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Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer semelhança com
pessoas reais, vivas ou falecidas, é coincidência e não é intencional por parte do autor.
Direitos autorais
Dedicatória
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
fim
Capítulo 1
Ele pensou por um segundo que deveria começar a seguir os próprios
conselhos.
Voltar a beber não parecia mais uma ideia tão boa como soou quando
chegou à Inglaterra.
Ele se perguntava como era para aqueles homens que não tinham
família…
Não retornaria para ter de lutar contra seus demônios enquanto a mãe
tentava convencê-lo de desistir do maldito caminho que tinha escolhido
trilhar. Tobias também lhe lançaria olhares recriminadores, julgando as
escolhas dele tolas e equivocadas.
Quando entrou naquela taberna, pensou que seria uma boa ideia
apostar alguns trocados, mas logo os trocados acabaram. As pessoas estavam
animadas enquanto Ronald ganhava. Mas, com tanta experiência, ele deveria
saber como as coisas funcionavam, porque não demoraria muito para a maré
de sorte mudar.
Maldição!
Podia muito bem ouvir o irmão em seu ouvido lhe dizendo que ele
ainda era o mesmo menino de outrora.
Ronald rezou pelo melhor, já que não poderia ficar vagando por
muito tempo sem suas vestimentas. Aquilo era um absurdo, tinha sua própria
honra, que, por sinal, não desejava colocar em risco.
Passou pela fresta entreaberta do portão com cuidado. Todas as luzes
da casa estavam apagadas, afinal, àquela hora da noite as pessoas decentes
deviam estar dormindo.
Por Deus!
Bateu à porta, com bastante força, queria garantir que faria isso uma
única vez, a situação já era muito humilhante, não precisava prolongá-la
ainda mais.
Por Deus! Havia uma pistola mirada nele, e o mais surpreendente era
que uma bela jovem a empunhava. Uma dama pequena e magra, com traços
doces, mas muito segura de si, lhe mostrando que sabia manejar a arma de
fogo.
O olhar dela desceu e parou bem onde ele desejava estar coberto.
Também não deveria gritar tão alto. Além dela, havia somente três
criados na casa, a cozinheira, o mordomo e o rapaz que cuidava dos
estábulos, e nenhum deles queria permanecer ali por muito tempo depois da
morte do senhor Franklin. Portanto, ela não precisava dar a eles mais um
motivo para abandoná-la ali.
O fiel mordomo do homem já se mostrava insatisfeito, pois ficaria
sem receber um único centavo e havia deixado claro que nunca entraria em
uma cozinha ou cuidaria de cavalos.
Clarissa viveu 19 anos com os pais, tempo suficiente para que ela
aprendesse as formas mais inusitadas de tirar a própria vida.
Por isso, quando seu tio adoeceu e ficou de cama, quatro anos antes,
necessitando de uma pessoa que pudesse lhe dar atenção em período
integral, a família não se sentiu nem um pouco mal de empurrar sua filha
para longe de casa em proveito de uma mesada mensal que o comerciante
lhes oferecia.
A única dor que eles sentiram era que não teriam mais uma
empregada para cuidar dos afazeres domésticos, se não fosse por isso, ela
poderia até mesmo afirmar que eles ficaram contentes de se livrar de mais
uma boca para alimentar.
Clarissa não odiava os pais, em algum lugar do seu peito nutria amor
por eles. A mãe era terrível, para isso não tinha desculpa. Até onde sabia, a
mulher mantinha um caso com mais de dois homens, mas também gostava
de manter a pose de cristã, afinal, era esposa de um vigário.
Já seu pai, bem, ele era um idoso àquela altura do campeonato, e,
mesmo se não fosse, nunca teve coragem para confrontar a esposa. Era uma
marionete nas mãos dela, e isso diminuía ainda mais sua admiração por ele;
ao menos sua mãe tinha capacidade de ser ruim porque queria, ele, por outro
lado, apenas a seguia.
Porém, quando ele faleceu alguns meses atrás, sabia bem o que
aquilo significava.
Toda a herança iria para o único filho que o homem tinha, um rapaz
de 17 anos que estava na escola. Já ela… teria de voltar para casa.
Não porque seu primo a faria ir embora, mas porque, se os pais não
estavam ganhando nada com ela ali, não fazia sentido que permanecesse.
Mas, naquele momento, viu que a melhor saída era se jogar no mais
fundo dos poços ou deixar que as ondas do mar carregassem seu corpo,
deixando-o ir de encontro às pedras do quebra-mar.
Seus pais estavam a caminho da casa de campo do tio, para uma
passagem rápida.
Uma pena que tal cavalheiro não existisse. E que o compromisso dos
pais fosse pegar sua parca alegria e a jogar para o inferno e além.
Mesmo tendo passado anos com a mãe, não tinha tido coragem de
levantar a voz uma única vez para a mulher.
Tinha pensado em se casar com seu primo, decisão que sua família
apoiaria sem titubear, mas ele era ainda um menino, e, mesmo que fosse de
longe o homem mais agradável com quem ela já tinha conversado, ele
merecia viver muitas experiências antes de se casar.
Quando Clarissa chegou ali, o tio já estava muito adoentado para lhe
ensinar a arte de caçar. Até mesmo ela nunca havia sentido necessidade de
atirar em um animal indefeso, que nem sabia o motivo pelo qual estava
morrendo.
Mas, assim como ele, concordava que uma mulher deveria estar
preparada para defender a própria honra, já que era algo tão importante para
elas. Por isso, sempre que se sentia disposto para ser levado até um banco ao
ar livre, ele lhe ensinava a teoria da caçada, prática que ela conseguiu pegar
rápido.
Com certeza essa era a memória mais afetiva que tinha do tio, assim
como também a que lhe trouxe mais benefícios.
Por esse motivo, ele também achou um ultraje que ela não sabia falar
latim, o que foi mais difícil de ela aprender, mas, quando enfim pegou o
jeito, se sentiu vitoriosa, mesmo que não soubesse quando poderia usar isso,
a não ser para discordar de um vendedor.
Mas a cena com que se deparou… bem, Clarissa ainda não tinha
encontrado palavras no dicionário que pudessem descrevê-la. E, mesmo que
soubesse, não teria capacidade de falar nenhuma delas.
Depois, quando desceu o olhar mais um pouco, viu que a camisa era
o menor dos problemas, porque tudo faltava ali: calças, ceroulas, meias,
sapatos.
Ela com certeza iria à igreja naquele domingo para se desculpar com
Deus pelos pensamentos impuros. Mas que culpa tinha se um homem forte e
bonito aparecera de repente em sua porta e, ainda por cima, nu?
Oras! Se o homem não queria atrair olhares para suas partes íntimas,
não deveria bater à porta dos outros naquela condição, isso sem dúvidas
chocaria as pessoas e ele receberia uma encarada demorada.
— Se acha que por isso sou uma presa fácil, o senhor não poderia
estar mais errado — declarou ela, não que ele não já soubesse disso.
Mas raras foram as vezes em que encontrou uma mulher em uma
casa como aquela, sem um responsável por todos os seus passos.
Sem dúvida, isso tinha mudado, ele não era mais o menininho tolo
que apenas fazia graça para todos. Era o capitão de um navio da Marinha
britânica. Tinha se tornado um homem e suas expressões demostravam isso
com clareza.
— Não posso sair por aí sem roupa. — Ela lhe lançou mais um olhar
de cima a baixo, cheio de desdém, ele completou: — Não mais.
— O senhor não tem roupa, não vejo o que poderia me oferecer além
de uma dor de cabeça.
Ele assentiu.
— Estávamos apostando e…
Não era mais um qualquer, sua reputação tinha peso, e não porque
vinha de uma família popular e rica, mas porque sua postura tinha
importância, o motivo pelo qual seus homens o respeitavam.
— Na próxima, diga que foi assaltado pela estrada, diga seu nome,
como se ele abrisse as portas dos salões mais prestigiados de Londres. Por
favor, não demonstre tanta vergonha quando as pessoas olharem para suas
partes íntimas, o que mais elas podem fazer? — perguntou ela.
Quando ela permitiu que Ronald abrisse mais a porta, ele não deixou
transparecer que via aquilo como uma discreta vitória.
— Por favor, não será tão má a ponto de me deixar aqui fora sem
roupa — argumentou ele.
Assim que ele finalizou, Ronald recebeu o olhar que merecia, aquela
fora a coisa mais imbecil que havia dito naquela noite, e ele não tinha
economizado nas palavras tolas.
— Foi estúpi…
— Mas isso não quer dizer que eu também não seja uma pessoa boa.
— Onde o senhor estava com a cabeça para apostar as próprias
calças?
Parecia que estava falando com a cópia do seu irmão, mas no corpo
de uma mulher, uma mulher bonita e muito encantadora, óbvio que não por
causa de suas palavras, mas tinha algo no seu rosto que o faria olhar para ela
na primeira vez que a encontrasse sem nem mesmo perceber.
— Isso não é a melhor coisa para se dizer a uma pessoa a quem está
pedindo ajuda.
— Fiz uma escolha tola, creio que ao menos isso a senhorita possa
compreender.
— Não estou dizendo que não compreendo, apenas que não é meu
dever fazer nada a respeito — começou ela. — O senhor escolheu a casa
errada para bater à porta, não costumo colocar meu bem-estar em risco para
ajudar pessoas que fazem escolhas equivocadas, senhor.
Não sabia onde estava com a cabeça quando inventou de falar para os
pais que estava casada, como pensou por um segundo que isso não resultaria
em uma tremenda tragédia?
Por outro lado, Clarissa não o conhecia. Não sabia nem mesmo de
onde ele tinha surgido, e uma pessoa que saía por aí, apostando até as
roupas, não poderia ter uma mente sã.
— Espere!
Sabia que ele estava bem atrás dela, então subiu as escadas e sem
demora foi na direção do quarto do tio.
— Ah, por favor, creio que não há mais nada com que eu possa me
surpreender.
Clarissa sorriu.
Não tinha entrado ali depois de ter arrumado tudo para o funeral.
Aquele seria o futuro quarto do primo, então não via motivos para entrar ali
à toa. Era estranho vê-lo vazio, como se não houvesse existido um momento
em que ele já tinha sido o lugar de alguém.
Uma não era suficiente para clarear o cômodo, por isso pegou outra
lamparina e a acendeu.
— A senhorita já pensou que seria mais fácil fazer tal coisa sem essa
arma na mão — sugeriu ele, e ela o encarou com deboche.
Ele riu.
Não tinha outra opção. Se os pais não fossem tão terríveis, poderia
negociar sua liberdade, mas isso nunca funcionaria, eles nunca permitiriam
que ela fosse algo além de um peão em um jogo de interesse para os dois.
Por isso, e apenas por isso, tinha aprendido a criar histórias que
parecessem reais aos ouvidos dos pais. Agora, portanto, precisava que eles
acreditassem naquela farsa, deveria ser crível o suficiente para que eles a
renunciassem.
Ele arregalou os olhos, mas, por um segundo, ela jurou que ele estava
sorrindo.
Não o conhecia, e homens nus não eram confiáveis, sabia disso, mas
suas opções andavam bastante escassas. Clarissa não possuía dinheiro para
subornar as pessoas e não desejava tornar a história que inventou para os
pais em realidade, apenas queria que acreditassem o suficiente para deixá-la
em paz.
E não era ela que estava orando para Deus enviar uma resposta do
céu?
Após se livrar dos pais, faria uso da sinceridade, mas até lá a única
coisa que podia fazer era rezar para que o senhor Denver não fosse muito
pior do ela estava imaginando.
Precisava que ele aceitasse a oferta e não sabia se tinha sido uma boa
opção lhe dar roupas antes de obter sucesso. Contudo, se não houvesse feito
isso, não conseguiria se concentrar em mais nada.
— E sou contra. Mas hoje, excepcionalmente, acho que ele será mais
meu amigo do que inimigo.
Mas o homem à sua frente era um daqueles raros em que você bate o
olho e sabe que não veste a farda apenas para rir e fazer piadas de outras
pessoas, como se ele fosse superior.
Era um daqueles que fazia jus ao seu cargo e usava isso com orgulho
e honra.
Mas, é claro, ela poderia estar muito enganada. Já que ele tinha
aparecido lá sem nenhuma roupa, poderia muito bem ser um lunático, e tudo
o que tinha falado poderia ser uma mentira, esperando o momento certo para
enfiar uma faca na garganta dela e roubar a casa.
Era bom que começasse a pôr em prática seu plano, a pensar com
racionalidade, pois, assim que o sol raiasse, teria que convencer não apenas a
ele, mas também aos criados do tio a entrarem em sua mentira.
Era como se eles fossem pular para fora das órbitas e cair ali em cima
da mesa, bem na frente dos dois.
— Eles me levarão embora assim que notarem que não tenho uma
aliança no dedo — declarou, permitindo que o desespero tomasse conta da
sua voz.
Se bem que o que de fato a fez ceder foi a própria consciência, pois
lá no fundo ela não ia deixá-lo à mercê da sorte naquelas condições.
