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Esse livro é o quinto da série AMORES EM KENT, que tem outros três
livros publicados na Amazon: Um Duque para Chamar de Meu, Um
Conde para Curar meu Coração, A Sobrinha do Marquês e A Irmã do
Conde. Apesar de serem livros com histórias completas, trata-se de uma série
em que os personagens dos livros anteriores continuarão aparecendo no livro
5, mas com bem menos frequência do que nos anteriores. Afinal, mudamos
totalmente de cenário dessa vez!
Apesar de ter realizado pesquisas e ter adquirido um bom conhecimento
dos usos e costumes da era e do local escolhidos por mim (Estados Unidos na
virada do século), eu me dei algumas liberdades literárias para conseguir
desenvolver a história da forma como pensei. Assim, algumas datas foram
utilizadas de acordo com o meu interesse, sem que isso possa ter alterado
fatos históricos importantes, as propriedades foram inventadas para satisfazer
as necessidades da trama, e o comportamento dos protagonistas não
necessariamente segue os padrões mais rígidos daquela época.
Por que isso, Tatiana? Porque eu escrevi um romance em que padrões são
rompidos e diferenças são superadas. Talvez isso nunca fosse acontecer de
verdade, mas livros de ficção são para que possamos sonhar, não é mesmo?
Então vamos sonhar.
Mesmo sendo um romance de época, A Donzela e o Canalha é um livro
com cenas eróticas. Como meus demais romances, há cenas com conteúdo
sexualmente descritivo, mesmo que essas cenas tenham sido descritas
dentro de um vocabulário adequado para a época, dentro de um padrão de
comportamento sexual da época. Esse é um romance com conteúdo erótico e
cenas de sexo, adequado apenas para quem gosta desse tipo de livro.
Era isso que eu tinha para contar nesse momento. Espero que vocês se
divirtam durante a leitura.
A autora
Capítulo primeiro
N ENHUM HOMEM ERA CONFIÁVEL , DISSE A AMA , MAS L UCILLE PENSOU QUE
ela falava apenas em relação à atitude deles com as mulheres. Para si mesma,
estava perfeitamente vestida como um deles, então não corria riscos. Como
fora tola em acreditar nisso. Depois de sondar alguns viajantes e conseguir
um grupo disposto a acolhê-la, descobriu que eles nunca duvidaram que ela
os estivesse tentando enganar.
Então, era como as coisas seriam. Ela provavelmente seria violada e
abandonada à própria sorte, ou se tornaria a meretriz daquele bando. Deixaria
de se casar com um velho interessado apenas em seu dinheiro para se
prostituir forçada por um grupo de brutamontes porque era burra. Não, claro
que não. Lucille não cortara cabelo, se apropriara de roupas do estábulo e
fugira de uma casa que mais parecia uma fortaleza para sucumbir nas mãos
daqueles homens horrorosos. Ela lutaria – e talvez acabasse morta, mas
lutaria. Porém, antes de começar a distribuir pontapés e tapas para tentar se
soltar, ele apareceu.
— Se quiser a moça vai ter que esperar até que eu acabe com ela.
O barbudo que cheirava a urina disse, quase a derrubando com seu mau
hálito. Aqueles homens não cuidavam muito da higiene, o cheiro deles
indicava que deveriam perambular pela estrada com frequência e sempre em
instalações inadequadas. Não importava, apenas que ela estava prestes a ser
salva por um patife – se ele não fosse apenas um contra três.
— Lamento, mas não posso esperar. Tenho compromissos longe daqui e
essa conversa já me fez perder bastante do meu tempo. Soltem-na e fingirei
que nada fizeram.
Os homens começaram a rir e não a deixaram. Lucille entendeu que
precisava ajudar seu pretenso salvador e começou a se debater, querendo se
livrar das garras em seus braços. Os dedos imundos que a mantinham cativa
já haviam encardido parte da manga da camisa nem tão branca assim que
usava.
— Fique quieta, docinho. — O barbudo desagradável falou bem perto de
sua orelha, fazendo com que sentisse náuseas. — Depois que acabarmos com
esse imbecil, poderá se mexer à vontade.
Um dos homens avançou sobre Nathaniel, que esquivou e o socou nas
costas. Outro pulou sobre ele, fazendo com que rolassem no chão, mas logo
as posições se inverteram e ela se assustou com o brilho prateado do metal
que reluziu sob a luz do dia. Com a elegância de um lorde e a frieza de uma
pedra de gelo, Nathaniel McFadden ergueu-se, batendo a grama de suas
roupas, enquanto o homem ficou caído, segurando uma das pernas e gritando.
O primeiro homem voltou e parou ao ver o amigo esfaqueado. Nathaniel
limpou o metal na calça preta e girou o punhal na mão, mostrando-o para os
dois homens que permaneciam de pé.
— Vocês podem descobrir se sou tão bom quanto pareço ou ajudar seu
amigo. Ele teve uma artéria seccionada e sangrará até a morte se não for
socorrido imediatamente.
Os patifes se olharam rapidamente e Lucille foi solta pelo barbudo, que
correu para cima de Nathaniel. Ela teve tempo de vê-lo revirar os olhos em
desânimo antes de atacar e golpear o homem nas costas, derrubando-o.
Depois, ajoelhou-se sobre ele, puxou um dos braços para as costas, torcendo
as articulações e o fazendo gritar. Ela ficou dividida entre a necessidade de
fugir para preservar sua vida e o desejo de ver Nathaniel McFadden, que
tinha a metade do tamanho daqueles senhores, acabar com todos eles.
Escolheu a segunda opção.
— Eu avisei para irem embora. — Ele disse, forçando ainda mais o braço
do barbudo e usando a faca para ameaçar o outro homem. — Preciso
desmembrá-lo para que entendam o recado?
O homem que permanecia de pé agarrou o esfaqueado pelos braços e
começou a arrastá-lo para a direção de um trio de cavalos, amarrados na
lateral da estalagem. Depois de uma conversa muda, Nathaniel ergueu-se e
soltou o barbudo, que correu na direção dos amigos. Eles proferiam ameaças
em alta voz, mas ninguém por perto parecia disposto a intervir, fosse para os
ajudar ou não. De toda forma, Lucille não conseguia prestar atenção em mais
nada que não o seu salvador.
Considerando a fama de Nathaniel McFadden, ela não sabia se corria
mais ou menos risco ao lado dele. Porém, já decidira entregar sua virtude a
ele uma vez, o que sugeria que não o repudiava. Ao menos ele tinha um
cheiro masculino agradável, cabelos claros que pareciam precisar ser
penteados, uma barba desleixada por fazer que lhe conferia um ar viril e... e
ela estava pensando demais nele. Aquele homem a ajudara, mas não era um
amigo.
Ainda assim, ela quase desmontou em seus braços quando ele se
aproximou, guardando a faca na em um bolso em seu colete e segurando-a
com firmeza pelos ombros.
— Eles machucaram você?
Os olhos sombrios indicavam que, se ela dissesse que sim, ele voltaria a
perseguir os seus agressores e os faria pagar por cada arranhão.
— Não, eles foram apenas inconvenientes. Eu...
— Esse disfarce é péssimo. — Nate abaixou e pegou a boina que ela
usava, que caíra durante a disputa. — Você não se parece um homem, não
fala como um nem se porta como um. Será presa fácil nessa estrada. Volte
para casa, Srta. Smith.
— Não, senhor. — Ela baixou os olhos porque encará-lo era mais difícil
do que ela esperava. — Cheguei até aqui, não voltarei atrás.
— Se queria desonra, depois de fugir de casa creio que esteja desonrada o
suficiente. Qualquer um acreditará em você.
— Minha amiga me convenceu que a desonra pode não ser suficiente.
Aparentemente, há homens tão necessitados de dinheiro que poderiam aceitar
uma mulher arruinada se o dote for suficiente. E o meu dote não é suficiente,
é obsceno.
Nathaniel riu e passou as mãos pelos cabelos desgrenhados. Era a
segunda vez que ela se pegava achando-o bonito naquele minuto e aquilo só
servia para explicar o quanto ela era realmente tola.
— Imagino que me arrependerei, mas, venha comigo, então.
Lucille piscou algumas vezes, achando difícil de entender a mudança
repentina de opinião.
— O senhor está me convidando para fugir com o senhor?
— Não, de onde tirou isso? Primeiro, não estou fugindo, estou em busca
de respostas. Segundo, não parece certo que, depois do trabalho de me livrar
daqueles animais, eu te deixe para ser atacada por outro bando.
Ele fechou novamente o casaco e seguiu para sua carroça. Não havia mais
sinais dos homens que tentaram raptá-la e nenhum movimento na estalagem
indicou que houvessem incomodado alguém. Talvez brigas e pessoas sendo
esfaqueadas fosse comum, naquele lugar. Nathaniel pulou na carroça e
indicou que ela deveria ocupar o espaço ao lado dele, mas não a ajudou a
subir. Claro, ela deveria agir como um rapaz, se quisesse, mesmo que de
longe, fingir ser um.
Os cavalos voltaram a trotar e logo eles pegaram a estrada novamente. Os
minutos de silêncio começaram a corroê-la. Lucille era falante, gostava de
conversar e costumava ter sempre pessoas dispostas a ouvi-la. Ela era rica,
filha de um milionário, a maioria das pessoas simplesmente fazia o que ela
queria ou o que achassem necessário para a agradar. Quando jovem, ela
adorava a bajulação, até descobrir que as pessoas não se importavam
realmente com ela – mas com a riqueza de sua família. E que ninguém a
desejava por ser quem era, mas por ser filha de Walter Smith.
Ainda assim, ela tolerava o excesso de atenção e nunca ficava sozinha.
Naquele momento, apesar do homem ao seu lado, ela se sentia invisível. Ele
mantinha o semblante sério e concentrado, o maxilar contraído e os olhos
fixos na estrada – e parecia ignorar completamente a sua presença.
— É verdade que aquele homem sangraria até morrer?
— Provavelmente, não, mas esperava que fossem estúpidos o suficiente
para acreditar em mim.
— O senhor tem uma pistola, por que preferiu usar um punhal?
— Sou melhor com facas. Prefiro uma luta corporal, se a senhorita me
entende.
Ela esfregou as mãos, intrigada por conseguir fazê-lo falar. Nathaniel não
olhava para ela, apenas para frente, sem perder o foco de seu caminho
nenhum segundo.
— O que o senhor está procurando? Que respostas pretende encontrar?
— Nada com o que possa me ajudar.
— Mesmo que não possa ajudar, gostaria de saber.
— Não precisamos manter uma conversa casual, senhorita. — Ele virou-
se rapidamente para ela, com olhos azuis cintilantes pelo sol. — Se terminou
o interrogatório, prefiro o silêncio. Pretendo que fique na primeira cidade em
que precisar parar.
— Gosto de conversar, mas tudo bem. Eu estou agradecida por ter me
ajudado com aqueles homens. Eles certamente não seriam gentis comigo.
— Não, não seriam. Eles provavelmente a machucariam e a largariam
jogada na beira da estrada, ou a tornariam prostituta deles – e não sei qual
destino seria pior.
As imagens do que poderia lhe ter acontecido a ocuparam por alguns
minutos da viagem. Lucille deixou de prever muitas coisas quando decidiu
fugir naquele rompante. Tudo que pensava era em sair de casa e deixar aquele
casamento forçado para trás. Depois de vinte e sete anos enrolando seus pais
com as mais absurdas desculpas para não se casar, ela precisou tomar
medidas drásticas – e isso significou sair com algum dinheiro, poucas
provisões e nenhuma dignidade.
Bem, isso não a abalaria. Ela encontraria um jeito de ir para a Inglaterra e
se refugiaria no balneário de mulheres solteiras do qual ouvira falar. Aquele
lugar era quase uma lenda em Nova Iorque, e algumas mães americanas já
haviam levado suas filhas para esconder suas desonras ou suas solteirices. Ela
queria apenas viver em paz, já que seus sonhos de faculdade estavam
frustrados – o pai jamais a permitiria estudar e ela não teria dinheiro para
fazê-lo sozinha.
O silêncio a deixou entediada e, mesmo depois de dormir em excesso,
Lucille se arrastou para a parte de trás da carroça e se aninhou sobre o
cobertor, cochilando novamente. Mesmo depois do susto, sentia-se
estranhamente segura, viajando ao lado de um notório canalha. Por algum
motivo que desconhecia, viajar ao lado de Nathaniel McFadden lhe conferia
proteção. Acordou novamente quando a carroça parou de sacolejar.
— Por que paramos? — Perguntou ao seu companheiro de viagem, que
estava soltando os cavalos.
— Não há luz o suficiente para prosseguirmos e aqui parece um bom
lugar para passarmos a noite.
Lucille arregalou os olhos, assustada com a confusão em seus
pensamentos. Olhou para cima e notou o céu rosado. Já era muito tarde, pois
naquela época do ano demorava a anoitecer. Ela dormira mais do que deveria,
mais do que seria tolerável, e agora era informada de que passariam a noite
ao relento.
— Não ficaremos em um hotel?
— Não há hotéis pelas próximas milhas e estamos tentando não chamar a
atenção, não é isso?
— Provavelmente sim, é isso.
Ela ajeitou a camisa, passando as mãos pelo tecido, e percebeu que seus
seios estavam doloridos. A faixa que usara para escondê-los, um truque
aprendido nos estudos com a tutora, estava muito apertada. Desceu da carroça
com um pouco mais de habilidade – mas nenhuma graciosidade, e olhou ao
redor. Estavam em uma área meio descampada, circundada de árvores
espaçadas e perto de um curso de água – se seus ouvidos não estivessem
também confusos. Logo, estaria muito escuro e eles estariam à mercê da
natureza, porém isso não parecia incomodar o homem que levava os cavalos
para descansar em uma área fresca.
Talvez tudo aquilo valesse a pena, pensou. Afinal, estava declarando a
sua liberdade e, livre, poderia tomar decisões e ser respeitada por quem ela
era, não em razão da família à qual pertencia. Livre, não teria nunca que se
casar com marqueses falidos e poderia começar a apreciar coisas que não
estava autorizada antes – como o cavalheiro que a acompanhava. Ele não era
um cavalheiro, mas era um homem magnífico.
— Vou armar uma tenda.
Ele disse e começou a se despir. Tirou o casaco, que colocou por sobre a
carroça, e depois o colete. Ela lembrou que, ali, guardava uma faca, e que
havia uma pistola na cintura de suas calças. Em seguida, dobrou as mangas
da camisa. Sem gravata, havia dois botões abertos que revelavam os pelos
dourados que cobriam o peito dele. Lucille sentiu a boca secar.
Sem saber se deveria o ajudar ou observar, ela escolheu a primeira opção.
— Diga o que posso fazer.
— Farei um buraco. Você manterá essa estaca firme enquanto eu a
enterrarei.
Sem mover uma linha em sua expressão, ele pegou uma pá na carroça e
começou a cavar. Toda a ação era uma exibição de masculinidade – músculos
e movimentos corporais somados a pele exposta e suor. Lucille não
conseguiu evitar arregalar os olhos assombrada pelo que sentiu – ardência na
garganta, as mãos frias e um leve tremor nos joelhos. Talvez ela soubesse o
que tudo aquilo significava, apenas repudiava que seu corpo fosse tão volúvel
e tolo.
Depois de quatro buracos cavados e enormes estacas de madeiras
fincadas, uma lona grossa foi estendida e amarrada, criando um pequeno
abrigo – suficiente para uma pessoa. Eles eram dois e ela não pretendia
perguntar como aquilo funcionaria. Provavelmente, dormiria ao relento.
— Estou ouvindo água por aqui, gostaria de... de me lavar.
Nathaniel limpou o suor de sua testa e olhou para o céu.
— Se for rápida. Logo escurecerá e eu definitivamente preciso de um
banho.
— Por favor, vá primeiro. — Ela enrubesceu apenas por imaginá-lo
tomando banho. — Creio que o senhor esteja mais...
— Suado e encardido, definitivamente.
Ele sorriu, e era a primeira vez que o via sorrir realmente. Até então ele se
mostrara debochado, entediado, aborrecido, irritado, furioso, mas nunca
alegre. Com um aceno de cabeça, Nathaniel afastou-se na direção leste e
desapareceu do seu campo de visão. Lucille encostou na carroça, sentindo os
joelhos finalmente cederem à tensão do dia.
Fugir de casa, enfiar-se na carroça do homem que a rejeitara, quase ser
raptada e violentada por homens de cheiro horrível. Aquelas foram as
aventuras que ela não esperava nunca realizar. Toda a sua vida fora
construída sobre a ideia de estudar, ajudar pessoas necessitadas, desenvolver
um ofício. Poderia aceitar casar-se com um homem que amasse. Ela queria
poder trabalhar e prover seu próprio sustento, não se tornar um bibelô de
exibição para algum nobre enfadonho. E, depois de tudo aquilo, seu coração
martelava pelo simples fato de compartilhar momentos muito estranhos com
Nathaniel McFadden.
Depois de retomar o controle de suas pernas, Lucille embrenhou-se por
entre os arbustos onde ele desaparecera. O céu escurecia a cada instante e,
mesmo que não tivesse medo de escuro, precisava se lavar. Sentia o odor
fétido dos homens que a agarraram impregnado em seus cabelos e estava
nauseada desde que fora liberta. Quando o barulho de água ficou mais forte,
ela reduziu o passo até parar completamente, ante a visão do homem seminu
que, ainda molhado, sacudia os cabelos para secá-los.
Pelo amor de Deus, se aquele era o diabo, o inferno deveria ser um lugar
muito interessante. Nathaniel estava sem camisa, com a calça desabotoada, os
pés descalços e gotículas de água escorrendo por seu peito esculpido. Todas
as histórias da ama estavam incorretas – ele não era Hades, era Adônis.
— Não precisa me espionar, senhorita. Se quiser me ver nu, basta pedir.
Ela corou imediatamente, mas não o deixaria falar daquela forma.
— Que eu me lembre, já pedi, mas o senhor se recusou.
Nathaniel pegou uma toalha e colocou nos ombros, segurando a camisa
muito branca em uma das mãos. Andou até ela com um sorriso cínico nos
lábios e parou próximo o suficiente para ela sentir cheiro de sabão.
— Estávamos em uma condição que me levava a não querer nenhuma
confusão com Walter Smith. Agora, parece que não faz mais diferença – a
senhorita já está arruinada, independente do que eu faça. — Dizendo aquilo,
Nathaniel chegou muito perto dela, levando o nariz até seu pescoço. Lucille
sentiu que seu coração fosse pular pela boca, certa de que a beijaria. Mas ele
se afastou, ainda sorrindo. — A senhorita está com o fedor daqueles
desgraçados. Trouxe alguma roupa para trocar?
Ela moveu a cabeça indicando que não e ele se afastou completamente,
indo na direção da carroça. Ela quase desabou novamente no chão. Levou
alguns segundos para se recompor, então olhou para o pequeno riacho que
despontava à sua frente. A água devia estar gelada àquela hora, sem sol, mas
precisava banhar-se. Livrou-se das roupas, retirou a faixa que escondia os
seios e entrou de uma vez no riacho, sentindo os ossos gelarem
instantaneamente. Moveu-se um pouco, deu alguns pulinhos e pegou o sabão
que Nathaniel deixara na margem – provavelmente, esperando que ela fosse
usá-lo. Mesmo que nada nele indicasse cavalheirismo, Lucille queria
acreditar que ele tivesse alguma coisa que pudesse ser salva.
Quando se preparava para sair da tortura gelada que era aquele banho,
Nathaniel surgiu em seu campo de visão. Já completamente vestido, com
colete e tudo, tinha os cabelos penteados e segurava uma camisa. Lucille
enfiou-se na água escura até o pescoço, esperando que seu corpo ficasse
devidamente protegido.
— Vou deixar aqui, a senhorita pode vesti-la. Tenho muitas camisas, a
sua pode ser jogada fora.
— Fico grata, senhor. — Ela disse, aceitando a oferta por falta de opção
melhor. — Assim que pararmos em uma cidade, posso comprar roupas e
compensá-lo por isso.
— Como eu disse, tenho camisas demais. E, quando pararmos em uma
cidade, a senhorita ficará nela.
Nathaniel afastou-se novamente e a deixou sozinha para vestir-se. Depois
de ajeitar a calça masculina, ainda um pouco grande em sua cintura, ela
segurou a faixa na mão e suspirou. Não iria ficar confinada naquilo
novamente, precisava de um descanso. Estava segura das vistas alheias
enquanto dormisse, então apenas vestiu a camisa e a abotoou de forma a
resguardar a intimidade de suas partes femininas.
Ele estava tão louco quanto a mulher maluca que cruzara seu caminho com
ideias irracionais de defloramento e fuga, mas, quando a viu sendo agredida
por aqueles animais, não conseguiu ignorar. Nathaniel já se tornara
especialista em desprezar o sofrimento das pessoas e não se importar com
nada que não fosse lhe trazer ganhos e satisfação pessoal. O que acontecia de
ruim com os outros não era problema seu, não o afetava – então, por que
diabos resgatara aquela maldita mulher que só servia para atrasá-lo em sua
missão?
Não tinha nada a ver com ela ser bonita, porque ela não era. Ao menos,
nada como as mulheres com as quais Nathaniel estava acostumado. Aquela
ali tinha cabelos sempre desgrenhados, parecendo um ninho de pássaros mal
construído, quadris largos demais, e seios menores do que sua preferência.
Inferno, ele não deveria pensar novamente nos seios dela, mas foi impossível
evitar quando Lucille retornou de seu banho com uma camisa branca, um
pouco úmida, sem o artifício que estivera usando para escondê-los.
— Obrigada pela camisa. Ficou um pouco maior do que a outra, mas é
bem mais cheirosa.
— Pode ficar com ela. Está com fome?
Ele estava faminto, mas totalmente distraído. Pegou a cesta com comida e
colocou pães e frutas sobre uma toalha, oferecendo a ela uma das facas que
carregava consigo. Lucille atacou novamente os alimentos e acabou fazendo
com que ele precisasse comer, ou não sobraria nada.
— Desculpe. — Ela limpou o canto da boca com as costas da mão. —
Não estou acostumada a ficar sem comer, fazemos refeições regulares e com
horários muito rígidos na casa Smith.
— Tenho certeza que sim. A senhorita não pensa que se arrependerá de
fugir e viver sem aquele luxo e aquela fartura? Porque, mesmo que tenha
trazido dinheiro, em algum momento ele acabará. O que pretende fazer?
Lucille ajeitou-se, sentando-se sobre as pernas, e afofou os cabelos curtos
com as mãos.
— Pretendo trabalhar, senhor.
— A senhorita já trabalhou alguma vez na vida? — Ela respondeu que
não à pergunta, e Nathaniel deu uma risada cínica. — Talvez a prostituição
não seja mesmo uma ideia ruim.
— O senhor não precisa me ofender. Eu posso nunca ter trabalhado, mas
estudei em boas escolas e sou muito capaz. Com certeza aprenderei qualquer
ofício que precisar e conseguirei me sustentar até juntar dinheiro para fugir
para a Inglaterra.
— Não pretendia ofendê-la, mas sou realista e não vivo em um mundo de
contos de fadas, como a senhorita viveu até agora.
— Realista como o terceiro filho de um conde? Explique-me, senhor,
como pode um nobre ser tão realista?
Lucille o encarava com deboche e Nathaniel entendia bem aquela
expressão – costumava usá-la com frequência. Geralmente, as pessoas
achavam que ele, por ser nobre, vivia em uma redoma dourada. Era verdade,
por muito tempo a sua vida fora despreocupada – o dinheiro aparecia à sua
frente, mesmo que ele não o merecesse. Mas a sua ida para os Estados
Unidos o mudou completamente. Quase completamente.
— Não sou o terceiro filho de um conde, sou um dos diretores de um
antro de jogatina. Algumas situações nos levam ao limite, Srta. Smith, e,
quando cruzamos esse limite, perdemos todas as nossas referências.
Ela permaneceu olhando para ele com uma expressão de quem não sabia
se o entendia. Nathaniel esperava que ela permanecesse em silêncio, mesmo
que suas dúvidas persistissem. Não estava interessado em conversar, menos
ainda com ela, porque não queria admitir que Lucille Smith o afetava de
alguma forma. Ele mal a conhecia e tudo que sabia era que se tratava de uma
mulher rica, nascida nas Américas, desgostosa com um casamento por
conveniência. Mas ele nunca vira uma que fugiu de casa e abandonou a vida
que tinha apenas para se livrar desse mesmo casamento. Aquilo fez com que
ela se tornasse interessante – determinada, teimosa e audaciosa.
Mesmo com o silêncio, pelo qual agradecia, o fim da luz do dia fez com
que ele precisasse acender uma fogueira. Recolheu madeira ao redor, montou
uma contenção de pedras e usou sua pederneira para fazer fogo. Lucille
permaneceu ali, fitando-o, observando-o, olhando para a barraca, para a
fogueira e para ele próprio. Nathaniel estava acostumado a ser escrutinado
por mulheres, mas todas elas o faziam porque desejavam o levar para a cama
– e ele não fazia ideia do que pretendia Lucille.
— Há animais selvagens por aqui? — Ela perguntou, por fim.
— Creio que sim, mas eles não se aproximarão por causa do fogo.
