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A DONZELA E O CANALHA

Série Amores em Kent - Livro 5


TATIANA MARETO
A Donzela e o Canalha @ 2020. Todos os direitos reservados. Obra protegida pela Lei 9.610 de
1998 (Lei de Direitos Autorais).
É proibida a reprodução gratuita ou a comercialização desta obra sem autorização expressa da autora.
É proibida a reprodução parcial da obra, mesmo que de forma gratuita, sem a indicação dos créditos
autorais.
Essa uma obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.
Plágio e crime. Crie, não copie.

Edição: Tatiana Mareto

Para saber mais sobre a autora, visite


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Às loucas dos secundários.
Vocês sabem quem são!
C ON TEN TS

Algumas palavras minhas para vocês


1. Capítulo primeiro
2. Capítulo segundo
3. Capítulo terceiro
4. Capítulo quarto
5. Capítulo quinto
6. Capítulo sexto
7. Capítulo sétimo
8. Capítulo oitavo
9. Capítulo nono
10. Capítulo décimo
11. Capítulo décimo primeiro
12. Capítulo décimo segundo
13. Capítulo décimo terceiro
14. Capítulo décimo quarto
15. Capítulo décimo quinto
16. Capítulo décimo sexto
17. Capítulo décimo sétimo
18. Capítulo décimo oitavo
19. Capítulo décimo nono
20. Capítulo vigésimo
21. Capítulo vigésimo primeiro
22. Capítulo vigésimo segundo
23. Capítulo vigésimo terceiro
Epílogo #1
Epílogo #2
Notes
Agradecimentos
Sobre a autora
Algumas palavras minhas para vocês

Esse livro é o quinto da série AMORES EM KENT, que tem outros três
livros publicados na Amazon: Um Duque para Chamar de Meu, Um
Conde para Curar meu Coração, A Sobrinha do Marquês e A Irmã do
Conde. Apesar de serem livros com histórias completas, trata-se de uma série
em que os personagens dos livros anteriores continuarão aparecendo no livro
5, mas com bem menos frequência do que nos anteriores. Afinal, mudamos
totalmente de cenário dessa vez!
Apesar de ter realizado pesquisas e ter adquirido um bom conhecimento
dos usos e costumes da era e do local escolhidos por mim (Estados Unidos na
virada do século), eu me dei algumas liberdades literárias para conseguir
desenvolver a história da forma como pensei. Assim, algumas datas foram
utilizadas de acordo com o meu interesse, sem que isso possa ter alterado
fatos históricos importantes, as propriedades foram inventadas para satisfazer
as necessidades da trama, e o comportamento dos protagonistas não
necessariamente segue os padrões mais rígidos daquela época.
Por que isso, Tatiana? Porque eu escrevi um romance em que padrões são
rompidos e diferenças são superadas. Talvez isso nunca fosse acontecer de
verdade, mas livros de ficção são para que possamos sonhar, não é mesmo?
Então vamos sonhar.
Mesmo sendo um romance de época, A Donzela e o Canalha é um livro
com cenas eróticas. Como meus demais romances, há cenas com conteúdo
sexualmente descritivo, mesmo que essas cenas tenham sido descritas
dentro de um vocabulário adequado para a época, dentro de um padrão de
comportamento sexual da época. Esse é um romance com conteúdo erótico e
cenas de sexo, adequado apenas para quem gosta desse tipo de livro.
Era isso que eu tinha para contar nesse momento. Espero que vocês se
divirtam durante a leitura.
A autora
Capítulo primeiro

P RISÕES ERAM IGUAIS EM TODOS OS LUGARES DO MUNDO , ELE SUSPEITAVA .


Não que Nathaniel McFadden, terceiro filho de um conde e irmão do atual
Conde de Cornwall, um dos nobres mais influentes e ricos da Grã-Bretanha,
conhecesse muitas prisões - ele nunca fora preso antes. Durante sua vida em
Londres, fora um perfeito cavalheiro. Um pouco boêmio, mas totalmente
honesto e de moral elevada.
Nada daquilo permaneceu quando ele chegou em Nova Iorque. Depois de
ter sido enviado para a cidade americana para intermediar investimentos da
família com negociantes das ex-colônias, Nathaniel se envolveu em negócios
um pouco menos idôneos do que era esperado.
— McFadden! — Um agente de polícia bateu na grade da cela, fazendo
um estrondo agudo que feriu os ouvidos de Nathaniel. — Sua fiança foi paga.
Ele levou um minuto inteiro para se levantar. Não sabia se queria ser
solto, se desejava que alguém se importasse com sua liberdade. Sabia que
Leonard, o melhor amigo, estaria ali para o resgatar, mas não queria ser
resgatado. Arrastou sua carcaça para fora da cela e foi conduzido pelo
policial até onde havia alguma luz.
— Você está horrível. — Leonard constatou.
Sim, ele estava. Aquela noite inteira fora horrível. Aonde estava com a
cabeça quando decidiu permitir que Emile fosse àquele encontro? O irmão
mais novo chegara aos Estados Unidos havia dois meses e, desde então,
fizera de tudo para afastar Nathaniel dos seus negócios. O jovem não admitia
que Nate tivesse se desviado tanto da virtude e tivesse se tornado um dos
diretores do maior antro de jogatina da cidade – o clube Gênesis.
Naquela noite, Emile perseguiu o irmão ao saber que ele cobraria uma
dívida. Cobrar dívidas tinha um significado específico para Nathaniel - ou o
devedor pagava, da forma que pudesse, ou o devedor sofria. Quando ele era
chamado para agir, esperava-se que ele fosse causar dor, muita dor. Era
difícil entender como ele se tornou aquele homem frio e disposto a fazer
coisas ruins por dinheiro, talvez nem ele mesmo pudesse compreender como
chegou àquele ponto. Como poderia esperar que o irmão o entendesse?
E, quando tudo deu errado, tiros foram disparados, a polícia chegou e o
episódio terminou com Emile McFadden atingido e dragado pelo oceano.
— Você não devia ter vindo.
— O chefe mandou. Não é lucrativo ter um dos gerentes presos. Como
está se sentindo?
Um assassino, como nunca se sentira antes.
— Acharam meu irmão?
— Não. Dificilmente ele será encontrado, Nate. A essas horas já deve ter
virado comida de peixe.
Nathaniel fechou as mãos em punhos e deu dois passos firmes na direção
de Leonard, que se afastou ao perceber o estado de espírito do amigo. Ele não
o agrediria no meio do departamento de polícia. Não porque temia ser preso
novamente, mas porque, se batesse em alguém naquele momento, mataria.
Havia uma represa de sentimentos negativos e vingativos dentro de si, que
aproveitaria qualquer oportunidade para romper e o transformar em um
monstro.
— Vou para casa.
— Eu o acompanho. Não acho prudente que ande sozinho pela cidade.
— Não preciso de babá, Leo. Duvido que alguém vá cruzar meu caminho,
hoje.
E, se cruzasse, ele certamente não reagiria bem. Emile vinha sendo um
inconveniente, mas era seu irmão - e não havia nada que Nathaniel
respeitasse além de sua família. Não mais. Ele desistiu do decoro, da
decência, da honestidade e da virtude quando se associou ao chefe, o dono do
cassino. Quase ninguém o conhecia, poucas pessoas tinham a oportunidade
de uma conferência com ele e, ainda assim, era o homem mais temido de
Nova Iorque. Tinha tanto poder quanto os governantes da cidade e nenhum
remorso em arrancar a vida das pessoas com as próprias mãos.
Ainda assim, a morte de Emile estava na conta de Nathaniel. Ele nunca
deveria ter permitido que o irmão ficasse em Nova Iorque. Deveria tê-lo
enviado de volta em um navio quando pode.
— Nate. — Leonard colocou uma mão em seu ombro, sem temer uma
explosão de ira. — Aceite minha companhia. Você é uma granada prestes a
ser detonada e os efeitos colaterais serão muitos.
— Que seja.
Sem vontade de continuar ali, naquele antro fétido cheio de criminosos
comuns, os dois amigos saíram do departamento de polícia e pegaram um
coche de aluguel até a Quinta Avenida. Era em uma das mais prestigiosas e
avenidas de Nova Iorque que ficava a casa de Nathaniel, encrustada no meio
de diversas construções ocupadas por famílias importantes. Apesar do luxo
aparente, a casa era malcuidada e pouco frequentada, com a maior parte dos
quartos cobertas por panos brancos, cortinas nunca lavadas e tapetes cobertos
de pó.
Leonard serviu uísque para os dois, pois bebida nunca faltava no
escritório, que era a única parte da casa que se apresentava como habitável
naquele momento. Nate costumava dormir pelo sofá próximo a lareira, já que
tudo ali parecia suntuoso demais para ser ocupado.
— O que te levou a essa vida de confinamento e solidão, meu amigo?
Tem vezes que juro não te conhecer mais.
— Prefiro que seja assim. — Ele bebeu o uísque em um gole. — Eu não
gosto do que me tornei, gosto menos ainda de contaminar as pessoas com o
que sou.
— Diz isso apenas pelo que aconteceu ao seu irmão?
Nate caminhou até o decantador e encheu novamente seu copo, enquanto
fitava o amigo.
— Sabe que ele pode estar vivo, não sabe?
— Você estava lá, acha que alguém sobreviveria àquilo?
— Talvez não, mas também sei que, sem corpo, não há certeza.
— Nem provas.
— Posso tentar achá-lo, seguindo o oceano. O que não farei será desistir
de Emile. Não tenho como encarar Edward depois disso.
Leonard deu uma risada debochada.
— Meu amigo, você não tinha como encarar Edward nem antes disso. O
conde te renegaria como irmão se soubesse das coisas horríveis que tem feito.
Vamos, desista dessa loucura e concentre-se no que importa - provar sua
inocência.
— Eu não sou inocente, mas não matei Emile. Provarei isso encontrando
meu irmão.
— O que pretende? — Leonard girou pelo largo espaço do escritório,
parando de frente para uma grande janela envidraçada. — Peregrinar pela
costa procurando por um defunto que possa ter saído andando do mar?
— Talvez.
— Você enlouqueceu. É investigado por homicídio, não deve sequer
deixar a cidade. São condições de sua fiança.
Claro que havia condições, a maioria delas Nathaniel não estava disposto
a cumprir. Não fazia sentido ser um criminoso – e empregado de um dos
maiores chefes do crime de Nova Iorque – se ele seguisse as regras. Leonard
sabia, mas o Eckley sempre foi mais comedido do que o McFadden.
Enquanto Nate mergulhou de cabeça nos negócios escusos do cassino, Leo
fazia tudo com alguma cautela. Talvez por isso eles divergissem quase
sempre, e divergiam naquele momento.
Não importava o que pensariam ou se o perseguiriam. Ele investigaria e
iria atrás do irmão. Nathaniel recusava-se a acreditar que seu Emile
sucumbira àquele tiro. Havia a queda, também, mas Emile já sobrevivera a
coisas piores. Ele era um jovem frágil e adoentado que fez de tudo para
recuperar sua saúde até se tornar um homem forte e capaz de enfrentar
animais selvagens com as próprias mãos. Não seria um maldito de péssima
pontaria que colocaria fim à sua vida. Emile lutaria.
— Não há uma prova que eu tenha matado meu irmão – sequer há provas
de que ele esteja morto. Enquanto a polícia faz o que sabe melhor, que é
absolutamente nada, farei uma investigação paralela. Se souber qualquer
coisa, irei imediatamente atrás da informação – e ninguém me impedirá.
Leonard fez um gesto com os braços, indicando que não seria ele que
atrapalharia Nathaniel ou que se colocaria à frente de qualquer coisa que ele
quisesse fazer. Quando Nate decidia por algo, era quase impossível demovê-
lo.

A xícara de chá fez um ruído exagerado quando Lucille a depositou no pires.