— Que tal falar a verdade? Diga que não deseja ir, seja lá para onde
eles estão tentando te levar — ele disse o óbvio, agarrando os braços da
poltrona.
Clarissa suspirou.
— Você acha que não estou ciente disso? Mas não vejo nenhuma
perspectiva à minha frente, nada que possa me resgatar do meu futuro. E
você, você — disse ela, apontando enfaticamente para ele — basicamente
apareceu na minha vida como um presente divino, o que mais posso dizer,
além de que devemos nos apoiar?
— Estou desesperada.
— O senhor…
— Mas…
— Quer mentir para seus pais, acredita mesmo que isso acabará
bem?
— A senhorita...
— E as outras pessoas?
— Os criados da casa não dirão nada. — Pelo menos era o que
Clarissa esperava. — E os moradores da cidade não sabem praticamente
nada sobre a minha vida.
Desde que havia chegado, o único lugar onde ia era à feira, sem
trocar mais do que meia dúzia de palavras com as pessoas, até porque
sempre tinha que voltar rápido para quando o tio precisasse de assistência.
Era fácil criar uma vida fictícia, porque na verdade não tinha uma.
Nunca discordaria que sua vida era muito melhor ali do que em
qualquer outro lugar que já tinha estado, mas não era a vida que desejava
para si mesma.
— Tudo bem.
— É o que espero.
O homem à sua frente, alto e magro, que não tinha mais um único fio
de cabelo na cabeça, apenas deu de ombros.
Ronald assentiu.
— Ainda mais louco é ela não querer revelar de onde o senhor veio.
Isso de fato não era algo que ele queria que se espalhasse, já era
constrangedor o suficiente para ele saber que ela o tinha visto nu, seria ainda
pior se todos ali soubessem da história.
— Isso não importa, o senhor deve se alegrar que estarei longe daqui
ao final do dia.
Ronald assentiu.
Aquilo não era seu problema. Ao final do dia, seria apenas mais uma
história para contar em alto-mar e, com o tempo, nem mesmo se lembraria
dela.
Na noite anterior, Ronald não tinha notado muita coisa por conta da
escuridão, estava tão preocupado com sua devassidão que nem reparara que
os cabelos dela eram castanho-escuros. Ela não parecia ter mais de um metro
e sessenta, e seus dedos eram finos e longos, do jeitinho ele achava que as
mulheres deviam ter.
Se não estivesse fingindo ser o marido dela, com certeza tentaria ser
seu amante.
— Bom dia, senhor Denver — cumprimentou ela, olhando-o de cima
a baixo. — Vejo que a roupa lhe caiu muito bem.
— Diga.
— Que estou casado com a senhorita e nem sei seu nome completo
— declarou ele, encarando-a.
— Clarissa Franklin.
— É mesmo?
— Claro.
— Ainda bem, já que terei que ficar com ele pelo resto da vida.
Sabia o que era ter uma relação ruim com os pais. Ou melhor, com o
pai, Wilson Helton. Mesmo que o conde tratasse melhor Ronald e Roselaine
em comparação ao demais irmãos, as coisas entre eles não eram fáceis,
porque não podia fazer nada para livrar nenhum dos outros irmãos ou a mãe
dos maus tratos daquele homem.
Odiava ele, era esse o sentimento. Mas, na maior parte do tempo, era
como se o ódio não fosse verdadeiro, o odiava por tudo o que tinha feito e
causado às pessoas que Ronald amava, e não poderia ser diferente, mas
também o odiava porque ele tinha impossibilitado Ronald de ter um carinho
por um pai, de poder olhar para suas recordações do passado com carinho,
não apenas com mágoa.
Se ele conseguia ser um pai razoável para ele, por que não era assim
para todos os outros filhos?
Ele não a conhecia, nem teria tempo para isso, mas esperava, do
fundo do seu coração, que ela conseguisse fugir deles e de todos os medos
que tinha quanto ao comportamento dos seus pais.
— Como?
— Pelo jeito que a senhorita fala de seus pais, devo imaginar que não
sejam pessoas fáceis de lidar — explicou ele.
— Não sei, parece que ainda não percebeu como isso é importante
para mim.
Ele não tinha conhecido o homem, mas imaginava que ele sabia que
precisava agir da melhor maneira, pelo menos em seu leito de morte.
— Sinto dizer, mas a única coisa que vejo é que a senhorita que fez
tudo por eles — argumentou.
— Estou curioso.
E, desde a noite anterior, a única coisa que aparecia em sua mente era
aquela mulher à sua frente.
Ele riu.
— Foi o que pensei — concordou ela, com ironia. — Vou tentar ficar
apresentável. — Ele olhou para ela, com os seus cabelos castanho-escuros
presos pela metade, caindo sobre a pele branca, seus olhos cor de avelã, e
pensou que ela já estava mais do que apresentável. — Ou pensarão que o
senhor não tem pulso firme.
Mas, se não tinha desenvolvido gostos fúteis, também não sentia falta
disso já que nunca conseguiria convencer os pais de lhe comprar roupas das
quais ela gostasse. No fim das contas, o marrom não lhe caia tão mal.
Perfeito, pelo menos na sua concepção, não havia uma única coisa
para que sua mãe pudesse criticar. Ela precisava estar preparada para
qualquer coisa, pois sempre era de se esperar que sua mãe encontrasse um
motivo novo para repreendê-la.
— Parece que o senhor não está levando isso tão a sério como eu
gostaria — admitiu ela, torcendo as mãos um na outra.
Ela ficou alarmada com todas as coisas que não havia planejado. Era
boa em mentir, havia passado a vida se aprimorando nisso, mas poucos
podiam enxergar além de suas mentiras como sua mãe. A mulher sabia lê-la
como ninguém.
E sabia que aquela história tinha furos demais para que ninguém
percebesse, caso não cuidasse disso, acabaria se afundando nela até não
conseguir mais escapar.
— Em Kent?
— Pode, assim será mais fácil quando partir e não tivermos um corpo
para enterrar.
— E por que não seria? — Sem lhe dar tempo para abrir a boca, ela
emendou: — Se eu fosse viuvar, comandaria minha própria vida, sem pais,
sem marido. E com respeito.
— Já pensou que pode acabar casada com alguém que não desejaria
perder? — perguntou ele, já ao lado dela na calçada.
— Não.
— Por que isso? — Ela rezava para ter pelo menos mais cinco
minutos antes que a carruagem chegasse até eles. — Já disse que eles não
precisam pensar que gosta de mim.
Ele assentiu.
Mas não eram assim com Clarissa, embora gostaria que fossem,
desse modo não teria medo dos próprios pais. Desejava poder voltar para
casa. No entanto, não era uma possibilidade que ocupava sua mente, mesmo
que desejasse ardentemente isso. Ela sabia que a realidade não seria
agradável. Tinha consciência de que, quando encontrasse alguma alegria na
vida, seus pais tentariam sugar isso dela. Além disso, eles nunca entenderiam
suas vontades e, assim que tivessem uma oportunidade, a usariam para
conseguir qualquer coisa que desejassem. Não havia nada mais
insignificante para eles do que a vida dela.
— E isso existe?
— O senhor veio parar aqui, em vez de estar com eles, deve ter
alguma coisa errada — comentou ela.
Queria saber mais sobre a vida do senhor Denver, não apenas por ter
que fingir que era a esposa dele, seria bom saber um pouco mais, além disso,
ele a fazia ficar curiosa.
— Meu pai faleceu — ele fez um gesto com a mão, impedindo que
ela falasse qualquer coisa — há muito tempo, já a minha mãe — ele encarou
os próprios pés antes de continuar —, ela é perfeita, eu que não sou.
Sentiu o olhar de Ronald sobre ela. Era estranho chamar os pais pelo
nome, mas ambos preferiam assim, já era um milagre não ser obrigada a
chamá-los pelo sobrenome.
— Devo supor que este seja seu marido — a mãe sempre era a
primeira a falar.
Clarissa se voltou para trás, vendo Ronald sorrir gentilmente, como
se pudesse conquistar aqueles dois, quando a única coisa que Clarissa podia
pedir era que eles não descobrissem a farsa.
Os pais gostariam de seu marido se ele pudesse lhes dar uma vida de
luxo, e não ele sendo um simples marinheiro.
Clarissa engoliu em seco. Tudo bem, ela tinha dado roupas para ele,
boas por sinal, mesmo assim, isso talvez não fosse suficiente para fazê-lo
aguentar aquilo. Ela com certeza não aguentaria. Até mesmo correr nua
pelos campos seria melhor do que encarar Edith Franklin quando estava
determinada a não gostar de alguém.
— Mamãe…
— Isso porque ela sabia que não permitiríamos tal loucura — ralhou
o pai, que somente abria a boca para concordar com a esposa.
A mãe lhe lançou um olhar, o que foi suficiente para que Clarissa
fechasse a boca.
A mãe não sabia disso, não sabia nada do que a filha fazia de bom.
Isso foi deixado claro desde seu nascimento, como se realmente fosse
a maneira certa de se viver. O pior era que ela acreditava naquilo. Se não
houvesse sido mandada para longe deles, não teria percebido que havia
outras formas de levar a vida.
A rotina com o tio não era um mar de rosas, mas, comparada a que
ela tinha na antiga casa, era um sonho.
Não se importava de ter que trabalhar duro, faria aquilo por quantos
anos fossem necessários, mas gostava de poder ter opinião, de se sentar em
uma poltrona e, por uns dez minutos, não ter alguém lhe chamando de
egoísta e dizendo que se importava apenas com seu próprio descanso,
quando isso nem mesmo era verdade.
— E, por Deus, vão morar onde? — perguntou Edith, que ainda nem
tinha entrado na casa e já conseguia ser desagradável.
Clarissa não precisava ensiná-lo a mentir, era bom demais nisso para
precisar de ajuda. E, por algum motivo, isso a deixava aflita, ele poderia ter
uma boa aparência, mas não queria dizer que era uma boa pessoa.
— É um marinheiro…
— Em Kent — disse ele, olhando para Clarissa dessa vez, ela sabia
disso, mas manteve o olhar na mãe, não se sentia tão confortável com a
mentira naquele momento —, um lugar encantador, creio que sua filha vá
adorar.
— Terá que adorar mesmo, já que não é mais uma escolha voltar para
a minha casa.
A mãe amava enfatizar que a casa em que moravam era dela, assim
como suas roupas, o teto sob sua cabeça. Tudo, cada coisa que fizesse a filha
ter um sentimento de impotência, até mesmo Clarissa era tratada como um
pertence, uma coisa qualquer que eles poderiam usar como bem
entendessem.
— Ah, creio que isso nem passe pela cabeça dela — salientou ele. —
Agora, se quiserem entrar, ficaremos encantados em recebê-los.
E o tio que estava errado? Ele poderia ter os mesmos genes de Oscar
Franklin, mas sabia pôr aquela mulher no seu devido lugar, e, na maior parte
das vezes, com sua indelicadeza, o tio falava tudo o que Clarissa um dia já
quis falar.
— Mas…
— Mas nada.
Ela foi seguida pelo esposo. Não tardou para Clarissa ouvir a porta
da casa bater, porque eles não esperariam por nenhum dos dois.
Por acaso ele não acabou de ouvir aquela mulher? Ela ficaria ali e
acabaria com qualquer chance de felicidade.
— Agora nós vamos entrar, sorrir e fingir que somos o casal mais
perfeito — começou Ronald.
— Mas…
Ficou claro quando pôs os olhos neles, estava nítido que não eram
pessoas em que o convívio lhe acrescentaria coisas boas. Clarissa tinha
razão.
Já tinha visto pais que não mereciam tal título, não era algo raro no
mundo; às vezes ignoravam os filhos, os maltratavam, os diminuíam, ou
arrumavam outras formas de desprezo que poderiam fazer um filho desejar
ficar cada vez mais longe dos pais.
Mas a verdade era que Clarissa desaparecia com eles por perto.
Embora a conhecesse havia menos de um dia, já percebia que ela não se
deixava abalar fácil com as ofensas, sobretudo vindas da mãe. No entanto,
naquele momento, ao observá-la com a postura ereta, movendo o garfo em
direção à boca lentamente, como se não pudesse cometer um mísero erro na
maneira de segurá-lo, Ronald percebeu que algo estava muito errado ali.
Desde que se sentou à mesa, Ronald vinha repetindo que aquilo não
era um problema seu.
— Estamos nele.
Quando olhou para Clarissa, ela estava branca, mas tão branca que
tinha certeza de que, se tocasse nela, a deixaria com um hematoma.
Dava para ver, sem muito esforço, que Clarissa queria pegar uma
vassoura e enxotar os dois dali o mais rápido possível.
Mesmo que fosse casado de verdade com a filha daquela mulher, ela
poderia esperar sentada pela visita deles. Ronald só a encontraria uma vez a
cada década, para uma passagem curta de um dia, e olhe lá.
Como alguém poderia aguentar mais que isso sem enlouquecer por
completo? Ele com certeza não era essa pessoa.