— Entendo. E poderei usar algum cobertor para dormir? Ficarei enrolada
nele, perto da fogueira.
Ele olhou para a tenda – era muito pequena e ela sabia. Não pensava em
convidadas quando separou o que precisava para viajar. Olhou então para a
carroça, cuja extensão era satisfatória para caber uma pessoa deitada e
acomodada. Deveria mandar que ela dormisse em qualquer lugar que não o
incomodasse, mas era provável que aquela mulher o estivesse afetando mais
do que ele pretendia admitir.
— Durma na barraca. Ficarei na carroça.
— Não... quero dizer, o senhor não precisa fazer isso. Talvez eu possa
caber na barraca com o senhor.
Nathaniel deu uma risada. Ela era bastante tola se considerava que aquela
era uma opção segura.
— Srta. Smith, se dormirmos nós dois ali dentro, duas coisas acontecerão:
a senhorita conseguirá a ruína que deseja e não chegaremos a dormir,
efetivamente. Portanto, como estou exausto e preciso viajar um dia inteiro,
amanhã, creio que nosso melhor arranjo seja esse – fique sob a proteção da
tenda, eu não terei problemas em dormir com os rapazes.
— Rapazes?
— Zeus e Hades, os cavalos.
Ela arregalou os olhos e fitou os cavalos escuros, que pareciam ainda
mais pretos à pouca luz. Sem dizer mais nada e agradecendo com uma
mesura, enfiou-se dentro da tenda e o deixou finalmente sozinho para poder
refletir sobre aquele grande erro que estava cometendo. Claro que era um erro
– tanto envolver-se na fuga daquela desvairada quanto não se aproveitar dela.
Acomodou-se sobre a carroça e Zeus o cutucou com a cabeça, pedindo
que lhe coçasse atrás das orelhas. Cavalos eram mais confiáveis e
interessantes que pessoas, por isso Nathaniel sempre preferia a companhia
dos animais. Depois de subornar o equino com um torrão de açúcar, enrolou-
se no cobertor e tentou adormecer – sem sucesso. Rolou de um lado para o
outro, apertando a cabeça, na tentativa de pegar no sono, mas frustrou-se por
horas. Sentou-se, verificou se Lucille estava dentro da barraca ou se, por
milagre, decidira atirar-se em seus braços, e voltou a deitar. Ela não se
atiraria em seus braços – ele teve a oportunidade de a ter e recusou. Por que
ela o iria querer novamente?
E, por que diabos ele estava desejando que ela o quisesse? Aquela era
apenas uma mulher, uma nem tão linda, e totalmente inconveniente. Assim
que chegassem à primeira cidade, arrumaria uma prostituta para satisfazer
aquele desejo ridículo e se livraria da bagagem extra que só estava servindo
para atrapalhar.
Depois de atacar o cantil de uísque e beber mais da metade, acabou
sucumbindo ao cansaço. Despertou com Zeus lambendo seus cabelos –
aquele cavalo tinha sérios problemas com limites – e com cheiro de café.
Ergueu o corpo para espiar por sobre a contenção da carroça e vislumbrou
Lucille ajoelhada ao lado da fogueira, que ela alimentara com fogo, coando
café.
— Bom dia, Sr. McFadden. — Ela se ergueu com uma caneca de metal
fumegante em uma das mãos. — Preparei para o senhor, espero que esteja do
seu agrado.
Lucille sorria francamente e estendeu a caneca para ele. Nathaniel
acreditou que ainda não tivesse acordado, sentia a cabeça latejar e os olhos
embaçados – mas os dentes de Zeus em seus cabelos indicavam que sim, ele
estava desperto.
— A senhorita sabe cozinhar, Srta. Smith?
— Não, na verdade eu apenas sou observadora. Já vi café sendo
preparado, assim como o vi alimentar o fogo ontem. Havia comida em sua
cesta, também, portanto tomei a liberdade de preparar um desjejum completo.
Venha comer!
Nathaniel virou um gole do café quente, que estava horrível de tão ralo,
mas ela sorria ainda e, por motivos que ele sinceramente não imaginava quais
seriam, não quis magoá-la. Fez uma careta, indicando que gostara e desceu da
carroça, empurrando Zeus para o lado. O cavalo relinchou, bufando,
enquanto Hades ignorava completamente a existência de pessoas. Depois de
passar as mãos pelos cabelos, fechar o colete e dobrar os punhos da camisa
até os cotovelos, sentou-se ao lado da fogueira. Ainda era bastante cedo e ele
sentia como se não tivesse dormido nada.
— Imagino que teve uma noite boa. — Perguntou, mastigando um
pãozinho. Não sentia fome, mas aprendera a comer para manter-se resistente.
— Havia alguns mosquitos, mas, fora isso, foi uma noite agradável. Eu
agradeço sua gentileza de me permitir dormir na barraca.
Ela tinha o olhar baixo, evitando encará-lo. Nathaniel pode notar marcas
avermelhadas no pescoço dela, outras nos braços. Não foram alguns
mosquitos, talvez uma nuvem deles. Se não fosse a tenda, talvez Lucille
tivesse sido carregada pelos insetos. Ele conhecia um bálsamo bom para
picadas, mas não trouxera consigo. Não importava, precisou repetir de novo –
não importava que ela estivesse picada, ferida ou que seu sangue escorresse
pelos poros. Não deveria importar.
— A senhorita vai... quero dizer, a senhorita pretende continuar se
passando por homem?
— Creio que seja prudente. — Ela o fitou. — Uma mulher é um alvo
muito vulnerável.
— Então imagino que seja melhor... — Nate apontou na direção dos seios
dela. — escondê-los.
— Ah.
Lucille cruzou os braços na frente do corpo, visivelmente envergonhada.
Ela provavelmente não prestara atenção no quanto aquela exata parte de sua
anatomia estava evidente – e no quanto ele se via atraído para ela toda vez.
Constrangida, levantou e se escondeu dentro da barraca, provavelmente para
fazer o truque que a permitia esconder os atributos femininos. Nate
praguejou, talvez devesse ter ficado de boca fechado ou se oferecido para
ajudar – e isso não seria nada bom para sua decisão de mantê-la afastada.
Apesar do café estar ruim, Nathaniel bebeu duas canecas cheias para se
manter alerta. Eles tinham um bom pedaço de estrada pela frente e pelo
menos duas paradas seriam necessárias antes de chegarem a uma cidade.
Aquela ainda seria uma longa viagem.
Capítulo quinto
F AZIA ALGUM TEMPO QUE L UCILLE NÃO SE DIVERTIA COM CRIANÇAS , ENTÃO
ela estava bastante feliz quando se despiu e entrou no banheiro. Não deveria
sorrir tanto ou mostrar tamanha empolgação, já que estava fugindo e não
sabia bem para onde ir, mas não conseguia evitar – era uma pessoa de bom-
humor recorrente e modos nem sempre femininos. A vantagem de passar-se
por homem era poder agir como um e experimentar a liberdade das botas, das
calças e da ausência de espartilho – ah, como ela detestava o espartilho.
Olhou-se no espelho e tentou se acostumar com o que via. Cabelos curtos e
alvoroçados, pele corada, seios enfaixados, a ausência de roupas íntimas
adequadas. Sentia-se estranhamente livre, mesmo enclausurada pela mentira.
Abriu o chuveiro e entrou, molhando a cabeleira e esperando que a água
quente a fizesse relaxar.
Depois de devidamente limpa e vestida, penteou os cabelos com cuidado,
tentou domá-los enquanto molhados e enfiou a boina na cabeça. Garantiu que
estava com a aparência adequada para sua nova realidade e desceu até o
térreo para se encontrar com seu aliado. E, contra toda a razoabilidade e
decência do mundo, entristeceu-se ao vê-lo flertando com uma garçonete.
Claro que ele estaria flertando com alguém, sua fama de canalha e libertino
não fora construída em cima de comportamentos castos. Nathaniel McFadden
era um mulherengo e ali estava uma das provas. Talvez ele pretendesse se
esconder com ela em alguma alcova e...
Lucille olhou para si mesma novamente e suspirou. Ela não o queria, mas
se incomodava que ele não a quisesse.
— Está muito bem vestida, senhorita.
Ele disse, dispensando a garçonete quando a viu. A mulher se afastou
dando risadinhas e Lucille lhe lançou um olhar de desprezo. Valorize-se,
mulher, afinal, homem algum se importa mesmo com você.
— Comprei roupas novas, poderei devolver sua camisa. Disse que queria
me falar?
— Sim, tenho novidades sobre Nova Iorque. Vamos jantar.
Nathaniel chamou o garçom e pediu qualquer coisa que estivessem
servindo aquela noite, além de uma garrafa de vinho tinto. Mulheres
geralmente tomavam vinho branco, mas ela não era uma, era? Não naquele
momento. Enquanto ele conversava com o garçom e olhava ao redor, agia
como se tudo ali lhe pertencesse. A arrogância daquele homem era intrigante,
porque ele não a tinha por ser nobre, mas por ser poderoso. E ela não sabia se
temia aquele poder ou se ele a excitava.
— O que está havendo em Nova Iorque, Sr. McFadden?
— Seu pai acredita que foi sequestrada. Meu amigo me informou que
todos os caçadores de recompensa da região estão procurando por seus
captores.
Aquela era uma notícia realmente ruim. Péssima. O vinho foi servido em
taças pouco limpas e ela virou um gole desajeitado, deixando escorrer um
pouco e sujando o colarinho. Nate estendeu um guardanapo para que se
limpasse.
— Isso significa que terei que ser mais rápida em desaparecer.
— Adoraria que fosse realmente rápida, Srta. Smith. Desde que nos
encontramos a senhorita só me atrasa.
— Não se preocupe, senhor. Amanhã nos separaremos, conseguirei outra
carona.
— Para que eu tenha que a salvar novamente?
Ele olhou para ela com divertimento, mas Lucille estava incomodada.
Não entendia por que ele a repelia e a mantinha perto, tudo ao mesmo tempo,
como se estivesse em um jogo bastante irritante.
— Não precisa me salvar, senhor. Não entendo ainda por que fez aquilo.
Nathaniel virou um gole do vinho e olhou para algum lugar, desviando-se
dela.
— Tenho uma irmã. Acho que gostaria de imaginar que um homem faria
por ela o que fiz pela senhorita. Não se engane, Srta. Smith, eu sou um
canalha egoísta. Tudo que faço é por mim e para meu próprio benefício. E o
melhor é realmente que nos separemos, ou acabarei sendo acusado de
sequestro.
Então era aquilo, ele concordava que não seguiriam mais viagem juntos.
Por um instante ela sentiu completo alívio de não precisar mais lidar com um
homem explosivo ao seu lado, mas a frustração logo a dominou. Lucille não
sabia o que era exatamente, mas parecia estar um pouco obcecada pelo Sr.
McFadden.
O jantar foi servido – sopa de vegetais e outros elementos
irreconhecíveis. Mesmo que o pão não fosse fresco e o vinho fosse barato, a
comida estava saborosa e nutritiva. Servia para mantê-la com energia
enquanto estivesse na estrada escapando de um destino horrível, e que ficaria
ainda pior se ela fosse descoberta. O silêncio a incomodou, mas era o que ele
parecia apreciar, então resignou-se e limitou-se a comer. Qual foi a sua
surpresa ao ouvi-lo retomar a conversa meia hora depois.
— Por que, dentre tantos canalhas em Nova Iorque, a senhorita me
escolheu?
Lucille ergueu o olhar e ele a estava encarando. Segurava a colher
suspensa no ar e esperava uma resposta enquanto exibia seus antebraços. O
que havia de errado com ela para admirar aquela parte específica do corpo
dele enquanto os botões do colarinho continuavam abertos, deixando parte do
seu peito à mostra? Aliás, qual era o problema daquele homem com o decoro
– por que ele parecia não ser capaz de manter-se minimamente vestido?
— Por sua fama, obviamente.
— Minha fama é de ser cruel, mas a senhorita não esperava crueldade de
mim.
— Falava da sua outra fama.
— Libertino?
— Essa também, mas a outra... aquela que diz que o senhor sabe... que o
senhor é capaz de...
Nathaniel dobrou o corpo por sobre a mesa e olhou para os lados,
sussurrando em seguida.
— Que eu sou o melhor amante de Nova Iorque, capaz de fazer mulheres
se sentirem incríveis na cama? Essa fama?
Sim, maldito fosse. Lucille sabia que o escolhera porque, se aquela fosse
sua única experiência íntima com um homem, queria ter boas memórias. Ela
não queria apenas ser arruinada, queria ser seduzida e arrebatada.
— Essa. — Ela baixou o olhar, o rubor quase a impedindo de falar. — E,
como o senhor é um maldito canalha egoísta, eu imaginei que não fosse se
sentir compelido a me desposar depois de...
— Imaginou corretamente, senhorita. — Ele sorriu, debochado, e serviu
mais vinho. — E a senhorita gostaria de descobrir se minha fama é real?
Lucille enfiou uma colherada de sopa na boca para não precisar responder
e o maldito canalha riu de seu constrangimento. Em poucos minutos ela
praguejara duas vezes e falara um monte de grosserias sobre seu em breve ex
companheiro de viagem. Aquele homem fazia surgir nela um lado desbocado
e malcriado que não existia – ou que ela sequer sabia que existia. Ele a
desorientava.
— Preciso lembrar que o senhor teve essa oportunidade e recusou? É
exaustivo que pareça me culpar por renunciar a prazeres que eu tenho certeza
de que pretendia experimentar – mas fui impedida.
O diabo finalmente deu as caras e ele exibiu o sorriso mais profano que já
existira. Nathaniel colocou mais vinho em sua taça – era o álcool que a estava
provocando a dizer coisas que não diria. Ele não falou mais nada, apenas
deixou suspenso no ar que talvez, e apenas talvez, estivesse arrependido de
não a ter deflorado naquela noite. Claro que estava, era um libertino cretino
que não podia ver uma mulher sem a tomar para si.
— Obrigada por sua ajuda até aqui, senhor. Amanhã deixarei de
atrapalhar sua busca por seu irmão.
O jantar terminou em silêncio. Apesar de ser o que queriam desde o
início, quando chegou o momento de separarem-se foi como se não o
quisessem mais. Ao menos ela, que deveria desejar distância do cretino à sua
frente.
— Há um salão de jogos por aqui. Quer me acompanhar até ele?
Nathaniel levantou-se e perguntou subitamente.
— Nunca joguei. Mulheres...
— Sim, mulheres decentes e corretas não jogam nem frequentam esses
lugares. Mas…
Ele indicou um espelho para que ela se visse e se percebesse como todos
a percebiam – um jovem rapaz. Mesmo que Lucille não conseguisse fingir
muito bem, para quem a visse, ela era um homem e sua presença não seria
estranhada em um salão de jogos. Determinada, decidiu seguir o demônio até
seu habitat natural – o inferno.
Ela desfilava com calças como se estivesse usando anáguas. Os quadris
mexiam para os lados e a pose perfeitamente ereta era característica de uma
dama. Mas ali, naquele lugar escondido do mundo, ela jamais seria notada
tempo o suficiente para que descobrissem que ela era uma mulher. Uma
mulher intrigante e muito falante que o estava enlouquecendo. A melhor
decisão seria pegar uma prostituta e encurralá-la nos fundos da hospedaria,
mas não era o que ele queria.
Maldição, por que diabos rejeitou Lucille Smith naquela noite? Ela estaria
arruinada e não teria se metido em sua viagem. Mas lá estava ela, sentada em
uma mesa de vinte e um sem nunca ter jogado uma partida sequer, pedindo
cartas como se entendesse o que estava fazendo. Ela tinha dinheiro e ele seria
facilmente tomado dela por aquelas águias que a devorariam em minutos –
mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Nathaniel pegou outro uísque e foi tentar a sorte na roleta. Não gostava
muito da sorte, ela nunca lhe sorriu por tempo o suficiente, então aproveitava
uma vitória e mudava de mesa. No Gênesis ele não costumava jogar,
aprendera que não se misturava negócios com prazer. E, naquela noite, apesar
de sentir-se em casa com um copo de malte e um salão cheio de vícios, sua
atenção estava dispersa. Não, não estava. Seu foco em Lucille era excessivo e
aquilo era preocupante – porque mulheres nunca, em nenhuma hipótese, lhe
roubavam a atenção.
Ainda mais uma que só o atrapalhava. Perdeu duas rodadas na roleta e
uma nos dados até convencer-se que não deveria ter considerado jogar.
Sentou-se próximo a ela e passou a observá-la. Com o perfil sério e
concentrado, Lucille estudava todos na mesa e tentava obter alguma
informação sobre como estavam se saindo. Ela quase não tinha mais fichas,
mas continuava com a coluna esticada e observando tudo que acontecia –
desde a expressão nas faces dos jogadores até as cartas que eles pediam. De
vez em quando, movia os dedos na mesa, indicando que contava.
E ela perdeu todas as rodadas, como era de se esperar. Ao entregar suas
últimas fichas, não se intimidou pela algazarra de um jogador mais exaltado –
levantou-se, fez uma mesura e agradeceu pelas partidas.
— Aquilo foi muito divertido! — Ela tentou conter a empolgação quando
se aproximou de Nathaniel e tomou dele o uísque. — O senhor viu como
aquele homem ali joga bem? Ele quase sempre consegue um vinte ou vinte e
um!
Nathaniel pegou o copo de volta antes que ela bebesse.
— Vá devagar, não precisa mostrar que bebe para esses caras, eles sequer
a estão notando. E sim, ele joga bem porque conta cartas. A senhorita perdeu
todas, por que está tão exultante?
— Meu propósito ali não era ganhar, mas aprender algo novo.
Aquilo era, mais uma vez, inesperado. Ele não se lembrava de conhecer
alguém que valorizasse mais a aprendizagem do que a vitória. Vencer sempre
fora o desejo de todas as pessoas que entravam no Gênesis – e vencer viciava
a ponto de fazer com que perdessem tudo na busca de outra vitória.
— Então sabia que perderia, mas quis continuar jogando apenas para
aprender a jogar? Conseguiu seu objetivo, afinal?
— Duvido que tenha aprendido, porém sei um pouco mais agora do que
sabia antes. E o senhor, quase não jogou.
Ele girou o copo de bebida na mão e virou o conteúdo em um gole.
Lucille esperava uma resposta qualquer enquanto olhava com aquela
expressão vívida de novo. As pupilas dilatadas pela excitação, as bochechas
coradas, a boca vermelha. Subitamente, ele quis ser o motivo pelo qual o
corpo dela reagia daquela forma. Quis que ela estivesse excitada por ele,
enrubescida pelas obscenidades que ele falasse e com a boca vermelha do
beijo que ele daria.
— Estou disperso.
— Claro que sim, como estou sendo tola. O senhor está preocupado com
seu irmão. Mas, afinal, o que houve? Por que o acusam e por que acredita que
ele esteja vivo?
— A senhorita deveria estar preocupada também, já que seu pai está
mobilizando toda Nova Iorque atrás de seus supostos captores.
— Não mude de assunto. — Ela pegou o copo outra vez e virou o restante
do uísque. Fez uma careta e pediu mais para uma garçonete pouco vestida
que circulava as mesas no antro de jogatinas. — O senhor sempre tenta
desviar a conversa para outra coisa, mas eu gostaria de saber. O que houve?
Nem ele sabia, realmente. Foi tudo tão rápido, tão confuso e tão escuro
que acabou na mesma velocidade em que começou. Nate aceitou o drinque
que lhe fora servido e olhou para o líquido âmbar dentro do copo, tentando
decidir se contava ou não qualquer coisa para aquele bichinho curioso à sua
frente.
— Eu estava cobrando uma dívida. — A necessidade de falar qualquer
coisa sobre aquilo venceu a razão. — Meu irmão estava em Nova Iorque há
pouco tempo, mas ele não aceitava que eu estivesse trabalhando com... com o
Gênesis. Nós somos nobres, não nos envolvemos com esse tipo de atividade
ilegal, e Emile era... Emile é excessivamente moralista. Ele tentou me
dissuadir por várias vezes, até que discutimos. Naquela noite, ele foi atrás de
mim. Não sei de onde saiu aquela arma, só percebi que o devedor portava
uma pistola quando ouvi o tiro.
— O tiro acertou seu irmão.
— Ele entrou na minha frente. Depois, me atraquei com o devedor e
Emile cambaleou até a mureta, caindo dentro do oceano. Quis pular atrás
dele, mas estava escuro demais. A polícia apareceu em seguida.
— E o devedor?
A conversa terminaria ali. Nathaniel virou o uísque em um gole e se
levantou. Lucille era muito doce, inocente e imaculada para se contaminar
com a verdade. Ela não precisava saber tudo que ele fazia, não devia sequer
ter contado o que acontecera no Brooklin. Mas ela era, também, insistente, e
foi atrás dele. Segurou-o pelo braço e o fez parar.
— Espere. — Os olhos castanhos estavam avermelhados pela emoção. —
Sinto muito pelo que aconteceu. Eu espero que seu irmão esteja vivo.
A mão dela segurava seu braço com uma sutileza incomum. Lucille
parecia sincera, ela realmente estava tocada pelo que acontecera, pela história
que contara. Os olhos dele foram dos dedos que envolviam sua pele até a face
gentil da mulher e ele tomou uma decisão que lhe causaria muitos problemas.
Mesmo que ela se casasse ou encontrasse prazer em outras camas, ele seria o
primeiro a mostrar-lhe o que um homem era capaz de fazer com uma mulher.
Ela gostava de aprender coisas novas, Nathaniel estava então disposto a
ensiná-la.
Com um giro rápido, inverteu as posições e tomou a mão dela na sua,
mesmo que aquilo parecesse estranho aos olhos dos outros, conduzindo-a
apressadamente pelas escadas, enquanto Lucille murmurava perguntando o
que ele pretendia. Não sabia o que pretendia, ou sabia, mas não acreditava
que fosse realmente fazer aquilo. Ao chegarem ao terceiro andar, abriu a
porta do quarto e a empurrou para dentro, trancando-os em seguida.
— Mas o que deu no senhor? Viu algo suspeito lá embaixo?
Ele não respondeu, apenas encerrou qualquer distância entre os corpos e
puxou a boca dela até a sua.
Lucille preferia dizer que ficara escandalizada com as atitudes indecorosas do
homem que a sustentava com mãos firmes e a devorava com uma boca
devassa, mas era mentira. Surpresa, sim, arrebatada, certamente. Mas
escandalizada, não realmente. Ela não apenas desejava como ansiava por
aquele beijo. Não esperava ser beijada por Nathaniel McFadden, já que ele
deixou claro que não a queria, ou que não se envolveria com ela por causa de
seu pai, mas ele parecia ter mudado de ideia.
Desde o início, o toque foi suave e gentil. Uma das mãos dele apoiava sua
cabeça para possibilitar o encaixe perfeito entre as bocas, a outra estava
espalmada em suas costas, fazendo com que os corpos se unissem de forma
escandalosa. Os lábios dele acariciaram os dela delicadamente e ela sentiu os
joelhos falharem. Se não estivesse plenamente amparada naquele corpo
masculino vibrante, teria caído e se estatelado no chão como fruta madura.
Percebendo-a rendida, Nathaniel passou a ponta da língua no seu lábio
inferior e ela reagiu com um gemido despudorado. Ele se aproveitou e
aprofundou o beijo, explorando-a por lugares que sequer imaginava que
pudessem ser descobertos em um beijo.
Já era noite, logo eles iriam seguir seus caminhos em separado, então
aquela era uma despedida – e uma que tornava muito difícil despedir-se,
afinal. Ao contrário do que ela imaginava, o momento não era sôfrego ou
intenso, era suave, lento, elaborado como se ele soubesse que movimentos
bruscos poderiam assustá-la. Lucille nunca fora beijada daquela forma. Suas
experiências com homens não passaram de alguns toques pudicos de lábios –
nada envolvia língua ou corpos entrelaçados como estavam os deles.
Quando ele afastou a boca apenas alguns milímetros, ela quis protestar,
mas sua voz estava presa na garganta. Nathaniel colou a testa na dela e
inspirou profundamente. Mantinha-a cativa com os dedos embrenhados nos
cachos revoltos.
— Peça-me novamente. — Murmurou, a boca traçando os contornos do
seu maxilar tenso. — Peça para que eu a arruine, Srta. Smith.
Céus, aquele homem a confundia.
— Não posso, eu... — A mão dele deslizou por suas costas, o indicador
desenhando a linha de sua coluna. Aquela camisa não oferecia proteção
alguma e Lucille percebeu que ele estava prestes a liberar a faixa de tecido
que prendia seus seios. — Tenho algum amor próprio, senhor, e não pretendo
ser rejeitada outra vez.
Nathaniel grunhiu, beijando-a no pescoço e forçando os quadris contra os
dela. Lucille arregalou os olhos ao sentir a dureza da excitação masculina que
a provocava.
— Não parece que eu esteja apto a rejeitá-la, senhorita. Em verdade, devo
ter perdido o juízo porque eu estou prestes a jogá-la naquela cama antes que
possa perceber que eu sou uma péssima escolha.