Mulheres educadas e finas como ela não espancavam a porcelana, mas seus
dedos tremiam e não conseguiam segurar nem mesmo a colher para mexer o
chá.
— Então você ouviu seu pai conversando com sua mãe sobre a ter
prometido em casamento a um marquês com idade para ser seu avô.
Millicent Ryan disse, resumindo em uma frase o discurso de vinte
minutos da amiga. As duas estavam sentadas na sala de estar de Milly,
tomando o chá às cinco da tarde – uma tradição inglesa herdada de suas avós.
Não havia mais ninguém na casa, então podiam conversar livremente sem
que alguém as estivesse escutando pelos cantos. Sempre havia os
empregados, mas eles não faziam fofoca – e, quando faziam, tendiam sempre
em favor das duas.
— Foi mais ou menos isso. Sei que ele é um marquês, que tem três filhos,
que está viúvo há algum tempo e praticamente falido.
Lucille tentou beber mais um gole do chá de camomila que a amiga lhe
preparara. O nervosismo a consumira desde que descobriu que o pai
consumara a promessa de lhe arranjar um casamento qualquer. Aos vinte e
sete anos e filha do homem mais rico de Nova Iorque, Lucy era uma
vergonha para a família – não se casara, gostava de conversar com
empregados e pessoas de status inferior ao dela, zombava na aristocracia
britânica e tinha desejos de estudar.
Mas Walter Smith estava disposto a acabar com seus sonhos, pois
concedera a sua mão a um inglês de sangue azul e não via a hora de enviá-la
para Londres.
— Esse homem não me parece precisar de uma noiva.
— Não precisa, é meu dinheiro que ele quer. Meu dote, precisamente. O
tal marquês está falido, Milly, e fará de tudo para salvar o patrimônio da
família.
— Como sabe que ele é um velho?
— Fiz minha pesquisa, andei perguntando por aí.
Como “por aí”, Lucille queria dizer que pediu aos empregados para lhe
contarem as histórias que ouviram. Por ser sempre muito educada e gentil
com todos eles e deixar gorjetas generosas, Lucille era querida por pessoas
invisíveis para mulheres como ela. A garçonete, o copeiro, a camareira, o
vendedor de frutas, o leiteiro, a professora da escola – todos gostavam dela e
costumavam a ajudar a sair de situações difíceis.
Ela se metia em algumas confusões em suas tentativas de ganhar a
liberdade quando mulheres não podiam ser livres. Gostava de fazer caridade,
visitava orfanatos, usava sua mesada para comprar coisas para os pobres,
andava sem acompanhantes e adorava passear pelas áreas menos favorecidas
de Nova Iorque.
— Certo, e o que pretende fazer para se livrar dessa confusão? Porque, se
te conheço, você tem um plano, Lucy.
— Tenho. Procurarei o Sr. McFadden, do clube Gênesis, e pedirei que ele
me arruine.
Daquela vez, o barulho de uma xícara caindo ao chão e se partindo em
pedaços chamou a atenção da arrumadeira, que entrou no salão para ver o que
estava havendo. Millicent encarou a amiga assustada, sem conseguir entender
imediatamente o que ela queria dizer. Depois de dispensar a empregada
dizendo que fora apenas um acidente, a conversa retomou.
— O que você quer dizer com isso?
— Não há muito o que explicar, há? Eu pedirei a ele que me deflore e,
com isso, meu noivo irá me rejeitar. Homens não querem mulheres que já se
deitaram com outros homens.
— Lucy! — Millicent aproximou-se, sentando-se ao lado da amiga e
baixando o tom de voz. — Não é possível que você esteja considerando esse
absurdo! Como, em primeiro lugar, você conhece o Sr. McFadden?
— Ele esteve em alguns jantares e ouvi mulheres falando sobre ele.
Aparentemente, é o terceiro filho de um conde, mas vive como um dos
diretores daquele antro de pecados chamado Gênesis. Que blasfêmia.
Lucille fez o sinal da cruz, indicando que abominava que um livro da
Bíblia Sagrada desse nome ao clube mais devasso e indecente da cidade.
Todos sabiam o que acontecia no Gênesis, mesmo que ninguém falasse em
voz alta. Jogos ilegais e prostituição eram os pecados mais simples que se
cometiam entre as paredes do clube, que ocupava meio quarteirão na Quinta
Avenida.
— E por que o escolheu? Quero dizer, ele é um homem horrível!
— O que ele faz de horrível?
— Além de levar todas as mulheres que conhece para a cama? Eu ouvi
dizer que ele e o amigo são assassinos! Ele matou o irmão, Lucy! O próprio
irmão!
Sim, ela soube que ele estava preso, acusado de matar o irmão, mas
também soube que seria solto em breve – pois homens como ele não
passavam muito tempo na cadeia.
— Não sabemos se matou, ele não foi condenado ainda. E Milly, eu não
quero me casar com ele, quero exatamente escapar de um casamento. O Sr.
McFadden é o único canalha do qual ouvi falar que não se importaria com
sua honra a ponto de concordar me deflorar e não se casar comigo depois.
Lucille ainda tremia quando levou a xícara novamente à boca e bebeu
outro gole de seu chá. Mesmo que tentasse demonstrar estar no controle de
suas emoções, ela estava muito mais nervosa do que gostaria de estar.
Tomara uma decisão absurda para tentar se livrar de um problema
insuperável: um casamento indesejado com um homem horroroso.
Ela não contava aquilo para ninguém, as amigas não sabiam e Lucille
fingia que vivia uma vida perfeita em uma família bem estruturada, mas o
casamento de seus pais era horrível. Constance Smith era uma mulher muito
jovem, que fora violentada por seu marido aos dezessete anos e obrigada a se
casar com ele. Walter Smith era um homem ruim, que nunca demonstrou
afeto algum pela esposa ou pelos filhos, tendo-os criados dentro de valores
religiosos, da decência e da honestidade, mas sem um gesto amoroso sequer.
Durante a infância, viu o pai agredir a mãe com palavras duras e também
o viu esbofeteá-la algumas vezes. Constance nunca reclamava e usava o pó
de arroz para esconder as marcas da violência que sofrera, porém ela era a
filha mais velha – via tudo, acompanhava tudo, entendia tudo. Ela não queria
um casamento como aquele, em que não houvesse respeito e amor que
pudesse tornar a união do casal agradável. Jamais aceitaria para si o tormento
vivido pela mãe, principalmente porque não pretendia permitir que seu
marido fosse cruel com seus filhos como Constance permitia que Walter
Smith fosse com os dela.
— Sua ideia não tem cabimento. Você teria coragem de permitir que
aquele homem... que ele a tocasse de forma íntima? Apenas para se livrar de
um casamento possivelmente ruim?
— Casar-me com um marquês com o triplo da minha idade não é
possivelmente ruim, é definitivamente péssimo. E, pelas fofocas que ouvi nos
jantares, o Sr. McFadden é muito habilidoso com as mulheres. Duvido que
ele será desagradável comigo.
Parecia razoável que Millicent não a entendesse, pois os pais da amiga
tinham um casamento muito amoroso. Apenas quem cresceu em uma família
de aparências, como ela, seria capaz de compreender o sentimento de repulsa
que a impulsionava à ruína. Estava decidido – ela visitaria Nathaniel
McFadden naquela noite, e que Deus a perdoasse por seus pecados.
A decisão de enfrentar o diabo era menos difícil do que parecia. Como as
opções de Lucille não eram muito boas, fugir de casa à noite, sozinha e
carregando uma bolsa de moedas, para bater à porta de um covil de demônios
não era o pior que podia lhe acontecer. Ela olhou três vezes ao redor para
garantir que não era observada, que ninguém a seguira e certificou que o
capuz fosse grande o suficiente para cobrir-lhe o rosto. Pretendia ser
arruinada, mas não queria que isso acontecesse antes do planejado.
Bateu duas vezes com delicadeza. Suas mãos enluvadas estavam frias e
ela suspeitava que fosse porque estava nervosa. Claro que estava – esperava
que, quando a porta se abrisse, o próprio Lúcifer se materializasse e a
raptasse para uma orgia cheia de diabretes e criaturas do submundo. Ao
menos era aquilo que sua ama dizia que os homens libertinos faziam, e ela
acreditava na ama. Por que não acreditaria?
Talvez não devesse. Por acreditar demais, Lucille se sentia uma tola. Fora
enganada por todos em quem confiava, fora iludida e agora estava presa a um
pacto não negociado por ela, mas cujo cumprimento selaria seu destino para
sempre. O pai sempre sonhara em casar algum de seus filhos com a nobreza
britânica e ela, a solteirona, fora escolhida para desposar um marquês que
deveria ter setenta anos e uma verruga no nariz. Ou não, Lucille não o
conhecia – e esse era apenas um dos motivos pelos quais não queria se casar
com ele.
Passaram-se cinco minutos sem que ninguém a atendesse e ela estava
ficando mais nervosa. Lucille bateu mais vezes, com mais força, quase
esmurrando a porta de madeira. Fosse uma porta ruim, a madeira já teria
ruído. Quando se preparava para mais uma sessão de soquinhos, a porta
rangeu e se abriu, quase fazendo com que ela caísse para dentro da casa.
Para sua sorte – ou não – não havia deuses gregos nem pessoas usando
máscaras e exibindo chifres. O homem que estava diante dela era jovem e
aparentava ter acabado de acordar. Os cabelos estavam bagunçados e a barba
por fazer dava a ele um aspecto grosseiro, mas ele era muito bonito. Céus,
Lucille não deveria estar achando ninguém bonito, ela estava ali com um
propósito e precisava ater-se ao plano.
— Eu encomendei uma garota e não estou sabendo?
O homem perguntou para si mesmo, olhando para a rua e procurando uma
carruagem ou algum lugar de onde ela pudesse ter saído.
— Não fui encomendada. Preciso falar com o senhor, Sr. McFadden.
— A essa hora, vestindo capa? E tem certeza de que não é uma das
garotas de Madame Beaufort?
— Garanto que não sou, mas preciso entrar. Estou arriscando ser
reconhecida, poderíamos não falar aqui fora?
O corpo masculino afastou-se e deu espaço para que Lucille entrasse na
residência. O baque da porta se fechando atrás dela fez com que seus nervos
gritassem – ela estava trancada dentro do templo de Baco. Talvez ela tivesse
gostado um pouco demais das aulas de mitologia grega, afinal.
— Senhora, poderia explicar-me o que está acontecendo?
Lucille baixou o capuz e fitou o homem sob a luz das lamparinas. O salão
em que se encontrava não era muito iluminado, não o suficiente para a casa
de um nobre, de um homem rico.
— Poderemos conversar, Sr. McFadden?
Ele riu, exibindo dentes brancos que reluziram. Os olhos azuis eram
hipnotizantes e Lucille o achou belo demais, a ponto de não entender como
não reparara realmente nele, antes.
— Faz muito tempo que ninguém me chama assim. Sou todo ouvidos.
Não pretendia parecer assustada, então tentou evitar que ele percebesse
que estava tremendo desde o momento em que tomou aquela decisão. Por
segundos, fitou aquele homem desgrenhado e malvestido e imaginou que ele
não se parecia com nenhum nobre que ela já conhecera. Definitivamente,
estava fazendo papel de tola – e a ama estava muito equivocada. Não tinha
nenhuma criatura de chifres e aparência caprina à sua frente. Se bem que ele
podia, sim, ser uma personificação de Eros, ou de Davi, ou outra bela figura
da arte renascentista que estivera estudando.
— Peço que me perdoe. Eu esperava... quero dizer, esperava...
— Se queria o terceiro filho de um conde, veio ao lugar errado. — Ele a
interrompeu. — Sou o gerente de uma casa privativa de jogos e esse é o meu
melhor. Diga, seu marido perdeu dinheiro e a senhora veio negociar no lugar
dele porque pensa que serei piedoso com mulheres? Trouxe alguma criança
para me comover ou está grávida e escondendo uma barriga redonda com
essa capa?
Os olhos dela se arregalaram ainda mais ante aos disparates que aquele
homem falava. Ele podia não ter a aparência de um demônio, mas certamente
estava longe de ser um cavalheiro. Lucille sentiu a boca seca, mas não iria
fraquejar. Qualquer coisa parecia melhor que o destino que lhe fora traçado.
— Não tenho marido, nunca fui casada. Estou aqui em nome próprio para
lhe fazer um pedido. Preciso que o senhor me arruine.
Dizendo aquilo, Lucille abriu a capa e deixou-a cair ao chão, exibindo
seus trajes. Foi a vez do Sr. McFadden arregalar os olhos e abrir a boca em
descrédito. Por baixo da capa havia apenas uma combinação de camisola,
espartilho e calçolas, além de belas e novas meias pretas de seda, que ela
fizera questão de usar para a ocasião. Seu corpo todo tremia de medo, mas ela
não voltaria atrás.
Capítulo segundo

