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Direitos autorais © 2023 Nayara Alves

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Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.

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Dedicado a todos que sabem disso com carinho: família é quem nos ama de
verdade, não importando o sangue, mas sim a ligação que escolhemos ter.
Índice

Direitos autorais
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
fim
Capítulo 1
Ele pensou por um segundo que deveria começar a seguir os próprios
conselhos.

Talvez assim evitasse tantas tragédias ou ao menos a humilhação pela


qual estava passando naquele momento.

No entanto, a culpa era total e exclusivamente dele.

Primeiro que já deveria saber aonde isso acabaria, pois, da última


vez, tinha quase perdido um pedaço da orelha e chegado bem perto de
conhecer o Criador, coisa que ele gostaria de adiar o máximo possível.

Afinal, o Todo-Poderoso deveria ter uma longa lista de reclamações


contra o rapaz.

Voltar a beber não parecia mais uma ideia tão boa como soou quando
chegou à Inglaterra.

Os anos em alto-mar eram difíceis. Ele tinha pouca escolha diante do


iminente vício em bebida e decidiu que poderia deixá-lo de lado, já que não
tinha a menor intenção de se atirar no oceano.

Em certo momento, Ronald conseguiu parar de beber. O mar podia


jogar de forma perigosa com um homem, com certeza nenhum marinheiro
necessitava de bebida para dificultar seus pensamentos, mesmo que algumas
pessoas discordassem disso.

De início, ele pensou que seria bom se divertir, beber um pouco,


fazer umas apostas. Porém, o controle que tinha sobre o álcool não se
aplicava a jogos de azar.

Ronald havia sido dispensado e mandado para casa. A intenção de


seus superiores era demonstrar que nada do que ele fizera pela pátria em
todos aqueles anos teria passado despercebido.
Mesmo que isso refletisse na necessidade do departamento de guerra
desembolsar uma boa quantia para a família do seu companheiro que tinha
levado um tiro na cabeça em nome do país. Um detalhe que eles gostavam
de ignorar sempre que podiam.

Aquela interrupção abrupta em seus deveres de capitão era apenas


uma maneira de dizer “tente não enlouquecer”. De fato, Ronald concordava
que tinha dado alguns motivos para que eles tivessem tal pensamento.

Entrar na sala de um superior aos gritos, fazendo certas acusações,


era um indicativo de um problema de cabeça.

Acharam que alguns meses em terra, junto à família, como


recompensa, poderia fazer bem a Roland.

Ele se perguntava como era para aqueles homens que não tinham
família…

Ronald não tinha a menor intenção de ir para casa quando pisou em


solo inglês, sentia saudade da mãe e das irmãs, sem dúvida desejava vê-las,
só que o mesmo amor que o acolhia também o sufocava.

Não retornaria para ter de lutar contra seus demônios enquanto a mãe
tentava convencê-lo de desistir do maldito caminho que tinha escolhido
trilhar. Tobias também lhe lançaria olhares recriminadores, julgando as
escolhas dele tolas e equivocadas.

Seus superiores estavam errados, não precisava daquele tempo,


precisava trabalhar, ocupar a mente, fazer tudo o que pudesse para esquecer
o olhar da mãe de Arthur Clark, seu companheiro que faleceu em nome dele.

Achou honrado que a família do marinheiro recebesse a notícia por


ele, não era dever do capitão, mas Ronald pensou que isso poderia trazer
alguma paz ao seu coração.

Uma pena ver que estava outra vez enganado.

O olhar de desespero no rosto da mãe ao perder seu único filho não


lhe trouxe conforto algum, pelo contrário. Agora, no entanto, era tarde
demais para redigir uma carta. Estava feito, e ele nunca se esqueceria
daquele momento desolador.

Quando entrou naquela taberna, pensou que seria uma boa ideia
apostar alguns trocados, mas logo os trocados acabaram. As pessoas estavam
animadas enquanto Ronald ganhava. Mas, com tanta experiência, ele deveria
saber como as coisas funcionavam, porque não demoraria muito para a maré
de sorte mudar.

Ao começar a perder, pensou que poderia reverter a situação. Como


isso não aconteceu, naquele segundo ele estava correndo por uma plantação.

E isso não era nem de longe a maior humilhação, o fato de estar


fugindo nu com certeza tornava a situação ainda mais embaraçosa.

Rezava para que nenhuma dama, jovem ou idosa, aparecesse em sua


frente, porque ela poderia até desmaiar com a cena que se seguia.

Maldição!

Era um adulto, um homem de 29 anos. Tinha servido ao país pelos


últimos seis anos e feito riquezas, alcançado o cargo de capitão e honrado o
nome de sua família.

Esperava que se portasse melhor quando chegasse ao país, e não


como o rapaz inconsequente que tinha ido embora dali tantos anos antes.

Mesmo longe de casa e das pessoas que pudessem reconhecê-lo,


correr sem roupa ainda era uma tremenda humilhação, uma pela qual não
desejava de passar.

Quem em sã consciência apostaria as próprias roupas? Por Deus, era


tão sem juízo assim?!

Podia muito bem ouvir o irmão em seu ouvido lhe dizendo que ele
ainda era o mesmo menino de outrora.

A ameaça de Tobias de deserdá-lo, caso ele fosse para a Marinha ou


mesmo para Exército, se provou verdadeira.
Não que o irmão tivesse de fato tirado suas posses, Tobias não se
importava com herança ou riqueza, Ronald desconfiava que era porque isso
não faria nenhuma diferença para ele, porém o silêncio do irmão durante
todos aqueles anos foi uma prova de que ele não estava brincando.

Ronald não tiraria a razão do irmão, afinal, durante seu tempo em


Londres, fez questão de se meter em uma confusão atrás da outra.

Com um histórico como o dele, era fácil imaginar a confusão que


seria ao colocar uma arma na sua mão. Era um erro de proporções
inimagináveis. Acabaria se matando ou permitindo que outra pessoa o
fizesse.

Tobias pensava que poderia proteger todos da família ao obrigá-los a


seguir o que ele achava correto. Tinha as melhores intenções, uma pena que
Ronald sempre desejou seguir seus próprios passos.

Mas, veja bem, aquilo que estava acontecendo no momento era um


tropeço de sua parte.

Ronald parou, ofegante, ao encontrar um portão gradeado


entreaberto, que dava para uma pequena mas bonita casa de campo.

Aquela era uma cidade onde concentrava boa parte de suas


construções perto da praia, era raro encontrar uma fazenda no meio do nada.

Um achado oportuno, pois precisava se esconder até bolar um plano,


talvez devesse em primeiro lugar roubar uma calça e um casaco.

Como tinham feito ele ir embora pelado, seria um grande sacrifício


seguir naquelas condições até a estalagem onde ele alugara um quarto.

Poderia bater à porta e pedir ajuda, um homem haveria de entender o


que é acabar em maus bocados por conta de apostas.

Ronald rezou pelo melhor, já que não poderia ficar vagando por
muito tempo sem suas vestimentas. Aquilo era um absurdo, tinha sua própria
honra, que, por sinal, não desejava colocar em risco.
Passou pela fresta entreaberta do portão com cuidado. Todas as luzes
da casa estavam apagadas, afinal, àquela hora da noite as pessoas decentes
deviam estar dormindo.

Por Deus!

Era uma noite clara, em que as estrelas iluminavam o suficiente para


não precisar ficar como um tolo no breu, e seus olhos tinham se acostumado
com a escuridão em certo momento de sua correria.

Ele arrumou a postura de frente para a porta, imaginando se


conseguiria uma muda de roupa ou se seria chutado dali pela pouca
vergonha.

Quais eram suas alternativas?

Bateu à porta, com bastante força, queria garantir que faria isso uma
única vez, a situação já era muito humilhante, não precisava prolongá-la
ainda mais.

Ouviu passos apressados dentro da casa de campo, logo em seguida o


silêncio se instaurou, podia ver pela janela que uma vela havia sido acessa.

Quando ouviu um som próximo da porta, Roland colocou as mãos


sobre suas partes baixas. Não era a pose mais decente, mas queria ao menos
um pouco de discrição, mesmo que não adiantasse muito.

Porém, depois que a porta fora aberta, esqueceu o que precisava


cobrir e suas mãos se ergueram perante a pistola apontada para ele.

O semblante de surpresa que Ronald viu no rosto da pessoa devia ser


muito parecido com o dele.

Por Deus! Havia uma pistola mirada nele, e o mais surpreendente era
que uma bela jovem a empunhava. Uma dama pequena e magra, com traços
doces, mas muito segura de si, lhe mostrando que sabia manejar a arma de
fogo.
O olhar dela desceu e parou bem onde ele desejava estar coberto.

Pediu aos céus que o momento de emoção e de surpresa não lhe


deixasse em uma situação indecente, aquele não era o momento apropriado
para uma participação especial, o que poderia resultar uma bala na testa de
Ronald.

A moça não subiu o olhar, e ele sentiu a necessidade de pigarrear.

Que falta de modos.

— O senhor está nu! — exclamou ela.

Ele inclinou a cabeça para o lado.

— Uma observação muito perspicaz de sua parte, senhorita.

— Por quê, Deus? — Clarissa se indagou mais uma vez enquanto


encarava a folha em suas mãos.

Sentia vontade de atirá-la na lareira da sala de estar, mas, mesmo que


o problema sumisse de vista, não mudaria a realidade.

Também não deveria gritar tão alto. Além dela, havia somente três
criados na casa, a cozinheira, o mordomo e o rapaz que cuidava dos
estábulos, e nenhum deles queria permanecer ali por muito tempo depois da
morte do senhor Franklin. Portanto, ela não precisava dar a eles mais um
motivo para abandoná-la ali.
O fiel mordomo do homem já se mostrava insatisfeito, pois ficaria
sem receber um único centavo e havia deixado claro que nunca entraria em
uma cozinha ou cuidaria de cavalos.

Clarissa podia até cozinhar, mas, se a colocassem perante um cavalo,


ela não saberia nem por onde começar para cuidar deles.

Clarissa viveu 19 anos com os pais, tempo suficiente para que ela
aprendesse as formas mais inusitadas de tirar a própria vida.

Não a julguemos tão rapidamente, porque ser vestida de mendiga e


colocada em cantos específicos da cidade para pedir esmolas eram de longe
as coisas menos abomináveis que os pais tinham feito com Clarissa.

Ainda mais quando eles não eram pessoas carentes. A família


poderia não ser rica, nem ter nascido em berço de ouro, mas com certeza
aquela prática não era necessária. Caso contrário, ela não teria necessidade
de se esconder toda a vez que encontrassem com algum conhecido.

Os pais odiavam não ter tanto dinheiro como o restante da família, só


eram bons em esconder aquela opinião, pois, se não teriam tanta riqueza, ao
menos se apoiariam na dos outros.

Por isso, quando seu tio adoeceu e ficou de cama, quatro anos antes,
necessitando de uma pessoa que pudesse lhe dar atenção em período
integral, a família não se sentiu nem um pouco mal de empurrar sua filha
para longe de casa em proveito de uma mesada mensal que o comerciante
lhes oferecia.

A única dor que eles sentiram era que não teriam mais uma
empregada para cuidar dos afazeres domésticos, se não fosse por isso, ela
poderia até mesmo afirmar que eles ficaram contentes de se livrar de mais
uma boca para alimentar.

Clarissa não odiava os pais, em algum lugar do seu peito nutria amor
por eles. A mãe era terrível, para isso não tinha desculpa. Até onde sabia, a
mulher mantinha um caso com mais de dois homens, mas também gostava
de manter a pose de cristã, afinal, era esposa de um vigário.
Já seu pai, bem, ele era um idoso àquela altura do campeonato, e,
mesmo se não fosse, nunca teve coragem para confrontar a esposa. Era uma
marionete nas mãos dela, e isso diminuía ainda mais sua admiração por ele;
ao menos sua mãe tinha capacidade de ser ruim porque queria, ele, por outro
lado, apenas a seguia.

Clarissa não tardou em descobrir que qualquer lugar seria melhor do


que a antiga casa dos pais. Seu tio, mesmo que não fosse um homem
amoroso, lhe deu espaço para viver, e os dois se davam bem. Ela
considerava uma dádiva sua presença ser necessária ali.

Porém, quando ele faleceu alguns meses atrás, sabia bem o que
aquilo significava.

Toda a herança iria para o único filho que o homem tinha, um rapaz
de 17 anos que estava na escola. Já ela… teria de voltar para casa.

Não porque seu primo a faria ir embora, mas porque, se os pais não
estavam ganhando nada com ela ali, não fazia sentido que permanecesse.

Conseguiu postergar seu retorno mentindo para os pais. Disse que


tinha deveres a cumprir na casa mesmo depois da morte do tio, mas, quando
isso não foi capaz de segurar a vontade deles de tê-la de volta, então, em um
ato desesperador, inventou que havia se casado.

Como os pais nunca tinham encaminhado uma carta sequer para a


filha durante todos aqueles anos na casa de campo do tio, não sabiam quais
os rumos que a vida dela tinha tomado, apenas a venderam, sem o menor
interesse sobre ela, portanto era fácil para Clarissa criar uma história
fantasiosa.

Talvez o desgosto os mantivesse longe dela.

Mas, naquele momento, viu que a melhor saída era se jogar no mais
fundo dos poços ou deixar que as ondas do mar carregassem seu corpo,
deixando-o ir de encontro às pedras do quebra-mar.
Seus pais estavam a caminho da casa de campo do tio, para uma
passagem rápida.

Ao que parecia, o pai tinha um compromisso em Londres e


aproveitariam para conhecer o genro.

Uma pena que tal cavalheiro não existisse. E que o compromisso dos
pais fosse pegar sua parca alegria e a jogar para o inferno e além.

Clarissa apoiou a cabeça nas mãos trêmulas.

Os pais a levariam embora, a arrancariam dali e sabe-se lá o que


fariam com ela, mas com certeza envolveria um cenário de completa
infelicidade e humilhação.

Infelizmente, era uma mulher solteira, propriedade de seus pais,


então, seja lá qual fosse seu castigo, o que mais ela poderia fazer além de
aceitar seu destino?

Mesmo tendo passado anos com a mãe, não tinha tido coragem de
levantar a voz uma única vez para a mulher.

Clarissa só rezava por um milagre, precisava de um sinal, algo que a


livrasse de uma vez por todas deles.

Não se importava em virar uma mentirosa, era melhor do que aquilo


que os pais planejavam para ela.

Tinha pensado em se casar com seu primo, decisão que sua família
apoiaria sem titubear, mas ele era ainda um menino, e, mesmo que fosse de
longe o homem mais agradável com quem ela já tinha conversado, ele
merecia viver muitas experiências antes de se casar.

Embora o rapaz gostasse muito dela e fizesse qualquer coisa para


ajudá-la, preferia não o sacrificar em nome de seu bem-estar, se bem que
esse altruísmo todo poderia ser deixado de lado agora que se encontrava
quase no fundo do poço.

Ela deu um pulo na poltrona ao ouvir batidas fortes na porta.


Já era madrugada, e Clarissa tinha aprendido que nenhuma pessoa de
respeito batia à porta da outra em um horário desses. A não ser, é claro, que
você fosse um médico, um vigário ou que alguém tivesse morrido ou
estivesse para morrer.

Pensou que deveria ignorar esse alerta e enxotar logo a pessoa


inconveniente dali. Pela hora, todos estavam dormindo, então não seria ela a
os acordar, por isso se colocou de pé, acendendo uma lamparina e indo até a
gaveta da escrivaninha do tio, onde ela sabia muito bem o que encontraria.

Aquela pistola sempre fora guardava no mesmo lugar.

Quando Clarissa chegou ali, o tio já estava muito adoentado para lhe
ensinar a arte de caçar. Até mesmo ela nunca havia sentido necessidade de
atirar em um animal indefeso, que nem sabia o motivo pelo qual estava
morrendo.

Mas, assim como ele, concordava que uma mulher deveria estar
preparada para defender a própria honra, já que era algo tão importante para
elas. Por isso, sempre que se sentia disposto para ser levado até um banco ao
ar livre, ele lhe ensinava a teoria da caçada, prática que ela conseguiu pegar
rápido.

Com certeza essa era a memória mais afetiva que tinha do tio, assim
como também a que lhe trouxe mais benefícios.

O tio era um homem ríspido e não tinha tempo para meias-palavras,


mas discordava com veemência que damas deveriam ser criadas como
donzelas em perigo, esperando para serem salvas.

Por esse motivo, ele também achou um ultraje que ela não sabia falar
latim, o que foi mais difícil de ela aprender, mas, quando enfim pegou o
jeito, se sentiu vitoriosa, mesmo que não soubesse quando poderia usar isso,
a não ser para discordar de um vendedor.

E, se a última experiência lhe tivesse mostrado alguma coisa,


Clarissa sabia que deveria parar de ofender as pessoas em latim, supondo
que elas não a entenderiam. O pobre do vendedor não gostou nada de ser
chamado de mesquinho, logo antes de responder em alto e bom som que o
espartilho não era caro, ela que era pobre.

Clarissa então foi até a porta, deixando a lamparina em cima do


aparador, com a arma em punho, preparada para tudo.

Mas a cena com que se deparou… bem, Clarissa ainda não tinha
encontrado palavras no dicionário que pudessem descrevê-la. E, mesmo que
soubesse, não teria capacidade de falar nenhuma delas.

Um homem se encontrava à sua frente, essa fora a primeira


percepção que teve. Logo em seguida, notou os cabelos pretos dele
bagunçados. Então, seus olhos foram descendo e ela viu que não tinha
paletó, nem mesmo uma camisa, apenas a pele nua de seu abdômen.

Depois, quando desceu o olhar mais um pouco, viu que a camisa era
o menor dos problemas, porque tudo faltava ali: calças, ceroulas, meias,
sapatos.

Havia um homem nu, como viera ao mundo, à sua porta.

E o homem nu tinha um belo corpo.

Ela com certeza iria à igreja naquele domingo para se desculpar com
Deus pelos pensamentos impuros. Mas que culpa tinha se um homem forte e
bonito aparecera de repente em sua porta e, ainda por cima, nu?

Ouviu um pigarrear constrangido que a fez subir o olhar.

Oras! Se o homem não queria atrair olhares para suas partes íntimas,
não deveria bater à porta dos outros naquela condição, isso sem dúvidas
chocaria as pessoas e ele receberia uma encarada demorada.

O homem estava rendido, com as mãos para acima, e não escondia


nada que pudesse lhe fazer algum mal. Clarissa também pensou que aquela
era uma visão e tanto.

— O senhor está nu! — exclamou ela.


Era um apontamento bastante óbvio, pois o homem tinha ciência da
própria condição, mas parecia algo tão surpreendente que Clarissa precisava
dizer aquilo em voz alta. Ao menos para descartar a hipótese que estava
tendo alucinações ou sonhando acordada.

O homem inclinou a cabeça para o lado, de forma irreverente, e


comentou:

— Uma observação muito perspicaz de sua parte, senhorita.


Capítulo 2
Ronald não esperava uma recepção calorosa, visto que se encontrava
diante de uma desconhecida, despido em plena madrugada. As reações mais
apropriadas seriam gritos e xingamentos dirigidos a ele, no entanto não
imaginava que isso viria de uma mulher, sobretudo com uma arma na mão.

Armas já tinham sido apontadas na direção dele inúmeras vezes, mas


nunca havia sentido tanto medo quanto naquele instante.

Não poderia morrer ali, sem roupas, sem dignidade. Já imaginava as


fofocas que chegariam a Londres, que ele tinha enlouquecido, correndo no
meio do nada, sem roupa, invadindo propriedades até ser morto.

E precisava viver para voltar à Marinha.

Depois daquela noite, se esforçaria para não arrumar problemas e


assim não acabar sem roupa e dinheiro, perigando levar uma bala na cabeça.

Isso se chegasse a sair vivo dali.

A moça balançou a cabeça, como se quisesse afastar um pensamento,


e voltou a fitá-lo.

— Quem é o senhor? — indagou ela, segurando firme a pistola.

Tinha que dar crédito à postura da moça. Ela em nenhum momento


hesitou, mantendo a arma na altura certa, fazendo-o ter certeza de que ela
não erraria o tiro.

— Isso é um tanto complicado de explicar — alegou ele.

Naquele instante, não sabia mais se era o irmão de um conde, que


passou a maior parte da vida se revoltando contra tudo e todos, sobretudo
contra o irmão, ou se era o capitão de um navio que serviu ao país em
inúmeras situações desafiadoras, mas sabia que, depois desses anos em alto-
mar, ele não era mais o mesmo.
Mas, é claro, que ela não queria saber disso.

Ela ergueu a sobrancelha, ressabiada.

— Melhor descobrir uma forma de me explicar antes que decida não


esperar por uma resposta — sugeriu ela. — Que tal começar pelo seu nome,
senhor?

— Ah, claro, Ronald Denver, e a senhorita é…?

— Não vou me apresentar para um homem que sai por aí batendo na


porta das pessoas sem nenhuma roupa.

Ronald apertou os lábios, formado uma linha reta.

— Uma sábia decisão. Mas, se puder, por favor, chamar o homem


responsável pela casa, agradeceria muito — começou ele. — Estou com frio
e devo admitir: é bem constrangedor que as únicas coisas que tenho para me
cobrir sejam minhas mãos, sendo que estou me obrigando a mantê-las
erguidas, por precaução.

— Ah, é claro, sou culpada pela triste situação do senhor! — disse


ela com desdém.

Ele franziu os lábios.

— Não quis dizer isso, senhorita.

— Tanto faz, senhor, e saiba que sou a responsável pela casa.

Ronald não queria soar indelicado, mas com certeza a expressão do


seu rosto foi ofensiva.

— Sem pai, irmão ou marido? — perguntou ele.

Ela estreitou os olhos.

— Se acha que por isso sou uma presa fácil, o senhor não poderia
estar mais errado — declarou ela, não que ele não já soubesse disso.
Mas raras foram as vezes em que encontrou uma mulher em uma
casa como aquela, sem um responsável por todos os seus passos.

— A senhorita está com uma arma apontada na minha direção, não


estou em uma posição favorável para supor algo sobre a senhorita.

Ela assentiu, surpresa com tamanha esperteza.

As pessoas sempre costumavam reagir assim quando algo que não


fosse uma piada saía da boca de Ronald.

Sem dúvida, isso tinha mudado, ele não era mais o menininho tolo
que apenas fazia graça para todos. Era o capitão de um navio da Marinha
britânica. Tinha se tornado um homem e suas expressões demostravam isso
com clareza.

Ele respirou fundo, pensando em toda a humilhação que vinha logo


em seguida, mas naquela altura do campeonato isso não era lá a coisa mais
importante.

— Terei que apelar para sua compaixão — começou ele, estudando a


expressão dela, que continuava imparcial. Logo depois do susto inicial pela
falta de suas vestimentas, a expressão de paisagem tinha sido a escolha dela.

— Não tenho nenhuma, senhor — declarou ela —, por isso,


aconselho que dê meia-volta e se retire da minha propriedade.

Ronald pensava que mulheres deveriam poder mandar em suas


próprias vidas e em suas terras, mas naquele momento não sabia se estava
muito feliz por aquela ter feito da sua vontade realidade.

— Não posso sair por aí sem roupa. — Ela lhe lançou mais um olhar
de cima a baixo, cheio de desdém, ele completou: — Não mais.

— Isso não é um problema meu — disse ela já fechando a porta.


Ronald colocou o pé, impedindo-a antes que só houvesse dois metros de
madeira à sua frente, sem querer deixar suas partes à mostra mais uma vez.
— Por favor, posso pagar por elas — insistiu ele, rezando para que
aquela pistola não estivesse carregada.

Ela olhou através do pequeno espaço que ele conseguira manter.

— O senhor não tem roupa, não vejo o que poderia me oferecer além
de uma dor de cabeça.

Que mulher inteligente.

— Isso foi um triste acidente — garantiu ele.

Ela ergueu a sobrancelha.

— Se acidentes são recorrentes na vida do senhor, tenho ainda mais


motivos para mandá-lo embora.

Ronald suspirou, desprovido de argumentos.

— A culpa foi do álcool.

— Não sinto empatia por bêbados.

— Não sou um bêbado. — Mais um olhar de desdém foi disparado


na direção dele. — Pareço bêbado, mas não tenho esse vício, se é que me
entende.

— Então, volte para o lugar de onde saiu e recupere suas roupas.

— Essa é a questão — começou ele, avaliando como falaria a


verdade sem revelar mais que o necessário —, perdi minhas roupas.

— Isso está claro.

Ele assentiu.

— Estávamos apostando e…

— Meu respeito pelo senhor apenas diminui — comentou ela.


Ronald respirou fundo, aquilo era um castigo para aprender a nunca
mais se comportar como uma criança imatura e tola, que agia sem pensar nas
consequências.

Não era mais um qualquer, sua reputação tinha peso, e não porque
vinha de uma família popular e rica, mas porque sua postura tinha
importância, o motivo pelo qual seus homens o respeitavam.

E, como tinha aprendido depois de tantos anos, o respeito valia muito


no meio em que eles viviam, o suficiente para que ele tivesse isso em alta
conta.

Às vezes, cumprindo as missões que precisava, se encontrava sem


nada, mas ainda tinha seu valor, seu caráter, e isso era tão importante quanto
uma bússola em no alto-mar.

— Por infelicidade, acabei apostando minhas vestes — confessou.

Ela arregalou os olhos.

— Além de bêbado, é burro! — disse ela, rindo. — O senhor está


louco se pensa que vai conseguir convencer alguém a te ajudar com tal
história.

— E o que eu poderia falar para que a senhorita me ajude? —


perguntou Ronald, cabisbaixo.

— Se o senhor me dissesse que é o Rei, ainda o mandaria embora.

— Nem mesmo a verdade convenceria a senhorita?

— Tudo o que o senhor me contou apenas demonstrou que essa


situação foi causada unicamente por escolhas equivocadas do senhor, então
arque com elas.

Ela deu de ombros.

— A sinceridade ainda deveria ser considerada a coisa mais


importante.
— Ela é, para vigários, pastores. Não para um homem nu no meio do
nada — comentou ela. — Para o senhor, a coisa mais importante deveria ser
conseguir ao menos uma ceroula.

— E é isto que a senhorita está me negando.

Ela riu com deboche.

— Na próxima, diga que foi assaltado pela estrada, diga seu nome,
como se ele abrisse as portas dos salões mais prestigiados de Londres. Por
favor, não demonstre tanta vergonha quando as pessoas olharem para suas
partes íntimas, o que mais elas podem fazer? — perguntou ela.

Ele sorriu e arrumou a postura.

— Posso tentar de novo? — Ronald não tinha nada mais a perder, só


a ganhar se mostrasse que merecia ajuda.

— Não vai funcionar, já ouvi a verdade, que é péssima por sinal.

— Por favor — insistiu ele, tentando esbanjar o mesmo charme de


quando estava vestido —, todos merecem uma segunda chance.

Quando ela permitiu que Ronald abrisse mais a porta, ele não deixou
transparecer que via aquilo como uma discreta vitória.

— Boa noite, sou Ronald Denver, da Marinha do Rei. Acabei me


envolvendo em um trágico encontro com homens de pouquíssimo respeito,
que me assaltaram e me despiram para minha completa vergonha, e agora
me encontro na porta da senhorita, com fé que me estenderá a mão e dará
sua ajuda cristã.

Ela franziu os lábios em admiração.

— E eu pensando que o senhor tinha que ser ensinado a mentir, veja


só, falou perfeitamente — declarou ela. — O final foi um tanto apelativo,
mas, se eu fosse uma senhora de 80 anos, faria toda a diferença.
— E então… — Ele sorriu.

— O senhor se saiu bem — respondeu —, mas saber a verdade


estragou tudo.

— Por favor, não será tão má a ponto de me deixar aqui fora sem
roupa — argumentou ele.

— É claro que serei, como apostou as próprias roupas, é óbvio que


elas têm pouquíssimo valor para o senhor.

Ronald balançou a cabeça, consternado.

— Foi apenas uma brincadeira entre amigos, nunca ficou bêbada e


fez besteira?

Assim que ele finalizou, Ronald recebeu o olhar que merecia, aquela
fora a coisa mais imbecil que havia dito naquela noite, e ele não tinha
economizado nas palavras tolas.

— Foi estúpi…

— É claro que foi, porque mulheres não têm permissão para se


embebedar, e, se assim o fazem, devem esconder, então, sim, foi algo
estúpido de se dizer — declarou ela.

— Não sou assim todos os dias — disse ele. — Sou um homem


decente, sirvo bem ao meu país, sou uma pessoa que a senhorita ficaria feliz
em ter ajudado no futuro.

— Agora o senhor só me parece um louco.

— E a senhorita não está errada.

— Sei bem disso.

— Mas isso não quer dizer que eu também não seja uma pessoa boa.
— Onde o senhor estava com a cabeça para apostar as próprias
calças?

— Eu pensei que recuperaria elas no jogo.

— É o que todos os apostadores pensam, não é mesmo?

Parecia que estava falando com a cópia do seu irmão, mas no corpo
de uma mulher, uma mulher bonita e muito encantadora, óbvio que não por
causa de suas palavras, mas tinha algo no seu rosto que o faria olhar para ela
na primeira vez que a encontrasse sem nem mesmo perceber.

Havia momentos que, ao cruzar o caminho de alguém, se notava não


que demoraria muito para gostar daquela pessoa, mesmo que ela lhe negasse
roupas, era isto que sentia em relação a aquela moça.

— Assumo que foi um erro — garantiu ele —, mas, por Deus, ao


menos me ceda uma calça velha.

Ela deu de ombros.

— Não tenho nenhum motivo para ajudar o senhor — repetiu.

— Que tal exercitar a dádiva de ter uma alma? — murmurou ele, em


um daqueles momentos que sua boca é mais rápida que o bom senso e acaba
lhe colocando em uma situação ainda pior do que a inicial.

— Isso não é a melhor coisa para se dizer a uma pessoa a quem está
pedindo ajuda.

Ele olhou para o céu por um momento, pensando em como se achava


muito mais paciente do que todos os outros companheiros de serviço, na
verdade, mais do que boa parte das pessoas, e que isso não o impediria de
dizer o que estava prestes a sair da sua boca:

— Aposto que a senhorita sabe pedir ajuda quando necessário, mas a


vejo muito relutante para ajudar o próximo.
Ela ficou boquiaberta por um segundo, para logo depois adotar uma
expressão séria.

— Ainda não atirei no senhor, isso demonstra toda a minha bondade


— garantiu.

— Fiz uma escolha tola, creio que ao menos isso a senhorita possa
compreender.

— Não estou dizendo que não compreendo, apenas que não é meu
dever fazer nada a respeito — começou ela. — O senhor escolheu a casa
errada para bater à porta, não costumo colocar meu bem-estar em risco para
ajudar pessoas que fazem escolhas equivocadas, senhor.

Ele fechou os olhos, angustiado, não encontrava uma forma de a


convencer, e, ao que parecia, não adiantava insistir.

Arrumaria um celeiro para se esconder.

Aceitando a derrota, Ronald fez uma pequena mensura.

— Bem, peço desculpas pelo incômodo.

Ela se manteve parada, apenas o encarando, enquanto ele virava as


costas para ela.

Por Deus, como ele queria ao menos uma coberta.


Capítulo 3
Não era um monstro.

Sabia que fazia bastante frio lá fora e que aquilo resultaria em um


enorme problema, mas ao menos um deles não seria o medo crescente de ter
um assassino sob o mesmo teto que ela.

E, mesmo que ele não parecesse um homem que mata as pessoas


enquanto elas dormem, Clarissa não via um motivo bom o suficiente para se
colocar em risco a fim de ajudá-lo.

Tinha problemas demais e nem havia encontrado soluções para


algum deles.

O primeiro e mais importante era que precisava de um marido.

Não sabia onde estava com a cabeça quando inventou de falar para os
pais que estava casada, como pensou por um segundo que isso não resultaria
em uma tremenda tragédia?

Maridos não poderiam sumir ou morrer de repente. Aliás, essa tinha


sido sua primeira opção. Amava a ideia de ser viúva, ter sua tão sonhada
liberdade em vez de ter um homem para ditar o que ela poderia fazer da
vida.

Os pais, no entanto, exigiriam ver o túmulo e pediriam informações


de como o homem morreu.

Clarissa poderia até mesmo escolher uma lápide qualquer no


cemitério local, mas a verdade era que morria de medo de retaliações de
mortos, por isso tentava com afinco nunca irritar quem pudesse voltar para a
atormentar.

Ela parou por um segundo e olhou para a bunda do homem que se


dirigia para a saída da propriedade.
Ele não deveria ser muito mais velho que ela, tinha uma boa
aparência e se encontrava em um momento de total desespero.

Pessoas assim eram facilmente manipuláveis, pouco tinham a perder


e não passavam o tempo contestando o certo e o errado.

Por outro lado, Clarissa não o conhecia. Não sabia nem mesmo de
onde ele tinha surgido, e uma pessoa que saía por aí, apostando até as
roupas, não poderia ter uma mente sã.

Mas, se fosse por isso, os pais de Clarissa também a deixavam louca.

Ela já tinha sua resposta, antes mesmo de poder elaborar a pergunta.

— Espere!

O homem interrompeu o passo, mas não se virou, apenas ficou lá


parado até que ela o chamasse novamente, atraindo a atenção dele.

— O que o senhor está disposto a fazer por vestimentas? —


perguntou Clarissa. Se ia agir como uma maluca, queria saber se isso
resultaria em alguma coisa.

Ele abriu a boca e parou um pouco para refletir. Nesses segundos


arrastados, Clarissa achou que, se ele fosse um assassino, ela merecia isso.
Quem em sã consciência pediria tal coisa a um estranho? Ainda mais um
totalmente despido?

— Não há limites, eu poderia ser capaz de tudo — respondeu quem


dizia ser o senhor Denver, se aproximando novamente.

Clarissa abaixou a pistola, sentindo o braço doer.

— Precisa me garantir que devolverá meu ato de compaixão.

Ele franziu o cenho.

— O que a fez mudar de ideia?


— Vamos dizer apenas que vi um bom uso para o senhor — revelou
ela, se virando para dentro da casa e abrindo a porta. — Agora, vamos
encontrar alguma peça de roupa para o senhor.

Sabia que ele estava bem atrás dela, então subiu as escadas e sem
demora foi na direção do quarto do tio.

Os dois eram diferentes em tanta coisa, o tio era um homem de


pequena estatura, ainda mais no final de sua vida, depois de perder tanto
peso, já o homem à sua frente por muito pouco não precisava ser curvar ao
passar pelas portas.

Mas achava que as roupas do tio serviriam com perfeição. À beira da


morte, ele era pele e osso, mas sempre havia gostado de roupas mais largas,
o que facilitaria e muito encontrar algo adequado ao senhor Denver.

Clarissa precisava que aquele homem passasse um ar de seriedade ao


fingir ser o marido dela. Seus pais não acreditariam, ou melhor, não
aceitariam um casamento que parecesse não favorecer a família. E, quando
ela se refere à família, queria dizer aos dois, que eram o centro de tudo,
como de praxe.

Como precisava abrir a porta, estendeu a lamparina para ele sem


largar a pistola.

Ele olhou em desespero para as próprias mãos, pois era a única


maneira de não deixá-lo completamente pelado.

— Ah, por favor, creio que não há mais nada com que eu possa me
surpreender.

— Ter uma mulher encarando minhas bolas não me deixa menos


incomodado apenas por ser feito muitas vezes — declarou ele, ainda
relutante.

Clarissa sorriu.

— Não estava encarando — respondeu ela —, apenas nunca vi um


homem nu, é claro que meus olhos seriam levados para as partes mais
baixas.

— É sincera demais, já te disseram isso?

— Nunca me pareceu uma ofensa.

— Da maneira que estou lhe dizendo, é. — Ele pegou a lamparina,


permitindo que ela abrisse a porta que dava acesso ao quarto do tio.

Não tinha entrado ali depois de ter arrumado tudo para o funeral.
Aquele seria o futuro quarto do primo, então não via motivos para entrar ali
à toa. Era estranho vê-lo vazio, como se não houvesse existido um momento
em que ele já tinha sido o lugar de alguém.

— Pode colocar a lamparina aí em cima — orientou Clarissa,


apontado para uma mesinha ao lado da porta.

Uma não era suficiente para clarear o cômodo, por isso pegou outra
lamparina e a acendeu.

Já era ruim estar em um quarto com um estranho, não precisava que


isso ficasse ainda mais assustador.

— A senhorita já pensou que seria mais fácil fazer tal coisa sem essa
arma na mão — sugeriu ele, e ela o encarou com deboche.

— Quão estúpida acha que sou?

Ele riu.

— Essa é a questão, temo que devo me preocupar com sua esperteza.

Clarissa ignorou o comentário e seguiu para os baús que ela mesma


havia preparado.

Tinham poucos criados, o tio nunca havia gostado de pessoas


transitando pela casa, e, os três que tinham, haviam sido instruídos a não
falarem demais, nem mesmo darem uma mera opinião sobre qualquer
assunto daquela casa.
Clarissa, em contrapartida, nunca permitiu que o relacionamento dela
fosse tão distante, se sentia sozinha morando com o tio e gostava de
conversar com eles, mas isso se mostraria um grande empecilho, já que
teriam muito a dizer quando ela aparecesse com aquele homem, alegando ser
seu marido.

Não tinha outra opção. Se os pais não fossem tão terríveis, poderia
negociar sua liberdade, mas isso nunca funcionaria, eles nunca permitiriam
que ela fosse algo além de um peão em um jogo de interesse para os dois.

Clarissa não conseguia entender como as pessoas podiam


simplesmente usar os filhos daquele modo, mas também não conhecia outra
forma de criação, somente aquela em que os filhos eram vistos como um
tremendo fardo, tendo que se esforçar em dobro para poder fazer o teto sobre
sua cabeça ter algum significado.

Por isso, e apenas por isso, tinha aprendido a criar histórias que
parecessem reais aos ouvidos dos pais. Agora, portanto, precisava que eles
acreditassem naquela farsa, deveria ser crível o suficiente para que eles a
renunciassem.

Se voltou para o homem perto da porta, jogando uma calça na


direção dele, seguida de uma camisa e um paletó.

— Eu o deixarei sozinho enquanto se troca — declarou ela, rumando


para a porta, e emendou: — Se tentar me roubar, cortarei partes suas que os
homens costumam ter grande apreço.

Ele arregalou os olhos, mas, por um segundo, ela jurou que ele estava
sorrindo.

— Não confia muito nas pessoas, não é mesmo?

Clarissa estreitou os olhos.

— Não confio muito no senhor.

Ele assentiu, avaliando as peças em sua mão.


— Uma ótima escolha.

Clarissa se retirou do quarto, batendo a porta atrás de si, e aguardou


no corredor com seus próprios pensamentos, que agora a atormentavam,
como se não tivesse sido ideia dela mesma.

O homem aparecera em sua casa, nu e disposto a tudo, o que mais ela


poderia fazer além de tentar salvar a própria pele?

Não o conhecia, e homens nus não eram confiáveis, sabia disso, mas
suas opções andavam bastante escassas. Clarissa não possuía dinheiro para
subornar as pessoas e não desejava tornar a história que inventou para os
pais em realidade, apenas queria que acreditassem o suficiente para deixá-la
em paz.

E não era ela que estava orando para Deus enviar uma resposta do
céu?

De fato, a resposta viera de uma maneira bem equivocada, mesmo


assim, ela precisava tirar proveito de situações como aquela.

Após se livrar dos pais, faria uso da sinceridade, mas até lá a única
coisa que podia fazer era rezar para que o senhor Denver não fosse muito
pior do ela estava imaginando.

A porta foi aberta depois de dez minutos, acordando-a dos


desvaneios. Clarissa viu que aquelas roupas ficavam bem melhores no corpo
dele que no do seu tio.

— É bom poder encarar o rosto do senhor sem nenhuma distração —


declarou ela.

Ele sorriu, colocando as mãos no bolso.

— Qual o preço de sua bondade? — perguntou ele.

Ela franziu os lábios.


— O efeito do álcool já passou? — perguntou ela.

— Posso dizer que correr no meio do mato pelado é capaz de aplacar


a embriaguez de um homem — revelou ele em um tom bem-humorado.

— Então, vamos conseguir uma bebida para o senhor — disse ela,


seguindo pelo corredor.

Precisava que ele aceitasse a oferta e não sabia se tinha sido uma boa
opção lhe dar roupas antes de obter sucesso. Contudo, se não houvesse feito
isso, não conseguiria se concentrar em mais nada.

— Pensei que fosse contra o excesso de álcool.

Ela assentiu, mesmo que ele estivesse atrás dela.

— E sou contra. Mas hoje, excepcionalmente, acho que ele será mais
meu amigo do que inimigo.

Abriu a porta do escritório e permitiu que ele passasse antes com a


lamparina. Entrou logo em seguida, tentando esboçar um sorriso educado e
encantador, mas, pela expressão no rosto do homem, parecia ser assustador.

— Uísque? — perguntou ela.

Ele negou com um gesto de cabeça.

— Chega de bebida para mim.

Ela deu de ombros e foi para trás da mesa.

— Como quiser. — Clarissa colocou a arma na gaveta, trancando-a


lá em seguida, e levou a chave ao pescoço.

— Diga o seu preço — adiantou-se ele, que agora vestido parecia


mesmo um homem da Marinha Real, a postura condizente com sua
ocupação.
Morava perto de um porto, não eram raras as vezes em que
encontrava com um deles, mas, na maior parte do tempo, os ignorava, a
maioria pensava que tinha o poder de encantar todas as moças.

Geralmente, eles não enxergavam o quanto eram ridículos, visto que


não percebiam que o único motivo daquelas moças se envolverem com eles
era a extrema necessidade, e não porque queriam.

Mas o homem à sua frente era um daqueles raros em que você bate o
olho e sabe que não veste a farda apenas para rir e fazer piadas de outras
pessoas, como se ele fosse superior.

Era um daqueles que fazia jus ao seu cargo e usava isso com orgulho
e honra.

Mas, é claro, ela poderia estar muito enganada. Já que ele tinha
aparecido lá sem nenhuma roupa, poderia muito bem ser um lunático, e tudo
o que tinha falado poderia ser uma mentira, esperando o momento certo para
enfiar uma faca na garganta dela e roubar a casa.

Cristo! Que pensamento terrível.

Era bom que começasse a pôr em prática seu plano, a pensar com
racionalidade, pois, assim que o sol raiasse, teria que convencer não apenas a
ele, mas também aos criados do tio a entrarem em sua mentira.

E, no meio destas pessoas, uma cristã que acreditava que o lugar


certo para todos os mentirosos fosse o inferno, o qual já havia deixado claro
que não gostaria nenhum pouco de conhecer.

Clarissa poderia com facilidade convencer os outros, contando-lhes


as histórias tristes de sua infância, afinal, já sofrera um bocado nas mãos de
seus progenitores. Seu repertório era vasto, inclusive. Agora, aquele
casamento arranjado da noite para o dia, não deixaria a senhora Green nada
satisfeita.

A cozinheira precisaria de algo a mais, uma história ainda mais


profunda que acendesse a compaixão da mulher, ela não aceitaria aquilo
apenas porque Clarissa tinha medo dos pais.
Talvez pudesse dizer que estava à beira da morte.

— Meus pais são pessoas ruins — começou ela.

O homem à sua frente franziu o cenho, sem entender.

Clarissa juntou as mãos em cima da mesa e as encarou.

— E eles pensam que o mundo seria bem melhor se todas as


mulheres fossem controladas por homens de pulso firme, que pudessem
ensiná-las limites. — O senhor Denver se mexeu na cadeira, claramente
incomodando com o rumo da conversa, e ela mal tinha começado. —
Portanto, quero que o senhor seja esse homem firme.

Ele esbugalhou os olhos.

Era como se eles fossem pular para fora das órbitas e cair ali em cima
da mesa, bem na frente dos dois.

— Está me pedindo para se casar com a senhorita? — perguntou ele


com um tom de voz estranho, como quando uma pessoa reprimia a todo
custo falar coisas como maluca ou louca.

Ela levantou as mãos, em defesa.

— Claro que não.

Mais calmo, ele se acomodou na cadeira e soltou um longo suspiro.

— Graças a Deus, já estava pensando que teria de lhe devolver as


rou…

— Estou pedindo que finja que se casou comigo.

O senhor Denver inclinou a cabeça por lado, apertando os lábios um


contra o outro.
— Eu juro que pude ouvi-la, mas ainda estou muito longe de
compreender as palavras da senhorita.

— Eles me levarão embora assim que notarem que não tenho uma
aliança no dedo — declarou, permitindo que o desespero tomasse conta da
sua voz.

Tinha sido isso que a convenceu de ajudar aquele homem, talvez


funcionasse para ela também.

Se bem que o que de fato a fez ceder foi a própria consciência, pois
lá no fundo ela não ia deixá-lo à mercê da sorte naquelas condições.

— E sua solução é fazê-los acreditar que está casada? — perguntou


ele, chocado, como qualquer outra pessoa que não conhecia a família
Franklin.

— Se o senhor souber de opções melhores, sou toda ouvidos.

Ele passou a mão pelo rosto.

— Que tal falar a verdade? Diga que não deseja ir, seja lá para onde
eles estão tentando te levar — ele disse o óbvio, agarrando os braços da
poltrona.

Clarissa respirou fundo.

— O que desejo não tem lá muita importância, senhor — rebateu ela.


— Sou mulher, solteira ainda por cima, não mando no que vou vestir no dia
seguinte, muito menos na minha vida, então, quando digo ao senhor que
fingir um casamento é muito melhor do eu lhes revelar a verdade, espero que
acredite. Já lhe dei um voto de confiança quando o senhor poderia ser, na
verdade, um louco ou coisa pior.

— Ora, eu pedi uma muda de roupas, a senhorita está me pedindo em


casamento! — exclamou ele.

— Não quero me casar com o senhor…


— Não é a melhor forma de me convencer a aceitar.

— … nem com ninguém — finalizou ela.

O senhor Denver fechou os olhos.

— Então, não vejo como eu poderia fingir estar casado com a


senhora pelo resto da vida, sendo que não pretende se casar nunca.

— Estou contando que meus pais morram em, no máximo, quatro


anos. Eles se alimentam de maneira horrível. — Perante o olhar de espanto
no rosto dele, Clarissa fez um sinal para que ele ignorasse. — Por favor, não
desejo a morte dos dois, que tipo de ser humano deseja a morte dos pais?

Ele deu e ombros, displicente.

— Não conheço um único que mereça ser citado.

— Olha — começou ela —, eu amo meus pais, como a maior parte


das pessoas. Mas eles me enlouquecem, me fazem duvidar da minha
sanidade a ponto da ideia de querer me jogar em um poço com uma corda e
uma pedra amarradas ao pescoço parecer atrativa.

— Quanto amor — comentou ele.

Clarissa suspirou.

— Eu apenas não quero ser obrigada a viver de acordo com o que


eles acham certo quando não é isso que desejo. É uma vida infeliz.

— Se explicar dessa forma, sem mencionar a parte de querer tirar a


própria vida, ou a deles, talvez eles te compreendam. — Ela rebateu o olhar
dele de condescendência com um muito melhor.

— O senhor age como se os conhecesse melhor que eu, eu que, por


acaso, passei 19 anos com aqueles dois.

— Gosto de acreditar no melhor dos outros.


— Eu também! Por isso mesmo que o senhor não está com uma bala
no meio da testa. Mas lhe garanto que, se tivesse sido um deles a receber o
senhor naquela porta, a história seria diferente.

— Entendo, mas o que a senhorita está me pedindo é loucura!

— Você acha que não estou ciente disso? Mas não vejo nenhuma
perspectiva à minha frente, nada que possa me resgatar do meu futuro. E
você, você — disse ela, apontando enfaticamente para ele — basicamente
apareceu na minha vida como um presente divino, o que mais posso dizer,
além de que devemos nos apoiar?

