aperceberam das lágrimas dela.
Abigail manteve-se perto de Margaret quando foram encaminhados
lentamente para a amurada. Uma dúzia de escaleres, com mastros dobrados
a meio, aguardava-os, com quatro remadores em cada. Os prisioneiros
rastejaram por redes penduradas na borda e, quando havia vinte em cada
barco, eram levados para terra.
Margaret desceu a escada, com os braços e pernas a tremer devido ao
esforço. Quando chegou ao barco, uma mão percorreu-lhe a perna quando
um marinheiro a ajudou a descer. Ela esperneou e o homem esquivou-se
facilmente com uma gargalhada grosseira. Olhou de relance e viu Abigail a
encolher-se para evitar outro homem que lhe acariciava o peito através da
túnica. — Deixai as raparigas em paz, Striker — ouviu-se uma voz
ameaçadora oriunda do convés.
Rindo-se, o homem acenou-lhe. — Não estragamos a mercadoria,
Capitão. É só uma brincadeira inofensiva.
Falando baixinho, o homem murmurou:
— Maldito seja Peter, o Temível, se esta não é a última vez que navego
com ele. Belezas maduras para agradar ao coração de um cliente de bordéis
de Durbin e nem um beliscão no traseiro, ou é-se logo lançado por cima da
amurada para dar de comer aos tubarões.
— Calai essa matraca — disse um outro homem —, é mais ouro do que
aquele que vereis em toda a vossa vida. Tereis o suficiente para gastar em
pegas até não poderdes andar mais, e ainda vos sobrará. Vale a pena que vos
comporteis em condições.
Foram levados nos barcos a remos até à praia e constataram que os que
tinham seguido à frente haviam sido conduzidos na direção de um edifício
tosco numa ilha que, de resto, parecia deserta. Margaret e Abigail estavam
no grupo que entrou por último e, assim que as enormes portas se
encerraram atrás delas, observaram o seu novo abrigo. Não havia nada lá
dentro além de pessoas miseravelmente despejadas: apenas um chão sujo
onde se sentarem e a luz que entrasse pelas brechas entre as paredes feitas
de troncos de madeira. Bastou a Margaret uma rápida vista de olhos para
perceber que a maioria dos que ali estava dentro se encontrava doente. Com
a perfeita noção de qual seria o destino dos que estavam doentes, ela disse:
— Prestai atenção!
A voz dela impôs-se aos murmúrios e aos soluços e os que estavam perto
olharam na direção dela. — Sou Margaret, filha do Duque. — Depois de
olhar em redor, prosseguiu: — Alguns de vós estais doentes. Os que não
estão devem ajudar-vos. Levai-os para junto daquela parede ali. — Apontou
para a parede mais distante da porta. Alguns começaram a mover-se
hesitantemente. — Vamos lá!
Os que mal se aguentavam de pé foram ajudados a deslocarem-se para a
parede mais distante, e depois a própria Margaret dirigiu-se para lá.
Percorreu toda a parede. — O que estais a fazer? — perguntou Abigail.
— A ver se a terra inclina.
— Porquê?
— Precisamos de uma vala isolada, para não acabarmos a dormir na
imundície. Assim, mais de nós sobreviverão. — Chegou à parede mais
distante e começou a percorrê-la. — Aqui — disse, por fim, apontando para
uma depressão sob a parte de baixo do tronco, onde se via luz. — Escavai
aqui.
— Minha senhora — disse um homem sentado junto à base da parede —,
não temos ferramentas para escavar.
Deixando-se cair de joelhos, Margaret escavou com as mãos o solo
arenoso e pouco firme. Depois de a observar por uns momentos, o homem
voltou-se e começou a retirar mãos-cheias de terra. Rapidamente, mais uma
dúzia se juntou a eles.
Constatando que o trabalho estava em marcha, Margaret regressou à
porta e começou a gritar: — Guarda!
Do outro lado, ouviu-se a voz áspera de um homem. — O que é?
— Precisamos de água.
— Vão tê-la quando o capitão der ordem.
— Está a morrer propriedade valiosa. Dizei isso ao vosso capitão.
— Não vou dizer nada — foi a resposta.
— Então, vou dizer ao primeiro oficial que aqui vier que tentastes violar
uma das raparigas.
— Ah!
— E terei uma dúzia de testemunhas.
Fez-se um prolongado silêncio e depois o enorme ferrolho foi corrido e a
porta abriu-se ligeiramente. Foi passado um cantil de pele. — Tereis mais
quando a trouxerem — disse o guarda. — Até lá, esta tem de chegar.
Sem agradecer, Margaret pegou no cantil e passou-o aos prisioneiros
doentes.

N os dez dias seguintes aguentaram a reclusão, amontoados uns juntos


dos outros, sem o mínimo de conforto. Juntaram-se-lhes outros
prisioneiros e, pelos relatos destes, Margaret percebeu que Carse e Tulan
também tinham sido atacadas. Segundo todos os relatos, a guarnição de
Tulan na ilha na foz do rio conseguira resistir, mas o Castelo de Carse tivera
o mesmo destino de Crydee, embora a cidade se tenha desenrascado melhor.
Abigail caiu numa profunda depressão quando ninguém de Carse foi capaz
de lhe dizer se o seu pai sobrevivera. Margaret sentiu regressar a dor pela
morte da mãe, mas pôs os seus sentimentos de lado para se concentrar em
tratar dos outros. Todos os prisioneiros estavam agora imundos e num
estado deplorável. Pelo menos uma dúzia morrera e fora levada embora. A
vala que fora aberta ajudou a evitar que as doenças se disseminassem,
embora o cheiro nauseabundo e as moscas fossem difíceis de suportar.
Margaret rasgou tiras da bainha do seu vestido para tapar feridas que não
saravam, deixando a roupa dela toda rasgada nos joelhos.
No décimo primeiro dia, tudo mudou.
Entraram os seis esclavagistas de Durbin, acompanhados por uma dúzia
de guardas, homens de preto com os rostos escondidos e que traziam uma
grande quantidade de armas. Os esclavagistas colocaram-se no centro do
grande edifício, prontos para iniciarem a inspeção diária aos escravos.
De repente, os doze homens vestidos de negro pegaram nos seus arcos e
dispararam contra os esclavagistas. Muitos dos prisioneiros gritaram e
empilharam-se contra a parede, receosos de que a matança prosseguisse,
enquanto outros ficaram sentados, horrorizados e petrificados.
Entrou outra companhia de homens no edifício e um deles gritou: —
Prisioneiros lá para fora!
Os que estavam mais perto da porta apressaram-se a sair e Margaret
ajudou alguns dos doentes que ainda conseguiam andar. Pestanejando face à
luz intensa, assimilou o cenário que tinha à sua frente. Estava ali um grupo
de homens diferentes de quaisquer outros que Margaret alguma vez tivesse
visto na vida. Usavam turbantes iguais aos dos homens do deserto de Jal-
Pur, mas muito maiores. Os turbantes eram brancos e todos tinham sobre a
testa pedras preciosas de dimensões e cores inacreditáveis. Túnicas de seda
demonstravam que aqueles homens eram ricos e com altos cargos. Falavam
keshiano, mas com um sotaque diferente de qualquer um que Margaret já
tivesse ouvido, e recorriam frequentemente a palavras que ela nunca lera
quando estudou a língua. Atrás deles havia homens armados, mas, em vez
dos piratas andrajosos que tinham guardado os prisioneiros na primeira
parte da viagem, estes eram soldados, vestidos da mesma forma que um
homem: túnicas e calças pretas e lenços vermelhos, amarrados em volta da
cabeça. Todos tinham espadas curvas e um escudo redondo, preto, com uma
serpente dourada lá pintada.
Inspecionaram os prisioneiros, dividindo-os entre os que estavam em
condições e os que não estavam. Uma dúzia mostrou-se demasiado doente
para viajar e, depois de todo o grupo de prisioneiros ter sido examinado,
foram de novo encaminhados para o edifício. Não demorou muito a que
gritos vindos do interior, rapidamente interrompidos, tenham evidenciado
qual havia sido o seu destino.
Os restantes prisioneiros foram levados para a água e disseram-lhes que
se despissem e lavassem. A água do mar pouco conforto proporcionou, mas
Margaret ficou satisfeita por se livrar da sujidade. Quando se estava a lavar,
avistou um barco.
Abigail acocorou-se na água rasa, tentando ignorar os comentários dos
guardas ali perto. Mesmo suja e com o cabelo cheio de porcaria, era sem
dúvida uma beldade. Margaret falou em voz baixa. — Já alguma vez vistes
um barco como aquele?
Emergindo da sua introspeção, Abigail focou o olhar na embarcação. —
Não, nunca — disse por fim.
Com o dobro do tamanho de qualquer navio do Reino, avançava
facilmente ao largo sobre as vagas altas. Era um barco preto, com as
cobertas da proa e da popa elevadas, e quatro mastros altos. — Parece uma
galé de Queg, mas não tem bancos de remadores. É gigantesco.
Dezenas de embarcações avançavam pela força dos remos na direção da
praia e Margaret percebeu que todos os restantes prisioneiros iam ser
levados para aquele navio. Uma dúzia de escaleres já estava na praia a
carregar os primeiros prisioneiros.
Levou quase todo o dia, mas, por volta do pôr-do-sol, o navio preto
levantou âncora e deu início à viagem.
Nas profundezas do cárcere do barco, Margaret e as outras mulheres
foram levadas para bombordo do navio, na coberta – das três existentes –
que ficava mais abaixo. Foram disponibilizadas enxergas individuais para
as prisioneiras, com espaço em volta para se mexerem. Foram colocadas em
frente a cada uma das enxergas e ordenaram-lhes que retirassem a roupa.
Satisfeita por se ver livre dos trapos nojentos, Margaret obedeceu de pronto.
Abigail hesitou e quando deixou cair a túnica na cobertura, rapidamente se
tentou tapar.
— Abby — disse Margaret num tom severo —, se receais pelo vosso
pudor, isso dá a estes animais mais uma arma para usarem contra vós.
Os olhos de Abigail estavam bem abertos de medo quando respondeu. —
Não sou forte como vós, Margaret. Lamento.
— Sois mais forte do que pensais. Deveis manter o queixo bem erguido!
Abigail quase deu um pulo quando um homem com uma ardósia se
aproximou dela. — O vosso nome — quis ele saber.
— Abigail — respondeu ela em voz baixa.
— Qual é a vossa gente? — perguntou o homem, com um tom estranho
na voz e o seu sotaque desesperadamente familiar a Margaret.
— Sou a filha do Barão Bellamy de Carse.
O homem fitou-a. — Ide para ali — ordenou.
A rapariga nua, abraçada a si própria, dirigiu-se atabalhoadamente para
um lugar na ponta mais distante do cárcere. O homem repetiu a pergunta a
Margaret e, sem ver grande vantagem em mentir, ela revelou-lhe o seu
verdadeiro nome. Tal como Abigail, foi enviada para a ponta mais distante
do cárcere. Ficou a observar enquanto decorria o interrogatório. Todas as
prisioneiras foram examinadas minuciosamente por um par de homens que
entretanto tomaram notas nas suas ardósias. Tatearam e espetaram o dedo
como se fossem médicos e as prisioneiras foram obrigadas a aguentar o
exame em silêncio. Quando os homens terminaram, deram a cada uma das
prisioneiras uma túnica limpa. Surgiram depois elementos da tripulação que
começaram a prender correntes em volta dos tornozelos das detidas,
cingindo-as aos pés das enxergas, com folga suficiente para que se
conseguissem movimentar um pouco em redor, mas sem hipóteses de
escaparem ao cárcere.
Foram então ter com Margaret e Abigail. — Vós, acompanhai-nos —
disseram.
As raparigas subiram uma escada para a cobertura seguinte e percorreram
uma estreita escada de ligação do convés às camaratas. Até Margaret tentou
ocultar a sua nudez quando passaram defronte de mais de uma dúzia de
homens mal-intencionados. Quando entraram num grande camarote, o
homem que as guiava disse-lhes:
— Procurai algo que vos sirva.
Estava disposta pelo quarto uma seleção de roupas requintadas. As
raparigas não demoraram a encontrar vestuário que lhes servisse e vestiram-
se, satisfeitas por estarem de novo tapadas. Eram vestidos simples, mas de
qualquer modo uma grande melhoria face às batas que tinham sido
obrigadas a usar desde que haviam sido capturadas.
O homem levou-as então a um grande camarote na popa da embarcação.
Lá, aguardavam-nas dois homens. Levantaram-se respeitosamente quando
as duas raparigas entraram e fizeram sinal para que se sentassem no divã.
— Minhas senhoras — disse um com um sotaque estranho —, estamos
deleitados por ter na nossa companhia pessoas da vossa posição. Podemos
oferecer-vos vinho?
Margaret olhou para a pequena mesa cheia de fruta e queijo, pão e
carnes, e uma garrafa de estanho com vinho fresco. — O que pretendeis? —
perguntou, apesar de estar esfomeada.
Com um sorriso nada amistoso, ele respondeu:
— Informações, minha senhora. E ides prestá-las.

–T erra à vista! — gritou o vigia.


Amos olhou para cima, protegendo os olhos devido ao Sol
poente. — Em que direção? — perguntou.
— Dois graus a bombordo da proa! — ouviu-se em resposta.
Amos desceu apressadamente a escada em direção ao convés principal e
atravessou o castelo da proa. Subiu depois a escada para a proa, onde
Nicholas e os outros estavam a observar. Tinham-se reunido ali aos poucos
desde o meio-dia, pois Amos revelara que esperava avistar em breve as
Ilhas do Ocaso.
— Já lá vão mais de trinta anos — refletiu Amos. — Não me admira que
tivesse passado ao lado.
Nicholas sorriu. — Dois graus é passar ao lado?
Amos acenou com a mão num gesto de desdém. — Deveria estar mesmo
à frente. Agora tenho de rodar tudo para sul, para compensar.
— E isso é problemático?
— Não, mas é ofensivo para a minha noção de elegância. — De seguida,
gritou para o vigia: — Avistais um pico solitário?
— Sim, Capitão — ouviu-se em resposta. — Uma montanha retorcida
com um pico parecido com uma lâmina partida.
— Ótimo — exclamou Amos, antes de se voltar para o leme. — Cinco
graus para bombordo, Sr. Rhodes.
— Sim, Capitão — respondeu este.
— Capitão, quem mesmo é que vive ali? — perguntou Harry.
Amos suspirou quando as recordações começaram a fluir. — De início,
havia uma miserável guarnição keshiana, um bando de Soldados-Cães com
oficiais imperiais e um par de pequenos barcos. Quando Kesh retirou da
província de Bosania – Crydee e as Cidades Livres de Yabon –,
evidentemente que esqueceram esta pequena guarnição.
»Os anos passaram e ninguém sabe se os soldados se revoltaram e
mataram os seus oficiais ou se os oficiais os levaram, mas por volta da
época em que o bisavô do Nicholas estava a tentar conquistar Bosania, este
pequeno bando de felizes degoladores começou a fazer pilhagens. Por
norma, atacavam navios mercantes longe de Elarial de Kesh e da Costa
Extrema, idos ou vindos de Queg, do Reino e de Kesh.
— De tempos a tempos, atacavam Tulan — acrescentou Marcus.
— E porque é que o Rei ou o Imperador de Kesh não se livraram deles?
— indagou Harry.
— Ah! — Amos riu-se. — Achais que não tentaram? — Esfregou o
queixo. — Olhai para aquela ilha ali adiante. — Apontou para o pico. —
Para lá desta, há mais uma dúzia de grandes ilhas e uma centena de
pequenas. Esta área integra um enorme conjunto de ilhas que se estende até
ao ocidente longínquo, terminando num grande arquipélago. — Harry ficou
abismado. — Uma vasta cadeia de ilhas, mais de um milhar delas, um mês
de navegação a partir deste ponto. Algumas são enormes, talvez com mais
de cento e cinquenta quilómetros de uma ponta à outra. Ninguém sabe
quem vive na maioria delas. Outras, como Skashakan, são bem conhecidas.
Foi onde o nosso amigo Render naufragou.
»Haverá talvez mais de quinhentas ilhas espalhadas desde aqui até ao
arquipélago, algumas não passam de bancos de areia, e há apenas uma com
um porto com profundidade suficiente para um navio como este: Porto
Livre.
»Se um mero barco de guerra do Reino for avistado, encontrará uma
receção muito calorosa em Porto Livre. Recordais aquelas pinaças com as
quais eles costumavam atacar Crydee? Para navegarem não precisam de
uma profundidade de mais de metro e meio de água: por isso, se
aparecermos com uma armada, quando chegarmos a Porto Livre, já toda a
gente fez as malas e fugiu. Podemos incendiar a cidade de alto a baixo,
tanto Kesh como o Reino já o fizeram em alturas diferentes, que eles
reconstroem-na mal viremos costas.
»Não, os piratas de Porto Livre são piores do que baratas: podemos matá-
los em grandes quantidades, mas não conseguimos livrar-nos deles.
Virando costas, gritou ordens ao primeiro imediato: — Reuni a
tripulação, Sr. Rhodes!
Enquanto Amos se dirigia ao tombadilho superior, o primeiro imediato
gritou:
— Toda a gente ao convés!
A ordem foi passada e rapidamente a tripulação se juntou no convés
principal, com Nicholas e os companheiros a escutarem a partir da coberta
da proa. Amos observou a tripulação. — Homens, conheço-vos a todos,
exceto aos soldados de Crydee que concordaram em acompanhar-nos, e
fostes escolhidos a dedo pelo Duque. Confio em todos vós. Se tivesse
dúvidas, não estaria aqui.
»A partir deste momento, já não sois homens do Reino. Sois piratas,
acabados de chegar do Porto de Margrave. Aqueles que nunca aqui
estiveram, informem-se com os outros; é uma cidade bastante pequena e
não há muito para ver. Se não recordardes a descrição, mantende a boca
calada quando chegardes a Porto Livre.
Fitou-os a todos individualmente. — Em breve estarão face a face com
homens que mataram os vossos companheiros marinheiros e soldados, os
vossos amigos e parentes. Irão desejar estrangular os sacanas, mas não o
podeis fazer. Porto Livre é governado por leis tão estritas como as de
Krondor, mas tem de longe uma justiça mais implacável. O Xerife de Porto
Livre é a lei na cidade, e só responde perante o Conselho dos Capitães, e
isso raramente sucede. As disputas são decididas pelas lâminas e não são
permitidas escaramuças. Portanto, se vos deparardes com o filho da mãe
que matou o vosso irmão, sorri-lhe e tende noção de que mais cedo ou mais
tarde chegará a hora dele.
»Não estamos aqui pela vingança. Estamos aqui para encontrar a filha do
Duque Martin e os outros rapazes e raparigas roubados de Crydee. Estamos
aqui para encontrar os vossos filhos, ou os filhos dos vossos amigos.
»Se algum homem aqui achar que não consegue controlar-se, então não
desembarque, pois juro que enforco aquele que iniciar uma rixa, e se
fracassarmos no resgate dos miúdos, ele irá também arder no Inferno.
O aviso dele não era necessário, pois os homens estavam determinados
em resgatar todos os prisioneiros ou morrer ao tentar fazê-lo. Amos sorriu.
— Muito bem. Agora, o primeiro filho da mãe de entre vós que me chamar
almirante será chicoteado da popa até à proa, estamos entendidos?
No meio de uma grande galhofa, um dos homens respondeu:
— Sim, Capitão!
Amos esboçou um largo sorriso. — Sou o Capitão Trenchard! A Adaga
dos Mares! Naveguei pelos Estreitos das Trevas no Dia do Solstício do
Inverno! O meu navio é o Raptor e já o levei aos Sete Infernos Inferiores,
bebi cerveja com Kahooli e velejei de volta para casa. — Os homens riram-
se e aplaudiram a bazófia. — A minha mãe era um dragão marinho, o meu
pai um relâmpago e eu danço uma dança de marinheiros sobre as caveiras
das minhas vítimas! Lutei com o Deus da Guerra e beijei a própria morte.
Os homens tremem só de ver a minha sombra e as mulheres desmaiam ao
escutar o meu nome, e não há ninguém que possa chamar-me mentiroso.
Sou Trenchard, a Adaga dos Mares.
Os homens riram, deram vivas e aplaudiram.
— Agora, desfraldem a Insígnia Negra e todos aos vossos lugares —
ordenou Amos. — Neste preciso momento estamos a ser observados. —
Apontou para o pico distante.
— Turno de dia em baixo! — gritou Rhodes. — Turno da noite em cima!
Um dos homens foi à parte de baixo e regressou com uma enorme
bandeira preta que fora cosida segundo as instruções de Amos em Crydee.
Içaram-na no mastro principal, onde se agitou ao vento.
Nicholas olhou para a bandeira, com uma caveira branca sobre um fundo
preto, e atrás da caveira uma comprida adaga apontada para baixo, com
uma pedra de rubi suspensa no topo. Nicholas olhou para Harry, Calis e
Marcus e deu com eles especados a fitar o padrão. Nakor mostrava um
sorriso rasgado, e tanto Anthony como Ghuda permaneciam impassíveis.
— É muito estranho… — comentou Harry. — Ele não estava a
representar, pois não?
Nicholas abanou a cabeça. — Acho que o Amos diria que teve uma
infância muito complicada.
— Bem me pareceu que já o conhecia do palácio — disse Ghuda.
— Como assim? — inquiriu Nicholas.
— Eu estava em Li Meth numa ocasião em que ele atacou — contou
Ghuda. — Vi-o desde o outro lado da barricada. — Ghuda abanou a cabeça.
— Velhas recordações. — Olhou por cima do ombro para a ilha cada vez
mais próxima, que o navio deveria deixar à sua esquerda. — Vi um clarão
lá em cima, há pouco. — Apontou para o pico.
— Vigia — disse Marcus.
— Sem dúvida — confirmou Ghuda.
— Estou aqui a pensar que tipo de receção nos aguardará em Porto
Livre?
— Rapidamente vamos descobrir — respondeu Nakor, com a sua
habitual descontração.

C hegaram à entrada do porto quando o Sol começava a baixar. Amos


metera todas as velas nos rizes, exceto os joanetes, e o Raptor entrou
majestosamente em Porto Livre. O porto era uma enseada oval cercada por
praias de coral, com uma montanha íngreme a erguer-se ali perto, que se
impunha como uma mão gigante em rocha negra, protegendo o porto do céu
laranja e púrpura, com nuvens pretas, cinzentas e prateadas, pois ocultava o
Sol poente. Em redor do porto havia construções toscas, com telhados de
colmo. Em cada quarteirão havia lanternas e tochas, pois a vida noturna de
Porto Livre começava a fervilhar.
— Já ouvi falar de lugares como esta ilha — disse Ghuda.
— O que quereis dizer com isso? — quis saber Nicholas.
— Vistes como o pico se ergue num círculo quase perfeito em redor do
porto? — perguntou Ghuda.
— Sim? — respondeu Nicholas de modo interrogador.
— Isto já foi o coração de um vulcão.
Nakor assentiu. — Um grande vulcão. — Pareceu muito satisfeito com
tal facto. — Quase oitocentos metros de um lado ao outro.
Começaram a surgir luzes na encosta da montanha e Nicholas observou
fascinado a transformação num cenário brilhante. Foram recebidos por uma
brisa morna conforme o barco entrava vagarosamente no centro do porto.
Sete outros barcos de diferentes tamanhos, desde dois praticamente da
dimensão do Raptor a duas embarcações mercantes muito pequenas,
balouçavam suavemente ancorados no porto. Dirigindo-se à melhor posição
disponível, Amos mandou rizar as derradeiras velas e ordenou que se
lançasse a âncora. Uma brisa suave percorreu o porto, transportando o ténue
odor de especiarias e perfume para atormentar os sentidos. Vozes distantes
ecoaram ao longe, vindas de terra, mas o porto estava praticamente em
silêncio.
— Está muito sossegado, para tanta luz — comentou Marcus.
— Acho que estão à espera para ver se navegamos sob bandeira falsa —
disse Ghuda.
Quando o barco ancorou, Amos ordenou que baixassem um escaler, e a
tripulação apressou-se a obedecer. Ele ladrou insultos e ameaças e Nicholas
ficou surpreendido com a aspereza dos seus comentários, até perceber que
Amos representava na eventualidade de estar alguém em terra a escutar.
— Uma palavrinha a ambos — disse Ghuda. Marcus e Nicholas viraram-
se para o mercenário. — Já viajei bastante e vi muitos lugares como este —
começou Ghuda. — Somos estranhos e não vão confiar em nós. Não será
dado benefício da dúvida. É melhor arranjarem nomes comuns para vós,
pois não há dúvidas de que sois parentes.
Nicholas e Martin entreolharam-se. — Sou dono de terras junto à
povoação de Esterbrook — disse Nicholas. — Estive lá várias vezes.
Ghuda assentiu com a cabeça. — Marc e Nick de Esterbrook será. Quem
era o vosso pai? — perguntou de repente.
Foi Marcus quem respondeu, com um sorriso malicioso. — A minha mãe
não sabe.
Ghuda riu-se e na brincadeira deu-lhe uma palmada nas costas. — Muito
bem, Marc.
— Quem era a vossa mãe? — perguntou então a Nicholas.
— Meg de Esterbrook — respondeu Nicholas. — Era uma criada da
única estalagem da região, dirigida por um homem chamado Will, e ainda é
uma bela mulher que não sabe dizer não a um homem.
Ghuda voltou a rir-se. — Muito bem dito.
Dirigindo-se ao convés principal, juntaram-se a Amos, que exibia os seus
conhecimentos com um requintado conjunto de diatribes e insultos. Um par
de soldados alinhou no jogo, praguejando com recurso a uma série de
palavrões caso estivesse alguém nas docas a presenciar a cena.
— E vós, rapazes, tendes as vossas histórias alinhavadas? — perguntou
Amos assim que se instalaram no escaler.
— O Marc é o meu irmão mais velho — informou Nicholas. — Somos
de Esterbrook, não conhecemos os nossos respetivos pais, só a mãe.
— O Nick é um bocado lento — disse Marcus —, mas toleramo-lo, pela
nossa mãe.
Nicholas fez má cara ao seu irmão fingido. — Trata-se apenas da nossa
segunda viagem — disse. — Embarcámos no… — Hesitou, antes de
acrescentar: — Porto de Margrave.
Amos apontou então para Ghuda e Nakor. — Vós sois quem
efetivamente sois — afirmou. A seguir, esfregou o queixo. Ao olhar para
Anthony, que parecia pouco à vontade com calças e túnica e com um
enorme chapéu pendente na cabeça, Amos meditou. — Quem vamos dizer
que sois?
— O vosso curandeiro? — sugeriu Anthony.
Amos concordou. — Há coisas de que precisais?
Anthony mostrou uma expressão severa ao responder. — Há imensas
ervas, raízes e outros artigos que posso usar para sarar feridas. Posso ser
muito convincente indo às compras à cidade.
— Ótimo — disse Amos, que depois se voltou para Calis. — Não vos
deve ser difícil fazerdes de conta que sois um caçador de Yabon.
O jovem elfo assentiu. — Falarei a língua de Yabon caso haja
necessidade.
Amos sorriu abertamente. — Ora bem, se alguém perguntar, tudo o que
sabeis é que sou o Trenchard, e que regressei recentemente ao Mar Amaro.
Antes disso, posso ter navegado às ordens de Kesh ou do Reino, mas
ninguém tem a certeza. O melhor é não perguntar.
Todos assentiram e o silêncio impôs-se enquanto dois marinheiros
remavam em direção à doca. Uns minutos depois, chegaram a um cais
baixo, onde estava presa uma meia dúzia de barcos. Não havia ninguém à
vista quando amarraram o escaler e saíram para terra, subindo os degraus de
pedra até ao topo do molhe.
De súbito, ouviu-se uma voz. — Alto! Identificai-vos!
Espreitando para a escuridão, Amos bramiu:
— Quem quer saber?
Emergiu de entre dois edifícios um único vulto. Tratava-se de um homem
careca com um nariz aquilino, magro, mas de ombros largos. Mostrou uma
expressão de divertimento e falou numa voz grave e agradável. — Desejo
saber — acenou vagamente em volta —, assim como uns quantos amigos.
— Uma dúzia de homens armados dispôs-se de forma a cercar o grupo.
— Vamos com calma — sussurrou Amos quando foram erguidas bestas.
O homem careca avançou com determinação para se pôr defronte de
Amos. — Ostentais uma bandeira bem conhecida, amigo — afirmou —,
embora já não seja vista por estas águas há mais de trinta anos.
De repente, Amos desatou às gargalhadas. — Patrick de Duncastle!
Ainda não fostes enforcado? — E depois espetou um murro na cara do
homem e ele voou para trás e caiu de costas sobre as pedras duras do
molhe. Amos deu um passo em frente e apontou-lhe um dedo acusatório. —
E onde estão aqueles vinte reais de ouro que me deveis!?
— Ora! Olá, Amos — disse o homem, sorridente, enquanto esfregava o
queixo. — Pensei que estivésseis morto.
Amos passou por dois dos homens de Patrick, que tinham as armas
apontadas a ele, e estendeu o braço. Depois de ajudar o homem a levantar-
se, Amos abraçou-o e rugiu ruidosamente enquanto o apertava com força.
Voltou a pôr o homem no chão. — O que fazeis em Porto Livre? —
perguntou. — Ouvi dizer que passáveis armas aos revoltosos nas
Montanhas de Trollhome.
Agarrando Amos pelos ombros, Patrick respondeu:
— Por todos os deuses, isso já lá vai há muito tempo, há quase dez anos.
Hoje em dia sou o Xerife de Porto Livre.
— Xerife? Pensei que aquele diabólico estupor rodeziano… como é que
ele se chamava…? Francisco Galatos, fosse o Xerife.
— Isso foi há trinta anos. Já morreu, e mais dois depois dele. Sou o
Xerife há cinco anos. — Depois, baixou o tom de voz. — Por onde andastes
estes anos todos? Da última vez que ouvi falar de vós, andáveis a traficar
armas de Queg para a Costa Extrema.
Amos abanou a cabeça. — Falando do passado, é uma longa história, que
é melhor ser contada na companhia de uma caneca de cerveja ou de vinho.
Patrick deteve-se. — Amos, muita coisa mudou desde que estivestes aqui
pela última vez.
— Como assim? — perguntou Amos.
— Acompanhai-me. — Fez sinal aos seus homens para que escoltassem
os companheiros de Amos e todos se dirigiram do cais até uma pequena rua
paralela à margem. Enquanto percorriam a rua, pessoas da terra espreitavam
com curiosidade desde as janelas e das portas. Umas quantas mulheres
pintadas com cores garridas lançaram uma série de convites, na
eventualidade de não serem desde logo escolhidas. Estes comentários eram
por norma acolhidos sempre com gargalhadas apreciativas.
— Estes albergues não parecem ter mudado muito, Patrick — comentou
Amos. — Parecem os mesmos pardieiros de sempre.
— Esperai — limitou-se a dizer Patrick.
Chegaram ao topo de uma ampla avenida e dobraram a esquina. Patrick
de Duncastle apontou para a rua. — Aqui estamos — afirmou.
Amos parou e apreciou a paisagem. Tanto quanto a vista conseguia
alcançar, a rua apresentava-se delimitada por fileiras de edifícios com dois
ou três pisos, pintados e nitidamente bem tratados. Pela multidão que
andava apressadamente de um lado para o outro, era notório que Porto
Livre se tratava de uma comunidade movimentada. Ao longe, podiam ver a
estrada que serpenteava pela encosta da montanha.
— Não acredito, Patrick — confessou Amos.
Duncastle esfregou distraidamente o queixo, no sítio onde fora socado
por Amos. — Acreditai, Amos. Crescemos desde que aqui estivestes pela
última vez. Já não somos uma pequena aldeia com uma taberna e um
bordel, mas sim uma cidade. — Virando-se para percorrer a rua, fez sinal
aos outros para que o seguissem. — Não somos tão respeitadores da lei
como os do Reino, mas não somos mais desonestos do que a maioria das
cidades de Kesh, e provavelmente menos do que Durbin. Tenho cinquenta
homens armados a trabalhar para mim e somos bem pagos para manter a
ordem em Porto Livre. — Apontou para o edifício do outro lado da rua. —
Muitos dos mercadores de cá fazem negócios com o Reino, Queg e Kesh.
— Sem proveito para a alfândega, calculo — disse Amos com uma
ruidosa gargalhada.
Patrick sorriu. — Por norma. Outros, contudo, trabalham em sintonia
com as casas alfandegárias de Kesh e das Ilhas; arriscavam-se a perder
demasiado se tivessem a carga confiscada ao chegarem ao destino. E não é
preciso muito para alegar que a carga veio de outro sítio qualquer.
Gostamos que o papel de Porto Livre nessas transações seja discreto. Em
resultado disso, fazemos imenso negócio em transbordo de carga. —
Apontando para um dos muitos edifícios ainda em atividade, informou:
— Estais a olhar para o maior mercador independente de especiarias a
norte da cidade de Kesh.
Amos riu-se. — Independente. Gosto disso. Dado que o comércio de
especiarias em Kesh é um monopólio imperial, legalmente ele não pode
operar em condições bem no seio do Império.
Patrick sorriu e assentiu. — Mas tem as suas fontes no interior do
Império, e suspeito que tenha contactos dentro da própria Corte Imperial.
Lida com comerciantes de terras de que nunca ouvimos falar, Amos. Do
mundo tsurani. De Brijana, no extremo de Kesh. De lugares dos quais nem
sei pronunciar o nome, para lá de mares que recentemente eu nem sabia que
existiam. — Retomou o passo e os outros seguiram-no.
Passaram por uma série de edifícios, ainda em atividade apesar da hora.
— Conheceis alguns destes homens, Amos — informou Patrick. — Tal
como nós, piratas na juventude, mas agora constataram que o comércio
astucioso dá mais lucro com menos risco.
Nicholas viu uma cidade pouco diferente de outras que já visitara, exceto
que os cidadãos pareciam mais duros e irascíveis. Um par de homens
discutia ruidosamente, mas dois homens do Xerife acabaram com a
discussão com uma simples ordem para que seguissem caminho. O filho do
Príncipe de Krondor pôde perceber que Porto Livre era, a todos os níveis,
uma cidade próspera.
— Então foi por causa disto que já velho vos tornastes num sacana
desconfiado, Patrick — comentou Amos.
Ele concordou. — Teve de ser. Já lá vão há muito os dias em que
podíamos fugir para as colinas e esperar que a armada de atacantes de
Krondor ou Elarial partissem. Agora, temos muito a perder.
Amos fixou o velho amigo com um olhar fulminante. — Por isso fomos
recebidos com uma dúzia de atacantes?
— E se não conseguirdes convencer o Conselho de Capitães de que sois
o que alegais ser, terei de me apoderar do vosso barco.
— Só por cima do meu cadáver — realçou Amos, num tom grave e
ameaçador.
De súbito, uma dúzia de bestas estava de novo apontada a Amos e aos
seus companheiros. Com uma expressão pesarosa, Patrick de Duncastle
salientou:
— Se necessário for, Amos. Se necessário for.

s Capitães das Ilhas do Ocaso reuniram-se numa casa no extremo mais


O
distante da avenida. Pelo caminho, Nicholas e os outros viram-se
envolvidos num mundo de exotismo. Uma amálgama de línguas
encheu o ar fresco da noite e uma variedade de roupas e modos de vestir
coloridos captavam os olhares a cada instante. Salões de jogos e bordéis
paredes-meias com comerciantes e corretores. Em cada entrada, havia
placas numa dúzia de línguas a anunciar os serviços oferecidos.
Vendedores ambulantes empurravam carrinhos ou transportavam caixas,
que continham todo o tipo de artigos, desde sedas a joias, passando por
doces. Nicholas olhou tantas vezes em volta que se sentiu esmagado pelo
que via; Porto Livre pareceu-lhe maior e sem dúvida mais movimentado do
que Crydee.
— Como é que isto aconteceu? — perguntou Amos. — E como é que
nunca ouvimos falar disto no Mar do Reino?
— Isso não abona muito em vosso favor, Amos — respondeu Patrick. —
As alfândegas de todas as nações seguem dois caminhos, o honesto e o
duvidoso. E toda a gente que se dedica ao comércio pela calada
rapidamente ouve dizer onde se encontra o melhor recetador, onde as cargas
de origem duvidosa podem ser descarregadas. Não podeis ter andado
recentemente a navegar sob aquela bandeira infame e não terdes ouvido
falar de que Porto Livre era agora a base central mundial das pilhagens. Até
os comerciantes honestos já ouviram falar de nós, por não termos alfândega
nem tarifas.
Amos permaneceu em silêncio enquanto continuavam a percorrer a rua.
— Tal como vos disse, Patrick, é uma longa história. — Na ponta da rua
via-se um edifício com uma enorme placa que dizia «Casa do Governador».
Era uma construção modesta, com um enorme alpendre e duas janelas, uma
de cada lado. As portadas estavam completamente abertas e Nicholas
conseguiu ouvir as vozes oriundas de lá de dentro.
Amos e os companheiros foram conduzidos pelas escadas até ao edifício.
Quaisquer paredes que tenham existido lá dentro, tinham sido removidas,
pelo que o rés-do-chão era totalmente ocupado por um amplo salão. Uma
escada encostada à parede do fundo levava ao segundo piso. No teto, um
candeeiro de madeira com uma dúzia de velas iluminava o espaço.
Fora colocada em frente às escadas uma mesa comprida, onde estavam
sentados sete homens. Amos retirou o seu enorme chapéu, por uma questão
de respeito, no que foi imitado pelos outros que o acompanhavam. Mas,
aparentemente, a sua deferência ficou-se por aí. Avançou em passos firmes
e colocou-se em frente ao capitão mais ao centro. — Mas o que é que nos
Sete Infernos Inferiores vos dá o direito de receber um irmão capitão com
homens armados, William Andorinha?
— Tanto quanto me é dado ver, continuais dócil como sempre — disse o
capitão de barba grisalha, no centro da mesa.
Um homem mais novo, com cabelo escuro encaracolado a cair-lhe sobre
os ombros, e um bigode muito bem cortado, disse:
— Quem é este palhaço, Andorinha?
— Palhaço! — gritou Amos, voltando-se para enfrentar o jovem. — Ora
vejamos, Morgan! Ouvi dizer que o vosso pai morreu de bêbedo e que
tomastes conta do barco dele. — Fitando o homem com um olhar
ameaçador, prosseguiu: — Rapaz, ainda vós mamáveis no peito da vossa
mãe e já andava eu a incendiar cúteres keshianos e a afundar galés de Queg.
Pilhei Porto Natal e rechacei a armada do Lorde Barry até Krondor como se
fosse uma matilha de cães açoitados! Sou Trenchard, a Adaga do Mar, e
mato o primeiro homem que o negue.
— Achei que estáveis morto — disse Morgan, num tom suave.
Amos sacou de uma adaga de dentro do casaco e, antes de alguém
conseguir reagir, com um movimento súbito cravou a manga do casaco do
jovem capitão à mesa. — Já me sinto melhor — resmungou.
Nicholas deu uma cotovelada a Marcus, e o primo mais velho olhou para
onde ele apontava. Na ponta da mesa estava sentado um homem de pele
clara coberta por tatuagens azuis. Tinha uma argola de ouro no nariz e os
seus olhos azuis destacavam-se no rosto pálido.
— Capitão, este é Amos, Capitão Trenchard — anunciou formalmente
Patrick de Duncastle —, e eu conheço-o.
— Ouvimos dizer que navegastes para o Reino, Amos — disse o Capitão
Andorinha.
Amos encolheu os ombros. — Por uns tempos. Antes disso estive
envolvido num golpe no Norte. Fiz muitas coisas. Naveguei por Kesh e
contra eles, naveguei pelo Reino e contra eles, também. Tal como todos
nesta sala.
— Cá para mim, sois espiões do Reino — disse um dos capitães, numa
das pontas da mesa.
Amos voltou-se, troçando do que o homem disse. — E cá para mim
continuais a ser um idiota, Peter, o Temível. Como é que chegastes a
capitão é ainda um mistério; o Capitão Misericórdia morreu, ou vós e o
Render ali ao fundo «aposentaram-no»?
O homem ia levantar-se, mas Patrick interveio. — Nada de confusões!
— Os meus homens dizem-me que navegastes sob a bandeira negra —
disse o homem das tatuagens —, mas que o vosso barco é um navio de
guerra do Reino.
— Foi um navio de guerra do Reino, Render — Amos enfrentou-o, cara a
cara —, até eu o roubar. — Depois de o fixar com um olhar cortante, voltou
a fitar o Temível, para depois regressar a Render. — O nível de liderança
por aqui, pelos vistos, foi para o diabo. O Temível e o Render capitães? —
Abanou a cabeça. — O que é feito do vosso capitão John Avery, Render?
Comeste-lo?
Render agarrou a beira da mesa e pareceu prestes a ripostar, mas
manteve-se calado. Quase sibilando, explicou a Amos:
— O Bantamina afundou em Taroom há dez anos, Trenchard. Foi então
que me tornei capitão!
— Podemos ficar aqui a insultar-nos uns aos outros a noite toda, Amos
— disse Patrick —, mas isso não ajuda a vossa causa.
Amos olhou em volta para o salão. — Eu já era capitão na Irmandade
antes de todos vós, com a exceção do William Andorinha. Quem nega o
direito de livre acesso? Porto Livre sempre foi um porto franco para
qualquer capitão com garra para navegar por estas bandas. Ou agora tendes
cobradores de impostos? Estais a ficar civilizados, malditos?
— As coisas já não são como antigamente, Amos — explicou Patrick —,
temos aqui muito a perder se aparecer alguém a bisbilhotar.
— Dou-vos a minha palavra — disse Amos.
— O que vindes tratar a Porto Livre? — questionou um jovem capitão
que até então se mantivera calado.
Amos observou o homem, um tipo baixo e entroncado com barba ruiva e
cabelo ruivo ondulado a cair pelos ombros. — Deveis ser o John Escarlate
— disse, com um largo sorriso.
O homem assentiu. — Fui perseguido desde o Miradouro do Caçador até
sotavento de Queg por um barco parecido com o vosso, Trenchard.
Amos mostrou um sorriso rasgado. — Há dois anos, no final da
primavera. Ter-vos-ia apanhado, também, se não tivésseis fugido para junto
da costa e aquelas galés de Queg não tivessem vindo ver que brincadeira era
aquela.
Escarlate rugiu ao bater com a mão estrondosamente na mesa. —
Estáveis a navegar para o Rei!
Amos rugiu em resposta. — Acabei de o dizer! Sois surdo ou somente
estúpido? Estava a ser principescamente pago por cada um de vós, velhacos
órfãos de mãe, que conseguisse capturar, e também a troco de um perdão
pelos meus crimes passados, e no meu lugar ninguém pensaria duas vezes
antes de fazer exatamente o mesmo. — Inclinando-se sobre a mesa de modo
a ficar cara a cara com Escarlate, Amos falou docilmente. — Especialmente
quando a alternativa é a forca.
— Temos um problema — destacou Patrick. — Sois conhecido de
muitos de nós, Amos, mas já não sois visto por estas bandas há mais anos
do que aqueles de que me consigo lembrar, exceto quando navegastes para
o Rei. Dissestes que vos tornastes de novo pirata, mas que garantias
podemos ter de que não nos ides vender pela melhor oferta?
— A mesma que tendes por parte de qualquer um destes degoladores
órfãos de mãe — gritou Amos, apontando para os outros capitães.
— Nós temos aqui interesses — realçou Escarlate. — Este é o
empreendimento mais cativante da história das ilhas e os proveitos são
estáveis. Seríamos tolos em estragar este manancial.
Amos resfolegou. — O que pretendeis? — perguntou a Patrick.
— Tendes de ficar aqui por uns tempos, Amos.
— Quanto tempo?
— O suficiente para termos a certeza que uma armada atacante não está
algures à espera para lá da linha do horizonte — disse Escarlate.
— Ou até apresentardes alguma prova de que não velejareis de novo até
Krondor para regressardes com uma armada — acrescentou Andorinha.
— De qualquer modo, Amos — realçou Patrick de Duncastle —, não
será mais do que uns meses, um ano no máximo. — Sorriu como se não
passasse de um incómodo mínimo.
— Sois doido — disse Amos. — Vim aqui por um motivo e tenho
assuntos urgentes para tratar.
— É um espião — insistiu o Temível.
— Qual é o assunto urgente? — quis saber Patrick.
Amos apontou um dedo acusador a Render. — Estou aqui para matar
aquele homem.
Render pôs-se de pé de um salto, de espada na mão. — Basta! — gritou
Patrick. Voltou-se então para Amos. — A que se deve o vosso rancor pelo
Render?
— Há um mês ele conduziu um exército de assassinos, incluindo
esclavagistas de Durbin, até Crydee. Incendiou toda a vila até às bases e
matou quase toda a gente de lá.
Render resfolegou de escárnio. — Há um mês estava a navegar ao largo
da costa keshiana, Trenchard. Já não vou a Crydee desde que era criado de
bordo. O que é que há lá de valor para roubar?
— Ele nega o ataque — disse Patrick. — E mesmo que tivesse atacado
Crydee, porque é que isso seria problemático para vós?
— Porque eu tinha cinco anos de saques escondidos num armazém nas
docas e ia a caminho para o recolher quando ele o roubou!
— Não houve saque! — gritou Render.
Os olhares voltaram-se para ele, enquanto Amos mostrava um sorriso
diabólico. — Se ele não foi a Crydee, como é que poderia saber disso?
— Está a mentir em relação a mim e ao ataque — replicou Render —,
portanto deve estar a mentir sobre o saque.
Patrick olhou um a um para todos os capitães e todos eles assentiram. —
É a lei de Porto Livre — anunciou Patrick. — Nenhum capitão pode
levantar a mão a outro; caso contrário, poderão dar-se lutas entre
tripulações. Podeis resolver isto assim que sairdes do porto, mas se algum
de vós iniciar uma rixa, o respetivo barco será confiscado e sereis atirados
para o buraco.
Nicholas estivera a observar Render durante a altercação. — Está a
mentir — disse em voz baixa.
Marcus voltou-se para dizer algo, mas antes de o poder fazer, foi Patrick
de Duncastle quem falou. — O que dissestes?
— Eu disse que ele estava a mentir — respondeu Nicholas. — Eu tinha
amigos em Crydee. Ele é um cão assassino que chacina mulheres e
crianças. Se o Capitão Trenchard não o pode fazer, então eu planeio tirar-
lhe a vida.
— O Render alega que esteve longe da costa de Kesh no último mês —
disse Patrick. — Terá sido outra pessoa qualquer.
Nicholas sacudiu a cabeça. — Dois piratas canibais de olhos azuis? Nem
pensar. Foi ele.
Patrick voltou-se para Amos. — Capitão Trenchard, vós e a vossa
tripulação estais em liberdade condicional. Podeis andar livremente pela
cidade, mas se vós ou algum dos vossos homens arranjar problemas,
ficamos com o barco e vendemos a tripulação a Queg como escravos de
galés. Controlai os vossos homens. Podeis regressar ao Conselho sempre
que desejardes, e se conseguirdes convencer quatro dos sete capitães ali
sentados de que a vossa história é verdadeira, sereis readmitido na
companhia dos capitães.
Amos não abriu a boca; assentiu uma vez com a cabeça e depois
encaminhou-se para a esquerda. Os outros imitaram-no. Enquanto desciam
os degraus, ele sussurrou a Nicholas: — Estivestes bem.
— Sim — disse Ghuda —, agora de certeza que vos vai tentar matar.
— É exatamente o que espero — referiu Nicholas.
— Os capitães acham que vamos ficar aqui mais um mês — disse Amos
quando chegaram à rua —, mas pretendo pisgar-me assim que soubermos
onde estão os prisioneiros. — A seguir dirigiu-se a Harry. — Regressai ao
barco e dizei-lhes que devem vir todos à cidade, exceto o grupo de vigia.
Dizei-lhes que se comportem e que se mantenham atentos. Quero todos
atentos a rumores. Procurai-nos na estalagem com a tabuleta com um
golfinho vermelho pela qual passámos à vinda. — Harry partiu
apressadamente. Amos voltou-se então para Anthony. — Iniciai as vossas
compras. — Anthony foi-se embora. Com um movimento da cabeça, Amos
indicou que Ghuda deveria seguir o mago a uma distância discreta. Quando
partiram, o capitão disse:
— Agora, vamos procurar a tal estalagem e ver se conseguimos manter o
Nick vivo.

A Estalagem Golfinho Vermelho era modesta e limpa, e relativamente


tranquila, tendo em conta a clientela habitual. Amos ocupou uma sala
privada nas traseiras e Nakor sentou-se junto à porta, mantendo-a aberta
para poder ver quem se aproximava. — É óbvio que não podemos perder
tempo a tentar convencer os capitães um a um — disse Amos. — Com o
Render já de parte, isso implica que teremos de convencer quatro de seis. —
Tamborilou com os dedos na mesa. — Acho que mais um deles também
esteve envolvido.
— Porquê? — interrogou Marcus.
— Há muita coisa que não encaixa — realçou Amos. — Vistes os barcos
no porto? — Marcus fez um sinal afirmativo. — Alguém teve de trazer um
monte de mercenários de outras paragens, e depois embarcá-los numa
dessas flotilhas de ataque que atingiram a Costa Extrema. Isso implica
muito planeamento e muitos homens. Penso que terá havido pelo menos
dois barcos de águas profundas, talvez três, e isso implica pelo menos um
outro capitão além do Render.
— Então, temos de nos despachar — comentou Nicholas.
— Dispomos talvez de uma semana antes que alguém da tripulação
cometa um erro e tenhamos de lutar para sair daqui — disse Amos.
Nicholas sentou-se ao lado dele na mesa, enquanto Marcus se pôs atrás
de Amos. — Se os prisioneiros ainda aqui estão, temos de os encontrar
antes de serem de novo deslocados — referiu Nicholas.
Amos abanou a cabeça. — Acho muito improvável que cá estejam.
— Porque dizeis isso? — perguntou Marcus.
Nakor voltou-se e explicou. — Porque o Capitão Render estava a mentir
a todos. Ele disse que não houve ataque, mas, segundo o Pug, trouxe para
aqui os prisioneiros. Demasiadas mentiras.
Amos concordou. — O que significa que quem quer que tenha apoiado o
ataque do Render provavelmente levou os prisioneiros embora muito
depressa. — Tirou o chapéu e limpou a testa. — Esquecera-me do quanto
estas ilhas eram sufocantes. — Suspirou. — Agora que vi no quão grande
se tornou Porto Livre, consigo compreender como é que o Render pôde
orquestrar o seu ataque e ocultá-lo dos outros capitães.
Fazendo sinal com as mãos, Amos prosseguiu:
— Há uma dúzia de ilhas a meio dia de viagem daqui que poderiam ser
usadas como base. Poderia sair do porto pelo pôr-do-sol, alegando que tinha
por destino a costa de Kesh, onde iria atacar. Então, velejaria para onde os
outros salteadores o aguardavam, guiá-los-ia, transportaria as pinaças nos
porões dos dois navios, iria para lá do horizonte de Crydee, lançaria à água
as pinaças e iniciaria o seu ataque à Costa Extrema.
— Porque é que atacariam a partir destas águas, Amos? — perguntou
Marcus. — Se não queriam que os outros piratas soubessem, porquê
começar aqui?
— É inevitável a presença constante de estranhos em Porto Livre —
explicou Amos. — E que local melhor do que este para encetar negócio de
modo a preparar este tipo de crime? Mas a questão é esta: onde é que ele
pode esconder várias centenas de prisioneiros?
Ao lembrar-se, Nakor ficou com uma expressão sombria. — O Pug disse
algo sobre um edifício grande. Grande e escuro.
— Acho que temos de começar a espalhar-nos — salientou Amos.
Voltou-se para Marcus. — Até que ponto sois bom marinheiro?
— Sei manejar uma pequena embarcação suficientemente bem para não
me afundar — explicou Marcus.
— Muito bem. Amanhã procurai uma e comprai-a. Se alguém vos
perguntar quais são os vossos planos, respondei que ides explorar as ilhas
aqui perto, em virtude de o Trenchard estar a pensar em construir uma casa.
Alguns dos capitães têm por aqui os seus pequenos reinos. Levai o Harry
convosco e assegurai-vos de que ele não se afoga.
— O Render pode ter muito a perder para andar a arranjar problemas por
causa das minhas ameaças e das do Nicholas, e foi-nos recomendado que
não o perseguíssemos. — Sorridente, Amos afagou a mão de Nicholas. —
Vós, meu sortudo, tendes a tarefa invejável de irritar o Render ao ponto de
o levar a fazer algo estúpido. Vamos vigiá-lo e tendes de andar sempre atrás
dele. Quero que permaneceis muito perto dele, a ponto de ele vos
considerar a sua sombra.
Nicholas assentiu com a cabeça.
Amos abriu um grande cântaro de cerveja. — E agora, quem é que alinha
num copo? — perguntou.
10

Descobertas

U
ma gaivota grasnou.
Marcus, Calis e Harry encaminharam-se para o porto enquanto
o Sol se erguia acima do horizonte. Para o jovem semielfo, que
não parecia mais velho do que Harry apesar de ter trinta anos, Porto Livre
era um estranho aglomerado de vistas e sons. Ele permanecera em silêncio,
satisfeito por deixar os seus companheiros entabularem todas as conversas
necessárias, mas observou, escutou e pareceu fascinado com a diversidade
de géneros humanos que habitava a ilha. Harry confidenciara a Nicholas na
noite anterior que era completamente possível esquecer a presença do
jovem elfo até ele decidir mover-se ou falar, pois adorava manter-se calado
e quieto.
Harry estava prestes a fazer-lhe uma pergunta quando uma silhueta
franzina surgiu de repente de detrás de um barco voltado e se pôs ao lado
deles. Calis já tinha a faca empunhada antes de os outros se conseguirem
voltar. Harry quase saltou com o susto, com aquela súbita aparição. — Por
todos os deuses! O que queres?
— Mais concretamente — sussurrou a voz ­—, o que quereis vós os três?
O vulto franzino estava vestido com uma túnica e calças disformes;
dedos sujos espreitavam de debaixo das calças demasiado compridas. Os
braços magros que saíam de mangas esfarrapadas estavam tão sujos quanto
os pés e a cara mostrava-se apenas ligeiramente mais limpa. Um queixo
afiado e uma boca pequena eram encimados por maçãs do rosto salientes e
uns enormes olhos azuis. Um cabelo ruivo-acastanhado comprido e
irregular estava espetado em todas as direções.
— Vai embora, miúdo — disse Marcus, impaciente.
— Miúdo! — vociferou o mendigo. Após um violento pontapé na canela
de Marcus, a rapariga recuou com um saltinho. — Só por causa disso, ides
pagar o dobro pelas informações.
Marcus retraiu-se com a pancada e Harry ficou mudo de espanto. —
Então vai embora, miúda — disse Calis calmamente.
Retomaram o seu caminho, mas a rapariga perseguiu-os e pôs-se a andar
às arrecuas ao lado de Marcus. — Sei muita coisa. Perguntai a quem quer
que seja em Porto Livre e irão dizer-vos: «Quereis saber algo? Perguntai à
Brisa.»
— E tu és a Brisa? — inquiriu Harry.
— Claro.
Marcus e Calis não abriram a boca, mas Harry falou. — O nosso Capitão
anda à procura de uma ilha para construir uma casa.
Brisa deixou de seguir às arrecuas e pôs-se mesmo à frente de Marcus. —
Pois — disse ela, ironicamente.
Marcus viu-se obrigado a parar, enquanto os outros passaram pela direita.
Olhou para baixo para ela. — Sim, é isso mesmo — afirmou.
Ela sorriu abertamente e Marcus ficou espantado ao constatar que fazia
covinhas. — Sim, é isso mesmo — repetiu, não escondendo a sua irritação,
após o que tentou contorná-la.
Ela acompanhou-o, cortando-lhe o caminho.
— Não tenho tempo para estas brincadeiras — disse ele, tentando passar
pelo outro lado.
Ela recuou meio passo e prendeu o calcanhar numa corda enrolada.
Caindo para trás, aterrou em cima do traseiro. Marcus sorriu e Harry riu-se
às gargalhadas, enquanto Calis se mantinha impassível. Brisa fez um som
de repugnância quando Marcus passou por ela, e depois gritou: — Muito
bem! Quando estiverdes cansados de navegar aos círculos, vinde ter
comigo!
Marcus voltou-se para trás na direção dela e num atípico momento de
divertimento, acenou-lhe. Até Calis sorriu, enquanto Harry continuava a rir.

M ais tarde nessa noite, Harry, Calis e Marcus treparam a escada onde o
barco à vela deles fora amarrado e depararam-se com Brisa sentada
sobre uma pilha de velas, a comer uma maçã. — Cansados? — questionou.
Olharam uns para os outros e passaram pela rapariga, mas ela saltou para
baixo e apareceu ao lado deles, a caminhar com as mãos atrás das costas.
Como uma criança na brincadeira, cantarolou:
— Sei o que procurais.
— Já te dissemos… — ameaçou Marcus.
— Não andais, não — disse ela numa voz de canto.
— Não o quê?
— À procura de uma ilha para o vosso capitão. — Deu uma última
dentada na maçã e atirou o caroço por cima do ombro, para o mar. As
gaivotas grasnaram e mergulharam atrás dela.
— Então, de que é que andamos à procura? — perguntou Harry,
impaciente, após um dia a navegar por entre uma meia dúzia de ilhas
desertas.
Brisa cruzou os braços. — Quanto vale encontrardes o que procurais? —
perguntou.
Marcus abanou a cabeça. — Não temos tempo para espertezas, miúda.
O trio começou a caminhar mais depressa. — Eu sei para onde foram os
esclavagistas de Durbin — anunciou Brisa.
Eles pararam de pronto. Entreolharam-se e viraram-se para trás. Calis
dirigiu-se de volta ao lugar onde a rapariga estava à espera e agarrou-a com
firmeza pelo braço. — O que é que sabes? — inquiriu Marcus.
— Au! — gritou ela, retorcendo-se para se libertar, mas Calis agarrou-a
rapidamente de novo. — Largai-me ou não vos digo nada! — ameaçou ela.
Marcus pousou a mão sobre o braço de Calis. — Soltai-a.
Calis assim o fez e a rapariga afastou-se. Esfregando o braço dorido, fez
beicinho. — A vossa mãe não vos ensinou que há formas melhores de
cativar uma rapariga? — Fazendo incidir um olhar furioso sobre Marcus,
disse:
— Não sois assim tão mal parecido para um salteador mal vestido,
embora me pareça que ficásseis melhor sem a barba. Eu ia ser simpática,
mas agora o meu preço subiu.
— Olha lá, o que é que sabes e o que é que queres? — disse Harry.
— Sei que há um mês uns homens estranhos vieram à cidade; imensos.
Muitos mais reuniram-se nas ilhas aqui perto, esforçando-se por não serem
vistos por quem mora em Porto Livre. Falavam na sua maioria keshiano,
mas com um sotaque estranho, um que eu nunca ouvira antes. Vieram
outros à cidade comprar mantimentos. Não todos de uma vez, mas o
suficiente para me espicaçar a curiosidade. Por aqui, não sucede nada fora
do vulgar que eu não repare. Pelo que decidi bisbilhotar um pouco. — Ela
sorriu. — Sou boa a descobrir coisas.
Harry não logrou travar um sorriso. — Assim me parece.
— E então, temos acordo? — quis ela saber.
— Qual é o teu preço? — perguntou Marcus.
— Cinquenta reais de ouro.
— Não ando por aí a passear com tanto ouro — disse Marcus.
— E se for isto? — perguntou Harry.
Estendeu um anel, com um rubi facetado encaixado em ouro.
— Onde é que arranjastes isso? — perguntou Marcus.
Harry abanou levemente a cabeça. — Esqueci-me. — Dirigiu-se então à
rapariga. — Vale o dobro do que pediste.
— Muito bem — disse ela. — Segui um grupo, assinalei a rota deles e
velejei depois do pôr-do-sol. Descobri onde se reuniram. Estava lá o maior
barco que alguma vez vi, ancorado ao largo. Era preto e parecia uma galé de
Queg, com castelos da proa e da popa altos, velas principais enormes e vaus
grandes como o raio. Estava com o casco muito acima, pelo que calculei
que estivesse vazio, mas os homens iam e vinham da ilha constantemente.
Não podiam navegar o barco grande até lá, pelo que passaram dias a
transportar homens e provisões em embarcações pequenas. Pelo que tinham
na praia, pareciam estar a preparar-se para uma longa viagem, talvez até à
ponta mais longínqua de Kesh. Também tinham patrulhas cá fora, e tive de
me escapulir.
»Umas semanas mais tarde havia alguns barcos a circular pelas ilhas,
mas sempre longe de Porto Livre. — Antes de prosseguir, a rapariga exibiu
um sorriso radioso. — Fiquei curiosa e regressei à ilha e vi que a maioria
dos homens estava a ser transportada para o navio grande. Mas uma dúzia
de barcos mais pequenos largou uma série de prisioneiros na ilha. Estavam
lá seis esclavagistas de Durbin a tomar conta.
— Como é que sabes que é isso que nos interessa? — perguntou Harry,
com o anel pendurado à frente dela.
— Chegastes num navio do Reino e todos os prisioneiros falam a Língua
do Rei. Um capitão famoso apareceu ao fim de trinta anos… para mim, é
muita coincidência. O vosso capitão é genuíno, mas os restantes de vós sois
demasiado limpos e educados; sois a Armada do Reino. Viestes à procura
dos prisioneiros, certo?
Harry lançou o anel ao ar e Brisa apanhou-o. — Para onde é que levaram
os prisioneiros? — perguntou Harry.
— Duas ilhas para ocidente, a sotavento — disse ela, indo de imediato
embora a correr. — E assim que regresseis, poderei contar-vos mais —
disse por cima do ombro.
— Como é que te encontramos? — gritou Harry.
— Perguntai pela Brisa em qualquer lado! — ouviu-se a resposta
enquanto a rapariga desaparecia por entre dois edifícios.

N essa noite, diversos membros da tripulação do Raptor avistaram na


cidade o capitão tatuado, e passaram a informação. Nicholas e Ghuda
apareceram de surpresa numa estalagem que Render visitava.
Sentaram-se suficientemente perto para ouvir uma conversa normal e
Render e os seus homens calaram-se de pronto. — É só uma questão de
tempo, não é? — disse Nicholas após um momento. Falou suficientemente
alto para ser ouvido por todos os que estavam na sala.
— Mais cedo ou mais tarde — acrescentou Ghuda. Não imaginava ao
que Nicholas se referia, mas alinhou no jogo.
— Um dia destes vai chegar um barco da Costa Extrema, com novidades
sobre os ataques; não haverá comércio nem pilhagens durante uns bons
anos. E então todos os mercadores da cidade vão dirigir-se à Casa do
Governador para exigir que a cabeça do culpado seja espetada no alto de
um poste. — Deitou uma olhadela a Render, que lhe respondeu com um
olhar fulminante. — E terei todo o gosto em entregar-lhes o responsável.
Render segredou algo furiosamente a dois dos seus homens ali sentados,
após o que se levantou e saiu. Os dois homens fixaram os olhares em
Nicholas e Ghuda como se os desafiassem a seguir o capitão deles.
Nicholas recostou-se e aguardou.

A nthony, Nakor e Amos partiram no dia seguinte com Marcus mal o


Sol nasceu, para investigarem a ilha. Chegaram lá em três horas. A
ilha era igual a dúzias de outras na zona, formadas há séculos em erupções
vulcânicas. Erodida pelo vento e pela água e coberta de silvados e erva
espessa transportadas sobre a água pelos pássaros marinhos, era um lugar
inóspito com uma falésia alta e sem praias a sotavento. Após uma hora a
circundar a ilha, entraram numa enseada, a barlavento, com águas pouco
profundas. Havia um enorme edifício na praia junto à linha de água,
abrigado por rochas altas que o ocultavam da vista de quem se aproximasse,
exceto de quem acedesse diretamente pela enseada. Não havia vivalma na
ilha.
Acostaram o barco à vela e olharam em volta. — Entraram e saíram
daqui imensos barcos há pouco tempo — realçou Amos. Indicou as marcas
na areia acima da linha da maré alta. Um amplo carreiro de pegadas seguia
na direção da construção. — Se tivesse estado muito vento ou chuva
intensa, não veríamos aquilo. São de há poucos dias.
Subiram na direção do edifício tosco. Abriram os grandes portões e
entraram. O fedor ainda fresco de dejetos humanos e algo ainda mais
malcheiroso enchiam o lugar. Uma nuvem de moscas erguia-se no ar e no
chão viram aquilo com que elas se deleitavam.
Amos praguejou. Contou rapidamente. — Há mais de uma dúzia deles —
disse. Havia corpos espalhados pelo chão.
Reprimindo um vómito, Marcus esforçou-se por inspecionar o corpo
mais próximo. Um rapaz estava suficientemente junto da porta para que a
luz permitisse uma observação fácil. — Morreu em sofrimento — concluiu
Marcus.
Amos abanou a cabeça. — Já vi antes essa expressão.
Nakor olhou para outro. — Já terão morrido há uns três ou quatro dias. A
pele está inchada e as moscas já deixaram larvas.
Amos olhou em volta para observar o espaço. — Isto aqui não é nenhum
piquenique, Marcus — destacou. — Se preferirdes esperar lá fora…
Marcus estava ciente de que Amos tentava poupá-lo à eventualidade de a
sua irmã ou Abigail poderem estar entre os mortos. — Não — disse
rispidamente.
Abriram caminho por entre o cenário macabro e, no centro da divisão,
Amos descobriu algo que o levou a praguejar. — Pelas pragas de Bannath!
— berrou, invocando o deus dos ladrões e dos piratas.
Seis homens com as vestimentas da Guilda dos Esclavagistas de Durbin
jaziam no chão cravejados de setas. Amos ajoelhou-se renitentemente e
examinou um dos homens. Retirou-lhe a máscara negra e viu uma tatuagem
da guilda no rosto do morto. — Estes são os genuínos esclavagistas de
Durbin — sussurrou, intimidado. — Quem enfrentaria a ira da guilda deles?
Mas ele sabia quem: os mesmos inimigos impiedosos que tinham
assumido o controlo do Grémio dos Assassinos em Krondor, subjugando-o
aos seus próprios interesses, e que haviam perpetrado a maior fraude na
história de Midkemia ao erguerem o lendário estandarte de Murmandamus
para levarem as nações do Norte – os elfos negros, ou moredhel, e os
trasgos – a invadirem o Reino. Só eles matariam seis senhores da Guilda
dos Esclavagistas de Durbin, e Amos sabia porquê. Nenhum homem vivo
sabia onde viviam os sacerdotes da serpente pantathianos, apenas que
residiam em alguma terra longínqua do outro lado do mar.
Anthony deu uma volta pelo interior do edifício, com o rosto impassível
apesar da carnificina. Os prisioneiros mortos eram pessoas que estavam
demasiado fracas para prosseguir e que tinham sido degoladas.
— Há apenas uma rapariga, além — anunciou Nakor.
Foram a correr para lá para ver. — É a Willa — disse Anthony. — Servia
na cozinha.
Nakor apontou para outro corpo, um homem que morrera com as calças
baixadas até aos tornozelos. — Este era um homem mau. Tentou possuir a
rapariga doente antes de a matar — informou, como se pudesse ler o
passado — e alguém o matou por ter tentado fazê-lo. — O homenzinho
abanou a cabeça e olhou em redor pelo amplo espaço. — Trazer para aqui
crianças como se fossem gado é cruel; deixá-las aqui durante dias com os
mortos e os moribundos é desumano — comentou.
— Ninguém disse que quem estava por detrás disto era humano, isalani
— referiu Amos.
Anthony continuou a percorrer o edifício como se procurasse algo.
Quando Amos estava prestes a ordenar o regresso, Anthony descobriu uns
farrapos de roupa, arrancados de uma túnica ou de um vestido. Pegou-lhes e
inspecionou-os. De repente, arregalou os olhos ao segurar num que fora
usado como ligadura, como se via pelo sangue que o manchava. —
Margaret — anunciou.
— Como é que sabeis? — perguntou Amos.
— Simplesmente, sei — esclareceu o mago. — Ela usava isto.
Marcus observou o tecido. — Está ferida? Vede o sangue.
Anthony abanou a cabeça. — Acho… que ela usou isto como ligadura
noutra pessoa qualquer.
— Como é que sabeis? — perguntou-lhe o irmão dela.
— Simplesmente… sei — repetiu.
Amos olhou em volta. — Este ataque foi planeado com muita
antecedência e com todas as contingências previstas. A maior parte dos
salteadores pode ter vindo de Kesh ou de outro lugar qualquer, mas terá
havido pelo menos uma centena de homens de Porto Livre envolvidos. —
Saindo do edifício e regressando ao barco, comentou:
— O problema reside em encontrar alguém que tenha estado envolvido e
que fale. Quem quer que tenha orquestrado este golpe provavelmente pagou
bem, e… — apontou para o homem meio despido com a garganta cortada
— já vimos como são lestos nos castigos. Poucos estarão dispostos a trair
estes senhores. — Falou então para Marcus. — Tendes de encontrar de
novo a tal rapariga e ver o que mais sabe ela.
Não abriram a boca durante todo o caminho de regresso ao porto de Porto
Livre.

R egressaram ao Golfinho Vermelho quando o Sol se punha. Assim que


chegaram à sala nas traseiras, Amos deparou-se com Harry à espera
deles. — O que é que aconteceu? — perguntou Amos.
— Hoje o Render quase desafiou o Nick — respondeu Harry, sorridente.
— Decidiu comer ao meio-dia numa taberna diferente. Um dos nossos
homens viu-o, e então o Nick apareceu e sentou-se perto dele. Resolveu
sair, e demos com ele numa terceira taberna, pelo que o Nick foi até lá. O
Render começou a gritar com ele. Não está a lidar bem com isto. A nossa
gente pôs a correr uma série de mexericos sobre os ataques, e as pessoas da
cidade estão a começar a pensar se terá ocorrido algo. Há suficiente gente
por estas bandas a saber que se terá passado algo nos últimos meses, o que
levará cada vez mais pessoas a acreditar em nós e a desconfiar do Render.
— Harry abanou a cabeça. — Se se reunirem determinadas condições,
como por exemplo uma noite do Sexto Dia particularmente quente em que
alguém comece a oferecer montes de bebidas aos que estiverem inclinados
a ouvir o modo como o Render arruinou o negócio a toda a gente para os
próximos cinco anos, calculo que se revoltem e arrastem o Render e o
enforquem sem lhe darem o benefício da dúvida. — A expressão rejubilante
tornou-se mais séria. — Acho que o Render já se encheu de nós. Corre por
aí que ele amanhã, ou depois, vai navegar para atacar na costa de Kesh e
anda à procura de mais homens para completar a tripulação.
Amos coçou o queixo. — Mais homens? Então, o mais certo é esta noite
andar à caça do Nicholas. — Amos refletiu um pouco. — Há duas formas
de o Render lidar com isto; a maneira mais inteligente seria sair com o
barco esta noite já tarde e nunca mais regressar a Porto Livre. Mas o Render
nunca foi conhecido por ser particularmente inteligente; esperto e manhoso,
sim, mas não inteligente.
Amos ficou a refletir por um bom bocado, até que prosseguiu com a sua
explanação. — Provavelmente, e se bem conheço o canibal, ao sair vai
tentar apanhar o meu barco, daí ele precisar de mais homens. — Depois,
falou quase como se o fizesse para si próprio. — Mataria o Nick, atiraria as
culpas para mim, exigiria que eu fosse enforcado e arrebataria o melhor
barco de guerra das ilhas, tudo na mesma noite.
— Então, o que é que fazemos? — perguntou Marcus.
— Ora essa, deixamos que ele tente — respondeu Amos, após o que se
dirigiu a Harry. — Ide procurar o Ghuda, o Nick e quantos homens
conseguirdes reunir, e dizei-lhes que me procurem.
Harry saiu de imediato. Amos voltou-se então para Anthony. — Começai
a procurar aqueles que poderão saber algo sobre aquele edifício onde os
prisioneiros foram mantidos; podem ter trazido os seus próprios carpinteiros
de onde quer que sejam originários, mas provavelmente não arrastaram até
cá toda a madeira. E não vos envolveis em trabalhos.
Anthony e Marcus saíram. — Bem gostaria de saber como é que o mago
percebeu que a roupa era da Margaret — disse Amos.
Nakor sorriu com todos os dentes. — É um mago. Além disso, está
apaixonado por ela.
— Deveras? — questionou Amos. — Achei que não era muito dado a
sentimentos.
Nakor abanou a cabeça. — É tímido, mas ama-a. É por isso que a
consegue encontrar na altura certa.
Amos estreitou os olhos. — Estais de novo a ser misterioso, isalani.
Nakor encolheu os ombros. — Vou dormir uma sesta. Mais tarde vai
haver muito barulho por aqui. — Deixou descair a cadeira para trás até esta
se encostar à parede, e fechou os olhos. Pouco depois, já ressonava
suavemente.
— Como é que ele faz isto? — comentou Amos, olhando para o
homenzinho adormecido.

O barco rangeu e Margaret disse:


— Escutai.
Abigail olhou com pouco interesse. — O que é?
— Mudámos de rota — salientou Margaret. — Não sentis a diferença no
modo como o barco manobra?
— Não. E depois? — perguntou Abigail num tom monocórdico. Mesmo
com aposentos maiores, um camarote próprio devido à posição social delas,
e boa comida, a rapariga continuava deprimida. Por vezes, ainda chorava
descontroladamente.
— Dirigimo-nos para sul — destacou Margaret —, e calculo que depois
viremos para oriente, para percorrer os Estreitos das Trevas. Mas estamos a
virar a estibordo — Abigail mantinha-se completamente inexpressiva —,
para a direita! Dirigimo-nos para sudoeste!
Abigail abanou a cabeça, baralhada. E, então, uma centelha de interesse
brilhou nos olhos dela. — O que é que isso significa?
Sentindo um medo sem qualquer pitada de esperança, Margaret
sussurrou:
— Não vamos para Kesh.

A s prostitutas riram ruidosamente quando os homens, na sala, gritaram


saudações ou ofensas amigáveis. Nicholas emborcou o seu sétimo ou
oitavo copo de vinho. Do outro lado da sala, Render sentou-se com cinco
dos seus homens, a segredarem. Nicholas e o capitão pirata tinham estado a
entreolhar-se ameaçadoramente de um lado ao outro da sala durante quase
uma hora, e Ghuda e Harry incentivaram Nicholas em voz alta para que
parasse de beber. Ele ignorou-os. Uma hora antes tinha começado a soltar
ameaças a Render. De início, mal se ouviram junto aos que não estavam
perto dele, mas nos últimos cinco minutos todos os que estavam próximos
puderam ouvir nitidamente.
De repente, Nicholas levantou-se de um pulo e atravessou
intempestivamente a sala em direção à mesa de Render. Ghuda e Harry
foram lentos a reagir e só o alcançaram quando três dos cinco homens de
Render se ergueram, já com as mãos nos punhos das espadas.
— Vou arrancar-vos o coração, porco assassino! — gritou Nicholas, e
toda a sala se silenciou. — Perante os deuses, juro que pagareis pelo que
fizestes.
Render lançou um olhar fulminante ao jovem quando Ghuda e Harry o
puxaram para trás. Um dos companheiros de Render gritou:
— Levai daqui esse bebedolas antes que lhe demos cabo do canastro.
— Podeis tentar — disse Ghuda calmamente —, iria ser divertido. — A
sua expressão tranquila e a quantidade de armas que transportava travaram
mais ameaças.
Render levantou-se e apontou o dedo acusatoriamente. — Toda a gente
ouviu. Este homem ameaçou-me, e repetidamente. Se houver problemas, é
culpa dele e o Capitão Trenchard é o responsável! Juro perante todos vós
que só erguerei a minha mão em autodefesa!
Nicholas começou a debater-se, tentando chegar a Render, mas Ghuda e
Harry dominaram-no. Meio arrastado e meio transportado, Nicholas foi
levado para o exterior da taberna. Ajudando o amigo a descer a avenida,
chegaram ao Golfinho Vermelho e entraram. Carregaram Nicholas pelas
escadas e entraram no quarto na ponta do corredor.
Lá dentro, Nicholas recompôs-se. — Como é que estás? — perguntou
Harry.
— Nunca bebi tanta água em tão pouco tempo. Onde é que está o penico?
Harry apontou para o penico e Nicholas aliviou-se. — Achais que
podemos confiar no taberneiro?
— Não — disse Ghuda —, mas dei-lhe ouro e ameacei-o o suficiente
para ele não abrir o bico por um dia ou dois.
— Agora, aguardemos — disse Nicholas.

P erto da hora do despontar do dia, um bando de homens rastejou até ao


salão do Golfinho Vermelho. Um rapaz que trabalhava no bar dormia
debaixo de uma mesa e acordou de imediato. A sua função era guardar a
sala e alertar o estalajadeiro caso chegassem hóspedes a horas impróprias
ou entrassem pedintes ou ladrões.
Ao ver homens com espadas empunhadas, o rapaz recuou debaixo da
mesa e encostou-se à parede. Não ia gritar por ajuda com tantos homens
armados ali perto.
Quando os intrusos chegaram à porta mais distante, todas as portas da
entrada se abriram por completo e saltaram de lá mais homens armados. O
som de aço a chocar com aço ecoou nas paredes e a luta era intensa.
Nicholas e Ghuda defenderam a porta na ponta mais distante do corredor
e dois dos atacantes fizeram tentativas pouco empenhadas de se dirigirem a
eles, mas a presença de homens armados nas entradas que havia pelo
caminho dissuadiram-nos. Então um grito oriundo da ponta mais distante do
átrio, no cimo das escadas, sobrepôs-se aos sons da luta. — Alto! Em nome
do Xerife, parai a luta!
Os homens encurralados no átrio voltaram-se e diversos deles tentaram
fugir pelas escadas abaixo. Foram rapidamente dominados por uma dúzia
de homens brandindo mocas e espadas, que mataram dois deles e
subjugaram os restantes. Os que permaneceram no átrio agruparam-se e
ouviu-se uma voz oriunda do centro: — Não resistiremos!
Nicholas sorriu a Ghuda. — É o Render — anunciou, com evidente
satisfação.
Amos e Harry surgiram de uma das portas, com William Andorinha um
passo atrás. Anthony, Marcus e Nakor apareceram vindos de uma outra
divisão. Seguiram os homens de Render pela escada abaixo, até onde mais
uma dúzia de homens de Patrick de Duncastle os aguardavam para os
levarem presos.
Amos aproximou-se do rapaz sob a mesa e deu-lhe uma moeda de ouro.
— Estiveste bem. Diz ao teu senhor que lhe agradeço por me ter deixado
usar a estalagem.
O rapaz saiu e Amos empurrou Render para a sala grande nas traseiras do
espaço comum. Quatro dos capitães de Porto Livre estavam sentados à
mesa e fitaram Render quando ele se ajoelhou à sua frente.
William Andorinha seguiu Amos até à sala. — É verdade, tal como o
Amos disse, que o Render e os seus homens vieram aqui com intenções de
matar.
Andorinha ocupou um lugar à mesa. — Conheceis a lei, Render. O vosso
barco está confiscado e sois relegado ao buraco.
— Não! — gritou Render. — Fui enganado.
— Antes que levais daqui este traste, há umas quantas coisas que preciso
de lhe perguntar — disse Amos. — Podeis estar interessado nas respostas.
Andorinha fitou os outros capitães, todos os que estavam presentes em
Porto Livre exceto o Capitão Temível, e eles anuíram. — Quem vos pagou
para que atacásseis a Costa Extrema?
Render cuspiu para Amos, que respondeu dando-lhe um soco com a mão
enluvada. Render caiu pesadamente no chão e ali ficou com o sangue a
escorrer-lhe pelo queixo. Amos ajoelhou-se junto a ele. — Não tenho tempo
para gentilezas, muito menos disposição. Se vos lançarmos para a rua e
espalharmos que destruístes o comércio ao longo da Costa Extrema para os
próximos cinco anos, que trabalhastes para os esclavagistas de Durbin e
mantivestes os outros capitães e respetivas tripulações de fora das
pilhagens, quanto tempo pensais que levarão os cidadãos de Porto Livre a
desfazerem-vos em pedacinhos?
Render arregalou os olhos, mas manteve-se calado. — Pensai nas pegas
que não verão ouro agora que pararam os carregamentos oriundos de
Crydee, Carse e Tulan. Pensai nos homens de Porto Livre que não terão
barcos para se apoderarem. Pensai nos mercadores honestos que não terão
mercados mais perto do que Elarial ou as Cidades Livres.
— Amos, nós ouvimos os rumores — disse Andorinha —, é mesmo
verdade?
— É verdade, William — respondeu Amos. — Este filho da mãe liderou
mais de um milhar de homens contra a Costa Extrema no último mês e
incendiou por completo o Castelo de Crydee. A fortaleza em Barran foi
destruída e Carse e Tulan foram atacadas; não sabemos a gravidade dos
estragos, mas tememos o pior. Ides ter pouco comércio e nada de saques no
Ducado nos próximos anos.
William Andorinha levantou-se, com o rosto lívido de raiva. — Seu
louco! — gritou para Render. — Ireis fazer com que a Armada do Reino
venha até cá! E tudo para quê?
Render permaneceu em silêncio, mas Amos pegou-lhe por um comprido
lóbulo da orelha, torcendo o adorno que lá tinha. Enquanto o homem
guinchava de dor, Amos disse:
— Por mais ouro do que aquele que ele conseguiria roubar honestamente
durante toda a vida – é melhor que envieis homens para inspecionar o porão
do barco dele – ou…
Amos deitou a mão à bolsa que Render tinha no cinto e espreitou lá para
dentro. Um anel em forma de serpente tombou sobre algumas moedas de
ouro e joias. Pegando-lhe, Amos mostrou-o a William Andorinha. — Já
vistes algo assim?
Andorinha observou-o e passou-o aos outros capitães. Todos referiram
nunca antes ter visto nada igual. — Ele é um criado contratado ou um
joguete voluntarioso?
Amos agarrou Render pelo braço e fê-lo levantar-se. — Não tem a
coragem ou a convicção para ser um fanático religioso. É um criado
contratado.
— Amos, agradecemos-vos pelo aviso — disse Andorinha. — Temos de
nos preparar para a vingança do Reino. — Apontou o dedo a Render. —
Sereis enforcado ao amanhecer! — decretou. — E todos os homens da
tripulação serão vendidos.
— Fazei o que quiserdes com os homens, mas preciso do Render — disse
Amos.
— Para quê?
— Para encontrar aqueles a quem ele serve.
— Não podemos permitir que ele parta, Amos — realçou Andorinha. —
Se o fizermos, de que vale o Pacto dos Capitães?
Amos encolheu os ombros. — Vale o que sempre valeu: pouco. É uma
trégua conquistada pelo medo, e serve sempre de contrapeso à ganância.
Nunca houve suficiente proveito para um capitão quebrar o pacto, até
aparecer alguém com mais ouro do que aquele que Render pôde
contabilizar. — Olhou em redor para a sala. — E falando daqueles sem
senso, onde está Peter, o Temível?
— Foi-lhe dito que aqui estivesse.
Amos suspirou. — Passai palavra de que é preciso encontrá-lo. Suspeito
que houve dois idiotas envolvidos no ataque. O Temível esteve por aqui na
altura em que se deu o ataque no mês passado?
— Pensámos que ele andasse nas pilhagens no Mar Amaro — respondeu
Morgan.
— Encontrai-o antes que ele informe os seus senhores de que os
perseguis — disse Amos. — Vou fazer-vos uma proposta.
— Que proposta? — indagou Andorinha.
— Se deixardes que eu saque o que pretendo do Render, garanto-vos que
nenhuma armada virá a Porto Livre à procura de retaliação.
Andorinha estreitou os olhos. — Como é que podeis garantir tal coisa?
— Porque sou o Almirante do Rei no Reino Ocidental.
Os cinco capitães entreolharam-se. — Portanto — disse Escarlate —,
estáveis a fazer algo mais do que a obter o vosso perdão em troca de
serviços quando me perseguistes na costa de Queg?
Amos anuiu. — Deixai-me contar tudo, e depois decidireis. Não temos
tempo, nem interesse, em travar o vosso empreendimento aqui. Andamos
atrás da filha do Duque Martin e de outros capturados em Crydee. Alguém
envolveu o Render e o Temível neste golpe e enviou um milhar de
salteadores, incluindo assassinos tsurani e esclavagistas de Durbin.
Relatou-lhes então o que sabia do ataque.
— Assim sendo, temos assuntos mais urgentes a tratar do que pôr um fim
ao vosso meio de vida — concluiu.
— E o que nos impede de vos manter aqui como reféns, Amos? —
perguntou Andorinha.
— A única forma de impedir o Arutha de enviar a sua armada para
incendiar por completo a vossa cidade é recuperando a sua sobrinha viva e
devolvendo-a ao Reino, idiota! — vociferou Amos. — Precisais que vos
faça um desenho?
— E poderemos recompensar-vos — anunciou Nicholas.
— Como? — quis saber Andorinha.
— O comércio nunca foi uma das minhas especialidades — disse
Nicholas —, mas sei que enriquecestes providenciando o que é necessário.
— Olhou para os cinco capitães. — Durante um ano, não haverá represálias
contra Porto Livre. Então, virá aqui um navio do Reino. A quem aqui
permanecer será concedido total perdão por crimes passados, desde que jure
fidelidade ao Reino e não transgrida a lei. Quem optar por outra via, será
livre de partir com a garantia de passagem segura e entretanto poderá
recomeçar a vida noutro local qualquer.
— E o que ganhamos nós? — desafiou Escarlate.
— Desde logo, paz de espírito — disse Marcus.
— E proteção por parte do Reino e de Queg se entenderem que ficais
bem no mapa como parte integrante dos domínios deles — acrescentou
Ghuda.
— Kesh, Queg e o Reino, pouca diferença faz — salientou Andorinha. —
Governadores e cobradores de impostos, e leis e coisas do género. Será a
morte do nosso estilo de vida.
— Em parte — disse Nicholas. — Não haverá mais ataques.
Amos sorriu com todos os dentes. — Já começamos a ficar um bocado
saturados por andarmos há anos a perseguir navios mercantes como se
fossem donzelas no Festival do Solstício do Verão e nós fôssemos uns
rapazes pretensiosos, William.
Andorinha assentiu com a cabeça. — É verdade, mas que motivos há
para ficar, Amos? Se se tornar mais um porto do Reino…
— E se Porto Livre continuar a operar sem impostos? — disse Nicholas.
— E se um comerciante puder vir aqui e entregar carga dentro da legalidade
sem ter de pagar tarifas ou impostos ao Reino?
— Embora seja o caminho mais longo de Queg a Krondor, alguns
continuariam a cá vir, para certos carregamentos com mais lucros —
respondeu Andorinha.
— O Rei nunca aceitará isso de bom grado, Nick — alertou Amos.
— Acho que aceitará — contrapôs Nicholas. — Já ficou bem
demonstrado nas últimas semanas o perigo que representa Porto Livre. Vale
bem a perda de algumas receitas manter-se a tranquilidade por aqui. Se
Kesh permite que os capitães de Durbin se movimentem a seu bel-prazer,
porque não o Reino e Porto Livre?
— Porque não? — concordou Amos.
— Podeis levar o Rei a concordar, Amos? — perguntou Andorinha.
— Provavelmente não, William. Mas o sobrinho dele provavelmente sim
— respondeu, pousando a mão no ombro de Nicholas.
— Sobrinho? — inquiriu Escarlate.
— Jurai que isto não sai desta sala e decidireis como contar à populaça o
que foi aqui acordado — disse Amos. — Mas este rapaz é Nicholas, filho
do Príncipe de Krondor, e primo de Margaret, a rapariga que foi levada.
— E eu sou o irmão dela, Marcus — disse este. — O meu pai é o Duque
de Crydee. — Lembrar-se do pai levou Marcus a estreitar ligeiramente os
olhos, mas de resto manteve-se tranquilo.
— Temos escolha? — perguntou Andorinha.
— Não tendes direito a nenhuma — realçou Amos —, mas de qualquer
forma dar-vos-emos uma alternativa. Tendes um ano para refletir.
— Dai-me papel e escreverei uma nota para o meu pai ou para quem quer
que veleje até aqui na próxima primavera no caso de não regressarmos —
disse Nicholas. — Por esta altura no próximo ano, tendes de decidir, seja
qual for a vossa opção.
Andorinha concordou.
— Patrick? — perguntou Nicholas.
— Ah… Alteza? — disse o Xerife.
— As coisas permanecerão tal como estavam — anunciou Nicholas —,
mas se os capitães convencerem a população a concordar com os nossos
termos durante o próximo ano, passareis a ser o Alto Xerife do Reino de
Porto Livre. Estais de acordo?
Patrick assentiu e recuou um pouco.
— Vós, os cinco capitães, recebereis cartas de curso, como sendo a
Esquadra Ocidental do Rei da Armada de Krondor. Parecerá mais
convincente quando o meu pai cá vier na próxima primavera se tiverdes as
cores do Reino nos vossos calceses. Podeis decidir entre vós a hierarquia.
Amos voltou-se para Render. — Agora, ides contar-nos o que precisamos
de saber, canalha assassino. A única questão é, vamos obter as respostas do
modo fácil ou do modo difícil?
Render cuspiu para Amos. — Exijo os meus direitos enquanto capitão do
Pacto. Ainda não fazemos parte do maldito Reino, Trenchard. Não tendes
direitos sobre mim e posso exigir justiça pessoal.
Amos encarou os restantes capitães. — Ides…
Andorinha interrompeu-o. — Assim tem de ser, Amos. Não nos
atrevemos a quebrar o Pacto até que as pessoas aceitem as leis do Rei. Para
fazer de outro modo…
— Dissestes que poderíamos interrogar o Render em troca de o Reino
não se intrometer! — bradou Amos.
— Fizemos um juramento de sangue ao Pacto dos Capitães! — gritou em
resposta Morgan, enquanto os outros vocalizaram a sua concordância. — Se
há algo que temos de honrar deste lado do inferno, é o nosso juramento!
— Pertencestes há Irmandade o tempo suficiente para saberdes isso,
Amos — disse William Andorinha. — Assassino, ladrão ou blasfemo, serás
um de nós, mas se quebrardes um juramento, nenhum homem navegará na
vossa companhia.
— Teria todo o gosto em eu próprio vos entregar o coração deste traidor,
Trenchard — disse Morgan, olhando para o prisioneiro —, mas a nossa
palavra é para cumprir. Se não a respeitarmos, não seremos melhor do que
ele.
Amos assentiu com a cabeça. — Muito bem, Render — disse, retirando o
chapéu e a jaqueta —, se desejais o privilégio de capitão…
— Não! — exclamou Render. — Vós, não, Trenchard. Ele! — Apontou
para Nicholas.
— Foi o rapaz o acusador — realçou Andorinha — e o Pacto proíbe que
os capitães lutem uns contra os outros.
— O que é que se passa? — inquiriu Nicholas.
Amos aproximou-se dele e explicou-lhe. — Enquanto capitão, o Render
tem o direito de se defender num combate pessoal. Sois vós que deveis
matá-lo.
Nicholas pareceu ter ficado sobressaltado. — Nunca matei ninguém,
Amos — segredou.
Olhando de través para Render, que já despira a jaqueta e a camisa,
revelando as tatuagens púrpura que lhe cobriam o peito e costas, Amos
declarou:
— Bem, não consigo imaginar alguém que poderíeis odiar mais, rapaz. É
o responsável pela morte da vossa tia Briana e raptou a vossa prima e a
rapariguinha de quem tanto gostais.
A expressão de Nicholas revelou que não estava convencido. — Não sei
se posso simplesmente… matá-lo.
— Não tendes escolha, meu filho — disse Amos. — Se recusardes, ele
sai daqui como um homem livre.
— Eles não podem…
— Podem e fá-lo-ão. Isto não é o Reino, e o vosso estatuto aqui de nada
vale. — Prosseguiu num tom de voz mais baixo, com as mãos pousadas
sobre os ombros de Nicholas. — Prestai atenção, ele vai sem dúvida tentar
matar-vos se lhe derdes tal possibilidade, por isso, não o façais. Se vencer,
sairá daqui com direito de passagem e sem que ninguém o persiga. É a Lei
dos Capitães. Portanto, tendes de o matar.
— E as raparigas? Não saberemos…
— Estes rapazes — disse Amos, apontando para os capitães — estão
menos preocupados com os prisioneiros do que com os próprios pescoços.
Dai-lhes a mínima hipótese de reconsiderarem e podem muito bem decidir
que não será assim tão mau fazer-vos refém, mesmo na eventualidade de o
vosso pai aqui aparecer com a minha armada. Preocupai-vos em obter
informações depois de garantirdes a vossa sobrevivência, Nicholas. — A
voz e a expressão dele revelaram uma evidente preocupação. — Agora é
imperioso que façais isto.
Nicholas assentiu, desfazendo-se do cinturão da espada e do casaco. O
salão foi rapidamente liberto de mesas e cadeiras. O Capitão Escarlate
desenhou um grande círculo no chão a giz. Andorinha posicionou um
homem com uma besta nas escadas. — É justiça básica — afirmou. —
Entrais ambos no círculo; só um sai. Se um homem tentar fugir do círculo,
será considerado culpado e abatido.
Os dois oponentes entraram no círculo, que tinha pouco mais de seis
metros de diâmetro. Harry sussurrou a Nicholas: — É como o recinto de
esgrima no palácio. Concentra-te na lâmina.
Nicholas assentiu com a cabeça. Parte do treino deles consistira em
duelos num corredor estreito, onde não era possível avançar rapidamente ou
afastar-se demasiado para um dos lados sem se arriscar a um ferimento. O
trabalho de pés seria de pouco relevo neste combate; o trabalho de lâminas
seria tudo.
Render pegou num sabre pesado e empunhou-o virado para cima, e
depois inclinou-o para trás da cabeça. Nicholas estendeu o seu sabre, ciente
de que o adversário poderia investir de imediato com a sua lâmina, tanto
para bloquear um ataque como para lhe decepar a cabeça. — Que Banath,
deus dos ladrões e dos piratas, dê força a quem é justo — disse Andorinha.
Nicholas pôs-se em posição, quando de repente sentiu uma dor cortante
no pé esquerdo. E então a espada de Render já estava a silvar no ar e
Nicholas mal dispôs de tempo para erguer a sua de modo a bloqueá-la.
Aguentou o golpe e sentiu o choque a subir-lhe pelo braço. Foi então que
Nicholas percebeu que aquilo não se tratava de um exercício caseiro, nem
de um treino com um parceiro civilizado; ali estava alguém que pretendia
matá-lo.
Nicholas sentiu o medo a tomar-lhe o coração, um medo profundo ali
bem agarrado que quase o deixou em pânico, mas horas de treinos diários
ao longo dos anos salvaram-lhe a vida. Os reflexos funcionaram onde a sua
mente o deixara ficar mal, e deteve sucessivamente todas as investidas. Em
menos de um minuto, Render já lançara não menos de dez ataques, todos
contrariados pelo Príncipe. Sentiu uma pontada no pé de todas as vezes que
se apoiava nele e cada pontada era cada vez mais dolorosa do que a anterior.
Nicholas sentiu o seu próprio suor no nariz, enquanto o medo o
incentivava a sobreviver. Mas ainda não arriscara nenhum contra-ataque.
Harry gritou a encorajá-lo, mas os outros mantiveram-se num silêncio
cortante.
Render continuou a pressionar e a empurrá-lo, e Nicholas defendeu-se
sempre com golpes determinados. O pé doeu-lhe ao ponto de desejar gritar,
deixar-se cair no chão e enroscar-se, segurando-o até que o ardor e o latejar
parassem, mas fazê-lo significaria a morte.
Render golpeou Nicholas e este obrigou-se a bloquear e devolver o
ataque, o que levou o capitão do mar tatuado a tropeçar para trás,
surpreendido. Nicholas não prosseguiu, pois foi assolado por uma dor na
perna, levando o seu joelho direito a tremer.
Nicholas recuou, fitando Render nos olhos, e obrigou-se a respirar
pausadamente. — Vai doer — avisou-se a si próprio em voz baixa —, mas
vais sobreviver. Não passa de dor, e podes ignorar a dor.
Render avançou, agora cauteloso, pois já se apercebera da velocidade do
jovem. Nicholas esperou, imóvel, com o olhar a seguir o capitão conforme
este avançava. Nicholas manteve uma postura equilibrada, com o peso
equitativamente distribuído pelos dois pés, embora o esquerdo lhe doesse
intensamente. E então Render começou a movimentar-se, com uma
combinação de golpes, de cima, de baixo, e de novo de cima, obrigando o
jovem a recuar conforme ele avançava. Nicholas aguentou cada golpe e
concentrou-se por completo na espada do adversário. O odor a medo no
nariz, a dor no pé, o ambiente – tudo isso foi posto de parte quando se
deixou embalar pelo ritmo do ataque.
E então Render esgotou o seu intenso ataque e Nicholas desferiu uma
estocada que atingiu o pirata na parte de cima do ombro, provocando-lhe
um corte profundo. Jorrou sangue sobre as tatuagens e a pele branca, mas
Render mal se apercebeu do ferimento.
Nicholas avançou e recuou. Quando se afastou de Render,
desconcentrou-se e de repente a dor disparou para cima, a partir do pé,
levando-o a arquejar. Vacilou e Render intensificou o ataque, pois
apercebeu-se de que o jovem estava de alguma forma distraído.
Um golpe contundente dirigido ao pescoço foi travado a muito custo e
Nicholas recebeu uma pancada terrível de través no cotovelo. Quase cego
devido à dor, contra-atacou e a sua lâmina atingiu as costelas de Render. O
outro homem arquejou de dor e recuou, enquanto Nicholas sentia os seus
próprios dedos a ficarem adormecidos. Passou o sabre para a mão esquerda
e pestanejou para aclarar a visão.
Render deitou a mão às costelas e Nicholas de repente ouviu Amos aos
gritos. — Ele deu abertura, rapaz. Matai-o.
Nicholas segurou desajeitadamente a espada com a mão esquerda e o
vulto de Render pareceu tornar-se de novo nítido. Apesar do sangue que lhe
escorria pelo ombro e do ferimento no flanco, ele sorriu. Nicholas tentou
avançar e mais uma vez sentiu uma dor cortante no pé esquerdo, que era
então aquele em que se apoiava. Recuou e Render saltou.
Nicholas fez força para suster o ataque, afastou a espada de Render para
o lado e ripostou, com a ponta da sua arma a atingir o homem tatuado na
boca do estômago. Render arregalou os olhos, descrente, quando o sangue
começou a brotar-lhe da boca e do nariz.
Por momentos, os olhos dele fixaram-se nos de Nicholas e em vez de
ódio ou medo, surgiu um ar interrogativo, como se perguntasse ao Príncipe:
«Porquê?» E então soçobrou.
Os homens juntaram-se em redor de Nicholas. — O que é que vos
aconteceu? — perguntou Amos.
Nicholas demorou um bom bocado a compreender a pergunta e a sua
perna começou a tremer. De repente, tombou para trás e, ao cair, Harry e
Marcus agarraram-no. — O meu pé… — disse ele suavemente.
Foi levado para uma cadeira ali perto e sentou-se. Deixou que Harry lhe
descalçasse a bota esquerda e, quando viu o pé, retraiu-se. Perdera a cor
original, estava roxo e preto. — Por todos os deuses — disse Harry —, até
parece que foi pisado por um cavalo.
— O que é que se passa? — perguntou Amos.
Nakor abanou a cabeça e não disse nada.
Após um momento, a dor dissipou-se e, perante os olhos deles, também a
descoloração começou a desvanecer-se.
A visão de Nicholas tornou-se mais nítida. — O que dissestes, Amos? —
perguntou por fim.
— Eu perguntei o que é que se passava.
— Oh, com o meu braço? — interrogou Nicholas. Fitou o braço e não
viu sangue. Puxando a manga para cima, viu uma feia marca vermelha no
cotovelo, a escurecer rapidamente, mas sem sinal de estar cortado ou
partido.
— Já te vi horas a fio a praticar com a mão esquerda — comentou Harry.
— Porque é que sentiste tantos problemas?
— Não sei — respondeu Harry. — O meu pé…
Amos e os outros de Crydee olharam para baixo e não viram nada de
errado em nenhum dos pés de Nicholas. — Está mudado! — exclamou
Ghuda.
Nicholas abanou a cabeça. O pé dele tinha agora um aspeto normal. —
Doía. Uma dor excruciante quando me apoiava nele, e piorou com o
decorrer da luta.
— E ainda vos dói? — quis saber Nakor.
Nicholas apoiou-se nele. — Só um bocado… — esclareceu. — Deixei de
sentir dor.
Nakor assentiu de novo, mas nada disse.
Amos voltou-se para os outros capitães. — Bem, aqui tendes a vossa
justiça — comentou. A seguir, dirigiu a palavra a Marcus e Harry. — Levai
alguns dos nossos rapazes e acompanhai o Xerife. — A seguir, voltou-se
para Patrick. — Se é que não vos importais?
— Não me importo — esclareceu Patrick.
— Assim que juntardes a tripulação do Render, dizei-lhes que compro a
liberdade de quem quer que me diga quem levou as raparigas daquela ilha e
para onde foram levadas — disse Amos a Marcus. — Interrogai-os
individualmente, porque todos esses cães órfãos de mãe irão mentir-vos.
Marcus assentiu e partiu acompanhado por Harry.
Amos voltou-se e deu com Nicholas a olhar fixamente para o corpo sem
vida de Render. O rosto do rapaz estava pálido e tinha um ar adoentado.
Amos deu-lhe uma palmada no ombro. — Não vos preocupeis, meu filho.
Ides habituar-vos.
Começaram a acumular-se lágrimas nos olhos de Nicholas. — Espero
que não — disse. Ignorando os olhares dos presentes, pegou na jaqueta e
encaminhou-se vagarosamente para as escadas, que subiu, rumo ao seu
quarto.

