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São Petersburgo, Rússia 1991

Sentados em uma taberna escura estavam dois garotos, garotos estes que viviam de
formas inadequadas demais para suas idades de registro, que se remoíam de uma dor pela
qual não deveriam ter de passar e que eram condenados a uma culpa improcedente por se
darem ao luxo de existir; tal situação não os incomodava, apesar de tudo, a conformidade
veio em tenra idade e não os afetaria após tanto tempo, ao menos era o que esperavam.

Aos olhos do público desatento e desinformado que preenchia o local a dupla era apenas
composta de pirralhos rebeldes que resolveram burlar as ordens dos pais para se
embriagar; aos seus próprios olhos eles eram pessoas quebradas e fadadas ao sofrimento
inescrupuloso até o dia de suas inevitáveis mortes, e restava apenas que aceitassem tal
destino.

-Por que você acha que tudo isso acontece, Fedya? -O garoto platinado pergunta
demonstrando, não uma lamúria, mas uma dúvida genuína; a melancolia em sua voz nada
mais é que um incômodo diante da própria incapacidade de responder a pergunta de forma
satisfatória.

O silêncio preenche a mesa enquanto o alvo da pergunta meditava sobre uma possível
resposta; nesse tempo ambos os garotos tomam um gole da vodka que desce queimando
por suas gargantas e que também põe um fim momentâneo na indagação.

-Talvez só tenhamos sido condenados por cairmos nas graças do demônio.

-Mas, sabe, seria injusto. Supondo que toda essa coisa de céu e inferno realmente
existisse, não seria nossa culpa termos nascido com um dom especial; se ele tivesse
realmente sido colocado em nós por cairmos nas graças do tal ser maligno, por que o Deus
misericordioso nos condenaria por isso?

-As obras do criador foram contaminadas pelo destruidor. Somos obras deformadas, Nikolai,
e estamos sendo lapidados para não passarmos a eternidade ao lado de quem nos deixou
assim. O criador não está nos condenando, está nos consertando.

-Mas por quê? Por que somos "obras deformadas"? Por que precisamos de um conserto?
Por que esse "conserto" tem de ser tão doloroso e sádico?
Essas suas filosofias bíblicas podem te dar um conforto, Fedya, mas à mim elas só deixam
ainda mais evidente a injustiça que eu já sabia que existia.

A expressão de Fyodor se altera vagamente, a melancolia costumeira em seus olhos


parece ainda mais com um remorso durante um momento, mas sua expressão serena se
faz presente novamente.

-Não sou tão confortado por isso quanto aparento, Nikolai. Mas, afinal, o que eu poderia
pensar? Que apenas tivemos azar de nascermos com individualidades que destruíram
nossas vidas? Ou que o governo quer apenas nos esconder por sermos cidadãos
"defeituosos" que eles não conseguem controlar?
Você vê? Cada uma dessas respostas é mais injusta que a outra.
Um olhar empático vem em direção ao moreno, este que toma mais gole de sua vodka,
parecendo engolir com ela mais dúvidas que pudesse vir proferir. Um suspiro é ouvido e
Nikolai subitamente volta às perguntas que fazia, dessa vez com um sentimento de
entendimento sobre o garoto a sua frente, como se estivessem perdidos no mesmo limbo
de pensamentos, mas optando por estradas distintas.

-Essa não é toda a verdade. Foram 𝘦𝘭𝘦𝘴 que te ensinaram essa versão, não foi? Você
repete isso porque acha que se prender ao familiar vai te impedir de se perder, certo?
Eu não te julgo por isso, é assustador se perder e perceber que não há ninguém para te
procurar.

A companhia do silêncio nessa conversa se faz presente novamente e diz mais que as
palavras proferidas por ambos, estas estão contaminadas por crenças e medos que
impedem a total sinceridade, já o silêncio não, o silêncio apenas transporta a mais pura
essência da alma quebrada que jazia naquela taberna fria, o cristal das palavras não ditas
reluzia na taciturnidade presente no local.

O remanso do momento foi encerrado quando alguém ligou a televisão no noticiário local,
os garotos imediatamente prestaram atenção para ver se já era hora de fugir, mas
suspiraram de alívio quando viram que a notícia era apenas de um roubo fortuito numa
mercearia do vilarejo.