Ronald olhou para seu prato, depois para Clarissa outra vez, que
continuava sem reação.
— Espero que não, sabe que essa casa deveria ser do seu pai.
Ainda que ela não tivesse coragem de enfrentar a mãe, ele também
precisava arejar a cabeça, precisava colocar alguns cômodos entre eles e
aquelas pessoas, mesmo que para isso precisasse agir de maneira mal-
educada.
Embora Clarissa tivesse deixado claro que a única coisa que ele
precisava fazer era fingir ser um péssimo marido, ele inverteria os papéis e
fingiria que tinha entendido de outra forma.
— Oh, por favor, peça a algum criado. — Ele olhou para senhora
Franklin, que pelo visto não gostava de ficar com a matraca fechada.
— Eu adoraria ajudá-lo.
— Mas os criados estão aqui para isso, se fizer todo o trabalho, o que
resta para eles?
Ronald tinha uma lista de respostas para ela, mas considerava que
todas passariam do ponto, mesmo que a pergunta da mulher fosse para lá de
desnecessária e tola.
— Para a despensa.
— Direção errada.
— Não.
Sabia que tinha ido contra a ideia da moça, mas, depois de passar dez
minutos na sala com aquelas pessoas, poderia compreender qualquer tipo de
atitude dela para se livrar deles.
— O que quer dizer? — perguntou ele, pensando que ela não poderia
desistir, mesmo compreendendo que era a única saída. — Pretende contar a
verdade para os dois?
Ela riu.
— É claro.
— Mas é claro.
— Claro que não, são meus pais, e tem mais, sou uma mulher, até
que eu realmente me case, estou na mão deles.
Mais uma vez ela tinha razão, Ronald tinha enfrentado a família dele,
mas tinha dinheiro, era homem e sabia que eles não fariam nada além de
ignorar suas cartas por anos, exatamente o que Tobias, seu irmão mais velho,
vinha fazendo desde que se alistou na Marinha Real.
Ronald sabia que essa não seria a reação daqueles dois, não quando
Clarissa podia trazer alguma vantagem financeira para eles.
Sem dúvida, ela podia ser uma moeda de troca vantajosa, era uma
moça bonita, solteira, poderia ser empurrada para qualquer velhote disposto
a lhes dar mais dinheiro.
Ronald podia estar ficando louco, mas não tinha muita coisa para
fazer naquele tempo que ficaria em terra firme, então, se ajudasse Clarissa a
enfrentar aqueles dois, parecia bem mais honrável do que sair apostando e
bebendo até cair.
Não se sentia pronto para reencontrar sua família, tinha muitas coisas
mal resolvidas, e, com a morte de Anny há alguns anos, tudo seria ainda
mais terrível.
— O senhor…
— Por quê? Não seria uma tragédia estar “preso” a uma dama como
a senhorita pelas próximas semanas.
— De fato, pois terei que conviver com sua família — afirmou ele
—, e, acredite, não achei mesmo que seria moleza.
Ele se empertigou.
— Eu não quis…
— Não quero dizer que está errado, cada coisa que o senhor falou
não é nada comparado ao que penso, por outro lado, mesmo que eles
acreditem em nós e me deixem em paz, não há como removê-los da minha
vida — declarou Clarissa, com tristeza no olhar.
Não precisava ser um gênio para notar que essa a visão de mundo de
Clarissa.
Teve um teto sobre a cabeça enquanto crescia, mas não teve amor,
teve comida na mesa, mas nada além disso para ser grata. Os pais deram o
necessário para mantê-la viva, mas nada que pudesse deixá-la feliz, ou que a
fizesse pensar que era algo além de um peso morto.
— Eles são a única família que tenho. Não tenho irmãos, tios, primos
ou qualquer ente próximo. Sabe como é solitário imaginar um mundo onde
não há ninguém em quem se apoiar? — queixou-se Clarissa, engolindo sem
seco.
Ronald com certeza não sabia o que era solidão. Poderia não querer
contanto com a família desde que havia atracado, mas sabia que, assim que
os Heltons soubessem que ele estava na Inglaterra, inventariam dezenas de
eventos e outras atividades para desfrutar do tempo juntos.
O que tinha visto naquele dia não era uma família. Poderiam ser os
pais dela, e biologicamente ela nunca poderia mudar nada, ou negar, mas
aquilo não era uma família. No caso de Clarissa, era melhor estar sozinha.
Era a ideia que ele tinha em mente. Talvez Clarissa até soubesse que
essa era a opinião dele, mesmo assim, no fundo do seu coração, Ronald não
poderia expressar aquelas palavras, porque não queria correr o risco de
magoar ela.
Quando Clarissa suspirou, Ronald jurou que o aperto no seu peito era
única e exclusivamente por ter aprendido, desde muito cedo, a ter empatia
pelo próximo, que não estava se importando demais, que aquilo não o
afetava mais do que a maioria das coisas no dia a dia.
Com certeza, aquela vontade de aninhá-la em seus braços surgiu só
porque gostava de abraços.
Por isso, e apenas por isso, Ronald ajudaria Clarissa a se ver livre
deles e depois seguiria seu caminho.
— Ela me assusta.
O olhar carinhoso que Clarissa lhe lançou fez seu coração acelerar, e
ele sentiu-se vulnerável diante de tamanha intensidade.
Ronald sorriu.
— Quer dizer que não considera mais uma decisão terrível eu ter
apostado minhas roupas?
— Ainda considero tal decisão terrível, mas agora estou feliz por tê-
la feito.
Conhecer Clarissa naquela noite tinha sido uma curva errada em sua
vida, como estar perdido no mar, sem bússola, sem rumo certo, e de repente
encontrar algo melhor do que procurava.
Tudo bem, não achava mesmo que ele fosse fazer isso, não tinha
demorado muito para que Ronald ganhasse sua confiança, e menos ainda
para conseguir seu afeto.
Porém, não sabia quem ele realmente era, além de ser um homem
extremamente encantador, com aqueles cabelos pretos cheios e olhos que
mais pareciam o mar, o que dificultava e muito sua tarefa de dormir no
mesmo quarto que ele.
— Não precisa ter acontecido nada para que sua reputação seja
manchada, senhorita Franklin.
— E o que disse?
— Não é exatamente por este motivo que devo uma explicação para
a senhorita?
— Não.
— Você pode fazer muita coisa, quer dizer, sou seu esposo, imponha-
se!
— Por que a senhorita não rebate quando seus pais falam coisas
horríveis sobre você? Por que não se defende pelo menos? — insistiu
Ronald.
— Não, mas não quero ser enviada para o inferno antes da hora.
— Ah, que bom que ainda estão acordados! — Clarissa ouviu o som
da voz do pai e sentiu o rosto corar, Ronald a soltou, se voltando para o
homem.
Se o pai saísse dali e voltasse depois de meia hora, ela ainda estaria
tentando encontrar as palavras.
Clarissa, que ainda não tinha voltado para si, o encarou sem
compreender uma única palavra.
— Como?
Clarissa respirou fundo, o pai podia não ter voz própria, mas sabia
muito bem reproduzir as falas da esposa.
— Então, troque você mesma, sabe como sua mãe odeia lençóis de
qualidade inferior, e não…
O pai se voltou para ele com um olhar que poderia congelar qualquer
um, mas Ronald nem mesmo mudou a expressão.
— Melhores.
— Posso trocá-los…
Ela não se despediu do pai, nem mesmo deu boa noite. Passou cinco
segundos encarando a porta de madeira à sua frente, ainda sem palavras.
— Eles vão entender isso como uma afronta — comentou ela,
tentando não pensar que estava em um quarto sozinha com aquele homem,
que inclusive havia ficado mil vezes mais atraente naquele momento.
Havia notado que aquelas roupas não eram as mesmas que tinha
entregado para ele na noite anterior, também não parecia com alguma outra
que seu tio usaria.
Ela olhou para o paletó dele, aquele tecido era caro, sabia disso
porque o tio tinha um parecido. O ciúmes pela peça era evidente, o tio usava
apenas nos momentos mais importantes de sua vida, e da morte também, já
que havia pedido para ser enterrado com ele.
Ele sorriu.
Não poderia aceitar que aquele homem, que minutos atrás estava
enfrentando o pai dela para defendê-la, dormisse em um sofá que mal cabia
metade do seu corpo.
— Só aceito — disse ele, voltando a se sentar — se a senhorita
também estiver nela.
— O senhor…
Já era muito difícil não pensar no quanto aquele homem era bonito,
não precisava que ele soltasse piadinhas ou se insinuasse em sua direção.
— Que coisas?
Costumava colocar uma camisola simples para dormir, mas teria que
se contentar naquela noite em apenas abrir seu espartilho.
— Sabe que, com seus pais por perto, teremos que fazer muito mais
do que trocar flertes bobinhos.
O coração dela se acelerou ao lembrar quando ele tinha puxado ela
para si no corredor, dos braços fortes dele envolvendo sua cintura, como se
estivessem acostumados a tal carinho.
— Talvez, ainda assim não seria de todo mal trocar alguns flertes
com a senhorita.
— Durma, homem.
Capítulo 8
Ronald poderia estar enganado, o que era muito raro de acontecer,
ainda mais quando se tratava de pessoas.
Dias atrás, aquele tipo de correspondência seria a única coisa que ele
desejava ter recebido, pois, assim que seus pés pisaram em terra firme, já
desejava voltar para o mar.
Ronald não sabia quais eram esses assuntos, nem mesmo se de fato
existiam, apenas não sentia mais a necessidade de partir para longe.
Coisa que uma pessoa com bom senso faria, só que Ronald
desconfiava que não era o caso daqueles dois.
Daria mais uma chance aos pais dela, talvez as situações do dia
anterior tivessem sido apenas equívocos das duas partes. Ronald sabia que às
vezes as pessoas mostravam seu pior lado e, quando menos se esperava,
podiam surpreender positivamente.
— Como assim?
Ele olhou para o cabelo dela, sabia que estava preso em um coque,
tão perfeito como no dia anterior, mesmo que não conseguisse vê-lo debaixo
daquele chapéu marrom horrendo.
Parecia que tudo que ela usava era marrom, roupas, chapéus, tinha
certeza de que até mesmo as meias eram dessa cor.
— Não precisa haver nada de errado, senhor Denver, ela achará algo
para me criticar.
— Então, sua mãe deve apenas ter acordado em um dia bom.
Mesmo que o único motivo de ele estar ali fosse para ajudar Clarissa
a se livrar dos pais, não queria perder seu tempo falando deles.
Clarissa não deveria ser apagada tão facilmente, era uma moça
encantadora demais para ficar longe dos olhos de todos.
— É o tecido mais barato, a escolha óbvia dos meus pais.
Ela se inclinou para frente para cochichar, como se, mesmo daquela
distância, os pais ainda fossem escutar a conversa deles.
Ela não sabia seu verdadeiro sobrenome, muito menos o cargo que
ele ocupava.
Também, mesmo sabendo que tudo o que vinha fazendo era por um
bom motivo, queria manter sua família longe daquilo, fosse o que fosse, não
precisava envolvê-los na mentira.
A relutância dela não sairia da sua cabeça tão cedo. Seus olhos
pareciam levemente cerrados, e uma sobrancelha arqueada denunciava sua
hesitação.
— Não quero!
— Não fale bobagem — alertou ela. — Não lhe dei roupas naquela
noite por pena, e sim por puro interesse.
O bom senso não permitia que ele segurasse sua língua, aquele
chapéu era realmente uma piada.
Mas, assim que seus dedos tocaram na pele macia do pescoço dela e
seus olhos encontraram os dela, Ronald soube que deveria aprender a manter
as mãos sob controle, de preferência longe de todo o corpo de Clarissa, a
cinco metros de distância, no mínimo.
Vê-la tão afetada quanto ele não acalmou nem um pouco a agitação
que se espalhava pelo corpo de Ronald.
Porém, ela se encontrava ali, tão perto do seu corpo, com o rosto
inclinado em sua direção e os lábios rosados o seduzindo. Era fácil esquecer
todo o resto quando era tão satisfatório apenas tocar na pele dela, a simples
constatação de que a beijaria.
Ele desfez o nó, deixando o chapéu cair para trás, e não desejava
parar por aí, seus cabelos castanho-escuros presos em um coque tão bem-
feito também pareciam clamar por salvação.
O toque suave dos lábios dele nos dela era como uma promessa de
amor e entrega.
Clarissa sabia que deveria colocar as mãos no peito dele para afastá-
lo, e não para o puxar de volta, no entanto, quando suas mãos pararam na
camisa dele, não conseguiu interromper o beijo.
— Não costumo parar nos beijos, então creio que não possa lhe dar
uma resposta verdadeira — ele respondeu com um tom descontraído, mas
seus olhos denotavam uma pontada de mistério.
— O quê?
— O senhor me beijou.
— É, e pode ter sido motivo de espanto, mas agora dizer que foi
assustador…
Ele estancou o passo mais uma vez, levando as mãos aos bolsos da
calça.