N icholas dormiu até tarde no dia seguinte. A captura da tripulação de


Render revelara-se mais fácil do que o esperado. Todos os homens
estavam a bordo do seu barco, a Senhora das Trevas, à espera de ordens
para remar na direção do Raptor e apoderar-se dele. Bastaram umas quantas
ameaças, oriundas dos escaleres que os cercaram, e a promessa de reduzir o
barco a cinzas se não baixassem as armas. Amos reparara que se tratava de
um bando bem menos corajoso do que os marinheiros do Reino, pois
navegavam pelos saques. No entanto, faltavam apenas cinco horas para
despontar o dia quando terminaram o trabalho e Nicholas estava exausto
devido ao duelo e à captura.
Foi surpreendido com o som de passadas apressadas pelas escadas acima
quando abriu a porta. Harry estava no cima das escadas, sem fôlego.
— O que é que foi? — perguntou Nicholas ao seu amigo.
— É melhor vires. — Desceu as escadas a correr, seguido por Nicholas.
Lá em baixo, na grande sala privativa que Amos usava como quartel-
general, deram com ele a conferenciar com William Andorinha e Patrick
Duncastle.
Amos olhou para cima. — Morreram — anunciou.
— Quem? — perguntou Nicholas, temendo estar prestes a escutar os
nomes de Margaret e Abigail.
— A tripulação do Render. Morreram todos.
Nicholas semicerrou os olhos ao tentar compreender o alcance das
novidades. — Todos?
— Sim — esclareceu Patrick, com uma expressão onde se notava que só
a custo conseguia controlar a fúria. — Assim como meia dúzia dos meus
homens. Na noite passada, alguém envenenou a água potável na prisão e
matou toda a gente. Perdi cinco guardas e um cozinheiro.
— Não sobreviveu ninguém?
— Foi um golpe maquiavélico. Alguém deitou sal a mais na comida, pelo
que todos ficaram com sede. Não somos um bando de gente cruel, pelo que
lhes demos água. Os carcereiros comeram o mesmo que os prisioneiros, e
morreram todos.
— E ainda há mais — disse Amos.
— Uma dúzia de homens apareceram mortos aqui e acolá na cidade —
prosseguiu Andorinha.
— Provavelmente homens que participaram no ataque — acrescentou
Amos.
— Se conseguíssemos encontrar Peter, o Temível, e a sua tripulação,
aposto que daríamos com eles no fundo do mar. Acho que também
encontraríamos os tais seis assassinos tsurani lá em baixo com eles. Alguém
anda a encobrir as pistas.
— Estão todos mortos? — perguntou Nicholas.
Amos anuiu. — É fácil de fazer quando se dispõe de fanáticos religiosos
dispostos a morrer. Envenenar a água de um navio é bem mais fácil do que
a de uma prisão. E aposto que encontraremos mais umas duas dúzias de
corpos espalhados pela cidade antes que a noite caia. Não que me dane esse
destino para qualquer um desses cães que atacaram a Costa Extrema, mas
gostaria de espremer um ou dois para obter informações.
— Vou passar a palavra pelas ruas de que quem quer que tenha navegado
com o Render terá mais hipóteses de sobrevivência se se apresentar —
anunciou Patrick.
— Não aguardeis por grandes proveitos — disse Amos, levantando-se.
Coçou a cabeça. — Tendes um cárcere cheio de mortos para fazer com que
essa promessa seja encarada como uma mentira.
— Maldição, Amos — disse Patrick. — Assegurar-me-ei de que não haja
desconhecidos a aproximarem-se de quem quer que se entregue.
Amos abanou a cabeça. — E dizeis vós que eu estive muito tempo
afastado dos caminhos sinuosos, Patrick. O que faríeis se houvésseis
participado no ataque? O mesmo que eu. Fugiríeis para as colinas e
viveríeis de fruta e ovos de pássaros marinhos até que achásseis que o que
quer que vos quisesse morto já tivesse deixado a ilha.
Andorinha estreitou os olhos. — «O que quer»? — Baixou o tom de voz.
— Não querereis antes dizer «quem quer», Amos?
— É melhor que nem sabeis, William — disse Amos, que depois se
voltou para Marcus e Harry. — Sabeis o que fazer?
Marcus anuiu. — Temos de encontrar aquela rapariga.

M arcus despertou com a estranha sensação de que não estava só.


Ghuda fez sinal para que não falasse, enquanto deitava a mão à sua
espada. Depois, ouviu-se uma voz:
— Já vos dissera que bastava que perguntásseis por mim para que eu vos
procurasse.
Brisa estava sentada aos pés da cama de Marcus e ele de repente sentiu-
se algo inibido. Deitou de pronto a mão à túnica e às calças. — O que é que
sabes sobre o local para onde foram levados os prisioneiros?
Brisa observou atentamente Marcus enquanto ele se debatia para se vestir
com ela ali sentada na cama. Ela esboçou um sorriso malicioso. — Tendes
aí um belo corpo, meu carrancudo rapaz. Como é que vos chamais, mesmo?
— Marcus — respondeu bruscamente.
— Ficais giro quando estais aborrecido, sabíeis disso? — perguntou ela.
Marcus deixou-se ficar imóvel por uns instantes, e depois acabou de se
vestir debaixo dos cobertores. Ignorando os gracejos dela, baixou a roupa
da cama e calçou as botas. — O que é que descobriste?
— O que me dais em troca?
— O que é que queres? — perguntou ele, com irritação.
— Achei que gostásseis de mim — comentou Brisa, fazendo beicinho.
Impaciente, Marcus estendeu a mão e agarrou o braço magro da rapariga.
— Eu nem sequer…
Ele deu de repente com um punhal apontado à garganta. Largou-a. —
Assim é melhor — comentou a rapariga —, não gosto de ser agarrada dessa
forma. Se me tivésseis dado uma pequena hipótese, provavelmente ter-vos-
ia mostrado como gosto de ser agarrada, mas agora que me deixastes
maldisposta isso vai custar-vos os olhos da cara.
E então o braço de Brisa foi preso como se estivesse num torno e Ghuda
desviou a ponta da lâmina da garganta de Marcus. — Já chega de
joguinhos, miúda — disse o velho mercenário. — E nem tentes sacar do
outro punhal que tens na bota. Parto-te o braço antes que lá chegues. —
Aguardou por um momento, até que a largou.
— Muito bem — disse ela, de rosto franzido. — Um milhar de reais de
ouro e digo-vos o que quereis saber.
— O que te leva a pensar que pagaremos isso? — disse Marcus.
Ela lançou-lhe um olhar sombrio. — Porque o ides fazer — afirmou.
— Espera aqui — disse Marcus após um momento de hesitação.
Saiu, para regressar uns minutos mais tarde, acompanhado por Nicholas e
Amos. — Esta rapariga alega saber o que aconteceu quando os prisioneiros
foram levados da ilha. Exige um milhar de reais de ouro para no-lo revelar.
Amos assentiu rapidamente. — Recebê-los-ás. Agora, diz-me, onde
estão?
— Primeiro o ouro.
Amos ficou furioso. — Muito bem — disse. Virou-se para os outros. —
Vamos.
— Onde? — perguntou Nicholas.
— Para o navio. — Meneou a cabeça e Ghuda voltou a agarrar
firmemente a rapariga pelo braço.
— Ei! — reclamou ela.
— Não trago comigo um milhar de reais de ouro, miúda. Estão no meu
camarote. E não vou magoar-te; tens a minha palavra de honra. Mas se
estiveres a mentir, lançamos-te borda fora e podes vir a nadar para casa.
Resmungando, mas sem se debater, Brisa acompanhou-os. Amos
rapidamente acordou os restantes elementos da tripulação que estavam na
estalagem e todos se dirigiram às docas. A maioria da tripulação já estava a
bordo do Raptor e o resto chegou com Amos.
Ele foi ter ao local onde o aguardava o primeiro imediato, Rhodes, e
falou com ele em voz baixa durante um minuto. Depois, encaminhou a
rapariga e Nicholas para o seu camarote. Marcus e os outros aguardaram no
convés.
Ao chegar ao camarote, Amos entrou e indicou à rapariga que se
sentasse, enquanto fazia sinal a Nicholas para que se pusesse de pé em
frente à porta, bloqueando-a. — Agora, miúda — começou Amos —, diz-
me onde estão os prisioneiros?
— O meu ouro? — ripostou Brisa.
Amos dirigiu-se a uma secretária, atrás da qual havia um alçapão no
chão. Abriu-o e tirou de lá um saco, do interior do qual soou um retinir
metálico. Pousou o pesado saco sobre a secretária e desatou um cordão de
couro. Enfiou lá a mão, que depois ergueu cheia de ouro, mostrando-a à
rapariga. — Aqui está o ouro — disse. — Agora, diz-nos o que sabes.
— Dai-me o ouro — exigiu a rapariga.
— Vais tê-lo quando nos disseres onde estão os prisioneiros.
Brisa hesitou e, por momentos, Nicholas achou que ela iria forçar um
impasse, mas por fim falou. — Está bem. Quando disse ao vosso amigo que
segui alguns degoladores até ao local onde tinham os vossos amigos
detidos, não lhe contei tudo.
Fez uma pausa, mas Amos incentivou-a. — Continua.
— Havia um navio ancorado em águas profundas, longe da ilha. Nunca
vira nenhum igual, e até agora já vi uma boa dose de barcos em Porto Livre.
— Descreveu a embarcação a Amos. — Havia mais de uma vintena de
barcos a transportar pessoas da ilha para o navio. Não me aproximei muito,
mas percebi que estavam a retirar toda a gente da ilha.
— Para onde é que foram?
— Não permaneci o tempo suficiente para saber isso, mas só tinham uma
rota livre para sair de lá, pelo que tiveram de navegar para sul até estarem a
um par de dias de distância daqui. Aquele barco tinha um calado maior do
que este, pelo que percebeis o que pretendo dizer.
Amos anuiu. — Se o calado era assim tão grande, o navio terá velejado
uma semana para sul até se libertar dos recifes entre as ilhas.
— Então não viste para onde foi — constatou Nicholas. — Porque é que
haveríamos de te dar o ouro?
— Porque há dois dias, um navio mercante keshiano chegou aqui vindo
de Taroom. Uma borrasca empurrou-o durante uma semana para ocidente e
virou a nordeste para regressar a Porto Livre. Um marinheiro desse barco
disse-me que estava de vigia um par de dias antes de chegarem a Porto
Livre e que avistara o maior navio que alguma vez vira na vida, preto como
a noite, a navegar rumo a poente.
— Poente! — exclamou Amos. — Nesta altura do ano isso é para
sudoeste.
— Mas Kesh fica a oriente — comentou Nicholas.
— E as ilhas estendem-se daqui para ocidente — acrescentou Brisa.
— Não há lá nada — referiu Nicholas. — É o Mar Interminável.
— O vosso pai em tempos mostrou-me uns mapas… — referiu Amos.
— De Macros, o Negro! — exclamou Nicholas. — Aqueles mapas que
mostram outros continentes!
Amos permaneceu por uns momentos em silêncio, e depois assentiu com
a cabeça. — Abri a porta.
Nicholas obedeceu. Estava lá o primeiro imediato. — Sr. Rhodes,
informai em terra que quero a tripulação de volta o mais rapidamente
possível — ordenou Amos. — Saímos com a maré da manhã.
— Sim, meu Capitão — respondeu.
A rapariga saltou da sua cadeira. — O meu ouro! — exigiu.
— Vais tê-lo — respondeu Amos —, quando regressarmos.
— Regressarmos! — cuspiu ela como um gato enfurecido. — Quem
disse que eu queria acompanhar-vos numa viagem até aos confins do
mundo?
Amos esboçou um sorriso diabólico como Nicholas nunca lhe vira até
então. — Eu, miúda. E se descobrir que nos estás a fazer perseguir
fantasmas, o teu regresso a casa a nado será bem maior do que
simplesmente atravessar o porto.
A rapariga estava de pé com o punhal na mão, mas Nicholas estava a
postos e a sua espada fez-lhe saltar a arma da mão. — Comporta-te —
disse, com a espada apontada a ela para fazer vincar a sua posição. —
Ninguém aqui te vai fazer mal se não causares problemas. Mas essas
pessoas que procuramos são muito importantes para nós, e se estiveres a
mentir, vai ser muito complicado para ti. É melhor dizeres já a verdade.
A rapariga pareceu um rato encurralado e olhou precipitadamente para
todos os lados à procura de uma rota de fuga. Não vendo nenhuma, acabou
por falar. — Não estou a mentir. O marinheiro sabia imensos pormenores
sobre o navio que batiam certo. É o mesmo. Estava seis horas a sul do
Cabeço dos Recifes, a oeste da Ilha dos Três Dedos. Conheceis?
Amos fez um sinal afirmativo. — Conheço.
— Tomai o rumo uma hora antes do pôr-do-sol, com o Sol cinco graus
para estibordo, e estareis alinhados com o navio preto.
Amos assentiu. — Se a tua informação estiver certa, obterás o teu ouro, e
mais ainda. Agora, tenho aí mantas para ti no cacifo das cordas. Mantém-te
ao largo dos meus homens e, se arranjares problemas, prendo-te no cacifo
das correntes, que é bem menos confortável. Estamos entendidos?
A rapariga anuiu taciturnamente. Erguendo o queixo de modo desafiador,
perguntou:
— Já posso ir?
Amos levantou-se. — Sim. E Nicholas…
— Sim?
— Mantende-vos perto dela até estarmos suficientemente distantes de
terra para que se torne impossível nadar até casa. Se se aproximar da
amurada, batei-lhe na cabeça.
Nicholas sorriu lugubremente. — Terei todo o gosto — afirmou.
A rapariga dirigiu-lhe um olhar sombrio e zangado quando saiu do
camarote, meio passo à frente dele.
11

Perseguição

M
argaret foi acometida por um arrepio.
— O que foi? — quis saber Abigail.
— Outra vez aquela… sensação estranha. — Margaret cerrou
os olhos.
— E mais? Dizei-me — exigiu Abigail.
Desde há um mês, uma ou duas vezes por dia, Margaret fora visitada por
uma sensação estranha. Às vezes, parecera-lhe um arrepio; outras vezes,
uma sensação de formigueiro que lhe atormentava todo o corpo. Não era
doloroso, nem ameaçador, mas estranho.
— Está mais perto — anunciou Margaret.
— O que é que está mais perto?
— O que quer que seja que me leva a sentir assim. — Margaret levantou-
se e encaminhou-se para a enorme janela. Tinham-lhes facultado um
camarote na ré do navio, sobre a casa do leme. Não era grande, estava um
ou dois níveis abaixo do camarote do capitão, mas tinha a vantagem de ser
maior do que a minúscula escotilha no primeiro camarote delas. Havia um
divã aos pés das duas camas, que tinham a cabeceira sob a janela e uma
pequena mesa no meio. As refeições eram servidas por homens silenciosos
que se recusavam a alinhar mesmo na mais insignificante das brincadeiras.
Eram levadas ao convés duas vezes ao dia, se o tempo o permitisse, e
deixavam que apanhassem sol e esticassem as pernas.
O tempo estava a mudar, a tornar-se cada vez mais quente. Margaret
achou aquilo estranho, dado que se aproximavam do início do inverno, mas
a tripulação pareceu não estranhar os dias brandos. E os dias estavam a
tornar-se cada vez maiores. Margaret refletiu em voz alta sobre todas
aquelas coisas estranhas, mas Abigail não demonstrou o mínimo interesse.
Margaret trepou para a cama e abriu a pequena janela. Conseguia enfiar a
cabeça e olhar para baixo para o enorme leme enquanto a água girava em
torvelinho atrás. Foi bem-vinda a possibilidade de manter o ar puro no
camarote após os dias passados no porão das embarcações mais pequenas.
Pensava frequentemente como se estariam a aguentar os prisioneiros menos
afortunados, pois apesar de lhes terem sido facultados pequenos beliches
individuais, não havia ar puro nos conveses dos esclavagistas, assim como
era escassa a iluminação.
A porta abriu-se e surgiu um rosto familiar. Arjuna Svadjian fez uma das
suas estranhas vénias, com as mãos unidas e as pontas dos dedos em frente
ao rosto. — Quero crer que estais bem — disse, naquilo que, sabiam as
raparigas, se tratava de uma saudação formal.
Margaret e Abigail tinham sido visitadas diariamente por este homem e
todos os dias ele encetara o que se parecera com conversas fúteis. Não
havia nada de ameaçador no seu comportamento ou aparência: era de
estatura média, mantinha uma barba cuidadosamente aparada e as suas
roupas eram confecionadas com tecidos caros, mas com um corte simples.
Tinha o aspeto de um próspero homem de negócios e poderia até passar por
um mercador de um porto distante de Kesh, se andasse a viajar pelo Reino.
De início, as conversas revelaram-se uma agradável distração face à
monotonia dos dias. O camarote podia ser mais confortável dos que os
anteriores aposentos, mas não deixava de ser uma cela. As raparigas
passaram por uma fase em que se mostraram relutantes, dando respostas
sem sentido às perguntas dele, ou contradizendo-se propositadamente. Ele
pareceu indiferente a ambas as estratégias, limitando-se a absorver o que
diziam.
De vez em quando, surgia acompanhado por outro homem, um que
haviam conhecido no primeiro dia e que se chamava Saji, que pouco falou.
Por vezes, fazia uma pausa para escrever algo numa tabuinha com
pergaminho que levava consigo, mas de resto limitava-se a observar.
— Hoje, gostaria que me falásseis mais sobre o vosso tio, o tal Príncipe
Arutha — solicitou Arjuna.
— Para quê? Para vos preparardes melhor para encetardes guerra contra
ele?
O homem não demonstrou irritação nem divertimento face à acusação. —
É difícil travar uma guerra através de um mar tão vasto — disse. Não fez
mais comentários sobre o assunto, mas perguntou:
— Conheceis bem o Príncipe Arutha?
— Não muito bem — respondeu ela.
Não era um homem para revelar qualquer tipo de sentimento às
raparigas, mas algo no modo como se moveu ligeiramente para a frente deu
a Margaret a impressão de que ficou agradado com aquela resposta.
— Mas já estivestes com ele?
— Quando eu era uma criança — respondeu Margaret.
Ele dirigiu-se então a Abigail. — E quanto a vós? Já estivestes com esse
Príncipe Arutha?
Abigail abanou a cabeça. — O meu pai nunca me levou à corte.
Arjuna sussurrou algo a Saji numa língua estranha e o pequeno homem
tomou nota de algo na sua tabuinha.
A entrevista prosseguiu. As perguntas aparentemente não tinham nada a
ver com as colocadas em entrevistas anteriores. Depois de decorrida a
maior parte da manhã, as raparigas ficavam aborrecidas, cansadas e
frustradas, mas Arjuna nunca pareceu cansar-se durante as entrevistas. Ao
meio-dia, era servida uma refeição ligeira às raparigas, mas ele não comia,
limitando-se a abrandar o ritmo da entrevista para que pudessem comer os
biscoitos, carnes secas e uma taça de vinho. Perceberam desde o início que
deveriam tragar toda a comida que eles lhes levavam, depois de um dia
Abigail se ter recusado a tocar na sua refeição. Dois dos homens silenciosos
apareceram e um segurou-a enquanto o outro a forçou a comer. Arjuna
limitara-se a dizer: «Tendes de manter a vossa força e bem-estar.»
Após a refeição, pediu licença e escutaram-no a entrar no camarote ao
lado. Margaret dirigiu-se a correr ao tabique que separava os
compartimentos e tentou escutar, como fazia sempre que ele lá ia. Havia um
passageiro misterioso com quem Arjuna reunia de tempos a tempos, mas
mais ninguém alguma vez entrara nesse camarote. Margaret uma vez
perguntara com ousadia quem lá estava, mas Arjuna ignorara a questão e
ripostara com uma das suas perguntas.
Era possível ouvir um murmúrio de vozes muito baixo, mas não deu para
perceber as palavras. De repente, Margaret foi de novo visitada por aquele
estranho formigueiro, desta feita mais intenso do que nunca. No mesmo
instante, ouviu-se uma voz assustada no camarote anexo, e através do
tabique escutaram-se passos na direção da parte de trás.
Margaret olhou lá para fora pela pequena janela, para a esquerda, e viu
um vulto encapuzado a debruçar-se à janela. O vulto esticou um braço,
apontando para debaixo da janela e exclamando:
— She-cha! Ja-nisht souk Svadjian!
Margaret puxou a cabeça de novo para dentro, com o rosto lívido e os
olhos arregalados.
— O que é que se passa? — perguntou Abigail ao aperceber-se da
expressão dela.
Margaret aproximou-se, pegou na mão de Abigail e apertou-a com força.
— Vi o nosso vizinho — anunciou. — Ele… pôs a mão para fora. Está
coberta de escamas verdes.
Abigail arregalou os olhos, que se encheram de lágrimas. — Se ides
começar a chorar, esbofetear-vos-ei com tal força que tereis um motivo real
para o fazer — avisou-a Margaret.
— Estou assustada — explicou Abigail, com uma voz tremente.
— E achais que eu não estou? — questionou a outra rapariga. — Não
podemos permitir que eles saibam que sabemos.
— Vou tentar — disse Abigail.
— Há outra coisa.
— O quê?
— Estamos a ser seguidos.
Abigail arregalou de novo os olhos e pela primeira vez desde que haviam
sido capturadas, pareceu esperançosa. — Como é que sabeis? Quem é?
— Aquela coisa na divisão ao lado sentiu o que quer que seja que eu
tenho andado a sentir ultimamente — explicou Margaret —, e queixou-se
de que alguém estava prestes a alcançar-nos.
— Ouvistes isso?
— Ouvi o tom, e não era de agrado. E há algo naquela estranha sensação
que me tem assolado que finalmente me fez sentido.
— O quê?
— Sei quem nos persegue.
— Quem é?
— O Anthony.
— O Anthony? — comentou Abigail num tom de desapontamento.
— Não está sozinho, garanto-vos — afiançou Margaret. — Deve tratar-se
de alguma da magia dele que tenho sentido. — A sua expressão tornou-se
meditativa. — Gostaria de saber por que razão eu a sinto e vós não.
Abigail encolheu os ombros. — Quem é que compreende a magia?
— Achais que vos conseguis espremer pela janela?
Abigail olhou para lá. — Poderia, se não tivesse este vestido —
respondeu.
— Então vamos despir os vestidos — disse Margaret.
— Em que estais a pensar? — indagou Abigail.
— Assim que vir um barco a seguir-nos, a minha ideia é saltar borda fora
deste. Sois boa nadadora?
Abigail abanou a cabeça e pareceu receosa em responder.
— Não sabeis nadar de todo? — perguntou Margaret, incrédula.
— Sei dar umas braçadas se o mar estiver mais ou menos calmo.
— Viveu toda a vida junto ao mar e sabe dar umas braçadas — comentou
Margaret. Fitou seriamente a amiga. — Ireis dar umas braçadas, e se
necessário for, dar-vos-ei uma ajuda. Se vier um barco a seguir-nos, não
permaneceremos muito tempo dentro de água.
— E se eles não nos virem?
— Na altura preocupar-nos-emos com isso — foi a resposta de Margaret.
Margaret sentiu de novo o estranho formigueiro. — Vêm aí — comentou.

A nthony apontou e Amos orientou o olhar pelo braço dele. — Dois


graus para bombordo, Sr. Rhodes — indicou.
Nicholas, Harry e Marcus observaram o mago por um minuto. — Não sei
como é que ele pode ter a certeza — comentou Harry. — Toda a gente em
Crydee dizia que não era lá muito bom mago.
— Pode não ser muito bom mago — disse Nicholas —, mas o Nakor
alega que ele simplesmente sabe onde está a… — Ia a dizer «Margaret»,
mas sabedor da paixão de Harry por ela, corrigiu-se. — …estão as
raparigas. O Nakor tem a certeza que o Anthony segue o rumo certo. E o
Pug disse para seguirmos os conselhos do Nakor.
Amos fez com que Anthony recorresse à sua magia três vezes ao dia, ao
nascer do Sol, ao meio-dia e ao pôr-do-sol, para corrigir a rota.
Nakor estava no alto da proa do navio, a falar com Calis. Ghuda
mantinha-se a sós, a curta distância do pequeno isalani, perdido nos seus
próprios pensamentos.
Harry fitou o horizonte. — Como é que alguém pode saber alguma coisa
sobre a localização deles nesta inacreditável e interminável extensão de
água? — comentou.
Nicholas viu-se forçado a concordar. Com a exceção de umas poucas
nuvens brancas a norte do ponto onde estavam, o céu apresentava-se limpo,
tal como o oceano. Não havia nada que fizesse contraponto à superfície da
água sempre em movimento. Nas três primeiras semanas de viagem,
avistaram ilhas aqui e acolá, todas integrantes da cadeia das Ilhas do Ocaso,
e isso quebrou a monotonia da travessia.
Assim que amainou a excitação gerada por estarem relativamente
próximos dos fugitivos, o navio caiu na rotina. A tensão permaneceu, pelo
que Marcus passeava pelo convés, quando o tempo o permitia, como um
animal encurralado, e quando o tempo se mostrava inclemente, sentava-se
melancólico. Nicholas e Harry ajudavam sempre que possível, tentando
esquecer o tédio, e com isso tornaram-se marinheiros de águas profundas
bem mais capazes. O trabalho incessante e a escassa comida fizeram com
que Nicholas e Harry adquirissem uma aparência mais esguia, e o tempo
passado nos mastros ou no convés tornaram Nicholas bem moreno. A pele
clara de Harry ficou extremamente queimada, até que Anthony a aliviou
com unguento, e agora estava tão castanho como se tivesse vivido toda a
sua vida na praia. Nicholas cortou a barba, enquanto Marcus deixava a sua
crescer, pelo que apesar de continuarem a ser parecidos, isso já não era tão
óbvio quanto antes.
Os outros deixaram-se cair nas suas próprias rotinas. Nakor e Anthony
passaram grande parte do seu tempo a discutir sobre magia, ou «truques»,
como o primeiro insistia em continuar a chamar-lhes, e Ghuda pareceu
agradado por poder estar sozinho, embora de tempos a tempos pudesse ser
visto envolvido em profundas conversas com Calis.
O progresso do navio combinou com o aprofundamento da preocupação
de todos os que seguiam a bordo, uma vez que Amos ordenou um corte nas
rações. Achou que estavam razoavelmente aprovisionados quando partiram,
mas, sem saber se a terra estaria a pouca distância para lá do horizonte ou
ainda a semanas de viagem, entendeu ser melhor fazer render as rações. E
com a fome que surgiu com o racionamento, veio a constatação de que
estavam verdadeiramente a navegar para águas desconhecidas.
Durante o último mês, velejaram sem pôr a vista numa única ilha, e o
último contacto com as Ilhas do Ocaso foi um miserável conjunto de bancos
de areia e de afloramentos de coral que mal se podiam considerar ilhas.
Assim que ficaram para trás, nada mais houve que não fosse mar.
Nicholas sabia que havia outra terra do outro lado do mar. Aceitara isso
como um facto, porque fora o que o pai lhe ensinara. Mas ali estava ele no
convés de um barco, a navegar no que era comummente conhecido por Mar
Interminável, rumo a uma terra onde nunca se aventurara um homem do
Reino, e, por muito que tentasse, não podia esquecer aquela pequena dúvida
enervante, uma vozinha que dizia: «Talvez os marinheiros estejam certos;
talvez o mapa seja um embuste.»
Apenas duas coisas mantinham os marinheiros sossegados e ocupados
com as suas tarefas: o treino na Marinha do Reino e a mão firme de Amos.
Talvez não acreditassem que o mago pudesse indicar onde estava o navio
preto na água defronte deles, mas poderiam acreditar que se havia um
homem capaz de os fazer atravessar o Mar Interminável, esse homem seria
o Almirante Trask.
Nicholas olhou para cima para o topo do mastro principal, onde estava
posicionado um vigia, na esperança de que pudessem avistar o barco que
perseguiam. Amos especulara, a partir da descrição da rapariga, que o barco
era um galeão, um tipo de embarcação que fora por vezes utilizado no
passado em Queg, às vezes com fileiras de remadores, outras sem elas. Se
assim fosse, achou que seria um barco mais lento do que o seu e, apesar dos
dez ou mais dias de atraso, poderia alcançá-lo antes que chegasse ao seu
porto longínquo.
Nicholas tinha essa esperança, pois quanto mais se aborreceu e inquietou
a bordo do Raptor, deu com a sua mente a derivar cada vez mais para um
reencontro fantasista com Abigail. A recordação amarga de ter matado
Render continuava a imiscuir-se, de tempos a tempos, nos seus
pensamentos, e por mais que tentasse, continuava agarrada a ele a sensação
do sabre na sua mão a enterrar-se profundamente no estômago de Render.
Mesmo quando praticava esgrima com Marcus, Harry ou Ghuda, em duelos
num convés inclinado, antecipava essa mudança súbita, aquela estranha e
suave sensação de uma lâmina afiada a cortar carne em oposição ao zunido
da lâmina de um adversário. E pensar em sangue e morte fê-lo sentir
doente.
Abordara o assunto com Harry e Ghuda, e nenhum deles pôde ajudá-lo a
lidar com a sensação de, de algum modo, se sentir desprezível. Por muito
que Nicholas tenha tentado justificar o assassínio de Render, por muito que
tenha dito a si próprio que se tratara do homem que matara a sua tia,
destruíra centenas de vidas e reduzira a cinzas uma vila próspera, não
conseguia convencer-se de que agira corretamente.
Nicholas entendeu que não era apropriado abordar o assunto com
Marcus, pois como é que poderia expressar o seu arrependimento por ter
matado um dos homens que assassinara a mãe dele e raptara a sua irmã?
E Nicholas não falara com ninguém do seu mais profundo receio: que,
caso necessário, não fosse capaz de matar de novo.
Brisa surgiu no convés e Nicholas viu-se obrigado a sorrir. A rapariga era
diferente de quem quer que ele alguma vez tivesse conhecido, e divertia-o.
De certo modo, fazia-o lembrar um pouco o «Tio James», um dos
conselheiros do Rei em Rillanon, e antigo companheiro do seu pai. Agora,
era Barão na corte do Rei, e ele e a esposa e filhos visitavam regularmente
Krondor. Havia nele dissimulado algo de rebelde e audacioso e Nicholas
ouvira histórias de que, em rapaz, James fora larápio em Krondor. Havia
essa mesma rebeldia em Brisa, embora não estivesse muito dissimulada. E
revelava-se com uma regularidade alarmante quando ela se encontrava
junto de Marcus.
Nicholas e Harry entreolharam-se, e Nicholas deu com Harry a sorrir
assim que a rapariga se dirigiu diretamente a eles, com os olhos postos em
Marcus. Por motivos que lhes eram misteriosos, revelara uma nítida atração
pelo frequentemente rígido filho do Duque. Pelo menos, comprazia-se em
arreliá-lo a cada oportunidade, e muitas vezes Nicholas não tinha a certeza
se as insinuações provocadoras dela se deviam meramente a troça. Por
vezes, podia revelar-se extremamente escandalosa. Estava muito à vontade
com os marinheiros, pois, apesar de ser mulher, e vários deles acreditarem
na singular superstição relativa à presença de mulheres em barcos,
conseguia praguejar tal como eles, trepar ao cordame como se fosse um
macaco e contar as anedotas mais obscenas que alguém a bordo pudesse
conhecer. E se Amos se preocupou face à possibilidade de os marinheiros
mais jovens poderem tentar aproveitar-se dela, o que geraria conflitos entre
a tripulação, a sua preocupação revelou-se infundamentada. A rapariga
magra com cabelo desigual e olhos grandes conseguira converter quase toda
a tripulação do navio numa espécie de irmãos mais velhos, todos eles
dispostos a sovar qualquer outro membro da equipagem que se revelasse
abusador com Brisa. E todos eles pareceram equitativamente satisfeitos em
vê-la fazer Marcus corar.
Dirigindo-se ao local onde estava Marcus, e com uma expressão
resignada, ela disse:
— Olá, jeitoso. Quereis ir até lá abaixo e aprender umas coisas?
Marcus abanou a cabeça, enrubescendo. — Não — respondeu. — Mas
preciso de ir lá abaixo. Ainda não fiz a minha refeição do meio-dia. — Ela
preparou-se para o seguir, mas ele virou-se para trás. — Sozinho! —
vincou. Deixou para trás a rapariga, que fez uma careta, e Harry e Nicholas
sorriram ironicamente quando ele desceu.
— Porque é que tens de o irritar tanto? — perguntou Harry.
Ela encolheu os ombros. — Oh, serve para me entreter — explicou. —
De outro modo, a vida por aqui seria bastante aborrecida. Além disso, há
algo nele que me atrai. Acho que é a completa ausência de sentido de
humor. É um desafio.
Nicholas considerou-se um sortudo por ela se ter interessado por Marcus
e não por si. Deu por si com pena do primo: a rapariga da rua de Porto
Livre era uma força da natureza. Observou-a atentamente e teve de
reconhecer que era bela, de um modo arrapazado e descomplexado. Poucos
dias após o início da viagem, constatara que as roupas andrajosas dela e o
aspeto sujo deviam-se mais à astúcia do que à negligência; ser uma rapariga
bonita numa cidade como Porto Livre já de si era perigoso, mas sem um
protetor, era um convite à violação e servidão. Com roupas sem corte vários
tamanhos acima do normal e sujidade em tudo quanto era pele, ficava com
um ar muito menos apelativo e poderia passar frequentemente por um
rapaz.
Colocando as mãos atrás das costas, ela assobiou uma canção
desconhecida enquanto descia descontraidamente a escada que dava para as
camaratas. Nicholas riu-se.
— O que é que tem tanta piada? — perguntou Harry, já sabedor da
resposta.
— Estou só a pensar o quão rapidamente o Marcus vai regressar aqui ao
convés.
— Um dia destes ela pode ter uma surpresa.
— Duvido que haja muita coisa que surpreenda a nossa rapariga da rua
— realçou Nicholas.
— Gostava de saber como é que ela ficaria bem arranjada — comentou
Harry.
— Eu próprio estava aqui a pensar nisso — confessou Nicholas. — Ela é
bem bonita, debaixo de todo aquele cabelo desgrenhado, e tem uns belos
olhos.
— Já nos estamos a esquecer da Abigail? — brincou Harry.
A disposição de Nicholas rapidamente se tornou de novo sombria. —
Não — respondeu friamente.
— Desculpa, estava a brincar.
— Não teve graça nenhuma — sublinhou Nicholas.
Harry suspirou. — Desculpa. — E depois ficou mais bem-disposto. —
Estava aqui a pensar como é que ela ficaria com um daqueles vestidos que a
Margaret e a Abigail usaram naquela última receção, aqueles cheios de
lacinhos à frente.
Nicholas não conseguiu evitar um sorriso. — Queres dizer aqueles
decotados que a minha mãe acha tão escandalosos?
Harry devolveu o sorriso. — Bem, a Brisa tem um pescoço comprido e
esguio e os braços dela são efetivamente graciosos.
— Parece que não sou o único que me estou a esquecer de quem
andamos à procura — censurou Nicholas.
Harry suspirou. — Acho que tens razão. Talvez se deva ao tédio. Mas a
não ser a Brisa, não prestei atenção a nenhuma rapariga, bonita ou não,
desde a última noite em que falámos com a Margaret e a Abigail. Posso ter
visto umas quantas desde então, mas estava demasiado ocupado para
reparar.
Nicholas anuiu.
— Só uma coisa — disse Harry.
— O quê?
— Estou aqui a pensar porque terá ela escolhido o Marcus e não eu?
Nicholas olhou para o seu amigo e reparou que a pergunta só em parte
era a brincar.
— Capitão! — gritou o vigia. — Vejo homens na água.
— Aonde? — berrou Amos em resposta.
— Três graus a estibordo da proa!
Amos foi a correr para a proa e, quando lá chegou, Nicholas, Harry e
metade da tripulação estavam atrás dele. Na água, podiam ser vistos
pequenos vultos. Amos rugiu enfurecido. — Esclavagistas — disse com um
ódio visceral, só a custo dominado. — Os que morrem são lançados aos
tubarões.
— Um deles está vivo! — gritou o vigia.
Amos voltou-se e gritou ordens: — Quero um bote imediatamente
baixado. Preparai-vos para recolher o sobrevivente. Colocai o navio contra
o vento, Sr. Rhodes.
O barco foi voltado para abrandar a marcha enquanto um bote era
lançado ao mar. Os homens começaram a remar na direção dos corpos
flutuantes e do sobrevivente. — Tubarões! — gritou, entretanto, o vigia.
Amos olhou para o ponto por ele indicado e avistou uma barbatana a
cortar a água. — Ponta castanha; é um devorador de homens.
— Está ali outro — alertou Harry, apontando para um pouco mais longe.
— Os vossos homens conseguirão chegar primeiro ao sobrevivente? —
indagou Nicholas.
— Não — afirmou Amos. — Se os tubarões se atirarem primeiro a um
dos mortos, talvez haja uma hipótese. Os tubarões às vezes são difíceis de
compreender. Tanto podem andar à vossa volta a nadar durante horas como
atacar de imediato assim que tocais na água. Não há modo de saber. —
Abanou a cabeça.
— Talvez consiga distraí-los — disse Calis. Desengatou o seu arco e
sacou de uma flecha enorme, encaixando-a na corda. Puxou para trás, fez
pontaria ao tubarão mais próximo do barco e soltou a flecha. A seta com
ponta de aço atravessou velozmente o ar e atingiu o tubarão logo abaixo da
barbatana, provocando um visível jorro de sangue.
Instantaneamente, três outros tubarões desviaram-se da sua rota rumo aos
corpos flutuantes e ao único sobrevivente e dirigiram-se diretamente para o
tubarão em apuros.
— Que disparo afortunado — comentou Amos. — A pele de tubarão é
rija. Foi como acertar com a ponta de uma seta através de uma armadura.
Sem gabarolices, Calis afrouxou as cordas do arco. — Não teve nada a
ver com sorte.
Os homens no escaler recolheram o sobrevivente e começaram a remar
de volta ao navio. — Preparai uma eslinga! — ordenou Amos.
Quando o barco se colocou ao lado do Raptor, já estavam a postos uma
eslinga e dois cabos. Um par de tripulantes desceu até meio em direção ao
bote para ajudar o homem ferido quando ele foi içado para o convés.
Quando já estava a bordo, Anthony aproximou-se dele. Examinou a cor
do homem, abriu-lhe uma pálpebra e encostou o ouvido ao peito. Assentiu
uma vez com a cabeça. — Levai-o para baixo — ordenou.
Amos indicou a dois homens que pegassem nele e o levassem para os
aposentos da tripulação, e depois voltou-se para o leme. — Retomai a rota,
Sr. Rhodes!
— Sim, Capitão — ouviu-se a resposta.
Amos cofiou a barba. — Se um deles ainda está vivo…
— Então não estamos muito atrás! — completou Nicholas.
Amos assentiu. — Dois dias no máximo. — Fez uns cálculos rápidos. —
A não ser que me engane — comentou —, iremos avistá-los amanhã pelo
pôr-do-sol. — O seu olhar revelou grande satisfação e Nicholas não
precisou de perguntar o que tinha em mente. Quando Amos alcançasse os
homens responsáveis pelo saque a Crydee, iria fazê-los pagar bem caro.

N icholas, Marcus e os outros aguardaram no convés enquanto o Sol


pousava a ocidente. Amos fora para baixo com Anthony e Nakor para
ver como estava o homem que haviam recolhido do mar. Permaneceram lá
em baixo durante a maior parte do dia e ainda não tinham sido dadas
novidades.
Amos apareceu por fim no convés e fez sinal a Nicholas e ao seu primo.
Afastaram-se dos outros, que estavam reunidos na coberta da proa, e
juntaram-se a Amos no convés principal. — Ainda vive, mas está muito
mal — anunciou o Almirante.
— Quem é ele? — perguntou Marcus.
— Diz chamar-se Hawkins e era aprendiz de carpinteiro de rodas em
Carse.
— Então ia no navio preto! — exclamou Nicholas.
Amos assentiu. —Também disse que esteve dois dias na água antes de o
encontrarmos. Eles pelo amanhecer atiram borda fora os mortos ou os
demasiado doentes para recuperar, juntamente com o lixo. Agarrou-se a um
pedaço de uma caixa que também foi lançada, e assim logrou sobreviver.
Tem uma tosse seca e o Anthony acha que terá sido isso que levou a que
fosse lançado borda fora. É um milagre ainda estar vivo.
— E as raparigas? — perguntou Nicholas.
— Só rumores. Foram afastadas dos outros prisioneiros na noite do dia
em que o navio partiu, pelo que sabe que na altura estavam a bordo, mas
desde então nunca mais as viu. Contou que alguém terá ouvido um
marinheiro comentar que estariam em aposentos melhores por causa da
posição delas, mas não tem a certeza.
— Iremos apanhá-los antes que cheguem ao porto deles, Almirante? —
perguntou Marcus.
Amos assentiu com a cabeça. — Caso não estejamos mais perto de terra
do que eu imagino, assim será. — O Sol afundava-se para lá do horizonte.
— Aqui, a cor das águas é diferente, é mais profunda — disse. Depois,
olhou para o céu e acrescentou:
— Mas não faço ideia de onde efetivamente estamos; as estrelas estão em
posições que me são desconhecidas. Algumas que há muito me são
familiares tombaram para baixo do horizonte, a norte, durante o último mês
e há outras que me são desconhecidas visíveis no céu, a sul. Penso que
ainda teremos um bom caminho a percorrer até atingirmos o porto dos
nossos amigos, se recordo bem o mapa.
— Isso faz com que seja uma longa jornada — observou Marcus.
— Quase quatro meses desde Krondor à costa mais a norte desse
continente no mapa, calculo eu. Já saímos há mais de dois meses de Porto
Livre e penso que ainda estaremos a duas semanas de avistar a primeira
terra — esclareceu Amos. Abanou a cabeça. — Partindo do princípio que o
Anthony está certo quanto à rota deles. — Olhou para o convés como se
pudesse ver através das tábuas o homem doente de Carse. — E o nosso
amigo quase morto lá em baixo confirma que o Anthony sabe pelo menos
alguma coisa de magia.
— Teremos problemas para regressar? — perguntou Nicholas.
Amos abanou a cabeça. — Posso voltar atrás pela mesma rota, contando
com os ventos. Todas as noites registo a minha melhor conjetura quanto ao
rumo e à velocidade e já o faço há tempo suficiente para que a minha
melhor hipótese seja devidamente fiável. As estrelas podem ter mudado,
mas assinalei as novas e onde nascem todas as noites as mais conhecidas.
Pode dar um bocado de trabalho, mas iremos dar algures entre o Elarial de
Kesh e Crydee quando regressarmos.
Regressou ao tombadilho superior e deixou os primos a sós com os seus
próprios pensamentos.

A nthony apareceu no convés, com um ar esgotado e exausto. Nakor


surgiu atrás dele. — Como é que ele está? — perguntou Nicholas.
— Nada bem — disse Anthony. A seguir falou com amargura. — Os
esclavagistas conhecem bem o negócio deles. Mesmo que recupere, nunca
será um homem de boa saúde, de certeza que não será alguém passível de
ser vendido na praça de escravos.
— Quando é que saberemos se consegue sobreviver? — quis saber
Nicholas.
Anthony trocou olhares com Nakor. — Se sobreviver durante a noite, terá
uma hipótese — respondeu.
Nakor encolheu os ombros. — É com ele, penso eu.
— Não compreendo — confessou Nicholas.
Nakor sorriu. — Eu sei. Quando compreenderdes, o vosso pé deixará de
vos doer.
O homenzinho agarrou Anthony pelo cotovelo e levou-o para o outro
lado do barco, onde poderiam estar a sós. Nicholas deitou uma olhadela a
Harry, que encolheu os ombros. — Vamos treinar — disse Harry, após o
que desembainhou o sabre. — Se vamos alcançar rapidamente aquele
barco, quero estar tão em forma quanto esta lâmina.
Nicholas anuiu e assinalaram no chão uma parcela de espaço, tendo
desde logo começado a trocar golpes.
Nakor olhou por momentos para os jovens a treinar. — Estivestes bem,
mago — disse.
Anthony passou a mão pelo rosto, nitidamente cansado com o esforço
que fizera. — Obrigado. Mas não sei bem o que estáveis a fazer lá.
Nakor encolheu os ombros. — Alguns truques. Às vezes, não é o corpo
que precisa de tratamento. Se treinardes, podereis ver outras coisas no
interior de uma pessoa. Eu estava a comunicar com a mente dele.
Anthony franziu o sobrolho. — Agora pareceis um sacerdote a falar.
Nakor sacudiu vigorosamente a cabeça. — Não, eles referem-se à alma.
— O homenzinho por momentos deu a ideia de ter ficado sem saber o que
dizer. — Fechai os olhos — indicou por fim.
Anthony obedeceu.
— Vamos lá, onde está o Sol?
Anthony apontou na direção da proa da embarcação.
— Ah — disse Nakor num tom de descontentamento. — Quero dizer,
onde é que o sentis?
— No meu rosto.
— Isto é inútil — comentou Nakor, nitidamente mais desalentado. —
Magos. Baralham-vos a cabeça lá em Stardock, enchem-vos a mente com
disparates.
Anthony por norma divertia-se na companhia do pequeno homem, mas
desta vez estava fatigado. — Que disparates?
Nakor contraiu o rosto como se estivesse a concentrar-se. — Se fôsseis
cego, conseguiríeis indicar onde está o Sol? — perguntou.
— Não sei — respondeu Anthony.
O navio estremeceu, pois Amos ordenara uma ligeira alteração da rota
devido a uma mudança no vento. — Um cego consegue sentir o calor do
Sol a incidir-lhe no rosto e «olhar» para ele — realçou Nakor.
— Está bem — disse Anthony. — Aceito isso.
— É muito generoso da vossa parte — atirou Nakor. — Cerrai de novo
os olhos. — E Anthony obedeceu. — Sentis o sol?
Anthony voltou-se para a proa do navio. — Sim — respondeu. — Vem
mais calor dali.
— Ótimo, agora já estamos a ir a algum lado. — Com um sorriso
rasgado, Nakor voltou a falar. — Como é que sentis o sol?
— Bem… — respondeu Anthony. Pareceu surpreendido. — Não sei.
Simplesmente senti.
— Mas está lá em cima. — Nakor apontou para onde o Sol estava
suspenso no céu do fim da tarde.
— Emana calor — respondeu Anthony.
— Ah — exclamou Nakor, com um sorriso. — Sentis o ar?
— Não… — respondeu Anthony. — Quero dizer, sinto o vento.
— Não vedes o ar, mas conseguis senti-lo?
— Às vezes.
Nakor sorriu abertamente. — Se há coisas que sabeis que estão lá sem as
verdes, então não poderá haver coisas que não sabeis que estão lá e que não
conseguis ver?
Anthony pareceu baralhado. — Acho que sim.
Nakor debruçou-se sobre a amurada e ajustou a mochila que transportava
sempre consigo. Abriu o saco e retirou de lá uma laranja. — Quereis uma?
Anthony constatou que lhe apetecia uma. — Como é que fazeis isso? —
perguntou.
— O quê?
— Tendes sempre aí laranjas. Já estamos no mar há quase quatro meses
desde que saímos de Crydee e tanto quanto me foi dado ver, nunca
comprastes nenhuma.
Nakor fez um sorriso rasgado. — É um…
— Já sei, um truque, mas como o fazeis?
— Chamar-lhe-íeis magia — disse Nakor.
Anthony abanou a cabeça. — Mas vós não.
— A magia não existe — insistiu Nakor. — Vede bem, é tal como eu
disse: há coisas que não podeis ver, mas que estão lá. — Com a mão,
desenhou um arco no céu. — Fazei isto e sentireis o ar. — Depois, esfregou
o polegar e o indicador. — Mas fazei isto e já não conseguis senti-lo.
Observando o oceano, disse:
— O universo é feito de matéria muito estranha, Anthony. Não sei de que
matéria se trata, mas é como o calor do Sol e o vento. Por vezes, conseguis
senti-lo, e até mexer-lhe.
Anthony agora estava intrigado. — Prossegui.
— Quando eu era um rapaz — continuou Nakor —, sabia fazer uns
truques. Sabia fazer coisas que divertiam as pessoas da minha aldeia. Eu era
suposto ter sido um agricultor como o meu pai e irmãos, mas num
determinado verão um mago em viagem apareceu na nossa aldeia, a vender
curativos e encantamentos. Não era muito bom mago, mas fiquei fascinado
com os truques que sabia fazer. Quando caiu a noite, saí de casa do meu pai
e fui ter com ele e mostrei-lhe alguns dos meus truques, e ele perguntou-me
se quereria ser seu aprendiz. E assim, acompanhei-o, e nunca mais vi a
minha família.
»Fiquei com ele durante anos, até que descobri que os meus truques eram
melhores do que os dele e podia fazer ainda mais, pelo que parti à procura
do meu destino. — Enfiando o polegar na laranja, arrancou um pedaço de
casca. Deu uma dentada na laranja e fez uma pausa enquanto mastigava,
prosseguindo depois. — Anos mais tarde, descartei todas as pretensões de
fazer magia, pois aprendera a fazer coisas sem cânticos nem pozinhos
atirados ao fogo, sem marcações na terra, ou outros aparatos. E assim fiz.
— Como?
— Não sei. — Sorriu mostrando os dentes. — Vede, acho que o Pug é
um homem muito inteligente, não por ser tão poderoso, mas por saber o
quanto ainda lhe falta saber. Compreende que nem tudo se deve aos
ensinamentos que tem. — Nakor fixou os seus olhos semicerrados em
Anthony. — Acho que também seríeis capaz de ir mais além dos
ensinamentos se tomásseis conhecimento de uma única coisa.
— Do quê?
— Que a magia não existe. Existe apenas esta matéria que compõe o
universo e magia é o nome utilizado pelas pessoas menos iluminadas para
designarem o que sucede quando conseguem manipular a matéria.
— Continuais a chamar-lhe «matéria». Tendes uma designação para esse
elemento mágico?
— Não. — Nakor riu-se. — Sempre o encarei como matéria, e não é
mágico. — Aproximou o polegar e o indicador o mais que pôde sem que se
tocassem enquanto dava nova trinca na laranja que tinha na outra mão.
Depois, falou com a boca cheia. — Imaginai este espaço minúsculo. Agora,
imaginai-o com metade desse tamanho. A seguir, dividi-o ao meio outra
vez, e mais uma vez. Conseguis imaginá-lo assim tão pequeno?
— Não me parece — admitiu Anthony.
— Eis um homem sábio que conhece os seus limites — disse Nakor, com
o seu sorriso a tornar-se cada vez mais amplo. — Mas ainda assim,
imaginai este espaço, e imaginai que estais no seu interior, e imaginai que é
enorme, do tamanho do vosso maior salão, e fazei o mesmo com os vossos
dedos. — Voltou a esticar as mãos. — Então, recomeçai de novo, e fazei-o
outra vez. Neste último espaço, seria extremamente pequeno, e seria aqui
onde encontraríeis a matéria.
— Isso é pequeno — admitiu Anthony.
— Se se conseguisse ver, era onde a veríeis.
— Como é que descobristes a matéria?
— Quando era apenas um rapaz, conseguia fazer coisas, os meus truques.
Era uma criança travessa, capaz de despejar um balde de água ou pôr um
gato a dormir no telhado de uma cabana. O meu pai, que era um homem
importante na nossa aldeia, mandou chamar à cidade de Shing Lai um
sacerdote da ordem de Dav-lu, a quem vós no Reino chamais Banath,
conhecido na província onde nasci como o Travesso. O meu pai tinha a
certeza que estávamos a ser atormentados por um espírito endiabrado ou
por um demónio. Marquei as costas do sacerdote com um ferro em brasa e
fui descoberto. O sacerdote disse ao meu pai para me açoitar, o que ele fez,
e então fui admoestado para me comportar bem, o que cumpri na maior
parte do tempo.
Deu mais outra dentada na laranja antes de voltar a falar. — Seja como
for, toda a minha vida constatei que consigo fazer coisas, a que chamo
truques, porque sei como manipular essa tal matéria.
Anthony meneou a cabeça. — Conseguis ensinar outros?
— Era o que eu andava a tentar dizer às pessoas de Stardock quando lá
estava: todos podem aprender.
Anthony voltou a abanar a cabeça. — Acho que falharia se tentásseis
ensinar-me.
— Já vos estou a ensinar. — Nakor riu-se. — Era aquilo de que falava
quanto ao homem doente lá em baixo. Há energia em tudo, essa matéria
consigo eu manipular. — Abriu o saco. — Enfiai a mão e retirai outra
laranja — disse.
Anthony enfiou a mão no saco. — Não há aqui nada! — exclamou.
— É um truque — disse Nakor. — Fechai os olhos. — Anthony
obedeceu. — Sentis uma costura no fundo, no lado mais distante de mim?
— Não.
— Esforçai-vos mais. É muito macia, muito difícil de sentir. Tentai
concentrar-vos na ponta do vosso dedo mais comprido, enganchando a unha
sob o tecido. Sentis lá algo?
Anthony concentrou-se. — Acho que sinto algo — acabou por dizer.
— Puxai cuidadosamente o tecido para trás, movendo-o na minha
direção.
— Acho que o estou a perder… — referiu Anthony. — Já o tenho.
— Assim que tiverdes afastado esse tecido, ide mais abaixo e sentireis
uma laranja.
Anthony esticou mais o braço e sentiu a peça de fruta. Retirou-a e abriu
os olhos. — Então é um truque.
Nakor retirou a mochila do ombro e passou-a a Anthony. — Olhai lá para
dentro.
Anthony examinou cuidadosamente o pesado saco de lã grossa. — Não
encontro o fundo falso — acabou por reconhecer. Virou o tecido do avesso.
— E não sinto nenhum compartimento oculto — concluiu.
— Não há nenhum — disse Nakor, com uma gargalhada. — Afastastes
uma camada de matéria e descobristes uma pequena passagem para outro
local.
— Onde?
— Um armazém em Ashunta onde em tempos trabalhei. Pertence a um
mercador de fruta, e, quando o atravessais, a vossa mão está mesmo por
cima de um grande contentor que o mercador tem sempre cheio de laranjas.
Anthony riu-se. — É assim que o fazeis. É uma brecha.
Nakor encolheu os ombros. — Não tenho a certeza. Não se comporta
como uma brecha, do pouco que sei sobre elas. É mais uma fenda na
matéria.
— Mas porquê um mercador de fruta? Porque não um tesouro?
— Porque era nisso em que estava a pensar quando experimentei pela
primeira vez o truque e desde então não o consegui alterar.
— Falta-vos disciplina — observou Anthony.
— Talvez, mas quando lançais feitiços, tudo não passa de orientardes a
mente de modo a manipular matéria. Só não sabeis que é isso que fazeis.
Acho que o Pug descobriu. Ele não está delimitado pelas vossas Senda
Maior e Senda Menor e por esses disparates de sendas. Ele sabe que vos
limitais a estender a mão e a agarrar a matéria e a movê-la.
Anthony voltou a rir-se. — O mercador não dá pela falta das laranjas?
— É uma caixa muito grande e eu só tiro umas poucas por dia. E o
mercador só tem lá trabalhadores uma ou duas vezes por semana. A minha
única dificuldade surge quando escondo coisas no topo do contentor, para
que o saco pareça vazio quando sou revistado. Uma vez pus umas moedas
de ouro no contentor. Acho que no dia seguinte um dos trabalhadores do
armazém de fruta terá ficado muito feliz.
Anthony ia falar quando se ouviu um grito vindo do posto de vigia do
mastro principal. — Barco à vista!
Amos respondeu desde o tombadilho superior: — A que distância?
— Mesmo à frente, Capitão.
Amos dirigiu-se apressadamente à proa, onde se deparou com os outros a
perscrutar em frente. — Ali! — indicou Calis, apontando.
Nicholas semicerrou os olhos face ao Sol poente e lá no horizonte avistou
um pequeno ponto preto. — Serão eles? — perguntou.
— A menos que o amigo Anthony nos esteja a iludir com a sua magia,
são eles — disse Amos.
— Quando é que os alcançaremos? — questionou Harry.
Amos coçou o queixo. — É difícil dizer. Vejamos que distância
encurtamos esta noite e teremos uma ideia melhor. — Voltou-se para a popa
e gritou: — Esta noite, quero um vigia suplementar nos mastros e um outro
na proa, Sr. Rhodes. Permanecei atento a luzes.
— Sim, Capitão — ouviu-se a resposta.
— Agora, aguardemos — disse Amos a quem estava por perto.
12

Desastre

O
vigia apontou para algo.
— Barco à vista!
— A que distância? — quis saber Amos.
— Mesmo à frente, Capitão!
Amos colocou-se na proa com os outros enquanto o Sol se erguia a custo por
trás deles. Um nevoeiro cerrado escurecia o horizonte a ocidente, mas uns
minutos após o vigia ter identificado o barco preto, Calis disse:
— Estou a vê-lo.
Amos falou em voz baixa. — Tendes olhos mais jovens do que os meus, elfo.
Calis não ripostou, mas arriscou um sorriso ao ser chamado de elfo. E a seguir
apontou. — Ali!
Naquela manhã de um azul-acinzentado era possível avistar um pequeno
ponto, uma mancha negra que foi reconhecida como um barco e velas apenas por
aqueles que já há muito cruzavam os mares. — Maldição — praguejou Amos. —
Não estamos a ganhar lá muito terreno.
— Quanto? — perguntou Marcus.
Amos voltou as costas e dirigiu-se à escada de acesso ao convés principal. —
A este ritmo, necessitaremos de uma semana para os alcançar. — Olhou para
cima. — Três graus para estibordo, Sr. Rhodes — gritou, com tanto de frustração
como de necessidade de se fazer ouvir. — Mareai as velas! Quero-o o mais
possível alinhado com o vento!
— Sim, Capitão — ouviu-se em resposta e, sem que lhes fosse ordenado, os
soldados saltaram e treparam as enfrechaduras até à enxárcia para marear as velas
nos mastros, enquanto os do convés içavam escotas para mover enormes portalós
e vergas.
Nicholas foi ter com Amos ao convés principal. — Achei que éramos mais
rápidos, Amos.
— E somos — respondeu ele, trepando a escada para o tombadilho superior.
— Mas o nosso barco é de um tipo diferente. É mais rápido com o vento em
pleno. Somos ainda mais velozes fora dessa linha, com uma bolina mais cerrada,
mas nessa rota onde eles seguem agora… bem, somos mais rápidos, mas não
muito mais.
— E se velejarmos em largo aberto, para depois nos aproximarmos e nos
atravessarmos no caminho deles?
Amos sorriu. — Isto não é uma corrida de barcos no porto, Nicky. Há muito
mar ali fora e quando tivéssemos chegado ao local onde esperaríamos que eles
estivessem, o capitão deles poderia ter mudado de rota e estar a milhas de
distância. Não, vai ter de ser sempre perseguição em linha reta.
— E uma perseguição em linha reta é uma longa perseguição — comentou
Nicholas, repetindo uma máxima de velho lobo-do-mar.
Amos riu-se. — Onde é que ouvistes isso?
Nicholas fez um sorriso rasgado. — Estais sempre a dizê-lo de cada vez que
contais a história de quando ajudastes a minha mãe e o meu pai a fugir de
Krondor, quando o Jocko Radburn tentou passar-vos à frente.
Amos retribuiu o sorriso. — Raios me partam! Prestastes atenção a essas
histórias. — Envolveu Nicholas com um braço e na brincadeira deu-lhe um soco
no estômago com a outra mão. — Sois agora o meu futuro neto preferido —
declarou. Depois, afastou-o para o lado. — Agora, saí do meu tombadilho e não
regresseis cá sem pedir permissão, Vossa Alteza.
— Sim, Capitão — disse Nicholas, entre gargalhadas. Abandonou o
tombadilho, satisfeito com aquela pausa momentânea na tensão.
Regressou ao convés e ainda lá estava toda a gente, de olhos fixos no ponto
preto que tinham defronte. Calis e Marcus estavam tão quietos que pareciam
estátuas, enquanto Harry murmurava uma canção sem nome. Brisa tinha uma
mão pousada sobre o ombro de Marcus e ele pareceu não ter reparado. Ghuda
tinha a espada na mão e estava a poli-la com um trapo que nunca largava. Nakor
e Anthony limitavam-se a observar.
Nicholas observou atentamente o rosto de Anthony. A expressão do mago
revelava concentração, como se tentasse discernir algo ao longe.

M argaret estremeceu. Abigail levantou-se do seu lugar no divã e atravessou


a divisão para se sentar junto à amiga, que estava numa das camas. — Eles
estão… — disse.
Margaret assentiu. — O Anthony — sussurrou. Os olhos brilharam devido às
lágrimas.
Abigail esticou o braço e tocou-lhe na mão. — O que é?
— Não sei, mas é uma sensação… — explicou Margaret, tentando controlar as
lágrimas. Sacudiu a cabeça e sorriu. — Não consigo descrever. É só o modo
como o Anthony chegou até mim, nada mais.
A expressão de Abigail revelou a incompreensão dela. Ergueu-se e
encaminhou-se para a janela, espreitando para o mar. — Eles estão algures lá
para trás.
Margaret pôs-se ao seu lado. — Sim. — E então estreitou os olhos. — Ali! —
disse, tentando reprimir o entusiasmo. — Aquele pequeno ponto preto!
Abigail olhou demoradamente. — Estou a vê-lo — sussurrou por fim. — São
eles!
As raparigas ficaram a olhar, desejando dentro de si que o barco perseguidor se
movesse mais depressa. Ficaram ali especadas durante uma hora, a tentarem
aperceber-se de mais detalhes, uma vela ou uma bandeira, até que escutaram os
passos de alguém que se aproximava. Margaret fechou a janela e estavam a
sentar-se quando a porta se abriu e Arjuna entrou, seguido de Saji. — Bom-dia,
minhas senhoras — disse Arjuna muito descontraído.
Sentou-se no divã, enquanto Saji permanecia de pé. — Ora muito bem, Lady
Margaret, o que sabeis da cidade de Sethanon?

D urante três dias vigiaram constantemente o barco que seguia à frente. Todas
as manhãs, Nicholas e os outros apressavam-se para o convés para ver que
distância haviam encurtado. Agora já conseguiam ver nitidamente o contorno das
velas e do casco. Era um navio enorme e cruzava o mar como uma rainha
majestosa, mas para quem seguia a bordo do Raptor, aquilo não tinha nada de
adorável.
Por volta do meio da manhã, o vigia deu o alerta. — Está a mudar de rota,
Capitão!
— Para que direção? — indagou Amos.
— Para bombordo!
— Levai-nos um pouco para bombordo, Sr. Rhodes — indicou Amos.
— O que é que eles estão a fazer? — gritou Nicholas desde o convés.
Amos abanou a cabeça, indicando que não sabia. Depois, voltou a dirigir-se ao
vigia. — Mantende-vos particularmente atento aos baixios! — A seguir
transmitiu instruções ao primeiro imediato. — Quero mais vigias nos mastros e
no convés, Sr. Rhodes.
Em poucos minutos, havia marinheiros posicionados no convés e nas vergas, a
observar minuciosamente as águas, à procura de alterações de cor que indicassem
a presença de baixios. — Vede se conseguimos voltar a alinhar-nos por eles, Sr.
Rhodes. Se estão a avançar por entre bancos de areia, quero que nos indiquem o
caminho.
— A cor da água está a mudar, Capitão! — gritou um homem no convés.
Amos foi a correr para o convés e pendurou-se de tal maneira borda fora que
Nicholas se sentiu compelido a segurá-lo pelo cinto. — Está a tornar-se pouco
fundo — informou Amos enquanto se içava de novo para o convés —, mas ainda
não está demasiado raso.
Os outros tinham-se reunido junto a ele. — Penso que estaremos prestes a
avistar terra — disse Amos. — Ilhas, ou talvez o tal continente assinalado no
mapa. — Gritou para o vigia: — Prestai atenção à popa daquele navio. Se marear
as velas ou mudar de rota, avisai!
— Sim, Capitão.
Amos fez sinal a Nicholas e aos companheiros para que se juntassem em redor
dele. — Aqui o Ghuda tem grande experiência como soldado, pelo que vos
aconselho a que permaneçais junto dele. — Depois, fitou Nicholas, Marcus e
Harry, a quem dirigiu a palavra. — Não vos entusiasmeis, nem tenteis vencer isto
sozinhos. É um barco enorme e pode transportar uma boa centena de homens
armados além da tripulação regular. — Depois olhou por cima do ombro para a
tripulação atarefada no convés. — Os meus rapazes têm tanto de durões como de
capazes — acrescentou —, pelo que saberão tratar de si próprios. — Fitou o
barco ao longe. — Este tipo de coisas pode mudar repentinamente. Se forem
forçados a mudar para uma mareação diferente a favor do vento, podemos de
repente estar em cima deles, pelo que a luta pode começar a qualquer momento.
Boa sorte.
Voltou-se e foi-se embora; Nicholas virou-se para Ghuda. — Já servi antes na
marinha — disse-lhe o velho mercenário. Depois, olhou por cima do ombro de
Nicholas para o navio ao longe. — É uma besta enorme — comentou —, a
navegar mais alto do que nós, o que é mau. Tanto podemos lançar-nos lá para
dentro a partir do cordame ou trepar por cabos com ganchos. É mais rápido se
nos lançarmos, mas os que vão balouçar têm de se agarrar à amurada para que os
outros possam trepar sem que lhes cortem as cabeças. Mantende-vos chegados e
cuidai uns dos outros, pois não há frente de batalha. O homem atrás de vós pode
ser um deles. — A seguir falou com Nakor e Anthony. — Provavelmente, será
melhor que permaneceis por aqui por um bocado, e depois avançai para tratar dos
feridos.
— Conheço um ou dois truques que podem ajudar — realçou Nakor.
— Não duvido — disse secamente Anthony, só que assentiu em concordância
com a sugestão de Ghuda.
Ghuda dirigiu-se então a Calis e Marcus. — Vós os dois podeis ser mais úteis
indo para o cordame com os vossos arcos. Selecionai os vossos alvos, pois se
aquele navio transporta guardas, de certeza que terão arqueiros no cordame.
— Os nossos arcos têm mais alcance do que qualquer besta — anunciou Calis.
Marcus concordou. — Se eles tiverem arqueiros com bestas, estarão mortos
antes de ficarmos em cima deles.
Ghuda falou então para todos. — Sei que será difícil, mas tentai descansar
agora o mais que puderdes. Quando a batalha se iniciar, tereis de ser o mais
astutos que conseguirdes, e um soldado cansado comete erros. — Dizendo isto,
agachou-se junto à antepara, envolveu-se no seu casaco e preparou-se para passar
pelas brasas.
Harry e Nicholas afastaram-se do mercenário. — Como é que ele consegue
fazer aquilo? — perguntou Harry.
Marcus meneou a cabeça em sinal de concordância. — Já passou por isto
antes, pelo que para ele não encerra grandes mistérios ou surpresas.
— Talvez — ripostou Harry —, mas acho que nem assim conseguiria alhear-
me de tudo e adormecer sem mais nem menos.
— Vi-te fazê-lo em Crydee — alegou Nicholas.
Harry viu-se forçado a anuir. Referiu que o extremo cansaço que
experimentaram – aparentemente sem perspetiva de repouso – ao ajudarem os
que foram deixados com vida após o ataque os colocara a todos num estado
melancólico. Até Brisa, que se mantinha ligeiramente à parte e em silêncio, não
fez piadas nem teceu comentários.
Nicholas observou o navio ao longe e pensou no que encontrariam quando se
desse a abordagem. Afastou os pensamentos desagradáveis e regressou ao seu
camarote, para tentar descansar um pouco.

M argaret abriu a janela. Apercebeu-se de um movimento pelo canto do olho


e recuou antes que o ocupante do camarote contíguo conseguisse vê-la.
Ergueu um dedo, fazendo sinal a Abigail para que se mantivesse em silêncio, e
pôs-se à escuta.
A voz que ouviu era a de Arjuna e falava a mesma língua que a criatura
lagarto, alternando sons guturais e sibilantes. A criatura respondeu-lhe e, pelo
tom de voz, obviamente não pareceu satisfeita, isto se Margaret estivesse a
conseguir avaliar bem uma língua tão estranha.
Abigail aproximou-se e espreitou pela janela. O barco perseguidor já era bem
visível e, mesmo com os seus parcos conhecimentos sobre tais matérias, logrou
perceber que se tratava de uma embarcação do Reino. — Quando é que devemos
tentar escapar? — perguntou, num sussurro.
Margaret abanou a cabeça e esticou o braço para fechar a janela. — Penso que
de manhã poderão estar suficientemente perto — segredou em resposta. — Então
tentaremos, caso eles mantenham o mesmo ritmo. Isso levá-los-á a ficarem a
menos de uma milha atrás de nós e poderemos facilmente nadar até lá.
Abigail não pareceu convencida, mas assentiu.
A porta abriu-se e entrou Arjuna. — Minhas senhoras — disse, fazendo a sua
estranha vénia, que agora já lhes era familiar. — Sem dúvida que haveis
percebido que somos perseguidos por um navio. Apesar de não ostentar a
bandeira do Rei, pensamos que será da vossa pátria. Tivéssemos nós a certeza de
que é a marinha do vosso Rei que nos segue e atiraríamos um prisioneiro borda
fora como forma de aviso. — Pareceu lamentar o facto de não terem a certeza. —
Contudo, dado que pode tratar-se de um barco pirata de Porto Livre, temos de
recorrer a outras medidas. Gostaria de vos assegurar de que apesar do resgate
parecer uma possibilidade, não o é efetivamente. Mas para prevenir que tenteis
alguma loucura, temo que tenhamos de tomar medidas. — Gesticulou e dois
tripulantes acederam ao camarote. Abrindo caminho por entre as raparigas,
pegaram nos martelos que transportavam nos cintos e cravaram pregos enormes
no caixilho da janela.
— Assim que nos virmos livres desses que nos seguem, permitir-vos-emos que
abris de novo a janela. — Os marinheiros abandonaram o camarote e Arjuna
fechou a porta, deixando as raparigas sozinhas.
— O que é que fazemos? — perguntou Abigail.
Margaret inspecionou os pregos e tentou retirar um com os dedos. Tentou
agarrar, sem sucesso, as grandes cabeças dos pregos. Desesperada, praguejou e a
seguir, após deitar uma vista de olhos ao quarto, foi inspecionar a pequena mesa.
Era pesada, para não deslizar em mares alterados, mas estava presa ao piso
apenas por cavilhas enfiadas em buracos nas bases das pernas. Margaret
ajoelhou-se junto à sua cama e fez sinal a Abigail para que pegasse na outra
ponta e as raparigas experimentaram levantá-la. A custo a mesa lá se levantou. —
Baixai-a — ordenou Margaret.
Assim que a mesa regressou ao seu lugar, Margaret disse:
— Acho que vamos atirar a mesa à janela.
— Irá resultar?
Margaret inspecionou a janela. — Se retirarmos primeiro estes vestidos e
depois estilhaçarmos a janela com a mesa, poderemos partir vidro e madeira
suficientes para passar… Pode cortar-nos um pouco e provocar algumas
pisaduras, mas devermos conseguir fazê-lo antes que nos venham deter.
Abigail não pareceu convencida, mas anuiu em concordância.
— Agora, esperamos até que amanheça.
Margaret sentou-se, a meditar, tentando ignorar a recordação da barbatana a
cortar a água atrás do barco.

alis estava de pé do lado de fora da amurada de bombordo, com a mão agarrada a


C
uma corda do gurupés, a olhar para diante. O Sol mantinha-se abaixo da
linha do horizonte lá atrás e, à frente, a noite cedia o lugar à névoa. A sua
vista era a mais apurada de todos e quando Nicholas se levantou, ele estava na
proa, à procura de sinais do barco negro.
— Ainda seguem à nossa frente? — perguntou Nicholas.
— Ainda ali estão — respondeu o jovem elfo. — Apagaram todas as luzes à
meia-noite e mudaram de rota para nos baralhar, mas, hora a hora, o Anthony
transmitiu as correções ao Capitão.
Nicholas espreitou para diante, mas não lobrigou nada. Os minutos arrastaram-
se e Nicholas voltou-se e deu com Marcus atrás de si. Harry estava um pouco
mais afastado junto a Brisa, agarrada a si própria para enfrentar o ar fresco
matinal. Abruptamente, encostou-se a Harry, que lhe passou o braço por cima,
com uma expressão no rosto que misturava surpresa e deleite.
O tempo tornou-se progressivamente mais quente conforme rumavam a sul.
Amos achou que haviam passado para baixo da linha do Equador e que
navegavam agora rumo à fase terminal da primavera. Ouvira falar das estações
invertidas nos Estados distantes da Confederação Keshiana, mas nunca se
afastara tanto para sul.
Quando o Sol começou a brilhar no céu oriental, Calis apontou. — Ali!
Nicholas espreitou e então conseguiu avistar o navio, preto a fazer contraste
com o cinzento-escuro, agora à vista em toda a sua grandeza, uma coisa enorme
com um castelo da popa alto e uma vela latina na ré. O barco tinha todas as velas
desfraldadas e avançava inclinado contra o vento.
Amos foi à proa e ficou uns momentos a observar. — Aquele pesadão arrasta-
se como o raio, não?
— Quanto tempo falta? — perguntou Marcus.
Amos avaliou a distância e a velocidade. — Vamos apanhá-los antes do meio-
dia — indicou.
— Terra à vista — gritou o vigia nos mastros.
— A que distância? — quis saber Amos.
— Mesmo à frente.
Quando se voltaram para olhar para a frente, a escuridão sombria atrás do
barco começou a desvanecer-se. As neblinas matinais evaporaram-se quando o
Sol começou a iluminar o dia e a visibilidade cresceu tremendamente. Como se
fosse retirado um véu, o ar clareou e os que estavam na proa do barco viram
aquilo que o vigia avistara um minuto antes. Amos praguejou. — Por todos os
deuses! Olhai para aquilo!
Uma escarpa gigantesca erguia-se sobre uma praia rochosa. Atingindo
facilmente os trinta metros no ponto mais baixo, e possivelmente três vezes mais
do que isso no ponto mais elevado, empinou-se defronte deles como uma parede
distante. Mostrava um brilho rosado e laranja sob a luz do Sol do amanhecer, e
era amarela no cume.
Amos voltou-se e gritou ordens: — Vigias nos mastros! Estamos em águas
pouco profundas. — Instantaneamente, uma meia dúzia de marinheiros trepou
aos mastros e começou a procurar indícios de bancos de areia e outros perigos.
— Olhai! — disse Amos, apontando para as rochas à direita do barco, a apenas
trinta metros de distância. O som débil de vagas costeiras ecoou sobre a água. —
Maldição, a noite passada podíamos ter acabado em cima de um banco de areia
uma dúzia de vezes. Ruthia deve adorar-nos.
— Estão a tentar levar-nos a naufragar? — perguntou Nicholas.
— Talvez — respondeu Amos. — Mas eles navegam bem mais fundo do que
nós, pelo que deve haver aqui um canal seguro. — Cerrou os olhos. — Estou a
tentar recordar aquele maldito mapa que o vosso pai me mostrou — disse. — Se
a minha velha cabeça não me falhou, estamos a olhar para o continente de
Novindus e esta é a linha costeira de nordeste. — Movendo as mãos ao falar,
concluiu:
— Algures a sul de nós, mais ou menos a uma semana de navegação, acho eu,
há uma península, e depois de a tornearmos, ruma-se para norte até se chegar a
alguma cidade.
Nicholas tinha igualmente uma vaga ideia desse mapa, mas lembrava-se de
menos pormenores do que Amos.
— Estão a virar, Capitão — alertou Calis.
Anthony mantivera-se em silêncio desde que haviam avistado o navio, mas
resolveu falar agora. — E há algo…
Rebentou debaixo deles um estrondo vigoroso. Um vigia gritou e caiu das
vergas sobre a água ao lado do barco. Nicholas sentiu como se estivesse a ser
percorrido por um relâmpago, com uma energia desconhecida a descer-lhe desde
a cabeça, passando-lhe pelo corpo até aos pés, e destes para o barco. O grito
agudo de Brisa ouviu-se sobre os urros de terror dos homens, e quando Nicholas
olhou em volta, viu Ghuda com a espada empunhada e até o taciturno Calis
tentava descortinar um inimigo desconhecido.
E então a sensação de energia alterou-se e Nicholas sentiu um formigueiro na
pele e pelos. Avistou um raio azul, com uma descarga ruidosa, a dançar pelas
vergas e viu o cabelo dos companheiros com as pontas levantadas, espalhadas
como leques em redor das cabeças.
E depois o silêncio.
Amos piscou os olhos. — O que… — ia dizer.
O barco começou a oscilar lentamente de um lado para o outro. — Raios! —
vociferou Amos, correndo para a parte lateral da embarcação. Olhou por cima da
amurada. — Ficámos sem vento — anunciou.
— Mas como é que é possível? — perguntou Nicholas. — Olhai!
Amos olhou para o barco preto, que se afastava lentamente, com as velas
enfunadas e inclinando para bombordo enquanto ganhava velocidade. — Não
compreendo.
— Magia — disse Anthony.
— Um truque — resmungou Nakor. — Sugaram o vento do ar que nos
envolve. Um truque muito nojento.
Amos sentiu-se como que traído pelos seus próprios olhos. Em redor do seu
barco, num raio de cerca de cinquenta metros, a água apresentava-se tranquila,
enquanto para lá dessa distância a brisa fresca formava cristas de espuma nas
ondas. Amos socou a amurada, frustrado. — Estávamos quase em cima deles. —
Inspirou profundamente. — Quero um escaler já na água, Sr. Rhodes — ordenou.
— Preparai um cabo de reboque.
— Ides rebocar-nos para fora desta magia? — perguntou Marcus.
— Já antes fiquei sem vento — limitou-se Amos a dizer. — Às vezes, é a única
coisa a fazer.
Nicholas voltou-se e fitou os outros. — É melhor descansarmos — disse
Ghuda.
Mas Nicholas permaneceu onde estava, a observar o barco negro em fuga, que
se tornava cada vez mais pequeno.

E les pararam — anunciou Margaret.


— O quê? — perguntou Abigail.
— Estão a ficar para trás.
Abigail olhou através das pequenas vidraças. — Oh, não, por todos os deuses!
— exclamou. Os olhos dela começaram a ficar brilhantes devido às lágrimas, mas
obrigou-se a travar o choro. — O que iremos fazer?
— Vamos já! — disse Margaret, despachando-se a desapertar o seu vestido.
Puxando os laços à frente, estava prestes a deixá-lo cair dos ombros quando a
porta se abriu e Arjuna entrou no camarote.
— Minhas senhoras, aconselho-vos a manterdes as roupas vestidas. Ver-vos
nuas distrairá os meus homens.
Ele fez sinal e entraram dois marinheiros enormes vestidos de preto. — Eles
vão vigiar-vos por um momento — anunciou Arjuna —, até que mesmo alguém
impetuoso quanto vós, Lady Margaret, não se arrisque a nadar tal distância em
águas infestadas de tubarões. Depois, retirarão os pregos e podereis de novo
desfrutar de ar fresco no vosso camarote.
Ele sorriu, virou costas e saiu. Abigail sentou-se e fitou a sua amiga. Margaret
assentiu ligeiramente com a cabeça e sorriu, pois percebera que a rapariga estava
a tentar não se ir abaixo e desatar a chorar. Lentamente, Margaret voltou a atar os
laços do seu vestido, olhando pela janela para o navio ao longe, que rapidamente
se tornava cada vez mais pequeno.

B risa soltou um gemido de irritação. — Pensei que sem vento implicaria uma
acalmia2. — Olhando de lado para os seus companheiros, comentou:
— Este barulho está a deixar-me louca.
Nicholas olhou compreensivamente para Harry. Compreenderam o que sentia a
rapariga. Poucos minutos depois de ter sido aplicada a magia que lhes roubou o
vento, todos se aperceberam de uma enormidade de sons nos quais nunca haviam
reparado. O som da proa a cortar a água, o zunido dos cabos e o ruído dos
homens envolvidos nas suas tarefas eram os únicos sons notados quando fazia um
vento intenso.
Agora, os cabos caíam soltos dos mastros e as lonas das velas balouçavam nas
vergas. O navio balouçava indolentemente com a subida e descida das vagas
altas. O casco rangia com as tábuas e as madeiras a moverem-se e a fletirem.
Uma centena de roldanas e polés rodopiava em cabos soltos, embatendo em
mastros ou uns nos outros, provocando um estrépito constante. Estalaram tábuas,
chiaram dobradiças e esteve sempre presente o som distante da rebentação na
costa.
Os remadores puxaram, sem descanso, o barco ao longo de quase cinco milhas.
Nakor constatou que o feitiço acompanhava a deslocação do barco e não soube
como contorná-lo. — É um ótimo truque — foi tudo o que logrou comentar.
Durante o resto do dia, observaram frustrados o barco preto a velejar para
longe. Amos ordenou a substituição da tripulação do escaler e o navio vogava
agora ao sabor da corrente enquanto os do barco mais pequeno remavam para trás
para o entregarem aos seus substitutos. Praguejou e deu voltas pelo tombadilho
superior, antes de regressar para junto de Nicholas e dos outros na proa. — Há
algo que possais fazer? — perguntou a Nakor.
O pequeno homem encolheu os ombros. — Talvez — disse —, se tiver tempo
para pensar. Talvez não. É difícil de dizer.
— Há um feitiço que estudei — referiu Anthony —, mas nunca recorri a ele:
um encantamento de controlo do tempo. Mas pode não funcionar.
Amos fitou-o com um olhar ameaçador. — E que mais?
— É perigoso.
— Fazer truques que não se sabe fazer é sempre perigoso — realçou Nakor.
Amos cofiou a barba. — O que achais do feitiço em que estamos encurralados?
— É o mesmo tipo de magia… — ia dizer Anthony.
— Truque — interrompeu Nakor.
— …que me proponho a usar. Se nada fizermos, persistirá durante pelo menos
mais um dia, ou talvez até mais. Se o mago que o lançou for particularmente
dotado ou erudito, pode até durar uma semana.
Amos praguejou. — Que alternativa temos? — questionou.
— Se alcançarmos aquele barco antes de aportarem ou não muito depois,
temos alguma esperança de descobrir os prisioneiros — referiu Nicholas. — Mas
se chegarem ao porto uns dias à nossa frente, pode revelar-se impossível
encontrá-los.
Amos não pareceu satisfeito, mas assentiu em sinal de concordância. —
Precisais de algo em especial? — perguntou então a Anthony.
— Apenas de toda a sorte que conseguirdes reunir — respondeu Anthony.
— Quero todos os homens no convés, Sr. Rhodes — gritou Amos.
Quando a tripulação se reuniu, Amos dirigiu-se a eles desde a cobertura da
proa. — Homens, vamos tentar quebrar este feitiço que nos privou do vento. Não
fazemos ideia de quais serão as consequências, pelo que vos quero a todos nos
vossos postos prontos para desempenhar qualquer tarefa que vos seja requisitada.
— Mais não disse e o Sr. Rhodes ordenou aos homens que se preparassem para
um tempo tempestuoso.
Alguns dos marinheiros fizeram uma pequena pausa para uma oração
silenciosa dedicada às suas divindades, mas já estavam todos a postos quando
Amos fez um aceno na direção de Anthony.
— Nakor, se podeis dar-me uma ajuda, é chegada a hora — disse-lhe Anthony.
Nakor encolheu os ombros. — Não conheço este truque, pelo que não saberei
se o estareis a fazer corretamente — disse. — O melhor é fazê-lo e crer que os
deuses hoje não estejam demasiado zangados connosco.
Anthony fechou os olhos. — Na minha mente vejo a matriz e na matriz está
guardado o poder — começou. — A chave para a matriz é a minha vontade, e na
matriz a minha vontade torna-se o poder. — Repetiu o cântico e o volume da sua
voz baixou de intensidade, até que Nicholas e os outros deixaram de o ouvir. Os
lábios dele continuaram a mover-se e ele oscilou ritmadamente.
Nicholas sentiu uma leve lufada na face e olhou para os outros. Marcus e Brisa
olharam ambos para o mastro acima deles. Nicholas também olhou para cima e
viu as lonas começarem a agitar-se.
Com o que se assemelhou a um suspiro de alívio, o vento reanimou-se e o
barco começou a rodar quando o vento encheu as velas.
— Mareai as velas, Sr. Rhodes, e estabelecei uma rota na senda do navio preto!
O vigia avisou que ainda conseguia distinguir a quase impercetível forma do
enorme barco no horizonte a sul, e indicou a posição. — Todos os vigias nos
mastros — rugiu Amos. — Mantende-vos bem atentos aos recifes!
Anthony prosseguiu com o encantamento e Nicholas deitou uma olhadela a
Nakor. O homenzinho encolheu os ombros. — Eu disse que não conhecia este
truque.
O vento bateu com força. — Estai atento ao tempo, Sr. Rhodes — ordenou
Amos.
Nicholas olhou para trás deles. — Olhai! — gritou.
A nordeste, uma massa de nuvens escuras em movimento formava-se onde
antes estivera um céu azul. Como se alguém as tivesse despejado de uma taça, as
nuvens tombaram e espalharam-se atrás do barco, formando no ar uma linha de
fúria negra.
Uma gota atingiu a face de Nicholas e ele começou a ver chuva a cair das
nuvens, soprada na direção deles pelo vento cada vez mais intenso. Amos
ordenou que as velas fossem mareadas para uma tempestade e os homens
deslocaram-se atabalhoadamente no cordame, enfiando as velas maiores nos rizes
e mareando as restantes.
Lá em baixo, os homens saíram a correr e regressaram para começar a instalar
cabos de tempestade por todo o convés, enquanto outros passavam capas
impermeabilizadas para proteger da chuva. O céu escureceu conforme as nuvens
negras se espalhavam lá em cima e durante todo esse processo Anthony
permaneceu imóvel, de olhos fechados e mexendo os lábios.
Nicholas gritou sobre a ventania cada vez mais intensa. — Nakor! Será melhor
detê-lo?
— Como? — questionou o homenzinho. — Não imagino o que estará ele a
fazer.
— Às vezes, a melhor solução é perguntar diretamente — disse Ghuda.
Agarrou Anthony pelo ombro e chamou-o. O mago não respondeu. Ghuda
sacudiu-o com força e ainda assim não conseguiu despertar a atenção do mago
louro, agora completamente encharcado. — Se a tempestade não o desperta,
também não vão ser os meus gritos a fazê-lo.
— Fazei outra coisa qualquer! — exigiu Brisa, que pareceu então
tremendamente aterrorizada. O vento já duplicara a sua fúria e ondas maiores
estavam a sacudir o Raptor tão facilmente quanto uma criança faria a um
brinquedo, e os solavancos do convés, que parecia escapar-se-lhe de debaixo dos
pés, eram algo que ela não conseguia suportar. — Fazei algo!
Os marinheiros nos mastros apressaram-se a meter as velas nos rizes, pois
tinham demasiada lona para um vento que a cada segundo soprava mais forte.
Mastros e vergas rangeram em protesto face ao esforço quando o vento começou
a uivar por entre o cordame.
Nicholas juntou-se a Ghuda e sacudiu Anthony, chamando por ele. Um grito
oriundo da popa levou-os a todos a voltarem-se e a voz de Amos cortou a fúria do
vento como se fosse uma lâmina. — Banath, protegei-nos!
Estava a formar-se a nordeste uma vaga maior do que as anteriores. — Tudo
para bombordo, Sr. Rhodes. Colocai-o a favor do vento! — A seguir, gritou
instruções para quem estivesse ali próximo: — Agarrai-vos a algo e com muita
força! Se aquela vaga nos atingir no flanco, vamos perder um mastro, ou pior.
Nicholas agarrou-se à amurada ali perto e ficou, num misto de fascínio e
horror, a olhar para a água a erguer-se cada vez mais enquanto se aproximava
deles. Parecendo uma parede negra, a água avançou enquanto a tripulação se
esforçava por voltar a proa do barco para a frente, de modo a enfrentá-la.
A massa de água atingiu-os quando o barco ainda não estava devidamente
alinhado. O navio pareceu tentar escalar a água, com a proa a erguer-se no ar
conforme se inclinava para o lado, para estibordo. Brisa gritou, agarrada em
desespero a um cabo que se soltara de um gaviete. Marcus esticou o braço e
agarrou-a pela cinta, puxando-a para si enquanto se segurava a um cabo do
convés.
O barco continuou a tentar escalar a água e Nicholas ficou a olhar espantado
enquanto o mundo parecia inclinar-se. Quase caiu de costas, ou assim lhe
pareceu, quando o navio prosseguiu a sua tentativa de trepar a vaga, e de repente
foi tudo lançado para a frente.
Uns homens gritaram ao serem projetados do cordame, enquanto outros
vociferaram ao agarrarem-se ao que quer que tivessem à mão, para se salvarem.
Nicholas viu então o barco a descer na direção da depressão entre as ondas, num
ângulo tão inclinado quanto na ascensão, e compreendeu que a magia estava a
alterar as leis do mar: aquela onda era quase tão íngreme para lá da crista como
na frente. E então viu água a inundar a proa do barco.
O navio mergulhou na água e Nicholas percebeu naquele mesmo instante que
estavam condenados. Fechou os olhos quando a água lhe passou por cima,
atingindo-o como se fosse uma parede dura, ameaçando arrancar-lhe os braços
dos ombros enquanto se mantinha agarrado à amurada. Deu por si a sentir-se
repentinamente pesado quando o convés se elevou debaixo dele.
Desequilibrou-se e caiu, mas sempre agarrado à amurada enquanto era
fustigado debaixo de água, e de repente deu por si de novo fora da água, que se
espalhava em todas as direções enquanto a proa do barco irrompia à superfície do
mar.
Arquejando, Nicholas abriu e fechou os olhos para se libertar da água salgada e
olhou em volta. Ainda estava toda a gente à vista, agarrada a alguma parte da
embarcação. Ghuda mantinha-se firme como uma rocha a enfrentar a maré, a
segurar Anthony pela cinta com um braço e agarrado a um cabo com a outra mão.
O navio continuou a adernar para estibordo e então, quando pareceu estar prestes
a tombar de lado, inclinou de novo para bombordo e todos se agarraram
desesperadamente para se manterem a bordo. A seguir, endireitou-se e por
momentos pareceu ter parado de balançar.
— Olhai! — gritou um marinheiro ali perto.
Nicholas voltou-se para ver outra onda, maior do que a anterior, a encaminhar-
se na direção deles. — Fazei algo! — gritou para Ghuda assim que a proa
começou de novo a empinar.
Ghuda assentiu com a cabeça e largou Anthony. Antes que o mago se
afastasse, o grande mercenário atingiu-o com um soco em cheio no maxilar.
Anthony desabou inconsciente no convés.
O céu ficou de novo instantaneamente límpido, mas, para horror de Nicholas, a
parede de água continuou a aproximar-se deles enquanto a proa do Raptor se
erguia para a enfrentar. — Agarrai-vos — foi tudo o que conseguiu gritar quando
o barco mais uma vez iniciou a sua escalada impossível.
Escutaram-se de novo gritos e berros quando os homens foram mais uma vez
projetados dos seus postos e ecoaram pelo ar parado ruidosos estrépitos quando o
material atado ao convés se soltou e se esmagou contra o mastro ou o tombadilho
superior.
O navio trepou cada vez mais alto e desta feita Nicholas sentiu ainda mais
pavor, pois pôde ver tudo com nitidez, dado que já não havia chuva a cegá-lo.
Apenas um borrifo proveniente da montanha de água em aproximação encheu o
ar enquanto o navio se debatia para se manter à tona. Nicholas apercebeu-se
vagamente de Brisa aos berros e Marcus a praguejar e compreendeu que, desde a
vaga anterior, deixara de ver Calis.
E então, quando pareceu que o barco iria tombar para trás como uma tartaruga
de patas para o ar, ultrapassaram a crista da onda. Desceram precipitadamente
pelo outro lado e a voz de Nicholas juntou-se à dos restantes em gritos de terror
incoerentes. A ausência de magia privou o mar da sua força motriz sobrenatural
e, em vez de se seguir outra vaga em ascensão, o mar apresentou o seu
nivelamento normal. Sem que isso fosse esperado, a água estava a regressar ao
seu anterior estado calmo, em vez de prosseguir com o temido ataque devastador,
pelo que, após terem sobrevivido ao pior da vaga gigantesca, a sua dissipação
estava a acrescentar ímpeto ao mergulho descendente do barco. Nicholas lobrigou
os bancos de areia e os recifes no mar lá em baixo, como se estivesse a olhar
através de um vidro verde. Teve a certeza que não sobreviveriam ao mergulho,
pois não havia água suficiente para amortecer a proa do navio.
O leito do oceano aproximou-se velozmente e Nicholas sentiu a água a atingi-
lo como se fosse um golpe desferido pela mão de um gigante. Sentiu o barco a
desaparecer-lhe de debaixo dos pés quando a água chamou por ele, e depois o
embate doloroso da madeira nas rochas. O navio gemeu ao morrer, um uivo
impetuoso de madeira e ferro, ao qual se juntaram os gritos da sua tripulação.
E então Nicholas afundou-se sob a espuma branca. Sustendo a respiração o
melhor que pôde, sentiu-se a ser arrastado para o fundo. Cego devido à água que
tinha no rosto, Nicholas foi arrastado para baixo por uma força que nunca
experimentara. Foi levado para um mundo de sons e vibrações, passando de um
lado para o outro tão violentamente que perdeu a noção das direções. Esperneou
o mais que pôde contra a corrente quando o volume do barco criou um vácuo em
seu redor, sugando tudo o que estava ali perto.
De súbito, sentiu os pés a atingirem madeira, como se tivesse aterrado com
força no chão do seu quarto. Uma dor intensa percorreu-lhe o pé esquerdo e
arquejou. De repente, a boca e o nariz encheram-se de água. Nicholas sentiu os
pulmões a arder quando se engasgou com a água do mar. Debateu-se, com a água
a agitar-se à sua volta, obrigando-o a ajoelhar-se sobre o convés e a penetrar cada
vez mais fundo nos seus pulmões. Num chocante momento de lucidez, percebeu
que ia morrer. Uma inesperada sensação de paz tomou conta de Nicholas e
conseguiu sentir o sangue a ser bombeado nas suas têmporas e peito como se
fosse algo distante, e o ardor nos pulmões não passava de um reflexo débil da dor
que suportara pouco antes.
E então, de repente, deu por si a subir a uma velocidade vertiginosa, como se
uma mão gigante o tivesse içado. O navio saltara do leito do mar e subira de novo
à superfície graças ao ar encurralado no casco. Disparou para cima, percorrendo
os menos de quinze metros entre o leito do mar e a superfície.
O navio emergiu e Nicholas foi projetado no ar. Arfou, cuspindo a água
salgada que lhe entrara para os pulmões, e agitou os braços como se pretendesse
voar. E então o barco inclinou-se de novo com a ondulação e embateu na água.
Enquanto o barco se endireitava, Nicholas foi rastejando e nadando para a
amurada, onde se agarrou para se salvar. Como um animal ferido, o Raptor deu a
bombordo, com a água a encher o seu porão e a fazê-lo afundar.
Nicholas cuspiu e tossiu, e de seguida arquejou dolorosamente, para depois
voltar a tossir, vomitando o resto da água. Expeliu água salgada do nariz, limpou
a cara com uma mão e olhou em volta. Os três mastros tinham sido
despedaçados, com o mastro do traquete lançado sobre a verga grande e os outros
para baixo. O convés estava atulhado de destroços, corpos e algas do mar. Levou
praticamente um minuto até que tudo se imobilizasse.
Marcus e Calis agarraram-se ambos ao que sobrara de um cabo preso ao lado
de fora da amurada e Brisa estava abraçada a Marcus pela cintura. Ghuda ainda
segurava Anthony com força com um dos braços, enquanto o outro envolvia um
cabrestante. Escorria-lhe sangue pelo rosto, oriundo de uma ferida feia no couro
cabeludo. Nakor estava enredado no que sobrara de uma das enfrechaduras do
mastro do traquete e gritava para que alguém o soltasse.
E então Nicholas apercebeu-se de quem estava em falta. — Harry! — berrou.
De repente, sentiu uma contração no estômago e vomitou água do mar.
O barco gemeu e rolou e Amos saltou de debaixo de um mastro partido.
Levantando-se, olhou em volta para avaliar os danos. Aproximou-se de Nicholas
para lhe dar uma ajuda. — Que confusão — comentou. — De seguida, voltou-se
para a popa da embarcação. — Sr. Rhodes! — chamou.
Não obteve resposta. Amos acabou de examinar o seu barco e rapidamente
voltou para junto de Nicholas. — Reuni toda a gente no convés principal e
recuperai tudo o que puderdes. Juntai o máximo possível de pipas de água e odres
nos escaleres, assim como toda a comida que conseguirdes reunir. Estamos a
afundar.
— Há algo que possamos fazer? — perguntou Nicholas.
Amos abanou a cabeça e virou costas. Nicholas foi para o local onde Calis
estava a libertar Nakor do emaranhado de cabos que o prendiam. — Toda a gente
para o convés principal — indicou. — Vamos abandonar o barco.
Foi rapidamente passada palavra e Marcus e Nicholas dirigiram-se aos seus
camarotes, onde já se via a água a infiltrar-se por entre as tábuas do convés.
Deitaram a mão ao que puderam no meio da confusão e regressaram de pronto
para cima. Calis recuperara o seu arco e setas, ambos protegidos por um oleado,
mas o arco de Marcus perdera-se. Sabendo que estavam prestes a ficar à deriva
numa costa hostil, Nicholas abriu caminho por entre um amontoado de destroços
e corpos e entrou no camarote de Amos. Abriu o pequeno alçapão e pegou na
bolsa de ouro que Amos lhe mostrara quando Brisa fora levada a bordo. Já ia a
sair quando se lembrou de algo e, por entre a água ascendente, dirigiu-se à
secretária de Amos. Abriu-a e encontrou um diário de bordo com uma capa de
couro vermelho, no qual pegou. Guardando o ouro na túnica e o diário debaixo
do braço, dirigiu-se à escada que ligava o convés às camaratas e viu água a
rodopiar. O navio estava a afundar rapidamente.
Subindo a correr a escada até ao convés principal, Nicholas sentiu mais uma
pontada de dor no pé e quase deixou cair o diário de bordo. Chegou ao convés a
tempo de ver uns quantos marinheiros sobreviventes a saltarem da balaustrada
para a água. Amos estava de pé no convés e fez-lhe sinal para que se
aproximasse.
Ao chegar junto de Amos, Nicholas entregou-lhe o diário de bordo. —
Também retirei o ouro do vosso camarote. Provavelmente iremos precisar dele.
— Que os deuses vos abençoem, rapaz, pois não perdestes a lucidez. — Cingiu
o livro no peito. — Com isto, um dia poderemos regressar a casa.
Nicholas subiu à amurada e viu um escaler à espera apenas um metro e meio
mais abaixo. — Olhou para cima. — Amos? — chamou.
— Já vou, Nicky. — Deu uma última espreitadela ao convés. — Já vou.
Desceram para o escaler e Ghuda e um marinheiro empurraram com muita
força para afastar o mais possível o escaler do barco agonizante.
Quando estavam a menos de um quarto de milha de distância, o Raptor,
antigamente Águia Real, orgulho da armada krondoriana, rolou sobre si próprio e
afundou-se.
— Raios, detesto perder barcos — comentou Amos com amargura.
Nicholas não percebeu porquê, mas achou tremendamente engraçado aquele
comentário, e, por muito que se tivesse esforçado, não conseguiu evitar rir-se.
Tentou conter-se, mas num instante estava às gargalhadas. Amos ficou indignado,
mas Brisa e Ghuda imitaram Nicholas e nem Marcus conseguiu conter-se. Nakor
nunca pareceu necessitar de pretextos para se rir, pelo que nem sequer tentou
disfarçar o seu regozijo. Passado um minuto, apenas o vulto inconsciente de
Anthony e um furibundo Amos Trask não estavam a rir-se.
— Onde está a maldita graça? — exigiu saber Amos.
— Quantos barcos já perdestes? — perguntou Ghuda. Tinha o rosto coberto de
sangue, mas de resto parecia estar bem.
— Três — esclareceu Amos. E então, de repente, o seu rosto abriu-se num
largo sorriso e deu por si contagiado quando os outros no escaler não resistiram
ao escutar aquela resposta.
De fora da embarcação ouviu-se uma voz rouca. — Sem querer estar a estragar
a vossa diversão, não poderíeis dar-me aqui uma mãozinha?
Nicholas olhou borda fora e viu dentro de água um vulto conhecido agarrado a
um mastro partido. — Harry — gritou, e inclinou-se para fora para ajudar o
amigo a subir para o barco apinhado de gente.
— Pensei que te tinhas afogado — disse Nicholas.
Estremecendo devido a uma mágoa latente algures dentro de si, Harry não
resistiu a fazer um comentário. — Dá para ver que isso te provocou um grande
pesar.
A expressão de Nicholas tornou-se melancólica. — Estávamos só um pouco
apalermados por termos escapado — justificou-se.
Harry anuiu. — Fui lançado borda fora. Vi a proa a ressaltar vinda do fundo e
pensei que todos vós tivésseis morrido.
— Estou surpreendido por não ter morrido mais gente — confessou Amos. —
Olhai. — Apontou e eles voltaram-se para ver mais um par de escaleres a avançar
na direção deles. Quando ficaram ao alcance da voz, Amos gritou:
— O Sr. Rhodes está convosco?
— Vi um mastro arrancar-lhe a cabeça, Capitão — respondeu um marinheiro.
— Sem dúvida que morreu.
— Quantos sois vós?
— Vinte e sete neste barco e dezanove no seguinte, senhor.
— Provisões?
— Neste barco nada, senhor.
Um marinheiro gritou desde o segundo barco. — Temos uma barrica de porco
e outra com maçãs secas, Capitão.
Amos voltou a falar depois de olhar em volta. — Bem, precisamos de nos
aproximar da costa. Vai escurecer dentro de algumas horas e não quero vogar
inutilmente sem destino. — Gesticulou para que os outros barcos se
posicionassem. — Segui-nos — ordenou.
Ghuda e um marinheiro começaram a remar. — Calis — disse Amos —,
mantende-vos atento às rochas à vossa frente. Olhai para a rebentação e verificai
se há água a saltar em duas direções, pois, se assim for, é sinal de que haverá
rochas sob a superfície.
Remaram na direção das enormes escarpas. — O que haverá lá em cima? —
questionou-se Nicholas.
— Talvez bosques ou silvados, ou planícies — disse Calis. — Um lugar onde
eu possa caçar.
— Ou talvez lá haja uma cidade — arriscou Harry, ainda completamente
encharcado.
— Um lugar onde possa arranjar uma blusa limpa — disse Brisa.
— E algo para comer — arriscou Nakor, sorrindo sem grande convicção.
Abriram caminho por entre diversas rochas para acederem a um lugar onde a
água corria apressadamente e seguiram aquela pequena corrente até às vagas de
rebentação. Subindo até ao topo de uma onda, deixaram depois que esta os
embalasse até à praia.
— Rochas! — gritou de súbito Calis. — Virai à direita. — Assim que Ghuda,
sentado à esquerda, começou freneticamente a tentar recuar com o seu remo,
ecoou um som cortante e o barco deteve-se como se tivesse embatido numa
parede. Calis e Marcus foram lançados pela proa e Brisa gritou.
Uma espiral de rocha com pouco mais de dois centímetros projetava-se na proa
do escaler e já havia água a acumular-se em redor. — Temos um rombo — gritou
Amos. — Deitai a mão ao que conseguirdes e saltai borda fora e nadai!
Voltou-se e gritou para os outros barcos: — Batemos em rochas! Dai a volta!
O marinheiro que seguia na proa do segundo barco acenou em resposta para
demonstrar que compreendera e desviaram-se para a esquerda do escaler de
Amos, evitando-o.
Nicholas agarrou um par de odres e saltou por um dos lados. Nadou com
facilidade até ter pé, e depois avançou até à costa. Toda a gente chegou bem
enquanto os outros barcos tentavam acostar.
O segundo barco embateu de lado num baixio e os marinheiros praguejaram
por também eles terem sido obrigados a abandonar o barco. O terceiro barco foi
avisado a tempo e chegou à praia sem danos.
Amos deu ordens a alguns dos seus marinheiros para que nadassem até ao
segundo barco para verificar se poderia ser retirado das rochas. — Se não o
conseguirmos fazer, as ondas irão despedaçá-lo ali mesmo.
Mais de uma dúzia de homens, todos eles exaustos, avançaram com
dificuldade através da rebentação e nadaram até ao segundo barco. Empurraram e
puxaram, tentando mover o enorme escaler, mas sem resultado.
Por fim, Amos fez sinal para que regressassem. Quando estavam de novo na
praia, o marinheiro que falara com Amos desde a proa daquele barco, disse:
— Entrou água, Capitão, está tão preso àquele rochedo como um abutre a um
cão morto.
— Raios. — Amos voltou-se e inspecionou as imediações. As sombras das
enormes escarpas que se empinavam sobre eles já haviam atingido a água, e
sentiu um certo frio. — Tentai encontrar madeira para uma boa fogueira — disse,
dirigindo-se a Nicholas, Marcus, Calis e Brisa. — Vai ficar frio muito em breve e
não temos uma única manta. — Fez as contas rapidamente: quarenta e nove
soldados e marinheiros, e Nicholas e os seus companheiros, cinquenta e oito
sobreviventes no total; de uma companhia de mais de duzentos. Entoou uma
pequena oração a Killian, a Deusa dos Marinheiros, pedindo-lhe clemência para
os homens que perdera.
Após um suspiro de resignação, dirigiu-se à sua tripulação. — Espalhai-vos e
vede se deu à costa algo que tenha utilidade. — Olhou em volta. — Ainda temos
um par de horas de luz, portanto, vamos ver onde estamos.
Os homens obedeceram e a maioria espalhou-se pela praia, alguns avançando
para norte, outros para sul, ao longo das rochas. Uns quantos, demasiado feridos
para caminharem, sentaram-se simplesmente na areia, em silêncio no seu suplício
encharcado.
Amos viu-os partir e falou com Nakor e Ghuda, que ainda sustinha o
inconsciente Anthony. — Despertai-o se possível, mas ajudai a vasculhar as
cercanias. Tenho a sensação de que vamos necessitar de tudo aquilo a que
conseguirmos deitar a mão caso pretendamos sobreviver.
Ghuda pousou o mago inconsciente no chão e sacudiu-o, mas ele não se
moveu. Após um momento, Ghuda levantou-se e deixou-o ficar, juntando-se aos
outros que procuravam algo que pudesse ter dado à costa. Nakor voltou-se para
Amos. — Lamento pelo vosso barco — disse-lhe.
Amos assentiu. — Também eu.
Nakor enfiou a mão na mochila, mas retirou-a abruptamente, como se tivesse
sido picado. — Oh, isto é mau — afirmou.
— O que é? — quis saber Amos.
— Há um mercador em Ashunta que vai ficar muito aborrecido quando
descobrir que a sua fruta foi arruinada por água salgada. — Sacudindo
pesarosamente a cabeça, o homem de pernas arqueadas afastou-se do Capitão e
começou a vasculhar no meio das rochas.
Sozinho, Amos voltou-se para o local onde o seu barco jazia tombado de lado
na água, afundando-se lentamente para lá da linha de rebentação. Sentindo uma
tristeza que ia para lá do que conseguiria descrever, manteve o olhar fixo no
barco enquanto ele desaparecia para lá das ondas.
2 No original surge na realidade o termo «becalmed», que tanto significa «privado de vento»
como «acalmado». É um jogo de palavras que em português não resulta. (N. do T.)
13