Talvez ele fosse, mas ela o havia escolhido, afinal. De todos os homens
canalhas que ela já ouvira falar ou conhecera em Nova Iorque, ele era o mais
imoral a ponto de não recusar uma virgem para uma noite apenas. Com um
movimento de cabeça, ela respondeu o que as palavras se recusavam a dizer,
assentindo para que ele prosseguisse. Nathaniel voltou a beijá-la, daquela vez
com mais intensidade, conquistando sua boca como um desbravador toma
posse de um novo território, como os ingleses tomaram posse das Américas.
Lucille não sabia retribuir o beijo com a mesma proficiência, mas
conseguia demonstrar desejo. Agarrou-se à camisa dele para mantê-los
próximos enquanto Nathaniel tirava a dela de dentro das calças e embrenhava
as duas mãos para tocá-la de forma mais íntima. Arfou com o toque quente
dos dedos masculinos em sua carne trêmula e gemeu de alívio quando ele,
habilidoso, a libertou da prisão que escondia suas partes mais femininas.
Mas, antes que ele pudesse tocá-la ali, Nathaniel interrompeu-se. Abriu os
olhos e parou de beijá-la, mesmo que as bocas permanecessem unidas.
— Aconteceu...
— Shhh. — Ele a silenciou com um polegar substituindo os lábios e
ergueu completamente a cabeça. — Há algo estranho.
Ela não percebera nada além do seu coração martelando intensamente em
seu peito, mas Nathaniel estava alarmado. Soltou-a, caminhou até a porta e
encostou o ouvido na madeira. Lucille permaneceu ali, parada e observando
cada expressão da face dele. Os olhos semicerrados indicavam que estava
concentrado e as mãos em punhos diziam que estava preocupado. Ela
certamente não o podia conhecer bem depois de apenas dois dias, mas sentia
como se fosse muito familiar a todas as manifestações do corpo de Nathaniel
McFadden – e isso indicava que ela estava ficando louca.
Com passos vacilantes, aproximou-se e encostou-se na porta, tentando
descobrir o que atraíra a atenção dele para longe dela. Vozes alteradas e
outros sons davam a entender que havia uma briga nos andares mais baixos.
— O que é isso? — Ela sussurrou.
— Parece que os homens do seu pai nos encontraram.
O coração dela quase parou de bater quando o ar foi subitamente sugado
para fora de seus pulmões. Não podia acabar tão cedo, ela não podia ser
levada de volta naquele momento.
— O senhor tem certeza?
— Posso estar errado, mas não creio que queira esperar para descobrir. —
Nathaniel olhou ao redor e foi até a janela, debruçando-se para olhar o lado
de fora. — Vamos embora, temos como descer por aqui.
— Descer? Estamos no terceiro andar, como vamos...
— Srta. Smith, há um cano de calefação subindo por essa parede. Pegue o
dinheiro e venha, não podemos levar nada. A senhorita sabe cavalgar? — Ela
assentiu. — Então vamos, Hades e Zeus estão nos estábulos, podemos chegar
até lá sem sermos vistos.
Foi tudo muito rápido, mas ela confiou nele do início ao fim sem fazer a
menor ideia dos motivos que a levaram àquilo. Nathaniel passou os dedos
pelos cabelos e as mãos pelo corpo – garantindo que a pistola e a faca
estivessem ali onde ele sempre as mantinha. Depois, apagou as lamparinas e
pendurou-se na janela, desaparecendo na escuridão. Lucille se aproximou do
parapeito e o viu deslizar pelo cano grosso e enferrujado da calefação.
Quando aterrissou, estendeu os braços indicando que era a sua vez.
Ela estava nervosa, mas não seria pega. Respirou fundo e, confirmando
que estava com as roupas no lugar, agarrou-se no cano e começou a descer. O
ferro estava quente e ela quis soltá-lo várias vezes, mas manteve-se firme até
ser capturada pelas mãos de Nathaniel – e finalmente sentir-se segura. Sim,
ela perdera totalmente o juízo, mas não estava com tempo para questionar
suas péssimas decisões. Eles correram pelo descampado sob a total escuridão
da noite até chegarem à construção dos estábulos.
Nathaniel era silencioso como um fantasma, ela mal o ouvia mover-se
enquanto a puxava para dentro do galpão e tateava em busca de seus cavalos.
Ela se acostou com a escuridão esperando-o selar os animais e aceitou a ajuda
dele para subir em um deles.
— Esse é Hades. Ele é quieto e disciplinado, vai obedecer a todos os seus
comandos. Monte como um homem, Srta. Smith, essas selas não foram feitas
para propósitos femininos.
Com um impulso, Nathaniel a possibilitou cruzar as pernas ao redor de
Hades, que se mexeu ao receber o peso de seu corpo. O cavalo ergueu o
pescoço e foi acariciado por Nate, que logo subiu em Zeus. Ela o ouviu dizer
para segui-la e partiu. Antes que Lucille o pudesse atender, o cavalo tomou a
iniciativa e a conduziu para fora do estábulo.
Capítulo oitavo
Ela já estava arruinada – e aquilo parecia totalmente coerente com o que ela
queria, mas não suficiente. Lucille se pegou subitamente desejando a ruína,
não apenas a aparência dela. Por esse motivo, não resistiu quando Nathaniel a
segurou com as duas mãos, uma de cada lado de sua face, e puxou a sua boca
até a dele. No instante em que os lábios se chocaram, ela se acomodou
melhor por sobre ele, envolvendo sua cintura com as pernas. Aquilo era
absurdamente inadequado, indecente e excitante.
Quando a língua dele penetrou sua boca, Lucille gemeu pela invasão
ansiada e agradeceu por estarem sozinhos. Uma das mãos de Nate desceu
pelas costas dela e entrou pela camisa, acariciando sua pele. Talvez ela fosse
capaz de dissolver com aquele toque, mesmo sendo tão indecoroso. O correto
seria que ela o estapeasse, fugisse, o mantivesse longe – mas Lucille queria
ser tocada por ele.
Com um movimento rápido e cuidadoso, Nathaniel inverteu as posições e
a colocou sob seu corpo rígido. Ela se viu subitamente presa debaixo de uma
massa de músculos bem definidos e quentes – e o frio passou
instantaneamente. O beijo ficou mais intenso e ele forçou seus quadris contra
os dela.
— Nunca fiquei com uma mulher de calças. — Nate riu, descendo os
beijos até o pescoço, parando no colarinho da camisa, pressionando sua
masculinidade contra ela e arrancando mais alguns gemidos constrangedores.
— Você por inteiro é uma experiência intrigante.
A barba que ele mantinha a arranhou quando os beijos desceram um
pouco além do colarinho. Lucille sequer percebeu quando ele abriu dois
botões de sua camisa, mas ele parecia determinado a livrar-se de todos.
E um estrondo do lado de fora fez com que o momento acabasse antes de
começar. Nathaniel ajoelhou rapidamente sobre Lucille e levou a mão até as
costas. Ela sabia que ele segurava a pistola, que parecia nunca sair daquele
lugar. De repente, uma chuva pesada começou a cair e os cavalos se agitaram.
Lucille sentou-se, apoiando nos braços, enquanto Nathaniel se recompunha.
— Preciso tirar os cavalos da chuva. Vou amarrá-los na varanda, espere
por mim aqui.
Como se ela tivesse algum lugar para ir. Antes de poder responder a ele
com uma frase espirituosa, o homem já estava do lado de fora da cabana. Era
comovente que ele cuidasse tão bem dos animais e que os cavalos
respondessem a ele como se o compreendessem. Lucille se deitou novamente
e passou os dedos pelos lábios. Provavelmente era aquele o motivo de
Nathaniel ser tão popular entre as mulheres, mesmo as tratando com aparente
desinteresse. A forma como ele as fazia sentir era única.
Recostou na almofada enquanto o ouvia conversar com os cavalos, do
lado de fora. Apesar da chuva, era possível ouvi-lo acalmar os animais e dizer
que logo amanheceria e eles teriam uma longa jornada pela frente. Pensando
em como fariam sem a carroça, sem provisões, sem roupas e quase um dia
atrasados, além dos capangas atrás de si, Lucille adormeceu antes que
Nathaniel retornasse para dentro.
Durante o sono, ela sonhou com ele. Era irrazoável sonhar com um quase
desconhecido – ou não, já que eles estavam muito conectados há alguns
poucos dias. Nathaniel se deitava ao lado dela, acariciava sua face, passava as
mãos por seu corpo e a beijava delicadamente no pulso, no pescoço, na
bochecha, na testa, até acomodar-se ao seu lado. O calor dele a manteve
aquecida durante a noite, mesmo que não fosse real e, apesar das condições,
Lucille dormiu tranquilamente.
Quando acordou, com a claridade penetrando pelos vidros embaçados, ela
o viu de pé, com o torso despido. A primeira reação foi colocar a mão no
próprio corpo e garantir que estava vestida. A segunda foi admirar o belo
espécime que cruzara seu caminho de forma tão inusitada. Nathaniel passava
um pano embebido em água pelo pescoço e ombros e sua camisa jazia
pendurada em uma viga.
— Não se preocupe, senhorita, não aconteceu nada que não saiba. Eu
prefiro minhas parceiras ativas, se me compreende.
Ela compreendia, mas isso não a impediu de ruborizar de vergonha.
— O senhor está de saída?
— Precisamos retomar a estrada, porém agora sabemos que os caçadores
de recompensa estão no caminho certo e devemos tomar mais cuidado.
— Devemos?
— Sim, senhorita. — Ele se virou para ela, com um sorriso canalha nos
lábios, e colocou o pano de volta dentro de uma bacia de água. Lucille sentiu
a boca secar ao vê-lo de frente e perceber que ele tinha um corpo notável.
Sem excessos, com o peito permeado de pelos bem distribuídos, que subiam
pelo tórax e iam na direção do pescoço, mas também desciam pela barriga e
morriam ao chegar ao cós da calça marrom que ele estava vestindo. Nathaniel
era o primeiro homem que ela via sem camisa, inteiramente sem camisa, e
não estava nem um pouco desapontada. — A não ser que prefira ser pega
pelos homens do seu pai.
— Céus, não. — Lucille levantou, cambaleando para trás, e notou que sua
camisa continuava meio aberta, permitindo que seus seios ficassem em
evidência. E ela não tinha mais a faixa, o que significava que estava com
vestimentas totalmente inadequadas. — Apenas pensei que o senhor seguiria
sua viagem e...
— E te deixaria aqui. — Ele completou a frase interrompida. — Depois
do trabalho que tive para tirá-la da hospedaria, não acha mesmo que faria
isso, acha? Venha, vamos logo porque nem comida temos. Precisamos chegar
a algum lugar.
Nathaniel pegou a camisa e vestiu novamente. Lucille quis perguntar se
ele dormira ao lado dela, se estivera seminu – ou até mesmo nu – durante
toda a noite. Quis saber se aquele corpo masculino estivera em contato com o
dela, se eles ficaram próximos o suficiente para que o cheiro dele se
impregnasse nela – mas não perguntou, nem falou nada. Manteve-se em
silêncio durante o tempo em que eles arrumaram as roupas e pegaram os
cavalos. Ela precisou montar novamente como um homem e adorou mais
aquela sensação de liberdade que sentiu em ter mais controle do cavalo e
mais equilíbrio.
Sua cabeça estava uma confusão e fazia tempo que Lucille não sabia o
que fazer. Sempre manteve planos e tentou executá-los, mesmo com as
dificuldades impostas pelo pai. Vinha juntando algum dinheiro para poder
estudar, mesmo que tardiamente – o mesmo dinheiro que estava usando para
fugir, pois livrar-se de um casamento desastroso parecia mais importante do
que outros projetos prévios. E, ao mesmo tempo, havia aquele homem
devasso, que torturava pessoas para ganhar a vida e que ela escolhera para
arruiná-la, mas que teve todas as oportunidades para isso e não o fez. E por
Deus, ela passara a querer muito que ele a arruinasse.
Sobre os cavalos, pegaram uma trilha por dentro da floresta até chegar à
estrada. Nathaniel ia à frente com Zeus e ela seguia com Hades, que se
portava como um lorde. Ela não conhecia nenhum homem que fosse tão
elegante quanto o garanhão preto. O silêncio se tornou inconveniente e ela se
aproximou, pareando com seu companheiro.
— Para onde vamos?
— Stamford. Preciso fazer uma ligação, precisamos de roupas e comida.
Você terá que aguentar até lá, se formos em um galope adequado,
chegaremos logo.
Lucille assentiu. Nathaniel não estava tão taciturno quanto no dia anterior,
havia certa leveza em sua postura corporal que a tranquilizou.
— O que levou o terceiro filho de um conde a se envolver com o
submundo?
As palavras pularam de sua boca, e isso era um defeito que ela
dificilmente conseguiria consertar. Lucille falava, era franca e raramente
evitava a verdade. Ele riu e levou algum tempo para responder.
— Eu agora sou o irmão do conde. Há tantos na linha de sucessão à
minha frente que eu precisaria viver três vidas para assumir o condado – o
que, definitivamente, nunca quis. E achei que já tivesse respondido a isso,
senhorita. Sempre fui um homem que preferiu bebidas e mulheres a trabalho.
Acabei encontrado minha degradação em ambas.
— O senhor está feliz?
Ele deu outro sorriso e virou-se para ela. A luz do dia refletiu o azul
daqueles olhos penetrantes, mas que não entregavam nada da alma por trás
deles.
— Depois de ontem, acredito que possa me chamar de Nate.
Lucille sentiu as bochechas arderem e entendeu que ele a mantinha em
um estado de constante rubor.
— É inadequado.
— Vamos determinar isso. A senhorita me viu sem camisa, eu quase a vi
sem camisa, estou agora mesmo vendo muito mais da senhorita do que
entendo ser saudável para um homem, nós nos beijamos e dormimos juntos.
Creio que essa conjugação de fatores autorize que nos tratemos pelos nomes
de batismo.
A cor nas bochechas de Lucille assumiu um tom de vermelho cereja.
— Nós dormimos juntos?
— Dormimos, senhorita. Infelizmente, foi tudo que aconteceu.
— Se eu o chamar de Nathaniel, o senhor deve fazer o mesmo. Meu
nome é Lucille.
— Muito bem, que assim seja. Diga-me, Lucille, por que foge do
casamento? Não me diga que está fugindo desse marquês especificamente,
pois, em sua idade, já deveria ter se casado. Há algo mais, não há?
Sim, havia muito mais. Ela não tinha objeções ao casamento, ao
contrário, mas queria tanto fazer outras coisas antes de se envolver
definitivamente com um homem que a tornaria propriedade. Se fosse casar,
queria alguém que a permitisse estudar, viajar, visitar as amigas, ser
independente – e não alguém que a transformasse em objeto de decoração.
Mas duvidava que Nathaniel fosse compreender aqueles motivos – ele era um
homem, afinal.
— Eu gostaria de fazer faculdade. — Ela contou o que achou razoável. —
O dinheiro que uso para a fuga estava sendo guardado para pagar meus
estudos.
— E por que seu pai não fez isso? Ele é mais rico que a Rainha.
— Ele acredita que minha única função na Terra é casar e parir os filhos
do meu marido, seus netos. — Lucille deu uma risada nervosa. — Nunca me
achou capaz de fazer nada além disso.
Nathaniel ficou em silêncio novamente. Ela podia seguir falando de sua
família, contaria todos os problemas que enfrentara desde que aprendeu a
andar, mas ele não parecia interessado em ouvir mais. A expressão do
homem endureceu e ele trincou o maxilar, formando uma linha tensa em seu
perfil bonito, e nada mais foi dito entre eles por longas horas. Pararam uma
vez para os cavalos descansarem e beberem água, um luxo que eles mesmos
não tinham, e depois retomaram o galope até quase anoitecer.
Ela não conseguia evitar se sentir culpada pelo que estavam passando –
sem roupas, sem comida e sem estrutura para a viagem. Afinal, se não fossem
os homens que seu pai mandou para resgatá-la, não teriam fugido sem suas
bagagens. Mas Nathaniel não reclamou – ele parecia imune aos
inconvenientes. Mesmo que a fome quase a derrubasse pelo final do dia, e a
sede a estivesse incapacitando, ele permanecia ereto e elegante sobre o
cavalo, como se nada o afetasse se ele assim não quisesse.
Quando Lucille estava prestes a desistir e desmaiar de exaustão e
fraqueza, eles avistaram a cidade de Stamford. Nathaniel reduziu o galope e
pegou um papel do bolso de seu colete – era um mapa, ou algo similar,
contendo anotações e rotas. Depois de examinar o conteúdo por alguns
minutos, indicou que ela deveria segui-lo. Transitando por vias de pouco
movimento e evitando aglomerações quando elas apareciam, eles pararam em
uma construção de tijolos com aparência de ser um hotel.
Era um prédio simples, porém charmoso. Cinco andares com janelas de
madeiras e beirais floridos, tijolos avermelhados e portas envidraçadas.
— Registre-nos em meu nome. Vou fazer uma ligação e te encontro no
refeitório. Pegue um quarto para cada um de nós.
Os cavalos foram amarrados nos fundos do estabelecimento, Lucille
desceu de Hades mas não se moveu, olhando para si mesma com algum
constrangimento. Ela se sentia quase nua, com aquela camisa fina não
cobrindo quase nada de seu corpo. Não era preciso ser observador para
entender que ela não era um homem. Nathaniel percebeu que ela hesitava e
tremia e se aproximou, segurando-a pelos braços no instante em que ela
desmaiou.
Capítulo nono
Assim que Lucille subiu e fechou a porta do quarto, recostou-se nela e ficou
esperando seu coração se acalmar. A conversa durante o jantar se tornou um
pouco constrangedora, mas ela suspeitava que algo muito inapropriado
poderia acontecer assim que ambos estivessem trancados naquela habitação –
e sem ninguém para interromper, daquela vez. Era provável que ela desejasse
qualquer coisa imprópria que Nathaniel pudesse lhe fazer, porém sabia que,
em nome da decência, deveria resistir ao menos um pouco. Antes, ela
precisava ser deflorada, mas a fuga fez com que ela já estivesse arruinada o
suficiente.
Então, ela ficou nervosa. Seus ouvidos zumbiam como se um diabrete e
um anjo sussurrassem palavras de incentivo – um comandando que ela se
entregasse à devassidão, outro lembrando que ela era uma mulher cristã e que
deveria se afastar do pecado. Girou pelo quarto em passos miúdos até quase
ficar zonza e perceber que ele estava demorando demais. A ordem era para
que ficasse no quarto, ela deveria obedecer. Poderia tirar as roupas
masculinas e enfiar-se debaixo das cobertas, mas não sobraria nada para
vestir, então.
Girou mais um pouco pelo ambiente, desarrumando a cama,
reorganizando os itens no banheiro, ajeitando as toalhas perfeitamente
alinhadas, mexendo nos cabides vazios dos armários, esperando. E ele não
chegava. Vá dormir, Lucille, o anjo comandou. Vá atrás dele, Lucille, o
diabrete instigou. Como vinha se sentindo muito pouco santa há alguns dias,
ela garantiu que suas roupas estavam perfeitamente alinhadas e desceu
novamente para a recepção.
Interpelou o jovem recepcionista tentando fazer uma voz masculina – e
falhando.
— Boa noite, o senhor viu o cavalheiro que chegou comigo?
— Ele perguntou por um cassino, senhor. Não temos muitos por aqui,
mas indiquei a ele o Fallen Bridge, no final da rua.
Lucille agradeceu e decidiu que iria atrás de Nathaniel. Por qual motivo,
ela não sabia, mas sentia que deveria ir. Algo dentro dela borbulhava,
querendo impedir que ele se envolvesse em confusão ou com prostitutas.
Tentando não correr, seguiu na direção apontada pelo recepcionista até
visualizar um letreiro meio escondido, meio apagado, indicando que estava
na direção certa.
Vestida como um dos visitantes habituais do lugar, conseguiu entrar
facilmente. Estava escuro, ninguém notaria que tinha feições femininas ou
voz aguda demais. Estava com pouco dinheiro e não pretendia apostar, não
queria aprender nada, daquela vez – apenas resgatar o homem que,
provavelmente, não iria querer ser resgatado. Aos poucos, seus olhos se
acostumaram com a luz alaranjada e Lucille conseguiu distinguir as formas
ao seu redor e pode se mover com mais facilidade. Identificou um bar, com
homens bebendo uísque ou conhaque, e algumas mesas de jogos – cartas,
dados e roleta. Um arco largo em um canto indicava que havia outro
ambiente, provavelmente onde ficavam as prostitutas – e ela esperava que
fosse o pior que encontraria ali.
Nathaniel não parecia estar em lugar algum. Ela se sentiu patética estando
ali atrás dele, sabendo que nada lhe dava o direito, ou a prerrogativa, de o
procurar. Ainda assim, seus olhos não pararam de vagar e fixar em todas as
faces presentes até que ela conseguisse visualizá-lo em uma mesa de
carteado. Talvez ela não o reconhecesse se não estivesse tão focada. Nate
fumava um charuto, tinha uma garrafa de uísque de um lado e duas mulheres
um pouco animadas demais do outro. Os cabelos loiros, mais compridos do
que era adequado, já grudavam no pescoço pelo suor. Lucille não soube o que
sentir ao vê-lo, arrebatada por um misto de alívio e ciúmes que não faziam
sentido algum.
Mesmo concentrado no jogo, ele a viu. Os olhos de Nathaniel se
ergueram e a perceberam ali, olhando diretamente para os movimentos que
fazia, permanecendo inabalável. Sua expressão não poderia ser decifrada por
ninguém se ele não quisesse. Estava com os antebraços de fora e ela se pegou
definitivamente fissurada por aquela parte da anatomia dele. Com um suspiro
de resignação, Lucille aproximou-se da mesa enquanto ele sussurrava
qualquer coisa para uma das mulheres, a que estava em seu colo. A “dama”
levantou-se e desapareceu por entre as pessoas.
O jogo já começara e era uma variante de pôquer que ela não conhecia –
Lucille não tinha nenhum conhecimento válido sobre carteado, conhecia
pouco sobre baralho e só jogara algumas partidas de alguns tipos de jogos
quanto as amigas ainda eram solteiras e elas se reuniam para fazer tudo que
fosse proibido para as mulheres. Quase tudo. Nathaniel não olhou para ela
novamente, permaneceu concentrado em sua mão e olhando sutilmente para
os outros jogadores. Havia muitas fichas à sua frente e ela imaginou que ele
já tivesse ganhado alguma coisa.
Um jogador empurrou todas as suas fichas para o centro e bradou “all
in 1”. Um burburinho iniciou-se, alguns presentes elogiando a postura
arrojada, outros o considerando louco. Lucille conseguia ver as cartas desse
jogador e ele tinha um full house 2, que ela sabia ser uma mão muito boa. Dois
oponentes desistiram, baixando suas cartas e se retirando da partida.
Permaneceram três, que decidiram cobrir as apostas. Nathaniel tinha fichas
suficiente para que algumas sobrassem, mas, ainda assim, o valor em disputa
parecia bem elevado.
O crupiê solicitou que mostrassem suas cartas e o apostador principal
exibiu seu full house. O outro apostador atirou uma trinca de ases sobre o
feltro verde, levantando-se irritado. Nathaniel olhou para a mesa e para suas
cartas por longos segundos até virar, com uma elegância que ela não vira nele
ainda, um royal flush 3. A comoção foi generalizada – pelo visto, o homem
não estava acostumado a perder nem aceitaria a derrota pacificamente.
Enquanto a audiência murmurava e antecipava um confronto, o perdedor se
levantou e bateu na mesa de jogos, bagunçando as cartas e misturando as
fichas.
— O senhor certamente foi desonesto! — Esbravejou o homem, que tinha
uma aparência ébria e cabelos escuros encaracolados. — Ninguém teria
condições de bater esse full house!
Nathaniel manteve-se sentado e começou a organizar as fichas em uma
pilha. Eram todas dele, afinal.
— Há duas hipóteses para a certeza que o senhor possui. Uma, o senhor
estava fraudando o jogo e acreditava que sua mão era a melhor porque
comprou o crupiê. Outra, o senhor estava contando cartas – o que é fraude, da
mesma forma. — Ele ergueu os olhos azuis, que flamejavam à luz das velas.
— Qual das duas é a verdadeira, senhor?
O homem rosnou alguma coisa e retirou o casaco. Aquele era um sinal
claro de que pretendia brigar e a audiência se afastou, obrigando Lucille a
fazer o mesmo. Nate fez um gesto negativo com a cabeça, indicando que não
queria confusão, mas ela sabia que ele reagiria se fosse atacado. E, quando
reagisse, ele provavelmente causaria problemas. Lembrou da pistola que
ficava em sua cintura e rezou, silenciosamente, para que ele não decidisse
sacá-la.
Com um impulso, o homem se lançou sobre Nathaniel e, com os punhos
erguidos, lhe desferiu um soco. A plateia acompanhou o movimento como se
estivessem em um ringue e aquela fosse uma luta recreativa, mas Lucille
sabia das implicações drásticas daquela contenda – a polícia apareceria
naquele antro e todos eles estariam em apuros. Nate desviou do soco e se
afastou.
— Não quero brigar. Seja um bom perdedor e se afaste.
— Está com medo, forasteiro? — O homem provocou. — Acha que não
sabemos que é inglês? Com esse sotaque e essa arrogância fica evidente sua
origem. E não gostamos muito de ingleses por aqui.