A QUELE ESTAVA SENDO UM PÉSSIMO DIA , E NÃO FICOU MELHOR QUANDO


ameaçaram derrubar a porta de Nathaniel. Ele levou cinco minutos para
perceber que havia alguém na entrada principal, depois outros cinco para sair
do torpor que o uísque em excesso o colocara. Mais algum tempo para
confirmar que as calças estavam abotoadas e que a camisa tinha ao menos
uma aparência limpa. Nathaniel decidiu que estava pessimamente
apresentável para quem estivesse à sua porta às nove da noite.
E, depois de uma conversa que não lhe fez sentido algum, a visitante
estava nua em seu salão de entrada. Não, não estava nua, mas o que ela vestia
não podia ser considerado adequado em nenhuma ocasião – talvez se ela
fosse uma prostituta e estivesse trabalhando, mas nem assim, já que as
prostitutas de Madame Beaufort usavam vestidos elegantes e perfeitamente
talhados.
A visitante era uma mulher de cabelos cacheados e que estavam
despretensiosamente presos em um coque deselegante, indicando que não se
arrumara para sair. Os olhos castanhos pareciam muito escuros na pouca luz,
da cor da nogueira ou do álamo, ele não tinha certeza. Se a visse na rua talvez
não a notasse. Se fosse a um evento em que ela estivesse, dificilmente aquela
mulher atrairia a sua atenção. Nathaniel estava acostumado a ter as melhores
mulheres à sua disposição, portanto poucas o interessavam realmente.
Mas ela estava nua. Quase. Em suas roupas íntimas, pedindo para ser
arruinada.
— Creio que eu tenha bebido uísque vencido. — Foi a conclusão óbvia,
ele estava bêbado e não consumira o melhor malte. — O que mesmo a
senhorita deseja?
— Desejo ser arruinada, senhor. — Ela se repetiu com a voz trêmula. —
Estou prometida a um velho inglês babão e não desejo que casar-me com ele.
Se estiver arruinada, meu futuro marido me recusará e meu pai me enviará
para algum lugar onde ficarei livre. Sei inclusive de um refúgio para
mulheres solteiras, ou com problemas para se casar, que fica na Inglaterra.
Adoraria ir para lá e...
— Senhorita. — Nathaniel usou uma das mãos para interromper o fluxo
desordenado de palavras e se abaixou para pegar a capa dela, pendurando-a
em um cabide que ficava ao lado da porta. Ela o observava com assombro e
estupefação, mas ele estava acostumado a causar sentimentos estranhos nas
pessoas. — Não entendi uma palavra do que disse e não me interesso por
seus problemas. Como chegou até aqui?
— Eu caminhei.
Nathaniel não percebeu que estava muito perto dela até dobrar o corpo
para frente para exalar seu perfume. A mulher tinha as costas quase apoiadas
na parede do salão de entrada e cheirava a almíscar – uma fragrância comum,
mas que, misturada com o cheiro da roupa íntima que ela vestia, fez com que
ele perdesse o pouco de razão que possuía no momento. Sem pudor algum,
porque ele não costumava ter nenhum, Nate aproximou-se mais e a beijou ali
na curva do pescoço, fazendo com que a mulher estremecesse.
A prudência gritou que deveria se afastar. Não sabia quem era a senhorita
e não levava mulheres desconhecidas para a cama. Ele era Nathaniel
McFadden, não precisava se arriscar com uma completa estranha. Mas havia
alguma coisa naquele cheiro e naquela pele macia que o hipnotizou. Também
poderia ser a meia garrafa de uísque que bebera, mas não fazia diferença –
aquela mulher era desejável e ele a queria apenas porque estava seminua à
sua disposição. Sem afastar a boca do pescoço dela, Nathaniel entreabriu os
lábios e passou a língua discretamente pela tez ligeiramente salgada pelo
suor. Ela estava nervosa.
Subiu a boca, traçando uma linha até o maxilar tenso da mulher e passou
o polegar pelos lábios dela, que se abriram em seu toque. Nate ergueu a
cabeça para olhá-la e encontrou uma mulher rendida, de olhos fechados,
completamente deslumbrada por seu toque. Ele era bom, mas não tanto.
Aquela não era uma prostituta nem parecia entediada e à procura de
aventuras. Talvez ela estivesse falando a verdade e o senso de decência que
ele não tinha sugeriu que perguntasse.
— Como a senhorita disse que se chama?
Ela piscou algumas vezes e olhou para ele, um pouco envergonhada. Suas
bochechas estavam coradas pela excitação e Nathaniel tinha certeza que ela
também corara em outros lugares – que ele adoraria explorar, assim que
soubesse quem diabos ela era.
— Eu não disse. Meu nome é Lucille Smith.
Foi a vez de Nathaniel piscar e a encarar. Não era possível que aquela
mulher ali, quase desfalecida em seus braços depois de um simples toque,
fosse a filha mais velha de Walter Smith.
— A senhorita é filha de Walter Smith?
— Sim.
— Céus. — Ele passou uma das mãos pelos cabelos. Se aquela era uma
brincadeira, era de péssimo gosto. — Certo, vou acordar meu cocheiro. Ele a
conduzirá para sua residência.
— O senhor não está entendendo. — Ela o interrompeu. — Tive muito
trabalho para tomar essa decisão e vir aqui, hoje. Não pretendo retornar sem
obter o que vim buscar.
— Sua ruína?
— Sim, senhor.
Ela era louca, talvez devesse chamar as autoridades sanitárias, mas não
pretendia que ninguém soubesse que aquela mulher estava ali, nem por
equívoco. Não havia nada que ele pudesse querer menos do que se envolver
outra vez com Walter Smith, um homem que só perdia em crueldade para o
seu próprio chefe.
— Meu Deus. — Nathaniel deu uma risada nervosa. — Srta. Smith, sabe
para quem trabalho, não sabe? — Ela assentiu, muda. — Então a senhorita
sabe que meu chefe é um dos homens mais poderosos de Nova Iorque, não é
mesmo? — Ela assentiu novamente, apenas balançando a cabeça. — Talvez a
senhorita não saiba que existe apenas um homem com poder o suficiente para
fazer frente ao meu chefe, e esse homem é Walter Smith. Eu tenho
orientações diretas para não arrumar nenhum problema envolvendo seu pai.
Por isso, estarei morto e enterrado antes de criar qualquer tipo de
desentendimento com ele sem um justo motivo. A senhorita vai recolocar
essa capa e voltar pelo mesmo caminho pelo qual veio, fingindo nunca ter
batido à minha porta.
Lucille olhava para Nate como se não acreditasse no que ele dizia ou se
estivesse planejando uma forma de convencê-lo a mudar de ideia. Nem
mesmo ele acreditava que dispensaria aquela mulher bonita e que se oferecia
seminua para seu deleite. Uma virgem, que ele poderia conquistar como um
desbravador, fincando sua bandeira e podendo dizer que ela sempre se
lembraria dele, não importasse quantos homens tivesse. Nathaniel
dificilmente recusaria uma noite de sexo, principalmente já estando
ligeiramente excitado como estava.
Mas ela era um perigo ambulante, com aquela pele exposta, aquele corpo
intocado e aquele sobrenome imponente. Precisava ir para casa e fingir que
nunca esteve ali, pois ele tinha problemas demais para lidar e aquela mulher
era um inconveniente desinteressante.
— Sr. McFadden, eu não pretendo ir. Não me casarei com aquele
marquês.
— E não sabe que o homem que arruina uma mulher precisa casar-se com
ela? A senhorita por acaso preferiria se tornar minha esposa?
Nathaniel girou no próprio eixo para mostrar-se para a jovem senhorita e
exibir sua falta de atratividade. Ele sabia que era bonito, sedutor para as
mulheres, mas não tinha nenhum outro atributo que o pudesse classificar
como um bom partido. Ao contrário, ele era um péssimo partido em geral,
não servia para se casar.
— Não! — Ela pareceu entender a gravidade do que ele falara. — Não
pretendo desposá-lo também, senhor, mas o procurei exatamente porque, de
todos os homens possíveis, imaginei que fosse o único que não teria honra ou
moral para se sentir obrigado a casar depois de deflorar uma virgem.
A mulher era impressionante. Ela tinha uma aparência virginal e ingênua,
mas falava palavras indecentes que nunca deveriam sair da boca de uma
mulher pura. E estava absolutamente correta, Nathaniel não tinha mais honra
suficiente para se ver obrigado a casar com uma mulher apenas por tê-la
desvirginado. Céus, que tipo de canalha ele se tornara desde que viera para
Nova Iorque? Só que aquela mulher, especificamente, não estava disponível
para sua cama. Além de noiva – e isso representava arrumar confusão com
um marquês qualquer que ele não sabia quem, ela era filha de um homem
poderoso. Se havia uma coisa que Nate aprendeu nos Estados Unidos foi que
causar distúrbios com quem detinha o poder deveria ser um movimento muito
calculado.
— Converse com seu pai, mas não poderei ajudar. Se a senhorita não
quiser minha ajuda e se arruinar até o caminho de volta para casa, não será
mais problema meu, apenas não serei responsável por isso.
— Mas eu estou me oferecendo para ser deflorada.
— E eu estou recusando sua oferta.
Mesmo achando que estava ficando louco em expulsar aquela mulher
insana de sua casa, Nathaniel sabia que fazia a coisa certa. Não era
acostumado a agir corretamente, mas não tinha motivos altruístas – ele
pensava nos negócios, em primeiro lugar, e em como era ruim provocar gente
como Walter Smith. Sem cerimônias, abriu a porta e esperou que uma atônita
Lucille passasse para poder colocar uma barreira entre eles. Não estava tão
excitado assim que não pudesse se controlar e precisava livrar-se daquela
maluca.

Insultada e humilhada, era como Lucille se sentia na manhã seguinte à sua


tentativa frustrada de encontrar a ruína com o mais notório canalha de Nova
Iorque. Olhou-se no espelho demoradamente e tentou descobrir o que ela
tinha de errado para não ter incitado Nathaniel McFadden a seduzi-la.
Os olhos eram castanhos, não tinham o brilho colorido do verde ou do
azul. Os cabelos cacheados estavam sempre com a aparência de terem sido o
ringue de uma luta entre pássaros muito irritados. A empregada sonhava em
amansá-los com ferro, mas Lucille sentia-se uma completa tola quando tinha
os cabelos penteados daquela forma. Acostumara-se com os cachos livres e
um pouco rebeldes, mesmo que eles nunca estivessem na moda. Acreditou
que seu visual pouco atraente devia ter repelido o interesse do Sr. McFadden,
pois homens como ele estavam acostumados às maiores beldades em suas
camas.
A ideia de estar na cama dele fez com que um calafrio lhe percorresse o
corpo. Lucille nunca foi uma jovem muito ingênua, ela adorava conversar
sobre indecências com as amigas. Elas falavam de romances, homens e
atributos masculinos quando se reuniam para o chá, enquanto fingiam que
tratavam de temas como bordados e tecidos. Seus pais jamais saberiam que
elas fofocavam sobre como a calça do Sr. Stone ficava justa na coxa, ou
como aquele botão aberto no pescoço do Sr. Jones deixava um amplo espaço
para a imaginação. Só que as amigas foram se casando, uma a uma, com os
sujeitos das conversas de toda tarde, e ela permaneceu solteira.
Uma solteirona, para horror de Walter e Constance Smith. Suas duas
irmãs mais novas já estavam casadas, enquanto ela, aos vinte e sete anos,
continuava esperando. O que Lucille esperava, nem ela mesma sabia – só
sabia que não se casaria com um marquês velho e barrigudo cujo único
interesse nela seria seu dote.
— Senhorita, seu pai deseja vê-la.
A empregada bateu à porta e fez com que Lucille saísse de seus
devaneios. Não dava mais tempo para bancar a feia por quem ninguém se
interessava, pois ela tinha quase certeza que os homens não a queriam por ser
uma criatura indômita. Não era sua aparência física que os afastava, era seu
espírito livre.
— Peça a ele que me espere para o desjejum. Vou me vestir.
A empregada saiu e Lucille terminou de se despir, tomou um banho
rápido no chuveiro de seu quarto, escolheu um vestido adequado para um dia
fúnebre e desceu as escadas. O pai a aguardava no salão onde a família
costumava fazer o desjejum, lendo o jornal. Como não havia mais ninguém
ali, ela teve certeza de que o assunto que seria tratado não era de seu agrado.
Walter Smith preferia conversar com os filhos e filhas como se estivesse
gerindo uma de suas empresas e algo dizia a Lucille que ele estava ali para
dar uma notícia ruim.
— Sente-se e coma. — O pai disse, apontando para uma cadeira ao lado
da sua. — Tenho algo importante para dizer. Eu fechei negócio com o
Marquês de Hertford e ele está vindo a Nova Iorque para obter sua mão e
casamento.
Lucille serviu uma xícara de café preto e mordiscou uma torrada para
conseguir refletir sobre o significado da frase. O pai acreditava que estava
contando a ela uma novidade, mas não conseguiu fingir surpresa. Sua
preocupação era: precisava conseguir tempo
— Parece que vocês já têm tudo ajustado.
— Certamente que temos, esse é apenas um comunicado oficial. O
marquês é um nobre honrado, possuidor de um título sólido, e será um
acréscimo valioso para a família. Tenho certeza que gostará dele quando o
conhecer.
— E quando será isso, meu pai?
— Recebi uma carta do marquês ontem, mas você já estava recolhida em
seu quarto. Ele avisou que chega em duas semanas.
Daquela vez ela precisou de mais esforço para não parecer totalmente
abalada pela informação de que tinha apenas duas semanas para conseguir se
livrar daquele casamento arranjado. Seu primeiro plano dera errado, não
conseguiu ser arruinada pelo homem mais indecente que já ouvira falar. O
que podia fazer, arrumar outro? Talvez houvesse outros que não tivessem
senso moral suficiente para querer desposá-la depois de deflorá-la, mas
sempre havia a sombra de Walter Smith.
O pai era um homem mau e rico, e o dinheiro comandava o mundo. Ao
menos era o que ele dizia todo dia, quando tinha a oportunidade de expor o
quanto seu dinheiro podia comprar de tudo – desde comida até maridos.
— Meu pai, é mesmo necessário que eu me case com esse marquês? Ele...
ele precisa de um herdeiro?
— Não, mas precisa de dinheiro. — O pai colocou o jornal de lado e
virou-se para ela. — Lucille, você está encalhada e é uma vergonha para sua
família. Não importa mais com quem vai se casar, desde que case. Um
marquês trará honra e dignidade para nós e ajudará meus negócios.
Ela engoliu a comida que colocara na boca e o bolo de alimento desceu
amargo. Claro que o pai falaria de negócios e aproveitaria a oportunidade
para deixar evidente que ela era uma solteirona, para todos os aspectos. Isso
machucava mais do que a imposição de um casamento infeliz. Com um
sorriso sem graça, Lucille assentiu fingindo que aceitava as determinações de
Walter Smith e terminou seu desjejum. Em seguida, pediu licença e se retirou
para a casa da única amiga solteira que ainda podia ouvir seus dramas sem
julgá-la por não ter um marido e pelo menos três filhos aos vinte e sete anos.
Usando a carruagem da família, foi até a casa de Millicent, na Rua
Eldridge. O pai tinha um carro, um veículo extravagante que não precisava
ser puxado por cavalos, mas ninguém podia usar, apenas ele. Era um objeto
de luxo que lhe servia mais para exibir a grandeza da riqueza dos Smith e que
estava fora do alcance dos meros mortais. Lucille mesmo não se importava,
ela preferia o sacolejar da carruagem com o qual já estava acostumada.
— Meu Deus, Lucy. Você está com uma cara péssima! As coisas não
deram certo com o Sr. McFadden?
Milly a recebeu no jardim, enquanto estava ajoelhada no meio de um
canteiro de rosas. Segurando uma pá, a amiga estava suada e seu chapéu
ameaçava cair. Era uma visão deselegante, mas aquela era Millicent em sua
melhor forma: uma jovem que não se importava sinceramente com a
aparência.
— O que a faz pensar que não deram certo?
— Eu sempre sei essas coisas, Lucy. — Milly levantou-se e ajeitou o
chapéu com a mão suja de terra. Uma marca marrom apareceu nas fitas que o
enfeitavam, mas ela pareceu não ligar. — E, pelo que ouvi falar do homem,
se ele for metade do que dizem as fofocas, você estaria sorrindo de orelha a
orelha. Vamos sentar e você vai me contar tudo.
Sim, ela contaria tudo e pediria ajuda. Talvez duas cabeças tivessem
ideias melhores do que apenas uma. Depois que Milly lavou as mãos na fonte
do jardim, sentaram-se em uma mesa de ferro que ficava debaixo de uma
árvore frondosa e Lucille despejou toda a sua frustração com o Sr. McFadden
e a notícia da chegada do marquês.
— Céus, você é ainda mais louca do que pensei! Como você me sai
andando nua pelas ruas, Lucy!
— Eu não estava nua! E fale baixo, não é para que saibam disso, não
pretendo ser publicamente arruinada.
— Pensei que o objetivo fosse exatamente esse.
— Não, eu apenas queria ser deflorada. O tal marquês não iria querer uma
donzela que não fosse mais virgem, não é mesmo? Homens nunca querem.
Milly olhou para os lados e garantiu que ninguém estava por perto para
escutá-las.
— Depois que conversamos, andei fofocando e talvez você possa estar
enganada. Fiquei sabendo de algumas damas recatadas que entregaram suas
virtudes para cavalheiros que não se tornaram seus maridos. E, ainda assim,
conseguiram casamentos valiosos. O dinheiro compra a honra, Lucy, e seu
pai tem dinheiro sobrando. O seu plano...
Poderia ter sido inútil. Ela não tinha pensado nisso, na hipótese do
marquês a aceitar mesmo arruinada. Sua ama sempre dissera que homens
nunca ficavam com mulheres defloradas por outros homens e era nisso que
acreditava. Mesmo assim, Milly parecia muito segura do que dizia e Lucille
sentiu-se tola. Ela esteve a ponto de entregar-se a um canalha devasso que a
usaria como um objeto descartável e, talvez, mesmo depois disso, ainda seria
ser obrigada a se casar com um homem que tinha o triplo da sua idade.
— Preciso de outro plano.
— Espero que não esteja considerando outro canalha para deflorá-la.
— Eu disse outro plano, Milly. Algo que me salve desse casamento
horroroso.
— Já tentou conversar com seu pai sobre isso?
Lucille olhou para a amiga em completo desalento. Como ela podia
sequer considerar que uma boa conversa não fora sua primeira tentativa de
dissuadir o pai daquele casamento? Ela tentara todas as artimanhas que
imaginara, desde supor que era estéril até decidir bater à porta de um notório
canalha para ser deflorada por ele. Tudo que pode, antes, obviamente, fora
exaustivamente testado. Talvez ela fosse uma tola ou incompetente, mas
atirar-se na cama de um homem horrível com Nathaniel McFadden seria
certamente sua última opção em qualquer situação. E, nem assim, ela
conseguira livrar-se do problema.
— Você me ofende em pensar que não fiz isso, ainda.
— Desculpe, minha querida. É que, sinceramente, não vejo uma luz. Só
se você fugir.
No instante em que disse aquilo, Milly apertou os lábios com força, como
se sua sugestão fosse tão absurda que sequer devesse ser dita em voz alta.
Lucille a fitou com olhos arregalados por alguns poucos instantes até que a
ideia lhe fizesse algum sentido. Fugir. Ela não tinha para onde ir e
empreender fuga sendo uma mulher a deixava totalmente vulnerável. Mesmo
assim, se não houvesse outra saída, aquela teria que servir.
— Você irá no recital dos Jameson?
Lucille voltou de suas divagações e olhou para a amiga. Apesar da
amizade, ela não deveria deixar Milly saber que fugir era uma via elegível
para se livrar do problema “casamento arranjado”.
— Claro, se eu não for minha mãe terá uma apoplexia. Mesmo que eu
esteja de casamento marcado com um marquês, para eles não é suficiente.
Sempre devo aparecer linda e gentil para todos verem como somos uma
família amorosa e perfeita.
E era claro que não eram, mas Lucille não queria falar sobre aquilo no
momento. Discutir o quanto sua família vivia de aparências era um
desperdício de tempo, pois nada mudaria. Para Walter e Constance, o que
importava era o que se mostrava aos outros – e ela estava tão farta daquela
vida que estava prestes a cometer uma loucura qualquer para livrar-se dela.
— Então, nos veremos lá. Pensaremos em uma nova tática para você
escapar desse futuro desagradável, Lucy.
A amiga segurou as mãos dela e sorriu, encarando-a com um olhar doce e
sincero. Milly era uma jovem extraordinária e tinha uma ótima vida, pois
seus pais não a importunavam com casamentos nem a obrigavam a ser uma
caçadora de títulos. Tinham muito dinheiro, amavam-se e criaram filhos
felizes, cujas opiniões e desejos eram respeitados – o oposto de seus pais, o
contrário de sua criação. Lucille suspirou, desejando que a amiga tivesse
razão e que elas conseguiriam, juntas, pensar em uma solução.
Capítulo terceiro