Com certeza não estava apaixonada por ele. Ainda assim, tudo o que
ele vinha fazendo andava mexendo com seus sentimentos. A questão
principal era que, por ser um marinheiro, Ronald logo iria embora, não
deveria passar mais que algumas semanas por ano em terra firme, e, mesmo
que isso não fosse verdade, as roupas e a qualidade da mala onde guardava
seus pertences mostravam claramente que não era um plebeu.
Clarissa não sabia por que ele não queria dizer a verdade, quem de
fato era ou que cargo ocupava, por outro lado, isso também não importava,
se estivesse na posição dele, não sairia por aí contando para todos o que
fazia da vida.
Além disso, ele estava a ajudando, mesmo quando tudo indicava que
não precisa demonstrar tamanha gratidão.
Já tinha feito demais ao aceitar o plano que ela tinha criado, e, mais
ainda, quando tudo mudou de rumo, continuou com ela, garantindo que não
precisasse revelar a verdade.
— Veja bem…
— Ótimo!
— O senhor…
— Não estou dizendo que está errado — alegou ela, que sabia muito
bem que tudo o que ele estava dizendo tinha um fundo de verdade.
Ela assentiu.
Ela o encarou.
Era estupidez.
Não era seu melhor beijo, mas tinha sido diferente, como se fosse o
mais significativo da sua vida.
Clarissa estava sendo um ponto fora da curva em sua vida, ele havia
batido na porta da casa dela, e ela lhe recebeu com uma pistola na mão, nada
poderia ser menos acolhedor, sem falar que ela o viu nu, algo que desejava
esquecer. De fato, não estivera em seu melhor momento.
Os lábios dele encostaram nos dela, lentamente; ele faria aquele beijo
ser o mais perfeito na vida dos dois.
Não sabia qual era o rumo que a vida deles tomaria a seguir, só que
não estariam juntos muito em breve, portanto, gostaria de lhe deixar uma
lembrança boa. Mesmo que Clarissa não sentisse saudades dele no futuro,
queria ao menos que ela não se esquecesse por completo dele.
O beijo era lento e calmo. Queria que ele ficasse na lembrança dela
durante as noites, assim como seria para ele também.
Não podia crer na sua ousadia, mas o beijo entre os dois parecia tão
perfeito, quase como se a história que haviam criado tivesse se tornando
realidade perante seus olhos.
Ele sentiu as mãos dela em seu cabelo, o puxando para mais perto,
com paixão, e aquilo o fez arder de desejo.
Ele a queria tanto, cada parte do corpo dela. Queria tirar sua roupa e
poder se agraciar com cada curva de Clarissa.
No entanto, não sabia se aquilo era certo… algo lhe dizia que não,
pois assim só a prejudicaria, mas não podia deixar de desejá-la, era mais
forte que ele.
Aliás, a segunda vez tinha sido mais um desafio da parte dela do que
qualquer outra coisa, mas, mesmo que ele usasse isso apenas como uma
desculpa para se sentir melhor, Ronald precisava puxar as rédeas do seu
desejo.
Quando Clarissa se virou, seu rosto veio na direção na dele e ele teve
que fazer o “sacrifício” de beijá-la novamente, um beijo rápido dessa vez.
Algo doce e casual, como se fizessem isso sempre.
Uma risada suave escapou dos lábios dele, um som que pairou no ar
como uma brisa leve.
Ainda bem, porque Ronald não sabia até quando teria autocontrole,
segurando-se para não levá-la para trás de um arbusto e lhe mostrar as
inúmeras formas de se fazer amor.
Ela tentou dar um jeito no cabelo, mas não tinha muito o que fazer,
não quando não desejava colocar aquele chapéu de novo em sua cabeça, não
quando todo o cabelo parecia um ninho de rato.
Desde o dia em que ele tinha batido à sua porta, a vida dela tinha
virado de cabeça para baixo, mas também era a primeira vez que realmente
sentia que podia sair daquela vida miserável.
Não estava mais presa aos pais, quando fossem embora, ela poderia
mandar uma carta cortando o vínculo, afinal era uma mulher casada.
Ronald também tinha razão ao dizer que ficar sozinha era melhor que
com pessoas que não a amavam.
Quando criança, Clarissa não conseguia conceber que os pais não a
amavam, era um sentimento tão natural, até pessoas mais frias conseguiam
ter afeição por seus filhos. Entretanto, os pais nunca lhe deram carinho ou
qualquer demonstração de afeto que mostrasse qualquer cuidado com ela.
Faltava pouco para ir embora dali com uma boa carta de referência
do primo, poderia até mesmo pensar em se tornar governanta. Teria uma
vida agradável, suas escolhas seriam responsabilidades apenas dela e de
mais ninguém.
Se fosse infeliz, teria sido por suas escolhas; se fosse feliz, por mérito
próprio.
— Cadê a garota que abriu a porta para um estranho, com uma arma
na mão?
— Creio que até mesmo um manicômio seria melhor do que ter sido
ser criada por estes dois — afirmou ele, a fazendo sorrir.
Era estranho tê-lo perto depois de tantos beijos, mas não se sentia
constrangida, os dois juntos parecia algo tão natural.
Maldição!
Não poderia fazer nada estúpido, ainda mais com alguém que não
merecia tal tratamento. Ele a considerava demais para agir de maneira tão
indelicada.
Mas não queria dizer que era fácil, vinha usando de toda a sua força
de vontade para ficar longe dela, para pensar em outras coisas, mas aí ela
sorria ou ele a observava sentada na cama e tudo o que queria era beijá-la de
novo e de novo.
Já havia cogitado voltar para a cidade e ficar por lá. Seria bom no seu
atual estado de espírito, ficaria afastado dela e não precisaria se preocupar a
todo momento quando estivessem juntos, se policiando para não parecer um
adolescente emocionado.
Não se encontrava no melhor humor para ter uma conversa com mãe
de Clarissa. Sua companhia seria o mesmo que tomar um banho de água fria,
apagando todos os desejos de Ronald por Clarissa, mas, mesmo assim,
preferia o banho.
— Mas creio que há uma lista imensa de coisas para ela fazer.
— Parece que, a cada declaração sua, o senhor quer enfiar uma farpa
em mim e em meu marido.
A mulher jogou a cabeça para trás, rindo, e apontou para ela mesma.
— De mim?
— E julga que é isso que faço com minha filha? — indagou ela. —
Que não a respeito?
Uma mãe que amava a filha nunca trataria da maneira como aquela
mulher fazia com Clarissa, Edith podia até mesmo afirmar que era amor o
que sentia, mas era puro egoísmo.
Era difícil falar deles, ainda mais quando não os via há tanto tempo,
quando a última coisa que queria era envolvê-los naquilo, porque seria
motivo para uma enxurrada de críticas sobre quão infantil ele era perante
suas responsabilidades.
Por outro lado, tudo o que andava dizendo eram mentiras sem pé
nem cabeça, também era estressante o bastante para que quisesse abrir o
jogo.
— Nada demais.
— O senhor não gosta de falar da sua família, não é? — disse ela
com um olhar que o entisicou.
Não significava que tinha uma vida fácil ou confortável, ainda mais
porque não era um navio de viagem. Ronald podia gostar disso, mas não
colocaria sua esposa em uma posição em que ela ficasse desconfortável.
Ele saiu da sala antes que a mulher pudesse contestar alguma coisa.
Simpáticos, gentis.
Tudo bem que, desde o dia anterior, os dois andavam bem estranhos.
Não tinham sequer comentado sobre ela ter saído sem chapéu, a convidaram
para um passeio e passaram um dia sem reclamar de nada. Nem da sua
roupa, ou da comida, ou da forma como comandava os criados.
Não houve um único dia na sua vida em que os pais não tivessem
atormentado seu juízo, sem fazer alguma coisa para lembrar que ela estava
presa aos dois. Talvez fosse o fato de que agora estava casada, ou ao menos
era assim que pensavam, e enfim poderiam tratá-la simplesmente como uma
filha, e não como uma empregada.
Tinha fugido de casa assim que os pais começaram a falar que seria
bom ter um neto, que era a única coisa que uma mulher fazia direito.
Pensou em gritar e falar que os dois não tinham que se meter nisso,
que não era mais dever de nenhum dos dois dizer para ela como deveria agir
ou levar seu casamento, que era mais do que uma procriadora.
E a última coisa que precisava era dos pais no seu pé, por isso apenas
sorriu e fingiu que estava realmente dando ouvidos a todas as bobagens
deles.
Não tinha ido a muitos lugares, tudo o que costumava ver era através
da janela do seu quarto, então sabia que aquele seria seu lugar favorito no
mundo.
Capítulo 11
Ronald não era tolo.
2. O corpo dela junto ao seu, isso quase ganhava dos lábios dela,
a sensação de ficar perto, de enlaçar os braços nela eram
inebriantes.
Ele passou as mãos pelos cabelos, sentindo a água entrar por entre os
dedos dos seus pés e a brisa forte no rosto.
Não podia negar, sentia falta do mar, da força das marés, da incrível
certeza de que sabia o que fazer, qual caminho seguir, era assim que sentia
quando guiava o navio.
Quando não tinha certeza de nada, era bom saber alguma coisa, ter
algo a que se agarrar.
Veio para terra firme porque seus superiores pensavam que era disso
que ele precisava depois de passar por momentos difíceis: ficar em casa.
Mas fazia muito tempo que o oceano virara sua casa. Seu navio, seus
homens, eles eram sua bússola. A função como capitão ditava o curso da sua
vida, lhe mostrava seus deveres.
Ele suspirou.
Ela mesma perceberia que tinha alguma coisa errada, se já não tinha
notado.
— Acredite quando lhe digo que usei toda a minha honra para não o
fazer — declarou ele, olhando as ondas indo e voltando, batendo nas pernas
dos dois.
Também era triste, Clarissa não tinha que se sentir assim com as
pessoas que mais deveriam a amar, que deveriam garantir pelo bem-estar
dela.
Mas por quê? Por que arriscar quando sabem que não estão à altura?
Ele sabia que não conseguia esconder bem suas emoções, também
não gostava de compartilhá-las com tanta facilidade.
— Não sei até que ponto nossa farsa pode dar certo — começou ele.
— Dormir no sofá…
Quando ele terminou a frase, seus olhos estavam colados nos dela,
pois queria que a dama entendesse sua fraqueza.
Ronald a desejava, e não era pouco, sentia seu corpo arder de desejo
apenas com os sonhos que vinha tendo e, uma hora ou outra, poderia fazer
uma burrada.
— Vou me comportar.
Ele riu.
— Bem, agora…
— Minha mãe sempre diz que roupa serve apenas para cobrir o
corpo, não devemos ser vaidosas com algo tão tolo.
— Pensei que não desse ouvidos às coisas que sua mãe fala. —
Ronald a olhou de canto de olho.
Ela riu.
— Não está escrito na minha testa? — perguntou ele, mas não lhe
deu tempo de responder, e, mesmo que tivesse, assim que ele começou falar,
ela perdeu totalmente a capacidade de formular uma frase: — Toda a vez
que olho para senhorita, imagino novas formas de lhe arrancar a roupa.
Por Deus!
Por outro lado, tinha que ter pensado que aquele tipo de comentário
seria escandaloso demais.
— Desculpe — disse ele, levando a mão a nuca. — Não quis dizer
isso.
— Claro que penso, mas não precisava dizer em voz alta. — Ronald
praguejou por ter mais uma vez falado demais. Ela riu da reação dele. —
Preciso manter minha boca fechada perto da senhorita.
— Claro que não — disse ela, colocando a mão nas costas dele de
uma maneira casual. Ele não sabia dizer se aquilo o fazia ficar feliz ou o
contrário. Queria ser amigo de Clarissa, mas uma parte sua queria ser mais, a
desejava demais para considerá-la assim. — Quero que fale essas coisas para
mim.
Não gostava nem um pouco que Clarissa agisse como se ele fosse
apaixonando por ela como qualquer outro homem, gostava muito menos de
pensar em outro homem se interessado por ela.
Não por sua aparência, que era bastante agradável, mas porque tinha
alguma coisa que sempre o puxava na direção dela.
Seria impossível não notar Clarissa, mesmo que tentasse evitar isso.
Ele sorriu.
— A senhorita é terrível.
Ele não conseguia imaginar seus dias sem uma caminhada à beira-
mar, nada lhe fazia tão bem.
Mesmo com o frio daquele dia, se era a primeira vez que ela entrava
no mar, deveria fazer da maneira certa, sem medo.
Antes que ela pudesse falar mais alguma coisa, a água já tinha
molhado os dois e uma onda os carregava para baixo, e Ronald garantiu que
eles mergulhassem.
O comentário havia sido dirigido a Ronald, mas era certo que ele não
diria nada.
— Sua filha não quer filhos — declarou ele, olhando de Clarissa para
a mãe, que lançou um olhar fulminante na direção da filha.
Sentiu vontade de dizer que a mãe nunca tinha tido vontade de ser
mãe, na verdade, ela era usada como exemplo de sua maior decepção.