Nathaniel balançou a cabeça novamente e esperou o ataque, que veio
rápido. Enquanto o homem se movia com impulsividade e velocidade, Nate
era sutil e leve como um predador cercando sua presa. Estava desarmado,
com as mãos nuas e o cabelo desfeito, mas parecia dominar tudo, como se
controlasse até mesmo o tempo. Outros socos voaram até que o homem se
atirou sobre ele e o acertou no nariz, fazendo-o cambalear para trás. Sangue
escorreu e pingou em sua camisa branca.
— Eu lhe dei uma chance. — Nathaniel pegou um lenço e limpou o
sangue. — O senhor poderia ter ido embora, ter me deixado ir embora, mas
preferiu brigar. Então, espero que esteja disposto a arcar com o resultado de
seus atos.
Retirando o casaco, Nathaniel fechou as mãos em punhos e desferiu um
contragolpe, antes de ser novamente acertado pelo seu agressor. O homem
gemeu e deu dois passos para trás, sendo novamente golpeado por mãos
firmes. Uma vez, duas vezes, três vezes, até cair ao chão. Tentou se levantar
novamente, mas foi impedido pela bota de Nate, que o manteve com as costas
grudadas no solo. A plateia estava muda.
— Eu agora sairei daqui com meu dinheiro, se não for incômodo para os
senhores.
Lucille estava assustada e extasiada. A forma como Nathaniel abateu o
agressor, limpou o sangue que ainda vertia de seu nariz e recolheu suas
fichas, enfiando-as nos bolsos, a deixou sem fôlego. Ela o seguiu à distância,
mantendo algum afastamento como todos com quem cruzavam – um
verdadeiro corredor se abria a cada passo que Nate dava. Depois de trocar as
fichas por dinheiro, aproximou-se dela e, segurando-a pelo braço, arrastou-a
para fora do cassino.
Talvez ela devesse se incomodar em ser tratada como um saco de batatas,
ou reclamar que ele não poderia a tratar daquela forma – agarrando-a,
carregando-a dos lugares, mas não conseguiu. Estava absorta no perfil duro e
masculino, cujos maxilares travados indicava que ele estava irritado. Não era
por esse motivo que Lucille se silenciara, ela não temia a irritação dele –
apesar de parecer razoável que o fizesse depois de vê-lo abater mais um
homem que tinha o dobro de sua altura. Ela estava fascinada por Nathaniel e
pela sua forma de agir, como se o mundo estivesse aos seus pés, como se ele
tivesse todo o poder dos cinco continentes dentro de seus olhos.
Era arrogante, definitivamente insolente, porém era irresistível. Lucille
nunca conhecera um homem que se portasse com tanta certeza de ser superior
aos demais, e suspeitava que toda aquela empáfia se tratava de uma proteção.
Nathaniel se protegia de algo, talvez daquilo que o transformara em um
desalmado, em um cobrador de dívidas sem escrúpulos. Ainda assim,
enquanto tudo indicava que ela deveria correr para bem longe dele, pegou-se
desejando que, depois de ser arrastada para fora do cassino, fosse jogada em
uma alcova qualquer e arrebatada por outro beijo.
Capítulo décimo
Lucille sonhou outra vez com Nathaniel ao seu lado. Ele fora bastante gentil
no sonho anterior, apenas abraçando-a para que o frio passasse. Naquele, no
entanto, ele mostrava sua verdadeira face – devasso e indecente, seduzindo-a
com beijos intensos e libidinosos. Despertou suada, um pouco agitada, para
descobrir que, na verdade, não estivera sonhando – ao menos em parte.
Estava com o nariz no peito despido de Nathaniel e ele a mantinha cativa com
braços e pernas.
Ambos meio vestidos, o que revelava que não acontecera nada. Mais
nada, pois o que aconteceu antes foi o suficiente para a desorientar por
completo. Ela fechou os olhos novamente e inspirou o cheiro de pele
masculina e sabão. Para ele, aquilo não simbolizava nada – Nate era um
homem promíscuo e sem apego emocional com mulher alguma. Se as outras
famas dele eram verdadeiras, aquela deveria ser, também. Mas Lucille estava
bastante afetada. Nunca fora beijada como ele a beijara, nem tocada como ele
a tocara. Ele descobriu partes dela que estavam escondidas e a apresentou a
experiências incríveis. Como poderia ser tudo igual depois daquela noite?
Não poderia. E, ainda assim, ela não deveria entregar-se a nenhuma
dúvida, pois as dúvidas a conduziriam a um abismo irracional do qual não
saberia fugir. Lucille tinha planos – fugir, escapar, tornar-se outra pessoa,
realizar sonhos. Ela mal sabia quais eram esses sonhos, mas pretendia
descobri-los. Associar-se a Nathaniel McFadden era bom pois ele a ajudaria
na fuga, e nada mais. Nenhuma outra aliança poderia ser forjada entre eles.
— Bom dia. — A voz dele ecoou no fundo de sua alma. O movimento
daquele corpo masculino a abalou e Lucille precisou abrir os olhos e afastar-
se um pouco. — Que horas são?
— Não teria como saber, o senhor está me mantendo presa à cama.
Ele riu, a risada reverberando dentro dela. Nathaniel se ajeitou na cama e
Lucille sentiu a exuberância da ereção pressionar sua barriga.
— É por isso que não durmo com mulheres. — Ele se virou e a
enclausurou debaixo daquele corpo pesado. Lucille estava zonza e a
proximidade excessiva entre eles não a estava ajudando. — Não é divertido
acordar sentindo essa necessidade de alívio, Lucy.
Os quadris dele a pressionaram contra o colchão e ela gemeu quando a
boca dele a possuiu. Não seria capaz de livrar-se daquela ameaça porque ela o
desejava, ela continuava desejando mesmo depois do que fizeram na noite
anterior. Batidas a porta a salvaram de encontrar a ruína.
— Nate?
A voz de um homem assustou Lucille e Nathaniel se ergueu, sentando-se
na cama.
— Maldição, é Leonard.
— Seu amigo? — Ela arregalou os olhos e puxou qualquer coisa que
pudesse cobri-la mais. Entregara-se ao diabo e vendera a sua alma para o
inferno, mas apenas um homem poderia vê-la seminua. — O que ele está
fazendo aqui?
— Tentando evitar que eu me meta em confusão. Acho que chegou tarde.
— Nate, abra a porta. Precisamos sair daqui.
Havia um tom de alerta na voz do desconhecido, então algo estava errado.
Nathaniel saltou da cama e foi abrir a porta, enquanto Lucille escolheu
qualquer coisa que pudesse vestir e fechou-se no banheiro. Seu coração
disparou, as batidas estavam tão aceleradas e altas que talvez pudessem ser
ouvidas no quarto vizinho. O que ela estava fazendo?
Recostou as costas na porta e jogou a cabeça para trás, fechando os olhos
e respirando profundamente. Deveria acalmar-se para não demonstrar
nenhuma fragilidade desnecessariamente. Viu sua imagem no espelho que
ficava à frente e não conseguiu se reconhecer imediatamente. Os cabelos
emaranhados e curtos, a boca vermelha e inchada, uma marca arroxeada no
pescoço e outras que deveriam estar espalhadas por partes menos pudicas.
Suas mãos ainda tremiam e ela sequer sabia se era pela tensão ou pelo esforço
de mantê-las longe de Nathaniel.
Seu coração ainda martelava nas costelas quando ouviu a voz alterada dos
homens do lado de fora.
— Há homens perguntando pela Srta. Smith na estação de trem. Temos
que ir, não podemos ser associados a ela ou acabaremos acusados de
sequestro.
— Eu acabarei acusado, Leo. — Nathaniel rosnou. — O quão grave é a
situação?
— Havia pelo menos quatro homens atrás dela. Walter Smith não é tolo,
ele deve considerar todas as possibilidades e não está economizando. Prefere
pagar capangas ao eventual resgate da filha. O melhor a fazermos é
abandonarmos a mulher e seguirmos até Norwalk.
O silêncio a incomodou, mas durou apenas alguns segundos.
— Não, eu não a deixarei. Lucille seguirá conosco até Norwalk.
— Lucille? Ela te garantiu intimidade para tratá-la pelo nome de batismo?
Ah, ela garantiu a ele uma intimidade muito maior e isso a estava
consumindo. Culpa e desejo passaram a conviver dentro dela desde que
conheceu Nathaniel McFadden e ela não sabia qual venceria o duelo.
Terminou de vestir-se, garantiu que a faixa estivesse bem ajustada e saiu do
banheiro para encontrar o seu canalha também vestido como um lorde e o
outro – o amigo Eckley. Como não o conhecia, manteve uma expressão de
desinteresse e fragilidade, aquela que todas as mulheres apresentavam
quando conheciam um homem.
Os dois viraram-se para ela. Nathaniel sorriu – e ela odiou ter gostado
tanto daquele sorriso. O Sr. Eckley a fitou dos pés à boina que escondia
parcialmente os cabelos.
— Bom dia, senhores.
— Lucille, esse é Leonard Eckley. — Ela foi apresentada, como exigia o
decoro, mesmo que nenhuma outra regra da decência estivesse sendo
observada naquela fuga. — Ele vai conosco até Norwalk.
O Sr. Eckley olhou para Nathaniel e para ela novamente, demonstrando
incompreensão.
— Céus, esse é o pior disfarce que já vi. — Ele girou ao redor de Lucille
e continuou observando-a. — Vocês não estão enganando ninguém.
— Estamos enganando quem precisa ser enganado. As pessoas veem o
que querem, Leo. Vamos, precisamos ir embora, mas temos que comer
primeiro. Você deve estar com fome, Lucy.
Nathaniel disse aquilo olhando diretamente para ela e com uma imensa
carga de sedução na voz, fazendo-a sentir as bochechas arderem de tanta
vergonha. Seria difícil seguir adiante com seus planos se ele decidisse que ela
deveria ser seduzida – porque Lucille não tinha certeza se estaria apta a
refutá-lo. Talvez a presença do Sr. Eckley fosse bem-vinda, afinal.
— Vou alugar um cavalo. Encontro vocês em meia hora nos estábulos?
— Não comerá nada?
— Já comi meu desjejum na estação.
O Sr. Eckley assentiu e saiu pela porta, deixando-os para trás. Lucille
estava mais lenta do que o seu normal, bastante zonza pelo despertar confuso
e pela presença de outra pessoa em sua fuga. Pressentindo seu desconforto,
Nathaniel levou a mão até seu queixo e fez com que olhasse para ele.
— Ele é de confiança. — Disse, com uma expressão indecifrável. —
Vamos, não podemos perder tempo aqui. Somos procurados.
A chegada de Leo Eckley era um freio para sua libido, mas Nathaniel
entendia que era melhor ter alguém para o controlar. Em Norwalk ele
descobriria sobre a pista que o levaria a Emile e Lucille seguira seu caminho
para Boston. Era uma pena que ele não tivesse a oportunidade de mostrar
para ela a potência de um amante, mas os momentos compartilhados foram
suficientes. Não, não foram suficientes e, por isso mesmo, Leo seria de
grande valia – ou ele acabaria devassando Lucille Smith no primeiro arbusto
que encontrasse na estrada.
Depois de um café da manhã um tanto constrangedor, em que ela ficou
em silêncio quase todo o tempo, os dois foram aos estábulos para buscar os
cavalos. Estavam descansados, o que os permitiria viajar direto até Norwalk e
pelas vias mais difíceis de acesso – o que poderia dificultar a perseguição dos
caçadores de recompensa. Depois de montados, encontraram Leonard os
esperando na via de acesso – mas que também os conduziria para fora da
cidade, subindo para o norte.
Lucille não parecia confiar em Leo como Nate confiava. Apesar de ele ser
um grande mentecapto, era seu amigo – e fora quem o mantivera são durante
o mês que ficaram confinados naquela prisão, esperando pelo abate.
Nathaniel não queria pensar naquilo, não precisava reviver memórias de um
ano atrás, nem relembrar os motivos que o tornaram um canalha. Também
não precisava preocupar-se com mais nada, já que, em poucas horas, cada um
seguiria seu caminho.
A viagem fora silenciosa, a princípio. Leonard observava, provavelmente
intrigado pela interação íntima demais entre o amigo e a fugitiva. Nate
apreciava não ter que conversar, assim não enfrentaria novos interrogatórios
de Lucille. E ela estava visivelmente constrangida. Suas bochechas
permaneciam com aquele rubor indecente que fazia Nathaniel salivar e
endurecer ao mesmo tempo, mesmo que ele precisasse, com todas as suas
forças, manter-se concentrado. Não podia se deixar excitar por qualquer
suspiro que ela dava. Nem pelas imagens da mulher nua que sua mente
insistia em mostrar.
Por uma hora, eles se estranharam e se reconheceram. A paisagem era
constante – os black birches 1 com suas folhas exuberantes sombreando a
estrada, vegetação rasteira, uma trilha bem demarcada com saibro e o ruído
indicando que estavam próximos de um curso de água. Todas as estradas,
fossem elas muito ou pouco frequentadas, seguiam os rios. Tudo que se ouvia
eram os cascos dos cavalos e os pássaros que farfalhavam as folhas com em
seus voos e gritos.
— O que diz a pista do seu irmão? — Lucille aproximou-se dele,
emparelhando os cavalos.
— Que um homem com suas características foi encontrado na praia,
bastante ferido. Mas pode não ser ele.
— E pode ser. Espero que seja.
Ela sorriu. A sinceridade em sua alegria o desarmou. Nathaniel não estava
mais acostumado a pessoas francas. Todos que o cercavam eram jogadores –
e estavam sempre blefando, ou homens de moral e dignidade duvidosas – e
estavam sempre dissimulando ou mentindo. Aquela mulher era honesta em
tudo, principalmente nos seus sentimentos, e não parava de surpreendê-lo.
— A pessoa que deu a informação vai o encontrar em Norwalk?
Leonard olhou para trás, provavelmente estranhando a interação entre
eles. Nate era conhecido por seu humor sombrio e raramente gostava de
conversar. Não respondia questionamentos, os fazia. Seu agir com Lucille era
significativamente diferente do seu agir com as demais pessoas e isso
certamente causou estranheza em seu amigo.
— Não, Lucy, eu sequer sei quem passou a pista. A informação veio
anônima e teremos que chafurdar a cidade atrás de alguma coisa. Por isso
trouxe uma fotografia de Emile, assim poderei perguntar se ele foi visto.
— Tem uma foto de seu irmão? Ela não ficou na carroça?
— Jamais deixaria Emile em uma carroça. Está no bolso interno do meu
casaco.
Lucille sorriu novamente e aproximou mais os cavalos. Sussurrou alguma
coisa na orelha de Hades e soltou o arreio, levando a mão até os botões do
casaco de Nathaniel. Antes que ele pudesse reclamar pela intromissão, ela os
abriu e buscou o bolso interno, encontrando a fotografia. Estava curiosa sobre
Emile e demonstrava um desprendimento que não era saudável. Ninguém
podia sentir-se tão à vontade na presença de Nate, ele era intimidante e não
gostava que o tocassem sem autorização. Mas ela ignorava aqueles alertas ou
sentia que podia fazer qualquer coisa que outras pessoas não pudessem.
— Ele é tão jovem!
— Fez vinte e seis anos. É o McFadden mais jovem, se contarmos apenas
os irmãos. Eu acredito que ele esteja vivo porque Emile é um sobrevivente.
Nasceu prematuro e o médico o entregou para mamãe segurar dizendo que
ele não passaria daquela noite. Ela nunca acreditou nisso, já havia parido três
filhos e sabia como cuidar de outro bebê. Apesar de ter desafiado os médicos,
Emile sempre foi frágil. Tinha pulmões ruins, nunca brincava conosco e
tomava muitos tônicos. E, um dia, pouco depois do acidente de Isaac, ele
decidiu que precisava se curar. Não sei o que fez Emile mudar, mas ele
passou um ano na faculdade, formou-se e voltou para casa outro homem,
forte como um touro.
Ele também não sabia o que o fizera abrir seu coração daquela forma.
Não, Nathaniel não abria nada, menos ainda o coração que era duro como
pedra. Estava contando uma história para distrair Lucille porque ela gostava
de ouvi-lo e estava curiosa. Ainda com um sorriso, ela colocou novamente a
foto no bolso do casaco e deslizou a mão pelo braço dele, até segurar seus
dedos e os levar até a boca. Em um ato bastante espontâneo – e indecoroso,
ela beijou os nós de seus dedos com lábios quentes e macios, para então
retornar a segurar as rédeas do seu cavalo.
Era um gesto gentil e Nate detestava gentilezas. Desde que chegara em
Nova Iorque, toda gentileza direcionada a si era interessada – sempre queriam
mais dele, ou havia coisas que deveria fazer para merecer que fossem
educados consigo. Tudo se resumia em uma troca, em o que alguém poderia
fazer para receber algo. Não havia atos abnegados, o discurso altruísta era
uma grande bobagem.
A conversa os distraiu o suficiente para não perceberem o tempo passar.
Depois de mais algumas milhas percorridas, a cidade de Norwalk despontou
à frente. Era cedo o suficiente para que fossem diretamente procurar
informações sobre Emile, o que levou Nathaniel a emparelhar o cavalo com o
baio alugado de Leonard para traçar estratégias.
— Vamos nos separar para cobrir uma área maior. Temos alguns pontos
de interesse para perguntar sobre meu irmão.
— Estação de trem, agência postal, hospital, parque público. Há um
parque público em Norwalk?
— Sim, e tenho tudo mapeado.
Nate tirou do bolso, o mesmo onde estava a foto, um papel com as
localizações dos pontos principais onde poderiam interrogar pessoas sobre
Emile. A maioria ficava em zona de encosta.
— Sua organização continua impecável, apesar da enorme distração que
arrumou para si. — Leonard olhou para trás. — Deixe-me andar com ela um
pouco, você precisa de foco, meu amigo.
— O que o faz pensar que não estou focado?
— O fato de ter dormido com ela essa noite?
Maldição, era óbvio que Leo descobriria – não que ele estivesse fazendo
questão de esconder seu envolvimento com Lucille.
— Não dormimos juntos.
— Só havia uma cama desarrumada quando cheguei.
— Isso nunca me atrapalhou a fazer meu trabalho, Leo.
— Prometo cuidar dela. Vamos ao hospital, sabe que mulheres são muito
mais sensíveis para essas tarefas.
Nathaniel respirou fundo. Aquele diálogo era absurdo. Lucille não era
dele para que tomasse decisões a seu respeito nem para que se importasse
com sua segurança. Bem, ele se importava, mas confiava em Leo. E sim, ela
certamente era bem mais sensível do que os dois juntos.
— Mas ela não é uma mulher, é um homem, para todos os fins. Converse
com ela, não é minha essa decisão.
Leonard assentiu e os cavalos prosseguiram até a entrada da cidade. A
facilidade de viajar por estradas secundárias era, além da privacidade e do
silêncio, a possibilidade de chegar sem ser notado – isso permitiu que se
aproximassem sorrateiramente de uma pensão para viajantes. Nathaniel
entrou para registrar quartos a fim de permitir que passassem a noite e deixou
que os outros dois conversassem sobre o desenrolar do restante do dia.
Capítulo décimo segundo
E LA SUSPEITAVA QUE L EONARD E CKLEY NÃO GOSTAVA DELA , MESMO QUE ELES
sequer se conhecessem. Era a forma como ele a olhava, ou porque
conversava com Nathaniel sempre na intenção de separá-los de alguma
maneira. Quando ele se aproximou de Lucille, depois que os cavalos foram
entregues a um cavalariço, foi para questionar suas intenções.
— Srta. Smith, creio que precisarei de sua ajuda hoje. Importaria de me
acompanhar até o hospital e à agência postal?
O sorriso do Sr. Eckley era bem mais aberto e talvez mais encantador que
o de Nathaniel. Era como se ele não usasse máscaras nem subterfúgios e não
se escondesse atrás de nenhum papel. Mas Lucille não era tola, ela sabia que
homens não eram confiáveis e que aquele homem deveria ser menos
confiável que os outros.
— Em que poderia ajudar?
— O hospital da cidade é um lugar horrível, cheio de moribundos,
cuidado pelas freiras. A senhorita teria muito mais acesso do que eu ou Nate.
Lucille olhou para si própria e depois encarou o Sr. Eckley. Ele mantinha
o sorriso galanteador. Mesmo precisando de dois ou três minutos, ela
compreendeu o que ele queria.
— Então o senhor sugere que eu me vista de mulher, novamente?
— Sim, sugiro. Não se preocupe, senhorita, os capangas que a procuram
não irão a um hospital.
— Não tenho roupas femininas.
— Providenciaremos uma. Há lojas por aqui.
A ideia era tentadora por dois motivos. Primeiro, ela não aguentava mais
as faixas e as calças, por mais libertadoras que fossem, esquentavam o meio
de suas pernas. O motivo do calor poderia ser outro, provavelmente estaria
relacionado a um homem loiro, um par de olhos azuis e mãos provocadoras.
Mas, ainda assim, ela gostaria de usar vestidos novamente – afinal, foram
vinte e sete anos com saias e calçolas abertas, então as ceroulas a estavam
enlouquecendo. E o segundo motivo era querer ajudar Nathaniel a encontrar
seu irmão. Ele falou de Emile com tanto sentimento que a fez perceber que
era real, ele amava o irmão.
Se fosse de alguma utilidade, ela arriscaria ser reconhecida.
— Tudo bem, Sr. Eckley. Vamos.
— Perfeito. Avisarei Nathaniel que estamos indo e nos encontraremos
aqui ao final da investigação.
Lucille olhou ao redor enquanto esperava. Havia muita gente pelas ruas e
qualquer uma daquelas pessoas poderia a estar procurando, da mesma forma
que eles procuravam por Emile. Não sabia se caçadores de recompensa eram
barulhentos e anunciavam sua chegada. Era mais provável que andassem
pelas sombras e isso ampliava o risco. O Sr. Eckley retornou logo e a
conduziu para um conjunto de pequenos estabelecimentos comerciais que
ficava em outra quadra. Entraram em uma loja de roupas femininas pré-
prontas, do estilo que ela nunca usou – porque uma Smith sempre se vestia
com exclusividade.
A vendedora a conduziu para uma sala fechada e entregou diversas peças
para que experimentasse. Lucille pediu de tudo, desde roupas íntimas até
sapatos. Separou um conjunto de seda e fitas lilases e pensou se Nathaniel
gostaria deles. Depois, vestiu as meias pretas e bordadas e o imaginou
passando a mão por cima delas. Uma jovem a ajudou a fechar o espartilho e
Lucille desejou que fossem as mãos dele puxando as fitas. Depois de se
enfiar em um lindo vestido branco com corpete e mangas de renda e babado
na frente, ela ainda podia sentir como se fora Nate que a vestira. Estava
completamente fora de si e sequer sabia se era efeito do que compartilharam
na cama.
Tentando afastar as imagens tentadoras do homem que a estava
enlouquecendo, gostou do que viu no espelho. Lindos botões perolados
formavam pequenas flores bordadas pela parte superior e a gola era
delicadamente fechada no pescoço. Com um chapéu pequeno para o dia e um
ajuste nos cachos curtos, Lucille estava como uma mulher comum, porém
bem vestida.
— Agora sim, a senhorita encantará as freiras.
— Sorte a sua, Sr. Eckley, que eu costumava visitar o orfanato com
minha mãe. Conversar com freiras é quase uma especialidade minha.
Leonard Eckley ofereceu a ela o braço. Se estava vestida novamente
como uma mulher, era adequado que caminhasse pela cidade acompanhada –
e aquela companhia parecia segura o suficiente. Ele usava um traje completo
mais elegante que o de Nathaniel e tinha um porte mais altivo, como se não
carregasse o mundo sobre as costas. Pegaram um coche de aluguel até o
hospital e pediram para conversar com a diretora.
Foram recebidos em uma sala pequena. As instalações do hospital
assustaram Lucille – precárias e muito diferentes do que havia em Nova
Iorque. Talvez aquele não pudesse ser classificado como um hospital, mas
como um mero depósito de pessoas enfermas cujas doenças dificilmente
seriam curadas. Permitindo que ela falasse, Leonard Eckley entregou a foto
de Emile e manteve-se de pé, afastado.
— A senhorita está procurando este senhor? — A diretora colocou um
par de óculos pendurado na ponta do nariz — E acha que ele estaria aqui?
— Na verdade, senhora, eu não imagino onde ele poderia estar. Na última
notícia que tivemos dele, estava ferido e com risco de morte. Ele é meu primo
e minha tia está desolada.
— Entendo. Se a senhorita aguardar um minuto, levarei essa fotografia
para as salas dos enfermos e verei se ele se encontra entre eles. Também verei
se alguma enfermeira se lembra dele, mas não tenho muitas esperanças. Um
homem bonito assim seria difícil de esquecer.
Lucille sorriu e agradeceu. Ela também entendia a freira – era quase
impossível parar de pensar em Nathaniel. Se o irmão fosse parecido com ele,
também teria carisma suficiente para ser memorável. Mas havia esperança,
ele poderia estar inconsciente.
Esperaram por quase meia hora em um corredor no primeiro andar, de
onde podiam ver o pouco movimento no térreo. Quando a freira retornou, não
trouxe boas notícias.