— Está me comparando a um anjo? — Clarissa se perguntou de onde


aquele homem tinha surgido para exibir tamanha autoconfiança.

— Estou dizendo que foi como um milagre.

— Não foi um milagre, foi apenas uma tolice.

— Tolice ou não, o fato de o senhor estar aqui deve significar algo.

— Significa que fiz bobagem, não que necessariamente seja a


resposta para suas preces — exclamou ele, inclinando-se para a frente.

— Mas talvez o senhor seja!

— Eu não quero ser.

— Mas eu lhe estendi a mão — ressentiu-se ela. — O senhor me deu


sua palavra que me ajudaria, e espero de todo o meu coração que esteja
falando a verdade, ou amanhã, antes mesmo do sol se pôr, todos saberão do
quão sem honra é o senhor.

— Isso é uma ameaça?

— Estou desesperada.

— Não deixa de ser uma ameaça.


— Essa é minha moeda de troca.

Ele se colocou de pé.

— Não posso fazer isso — começou ele. — Não sou um mentiroso,


nem mesmo pretendo me transformar em um.

— O senhor…

— Agora, peço licença. Vou devolver as roupas ao lugar de origem.

Clarissa o seguiu até a porta. O corredor estava escuro, mas, ao


contrário dele, ela conhecia bem o lugar.

— Por favor, isso não lhe custará nada.

— Eu lhe garanto que isso me custará muito mais do que imagina.

— Você nem considerou a questão.

— Para ver como acho a ideia absurda.

— Mas…

— Não temos mais o que discutir, senhorita.

— O senhor já considerou que eu não apelaria para um casamento


falso caso houvesse outra forma de fugir? — insistiu ela, no encalço dele,
que parou no corredor e se virou para ela.

— Quer mentir para seus pais, acredita mesmo que isso acabará
bem?

— O senhor apostou suas roupas, também achou que isso acabaria


bem?

Ele balançou a cabeça, incrédulo.

— São coisas diferentes — resmungou ele e colocou as mãos no


quadril.
— Depois de convencê-los de que somos marido e mulher, o senhor
poderá ir embora. Eles ficarão apenas por uma tarde — garantiu ela. — É
apenas um dia, um único dia em que terá que fingir algo. Depois disso,
nunca mais ouvirá falar de mim.

O senhor Denver ficou em silêncio, encarando-a. Clarissa não sabia


se ele a considerava louca em seus pensamentos ou se havia uma pequena
chance de ele estar considerando o pedido dela, o que era exatamente o seu
desejo.

— Não sentirá remorso? — perguntou a ela.

— Não será um problema para mim.

— Assuma os riscos, conte a verdade — sugeriu ele. — São seus


pais, eles ficarão felizes com sua felicidade.

— Não pode me garantir isto — falou. — E não estou disposta a


arriscar.

— A senhorita...

— O senhor já imaginou ter todas as escolhas importantes e tolas


feitas por outra pessoa? — começou ela. — Com quem irá se casar, onde irá
morar, até mesmo o que deseja comer no almoço?

O homem se manteve em silêncio.

— Quero ter o direito de escolha e só poderei fazer isso se os


convencer de que não podem mais controlar cada passo meu.

Ele assentiu, observando os próprios pés descalços.

Ela precisava resolver aquilo, não podia fingir ser um homem


respeitável estando descalço.

— E as outras pessoas?
— Os criados da casa não dirão nada. — Pelo menos era o que
Clarissa esperava. — E os moradores da cidade não sabem praticamente
nada sobre a minha vida.

Desde que havia chegado, o único lugar onde ia era à feira, sem
trocar mais do que meia dúzia de palavras com as pessoas, até porque
sempre tinha que voltar rápido para quando o tio precisasse de assistência.

Era fácil criar uma vida fictícia, porque na verdade não tinha uma.

As pessoas não desconfiariam de nada do que ela falasse a partir dali,


não sabiam nada sobre ela no fim das contas.

Nunca discordaria que sua vida era muito melhor ali do que em
qualquer outro lugar que já tinha estado, mas não era a vida que desejava
para si mesma.

Quando pensava no seu futuro, desejava que pudesse fazer escolhas


em prol da sua felicidade, sem se preocupar tanto com outras pessoas.

Morava a minutos do mar, e nunca tinha chegado a pisar na areia.

— Tudo bem.

— Tudo bem?! — Clarissa se surpreendeu.

O senhor Denver assentiu.

— A senhorita me fez um favor imenso, preciso retribuir.

— Obrigada — disse ela, sorrindo. — Prometo que o senhor não vai


se arrepender.

— É o que espero.

— Por aqui… Vou mostrar o quarto em que o senhor ficará — disse


ela, deixando-o espantado.
— A senhorita não queria nem me dar uma calça, e agora vou dormir
aqui, sob este teto?

Clarissa sorriu, levantando os braços, como se a resposta fosse fácil.

— Bem, antes o senhor não era meu marido!

— Que senso de humor peculiar.

Fez sinal para ele a seguisse.

— Meus pais chegarão amanhã, creio que depois do almoço. Peço


que esteja preparado desde o desjejum — avisou ela ao abrir a porta do
quarto de hóspedes, que era muito melhor do que seu próprio quarto. Ele
deveria ser grato pela sua generosidade, vinha sendo extremamente bondosa,
lhe oferecendo as melhores coisas daquela casa.

— Fique à vontade. Trarei sapatos e uma roupa mais apropriada para


o senhor amanhã. E, desde já, preciso que seja um péssimo marido amanhã
— declarou ela.

Ele franziu o cenho, perdido, então ela emendou:

— Se me tratar bem e for gentil, eles não acreditarão que esse


casamento é verdadeiro. Por favor, preciso que eles confiem plenamente na
nossa história, caso contrário, tudo será em vão.

— Eles se sentirão mais tranquilos se pensarem que sou um marido


agressivo do que um homem que certamente tratará a filha deles com
respeito e amor? — indagou ele.

Clarissa sorriu desconfortavelmente diante da pergunta.

— Eles só querem ter a certeza de que alguém coloque minha mente


perturbada no lugar certo — respondeu ela, dando de ombros. — Durma
bem.
Capítulo 4
Ronald acordou com o baque surdo da porta. Sentou-se
sobressaltado, levando um tempo para se situar. Assim que viu um homem
colocando roupas sobre uma antiga cômoda, como se estivesse desgostoso
com sua presença, lembrou-se da noite passada, ou de parte dela.

— Bom dia — disse Ronald, já esticando as pernas para fora da


cama, onde havia sapatos no chão.

— A senhorita Clarissa o aguarda para o café da manhã — anunciou


o homem.

Ronald torceu o nariz.

Sabia reconhecer quando não era bem-vindo em um lugar, e aquele


homem parecia pronto para tomar um banho gelado às cinco da manhã
apenas para não vê-lo ali.

— Parece que o senhor não ficou satisfeito com a ideia dela —


comentou Ronald, levantando-se.

O homem à sua frente, alto e magro, que não tinha mais um único fio
de cabelo na cabeça, apenas deu de ombros.

— Gosto de acreditar que, mesmo quando ela erra, está sempre


tentando fazer o melhor que pode.

Ronald assentiu.

— Temos que concordar que é uma loucura, não é mesmo? —


insistiu ele.

O homem juntou as mãos na frente do corpo.

— Ainda mais louco é ela não querer revelar de onde o senhor veio.
Isso de fato não era algo que ele queria que se espalhasse, já era
constrangedor o suficiente para ele saber que ela o tinha visto nu, seria ainda
pior se todos ali soubessem da história.

— Isso não importa, o senhor deve se alegrar que estarei longe daqui
ao final do dia.

— Me alegro mais ainda em saber que não é apenas o senhor que


estará longe daqui.

Ronald assentiu.

— Os pais dela são tão terríveis assim? — indagou ele, estava


realmente curioso para conhecer os dois.

O homem deu de ombros mais uma vez.

— Evito passar mais de cinco minutos na presença de ambos —


declarou ele.

— Não é de assustar que a moça trema de medo deles.

O homem apenas lançou um olhar para ele antes de se virar e sair.

Esperava que não houvesse outras pessoas que nutrissem tanto


desafeto por ele.

Ronald olhou ao redor do quarto. Era mesmo um lugar simples, pelo


menos aquele quarto, embora a casa sugerisse que o dono vinha uma classe
social mais elevada do que a maioria ali, que lutava contra a fome.

O que sua mãe pensaria se o visse enganando os pais de uma moça


de forma tão descarada?

Recordava o que a senhorita Franklin havia dito sobre os pais, que


faziam dela gato-sapato, mas não conseguia acreditar sem ter dúvidas.

Ele mesmo já havia visto a mãe e o irmão como inimigos quando


estavam apenas preocupados com ele, e com razão.
Ronald passou a mão pelo rosto.

Aquilo não era seu problema. Ao final do dia, seria apenas mais uma
história para contar em alto-mar e, com o tempo, nem mesmo se lembraria
dela.

Assim que ergueu os olhos, ele a encontrou sentada em uma das


cadeiras à mesa, o olhar direcionado para um livro em sua mão e na outra
uma xícara.

Na noite anterior, Ronald não tinha notado muita coisa por conta da
escuridão, estava tão preocupado com sua devassidão que nem reparara que
os cabelos dela eram castanho-escuros. Ela não parecia ter mais de um metro
e sessenta, e seus dedos eram finos e longos, do jeitinho ele achava que as
mulheres deviam ter.

Não que passasse tempo pensando nisso, mas, se assim fosse,


apreciava muito mãos como as dela.

Ela ergueu os olhos.

O rosto dela era tão harmonioso, pensara o mesmo na noite anterior,


que a boca pequena e rosada, de lábios volumosos, combinava perfeitamente
com seu nariz arrebitado e olhos grandes, de uma forma única.

Se não estivesse fingindo ser o marido dela, com certeza tentaria ser
seu amante.
— Bom dia, senhor Denver — cumprimentou ela, olhando-o de cima
a baixo. — Vejo que a roupa lhe caiu muito bem.

Ele deu de ombros, um pouco sem graça.

— O que posso dizer, só por estar vestido já é uma vitória e tanto


para minha pessoa.

Ela sorriu com o comentário dele e apontou para a cadeira.

— Vai adorar os bolinhos de milho, são iguarias — comentou ela,


mordendo um com tamanha vontade que demonstrava que ela amava mesmo
aquilo.

— Sabe o que estava pensando? — disse ele ao vê-la servindo seu


chá com leite, sem nem mesmo perguntar nada.

— Diga.

Ele deu um gole no chá e estava exatamente como ele gostava.

— Que estou casado com a senhorita e nem sei seu nome completo
— declarou ele, encarando-a.

Ela abaixou o bolinho, sorrindo.

— Clarissa Franklin.

— Um belo nome. Combina com a senhorita.

Ela ergueu a sobrancelha.

— É mesmo?

— Claro.

— Ainda bem, já que terei que ficar com ele pelo resto da vida.

Ronald riu, grato pelo clima leve entre eles.


Gostava da maneira como ela se comportava, tão concentrada em ser
quem era que nem mesmo notava quando dizia coisas que se desviavam do
que os outros achariam apropriado.

— E quando meus queridos sogros chegarão?

Ela deu de ombros.

— Nunca avisam quando vão abrir a porta do inferno — respondeu


ela, mudando a página do livro —, se fosse assim, seria muito fácil para
mim.

Ele a olhava perplexo.

Sabia o que era ter uma relação ruim com os pais. Ou melhor, com o
pai, Wilson Helton. Mesmo que o conde tratasse melhor Ronald e Roselaine
em comparação ao demais irmãos, as coisas entre eles não eram fáceis,
porque não podia fazer nada para livrar nenhum dos outros irmãos ou a mãe
dos maus tratos daquele homem.

Odiava ele, era esse o sentimento. Mas, na maior parte do tempo, era
como se o ódio não fosse verdadeiro, o odiava por tudo o que tinha feito e
causado às pessoas que Ronald amava, e não poderia ser diferente, mas
também o odiava porque ele tinha impossibilitado Ronald de ter um carinho
por um pai, de poder olhar para suas recordações do passado com carinho,
não apenas com mágoa.

Se ele conseguia ser um pai razoável para ele, por que não era assim
para todos os outros filhos?

Já com sua mãe era diferente, Ronald basicamente idolatrava aquela


mulher. Claire Helton era a razão de ele não ter virado um completo imbecil,
a responsável por tudo de bom em sua vida. Quando pensava no passado,
sabia que nunca havia tido, e nem haveria, uma pessoa que pudesse o apoiar
mais do que ela.

Clarissa, em contrapartida, parecia temer seus progenitores. Ele ainda


não sabia identificar de qual deles ela tinha mais horror. Ambos pareciam
fazê-la querer colocar uma corda pelo pescoço e pular de uma cadeira.

Ele não a conhecia, nem teria tempo para isso, mas esperava, do
fundo do seu coração, que ela conseguisse fugir deles e de todos os medos
que tinha quanto ao comportamento dos seus pais.

— Devo me preocupar? — perguntou ele.

Ela ergueu o olhar, confusa.

— Como?

— Pelo jeito que a senhorita fala de seus pais, devo imaginar que não
sejam pessoas fáceis de lidar — explicou ele.

Ela fez um gesto com a mão.

— Ah, mas o senhor é homem.

— Até onde eu sei, sim — disse ele, sorrindo.

Ela deu outra uma mordida no bolinho.

— Pelo que vi ontem, concordo com o senhor — comentou ela, sem


nem ruborizar.

Ronald fechou e apertou os olhos.

— Poderia esquecer o que viu na noite passada? — resmungou ele.

— Ah, querido, isso ainda vai demorar um pouco para acontecer. —


Ela largou o livro e entrelaçou os dedos em cima da mesa. — Agora,
gostaria de deixar claro que ambos não são tolos, se eles notarem nosso
desconforto…

— Isso é um tanto complicado, nunca fingi ser o marido de alguém.

Ela inclinou a cabeça para o lado, dando um sorriso perante o


desdém aparente dele.
— Também não, mas espero cumprir meu papel com perfeição.

— Do que a senhorita gosta? — perguntou ele, e ela ergueu as


sobrancelhas em resposta. — Se vamos fazer isso, preciso fingir que a
conheço.

— Eles não acreditam que mulheres possam gostar de alguma coisa.

— Eles? — interrompeu. — Sua mãe também é uma mulher, certo?

— Apenas por fora, ela claramente não se declara assim. Mas, se


deseja perguntar algo importante, vamos começar por onde nos conhecemos,
que foi na igreja.

Ele se recostou na cadeira, prestando atenção.

— Que coisa pouco romântica.

— Não estamos escrevendo um romance, senhor Denver, estamos


convencendo meus pais de que meu marido não permitirá que eu siga sendo
um peão na mão deles.

— Bem, isso com certeza eu consigo fazer.

Ela balançou a cabeça com incredulidade.

— Não sei, parece que ainda não percebeu como isso é importante
para mim.

— Se não fosse assim, tenho certeza de que ainda estaria por aí


vagando pelado.

— Não posso negar, seu argumento é válido.

Quando Clarissa se colocou de pé, Ronald notou que as roupas dela


eram simples como as de uma criada, e não como as de uma senhora da casa.
Eram de um tecido muito inferior ao que ele trajava, em um tom apagado de
marrom, e havia buracos e remendos em alguns lugares.
— Posso perguntar quem é o dono desta casa?

Ela segurou o encosto da cadeira, colocando-se atrás dela.

— Meu tio, ele faleceu no mês passado.

— Sinto muito, senhorita Franklin.

Ela balançou a cabeça.

— Às vezes, a morte é melhor do que o sofrimento. Mas meu dever


era cuidar dele. Agora que acabou, meus pais estão vindo me levar embora.

— O homem não tinha ninguém para assegurar que a senhorita


recebesse o reconhecimento de ter ficado até a morte ao lado dele?

Ele não tinha conhecido o homem, mas imaginava que ele sabia que
precisava agir da melhor maneira, pelo menos em seu leito de morte.

Garantir que a única pessoa que restou no momento mais difícil da


sua vida teria amparo após sua partida. Era o esperado de uma pessoa com
caráter.

— Meu primo. Ele se ofereceu prontamente para se casar comigo,


mas, além de parecer errado, de uma maneira que me enoja, também não
gostaria de ser um fardo para ele.

Ronald assentiu. Entendia bem tal sentimento. Era um medo que


outrora já tinha sentido, quando não tinha um rumo na vida e não sabia o que
faria dela. Pensava que chegaria à velhice não sendo mais do que um peso
para toda família. E agora sentia medo do que tinha escolhido.

Gostava da Marinha e amava ser capitão. Era um feito ter chegado


nesse patamar sem usar a influência do sobrenome da família. Fizera mais
dinheiro do que imaginava e vivido aventuras inimagináveis, conseguindo
reconhecimento e riqueza.
O peso do dever em suas costas era demais, no entanto. Na última
missão em que fora enviado, na qual perdera seu companheiro, sabia que
aquela bala era para ele, e agora restara apenas a família daquele bom rapaz,
que sofria e chorava pela perda dele. E a culpa era dele.

Ronald falhara, não tinha garantido a segurança de seus homens, e


isso era a coisa mais importante.

Ele balançou a cabeça, espantando aqueles pensamentos.

— No entanto, há outras formas de garantir que a senhorita fique


bem, sem precisar ser vista como um fardo — comentou Ronald. — Um
trabalho, algo que a faça ser necessária aqui.

— Não posso o pedir isso, já fizeram muito por mim — respondeu


ela.

— Sinto dizer, mas a única coisa que vejo é que a senhorita que fez
tudo por eles — argumentou.

Poderia estar errado, mas Clarissa havia cuidado do homem pelo


tempo necessário, sem receber um pagamento por isso, nem mesmo roupas
decentes. Quem estava em dívida ali não era ela.

— Até migalhas parecem muito quando não se tem nada. — Havia


tristeza em suas palavras, mas não como se ela estivesse se vitimizando
perante o que haviam feito, parecia realmente agradecida.

— E o que seus pais planejam para o seu futuro? — perguntou,


experimentando o bolinho que se provou uma delícia.

Ela deu de ombros.

— Casamento arranjado, trabalho forçado… — começou, não


soando nenhum pouco surpresa. — Mas eles são bem criativos, não faltarão
ideias, lhe garanto.

Ele a encarou, procurando algo a mais que resignação.


— E por que não se casa? — contrapôs Ronald. — Quer dizer, de
verdade, assim conseguiria ficar livre deles.

— Só mudaria de senhorio — respondeu ela, juntando as mãos na


frente do corpo.

— É isso que considera ser o casamento?

Ela sorriu, sem graça.

— Por que tantas perguntas?

— Estou curioso.

A curiosidade de Ronald era o verdadeiro motivo para ter chegado


tão longe, coisa que as pessoas costumavam ignorar. Aquilo que não tinha
uma resposta óbvia martelava na mente dele até que ele conseguisse uma
que o deixasse satisfeito.

E, desde a noite anterior, a única coisa que aparecia em sua mente era
aquela mulher à sua frente.

— Casamentos são um risco — declarou, pegando mais um bolinho,


ainda de pé perto da mesa. — Não sou de correr riscos desnecessários.

Ele riu.

— Claro, melhor pegar um estranho e o fazer fingir ser o seu marido.

Clarissa também riu.

— Foi o que pensei — concordou ela, com ironia. — Vou tentar ficar
apresentável. — Ele olhou para ela, com os seus cabelos castanho-escuros
presos pela metade, caindo sobre a pele branca, seus olhos cor de avelã, e
pensou que ela já estava mais do que apresentável. — Ou pensarão que o
senhor não tem pulso firme.

— Estou vendo que tudo de errado aqui será culpa minha —


comentou ele.
— Exatamente.
Capítulo 5
Clarissa tinha avistado a carruagem assim que ela adentrou no
caminho em direção à casa do tio. Seu cabelo já estava preso em um coque
simples. Havia escolhido seu melhor vestido, um com gola alta, mangas
compridas, de uma cor desagradável de marrom.

A mãe sempre havia sido vaidosa, diferente do que ensinava para a


filha, dizendo que a vaidade era um pecado. A mulher adorava vestidos
novos, perfumes e sapatos, tinha uma infinidade deles em casa. Entretanto,
Clarissa era vestida pela mãe como se ela quisesse deixá-la invisível ao
mundo.

Clarissa ainda se perguntava se ela não tinha conseguido.

Mas, se não tinha desenvolvido gostos fúteis, também não sentia falta
disso já que nunca conseguiria convencer os pais de lhe comprar roupas das
quais ela gostasse. No fim das contas, o marrom não lhe caia tão mal.

Estava simples, como mãe gostava.

Perfeito, pelo menos na sua concepção, não havia uma única coisa
para que sua mãe pudesse criticar. Ela precisava estar preparada para
qualquer coisa, pois sempre era de se esperar que sua mãe encontrasse um
motivo novo para repreendê-la.

Clarissa virou no corredor, batendo à porta do quarto de hóspedes,


que foi prontamente aberta. Ao que parecia, ele também tinha avistado a
carruagem.

— Agora começaremos nossa encenação? — perguntou ele,


estendendo o braço para ela, que o ignorou e apenas se posicionou ao seu
lado.

— Devemos esperá-los em frente à casa — disse, passando as mãos


novamente pelos cabelos — ou dirão que não prestei atenção.

Ele assentiu, pegando a mão dela e colocando-a em seu braço.


— Pode respirar, querida, eles vão me amar.

— Eles não podem amá-lo. Se isso acontecer, esperarão por nós na


Páscoa e em todas as outras datas especiais do ano. Não espero mantê-lo
vivo até o ano que vem.

O senhor Denver levou a mão ao peito, dramatizando.

— Tenha mais compaixão ao falar com o futuro falecido.

Ela revirou os olhos, começando a descer as escadas na frente dele.

— Parece que o senhor não está levando isso tão a sério como eu
gostaria — admitiu ela, torcendo as mãos um na outra.

Ele parou e a encarou.

— Me importo o suficiente para continuar aqui — disse ele, levando


a mão ao bolo de cabelo em cima da cabeça dela — e gosto mais deles
soltos.

Ela semicerrou os olhos.

— Mulheres não devem ficar de cabelos soltos — respondeu ela,


afastando a mão dele —, isso faria a minha mãe ter um ataque de nervos.

— Olha só, aparentemente ela não se importa com sua felicidade,


mas se importa o bastante com os seus cabelos para ter um ataque.

Clarissa deu de ombros.

— Se eu compreendesse a minha mãe, não surtaria a cada olhar e


comentário enigmático feito por ela.

Começaram a descer novamente as escadas.

— Onde vamos morar? — perguntou ele.

Clarissa voltou-se para ele, surpresa.


— Como?

— Com certeza, eles vão questionar se pretendemos ficar aqui para


sempre.

— Claro, tem razão — respondeu ela, massageando as têmporas.

Ela ficou alarmada com todas as coisas que não havia planejado. Era
boa em mentir, havia passado a vida se aprimorando nisso, mas poucos
podiam enxergar além de suas mentiras como sua mãe. A mulher sabia lê-la
como ninguém.

E sabia que aquela história tinha furos demais para que ninguém
percebesse, caso não cuidasse disso, acabaria se afundando nela até não
conseguir mais escapar.

— Vamos nos mudar para sua casa em Kent.

Ele riu com a sugestão.

— Em Kent?

— Sim — declarou ela —, falam muito bem daquela região. Eu


gosto.

— E posso contar que sirvo à Marinha ou preciso…

— Pode, assim será mais fácil quando partir e não tivermos um corpo
para enterrar.

— Mas eu quero um enterro adequado — insistiu ele.

— Se eu o fizesse, teria que encontrar um grupo de atores para fingir


ser sua família…

— Ou poderia matar minha família também — ironizou ele,


inclinando-se em sua direção.
— Que tolo, não sabe que desconfiariam se eu saísse por aí, matando
todo mundo? — zombou ela enquanto voltava a descer as escadas.

— Mas não há problema em ficar viúva.

— Ser viúva é meu sonho de vida — declarou ela.

— Que declaração mais inusitada.

— E por que não seria? — Sem lhe dar tempo para abrir a boca, ela
emendou: — Se eu fosse viuvar, comandaria minha própria vida, sem pais,
sem marido. E com respeito.

— Já pensou que pode acabar casada com alguém que não desejaria
perder? — perguntou ele, já ao lado dela na calçada.

— Não.

— Então, pense na possibilidade. O casamento pode não ser uma


prisão ou algo que você cria apenas para se livrar de sua família, pode ser
realmente algo verdadeiro.

— Bem, isso não importa agora.

— Talvez, não agora — comentou ele, com certa melancolia na voz,


talvez amasse alguém, ao menos parecia acreditar fielmente que tal
sentimento existia —, mas um dia pode acordar desejando mais que tudo
envelhecer com alguém que ama.

— Como um senhor disse, quem sabe um dia — contrapôs ela —, e,


enquanto esse dia não chega, tenho preocupações maiores.

— Alguns diriam que é insensível.

— O senhor já me chamou de exageradamente sincera, agora de


insensível — comentou ela. — Dois termos que não me parecem ofensivos
ou problemáticos. Seria bem pior ser chamada de sonhadora.
— A senhorita criou um casamento falso, talvez também seja uma
sonhadora.

Ela fez uma careta para Ronald.

— Isso se chama praticidade — alegou ela.

— Ah, sim, porque é muito fácil conseguir um homem que aceite


ideias tão cheias de praticidade — respondeu ele, com desdém.

Ela inclinou o rosto para o lado, sorrindo.

— Acha que não? Eles vivem batendo à minha porta.

Ele pegou de novo a mão dela e a colocou em seu braço.

— Por que isso? — Ela rezava para ter pelo menos mais cinco
minutos antes que a carruagem chegasse até eles. — Já disse que eles não
precisam pensar que gosta de mim.

— Prefiro me portar como um bom marido, não fingirei o contrário


— respondeu ele, voltando seu olhar para ela. — Eles podem não desejar
que tenha um casamento por amor, mas talvez a senhorita tenha conseguido
um.

Clarissa desviou o olhar para longe, sem graça.

— Pode me chamar de Clarissa ou senhora, nada de senhorita.

Ele assentiu.

— Tenho que confessar que estou ansioso para conhecer as pessoas


que fazem a filha tremer.

Ela permaneceu calada.

Era difícil para os outros entenderem, sabia disso, especialmente


quando conheciam seus pais. Os dois não pareciam assustadores, eram, na
verdade, educados, gentis e muitas vezes transmitiam a sensação de
compreensão que as pessoas tanto desejavam.

Ao menos com quem tinha algo a oferecer a eles.

Mas não eram assim com Clarissa, embora gostaria que fossem,
desse modo não teria medo dos próprios pais. Desejava poder voltar para
casa. No entanto, não era uma possibilidade que ocupava sua mente, mesmo
que desejasse ardentemente isso. Ela sabia que a realidade não seria
agradável. Tinha consciência de que, quando encontrasse alguma alegria na
vida, seus pais tentariam sugar isso dela. Além disso, eles nunca entenderiam
suas vontades e, assim que tivessem uma oportunidade, a usariam para
conseguir qualquer coisa que desejassem. Não havia nada mais
insignificante para eles do que a vida dela.

— Eles não são exatamente um modelo de pais perfeitos —


respondeu ela.

Ronald abriu a porta da frente para ela, deixando-a passar primeiro.

Não conseguia mentir, não estava acostumada a ser tratada de uma


maneira tão cortês.

— E isso existe?

Ela olhou sobre o ombro para ele.

— Os seus não são?

Ele riu de forma enigmática.

— Eles não se saíram tão mal.

— O senhor veio parar aqui, em vez de estar com eles, deve ter
alguma coisa errada — comentou ela.

Queria saber mais sobre a vida do senhor Denver, não apenas por ter
que fingir que era a esposa dele, seria bom saber um pouco mais, além disso,
ele a fazia ficar curiosa.
— Meu pai faleceu — ele fez um gesto com a mão, impedindo que
ela falasse qualquer coisa — há muito tempo, já a minha mãe — ele encarou
os próprios pés antes de continuar —, ela é perfeita, eu que não sou.

— E ela exige muito de você?

Ele negou com um gesto de cabeça.

— Não, como a maioria das mães, ela me considera perfeito.

— Isso me parece a coisa certa para uma mãe dizer ao filho.

— Talvez… — Dava para notar que ele não se sentia à vontade


falando da família.

A carruagem agora passava pelos portões da casa, e a garganta de


Clarissa parecia ser fechar a cada segundo.

Ao ver seu pai descendo da carruagem e ajudando a mãe a descer,


Clarissa engoliu em seco. Oscar Franklin continuava o mesmo, alto, com
cabelos brancos e magro. Já Edith Franklin, transmitia a mesma sensação de
sempre para Clarissa, de estar presa em um labirinto com ela logo atrás.
Forçou um sorriso, movimentando os músculos do rosto, para melhor ou
pior.

— Bem-vindos, senhor Oscar e senhora Edith. Espero que a viagem


tenha sido tranquila… — cumprimentou os pais, fazendo uma mesura.

Sentiu o olhar de Ronald sobre ela. Era estranho chamar os pais pelo
nome, mas ambos preferiam assim, já era um milagre não ser obrigada a
chamá-los pelo sobrenome.

Eles a encararam de cima a baixo, depois voltaram o olhar para o


homem logo atrás dela, de quem ela tinha conseguido se desvencilhar logo
que a carruagem parou.

— Devo supor que este seja seu marido — a mãe sempre era a
primeira a falar.
Clarissa se voltou para trás, vendo Ronald sorrir gentilmente, como
se pudesse conquistar aqueles dois, quando a única coisa que Clarissa podia
pedir era que eles não descobrissem a farsa.

Os pais gostariam de seu marido se ele pudesse lhes dar uma vida de
luxo, e não ele sendo um simples marinheiro.

— Senhor e senhora Franklin, é uma honra conhecê-los — declarou


ele, pegando a mão da mãe e levando-a até os lábios, em seguida apertou
firmemente a mão do pai.

— O senhor teve essa oportunidade — declarou a senhora Franklin,


voltando-se para ele com um leque na mão — caso tivesse seguido as regras
e viesse até nós para pedir a mão da nossa filha, em vez de simplesmente
casar-se com ela sem falar com ninguém, como se ela fosse uma órfã.

Clarissa engoliu em seco. Tudo bem, ela tinha dado roupas para ele,
boas por sinal, mesmo assim, isso talvez não fosse suficiente para fazê-lo
aguentar aquilo. Ela com certeza não aguentaria. Até mesmo correr nua
pelos campos seria melhor do que encarar Edith Franklin quando estava
determinada a não gostar de alguém.

— Mamãe…

— Não falei com você, Clarissa — advertiu ela, lançando um olhar


ríspido para a filha. — Quando o fizer, saberá, assim como sabe que se
intrometer na conversa alheia é falta de educação.

Odiava ser repreendida daquele jeito, a mãe falando de coisas que a


envolvia como se ela não tivesse nada a ver com o assunto, como se ela nem
estivesse presente e todos pudessem decidir.

Era estranho como se podia esquecer facilmente uma coisa era


horrível quando se passava tanto tempo distante, e então, com um único m
comentário ela voltava a ser uma menininha sentindo raiva de si mesmo e do
mundo pela forma que era tratada.
— Desculpe, senhora — adiantou-se Ronald, com os braços para trás
—, mas, sabe como é, na Marinha não podemos ficar à toa na vida,
precisamos correr atrás do tempo que perdemos em mar.

— Um marinheiro? — A mãe se voltou para Clarissa. — Na carta,


contou que ele era um administrador, são coisas bem diferentes.

— Isso porque ela sabia que não permitiríamos tal loucura — ralhou
o pai, que somente abria a boca para concordar com a esposa.

Ou era isso, ou o silêncio.

Clarissa levou a mão ao estômago, sentindo-o se revirar.

— Por favor, apenas tentem conhecer meu esposo primeiro.

— Como se tivéssemos escolha! — comentou a mãe, olhando para


Ronald, que estava com as mãos no bolso, totalmente despreocupado com o
que estavam dizendo dele. — Você se casou, fez dele um de nós, um
Franklin.

— Na verdade — ressaltou Ronald, erguendo o indicador —, fiz dela


uma Denver. Clarissa é minha esposa agora, por este motivo —
aproximando-se de Clarissa, ele colocou a mão na base das suas costas,
deixando-a em choque —, que tal deixarmos essas questões para trás a fim
de passarmos um dia agradável em família?

Edith estreitou o olhar para Ronald.

— O senhor fala muito para quem ainda está morando na casa de


outro homem, de favor, com a esposa.

— Por favor, mamãe…

A mãe lhe lançou um olhar, o que foi suficiente para que Clarissa
fechasse a boca.

Ela sentiu o peso da mão do senhor Denver se intensificar em suas


costas.
— Não ficaremos aqui por muito tempo, senhora Franklin. Mas,
como sabe, Clarissa não partiria antes que tudo estivesse resolvido.

A mãe não sabia disso, não sabia nada do que a filha fazia de bom.

Clarissa não tinha opinião, voz, muito menos vontades.

Isso foi deixado claro desde seu nascimento, como se realmente fosse
a maneira certa de se viver. O pior era que ela acreditava naquilo. Se não
houvesse sido mandada para longe deles, não teria percebido que havia
outras formas de levar a vida.

A rotina com o tio não era um mar de rosas, mas, comparada a que
ela tinha na antiga casa, era um sonho.

Não se importava de ter que trabalhar duro, faria aquilo por quantos
anos fossem necessários, mas gostava de poder ter opinião, de se sentar em
uma poltrona e, por uns dez minutos, não ter alguém lhe chamando de
egoísta e dizendo que se importava apenas com seu próprio descanso,
quando isso nem mesmo era verdade.

Quer dizer, ela não tinha tempo para ser egoísta.

— E, por Deus, vão morar onde? — perguntou Edith, que ainda nem
tinha entrado na casa e já conseguia ser desagradável.

— Espero que em uma casa, senhora — respondeu Ronald. Clarissa


notou certa impaciência na voz dele, entretanto, no seu rosto, não tinha nada
além de gentileza.

Clarissa não precisava ensiná-lo a mentir, era bom demais nisso para
precisar de ajuda. E, por algum motivo, isso a deixava aflita, ele poderia ter
uma boa aparência, mas não queria dizer que era uma boa pessoa.

— É um marinheiro…

— Também moramos em uma casa quando atracamos, senhora


Franklin, não vivemos o tempo todo protegendo o país pelos mares —
explicou ele, dando um sorriso.

Os pais não se importavam com o país, claro que não deixavam


ninguém notar isso, assim como não permitiam que descobrissem a maioria
das suas falcatruas.

Por isso, se homens morriam ou deixavam de morrer, não era um


problema de seus pais, desde que isso não afetasse a boa vida deles.

Se Ronald estava procurando algum tipo de empatia da parte deles,


poderia desistir, pois não havia nada ali além de puro egocentrismo.

A senhora Franklin ergueu as sobrancelhas.

— E onde fica essa casa?

— Em Kent — disse ele, olhando para Clarissa dessa vez, ela sabia
disso, mas manteve o olhar na mãe, não se sentia tão confortável com a
mentira naquele momento —, um lugar encantador, creio que sua filha vá
adorar.

— Terá que adorar mesmo, já que não é mais uma escolha voltar para
a minha casa.

Um pequeno sorriso escapou dos lábios de Clarissa.

A mãe amava enfatizar que a casa em que moravam era dela, assim
como suas roupas, o teto sob sua cabeça. Tudo, cada coisa que fizesse a filha
ter um sentimento de impotência, até mesmo Clarissa era tratada como um
pertence, uma coisa qualquer que eles poderiam usar como bem
entendessem.

— Ah, creio que isso nem passe pela cabeça dela — salientou ele. —
Agora, se quiserem entrar, ficaremos encantados em recebê-los.

A mãe revirou os olhos, daquela maneira que fazia quando desejava


ignorar o que a pessoa estava dizendo, e se voltou para Clarissa.

— Mande o criado pegar as nossas bagagens.


— Bagagens?! — repetiu Clarissa, tão assustada que sua voz saiu
estridente.

A mãe franziu o cenho.

— Sim, bagagens, por acaso está ficando surda, criatura?

Ela engoliu em seco.

— Pensei que estavam de passagem — disse Clarissa, sem parecer


ansiosa demais para jogar os dois dentro daquela carruagem e os mandar
embora.

— Mudamos de ideia! — declarou a mãe, já começando a se


direcionar para a porta de entrada. — Vamos aproveitar que aquele velho
não estar mais entre nós e fazer valer nossos direitos. Ele nunca foi capaz
nem de nos oferecer água fresca.

E o tio que estava errado? Ele poderia ter os mesmos genes de Oscar
Franklin, mas sabia pôr aquela mulher no seu devido lugar, e, na maior parte
das vezes, com sua indelicadeza, o tio falava tudo o que Clarissa um dia já
quis falar.

— Mas…

A mãe se voltou para trás.

— Mas nada.

Ela foi seguida pelo esposo. Não tardou para Clarissa ouvir a porta
da casa bater, porque eles não esperariam por nenhum dos dois.

Clarissa levou a mão ao rosto, sentindo vontade de gritar, de entrar


dentro da carruagem e partir o mais rápido possível para o canto da Terra
mais distante de seus pais.

Aquilo só poderia ser uma piada de extremo mau gosto.


— Por Deus! Estou vivendo um pesadelo.

— Sorria, querida — disse o senhor Denver ao se colocar na frente


dela.

Clarissa levantou o rosto para ele.

Por acaso ele não acabou de ouvir aquela mulher? Ela ficaria ali e
acabaria com qualquer chance de felicidade.

Não conseguiria sorrir nem que um unicórnio surgisse na sua frente,


realizando seu maior sonho de infância e a levando embora para um mundo
onde toda comida seria cor-de-rosa.

— O quê? — perguntou ela, querendo fortemente xingá-lo.

— Eles estão na janela.

Clarissa virou o rosto em direção à janela a tempo de ver a mãe


bisbilhotando.

É óbvio que, a partir daquele momento, seria assim o tempo todo, os


olhos dela estariam em cima da filha, como se não houvesse brecha para
deslizes.

— Agora nós vamos entrar, sorrir e fingir que somos o casal mais
perfeito — começou Ronald.

— O meu plano não vai funcionar.

Ele tocou o rosto dela com delicadeza. Por um segundo quase


recuou, mas ela não podia fazer isso, não com os olhos daqueles dois em
cima dela.

— Terá que funcionar, seremos o casal que eles mais odiarão.

— Mas…

— Não temos outra opção — acrescentou.


— Eu não tenho, mas o senhor pode se retirar daqui quando decidir.

Ronald se inclinou, chegando ainda mais perto do rosto dela ao dizer:

— Nunca a abandonaria com eles.

Clarissa assentiu e, por um instante, pensou que nunca tinha sentido


tanta gratidão por uma pessoa.
Capítulo 6
Ronald concluiu que não gostava dos sogros.

Ficou claro quando pôs os olhos neles, estava nítido que não eram
pessoas em que o convívio lhe acrescentaria coisas boas. Clarissa tinha
razão.

Já tinha visto pais que não mereciam tal título, não era algo raro no
mundo; às vezes ignoravam os filhos, os maltratavam, os diminuíam, ou
arrumavam outras formas de desprezo que poderiam fazer um filho desejar
ficar cada vez mais longe dos pais.

Mas a verdade era que Clarissa desaparecia com eles por perto.
Embora a conhecesse havia menos de um dia, já percebia que ela não se
deixava abalar fácil com as ofensas, sobretudo vindas da mãe. No entanto,
naquele momento, ao observá-la com a postura ereta, movendo o garfo em
direção à boca lentamente, como se não pudesse cometer um mísero erro na
maneira de segurá-lo, Ronald percebeu que algo estava muito errado ali.

Quem forçava uma pessoa a esconder simplesmente tudo o que era


ela? As coisas boas, as partes engraçadas e aquelas que as pessoas deveriam
amar?

Ele contemplava Clarissa e não conseguia reconhecer, não conseguia


visualizar a mesma mulher que, na noite anterior, apontava uma pistola para
sua cabeça. Nem mesmo podia conceber a moça que lançava piadas em sua
direção, sem demonstrar o mínimo de constrangimento em relação ao que
dizia.

Desde que se sentou à mesa, Ronald vinha repetindo que aquilo não
era um problema seu.

— Peça para que mudem nossos baús de quarto — declarou a


senhora Franklin, que naquele momento se enquadrava como a voz mais
irritante do mundo, na visão de Ronald.
Clarissa abaixou o garfo, olhando de canto para mãe, sem coragem
para encará-la. Ronald tinha certeza de que ela nem mesmo sabia o formato
dos olhos da mulher.

— Mas vocês ficarão mais confortáveis no melhor quarto da casa,


mamãe — declarou ela.

A mulher lhe lançou um olhar com a testa franzida.

— Já falei para me chamar de senhora Franklin. — A repreenda fez


a filha se encolher mais um pouco na cadeira. — Pelo que sei, o melhor
quarto desta casa é o do falecido, mas minhas bagagens não estão lá.

— Mas o quarto não…

— Pretendo ficar naquele quarto — declarou a mãe.

— A senhora não pode…

— Sua mãe tem todo o direito de ficar naquele quarto — declarou o


senhor Oscar, que mais parecia uma estátua, pois sua presença não fazia
muita diferença ali.

Clarissa abriu a boca para se pronunciar e desistiu em seguida.

— A senhora não pode ficar naquele quarto, sentimos muito —


interveio Ronald, cortando um pedaço de carne lentamente.

— E por quê? — indagou ela.

Ronald levantou o olhar.

— Estamos nele.

— Como? — Edith se dirigiu à filha em vez de encará-lo.

— Como Clarissa é a responsável pela casa, achamos que seria mais


apropriado ficarmos nele depois do casamento — declarou Ronald, adorando
provocar aquela mulher, na verdade, faria aquilo inúmeras vezes.
— Mas isso é inaceitável — comentou o senhor Franklin.

— E por que seria? — indagou ele.

— O quarto e a casa pertenciam ao meu irmão.

— Até onde entendi, o filho do dono desta casa deixou Clarissa


como responsável até o retorno dele, isso quer dizer que ela pode tomar as
decisões que julgar necessárias, sem pedir autorização a ninguém —
respondeu ele.

Quando olhou para Clarissa, ela estava branca, mas tão branca que
tinha certeza de que, se tocasse nela, a deixaria com um hematoma.

— Bem, então seremos obrigados a ficar em um quarto menor —


contentou-se a mãe, nada feliz com isso.

A partir daquele momento, a diversão de Ronald passou a ser esta:


fazer a vida da sogra a mais infeliz possível.

— E por quanto tempo pretendem ficar? — indagou Clarissa. — Até


amanhã à tarde? Seria bom saber para poder organizar as demandas da casa.

Dava para ver, sem muito esforço, que Clarissa queria pegar uma
vassoura e enxotar os dois dali o mais rápido possível.

Agora ela teria ajuda.

Naquele momento, havia começado a entender tudo o que Clarissa


vinha dizendo deles, cada piada, cada comentário maldoso fazia mais sentido
quando olhava para aqueles dois à sua frente.

— Ainda não decidimos, por uma semana, talvez mais.

— Uma semana? — perguntaram Ronald e Clarissa em uníssono.

— Sim — declarou a mulher, sem se abalar com a reação de ambos.


Sabia que não era bem-vinda, mas não se importava nem um pouco com
isso.

— Mas e os compromissos do papai? — insistiu Clarissa.

Desde pequena, ela aprendeu que a escolha de profissão do pai não


fora à toa. Qual era a maneira mais fácil de tirar dinheiro de pessoas
desesperadas, em busca de um milagre ou salvação?

Por isso, durante três meses do ano, eles se encaminhavam para


lugares que sofriam com a pobreza, de pouco acesso a cuidados médicos, a
fim de arrancar dinheiro daqueles menos esclarecidos, abusando de sua fé.

Eles não costumavam renunciar a isso caso não houvesse um motivo


ainda melhor.

— Eles podem esperar — declarou a mulher —, além do mais,


quando teremos tempo para visitá-la de novo agora que se mudará para
Kent?

Caso Ronald fosse ainda aquele jovem desmiolado, teria pegado


Clarissa, a colocado em uma carruagem alugada com destino a Kent. Porque,
se lá era o lugar onde não poderiam incomodá-la, então seria essa a morada
perfeita.

— Se essa é a preocupação da senhora, dou minha palavra de que os


visitaremos em breve — declarou Ronald, sorrindo.

Mesmo que fosse casado de verdade com a filha daquela mulher, ela
poderia esperar sentada pela visita deles. Ronald só a encontraria uma vez a
cada década, para uma passagem curta de um dia, e olhe lá.

Como alguém poderia aguentar mais que isso sem enlouquecer por
completo? Ele com certeza não era essa pessoa.

— Não entendo essa preocupação com nossos compromissos —


disse Edith, se voltando para a filha. — Por acaso está incomodada com
nossa presença?
Clarissa engoliu em seco, e seu olhar ficou ainda mais temeroso,
como se soubesse que a mãe poderia desconfiar de algo.

Ronald olhou para seu prato, depois para Clarissa outra vez, que
continuava sem reação.

— Claro que não…

— Espero que não, sabe que essa casa deveria ser do seu pai.

Clarissa fechou as mãos em punho sobre a mesa e respirou fundo.

Ronald se levantou de supetão, percebendo a necessidade imediata de


afastar a senhorita Franklin dali, fosse lá o que ela estava prestes a dizer,
uma discussão não os ajudaria em nada.

Ainda que ela não tivesse coragem de enfrentar a mãe, ele também
precisava arejar a cabeça, precisava colocar alguns cômodos entre eles e
aquelas pessoas, mesmo que para isso precisasse agir de maneira mal-
educada.

Embora Clarissa tivesse deixado claro que a única coisa que ele
precisava fazer era fingir ser um péssimo marido, ele inverteria os papéis e
fingiria que tinha entendido de outra forma.

— Clarissa, minha querida, pode me acompanhar até a despensa,


quero pegar um licor para comemoramos a chegada dos seus pais — pediu
ele, a encarando diretamente.

— Oh, por favor, peça a algum criado. — Ele olhou para senhora
Franklin, que pelo visto não gostava de ficar com a matraca fechada.

— Eu adoraria ajudá-lo.

— Mas os criados estão aqui para isso, se fizer todo o trabalho, o que
resta para eles?

Ronald tinha uma lista de respostas para ela, mas considerava que
todas passariam do ponto, mesmo que a pergunta da mulher fosse para lá de
desnecessária e tola.

Clarissa se colocou de pé, se desculpando com os pais, e seguiu


Ronald, que já estava saindo da sala de jantar.

Assim que chegaram ao corredor, Clarissa indagou:

— Para onde estamos indo mesmo?

— Para a despensa.

Ela ergueu as sobrancelhas.

— Direção errada.

Ele olhou bem na direção da sala de jantar, onde permaneciam os


pais dela.

— Eles sabem disso?

— Não.

— Então não precisamos nos preocupar.

— Bem, ao voltamos sem o licor, acharão a atitude bastante curiosa.

Ronald passou as mãos pelo cabelo, inquieto.

— Eles querem ficar por uma semana! — exclamou ele, levantando


as mãos para o alto.

Mas isso não demonstrava nem um terço de sua insatisfação com a


situação.

Sabia que tinha ido contra a ideia da moça, mas, depois de passar dez
minutos na sala com aquelas pessoas, poderia compreender qualquer tipo de
atitude dela para se livrar deles.

Clarissa deu um sorriso, um daqueles vindo de pessoas acostumadas


com a vida lhes dando rasteiras.
— Eles mudam de ideia toda hora, conheço esses dois.

— E o que vamos fazer?

Ela deu de ombros.

— O senhor cumpriu com o prometido — disse ela —, agora creio


que terei que encarar a realidade e aceitar meu futuro.

Ronald franziu o cenho.

— O que quer dizer? — perguntou ele, pensando que ela não poderia
desistir, mesmo compreendendo que era a única saída. — Pretende contar a
verdade para os dois?

— Não tenho escolha, senhor.