S ARAUS , BAILES , RECITAIS E OUTROS EVENTOS DAQUELE ESTILO ERAM


insuportáveis para Nathaniel. Ele gostava deles, quando vivia em Londres,
mas apenas quando estava interessado em alguma dama que poderia arrastar
para os jardins. Seus objetivos em eventos da sociedade sempre foram beber,
jogar e beijar mulheres em alcovas escuras ou áreas descobertas isoladas.
Como descobriu que clubes e antros de jogatina ofereciam exatamente a
mesma coisa sem o preço de precisar lidar com a desonra de alguma virgem,
foi gradualmente trocando as celebrações tradicionais pelo submundo da
diversão londrina.
Em Nova Iorque, Nathaniel fugia de recitais. Não havia nada que o
assustasse, nada que lhe causasse medo, mas ele odiava o tédio que aquele
tipo de evento causava. Então, não fazia a menor ideia do que estava fazendo
no recital dos Jameson.
— Pela décima vez, você sabe que o chefe nos queria aqui. Pare de
reclamar.
Leonard entregou a ele uma taça de champanhe e fez uma careta,
indicando que deveria beber.
— Ele deveria vir pessoalmente. — Nate virou a taça em um só gole,
fazendo com que as bolhas estourassem em sua garganta. — O que tem aqui
de importante?
— O anfitrião.
— Jameson está devendo?
O amigo assentiu, olhando ao redor. Leonard sempre sabia de tudo sobre
todos, ele era o guardião dos segredos. O chefe colecionava segredos de
grandes figurões da cidade a fim de mantê-los sob seu controle.
Aparentemente, garantir que todos lhe devessem muito dinheiro não era
suficiente. E o anfitrião da noite, Neil Jameson, era o que se podia chamar de
homem rico. Se estava devendo ao chefe, alguma coisa estava errada com
suas finanças.
— Não se preocupe, não vamos cobrá-lo, apenas intimidá-lo.
— Espero que essa intimidação não dure a noite toda. Gostaria de comer
alguma coisa antes de dormir.
— Há comida aqui, Nate.
— Não falei nada sobre comida.
Leonard quase cuspiu o champanhe que levara a boca. Nathaniel pegou
outra taça de uma bandeja e também a virou em apenas um gole, desejando
ficar bêbado ao ponto de não se entediar. Se precisavam intimidar Jameson,
então considerava flertar com uma das filhas – se ele descobrisse quem eram,
ou causar uma cena desagradável com algum convidado ilustre. Como era um
recital, não haveria dança, graças a Deus.
Enquanto estudava a dinâmica do que faria ali, viu chegar uma pessoa
que atraiu sua atenção. A família Smith entrava pelo salão principal e era
cumprimentada por todos. Atrás dos pais, a figura de Lucille Smith não se
destacava em relação a nenhuma das damas presentes. Usava o cabelo preso
no alto da cabeça, com alguns cachos caindo pela lateral de seu rosto, e um
vestido violeta com renda e bordado. Uma mulher comum que não causaria
nenhuma impressão marcante, se ele já não a tivesse visto em suas roupas
íntimas.
Ela era bonita, mas parecia se esforçar para esconder sua beleza com
cores enjoativas e a ausência de uma expressão facial confiante. Não o
surpreendia que os pais a estivessem vendendo a um marquês falido como
mercadoria barata.
— Você ouviu uma palavra do que falei, Nate?
A voz de Leonard o trouxe de volta à realidade.
— Não.
— O que tem na família Smith?
— Ontem a filha deles me visitou.
— Visitou? — Leo virou os olhos na direção da jovem Lucille e tentou
imaginar o que aquele anjo virginal poderia querer com um completo
canalha. — Conte-me essa história.
Nathaniel contou. Bebeu outra taça de champanhe e arrastou Leonard
para um canto do salão e despejou sobre ele o episódio que se resumia em
Lucille Smith em sua casa, tarde da noite, apenas em roupas de baixo.
Explicitou a parte em que ele a recusava apenas por que ela era filha de
Walter Smith, não porque estava ficando louco de dispensar uma mulher
desejando ser seduzida.
— Quem diria que ela seria tão atrevida. Se não fosse pelo pai dela, eu
mesmo me ofereceria para arruina-la.
— Se não fosse pelo pai dela, ela já estaria totalmente arruinada. Talvez
umas três vezes arruinada.
— Que azar o chefe ser tão rigoroso com os jogos que podemos jogar. —
Leo começou a se mover. — Vamos circular por esse recital, não pretendo
ficar para confirmar se os músicos sabem realmente tocar.
Os amigos se separaram e começaram a abordar convidados. Todos ali
sabiam quem eram, mas eles transitavam normalmente como o segundo filho
de um marquês e o terceiro filho de um conde. Os americanos
desenvolveram, naquela época, um certo fetiche por títulos e pela nobreza
britânica, fazendo com que muitos homens desejassem casar suas filhas com
duques, condes, viscondes, entre outros títulos. Mesmo que Nathaniel fosse
um completo canalha e alguém que tinha perdido boa parte dos valores
morais da sociedade civilizada, ele era sempre admitido nos melhores salões
por causa de sua linhagem.
Depois de petiscar na mesa do brunch e de beber quase uma garrafa de
champanhe, o que não era suficiente para o embriagar, Nathaniel foi para a
sacada externa quando a música começou. Seu senso de dever não era tão leal
assim que o faria acompanhar uma exibição de violino e piano apenas para
demonstrar a Jameson que ele estava ali. Leo, que era mais erudito e sabia
fingir melhor, manteria sua presença enquanto ele fumaria um cigarro
olhando para o luar. Ah, que coisa cafona.
O que ele precisava era de informações. Já mobilizara metade de Nova
Iorque para descobrir sobre Emile. Seu irmão não estava morto, não podia
estar. De todas as burradas que Nate fizera desde que chegou aos Estados
Unidos da América, ele não admitiria ser o responsável pela morte de seu
irmão, mesmo que não tivesse puxado o gatilho. Se Emile estava vivo, fora
levado pelo oceano para algum lugar – e ele descobriria que lugar era esse.
Alguém deveria saber de um inglês ferido por arma de fogo que não foi
reportado à polícia.
Enquanto se concentrava em seus próximos passos, Nathaniel sentiu uma
presença e um aroma que ele definitivamente não deveria reconhecer – até
porque se tratava de um cheiro comum entre mulheres americanas. Almíscar.
— A senhorita não pode ser vista sozinha comigo. — Disse, sem virar-se
para olhar a mulher que se aproximava e encostava na balaustrada ao lado
dele.
— A porta do salão está aberta e, em minha defesa, não fazia ideia de que
o senhor estaria aqui.
Nathaniel olhou sutilmente para ela. Srta. Lucille Smith, a aparição da
noite anterior.
— Isso me deixa aliviado, pensei que a senhorita me perseguia. Devo
temer por minha segurança?
— Não deboche de mim. — Ela rosnou em baixa voz. — Eu não preciso
ser mais humilhada do que já fui.
— Ninguém sabe do que houve. Eu mesmo não me lembro direito de
nada, portanto não leve isso muito a sério.
Era mentira, ele se lembrava melhor do que deveria. Não porque ela era
interessante, mas porque qualquer mulher que se exibisse seminua para ele
deixaria uma marca. Não, aquilo também era mentira. Algo na ousadia e na
coragem de Lucille era admirável, e Nathaniel respeitava aquilo. A maioria
das mulheres da classe social dela era como as damas inglesas – insossas,
insípidas, totalmente previsíveis. Não serviam nem mesmo para aventuras
sexuais, pois elas não sabiam o que fazer e o deixavam ligeiramente
entediado por ter que ensiná-las.
— O senhor é totalmente grosseiro. Arrependo-me de ter-lhe feito
qualquer oferta.
— Seu arrependimento está registrado. Adeus, Srta. Smith.
A jovem se afastou, pisando forte no chão com suas sapatilhas de dança.
Nate deu uma última tragada em seu cigarro e continuou contemplando o céu
por algum tempo até ser interceptado por Leonard.
— Nossa missão aqui acabou. Jameson está mais pálido do que cera de
vela e creio que ele entendeu qualquer recado que o chefe quis passar.
— Ainda bem, já estava exausto de não fazer nada e posar de homem
íntegro para esses janotas irritantes.
Leonard encostou ao lado dele e entregou um bilhete, antes que Nathaniel
pudesse se virar para ir embora.
— Agora posso entregar-lhe isso. Precisava que estivesse concentrado
essa noite.
O bilhete estava rabiscado em uma caligrafia horrorosa, certamente
masculina, e continha algumas informações. Aparentemente, alguém com a
descrição de Emile fora visto em Norwalk, Connecticut. Não apenas a
descrição física batia, mas também o fato de que a pessoa fora encontrada na
praia entre a vida e a morte.
— Quem lhe entregou isso?
— Um informante deixou no clube, hoje de tarde. Você estava ocupado,
eu recebi.
— Seu maldito. — Nathaniel virou-se para o amigo com as mãos em
punhos. — Eu poderia estar na metade do caminho para Norwalk a essa hora.
— Exatamente, e eu precisava de você aqui, hoje.
— Sabe que, um dia, eu vou partir a sua cara no meio. E não vai demorar
muito.
— O que pretende fazer? Vai mesmo para Connecticut atrás de uma pista
cuja autenticidade não podemos confirmar?
— Prometi encontrar Emile e farei tudo que estiver ao meu alcance para
isso, inclusive seguir pistas anônimas. Amanhã parto, tenho uma carroça
pronta na estação esperando para essa ocasião.
Enfiando o papel no bolso, Nathaniel apagou o cigarro na balaustrada e
saiu, deixando o maldito recital sem se importar em despedir-se ou
cumprimentar ninguém. No dia seguinte, conversaria com o chefe e pediria
uma folga, ou se demitiria, dependendo de como estivesse seu humor. Seria
um pequeno problema viajar estando na mira da polícia, pois ele não deveria
pegar o trem. A forma menos extravagante para chegar a Norwalk era de
carroça pelas vias vicinais, assim corria menos riscos de ser notado. Ele
poderia ir a cavalo, mas um animal não aguentaria aquela viagem e Nathaniel
não podia arriscar se hospedando em estalagens de beira de estrada.
Maldição, ele precisava traçar mais estratégias e isso significava que teria
que ir para casa – sóbrio e sozinho. Seria a segunda noite que dormiria sem
uma mulher em sua cama e não fazia ideia de quando veria uma se
contorcendo debaixo de si, novamente. Emile era o foco – apenas o irmão
importava naquele momento. Ele podia ter sido destruído naquele ano nos
Estados Unidos, mas o amor por sua família não se alterara.