— Infelizmente, nenhuma de nossas enfermeiras o viu. Ele também não é
um dos enfermos, nenhum dos que está aqui tem ferimentos, apenas doenças
do corpo e da alma.
— Agradeço sua atenção. — Lucille segurou as duas mãos da mulher. —
Posso deixar um telefone com a senhora? Assim, se meu primo aparecer por
aqui ou se a senhora ficar sabendo dele, poderia me contatar?
— Será um prazer ajudar.
Ela foi até Leonard Eckley e pediu que ele anotasse o telefone do
Gênesis. Não diria para a freira que era de um clube de jogos ilícitos e um
antro de prostituição, mas precisava dar a ela alguma forma de contato.
Afinal, era possível que notícias de Emile ainda chegassem aos seus ouvidos.
Depois de deixar o telefone com seu nome anotado, saiu rindo da composição
que fizera. Se era prima do desaparecido, achou por bem manter o sobrenome
dele – e se tornou Lucille McFadden.
Era cômico que usasse o sobrenome do homem pelo qual estava
ligeiramente encantada. Aquilo a fez rir de nervoso, deixando o Eckley
ligeiramente confuso. Depois de saírem do hospital, foram à agência postal,
onde havia um grande tráfego de pessoas. Lucille ficou nervosa ao chegar,
temendo que ali houvesse algum homem à sua procura. Manteve o chapéu de
lado e o rosto virado na direção do Sr. Eckley, evitando que a olhassem
diretamente.
— Não precisa preocupar-se. — Ele sussurrou próximo a ela. — Se tiver
algum caçador de recompensas por aqui, saberei.
Lucille não duvidou, aqueles homens pareciam ter um senso aguçado de
preservação que os permitia perceber tudo ao redor. Sentindo-se ainda
insegura, ela tentou se portar como era esperado de uma mulher – servindo de
decoração. Leonard Eckey circulou pelo lugar mostrando a foto de Emile a
diversas pessoas, fazendo perguntas, enquanto ela segurava na dobra de seu
cotovelo e mantinha a expressão amável. A agência postal era pequena,
portanto, passaram a circular pelas ruas, onde havia um pequeno comércio.
Viraram algumas esquinas, perguntaram a lojistas, até que pararam
subitamente.
— Há um burburinho estranho por aqui. Não somos apenas nós que
estamos procurando alguém.
— Como sabe?
O Sr. Eckley olhou para o lado e indicou, com um movimento de seu
maxilar quadrado, algumas pessoas que conversavam alguns metros distante.
Eram homens que mostravam um papel para algumas mulheres,
possivelmente uma fotografia. Lucille sentiu seu coração disparar, dominada
pelo medo.
— Mantenha a calma. Vamos sair daqui e voltar para a pensão.
Ela o seguiu, tentando não demonstrar seu nervosismo. Suas mãos
suavam dentro das luvas, que ela não usava há dias, e seus pés deslizavam
dentro dos sapatos. Esperava que o estado de sua alma não estivesse visível
para ninguém, pois ela estava bastante confusa. Tão logo saíram da frente dos
supostos caçadores de recompensa, entraram em um carro de aluguel e
rumaram para seu destino. A busca por Emile fora interrompida, mas Lucille
estava começando a suspeitar que o irmão de Nathaniel não estava por perto
para ser encontrado.
A viagem para Nova Iorque seria melancólica, Isaac tinha certeza. Partira no
dia seguinte ao recebimento do telegrama que informava o falecimento de seu
irmão e mal tivera a oportunidade de despedir-se adequadamente de sua
esposa e filhos. Assim que entrou na embarcação sucumbiu à realização de
que perdera Emile e que estava na iminência de perder Nathaniel, também.
Não podia aceitar aquilo, não podia permitir que as Américas lhe levassem
dois irmãos. Acabou permanecendo trancado em sua cabine por dois dias,
saindo apenas no terceiro.
Por sorte, a riqueza de seu irmão podia financiar uma longa viagem na
primeira classe em um navio moderno. Todas as facilidades estavam à sua
disposição, inclusive uma área para cavalheiros, com mesas de jogos e bar.
Sentou-se em uma mesa e observou o ir e vir de homens que não conhecia. A
maior parte dos viajantes era composta por burgueses que tinham negócios
frequentes nos Estados Unidos e americanos retornando para casa. Pediu um
conhaque a um garçom bem-vestido e continuou observando até ver uma face
conhecida. Lorde Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Isaac ergueu o copo em cumprimento ao colega. Thaddeus estudara com
ele na faculdade e se formara com honras. Era um homem extremamente
inteligente e responsável, mas quase não frequentava Londres – preferia
viajar e conhecer o mundo.
— Oras, se não é meu maior adversário de xadrez. — O marquês se
sentou na cadeira vazia à frente de Isaac.
— É um prazer revê-lo, Thad. Não tive como expressar pessoalmente
minhas condolências pelo súbito falecimento de seu pai.
— Foi tudo muito rápido. — Thaddeus pediu um conhaque para si. —
Papai era um homem forte, apesar da idade. Não esperávamos que ele fosse
nos deixar por agora. Ao menos teve uma vida regada dos maiores prazeres
que um homem pode desejar.
Isaac ergueu o copo novamente, daquela vez propondo um brinde
póstumo.
— Que ele descanse em paz. O que o leva aos Estados Unidos?
— A salvação do marquesado. Meu pai não nos deixou em boas
condições financeiras, estimo que estejamos falidos.
— Lamento ouvir isso. Está com negócios em Nova Iorque, então?
— Meu pai tinha um negócio fechado que eu precisarei assumir. Se o
fizer, receberei dinheiro o suficiente para saldar as dívidas e permitir que o
marquesado prospere, além de resolver o problema que gira em torno da
necessidade de produzir um herdeiro.
— Não creio que tenha compreendido.
Thaddeus riu, bebendo seu conhaque em um gole só.
— Meu pai estava noivo. Iria casar-se com uma jovem americana, filha
de um industriário riquíssimo, com um dote obsceno.
A informação não chocou Isaac. Aquela ainda era uma das práticas mais
comuns, por mais que ele a condenasse. Nobres falidos, com títulos
importantes, casando-se com americanas, ou casando suas filhas com
americanos sedentos por fazer parte da nobreza.
— E você pretende assumir o lugar de seu pai nesse casamento?
— Não parece muito difícil, afinal o pai dela só tem interesse no título.
Não importa se o marquês tem sessenta ou trinta anos, não é mesmo?
— Creio que a jovem gostará mais de desposá-lo, milorde. A não ser que
ela estivesse apaixonada por seu pai.
A risada sonora de Thaddeus ecoou pelo bar. Claro que ela não estava. O
velho marquês, que Deus o tivesse, era um homem desagradável, rude e que
costumava cuspir ao falar. Dificilmente uma jovem se casaria com ele por
amor, mulheres não gostavam de ser maltratadas.
— Você tem sorte de ser o segundo filho, Isaac. — A voz do novo
marquês estava, então, cheia de ressentimento e mágoa. — Por mim, passaria
o título e seus encargos para meu irmão, ele é mais preparado para assumir o
marquesado do que eu. As obrigações que precisamos assumir para cumprir
nossos deveres são, às vezes, muito custosas.
— Não fique assim, meu caro. — Isaac colocou a mão no ombro de
Hertford. — A jovem pode ser uma boa moça, você pode acabar sendo muito
feliz.
Mesmo sem saber se era possível encontrar felicidade no casamento sem
amor, o desejo era sincero. Isaac se casou com a mulher que amava, mas seu
irmão conde também o fez. Mesmo que o casamento de Edward, no início,
parecesse um arranjo conveniente, já que ele arruinara a irmã de seu melhor
amigo em um jardim, Isaac sabia que ele sempre nutriu sentimentos por
Agatha. E eles, mesmo depois de seis anos, eram o exemplo de um casal
feliz.
Os dois colegas continuaram bebendo e contando suas histórias. Isaac
achou melhor evitar o assunto referente aos seus irmãos, já que nem ele
mesmo sabia o que acontecera. A viagem ainda duraria alguns dias e talvez a
presença de Thaddeus o ajudasse a passar o tempo fora de sua cabine.
New Haven era uma cidade maior do que Norwalk. Sua área costeira
impressionava e, naquela época do ano, as pessoas também ocupavam as
praias locais. Não eram prazeres aos quais Nathaniel poderia se render, então
ele ignoraria a compulsão que o litoral sempre lhe causava. Nascido em
Thanet, as praias sempre o atraíram sobremaneira. Mas havia uma missão a
cumprir, ele precisava focar nela como não fizera nos dias anteriores.
Leonard estava certo, Lucille o distraia. Não era culpa dela, nada que a
mulher fizesse ou deixasse de fazer o ajudaria a recuperar a sanidade. Se ela
se entregasse a ele totalmente, ele iria passar o tempo desejando mais. Se ela
desaparecesse de sua vida, o que aconteceria em breve, ele permaneceria com
sua memória assombrando-o. Saberia lidar com isso, mas não podia negar
que lhe causava uma dispersão inconveniente dos pensamentos.
Ao invés de irem a um hotel, daquela vez ele partiria para a busca direta
de Emile. Guiou a carroça pela cidade, indo até uma área comercial próxima
à costa. O cheiro de maresia quase o deixou embriagado.
— Vamos comer e investigar. — Ele decidiu, depois de estacionar a
carroça em um pátio destinado a esse fim. — Pretendo deixar a cidade ainda
hoje.
— Nada mais de hotéis, restaurantes e jogatinas, então? — Ela fez uma
piada. Lucille sorria sutilmente e não demonstrava irritação com ele, mesmo
depois de a ter ignorado durante toda a viagem.
— Se não quisermos ser capturados, teremos que mudar de estratégia.
Essa é uma fuga, Lucy, não um passeio de férias.
Ela concordou e pulou da carroça, já demonstrando habilidade em agir
como um homem. Vestida daquela forma e com atitudes mais masculinas, ela
enganaria olhos menos desavisados e não seria reconhecida por qualquer um.
A segurança do disfarce parecia mantê-la mais tranquila. Nathaniel
certamente estava, ele não imaginava como Leo fora tão imprudente no dia
anterior.
Comeram e interrogaram pessoas, caminhando lado a lado por várias
ruas. Perguntaram sobre Emile, sobre um homem ferido vindo pelo mar,
sobre homens com ferimentos de bala. Havia um hospital beneficente como
em Norwalk, simples e precário, que não recebia um baleado há meses.
Aquele tipo de ferida atraía o corpo policial porque precisava ser reportado às
autoridades. Homens baleados dificilmente procuravam tratamento em
hospitais públicos, mesmo que fossem pobres e não pudessem pagar por
médicos de qualidade.
A frustração fez com que Nathaniel se irritasse. Se estivesse em Nova
Iorque, iria a um ringue socar alguns narizes ou arrumaria novos devedores
para torturar. Sua dor passava com a dor alheia. Quando ele fazia alguém
sangrar por suas mãos sentia um sofrimento menor. Era como se, ao
despedaçar outras pessoas, ele os colocasse em posição de igualdade.
Pararam para dormir na beira da estrada, um pouco mais distante do curso
de água, daquela vez. Não haveria banho ou refeição quente naquela noite,
nem camas macias ou uma boa dose de uísque para o acalmar. Ao menos fora
cuidadoso de adquirir uma barraca grande o suficiente para que não
precisasse dormir por cima de Lucille – ou ele não dormiria.
Naquele dia ela pareceu disposta a lhe conceder paz. Não insistiu em uma
conversa amigável, nem fez perguntas que Nathaniel não desejaria responder.
Manteve-se distante. Observando-o, mas distante, respeitando seu espaço
individual. Todo aquele comedimento não parecia condizente com o espírito
dela, então o fazia apenas por ele. Para preservá-lo, reconhecendo sua
decepção, o desgosto de não obter êxito em sua busca.
Por isso, Nate montou a barraca sozinho, sem pedir a ajuda dela, sem
solicitar uma proximidade com a qual não saberia lidar. Só não conseguiu
parar de olhar para ela. Enquanto cavava, enfiava estacas ou estendia a lona,
observava-a conversar com Hades. O cavalo, que não gostava de ninguém,
gostava dela. Inclinava a cabeça para frente e apoiava a fronte no peito de
Lucille, mesmo que ela fosse bem menor em estatura. Agitava as patas
quando ela falava algo, relinchava. Zeus disputava atenção com o irmão
equino, mas isso não surpreendia Nathaniel. Sua fascinação se dava por ela
ter tanta habilidade em conquistar o puro-sangue mais arredio que ele
conhecera.
Era aquilo que ela estava fazendo com ele. Não, não podia ser. Ele não se
abria para ninguém, não importava quem fosse. Ele não deixava ninguém
entrar, as portas de sua alma eram trancadas e Nathaniel não fazia ideia de
onde estavam as chaves. Os cacos de seu coração ficavam guardados e
ninguém tinha o direito de sequer pensar em os remendar. Lucille Smith era
uma distração temporária e ele não podia, de jeito algum, encantar-se por ela.
E RA POR ISSO QUE ELE PASSARA QUASE DOIS DIAS SEM ABRIR A BOCA –
porque acabava falando todo tipo de bobagem na presença de Lucille. Ela o
instigava, provocava, desafiava e ele sempre era capturado na sua rede.
Contou mais do que deveria sobre sua história de vida e acabara de dizer que
poderia gostar dela. Gostar. Nathaniel não gostava nem de si próprio, como
poderia gostar de alguém?
Mas havia mais entre ele e Lucille do que simples luxúria. Se fosse
apenas isso, ele já a teria seduzido. O que o impedia de ir além era mais do
que respeito pelo pedido dela, era medo. O invencível, imbatível e inabalável
Nathaniel McFadden estava com medo de sentir qualquer coisa que fosse por
aquela mulher. Não era um temor irracional. Ela era um pouco perturbada,
com toda aquela vitalidade e aquele desejo de conhecimento. Também era
curiosa demais, falante demais, sempre se intrometendo em assuntos
masculinos. Além de não se importar em perder, o que era imperdoável. Nate
jamais poderia tolerar envolver-se com alguém que apreciava mais o jogo do
que a vitória, ele tinha certeza.
Depois de sair da água e precisar de uma força sobre humana para afastar-
se dela, Nathaniel começou a duvidar de sua sanidade. Aquela viagem
precisava acabar antes que ele não conseguisse mais finalizá-la. Precisava,
também, manter-se mais tempo em silêncio, mesmo que isso significasse
magoar Lucille. Era preferível que ela não gostasse dele, também. Que ela o
desprezasse, o achasse arrogante e mal-educado. Quanto menos a companhia
dele ela quisesse, melhor para ambos.
A viagem seguiu até Newport, onde não tiveram nenhum sucesso
procurando por Emile. Passaram por mais duas cidades até chegarem a
Plymouth. Aquela seria a última parada antes de Boston. Quando chegassem
à cidade destino, Nathaniel garantiria que Lucille estivesse em um navio e,
então, retornaria para casa. Ainda não sabia se faria mesmo a peregrinação
esperada por aldeias indígenas ou se esperaria o irmão contatá-lo. Suas
esperanças se esvaíam a cada milha percorrida, a cada não recebido, e sua
vitalidade estava se esgotando.
Ela percebeu, claro. Lucille era muito observadora e a frustração de
Nathaniel a estava contagiando. Quanto mais sombria sua alma ficava, mais a
dela escurecia.
Plymouth era uma cidade costeira muito escolhida por pescadores e
turistas. Pessoas que queriam descansar à beira-mar, famílias que queriam um
tempo afastadas da loucura que as grandes cidades estavam se tornando. O
perigo continuava rondando, mas Lucille quis ver a praia e ele não conseguiu
impedi-la. Bem, Nathaniel sabia que não a conseguiria impedir de nada, já
que ela era adulta e livre para fazer o que desejasse. Mas não fora até ali para
permitir que ela se colocasse em risco, o que significava que a acompanharia.
— Nunca foi à praia? — Ele perguntou, vendo-a retirar os sapatos e
dobrar a bainha da calça. Pés femininos e delicados tocaram a areia fina – e
provavelmente gelada, fazendo com que Nate suspirasse.
— O litoral aqui é intrigante, eu nunca viajei tão para o norte. Você não
gosta de praias, Sr. McFadden?
— Cresci em uma vila litorânea, minha vida foi à beira-mar.
— Oras, uma história. — Ela sorriu, ajeitando alguns cachos soltos para
dentro da boina. — Conte-me.
Ele não queria contar, mas acabaria falando tudo que ela desejava ouvir.
Seguiu-a até onde as ondas arrebentavam, mantendo distância segura para
não molhar mais do que pretendia.
— A propriedade preferida do meu pai era Greenwood Park, que fica na
vila de Thanet, em Kent. Quando eu era moleque, a vila era muito pequena e
nós aterrorizávamos os habitantes. Eu e Isaac éramos terríveis.
— Quem é Isaac?
— Meu irmão, ele é apenas um ano mais velho. Somos muito próximos.
Éramos. Desde que vim para Nova Iorque nós não nos falamos muito. Agora,
provavelmente não nos falaremos nunca.
Nathaniel sentou-se na areia úmida. Pensar em Isaac o fez desmoronar
por dentro e não podia permitir que Lucille percebesse. Ela abandonou o que
estava fazendo e se sentou ao lado dele, interessada na abertura que concedeu
depois de dias.
— Não diga isso. Ele saberá que você não é culpado pelo que aconteceu
com Emile.
— Se eu me sinto culpado, Lucy, por que ele não acharia o mesmo?
Havia algumas pessoas perambulando pela praia, o que impediu Lucille
de tocá-lo. Pela forma como ela ergueu a mão e depois a recolheu, Nathaniel
entendeu que ela estava se controlando para não fazer nada que colocasse seu
disfarce em risco e os expusesse. Como viajavam bem devagar, era provável
que os caçadores de recompensa estivessem sempre à frente.
— O sol vai se por. — Ele continuou. — Devemos voltar para o hotel.
Amanhã é um grande dia, você estará livre.
— Nate. Diga o que aconteceu com você. Conte para mim, já que
estamos nos nossos últimos momentos juntos. O que houve quando vocês
desistiram de negociar com o Sr. Carlisle?
Ele respirou fundo e a olhou. Talvez se contasse toda a verdade, isso a
assustasse o suficiente para fazê-la se afastar.
— Nós nos envolvemos com contrabando. Bebidas, charutos, seda, tudo
que pudesse ser contrabandeado e que rendesse dinheiro. Mas não levou um
mês para que o contrabando nos conduzisse aos jogos ilegais. Nos acusaram
de jogar sujo, porque eu conto cartas. Pensei que fosse esperto e que não
perceberiam, mas perceberam. Eu não tinha dinheiro para pagar a dívida,
Leonard não tinha, então fomos capturados por cobradores de dívidas. Eles
nos surraram todo dia, eles nos bateram e praticaram todo o tipo de tortura
que eu nem sabia que existia. Quase não temos marcas no corpo, mas eles
conseguiram nos destruir por dentro. Depois de algum tempo, o chefe
apareceu. Ele disse que pagara nossa dívida e que poderíamos pagar a ele
com trabalho.
Lucille não pareceu muito chocada.
— Quem era o chefe? Vocês o conheciam?
— Não. Ele é o dono do Gênesis e nós nos tornamos seus homens de
confiança. Aprendemos a transformar nosso trauma em outra coisa, e isso é o
que eu sou agora.
Nathaniel abriu os braços como se quisesse mostrar a ela a dimensão do
que ele representava.
— Quem era o credor?
— Isso não importa, Lucy.
— Claro que importa. Quem mandou torturarem vocês?
— Seu pai. — Ele a fitou de soslaio. — Walter Smith, foi para ele que
ficamos devendo. Mas nada disso importa mais, já paguei a dívida.
Tranquilize-se, pois amanhã estará livre. De mim, de toda essa vida.
O sorriso nos lábios dela era sincero e triste. Ele pensou que a
proximidade da liberdade a deixaria exultante, mas não era alegria o
sentimento que os envolvia naquela última parte da viagem. Seguiram sem
continuar a conversa até o pequeno hotel que os abrigaria naquela noite, uma
pequena indulgência que ele estava disposto a fazer por ela. Estava sendo
uma viagem bem pouco custosa e Lucille, cujas economias ele recusava toda
as vezes, não gastava com absolutamente nada. Sendo mulher, ele esperava
que ela fosse desejar roupas ou outras bobagens, mas ela estava
suficientemente empenhada em sua fuga.
— Vamos nos encontrar para o jantar? — Ela perguntou, antes de abrir a
porta de seu quarto.
— Não, eu jantarei aqui mesmo. Boa noite, Lucy.
Saber que a estava desapontando causava a mesma dor de um punhal
cravado no peito, ainda assim ele não conseguia evitar. Fechou a porta atrás
de si e recostou-se na madeira por um longo tempo, colocando os
pensamentos no lugar. Leonard tinha razão, sempre teve, a garota era uma
grande distração, mas ela também o afastava do abismo que o engolia pelo
desaparecimento de Emile. No dia seguinte, tudo acabaria e ele voltaria a ser
o homem taciturno e cruel que sua profissão exigia.
Tomou um banho, pediu o jantar e se deitou para esperar a comida
chegar. Seu corpo doía pelos dias sentados na carroça desconfortável, pela
falta de exercício físico e pelo esforço para não sair e ir atrás de Lucille.
Fechou os olhos e cochilou, até ser despertado por três batidas sutis na porta
– o jantar chegara.
Mas, ao girar a maçaneta a mesma imagem de dias atrás o fez reviver o
momento em que tudo começara. Lucille entrou, sem pedir licença, vestindo
um roupão. Ela tinha os cabelos penteados, cheirava a almíscar e sabão, e seu
olhar era determinado.
— O que houve, Lucy?
— Amanhã eu parto para a minha nova vida. Eu vou me lançar em uma
jornada sem saber o que há do outro lado do caminho, Nate, e mentiria se
dissesse que não estou com medo. Mas nunca tive tantas certezas em minha
vida, e devo muito disso a você.
— Você não me deve absolutamente...
Ela levou o indicador até os lábios dele e o silenciou.
— Deixe-me terminar, ou não conseguirei fazer isso. — Ela deu dois
passos para trás e sorriu. — Com você eu vivi experiências incríveis em tão
pouco tempo. E é com você que eu quero viver isso, também. — Lucille
puxou o laço que prendia seu roupão e o veludo caiu ao chão. Ela não estava
de roupas íntimas daquela vez, mas completamente nua. — Eu quero que
você faça amor comigo.
No primeiro dia, Lucille ficou trancada em seu quarto sem ver ninguém, o
que considerou uma sorte. Estava profundamente ferida em sua alma, tendo
perdido a chance de escapar para sempre de um destino infeliz. Também
estava profundamente triste por causa de Nathaniel McFadden, o homem que
a salvou e a levou ao inferno em apenas um dia. A imagem que se repetia em
sua mente era ele caído ao chão depois de ser alvejado por um de seus
captores. Deitada de lado na cama, abraçada com os joelhos no peito, ela
chorou por horas sem se preocupar em ser ouvida ou interrompida.
No segundo dia, o pai apareceu. Ele segurava uma toalha e ela já sabia o
que aquilo significava. Sem dizer nada, embebeu a toalha em água e mandou
que ela se levantasse. Lucille desobedeceu, pois não faria diferença. Ele a
espancaria não importava em que posição estivesse, portanto não lhe daria
mais o sabor de a controlar. Walter Smith poderia ser o dono de seu corpo,
mas jamais comandaria sua alma. Quando confirmou que ela não faria o que
mandava, o pai arrancou as cobertas que estavam sobre ela, sem se importar
com qualquer regra de decoro, e bateu com a toalha até a exaustão. Aquele
era o limite de Walter Smith – ele só parava quando estivesse cansado.
Lucille também sabia que aquele castigo não deixava marcas. Ela o vira
bater muitas vezes na mãe – sempre que planejava uma surra, fazia de forma
que ninguém percebesse a violência. A dor, no entanto, era quase
insuportável, mas ela não gritou. Não deu a ele o prazer de saber que a
machucara, mesmo que suas pernas tenham fraquejado ao final e ela tenha
terminado no chão – o lugar onde ficou o restante do dia.
No terceiro dia, a mãe a visitou. Lucille não comia nada desde que
retornara para casa, o que significava que morreria de fome ou ficaria doente
até seu noivo importante chegar da Inglaterra – o que aconteceria em breve.
Um dia? Talvez dois, e o Marquês de Hertford estaria em Nova Iorque para a
reivindicar como esposa.
— Você precisa se alimentar. — A mãe se sentou na cama, segurando
uma tigela de sopa. — Está pálida e com uma aparência adoentada, Lucy.
Ela manteve o silêncio. Estava de costas para a mãe, deitada de lado, sem
conseguir se concentrar em nada que não sua própria miséria. Precisava de
forças para fugir, para planejar outra forma de escapar do casamento
indesejado.
— Se não comer, terei que chamar o doutor.
— Não se preocupou com minha saúde quando o permitiu entrar e me
espancar. — Lucille disse, sem virar-se. — Não finja que se preocupa, agora.
Constance apoiou a tigela na mesa de cabeceira.
— O que pretendia que eu fizesse, Lucille? Ele é seu pai, você fugiu de
casa para o desafiar. Fez com que ele passasse uma enorme vergonha e...