Escalada

O
fogo era pouco intenso.
Brisa abraçou-se a si própria numa tentativa vã de se manter
quente, pois não lhe bastavam as brasas quase extintas. Outros
amontoaram-se em redor de duas outras pequenas fogueiras ou dedicaram-
se a andar para a frente e para trás pela praia tentando manter-se aquecidos.
No dia anterior, haviam explorado a costa para cima e para baixo. A cada
curva na costa nada mais encontraram do que mais praias e rochas, e uma
aparentemente interminável parede de pedra nas suas costas. A reduzida
quantidade de madeira que encontraram já havia sido consumida, e se por
ali os dias eram abrasadores, à noite fazia um frio de rachar. Uma boa
quantidade de destroços tinha dado à costa, pelo que foi possível montar um
coberto feito a partir das velas e de mastros partidos, mas a madeira que
surgira na praia oriunda do barco estava demasiado húmida para fazer mais
do que aguentar um pouco o fogo. O porco salgado estragara-se, mas as
maçãs secas estavam comestíveis. Havia um bom suprimento de água e
suficiente material resgatado para permitir a uns quantos marinheiros pescar
nas rochas. Alguns peixes ficavam encurralados em poças quando a maré
descia, mas sem um tacho para os cozinhar, de pouco serviam. Quase não se
viam aves marinhas e as poucas que apareciam a voar sobre as cabeças
deles não davam a ideia de terem ninhos ali perto.
Anthony recuperara a consciência na manhã seguinte, recordando-se de
pouco do que sucedera depois de ter tentado anular o feitiço que os
apanhara. Ficou horrorizado e abalado ao descobrir que se perdera o navio e
só pareceu recuperar do choque quando se tornou óbvio que eram
necessários os seus talentos de curandeiro.
Amos foi ter com Nicholas quando estava a despontar a segunda manhã.
— Estamos a morrer — disse em voz baixa. — Se há no mundo alguma
faixa costeira menos hospitaleira do que esta, nunca a vi.
— Como é que desejais proceder? — perguntou Nicholas.
— Um escaler não vai conseguir transportar cinquenta e oito pessoas.
Temos duas opções. Ou escolhemos uma equipa para tentar remar para sul,
passar as escarpas, até descobrir nas imediações qualquer passagem para a
civilização, regressando com ajuda para os que ficarem, ou tentamos todos
escalar a vertente da escarpa. Ou ambas.
— Não, mantemo-nos unidos — disse Nicholas.
Amos pareceu estar disposto a contestar, mas acabou por sacudir a
cabeça. — Tendes razão. Uma coisa é certa: não podemos ficar aqui.
Morreremos à fome.
— É melhor começarmos a procurar um caminho para subir — disse
Nicholas.
Amos assentiu. — Sou o mais velho dos que aqui estão, e não me agrada
a escalada, mas é a escarpa ou nada.
Nicholas suspirou. — Não sou muito experiente em escaladas. O meu
pé… — Voltou-se para Calis e Marcus. — Vós os dois reconheceríeis um
caminho por estas falésias acima se o vísseis?
Marcus franziu o sobrolho, mas Calis assentiu e levantou-se. — Por
onde?
— Ide por aquele lado — indicou Nicholas, apontando para norte.
Depois, voltou-se para Marcus. — E vós, ide no sentido oposto. Não vos
afastais mais longe do que meio dia de viagem. Quando o Sol estiver lá no
alto, deveis regressar.
Ambos assentiram e puseram-se a caminho, andando com determinação,
mas contendo-se no ritmo para não esgotarem forças que não lograssem
restaurar. Toda a gente estava com fome e Nicholas tinha a noção de que se
não houvesse em breve comida fresca, iriam começar a morrer. Havia pelo
menos uma dúzia de marinheiros feridos ou doentes em consequência do
naufrágio, tanto por causa de água nos pulmões como de lesões internas.
Nakor e Anthony esforçaram-se imenso para os pôr confortáveis, mas
pouco havia a fazer sem o saco de curativos de Anthony. Nicholas sentiu
compaixão deles; tinha dores e pisaduras piores do que as que até então
alguma vez sofrera e sabia que os menos afetados entre eles estavam tão
maltratados quanto ele. Ficou surpreendido por não haver mais ferimentos
graves, mas concluiu amargamente que quem quer que tivesse sido
gravemente ferido durante o naufrágio não sobrevivera.
Enquanto Calis e Marcus estiveram fora, os outros elaboraram um
inventário do pouco que haviam recuperarado dos restos do naufrágio que
tinham dado à praia. Dispunham apenas de umas quantas armas: Nicholas e
Ghuda tinham as suas espadas, Calis o seu arco e estavam na posse de uma
série de punhais e facas. Havia um saco de biscoitos secos que sobrevivera
num pequeno barril que dera à costa, para juntar às maçãs secas. Havia
cordas espalhadas pela praia, pelo que Nicholas pôs os homens a recolhê-
las e a separarem as que pudessem ser usadas para trepar as escarpas, pondo
de parte as menos fiáveis.
Nicholas ficou aflito ao constatar que o inventário levou menos de uma
hora a ser feito. Ignorando a sua própria fome, sentou-se em frente à
fogueira já extinta e aguardou.
Brisa aproximou-se e sentou-se ao lado dele; fitou Nakor e Harry, ambos
a tentarem recuperar forças através de um sono retemperador.
Ela voltou-se para Nicholas. — Posso perguntar-vos uma coisa?
Ele fez sinal que sim. — O quê?
— O Marcus… — disse ela, após o que se calou.
— O que tem?
— Conhecei-lo bem… — retomou a palavra.
Nicholas interrompeu-a. — Mal o conheço.
— Achei que fôsseis irmãos — revelou ela.
— Pensei que soubesses — referiu Nicholas.
— Soubesse o quê?
— Quem é o Marcus.
— É o filho de um duque qualquer, pelo menos foi isso que me contou o
Harry. Não percebi se deveria acreditar nele.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Ele não é meu irmão — informou. —
É meu primo.
— Mas dissestes que mal o conhecíeis — contrapôs Brisa.
— E é verdade. Só o conheci umas poucas semanas antes de te conhecer.
Eu não vivo na Costa Extrema.
— Onde viveis?
— Em Krondor — respondeu ele.
Ela assentiu. — Tive a esperança de que pudésseis falar-me dele.
Nicholas teve pena da rapariga, pois compreendeu que o interesse dela
em zombar com Marcus ocultava um sentimento mais profundo. — Não sei
o que possa dizer-te. Nós, na sua maioria, somos de Krondor. Talvez um
dos soldados…
Ela encolheu os ombros. — Não interessa. De qualquer modo,
provavelmente não conseguiremos escapar daqui.
— Não digas isso — exclamou Nicholas. O seu tom foi cortante e
imperativo.
Ela fitou-o com os olhos arregalados, e entretanto Harry sentou-se, ainda
ensonado. — O quê?
Ele percebeu que tinha falado alto. — Quero dizer, não o digas, mesmo
que o penses. O desespero é uma praga. Se desistirmos aqui, acabaremos
por morrer. Não há outra alternativa que não seja seguir em frente.
Brisa deitou-se para trás, junto ao ressonar de Nakor. — Eu sei — disse.
Nicholas fitou a praia de uma ponta à outra, constatando que ainda era
demasiado cedo para que Marcus ou Calis regressassem. Só lhes restava
esperar.

P or volta do pôr-do-sol, Calis surgiu à vista e uns minutos mais tarde


Marcus aproximou-se proveniente da direção oposta. Calis foi o
primeiro a falar. — Não há nada que se pareça remotamente com um
caminho ou sequer com uma subida difícil.
— Para sul também não há nada — anunciou Marcus.
— Então, ou escalamos aqui ou mais longe para sul — disse Nicholas.
— Porquê sul? — quis saber um fatigado Marcus. — Acabei de dizer que
não há lá nada.
— Porque, seja como for, sul é para onde nos dirigimos. Se a nossa
escolha vai ser arbitrária, podemos muito bem avançar rumo ao nosso
eventual objetivo.
Amos assentiu. — Se vamos fazer algo, isso é o que mais se assemelhará
a um plano. Vamos dormir um pouco para partirmos com a primeira luz da
manhã.
— Ótimo — disse Nicholas. — Comei o que não pudermos levar para
que tenhamos o máximo possível de energia.
Nakor e Anthony aproximaram-se na luz que esmorecia, transportando
alguma lenha. — Deixámos estas a secar nas rochas — explicou o
homenzinho.
— Se conseguirdes gerar uma chama, devem arder — referiu Anthony.
Calis reuniu os restos da fogueira da noite anterior, pequenos pedaços de
madeira que não tinham ardido por completo, e partiu aleatoriamente o que
estava carbonizado, formando uma pequena pilha de estilhas e acendalhas.
Pegou na faca que tinha presa ao cinto e em sílex que guardara e começou a
fazer faíscas. Rapidamente gerou uma pequena chama, que alimentou
cuidadosamente com pedaços maiores de madeira até formar um fogo
substancial. Então, a madeira transportada por Nakor e Anthony foi
cautelosamente colocada em cima das chamas e rapidamente uma labareda
de boas dimensões manteve o frio noturno ao largo.
Os marinheiros juntaram-se em redor e Anthony pegou num tição e
acendeu uma segunda fogueira ali ao lado, para que mais gente pudesse
usufruir do calor. Ele e Nakor levaram os homens mais doentes para junto
do calor e depois instalaram-se para passar a longa noite.
Nakor sentou-se ao lado de Nicholas. Ninguém estava com disposição
para conversas; a maioria ou tentou descansar ou comer o que pudesse entre
biscoitos duros, maçãs secas e peixe mal cozinhado. — O problema é a
água — referiu Nakor sem preâmbulos.
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Não vimos nenhuma fonte de água pura aqui perto — salientou Nakor.
— Temos os odres que resgatámos do navio, mas não são suficientes, e não
podemos arrastar os pipos até muito longe.
— De certeza que não os podemos levar pelas escarpas — comentou
Amos.
Nicholas suspirou. — O que sugeris?
Nakor encolheu os ombros. — Fazei com que toda a gente beba o mais
que possa antes de partirmos. Isso ajudará. Se descobrirmos um ponto onde
escalarmos perto do local onde o Marcus parou, podemos enviar uns
homens para trás para reabastecer os odres. Se já tivermos percorrido uma
longa distância pela costa, desenrascamo-nos com o que tivermos.
— E quanto à comida? — perguntou Nicholas.
— Amanhã já não haverá muita — respondeu Anthony enquanto se
sentava junto à fogueira, com o cansaço estampado no rosto. — Morreu um
dos homens há poucos minutos.
Amos praguejou. Chamou um par de marinheiros. — Arranjai umas
lonas — disse. — Não podemos cosê-las para fazer uma mortalha, mas
podeis enrolá-lo em velas e amarrá-lo com cordas. E depois, amanhã,
levamo-lo até às rochas para o sepultar no mar, ou o mais próximo que for
possível.
Os dois homens anuíram e partiram para cumprir as ordens. — Haverá
outros — disse Amos, parecendo um velho.
Mais ninguém abriu a boca.

C aminharam penosamente ao longo da costa no dia e meio seguintes.


Nicholas ordenou paragens regulares, pois a falta de comida, a
escassez de água e o calor estavam a cobrar o seu custo. Já perto do final do
segundo dia, Marcus anunciou:
— Foi aqui que terminei a minha busca.
Nicholas sentiu-se a desesperar. Levaram quase dois dias a transportar os
doentes e os feridos ao longo da praia até chegarem ao ponto a que Marcus
chegara em meio dia sozinho. Nicholas afastou o seu pessimismo. — Vós e
o Calis seguis à frente para reconhecer o caminho — indicou. A seguir,
orou em silêncio para que rapidamente encontrassem um sítio por onde
subir.
Marcus e o semielfo voltaram-se e partiram em passo apressado. Amos
fez sinal a Nicholas para que se afastasse um pouco com ele e quando já
ninguém os conseguia ouvir, disse-lhe:
— Temos de começar a subir a escarpa amanhã, dê por onde der.
— Em breve vamos começar a morrer — comentou Nicholas.
— Já estamos a morrer — corrigiu Amos. — Dentro de dois ou três dias,
mesmo que encontremos uma boa subida, metade dos homens não terá
forças para trepar. — Fletiu a mão como se estivesse enrijecida. — Posso
bem ser um deles — disse. — A minha mão está a latejar — disse,
enquanto olhava em volta. — O tempo está a mudar.
— Tempestade?
Amos assentiu. — Por norma, embora às vezes não passe de uma ligeira
alteração do estado do tempo.
Nicholas fitou o céu a oriente, cada vez mais escuro. — Vai anoitecer
num par de horas — anunciou. — Vamos terminar por hoje e descansar.
Bem precisamos.
Amos anuiu e regressaram para junto dos restantes. Amos ordenou que as
escassas provisões fossem distribuídas por todos os homens enquanto
Nicholas foi ter com Harry, que estava sentado a massajar os pés doridos,
com Brisa ao seu lado. A rapariga tinha os joelhos encaixados debaixo do
queixo e estava a abraçar as pernas, como se já se sentisse com frio.
— Como é que estás? — perguntou Nicholas.
— Doem-me os pés e tenho fome — respondeu Harry, após o que sorriu
abertamente. — Sou caso único por estas bandas, certo?
A Nicholas só lhe restou sorrir. Harry seria a última pessoa a perder a boa
disposição, disso estava certo. — Quero que amanhã sigas no fim da fila —
disse Nicholas. — Vamos ter de tentar subir a falésia e preciso de alguém na
retaguarda que se assegure de que ninguém vacila ou perde a coragem.
Harry assentiu com a cabeça. — Darei o meu melhor.
Nicholas voltou-se então para a rapariga. — Como é que te sentes? —
perguntou.
— Doem-me os pés e tenho fome — respondeu ela com amargura.
Nicholas riu-se. — Fazem um belo par. — Levantou-se e afastou-se para
ir falar com alguns dos outros homens.
Brisa observou-o a afastar-se, fitando-o prolongadamente. — Ele esforça-
se mesmo, não é? — comentou.
— Sem dúvida — respondeu Harry. — Está-lhe no sangue, acho eu.
Nascido para servir, obrigações da nobreza, e coisas do género.
— E vós? — perguntou ela, meio a brincar.
— Eu não sou um príncipe. Sou o segundo filho de um nobre menor, o
que significa que tenho menos perspetivas de vida do que um vulgar
comerciante de cerveja, a não ser que una o meu destino a um dos
poderosos.
— Como ele? — questionou Brisa enquanto apontava com o queixo para
Nicholas. O tom dela era de descrença.
— Não troces — disse Harry. — O Nicky vale bem mais do que aquilo
que possas pensar. Ele um dia vai ser um homem muito importante e
poderoso. Irmão do Rei, percebes?
— Sim, está bem — disse Brisa, num tom de completa descrença.
— Não estou a brincar — disse Harry. — Ele é o filho mais novo do
Príncipe Arutha. A sério. E o Marcus é o filho do Duque de Crydee.
— Para nobres têm um ar muito abandalhado, se quereis saber.
— Bem, acredita no que quiseres. Mas um dia ele vai ser um homem
muito importante.
Brisa resfolegou. — Partindo do princípio que viveremos o suficiente
para o saber.
Harry não soube o que dizer em relação a isso.
Brisa encostou-se a Harry. — Que não vos dê ideias, estou só a tentar
manter-me quente.
— Oh, sou apenas um substituto do Marcus, não é? — disse Harry,
sentindo-se magoado.
Brisa suspirou. — Não, estou a precisar e vós sois inofensivo.
— Agora é que fiquei mesmo magoado — salientou Harry. —
Inofensivo?
Brisa deu-lhe um beijo casto numa face. — Tendes os vossos encantos,
Escudeiro, num modo desajeitado e infantil. Não leveis a peito. Ireis
ultrapassar isso.
Ela aconchegou-se na curva do braço dele e ele apreciou a sensação. No
entanto, ainda estava incomodado. — Desajeitado?

C alis e Marcus não regressaram naquela noite.


Ao amanhecer, Nicholas acordou toda a gente e seguiram caminho.
Uma hora mais tarde Marcus apareceu, acenando com o braço. Nicholas foi
rapidamente ter com ele. — O que descobristes?
— O Calis ficou a assinalar um lugar a cerca de oitocentos metros daqui.
Parece ter um caminho até lá acima.
Baixando o tom de voz para que aqueles que se aproximavam atrás de si
não conseguissem ouvir, Nicholas disse:
— Temos de tentar hoje. Muitos dos homens já não estão em condições.
Já não é possível esperar mais.
Marcus olhou para o bando de marujos andrajosos e assentiu com a
cabeça.
Levaram algum tempo até chegarem junto de Calis, pois os doentes e os
feridos avançavam a muito custo pela areia. Nicholas correu pela areia
profunda até ao ponto onde o jovem elfo aguardava. Calis apontou para
uma saliência cerca de três metros acima deles. Fez um estribo com as mãos
e Nicholas apoiou lá o pé. Com um impulso, Nicholas içou-se para a
pequena elevação e descobriu um enorme afloramento rochoso, com uma
pequena caverna que dava acesso às escarpas. Marcus empurrou Calis para
cima e depois foi este quem lhe deu a mão para que se agarrasse e subisse.
Quando estavam os três na saliência, Nicholas perguntou:
— A caverna?
— Não — disse Marcus —, é baixa e não leva a lado nenhum. Será boa
para abrigar os que ficarem para trás.
— Não fica ninguém para trás — realçou Nicholas. — Se deixarmos
ficar alguém, morrerá.
Quando voltou a falar, a voz de Marcus tornou-se mais áspera, mas
devido à frustração, não à fúria. — Nicholas, alguns dos homens mal se
aguentam em pé sem ajuda. Não serão capazes de escalar isso! — Apontou
para cima e Nicholas olhou para lá.
Junto à entrada da caverna, duas superfícies de pedra uniam-se em V. Ao
longo de uma delas, nascia um estreito caminho, que seguia até dar a volta
para trás. Do local onde estava, Nicholas não conseguiu perceber o que
haveria para lá da saliência. — Já aqui estivestes em cima?
— Já — respondeu Calis. — Segue até meio caminho da vertente da
escarpa, e depois para, mas cerca de dois metros acima do final da saliência,
ergue-se uma fenda na rocha. Pelo que me é dado ver, é possível escalar até
ao topo da falésia.
— Como? — questionou Nicholas.
— É a parte mais complicada. Mas se dois ou três de nós lograrmos
chegar até lá acima, de mãos despidas, teremos corda suficiente para baixar
um cabo desde as escarpas até ao topo da saliência e puxar os que
necessitem de ajuda.
— Mas os feridos e os doentes graves não vão conseguir — salientou
Marcus. — Quem quer que suba aquela inclinação terá de se esforçar
imenso. Não conseguimos içar o peso morto de dez ou quinze homens ao
longo de cem metros. Aquelas cordas improvisadas não aguentarão.
Nicholas sentiu-se invadido por uma sensação de desamparo, mas
afastou-a, furiosamente. — Faremos o que for possível. O primeiro passo é
trazer toda a gente aqui para cima.
As pedras sobre as quais estavam assentes começaram a aquecer devido
ao sol do meio-dia, pelo que o Príncipe indicou a toda a gente que pudesse
que se abrigasse na caverna. Chamou Amos à parte. — Assim que o sol
deixar de incidir sobre a falésia, vou subir com o Calis e o Marcus.
— Porquê vós? — indagou Amos.
— Porque a não ser que esteja completamente tolinho, somos os três aqui
em melhor forma.
— Mas, nunca experimentastes antes fazer nada parecido com isto —
disse Amos.
— Amos, mais cedo ou mais tarde, toda a gente terá de tentar, caso não
pretenda apodrecer nesta praia. Se vou cair e despedaçar-me nas rochas,
prefiro desde já cumprir o meu dever do que ter alguém a tentar içar-me
com uma corda.
Amos praguejou. — A cada dia que passa, estais cada vez mais parecido
com o vosso pai. Muito bem, mas assim que a corda esteja bem firme,
quero o Ghuda lá em cima.
— Porquê?
— Porque é certo que não precisamos da espada dele cá em baixo, mas
ninguém sabe o que haverá lá em cima! — disse, com impaciência.
— Muito bem. Mas vindes atrás de mim.
— Depois dos meus homens — insistiu Amos.
Nicholas pousou a mão no ombro de Amos. — Alguns deles não virão, já
o sabeis.
Amos virou-lhe costas, e fitou o oceano. — Sou o capitão deles. Devo ser
o último a subir.
Nicholas ia contestar, mas algo o dissuadiu. — Muito bem, mas vindes
também.
Amos assentiu e foi-se embora. Nicholas regressou para a boca da gruta e
sentou-se, à espera que o sol deixasse de incidir nas rochas.

N akor foi sentar-se ao lado de Nicholas. O Príncipe estava a observar a


sombra que se arrastara uns quatro ou cinco centímetros ao longo das
rochas. — Partis em breve? — perguntou o homenzinho.
Nicholas fez que sim com a cabeça. — Só mais uns minutos, para que o
sol liberte todas as rochas. Ainda estão bem quentes.
— Como é que vos sentis?
Nicholas encolheu os ombros. — Com fome, cansado e bastante
preocupado.
— Preocupado?
Nicholas levantou-se e fez sinal a Nakor para que o acompanhasse até ao
exterior. Fazendo de conta que observava a inclinação do Sol, baixou o tom
de voz. — Há meia dúzia de homens que não conseguem subir esta escarpa,
Nakor, talvez até mais.
Nakor suspirou. — Toda a gente morre. Já sabemos isso. Contudo, a
morte de alguém que nos é próximo é sempre algo perturbador, mesmo
sendo alguém com quem teremos trocado umas palavras num par de
minutos.
Nicholas voltou as costas para a caverna e olhou para baixo para a praia e
o mar atrás. Levantara-se uma aragem vespertina que lhe lançou para trás o
cabelo que lhe dava pelos ombros. — Ultimamente, presenciei uma série de
mortes. Não sei se me consigo habituar a isso.
Nakor sorriu mostrando os dentes. — Isso é bom. Pode ser-se filosófico
no conforto de uma sala acolhedora, com um copo de bom vinho na mão, e
um toro na lareira, mas no calor do momento, quando há vidas em risco,
não se pensa, age-se.
Nicholas assentiu. — Acho que compreendo.
Nakor pousou a mão sobre o braço de Nicholas. — Sabeis por que razão
irão morrer hoje alguns homens?
— Não — respondeu amargamente Nicholas. — Quem me dera saber.
— Porque algumas almas amam a vida, enquanto outras se cansam.
— Não entendo.
Nakor formou um círculo abrangente com a mão. — A vida é matéria.
— Matéria?
— A matéria de que tudo é feito. — Fitou o oceano. — Vedes tudo
aquilo, água, nuvens, sentis o vento. Mas também há matéria que não
conseguis ver. Matéria que loucos como o Anthony insistem que se trata de
magia. Tudo isso, desde as vossas botas às estrelas no céu, é feito da mesma
coisa.
— Essa tal «matéria», como lhe chamais?
Nakor sorriu abertamente. — Se me ocorresse um nome mais elegante,
chamar-lhe-ia outra coisa. Mas seja lá o que for esta matéria essencial, é
algo que não conseguis ver; é como a cola, mantém tudo unido. E uma das
formas em que se manifesta é naquilo a que chamamos vida. — Mirou
Nicholas nos olhos. — Passastes por muito num curto período de tempo e já
não sois o rapaz que tão recentemente partiu de Krondor.
»Mas ainda não sois o homem que sereis um dia. Portanto, compreendei
isto: às vezes a morte surge inesperadamente, e aqueles que leva para os
salões de Lims-Kragma são levados contra a vontade. É o destino. Mas
quando a alma tem possibilidade de escolha, como estes homens aqui têm,
então deveis aceitar a escolha deles.
— Ainda não entendi bem onde pretendeis chegar — confessou
Nicholas. A sua expressão revelou que se esforçava por compreender.
Apontando com a cabeça para a boca da gruta, Nakor afirmou:
— Algumas das almas destes homens estão prontas a morrer. É a vez
delas de seguirem em frente. Estais a ver?
— Acho que sim — respondeu Nicholas. — É por isso que um homem
com ferimentos mais graves irá sobreviver enquanto outro irá morrer?
— Sim. Não vos deveis sentir responsável por tal. É uma escolha
individual, embora cada um possa não ter a noção de que a faça. Está para
além da esfera de príncipes e sacerdotes. É algo entre a alma de um homem
e o destino.
— Acho que compreendo — disse Nicholas. — Quando o navio se
afundou pela segunda vez, eu estava engasgado com água do mar. Não
conseguia respirar e estava a ser puxado cada vez mais para baixo, e achei
que chegara a minha hora.
— Como é que te sentistes?
— Com um pavor terrível, mas, por fim, antes de ser levado para cima
para a superfície, senti-me estranhamente tranquilo.
Nakor assentiu. — É uma lição. Mas não era a vossa hora. Para alguns
destes homens, é a hora deles. Tendes de o aceitar.
— Mas não sou obrigado a gostar.
Nakor sorriu. — É por isso que um dia podereis ser um bom governante.
Mas, para já, tendes de escalar aquela escarpa, não é mesmo?
Nicholas sorriu, com uma expressão que misturou alívio com cansaço. —
Sim, devo avançar já, se não nunca mais.
— Pensastes no amuleto? — quis saber Nakor.
Nicholas assentiu com a cabeça. — O Pug disse para o dar ao Anthony, e
é para o usar apenas em caso de extrema necessidade. — Olhou para a
gruta, como se o conseguisse vislumbrar lá ao fundo, a tratar dos feridos e
dos magoados. — Acredito que ele saberá entender o que será a extrema
necessidade. Para já, acho que tudo aquilo a que possamos sobreviver sem
ajuda não encaixa nessa descrição.
— Deveis partir.
Nicholas olhou para cima e viu que o Sol já estava completamente
ocultado da face das escarpas. Anuiu e atravessou a boca da gruta. —
Marcus, Calis, está na hora.
Calis ergueu-se agilmente e pegou numa longa corda enrolada, atando-a
com firmeza numa grande laçada. Depois, enfiou um braço e a cabeça pela
corda. Marcus e Nicholas fizeram o mesmo. Quando os três chegassem ao
topo, amarrariam os três laços e baixariam a corda, providenciando uma
ascensão mais fácil. Harry foi ter com Nicholas. — Gostaria que me
deixasses ir no teu lugar — disse-lhe.
Nicholas sorriu. — Tu? — Pousou a mão no ombro do amigo. —
Agradeço-te, mas não sou daqueles que ficam com as mãos pegajosas por
passarem a vida assentes na muralha de um castelo, lembras-te? — disse.
— Nunca foste muito dado a alturas.
— Eu sei, mas se é para alguém cair…
— Ninguém vai cair.
Nicholas passou em frente ao amigo na direção da boca da gruta. Falou
com os marinheiros ali reunidos. — Devemos chegar lá acima antes do pôr-
do-sol. Então, baixaremos a corda e podereis iniciar a subida. — Depois,
dirigiu a palavra a Amos. — Decidireis a ordem de escalada e quem fica a
ajudar os menos capazes. Se possível, quero todos os homens lá em cima
quando cair a noite.
Amos anuiu, mas ambos sabiam que se tratava de uma missão
impossível. Um dos marinheiros avançou a coxear, com a perna inchada
devido a um tornozelo partido. O homem tinha a dor estampada no rosto,
mas ainda assim conseguiu falar num tom brincalhão. — Garantirei que o
máximo deles consiga fazer a subida, Alteza.
Nicholas assentiu com a cabeça e entrou na caverna. Olhando por cima
do ombro, viu Amos a dar ao homem a sua própria adaga e ele rapidamente
voltou costas. Percebeu por que razão o homem lhe solicitou a arma. À
fome e à sede não eram formas honradas de morrer.
Nicholas subiu o estreito carreiro e foi até à base da fenda na rocha, onde
Calis e Marcus o aguardavam. Harry seguia logo atrás. — Vou primeiro,
dado que sou o mais experiente — anunciou Calis. — Marcus, vós ides a
seguir, Nicholas, vede bem onde colocamos as mãos e os pés. Algo que
pareça sólido pode não o ser; há rachas na rocha atrás da qual se junta água.
Se arrefecer, enfraquece as rochas. Experimentai bem antes de firmar uma
mão ou um pé e lá apoiardes todo o vosso peso. Se vos sentirdes cansado ou
estiverdes enrascado, dizei algo. Não temos pressa.
Nicholas assentiu, aliviado por o jovem elfo ter assumido o comando das
operações. Não era a altura para estar a discutir postos. Voltou-se para
Harry. — Quando soltarmos a corda, chama os outros e começa a trepar. —
Pousou a mão no ombro de Harry e sussurrou-lhe ao ouvido: — E assegura-
te de que o Amos vai à tua frente. Se tiveres de lhe bater na cabeça com
uma pedra e tivermos de o içar pela escarpa, não o deixes ficar com os
feridos.
Harry anuiu.
Calis assentou as mãos num pequeno afloramento rochoso e içou-se,
enroscando as pernas no outro lado da fenda. Esticando o braço para o lado
oposto da fissura, encontrou outro apoio para a mão e subiu. Marcus e
Nicholas observaram com atenção e quando Calis já estava três metros mais
acima na fenda, Marcus iniciou a sua subida.
Nicholas observou o primo e, quando o viu a uma altura suficiente, o
Príncipe esticou-se e colocou as mãos nos mesmos pontos de apoio. Sentiu
um pânico súbito, pois não tinha muito onde se agarrar. Hesitou
momentaneamente, e depois içou-se, apoiando o pé onde os outros o tinham
feito. Uma dor entorpecente fustigou-lhe o pé esquerdo e ele praguejou em
voz baixa. — Agora não, raios!
Marcus olhou para baixo. — O que foi?
— Nada — respondeu Nicholas. Alheou-se do pé obstinado e olhou para
cima, tendo ficado surpreendido com a escuridão na fenda face ao céu
brilhante. Esforçando-se por ver Calis e Marcus, observou o modo como se
moviam. Atravessou a fenda e pousou a mão do outro lado, içando-se.
Tal como três insetos a subir uma parede, avançaram aos poucos pelas
rochas acima.

P erderam a noção do tempo. Nicholas teve de encetar uma série de


pausas, para observar os que seguiam na dianteira, avançando depois
pouco a pouco. Durante o trajeto, por três vezes Calis alertou para a
possibilidade de um ponto de apoio frágil, e uma vez o pé dele escorregou,
projetando pequenas pedras sobre Marcus e Nicholas.
Nicholas teve de fazer diversas pausas para recuperar o fôlego, mas
constatou que na maior parte das vezes mover-se não era mais exigente para
os seus braços e pernas do que ficar parado suspenso. Estava cansado, mas
concentrou-se em absoluto na tarefa de pôr uma mão mais acima do que a
outra, de mover um pé, assentando-o com segurança e ascendendo mais um
pouco.
Uma vez olhou para baixo e ficou surpreendido por constatar que ainda
só tinham subido um terço do caminho na falésia. Optou por não o voltar a
fazer, pois a desilusão que o assolou surgiu acompanhada por uma pontada
de dor no pé esquerdo.
Apesar de seguir pela sombra, o calor gerou transpiração que lhe
escorreu pelo rosto, cegando-o momentaneamente sempre que olhava para
cima. Limpou os olhos por diversas vezes nos ombros, sempre praguejando
por ter de o fazer.
O tempo passou enquanto se debatia por acompanhar Calis e Marcus. A
cada hora que passava, aproximavam-se mais do topo, mas quando se
estava a sentir otimista, ouviu a voz de Calis. — Temos um problema.
Nicholas olhou para cima, mas não tinha uma boa visão do jovem elfo,
que estava para lá do seu primo. — O que se passa? — quis saber.
— A fenda aqui alarga-se.
— E o que é que fazemos? — perguntou Nicholas.
— Isto é complicado. Quando aqui chegardes, ireis reparar que a vertente
sul se afasta um pouco. Aparentemente, só será necessário esticarmo-nos
um pouco mais para se chegar lá, mas é perigoso. É melhor recuar um
pouco, balançar os dois pés para aquele lado, e impulsionarmo-nos com as
costas pelo lado direito, com os pés no esquerdo. Compreendestes?
— Acho que sim — respondeu Nicholas. — Eu vejo como faz o Marcus.
Marcus permaneceu imóvel pelo que pareceu um prolongado momento, e
Nicholas sentiu os braços e as pernas a começarem a ficar tensos por se
manter na mesma posição sem se mexer. Sentiu uma pontada de pânico
quando a mão esquerda começou a escorregar na face da pedra, e depois
agarrou-se com mais força. Inspirando profundamente para se acalmar,
falou consigo próprio: — Não percas a concentração.
O tempo arrastou-se e Nicholas sentiu pequenas cãibras e dores e soube
que nunca antes se sentira tão cansado. De repente, ouviu a voz de Marcus.
— O Calis passou no lugar mais largo.
Nicholas ficou a ver o seu primo a subir mais uns três metros, e depois a
balançar a perna direita e a assentá-la com firmeza na face esquerda, com as
costas apoiadas na direita. Enroscando-se a si próprio com uma perna,
elevou a outra, e depois apoiou as mãos na rocha para içar o corpo até à
nova elevação. O avanço era lento, mas não pareceu demasiado difícil a
Nicholas. Sentiu uma voz a alertá-lo: Não tomeis nada por garantido.
Quando chegou ao local onde Marcus se havia virado, sentiu de súbito
uma forte pontada no pé esquerdo. — Raios — disse baixinho enquanto
tentava apoiar lá o seu peso. A perna esquerda tremeu e teve de cerrar os
olhos para se concentrar na necessidade de manter a pressão no pé. O seu
instinto indicava-lhe que deveria recuar, mas obrigou-se a seguir em frente.
E então o pé direito apoiou-se firmemente na parede em frente e retirou a
pressão do esquerdo. Inspirando profundamente, olhou para cima.
Marcus estava a retomar a sua posição inicial quando de repente o seu pé
esquerdo escorregou. Gritou enquanto tentava atabalhoadamente encontrar
um ponto de apoio e de repente estava suspenso numa aresta minúscula
seguro pelas mãos, com os pés a mexerem-se desordenadamente na face
macia da rocha.
Nicholas sentiu uma pontada de terror no estômago. — Aguentai-vos! —
gritou. Obrigou as suas pernas doridas e as suas costas tensas a
obedecerem-lhe enquanto trepava esforçadamente pela fenda.
— Recuai! — gritou Marcus. — Se… eu cair… atinjo-vos. — Pelos
arquejos entre cada palavra, Nicholas percebeu que ele se debatia
heroicamente para se aguentar nos apoios das mãos.
Nicholas fez ouvidos moucos ao aviso e obrigou-se a avançar a um ritmo
temerário. Pestanejou devido ao pó e à gravilha que lhe tombou em cima
conforme se aproximava de Marcus. Não conseguiu ver Calis.
Chegando a um ponto abaixo dos pés balouçantes de Marcus, gritou:
— Estai quieto por um momento.
Marcus ficou pendurado em silêncio, enquanto Nicholas se estabilizava
com firmeza logo abaixo. Pôs uma mão gentilmente na bota de Marcus. —
Nada de pontapés — disse — ou cairemos ambos. ­— Resistiu à forte
necessidade de agarrar a bota que tinha à frente da cara. — Empurrai para
baixo lentamente! — gritou.
Marcus assentou o seu peso na mão do primo. Nicholas fez um esgar
devido ao esforço, sentindo os ombros a arder por causa da força, pois a
pele sob a túnica estava a ser arranhada pela rocha. As pernas dele
tremeram e o pé esquerdo ardeu como se estivesse no fogo, mas manteve-se
firme enquanto Marcus fez força para baixo.
Nicholas deu por si com uma respiração rasa e intensa e obrigou-se a
inspirar profundamente. Escorreram-lhe lágrimas pelo rosto devido à dor
nas costas e pernas, mas aguentou-se teso como uma corda de um arco, tão
firme quanto uma vareta de ferro, pois tinha a noção de que, caso se
desconcentrasse por um momento que fosse, tanto Marcus como ele
perderiam a vida.
E, de repente, o peso desapareceu e Marcus estava de novo a subir.
Nicholas agradeceu aos deuses por poder descontrair-se, mas sabia que
estava na posição mais perigosa em que já estivera desde que iniciara
aquela subida. Necessitou de descer suavemente, para depois retomar a
escalada.
Com os ombros e as pernas a arder, Nicholas sentiu-se a deslizar uns
centímetros e de repente apercebeu-se de que estava entalado. — Ah…
Calis! — chamou.
— O que é? — ouviu a pergunta vinda de lá de cima.
— Tenho um pequeno problema.
— Qual? — perguntou Marcus, olhando para baixo.
— Deixei os meus pés passarem por cima dos ombros. Não os consigo
baixar e não consigo fazer força suficiente para elevar os ombros.
— Mantende-vos quieto — gritou o jovem elfo. — Estou quase no topo.
Nicholas sabia que assim que Calis lá estivesse em cima, poderia baixar a
corda e içá-lo. Tudo o que tinha a fazer era aguentar-se bem seguro.
Nicholas imaginou os vagarosos segundos como um desfile de caracóis
num carreiro de um jardim. Obrigou-se a fitar a face de rocha da escarpa
implacável defronte dele, pois sabia que se olhasse para baixo, poderia cair.
Deixou o medo começar a apoderar-se dele e o seu pé esquerdo latejou
tão intensamente como quando se ferira em Crydee. Desejou poder fletir a
barriga da perna para afastar parcialmente o desconforto, mas, se o fizesse,
escorregaria. Fechou os olhos e pensou em Abigail.
Recordou a ocasião em que estivera sentado com ela no jardim, naquela
última noite, e relembrou o peito dela bem saliente no vestido que usava, os
anéis do cabelo, dourados com reflexos das tochas que havia no muro. Ela
cheirava a flores de verão e a especiarias, e os olhos eram duas enormes
lagoas azuis. Reviveu o primeiro beijo que deram e sentiu os lábios
carnudos dela nos dele. Tinha de chegar ao alto da falésia, disse a si
próprio. Se tinha a esperança de um dia voltar a ver Abigail, não se podia
permitir cair.
De repente, sentiu algo a vergastar-lhe o rosto. — Amarrai-a em torno da
cintura! — gritou alguém.
Nicholas abriu os olhos, deparou-se com uma corda à sua frente e esticou
a mão esquerda para a agarrar. Puxou; foi libertada mais corda, que ele
enroscou à cintura. Pressionando os ombros com força contra as rochas,
ignorando a dor na pele massacrada e os músculos ardentes, esticou-se para
baixo e encontrou a corda com a mão direita. Puxou-a para cima e atou-a
desastradamente em volta da cintura. — Não sei se vai aguentar.
— É perto. Apertai com força com ambas as mãos.
Ele agarrou a corda com a mão direita. — Preparado? — gritou.
— Preparado — ouviu-se a resposta.
Largou a mão esquerda, agarrando-se à corda quando o seu pé ficou sem
ponto de apoio na vertente do lado oposto. De repente, estava suspenso na
corda, que se torceu conforme ele a sentia a deslizar em torno da cintura.
Balançou na direção das rochas, ferindo-se no rosto. A corda pareceu
aguentar-se. — Puxai — gritou ele.
Mais rápido do que achou que fosse possível, subiu, arranhando todos os
milímetros de pele na rocha dura. E então deu por si no rebordo da falésia e
viu dois enormes olhos castanhos a fitarem-no.
A cabra, surpreendida, baliu e afastou-se precipitadamente quando
Nicholas foi puxado para cima, pela borda da escarpa. Deixou-se ser içado
para longe da beira, voltou-se de costas e olhou para o céu azul. E a seguir
tentou sentar-se. Sentiu um espasmo em todos os músculos do estômago e
costas e urrou de dor.
— Não vos mexais — alertou-o Marcus. — Deitai-vos e repousai.
Nicholas rodou a cabeça e viu Calis de pé ali perto, a lançar a corda para
baixo. — Ele puxou-me sozinho?
Marcus assentiu com a cabeça. — É bem mais forte do que eu achava.
— Tive uns pais muito pouco comuns — explicou Calis. Sem mais
comentários, pegou na corda de Marcus e atou-a à ponta da sua com um nó
bem forte. Passou-a pelas mãos e enrolou-a depois de ter inspecionado toda
a sua extensão à procura de eventuais indícios de desgaste ou outros
estragos. — Preciso da outra — afirmou, depois de a considerar adequada
para uso.
Marcus ajudou Nicholas a sentar-se e apesar de cada um dos músculos do
seu corpo agonizar de dor, conseguiu mexer-se. Deixou Marcus retirar-lhe a
corda do ombro e observou as imediações. Estavam numa pequena clareira
com erva robusta a crescer sob umas árvores de aspeto estranho, com uma
casca que crescia para cima em bicos que pareciam formar um anel de
lâminas, desde a base até ao topo, a cerca de cinco metros, ou mais, acima
das cabeças deles. Lá em cima, viam-se umas enormes e amplas folhas
verdes, como leques gigantes, que providenciavam sombra. Um murmúrio
de águas ali perto anunciou a presença de uma pequena nascente, e junto à
borda viu um pequeno rebanho de cabras, incluindo a que o saudara à
chegada.
Calis foi até à borda e gritou lá para baixo: — Conseguis ouvir-me?
Uma resposta ao longe indicou que sim, embora Nicholas não tivesse
compreendido as palavras. Fez sinal a Marcus para que o ajudasse a erguer-
se e, quando já estava de pé, disse:
— Estou satisfeito que já esteja ultrapassado.
Marcus sorriu, a única expressão sincera que Nicholas alguma vez viu
nele além da hostilidade. — Fiquei muito feliz por vos ter a apoiar-me —
disse ele, estendendo a mão.
Nicholas apertou-a. — Diria que o prazer foi todo meu, mas estaria a
mentir. — Retesou os ombros. — Acho que me dói cada bocadinho do meu
corpo — comentou.
— Eu percebo — anuiu Marcus.
— Que altura trepámos?
— Menos de noventa metros, parece-me — respondeu Marcus.
— Pois a mim pareceu-me um par de quilómetros.
— Conheço essa sensação — disse Marcus.
Calis firmou os pés no chão. — Dava-me jeito uma ajudinha —
comentou.
— Descansai — disse Marcus a Nicholas, após o que foi ajudar Calis a
segurar a corda.
Nem cinco minutos depois, a cabeça de Brisa elevou-se acima do rebordo
e ela escalou o resto. Levantou-se, sacudiu o pó e sorriu para Marcus. — Já
tinha feito muitas escaladas. Pareceu-me sensato vir à frente. O Ghuda é o
próximo.
Nicholas levantou-se a custo atrás de Marcus e agarrou a corda. Apesar
de haver agora mais outros três atrás dele, o pequeno esforço que pôde
despender para os ajudar provocou-lhe cãibras nos ombros e pernas. Mas
estava determinado a ajudar, e poucos minutos depois apareceu Ghuda.
O enorme mercenário içou-se por cima do rebordo e levantou-se de
pronto. Olhou para Calis. — Eu revezo-vos — anunciou. Tomou o lugar do
jovem elfo na ponta da corda e firmou os pés no chão. — Se dispuséssemos
de mais trinta metros de corda, poderíamos enroscá-la em volta daquela
tamareira.
— É isso que é? — disse Nicholas, resmungando com esforço.
— Sim. Se desejardes, ensino-vos a trepar a uma. Deve lá haver tâmaras
comestíveis. Na nossa terra pode ser outono, mas aqui é primavera.
— Por hoje acho que já chega de trepar — disse Nicholas no instante em
que um marinheiro surgiu no rebordo da falésia. — Dai uma ajuda — pediu
Calis assim que o marinheiro se levantou.
Sem abrir a boca, o marinheiro foi para onde estava Nicholas e ocupou o
seu lugar na corda. Nicholas foi aos tropeções até à borda da poça e
ajoelhou-se, com todo o seu corpo a lamentar-se. Bebeu imensa água.
Ergueu-se de pronto e inspirou profundamente, após o que olhou para cima.
De repente, o céu por cima dele rodopiou e ele desabou num abismo negro.

N icholas recuperou a consciência na escuridão. Viu o rosto de Harry


por cima dele, iluminado pela luz gerada pela fogueira. — Quanto
tempo? — perguntou.
— Desmaiaste há um par de horas. O Ghuda disse para te deixar
descansar.
Nicholas sentou-se e descobriu que ainda estava atordoado e com dores
desde a cabeça até à ponta dos pés, mas já não sentia as terríveis cãibras que
o haviam atormentado depois de se ter libertado da corda.
Harry ajudou-o a levantar-se. Nicholas olhou em volta e viu que tinham
acendido uma fogueira no centro da clareira. Os homens estavam sentados
em volta a comer em silêncio. — Está toda a gente cá em cima? —
perguntou Nicholas.
— Todos os que eram para subir — disse Amos, que apareceu naquele
instante.
Nicholas contou e só viu quarenta e seis na clareira. — E os outros onze?
— Seis estavam demasiado débeis para trepar — disse Amos
amargamente. — E a corda rebentou quando os outros cinco estavam a
subir. Já tinha caído a noite; entraram em pânico e não esperaram o
suficiente para que os homens à frente deles arranjassem a corda. Podia
sustentar três, mas cinco era impossível.
— O Calis e o Ghuda baixaram a corda o mais que puderam —
prosseguiu Harry —, e eu subi com a parte rebentada e atei-a com um bom
nó e trepei. Fui o último a subir.
— Talvez pudéssemos baixar alguma comida — sugeriu Nicholas.
— Vinde comigo — disse Ghuda.
Nicholas olhou para Amos, que assentiu. Calis aproximou-se e os três
caminharam por uma pequena porção de terreno com relva robusta, e
depois acederam a uma outra clareira. Nicholas deteve-se.
Defronte deles a relva estendia-se por uma dúzia de passos, e, atrás disso,
havia areia. Sob a luz do luar, a areia estendia-se até onde a vista alcançava.
— Os homens lá em baixo estão mortos — afirmou Calis. — Deveis aceitar
isso. Precisaremos de toda a água e comida que conseguirmos transportar.
— Até onde? — quis saber Nicholas.
— Não faço ideia — confessou Ghuda. — Observei o terreno logo após
o pôr-do-sol, antes de escurecer de verdade, mas o meu palpite é que se
trata de uma travessia para três ou quatro dias. Podemos ter a esperança de
encontrar outro oásis lá fora.
— Há mais outra coisa — salientou Calis.
— O quê? — perguntou Nicholas.
Foi Ghuda quem se encarregou de responder. — Aquelas cabras. Alguém
as deixou aqui. Havia um glifo tatuado nas orelhas das mais velhas. As mais
jovens não os tinham. — Afagou a sua barba cinzenta. — Já viajei até Jal-
Pur. Se os homens do deserto deixaram esses animais no oásis, é porque
uma tribo em particular reclama a posse dessa água. As outras tribos
deixam-nos em paz. Usar a água de outra tribo sem permissão pode levar a
um derramamento de sangue.
— Achais que virá aí alguém? — perguntou Nicholas.
— Mais cedo ou mais tarde — respondeu o mercenário. — Não faço
ideia se serão contrabandistas que usam as escarpas ou se serão apenas
nómadas que não gostam de desconhecidos, nem imagino porque é que
terão aqui um rebanho nas bordas do mundo, mas posso garantir que não
ficarão satisfeitos por termos abatido todo o rebanho. Não deixarão aqui
interminavelmente os animais sem cuidarem deles, pois as cabras
despojariam este oásis de todas as plantas em menos de um ano. Aquele
pequeno rebanho era a reserva de comida de alguém, e não ficarão
entusiasmados por lhes comermos as provisões.
— E só temos duas espadas, um arco e uma aljava de setas, e duas dúzias
de adagas e facas distribuídas por quarenta e seis pessoas — realçou Calis.
— Não é lá grande exército — concordou Nicholas. — Como é que
estamos de comida e água?
— Temos tâmaras, carne de cabra e água suficiente para pelo menos
cinco dias, se formos cautelosos — revelou Ghuda.
— Devemos viajar de noite? — perguntou Nicholas, recordando algumas
histórias sobre o deserto ouvidas em criança.
— Dado o nosso estado debilitado, é o melhor a fazer — reconheceu
Ghuda. — Vou ensinar a toda a gente a forma adequada de descansar
durante o dia, e avançaremos durante a noite.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Então passaremos esta noite e o dia
de amanhã a descansar para retemperar forças. Partiremos amanhã com o
Sol poente.
14

Bandidos

O
vento começou a soprar.
Nicholas estava deitado no chão a dormir uma sesta, com um
pau encaixado no braço, que servia de suporte a um abrigo
improvisado por cima dele. Ghuda insistira para que toda a gente
encontrasse um modo de se manter à sombra durante o dia, recorrendo ao
que quer que tivessem à mão e mantendo um espaço vazio entre o material
e a pele. Todos contribuíram com a roupa que possuíam, com exceção das
túnicas e das calças. Todas as vestes, capas grandes e pedaços de velas –
tudo o que os protegia do implacável frio noturno, até sacos de comida –
foram recuperados para preparar coberturas para a cabeça. Até retiraram as
roupas aos que morreram na primeira noite no deserto. Ao tentar repousar
no segundo dia de calor implacável, Nicholas compreendeu por que razão
Ghuda se revelara tão insistente em vincar que a proteção dos vivos era de
longe mais importante do que qualquer preocupação com a dignidade dos
mortos. Todos precisavam de ter as cabeças à sombra e de proteção para os
pés. A areia era mais quente do que Nicholas alguma vez imaginara.
O deserto não tinha nada a ver com aquilo que Nicholas esperara. Tal
como a maioria dos habitantes do Reino, sabia da existência do Deserto de
Jal-Pur na fronteira mais a norte do Império do Grande Kesh, mas nunca o
vira. Imaginara-o como sendo uma grande extensão de areias instáveis.
Em vez disso, aquele deserto era praticamente constituído por pedras
rachadas e superfícies lisas de sal, com suficientes restos de areia no meio
que levaram Nicholas a ficar agradecido por não ser tudo areia. Sempre que
avançavam pela areia, ouvia-se um ruidoso gemido de pelo menos metade
dos elementos do grupo. A viagem durou mais do dobro do tempo previsto,
pois as pernas exaustas tinham frequentemente de procurar onde pousar os
pés, para não pisarem em falso.
O vento era enervante; era uma coisa seca, que sugava a humidade do
corpo mesmo estando frio. E havia sempre poeira, uma areia de tal forma
fina que por mais que estivessem tapados, não era possível mantê-la
afastada do rosto, cabelo e roupas. A fricção constante da poeira fina
causara arranhões nos braços e pernas, assim como levara a que, ao
mastigarem, sentissem um ranger nos dentes.
Tinham partido há duas noites e progrediram lentamente, mas com
firmeza. Ghuda assumira a tarefa de circular por entre o grupo, de modo a
assegurar que ninguém parava ou quebrava o ritmo da marcha, nem bebia
antes de ser permitido. Todos sabiam que quem quer que caísse seria
deixado para trás. Não havia simplesmente força suficiente entre eles para
transportar quem quer que fosse.
À noite no deserto estava um frio de rachar tão cortante como o que
haviam experimentado na altura em que tinham pernoitado na praia, e
caminhar mantinha toda a gente quente, mas a exposição aos elementos
estava a cobrar o seu preço. E, então, quando o Sol se erguia, o calor
aparecia em ondas.
Nicholas recordou a véspera. De início, o céu iluminou-se, e quando o
Sol se colocou por cima do planalto, secou tudo. Assim que o Sol passou
para lá dos penhascos, Ghuda ordenara uma paragem. Acocorara-se e
sacara de um dos paus – um galho comprido cortado de uma planta do oásis
– e mostrara como se deveriam sentar muito direitos com o pau a suster a
capa sobre a cabeça, como se fora uma tenda. Depois, apressara-se a
verificar se toda a gente estava a seguir bem as suas instruções.
Quando o Sol se pusera na noite anterior, Ghuda ordenara a todos que se
levantassem, indicando que deveriam perscrutar o horizonte à procura de
qualquer sinal de água, fossem pássaros a voar ou alterações no padrão do
calor. Não viram vestígios dela e constataram a morte de mais três homens.
Eram então quarenta e três. Nicholas sabia que quando se levantassem para
a terceira noite de caminhada, era bem provável que houvesse mais homens
a não despertar. Sentiu uma dor sombria de frustração por não ser capaz de
fazer mais por eles.
Nicholas dormitou um pouco, mais foi incapaz de dormir. Quando por
fim caiu momentaneamente num sono mais profundo, o movimento do pau
despertou-o. Uns quantos tinham tentado escavar buracos ou prender os
paus com pedras, mas estavam assentes sobre crosta calcária, tão dura
quanto pedra. Ghuda garantira que, apesar de se sentirem cansados,
descansariam o suficiente durante o dia. Mas Nicholas já começava a
duvidar. Quando espreitou para a superfície do deserto, ondas de calor
elevaram-se num brilho tremeluzente que distorceu o horizonte.
Nicholas deixou a sua mente vaguear enquanto tentava adormecer. O
deserto fê-lo recordar a história do seu irmão Borric de ter sido levado
como prisioneiro através do Jal-Pur, mas nada do que ele contara a Nicholas
se podia comparar àquilo. Desde que haviam partido do oásis, não
avistaram sinais de vida no planalto. Nicholas pensou nos irmãos e do
quanto haviam mudado durante a sua jornada à corte da Imperatriz na
Cidade de Kesh. Tinham caído no meio de uma rebuscada tentativa de
destruir a família imperial que consistira em empurrar o Império para uma
guerra com o Reino. Borric fora capturado por esclavagistas e escapara, e
durante as suas viagens, conhecera Ghuda e Nakor. Houve também uma
outra pessoa, um rapaz chamado Suli-Abul, que fora morto ao tentar ajudar
Borric. Aquela experiência levara Borric a ter em mais consideração o seu
irmão mais pequeno, com quem até então gozara sem piedade. Nicholas
sentiu uma pontada de nostalgia e despertou por completo. Sentiu-se outra
vez, e de repente, muito jovem, um rapazinho no seio da sua família,
escudado das duras realidades do mundo por uma mãe afetuosa e gentil e
por um pai forte e protetor.
Nicholas fechou os olhos e tentou desesperadamente dormir. As suas
memórias desvaneceram-se e rapidamente deu por si a pensar em Abigail,
mas no seu sonho ele não conseguiu formar muito bem o rosto dela. Sabia
que era bela, mas os pormenores já eram algo incertos na sua memória e de
repente já lhe parecia uma criada de Krondor ou uma rapariga a que deitara
o olho na povoação de Crydee.
Uma voz intrometeu-se no seu sonho acordado. — Está na hora.
Sacudindo-se para despertar, Nicholas desentorpeceu o corpo e levantou-
se, enrolando a pequena capa solta em redor dos ombros. Pegou no pau com
a mão esquerda. Sem que lho tivessem dito, começou a perscrutar o
horizonte, em direção a poente, à procura de qualquer sinal de aves que se
dirigissem à água. Os outros olharam para diferentes quadrantes, mas
ninguém anunciou a presença de aves.
Nicholas olhou em redor deles e reparou que mais dois vultos
permaneciam deitados no chão. Consciente, com amargura, do que aquilo
significava, foi examinar os dois e por momentos sentiu uma pontada de
medo quando se apercebeu de que um deles era Harry. Ajoelhou-se junto ao
seu amigo e sentiu um tremendo alívio quando escutou um leve ressonar. —
Está na hora — disse-lhe, sacudindo-o ligeiramente.
Harry despertou lentamente, piscando os olhos inchados pelo calor e pela
falta de água. — Huh?
— Está na hora de partir.
Harry ergueu-se relutantemente.
— Não sei como é que consegues adormecer por completo — comentou
Nicholas.
— Quando te cansas a sério, dormes — respondeu Harry secamente.
— Mais um morto — anunciou Ghuda, que apareceu junto deles.
Eram agora quarenta e dois. Outros rapidamente os despiram e passaram
as roupas para os que necessitavam de uma proteção adicional face ao sol.
Ghuda passou um cantil de pele a Nicholas, que com um sacudir de cabeça,
deu a entender que não precisava.
— Bebei — ordenou o mercenário. — É crime beber mais do que a nossa
parte, mas é suicídio não beber quando é hora. Já vi homens recusarem a
sua ração e morrerem duas horas depois, antes de terem oportunidade de a
pedirem.
Nicholas pegou no cantil e no instante em que a água lhe tocou nos
lábios, apesar de quente e azeda, começou a beber. — Apenas duas goladas
— avisou Ghuda.
Nicholas obedeceu e passou o cantil a Harry, que também bebeu a sua
porção, para depois fazê-lo passar pelos outros. Nicholas estava satisfeito
por os homens serem da Armada Real, pois a disciplina deles impedia que
uma situação de desespero se tornasse irremediavelmente perdida. Sabia
que todos eles desejavam sorver o máximo de água possível, mas todos
seguiram as ordens e limitaram as suas doses a duas goladas.
Nicholas deitou uma olhadela a Amos, que estava imóvel a observar três
homens a colocarem pedras sobre o morto. Nicholas tinha noção de que ele
vira perecer muitos dos seus tripulantes ao longo dos anos, mas estava
duplamente perturbado com a morte daqueles homens, que haviam largado
de Krondor com a perspetiva de uma viagem simples até à Costa Extrema
para depois regressarem para o casamento do almirante deles.
Nicholas tentou imaginar como estaria a sua avó a suportar a ausência de
Amos. Tinha a noção que a notícia dos ataques já chegara por aquela altura
a Krondor e o mais provável era o seu pai estar a comandar uma frota de
navios de auxílio rumo à Costa Extrema, pronto a percorrer os Estreitos das
Trevas mesmo face à eventualidade de o clima do fim do outono e início de
inverno os poder travar. A ajuda chegaria também pela Passagem Norte
através da Cordilheira das Torres Cinzentas, desde Yabon.
Nicholas pensou então em como é que estaria o seu tio Martin. Estaria
ainda vivo? Ao pensar em Martin, voltou-se para Marcus. Este mudara
radicalmente o seu comportamento face a Nicholas desde que haviam
escalado os penhascos. Apesar de ninguém poder apontar o seu primo como
um homem expansivo, Nicholas conseguia aperceber-se da diferença nele
quando falavam. Poderiam até nunca vir a ser amigos, mas já não eram
rivais. Ambos tinham a noção de que quem quer que Abigail escolhesse,
iriam respeitar a opção.
Ghuda fez sinal e puseram-se em marcha. Avançaram para sul, pela
mesma razão por que haviam viajado nessa direção ao longo da praia; sem
nenhuma opção que se revelasse mais vantajosa, optaram pela rota que os
levava mais diretamente ao seu destino principal.
Uma hora após o pôr-do-sol, o ar já estava frio. Os caminhantes
começaram a envolver-se nos seus conjuntos de camisas, túnicas e capas.
Tentaram reduzir ao mínimo as pausas para descanso, mas era-lhes
impossível avançar continuamente durante a noite. Um facto que Amos
deduziu pela posição das estrelas e pelo nascer e pôr do sol era que as
estações do ano ali eram efetivamente ao contrário, e os dias estavam a
alongar-se, consoante a primavera se aproximava do verão — o que
implicava que os dias se iriam tornar mais quentes. Nicholas calculou que
ao ritmo que avançavam, caso não encontrassem abrigo e água no prazo de
dois dias, iriam todos morrer.
Marcharam longa e penosamente pela noite fora.

A gora eram trinta e quatro.


Nicholas sabia que aquela noite de marcha seria a última, caso não
encontrassem água. Avançavam aproximadamente a metade da velocidade
com que haviam progredido na primeira noite. Ghuda calculou que na noite
anterior não teriam avançado mais de quinze quilómetros, e teriam sorte se
naquela noite fizessem o mesmo.
Ghuda ergueu-se da sua minúscula tenda de camisas e capas. — Está na
hora — anunciou.
Perscrutaram o horizonte e de repente um dos marinheiros gritou:
— Água!
Ghuda olhou na direção para onde o homem apontava e Nicholas seguiu-
lhe o olhar. Ao longe, para oeste, um azul ténue brilhava no horizonte,
chamando por eles. — Ghuda? — disse Nicholas.
O velho mercenário abanou a cabeça. — Pode ser uma miragem.
— Miragem? — questionou Harry.
— O ar quente faz coisas engraçadas — explicou Nakor. — Às vezes
comporta-se como um espelho no céu, mostrando-vos o azul do céu no
chão. Parece água.
Ghuda não se moveu enquanto, de pé, esfregava o queixo. Olhou para
Nicholas e a sua expressão revelou que não queria ser ele a tomar uma
decisão. Caso se tratasse de uma miragem, estariam todos condenados.
Caso se tratasse de água e a ignorassem, estariam condenados.
— Continuai a olhar até o Sol se pôr — disse Nicholas.
Foi Calis quem os avistou. — Pássaros. — O Sol estava mesmo a
desaparecer sob o horizonte a oeste quando ele o anunciou.
— Onde? — perguntou Nicholas.
— Ali, para sudoeste.
Nicholas olhou e não viu nada. Todos os marinheiros sobreviventes
espreitaram para o ponto para onde o jovem elfo apontara, mas nenhum
deles confirmou o seu avistamento.
— Os vossos olhos devem ter poderes mágicos — comentou Amos, com
uma voz áspera devido à falta de água.
Calis não disse nada, mas começou a caminhar na direção do bando de
pássaros que avistara.

U ma hora mais tarde, chegaram ao limite do deserto. Na escuridão, era


difícil de ver, mas todos o sentiram sob os pés. De repente, sentiu-se
um ar primaveril em vez da áspera e dura areia ou pedra. Brisa ajoelhou-se.
— Nunca cheirei nada tão doce — comentou. A sua voz revelava uma
grande secura.
Nicholas dobrou-se e arrancou uma comprida folha de erva rija e seca e
esfregou-a entre o polegar e o indicador. Se alguma vez ali tivesse havido
água, não passava agora de uma recordação. — Calis? — questionou ele.
— Por ali — indicou o jovem elfo, apontando para sudoeste.
Deixar o deserto para trás e entrar no prado deu mais ânimo ao grupo.
Avançaram ligeiramente mais depressa e com mais determinação. Mas
Nicholas sabia que lhes restavam apenas mais umas horas antes de
sucumbirem.
O terreno subia ligeiramente e o solo arenoso por debaixo dos pés
rapidamente mudou para terra dura. — Ali! — exclamou Calis, numa noite
cada vez mais escura.
Partiu num passo rápido mas débil e Nicholas e os outros tentaram segui-
lo. Numa corrida vacilante e cambaleante, Nicholas obrigou as suas pernas
exaustas a subirem a pequena elevação e então avistou-a sob a luz do luar.
Uma nascente! Avançou meio a correr e meio a tropeçar pelo pequeno
outeiro até à depressão no terreno. Uns quantos pássaros com ninhos nos
juncos chiaram e voaram quando Calis caiu com a cara na água.
Nicholas chegou lá logo a seguir e fez o mesmo. Engoliu uma grande
porção de água e estava prestes a dar outra golada quando foi agarrado pela
gola pela grande mão de Ghuda, que o puxou para trás. — Bebei devagar,
ou ides vomitar tudo — avisou.
Repetiu o aviso aos outros, que mal o ouviram. Nicholas deixou a água
quente escorrer-lhe pelo rosto. Era barrenta e cheirava e sabia a algo que
achou melhor nem imaginar, tendo em conta que ali tão próximo havia
ninhos de pássaros, mas ainda assim tratava-se de água.
Levantou-se de modo inseguro e inspecionou aquele segundo oásis. A
depressão com a água estava tapada em três lados por palmeiras, enquanto
para oriente se estendia o deserto. Nicholas passou por entre os homens
com Amos e Ghuda, assegurando-se de que não bebiam demasiado
depressa. Após os primeiros tragos, a maior parte deles não se importou de
acatar ordens, enquanto uns poucos tiveram de ser afastados à força da
lagoa.
— Vou dar uma vista de olhos — anunciou Calis.
Nicholas assentiu e fez sinal a Marcus para que acompanhasse Calis.
Apercebendo-se de que Marcus ia desarmado, Nicholas sacou de uma
grande faca que levava no cinto e passou-lha. Marcus assentiu com a cabeça
em agradecimento e seguiu Calis, não comentando aquele aviso mudo:
podia haver gente ali por perto, agora que se haviam livrado do deserto, e
esses outros poderiam ser hostis. Encetaram caminho para sudoeste.
Alguns dos homens recuperaram força suficiente para que Amos
organizasse um grupo que fosse procurar alimentos, e depois dispôs
algumas sentinelas. Um par de marinheiros em melhor forma trepou às
árvores para apanhar tâmaras. Nicholas indicou a Harry que o
acompanhasse. Saiu do oásis, dirigindo-se para noroeste e depois de terem
avançado uma centena de metros, repararam que o deserto estava a mudar.
— Olha — disse Harry.
Nicholas observou o local para onde ele estava a apontar e assentiu com a
cabeça. Umas plantas de aspeto bizarro formavam pequenos maciços por
toda a paisagem e ao longe erguiam-se algumas árvores estranhas, rugosas e
despidas de folhas. Mas não pareciam mortas. — Talvez estejam dormentes
devido ao calor — comentou Nicholas.
— Talvez — concordou Harry, que percebia bem menos de plantas do
que Nicholas. — A Margaret saberia.
Nicholas ficou espantado com o comentário. — Como?
— Da última vez que estivemos no jardim, ela contou-me que passara
muito tempo na floresta com o pai, o irmão e… a mãe.
Nicholas assentiu. — Tenho medo, Harry.
— E quem não tem? Estamos bem longe de algo que nos seja conhecido
e não sei como vamos encontrar as raparigas, muito menos levá-las para
casa assim que o fizermos.
Nicholas abanou a cabeça. — Não é isso. O Anthony por certo que nos
levará até às raparigas.
— Achas? — questionou Harry.
Nicholas entendeu que era melhor não mencionar o que Anthony sentia
por Margaret, não porque considerasse Harry um verdadeiro rival no que
tocava às atenções da rapariga, mas por pretender poupar o seu amigo a
mais aflições, e principalmente por se sentir demasiado cansado para lidar
com a situação. — Acho que sim — limitou-se a dizer.
— E quanto a regressar a casa? — perguntou Harry.
Nicholas surpreendeu Harry com um sorriso rasgado. — Tendo entre nós
o mais famoso pirata do Mar Amaro, achas que é preciso perguntar? Ora
essa, roubamos um barco.
Harry sorriu, mas de um modo débil. — Se o dizes.
— Não, o que me assusta é que de alguma forma vou levar a que
fracassemos.
— Olha — disse Harry —, eu não sou bom em nada, ou pelo menos foi
isso o que me disse o meu pai muitas vezes, mas não estava completamente
a dormir nas raras ocasiões em que ele me obrigou a ajudá-lo a governar o
Baronato. E já conheço o suficiente da corte do teu pai para saber que muito
do que faz um homem um líder, e outro não, é simplesmente a
disponibilidade para errar.
— Achas? — perguntou desta vez Nicholas.
— Sim. Acho que passa muito por dizer apenas «Isto é o que vamos
fazer, mesmo que seja errado», e então fazê-lo.
— Bem — concordou Nicholas —, o meu pai sempre disse que não se
pode estar certo sem se estar disposto a arriscar no erro.
Um grito proveniente da nascente levou a que ambos se virassem e
apressassem a regressar. Marcus e Calis já tinham regressado. — É melhor
que vindes ver isto — avisou Marcus.
Nicholas, Harry, Amos e Ghuda seguiram Calis e Marcus para fora do
oásis e atravessaram uma pequena depressão até uma ladeira. Quando
chegaram ao topo, desceram uma pequena ravina, e depois voltaram a subir
a um cume ainda mais alto.
Assim que lá chegaram acima, Nicholas pôde constatar que estavam no
canto sudoeste de um planalto, e que o terreno descia abruptamente,
tornando-se cada vez mais verde consoante se afastava do planalto. O
deserto estendia-se para noroeste bem para lá do alcance da vista de
Nicholas. — Sul foi a opção certa — disse por fim.
— Sem dúvida — concordou Calis. — Se tivéssemos ido para ocidente,
teríamos por certo perecido.
— Há mais. Olhai — alertou Marcus. Apontou e ao longe Nicholas
discerniu uma leve bruma no ar.
— O que é?
— Um rio — informou Calis. — E a ver pela largura, diria que é dos
grandes.
— A que distância estará? — quis saber Amos.
— A uns poucos dias de viagem, talvez.
— Descansamos o que resta de hoje e amanhã todo o dia, e então
partiremos ao despontar do dia seguinte.
Voltaram costas à paisagem e enquanto regressavam ao oásis, Nicholas
deitou para trás das costas todas as ideias sobre fracasso.
rinta e quatro sobreviventes do naufrágio do Raptor desceram a encosta

T com determinação, dirigindo-se ao rio distante. Já marchavam há dois


dias, e após o calor terrível, a sombra das árvores fez com que o clima
ainda quente lhes parecesse mais clemente do que o era na realidade.
Dispuseram de muita água, pois a fonte que alimentava a nascente no alto
do planalto também jorrava num regato que descobriram a fluir para sul de
entre uma fissura nas pedras. Calis aconselhou a que o seguissem, pois o
mais certo era ir desembocar no rio, e, caso assim não fosse, pelo menos
disporiam de água durante parte da caminhada.
Por volta do meio-dia, fizeram uma pausa para descansar e Calis foi dar
uma volta para perscrutar o que havia à frente. Nicholas sentia cada vez
mais admiração pela força e vigor do semielfo. Enquanto todos os outros
mostravam as marcas do naufrágio e da subsequente jornada, Calis parecia
praticamente o mesmo desde o dia em que se haviam conhecido, a não ser
por um pouco de sujidade e pela túnica esfarrapada.
Calis virou-se naquele preciso momento. — Nicholas, é melhor que
vejais isto — alertou.
Nicholas gesticulou a Marcus e Harry para que o acompanhassem, e os
quatro desceram rapidamente até um pequeno vale atravessado por um
curso de água, que dava para uma vertente de pedras. Calis fez-lhes sinal
para que o seguissem enquanto trepava, alcançando um cume a cerca de três
metros e meio acima das cabeças deles.
Nicholas obedeceu e, quando estava ao lado de Calis, conseguiu ver
nitidamente o rio, agora uma estreita faixa azul que atravessava o verde da
pradaria.
— A que distância está? — interrogou Nicholas.
— Um ou dois dias.
Nicholas sorriu. — Vamos conseguir — comentou.
Marcus esboçou um leve sorriso, como se não estivesse completamente
convencido, mas Harry também mostrou um ar risonho.
Regressaram para junto dos outros. — Vamos na direção certa —
anunciou Nicholas. Aquela simples frase pareceu bastar para animar os
espíritos de toda a companhia, até de Brisa, que caíra num silêncio atípico
desde que haviam iniciado a travessia do deserto. Nicholas quase desejou
que ela tivesse regressado às suas brincadeiras grosseiras com Marcus, pois
assim teria percebido que voltara ao que era antes, mas, como a rapariga
estava taciturna, mostrava-se muito distante e falava apenas quando lhe
perguntavam algo diretamente.
Calis foi de novo inspecionar o terreno e os outros aguardaram,
repousando durante as horas mais quentes do dia enquanto ele ia procurar o
caminho mais fácil para descer até à pradaria.
Depois de decorrida mais de uma hora, Nicholas começou a ficar
preocupado, pois Calis era invulgarmente certo no que tocava a estar onde
dizia que ia estar. Nicholas estava prestes a enviar Marcus para o procurar
quando o semielfo regressou, transportando uma criatura nos braços.
Parecia um pequeno veado, mas tinha dois chifres retorcidos que curvavam
amplamente para cima e para trás da cabeça.
Ghuda resmungou. — É uma espécie de antílope, embora nunca tenha
visto essa espécie em Kesh.
Calis deixou-o cair ao chão. — Há uma manada lá em baixo junto à crista
da pradaria. Trouxe este e esfolei-o. Teremos muito que comer se aquela
manada não se afastar demasiado.
Rapidamente acenderam uma fogueira e a criatura foi cozinhada, e
Nicholas poderia jurar que nunca tinha comido carne tão saborosa e que
tanto o saciasse.

E stavam a menos de um dia de distância do rio quando Nicholas


vislumbrou o fumo a ocidente do local onde se encontravam. Calis e
Marcus viram-no no mesmo instante e Nicholas fez sinal para que
parassem. Com um gesto, sinalizou a Ghuda que levasse Harry para
vasculharem um quadrante mais a leste, enquanto Marcus e um dos
marinheiros deveriam fazer a aproximação por oeste. Indicou que Calis
deveria acompanhá-lo, dirigindo-se diretamente para o fumo. Avançaram
então por entre relva alta, que por vezes lhes chegava ao peito, e a
progressão era lenta. Tiveram sempre água por perto e a previsão de Calis
de que havia bastante caça nas imediações revelou-se acertada. Embora a
alimentação não fosse variada, era o bastante para recolocar quase toda a
tripulação num estado praticamente saudável. Nicholas pensou no aspeto
que ele próprio teria. Toda a gente estava suja, esfarrapada e escanzelada,
mas a maior parte das entorses, pisaduras e golpes tinham sarado.
Alcançando uma pequena elevação, Nicholas olhou para baixo e viu um
cenário de destruição. Seis carroças estavam dispostas em círculo, junto ao
rio, e duas delas ardiam. Outras duas estavam tombadas de lado. Uma dúzia
de cavalos jaziam mortos presos aos tirantes e havia corpos espalhados em
redor. Pelos espaços no círculo de carroças, era evidente que outras haviam
escapado do campo de batalha.
— Vou seguir em frente — avisou Nicholas. — Vós ides em volta da
borda da clareira e vede se ainda há alguém por perto.
Calis assentiu e Nicholas desceu a encosta enquanto o jovem elfo
desaparecia por entre a erva alta. Nicholas chegou à primeira carroça e
olhou em redor. O ataque tivera lugar há não mais de três ou quatro horas,
tendo em conta o estado das carroças ainda em chamas. As outras já tinham
ardido por completo, restando apenas os esqueletos carbonizados.
As carroças tinham flancos altos, com grandes estruturas de ferro para
suster as lonas, formando um telhado e tapando as laterais. A lona poderia
ser levantada para deixar entrar ar e luz, e para facilitar as descargas, ou
baixada para proteger a mercadoria. As carroças eram espaçosas, amplas
para cargas grandes ou muitos passageiros. A traseira das carroças era em
madeira sólida, presa por charneiras no fundo, para que, baixada, a parte de
trás servisse de rampa de carregamento. Tinha ao meio uma porta mais
pequena, do tamanho de um homem, para facultar acesso quando a rampa
estivesse subida. Os tirantes derrubados eram apropriados para quatro
cavalos cada.
Nicholas virou um dos corpos e viu um homem de estatura média,
ligeiramente mais escuro de pele do que ele, mas não tão moreno quanto a
maioria dos keshianos. Pelo aspeto, poderia ter sido um habitante do Reino.
Tinha uma ferida irregular no peito, nitidamente feita por uma espada, que o
matara rapidamente.
Levou apenas alguns minutos a perceber que praticamente tudo o que
tinha valor fora levado. Nicholas encontrou uma espada sob um dos cavalos
mortos e puxou-a. Tratava-se de um sabre, mais uma vez parecido com os
existentes no Reino.
Marcus apareceu com o marinheiro e Nicholas passou-lhe a espada. —
Chegámos demasiado tarde.
— Ou tivemos demasiada sorte — fez notar Marcus. Apontou para a
extremidade do círculo e Nicholas seguiu-o com o olhar. — Estão ali uns
vinte ou trinta mortos. — Indicou os corpos espalhados fora das carroças.
— Esta caravana foi assaltada por uma grande companhia — realçou. —
Suficientemente grande para nos desfazer em pedacinhos num abrir e fechar
de olhos, diria eu.
Nicholas assentiu. — É provável. Não fazemos ideia de quem sejam estas
pessoas ou de quem as atacou.
Ghuda e Harry surgiram de leste e começaram a examinar os corpos que
lá estavam. Nicholas foi ter com eles. — Ghuda? O que vos parece? —
perguntou.
O velho mercenário coçou a cara. — Comerciantes e guardas
contratados. — Olhou em volta. — Foram atacados primeiro por aquele
lado — disse, apontando para as ervas altas por onde Nicholas passara. —
Foi um ataque simulado, e depois o grosso do grupo atacou vindo do rio. —
Apontou para o aglomerado de corpos nesse lado. — A maior parte da luta
deu-se aqui. Foi rápida e terminou rapidamente. Aqueles, os mortos no
exterior das carroças, ou são atacantes ou os que tentaram fugir.
Nicholas voltou-se para o marinheiro. — Regressai e chamai os outros,
trazei-os até aqui. — O marinheiro fez a continência e partiu
apressadamente.
— Bandidos? — questionou Marcus.
Ghuda abanou a cabeça. — Não me parece. Isto foi muito bem
orquestrado. Diria antes soldados.
— Não vejo uniformes — comentou Nicholas.
— Os soldados nem sempre usam uniformes — observou Ghuda.
Naquele instante apareceu Calis, com um vulto magro à frente dele.
Tratava-se de um pequeno homem, nitidamente aterrorizado, que se atirou
ao chão defronte de Nicholas e dos outros e desatou a falar a um ritmo
avassalador.
— Quem é este? — perguntou Nicholas.
Calis encolheu os ombros. — Um sobrevivente, parece-me.
— Alguém percebe esta tagarelice? — questionou Nicholas.
— Prestai atenção ao que ele diz — recomendou Ghuda.
Nicholas manteve-se atento e de repente percebeu que o homem estava a
falar com um forte sotaque keshiano, ou uma língua de tal forma
aproximada do keshiano que pouca diferença havia. A dificuldade em
compreendê-lo devia-se mais ao sotaque e às suas súplicas quase histéricas
para que lhe poupassem a vida do que a tratar-se de uma língua estrangeira.
— Na verdade, não é muito diferente do natalês — comentou Marcus. A
língua de Natal era uma ramificação do keshiano, pois a região fora em
tempos uma província do Império.
— Levantai-vos — ordenou Nicholas em keshiano. Não se sentia muito à
vontade com a língua, mas já a estudara.
O homem percebeu o suficiente para obedecer. — Sah, Encosi.
Nicholas olhou para Ghuda. — A mim pareceu-me que ele terá dito
«sim, Encosi». — Vendo que Nicholas dava sinais de não ter
compreendido, Ghuda explicou-se. — Encosi é um título, que quer dizer
«senhor», ou «chefe», ou «mestre». É usado na região da Faixa de Kesh
quando não se sabe a posição oficial de alguém.
— Quem sois vós? — perguntou Nicholas ao pequeno homem.
— Eu ser Tuka; condutor de carroças, Encosi.
— Quem é que fez isto? — quis saber Nicholas.
O homem encolheu os ombros. — Não sei que companhia foi, Encosi. —
Pelo modo como deslocava o olhar de rosto em rosto, era notório que não
estava completamente convencido de que aqueles com quem falava não
fossem os responsáveis.
— Companhia? — indagou Harry.
— Não tinham estandarte e não usavam… — Usou uma palavra que
Nicholas não entendeu — …Encosi — indicou Tuka a Harry.
— Acho que ele disse que não usavam divisas — informou Ghuda.
O homem que dissera chamar-se Tuka abanou vigorosamente a cabeça.
— Sim, uma companhia não-legítima, sem dúvida, Encosi. Salteadores, é o
mais certo.
Algo no modo como ele falava deixou Nicholas baralhado. Fez sinal a
Ghuda para que se afastasse para conversarem a sós. — Ele não acredita
nisso — disse. — Porque é que está a mentir?
Ghuda espreitou por cima do ombro de Nicholas. — Não faço ideia. Não
sabemos como é a politica por estas bandas, e pode ser que tenhamos
desembocado em alguma espécie de contenda entre dois senhores ou duas
organizações de mercadores, ou sabe-se lá o quê. Também pode dar-se o
caso de ele saber quem são os salteadores, mas fazer-se passar por estúpido
mantê-lo-á vivo.
Nicholas encolheu os ombros e voltou-se para o homem. — Sois o único
sobrevivente?
O homem olhou em volta como que tentando decidir qual seria a resposta
que melhor lhe serviria. A sua expressão não passou despercebida a Ghuda,
que desembainhou uma faca de caça e se pôs em frente ao homem. — Nada
de mentiras, traste!
O homem caiu de joelhos e desatou a suplicar pela vida, implorando que
o poupassem devido às suas três esposas e aos filhos incontáveis. Nicholas
olhou de soslaio para Marcus, que assentiu ligeiramente, dando autorização
a Ghuda que prosseguisse. O grande mercenário fez um espetáculo quase
cómico de ameaças ao homenzinho, mas em Tuka não se viu pinga de
humor. Enroscou-se no chão e chorou copiosamente, berrando que era
inocente de qualquer jogo duplo e evocando pelo menos uma meia dúzia de
deuses desconhecidos a Nicholas para que o protegessem de qualquer mal.
Nicholas fez por fim sinal a Ghuda para que se afastasse. — Não
permitirei que ele vos magoe, caso nos conteis a verdade. Não temos nada a
ver com quem quer que tenha incendiado as carroças. Agora, quem sois
vós, para onde vos dirigíeis e quem vos atacou?
O homenzinho olhou em volta para o círculo de rostos e após mais um
breve acesso de súplicas às divindades para que o ajudassem e o apoiassem,
finalmente respondeu:
— Encosi, tende piedade de mim. Eu ser Tuka, um criado de Andres
Rusolavi, um mercador de dotes majestosos. O meu amo tem alvarás de seis
cidades e é tido como amigo pelos jeshandi.
Nicholas não fazia a mínima ideia de quem ou o quê seriam os jeshandi,
mas indicou ao homenzinho que prosseguisse.
— Regressávamos a casa após a Reunião da Primavera, transportando
mercadoria de grande valor, quando fomos atacados esta manhã por um
bando de salteadores, que nos obrigaram a formar um círculo. O meu
senhor tinha ao seu serviço a Companhia do Jawan, que se defendeu bem, e
fomos protegidos desse ataque vulgar, mas depois fomos atacados a partir
do rio, por homens que chegaram de barco, que nos subjugaram. Todos os
criados do meu amo e a Companhia do Jawan foram mortos pela força das
espadas e as quatro restantes carroças do meu amo foram levadas. — O
homem pareceu aterrorizado. — Eu estava em cima daquela carroça —
apontou para uma das duas que tinham sido derrubadas — e quando foi
virada, fui projetado ali para a erva. — Indicou o local junto ao qual Calis o
encontrara. — Não ser muito corajoso. Escondi-me. — Esta última
revelação foi proferida num tom que revelava vergonha na admissão da sua
cobardia.
— Acreditais nele? — perguntou Nicholas.
Ghuda pediu-lhe que se afastasse para o lado. — Não me parece que
esteja a mentir — disse. — Ele pensa que sabemos quem são esses jeshandi
ou o tal Jawan, caso contrário teria explicado quem eles são. Mas não achou
que conhecêssemos o seu amo, e por isso nos explicou que se tratava de um
homem muito importante. — Ghuda dirigiu-se ao homem. — Sois da Casa
de Rusolavi? — perguntou.
O homem assentiu furiosamente com a cabeça. — Assim como o foi o
meu pai. Somos os seus criados livres!
— Acho que para já é melhor não revelarmos quem somos — aconselhou
Ghuda.
Nicholas anuiu. — Ide falar com todos e dizei-lhes que tenham cuidado
com o que dizem em frente a este tipo, enquanto lhe faço mais umas
perguntas.
Nicholas indicou ao homenzinho que o acompanhasse até às carroças, e
ficou espantado ao verificar qual era a valiosa carga. Os outros apareceram
logo a seguir e Ghuda avisou-os para que não revelassem quem eles eram.
A dada altura, depois de Nicholas ter tido alguma perceção do que
transportava a caravana, Tuka perguntou:
— Encosi, que companhia é esta?
Nicholas olhou para o andrajoso grupo de marinheiros e soldados que
tinham sobrevivido à viagem desde Crydee. — É a minha companhia —
revelou.
O homem arregalou os olhos. — Podeis dar-me a honra de me dizer o
vosso nome, Encosi?
— Nicholas — revelou o Príncipe, que quase ia acrescentando «de
Krondor», mas deteve-se a tempo.
A expressão do homem alterou-se para total perplexidade, mas conseguiu
falar. — Naturalmente, todo-poderoso. A vossa reputação precede-vos. Os
vossos feitos são lendários, e todos os outros capitães tremem de medo ou
estremecem de inveja ao escutar o vosso nome.
Nicholas não soube como reagir a todos aqueles galanteios, mas depois
de dizer ao homenzinho para o seguir, revelou-lhe:
— Não somos destas paragens.
— Pela vossa pronúncia e modo de vestir, já o tinha deduzido, Encosi.
Mas o vosso nome é conhecido por toda a terra.
— Por falar nisso — aproveitou Nicholas —, que terra é esta?
Tuka pareceu confuso com a pergunta, e não foi por uma questão de
língua. Nicholas avaliou mal o contexto. — A que distância estamos do
vosso destino? — disse.
O rosto do homenzinho iluminou-se. — Estamos a apenas quatro dias do
ponto de encontro no Pouso de Shingazi. Lá, o meu amo pretendia transferir
a carga para barcas e descer o rio.
— Até onde? — perguntou Nicholas quando chegaram junto dos outros.
Ao escutar isto, Tuka pareceu ainda mais baralhado. — Até onde? Ora
essa, até à Cidade do Rio da Serpente. Onde mais se poderia ir nas Terras de
Leste, Encosi? Não há mais onde ir.
Nicholas olhou para os seus companheiros, que aguardavam.

M argaret esticou o pescoço, tentando ver para lá do enorme leme. — É


um porto marítimo — anunciou.
— Que interessante — comentou sarcasticamente Abigail. Ela alternara
entre o mau humor e um desespero soturno desde que o barco perseguidor
havia ficado para trás. — Mais cedo ou mais tarde, íamos ter de chegar a
um.
— Há uma coisa que se aprende num lugar selvagem, Abby: é uma
idiotice seguir um rasto sem se marcar o nosso caminho.
— Seja lá o que for que isso quer dizer — disse Abigail.
Margaret voltou-se para trás e sentou-se numa das camas. — Quer dizer
que, quando escapamos, não queremos constatar que não temos uma única
pista de como regressar.
— Regressar onde?! — questionou Abigail, com a sua raiva agora focada
em Margaret.
Margaret agarrou a amiga pelos braços. Mantendo um tom de voz baixo,
disse:
— Sei que estais transtornada. Também me senti assim tão perturbada
quando perdemos o Anthony e os outros. Mas eles vêm aí. Podem estar
apenas um dia ou dois atrás de nós. Quando nos libertarmos destes
assassinos, teremos de percorrer de novo esta rota, pois é daí que virá a
ajuda.
— Se nos libertarmos — disse Abigail.
— Não é se, mas quando! — insistiu Margaret.
Os olhos de Abigail encheram-se de lágrimas e ela libertou a sua raiva.
— Estou tão assustada — disse quando Margaret a abraçou.
— Eu sei — disse Margaret, tranquilizando a sua amiga aterrorizada. —
Mas temos de fazer o que é necessário, por muito que estejamos assustadas.
Não há outra forma.
— Farei o que pedirdes — garantiu Abby.
— Ótimo — comentou Margaret. — Permanecei sempre perto de mim, e
se eu me aperceber de alguma oportunidade de fuga, pretendo aproveitá-la.
Limitai-vos a seguir-me.
Abigail não disse nada.
Inesperadamente, a porta do camarote abriu-se. Entraram dois
marinheiros vestidos de preto, assumindo posições de guarda em ambos os
lados da entrada. Em vez de Arjuna Svadjian, foi uma mulher a entrar.
Tinha o cabelo praticamente preto, o que, combinado com a pele clara e
olhos azuis, lhe dava um ar exótico. Usava um manto que, assim que entrou
no camarote, atirou para trás por cima dos ombros, mostrando que por
baixo pouca roupa vestia; os seios estavam tapados por uma pequena blusa
sem costas, enquanto em redor da cinta usava uma simples e curta saia de
seda. As vestes diminutas eram de confeção refinada e muito bem feitas, e
além disso usava uma grande quantidade de joias.
Margaret percebeu que não se tratava de uma dançarina de taberna, nem
sequer de uma cortesã rica, pois havia algo de aterrorizador nos olhos da
mulher. Falou com clareza, na língua do Rei. — Sois a filha do Duque?
— Sou, sim — respondeu Margaret. — Quem sois vós?
A mulher ignorou a pergunta. — Sois, portanto, a filha do Barão de
Carse? — perguntou, então, a Abigail.
Abigail limitou-se a anuir.
— Sereis levadas daqui e tudo o que vos for pedido, deveis fazê-lo —
anunciou a mulher. — Deveis ter em conta que podereis viver bem, viver
miseravelmente, ou ver alguns dos vossos conterrâneos sofrer uma morte
lenta e dolorosa; posso assegurar-vos de que dispomos de meios para que
pareça uma eternidade. A escolha é vossa. Aconselho-vos a escolherem
bem. — Depois, falou num tom mais ríspido. — A dor dos vossos
conterrâneos é algo sem importância, mas vós, nobres do Reino, tendes um
forte sentido de proteção face a esse gado. Espero que isto seja suficiente
para vos motivar a cooperar.
Fez sinal com a mão e entraram mais dois guardas no camarote,
arrastando com eles uma jovem. Sem tirar os olhos de Margaret, a mulher
voltou a falar. — Conheceis esta rapariga? — Margaret reconheceu-a:
integrava o pessoal da cozinha do castelo e chamava-se Meggy. Margaret
assentiu com a cabeça.
— Ótimo — disse a mulher. — Ela não está muito bem, portanto matá-la
livrar-nos-á de mais uma boca para alimentar. — Aguardou um momento,
após o que retomou a palavra. — Matai-a.
— Não! — gritou Margaret quando um dos guardas empunhou
rapidamente um punhal, agarrou Meggy pelo cabelo e puxou-lhe a cabeça
para trás. Com um golpe rápido da lâmina, cortou-lhe facilmente a garganta.
O ato foi tão rápido que a rapariga dispôs apenas de um instante para emitir
um grito abafado antes de o seu olhar se perder e tombar de joelhos,
enquanto o sangue lhe jorrava do pescoço.
— Não precisáveis de fazer isto! — acusou Margaret, enquanto Abigail
se manteve calada, com um olhar aterrorizado.
— Foi uma demonstração — esclareceu a mulher. — Tendes, para mim,
um valor especial, e não me arriscarei a magoar-vos enquanto me restarem
outras opções. Mas não hesitarei em retirar uma criancinha do seu lar e
cozinhá-la lentamente perante os vossos olhos para obter a vossa
cooperação. Estou a ser clara?
Margaret engoliu a tremenda raiva que sentia, ficando com um amargo
sabor a bílis na boca. Nos seus olhos notou-se uma mistura de lágrimas com
fúria, mas obrigou-se a falar num tom calmo. — Sim, muito clara.
— Ótimo — disse a mulher. Voltando costas, envolveu-se de novo no
manto e saiu. Os guardas que tinham arrastado a rapariga até ali pegaram no
corpo sem vida e levaram-no embora. Os outros dois guardas fecharam a
porta, deixando o camarote tal como estava antes, a não ser pela poça de
sangue carmesim que se espalhava pelo piso.