— É claro que tem, os enfrente — disse Ronald apontando em


direção a eles.

Ela riu.

— Os enfrentar? — indagou ela, sorrindo. — Os meus pais?

— É claro.

— Eles são responsáveis por mim, acha que, se eles decidirem me


amarrar e me jogar em um poço, alguém se colocaria na frente deles?

— Mas é claro.

— Claro que não, são meus pais, e tem mais, sou uma mulher, até
que eu realmente me case, estou na mão deles.

Ronald fechou os punhos.

Mais uma vez ela tinha razão, Ronald tinha enfrentado a família dele,
mas tinha dinheiro, era homem e sabia que eles não fariam nada além de
ignorar suas cartas por anos, exatamente o que Tobias, seu irmão mais velho,
vinha fazendo desde que se alistou na Marinha Real.

Ronald sabia que essa não seria a reação daqueles dois, não quando
Clarissa podia trazer alguma vantagem financeira para eles.

Sem dúvida, ela podia ser uma moeda de troca vantajosa, era uma
moça bonita, solteira, poderia ser empurrada para qualquer velhote disposto
a lhes dar mais dinheiro.

— Melhor voltarmos, e, assim que terminar esse jantar, o senhor


pode ir embora. Agradeço a preocupação, mas nem eu e nem o senhor temos
o poder de fazer muita coisa.

Ela falou já se dirigindo à sala.

— Eu posso fazer algo. — Ronald a pegou pelo braço, fazendo-a se


voltar para ele. — Sou o seu marido.

Ela franziu o cenho.

Ronald podia estar ficando louco, mas não tinha muita coisa para
fazer naquele tempo que ficaria em terra firme, então, se ajudasse Clarissa a
enfrentar aqueles dois, parecia bem mais honrável do que sair apostando e
bebendo até cair.

Não se sentia pronto para reencontrar sua família, tinha muitas coisas
mal resolvidas, e, com a morte de Anny há alguns anos, tudo seria ainda
mais terrível.

Ele os evitaria até criar coragem para viajar para Londres.

— O senhor…

— Não tenho absolutamente nada a perder com isso.

— E nada a ganhar — completou ela, soltando uma risada. Ele


assentiu com um sorriso irônico.
— Mas a senhorita tem muito a perder — lembrou ele, inclinando a
cabeça para o lado, analisando-a de cima a baixo. — E não é alguém que se
possa descartar facilmente.

Ela estreitou os olhos para tentar conter o riso.

— Que coisa terrivelmente cruel de se dizer — comentou ela entre


risadas.

— Por quê? Não seria uma tragédia estar “preso” a uma dama como
a senhorita pelas próximas semanas.

— Senhora — corrigiu ela, ainda rindo —, foque na mentira.

— Isso significa que aceita a minha ajuda?

— Mais do que isso, eu preciso dela — declarou Clarissa, tentando


se recompor —, mas não pense que será uma tarefa fácil.

— De fato, pois terei que conviver com sua família — afirmou ele
—, e, acredite, não achei mesmo que seria moleza.

Ela sorriu, parecendo mais calma.

— Agora o senhor me compreende — disse Clarissa, e Ronald tinha


a impressão de que ela estava prestes a dar pulinhos de alegria.

— Acredite, já conheci muitas pessoas, e nunca encontrei alguém tão


desagradável como sua mãe.

O rosto de Clarissa exprimia confusão. Pensou que havia passado do


ponto naquele momento, mas logo sua expressão sorridente voltou, embora
ainda não lembrasse a moça que encontrou na noite passada.

Estava tensa, como se carregasse mais coisas do que o permitia ver


em suas costas, e talvez, se ela compartilhasse com ele, Ronald teria alguma
ajuda para dar.
Eram situações diferentes, mas ele sabia como era não ser aceito na
família por desejar seguir um caminho diferente. Acreditava ser esse o caso
de Clarissa, além dos vários problemas com a mãe abusiva.

— Que sorte a minha ter nascido em uma família tão terrível! —


zombou ela, com resiliência. — Agora deveríamos mesmo voltar, senão vão
estranhar nossa demora.

Ronald deu de ombro ao se apoiar na parede.

— Deixem que pensem o que quiser.

Ela juntou as mãos na frente do corpo.

— Eles ainda serão minha família.

Ele se empertigou.

— Eu não quis…

— Não quero dizer que está errado, cada coisa que o senhor falou
não é nada comparado ao que penso, por outro lado, mesmo que eles
acreditem em nós e me deixem em paz, não há como removê-los da minha
vida — declarou Clarissa, com tristeza no olhar.

Não precisava ser um gênio para notar que essa a visão de mundo de
Clarissa.

Teve um teto sobre a cabeça enquanto crescia, mas não teve amor,
teve comida na mesa, mas nada além disso para ser grata. Os pais deram o
necessário para mantê-la viva, mas nada que pudesse deixá-la feliz, ou que a
fizesse pensar que era algo além de um peso morto.

Eles a faziam infeliz. Se odiava porque não conseguia fazer o


bastante para que eles se sentissem gratos por terem ela com filha.

Às vezes, ela também sentia raiva e indignação, mas a tristeza


sempre estava ali, aguardando para dar as caras.
— Se tudo sair conforme o planejado, não há motivo para mantê-los
em sua vida. — Ronald apontou para sala. — Não precisa aguentar a
presença deles apenas porque são seus pais.

— Eles são a única família que tenho. Não tenho irmãos, tios, primos
ou qualquer ente próximo. Sabe como é solitário imaginar um mundo onde
não há ninguém em quem se apoiar? — queixou-se Clarissa, engolindo sem
seco.

Ronald com certeza não sabia o que era solidão. Poderia não querer
contanto com a família desde que havia atracado, mas sabia que, assim que
os Heltons soubessem que ele estava na Inglaterra, inventariam dezenas de
eventos e outras atividades para desfrutar do tempo juntos.

Nunca esteve sozinho. Tinha convicção de que, mesmo que usasse


todas as suas artimanhas para manter a família distante, jamais conseguiria
se desapegar deles.

Os Heltons não desistiam uns dos outros, mesmo quando um deles


dava um bom motivo para isso. Eles permaneciam lá, às vezes mais
contidos; outras, mais próximos, mas sempre lá.

O que tinha visto naquele dia não era uma família. Poderiam ser os
pais dela, e biologicamente ela nunca poderia mudar nada, ou negar, mas
aquilo não era uma família. No caso de Clarissa, era melhor estar sozinha.

Era a ideia que ele tinha em mente. Talvez Clarissa até soubesse que
essa era a opinião dele, mesmo assim, no fundo do seu coração, Ronald não
poderia expressar aquelas palavras, porque não queria correr o risco de
magoar ela.

— Às vezes, a solidão é mais acolhedora do que a convivência com


aqueles que não te compreendem, ou pior, que nem sequer te respeitam.

Quando Clarissa suspirou, Ronald jurou que o aperto no seu peito era
única e exclusivamente por ter aprendido, desde muito cedo, a ter empatia
pelo próximo, que não estava se importando demais, que aquilo não o
afetava mais do que a maioria das coisas no dia a dia.
Com certeza, aquela vontade de aninhá-la em seus braços surgiu só
porque gostava de abraços.

Não poderia naquele momento começar a se importar com Clarissa,


afinal, voltaria em breve para o mar, aquela era sua vida, precisava estar lá, e
isso complicaria muito se ele começasse a carregar o medo dela.

Por isso, e apenas por isso, Ronald ajudaria Clarissa a se ver livre
deles e depois seguiria seu caminho.

— Ela me assusta.

Ele engoliu em seco.

Encarava aquela moça e pensava em todas as vezes em que sentiu


medo do pai, que quis fazer as irmãs ficarem pequenas demais até que ele
não conseguisse as enxergar, as protegendo de tudo de ruim que aquele
homem poderia fazer.

Porém, ao olhar para Clarissa, sentiu algo diferente, uma vontade de


fazê-la forte o suficiente para enfrentar seus próprios medos. Queria que ela
não passasse mais seu tempo planejando a próxima mentira para manter
aquelas pessoas longe, porque não precisaria mais mentir.

— No que depender de mim, ela nunca mais lhe causará medo —


garantiu ele, sentindo que, mesmo que precisasse mover montanhas, daria
um jeito de cumprir com sua palavra. — E poderá ter a vida que merece.

O olhar carinhoso que Clarissa lhe lançou fez seu coração acelerar, e
ele sentiu-se vulnerável diante de tamanha intensidade.

— Por que faria algo por quem nem conhece?

— Eu a conheço o suficiente para saber que é alguém que passou a


vida cuidando dos outros. Acredito que alguém precisa retribuir esse favor.

Clarissa abaixou os olhos, mas ele sabia que estava sorrindo.


— Estou feliz por ter atendido o senhor naquela porta — confessou
ela, a gratidão evidente em suas palavras.

Ronald sorriu.

— Quer dizer que não considera mais uma decisão terrível eu ter
apostado minhas roupas?

— Ainda considero tal decisão terrível, mas agora estou feliz por tê-
la feito.

Ele concordou com um menear de cabeça.

— Também comecei a me sentir feliz por ela.

O trabalho lhe deu a oportunidade de conhecer lugares e pessoas que


nunca conheceria se houvesse aceitado a vida que Tobias queria para ele. E,
mesmo com toda a tristeza e dor que sentia por seus companheiros, não se
arrependia.

Conhecer Clarissa naquela noite tinha sido uma curva errada em sua
vida, como estar perdido no mar, sem bússola, sem rumo certo, e de repente
encontrar algo melhor do que procurava.

Quando tudo acabasse, partiria dali para sua próxima aventura,


conheceria pessoas novas e esqueceria algumas do passado, mas, mesmo
com o passar do tempo, mesmo a conhecendo há tão pouco tempo, tinha
certeza que não a esqueceria.

— Não temos licor, apenas cidra — declarou ele, estendendo o braço


para ela.
Capítulo 7
Ela respirou fundo antes de girar a maçaneta do quarto.

Agora, além de abrigar um desconhecido, também estava prestes a


dormir com ele no mesmo quarto, uma pessoa que poderia andar com uma
faca para separar a cabeça do corpo dela. Ela nem apresentaria resistência,
estaria dormindo, não veria nada antes de ser tarde demais.

Tudo bem, não achava mesmo que ele fosse fazer isso, não tinha
demorado muito para que Ronald ganhasse sua confiança, e menos ainda
para conseguir seu afeto.

Porém, não sabia quem ele realmente era, além de ser um homem
extremamente encantador, com aqueles cabelos pretos cheios e olhos que
mais pareciam o mar, o que dificultava e muito sua tarefa de dormir no
mesmo quarto que ele.

— Ainda acho essa ideia terrível — declarou o senhor Walker, o


mordomo. — Ele pode acabar desrespeitando a senhorita.

Ela se voltou para ele, tentando passar extrema confiança em suas


atitudes.

— O senhor Denver nem chegou a encostar a mão em mim, isso eu


garanto.

O mordomo cruzou os braços.

— Não precisa ter acontecido nada para que sua reputação seja
manchada, senhorita Franklin.

— E qual seria meu castigo? Nunca arrumar um marido? —


perguntou ela, mesmo não desejando uma resposta. — Porque, se for o caso,
lhe garanto que não quero um.

— As fofocas às vezes têm um peso maior do que imaginamos em


nossas vidas.
— E o que eu poderia fazer? Conhece meus pais, sabe quais são os
planos deles para mim assim que meu tio morresse. E adivinha? Ele morreu.

Os pais a casariam com quem oferecesse mais, não importava a


índole, não importava se era um velho ou uma criança que ainda usava
faldas, ela seria atirada aos leões e sua vida teria acabado, não haveria
conversa ou negociação.

Criar fantasias, histórias e tudo o que pudesse fazer para se afastar


dos planos dos pais era muito melhor do que acabar na mão de alguém
parecido com a mãe.

— E prefere ser obrigada a dividir o quarto com um homem que mais


parece um assassino?

Clarissa franziu o cenho.

— Assassinos são sempre bonitos daquele jeito? — perguntou ela.

— O homem não me passa confiança… — O senhor Walker se


conteve assim que a porta foi aberta por ninguém mais, ninguém menos que
Ronald, com um sorriso nos lábios.

— Que coisa horrível para se dizer sobre mim, senhor Walker!

— Não retiro nada do que disse — declarou o mordomo.

Ronald se voltou para Clarissa, dando-lhe um sorrisinho.

— Então a senhorita me acha bonito? — gabou-se enquanto ela


revirava os olhos.

— O senhor me parece bastante carente — comentou ela, vendo-o


apoiar o ombro no portal da porta.

— Apesar disso, a senhorita ainda me acha bonito.

O mordomo o olhou da cabeça aos pés.


— Só pode estar ficando maluca — declarou o homem, sumindo pelo
corredor.

Ronald se voltou para ela.

— Como foi o restante do tempo com seus pais? — perguntou ele.

Depois do jantar, Ronald se retirou enquanto Clarissa tinha sido


obrigada a entreter os dois.

— Passaram o tempo todo perguntando o que havia de errado


comigo para logo depois tirarem as próprias conclusões — disse ela,
sorrindo. — E, em alguns momentos, queriam saber do senhor, o que tinha
de tão importante para sumir logo após o jantar.

O homem já estava mostrando toda a sua bondade ao participar do


plano dela, então tinha todo o direito de sair dali quando desejasse sem lhe
dar satisfação.

Contudo, passar aquele tempo com os pais em seu pé, perguntando


para onde o marido tinha ido, a fazia esquecer que não eram realmente
casados. Queria obrigar Ronald a voltar para casa e suportar aquele fardo
com ela.

— E o que disse?

— Que o senhor é meu marido, que não me deve satisfação.

Ele estreitou os olhos.

— Não é exatamente por este motivo que devo uma explicação para
a senhorita?

— Não.

— Não?! — repetiu ele, intrigado.


— O senhor não me deve nada, diferentemente de mim, que lhe devo
tudo.

Ele franziu o cenho.

— Esse arranjo não me parece muito justo com a senhorita.

Ele parecia preocupado com a aparente desigualdade.

— E não é — disse ela, dando de ombros —, mas o que posso fazer?


As circunstâncias são essas.

— Você pode fazer muita coisa, quer dizer, sou seu esposo, imponha-
se!

Ela ergueu a sobrancelha em resposta, demonstrando surpresa e um


toque de desafio.

— O senhor sabe como um casamento funciona? — indagou ela,


trazendo uma pitada de sarcasmo para a pergunta.

Como ele podia ser um homem da Marinha Real e, ao mesmo tempo,


tolerar que uma mulher pudesse confrontar o marido?

Para alguns homens, aquilo era inaceitável. Se fosse um casamento


real, a primeira coisa que ela sentiria ao seguir aquele conselho
provavelmente seria a mão dele em seu rosto.

As pessoas discordavam da ideia de que o casamento era feito em


termos igualitários, o homem possuía o poder, e a mulher, bem, essa ficava
com o peso de ter nascido sem autonomia.

— Acho que devemos mudar as regras.

— Sabe como funciona o mundo?

— Eu sei que… — Ronald começou a falar, mas foi interrompido


por Clarissa.
— Que uma mulher não tem voz, pelo menos não em assuntos
relevantes. Ou acredita que, se o que penso tivesse importância, eu estaria
aqui, obrigada a compartilhar um quarto com um desconhecido? — ela
provocou ele, deixando uma pausa carregada de sarcasmo.

Ronald manteve a compostura, mas seus olhos faiscavam de


indignação. Ele respirou fundo antes de responder:

— Posso dormir em outro lugar, Clarissa. — Ela sentiu um arrepio


ao ouvir seu nome saindo dos lábios dele.

— Não, não pode — afirmou ela, suspirando. — Não se queremos


que meus pais acreditem em nós.

— Por que a senhorita não rebate quando seus pais falam coisas
horríveis sobre você? Por que não se defende pelo menos? — insistiu
Ronald.

Clarissa respirou fundo, sentindo uma mistura de emoções, mas não


hesitou em responder:

— A única coisa que isso vai me trazer é um longo sermão sobre


como vou queimar no inferno.

— E você tem medo de fogo? — provocou Ronald, arqueando uma


sobrancelha.

— Não, mas não quero ser enviada para o inferno antes da hora.

Ronald riu, jogando a cabeça para trás antes de voltar a encará-la


com intensidade.

— Tenho certeza de que, se falasse com eles como fala comigo,


acabaria com aqueles dois em um estalar de dedos.

Clarissa franziu as sobrancelhas, mas um leve sorriso surgiu em seus


lábios, indicando que as palavras dele tinham tocado nela de alguma forma.

— O senhor estava mesmo lá fora quando eles chegaram?


A expressão de Ronald mudou por um segundo, antes de ele a
agarrar pelo braço, impedindo-a de ter alguma reação, e a puxar para junto
de seu corpo.

Jurou que, naquele momento, teria o pescoço cortado, mas o homem


apenas começou a falar um monte de abobrinhas sobre o mar. Clarissa não
conseguia acompanhar, se encontrava muito ocupada tentando organizar os
próprios pensamentos.

O seu corpo estava grudado no dele por um abraço, conseguia sentir


os lábios dele a centímetro de sua orelha, mesmo que não estivesse falando
tão baixo a ponto de precisar estar tão perto dela. Talvez fosse apenas para
fazer o coração dela bater mais rápido do que o recomendado.

— Ah, que bom que ainda estão acordados! — Clarissa ouviu o som
da voz do pai e sentiu o rosto corar, Ronald a soltou, se voltando para o
homem.

— Perdão, não tinha notado o senhor aí — falou ele, arrumando a


postura.

Clarissa ainda se encontrava atordoada demais para falar qualquer


coisa.

Se o pai saísse dali e voltasse depois de meia hora, ela ainda estaria
tentando encontrar as palavras.

— Isso é claro! — disse e depois se dirigiu à filha: — Vim a pedido


de sua mãe. Ela deseja urgentemente que troquem os lençóis da cama, se
recusa a dormir em cima de sacas de linhagem.

Clarissa, que ainda não tinha voltado para si, o encarou sem
compreender uma única palavra.

— Como?

— Sua mãe deseja lençóis melhores.


— Mas pedi que trocassem assim que soube que ficariam.

— Coloque um lençol melhor, um que se usava na cama do meu


irmão, por acaso sua mãe não merece o melhor?

Clarissa engoliu em seco.

— É claro — falou ela —, mas os criados já foram se deitar.

— Acorde eles, alguém precisa ensiná-los a tratar seus superiores da


maneira correta.

Clarissa respirou fundo, o pai podia não ter voz própria, mas sabia
muito bem reproduzir as falas da esposa.

— Não posso, isso seria…

— Então, troque você mesma, sabe como sua mãe odeia lençóis de
qualidade inferior, e não…

Antes que pudesse completar sua resposta, Ronald deu um passo à


frente, com uma postura firme e imponente.

— Como o senhor bem viu, nós já nos recolhemos, amanhã cedo


alguém fará isso, mas agora, se Clarissa está dizendo que trocou os lençóis,
podem tranquilamente dormir hoje neles.

O pai se voltou para ele com um olhar que poderia congelar qualquer
um, mas Ronald nem mesmo mudou a expressão.

— Estou falando com a minha filha — replicou o pai, ainda furioso.

— Sim — respondeu Ronald, sua postura tornando-se ainda mais


ameaçadora —, e minha esposa, então aconselho o senhor a baixar o tom.

Seu pai recuou um passo, desviando o olhar para a filha e ignorando


o homem a sua frente.

— Isso precisa ser feito hoje.


Ronald se voltou para ela.

— Onde ficam as roupas de cama limpas?

— Tem um baú perto da porta do quarto de vestir. — Antes que ela


pudesse terminar, Ronald já havia sumido de vista, deixando-a com o pai,
nem um pouco feliz.

— Este é o homem com quem escolheu casar-se — perguntou ele,


olhando furioso para a filha. — Um que desafia seus pais, as pessoas que
cuidaram de você.

Clarissa buscava palavras para responder, mas, por sorte, Ronald


apareceu antes que precisasse fazê-lo.

— Estas estão do agrado do senhor? — perguntou ele, olhando


diretamente para o pai dela.

— Melhores.

— Ótimo — disse Ronald estendendo os lençóis para ele —, então já


que não podem aguardar até amanhã, vocês podem trocá-los, amanhã
alguém recolherá os outros.

Clarissa compartilhava o mesmo olhar de incredulidade do pai


quando estendeu os braços em direção aos lençóis.

— Posso trocá-los…

O olhar do senhor Denver em sua direção a fez parar de falar no


mesmo momento.

— Estamos indo dormir, querida — declarou ele já fechando a porta,


depois de obrigar o pai dela a segurar os lençóis.

Ela não se despediu do pai, nem mesmo deu boa noite. Passou cinco
segundos encarando a porta de madeira à sua frente, ainda sem palavras.
— Eles vão entender isso como uma afronta — comentou ela,
tentando não pensar que estava em um quarto sozinha com aquele homem,
que inclusive havia ficado mil vezes mais atraente naquele momento.

Ele se encostou na porta, dando de ombros.

— Foi mesmo uma afronta.

Ela levou as mãos ao rosto, cobrindo-o.

— Isso vai deixar minha mãe furiosa.

— Eles precisam entender que a senhorita não é a criada deles.

— Acha que isso os fará caírem em si? Precisará de muito mais se


desejar ensinar meus pais a me tratarem de outra maneira da que vêm
fazendo há 20 anos.

— Temos uma semana, temos tempo ainda.

Ela estreitou os olhos.

— Em um segundo, o senhor não queria ficar aqui nem sequer por


um dia, agora uma semana não é nada para o senhor.

— A senhorita precisa de ajuda com aqueles dois.

— Sei disso, mas o senhor nem me conhece.

— Sei que é alguém que parece sumir na frente dos pais,


transformando-se em uma marionete — declarou ele, tirando o paletó com
cuidado e colocando sobre uma cadeira —, e já discutimos isso mais cedo.

Havia notado que aquelas roupas não eram as mesmas que tinha
entregado para ele na noite anterior, também não parecia com alguma outra
que seu tio usaria.

— Roupas novas? — perguntou ela.


— Busquei algumas coisas minhas na estalagem — disse ele, tirando
a gravata. — Espero que não se incomode.

Ela olhou para o paletó dele, aquele tecido era caro, sabia disso
porque o tio tinha um parecido. O ciúmes pela peça era evidente, o tio usava
apenas nos momentos mais importantes de sua vida, e da morte também, já
que havia pedido para ser enterrado com ele.

Como um simples marinheiro estaria usando uma peça tão refinada?

— Não sabia que a Coroa pagava tão bem seus marinheiros.

Ele olhou para o paletó, dando um sorriso.

— Vamos dizer que, às vezes, vale a pena lutar pelo país.

Clarissa ergueu uma sobrancelha, desconfiada.

— Espero que não apenas por isso.

Ele sorriu.

— Pode dormir na cama, ficarei no sofá — disse ele, já se sentando.

— Posso muito bem ficar no sofá.

— É claro que pode, mas que tipo de homem seria eu se permitisse.

— Um homem esperto — respondeu ela. — O senhor está me


fazendo um favor, e não ao contrário.

— Mas sou um cavalheiro. — Ronald se deitou no sofá, que


claramente era muito pequeno para ele.

— Exijo que durma na cama.

Não poderia aceitar que aquele homem, que minutos atrás estava
enfrentando o pai dela para defendê-la, dormisse em um sofá que mal cabia
metade do seu corpo.
— Só aceito — disse ele, voltando a se sentar — se a senhorita
também estiver nela.

Clarissa sentiu seu rosto esquentar com o comentário, mesmo


sabendo que a intenção dele era causar esse tipo de constrangimento,
fazendo-a parar de insistir.

— O meu corpo caberá perfeitamente no sofá, o que não acontece no


caso do senhor.

— Acredite, já dormi em acomodações muitíssimo piores.

Ela desejou falar que também já havia dormido em lugares ruins, na


verdade o quartinho que tinha naquela casa era o melhor aposento que pôde
chamar de seu, mas agora dormir em uma cama como aquela, grande e
macia, era algo além de sua imaginação.

Antes um canto no escuro com cobertas era seu único refúgio.

— O senhor…

— Essa discursão está acabada. Se deite e aproveite minha bondade,


ou juro que me deitarei aí e a farei dividi-la com o meu corpo, que, de
acordo com a senhorita, não é nada pequeno.

Clarissa preferiu ficar em silêncio, indo até a lamparina.

— Deseja que eu deixe algumas das luzes acesas? — provocou ela,


sua voz impregnada de desdém. — Para quando o senhor cair do sofá?

Sua voz estava carregada de desdém.

Ele deu um sorriso.

— Não, querida — disse ele, o tom de voz zombeteiro —, pode


apagar, assim terei uma desculpa para acordar ao seu lado na cama.

Clarissa estreitou os olhos em desafio.


— O senhor não pode ficar me dizendo esse tipo de coisa.

Já era muito difícil não pensar no quanto aquele homem era bonito,
não precisava que ele soltasse piadinhas ou se insinuasse em sua direção.

— Que coisas?

— O senhor sabe muito bem.

— Gostaria de lhe ouvir dizer.

Ela permaneceu em silêncio por um momento antes de se virar e


assoprar a vela, deixando-os imersos no breu.

Costumava colocar uma camisola simples para dormir, mas teria que
se contentar naquela noite em apenas abrir seu espartilho.

Nunca dormiria de camisola compartilhando o quarto com um


homem, era ousado demais, até mesmo para ela.

— A senhorita ainda não me respondeu… — Clarissa sentiu o


sorriso dele reverberando em sua voz, mesmo na escuridão do ambiente.

— E nem vou — ela retrucou com um ar de desafio, cruzando os


braços.

— Por que não? Minha pergunta é simples — provocou.

— Isso não significa que a resposta seja.

— A menos que a senhorita me queira na sua cama, é bem simples.

— Vá dormir — ela respondeu, tentando ignorar o formigamento no


seu corpo.

— Sabe que, com seus pais por perto, teremos que fazer muito mais
do que trocar flertes bobinhos.
O coração dela se acelerou ao lembrar quando ele tinha puxado ela
para si no corredor, dos braços fortes dele envolvendo sua cintura, como se
estivessem acostumados a tal carinho.

— Não precisamos fazer isso quando eles não estiverem presentes.


— Clarissa sentiu a voz vacilar.

— É claro que não, mas bem que gostaria de treinar.

— No fim, o senhor já é muito bom nisso — revelou ela —, não


precisa treinar comigo.

— Como não? Se é exatamente com a senhorita que quero fazer isso.

— O senhor está com sono — alegou ela — e falando tolices.

Ele se remexeu no sofá, sabia pelo farfalhar do tecido, mesmo não


conseguindo enxergar mais nada.

— Talvez, ainda assim não seria de todo mal trocar alguns flertes
com a senhorita.

— Durma, homem.
Capítulo 8
Ronald poderia estar enganado, o que era muito raro de acontecer,
ainda mais quando se tratava de pessoas.

Quando gostava delas, não costumava se arrepender, e, quando sua


intuição lhe dizia que havia algo de errado, podia confiar nela.

Mas, naquela manhã, quando voltou da cidade, depois de ter recebido


uma carta do seu general, perguntando quando ele poderia retornar à sua
embarcação, as coisas estavam diferentes.

Dias atrás, aquele tipo de correspondência seria a única coisa que ele
desejava ter recebido, pois, assim que seus pés pisaram em terra firme, já
desejava voltar para o mar.

Porém, ao se sentar na escrivaninha para responder a


correspondência, ele relatou que pretendia estender seu período de
afastamento por mais alguns meses, que tinha assuntos urgentes para
resolver.

Ronald não sabia quais eram esses assuntos, nem mesmo se de fato
existiam, apenas não sentia mais a necessidade de partir para longe.

Além disso, os pais de Clarissa estavam estranhos, extremamente


sorridentes e atenciosos com ele, como se, de uma hora para outra, tivessem
começado a o considerar um ótimo companheiro para a filha.

Eles o surpreenderam ainda mais ao insistirem para que dessem um


passeio pelo campo, e, é claro, diferentemente do esperado, não ficaram no
pé dos dois, pelo contrário, se mantiveram muito passos à frente, como se
quisessem lhes dar privacidade.

Coisa que uma pessoa com bom senso faria, só que Ronald
desconfiava que não era o caso daqueles dois.

Daria mais uma chance aos pais dela, talvez as situações do dia
anterior tivessem sido apenas equívocos das duas partes. Ronald sabia que às
vezes as pessoas mostravam seu pior lado e, quando menos se esperava,
podiam surpreender positivamente.

Esperava que esse fosse somente preconceito da parte dele, porque


ainda não acreditava que alguém como Clarissa poderia ser filha daqueles
dois, não entendia como alguém maravilhosa tinha vindo de pessoas tão
mesquinhas.

Era uma coisa que não fazia sentido.

Portanto, Ronald apenas agradeceria e aproveitaria o dia.

— Está tão calada hoje — comentou Ronald, fazendo-a se


sobressaltar.

Ela se voltou para ele, se recuperando.

— Meus pais estão se comportando de uma maneira muito estranha.

Ele franziu o cenho, como se não estivesse pensando a mesma coisa


havia poucos instantes.

— Como assim?

— Minha mãe não reclamou do meu cabelo.

Ele olhou para o cabelo dela, sabia que estava preso em um coque,
tão perfeito como no dia anterior, mesmo que não conseguisse vê-lo debaixo
daquele chapéu marrom horrendo.

Parecia que tudo que ela usava era marrom, roupas, chapéus, tinha
certeza de que até mesmo as meias eram dessa cor.

— Deve ser porque não há nada de errado com o seu cabelo.

Ela riu com desdém.

— Não precisa haver nada de errado, senhor Denver, ela achará algo
para me criticar.
— Então, sua mãe deve apenas ter acordado em um dia bom.

— Os dias bons dela são ainda piores.

Ronald comprimiu os lábios.

— Deseja mesmo passar a tarde falando de seus pais?

A brisa batia de leve no rosto dele, o clima estava agradável, o sol


aparecia sem nuvens, tornando o dia perfeito para estar no mar.

Mesmo que o único motivo de ele estar ali fosse para ajudar Clarissa
a se livrar dos pais, não queria perder seu tempo falando deles.

Clarissa era uma pessoa agradável, por isso, queria aproveitar a


companhia dela antes de eles serem obrigados a conviver novamente com
aqueles dois.

— Desculpe — disse ela, cabisbaixa —, eles roubam minha atenção


quando estão presentes.

Ronald a encarou, pequena, com os olhos grudados no chão, com


roupas sempre no mesmo tom, quase camufladas no seu corpo.

— Eles roubam muito mais que isso de você.

Clarissa ergueu os olhos para ele, dando-lhe um sorriso cúmplice,


como se soubesse bem o que ele queria dizer.

— É difícil agir de outra forma.

— Acredito na senhorita — disse ele, com as mãos juntas atrás do


corpo —, só acho solitário, quer dizer, é duro passar a vida fingindo ser
alguém que não é.

Ela deu de ombros.

— Às vezes, é mais fácil do que brigar o tempo todo.


Ele assentiu brevemente.

— Está casada, não precisa mais brigar sozinha — declarou Ronald.

Sempre ouviu que o casamento era uma prisão para a mulher e


acreditava piamente que isso era verdade, tinha visto isso acontecer com sua
mãe e muitas mulheres da sociedade.

Mas também poderia ser o contrário.

Quer dizer, se depois do casamento, a única pessoa a quem a mulher


precisava responder era ao marido, isso queria dizer que, se fosse um homem
que a amasse, a protegeria para permitir que ela fosse quem desejava ser,
sem tantos julgamentos.

Não era oficialmente o marido de Clarissa, ao menos não no papel,


mas naquele momento ele poderia fazer algo por ela.

Ela olhou para ele, como se Ronald estivesse sendo tolo.

— Não precisa amarrar os cabelos nesse coque ridículo…

— O senhor acha o meu coque ridículo? — perguntou ela,


boquiaberta.

Ele deu de ombros.

— Por Deus, eu mesmo desejo colocar as mãos no seu cabelo e


desfazê-lo. — Clarissa levou a mão ao cabelo ao ouvir a declaração dele. —
E as roupas? Por que todas as suas roupas são em tons marrons?

Ela ficaria linda em um vestido rosa-claro, com uma saia cheia de


volume e bordados, e talvez, apenas porque ele a imaginava assim, com uma
capa bem esvoaçante.

Clarissa não deveria ser apagada tão facilmente, era uma moça
encantadora demais para ficar longe dos olhos de todos.
— É o tecido mais barato, a escolha óbvia dos meus pais.

Ele parou na mesma hora, sentindo-se um tolo. Como pôde falar


aquilo, às vezes se esquecia de que as roupas feitas pelas melhores
costureiras de Londres eram um luxo, e não um direito de todos.

— Eu compro um de outra cor para você — afirmou ele. A ideia veio


tão rápido que ele não conseguiu formular a frase de uma maneira melhor.

Ela estreitou os olhos para Ronald.

— O senhor não pode me dar roupas! — Clarissa o observava,


chocada com a sugestão.

E estava falando sério, seu dinheiro não tinha muita serventia se


ficasse parado.

Além do mais, eram só vestidos, e toda mulher merecia um guarda-


roupa repleto de belos vestidos.

— Claro que posso.

— Não, não pode!

Ele riu diante da consternação de Clarissa.

Ainda estavam parados no meio da estrada, e, quando olhou para


frente, Ronald não conseguia mais para ver os Franklin. Uma dádiva divina!

— Por que não?

Ela se inclinou para frente para cochichar, como se, mesmo daquela
distância, os pais ainda fossem escutar a conversa deles.

— Senhor Denver, estamos vivendo uma farsa e nada mais.

Ele deu de ombros. Não ligava para as circunstâncias.

— Quero ser um bom marido.


— O senhor não é um marido, pode fingir ser um, mas isto nunca
será verdade sem todas as formalidades — declarou ela.

— São apenas vestidos, por que não aceita a gentileza? — Ronald


inclusive já pensava nos modelos que combinariam mais com ela. Não
economizaria uma libra em rendas e tecidos, tudo do bom e do melhor.

— O senhor é da Marinha, mal tem onde cair morto.

Maldição! Aquilo o atingiu em cheio.

Ela não sabia seu verdadeiro sobrenome, muito menos o cargo que
ele ocupava.

No início, fazia sentido esconder sua real identidade, agora, Ronald


apenas não sabia como dizer que tinha omitido muitas informações dela até
aquele dado momento.

Também, mesmo sabendo que tudo o que vinha fazendo era por um
bom motivo, queria manter sua família longe daquilo, fosse o que fosse, não
precisava envolvê-los na mentira.

— São só algumas roupas novas. Qual problema há nisso? — insistiu


ele enquanto mantinha um sorriso descontraído, como se tentasse convencê-
la com sua expressão amigável.

A relutância dela não sairia da sua cabeça tão cedo. Seus olhos
pareciam levemente cerrados, e uma sobrancelha arqueada denunciava sua
hesitação.

— Não quero!

Ele deu um passo na direção dela, mantendo os braços relaxados ao


longo do corpo, mas o olhar atento e perscrutador.

— A senhorita pode ao menos aceitar um único presente meu? —


Ronald perguntou com uma leve inclinação de cabeça e um olhar
esperançoso, os olhos brilhando com uma pitada de entusiasmo.
A senhorita Franklin ergueu o rosto.

— Não sou sua caridade.

— Não, eu sou a sua — ele retrucou, o tom de voz firme. Um sorriso


travesso surgiu em seus lábios, mostrando que estava disposto a persistir.

— Não fale bobagem — alertou ela. — Não lhe dei roupas naquela
noite por pena, e sim por puro interesse.

— Posso fazer o mesmo pela senhorita.

— O senhor está perdendo o juízo se acha que permitirei que me dê


vestidos, como se isso tivesse importância — ela rebateu, balançando a
cabeça, suas mãos gesticulando para enfatizar seu ponto de vista.

— E lhe darei chapéus também — garantiu ele, apontando para a


cabeça dela. — Isso aí nem mesmo pode ser chamado de chapéu.

— Como pode um marinheiro ser tão egocêntrico? — perguntou ela,


sorrindo.

O bom senso não permitia que ele segurasse sua língua, aquele
chapéu era realmente uma piada.

Ele levantou as mãos, brincando com as fitas que seguravam o


chapéu na cabeça dela, concentrando o olhar em qualquer coisa que não
fosse aqueles enormes olhos castanhos o encarando.

Mas, assim que seus dedos tocaram na pele macia do pescoço dela e
seus olhos encontraram os dela, Ronald soube que deveria aprender a manter
as mãos sob controle, de preferência longe de todo o corpo de Clarissa, a
cinco metros de distância, no mínimo.

Ele engoliu em seco ao ver os olhos dela nos seus.

Ronald passou seu tempo na Marinha, dormindo com mulheres em


cada porto que atracava, algumas vezes retornava mais de uma vez para suas
camas.

Gostava de ter seu corpo sobre o delas, de sentir o calor se espalhar


pelo corpo dos dois, a ponto de chegar a um limite no qual ambos não
poderiam mais suportar.

Desde que descobrira o conforto nos braços delas, nunca tinha


parado de procurá-las.

Mas, nem quando tinha 16 anos, sem nenhuma experiência, e uma


viúva se aproximou dele, mostrando como era ser seduzido e depois como
era seduzir, ele havia se sentido excitado com um simples toque, com a ideia
de beijar exatamente naquele ponto em que seus dedos haviam tocado, de
sentir o gosto dos lábios de Clarissa.

— Senhor Denver… — A voz dela, rouca, sugeria que desejava o


mesmo que ele.

Vê-la tão afetada quanto ele não acalmou nem um pouco a agitação
que se espalhava pelo corpo de Ronald.

— Senhorita Franklin…? — disse ele em tom de interrogação.

— O senhor não pode tirar meu chapéu.

Ele não respondeu.

— Está me ignorando? — insistiu ela.

Ronald sorriu, pensando que a beijaria.

Era estúpido, sabia disso.

Era estúpido, sabia disso. Ronald compreendia que atender ao seu


desejo egoísta poderia complicar tudo entre eles. Era necessário lutar contra
aquele impulso avassalador e afastar as fantasias que vinham à sua mente.

Porém, ela se encontrava ali, tão perto do seu corpo, com o rosto
inclinado em sua direção e os lábios rosados o seduzindo. Era fácil esquecer
todo o resto quando era tão satisfatório apenas tocar na pele dela, a simples
constatação de que a beijaria.

Ele faria isso e depois pensaria no que poderia dar errado.

Não voltaria atrás, não poderia desistir.

— É tarde demais para ignorar a senhorita.

Ele desfez o nó, deixando o chapéu cair para trás, e não desejava
parar por aí, seus cabelos castanho-escuros presos em um coque tão bem-
feito também pareciam clamar por salvação.

E quem seria ele para negar aquilo? Então, tirou os grampos,


liberando as mechas e as deixando balançar com a brisa.

Levou seus dedos até eles, acariciando as mechas soltas.

— Quero beijá-la, senhorita Franklin. — Com os olhos presos nos


dela, a revelação a deixou atônita. — É isso que os casais apaixonados
fazem, não é?

Ele sentiu um leve movimento de ombros dela.

— Como poderia saber, senhor? Nunca me apaixonei.

Ele se inclinou sobre o rosto dela, com os lábios roçando levemente


nos dela.

— Também não vivi essa experiência, mas acho que deveríamos


tentar.

— E o senhor tem um bom motivo?

— Sim, porque quero muito fazer isso.

Não era porque achava que tinha o direito de reivindicar um beijo,


mas porque naquele momento não existia outra coisa que ele desejasse mais
do que unir seus lábios aos dela. Era como se o mundo tivesse desaparecido
ao redor deles e só restasse o calor e a ternura daquele momento.

O toque suave dos lábios dele nos dela era como uma promessa de
amor e entrega.

O coração dele batia forte, ecoando o ritmo do sentimento que os


envolvia.
Capítulo 9
Clarissa ficou um segundo sem entender, mesmo quando ele colocou
em palavras, ainda achava que estava apenas fantasiando.

Ser beijada por um marinheiro era o tipo de sonho que carregava


desde sua adolescência, e melhor, ser beijada daquela forma era tudo o que
poderia esperar de um primeiro beijo.

Suave na medida certa, às vezes ele fazia mais pressão, as mãos


deslizando pelas costas dela, a delicadeza de cada gesto, era como se ele a
desejasse de uma forma que não pudesse soltá-la.

Clarissa sabia que deveria colocar as mãos no peito dele para afastá-
lo, e não para o puxar de volta, no entanto, quando suas mãos pararam na
camisa dele, não conseguiu interromper o beijo.

Também o queria, quer dizer, no momento que viu aquele homem


pensou que ele era exatamente como uma estátua esculpida em mármore,
porém bem mais abençoado. O corpo do homem parecia uma muralha de
tantos músculos.

Embora quisesse que aquilo fosse em frente, ambos seriam


prejudicados. No momento que Clarissa se lembrava disso, ele se afastou,
impondo espaço entre os dois, e desviou o olhar do dela.

— Isso foi uma demonstração do que casais devem fazer — declarou


ele e começou a andar.

Ela franziu o cenho, ainda presa no lugar.

O homem só podia ter uns parafusos a menos, porque ninguém em sã


consciência a beijaria e depois falaria uma coisa dessas.

Ela suspirou e então o seguiu, não demorando muito para alcançá-lo.

— O senhor costuma ficar mudo depois que beijar uma mulher? —


perguntou ela, tentando quebrar o silêncio constrangedor.
Um pequeno sorriso surgiu nos lábios dele, e seus olhos transmitiram
um misto de confiança e leveza.

— Não costumo parar nos beijos, então creio que não possa lhe dar
uma resposta verdadeira — ele respondeu com um tom descontraído, mas
seus olhos denotavam uma pontada de mistério.

Dessa vez, foi a vez dela de sorrir. Seus lábios se curvaram


suavemente, e seus olhos brilharam com malícia.

— O senhor ficou assustado!

Ele franziu o cenho e a fitou.

— O quê?

— O senhor me beijou.

— É, e pode ter sido motivo de espanto, mas agora dizer que foi
assustador…

— O senhor tem medo de que isso mude as coisas entre nós —


deduziu ela.

Ele estancou o passo mais uma vez, levando as mãos aos bolsos da
calça.

— Não estou aqui para seduzir a senhorita — disse ao olhá-la nos


olhos, mas aquilo parecia ser um esforço tremendo para Ronald.

— O senhor não vai me seduzir com um único beijo — garantiu ela.

Com certeza não estava apaixonada por ele. Ainda assim, tudo o que
ele vinha fazendo andava mexendo com seus sentimentos. A questão
principal era que, por ser um marinheiro, Ronald logo iria embora, não
deveria passar mais que algumas semanas por ano em terra firme, e, mesmo
que isso não fosse verdade, as roupas e a qualidade da mala onde guardava
seus pertences mostravam claramente que não era um plebeu.
Clarissa não sabia por que ele não queria dizer a verdade, quem de
fato era ou que cargo ocupava, por outro lado, isso também não importava,
se estivesse na posição dele, não sairia por aí contando para todos o que
fazia da vida.

Além disso, ele estava a ajudando, mesmo quando tudo indicava que
não precisa demonstrar tamanha gratidão.

Já tinha feito demais ao aceitar o plano que ela tinha criado, e, mais
ainda, quando tudo mudou de rumo, continuou com ela, garantindo que não
precisasse revelar a verdade.

Ronald era um homem generoso, e nada mais.

Porém, se ele tinha decidido beijá-la, tinha a responsabilidade de


garantir que isso não seria um problema.

— Essa é grande questão, Clarissa. — Seu peito se acelerou no


mesmo instante, já tinha pedido para que a chamasse pelo primeiro nome,
ainda assim, era estranho ouvi-lo saindo da sua boca. — Paramos em um
único beijo.

Ela ergueu a sobrancelha.

— O senhor acha que vou permitir que me beije mais vezes? —


Clarissa se esforçou para soar ofendida.

— Veja bem…

— O senhor me pegou desprevenida.

— Essa é sua desculpa para nosso beijo? — indagou ele, rindo.

Ela cruzou os braços na frente do corpo, criando uma barreira quase


imperceptível entre eles.

— Não, não é — começou ela. — É só uma delas.


Ele se inclinou para a frente, o interesse evidente em sua postura. A
proximidade entre eles era palpável, como se o ar estivesse eletrificado.

— E quais seriam as outras? — questionou, sua voz era um sussurro


que parecia acariciar seus ouvidos.

— Um motivo para ti não é suficiente?

— Precisaria de mil empecilhos para que eu não quisesse beijá-la


outra vez. — Ronald sorriu de maneira sedutora, um sorriso que tinha o
poder de fazer corações acelerarem. Era como algo saído diretamente das
páginas apaixonadas de um romance. Clarissa sentiu seu pulso se acelerar,
uma emoção tumultuando seu interior. Ela apertou os lábios, como se
tentasse conter uma avalanche de sentimentos que a assolava.

Seu coração andava muito fraco quando o assunto era o senhor


Denver.

— Bastou um beijo para que o senhor se tornasse o maior


galanteador da região? — ironizou ela, disfarçando a todo custo seu efeito
que sobre ela.

— Sempre fui o maior galanteado da região — declarou ele, seu tom


carregado de autoconfiança. — A senhorita me ofende ao não notar isso.

Clarissa deixou escapar um pequeno sorriso, uma mistura de


ceticismo e encanto dançavam em seus olhos.

— Não sabia que nosso casamento também incluía beijos. Gostaria


de saber quais são os limites do nosso acordo antes de ultrapassá-los… para
não os ultrapassar, melhor dizendo.

— Não era bem uma regra.

— Talvez devêssemos criar algumas — sugeriu ela, sorrindo


diabolicamente, como se, de repente, algo que nunca tinha pensado surgisse
em sua mente.
— Se uma delas é que não posso beijar a senhorita, não se preocupe,
isso não se repetirá.

Clarissa se voltou para ele, a ponto de ficar ofendida.

— Ótimo!

— Não que eu não deseje outro beijo seu.

— Não precisa se explicar.

— Sei disso, mas faço questão — insistiu ele.

— O senhor…

— Clarissa, toda essa encenação não funcionará se eu estiver tão


ocupado beijando você para fingir que sou seu esposo.

— Foi o senhor que tomou a inciativa e me beijou, se achava que


isso seria um problema tão grande, por que o fez?

— Gosto da senhorita, mas também tenho outros sentimentos em


relação a você — revelou ele —, uma combinação péssima, quando tudo o
que não quero é magoar a senhorita.

— Não estou dizendo que está errado — alegou ela, que sabia muito
bem que tudo o que ele estava dizendo tinha um fundo de verdade.

— Eu queria que me dissesse o que tem em mente. Eu te beijei e não


me arrependo, porém creio que, para nosso bem, seja melhor que eu pare por
aqui.

Ela assentiu.

— Ainda assim… — ela deixou escapar um suspiro enquanto


balançava a cabeça, como se quisesse afastar uma teimosa ideia, algo quase
infantil — deixe para lá.

Ela apressou o passo, mas foi acompanhada rapidamente por ele.


— Insisto que diga.

Ela fez um gesto com a mão para ele ignorá-la.

— Não é nada demais.

— Então, desejo saber mais ainda.

Ela o encarou.

Ciente de todas as coisas que estava prestes a dizer.

Era estupidez.

Mas o que naquele plano não era?

— Se é para ser nosso único beijo, deveria ser inesquecível.

Ele riu, mas riu muito.

— Meu Deus! Como pode?!

Ela estreitou os olhos, confusa.

— O que o senhor quer dizer?


Ronald queria dizer a ela que, independentemente do número de
países que ele tinha visitado ou das mulheres que haviam passado na sua
vida, ela era a única que criticara o beijo dele.

Se esforçava bastante para isso não acontecer, mas, naquele


momento, não tinha se esforçado ou tentado tornar o beijo perfeito.
Precisava apenas beijá-la, e o fez da maneira que podia.

Não era seu melhor beijo, mas tinha sido diferente, como se fosse o
mais significativo da sua vida.