— Cale-se, mamãe. — Ela se virou, sentando-se na cama. O corpo doía
como se ela tivesse sido atropelada por uma carruagem em alta velocidade.
— Não fiz nada, absolutamente nada, com ele. O homem que responde por
meu pai me vendeu como mercadoria barata para um nobre falido sem nunca
se importar comigo. Ele a trata pior que aos cavalos e você ainda o justifica?
Sempre permitiu que ele a agredisse e agredisse seus filhos.
— Há coisas que uma mulher não pode evitar, Lucille.
— Bem, eu não acredito nisso. Não aceito me casar com o Marquês de
Hertford e prefiro morrer tentando ser livre a aceitar passivamente esse
destino.
Virando novamente de lado, Lucille desejou apenas que a mãe se fosse,
mas ela permaneceu ali, sentada, em silêncio. As lágrimas encheram seus
olhos, mas ela as conteve, não pretendendo dar a ninguém o prazer de a ver
chorando.
— Se eu pudesse ajudar, faria algo.
— Você pode, se quiser.
— Algum novo plano para fugir e fingir seu próprio sequestro?
— Eu não fingi. — Lucille desistiu de resistir e se sentou. — Mamãe,
você entregaria um bilhete a Millicent?
A mãe endireitou a coluna e passou as mãos pela saia, demonstrando
nervosismo.
— Se pai ordenou que ficasse incomunicável.
— Se fosse para cumprir as ordens dele, não precisaria de sua ajuda. É
apenas um bilhete, eu preciso falar com ela. Milly não sabia dos meus planos,
não contei nada a ninguém.
— Certo, escreva o bilhete que providenciarei que ela o receba.
Com dificuldade, Lucille levantou-se da cama e se sentou à escrivaninha.
Seu coração batia acelerado e ela mal conseguia respirar. Se falasse com
Millicent, poderia saber notícias de Nathaniel e poderia ter uma chance de
fugir novamente – mesmo que fugir parecesse uma péssima estratégia. Mas,
daquela vez, embarcaria em Nova Iorque mesmo, e iria para o lugar mais
distante que pudesse – talvez as Índias.
Depois de escrever, leu rapidamente as palavras para ter certeza que seu
pedido ficara compreensível. Não ficou, talvez nem ela mesmo se entendesse,
mas não podia arriscar dar informações muito precisas. Apenas mencionar o
nome dos homens já os colocava em risco e tudo dependia do quanto sua mãe
estava disposta a agir por ela. Constance Smith nunca fizera nada para livrar
os filhos das punições do pai, aquela seria a primeira vez e Lucille estava
cética. Mas não havia outra forma de fazer chegar sua mensagem a Milly, os
criados não se arriscariam tanto.
Dobrou o bilhete, colocou dentro de um envelope e entregou à mãe.
— Você o lerá? — Perguntou, sincera.
— Não está endereçado a mim. Sairei hoje para visitar o orfanato e para o
clube de leitura. Antes, passarei na casa da Srta. Ryan.
O coração de Lucille continuava disparado, ribombando em suas costelas
e aumentando a dor pelas lesões que sofrera. Se Millicent recebesse o bilhete
e a ajudasse, talvez houvesse mais uma chance de escapar. Por um instante,
ela quis abraçar a mãe. Não era uma pessoa ruim, insensível – Lucille sempre
se considerou bem afetuosa. Mas não conseguiu. O mal que sofreu não foi
culpa de Constance, mas não conseguia perdoá-la por ser conivente.
Sozinha novamente, deitou-se na cama e se permitiu dormir um pouco
pela primeira vez em muito tempo. Dentro de si, acreditava que Nathaniel
estivesse vivo e sonharia em ser resgatada por ele – mesmo que ele não fosse
nenhum príncipe encantado e ela não estivesse nem um pouco interessada em
um.
Ele nunca sucumbia, essa era uma das únicas certezas que Nathaniel
McFadden tinha. Depois do que vivera no mês seguinte à sua chegada aos
Estados Unidos, sabia que não viera ao mundo para ser abatido. Talvez uma
doença tropical ou uma besta selvagem o atacasse e ele morresse se
contorcendo em uma dor terrível, mas homem nenhum o derrubaria. Mesmo
depois de ter sido atingido pelas costas, ele se levantou e atacou seu agressor,
usando a faca no bolso de seu colete para o subjugar. Os outros dois estavam
já feridos dentro do quarto, ambos alvejados por sua pistola. Ele arrastou o
terceiro para lá, trancou a porta e correu atrás de Lucille.
Era noite e a escuridão começou a engoli-lo. Nathaniel desceu as escadas
freneticamente, gritando por ela, sob os olhares assustados dos hóspedes,
empregados e gerentes do hotel. O tempo que gastou para livrar-se dos seus
agressores custou caro – Lucille não estava em nenhum lugar para ser vista.
Maldição! Era tudo sua culpa, se não tivesse sido tão egoísta e a mantido
em Plymouth para que pudesse passar outra noite ao lado dela, Lucille não
teria sido encontrada. A imagem dela sendo arrastada por um homem
qualquer fez a bile amargar sua boca, até ele perceber que era seu sangue
escorrendo pelos lábios. Talvez Nathaniel não sucumbisse, mas, outra vez,
ele não conseguiria salvar alguém que deveria proteger e carregaria aquela
culpa para sempre.
A escuridão finalmente o derrotou e Nate desmontou no meio da rua. Os
joelhos dobraram, o corpo não resistiu aos ferimentos e ele caiu ao chão
inconsciente. Não havia dor física, não havia nada além do vazio de saber que
Lucille sofreria as consequências de sua estupidez. Por muito tempo, era
apenas aquilo, um hiato em que nada acontecia, nenhum som poderia ser
ouvido, nenhuma luz poderia ser sentida. Ele permaneceu ali, caído, imóvel,
lamentando miseravelmente a dor de sua alma, sem nem mesmo conseguir
dar um fim à própria vida. Seria fácil demais, ele merecia sofrer pelo que
causara aos outros.
E, então, ele caiu em um precipício e permaneceu em queda por um longo
tempo, até uma mão segurar a sua. Nathaniel ergueu a cabeça e se viu
olhando dentro dos olhos castanhos de Lucille. Ela sorria e estendia os braços
para ele, no instante em que acordou.
— Oh. — Uma voz feminina, que não era a dela, soltou uma interjeição
espantada. — Ele despertou, doutor.
— Isso é muito bom. — Um homem de cara redonda e bigodes se
aproximou de onde Nathaniel estava. — Como se sente, Sr. McFadden?
Antes de responder, ele quis olhar ao redor. Estava de bruços, sentindo o
peso de dois cavalos em suas costas. Não estava mais no hotel onde se ferira,
estava em Nova Iorque, em seus aposentos no Gênesis. Se voltara para a
cidade, isso significava que pelo menos um dia se passara desde que Lucille
fora capturada pelos capangas de seu pai, ou seja, que ela estava sob as garras
de um homem ruim.
— Por quanto tempo fiquei desacordado?
— O senhor estava sedado com láudano e morfina. — O homem, que fora
chamado “doutor”, começou a mexer em um curativo que estava em suas
costas. — Está em uma posição desconfortável, portanto...
— Quanto. Tempo.
Nathaniel repetiu a pergunta, trincando os dentes ao sentir a dor de mil
espadas perfurando seu corpo quando o médico descobriu o ferimento e
passou alguma substância no local.
— Três dias, senhor, mas foi necessário. O senhor foi transportado
inadequadamente de Plymouth para cá e teve uma hemorragia interna,
portanto...
— Recoloque o curativo, doutor. — Nathaniel virou o pescoço e encarou
o médico, que não soube como reagir à ordem. — Se não fizer isso agora,
levantarei sem.
— O senhor não deve se levantar, ainda precisa repousar. O ferimento...
— Vou morrer?
— Ainda há riscos, senhor.
— Certo. Recoloque o curativo, por favor. E, enquanto isso, conte-me
como diabos cheguei até aqui.
O médico não estava acostumado a receber ordens de pacientes, mas
Nathaniel não era um paciente comum – era indisciplinado e acostumado a
comandar. Depois de fazer uma limpeza no local da cirurgia, enfaixou
novamente o ombro enquanto explicava o que lhe fora pedido.
— Não sei dizer como chegou até aqui, Sr. McFadden. Mas fui chamado
para o tratar e o senhor estava em péssimas condições.
— Quem o chamou?
— Seu amigo, o Sr. Eckley.
Nathaniel se sentou. Ao menos, tentou se sentar, apoiando as duas mãos
no colchão e erguendo o corpo com alguma dificuldade. Sentiu uma pontada
aguda no braço esquerdo, jogou o peso para o direito e tombou de lado no
colchão. A enfermeira que os acompanhava tentou o ajudar e recebeu um
olhar fulminante que a preveniu de aproximar-se. A dor era excruciante.
— Sr. McFadden, se tentar se levantar, irá sangrar e não poderei fazer
nada para ajudar. Por favor, ouça minhas recomendações e fique deitado.
Precisa que chamemos o Sr. Eckley?
Ele concordou, relutante, apenas assentindo com a cabeça. Deixou o
corpo pender novamente para frente e caiu de bruços, sentindo o ombro
latejar. Como ele estava em posição vulnerável, a enfermeira sentiu-se segura
de aproximar e ofereceu láudano para que bebesse. Qualquer coisa que
fizesse aquela dor horrível passar seria bem-vinda, mas Nathaniel não queria
apagar. Precisava conversar com Leonard porque precisava de notícias de
Lucille.
Permaneceu ali, um pouco desorientado, lamentando seus infortúnios,
enquanto ouvia a enfermeira andar, o médico fechar a porta e então o
silêncio. Enquanto esperava, podia pensar no que fazer dali em diante.
Provavelmente sabiam que era ele quem estava com a filha de Walter Smith,
mas isso seria abafado para evitar o escândalo. Ninguém deveria supor que a
mulher fora sequestrada ou fugiu, todo o processo de resgate foi tratado pelos
criminosos mais sorrateiros de Nova Iorque. O pai de Lucille precisava
garantir que a sua classe social não soubesse de nada, para que nada chegasse
aos ouvidos do futuro marido da filha.
Então, Nathaniel não estava particularmente em risco, mas ele fora levado
para o Gênesis, não para sua casa. Aquilo também significava que seu amigo
não confiava que Walter Smith não fosse tentar retaliar. Eles tinham um
histórico de desavenças passadas, era de se esperar cautela de ambos os
lados.
Mas a possibilidade de deixar Lucille para trás era simplesmente absurda.
Ele não a abandonou nenhuma das vezes em que teve a oportunidade, bem
antes de se envolverem. Se ela não quisesse casar-se com o tal marquês, se
isso ainda não acontecera, ele a ajudaria a cumprir seu plano. Talvez fosse o
sentimento de culpa que o movesse – se não tivesse deixado a luxúria
conduzir suas ações, nada daquilo teria acontecido.
Tempo passou sem que ele percebesse. Deitado em uma posição
incômoda, um minuto tinha a duração de duas horas. A porta do cômodo
onde ele estava alojado se abriu e algumas lamparinas foram acesas. A luz do
dia se esvaía quando a figura taciturna de Leonard ajoelhou ao seu lado. Os
olhos escrutinadores o observaram.
— Você está péssimo.
— Preciso sair daqui, tenho que falar com ela.
Nathaniel tentou usar os braços para erguer o corpo outra vez, sem
sucesso. Sua força se esvaíra e seus músculos não obedeciam a seus
comandos – era efeito do ópio. O maldito láudano, ele precisava parar com
ele.
— Nate, não seja imbecil. Não está em condições nem se se alimentar
sozinho, quanto mais de falar com alguém.
— O que sabe dela? Você tem notícias de Lucille, Leo? Ela já... o noivo
dela já...
— O navio de Londres ainda não atracou, ela deve estar sendo mantida
em casa. O pai não arriscará outra fuga. Vou pedir que preparem um caldo,
você precisa comer alguma coisa.
Leonard saiu e Nathaniel quis gritar. Se estivesse de pé, chutaria alguns
móveis, socaria a parede e se sentiria melhor. Talvez saísse e quebrasse a cara
de algum devedor, mas não podia fazer nada daquilo. Aliás, desde que
Lucille se metera em sua vida ele não pode mais esfolar nem esmurrar
ninguém. Por isso nunca se deixava abater, pois não aguentava ficar em
posição de vulnerabilidade. O amigo retornou algum tempo depois e arrastou
uma cadeira para o lado da cama. Segurava um prato com um aroma
delicioso de qualquer coisa – com a fome que estava, não haveria comida
ruim.
— Coma. — Leo levou uma colherada do caldo à sua boca. Pela posição,
uma parte escorreu, precisando ser contida por um guardanapo. — Isso será
um desastre, mas precisamos continuar tentando.
A insistência de Leonard demonstrava que ele era um bom amigo para
Nathaniel. Os dois compartilhavam um trauma recente que poderia os ter
destruído para sempre e isso os fez bastante unidos. O Eckley tinha uma
compreensão bastante peculiar sobre certo e errado, mas isso nunca os
colocou em confronto direto. Naquele momento, agradeceu por tê-lo ao seu
lado. Quando já estava finalizando a sopa, tendo ingerido pelo menos metade
do líquido, a porta do quarto se abriu novamente e o um empregado do clube
chamou Leonard para cochichar alguma coisa.
— Não sou um inválido. O que está havendo?
— Alguém deseja me ver. — Leo apoiou o prato na mesa de cabeceira e
se levantou. — Deve ser algum problema no salão, já retorno.
Capítulo décimo sexto
Pistolas não eram sua arma favorita, mas era a escolha mais segura. Pelo que
Millicent o informou, havia dois seguranças permanentes cuidando da casa
dos Smith e ambos estavam armados. Neutralizá-los não seria difícil, mas
Nathaniel não queria derramamento desnecessário de sangue. Por isso, pediu
ajuda a Leonard Eckley para o acompanhar e ajudar com os trâmites.
O plano era simples – eles entrariam na casa e tirariam Lucille de lá. Pela
porta da frente, ignorando qualquer regra de convivência social que pudesse
existir. Se o acusaram de sequestro, antes, então ele agiria como um
sequestrador. A diferença era que a vítima não faria nenhuma oposição a ir
com ele – ao menos era o que esperava. Nathaniel não tinha certeza se Lucille
o acompanharia. Ela poderia não ter coragem o suficiente, mesmo que
duvidasse disso. Ela poderia simplesmente ter mudado de ideia. Mas, se
tivesse, teria mandado o bilhete?
— Você sabe que está arrumando problemas maiores do que poderá lidar.
— Leonard escondeu a pistola no cós da calça e ajeitou o colete.
— Sim, eu sei.
— E sabe que, quando o chefe descobrir, teremos que explicar por que a
filha de Walter Smith foi trazida para cá.
— Leo. — Nate fechou os botões de seu colete, depois de garantir que
seu curativo não estava machado de sangue. — Nenhuma dessas questões me
importa. Se não quiser se envolver, diga-me logo pois terei de conseguir
outra ajuda.
— Claro que vou “me envolver”. Jamais perderia um sequestro-resgate na
casa mais bem protegida dessa cidade. Apenas quero me certificar que está
fazendo isso consciente de todas as implicações.
— Eu nunca ajo inconscientemente.
Duas facas foram adicionadas ao colete, a arma preferida dele. Conferiu
no relógio, passava de meia-noite. Aquele era o horário de maior movimento
no Gênesis e os dois gerentes se ausentariam, secretamente, para cometer um
crime. Não que fosse a primeira vez, eles já fizeram aquilo antes – mas fora
sempre para cumprir ordens, nunca por decisão própria. Cavalgaram até a
residência dos Smith porque era a forma mais fácil de fugir, depois. Nathaniel
sentiu dor, bastante dor, enquanto o cavalo galopava pelas ruas irregulares,
mas a adrenalina o entorpecia – nenhum ferimento seria capaz de desviá-lo
do caminho.
Pararam os animais na lateral da casa vizinha e os amarraram com nós
frouxos. Aquela era uma região muito movimentada durante o dia, mas já
estava tarde demais para o trânsito de pessoas. Uma ou outra carruagem
transitavam, levando os endinheirados para festas, clubes e cassinos, e
ninguém prestaria atenção neles.
— A Srta. Ryan disse que os seguranças ficam dentro da casa.
Provavelmente, temos um em cada porta. Eu vou pela frente.
— E os empregados?
— Espero que estejam do nosso lado, ou que temam nossas armas.
Leonard assentiu, mas estava visivelmente preocupado. Nathaniel nunca
fazia nada sem ter um planejamento extremamente detalhado. Aquele resgate
levaria pelo menos cinco dias para ser organizado, contando com auxílio de
mercenários, suborno dos empregados, estabelecimento de uma rota de fuga
– e ele não pensou em nada daquilo. Tudo que faria seria entrar na casa e
levar Lucille embora.
A porta estava trancada, obrigando-o a arrombar. Usando um grampo de
cabelo, outro objeto que costumava carregar nos bolsos internos, destrancou a
fechadura e empurrou a porta com cuidado, esperando que a escuridão lhe
servisse de manto protetor. Seria ideal que não houvesse confronto, mas ele
estava com muita vontade de bater em alguém. Assim que botou os dois pés
na casa, viu a sombra de um homem se mover e escondeu-se, esperando que
viesse o procurar. Vestido com casaco preto e com uma pistola na mão,
aquele era certamente um segurança contratado por Walter Smith.
Nathaniel pulou sobre ele e colocou a faca encostada no pescoço do
homem, que se assustou e disparou um tiro para trás. Aquele era o alerta que
apressaria a missão. Com um golpe certeiro, ele derrubou a pistola e, em
seguida, derrubou o segurança, pisando sobre sua garganta para garantir que
ele não gritasse. Nenhuma lamparina foi acesa e Leonard apareceu, com os
cabelos desgrenhados e uma corda nas mãos, que jogou para Nathaniel.
— Amarre-o.
— E o outro?
— Tivemos ajuda. Quando entrei, ele estava derrubado com uma ferida
na cabeça. Dois criados bem grandes estavam próximos, vigiando, e me
auxiliaram a amarrar o homem.
— A Srta. Ryan tinha razão, Lucille é adorada por todos. — Nathaniel
deu dois nós para garantir que o homem ficaria imobilizado, com as mãos
para trás e os punhos amarrados nos tornozelos. — Fique aqui, vou encontrar
o quarto dela.
— Não precisa de cobertura?
— Fique de olho no corredor, então.
Os homens subiram as escadas e não enfrentaram nenhuma resistência.
Segundo informações colhidas com Millicent Ryan, o quarto de Lucille
ficava no terceiro andar, virando à esquerda no corredor. Para o quarto dos
pais, a suíte de Walter Smith, bastava virar à direita. Não havia nenhuma
lamparina acesa, eles contavam apenas com a iluminação precária da avenida,
que entrava por uma única janela no final do corredor.
Por não desejar arriscar a integridade física de ninguém, Nathaniel tinha
pressa. Pisou firme pelo piso de madeira, indo na direção indicada, chamando
por Lucille em baixa voz. Leonard ficou de guarda observando qualquer
movimento suspeito. De repente, uma das portas se abriu e ela surgiu no
corredor. Usava um vestido escuro e carregava uma pequena mala – foi tudo
que ele conseguiu ver.
— Nate.
Lucille vagou em sua direção e ele a recebeu nos braços, aliviado. Beijou-
a na testa e indicou que deveriam ir embora, mas o resgate não sairia sem
dificuldades. Quando já estavam no térreo, chegando ao salão de entrada,
lamparinas foram acesas e uma voz masculina gritou nos andares superiores.
— O que diabos está havendo aqui?
Era Walter Smith. Nate teve certeza ao ver como Lucille arregalou os
olhos ao ouvi-lo.
— Vá para a porta. Leonard espera lá fora.
— Nate…
— Prometo que não vou matá-lo.
Ele precisava prometer aquilo, ou não saberia se conseguiria confrontar o
Smith sem acabar-lhe com a vida. Como um tigre saltando sobre a presa,
Nathaniel encurralou o pai de Lucille descendo a escada e o derrubou no
chão, colocando a pistola apontada para sua testa. O homem arregalou os
olhos e tentou gritar, mas Nate apenas balançou a cabeça indicando que era
melhor que não o fizesse.
Poderia dizer que sonhou com aquela oportunidade, com a chance de
meter uma bala na cabeça de Walter Smith, mas não poderia fazê-lo. Piscou
algumas vezes e desarmou o gatilho.
— Não tente pegar sua filha de volta. Ela só retorna para essa casa se
quiser. Venha atrás dela e eu arrancarei sua pele e pendurarei para secar no
Central Park.
Como planejado, Nathaniel saiu pela porta da frente e encontrou Lucille e
Leonard com os cavalos. Era o máximo de afronta possível, apenas
lamentava que Nova Iorque inteira não fosse ver. Se um dia Nathaniel temeu
envolver-se com aquele homem, se ele desejou não ter nenhum confronto
com ele, antes, não se importava mais com aquilo.
— Vamos nos separar. — Disse, para Leonard. — Pegue o caminho pela
Quarta e eu sigo pelo Central Park.
O amigo concordou. Nathaniel segurou a mão de Lucille, que
demonstrava bastante entusiasmo em o seguir. Fez com que ela subisse em
Zeus, o cavalo que escolhera para a fuga, e montou logo em seguida. Um tiro
foi disparado no vazio, vindo da mansão dos Smith. Por sorte seu inimigo não
era um bom atirador, ou ele seria alvejado pelas costas novamente.
Zeus era rápido e Lucille precisou agarrar-se com força ao colete de
Nathaniel para manter-se equilibrada. Ele sentiu dor, sentiu o ferimento
latejar, mas não podia parar de correr.
— Para onde estamos indo? — Ela perguntou, erguendo a face para olhá-
lo.
— Para o Gênesis. É o único lugar onde posso oferecer segurança a você.
— Ele virá atrás de mim.
— Ele não ousará, eu deixei bem claro o risco que ele correria se viesse.
Apesar do que sentia, do que preferia não sentir, do que seu coração, duro
e frio como pedra, gritava, ele manteria o plano que ela traçara, antes. Se
Lucille queria fugir para a Inglaterra, ele lhe concederia aquela oportunidade.
Como uma demonstração de alívio, ela afundou a face em seu peito e o
envolveu com os dois braços.
Quando chegaram ao Gênesis, foram direto para a parte dos fundos.
Aquele era o território de Nathaniel, ele nunca seria afrontado em sua própria
casa. Ajudou Lucille a descer, entregou o cavalo para o empregado que
cuidava das montarias e a levou para o quarto andar, pela escada secreta de
acesso. Apenas eles conheciam aquele caminho e ninguém, além deles,
possuía as chaves.
O corpo foi vencido pelo ferimento assim que chegaram aos aposentos de
Nathaniel. Ele mal terminou de subir as escadas e desabou ao chão.
Capítulo décimo sétimo
O G ÊNESIS ERA SEU IMPÉRIO , MESMO QUE NÃO LHE PERTENCESSE . E LE SEMPRE
se sentiu como um rei naquele castelo que ocupara com autorização do dono.
E, com os braços cruzados olhando para o salão, soube que encontrara sua
rainha. Lucille girava com a amiga, Millicent, por entre as mesas e parava
para assistir os mais estranhos tipos de jogos. Alguns homens as olhavam de
forma lasciva e Nathaniel quis pular sobre seus pescoços e quebrar-lhes os
narizes todas as vezes, mas sabia que, de alguma forma, elas estavam
seguras. Não era permitido prostituição no cassino - para isso havia o
segundo andar.
Isaac parou ao seu lado, segurando um copo de uísque na mão. Ele não se
lembrara de ver o irmão beber tanto, mas precisava aceitar que Isaac estava
confuso e ele não ajudara em nada a estabelecer alguma paz de espírito
depois da chegada de Londres. Durante o jantar, conversaram sobre Emile,
sobre sua esperança de o encontrar vivo, e o irmão não pareceu compartilhar
de seu otimismo. Nem ele estava mais tão crente em suas convicções, mas, se
não fossem elas, o que restaria?
— Ela me lembra Caroline. — Isaac disparou, bebendo um gole do seu
melhor malte.
— Ela não tem nada a ver com Caroline.
— Ah, meu irmão, você conhece muito pouco da minha esposa. Caroline
é muito mais do que uma libertina que joga, fuma charuto e bebe uísque. Ela
possui um espírito indomado, uma alegria constante, um jeito especial de nos
colocar as rédeas e nos guiar pelo caminho que ela deseja seguir.
— Ela é uma Eckley.
— Integralmente. — Isaac sorriu. — Sua Lucille também é assim.
— Ela não é minha, achei que isso já estivesse estabelecido.
Sim, era. Nathaniel já decidira aquilo, mas não tinha coragem de dizer a
ela, ou a qualquer outra pessoa. Mesmo que ela fosse embora - o que
aconteceria no dia seguinte, continuaria sendo dele enquanto ele existisse.
— Parece-me que você conhece bem pouco da natureza dos McFaddens,
também. Você é meu irmão, Nate. Mesmo que tenha se desviado totalmente
do caminho, ainda é o meu melhor amigo e eu te conheço bem o suficiente
para saber que você está apaixonado por ela.
— Você bebeu demais. — Nathaniel pegou o copo da mão do irmão e
colocou sobre o balcão do bar.