Q uando toda a gente se reuniu no lugar da emboscada, Nicholas já tinha


vasculhado a zona por inteiro. Descobriram três espadas no meio da
erva alta, assim como uma mão-cheia de punhais. Também foi encontrado
um barril com pão duro e carne seca, tendo estes rapidamente sido
distribuídos por todos.
Tuka observou o grupo de andrajosos. — Oh, Encosi, diria que a vossa
companhia terá passado tempos árduos — comentou.
Nicholas fitou o homenzinho e achou-o uma figura bastante sagaz. —
Podeis dizê-lo — respondeu. — Tal como vós, ao que parece.
O homenzinho, ao ouvir tal, deixou-se nitidamente ir abaixo. — É bem
verdade, poderoso Capitão. O meu amo ficará tremendamente aborrecido
por perder uma caravana tão valiosa. A sua posição na Dhiznasi Bruku sairá
enfraquecida, e sem dúvida terei de ser eu a responder por isso.
Nicholas não imaginava o que fosse Dhiznasi Bruku, mas ficou
sombriamente divertido com o derradeiro comentário do pequeno homem.
— Porque é que o vosso amo, obviamente um homem perspicaz, haveria de
vos responsabilizar a vós, um simples condutor de carroça?
Tuka encolheu os ombros. — Quem mais estará por aí vivo a quem deitar
as culpas?
Ghuda riu-se. — Por muito que uma pessoa viaje até longe, há coisas que
nunca mudam.
— Assim o é — concordou Nakor, que se aproximara vindo de detrás do
Príncipe. — Pelo que também será provável que esse homem inteligente
possa ficar grato pela recuperação dos seus bens.
Tuka foi tomado por um olhar selvagem. — Um capitão tão poderoso
aceitaria uma comissão por parte de alguém de tão baixo nível quanto eu?
Impercetivelmente, Ghuda sacudiu a cabeça em negação. — Eu não
aceitaria — respondeu Nicholas —, mas aceitaria uma da parte do vosso
amo caso vós fôsseis empossado para o representar.
— Aiii — disse Tuka, genuinamente frustrado. — Gozais com o pobre
Tuka, Encosi. Sabeis que não posso. Poderei suportar a vergonha e o castigo
de Bruku, talvez até ser afastado e condenado a nunca mais ter um trabalho
honesto, mas não posso comprometer-me em contratos em nome do meu
amo, isso não.
Nicholas esfregou o queixo, enquanto ponderava no que dizer a seguir.
Foi Ghuda, contudo, quem falou. — Bem, suponho que poderemos
perseguir esses bandidos e pura e simplesmente tirar-lhes o que eles tiraram
ao vosso amo.
Tuka pareceu ter ficado completamente destroçado. — Ó poderoso
Capitão, se fizerdes isso, serei de novo enviado para o rio do desespero.
Não, deverá ser possível fazer algum negócio.
Amos, que se mantivera ali perto em silêncio, resolveu finalmente
intervir. — Bem, as leis do salvádego são praticamente iguais em todo o
lado.
Nicholas voltou-se para ele. — No mar, talvez, mas em… lá de onde
somos, enforcamos os que recebem bens roubados, lembrais-vos?
Amos suspirou. — Os escrúpulos das leis civilizadas; já me esquecera —
comentou num tom seco.
— Digo-vos uma coisa — referiu Nicholas. — Veremos o que é possível
fazer depois de perseguirmos estes bandidos, e, se conseguirmos recuperar
algo, cobraremos os habituais honorários.
A expressão de Tuka revelou algo que se assemelhava a esperança. —
Quantos guerreiros tendes ao vosso serviço, Encosi?
— Trinta e três, além de mim — respondeu Nicholas.
Tuka apontou para Brisa. — Incluindo a rapariga? — perguntou,
aproveitando de pronto a oportunidade para regatear.
De repente, surgiu uma adaga entre os pés de Tuka, a vibrar no solo em
virtude da força do lançamento. Brisa sorriu com a expressão mais
maliciosa que conseguiu. — Incluindo a rapariga — disse.
— Mulheres guerreiras — disse Tuka, com um sorriso forçado. — Eu ser
um homem progressista. Trinta e três guerreiros e vós, Encosi. Desde aqui
até ao Pouso de Shingazi, com um bónus pelo combate, recebereis sessenta
e seis cerlanders de Khaipur, e…
Sem esperar que o homem terminasse, Ghuda agarrou-o e puxou-o
brutalmente para si. Prendendo-o pela túnica, praticamente ergueu-o no ar.
— Tentais enganar-nos! — bradou.
— Não, senhor da amabilidade, estava simplesmente a iniciar as minhas
contas. — Pareceu prestes a desmaiar. — Eu quis dizer sessenta e seis
cerlanders, por dia, com comida e bebida, e um bónus para o Capitão
quando chegarmos ao Pouso de Shingazi!
Nicholas abanou a cabeça. — Quando chegarmos à Cidade do Rio da
Serpente, e até junto do vosso amo, quereis dizer.
Empalidecendo, Tuka pareceu prestes a fazer outra proposta, mas Ghuda
içou-o ainda mais até os dedos dos pés dele ficarem a balouçar a uns três
centímetros do chão. — Iiip! — exclamou o homenzinho quando foi
levantado no ar. — Se isso agrada ao Encosi, então tenho a certeza que o
meu amo lhe fará esse amabilidade.
Ghuda voltou a pousá-lo.
— Oh, o vosso amo fará a amabilidade, se quiser voltar a ver a sua
mercadoria — disse Nicholas.
Tuka pareceu estar a dançar sobre carvão em brasa, pois apoiou-se
alternadamente entre um pé e outro, para a frente e para trás. —
Combinado! — disse por fim.
— Eu levo o Calis — anunciou Ghuda.
Nicholas anuiu e depois dirigiu-se a Marcus. — Orientai mais uma
revista pelos relvados em volta e vede se há algo útil que nos tenha
escapado. — A seguir, colocou uma questão a Tuka. — Há algum lugar,
daqui até ao Pouso de Shingazi, onde os homens com as carroças possam
ter descarregado o produto do roubo para os barcos?
— Não, Encosi. Eram barcos pequenos, de qualquer modo. Se dispõem
de grandes barcos fluviais, estes estarão ancorados no Pouso de Shingazi.
— Então, é para lá que vamos — anunciou Nicholas.

N icholas reuniu com Amos e rapidamente fizeram uma avaliação das


suas forças. A companhia dispunha agora de um arco, cinco espadas,
assim como facas e adagas suficientes para distribuir pelos restantes. Os
sobreviventes do naufrágio eram todos soldados treinados ou marinheiros
com alguma experiência de combate.
Nicholas discutiu uma série de planos com Amos, mas essencialmente
para dominar os seus próprios nervos, pois pouco sabia de guerras exceto o
que aprendera nas suas aulas. Em termos de teoria, tinha a certeza que sabia
mais do que qualquer um dos homens ali presentes, mas no terreno era o
menos experiente. Marcus combatera trasgos com o pai e até Harry
cavalgara com o pai a perseguir bandidos antes de se mudar para Krondor.
Calis regressou por volta do meio da tarde. Apoiou-se no seu arco e
disse:
— O Ghuda está de vigia. Havia uma provisão de vinho ou cerveja…
— Boa bebida — acrescentou Tuka.
— Bem, os das carroças estão empenhados em beber a maior parte antes
de se juntarem aos companheiros no cais. Saíram da estrada e estão
apostados em apanhar uma bebedeira monumental. — Indicou a Nicholas
que se afastasse até um lugar onde Tuka não o pudesse ouvir. — Mas há
mais — anunciou. — Eles têm prisioneiros.
— Prisioneiros?
— Mulheres.
Nicholas refletiu demoradamente e depois, lentamente e com grande
teatralidade, desembainhou a espada. Avançou na direção de Tuka, que
ficou pálido quando o jovem se aproximou rapidamente dele com uma
expressão severa. — Encosi? — balbuciou.
Encostou a ponta da lâmina à garganta do homenzinho. — Falai-me das
mulheres — ordenou.
Tuka caiu de joelhos, a chorar. — Poupai-me, senhor, pois tenho sido um
louco em mentir a tão majestoso Capitão quanto vós. Dir-vos-ei tudo se me
garantirdes que me deixareis respirar até que a Lady Kal se apodere da
minha vida.
— Falai — exigiu Nicholas, dando o seu melhor para parecer ameaçador.
Terá sido convincente, pois Tuka revelou tudo numa torrente de palavras.
As mulheres eram a filha de um nobre, com o título de Ranjana, algo que
Nicholas não imaginava o que seria, e as suas quatro criadas. Ela, originária
da cidade de Kilbar, estava prometida a alguém a quem chamavam o
Suserano, governador da Cidade do Rio da Serpente. Iria ser a sua esposa.
O amo de Tuka, Andres Rusolavi, receberia uma avultada quantia para
mediar o casamento arranjado e providenciar transporte seguro para a
rapariga desde a cidade de Khaipur até à Cidade do Rio da Serpente.
Tuka jurou crer que os bandidos se tratavam de homens enviados para
causar fricção entre o Suserano e a Dhiznasi Bruku – que Nicholas
acreditava tratar-se de um consórcio ou de uma associação comercial – de
modo a criar um obstáculo entre eles.
— Quem poderia desejar tal coisa? — quis saber Ghuda.
Tuka pareceu confuso. — De certeza que não sereis de tão longe que não
sabeis que o Suserano tem sido um homem com uma miríade de inimigos?
O mais certo é ser obra do Rajá de Maharta, sendo ele o governante com
quem o Suserano presentemente tem estado envolvido numa guerra.
— Nós somos oriundos de uma cidade muito distante — disse Ghuda.
— O meu amo, e os seus parceiros, procuram os favores do Suserano
enviando-lhe presentes juntamente com a sua mais recente esposa.
— E provavelmente também andam a enviar oferendas a esse tal Rajá —
comentou secamente Ghuda.
Tuka sorriu mostrando os dentes. — O meu amo é conhecido por ser um
homem que tem em conta todas as opções, Saíbe.
Saíbe era um termo do conhecimento de Nicholas, e sabia que queria
dizer «senhor». — Portanto — disse Nicholas —, se resgatarmos esta
rapariga e as suas companheiras, seremos recompensados tanto pelo vosso
amo como por esse Suserano.
— Pelo meu amo, sem dúvida nenhuma, Encosi — concordou Tuka —,
mas o Suserano…? — Encolheu os ombros. — Ele já tem muitas esposas.
— Atacar não será problema de monta — disse Calis.
— Mas manter as raparigas vivas será — realçou Amos.
Nicholas acocorou-se na terra. — Como é que eles estão dispostos?
Calis desenhou no chão com recurso à adaga. — Quatro carroças, e estão
muito confiantes de que não vão encontrar problemas, pois não as
dispuseram em torno do acampamento. Apenas as retiraram para a berma.
— Traçou quatro linhas compridas no solo, que representavam as carroças.
— As raparigas estão na segunda carroça.
— Quantos homens são?
— Quatro por carroça, todos bem armados.
— Até onde nos podemos aproximar?
— Há imensa erva alta longe da margem do rio. Penso que cinco ou seis
de nós poderão aproximar-se até uns vinte metros das carroças.
Nicholas refletiu por uns momentos. — Quantos conseguis matar a essa
distância?
— Todos, se tivesse setas suficientes — referiu Calis. — Posso abater
provavelmente uns três ou quatro antes que se consigam aperceber do que
se passa. Mais, se estiverem suficientemente bêbedos.
— Vou dar a volta pela relva com o Marcus e uns quantos homens —
revelou Nicholas. — Surjo desta ponta enquanto o Ghuda liderará mais uns
dez homens deste lado. Os restantes atacarão ao longo do comprimento das
carroças, e quero que sejais vós a dar a ordem de ataque, Calis.
Avançaremos quando ouvirmos gritos.
Calis pensou por um momento. — Pretendeis que mate os que estão mais
junto das mulheres? — perguntou.
— Não sabemos o que eles poderão tentar fazer — disse Nicholas —,
matá-las ou usá-las como reféns. Podemos subjugar dezasseis deles, mas
não podemos assegurar que as mulheres fiquem em segurança. É essa a
vossa missão.
Calis assentiu com a cabeça. — Manterei os bandidos afastados o tempo
suficiente para que vos seja permitido chegar até elas.
— Muito bem.
Nicholas instruiu os homens escolhidos para atacar os bandidos. Voltou-
se para Anthony e Nakor. — Permanecei aqui com os que não têm força
suficiente para lutar e avançai quando as coisas acalmarem. Poderemos
necessitar dos vossos talentos.
— Encontrei aqui umas coisas que poderei usar para curar ferimentos —
anunciou Anthony.
Nakor assentiu com a cabeça. — Eu espero.
Foi indicado a uma meia dúzia de outros homens que aguardassem na
retaguarda, assim como a Brisa, que dera a entender estar bem interessada
em participar no ataque.
Só perto da altura do pôr-do-sol é que chegaram ao local onde Ghuda os
aguardava. Estava deitado numa elevação a observar a última carroça da
caravana. — Já estão bem bebidos — informou, quando Nicholas se pôs ao
lado dele. — Acho que há pouco houve uma briga por causa das mulheres.
Olhai.
Nicholas olhou para onde ele apontou e viu um corpo deitado por baixo
de uma das carroças. — Não são lá muito meigos a resolver contendas, pois
não?
— É verdade — concordou Ghuda. — Qual é o plano?
— Levo um grupo em volta até ao extremo mais distante — explicou
Nicholas. — O Calis mantém os bandidos longe das raparigas enquanto os
atacamos em três frentes.
— É básico, mas não me ocorre nada melhor — disse Ghuda.
Nicholas fez sinal aos que não permaneciam com Ghuda para que o
seguissem e a Calis. Este tomou a liderança e percorreu a parte de trás de
uma crista que seguia paralela à estrada. Quando se pôs do outro lado da
segunda carroça, gesticulou a Nicholas para que conduzisse a sua
companhia para a ponta mais afastada.
Nicholas avançou meio agachado e quando chegou ao seu local
predeterminado, fez sinal aos homens para que se pusessem a postos. Tudo
estava dependente da velocidade e do efeito surpresa. Se os bandidos se
organizassem, quinze homens bem armados a lutar concertados seriam um
desafio complicado para o grupo de Nicholas.
De repente ouviu-se um grito oriundo dos homens de Calis e Nicholas
levantou-se e desatou a correr. Não olhou para ver se os outros o seguiam,
partindo do princípio que o fariam.
À sua frente viu uma grande confusão. Um homem levantou-se,
segurando nas mãos um pequeno barril de onde escorria até à sua garganta
um líquido ambarino, voltando-se para se deparar com Nicholas a correr na
sua direção; pestanejou, baralhado, quando os atacantes se dirigiram a ele,
deixando o líquido escorrer-lhe pelo queixo. Deixou finalmente cair o pipo
e desembainhou a espada, mas alguém lançou uma adaga, atingindo-o no
ombro.
Nicholas passou por ele a correr e matou um homem que estava a voltar-
se para verificar que barulho era aquele. E então surgiu mais um
espadachim à sua frente e iniciou-se o duelo.
Nicholas apercebeu-se vagamente da luta em redor dele, mas manteve-se
concentrado no homem que tinha à sua frente. Era de meia-idade, um
veterano, e o seu modo de ataque era básico e direto. Nicholas levou apenas
um minuto a distinguir o seu padrão de ataque e a matá-lo.
De repente, a luta estava terminada. Nicholas olhou em volta e
compreendeu que os seus homens tinham fulminado um desorganizado
grupo de bêbedos. A maior parte dos bandidos foram mortos antes sequer
de se aperceberem de que estavam a ser atacados.
Nicholas viu um dos marinheiros do navio de Amos e agarrou-o. —
Juntai todas as armas que descobrirdes e tudo o mais que possa ser útil —
disse-lhe. — Assegurai-vos de que ninguém lança os corpos ao rio.
Dirigiu-se à segunda carroça, onde as cinco mulheres, todas da sua
própria idade, estavam encolhidas de medo. Duas tinham as roupas
rasgadas, e estavam magoadas nos rostos. — Estais bem? — perguntou
Nicholas, sem saber o que dizer.
Respondeu-lhe uma das mulheres, que usava trajes elegantes de seda. —
Não estamos feridas. — Os grandes olhos castanhos dela e a voz trémula
revelaram que não estava certa de terem sido salvas ou se simplesmente
tinham passado das mãos de um bando de captores para as de outro.
Nicholas fez uma breve pausa, atarantado com a sua impressionante beleza.
Sacudindo-se para se restabelecer, Nicholas anunciou:
— Agora estais a salvo.
Olhou em volta e avistou Ghuda. O velho mercenário estava a
inspecionar o acampamento. — Não eram soldados treinados — disse-lhe,
quando Nicholas se abeirou dele.
Nicholas olhou em redor e viu-se obrigado a concordar. — Escolheram
um dos lugares mais expostos na estrada para acamparem e não tinham
sentinelas.
Ghuda cofiou a barba. — Ou achavam que não havia ninguém nas
imediações…
— Ou estavam à espera de reforços — disse Nakor, que surgiu ao lado de
Nicholas.
— É melhor organizarmo-nos e partirmos assim que seja possível —
disse Nicholas.
— Demasiado tarde — disse o homenzinho, apontando para a crista onde
Ghuda e a sua companhia haviam aguardado antes da investida.
Sobre a crista, uma fileira de cavaleiros observava impassivelmente.
15

Revelação

N
icholas fez sinal.
Vários homens rapidamente se ordenaram em posições defensivas
atrás das carroças, enquanto outros sacavam as espadas e os arcos aos
bandidos mortos. Marcus juntou-se a Nicholas, tendo na mão um arco. — Não
faz o meu género — observou Marcus, testando a corda do arco —, mas
servirá.
— Jeshandi! — disse Tuka, apontando para a dúzia de homens a cavalo.
— São amigos? — perguntou Nicholas.
O homenzinho pareceu nitidamente preocupado com a pergunta. — Haver
um tratado de paz em função do Encontro da Primavera, onde todos podem ir e
negociar. Mas o encontro terminou e estamos do lado deles do rio.
— Do lado deles do rio? — questionou Harry, empunhando um gládio já
bem gasto.
Tuka assentiu com a cabeça. — Do Pouso de Shingazi para norte, e depois
para ocidente até onde o Rio da Serpente se aproxima para se juntar ao Vedra, e
do rio até ao deserto, as pradarias são o lar dos jeshandi. Ninguém pode passar
sem a autorização deles. Por vezes, a hospitalidade deles não tem limites, mas,
noutras alturas, podem baixar ao nível de uns verdadeiros salteadores. Aquele
que está à frente, com as borlas vermelhas sobre a rédea, é um Hetman, ou seja
um vulto muito importante.
— Bem, podemos esperar o tempo que eles esperarem — referiu Nicholas.
E então apareceram mais dois grupos, cada um deles composto por uma
dúzia de homens, nas extremidades norte e sul da crista. — Afinal, talvez não
possamos esperar — corrigiu Nicholas.
Trepou para cima de uma carroça e elevou bem alto a sua espada, para que a
pudessem ver bem. E então, ostensivamente, embainhou-a no flanco. Nicholas
saltou da carroça. — Ghuda, vinde comigo — disse. — Marcus, vós e o Calis
estai a postos para nos darem cobertura se tivermos de regressar a correr.
Ghuda juntou-se a Nicholas e os dois encaminharam-se até um ponto a meio
caminho entre as carroças e a crista. Dois cavaleiros saíram de junto dos outros
e lentamente desceram a crista.
Quando se aproximaram, Nicholas observou-os atentamente. Cada um dos
cavaleiros transportava um arco e uma aljava, assim como um conjunto de
espadas e facas. Usavam compridas capas escuras sobre as túnicas e calças, e
nas cabeças traziam chapéus cónicos índigo ou vermelhos, alguns com
coberturas para o pescoço. Tinham os rostos protegidos do sol por panos que
deixavam expostos apenas os olhos.
Quando chegaram junto de Nicholas e Ghuda, obrigaram os cavalos a seguir
a passo. Nicholas bateu com a mão na testa, coração e estômago, imitando os
modos dos homens do deserto de Jal-Pur, e proferiu a saudação formal deles:
— Que a paz esteja convosco.
— Tendes um sotaque terrível — disse um dos cavaleiros, falando na
variante de keshiano que parecia ser a língua comum naquela terra. Apeou-se
do cavalo. — Mas tendes boas maneiras — acrescentou. A seguir acenou. —
Que a paz esteja também convosco. — Aproximou-se então de Nicholas, que
entreviu um par de olhos azuis brilhantes sob a cobertura índigo. — O que se
passa ali? — perguntou, apontando para as carroças.
Nicholas contou-lhe do ataque e de como se apossaram das carroças. Quando
terminou, declarou:
— Estávamos a deixar as terras dos jeshandi e não pretendíamos
desrespeitar-vos. Esta caravana seguia o seu caminho vinda do Encontro da
Primavera.
Esperou ter sido convincente na sua pretensão de que qualquer vínculo de
paz que tivesse efeito no encontro perdurasse até que os lá presentes
abandonassem o território jeshandi.
O cavaleiro que falou retirou a sua proteção do rosto e Nicholas viu um rosto
jovem, dominado por maçãs do rosto salientes e olhos penetrantes. Algo
familiar despertou a atenção de Nicholas, que de repente se apercebeu do que
se tratava.
Virou-se para as carroças. — Calis! É melhor virdes até aqui — chamou.
— O que foi? — perguntou Ghuda, enquanto o jovem elfo saltava da
carroça.
— Olhai para o rosto dele — disse Nicholas.
— Gozais com a minha cara? — perguntou o cavaleiro. Ficou tenso e
pareceu estar disposto a resolver de imediato a questão.
— Não, só não esperávamos encontrar por aqui alguém da vossa espécie,
nestas circunstâncias.
O tom de voz do cavaleiro tornou-se nitidamente beligerante quando se
inclinou para a frente e fitou Nicholas nos olhos. — E o que pretendeis dizer
com «alguém da vossa espécie»? — indagou.
Calis chegou junto deles a tempo de ouvir a última troca de palavras, e
interveio. — Ele quis dizer que não esperava encontrar aqui um dos edhel.
O cavaleiro pareceu confuso. — O que quer que seja que essa palavra
signifique, devereis dirigir-vos a mim pelo meu nome e título.
Calis não conseguiu ocultar o seu espanto. — O vosso nome e título?
— Sou Mikola, Hetman dos Cavaleiros Zakoshi dos Jeshandi.
Nicholas fez uma vénia, distraindo o Hetman da perplexidade de Calis. —
Eu sou Nicholas, Capitão desta companhia e inimigo de nenhum homem que
pretenda ser meu amigo.
— Bem dito — disse Mikola, com um amplo sorriso. — Mas não me
interessam os problemas dos homens da cidade. — Apontou um dedo acusador
a Nicholas e o sorriso desvaneceu-se. — O que me preocupa é quem me vai
pagar pelas minhas cabras!
— As vossas cabras? — inquiriu Nicholas.
— Com certeza. Não vistes as tatuagens nas orelhas das cabras adultas? Não
reconhecestes a minha marca? Não me digais que não reparastes quando as
chacinaram e comeram. E o que fazíeis tão perto das bordas do mundo? — Sem
esperar a resposta de Nicholas, prosseguiu: — Acamparemos aqui para discutir
muitas matérias. Mas, acima de tudo, discutiremos o vosso pagamento das
nossas cabras.
Voltou a montar o seu cavalo e subiu a elevação, gritando ordens aos seus
companheiros.
— O que é que se passou aqui? — quis saber Ghuda.
— Ele é um elfo — disse Nicholas.
— Não reparei em nada, e as orelhas dele estavam escondidas — referiu
Ghuda. — Além disso, antes do Calis, nunca tinha visto nenhum.
Calis anuiu. — Podeis não ter conhecido ninguém do povo da minha mãe,
mas ele é um elfo. Pertence aos edhel, e mais, ele não sabe o significado da
palavra. — Calis procurou o cavaleiro com o olhar, claramente preocupado.

A pós o anoitecer, foram recebidos na tenda de Mikola. Calis permaneceu


em silêncio durante quase toda a noite. O chefe dos jeshandi podia estar
aborrecido com a questão das cabras, mas o seu sentido de hospitalidade foi
manifestamente demonstrado com o festim oferecido aos sobreviventes do
Raptor.
Tuka acompanhou Nicholas, Harry, Ghuda, Nakor, Marcus, Amos e Anthony
à tenda do Hetman, à qual chamava yurt. Era uma construção grande e circular
feita de pelo de cabra feltrado e lã de ovelha esticada sobre um gradeado de
madeira, onde Mikola podia albergar confortavelmente duas dúzias de pessoas.
No interior estavam pendurados estandartes e flâmulas de cores e formas
distintas, panos vermelhos com símbolos dourados, peles de animais
ornamentadas com contas em redor. No ar sentia-se um denso odor a
especiarias, pois um queimador de incenso providenciava um certo alívio face
aos cheiros mais pungentes dos cavalos e do suor dos homens. Era evidente
para Nicholas que aquela gente não tinha acesso frequente a água para se
banhar.
Disseram a Brisa, para sua irritação, que não era permitida a presença de
mulheres no yurt do Hetman, exceto as esposas, e mesmo nesse caso só para
satisfazer o prazer dele. Ela não fez um escândalo, mas a sua resmunguice
indicou nitidamente o que lhe ia na alma. Nicholas reparou no sorriso de
Marcus quando este escutou o linguajar impróprio da rapariga. Nicholas estava
certo de que o seu primo sentia o mesmo que ele em relação à rapariga:
satisfação por ver regressar a sua habitual maneira de ser.
Depois de terem ingerido uma refeição particularmente requintada,
acompanhada por um vinho robusto, Nicholas disse:
— Mikola, a vossa generosidade não tem par.
Mikola sorriu ligeiramente. — As Leis da Hospitalidade são invioláveis —
referiu. — Agora, dizei-me uma coisa: tenho ouvido para sotaques, e nunca
ouvi nenhum como o vosso. De onde é a vossa gente?
Nicholas relatou-lhe a viagem que viveram e Mikola pareceu imperturbado
pela alegação de terem atravessado o grande mar. — Há muitas lendas de tais
jornadas em tempos antigos. — Fitou Nicholas diretamente nos olhos. — Que
deus adoram? — perguntou.
Sentindo alguma tensão no tom de voz dele, Nicholas foi cauteloso. — Na
nossa companhia veneramos muitos deuses…
Nakor interrompeu-o. — Mas acima de todos está Al-maral.
O Hetman assentiu com a cabeça. — Sois forasteiros, pelo que quem adorais
é um assunto só vosso, e enquanto tiverdes a hospitalidade dos jeshandi, a
vossa segurança estará assegurada. Mas tende em conta que assim que partirdes
destas terras, se alguma vez retornardes, devereis jurar venerar O Verdadeiro
Deus, do qual todos os outros não passam de uma faceta, ou perdereis as vossas
vidas.
Nicholas anuiu e deitou uma olhadela a Nakor. — O que sabeis dessas
antigas lendas, Hetman? — questionou Calis.
— Em tempos, pertencemos a essa terra de onde viestes — revelou Mikola.
— Ou pelo menos é isso que nos diz o Livro, e nele só estão escritas as
verdadeiras palavras de Deus, pelo que terá de ser assim. — Olhou para Calis.
— Há algo mais que desejais saber? — perguntou.
Calis assentiu com a cabeça. — Sois aparentado com o meu povo.
O Hetman arregalou ligeiramente os olhos. — Pertenceis aos de longa vida?
Calis puxou para trás o cabelo, exibindo a sua orelha levemente virada para
cima. — Al-maral seja louvado! — exclamou Mikola. Correspondeu puxando
para trás o seu comprido cabelo louro e revelando a esperada orelha
pontiaguda. — Contudo, a vossa é diferente. Como é que é possível?
Calis falou pausadamente. — A minha mãe é da vossa espécie. É a Rainha
do nosso povo, em Elvandar.
Se Calis esperava uma reação a isto, nada sucedeu. — Contai-me mais —
pediu Mikola.
— O meu pai é humano, embora dotado de um talento mágico.
— E deve ser, na verdade — realçou o Hetman —, pois na longa memória da
nossa tribo, nenhuma união entre os de longa vida e os de curta resultou em
descendência. — Bateu uma vez com as mãos e um criado trouxe uma taça de
água. Lavou as mãos e entretanto disse:
— Por esse motivo, tal tipo de união é proibida entre os jeshandi.
— Tais uniões não são interditas entre o meu povo — explicou Calis —, mas
são raras e quase sempre infelizes.
— Sois de longa ou curta vida? — interrogou Mikola.
Calis respondeu com um sorriso forçado: — Isso é algo ainda por ver.
— No Livro — explicou Mikola —, está escrito que os de longa vida eram
forasteiros nesta terra quando os fiéis vieram desde o outro lado do mar.
Implacável foi a luta entre nós até os de longa vida escutarem a palavra de Deus
e abraçarem a fé; Al-maral é sempre misericordioso. Desde então temos vivido
em harmonia.
— Isso explica muita coisa — comentou Calis.
— O Livro explica tudo — disse o Hetman, carregado de certeza.
Nicholas olhou para Calis, que indicou que terminara. — Mikola, não
sabemos como agradecer a vossa hospitalidade — confessou Nicholas.
— Não é necessário agradecer; é quem oferece que deve ficar grato, pois está
escrito que só dando se pode aprender a ser generoso. — Enquanto limpava os
dentes com um comprido palito de prata, perguntou:
— E então, como pretendeis pagar as minhas cabras?
Iniciou-se uma ronda de regateio de preços e Nicholas tinha a noção de que
estava em desvantagem, pois a venda já fora efetuada; limitavam-se a discutir o
preço. Com o decorrer da noite, a qualidade dos animais continuou a subir
enquanto a Nicholas pouco mais restou fazer do que argumentar que eram
esqueléticos, duros e sensaborões. No final pagou pelo menos três vezes mais o
valor real deles. Se Mikola ficou curioso em relação ao cunho do Reino nas
moedas de ouro que Nicholas lhe deu, ocultou-o; ficou satisfeito com a
qualidade e peso das moedas, e isso bastou.
A seguir, Nicholas regateou o preço de armas e provisões e, quando
fecharam negócio, toda a sua companhia estava equipada, ele sentia-se cansado
e era tarde. Desejou boa-noite ao Hetman e regressou com os companheiros
para junto das carroças.
— Calis, o que dizíeis sobre a passagem do Livro que explicava muita coisa?
— perguntou Nicholas, pelo caminho.
Calis encolheu os ombros. — Sempre me ensinaram que os edhel, os elfos,
eram uma única raça, com uma Rainha, a minha mãe, e um lar, Elvandar. Antes
disso, servíamos os valheru. Após as Guerras do Caos, separámo-nos em três
grupos: os eledhel, o povo da minha mãe; os moredhel, a quem chamais a
Irmandade da Senda das Trevas; e os glamredhel, ou os loucos. — Olhou
momentaneamente por cima do ombro, após o que prosseguiu. — Agora sei
que há gente da minha espécie que nunca soube do nosso lar em Elvandar. As
nossas lendas falam apenas daqueles que vivem no mesmo continente do vosso
Reino. Não sabemos nada sobre esta gente.
— E eles nada sabem sobre vós — salientou Nakor.
— E o que foi aquilo sobre Al-maral? — perguntou Nicholas.
Nakor abanou a cabeça. — Coisas más. Guerras religiosas, da pior espécie.
Há muitos séculos, deu-se um grande cisma na Igreja de Ishap, entre os que
acreditavam que ele era o Deus Único Acima de Tudo e os que acreditavam que
ele era «Al-maral», ou todos os deuses, com cada um dos deuses inferiores a
não passarem de uma das suas diferentes facetas. Como costuma acontecer
nesses casos, o cisma disfarçou uma luta de poderes entre os templos de Ishap,
até que por fim os seguidores de Al-maral foram declarados hereges e
perseguidos. Diz a lenda que os do Grande Kesh fugiram para o deserto e
morreram, mas que alguns partiram de barco, navegando pelo Mar
Interminável.
— Isso explicaria por que razão todos falam keshiano — comentou Ghuda.
— Mas um keshiano mais parecido com o que se falava há centenas de anos
— realçou Harry.
— O Encosi vem do outro lado do mar? — perguntou Tuka.
— Eu disse-vos que viemos de uma cidade longínqua — lembrou Nicholas.
Algo nos olhos de Tuka revelou o que lhe ia na mente. — Então deverá ser
um assunto de grande importância que faz tal companhia atravessar o grande
mar, certo? — questionou.
— Um assunto que discutirei com o vosso amo — vincou Nicholas.
Apercebeu-se de que os sonhos de riqueza do homenzinho se esfumavam. —
Assim como, e em vosso favor, a devolução da Ranjana ao Suserano.
— O meu amo, ainda assim, no auge da sua generosidade, irá considerar os
meus feitos insuficientes para colmatar as minhas falhas no que à proteção da
caravana diz respeito.
— Levai-nos ao vosso amo e vereis que não é tempo perdido.
A expressão do homem alterou-se de novo. — Oh, muito obrigado,
altamente generoso Encosi.
— Temos algo a aprender quanto ao modo como as coisas por aqui se
processam, por isso, em troca da nossa generosidade, ides ensinar-nos os
costumes desta terra.
— Indubitavelmente, Encosi.
Ao chegarem junto das carroças, constataram que Brisa estava a ser guardada
por dois dos marinheiros. — O que é que aconteceu? — perguntou Nicholas.
Um dos marinheiros respondeu na língua do Rei: — Ela estava prestes a
estrangular aquela rapariga da carroça quando a afastámos, Alteza.
— Não me chameis isso outra vez — disse Nicholas. — Sou o capitão desta
companhia, e falai keshiano ou natalês.
O marinheiro mudou para o dialeto natalês. — Desconheço a causa, mas dei
com esta a tentar assassinar a rapariga cheia de joias — informou.
— Joias? — inquiriu Nicholas.
— Aquela a quem chamam a Ranjana.
Ajoelhando-se, Nicholas perguntou:
— Brisa, o que é que aconteceu?
— Ninguém me chama aquilo.
Nicholas levantou a mão para a silenciar. — Começa pelo princípio — pediu.
— Estava metida com os meus pensamentos quando aquela criança ranhosa
me chamou e me pediu para lhe dar esta caixa que estava na primeira carroça.
— Estreitando os olhos, mirou a segunda carroça. — Portanto, pensei, porque
não? Levei-lha, e ela abriu-a e começou a enfeitar-se com todas aquelas joias. E
então ordenou-me que fosse buscar água para se poder banhar. Disse-lhe que
fosse ela buscá-la, e então ela chamou-me…
Nicholas silenciou-a de novo. — E então tentaste matá-la?
— Só um bocadinho. Teria parado antes de ela estar completamente morta.
Nicholas levantou-se. — Acho que vou visitar a nossa convidada.
Dirigiu-se à segunda carroça e reparou que fora totalmente tapada, pois as
lonas laterais haviam sido baixadas. Na retaguarda, Nicholas deteve-se para
bater à porta.
Uma voz proveniente do interior perguntou quem ali estava, ao que ele
respondeu:
— Nicholas… Capitão Nicholas.
A porta abriu-se e surgiu o rosto de uma rapariga. Ela falou num tom
bastante arrogante. — A minha senhora está perturbada por causa do ataque da
prostituta. Receber-vos-á amanhã. Não mateis a prostituta até a minha senhora
estar acordada, para poder assistir.
A porta fechou-se e Nicholas ficou ali parado a pestanejar. Resistiu à ânsia
de abrir a porta e entrar, considerando que toda a gente beneficiaria com uma
boa noite de sono. Além disso, na verdade não sabia o que dizer.
Regressou para junto da fogueira onde Brisa estava sentada. — Amanhã de
manhã resolvo tudo — disse.
— Ela chamou-me…
— Eu sei o que ela te chamou — interrompeu Nicholas. — Amanhã de
manhã trato disso. Agora, vamos dormir.
Tuka, Amos, Marcus, Ghuda e Nakor reuniram-se a Nicholas junto à
fogueira. — Tuka — começou Nicholas –, podemos fazer de vós, se não um
homem rico, pelo menos alguém próspero. Se procurais enganar-nos, e de
algum modo aproveitar-vos para mais tarde ganhardes vantagem, aqui o meu
amigo — apontou para Ghuda — terá todo o gosto em torcer-vos o pescoço.
Agora, falai-nos desta nação.
A palavra deixou Tuka baralhado. — Nação, Encosi?
— Desta terra. Quem a governa?
— Deste lado do rio, os jeshandi reclamam todas estas terras como sendo
suas.
— E na outra margem?
— Ninguém, Encosi. Estamos demasiado longe da Cidade do Rio da
Serpente e fora do alcance dos soldados do Suserano, pelo que ninguém a
reclama. E as outras cidades ficam do outro lado das montanhas. Aqueles que
aqui vivem são senhores de si próprios.
Conversaram durante toda a noite, descobrindo coisas estranhas e invulgares,
para Nicholas e os outros, sobre aquela terra onde se encontravam. Não havia
reinos ou impérios nem grandes entidades políticas suficientemente perto, de tal
forma que Tuka nem sequer conhecia tal designação. Tratava-se de uma terra
de cidades-estado e de governantes independentes, cada um reclamando
quaisquer terras que pudesse subjugar pela força das armas. Nas Terras de
Leste, a área dominada pela Cidade do Rio da Serpente, o poder encontrava-se
nas mãos de uma indisciplinada confederação de clãs, povos tribais ligados aos
jeshandi. Presentemente, eram dominados pelo Suserano, um homem que
ascendera ao poder vinte anos antes e que mantinha o seu posto instigando os
clãs uns contra os outros.
Com o andamento da conversa, Nicholas compreendeu que para viajar de
qualquer ponto para outro naquela terra, era necessário recorrer aos préstimos
de um exército de mercenários, daí a crença de Tuka de que Nicholas era um
«poderoso capitão» e os seus trinta e três companheiros um bando de
mercenários.
Quando o homenzinho lhes revelou tanto quanto podiam absorver após
tantos dias fatigantes e uma refeição tão grande, Nicholas ordenou a todos que
se deitassem. Nicholas pediu a Amos que escolhesse uns quantos homens para
montarem guarda, embora isso não parecesse grandemente necessário com os
jeshandi acampados ali tão perto. Também quis que permanecesse um soldado
junto à carroça da Ranjana.
Após mais de duas semanas a dormir no chão, o rolo de dormir que comprara
a Mikola pareceu-lhe a cama mais fofa onde alguma vez se deitara. Nicholas
deitou-se e pela primeira vez desde o naufrágio adormeceu profundamente,
completamente relaxado.

N icholas acordou de repente quando um grito cortou o ar. Erguendo-se já


com a espada empunhada, pestanejou como uma coruja surpreendida pela
luz enquanto tentava orientar-se. Um par de marinheiros estava igualmente de
pé com as armas a postos. E então um outro grito levou-os a voltarem-se na
direção da segunda carroça. Nicholas baixou a sua arma, pois o grito era
nitidamente de ultraje, e não de dor ou medo.
Nicholas aproximou-se da parte de trás da carroça e deparou-se com um dos
soldados de Crydee. Ele encolheu os ombros, desculpando-se. — Desculpai,
Capitão, mas ela pretendia ver-vos e não ia acordar-vos, por isso começou aos
guinchos.
Nicholas assentiu com a cabeça e fez sinal ao homem para que se afastasse.
Nicholas bateu à porta de madeira e aguardou por uns momentos. A mesma
rapariga que o recebera na noite anterior exclamou:
— Estais atrasado!
— Informai a vossa senhora de que estou aqui — disse Nicholas.
— Irá receber-vos em breve.
Nicholas estava a sentir-se mal-humorado por ter sido despertado de um sono
profundo e por ainda não ter comido. — Ela vai receber-me já! — ordenou,
passando intempestivamente por ela. Deteve-se quando entrou na carroça baixa.
Lá dentro, descobriu que a carroça fora transformada num quarto, com rolos
de dormir na ponta mais distante suficientemente amplos e compridos para que
as cinco mulheres que viajavam juntas pudessem deitar-se com conforto. Na
ponta onde ele estava, ambas as laterais da carroça estavam cobertas até cima
com pequenas arcas, que, suspeitou ele, conteriam os pertences pessoais delas.
Foi aberta uma aba no flanco esquerdo da carroça, afastada da fogueira, para
deixar entrar o sol, de modo a que a Ranjana pudesse arranjar-se em frente ao
espelho.
Nicholas observou a jovem pela primeira vez em plena luz. Ficou
impressionado. A sua primeira impressão fora de que se tratava de uma
rapariga bonita; agora compreendeu que era sem dúvida tão bela quanto
Abigail, embora fossem tão diferentes como a noite do dia. Se Abigail era loura
e de pele clara, a Ranjana era de tez escura, com cabelo preto e pele da cor de
café ligeiramente cremoso. Tinha uns enormes olhos castanhos com umas
pestanas inacreditáveis e uma boca voluptuosa, que naquele momento se
mostrava muito pouco atraente. Ela fechou apressadamente a sua blusa de seda
vermelha, que revelara uma faixa preta sobre os seios concebida para elevar a
curvatura do peito. Nicholas corou um pouco ao ver a pele dela. A expressão
dela despertou-o daquela distração momentânea, pois direcionou a sua raiva
para ele.
— Atreveis-vos a entrar sem a minha permissão! — gritou ela.
— Atrevo-me — replicou ele. — Podeis ser alguém importante no lugar de
onde sois originária, Ranjana, mas aqui sou eu quem manda. Nunca o
esqueçais. — Dobrou um joelho de modo a poder mirar nos olhos a rapariga
sentada. — Vamos lá ver — disse —, que disparate é esse de esperardes que eu
apareça por vosso capricho?
Com a ira a cintilar-lhe nos olhos, ela respondeu:
— Não é mais disparatado do que esperardes que vá ter convosco segundo o
vosso capricho. Eu sou a Ranjana! É claro que vireis quando eu chamar,
campónio!
Nicholas ficou corado. Nunca ninguém se havia dirigido a ele naqueles
modos em toda a sua vida, e não gostou. Sentiu-se tentado a explicar-lhe que o
seu pai era um Príncipe e que era irmão de um homem que iria ser Rei, mas
optou antes por se explicar em termos mais básicos. — Minha senhora, sois
nossa convidada, e não será preciso muito para que vos torneis uma prisioneira.
Não sei que destino vos reservavam aqueles de quem nós vos resgatámos, mas
posso adivinhar. — Observou atentamente as outras raparigas antes de
prosseguir. — Vós as cinco proporcionar-nos-iam no mercado de escravos
riqueza suficiente para diversas vidas — referiu, antes de lhe apontar um dedo
acusador. — Embora por certo perdêssemos algum lucro devido ao vosso
temperamento estouvado — acrescentou, após o que se ergueu. — Assim
sendo, não me tenteis.
Voltou-lhes costas com intenções de sair. — Ainda não vos dispensei! —
exclamou ela.
Deitando a mão à porta, virou-se de novo para ela. — Assim que aprenderdes
algo sobre boas maneiras e mostrardes alguma gratidão face a quem vos salvou
dos degoladores, falaremos. Até lá, podeis permanecer nesta carroça.
Saiu da carroça e fechou a porta atrás de si. — Para já, não permitis que elas
saiam — indicou ao guarda.
O guarda fez continência e Nicholas regressou ao seu rolo de dormir.
Enrolou-o e fez sinal a Marcus e a Amos para que o seguissem. Afastaram-se
um pouco dos restantes. — Só nós os três e o Calis sabemos o que está
efetivamente em jogo aqui e não podemos perder a noção disso — realçou. —
Mas esta situação em que nos encontramos tem o seu potencial.
— De que forma? — perguntou Amos.
— Podemos levar aquela criança barulhenta e malcriada ao seu futuro
marido e ficarmos bem vistos por ele, chegando à cidade com uma história
plausível: somos mais uma companhia de mercenários e aparecemos por acaso
na altura certa.
Marcus chamou Tuka para junto deles. Quando o homenzinho foi ter com
eles, Marcus perguntou-lhe:
— O que podemos esperar quando chegarmos à Cidade do Rio da Serpente?
— Encosi?
— O que ele quer saber é se o Suserano tem sentinelas nos portões ou se
devemos informar algum oficial da nossa presença na cidade — esclareceu
Nicholas.
Tuka sorriu. — Deveis desejar contratar um pregoeiro para anunciar todos os
vossos grandes feitos, para que vos sejam oferecidas grandes comissões,
Encosi. No que diz respeito ao Suserano, o que ocorre na cidade pouco lhe
interessa, desde que a sua paz não seja perturbada.
— Já visitei alguns lugares assim — revelou Ghuda. — Encarai-o como um
acampamento militar e não tereis problemas.
— Temos um pequeno problema para lidar antes de nos preocuparmos
demasiado com a cidade — realçou Amos.
Nicholas assentiu com a cabeça. — O Pouso de Shingazi.
— Achais que os bandidos dos barcos estarão lá à espera? — perguntou
Marcus.
— Temos de partir do princípio que sim, caso contrário será uma viagem
bem curta — respondeu Nicholas, após o que se dirigiu a Amos. — Está toda a
gente armada?
— Não tão bem quanto eu desejaria. Temos meia dúzia de arcos e todos os
homens dispõem de algo que se assemelha a uma espada. Nada de escudos, e,
de qualquer modo, os utilizados pelos jeshandi são de couro. Nada de
armaduras. Em termos de companhias de mercenários, somos das pobrezinhas.
— Temos uma vantagem — destacou Nicholas.
— E qual é? — perguntou Harry.
— Não estão à nossa espera.

U ma hora após Nicholas ter saído de junto da Ranjana, uma das criadas
tentou deixar a carroça, mas o guarda impediu-a. Isso gerou uma ruidosa
discussão entre o guarda e duas das raparigas e obrigou Nicholas a lá regressar.
Já sem paciência para aquilo, com mão firme empurrou as raparigas outra vez
para dentro, fechou a porta e ordenou que esta fosse barrada.
Quando saiu, reparou que Brisa estava a observar com uma expressão que só
poderia ser considerada de intoleravelmente bem divertida. Com a contenda
que se adivinhava iminente, Nicholas não estava com disposição para
enfatuamentos. — Dá-me um pretextozinho e enfio-te lá dentro com elas.
Brisa desembainhou a adaga e passou a ponta pelo polegar, só para se armar.
— Oh, por favor, bravo Capitão. Por favor.
Nicholas, enfastiado, gesticulou para que ela se afastasse. Ouviu-se um grito
oriundo do acampamento dos jeshandi e de repente gerou-se uma grande
agitação.
— Estão a levantar o acampamento deles — anunciou Amos, que veio ter
com Nicholas.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Também é melhor pormo-nos a caminho.
O Tuka diz que se avançarmos todo o dia e mais uma hora já noite dentro,
poderemos chegar a esse tal pouso pelo pôr-do-sol do dia seguinte.
Amos coçou o queixo. — Discuti isso com o Ghuda, mas acho que seria
mais sensato se não esticássemos tanto a corda e aparecêssemos antes pelo
amanhecer do dia a seguir.
Nicholas ponderou a proposta. Era um truísmo de batalha que lhe fora
incutido pelos seus professores que os homens estavam na sua pior forma no
despontar do dia. Ainda adormecidos ou cansados devido à longa, aborrecida e
tranquila vigilância, estavam pouco alertas ao nascer do Sol. — Falarei com
Ghuda.
Uns minutos depois de ter sido dada ordem para avançar, todas as tendas dos
jeshandi já haviam sido desmontadas e a comunidade estava em movimento.
Nicholas ficou impressionado. Antes de a sua pequena caravana estar a postos,
já eles tinham desaparecido completamente da vista.
O calor ao longo do rio era mais suave do que sobre o planalto, mas não
muito. E o que fora conquistado em termos de temperaturas mais moderadas,
era mais do que subjugado pelas picadelas de moscas implacáveis. Nicholas
viajou na segunda carroça, a da Ranjana, acompanhado por Ghuda, que se
revelou um homem experiente a conduzir cavalos. Assim que as quatro
carroças se puseram em movimento, Nicholas escutou as queixas da Ranjana a
ecoarem desde a carroça dela. A rapariga já parecera ter esquecido que, ainda
poucas horas antes, dezasseis bandidos a tinham feito prisioneira e que um
morrera por ter desejado deleitar-se com os corpos delas.
Decorridos uns minutos, Nicholas sobressaltou-se ao sentir um toque no
ombro. Quase saltou da carroça, mas manteve-se suficientemente composto
para se virar e deparar com um rosto a olhar pela abertura na lona que havia à
frente. — A minha senhora queixa-se do calor — disse uma das criadas.
— Ótimo — comentou Nicholas. Algo na rapariga o irritara mais do que
qualquer outra pessoa que ele já tivesse conhecido, além da sua irmã mais
velha, que se revelara uma verdadeira praga desde que ele era um rapazinho.
Mas até Elena se tornara num ser humano razoável desde que Nicholas lhe
deixara de pregar partidas de miúdo.
Pouco depois, a queixa repetiu-se. Nicholas voltou-se e viu uma outra
rapariga na janela. — Se a vossa senhora tivesse modos para vir pedir-me
pessoalmente e com simpatia para baixar as laterais da lona, eu poderia pensar
no assunto.
Ouviu-se no interior um burburinho e voltou a aparecer a primeira das
criadas. — A minha senhora solicita, com toda a sua humildade, que sejam
removidos os flancos para que possa entrar mais ar.
Optando por não deixar o assunto avançar mais, Nicholas saltou para fora da
carroça. Dado que avançavam a um ritmo lento para permitir aos que seguiam a
pé que os acompanhassem, não lhe foi difícil caminhar ao lado e desatar as
cordas que prendiam os flancos de lona. Puxou então as cordas que sustinham a
lona e desamarrou-as.
Uma criada particularmente bela inclinou-se para o exterior. — A minha
senhora agradece ao bravo Capitão.
Nicholas lançou um olhar levemente irritado sobre o ombro e viu a Ranjana a
olhar para lá da estrada, ignorando-o. Concluiu que a criada optara por ser
educada em nome da Ranjana.
O dia decorreu sem incidentes e Nicholas avaliou a situação em que estavam
envolvidos, discutindo com Ghuda diversas opções.
— Há uma coisa relativa àqueles rapazes que me preocupa — disse a dada
altura o velho combatente.
— O quê? — perguntou Nicholas.
Ghuda zurziu as rédeas. — Não eram aquilo que pareciam ser — disse. —
Quando os enterrámos, olhei com atenção, e não eram soldados.
— Bandidos?
— Não. — Ghuda pareceu preocupado. — Se o Tuka estava a contar a
verdade, o ataque foi bem conduzido, nada espalhafatoso mas eficaz. A
companhia destacada para guardar este comboio de carroças era boa, de acordo
com o Tuka. Mas os quinze que apanhámos eram o bando mais inexperiente
que alguma vez vi no terreno. Bons espadachins, capazes de lutar
individualmente, pareceu-me, mas completamente desordenados em equipa. —
Abanou a cabeça. — Metade deles… tinham as mãos macias, e, apesar das
roupas, não eram uns pobres bandidos. Pareceram-me mais rapazes ricos
disfarçados.
Nicholas abanou a cabeça. — E o que vos parece?
— Acho que alguém queria que essas carroças fossem descobertas, talvez
pelos jeshandi. — Ghuda coçou o queixo. — Acho que só estamos a ver uma
pequena parcela do que há para ver.
— Então achais que pode não haver ninguém à espera desses homens no
Pouso de Shingazi? — perguntou Nicholas.
— Ou que estará lá alguém para assegurar que, na eventualidade de eles
aparecerem, já não vão mais longe.
Nicholas anuiu. Desceu da carroça e correu para a que seguia na dianteira,
onde Tuka seguia sentado ao lado de Marcus. — Tuka — chamou Nicholas.
O homenzinho olhou para baixo. — Sim, Encosi.
— Há algum lugar entre aqui e o Pouso de Shingazi que daria um bom local
para uma emboscada?
Tuka refletiu no assunto. — Sim, Encosi — acabou por responder. — Haver
lugar maravilhoso meio dia à nossa frente, onde um pequeno grupo poderia vir
a causar dificuldades a um exército.
— Maravilhoso — comentou Nicholas. — Parai — indicou a Marcus.
Acenou para as carroças que seguiam atrás e correu na direção da terceira, onde
Calis viajava com Harry. Dirigiu-se ao semielfo. — O Tuka diz que há um
excelente lugar para nos montarem uma emboscada meio dia à nossa frente e o
Ghuda acha provável que isso suceda.
Calis assentiu com a cabeça e, sem proferir palavra, saltou para o chão,
afastando-se em passo rápido. Dirigindo-se à quarta carroça, onde seguiam
Amos e Brisa, Nicholas informou-os do motivo daquela paragem inesperada.
Amos saltou para o chão. — Bem, uma coisa é certa — disse —, o Ghuda
sabe do seu ofício.
Nakor e Anthony seguiam na retaguarda da última carroça, acompanhando
os homens necessitados de cuidados. Vieram até ao exterior. — O Ghuda sabe o
suficiente para liderar a sua própria companhia, caso assim o entendesse —
comentou Nakor, após o que olhou em redor. — Anthony, este lugar é tão bom
quanto qualquer outro.
— Para quê? — quis saber Nicholas.
— Para ver se consigo localizar de novo os prisioneiros — respondeu
Anthony. — Não tentei fazê-lo desde o naufrágio.
Nicholas assentiu e Anthony cerrou os olhos. Decorreu um longo minuto até
voltar a falar. — É fraco, mas por ali. — Apontou para sul.
— Bem, é mesmo para onde vamos — comentou Nicholas.

C alis baixou-se. Apontou. — Ali.


Nicholas semicerrou os olhos contra o Sol poente. Estavam abaixados
por entre a erva alta a oeste de uma grande estalagem, cercada por um pequeno
muro. O que Nicholas se esforçou por ver era uma companhia de homens
resguardada no canto mais distante do cercado. — Será uma dúzia, parece-me
— anunciou, após uma contagem.
— Pelo barulho, há muitos mais lá dentro — afirmou Ghuda.
O que eles conseguiram escutar eram nitidamente festejos, gritos e
gargalhadas, música e sons alegres de homens e mulheres a divertirem-se.
Nicholas rastejou para trás de modo a descer a vertente da colina. Estavam
demasiado próximos e não poderia arriscar-se a ser visto, mesmo tendo em
conta que estava a coberto da noite que se aproximava rapidamente.
Quando os outros o seguiram, deslocaram-se de pronto para junto das
carroças, num acampamento montado um quilómetro e meio mais abaixo na
estrada. Ghuda já sugerira a Nicholas que não deveriam acender fogueiras no
acampamento, na eventualidade de haver alguém na estalagem suficientemente
atento para detetar a luz ao longe. A Ranjana já dera a entender que não queria
saber disso, e ficou ainda mais irritada ao ser ignorada por Nicholas.
— É aquela dúzia deles que está agrupada no pátio que me deixa mais
nervoso — disse Ghuda, quando já percorriam a estrada.
— Porquê? — indagou Nicholas.
— Se conheço bem o meu negócio, são profissionais. Foram os que
lideraram o ataque, que o coordenaram, e os outros são… Não imagino o que
sejam. Mas enquanto estão na estalagem a embebedarem-se e a divertirem-se
com as prostitutas, os profissionais estão cá fora reunidos a discutir algo.
— Traição? — perguntou Nicholas.
Ghuda encolheu os ombros, um gesto nítido mesmo sob a luz cada vez mais
ténue. — Não me sai da cabeça. Os que ficaram para trás para trazer as carroças
foram sem dúvida abandonados ao seu destino. Se a missão deles era estragar a
aliança do amo do Tuka com o tal Suserano, por que razão não se limitaram a
matar a rapariga? Ou porque não levá-la para os leilões de escravos? Ou
prendê-la para pedir um resgate? Ou colocá-la nos barcos? E porque é que
deixaram para trás todas aquelas joias dela? Para bandidos, parecem pouco
interessados em saques. — Ghuda coçou o queixo. — Há aqui muitas perguntas
sem resposta.
Nicholas pouco falou durante o regresso ao acampamento. Quando se
aproximaram, ouviu-se uma voz por entre a escuridão. — Boa-noite, Capitão.
Nicholas acenou à sentinela, que se escondera atrás de um pequeno arbusto
enfezado, e sorriu ao escutar a forma de tratamento. Levara o seu tempo até que
todos se habituassem a chamar-lhe Capitão, mas agora toda a gente o fazia,
incluindo Amos, que parecia apreciar a ironia da situação.
Ao chegar ao centro das carroças, que haviam sido dispostas num quadrado
defensivo, encontraram Marcus e os outros a comerem uma refeição fria.
Ajoelhando-se ao lado do primo, Nicholas disse:
— A maioria deles está numa grande pândega na estalagem.
— Quando é que os atacamos? — perguntou Marcus.
— Logo antes de amanhecer — respondeu Nicholas.
— Dissestes a maioria — observou Brisa, que estava sentada ao lado de
Marcus.
— Há uma dúzia deles que parecem ser competentes, e podem revelar-se um
problema — referiu Nicholas.
— Que tipo de problema? — perguntou Marcus.
— Parecerem ser veteranos bem treinados — explicou Ghuda. Olhou em
volta para os rostos dos marinheiros e dos soldados que estavam ali perto. —
Nós também temos entre nós um bom grupo de homens rijos — disse —, mas
não estamos muito bem armados e alguns de nós ainda não se apresentam em
forma.
Nicholas assentiu. — Mas temos o efeito surpresa do nosso lado.
— Espero que a razão esteja convosco — comentou Ghuda.
— Como é que vamos avançar? — questionou Harry.
Nicholas sacou da adaga. — A estalagem fica ao lado do cais, com uma das
fachadas virada para o rio — explicou.
— Encosi, há um alçapão por baixo da despensa que o Shingazi lá instalou
para facilitar a entrada da cerveja e dos alimentos que chegam pelo rio —
informou Tuka.
— Já lá estivestes?
— Muitas vezes — disse o homenzinho.
— Diria pelo aspeto do lugar que o dono não espera muitos problemas —
disse Ghuda.
— Pois não, Saíbe — confirmou Tuka. — Os jeshandi cederam a terra ao pai
dele há uns anos, e os mercadores e os viajantes alojam-se lá regularmente. O
Shingazi tem muitos amigos e nenhuns inimigos, pois ser um comerciante e um
estalajadeiro justo. Seria complicado para qualquer companhia gerar problemas
ao Pouso de Shingazi. Seria arranjar muitos inimigos.
— Quer então dizer que se atacarmos lá esses bandidos, vamos complicar as
coisas para o nosso lado? — concluiu Nicholas.
— Pesaroso fico de vos dizer isto, Encosi, mas é a verdade.
— Se não aparecermos, alguém irá procurar-nos — referiu Nicholas. — Os
que foram deixados com estas carroças poderiam ser preguiçosos e desleixados,
mas não levariam mais de meio dia a chegarem ao pouso, por isso, o mais
tardar amanhã, alguém vai investigar o que se passa.
— E lá se vai o nosso efeito surpresa — comentou Calis.
— Marcus e Calis, cada um de vós pegue em cinco homens e em todos os
arcos — indicou Nicholas. — Quero que o grupo do Calis dê a volta e suba o
rio na nossa direção. O Marcus irá descer junto ao rio. Os restantes de nós
seguiremos pela estrada, e sairemos do lado de cá da última crista antes da
estalagem. Daremos a volta e apareceremos oriundos da crista que fica em
frente ao portão principal. — Refletiu por uns momentos antes de prosseguir.
— Se estiverem suficientemente bêbedos, talvez consigamos enfiar-nos lá
dentro e desarmá-los.
— Se a dúzia deles que está cá fora estiver a dormir — fez notar Ghuda.
— Não. Se deixarem apenas três ou quatro sentinelas.
— Aqueles muros baixos não oferecem nenhum tipo de defesa, Nicholas,
mas dão alguma cobertura — referiu Ghuda.
— Eu sei um truque — anunciou Nakor.
Todos os olhares incidiram no lugar onde estava sentado o homenzinho, ao
lado de Anthony. Nakor pousou a mão no pulso de Anthony. — Ele vai ajudar-
me.
— Vou?
Nakor andava de novo com a sua mochila e enfiou lá a mão. — Ah! —
exclamou. — O mercador arrumou o armazém. — Retirando de lá o seu saque,
exibiu-o para que todos o vissem. — Alguém quer uma maçã?
Nicholas riu-se. — Claro que sim. — Dando uma dentada, perguntou:
— E qual é o truque?
— Desço o rio a nado, trepo pelo alçapão que o Tuka disse que existia e pego
fogo a um molho de erva húmida — explicou Nakor. — Vai fazer uma
fumarada, e quando estiver mesmo a arder, começo a gritar «fogo!»
Nicholas riu-se. — Pensei que vos referíeis a um truque de magia.
Nakor fez uma careta. Nicholas achou que ele ia dizer: «A magia não
existe», mas disse outra coisa. — Como é que achais que vou entrar sem ser
visto, com o alçapão trancado, e iniciar o fogo?
— Ghuda? — disse Nicholas.
— Se eliminarmos os guardas no exterior, só há uma porta e um par de
janelas grandes… talvez.
— Vamos tentar — disse Nicholas.
— Posso ser um bocado estúpida, mas por que razão vamos atacar esse
lugar? — perguntou Brisa. Pelo seu tom de voz, tornou-se evidente que se
tratava de uma ideia que não lhe agradava. — Porque é que não nos limitamos
a passar ao largo?
— Porque é onde estão os barcos — esclareceu Harry.
— Barcos?
— Nos quais vamos descer o rio até à Cidade do Rio da Serpente — disse
Nicholas, que depois se voltou para Tuka. — Quanto tempo se demora a chegar
de carroça à cidade?
— É praticamente impossível — disse o homenzinho. — Os trilhos a sul do
pouso são para caçadores e cavaleiros. A estrada acaba. E mesmo que houvesse
estrada, uma viagem dessas levaria meses. O meu amo espera que eu e os
outros carroceiros regressemos a Kilbar com as carroças vazias, depois de
descarregada a carga e a Ranjana nos barcos. Por via fluvial só leva umas
semanas.
— E é isso — acrescentou Nicholas. — Eles têm os barcos e nós precisamos
deles, e não queremos voltar contra nós todos os bandos de mercenários desta
terra, pelo que queremos tratar disto sem estragar a estalagem. Um bando de
homens baralhados e ressacados a atropelarem-se uns aos outros para
escaparem em plena noite de um edifício em chamas parece-me um plano
perfeito.
Durante uma hora, discutiram os pormenores do plano, após o que fizeram
uma refeição de comida fria. Nicholas estava a sugerir a todos que se deitassem
e descansassem o máximo que pudessem quando uma das sentinelas apareceu a
correr no acampamento. — Capitão! — chamou.
— O que foi? — perguntou Nicholas, apercebendo-se da inquietação no
rosto do homem.
— A estalagem no Pouso de Shingazi está em chamas.
Nicholas olhou para sul, onde era visível um brilho vermelho-amarelado,
mesmo acima da linha do horizonte.

C hegaram à crista sobranceira à estalagem quando o fogo já atingia a altura


desta. Nicholas e os vinte soldados e marinheiros em melhor forma
percorreram a correr os dois quilómetros e meio até à posição deles, enquanto
os restantes ficaram de guarda às carroças.
Da posição que ocupavam na colina, puderam ver todo o edifício mergulhado
em chamas. E à luz do fogo distinguiram sem dificuldade os corpos espalhados
pelo pátio.
Ghuda contou-os. — Ao que parece, alguém teve a mesma ideia do que nós,
mas recorreu a fogo real em vez de fumo. Contabilizei trinta ou mais corpos no
pátio. Esses pobres estupores saíram pela porta e janelas e foram dizimados
quando o fizeram. — Refletiu por uns momentos. — É a mesma tática que foi
utilizada em Crydee.
Nicholas sentiu os pelos das costas a eriçarem-se. — Tendes razão.
Desceram a encosta da colina, observando os pormenores da carnificina
consoante se aproximavam da estalagem. Passaram por cima do pequeno muro
e abriram caminho por entre o amontoado de corpos e destroços. Tuka
ajoelhou-se para inspecionar os mortos. — Encosi! — chamou. — São
membros de clãs!
Apontou para um homem que tinha uma cabeça de leão em prata numa tira
de couro que usava ao pescoço. Saltou rapidamente de corpo em corpo. — Este
homem ser do Clã Urso, e aquele ali do Clã Lobo — anunciou. — É uma
aliança, todos se devem ter voltado contra o Suserano.
Ghuda encaminhou-se para o canto mais longínquo do pátio, o mais próximo
que conseguiu junto do calor oriundo do edifício. — Nicholas, aqui! —
chamou.
Nicholas, assim como Calis, Amos e mais dois soldados, dirigiram-se
rapidamente para o local onde estava Ghuda. Lá, ele apontou para uma pilha de
corpos, alguns deles fumegantes devido ao fogo. — São estes os mercenários
de que vos falei.
— Maldição — vociferou Amos. — Quando falastes numa eventual traição,
sabíeis o que dizíeis. — Olhou em redor. — Alguém se deu a muito trabalho
para aborrecer toda a gente envolvida neste golpe.
Nicholas ajoelhou-se e tentou ver algo. Amos seguiu o seu olhar. — Deus
nos proteja! — exclamou.
— O que é que foi? — perguntou Marcus.
— Aquele elmo, ali, no homem atrás dos outros dois mortos.
Marcus olhou para lá. — O vermelho?
— Sim, esse mesmo.
— O que é que tem? — perguntou Marcus.
— Já vi iguais, embora da última vez fossem pretos.
— O meu pai já me falou deles — disse Nicholas. — Um elmo todo em
metal, tapando a cara, com um brasão de dragão e duas asas curvadas para
baixo para cobrir ambos os flancos, e tudo o resto.
— Ele disse-vos quem os usava? — perguntou Amos.
— Sim — respondeu Nicholas. — Disse. Os Exterminadores Negros de
Murmandamus.
— É o elmo dos Exterminadores Escarlates — informou Tuka.
— E o que sabeis em relação a eles? — inquiriu Nicholas.
O homenzinho fez um gesto teatral, uma proteção face ao mal. — São
homens muito maus. São uma irmandade de guerreiros e servem o Suserano da
Cidade do Rio da Serpente.
Nicholas deitou uma olhadela a Calis, Amos e Marcus. Embora parecesse
que se dirigia a todos, em geral, falou apenas para eles. — Vamos no trilho
certo — disse.
16

Rio

U
m homem tossiu.
Nicholas e os outros voltaram-se para o local de onde veio o
som e aproximaram-se rapidamente. Dois homens jaziam
atordoados encostados à parte exterior da parede e Ghuda ajudou dois dos
soldados a puxarem-nos para mais longe do fogo.
Um tinha um golpe na cabeça que sangrava copiosamente e o outro tinha
uma flecha de besta cravada no ombro.
O homem com a flecha no ombro estava inconsciente, mas o do
ferimento no escalpe começou a mexer-se. — Passai-me água — pediu
Ghuda.
Um dos soldados passou-lhe um cantil e Ghuda limpou o rosto do
homem. — Por todos os deuses! — exclamou Ghuda. — Se não é o homem
mais feio que alguma vez vi…
Cuspindo a água, o homem piscou os olhos e sacudiu a cabeça. — Ohhh
— disse, levando uma mão à têmpora. — Estais enganado. — Abriu de
novo os olhos e fitou todos um a um. — Também não sois propriamente o
meu ideal de beleza — disse, virado para Amos.
O homem tinha uma testa que mais parecia uma extrusão de granito.
Estava tapada por pelos escuros, uma sobrancelha que formava um único
traço sobre os olhos do homem – duas covas negras, afundadas bem abaixo
da cana do nariz e separadas por um nariz bolboso, que em tempos poderia
ter tido uma forma mas que de tantas vezes partido já não deixava entrever
vestígios do que fora no passado. Uma barba irregular cobria a maior parte
do maxilar, mas era notório que crescia de modo pugnaz, e os lábios do
homem tinham um aspeto estranho, como se tivessem sido tantas vezes
atingidos que o inchaço fosse permanente. A pele que conseguiram ver sob
a barba tinha marcas de varicela e cicatrizes e, à luz do fogo, era manchada
e sarapintada. Ele era, pensou Nicholas, o que Amos dissera: o homem mais
feio que alguma vez vira.
O seu companheiro sem sentidos, por seu lado, tinha tanto de belo como
o outro de feio. Cabelo escuro, um bigode muito bem aparado e uma
silhueta encantadora eram bem visíveis à luz do fogo.
Ghuda estendeu a mão ao homem feio para o ajudar a erguer-se. — O
que é que sucedeu? — perguntou.
O homem levou a mão à cabeça. — Todo o tipo de traições assassinas. —
Observou o grupo que o rodeava. — E não me parece que isso para vós seja
surpreendente, a ver pelo modo como estais armados.
Nicholas, vendo que todos os seus soldados permaneciam de armas
empunhadas, fez-lhes sinal para que as baixassem.
— Quem sois vós? — perguntou Marcus.
— Eu sou Prajichetas — anunciou o homem — e este é o meu amigo
Vajasiah. Podeis chamar-nos Praji e Vaja.
— Fazíeis parte deste grupo de mercenários? — perguntou Ghuda.
— Não, caso contrário já teríeis dado por isso — explicou. —
Andávamos à procura de transporte para subir o rio, rumo às guerras…
— Guerras? — questionou Nicholas.
— Quem é este? — perguntou Praji a Ghuda.
— É o Capitão.
— Ele? Não passa de um rapaz…
— Falai comigo — exigiu Nicholas.
— Ele é o Capitão — confirmou Harry.
Praji voltou-se para Ghuda. — Vou crer que é vosso filho, ou a vossa
mascote, ou o vosso…
Nicholas encostou a ponta da espada à garganta do homem. — Sou o
Capitão — disse, baixinho.
Praji fitou-o de alto a baixo, após o que, cautelosamente, afastou a ponta
da espada para o lado com a mão. — Seja como for, Capitão — disse,
dirigindo-se a Nicholas —, íamos subir o rio rumo às guerras…
— Que guerras? — interrompeu Amos.
O homem voltou-se bruscamente para mirar Amos e levou a mão à
cabeça. — Isto não foi nada boa ideia — disse, fechando os olhos. —
Alguém tem por aí uma bebida?
— Lamento, mas só temos água — respondeu Nicholas.
— Terá de dar para o gasto — disse Praji. Pegou no cantil de pele que lhe
passaram e bebeu imensa água. Anthony aproximou-se e examinou o amigo
dele, abrindo-lhe a túnica. — Não é nada grave — avaliou. — Tem uma
camisa de cota de malha por baixo da túnica. Suportou bem o impacto. —
Conseguiu retirar a flecha de besta do ombro do homem e estancou o
sangue com um trapo que tinha numa bolsa que preparara para fazer face às
consequências do ataque. — Vai sobreviver.
— Excelente — comentou Praji. — Já passámos por muito para que esse
sacana morresse sem mim.
— Faláveis de guerras — disse Marcus.
Prendendo o olhar no dele com um ar interrogativo, disse:
— Falava?
— Pretendíeis subir o rio — recordou Amos.
— E procurávamos transporte para uma povoação chamada Nadosa,
entre Lanada e Khaipur, no Vedra. Arranjámos boleia com um mercador de
lã que nos largou a uns quilómetros daqui e viemos a pé. Íamos seguir
viagem para as águas a montante do rio, a oeste – há sempre caravanas de
carroças a saírem de lá para Khaipur –, só que nos deparámos com este
bando de degoladores e rapazes dos clãs e, quando as bebidas começaram a
jorrar, juntámo-nos a eles. Alguém estava a pagar rodadas, e eu não sou
esquisito no que toca a cerveja à borla.
— Então, não acompanháveis este grupo? — inquiriu Nicholas.
— Se assim fosse — disse —, estaríamos ali. — Indicou os corpos
fumegantes junto à parede em chamas da estalagem.
— O que é que aconteceu? — perguntou Nicholas.
O homem suspirou. — Estávamos sentados e a beber com um bando de
crianças tolas e com alguns matricidas, e o tipo que ofereceu toda aquela
cerveja aproximou-se e segredou-nos que haveria trabalho para nós e que
nos deveríamos juntar aos outros soldados profissionais no exterior da
estalagem. Não gostámos do modo como aquilo soou, pelo que viemos cá
fora, mas afastámo-nos um pouco dos outros, mantendo o grosso do pessoal
entre nós e o tipo que nos chamou.
»De repente, ouviu-se uma gritaria e por todo o lado começaram a voar
flechas de bestas. O Vaja e eu saltámos por cima do muro e caímos mal. Vi-
o ser atingido e de repente ficou tudo escuro. — Franziu o sobrolho e enfiou
a mão dentro da túnica. Apalpou o interior e encontrou aquilo que
procurava, sacando de uma bolsa. — Ótimo — disse, ao abrir o cordão.
Retirou de lá um minúsculo pergaminho enrolado, com menos de oito
centímetros de largura, e um pedaço de madeira muito bem afiado. Lambeu
a ponta do pau, que, reparou Nicholas, fora escurecida, e desenrolou o
pequeno pergaminho. Fitando uma linha de gatafunhos, assentou a
ferramenta de escrita sobre o pergaminho. — Suserano escreve-se com uma
ou duas palavras? — perguntou.

A pesar de a maioria dos mortos estarem já meio carbonizados, não


havia por perto madeira suficiente para uma pira, pelo que Nicholas
ordenou que fossem enterrados. Já era meio-dia quando terminaram e
trouxeram as carroças. O homem chamado Vaja recobrou os sentidos uma
hora depois de o terem encontrado e corroborou a história de Praji.
Deixando os dois homens feridos a repousar, Nicholas levou Calis,
Marcus e Harry para inspecionar a zona. Quem quer que tivesse matado os
mercenários e os homens dos clãs, tinha partido sem deixar rasto.
Quando regressaram, Nakor saudou-os com a novidade de que a maior
parte da despensa subterrânea de que Tuka falara sobrevivera ao incêndio.
Nicholas liderou um grupo de homens por entre os restos carbonizados da
estalagem e encontrou o alçapão. Apesar de enegrecido, permanecia intacto.
O Príncipe desceu para a divisão e foi seguido por Tuka, Ghuda, Nakor e
Marcus.
Harry passou tochas lá para baixo para Marcus e depois juntou-se a eles.
Nicholas voltou-se e quase caiu sobre o corpo de um homem. Não estava
queimado, mas tinha o rosto contorcido numa máscara de sofrimento. Tuka
fitou-o. — Shingazi — disse. — Deve ter tentado esconder-se cá em baixo
quando se deu o incêndio.
Nakor observou-o. — Acho que terá morrido devido ao fumo — disse.
— Nada agradável.
— Há alguma forma agradável de morrer? — questionou Harry.
Nakor sorriu abertamente. — Várias. Há uma droga que vos mata, mas
nos últimos momentos de vida experimentareis um êxtase que está para lá
do que podeis imaginar, ou então uma mulher particularmente bela…
— Basta — vociferou Nicholas. — Vede o que encontrais de útil aqui em
baixo.
Procuraram e de repente Marcus disse:
— Vede isto!
Nicholas atravessou para o lado da cave onde o seu primo o aguardava e
deparou-se lá com um arsenal. — Parece que o nosso anfitrião estava
pronto para equipar um exército.
Nicholas viu pilhas de cotas de malha, escudos sem brasão, toda a sorte
de espadas, bestas, arcos de diversos tamanhos, flechas e facas. — Fazei
descer uns quantos homens e passai o material lá para cima — ordenou
Nicholas.
Ghuda abriu um barril à força e enfiou a mão lá dentro. Retirou de lá
alguma carne seca, que provou. — Está um bocado fumada, mas come-se.
Nicholas deu a volta. — Vamos levar tudo para cima para vermos o que
temos — disse.
Regressou ao alçapão e Harry empurrou-o para o ajudar a subir. Quando
abandonava a estalagem carbonizada, ouviu gritos provenientes das
carroças. Deitando os olhos ao céu, praguejou. Era a voz da Ranjana.
Quando chegou às carroças, Nicholas viu a jovem nobre defronte de
Amos, com as mãos nas ancas numa pose desafiadora, enquanto guinchava
como um gato magoado. — O que quereis dizer com isso, nada de barcos?!
Eu deveria chegar à Cidade do Rio da Serpente daqui a duas semanas…
— O que é que se passa aqui? — indagou Nicholas.
Ali ao lado estava um guarda, a tratar um impressionante conjunto de
arranhões na face. — Tentei mantê-la na carroça. Alte… ah, Capitão, mas
ela ouviu alguém dizer que a estalagem tinha sido destruída… — começou
a dizer.
— E vim ver com os meus próprios olhos a situação em que vós, seus
imbecis, me envolveram — completou ela.
— O que nós fizemos — disse Nicholas, com a paciência a esgotar-se —
foi salvar-vos a vida, e a vossa virgindade, e a vossa saúde, e ponde fim a
esse disparate… E agora imediatamente para a vossa carroça! — A última
frase foi um intenso grito de raiva.
A rapariga virou costas de modo desafiador e saiu dali em passadas
largas, conseguindo manter o queixo empinado sem dar um passo em falso.
Quando chegou à traseira da segunda carroça, virou-se para trás. — Quando
o Suserano souber o que tive de suportar nas mãos de mercenários porcos,
grosseiros e bárbaros, todos vós ireis desejar ter nascido escravos! — atirou.
Nicholas ficou a olhar para ela e depois voltou-se para Amos. — Porcos?
Amos sorriu. — Não sois propriamente um raminho de flores. Nenhum
de nós o é.
Nicholas observou a companhia e percebeu que todos tinham um ar sujo
e abominável. Passou a mão pelo queixo e verificou que a barba que
aparara no Raptor não passava agora de um monte de pelos irregulares.
— Bem, nesse caso — disse, olhando em volta —, acho que está na hora
de nos banharmos.
Amos sorriu. — Se assim o dizeis, Capitão.
Resmungando, irritado, passou abruptamente por Amos e gritou para os
homens que carregavam os artigos encontrados na estalagem. — Descobri
se há lá em baixo algum sabão.

F oi encontrado na cave um suprimento de roupa, assim como outros


bens, e a maior parte das vestes esfarrapadas e imundas deles foram
substituídas. Era um estranho conjunto de artigos, desde calças e túnicas
simples de homem, a algumas peças de roupa de bom corte desenhadas com
esmero. Ghuda e Tuka suspeitaram que os artigos mais caros eram coisas
que teriam sido deixadas para trás ou usadas como garantia em troca de
alojamento e embarque por quem estivesse sem fundos. Pelo aspeto do
material, ou Shingazi era alguém fácil de enganar ou tinha um gosto
estranho em termos de vestuário.
Nicholas ordenou a lavagem da roupa que fora descoberta para a libertar
do cheiro forte a fumo e depois que os homens se banhassem antes de
trocarem de vestuário. Com o calor do fim da tarde, as roupas secaram
rapidamente em cordas atadas entre as carroças. Quando o Sol se pôs, já
todos os homens tinham tomado banho, e os mais dispostos a isso até se
barbearam ou apararam a barba.
Algo que agradou a Marcus foi constatar que entre as novas armas se
encontrava mais um arco. Quando os homens ficaram limpos e prontos,
Amos e Harry aproximaram-se transportando uma caixa grande de madeira
ornamentada a ferro, que estava chamuscada. — Vede o que encontrámos
— disse Amos.
Abriram-na: estava cheia de pequenas bolsas. Nicholas abriu uma delas e
descobriu que continha pedras preciosas. Outras estavam recheadas de
joias, prata e ouro. — Estamos ricos — comentou Harry, espantado.
Nicholas pegou num dos sacos de ouro e levou-o até junto de Praji e
Vaja, que descansavam à sombra de uma carroça. Ambos já tinham comido
e estavam a fazer uma sesta. Praji levantou-se quando Nicholas se
aproximou, e este passou-lhe o saco. — É para vós.
Praji escutou o tilintar das moedas ao sopesar o saco. — A troco de quê?
— perguntou.
— Dão-me jeito dois homens que conheçam bem os meandros da Cidade
do Rio da Serpente. — Apontou para o saco. — Guardai isso, pelo vosso
esforço e para vos ajudar a seguir caminho, seja qual for a vossa decisão,
mas nós somos uma nova companhia de mercenários e além daquele
pequeno carroceiro, não temos mais ninguém que se saiba orientar por lá. E
dá-nos sempre jeito dois homens que foram suficientemente espertos para
escapar à morte, ao contrário de todos os outros em volta.
Praji olhou para baixo para o seu amigo, que ainda estava meio a dormir.
— Bem, nestas condições, ainda não podemos viajar a pé; o Vaja já estará
ótimo quando chegarmos de carroça à cidade — disse. — Mas há uma
questão…
— Qual?
— Sois a favor ou contra o Suserano?
O semblante do homem revelou que se tratava de uma questão
importante. — Nem uma coisa nem outra — esclareceu Nicholas —, os
nossos assuntos são outros. Mas dada a presença daquele elmo dos
Exterminadores Escarlates, penso que poderemos dar por nós no outro lado
da barricada assim que se iniciarem as hostilidades.
Praji cofiou a sua barba aparada. — Bem, acompanhar-vos-emos —
anunciou —, e quando chegarmos à cidade, já nos conheceremos
mutuamente melhor. Não estamos muito dispostos a assumir compromissos
até vermos melhor de que cepa sois feito. Parece-vos justo?
— Parece — concordou Nicholas.
Praji sorriu, o que foi uma visão assustadora, e disse:
— Agora que o Suserano está na minha lista, não posso andar por aí a
ajudar quem está com ele, compreendeis?
— Lista? — questionou Harry.
— Eu tenho uma lista, estais a ver, e quando alguém me faz mal, coloco
lá o seu nome caso não consiga resolver desde logo a questão. Não pretendo
afirmar que conseguirei ajustar contas com toda a gente que lá esteja, mas
nunca me esqueço.
Harry ia comentar quando de repente apareceu Calis, que entrou a correr
no acampamento vindo de sul. Tinha andado todo o dia a inspecionar a
zona. — Temos companhia — anunciou, ao aproximar-se de Nicholas.
— Onde? — perguntou Nicholas.
— A uns sete ou oito quilómetros daqui pelo rio abaixo. Uma companhia
de cavaleiros, vinte e dois, pela minha contagem. Estão armados até aos
dentes e sabem como posicionar as sentinelas. São tropas regulares com
túnicas pretas e trazem um estandarte, uma bandeira preta com uma
serpente dourada. Parecem estar a desmontar acampamento e a preparar-se
para cavalgar quando o Sol se puser.
Praji estava encostado à carroça. — São tropas do Suserano. Estão
demasiado longe da cidade para serem tropas regulares.
Nicholas fez sinal a Ghuda e aos outros para que se aproximassem e
quando partilhou as informações trazidas por Calis, voltou-se para o
mercenário. — O que vos parece?
Ghuda encolheu os ombros. — Já vi suficientes traições nojentas na
minha vida, metade das quais no último par de dias; penso que estarão aí
para encontrar as carroças, matar os «culpados», resgatar a princesa e
cavalgar triunfalmente de regresso a casa.
— Estais a querer dizer que tudo isto não passou de uma espécie de
encenação? — perguntou Praji.
— Se vos dissesse que as carroças foram atacadas por homens de clãs, o
que diríeis? — questionou Nicholas.
Um brilho no olhar do homem revelou um rápido entendimento. — Diria
que os clãs estariam a tentar criar graves problemas ao tratado do Suserano
com as alianças de mercadores do Norte. O que não surpreenderia ninguém.
O que surpreenderia todos seria eles serem suficientemente estúpidos para o
fazerem à vista de toda a gente, deixando testemunhas.
— E o que diríeis se vos contassem que todos os homens dos clãs foram
encontrados mortos?
— É de ficar de pulga atrás da orelha — respondeu Praji. — Depende de
quem os terá matado. Caso se tenha tratado do Suserano, eles… —
Interrompeu-se. — Se pudesse ser feito de modo a parecer uma espécie de
desentendimento, iria deixar os clãs desavindos.
— Até que ponto o Suserano se mantém firme no poder? — quis saber
Ghuda.
Praji encolheu os ombros. — Há vinte anos que se fala de insurreição.
Ele ainda lá está.
— Bem, enfiámo-nos numa luta que não é nossa, mas nenhuma das
fações quererá saber disso — referiu Nicholas —, pelo que o melhor é
prepararmo-nos para a luta. — Olhou em redor antes de retomar a palavra.
— Se esses soldados são mais uma peça da conspiração, estão à espera de
encontrar dezasseis homens dos clãs com estas carroças, pelo que são
dezasseis homens que quero a acompanhar as carroças. Levai-as de volta
para junto da crista. — Apontou para Calis. — Ide de novo para sul e
quando virdes os cavaleiros a aproximar-se, disparai uma seta para o pátio
para nos alertar; conseguis fazê-lo sem atingir aqui ninguém?
Calis brindou-o com um olhar que indicava que nem teria sido necessário
perguntar. Nicholas apontou para o local onde o queria colocado, e a seguir
dirigiu-se a Ghuda. — Quero que permaneceis aqui comigo, com alguns
homens deitados aí pelo pátio. Os tais soldados estarão à espera de ver
corpos por aí espalhados, e não vamos desapontá-los. Quando chegarem às
carroças, estaremos nas costas deles. — Ghuda aquiesceu. — Amos, ficais
responsável pelas carroças. Assim que estiverdes para lá da crista, acendei
algumas fogueiras na encosta de modo a que os cavaleiros vejam luz no
céu, mas não o fogo. E instalai-as de modo a que os cavaleiros as vejam ao
subirem a crista. Quero-os alinhados contra as chamas quando surgirmos
por detrás deles. — Amos, sorridente, fez-lhe a continência e com gestos
ordenou que as carroças fossem atreladas.
— Harry — prosseguiu Nicholas —, leva as raparigas pelo rio abaixo,
por entre a erva alta, e mantém-nas sossegadas e fora do alcance da vista.
— E eu? — quis saber Brisa.
— Vai com o Harry — indicou Nicholas. — Se a Ranjana fizer um
barulho que seja, podes matá-la.
Brisa sorriu abertamente. — Obrigada.
Soldados e marinheiros entraram de imediato em ação e Nicholas falou
então com Praji. — Se ides ajudar, é melhor que afasteis o vosso amigo do
palco de lutas. Não parece estar pronto a combater.
— Ele não está, mas eu estou — salientou Praji. — Vou colocá-lo numa
das carroças e cavalgar aqui com o vosso amigo feio.
Amos olhou por cima do ombro e fingiu um olhar ofendido. — Feio?
As provisões que tinham sido levadas para o pátio foram rapidamente
ocultadas da vista, e as carroças levadas para longe. Quando o Sol estava a
sumir-se para lá do horizonte, Nicholas já tinha toda a gente a postos.
Optou por ser ele próprio a comandar os homens do pátio e ficou deitado
à espera do sinal. Com o decorrer do tempo, constatou que o pé esquerdo
latejava um pouco. Ficou mais irritado do que dorido, e afastou aquilo da
mente dedicando-se a rever o plano de ataque, à procura de alguma lacuna.
Perdeu-se de tal forma nos seus pensamentos que ficou espantado quando
uma única seta aterrou no centro do pátio com um estampido. Pôs-se de
imediato alerta. Já se ouvia o som de cavaleiros e apertou a sua espada com
força.
O som dos cascos dos cavalos a embaterem no solo tornou-se cada vez
mais forte e então a companhia de soldados cavalgou para a clareira a sul da
estalagem. Um homem praguejou. — Onde é que estão as malditas
carroças?
— Não sei, Capitão. Já cá deveriam estar — disse uma outra voz.
— Olhai, Capitão, vê-se luz no céu — alertou uma terceira voz. — Há
fogueiras do outro lado daquela crista.
— Aqueles estupores calaceiros não conseguiram fazer mais quinhentos
metros! — exclamou a voz que Nicholas identificou como pertencendo ao
homem que o segundo falante nomeara como «Capitão». — Bem, faremos
o que nos trouxe até aqui. — Ouviu armas a serem desembainhadas, ao que
se seguiu algo entre um rugido e um grito quando alguém impeliu o seu
cavalo para a frente.
Nicholas aguardou apenas um momento para que eles deixassem para
trás a estalagem e depois levantou-se. Em voz baixa, anunciou:
— Agora!
Os seus homens levantaram-se de pronto e desataram a correr, e os que
estavam armados com arcos posicionaram-se na estrada. Tal como ele
esperara, quando os cavaleiros subiram a elevação ficaram nitidamente
visíveis, em contraste com o brilho das fogueiras.
— Agora! — gritou Nicholas, e os arqueiros lançaram um ataque com
flechas. Os homens de Amos fizeram o mesmo do outro lado, e antes de se
aperceberem do que havia sucedido, metade dos cavaleiros já estavam a
tombar das selas.
Os que não dispunham de arcos gritaram e atacaram, e os cavaleiros,
crentes de que iriam encontrar dezasseis homens provavelmente bêbedos e
inexperientes com as carroças, deram por si a ser atacados por trinta
soldados e marinheiros com experiência de combate.
Um dos cavaleiros tentou ripostar pela colina abaixo, mas foi derrubado
da sela por uma seta comprida. Nicholas deitou uma olhadela para trás e viu
Calis a correr, engatando mais uma seta.
O capitão na crista ordenou uma carga e os nove restantes cavaleiros
cavalgaram impetuosamente.
Dois foram derrubados das suas montadas pelas flechas, mas os outros
cavalgaram abaixados junto aos pescoços dos seus animais. — Abatei os
cavalos — gritou Nicholas. — Que ninguém escape.
O som de aço contra aço revelou a Nicholas que alguns dos homens
tombados não tinham morrido e que se levantaram prontos a combater. O
primeiro cavaleiro aproximou-se rapidamente dos que estavam à frente de
Nicholas, e ele preparou-se para suster o ataque. Treinar contra um
cavaleiro sabedor de que o alvo era o filho do seu Príncipe é uma coisa. Isto
era bem diferente, Nicholas não tinha dúvidas.
Sentiu o suor causado pelo nervosismo a escorrer-lhe pelas costas e
percebeu que o cabo da sua espada estava a ficar pegajoso. Fletiu os joelhos
e, quando o cavaleiro em investida se aproximou, elevou bem a sua espada,
numa postura de cavalaria.
Nicholas tinha a noção de que enfrentar a carga de um cavalo e de um
cavaleiro apenas com um sabre era uma loucura. Caso dispusesse de um
montante como Ghuda, ou até de uma pesada cimitarra, poderia arriscar a
cortar as patas do cavalo por baixo enquanto se desviasse do ataque do
cavaleiro. Mas com um sabre, teria de tentar assustar o corcel ou levá-lo a
mudar de rumo, enquanto se protegia do animal e do cavaleiro.
Quando o cavaleiro se aproximou rapidamente dele, o cavalo relinchou e
as suas quatro patas cederam. O cavaleiro foi projetado para a frente; como
se de um acrobata experiente se tratasse, tentou aterrar sobre o ombro e
rebolar. Alguém na escuridão alvejara o cavalo ou atingira-o com uma
lâmina.
O cavaleiro caiu pesadamente no solo e soltou um bem audível resmungo
de dor, mas tentou de pronto pôr-se de novo em pé. Nicholas atacou de
imediato. Quando o homem se levantava hesitantemente, Nicholas lançou
os seus ombros contra ele. O homem urrou de dor e Nicholas presumiu que
ele tivesse partido algo na queda. Golpeando com a sua espada, Nicholas
deu uma estocada no braço do homem e a arma do soldado caiu-lhe dos
dedos frouxos. Cambaleou para trás e virou-se para fugir. Dois dos homens
de Nicholas correram atrás dele e agarraram-no, lançando-o ao chão, onde
rapidamente lhe ataram as mãos. Nicholas havia ordenado que, se possível,
deveriam ser feitos prisioneiros.
Olhou em redor e verificou que o combate terminara.

N icholas ordenou que montassem uma fogueira e depois foi verificar


como estavam todos os seus homens. Ficou extremamente
surpreendido ao verificar que nenhum deles sofrera nada mais grave do que
um corte superficial no braço, e o homem a quem aconteceu isto pareceu ter
ficado envergonhado por ser o único atingido. Os restantes ficaram apenas
com pisaduras, cãibras ou entorses.
Nakor inspecionou os ferimentos dos dois prisioneiros e relatou o estado
deles a Nicholas. — O Capitão é capaz de sobreviver, embora o ferimento
no braço seja grave e tenha costelas partidas, mas o outro de certeza que
não. Tem uma ferida no estômago e, disse-me ele, comeu antes do combate.
É um soldado experiente e solicitou-me uma morte rápida.
Nicholas encolheu os ombros e viu que Ghuda assentia com a cabeça. —
Um ferimento na barriga é uma forma terrível de morrer.
— Podeis fazer algo? — perguntou Nicholas a Anthony.
— Se tivesse as minhas ervas e os outros curativos, talvez, mas ainda
assim, seria complicado. Um sacerdote curandeiro poderia salvá-lo com
orações e magia, mas aqui, com o que tenho à mão, não é possível. Não há
nada que eu possa fazer por ele.
Amos agarrou Nicholas pelo cotovelo e levou-o para onde os outros não
os pudessem ouvir. — Nicky — disse, em voz baixa —, não vos disse nada
desde que assumistes o comando, porque na maior parte das vezes tomastes
as decisões certas, e os vossos erros não foram daqueles que seriam
evitáveis por um líder experiente. Mas agora tendes de compreender
algumas das escolhas mais difíceis inerentes ao vosso posto.
— Pretendeis dizer que devo deixar que o Ghuda mate o prisioneiro?
— Não, quero dizer que tereis de matar ambos.
— Crowe — disse Nicholas, resignado.
— O quê? — perguntou Amos.
— É uma história que o meu pai me contou, da cavalgada para norte
quando a Irmandade da Senda das Trevas invadiu o Reino, antes de vos
encontrar e ao Guy du Bas-Tyra em Armengar. Estavam a ser seguidos por
um grupo de Exterminadores Negros. — Cerrou os olhos. — Um homem
chamado Morgan Crowe, um renegado, espiou-os, e o meu pai teve de o
mandar matar. — Abanou a cabeça. — Disse que de todos os homens que
mandara punir, foi o caso mais difícil. — Prendeu o olhar no de Amos antes
de prosseguir. — Aqui nem posso fingir que cumpro a lei, Amos. Não
estamos no Reino e aquele homem só tentou matar-me por ter recebido essa
ordem por parte do seu senhor. Não é um traidor face ao meu Rei tal como
fora o Crowe.
— Compreendo — disse Amos —, mas aqui não há leis, exceto as que
estabelecemos para nós próprios. Sois o capitão de uma companhia num
mar de erva e deveis agir como se se tratassem de piratas a abordar o vosso
barco para uma pilhagem. Tendes de ordenar a morte deles assim que
sacardes toda a informação que for possível.
Nicholas fitou friamente os olhos do homem que iria ser, se tudo corresse
bem, o seu avô por afinidade. Por fim, inspirou profundamente e assentiu
firmemente com a cabeça.
Regressando para junto do círculo que se formara em volta da fogueira,
apontou com a cabeça na direção de Ghuda, que se escapuliu. — Trazei
aqui o Capitão — ordenou.
Dois homens foram buscar o capitão ferido, que gemeu quando o
libertaram para que se sentasse aos pés de Nicholas. — Como é que vos
chamais? — exigiu saber Nicholas.
— Dubas Nebu — respondeu. — Capitão da Segunda Companhia da
Guarda Pessoal do Esplendoroso.
Praji aproximara-se vagarosamente e exclamou:
— Raios, é a guarda privada do Suserano.
— O que é que isso significa? — quis saber Nicholas.
Praji coçou a cara. — Ou o Suserano está envolvido nisto tudo ou há um
traidor num alto cargo do seu próprio governo — explicou.
Praji baixou-se e abriu a túnica do homem, o que provocou um grito de
dor. — Afastai de mim este animal! — vociferou o Capitão.
Praji encontrou algo junto ao pescoço dele e puxou-o. — Olhai para isto
— disse, passando-o a Nicholas. Ele observou o talismã. — O símbolo de
um clã — acrescentou Praji, entretanto. A seguir, não escondeu estar algo
baralhado. — Mas nunca tinha visto um igual.
— Eu já — disse Nicholas. O símbolo tinha duas serpentes, num padrão
idêntico ao do seu próprio anel.
Amos ia dizer algo, mas Nicholas interrompeu-o. — Ide todos embora e
deixai-me a sós com este homem.
Amos ia de novo tentar dizer algo, mas deteve-se e assentiu com a
cabeça. Fez sinal aos outros para que o seguissem, e quando Nicholas ficou
a sós com o ferido, ajoelhou-se em frente a ele. — Seu louco — sussurrou
no seu melhor tom conspiratório —, quais são as vossas ordens?
Os olhos do Capitão Dubas estavam arregalados devido ao ferimento e
tinha o rosto encharcado em suor, mas pareceu falar com lucidez. — Não
faço ideia do que estais para aí a dizer, renegado — respondeu.
Nicholas deitou a mão à bolsa que trazia no cinto, tirou de lá o anel que
Calis lhes trouxera de Elvandar e mostrou-o ao homem. — Só uso isto
quando necessito de me identificar! — exclamou Nicholas. — Agora, que
louco vos enviou aqui? Era suposto matar os homens do clã e levar a
Ranjana até à cidade.
— Mas… — Dubas hesitou. — O Dahakon disse-me que… não iria
haver outra companhia.
Nicholas sacou da adaga e encostou-a ao peito do homem. — Devia
matar-vos aqui e agora, mas alguém mais acima lançou aqui uma grande
confusão.
— Quem sois vós? — perguntou o Capitão.
— Quais são as vossas ordens?
A dor empalideceu ainda mais o rosto de Dubas. — Eu deveria apanhar
os que levavam as carroças. Os Exterminadores Escarlates já vão a caminho
com os barcos… não percebo…
— E os prisioneiros? — perguntou Nicholas.
— Não era para haver prisioneiros — informou Dubas. — Eu deveria
matar as raparigas e levar os corpos comigo.
— Não, os outros prisioneiros. Do navio?
— Do navio…? — perguntou Dubas. De repente, apercebeu-se de algo.
— Sabeis do navio! — Antes de Nicholas conseguir reagir, o Capitão
mergulhou para a frente, atirando-se para cima de Nicholas. Soltou um grito
débil quando a lâmina de Nicholas se cravou no seu peito com a força do
seu próprio peso.
Apercebendo-se da luta a uns metros de distância, Amos e os outros
regressaram rapidamente. — O que é que aconteceu? — perguntou Amos
enquanto retirava o morto de cima de Nicholas.
— Ele matou-se — disse Nicholas, num tom amargo. — Eu estava a ser
dissimulado e a jogar a minha cartada.
— Conseguiste saber algo? — perguntou Harry, ajudando o amigo a
erguer-se.
— Saquei um nome.
— Que nome? — perguntou Praji.
— Dahakon.
— Oh, isso é maravilhoso — disse Praji. — Tendes cá um belo lote de
inimigos, Capitão.
— Quem é o Dahakon? — questionou Marcus.
— É o Grão-Conselheiro do Suserano, e o estupor mais malvado das
Terras de Leste, das Terras dos Rios, que diabo, do mundo inteiro.
— E tanto quanto vejo, é um traidor — afirmou Nicholas.
— Não pode ser — disse Praji.
— Porque não? — perguntou Harry.
— Porque se trata do homem que manteve o Suserano no poder desde
que este assumiu o controlo da cidade, há vinte anos. É o homem que é
verdadeiramente temido na cidade.
— Porquê? — perguntou Marcus.
— É um mago.
— E isso por aqui tem alguma coisa de especial? — perguntou Nicholas.
— Ah! — disse Praji. — Obviamente que sois de longe como o raio. —
A seguir, falou num tom mais sério. — Capitão, só há um mago nas Terras
de Leste. É o Dahakon. Havia uns quantos aqui e acolá, mas qualquer mago
que seja avistado na cidade tem morte certa. E não é uma morte bonita, ao
que consta: ele come-os.
Nicholas deitou uma olhadela a Nakor e a Anthony e abanou
ligeiramente a cabeça. Praji prosseguiu: — Diz-se que se trata do homem
que criou os Exterminadores Escarlates, e que eles lhe obedecem, não ao
Suserano. Ele fala com os mortos e tem por amante uma sugadora de almas.
É ela que o mantém vivo; ele supostamente já terá centenas de anos.
Nakor fez um sinal. — Muito mau. A necromancia é a pior prática que
existe.
Anthony assentiu e Nicholas percebeu que ele estava abalado. — Não
temos magos entre nós — disse enfaticamente —, por isso não precisamos
de nos preocupar.
— Isso é bom — disse Praji. — Não, o Dahakon não pode ser o traidor;
ele pode afastar o Suserano assim que o deseje.
Nicholas suspirou. — Bem, ficando aqui é que nunca vamos descobrir
quem estará por detrás desta conspiração. Qual é a melhor forma de chegar
à cidade?
— Por barco — esclareceu Praji. — Mas com este lugar em ruínas, nunca
encontraremos uma caravana fluvial que atraque; acharão que fomos nós os
responsáveis pelo serviço, e se os jeshandi passarem por aqui em breve,
tereis de ser rápidos a explicar-vos antes que vos enfiem num espeto numa
fogueira; quando em tempos entregaram esta terra ao pai do Shingazi,
tomaram esta pequena estalagem sob sua proteção.
Olhou em redor, como se só pelo facto de proferir o nome dos nómadas,
pudesse fazê-los aparecer. — É melhor rumarmos a sul, percorrendo a
estrada que ladeia o rio. Há uma aldeia a cinco dias de distância e barcos
que lá ancoram de tempos a tempos. Se pelo caminho não apanharmos
boleia de um barco, poderemos chegar à cidade num mês ou dois.
Nicholas não abriu a boca. Um mês seria demasiado tarde.