As mãos de Lucille tremiam enquanto ela segurava uma tesoura na frente de


um espelho. Passou a noite no recital dos Jameson e decidiu que fugiria. Não
aguentava mais ouvir o pai gabar-se do seu casamento com o maldito
marquês, nem a mãe dizer como se orgulhava dela por conseguir um título
para a família, fingindo estar feliz com sua tragédia. Título comprado, sujo,
sem mérito algum. Ela não faria parte daquela farsa e não se casaria com
ninguém. Preferia viver a vida como saltimbanco do que se submeter àquele
casamento forjado e sabia que, se continuasse sobre o jugo de Walter Smith,
não teria opção. Legalmente, mesmo que ela fosse adulta, podia ser
comercializada pelo pai daquela forma.
E, depois de ouvir sorrateiramente a conversa entre o Sr. McFadden e o
Sr. Eckley, ela teve outra ideia. O canalha poderia ter lhe negado a ruína, mas
a ajudaria a fugir.
Mas ela não podia fugir como uma senhorita virginal de vestidos que
quase arrastavam no chão. Era impossível ter agilidade e disfarçar-se daquela
forma. Então, assim que a família chegou em casa e se recolheu, ela procurou
o cavalariço e pediu a ele roupas que lhe servissem – calça, camisa, colete e
gravata, limpas, de preferência. Vestiu, ajustou alguns detalhes, descobriu
que precisaria esconder os seios e sabia como as mulheres faziam isso
antigamente – enfaixando-os. Com todos os equipamentos necessários para
transformar-se em homem, só lhe faltava coragem de cortar os cabelos.
Depois, teria que jogá-los na lareira para que ninguém desconfiasse que o
fizera.
E pior, teria que agir sozinha. Segredos só existiam até que uma segunda
pessoa soubesse – aí deixavam de ser segredos. Olhando-se no espelho,
enfiou a tesoura em uma madeixa encaracolada e viu os fios se soltarem em
suas mãos. Repetiu o processo várias vezes, com as lágrimas escorrendo
pelos olhos e molhando as bochechas, mas ela não fraquejaria. Precisava ter
cabelos curtos, fáceis de manejar e que pudesse esconder debaixo de uma
boina masculina. Depois do que pareceu uma eternidade, ela estava então
com sua nova aparência e pronta para fugir.
Como não podia levar muita coisa consigo, Lucille pegou alguns itens de
higiene, algumas peças de roupas íntimas, e enrolou tudo em um saco.
Pessoas pobres não tinham malas e ela não conseguiria transitar escondida
carregando um trambolho consigo. Um saco de moedas, contendo todo o
dinheiro que conseguira furtar de seu pai de pouco em pouco, foi distribuído
em lugares diferentes e tudo que faltava era sair da casa. Não podia olhar para
trás, não podia despedir-se de nada, não podia pensar que sentiria saudades.
Talvez um dia, depois que o pai entendesse que ela não se casaria com
ninguém apenas por causa de um título, pudesse voltar para casa.
Lucille não tinha nada muito bem planejado. Era madrugada, ela fugira de
casa pulando a janela de seu quarto e deslizando por uma treliça, quase se
arrebentando ao bater no chão, e apenas ouvira sobre a carroça do Sr.
McFadden – não conseguiu saber em que ponto da estação ela estaria
esperando por ele, afinal. Estava em uma boa localização, mas as ruas eram
perigosas àquela hora. Pegou um coche que passava e, fingindo ser um jovem
perdido, pediu que fosse levada à estação ferroviária.
Estava com sorte, se fugir sem destino pudesse ser qualquer coisa
relacionado à sorte. Logo que chegou pode ver uma carroça, atrelada a dois
cavalos pretos antolhados, parada no estacionamento próximo à estação. Um
homem conversava com outro – e ela teve certeza que era ele, Nathaniel
McFadden. Quando se tornou tão especialista naquele canalha, não sabia.
Imaginando que ele estaria para partir, enfiou-se silenciosamente na parte
traseira da carroça, debaixo de um pesado cobertor, e esperou. Logo seria
conduzida escondida para a tão desejada liberdade.

O sol ainda não nascera quando Nathaniel pegou estrada na direção de


Norwalk. A cidade não era longe, mas ele pretendia parar em alguns lugares,
antes. Duvidava que Emile tivesse submergido no Brooklin e emergido
apenas tantas milhas depois sem que isso tivesse lhe custado a vida. Era mais
provável que o irmão tivesse sido encontrado antes e levado para Norwalk. A
viagem levaria uns três ou quatro dias, até mais, contabilizando pelo menos
as paradas para descanso dos animais.
E ele ainda não entendia por que diabos Emile não havia se comunicado.
Estaria tão irritado assim com ele que preferia não dizer que estava vivo? Ou,
pior, estaria realmente entre a vida e a morte e não tivera como o contatar?
Eram muitas questões que serviriam para enlouquecer Nathaniel enquanto ele
conduzia os cavalos pela via de terra, saindo de Nova Iorque. Teria dias de
viagem, totalmente sozinho, e esperava que isso não fosse um problema, mas
seria. Estava desacostumado à solidão, sempre que se via a sós consigo
mesmo, era engolidos por pensamentos estranhos. Por que diabos um homem
como ele não conseguia deixar o que lhe acontecera durante aquele fatídico
mês escondido no fundo de sua memória?
Deveria ter convidado Leo para a viagem, mas o amigo precisava ficar na
cidade cuidando dos negócios. Era a única forma do chefe concordar com sua
longa ausência, então precisava deixar de agir como um frouxo e enfrentar
seus medos. E foi construindo hipóteses absurdas sobre o que poderia ter
acontecido com Emile que passou a maior parte da manhã, até o horário que
pretendia parar para almoçar. Parou a carroça em uma área mais isolada na
lateral da via, que era ladeada por árvores. Deixou que os cavalos
descansassem e pastassem um pouco enquanto abria uma cesta que a
cozinheira preparara com algumas iguarias. Pelo menos para o primeiro dia,
haveria comida.
Enquanto se fartava com um sanduíche de faisão, ouviu ruídos e um
movimento em suas costas. Sacou a pistola da cintura e virou-se
repentinamente, surpreendendo o visitante inconveniente. Era um rapaz
jovem, com uma roupa surrada e que parecia estar... dormindo em sua
carroça.
— Mas que diabos?
— Por favor, não atire! — O rapaz se encolheu, cobrindo o rosto com os
braços. — Eu estou desarmada.
— Quem é você? Por que está me seguindo? O que faz na minha carroça?
O jovem ergueu um pouco os olhos e o fitou. Nathaniel deveria ter levado
uma mulher para a cama na noite passada, pois estava vendo feições
femininas onde elas não existiam. Aquele rapaz parecia-se muito com uma
garota.
— Eu... eu estou fugindo. — Ele se ergueu e olhou ao redor. — Sr.
McFadden, se me permitir explicar...
— Que bom que sabe quem sou, assim também sabe que não sou
conhecido por minha paciência. Diga logo quem é.
Tremendo, o rapaz se endireitou e tirou a boina, exibindo um cabelo que
mais parecia um emaranhado de cachos frondosos. Ele nunca vira um homem
com cabelos como aqueles. Bem, Nathaniel também nunca vira um homem
com o rosto delicado, os cílios longos e a boca desenhada...
— Sou eu, Lucille Smith.
Por Lúcifer, ela era mesmo louca.
— Srta. Smith, o que está fazendo na minha carroça?
— Se o senhor abaixar essa pistola, terei o maior prazer em lhe contar.
Nathaniel enfiou a pistola novamente na cintura e colocou o sanduíche de
lado. Aquela mulher não parecia uma ameaça, ele era capaz de imobilizá-la
com uma mão atada nas costas. Cruzou os braços e esperou que ela se
explicasse.
— Estou fugindo. — Ela esfregou as mãos, nitidamente envergonhada do
seu vestuário. — Como disse ao senhor, antes, não me casarei com um
marquês que pode ser meu pai. Eu ouvi o senhor dizer que iria para Norwalk
e decidi pegar uma carona até lá.
— Pegar uma carona? — Ele a interrompeu com uma gargalhada. —
Comigo? Qual parte do “eu não quero me envolver em seus planos” a
senhorita não entendeu, Srta. Smith?
— Eu entendi, Sr. McFadden, mas ignorei. Preciso fugir e ir de trem
deixaria rastros, então precisei improvisar.
Aquilo era um completo absurdo. Nathaniel deixara de acolher aquela
mulher em sua cama porque não queria problemas com Walter Smith, e lá
estava ela no meio de sua viagem, vestida como um moleque dos estábulos
e... e ela estava incrível. Nate nunca vira uma mulher vestida como um
homem e ele era cunhado de Caroline, a maior libertina que Londres já
conheceu. Caroline usava calças para cavalgar e uma vez se despira para
resgatar seu irmão dos escombros de um desmoronamento. Ainda assim,
nenhuma mulher usando camisa, colete e gravata – e talvez ele também
estivesse enlouquecendo, porque ela ficou mais bonita usando botas do que
com aqueles vestidos cheios de rendas e frufrus das damas.
Achá-la linda não mudaria em nada a situação. Ele tinha que encontrar o
irmão, não servir de escolta para uma fujona.
— Bem, senhorita, creio que nos separaremos por agora. Desça da minha
carroça, não viajará comigo até Norwalk.
Ela olhou ao redor, ainda esfregando as mãos.
— Aqui é um pouco deserto. O senhor não poderia... talvez se me
deixasse em uma estalagem, eu pudesse conseguir outra carona?
Era uma péssima ideia, mas a maluca tinha razão. A não ser que desejasse
vê-la morta, não podia abandonar uma mulher em uma beira de estrada –
mesmo que a mulher em questão estivesse se passando por homem. Ela era
uma presa fácil para qualquer criminoso que rondasse a região, e eles eram
bastantes.
— Tudo bem, Srta. Smith. Depois que terminar meu almoço, seguiremos
até a Prince Station, que fica a quatro milhas daqui. Lá nos separaremos.
Lucille assentiu e se sentou onde estava, por cima de algumas bagagens
que Nathaniel levava consigo. Eram provisões, roupas e outras coisas que
poderiam servir para acampar durante os dias que levaria na estrada. Quanto
mais despercebido passasse, menos chance de alguém o reconhecer – porque
tinha certeza de que, em algum momento, a polícia de Nova Iorque mandaria
alguém atrás do fugitivo que era.
Ele deu mais uma mordida no sanduíche de faisão e notou que ela o
encarava. As mãos femininas estavam trêmulas e tentavam colocar a
cabeleira para dentro da boina.
— Está com fome? — Perguntou, virando o sanduíche na direção dela.
— Não como nada desde o jantar de ontem.
Maldição. Por que diabos perguntava se não queria se importar?
— Pegue, eu tenho mais comida aqui.
Lucille agarrou o sanduíche com as duas mãos e o atacou sem muita
elegância. Ele duvidava que aquelas fossem as maneiras que usava durante as
refeições dos Smith, então suspeitou que ela realmente estivesse faminta.
Pegou outro sanduíche para si e ambos comeram em silêncio até a comida
acabar – e ela levar os dedos até a boca para lambê-los e retirar a gordura do
faisão.
Aquilo era um pouco demais. Nate pegou um pano de dentro da cesta e
entregou a ela, para que se limpasse.
— Posso sentar-me à frente com o senhor? As pessoas pensam que sou
um homem, portanto sua reputação estará à salvo.
Nathaniel deu outra gargalhada.
— Não tenho reputação para ser estragada, senhorita. Pode se sentar onde
desejar, inclusive no meu colo.
O arregalar dos olhos dela fez Nathaniel se alegrar por tê-la assustado
novamente. Ela precisava ter medo dele, precisava entender que ele não era
um homem inofensivo como os galanteadores com quem estava acostumada.
Normalmente, ele determinaria que ela deveria sentar-se em seu colo e
acomodar aquele lindo traseiro sobre suas partes íntimas, mas estava se
esforçando para não a arruinar desnecessariamente – portanto permitiu que
escolhesse. Não parecia muito útil resistir a Lucille naquele momento, mas
ela já tinha outros planos que não o incluíam.
Lentamente, ela deslizou para a parte da frente da carroça e acomodou-se
no banco acolchoado ao lado de Nathaniel. Encolheu-se no canto e manteve
as mãos juntas e entre as coxas. Apesar da aparência masculina e do cheiro de
sabão barato vindo das roupas, ela continuava exalando o mesmo perfume
que ele não deveria reconhecer. Enquanto a carroça retomava a estrada e
seguia na direção de Prince Station, uma estalagem de reputação duvidosa
que ficava pelos arredores, ela se manteve em silêncio por quase todo o
percurso.
Ele também, mas poderia dizer que fora um silêncio eloquente. Vez ou
outra, Nate virava o rosto sutilmente para espiá-la e ter uma visão rápida do
perfil feminino, da curva do pescoço, do peito subindo e descendo por baixo
de poucas camadas de tecido. A curiosidade para saber como ela escondera
seus seios acabou se transformando na imagem de Lucille nua, com os
mesmos seios de mamilos rosados despidos, vindo em sua direção.
Antes que pudesse ter uma ereção pelos pensamentos mais absurdamente
inadequados, a estrutura decadente da estalagem surgiu à sua frente.
— Parece um lugar... agradável. — Ela disse, a voz vacilando com um
humor despretensioso.
— É uma pocilga. — Nathaniel conduziu os cavalos para a lateral,
entrando na via que terminava na frente da estalagem. — Mas certamente a
senhorita conseguirá uma carona para... não faço ideia de para onde a
senhorita vai.
— Agora, nem eu.
Lucille não desceu, ficou esperando sentada a ajuda de um cavalheiro,
como uma mulher bem-nascida faria.
— Se vai fingir que é homem, precisa aprender a pular de uma carroça.
— Nate se aproximou e ofereceu a mão para que ela saltasse. — Homens não
ficam esperando outros homens, até porque homens não ficam encostando em
outros homens.
Ela assentiu em concordância e deu um pequeno pulinho, pousando no
chão com pouca graciosidade. Ao erguer a face, sorriu para Nathaniel e ele se
irritou por achar que ela tinha um sorriso bonito e mãos macias, já que
Lucille não usava luvas. Aquele disfarce não daria certo, ela não se passaria
por homem nem para um velho cego.
— Obrigada pela carona, Sr. McFadden.
Com uma reverência nada masculina, Lucille afastou-se e entrou no
Prince Station. Nathaniel inspirou profundamente e decidiu ir atrás apenas
para conferir se ela conseguiria alguém que a conduzisse a qualquer lugar. A
mulher definitivamente não parecia saber muito bem o que estava fazendo,
apesar de ter decidido fazê-lo de toda forma. Ela era determinada e não se
deixaria abater por uma dificuldade insuperável – porque ele sabia o quanto
estar sob o domínio de alguém poderia ser algo quase impossível de superar.
Nate trincou o maxilar e caminhou para dentro da estalagem. Sentou-se
no bar, que ficava logo na lateral da recepção, e pediu um conhaque. Preferia
conduzir a carroça estando sóbrio e certamente aquele seria um atraso em
suas programações, mas sentiu-se subitamente responsável por garantir que
Lucille não fosse mantida refém daquela espelunca. Claro que ali não havia
um grupo de sequestradores prontos para render moleques com roupas
maltrapilhas, mas ela era a filha de um milionário. Se descobrissem, valeria
um bom dinheiro. Ela também era bonita, uma mulher. Muitos homens
poderiam gostar de a levar para a cama. Não, muitos homens a possuiriam em
qualquer superfície que encontrassem, e não seria com gentileza.
Afastou aqueles pensamentos e bebeu um gole do uísque. Lucille
conversava com um grupo de pessoas que carregava malas – todos homens.
Não havia uma maldita família hospedada no Prince naquele dia? Ela depois
foi atrás de outro grupo, girou pela recepção, até sair da estalagem seguindo
três homens com uma aparência não tão simpática. Nathaniel não costumava
achar ninguém simpático e dificilmente considerava as pessoas confiáveis,
então terminou o uísque e espreitou o que conversavam do lado de fora.
Não sabia por que se importava, ou por que interferia em algo que já
dissera não se importar. Quanto mais tempo permanecesse na mesma milha
que aquela mulher, mais confusão poderia atrair para si mesmo, além de ela o
distrair de seus planos de encontrar o irmão. Pelo tempo que estava perdendo
naquela estalagem, já teria percorrido mais uma hora de viagem.
— Os senhores foram muito gentis em me oferecer um lugar em sua
carruagem.
A voz de Lucille não parecia muito firme. Nathaniel enrijeceu os
músculos e apurou os ouvidos.
— Não temos uma carruagem, belezinha. — Uma voz masculina e
melosa disse. — Estamos a cavalo.
— Oh. Então creio que não poderão me levar com os senhores.
Ela ficou ainda mais vacilante, indicando que eles sabiam que não era
homem. Não é problema seu, Nathaniel. Deixe-a com seus problemas, não foi
você que a raptou. Se ela tem coragem para fugir de casa, deve aprender a
enfrentar os riscos. Seu lado diabólico gritava em seu ouvido enquanto ele
continuava ouvindo a conversa e fazia-se de surdo para sua consciência.
— Ah, claro que podemos. Você vai dividir a sela comigo.
— Não, comigo.
— Senhores, eu creio que não tenha mais interesse em...
— Fique quieta, docinho, e prometo que será rápido.
A consciência – ou a falta dela – continuou gritando enquanto Nate
deixava uma moeda para pagar sua bebida e saía. Ninguém ajudaria uma
mulher em apuros naquele lugar, ninguém se importaria se Lucille fosse
violada por aqueles animais ali mesmo. Nem ele, provavelmente, deveria.
Mas, quando a viu sendo puxada por um braço por um homem barbudo e de
aparência imunda, e pelo outro braço por outro homem de cabelos presos em
um rabicho ensebado, algo estalou dentro de si e Nathaniel quis quebrar
algumas pernas.
Havia limites que ele não ultrapassava, um deles era bater em mulheres.
Nathaniel não praticava nem tolerava violência contra mulher alguma.
— A moça disse que não irá com os senhores.
Ele disse, sóbrio, ajeitando o chapéu que acabara de colocar na cabeça.
Capítulo quarto