— Pode tentar se enganar e inventar desculpas para que a verdade seja
menos verdadeira. Eu também demorei um pouco a admitir que amava
Caroline.
— Você? — Ele deu uma risada. — Nunca vi um homem tão facilmente
capturado pelo amor, meu irmão. Você é honesto demais, sincero demais,
para se enganar por qualquer coisa.
— E quanto a você, o que o impede de ficar com ela?
— Não sou o homem certo para ela.
— Por que não acredito nisso?
Nathaniel virou-se para o irmão, os braços novamente cruzados no peito.
Ele e Isaac tinham praticamente a mesma altura, apenas um ano os separava
em idade, e, ainda assim, eram tão diferentes fisicamente. Isaac era como
uma pintura renascentista, um anjo loiro e de olhos tão azuis quanto o oceano
das Américas. Ele era perfeito, por fora e por dentro.
— Isaac, eu não me tornei um homem honrado. Eu fui treinado para ser
um soldado e minha missão não é lutar por meu país - não que eu ache
guerras de alguma utilidade. Eu sou um cobrador de dívidas e os devedores
me pagam por bem ou por mal. Meu dinheiro é sujo, cheira a sangue. Eu
matei meu irmão. O que acha que eu posso oferecer para uma mulher como
ela?
Os dois se viraram para onde Lucille estava. Ela vibrava porque
Millicent, que sentara em uma mesa de carteado, ganhou algumas fichas. A
maluca nem tinha dinheiro para fugir, mas estava apostando. Pelo menos,
estava ganhando. E, se perdesse para a casa, o dinheiro certamente retornaria
para ela.
Como se atendesse a um chamado silencioso, Lucille ergueu a cabeça e
olhou para eles. Seus olhos encontraram os dela e a sensação era de
reconhecimento. Familiaridade.
— Eu não a conheço o suficiente. Mas não deveria perguntar o que ela
quer?
Talvez ele devesse. Isaac estava sempre certo e aquilo era bastante
irritante, mas Nathaniel estava muito feliz que o irmão estivesse ali.
Acostumou-se a ter a família longe e perdera Emile na primeira oportunidade.
Não acreditava que pudesse perder Isaac.
— Ela tem planos. Sonhos. Amanhã eu garantirei que ela embarque em
um navio e alcance seus objetivos.
— Certo. Não vou insistir, Nate, mas eu te amo e não quero vê-lo sofrer.
Você poderia perguntar se, apesar dos planos e sonhos que Lucille tem, ela
não gostaria de realizá-los ao seu lado.
— Você nunca para de falar, não é mesmo?
— Não, é por isso que sou um ótimo administrador e as mulheres da
família me adoram. Mas agora estou exausto. Eu dormirei aqui, no meio do
vício e da promiscuidade, ou você me levará para sua casa?
— A escolha é sua, mas não posso tirar Lucille daqui. Fora do Gênesis eu
não garanto a sua proteção.
— Pegarei um carro e irei para sua casa. Converse com a mulher, se não
por você, mas por respeito a ela.
Isaac virou-se e descruzou os braços de Nathaniel para poder abraçá-lo. O
irmão não se importava em demonstrar sentimentos, mesmo que fizesse
aquilo à custa de sua masculinidade. Depois de o ver sair pela porta,
Nathaniel recostou em uma pilastra e voltou a observar as mulheres jogando.
Se soubesse que encontraria uma mulher como Lucille, ele nunca teria
tomado as decisões erradas que tomou. Nem teria se desviado tanto da
moralidade e da decência quanto fizera naquele ano.
Mas ele era um homem quebrado, amaldiçoado e não a submeteria à sua
vida de degradação. Por ela, ele gostaria de ser um homem melhor, mas não
era.
Batidas à porta fizeram com que Nathaniel saltasse da cama segurando sua
pistola. Lucille continuava dormindo ao seu lado, enrolada nos lençóis. Se
houvesse um caderno de anotações de primeiras vezes, ele poderia tomar nota
de todas as vezes que aquela mulher tirara dele a virgindade e a virilidade.
Não podia afirmar que fora uma noite casta - ele a beijou até à exaustão, até
quase cansar-se da boca dela. Pensou que poderia arrancar Lucille de si à
força, esgotando-a, mas os beijos serviram apenas para o fazer desejá-la ainda
mais.
— Quem é?
— Sr. McFadden, o chefe pediu que fosse até seu escritório.
— Avise-o que estou descendo.
— Ele insistiu que fosse rápido.
O chefe sempre queria tudo em seu tempo. Esperava que não fosse
nenhum problema grave com devedores insubordinados, pois, apesar de ter
dito a Lucille que estava pronto para qualquer desafio, ele ainda se sentia
dolorido demais para enfrentar homens com seus punhos. Pretendia manter-
se afastado das cobranças por pelo menos mais uma semana.
Enfiou-se em suas calças, vestiu uma camisa branca e um colete cinza,
escovou os dentes, lavou o rosto com água fria e penteou os cabelos.
Parecendo-se demais com um McFadden, considerou que mandaria alguém
buscar seu irmão para que pudessem passar o dia juntos. Apesar do cuidado
para não acordar Lucille, ela despertou antes que conseguisse sair do quarto.
— Já vai trabalhar? — Aquela voz rouca, de quem acabara de acordar,
fez com que o corpo dele reagisse.
— O chefe precisa falar comigo, vou ao escritório dele. Continue
dormindo.
Ele não se virou para olhá-la, nem a cumprimentou adequadamente. Se
fizesse aquilo, não conseguiria sair do quarto, não conseguiria atender o chefe
no tempo exigido. A presença disponível de Lucille fazia com que ele
continuasse a desejando, mesmo sabendo que estava prestes a desistir dela.
Abriu a porta sem bater, sabendo que era aguardado, e parou subitamente
ao ver um rosto bastante conhecido - e totalmente inesperado. Sentado em
uma poltrona, bebendo o melhor conhaque do chefe, estava Thaddeus
Pinkterton, o herdeiro do Marquês de Hertford.
— O que diabos está havendo aqui?
Ele disse, sem se preocupar em cumprimentar ninguém. Gostava de Thad,
eles eram amigos e passaram bons momentos juntos, na juventude. Mas
Nathaniel não era mais o mesmo homem e não sabia se Lorde Pinkerton
também o era.
— Sente-se, Nate. Temos assuntos a tratar.
O chefe indicou uma cadeira, mas Nathaniel apenas segurou o encosto
com as duas mãos. Observando os dois homens, uma realização o atingiu
como um raio em dia de tempestade - o marquês de Lucille era Hertford. O
pai de Thad, que era viúvo há anos, e poderia perfeitamente estar à beira da
falência. Todas as informações condiziam com a história contada por Lucille,
e Hertford era realmente desagradável.
— É um prazer revê-lo, Nate. — Pinkerton ergueu a mão para
cumprimentá-lo, mas ele permaneceu imóvel. — Meus sentimentos por seu
irmão. Emile era um ótimo homem.
— O que você está fazendo aqui, Thad? Por que fui convocado para essa
reunião?
— Bem, percebo que você não está interessado em conversar. Então,
vamos aos negócios. Eu vim buscar minha noiva.
As sobrancelhas de Nathaniel se uniram sobre o nariz e ele fitou o amigo
por longos segundos. As palavras não eram críveis o suficiente para que ele
as compreendesse.
— Não faço a menor ideia do que esteja falando.
— Meu pai faleceu há dois meses. Deixou dívidas praticamente
impagáveis. Se eu quiser recuperar o marquesado, precisarei vender
praticamente todas as propriedades alienáveis e isso nos colocará em ruína
absoluta - pois não haverá nada mais para produzir lucro.
Nathaniel caminhou lentamente até o armário de bebidas e serviu-se de
uma generosa dose de conhaque.
— E você decidiu assumir o contrato de casamento de seu pai.
— Parece ser a alternativa mais razoável. Ela é jovem e carrega um dote
absurdo.
Ele olhou para o chefe, que se mantinha expectador até aquele momento.
— O que você tem a ver com isso? Por que está se envolvendo? Aliás,
como diabos você sabia que ela estaria aqui, Thad?
— Toda Nova Iorque sabe, Nate. — O chefe disse, mas Nathaniel sabia
que ele mentia. Toda Nova Iorque podia saber, mas não era aquele o motivo
de Thaddeus Pinkerton estar em sua sala. — Você garantiu que a reputação
dela estivesse definitivamente arruinada.
— Mas, pelo visto, não o suficiente para que Thad desista dela.
— Aonde ela está?
O marquês deu dois passos na direção de Nathaniel e ele sentiu que um
confronto se aproximava. Nunca vira Thaddeus resolver nada com os punhos
ou suas armas, o homem sempre fora um diplomata nato. Não se alterava,
não elevava o tom de voz, não desafiava. Mas ali, naquele momento, o peso
das acusações fez com que os dois homens se estranhassem.
Não que Nathaniel fosse se incomodar com aquilo. Ele poderia destruir
Thad com uma mão nas costas, mesmo que não quisesse ferir o amigo.
— Em algum lugar.
— Você não quer mesmo brigar comigo, Nate. — Thad colocou as duas
mãos no colarinho meio aberto de Nathaniel e fingiu que ajeitava o tecido,
mas todos sabiam que o toque significava uma ameaça. — Sabe que eu
sempre fui melhor lutador que você.
— Isso foi antes de eu me tornar o melhor cobrador de dívidas de Nova
Iorque, Thad.
Nathaniel respondeu à provocação, disposto a atacar primeiro. Mas, antes
que pudesse mandar o novo marquês para o inferno, a porta do escritório
abriu-se novamente e Leonard entrou, junto com Lucille. Ele fechou os olhos
e praguejou internamente. Tudo que não precisava era que ela estivesse ali.
Com os olhos vagueando entre as faces dos homens presentes, Lucille se
aproximou dele e o tocou no ombro. Nathaniel se controlou para não a
envolver nos braços e afastá-la do olhar de Thad, que permanecia ao seu lado
e escrutinava a mulher como se ela fosse um objeto raro em exposição. Mas
não podia fazer aquilo. Primeiro, porque as decisões sobre os homens de
Lucille deveriam ser dela própria. Segundo, porque ele precisava considerar
que Thaddeus Pinkerton seria um marido perfeito.
Ao invés de deixar seus ciúmes irracionais o controlarem, Nate pegou a
mão dela de seu ombro e, olhando sempre em seus olhos castanhos e
confusos, beijou os nós dos dedos.
— Lucille, o navio que trouxe meu irmão ontem também trouxe seu
noivo de Londres.
Ela piscou várias vezes, como se precisasse clarear a visão.
— Você me disse isso, ontem. Mas seu olhar me faz pensar que há uma
novidade em relação a essa informação.
— A novidade é que estávamos enganados. O homem com quem seu pai
tratou previamente era o Marquês de Hertford, mas ele faleceu há dois meses.
Os olhos de Lucille se arregalaram e ela o encarou com surpresa, talvez
alívio. Ninguém interferiu na conversa dos dois porque qualquer um ali sabia
do que Nathaniel era capaz para defender algo com que ele se importasse - e
certamente era bastante óbvio para seus amigos que ele se importava com
aquela mulher.
— Então, como ele veio de Londres?
— O novo Marquês de Hertford veio negociar para assumir o lugar de seu
pai. Ele é o homem que está de pé ao seu lado, segurando um copo de
conhaque.
Ele se forçou a sorrir, garantindo que ela se sentisse segura para virar a
cabeça e olhar.
O pescoço de Lucille virou para a direita e ela precisou de uma força que não
sabia que tinha para evitar que sua boca se abrisse. O homem que estava de
pé, ao seu lado, prestando atenção excessiva na sua conversa com Nathaniel
era jovem, talvez por volta dos trinta anos, com cabelos escuros como os dela
e olhos tão azuis quanto o céu na primavera. Ele tinha feições masculinas,
sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Tão lindo quanto o Paraíso deveria
ser.
Lucille sentiu-se zonza quando seus olhares se encontraram. O marquês
bebeu seu conhaque e sorriu. Nathaniel hesitou, mas soltou a mão dela e deu
alguns passos para trás. Ela entendeu que ele a deixaria se apresentar ao seu
futuro ex-noivo, ao homem a quem não sabia que estava prometida.
— É um prazer finalmente conhecê-la, Srta. Smith. — Ele segurou sua
mão, que ela não lembrava ter estendido, e beijou. Lucille sentiu um arrepio
em sua coluna. — Sou Thaddeus Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Ela enrijeceu ao olhar diretamente para o azul transcendental dos olhos do
marquês.
— Você não deveria ter trazido Thad aqui. — Leonard rosnou para o
chefe.
— Claro que eu deveria. Nathaniel precisa resolver essa questão e
entregar logo essa mulher antes que ele perca a cabeça de uma vez.
— Não falem de Lucille como se ela não estivesse aqui. — Nate também
rosnou. A relação entre eles não parecia de hierarquia. — E eu não vou
entregar ninguém, ela não é minha para que eu a mantenha.
— Mas você deseja mantê-la, esse é o problema. — O chefe insistiu.
— Isso não deveria ser um problema seu.
— Passou a ser quando você a trouxe para meu clube.
— Se o problema é esse, então vamos embora. Você traiu minha
confiança.
— Eu? Deveria conversar com Leonard sobre isso, afinal, como acha que
os capangas de Walter Smith a encontraram?
Lucille afastou-se da conversa e observou o que acontecia. Leonard
passou o braço na testa, limpando suor que se acumulou ali. Nathaniel o fitou
com fúria assassina, como se a confirmação daquela informação pudesse o
levar a matar o melhor amigo.
— O que isso significa?
— Eu não contei nada a Walter Smith. — Leonard murmurou, mas algo
em sua voz indicava que ele mesmo acreditava em sua traição.
— Contou a quem?
— A mim. — O chefe disse. — Ele se preocupa com você, assim como
eu. Tive de me envolver ou você acabaria causando mais confusão. Deixe-a ir
com o marquês, Nathaniel.
Ele deu alguns passos na direção do chefe e se colocou na frente dele,
agarrando-o pela camisa. Pela forma como Leonard o olhou, não esperava
aquela reação. Apesar da falta de hierarquia, havia respeito - ou medo - que
os mantinha em uma posição de resignação com tudo que o chefe fazia. Mas
as mãos de Nathaniel estavam no colarinho perfeitamente engomado de
Nolan Fitzgerald e ele quase ergueu o homem do chão. Para um homem
esguio como Nate, Lucille não achava que ele seria tão forte.
— Não diga que você contou a Walter Smith onde estávamos. Não diga
que você colocou a vida dela em risco em quase me matou, Nolan!
Outra reação surpresa de Leonard - como se falar o nome do chefe, gritar
com ele ou ameaçá-lo de, de qualquer forma, fosse mais grave do que torturar
pessoas. Lucille e o marquês apenas observavam a contenda, ela bastante
nervosa com o desenrolar dos fatos.
— Não direi, se preferir assim.
— Você é um maldito! Por que diabos fez isso? Por que ajudar aquele
animal que nos largou para morrer?
— Ele não é um animal, Nathaniel! — O chefe se soltou e ajeitou a
camisa. — Ele é um visionário e nosso principal investidor.
— Investidor? — Foi Leonard a se surpreender.
— Sim. Walter Smith empenhou muito dinheiro no Gênesis. Que pai não
teria orgulho de um filho de sucesso, como eu?
A palavra “pai” poderia ter sido mal compreendida, ou poderia se perder
entre outras, mas pareceu atingir Nathaniel como se fosse outra bala
disparada. Ele deu dois passos para trás, cambaleando, e olhou para o chefe
por longos segundos até desaparecer pela porta. Lucille quis correr atrás dele,
mas seus pés estavam fincados no chão como se tivessem criado raízes.
— Você sabe que acaba de o perder, não sabe? Que diabo é isso? Como
você pode ser filho de Walter Smith?
Leonard não pareceu importar-se em discutir aquilo na frente deles. O
marquês permaneceu em silêncio, observando.
— É um risco que precisava correr. Vocês achavam que estão vivos
porque eu enfrentei Smith? Vocês ficaram vivos porque eu pedi e ele me
permitiu mantê-los. Nunca esqueça a quem deve sua vida, Leonard.
Lucille piscou mais algumas vezes, como se o ato pudesse melhorar sua
audição.
— O que o senhor disse?
Sorrindo, o chefe se aproximou.
— Sabe de onde acha que me conhece, Srta. Smith? Se procurar nas
caixas de recordações de sua mãe, talvez descubra. Dizem que filhos
bastardos nascem muito parecidos com seus pais porque, assim, eles
carregam a lembrança constante do pecado que os gerou.
Lucille desabou na poltrona que, por sorte, estava próxima de si. As
novas verdades que foram reveladas para ela acabaram sendo intensas
demais, chocantes demais.
— Então o senhor é meu irmão. — Ela repetiu. — Sempre soubemos que
meu pai era infiel à minha mãe, mas…
— Não fiz o que fiz por mágoa de Walter Smith. — O chefe explicou. —
Não guardo nenhuma. Na verdade, esses dois só estão vivos porque eu os
quis alistar para o Gênesis - nosso pai sabe e se orgulha de meus negócios.
Ele não pode me reconhecer por uma questão legal, mas sempre disse que
sou o filho que ele gostaria de ter ao seu lado.
Certamente era. O irmão mais velho de Lucille era um homem sensível e,
quando teve a oportunidade de ir embora de casa, desapareceu praticamente
sem deixar vestígios. Ela soube que ele estava no sul, mas nunca recebera
uma carta dele e sabia que o pai o deserdara depois do casamento.
Aquele homem ali era tudo que Walter Smith desejava em um herdeiro -
força, determinação e nem uma gota de arrependimento por suas ações.
Leonard passou pela porta como um tornado e a deixou sozinha com dois
desconhecidos - nos quais ela não sabia se podia confiar. Mas sentir medo
não era uma opção.
— Milorde, eu lamento que nos conheçamos nessas condições, com
tantas revelações para perturbar esse encontro. Mas eu preciso dizer que não
tenho intenção de honrar o acordo que meu pai fez com o seu.
Lorde Pinkerton sorriu, devastadoramente lindo. Havia algo nele que a
atraía, fazia com que seus olhos se fixassem em seu rosto perfeito.
— E eu não tenho intenção de arrastá-la à força, Srta. Smith. Mas ficarei
em Londres por mais alguns dias e gostaria de ter a oportunidade de lhe fazer
a corte.
Com extrema gentileza, o marquês segurou novamente sua mão e a
beijou, permitindo que ela sentisse o calor de seus lábios, e saiu.
Capítulo vigésimo
O relógio marcava dez da manhã quando o motorista dos Smith anunciou que
o carro estava pronto para levá-la ao porto. O pai não estaria presente para
despedir-se, pois os negócios eram sempre mais importantes do que a família,
mas disponibilizou o carro, um de seus bens mais preciosos, para conduzi-la
para o primeiro dia do resto de sua vida. Claro que ele não estava pensando
nela, ou em seu conforto, senão em exibir-se para o Marquês de Hertford.
As bagagens foram colocadas em uma carruagem, que já se dirigira para
o porto, e ela encontraria o marquês no lugar que fora previamente
combinado. Antes de sair de casa, Lucille olhou-se no espelho e quase não se
reconheceu. Em tão poucos dias ela se transformou - deixou de ser uma
mulher resignada e conformada com a vida para se tornar uma mulher que
trilhava seu próprio caminho. Mesmo que o caminho escolhido fosse, na
verdade, a ilusão de uma escolha.
Talvez mulheres nunca tivessem uma escolha real. Talvez homens
também não tivessem, afinal, Hertford estava se casando com ela apenas
porque precisava de seu dinheiro. Ao menos ele era totalmente honesto
quanto a isso e também cumpria suas promessas. A vida ao lado dele poderia
não ser tão ruim.
Mas, se fosse escolher, Lucille sabia que preferia uma vida com amor.
Não esperava se apaixonar nem se preocupava com isso quando decidiu
fugir. Só que o amor caiu em sua cabeça e a derrubou, passou-lhe uma
rasteira e a jogou no chão. O problema era que ela amava sozinha, o homem
que roubou seu coração não sentia o mesmo por ela.
— Vamos? — A mãe a despertou de seus pensamentos.
— Sim, vamos, claro. Ainda tem sua oportunidade de ir conosco, mãe.
Constance sorriu e segurou a mão da filha, sem responder à pergunta não
feita. As duas caminharam para o veículo como se se dirigissem a um velório,
mesmo que Lucille tentasse demonstrar alguma altivez. Ela não queria que
Hertford a percebesse tão desolada. Não queria começar uma vida ao lado
dele estando tão decepcionada, carregando um sentimento de perda tão
intenso.
E, quando o viu parado no ponto de encontro, ela sorriu. O marquês era
devastadoramente lindo, mas não fazia seu coração saltar batidas, nem ateava
chamas no seu corpo. Esperava que, com o tempo, isso acontecesse. Durante
a viagem poderiam conhecer-se melhor.
— É um prazer revê-las! — Hertford abriu a porta do carro e ofereceu a
mão para que Constance descesse. Fez o mesmo com Lucille, cujos dedos
teve o cuidado de beijar antes de os soltar. — Já ordenei que embarquem as
bagagens. Vocês querem subir para conhecer as cabines?
— Poderei entrar?
— Claro, um oficial de comando pode nos escoltar. Eu sou um marquês,
a maioria das pessoas está acostumada a fazer todas as vontades de um nobre
titulado.
Ele piscou para Lucille, que sorriu novamente. Sim, as pessoas faziam as
vontades dos nobres. Mãe e filha acompanharam Hertford até a rampa e
embarcaram no Splendida. Constance seria conduzida para fora quando o
navio estivesse prestes a zarpar, mas faltavam duas horas ainda para que isso
acontecesse. Teriam tempo o suficiente para passear pelo monstro da
arquitetura naval - mas Lucille acabou pedindo para ficar um pouco ali, na
proa, respirando o ar marinho.
No fundo, ela esperava que algo acontecesse e que ela não fosse obrigada
a viajar. Queria deixar Nova Iorque, queria deixar o pai e aquela casa para
sempre, mas não naquelas condições. Recostada no deque, observava a
multidão que ia e vinha na esperança de que seus desejos não verbalizados se
realizassem.
— Como assim ela não está? — Nathaniel repetiu a frase dita pelo mordomo
dos Smith.
— Ela já foi para o porto, senhor. A Srta. Smith vai embora para a
Inglaterra hoje.
— Mas faltam duas horas para a partida do navio!
— Sim, senhor, mas ela já foi. O carro saiu daqui há vinte minutos, mais
ou menos.
Nathaniel não se despediu, apenas montou novamente em Hades e
galopou na direção do porto. Todas as coisas ruins que fez em sua vida
apontavam o dedo para ele, dizendo que não era digno de ter uma mulher
como Lucille. Os homens que torturou estavam rindo dele naquele momento.
Emile, ah, Emile… o irmão certamente diria que ele era um idiota de onde
estivesse. O irmão, que não concordava com sua profissão de cobrador de
dívidas, que achava que ele era melhor do que aquilo, certamente diria que
ele também merecia a felicidade. E que sua estupidez custaria caro demais,
pela segunda vez.
Ele já o perdera. A quem queria enganar, Emile estava morto. E estava
perdendo Lucille. Hades pareceu entender a agonia de sua alma e galopou
com toda velocidade que podia, desviando de carros, carruagens e pessoas
que transitavam por aquele horário. Mas, ao chegar ao porto, a aglomeração
fez com que ele precisasse frear e reduzir o galope para um trote bastante
lento.
O navio despontava gigante à sua frente. O nome Splendida, cravado em
letras douradas, chamava à atenção de quem o olhasse. Nathaniel olhou ao
redor e começou a procurar por Lucille. Aqueles cabelos lindos e cacheados,
que a tornavam ainda mais única, também a destacariam na multidão. Ela era
como o navio - impossível de não ser notada, mesmo entre todas aquelas
outras mulheres.
Depois de muitos minutos, ele não a encontrou. Pegou o relógio e
confirmou que já eram quase onze horas e os passageiros se amontoavam na
rampa para o embarque. Teria ela embarcado tão cedo? Era possível, já que
chegara com larga antecedência ao porto. Hertford, o maldito, estava mesmo
com pressa de voltar para a Inglaterra - e de roubar-lhe a mulher. O sangue de
Nathaniel ferveu por imagina que Thad poderia dizer para Lucille as palavras
que eram dele, que poderia seduzi-la e satisfazê-la quando era ele, apenas ele,
que tinha o direito de vê-la nua sobre uma cama.
O vento marinho soprou em seus cabelos e Nathaniel ergueu os olhos
para o navio. Como se anjos sussurrassem em seus ouvidos, seu olhar foi
conduzido para cima até fixar-se na mulher recostada no deque, olhando
fixamente para o horizonte.
Lucille.
Ele percebeu que estava sem respirar desde que saíra da residência dos
Smith. Uma lufada grossa de ar invadiu seus pulmões e o atordoou enquanto
tudo que ele conseguia fazer era olhar para ela. Sem sua ordem, Hades trilhou
o caminho para mais perto, tão perto que as patas do cavalo encostaram na
mureta de madeira e ferro que separava o solo do mar. O cheiro de maresia
era forte.