A bigail gritou: — Afastai-vos de mim! — Esperneou e a coisa afastou-


se.
— Não me parece que vos vá fazer mal — disse Margaret.
— Não quero saber — disse Abigail, furiosa. — São nojentas.
As criaturas a que ela se referia tinham forma humana, mas em vez de
pele, estavam cobertas por escamas verdes. Uma ampla sobrancelha
salientava-se na testa e uns enormes olhos pretos de réptil destacavam-se
num rosto inexpressivo. Os dentes eram estranhos, não tão afiados como os
de um réptil, mas também não tão regulares como os da maioria dos
humanos. Se havia distinção sexual entre as criaturas, não havia sinais
exteriores que o indicassem; o peito era liso e sem mamilos e os genitais
pareciam lisos. Margaret não sabia o que eram aquelas criaturas, mas sabia
que tinham algum vínculo com a que ocupara o camarote junto ao delas no
navio preto.
As raparigas tinham sido levadas do navio num barco grande, a remos,
até às docas por uma tripulação de homens com túnicas e calças pretas e
capuzes vermelhos. Em vez de terem sido levadas para uma gaiola de
escravos, como Margaret achara que iria acontecer, as raparigas foram
enfiadas numa caravana de carroças e transportadas para fora da cidade,
para uma grande herdade cercada por muros altos. Ali, foram encaminhadas
para os quartos que agora ocupavam, e Arjuna Svadjian retomou os
interrogatórios. Margaret convencera-se por fim de que havia um padrão
nas suas perguntas aparentemente aleatórias, mas não conseguira perceber
qual. Compreendera que muitas das questões que colocava serviam para
disfarçar o objetivo do interrogatório, mas os modos dele e a seleção de
assuntos tornavam difícil adivinhar do que se tratava. Nunca mais haviam
visto a mulher misteriosa que ordenara o assassínio da rapariga para
demonstrar que a vida dos seus conterrâneos dependia da colaboração delas.
Margaret chegara a perguntar por ela a Arjuna, mas ele ignorara-a e
colocara outra questão.
Pedir a Abigail que a ajudasse a descobrir qual era o objetivo dele
ajudara a rapariga a sair de mais uma fase de desespero. Agora, estava
zangada e parecera disposta a ajudar Margaret em mais uma tentativa de
fuga; Margaret voltara a afirmar a sua disposição para fugir assim que
possível.
A rotina delas tornara-se previsível. Era-lhes facultada privacidade,
exceto quando Arjuna aparecia para os seus interrogatórios. O pequeno-
almoço, o almoço e o jantar eram servidos por criados que se recusavam a
falar. Na parte da tarde, era-lhes permitido passar umas horas num jardim
sob um toldo fino transparente que as protegia do brilho intenso do Sol.
Mas depois as coisas mudaram. Naquela manhã, em vez de aparecer
Arjuna para as interrogar, entraram no quarto duas criaturas. Abigail fugiu
para o canto mais distante, enquanto Margaret se manteve de pé pronta a
defender-se com uma cadeira. As duas criaturas abaixaram-se e ficaram por
momentos a olhar, cada uma delas observando uma das raparigas.
Abigail regressou finalmente à sua cama, onde se sentou, e durante uma
hora uma das criaturas ficou sentada a olhar para ela. E depois tentou tocar-
lhe.
— Já alguma vez ouvistes falar de uma coisa assim? — perguntou
Margaret.
— Não — respondeu Abigail. — São alguma espécie de demónio.
Margaret observou aquela que estava a olhar fixamente para si. — Não
me parece. Não há nada de mágico nelas. Mas a pele delas parece-se com a
mão que vi daquela vez que olhei pela janela do navio.
A porta abriu-se e os criados trouxeram a refeição da manhã. As
raparigas não estavam com grande apetite, mas tinham a noção de que se
não comessem, acabariam por ser forçadas a fazê-lo. Enquanto comiam,
pareceu crescer o interesse das duas criaturas, que tentaram aproximar-se.
Abigail afastou uma atirando-lhe um prato, enquanto Margaret se limitou a
ignorar a outra.
Arjuna apareceu depois da refeição e antes de poder falar, levou com os
gritos de Margaret. — O que são estas criaturas?
Ele respondeu no seu tom invariavelmente tranquilo. — Estas? São
inofensivas. Servem para vos fazer companhia.
— Pois bem, não as quero aqui! — afirmou Abigail com veemência. —
Levai-as daqui.
— Elas não irão magoar-vos. Ficam — limitou-se a dizer Arjuna. Puxou
de uma cadeira. — Muito bem, o que podeis dizer-me sobre a lenda de
Sarth?
Margaret olhou para a criatura que a fitava e por um momento algo
brilhou no olhar morto dela, revelando inteligência. Sentiu um arrepio a
percorrê-la, uma e outra vez.

O s barcos avançaram vagarosamente pelo rio abaixo. Nicholas sentou-


se na coberta da proa do que seguia na dianteira, uma coisa pesada
com talabardões altos, uma espécie de barcaça, com uma vela que
permanecia por desfraldar, pois navegavam ao sabor das correntes do Rio
da Serpente rumo ao seu destino. Dois remos compridos faziam força
indolentemente contra a corrente, levando-os a navegar mais rápido do que
a água, o suficiente para que o leme tivesse algum uso. Já seguiam a bordo
dos barcos há uma semana e em breve chegariam à Cidade do Rio da
Serpente.
Nicholas analisou de novo a situação em que se encontravam. Entre o
que tinham resgatado do Pouso de Shingazi e o tesouro, a Companhia de
Nicholas, como agora se chamavam a eles próprios, estava bem apetrechada
e relativamente bem de finanças. Tinham descido junto ao rio até à aldeia
de que Praji falara, e descansado lá.
De início, os aldeões fugiram aterrorizados, crendo tratar-se de bandidos,
mas Nicholas aguardou calmamente com as carroças durante um dia até que
um dos homens mais corajosos se aventurou a sair dos bosques adjacentes
para falar com ele. Bastaram umas quantas palavras amáveis e uma moeda
de ouro para convencer o homem de que não iam roubar nada, o que
poderiam ter feito quando os aldeões estavam escondidos.
Os aldeões saíram dos seus esconderijos e receberam a Companhia em
festa durante mais de uma semana, e os feridos de Nicholas recuperaram.
Nicholas detestava perder tempo, mas concordara que toda a gente
necessitava de descansar antes de tentarem rumar a sul, de carroça. E a
aldeia era o lugar mais lógico para chamar qualquer barco que passasse no
rio. Durante esse tempo, o companheiro de Praji, Vaja, recuperou o
suficiente para se juntar às conversas com os outros. Nicholas veio a
constatar que se tratava de um homem presunçoso, orgulhoso do seu bom
aspeto e do seu cabelo encaracolado. As mulheres mais jovens da aldeia
contribuíram para que ele se tornasse ainda mais convencido, obsequiando-
o com todas as atenções, levando-lhe água, fruta fresca e pão com mel
durante o dia e, à noite, suspeitou Nicholas, brindando-o com regalias mais
íntimas. Nicholas também descobriu que o discurso à nobre de Vaja não
passava de uma vaidade e que, para contrabalançar, ele não devia muito à
inteligência. Praji pareceu ser o cérebro do par, mas agradava-lhe que os
outros pensassem que quem o era se tratava na realidade do mais
carismático Vaja.
Enquanto os homens recobravam forças, Nicholas recebeu umas breves
lições de Ghuda quanto à distribuição de tarefas dos homens no seio de uma
Companhia. Se Praji e Vaja permanecessem com eles, seriam trinta e cinco
soldados e Brisa. Os marinheiros resmungaram com os treinos, mas os
soldados escarneceram deles sem piedade até ficarem suficientemente
treinados para se aguentarem nas simulações de combate. Cada um dos
homens foi submetido a treinos incessantes de esgrima e arco, até todos se
revelarem capazes de usar as armas, mesmo que de um modo muito básico.
Tendo em conta o que disseram Praji e Tuka, trinta e cinco era um número
reduzido para uma Companhia com um mínimo de reputação – algumas das
maiores chegavam a ter seiscentos elementos – mas era o suficiente para se
fazerem passar por um grupo credível de mercenários.
No final da semana, surgiu à vista uma coluna de barcos e Praji içou uma
bandeira branca, sinal de que pretendiam parlamentar. O barco da frente
aproximou-se o suficiente para acostar, para que Nicholas e o capitão da
coluna pudessem negociar. Após quase dez minutos de gritaria por cima da
água, Nicholas teve de enviar alguém a nadar para entregar ouro ao homem.
Nicholas optou por enviar Harry, enquanto Marcus, Calis e os outros
arqueiros se preparavam para punir ou dar cobertura de fuga caso se
tornasse necessário. Mas assim que o capitão dos barcos pôs os olhos no
ouro, os outros barcos aportaram. Foram necessárias praticamente duas
horas para embarcar toda a gente.
Ao longe, Nicholas avistou uma mancha escura no horizonte. — O que é
aquilo? — perguntou a Praji.
— Fumo, vindo da Cidade do Rio da Serpente. Estaremos lá antes de a
noite cair.
Passaram toda a viagem a ponderar nas opções que tinham pela frente e
agora já dispunham de um plano. Pelo menos, Nicholas tinha a esperança
de que se tratasse efetivamente de um plano, pois não podia admitir aos
outros que tinha a sensação de que estava a liderá-los rumo ao desastre. A
única coisa que o fazia seguir em frente era a possibilidade de Abigail e
Margaret serem maltratadas e a certeza de que por detrás de todas aquelas
misteriosas traições das últimas duas semanas, estavam os sacerdotes da
serpente pantathianos.
17

Cidade

N
icholas ficou tenso.
O Rio da Serpente correu por terrenos pantanosos durante uma
hora e agora estavam a atravessar um lago enorme. A tripulação
do barco começou a remar fervorosamente assim que acederam ao lago,
pois as correntes eram incertas naquele grande curso de água. O homem do
leme agarrou-se com força à vara e o barco virou, rumo ao esvaziamento do
rio do lago para oriente. Nicholas endireitou-se para poder observar
atentamente a cidade ao longe. — Onde é que estamos? — perguntou a
Praji.
— No Lago dos Reis — respondeu.
— Porque é que lhe chamam assim? — perguntou Nicholas.
Praji recostou-se apoiando-se num fardo de carga enquanto Vaja dormia
ali ao lado; raramente se separavam, reparou Nicholas. — A cidade, há
imenso tempo, não passava de um ponto de encontro para as tribos do sul
das Terras de Leste. Com o passar dos anos, a cidade cresceu e agora é até
difícil dizer que os homens da cidade são da família dos jeshandi e das
outras tribos das planícies. — Praji começou a limpar as unhas com a ponta
da adaga. — Cada tribo tem um rei, percebestes?, e todos os anos cabe a
uma tribo diferente presidir à reunião anual. Isso resultou em que a cada
ano a cidade tenha um rei tremendamente empenhado em vingar-se do que
quer que os outros reis tenham feito aos da sua tribo nos treze anos
passados. Há catorze grandes tribos, estais a ver?
»Seja como for, os tipos que viviam na cidade fartaram-se daquilo ao fim
de duas centenas de anos e estalou uma grande revolta, e, quando esta
terminou, todos os catorze reis e um bom número dos seus parceiros foram
lançados a este mesmo lago. Por isso ficou conhecido pelo Lago dos Reis.
— E o que é que lhes sucedeu? — perguntou Nicholas, quando Marcus e
Harry se sentaram junto a eles para ouvirem. Seguiam então a cerca de
meio caminho na travessia do lago e viram outro rio a esvaziar de lá, um rio
que pareceu contornar a parte leste da cidade.
— Bem, durante uns tempos, tentaram aguentar-se sem governantes, mas
depois de uns quantos grandes incêndios e alguns tumultos que provocaram
a morte de centenas de pessoas, concluíram que se tratava de uma ideia
estúpida, e decidiram que os chefes dos clãs poderiam formar um Conselho.
Como havia membros do mesmo clã em mais de uma tribo, aquilo pareceu-
lhes justo, e ninguém ficou muito aborrecido, e as coisas correram muito
bem, tanto quanto sei, por uns bons cem anos.
— E depois apareceu o Suserano? — questionou Harry.
— Bem, acho que ele já por aí andava há uns tempos — referiu Praji.
Coçou o queixo. — Ouvi umas quantas histórias aqui e acolá sobre quem
ele era, mas ninguém tem a certeza. Em muitos lugares, é melhor não fazer
perguntas.
— Agentes secretos? — perguntou Nicholas.
— Chamam-lhes a Rosa Negra, se conseguis engolir essa. Liderados por
alguém conhecido apenas por «O Controlador», e ninguém sabe quem ele é.
Alguns tipos pensam que é isso que domina o Dahakon, outros acham que o
Dahakon é o próprio Controlador. Ninguém que eu conheça o sabe, essa é
que é essa.
Praji levantou a sua faca. — Aqui vai o que sei do Suserano. Chama-se
Valgasha, o que não é um nome jeshandi, nem de nenhum local onde eu
alguma vez tenha estado. É um homem alto, pois vi-o uma vez num dia de
desfile no Festival do Fim do Verão. Grande como o vosso amigo Ghuda,
diria. Aparenta ter cerca de trinta anos, mas ouvi dizer que tem o mesmo
aspeto que tinha quando se apoderou do poder, e com essas histórias de ele
ser mago, quem o poderá saber? Tem uma águia domesticada que caça
como um falcão. Há quem diga que é uma ave mágica.
— Quanto tempo falta para chegarmos à cidade? — perguntou Nicholas.
— Já falta pouco — disse Praji. Apontou para um arvoredo ao longe, na
margem mais distante. — O lago escoa por ali, no rio que contorna a
cidade. — Praji manteve-se em silêncio por um bom bocado, antes de
prosseguir. — Quando lá chegarmos, é melhor encontrar-vos um lugar onde
vos alojeis; uma Companhia deve dispor de um local onde potenciais
empregadores a possam encontrar. — E concluiu com uma pergunta: —
Tendes alguma objeção em levar uma vida simples?
— Não — respondeu Nicholas. — Porquê?
— Bem — respondeu Praji —, tendes mais ouro do que seria
aconselhável, pelo que pude aperceber-me, e uma Companhia pequena a
viver com demasiada riqueza é um isco para sarilhos. Não resultaria
instalar-vos na hospedaria mais cara da cidade e ter uns duzentos
combatentes a visitar-vos na segunda ou terceira noites. Mas se levardes
uma vida simples, o pessoal vai achar que estais falidos ou sois reles. —
Refletiu no assunto por um minuto antes de prosseguir. — Penso que
conheço o lugar ideal. Logo à saída do bazar. Modesto, não demasiado
imundo, e o estalajadeiro não vos intrujará.
Nicholas sorriu. — Assumo que será um lugar onde poderemos escutar
uma ou outra coisa?
— Podeis assumir tudo o que pretenderdes — disse Praji com o seu
sorriso desdentado —, mas o segredo não está em escutar, antes em separar
o trigo do joio no que toca a rumores e a verdades. — Bocejou. — Em vinte
anos na estrada, posso garantir-vos que nunca vi algum lugar como a
Cidade do Rio da Serpente. Vede, por exemplo, o caso de Maharta. Cidade
limpa, boa para fazer negócios, muito orgulho cívico. Chamam-lhe a
Cidade Rainha do Rio, e, não obstante, um homem pode lá ser morto por
causa de uma moeda de cobre tão facilmente como em qualquer outro lugar.
— Praji continuou a especular sobre as forças e as fraquezas das diferentes
cidades que visitara, enquanto Nicholas observava o burgo cada vez mais
próximo a ganhar forma ao longe. Onde antes apenas se via no horizonte
uma mancha cinzenta difusa, agora surgiam à vista torres e muros.
Havia pântanos em todo o redor do lago, assim como ajuntamentos de
juncos baixos, pelo que se tornou difícil perceber onde acabava a água e
começava terra. Algures para lá das margens do lago, erguia-se uma série
de pequenos montículos de terra, todos eles áridos, a não ser pela presença
de umas quantas plantas de aspeto rijo. À direita, no lado ocidental do lago,
o terreno sobressaía do meio dos pântanos. Alguma alvenaria indicava que
em tempos existira ali uma construção, mas a área estava completamente
deserta. Mais acima via-se a encosta de uma escarpa, aí com uns quinze
metros de altura, e lá Nicholas apercebeu-se de alguma atividade, embora
estivesse demasiado longe para perceber do que se tratava.
— Quintas — disse Praji, parecendo ter lido a mente de Nicholas. —
Ireis ver imensas, das pequenas, junto à cidade, por uma questão de
proteção. E umas quantas carbonizadas na margem mais distante do rio. É
uma terra difícil de defender e os soldados do Suserano não se mexem a não
ser que alguém ataque as muralhas ou que a ele lhe apeteça. — Cuspiu
borda fora.
Passado um bocado, entraram no rio oriental e ganharam velocidade com
a força redobrada da corrente. Enquanto perscrutavam as bordas da cidade,
viram uma granja carbonizada na margem oriental. — Estou a perceber o
que queríeis dizer — comentou Nicholas.
— Não foram os salteadores os responsáveis por aquilo — esclareceu
Praji. Apontou para uma colina a uns oitocentos metros de distância, sobre
a qual se erguia uma herdade, cercada por um muro alto. — É a herdade de
Dahakon. Quando não está no palácio do Suserano, é onde o encontrareis,
embora me ultrapasse o facto de alguém o pretender visitar. — Fez um sinal
de boa sorte. — Ele achou que a quinta estava demasiado próxima das suas
terras e ordenou aos Exterminadores Escarlates que lhe deitassem fogo.
Depois de terem passado sob uma ponte que dava para a herdade do
mago, acederam a uma área de cabanas e casas flutuantes amontoadas em
ambas as margens do rio. Pelo aspeto das coisas, ali habitavam os pobres,
pescadores, trabalhadores da cidade que não tinham posses para lá viver, e
alguns lavradores com um pequeno terreno nas traseiras das cabanas. Havia
aqui e ali pequenos barcos a moverem-se rapidamente, desempenhando
tarefas ou transportando alimentos. A bordo de diversos botes viram-se
crianças a acenar e a rir à passagem da fila de barcos, e Nicholas
correspondeu aos acenos.
Quanto mais desceram o rio, mais barcos se juntaram em redor deles.
Junto a terra, Nicholas viu que alguns dos edifícios ribeirinhos eram velhos,
com dois ou três pisos. Do alto das varandas de diversos deles, estavam
sentadas mulheres vestidas com mais ou menos roupa, exibindo-se e
gritando os seus nomes aos homens do rio.
— Prostitutas — referiu Praji, com indiferença.
Nicholas corou quando uma delas o chamou e lhe sugeriu fazer algo que
ele até então achara ser impraticável. Praji viu-o a enrubescer e riu-se. —
Capitão — disse ele, secamente.
A margem oriental afastou-se quando a boca do rio alargou e entraram
num estuário. Mantendo-se firmemente próximos da margem esquerda,
percorreram o seu contorno até se depararem com o primeiro de um lote de
docas e cais. Um pequeno barco atravessou-se à frente da proa deles,
dirigindo-se a uma embarcação ancorada em águas mais profundas, e o
timoneiro de Nicholas insultou o homem que seguia ao leme do bote, pois
só por pouco não colidiram.
Nicholas seguiu a pequena embarcação com o olhar, até que os seus
olhos pousaram em algo no porto. — Marcus — chamou.
Marcus avançou na direção dele. — O que foi?
— Dizei ao Amos para olhar para além — apontou.
Marcus olhou e depois assentiu com a cabeça, antes de regressar à popa.
Gritou para o segundo barco, onde Amos seguia sentado. — O Nicholas
pede que olhais para acolá.
Amos gritou em resposta: — Dizei-lhe que já vi. É o mesmo.
Marcus regressou para junto de Nicholas. — O Amos diz que é o mesmo.
Nicholas anuiu. — Assim me pareceu.
Ancorado e com grande parte do casco bem acima da superfície, por se
encontrar já sem carga, o navio preto atraiu-lhes a atenção. Nicholas voltou-
se para Marcus. — Tomámos a decisão acertada.
Marcus pousou a mão no ombro de Nicholas e não disse nada.

D esembarcaram e abriram caminho por entre as docas cheias de gente,


descendo uma rua larga que dava para um enorme bazar a céu aberto.
Praji e Vaja lideraram o grupo por entre a multidão no mercado,
recomendando-lhes que se mantivessem juntos, caso contrário perder-se-
iam.
Nicholas ficou baralhado com o exótico conjunto de trajes e vestuário.
As pessoas eram tão diversas entre si quanto em Krondor ou no Norte de
Kesh. Homens e mulheres de todas as cores, desde os de pele clara e louros
até aos escuros como a noite, apinhavam o mercado, gritando os preços das
suas mercadorias e regateando. As roupagens dos locais eram
suficientemente diversificadas para que as vestes extravagantes da
tripulação de Nicholas pudessem passar despercebidas. As cores garridas
eram comuns, pelo que até as escolhas de Harry em termos de cores não
chamaram a atenção.
Num grande cruzamento de duas alamedas, Praji dirigiu a companhia
para sul e percorreu mais um quarteirão do bazar. Rapidamente deixaram
para trás o mercado e passaram por uma rua estreita em direção a outra,
onde se depararam com a hospedaria. Praji entrou acompanhado por
Nicholas. — Keeler! — gritou.
De uma divisão nas traseiras surgiu um homem robusto, com uma
cicatriz a marcar-lhe a face esquerda. — Praji! — exclamou, erguendo um
cutelo de carne. — Pensei que tinha visto o vosso miserável rosto pela
última vez há um mês — disse, cravando violentamente o cutelo na madeira
do balcão para dar mais ênfase.
Praji encolheu os ombros. — Tive uma oferta melhor. — Com um
movimento da cabeça, apontou para Nicholas. — Eis o meu novo Capitão.
Keeler olhou de soslaio com uns atentos olhos azuis, e depois cofiou o
seu queixo hirsuto. — Muito bem. Do que precisais… Capitão?
— Alojamento para quarenta?
— Tenho espaço para cinquenta — revelou. — Seis quartos privativos
capazes de albergar quatro em cada um e um quarto de dormir coletivo para
vinte e seis. Podeis lá meter mais uns quantos se for gente de bem —
acrescentou, com um sorriso.
— Ficamos com todos — respondeu Nicholas —, procuro novos
recrutas. — Tinham acordado que aquela história lhes facultaria uns dias
para se instalarem e aparentemente não fazerem nada. As Companhias de
Mercenários não permaneciam muito tempo entre duas missões e ficarem
mais do que uns dias na cidade iria dar nas vistas. Nicholas e Keeler
chegaram a acordo quanto ao preço e o primeiro deu ao estalajadeiro uma
pequena bolsa de ouro como garantia de que pagaria a conta.
Nicholas fez sinal a Harry, que estava junto à porta; Harry avisou os
restantes e a Companhia entrou. A Ranjana votou a Nicholas um olhar
sombrio quando entrou com as suas aias e inspecionou a sala comum da
hospedaria. Nicholas não partilhara com ela os pormenores da razão que
levara os soldados do Suserano até ao Pouso de Shingazi. A rapariga
esperara ser levada diretamente ao palácio do Suserano e ficou furiosa por
ser forçada a permanecer mais um dia com a companhia de Nicholas.
Deixá-la sob a vigilância atenta de Brisa revelou-se uma decisão acertada; a
rapariga da rua de Porto Livre informou a Ranjana de que ficaria muito feliz
por lhe cortar a língua se causasse alvoroço.
Assim que chegaram aos seus aposentos, Nicholas inspecionou a
hospedaria. Podiam fazer uso da sala comum, dos pátios – que Nicholas
achou suficientes para os treinos dos homens – e das cavalariças, que de
momento estavam vazias, exceto por um burro desgrenhado que recebeu os
estranhos com uma indiferença beatífica. Era habitual que a Companhia que
ocupasse a hospedaria decidisse se o salão poderia ser utilizado por quem
vinha de fora. Foi o primeiro tópico de conversa com os que Nicholas
decidiu que funcionariam como chefes de equipa: Marcus, Ghuda e Amos,
assim como Praji. Nicholas inventara uma história segundo a qual eles eram
oriundos de uma cidade muito distante da outra ponta do continente, que
Praji pareceu aceitar como viável; as terras entre as cidades-estado eram tão
caóticas que os homens raramente viajavam mais de uma centena de
quilómetros desde o lugar onde haviam nascido, e mesmo os soldados a
soldo mais viajados, como Praji, só se tinham aventurado tão longe quanto
a cidade de Lanada, o lar de um Rei-Sacerdote que era presentemente causa
de uma agitação regional, pois estava envolvido numa guerra com três
frentes com o Rajá de Maharta e o Suserano da Cidade do Rio da Serpente.
Nicholas sentou-se com os seus três tenentes no salão, enquanto Harry
encaminhava os homens para os seus aposentos e orientava o
armazenamento do equipamento.
— Praji, qual é a melhor opção — perguntou Nicholas —, manter o salão
aberto a toda a gente ou fechá-lo?
— Se o fechardes, e não sendo vós bem conhecido, isso despertará a
curiosidade das pessoas — respondeu Praji. — Se o abrirdes, é fácil de
adivinhar que uma hora após o Sol se pôr, este lugar estará apinhado de
prostitutas, ladrões, carteiristas, pedintes, e um bando de espiões de
diferentes clãs, grémios, fações e outras Companhias.
— Amos, o que vos parece? — perguntou Nicholas.
Amos encolheu os ombros. — Diz-me a minha experiência que neste tipo
de lugares tanto se pode sair à procura de informações como esperar que
elas venham até nós.
Nicholas assentiu. — Vamos abrir o salão, mas quero que fique bem
claro que qualquer homem que beba demasiado e fale de mais terá de
responder perante mim. — Tentou soar ameaçador, mas sentiu-se parvo.
Ainda assim, ninguém à mesa sorriu ao ouvir o aviso dele.
Voltou-se então para Praji. — O que é que levaria as outras Companhias
a virem aqui coscuvilhar? — perguntou Nicholas.
— Podeis ter um contrato a que eles possam deitar a mão — explicou
Praji. — Se estiverdes envolvido em algo grande, talvez possam oferecer
um acordo melhor ao vosso empregador; talvez estejam metidos num
trabalho superior que precise de uma Companhia maior e procurem uma
outra pequena Companhia ou duas a quem se possam aliar. — Praji fitou
Nicholas atentamente. — Não precisais de me revelar aquilo que aqui vos
traz, desde que recebamos e não sejamos enforcados por algo que não nos
diga respeito, mas para uma Companhia de mercenários, pareceis-me muito
verdes. — Apontou o polegar para Ghuda. — Ele parece saber o que fazer,
mas os outros… — olhou de soslaio por sobre o ombro para o local por
onde entrava no salão um par de marinheiros do navio de Amos — já é
outra conversa. Pela forma como saltam mal recebem ordens, e se recolhem
em si mesmos e nunca se envolvem em grandes discussões ou brigas,
palpita-me que pertencem a um exército regular.
— Não sois tolo nenhum — comentou Nicholas.
— Nunca disse que o era. Apenas deixo que as pessoas façam o seu
julgamento, e por norma essa é a minha vantagem. — Apontando para o
local onde o aglomerado de homens se preparava para se encaminhar para
os seus aposentos, acrescentou:
— Estes rapazes serão provavelmente bons soldados, mas não me
parecem muito convincentes enquanto mercenários. Já o Ghuda passa por
um genuíno mercenário.
Praji prendeu o olhar de Nicholas. — Há três tipos de capitães: os
primeiros, são uns estupores malvados que assustam os seus homens para
obterem o que pretendem; os segundos, são daqueles que enriquecem os
seus homens; os terceiros, são dos que têm homens dispostos a segui-los
para todo o lado, porque é o capitão que os mantém vivos. Não sois
convincente para pertencer ao primeiro grupo; lamento mas não seríeis
capaz de assustar a minha avozinha. Não andais por aí a distribuir ouro e
não tendes os dedos cheios de anéis, por isso ninguém será levado a pensar
que andais a enriquecer os vossos homens. Portanto, aconselho-vos a serdes
mais convincente a convencer, a quem quer que isso interesse, que
pertenceis ao terceiro grupo.
— Estudei táticas e estratégias durante toda a minha vida, Praji, e já
liderei homens em combate — realçou Nicholas. Não acrescentou que a sua
experiência começara apenas uns dias antes de terem conhecido Praji.
— Falais de um bom combate — disse Praji, erguendo-se. — Assim que
quiserdes revelar-me o que está em causa, dir-vos-ei se o Vaja e eu
queremos participar. Até lá, vou aproveitar para dormir.
Assim que saiu, Nicholas lançou a pergunta: — Será que podemos
confiar nele?
— Bem — começou Ghuda —, ele não é do género de jurar lealdade até
à morte à coroa, mas combaterá por quem lhe for fiel, ou — acrescentou —
contra quem quer que vá parar à «lista» dele. Acho que ele é o que aparenta
ser.
— E a seguir, o que fazemos? — perguntou Marcus.
— Precisamos de descobrir para onde foram levados os prisioneiros.
Com tantos prisioneiros a serem aqui descarregados, alguém tem de ter
visto para onde foram. Só temos de ser cautelosos no modo como
perguntamos.
— Acho que é melhor ir farejar lá em baixo nas docas — disse Amos.
— Levai o Marcus convosco, e começai a procurar um barco que
possamos roubar.
— Somos outra vez piratas? — Amos sorriu.
Nicholas retribuiu o sorriso. — Assim que descobrirmos onde estão a
Margaret, a Abigail e os outros, seremos corsários.
Amos e Marcus partiram. — Ghuda, conseguis fazer com que os homens
se assemelhem mais a mercenários? — perguntou Nicholas.
Ghuda levantou-se quando Harry e Brisa entravam no salão. Assim que
se aproximaram da mesa, Ghuda disse:
— Falarei com eles em grupos de dois e três e dar-lhes-ei algumas ideias
do que estará pela frente e de como deverão reagir.
— Obrigado — disse Nicholas quando ele saiu.
Harry e Brisa sentaram-se. — Muito bem — disse Harry —, e o que
fazemos agora?
— Bem, antes de mais — respondeu Nicholas —, tenho de descobrir o
que fazer com a Ranjana.
— Vendei-a a alguém — sugeriu Brisa. Em virtude do seu sorriso
animado, Nicholas teve quase a certeza de que estaria a gozar.
— Porque não aguentá-la mais um pouco connosco até vermos se
precisamos de entrar no palácio? — perguntou Harry.
— Não percebo — comentou Nicholas.
— Vê bem — disse Harry —, é-me difícil imaginar que um navio
daqueles entre neste porto com umas duas centenas de prisioneiros sem que
isso envolva algo oficial. Talvez o próprio Suserano esteja envolvido. —
Encolheu os ombros. — E se está, que melhor forma de lá entrar para o ver
do que levando-lhe a sua prometida?
— Mas ele tentou matá-la — destacou Nicholas.
— Isso foi lá fora — completou Brisa. Com a mão, acenou para norte. —
Ele não podia matá-la no palácio e deitar as culpas para os clãs, pois não?
Harry anuiu. — O palácio é, para ela, o lugar mais seguro na cidade. —
Debruçou-se para a frente. — Olha, aguenta-a um par de dias e, se não
precisarmos de ir ao palácio, podemos despachá-la de volta para o pai no
próximo comboio fluvial que rume a norte. Se precisares de entrar, ela é o
teu livre-trânsito.
— Não me parece que faça grande diferença à rapariga — comentou
Nicholas.
Brisa mostrou-se desdenhosa. — Rapariga? Aquela cabra tem uma
carapaça tão dura quanto a de uma tartaruga. Esquecei os olhos grandes e o
beicinho, Nicky, ela seria capaz de vos arrancar o coração sem perder o
sorriso. Pode parecer uma queridinha mimada, mas há nela uma dureza que
não conseguis ver, dado que só a custo a olhais acima do pescoço.
Nicholas estreitou os olhos. — Alto lá!
Brisa fez um gesto com a mão desvalorizando a objeção dele. — Ela é
uma beldade, eu sei, mas não é o que parece.
Harry assentiu. — Falei com ela e notei nela uma certa… frieza.
Nicholas optou por esquecer a acusação de Brisa. — Bem, hoje não vou
tomar nenhuma decisão. Porque é que vocês não vão dar uma volta para
bisbilhotar pelas redondezas? Brisa, sabes movimentar-te bem em ruas
como estas, e Harry, tu és capaz de te misturar bem com as pessoas. —
Retirou algum ouro da bolsa e passou-lho por cima da mesa. — Compra
aquilo que te parecer necessário, e leva o Anthony contigo para que ele se
reabasteça com as coisas de que precisa. — Olhou em volta. — Por falar
nisso, onde é que ele se meteu, e o Nakor?
— Vi o Anthony num dos quartos das traseiras a tratar do ferimento do
Vaja — informou Harry —, mas já não ponho os olhos no Nakor desde que
aqui chegámos.
Nicholas acenou-lhes para que partissem e por momentos deixou-se estar
sentado, perdido nos seus pensamentos. Calis apareceu e sentou-se, mesmo
sem ser convidado. — Pareceis preocupado — comentou.
— Vamos dar uma volta — disse Nicholas, olhando em redor pela sala.
Ergueram-se e saíram do salão comum, acedendo à pequena rua que
levava diretamente ao bazar.
O bazar era um largo enorme, dividido por uma via aberta que dava para
norte e para sul, e por outra dirigida a oriente e ocidente. No cruzamento
das vias fora construída uma grande praça e nos degraus desta amontoara-se
uma grande quantidade de mendigos, videntes e artistas. A rua proveniente
da hospedaria de Keeler entrava no bazar por sul. Havia uma meia dúzia de
ruas a lá acederem por todos os lados, exceto de oriente, cuja fachada dava
para um muro que assinalava o limite exterior do palácio do Suserano.
Imiscuindo-se na multidão compacta que se aglomerava no bazar,
passaram por bancas montadas para o dia e ouviram os apelos para que
deitassem uma olhadela às cerâmicas, joias, doces, tecidos e todos os
artigos possíveis e imaginários. Calis manteve-se em silêncio quando
Nicholas fez de conta que examinava algumas das armas propostas por um
homem sem uma perna. — Sinto-me… deslocado — comentou Nicholas
quando passaram por um carrinho de mão de um vendedor de fruta.
Calis assentiu com a cabeça. — Eu compreendo.
— Deveras? — perguntou Nicholas, fitando o semielfo.
— Sou um pouco mais velho do que os vossos irmãos mais velhos,
contudo pareço ter a vossa idade — disse Calis. — Mas, para o meu povo,
pouco mais sou do que uma criança. — Olhou em volta para o bazar. —
Tudo isto me é estranho. Ao longo da minha vida já visitei muitas vezes
Crydee, e exceto nas ocasiões em que o vosso tio Martin e o Garret, ou um
soldado da guarda montada de Natal, visitavam Elvandar, nunca falei com
um humano durante mais de uma ou duas noites consecutivas.
»Sim, tenho a perfeita noção do que é uma pessoa sentir-se deslocada. —
Brindou então Nicholas com um raro sorriso. — Mas não é a isso que vos
referis, pois não? — perguntou.
Nicholas abanou a cabeça. — Não. Sinto-me um impostor fazendo-me
passar por capitão de uma Companhia de Mercenários.
Calis encolheu os ombros. — Mas não devíeis. Pelo menos é o que eu
acho. Os outros aceitaram a vossa liderança e até agora não fizestes nada
que demonstrasse que erraram.
Deteve-se após se terem afastado para deixarem passar uma carroça cheia
de escravos. Nicholas observou atentamente os rostos dos que seguiam
dentro da carroça na esperança de reconhecer alguém. Os escravos
mantiveram os olhos bem fixos no chão e as expressões plácidas, como se
tivessem a noção de que as suas vidas estavam para sempre sob o jugo de
terceiros.
Nicholas ficou uns momentos a olhar para a carroça antes de voltar a
dirigir a palavra a Calis. — Obrigado, acho que se representar
suficientemente bem o meu papel, é de pouca importância o que possa
sentir.
Calis mostrou um leve sorriso. — Sois muito parecido com o vosso tio
Martin; ele reflete nas coisas. É irónico, mas em muitos aspetos sois mais
parecido com ele do que o próprio Marcus.
Nicholas sorriu levemente. — Isso seria mesmo irónico.
Passaram uma meia hora a vaguear pelo bazar, espantados pela
assombrosa variedade de mercadorias que havia à venda, até que deram por
eles junto à praça central. Foram acossados por pedintes à espera de ofertas
em troca de bênçãos, e foram amaldiçoados quando lhes fizeram ouvidos
moucos. Videntes ofereceram-se para lhes ler o futuro em cartas, ossos ou
fumo, mas também os ignoraram.
Ao circundarem a praça, foram dar a outro setor do bazar que atraía uma
grande multidão. Abriram caminho por entre a populaça até se depararem
com um enorme estrado erguido entre a praça e o palácio do Suserano. A
multidão estava reunida a uns dez metros do muro e no meio deixara uma
aberta. Deitando uma olhadela para cima, Nicholas viu gaiolas suspensas no
muro. Dentro das gaiolas estavam corpos, um par de esqueletos e um
homem que se mexia debilmente. Calis seguiu o olhar de Nicholas. —
Estou a ver que a morte por exposição aos elementos é a escolha local —
comentou.
— E uma mensagem a toda a gente na cidade: não crieis problemas —
acrescentou Nicholas. Virou costas e observou os que estavam sobre o
estrado. Um leiloeiro exibia os seus escravos. Nicholas observou cada um
dos rostos, tendo a esperança, tanto quanto o receio, de reconhecer alguém
de Crydee, mas após uns minutos, constatou que aqueles desgraçados eram
da própria cidade. Umas quantas jovens originaram boas propostas, assim
como um homem de meia-idade particularmente forte, mas o resto dos
escravos ou eram demasiado velhos ou demasiado novos para darem lucro.
Enojado com todo aquele espetáculo, Nicholas disse:
— Vinde comigo. Regressemos à hospedaria.
Seguiram para o setor norte do bazar e a meio do trajeto até à hospedaria
viram as pessoas a desimpedirem o caminho para dar passagem a uma
companhia de homens. Um rapaz rufava o tambor na dianteira, enquanto
atrás dele seguia um homem com um bastão na mão. Do topo do bastão
desciam duas cordas até às pontas de uma vara, na qual estava atada uma
bandeira, um comprido pedaço de tecido cinzento no qual se via, cosido,
um falcão vermelho sobre a sua presa. Nicholas e Calis afastaram-se para
lhes dar passagem e ficaram a olhar para os duzentos homens que
desfilavam em passadas enérgicas. Quando se afastaram, Nicholas virou-se
para um homem que seguia atrás deles. — O que era aquilo? — perguntou.
— Os Falcões Vermelhos do Capitão Haji. — O homem fitou Nicholas,
como se este fosse louco por ter perguntado, e afastou-se apressadamente.
— Acho que o Tuka não estava a exagerar quanto à necessidade de nos
apregoarmos — comentou Nicholas.
— Talvez quando soubermos aquilo que queremos dar a conhecer —
disse Calis.
— Bem visto.
Regressaram à hospedaria e descobriram que Marcus e Amos já tinham
voltado. Nicholas sentou-se com eles à mesa enquanto Calis se encaminhou
para o seu quarto. — Foi rápido — disse Nicholas. — Encontrastes um
barco?
Amos baixou o tom de voz para que Keeler, que estava a tratar do bar,
não os escutasse. — Há uma série de barcos que servem, agora que
sabemos a duração da viagem, mas há dois barcos do Reino no porto.
— O quê? — disse Nicholas.
— E um deles é o Raptor — anunciou Marcus.

N icholas parou na ponta do cais e ficou a olhar boquiaberto.


— Fechai a boca ou vão começar a entrar moscas — disse Amos.
— Como é que é possível?
— Olhai com atenção — recomendou Amos. — Não está propriamente
como o transformámos, há umas ligeiras diferenças. E nunca o enxarciei
assim tão folgado, mesmo ancorado. Se surgir um vento repentino, perde-se
um mastro. E alguns dos ovéns e escotas não estão bem. É uma cópia do
Águia Real e alguém tentou transformá-lo no Raptor. — Apontou então
para o outro barco, ligeiramente mais pequeno, mas de resto igual ao
primeiro. — Aquele também é uma cópia perfeita do Gaivota Real, ou o
próprio.
— Pensei que o verdadeiro tinha afundado há dois anos ao largo da costa
de Kesh durante uma tempestade — disse Nicholas.
— Também foi o que eu pensei, mas se calhar não foi bem assim.
Nicholas anuiu. — De qualquer forma, isso não dá resposta à grande
questão.
— Sim — disse Amos. — Por que razão estão aqui?
Os três não abriram mais a boca no caminho de regresso à hospedaria.

L á regressados, Nicholas perguntou a vários dos homens se teriam visto


Nakor. Todos responderam negativamente; o homenzinho desaparecera
pouco após a Companhia ter chegado.
Nicholas optou por regressar ao quarto que reservara para si, para
descansar um pouco e refletir sobre o mistério daqueles dois barcos no
porto. Quando passou em frente à porta do quarto da Ranjana, um grito fê-
lo deter-se.
Quando se preparava para abrir a porta, esta abriu-se e saiu de lá uma aia
assustada. — Senhor. Por favor.
Nicholas entrou no quarto para se deparar com as outras três criadas
encolhidas de medo num canto enquanto a Ranjana pegava numa escova da
mesa que usava como toucador para a atirar na direção delas. — Não fico
aqui mais um minuto que seja! — berrou.
— Minha senhora… — começou a dizer Nicholas.
Antes que outra palavra lhe saísse da boca, já estava a esquivar-se de um
pente terrível, com três dentes de ouro, suficientemente afiados para
causarem um ferimento. Deu um passo em frente e agarrou a rapariga pelo
pulso, o que se revelou um erro tático, pois sentiu de imediato a outra mão
dela a esbofetear-lhe a cara. Agarrando a mão livre, ele gritou:
— Parai com isso, minha senhora!
Ela começou a pontapeá-lo nas canelas e ele afastou-a com força
suficiente para a levar a sentar-se pesadamente no chão. Apontou-lhe o
dedo à cara. — Basta!
Ela lançou-se de novo a ele, que voltou a empurrá-la para que se sentasse
no chão. Da segunda vez que caiu sobre a madeira dura, ela arregalou os
olhos de espanto. — Como é que ousais pôr-me a mão?!
— Farei bem mais do que isso se não me explicardes que balbúrdia é
esta? — disse Nicholas, num tom severo.
— Exijo ser levada de imediato para o palácio — disse a Ranjana. —
Falei com um dos vossos homens e ele teve a audácia de me dizer que
aguardasse pelo vosso regresso. — Ela ergueu-se. — Quero que ele seja
enforcado. Agora, levai-me ao palácio.
— Isso é problemático — referiu Nicholas.
— Problemático! — guinchou a rapariga. Com as unhas, formou umas
garras e lançou-se a Nicholas. Ele voltou a agarrá-la pelos pulsos. — Sois
capaz de acabar com isso?! — disse ele. A rapariga continuou a debater-se,
nitidamente empenhada em arrancar-lhe os olhos da cara. Ele acabou por
empurrá-la ainda com mais força do que antes, pelo que quando ela tombou
no chão, deslizou para trás até embater na parede.
Antes que conseguisse mover-se, ele avançou até se pôr sobre ela. —
Não vos levanteis! — avisou. — Permanecei aí calada e escutai, caso
contrário terei de vos amarrar.
Ela sentou-se, mas com uma expressão desafiadora. — Porque é que não
me levais para o palácio?
Nicholas suspirou. — Estava a tentar evitar isto, mas acho que tendes de
ficar ao corrente. Não vos levarei para o palácio porque aparentemente o
homem responsável pelo ataque de que fostes vítima é o próprio Suserano.
— Isso é impossível. É suposto eu casar com o Suserano na próxima
Noite do Fim do Verão.
Nicholas notou que ela já não estava tão aguerrida e estendeu-lhe a mão.
Ela afastou-a com uma palmada e levantou-se sem ajuda. Quando a viu
erguer-se com a graciosidade de uma bailarina, Nicholas viu-se forçado a
reconhecer que Brisa não estava completamente enganada. Dada a sua
escolha de vestuário, tops reduzidos e saias curtas, deixando a barriga
destapada, o corpo dela ficava bastante exposto, e era tremendamente belo.
Mas tinha tanto de bela como de malcomportada. — Estais a mentir —
acusou ela. — Quereis-me aprisonada para pedir um resgate.
Nicholas suspirou. — Se isso fosse verdade, limitar-me-ia a trancar a
porta e a colocar um guarda do lado de fora da janela. Não, se descobrirmos
que o Suserano é o homem que tentou matar-vos, arranjaremos maneira de
regressardes para junto do vosso pai…
— Não — interrompeu a Ranjana. Notava-se um medo genuíno na voz
dela.
— Não?
— O meu pai matar-me-ia.
— E porque faria ele isso? — quis saber Nicholas.
— O meu pai, o Rajá, tem trinta e nove esposas. Sou a filha mais nova da
sua décima sétima esposa. — Baixou os olhos antes de prosseguir. — Só
tenho valor para ele se me casar com um aliado. Se regressar, ficará furioso
e ordenará que me degolem. Já não terei mais valor, pois será considerado
um insulto enviar-me para outro aliado depois de me ter oferecido ao
Suserano.
— Bem, talvez o Suserano não tenha nada a ver com o ataque e, se não
tiver, entregar-vos-emos no palácio.
Nicholas ficou confuso com tudo aquilo, pois de repente a rapariga
pareceu tornar-se vulnerável e assustada. Os seus sentimentos ficaram
inesperadamente baralhados. Sentindo-se irritado com aquele súbito acesso
de preocupação, disse:
— Farei o que puder.
Voltou-se e saiu rapidamente do quarto. Dando por si no corredor sem se
lembrar do que ia fazer antes de entrar no quarto da rapariga, regressou ao
salão para esperar por Harry e Brisa.

C erca de duas horas após o Sol se ter posto, o salão estava repleto, tanto
por causa dos homens da Companhia de Nicholas como devido à
presença de desconhecidos. Ele escolheu uma mesa junto ao corredor que
dava para os quartos de dormir. Harry, Anthony e Brisa ainda não tinham
regressado e ninguém pôs a vista em Nakor desde antes de terem chegado à
hospedaria. Nicholas começava a ficar preocupado.
Por duas vezes aproximaram-se mercenários a perguntar se havia espaço
para novos recrutas na Companhia de Nicholas. Ele mostrou-se cauteloso e
disse que dependeria de um eventual contrato e que o melhor seria
regressarem nos próximos dias.
A comida que foi servida era satisfatória e quente, embora não
particularmente saborosa, e o vinho estava acima da média, o que agradou a
todos os da Companhia; era um grande melhoramento face aos feijões e pão
que haviam comido todas as noites nos barcos, juntamente com uma porção
fria de porco salgado. Harry, Anthony e Brisa regressaram por fim enquanto
eles comiam.
— O que é que vos demorou tanto? — perguntou Nicholas assim que os
outros se sentaram.
Harry sorriu. — É uma cidade grande.
— Tínheis de a ver toda num único dia? — perguntou Amos, sorridente.
— Não vimos nem um décimo — revelou Harry —, mas descobrimos
umas coisas interessantes, ou, para ser mais objetivo, o Anthony e a Brisa
descobriram.
— Descobri um homem que vende encantamentos lá em baixo junto às
docas — revelou Anthony. — É uma fraude, naturalmente, e as bugigangas
dele são inúteis, mas deixou escapar alguns mexericos sobre o Suserano e o
seu Grão-Conselheiro.
Nicholas inclinou-se para a frente quando Anthony baixou o tom de voz.
— O Praji não estava a brincar quanto à interdição da magia. Uma das
coisas que o vendedor de bugigangas me contou é que há uma proteção
sobre a cidade que alerta o Dahakon se alguém recorrer à magia dentro das
muralhas do burgo. Pelo menos, é isso que consta. Ele alegou que uma das
propriedades especiais dos seus berloques era a capacidade que tinham de
trabalhar sem alertar o Conselheiro. — Anthony abanou a cabeça. —
Alguém quer isto? — perguntou, pegando num fetiche de aspeto invulgar
que tinha no bolso. Era um homem com um pénis gigante. — É suposto
tornar qualquer um irresistível às mulheres. — Corou quando Brisa desatou
a rir, com a mão à frente da boca.
— Anthony, tendes de ser meu — disse ela jocosamente.
Nicholas não estava para brincadeiras. — Pousai isso. O que isso
significa é que não podeis usar os vossos poderes para encontrar as
raparigas.
— Raparigas? — perguntou Harry.
— As prisioneiras — esclareceu Anthony, que continuava corado. —
Cheguei a conseguir localizar a Margaret e a Abigail — informou.
Nicholas percebeu que ele estava a esticar ligeiramente a verdade devido
ao interesse de Harry em Margaret, mas achou que isso era no momento de
somenos importância. — O que mais descobristes? — quis saber.
— Há por aí uma espécie de organização de larápios — informou Brisa.
— Sois de Krondor, por isso já ouvistes falar dos Mofadores.
Nicholas assentiu com a cabeça.
— É uma coisa assim do género, mas dá-me a ideia, tendo em conta
aquilo que vimos, que são bem menos eficazes e provavelmente menos
poderosos.
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Nunca vi na minha vida tantos homens armados num quilómetro
quadrado, nem sequer em Porto Livre, e metade deles pertence a um clã ou
outro, ou ao Suserano.
— Ela tem razão, Nicky — disse Harry. — Há soldados por todo o lado e
toda a gente tem um guarda-costas ou guardas em casa, ou mercenários. Tal
como o Ghuda disse, isto aqui é uma zona de guerra.
Nicholas refletiu por uns momentos. Krondor tinha o seu quinhão de
guardas privados e mercenários a soldo de mercadores e nobres, mas a
maioria dos cidadãos andava desarmada por quase todo o lado, exceto no
Bairro Pobre ou nas docas à noite, pois os vigilantes da cidade ou a
guarnição do Príncipe mantinham a paz e controlavam de certo modo os
Mofadores. Também soubera pelo pai que o Grémio de Larápios apreciava
que tudo andasse na ordem, pois qualquer lei marcial prejudicar-lhes-ia
severamente o negócio.
— Descobriste alguma coisa no mercado de escravos? — perguntou
Nicholas.
— Nada de jeito — respondeu Harry. — Foi difícil. Se não estivesses a
comprar, olhavam-te com desconfiança. Há uma coisa, a parede atrás do
mercado de escravos está marcada com um traço branco a uns dez metros
de distância. Viste?
— O Calis e eu andámos por lá a vaguear, mas não reparei — disse
Nicholas.
— É o limite — explicou Harry.
Nicholas assentiu com a cabeça. Sabia que aquilo significava que havia
arqueiros no alto dos muros ou soldados no mercado com ordem para matar
quem quer que cruzasse a linha. — O Suserano não quer que ninguém
liberte os condenados — disse Nicholas.
— Ou não quer visitas de surpresa — sugeriu Brisa.
— Se governásseis esta cidade de degoladores, quereríeis? — questionou
Amos.
— Se a governasse, tudo seria diferente — comentou Nicholas.
Amos riu-se. — Não sois o primeiro a afirmar isso antes de desempenhar
o cargo. Perguntai ao vosso pai como foram os acordos que estabeleceu
com os Mofadores logo no início do seu reinado.
Nicholas voltou-se para Brisa. — Achas que consegues contactar os
larápios da terra?
— Pode levar um par de dias — respondeu. — Metade das pessoas daqui
têm um ar de cão acossado. — Ela baixou ainda mais o tom de voz. — A
minha opinião é que já tendes aqui neste salão uma meia dúzia de
informadores e espiões. Nesta cidade não se confia em ninguém.
— Bem, comei, bebei e alegrai-vos… — disse Nicholas, interrompendo-
se antes de terminar o velho adágio.

M argaret acordou sobressaltada, com o coração aos pulos. Algo a fez


voltar-se lentamente para a outra cama. Uma figura vaga formou-se
sobre ela na escuridão do quarto. Pestanejando, esforçou-se por identificar o
vulto nas trevas.
Quando se sentou, o seu movimento brusco assustou o vulto, que recuou.
Ela estendeu a mão até uma candeia que ficava acesa dentro de uma caixa
com ripas, durante a noite, e abriu-as. Sentada no chão junto à cama estava
uma das duas criaturas-lagarto. Esta protegeu os olhos escuros da luz e
afastou-se rapidamente para trás, produzindo sons suaves.
Margaret ficou paralisada, de boca aberta enquanto engolia em seco,
apavorada. A criatura dissera algo numa voz muito suave. Dissera: «Não.»
Mas o que aterrorizou Margaret foi o som: não tinha nada de estranho ou
inumano. A voz pertencia a uma mulher humana. A voz era parecida com a
sua.
18

Segredos

N
icholas olhou para cima.
O carroceiro, Tuka, estava a atravessar o salão, acompanhado por
um homem com uma barriga imponente e com o rosto corado e que
vinha a arquejar. Apresentava-se vestido com uma grande variedade de cores:
uma sobretúnica amarela, uma camisa em xadrez, calças vermelhas, faixa
verde e um chapéu púrpura como os que se viam na zona, com uma ampla aba
enrolada para cima em ambos os lados, a abraçar a copa.
— Harry, alguém vos roubou as roupas na noite passada? — perguntou
Ghuda.
Harry bocejou, ainda mal desperto depois de ter ingerido uma quantidade
pouco habitual de cerveja. — Parece que sim — disse o Escudeiro de
Lundland. — Mas a minha era de melhor gosto.
Ghuda e Amos refrearam-se nos comentários e observaram o estranho par
enquanto este se abeirava deles.
— Encosi — disse Tuka —, com toda a humildade, estou a apresentar-vos
Anward Nogosh Pata, representante do meu amo na cidade.
Sem pedir permissão, o homem sentou-se na única cadeira livre na mesa de
Nicholas. — É verdade? — murmurou.
— É verdade o quê? — reagiu Harry.
Nicholas ignorou a pergunta de Harry. — Sim — respondeu. — Temos a
rapariga connosco.
O homem soprou todo o ar que tinha nas bochechas e tamborilou com os
dedos na mesa. — Conheço o Tuka há anos e apesar de não ser de fiar, como
qualquer outro carroceiro, não é suficientemente inteligente para inventar
sozinho uma história tão rebuscada de traição e crime. — Debruçando-se por
cima da mesa, baixou ainda mais o tom de voz. — O que pretendeis pedir?
Resgate? Recompensa?
Nicholas franziu o sobrolho. — O que preferiríeis que eu fizesse? —
perguntou.
O homem parou com o tamborilar na mesa. — Não tenho bem a certeza. Se
o meu senhor foi vítima de uma conspiração para criar atrito entre os clãs –
muitos dos quais têm laços fortes com importantes casas de comércio aqui e
noutras cidades —, poucos desses homens dos clãs poderão estar inclinados a
recordarem-se que o meu senhor foi apenas um lorpa no meio de algo bem
maior. — Descreveu um amplo arco com as mãos enquanto encolhia os
ombros. — E, verdade seja dita, o meu senhor não ficaria nada agradado em
ser apelidado de lorpa, pois apesar de todas as suas virtudes, não deixa de ter a
sua vaidade, e o efeito que tal cognome teria no seu negócio não poderia ser
encarado como salutar.
— Há assuntos importantes para mim e para os meus homens que podem ter
impacto nesta matéria — avisou Nicholas.
— E o que propondes? — inquiriu Anward.
— Não fazer nada durante uns dias — respondeu Nicholas. — Suspeitámos
que se for a mão do Suserano a estar por detrás da série de ataques e crimes, a
vida da rapariga não terá valor, mas se ela for o troféu principal de um jogo que
não compreendemos, este pode ser para ela o lugar mais seguro do mundo.
Permiti-me que vos coloque uma questão: qual seria a reação do vosso amo se
a enviássemos de volta?
— Não ficaria agradado, mas esse descontentamento seria devido ao
fracasso do compromisso, e se o compromisso estivesse condenado desde o
início devido à duplicidade, ficaria pouco inclinado em atribuir culpas
desnecessariamente.
— O pai da rapariga seria capaz de a castigar?
— O pai dela tem muitas filhas, é certo, mas a todas dá valor. Não, não lhe
faria mal. Porque perguntais?
Raciocinando rapidamente, Nicholas respondeu:
— Só me quero assegurar de que compreendo tudo o que está em jogo.
— E quanto às preciosas oferendas que acompanhavam a Ranjana?
— Está tudo a salvo — referiu Nicholas.
— Enviarei uma carroça e guardas para recuperar as mercadorias do meu
senhor.
Nicholas levantou a mão. — Preferiria que esperásseis um pouco. Acho que
ninguém que nos viu chegar suspeitará que temos algo a ver com todos os
crimes ocorridos rio acima, mas nunca se pode ter a certeza. Se estivermos a
ser vigiados, não quero anunciar que encontrámos qualquer tesouro ou a
Ranjana. Deixai-os pensar que as raparigas que estão connosco são as que
acompanham a nossa comitiva. — Anward lançou-lhe um olhar de
desconfiança. — Tendes a minha palavra — garantiu Nicholas. — Quando a
Ranjana sair daqui, levará com ela todo o seu ouro e joias.
O consignatário ergueu-se. — Serei cauteloso — disse —, mas deverei
procurar informar-me sobre quem será o verdadeiro responsável por este
tormento. Permanecereis aqui entretanto?
— Uns dias.
Anward fez uma vénia respeitosa. — Desejo-vos um ótimo dia, Capitão.
Vendo que Tuka não o seguiu, Ghuda perguntou:
— Fostes demitido?
O pequeno carroceiro encolheu os ombros. — Assim foi, Saíbe. Sou
dispensado do serviço após ter fracassado ao proteger a mercadoria do meu
amo, mas por ter regressado para anunciar que a presença da Ranjana na
cidade, não ser espancado ou morto.
— Pelo que percebi, é difícil arranjar trabalho por aqui? — questionou
Marcus.
— Deve ser — comentou Amos —, a ver pelo modo como tratam os
trabalhadores.
— Muito difícil, Saíbe — respondeu Tuka. Pareceu profundamente abatido.
— Talvez tenha de me dedicar à ladroagem para poder comer.
Nicholas não conseguiu evitar um sorriso ao ver a postura do homenzinho.
— Não me parece que tenhais esse dom. — Tuka assentiu em concordância e
Nicholas prosseguiu: — Ora bem. Fostes de grande utilidade para nós, portanto
porque não trabalhais para nós enquanto estivermos na cidade? Assegurar-nos-
emos de que não passareis fome.
O rosto de Tuka iluminou-se. — O Encosi necessita de um carroceiro?
— Não, se não já teríeis reparado — realçou Nicholas. — Mas preciso de
alguém que saiba desenvencilhar-se nesta terra, e não conhecemos lá muita
gente por estas bandas. O que é que eles vos pagavam?
— Um pastoli de cobre do Rio da Serpente por semana e a minha
alimentação, e permissão para dormir debaixo da carroça.
Nicholas franziu o sobrolho. — Não estou familiarizado com a moeda local.
— Retirou umas quantas moedas da sua bolsa, uma delas recolhida no Pouso
de Shingazi. Espalhou-as sobre a mesa. — Qual é o pastioli? — perguntou.
Tuka arregalou os olhos ao ver as moedas. — Esta, Encosi. — Apontou para
a moeda de cobre mais pequena do lote.
— E as outras? — questionou Ghuda.
Se Tuka achou estranho que mercenários não soubessem o valor das moedas
locais, nada deixou transparecer. — Esta é o stolesti — informou, apontando
para uma moeda maior de cobre. — Valer dez pastiolis. — Passou para as
outras, o kathanri de prata de vinte stolesti e o drakmasti de ouro, ou
simplesmente, drak. O resto eram moedas de outras cidades e Tuka explicou
que havia tanta moeda de fora que era tão comum pagar pelo tipo de moeda e
peso como pelo valor oficial; a maioria dos mercadores tinha os seus próprios
modos de avaliar e não havia quem se dedicasse ao negócio dos câmbios.
Nicholas passou-lhe um stolesti. — Ide comprar algo para comer e uma túnica
lavada — disse.
O homenzinho fez uma vigorosa vénia. — O Encosi é imensamente
generoso — disse, antes de sair apressadamente do salão.
— Achei que os pobres no Reino não tinham muito — comentou Marcus —,
mas isto é que é pobreza.
— Pagam aos condutores de carroças cerca de um décimo daquilo que se
paga em Kesh — salientou Ghuda.
Nicholas ficou com um ar carregado. — Nunca me interessei muito pelo
comércio, mas penso que todas as lutas e perturbações comerciais implicam
menos emprego e uma grande pressão para se obter lucro. — Encolheu os
ombros. — Trabalho barato.
Ghuda assentiu com a cabeça.
— O que significa uma coisa boa — disse Amos.
— O quê? — perguntou Nicholas.
— Os subornos são comuns por estas bandas — disse com um sorriso. — E
isso significa que não ficámos apenas bem remediados com o tesouro do
Shingazi, nós ficámos ricos, muito ricos.
— Isso é bom — concordou Nicholas —, mas não nos aproxima mais dos
prisioneiros.
— Isso é verdade — disse Amos.
— Onde é que estão o Harry e a Brisa? — perguntou Nicholas. — Já
deveriam ter regressado. — Mandara-os ir de novo ao bazar para ver se Brisa
conseguia encetar contacto com os larápios e os mendigos locais. — E onde
raio se enfiou o Nakor?
Ghuda encolheu os ombros. — O Nakor? Ele aparece. Aparece sempre.

N akor entrou no palácio. Uns minutos antes, avistara um grupo de monges


a dirigir-se ali precisamente quando estava a pensar em como poderia
entrar. Deitando atenção aos trajes deles, batinas amarelas e cor de laranja,
cortadas pelo joelho e cotovelo, com uma faixa negra sobre o ombro,
rapidamente improvisou um. Colocou-se atrás do último monge, virando a sua
mochila ao contrário para parecer que transportava uma trouxa, pôs uma faixa
negra sobre o ombro, e assim se transformou de imediato em mais um monge
da ordem de Agni, que, sabia ele, era o nome local de Prandur, o Deus Fogo;
entrou audaciosamente no palácio passando em frente a um par de
Exterminadores Escarlates que estava à porta.
Olhou de soslaio para um deles ao passar e comparou-o com a descrição que
Amos fizera dos Exterminadores Negros de Murmandamus presentes na
Guerra da Brecha. Amos, o único elemento da Companhia que alguma vez vira
um, falara deles a Nicholas e aos outros depois de terem encontrado um elmo
no Pouso de Shingazi. Estes Exterminadores Escarlates estavam imóveis,
cobertos desde o pescoço até às botas com uma cota de malha vermelha. Os
elmos tapavam-lhes por completo as cabeças e dispunham de duas estreitas
ranhuras para os olhos. No topo, havia um dragão agachado, com as asas
baixadas de modo a formarem as laterais do elmo. Os olhos do dragão ou eram
em ónix ou safira, Nakor não tinha a certeza, e não estava interessado em ver
mais de perto. Cada um dos guardas usava um tabardo vermelho com um
círculo preto ao centro, onde uma serpente dourada com um olho vermelho
formava um S.
A entrada do palácio era um longo corredor que atravessava, supôs Nakor,
uma enorme muralha exterior. Depois, ficaram a céu aberto e cruzaram uma
velha paliçada, para acederem ao núcleo do palácio propriamente dito. Subiram
alguns degraus até uma ampla entrada, entre colunas altas que sustinham lá em
cima um terceiro piso saliente. Por cima deste via-se uma ameia baixa com
seteiras defensivas. Nakor reparou que a tentativa de adotar um certo tipo de
estilo clássico não esquecera por completo as preocupações defensivas. No
geral, considerou o domicílio do Suserano um lugar particularmente feio.
Caminharam até ao grande salão, onde já estavam outros reunidos. Havia
soldados comuns alinhados no salão, vestidos de preto com o mesmo desenho
da serpente nos tabardos, enquanto uma dúzia de ordens de clérigos se haviam
reunido em frente aos Monges do Fogo. Cerca de uma centena de homens com
um ar abastado, uns, comerciantes tendo em conta os trajes e, os outros,
capitães importantes de companhias de mercenários, agitavam-se
impacientemente em redor da assembleia formal de monges e sacerdotes.
Nakor deixou-se ficar um passo atrás do último monge de Agni quando eles
se posicionaram num dos lados do enorme pátio. Posicionaram-se de uma
forma que deixou Nakor alinhado com dois guardas que estavam defronte de
enormes colunas de mármore entalhado. Olhou para a esquerda e para a direita,
e a seguir recuou um passo, colocando-se atrás dos guardas. Voltou-se e dirigiu
um sorriso amistoso a um mercador que o estava a observar, e depois
gesticulou para o homem para que ele ocupasse o seu lugar, como se dali
tivesse uma vista melhor. O homem sorriu em agradecimento e avançou para
ocupar o antigo lugar de Nakor. Este agachou-se na sombra da coluna para
observar a cerimónia.
Do outro lado do espaço, entrou uma série de homens e mulheres por entre
as grandes cortinas para se colocarem atrás de um alto dossel; o último deles
era uma figura impressionante, sem dúvida com uns bons dois metros de altura.
Era tremendamente musculado mas sem ser gordo, quase se podendo dizer que
era magro. Tinha o rosto comprido e seria atraente se não houvesse algo de
cruel nos olhos dele e no tipo de boca, algo evidente mesmo à distância a que
se encontrava Nakor. Não havia dúvidas de que se tratava do Suserano. Usava
uma toga simples púrpura, até aos joelhos, o que lhe permitia exibir o seu
físico em todo o seu esplendor. Ergueu uma mão enluvada e assobiou. Um
guincho soou em resposta desde lá do alto na abóbada do salão e um bater de
asas acompanhou a descida de uma águia. Nakor olhou para a ave sombria,
uma jovem águia dourada. Apesar de jovem, a ave era suficientemente grande
para que só um homem muito forte a pudesse suster no pulso. Contudo, o
Suserano aguentou facilmente a criatura.
A seguir surgiram duas mulheres, ambas vestidas de modo provocador. Uma
delas era loura e vestia um top de seda sem costas bordado com fio de ouro e
rubis. A sua única outra peça de roupa era uma saia branca muito fina que
assentava no osso ilíaco, disposta de modo a exibir uma perna comprida ao
caminhar, e segura por um rubi gigante e um alfinete de ouro. O cabelo estava
puxado para trás com um gancho de ouro e caía-lhe sobre os ombros. Tinha a
pele clara e, segundo pareceu a Nakor, olhos azuis, mas àquela distância ele
não o podia confirmar. Era por todos os padrões uma mulher tremendamente
bela, embora demasiado nova para o gosto de Nakor. Colocou-se ao lado do
homem alto, mas manteve-se um passo atrás.
A outra era igualmente bela, embora fosse mais velha. Tinha o cabelo preto,
mas a pele era quase tão clara quanto a da primeira mulher. Usava um vestido
vermelho curto, parcialmente aberto à frente, exibindo uma generosa porção de
um peito saliente. O corte da saia dela era semelhante ao do da outra mulher,
mas neste caso em preto. A nível de joias não lhe ficava atrás, safiras e ouro,
embora o fecho da sua saia fosse composto por uma única esmeralda. Juntou-
se a um homem vestido de negro que puxou para trás o capuz da capa, expondo
o seu rosto. Era careca e usava uma argola de ouro no nariz. Ela agarrou o
braço do homem.
Um arauto anunciou:
— Reuni-vos e aguardai, ó homens e mulheres santos. O nosso
misericordioso Suserano requer o vosso conselho, pois é necessário um festim.
Ele vai unir-se a uma esposa, a Ranjana de Kilbar, e as cerimónias e
celebrações decorrerão durante o próximo Festival do Fim da Primavera.
A expressão da jovem loura demonstrou que não estava minimamente
agradada com o anúncio, mas manteve-se quieta atrás do Suserano.
— Lady Clovis — anunciou o arauto.
Todos os olhares incidiram na mulher de cabelo escuro quando esta tomou a
palavra. — O meu senhor Dahakon solicita a todos vós a bênção para esta
união e que prepareis as cerimónias que entendeis apropriadas para uma
ocasião tão solene. — O homem que Nakor achou tratar-se de Dahakon
permaneceu imóvel e em silêncio.
Muito interessante, achou Nakor.
O senhor da guerra começou a falar e Nakor escutou atentamente. Moveu-se
ligeiramente atrás da fileira de colunas que suportava a galeria acima do salão
e seguiu até ao canto. Ali, ocultou-se ainda mais na escuridão e avançou
lentamente em direção ao dossel, para conseguir ver melhor.

H arry e Brisa entraram na hospedaria. Abriram caminho por entre a


multidão que enchia o salão e Harry fez sinal a Nicholas para que se
juntasse a eles num dos quartos das traseiras. Nicholas fez sinal aos que
estavam consigo à mesa para que ali permanecessem e seguiu os outros pelo
corredor.
Entraram no quarto de Nicholas e Brisa sussurrou: — Descobrimos para
onde foram levados os prisioneiros.
— Para onde? — perguntou suavemente Nicholas.
— Para aquela herdade que vimos do outro lado do rio.
— Tens a certeza?
Harry sorriu. — A Brisa levou quase todo o dia e parte da noite, mas
finalmente descobrimos alguém da Irmandade Andrajosa.
— Quem?
— Larápios — esclareceu Brisa. — É assim que são conhecidos. Não há
muito a dizer, são essencialmente mendigos e uns quantos carteiristas. Todos
os verdadeiros bons larápios trabalham sozinhos ou são perseguidos pelos
homens do Suserano e abatidos.
— Harry, vai chamar o Calis e o Marcus — ordenou Nicholas.
Harry saiu e entretanto Nicholas voltou a dirigir-se a Brisa. — Há algo mais
de interessante?
Brisa encolheu os ombros. — Não percebo muito de cidades. Vivi toda a
minha vida em Porto Livre, e não tenho como comparar, mas se há alguma
pocilga mais miserável do que esta no planeta, incluindo Durbin, nunca ouvi
falar.
Ela franziu as sobrancelhas.
— O que foi? — perguntou Nicholas.
— É só… uma coisa que disse um dos mendigos. Enquanto tentava
conquistar-lhe a confiança, convencendo-o de que não era um dos «Rosa
Negra», ele contou que só roubava onde era permitido.
— Permitido?
— Mais tarde perguntei a outro larápio o que é que ele queria dizer e foi-me
dito que há uma espécie de conjunto de regras não oficiais sobre onde se pode
roubar impunemente e onde isso nos leva à gaiola. — Ela estremeceu. — Um
lugar horrível onde ir parar. Fica-se ali pendurado a congelar à noite e a assar
durante o dia, sem se conseguir sentar ou levantar, e a ver toda a gente lá em
baixo na praça a levar a sua vida e sempre a pensar que de algum modo tudo
aquilo não é real.
— Parece que pensas muito no assunto — disse Nicholas.
— Indicai-me um larápio que nunca pensou na possibilidade de ser
apanhado e mostrar-vos-ei um larápio estúpido. — Fez uma careta. — Na
verdade, somos todos estúpidos. Pensamos na possibilidade de sermos
apanhados, mas nenhum de nós alguma vez pensa que será apanhado.
Nicholas esboçou um sorriso. — Isso é bastante autocrítico.
Brisa encolheu os ombros. — Ultimamente tenho andado muito com o
Harry. — Ela sorriu. — Está a tentar que eu me reforme.
Nessa altura a porta abriu-se e entraram Harry, Calis e Marcus. Nicholas
contou a Calis e Marcus o que lhe haviam dito, e depois disse:
— Esperai que a noite vá bem avançada e vede se conseguis atravessar o rio
sem serdes vistos. Não imagino o quanto podeis aproximar-vos despercebidos
desse lugar…
— Posso aproximar-me bastante… — avançou Calis.
— …mas tentai ficar com uma ideia de onde possa estar cativa a nossa
gente.
— Vou sozinho — anunciou Calis. — Desenrasco-me muito melhor.
Nicholas ergueu uma sobrancelha. Depois, recordou a caçada na floresta e
deitou uma olhadela a Marcus.
— Provavelmente terá razão — disse Marcus. Olhou para Calis, que o
observava com um sorriso sardónico. — Oh, muito bem. Ele é capaz.
Nicholas permaneceu uns momentos em silêncio antes de voltar a falar. —
Acompanhai-o até meio caminho. Quero alguém suficientemente perto para lhe
dar uma ajuda se vier de lá a correr.
Calis sorriu. — Obrigado pela preocupação. Espero que não seja necessário.
— Voltou-se então para Marcus. — Devemos partir já e seguirmos calmamente
até àquela granja incendiada. Posso fazer o reconhecimento a partir de lá.
Partiram. Nicholas voltou-se e deparou-se com Harry de pé com um braço
em redor da cinta de Brisa de um modo muito descontraído. — Oh? — disse
ele, erguendo as sobrancelhas.
— Oh, o quê? — contrapôs Harry. Reparou então que tinha o braço em volta
da rapariga. — Oh! — exclamou, largando-a.
Com um sorriso forçado, Brisa comentou:
— Não há que ficar entusiasmado, Nicholas. Estou só a contribuir para a
educação do Harry.
Ela abandonou vagarosamente o quarto, fechando a porta atrás dela,
deixando Harry corado e Nicholas especado a olhar para o seu amigo. — Estou
espantado contigo — comentou Nicholas.
Harry ficou ainda mais vermelho. — Bem, temos passado muito tempo
juntos, e ela é mesmo muito bonita, se virmos bem para lá daquelas roupas
terríveis e imundas que ela veste.
Nicholas levantou as mãos. — Não tens de dar explicações. — Olhou de
soslaio para a porta, como se pudesse ver através dela. — Descobri que
ultimamente tem sido difícil recordar a Abigail. — Abanou a cabeça. —
Esquisito, não é?
Harry encolheu os ombros. — Não acho. Já há meses que não vemos a
Abigail e a Margaret e… — Encolheu os ombros.
— E a Brisa no teu leito é um bocadinho mais real do que a Margaret nos
teus sonhos? — completou Nicholas.
— Qualquer coisa do género. — E depois pareceu ficar com um ar zangado.
— Mas é mais do que isso. Ela é uma rapariga decente, Nicky. Se tu ou eu
tivéssemos passado por tanto quanto ela quando éramos crianças, não
valeríamos nem metade do que vale. E sei que sou capaz de a levar a deixar de
ser uma ladra. — Nicholas voltou a levantar as mãos. — Além disso —
prosseguiu Harry —, o Anthony está apaixonado pela Margaret, mesmo
apaixonado.
— Descobriste?
Harry sorriu abertamente. — Levei um bocado a chegar lá, mas descobri por
fim que era numa das duas raparigas que estava focado quando lançou aquele
encantamento. Depois, lembrei-me de que ele andava muito descontraído junto
da Abigail, mas quando perto da Margaret, remexia-se como um tolinho.
— Onde é que está o Anthony?
— Foi à procura do Nakor — informou Harry.
Nicholas produziu um som de irritação. — E onde se enfiou o Nakor? Já lá
vão dois dias.
Harry não soube o que responder.

–G ostava que parassem com aquilo — comentou Abigail.


— Também eu — anuiu Margaret. — É enervante.
As duas criaturas sentaram-se junto delas, a imitar os gestos das raparigas
enquanto jantavam. Se Margaret cortava a carne com uma faca, uma das
criaturas imitava o movimento num prato e mesa imaginários.
Durante o dia, as duas criaturas mantiveram-se a uma distância confortável
das raparigas, nunca se aproximando mais do que o alcance de um braço. Mas
observavam constantemente as raparigas e agora dedicavam-se àquelas
irritantes imitações.
Margaret afastou para o lado o prato vazio. — Não sei por que razão como
tanto; não fazemos nada — comentou. — No entanto, parece que não ganho
peso.
— Pois é — concordou Abigail. — Eu também não quero, mas não vou ser
agarrada outra vez e obrigada a comer. — Mastigou respeitosamente uma boca
cheia de comida e engoliu. — E já as vistes comer alguma coisa? — perguntou
a seguir.
— Não — disse Margaret. — Achei que talvez se alimentassem depois de
adormecermos.
— E também não as vi… compreendeis? — referiu Abigail.
Margaret fez um sorriso irónico. — Usar o penico — completou.
Abigail assentiu. — Também não me parece que durmam.
Margaret recordou a ocasião em que descobriu a criatura debruçada sobre a
cama dela. — Penso que tendes razão — disse.
Margaret levantou-se e voltou-se, e viu a criatura que agora encarava como
sua a fazer o mesmo. Ouviu Abigail a arquejar.
Virando-se, Margaret constatou que o corpo da criatura se alterara um
pouco. Estava mais alta, tinha a altura de Margaret, e as ancas dela e o peito
tinham alargado.
— O que é que se passa? — sussurrou Margaret.

N icholas olhou para cima quando a porta da hospedaria se abriu com


estrondo. Entraram de rompante três homens armados e antes que algum
dos soldados presentes no salão pudesse reagir, surgiu uma meia dúzia de
arqueiros.
Um homem grande de cabelo grisalho entrou a seguir aos arqueiros, que
tinham debaixo de mira toda a gente na sala. — Quem manda aqui? — exigiu
ele saber.
Nicholas levantou-se. — Sou eu — respondeu.
O homem idoso dirigiu-se a Nicholas e apontou o seu nariz para ele. Abanou
a cabeça. — Recomendarei a vossa bravura ao vosso capitão, rapaz, mas não o
honrais escondendo-o de mim.
— Vamos lá fora, avozinho — disse Nicholas —, e terei todo o gosto de vos
provar que sou, efetivamente, Capitão desta Companhia.
— Avozinho? — disse o entroncado idoso. — Ora essa, seu franganote…
Nicholas desembainhou a sua espada e encostou-a com tal rapidez à
garganta do homem que os arqueiros nem tiveram a oportunidade de puxar as
setas e disparar. — Se achais que os vossos homens conseguem matar-me antes
de vos cravar a ponta, podeis dar ordem de disparo.
O velho ergueu a mão, fazendo sinal aos arqueiros para que suspendessem o
disparo. — Se sois o Capitão desta Companhia, temos assuntos para tratar.
Podemos ambos estar mortos daqui a uns instante, por isso não me mentis. Não
é honroso para nenhum homem ir para a Casa de Lady Kal com a mentira nos
lábios.
Os homens de Nicholas tinham começado a movimentar-se lentamente pelo
salão, preparados para o combate. Amos rugiu:
— Se alguém fizer algo particularmente estúpido, a maioria estará morta
antes que algum de nós tenha a oportunidade de pensar no que raio se passou!
O velho baixou o olhar. — Tendes a certeza de que não é ele o capitão?
— Ele é o capitão do meu navio — anunciou Nicholas.
— Um navio? — questionou o velho. — Tendes um navio?
Nicholas ignorou a pergunta. — Vamos lá, não quereis explicar-me porque
viestes aqui intrometer-vos, ameaçando os meus homens e exigindo ver-me?
Lentamente, o velho apoiou a palma da mão enluvada na lâmina da espada
de Nicholas e afastou-a gentilmente para o lado. — Vim verificar se fostes vós
os homens que mataram os meus filhos.
Nicholas observou atentamente o homem; era alto, pelo menos tanto quanto
o seu tio Martin, e também tinha os ombros largos. O cabelo estava puxado
para trás e atado num rabo-de-cavalo à guerreiro que lhe tombava sobre os
ombros. Pelas cicatrizes visíveis no rosto e braços, Nicholas constatou que o
estilo de cabelo não se devia a pura vaidade. A espada que tinha no flanco era
velha mas bem tratada. — Avozinho, não matei assim tantos homens que me
pudesse esquecer de algum deles. Quem eram os vossos filhos e porque
haveríeis de pensar que seria eu o homem responsável pela morte deles?
— Chamo-me Vaslaw Nacoyen — anunciou o velho —, chefe militar do Clã
Leão. Os meus filhos chamavam-se Pytur e Anatol. Penso que tereis
conhecimento da morte deles porque um dos meus homens viu-vos entrar na
cidade. Convosco viaja uma rapariga que, penso eu, virá da Cidade de Kilbar.
Nicholas deitou uma olhadela a Ghuda e Amos e voltou a guardar a espada.
— Este não é o lugar indicado para conversar — disse, apontando para o salão
repleto de homens que não pertenciam nem à sua Companhia nem eram dos de
Vaslaw.
— Podemos conversar lá fora — disse o velho.
Nicholas fez sinal a Amos e Ghuda para que o acompanhassem. Os dois
homens ergueram-se e quando chegaram à porta, Nicholas disse:
— Podeis assegurar-vos de que ninguém sai até nós regressarmos?
Vaslaw instruiu os seus arqueiros para manterem toda a gente longe da porta
e saiu. Uma dúzia de cavaleiros estava no exterior à espera e atrás deles uma
outra dúzia de guerreiros apeados. — Aparentemente, viestes preparado para
qualquer resposta — comentou Nicholas.
O velho grunhiu, com a sua respiração a condensar-se no ar noturno. Fez
sinal a Nicholas e aos outros para que o seguissem e dirigiram-se para o centro
da companhia armada. — Ninguém que não seja do meu sangue consegue
subjugar-nos. Sabeis algo acerca dos meus filhos?
— Se estiveram envolvidos num ataque bem imbecil no Pouso de Shingazi,
sei o que foi feito deles — respondeu Nicholas.
— Estão mortos?
— Se faziam parte daquele grupo de ataque, de certeza que sim.
— Mataste-los?
Nicholas estruturou cautelosamente a sua resposta. — Não me parece.
Abatemos alguns homens de clãs que se tinham apoderado de uma caravana de
carroças, mas só encontrámos talismãs de ursos e lobos. — Optou por não
mencionar a serpente. — Os outros eram mercenários inexperientes que nem
sequer pensaram em montar guarda. — Nicholas contou-lhe tudo sobre o
recontro, desde que tinham encontrado Tuka e as carroças carbonizadas até à
descoberta dos homens dos clãs e dos mercenários mortos.
— Vós simplesmente passastes lá por acaso? — quis saber o velho.
Nicholas escusou-se a revelar de onde era originário. — Sim, íamos
simplesmente a passar — esclareceu.
Vaslaw não pareceu satisfeito. — Que razões tenho para crer em vós?
— Porque não tendes razões para não o fazer — disse Nicholas. — Que
motivação teria eu para atacar aquela caravana de carroças?
— Ouro — respondeu rapidamente o homem.
Nicholas suspirou. Constatou que ser filho do Príncipe de Krondor não o
familiarizara devidamente com a cobiça. — Digamos que o ouro não encabeça
a minha lista de prioridades. Tenho outras preocupações.
— Olhai — disse Amos —, ouvistes quando ele referiu que eu era o capitão
do seu navio. O pai dele tem uma armada.
— Quem é o vosso pai? — perguntou Vaslaw.
— Governa uma cidade longínqua — revelou Ghuda. — Este é o seu
terceiro filho.
O velho assentiu com a cabeça. — Ah, estais a provar a vossa virilidade em
guerra. Essa motivação compreendo eu.
— É algo do género — disse Nicholas. — Além disso, uma questão bem
mais importante é perguntardes a vós próprios quem lucra com a morte dos
vossos filhos.
— Ninguém — respondeu o velho. — Isso é que complica tudo. O ataque-
surpresa foi um plano mal concebido para irritar o Suserano que saiu da
imaginação dos meus filhos e de alguns fogosos companheiros de outros clãs.
Matar todos aqueles jovens não beneficia ninguém, nem sequer o Suserano.
Tudo o que gera é desconfiança entre os clãs e o Suserano, uma perda de
confiança generalizada numa cidade onde isso já é comum.
— Bem, há aqui muita coisa que não bate certo — comentou Nicholas. — E
se vos contar que por duas vezes os salteadores deixaram para trás ouro
suficiente para resgatar uma cidade? E se vos contar que um dos mortos que
encontrámos estava agarrado a um elmo dos Exterminadores Escarlates?
— Isso é impossível — afirmou o velho.
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Porque nenhum Exterminador Escarlate alguma vez saiu da cidade sem o
Suserano. São os guarda-costas mais próximos dele.
Nicholas ponderou bem no que dizer a seguir. Havia algo de muito terra-a-
terra naquele velho homem, algo que aludia a tempos mais simples quando
aquelas pessoas viviam de um modo muito semelhante aos jeshandi, errando
pelas planícies de erva, vivendo em yurts, cavalgando atrás das manadas no
pasto. Os membros dos clãs já podiam ser citadinos há gerações, mas
honravam o seu legado. Eram governantes e guerreiros, um povo onde a
palavra dada ainda tinha valor. — E se vos contar que outro destacamento de
soldados surgiu para exterminar quem quer que tivesse escapado e para matar a
Ranjana, e que esses pertenciam ao corpo de segurança do Suserano, a Guarda
Pessoal do Esplendoroso?
— Que provas tendes?
— Matei um homem chamado Dubas Nebu.
— Eu conheço esse porco. Capitão da Segunda Companhia. Porque o
matastes?
Nicholas explicou em pormenor o que haviam encontrado em Shingazi,
deixando de fora apenas a parte sobre o talismã da serpente. Quando terminou,
o velho disse:
— Destes-me a mim e aos outros chefes de clãs algo em que pensar. Alguém
anda a tentar pôr-nos uns contra os outros, e contra o Suserano.
— Quem beneficiaria com tal caos? — perguntou Amos.
— Isso trata-se de um assunto que devo discutir em concílio com os outros
chefes de clãs — indicou Vaslaw. — Há muitas rivalidades e feudos entre as
famílias dos diversos clãs, é uma tradição, mas este tipo de desastre pode fazer-
nos recuar uma dúzia de anos na nossa aliança com o Suserano.
— Tendes uma aliança com o Suserano? — perguntou Nicholas.
— Temos — respondeu o homem. — Não vos posso revelar a nossa história
aqui fora em pé e ao frio. Vinde amanhã à noite a minha casa no Bairro
Ocidental da cidade e acompanhai-me ao jantar; trazei os vossos companheiros
se não vos sentirdes seguro. Nessa altura poderei contar-vos mais coisas.
Fez sinal e foi-lhe levado um cavalo. Apesar da idade, içou-se facilmente
para a sela, enquanto outro guerreiro abria a porta e por gestos indicava aos
arqueiros que abandonassem a hospedaria. — Amanhã enviar-vos-ei um guia
— anunciou. — Até lá. — Voltou-se e levou dali a sua companhia. Amos,
Ghuda e Nicholas ficaram a observar a partida do Clã Leão, e a seguir
reentraram no salão.
Regressando à mesa que ocupavam, sentaram-se. — O que é que se passou
ali? — perguntou Harry.
— Um convite para jantar — disse Nicholas. Amos e Ghuda desataram a rir
às gargalhadas.

C alis fez sinal a Marcus para que esperasse. Já estavam na granja


incendiada há quase uma hora e ambos tinham permanecido em silêncio,
na eventualidade de surgirem sentinelas ou patrulhas. Atravessar o rio revelara-
se mais complicado do que haviam calculado, pois estava um pelotão de
guardas de vigia na ponte. Passaram furtivamente para as docas, onde deitaram
a mão a uma pequena embarcação. Remaram para o outro lado do rio e
deixaram o barco escondido nos arbustos.
Calis mostrou dois dedos, e Marcus anuiu com a cabeça. Caso ele não
regressasse em duas horas, Marcus deveria partir do princípio de que fora
capturado ou de alguma forma impedido de regressar. Marcus deveria voltar
levando essa informação a Nicholas.
Calis partiu em passo apressado, atravessando furtivamente a estrada que
passava pela granja e dava acesso a um aglomerado de árvores. Entre os
troncos, correu rapidamente, confiante na sua capacidade para se ocultar caso
surgisse a necessidade. Os bosques eram terreno familiar, embora nunca tivesse
percorrido os caminhos por entre aqueles troncos. Perscrutou a escuridão de
uma forma que seria impossível a um humano e distinguiu claramente os
contornos de silvados e ramos; dada a sua natureza, praticamente não
necessitava de luz para ver. Apenas a escuridão total o deixava completamente
cego.
Calis parou ao chegar à orla do bosque. Ficou à escuta, apurando os seus
sentidos o mais que pôde. Pressentiu animais a fugir nas imediações, coelhos
ou esquilos no solo. Calis transmitiu um pensamento de confiança e o ruge-
ruge desapareceu.
Calis era um ser único entre os mortais de Midkemia. A mãe dele era um
elfo, mas o pai era um humano com muitos poderes dos lendários valheru, a
quem os homens chamavam Senhores dos Dragões. Foi a magia do pai que
viabilizou o seu nascimento, assim como lhe transmitiu capacidades que só
poderiam ser apelidadas de mágicas. Calis esboçou um leve sorriso, pensando
no que Nakor diria em relação a isso. Ouvira muitas das discussões de Nakor
com Anthony no navio – Nakor diria que a magia não existe e que o universo é
completamente composto por matéria. Calis tinha a noção de que Nakor estava
mais próximo da verdade do que ele conseguia entender e pensou se o deveria
levar a Elvandar para conhecer os Urdidores de Feitiços caso conseguissem
regressar a casa.
Calis saiu a correr do bosque do outro lado da estrada que circundava as
imediações da granja, sendo pouco mais do que uma mancha difusa sob a luz
do luar, a não ser que alguém o fitasse diretamente. Moveu-se com um silêncio
não natural, mesmo para alguém nascido e criado como um elfo. Quando parou
atrás de um carvalho solitário junto ao muro, a sua respiração mantinha-se
branda e regular e não havia sinais do esforço que aquela corrida implicara,
exceto o leve brilho da humidade na sua testa.
Calis inspecionou o muro e aguardou. Era dotado de uma paciência com
nada de humano e ficou no mesmo lugar, imóvel, durante mais de meia hora.
Não detetou sinais de movimento no cimo do muro fortificado com ameias.
Agachando-se atrás de um ramo baixo, Calis correu na direção do muro.
Erguia-se até quase cinco metros do solo e dispunha de poucos pontos de apoio
para trepar. Calis levara na mão o seu arco; pendurou-o então às costas e
dobrou-se sobre os joelhos. Saltou para cima com toda a sua força e agarrou-se
com ambas as mãos ao cimo do muro.
Içou-se silenciosamente o suficiente para conseguir espreitar por cima do
muro. O baluarte estava vazio. Içou-se e passou por cima do rebordo exterior e
depois agachou-se no talude à sombra do merlão que lhe dava pelo peito, para
que o seu vulto não se destacasse contra o céu noturno – até umas quantas
estrelas tapadas poderiam bastar para chamar a atenção de um guarda atento, e
a longínqua luz da cidade estava diretamente atrás dele.
Analisou o terreno lá em baixo e constatou que não havia guardas em cima
do muro. A propriedade era enorme, com passagens a fazer ligação entre
jardins e anexos. A casa central ficava a mais de quatrocentos metros e tinha o
seu próprio muro protetor.
Não fazia parte da natureza de Calis amaldiçoar o destino ou exigir algo aos
deuses. Vasculhar aquele recinto levaria muitas noites a não ser que tivesse
sorte. Sabia também que dispunha de menos de uma hora para as suas
explorações antes de precisar de regressar para junto de Marcus. Não que o
preocupasse atravessar o rio sem o barco – conseguia nadar por entre as
correntes mais fortes do rio tão facilmente como saltara para o cimo do muro –
mas estava preocupado com a segurança de Marcus. Tendo ambos uma idade
aproximada, no modo como os elfos fazem a contagem de tais coisas, era em
muitos pormenores o único amigo de Calis. Tal como Martin, Marcus aceitara
Calis sem reservas, enquanto até os seus amigos mais chegados em Elvandar
mantinham uma certa distância. Calis nunca sentiu rancor ou tristeza, era
simplesmente o modo de ser dos elfos. O seu pai também teve poucos amigos
genuínos, mas por outro lado contava com o amor de uma esposa e com o
respeito concedido a um verdadeiro líder guerreiro. Calis tinha noção de que o
seu destino passaria por um dia abandonar Elvandar, o que fora uma das coisas
que o impulsionara a acompanhar Marcus naquela viagem.
Calis analisou o caminho que atravessava o jardim abaixo dele e viu como
se estendia sinuosamente por entre diversos terraços ajardinados antes de
chegar ao complexo principal. Saltou do baluarte com leveza e seguiu o
carreiro, mantendo-se atento a quaisquer sons enquanto encetava a sua
exploração.

M argaret acordou, elevando-se ainda estremunhada e desorientada. Tinha


a cabeça a latejar de um modo estranho e sentiu a boca seca. Em
tempos, da primeira vez que lhe fora permitido beber vinho à mesa do pai,
também se sentira assim, mas agora não ingerira qualquer bebida alcoólica
com as refeições.
A luz era cinzenta, como se o dia ainda não tivesse verdadeiramente
despontado. Obrigando-se a sentar-se, inspirou profundamente para encher os
pulmões de ar e apercebeu-se de um estranho odor picante; não era
desagradável nem incómodo, mas apenas invulgar.
Na escuridão do quarto, viu a silhueta imóvel de Abigail na outra cama, com
a respiração a notar-se na subida e descida dos seios debaixo da coberta fina.
Abigail tinha o rosto contorcido, como se estivesse a ter um pesadelo.
E então Margaret recordou: fora um pesadelo que a despertara. Estava a ser
imobilizada por criaturas… não se conseguiu lembrar delas.
E então apercebeu-se de um movimento quando uma das duas estranhas
criaturas se agitou. Com a mão escorraçou-a e Margaret sentiu uma surpresa
entorpecente, como se as suas emoções fossem sufocadas pelo que quer que
lhe provocasse as dores de cabeça. A criatura pareceu-lhe estar a escovar o
cabelo para trás.
Margaret saiu da cama, obrigando as suas pernas enfraquecidas e renitentes
a moverem-se. Arrastou-se pesadamente pelo quarto até ao local onde estavam
sentadas as duas criaturas, com as cabeças unidas como se sussurrassem.
Margaret sentiu uma vaga pontada de preocupação. As criaturas tinham-se
transformado. Conforme a luz cinzenta começava a penetrar pela janela,
iluminando o quarto em tons de cinzento e preto, conseguiu perceber que a
pele das criaturas de alguma forma se tornara mais macia e mais leve, assim
como lhes crescia cabelo no cimo das cabeças. Margaret recuou um passo,
levando a mão à boca. Um das criaturas tinha o cabelo igual às madeixas
louras de Abigail, enquanto o da outra era exatamente do mesmo tom do seu.