N ENHUM HOMEM ERA CONFIÁVEL , DISSE A AMA , MAS L UCILLE PENSOU QUE
ela falava apenas em relação à atitude deles com as mulheres. Para si mesma,
estava perfeitamente vestida como um deles, então não corria riscos. Como
fora tola em acreditar nisso. Depois de sondar alguns viajantes e conseguir
um grupo disposto a acolhê-la, descobriu que eles nunca duvidaram que ela
os estivesse tentando enganar.
Então, era como as coisas seriam. Ela provavelmente seria violada e
abandonada à própria sorte, ou se tornaria a meretriz daquele bando. Deixaria
de se casar com um velho interessado apenas em seu dinheiro para se
prostituir forçada por um grupo de brutamontes porque era burra. Não, claro
que não. Lucille não cortara cabelo, se apropriara de roupas do estábulo e
fugira de uma casa que mais parecia uma fortaleza para sucumbir nas mãos
daqueles homens horrorosos. Ela lutaria – e talvez acabasse morta, mas
lutaria. Porém, antes de começar a distribuir pontapés e tapas para tentar se
soltar, ele apareceu.
— Se quiser a moça vai ter que esperar até que eu acabe com ela.
O barbudo que cheirava a urina disse, quase a derrubando com seu mau
hálito. Aqueles homens não cuidavam muito da higiene, o cheiro deles
indicava que deveriam perambular pela estrada com frequência e sempre em
instalações inadequadas. Não importava, apenas que ela estava prestes a ser
salva por um patife – se ele não fosse apenas um contra três.
— Lamento, mas não posso esperar. Tenho compromissos longe daqui e
essa conversa já me fez perder bastante do meu tempo. Soltem-na e fingirei
que nada fizeram.
Os homens começaram a rir e não a deixaram. Lucille entendeu que
precisava ajudar seu pretenso salvador e começou a se debater, querendo se
livrar das garras em seus braços. Os dedos imundos que a mantinham cativa
já haviam encardido parte da manga da camisa nem tão branca assim que
usava.
— Fique quieta, docinho. — O barbudo desagradável falou bem perto de
sua orelha, fazendo com que sentisse náuseas. — Depois que acabarmos com
esse imbecil, poderá se mexer à vontade.
Um dos homens avançou sobre Nathaniel, que esquivou e o socou nas
costas. Outro pulou sobre ele, fazendo com que rolassem no chão, mas logo
as posições se inverteram e ela se assustou com o brilho prateado do metal
que reluziu sob a luz do dia. Com a elegância de um lorde e a frieza de uma
pedra de gelo, Nathaniel McFadden ergueu-se, batendo a grama de suas
roupas, enquanto o homem ficou caído, segurando uma das pernas e gritando.
O primeiro homem voltou e parou ao ver o amigo esfaqueado. Nathaniel
limpou o metal na calça preta e girou o punhal na mão, mostrando-o para os
dois homens que permaneciam de pé.
— Vocês podem descobrir se sou tão bom quanto pareço ou ajudar seu
amigo. Ele teve uma artéria seccionada e sangrará até a morte se não for
socorrido imediatamente.
Os patifes se olharam rapidamente e Lucille foi solta pelo barbudo, que
correu para cima de Nathaniel. Ela teve tempo de vê-lo revirar os olhos em
desânimo antes de atacar e golpear o homem nas costas, derrubando-o.
Depois, ajoelhou-se sobre ele, puxou um dos braços para as costas, torcendo
as articulações e o fazendo gritar. Ela ficou dividida entre a necessidade de
fugir para preservar sua vida e o desejo de ver Nathaniel McFadden, que
tinha a metade do tamanho daqueles senhores, acabar com todos eles.
Escolheu a segunda opção.
— Eu avisei para irem embora. — Ele disse, forçando ainda mais o braço
do barbudo e usando a faca para ameaçar o outro homem. — Preciso
desmembrá-lo para que entendam o recado?
O homem que permanecia de pé agarrou o esfaqueado pelos braços e
começou a arrastá-lo para a direção de um trio de cavalos, amarrados na
lateral da estalagem. Depois de uma conversa muda, Nathaniel ergueu-se e
soltou o barbudo, que correu na direção dos amigos. Eles proferiam ameaças
em alta voz, mas ninguém por perto parecia disposto a intervir, fosse para os
ajudar ou não. De toda forma, Lucille não conseguia prestar atenção em mais
nada que não o seu salvador.
Considerando a fama de Nathaniel McFadden, ela não sabia se corria
mais ou menos risco ao lado dele. Porém, já decidira entregar sua virtude a
ele uma vez, o que sugeria que não o repudiava. Ao menos ele tinha um
cheiro masculino agradável, cabelos claros que pareciam precisar ser
penteados, uma barba desleixada por fazer que lhe conferia um ar viril e... e
ela estava pensando demais nele. Aquele homem a ajudara, mas não era um
amigo.
Ainda assim, ela quase desmontou em seus braços quando ele se
aproximou, guardando a faca na em um bolso em seu colete e segurando-a
com firmeza pelos ombros.
— Eles machucaram você?
Os olhos sombrios indicavam que, se ela dissesse que sim, ele voltaria a
perseguir os seus agressores e os faria pagar por cada arranhão.
— Não, eles foram apenas inconvenientes. Eu...
— Esse disfarce é péssimo. — Nate abaixou e pegou a boina que ela
usava, que caíra durante a disputa. — Você não se parece um homem, não
fala como um nem se porta como um. Será presa fácil nessa estrada. Volte
para casa, Srta. Smith.
— Não, senhor. — Ela baixou os olhos porque encará-lo era mais difícil
do que ela esperava. — Cheguei até aqui, não voltarei atrás.
— Se queria desonra, depois de fugir de casa creio que esteja desonrada o
suficiente. Qualquer um acreditará em você.
— Minha amiga me convenceu que a desonra pode não ser suficiente.
Aparentemente, há homens tão necessitados de dinheiro que poderiam aceitar
uma mulher arruinada se o dote for suficiente. E o meu dote não é suficiente,
é obsceno.
Nathaniel riu e passou as mãos pelos cabelos desgrenhados. Era a
segunda vez que ela se pegava achando-o bonito naquele minuto e aquilo só
servia para explicar o quanto ela era realmente tola.
— Imagino que me arrependerei, mas, venha comigo, então.
Lucille piscou algumas vezes, achando difícil de entender a mudança
repentina de opinião.
— O senhor está me convidando para fugir com o senhor?
— Não, de onde tirou isso? Primeiro, não estou fugindo, estou em busca
de respostas. Segundo, não parece certo que, depois do trabalho de me livrar
daqueles animais, eu te deixe para ser atacada por outro bando.
Ele fechou novamente o casaco e seguiu para sua carroça. Não havia mais
sinais dos homens que tentaram raptá-la e nenhum movimento na estalagem
indicou que houvessem incomodado alguém. Talvez brigas e pessoas sendo
esfaqueadas fosse comum, naquele lugar. Nathaniel pulou na carroça e
indicou que ela deveria ocupar o espaço ao lado dele, mas não a ajudou a
subir. Claro, ela deveria agir como um rapaz, se quisesse, mesmo que de
longe, fingir ser um.
Os cavalos voltaram a trotar e logo eles pegaram a estrada novamente. Os
minutos de silêncio começaram a corroê-la. Lucille era falante, gostava de
conversar e costumava ter sempre pessoas dispostas a ouvi-la. Ela era rica,
filha de um milionário, a maioria das pessoas simplesmente fazia o que ela
queria ou o que achassem necessário para a agradar. Quando jovem, ela
adorava a bajulação, até descobrir que as pessoas não se importavam
realmente com ela – mas com a riqueza de sua família. E que ninguém a
desejava por ser quem era, mas por ser filha de Walter Smith.
Ainda assim, ela tolerava o excesso de atenção e nunca ficava sozinha.
Naquele momento, apesar do homem ao seu lado, ela se sentia invisível. Ele
mantinha o semblante sério e concentrado, o maxilar contraído e os olhos
fixos na estrada – e parecia ignorar completamente a sua presença.
— É verdade que aquele homem sangraria até morrer?
— Provavelmente, não, mas esperava que fossem estúpidos o suficiente
para acreditar em mim.
— O senhor tem uma pistola, por que preferiu usar um punhal?
— Sou melhor com facas. Prefiro uma luta corporal, se a senhorita me
entende.
Ela esfregou as mãos, intrigada por conseguir fazê-lo falar. Nathaniel não
olhava para ela, apenas para frente, sem perder o foco de seu caminho
nenhum segundo.
— O que o senhor está procurando? Que respostas pretende encontrar?
— Nada com o que possa me ajudar.
— Mesmo que não possa ajudar, gostaria de saber.
— Não precisamos manter uma conversa casual, senhorita. — Ele virou-
se rapidamente para ela, com olhos azuis cintilantes pelo sol. — Se terminou
o interrogatório, prefiro o silêncio. Pretendo que fique na primeira cidade em
que precisar parar.
— Gosto de conversar, mas tudo bem. Eu estou agradecida por ter me
ajudado com aqueles homens. Eles certamente não seriam gentis comigo.
— Não, não seriam. Eles provavelmente a machucariam e a largariam
jogada na beira da estrada, ou a tornariam prostituta deles – e não sei qual
destino seria pior.
As imagens do que poderia lhe ter acontecido a ocuparam por alguns
minutos da viagem. Lucille deixou de prever muitas coisas quando decidiu
fugir naquele rompante. Tudo que pensava era em sair de casa e deixar aquele
casamento forçado para trás. Depois de vinte e sete anos enrolando seus pais
com as mais absurdas desculpas para não se casar, ela precisou tomar
medidas drásticas – e isso significou sair com algum dinheiro, poucas
provisões e nenhuma dignidade.
Bem, isso não a abalaria. Ela encontraria um jeito de ir para a Inglaterra e
se refugiaria no balneário de mulheres solteiras do qual ouvira falar. Aquele
lugar era quase uma lenda em Nova Iorque, e algumas mães americanas já
haviam levado suas filhas para esconder suas desonras ou suas solteirices. Ela
queria apenas viver em paz, já que seus sonhos de faculdade estavam
frustrados – o pai jamais a permitiria estudar e ela não teria dinheiro para
fazê-lo sozinha.
O silêncio a deixou entediada e, mesmo depois de dormir em excesso,
Lucille se arrastou para a parte de trás da carroça e se aninhou sobre o
cobertor, cochilando novamente. Mesmo depois do susto, sentia-se
estranhamente segura, viajando ao lado de um notório canalha. Por algum
motivo que desconhecia, viajar ao lado de Nathaniel McFadden lhe conferia
proteção. Acordou novamente quando a carroça parou de sacolejar.
— Por que paramos? — Perguntou ao seu companheiro de viagem, que
estava soltando os cavalos.
— Não há luz o suficiente para prosseguirmos e aqui parece um bom
lugar para passarmos a noite.
Lucille arregalou os olhos, assustada com a confusão em seus
pensamentos. Olhou para cima e notou o céu rosado. Já era muito tarde, pois
naquela época do ano demorava a anoitecer. Ela dormira mais do que deveria,
mais do que seria tolerável, e agora era informada de que passariam a noite
ao relento.
— Não ficaremos em um hotel?
— Não há hotéis pelas próximas milhas e estamos tentando não chamar a
atenção, não é isso?
— Provavelmente sim, é isso.
Ela ajeitou a camisa, passando as mãos pelo tecido, e percebeu que seus
seios estavam doloridos. A faixa que usara para escondê-los, um truque
aprendido nos estudos com a tutora, estava muito apertada. Desceu da carroça
com um pouco mais de habilidade – mas nenhuma graciosidade, e olhou ao
redor. Estavam em uma área meio descampada, circundada de árvores
espaçadas e perto de um curso de água – se seus ouvidos não estivessem
também confusos. Logo, estaria muito escuro e eles estariam à mercê da
natureza, porém isso não parecia incomodar o homem que levava os cavalos
para descansar em uma área fresca.
Talvez tudo aquilo valesse a pena, pensou. Afinal, estava declarando a
sua liberdade e, livre, poderia tomar decisões e ser respeitada por quem ela
era, não em razão da família à qual pertencia. Livre, não teria nunca que se
casar com marqueses falidos e poderia começar a apreciar coisas que não
estava autorizada antes – como o cavalheiro que a acompanhava. Ele não era
um cavalheiro, mas era um homem magnífico.
— Vou armar uma tenda.
Ele disse e começou a se despir. Tirou o casaco, que colocou por sobre a
carroça, e depois o colete. Ela lembrou que, ali, guardava uma faca, e que
havia uma pistola na cintura de suas calças. Em seguida, dobrou as mangas
da camisa. Sem gravata, havia dois botões abertos que revelavam os pelos
dourados que cobriam o peito dele. Lucille sentiu a boca secar.
Sem saber se deveria o ajudar ou observar, ela escolheu a primeira opção.
— Diga o que posso fazer.
— Farei um buraco. Você manterá essa estaca firme enquanto eu a
enterrarei.
Sem mover uma linha em sua expressão, ele pegou uma pá na carroça e
começou a cavar. Toda a ação era uma exibição de masculinidade – músculos
e movimentos corporais somados a pele exposta e suor. Lucille não
conseguiu evitar arregalar os olhos assombrada pelo que sentiu – ardência na
garganta, as mãos frias e um leve tremor nos joelhos. Talvez ela soubesse o
que tudo aquilo significava, apenas repudiava que seu corpo fosse tão volúvel
e tolo.
Depois de quatro buracos cavados e enormes estacas de madeiras
fincadas, uma lona grossa foi estendida e amarrada, criando um pequeno
abrigo – suficiente para uma pessoa. Eles eram dois e ela não pretendia
perguntar como aquilo funcionaria. Provavelmente, dormiria ao relento.
— Estou ouvindo água por aqui, gostaria de... de me lavar.
Nathaniel limpou o suor de sua testa e olhou para o céu.
— Se for rápida. Logo escurecerá e eu definitivamente preciso de um
banho.
— Por favor, vá primeiro. — Ela enrubesceu apenas por imaginá-lo
tomando banho. — Creio que o senhor esteja mais...
— Suado e encardido, definitivamente.
Ele sorriu, e era a primeira vez que o via sorrir realmente. Até então ele se
mostrara debochado, entediado, aborrecido, irritado, furioso, mas nunca
alegre. Com um aceno de cabeça, Nathaniel afastou-se na direção leste e
desapareceu do seu campo de visão. Lucille encostou na carroça, sentindo os
joelhos finalmente cederem à tensão do dia.
Fugir de casa, enfiar-se na carroça do homem que a rejeitara, quase ser
raptada e violentada por homens de cheiro horrível. Aquelas foram as
aventuras que ela não esperava nunca realizar. Toda a sua vida fora
construída sobre a ideia de estudar, ajudar pessoas necessitadas, desenvolver
um ofício. Poderia aceitar casar-se com um homem que amasse. Ela queria