-É tão irônico, não acha? - Fyodor diz de repente.

-O que? O roubo?

-Os crimes. Pense, crimes são basicamente ações punitivas praticadas por uma pessoa que
prejudicam ou machucam outra pessoa, independentemente do contexto. O problema é
que, se praticado pela pessoa certa, o crime não só é ignorado, mas aclamado sem pudor.
Privar uma pessoa de se alimentar é crime até que seja o governo que faça isso. Perseguir,
manipular, prender, torturar, matar, tudo isso é crime até que seja o governo que o faça.

Nikolai levou alguns segundos para perceber que o garoto estava falando de suas próprias
experiências, por um momento um flash de todos os seus momentos até chegarem nos dias
de hoje passou pela mente do platinado, ele rapidamente expulsou essas memórias e
passou a se concentrar novamente no comentário de seu parceiro.

-Hm, acho que uma vez que quem faz as leis é o próprio governo, qualquer um que esteja
alinhado a ele pode fazer o que quiser, independente se isso tenha sido definido como
crime ou não.

-Sim, você tem razão. Isso me leva a pensar: se as pessoas já fazem coisas obscenas
mesmo sendo crime, e se nada fosse definido como crime? E se as pessoas pudessem
fazer literalmente tudo? O que você acha que aconteceria?

Nikolai refletiu por um momento sobre o assunto.


-Bom, se tudo fosse permitido de qualquer forma, o sentido de "crime" simplesmente
deixaria de existir. Supondo que seja esse o caso, o que aconteceria é realmente difícil de
considerar. Em um mundo onde não existe lei nenhuma, qualquer coisa pode acontecer.
Pessoas inocentes que não querem prejudicar ninguém podem morrer por qualquer motivo,
e as pessoas mais maliciosas possivelmente fariam coisas horríveis...
Mas afinal de contas, se é permitido, porquê não?

Ambos sincronizam mais um gole de vodka.

-Hm, então você basicamente acha que as pessoas só seguem leis pois tem medo e não
por não quererem prejudicar alguém?

-Você não acha?

Fyodor pensou por um momento.

-É, eu acho que concordo sim. Isso é meio triste, não? Me faz pensar que qualquer sistema
que exista regras é respeitado apenas por medo e não por ética e empatia, isso inclui
religiões também.

Nikolai colocou mais um gelo em seu copo.

-Tem razão, é meio deprimente... Mas é o que é, afinal de contas. Sempre foi assim, eu
imagino, a dominação dos primórdios estava nas mãos dos mais fortes e os mais fracos não
se atreviam a discordar por medo; hoje continua sendo assim de certa forma. - Ele suspirou
com pesar por um momento, mas pareceu ter um estalo de ideia pois completou sua fala
com uma pergunta repentina:
-O que você faria, Fedya? Se não existissem leis?

Ele pareceu surpreso com a pergunta, pensou em responder algo como "nada de diferente
do que já faço hoje em dia", mas um lampejo pareceu atingi-lo nesse momento, lançando
um breve esperança que lhe deu uma coragem momentânea que desapareceria segundos
depois de sua fala. Ele se aproximou lentamente de Nikolai até seus lábios ficarem próximo
ao rosto do garoto; Fyodor murmurou palavras quase inaudíveis, mas que foram
perfeitamente entendidas devido à proximidade.

-Eu me casaria com você.

Voltou então para seu lugar e terminou seu copo de bebida enquanto encarava seu
parceiro, este parecia estar em um transe, seu tom de pele pálido deixava transparecer seu
constrangimento, quando voltou à si ele apenas desviou o olhar e sorriu cúmplice à ideia
apresentada.

Apesar da concordância mútua eles não chegariam a realizar tal anelo; isso dependeria de
seus corações inteiros (algo que não existia pois estes se encontravam fragmentados),
dependeria de um tempo que eles não poderiam se dar ao luxo de dispor, dependeria do
desprendimento de seus medos e inseguranças mais enraizados, mas, principalmente,
dependeria do elo de suas almas que já não mais os pertenciam.

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