— Lucy! — Nathaniel gritou, mas ela não o ouviu. — Lucy! — Gritou
mais alto, porém o vento estava soprando em outra direção e o burburinho
das pessoas impedia que sua voz chegasse até ela.
Em um movimento arriscado, e provavelmente idiota, Nathaniel ficou de
pé sobre Hades. O cavalo manteve-se imóvel enquanto suportava o peso todo
de seu corpo. Apoiado em um pequeno guindaste que conduzia baús e caixas
para o navio, ele se ergueu e gritou com todos os seus pulmões.
— Lucille Smith, olhe para mim.
E ela olhou. Primeiro, Lucille enrijeceu as costas como se tivesse sido
atingida por uma rajada de vento frio. Depois, ela virou o pescoço e o viu ali.
Assim que seus olhos se encontraram ela sorriu. Nathaniel quase desabou
sobre a sela pela potência daquele sorriso.
Ele estava ali. O maldito canalha que a seduzira e a conquistara apenas para
despedaçar seu coração estava parado sobre um cavalo preto, gritando no
meio do porto. Chamando por ela - que não conseguiu evitar sorrir. Mesmo
que suspeitasse que ele fora apenas se despedir, Lucille ficou grata por poder
vê-lo uma última vez. Poder olhar para aquele homem desgrenhado, cujas
roupas estavam longe de se parecer com as de um cavalheiro, com seus
cabelos emaranhados pelo vento.
As pessoas começaram a parar para ver a cena e não entendiam o que
estava acontecendo. Nem ela mesma entendia, então debruçou-se no deque
para perguntar-lhe o que aquela cena significava.
— O que está fazendo aqui, Nate?
— Eu vim buscar você.
Claro que ela entendera errado, portanto, precisou perguntar de novo.
— O que?
— Eu vim buscar você, Lucy! Não me importa se sou um maldito egoísta,
eu não vou deixar que você se case com Hertford. Você é minha.
As palavras a atingiram como flechas, dilacerando a pele. E, ainda assim,
eram tudo que ela precisava ouvir. Mas ele as estava gritando no meio de
tanta gente e aquilo parecia perigoso. Perigoso e excitante.
— Ficou louco?
— Talvez. Você vem comigo?
Até o inferno, ela pensou. E se houvesse algum lugar pior que o inferno,
ela o seguiria através dele, também. Por mais seguro e adequado que fosse o
casamento que ela antes desprezara, descobriu que não queria nada daquilo.
Lucille queria a excitação que apenas Nathaniel conseguia proporcionar a ela.
Ele era instável, arriscado e imoral, mas ela talvez o amasse porque, apesar
disso, ele era também um homem que dava a ela o que sempre desejou -
liberdade, uma vida além da sobrevivência.
— Preciso desembarcar.
Ela disse mais para si mesma. Nathaniel manteve-se ali, esperando por
ela, enquanto as pessoas ao redor pareciam esperar que ela tomasse uma
atitude. Mas, quando suas pernas obedeceram a suas ordens e se puseram a
caminhar, viu Hertford e sua mãe se aproximando. Sua hesitação chamou a
atenção de Nathaniel, que percebeu a chegada dos dois.
— Hades, espere aqui.
Lucille o ouviu dizer para o cavalo e agarrar-se a uma corda. Com
habilidade fora do comum, Nathaniel pegou uma faca em seu colete e cortou
um cabo que mantinha a corda presa. Aquele movimento o arremessou na
direção do navio como a flecha que saía de uma besta. Ela soltou um grito
abafado pelas duas mãos por vê-lo agarrar na rede presa ao casco e começar a
escalar. Algumas vozes diziam que ele se mataria, outras que ele estava
louco.
O marquês e sua mãe se aproximaram, mas ela não conseguiu prestar
atenção se eles falavam alguma coisa com ela. Estava debruçada no deque,
quase caindo do navio, acompanhando os movimentos do homem que, com
um felino, subia pelo navio até ela.
E, quando terminou sua subida, Nathaniel passou as duas pernas pela
proteção do deque e aterrissou no piso de madeira como se tivesse acabado
de chegar a um baile ou um sarau. Colocando-se entre ela e Hertford, ainda
empunhando a faca, Nate garantiu que ela ficasse protegida atrás de seu
corpo.
— McFadden, você enlouqueceu?
— Sim, eu enlouqueci no dia em que deixei que Lucille acreditasse que
eu não a queria o suficiente para que ela lutasse por nós. Enlouqueci no dia
em que permiti que você sequer olhasse para ela como se pudesse tê-la,
Hertford. Preciso informá-lo, você não pode tê-la.
Lucille sentiu os joelhos fraquejarem. Ele percebeu e virou-se, segurando-
a nos braços e amparando-a em seu peito duro e quente.
— Desculpe-me. Eu vim aqui para dar a você uma escolha, mas estou
fazendo tudo errado de novo. Antes de decidir se continua nesse navio e
segue para a Inglaterra com ele, você precisa saber toda a verdade.
— E qual é a verdade?
Ela se afastou um pouco, desvencilhando-se do abraço firme e o fitou nos
olhos - azuis, intensos, carregados de informações novas que ela ainda não
percebera neles.
— A verdade é que eu a amo, Lucille Smith. Eu quis me livrar de você
todas as vezes e falhei, eu quis te mostrar que eu não sou bom o suficiente,
mas eu não consegui, porque eu sou um canalha egocêntrico que não a quer
perder. — Ele respirou profundamente. — Desde que você apareceu na
minha porta eu venho tentando lidar com os sentimentos, mas sou muito ruim
com eles. E entendi que te afastar fosse melhor para você, mas eu a amo. Não
posso permitir que se vá sem saber disso.
Lucille não conseguia piscar. Ela apenas olhava para Nathaniel sem
conseguir crer nas palavras que ele proferia. Mas ele ainda não acabara.
— Eu não posso lhe dar nada. Perdi o Gênesis, perdi meu irmão, não
tenho um emprego honesto, nem dinheiro, nem um título. Hertford está
falido, mas seu dote o ajudará a recuperar suas propriedades e ele tem muitas
delas. O marquês poderá te oferecer tudo que você nem imaginou precisar, eu
só posso oferecer meu amor. Mas, maldito seja, eu sou um McFadden, e os
McFaddens só sabem amar se for intensamente. Se você ficar comigo, eu a
amarei até o último dos meus dias da forma como ninguém mais vai
conseguir lhe amar.
Uma lágrima anuviou seu olhar e Lucille quis livrar-se dela piscando
rapidamente. Uma multidão de pessoas acompanhava aquela declaração.
Havia gente no porto olhando para o navio, gente no navio olhando para eles,
e todos pareciam em suspensão, aguardando que ela dissesse alguma coisa. A
mãe parecia perplexa, cobrindo a boca com as duas mãos. Hertford baixara a
cabeça e ela entendeu aquilo como uma demonstração de resignação. Não
havia nada que ele pudesse fazer para disputar com Nathaniel.
Porque não havia disputa. Ela entregara seu coração àquele canalha e não
havia nada que pudesse fazer quanto àquilo.
— Você é um idiota. — Ela disse, sentindo que seu coração poderia saltar
fora do peito.
— Sim, eu sou. Você não é a primeira pessoa que me diz isso, hoje. Eu
sou um idiota, um imbecil, um imoral, um egoísta, mas eu ainda assim amo
você o suficiente para estar aqui.
— Eu poderia ter ido para Londres! Eu poderia ter me casado com ele!
— Não deixaria isso acontecer.
— Você não poderia saber! — Ela se projetou na direção dele, colidindo
com o corpo masculino que lhe despertava sensações mesmo enquanto estava
irritada, tentando odiá-lo. — Eu quero bater em você, Nathaniel McFadden.
— Então bata. — Ele abriu os braços, dando dois passos para trás e
oferecendo-se para que ela o acertasse com os punhos. — Bata-me, dê o seu
melhor, eu mereço. Mas, depois, desça desse navio comigo.
Maldito fosse aquele homem. Com as mãos fechadas em punhos, Lucille
se aproximou outra vez e ele fechou os olhos, esperando o contato que não
veio. Ela pressionou seu corpo contra a parede de músculos, passou os braços
ao redor do pescoço.
— Eu amo você demais para lhe ferir, seu tolo.
E colou os lábios nos dele.
Assim que percebeu o que ela fazia, Nathaniel a segurou pela nuca,
puxou seus quadris contra os dele e aprofundou o beijo. Ela se abriu para ele,
ansiosa por ser arrebatada e consumida por lábios vorazes. O burburinho
transformou-se em expressões de surpresa e reprovação. Algumas palmas,
algumas interjeições de horror. Lucille não se importava - tudo que ela queria
estava ali, exatamente em seus braços.
Hertford não parecia satisfeito com a cena que presenciara. Nathaniel não
podia se importar menos, mas ele se sentiu no dever de oferecer-lhe
satisfações, pelo bem de Lucille. Depois de a beijar como se aquela fosse a
última vez, ele a protegeu atrás de si e se aproximou do marquês, que os
encarava com os braços cruzados no peito.
— Nós vamos desembarcar.
— Parece-me que eu devo resistir e tentar impedir que isso aconteça.
— Não há nada que possa fazer para me impedir de descer com minha
mulher desse navio, Hertford. Encerremos isso como dois cavalheiros, aceite
a derrota. Sei que precisa salvar seu marquesado, mas Lucille merece mais
que isso, não acha?
O marquês assentiu. Claro que ela merecia e ele sabia que não poderia
oferecer a ela tudo que ela queria. Nem Nathaniel.
— Espero que saiba o que está fazendo. Não tem medo de a destruir?
— Sim, eu tenho.
E ele gastaria todos os seus dias lutando contra a escuridão para garantir
que Lucille só tivesse luz em sua vida. Esperava que o amor que sentia fosse
suficiente para mantê-lo no rumo. Segurando-a pela mão, com os dedos
entrelaçados, ele a conduziu pelo navio sob o escrutínio de Hertford e de
todos os passageiros já embarcados, enfrentou o assombro dos passageiros
subindo a rampa e o alvoroço da multidão no porto.
Hades permanecia imóvel onde fora deixado. Ele montou e ofereceu a
mão para que Lucille o acompanhasse. Assim que ela subiu no cavalo, que
demonstrou sua satisfação com um relincho, Nathaniel a segurou em seus
braços e a beijou outra vez.
— Para onde vamos, agora?
— Para casa. Minha casa. Nossa casa.
— O que o fez mudar de ideia? — Ela se acomodou no espaço entre seus
braços e deitou a cabeça em seu ombro.
— Eu nunca mudei de ideia, Lucy. Sei que, no final, não permitiria que se
casasse com nenhum outro que não eu. O que eu disse antes era mentira. Fiz
para lhe magoar, para que me odiasse e se afastasse de mim.
— E se tivesse dado certo?
— Você poderia viver feliz do lado de Hertford. — Era uma constatação
que ele se recusava a admitir.
— Não viveria, não. — Ela o beijou no pescoço e Nathaniel quase parou
o cavalo e a arrastou para uma alcova qualquer. — Eu jamais seria feliz em
um casamento sem amor. E eu jamais poderia amar o marquês porque seria
incapaz de parar de te amar, Nathaniel McFadden.
Ele sorriu. O sabor da vitória era agridoce, mas Nate queria saboreá-lo
assim mesmo. Amá-la era glorioso, ser amado por ela era como ser alçado ao
Paraíso.
— Meu pai virá atrás de mim.
— Não virá. Resolveremos esse problema hoje mesmo.
— Arruinar-me publicamente outra vez é um plano ruim. — Ela riu e o
beijou novamente, exatamente ali onde seu coração pulsava.
— Não pretendo a arruinar, pretendo torná-la minha esposa.
Lucille ergueu a cabeça e o fitou.
— Mas ninguém consegue casar-se tão rapidamente.
— Bem, o segundo e o terceiro filhos de um conde que tem excelentes
negócios espalhados pela Europa, que fornece peças de navio para duas
empresas americanas e que está prestes a investir uma grande soma de
dinheiro na cidade de Nova Iorque, conseguem coisas que poucas pessoas são
capazes de obter. Tenho certeza de que, assim que chegarmos, Isaac estará
segurando uma permissão de casamento.
— Céus, isso é muito romântico.
Ela deu uma risada sincera. Hades trotava para casa, daquela vez sem
pressa, e eles podiam conversar. Era o que faziam melhor até aquele
momento - discutir durante viagens.
— Tem razão, não posso apenas dizer que vamos nos casar. Preciso fazer
a proposta adequadamente.
Nathaniel puxou o arreio e Hades parou no meio da Quinta Avenida.
Apeou do cavalo e desceu Lucille, segurando-a pela cintura. Garantindo que
não corriam o risco de ser atropelados por uma carruagem ou carro que
passasse, ajoelhou-se à frente dela, segurando uma mão entre as suas.
Algumas pessoas pararam para ver o que faziam.
— Qual é seu nome do meio?
— Amelia.
— Certo. Lucille Amelia Smith, você aceitaria tornar-se minha esposa?
Por favor, não seja razoável ou decente, diga sim.
Ela deu uma gargalhada sonora, jogando a cabeça para trás. Era a mulher
mais fantástica que ele já tivera a oportunidade de conhecer e tudo que ela
fazia o encantava. Faria qualquer coisa para vê-la rir todo dia. Aquela era a
maldição dos enamorados, adorar e venerar cada detalhe da pessoa amada.
— Qual é o seu nome do meio?
— William.
— Então sim, Nathaniel William McFadden. Eu aceito casar-me com
você, principalmente se for hoje ainda.
Capítulo vigésimo terceiro
Ele estava nervoso. Fizera tudo errado desde o início, tentando acertar e
permitir que Lucille tivesse escolhas - e ela o escolheu. Naquela noite, ele a
tornaria sua mulher, mesmo que já tivesse feito isso dias atrás. No fundo,
quando concordou, nos termos dela, em fazer amor naquele hotel, ele sabia
que estaria para sempre ligado a Lucille Smith.
Não, ele a livrara daquele sobrenome horrível. Ela era, para tudo que
importava, Lucille McFadden. E estava linda, sentada em frente à lareira,
escovando os cabelos cacheados. Vestia um roupão de seda emprestado, pois
todas as roupas dela ficaram no navio. Não desembarcaram nada,
absolutamente nada, e ela, ainda assim, parecia feliz. Ela estava feliz, o
sorriso nos lábios dela indicava isso.
Naquele momento ele realmente não se importava que ela não tivesse
roupas. Pretendia passar pelo menos uma semana sem que ela sequer se
lembrasse do que era cobrir aquele corpo lindo, que tanto o seduzia, com
tecido.
Com cuidado para não a assustar, aproximou-se, tomou-lhe as escova das
mãos e se ajoelhou ao lado dela, assumindo a tarefa da escovação. Depois de
um minuto, abandonou a escova e colocou as mãos nos ombros dela,
massageando-os.
— Mandei um bilhete para a casa Smith avisando que estou casada. —
Ela disse, rendida aos carinhos.
— Isso foi bastante audacioso da sua parte. — Ele beijou-a no pescoço.
— Gostaria de olhar a cara de meu pai quando ele soubesse que seus
planos deram errado definitivamente. Mas prefiro não ter que vê-lo
novamente. Espero que minha mãe esteja bem.
— Se ela não estiver, resolveremos isso. Mas não hoje. Hoje eu vou
cuidar de você.
— Por que até uma frase simples parece devassa quando você a
pronuncia?
— Porque eu sou devasso. — Ele desenhou a linha da coluna dela com o
indicador, levou as mãos até o laço do roupão e o desfez. Beijou novamente o
pescoço e deslizou a seda pelos ombros de Lucille, descobrindo-os. — E eu
pretendo fazer coisas bem devassas com você, agora.
— Mais do que você já fez?
— Talvez sim, talvez não. Mas ainda há muito que você precisa aprender,
Lucy.
— Então me ensine.
Ah, ele iria ensiná-la. Segurando-a pelos ombros, Nathaniel a ergueu e
virou para si, enquanto o roupão caiu completamente no chão do quarto.
Lucille ruborizou ao se ver totalmente nua à luz de tantas lamparinas, mas ele
não pretendia apagar nenhuma. Queria olhar para ela quando a beijasse,
quando a penetrasse, quando ela chegasse ao clímax gritando seu nome.
Queria vê-la, por completo, em todas as suas camadas.
Lucille levou os dedos nervosos aos botões de sua camisa e começou a
abri-los. Toda vez que a pele dela roçava na sua, Nathaniel soltava uma
imprecação baixa, tamanha a excitação que aquele gesto simples lhe
proporcionava. Suas partes baixas já estavam duras como granito e ele quase
não aguentava mais a prisão que suas calças representavam. Depois que ela
desabotoou a camisa, os dedos continuaram seu caminho e se amoldaram ao
redor de sua ereção.
— Esse é o tamanho do meu desejo por você. — Ele provocou, abrindo
os botões que mantinham a calça no lugar e livrando seu membro dolorido do
confinamento. Ela se assustou com o contato da pele rígida, lisa e quente,
mas envolveu-o em seus dedos. — A culpa é sua se fico assim quase o tempo
todo quando estamos juntos.
— Acho que estou orgulhosa de despertar um desejo tão grande.
Ela também sabia provocar. Nathaniel segurou-a pelos dois lados da face
e a beijou ternamente, os lábios sobre os dela, a língua procurando espaço até
penetrá-la suavemente, saboreando o gosto da boca que ele adorava.
Excitada, Lucille moveu os dedos para cima e para baixo e acariciou a cabeça
lisa de seu membro, fazendo com que ele gemesse e precisasse se esforçar
para não gozar antes da hora. Nunca aquilo lhe acontecera, seria uma
humilhação terrível.
Desinteressado em esperar, Nathaniel segurou a esposa nos braços e a
levou para a cama. Jogou-a sobre os colchões, terminou de livrar-se da calça
e juntou-se a ela, cobrindo o corpo feminino com o seu.
— Eu vou te dar tudo que você quiser e precisar, hoje. — Ele murmurou
em seu ouvido com uma voz rouca que a fez arder por dentro. — Mas, agora,
eu preciso estar dentro de você.
Ela também precisava dele e já estava um pouco ansiosa esperando-o
acomodar-se entre suas pernas e penetrá-la profundamente. Lucille arfou ante
a intrusão e gemeu pela sensação deliciosa de preenchimento. Apesar da
urgência, ele era delicado e se moveu suavemente sobre ela, aprofundando o
contato entre os corpos e estimulando-a com um roçar de quadris que a fez
ver estrelas sem precisar olhar para o céu.
Com um beijo intenso, Nathaniel levou uma das mãos até onde os corpos
se uniam e a tocou em sua feminilidade. Lucille sentiu calor subir por seu
ventre, uma agonia intensa arrebatando-a como as ondas de uma tormenta.
Ele a excitava por todos os lados - a boca na sua, a língua como veludo a
saboreá-la, os dedos hábeis estimulando-a onde ele sabia que ela gostava, e o
movimento dos quadris que a enlouqueceria se ela já não estivesse
acostumada a saltar.
Daquela vez, quando o êxtase a atingiu, levou Nathaniel consigo. Ela
pode sentir quando ele aumentou a intensidade das estocadas, trincou o
maxilar e a segurou pelas coxas com força e a penetrou profundamente em
uma última arremetida.
— Céus. Eu amo você. — Ele murmurou, febril, deixando que o corpo
repousasse do lado dela. Lucille virou-se para ele e o beijou no peito suado.
Percebeu, para sua satisfação, que continuavam encaixados.
— Pode ser que me acostume com isso.
— Espero que nunca. — Ele a puxou para si, acomodando-a e ajeitando
os lençóis na cama. — Porque assim eu terei motivos para te mostrar coisas
novas todo dia.
Walter Smith não podia acreditar que sua filha se casara com um pária. Ele a
prometera a um marquês, ele investira uma fortuna na criação da maldita e
ela o traíra pelas costas, apunhalando-o da forma mais vil e cruel que poderia
existir. E ainda tivera a coragem de enviar-lhe um bilhete, uma nota
informando seu casamento com o tal McFadden.
Ele sabia que aquele homem era um problema desde que o trancara
dentro daquela cela para morrer. Ninguém tão resistente à dor e à tortura
poderia ser boa coisa. Mas o filho se encantara por ele. Dizia que poderia
transformá-lo em um soldado. Em alguém que lhe daria lucro. Se Walter
Smith tivesse simplesmente matado o maldito, não estaria passando por
aquele tormento.
Sentou-se em sua mesa, sentindo aquela ardência no peito. Já eram vários
dias com uma fermentação estranha no estômago e uma dor constante que
irradiava pelo braço. O médico disse que era indigestão, passou um tônico,
mas a dor não melhorara. Tivera certeza, naquele momento, que a filha o
estava matando. E Constance, a esposa sempre servil e inútil, desaparecera.
Provavelmente estava acompanhando a desgraçada nos festejos do
casamento.
Serviu-se de uma dose de conhaque e examinou o bilhete mais uma vez.
Ele não toleraria aquela ofensa. Nenhum homem poderia desafiar Walter
Smith daquela forma - ele mataria o maldito, mesmo que isso fosse
desagradar seu filho. Pegou o telefone para ligar para seu capanga preferido.
Alguém que pudesse matar causando o máximo de dor possível, alguém que
pudesse fazer o McFadden pagar.
Não conseguiu levar o telefone ao ouvido. O aparelho caiu ao chão e a
dor se intensificou. Precisava de outro médico e de tônicos melhores.
Levantou-se para tocar a sineta e chamar os empregados, mas não deu dois
passos antes de desabar sobre o tapete persa. A cada respiração, a sensação de
ardência aumentava até que ele não conseguiu mais respirar. Quando o ar
desapareceu de seus pulmões, a escuridão o envolveu.
Walter Smith teria a sua vingança, mesmo que levasse algum tempo. Ele
veria o McFadden no inferno.
Notes
9. Capítulo nono
1 Quando um jogador aposta todas as suas fichas em uma rodada.
2 Full house é uma mão do pôquer composta por uma trinca e um par, representando que todas as
cartas pontuam. É uma das melhores mãos na maioria das variáveis de pôquer, geralmente ficando atrás
do five of a kind (quatro quartas iguais, uma de cada naipe, e um coringa), do straight flush (uma
sequência de cinco cartas do mesmo naipe), e do four of a kind (um quarteto de cartas iguais, uma de
cada naipe).
3 Royal flush é um straight flush (sequência de cinco cartas de um mesmo naipe) iniciando pelo às e
terminando no dez.
Epílogo #1
1 Mãe, no idioma tradicional dos Algonquinos.
2 Oceano, Deus dos mares.
3 Deus dos Deuses.
4 O espírito do criador.
Agradecimentos
Eu não poderia ter escrito e finalizado esse livro sem algumas pessoas
importantes que me ajudaram muito.
Minhas betas, Daiane, Fran, Verona, Maria Beatriz e Nariane, foram
de grande relevância no desenvolvimento desse livro. Quando surtei pelos
finais de semana com meus áudios enormes e outros escândalos sobre o plot
desse livro, e as conexões com o livro 6, vocês me ouviram e me ajudaram a
encontrar o caminho certo.
Minhas amigas Karina Heid e Sarah Summers, que tornam tudo no
universo literário mais divertido. Quando eu queria gritar, me esgoelar e
desabafar, elas sempre estiveram dispostas a me ouvir e abrir uma garrafa de
espumante rosé!
Para minhas leitoras, em especial aquelas que me seguem desde o livro 1
e que apostaram em mim para escrever romances de época. Cada vez que eu
vejo vocês tão envolvidas com a história e tão satisfeitas pelo que entrego a
cada capítulo, sinto-me com mais vigor e vontade de escrever sempre mais e
melhor.
Escrever para mim é diversão e terapia. Vocês fazem parte disso comigo.
Sobre a autora
Tatiana Mareto é sagitariana, gosta de se comunicar, adora transformar sentimentos em palavras. Mora
em Cachoeiro de Itapemirim, é professora e advogada e começou a escrever aos doze anos, sendo
autora de diversos textos não acabados, muitas poesias não publicadas e alguns originais empoeirados.
Inspira-se com música e tem uma trilha sonora para todos os capítulos – das suas histórias e da sua
vida. Se apaixona com facilidade pelos próprios personagens e coleciona crushes literários.
Um Duque para Chamar de Meu
Lady Caroline Eckley não segue nenhuma das convenções de sua época. É
livre, não guardou sua castidade para seu marido, não deseja casar e prefere
passar as noites nos clubes de cavalheiros, jogando. Sobrinha do falecido
Marquês de Granville, foi criada entre seis homens e não possui quase
nenhum trato social feminino. E ela pretende ensinar a outras mulheres a
serem como ela.
Até ser procurada pelo lindo e intrigante Lorde Isaac McFadden com uma
proposta - quase - irrecusável. Ele precisava dela, e dos seus conhecimentos,
para livrá-lo do grande fardo da... virgindade. Mas Caroline recusa e Isaac
decide, então, seduzi-la.
No terceiro livro da série Amores em Kent, a primeira declarada libertina
de Londres precisa fugir das investidas cavalheirescas e românticas do
encantador, lindo e mais cobiçado solteiro de Londres. Em um jogo de gato e
rato, Caroline e Isaac se estranham e se entendem em uma sequência de
eventos que culminará no confronto dos seus projetos de vida.