— Como pode alguém ser tão encantadoramente imperfeita?

Ronald a puxou para perto, segurando-a pela cintura, firme e


decidido.

Clarissa estava sendo um ponto fora da curva em sua vida, ele havia
batido na porta da casa dela, e ela lhe recebeu com uma pistola na mão, nada
poderia ser menos acolhedor, sem falar que ela o viu nu, algo que desejava
esquecer. De fato, não estivera em seu melhor momento.

Mas a questão principal era que, desde o primeiro momento, parecia


que algo tinha mudado nele. Depois que seus caminham se cruzaram, não
tinha como voltar atrás ou buscar outra direção.

Os lábios dele encostaram nos dela, lentamente; ele faria aquele beijo
ser o mais perfeito na vida dos dois.

Não sabia qual era o rumo que a vida deles tomaria a seguir, só que
não estariam juntos muito em breve, portanto, gostaria de lhe deixar uma
lembrança boa. Mesmo que Clarissa não sentisse saudades dele no futuro,
queria ao menos que ela não se esquecesse por completo dele.

Sentiu o corpo dela pressionado contra o seu, quase como se a


gravidade do mundo a estivesse puxando para mais perto, as mãos de Ronald
exploravam cada lugar do corpo dela ao qual ele tinha acesso.

As curvas dela embaixo de suas mãos o faziam detestar cada pedaço


de pano entre eles, como no dia em que se conheceram, mas, dessa vez,
gostaria que Clarissa também não estivesse vestida, seria muito mais
divertido assim.

O beijo era lento e calmo. Queria que ele ficasse na lembrança dela
durante as noites, assim como seria para ele também.

Não podia crer na sua ousadia, mas o beijo entre os dois parecia tão
perfeito, quase como se a história que haviam criado tivesse se tornando
realidade perante seus olhos.

Ele sentiu as mãos dela em seu cabelo, o puxando para mais perto,
com paixão, e aquilo o fez arder de desejo.

Jamais poderia ter imaginado aquele momento quando a viu na


primeira noite, que seus lábios eram macios, que sua boca era quente e que
seria o melhor beijo de sua vida.

A vida era mesmo uma caixinha de surpresas.

Ele a queria tanto, cada parte do corpo dela. Queria tirar sua roupa e
poder se agraciar com cada curva de Clarissa.

No entanto, não sabia se aquilo era certo… algo lhe dizia que não,
pois assim só a prejudicaria, mas não podia deixar de desejá-la, era mais
forte que ele.

Quando olhava para Clarissa e pensava em tudo que ela tinha


revelado na primeira noite, sabia que ela não queria um marido. Ainda mais
um como ele, a moça já havia renunciado toda sua vida pelos outros,
precisava de uma pessoa que fizesse o mesmo por ela, e não de alguém que
lhe pedisse que abrisse mão de suas vontades para o seguir pelo mar, ou de
alguém para ficar em casa, rezando para o marido estar vivo, enquanto
cuidava dos filhos sozinha.

Ela tinha desejos e ambições tão importantes quanto as dele, era


loucura pedir que largasse tudo isso.

Os dois queriam coisas distintas, e aquele casamento de mentira


acabaria em um momento ou outro, então ambos não poderiam estar
envolvidos além do necessário.

Ela se afastou, encarando-o, os cabelos bagunçados, o rosto


avermelhado e os lábios inchados.

Aquela cena não o ajudava a manter a sanidade, que já não estava lá


essas coisas, porque, pelos seus atos recentes, ele poderia ignorar sem
esforço o bom senso e continuar beijando Clarissa várias e várias vezes.

Aliás, a segunda vez tinha sido mais um desafio da parte dela do que
qualquer outra coisa, mas, mesmo que ele usasse isso apenas como uma
desculpa para se sentir melhor, Ronald precisava puxar as rédeas do seu
desejo.

— Esse foi bem melhor — disse ela enquanto ia em direção ao


chapéu. Antes que ela o recuperasse, ele agarrou o braço dela.

Quando Clarissa se virou, seu rosto veio na direção na dele e ele teve
que fazer o “sacrifício” de beijá-la novamente, um beijo rápido dessa vez.
Algo doce e casual, como se fizessem isso sempre.

Ele se afastou, sem tirar os olhos dela.

— Estava prestes a aconselhá-la a não pegar o chapéu de volta —


revelou ele, com um sorriso matreiro —, mas admito que essa reviravolta foi
muito mais interessante.

O rosto de Clarissa ruborizou imediatamente, as bochechas ganhando


um tom carmesim que contrastava com a delicadeza de suas feições.

— Ah, claro. Só achei que, como o senhor me beijou duas vezes,


deveria deixar a coisa mais justa.

Uma risada suave escapou dos lábios dele, um som que pairou no ar
como uma brisa leve.

— Então, ainda me deve um beijo.

Gostava de deixar ela sem palavras, coisa rara de acontecer.


— Não vou beijar o senhor de novo.

Ainda bem, porque Ronald não sabia até quando teria autocontrole,
segurando-se para não levá-la para trás de um arbusto e lhe mostrar as
inúmeras formas de se fazer amor.

— Creio que não.

Ela balançou a cabeça, levando as mãos ao cabelo.

— Minha mãe vai odiar me ver assim.

Ela tentou dar um jeito no cabelo, mas não tinha muito o que fazer,
não quando não desejava colocar aquele chapéu de novo em sua cabeça, não
quando todo o cabelo parecia um ninho de rato.

Desde o dia em que ele tinha batido à sua porta, a vida dela tinha
virado de cabeça para baixo, mas também era a primeira vez que realmente
sentia que podia sair daquela vida miserável.

Não estava mais presa aos pais, quando fossem embora, ela poderia
mandar uma carta cortando o vínculo, afinal era uma mulher casada.

Ronald também tinha razão ao dizer que ficar sozinha era melhor que
com pessoas que não a amavam.
Quando criança, Clarissa não conseguia conceber que os pais não a
amavam, era um sentimento tão natural, até pessoas mais frias conseguiam
ter afeição por seus filhos. Entretanto, os pais nunca lhe deram carinho ou
qualquer demonstração de afeto que mostrasse qualquer cuidado com ela.

No início, inocente, Clarissa achava a atitude deles normal, afinal


nem todas as pessoas eram amorosas e gentis, porém ao longo do tempo a
falta de empatia pela filha foi se mostrando cada vez mais visível.

A solidão era benquista em relação ao descaso dos pais.

Faltava pouco para ir embora dali com uma boa carta de referência
do primo, poderia até mesmo pensar em se tornar governanta. Teria uma
vida agradável, suas escolhas seriam responsabilidades apenas dela e de
mais ninguém.

Se fosse infeliz, teria sido por suas escolhas; se fosse feliz, por mérito
próprio.

O tio tinha mostrado a ela um primeiro vislumbre de uma vida feliz,


e agora queria mais, queria estar rodeada de pessoas que gostassem dela, que
se importassem de verdade.

Ronald, com o tempo, viraria apenas uma lembrança remota, mas o


valor que ele mostrou que ela tinha seria algo inesquecível.

— Ela vai me…

— Cadê a garota que abriu a porta para um estranho, com uma arma
na mão?

Ela sorriu, sem graça.

— Se eles conhecessem aquela garota, acredite quando digo que ela


já estaria em um manicômio.

Ele soltou uma gargalhada, como se aquilo fosse uma piada.


Sua mãe, de fato, lhe dizia que mulheres com personalidade forte
deveriam ser mandadas para lugares que consertassem esse defeito.

Uma ironia do destino sua mãe ser uma mulher.

— Creio que até mesmo um manicômio seria melhor do que ter sido
ser criada por estes dois — afirmou ele, a fazendo sorrir.

— Às vezes, também cheguei a pensar nisso — revelou ela,


inclinando o rosto para o lado —, mas ainda não estou preparada para
arriscar.

— Não precisa mais— disse ele, lhe lançamento um olhar cúmplice.

— Sabe de uma coisa — começou ela —, o senhor é o mais perto


que cheguei de ter um amigo.

Ronald franziu o cenho.

— O mais perto? — perguntou ele. — Quebrou meu coração,


Clarissa, já estava pensando em fazer pulseiras iguais para nós.

Piscou para ela.

— Obrigada — disse Clarissa, sem um motivo evidente, apenas por


tudo o que ele vinha sendo para ela.

— Melhor encontramos os dois antes que venham nos procurar. —


Ronald estendeu o braço para ela, que, com um suspiro de puro sofrimento,
aceitou.

Era estranho tê-lo perto depois de tantos beijos, mas não se sentia
constrangida, os dois juntos parecia algo tão natural.

Era uma sensação nova, boa demais para ser verdade.


Capítulo 10
Ronald não sabia como aquilo tinha acontecido.

Ele e sua terrível mania de se colocar de pé mais cedo que o sol


nascendo no horizonte.

Maldição!

Tudo culpa dos acontecimentos do dia anterior.

Os beijos trocados com Clarissa não saiam da sua mente. Dormindo


ao lado dela, ou melhor, em um sofá nada confortável, mas perto o bastante
para ser tentador, Ronald só pensava no quanto seria bom acabar na cama
dela depois que ele a seduzisse.

Vinha tentando ser uma pessoa honrosa, afinal de contas se alistara


na Marinha por isso, e fazendo até mesmo um serviço decente.

Não poderia fazer nada estúpido, ainda mais com alguém que não
merecia tal tratamento. Ele a considerava demais para agir de maneira tão
indelicada.

Mas não queria dizer que era fácil, vinha usando de toda a sua força
de vontade para ficar longe dela, para pensar em outras coisas, mas aí ela
sorria ou ele a observava sentada na cama e tudo o que queria era beijá-la de
novo e de novo.

Tinham sido dias difíceis e havia um longo caminho pela frente.

Já havia cogitado voltar para a cidade e ficar por lá. Seria bom no seu
atual estado de espírito, ficaria afastado dela e não precisaria se preocupar a
todo momento quando estivessem juntos, se policiando para não parecer um
adolescente emocionado.

Mas não poderia abandoná-la, Clarissa ainda precisava de toda a


ajuda possível para lidar com a família, era claro que faziam tudo o que
queriam com ela.
Na manhã anterior, os pais dela estavam diferentes, atenciosos, até
mesmo gentis, Ronald ainda não tinha compreendido o que aquilo
significava, mas achava melhor se manter por perto pelo tempo que fosse
preciso.

Ronald ergueu o olhar bem a tempo de ver a senhora Franklin. Para


seu azar, ela já o tinha visto muito antes, impedindo-o de dar meia-volta e se
esconder.

Não se encontrava no melhor humor para ter uma conversa com mãe
de Clarissa. Sua companhia seria o mesmo que tomar um banho de água fria,
apagando todos os desejos de Ronald por Clarissa, mas, mesmo assim,
preferia o banho.

— Olha, olha, se o senhor não tem o mesmo costume que eu.

Maldição! Agora ele odiava isso ainda mais.

Ronald ergueu uma sobrancelha, e seus lábios se apertaram em uma


linha tensa.

— Bom dia, senhora Franklin — disse ele enquanto dava um beijo


sobre a luva da mulher. Ele fez o gesto levemente, seus lábios pressionaram
a luva com cortesia, mas seus olhos contemplaram um resquício de
desagrado ao contato.

Estranhou não ver o cachorrinho dela a tiracolo, como de praxe.


Provavelmente, o pai de Clarissa preferia se demorar mais na cama.

Ela apontou para a cadeira à frente da dela.

— Clarissa ainda está na cama? — perguntou ela com uma voz um


tanto ofensiva.

Uma ruga de desaprovação se formou na testa de Ronald, e um breve


suspiro escapou dos seus lábios enquanto ele se sentava.
— Nem todas as pessoas se colocam de pé as cinco da manhã —
declarou ele.

— Mas creio que há uma lista imensa de coisas para ela fazer.

Ronald resistiu a ideia de revirar os olhos, se sentando à mesa e se


servindo com uma xícara de chá.

— Tais coisas podem esperar — garantiu ele —, se alguém tem o


direito de acordar a hora que desejar nesta casa, com certeza, é ela.

Edith ergueu a sobrancelha.

— O senhor não gosta muito de mim.

Quase se engasgou com a declaração, mas não poderia desmenti-la.


Ronald só não pensava que tinha deixado seu desprezo tão evidente.

— O que a fez pensar isso?

— Parece que, a cada declaração sua, o senhor quer enfiar uma farpa
em mim e em meu marido.

— Estou apenas protegendo minha esposa.

A mulher jogou a cabeça para trás, rindo, e apontou para ela mesma.

— De mim?

Ele deu de ombros.

— De todos que possam não compreender ela — disse ele, erguendo


o olhar —, ou não respeitar.

— E julga que é isso que faço com minha filha? — indagou ela. —
Que não a respeito?

Uma sombra de ceticismo atravessou o olhar de Ronald enquanto ele


cruzava os braços de forma defensiva.
— E o que demonstram — disse ele, dando de ombros.

— O senhor não pode compreender a maneiras de criar um filho


quando não tem nenhum.

— Sou um filho, compreendo o que os pais podem causar com tais


atitudes.

— Olha, e o senhor guardando toda essa sabedoria.

— Quero que Clarissa saiba o quanto é amada.

— Amo a minha filha — declarou a mulher, fazendo soar ofendida.


— A maneira que a educo, que a preparo para o mundo, apenas demonstra
que desejo o melhor para ela.

Uma mãe que amava a filha nunca trataria da maneira como aquela
mulher fazia com Clarissa, Edith podia até mesmo afirmar que era amor o
que sentia, mas era puro egoísmo.

— Seus métodos de educação apenas a educa a magoam.

— Ela lhe disse isso?

— Não foi preciso, basta estar no mesmo cômodo que vocês.

— Como se maternidade viesse com um manual de instrução… —


desdenhou Edith.

Ele balançou a cabeça e deu um gole no chá.

— A senhora é mãe dela, não vou discutir se está certa ou não.

— Prefere continuar me olhando torto? — perguntou ela. — Não sou


cega, senhor Denver.

— Não aprovo a maneira como a senhora trata minha esposa.

— Ela é uma mulher, precisa ser ensinada a se comportar como tal.


— Poderia ser gentil.

A mulher se encostou na cadeira.

— Me fale um pouco da sua família… — pediu ela.

Era difícil falar deles, ainda mais quando não os via há tanto tempo,
quando a última coisa que queria era envolvê-los naquilo, porque seria
motivo para uma enxurrada de críticas sobre quão infantil ele era perante
suas responsabilidades.

O que poderia ser verdade, ao menos naquele caso.

Desde o início, até ele viu todas as complicações que surgiriam


depois de aceitar a proposta de Clarissa, mas no fim acabou aceitando.

Merecia o sofrimento que estava passando, era evidente que aquela


história acabaria mal.

— São pessoas boas.

Edith ergueu a sobrancelha.

— É muito abrangente. Moram em Kent?

— Uma parte, mas somos uma família grande.

— E fazem o que da vida?

Ele pensou em qual resposta dar; a verdade, no entanto, era longa


demais, complicada demais.

Por outro lado, tudo o que andava dizendo eram mentiras sem pé
nem cabeça, também era estressante o bastante para que quisesse abrir o
jogo.

— Nada demais.
— O senhor não gosta de falar da sua família, não é? — disse ela
com um olhar que o entisicou.

— Apenas não há o que falar.

— Como mãe, devo me preocupar em saber para qual família minha


única filha entrou.

— São camponeses — declarou ele —, pessoas humildes.

— Então devem ficar orgulhosos vendo o filho na Marinha.

Nem um pouco, mas ela não precisava saber disso.

— Não imagina o quanto.

— O que vai fazer quando voltar para o mar? Pretende arrastá-la


junto do senhor? — perguntou ela.

Ronald sempre pensou que, se um dia tivesse o desejo de se casar,


pediria sua dispensa da Marinha britânica.

Amava aquela vida, pulando de cidade em cidade, sem estar em


nenhum lugar, gostava de olhar a imensidão do mar e ver apenas o céu azul
acima da sua cabeça e as ondas quebrando ao lado no navio.

Não significava que tinha uma vida fácil ou confortável, ainda mais
porque não era um navio de viagem. Ronald podia gostar disso, mas não
colocaria sua esposa em uma posição em que ela ficasse desconfortável.

— Meu casamento é minha prioridade — afirmou ele com agrado,


mantendo um semblante sério.

A mulher soltou uma risada suave, seus olhos brilhando com um


toque de ironia.

— Não diga isso perto do Rei.

Ele sorriu e assentiu, desejando apenas se levantar e se retirar.


— Até mesmo o Rei é capaz de entender a importância de uma
esposa.

A mulher ergueu levemente uma sobrancelha, estudando-o com um


olhar perspicaz.

— O senhor age como se a amasse.

Um nó se formou na garganta dele, e ele engoliu em seco antes de


responder, mantendo sua expressão controlada.

— E a amo, me casei com ela.

— Nem todos os casamentos acontecem por esse motivo.

— Creio que o nosso seja uma exceção.

— Prefiro que cuide dela em vez de amá-la, prefiro que a proteja em


vez de idolatrá-la — começou ela. — Sem amor todos nós continuamos a
respirar, não é essencial, às vezes é até mesmo descartável.

— Essa é a visão da senhora sobre o amor...

— Minha filha é prática — disse ela, com convicção. — Creio que


também seja o pensamento dela, mesmo que não seja o seu.

Ao menos nesse quesito aquela mulher conhecia a filha, já que em


todos os outros aspectos Clarissa era uma completa desconhecida para eles.

Ou então, ela saberia a verdade por trás dos dois.

— Talvez — foi a resposta dele.

— Ficaríamos muito felizes em recebê-la de volta em nossa casa,


quando decidir voltar para o mar.

Ronald pensou que ficariam mesmo, pelo que tinha entendido,


Clarissa era tratada como uma criada para eles, uma que não precisava ser
reembolsada. A filha, no entanto, não gostaria nada disso.

— Tenho certeza de que não haverá necessidade — disse ele,


colocando-se de pé —, com sua licença.

Ele saiu da sala antes que a mulher pudesse contestar alguma coisa.

Tinha algo errado na forma em que os dois vinham agindo.

Simpáticos, gentis.

Poderia estar equivocado, mas não eram parecidos com as pessoas


que tinha conhecido naquele primeiro dia.

Clarissa devia se jogar em um poço.

Não costumava ser uma pessoa que aumentava as tragédias que


aconteciam em sua vida, mas aquela vinha se tornando imensa.

Em sua maravilhosa mentira, ela tinha simplesmente beijado, não


uma, não duas, mas três vezes o seu marido de faz de conta.

Não sabia como era ter um marido de mentira, quem diria um de


verdade, mas com certeza aquilo não entrava nos termos dos dois.

Ronald tinha uma grande parcela de culpa. Havia beijado Clarissa


com veemência e afinco, como ela sonhara tantas vezes em ser beijada.
E por Deus! Não era cega, seus olhos viam muito bem a beleza do
homem à sua frente. Era forte o bastante para fazê-la querer passar os dedos
por cima dos seus músculos, gentil, educado e um pouco parecido com os
príncipes dos contos de fada.

E ele de fato estava salvando Clarissa.

Mas, se não colocasse um basta em sua mente e em suas atitudes,


acabaria estragando tudo.

Aquilo era um terreno perigoso, ambos sabiam disso.

Talvez por isso ele não tivesse aparecido no desjejum e no almoço,


porque sentia a mesma coisa que ela, que tinham cometido um erro e agora a
ideia de encará-la soava bem incomoda.

Ou talvez tivesse enfim caído em si, percebendo como aquilo era


loucura, e ido embora.

Não o julgaria, se tivesse opção, ela também sumiria do mapa,


subiria em um cavalo e se mandaria dali para nunca voltar para aquela casa.

A casa do tio há poucas semanas lhe parecia um lar, um lugar do qual


não queria ir embora, uma vida boa para se ter, mas, desde que os pais
tinham chegado, se sentia sem ar, como se as mãos da mãe estivessem
envolta do seu pescoço.

O tempo com os dois ali parecia se arrastar, os ponteiros não saiam


do lugar. A cada momento, temia fazer algo que a entregasse e que eles
descobrissem a verdade.

Tudo bem que, desde o dia anterior, os dois andavam bem estranhos.
Não tinham sequer comentado sobre ela ter saído sem chapéu, a convidaram
para um passeio e passaram um dia sem reclamar de nada. Nem da sua
roupa, ou da comida, ou da forma como comandava os criados.

Não houve um único dia na sua vida em que os pais não tivessem
atormentado seu juízo, sem fazer alguma coisa para lembrar que ela estava
presa aos dois. Talvez fosse o fato de que agora estava casada, ou ao menos
era assim que pensavam, e enfim poderiam tratá-la simplesmente como uma
filha, e não como uma empregada.

Era bastante incomum da parte deles, e, a cada momento que os dois


continuavam assim, ela se assustava ainda mais, como se tivesse alguma
coisa a alertando sobre um perigo iminente.

Clarissa ergueu a barra do vestido, colocando os pés na areia da


praia.

Tinha fugido de casa assim que os pais começaram a falar que seria
bom ter um neto, que era a única coisa que uma mulher fazia direito.

Pensou em gritar e falar que os dois não tinham que se meter nisso,
que não era mais dever de nenhum dos dois dizer para ela como deveria agir
ou levar seu casamento, que era mais do que uma procriadora.

Mas o casamento dela era uma grande farsa.

E a última coisa que precisava era dos pais no seu pé, por isso apenas
sorriu e fingiu que estava realmente dando ouvidos a todas as bobagens
deles.

Rezava para que não falassem nada na presença de Ronald, o pobre


homem já vinha suportando muita coisa por ela, não precisava daquilo.

Os pais nunca permitiram que ela apreciasse o mundo e tinham lhe


ensinado muito bem isso. Nunca tinha ido à praia, mesmo sendo caminho
perto da sua casa.

Se daria aquele tempo de presente, se daria a chance de observar o


mar, de sentir a areia entrar por entre os dedos, de ver as ondas de perto.

Caminhou em direção ao mar. O lugar estava vazio como esperado,


já que não se encontrava perto do porto.

A imensidão azul a fazia pensar que todos os seus problemas


poderiam ser resolvidos; mesmo que não fosse uma verdade, olhando para
tudo aquilo à sua frente, pensou que não tinha nada sem uma solução no
mundo.

Clarissa se deu conta que era pequena demais.

Sentiu as ondas molhando seus pés, e a frieza da água a assustou, a


fazendo rir do próprio susto.

Era um lugar encantador.

Não tinha ido a muitos lugares, tudo o que costumava ver era através
da janela do seu quarto, então sabia que aquele seria seu lugar favorito no
mundo.
Capítulo 11
Ronald não era tolo.

Sabia que, pelo caminho que trilhava, acabaria beijando-a


novamente, porque naquele exato momento, caminhando pela praia, era só
nisso que conseguia pensar.

Se colocasse em ordem, seria a seguinte:

1. Lábios, que lábios maravilhosos, eram macios, carnudos e


doces.

2. O corpo dela junto ao seu, isso quase ganhava dos lábios dela,
a sensação de ficar perto, de enlaçar os braços nela eram
inebriantes.

3. A risada de Clarissa era a coisa mais gostosa que ele havia


escutado.

4. E, apenas em quarto lugar, tinha motivos para reprimir a


vontade de beijá-la, para que não pudesse nem mesmo pensar
nisso. Mas Ronald nem fazia questão de desenvolver esse tópico.

Estava dormindo com a mulher! Isso era a receita para um desastre!

Quantas noites aguentaria?

Ele passou as mãos pelos cabelos, sentindo a água entrar por entre os
dedos dos seus pés e a brisa forte no rosto.
Não podia negar, sentia falta do mar, da força das marés, da incrível
certeza de que sabia o que fazer, qual caminho seguir, era assim que sentia
quando guiava o navio.

Quando não tinha certeza de nada, era bom saber alguma coisa, ter
algo a que se agarrar.

Veio para terra firme porque seus superiores pensavam que era disso
que ele precisava depois de passar por momentos difíceis: ficar em casa.

Mas fazia muito tempo que o oceano virara sua casa. Seu navio, seus
homens, eles eram sua bússola. A função como capitão ditava o curso da sua
vida, lhe mostrava seus deveres.

Ali, sua cabeça só ficava ainda mais confusa.

Avistou de longe uma silhueta de mulher, segurando a barra do


vestido, olhando para o horizonte.

Mesmo à distância, não tinha dúvida de quem se tratava, a postura


dela, a maneira de prender os cabelos, tudo era familiar. Ou apenas tinha
passado muito tempo a observando.

Era o que vinha fazendo na presença dela, é claro, quando também


não estava enfiando a língua goela abaixo.

Ele suspirou.

Não poderia se esconder dela para sempre. Naquela noite mesmo,


eles teriam um jantar. Se não fizesse uma única refeição na casa, as pessoas
começariam a comentar.

Ela mesma perceberia que tinha alguma coisa errada, se já não tinha
notado.

Caminhou em direção a ela, com passos decididos. Segurava os


sapatos na mão para não molhá-los, estava apenas vestindo uma calça e
camisa fina, todo o resto tinha sido deixado na estalagem, o lugar para o qual
pretendia voltar assim que saísse dali.
Mesmo que tivesse levado coisas importantes para a casa dos
Franklin, fizera questão de manter um quarto na estalagem com coisas suas,
como uma garantia de que tinha algum lugar para fugir.

Ela se voltou para ele. Quando o reconhecimento surgiu em seu


rosto, um sorriso veio logo em seguida.

Ah, Clarissa não facilitava em nada.

— Pensei que o senhor tinha ido embora — disse ela, o fazendo


sorrir.

— Acredite quando lhe digo que usei toda a minha honra para não o
fazer — declarou ele, olhando as ondas indo e voltando, batendo nas pernas
dos dois.

As palavras de Clarissa vieram com um toque de provocação gentil.

— Duvido que alguém ousasse culpá-lo por uma fuga. Certamente


não eu.

— Meu peso na consciência já seria muito para suportar — alegou


ele —, diferente do que dizem por aí, ser um bom homem é um verdadeiro
fardo.

Ela assentiu, sorrindo.

— O senhor faz parecer fácil.

Os olhos de Ronald encontraram os dela, e ele imaginou como as


coisas poderiam ter sido em um passado distante.

— Se o tempo nos tivesse unido em circunstâncias diferentes, há seis


anos, talvez suas palavras fossem outras.

Ela o encarou com curiosidade.

— E quem o senhor era a seis anos atrás?


— Alguém que com certeza você não iria admirar — respondeu, ele
mesmo não se orgulhava das bebedeiras e noites de apostas. — E, então,
como foi o almoço com seus pais?

Se ela havia notado a repentina mudança de assunto, não disse nada.

Ela deu de ombros.

— Sabe como é, igual a todas as refeições que faço com eles,


implorando para morrer engasgada.

Dessa vez, ele não riu, mesmo que fosse cômico.

Também era triste, Clarissa não tinha que se sentir assim com as
pessoas que mais deveriam a amar, que deveriam garantir pelo bem-estar
dela.

— Isso é tão terrível — exclamou ele, sem conseguir guardar aquilo


para si mesmo —, quer dizer, será que eles não podem melhorar?

— Creio que nem eles possam responder a essa pergunta — declarou


ela, dando-lhe um sorriso tímido —, algumas pessoas não deveriam se tornar
pais.

Mas por quê? Por que arriscar quando sabem que não estão à altura?

Ela ergueu o rosto para ele.

— Algo o atormenta, senhor Denver?

Ele sabia que não conseguia esconder bem suas emoções, também
não gostava de compartilhá-las com tanta facilidade.

— Não sei até que ponto nossa farsa pode dar certo — começou ele.
— Dormir no sofá…

— Já lhe ofereci a cama, ficaria mais que satisfeita com o sofá.


Ele levou a mão a nuca.

— Acredite, senhorita Franklin, já dormi em lugares piores —


garantiu ele. — O que me aflige não é isso, mas sim a proximidade que
tenho da sua cama.

Quando ele terminou a frase, seus olhos estavam colados nos dela,
pois queria que a dama entendesse sua fraqueza.

Ronald a desejava, e não era pouco, sentia seu corpo arder de desejo
apenas com os sonhos que vinha tendo e, uma hora ou outra, poderia fazer
uma burrada.

— Foi apenas alguns beijos. — Clarissa se virou para encarar o mar.


— Não voltará a acontecer.

— Sorte a minha que a senhorita tem tanta certeza enquanto eu não.

Ela ficou boquiaberta por um segundo.

— Vou me comportar.

Ele riu.

— Senhorita, não me entenda mal, mas, se suas golas altas e vestidos


marrons não estão sendo suficientes para não me fazer pensar na senhorita,
não sei mais o que seria.

Clarissa olhou para ele incrédula.

— Não sabia que minhas roupas eram horrendas.

Ele desviou o olhar para o vestido que ela trajava, um verde-vômito


muito pior do que qualquer outro que ele já tinha visto.

— Bem, agora…

— Minha mãe sempre diz que roupa serve apenas para cobrir o
corpo, não devemos ser vaidosas com algo tão tolo.
— Pensei que não desse ouvidos às coisas que sua mãe fala. —
Ronald a olhou de canto de olho.

— O que indicou isso ao senhor? — perguntou ela. — Então estou


fingindo que estou casada apenas para não desagradá-la?

— Está fazendo isso para se defender, para se afastar, não porque se


importa com a opinião dela.

Clarissa deu um suspiro.

— Na verdade eu me importo — admitiu ela, se voltando para ele —,


caso contrário, não estaria fugindo daquela casa.

— Olha que ironia, eu fugindo da senhorita, e a senhorita fugindo


dos seus pais.

Ela riu.

— Posso saber por que o senhor está fugindo de mim?

— Não está escrito na minha testa? — perguntou ele, mas não lhe
deu tempo de responder, e, mesmo que tivesse, assim que ele começou falar,
ela perdeu totalmente a capacidade de formular uma frase: — Toda a vez
que olho para senhorita, imagino novas formas de lhe arrancar a roupa.

Quando ele a fitou, seu sorriso foi sumindo ao ver a expressão de


choque no rosto dela.

Por Deus!

Ele ultrapassara os limites da decência, sabia disso assim que


formulou a frase. No entanto, era Clarissa ali, a garota não ficava
constrangida, já o tinha visto nu, e, em todas as outras vezes que estiveram
juntos, ela falava bem mais do que deveria.

Por outro lado, tinha que ter pensado que aquele tipo de comentário
seria escandaloso demais.
— Desculpe — disse ele, levando a mão a nuca. — Não quis dizer
isso.

— Então o senhor não pensa nessas coisas?

— Claro que penso, mas não precisava dizer em voz alta. — Ronald
praguejou por ter mais uma vez falado demais. Ela riu da reação dele. —
Preciso manter minha boca fechada perto da senhorita.

— Claro que não — disse ela, colocando a mão nas costas dele de
uma maneira casual. Ele não sabia dizer se aquilo o fazia ficar feliz ou o
contrário. Queria ser amigo de Clarissa, mas uma parte sua queria ser mais, a
desejava demais para considerá-la assim. — Quero que fale essas coisas para
mim.

— Mesmo que sejam coisas devassas que quero fazer com a


senhorita?

Ela assentiu, dando um pequeno sorriso.

— É interessante ser o objeto de desejo de um homem.

Ele trincou os dentes.

Não gostava nem um pouco que Clarissa agisse como se ele fosse
apaixonando por ela como qualquer outro homem, gostava muito menos de
pensar em outro homem se interessado por ela.

Embora soubesse que um dia alguém se encantaria com ela.

Clarissa era preciosa demais para que ninguém nunca a notasse,


talvez tivesse ficado escondida por todos aqueles anos, mas, quando ela
fosse livre e não precisasse ficar presa à sombra de outra pessoa, a notariam,
eles olhariam na direção dela e não teria mais como a esconder.

— Ah, Clarissa Franklin. — Havia uma mistura de diversão e


constrangimento em sua voz. — Quando um homem expressa o desejo de
remover suas roupas, geralmente não é uma forma de elogio.
Ela soltou uma risada musical, seus lábios se curvando em um sorriso
maroto.

— O senhor já se contemplou no espelho? — provocou ela, erguendo


um pouco sua sobrancelha em um gesto ansioso. — Beleza certamente não
lhe falta.

Outra risada escapou dos lábios dele, sentindo-se surpreso e grato.

— A senhorita é realmente incrível.

— Está reprimindo seu desejo de me despir porque reconhece que


isso acarretaria uma série de complicações — disse ela, seu tom provocativo
revelando um brilho travesso em seus olhos. — Parece que tem uma atração
por encrenca.

Ronald lançou um olhar cativado em sua direção.

— Talvez devesse lhe dar mais crédito.

— Vamos lá, se o senhor estivesse em qualquer outro lugar e eu


cruzasse o seu caminho, seus olhos nem mesmo se virariam na minha
direção.

Ronald queria dizer que, mesmo em Londres, em um daqueles bailes


onde as mães querem expor as filhas como mercadoria, onde há uma
variedade de vestidos ousados e chamativos, seus olhos ainda se voltariam
para ela.

Não por sua aparência, que era bastante agradável, mas porque tinha
alguma coisa que sempre o puxava na direção dela.

Seria impossível não notar Clarissa, mesmo que tentasse evitar isso.

Ele sorriu.

— Apenas porque estaria muito ocupado sendo um estúpido, sei que


não parece, mas não faz muito tempo que me tornei esse homem tão
ajuizado — disse ele, sabia que não seria assim, mas ela não precisava saber.

— O juízo ainda carece.

— Sorte a sua, ou então quem seria seu marido de mentirinha?

— Não conheço muitos homens com os quais eu gostaria de fingir


ser casada além do senhor.

— Isso porque o único homem que conhece além de mim é seu


primo, que é quase uma criança.

— Talvez devesse lhe dar mais crédito — disse ela, o provocando


com suas próprias palavras.

— A senhorita é terrível.

— Terrível, incrível, se decida…

— Ambos, sem dúvida.

Ela sorriu e foi se afastando dele.

— Acredita que eu nunca tinha entrado no mar? — comentou ela.

Clarissa desistiu de proteger a barra do vestido, deixando-a ficar


encharcada.

Ele franziu o cenho.

— A praia fica a dez minutos da casa do seu tio — ressaltou ele.

Ele não conseguia imaginar seus dias sem uma caminhada à beira-
mar, nada lhe fazia tão bem.

Clarissa deu de ombros para disfarçar o constrangimento.

— Sempre tinha algo mais importante a ser feito, desde fazer


compras a ajudar meu tio com tarefas mínimas — contou ela. — O momento
certo nunca surgia.
Ele encrespou os lábios.

— E agora o momento chegou?

— Sim! Minha mãe estava me enlouquecendo. Eu poderia ter ficado


lá, mas preferi vir para cá. — disse ela, fechando os olhos, sentindo uma
rajada de vento. — Gostei da escolha que fiz.

Em um segundo, antes que pudesse pensar no que estava fazendo,


Ronald a pegou pelo braço.

Mesmo com o frio daquele dia, se era a primeira vez que ela entrava
no mar, deveria fazer da maneira certa, sem medo.

Ela gritou de susto, passando os braços envolta do seu pescoço, o


encarando com os olhos arregalados.

— O que pensa que está fazendo? — perguntou ela, o tom de voz


estridente.

— Estou lhe apresentando ao mar de verdade.

— Não! — gritou ela. — Meu vestido, ele…

Antes que ela pudesse falar mais alguma coisa, a água já tinha
molhado os dois e uma onda os carregava para baixo, e Ronald garantiu que
eles mergulhassem.

A água se encontrava congelante, como de costume naquela época do


ano, e, quando voltaram à superfície, as mãos dela se agarraram aos seus
antebraços, para se firmar.

Os dois sorriam um para o outro, e Ronald amou ainda mais o mar.


Não se lembrava de tantos momentos felizes que fossem longe dele.

— O senhor é completamente maluco. — O rosto dela tinha mechas


de cabelo para todos os lados, mal conseguia vê-la.
Ele as afastou com a mão.

— Se é para conhecer o mar, não pode ter medo.

Clarissa sorriu, ainda com as mãos agarradas aos braços dele.

Ele sentiria saudades.

Mais do que imaginou quando a conheceu.


Capítulo 12
Clarissa tinha preparado um lindo jantar.

Ou melhor, organizado um lindo jantar, o dia tinha sido maravilhoso,


em especial o final da tarde.

Agora, ela já estava de volta em sua personagem, com o cabelo preso


no alto da cabeça e o tradicional vestido marrom.

Naquela noite, vinham comendo em silêncio. Embora Clarissa


estivesse de bom humor, não queria que o clima pesasse com um comentário
feito pela mãe ou com um olhar do pai em sua direção, como se ela estivesse
os envergonhando, mesmo quando não tinha um único motivo para se sentir
assim.

Ronald também se encontrava estranhamente calado, o único som


audível era o dos talheres nos pratos.

— Passaram a tarde fora de casa — comentou a mãe, dando um


longo gole no vinho. — Sinto que estamos sendo evitados.

O comentário havia sido dirigido a Ronald, mas era certo que ele não
diria nada.

— Claro que não — disse Clarissa, preferindo se intrometer e acabar


logo com aquele clima que se estendia pela sala —, apenas desejávamos
passar uma tarde a sós.

A mãe voltou a mexer na comida.

— É claro! — declarou ela. — Um casal tão novo deve passar um


tempo a sós, afinal, os filhos precisam vir em breve, não é mesmo?

Clarissa sentiu a garganta se fechar.

— A senhora nem mesmo me desejava na família e agora já pede


netos? — indagou Ronald, antes que ela pudesse dizer alguma coisa.
— Bem, estão casados, isso é esperado de um casal.

— Estamos casados há menos de um ano — ponderou Clarissa, antes


que Denver tivesse a oportunidade de responder —, ainda é cedo para pensar
em filhos.

— É a primeira coisa que se deve pensar.

Clarissa observou a mão de Ronald se fechando em cima do


guardanapo.

— Sua filha não quer filhos — declarou ele, olhando de Clarissa para
a mãe, que lançou um olhar fulminante na direção da filha.

— Que despautério! Toda mulher deseja ter filhos.

Sentiu vontade de dizer que a mãe nunca tinha tido vontade de ser
mãe, na verdade, ela era usada como exemplo de sua maior decepção.

— Ela pode não querer.

— O senhor é um marinheiro…

— Exato, fácil de morrer, melhor não deixá-la desamparada e com


um filho, não acha?

— Acho que não entendem como um herdeiro é importante.

— Sou da Marinha. Não é como se tivesse muito o que deixar.

Clarissa alternava o olhar entre Ronald e a mãe, ainda sem saber o


que dizer e como agir, era como se não tivesse lugar naquela conversa, assim
como também não tinha lugar para o pai.

Era estranho pensar aquilo, já que seu casamento nem era real, mas
temia ficar igual ao pai, mais do que como a mãe. Não queria se tornar uma
cópia do pai, invisível.
Oscar não passava de uma sombra, servindo aos caprichos da esposa.
Com exceção dos sermões que dava na sua igreja, vivia aceitando que as
pessoas falassem por ele, como se não tivesse opinião própria.

— Parem! — disse Clarissa, com veemência. — Não vou ter filhos


porque não acho que agora seja o momento certo, e não porque a senhora
deseja que eu os tenha. É a minha vida, eu decido.

Clarissa não notou o que fazia até se ver virando o corredor, sentindo
mais raiva do que já havia sentido na vida.

Como fora tão burra a ponto de achar que um casamento seria a


solução para seus problemas, que magicamente seus pais parariam de pegar
no seu pé e deixariam ela seguir com a vida em paz?

Era uma tola por pensar que seu pesadelo acabaria quando, na
realidade, estava apenas começando.

Ronald sabia que era um tolo, mas não tinha ideia do quanto.

Estava tão ocupado tentando defender e proteger Clarissa a seu modo


que não reparou que vinha fazendo isso de uma forma errônea, que poderia
não ser isso que ela quisesse, talvez desejasse apenas alguém que ficasse do
lado dela, para apoiá-la acima de tudo.

Ele jogou o guardanapo sobre a mesa e se levantou.


— Por favor, o senhor está louco se deseja ir atrás dela, depois de
minha filha ter tido essa atitude tão infantil.

— E a senhora está louca se pensa que vou deixá-la sozinha em um


momento como este.

Edith riu, jogando a cabeça para trás.

— Que momento? — perguntou ela. — É óbvio que aquilo foi um


sinal de que minha filha não aprendeu nada do que ensinei.

— Graças a Deus! — retrucou ele antes de sair da sala.

Ele virou o corredor em busca de Clarissa, indo até o quarto dos dois.

Pensou na estranheza da própria frase, que era assustador dividir algo


tão pessoal com alguém. Não tinha mais do que uma mala pequena no
quarto, e, por enquanto, era o quarto dos dois.

Eles se deitavam lá todas as noites, dividiam aquele espaço, às vezes


até coabitavam em completa harmonia, quando acordavam e ele dirigia o
olhar carinhoso para ela. Ronald até esquecia que tudo era um faz de conta.

Bateu à porta, abrindo-a antes de escutar uma resposta.

Ela estava sentada perto da janela, seu rosto ainda com uma
expressão enfurecida, bem diferente do que Ronald costumava ver.

Mas, naquele momento, se ela não fosse tão pequena e não tivesse
bochechas tão redondinhas, sentiria até medo.

— Eu nunca quis ser pai, para ser sincero — Ronald puxou assunto,
tentando quebrar o gelo, mas tudo o que recebeu em troca foi um olhar
certeiro.

— Não faça piadinhas, Ronald.

Ele ergueu os braços, mostrando que não desejava brigar.


— Me desculpe. — Ele se sentou aos pés da cama, em frente à
poltrona onde ela estava. — Não costumo ser aquele tipo de pessoa.

— Por que eles não podem ser pais normais? — Clarissa levou as
mãos à cabeça. — Quer saber, o senhor não vai entender.

Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, sem olhar para ela, apenas
encarando o carpete.

— Meu pai não era um homem bom — confessou ele.

Ronald não falava muito do pai, em partes porque não gostava de


lembrar daquela época e em partes porque tinha medo de admitir que sentia
saudades, aquele não era um homem de quem ele deveria sentir saudades.

Depois de soltar o fôlego, ele ergueu o olhar e foi em frente:

— E não estou tentando dizer que ele era como o seu, calado,
indiferente a tudo que acontece com você. O senhor Wilson era horrendo,
violento e com uma inclinação para tortura.

E, por um segundo, ele viu pena no olhar e não gostou nada.

— Eu sinto…

— Todos sentimos muito — declarou ele —, quer dizer, há pais e


pais, o meu, por exemplo, era maldoso e sempre foi assim. Me fazia a
mesma pergunta que está se fazendo agora.

— E conseguiu uma resposta?

— Não. — Ronald deu de ombros, aquilo não tinha mais


importância. — Mas percebi, para minha alegria, que a falta de amor do meu
pai por mim era um problema dele e de mais ninguém. Não era porque não
merecíamos seu amor, e sim porque ele não possuía tal sentimento para nos
retribuir.

— Ainda assim deve ter sido difícil.


— E foi, às vezes, em breves momentos, ainda é — completou ele
—, mas decidi que nunca permitiria guiar minha vida por isto.

Ela se juntou a ele no chão.

— Não sei nada sobre o senhor.

Ele virou o rosto em sua direção.

— Agora sabe alguma coisa — retrucou Ronald.

— É tão pouco.

Era uma escolha consciente manter certos detalhes ocultos, como seu
verdadeiro sobrenome, para evitar laços que poderiam se tornar complicados
demais no futuro.

Ele não podia negar que, se houvesse uma oportunidade, talvez se


permitisse procurá-la outras vezes.

— Me fale uma coisa sobre você, em troca, falo uma sobre mim —
sugeriu ele.

— O senhor sabe tudo da minha vida.

— Claro que não.

— Caso não tenha notado, não tenho histórias boas para contar.

— Estou curioso.

— Sou boa em manejar espadas — revelou ela.

Ele sorriu.

— Pensei que minha única preocupação fosse com pistolas.

Clarissa também abriu um sorriso.


— Meu tio era um sobrevivente, achava que uma dama deveria saber
caçar e matar, se necessário — comentou ela.

— Que homem estranho.

Ela começou a fazer círculos no chão com a pontas dos dedos.

— Ele era um homem bom, nada sentimental, é claro que isso não
entrava nas coisas que ele achava importante — começou ela, parando por
um segundo, pensando se deveria continuar ou não. — Meu tio foi a
primeira pessoa que me fez sentir segura.

Aquilo partiu o coração de Ronald de forma inimaginável.

— Seus pais…

— A única coisa que eles fizeram por mim foi me ensinar a


sobreviver com o mínimo do mínimo.

Queria ir naquela sala de jantar e arremessá-los janela afora.

— Eles não merecem ser pais — atestou Ronald.

— Bom, eles nunca foram pais de verdade, não da forma que importa
— disse ela, com um meio-sorriso, como se nunca tivesse esperado nada dos
dois. — Sabe, a coisa mais horrenda era que eu compartilhava meu quarto
com o estoque de carvão.

As palavras foram ditas com risadas, mas Ronald não conseguiu


achar graça daquilo.

— Clarissa, seus pais te faziam dormir no porão de carvão?

Aquilo, além de perigoso, era de uma maldade exagerada.

— Meu pai precisava de um escritório, e a casa tinha apenas três


quartos, o outro era dividido entre os criados, isso quando meus pais me
davam o luxo de ter mais alguém para ajudar nas tarefas domésticas.
— Por que não permitiam que dividisse o quarto?

Ela deu de ombros.

— Meus pais são complicados de entender.

Ele os entendia e não gostava nem um pouco do comportamento


deles.

O antigo conde, seu pai, fazia as torturas por um motivo, não era algo
que justificasse a brutalidade ou a maldade, mas ele achava que, se colocasse
medo suficiente na esposa e filhos, nunca acabaria sozinho.

Os pais de Clarissa queriam humilhá-la, fazê-la se sentir


insignificante, para que fosse mais fácil de controlar.

— Agora, me diga algo sobre você.

— Eu tenho cinco irmãos, quatro irmãs e um irmão, mais


especificamente — contou ele.

Embora não devesse revelar detalhes de origem, não via problema


em contar algumas verdades à Clarissa.

— Irmãos, ah, deve ser uma verdadeira bênção!

— E são — admitiu ele, um pouco hesitante —, no entanto, de início,


eu não pensava assim.

— E agora?

— Sinto falta deles a maior parte do tempo.

Ela assentiu, respirando fundo.

— Meu primo, o dono desta casa — Clarissa fez uma pausa —, ele
me pediu em casamento, acredito já ter lhe dito isso.
Ronald a encarou, nem surpreso ou feliz, muito menos achando graça
da situação.

Por um motivo que não gostaria de pensar, a ideia de ter Clarissa


realmente se casando com outro homem, vivendo como esposa de outro, e
pior, se deitando com ele, não era nada agradável.

Aí estava uma coisa da qual não gostaria de saber.

— E a senhorita?

Ela deu de ombros.

— Disse não — ela se apoiou ainda mais na cama —, mas, agora,


talvez seja a solução para meus problemas.

— A senhorita já está casada.

— O fato de o senhor me chamar de senhorita prova exatamente o


contrário — pontuou ela, ainda sorrindo.

Por que ela estava sorrindo tanto enquanto falava do primo? Ronald
amava suas primas e nem por isso ficava de sorrisinho ao falar delas.

— Seus pais acham que já é casada, é o que importa.

— Se lembra que pretendo em breve matar o senhor?

— Por que, em vez de me envolver nisso, apenas não se casou ele?


— Ronald não conseguia mais esconder o seu mau humor. — Teria nos
poupados de muita coisa.

— Não era o que eu queria.

Ele balançou a cabeça.

— E o que te fez mudar de ideia?


— Ser viúva não vai manter meus pais afastados por muito tempo, ou
acha que renunciarão a mim tão facilmente?