— O senhor é um marinheiro…
Era estranho pensar aquilo, já que seu casamento nem era real, mas
temia ficar igual ao pai, mais do que como a mãe. Não queria se tornar uma
cópia do pai, invisível.
Oscar não passava de uma sombra, servindo aos caprichos da esposa.
Com exceção dos sermões que dava na sua igreja, vivia aceitando que as
pessoas falassem por ele, como se não tivesse opinião própria.
Clarissa não notou o que fazia até se ver virando o corredor, sentindo
mais raiva do que já havia sentido na vida.
Era uma tola por pensar que seu pesadelo acabaria quando, na
realidade, estava apenas começando.
Ronald sabia que era um tolo, mas não tinha ideia do quanto.
Ele virou o corredor em busca de Clarissa, indo até o quarto dos dois.
Ela estava sentada perto da janela, seu rosto ainda com uma
expressão enfurecida, bem diferente do que Ronald costumava ver.
Mas, naquele momento, se ela não fosse tão pequena e não tivesse
bochechas tão redondinhas, sentiria até medo.
— Eu nunca quis ser pai, para ser sincero — Ronald puxou assunto,
tentando quebrar o gelo, mas tudo o que recebeu em troca foi um olhar
certeiro.
— Por que eles não podem ser pais normais? — Clarissa levou as
mãos à cabeça. — Quer saber, o senhor não vai entender.
Ele apoiou os cotovelos nos joelhos, sem olhar para ela, apenas
encarando o carpete.
— E não estou tentando dizer que ele era como o seu, calado,
indiferente a tudo que acontece com você. O senhor Wilson era horrendo,
violento e com uma inclinação para tortura.
— Eu sinto…
— É tão pouco.
Era uma escolha consciente manter certos detalhes ocultos, como seu
verdadeiro sobrenome, para evitar laços que poderiam se tornar complicados
demais no futuro.
— Me fale uma coisa sobre você, em troca, falo uma sobre mim —
sugeriu ele.
— Caso não tenha notado, não tenho histórias boas para contar.
— Estou curioso.
Ele sorriu.
— Ele era um homem bom, nada sentimental, é claro que isso não
entrava nas coisas que ele achava importante — começou ela, parando por
um segundo, pensando se deveria continuar ou não. — Meu tio foi a
primeira pessoa que me fez sentir segura.
— Seus pais…
— Bom, eles nunca foram pais de verdade, não da forma que importa
— disse ela, com um meio-sorriso, como se nunca tivesse esperado nada dos
dois. — Sabe, a coisa mais horrenda era que eu compartilhava meu quarto
com o estoque de carvão.
O antigo conde, seu pai, fazia as torturas por um motivo, não era algo
que justificasse a brutalidade ou a maldade, mas ele achava que, se colocasse
medo suficiente na esposa e filhos, nunca acabaria sozinho.
— E agora?
— Meu primo, o dono desta casa — Clarissa fez uma pausa —, ele
me pediu em casamento, acredito já ter lhe dito isso.
Ronald a encarou, nem surpreso ou feliz, muito menos achando graça
da situação.
— E a senhorita?
Por que ela estava sorrindo tanto enquanto falava do primo? Ronald
amava suas primas e nem por isso ficava de sorrisinho ao falar delas.
— E nem preciso para saber que ele não é bom para a senhorita.
Clarissa poderia se casar com quem quisesse, assim como ele faria
um dia.
Seu tio mais abastado era um comerciante que tivera sorte na vida! O
pai não passava de um vigário.
Ela não teria chances contra as matracas que a fariam sentir vergonha
de todas as coisas que fazia Ronald amá-la.
Já havia sido difícil para Anny, que era prima de um visconde, como
não seria para Clarissa?
Sabia muito bem como a alta sociedade via aqueles que não faziam
parte dela, Clarissa seria repelida.
Tinha vivido anos sem o peso do título em suas costas, mas agora ele
estava lá.
Que inferno.
Não conseguiu dormir, por isso tinha arrumado tarefas que nem
mesmo precisavam ser feitas para fingir que não se encontrava naquele
estado por Ronald.
Depois de reorganizar as coisas do tio uma dezena de vezes, decidiu
que queria tomar leite e estava se dirigindo para a cozinhar quando ouviu um
barulho no escritório.
— O senhor...
Ronald pensou que era uma bênção não ter que encarar diretamente
aqueles olhos bonitos.
— Isso é gratidão.
— Que bom, pois não há uma única coisa que não goste na senhorita.
Ela sorriu.
— Isso é...
O resto era mentira, quem era, qual a vida que tinha, mas ter Clarissa
em seus braços, enquanto riam de suas tragédias... isso era real.
— E por que seria? Eu sei que quero muito fazer isto — Ronald
mordeu o lábio em uma tentativa de ser paciente.
Queria beijar Clarissa, mas também a respeitava o suficiente para
mostrar que a escolha dela importava.
— Poderia funcionar.
Era verdade.
— Respeito, gratidão…
— Bem…
Ronald a beijou com ternura, tomando os lábios dela para si, como se
fosse a primeira e a última vez.
Ronald tinha medo do que diria se abrisse a boca, por isso apenas a
encarou enquanto sumia pelo corredor.
Antes, tinha convicção de que não se apaixonaria tão cedo, não que
tivesse algo contra o amor, gostava da ideia de formar uma família, apenas
não poderia acontecer antes de ele se sentir feliz com os próprios feitos, e,
naquele momento, não era a hora mais certa.
Sabia que ela era exatamente a pessoa que a família não desejava
para ele.
Quer dizer, a pessoa que Clarissa fingia ser era uma boa escolha:
obediente na medida certa, educada e, por muito pouco, não era muda, já
que, na maior parte do tempo, não expressava opinião.
Ele, por outro lado, odiava vê-la calada, acuada. Era essa Clarissa
que queria apagar. Queria que pudesse ser ela mesma, com os acertos, falhas
e tudo mais.
Para alguém que tinha lutado muito para se encontrar como ele, era
terrível vê-la tão reprimida diante da própria família, mesmo tendo tanta
consciência de quem era e do que queria na vida.
Também tinha medo de como vinha agindo, não era do feitio dele
não saber se portar.
— Já sei que o senhor não gosta de mim, não precisa ficar andando
por aí fazendo careta toda a vez que me vê — declarou Ronald, já
começando a subir as escadas.
Nada mais o prendia ali, poderia ir embora, sua presença agora não
renderia nada de bom, não tinha motivos para ficar, apenas para ir.
Porém, se não se sentia pronto para falar com Clarissa minutos antes,
naquele momento, menos ainda. Voltou para os degraus da entrada da casa.
Aguardaria a partida dos pais dela ali, onde poderia fingir que estava
feliz e quem sabe até se convencesse disso.
Capítulo 13
Clarissa respirava fundo enquanto via os pais descerem os degraus
até onde ela e Ronald estavam.
Tinha chegado ali fazia cinco minuto, e nenhum dos dois tinha dito
uma palavra, nem um cumprimento rápido, nada além de um silêncio
incômodo.
Ronald tinha feito mais por ela do que sua própria família, não se
esqueceria disso.
Jamais.
Ele ficaria gravado em sua memória como a pessoa que lhe deu a
chance de viver a vida que realmente merecia.
Queria ter alguém no mundo que se importasse com ela, e não com o
que ela poderia oferecer, gostaria que alguém lhe estendesse a mão, sem
desejar tirar algo dela.
Por Deus!
Antes, não sabia que queria viver um grande amor, não sabia o que
estava perdendo por ser tão solitária. Agora, depois de tudo o que houve
entre eles, viu como era bom poder conversar com ele enquanto encarava o
teto do quarto, viu que gostava do som da sua risada misturada com a dele.
Não queria ficar sozinha.
Ele assentiu lentamente, voltando o olhar para a frente sem falar uma
única palavra, e o silêncio reinou de novo entre os dois.
— Eu não entendo…
Mas, com certeza, se fosse dizer alguma coisa, era que não seria
amante de ninguém, poderia não se casar, mas também não se tornaria um
objeto para um homem.
Não era uma dama ou uma lady, mas tinha seu valor. Ronald, por
outro lado, mostrava que não via isso nela.
— E o senhor quer que eu diga que seria uma honra ser sua amante?
— indagou ela. — Que não poderia ter algo mais maravilhoso?
— O senhor é…
— Um cafajeste, essa é a palavra certa?!
— Gostaria de deixar claro que nunca fiz lista alguma — ele parou
por um segundo —, ao menos nunca escrevi uma.
Assim que estava prestes a responder, a porta da casa foi aberta, seus
pais estavam acompanhados de dois criados daquela casa, como se
realmente precisassem daquela pompa para ir embora.
A mente de Clarissa girava em uma velocidade tão alta que ela nem
sequer conseguia separar uma ideia da outra.
Família de Ronald.
Helton.
Lady.
Ele não respondeu, fitava a senhora Franklin com um olhar que seria
capaz de fazê-la queimar.
Ela encarou a mãe de uma maneira que nunca havia feito antes.
— De jeito nenhum.
Se virou, indo para dentro da casa, não ficaria mais um segundo ali
com aqueles salafrários.
Como ele explicara que havia se casado com uma moça que mal
tinha onde cair morta? Ou melhor, como diria que tudo não havia passado de
uma farsa, uma coisinha que os dois haviam decido fazer para ela se ver
livre da família?
Deveria imaginar que os pais não partiriam assim, antes da hora, sem
que estivesse acontecendo alguma coisa séria.
Não fez nada, não pulou em cima daquela mulher detestável, não
gritou para expulsá-la dali, não a xingou de todos os palavrões que tinha
aprendido a bordo, apenas falou um “até breve” e que estava ansioso para
que eles conhecessem sua família.
Por Deus!
Sua mãe deveria estar tão magoada com Ronald, tinham perdido
Anny havia três anos, aquilo era uma ferida recente demais, e agora o
casamento do seu último filho tinha ocorrido em segredo, como se ela não
fosse importante o suficiente para ele a convidar.
Era surpreendente não ter pensado nisso logo que aquela mulher
tinha mudado de comportamento.
Não apenas por ser enxerida, mas também por todo o mal que fazia à
filha, a maneira como subestimava Clarissa, por achar que ela era uma
propriedade sua e tirar proveito disso, sem considerar que filha seria afetada
nesse processo.
Ao menos, Clarissa tinha a enfrentado, não que isso fosse servir para
parar a mulher, ela ainda assim tentaria se aproveitar da família Helton.
Uma lástima notar que tudo o que ela tinha cabia em uma pequena
bolsa.
— Ainda não sei o que fazer, mas com certeza não posso chegar para
o meu irmão e falar que não sou casado de verdade.
— Eu sei.
Na verdade, não era o momento certo para dizer, com todas as letras,
que pretendia se casar com ela.
— Não havia outra opção, do contrário poderia ter feito coisas com
seus pais que não te deixariam feliz.
— O conde?
Ele assentiu.
— Sim — ele fez uma pausa —, mas talvez eu não tenha sido tão
sincero quanto a minha importância.
— Ronald…
— Ora, por favor, prefiro mudar de assunto, não repita sobre aquele
dia.
— Pode se acalmar?
— Não! — Clarissa quase berrou. — Tudo o que eu queria era ser
livre, livre para fazer o que quiser, até plantar batatas, queria ser livre para
ter um emprego decente, e, agora, agora eles vão se transformar na minha
sombra.
Ronald se abaixou para entrar no quarto, foi até ela e segurou sua
mão.
— Não sei, mas o fato de você mentir sobre eles não me deixa nem
um pouco confortável.
Ele recuou até a porta.
— Não acho uma boa ideia, se não me engano, foi sua mãe quem
contou sobre o meu recente casamento — começou ele, cansado dela o
colocar como um vilão. De fato, não tinha lhe dito quem era sua família ou a
posição social que ocupava, mas nunca tinha mentido sobre quem ele era.
Ronald suspirou.
— Bem, eu não ficarei aqui sendo acusado de coisas que obviamente
não são minha culpa — disse ele. — E aconselho que não gaste seu tempo
enchendo sua mala de viagem, já que, ao chegar em Londres, a senhorita terá
que fazer muitas compras.
Ele achou que ela atiraria alguma coisa bem pesada na sua cabeça.
— Tudo bem, quando o conde chegar, explique para ele por que está
sendo contrária às decisões do seu marido.
— Ora, foi a senhora quem me deu esse cargo, e agora não vou pedir
dispensa dele até que seja meu desejo.
— Apenas porque pensei que era um pobre coitado que não tinha
onde cair morto.
— Então, não se sente atraída por homens que têm dinheiro? — ele
provocou, um traço de desdém em sua voz, as sobrancelhas levantadas em
expectativa.
Levando em conta que a família dele não sabia de nada sobre os dois
até a mãe meter o nariz onde não devia, ele poderia muito bem ser taxado de
louco por ter se casado com uma menina do interior, que a pessoa mais rica
da família era um comerciante de joias, que por um milagre, um grande
milagre, tinha dado certo.