poder trabalhar e prover seu próprio sustento, não se tornar um bibelô de
exibição para algum nobre enfadonho. E, depois de tudo aquilo, seu coração
martelava pelo simples fato de compartilhar momentos muito estranhos com
Nathaniel McFadden.
Depois de retomar o controle de suas pernas, Lucille embrenhou-se por
entre os arbustos onde ele desaparecera. O céu escurecia a cada instante e,
mesmo que não tivesse medo de escuro, precisava se lavar. Sentia o odor
fétido dos homens que a agarraram impregnado em seus cabelos e estava
nauseada desde que fora liberta. Quando o barulho de água ficou mais forte,
ela reduziu o passo até parar completamente, ante a visão do homem seminu
que, ainda molhado, sacudia os cabelos para secá-los.
Pelo amor de Deus, se aquele era o diabo, o inferno deveria ser um lugar
muito interessante. Nathaniel estava sem camisa, com a calça desabotoada, os
pés descalços e gotículas de água escorrendo por seu peito esculpido. Todas
as histórias da ama estavam incorretas – ele não era Hades, era Adônis.
— Não precisa me espionar, senhorita. Se quiser me ver nu, basta pedir.
Ela corou imediatamente, mas não o deixaria falar daquela forma.
— Que eu me lembre, já pedi, mas o senhor se recusou.
Nathaniel pegou uma toalha e colocou nos ombros, segurando a camisa
muito branca em uma das mãos. Andou até ela com um sorriso cínico nos
lábios e parou próximo o suficiente para ela sentir cheiro de sabão.
— Estávamos em uma condição que me levava a não querer nenhuma
confusão com Walter Smith. Agora, parece que não faz mais diferença – a
senhorita já está arruinada, independente do que eu faça. — Dizendo aquilo,
Nathaniel chegou muito perto dela, levando o nariz até seu pescoço. Lucille
sentiu que seu coração fosse pular pela boca, certa de que a beijaria. Mas ele
se afastou, ainda sorrindo. — A senhorita está com o fedor daqueles
desgraçados. Trouxe alguma roupa para trocar?
Ela moveu a cabeça indicando que não e ele se afastou completamente,
indo na direção da carroça. Ela quase desabou novamente no chão. Levou
alguns segundos para se recompor, então olhou para o pequeno riacho que
despontava à sua frente. A água devia estar gelada àquela hora, sem sol, mas
precisava banhar-se. Livrou-se das roupas, retirou a faixa que escondia os
seios e entrou de uma vez no riacho, sentindo os ossos gelarem
instantaneamente. Moveu-se um pouco, deu alguns pulinhos e pegou o sabão
que Nathaniel deixara na margem – provavelmente, esperando que ela fosse
usá-lo. Mesmo que nada nele indicasse cavalheirismo, Lucille queria
acreditar que ele tivesse alguma coisa que pudesse ser salva.
Quando se preparava para sair da tortura gelada que era aquele banho,
Nathaniel surgiu em seu campo de visão. Já completamente vestido, com
colete e tudo, tinha os cabelos penteados e segurava uma camisa. Lucille
enfiou-se na água escura até o pescoço, esperando que seu corpo ficasse
devidamente protegido.
— Vou deixar aqui, a senhorita pode vesti-la. Tenho muitas camisas, a
sua pode ser jogada fora.
— Fico grata, senhor. — Ela disse, aceitando a oferta por falta de opção
melhor. — Assim que pararmos em uma cidade, posso comprar roupas e
compensá-lo por isso.
— Como eu disse, tenho camisas demais. E, quando pararmos em uma
cidade, a senhorita ficará nela.
Nathaniel afastou-se novamente e a deixou sozinha para vestir-se. Depois
de ajeitar a calça masculina, ainda um pouco grande em sua cintura, ela
segurou a faixa na mão e suspirou. Não iria ficar confinada naquilo
novamente, precisava de um descanso. Estava segura das vistas alheias
enquanto dormisse, então apenas vestiu a camisa e a abotoou de forma a
resguardar a intimidade de suas partes femininas.
Ele estava tão louco quanto a mulher maluca que cruzara seu caminho com
ideias irracionais de defloramento e fuga, mas, quando a viu sendo agredida
por aqueles animais, não conseguiu ignorar. Nathaniel já se tornara
especialista em desprezar o sofrimento das pessoas e não se importar com
nada que não fosse lhe trazer ganhos e satisfação pessoal. O que acontecia de
ruim com os outros não era problema seu, não o afetava – então, por que
diabos resgatara aquela maldita mulher que só servia para atrasá-lo em sua
missão?
Não tinha nada a ver com ela ser bonita, porque ela não era. Ao menos,
nada como as mulheres com as quais Nathaniel estava acostumado. Aquela
ali tinha cabelos sempre desgrenhados, parecendo um ninho de pássaros mal
construído, quadris largos demais, e seios menores do que sua preferência.
Inferno, ele não deveria pensar novamente nos seios dela, mas foi impossível
evitar quando Lucille retornou de seu banho com uma camisa branca, um
pouco úmida, sem o artifício que estivera usando para escondê-los.
— Obrigada pela camisa. Ficou um pouco maior do que a outra, mas é
bem mais cheirosa.
— Pode ficar com ela. Está com fome?
Ele estava faminto, mas totalmente distraído. Pegou a cesta com comida e
colocou pães e frutas sobre uma toalha, oferecendo a ela uma das facas que
carregava consigo. Lucille atacou novamente os alimentos e acabou fazendo
com que ele precisasse comer, ou não sobraria nada.
— Desculpe. — Ela limpou o canto da boca com as costas da mão. —
Não estou acostumada a ficar sem comer, fazemos refeições regulares e com
horários muito rígidos na casa Smith.
— Tenho certeza que sim. A senhorita não pensa que se arrependerá de
fugir e viver sem aquele luxo e aquela fartura? Porque, mesmo que tenha
trazido dinheiro, em algum momento ele acabará. O que pretende fazer?
Lucille ajeitou-se, sentando-se sobre as pernas, e afofou os cabelos curtos
com as mãos.
— Pretendo trabalhar, senhor.
— A senhorita já trabalhou alguma vez na vida? — Ela respondeu que
não à pergunta, e Nathaniel deu uma risada cínica. — Talvez a prostituição
não seja mesmo uma ideia ruim.
— O senhor não precisa me ofender. Eu posso nunca ter trabalhado, mas
estudei em boas escolas e sou muito capaz. Com certeza aprenderei qualquer
ofício que precisar e conseguirei me sustentar até juntar dinheiro para fugir
para a Inglaterra.
— Não pretendia ofendê-la, mas sou realista e não vivo em um mundo de
contos de fadas, como a senhorita viveu até agora.
— Realista como o terceiro filho de um conde? Explique-me, senhor,
como pode um nobre ser tão realista?
Lucille o encarava com deboche e Nathaniel entendia bem aquela
expressão – costumava usá-la com frequência. Geralmente, as pessoas
achavam que ele, por ser nobre, vivia em uma redoma dourada. Era verdade,
por muito tempo a sua vida fora despreocupada – o dinheiro aparecia à sua
frente, mesmo que ele não o merecesse. Mas a sua ida para os Estados
Unidos o mudou completamente. Quase completamente.
— Não sou o terceiro filho de um conde, sou um dos diretores de um
antro de jogatina. Algumas situações nos levam ao limite, Srta. Smith, e,
quando cruzamos esse limite, perdemos todas as nossas referências.
Ela permaneceu olhando para ele com uma expressão de quem não sabia
se o entendia. Nathaniel esperava que ela permanecesse em silêncio, mesmo
que suas dúvidas persistissem. Não estava interessado em conversar, menos
ainda com ela, porque não queria admitir que Lucille Smith o afetava de
alguma forma. Ele mal a conhecia e tudo que sabia era que se tratava de uma
mulher rica, nascida nas Américas, desgostosa com um casamento por
conveniência. Mas ele nunca vira uma que fugiu de casa e abandonou a vida
que tinha apenas para se livrar desse mesmo casamento. Aquilo fez com que
ela se tornasse interessante – determinada, teimosa e audaciosa.
Mesmo com o silêncio, pelo qual agradecia, o fim da luz do dia fez com
que ele precisasse acender uma fogueira. Recolheu madeira ao redor, montou
uma contenção de pedras e usou sua pederneira para fazer fogo. Lucille
permaneceu ali, fitando-o, observando-o, olhando para a barraca, para a
fogueira e para ele próprio. Nathaniel estava acostumado a ser escrutinado
por mulheres, mas todas elas o faziam porque desejavam o levar para a cama
– e ele não fazia ideia do que pretendia Lucille.
— Há animais selvagens por aqui? — Ela perguntou, por fim.
— Creio que sim, mas eles não se aproximarão por causa do fogo.
— Entendo. E poderei usar algum cobertor para dormir? Ficarei enrolada
nele, perto da fogueira.
Ele olhou para a tenda – era muito pequena e ela sabia. Não pensava em
convidadas quando separou o que precisava para viajar. Olhou então para a
carroça, cuja extensão era satisfatória para caber uma pessoa deitada e
acomodada. Deveria mandar que ela dormisse em qualquer lugar que não o
incomodasse, mas era provável que aquela mulher o estivesse afetando mais
do que ele pretendia admitir.
— Durma na barraca. Ficarei na carroça.
— Não... quero dizer, o senhor não precisa fazer isso. Talvez eu possa
caber na barraca com o senhor.
Nathaniel deu uma risada. Ela era bastante tola se considerava que aquela
era uma opção segura.
— Srta. Smith, se dormirmos nós dois ali dentro, duas coisas acontecerão:
a senhorita conseguirá a ruína que deseja e não chegaremos a dormir,
efetivamente. Portanto, como estou exausto e preciso viajar um dia inteiro,
amanhã, creio que nosso melhor arranjo seja esse – fique sob a proteção da
tenda, eu não terei problemas em dormir com os rapazes.
— Rapazes?
— Zeus e Hades, os cavalos.
Ela arregalou os olhos e fitou os cavalos escuros, que pareciam ainda
mais pretos à pouca luz. Sem dizer mais nada e agradecendo com uma
mesura, enfiou-se dentro da tenda e o deixou finalmente sozinho para poder
refletir sobre aquele grande erro que estava cometendo. Claro que era um erro
– tanto envolver-se na fuga daquela desvairada quanto não se aproveitar dela.
Acomodou-se sobre a carroça e Zeus o cutucou com a cabeça, pedindo
que lhe coçasse atrás das orelhas. Cavalos eram mais confiáveis e
interessantes que pessoas, por isso Nathaniel sempre preferia a companhia
dos animais. Depois de subornar o equino com um torrão de açúcar, enrolou-
se no cobertor e tentou adormecer – sem sucesso. Rolou de um lado para o
outro, apertando a cabeça, na tentativa de pegar no sono, mas frustrou-se por
horas. Sentou-se, verificou se Lucille estava dentro da barraca ou se, por
milagre, decidira atirar-se em seus braços, e voltou a deitar. Ela não se
atiraria em seus braços – ele teve a oportunidade de a ter e recusou. Por que
ela o iria querer novamente?
E, por que diabos ele estava desejando que ela o quisesse? Aquela era
apenas uma mulher, uma nem tão linda, e totalmente inconveniente. Assim
que chegassem à primeira cidade, arrumaria uma prostituta para satisfazer
aquele desejo ridículo e se livraria da bagagem extra que só estava servindo
para atrapalhar.
Depois de atacar o cantil de uísque e beber mais da metade, acabou
sucumbindo ao cansaço. Despertou com Zeus lambendo seus cabelos –
aquele cavalo tinha sérios problemas com limites – e com cheiro de café.
Ergueu o corpo para espiar por sobre a contenção da carroça e vislumbrou
Lucille ajoelhada ao lado da fogueira, que ela alimentara com fogo, coando
café.
— Bom dia, Sr. McFadden. — Ela se ergueu com uma caneca de metal
fumegante em uma das mãos. — Preparei para o senhor, espero que esteja do
seu agrado.
Lucille sorria francamente e estendeu a caneca para ele. Nathaniel
acreditou que ainda não tivesse acordado, sentia a cabeça latejar e os olhos
embaçados – mas os dentes de Zeus em seus cabelos indicavam que sim, ele
estava desperto.
— A senhorita sabe cozinhar, Srta. Smith?
— Não, na verdade eu apenas sou observadora. Já vi café sendo
preparado, assim como o vi alimentar o fogo ontem. Havia comida em sua
cesta, também, portanto tomei a liberdade de preparar um desjejum completo.
Venha comer!
Nathaniel virou um gole do café quente, que estava horrível de tão ralo,
mas ela sorria ainda e, por motivos que ele sinceramente não imaginava quais
seriam, não quis magoá-la. Fez uma careta, indicando que gostara e desceu da
carroça, empurrando Zeus para o lado. O cavalo relinchou, bufando,
enquanto Hades ignorava completamente a existência de pessoas. Depois de
passar as mãos pelos cabelos, fechar o colete e dobrar os punhos da camisa
até os cotovelos, sentou-se ao lado da fogueira. Ainda era bastante cedo e ele
sentia como se não tivesse dormido nada.
— Imagino que teve uma noite boa. — Perguntou, mastigando um
pãozinho. Não sentia fome, mas aprendera a comer para manter-se resistente.
— Havia alguns mosquitos, mas, fora isso, foi uma noite agradável. Eu
agradeço sua gentileza de me permitir dormir na barraca.
Ela tinha o olhar baixo, evitando encará-lo. Nathaniel pode notar marcas
avermelhadas no pescoço dela, outras nos braços. Não foram alguns
mosquitos, talvez uma nuvem deles. Se não fosse a tenda, talvez Lucille
tivesse sido carregada pelos insetos. Ele conhecia um bálsamo bom para
picadas, mas não trouxera consigo. Não importava, precisou repetir de novo –
não importava que ela estivesse picada, ferida ou que seu sangue escorresse
pelos poros. Não deveria importar.
— A senhorita vai... quero dizer, a senhorita pretende continuar se
passando por homem?
— Creio que seja prudente. — Ela o fitou. — Uma mulher é um alvo
muito vulnerável.
— Então imagino que seja melhor... — Nate apontou na direção dos seios
dela. — escondê-los.
— Ah.
Lucille cruzou os braços na frente do corpo, visivelmente envergonhada.
Ela provavelmente não prestara atenção no quanto aquela exata parte de sua
anatomia estava evidente – e no quanto ele se via atraído para ela toda vez.
Constrangida, levantou e se escondeu dentro da barraca, provavelmente para
fazer o truque que a permitia esconder os atributos femininos. Nate
praguejou, talvez devesse ter ficado de boca fechado ou se oferecido para
ajudar – e isso não seria nada bom para sua decisão de mantê-la afastada.
Apesar do café estar ruim, Nathaniel bebeu duas canecas cheias para se
manter alerta. Eles tinham um bom pedaço de estrada pela frente e pelo
menos duas paradas seriam necessárias antes de chegarem a uma cidade.
Aquela ainda seria uma longa viagem.
Capítulo quinto