Em tese, ela estava certa, nem precisava conhecer aqueles dois a


fundo, assim que eles tivessem oportunidade, iriam atrás dela.

Porém, não conseguia raciocinar direito naquele momento, Ronald


estava sendo levado pelas emoções.

— E a solução é se tornar a prisioneira de um homem?

Ela franziu o cenho ao encará-lo.

— O senhor nem mesmo o conhece.

— E nem preciso para saber que ele não é bom para a senhorita.

— Ele respeita a minha vontade, caso contrário, acha mesmo que


teria escolha? Se ele quisesse me obrigar, já estaríamos casados.

Ele trincou o maxilar, se colocando de pé.

Precisava sair daquele quarto, lembrar que aquilo não passava de um


simples acordo entre eles, que não eram nada além de uma mentira.

Clarissa poderia se casar com quem quisesse, assim como ele faria
um dia.

Aquilo era apenas um favor, ou melhor, o pagamento de uma dívida


que tinha com ela quando a conheceu, que pelo visto estava esquecendo.

Nada daquilo era ou poderia ser real.

— Ronald — disse Clarissa, se levantando, e foi atrás dele —, o que


há de errado?

Ele não respondeu, mesmo que houvesse uma lista infindável de


coisas erradas, ela não o entenderia, e, se o fizesse, não seria ainda pior?
Ronald não era tolo, mas que futuro teria para eles? Ainda que seus
sentimentos se mostrassem muito mais do que desejos, o que ele poderia
fazer?

De fato, discordava da maior parte de coisas que o irmão tinha a


dizer, mas a verdade era que ele vinha de mundo muito distinto para que
tivesse chance de ficar com ela, era o irmão de um conde, o próximo na
linha de sucessão. Tinha fé que nunca precisaria assumir o condado, mas,
depois da morte de sua cunhada Anny, sabia que seu irmão, que era devoto à
esposa, não voltaria a se casar.

Alguém como Clarissa, que não tinha nascido em berço de ouro,


seria engolida por pessoas que consideravam sua origem suja.

Seu tio mais abastado era um comerciante que tivera sorte na vida! O
pai não passava de um vigário.

Ela não teria chances contra as matracas que a fariam sentir vergonha
de todas as coisas que fazia Ronald amá-la.

Já havia sido difícil para Anny, que era prima de um visconde, como
não seria para Clarissa?

Se o mundo fosse justo, a origem dela não teria importância, mas a


verdade era que nunca poderia se casar com Clarissa de verdade, não se
ainda desejava ter algum contato com sua família, e mais ainda se quisesse
protegê-la.

Sabia muito bem como a alta sociedade via aqueles que não faziam
parte dela, Clarissa seria repelida.

Tinha vivido anos sem o peso do título em suas costas, mas agora ele
estava lá.

— Não há nada de errado — declarou ele, saindo do quarto.

— Isso claramente é uma mentira. — Ela estava bem atrás dele.

— Preciso tomar um ar.


— Assim tão de repente?

Ele parou, e o corpo dela trombou com o dele, o que piorava a


situação.

Ronald recuou e se virou para ela.

— Clarissa, tenho umas coisas para resolver — disse ele —, e não


seria nada bom que seus pais te pegassem aqui.

Ronald se virou e recomeçou a andar.

Que inferno.

Ela queria mandá-lo para o quinto dos infernos.

O que havia de errado com os homens, no fim das contas? Não


conseguiam dizer uma frase que fazia sentido, era somente um monte de blá-
blá-blá.

E mais, saiam porta afora como se o mundo estivesse em chamas e


eles realmente pudessem impedir tal desastre de acontecer.

Não conseguiu dormir, por isso tinha arrumado tarefas que nem
mesmo precisavam ser feitas para fingir que não se encontrava naquele
estado por Ronald.
Depois de reorganizar as coisas do tio uma dezena de vezes, decidiu
que queria tomar leite e estava se dirigindo para a cozinhar quando ouviu um
barulho no escritório.

Ninguém entrava ali a tempos, nem mesmo o tio, que, quando


adoeceu, não conseguia mais trabalhar.

Virou a maçaneta, adentrando no escritório.

— Pensei que tivesse saído — falou ela.

Ronald se sentiu aliviado por ver ela.

— É, foi a minha ideia no início — disse ele, olhando para o uísque


no copo— e, depois da minha saída melodramática, não sabia como retornar.
Seu tio tinha bom gosto para bebida.

Clarissa riu, ainda encostada na porta.

— O senhor é uma verdadeira incógnita.

— Acha mesmo? Me considero tão fácil de desvendar.

— O senhor...

— Senti ciúmes da minha esposa — confessou ele, dando de ombros


com um meio-sorriso. — Um sentimento normal, exceto pelo fato de...
— Eu não ser sua esposa.

— Aí é que começa a ficar complicado — Ronald virou o corpo


fazendo sumir o restante da bebida —, eu gosto da senhorita.

— O senhor parece embriagado.

— Estou… — ele se debruçou devagar na mesa — deve ser por isso


que falei demais, não é mesmo?

Clarissa caminhou até ele e se serviu de uma dose de uísque,


apoiando-se à mesa ao seu lado.

Ronald pensou que era uma bênção não ter que encarar diretamente
aqueles olhos bonitos.

— Sabe, eu também gosto de você.

— Ao menos a senhora está sóbria.

— Estou — concordou ela, virando o rosto para o encarar —, por


isso pode acreditar na minha palavra. O senhor me ajudou, mais do que
qualquer pessoa que cruzou o meu caminho em toda a minha vida, e,
infelizmente, mais do que as pessoas que me deram a vida.

— Isso é gratidão.

— Sim, mas não gosto apenas disso no senhor.

— Que bom, pois não há uma única coisa que não goste na senhorita.

Ela sorriu.

— É tão natural gostar de você — revelou ela, a alegria


transparecendo em sua expressão — quando se cresce com pais como os
meus, que constantemente afirmam que minha única obrigação é servi-los e
demonstrar gratidão, ou quando você é ensinada a se contentar com uma
vida mediana… essas crenças podem se enraizar em você.
— Eles não poderiam estar mais equivocados, Clarissa.

— Eu sei disso — continuou ela, depositando o copo sobre a mesa e


entrelaçando seus dedos nos dele —, principalmente porque você me
convenceu do contrário em apenas alguns dias. Você fez isso de uma
maneira tão sutil que talvez nem tenha percebido, mas conseguiu fazer com
que eu acreditasse que mereço muito mais do que uma vida comum. Você
me fez ansiar por coisas que sempre julguei inalcançáveis.

— Acredite, nunca encontrei alguém mais digno de uma vida plena


do que você — os dedos dele acariciaram suavemente os dela, e ele jogou a
cabeça para trás —, não gosto de pensar em você se casando com outro
homem.

— Isso é...

— Péssimo? — completou Ronald, rindo e a puxando para junto de


si.

De início, Clarissa pareceu surpresa, mas logo relaxou. No dia


seguinte, poderia culpar a bebida, ele era covarde, mas tinha que aproveitar
aquele momento.

O resto era mentira, quem era, qual a vida que tinha, mas ter Clarissa
em seus braços, enquanto riam de suas tragédias... isso era real.

— O que está fazendo, Ronald Denver?

— Estou prestes a beijar minha esposa — sussurrou ele, entrelaçando


às mãos no cabelo dela.

— Também não me parece ser uma boa ideia — Clarissa disse


baixinho, sem se afastar, até poderia jurar que ela havia diminuído o espaço
entre os dois.

— E por que seria? Eu sei que quero muito fazer isto — Ronald
mordeu o lábio em uma tentativa de ser paciente.
Queria beijar Clarissa, mas também a respeitava o suficiente para
mostrar que a escolha dela importava.

— Já gosto muito do senhor, não posso correr o risco de me


apaixonar — revelou, dando um sorriso contido. — Pense que tragédia seria
se um de nós sair desse acordo apaixonado.

Era apenas nisso que vinha pensando nas últimas noites.

— Poderia funcionar.

— Eu nem sei seu verdadeiro sobrenome.

Era verdade.

— Denver. — Uma meia verdade.

— Entramos nisso para salvar um ao outro…

— Talvez nos salvemos de outras formas.

— Anda lendo muitos romances, senhor.

— E o único que me importa é o nosso — murmurou ele, a fazendo


rir.

— Sempre joga esse charme nas moças? — divertiu-se.

— Apenas antes de saber que precisaria dele para usar com a


senhorita.

— O senhor sabe que isso não passar de um flerte, antes do próximo


porto.

— Somos mais do que isso Clarissa, eu…

— Temos algo — ela ergueu a mão, hesitando antes de tocar no rosto


dele —, mas com certeza não é motivo suficiente para arriscamos o que
temos agora.
— E o que temos agora?

— Respeito, gratidão…

— Desejo — disse ele — atração e uma química inegável.

— Bem…

— É a verdade, por mais que tente negar — admitiu ele, encostando


a testa na dela —, sei que a senhorita não conseguiu dormir sem mim.

Ela encostou os lábios no dele, dando-lhe a permissão que ele


precisava para continuar.

Ronald a beijou com ternura, tomando os lábios dela para si, como se
fosse a primeira e a última vez.

Quando seus lábios se encontraram, Ronald foi envolvido por uma


sensação arrebatadora, como se o universo inteiro tivesse se congelado para
testemunhar esse momento. Cada detalhe se encaixou com uma perfeição
divina. A suavidade dos lábios dela contra os seus gerou uma corrente
elétrica que percorreu todo o seu corpo, fazendo com que cada pelo se
eriçasse em resposta a essa conexão eletrizante.

Cada segundo que passava, ela se rendia gradualmente a ele, e o


beijo aprofundava-se de forma ardente e intensa, como se quisessem se
fundir em uma só existência.

No calor desse momento, Ronald transmitia através do beijo todas as


emoções que não poderiam ser expressas por palavras. Cada toque de seus
lábios dizia o que estava escondido no canto mais profundo de seu coração,
cada sentimento que havia sido guardado com zelo.

Quando enfim se separaram, seus olhares se encontraram. Havia


promessas e medos, desejo e vulnerabilidade. Nesse momento, Ronald sentiu
um misto de euforia e temor, pois ele sabia que aquele beijo tinha criado um
padrão impossível de ser igualado.
A ideia de beijar outra mulher parecia vazia.

— Promete que esquecerá esse beijo? — pediu ela.

Ela negou com um gesto de cabeça.

— Nem mesmo se eu quisesse.

Clarissa se afastou dele, dando um meio-sorriso.

— Melhor eu ir dormir — disse ela, e ambos sabiam que desta vez


ele não a acompanharia.

Ronald tinha medo do que diria se abrisse a boca, por isso apenas a
encarou enquanto sumia pelo corredor.

Ronald tinha saído para tentar amenizar o turbilhão de coisas que


tinha na mente, para entender o que estava acontecendo com ele, no entanto
estava voltando para aquela casa com mais dúvidas do que certezas.

Tinha acordado na poltrona do escritório, com um torcicolo terrível,


e sua cabeça latejava, o lembrando da garrafa quebrada de uísque no chão, já
que todo o resto ainda estava bem vívido em sua mente.

Clarissa era apenas um acordo. O pagamento de uma dívida.

Antes, tinha convicção de que não se apaixonaria tão cedo, não que
tivesse algo contra o amor, gostava da ideia de formar uma família, apenas
não poderia acontecer antes de ele se sentir feliz com os próprios feitos, e,
naquele momento, não era a hora mais certa.

Estava em terra firme porque um dos seus homens havia morrido e


ainda não sabia lidar com a perda. No começo, não queria ficar aportado,
mas, de uma hora para outra, tinha um motivo mais do que válido para ficar.

Uma mulher preciosa, uma possível esposa.

Ronald poderia se casar com Clarissa, assim ela não chegaria a


pensar na proposta do primo. Era uma solução boa, mas nada fácil de se
colocar em prática.

Sempre pensou que se casaria com Julia Bergman, a irmã do seu


cunhado e amiga dele e da sua irmã. Mas, diante daquele vínculo fraternal,
mesmo que combinassem, ambos concordavam que um não amava o outro
como um casal.

Embora não existisse nenhum acordo firmado, sabia que nada


deixaria sua família mais orgulhosa do que aquela união.

Já uma união com Clarissa… os deixaria furiosos, ao menos uma


parcela da família, Morgan, sua irmã mais nova, amaria a ideia de ter alguém
como Clarissa como cunhada.

Mas Tobias não aprovaria, e, mesmo que mentisse para si mesmo, o


motivo de ter tomado todas as decisões até agora era para que um dia o
irmão sentisse orgulho dele.

Ainda que naquele momento tivesse raiva de Tobias, porque sentia


que estava começando a se apaixonar por Clarissa, o irmão nunca aprovaria
tal união.

E quem não se apaixonaria por ela?

Ronald a achava encantadora.

Sabia que ela era exatamente a pessoa que a família não desejava
para ele.
Quer dizer, a pessoa que Clarissa fingia ser era uma boa escolha:
obediente na medida certa, educada e, por muito pouco, não era muda, já
que, na maior parte do tempo, não expressava opinião.

Ele, por outro lado, odiava vê-la calada, acuada. Era essa Clarissa
que queria apagar. Queria que pudesse ser ela mesma, com os acertos, falhas
e tudo mais.

Para alguém que tinha lutado muito para se encontrar como ele, era
terrível vê-la tão reprimida diante da própria família, mesmo tendo tanta
consciência de quem era e do que queria na vida.

Também tinha medo de como vinha agindo, não era do feitio dele
não saber se portar.

Ronald passou a mão na nuca, adentrando na casa, e a primeira


pessoa que encontrou foi o senhor Walker, o mordomo.

Forçou um sorriso diante a expressão de nojo do homem.

— Já sei que o senhor não gosta de mim, não precisa ficar andando
por aí fazendo careta toda a vez que me vê — declarou Ronald, já
começando a subir as escadas.

O homem lançou outro olhar desdenhoso para ele.

— Ainda bem que só terei de suportar o senhor por mais algumas


horas. Estou indo preparar a carruagem para a família Franklin partir.

Ronald parou, segurando no corrimão, e voltou seu olhar para o


homem.

— Eles já estão de partida?

— Apenas aguardavam a chegada do senhor — confirmou ele e


depois rumou para os estábulos.
Ronald esperou a onda de alívio chegar, mas nada veio, não sabia
como se sentia em relação àquilo.

Nada mais o prendia ali, poderia ir embora, sua presença agora não
renderia nada de bom, não tinha motivos para ficar, apenas para ir.

Sua ideia era subir, conversar com Clarissa.

Porém, se não se sentia pronto para falar com Clarissa minutos antes,
naquele momento, menos ainda. Voltou para os degraus da entrada da casa.

Aguardaria a partida dos pais dela ali, onde poderia fingir que estava
feliz e quem sabe até se convencesse disso.
Capítulo 13
Clarissa respirava fundo enquanto via os pais descerem os degraus
até onde ela e Ronald estavam.

Tinha chegado ali fazia cinco minuto, e nenhum dos dois tinha dito
uma palavra, nem um cumprimento rápido, nada além de um silêncio
incômodo.

Havia muitas coisas a serem ditas, começando por um “muito


obrigada”.

Ronald tinha feito mais por ela do que sua própria família, não se
esqueceria disso.

Jamais.

Ele ficaria gravado em sua memória como a pessoa que lhe deu a
chance de viver a vida que realmente merecia.

Não podia simplesmente negar o óbvio, estava furiosa, porque uma


parte sua, uma grande parte sua, queria ele. Em algum momento de toda a
farsa, Clarissa tinha começado a desejar que aquela história fosse verídica,
queria que Ronald fosse seu marido, queria que alguém a protegesse, até
mesmo que lutasse pelos seus objetivos do seu lado.

Queria ter alguém no mundo que se importasse com ela, e não com o
que ela poderia oferecer, gostaria que alguém lhe estendesse a mão, sem
desejar tirar algo dela.

Por Deus!

Clarissa não desejava nada disso antes dele.

Antes, não sabia que queria viver um grande amor, não sabia o que
estava perdendo por ser tão solitária. Agora, depois de tudo o que houve
entre eles, viu como era bom poder conversar com ele enquanto encarava o
teto do quarto, viu que gostava do som da sua risada misturada com a dele.
Não queria ficar sozinha.

Queria ficar com ele.

Ela juntou as mãos na frente do corpo, entrelaçando-as.

Não sabia o significado de família, nunca havia feito parte de uma,


mas tinha Ronald, e, por um tempo, embora curto, ele a fez compreender
como era fazer parte de uma família de verdade, uma que a amava e a
protegia.

Ela se virou para ele, que ainda encarava o horizonte à frente.

Respirou fundo e se acalmou.

— Obrigada! — O olhar de Ronald recaiu sobre ela no mesmo


instante. — O senhor fez muito por mim, mais do que qualquer pessoa, não
me esquecerei disso. Pode não ser muita coisa, mas o senhor terá minha
gratidão e amizade para sempre.

Ele assentiu lentamente, voltando o olhar para a frente sem falar uma
única palavra, e o silêncio reinou de novo entre os dois.

Ronald parecia indeciso, como se não soubesse o que falar.

— Eu não quero sua gratidão, muito menos sua amizade.

As palavras dele pegaram Clarissa de surpresa, e sentiu seu corpo


recuar institivamente.

— Eu não entendo…

— Tem certeza que não entende? — perguntou ele, a encarando.

Clarissa negou com um gesto de cabeça.

— Eu quero você, Clarissa — revelou ele —, e não estou falando de


casamento, eu a quero como minha amante, por isso não consigo aceitar a
ideia de vê-la se casando com seu primo.

Agora ela estava sem palavras.

Mas, com certeza, se fosse dizer alguma coisa, era que não seria
amante de ninguém, poderia não se casar, mas também não se tornaria um
objeto para um homem.

Clarissa, acima de tudo, queria a liberdade dela.

Ronald era um marinheiro, deveria ter uma amante em cada porto.


Mesmo que aquela declaração tivesse a feito sentir um frio na barriga de
emoção, também tinha a feito ver um lado dele do qual não gostava.

Não era uma dama ou uma lady, mas tinha seu valor. Ronald, por
outro lado, mostrava que não via isso nela.

Incrédula, ela apenas balançou a cabeça e voltou a olhar para a


paisagem à sua frente.

— Não vai dizer nada? — perguntou ele, fazendo-a virar a cabeça


com tanta rapidez que pensou que ela sairia fora do lugar.

— Há alguma coisa a ser dita?

Ele balançou a cabeça, como se estivesse procurando as palavras


certas. Coisa que deveria ter feito minutos antes.

— A sinceridade agora é tudo o que temos.

— E o senhor quer que eu diga que seria uma honra ser sua amante?
— indagou ela. — Que não poderia ter algo mais maravilhoso?

— Bem — começou ele, inclinando a cabeça para o lado —, a


senhorita me viu nu, então, sim, esperava que dissesse isso.

Ela ficou boquiaberta.

— O senhor é…
— Um cafajeste, essa é a palavra certa?!

— O que o faz pensar que eu gostaria de me tornar apenas mais uma


mulher da sua lista?

— Gostaria de deixar claro que nunca fiz lista alguma — ele parou
por um segundo —, ao menos nunca escrevi uma.

Clarissa saltaria em cima dele.

Assim que estava prestes a responder, a porta da casa foi aberta, seus
pais estavam acompanhados de dois criados daquela casa, como se
realmente precisassem daquela pompa para ir embora.

Só queria colocá-los dentro da carruagem e mandá-los para o outro


lado do mundo, ou para além dele!

A mãe parou na frente dos dois com um sorrisinho no rosto, aquele


sorriso que usava quando queria mostrar que tinha razão sobre algo que
Clarissa nem imaginava, quando sua esperteza e maldade se equiparavam.

Não gostava daquela expressão da mãe. Contava os minutos para se


livrar dela.

— Até breve, minha querida — disse ela, passando a mão no rosto de


Clarissa, que se encontrava paralisada.

A mãe não demonstrava carinho em relação a ela, nem mesmo sabia


o que era isso, a mulher era uma pedra de gelo que não derretia.

— Até breve — repetiu —, mas não tão breve assim, certo?!

Ela não poderia deixar de perguntar.

O sorriso da mãe aumentou ao se direcionar a Ronald.

— Em umas duas semanas, querida, a família do senhor Helton nos


convidou para um jantar.
— Quem é o senhor Helton? — perguntou ela, por que com certeza
não havia sido convidada para jantar nenhum.

Ela se virou para Ronald. A expressão no rosto dele a deixou


assustada, era como se ele quisesse passar as mãos envolta do pescoço da
mulher.

— Quando conversou com minha família?

— Ah, querido, Londres não é tão longe — declarou sua mãe. —


Mandei uma carta falando da minha felicidade em ter entrado para uma
família maravilhosa.

Ela se voltou para Clarissa.

— Quem imaginava, minha filha… uma lady!

A mente de Clarissa girava em uma velocidade tão alta que ela nem
sequer conseguia separar uma ideia da outra.

Família de Ronald.

Helton.

Lady.

As roupas dele, o tecido chique demais para ser de um simples


marinheiro, sua maneira de agir e se portar, não era a maneira de um homem
que recebia ordens, e sim de um que as dava.

— Helton?! — Clarissa se dirigiu a Ronald, perplexa.

Ele não respondeu, fitava a senhora Franklin com um olhar que seria
capaz de fazê-la queimar.

— Sim, irmão de um conde — foi sua mãe quem respondeu. —


Nunca imaginei que faria uma escolha tão maravilhosa de marido. Acredita
que eles ficaram felizes em nos oferecer uma casa em Londres para ficarmos
enquanto seu pai resolve os problemas por lá?

Ela não sabia com quem estava mais furiosa.

Sua mãe tinha envolvido a família de Ronald naquilo, e não era


qualquer família, era uma que pertencia à nobreza!

E Ronald tinha escondido quem era de verdade. Em hipótese alguma,


teria envolvido um homem daquela posição em seu teatro se soubesse que
era nada mais, nada menos que o irmão de um conde, sobretudo porque ela
conhecia os pais que tinha.

Eles iriam atrás de qualquer moeda, de qualquer favor ou vantagem


que essa família pudesse oferecer, envolveriam Ronald, Clarissa e qualquer
pessoa até o pescoço, sem se importar com mais nada.

Os pais não tinham limite ou respeito.

Ela encarou a mãe de uma maneira que nunca havia feito antes.

— A senhora não tinha esse direito!

A mulher ergueu a sobrancelha.

— Qual? Apenas conversei com a família do meu genro. Esse é mais


do que meu direito, é minha obrigação.

— Se ele desejasse que a senhora conhecesse a família dele, teria


apresentado. Caso contrário, a única coisa que lhe cabia era respeitar.

A mãe fez uma careta.

— Quem pensa que é para falar comigo desta maneira?

Ela deu um passo à frente, engrandecendo-se.

— Como a senhora falou, sou a uma lady, não é mesmo?


A mãe riu com desdém.

— Por favor, Clarissa, eu sou sua mãe…

— E exatamente por isso que recusará o convite.

— De jeito nenhum.

— Sim, a senhora vai recusar, ou eu mesma cuidarei disso.

— Menina tola! — disse o pai, aproveitando as melhores palavras


para se dirigir a ela. — Desde quando acha que pode nos enfrentar.

Ela balançou a cabeça, alternando o olhar entre os dois.

— Vocês são de longe a minha maior vergonha.

Se virou, indo para dentro da casa, não ficaria mais um segundo ali
com aqueles salafrários.

Estava morrendo de vergonha de olhar para Ronald, não sabia como


se desculpar por aquilo.

Como ele explicara que havia se casado com uma moça que mal
tinha onde cair morta? Ou melhor, como diria que tudo não havia passado de
uma farsa, uma coisinha que os dois haviam decido fazer para ela se ver
livre da família?

Sentia vontade de vomitar.

Deveria imaginar que os pais não partiriam assim, antes da hora, sem
que estivesse acontecendo alguma coisa séria.

Estavam tirando proveito da situação, mal sabiam que, quando


Ronald contasse a verdade à família, eles seriam postos para fora da casa,
com as mãos abanando.

Agora, Clarissa apenas se prepararia para fugir daquele lugar, não


poderia permanecer ali e esperar pela reação dos pais quando descobrissem a
verdade.

No retorno deles, já estaria longe, daria um jeito de levar a vida em


outro condado. Tudo o que tinha acontecido apenas lhe mostrava o óbvio:
sua família era um castigo que não conseguiria mais carregar.

Naquele momento, estava protegida pela mentira, mas, assim que


soubessem que ela não tinha nenhum valor, dariam um jeito de se livrar dela,
ou melhor, de transformá-la em algo rentável para eles.

Não ficaria sentada esperando o que os dois planejariam de mais


maquiavélico para ela, dessa vez, se adiantaria.
Capítulo 14
Se Ronald precisasse de qualquer coisa para provar o autocontrole
adquirido na Marinha, aquele era o maior exemplo.

Não fez nada, não pulou em cima daquela mulher detestável, não
gritou para expulsá-la dali, não a xingou de todos os palavrões que tinha
aprendido a bordo, apenas falou um “até breve” e que estava ansioso para
que eles conhecessem sua família.

Sua família agora pensava que ele tinha se casado às escondidas e


sabia que estava em terra firme, mas não havia mandado uma única carta
para avisar.

Por Deus!

Sua mãe deveria estar tão magoada com Ronald, tinham perdido
Anny havia três anos, aquilo era uma ferida recente demais, e agora o
casamento do seu último filho tinha ocorrido em segredo, como se ela não
fosse importante o suficiente para ele a convidar.

Fora o irmão que deveria, naquele momento, tê-lo deserdado, ou


melhor, deveria estar a caminho dali. Isso com certeza era algo que ele e o
resto da família fariam.

Aquela mulher asquerosa e digna de todos os impropérios tinha


mexido em seus pertences.

Era surpreendente não ter pensado nisso logo que aquela mulher
tinha mudado de comportamento.

A maldita mala que tinha levado para aquela casa.

A questão era que confiava muito em Clarissa e achou que os dois


não seriam capazes de invadir o quarto da filha agora casada.

Um pensamento tolo, sem dúvida.


Afinal, do que aquela mulher não seria capaz?

Na certa, tinha descoberto aquilo havia muito tempo.

Odiava aquela megera.

Não apenas por ser enxerida, mas também por todo o mal que fazia à
filha, a maneira como subestimava Clarissa, por achar que ela era uma
propriedade sua e tirar proveito disso, sem considerar que filha seria afetada
nesse processo.

Ao menos, Clarissa tinha a enfrentado, não que isso fosse servir para
parar a mulher, ela ainda assim tentaria se aproveitar da família Helton.

Mas logo os Franklin cairiam do cavalo. Tobias era esperto, logo


perceberia as maquinações dos pais de Clarissa e não permitiria que
ficassem na aba de sua família.

Ele também não permitiria.

Antes, precisava explicar toda essa confusão à mãe e aos irmãos, e,


assim que as coisas se acalmassem, cuidaria pessoalmente para que os
Franklin nunca mais cruzassem o caminho de sua família, e isso incluía
Clarissa. Ele garantiria que aqueles dois nunca mais pronunciassem o nome
dela.

Subiu as escadas, pulando de dois em dois degraus, e entrou no


quarto que os dois dividiam, mas Clarissa não se encontrava ali. Ronald
então saiu abrindo cada porta, até encontrá-la em um quarto que deveria ser
o que ocupava antes daquilo tudo começar.

Ele nem conseguia entrar em pé no quarto, por isso parou na porta,


vendo ela jogar tudo dentro de uma bolsa velha.

— Para onde nós vamos? — perguntou ele.

Ela parou por um segundo antes de voltar a colocar as coisas dentro


da bolsa.
— Assim que contar para sua família que tudo não passou de uma
farsa, meus pais virão atrás de mim, portanto não ficarei esperando aqui de
braços abertos — declarou ela enquanto verificava se havia mais alguma
coisa para guardar.

Uma lástima notar que tudo o que ela tinha cabia em uma pequena
bolsa.

— Não pretendo contar que tudo é uma farsa para eles.

Ela franziu o cenho.

— E o que vai fazer? Me matar, como planejei fazer com você? —


começou ela. — Porque, agora que aqueles dois descobriram que o senhor
tem dinheiro, irão até o inferno atrás de nós.

Ele deu de ombros.

— Ainda não sei o que fazer, mas com certeza não posso chegar para
o meu irmão e falar que não sou casado de verdade.

— Mas é de fato um casamento de mentira.

— Eu sei.

— O senhor não pode sustentar isso até a morte — pontuou ela,


colocando as mãos no quadril.

— Sim, também concordo com a senhorita.

— Então, o que pretende fazer?

— Aí é que mora o perigo, isso eu ainda não sei te responder.

Na verdade, não era o momento certo para dizer, com todas as letras,
que pretendia se casar com ela.

Sem os pais no seu pé, Ronald e Clarissa teriam tempo para se


conhecerem de verdade, apresentaria ela ao seu mundo, observaria se ela
conseguiria ser feliz, e então tornaria aquela união real.

Sua única preocupação era a reação da família, e, agora que já teria


que lidar com isso, a coisa tinha ficado extremamente clara.

A mãe de Clarissa tinha feito algo estúpido, desrespeitoso e, sem


dúvida nenhuma, quando o fez, pensava apenas em seu próprio bem-estar,
sem levar em conta mais ninguém. Entretanto, a mulher tinha facilitado e
muito as coisas para Ronald.

— O senhor é o filho de um conde! — Clarissa lembrou, levando as


mãos ao rosto. — O que estava pensando quando, dias atrás, correu nu por
aí?

— Pensei que tínhamos combinado de não tocarmos nesse assunto.

Ela o encarou, boquiaberta.

— Como pode estar tão calmo?

Ele deu de ombros e suspirou.

— Não havia outra opção, do contrário poderia ter feito coisas com
seus pais que não te deixariam feliz.

— Acredite, seria merecido.

— Sim. Minha família está vindo para cá por culpa deles.

— O conde?

Ele assentiu.

— Um conde está vindo para cá?! — murmurou ela. — A única vez


que vi um conde foi quando… — ela parou para pensar. — Ah, céus! Eu
nunca vi um conde!

Ronald riu, levando a mão a boca.


— Não ria de mim, por que não me disse que era rico?

Ele fez um sinal com a mão, se desculpando.

— Não era algo importante.

— Sério? Ser rico não é uma informação importante? — retrucou ela.


— O senhor pelo menos é da Marinha?

— Sim — ele fez uma pausa —, mas talvez eu não tenha sido tão
sincero quanto a minha importância.

Ela semicerrou os olhos, em advertência.

— Ronald…

— Sou o capitão de uma embarcação.

Clarissa balançou a cabeça.

— O que o senhor estava…

— Ora, por favor, prefiro mudar de assunto, não repita sobre aquele
dia.

— O senhor é rico, rico, e da nobreza! — alarmou-se ela, andando de


um lado para outro, o que dava uns três passos pequenos para cada lado.

Aquilo estava deixando Ronald agoniado.

— Não era importante…

— Como não? E meus pais? Eles vivem à procura de pessoas para


tirar proveito delas, nem que seja uma casquinha. Agora, eles não sairão do
seu pé, Ronald. Se existia alguém que descobriria a sua origem nobre,
seriam eles, porque é o que fazem da vida…

— Pode se acalmar?
— Não! — Clarissa quase berrou. — Tudo o que eu queria era ser
livre, livre para fazer o que quiser, até plantar batatas, queria ser livre para
ter um emprego decente, e, agora, agora eles vão se transformar na minha
sombra.

— Não vou permitir isso, Clarissa.

Ronald se abaixou para entrar no quarto, foi até ela e segurou sua
mão.

— Meus pais não lhe pedirão permissão.

Ele segurou o queixo de Clarissa, fazendo com que ela o olhasse.

— Não entende o que estou dizendo? — Ele mantinha a voz baixa


para tentar acalmá-la. — Sou um capitão, sou da nobreza, seus pais não
podem contra mim, a minha palavra tem peso e você é minha esposa.

Pelo balançar de cabeça dela, as palavras de Ronald tiveram o efeito


contrário.

— Não, eu sou uma farsante! — desesperou-se ela — E, quando a


sua família descobrir tudo, vai mandar me prender.

— Outra coisa que não vou permitir… — Ronald acariciava a mão


de Clarissa enquanto falava. — Se seus pais não descobriram o nosso
segredo, minha família também vai acreditar que é verdade, só precisamos
ser mais críveis.

— Eu não vou mentir para pessoas que podem me fazer sumir do


mapa em questão de instantes.

Ronald se afastou dela e cruzou os braços.

— Que tipo de pessoa pensa que tem na minha família?

— Não sei, mas o fato de você mentir sobre eles não me deixa nem
um pouco confortável.
Ele recuou até a porta.

Aquele comentário, vindo logo de Clarissa, era uma grande


hipocrisia. Tudo o que ela vinha fazendo era mentir, mentir sobre o
casamento, sobre quem era… Ele não era o único mentiroso ali, a mentira
englobava os dois.

Ela mentia até mesmo sobre o que sentia por ele.

— E a senhorita estava sendo muitíssimo sincera com os seus pais,


não é mesmo? — ele a acusou.

— Ao menos eu tinha um motivo válido, me fale o seu?

Ele balançou a cabeça.

— É tão surpreendente assim que eu não queira falar da minha


família para uma pessoa que mal conheço?

— E agora, por incrível que pareça, acha adequado me apresentar


como sua esposa? — declarou ela.

— Não acho uma boa ideia, se não me engano, foi sua mãe quem
contou sobre o meu recente casamento — começou ele, cansado dela o
colocar como um vilão. De fato, não tinha lhe dito quem era sua família ou a
posição social que ocupava, mas nunca tinha mentido sobre quem ele era.

— Poderia ter nos poupado dessa dor de cabeça se o senhor tivesse


sido sincero no primeiro dia.

— E a senhorita por acaso acreditaria em mim? — perguntou ele,


gesticulando de braços abertos. — Pelo que me lembro, a senhorita nem
achou que eu fosse um simples marinheiro.

— Poderia ter me falado depois, já vestido.

Ronald suspirou.
— Bem, eu não ficarei aqui sendo acusado de coisas que obviamente
não são minha culpa — disse ele. — E aconselho que não gaste seu tempo
enchendo sua mala de viagem, já que, ao chegar em Londres, a senhorita terá
que fazer muitas compras.

Àquela altura, ambos estavam furiosos, e ele não cederia em hipótese


alguma, tinha ido ali com o intuito de montarem um plano, e não para
discutir.

— Não tenho um mísero xelim.

— Que bom que tenho muitos! — Ronald repuxou os lábios,


formando um sorriso debochado.

Ele achou que ela atiraria alguma coisa bem pesada na sua cabeça.

— Não preciso do seu dinheiro, Vossa Graça! — ela retrucou, as


mãos firmes nos quadris, o queixo erguido com orgulho.

— Vossa Graça é para o meu irmão, sou apenas lorde Helton.

— O senhor é o verdadeiro culpado por essa confusão — afirmou


Clarissa.

— Aguardarei com ansiedade o momento em que irá recobrar o


juízo.

— Posso me recusar a ir.

Ele deu de ombros.

— Tudo bem, quando o conde chegar, explique para ele por que está
sendo contrária às decisões do seu marido.

— O senhor não é o meu marido.

— Ora, foi a senhora quem me deu esse cargo, e agora não vou pedir
dispensa dele até que seja meu desejo.
— Apenas porque pensei que era um pobre coitado que não tinha
onde cair morto.

— Então, não se sente atraída por homens que têm dinheiro? — ele
provocou, um traço de desdém em sua voz, as sobrancelhas levantadas em
expectativa.

— O senhor podia pegar um barquinho furado e ir para…

— Olha, cuidado com as palavras! — alertou ele em tom de


zombaria. — É filha de um vigário.

Ela cruzou os braços, sentando-se na beirada da cama, e empinou o


nariz.

Vinha sentindo falta daquela Clarissa.

— Usarei os meus vestidos, não quero nada do senhor, lorde Helton.

— A teimosia combina mesmo com você — provocou ele e saiu em


disparada pelo corredor.
Capítulo 15
Mais uma vez se encontravam na frente da casa do tio, mas naquele
momento, diferentemente da maioria das vezes, Clarissa não a achava
bonita, grande e bem estruturada, apenas pensava que, para condes e sabe-se
lá mais o que, ela não era nada acolhedora.

Os Heltons deveriam ter casas imensas como aquelas descritas nos


livros, já aquilo… não passava de um barraco.

Ronald, que se encontrava do seu lado, trajava seu uniforme da


Marinha. Dava para acreditar? O homem era mesmo um capitão a serviço da
Coroa!

Clarissa nem se acreditava que vinha dividindo o mesmo teto com


alguém de tamanha importância.

Levando em conta que a família dele não sabia de nada sobre os dois
até a mãe meter o nariz onde não devia, ele poderia muito bem ser taxado de
louco por ter se casado com uma menina do interior, que a pessoa mais rica
da família era um comerciante de joias, que por um milagre, um grande
milagre, tinha dado certo.

Já ela, era somente a filha de um vigário.

Havia escolhido seu pior vestido, ele tinha alguns buracos na bainha
e as mangas já estavam comidas.

Era marrom, tenebroso, assim como seus sapatos, que estavam


soltando a sola e, a cada passo que dava, faziam um som irritante.

Fazia três dias desde que os pais dela haviam ido embora, desde
então, Ronald não havia saído daquela casa, tudo o que o homem fazia era
ficar sentado em frente à janela.

Agora, entendia o que ele aguardava.


Tinha vestido aquela roupa para provocar Ronald, mas naquele
momento só queria cavar um buraco no chão e se enfiar nele.

— Está uma manhã adorável, não acha? — disse ele, que, com
aquele uniforme, aquelas medalhas no peito e aquele olhar arrogante, ficava
ainda mais atraente.

Ela fez uma careta.

— Ainda pode voltar atrás e dizer que sou sua criada.

Ele riu, fitando o chão.

Acompanhou o olhar de Ronald até parar nos sapatos dele, eles


provavelmente custavam muito mais do que o salário anual dos criados do
tio.

— Ficarei orgulhoso de dizer que é minha esposa. — Ronald desviou


o olhar para ela. — A teimosia é algo que tem de sobra na minha família,
então, desista, não vai conseguir me vencer.

— O senhor será humilhado. Ou vai me dizer que um homem como o


senhor se casa com uma moça como eu?

Ele balançou a cabeça de um lado para o outro, refletindo.

— Uma mulher doce, gentil e corajosa? — perguntou ele. — Poucos.

— Eles não vão me aceitar, não sou adequada, sou pobre.

— Tenho dinheiro de sobra para compensar.

— Eles podem deserdá-lo, Ronald.

Não conhecia nada da vida dele entre a alta sociedade ou que tipo de
pessoa encontraria na família dele. Por outro lado, passou a vida servindo
pessoas de alta classe, sabia como era ser olhada dos pés à cabeça por essa
gente, não queria sentir vergonha de quem era, da sua origem.
— Terão de respeitar minha escolha.

— O senhor consegue mesmo ganhar de mim no quesito “teimosia”.

Não fazia sentido uma pessoa como ele estar naquele lugar. Pessoas
ricas, ainda mais da Marinha, passavam com frequência por ali, era uma
cidade portuária importante, afinal, mas ninguém ficava por muito tempo.

— Por que, no final das contas, o senhor ainda está nessa cidade? —
perguntou ela, o encarando.

— Não tinha mais nenhum lugar onde desejasse estar.

— Mais uma mentira, lorde Helton? — perguntou ela com desdém.

— Não sei, me diga você, já que sabe tanto sobre mentiras.

Clarissa semicerrou os olhos na direção dele.

— Ainda tenho a opção de virar as costas e me trancar no quarto,


sabia disso?

Assim que terminou de falar, avistou uma carruagem vindo em


direção à casa, e logo em seguida outra, e outra, e outra e outra. Cada uma
maior e mais exuberante que a outra, não parecia que aquela fila acabaria tão
cedo.

Eram cinco carruagens no total.

Ela se virou para Ronald, que franzia as sobrancelhas.

— Não sabia que viria todo mundo — disse ele, que parecia sincero,
mas não surpreso.

A primeira pessoa a saltar da carruagem era uma mulher. Corrigindo,


a primeira a descer da carruagem. Pessoas assim saiam com toda a elegância
e graça que Deus poderia dar a uma mulher, já Clarissa, pulava.
Os cabelos louros como fios de ouro puxados para trás, com cachos
caindo pelos ombros, ela tinha os mesmos olhos do irmão, mesmo que os
cabelos fossem de tons tão diferentes.

Era oficial.

Clarissa não tinha como se portar como uma pessoa daquela família.

A mulher trajava um vestido azul, de viagem, é claro, porque não era


tão rodado ou esvoaçante. Clarissa queria esfregar seu rosto no tecido de tão
macio que ele parecia ser.

Logo em seguida, veio um homem atrás dela.

E beleza parecia ser uma exigência para fazer parte daquela família.

Clarissa estava tão focada naqueles dois que não notou mais três
casais saindo das outras carruagens, e uma mulher mais velha, que tinha os
mesmos olhos de Ronald, acompanhada de com um homem alto de cabelos
louros e rosto que continha uma expressão séria, como se sempre estivesse
irritado com alguma coisa.

— Como minha família é discreta — brincou Ronald, abrindo os


braços para a menina loura que correu em sua direção, se jogando em seus
braços. O homem que a acompanhava se manteve logo atrás, com um meio-
sorriso no rosto.

— Irmão, como estava com saudade! — disse ela ao ser colocada no


chão. — Mas nada se compara a preocupação que nos causou.

— Bem, você se casou com o homem que quase me matou, creio que
pode me perdoar… — Ronald olhou para o homem, sem demonstrar um
pingo de afeto.

Ela deu um tapa no braço dele.

— Faz mais de três anos, pensei que já tivesse superado — retrucou


ela, se virado para Clarissa. — E aí está a mulher que fez o último dos
Heltons se render ao matrimônio.
E, antes que Clarissa pudesse responder, já estava em um abraço
apertado.

— Querida — ela engoliu em seco ao escutá-lo se referir a ela


daquela maneira —, essa é Morgan, minha irmã mais nova.

Ela se afastou de Clarissa com uma expressão de repreensão.

— Sou a pessoa que deveria ter te ajudado no casamento, que


merecia ter assistido à cerimônia do meu irmão.

— Creio que isso seja culpa minha — Ronald interveio.

Morgan Helton se voltou para ele.

— E eu nunca disse que não era.

— Chega, Morgan, vai acabar assustando a moça — disse outra


mulher, que se parecia muito com ela, o mesmo tom de cabelo, mas sua
expressão era mais serena.

— Essa é Roselaine — continuou Ronald, abraçando a moça que


tinha vindo com a outra, que a abraçava como se pudesse esmagar, e era tão
pequena. — De longe a pessoa mais doce desta família.

— Chego a ficar ofendida, meu irmão — declarou a outra mulher


com os olhos castanhos e cabelos negros, a pele era mais escura do que
todos os outros, e algo lhe dizia que tinha puxado ao pai.

Ela e Ronald tinham o cabelo mais escuro do que todos os outros.

— Essa, por sua vez, é a mais brigona — disse ele, abraçando a


outra, que tinha os cabelos pretos e olhos azuis. — A duquesa Rowley.

Ela sorriu para Clarissa.

— Para você, apenas Lisa.


Clarissa não estava acostumada com tanta empolgação, eram tantos
abraços, pareciam tão felizes em ver Ronald, e mesmo ele, que não tinha
planejado aquele encontro, parecia completamente confortável no meio
deles.

— Este é Thomas, o marquês de Sheron, ele se casou com Morgan,


depois de tentar me matar — falou Ronald, dando tapas fortes nas costas do
homem. — Até agora estou pensando se não devo devolver a gentileza.

Clarissa sorriu para o homem, que pegou a mão dela e a beijou com
delicadeza.

— Seu marido exagera nas coisas. — Clarissa apenas sorriu para o


marquês.

Sentia sua garganta se fechando, poderia cair para trás a qualquer


momento.

Por que não tinha vestido uma roupa melhor?

Mesmo assim, seu vestido mais apresentável não seria muito melhor
do que o trapo que estava usando.

— Duque Rowley — disse ele, estendendo a mão para um dos


muitos homens, ela não conseguiria lembrar de nenhum nome no final, mas
estava se esforçando.

— É bom vê-lo vivo — disse o cunhado, fazendo uma mensura.

— Percebeu que está dizendo o nome de todo mundo, mas ainda


nada de dizer o nome dela? — A outra, que era a personificação das
princesas que Clarissa sonhava quando era criança, parou na frente dela. —
Meu irmão é tão tolinho.

— Uma pena o matrimônio me impedir de fazer comentários como


esse — disse ela, fazendo uma mensura um tanto desengonçada. — Clarissa
Franklin, a seu dispor.

Ela assentiu, virando-se para o homem atrás dela.


— Sou Jasmins, e este é meu marido — disse ela —, Nathan,
marquês Stalin.

Nathan sorriu para ela.

— Bem-vinda à família, sempre que precisar de uma dose de uísque


para suportá-los, pode me procurar.

A esposa se virou para ele com uma cara feia.

— E quando ela não te suportar?

— Aí, ela pode te procurar, querida, já que sabe como é a sensação.

Ela se voltou para Ronald, que era abraçado por uma mulher
pequenininha.

— Meu filho! — disse a mulher, passando as mãos pelo cabelo dele.


— Como rezei para que voltasse para casa!

Ele se afastou dela, dando um beijo em sua testa.

— Pois Deus ouviu suas preces.

A mulher se voltou para Clarissa.

— Minha querida, me diga como conseguiu fazer este homem se


casar? — Ela deu um abraço em Clarissa, que já se sentia prestes a cair no
choro. — Pois venho tentando há anos.

A família dele logo pensaria que, além de uma mendiga, Clarissa


também tinha problema de cabeça, pois as únicas coisas que conseguia fazer
era rir e falar palavras desconexas.

— Sou Claire — disse a mãe dele, sorrindo — e estou muito contente


de tê-la em minha família.
E, por mais incrível que fosse, a mulher soava sincera, nem um
pouco arrogante, estava apenas sendo gentil.

Mas, assim que ergueu o olhar, Clarissa sabia quem seria o grande
problema.

Ronald encarava o homem de cabelos louros, cortados quase como


alguém que servia ao exército do Rei, mas com uma postura muito arrogante
para ser um simples soldado.

— É uma grande ironia descobrir que, depois de todos esses anos,


você sabe responder uma carta — resmungou Ronald, estendendo a mão
para o irmão.

Poderia estar enganada, mas tinha muita mágoa na maneira como os


dois se tratavam. Como se houvesse uma quantidade indescritível de
palavras a serem ditas, e nenhum dois gostaria de ser o primeiro a falar.

Uma guerra acontecia em silêncio.

— Nunca fiz nada para que pensasse o contrário.

— Não respondeu uma única carta que te enviei nos últimos anos —
retrucou Ronald.

Nesse momento todos já estavam parados, observando os dois com


certa hesitação.

— Bem, se não o fiz, era porque não tinha nada a dizer. — O conde
então se virou para Clarissa, a frieza dele com toda certeza também era
dirigida a ela. — Uma grande surpresa que nenhuma das cartas falava sobre
uma noiva.

— Uma esposa — corrigiu Ronald, indo até ela e colocando a mão


em suas costas.

— Há quanto tempo? — perguntou o irmão diretamente para ela,


mas foi Ronald quem respondeu:
— Seis meses, foi um casamento simples.

O homem assentiu.

— E como se conheceram?

— Não dá para imaginar mesmo como nos conhecemos?

— Meu irmão, alguém comeu a língua dela para que não a deixe
responder?

— Apenas estou protegendo minha esposa de você.

— Ah, estava fazendo isso também quando garantiu que ninguém de


sua família viesse ao seu casamento?

Clarissa podia sentir a tensão no ar. Os dois não iam se atracar com
socos, eram educados demais para isso, mas não podia negar que, se não
fosse por isso, já se encontrariam rolando pelo chão.