Havia escolhido seu pior vestido, ele tinha alguns buracos na bainha
e as mangas já estavam comidas.
Fazia três dias desde que os pais dela haviam ido embora, desde
então, Ronald não havia saído daquela casa, tudo o que o homem fazia era
ficar sentado em frente à janela.
— Está uma manhã adorável, não acha? — disse ele, que, com
aquele uniforme, aquelas medalhas no peito e aquele olhar arrogante, ficava
ainda mais atraente.
Não conhecia nada da vida dele entre a alta sociedade ou que tipo de
pessoa encontraria na família dele. Por outro lado, passou a vida servindo
pessoas de alta classe, sabia como era ser olhada dos pés à cabeça por essa
gente, não queria sentir vergonha de quem era, da sua origem.
— Terão de respeitar minha escolha.
Não fazia sentido uma pessoa como ele estar naquele lugar. Pessoas
ricas, ainda mais da Marinha, passavam com frequência por ali, era uma
cidade portuária importante, afinal, mas ninguém ficava por muito tempo.
— Por que, no final das contas, o senhor ainda está nessa cidade? —
perguntou ela, o encarando.
— Não sabia que viria todo mundo — disse ele, que parecia sincero,
mas não surpreso.
Era oficial.
Clarissa não tinha como se portar como uma pessoa daquela família.
E beleza parecia ser uma exigência para fazer parte daquela família.
Clarissa estava tão focada naqueles dois que não notou mais três
casais saindo das outras carruagens, e uma mulher mais velha, que tinha os
mesmos olhos de Ronald, acompanhada de com um homem alto de cabelos
louros e rosto que continha uma expressão séria, como se sempre estivesse
irritado com alguma coisa.
— Bem, você se casou com o homem que quase me matou, creio que
pode me perdoar… — Ronald olhou para o homem, sem demonstrar um
pingo de afeto.
Clarissa sorriu para o homem, que pegou a mão dela e a beijou com
delicadeza.
Mesmo assim, seu vestido mais apresentável não seria muito melhor
do que o trapo que estava usando.
Ela se voltou para Ronald, que era abraçado por uma mulher
pequenininha.
Mas, assim que ergueu o olhar, Clarissa sabia quem seria o grande
problema.
— Não respondeu uma única carta que te enviei nos últimos anos —
retrucou Ronald.
— Bem, se não o fiz, era porque não tinha nada a dizer. — O conde
então se virou para Clarissa, a frieza dele com toda certeza também era
dirigida a ela. — Uma grande surpresa que nenhuma das cartas falava sobre
uma noiva.
O homem assentiu.
— E como se conheceram?
— Meu irmão, alguém comeu a língua dela para que não a deixe
responder?
Clarissa podia sentir a tensão no ar. Os dois não iam se atracar com
socos, eram educados demais para isso, mas não podia negar que, se não
fosse por isso, já se encontrariam rolando pelo chão.
— Bem, com certeza esse foi o mais longo período de paz entre nós,
antes que começasse a jogar meus erros na minha cara.
— Talvez tenha sido por isso que não lhe informei sobre meu
casamento, não sou uma criança, caso decida me casar, posso fazê-lo sem o
anúncio de cada passo meu.
— Óbvio, como sempre faz isso sem se importar com quem vai
magoar no processo.
Ronald precisava partir dali o mais breve possível, e, como tinha uma
casa confortável em Londres, não havia motivos para não voltar à cidade e
aproveitar o conforto dela.
Uma vez aquilo já tinha funcionado com Ronald, mas ele havia
crescido, mesmo que o irmão não notasse que já era um homem feito. Não
era mais o irmão tolo que Tobias poderia dizer como deveria viver a vida
enquanto ele apenas assentia e seguia sem contestar nada, agora era
diferente, tinha feito suas escolhas e as manteria.
O conde tinha a mania de decidir por si mesmo o que era melhor para
Ronald, embora tivesse lhe provado que também sabia tomar decisões sem o
irmão.
— Por quê? Por que ela não é tão rica como deveria? Por que ela não
pertence a uma família tradicional, de prestígio?
Não sabia quem o irmão tinha se tornado, não havia ido ao enterro
nem trocado condolências, não havia feito nada.
— Nunca mais abra a sua boca para falar da minha esposa de novo!
— berrou ele. — Você não tem direito de tocar no nome dela, não estava lá,
não mandou uma carta, não se preocupou.
O que poderia ele falar para o irmão agora? Já era tarde demais.
— Foram anos sem notícias suas, dias em que mal sabíamos do seu
paradeiro, se estava vivo. As conversas chegavam até nossos ouvidos sobre
oficiais sendo mortos. Tantos que nem conseguiam se lembrar de noticiarem
as famílias — revelou o irmão. — Ela morreu preocupada com você, se
estava bem e orando para que voltasse para casa. Ela poderia ser sua família,
mas você nunca foi a dela.
Havia certas culpas que carregaria para o túmulo, e aquela dali seria
a maior delas.
— Não achei que teria sua bênção. E faz tempo que deixei de
precisar dela para tomar qualquer decisão na minha vida.
— Vim porque meu irmão tolo, que não pensa em nada, nem em
ninguém, está acabando com a vida dele.
— Ora, por favor, sejamos sinceros, você veio aqui porque pensa que
pode me controlar. Acha que me dobrarei às suas vontades.
— Então acha que ela poderá frequentar bailes, eventos sociais, ficar
perante o Rei sem te envergonhar?
Ronald sorriu, porque ela estava vestida assim por causa dele.
Clarissa não vinha de família rica e não fazia parte do círculo social
que envolvia os Heltons, mas era uma pessoa boa, alguém que merecia a
chance de se mostrar digna do respeito de todos ali.
— Faça como eu, não se importe com nada que venha dele —
declarou Ronald.
— Se realmente não se importa com o que ele diz, não estaria tão
irritado.
— Ele é um conde, e, por favor, todas as suas irmãs são casadas com
homens de títulos, portanto há motivos para ele não estar feliz te vendo
unido a uma moça simples do campo — retrucou ela, colocando as mãos no
quadril. — Não sei como é ter irmãos, mas também não ficaria feliz se um
deles se casasse escondido de mim.
— É a mim que ele está olhando de cima a baixo, com certeza não
estou do lado dele, mas não significa que não entenda seu posicionamento.
— Meu irmão pensa que pode escolher por todos nós, está furioso
por não me fazer o obedecer.
Sentia-se orgulho, mas ainda era um simples menino que achava que
precisava de algo que apenas uma imagem paterna poderia fornecer.
Era ridículo.
Ou em qualquer lugar.
Nem mesmo ia se opor se ela desejasse ir para o jardim.
Apenas a queria.
Nunca em sua vida havia desejado tanto uma pessoa quanto ela,
queria tocá-la, tirar dela cada peça de roupa e observar seu corpo sem todo
aquele tecido.
Era uma maldição que ela fosse filha daqueles salafrários. Era uma
maldição que o sobrenome dele valesse mais para a sociedade do que seus
sentimentos por Clarissa.
Para ser sincero, mais que isso até, Ronald tinha um grande motivo
para não estar com ela: talvez não fosse isso que Clarissa queria para a
própria vida.
Não era porque ele tinha vontade de jogar tudo para o alto que
Clarissa quisesse o mesmo. Sabia muito bem que, mesmo que ela o tivesse
beijado, mesmo que ele conseguisse seduzi-la, desejo não era o mesmo que
paixão.
Ele gostaria de deixar claro que nenhuma das mulheres que havia
levado para a cama fora enganada por mentiras ou promessas vazias. Antes
de conhecê-la, ele não costumava mentir como vinha fazendo nos demais
aspectos de sua vida.
— O senhor é um nobre.
Clarissa achava que sabia comer com talheres, tinha passado a vida
fazendo aquilo, não era tão difícil, mas ali, sentada à mesa com mulheres que
deveriam ser as pessoas mais delicadas e educadas que conhecia, pensava se
tinha aprendido a usá-los da mesma forma.
Aquilo era apenas a ponta do iceberg. Clarissa nem mesmo
imaginava como era a vida de Ronald fora dali. A vida dos dois era
diferente, impossível de elas coexistirem juntas.
Clarissa não tinha uma resposta para aquilo, nunca tinha saído
daquela região, nem mesmo imaginava como poderia ser o mundo lá fora.
Não que não tivesse imaginação para tanto, mas uma coisa era sonhar
que iria para Londres, ser governanta ou camareira, outra bem diferente era
ir para Paris.
— Seria muito bom, Ronald, se parasse de ser tão infantil. Caso não
tenha percebido, não sou mais sua irmãzinha.
Ronald deu de ombros.
Não queria ter escutado a conversa atrás da porta, sabia que isso não
era educado, mas o que ele falava sobre ela também não.
Já era difícil fingir um casamento para família dela que mal olhava
na direção dos dois, agora, com a dele, seria ainda pior, se estavam os
convidando para ir à Paris, o que mais poderiam fazer?
Clarissa mais uma vez se voltou para Ronald, que parecia bem ciente
do que o irmão estava falando.
— Vamos na minha carruagem, será mais confortável.
— Insisto para que fiquem na casa Helton, não há motivos para que
se instalem em outro lugar — disse a senhora Helton, entrando na conversa.
— Adoraria mostrar Londres para Clarissa. Já foi para lá, querida?
— Sei que não são tão terríveis assim — respondeu ela, o que fez
todos à mesa rirem, menos o conde, ele parecia nem saber o que era isso.
— Aguarde e verá.
Não sabia o que falar, não queria dizer nada que fosse entendido
como um sim, não pretendia ir a Londres, mas também não queria causar um
desconforto na mãe de Ronald, porque a senhora Helton vinha sendo
simpática com ela o dia todo.
— Ora, ora, não é que, por um milagre divino, existe alguém que
consiga calar a boca do meu adorável irmão! — declarou a senhora Stalin,
sem nem tirar os olhos do seu prato. — Uma verdadeira bênção.
Mas quem ele era para falar do casamento da irmã quando tinha
inventado uma vida toda a dois e um casamento no qual não convidara
ninguém como testemunha?
Ronald só assentiu.
Seu objeto de desejo estava ali perto, mas longe o bastante para que
de fato o tocasse.
— Com o quê?
Ele deveria mesmo estar fazendo isso, mas se surpreendeu de não ter
se dado conta do barulho até aquele momento.
— Sabe que não permitirei a troca — disse ele, fazendo uma pausa
—, mas, se oferecesse um pedacinho da cama, aceitaria feliz.
Ele riu.
Era melhor sofrer com dores no pescoço do que fazê-la migrar para
outras partes de seu corpo.
Além dos olhares da família sobre eles, também imaginou que logo
precisaria dormir no chão.
Por isso insistira para ficar em sua casa, porque era um lugar onde os
dois teriam mais privacidade e ele uma boa cama.
— Por Deus!
— Foi a senhorita quem concordou em ficar na casa da família —
advertiu ele.
— Minha família nunca aceitaria que eu fosse embora sem você! Viu
como aqueles homens idolatram suas esposas?
Ele balançou a cabeça. Ainda não acreditava que suas irmãs, todas
elas, tinham se casado com homens que não valiam um xelim, mas que
viraram, de repente, seres decentes.
— Ronald!
— Não esperava que elas fossem envolvidas nisso, assim como eu,
fomos pegos de surpresa.
Ronald demorou alguns segundos até perceber que Clarissa não sabia
nada sobre Anny, como ela era em aparência, como era adorável e amorosa,
além de prestativa, pois fazia a família Helton ter alegria em momentos em
que era quase impossível de isso acontecer.
Anny também não estaria ali para implicar com Ronald por ele enfim
ter se apaixonado, para perguntar como esse milagre aconteceu.
Era diferente quando se estava distante, poderia muito bem fingir que
ela continuava em Londres, mas, assim que chegasse lá, teria de enfrentar a
dura realidade.
Tobias tinha perdido Anny, todos ali tinham.
Ele viu que Clarissa não sabia o que dizer. Pelo visto, não esperava
por aquela resposta quando tocou no assunto.
Agradecia por ela saber isso através dele, e não de Tobias. Seu irmão
gostava de usar a morte de Anny para jogar coisas na cara dele, mas não
acreditava que o irmão gostasse de falar do assunto.
— Sinto muito — declarou ela. — Não imaginava, é por isso que ele
está agindo daquela forma?
Anny merecia o melhor da vida, e isso havia sido tirado dela cedo
demais.
E, por fim, dizer que se casaria com ela para livrá-la das garras de
seus pais.
— Vão falar ainda mais quando aparecer com uma mulher como eu
pelas ruas de Londres. Seria melhor que apenas inventasse uma história.
Ela suspirou.
— Mas o senhor serve ao Rei.
— Ele terá que vir pessoalmente para me dizer que precisarei anular
o casamento com a senhorita. E, como resposta, direi apenas que me recuso
— alegou Ronald, ciente de que o Rei deveria ter mais o que fazer do que se
preocupar com quem os seus súditos subiam ao altar.