M arcus preparou o seu arco, embora estivesse certo de que era Calis quem
se aproximava. Poucos homens, talvez apenas o pai de Marcus e alguns
entre os Guardas Florestais Nataleses, conseguiriam aperceber-se da sua
aproximação na escuridão do amanhecer.
— Pousai o vosso arco — sussurrou Calis.
Marcus levantou-se e pôs-se em marcha sem ser preciso que lho indicasse.
Teriam de ser muito discretos se pretendiam regressar pelo rio sem serem
vistos. Assim que se misturassem, em segurança, com o restante tráfego de
barcos no rio não passariam de uma embarcação entre muitas, mas alguém
avistado a sair daquela margem tão próximo da herdade do Grão-Conselheiro
seria considerado suspeito.
Assim que chegaram ao barco, Marcus começou a remar. — Encontrastes
alguma coisa? — perguntou.
— Nada de relevante. Uma coisa estranha: pareceu-me não haver guardas,
assim como poucos criados.
— Numa herdade daquele tamanho?
Calis encolheu os ombros. — A minha experiência com herdades humanas é
muito limitada. — Mostrando um sorriso forçado sob a luz prévia ao
amanhecer, acrescentou:
— Esta foi a primeira que vi.
— Pela dimensão daqueles muros e pela distância a que se estendem, achei
que lá dentro haveria uma cidade — comentou Marcus.
— Mas não há. Muitos jardins, edifícios vazios e vestígios estranhos.
— Vestígios?
— Pegadas como nunca vi antes, mais pequenas do que as de um homem
mas com uma forma de algum modo humana. Com riscos à frente dos dedos.
Marcus não precisou que lhe fosse dito que aquilo significava garras. —
Homens-serpente?
— Não saberei até ver um — referiu Calis.
— Pretendeis lá regressar?
— Tem de ser. Há muitos lugares que tenho de explorar se queremos
encontrar os prisioneiros e descobrir o que está aqui a ser orquestrado. —
Sorriu para sossegar o seu amigo. — Serei cauteloso e metódico. Explorarei
toda a herdade por fora antes de me dedicar ao interior. E explorarei isso antes
de me aventurar na casa grande.
Marcus não se sentiu tranquilizado, mas sabia que Calis era veloz e forte,
calmo e perspicaz. — Quanto tempo? — perguntou, referindo-se ao tempo que
demoraria a exploração.
— Talvez mais umas três ou quatro noites. A não ser que os encontre antes
de entrar na casa grande.
Marcus suspirou e não disse nada enquanto remava de regresso às docas na
outra margem do rio.
19

Explorações

A
pareceu um guia.
Marcus escolhera Amos e Ghuda para o acompanharem,
enquanto Harry e Brisa andavam a bater a cidade à procura de
pistas relativas ao destino dos prisioneiros. O relatório de Calis perturbara
Nicholas; a ausência de guardas e criados era apenas mais uma coisa que
não fazia sentido. Havia em tudo aquilo demasiados mistérios para o gosto
do Príncipe. A única possibilidade credível era a pista de que poderia estar
envolvido um sacerdote da serpente pantathiano, o que pouco sossegava
Nicholas. Não ficou também agradado com o plano de Calis de lá regressar,
mas não encontrou nenhuma boa razão para o impedir.
Anthony ficaria na hospedaria com Praji, Vaja e os outros homens, para
ouvirem e verem todas as coscuvilhices locais que pudessem descobrir.
Praji e Vaja optaram por ficar na hospedaria em troca de um bom
pagamento por parte de Nicholas, dado que ele ainda não revelara aos
mercenários locais todos os factos relativos à sua demanda, mas apenas os
suficientes para os satisfazer, aparentemente. Praji estava certo de que pelo
menos uma meia dúzia de agentes de outras companhias, os misteriosos
Rosa Negra, e de outros clãs andavam pelo salão a fazer perguntas
discretas.
Nicholas e os seus dois companheiros saíram da hospedaria. A
caminhada levou quase uma hora, o que deu a Nicholas a possibilidade de
observar melhor a Cidade do Rio da Serpente.
O bazar e os quarteirões dos mercadores que o rodeavam, assim como as
docas, eram uma espécie de território neutro, onde homens de todos os clãs
e alianças passeavam em liberdade; a paz era assegurada por uma guarnição
de guardas pessoais do Suserano. Esses soldados vestidos de negro
andavam aos pares por todo o lado e ocasionalmente era possível ver uma
patrulha de uma dúzia a passar rapidamente por entre a multidão.
Mas assim que saíram da zona comercial da cidade, tornou-se evidente
que estavam a entrar em algo parecido com uma zona de conflito. Tinham
sido erigidas barricadas nas extremidades das ruas, obrigando carroças e
cavaleiros a contornarem-nas lentamente para as transpor, de modo a que se
tornasse complicado encetar um ataque. Os homens viajavam em grupos.
As mulheres nunca eram vistas sem escolta. Muitas vezes, os transeuntes
passavam para o outro lado da rua em vez de confiarem na possibilidade de
Nicholas e os seus amigos serem inofensivos.
Nicholas reparou que todos aqueles que passavam usavam distintivos de
algum tipo. A maioria consistia em cabeças de animais, e estes, percebeu
ele, eram os símbolos de clã de que tanto Tuka como Praji haviam falado.
Os outros eram símbolos de mercenários, indicando a que Companhia eram
leais. Nicholas pensara em ter distintivos para os seus homens, mas teve a
esperança de que abandonassem a cidade de regresso a casa antes de ser
necessário dar esse passo. No seu entender, já ali estavam há demasiado
tempo.
Quando se aproximaram da casa do seu anfitrião, o lar familiar do Clã
Leão, Nicholas viu mais um exemplo do tipo de vida que suportavam os
habitantes daquela cidade: era um acampamento militar, e havia sentinelas a
vários quarteirões de distância da casa. A habitação tinha três pisos, com
uma torre de observação no alto do terceiro andar. Havia homens nas
plataformas de arqueiros e o muro exterior tinha mais de dois metros de
altura. Entraram pelo portão e Amos exclamou:
— Uma paliçada!
A área aberta entre o muro exterior e o interior estendia-se e dava a volta
aos cantos da propriedade. O muro interior erguia-se até aos três metros e
meio e a distância entre os dois muros era de quase dez metros.
— Há duzentos anos o Clã Rato e os seus aliados forçaram a entrada na
casa — informou o guia. — O chefe de clã da época foi exilado devido à
vergonha; o seu sucessor erigiu os dois muros para que isso nunca mais
voltasse a acontecer.
Vaslaw Nacoyen recebeu-os à entrada, acompanhado por uma dúzia dos
seus guerreiros do clã. Nicholas ficou grato por já terem conhecido antes os
jeshandi, pois era capaz de ver a relação entre aqueles dois povos. Os
homens de clãs da cidade podiam envergar trajes de seda fina e banharem-
se em águas perfumadas, mas estavam ainda unidos na forma de vestir e no
tipo de armamento. Os homens no alto do telhado tinham pequenos arcos de
montar a cavalo; não havia uma única besta ou arco longo à vista. Os
homens tinham o mesmo penacho de guerreiro que Mikola usara no seu
yurt e a maior parte deles usava bigodes compridos e pendentes ou barbas
cuidadosamente aparadas.
Vaslaw encaminhou-os para uma sala grande que mais parecia uma
câmara de reuniões do que uma sala de jantar. Uma mesa comprida
atravessava-a de um lado ao outro, posta para o jantar, com criados à
espera. Vaslaw fez sinal a Nicholas e aos seus convidados para que se
sentassem. O velho apresentou o seu único filho sobrevivente, Hatonis, e as
suas duas filhas. Yngya, a mais velha, parecia estar na fase final de uma
gravidez, e estava de pé de mão dada com um homem que Nicholas
assumiu ser o seu marido. A rapariga mais jovem, Tashi, com cerca de
quinze anos, corou e manteve os olhos apontados para baixo. A seguir,
Vaslaw apresentou Regin, o marido de Yngya.
Quando todos se sentaram, os criados começaram a servir uma série de
pratos distintos, pequenas porções em diversas travessas, e Nicholas
assumiu que era suposto experimentarem um pouco de tudo. Variados
vinhos foram servidos em cálices à direita de cada comensal, para serem
degustados com os diferentes pratos.
Durante o jantar, Nicholas aguardou que o seu anfitrião iniciasse as
conversas. O velho manteve-se calado durante a primeira parte do jantar. —
Viestes de longe, Capitão? — acabou por perguntar Regin.
Nicholas assentiu com a cabeça. — De muito longe. Estou, calculo eu,
entre os primeiros do meu povo a visitar esta cidade.
— Sois das Terras de Oeste? — perguntou Yngya.
O continente de Novindus estava grosseiramente dividido em terços. As
Terras de Leste, onde eles foram parar, eram compostas pelas Terras
Quentes, como era conhecido o deserto, e as Grandes Estepes, a terra dos
jeshandi, assim como pela Cidade do Rio da Serpente. As Terras dos Rios
compreendiam o coração do continente, e eram o território mais populoso
de Novindus. O Rio Vedra corria de sudeste, desde as Montanhas Sothu, até
esta rica zona agrícola. A oeste do rio ficava a Planície de Djams, uma
pradaria relativamente inóspita povoada por nómadas, mais primitivos do
que os jeshandi. Do outro lado, ficava uma larga cordilheira montanhosa, as
Ratn’gary – o Pavilhão dos Deuses – que corria para norte desde o mar até à
enorme Floresta de Irabek, que ficava entre as Ratn’gary e as montanhas
Sothu. Era para lá desta barreira norte-sul de montanhas e floresta que
ficavam as Terras de Oeste. O habitante comum das Terras de Leste pouco
sabia sobre as Terras de Oeste e quem lá vivia. Ainda menos era sabido do
Reino Insular de Pa’jkamaka, que ficava do outro lado, a oitocentos
quilómetros. Apenas uma mão-cheia de mercadores mais arrojados visitara
ocasionalmente essas cidades longínquas.
— Para quando esperais o vosso bebé? — perguntou Ghuda, libertando
Nicholas da obrigação de responder.
— Para breve — respondeu Yngya, sorridente.
Assim que foram levadas as travessas do prato de entrada, Nicholas
tomou a palavra. — Vaslaw, falastes na noite passada da minha necessidade
de aprender alguma história.
O velho assentiu enquanto sugava o último pedaço do recheio de uma
amêijoa e pousava a concha na travessa para que o criado a pudesse levar.
— Sim — respondeu. — Sabeis muita coisa sobre a história da cidade?
Nicholas revelou-lhe o que aprendera até então e o velho assentiu com a
cabeça. — Durante séculos, após nos termos livrado dos Reis, a assembleia
de chefes de clãs governou bem e a cidade viveu em paz. Muitas contendas
antigas foram resolvidas e tivemos muitos casamentos entre clãs, pelo que
com o passar do tempo estávamos a formar um povo unificado. — Fez uma
pausa para ordenar os pensamentos. — Somos um povo muito tradicional.
Na nossa própria língua, somos chamados de Pashandi, o que significa «O
Povo Justo».
— Sois da família dos jeshandi — observou Amos.
— Isso significa «Povo Livre». Mas nós somos, apenas, Shandi, «o
Povo». É-nos difícil largar as velhas tradições. Ainda é importante ser
caçador e guerreiro antes de tudo o mais. Sou um mercador bem-sucedido,
com barcos e comboios fluviais a partirem e a chegarem durante todo o ano.
Já fiz negócio nas Terras de Oeste duas vezes na minha vida, uma vez até
cheguei ao Reino de Pa’jkamaka, e a todas as terras do Vedra, mas a minha
riqueza não tem importância na assembleia do meu clã; foi o meu olhar
apurado e o meu talento com o arco, a minha capacidade de aproximação
furtiva à caça e o ser bom cavaleiro, a minha força com a espada, que me
outorgaram o poder de liderar.
O seu filho fitou-o com orgulho, assim como as suas filhas e genro. —
Mas ser o melhor com a espada e com o arco ou a montar não implica que
um homem seja um líder mais sábio — reconheceu Vaslaw. — Ao longo
dos anos, muitos chefes de clãs fizeram disparates por razões de orgulho e
honra, e muitas vezes os seus clãs sofreram por isso. A assembleia detinha a
última palavra na governação da cidade, mas só um chefe de clã podia
liderar o seu próprio clã. — Abanou a cabeça. — E então, há quase trinta
anos, começaram a acontecer coisas más.
— Coisas más? — perguntou Nicholas.
— Rivalidades tornaram-se rixas e foi derramado sangue e declarada
guerra aberta entre clãs. Há catorze clãs dos pashandi, Nicholas. No pico
das contendas, seis clãs – Urso, Lobo, Corvo, Leão, Tigre e Cão – estavam
unidos numa luta contra outros cinco – Chacal, Cavalo, Touro, Rato e
Águia. Alce, Búfalo e Texugo tentaram manter-se à parte da luta, mas
foram para lá arrastados.
»No pico da contenda, um capitão mercenário chamado Valgasha e a sua
companhia tomaram o edifício da assembleia. Anunciou que falava pelas
pessoas da cidade que não pertenciam a clãs e declarou que o bazar e as
docas estavam sob sua proteção. Matou todos os membros de clãs que
apareceram armados nessas áreas. Quase uniu os clãs contra ele, mas, antes
de podermos montar a nossa ofensiva, enviou mensageiros pedindo tréguas.
Reunimos com ele e convenceu-me e aos outros chefes a terminar com os
combates; assumiu o título de Suserano. Desde então, comportou-se como
árbitro e pacificador com os clãs, embora tenha havido muitos assuntos por
resolver desde então e as contendas prossigam.
— Estava convencido de que ele era o governante absoluto da cidade —
comentou Nicholas.
— E é, mas na altura ele parecia uma alternativa mais razoável às lutas
constantes. Quando a paz regressou, o poder dele cresceu. Primeiro,
transformou a Companhia de Mercenários dele em vigilantes da cidade, que
começaram por patrulhar o bazar e as docas, e depois o bairro de
mercadores. A seguir, criou um exército permanente, promovendo os seus
soldados mais antigos e leais a guarda privada, a Guarda Pessoal do
Esplendoroso, e expandiu o velho palácio dos reis e apoderou-se dele. E
então apareceu Dahakon. — Vaslaw praticamente cuspiu o nome. — Esse
porco assassino de coração negro foi o responsável por a cidade se
transformar num Principado, com Valgasha como Príncipe. Criou os
Exterminadores Escarlates, que são fanáticos que precisam de ser
retalhados aos pedacinhos, pois não pararão de lutar enquanto andarem à
solta.
— Quando é que tudo isso aconteceu? — perguntou Amos.
— Os problemas começaram há vinte e sete anos; há vinte e quatro, o
Suserano tornou-se senhor absoluto.
Nicholas olhou de soslaio para Amos, que assentiu com a cabeça. — E
em relação a esse ataque em que tropeçámos? — perguntou Nicholas.
Vaslaw anuiu com a cabeça na direção do genro. Regin disse:
— Alguns dos guerreiros mais jovens procuraram minar o domínio do
Suserano sabotando o pacto dele com um consórcio comercial para o Norte,
e agiram sem autorização dos seus chefes de clãs.
O velho suspirou. — Foi uma tontice, por muito valentes que tenham
sido. Tal revés representa pouco mais do que uma irritação para o Valgasha.
— Acho que temos uma causa comum — referiu Nicholas. — Tal como
eu disse, penso que o Suserano, ou alguém com poderes na sua corte, foi o
responsável pela morte dos vossos filhos. — Nicholas voltou a contar a
história que relatara na noite anterior, sobre o ataque, a presença do elmo de
um Exterminador Escarlate e a chegada dos soldados privados do Suserano,
mas com mais pormenores.
Foi Hatonis quem colocou a primeira questão. — Uma coisa: o que
estáveis lá a fazer?
Nicholas olhou de relance para Ghuda, que encolheu os ombros, e para
Amos, que deu a entender a Nicholas que deveria continuar a falar. —
Preciso que jureis que aquilo que vos contarei não sai desta sala — disse
Nicholas.
Vaslaw anuiu.
— Sou o filho do Príncipe de Krondor.
— O meu pai disse que o vosso pai governava uma cidade — comentou
Hatonis. — Nunca ouvi falar de Krondor. Fica nas Terras de Oeste, tal
como perguntou a minha irmã?
— Não — respondeu Nicholas. Durante uma hora, falou-lhes do Reino
das Ilhas e do Império do Grande Kesh, e da jornada deles através do mar e
dos ataques.
Quando acabou o seu relato, a refeição terminara e saboreavam
aguardentes e café adocicado. — Não vou chamar mentiroso a um
convidado meu, Nicholas — disse Vaslaw —, mas é-me difícil acreditar no
vosso relato. Só posso imaginar tais terras como as que descreveis se
inventadas por um contador de histórias; reinos longínquos, e exércitos de
dezenas de milhares de homens. Mas na vida real? Isso, acho impossível de
crer. No passado, tivemos a nossa quota de candidatos a conquistadores; na
altura em que vivíamos os nossos problemas, o Rei-Sacerdote de Lanada
tentou conquistar outras cidades ao longo do rio. O Suserano aliou-se ao
Rajá de Maharta para travar as suas ambições. Não, tais homens são sempre
detidos.
— Nem sempre — contestou Nicholas. — Os meus antepassados eram
conquistadores, mas hoje em dia são heróis da nossa História. — Deitou
uma olhadela a Amos. — Mas nós escrevemos a História — disse.
Amos sorriu mostrando os dentes. — O Nicholas nada mais diz do que a
verdade. Um dia, tendes de pegar num barco e visitar-nos, Vaslaw. Podereis
achar estranho, não duvido, mas é verdade.
Foi Regin quem colocou a pergunta seguinte. — Muito bem, o que
levaria uma entidade misteriosa a encetar uma guerra para lá de um mar tão
vasto, aquele a que chamam Mar Azul, por causa de saques e escravos,
quando há bens valiosos aqui tão perto?
Nicholas dirigiu-se a Vaslaw. — Dissestes que havia catorze tribos, que
nomeastes. Houve em tempos uma décima quinta?
O rosto de Vaslaw tornou-se carrancudo. Fez sinal aos criados para que
saíssem. Depois dirigiu-se aos seus outros convidados e às filhas. —
Também vós deveis sair.
Tashi pareceu prestes a protestar por ser excluída, mas o pai nem lhe deu
tempo e interpôs-se com um berro:
— Ide!
Quando ficaram na sala apenas Nicholas e os seus amigos e Vaslaw, o
seu filho e o genro, o velho disse:
— Hatonis é o meu último herdeiro homem e Regin deverá ser o novo
chefe do clã assim que eu morrer. Mas ninguém deve ouvir mais do que
falais. O que quereis dizer, Nicholas?
Nicholas retirou o talismã da bolsa e passou-o a Vaslaw. O velho fitou-o
atentamente. — Os Cobras estão de volta — afirmou.
— Cobras, pai? — disse Hatonis. Regin também pareceu perdido.
O velho pousou o talismã. — Quando eu era rapaz, o meu pai, que foi
chefe antes de mim, falou-me do Clã Cobra. — Permaneceu por momentos
em silêncio, e depois voltou a falar. — Em tempos, éramos uma vintena de
clãs. Três extinguiram-se, o Lobisomem, o Dragão e o Lontra, e mais outros
dois desapareceram em rixas de clãs ou guerras, o Falcão e o Javali.
Segundo se recordava o pai do meu avô, os Cobras, tal como nós, viviam
aqui na cidade. Houve uma traição e uma desonra tão sinistra que a nenhum
homem foi permitido falar do assunto, e os Cobras foram perseguidos, até
ao último homem, assim se pensou, e exterminados. — Baixou o tom de
voz. — Entendeis ao que nos referimos quando dizemos «até ao último
homem?» — Nicholas não precisou de responder. — Todos os homens,
mulheres e crianças de sangue Cobra foram perseguidos implacavelmente e
soçobraram pela espada, não importando a sua juventude ou inocência.
Irmãos mataram as suas próprias irmãs que desposaram Cobras. —
Reordenou os seus pensamentos. — Aqui, sois de fora, pelo que há muito
sobre os clãs que não compreendeis. Estamos unidos pelos nossos totens de
clã. Aqueles de entre nós que praticaram magia assumiram a forma deles, e
tomaram conhecimento da sabedoria deles. Falámos com eles e orientaram
os nossos jovens nas suas buscas. Algo sucedeu ao Clã Cobra, que em
tempos foi dos mais poderosos. Algo os levou para as trevas e para maus
caminhos, e tornaram-se uma maldição para os seus semelhantes.
— Olhai para isto — disse Nicholas, exibindo o anel. — Foi retirado da
mão de um moredhel, da família daqueles que conheceis como os de «longa
vida», junto ao lar do meu tio.
Vaslaw fitou demoradamente Nicholas. — O que é que nos estais a
ocultar? — perguntou por fim.
— Há uma coisa sobre a qual nunca poderei falar, pois custar-me-ia a
vida — referiu Nicholas. — Fiz um juramento, tal como o fizeram os meus.
Mas há agora algo que nos une, aqueles que comigo atravessaram o mar, e
vós, aqui. Temos inimigos comuns, e são eles que estão por detrás de tudo
isto que aconteceu, tenho a certeza.
— Quem? — perguntou Hatonis. — O Suserano e o Dakhanon?
— Talvez, mas se calhar algo acima desses dois — respondeu Nicholas.
— O que sabeis dos sacerdotes da serpente pantathianos?
A reação de Vaslaw foi instantânea. — Impossível! Estais a inventar
ainda mais histórias. São seres lendários e vivem numa terra misteriosa,
Pantathia, algures para oeste… cobras que caminham e falam como
homens. Essas criaturas só existem em histórias contadas por mães para
assustarem crianças malcomportadas.
— Não são uma lenda — afirmou Amos. Vaslaw fitou o velho lobo--do-
mar. — Já vi um. — Falou-lhes sucintamente do cerco de Armengar,
quando Murmandamus marchou sobre o Reino.
— Mais uma vez sinto-me tentado a chamar mentiroso a um convidado
meu — comentou Vaslaw.
Amos sorriu, mas não foi de modo caloroso. — Resisti à tentação, meu
amigo. Sou conhecido por de vez em quando efabular um pouco as coisas,
mas nisto, tendes a minha palavra: é verdade. E nunca sobreviveu nenhum
homem que me tenha acusado de faltar à verdade.
— Como reparastes, nada sei dos vossos costumes — realçou Nicholas.
— Mas, nesses tempos passados, terá sido possível que essa unicidade com
o totem deles pudesse tornar o Clã Cobra vulnerável à influência dos
pantathianos?
— Ninguém vivo conhece o horror que levou à obliteração do Clã Cobra,
Nicholas. Esse segredo obscuro morreu com os tais chefes de clãs que os
fizeram desaparecer.
— Mas por mais terrível que tenha sido esse ato, poderá ter sido algo
relacionado com os pantathianos, certo?
O velho pareceu abalado. — Mas se o povo Cobra está na raiz dos atuais
problemas, como poderemos resistir? Eles são fantasmas e não há nenhum
homem que alguma vez os tenha visto. Corremos em todas as direções, à
procura deles?
— Não perdemos a esperança — disse Amos.
— Porquê? — quis saber Regin.
— Porque também vi um pantathiano morrer.
— São criaturas mortais — disse Nicholas. — Ainda desconheço os
planos deles e sei apenas que o meu propósito deve ser encontrar aqueles da
minha terra e levá-los de volta. Mas, ao fazê-lo, acredito que essa simples
ação vai frustrar essas criaturas Cobra e levar a que me procurem.
— E o que pretendeis do Clã Leão? — questionou Vaslaw.
— Para já, paz — respondeu Nicholas. — Ficarei feliz se vos vingardes
dos responsáveis pela morte da vossa gente. Será condicente com o meu
plano, tenho a certeza. E posso necessitar da vossa ajuda.
— Se pudermos, assim o faremos — disse o velho. — Todos os chefes de
clã têm de fazer uma série de juramentos ao aceitar este cargo, mas há um
juramento particularmente importante, superior a todos, exceto proteger o
clã até à morte. Esse juramento implica perseguir qualquer Cobra. É
proferido como um ritual e em quatro gerações nenhum chefe de clã
esperou ter de o honrar. — Passou os dedos pelo talismã da cobra. — Até
agora.

C alis agachou-se bem atrás de uma cerca que o ocultou de um grande


edifício. Já tinha explorado diversos outros edifícios, tendo localizado
um depósito de armas, um complexo de armazenamento, um complexo de
cozinha e aposentos de criados, que estavam desertos. Havia indícios de que
até há bem pouco tempo os edifícios tinham sido utilizados. Estava em uso
outro complexo de cozinhas, onde preparavam uma grande quantidade de
comida, o que baralhou o semielfo, pois a casa principal apresentava-se
praticamente às escuras. Apenas uma área lhe pareceu ocupada, caso as
luzes à janela fossem um bom indicador.
Seguira um par de homens vestidos de preto, com panos vermelhos
atados à cabeça, que transportavam em baldes, desde a cozinha, estufado
quente. Acederam ao edifício grande através de umas portas duplas, abertas
por dois guardas vestidos de igual modo e com espadas e arcos.
Calis inspecionou a parede desde o seu ponto de observação. Não havia
janelas no edifício. Parecia simplesmente um enorme armazém. Olhou em
redor, à procura de alguém que pudesse estar por ali escondido, e depois
correu na direção da parede. Com um salto prodigioso, acedeu diretamente
ao telhado.
E quase tombou do outro lado. O edifício era um quadrado vazio no
meio, um corredor coberto em volta de um pátio aberto. O telhado era
estreito e inclinado, com não mais de cinco metros de largura, com uma
cobertura de telhas vermelhas sobre o que lhe pareceu ser uma área de
armazenamento.
Agachando-se, espreitou para a escuridão, com os seus olhos mais do que
humanos a mostrarem-lhe com clareza o que havia no pátio. Ensinado,
enquanto elfo, a manter para si as suas emoções, ficou ainda assim abalado
com o que viu. A sua mão agarrou com tal força o arco que os nós dos
dedos ficaram brancos.
Mais de uma centena de prisioneiros estavam no pátio acorrentados a
pesadas enxergas. Apesar de ser primavera, ainda estava frio à noite. Os que
estavam lá em baixo mostravam as marcas de terem sido mantidos no
exterior. Estavam macilentos e magros e muitos deles nitidamente doentes.
Pela quantidade de enxergas vazias, mais de metade dos que tinham sido
capturados na Costa Extrema haviam morrido.
Mas o que chocou e causou repulsa a Calis foi avistar as criaturas que
deambulavam por entre os prisioneiros. Eram imitações grotescas de
humanos. Moviam-se e gesticulavam, e alguns mexiam os lábios como se
falassem, mas as vozes não soavam bem, na sua maioria não passavam de
sílabas sem sentido. Os dois homens que transportavam o estufado
atravessaram o pátio, entregando uma tigela cheia a cada prisioneiro.
Calis avançou lentamente ao longo do pico do telhado, tentando
apreender o máximo possível do que o rodeava, ao mesmo tempo que
procurava Margaret e Abigail. Seria difícil organizar um resgate. Apesar de
não parecer haver muita gente de guarda aos prisioneiros, havia muito
terreno para cobrir na fuga da herdade e a maior parte dos que estavam lá
em baixo parecia quase não ter forças para se mexer, quanto mais correr.
Calis deu a volta completa ao edifício, tentando memorizar todos os
pormenores. Por momentos, observou duas criaturas que se acocoraram
junto a um par de prisioneiros. Uma criatura esfregou o cabelo de um
prisioneiro, que debilmente se tentou afastar. O gesto da criatura foi quase
acariciador. E então Calis percebeu: a criatura era parecida com o
prisioneiro! Voltou a observar atentamente a área e então percebeu
claramente que por cada prisioneiro acorrentado à enxerga, havia uma
criatura que começava a assemelhar-se a esse homem ou mulher! Calis
circundou o edifício pela última vez para se assegurar de que não se
enganara. Quando chegou ao local para onde saltara, pulou para baixo,
apressando-se para um lugar oculto atrás da cerca. Não viu sinais das duas
nobres de Crydee.
Calis sentiu-se assolado pela dúvida. Deveria regressar para junto de
Marcus e informá-lo sobre os prisioneiros ou continuar a busca? Regressou
para junto da parede exterior e percorreu o carreiro para ir ter com Marcus.

N akor observou com fascínio. Estava a fitar a figura imóvel na cadeira


há quase meio dia e, apesar de não ter havido qualquer movimento do
homem, Nakor estava mesmo assim arrebatado.
Desde que entrara no palácio, Nakor vagueara completamente à vontade
por entre as paredes e galerias. Lá dentro, não havia soldados, exceto no
átrio de entrada, e os poucos criados que avistara tinham sido facilmente
evitados. A maior parte das divisões não tinha uso – e estavam por limpar,
dadas as camadas de pó que lá encontrou. Foi-lhe fácil esgueirar-se até à
cozinha do palácio e tirar o que precisava, e tinha sempre as suas maçãs,
embora tivesse sentido algumas saudades das laranjas. Habituara-se a elas.
Dormira em camas macias e até tomou um banho e vestiu uma nova
túnica, uma que fora confecionada para alguém não muito maior do que ele.
Estava agora resplandecente com uma túnica lilás cortada pelos joelhos e
cotovelos, com uma faixa púrpura-escura ornamentada com fio dourado.
Ponderou na possibilidade de passar a chamar-se Nakor, o Cavaleiro
Púrpura, mas achou que o nome era pouco pomposo. Quando regressasse ao
Reino, iria procurar uma nova túnica azul, se arranjasse tempo para isso.
Nesse dia de manhã observara a bela Lady Clovis de cabelo negro a
passar apressada, e decidiu segui-la. Ela fora até às profundezas do palácio,
até uma câmara abaixo do piso térreo. Lá, encontrou-se com o Suserano e
conversaram por uns breves momentos. Nakor estava demasiado afastado
quando se escondeu, tanto para ouvir como para ler os lábios dele – um
truque que muitas vezes se revelava útil –, mas quando o Suserano se foi
embora, Nakor decidiu seguir a mulher. Algo nela era inquietantemente
familiar.
Ela entrara num túnel comprido e ele viu-se obrigado a ficar para trás
para não ser visto. Caminhou durante quase meia hora antes de chegar à
ponta mais distante do túnel, onde se deparou com uma porta trancada.
Abrir a fechadura retardou-o apenas ligeiramente e descobriu uma escadaria
descendente. Sem hesitar, apressou-se a descê-la, depois de fechar a porta
atrás de si, e entrou num túnel completamente às escuras. Nakor deteve-se.
Não tinha medo do escuro, mas não era dotado de uma visão ou audição
excecionais e estava hesitante em recorrer a algum dos seus truques de
luzes, pois poderiam ser confundidos com magia e não tinha nenhuma
vontade de ser devorado pelo Dahakon – caso fosse mesmo esse o costume.
Nakor começara a duvidar. Mas era uma boa história e Nakor era
suficientemente pragmático para considerar as consequências infelizes de
descobrir que não se tratava somente de uma história. Levou a mão ao seu
saco e apalpou uma outra costura que lá criara, uma que acedia a um lugar
diferente daquela que levava ao depósito de fruta em Ashunta. Enfiou o
braço até ao ombro e tateou a mesa que preparara antes de partir para
procurar Ghuda, há já quase dois anos. Levara uma série de artigos úteis
para uma gruta nas colinas junto a Landreth, a curta distância de Stardock, e
empurrara pedras para ocultar a entrada, protegendo assim o seu
esconderijo para que ninguém o descobrisse por acaso. Depois, criou
cuidadosamente a fenda naquilo a que chamava matéria, a uma altura e
distância adequadas da mesa para que ele pudesse alcançar o que quer que
estivesse na superfície, esticando o braço pela mochila.
Encontrou o objeto que procurava e atabalhoadamente retirou de lá uma
lanterna. Fechando a costura, fez uma pequena pausa. Cerrou os olhos e
deixou que os seus sentidos vogassem pelas linhas de poder que detetou a
passarem sobre ele. Nenhum distúrbio súbito no tecido da matéria anunciou
qualquer alerta sobrenatural. Nakor encolheu os ombros e sorriu na
escuridão. O efabulado e arcano alerta mágico não devia passar de mais
uma mentira. Tantas mentiras tinham sido desmascaradas na sua busca pelo
palácio e tinha a certeza que ainda revelaria mais antes do término desta
exploração. Enfiou a mão na bolsa que transportava no cinto e sacou de lá
sílex e aço, acendendo rapidamente a lanterna.
Agora que conseguia ver, parou e observou à sua volta. O túnel inclinava
ligeiramente para baixo e desaparecia na escuridão. Nakor seguiu-o até que
voltou a nivelar-se. Observou as paredes e viu bolor verde a crescer e poças
de água aos seus pés. Fechou os olhos, avaliou a distância que teria
percorrido desde que deixara o palácio e constatou que deveria estar agora
debaixo do rio. Sorrindo para si próprio, percebeu onde iria dar o túnel. O
destino deixou-o satisfeito, pelo que se apressou a seguir em frente.
Após ter caminhado durante mais cerca de meia hora, deparou-se com
uma escada que dava para cima, degraus de ferro cravados na parede do
túnel que desapareciam num buraco mais acima. Sem pressas, apagou a
lanterna com um sopro e trepou os degraus. Chegado ao cimo, bateu com a
cabeça numa superfície dura. Esfregando o inchaço, praguejou em silêncio,
e depois tateou a escuridão. Descobriu uma aldraba e puxou-a, e ouviu um
estampido metálico ao desprender-se. Empurrou para cima e o alçapão
moveu-se com um resmungo. Depois de tanta escuridão, quase cegou com a
luz. Espreitou cautelosamente para cima e constatou que estava num poço
coberto junto aos alicerces da quinta reduzida a cinzas. Deliciado com a
descoberta, baixou o alçapão ao regressar para baixo. Deixou-o destrancado
face à eventualidade de necessitar de sair apressadamente.
Assim que regressou ao túnel, voltou a acender a lanterna e seguiu
caminho. Deu com outro lanço de escadas e subiu-os até se deparar com
mais uma porta cerrada. Nesta, forçou cautelosamente a fechadura e,
quando a abriu, espreitou por ela. Não se apercebendo de sinais de
movimento, transpôs rapidamente a porta, fechando-a atrás de si. Apagou a
lanterna, pois havia tochas a arder em apliques ao longo da parede.
Guardando cuidadosamente a lanterna na mochila, vagueou na direção da
cave daquilo que, tinha a certeza, se tratava da herdade de Dahakon, do
outro lado do rio, em frente ao palácio. Coisas como túneis secretos e
passagens ocultas era algo que agradava a Nakor e achou um prazer a
exploração que estava a levar a cabo naquele dia. Além disso, ficou
fascinado com a bela mulher que não era quem aparentava ser.
Rondou por ali durante praticamente toda a manhã, à procura dela, mas
nada mais viu do que criados silenciosos usando túnicas e calças negras, e
faixas vermelhas amarradas em volta da cabeça. Ao meio-dia, sentiu o
cheiro a comida e aproximou-se furtivamente de uma cozinha num edifício
junto às traseiras da casa principal. Viu três homens a sair, dois deles
transportando um caldeirão quente de comida. Enfiando-se na cozinha, bem
agachado, espreitou para o edifício e viu dois cozinheiros a trabalhar
arduamente. Roubou um naco de pão quente junto à porta e regressou,
agachado, ao exterior. Dobrando uma esquina, quase foi de encontro a um
par de homens vestidos de negro, mas, felizmente para ele, estavam de
costas voltadas. Seguiu apressadamente no caminho oposto e escondeu-se
por momentos atrás de uma cerca.
Mastigando o pão, resolveu investigar a casa principal antes de rondar as
imediações. Assim que começou a erguer-se, reparou em algo estranho na
erva. Baixando-se para se aproximar da erva, viu uma pegada, quase
irreconhecível, porque as folhas já praticamente tinham recuperado após
terem sido pisadas. A atenção de Nakor foi atraída pelo modo como quem
quer que ali tivesse estado se movimentou para não deixar terra entre a
erva, nem esmagar ou partir as folhas. Sorriu, pois nenhum ser humano
poderia ter feito aquilo. Calis estivera ali na noite anterior.
Nakor ficou satisfeito, pois agora sentia-se menos preocupado com a
necessidade de regressar e informar Nicholas sobre o que descobrira. Além
disso, não estava bem certo do que encontrara, pelo que achou melhor
investigar e ter a certeza antes de regressar à hospedaria. E, tal como via as
coisas, estava a divertir-se à grande.
De novo dentro da casa, descobriu uma série de quartos no centro do
edifício. Dentro deles, encontrou vestígios dos tipos de práticas que foram
atribuídas a Dahakon. Havia na parede restos mortais de uma série de
infelizes, pendurados em ganchos ou empalados em estacas, ou sobre
prateleiras. Um pobre homem estava pendurado num gancho pelo peito,
apenas com uns milímetros de pele no corpo. Uma grande mesa do tamanho
de um homem estava recoberta de manchas castanhas que nada mais
poderiam ser do que sangue e a sala tresandava a químicos, incenso e
decomposição. Numa outra divisão, Nakor encontrou uma biblioteca, que
quase fez o seu coração saltar-lhe do peito. Tantos livros que nunca lera!
Dirigiu-se à prateleira mais próxima e observou os títulos. Alguns conhecia
de já ter ouvido falar, mas uns quantos eram-lhe estranhos.
Ia a deitar a mão a um livro, quando a cautela lhe travou tal impulso. Fez
um esgar e fitou os livros com as pálpebras a tremer, quase fechadas, mas
abertas o suficiente para deixar entrar luz. Ele não sabia como funcionava
aquele truque, mas descobriu que, ao fazer aquilo, conseguia ver certos
sinais de truques, ou aquilo que outros insistiam ser magia.
Passado um bocado, detetou um débil brilho azul. — Armadilhas —
sussurrou. — Não é bonito.
Voltou as costas aos livros e passou para outra divisão. Ao abrir a porta,
sentiu o coração a saltar ao ficar de olhos nos olhos com um outro homem
sentado numa cadeira. Era Dahakon!
O homem não se mexeu um milímetro. Nakor esgueirou-se pela porta e
fechou-a atrás de si e viu que o corpo do mago estava imóvel e os olhos
fixos no vazio. Nakor dirigiu-se a ele e inclinou-se para o olhar fixamente
nos olhos. Passava-se ali algo, tinha a certeza, mas, fosse o que fosse, ele
não estava a prestar atenção a Nakor.
E então Nakor viu o outro Dahakon, e sorriu. Apressou-se na direção da
figura que se mantinha imóvel encostada à parede e observou-a
atentamente. A coisa tresandava a especiarias e a fragrâncias compradas a
um vendedor de colónias e perfumes. Nakor tocou-lhe na mão e retirou
rapidamente a sua; a coisa estava obviamente morta. Nakor fitou os olhos e
ponderou no que vira nas duas outras divisões prévias. Agora sabia para que
servira a pele do pobre homem.
Atrás do Dahakon genuíno havia uma mesa de estudo, com rolos de
pergaminho e outras coisas interessantes, pelo que Nakor se sentou e
começou a vasculhar tudo.
Passaram-se horas e investigou tudo o que havia de interesse na sala. Na
secretária, descobriu uma lente de cristal e, ao olhar através dela, Nakor
descobriu que conseguia ver sinais reveladores da energia de truques. A
auréola azul em redor dos livros na sala ao lado espalhou-se, embora só
conseguisse ver parte dela através da porta aberta. E uma luz vermelho-vivo
brilhou em redor de Dahakon, um fio da qual se erguia através do teto. —
Pug? — sussurrou Nakor, e repente tudo fez sentido. Nakor percebeu, com
uma certeza absoluta, o que estava a prender a atenção de Dahakon. Sem
pedir autorização, enfiou a útil lente no seu saco.
Levantou-se, passou apressadamente pelo mago imóvel e começou a
percorrer o caminho de volta para a cidade. Entendeu que sair pela casa
carbonizada o pouparia à irritação de se esgueirar do palácio, embora fosse
obrigado a nadar para atravessar o rio. Lamentando as implicações que isso
teria na sua túnica nova e refinada, seguiu em frente.

M argaret tentou correr, mas os seus pés não se mexeram. Olhou por
cima do ombro, mas não conseguiu ver o que a perseguia. Mais à
frente viu o seu pai; abriu a boca para gritar a pedir ajuda, mas não
conseguiu produzir nenhum som. Sentiu o pânico crescer dentro dela e mais
uma vez tentou gritar. A coisa atrás dela estava quase a alcançá-la.
Conforme foi tomada pelo terror, ela abriu a boca.
Acordou aos gritos. O som espantou as duas criaturas no quarto, que se
afastaram. Margaret estava a transpirar abundantemente. A sua camisa de
noite colou-se ao corpo quando afastou a roupa da cama e passou para a
cama de Abigail. Mal se aguentava em pé, mas pela primeira vez em dias
tinha a mente completamente desperta.
Sentou-se na beira da cama de Abigail e sacudiu-a. — Abby! — chamou,
mas mantendo a voz baixa.
Abigail mexeu-se, mas não acordou. — Abby! — repetiu, enquanto a
abanava.
Uma mão pousou então no ombro de Margaret e ela sentiu o coração
saltar. Girou para ameaçar a criatura, mas, em vez de um ser estranho, era
Abby quem estava atrás dela. Margaret levantou-se e encostou-se à parede,
com os olhos arregalados de medo. A segunda Abby estava nua, e perfeita
em todos os pormenores. Margaret já tomara banho suficientes vezes com a
sua amiga para reconhecer o pequeno sinal de nascença sobre o umbigo, e a
cicatriz no joelho provocada quando, em criança, um irmão a empurrara.
Tudo na segunda Abby era perfeito, a não ser os olhos. Estavam mortos.
Num sussurro distante, a segunda Abby disse:
— Regressai para a cama.
Margaret deitou uma olhadela para trás de si enquanto se dirigia à sua
própria cama e viu que a segunda criatura se estava a sentar, de boca
escancarada, no canto. Os olhos de Margaret arregalaram-se quando se viu
a si própria, também nua, do outro lado do quarto. O grito de Margaret
rasgou a noite.
20

Planos

N
icholas olhou para cima.
Nakor entrou na estalagem, ainda a pingar por ter atravessado o
rio a nado. O homenzinho atravessou o salão cheio de gente e
sentou-se à mesa com Nicholas, Amos, Harry e Anthony. Praji, Vaja, Ghuda
e Brisa estavam sentados na mesa ao lado.
— Há alguma coisa quente para comer? — perguntou, com um sorriso
nos lábios.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Harry, podes arranjar qualquer coisa
de comer para o Nakor? — Harry levantou-se. — Por onde é que andastes?
— perguntou Nicholas.
— Por aí. Em montes de lugares. Vi muita coisa. Coisas interessantes.
Mas não devemos falar delas aqui. Depois de eu comer.
Nicholas assentiu. Harry regressou com um prato de comida quente e
uma caneca de cerveja e toda a Companhia se sentou em silêncio a ver o
homenzinho comer. Não mostrou desconforto por ser objeto de tanto
escrutínio silencioso. Quando terminou, levantou-se. — Nicholas,
precisamos de falar — anunciou.
Nicholas ergueu-se. — Amos? — disse.
Amos anuiu e seguiu-os. Entraram no quarto de Nicholas. — Acho que
sei onde estão os prisioneiros — anunciou Nakor.
— O Calis encontrou-os — revelou Nicholas. Reproduziu o que Calis lhe
contara.
— Mas não a Margaret e a Abigail — acrescentou Amos.
Nakor assentiu vigorosamente com a cabeça, com o rosto amplamente
sorridente. — Eu sei que o Calis lá esteve. Vi as pegadas dele. Ele é muito
bom. Mesmo um bom batedor não as teria visto, mas eu estava deitado a
esconder-me e fiquei com o nariz a uns milímetros. — Riu por entre dentes.
— Como é que entrastes naquela herdade? — quis saber Nicholas.
— Descobri uma passagem desde o palácio que passa sob o rio.
Amos e Nicholas entreolharam-se boquiabertos de espanto. — E como é
que entrastes no palácio? — perguntou Amos.
Nakor contou-lhe como o fez e algumas das coisas que viu. — Esse tal
Suserano é um homem estranho. Preocupa-se com coisas muito parvas:
cerimónias e raparigas bonitas.
Amos sorriu. — Bem, em parte tendes razão, as cerimonia são parvas.
— Acho que ele não passa de um instrumento — revelou Nakor. — Acho
que esse tal Dahakon e a sua amiga são quem controla tudo. O tal Suserano
age como um homem a quem controlam a mente; ele desempenha o seu
papel. A mulher que está com o Dahakon… é muito interessante.
— Isso não me interessa — referiu Nicholas. — E quanto à Margaret e à
Abigail?
Nakor encolheu os ombros. — Devem estar algures na casa grande. Não
vi. Posso regressar e procurar.
Nicholas abanou a cabeça. — Esperai até que o Calis regresse. Não vos
quero por lá a tropeçar um no outro.
Nakor sorriu. — Isso não acontecerá. Há coisas nele que são muito
especiais e sei como esconder-me.
— Seja como for, esperai até amanhã — disse Nicholas. — Se ele as
encontrar, não precisais de lá voltar.
A expressão de Nakor tornou-se séria. — Não. Eu vou regressar.
— Porquê? — perguntou Amos.
— Porque sou o único que pode enfrentar a amiga do Dahakon e
sobreviver.
— É uma feiticeira? — perguntou Nicholas.
— Não — respondeu Nakor. — Como é que vamos regressar a casa?
Amos esfregou o queixo. — Há dois barcos no porto, qualquer um deles
serve; são cópias de navios do Reino.
— Tudo isto é muito estranho — referiu Nakor. — O Dahakon está a
fazer cópias de pessoas.
— Cópias? — questionou Nicholas.
— Sim. Fez uma cópia de si mesmo. Foi o que vi quando o Suserano
estava a anunciar o seu casamento com a Ranjana. Era uma cópia muito boa
de ver, se não vos aproximásseis demasiado, mas é estúpido. Não consegue
falar, pelo que a sua amiga falou por ele. Cheira muito mal. Acho que em
breve deve fazer um novo.
— Como é que ele cria as cópias? — perguntou Amos.
Lembrando-se da divisão com os corpos, Nakor respondeu:
— A partir de mortos. Na verdade, não quereis saber.
— Mas os prisioneiros não estão mortos — referiu Nicholas.
Nakor assentiu. — Essa é a parte estranha. Truques diferentes. O
Dahakon é um necromante. Os truques que o Calis viu não são truques de
morte, mas… — encolheu os ombros — outra coisa qualquer. São truques
para manipular criaturas vivas. Estas cópias não serão estúpidas e não
cheirarão mal. Não, é esse o truque do Dahakon.
— Bem, uma coisa é evidente — comentou Amos.
— A mim, nada me parece evidente — confessou Nicholas. — O que é?
— Eles vão levá-los para casa.
— Aos prisioneiros? — perguntou Nicholas.
— Não — respondeu Nakor. — Às cópias.
Amos afagou o queixo. — Mas não sabemos porquê.
— Espiões? — indagou Nicholas.
— Muito trabalho para tão pouco ganho — disse Amos. — Se o Gaivota
Real velejar para um porto do Reino, será levantada uma série de questões,
e essas cópias não vão escapar a um escrutínio atento. É muito mais fácil
infiltrar um par de tipos em Krondor ou Crydee, ou onde quer que seja,
como o mercador quegan que foi a Crydee antes do ataque. Não, trata-se de
outra coisa qualquer.
— Podemos descobrir — disse Nakor. — Só que vai levar algum tempo.
— Acho que o tempo está a esgotar-se — comentou Nicholas.
— Porquê? — perguntou Amos.
— É uma sensação que tenho. O Calis disse que muitos dos prisioneiros
já morreram. Não sabemos se tal se deve a essas cópias, mas, se
pretendemos salvar alguns deles, temos de agir rapidamente.
Amos encolheu os ombros. — Tanto quanto o Calis disse, não estarão em
grandes condições de fugir.
— Nakor, que distância vai desde o lugar onde estão cativos os
prisioneiros até ao túnel? — perguntou Nicholas.
— Não é muito longe — respondeu. — Mas será difícil. Os prisioneiros
terão de passar para a casa grande, passar pela cozinha e chegar até junto
dos aposentos do Dahakon.
— Quantos criados e guardas vistes por lá? — perguntou o Príncipe.
— Não muitos, mas pode haver mais por perto.
— O Calis diz que não — referiu Nicholas. — Acima de tudo, o
Suserano e o seu Conselheiro parecem ambos sustentar o seu poder na
reputação, e não em centenas de homens armados.
— Talvez não desejem um monte de testemunhas e não disponham assim
de tantos homens em quem possam confiar — arriscou Amos.
— Assim que o Calis localizar as raparigas, acho que estará na hora de
deixarmos esta cidade — referiu Nicholas. — Se conseguirmos encaminhar
os prisioneiros para aquela casa incendiada e ter lá alguns barcos à espera,
podemos descer o rio rumo ao mar, e recolhê-los.
— O que significa que teremos de roubar um daqueles navios — disse
Amos.
— Podemos fazê-lo?
Amos mostrou um ar carrancudo. — Não dispomos de homens
suficientes. Com trinta e cinco homens… Preciso de pelo menos duas
dúzias para lá ir e retirar o barco do porto, e só poderão ser tão poucos se
houver apenas um posto de vigia a bordo e o resto da tripulação andar pela
cidade. Se tiverem uma dúzia que seja de homens a bordo, será uma luta
renhida, e posso não ter pessoal suficiente para escapar antes de os outros
aparecerem.
— Isso deixar-me-á apenas com onze homens para tirar de lá os
prisioneiros — disse Nicholas.
— Podeis obter alguma ajuda — disse Nakor.
— Talvez o Vaslaw possa ajudar — disse Nicholas.
— Os homens dele provavelmente serão excelentes guerreiros no que
toca a cavalgar e a fazer uma grande barulheira — disse Amos —, mas
precisamos de gente habituada a andar pela calada para entrar e sair da
herdade.
— Talvez a Brisa possa falar com os larápios? — sugeriu Nicholas.
Amos, frustrado, esfregou a mão no rosto. — Talvez, mas, pelo que ela
disse, eles parecem ser um bando algo tímido e miserável; nada que se
pareça com os nossos Mofadores. Talvez o Praji e o Vaja consigam
encontrar-nos uma meia dúzia de rapazes de confiança que demonstrem
alguma coragem em troca de uma justa quantia de ouro.
— Ides encontrar alguém — afiançou Nakor. — Vai correr bem. —
Voltou-se para a porta.
— Onde ides? — indagou Nicholas.
— Vou dormir — respondeu com um sorriso. — Não tarda nada, vai
haver muito barulho e confusão, com muitas pessoas a correr para a frente e
para trás.
Foi-se embora, e Amos abanou a cabeça. — É o homem mais estranho
que alguma vez conheci, e já tive a minha dose de homens estranhos.
Nicholas não conseguiu travar o riso. — Mas tem sido de uma grande
ajuda.
Amos recordou as cautelas de Arutha em relação a dar ouvidos a Nakor e
sentiu o seu próprio sorriso a esmorecer. Havia algo de sombrio a
aproximar-se deles, e a grande velocidade, e Amos sabia que, das vezes em
que sentira isso antes, bons homens tinham morrido.
Sem dizerem mais nada, regressaram ao salão.

–N icholas, posso falar-vos? — solicitou Anthony. Nicholas, que


regressava ao seu quarto, assentiu com a cabeça, indicando com a
mão ao jovem mago para que o seguisse. Anthony fechou a porta que dava
para o seu próprio quarto, atravessou o corredor e entrou atrás de Nicholas.
— O que se passa? — perguntou Nicholas, tentando reprimir um bocejo.
A tensão de esperar pelo regresso de Calis estava a deixá-lo de rastos.
Sentou-se na cama e fez sinal a Anthony para que se sentasse na única
cadeira junto à pequena mesa providenciada pelo estalajadeiro.
Anthony pareceu pouco à vontade para falar e Nicholas tentou ser
paciente. Descalçou as botas e fletiu a perna esquerda.
— Dói? — perguntou Anthony.
Agitando os dedos do pé esquerdo, Nicholas respondeu:
— Não. Sim. Quero dizer, não. Está… um pouco perro, nada mais. Não é
dor, é só… Lembro-me de como dói, quando me fatigo em excesso. Trata-
se de antecipação da dor, se é que isso faz sentido, igual a um qualquer
desconforto real.
Anthony anuiu. — Faz sentido. Os velhos hábitos são difíceis de
esquecer, e os velhos medos são hábitos.
— Do que pretendeis falar? — perguntou Nicholas, sem disposição para
conversar sobre as suas preocupações pessoais.
— Sinto-me sem préstimo.
— Todos nos temos sentido assim, tendo de esperar — comentou
Nicholas.
— Não, refiro-me a quando há coisas em curso. Nessas alturas não me
sinto como sendo de grande ajuda.
— Poderei lembrar-vos que se não tivésseis conseguido seguir a
Margaret, poderíamos andar ainda todos no mar, a morrer de fome e de
sede?
Anthony suspirou. — Daí para cá.
— Evitastes, pelas minhas contas, a morte de pelo menos três homens.
Não é suficiente?
Anthony expirou um prolongado suspiro. — Talvez tenhais razão. —
Levou a mão ao interior da túnica e tirou de lá o talismã que Pug dera, de
início, a Nicholas. — Às vezes penso se estará na altura de utilizar isto. O
Pug disse que eu saberia quando o fazer.
— Se não sabeis, não o useis — ripostou Nicholas. — Segundo Nakor,
ele referiu que era para ser usado quando não houvesse outra escolha.
Anthony assentiu. — Foi o que ele disse. Mas ainda não encontrámos a
Margaret e a Abigail.
Nicholas inclinou-se para a frente e pousou a mão no ombro de Anthony.
— Já passámos todos por um mau bocado nesta busca pelos prisioneiros,
Anthony. Sei o que sentis em relação à minha prima…
Anthony baixou o olhar e pareceu tremendamente embaraçado. — Tentei
ocultá-lo.
— E conseguistes quase sempre fazê-lo bem. — Nicholas recostou-se de
novo. — Também sinto algo pela Abigail, embora ultimamente me pareça
mais um afeto infantil. — Olhou para Anthony. — Mas consigo perceber
que os vossos sentimentos são mais profundos. Já lhe dissestes algo?
— Não me atrevi — disse Anthony, quase num sussurro. — Ela é a filha
do Duque.
Nicholas sorriu. — E depois? Já antes tivemos magos na família, e a
Margaret não é exatamente o exemplo acabado de uma donzela da corte.
— Sinto-me muito mal só de pensar que posso nunca mais ter a
oportunidade de lhe dizer algo — referiu Anthony.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Compreendo. Ainda assim, se
conseguirmos levar de volta para casa, para a Costa Extrema, nem que seja
só um daqueles desgraçados, agimos corretamente por aqueles que
procuram a proteção da coroa. — Depois, falou num tom sombrio. —
Mesmo sendo demasiado tarde para a Abigail e a Margaret.
— Tendes um plano?
Nicholas suspirou. — Não tenho tido mais nada para fazer a não ser
sentar-me e planear. Acho que estamos a esgotar o nosso tempo. Não sei
dizer-vos porquê, mas é algo que eu… sinto.
— Uma intuição.
— Talvez. Não alego ter poderes mágicos. Sei apenas que, se não
agirmos em breve, será demasiado tarde.
— Quando planeais avançar?
— Vou falar com o Praji e o Vaja logo pela manhã — revelou Nicholas.
— Não quero que decorra muito tempo entre recrutar alguns espadachins e
agir; assim há menos tempo para que os Rosa Negra do Suserano
descubram o que estamos a planear. Se arranjarmos vinte homens de
confiança, iremos tentar roubar o navio amanhã depois do anoitecer, e
resgatar os prisioneiros antes que amanheça. Se não arranjarmos vinte,
avançaremos na noite a seguir com os que conseguirmos contratar.
— Será bom entrar em ação — comentou Anthony.
Nicholas assentiu. Anthony levantou-se e saiu. Nicholas deitou-se na
cama de barriga para cima, a fitar o teto de madeira enquanto pensava.
Estaria mesmo a sentir alguma espécie de intuição que os levaria a regressar
a casa antes que acontecessem mais desastres? Ou a impaciência dele iria
levá-los a mais uma tragédia? Quando estava com Amos e Ghuda, a falar
com os outros, sentira-se resoluto. Tinha a noção de que o seu treino em
casa fora concebido para o dotar das melhores ferramentas possíveis para
tomar decisões complicadas, mas, quando estava sozinho, as dúvidas
regressavam, e com elas os seus receios. O pé dele latejava sempre à noite
antes de adormecer e sabia que não bastava desejar que a dor desaparecesse.
Precisava de estar certo. Vidas dependiam disso. Sentiu vontade de chorar,
mas estava demasiado cansado.

C alis escutou e aguardou. Dois homens passaram mais abaixo, a falar


em voz baixa e ignorando que ele estava logo acima deles, a salvo,
escondido na sombra de uma árvore. A folhagem profusa e a escuridão
serviram para o ocultar. Esperou até que desaparecessem para lá de uma
esquina e depois desceu, aterrando no interior do pátio. Aguardou, à escuta.
O facto de estar do outro lado do muro não implicaria que os dois homens
não o tivessem ouvido.
A cautela dele era excessiva: nenhum humano poderia ter ouvido o débil
som da sua passagem: não houve grito de alarme, nem se deu nenhum
ataque. Olhou em volta para o jardim. Era pequeno, com um pequeno lago
artificial ao centro. Por cima, fora colocado um pano transparente para deter
os inclementes raios de Sol durante as horas mais quentes do dia, mantendo
em simultâneo o jardim iluminado. Estavam abertas no pequeno refúgio
portas e janelas amplas. Calis já investigara dois outros jardins semelhantes,
e verificou que estavam ambos desertos, repletos de erva alta e com os
lagos cheios de água estagnada. Este apresentava-se bem tratado e limpo.
Calis apressou-se a atravessar a extensão relativamente exposta e
espreitou pela janela. Estava com as portadas cerradas, mas por entre o
gradeado viu um vulto numa cama. O cabelo era de um tom amarelo-claro à
luz da lanterna, mas Calis não logrou distinguir as suas feições. Deveria ser
Abigail, pela descrição que ouvira diversas vezes. Margaret conhecia ele de
vista, mas aquela rapariga era-lhe desconhecida, pois chegara a Crydee após
a sua mais recente visita anterior ao ataque. Alguém menos cauteloso teria
arriscado que se trataria de uma das pessoas que procurava, mas Calis
contava com a paciência de uma raça que media a duração de uma vida em
séculos.
Afastou-se da janela e observou a porta. Era de madeira, com um único
puxador e aparentemente não tinha tranca. Ficou por uns minutos à escuta e
não ouviu nenhum som que revelasse movimento.
Deitou a mão ao puxador, mas algo o fez deter-se. Regressou à janela e
olhou de novo. Ouvira um som, embora não tivesse tido consciência dele.
Percebeu então de onde viera. Uma outra rapariga estava sentada na cama
junto à primeira e os olhos de Calis arregalaram-se. Era gémea da primeira.
Calis afastou-se da janela fechada. Tivera aquela visão aterrorizadora no
pátio grande fechado e deduzira, de algum modo, que criaturas estranhas
estavam a ser transformadas por poderes misteriosos e obscuros em cópias
das pessoas raptadas. Obviamente, o mesmo estava a ser feito com Abigail.
E então Margaret apareceu no campo de visão dele. Mas,
instantaneamente, sentidos mais apurados do que os de qualquer humano
constataram que não se tratava da filha do Duque Martin. Os movimentos
estavam errados, o modo como ela se aguentava de pé estava errado e a
expressão dela não era humana.
Sem saber o que fazer, Calis esperou. Foi algo em que não teve de pensar
duas vezes.

N icholas saiu da cama. Faltava uma hora para o Sol nascer, mas já não
conseguia dormir. Dirigiu-se ao quarto grande, onde dormia uma
dúzia de homens, seis camas encostadas a cada parede, e abriu caminho até
à enxerga onde dormia Praji. Vaja estava deitado do outro lado da divisão.
Nicholas sacudiu gentilmente o ombro de Praji e o mercenário acordou de
pronto.
Nicholas fez-lhe sinal para que o seguisse e Praji assim o fez. Não se deu
ao trabalho de calçar as botas ou vestir a capa, dado que Nicholas estava
também descalço e não usava roupa quente apropriada para sair.
— Vamos ter de tomar algumas decisões, nós os dois — revelou Nicholas
no salão deserto.
— Ides contar-me a verdade? — perguntou Praji.
— Trata-se de uma história muito comprida. Sentai-vos.
Praji puxou de uma cadeira enquanto se espreguiçava e bocejou. — Que
seja interessante, Capitão — disse, ao sentar-se pesadamente. — Não gosto
de ser acordado muito cedo. Na maior parte das vezes implica que as
pessoas precisam de matanças inesperadas. — O seu sorriso não era uma
visão agradável na obscuridade que antecedia o amanhecer.
Nicholas contou-lhe tudo, exceto o relativo à Pedra da Vida e ao Oráculo
de Aal, que a guardava bem nas profundezas da cidade de Sethanon. Mas
falou-lhe do seu pai, e do Reino e do ataque a Crydee. Assim que terminou,
a aurora já rompera e Keeler já estava no salão, a preparar mais um dia de
trabalho. Pouco depois, foi distribuído pão quente da padaria duas portas
abaixo, assim como fruta e queijo. Sem interromper, trouxe uma refeição
para Nicholas e Praji, movendo-se suficientemente rápido de modo a não
poder ser acusado de ouvir o que era dito em sussurros. Keeler era
suficientemente experiente com o modo como funcionavam as Companhias
de Mercenários para saber que a ignorância muitas vezes significava poder
manter-se no negócio ou, mais importante, vivo.
Quando terminou, Nicholas disse:
— Preciso de uma dúzia de homens… vinte seria melhor; devem ser de
confiança, e entretanto garantirei que valerá a pena o esforço. Devem estar
prontos a velejar connosco e a serem lançados na costa, pelo que terão de
ser suficientemente rijos para poderem regressar sem problemas. Conseguis
tratar disso?
— A questão não está em conseguir, está em querer. O que quereis dizer
com valerá a pena o esforço?
— Quanto achais que seria justo para roubar algo muito precioso ao
Suserano e ao seu feiticeiro?
Praji sorriu abertamente. — Por mim, seria um prazer fazê-lo só pelo
gozo. O nome desse sacana ainda está presente na minha lista. Se não posso
matá-lo cara a cara, posso pelo menos irritá-lo. Mas para convencer o
pessoal a enfrentar os soldados dele, especialmente tratando-se dos
Exterminadores Escarlates, isso sairá bem caro.
— Quanto?
— Um ano de salário de um guarda de caravana, penso eu. Digamos uma
centena de draks… talvez seja melhor pensar num pouco mais.
Nicholas tentou calcular quanto seria isso em grosso modo e quanto ouro
teria trazido do Pouso de Shingazi. — Se vos responsabilizardes pela
lealdade deles, oferecerei duzentos draks a cada homem, com mais cem
extra para vós e Vaja para garantir que eles são de confiança e seguem
ordens. Não quero agentes dos Rosa Negra infiltrados entre nós.
Praji anuiu. — Graças aos meus anos na estrada, conheço o dobro dos
tipos rijos necessários. Nenhum deles será, com certeza, um agente. Posso
levar o dia inteiro a encontrá-los e vou ter de mentir àqueles que não quero
que venham.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Dizei-lhes que estamos a preparar-
nos para transportar um mercador abastado e respetiva família pelo rio
acima, dez barcos com pessoal doméstico e criados. Dizei-lhes que o
mercador é muito picuinhas e exige a vossa garantia pessoal, pelo que não
podeis contratar ninguém que não conheçais. — E depois Nicholas
acrescentou:
— Gostaríeis de ser capitão?
— Ter a minha própria Companhia? — Coçou o queixo. — Não me iria
fazer mal.
— Ótimo, então dizei a quem quiser saber que o mercador vos dará o
suficiente para formardes a vossa própria Companhia e que só desejais
homens que vos são bem conhecidos.
Praji sorriu e assentiu. — Sois um estupor manhoso, Capitão. Poucos
homens desejam associar-se a uma Companhia que dá os primeiros passos,
a não ser que sejam velhos amigos. E agora, onde quereis que reúna os
homens?
— Dizei-lhes que se mantenham por perto. Alojai-os em estalagens nas
redondezas, em grupos de dois e três, e tende-os preparados para avançar
assim que eu der ordem.
— Bem, é melhor eu ir acordar o Vaja e deixá-lo comer algo… ele parece
uma velhota rabugenta se não tomar o pequeno-almoço de manhã. Deixai
que vos diga, torna-se difícil pô-lo de pé durante um cerco.
— Dizei também ao Tuka que venha ter comigo — pediu Nicholas.
Praji assentiu com a cabeça e foi-se embora. Conforme o dia ia nascendo,
outros começaram a entrar no salão e, quando Tuka apareceu, a coçar a
cabeça ainda meio estremunhado, Amos e Nicholas estavam à mesa a
comer com Nicholas.
— Hoje, vou precisar dos vossos talentos — anunciou Nicholas.
— O que devo fazer, Encosi? — perguntou Tuka.
— É muito difícil arranjar dez barcos fluviais para uma viagem rumo a
norte?
— Nem por isso, Encosi.
— E quanto tempo leva?
— Até ao meio-dia posso arranjar-vos esses barcos. Assegurar-me de que
conseguem fazer a viagem levará o resto do dia.
— Fazei-o em metade do tempo. Pelo pôr-do-sol quero-os atracados nas
docas, completamente aprovisionados.
Amos pousou o cotovelo na mesa, com o queixo apoiado na mão. —
Vamos partir?
— Em breve — anunciou Nicholas. — Fazei uma lista para o Harry e a
Brisa. — Depois, dirigiu-se a Harry. — Vai acordar a Brisa. Vocês os dois
vão com o Tuka. Inspeciona os barcos com ele; depois vai comprar
provisões. Assegura-te de que tudo o que conseguires arranjar é entregue
nas docas durante a tarde e que pelo pôr-do-sol já está tudo a bordo. Vou
pôr alguns soldados a guardá-los toda a noite. Quero que tudo esteja pronto
a partir uma hora depois de eu ordenar.
Harry assentiu com a cabeça. Entre a sua habilidade para a pedinchice e
regatear, e o à-vontade de Brisa para se desenrascar nas ruas, deveriam ser
capazes de obter rapidamente o que queriam, sem darem muito nas vistas.
Na Cidade do Rio da Serpente havia suficientes estrangeiros com sotaques
desconhecidos a encetar negócios, pelo que, com um pouco de recato,
passariam relativamente despercebidos.
Nicholas dirigiu-se a Amos. — Assim que o Marcus e o Calis regressem,
quero que vós e o Marcus ides pescar.
Amos assentiu e levantou-se da mesa. — Penso que a vossa ideia será
vermos como morde junto daqueles dois navios de guerra?
— Exatamente. Tudo isto será em vão se não nos apoderarmos de um
daqueles dois barcos e navegarmos para a boca do rio para recolher as
provisões e os prisioneiros dos barcos.
— Já tendes homens?
— Quando o Sol se puser, o Praji já nos terá arranjado uma vintena deles.
— Ainda assim, são escassos — constatou. — Vou necessitar da maioria
dos homens de Crydee para me apoderar daquele navio. Não posso contar
com espadachins contratados e poucos deles terão experiência de vida a
bordo.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Eu fico com o Ghuda, o Marcus e o
Calis, mas levai todos os que precisardes. Vou deixar os barcos fluviais
entregues ao Harry.
Amos olhou em volta conforme o salão se enchia de soldados e
marinheiros esfomeados. — Bem, a maioria dos rapazes ficará satisfeita por
entrar em ação. A espera estava a deixá-los nervosos. Para já ainda não
houve brigas, apenas algumas discussões feias e alguns deles mais
irritadiços.
— Acho que em breve terão muito com que se manter ocupados —
comentou Nicholas.

U ma hora mais tarde, Marcus e Calis entraram na estalagem. —


Encontrámo-las — anunciou Calis.
Nicholas fez sinal a Amos e a Ghuda, que o acompanharam até ao seu
quarto. — Onde estão? — perguntou.
E então a porta abriu-se e, quando Nicholas tinha já o seu sabre meio
desembainhado, entrou um sonolento Nakor, que bocejou antes de falar. —
Onde é que estão as raparigas?
— Há uns pequenos aposentos no canto sudeste da herdade, dois quartos
e um pequeno jardim. Um dos quartos está vazio. A Margaret e a Abigail
estão no outro.
— E elas estão bem? — quis saber Nicholas.
— É difícil de dizer. Vi duas Abigail.
— Estão a fazer cópias — disse Nicholas. — Porque é que não estarão
com os outros?
Calis encolheu os ombros.
— Talvez precisem delas por razões diferentes — disse Nakor.
— E com isso referis-vos às raparigas ou às cópias? — perguntou
Marcus.
— A ambas. — Nakor encolheu os ombros. — Calculo eu. Mas elas são,
entre os prisioneiros, as únicas da nobreza, certo? — Todos os outros
concordaram. — Então talvez estejam a ser estudadas mais
minuciosamente.
— Tendes razão — referiu Nicholas. — Mas como é que eles esperam
fazer passar todas estas imitações?
— Têm duas réplicas de navios de guerra do Reino. Para mim, é óbvio
que eles tentaram capturar o Águia Real em Barran, levá-lo algures para
perto de Porto Livre e afundá-lo.
— Esperai — disse Marcus. — E porque não trazê-lo até aqui? Porquê
tanto trabalho para fazer uma cópia?
— Talvez não dispusessem de homens suficientes para o trazer até aqui
juntamente com o navio preto — disse Amos. — Contrataram imensos
estrangeiros, incluindo esclavagistas de Durbin e assassinos tsurani.
Recrutaram homens de Kesh e renegados de Porto Livre. Talvez não
dispusessem de muitos homens para a viagem e de certeza que não queriam
testemunhas da nossa parte do mundo que viessem com eles até aqui. —
Coçou o queixo. — Já se sabia desde o último inverno que o vosso pai
pretendia estabelecer aquela guarnição em Barran, Marcus. E dado as
patrulhas regulares que eu estabeleci e o novo Dragão ser o novo navio
almirante da frota, o Águia seria quase de certeza o barco enviado para a
Costa Extrema. — Ele abanou a cabeça. — Isto já anda a ser planeado há
muito. Nicholas, se o Gaivota ou o Águia navegassem até Krondor, com
alguém no leme alegando ser um marinheiro normal e dizendo que todos os
oficiais tinham morrido, as pessoas a bordo poderiam convencer o vosso pai
de que tinham sido levadas para Kesh e que de algum modo tinham
conspirado com os sobreviventes do ataque para fugir, ou outro disparate
qualquer. Especialmente, se alinhassem todos pela mesma história. O
Arutha não teria razões para não acreditar neles e como a maioria dos
regressados seria da Costa Extrema, quem estranharia o comportamento
deles?
— Mas, mais cedo ou mais tarde, alguém de Carse ou Crydee iria visitar
a Abigail ou a Margaret — referiu Nicholas. Não se referiu a Martin, pois
tanto ele como Marcus sabiam que poderia estar morto.
— Ser raptado por esclavagistas mudaria uma pessoa — disse Ghuda —,
pelo que um comportamento estranho por uns tempos não levantaria
suspeitas. Já vi pessoas que não se lembravam da sua própria família após
sobreviverem a um ataque.
— Mas apenas por uns tempos — realçou Marcus. — Mais cedo ou mais
tarde alguém cometeria um erro e desmascararia tudo — disse,
pensativamente. — O que significa que eles não esperam que as imitações
sejam necessárias por mais de umas semanas, uns meses, no máximo.
— Então, regressamos à questão de saber, antes de mais, por que razão
engendraram isto. — Nicholas fez um gesto desdenhoso com a mão. —
Bem, se estão com falta de mão-de-obra, isso explica porque mantiveram
durante vinte anos esta cidade e região a ferver em lume brando.
— Referis-vos a causar secretamente problemas entre os clãs mas
passando a ideia de ser um mediador? — questionou Marcus.
Nicholas anuiu. — Faz sentido. Se o Suserano tem uma agenda secreta,
causar problemas a ele próprio, como uma aliança traída, faz todo o sentido.
Parece tanto vítima das conspirações quanto os clãs. Se tudo tivesse seguido
o plano, ele teria matado um monte de jovens membros dos clãs, alguns
mercenários, a Ranjana e as damas de companhia. Arriscou apenas uns
poucos homens em combate. — Nicholas abanou a cabeça. — E os clãs
teriam dado por eles na posição de tentarem persuadi-lo de que não eram
responsáveis!
— Claro! — disse Amos. — Se os clãs acham que o plano dele é
dominar a cidade e substituí-los, dariam as boas-vindas a qualquer revés
que ele sofresse. Mas se acham que é outra pessoa que está a tentar gerar
problemas, tentariam estabelecer a paz com ele. E ele, durante todo esse
tempo, na verdade nunca quis saber de consolidar o seu domínio. — O rosto
dele iluminou-se. — A aparência de força é tão boa quanto a verdadeira
força.
— Não há muitos soldados no interior do palácio — informou Nakor. —
Vi alguns nas casernas no exterior, mas lá dentro havia apenas uns quantos
no salão grande, e nenhuns nos outros sítios. Havia pouca gente a viver lá;
poucos criados ou guardas. Está quase tudo vazio. É como a herdade do
Dahakon.
— Fiquei com a mesma ideia — disse Calis. — Avistei apenas uns
poucos homens, nenhum deles armado, e a maior parte dos edifícios estava
deserta.
— Se não tivesse de combater realmente com ninguém, bastar-me-ia uma
centena de homens para aguentar aqui as coisas — anunciou Ghuda —,
especialmente se de quando em vez lhes mudasse os uniformes das
companhias, e dispusesse de uns quantos Exterminadores Escarlates.
— O que é que eles andam a preparar? — indagou Nicholas. — Porquê
estas cópias da nossa gente?
— Podemos especular mais tarde — disse Amos —, mas o que
precisamos de fazer agora é ver se conseguimos deitar a mão a um daqueles
navios.
Nicholas anuiu. — Marcus, sei que estais cansado, mas ide com o Amos.
Levai o Ghuda.
Eles partiram. — Calis, descansai um pouco — disse Nicholas. — A
seguir, vós, o Nakor e eu delinearemos um plano para entrar na herdade e
libertar os prisioneiros.
— Muito bem — disse Calis, e também se foi embora.
— Eu já descansei — comentou Nakor. — Vou às compras.
— Comprar o quê?
— Algumas coisas de que necessitarei. O Dahakon tem sido mantido
ocupado pelo Pug. Mas a mulher dele, a tal Lady Clovis, será uma fonte de
problemas para nós.
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Sabeis aquilo que o Praji disse de ela ser uma sugadora de almas?
Nicholas assentiu com a cabeça, com o rosto a expressar preocupação. —
E é mesmo?
Nakor abanou a cabeça com veemência. — Não, não. É só uma história
para assustar as pessoas.
— Isso é um alívio — disse Nicholas.
— Ela é outra coisa qualquer.
— O quê?
— Não sei. Tenho uma ideia. Mas não terei a certeza até falar com ela.
— Ides falar com ela? — Nicholas mostrou-se espantado.
Nakor sorriu. — Talvez. Preferiria evitá-lo, mas nunca se sabe; posso não
ter escolha. Sei que ela é muito perigosa.
— Porquê?
— Porque é ela que está a organizar as coisas.
— Este ataque?
Nakor abanou a cabeça. — Refiro-me a tudo. É ela quem controla o
Dahakon e o Suserano. Ela é o verdadeiro poder por detrás de todas as
coisas estranhas que ocorrem nesta cidade. É ela o verdadeiro perigo. Será
ela a estar em contacto com os pantathianos.
— Conseguis enfrentá-la? — questionou Nicholas.
Nakor riu-se. — Enfrentá-la é fácil. Sobreviver é difícil.
Nicholas viu-se obrigado a rir. — Do que precisais?
— Oh, de algumas coisas. E preciso que o Anthony venha comigo.
— Pedi-lhe, acho que ele aceitará.
— Provavelmente. É próprio dele — disse Nakor. — Regressarei antes
do anoitecer.
Saiu do quarto e Nicholas sentou-se, pensativo. Começou a reviver
mentalmente os passos do seu plano. O navio teria de ser tomado e
navegado através da parte exterior do porto até à desembocadura do rio,
onde iria encontrar-se com os barcos e embarcar a mercadoria e os
passageiros. Os barcos teriam de ser levados das docas fluviais até uma
praia junto à granja reduzida a cinzas para recolher os prisioneiros, para
depois descerem o rio até junto do navio. Os prisioneiros teriam de ser
libertados da herdade e transportados para a quinta e protegidos até à
chegada dos barcos.
Deixou-se cair de costas na cama e pousou o braço por cima dos olhos. O
seu pé esquerdo começou a latejar. — Isto nunca vai resultar — resmungou.

G huda estava de pé no telhado da hospedaria, sobre uma plataforma em


tempos utilizada para avisar quem estivesse lá dentro da aproximação
de problemas. Praji e Nakor treparam a pequena escada que vinha desde o
interior do edifício.
— O que estais aqui a fazer em cima? — perguntou Praji. — O Nicholas
quer que o ajudemos a traçar planos.
Ghuda levantou a mão. — É só um minuto.
— Oh — disse Nakor.
Ghuda apontou para o Sol poente. — Em tempos dissestes: «Há ocasos
sobre outros oceanos, Ghuda. Paisagens deslumbrantes e grandes
maravilhas para contemplar.» Lembrais-vos?
Nakor sorriu mostrando os dentes. — Para vos convencer a vir.
Ghuda também sorriu. — Nunca parei para observar um. Tendo em conta
que esta pode ser a minha última oportunidade…
— Que conversa deprimente — comentou Praji.
Ghuda encolheu os ombros. — Não sou muito dado a premonições, nem
a fatalismos, mas no nosso tipo de trabalho…
Praji anuiu, sem dizer nada.
O Sol baixou sobre a cidade. Do ponto de observação deles, na
extremidade sul do bazar, um vasto mar de telhados espraiava-se em todas
as direções. Num dos lados, a cidade curvava para trás ao longo da baía, e o
estuário ficava no outro, pelo que para lá dos edifícios a oeste, conseguiam
lobrigar o mar, uma estreita faixa de água azul ao longo do horizonte.
O Sol afundou-se ainda mais, uma bola cor de laranja parcialmente
dissimulada pela bruma noturna, humidade proveniente da água. Nuvens
baixas tinham as faces negras, com reflexos prateados, dourados, rosa e
laranja, e o céu estava raiado a vermelho e dourado.
O globo solar baixou até desaparecer e, no derradeiro instante, viram um
clarão verde. Ghuda sorriu. — Nunca antes vira aquilo.
— A maioria das pessoas nunca viu — referiu Nakor. — Necessitais de
observar um monte de ocasos na água para o ver. As nuvens têm de estar na
posição certa no céu e o tempo deve apresentar as condições ideais, e
mesmo assim podeis perdê-lo. Só uma vez na vida vira algo semelhante.
— É uma visão que vale bem a pena — comentou Praji, após o que se
riu. — Vinde. Este pode ser o último momento de diversão que tereis nos
próximos tempos.
Ghuda demorou-se mais uns momentos, antes de voltar a falar. —
Maravilhas para contemplar! — Voltou-se e seguiu os outros para baixo.
21

Fuga

H
arry correu para o quarto.
— O que foi? — perguntou Nicholas.
Ele respondeu já praticamente sem fôlego. — Um destacamento
de soldados do Suserano dirige-se para aqui.
— Para aqui? — perguntou Marcus, levantando-se e arrastando para trás a
sua cadeira.
— Talvez. Não sei. Estão a atravessar o bazar e a descer a rua. E não
parecem nada contentes.
— Brisa, vai lá acima ao telhado e grita se eles vierem para aqui — ordenou
Nicholas. Gritou ordens aos homens de Crydee, que se apressaram a
retransmiti-las. Era meio-dia e havia uma meia dúzia de desconhecidos no
salão.
— Se há aqui alguém que não deseje ver-se envolvido numa luta, o que tem
a fazer de melhor é pôr-se já a andar! — gritou Nicholas.
Um par de homens saiu a correr pela porta, enquanto outros partiram mais
languidamente. De repente, ouviu-se Nakor a gritar: — Nicholas! Aquele
homem! Não permitis que ele saia!
Nicholas rodopiou rapidamente enquanto um homem magro com uma roupa
singela de trabalhador se apressava na direção da porta. Nicholas saltou para o
deter, desembainhando a adaga. O homem sacou de uma adaga que levava no
cinto e atacou violentamente. Vaja pôs-se atrás do homem, elevou bem alto a
sua espada e bateu com o guarda-mão na cabeça pequena dele. Ele caiu ao
chão, com a adaga a tombar-lhe dos dedos frouxos. Ghuda e Praji rapidamente
ergueram o homem, que estava a sangrar um pouco da cabeça.
— Levai-o daqui — disse Amos. — Alguém que limpe essa porcaria.
Ghuda e Praji arrastaram o atacante semi-inconsciente até um quarto nas
traseiras. Harry ajoelhou-se e limpou o sangue com um trapo do bar, e depois
atirou-o a Keeler, que o escondeu atrás do balcão.
— O que é que foi aquilo? — perguntou Nicholas a Nakor.
— Dir-vos-ei assim que os soldados saiam — respondeu Nakor enquanto se
apressava rumo ao quarto nas traseiras.
— Marcus, vós, o Calis e o Harry, esperai nas traseiras com o Ghuda e o
Praji. Vaja, ficai por perto — indicou Nicholas. — Tentai todos parecer
surpreendidos quando entrarem os soldados, mas assim que eu der ordem…
— Estaremos a postos — afiançou Marcus enquanto se dirigiam para as
traseiras.
No salão, sentaram-se, mas com as mãos pousadas junto aos punhos das
espadas e inspecionaram o espaço, anotando a posição das mesas e
antecipando as melhores linhas de ataque na eventualidade de terem de sair
apressadamente das suas cadeiras. Havia quatro homens ao balcão, a olhar
para canecas meio vazias, com as adagas escondidas mas prontas a serem
desembainhadas. Atrás do balcão, Keeler engatilhou uma besta grande.
Nicholas ouviu uma voz feminina ofendida e percebeu que a Ranjana se
estava a queixar de algo. Já ia levantar-se da cadeira para ver o que se passava
quando a porta se abriu violentamente e um oficial e quatro guardas entraram
no salão. O oficial envergava um uniforme igual ao usado pelos vinte homens
que Nicholas encontrara no Pouso de Shingazi.
— Quem manda aqui? — perguntou em voz alta.
Nicholas continuou a levantar-se. — Sou eu — respondeu. — O Capitão
Nicholas.
Os olhos do homem incidiram de pronto nos pés de Nicholas. O Príncipe
sentiu a eriçarem-se os pelos na parte de trás do pescoço, mas obrigou-se a
acalmar-se. Tudo o que o capitão viu foram duas botas normais.
— Ouvimos dizer que tendes convosco uma rapariga — disse o capitão,
pausadamente, com uma voz profunda e escolhendo cuidadosamente as
palavras. — Se ela é quem pensamos que seja, podeis candidatar-vos a uma
recompensa.
Nicholas forçou um sorriso. — Rapariga? Não temos nenhuma rapariga
entre nós.
O capitão fez sinal aos seus guardas para que se dividissem. — Vasculhai
todos os quartos.
Nicholas colocou-se entre o guarda mais próximo e o corredor de acesso às
traseiras. — Tenho um par de homens doentes lá atrás; não quero que sejam
incomodados. Já disse que não temos nenhuma rapariga. — Falou em voz alta
e pronunciou claramente as palavras. Pousou a mão na faca que tinha ao cinto.
Os soldados da guarda olharam por cima do ombro dele, à espera de
instruções. O capitão voltou-se para o homem mais próximo da porta e
assentiu com a cabeça. O soldado abriu a porta e entrou mais uma dúzia de
homens no salão. — Preferimos verificar por nós próprios — disse o capitão
após a entrada dos seus homens.
— Eu preferiria que não o fizésseis — ripostou Nicholas.
— Que barulheira é essa? — ouviu-se uma voz feminina perguntar desde lá
de trás.
Nicholas voltou-se e viu Brisa aparecer pela porta de acesso às traseiras. Ele
deitou uma olhadela a Amos e Anthony, os quais olhavam fixamente para a
rapariga. Não trazia a sua habitual camisa de homem ou blusa e usava apenas
um vestido, que estava aberto e deixava entrever um peito muito mais farto do
que Nicholas alguma vez imaginara, uma cinta fina e uma barriga lisa. Em
volta das ancas via-se uma saia fina, unida num nó grande numa das ancas e
precariamente pendente na outra, desenhando todas as curvas da coxa e da
perna ao caminhar. Tinha o cabelo desgrenhado e bocejou. Avançou
languidamente pelo salão, abanando exageradamente as ancas. Ao chegar
junto de Nicholas, enfiou o braço no dele. — A que se deve esta gritaria toda,
Nicky?
— Mentistes-me! — disse o capitão da guarda.
— Eu disse que não tínhamos connosco nenhuma rapariga — defendeu-se
Nicholas. — Esta é a minha esposa. — Quando um guarda se dirigiu ao
corredor, Nicholas insistiu:
— Continuo a não vos querer lá atrás.
— Oh, eu não me importo — disse Brisa, dirigindo-se depois ao capitão. —
O nosso quarto está uma desarrumação, por isso tende cuidado.
Nicholas olhou para ela, que correspondeu assentindo levemente com a
cabeça. — Muito bem — disse ele.
Meia dúzia de soldados dirigiram-se às traseiras da hospedaria, para
reaparecerem uns minutos mais tarde. — Não há sinais de mais mulheres,
Capitão. Apenas alguns homens doentes deitados lá atrás numas camaratas.
O capitão brindou Nicholas com um olhar prolongado e depois virou costas
e partiu sem mais comentários. Nicholas assentiu com a cabeça na direção de
um dos seus homens, que espreitou pelas portadas da janela. — Estão a ir-se
embora, Capitão — relatou.
Nicholas dirigiu-se a Brisa. — Onde é que elas estão?
— Lá em cima no telhado — indicou a rapariga, com uma expressão de
alívio. — O Nakor e o Calis estão lá com elas.
Nicholas sorriu abertamente. — És brilhante.
— Isto não foi ideia minha — realçou ela, com o tom de voz a revelar
irritação quando reparou que todos os homens no salão estavam especados a
mirá-la. Apertou o minúsculo vestido à frente e depois cruzou os braços ao ver
que a pequena peça de vestuário não conseguiu tapá-la adequadamente. — O
Nakor ouviu-vos a berrar com o capitão. O estuporzinho puxou-me da escada
quando comecei a subir para o telhado, como me dissestes. A seguir,
empurrou-me para o quarto da Ranjana e disse ao Calis, ao Marcus e ao Harry
que levassem as raparigas para cima e empurrou a escada pelo alçapão no teto.
Depois, agarrou a minha camisa e abriu-a; arrancou todos os botões e num
piscar de olhos despiu-ma! Antes de me conseguir mexer, puxou-me as calças
até aos tornozelos e fiquei ali completamente despida! Então, atirou-me para
cima do monte de roupa daquela bruxa e disse-me para vestir algo bem curto e
sair para distrair toda a gente por uns minutos.
Amos sorriu com todos os dentes. — Bem, minha linda catraia, não há
dúvida de que o fizeste.
Tremendamente corada, a rapariga voltou-se e regressou para os aposentos
da Ranjana. — Nunca na vida me senti tão envergonhada… andar por aí a
pavonear-me meia despida como uma bailarina de taberna keshiana. Vou
matar aquele macaquinho!
Nicholas viu-a desaparecer no corredor, observando o modo como as ancas
dela se meneavam sob a minúscula saia. Amos pousou-lhe a mão no ombro e
ouviu-o dizer:
— O Harry é um sortudo. Ela é uma jovem muito bem-parecida.
Nicholas sorriu por momentos, mas depois a sua expressão tornou-se séria.
— Temos de partir esta noite. Vistes o modo como aquele capitão olhou para o
meu pé quando lhe disse o meu nome?
— Sim. Andam à vossa procura e de quem mais possa ter vindo de Crydee.
— Esfregou o queixo. — Lembrai-vos, a não ser que tenham enviado alguém
para trás para averiguar, não sabem que o Raptor se afundou. Podem estar à
espera que aqueles que não mataram em Crydee apareçam atrás deles a
qualquer momento. Se o Nakor estiver certo e essa tal Lady Clovis estiver por
detrás de tudo, ela pode suspeitar que estivésseis na embarcação a perseguir o
navio preto. Os salteadores dela provavelmente tinham uma descrição de toda
a gente importante de Crydee fornecida por aquele comerciante de Queg, o
Vasarius. Sabem quem não foi morto durante o ataque. Se o Martin estivesse
aqui a comandar… — Abanou a cabeça. — Quem sabe o que poderia ter
acontecido.
— Ainda bem que não viram o Marcus e o Harry — disse Nicholas. —
Dois primos que parecem irmãos e um ruivo da mesma idade seria uma grande
coincidência. Eles ainda podem voltar.
— E alguém lhes contou que a Ranjana está aqui — salientou Amos. —
Talvez aquele Anward Nogosh Pata estivesse a tentar reparar alguns dos danos
causados aos negócios do seu amo com o Suserano.
Um grito levou Nicholas e Amos a correrem para as traseiras, onde se
depararam com Brisa a bater com uma mão na cabeça e nos ombros de Nakor,
enquanto com a outra tentava manter o vestido fechado. O homenzinho estava
meio a rir quando gritou:
— Eu coso os botões! Trato já disso!
A disposição da Ranjana não era melhor do que a de Brisa. Deitou um olhar
sombrio a Nicholas. — Aquele homem pôs-me as mãos em cima! — queixou-
se a Nicholas. Apontou para Calis, que exibiu um amplo sorriso, algo que
Nicholas não se lembrava de alguma vez ter visto. — Ele empurrou-me pela
escada acima e pôs as mãos no meu traseiro! — disse a rapariga, indignada.
— Vou fazer com que seja pisado por elefantes!
Calis encolheu os ombros. — Ela não foi tão rápida quanto as criadas, e
ouvi o capitão a ordenar a busca.
— Rapariga — disse Nicholas —, aqueles homens ter-vos-iam levado daqui
para o palácio do Suserano e acho que não teríeis sobrevivido para ver o Sol
pôr-se. Agora acalmai-vos, ide para os vossos aposentos e preparai as malas.
— Vamos partir?
Nicholas anuiu. — Amanhã, mas bem cedo. Por isso, fazei com que as
vossas criadas tenham tudo pronto esta noite à hora da refeição. Agora, ide!
Brisa empurrou Nakor para o lado. — Eu própria os coso — disse —, mas
ainda temos um assunto por resolver.
Ela desapareceu no quarto da Ranjana, atrás desta, e bateu com a porta.
Nakor sorriu abertamente. — Foi divertido.
Observando por momentos a porta, e pensando no quanto Brisa era atraente
quando não estava enfiada em roupas de homem sem formas, a Nicholas nada
mais ocorreu dizer que não fosse:
— Imagino que sim.
— Sois um homem estranho — disse Amos a Nakor, rindo-se.
— Como é que percebestes que não deveríamos deixar sair aquele homem?
— perguntou Nicholas a Nakor quando Marcus e Harry desceram a escada
desde o telhado.
— Pelo cheiro — disse Nakor, fazendo-lhes sinal para que o seguissem.
Levou-os de volta para a camarata, onde Ghuda e Praji estavam sentados em
camas, uma de cada lado do homem inconsciente. Nakor aproximou-se dele e
abriu-lhe a camisa. Puxou uma pequena bolsa que tinha presa a uma tira de
couro em redor do pescoço. — Vedes?
Nicholas pegou na bolsa e sentiu um odor familiar pungente. — Cravinho?
Nakor anuiu. — Já o tinha cheirado nele, da primeira vez que o vi no salão,
há um dia ou dois. E depois senti de novo o cheiro quando ele tentou sair.
Amos abriu a bolsa e despejou de lá cravinho. — E para que é isto tudo?
— Cravinho3. Clovis. Óbvio.
— Continuo a não compreender — disse Amos.
— Sabeis qual é o nome dado ao cravinho no dialeto delkiano de Kesh?
— Não — respondeu Amos.
— Rosa negra. Perguntai a qualquer mercador de especiarias a sul da Faixa
de Kesh. Levei algum tempo a aperceber-me — admitiu Nakor. — Não
consegui entender por que razão este homem cheirava a cravinho. Mas
finalmente fez-se luz. — Tirou o saco das mãos de Amos. — Se eles deixam
uma mensagem para outro agente, digamos, num local previamente acordado,
põem junto um destes cravinhos, e o outro agente sabe que é verdadeira.
Simples.
— Bastante — comentou Nicholas.
— Demasiado simples — acrescentou Amos.
— Para governar e conquistar — disse Nicholas —, mas lembrai-vos com
quem estamos a lidar e que motivações têm, e vereis que são bem eficientes.
Amos assentiu com a cabeça. Recordou o que Nicholas lhe dissera e o que
vira na Batalha de Sethanon. Os pantathianos não estavam preocupados com
conquistas e governação. Eram um culto da morte empenhado em convocar a
sua deusa através da Pedra da Vida. Se a morte fosse o único objetivo, não
seria preciso ser tão esperto, pensou Amos.
— O que é que fazemos com este? — perguntou Ghuda, apontando para o
agente inconsciente.
— Atai-o e colocai-o algures num lugar seguro — indicou Nicholas. —
Dizei ao Keeler para o libertar um dia depois de termos partido. Estaremos
longe e em segurança ou… já não interessará.
Os outros aquiesceram. Perceberam exatamente o que ele queria dizer com
aquilo.

B risa puxou as calças para cima, atou firmemente o cordão do corpete e


depois sentou-se no chão, ignorando os olhares sombrios que lhe foram
dirigidos pela Ranjana. Recusou-se a sair meio despida, pelo que insistiu em
coser os botões na camisa antes de deixar os aposentos da mulher da nobreza.
Tirara à força uma agulha e linha a uma das criadas.
— Podeis estar habituada às mãos ásperas dos homens vulgares — atirou a
Ranjana —, mas eu não estou.
— Despejai a vossa má disposição sobre outra pessoa qualquer, rapariga —
recomendou Brisa. — Não me apetece discutir convosco. — Trincou a linha e
verificou se o primeiro botão estava bem preso. Depois, fitou o segundo. — E
se sois demasiado estúpida para reparar — acrescentou —, o Calis é tudo
menos vulgar.
A Ranjana abandonou a sua pose petulante o tempo suficiente para dizer:
— Ele é invulgarmente forte. Não sou gorda, mas não acharia possível que
algum homem me pudesse ter empurrado para cima com tanta rapidez e
facilidade.
— E só com uma mão, dado que estava na escada.
As criadas entreolharam-se espantadas, pois na altura todas estavam já no
telhado e não se tinham apercebido de nada. — E também não é nada mal
parecido — comentou a Ranjana —, embora haja nele algo de estranho.
— Mais do que algum dia sabereis — disse Brisa num tom jocoso.
— Mais do que algum dia desejarei saber — contrapôs a Ranjana. — As
minhas criadas podem conhecer homens vulgares e é visível que estais
habituada a eles, mas eu serei salva por um homem de posição, um homem
rico e poderoso.
— E achais que ser a décima quinta esposa desse tal Suserano é algo de
especial? — Ela abanou a cabeça. — Sai-me cá cada uma…
A Ranjana sorriu. — O vosso Capitão é bem-parecido, no seu jeito
carrancudo, mas gosto quando sorri. — Deu com Brisa a fitá-la divertida. —
Mas também é um homem vulgar para alguém como eu — acrescentou.
Brisa não resistiu e desatou às gargalhadas.
— O que é que é tão divertido? — quis saber a Ranjana.
— Ah, nada — disse Brisa, terminando de coser o segundo botão.
— Não, o que é? — perguntou a Ranjana, enquanto Brisa se dedicava ao
terceiro botão.
Brisa ignorou-a por uns momentos; terminou o terceiro botão e começou a
tratar do último. — Rapariga — ordenou a Ranjana —, onde é que está a
graça?
Brisa pousou a agulha e vestiu a sua camisa de homem. Levantou-se e
disse:
— É só que algumas pessoas têm uma noção estranha do que é nobre e do
que é vulgar. Não reconheceríeis um Príncipe nem que estivésseis ao lado dele
durante semanas.
Dito isto, foi-se embora.
A Ranjana ficou uns momentos de pé, de mãos nas ancas, e depois dirigiu-
se intempestivamente à porta e abriu-a com força. Um guarda colocou-se no
seu caminho. — Desculpai, minha senhora, mas deveis ficar no vosso quarto e
supervisionar a preparação das vossas bagagens — disse ele.
— Preciso de falar com aquela rapariga…
O soldado interrompeu-a. — Desculpai, minha senhora. O Capitão foi bem
claro dizendo que não deveríeis fazer nada mais do que tratar das bagagens até
à hora da ceia.
A Ranjana recuou para o quarto e fechou a porta. Voltou-se com uma
expressão pensativa. — Príncipe? — interrogou-se. Após uns momentos de
reflexão, bateu palmas e disse:
— Depressa! O que esperais? Tem de estar tudo empacotado e pronto para
viajar à hora da ceia.
Vendo que as criadas se dedicavam com afinco a guardar as suas roupas e
joias, a Ranjana atravessou o quarto e deitou-se na cama, a pensar. — Um
Príncipe? — A seguir, um sorriso aflorou-lhe ao rosto e começou a cantarolar
entre dentes

Q uando o Sol pousou a ocidente, Harry, nervoso, pôs-se a observar a fila


de charretes e carroças que se dirigia para as docas. Os barcos estavam
todos à espera, tripulados por barqueiros contratados que receberam uma
quantia extra para estarem prontos a partir a qualquer hora do dia ou da noite.
Tuka estava na doca para ver se nenhum deles ia passear ou se embebedava
enquanto aguardavam. Praji, Vaja e vinte e quatro mercenários, fazendo-se
passar por guardas, estavam lá para assegurar que as ordens do pequeno
carroceiro eram obedecidas. Calis e Marcus juntar-se-iam a eles e, assim que
os barcos iniciassem a descida pelo rio, seria incumbência deles resgatar os
prisioneiros da herdade de Dahakon.
Harry ordenou aos quatro guardas que se dirigissem à cabeça da pequena
caravana, enquanto Brisa conduzia a Ranjana e as criadas desta. Nicholas
optara por manter as raparigas com o seu grupo por mais um bocado, antes de
as libertar com dinheiro suficiente para contratarem escoltas que as levassem
pelo rio acima. Harry estava preocupado; a Ranjana mostrou-se cooperante ao
ponto de se comportar com doçura, até com Brisa.
Brisa pareceu desconfiada sempre que a nobre lhe fazia perguntas, mas
ficou satisfeita por as discussões terem dado lugar à tagarelice. Brisa manteve-
se atenta às sombras do fim da tarde, à procura de sinais de movimentações
inesperadas, ou de estar a ser observada, enquanto dava parcialmente atenção
ao tagarelar da Ranjana. A maioria das perguntas eram relativas a Nicholas, às
quais ela se esquivava com respostas vagas.
Harry estava a observar a saída da última carroça do bazar quando ouviu um
grito e o som de confusão oriundos do setor norte da enorme praça. Um
destacamento de soldados a cavalo apareceu à vista, agredindo violentamente
as pessoas com chicotes para que se desviassem do caminho. Atrás, seguia
uma fila de carroças, todas transportando o que aparentava serem prisioneiros.
Harry arregalou então os olhos.
Virou-se para o condutor da sua carroça. — Dou-vos um bónus se
assegurardes que toda a gente à vossa frente chega ordeiramente às docas.
Tenho de levar uma mensagem ao meu senhor!
Enquanto o carroceiro perguntava «Quanto?», Harry correu de volta para o
bazar, esquivando-se ao aglomerado de vendedores e mercadores. Conseguiu
ver as plumas de dois oficiais acima do nível das cabeças da multidão, que se
juntou para apreciar o espetáculo, assim como algumas das cabeças dos
prisioneiros nas carroças altas.
Harry abriu caminho até ficar suficientemente próximo para poder ver bem,
e depois deu a volta e foi a correr por entre a multidão, afastando quem quer
que lhe aparecesse à frente. Uma corrente de palavrões e imprecações seguiu-
o enquanto corria para a hospedaria.
Uns minutos mais tarde, abriu caminho até ao salão, passou por uma dúzia
de soldados curiosos e dirigiu-se ao quarto de Nicholas. Entrou sem bater e
deu com Nicholas a rever o plano para a noite com Amos, Ghuda, Marcus e
Calis. Anthony e Nakor já tinham partido para encetar uma missão misteriosa
que o homenzinho insistira ser vital.
— O que se passa? — quis saber Nicholas. — Devias estar com as carroças.
— Eles estão a levar os prisioneiros! — contou Harry, quase sem fôlego.
— Para onde? — perguntou Amos.
Harry inspirou profundamente. — Para sudoeste. Parece que se dirigem às
docas.
— Maldição! — praguejou Nicholas, passando por entre os outros, que o
seguiram assim como a Harry. No salão, Nicholas voltou-se e disse:
— Calis, Marcus, dirijam-se às docas fluviais. Se não tiverdes notícias
nossas, fazei como está planeado. Se houver alterações, enviarei um
mensageiro.
No exterior da hospedaria dividiram-se, e Harry, Amos, Ghuda e Nicholas
partiram rapidamente para junto das carroças. Esconderam-se atrás do cortejo
e deram a volta por detrás dos transeuntes boquiabertos, mantendo debaixo de
olho a última carroça, ladeada por dois guardas a cavalo. — Estou a
reconhecer um daqueles rostos — disse Nicholas. — É o Edward, um pajem
do castelo.
Apontou para o jovem que seguia sentado na traseira da derradeira carroça,
a fitar o vazio com uma expressão ausente.
— Parece que se passa algo de errado com ele — comentou Amos.
— Com todos — acrescentou Ghuda.
Nicholas passou para o lado da rua e correu ao longo desta para recuperar
algum terreno, e depois desviou-se de novo para a rua, quase derrubando uma
mulher que levava uma caixa de fruta e que tinha estado a ver as carroças. Ela
gritou-lhe e um dos guardas voltou-se para ver que confusão era aquela.
— Desculpai-me — disse Nicholas à mulher.
— Vede para onde ides, seu imbecil! — gritou ela.
— A quem chamais imbecil?! — gritou ele em resposta.
Ghuda agarrou-o então pelo braço. — Ele já não está a olhar — informou.
Foram-se embora e Nicholas esticou o pescoço para ver as carroças.
Seguiram-nas até chegarem às docas. Quando a multidão do mercado se
tornou mais escassa, foram obrigados a seguir mais longe das carroças, caso
contrário reparariam neles. Quando por fim puderam aproximar-se,
caminhando com cautela em direção a uma fileira de barracões como se
tivessem alguma tarefa em mãos, puderam observar atentamente o que estava
em curso. Havia escaleres à espera para transportar os prisioneiros para um
navio ancorado no porto.
Amos puxou Nicholas e Harry para trás, para entre dois barracões, e Ghuda
escondeu-se atrás deles. — O que é isto? — perguntou Amos.
— Não faço ideia — respondeu Nicholas. — Passa-se algo de errado com o
nosso povo.
— Talvez estes não sejam o nosso povo — disse Harry. — Talvez sejam as
cópias.
Nicholas praguejou. — Se isso é verdade, ainda temos de ir à herdade
descobrir. — Refletiu por uns momentos. — Harry, regressa às docas do rio e
diz ao Calis e ao Marcus para atravessarem já. Quero que o Calis entre e veja
se os nossos ainda lá estão. Se estiverem, que passem a palavra ao Praji e ao
Vaja e que avancem com o plano. Se não estiverem… ou se os nossos
estiverem mortos, é inútil atacar só por vingança. Eles que aguentem os barcos
nas docas do rio até eu lhes dizer o que fazer. Se a nossa gente lá estiver, ficas
encarregue dos barcos fluviais. Leva-os para baixo até ao ponto de encontro e
mete a nossa gente a bordo, e depois dirige-te ao porto.
— Entendido — disse Harry, que depois virou costas e partiu.
— Harry! — gritou-lhe Nicholas.
O seu amigo deteve-se. — O que é?
— Mantém-te vivo.
Harry sorriu-lhe. — Tu também, Nicky — respondeu, após o que partiu a
correr.
Os três ficaram a observar até o primeiro grupo de barcos chegar ao navio,
após o que Amos praguejou. — Vão levar ambos os navios!
— Quando? — perguntou Nicholas.
Amos andara a informar-se sobre as marés locais e condições de
navegabilidade, mas não podia fazer muitas perguntas sem levantar
suspeições. — Na minha opinião, penso que será a qualquer momento entre a
meia-noite e o amanhecer, assim que a maré mudar — informou.
— Há ali mais alguma coisa que possamos roubar?
Amos deitou uma olhadela à baía. — Já entraram e saíram muitos barcos,
mas… — Apontou. — Aquela begala. — Indicou uma embarcação à vela
mais pequena com dois mastros aparelhados com velas latinas. — É de
navegação costeira, mas é rápida. Se sairmos do porto antes da partida
daqueles dois navios, podemos intercetar um deles pela costa acima. Terão de
se manter a favor do vento ao saírem do porto, até virarem para sudeste para
dar a volta à península a oriente daqui. Podemos apoderar-nos de qualquer
barco que siga em segundo lugar… o outro não consegue dar a volta e
regressar a tempo de ajudar. Mas temos de nos aproximar antes que deem a
volta, ou ambos os barcos vão escapar-nos.
— E aquele barquinho consegue levar toda a gente? — perguntou Ghuda.
— Não — esclareceu Amos. — Teremos de regressar, carregar, e depois
sair atrás do primeiro barco.
— Temos de nos apoderar de um antes de nos preocuparmos com o outro
— vincou Nicholas. — Vamos lá. Regressemos à hospedaria e enviemos uma
mensagem até ao rio a informar da alteração de planos.
Partiram e de repente Nicholas disse:
— Oh, por todos os deuses!
— O que se passa? — perguntou Amos.
— O Nakor.
— «Por todos os deuses» é mesmo o que há a dizer — referiu Ghuda. —
Alguém sabe o que é que ele e o Anthony andam a fazer?
— Não — disse Nicholas. — Esperemos apenas que não aticem um ninho
de vespas antes de sairmos da cidade.
Regressaram apressadamente à hospedaria.