— Bem, com certeza esse foi o mais longo período de paz entre nós,
antes que começasse a jogar meus erros na minha cara.

O homem revirou os olhos.

— Segue sendo uma criança em busca de aprovação.

— Talvez tenha sido por isso que não lhe informei sobre meu
casamento, não sou uma criança, caso decida me casar, posso fazê-lo sem o
anúncio de cada passo meu.

— Óbvio, como sempre faz isso sem se importar com quem vai
magoar no processo.

— Chega! — A senhora Helton se colocou entre eles. — Não foram


educados assim, chegamos na casa deles sem sermos convidados. Não
transformem isso em uma briga de família. Sejam razoáveis.
Os dois apenas assentiram, como crianças sendo repreendidas pela
mãe.

— Me perdoe por esses dois, querida — Claire disse para Clarissa


—, eles tendem a passar do limite.

Ronald veio para o lado da mãe, estendendo o braço para ela.

— Que tal apresentarmos o lugar para a senhora?

— Terão todo o tempo do mundo para isso depois de termos uma


conversa particular — soltou o conde Helton, que com certeza não seria
contrariado.

Ronald o encarou, no entanto, e encerrou o assunto:

— Isso pode esperar, Tobias.


Capítulo 16
Ronald não esperava fugir do irmão por muito tempo, não estava
fazendo aquilo de caso pensando, apenas tinha se demorado mostrando as
maravilhas do mar, contando histórias de suas viagens.

Mas agora estava com tempo de sobra, todas as mulheres tinham se


juntado para um chá na sala de estar e os outros homens estavam na praia
ainda, então ele havia sido arrastado para o escritório do finado tio de
Clarissa.

Ronald precisava partir dali o mais breve possível, e, como tinha uma
casa confortável em Londres, não havia motivos para não voltar à cidade e
aproveitar o conforto dela.

O irmão não se sentou, ficou em pé, como sempre da maneira mais


intimidante possível.

Uma vez aquilo já tinha funcionado com Ronald, mas ele havia
crescido, mesmo que o irmão não notasse que já era um homem feito. Não
era mais o irmão tolo que Tobias poderia dizer como deveria viver a vida
enquanto ele apenas assentia e seguia sem contestar nada, agora era
diferente, tinha feito suas escolhas e as manteria.

— Um casamento, Ronald?! Tudo isso era desejo de chamar a


atenção? — perguntou o irmão, com o ar de arrogância inerente dele.

Tobias era um homem de valor, tinha passado muitos anos sob os


cuidados dele para pensar o contrário. Sempre havia sido firme com Ronald.
Achava os motivos do irmão válidos, estava tentando protegê-lo, fazer dele
um homem melhor do que o pai havia sido.

Não era um homem ruim, se fosse assim, não teria se preocupado


tanto com a possibilidade de Ronald morrer em combate. No entanto, seus
julgamentos e preconceitos fazia Ronald se afastar da família.

— Se assim fosse, teria te convidado — disse ao irmão, fechando a


porta.
Conhecia Tobias para saber que ele não seria gentil com as palavras,
mesmo sendo recebido na casa de Clarissa, desse modo não desejava que ela
escutasse qualquer coisa que o irmão julgava ser verdade.

O conde tinha a mania de decidir por si mesmo o que era melhor para
Ronald, embora tivesse lhe provado que também sabia tomar decisões sem o
irmão.

— Qual é o propósito disso, Ronald? — perguntou ele, apoiando as


mãos no encosto da cadeira. — Essa união parece mais uma piada.

Ronald estreitou os olhos.

— E por que seria?

Tobias não tinha o direito de falar daquele modo pejorativo, como se


Clarissa não fosse digna de ser uma Helton. Torcia para que o irmão não
continuasse por esse caminho.

— Aquela moça não combina em nada com você, e sabe disso.

Ronald ergueu a sobrancelha.

— Por quê? Por que ela não é tão rica como deveria? Por que ela não
pertence a uma família tradicional, de prestígio?

Tobias franziu o cenho.

— Essas são palavras suas, não minhas.

— Eu o conheço bem para reconhecer seu olhar de julgamento na


direção dela, sem nem ter dado uma chance para que ela provasse o contrário
— declarou Ronald.

— O fato de ela ter se casado com alguém que mal conhecia me


causou certa estranheza, com um homem que não a apresentou à família.
Qualquer moça acharia o fato estranho.
— O que você está insinuando, Tobias?

— Oras, Ronald, sabe muito o que quero dizer.

— Você nunca foi de ofender uma pessoa com meias-palavras, então


vá direto ao ponto…

— São de mundos opostos, ela é uma reles menina do campo!

— Pronto, irmão, aí está o que queria dizer! — disse Ronald,


cruzando os braços na frente do corpo. — Anny ficaria orgulhosa.

Às vezes, Ronald notava tarde demais que perdia as estribeiras.


Deveria filtrar as palavras que saiam de sua boca.

Para tudo havia um limite. Era de Anny que estava falando. Um


assunto muito delicado, porque ela havia sido o grande amor da vida de
Tobias e ele a tinha perdido precocemente. Mesmo que Ronald tivesse
perdido soldados na guerra, ainda que tivesse sentido a dor de perder Anny,
assim como qualquer membro naquela família, ele não amava Anny do
mesmo modo que Tobias.

Viu na expressão do irmão que ele estava fazendo um esforço


colossal para não pular encima dele.

O irmão sempre teve bondade no coração, uma das melhores pessoas


que Ronald conhecia, mas era firme demais com as pessoas que amava,
protetor além da conta, às vezes até assustava a todos com tal
comportamento, mas depois da morte de Anny…

Não sabia quem o irmão tinha se tornado, não havia ido ao enterro
nem trocado condolências, não havia feito nada.

— Nunca mais abra a sua boca para falar da minha esposa de novo!
— berrou ele. — Você não tem direito de tocar no nome dela, não estava lá,
não mandou uma carta, não se preocupou.

Ronald negava com um gesto de cabeça cada acusação de Tobias.


Quando a mensagem sobre Anny chegou, estava em missão sigilosa.
Era de grande importância que aquela missão fosse um sucesso, por este
motivo os superiores de Ronald acharam prudente esconder dele a notícia do
falecimento da sua cunhada, caso contrário teria voltado a Londres o quanto
antes.

O que poderia ele falar para o irmão agora? Já era tarde demais.

— Ela era minha família também.

— A família estava perto dela quando morreu, todos que importavam


— retrucou Tobias.

Ronald às vezes se esquecia como o irmão era mestre em magoar


com simples palavras.

— Nunca vai me perdoar por seguir um caminho diferente do que


você desejava, não é?

Tobias deu de ombros.

— Foram anos sem notícias suas, dias em que mal sabíamos do seu
paradeiro, se estava vivo. As conversas chegavam até nossos ouvidos sobre
oficiais sendo mortos. Tantos que nem conseguiam se lembrar de noticiarem
as famílias — revelou o irmão. — Ela morreu preocupada com você, se
estava bem e orando para que voltasse para casa. Ela poderia ser sua família,
mas você nunca foi a dela.

Ronald engoliu em seco.

Não tinha palavras que pudessem descrever o que sentia naquele


momento.

Havia certas culpas que carregaria para o túmulo, e aquela dali seria
a maior delas.

— Eu não sabia o que dizer.


— Poderia ter nos contado sobre noivado. Achou que poderia apagar
a família de sua vida?

Ronald cruzou os braços junto com o irmão.

— Não achei que teria sua bênção. E faz tempo que deixei de
precisar dela para tomar qualquer decisão na minha vida.

— Me diga os motivos pelos quais não aprovaria sua noiva?

— Ela é minha esposa agora.

— Um casamento pode muito bem ser anulado.

Ronald encarou seu irmão, abismado.

Tobias tinha se casado com a filha de um homem simples, que não


sabia o que era um quarto de vestir, pois dividia um cubículo com mais cinco
irmãos, aquele que enfrentou tudo e todos para poder ficar com a mulher que
amava.

Que ironia vê-lo sugerir a anulação do casamento apenas porque a


moça não se enquadrava nos requisitos para ser sua esposa.

— Nem pensar! Se veio aqui só para isso, pode dar meia-volta,


Tobias.

— Vim porque meu irmão tolo, que não pensa em nada, nem em
ninguém, está acabando com a vida dele.

— Ora, por favor, sejamos sinceros, você veio aqui porque pensa que
pode me controlar. Acha que me dobrarei às suas vontades.

— Acha mesmo que Clarissa é uma esposa à altura de um capitão da


Marinha? Você faz parte da nobreza, irmão. Mesmo que pense que não, não
pode sair por aí, achando que qualquer uma pode usar nosso sobrenome.

Ronald puxou o ar com força, pedindo que Deus o acalmasse.


Embora quisesse explodir com Tobias, mostraria que não era mais
um garoto esquentadinho, que respondia a tudo com xingamentos.

No fundo, sua consciência também pesava, porque tinha pensado a


mesma coisa que Tobias sobre Clarissa. Ela não combinava com o estilo de
vida dele, talvez pudesse fingir, sabia que ela era boa nisso, mas com certeza
não seria feliz vivendo de aparência.

— Aconselho a não se referir à minha esposa como uma qualquer —


comunicou ele, colocando-se de pé também. — Pode não gostar da minha
escolha, é seu direito, mas exijo que respeite Clarissa.

— Então acha que ela poderá frequentar bailes, eventos sociais, ficar
perante o Rei sem te envergonhar?

— Não me casei com ela para usá-la como um troféu diante da


sociedade. Clarissa é uma pessoa melhor do que eu e você juntos, irmão. Ela
é forte e doce, na mesma medida, com quem eu serei feliz dividindo a vida.
É por esse motivo que me casei com ela.

A porta do escritório foi aberta depois de algumas batidas leves. E lá


estava Clarissa com seu melhor vestido. Ainda era um traje muito simples,
de um marrom-escuro, liso, sem detalhes, mas não parecia puído ou rasgado,
e os cabelos estavam presos em um toque alto.

Qualquer um a confundiria com uma governanta da casa dos Heltons.

Ronald sorriu, porque ela estava vestida assim por causa dele.

— Sua família deseja fazer um piquenique, pensei que gostariam de


nos acompanhar — disse ela, olhando diretamente para Ronald.

— Claro, querida — avisou ele e se dirigiu ao irmão: — Acho que


nossa conversa se encerra aqui, não é?

Tobias apenas lhe lançou um olhar petulante antes de sair, fechando a


porta com um baque seco.
— Ah, seu irmão parece tão feliz com o nosso casamento que é até
contagiante!

Ronald sorriu, balançando a cabeça.

Clarissa não vinha de família rica e não fazia parte do círculo social
que envolvia os Heltons, mas era uma pessoa boa, alguém que merecia a
chance de se mostrar digna do respeito de todos ali.

E, sim, mesmo que o irmão jogasse aquelas alfinetadas na cara dele,


Tobias deveria entendê-lo mais do que qualquer pessoa, porque um dia já
estivera na mesma situação de Ronald.

— Ele apenas está magoado — mentiu ele.

Clarissa ergueu a sobrancelha para ele.

— Sabe, sei quando pessoas estão me julgando, e seu irmão com


certeza está fazendo isso.

— Faça como eu, não se importe com nada que venha dele —
declarou Ronald.

Mais uma vez Clarissa o fitou.

— Se realmente não se importa com o que ele diz, não estaria tão
irritado.

Ronald soltou um suspiro, impaciente.

— Ele não tem direito de entrar em sua casa e se julgar melhor.

— Ele é um conde, e, por favor, todas as suas irmãs são casadas com
homens de títulos, portanto há motivos para ele não estar feliz te vendo
unido a uma moça simples do campo — retrucou ela, colocando as mãos no
quadril. — Não sei como é ter irmãos, mas também não ficaria feliz se um
deles se casasse escondido de mim.

Ronald levantou o olhar para ela.


— Por acaso está do lado dele?

— É a mim que ele está olhando de cima a baixo, com certeza não
estou do lado dele, mas não significa que não entenda seu posicionamento.

— Meu irmão pensa que pode escolher por todos nós, está furioso
por não me fazer o obedecer.

— E, agora, o senhor parece uma criança de cinco anos.

Ele olhou para Clarissa, se esforçando para entender aquela


declaração e falhando.

— Ele é seu irmão, Ronald, sua família toda se deslocou de Londres


até o fim do mundo apenas para conhecer o que eles julgam ser um “lapso de
sanidade” seu, já mostraram fazer muito mais pelo senhor em semanas do
que a minha família em uma vida toda. Então, talvez, ele esteja realmente
magoado.

Ronald encarou seus sapatos.

Era estranho vestir a roupa de capitão.

Sentia-se orgulho, mas ainda era um simples menino que achava que
precisava de algo que apenas uma imagem paterna poderia fornecer.

Era ridículo.

Não diria que concordava com Clarissa. Já exigia um esforço


colossal para ele admitir isso a si mesmo, quem dirá falar em voz alta.

Olhou para ela de cima a baixo.

— Gostei do vestido. — A voz carregada de malícia.

Ela revirou os olhos.

— Sua família está nos esperando, Ronald.


Ele foi até ela, em uma velocidade ímpar, e se encostou na porta,
tampando a passagem.

— Somos um casal apaixonado e recém-casado.

Ela negou com um gesto de cabeça.

— Não, somos dois mentirosos.

Ronald fez um gesto com a mão.

— Quase a mesma coisa.

Clarissa inclinou cabeça para o lado.

— Não mudei de opinião, sua família merece a verdade, muito mais


que a minha.

— Acha que eles reagiriam bem?

— Bom, terão de saber em algum momento.

— Já lhe disse que seguirei seu plano, ficarei viúvo.

Ela soltou uma risadinha falsa.

— Eles exigiriam estar presentes no meu enterro para lhe prestar


condolências, esse plano funciona apenas para aquelas famílias que não se
importam uns com os outros.

Ele deu de ombros.

Nada daquilo o interessava.

Ronald agora se lembrava do beijo dos dois e queria com veemência


repeti-lo, queria sentir Clarissa em seus braços, sentir seus corpos unidos, e,
por Deus, queria fazer amor com a esposa naquele tapete.

Ou em qualquer lugar.
Nem mesmo ia se opor se ela desejasse ir para o jardim.

Apenas a queria.

Nunca em sua vida havia desejado tanto uma pessoa quanto ela,
queria tocá-la, tirar dela cada peça de roupa e observar seu corpo sem todo
aquele tecido.

Amava as mulheres, mas as amava no plural, e agora, pela primeira


vez, queria apenas aquela que estava à sua frente, queria ter Clarissa
Franklin para si.

Era uma maldição que ela fosse filha daqueles salafrários. Era uma
maldição que o sobrenome dele valesse mais para a sociedade do que seus
sentimentos por Clarissa.

Para ser sincero, mais que isso até, Ronald tinha um grande motivo
para não estar com ela: talvez não fosse isso que Clarissa queria para a
própria vida.

Não era porque ele tinha vontade de jogar tudo para o alto que
Clarissa quisesse o mesmo. Sabia muito bem que, mesmo que ela o tivesse
beijado, mesmo que ele conseguisse seduzi-la, desejo não era o mesmo que
paixão.

E, quando Clarissa o encarava, sabia que este sentimento não era


recíproco. O que não o impediria de tentar mudar esse cenário.

Ele se inclinou na direção dela, sugestivo.

— Já que, para eles, nós estamos casados, poderíamos fazer coisas do


dia a dia de um casal. Que tal?

Ela arregalou os olhos.

— Desculpe-me, senhor Denver, obscenidades nesse momento? —


questionou ela, séria, dirigindo-lhe um olhar inocente.
— Não tenho culpa. A senhorita não sai dos meus pensamentos! —
declarou ele, os olhos fixos nos dela.

— O senhor deveria medir as palavras — afirmou ela. — Daqui a


pouco acreditarei nelas.

— Não estou mentindo, Clarissa — sussurrou ele, sentindo-se


ofendido com o comentário dela.

Ele gostaria de deixar claro que nenhuma das mulheres que havia
levado para a cama fora enganada por mentiras ou promessas vazias. Antes
de conhecê-la, ele não costumava mentir como vinha fazendo nos demais
aspectos de sua vida.

Ela riu com desdém.

— O senhor é um nobre.

— Isso não muda nada.

Ela balançou a cabeça, discordando dele.

— Isso muda tudo.

— Não tenho a mesma opinião do meu irmão sobre o que é melhor


para mim — declarou ele.

— Eu discordo do senhor. Alguém como eu não pode se relacionar


com alguém como o senhor. Me orgulho muito de quem sou, mas, sem
sombra de dúvida, não me encaixo no seu mundo.

Ele engoliu em seco diante das palavras dela. Enchendo-se de


coragem, Ronald se aproximou e levou a mão ao rosto dela.

— Talvez não precise se encaixar em meu mundo, apenas na minha


vida.

Ela negou com um gesto.


— Você foi bondoso demais comigo para eu queira o seu mal…

Ronald estava prestes a responder aquilo quando ouviu batidas na


porta. Antes mesmo de ouvir a voz, sabia que se tratava de Morgan.

— Sem querer atrapalhar o casal de pombinhos, mas estamos


aguardando vocês.

As bochechas de Clarissa ficaram vermelhas no mesmo instante. Ele


sorriu, esquecendo-se por um momento sobre o que estavam conversando.

— Se não queria atrapalhar, era só não ter interrompido, irmãzinha.

Ele se afastou de Clarissa, abrindo a porta.

Morgan deu de ombros.

— Não seria tão divertido assim.

Ele pegou a mão de Clarissa, a puxando antes mesmo de notar o


gesto.

— E depois ainda me perguntam por que escondi meu casamento.

Clarissa achava que sabia comer com talheres, tinha passado a vida
fazendo aquilo, não era tão difícil, mas ali, sentada à mesa com mulheres que
deveriam ser as pessoas mais delicadas e educadas que conhecia, pensava se
tinha aprendido a usá-los da mesma forma.
Aquilo era apenas a ponta do iceberg. Clarissa nem mesmo
imaginava como era a vida de Ronald fora dali. A vida dos dois era
diferente, impossível de elas coexistirem juntas.

Naquele momento, encarava seu prato, perdida em pensamentos. A


conversa era tão confusa que ela não conseguia acompanhar, já havia
desistido, por isso não notou quando se direcionaram a ela, só depois de
sentir os olhares da família inteira em cima dela.

— Falem um de cada vez, assim ficará mais fácil para ela


acompanhar — pediu a senhora Claire. Às vezes, Clarissa não acreditava
que Ronald e seus irmãos eram filhos dela, pois tagarelavam demais.

— Perguntei se gostaria de viajar para Paris no final do ano? — falou


a senhora Sheron, expondo aquele sorriso com os dentes perfeitos,
quadrados na frente, como deveriam ser. — É uma cidade encantadora.

Clarissa não tinha uma resposta para aquilo, nunca tinha saído
daquela região, nem mesmo imaginava como poderia ser o mundo lá fora.

Não que não tivesse imaginação para tanto, mas uma coisa era sonhar
que iria para Londres, ser governanta ou camareira, outra bem diferente era
ir para Paris.

Ela se voltou para Ronald, procurando socorro, e sentiu a mão dele


em sua coxa, por debaixo da mesa, onde ninguém podia ver.

— Por favor, não precisamos ser arrastados para uma viagem


romântica da minha irmã mais nova, isso está na lista dos meus pesadelos
constantes.

Morgan estreitou os olhos para Ronald.

Para quem não queria nem mentir para desconhecidos na primeira


noite, ele estava ficando especialista naquilo.

— Seria muito bom, Ronald, se parasse de ser tão infantil. Caso não
tenha percebido, não sou mais sua irmãzinha.
Ronald deu de ombros.

— Todas vocês sempre serão minhas irmãzinhas — disse ele,


arrancando suspiros da irmã.

— Por que todas se derretem com ele? — perguntou Tobias, que, na


percepção de Clarissa, só abria a boca se fosse para ofendê-la.

Não queria ter escutado a conversa atrás da porta, sabia que isso não
era educado, mas o que ele falava sobre ela também não.

Boa parte era verdade, concordava que Ronald estava perdendo um


tempo precioso de sua vida fazendo todo aquele teatro. Entendia que ele não
queria ofender a família, que não queria contar a verdade e ter todos olhando
em sua direção como se nunca mais fossem acreditar nele. E, cada vez que
conhecia mais o irmão dele, entendia mais um pouco o porquê de ele ser
daquela forma, não era melhor assumir logo que tinha feito algo idiota do
que ser descoberto?

Já era difícil fingir um casamento para família dela que mal olhava
na direção dos dois, agora, com a dele, seria ainda pior, se estavam os
convidando para ir à Paris, o que mais poderiam fazer?

— Sou charmoso, irmão — zombou Ronald, e não era mentira.

Ronald já era charmoso com qualquer roupa, se destacava


naturalmente, era encantador até mesmo nu, se fosse pensar bem.

Agora então, vestido com suas roupas habituais de capitão da


Marinha, era quase insuportável ficar do lado dele.

Tobias revirou os olhos antes de dizer:

— Partiremos amanhã cedo, preferem ir conosco ou logo em seguida,


sozinhos?

Clarissa mais uma vez se voltou para Ronald, que parecia bem ciente
do que o irmão estava falando.
— Vamos na minha carruagem, será mais confortável.

— Insisto para que fiquem na casa Helton, não há motivos para que
se instalem em outro lugar — disse a senhora Helton, entrando na conversa.
— Adoraria mostrar Londres para Clarissa. Já foi para lá, querida?

Clarissa negou com um gesto de cabeça, querendo dizer que nem


mesmo pretendia ir, mas isso guardaria para mais tarde, quando estivesse
sozinha com Ronald, o que ela já esperava ansiosamente.

Não sairia dali a menos que fosse arrastada.

— Oh, vai amar, podemos até fazer um piquenique em família —


empolgou-se Lisa, sorrindo na direção dela. — Mas, depois de conhecer os
seus sobrinhos, talvez queira sair por aí correndo e jogando seus braços para
o alto em desespero.

— Sei que não são tão terríveis assim — respondeu ela, o que fez
todos à mesa rirem, menos o conde, ele parecia nem saber o que era isso.

— Aguarde e verá.

— Prefiro ficar em minha casa, não fica tão lon…

— A casa Helton oferecerá mais conforto do que ficar em uma casa


afastada do mundo, onde não se vê uma única alma viva faz anos —
interrompeu Tobias.

Ronald se voltou para o irmão.

— Isso pode ser resolvido.

— Será mais confortável para sua esposa ficar na casa Helton.

— Eu acho que sei o que é melhor para ela.

— Então aja de acordo.


Clarissa notou a forma como Ronald segurava os talheres, em certos
aspectos, a relação dele com o conde lembrava a dinâmica que tinha com a
própria mãe. Tobias era a pessoa para quem Ronald queria mostrar que
cresceu, mas que também despertava o pior que havia nele.

— Por favor, meninos! — a mãe chamou a atenção deles. —


Clarissa, nossa casa é imensa, terá toda a privacidade que deseja. Eu, como
uma mãe que passou anos longe do filho, gostaria que ficassem lá, ao menos
até a casa de Ronald estar pronta para recebê-los.

Não sabia o que falar, não queria dizer nada que fosse entendido
como um sim, não pretendia ir a Londres, mas também não queria causar um
desconforto na mãe de Ronald, porque a senhora Helton vinha sendo
simpática com ela o dia todo.

— É claro, como a senhora desejar.

Ronald parecia prestes a falar algo quando Clarissa respondeu,


fazendo-o voltar a fechar os lábios e ficar em silêncio.

— Ora, ora, não é que, por um milagre divino, existe alguém que
consiga calar a boca do meu adorável irmão! — declarou a senhora Stalin,
sem nem tirar os olhos do seu prato. — Uma verdadeira bênção.

Ronald lançou uma careta na direção dela.

— Bem-vindo ao clube dos mandados pelas esposas! — falou


Thomas ao lado de Morgan, que, pelo que Clarissa havia notado, ainda não
tinha recebido a aprovação de Ronald.

Mas quem ele era para falar do casamento da irmã quando tinha
inventado uma vida toda a dois e um casamento no qual não convidara
ninguém como testemunha?

Ronald só assentiu.

E Clarissa seguiu o jantar pensando que em algum momento poderia


simplesmente vomitar de ansiedade a cada pergunta feita.
Era boa em mentir, ótima, por sinal, mas enganar boas pessoas não
era a mesma coisa que enganar os pais, que mereciam aquilo.

A família de Ronald se importava com ele, se importava o bastante


para que fossem mais a fundo a cada história contada, fazendo com que ela
se enrolasse em cada frase.
Capítulo 17
Ronald estava de volta àquele quarto minúsculo com Clarissa. E
agora sua mãe se encontrava a um corredor dali.

A maior parte da família Helton tinha ficado hospedada nas


estalagens locais, mas o irmão e a mãe optaram ficar ali com os dois, de olho
neles a cada minuto. Para manter as aparências, ele tinha que segurar a mão
de Clarissa, colocar a dele sobre a perna dela ou se inclinar para cochichar
no ouvido dela.

Estava sendo uma experiência bastante interessante. Havia gostado


de cada momento. Agora, no entanto, que se encontravam no mesmo quarto,
ele tendo que dormir em um sofá minúsculo, em uma posição extremamente
desconfortável, acreditava que poderia ver aquilo como uma tortura.

Seu objeto de desejo estava ali perto, mas longe o bastante para que
de fato o tocasse.

— O que há de errado? — Clarissa quis saber.

Ronald conseguiu escutar o farfalhar dos lençóis, e, quando olhou na


direção da cama, Clarissa estava sentada com uma expressão preocupada.

— Com o quê?

— O senhor não para de suspirar, está alto demais.

Ele deveria mesmo estar fazendo isso, mas se surpreendeu de não ter
se dado conta do barulho até aquele momento.

— O sofá está cada vez mais desconfortável.

Ela o olhou com uma expressão de solidariedade.

— Já me ofereci para trocarmos de lugar.

— Que tipo de cavalheiro seria eu se aceitasse isso?


— Um que não sofre de dores no pescoço.

— Sabe que não permitirei a troca — disse ele, fazendo uma pausa
—, mas, se oferecesse um pedacinho da cama, aceitaria feliz.

Ela estreitou os olhos na direção dele.

— Está querendo dormir comigo, lorde Helton?

— Fico surpreso ao vê-la se dar conta disso só agora.

— O senhor tem razão.

Ele riu.

— Sabe que não seria capaz de fazer nada.

Ronald se perguntou se seria mesmo capaz de tal feito, se já era


difícil dormir no mesmo quarto, seria ainda mais tentador sentir o calor do
corpo dela e não poder aninhá-la.

Era melhor sofrer com dores no pescoço do que fazê-la migrar para
outras partes de seu corpo.

— Logo seu tormento acabará.

— Espero que minha mãe nos coloque em um quarto que tenha ao


menos um tapete mais felpudo.

Aquilo fez Clarissa arregalar os olhos, como se até aquele momento


não tivesse se dado conta do que significava ficar na casa dos Heltons.

Além dos olhares da família sobre eles, também imaginou que logo
precisaria dormir no chão.

Por isso insistira para ficar em sua casa, porque era um lugar onde os
dois teriam mais privacidade e ele uma boa cama.

— Por Deus!
— Foi a senhorita quem concordou em ficar na casa da família —
advertiu ele.

Ronald previa que ela estava a um passo de surtar.

— Eu nem concordei em ser arrastada para Londres — rebateu ela,


se inclinando para a frente.

— Minha família nunca aceitaria que eu fosse embora sem você! Viu
como aqueles homens idolatram suas esposas?

Ele balançou a cabeça. Ainda não acreditava que suas irmãs, todas
elas, tinham se casado com homens que não valiam um xelim, mas que
viraram, de repente, seres decentes.

Aquilo era hilário.

— Poderia inventar uma desculpa!

— O que sugere, então?

— Poderia alegar que eu estou doente.

Ele balançou a cabeça, nada convencido.

— Só se for de demência, que de fato acho que está começando a ter.

— Ronald!

— O quê? É verdade, minha família nunca aceitaria que eu largasse


minha esposa moribunda para ir a Londres, muito provavelmente eles
arrastariam todos os médicos para cá.

Sem exageros, era exatamente aquilo que fariam, sobretudo depois


do que aconteceu com Anny.

— Por que precisam ser tão atenciosos? — perguntou ela, franzindo


o cenho — Sua irmã...
— Qual delas?

— A senhora Stalin… — continuou ela — Ela fez tantas perguntas e


pareceu muito interessada nas respostas.

— São boas pessoas.

— Todas elas tentaram me acolher — comentou ela, soltando um


suspiro, resignada —, enquanto me afundava na culpa por estar enganando
elas.

— Não esperava que elas fossem envolvidas nisso, assim como eu,
fomos pegos de surpresa.

Tentou justificar os sentimentos de culpa dela, porque sentia o


mesmo, era injusto com a família.

— E o seu irmão? Quer dizer, como um conde pode ainda estar


solteiro?

Ronald demorou alguns segundos até perceber que Clarissa não sabia
nada sobre Anny, como ela era em aparência, como era adorável e amorosa,
além de prestativa, pois fazia a família Helton ter alegria em momentos em
que era quase impossível de isso acontecer.

Anny também não estaria ali para implicar com Ronald por ele enfim
ter se apaixonado, para perguntar como esse milagre aconteceu.

Porque a condessa era assim, não importava o quanto as histórias de


amor fossem bizarras, a maneira como poderiam parecer erradas aos olhos
dos outros, pois, para Anny, era apenas uma história de amor.

Ronald se sentou no sofá, pensando no quanto sentia falta dela.

Era diferente quando se estava distante, poderia muito bem fingir que
ela continuava em Londres, mas, assim que chegasse lá, teria de enfrentar a
dura realidade.
Tobias tinha perdido Anny, todos ali tinham.

E o amor da sua vida nem a conheceria.

— Ele é viúvo — disse Ronald ao limpar a garganta. — A esposa


faleceu há três anos.

Ele viu que Clarissa não sabia o que dizer. Pelo visto, não esperava
por aquela resposta quando tocou no assunto.

Agradecia por ela saber isso através dele, e não de Tobias. Seu irmão
gostava de usar a morte de Anny para jogar coisas na cara dele, mas não
acreditava que o irmão gostasse de falar do assunto.

A morte de Anny tinha trazido à tona o pior de Tobias, era evidente,


e, mesmo que o irmão pudesse esconder o que sentia atrás de uma cara
fechada, todos sabiam como deveria estar sofrendo.

Poderia duvidar de várias coisas de Tobias, menos do amor que ele


sempre sentiu pela esposa, essa era a única certeza que tinha sobre o irmão.

— Sinto muito — declarou ela. — Não imaginava, é por isso que ele
está agindo daquela forma?

— A qual forma se refere? — perguntou Ronald. — Como se odiasse


o mundo ou apenas a mim?

— Como se não tivesse alma.

Ronald pensou um pouco.

— Anny despertava o melhor em todos, não apenas nele, era


esperado que a morte dela tivesse o efeito oposto.

Eles gostavam de acreditar que, depois da morte do pai deles, nada


de ruim poderia atingir a família, como se o homem representasse toda a dor
e o castigo que a família Helton merecera, mas a morte de Anny provava que
não estavam livres de tragédias.
A cunhada morrer, agonizando de dor, era a prova de que no mundo
não era justo. Poderia citar centenas de pessoas que mereciam aquele destino
em vez da cunhada, soava egoísta da parte dele, mas era a verdade.

Anny merecia o melhor da vida, e isso havia sido tirado dela cedo
demais.

— Isso explica muita coisa sobre ele.

— No entanto, ao que parece, ele gosta bastante de ser assim.

— O senhor não consegue contrariá-lo, não é?

— Isso não é verdade…

— Já planejava partir para Londres antes de ele surgir do nada,


falando que era isso que deveria fazer?

Costumava ouvir o irmão, de fato. O único momento que havia ido


contra as palavras de Tobias fora quando ele se alistara. O conde deixara
claro que Ronald seria considerado morto para ele caso entrasse para a
Marinha Real. No fundo, acreditava que Tobias havia sugerido algo tão
drástico porque tinha fé que Ronald desistiria de seus propósitos.

Afinal, qual irmão realmente agiria como se o outro tivesse falecido?


Viu que esse comportamento era típico do seu irmão quando os meses foram
se passando e nenhuma resposta para suas cartas surgia.

O silêncio se prolongou entre os dois.

— Ele assumiu o título do nosso pai, ele é um bom homem e leva


suas obrigações a sério. Para ele, a família vem em primeiro lugar, mas às
vezes extrapola os limites. É fácil admirá-lo, mesmo quando é igualmente
fácil de o odiar.

Clarissa assentiu, como se compreendesse bem o que ele estava


falando.

— Não estou indo a Londres por ele.


— E o que mais o faria levar sua noiva falsa para lá?

— Esposa — corrigiu ele.

Queria revelar a verdade, que planejava fazê-la entender o que ele


sentia por ela, enquanto ele mesmo tentava compreender como aquilo havia
acontecido bem embaixo de seus olhos.

Dizer que gostaria de estar em um lugar onde seriam obrigados a


dançar, a ir juntos a bailes e a passear por um parque à tarde. Atividades que
faria se estivesse cortejando qualquer outra moça. Mas, quando entraram
naquilo, haviam feito um acordo e, para lhe dizer tudo o que sentia, tinha
que ter certeza de que ela renunciaria seus medos e suas convicções.

E, por fim, dizer que se casaria com ela para livrá-la das garras de
seus pais.

Não queria e nem mesmo poderia permitir que aqueles dois se


aproximassem de sua família.

— Minha família tem uma reputação. Devo isso a eles,


principalmente porque nesse momento a notícia de que eu me casei com a
senhorita já deve ter se espalhado pela cidade — explicou ele.

— Tenho certeza de que vou surpreendê-los — disse ela —, não é


todo dia que um capitão se casa com uma camponesa.

— Então, que tolos são eles! — comentou Ronald.

— Vão falar ainda mais quando aparecer com uma mulher como eu
pelas ruas de Londres. Seria melhor que apenas inventasse uma história.

— Nunca permitirei que eles mandem nas minhas decisões —


comentou Ronald. — O que diabos eles pensam ser apropriado para minha
vida é problema apenas deles.

Ela suspirou.
— Mas o senhor serve ao Rei.

— Ele terá que vir pessoalmente para me dizer que precisarei anular
o casamento com a senhorita. E, como resposta, direi apenas que me recuso
— alegou Ronald, ciente de que o Rei deveria ter mais o que fazer do que se
preocupar com quem os seus súditos subiam ao altar.

— Ele pode apenas nos jogar, ou melhor, me jogar em uma cela por
mentir.

Ronald riu, o fazendo receber um olhar de indignação.

— Acho que ainda não criaram leis sobre isso, querida — arriscou
dizer.

— Sua família garantiria um espaço na constituição do país apenas


para isso.

Os lábios dele se curvaram para cima, em um esforço de não rir da


aflição dela.

— Que tal parar de se preocupar tanto em ir para a cadeia e tentar


dormir pouco? — sugeriu ele.

— Era o que eu estava fazendo antes de o senhor me atrapalhar com


seus suspiros.

— Já lhe dei uma solução para acabar com eles.

— Uma que já recusei — disse Clarissa, voltando a acomodar a


cabeça sobre os travesseiros.

— Como quiser, também seria estranho dormir na cama de seu


falecido tio… — soltou ele, e, como resposta, sentiu uma almofada passando
perigosamente perto de seu nariz.

— Ronald!
Capítulo 18
Clarissa se considerava uma mulher de pensamento forte, não
costumava voltar atrás e nunca demorava mais do que um dia para tomar
uma decisão.

Aprendeu muito cedo que não fazer nada já era uma escolha e que,
na maioria das vezes, essa era a pior saída, por isso, ainda não entendia
como sua bolsa velha acabara dentro da carruagem.

Subiu na condução, ignorando a mão de Ronald esticada na sua


direção. Não era porque tinha aceitado aquilo que estava satisfeita com a
decisão de Ronald, que preferia aquela tortura à verdade. Seu irmão, por
outro lado, daria pulos de alegria se soubesse que os dois não estavam
casados coisa nenhuma.

As irmãs Ronald se esforçavam para deixar Clarissa à vontade,


percebia que elas gostavam da companhia dela, até se empenhavam para
encontrar assuntos em comum.

Já Clarissa… queria se encolher até sumir de vista.

Uma sensação que ela conhecia bem, a única diferença era que as
pessoas nunca se esforçavam para enxergá-la, sempre pareciam gratas por
ela mesma nem querer ser vista, tornando tudo mais fácil.

Mas aquelas pessoas vinham tentando com afinco se convencer de


que Clarissa poderia ser uma delas, o que era a mais tola das ideias.

Nunca conseguiria andar com aquela postura, ou comer de uma


maneira tão graciosa, todos aqueles detalhes essenciais para uma vida entre a
alta sociedade.

Tinha aprendido a ser uma pessoa educada na base da ameaça. Os


pais odiavam passar vergonha com as atitudes que ela tinha, por isso desde
cedo eles a ensinaram como uma moça deveria se portar, mas a educação
que recebera não era suficiente para fazer dela uma lady.
Por Deus!

— Parece que está sendo arrastada para uma masmorra.

Ela parou de olhar a paisagem e se voltou para Ronald.

— Chega a ser um pouco parecido, não acha?

Ele riu, arrumando o paletó.

— Aproveite a viagem, pare de pensar no destino.

— O destino que o senhor quer dizer é uma casa de um conde —


comentou ela. — Tenho certeza de que a casa do meu tio não dá metade da
de vocês.

Ronald se inclinou para a frente.

— Se quer saber, tem alguns quartos que até mesmo se igualam no


tamanho.

Ela arregalou os olhos, mas se sentiu tonta assim que ele começou a
rir.

— Está preocupada em ser perder dentro da casa? — perguntou ele.


— Ficarei do seu lado o tempo todo para garantir que isso não aconteça.

Ela estreitou os olhos.

— Como não percebi que o senhor tinha toda essa arrogância?

— Tenho certeza de que a senhora percebeu, só acabou achando


charmoso demais.

Ela revirou os olhos, cruzando os braços na frente do corpo.

— O senhor consegue ser extremamente irritante.

— Isso é um problema enorme quando temos que passar tanto tempo


dentro de uma carruagem — revelou ele, parecendo bem confortável naquele
lugar.

Já Clarissa vinha se sentindo angustiada. Aquela história tinha virado


uma enorme bola de neve, que estava prestes a passar por cima dela.

Ronald, aquele Ronald, a pessoa que estava à sua frente, irritando-a,


não era nada do que acreditou que ele fosse e, ao mesmo tempo, era
exatamente o que tinha dito.

Falou que fazia parte da Marinha, apenas não falou que era capitão,
disse que fazia parte de uma família grande, apenas não falou que fazia parte
da nobreza.

Tinha escondido detalhes essenciais, e, se soubesse de tudo isso


desde o início, não teria permitido que ele se aproximasse tanto.

— Talvez eu decida ir caminhando até Londres, deve ser mais


agradável do que aguentar o senhor.

Ele levou a mão ao coração.

— Como consegue ser tão malvada? E ser a mais doce das…

— Não sou doce.

— É, sim — disse ele, sorrindo —, um docinho.

Ela revirou os olhos, sabendo que replicar não adiantaria nada.

— Seu irmão pode querer me esconder no porão?

— E por que ele faria isso…

— Para que…

— … quando temos uma masmorra que serviria muito melhor para a


função? — Ronald completou.
Ela sentiu vontade de pular em cima dele, mas a ideia despertava
sentimentos confusos dentro dela e a maioria ela não tinha a menor
inclinação para descobrir o que significava.

— Tobias não é um monstro — disse ele, e Clarissa considerava que


aquilo acontecia repetidas vezes, como se Ronald nem notasse que sempre
acabava por defender o irmão, mesmo sem ter a intenção.

— Claro que não, o que não o impede de querer…

Ele fez um sinal para ela ficar em silêncio.

— Por que insistir nesse assunto, aproveite a viagem.

— Como que eu poderia aproveitar então?

Ele lhe lançou um olhar malicioso, fazendo-a revirar os olhos de


novo.

— Tenho um milhão de ideias — declarou ele.

— Não desejo ouvir os seus delírios — resmungou ela.

Ronald levou a mão ao peito e fez cara de triste.

— A senhorita deveria ser mais doce com meus sentimentos, sou um


homem sensível.

Clarissa não podia acreditar que o homem de mais de um metro e


oitenta sentado à frente tinha acabado de pronunciar uma frase daquela.

Era uma das coisas que mais gostava em Ronald. Ele a fazia rir, se
arriscar, e acima de tudo gostava de conversar com ele. Ele agia com
naturalidade perto dela, como se os dois fossem mesmo um casal.

Clarissa ainda não sabia do que, mas, naquele dia que o conheceu,
sabia que Ronald fugia de alguma coisa, agora ela tentava descobrir o que o
fizera renunciar à vida de capitão para fingir ser o marido de uma moça
qualquer.
— Estou indo para o outro lado do país com o senhor, isso já é muita
bondade da minha parte, acredite.

Ele assentiu, arrumando a postura.

— A viagem seria bem mais interessan….

— Ronald! — exclamou ela.

— Seria muito mais interessante se a senhorita gritasse meu nome


com um pouquinho mais de gentileza — continuou ele, sorrindo para ela,
que balançava a cabeça sem acreditar no que estava ouvindo.

— Como o senhor consegue falar algo assim sem nem sentir uma
pitada de vergonha?

Ele deu de ombros e voltou sua atenção para a janela.

— Ainda tenho inúmeras coisas diabólicas para dizer a senhorita,


mas, já que fica uma arara com um simples comentário, imagine…

— Sabe o que eu mais admiro nas pessoas? — Clarissa o


interrompeu, já era difícil manter afastada a imagem de Ronald nu da sua
cabeça, ou a sensação das mãos dele pelo corpo dela quando se beijaram,
não precisava de mais pensamentos a atormentando. — O silêncio. O senhor
deveria experimentar!

— Tentativas de me calar não funcionarão — disse ele, arrumando a


manga de sua farda —, mas, se a senhorita tiver alguma coisa para me
oferecer, posso muito bem levar isso em consideração.

— Sabe que posso simplesmente descer da carruagem, não é mesmo?

Ele balançou a cabeça.

— A senhorita está presa comigo!

— Mas o senhor também está comigo…


— Isso não me parece um castigo.

— Mas pode se tornar se o senhor não calar a boca.

— Prefiro correr o risco.

— Por Deus! — falou ela, jogando as mãos para o alto. — O que o


senhor quer para calar essa boca?

— Um beijo — disse ele, como se já tivesse a resposta na ponta da


língua havia muito tempo e apenas estivesse esperando a oportunidade.

Mas nada o surpreenderia mais que sua resposta:

— Em troca do seu silêncio? Até mesmo dois!

O sorriso de Ronald quase chegava as orelhas.

— Sendo assim, insisto para que cumpra com sua palavra.

Clarissa sentiu um frio na barriga, algo recorrente quando estava com


Ronald.

— O senhor poderia conseguir isso facilmente de uma pessoa que


queira beijá-lo. — Clarissa às vezes não tinha muito jeito com as palavras,
por mais que não gostasse da mãe, sabia que tinha herdado mais do que os
olhos dela.

Mas, se precisava beijá-lo para manter Ronald longe dela pelo resto
da viagem, faria esse esforço.

Aquele homem crescera tendo tudo o que desejava ao alcance das


mãos, dos desejos mais tolos ao mais criativos, desejos que homens com
dinheiro poderiam realizar.

O tio conhecia muito homens assim, que achavam que o mundo


estava ali para servir a eles, que não existia a palavra “limite” para seus
desejos, que tudo o que eles queriam já era deles por direito.
Poderia não ser de forma consciente, mas era isto que Ronald queria:
tê-la pelo tempo que considerasse aquela farsa adequada, beijá-la e fazê-la
suspirar por ele, e então, logo em seguida, notaria a verdade, o que todos já
enxergavam, que os dois eram de mundos completamente opostos, que os
dois eram como azeite e água, não se misturavam.

Para a própria segurança, Clarissa precisava manter em sua cabeça


que Ronald não era o homem que ela idealizava, ou ao menos não era apenas
aquele homem que a defendeu dos pais, que mentiu por ela, mas também era
o que tinha mentido para ela de maneira descarada.

Porque, no fundo, ele também achava a mesma coisa que o irmão.


Que moças como ela poderiam ser interesseiras.

E a única coisa que Clarissa estava interessada era em colocar uma


pedra naquela história, que havia se tornado uma bola de neve grande
demais.

— A senhorita tem um talento incrível com as palavras — disse ele.


— De todas as mulheres que eu poderia estar beijando, é você que eu desejo.

Ele a tirou de seus devaneios, a fazendo o encarar.

Sir Ronald Helton.

Ela havia passado a noite pronunciando aquele nome em sua mente,


junto com o título de capitão da Marinha Real.

Se tinha entendido bem a conversa que ele tivera com Tobias, a


verdade era que Ronald um dia também se tornaria conde.

Assumiria o lugar do irmão.

Quando o olhava, podia imaginar isso. Ele se parecia com um


homem saído dos contos de fadas que costuma ler para fugir da vida
enfadonha que levava. Ele era alto e forte, com os cabelos negros caindo
sobre os olhos azuis. Tinha aquele olhar que a fazia se sentir única quando
ele a fitava.
O homem era encantador!

Irresistível.

Seria fácil se apaixonar por ele, achava até que era tarde para evitar
que isso acontecesse. Ainda assim, tentaria manter seus pés firmes no chão,
pois sabia que, se caísse de cabeça naquela fantasia, o sofrimento para ela
seria muito maior do que poderia ser para ele quando tudo desmoronasse.

Protegeria o seu coração com todas as forças, garantiria que estivesse


a salvo de algo muito pior do que apenas uma quedinha por um homem que
bateu à porta dela, na noite que ela precisava de um milagre.

Poderia estar apaixonada por Ronald, mas isso não a impediria de se


colocar em primeiro lugar.

— Desculpe se me recuso a ceder aos seus caprichos — disse ela.

Ronald pareceu surpreso com a escolha de palavras dela.

— É isso que acha que estou fazendo? Que a senhorita é um capricho


para mim…?

— Homens como você acham que podem simplesmente conseguir


tudo o que querem com doces palavras, e estou afirmando que não vou cair
na sua lábia! — exclamou ela.

— Homens como eu?! Adoraria que me dissesse o que isso significa.

Ela suspirou alto.

Agora que tinha começado, não conseguia se calar, as palavras saiam


de sua boca antes que pudesse controlar:

— O senhor é um capitão, um nobre e, por algum motivo, estava se


escondendo no meio do nada, mentindo para pessoas que nem mesmo
conhecia. Não parecia preocupado em como isso poderia atingir o nome de
sua família — ela acusou.
Ele balançou a cabeça, incrédulo, os olhos não transmitiam a
diversão de sempre, ela conhecia aquela postura dele, de quando os pais dela
estavam por perto, mais dura, firme, como se não quisesse deixar brechas
para ser atingindo por alguém.

— Sinto muito que se ache tão pouco atraente ou interessante a ponto


de criar uma muralha para afastar alguém realmente goste de você —
começou ele. — Você se enxerga com os mesmos olhos dos seus pais, senão
saberia que os homens fariam filas na sua porta para ganhar sua atenção. Se
percebesse quem você é de fato, quando não está tentando interpretar uma
personagem para satisfazer a vontade daqueles que nem mesmo te dão valor,
veria a mulher maravilhosa que é.

Esperava que ele lhe dissesse muitas coisas, mas nunca alguma coisa
como aquela, tinha acabado de desferir uma lista de ofensas contra ele e o
homem respondia lhe dizendo que gostava dela? Sem dúvida, algo estava no
lugar errado na cabeça dele.

— O senhor… — Ela perdeu a voz.