— Ele pode apenas nos jogar, ou melhor, me jogar em uma cela por
mentir.
— Acho que ainda não criaram leis sobre isso, querida — arriscou
dizer.
— Ronald!
Capítulo 18
Clarissa se considerava uma mulher de pensamento forte, não
costumava voltar atrás e nunca demorava mais do que um dia para tomar
uma decisão.
Aprendeu muito cedo que não fazer nada já era uma escolha e que,
na maioria das vezes, essa era a pior saída, por isso, ainda não entendia
como sua bolsa velha acabara dentro da carruagem.
Uma sensação que ela conhecia bem, a única diferença era que as
pessoas nunca se esforçavam para enxergá-la, sempre pareciam gratas por
ela mesma nem querer ser vista, tornando tudo mais fácil.
Ela arregalou os olhos, mas se sentiu tonta assim que ele começou a
rir.
Falou que fazia parte da Marinha, apenas não falou que era capitão,
disse que fazia parte de uma família grande, apenas não falou que fazia parte
da nobreza.
— Para que…
Era uma das coisas que mais gostava em Ronald. Ele a fazia rir, se
arriscar, e acima de tudo gostava de conversar com ele. Ele agia com
naturalidade perto dela, como se os dois fossem mesmo um casal.
Clarissa ainda não sabia do que, mas, naquele dia que o conheceu,
sabia que Ronald fugia de alguma coisa, agora ela tentava descobrir o que o
fizera renunciar à vida de capitão para fingir ser o marido de uma moça
qualquer.
— Estou indo para o outro lado do país com o senhor, isso já é muita
bondade da minha parte, acredite.
— Como o senhor consegue falar algo assim sem nem sentir uma
pitada de vergonha?
Mas, se precisava beijá-lo para manter Ronald longe dela pelo resto
da viagem, faria esse esforço.
Irresistível.
Seria fácil se apaixonar por ele, achava até que era tarde para evitar
que isso acontecesse. Ainda assim, tentaria manter seus pés firmes no chão,
pois sabia que, se caísse de cabeça naquela fantasia, o sofrimento para ela
seria muito maior do que poderia ser para ele quando tudo desmoronasse.
Esperava que ele lhe dissesse muitas coisas, mas nunca alguma coisa
como aquela, tinha acabado de desferir uma lista de ofensas contra ele e o
homem respondia lhe dizendo que gostava dela? Sem dúvida, algo estava no
lugar errado na cabeça dele.
Clarissa o queria, queria ao menos tudo o que poderia ter, pelo tempo
que lhe fosse permitido.
Então, por que não aceitar aquilo que a vida havia colocado em uma
bandeja na sua frente, por que não permitir, ao menos por um tempo, que
pudesse se tornar o objeto de desejo de um homem como Ronald? O que
tinha a perder?
— Eu não…
— O senhor faz isso o tempo todo, talvez nem note, deve ser algo
que os homens aprendem a fazer tão cedo que parece natural, mas não quero
que o senhor fique dizendo coisas bonitas…
— Mas…
Ele assentiu.
— Vai ser apenas isso, não preciso de promessas, de nada — avisou
ela. — Bem, já que o senhor me quer, e convenhamos, o senhor parece um
deus grego. — Ela balançou a cabeça perante o olhar dele. — Ronald, me
leve a sério!
— Dá na mesma.
Dessa vez, ele não riu, só a olhou da cabeça aos pés, com uma
expressão que esquentou seu corpo.
Suas mãos ainda estavam nos ombros dele, ela não sabia o que fazer
com elas, mas queria mantê-las no corpo dele.
Ronald sorriu.
Ele a puxou pela nuca, fazendo-a suas bocas se chocarem outra vez.
— Clarissa…
O nome dela nunca parecera tão belo como naquele instante, ao sair
dos lábios dele em um tom rouco que não conseguia disfarçar a intensidade
de seu desejo.
Aquilo deveria ser o suficiente para recobrar o juízo dos dois, mas
apenas serviu para pôr mais lenha na fogueira que crescia entre os dois.
Ele colocou o mamilo dela na boca, e ela, que já não sabia o que
fazer com aquela sensação que crescia em seu ventre, mordeu o ombro dele,
contendo seu gemido.
— Oh, Deus! — Foi a única coisa que saiu dos lábios dela.
— Não foi a senhorita que disse que não podíamos falar? — Ronald
a encarava com um sorriso malicioso nos lábios, havia divertimento em seu
tom de voz.
— Ah…
Não sabia mais quanto tempo essa farsa duraria. Logo teria que se
contentar com as memórias, quando estivesse sozinha e Ronald fosse apenas
uma lembrança.
— Podemos ignorar?
— Acho que o senhor não quer que ninguém nos encontre nessa
situação.
Ela olhou para Ronald, que tinha tirado o paletó e o estendido para
ela.
— Eles não vão falar nada. Além disso, podemos dizer que você
estava com frio — explicou ele, tentando amenizar sua grosseria.
Achava que não poderia odiar ainda mais os pais dela, ledo engando,
porque agora tinha conseguido essa proeza.
— Claro, senhorita.
A Marinha lhe dera uma missão, mas não podia negar que a morte de
seu companheiro pôs em dúvida as suas escolhas.
Seu desejo era ser o oposto do seu pai, era tudo o que vinha tentando
fazer, e, naquele dia, percebeu que ele poderia não ser tão diferente assim do
finado conde. De forma consciente ou não, tinha mandado um homem para a
morte, e isso ainda lhe pesava na cabeça.
— Então por que optar por isto? É de uma boa família, tem fortuna.
Ela se sentou ao lado dele, levando a mão até seu rosto, o obrigando
a encará-la.
— Não estou dizendo que não deve ficar triste, sofra o luto, chore se
necessário — afirmou ela —, mas esse tipo de culpa, Ronald, não é algo que
deva carregar. Não merece, não pode controlar tudo.
— A família dele...
Ela assentiu.
— Obrigado.
— E...
— Talvez por isto.
Tinha visto pouca coisa na vida, e dizer que Londres era muito maior
que tudo aquilo era pouco, nunca tinha visto nada igual.
Clarissa tinha esquecido por um tempo que, para todos ali, eles eram
um casal, por isso era mais do que normal que os dois dormissem juntos,
mesmo que para ela naquele momento a ideia de ficar no mesmo quarto que
Ronald fosse impraticável.
Tinha passado semanas dividindo o quarto com ele, mas isso havia
sido antes de tê-lo tão perto.
Embora soubesse que a história deles teria um fim, era fácil acreditar
que aquela era sua verdadeira vida, que aquele era o seu marido.
— Ronald, você pode dormir onde desejar — disse ela por fim —, só
não me espere para deitar-se do seu lado.
— A senhorita é teimosa…
Ela estava prestes a reclamar, mas, antes que pudesse falar alguma
coisa, seus lábios foram capturados pelos dele em um beijo rápido, se
afastando antes de a carruagem ser aberta.
Tarde demais. Ela já estava bem assustada com tudo e aquela frase a
fez sentir mais medo, mas não havia tempo para perguntar nada e, antes que
se desse conta, estava de mãos dadas com ele, sendo puxada para fora da
condução.
E, assim que seus pés estavam no chão e ela pode se voltar para
frente, Clarissa avistou uma casa, mas não uma casa com a qual estava
acostumada.
Ronald era nobre e sabia agir como tal, a postura dele mostrava isso.
Desde o toque firme dele nas suas costas até a expressão séria em seu rosto.
Ele assentiu.
Ele fez uma pequena reverência, mais breve do que os outros criados,
antes de voltar a encará-los.
— Creio que seja tarde demais para lhe dar algum aviso — disse ele.
— Bem-vinda a Londres, senhora.
Querendo ou não, tinha medo do que isto significava, sabia que sua
família se aproveitava de todas as oportunidades que surgiam, e, mesmo que
tentasse fazer o possível para que as duas famílias permanecem distantes, os
pais não permitiriam algo assim.
— A questão é que todos se perguntam o que há de errado para
termos escondido a relação de vocês, questionam até mesmo se nossa família
apoia a união — comentou o conde, parando no corredor na frente de uma
porta. — E não desejo fofocas cercando nossa família, então vocês
comparecerão a uma festa, sorrirão e agirão como se, o tempo todo, nossa
família soubesse o que estava acontecendo.
Era imenso, com um espelho maior do que ela, uma cama enorme.
Tudo naquela casa era grande.
Ronald riu.
Sempre temeu se parecer com o pai, mas quem vinha criando uma
certa semelhança era o irmão.
— Que seja.
Capítulo 20
Ronald tinha passado o dia todo fora da mansão. As pessoas já
sabiam que ele havia retornado à cidade, resultando em uma lista de
compromissos inadiáveis, afinal, ainda era um capitão da Marinha.
Para isso, deveria cumprir sua última missão não apenas com o Rei,
mas com seus homens.
Claro que não partiria antes de garantir que soubesse o que de fato
ela significava para ele.
Sabia que o dia de Clarissa fora agitado. Morgan e sua mãe ficaram
responsáveis por garantir um novo guarda-roupa à Clarissa, então as três
provavelmente peregrinaram o dia todo, visitando uma longa lista de
modistas e sapateiros.
— Isto é um detalhe.
— Sim, mas ela faz um esforço colossal para que eu não me sinta
uma camponesa qualquer, e acho que ela faz isso por você.
Ele sabia que sim, e um pouco porque a irmã era muito prestativa,
não importava quem fosse, se fosse uma boa pessoa, ela devolveria a
gentileza.
Ele estendeu a caixa na direção dela, que não fez menção de pegar.
Ele riu.
— Nada higiênico.
— O que há de errado?
— Sua irmã….
— Não precisa usá-las se não quiser. — Mesmo que ele fosse gostar
bastante se ela usasse.
E agora ela estava com o que imaginava ser uma bela camisola
francesa, na cama que ele nunca havia dividido com outra mulher.
Não tinha como não olhar, simplesmente seus olhos foram para a
renda sobre os seios dela, uma renda tão fina que ele podia ver cada curva.
Dessa vez, ela puxou a tampa, revelando o xale que a modista lhe
garantiu ser da melhor qualidade, com lindas flores bordadas.
Ele assentiu.
— A senhorita falou que não tinha um, e aqui é a Inglaterra, faz frio
o tempo todo.
Ela sorriu para ele, passando a mão por cima do tecido.
Ela riu.
— É lindo. Obrigada.
— Não faço nem ideia do que ela quis dizer com isso.
— Acho que ela quis dizer que o senhor faz muito sucesso em
Londres.
— Eu…
— Eu não sirvo para isso, não sirvo para tudo o que eles querem de
mim — desabafou ela, visivelmente abatida. Ronald balançou a cabeça,
pedindo-lhe silêncio, compreendendo sua queixa.
Queria acreditar nisso, nessa ideia que vinha se agarrando havia dias,
para garantir que pudesse enfrentar o que estava por vim do lado dela.
E ali estava ela, podendo lhe dizer um sim e fazê-lo o homem mais
feliz da face da Terra.
E ele só conseguia rezar para que fosse um sim, porque não sabia o
que faria diante de outra resposta.
Capítulo 21
Clarissa o beijou.
Ela jogou aquela caixa que os separava longe e o beijou como nunca
tinha ousado fazer antes.
O homem que ela amava estava na sua frente lhe dizendo que esse
amor era recíproco, algo que nem nos sonhos mais delirantes esperou ouvir
da boca dele.
E ele a olhava com tanto amor, com tanto carinho, e ainda mais, com
tanto desejo, como se ele estivesse fazendo um esforço colossal para não
agarrá-la. Por Deus! Isso a fazia o querer de joelhos para ela, queria ser a
única mulher que ele tocaria pelo resto da vida.
Ronald não parava de sussurrar o nome dela, uma após a outra, cada
vez com mais desespero, mais urgência e… amor, aquilo que ela ouvia na
voz dele também era amor!
Ela tinha gostado, mas não diria, estava ansiosa demais para saber o
que ele faria a seguir. Então ela negou com um gesto da cabeça. E, em
menos de um segundo, Ronald se encontrava arrancando a camisola de seu
corpo, deixando-a nua, bem ali sobre a cama dele.
— Devo me preocupar em perder um vestido toda vez que o senhor
me beijar? — perguntou ela, sorrindo, tentando ignorar que se encontrava
nua na frente de um homem e que ele a encarava como se quisesse a devorar
por inteiro.
— Hãn?
Ela sorriu.
— Como o quê?
E, antes que ela pudesse pensar nas palavras dele, Ronald voltou à
sua tarefa anterior, fazendo seus quadris se contorcerem de encontro aos
lábios dele, sem conseguir ficar parada, com aquele homem a beijando.
E então, quando ela jurava que não poderia mais aguentar, o corpo
dela alcançou o limite, explodindo com inúmeras sensações juntas.
— Essa foi uma das coisas que sonhei em fazer com você — revelou
ele, sorrindo e beijando a testa dela com ternura.