A ssim que a noite caiu, Calis saltou por cima do muro da herdade.
Apressou-se, sem se preocupar com a eventualidade de ser visto. Já
estava habituado à vigilância insuficiente em condições normais e a
mensagem de Nicholas relativa ao facto de os prisioneiros terem sido levados
para o navio levou a que se tornasse ainda mais improvável que houvesse
alguém na herdade.
Assim que dobrou a esquina de uma grande vedação, parte de um pátio
ajardinado entregue às ervas, quase tropeçou num guarda. Antes de o homem
conseguir reagir, Calis golpeou-o com a palma da mão, atingindo-o na
garganta e esmagando-lhe a traqueia. O guarda tombou para trás, desabando
no chão. Calis seguiu rapidamente em frente, não ficando para o ver morrer.
Calis não era dado a amaldiçoar em vão a sorte ou o destino, mas apesar da
fraca probabilidade de ficar para trás um guarda para patrulhar a herdade,
continuava a ter a noção de que o tempo era mais importante do que agir pela
calada. O estado dos prisioneiros da última vez que os vira significava que os
captores não tiveram outras preocupações que não fosse mantê-los vivos para
fazerem as suas cópias, e dado que a tarefa parecia estar agora concluída, não
havia razões para permanecerem com vida.
O som de botas a esmagar a gravilha anunciou a aproximação de outro
guarda e Calis agachou-se no chão atrás de um pequeno barracão de
jardinagem. Quando o soldado passou, Calis levantou-se e aproximou-se
rapidamente dele, agarrando o homem pelo queixo e pela parte de trás da
cabeça. Antes de o espantado soldado conseguir erguer as suas próprias mãos,
Calis partiu-lhe o pescoço.
Calis desatou a correr. Chegou ao lado do pátio murado onde os prisioneiros
tinham sido mantidos e saltou, aterrando em cima do muro. Agachando-se, viu
os prisioneiros ainda deitados nas suas enxergas, abandonados pelos seus
guardiões e pelas criaturas que haviam sido transformadas em imitações.
Calis apercebeu-se de que estavam inconscientes, todos eles, mas ainda
vivos. Saltou para dentro do recinto e aproximou-se do prisioneiro mais
próximo. Ajoelhando-se junto a um jovem, magro e imundo, tentou erguê-lo.
O homem resmungou debilmente, mas não chegou a despertar.
Olhando para cima, reparou que algo mudara desde a última vez que
estivera no recinto. O jovem elfo pôs-se de pé e caminhou apressadamente
para a outra ponta do espaço. Estava ali uma estátua em tamanho real, de algo
que de início lhe parecera um elfo mas que, após uma observação mais
cuidada, se revelou algo completamente diferente. Calis sentiu então os seus
pelos do pescoço e braços a arrepiarem-se e foi assolado por um afluxo de
medo. Nunca na vida se sentira tão aterrorizado, mas jamais se deparara com o
que tinha naquele momento à sua frente. O ídolo era um valheru, um ícone dos
há muito desaparecidos senhores de Midkemia. E algo elementar e profundo
no ser de Calis reagiu. Podia ser de nascença apenas semielfo, mas essa
metade gritou de medo face a algo nunca visto por alguma criatura viva.
Somente o seu pai, Tomas, tinha conhecimento privilegiado dos valheru e
apenas por ser o legatário de tal herança. Do tempo em que fora tanto homem
como Senhor dos Dragões e em que as suas memórias eram as de uma criatura
morta há milhares de anos.
Calis circundou a estátua, examinando-a. Era uma valheru fêmea, com
armadura e capacete. O padrão era o das serpentes, gravado em relevo no
capacete e no escudo que ela transportava. Calis percebeu então que o pior
receio de Nicholas era bem fundamentado: os sacerdotes da serpente
pantathianos estavam por detrás de tudo o que até então sucedera, sem dúvida
nenhuma. Aquela era Alma-Lodaka, a valheru que criara os pantathianos há
vários milénios, outorgando consciência e inteligência às serpentes, para que a
servissem no seu lar, criaturas divertidas mas banais. Mas nos séculos
decorridos desde que os valheru abandonaram Midkemia, tais criaturas
evoluíram, tornando-se um culto da morte que adorava a sua deusa perdida,
Alma-Lodaka, acreditando que se conspirassem para a trazer de volta a este
mundo, todos eles deveriam morrer para a servir, e os pantathianos seriam
elevados à posição de semideuses como recompensa pela lealdade.
Calis despertou dos seus devaneios e abandonou o recinto. Empurrou e
abriu uma das portas duplas e olhou pela primeira vez para o interior do
edifício quadrado. Estava vazio, exceto pela presença de mais correntes e
algumas ferramentas abandonadas.
Calis apressou-se, pois precisava de transmitir a informação a Marcus e, do
outro lado do rio, a Harry. Sabia que se não regressasse rapidamente para junto
dos prisioneiros para os ajudar, iriam acabar por morrer.

M argaret debateu-se com aquilo que a prendia, tiras de seda agitadas ao


vento, que se enrolaram sobre os seus tornozelos e pulsos, mantendo-a
no lugar. Quis gritar e berrar de raiva e medo, mas tinha a boca cheia de uma
matéria macia e não conseguiu. Um vulto aproximou-se na escuridão.
— Ah! — exclamou ela, sentando-se muito direita. A cama estava
encharcada em suor. O quarto estava às escuras. Sentiu a cabeça a latejar com
a pior dor de cabeça que alguma vez sentira na sua jovem vida, imaginando
que se parecesse com uma ressaca, pelo que ouvira dizer após as grandes
festas no Castelo de Crydee.
Na sua cama, Abigail agitou-se, falando enquanto dormia.
Margaret inspirou profundamente e recompôs-se. O coração dela bateu
desalmadamente e sentiu-se como se tivesse estado a correr. Levantou-se da
cama e deu por si descoordenada, com a cabeça às voltas, e só a pontada de
medo que sentira momentos antes lhe proporcionou alguma lucidez. Estendeu
um braço e apoiou-se na parede, e sentiu o sangue a correr apressadamente
pelos ouvidos e o coração palpitante a ecoar na cabeça com batidas surdas.
Deitou a mão à jarra de água que estava em cima da mesa situada entre a
cama dela e a de Abigail, mas deu com ela vazia. Aquilo pareceu-lhe muito
estranho.
Dirigiu-se à cama de Abigail. — Abby? — chamou. A sua voz soou-lhe aos
seus próprios ouvidos como um crocitar abafado.
Sentou-se e abanou Abigail, que espicaçou um pouco, murmurando como
se tentasse falar durante o sono. Margaret tentou falar mais alto. — Abby! —
chamou, abanando a amiga o mais que pôde.
Abigail sentou-se. — O que…? — começou a perguntar.
Margaret olhou fixamente para a amiga. Abigail tinha o ar de quem já não
dormia há uma semana. Os olhos estavam rodeados por olheiras e tinha o
rosto ainda mais pálido do que o habitual. O cabelo estava despenteado e sujo,
e ela não parava de pestanejar, como se se debatesse para despertar.
— Estais com um péssimo aspeto — comentou Margaret.
Abigail pestanejou ainda com mais força e abanou a cabeça. — Também
não pareceis muito em forma — disse, com uma voz áspera e seca como a de
Margaret.
Margaret obrigou-se a levantar-se e foi ver-se ao espelho. A imagem que a
saudou era mais velha do que a que vira previamente. Tinha o rosto tão
abatido quanto o de Abigail, como se também ela não dormisse há dias.
A camisa de noite dela estava húmida e tresandava. Fez uma careta. —
Cheiro como se já não tomasse banho há dias.
A expressão de Abigail permaneceu vaga. — O quê? — perguntou.
— Eu disse… — Margaret olhou em redor para o quarto. — Onde é que
elas estão?
— Elas?
Aproximando-se da amiga, Margaret agarrou-a pelos ombros e fitou-a nos
olhos. — Abby?
— O que foi? — disse Abigail com irritação, afastando-a.
— Aquelas coisas… onde estão?
— Que coisas?
— Não vos lembrais?
Passando abruptamente por Margaret, Abigail perguntou:
— Lembrar do quê? Onde está o pequeno-almoço? Estou esfomeada.
Margaret afastou-se da amiga. Também a camisa de noite dela se
apresentava completamente suja, manchada abaixo da cintura, e a cama
tresandava. — Estais com muito mau aspeto.
Abigail olhou em redor, como se ainda estivesse desorientada. — Mau
aspeto?
Margaret reparou então que lá fora estava escuro. Pelo modo como se
sentia, pela confusão nas camas delas, percebeu que não se tinham limitado a
acordar cedo. Tinham dormido sem parar pelo menos um dia inteiro, se não
dois ou três. Nunca antes lhe fora permitido tal coisa. Aparecia todos os dias
um criado para as acordar uma hora após o amanhecer, levando-lhes a refeição
da manhã. Margaret foi à janela e olhou para o exterior para o jardim. Estava
deserto. Esperou um momento e não escutou um único som. Por norma, à
noite, conseguia ouvir algures nas imediações movimentações de pessoas e
ocasionalmente escutara uma voz ao longe, ou algo que soara como um grito.
Correndo para a porta, puxou o manípulo. Abriu-se. Espreitando para o
corredor em ambas as direções, não vislumbrou mais sinais de vida. Voltou-se
para Abigail. — Não há ninguém por perto — anunciou.
Abigail ficou quieta, com os olhos fixos num ponto no ar. Margaret
colocou-se à frente dela. — Abby! — chamou.
A outra rapariga pestanejou, mas não disse nada. Enquanto Margaret
olhava, Abigail pareceu encolher-se, com o corpo a ficar frouxo conforme se
afundava de novo na cama. Os olhos dela fecharam-se e estava praticamente a
sentar-se quando Margaret a agarrou pelos ombros. Abraçando a amiga
enquanto ela se debatia com as suas próprias tonturas, Margaret abanou-a e
gritou-lhe o seu nome.
Sem obter resultados, Margaret amaldiçoou o jarro de água vazio.
Continuou a segurar Abigail e praticamente empurrou-a até à porta que dava
para o jardim. Destrancou a porta e fez a amiga passar, levando-a até ao lago
no centro.
Margaret empurrou então Abigail para dentro de água. Ela afundou-se por
uns momentos e depois de uma convulsão, sentou-se no lago raso, cuspindo e
tossindo. — O que foi isto? — perguntou, num tom furioso. — Porque fizestes
isto? — exigiu saber.
Margaret despiu a sua camisa de noite imunda, sentou-se no lago junto à
amiga e começou a lavar dias de transpiração e sujidade. — Porque cheiráveis
tão mal quanto eu e não estava a conseguir acordar-vos.
Abigail enrugou o nariz. — Isso somos nós?
— É verdade — respondeu Margaret, enfiando-se dentro da água e
molhando o cabelo. Regressou à tona e expeliu a água pelo nariz e pela boca.
— Não sei até que ponto conseguiremos limpar-nos, mas, se vamos escapar
daqui, não quero que ninguém nos encontre pelo cheiro.
— Escapar? — disse Abigail, já completamente desperta.
Margaret encetou uma tentativa corajosa para esfregar o cabelo com água
fresca. — A porta não está a ser guardada e não ouço ninguém nas
redondezas, e aquelas duas criaturas partiram.
Abigail aproximou-se da pequena escultura de uma transportadora de água,
enfiando a cabeça debaixo da água que jorrava do seu cântaro para se libertar
da sujidade do cabelo. — Quanto tempo?
— Dormimos?
Abigail anuiu com a cabeça.
— Não sei — disse Margaret. — A ver pelo desalinho das nossas camas,
uns dias, talvez uma semana. Sinto-me muito mal, mas estou cheia de fome e
sede.
Abigail bebeu da fonte. — Também me sinto podre — disse. Enfiou
momentaneamente a cabeça debaixo da fonte, antes de retomar a palavra. —
Estou o mais limpa que é possível ficar sem sabão. — Tentou levantar-se, mas
os seus joelhos vacilantes traíram-na e caiu de costas na água.
— Cuidado — alertou Margaret, movendo-se para beber da fonte. — Estais
bem mais débil do que eu.
— Gostaria de saber porquê — disse Abigail, esfregando de novo o cabelo
molhado com as mãos enquanto se levantava cautelosamente na água que lhe
dava pelos joelhos.
Margaret acabou de se limpar e saiu do lago. Deu uma mão à amiga quando
regressaram ao quarto. — Não sei. Se calhar lutei mais arduamente contra lá o
que fossem… — Interrompeu-se e abriu a boca de espanto. — Fizeram cópias
nossas!
Abigail piscou os olhos. — O que estais para aí a dizer?
— As duas criaturas que estavam connosco.
— As coisas tipo lagarto? — perguntou Abigail, com uma expressão de
nojo.
— Elas mudaram, cresceu-lhes cabelo e os corpos transformaram-se… e no
final eram parecidas connosco, mesmo nas vozes!
Abigail pareceu assustada. — Margaret, como é que alguém poderia fazer
uma coisa dessas?
— Não sei, mas temos de nos escapar daqui. O Anthony e os outros andam
por perto, à nossa procura, e temos de os avisar de que andam por aí essas
coisas iguais a nós.
Abriram a cesta de verga usada para guardar as roupas limpas delas e
Margaret retirou de lá um saiote. Passou-o a Abigail. — Secai-vos — disse.
Pegou noutro para usar como toalha e atirou-o para cima da cama quando
terminou. Escolheu os dois vestidos mais largos e passou um a Abigail. —
Tirai o saiote; temos de ter facilidade de movimentos. Poderemos ter de trepar
paredes.
Calçou umas sapatas macias e, quando se vestiu, olhou para Abigail para
ver como estava ela a desenrascar-se. A outra rapariga mexia-se
vagarosamente, mas estava quase pronta. Margaret ajudou-a a calçar as
sapatas.
Margaret levantou-se e dirigiu-se para a porta, espreitando para fora para se
assegurar de que não aparecera ninguém enquanto se banhavam. Não
avistando ninguém, conduziu Abigail para o corredor. No fim do mesmo,
abriu a porta para o exterior e olhou em volta. Não havia ninguém à vista.
Fazendo sinal para que se mantivesse em silêncio, conduziu Abigail para a
escuridão noturna.
–P
reciso mesmo disto? — perguntou Anthony, apontando para a bolsa que
levava.
— Sim — disse Nakor. — Nunca se sabe o que pode vir a ser útil.
Essa mulher que se autointitula Clovis é perigosa e recorre a truques. Talvez
não seja tão poderosa quanto o Pug, mas é o suficiente para nos matar a ambos
com um olhar. Devemos estar preparados para tudo. O que temos na bolsa será
completamente inesperado.
— Mas… — ia dizer Anthony, que se deteve. Sabia que era escusado
discutir com o homenzinho por vezes críptico. O conteúdo do saco era algo
que o baralhava; não entendeu para o que poderia servir.
Estavam a percorrer o túnel que ligava o palácio à herdade de Dahakon.
Nakor entrara no palácio quando o grosso da guarnição se dirigiu às docas.
Entrara pelo pátio exterior transportando uma caixa vazia, enquanto Anthony
levava um saco de maçãs. Antes de o guarda poder intercetá-los, Nakor pediu
informações sobre a direção da cozinha, alegando que levavam parte de um
carregamento de comida que se atrasara.
O guarda pareceu algo confuso, mas nada naqueles dois pareceu vagamente
ameaçador, pelo que lhes deu orientações. Apressaram-se a partir. Nakor
passou mesmo em frente à entrada da cozinha e contornou o outão do palácio
até descobrir uma porta sem guarda. Pousaram a caixa vazia num corredor
lateral e Nakor colocou cuidadosamente o saco de maçãs na sua mochila de
truques antes de conduzir Anthony até aos pisos inferiores e ao túnel que
passava sob o rio.
Ao chegarem às escadas de acesso à herdade de Dahakon, Nakor perguntou:
— Compreendeis o que é suposto fazerdes?
— Sim, quero dizer, não. Sei o que me dissestes para fazer, mas não faço a
mínima ideia de que utilidade terá.
— Não faz mal — disse Nakor, sorrindo abertamente. — Limitai-vos a
fazê-lo.
Alcançaram o núcleo da herdade sem avistarem qualquer outro ser vivo. Já
tinham decorrido várias horas desde que a noite chegara e Anthony sabia que
se tivesse tudo corrido como planeado, Calis e o grupo de resgate estariam
dentro da herdade no próximo par de horas. A tarefa deles era assegurar que o
mago e a sua amiga sugadora de almas não interferissem.
Abriram caminho por entre uma série de corredores sombrios, tenuemente
iluminados por uma única lanterna em cada cruzamento, e finalmente Nakor
levou Anthony até aos aposentos utilizados por Dahakon. O jovem mago
estremeceu ao ver os corpos apodrecidos pendurados na parede e depois ficou
boquiaberto ao ver o mago imóvel sentado numa cadeira, com um olhar vago
dirigido ao vazio.
Nakor aproximou-se de Dahakon. — Ainda está ocupado — revelou.
— Com o Pug? — perguntou Anthony.
Nakor assentiu. Pegou nas lentes que levara. — Olhai através disto —
indicou. Anthony assim o fez. — Estão a combater — referiu Nakor —, acho
que o Pug consegue ganhar com facilidade, mas isso pode trazer-nos
problemas. É melhor manter este tipo longe do caminho.
— Então é isso que se passa — ouviu-se uma voz oriunda de detrás deles.
Anthony e Nakor giraram rapidamente para trás e depararam-se com Lady
Clovis parada junto à porta, de olhos estreitados ao fitar os dois intrusos.
A sua expressão mudou quando reconheceu algo. — Vós! — vociferou.
Nakor arregalou os olhos. — Jorna? — disse. Quando ela assentiu, ele ficou
boquiaberto. — Bem me pareceu que éreis vós — disse. — Tendes um novo
corpo!
A mulher avançou um passo e Anthony engoliu em seco. Tudo nela o atraiu
de um modo tão básico que teve de se obrigar a recordar que se tratava do
poder demoníaco por detrás de todos os acontecimentos horríveis sucedidos
àqueles que amava. Todas as mortes, todos os minutos de sofrimento, todas as
perdas de amigos e amados se deviam a ela. Ainda assim, o meneio das ancas
dela, os lábios entreabertos convidativos, o peito protuberante, os profundos
olhos negros – tudo aquilo chamava por ele, que sentiu o corpo a
corresponder.
— Parai com esta loucura! — disse então Nakor. Chegando-se a Anthony,
deu-lhe um forte beliscão no braço.
Anthony gritou e a dor causou-lhe lágrimas. Num instante desapareceu o
desejo pela mulher. — Esses aromas a que recorreis para aprisionar os homens
deixaram de funcionar comigo há já cem anos, Jorna — disse Nakor, que tirou
então uma cebola do saco, enfiando nela o polegar. Meteu-a debaixo do nariz
de Anthony e riu-se. — O meu amigo não pode excitar-se com lágrimas nos
olhos e com pingo no nariz.
— Hoje em dia, sou a Lady Clovis — anunciou ela, olhando para baixo para
Nakor. — Não mudastes muito.
Nakor encolheu os ombros. — Já costumáveis ser uma desordeira, mas nada
desta dimensão. Quando é que vos juntastes às serpentes?
Ela encolheu os ombros. — Quando me proporcionaram uma forma de
manter a minha juventude. — Afastou-se e exibiu ostensivamente o seu corpo,
como uma boa cortesã se mostraria ao seu senhor. — Estava a envelhecer…
Que nome usais agora?
— Chamo-me Nakor.
— Nakor?
— Nakor, o Cavaleiro Azul! — disse ele com orgulho.
— Seja lá o que for. — Ela encolheu os ombros e Anthony foi obrigado a
inspirar profundamente a fragrância a cebola para se manter lúcido enquanto
observava os peitos salientes dela, mal dissimulados sob o vestido reduzido
que envergava. — Não interessa. O que aqui me trouxe está a terminar; posso
ficar por uns tempos e manter Valgasha no trono, antes de o deixar entregue à
misericórdia pouco carinhosa dos clãs. Mas quando os meus amigos
terminarem os seus negócios, deverei partir.
— O que vos oferecem em troca de um dos vossos poderes? — quis saber
Nakor, avançando lentamente na direção de Anthony. — Tendes riquezas, ou
tínheis quando vos vi pela última vez. Tendes talentos. Conheceis uma série de
truques. Pareceis jovem.
— Pareço jovem, mas não sou — referiu ela, quase cuspindo estas palavras
a Nakor. — Devo matar dois ou três amantes por ano para manter a idade,
cinco ou seis para retroceder um ano na minha aparência. Sabeis o quanto isso
é difícil quando é suposto mantermo-nos fiéis ao mago mais poderoso da
zona? O Dahakon era demasiado útil para o irritar, e pode ter sido estúpido em
determinados assuntos importantes…
— O gosto dele em mulheres? — arriscou Nakor.
Ela sorriu. — Eis um exemplo, mas ele era manhoso; manteve-me debaixo
de olho a maior parte do tempo. Foi uma década muito complicada para mim,
Nakor. A fidelidade nunca foi uma das minhas melhores virtudes.
Ela deu uma palmadinha na cabeça do mago imóvel de um modo que quase
pareceu carinhoso. — Já reparastes que aqueles que passam a maior parte do
tempo a brincar com coisas mortas parecem perder a perspetiva das coisas? O
Dahakon é capaz de fazer coisas fantásticas com mortos, mas por norma são
uma companhia muito aborrecida, sem um pingo de imaginação, entendeis?
— O que é que eles vos oferecem?
Ela riu-se. Era um som vigoroso, num tom quase musical. — Imortalidade!
Mais: juventude eterna! — Os olhos dela estavam arregalados e Anthony
pensou que seria louca.
Nakor abanou a cabeça. — Acreditais neles? — Voltou a abanar a cabeça.
— Tomei-vos por mais esperta. Eles querem mais do que aquilo que alguma
vez conseguireis dar.
— Reclamais conhecer o objetivo final deles — disse ela —, ou isso não
passa de uma débil tentativa de me sacar informações?
— Sei o que eles andam a tramar. Vós, não sabeis, ou nunca vos teríeis
aliado aos pantathianos. O Pug também sabe o que eles andam a tramar.
— Pug — disse ela com raiva. — O herdeiro do manto de Macros. O maior
mago da nossa era.
Nakor encolheu os ombros. — Alguns assim o dizem. Sei que ele poderia
ter posto um fim a esta farsa num minuto. — Apontou para Dahakon.
— E então porque não o fez?
— Porque precisamos de descobrir o que estão a fazer os pantathianos,
outra vez. Para assim os podermos deter. Se ele matar o Dahakon, vós fugis e
levais os prisioneiros para outro local qualquer. Ou talvez venha cá ele
próprio, e vós e Dahakon mataríeis os prisioneiros para o manter ao largo.
Ainda não conhecemos o plano. — Nakor piscou o olho. — Em vez disso, ele
mantém o Dahakon ocupado, enquanto nós tratamos de libertar os
prisioneiros, de desvendar o plano e depois derrotar-vos. — O tom dele era
quase apologético. — Não é nada pessoal.
Ela abanou a cabeça. — Deixar-vos-ia viver, em memória dos velhos
tempos, se pudesse, mas não posso.
— Não façais com que tenhamos de vos magoar — avisou Nakor.
Ela riu-se. — Como?
Nakor apontou para Anthony, que só a custo se aguentava sem tremer e que
continuava de olhos lacrimejantes e o nariz a escorrer a olhar para o
homenzinho.
— Ele é o verdadeiro herdeiro do manto de Macros! — anunciou Nakor
num tom teatral. — Ele é o filho de Macros!
A mulher olhou para Anthony. — Ele?
— Anthony, temos de a neutralizar — disse Nakor, num tom dramático. —
Libertai a fúria dos vossos poderes!
Anthony anuiu. Aquela era a frase que Nakor lhe indicara como sinal para
ele usar a pequena bolsa. Clovis começou a entoar um feitiço e Anthony sentiu
a eriçarem-se os pelos dos braços e do pescoço ao escutar a conjuração de
poderes sobrenaturais. Reconheceu as frases e percebeu que ela estava a gerar
uma barreira protetora contra um ataque místico. Percebeu igualmente que não
tinha, nem por sombras, talentos ou forças para derrubar um feitiço protetor de
tal calibre.
De repente, ela ficou enclausurada numa auréola de luz prateada. Anthony
levou a mão ao interior do saco e passou o polegar pela pequena engenhoca de
papel que Nakor lhe entregara, e depois lançou-a violentamente ao solo. Saiu
de lá uma coluna de fumo negro, que rapidamente encheu a sala.
— O que é isto? — gritou Clovis. Começou de novo a entoar
encantamentos e Anthony percebeu que estava a convocar forças negras para
que viessem destruir Nakor e ele próprio. Rezando fervorosamente para que
Nakor soubesse o que estava a fazer, abriu a bolsa e atirou-a com força a
Clovis.
Ela levantou as mãos quando a bolsa passou pela barreira prateada que a
envolvia, interrompendo a entoação do cântico. Atingiu-a no rosto e ela foi
envolvida por um pó negro. Os três detiveram-se por um momento, e então ela
espirrou. Abriu a boca para falar, e espirrou de novo, com os olhos a
lacrimejar quando espirrou pela terceira vez. Ela tossiu, como se estivesse a
engasgar-se, e espirrou com violência. Anthony também espirrou.
A mulher tentou falar, para iniciar de novo o seu encantamento, mas não
conseguiu travar os espirros. Nakor enfiou a mão na mochila e tirou de lá um
grande saco de pano. Lançou-o para trás e rodou-o o mais que pôde, atingindo
a mulher na parte de trás da cabeça.
Ela tombou de pronto.
Anthony assoou o nariz para o desimpedir e, com os olhos marejados de
lágrimas, perguntou:
— Pimenta?
Nakor espirrou. — Não se consegue conjurar se se estiver a espirrar. Sabia
que se ela esperasse algum ataque de magia, iria negligenciar proteger-se do
óbvio. Sempre se preocupou com coisas grandiosas e negligenciou as
vulgares. — Avaliou a distância e depois atingiu-a de novo com força com o
saco. — Vai permanecer inconsciente por um bom bocado.
— Com o que é que a atingistes?
— Com o saco de maçãs. Aposto que dói.
— Vamos deixá-la ficar? — perguntou Anthony.
— Mesmo que tentássemos, não lograríamos matá-la. Se lhe cortarmos a
cabeça, isso só a irritaria mais. Se achar que fugimos, ficará chateada, mas
imaginará que o seu lado já ganhou. Não terá motivos para nos seguir a não
ser que descubra que roubámos um dos seus navios.
Olhou em redor para a divisão, passou o saco de maçãs a Anthony e disse:
— Se se mexer, batei-lhe de novo.
Correu para a outra sala, o gabinete de Dahakon, e depois regressou com
uma faca manchada de castanho.
— Achei que tivésseis dito que não a podíamos matar — disse Anthony.
— E não podemos. Mas podemos prejudicá-la. — Dirigiu-se ao lugar onde
Dahakon estava sentado e cortou a garganta do mago. Uma ténue linha
carmesim surgiu ao longo da pele, mas não jorrou sangue. Ele usou então a
faca para cortar alguns cordões das cortinas, que usou para atar a mão e pé de
Clovis. Nakor atirou a faca para o chão. — Vamos — disse. — O Calis e os
outros já devem estar com os prisioneiros.
Apressaram-se a sair dos aposentos e Anthony perguntou:
— O que é que fizestes ao Dahakon?
— Se ele puser fim à luta com o Pug, terá algo para o manter ocupado.
Enquanto estiver ocupado a tentar evitar esvair-se em sangue até à morte não
irá ter, por um bom bocado, a oportunidade de pensar em nós. Não conto que,
nestas coisas, ele seja tão pragmático quanto a Jorna… a Clovis, quero eu
dizer. Ele não irá abdicar de nos perseguir.
— De onde é que a conheceis?
— De Kesh, há já muitos anos.
— Fostes amigos?
— Ela era minha esposa. — Sorriu abertamente. — Bem, mais ou menos.
Vivíamos juntos.
Anthony ficou corado. — Vivestes com aquela assassina?
Nakor sorriu mostrando os dentes. — Eu era mais novo. Ela era muito bela,
e muito boa na cama. Quando era jovem, não procurava numa mulher aquilo
que procuro hoje em dia.
— Como é que a reconhecestes? — perguntou Anthony.
— Há coisas que nunca mudam numa pessoa. Quando vos tornardes melhor
a fazer truques, ides perceber que conseguireis ver a verdadeira pessoa, seja
qual for a forma que ela assuma. É algo muito útil que se aprende.
— Acho que se sobrevivermos a isto, deveríeis regressar a Stardock e
ensinar alguns desses truques.
— Talvez vos ensine alguns, e depois podereis regressar a Stardock. Não
aprecio aquele lugar.
Chegaram ao corredor que levava ao pátio e encontraram um criado morto
estendido no chão. Nakor fitou-o ao passarem. — Ela esteve ocupada antes de
nos encontrar.
Anthony virou a cabeça para o lado. O homem estava nu e o seu corpo
apresentava-se chupado, como se todos os seus fluidos tivessem sido sugados
da carne. O fedor a magia negra enchia o ar e Anthony deu por si
profundamente perturbado com o desejo ardente que sentiu na presença da
mulher. Ficou ainda mais impressionado com a capacidade de Nakor em lhe
resistir.
Aproximaram-se do pátio murado onde tinham sido mantidos os
prisioneiros e Nakor deteve-se. — Olhai — sussurrou.
Havia dois vultos na escuridão, que mal se viam do lugar onde estava
Anthony. Nakor fez sinal e Anthony seguiu-o.
Avançaram em silêncio e aproximaram-se sorrateiramente por detrás dos
vultos escondidos e de repente Anthony sentiu uns calores e um formigueiro
no corpo. — Margaret! — arquejou ele, e os dois vultos deram um salto
repentino.
Margaret voltou-se e arregalou os olhos de espanto. — Anthony? —
questionou ela, e em dois passos voou para os braços dele. Soluçando de
alívio, disse:
— Nunca na minha vida encontrar alguém me deixou tão feliz.
Abigail juntou-se ao jovem mago e tocou-lhe no braço, parecendo pretender
confirmar que ele era real. — Onde estão os outros?
— Devem estar a libertar os outros prisioneiros — informou Nakor. —
Vinde daí.
Anthony apertou Margaret com força e mostrou-se relutante em largá-la.
Obrigou-se a fazê-lo e afastou-se. — Estou muito contente por vos ver a salvo.
Ela fitou-o com lágrimas nos olhos. — É tudo o que conseguis dizer? — Ela
estendeu o braço, colocou a mão atrás da cabeça dele e beijou-o.
Ele ficou momentaneamente imóvel e depois abraçou-a de novo. Quando se
afastaram, ela voltou a falar. — Como é que podíeis tocar-me todos os dias
durante meses e achar que eu não sentia o que sentíeis? — Escorreram-lhe
lágrimas pelas faces. — Conheço-vos, Anthony, conheço o vosso coração e
também vos amo.
Nakor limpou uma lágrima do seu olho. — Temos de ir — avisou.
Pegou em Abigail pelo braço e levou-a na direção do pátio fechado. Ouviu-
se o som de martelos a bater em metal e, ao entrarem no recinto, viram os
mercenários a trabalhar arduamente para partir as correntes dos prisioneiros.
Abigail viu um vulto familiar e gritou: — Marcus! — Com um salto sobre
duas enxergas, Marcus lançou-se à rapariga. Elevou-a nos seus braços e
beijou-a profundamente. E depois pousou-a.
— Pensei que nunca mais vos veria de novo — afirmou o por norma
taciturno Marcus. Envolveu Margaret com um braço e beijou-a na face. — Ou
a vós.
— Guardai as saudações para mais tarde — recomendou Nakor. — Temos
de nos despachar. Quanto tempo falta?
— Mais dez minutos — respondeu Marcus. — Há ali ferramentas
armazenadas — apontou para trás para a porta que abria para o corredor que
cercava o pátio —, mas só há dois cinzéis.
— Como é que estão os prisioneiros? — quis saber Nakor.
Ao ouvir estas palavras, o papel de Anthony enquanto curandeiro impôs-se;
libertou-se relutantemente de Margaret e foi dar uma vista de olhos aos
prisioneiros. Após examinar um par deles, disse:
— Dai-lhes a beber o máximo de água possível, mas com vagar. Levai-os a
beber aos golinhos. Depois, temos de os levar para o barco.
Circulou pelo meio deles até se deparar com a estátua. Sentiu-se atingido
por uma força estranha. — Nakor? — chamou.
O homenzinho aproximou-se rapidamente e observou a estátua. Circundou-
a e estava prestes a esticar o braço para lhe tocar, quando Anthony alertou:
— Não!
Nakor hesitou e depois assentiu com a cabeça. Anthony voltou-se para fazer
uma pergunta aos prisioneiros. — Algum de vós tocou nisto?
— Não — respondeu um homem ali perto. — Só os substitutos.
— Os substitutos? – perguntou Nakor.
— Aquelas coisas tipo serpente. — O homem tossiu. — Mantiveram-nos
aqui acorrentados até se tornarem parecidas connosco… aqueles de nós que
não morreram — acrescentou amargamente. Pareceu ser um jovem, mas os
olhos dele eram dois pontos escuros e tinha um rosto enrugado de mais para a
idade. Tinha o cabelo prematuramente grisalho. — Vieram todas e abraçaram
essa coisa e expressaram uma espécie de juramento na língua obscena delas.
Depois, todas enfiaram uma agulha comprida no antebraço e esfregaram-na na
estátua.
— Para onde levaram aqueles de entre vós que pereceram? — gritou
Anthony, mostrando uma expressão quase de pânico.
O homem indicou uma porta em frente àquela que Calis usara para entrar no
recinto. — Por ali. Levaram-nos por ali.
Anthony dirigiu-se a correr para a porta, saltando por cima de uma enxerga
para lá chegar. Deitou a mão à maçaneta mas verificou que estava trancada. —
Sois capaz de a forçar? — disse a Marcus.
Marcus aproximou-se rapidamente com o martelo e o cinzel e golpeou
violentamente a chapa da fechadura. Ela cedeu ao fim de poucos minutos e
Anthony deu-lhe um encontrão para passar. Marcus recuou um passo e tapou a
boca. — Por todos os deuses! — gritou, e depois virou a cara e vomitou.
— Nakor, trazei para aqui luz — berrou Anthony. — Todos os outros,
afastai-vos.
Nakor foi rapidamente buscar uma tocha a um dos mercenários e juntou-se
a Anthony. No espaço vazio do muro jazia uma série de corpos, tanto humanos
como das criaturas-lagarto que tinham sido os seus equivalentes. Os humanos
eram cadáveres macabros, mas foram as criaturas-lagarto que chamaram a
atenção de Anthony.
Eram coisas inchadas e enegrecidas, com pele estalada por onde ressudava
pus e sangue. Os lábios estavam abertos e eram verdes, enquanto os olhos não
passavam de uvas passas enegrecidas nas suas cavidades. Do que se podia
perceber das suas feições, morreram em agonia e as suas mãos não passavam
de garras sem unhas, desfeitas em sangue por tentarem escavar uma saída de
dentro do muro de pedra. O efeito era ainda mais aterrador nos que tinham um
aspeto completamente bizarro, enquanto outros exibiam vários estágios de
humanidade nas suas feições disformes.
— Estais a senti-lo? — sussurrou Anthony.
— Sinto algo — disse Nakor. — Algo sombrio e demoníaco.
Anthony cerrou os olhos e proferiu um encantamento. Agitou as mãos no ar,
convocando magia, e de repente abriu os olhos, de tal forma escancarados que
permitiu a Nakor ver por completo o branco em volta das íris azuis. — Saí
daqui — sussurrou com uma voz rouca.
Nakor apressou-se a abandonar o corredor e Anthony foi logo atrás. —
Levai toda a gente — ordenou Anthony a Marcus e Calis. Com um tom
autoritário na voz que nenhum deles alguma vez escutara, Anthony continuou
a dar ordens. — Incendiai as outras construções: os anexos, os estábulos, as
cozinhas; incendiai a casa principal conforme a formos atravessando. Deitai
fogo a tudo!
— Levai toda a gente daqui! — gritou Marcus.
O derradeiro prisioneiro foi transportado do recinto e foi lançada uma tocha
para cima dos corpos em decomposição. Noutra área do recinto oco,
encontraram algumas lanternas de óleo e trapos, que foram lançados no fogo.
Marcus indicou aos mercenários para que acendessem tochas e começassem a
incendiar os restantes edifícios. Em poucos minutos, escutaram um bem
audível fragor quando o feno seco dos estábulos começou a arder. A seguir,
incendiaram as cozinhas e os aposentos dos trabalhadores e foram enviados
homens para deitar fogo aos aposentos exteriores da casa principal.
De regresso após ter lançado fogo ao quarto onde Margaret e Abigail
haviam sido mantidas em cativeiro, Calis perguntou:
— O que descobristes lá dentro, Anthony?
— Corpos — respondeu.
— Anthony, o que se passa? — indagou Marcus.
Anthony deteve-se por uns momentos, enquanto os mercenários
transportavam os prisioneiros para a casa grande, seguindo Nakor, que os
conduzia para o túnel. Sussurrando enquanto lágrimas de raiva lhe escorriam
pelas faces, Anthony explicou:
— Estão a enviar uma praga para o Reino, Marcus. Estão a enviar uma
enfermidade mágica para gerar a pior doença de que já ouvistes falar ou
alguma vez vistes!
Marcus arregalou os olhos de espanto e engoliu em seco. Depois, pegou na
mão de Abigail e partiu na direção da casa principal da herdade, seguido por
Anthony e Margaret.
3 No original «Cloves. Clovis, Obvious». Trata-se de um jogo de palavras entre
«cloves»/«cravinho» e o nome «Clovis» que não resulta traduzido em português. (N. do
T.)
22

Emboscada

H
arry apontou.
— O que é? — quis saber Brisa.
— Fogo — respondeu Praji. — E dos grandes, pelo modo como
ilumina o céu.
Seguiam a bordo do barco que liderava a coluna rumo à granja
incendiada, onde encontrariam os prisioneiros à espera de serem recolhidos.
Harry começou a sentir uns suores frios. — Não tarda nada e as coisas vão
começar a aquecer por aqui.
— Sem dúvida — concordou Praji. — Haverá soldados para ver o que se
passa lá em cima. Se começarem a espreitar cá para baixo, iremos ter luta.
Um barqueiro disse algo a Tuka, que se voltou para Harry. — Saíbe,
vamos acostar.
Harry assentiu e fez sinal ao barco que seguia atrás. Apesar de ser difícil
ver na escuridão, cada um dos barcos tinha um observador na proa e na
popa especificamente para retransmitir ordens. O barco da frente encostou à
margem com um rangido grave e os outros imitaram-no, até todas as dez
embarcações estarem seguras.
Harry saltou da proa e correu para a granja. O disfarce do buraco fora
deslocado para o lado, e estava a sair de lá, com alguma dificuldade, um
homem. Harry agarrou-o pelo braço e ajudou-o a subir. — Harry — ouviu-
se chamar em voz baixa desde as ruínas da granja, e Calis emergiu,
acenando-lhe. Harry prestou assistência ao homem debilitado e, quando ele
chegou à casa, deixou-o sentar-se no chão.
— Só agora chegastes? — perguntou Harry.
— Está a demorar mais do que pensáramos — explicou Calis. — O
Marcus e os outros estão lá em baixo, a ajudar os prisioneiros a subir, mas é
muito demorado. Estão fracos e alguns terão de ser içados.
Praji juntou-se a eles e Harry deu-lhe instruções. — Ide buscar corda e
aparelhai uma eslinga, e depois trazei quatro homens fortes para içar os
prisioneiros mais debilitados pelo buraco.
Praji saiu a correr. — Ou é uma coisa ou outra — comentou Harry —, ou
esperamos aqui ou lá fora na baía.
Calis anuiu. — O Nicholas e o Amos devem estar por esta altura a chegar
junto do tal navio.
— Desejo-lhes sorte. — Harry olhou para o céu, onde subia a segunda
das três luas de Midkemia. A terceira apareceria dentro de uma hora. —
Não tarda nada vai estar muito iluminado por aqui. — Três luas cheias era
um fenómeno raro e o termo «três luas a brilhar» significava ser
praticamente de dia. — Não vamos ter muita sorte se andarmos por aí pela
calada esta noite. O que é aquele fogo? — perguntou Harry.
— Notícias terríveis, temo — respondeu o semielfo. — O Anthony diz
que uma peste negra foi ali criada e só o fogo a destruiria. Se não
tivéssemos incendiado a herdade do Dahakon, ele diz que toda a gente desta
cidade morreria no espaço de um mês, dois no máximo, e todos os que
saíssem da cidade transportariam consigo a praga. Ele acha que a praga
pode matar metade da população deste continente antes de ser exterminada.
— Por todos os deuses! Isso é perverso. — Harry abanou a cabeça,
indignado. — Bem — disse, olhando de través para o fogo distante —, não
tarda nada vamos ter por aqui alguns soldados curiosos. — Observou os
cerca de vinte prisioneiros de ar debilitado e reconheceu um deles, um
pajem com quem jogara futebol. Ajoelhou-se ao pé dele. — Edward, como
estais? — perguntou.
— Não muito bem, Escudeiro — respondeu, tentando sorrir com bravura
—, mas vou recuperar agora que estamos livres. — Tinha o rosto abatido e
Harry percebeu que estava mal, tanto mental como fisicamente. Fora
prisioneiro e testemunhara horrores inimagináveis na sua jovem vida
anterior ao ataque-surpresa. Libertá-lo das correntes não o libertou dessas
recordações.
— A vossa ajuda seria útil — disse Harry. — Estais pronto para isso? —
O pajem assentiu afirmativamente com a cabeça. — Começai a ajudar a
encaminhar os outros para os barcos. Sede um bom moço e começai por
aquele ali mais longe.
O rapaz levantou-se e foi ajudar outra prisioneira, uma jovem que fitava
o vazio com um olhar distante. — De pé, todos vós — indicou o pajem —,
ouvistes o Escudeiro. Temos de chegar aos barcos. Vamos para os barcos.
— Esta última parte foi dita quase entre soluços, mas resultou.
Os outros prisioneiros levantaram-se e começaram a cambalear na
direção dos barcos que os aguardavam. Saiu outra figura do buraco e Harry
apressou-se a encaminhá-lo para o barco.
Harry gritou então para o interior da abertura. — Estamos aqui com os
barcos! Podeis apressá-los?
Da escuridão lá em baixo ecoou a voz de Marcus. — Vamos tentar, mas
estão muito fracos.
— Estamos a aparelhar uma eslinga e içaremos os que não lograrem
subir.
— Excelente.
O tempo arrastou-se conforme os prisioneiros enfraquecidos avançavam
lentamente pela escada. Quando Praji, Vaja e mais dois homens chegaram
com a eslinga de corda, foi baixada pelo buraco e os prisioneiros incapazes
de subir foram içados.
Harry dirigiu-se aos barcos e falou com Tuka. — Quando eu der ordem,
partis com os barcos já cheios e dirigi-vos ao porto. Ide para a boca da baía
e esperai pelo Nicholas.
— E por que não subir o rio, Saíbe? — questionou o homenzinho.
— Depois, meu amigo, depois. – A seguir, algo ausente, acrescentou:
— Ainda temos mais uma paragem para efetuar.
Ambos se mantiveram ali uns momentos em silêncio, a observarem a
longínqua herdade de Dahakon, o mago, o Grão-Conselheiro do Suserano, a
ser aparatosamente consumida pelas chamas.

–O
Nicholas.
que é aquilo? — perguntou Amos.
— Parece um incêndio do outro lado da baía — respondeu

— Espero que não sejam más notícias para os nossos amigos — disse
Amos.
— Não nos vamos preocupar com isso — recomendou Nicholas. —
Olhai!
Amos viu para onde estava a apontar Nicholas. — Todos a postos —
disse bem alto. — Preparai-vos para avançar.
A begala era um barco de recreio, pertença de um mercador que tanto a
usava para negócios como para diversão. Poderia ser confortável com sete
ou oito pessoas nas três pequenas cabinas e tinha um espaço razoável para
carga lá em baixo. Com bolina cerrada, era lenta, mas ao sabor do vento,
revelava-se bastante veloz. Amos estava a dar-lhe mais velocidade para se
encostar ao segundo navio a deixar o porto.
O primeiro surgira à vista poucos momentos antes, era a cópia do
Gaivota Real. Entretanto, avistaram a imitação do Águia Real e Amos
voltou o seu barco para o alinhar. Calculara como um capitão sábio retiraria
um barco daquele porto, mantendo-se bem junto ao vento para se afastar
dos rochedos potencialmente perigosos dos promontórios que se
transformavam numa vasta península que traçava os limites orientais do
porto protetor. Apesar de as luas brilhantes serem um entrave ao desejo de
Harry de se manter oculto, eram uma bênção para Amos.
Os membros da tripulação trataram de imediato de desempenhar as suas
funções. Não estavam familiarizados com aquele barco. Mas eram todos
marinheiros experientes e desde que haviam embarcado, aproveitaram todos
os momentos para se habituarem aos apetrechos e cordame. Os dois guardas
derrubados quando Nicholas e o seu grupo treparam a bordo foram
amarrados lá em baixo, ilesos, mas profundamente aterrorizados.
A begala avançou como um predador. Ghuda ficou na proa com um cabo
e um gancho de abordagem, tendo três homens junto de si. No total, uma
dúzia dos trinta homens de Nicholas estavam prontos a unir os dois navios
enquanto os outros tratavam do assalto. Nicholas rezou para que o efeito
surpresa os auxiliasse a subjugar a resistência antes que a tripulação do
barco assaltado pudesse reagir. Não faziam ideia de qual seria a totalidade
da tripulação, mas Amos achou que não seriam menos de trinta marujos,
acompanhados por uma quantidade desconhecida de guardas e de
prisioneiros falsos.
Ouviu-se, oriundo de cima, um grito de alerta quando um dos vigias
avisou do avistamento de uma embarcação que se colocava ao lado. Um
arqueiro na proa silenciou-o enquanto Ghuda fazia girar o seu cabo e o
lançava. Instantaneamente, os outros com os cabos seguiram o seu exemplo
e uma meia dúzia de homens no cordame da begala saltaram por cima do
convés mais alto, com facas e espadas empunhadas enquanto procuravam
opositores. Nicholas subiu uma enfrechadura e depois deu um salto de um
metro e vinte por cima da água para se agarrar à amurada do outro barco.
Já estava a postos quando um marinheiro se lançou a ele com um alfange.
Nicholas matou o marujo vestido de negro antes de este poder atacar. Em
seu redor, ouviu o som da luta por entre a escuridão e escutou debilmente o
que lhe pareceu ser um grito inquiridor oriundo do primeiro navio.
Nicholas confiou que todos estariam a desempenhar as suas funções e
apressou-se a entrar no camarote da ré. Se houvesse a bordo pantathianos
ou os seus lacaios mais poderosos, era ali que deveriam estar. Deu um
pontapé na porta do camarote do capitão e ouviu o baque de uma flecha de
besta a cravar-se na madeira do caixilho da porta. O capitão baixou
calmamente a besta e desembainhou uma espada. — Entregai o vosso
navio! — ordenou Nicholas, mas o capitão não respondeu quando avançou
de trás da secretária.
De repente, Nicholas teve de se defender, pois o homem lançou um
ataque furioso. Nicholas recuou e depois contra-atacou e iniciou-se um
intenso duelo. Nicholas era mais jovem e mais lesto, mas o capitão, mais
velho, era nitidamente hábil e experiente. Nicholas tentou focar-se no
adversário, mas não conseguiu deixar de se preocupar com a evolução do
resto da batalha. Sabia que o plano consistia em libertar os dois guardas lá
em baixo na begala, para que pudessem pelo menos tentar manter o barco
afastado das rochas, enquanto Amos e todos os outros saltariam para esta
embarcação. Era um jogo de tudo ou nada, pois se Nicholas e os outros
atacantes fossem forçados a recuar, não teriam para onde ir.
Nicholas deu uma estocada e apanhou o braço do capitão, obrigando-o a
deixar cair a espada. Apontando a ponta da sua espada ao capitão, disse:
— Rendei-vos!
O homem sacou de uma faca que tinha no cinto e atirou-se a Nicholas,
que instintivamente investiu com a sua espada. A espada entrou abaixo do
esterno do homem, penetrando mais acima no coração, e o homem
desfaleceu.
A sensação que percorreu o braço de Nicholas não foi distinta da que
experimentara ao matar Render, e não se revelou menos perturbadora, a
fricção do aço no osso e no tendão. Nicholas retirou a lâmina e voltou-se.
Havia mais dois camarotes naquele piso, com as portas uma em frente à
outra, defronte da do capitão. Nicholas optou pela porta à direita.
Pontapeou-a com força com o pé direito, e depois agachou-se à esquerda, já
aprendida a lição. Não tendo voado nenhuma seta disparada do interior,
espreitou lá para dentro.
O camarote estava vazio. Repetiu os procedimentos com a outra porta, e
saiu de lá disparada uma seta, que só por pouco não lhe acertou. Se não se
tivesse esquivado para o lado, aquela por certo que o teria trespassado.
Saltou para a porta, mas sentiu um ombro a embater-lhe no estômago
quando o primeiro imediato se lançou a ele. Nicholas ouviu tecido a rasgar-
se e sentiu algo a roçar-lhe as costelas, e bateu violentamente com a parte
de trás do punho da sua espada no crânio do homem. Um grunhido de dor
foi a única resposta obtida, e sentiu mais um arranhão nas costelas quando
bateu na cabeça do homem. De repente, o primeiro imediato perdeu os
sentidos e Nicholas afastou-o.
Nicholas pôs-se de pé e sentiu um ardor na ilharga esquerda. Levou lá a
mão, que ficou húmida. Olhou para o chão e viu a faca com que o primeiro
imediato tentara matá-lo manchada de sangue. Nicholas examinou a sua
camisa e viu que a lâmina lhe roçara nas costelas, cortando a pele, mas sem
ser em profundidade. Inspirou profundamente e combateu um acesso de
vertigens quando o seu flanco começou a arder e a latejar.
Nicholas regressou ao convés principal, onde Ghuda e os soldados
pareciam estar em vantagem. Os defensores foram subjugados pela
brusquidão do ataque, e a maior parte deles estava estendida no convés.
Olhando para a sua direita, viu Amos encurralado num canto por dois
homens que se aproximavam dele. Nicholas correu na sua direção para o
ajudar, mas assim que Amos travou o golpe de um dos homens, ele
prendeu-lhe a arma, mantendo-a em cima, o que permitiu ao outro enfiar a
espada no estômago de Amos.
— Amos! — gritou Nicholas assim que golpeou e matou o homem que
sustivera a espada do seu amigo. A seguir, aguentou um ataque do segundo
homem e, com uma riposta, enfiou a ponta da sua espada no corpo dele.
Com um pontapé, afastou para o lado o homem ferido e ajoelhou-se junto
de Amos. Estava inconsciente e respirava a custo, de forma rasa. Nicholas
olhou em redor e viu Ghuda a matar o homem com quem se debatia. A luta
não tinha tréguas.
Nicholas saiu apressadamente de junto de Amos e sentiu uma mão a
agarrar-lhe o tornozelo. Nicholas rebolou e atacou violentamente com a
bota, atingindo o marinheiro ferido no rosto. Ouviu-se o som de ossos a
esmigalharem-se sob o seu calcanhar e o homem urrou de dor.
Nicholas levantou-se de um pulo e espetou a ponta da espada no pescoço
do homem. Rodopiou na altura em que Ghuda gritava: — Eles são
fantásticos, não se rendem!
Nicholas gritou veementemente: — Sem quartel! — Sabia que aquilo
implicava matar todos os homens a bordo. Sentiu um sabor amargo a ácido
na boca e cuspiu, e depois correu a atacar um marinheiro vestido de preto
que, apesar dos ferimentos, estava a erguer-se por detrás de um dos homens
de Nicholas, para o atacar de novo.
O combate pareceu durar interminavelmente e, por duas vezes, Nicholas
poderia jurar que estava a matar homens que já enfrentara antes. De
repente, fez-se silêncio.
— Já se foram todos — anunciou Ghuda.
Nicholas assentiu apaticamente. Estava ensopado em suor e sangue e os
joelhos tremiam-lhe devido ao cansaço. O seu pé esquerdo doía-lhe
pesadamente e tinha a ilharga a arder. E de repente lembrou-se. — Amos!
Correu de volta para o local onde jazia o Almirante tombado e, aliviado,
constatou que ainda respirava. Ghuda ajoelhou-se junto a Nicholas. — Ele
está muito mal — comentou. — Precisamos do Anthony e dos talentos dele.
— Levai-o para o camarote do capitão — indicou Nicholas.
Dois marinheiros pegaram cuidadosamente em Amos e levaram-no para
dentro. Nicholas olhou em volta e viu que todos estavam a fitá-lo. De
repente, percebeu que, com Amos gravemente ferido, teria de ser ele a
comandar o navio. Olhou para lá de Ghuda para um dos marinheiros. —
Quem é o mais velho? — perguntou.
— O Pickens, acho eu, Alteza — respondeu o homem.
— Pickens! — chamou Nicholas, ouvindo em resposta uma voz vinda da
coberta da proa.
— Presente! — Um homem, com trinta e muito anos, desceu
apressadamente da coberta da proa. — Sim, Capitão — disse.
— Sois o primeiro imediato, Pickens. Deitai estes corpos borda fora.
— Sim, Capitão — disse o marujo recentemente promovido. Voltando-se
para a tripulação, exausta e ensanguentada, deu as suas ordens. — Ouvistes
o Capitão! O que esperais? Lançai estes corpos borda fora!
— Estais bem? — perguntou Ghuda.
Nicholas deitou uma olhadela à camisa ensanguentada que tinha vestida.
— Não é nada — respondeu. — É com o Amos que estou preocupado.
— Ele é rijo — referiu Ghuda, embora tivesse sido evidente que também
ele estava preocupado.
— Aprendi muito com o Amos nesta viagem e já antes tinha navegado
bastante — salientou Nicholas. — Só espero estar à altura.
Ghuda respondeu já num tom mais baixo: — Dizei apenas ao vosso Sr.
Pickens o que quereis feito e deixai-o afligir-se com isso.
Nicholas sorriu e crispou-se em simultâneo. — Parece-me bem.
Um marinheiro subiu apressadamente ao convés. — Alt.. ah… Capitão,
há prisioneiros lá em baixo — anunciou.
Nicholas seguiu-o. — Sr. Pickens! — chamou.
— Sim, Capitão?
— Quando terminardes a limpeza, dai meia-volta e dirigi-vos à cidade!
— Sim, Capitão.
Nicholas esboçou um sorriso amargo. — Isto até pode resultar — disse a
Ghuda.
Foram apressadamente para a escotilha principal, de onde olhou para
baixo. De três conveses mais abaixo, uma dúzia de rostos espreitou para
eles. Ninguém falou.
— São dos nossos ou cópias? — questionou Ghuda.
— Não sei — respondeu Nicholas. Sentindo-se subjugado, disse:
— Trancai-os. Resolveremos isso quando descobrirmos os outros.
Pôs-se muito direito e sentiu o barco a rolar sob os seus pés enquanto a
tripulação terminava de empurrar os corpos por cima da amurada, e
regressou à tarefa de fazer navegar o navio. Ghuda deu-lhe uma cotovelada
e apontou, e Nicholas compreendeu. Relutantemente, regressou à escada
que liga o convés às camaratas, de onde acedeu ao tombadilho superior,
para daí supervisionar o barco, dado que era agora o capitão.
Trepando a escada, deu com Pickens em frente à roda do leme, que era
manobrada por um marinheiro. — Marear as velas para mudar de direção
— gritou o imediato. Depois voltou-se para o homem do leme. — Virai a
estibordo. — Por fim, gritou a todos em geral: — Vai virar!
Nos mastros, os marinheiros dirigiram-se a correr para os respetivos
postos. — Este navio é uma cópia perfeita do original, Capitão — disse
Pickens. — Não consigo distingui-lo, Capitão, e velejei no Águia durante
dez anos.
— Qual é o balanço? — perguntou Nicholas.
— Seis feridos, três mortos. Mais dez minutos e teríamos encalhado. Mas
estamos em boas condições.
— Espero que estejais certo — disse Nicholas suavemente.
Quando Nicholas estava imóvel no convés, a acompanhar com o corpo o
balanço do barco, ouviu-se um grito de alerta vindo de cima a anunciar que
havia outro barco por perto. Nicholas sentiu as batidas do coração a
acelerar, mas a mesma voz acalmou-o. — Não há problema, Capitão. Não
vou passar por cima da begala no regresso. — Depois elevou o tom de voz:
— Estai alerta!
Nicholas sorriu e o seu recentemente empossado primeiro imediato disse:
— Porque não ides lá abaixo dar uma vista de olhos a esse ferimento?
Nicholas anuiu. — O leme é vosso, Sr. Pickens.
— Sim, senhor! — disse ele, fazendo de imediato continência.
Nicholas abandonou o tombadilho superior e foi para o local onde os
soldados tratavam dos feridos. Um deles viu-o e, instintivamente, ajudou-o
a despir a túnica. Nicholas olhou para o lado enquanto o homem examinava
o ferimento e depois ergueu as mãos enquanto ele lhe envolvia as costelas
com uma ligadura limpa.
Silenciosamente, rezou para que Harry e os outros estivessem a executar
sem problemas a parte deles do plano.

H arry agachou-se atrás da baixa proteção da cabina da barcaça quando


as setas passaram velozmente por cima da sua cabeça. Calis ergueu-se
calmamente e soltou um tiro de resposta e depois agachou-se de novo atrás
da cabina enquanto um grito oriundo da margem atestava que atingira o seu
alvo.
— São quatro — anunciou Praji, deitado no convés. — Seria de pensar
que lançariam o aviso e bateriam em retirada.
Harry chamou Tuka por cima do corpo deitado de Praji. — Quanto falta?
— Penso que mais uns cem metros, Saíbe.
Estavam a descer o rio à deriva, na mira de arqueiros a cavalo que tinham
aparecido para investigar o incêndio. Um barqueiro morrera vítima da
primeira saraivada de setas e depois disso toda a gente se deitara no convés.
— Marcus! — chamou Harry.
— O que é? — ouviu-se a resposta proveniente do segundo barco.
— Como é que estão os vossos?
Seguiu-se um momento de silêncio, após o que chegou a resposta de
Marcus. — Temos aqui um ferido, mas não é nada de grave.
Calis falou a seguir. — Marcus, há dois alvos particularmente bons
destacados pela lua em ascensão.
— Fico com o da esquerda — disse em resposta.
— Aos três — avisou Calis. — Um, dois… — e aos «três», levantou-se e
disparou. Harry ouviu uma corda de arco a zunir em resposta e Marcus
também disparou. Um par de gritos encheu a noite e não surgiram mais
setas vindas da margem.
Calis contou até dez. — Remadores! Agora! — gritou.
Os barqueiros saltaram para deitar a mão aos remos que haviam sido
puxados quando os arqueiros tinham começado a alvejá-los. Encaixaram-
nos nos toletes e remaram com força, enquanto o timoneiro governava de
novo a embarcação para o meio do rio. Muito depressa, a fila desordenada
de barcos voltou a alinhar-se. — Está toda a gente bem? — perguntou então
Marcus.
A pergunta foi passada de barco para barco e a resposta chegou
rapidamente: um morto, o primeiro homem atingido; dois feridos, nenhum
deles com gravidade. Harry regressou à proa do primeiro barco, e olhou
para baixo para Brisa, que ainda estava comprimida atrás da cabina. —
Estás bem?
— A morrer de medo — ripostou de pronto. — Mas fora isso, tudo bem.
Ele ajoelhou-se ao lado dela. — Não tarda nada e fica tudo bem.
— Se o vosso amigo e o seu bando de bebedolas conseguiram emboscar
um navio a navegar a todo o pano… Lembrai-vos de que cresci rodeada de
barcos. — Ela abanou a cabeça. — Não estou lá muito confiante.
Ele pousou a sua mão sobre as dela. — Vamos ficar bem.
Ela tentou sorrir. — Espero que sim.
Entraram na baía e avançaram a bom ritmo, com as barcas a balouçarem
por cima das ondas. — Estou contente por não termos de levar estas coisas
para o mar — comentou Harry.
Praji e Vaja estavam agarrados à amurada que cercava a cabina baixa. —
A mim parece-me divertido — disse Praji.
— Se não reparastes antes, o meu amigo tem um sentido de humor
retorcido — comentou Vaja.
— Já cheguei lá — disse Harry.
Um grito proveniente do derradeiro barco levou Harry a voltar-se.
Gritaram de novo e depois escutou a voz de Marcus. — Somos seguidos
por barcos.
— Oh, maldição — disse Harry, passando a correr por Praji em direção à
cana do leme. — Quantos são e a que distância? — perguntou a Marcus.
Marcus retransmitiu a pergunta e pouco depois deu a resposta. — Três, a
uns duzentos metros. São escaleres e estão cheios de homens armados.
Harry avaliou rapidamente as opções que tinha pela frente. — Temos a
maioria dos combatentes nos dois primeiros barcos — disse então. Dirigiu-
se diretamente a Marcus. — Levai o vosso barco para a direita e deixai os
outros passar. Vós e o Calis tendes de desencorajar quem nos segue.
Praji olhou em redor. — Não há muito espaço para lutas. Fazei com que a
rapariga salte para outro barco ao passar.
— Boa ideia — disse Harry. Antes que Brisa pudesse protestar, ele
chamou Marcus. — Passai a Margaret e a Abigail para um dos outros
barcos que passe à frente, e todos aqueles que não conseguirem lutar.
Harry ignorou as fortes objeções de Margaret, que alegou ser uma
excelente lutadora. — Estais demasiado debilitada, por isso calai-vos —
limitou-se a gritar.
Depois voltou-se para dar com Brisa a avançar na direção dele. Antes de
ela conseguir dizer algo, ele levantou o dedo. — E tu também vais sair. Não
tenho tempo para discussões!
Ela deteve-se, pestanejou por uns instantes e depois envolveu-o com os
braços, abraçando-o com força. Após um beijo intenso, saltou para cima da
cabina e dirigiu-se para o local onde um outro barco estava a alinhar-se. —
Amo-vos, estúpido. Não vos deixeis morrer! — Saltou facilmente a curta
distância sobre a água e aterrou no convés.
— Também te amo — disse Harry.
Desembainhou a espada e foi para a ré do barco. Avistou Abigail e
Margaret na embarcação seguinte e depois ouviu gritos oriundos do décimo
barco da fila. A mensagem foi retransmitida. — Estão a alvejar o último
barco — informou Marcus.
Calis trepou para o teto da cabina. — Não têm arcos de longo alcance —
disse.
Marcus trepou para cima da cabina do seu barco enquanto passaram mais
barcos por eles, com os remadores a não darem descanso aos remos. Os
dois arqueiros esticaram as cordas em simultâneo, largaram as setas, e
tombaram dois homens nos barcos perseguidores. Os remadores dos
escaleres travaram de imediato e Harry riu-se. — Isto deve desencorajá-los
por uns momentos — comentou Calis. Deu uma palmadinha na aljava. —
Se não descobrirem que estamos a ficar sem setas — acrescentou em voz
baixa.
— O navio! — alguém gritou desde a frente. Harry voltou-se e sentiu
uma onda de alívio a percorrer-lhe o corpo quando o barco surgiu à vista.
As velas estavam a ser enfiadas nos rizes e a virar a favor do vento, de
modo a abrandar o suficiente para que quem seguia nos barcos fluviais
pudesse subir a bordo. — Temos de manter afastados aqueles homens que
nos seguem enquanto fazemos o transbordo — avisou Harry.
— Saíbe, e nós? — perguntou Tuka.
— Primeiro, vamos tratar de vos salvar as vidas — vincou Harry —,
depois trataremos de vos desembarcar.
Tuka assentiu com a cabeça, mas era visível que a perda dos prometidos
dez barcos para liderar um comboio e os lucros daí advindos estavam a
atormentar a mente do homenzinho. Harry reparou e disse:
— Não vos preocupeis. Vamos compensar-vos. Ainda sereis
recompensado por levardes a Ranjana rio acima para a entregardes ao pai.
Tuka tentou animar-se com as novidades, mas era notório que não estava
convencido.
O primeiro barco pôs-se ao lado do navio e foi lançada uma rede de
embarcar carga. Os mercenários e os barqueiros abriram as tampas das
pequenas cabinas que tapavam os porões e lançaram-nas à água.
Carregaram freneticamente as provisões de que necessitariam para a longa
viagem de regresso a casa e, quando o barco ficou vazio, treparam pelos
cabos para o navio. — Alguns de vós esperai pelo segundo barco para lhes
dar uma mão! — gritou Harry.
Um par de barqueiros prestes a trepar penduraram-se nos cabos quando o
primeiro barco foi empurrado pelo segundo e depois desceram para o
convés para o ajudar a descarregar.
Os escaleres perseguidores hesitaram por uns momentos e depois um
deles deu meia-volta e retirou. — Estão a ir embora? — perguntou Harry.
— Não — respondeu Calis. — Não me parece. Acho que vão chamar
reforços.
Os barcos alinharam-se no seu lugar e com as mãos adicionais no convés,
o transbordo da carga foi feito com celeridade. Lá em cima no convés,
Nicholas observou com preocupação pois fora-lhe relatado pelos que
subiam a bordo o que acontecera. Pickens dissera-lhe que poderiam partir
poucos minutos depois de dada a ordem, mas levaria o seu tempo até saírem
da desembocadura do porto.
E então Nicholas viu Margaret e Abigail a treparem para bordo, ajudando
dois dos prisioneiros mais fracos a transpor a amurada. Apressou-se a ir
dar-lhes uma mão, após o que ajudou as raparigas a passarem por cima da
amurada. Ambas o saudaram calorosamente, mas Abigail voltou-se para
trás e olhou para baixo para os barcos. — O Marcus? — perguntou. — Ele
fica bem?
Nicholas sentiu uma mistura de ciúmes e alívio; e depois ambos os
sentimentos foram escorraçados quando se ouviu uma voz vinda de cima.
— Capitão! Navio a içar âncora.
— Onde?
— À popa do porto!
Nicholas subiu até ao tombadilho superior, correndo rapidamente para a
popa. Lá, viu um navio a desfraldar velas sob a luz do luar. — Quanto
tempo temos? — perguntou a Pickens.
— Estará a caminho em dez minutos o mais tardar. Estará em cima de
nós no dobro desse tempo.
— Quantos barcos faltam? — perguntou Nicholas.
— Dois — ouviu-se a resposta.
Dirigiu-se rapidamente ao flanco do navio onde marinheiros e
mercenários se despachavam freneticamente para desimpedir a rede da
carga, de modo a ser baixada para o penúltimo barco. Foi à amurada e
gritou:
— Harry!
— O que é? — ouviu-se a resposta.
— Quem tem o ouro?
— Está aqui, comigo!
— Trá-lo, e depois anda embora. Abandona o resto da carga. Embarca
toda a gente. Vamos partir.
Uma voz de protesto informou Nicholas de que a Ranjana estava a bordo
e ela disse:
— Capitão, as minhas coisas estão no barco.
— Compramos-vos coisas novas se sobrevivermos — disse Nicholas.
Olhou para Margaret e Brisa. — Sei que posso contar convosco — disse. —
Margaret, esta é a Brisa; Brisa, Margaret. Vós as duas podeis retirar a
Ranjana do convés e levá-la para a cabina a bombordo da do Amos?
Pegaram na Ranjana e nas suas quatro criadas a reboque e rapidamente
Harry, Calis e Marcus estavam a subir arduamente a bordo e o pesado cofre
com o ouro de Shingazi a ser içado. Nakor e Anthony figuraram entre os
últimos a embarcar. — Sr. Pickens! — gritou Nicholas. — Tirai-nos daqui.
A ordem foi passada e Nicholas olhou em volta. Os marinheiros e os
soldados de Crydee que foram forçados a servir no mar despacharam-se a
obedecer às ordens de Pickens. Os mercenários que Praji contratara
puseram-se de um lado, enquanto os barqueiros que Tuka empregara se
acotovelavam junto à escotilha principal. — Mantende-vos fora do caminho
— disse Nicholas aos barqueiros, após o que se dirigiu a Praji. — Os vossos
homens ainda poderão ter pela frente uma verdadeira luta.
Alguns ainda resmungaram, mas Nicholas foi bem claro:
— É para isso que sois pagos!
Deu a volta e apressou-se na direção do tombadilho superior. — Sr.
Pickens, ides conseguir? — perguntou enquanto subia.
— Vai ser à tangente — informou o marinheiro. Olhou para trás e depois
voltou-se, sorridente. — Mas vamos deixá-los na nossa esteira.
Nicholas voltou a descer ao convés principal, virou-se para dizer algo aos
outros e depois caiu desamparado.

N icholas despertou no camarote do primeiro imediato. O sol infiltrava-


se pela vigia, pelo que percebeu que dormira pela madrugada dentro.
Tentou mexer-se e reparou que o seu flanco estava quente e rígido.
Examinando-se a si próprio, Nicholas viu que alguém lhe colocara uma
ligadura nova com cataplasma e o levara para a cama.
Vestiu as calças e abriu o baú de marinheiro que tinha aos pés da cama. O
antigo ocupante do camarote só tinha uma túnica preta, pelo que a vestiu,
constatando que lhe servia bem. Depois de calçar as suas botas, Nicholas
dirigiu-se obstinadamente para a porta e abriu-a.
Antes de se encaminhar para o convés, abriu a porta do camarote do
capitão e foi até à tarimba onde Amos estava deitado. A sua respiração era
mais profunda, mas continuava com má cor. Nicholas ficou por momentos a
observá-lo, e depois virou costas e deixou-o sozinho.
Ao chegar ao convés principal, Nicholas encontrou diversos grupos de
homens a conversarem, enquanto outros dormiam no convés do modo mais
confortável que conseguiam. Marcus, Anthony, Harry e Ghuda colocaram-
se junto à escada de acesso ao tombadilho superior, enquanto Praji e Vaja
ficaram do outro lado do convés principal, a conversar com os outros
mercenários.
— O que é que se passa? — perguntou, pondo-se ao lado de Marcus.
— Temos uns problemas — respondeu Harry.
— Tais como? — quis saber Nicholas.
Ghuda olhou em volta. — Bem, o Calis está no tombadilho superior atrás
de nós, na eventualidade de o Praji e os seus amigos se mostrarem mais
perentórios em relação a serem desembarcados.
Nicholas olhou em volta e avaliou a situação. — Quando é que deixámos
a península?
— Ontem, pouco antes do pôr-do-sol.
— Quanto tempo é que estive a dormir? — perguntou Nicholas.
— Deixámos a Cidade do Rio da Serpente há duas noites. Passa agora
um pouco do meio-dia — explicou Marcus.
— O teu ferimento era mais grave do que te pareceu — disse Harry. — O
Anthony tratou-o e pôs-te na cama. Cinco minutos depois, começaram os
problemas.
— Conta-me a versão curta — pediu Nicholas, fitando os mercenários.
— Foram os barqueiros que começaram — explicou Ghuda. —
Choraram como peixeiras por deixarem para trás as famílias e não serem
pagos para cruzar o mar.
— Porque é que não acostastes e os desembarcastes assim que saímos do
porto?
Marcus fez um gesto de desespero. — Eu quis, mas o Anthony e o Calis
insistiram para que o Pickens permanecesse na peugada do outro navio.
— E então os mercenários começaram a resmungar — acrescentou
Ghuda —, alegando que os estávamos a raptar. As coisas azedaram na noite
passada depois de termos distribuído algum vinho. Pensou-se que ajudasse
a descontrair, mas em vez disso ficou toda a gente a ponto de estourar.
— Deixai-me ver o que posso fazer — disse Nicholas.
Subiu ao tombadilho superior e encontrou Calis a inclinar o seu arco. —
Porque é que não deixastes sair os barqueiros e os mercenários?
— Acho melhor ficar aqui caso os amigos do Praji se irritem — disse
Calis. — O Anthony está lá em baixo nos aposentos da tripulação. De
qualquer modo, ele sabe explicar melhor.
— E o Praji? — perguntou Nicholas.
— Não há problema com ele. Acho que os amigos dele seriam bem mais
problemáticos se ele não os tivesse aconselhado a serem pacientes. — Calis
sorriu. — Acho que vos considera um Capitão meritório e está à espera de
ver o que tendes para dizer.
Nicholas desceu a escada e foi ter com Praji. — Capitão — disse o
mercenário em jeito de cumprimento.
— Não sei o que se passa, mas dou-vos a minha palavra; aqueles de vós
que pretendam ir para a costa serão colocados num barco antes de o Sol se
pôr… com um bónus pelo incómodo.
O círculo de homens instantaneamente relaxou e Nicholas voltou-se e fez
sinal a Calis para que se lhes juntasse. Olhando para lá do jovem elfo, viu
no convés o primeiro imediato com um ar fatigado. — Sr. Pickens! —
chamou.
— Sim, senhor!
— Estivestes de atalaia um dia e meio?
— Sim, senhor! — ouviu-se em resposta.
— Ide lá para baixo e dormi um pouco. Escolhei um homem para vigiar a
rota. Vou ficar aqui em baixo por um bocado.
— Sim, senhor! — disse ele, com algum alívio.
— Harry! — chamou Nicholas.
— Sim, Nicholas?
— Vai lá acima ao tombadilho superior e assegura-te de que não
encalhamos. Foste promovido a segundo imediato.
— Sim, Capitão — respondeu com um sorriso pesaroso.
Nicholas fez sinal a Marcus e a Ghuda para que se juntassem a eles e
desceram a escada que liga o convés às camaratas para se encaminharem
até aos aposentos da tripulação. Anthony estava lá a prestar assistência aos
prisioneiros, que dormiam nos beliches ou falavam em voz baixa entre eles;
Abigail e Margaret também o ajudavam.
— Como é que está toda a gente? — perguntou Nicholas.
— Acordastes! — exclamou Anthony.
Nicholas ia ser sarcástico com aquela observação óbvia, mas deteve-se ao
ver os olhos de Anthony. Estavam afundados em círculos negros e tinha as
faces cavadas. — Quando é que dormistes pela última vez?
Anthony encolheu os ombros. — Um dia antes de partirmos, ou por aí.
Não me lembro. Há tanto que fazer.
— Já lhe disse para descansar um pouco — salientou Margaret —, mas
ele ignora-me. — A expressão dela teve tanto de irritação como de
admiração.
— Como é que estão os prisioneiros?
— Estão todos bem — disse Anthony. — Desde que descansem e
comam, o pior já passou. Conseguimos embarcar a maior parte das
provisões, mas teremos de racionar.
— Como é que está o Amos? — perguntou Nicholas, baixando o tom de
voz.
— Mal — revelou Anthony. — Fiz tudo o que podia; a hemorragia era
grave e a ferida profunda. Mas ele é forte, para um homem daquela idade, e
as cicatrizes que tem no corpo mostram que não é a primeira vez que
sobrevive a um golpe quase fatal. Se acordar dentro de um ou dois dias,
acho que escapa desta.
»Mas mesmo que assim seja, não estará em condições de capitanear este
barco de regresso a casa; essa missão será vossa pelo menos durante mais
um mês, Nicholas.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Por que razão não quisestes largar os
mercenários e os barqueiros na costa?
Anthony e Calis trocaram olhares e foi o primeiro quem tomou a palavra.
— Não sei por onde começar. — Pareceu estar com dificuldade em
concentrar-se, pelo que Nicholas lhe deu tempo para ordenar a sua resposta.
— Não podemos arriscar-nos a deixar que o outro navio se distancie ainda
mais. Não quero arriscar a abrandar para descer um barco.
Algo no seu tom sugeriu grande preocupação. — Prossegui — incentivou
Nicholas.
— É pior do que alguma vez imaginámos, Nicholas — informou o mago.
— O Nakor contou-me algumas coisas que acho que não sabeis que eu sei.
— Olhou para Marcus, que assentiu. — Não sei tudo… há algo que a
família real mantém oculto, e está bem assim, mas o que sei assusta-me
mais do que algo que consiga imaginar.
»Os pantathianos criaram uma praga. É pior do que alguma doença que
eu conheça.
— Porquê?
— Porque não tem cura — disse bruscamente. — Recorreram a magia da
mais negra que existe para criar esta coisa. Essas criaturas deles foram
criadas para a transportar para o Reino.
Nicholas cerrou os olhos. — Isso… faz sentido, de um modo diabólico.
São um culto da morte e estariam dispostos a morrer para… levar avante a
causa deles.
Anthony prosseguiu. — Não sei como funciona a doença. Já vi algumas
das suas incapacidades. É horrível.
— E sabeis que não tem cura?
— O Nakor assim o acha, e sabe mais de magia… — sorriu ligeiramente
— ou de truques, do que eu. Talvez o Pug, ou alguns dos sacerdotes mais
experientes de Dala ou Kilian, ou os ishapianos… não sei. Mas penso que
não teremos tempo.
— Porquê?
— Um… palpite. Acho que a doença progride rapidamente. Do que pude
ver, os que morreram sucumbiram rapidamente. O estado da camada
exterior, que parece pele humana sobre a verdadeira pele deles, e os outros
danos provocados pela doença não me permitem pensar que alguém possa
sobreviver mais do que uns dias assim que é infetado. Não faço ideia de
como se espalha; o Nakor está com as criaturas, a ver o que pode aprender
com elas.
— E está seguro? — perguntou Nicholas, assustado.
— Tanto quanto alguém pode estar — respondeu Anthony.
— Onde é que eles estão?
— No porão. Podemos lá ir através daquela passagem — informou
Anthony, indicando uma porta pequena na antepara da frente.
Nicholas dirigiu-se à porta e abriu-a, deparando-se com uma passagem
estreita de acesso a outra porta. Passou por lá e abriu a segunda porta. Na
retaguarda ouviu Anthony a advertir os outros para ficarem atrás.
Nicholas deu por si de pé no segundo convés de carga, com o gradeado
da escotilha principal por cima da entrada de luz. O convés mais baixo do
porão fora convertido em alojamento. Era possível espreitar para lá através
de uma grande escotilha aberta. Nicholas reparou que a maior parte dos
suprimentos levados para bordo oriundos das barcas tinha sido armazenada
naquele convés. — Onde é que está o resto da mercadoria? — perguntou.
— Amarrada no convés — explicou Anthony. — O Nakor e eu não
permitimos que fosse guardada aqui em baixo. É demasiado perigoso.
— Ah, Nicholas — ouviu-se uma voz conhecida desde mais abaixo.
Nicholas olhou para baixo e viu Nakor sentado numa cama vazia, a olhar
para as pessoas que estavam a descansar em cerca de metade das camas à
vista. Não havia nada de invulgar nelas e Nicholas ficou espantado por
reconhecer algumas por as ter visto na vila e no castelo de Crydee.
— É… é fantástico — disse suavemente.
— Começais a compreender? — questionou Anthony. — Estas criaturas
poderiam regressar ao Reino e caminhar por entre nós, espalhando a doença
até que metade do Reino Ocidental fosse infetada. Mesmo que a influência
do vosso pai conseguisse que Stardock e os templos lidassem com o
problema, depois de estas criaturas porem o pé em terra, o caos espalhar-se-
ia pelo Reino durante anos.
— Nakor — disse Nicholas lá para baixo —, descobristes alguma coisa
de útil?
— Sim — respondeu o homenzinho. — Baixai a corda.
Nicholas olhou em volta e viu que fora atada uma corda a um gancho de
ferro preso na parede. Ele baixou-a e o homenzinho içou-se.
Quando já estava ao lado de Nicholas, puxou a corda. — Eles
basicamente são inofensivos até a doença se declarar — explicou
Nicholas fitou os rostos virados para cima. Alguns arriscaram-se a
esboçar um pequeno sorriso. Uns poucos proferiram palavras de saudação.
O Príncipe voltou-se. — Enerva-me olhar para eles. — Regressou aos
aposentos da tripulação, onde Marcus e Ghuda o aguardavam. Avistar os
genuínos prisioneiros, macilentos e doentes devido à provação passada,
devolveu a Nicholas a perspetiva das coisas.
— É esse o problema — disse Anthony.
— Qual?
— Temos de matar essas coisas.
— O quê? — perguntou Nicholas.
Nakor anuiu em concordância. — Eles vão ficar doentes. Não durante as
próximas semanas, porque não serviria de nada ficarem doentes antes de
chegarem ao Reino, certo? Mas já conseguem infetar. Não sei como; só
sabemos que irá espalhar-se. Alguns templos acham que se tratam de
espíritos malignos, enquanto outros acham que é através do ar contaminado.
A minha teoria…
Nicholas interrompeu-o. — Porque é que os devemos matar? Porque não
deixá-los numa ilha algures?
— Não sabemos se estamos a ser perseguidos — referiu Marcus. — De
nada serviria despejá-los numa ilha qualquer para que aqueles que nos
seguem os recolhessem no dia a seguir. Podem não ser capazes de infiltrar
falsas Abby ou Margaret no palácio do vosso pai, mas podem levar com
toda a facilidade trinta portadores de praga para Krondor.
— E como é que o fazemos? — perguntou Nicholas.
— É difícil — explicou Nakor. — Eu sou duro de roer, teria de estar
exposto a essa doença muito mais tempo do que qualquer outra pessoa a
bordo para sucumbir, pelo que devo ser eu a ir lá abaixo. Posso misturar
algo na água para os fazer dormir, muito profundamente. Se se descer uma
rede de carga, posso lá empilhá-los todos e podeis baixá-los pela borda do
barco.
— Não podeis misturar algo na água que os mate sem sofrimento? —
indagou Nicholas.
— Não. É demasiado perigoso — explicou Nakor. — A morte pode levar
a que a doença seja libertada para contaminar outros. Não há forma de
saber. Temos de ser muito cautelosos. Preferiria queimar os corpos, mas
isso aqui no mar é impossível.
— Parece cruel — disse Nicholas —, afogá-los enquanto dormem.
— E é cruel, rapaz — concordou Ghuda. — Mas a vida muitas vezes é
cruel. Se tendes de vos convencer a vós próprios, lembrai-vos dos pobres
mortos e feridos lá em Crydee.
Nicholas suspirou. — Duvido que estas pobres criaturas tenham
conhecimento disso. Ainda assim, tendes razão. — Fitou então Nakor. —
Avançai com o plano.
Nakor partiu.
— Temos de parar para deixar sair os barqueiros e os mercenários —
disse então Nicholas.
— Isso coloca-nos um problema — alertou Ghuda.
— Porquê?
Foi Marcus quem respondeu. — Porque sem eles, não teremos homens
suficientes para velejar este navio e fazer a abordagem e apoderarmo-nos do
outro. Capturámos este porque os que seguiam a bordo não esperavam ser
apanhados à saída do porto. O Gaivota falso viu-nos a tomar este barco.
Estarão à nossa espera e saberão que os seguimos. É de esperar uma luta
encarniçada.
— Vamos falar com eles — disse Nicholas.
Ao chegar ao convés, Nicholas deparou-se com a Ranjana e as criadas a
apanharem ar na parte da frente do barco, na companhia de Brisa. Ela sorriu
abertamente a Nicholas e perguntou-lhe como se sentia. Ele fez um gesto
descomprometido e deu uma resposta vaga enquanto se apressava para o
convés principal. Indicou a Tuka que reunisse os barqueiros e depois foi ter
com os mercenários. Quando estavam todos reunidos, declarou:
— Chamo-me Nicholas. Sou o filho de Arutha conDoin, Príncipe de
Krondor.
Os barqueiros e os mercenários fitaram-no inexpressivos, pois aqueles
nomes nada lhes diziam. — Estávamos a falar de gratificações e de
desembarcar, Príncipe — informou Praji.
— Sabeis que perseguimos um navio gémeo deste — disse Nicholas. —
Não posso desperdiçar tempo a parar, mas posso abrandar o suficiente para
baixar um barco e deixar partir aqueles de vós que assim o desejem. —
Ouviu-se um burburinho. — Pagarei a todos os homens aqui presentes o
bónus de que falei. — Depois falou com Marcus por cima do ombro. — Ide
buscar o cofre com ouro que trouxe para bordo.
Marcus e Ghuda foram a correr buscá-lo. — Ofereço muito mais àqueles
que ficarem — prosseguiu Nicholas.
— Quanto mais? — perguntou Praji.
— Esperai — disse Nicholas. Num minuto, Ghuda e Marcus regressaram
com o cofre. Pousaram-no pesadamente no chão e Nicholas abriu-o. Os
barqueiros arregalaram os olhos e os mercenários produziram sons bem
audíveis ao verem o ouro e as joias. — Tuka, tirai deste cofre o que foi
prometido aos vossos homens — indicou Nicholas.
O pequeno carroceiro hesitou e depois enfiou a mão no cofre. Vasculhou
lá dentro, encontrando umas quantas pequenas moedas de prata e algumas
das moedas de ouro mais pequenas. Ergueu-a por fim e passou uma mão-
cheia de moedas a Nicholas para que este verificasse. — É isto que é devido
aos homens do rio, Encosi.
Nicholas aquiesceu. — Praji, retirai o que é devido aos vossos homens.
Praji foi menos hesitante, mas ainda assim só retirou de lá uma única
mão-cheia de moedas. — Distribuí-as — ordenou Nicholas.
Ambos o fizeram. A seguir, Nicholas pegou numa mão-cheia de ouro. —
Distribuí também estas — disse. Praji pegou nas moedas e dividiu-as por
todos os homens, que pareceram surpreendidos e agradados.
— Praji, estendei as vossas mãos — disse então Nicholas.
Praji assim o fez e Nicholas encheu-as de moedas. Os olhos de Praji
arregalaram-se enormemente e os barqueiros ficaram todos mudos de
espanto. — Aquilo que vos dei foi o vosso bónus. Quem quer que parta
agora levará isso com ele. — Apontou então para o ouro nas mãos de Praji.
— Mas àqueles de vós que me acompanhem, até à minha pátria, a esses
darei isto, e ainda mais!
Os barqueiros e os mercenários falaram entre eles, até que Praji tomou a
palavra. — Príncipe, onde fica essa vossa pátria?
— Do outro lado do Mar Azul, Praji. Mais de três meses de navegação.
Do outro lado do mundo.
Rapidamente se destacou um grupo de homens. — Encosi, estes homens,
apesar de impressionados com a vossa generosidade, têm esposas e filhos e
morreriam se fossem afastados deles. Pedem-vos que os deixeis na costa.
— Combinado. — Olhou então para os outros. — Ficais? — perguntou.
— Rumo ao outro lado do mundo, Príncipe — disse Praji.
Foram passadas ordens e preparado um barco. Quando se preparava para
ir falar com a Ranjana, Nicholas voltou-se para Praji. — Não tinha
percebido que tínhamos entre nós tantos homens solteiros — comentou.
— E não temos — revelou o mercenário. — Só que alguns deles não
morrem por serem separados das esposas e filhos.
Nicholas abanou a cabeça. Encontrou a Ranjana e as criadas a
conversarem com Margaret e Abigail. — Minha senhora — começou
Nicholas —, vamos lançar um barco para ir para terra. Cinco dos barqueiros
e três dos mercenários regressam à Cidade do Rio da Serpente. Servir-vos-
ão de escolta. Providenciarei fundos suficientes para que sejais entregue ao
vosso pai.
— Não — disse a rapariga.
Nicholas já tinha virado parcialmente as costas quando travou. — Não?
— perguntou.
— Não serei deixada na costa tão longe da civilização — referiu. —
Além disso, se regressar a casa, o meu pai bater-me-á e depois vender-me-á
a um condutor de camelos.
— Olhai — disse Nicholas —, não compreendo o vosso jogo, mas o
representante do Andres Rusolavi, Anward Nogosh Pata, assegurou-me que
o vosso pai é um homem amável que vos ama e que, regressando a casa,
não seríeis de modo nenhum castigada.
O comportamento da rapariga alterou-se. — Tendes razão. Menti. Desejo
permanecer por outra razão.
— Qual? — perguntou Nicholas, já com a paciência praticamente
esgotada.
De repente, a rapariga estava agarrada a ele, com os braços a
envolverem-lhe o pescoço. — Conquistastes o meu coração, meu corajoso
Capitão. — Beijou Nicholas apaixonadamente nos lábios. — Serei a vossa
esposa — disse ela, quando o Príncipe, completamente baralhado, tentou
libertar-se.
Nicholas olhou por cima do ombro da agora firmemente agarrada
Ranjana e viu Margaret, Abigail, Marcus e Ghuda num tremendo esforço
para não desatarem a rir à gargalhada.
23

Perseguição No Mar

O
uviu-se o grito do vigia.
— Barco à vista!
Nicholas desembaraçou-se das intermináveis declarações de
amor eterno da Ranjana. — Aonde? — questionou.
— Completamente à popa.
Levou apressadamente a mão ao peito da rapariga e afastou-a com força
suficiente para a fazer cair, no que foi detida pelas suas criadas. Correu para
a popa e subiu ao tombadilho superior, de onde perscrutou o horizonte.
Passado um bocado, viu uma pequena mancha negra.
— Sr. Pickens — disse —, quanto tempo para desembarcar os barqueiros
e os mercenários?
O primeiro imediato vasculhou a costa. — Se pararmos, uma hora ou
mais, mas se abrandarmos para um ritmo lento e largarmos um escaler,
quinze minutos.
Nicholas dirigiu-se a todos os que estavam no convés. — Podemos enfiar
todos num único barco?
— Não se quisermos que passe a rebentação, Capitão. Três viagens,
embora o ideal fosse quatro.
Nicholas praguejou. — Quanto tempo leva esse navio a alcançar-nos?
— É difícil dizer — referiu o marinheiro. — Se se tratar do navio que
tentou intercetar-nos há duas noites, cerca de uma hora. Se for outro… —
Não terminou o pensamento.
— Muito bem. — Nicholas tomou uma decisão. — Preparai-vos para pôr
toda a gente em alerta, Sr. Pickens. — A seguir, gritou para os que estavam
no convés inferior: — Preparar para lançar um escaler ao mar!
Marinheiros apressaram-se a desengatar um dos barcos grandes atado de
pernas para o ar na cobertura da escotilha da ré. Foi lançado um botaló e o
barco foi rapidamente erguido, transportado para o flanco e depois baixado.
Os barqueiros e os mercenários mais ansiosos por partirem lançaram
rapidamente um par de escadas de corda, com dois marinheiros. Quando
chegaram ao barco, remaram furiosamente em direção à costa e Nicholas
viu, preocupado, quando entraram nas vagas de rebentação e depois
cortaram as ondas rumo à praia. Dois dos barqueiros ajudaram a colocar o
barco de novo na água e os dois marinheiros esforçaram-se para conseguir
transpor as vagas.
— Isto está a demorar muito — comentou Nicholas, olhando para o
ponto no horizonte onde a embarcação perseguidora se revelava cada vez
maior. O barco chegou ao flanco do Águia e a segunda leva de barqueiros e
mercenários apressou-se a descer.
Quando o escaler chegou à praia, o vigia chamou. — Capitão, já lhe vejo
as cores.
Nicholas observou o navio em aproximação e viu que tinha uma bandeira
negra. — Qual é a insígnia? — questionou.
— Tem uma bandeira preta com uma serpente dourada.
— É do Suserano — anunciou Praji.
Nicholas fitou fixamente o barco em aproximação e o ângulo da sua
progressão. — Sr. Pickens, não sou um veterano em águas profundas, mas
diria que aquele navio avança contra o vento.
O marinheiro observou-o por uns instantes. — Sim, Capitão —
confirmou. — Não sois um veterano, mas ele efetivamente avança contra o
vento.
Pouco depois, foi o vigia quem gritou. — Capitão, tem um esporão de
metal na proa.
— Uma galé de guerra. Pode ignorar o vento e remar bem na nossa
direção — disse Nicholas. — Nunca vi nenhuma no porto.
Praji gritou desde o convés principal: — O Suserano tem um lago
particular alimentado pelo estuário; tem lá a sua armada privada.
— E que lago — comentou Ghuda.
— É o droman do Suserano — explicou Praji. — Um banco de
remadores de cada lado e um esporão e uma rampa de abordagem na proa.
Tem uma catapulta no castelo da popa e também uma balista à frente do
mastro.
— Preparai-vos para velejar, Sr. Pickens — ordenou Nicholas. — Não
vou permitir que aquela cabra se aproxime o suficiente para disparar contra
nós. — Passou para a amurada sobranceira ao convés principal e gritou lá
para baixo. — Quando o escaler estiver encostado, levai para lá a Ranjana e
as criadas e quem quer que lá caiba e os restantes de vós tereis de ir a nado.
Vamos partir.
Marcus olhou em volta. — Nicholas, a rapariga não está aqui — disse.
— Encontrai-a! — berrou Nicholas. — Não temos tempo para as
parvoíces dela.
Marcus dirigiu-se rapidamente ao camarote das raparigas e quando o
escaler já estava de novo junto ao navio, os últimos barqueiros e dois
mercenários desceram apressadamente a escada. Irromperam gritos vindos
do camarote por baixo do tombadilho superior e Calis e Ghuda foram de
pronto ver o que se passava. A Ranjana, contorcendo-se, pontapeando,
mordendo e arranhando, estava a ser puxada por Marcus, enquanto Brisa,
Abigail e Margaret reuniam as criadas atrás dela. — Dai-lhe algum ouro
para pagar o regresso a casa e ponde-a borda fora! — ordenou Nicholas.
— Não vou para casa! — guinchou a rapariga, esforçando-se ao máximo
para se desembaraçar do aperto de Marcus. — O Rahajan vai matar-me!
— Lá se foi o amor eterno — disse Brisa, olhando de soslaio para
Margaret com um sorriso perverso.
Um grito proveniente do escaler e chapes na água levaram um marinheiro
a espreitar para fora. — Capitão — chamou —, os mercenários
apoderaram-se do escaler.
Outros dois mercenários de Praji olharam por cima da amurada e
gritaram, e depois treparam e saltaram para a água atrás do barco em fuga.
— Devemos lançar outro barco, Capitão? — quis saber Pickens.
— Não, já não há tempo para isso — disse Nicholas, fitando a galé de
guerra cada vez mais próxima do Águia.
— Atiro-a borda fora? — perguntou Marcus.
— Não! — gritou a rapariga. — Não sei nadar! Vou afogar-me!
Nicholas ergueu as mãos dando mostras de resignação. — Não — disse.
— Pousai-a. — Profundamente irritado, resmungou algo. — Tirai-nos
daqui, Sr. Pickens — disse. — A todo o pano!
— A postos com todas as escotas e ovéns! — berrou o primeiro imediato.
— Içar âncora.
De início devagar, o Águia avançou e depois, já com as velas a ondear e
ao sabor do vento, progrediu como um golfinho.
Nicholas olhou para o navio perseguidor. — Estão suficientemente perto
para disparar sobre nós? — perguntou.
Como que em resposta, uma bola de fogo descreveu um arco desde o
convés do droman e tombou com um chape sibilante uns dez metros atrás
do barco. — Bem, esperemos não ficar sem vento antes que eles percam a
força — disse calmamente Pickens.
Através do mar, Nicholas conseguiu escutar o som débil do tambor usado
para impor o ritmo aos remadores. — Não vão conseguir manter aquele
ritmo de ataque por muito tempo — afirmou, virando costas ao outro navio.
— Os escravos vão começar a fraquejar nos remos.
Pickens assentiu. — Ainda dispõem da sua própria vela, Capitão.
Nicholas olhou de novo para trás, para onde ondeava ao vento a
aterradora vela preta e dourada. — O vento não lhes chega para nos
alcançarem.
— Não, Capitão, mas podem manter-se suficientemente perto para nos
darem problemas se o vento esmorecer.
— Então, rezai por um vento forte, Sr. Pickens. Temos um longo
caminho a percorrer até casa.
— Sim, Capitão.
Nicholas regressou ao convés principal e confrontou a Ranjana, que
estava parada de mãos nas ancas com um ar desafiador. — Não ides lançar-
me borda fora! — ordenou ela.
Nicholas deteve-se, começou a falar, parou e resmungou de novo
qualquer coisa. Virou-lhe costas e dirigiu-se ao seu camarote.
— Ainda bem que ele não me ordenou que vos deitasse borda fora,
rapariga — comentou Marcus, examinando os arranhões que ela lhe fizera.
A Ranjana voltou-se e sacou de uma adaga incrustada de joias de dentro
da ampla cinta da sua saia. — Sim, ainda bem! — vociferou, brandindo a
arma na direção de Marcus.
Lançou a adaga ao chão, tendo ficado cravada a tremer no convés entre
as botas de Marcus. Ela girou sobre si própria e com gestos instruiu as suas
criadas para que a seguissem até ao camarote. Brisa riu-se. — É um poço de
surpresas, não é?
— Acho que o Nicholas vai descobrir isso muito em breve — comentou
Harry.
Margaret e Abigail ficaram a olhar espantadas. — Dissestes que ela era
complicada, mas nada a quanto ser feroz — disse Margaret.
Abigail aproximou-se de Marcus e fez sons carinhosos, para vergonha
dele, enquanto lhe examinava os arranhões. — O que queríeis dizer com
isso, Harry, que o Nicholas ia descobrir em breve? — perguntou Abigail.
Foi Brisa quem respondeu. — Digamos apenas que a rapariga há de
encontrar um modo de levar o Nicholas a fazer o que ela desejar. Ela é
muito dissimulada.
Harry aquiesceu. — E o Nicholas não tem lá muita experiência com
mulheres.
— E vós tendes, Escudeiro? — perguntou Margaret. — Isto vindo do
rapaz que corou quando eu me meti com ele no jardim?
— Muita coisa se passou desde a última vez que nos vimos, irmã —
comentou Marcus.
— Meu amigo, tendes um dom para perceber as coisas — disse Harry,
após o que desatou a rir. Pouco depois, Ghuda imitou-o, e rapidamente
todos no grupo desataram a rir às gargalhadas.