— Me desculpe se minhas investidas são incômodas, lhe garanto que


não insistirei — ela sentiu um aperto no peito, mesmo que fosse exatamente
aquilo que tinha pedido para ele fazer —, mas, se deseja tanto sinceridade da
minha parte, a verdade é que nunca quis possuir uma mulher como desejo
fazer com a senhorita, as minhas noites são atormentadas por sonhos onde eu
a toco, onde observo o luar cobrir sua pele, onde a beijo em lugares em que a
senhorita nunca imaginou ser beijada.

Ele cruzou os braços na frente do corpo, e, se ela não estivesse


boquiaberta, teria gargalhado da cena, um homem daquele tamanho fazendo
bico.

— Isso é apenas desejo…

— Não tentarei te convencer do contrário no momento, mas não


imagina o quanto é difícil estar no mesmo ambiente que a senhorita, em uma
carruagem, sozinho, e não poder realizar ao menos um deles.
Ela graniu de frustração.

Também o desejava, e muito, nem tinha noção do quanto até aquele


momento em que ele lhe deu uma ideia do que poderiam ter juntos.

Clarissa o queria, queria ao menos tudo o que poderia ter, pelo tempo
que lhe fosse permitido.

Não pretendia se casar. Acreditava que a maioria dos casamentos era


semelhante a uma prisão, e não estava nem um pouco inclinada em fazer isso
consigo mesma.

Então, por que não aceitar aquilo que a vida havia colocado em uma
bandeja na sua frente, por que não permitir, ao menos por um tempo, que
pudesse se tornar o objeto de desejo de um homem como Ronald? O que
tinha a perder?

Respirou fundo, tentando colocar as ideias no lugar.

Não funcionou, no entanto, o bom senso, que era seu companheiro,


tinha se retirado de cena e agora ela precisava descobrir qual seria o próximo
passo.

— Não precisa me cortejar — começou ela.

— Eu não…

— O senhor faz isso o tempo todo, talvez nem note, deve ser algo
que os homens aprendem a fazer tão cedo que parece natural, mas não quero
que o senhor fique dizendo coisas bonitas…

— Mas…

— Pode me escutar? — Se diria aquilo, preferia que ele não a


atrapalhasse a cada frase.

Ele assentiu.
— Vai ser apenas isso, não preciso de promessas, de nada — avisou
ela. — Bem, já que o senhor me quer, e convenhamos, o senhor parece um
deus grego. — Ela balançou a cabeça perante o olhar dele. — Ronald, me
leve a sério!

— A senhorita acabou de me chamar de “deus grego” — disse ele,


rindo.

— Não, não, eu disse que o senhor se parece com um.

— Dá na mesma.

— Não, mas não importa — declarou ela. — O senhor pode me


mostrar o que fazia comigo em seus sonhos.

Dessa vez, ele não riu, só a olhou da cabeça aos pés, com uma
expressão que esquentou seu corpo.

Em um segundo, ela estava sendo puxada para o colo dele pela


cintura, com uma brutalidade que não deveria ter feito aquela sensação
aumentar, mas foi isso que aconteceu.

Os lábios dele roubaram os dela, as línguas se enroscando em uma


dança eloquente, como se tivessem passado anos separados, como se ele
precisasse daquele beijo como precisava de ar para sobreviver.

As mãos dele a puxavam para perto.

Suas mãos ainda estavam nos ombros dele, ela não sabia o que fazer
com elas, mas queria mantê-las no corpo dele.

Ele se afastou por um segundo dos lábios dela, encostando a testa na


dela.

— Não sabe o quanto esperei…

Ela levou o dedo indicador até os lábios dele, calando-o.

— Disse para o senhor… sem declarações.


— A senhorita não pode querer que eu fique o tempo todo em
silêncio — murmurou ele.

— Não vejo o que poderia ser tão importante a ponto de parar de me


beijar para falar.

Ronald sorriu.

Ele a beijou novamente, intenso e calmo na mesma proporção. Com


cuidado, Ronald foi se aventurando pelo queixo e pescoço dela, fazendo
Clarissa se derreter em seus braços.

Ela se afastou um pouco, traçando os lábios dele só com os dedos,


enquanto ele a fitava, o rosto dele perto do dela, a respiração ofegante.

Ele a puxou pela nuca, fazendo-a suas bocas se chocarem outra vez.

— Clarissa…

O nome dela nunca parecera tão belo como naquele instante, ao sair
dos lábios dele em um tom rouco que não conseguia disfarçar a intensidade
de seu desejo.

A mão dele repousava firmemente na cintura de Clarissa, hesitante,


acariciando o tecido simples de seu vestido, como se aguardasse que ela o
afastasse. No entanto, Clarissa ansiava por mais, cada toque, cada nova
descoberta que ele estava prestes a revelar. Nas mãos dele, estava o poder de
fazer o que quisesse.

O beijo dele era exigente, tomando tudo o que desejava: cada


sensação, cada gemido, enquanto também lhe oferecia o mesmo em retorno.
Quando Ronald beijou a parte sensível atrás da sua orelha, Clarissa mordeu
seu lábio inferior, provocando um som incompreensível. A forma como ele
acariciava o tecido sobre seu mamilo deixava evidente que ele havia
apreciado aquilo tanto quanto ela.

Ele exibia confiança em cada movimento, como se soubesse


exatamente o que a faria suspirar, o que provocaria sensações em seu corpo
que ela desconhecia. Seus lábios desceram por seu pescoço, fazendo-a
arquear a coluna, entregando-se ainda mais. Ele pressionou o corpo contra o
dela, arrancando-lhe um gemido de prazer.

Ela sentiu a firmeza sob o tecido de sua calça e ouviu o rosnado


baixo de Ronald, enquanto os lábios dele roçavam o lóbulo de seu ouvido.

Ela ficou sem fôlego.

— Isso, Clarissa, é o quanto eu te desejo — disse ele —depois de


cada noite dormindo naquele maldito quarto sem poder te tocar, cada
segundo sabendo que estava fora do meu alcance.

Clarissa não sabia como poderia sentir tantas coisas diferentes no


mesmo instante, tudo novo, mas também agradavelmente natural, como se
seus corpos se movessem em uma sincronia perfeita.

Quando ele abaixou o decote de Clarissa com violência demais para


um tecido antigo e gasto, ela o ouviu se rasgar em dois pedaços na parte de
cima.

Aquilo deveria ser o suficiente para recobrar o juízo dos dois, mas
apenas serviu para pôr mais lenha na fogueira que crescia entre os dois.

Ele colocou o mamilo dela na boca, e ela, que já não sabia o que
fazer com aquela sensação que crescia em seu ventre, mordeu o ombro dele,
contendo seu gemido.

— Oh, Deus! — Foi a única coisa que saiu dos lábios dela.

— Não foi a senhorita que disse que não podíamos falar? — Ronald
a encarava com um sorriso malicioso nos lábios, havia divertimento em seu
tom de voz.

— Isso mesmo, então cale a boca! — Clarissa o puxou para si.

Se dissessem que empurraria a boca de um homem para os seus


seios, ela os chamaria de loucos, no entanto, naquele momento, estava
fazendo exatamente aquilo.
Sentiu as mãos dele puxando as saias do vestido para cima. Ele tinha
pouco tecido, fazendo o trabalho ser fácil, então ela sentiu as mãos dele em
sua pele e se concentrou no calor entre as suas pernas que aumentava a cada
toque.

Sua sorte era estar sentada, ou então se derreteria no chão.

As mãos dele pararam na bunda dela, a apertando.

— Ah…

— Gosta disso? — perguntou ele.

Apenas assentiu, fraca demais para falar.

— Deseja que eu faça como nos meus sonhos?

Ela sabia o que aquela pergunta significava. Era o momento de voltar


atrás, era exatamente o que uma moça decente faria.

Mas Clarissa queria o toque de Ronald em sua pele. Naquele


momento, não conseguia pensar em nada além daquilo.

Não sabia mais quanto tempo essa farsa duraria. Logo teria que se
contentar com as memórias, quando estivesse sozinha e Ronald fosse apenas
uma lembrança.

— Com cada detalhe.

Ela sentiu o sorriso dele em sua pele.

Ele a beijou outra vez.

Sentiu quando os dedos dele foram para o cinto da sua calça,


tentando se desvencilhar dele.

Sua boca se encontrava seca de excitação. Enquanto isso, ele


espalhava beijos gentis pelo seu pescoço.
E, então, a carruagem parou abruptamente.

— Que inferno! O que pode ser?

Clarissa tentou sair do colo dele, mas ele a segurou.

— Podemos ignorar?

— Acho que o senhor não quer que ninguém nos encontre nessa
situação.

Os olhos desceram para os peitos dela.

— Maldito seja aquele que entrou no nosso caminho! — praguejou


ele. — Que o desgraçado caia na vala mais funda…

Clarissa estava mais concentrada em recuperar sua dignidade do que


na série de palavrões que vinham da boca de Ronald, provando de uma vez
por todas que ele era um verdadeiro marinheiro.

Suas saias já estavam no lugar, mas nada se podia fazer com o


vestido que havia sido dividido em dois, tinha o fino tecido da anágua, mas
isso não era nada quando se levava em conta que o tecido era ruim e que
podiam ver claramente os seios dela.

Clarissa não tinha um xale, nunca tivera a chance de conseguir tecido


suficiente para fazer um, e agora se encontrava naquela situação deplorável.

Ela olhou para Ronald, que tinha tirado o paletó e o estendido para
ela.

— Eles vão desconfiar — disse ela ao ouvir passos.

— Do quê? Que jovens recém-casados estavam se agarrando dentro


da carruagem? Espero que eles tenham certeza, senão seria até ofensivo —
declarou ele.
Capítulo 19
Ronald só notou como estava sendo um ogro quando as palavras já
tinham saído da sua boca.

Mas estava se esforçando tremendamente para não sair daquela


carruagem e garantir que todo o resto do mundo sumisse apenas para que
pudesse consumar seu casamento falso.

Já era difícil o suficiente ficar longe de Clarissa quando tinham dado


apenas um beijo, agora mesmo seria insuportável.

— Eles não vão falar nada. Além disso, podemos dizer que você
estava com frio — explicou ele, tentando amenizar sua grosseria.

— Sempre estou com frio — disse ela.

E, por um segundo, Ronald se sentiu um tonto por nunca ter


percebido o óbvio, estavam na Inglaterra, em um país em que o frio era
constante, mas nunca havia visto Clarissa com um xale.

Achava que não poderia odiar ainda mais os pais dela, ledo engando,
porque agora tinha conseguido essa proeza.

— E vestir o uniforme de um capitão é o sonho de algumas moças —


ele desconversou em tom brincalhão. A vida de ambos era muito diferente e
os últimos dias provaram isso, portanto Ronald não precisava entrar nesse
assunto delicado.

Ela aceitou, colocando a farda no corpo pequeno e abotoando os


botões para que pudesse cobrir a pele exposta.

— Então, deveria se responsabilizar pessoalmente para que fizessem


ao menos um para suas esposas.

— Pode deixar que falarei pessoalmente com o Rei.


— E, se puder passar mais um recado, diga que às vezes aparecem
soldados nus nas portas das pessoas — disse ela, séria. — Me parece uma
informação importante.

— Claro, senhorita.

Enquanto Ronald relembrava aquela noite, percebia que, se não


tivesse encontrado Clarissa, possivelmente continuaria bebendo até cair, isso
se não voltasse para o vício da jogatina de uma vez por todas.

Temia o homem que poderia voltar a ser.

A Marinha lhe dera uma missão, mas não podia negar que a morte de
seu companheiro pôs em dúvida as suas escolhas.

Seu desejo era ser o oposto do seu pai, era tudo o que vinha tentando
fazer, e, naquele dia, percebeu que ele poderia não ser tão diferente assim do
finado conde. De forma consciente ou não, tinha mandado um homem para a
morte, e isso ainda lhe pesava na cabeça.

— Afinal de contas, do que o senhor estava fugindo?

Ele encarou os olhos de Clarissa, relembrando o sangue, o olhar de


súplica no rosto de um homem que morreu por ele, de como uma mãe havia
perdido o filho.

— Servir para ao Rei nem sempre é uma tarefa fácil — comentou


ele, dando um sorriso triste. Uma parte sua não queria lhe contar nada, já
outra, o fazia querer dizer cada particularidade de sua vida.

— Nunca imaginei que fosse. Poucas são as empreitadas dignas que


se tecem sem desafios — respondeu Clarissa, sua voz transbordando calma e
serenidade.

— É comum testemunhar camaradas sucumbirem — ele começou,


sua postura gradualmente se enrijecendo à medida que adentrava em
lembranças esquecidas. — Às vezes pela mão insidiosa das doenças, em
travessias marítimas, destituídas de recursos suficientes e médicos
competentes, desgastaram os homens e os acometeram com enfermidades. E,
quando a doença se instaura, não raro aguardamos o suspiro final. No
entanto, não são raros os momentos em que suas vidas são ceifadas pelo fio
da espada inimiga.

Uma pausa se fez enquanto Ronald engolia em seco.

O toque de Clarissa repousou sobre a mão trêmula de Ronald, um


gesto de apoio e compreensão entrelaçados em seu olhar.

— Às vezes, compartilhar o fardo alivia a carga que carregamos


sozinhos — ela sussurrou, como uma brisa gentil que desfaz as sombras.

— Compreendemos o alto preço da escolha que fizemos — explicou


ele, dando de ombros com uma calma resignação. — Nenhum homem
adentra nessa vida esperando uma facilidades. O país está acima de nós e
temos um dever, que na maioria das vezes não envolve o retorno para casa.

— Então por que optar por isto? É de uma boa família, tem fortuna.

— Eu desejava algo mais significativo do que apenas ocupar espaço


em clubes sociais — respondeu ele, lembrando-se de todas as provações que
havia enfrentado para alcançar seu posto na Marinha.

Seu olhar se perdeu por um momento, revisitando as adversidades


impostas por seu irmão, sua mãe e por todos aqueles que tentaram dificultar
seu caminho.

— E se tornou o capitão… — disse ela, sorrindo — creio que


conseguiu.

— Às vezes, questiono a que custo — exclamou ele, seus olhos se


nublando com pensamentos sombrios. — Em minha última missão, uma
tarefa tão sigilosa que não posso entrar em detalhes sobre os acontecimentos,
um de meus homens foi atingido por uma bala que era destinada a mim. Ele
deu sua vida...

Suas palavras vacilaram, engolidas pela emoção que ameaçava a


transbordar.
— Não pode se culpar por cada homem que morre — ela o consolou,
com delicadeza. — Não pode salvar a todos, mesmo que tente com afinco.

— Sinto-me responsável por eles. Devo minha vida a qualquer um


sob meu comando, Clarissa — rebateu ele, levando uma mão até a nuca. —
Como aquele rapaz, jovem demais para enfrentar uma bala por outro.

Ela se sentou ao lado dele, levando a mão até seu rosto, o obrigando
a encará-la.

— Não estou dizendo que não deve ficar triste, sofra o luto, chore se
necessário — afirmou ela —, mas esse tipo de culpa, Ronald, não é algo que
deva carregar. Não merece, não pode controlar tudo.

— A família dele...

— Não foi culpa sua.

— Você não pode saber disso.

— Eu sei, sim — retrucou ela. — Sei que, se pudesse fazer alguma


coisa, teria feito. Tem que se perdoar, se isso o fará seguir em frente.

— Acho que ainda não estou pronto.

Algumas noites ainda tinha pesadelos com aquela cena, acordava


escutando o rapaz agonizando até a morte o levar.

Ela assentiu.

— Estou aqui para lembrá-lo — declarou ela, sua voz suave e


reconfortante. — Não foi culpa sua..

— Obrigado.

— Não por isto.

— E...
— Talvez por isto.

Ela se aproximou de Ronald, encostando os lábios nos dele, tocando-


os com suavidade, puxando-o para um beijo caloroso e confortável.

Ronald a envolveu com seus braços, agradecendo a sorte de ter


encontrado Clarissa, por seus caminhos terem se cruzado, mesmo que de
maneira tão inusitada. Não havia pessoa alguma no mundo que ele desejasse
estar além dela.

Clarissa já imaginava que Londres seria uma cidade grandiosa, mas,


quando a avistou, não conseguiu esconder o quanto estava boquiaberta.

Tinha visto pouca coisa na vida, e dizer que Londres era muito maior
que tudo aquilo era pouco, nunca tinha visto nada igual.

As ruas eram movimentas, havia pessoas andando de um lado para o


outro, carruagens indo e vindo, pessoas conversando, o som da cidade…
Clarissa queria descer da carruagem e conhecer cada detalhe.

— Cuidado para não cair para fora da carruagem — disse Ronald, e


ela voltou a cabeça para dentro, olhando para ele, já tinha voltado para o seu
lugar, e fingia que não o havia beijado uma outra vez. — Dessa vez não vou
dormir no sofá.

— Ah, não me diga — Clarissa declarou, cruzando os braços de


frente ao peito. — Criou afeição pelo tapete?
— Não, gosto muito mais da cama, ainda mais quando ela vem
acompanhada de uma pessoa como a senhorita.

Clarissa tinha esquecido por um tempo que, para todos ali, eles eram
um casal, por isso era mais do que normal que os dois dormissem juntos,
mesmo que para ela naquele momento a ideia de ficar no mesmo quarto que
Ronald fosse impraticável.

Tinha passado semanas dividindo o quarto com ele, mas isso havia
sido antes de tê-lo tão perto.

Embora soubesse que a história deles teria um fim, era fácil acreditar
que aquela era sua verdadeira vida, que aquele era o seu marido.

A paixão não era tão assustadora quanto o amor, e, mesmo que


dissesse que não passaria disso, aquele era Ronald, era fácil amar um homem
como aquele, um homem que merecia esse amor.

Depois do tempo que tiveram juntos, era difícil não entregar o


coração para ele, quando o admirava tanto.

Mas a distância protegeria ambos. Clarissa precisava ser esperta dali


em diante. A família dela tinha entrado em contato com os Heltons com o
intuito de se aproveitar deles, esse era o único motivo para estar ali, senão
nunca teria conhecido aquelas pessoas e Ronald já teria ido embora da vida
dela.

— Ronald, você pode dormir onde desejar — disse ela por fim —, só
não me espere para deitar-se do seu lado.

— A senhorita é teimosa…

— Pode chamar de bom senso, porque é exatamente isso, bom senso.

— Claro, a senhorita não consegue manter suas mãos longe de mim


— disse ele, sorrindo.
— E o senhor se opõe tão firmemente a isso, não é mesmo, lorde
Helton? — respondeu ela, inclinando-se em sua direção.

— Nem imagina o quanto! — declarou ele, colocando a mão no rosto


dela. — Nesse momento, pretendo me opor caso a senhorita queira me
beijar.

Clarissa inclinou o rosto na direção dele, chegando cada vez mais


perto, até que a carruagem parou de uma vez.

— Que inferno! — soltou Ronald.

Ela estava prestes a reclamar, mas, antes que pudesse falar alguma
coisa, seus lábios foram capturados pelos dele em um beijo rápido, se
afastando antes de a carruagem ser aberta.

— Bem, não se assuste, tá bom?

Tarde demais. Ela já estava bem assustada com tudo e aquela frase a
fez sentir mais medo, mas não havia tempo para perguntar nada e, antes que
se desse conta, estava de mãos dadas com ele, sendo puxada para fora da
condução.

E, assim que seus pés estavam no chão e ela pode se voltar para
frente, Clarissa avistou uma casa, mas não uma casa com a qual estava
acostumada.

Já tinha visto casas bonitas na vida, mas nenhuma delas se


equiparava a que se erguia majestosamente diante de Clarissa. A mera visão
de sua fachada era suficiente para notar que o seu interior deveria ser ainda
mais magnífico. Aquela casa era a perfeição em sua essência.

Suas grandes janelas permitiam que a luz do sol adentrasse


livremente, iluminando cada canto do ambiente. O belo jardim na frente da
residência acrescentava um toque de serenidade, com flores
meticulosamente dispostas e árvores majestosas que emolduravam a entrada
principal.
Por falar em entrada, era impossível não se impressionar com a
grandiosidade dela. Portões imponentes, ornamentados com o brasão da
família Helton, destacavam-se como guardiões do tesouro que se encontrava
além daqueles muros. Aquela insígnia familiar deixou claro que os Heltons
eram figuras de importância inquestionável naquela sociedade.

Fora a longa fila de criados que se fazia da porta até a calçada.

Agora a maioria das carruagens tinha sumido, os únicos que haviam


descido eram a condessa e o filho, que parecia ainda mais incomodado do
que antes.

Ela olhou para Ronald, que parecia bastante à vontade naquele


ambiente, com todas aquelas pessoas em fila o aguardando, como se não
houvesse nada mais importante para ser feito, como se o mundo de cada um
deles tivesse que parar ao ouvir as carruagens.

A única coisa que a impediu de se virar de costas e ir embora foi a


mão de Ronald em suas costas, que não a deixava ir a lugar algum que não
fosse para a frente.

— Os vestidos das criadas de vocês são melhores que os meus. — E


mais bonitos, pensou ela.

Ele riu de uma maneira discreta, olhando para os pés.

Já tinha visto aquele homem fingindo ser um simples marinheiro, o


visto sendo um filho e um irmão, mas, naquele momento, ela notava o que
de verdade ele era.

Ronald era nobre e sabia agir como tal, a postura dele mostrava isso.
Desde o toque firme dele nas suas costas até a expressão séria em seu rosto.

— Daremos um jeito nisso — respondeu ele, a levando até a entrada


da casa, a apresentando aos que estavam ali. — Disse a eles que não
precisávamos uma recepção dessas, já que essa não é nossa casa e estes são
os criados da família, mas meu irmão tem a péssima mania de querer
impressionar a todos.
Ela tentou não se concentrar no que ele tinha dito: nossa casa.

— Diga a ele, por favor, que estou impressionada.

Ele assentiu.

Ela subiu o último degrau, onde tinha um senhor magrelo,


aguardando-os sozinho.

Ele fez uma pequena reverência, mais breve do que os outros criados,
antes de voltar a encará-los.

— Este é Norman, o nosso mordomo — disse a senhora Helton, com


um carinho aparente. — Clarissa é nova integrante da família.

Ele fez uma reverência para ela.

— Creio que seja tarde demais para lhe dar algum aviso — disse ele.
— Bem-vinda a Londres, senhora.

— Obrigada! — Ela sentiu o braço de Ronald a puxar para um


abraço, adotando uma postura diferente de momentos antes.

— Eu disse que conseguiria uma esposa caso quisesse uma — disse


ele, sorrindo para o mordomo, que apenas ergueu uma sobrancelha.

— E teve que esconder ela de todos para que ninguém pudesse


alertá-la.

— Me alertar do quê? — perguntou Clarissa, curiosa.

— Nada, nada querida — disse o mordomo, encaminhando-os para o


saguão.

— O quarto antigo de Ronald foi preparado para acomodá-los, agora


que todos os meus filhos se casaram e partiram, terão mais privacidade —
disse a condessa enquanto os acompanhava. — De toda forma, descansem.
Amanhã gostaria muito que Clarissa fosse comigo à modista, precisamos
com urgência de trajes para os bailes da temporada.
— Me desculpe, mas não há necessidade disso.

— Ah, querida, é claro que há, é a noiva de um capitão da Marinha


britânica, as pessoas estarão com os olhos grudados em vocês.

Isso ela já sabia, todos a olhariam, esperando descobrir o que tinha


feito um homem como aquele se casar com uma mulher que mal tinha onde
cair morta.

— A esposa — corrigiu Ronald, fazendo a senhora Claire balançar a


cabeça surpresa com o próprio erro.

— Desculpe, ainda estou me acostumando que o meu filho mais


rebelde está finalmente casado!

— E não vejo motivos para fazer Clarissa enfrentar essas pessoas


antes que seja necessário.

— As pessoas já sabem do seu casamento — disse Tobias, que vinha


atrás, em silêncio. — Saiu nos jornais, um anúncio feito pelos pais da
senhorita Franklin.

— Senhora Helton — resmungou Ronald, trincando os dentes.

Seus pais tinham aprontado de novo. Era de se esperar que se


gabariam de algo que não tinha nada a ver com eles e nem tiveram a
decência de consultar a filha antes de fazer a publicação.

Clarissa tinha concretizado o sonho deles: vê-la casada com um


homem rico, de importância na sociedade, eles deveriam estar no paraíso
naquele momento.

Querendo ou não, tinha medo do que isto significava, sabia que sua
família se aproveitava de todas as oportunidades que surgiam, e, mesmo que
tentasse fazer o possível para que as duas famílias permanecem distantes, os
pais não permitiriam algo assim.
— A questão é que todos se perguntam o que há de errado para
termos escondido a relação de vocês, questionam até mesmo se nossa família
apoia a união — comentou o conde, parando no corredor na frente de uma
porta. — E não desejo fofocas cercando nossa família, então vocês
comparecerão a uma festa, sorrirão e agirão como se, o tempo todo, nossa
família soubesse o que estava acontecendo.

— Para isso, vou me certificar pessoalmente que esteja preparada,


mas é necessário tomar as rédeas da situação antes que percam do controle
— comentou a senhora Claire.

— Vamos dar um baile para apresentar o novo casal para a sociedade


em três dias, espero que esse tempo seja suficiente — falou Tobias, entrando
no escritório, mas, antes que pudesse se isolar deles, Ronald se enfiou lá
dentro e fechou a porta com força.

A condessa e Clarissa permaneceram paradas no corredor, depois a


mulher suspirou e se pôs a andar.

— Os dois têm muito a resolver.

— Acho que virei motivo de briga entre os dois — comentou


Clarissa.

Mesmo que Ronald insistisse em protegê-la, sabia bem o que estava


acontecendo, Tobias era o homem que lutaria por aquela família, da sua
forma, e não estava errado de todo modo.

Clarissa não queria absolutamente nada da família Helton, já os pais


dela… qualquer um que tivesse o olho bom perceberia que os dois estavam
interessados no que poderiam conseguir daquela situação.

— Ah, querida, eles já eram assim antes de você entrar nessa


equação — disse ela.

— Creio que nenhum de vocês esperavam que ele se casasse com a


filha de um vigário.

A senhora Helton deu de ombros.


— Sempre soube que, no momento que Ronald decidisse se casar, ele
acabaria surpreendendo todos nós — disse ela, parando um momento de
frente para uma janela e se voltando para Clarissa. — Tobias quer proteger
esta família, e Ronald proteger você, me orgulho de ambos por isso.

— Seu filho é mesmo um homem incrível.

Clarissa sabia disso e julgava que aquela mulher também, ninguém


poderia conviver com Ronald sem notar que o homem era uma muralha de
músculos feita de bondade, coragem e respeito.

— Queria ter estado no casamento de vocês — disse ela,


melancólica.

Clarissa olhou para os pés, acanhada.

— Eu não sei o que eu seria capaz de fazer se um filho meu se


casasse escondido — foi a única resposta que poderia dar. — Tenho certeza
que Ronald nunca teve a intenção de tirar esse momento da senhora, tudo
aconteceu rápido demais. Seu filho demora para tomar uma decisão, mas,
depois que toma, não perde muito tempo para colocá-la em ação.

— É, eu sei, querida — disse ela, abrindo a porta de um quarto que


poderia muito bem ser toda uma casa.

Era imenso, com um espelho maior do que ela, uma cama enorme.
Tudo naquela casa era grande.

E Ronald estava certo, não tinha um único sofá no quarto.


— Um baile? — perguntou Ronald ao irmão, que fingia não notar
sua presença.

— Sim, caso tenha se esquecido, é o que fazemos quando temos


motivos para comemorar, nós mostramos isso ao mundo — declarou Tobias
antes de se sentar na sua cadeira e colocar as mãos sobre a mesa de mogno.

— Não vou participar disso.

O irmão ergueu as sobrancelhas.

— Eu fiz parecer que tinha opção?

Ronald riu.

Sempre temeu se parecer com o pai, mas quem vinha criando uma
certa semelhança era o irmão.

— Se engana se acha que pode me dizer a forma na qual apresentarei


minha esposa à esta sociedade — começou Ronald, deixando claro que isso
não estava em discursão. — Vim para Londres porque, ao contrário do que
você acredita, me importo com essa família, mas também não vou expor
minha esposa a pessoas maldosas apenas porque deseja provar que tem
razão.

— Sabemos que logo circularão boatos sobre o casamento.


— Farão isso de toda forma, então a protegerei pelo tempo que for
possível.

— Estará apenas adiando o inevitável.

Ronald deu de ombros, encaminhando-se para a porta.

— Que seja.
Capítulo 20
Ronald tinha passado o dia todo fora da mansão. As pessoas já
sabiam que ele havia retornado à cidade, resultando em uma lista de
compromissos inadiáveis, afinal, ainda era um capitão da Marinha.

A Corte desejava que Ronald partisse em menos de um mês para


outra missão. A questão agora era que ele não queria ir, não se sentia mais
inclinado a entrar em um navio na primeira oportunidade que aparecesse
para levá-lo para longe dali.

Amava o mar e a sensação de estar a bordo, cada passo dos


marinheiros formando uma dança para manter o navio firme em seu curso.
Mas tinha se decido, seria sua última viagem como um oficial da Marinha,
porque agora tinha tudo o que precisava ali, em terra firme.

Conquistou muito mais do que um dia havia sonhado, tinha


conhecido muitas pessoas, mas também perdido algumas, por isso a
aposentadoria, mesmo precoce, lhe parecia a coisa certa a se fazer.

Para isso, deveria cumprir sua última missão não apenas com o Rei,
mas com seus homens.

Algumas semanas no mar e voltaria para casa, para poder aproveitar


a vida com Clarissa.

Claro que não partiria antes de garantir que soubesse o que de fato
ela significava para ele.

Na noite anterior, dormiu sobre algumas almofadas no chão, tinha


sido um dia longo, mas não queria dormir ao lado dela apenas porque ela se
sentia na obrigação de lhe ceder espaço, ainda assim, naquela noite, queria
sentir o toque dela, o perfume dos seus cabelos, queria enaltecer cada curva
daquela mulher.

Sabia que o dia de Clarissa fora agitado. Morgan e sua mãe ficaram
responsáveis por garantir um novo guarda-roupa à Clarissa, então as três
provavelmente peregrinaram o dia todo, visitando uma longa lista de
modistas e sapateiros.

Ronald garantiu que ela pudesse ter tudo do bom e do melhor, e


agora estava ali como um tonto, com uma enorme caixa na mão.

Quando bateu à porta, a casa estava silenciosa, já deveria passar das


onze da noite.

A maioria dos homens a quem se juntara naquela tarde tinha esposa e


casa para voltar, e, no entanto, buscavam sempre uma desculpa para pedir
mais uma rodada de bebida, enquanto tudo o que Ronald desejava era estar
em casa.

Ele girou a maçaneta e entrou no quarto, todas as velas estavam


apagadas.

Clarissa se remexeu na cama, se sentando.

— Desculpa por te acordar — disse ele, sorrindo para ela que


segurava firmemente a lençol contra o corpo.

— Não estava dormindo — revelou ela. — Sua irmã acabou de sair


correndo daqui do quarto.

— Não diga que teve que suportar ela o dia todo.

Clarissa inclinou a cabeça para o lado.

— Ela não é tão terrível.

— Diz isso porque não a conheceu quando tinha 12 anos — garantiu


ele. — Aí, sim, veria do que estou falando.

— Se eu não fosse uma esposa de mentirinha, ela seria uma das


minhas cunhadas favoritas.

— Isto é um detalhe.
— Sim, mas ela faz um esforço colossal para que eu não me sinta
uma camponesa qualquer, e acho que ela faz isso por você.

Ele sabia que sim, e um pouco porque a irmã era muito prestativa,
não importava quem fosse, se fosse uma boa pessoa, ela devolveria a
gentileza.

Ele estendeu a caixa na direção dela, que não fez menção de pegar.

— Trouxe um presente para você.

Ela franziu o cenho, surpresa.

— O senhor já me deu doze vestidos de presente, cinco anáguas,


cinco sapatos e uma quantidade incontável de camisolas, fora chapéus e
luvas para uma vida toda.

— Eu o escolhi com muito carinho. Além do mais, é falta de


educação recusar um presente — declarou ele.

— O senhor ficará pobre com tantos presentes.

— Não estou preocupado.

— É, Ronald, esfregue na minha cara que o senhor possui dinheiro


saindo pelas orelhas.

Ele riu.

— Tenho tanto que o uso como lenço.

Ela balançou a cabeça, em repreensão.

— Nada higiênico.

— Se quer evitar este costume horrível, aceite meus presentes.

Ela não fez nenhum movimento.


— Ao menos olhe — insistiu ele —, se não gostar o devolvo amanhã
mesmo, mas veja.

Clarissa engoliu em seco, e ele franziu a sobrancelha, instigando-a.

— O que há de errado?

Clarissa fechou os olhos firmemente.

— Sua irmã….

— Ela disse alguma coisa que a ofendeu, porque…

— Não, não é nada disso. — Ronald suspirou aliviado.

— Então o que houve?

— Ela gosta de camisolas.

— Minha irmã gosta de tudo que envolva gastar dinheiro em


modista, desde as luvas a vestidos.

Clarissa assentiu rapidamente.

— Ela gosta de camisolas com pouquíssimo pano.

Ronald fez uma careta.

— Tudo bem, informação demais.

— Ela me obrigou a comprar algumas — desabafou ela, e, no mesmo


momento, Ronald sentiu que sua gravata havia ficado mais apertada.

— Não precisa usá-las se não quiser. — Mesmo que ele fosse gostar
bastante se ela usasse.

— É claro que não preciso — concordou ela, apertando ainda mais o


lençol contra corpo —, mas ela achou que seria bom ver como algumas
ficariam.
— Ah, sim — respondeu ele, largando a caixa sobre a cama, e tirou a
maldita gravata.

— Houve uma com a qual ela me presenteou, a propósito. Sua irmã


tem um forte apreço pela cor vermelha, por rendas e peças com um preço
exorbitante para tão pouco pano.

— Mais informações desnecessárias.

— Ela insistiu para que eu a usasse — disse ela, ignorando Ronald.


— Pensei que teria tempo para me trocar antes da chegada do senhor, mas
ela ficou quase todo o tempo aqui, e, quando ela saiu, o senhor já estava na
porta.

Ronald arregalou os olhos, apontando para ela.

— A senhorita está apenas de camisola?

Clarissa engoliu em seco novamente.

Todas as noites em que os dois tinham passado juntos, ela havia


usado vestidos, vestidos marrons, nem um pouco atraentes, e, mesmo assim,
Ronald sempre acordava dolorido.

E agora ela estava com o que imaginava ser uma bela camisola
francesa, na cama que ele nunca havia dividido com outra mulher.

— Sua irmã é muito persuasiva.

— Pode falar “mandona” — disse ele, só encarando o lençol. — Não


precisa ficar agarrando o cobertor contra o corpo, não ficarei te observando.

— O senhor já está fazendo isso.

Ele ergueu o olhar, levando a mão a nuca.

— É, mas vou me esforçar ainda mais — disse ele, pigarreando


algumas vezes. — Agora quero que a senhorita veja o presente.
E ele cumpriria com a palavra.

Ainda mais porque tinha ido em mais de cinco modistas para


conseguir o presente que realmente achava que ela iria gostar, então estava
animado para ver a reação de Clarissa.

— Só não fique olhando — advertiu ela, abaixando o lençol.

— Oh! Por Deus!

Não tinha como não olhar, simplesmente seus olhos foram para a
renda sobre os seios dela, uma renda tão fina que ele podia ver cada curva.

Os cabelos castanho-escuros dela estavam soltos, não eram longos,


nem tinham cachos encantadores que a sociedade tanto admirava, mas caíam
por sua pele de uma maneira que a deixavam irresistível, como ele não ia
admirar uma visão daquela?

— Esqueça qualquer coisa que eu tenha falado sobre a minha irmã,


aquela mulher é um anjo!

— Ronald, você garantiu que não olharia.

Ele balançou a cabeça, forçando seus olhos a subirem para o rosto


dela.

— Certo — disse ele, pegando a caixa outra vez, e se sentou na


beirada da cama. — Abra a caixa e veja se gosta.

Dessa vez, ela puxou a tampa, revelando o xale que a modista lhe
garantiu ser da melhor qualidade, com lindas flores bordadas.

— É um xale — disse ela, o encarando.

Ele assentiu.

— A senhorita falou que não tinha um, e aqui é a Inglaterra, faz frio
o tempo todo.
Ela sorriu para ele, passando a mão por cima do tecido.

— Eu não posso aceitar — disse ela, balançando a cabeça. — Não


posso aceitar nada disso, Ronald, é demais.

Ele colocou a mão sobre a dela.

— É apenas um xale, Clarissa. — Ele pegou a peça e colocou sobre


as costas dela.

— Que deve ter custado uma fortuna.

— Se eu dissesse que achei no meio da rua, a senhorita ficaria mais


inclinada a aceitar?

— E todas as outras coisas…

— Posso dizer que a modista me devia um favor.

Ela riu.

— É lindo. Obrigada.

— E combina perfeitamente com a senhorita — disse ele ao colocar


o cabelo dela atrás da orelha.

— Sua irmã me contou que há muitas moças chorosas com a notícia


de que o senhor se casou.

— Não faço nem ideia do que ela quis dizer com isso.

— Acho que ela quis dizer que o senhor faz muito sucesso em
Londres.

— Ela não deveria estar falando isto para minha esposa.

— Eu não sou sua esposa.


— É claro que a senhorita é, só falta uma bela aliança com diamantes
e então estará feito — disse ele entre uma risada e outra. — Ah, e um vigário
que não seja seu pai.

— Não, eu não sou sua esposa.

— Mas poderia ser — revelou ele por fim — se assim quisesse, a


senhorita poderia ser tudo na minha vida.

Ela o encarou antes de puxar a mão debaixo da dele.

— O senhor é um homem bom — disse ela —, mas os nossos


mundos, isso entre nós… não funcionaria. Me importo muito com o senhor
para prendê-lo a uma coisa que não tem futuro algum.

— Eu…

— Eu sou a filha de um vigário, e o senhor é um capitão da Marinha,


filho de um conde. Hoje, durante o almoço, tinha mais talheres do que eu
julguei um dia ser necessário para uma refeição. Pensei que conhecia todas
as regras de etiqueta, mas descobri que me sento de forma desleixada, falo
alto demais, nada em mim se encaixa aqui, esse não é o meu lugar, e o
senhor sabe disso.

Ronald encarou as mãos, incapaz de fitar a mulher à sua frente.

— Eu o envergonharia, se eu simplesmente desaparecesse e você


dissesse que eu morri, seria muito melhor. Não tenho contatos aqui, nem
pessoas que se importam comigo e logo serei apagada da sua vida. Você
poderá se casar com alguém que deseja de verdade, alguém que não tenha
simplesmente surgido em sua vida.

— Fui eu que bati em sua porta.

Clarissa sorriu, concordando.

— Mas fui eu que pedi para você ficar.

— E foi minha escolha. — Ele balançou a cabeça, recusando-se a


aceitar aquilo. — Eu me apaixonei pela moça que conheci naquele dia e
continuo me apaixonando por você a cada dia desde então, Clarissa. Talvez
este lugar não seja o seu lar, mas você é o meu.

Ela o encarou, mordendo o lábio inferior.

— Eu não sirvo para isso, não sirvo para tudo o que eles querem de
mim — desabafou ela, visivelmente abatida. Ronald balançou a cabeça,
pedindo-lhe silêncio, compreendendo sua queixa.

— Para mim, a única coisa que a senhorita precisa ser é a minha


esposa, a minha amada Clarissa.

Ela encostou a testa na dele e suspirou.

— Por que, quando estou com o senhor, é tão difícil lembrar o


motivo pelo qual devo me manter distante? — questionou ela enquanto ele
acariciava suavemente sua bochecha.

— Talvez seja porque não deva mesmo — respondeu ele, com um


olhar carregado de significados.

Queria acreditar nisso, nessa ideia que vinha se agarrando havia dias,
para garantir que pudesse enfrentar o que estava por vim do lado dela.

A sociedade era cruel com todos que se mostravam fracos, e a última


coisa que ele queria era que Clarissa se magoasse, portanto, ia garantir que
ela estivesse protegida, a todo custo.
A única coisa que não permitiria era ficar longe dela porque alguém
decidiu que o que a pessoa tinha era mais importante do que quem a pessoa
era.

E queria que Clarissa entendesse isso, porque a pessoa que ele


desejava, a pessoa que ele amava estava ali, na sua frente, e ele a queria
tanto.

Não só naquele momento, queria lhe falar de sua vida, de coisas


bobas e de suas dores, ele queria compartilhar a vida com ela e que ela
compartilhasse a dela com ele.

Queria levar Clarissa para conhecer todos os lugares que amava,


mostrar o que o mundo tinha de melhor. Queria provar que poderia se casar
com ele e ainda ser a pessoa mais livre do mundo. Queria ser a pessoa mais
importante na vida dela, a que ela procurava quando estava triste ou feliz.

E ali estava ela, podendo lhe dizer um sim e fazê-lo o homem mais
feliz da face da Terra.

E ele só conseguia rezar para que fosse um sim, porque não sabia o
que faria diante de outra resposta.
Capítulo 21
Clarissa o beijou.

Ela jogou aquela caixa que os separava longe e o beijou como nunca
tinha ousado fazer antes.

O homem que ela amava estava na sua frente lhe dizendo que esse
amor era recíproco, algo que nem nos sonhos mais delirantes esperou ouvir
da boca dele.

E ele a olhava com tanto amor, com tanto carinho, e ainda mais, com
tanto desejo, como se ele estivesse fazendo um esforço colossal para não
agarrá-la. Por Deus! Isso a fazia o querer de joelhos para ela, queria ser a
única mulher que ele tocaria pelo resto da vida.

Os lábios deles estavam grudados, assim como os corpos.

Ronald não parava de sussurrar o nome dela, uma após a outra, cada
vez com mais desespero, mais urgência e… amor, aquilo que ela ouvia na
voz dele também era amor!

As mãos dele estavam por todo o seu corpo, tocando-a, os lábios


desceram por sua pele, em beijos e carícias tentadoras.

Suas mãos pararam na camisa que Ronald vestia. Eram botões


demais! Ela queria se livrar de todos eles.

Clarissa tinha consciência do que estava prestes a acontecer. Estaria


marcado em sua pele, em seus sonhos, mas ele já estava nela desde a
primeira troca de olhares.

Se não fosse daquela forma, apenas ficaria o arrependimento.

Ele a beijou cheio de desejo, explorando loucamente seu corpo,


enquanto ela tentava às cegas desabotoar os botões daquela maldita camisa.
Agora entendia por que a senhora Sheron tinha escolhido aquela
camisola, era fácil de arrancar, não precisava de muito esforço e então
Clarissa estaria nua. Já toda aquela roupa que cobria o corpo de Ronald era
irritante.

Antes que ela pudesse notar, ele se afastou e arrancou a camisa,


fazendo os botões voarem pelo quarto, olhando e sorrindo para ela diante da
sua expressão de espanto.

— Achei que a senhora gostaria de uma ajuda.

Ela não respondeu, ainda estava muito ocupada encarando o


abdômen tonificado dele.

Levou os dedos até a pele do seu peitoral, fazendo Ronald gemer.


Quando Clarissa ergueu os olhos, encontrou os dele fechados, respirando
lentamente.

A forma como ele parecia desejá-la a deixava ainda mais ousada.

Ela se aproximou, beijando o peito dele. Ronald, em resposta,


agarrou a nuca dela com força e levou seus lábios até os dela, porém ele não
a beijou, apenas a encarou por um breve momento.

— Gostou muito dessa camisola?

Ela franziu o cenho com a pergunta.

— Ah, ela é confortável, mas tem muita fita e a quantidade de pano é


um pouco….

— Gostou ou não? — perguntou ele com a voz rouca.

Ela tinha gostado, mas não diria, estava ansiosa demais para saber o
que ele faria a seguir. Então ela negou com um gesto da cabeça. E, em
menos de um segundo, Ronald se encontrava arrancando a camisola de seu
corpo, deixando-a nua, bem ali sobre a cama dele.
— Devo me preocupar em perder um vestido toda vez que o senhor
me beijar? — perguntou ela, sorrindo, tentando ignorar que se encontrava
nua na frente de um homem e que ele a encarava como se quisesse a devorar
por inteiro.

Na verdade, Ronald nem sequer piscava, ele a encarava com tanto


desejo, como se não pudesse desviar o olhar nem por um segundo.

— Ronald — chamou ela.

— Hãn?

— Pode parar de olhar para os meus peitos? — perguntou ela,


cobrindo-os com as mãos.

Como se Ronald tivesse acabando de sair de um transe, ele ergueu o


olhar.

— Não — respondeu ele, mantendo a voz baixa. — Mas acho que


posso fazer isso mais tarde, agora tenho um monte de coisas para te mostrar.

Ela sorriu.

— Como o quê?

— Eu vou te provar de várias formas, Clarissa. — A cada palavra


proferida, Ronald se inclinava mais na direção dela. — Vou mostrar que sou
louco por você sem precisar de palavras.

Quando terminou de falar, Ronald pairava sobre ela, sorrindo.

Ele então desceu para os peitos dela e lambeu cada um de seus


mamilos avidamente, fazendo Clarissa arquear as costas, espalhando
inúmeras sensações pelo corpo dela.

— Gosta disso? — murmurou ele, parando para olhar Clarissa, e ela


assentiu, sentindo as bochechas ficarem vermelhas. — Que bom, porque
acho que estou obcecado por eles.
Ele buscou a boca de Clarissa e aprofundou mais e mais o beijo,
fazendo-a se esquecer de qualquer resposta para as palavras dele. Os beijos
de Ronald tinham esse efeito sobre ela.

Quando ele a encarou outra vez, se encontrava com um brilho


misterioso nos olhos.

Ele começou a beijar seu pescoço, depois os lábios desceram por


toda a região do colo e da barriga, lentamente, instigando seu corpo pela
promessa de mais.

Ronald afastou as pernas dela com delicadeza, logo em seguida ela


sentiu o toque dele bem ali no centro de sua feminilidade.

Clarissa soltou um gritinho de surpresa.

Ele a olhou, como se pedisse permissão para continuar, mas, no


momento que ela o beijou, ele já tinha o poder de fazer qualquer coisa que
fosse com o corpo dela, nada a faria se afastar dele.

Ela o queria mais do que imaginava e de formas que nem mesmo


entendia.

Ronald mergulhou o rosto entre as pernas dela.

— Senhor! — soltou ela ao sentir os lábios dele em seu ponto


sensível, disparando ondas de prazer que a faziam querer gritar e segurar a
cabeça dele firme naquele lugar pelo resto da vida.

Aquilo nem deveria ser humanamente permitido, tirar todas as forças


de uma mulher e a transformar em algo maleável demais.

Parecia que Ronald conhecia todos os pontos sensíveis dela, lugares


que ela nem mesmo imaginou que poderia vir a ser tão prazeroso.

Ele ergueu a cabeça, sua respiração rápida e intensa.

— Nunca mais vou sair desse quarto — declarou ele, sorrindo,


enquanto Clarissa ainda se encontrava incapaz de raciocinar. — E vou fazer
da senhorita a minha companheira de cela.

— Se todas as prisões fossem assim, acredito que não existiria um


cidadão de bem nas ruas.

Ronald riu, sendo acompanhado por ela.

— Se tinha alguma dúvida de que estava apaixonado pela senhorita,


todas foram embora.

E, antes que ela pudesse pensar nas palavras dele, Ronald voltou à
sua tarefa anterior, fazendo seus quadris se contorcerem de encontro aos
lábios dele, sem conseguir ficar parada, com aquele homem a beijando.

Seu corpo se tencionou com uma sensação desconhecida, havia um


pouco de incômodo, e até mesmo dor, de uma maneira que ela levaria um
tempo para entender, o desejo dela ultrapassava todas essas coisas.

Clarissa agarrou os cabelos dele, entrelaçando os dedos.

Ronald aumentou a intensidade das carícias, e Clarissa sentiu algo


crescer dentro dela, deixando-a à beira da loucura, o corpo se contraindo
diante do toque dele.