Por Deus! Estava enganada, era algo que, com certeza, ela nunca
tinha visto antes.
Ele beijou os lábios dela com delicadeza, levando a mão até o meio
das pernas dela.
Ele jogou a cabeça para trás, respirando fundo, e ela colocou as mãos
nas costas dele, sabia que Ronald sentia medo de machucá-la, e ele estava
certo, não era a coisa mais confortável do mundo, mas ele estar dentro dela,
a sensação do corpo dos dois juntos, era maravilhosa.
No entanto, sua mãe fez questão de lhes informar que montar todo o
enxoval de uma moça era um trabalho que demandava tempo.
Não sabia qual momento da noite anterior havia sido mais perfeito,
mas estava convencido de que todos tinham sido deliciosos. Agora Ronald
não conseguia nem se imaginar longe dela.
Não sabia se Clarissa o amava da mesma forma que ele, com cada
pedacinho do seu ser, cada parte prestes a se dobrar a qualquer coisa que ela
tivesse a oferecer, mas teria tempo para a despertar ainda mais paixão nela, e
por enquanto bastava saber que ela gostava dele.
— Você está além da perfeição, essa palavra não chega nem aos pés
da beleza que você representa — disse ele, tomando as mãos dela nas dele.
Desde a noite anterior, sempre que tinha uma oportunidade, ele a mimava.
Ela ficou ainda mais vermelha com o comentário que ele havia feito.
— Ronald, pare com isso, permiti que viesse, mas não pode
atrapalhar as obrigações de sua esposa — disse sua mãe.
— Mamãe, entendo, mas tenho planos para nós e creio que a senhora
é a pessoa perfeita para cuidar de todos os outros detalhes — sugeriu ele,
dando um beijo no rosto da mãe.
— Ronald… — Pelo tom de voz, ela não estava nem um pouco certa
de o impedir de continuar, e ele, por outro lado, não tinha intenção de parar.
— Pode prosseguir.
Não era daquela forma que desejava fazer o pedido, mas o tempo
corria contra os dois. A única coisa que ele poderia fazer era lutar para que,
quando partisse, ela já tivesse seu nome, já que o coração era dela desde o
dia que cruzaram o caminho um do outro.
Ele sorriu, pensando que não poderia ser mais feliz do que naquele
momento.
— Graças a Deus, já que não saberia o que diria para o vigário que
nos aguarda na catedral neste instante, caso a resposta fosse outra.
Casamentos tinham que ser marcados e programados, mas, ao que
parecia, Ronald tinha certo valor para a Coroa, e, quando disse que partiria
apenas com uma licença especial de casamento em mãos, não imaginou que
seria tão fácil para que eles conseguissem isso.
— Partirei em breve, como sabe, mas não queria viajar antes de tê-la
como esposa perante a lei — disse ele.
Tinha uma vida nova, um marido, e, mesmo que aquele não fosse seu
sonho de vida, com certeza era muito melhor do que ela um dia pode
imaginar.
Sabia que não poderia contar com a sorte pelo resto da vida, sua mãe
só deveria estar ocupada demais para se lembrar dela, mas sabia que, quando
ela viesse, precisaria estar preparada.
Porém, agora não sentia mais medo, tinha certeza de que poderia
enfrentá-los.
Ronald havia feito questão que se mudassem para uma nova casa. Ela
pertencia a ele, ficava a duas ruas de distância da casa oficial dos Heltons, e
Clarissa teria privacidade e liberdade de ir e vir.
Clarissa não entendia por que aquela casa precisava de uma reforma.
Acreditava que era apenas mais uma desculpa dos ricos para gastar dinheiro,
ou uma desculpa de Ronald para a manter ocupada enquanto viajava, e de
fato estava funcionando.
Nunca imaginou que poderia ser feliz com coisas tão supérfluas.
Porém, depois da vida que tinha passado, aprendera a encontrar alegria nas
coisas simples.
— Por favor, o acompanhe até aqui — disse ela, feliz por ter alguém
para mostrar seu trabalho.
O conde parecia tão tenso que Clarissa chegou a pensar que algo
havia acontecido com Ronald.
Ela assentiu.
— Realmente.
— Como?!
— Correrei o risco.
Não brigaria por aquela casa, assim que Ronald chegasse, aquilo se
resolveria, voltaria para York e esperaria que o marido fosse buscá-la, sabia
que as coisas se acertariam logo que o marido retornasse.
Embora o conde parecesse prepotente e arrogante aos olhos de
Clarissa, gostava dele e não podia julgá-lo pelas suas atitudes. Conhecia seus
pais, ela mesma já acreditou nas mentiras que eles contavam, tinha sido a
principal vítima das maldades deles, então, como poderia esperar que Tobias
não fosse acreditar nelas?
— Insisto para que não saia daqui apenas com a roupa do corpo. —
Era a primeira vez, desde que tinha começado a acusar ela de ser
interesseira, que o irmão de Ronald agia como um ser humano decente.
Sentia falta de ouvir a voz dela, de como ela ocupava o lugar com
conversas.
Uma terrível lástima que Ronald necessitara passar mais tempo longe
de casa além do que havia planejado de início.
Agora a trancaria naquela casa, a deixaria ali até que toda a saudade
de Clarissa fosse trocada por memórias dos dois juntos.
Mal tinham se casado quando partiu, não havia tido lua de mel, que
havia sido adiada até ele voltar, e, com essa promessa, ele se viu abrindo a
porta de entrada antes mesmo do mordomo, que o recebeu com uma
expressão perdida.
— Senhor, ela partiu faz uma semana, não sei dizer para onde…
— Meu irmão?
— Sim.
Ronald respirou fundo, sentindo a pulsação acelerada no pescoço, e
desceu as escadas com muita rapidez.
— Ah, claro! Agora, sim, posso lhe dar uma resposta — disse ele ao
largar o papel que segurava e encarar o irmão. — Aquela impostora foi
mandada de volta para a casa dela.
— A casa dela é a minha casa, e posso te garantir que ela não está lá.
— A casa dela fica em York, juntos com os pais dela, já que ela não é
sua esposa — retrucou o conde, irritado. — Descobri que seu “casamento”
não passava de uma mentira criada por vocês para enganar todos nós.
— Cale-se.
Tobias, que naquela altura já não parecia tão certo de sua decisão,
cedeu:
— Ela não…
— Antes, pensava que ela era uma ameaça para nossa família, agora
sei que pertence a minha família, tem uma grande diferença.
Os pais tinham se tornado ainda mais maquiavélicos.
Logo que passaram pela porta da casa, Clarissa notou que havia algo
diferente.
Os pais sempre haviam sido terríveis com ela, e com todos que não
lhes ofereciam nada, a criada, por exemplo, estava mais arisca, como se algo
tivesse mudado, como se soubesse de alguma coisa.
Ao que parecia, a ideia deles foi fingir que acreditavam na farsa dela
para conseguir todo o dinheiro possível de Ronald. Provavelmente,
manteriam o segredo em troca de suborno, pelo tempo que vivessem, com
direito a ameaças e chantagens, por isso os dois não haviam a procurado
durante sua estada em Londres.
Assim que chegou na casa, foi arrastada pelo pai, que, para quem não
tinha a mínima vontade de levantar um braço sem ser a mando da esposa, se
sentia muito confortável batendo na filha que se recusou a passar a vida os
mantendo financeiramente, nos termos deles, é claro.
Mas o que parecia ser ridículo para ela, também era sua carta de
alforria.
Descobriu tarde demais que não poderia negar nada aos pais. Quando
percebeu, infelizmente, estava de mãos atadas e toda a vez que tentava se
soltar era coagida a não fazer isso.
A mulher usava frases tão maternais que até o diabo ficaria com
vergonha.
Já o pai amava repetir que a filha estava perdendo o juízo, que tudo
que estavam fazendo era para o bem dela. Portanto, se aquela história viesse
à tona, era o que ele diria para todos, e ninguém contestaria, afinal, um
homem de Deus como ele não mentiria sobre o estado de saúde da filha.
Uma vez por dia e sempre com alguma sobra. Sabia disso porque
tinha passado a vida comendo restos da mesa deles, porém, naquela
condição, era muito mais humilhante.
Sabia que os pais eram ruins e cruéis com a maior parte das pessoas,
mas nunca, nunca em sua vida, imaginou que poderiam tratá-la como um
animal.
Tinha que haver algo por trás de tudo o que eles vinham fazendo,
algum motivo oculto, não que eles não fossem capazes de ser maldosos de
graça, e sim porque eram espertos.
— Querida, pare de ser tão tola, apenas coma e agradeça que ainda
estamos te alimentando.
— Isso poderia ter sido evitado se não tivesse sido uma filha tão
ingrata.
— E não sei por que quer mudar a ordem das coisas nessa altura do
campeonato.
A porta foi fechada, e, depois de dois dias sem ver a mãe, começou a
se arrepender do que tinha feito.
Capítulo 24
A ideia de Ronald era adentrar naquela casa, tirar Clarissa de lá e
nunca mais olhar para cara daquelas duas criaturas abomináveis.
Dessa vez, faria a coisa direito para que não restasse dúvida de que o
imbróglio tivesse sido resolvido de uma vez por todas, para isso, garantiria
que eles entendessem o recado.
Durante todo o percurso até ali, não tinha trocado mais que meia
dúzia de palavras com Tobias. Embora se sentisse grato pela companhia do
irmão, estava ciente de que nada daquilo estaria acontecendo se não fosse
pela sua intromissão em algo que não lhe dizia respeito. Aquele problema
poderia ter sido evitado se o irmão cuidasse da vida dele, que era o que todos
deveriam fazer, no lugar de expulsar Clarissa da própria casa.
Uma criada atendeu a porta, uma mulher baixinha, que não deveria
ter mais do que 30 anos. Ela os olhou de cima a baixo antes de um ar de
surpresa aparecer em seu rosto.
Ele mesmo não desejava estar ali, preferia estar em casa admirando a
esposa, a beijando e começando sua lua de mel, em vez de passar tanto
tempo preso em uma carruagem com o irmão.
— Melhor seria me dizer quanto está disposto a pagar para evitar que
pessoas saibam que um homem como o senhor fingiu ser casado e
sequestrou nossa filha — disse a senhora Franklin com um sorriso vitorioso
no rosto, como se ele fosse a própria mina de ouro com a qual ela estivera
sonhando.
Edith sorriu também, ela era assim, agia como se tivesse alguma
vantagem mesmo quando não tinha.
— Aí, nesse caso, não saberiam onde encontrar Clarissa, triste, não
é? — disse ela, sorrindo.
— A única coisa que posso dizer é que ela amaria se ver livre de nós.
— Ela alisou a saia do vestido com muita calma. — Sabe como é, temos
uma filha ingrata!
— Levo menos de um dia para fazer vocês dois irem parar na cadeia
por sequestrarem minha mulher, e, acredite, as prisões da Inglaterra não têm
as melhores instalações.
Ele poderia encurtar aquela história, mas lutava firmemente para não
se tornar um deles.
Ronald passou pela mulher, que tentou detê-lo, uma decisão péssima,
pois ele nem se deu ao trabalho de olhar para traz ao ouvi-la gritar quando
caiu no chão. O irmão seguia por um corredor enquanto ele ia por outro,
revirando cada cômodo, cada canto, para garantir que Clarissa de fato não
estava presa ali.
A cada porta que ele empurrava, um pouco de sua esperança se ia,
conhecia pessoas como aquela mulher, sabia do que ela era capaz, ainda
mais do que poderia fazer para apenas provar que estava no controle.
Mas a diferença entre os dois era que Clarissa não era um jogo para
ele. Queria a esposa e, cada momento, sentia que faria qualquer coisa para
encontrá-la, pagaria o que precisasse, entraria no jogo daquela louca.
A família de Clarissa, como ela mesma havia dito, era a única coisa
que ela tinha. Por isso, não media esforços para agradá-los, para se parecer
com uma pessoa que não era, apenas para contento dos pais, como se
merecessem qualquer coisa que viesse dela, como se ela já não fosse boa
demais apenas por ocupar o mesmo espaço que eles.
Ele nem sequer poderia imaginar como estaria sendo para ela estar
nas mãos dos pais, aguardando semanas até que ele voltasse.
Por que raios ele não voltou para casa assim que percebeu que não
tivera uma resposta da sua carta, avisando da demora?
Clarissa poderia estar embaixo do nariz dele que ele não notaria,
mesmo já tendo se deparado com diversas situações parecidas em seu
serviço, ali Ronald era apenas um marido desesperado, que não sabia onde a
esposa estava, ou melhor, como estava.
— Tobias, garanta que os dois não deem um único passo para fora
desta sala e, por favor, não seja gentil — alertou ele, saindo e fechando a
porta atrás de si.
Ele a puxou para junto do corpo dele e a carregou com muito cuidado
para fora dali.
— Sim, meu amor — disse ele, beijando seu cabelo. — Está em casa
agora.
Ela riu, o lembrando de como ele amava aquele som doce, como
sentia falta quando não estava com ela.