N icholas tentou dormir; tirou as botas, mas deitou-se na tarimba


completamente vestido. Exausto, não conseguiu dar descanso à
cabeça, devido às constantes preocupações. O navio do Suserano mordia-
lhes obstinadamente os calcanhares. Quem quer que o estivesse a capitanear
era hábil a recorrer ao vento e aos remos para encurtar a distância sempre
que tal se afigurava possível. Pickens dissera que deixariam o droman para
trás assim que deixassem de seguir a costa e virassem para atravessar o mar.
Nicholas comera sozinho no seu camarote, depois de ter estado algum
tempo sentado com Amos no dele. Depois, tentou entender o diário de
bordo de Amos, decifrando as notas e abreviaturas do Almirante relativas a
correntes e ventos. Nicholas tinha noções suficientes de navegação para
saber que não poderiam reconstituir literalmente o caminho de regresso a
casa – teriam de encontrar uma rota perto da que haviam usado na vinda,
mas que aproveitasse as correntes e ventos que sopravam na direção oposta
dessa. Caso contrário, teriam de ir aos ziguezagues ao longo de centenas de
milhas.
Nicholas conseguiu finalmente dormitar quando um rangido da porta a
abrir-se o despertou de imediato. — Huh? — disse ele ao retirar
ruidosamente a espada da bainha.
— Não — disse uma voz feminina. Alguém se sentou na cama junto a
ele.
— Abby? — perguntou Nicholas, enquanto procurava um candeeiro.
— Ela está com o Marcus no cacifo das cordas — revelou a voz. — Eles
estão a… conhecerem-se melhor, digamos assim. — Ele acendeu a lanterna
e deu com a Ranjana sentada ao seu lado.
— O que fazeis aqui? — perguntou, irritado com a intromissão.
— Precisamos de conversar — disse ela. Usava um vestido de seda que
se moldava às suas curvas e o cabelo dela tinha sido adornado com alfinetes
de ouro e de pérolas, acentuando os seus caracóis escuros.
— Sobre o quê? — perguntou ele.
— Esse lugar para onde vamos. Sois mesmo um Príncipe?
— Ranjana… como vos chamais? — quis saber Nicholas.
— Iasha.
— Iasha, sou um Príncipe. O meu tio é o Rei. O meu irmão irá suceder-
lhe como Rei.
A rapariga olhou para baixo, parecendo envergonhada. — Lamento ter-
vos causado tantos problemas. Estive a falar com aquela que se chama
Margaret. Não fazia ideia de que havia tanta matança e sofrimento, ou que
viestes de tão longe para descobrir a que se chama Abigail.
Nicholas suspirou, recostando-se no tabique, com a cabeça apoiada no
braço. — Quando iniciei esta viagem, ter-vos-ia dito o quanto amava a
Abigail. Tudo isso me parece agora uma tontice.
— O amor nunca é uma tontice — disse Iasha.
— Bem, não quis dizer que era. Mas achar que o que eu sentia era amor,
isso sim era uma tontice.
— Oh?
— Foi para isso que aqui viestes, para me dizerdes que lamentais?
— Sim… não. — Ela suspirou. — Quando vos disse que vos amava, foi
para impedir que nos enviásseis de volta para Kilbar.
— Vá-se lá saber porquê, mas tinha percebido isso — disse Nicholas, de
novo a mostrar-se irritado.
— Mas não menti quando disse que isso me custaria a vida.
— O vosso pai estaria mesmo disposto a matar-vos ou vender-vos por
causa de algo da responsabilidade do Suserano?
Ela suspirou de novo profundamente. — Não, por causa de algo que eu
fiz. Ou melhor, que a Ranjana fez.
— O quê? — perguntou Nicholas, nitidamente baralhado.
— Não sou a Ranjana de Kilbar.
— Quem sois?
— Sou a criada dela, Iasha. As outras criadas também estão envolvidas
no estratagema.
— É melhor que me expliqueis tudo — aconselhou Nicholas.
— A Ranjana não desejava ser a décima quinta esposa do Suserano da
Cidade do Rio da Serpente. Estava apaixonada por um Príncipe pouco
importante de Hamsa desde que se conheceram em crianças. Por isso,
subornou Andres Rusolavi, o intermediário, para me substituir por ela e nos
enviar para sul, enquanto ela seguia para Hamsa para casar em segredo com
o seu Príncipe. Praticamente não há comunicação entre Hamsa e a Cidade
do Rio da Serpente, pelo que a minha senhora pôde ficar com o seu
Príncipe. Eu seria mais uma cara bonita para o Suserano e viveria
luxuosamente, enquanto as outras criadas seriam recompensadas por mim
pelo seu silêncio.
Nicholas fez outro som de irritação. — Então, tratou-se de mais um
estratagema?
— Temo que sim, meu Príncipe. Agora, estou à mercê da vossa piedade e
imploro-vos para que não me vendeis e às outras como escravas.
Nicholas fitou-a com um olhar cerrado. — Não sei porquê, mas penso
que a Margaret já vos terá dito que no Reino não há escravatura.
Notou-se um leve sorriso no canto dos lábios da rapariga, mas tudo o que
ela disse foi:
— Oh!
— É melhor eu ir ver como está o Amos — disse ele, esfregando os
olhos com as mãos.
Quando tentou sentar-se, ela dobrou-se para a frente e os seus lábios
macios pousaram nos dele. Ele permaneceu imóvel por uns momentos e só
falou quando ela recuou. — Para que foi isso?
— Porque apesar de não vos amar, meu bravo Capitão, acho-vos um
homem amável e trataríeis uma criada tão bem quanto uma Ranjana.
— Bem dito, donzela — afirmou Nicholas, que se levantou. — Mas
ainda vai levar muito tempo até que eu acredite piamente no que diz alguém
da vossa terra.
Ela também se ergueu. — Falai-me do vosso Reino.
— Posso fazê-lo depois de ver como está o Amos — disse Nicholas. —
Vinde daí.
Pegou na lanterna e encaminhou-a até ao camarote de Amos, onde o
Almirante ferido estava deitado a dormir. Nicholas fez uma breve pausa e
olhou para Amos, que continuava pálido.
— Vai sobreviver? — perguntou a rapariga, em voz baixa.
— Espero bem que sim — respondeu Nicholas. — É suposto desposar a
minha avó quando regressarmos. Nós, a minha família, gostamos muito
dele. — Fitou demoradamente as feições tranquilas de Amos.
Nicholas voltou-se então para o cacifo dos mapas e pousou a lanterna.
Examinou os mapas que os pantathianos tinham fornecido ao capitão
original. Entre estes e o diário de bordo, teve a esperança de conseguir
traçar o caminho de regresso a casa. Escolheu um mapa com o Mar Amaro
e desenrolou-o. — Era aqui que eu vivia — disse, apontando para Krondor.
Ela deitou uma olhadela. — Não sei ler, Capitão. O que dizem aquelas
linhas?
Nicholas começou a falar de Krondor e mostrou-lhe a distância que
haviam navegado desde a Cidade do Rio da Serpente e a correspondência
no mapa. A rapariga arquejou. — Uma terra tão imensa para pertencer a um
único homem.
— Não pertence — corrigiu-a. — Mais tarde explicar-vos-ei os
pormenores, mas o meu tio é Rei por direito de nascença, mas também tem
obrigações no que concerne a proteger os que lá vivem. No meu país, a
nobreza não é apenas um privilégio, mas também uma responsabilidade.
Governamos mas também servimos.
Explicou um pouco como era a sua família e, quando terminou, a
rapariga colocou uma questão. — Então não vos entregarão uma cidade
para governar?
Nicholas encolheu os ombros. — Não sei o que o meu pai e o meu tio
têm planeado para mim. Um casamento de Estado, calculo, com uma
Princesa de Roldem, ou de Kesh. Ou com uma filha de um Duque
importante. — E continuou: — Posso ser enviado para Rillanon e servir na
corte do meu irmão quando ele se tornar Rei.
— Onde fica Rillanon?
Ele desenrolou outro mapa e estendeu-o junto ao primeiro, para lhe
mostrar o Mar do Reino. — Esta ilha aqui — apontou — é o lar do meu
povo. Foi onde nascemos e a razão de sermos conhecidos como Reino das
Ilhas.
— Tendes de me mostrar Rillanon — disse a rapariga, enfiando o braço
no dele. Ele corou ao sentir o peito dela encostado ao braço.
— Ah, talvez — disse ele, libertando-se e afastando os mapas. — Acho,
no entanto, que não tereis problemas em encontrar alguém que vos mostre
tudo o pretendeis ver.
Ela fez beicinho e Nicholas sentiu o coração a saltar desenfreadamente.
— Não passo de uma pobre criada. Que homem de posição olharia duas
vezes para mim?
Nicholas sorriu. — Imensos, atrevo-me a dizer. Sois, sem dúvida, muito
bela.
Ela animou-se. — Achais-me bela?
Nicholas aproveitou a deixa. — Quando não estais a tentar arrancar os
olhos ao Marcus ou a guinchar como um gato ferido.
Ela sorriu, tapando a boca com a mão. — É assim que a Ranjana se
comporta, meu Capitão. Procurei comportar-me como ela o faria, para ser
convincente.
De repente, fez-se silêncio, e Nicholas apercebeu-se de que não fazia
ideia do que dizer a seguir. A rapariga manteve-se a olhar para ele,
iluminada pelo brilho suave da lanterna. Os olhares deles cruzaram-se e ela
deu um passo em frente e beijou-o outra vez. Desta vez, o corpo dele
assumiu o controlo e, sem pensar duas vezes, puxou-a com força para si.
Ficaram ali por momentos envolvidos em sons suaves, até que se ouviu
uma voz débil:
— Nicky, vós e a vossa miúda não poderíeis encontrar um camarote só
para vós?
Nicholas voltou-se. — Amos!
Deu dois passos na direção de Amos e depois virou-se para Iasha. — Ide
chamar o Anthony! — ordenou, e a rapariga apressou-se a ir procurar o
mago.
— Ajudai-me a sentar-me — solicitou Amos.
Nicholas deixou que Amos lhe agarrasse o braço enquanto se punha mais
confortável e depois arranjou as almofadas debaixo dele.
— Bem, o Ghuda deve-me cinco soberanos de ouro — disse Amos.
— Porquê? — perguntou Nicholas.
— Apostei com ele que aquela rapariga iria convencer um de vós, jovens
libertinos, a trazê-la connosco. Então sois vós que vos deitais com ela?
— Não, não ando a dormir com ela — disse Nicholas.
— Por todos os deuses, filho, o que se passa de errado convosco? —
Tossiu. — Ah, raios, como dói!
— Tendes sorte em estar vivo — realçou Nicholas.
— Não sois o primeiro a dizer-me isso — referiu Amos. — Muito bem, o
que é que aconteceu desde que fui aqui enfiado?
Nicholas pô-lo ao corrente e, quando terminou, apareceu Anthony. O
curandeiro observou Amos. — Só vos fará bem permanecerdes para já na
cama. Direi a alguém para vos trazer um caldo de carne. Esse ferimento na
barriga é perigoso, por isso, por uns tempos, vamos ter de vigiar o que
comeis.
— Achais que não terá mal beber um pouco de vinho? — perguntou
Amos com um sorriso débil.
— Um copo pequeno a acompanhar o caldo — disse Anthony. —
Ajudar-vos-á a dormir melhor.
Anthony saiu.
— Amanhã, nós… — começou Nicholas a dizer.
— Temos de matar aquelas coisas lá em baixo — disse Amos. — Sim,
estava aqui a pensar o que vos terá levado a esperar.
— É complicado, Amos. Tenho a noção daquilo que o Nakor e o Calis
me disseram, e daquilo que me contaram a Margaret e a Abigail, mas eles
parecem pessoas; parecem amigos do Castelo de Crydee.
— Mas não são — limitou-se a dizer Amos. — Sois um Príncipe do
Sangue Real, como o vosso pai e irmãos, e tendes um dever. Isso muitas
vezes implica matar para proteger os nossos. Não é justo, nem está certo,
nem sequer é merecido, apenas necessário. É assim que são as coisas.
Nicholas aquiesceu. — Vou deixar-vos dormir. Amanhã preciso que me
decifreis aqueles gatafunhos no vosso diário de bordo para podermos dar
com o caminho para casa.
— Amanhã — disse Amos. Pareceu pronto a regressar ao sono. — Só
uma coisa.
— O quê?
— Aquela rapariguinha. Não permitis que se chegue demasiado.
— Pensei que tivésseis dito que se passava algo de errado comigo…
— Não — disse Amos. — Não me refiro a levá-la para a cama. Ela
provavelmente poderá ensinar-vos um par de coisas. Não, lembrai-vos
apenas de quem sois e de qual é o vosso destino. Sois livre de amar quem
quiserdes, mas será o Rei a dizer-vos com quem casareis.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Toda a vida me disseram isso, Amos.
— Lembrai-vos apenas disso quando ela vos tiver preso com rédea curta.
Nessa altura, a maioria dos homens não pensa direito; nada de promessas.
— Depois, sorriu e Nicholas reconheceu o velho Amos. — Lá porque não
podeis permitir que ela assuma o controlo da vossa vida, não quer dizer que
não possais desfrutar do facto de ela tentar.
Nicholas corou. — Boa-noite, Amos. Vejo-vos pela manhã.
Regressou ao seu camarote e recordou-se de que deixara a lanterna no
camarote de Amos. No escuro, despiu a camisa e as calças e sentou-se na
cama. Deu um salto quando sentiu algo a mexer-se. — Enfiai-vos debaixo
dos cobertores — ouviu-se a voz de Iasha. — Está frio aqui!
Ele hesitou e então enfiou-se dentro da cama ao lado da rapariga. Sentiu
pele quente encostada à sua. Ficou imóvel por uns momentos, sem saber
bem o que fazer a seguir, até que os lábios dela se colaram aos seus. Ele
correspondeu e depois riu-se.
— O que foi? — perguntou ela, com um tom com tanto de divertimento
como de preocupação. — Achais-me engraçada?
— Não — disse Nicholas. — Estou só aqui a pensar em algo que me
disse o Amos.
— O quê?
— Conto-vos mais tarde — respondeu, beijando-a de novo.

C –ontinuam lá atrás, Capitão — informou Harry.


Nicholas tinha acabado de chegar ao convés, onde se deparou com
um céu azul e uma brisa fresca. — Quanto tempo é que eles vão aguentar?
Não podem trazer provisões para uma viagem longa.
— Talvez não se importem — disse Harry. — Já não precisas do
camarote? — Com as mulheres a bordo, os oficiais e os nobres estavam a
revezar-se nos aposentos, pelo que Pickens e um novo contramestre,
Gregory, partilhavam a tarimba do aspirante de marinha. Harry e Nicholas
estavam igualmente em turnos diferentes – Harry comandava à noite – e
dormiam no que fora o camarote do primeiro imediato. A Ranjana,
Margaret, Abigail e as criadas deveriam dormir nos dois pequenos
camarotes para passageiros ou convidados existentes nos navios do Reino,
mas Nicholas pensou se as raparigas andariam envolvidas nos mesmos
arranjinhos que ele e Harry.
— Serias mais convincente enquanto comandante se te livrasses desse
sorriso estúpido — comentou Harry.
— Sorriso? — questionou Nicholas.
Harry anuiu. — Conheço a sensação. — Sorriu e com a cabeça apontou
para Brisa, que estava a atravessar o convés.
— Olha, é uma altura esquisita para dizer isto, tendo em conta que…
— Tendo em conta o quê?
Nicholas corou. — O que aconteceu na noite passada. Mas deveríamos
tentar ser discretos em relação a estes arranjinhos para dormir.
— Porquê? — questionou Harry. — Eu tenho a Brisa e tu a Ranjana, o
Marcus tem a Abigail e o Anthony está com a Margaret; aparentemente
resultou tudo muito bem.
— Explica isso aos outros quarenta e nove homens a bordo — disse
Nicholas. Harry olhou de soslaio para um grupo de mercenários sentados
numa cobertura de escotilha que estavam a ver Brisa passar. — Nos nossos
homens podemos confiar; são soldados profissionais e marinheiros do Rei.
Mas armas contratadas? Quero alguém atento à quantidade de vinho e à
cerveja servida às refeições e ouvidos bem atentos a eventuais problemas.
Temos pela frente três meses ou mais de travessia do oceano.
Harry suspirou. — Tens razão. Vou avisar os outros.
— O verdadeiro problema vão ser as criadas — realçou Nicholas. —
Umas pequenas trocas de palavras é uma coisa, mas uma luta com facas por
causa de uma delas pode revelar-se desastrosa.
— Compreendo — disse Harry. — Vou avisar que devem manter-se
alertas.
Um praguejar vindo de baixo atraiu a atenção de Nicholas para o convés
principal, onde Amos estava de pé a acenar com a mão, a dispensar a ajuda
de Anthony. — Podeis ser o curandeiro, mas o corpo é meu e sei muito bem
quando preciso de ar fresco! Ide embora! — Deu uma palmada leve a
Anthony para dispensar a sua ajuda e agarrou-se à amurada.
Nicholas foi a correr até lá abaixo. — O que fazeis fora da cama? —
perguntou.
— Já estive acamado o tempo suficiente para cheirar como o fundo da
caneca de cerveja de ontem à noite. Preciso de apanhar ar e de roupas
limpas.
Nakor apareceu vindo dos conveses inferiores. — Anthony, Capitão —
cumprimentou. — E depois viu Amos. — Almirante! É bom ver-vos.
— Também é bom ver o vosso sorriso louco — disse Amos.
Nakor falou então com Nicholas. — Todas as criaturas adormeceram. A
droga deve atuar durante um bom bocado, mas, com seres inumanos, nunca
se sabe. Temos de agir já.
Nicholas fechou momentaneamente os olhos. — Fazei-o — disse.
Nakor fez sinal a Ghuda, que liderou o grupo encarregado do trabalho.
Deslocaram a tampa da escotilha de carga para o lado e posicionaram sobre
o cárcere uma enorme rede de carga com pequenos sacos de lastro de
chumbo lá atados. Nakor saltou agilmente para a rede e aí se agarrou
enquanto esta era baixada. O tempo arrastou-se enquanto aguardavam em
silêncio, pois só Nakor iria ao convés de carga mais baixo, para carregar as
trinta criaturas inconscientes para a rede. Alegou ser aquele que
provavelmente mais resistiria à infeção devido a alguns truques que
conhecia e, desconhecendo como se espalhava a praga, Nicholas não viu
como contestá-lo.
Ouviu-se então um grito vindo de lá de baixo e Ghuda fez um gesto. Os
homens na guinda empurraram os raios de madeira do cabrestante e a rede
de carga ergueu-se lentamente até surgir à vista no convés. Nakor estava
pendurado do lado de fora da rede e saltou para o convés assim que aquela
saiu do cárcere. Subiu mais alto, até ficar por cima da amurada, e dois
homens içaram cordas de portaló para a balançar até cima da água. Os
corpos lá dentro pareciam jovens tranquilos a dormir.
E então, sem aguardar por ordens, Nakor pegou numa faca e cortou a
corda que segurava a rede, soltando-a. Embateu na água com um chape e
Nicholas observou com repugnância e em silêncio enquanto os que estavam
dentro da rede de cordas se afundaram sem produzir um som, conforme o
lastro os puxava na direção do fundo do mar.
Anthony pousou a mão no ombro de Nicholas. — Tinha de ser feito, não
havia outra forma. Não vos podeis esquecer que essas criaturas foram
concebidas para morrer.
— Não faz com que o assassínio se torne mais fácil — disse Nicholas,
brandamente.
— Vou lá baixo ao convés inferior com o Nakor — informou Anthony.
— Entre nós, podemos limpar tudo de algum possível foco de infeção. E
assim os mercenários terão um sítio para dormir para lá do convés principal.
Nicholas assentiu com a cabeça.
— E o barco que nos segue? — perguntou Amos.
— O Praji disse que era um droman — explicou Nicholas. — É como um
birreme de Queg com uma catapulta e balista; também tem um esporão e
uma rampa de abordagem. Uma única vela latina além do mastro principal e
penso que terá uma draiva atrás, embora nunca tenhamos estado
suficientemente perto para confirmar.
— O capitão ou é corajoso ou um louco. Não é um barco de águas
profundas. Se atingido por uma tempestade, terão de remar pelas vidas
deles.
— Lembrai-vos de com quem lidamos — avisou Nicholas.
Amos anuiu. — Sei melhor do que vós, rapaz. Vi a carnificina deles a um
nível que não conseguis imaginar. — Olhou para cima. — Os homens
parecem estar a desempenhar os seus deveres — comentou.
— O Pickens está a revelar-se um primeiro imediato de categoria e o
Harry com o tempo está a aprender. — Nicholas sorriu. — Assim como eu.
— Às vezes, é a melhor maneira de o fazer. O Pickens sempre foi um
bom marujo; foi o seu gosto exagerado pela bebida em terra que o manteve
no castelo da proa. — Deitou uma olhadela para o local onde estava
Pickens. — Se depois de tudo isto ele se mantiver sóbrio em terra, farei
com que a promoção seja definitiva — anunciou Amos.
Amos vacilou um pouco e teve de deitar a mão à amurada. — Muito bem
— disse Nicholas —, já basta. Já para a cama. Terei todo o gosto em vos
devolver o comando quando estiverdes pronto, mas para já isso não vai
acontecer.
Enquanto Nicholas o ajudava a regressar ao camarote, este disse-lhe:
— Nicky, fazei-me um favor, sim?
— O que é?
— Quando regressarmos a casa, nada de falar disto à vossa avó. Não é
necessário apoquentá-la.
— Acho que ela é capaz de reparar nessa ferida perfurante na vossa
barriga, Amos.
— Nessa altura já terei inventado uma boa história — disse debilmente.
Nicholas ajudou-o a regressar à tarimba e, antes mesmo de sair, já Amos
adormecera.

O tempo foi passando vagarosamente. Os receios de Nicholas de que


surgissem fricções entre os homens devido à presença das mulheres
pareceram infundados, pelo menos enquanto a galé perseguidora se
manteve à vista. Durante horas não se via sinal do droman, até que este
reaparecia pouco antes do pôr-do-sol ou com o amanhecer. Sem que o
Gaivota Real aparecesse à vista, poderia ter sido fácil tornarem-se
descuidados e acharem que a viagem pudesse terminar sem combate, mas a
forma negra no horizonte atrás deles reavivava-lhes sempre a mente para
uma luta iminente.
Os prisioneiros de Crydee estavam a recuperar forças suficientes para
passarem algum tempo no convés. A dúzia de mulheres de Crydee e as
quatro criadas de Iasha andavam sempre por ali, para que os homens
solteiros não ficassem ressentidos por causa das que estavam com Nicholas
e os seus amigos. Por duas vezes, Nicholas deteve rixas entre barqueiros ou
mercenários, mas não lhe pareceu que passassem de altercações
semelhantes às vistas em Krondor entre aprendizes por causa de raparigas
da cidade.
Os marinheiros mantiveram o navio em condições e os barqueiros que
optaram por participar naquela viagem tornaram-se ajudantes de convés
muito capazes. Os soldados de Crydee deram por si de novo a desempenhar
tarefas aprendidas na viagem de ida, enquanto Nicholas, Marcus e Harry
aprenderam o ofício de capitão da marinha.
Nicholas reuniu todos os dias com Amos, que tentou ajudá-lo a aprender
navegação através das cartas marítimas e do seu diário de bordo. Estavam a
aproximar-se do ponto onde Amos achava mais provável que encontrassem
uma corrente favorável conforme se afastassem de Novindus e se
aprestassem para cruzar o oceano. Já não tinham terra à vista e a água
passou para uma tonalidade azul-escura, mostrando uma alteração na
corrente. Nicholas ainda não se sentia tão confiante quanto Amos a
interpretar tais alterações, mas, na realidade, este já o fazia há quarenta
anos.
A rotina, por vezes tensa, instalou-se no quotidiano do navio. Mas poucas
pessoas podem viver constantemente sob uma nuvem sombria; houve
momentos genuinamente divertidos e muitas brincadeiras. Harry e Brisa
continuaram a pegar constantemente um com o outro, mas Nicholas reparou
que raramente os via separados.
Margaret e Anthony eram vistos frequentemente na proa, aproveitando-se
do máximo de privacidade que lograssem obter. Não eram tão exibicionistas
quanto Brisa e Harry, mas na verdade poucos casais o eram.
Marcus e Abigail mergulharam num contentamento tranquilo, embora
Abigail ainda conseguisse deixá-lo com o sobrolho franzido quando
mencionava o seu desejo de visitar Krondor e Rillanon. Nicholas começou
a achar que o seu primo era um homem pouco dado a afastar-se mais do que
um dia de viagem desde sua casa a não ser que se revelasse estritamente
necessário ou fosse para caçar.
Nicholas verificou que a sua vida era surpreendentemente satisfatória.
Iasha era ardente e instrutiva e ele era um pupilo mais do que empenhado.
Os deveres de capitanear o navio e de supervisionar o treino dos homens
para a batalha iminente, o tempo passado com Amos – tudo isso o deixava
num estado de espírito ao qual só se poderia chamar felicidade. Sabia que o
combate era iminente e que sobre a mesa se jogava o destino da sua pátria,
mas preferiu manter esse problema ao largo até que a necessidade obrigasse
ao contrário. Foi a iminência do conflito que potenciou o seu apreço pelas
coisas boas da vida que encontrou pelo caminho. No entretanto, estava
satisfeito por apreciar o trabalho, a companhia de bons amigos e o afeto de
uma bela jovem.
Nicholas era demasiado pragmático para se achar apaixonado pela
rapariga; o seu sentimento por ela era em grande parte ternura: Iasha
revelou-se uma jovem astuta e esperta com uma curiosidade profunda e
uma sensatez firme e sagaz idêntica à de Brisa. Aquilo que esta considerara
frieza quando se conheceram revelou-se, afinal, um desejo agudo de
sobrevivência, uma característica que Brisa sabia apreciar. A falta de uma
educação formal em Iasha e a sua infância complicada não conseguiram
ensombrar a sua inteligência, e em diversas ocasiões ela repreendeu
Nicholas por confundir ignorância com estupidez. Mas apesar de Nicholas
sonhar com um amor mágico, como era frequente nos jovens da sua idade,
sempre soube desde cedo que era um filho do Estado e que nunca teria o
direito de escolher o rumo da sua vida.
Aquele ínterim de velejar para nordeste, através das tardes quentes das
águas equatoriais, para as quais se dirigiu à procura de segurança, era aquilo
que o jovem Príncipe conhecera de mais parecido com liberdade em toda a
sua vida.
Já perto do final do segundo mês de viagem, começaram a entrar em
águas conhecidas; Amos subiu uma noite ao convés e perscrutou os céus.
— As estrelas estão onde deveriam estar — afirmou com um sorriso. —
Estamos a ir para casa. — Esta última frase foi proferida com um anseio
que Nicholas lhe desconhecia.
— Passa-se alguma coisa? — perguntou Nicholas.
— Nada, a sério — disse Amos. Debruçou-se sobre a amurada do convés
principal e fitou as águas escuras. — Estava aqui a pensar que esta é
efetivamente a minha última viagem.
— Até parece que ides ficar emparedado no palácio — comentou
Nicholas. — A avó tem as herdades dela e adora viajar. Podeis desejar ficar
em Krondor após uma temporada a dar a volta ao Reino com ela; Rillanon,
Bas-Tyra, ir lá abaixo visitar a tia Carline em Stardock, uma visita a
Darkmoor para provar os novos vinhos, uma viagem até Yabon a cada dois
anos.
Amos abanou a cabeça. — Pequena nobreza com terras. Nunca me
habituarei a isso.
Nicholas sorriu. — Ides acabar por vos habituar.
— Tal como vós vos ides habituar de novo à corte do vosso pai? —
questionou Amos.
O sorriso de Nicholas desapareceu.
— Bem me pareceu.
Nicholas mudou de assunto. — Achais que eles se dirigem a Krondor?
Amos não precisou de perguntar a quem se referia com «eles» e percebeu
que Nicholas já conhecia a resposta; já tinham discutido o assunto diversas
vezes, mas sabia também que, apesar de ter amadurecido bastante no último
ano, Nicholas era ainda, em muitos aspetos, um jovem, pouco seguro de si.
Amos refletiu por uns instantes. — É a opção mais lógica — acabou por
dizer. Antes de voltar a falar, olhou em volta para se assegurar de que
ninguém os escutava. — Sabemos qual é o objetivo final deles: Sethanon e
a Pedra da Vida. A praga é apenas um meio para atingir um fim; ao lançar o
caos no Reino, podem enviar facilmente uma expedição até Sethanon, para
libertar a sua «deusa».
— Que criaturas disparatadas — comentou Nakor.
Ambos se voltaram de repente. — Não torneis a fazer isso —
recomendou Amos. — De onde saístes?
— De onde é que poderia ter saído? — questionou Nakor. — Estamos
num navio, lembrais-vos?
— O que é que ouvistes? — quis saber Nicholas.
— O suficiente. Mas nada que ainda não soubesse.
Nicholas reafirmou a si próprio que nunca deveria subestimar os
conhecimentos do pequeno homem, mas ele tinha a certeza que só uma
mão-cheia de pessoas sabia da Pedra da Vida. — O que vos parece?
— As serpentes são criaturas muito estranhas. Há já muitos anos que
tenho essa opinião.
— Já as encontrastes antes? — perguntou Amos.
— Da última vez que estive em Novindus.
— Já tínheis estado em Novindus? — perguntaram Amos e Nicholas em
uníssono.
— Uma vez, há muito, muito tempo… embora na altura não me tivesse
apercebido de que se tratava de Novindus; é uma longa história relacionada
com um truque que não funcionou da forma que achei que funcionaria,
algumas relíquias de templos que julguei abandonados e um clero secreto
sem sentido de humor. Seja como for, esses pantathianos são criaturas
disparatadas dispostas a assassinar o seu próprio planeta por causa da falsa
deusa deles; e, no final, os planos deles vão por água abaixo.
Amos não especulou sobre o quanto saberia Nakor. Limitou-se a dizer:
— Bem, um homem pode matar-vos por causa de uma tolice tão
facilmente quanto por causa de um assunto sério.
— É isso mesmo — concordou Nakor. — No fim acaba-se na mesma
morto. Não se consegue discutir com fanáticos religiosos.
Ghuda apareceu perto deles e ouviu o derradeiro comentário. — Oh,
pode discutir-se com eles — realçou —, mas de pouco vos vale. Um
homem do deserto que em tempos conheci chama-lhe «falar para as
paredes».
Todos sorriram. — Como é que vão os treinos? — perguntou Nicholas.
— Bem. Alguns dos prisioneiros recuperaram o suficiente para se
juntarem a nós; estão muito motivados por terem uma espada na mão
quando apanharmos o outro navio.
Nicholas mostrara-se relutante em permitir que aprendizes e pajens
andassem armados, temendo que, mais do que uma ajuda, fossem um
estorvo. Ghuda convencera-o de que poderia necessitar de todas as armas
que pudessem reunir, e os treinos ocuparam grande tempo da travessia,
dando aos outros mercenários algo de útil para fazerem.
A noite decorreu tranquilamente; depois Amos queixou-se de começar a
sentir-se cansado e foi para o camarote. Nicholas viu Harry no tombadilho
superior e decidiu ir para dentro. Ao chegar ao camarote, deu com Brisa e
Iasha a conversarem. Brisa ergueu-se de um salto quando viu Nicholas. —
Já estava de saída — disse.
Nicholas sorriu-lhe quando ela passou. Conforme os dias se foram
tornando mais quentes, as mulheres começaram a usar vestidos soltos mais
simples, e o de Brisa foi provocadoramente cortado baixo em cima e alto na
bainha, exibindo boas partes do pescoço, braços, peito e pernas. Nicholas
ficou a vê-la sair e Iasha aclarou sonoramente a garganta. Nicholas voltou-
se para a fitar com um sorriso.
— Vinde cá — disse ela —, que já vos faço esquecer a cabra magricela.
Nicholas tirou o cinto da espada e descalçou as botas. — Magricela? A
Brisa? — perguntou, ao pousar as coisas no chão.
Iasha levantou o braço e desapertou os laços do seu próprio vestido,
deixando-o cair até à cinta. — Magricela — repetiu.
Nicholas riu-se e na brincadeira enfiou o rosto no meio dos seios dela,
após o que a beijou. — De que é que vós as duas estáveis a falar? —
perguntou. — Tornaram-se unha com carne.
Ela respondeu ao mesmo tempo que lhe despia a túnica: — Se quereis
saber, está a ajudar-me a aprender a vossa língua bárbara. Ela afinal não é
má pessoa. Assim que soube que eu não era da nobreza, tornou-se bastante
civilizada.
— Para alguém que não se dá com mulheres da nobreza, ela e a Margaret
também estão a entender-se às mil maravilhas.
— A vossa prima é uma mulher muito invulgar — disse Iasha. — Já
conheci muitas mulheres ricas e nobres e ela é diferente de todas elas.
Nicholas suspirou quando aconchegou o nariz ao pescoço dela. — Foi
pena não terdes conhecido a mãe dela. — Não soube como descrever
Briana. Foi arrebatado por uma certa melancolia.
— O que se passa? — quis saber Iasha.
Nicholas encolheu os ombros. — Nada, na verdade. As pessoas morrem,
faz-se o luto, e depois a vida continua. É assim que funciona. — A seguir,
falou já mais animado. — É bom saber que estais a aprender a língua do
Rei.
Iasha sorriu. — Se pretendo encontrar um marido rico, vou ter de a
dominar.
Nicholas sentou-se. — Marido?
— Vai acabar por ser assim — disse Iasha. — A vossa esposa pode não
querer a vossa amante por perto. E nenhum de nós imagina que seja
possível o vosso pai autorizar que nos casemos.
Nicholas ia protestar; mas apercebeu-se de que ela não estava a dizer
nada que a ele não lhe tivesse passado pela cabeça. Constatou apenas que
não gostou de a ouvir dizer aquilo.
— Ficastes magoado — disse ela, num tom com o seu quê de jocoso.
Levantou-se. — Permiti que vos faça sentir melhor — disse ela ao
desapertar o cinto do seu vestido, levando a que a roupa lhe caísse aos pés.
Nicholas sorriu abertamente quando ela voltou a aproximar-se dele para
se acomodar nos seus braços.

A galé perseguidora já não era avistada ia para uma semana e Amos


calculou que finalmente tivesse soçobrado face à longa travessia.
Apareceu no convés e inspirou profundamente o ar marítimo. Já estavam de
novo quase na primavera.
Amos pôs-se ao lado de Nicholas no tombadilho superior. — Um destes
dias sou capaz de solicitar de novo o meu posto de comando — anunciou.
— Quando o quiserdes.
Amos deu uma palmada no ombro de Nicholas. — Estais a sair-vos bem.
— Ficaria mais descansado se soubesse onde anda o outro barco —
confessou Nicholas.
— Se o capitão souber do seu ofício, estarão a sul dos Rochedos de
Frigate, cerca de uma semana a sul da Ilha dos Três Dedos. Dão lá a volta e
dirigem-se diretamente para os Estreitos das Trevas.
— Vamos atravessar-nos no caminho deles?
— Não sei — reconheceu Amos. — Este navio é quase tão veloz quanto
o genuíno Águia e o verdadeiro Gaivota era apenas um pouco mais lento. É
uma escolha complicada e não conhecemos as águas do Sul tão bem quanto
o capitão deles. — Coçou a mão. — Mas ninguém conhece tão bem quanto
eu as águas do Norte e assim que chegarmos ao Mar Amaro, vou recorrer a
todas as correntes e contracorrentes, a todos os ventos e vagas para nos
impelirem ainda mais para a frente. Vamos apanhá-los, não haja dúvidas.
— Quando é que poderemos avistá-los? — perguntou Nicholas.
— De imediato — esclareceu Amos. — Podemos tê-los ultrapassado em
qualquer ponto da travessia, dependendo de onde o capitão deles começou a
dar a volta para oriente.
Duas horas mais tarde, o vigia alertou:
— Barco à vista!
Nicholas ordenou que se abrisse a maior quantidade possível de velas e
todos os homens se aprestaram a ajudar para que o barco cruzasse a água o
mais rápido que fosse possível. Passado um bocado, o vigia voltou a berrar:
— Já o identifiquei, Capitão. É o Gaivota Real!
— Todos aos vossos postos! — gritou Amos.
— Não — disse Nicholas.
— Não? — interrogou Amos.
— Ainda não vamos atacar.
— Porque não, por todos os deuses? — quis saber Amos.
Ghuda apareceu no convés, com Praji e Vaja atrás de si, e Nicholas
dirigiu-se a todos. — Não fazemos ideia de quantos homens transportam. E
não contamos com o efeito surpresa. Não vou atacar antes de passarmos os
Estreitos das Trevas e estarmos praticamente em casa.
— Porquê? — quis saber Harry, que vinha a subir, proveniente do convés
principal.
— Porque não vou permitir que alguma dessas criaturas chegue a
Krondor — explicou Nicholas. — Se for preciso, faço os barcos colidirem e
deito fogo a ambos. Se tivermos de nadar de regresso a casa, prefiro fazê-lo
perto de costas conhecidas.
Amos praguejou. — Bem, temos de os seguir bem de perto e espero que
o capitão deles não seja muito imaginativo.
— Passai a palavra de que fugiremos se eles derem meia-volta para lutar
— ordenou Nicholas.
— Não gosto disso — afirmou Amos.
— São as minhas ordens — disse Nicholas. — Só os atacaremos se
virarem para as Cidades Livres ou Kesh. Caso contrário, vamos segui-los
até nossa casa.
— Sim, Capitão — disse Amos, fazendo continência. A sua expressão
era um misto de reticência e orgulho.
24

Batalha

N
icholas ficou a observar.
O Gaivota Real de imitação estava a marear as velas,
abrandando num convite provocatório ao Águia para que atacasse.
Amos estava parado no tombadilho superior. Praticamente não saíra de lá
nas duas últimas semanas, mas ainda não solicitara a Nicholas que lhe
devolvesse o comando.
Nicholas fora franco quanto aos seus escassos conhecimentos em termos
de comandar um navio, mas era um aluno aplicado e entre a sua curta
experiência em pequenas embarcações, o tempo em que trabalhara no
Raptor e o que logrou aprender com o imediato Pickens e depois com
Amos, estava a transformar-se num marinheiro de excelência de águas
profundas. Amos dissera-lhe que, ao ritmo a que estava a aprender, daria
um criado de bordo de primeira categoria num ou dois anos. Nicholas
percebeu que o praticamente lendário capitão estivera apenas a gozar, mas
os seus sucessos eram constantemente contrabalançados pela ideia
enervante de que a sua sorte estaria prestes a expirar.
— Eles na verdade não estão a convidar-nos para que ataquemos —
refletiu Amos.
Nicholas concordou. — Eles sabem que não o desejamos… para já. Mas
não imagino qual será a ideia deles.
Amos gritou para cima, para os mastros: — Alguma coisa à popa?
— Nada, Almirante — respondeu o vigia.
Já tinham ultrapassado os Estreitos das Trevas na semana anterior e
seguiam para norte de Durbin. — Não estais efetivamente à espera de
avistar nada lá atrás, pois não? — perguntou Nicholas.
— Nunca se sabe — disse Amos. Cuspiu sobre a amurada. — As
serpentes geraram magia suficiente para criar aqueles transmissores de
pragas e dispuseram de anos para planear isto: provavelmente começaram a
traçar este plano no instante em que o Murmandamus morreu em Sethanon.
Não me espantaria que tivessem forma de fazer aquele estupor do birreme
atravessar o oceano. — Sorriu. — Mais do que isso… não me espantaria
que tivessem um navio de reserva algures no Mar Amaro na eventualidade
de as coisas correrem para o torto. E o abrandamento deles faria todo o
sentido se esperassem ajuda.
— É um risco pelo qual fico grato — disse Nicholas.
Nesse instante surgiu novo alerta do vigia. — Barco à vista!
— Aonde? — gritou Nicholas.
— Mesmo a estibordo, Capitão!
Nicholas e Amos transpuseram a amurada e olharam, e um minuto depois
avistaram uma vela. — Aproxima-se rapidamente — comentou Nicholas.
— Uh-huh, cúter de Kesh — disse Amos. — Corsário saído de Durbin.
Está na hora de hastear a bandeira.
A imitação do navio de guerra do Reino transportava um conjunto
completo de bandeiras e insígnias. — Hasteai a bandeira do Reino e a
insígnia real — ordenou Nicholas.
— Colocai também o meu galhardete, já agora — disse Amos.
Nicholas ordenou que fosse acrescentada a bandeira do Almirante e
rapidamente se viram a esvoaçar grandes e coloridas bandeiras no mastaréu
da gávea e no mastro da mezena.
O cúter keshiano aproximou-se rapidamente deles e de repente desviou-
se para bombordo. Amos riu-se. — O capitão assustou-se ao ver dois navios
de guerra do Reino a regressar de uma patrulha, um deles com o Almirante
da Frota e com um membro da Casa Real a bordo. Por isso, evitou-nos.
O dia arrastou-se e Nicholas manteve a distância face ao Gaivota Real. A
perseguição assemelhou-se a um duelo renhido numa corrida, só que numa
em que o propósito era não apanhar o outro, nem ficar para trás, apenas
manter a distância ideal.
Por altura do pôr-do-sol, o Gaivota desfraldou mais velas. — O filho da
mãe vai tentar escapar-se na escuridão — disse Amos. — Será que não
percebeu que conheço demasiado bem estas águas? Sei por onde deve
regressar para se dirigir a Krondor.
— E se ele não pretender dirigir-se a Krondor? — questionou Nicholas.
— Não tem outra hipótese — respondeu Amos. — Podia seguir para
Sarth ou para o Termo da Terra, mas para quê dar-se ao trabalho? O vosso
pai quase de certeza que anda na Costa Extrema, a tentar perceber a
confusão que criámos em Porto Livre. Acho que esse foi o propósito do que
nos pareceu um ataque desnecessário a Carse, Tulan e Barran. Com aquele
nível de destruição, o vosso pai levaria a maior parte da frota de Krondor
diretamente para a Costa Extrema assim que ultrapassasse os Estreitos.
Depois, seguiria para Porto Livre. — Ponderou por uns momentos. —
Estará provavelmente a decidir se recua aqui ou se segue já atrás de nós.
— Está a virar para norte! — avisou Nicholas.
— Acho que é uma finta — disse Amos. — Esperar um momento,
desenrolar velas, seguir e, assim que escureça e estivermos fora de vista,
regressar a esta rota para Krondor. Aposto tudo o que tenho que iremos vê-
los a menos de uma milha de distância amanhã pelo amanhecer.
— Sei de algo melhor do que cobrir essa aposta — disse Nicholas,
pousando a mão no ombro de Amos. — Vamos comer qualquer coisa?
— Porque não? — disse Amos.
O velho Almirante continuava ainda um pouco vacilante no fim do dia;
no entanto, Anthony considerou que estava completamente recuperado do
ferimento provocado pela espada. A sua força regressaria aos poucos, mas
estaria em forma e em boas condições físicas quando chegassem a Krondor.
Ao descerem a escada para o convés principal, Amos resmungou algo. —
Se navegássemos em linha reta, poderíamos estar em casa em quatro dias.
Mas esta viragem de bordo, como numa corrida de barcos num porto, é um
grande desperdício de vento.
Nicholas concordou. — Estou ansioso por ver isto terminado, mas acho
que sabemos que são reduzidas as hipóteses de aqueles cães assassinos nos
fazerem a vontade.
O vigia gritou lá do alto. — Fumo, Capitão!
— Aonde?
— Mesmo à popa!
Nicholas e Amos regressaram a correr ao convés e espreitaram para o Sol
poente. Uma coluna de fumo erguia-se como uma bandeira esfarrapada. —
Aquele cúter de Kesh deparou-se com alguém.
— Sim, é verdade, mas com quem? — questionou Nicholas.

A s previsões de Amos revelaram-se acertadas. Quando o dia rompeu, o


Gaivota Real estava a menos de uma milha de distância, ligeiramente
para norte deles. Nicholas viu o navio tornar-se, lentamente, cada vez maior
e depois ordenou que virassem ligeiramente para bombordo, para
afrouxarem um pouco. O duelo abrandou efetivamente de ritmo e entretanto
Amos apareceu no convés.
Subiu ao tombadilho superior. — Há novidades? — questionou.
— Sim — respondeu Nicholas. — Não fazem nada que faça sentido, a
não ser abrandarem. Questiono-me se irão dar a volta e atacar?
Amos observou o outro navio. — Se o vão fazer, devem estar a virar…
agora! — O outro barco deu a volta.
— Todos ao convés! — berrou Nicholas. — Sr. Pickens, virai a
bombordo e tentai alinhar-nos com o vento antes que eles acabem de dar a
volta e mareiem as velas.
Nakor apareceu a correr no convés, aos berros: — Passa-se alguma coisa!
Passa-se alguma coisa!
— A que vos referis? — perguntou Nicholas.
— Não sei — disse o homenzinho, saltitando de pé para pé, para a frente
e para trás. — Há ali um truque qualquer. Consigo senti-lo.
Anthony apareceu logo a seguir. — Nicholas, está a acontecer-nos algo
estranho — avisou. — Estou a senti-lo!
— Fazeis alguma ideia do que se trata? — questionou Nicholas.
De repente ouviu-se o som de algo parecido a um pano gigante a rasgar-
se e o que pareceu o repique de um sino, mas alto e contínuo, a pairar no ar
e a dar cabo dos nervos, como o guincho de giz partido a riscar um quadro
de ardósia.
Nicholas sentiu a pele a arrepiar-se e ficou ofegante. E então Anthony
apontou. — Olhai!
O droman materializou-se por entre uma névoa tremeluzente no
horizonte. — É um truque! — gritou Nakor. — Ocultaram-nos o navio da
vista e o outro navio retardou-nos!
— Um feitiço de disfarce — disse Anthony.
— Agora já sabemos o que é o que o flibusteiro keshiano encontrou
ontem à noite — comentou Amos.
— E quem ganhou. — Nicholas estudou o posicionamento dos dois
navios. — Preparai-vos para o combate! — gritou. — Sr. Pickens, voltai-o
de novo para estibordo. Vamos atacar o Gaivota.
As ordens foram passadas e Ghuda e Praji posicionaram as suas
Companhias de Mercenários, uma no cordame, a outra no convés. Os
prisioneiros de Crydee já recuperados transportaram as armas, mas a
maioria deles também levou cabos e arpéus. Os marinheiros lá no alto
rapidamente inverteram o conjunto de velas que tinham começado a marear
para virar a bombordo, e agora estendiam escotas que haviam recolhido,
enquanto outros enrolavam aquelas que tinham acabado de desenrolar.
Marcus e Calis estavam a subir para as plataformas de arqueiros nas
enxárcias, acompanhados por uma outra meia dúzia de arqueiros.
Escolheram os seus alvos e começaram a disparar, com os seus arcos
capazes de atingir distâncias que nenhum outro arco em qualquer navio
conseguiria cobrir. Marinheiros no Gaivota atiraram-se para trás de locais
onde pudessem esconder-se e quando Calis matou o homem do leme, o
navio virou e chafurdou na água.
O Águia aproximou-se rapidamente do seu navio irmão e Amos pediu
abitas, depois de, com um olho experiente, ter avaliado a distância e o
ângulo. No meio do convés, Margaret, Brisa e Iasha, juntamente com
algumas mulheres da vila e barqueiros, rapidamente acenderam potes de
fogo, atiçando o carvão.
— Tudo para bombordo! — berrou Amos, e Pickens girou o leme o mais
rápido que pôde. O Águia encostou-se ao Gaivota e os homens em ambas as
embarcações prepararam-se para um choque violento. Mas quando a proa
do Águia pareceu prestes a perfurar a amurada do Gaivota, o Águia virou
pesadamente para a esquerda. Despedaçaram-se mastros no gurupés e cabos
no lado de fora da amurada, lançando lascas de madeira pelo ar como se
fossem projéteis. E então os cascos embateram, um golpe de través, mas
com força suficiente para projetar um soldado do seu poleiro no cordame e
para que outro ficasse pendurado a balançar nos cabos, enquanto a sua
espada se cravava lá mais abaixo no convés.
Um grupo de homens pôs-se a postos para acolher os atacantes. — Nakor
— gritou Nicholas —, se tendes truques para ajudar, chegou a hora!
Nakor enfiou a mão na mochila e tirou de lá algo parecido com uma bola
de fumo negro, a agitar-se na sua mão. Nicholas constatou que era um
enxame de alguma espécie de insetos.
Atirou-a na direção do Gaivota e a nuvem cresceu e um zumbido furioso
encheu o ar enquanto os dois navios avançavam juntos aos solavancos. A
fila de adversários gritou e começou a esbracejar para afugentar os insetos
que os picavam.
— Não vai durar muito — avisou Nakor. — Apressai-vos.
Nicholas deu o sinal. — Agora! — gritou Harry, orientando os homens
de Crydee com os arpéus e eles lançaram os pesados ganchos de três dentes.
Dois ressaltaram na amurada e caíram entre os dois barcos, enquanto outro
ressaltou inofensivamente do convés quando o homem que o lançava,
entusiasmado, largou o cabo. Mas os outros aguentaram-se, e puxaram, e os
dois barcos uniram-se com um estrondo opressivo.
Os homens com os cabos com arpéus rapidamente os ataram e
desembainharam as suas armas para se juntarem à abordagem. Todos
usavam uma faixa preta na cabeça, por insistência de Nicholas, para na
eventualidade de algum homem dar por si face a face com uma cópia
inumana, saber que se tratava de um falso humano, mesmo que o seu rosto
fosse de um irmão ou amigo. Todos os homens tinham sido alertados de
que, caso perdessem a faixa, arriscar-se-iam a serem mortos por um amigo.
Se a perdessem, deveriam atirar-se ao chão e desviarem-se do caminho.
Os mercenários de Praji invadiram o convés, enquanto os que
acompanhavam Ghuda saltaram através do cordame lá em cima. Nicholas
olhou para o convés principal e verificou que Tuka e os seus barqueiros, e
algumas das mulheres de Crydee, estavam a postos. Transportariam piche
quente que seria lançado sobre o outro barco, ou apagariam qualquer fogo
que pudesse irromper no Águia.
Nicholas constatou que tudo estava ordenado como deveria ser,
desembainhou a sua espada e em passo de corrida saltou para a amurada.
Com um pé assente na amurada do Águia, tomou balanço e lançou-se para
atravessar os dois metros que separavam os cascos rangentes, para aterrar
no castelo da proa do Gaivota. Os insetos picadores de Nakor já tinham
partido, mas com a missão cumprida.
Os navios estavam atados da popa à proa e as respetivas velas e cordame
juntaram forças para obrigar o par de embarcações unidas a encetar um
círculo lento. Nicholas amaldiçoou a sorte que o obrigou a abordar o
Gaivota da proa à popa. Seria muito mais difícil soltá-lo e escaparem do
que se o tivessem abordado na mesma direção. Esperou que isso não os
deixasse vulneráveis face ao droman que se aproximava.
Um oficial vestido de preto atacou Nicholas e o Príncipe desferiu o
primeiro golpe. O homem tinha a tendência de seguir um padrão de três
golpes e na terceira vez que iniciou a sequência, Nicholas atingiu-o
facilmente no peito com a ponta da sua espada.
Nicholas olhou em redor e viu um dos seus homens a ser empurrado por
cima da amurada. Nicholas matou o homem que o empurrava e ajudou o
seu companheiro a regressar ao convés. Constataram que estavam sozinhos
na coberta da proa. — Amos, aqui! — gritou Nicholas.
Amos pegou num pequeno barril, daqueles usados para guardar
aguardente, e atirou-o a Nicholas. Os joelhos de Nicholas cederam e soltou
um ufff de esforço quando o apanhou, mas conseguiu sustê-lo.
Gritou ordens ao soldado que o acompanhava. — Abri essa escotilha e
mantende-vos atento a surpresas!
O homem empurrou-a para o lado com o pé e afastou-se, no instante em
que foi disparada do interior uma seta de uma besta. Nicholas não se fez
esperar; atirou o barril lá para baixo para a escuridão. Ouviu com gosto a
madeira a estalar e um grito de dor. — E vai um! — gritou para Amos.
Amos passou-lhe outro, e ele rapidamente o esmagou junto do primeiro;
e depois taparam de novo a abertura.
Pegando na sua espada, Nicholas olhou para baixo para o convés
principal, constatando que a luta se espalhara por todo o convés, uma terra
de ninguém, sem uma linha nítida que separasse as forças oponentes.
Nicholas desceu repentinamente a escada, enfiando a bota nas costas de
um homem que defrontava um dos mercenários de Praji. O marinheiro
vestido de preto tropeçou para a frente e o mercenário abateu-o
rapidamente.
Nicholas contornou a luta até avançar pela amurada mais próxima do seu
barco. Ghuda, Praji e Vaja mantinham uma zona livre no convés e Nicholas
juntou-se a eles, abrindo caminho até um pequeno alçapão central. Assim
que lá chegou, voltou-se e gritou: — Mais um barril.
Amos e Harry agarraram um barril maior e tiveram de se apoiar na
amurada oscilante do navio enquanto Nicholas lhe pegava. Harry dirigiu-se
atabalhoadamente a Nicholas para o ajudar a pegar no enorme barril. Tinha
dez galões de óleo e com o convés a oscilar debaixo deles, foi-lhes difícil
lançá-lo pela escotilha. Nicholas contou até três e atiraram-no lá para
dentro.
O óleo servia para acender lanternas e em condições normais não arderia
sem uma mecha, mas Nakor insistira que se o fogo em redor se tornasse
suficientemente abrasador, isso ajudaria o navio a arder, derretendo o piche
por entre as tábuas do casco. A partir daí, ou ele arderia até à linha de água
ou ficaria com fendas suficientes para que afundasse.
Afastando-se da abertura, Nicholas reparou que a escotilha principal
estava momentaneamente liberta. — Vai buscar outro — gritou para Harry,
enquanto corria para se colocar em cima da escotilha seguinte.
Dois marinheiros do Gaivota surgiram do nada e Nicholas lançou-se a
ambos. Tinha treinado contra múltiplos adversários no pátio de treinos
assim que pegara na sua primeira espada, mas nunca antes a sua vida
estivera em jogo. Recordou o que o seu pai e o seu instrutor lhe haviam dito
vezes sem conta: a não ser que os dois homens que enfrentava tivessem
treinado juntos, o mais certo era que tanto poderiam atrapalhar-se como
ajudar-se mutuamente. Esperar, defender e esperar por uma abertura.
Mais parecendo que o seu pai lhe preparara um exemplo para vincar a
sua ideia, o homem da esquerda colocou-se à frente do da direita. O
segundo homem deu-lhe uma pancada, desequilibrando-o, e este morreu
trespassado pela espada de Nicholas antes de conseguir recuperar o pé.
Nicholas forçou então o segundo homem a recuar e deu-lhe uma estocada
na garganta na altura em que Ghuda aparecia com mais outro grande barril.
Atirou-o pela escotilha. — Já estão todos! — gritou.
— Mandai atiçar o fogo e fugi deste navio! — gritou Nicholas.
Todos os homens do grupo de ataque estavam avisados de que assim que
lançassem fogo ao Gaivota, a única ordem seria recuar para o Águia.
Os barqueiros de Tuka estavam a postos junto a um pequeno tacho de
cozinha, pousado sobre um braseiro, a aquecer piche. Mais acima, havia
pessoal a aguardar na verga, enquanto os homens de Nicholas que haviam
feito a abordagem se debatiam para retirar.
A tripulação do Gaivota, em vez de se aproveitar da vantagem,
empenhou-se em libertar-se do Águia, e Nicholas verificou que os seus
homens estavam a transpor a amurada.
— Agora! — gritou Nicholas.
Lá no alto, Calis e Marcus começaram a disparar setas em chamas para
as velas do Gaivota. Os outros homens na verga baixaram cordas com piche
borbulhante lá atado. Empurraram-nas rapidamente, pois o piche quente
arrefece rapidamente e quanto mais quente estiver, mais fácil é acendê-lo.
Nicholas observou com ansiedade: era arriscado mexer em fogo a bordo
de qualquer navio – durante uma batalha era extremamente perigoso. Não
havia pior desastre no mar do que um incêndio, pois um barco era como um
barril de pólvora. Uma pequena chama em qualquer ponto de uma vela ou
do cordame bastaria para envolver em chamas um navio, em poucos
minutos. A maior parte do material usado para deter a água – piche, alcatrão
e óleo – ardia furiosamente e mesmo molhar as lonas durante uma batalha
era uma fraca proteção contra flechas incendiárias ou carvão incandescente.
Nicholas parou junto ao grande braseiro no meio do navio, preparado
para despejar o carvão no seu próprio convés e verter óleo no fogo. Se não
fosse possível gerar fogo a bordo do Gaivota, incendiaria os dois navios,
ordenando à sua tripulação e passageiros que abandonassem o barco.
No cordame, os homens de Crydee bateram sílex e aço para gerar faíscas
e acenderam o fogo; protegeram a brasa incandescente e tremeluzente, pois
as suas próprias velas estavam tão secas e vulneráveis ao fogo quanto as do
Gaivota. Ao chegar à extremidade das vergas onde os outros aguardavam,
fizeram passar entre eles os tições ardentes, que foram encostados à
superfície dos baldes de piche. O piche começou a arder e os homens
rapidamente lançaram os baldes para o cordame e vergas do navio ao lado.
Nicholas ficou sozinho no convés do Gaivota, para se assegurar de que
os seus salteadores regressavam em segurança, contudo, assim que
começou a subir de volta, um par de marinheiros atacou-o e deu por si
sentado na amurada, incapaz de responder com celeridade. Alguém se
lançou para a amurada ao lado dele, aterrando no cimo dos dois homens.
Saltaram todos de pronto para o convés e Nicholas viu Ghuda a erguer-se.
O grande mercenário rodou e dirigiu-se a Nicholas com um amplo sorriso.
— Vamos — começou a dizer, mas depois ficou mudo de espanto.
Deu um passo na direção de Nicholas e levou a mão atrás das costas,
como se tentasse coçar-se. — Raios o partam! — disse, entretanto.
Nicholas, já no convés do Águia, viu Ghuda curvado sobre a amurada,
com uma faca cravada nas costas. Nicholas esticou o braço e deitou a mão
ao grande mercenário, arrastando-o para o Águia com uma força que
desconhecia ter.
Tuka correu para a frente, com um pote de piche em chamas a balouçar-
lhe numa mão. Descreveu um arco com o braço, para o lançar por cima da
amurada para o Gaivota, quando foi atingido no peito por uma seta. Com
um grito penetrante e gorgolejante, tombou para a frente e por cima da
amurada, caindo entre os dois cascos, que embateram com um ranger
doentio e desagradável. O grito foi de pronto interrompido.
Nicholas sentiu-se mal. Anthony colocou-se de imediato ao seu lado. —
Vede como ele está — disse Nicholas, apontando para Ghuda.
Os mercenários de Nicholas golpearam as cordas que uniam os barcos,
enquanto se esquivavam de esporádicas setas incendiárias, pois chovia fogo
sobre o Gaivota, perigosamente perto do Águia. Margaret e Iasha estavam a
postos com baldes de areia e água caso avistassem qualquer vestígio de
fogo no convés. Os homens no cordame tinham todos facas, para se
livrarem rapidamente de qualquer vela ou cabo que pudesse pegar fogo.
Nicholas viu a tripulação do Gaivota tentar freneticamente combater as
chamas nas enxárcias e velas e ordenou a Pickens que se afastasse do navio
inimigo.
— Estamos presos, Capitão — informou em resposta Pickens. —
Estamos contra o vento e não nos conseguimos libertar até darmos a volta.
Nicholas ordenou aos barqueiros que trouxessem remos dos escaleres
para se apartarem do Gaivota. Foi levada uma dúzia de remos para a
amurada e os homens tentaram afastar o outro barco, mas em vão.
Os dois barcos voltaram-se preguiçosamente a favor do vento, unidos
pelas circunstâncias. E então os dois cascos começaram a roçar um no
outro, provocando um som rangente e agudo conforme a madeira e o metal
raspavam num abraço arrepiante.
E então o Águia inclinou na direção da popa do Gaivota e, com um
estrondo ensurdecedor, os dois navios embateram pela última vez, e o Águia
libertou-se.
Irromperam pequenos fogos no cordame e no convés, mas foram
rapidamente extintos. Homens que apenas uns minutos antes tinham estado
a despejar piche em chamas sobre o inimigo afadigaram-se então a içar
água com essas mesmas cordas para a verter sobre as velas, de modo a
impedir que as faúlhas e as cinzas trazidas pelo vento desde o Gaivota
incendiassem o Águia.
Nicholas correu para o castelo da popa, subindo o tombadilho superior, e
observou enquanto se afastavam do Gaivota. Marcus saltou do cordame e
pousou a mão no ombro do primo. — Conseguimos.
— Espero bem que sim — disse Nicholas.
E então Nicholas sentiu a mão de Marcus a apertá-lo com força e viu
aquilo que este via. Conforme as chamas se espalhavam pelas velas do
Gaivota, avistaram-se vultos a correr sobre o convés. Entre os que saíram
dos conveses inferiores, por entre o fumo e uma chuva de faúlhas, estavam
Margaret e Abigail, a gritar apavoradas.
Suficientemente perto para as ouvirem, Nicholas e Marcus ficaram
mudos de terror. Nicholas olhou para baixo para o convés principal e viu lá
Margaret, com o seu vestido curto, enquanto a Margaret do Gaivota usava
um vestido de princesa.
E então, a Margaret do Gaivota chamou:
— Marcus! Ajudai-me!
A Abigail ao seu lado gritou:
— Nicholas! Salvai-nos.
Com um baque surdo, algo nos conveses inferiores do Gaivota entrou em
combustão, e as chamas irromperam pelas escotilhas. O vestido da Margaret
do Gaivota pegou fogo e ela guinchou enquanto tentava apagar as chamas
com as mãos.
Uma seta disparada do cordame atingiu-a no peito, derrubando-a para
trás e para fora de vista. Uma segunda seta apanhou Abigail no peito e
também ela tombou.
Calis saltou lá de cima do cordame e aterrou suavemente ao lado de
Nicholas e Marcus. — Não fazia sentido prolongar o sofrimento. Podem ser
falsas, mas nem por isso a visão era menos terrível.
Com a cabeça apontou para o convés intermédio, onde estava Abigail
paralisada de horror, com os olhos arregalados após ter testemunhado a sua
própria morte, enquanto Margaret, especada e pálida, tinha Anthony a
agarrar-lhe firmemente as mãos.
Nicholas assentiu e depois voltou-se para olhar na direção da popa. O
droman aproximava-se rapidamente deles. — Preparai-vos! — gritou. —
Ainda não acabou! Tudo para estibordo, Sr. Pickens.
— Olhai! — gritou Amos.
Nakor e Praji subiram ao convés e dirigiram-se a Nicholas. — O que foi?
— perguntou Praji.
— Quem é aquele na proa?
Nicholas sentiu o seu coração afundar-se com a resposta de Nakor. — É o
Dahakon.
Um homem com um manto castanho e os braços enfiados nas mangas
estava de pé impassivelmente a observar o Gaivota em chamas e o Águia.
— Deve ter recorrido à sua magia para trazer aquele navio até aqui —
comentou Praji.
— Não — ripostou Nakor. — Não houve nenhum truque que o trouxesse
até aqui. Seguiu-nos durante todo o caminho. O truque foi esconder-se de
nós.
— Impossível — disse Amos. — Aquele barco não tem capacidade para
transportar provisões suficientes para alimentar escravos e tripulação.
— Olhai — disse Nicholas, apontando.
Um vulto pôs-se ao lado de Dahakon. Era Valgasha, o Suserano. Tinha a
pele clara, inchada e contaminada, os movimentos eram bruscos e
descoordenados. Sobre o seu pulso, a águia abriu as asas, uma deprimente
imitação do seu antigo esplendor.
— Necromancia — comentou Nakor. — Ele é um estupor demoníaco.
O Dahakon ergueu a sua mão e Nicholas sentiu a sua pele de novo a
arrepiar-se. — Está a entoar encantamentos — disse Anthony, mais atrás.
Calis engatou uma seta e disparou, mas o pau pareceu atingir uma parede
invisível, detendo-se a poucos centímetros do mago e tombando no convés.
Os homens começaram a reunir-se no convés, muitos implorando aos
seus deuses, pois aproximava-se um barco de mortos. Do outro lado da
água, havia um grupo de vultos no convés, uma silenciosa força de
cadáveres.
Nakor cerrou os olhos e esboçou um gesto, e depois abriu-os de novo. —
Isto é muito mau.
— Deveras? — questionou Nicholas.
— Ele recorre aos seus poderosos truques para manter aqueles homens
em movimento, mas, pior do que isso, eles transportam a praga.
— Não podemos orquestrar uma segunda ofensiva contra aquele barco
— disse Amos. — Não dispomos de piche e óleo suficiente.
— Vamos abalroá-lo — disse Nicholas.
— Não nesta vida — disse Amos. Apontou. As velas do droman foram
baixadas, enquanto os remos começavam a subir e a descer. — Mortos ou
vivos, os remadores estão a remar.
— Magia poderosa — disse Praji, cuspindo para o lado.
— Como é que combatemos contra os mortos? — perguntou Marcus.
— Da melhor forma que souberdes — respondeu Nicholas,
desembainhando a sua espada. Fitou a longínqua linha da costa. — Onde
estamos, Amos? — perguntou.
— A menos de meio dia de viagem do Termo da Terra e daí mais três
dias até Krondor.
— Vamos permitir que se aproximem e nos abalroem, e depois pegamos
fogo ao Águia e então aqueles que puderem nadam até à costa.
— São mais de três milhas — disse Amos, em voz baixa. — Poucos de
nós vão conseguir.
— Eu sei — respondeu Nicholas, num tom ainda mais baixo.
Harry apareceu a correr vindo do convés principal. — Vamos lutar com
aquilo?
Nicholas assentiu com a cabeça.
— Anthony! — chamou Nakor.
— O que foi? — perguntou o jovem mago.
— Está na hora! — disse Nakor com um sorriso.
— Na hora de quê? — perguntou Anthony, a piscar os olhos, nitidamente
confuso.
— De usar o amuleto!
Anthony estreitou os olhos e depois enfiou a mão na túnica e retirou de lá
o talismã que Pug dera de início a Nicholas. Fechou a mão com ele lá
dentro. — Pug! — gritou. Nada sucedeu durante um minuto, e depois
Anthony fechou os olhos e chamou de novo por Pug.
Ao proferir o nome pela terceira vez, um ruidoso golpe de vento açoitou
o navio, como se um trovão tivesse estourado junto deles, e o barco adernou
levemente. Os homens gritaram e proferiram exclamações de espanto, e
apontaram. Mesmo à frente do droman estava uma criatura suspensa no ar.
Tão grande quanto a própria embarcação, o bater das suas asas gerara um
vento com força suficiente para fazer recuar o birreme.
— Um dragão! — exclamou Amos.
O dragão era dourado, com uma crista prateada. Olhos rubi do tamanho
de escudos brilharam no sol poente, enquanto garras pretas como ébano se
estenderam como as de um felino. O dragão bateu as asas, posicionou-se
em frente ao droman e abriu a sua goela gigantesca.
Expeliu fogo, branco e ofuscante, e varreu o barco. As velas e os
conveses irromperam em chamas, e toda a tripulação foi carbonizada. O
Suserano e a sua águia mantiveram-se como uma estátua, uma reles
imitação de majestade, enquanto as chamas os consumiam. A ave
enegreceu e tombou do braço do seu dono, que pouco depois ficou
ressequido quando o governante da Cidade do Rio da Serpente efetivamente
pereceu.
Por um terrível momento, o resto da tripulação do droman permaneceu
imóvel, com a pele a arder enquanto estavam agachados em posição de
ataque. Guerreiros sem vida, inconscientes da sua própria destruição,
aguardavam as ordens do mago para se abeirarem da amurada e abordarem
o Águia. E então, espadas caíram de dedos demasiado ressequidos para as
susterem, e começaram a ruir.
O Águia Real avançou apaticamente, sem que fosse encetado nenhum
esforço para o manter na rota, já que todas as almas a bordo estavam
pregadas na visão da mais majestosa criatura de Midkemia, uma falada em
histórias e lendas, suspensa a menos de cem metros de distância, a destruir
o barco dos mortos.
— Olhai! — apontou então Anthony.
No seio da conflagração, Dahakon permaneceu imóvel, cercado por um
nimbo rubi que o protegeu da fúria do dragão. — Há algo que possamos
fazer? — perguntou Nicholas.
Calis preparou mais uma seta e disparou de novo, mas também esta
ricocheteou no escudo rubi, tal como acontecera à primeira com a barreira
invisível. — Acho que… — disse Nakor. Pegou numa seta da aljava de
Calis e partiu-a no joelho. Ergueu a seta quebrada. — O truque dele trava o
aço — anunciou. — Conseguis disparar isto?
Calis pegou na haste, partida a três quartos do comprimento. — Posso
tentar — disse. Encaixou a seta e puxou-a atrás o mais que pôde, e depois
fê-la voar. Ao contrário das duas últimas, esta atingiu o mago no peito e ele
gritou; o escudo rubi desapareceu de imediato e as chamas do dragão
queimaram-no.
Com um guincho audível no Águia, o mago entrou em combustão e
rodopiou para trás, desaparecendo de vista.
O dragão observou o navio em chamas e depois, com um bater de asas,
afastou-se. Elevou-se no ar, planando sobre as nuvens, em direção ao Sol
poente. Num círculo indolente e ascendente, subiu e passou sobre o barco,
virou para noroeste e acelerou.
— Ryana — sussurrou Harry.
Nicholas assentiu com a cabeça.
— Olha! — disse Harry.
Nicholas espreitou para ver para onde apontava o seu amigo e lá em
cima, no costado do dragão, era possível distinguir um vulto minúsculo
montado.
— É o Pug? — perguntou Harry.
— Acho que sim — respondeu Nakor com um sorriso, após o que
desatou a rir. — Agora, tudo terminou.
Vaja chamou desde o convés principal. — Nakor!
Olharam todos e constataram que estava ajoelhado sobre Ghuda.
Nicholas e os outros seguiram Nakor e Anthony até junto de Ghuda. O
mercenário ferido estava deitado com a cabeça apoiada num saco de areia e
escorria-lhe sangue pelo nariz.
Anthony colocou-o de lado e observou o ferimento, após o que olhou
para Nicholas com um olhar pesaroso. Abanou a cabeça em negação.
Nakor pegou na mão de Ghuda. — O que se passa, velho amigo?
Ghuda tossiu e escorreu-lhe sangue pelo canto da boca. — Amigo? —
disse, com uma voz fraca e líquida. — Estou aqui deitado a afogar-me no
meu próprio sangue porque quisestes que percorresse meio mundo
convosco e chamais-me amigo? — Apertou ainda mais a mão de Nakor e
escorreram-lhe lágrimas pelas suas faces endurecidas. — Ocasos sobre
outros oceanos, paisagens deslumbrantes e grandes maravilhas para
contemplar, Nakor. — Tossiu violentamente e cuspiu sangue sobre Nakor e
Anthony. Tentou infrutiferamente inspirar. — Um dragão de ouro! —
exclamou. Até que, num derradeiro suspiro, disse:
— Meu amigo.
Com um som sufocante e estrangulado, agitou-se e sacudiu-se
violentamente, e depois ficou muito quieto.
Nicholas reprimiu a sua dor, olhando em redor pelo convés. Outros
homens feridos estavam deitados ali perto. — Anthony — disse ele.
O jovem mago olhou para o ponto para onde apontava Nicholas e
aprestou-se a dar ajuda e conforto a quem disso necessitava.
Nicholas sentiu uma mão no ombro, olhou para cima e viu Iasha junto
dele. Levantou-se e ela perguntou:
— Vamos agora para vossa casa?
Nicholas deixou que as lágrimas lhe escorressem pelo rosto quando a
abraçou. Não confiou na sua voz, pelo que assentiu com a cabeça. Depois,
entre soluços, disse, meio aliviado e meio pesaroso:
— Vamos para casa.
Nicholas compôs-se e depois afastou gentilmente Iasha. Voltando-se para
o tombadilho superior, gritou novas ordens: — Sr. Pickens, rumo a
Krondor!
— Toda a gente para os mastros, suas ratazanas de convés! — gritou
Amos.
O Águia Real deu lentamente a volta; e então, conforme as velas se
enfunaram, afastou-se altivamente dos dois cascos em chamas. Com o Sol a
pôr-se atrás deles, Nicholas viu a imitação do Gaivota Real a afundar-se e
depois o birreme do Suserano.
Amos colocou-se ao lado de Nicholas e pousou-lhe a mão no ombro. —
Já vos disse que ultimamente me fazeis lembrar o vosso pai?
Nicholas voltou-se para Amos, e tinha os olhos brilhantes devido às
lágrimas por verter. — Não — respondeu, com uma voz rouca.
— Bem, mas é verdade — sussurrou Amos, apertando-lhe o ombro. — E
tenho orgulho em vós como se fôsseis mesmo meu neto.
Nicholas inspirou profundamente. — Obrigado… — disse, após o que
acrescentou com um sorriso forçado: — Avô.
Amos agarrou Nicholas pelo pescoço e sacudiu-o levemente. — Avô! —
exclamou. — Raios me partam se não sois igualzinho a ele. Sempre a ver o
lado negativo!
Nicholas sorriu e pousou a mão no ombro de Amos. — A vós ninguém
consegue tirar as coisas boas da vida, Amos.
Amos lançou-lhe um sorriso. — Essa é que é a verdade, não é? Dias
complicados como este levam-nos a compreender porque é tão importante
divertirmo-nos.
Amos lançou inesperadamente os braços a Nicholas e abraçou o seu neto
por afinidade. — Vamos sepultar os mortos, Nicky, brindar à memória deles
e regressar a casa.

E ra um grupo abatido aquele que estava no convés principal. A


disposição da tripulação era uma mistura de profundo alívio, grande
espanto pela visão do dragão e pena pelos ferimentos e morte dos amigos.
Ghuda e Tuka não foram as únicas baixas. Uma das criadas de Iasha,
amiga dela, fora gravemente queimada por algum piche derramado que
tentara abafar antes que este pudesse pegar fogo e colocar o navio em
perigo.
Tinham morrido cinco mercenários, assim como três barqueiros. Uma
dúzia de homens de Crydee dera a vida para proteger o seu Reino. Nicholas
foi verificar e constatou que, de entre esses, seis homens saídos de Crydee
com ele para perseguir os salteadores haviam morrido. Dos sessenta e cinco
homens e mulheres a bordo, apenas vinte e sete tinham partido com ele e
com Amos no início da viagem.
Nicholas ordenara que a aguardente fosse aberta e, quando se colocaram
em frente a ele, disse:
— Alguns de vós, recordais tudo aquilo por que passámos, enquanto
outros só recentemente se juntaram a nós. Mas sem vós, não sei se teríamos
chegado onde chegámos. A Coroa está em dívida para convosco. Decidi
que seja qual for o saque que esteja ainda dentro daquele cofre lá em baixo,
será equitativamente dividido por todos.
Os mercenários sorriram enquanto os marinheiros e os soldados se
entreolhavam espantados, mas com sorrisos igualmente apreciativos. Eram
raras as gratificações por serviços prestados ao Reino.
— Perdemos alguns bons amigos — disse Nicholas. — Nunca o
esqueçamos. — Ergueu o seu copo. — Ao Ghuda e aos outros.
Todos beberam, e depois Nicholas retomou a palavra. — Por vós, que
viestes do outro lado de um mar vasto até uma terra distante, faremos tudo o
que pudermos para que vos sentis em casa. Não sei como fazer para vos
ajudar a regressar a casa, mas um dia isso irá acontecer. Tendes a nossa
palavra. Até lá, há trabalho honesto e pagamentos mais do que suficientes
para todos. — Voltou-se para o Sol poente, de um vermelho-alaranjado e
dourado por causa do fumo dos navios em chamas. — Rumo a Krondor! —
declarou.
A tripulação deu vivas e os homens saltaram para os seus postos,
ansiosos por finalmente se dirigirem a casa.

T rês dias mais tarde, por volta do meio-dia, entraram no porto de


Krondor. Amos ordenou que fosse hasteada a insígnia real e foi um
piloto de porto excitado que se apressou a intercetar o barco. Trepando a
bordo com dois ajudantes, saudou Amos e Nicholas numa mistura de
maravilhamento e espanto.
— Amos, desejais dirigi-lo por uma última vez? — perguntou Nicholas.
Amos encolheu os ombros. — Não é bem a mesma coisa. Se este fosse o
verdadeiro Águia, ou o meu Dragão Real, talvez. — O comentário levou o
piloto a olhar, confuso, do Príncipe para o Almirante. Amos esboçou então
um sorriso perverso. — Deveríeis experimentar entrar à vela. É a altura
ideal.
Nicholas retribuiu o sorriso. — Preparai-vos para marear velas! —
gritou.
— Alteza — disse o piloto do porto —, imploro-vos; arriai velas e
deixai-nos fazer a entrada.
— Harry — chamou Nicholas.
— O que é? — respondeu o amigo.
— Vai para a proa e assegura-te de que o ajudante do piloto não desmaia.
— Num tom desafiador quase jubiloso, gritou:
— Vamos entrar à vela!
Os marinheiros precipitaram-se ao mesmo tempo que barcos mais
pequenos se desviavam da frente. A insígnia real dava prioridade ao Águia
sobre qualquer outra embarcação, exceto se fosse uma embarcação mais
pequena que também ostentasse as cores da realeza, e os homens mais
antigos no porto conheciam o hábito do Almirante do Príncipe de entrar à
vela nas docas reais. Com a flâmula de Trask a esvoaçar no calcês, ninguém
de perfeito juízo se atravessaria na proa do Águia Real; os únicos dois que
alguma vez o tentaram fazer estavam naquele momento no convés do
Águia.
— Estamos na rota — gritou Harry.
— Enrizar todas as velas! — ordenou Nicholas. — Preparar as amarras.
Os marinheiros lá em cima puxaram violentamente as lonas. O navio
avançou, com a inércia a levá-lo direito às docas. Nicholas observou na
expectativa, à espera do momento ideal para ordenar que as amarras fossem
lançadas aos que aguardavam nas docas.
O navio continuou a abrandar e Nicholas aguardou, e aguardou, até que
por fim Harry se virou e gritou:
— Estamos… ah… um bocadinho… longe de mais, Nicky.
Nicholas encaixou a cabeça no gancho do braço e apoiou-se na amurada.
— Piloto Mestre, chamai o vosso barco, caso o desejeis — disse.
Amos riu-se, com um estrondo tal que até agitou as velas. Deu uma
palmada nas costas de Nicholas. — Um destes dias ides apanhar-lhe o jeito
— disse.
Nicholas espreitou pelo gancho do braço. — E agora, quem é que não
sabe divertir-se?
25

Casamento

O
s convidados deram vivas.
Lyam, Rei das Ilhas, bebeu depois de ter brindado à noiva e ao
noivo. Amos estava de pé a sorrir, quase irreconhecível nos seus
trajes formais da corte; camisas com laços e fraques tinham-se tornado
moda no Reino naquele ano. Apenas o desejo da sua amada Alicia de que
ele se arranjasse o melhor possível no dia do casamento deles poderia levá-
lo a enfiar-se num daqueles a que chamava de «fatos disparatados». A sua
alternativa era o uniforme de almirante, que desprezava ainda mais, pelo
que assentiu no desejo dela e vestiu-se a rigor.
Nicholas sentou-se com os outros convidados na cabeceira da mesa do
salão de banquetes do palácio do Príncipe em Krondor. À sua direita, a sua
irmã, Elena, e o marido dela estavam a conversar com Erland, um dos seus
irmãos, e com a esposa deste, a Princesa Genevieve. Borric, o gémeo de
Erland, conversava com a esposa, Yasmine, enquanto Alicia olhava em
frente.
A mãe de Nicholas ficou tremendamente emocionada quando viu o seu
filho mais novo a entrar na corte, sem o coxear que o marcara toda a vida.
Nicholas percebera que durante a última batalha estivera tão preocupado em
garantir que tudo estivesse a postos na eventualidade de as coisas correrem
mal, que, se o pé lhe doeu, nem reparou. Nakor referira que a sua
recuperação estava concluída.
Levara meses a planear o casamento e a ter toda a gente reunida em
Krondor. O Rei teve de se deslocar desde a sua corte real em Rillanon para
assistir ao casamento e chegou à corte de Arutha antes de este regressar. A
novidade chegou finalmente ao Príncipe de Krondor quando o Barão
Bellamy de Carse enviou um pequeno barco para Porto Livre, onde Arutha
e a sua armada aguardavam. Amos acertou quase em cheio; após um longo
debate consigo próprio, Arutha decidira não seguir Nicholas e os seus
companheiros.
Na altura em que Arutha regressou a Krondor, Nicholas e Amos
contaram-lhe, assim como ao Rei, toda a história, desde o ataque-surpresa
até à destruição dos dois navios a norte do Termo da Terra. Lyam enviou
um mensageiro especial à Ilha do Feiticeiro, para ver se Pug poderia ser
localizado, e mandou Nicholas e Borric a Sethanon, pois apenas a um
membro da família real poderia ser dado conhecimento da missão.
Nicholas e o seu irmão regressaram duas semanas mais tarde com a
informação de que tudo estava bem em Sethanon, e Nicholas não escondeu
o seu assombro por ter conhecido o Oráculo de Aal. Para sua surpresa, a
Pedra da Vida não estava à vista, pois encontrava-se disfarçada por uma
distorção mágica de tempo lançada por Pug. Ainda assim, o conhecimento
estava lá e vulnerável, apesar de a sua proteção não ter impressionado
Nicholas por aí além depois do que vivera no ano anterior.
O mensageiro enviado à Ilha do Feiticeiro regressou com uma mensagem
de Pug, por intermédio de Gathis, o seu representante, a indicar que o mago
contava marcar presença no casamento. Todos os convidados se reuniram
por fim a horas e teve lugar a cerimónia.
A celebração prosseguiu e Nicholas deu por si descontraído pela primeira
vez em muito tempo. Olhou de relance para a sua companhia naquele dia, e
sorriu. Verificou que Iasha se estava a adaptar bem à corte e o domínio da
língua do Rei era todos os dias mais evidente. Entendeu-se bem com as
damas da corte. A sua criada ferida recuperou e com a ajuda da magia de
Anthony foi poupada às cicatrizes mais graves. As outras três raparigas
eram já o centro das atenções de muitos dos jovens da corte. A história que
corria é que eram cinco irmãs de uma terra distante, filhas de um Príncipe
poderoso, e as raparigas não mostraram grande interesse em contrariar tal
ideia.
Marcus sentou-se com o seu pai e a sua irmã, que apertava com força a
mão de Anthony. Marcus, contudo, desconhecia o hábito de Abigail de
atrair os olhares dos mais elegantes cortesãos do salão. Nicholas reparou
que Abigail estava a namoriscar praticamente às claras com o filho do
segundo filho do Duque de Ran, o cunhado de Elena.
O Duque Martin envelhecera, o seu cabelo passara a ser praticamente
todo grisalho, e o seu porte ereto e passo determinado praticamente haviam
desaparecido. Aquilo que a idade não levara, a mágoa roubara.
Infelizmente, Nicholas constatou que a sua alegria de viver perecera com a
sua esposa. Ele já pusera a hipótese de se retirar em benefício de Marcus
enquanto Duque. Nicholas sabia que teriam lugar longas discussões entre o
Rei, Arutha e Martin antes que lhe fosse permitido dar esse passo. Ainda
assim, Martin pareceu profundamente aliviado por ter os seus filhos de
volta. Tentou expressar a sua gratidão a Nicholas, forçando um encontro
embaraçoso entre ambos. Nicholas percebeu que terá sido uma
convalescença angustiante para Martin estar à espera de notícias dos filhos.
Nicholas apenas conseguiu dizer: «Era o que teríeis feito no meu lugar.»
Martin nada mais logrou fazer que não fosse aquiescer, com lágrimas nos
olhos; e então abraçou o sobrinho. Nicholas compreendeu o quanto aquela
abertura lhe fora difícil.
As gargalhadas de Abigail despertaram Nicholas dos seus devaneios.
Recostou-se para trás, e, nas costas de Iasha, dirigiu-se a Harry. — Durante
quanto tempo achas que o Marcus vai aguentar aquilo?
Harry sorriu. — Neste preciso momento, acho que ele agradeceria que
alguém o livrasse da Abby.
Brisa deu um toque a Harry por debaixo da mesa. — Vós os dois parai
com isso.
Iasha sorriu. — A Abby só está a assegurar-se de que o Marcus não toma
as coisas por garantidas. Ele foi o primeiro amante dela, mas ela não quer
que ache que não tem mais opções. — Riu-se. — O mais certo é acabarem
por casar; ela ama-o de verdade. — Brisa observou Marcus por uns
momentos. — Ele é bem atraente, no seu jeito carrancudo, como o vosso
pai. — Olhou de soslaio para Nicholas. — A ambos lhes faz falta a vossa
natureza bondosa. — E depois prosseguiu num tom jocoso: — Além disso,
ao vosso primo falta-lhe a vossa… imaginação.
Nicholas teve o pudor de corar. A seguir fez uma expressão sombria. —
Como é que…
Brisa sorriu mostrando os dentes. — Foi a Abby. Após a primeira vez
dela, sentiu a necessidade de falar com alguém. Vós, homens, tendes uma
ideia errada daquilo que as mulheres falam quando não estais por perto.
Nicholas levou a mão à cara, tapando os olhos. — Pobre Marcus. — E
depois os seus olhos arregalaram-se quando se virou para Brisa e Iasha. —
Que dizeis vós as duas?
Brisa voltou a sorrir abertamente, mas manteve-se em silêncio. Passado
um bocado, Nicholas não conseguiu deter um sorriso. A rapariga da rua
tinha um ar deslumbrante. O seu cabelo ruivo-escuro crescera o suficiente
desde a viagem, de modo que Anita e as suas criadas tinham conseguido
penteá-lo bem para cima, ornamentado com prata e pérolas. Usava um
vestido verde-escuro feito para a ocasião, que lhe realçava claramente os
olhos e a pele.
Iasha optara por um vestido azul-escuro e era sem dúvida uma das
mulheres mais belas da corte. Continuava a falar em arranjar um marido
rico, mas Nicholas constatou que não parecera muito apressada em fazê-lo.
Quando o jantar se aproximou do seu final, Borric aproximou-se e
pousou a mão no ombro do irmão. — Maninho, é requerida a vossa
presença, e a da vossa amiga, nos aposentos privados da família —
sussurrou. Depois, virou-se para Harry. — Assim como a vossa, Escudeiro,
e a da vossa senhora.
Conforme os convidados iam saindo, alguns para regressarem de
carruagem à cidade, outros para se dirigirem aos quartos de hóspedes
preparados para os receber durante a visita a Krondor, a família do Rei
reuniu-se nos aposentos familiares reais. Com todos os primos, tias e tios e
parentes por afinidade presentes, a «família» reunida era uma multidão
quase tão barulhenta quanto o fora quase todo o casamento.
Ao entrar no grande salão, Nicholas meneou a cabeça na direção da sua
tia Carline, uma mulher ainda bela com o seu cabelo grisalho prateado. O
seu marido, Laurie, Duque de Salador, sorriu e piscou o olho a Nicholas.
Nicholas sabia que antes de a noite terminar, Laurie seria o centro das
atenções, cantando e interpretando no seu velho alaúde que levava para
todo o lado. Não sendo já o trovador impetuoso que fora na sua juventude,
Laurie era ainda um excelente cantor capaz de prender a atenção de uma
audiência durante horas. A filha deles e os dois filhos estavam sentados
num canto, a planear uma espadela até à cidade com alguns dos cortesãos
mais jovens do palácio assim que fosse aceitável pedirem autorização para
sair. Nicholas mal conseguiu acreditar que tinha a mesma idade deles;
sentiu como se tivesse envelhecido uma década no último ano.
Gunther, o filho mais velho do Duque de Ran, segurava a mão de Elena,
que estava sentada junto à sua mãe. Prestes a dar à luz o seu primeiro
rebento, irradiava uma alegria plena. Anita rejubilou na presença dos seus
netos e provavelmente faria tudo para manter a família em Krondor por
mais alguns dias além do planeado.
Borric e a sua esposa, a Princesa Yasmine, entraram e as portas
fecharam-se atrás deles. Diversas crianças estavam ausentes e Nicholas
sabia que toda a gente achava que elas se iriam revelar demasiado
rabugentas e agitadas durante a celebração familiar mais discreta. Estava a
ficar tarde e rapidamente os dois filhos mais velhos de Borric e Yasmine
teriam de ser levados para a cama.
Além da família, entre os convidados contavam-se Harry, Brisa, Iasha,
Abigail e o seu pai, o Barão Bellamy. Os dois filhos de Bellamy não tinham
aparecido por terem ficado a supervisionar a reconstrução de Carse e
Crydee.
Abriu-se uma segunda porta e entrou Nakor, com um manto azul
maravilhosamente confecionado, com uma capa curta magnífica
ornamentada com um complexo desenho de linhas brancas e prateadas.
Atrás dele surgiu um homem vestido de preto, escoltando uma bela mulher
de cabelo dourado.
Nicholas e Harry ficaram imóveis, prestes a abrirem a boca de espanto.
— Pug. Ryana! — exclamou Nicholas. Recompôs-se. — Lady Ryana, é um
prazer.
A bela mulher, apesar de estranha, assentiu com a cabeça na direção de
Nicholas e trocaram sorrisos. A seguir entraram Prajichetas, bastante
inibido, e Vajasiah, elegantemente vestido. Calis foi o último a entrar e a
porta foi de novo fechada atrás deles.
O Rei, que apesar da idade mantinha o seu ar imponente, estava junto a
uma lareira enorme, mas apagada, pois a tarde de verão apresentou-se
quente. O seu cabelo louro estava apenas ligeiramente grisalho e com o
passar dos anos, tornara-se mais claro, quase branco, e o seu rosto
evidenciava as rugas das pressões do cargo. Aliviado, Lyam retirou o
pequeno anel do seu posto. Olhou para baixo para a sua esposa, a Rainha
Magda. — Nós vivemos para estes momentos informais — disse, sorrindo,
parecendo até rejuvenescido. — Agora, por um bocado, o «nós» pode
passar a ser «eu». — Martin e Arutha foram colocar-se junto do irmão, com
o primeiro ainda a coxear um pouco devido ao ferimento.
Entrou um porteiro que manteve a porta aberta para abrir caminho a uma
fila de criados, transportando canecas de vinho. Antes de tomar a palavra,
Lyam aguardou que fossem distribuídas por todos os presentes. — Muitos
de vós estais ao corrente do que se ouviu falar no último ano ao longo da
Costa Extrema. Apenas alguns conhecem toda a história. Mas o que desejo
que todos saibam é que o meu sobrinho, o Príncipe Nicholas, fez algo
notável. — Fez uma pequena pausa enquanto todos os olhares incidiam em
Nicholas. — Na sua expedição para ir resgatar a sua prima e os outros que
foram ilicitamente levados da sua terra, navegou meio mundo e, contra
todas as expectativas, regressou com todos os que logrou salvar.
»Gostaria de ter proposto este brinde durante a cerimónia do casamento,
para que toda a gente do Reino pudesse tomar conhecimento desta
extraordinária façanha, mas como o momento era do Amos e da Alicia,
achei melhor esperarmos até que nós, a família e os amigos de Nicholas,
estivéssemos a sós. Proponho então um brinde ao Nicholas, que traz
orgulho e honra ao nome conDoin.
— Ao Nicholas — disseram todos, e beberam das suas canecas.
Quando os criados saíram da sala, Nicholas viu todos os olhos postos em
si. Enrubesceu e teve dificuldade em engolir, e os seus olhos ameaçaram
verter lágrimas. Aclarou a garganta. — Obrigado a todos — disse. Apertou
a mão de Iasha antes de prosseguir. — Mas o que fiz, fi-lo com a ajuda de
bons homens e mulheres, muitos dos quais não estão aqui hoje entre nós. —
Ergueu a sua caneca. — Aos amigos ausentes.
— Aos amigos ausentes — repetiram todos, e beberam.
A reunião mais pequena apartou-se em grupos de pessoas a conversarem
sobre família e amigos, perguntando pela saúde de familiares mais velhos
ou pelo crescimento das crianças. Nicholas ficou espantado por constatar
que, excetuando a dimensão da reunião e o poder das pessoas presentes, não
era muito diferente de qualquer outra reunião familiar.
Pug aproximou-se e encaminhou Nicholas para um recanto mais
afastado. — É a primeira oportunidade de que dispomos para conversar.
Fizestes tudo aquilo que vos poderia ser pedido, Nicholas, e ainda mais do
que isso.
— Obrigado.
— Calculo que desejeis colocar algumas perguntas — disse Pug.
— O Dahakon? — perguntou Nicholas.
— Verdadeiramente morto — esclareceu Pug. — Ele era perigoso e ao
mantê-lo ocupado durante os meses que durou a vossa viagem, debilitei-lhe
os poderes. Usou praticamente tudo o que lhe restou para enviar aquele
navio de guerra atrás de vós. A Ryana tornou-se demasiado forte para ele,
assim que o Calis o distraiu com aquela haste de madeira.
— O Nakor mostrou ao Anthony como fazê-lo. — Nicholas sorriu. —
Estou surpreendido por terdes trazido a Ryana.
Pug retribuiu o sorriso. — Faz parte da educação dela — explicou
calmamente. — Não é fácil para alguém da espécie dela fazer-se passar por
humano.
Nicholas olhou para o local onde Vajasiah estava a conversar com Ryana,
com todos os seus gestos e expressões especialmente concebidos para a
seduzir. — Parece-me que neste preciso momento estará a ter uma
interessante lição.
Pug sorriu. — Não se comparará à que ele irá ter se ela entender
escapulir-se com ele. Há nuances do comportamento humano que ela ainda
não entende. Apesar da idade e do poder, em muitos aspetos não passa para
já de uma criança.
— Uma questão — pediu Nicholas.
— Qual?
— Quando fui pela primeira vez à vossa ilha, quanto do que estava em
curso era já do vosso conhecimento?
— Alguma coisa — respondeu Pug. Depois, baixou ainda mais o tom de
voz. — Recebi uma mensagem do Oráculo de Aal a avisar de um padrão
em aproximação. Em função do que fizéssemos, havia vários desfechos
possíveis.
»Poderia ter destruído os salteadores, se tivesse sabido que eles viriam,
mas então não teria sabido nada do envolvimento dos pantathianos e do
perigo da praga. Se tivesse ido atrás dos prisioneiros, mesmo aqueles
poucos que salvastes ter-se-iam perdido e os pantathianos poderiam
continuar a procurar outros para servirem de molde para os seus portadores
de pragas.
— Há uma coisa que não percebo — disse Nicholas. — Porquê este
trabalho todo? Porque não enviar simplesmente uns portadores de pragas
para Krondor?
— Se a praga irrompesse na cidade, todos os magos de Stardock e dos
Templos se encarregariam de assegurar que o Príncipe e os seus pares de
posições mais elevadas seriam poupados — explicou Pug. — A liderança
deles é muito importante. Mas se a praga irrompesse no palácio, imaginai a
confusão que seria se o vosso pai e os conselheiros dele, os comandantes de
patente mais elevada, os mercadores e líderes dos grémios… se todos
figurassem entre os primeiros a sucumbir.
Nicholas assentiu com a cabeça. — Então foi por isso que nos deixastes
seguir em frente e descobrir o plano.
— Achei que era melhor ameaçar o mago mais poderoso deles,
deixando-vos a vós arruinar o resto do plano. Senti que estaríeis no âmago
deste obscuro confronto e o Nakor confirmou o meu julgamento. — Pug
olhou por cima do ombro. — Que mente fascinante ele tem. Estou a tentar
convencê-lo a regressar à Ilha do Feiticeiro por uns tempos.
Nicholas suspirou. — E a Lady Clovis?
— Daquilo que o Nakor me contou — disse Pug —, ainda deverá estar
viva lá em baixo, a conspirar. Ainda teremos novidades dela.
— Ou dos pantathianos — acrescentou Nicholas.
Pug fitou o jovem Príncipe. — Já conheço essa expressão — disse. — Já
a vi suficientes vezes no vosso pai. Escutai: um dia alguém vai travar a
ameaça deles, mas ninguém disse que teríeis de ser vós. — Sorriu. — Já
fizestes mais do que seria de esperar de toda a vossa vida. — Pug olhou de
soslaio para o grupo de jovens raparigas que estavam a conversar. — Ides
desposar aquela vossa amiga?
Nicholas sorriu abertamente. — Às vezes, acho que sim, outras vezes,
acho que não. Ela não para de falar em encontrar um marido rico, pois não
acredita que o meu pai, ou o Rei, autorizem tal desenlace. — Baixou de
novo o tom de voz. — E, verdade seja dita, às vezes é o que eu desejo, mas
outras vezes ando à procura de um marido rico para ela.
Pug riu-se. — Conheço a sensação. Quando era muito jovem, a vossa tia
Carline fez-me sentir frequentemente da mesma maneira.
Nicholas arregalou os olhos. — O tio Laurie sabe disso?
— Quem é que achais que os apresentou? — disse Pug.
— Tenho um anúncio a fazer — declarou o Rei. Todos os olhares
incidiram nele. — O meu Lorde Henry de Ludland informa-me que o seu
filho, Harry, está para casar — disse.
Houve vivas e aplausos na sala e as mulheres juntaram-se em redor de
Brisa, abraçando-a. Nicholas e Pug abriram caminho até ao local onde
estava um corado Harry a receber os parabéns, e Nicholas apertou-lhe a
mão. — Seu sacana — atirou, rindo-se —, nunca disseste nada.
Ele inclinou-se para a frente de modo a que apenas Nicholas conseguisse
ouvi-lo. — Sou o filho do meio de um pequeno Conde; tive de a pedir em
casamento antes que o filho de algum Duque rico ma roubasse. Quando a
conhecemos, alguma vez achaste que seria tão bela? — Nicholas não teve
argumentos para o contestar. — Além disso, vamos ter um bebé —
segredou Harry.
Nicholas riu-se. — Será que devo dizer ao tio Lyam para que também
anuncie isso? — perguntou.
Harry fez um esgar e ergueu a mão. — Isso levaria o meu pai à cova.
Esperaremos uma semana ou duas após o casamento, obrigado.
— Quando será?
— Assim que seja possível, dadas as circunstâncias — revelou Harry.
Nicholas concordou, entre gargalhadas.
E então Lyam tomou de novo a palavra. — O meu irmão Arutha tem algo
para vos comunicar.
Arutha esboçou um raro sorriso. — O meu filho e o Harry — Amos
aclarou nitidamente a garganta — …com a ajuda do Almirante Trask,
conseguiram efetuar a primeira conquista de novos territórios desde que o
meu avô se apoderou da Costa Extrema. Com uma agradável ausência de
sangue, devo acrescentar. — Ergueu a sua caneca para uma saudação. —
Como agora precisamos de alguém que governe Porto Livre, com a
permissão do meu irmão, nomeio Harry, antigo escudeiro do meu filho,
novo Governador de Porto Livre e das Ilhas do Ocaso.
— E será promovido ao posto de Baronete da Corte do Príncipe —
acrescentou Lyam.
Mais uma vez, todos deram os parabéns a Harry e Arutha fez sinal a
Nicholas para que se colocasse ao seu lado. — E vós? — perguntou ao seu
filho mais novo. — Já pensastes no que gostaríeis de fazer? Não vos posso
enviar de novo para Crydee como escudeiro, pois não?
— Já pensei no assunto, pai — revelou Nicholas. — Gostaria de
regressar ao mar. Gostaria de ter um barco.
Amos riu-se. — Disse ao Arutha que poderíeis estar interessado no meu
cargo agora que me vou reformar.
Nicholas também se riu. — Amos, ainda não estou preparado para me
chamar a mim próprio Almirante.
— Com o tráfego que vai começar a passar por Porto Livre, Carse em
breve tornar-se-á um grande entreposto comercial — referiu Amos. — É o
melhor porto da Costa Extrema. Vai haver muitos fracos de espírito a
tentarem a sua sorte na pirataria, por isso precisaremos de homens fortes em
veleiros lá fora.
— Vamos ter de manter uma esquadra em Porto Livre — acrescentou
Arutha. — O Amos tem razão, com esse acordo imbecil de comércio livre
que sancionastes, ides ter todos os mercadores e contrabandistas das três
nações a rastejar para essas ilhas. O vosso Patrick Duncastle parece ser
muito capaz no que toca a partir cabeças, um bom Alto Xerife do Rei, mas
vamos necessitar de administradores, e é por isso que vou enviar o Harry. O
Amos diz que ele é o indicado para lidar com mercadores e larápios.
— É verdade — confirmou Amos. — Se eu voltasse a navegar, iria
querê-lo de pronto a bordo do meu barco; é um intrometido de primeira
categoria e tem cá um jeito para resolver discussões. E a Brisa de certeza
que sabe movimentar-se bem naquela cidade.
— Então muito bem — disse Arutha a Nicholas. — Vou enviar o Águia
para se juntar aos dois barcos que deixei em Porto Livre. Dar-vos-emos o
vosso posto de Capitão e ficareis a comandar aquela esquadra de piratas que
o William Andorinha está lá a organizar. Do que já ouvi, sereis um
oponente à altura daqueles salteadores, pois ultimamente já tentastes a
vossa sorte na pirataria.
Nicholas sorriu abertamente. — Por assim dizer.
— O Lyam vai nomear o Marcus Administrador do Ocidente quando o
Martin se retirar, por isso respondereis perante ele — prosseguiu num tom
levemente jocoso. — Ia promover-vos a Barão da Corte do Príncipe, o que
vos daria uma posição que permitiria verificar se o Harry não se desviaria
muito da rota, mas talvez deva convencer o Lyam a criar um título especial
para vós… digamos, o Corsário do Rei?
Nicholas riu-se. — Capitão serve muito bem, pai — afiançou. — Avisar-
vos-ei quando achar que posso tentar ser Almirante.
Arutha riu-se e colocou o braço sobre os ombros do filho. — Deixais-me
orgulhoso, Nicky.
Anita juntou-se a eles e abraçou o filho. — Gosto da vossa amiga,
Nicholas — disse. — Tem um modo de estar pouco comum.
— Ela é… diferente — comentou Nicholas.
Riram-se todos e regressaram à festa. Com o decorrer da noite, foram
partilhadas recordações e expressas esperanças, e uma família que conheceu
a alegria e a tristeza sentiu um grande prazer pelo simples facto de estar
reunida.
FIM
Biografia

RAYMOND E: FEIST é um dos nomes mais importantes da história da


literatura fantástica. Nasceu no Sul da Califórnia e, atualmente, vive em San
Diego. Foi também em San Diego que se formou em Ciências da
Comunicação em 1977. Tendo sido traduzido em mais de trinta países,
Mago foi o seu primeiro livro e serve de base para uma vasta obra que tem
conquistado, ao longo dos anos, as listas de bestsellers do New York Times e
do Times of London. Quando não se encontra a escrever, Raymond E. Feist
é um colecionador de DVD, estudioso da história do futebol americano, fã
de ilustração e um grande apreciador de bons vinhos.
Mais informações em
www.sde.pt

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