E então, quando ela jurava que não poderia mais aguentar, o corpo
dela alcançou o limite, explodindo com inúmeras sensações juntas.

— Ronald… — implorou ela, enquanto ele continuava até que ela


chegasse ao limite, até que ela se sentisse totalmente saciada.

Seu corpo cedeu sobre o colchão, e ele se colocou do seu lado,


fazendo-a se virar para encará-lo.

— Essa foi uma das coisas que sonhei em fazer com você — revelou
ele, sorrindo e beijando a testa dela com ternura.

Ela sentiu o quadril dele encostar no dela, notando como ele


continuava firme. Ele deu tudo o que ela precisava, mas nada que pudesse
aliviá-lo.
Então Clarissa, ao menos a versão da qual ela gostava muito, fez algo
ousado. Ela o tocou lá, enfiando a mão por dentro da calça que ele ainda
trajava. Isso o fez respirar fundo.

— Como posso te ajudar?

Ele negou com um gesto de cabeça.

— Isso não precisa acontecer essa noite — disse ele, acariciando o


rosto dela. — Sou paciente.

Clarissa se aproximou ainda mais dele e disse:

— Eu não. — Ela sentiu o sorriso dele antes mesmo de vê-lo.

— A primeira vez, ao menos pelo que escutei, não é a coisa mais


fácil para uma mulher — começou ele, parecendo desconfortável pela
primeira vez naquela noite. — Não quero que nada estrague o seu momento.

— Estou disposta a arriscar.

Cada dia da vida de Clarissa vinha com inseguranças e medos, ela o


tinha naquela noite e viveria o momento exatamente desta a maneira,
aproveitando cada segundo. Ela se agarraria nele, o manteria ali ao menos
até o sol aparecer no horizonte.

Ela mordeu o pescoço dele, fazendo-o arfar e agarrar as nádegas


dela.

Sua mão explorava e acariciava a ereção de Ronald.

— Como consegue ser tão perfeita?

Encostou os lábios na orelha dele para sussurrar:

— Acho que deveria se livrar dessas roupas, afinal, para que o


decoro, se não há nada que eu já não tenha visto antes?
Ele não demorou mais de um segundo para tirar as roupas.

Por Deus! Estava enganada, era algo que, com certeza, ela nunca
tinha visto antes.

— Vou considerar os olhos arregalados e o silêncio como um elogio.


— Ele sorria enquanto se colocava sobre ela.

— E não vou me opor a isso.

Ele beijou os lábios dela com delicadeza, levando a mão até o meio
das pernas dela.

— Ah… Está perfeita, pronta para mim — sussurrou ele. — Pode


doer um pouco no início, mesmo assim, tente ir relaxando.

Ela respirou fundo, assentindo.

Ronald passou os dedos pelo o rosto dela.

— A senhorita é minha cura, sabia? — Ronald a admirava com o


olhar. — Antes de você, tudo parecia fora do lugar, tão errado, ainda bem
que foi na sua porta que bati naquela noite.

Ela o sentiu se posicionar e entrar nela, com uma força desenfreada, a


beijando para impedi-la de gritar.

Ele jogou a cabeça para trás, respirando fundo, e ela colocou as mãos
nas costas dele, sabia que Ronald sentia medo de machucá-la, e ele estava
certo, não era a coisa mais confortável do mundo, mas ele estar dentro dela,
a sensação do corpo dos dois juntos, era maravilhosa.

Ele a encarou e começou a se movimentar, indo de encontro a ela,


fazendo-a sentir tudo mais de uma vez, mas agora ela sentia uma confiança
nova, dava para notar a cada gesto, a cada som que saia dos lábios dele, que
Ronald estava nas mãos dela, e isso era inacreditável.

— Agora não há mais volta, você é minha mulher.


— Ronald… — ela murmurou o nome dele em súplica, o fazendo
dar um impulso contra ela de novo, deixando-a tonta, levando Clarissa ao
limite do prazer.

Ele deu mais um empurrão e então alcançou o clímax dentro dela,


deixando o corpo cair sobre ela, ainda se recuperando.

Assim que a respiração dele normalizou, ele se deitou ao lado dela,


puxando-a para seus braços, onde adormeceram.

Ronald sabia que não deveria ter insistido em acompanhar a esposa


na modista, isso não era bem-visto pelas mulheres, muito menos por sua
mãe, que se encontrava de braços cruzados, enquanto ele olhava alguns
modelos de vestidos expostos.

Mas isso era culpa da condessa, os dois estavam entrelaçados na


cama quando foram acordados por batidas na porta, para que Clarissa
pudesse escolher aquele maldito vestido, que não poderia ser mais
importante do que se encontrar com o rosto afogado nos cabelos de Clarissa,
de sentir a pele dela nua grudada na dele.

E ela já tinha escolhido vestidos no dia anterior.

No entanto, sua mãe fez questão de lhes informar que montar todo o
enxoval de uma moça era um trabalho que demandava tempo.
Não sabia qual momento da noite anterior havia sido mais perfeito,
mas estava convencido de que todos tinham sido deliciosos. Agora Ronald
não conseguia nem se imaginar longe dela.

Em uma quinzena, partiria para sua missão. Por isso, precisava


aproveitar cada minuto com Clarissa e sabia que esse tempo passaria rápido.
Para melhorar, aquela era a missão mais curta que ele recebeu desde que
havia entrado na Marinha, nem precisaria sair do mar da Inglaterra.

Ronald ainda não era oficialmente o marido de Clarissa, mas já se


considerava assim, seu coração já era todo dela, como nunca imaginou antes,
mas um pedaço de papel e a bênção de um vigário faziam diferença.

Não sabia se Clarissa o amava da mesma forma que ele, com cada
pedacinho do seu ser, cada parte prestes a se dobrar a qualquer coisa que ela
tivesse a oferecer, mas teria tempo para a despertar ainda mais paixão nela, e
por enquanto bastava saber que ela gostava dele.

O suficiente para ficar corada, enquanto ele a encarava sair do


provador com um vestido rosa rodado demais e com pano demais. Tinhas
mangas bufantes e flores bordadas por todo o tecido.

Ele foi até ela, ignorando os comentários da modista e da mãe.

— Você está além da perfeição, essa palavra não chega nem aos pés
da beleza que você representa — disse ele, tomando as mãos dela nas dele.
Desde a noite anterior, sempre que tinha uma oportunidade, ele a mimava.

Ela ficou ainda mais vermelha com o comentário que ele havia feito.

Ronald se inclinou para frente com ousadia.

— Acho que encontramos a pessoa perfeita para fazer o seu vestido


de casamento — comentou ele, sorrindo.

— Milorde, já sou casada — respondeu ela, com ousadia — com um


capitão da Marinha.

Ele riu, voltando-se para a modista.


— O vestido está perfeito — disse ele enquanto Clarissa se
encaminhava para o trocador.

— Agora precisamos ver as luvas, os sapatos e…

— Desculpe, mas espero que não precise da presença de Clarissa


para isso — declarou ele, sério. — Tenho planos para minha esposa e eu,
senhora.

— Ronald, pare com isso, permiti que viesse, mas não pode
atrapalhar as obrigações de sua esposa — disse sua mãe.

Ronald deu de ombros.

— Mamãe, entendo, mas tenho planos para nós e creio que a senhora
é a pessoa perfeita para cuidar de todos os outros detalhes — sugeriu ele,
dando um beijo no rosto da mãe.

A mãe ainda balançava a cabeça com incredulidade quando ele


emendou:

— Vejo a senhora mais tarde!

Foi até Clarissa, que parecia perdida e o seguiu de bom grado.


Quando já estavam dentro a carruagem, ele a beijou, afobado.

— Creio que devemos ficar mais tempo ainda dentro de um quarto,


para evitar uma cena em que pulo em cima da senhorita em um local público
— disse ele, beijando o pescoço dela.

As roupas de Clarissa agora eram da alta sociedade e com isso vinha


dificuldade de se livrar delas.

— Ronald… — Pelo tom de voz, ela não estava nem um pouco certa
de o impedir de continuar, e ele, por outro lado, não tinha intenção de parar.

— Disse alguma coisa, querida? — perguntou ele, envolvendo um


dos seios dela nas mãos, e o outro com a boca, a fazendo gemer.
— Oh, Ronald! — Ele sorriu, subindo até os lábios dela e a beijando.

Ele queria devorá-la ali mesmo, dentro daquela carruagem, arrastá-la


até seu colo e fazê-la cavalgar nele, mas tinham pouco tempo para aproveitar
até chegarem ao destino planejado.

Ele se afastou dela e a puxou para seu peito.

— Tenho uma pergunta para fazer — disse Ronald.

Clarissa se afastou um pouco para poder olhar nos olhos dele,


enquanto arrumava o vestido.

— Pode prosseguir.

Ele mexeu no paletó, pegando uma caixinha, os olhos de Clarissa


iam dela para o rosto de Ronald.

Não era daquela forma que desejava fazer o pedido, mas o tempo
corria contra os dois. A única coisa que ele poderia fazer era lutar para que,
quando partisse, ela já tivesse seu nome, já que o coração era dela desde o
dia que cruzaram o caminho um do outro.

— Existem formas mais adequadas de fazer isso do que em uma


carruagem em movimento. — Ronald abriu a caixinha e permitiu que ela
encarasse o anel cravejado de diamantes. — No entanto, acredito que não
suportaria nem mais um segundo sem sua resposta, Clarissa Franklin. Aceita
se tornar minha esposa e me honrar com o amor ao longo de nossas vidas?

— Sim! — ela respondeu, sem hesitar. — Sim, sim!

Ele sorriu, pensando que não poderia ser mais feliz do que naquele
momento.

— Graças a Deus, já que não saberia o que diria para o vigário que
nos aguarda na catedral neste instante, caso a resposta fosse outra.
Casamentos tinham que ser marcados e programados, mas, ao que
parecia, Ronald tinha certo valor para a Coroa, e, quando disse que partiria
apenas com uma licença especial de casamento em mãos, não imaginou que
seria tão fácil para que eles conseguissem isso.

E aquele seria o dia perfeito, o dia em que se casaria com a mulher


que todos já achavam que era casado, um tanto complicado de se explicar.

— Como conseguiu? — indagou ela.

— Partirei em breve, como sabe, mas não queria viajar antes de tê-la
como esposa perante a lei — disse ele.

Ronald conhecia como a vida tinha viradas drásticas, principalmente


no mundo em que vivia e na carreira que tinha decidido seguir, por isso, o
casamento naquele momento era o que precisava fazer para garantir o futuro
de Clarissa. Não ficaria em paz para cumprir sua missão se não houvesse
essa garantia antes de partir.

— Mas o senhor…? Como…?

Ele deu de ombros.

— Tudo para a torná-la minha — disse ele, pegando a mão dela e


colocando o anel em seu dedo.

Ela se inclinou e deu um beijo cálido nos lábios dele.


Capítulo 22
Faltava uma semana para Ronald retornar e fazia apenas uma semana
que tinha partido, mas Clarissa já sentia como se fosse uma eternidade,
tempo demais para ficar longe do seu marido.

Era estranho chamá-lo assim, sempre se surpreendia quando


encarava o anel em seu dedo ou quando os criados a chamava de sra. Helton.

Tinha uma vida nova, um marido, e, mesmo que aquele não fosse seu
sonho de vida, com certeza era muito melhor do que ela um dia pode
imaginar.

Clarissa conquistou a liberdade que tanto tinha desejado e um


homem que a amava, o que poderia ser melhor que isso?

Tinha recebido uma carta do marido naquela manhã, falando que


sentia sua falta dela. Duas páginas, todas preenchidas de amor. Nunca
imaginou que Ronald se comportaria dessa forma, mas também tinha
demorado para se convencer do amor do marido por ela, agora, no entanto
sabia que era a coisa mais real que poderia existir.

Sentia o mesmo em relação a ele.

De uma forma muito surpreendente, sua família não o havia


procurado, diferentemente do que imaginava, seus pais não tinham
aparecido, nem chegou uma mensagem lhe pedindo dinheiro.

Sabia que não poderia contar com a sorte pelo resto da vida, sua mãe
só deveria estar ocupada demais para se lembrar dela, mas sabia que, quando
ela viesse, precisaria estar preparada.

Porém, agora não sentia mais medo, tinha certeza de que poderia
enfrentá-los.

Eles não a controlavam mais, com ameaças e ofensas, não se


encontrava mais nas mãos deles como em toda a sua vida.
Ela sorriu olhando para seu novo papel de parede.

Ronald havia feito questão que se mudassem para uma nova casa. Ela
pertencia a ele, ficava a duas ruas de distância da casa oficial dos Heltons, e
Clarissa teria privacidade e liberdade de ir e vir.

Ainda estava se acostumando com a nova vida. Sempre tinha criados


atrás dela, perguntando o que fazer, ou pessoas a convidando para chás e
bailes, sem contar que a casa era muito maior do que a do seu tio, ela nem
mesmo sabia por onde começar a organizá-la.

Agora que realmente era esposa dele, Clarissa se acostumaria com


seus deveres, aprenderia a lidar com tudo o que esperavam dela. Se esse era
o preço para ter e amar um homem como Ronald, ele era baixo demais.

Fora que Morgan, sua cunhada, a ajudava com tudo, a se vestir de


acordo com a ocasião, a se portar em público, quem cumprimentar e quem
evitar. Ela sempre estava por ali, assim como a senhora Claire, que havia se
oferecido para ajudar com a reforma da casa.

Clarissa não entendia por que aquela casa precisava de uma reforma.
Acreditava que era apenas mais uma desculpa dos ricos para gastar dinheiro,
ou uma desculpa de Ronald para a manter ocupada enquanto viajava, e de
fato estava funcionando.

Descobrira que gostava de passar as tardes escolhendo as cores para


as salas, novos móveis, tapetes e cortinas.

Nunca imaginou que poderia ser feliz com coisas tão supérfluas.
Porém, depois da vida que tinha passado, aprendera a encontrar alegria nas
coisas simples.

— Sra. Helton. — Ela se voltou para a porta, onde estava seu


mordomo, com uma expressão desconfortável, como alguém que não é
portador de boas notícias. — O conde Helton se encontra na entrada da casa
e deseja vê-la.

Clarissa franziu o cenho.


O conde não parecia nem um pouco feliz com o casamento dela e de
Ronald, não conseguia pensar em um motivo para que ele quisesse visitá-la,
ainda mais com Ronald longe dali.

Por ser o conde, não poderia simplesmente arrumar uma desculpa


para não o receber, mesmo que fosse essa a vontade dela.

— Por favor, o acompanhe até aqui — disse ela, feliz por ter alguém
para mostrar seu trabalho.

O homem engoliu em seco.

— O conde disse que esperava a senhora lá embaixo.

Ela ergueu a sobrancelha diante daquele pedido esquisito.

— Está bem, já vou recebê-lo — disse, alisando a saia do vestido, e


rumou ao encontro do cunhado.

O conde parecia tão tenso que Clarissa chegou a pensar que algo
havia acontecido com Ronald.

— Que prazer receber o senhor! Em que posso ajudá-lo? — Clarissa


fez uma breve reverência.

— Estou apenas de passagem — declarou ele —, serei breve.

Ela assentiu, achando melhor não lhe oferecer chá.

— Acredito que deva saber a respeito da minha esposa — começou


ele.

Ela assentiu.

— Meus pêsames, Vossa Graça.

— Obrigado. — O conde meneou a cabeça e colocou as mãos no


bolso. — Como bem sabe, Ronald é o próximo na linha sucessória dos
Heltons. Se for preciso, fará um bom trabalho, mesmo que ele acredite que
não vejo potencial nele, o que é uma grande ilusão, admiro a carreira que
construiu na Marinha Real, sem nem usar nosso sobrenome.

— Realmente.

Ficava feliz de ouvir aquilo, diferentemente de como o marido


insistia em dizer, sabia que era importante a aprovação do irmão.

— No entanto, não deixarei que ele continue fazendo determinadas


escolhas estúpidas, muito menos que ele seja enganado.

Ela inclinou a cabeça para o lado, imaginando do que se tratava


aquela declaração.

— É claro, como irmão, é o que se espera do senhor.

— Sua família me procurou novamente. — Tal revelação a paralisou,


é claro que tudo estava calmo demais para ser verdade, a família não a
deixaria ser feliz com tanta facilidade, não quando poderia fazer de tudo para
impedir.

— Oh! Milorde, de antemão, já peço desculpas por qualquer coisa


que eles tenham dito, meus pais são pessoas terríveis, que não conhecem…

— Eles me falaram que diria algo assim — comentou ele, seco.

Clarissa franziu o cenho.

— Como?!

— Me alertaram que está mentindo para o meu irmão, em uma


tentativa de o enganar e o obrigar a se casar, antes que perceba que apenas
deseja o dinheiro dele — comentou o conde, a voz dura e contida. — E seu
pai, como um vigário, não pode permitir que a filha aja dessa maneira.

— Eu já sou casada com o seu irmão! — defendeu-se.

— Não, não é — respondeu ele. — Eles me contaram toda a sua


trama, inclusive a mentira que está fazendo meu irmão contar.
— Considera o seu irmão tão burro que não possa pensar por si
mesmo? Que não notaria se estivesse sendo enganado?

— Meu irmão pode acreditar no que ele quiser.

— Com todo o respeito, Vossa Graça, acredito que esteja confundido


Ronald com o senhor.

Ele deu de ombros e respirou fundo.

— Uma carruagem aguarda a senhorita, esperarei até que recolha


seus pertences — declarou o conde, deixando Clarissa ainda mais confusa.

— O que quer dizer com isso?

— Aqui não é o lugar da senhorita, creio que já conseguiu muito


mais do que deveria do meu irmão.

Ela balançou a cabeça.

— Não pode me expulsar da casa de Ronald, pode não acreditar em


mim, porém…

— Não me importo com sua opinião, protegerei minha família a todo


custo, e, se o custo é um escândalo, que assim seja.

Ela recuou para trás diante as palavras dele.

— Milorde, o senhor está cometendo um erro terrível.

— Correrei o risco.

Ela engoliu em seco.

Não brigaria por aquela casa, assim que Ronald chegasse, aquilo se
resolveria, voltaria para York e esperaria que o marido fosse buscá-la, sabia
que as coisas se acertariam logo que o marido retornasse.
Embora o conde parecesse prepotente e arrogante aos olhos de
Clarissa, gostava dele e não podia julgá-lo pelas suas atitudes. Conhecia seus
pais, ela mesma já acreditou nas mentiras que eles contavam, tinha sido a
principal vítima das maldades deles, então, como poderia esperar que Tobias
não fosse acreditar nelas?

Ela assentiu e empinou o nariz, mostrando-se confiante.

— Tudo bem, partirei imediatamente — disse ela, seguindo em


direção à porta.

— Eles aguardarão até que a senhorita prepare seus baús.

— Não há necessidade, em breve tudo será resolvido.

— Insisto para que não saia daqui apenas com a roupa do corpo. —
Era a primeira vez, desde que tinha começado a acusar ela de ser
interesseira, que o irmão de Ronald agia como um ser humano decente.

— Não preciso mais do que isso, milorde.

Clarissa foi na direção da carruagem, rezando para que aquela


semana passasse em um piscar de olhos.
Capítulo 23
Estar de volta a Londres era muitíssimo revigorante, uma sensação
que nunca havia experimentado antes de ter uma esposa o esperando em
casa. E, naquele momento, Ronald descia ansioso da carruagem, quase
correndo para poder tê-la nos braços.

Tinha passado as últimas semanas sonhando com a esposa, com sua


risada, com os cabelos dela caindo sobre os ombros delicados, com cada
curva, cada centímetro do corpo dela.

Sentia falta de ouvir a voz dela, de como ela ocupava o lugar com
conversas.

Ele sorriu, pensando na carta que havia recebido dela, conseguia


ouvir sua voz ao ler cada linha.

Uma terrível lástima que Ronald necessitara passar mais tempo longe
de casa além do que havia planejado de início.

Agora a trancaria naquela casa, a deixaria ali até que toda a saudade
de Clarissa fosse trocada por memórias dos dois juntos.

Mal tinham se casado quando partiu, não havia tido lua de mel, que
havia sido adiada até ele voltar, e, com essa promessa, ele se viu abrindo a
porta de entrada antes mesmo do mordomo, que o recebeu com uma
expressão perdida.

— Não esperávamos o senhor — disse o homem de meia-idade,


pegando seu paletó e luvas.

— Pensei que Clarissa tivesse avisado que chegaria hoje, mandei


uma carta lhe dizendo sobre meu retorno. — Ele começou a subir as escadas.
— Afinal, onde está minha esposa?

— Não sei dizer, senhor — respondeu ele.


— Por favor, diga que ela está em casa. — Ele estava como tanta
pressa de ver a esposa que não chegou a imaginar que ela poderia ter saído
para um passeio, por exemplo.

— Lamento, senhor, mas a senhora Helton não se encontra aqui.

— Então me informe imediatamente para aonde ela foi! — Ronald se


virou para o mordomo, tentando conter a impaciência.

— Senhor, ela partiu faz uma semana, não sei dizer para onde…

Ronald franziu o cenho, perdido.

— O que está dizendo?

— Sua esposa partiu faz uma semana e não informou…

Ele deu um passo ameaçador na direção do mordomo.

— Está dizendo que não sabe do paradeiro da minha esposa há uma


semana? — perguntou Ronald, em poucos minutos seu coração já queria
saltar pela boca.

— A senhora Helton não disse uma única palavra para onde ia —


declarou o mordomo, que parecia tão confuso quanto Ronald.

— Clarissa simplesmente fez as malas e foi embora? — Não gostaria


de ter sua mente levada para a pior das situações, mas, ainda assim, não
conseguia controlar o pensamento.

— Ela não levou nada, senhor — explicou o homem. — Foi no


mesmo dia que seu irmão esteve aqui. A senhora Helton saiu logo em
seguida na carruagem com ele.

— Meu irmão?

— Sim.
Ronald respirou fundo, sentindo a pulsação acelerada no pescoço, e
desceu as escadas com muita rapidez.

— Deseja que prepare uma carruagem para o senhor?

Ronald não chegou a responder, já estava na rua, a casa da mãe não


era tão distante assim.

Quando chegou à principal residência dos Heltons, passou feito um


furacão por Norman, que lhe bombardeava de perguntas. Ronald o ignorou
por completo e, em segundos, já se via escancarando a porta do escritório do
irmão.

— Onde está ela? — perguntou para a irmão, que estava de cabeça


baixa, analisando documentos.

— Ela quem…? — Tobias perguntou, distraído, sem tirar os olhos


dos papéis.

— A minha esposa! — dessa vez Ronald berrou.

— Que eu saiba, você não é casado.

Ronald entrou de vez no escritório, fechado a porta em um baque


surdo.

— Não se faça de louco, Tobias, não estou com tempo e muito


menos paciência para seus rompantes de poder.

— Vou repetir… Que eu saiba, você não é casado.

— Onde está Clarissa?

— Ah, claro! Agora, sim, posso lhe dar uma resposta — disse ele ao
largar o papel que segurava e encarar o irmão. — Aquela impostora foi
mandada de volta para a casa dela.

— O que andou aprontando, Tobias?


— Clarissa foi mandada de volta para a casa dela.

— A casa dela é a minha casa, e posso te garantir que ela não está lá.

— A casa dela fica em York, juntos com os pais dela, já que ela não é
sua esposa — retrucou o conde, irritado. — Descobri que seu “casamento”
não passava de uma mentira criada por vocês para enganar todos nós.

Ronald levou uma mão à nuca.

Para o inferno se o irmão sabia da verdade! Sua única e irrefutável


preocupação era com Clarissa. Precisava encontrá-la, nem mesmo imaginava
como ela poderia estar se sentindo.

— Quem lhe contou?

— Os pais dela, que por sinal são pessoas decentes.

Ronald soltou uma gargalhada histérica.

— Pessoas decentes! Acredite, meu irmão, não há nada de bom


naqueles dois!

— Eles me falaram a verdade, para começo de conversa.

— E acha que isso os fazem pessoas boas?! Eles expuseram a


verdade depois que me recusei a dar mais dinheiro a eles — declarou
Ronald.

Ele tinha procurado os pais de Clarissa logo depois de que eles


mandaram um pedido de uma quantia exorbitante de dinheiro. Na ocasião,
fez questão de deixar claro que não daria uma libra a eles e que estavam
proibidos de incomodarem a filha.

Os dois revelaram o segredo da filha porque descobriram a qual


família Ronald pertencia, com propósito de lucrar com essa informação, o
que não o surpreendeu nem por instante.
Por isso, correu contra o tempo e garantiu o casamento e a mudança
de Clarissa para sua casa.

Pensou que não se vingariam tão rápido, que tentariam o ameaçar


mais algumas vezes, mas, ao que parecia, os dois eram mais idiotas do que
Ronald imaginava.

— Assume que nunca foi casado com aquela mulher?

— Dei um jeito nessa questão antes de partir — declarou ele. — E,


ainda que não fosse, não tinha o direito de invadir minha casa e expulsar ela
de lá.

— O que você fez?

— Nada que se compare a sua tolice — declarou Ronald. —


Consegui uma licença para o casamento, ele é tão real quanto o ódio que
sinto por você nesse momento.

— Se casou com uma mentirosa?

Ele fechou as mãos em punho.

— Cale-se.

— Por que faria algo assim? — indagou Tobias, ignorando seu


conselho.

— Eu a amo, não é claro?

Tobias pigarreou, incomodado com o rompante de sentimentalismo


do irmão.

O acerto de contas com o irmão poderia aguardar, Ronald se


concentraria na esposa. Ele balançou a cabeça, ainda incrédulo com o
desenrolar das coisas. Tudo o que mais queria era estar com ela, e agora
precisava salvá-la de seus progenitores.
— Me informaram que sua carruagem a pegou na minha casa —
começou ele. — Onde deixaram minha esposa?

Tobias, que naquela altura já não parecia tão certo de sua decisão,
cedeu:

— Os pais me pediram para levá-la até York, onde fica a residência


da família.

— E Clarissa não se opôs? — Ronald encarou o irmão, que não lhe


deu uma resposta, já era claro o que havia acontecido. — Bom, isso não
importa agora. Preciso do endereço. — Não poderia mais perder um minuto
naquela discussão tola, aquilo não levaria a nada.

— O que pensa que vai fazer? — perguntou o irmão, dessa vez se


colocando de pé, com as mãos apoiadas na mesa.

— Não ficou claro ainda? — indagou ele. — Vou buscar minha


esposa agora mesmo.

— Ela não…

— Te aconselho a dobrar a língua ao falar dela, Tobias — começou


Ronald. — Aceito suas críticas em relação a mim, que pense que sou apenas
um garoto bobo. No entanto, se ousar sequer olhar de forma desrespeitosa
para minha esposa, prometo que deixarei de lado qualquer laço de sangue
que compartilhamos e agirei como um marido devoto.

— Eu o acompanharei — avisou o irmão, contornando a mesa.


Ronald ficou sem entender a atitude dele. — Se diz que fui enganado, então
acho que tenho uma dívida a cobrar.

Ronald o olhou, incrédulo.

— Foi você quem a expulsou da casa dela, agora quer ir resgatá-la?

— Antes, pensava que ela era uma ameaça para nossa família, agora
sei que pertence a minha família, tem uma grande diferença.
Os pais tinham se tornado ainda mais maquiavélicos.

Quando a carruagem seguiu por um caminho que ela conhecia de


longa data, não adiantou protestar, chorar e implorar. O conde tinha dado
uma ordem clara para seus subordinados.

Ao ver de longe a pequena igreja do pai, já imaginava o que viria


pela frente, se não haviam conseguido o que queriam da família Helton,
então a usariam de uma forma ou de outra para atingir seus objetivos
gananciosos.

Se de fato sabiam que o casamento no início não passava de uma


farsa, poderiam até mesmo forçá-la a se casar com um homem qualquer que
lhe oferecessem alguma vantagem.

Ao menos, era isto que pensava.

Mas, antes, seria usada como empregada doméstica e então jogada


para cima de algum velho rico.

Os pais sempre conseguiam surpreender Clarissa.

Assim que desceu da carruagem, não esperava ser recebidas com


beijos e abraços, os pais não eram disso, ela também preferia evitar o
máximo de contato físico com aqueles dois.

Logo que passaram pela porta da casa, Clarissa notou que havia algo
diferente.
Os pais sempre haviam sido terríveis com ela, e com todos que não
lhes ofereciam nada, a criada, por exemplo, estava mais arisca, como se algo
tivesse mudado, como se soubesse de alguma coisa.

Não demorariam muito para aprontar com ela.

Ao que parecia, a ideia deles foi fingir que acreditavam na farsa dela
para conseguir todo o dinheiro possível de Ronald. Provavelmente,
manteriam o segredo em troca de suborno, pelo tempo que vivessem, com
direito a ameaças e chantagens, por isso os dois não haviam a procurado
durante sua estada em Londres.

Quando o marido se recusou a continuar com aquela palhaçada, a


família decidiu tomar outra providência, não ganhariam nada com isso, mas
se divertiriam às custas da filha.

Clarissa acreditava que os planos iam muito além do que podia


pensar. Eles não eram de dar ponto sem nó, porém, o que poderia ser?

Assim que chegou na casa, foi arrastada pelo pai, que, para quem não
tinha a mínima vontade de levantar um braço sem ser a mando da esposa, se
sentia muito confortável batendo na filha que se recusou a passar a vida os
mantendo financeiramente, nos termos deles, é claro.

Garantiram que, se ela convencesse Ronald a lhes dar uma pensão


mensal, além de um convite para fazer parte do círculo social da família
Helton, eles a deixariam em paz.

Mas o que parecia ser ridículo para ela, também era sua carta de
alforria.

Descobriu tarde demais que não poderia negar nada aos pais. Quando
percebeu, infelizmente, estava de mãos atadas e toda a vez que tentava se
soltar era coagida a não fazer isso.

Os pais sempre davam um jeito de conseguir o que queriam e


naquele momento não seria diferente. Clarissa era tola de pensar que poderia
fazer alguma coisa que recobrasse a consciência deles.
Tentou de várias formas convencê-los a soltá-la.

Primeiro, garantiu que daria um jeito de Ronald pagar a quantia que


eles pediam, mas a mãe já não acreditava mais na filha. Depois revelou que
realmente havia se casado com Ronald, que o casamento dos dois tinha se
consumado, mas a mãe apenas a olhou com desprezo, antes de dizer que
nenhum nobre poderia de fato se casar com alguém como ela.

A mulher usava frases tão maternais que até o diabo ficaria com
vergonha.

Clarissa os ameaçou, mas havia esquecido que uma mulher era


propriedade dos pais antes de se tornar do marido. Estava de novo nas mãos
deles e ninguém, nem mesmo uma única alma viva, se intrometeria no que
estava acontecendo.

Já o pai amava repetir que a filha estava perdendo o juízo, que tudo
que estavam fazendo era para o bem dela. Portanto, se aquela história viesse
à tona, era o que ele diria para todos, e ninguém contestaria, afinal, um
homem de Deus como ele não mentiria sobre o estado de saúde da filha.

Ela respirou fundo, olhando para o teto do porão úmido.

Estava chegando a hora da mãe trazer sua refeição.

Uma vez por dia e sempre com alguma sobra. Sabia disso porque
tinha passado a vida comendo restos da mesa deles, porém, naquela
condição, era muito mais humilhante.

Sentiu uma lágrima descer pelo seu rosto.

Sabia que os pais eram ruins e cruéis com a maior parte das pessoas,
mas nunca, nunca em sua vida, imaginou que poderiam tratá-la como um
animal.

Bateram em Clarissa e depois a amarraram como se não fosse nada


além de uma mercadoria a ser negociada com quem estivesse pagando mais.
Depois de adulta, não esperou amor ou carinho dos dois, tinham
passado disso havia muito, muito tempo, mas nunca passou pela cabeça dela
que seriam tão brutais. Nunca!

A porta foi aberta, e ela se odiou por estar chorando.

A mãe apareceu no seu campo de visão, sorrindo, com os cabelos


perfeitamente arrumados, como uma mulher de respeito, incapaz de manter a
filha presa em um quarto.

— Não tente nada dessa vez! — alertou ela.

Eles não a soltavam totalmente, apenas permitiam que ela se sentasse


no chão.

— Não quero comer — declarou Clarissa, tendo a boca desamarrada.

Nos primeiros dias, achava que Ronald ia aparecer e a tirar daquele


pesadelo, mas os dias passavam tão devagar naquele lugar que já tinha
perdido a esperança, também sabia que os pais não queriam um corpo.

Tinha que haver algo por trás de tudo o que eles vinham fazendo,
algum motivo oculto, não que eles não fossem capazes de ser maldosos de
graça, e sim porque eram espertos.

— Não seja tola, vai acabar morrendo de fraqueza — retrucou Edith,


que o mais perto que chegou de se parecer uma mãe era quando lhe enfiava a
comida goela abaixo.

— Isso acabaria com os planos de vocês para mim, não é mesmo?

A mãe sorriu mais ainda.

— Querida, pare de ser tão tola, apenas coma e agradeça que ainda
estamos te alimentando.

— E estou dizendo que não há necessidade.

Edith se inclinou sobre ela, obrigando-a a se sentar.


— Logo vamos encontrar alguma utilidade para você, mas, até lá,
preferimos que não morra.

— E eu não me oponho a isso.

A mãe revirou os olhos.

— Pare de ser tão dramática.

— Dramática? Eu estou amarrada aqui como uma prisioneira!

— Isso poderia ter sido evitado se não tivesse sido uma filha tão
ingrata.

— E eu teria gratidão exatamente pelo quê? — indagou ela.

— Pela dádiva da vida — começou a mãe —, por um teto sobre a


cabeça, por comida…

— Sempre paguei por essas coisas, ou a senhora se esqueceu que vivi


a minha vida toda para fazer o que desejam.

— E não sei por que quer mudar a ordem das coisas nessa altura do
campeonato.

Clarissa balançou a cabeça com incredulidade.

— Como pode uma mãe amar tão pouco uma filha?

A mulher jogou a bandeja com comida do lado dela.

— Vamos logo parar com esse sentimentalismo, tenho um milhão de


coisas para fazer.

Clarissa cuspiu a comida no rosto da mulher. Não tinha visão mais


satisfatória.

A mãe respirou fundo, se levantando.


— Morra de fome junto com toda a sua ingratidão.

A porta foi fechada, e, depois de dois dias sem ver a mãe, começou a
se arrepender do que tinha feito.
Capítulo 24
A ideia de Ronald era adentrar naquela casa, tirar Clarissa de lá e
nunca mais olhar para cara daquelas duas criaturas abomináveis.

Pensou que já havia se livrado de ambos, no entanto ali estava ele


tendo que lidar com um problema que julgava resolvido.

Dessa vez, faria a coisa direito para que não restasse dúvida de que o
imbróglio tivesse sido resolvido de uma vez por todas, para isso, garantiria
que eles entendessem o recado.

Durante todo o percurso até ali, não tinha trocado mais que meia
dúzia de palavras com Tobias. Embora se sentisse grato pela companhia do
irmão, estava ciente de que nada daquilo estaria acontecendo se não fosse
pela sua intromissão em algo que não lhe dizia respeito. Aquele problema
poderia ter sido evitado se o irmão cuidasse da vida dele, que era o que todos
deveriam fazer, no lugar de expulsar Clarissa da própria casa.

Lembraria o irmão disso outra hora, quando pudesse descontar sua


raiva nele, agora toda ela era reservada aos pais de Clarissa.

Uma criada atendeu a porta, uma mulher baixinha, que não deveria
ter mais do que 30 anos. Ela os olhou de cima a baixo antes de um ar de
surpresa aparecer em seu rosto.

Tobias tentou se apresentar, mas Ronald se recusava a fazer


cerimônia com aquelas pessoas, Oscar e Edith sabiam por que ele estava ali.
Deveria encontrar logo a esposa, nem que tivesse que botar aquela casa a
baixo.

Ele mesmo não desejava estar ali, preferia estar em casa admirando a
esposa, a beijando e começando sua lua de mel, em vez de passar tanto
tempo preso em uma carruagem com o irmão.

Tudo tinha um preço, no entanto. Se precisasse aguentar aqueles dois


para ter a esposa de volta, o faria.
O senhor Franklin apareceu no corredor da casa, com um olhar
despreocupado. Seu semblante se fechou ao ver que Ronald não estava
sozinho, que Tobias não se sentia nem um pouco feliz de ter sido arrastado
para um ninho de cobras, ainda que a culpa fosse dele.

— Que surpresa, senhores! — Oscar disfarçou o nervosismo. — Um


capitão da Marinha do Rei e um conde na minha porta tão cedo.

— Vim buscar minha esposa — sibilou Ronald, tentando se lembrar


que, independentemente de qualquer coisa, aquele homem ali era seu sogro e
Clarissa poderia não gostar de ter um pai sem dentes na boca, mesmo que ele
não merecesse essa consideração.

— Minha filha? — interveio o homem. — E por que raios eu saberia


dela, já que o senhor que se diz esposo dela?

Ronald respirou fundo, controlando sua fúria.

— Meu criado me informou que a deixaram aqui há alguns dias —


falou Tobias.

— Clarissa está na Escócia, com familiares.

— Mentiroso! — brandou Ronald, dando um passo ameaçador na


direção dele. — A única família que ela tinha era o tio, diga agora onde está
minha esposa.

— Melhor seria me dizer quanto está disposto a pagar para evitar que
pessoas saibam que um homem como o senhor fingiu ser casado e
sequestrou nossa filha — disse a senhora Franklin com um sorriso vitorioso
no rosto, como se ele fosse a própria mina de ouro com a qual ela estivera
sonhando.

Ronald estava pronto para responder quando Tobias começou a rir do


seu lado.

— E acham que meu irmão sofreria alguma consequência? —


perguntou Tobias. — Que seria deportado? Que perderia o apreço que o Rei
tem por ele? A única coisa que pode acontecer é eu conseguir uma viagem
só de ida para vocês dois, direto para o fim do mundo, onde quer que ele
seja.

Edith sorriu também, ela era assim, agia como se tivesse alguma
vantagem mesmo quando não tinha.

— Aí, nesse caso, não saberiam onde encontrar Clarissa, triste, não
é? — disse ela, sorrindo.

Ronald foi na direção dela de forma ameaçadora.

— Diga agora onde está minha esposa, sua megera.

A mulher não moveu um único músculo, apenas continuou o


encarando.

— A única coisa que posso dizer é que ela amaria se ver livre de nós.
— Ela alisou a saia do vestido com muita calma. — Sabe como é, temos
uma filha ingrata!

— Levo menos de um dia para fazer vocês dois irem parar na cadeia
por sequestrarem minha mulher, e, acredite, as prisões da Inglaterra não têm
as melhores instalações.

O senhor Franklin se abalou com a ameaça, afinal, era fraco e de


idade. Ronald tinha certeza de que, se estivesse conversando só com ele,
aquele problema já teria sido resolvido.

Ele poderia encurtar aquela história, mas lutava firmemente para não
se tornar um deles.

— Pouco me importo — disse Edith.

Ronald passou pela mulher, que tentou detê-lo, uma decisão péssima,
pois ele nem se deu ao trabalho de olhar para traz ao ouvi-la gritar quando
caiu no chão. O irmão seguia por um corredor enquanto ele ia por outro,
revirando cada cômodo, cada canto, para garantir que Clarissa de fato não
estava presa ali.
A cada porta que ele empurrava, um pouco de sua esperança se ia,
conhecia pessoas como aquela mulher, sabia do que ela era capaz, ainda
mais do que poderia fazer para apenas provar que estava no controle.

Mas a diferença entre os dois era que Clarissa não era um jogo para
ele. Queria a esposa e, cada momento, sentia que faria qualquer coisa para
encontrá-la, pagaria o que precisasse, entraria no jogo daquela louca.

Ronald precisava de Clarissa com ele, queria olhar para a esposa e


saber que estava bem protegida.

E, mais importante, provar que era amada.

A família de Clarissa, como ela mesma havia dito, era a única coisa
que ela tinha. Por isso, não media esforços para agradá-los, para se parecer
com uma pessoa que não era, apenas para contento dos pais, como se
merecessem qualquer coisa que viesse dela, como se ela já não fosse boa
demais apenas por ocupar o mesmo espaço que eles.

Ele nem sequer poderia imaginar como estaria sendo para ela estar
nas mãos dos pais, aguardando semanas até que ele voltasse.

Era uma missão de apenas 15 dias, que havia se transformado em um


mês, um maldito mês.

Por que raios ele não voltou para casa assim que percebeu que não
tivera uma resposta da sua carta, avisando da demora?

Por que havia saído do lado dela?

A esposa era a coisa que mais preciosa em sua vida.

— Ela não está aqui. — Ouviu o irmão dizer às suas costas. —


Podemos conversar com alguns moradores da redondeza, eles vão entregá-
los assim que souberem que serão presos se não colaborarem, eu mesmo
garantirei que eles sejam deportados do país.

Ronald se voltou para ele.


— Ou posso espancar aquele homem até ele perceber que não estou
brincando, que só vou parar quando souber onde está minha esposa. — Ele
foi em direção à sala, onde estavam os pais dela, mas o irmão se colocou na
frente dele.

— É o pai da sua esposa, talvez deva pensar mais um pouco…

— Eles não são nada dela!

— Se recorde do nosso pai, Ronald — disse o irmão, que não tocava


nunca no nome do antigo conde. — Ele era horrendo, mas era nosso pai.

Ronald respirou, levando a mão à nuca.

— Eu pagarei a quantia que me pedirem — declarou ele, pois não


tinha cabeça para começar uma busca infindável.

Clarissa poderia estar embaixo do nariz dele que ele não notaria,
mesmo já tendo se deparado com diversas situações parecidas em seu
serviço, ali Ronald era apenas um marido desesperado, que não sabia onde a
esposa estava, ou melhor, como estava.

— Eles não pararão de te subornar…

— Darei uma quantia generosa para que nunca mais apareçam na


minha frente, e, se voltarem a pisar em Londres, eu mesmo vou cuidar para
que apodreçam em alguma cela.

Ronald estava decido, foi até a sala, onde se encontrava a mulher,


sentada em uma poltrona, colocando açúcar no chá, como se a presença dos
dois fosse insignificante.

— Decidiram? — perguntou Edith, sorrindo. — Porque, assim,


pensem no tanto que demoraria para encontrarem ela, se alguém a colocasse
em um navio, sabe se lá para onde. Uma mulher sem nada, sem nome,
imaginem o que aconteceria com ela.

Ronald a analisou por um segundo, vendo que, embora a senhora


Franklin fosse astuta e uma mentirosa nata, suas mãos tremiam. Também
havia uma pequena mancha de carvão em seu vestido.

Por Deus! Clarissa, estava exatamente ali, embaixo do nariz dele.

Ela mesma tinha revelado onde estava a filha.

— Tobias, garanta que os dois não deem um único passo para fora
desta sala e, por favor, não seja gentil — alertou ele, saindo e fechando a
porta atrás de si.

Deu a volta na casa, encontrando uma pequena porta de madeira nos


fundos da propriedade, o porão para guardar carvão.

Estava aberto, sem nenhum cadeado, mas também não parecia


abandonado.

Ele pegou as maçanetas e as puxou para fora.

A cena com a qual se deparou partiu o coração de Ronald.

Lá estava a esposa, amarrada, sentada, recostada na parede.

Ele a puxou para junto do corpo dele e a carregou com muito cuidado
para fora dali.

Garantiria que aquela fosse a última vez que os Franklin cruzassem o


caminho dela, e já era bondade demais não matar os dois naquele instante.

Ronald a segurou perto de si, jurando também que aquela seria a


última vez que Clarissa se sentiria humilhada, de agora em diante, ele
mostraria, dia após dia, que ela era a coisa mais importante da vida dele.
Capítulo 25
Seus olhos doíam, não queria abri-los. Embora estivesse com medo
de estar sozinha, sentiu uma mão em seu rosto e aquele perfume que, sem
dúvida, não pertencia àquele lugar.

Abriu os olhos e, como em seus sonhos, encontrou seu esposo, o


homem que decidiu amar, o homem que nem mesmo imaginou que merecia.
Que bom que ele estava ali e que ela estava em seus braços.

Clarissa se aninhou mais no peito dele enquanto sentia as mãos de


Ronald subindo e descendo pelas suas costas nuas.

— Acabou? — perguntou ela, a voz fraca, pensando que, se fosse um


sonho, não gostaria de forma alguma de voltar para a realidade, aquela
realidade difícil e dura de se engolir.

— Sim, meu amor — disse ele, beijando seu cabelo. — Está em casa
agora.

Ela assentiu devagar.

— Senti sua falta. — Não queria chorar, mas era inevitável.

— Eu sei, eu sei — disse Ronald, se afastando para poder ver os


olhos dela —, mas nunca mais precisará sentir algo parecido na sua vida.

— Eu amo você. — Clarissa adorou poder falar aquelas palavras para


ele.

— Eu também amo tanto você, tanto… — disse ele, espalhando


beijos pelo rosto dela. — Meu amor.

Ela colocou a mão no rosto dele.

— Minha família. — As palavras escaparam dos lábios dela,


concomitantes por um sorriso tímido e um brilho carinhoso nos olhos.
— Não consigo parar de olhar para você — revelou ele. — Tenho
medo de fechar os olhos por um instante e não tê-la mais aqui comigo.

— Isso nunca mais irá acontecer.

Ele se colocou acima dela, encarando.

— Me prometa — pediu ele —, me prometa que nunca mais se


afastará mais do que cinco metros de mim.

Ela riu, o lembrando de como ele amava aquele som doce, como
sentia falta quando não estava com ela.

— Você não acha que isso é um pouco exagerado? — provocou ela,


arqueando uma sobrancelha, com um brilho travesso nos olhos.

Ele sorriu, sua resposta transbordando de sinceridade.

— Quando se trata de você, sinto como se quisesse estar amarrado à


bainha do seu vestido para sempre.

A risada dela preencheu o espaço entre eles, um som que aqueceu


seu coração e fez seus olhos brilharem.

— Se o fará feliz, então eu prometo — afirmou ela, sua voz


carregada de afeto e devoção.

Ele assentiu, seus olhos úmidos refletindo a profundidade de seus


sentimentos.

— Eu não deveria ter ido embora.

Clarissa balançou a cabeça e suspirou.

— Não pode se culpar toda a vez que algo sair errado.

— Não compreende… — foi a resposta dele. — O meu desejo, a


minha missão de vida, desde que te tornei minha, é te manter segura.
— Eu o amo ainda mais por isso.

— Eu preciso te proteger — disse ele, beijando as mãos dela. — O


que eu faria se não houvesse uma segunda chance para nós?

— Não quero mais pensar nisso, Ronald — disse ela, o beijando.


Apenas desejava estar ali, em paz, no único lugar possível para ela, e isso lhe
bastava.

— Realmente, posso encontrar formas de aproveitar o nosso tempo.


— Ronald se colocou para fora da cama, deixando-a sem reação.

— O que pretende fazer?

— O médico está aguardando para te avaliar — explicou Ronald.

— Ora, que bobagem. Eu estou bem! — Clarissa só demorou para


despertar por causa do tempo que fora mantida sem comida pelos pais.

Ele deu de ombros.

— Gostaria de garantir que cada parte da senhora se encontra em


perfeito estado, uma pena que o médico fará isso primeiro — conformou-se
ele, espalhando beijos pelo rosto dela. — Mas depois eu cuidarei muito bem
de você, querida. Eu prometo.

Clarissa riu, sentindo-se incrivelmente feliz. Com uma sensação de


que este sentimento não seria mais algo passageiro em sua vida.

Ronald estava perto da porta quando ela o chamou:

— Nunca me senti tão sortuda como agora por ter você.

Ele engoliu em seco, sorrindo.

— Sua sorte nem se compara a minha. Encontrar o amor da vida e a


melhor amiga na mesma pessoa não é algo que aconteça com frequência.
fim

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