C ONFORTÁVEL DEMAIS COM O DIABO , ERA COMO ELA ESTAVA . L UCILLE


precisava deixar de ser tola, ou não duraria nem um minuto sozinha onde
quer que fosse. Estava nervosa quando tirou a camisa e recolocou a faixa para
esconder os seios, o que mais parecia uma tortura. Não que usar espartilhos e
todos aqueles acessórios das mulheres fosse totalmente agradável, mas, com
eles já estava acostumada. Suas bochechas ardiam como fogo pelo
comentário inocente do demônio encarnado com quem viajava e isso só
demonstrava que era melhor que se separassem. Por mais cavalheiresco que o
Sr. McFadden tenha se mostrado, ele era um predador e ela estava mais para
um cordeiro sacrificial. Se quis que ele a deflorasse antes, aquela ideia
mudara depois que precisou fugir.
Quando saiu da barraca, ele já arrumara tudo de novo na carroça e estava
apagando o fogo.
— Vou desmontar a tenda e retomaremos a viagem. — Ele disse. — Sabe
como atrelar os cavalos?
— Sei selá-los, mas nunca atrelei em uma carroça.
— Certo, então ajude-me aqui. Hades é quieto, mas ele não perderá a
oportunidade de fugir, se a tiver.
Nathaniel estava sem colete e com vários botões abertos na camisa. Ao
contrário dela, ele não parecia ter nenhum pudor em exibir-se e não se
constrangia ao percebê-la o observando indecorosamente. Porque sim, ela o
estava observando. Precisava ocupar a cabeça com outras bobagens que não o
peito cabeludo e os braços fortes daquele homem.
— Por que dizem que o senhor matou seu irmão?
Ela disparou, enquanto apoiava as estacas que ele desenterrava. Só depois
percebeu que estava sendo absurdamente inadequada.
— Porque ele desapareceu e eu estava com ele.
— Não parece um motivo muito convincente para acusar alguém de
assassinato.
— E não é, tanto que estou aqui, não estou?
O sorriso cínico estava de volta e ela percebeu que o assunto o
incomodava. Afinal, o irmão era o motivo daquela viagem e Lucille
suspeitava que as razões para o encontrar fossem mais profundas do que
simplesmente se livrar das acusações. A tensão exibida no maxilar dele
indicava que estava nervoso por falar sobre aquilo. Ele talvez gostasse da
família, talvez amasse o irmão desaparecido.
Terminaram de desmontar a tenda e logo estavam sobre a carroça de
novo, que deslizava pela via cheia de mato. Aquela era uma estrada vicinal,
indicando que Nathaniel pretendia viajar escondido, ou chamar pouca atenção
para si. Para ela, era o ideal, pois Lucille apostava que seu pai já estava
enviando os cães atrás dela. A paisagem, no entanto, era bucólica e repetitiva,
fazendo parecer que estavam andando em círculos.
— Por que está nervosa?
Nathaniel perguntou, sem sequer virar para olhá-la.
— Não estou.
— Suas pernas estão tremendo e você fica esfregando as mãos. Está
nervosa. Sou pago para perceber as pessoas, Srta. Smith, e descobrir suas
fraquezas faz parte do meu trabalho.
Ela suspirou, desanimada. Era péssima em disfarçar-se, sempre
transparente como uma vidraça polida. Não conseguia se passar por um
homem, não conseguia esconder o que sentia nem se fosse para salvar sua
vida. Como pretendia fugir sozinha?
— Imagino que meu pai não aceitará minha fuga e enviará pessoas para
me levar de volta.
Ele riu e ela se pegou admirando-o. O que estava acontecendo, Lucille?
Tudo em Nathaniel McFadden sinalizava perigo, havia questões muito
maiores em jogo do que a beleza do homem. Mesmo que ela estivesse, antes,
disposta a oferecer-se a ele em uma bandeja de prata, não era mais
justificável que o fizesse.
— Quer dizer que, em breve, haverá capangas em seu encalço? Capangas
contratados por Walter Smith?
— Sim, muito provavelmente, sim. Não posso deixar rastros para que eles
me encontrem.
Nathaniel não pareceu abalar-se por seus dramas e continuou conduzindo
os cavalos pela via. O silêncio se abateu sobre eles mais uma vez ela nada
pode fazer senão passar a observar as belas ancas dos cavalos e a paisagem,
que parecia não mudar enquanto seguiam seus caminhos.

O mordomo entrou no escritório de Walter Smith às oito da manhã,


visivelmente constrangido por incomodar o patrão naquele horário. O
industriário não era muito conhecido por seu bom-humor de manhã.
— Sr. Smith, sua esposa lhe deseja falar. Pediu que o senhor a
encontrasse no salão matinal.
O homem ergueu o olhar dos documentos que analisava e não disse nada.
Com um gesto de mão, indicou que o empregado podia sair. Não gostava de
ser incomodado quando trabalhava, mas a esposa não costumava solicitar sua
presença. Ao contrário, quando estavam em casa, ela preferia ignorá-lo e
manter-se o mais longe possível. Não que se importasse, Walter já precisava
tolerá-la durante os eventos e quando estavam em público.
Ao chegar ao salão matinal, encontrou Constance alterada. Ela andava
pelo espaço vazio enquanto duas empregadas mantinham a cabeça baixa e os
braços cruzados atrás do corpo.
— O que houve para que me incomode antes do desjejum?
— Lucille não dormiu nessa casa.
Walter Smith parou onde estava. Levou a mão ao bigode e enrolou uma
das pontas nos dedos.
— O que quer dizer com isso?
— Ela não está em seu quarto e ninguém a vê desde ontem.
— Certamente está na casa das irmãs ou daquela amiga solteirona, a Srta.
Ryan.
— E acha que já não mandei que a procurassem em todos esses lugares,
meu senhor?
Pelo destempero no comportamento de Constance, não se tratava de
exagero ou engano. Walter podia não suportar muito a esposa, mas sabia que
ela era uma mulher extremamente controlada e nunca perdia a linha na frente
de ninguém – nem dos criados. Naquele momento, ela se exibia com cabelos
desfeitos e alterava ligeiramente a voz.
— Algo dela sumiu? — Virou para as empregadas, interrogando-as.
— Nenhuma roupa, senhor. Nem as malas, nem os sapatos. Está tudo
perfeitamente no lugar.
— Então ela não fugiu.
— Por que fugiria? — Constance perguntou e seu olhar cruzou com o do
marido. Foi quando ela percebeu que a filha já fora informada oficialmente
do noivado e que ele suspeitava que Lucille não estivesse muito satisfeita
com a notícia. — Meu Deus, Walter, acha que ela iria embora para fugir de
seu noivo? Céus, ela estará arruinada!
— E acha que não sei? Precisamos descobrir o quanto antes o que
aconteceu – se ela foi sequestrada, pedirão resgate.
— Sequestrada? — Constance desabou em uma poltrona e uma das
empregadas correu para socorrê-la, abanando-a com o avental. A outra foi
buscar chá. — Precisamos encontrar Lucille, Walter!
— É o que farei. Dê-me o tempo que preciso. Enquanto isso, ninguém
ficará sabendo que nossa filha está desaparecida. Para todos os efeitos, ela
está adoentada. Se alguma visita aparecer, Lucille tem febre pois pegou um
resfriado.
A situação era grave e requeria medidas extremas. Walter Smith não fazia
ideia do que podia ter acontecido, mas, se sua esposa dizia que a filha não
estivera em casa, é porque não estivera. Precisava de discrição e diligência.
Se fora um sequestro, pois muita gente poderia querer atingi-lo por meio de
sua família, ele a resgataria e mataria os envolvidos. Ninguém ameaçava um
Smith e ficava vivo para passar a história adiante. Se fora uma fuga, Lucille
seria encontrada e amarrada em seu quarto até a chegada do marquês – e
ninguém ficaria sabendo, pois não podia arriscar que o noivo pensasse que
ela estava arruinada.
Ao chegar ao seu escritório, pegou o telefone e fez uma chamada para o
escritório de George Dawson.
— Dawson, preciso que cancele sua agenda de hoje e venha me encontrar
em casa.
— Bom dia, Sr. Smith. Não posso cancelar minha agenda, tenho alguns
trabalhos que precisam de minha atenção.
— Delegue para qualquer capanga que esteja sob seu comando. Eu
pagarei o triplo do que qualquer um ofereceu.
— Chego em meia hora, senhor.
Situações urgentes pediam medidas desesperadas. Aquele era o melhor
investigador particular que o dinheiro podia comprar – esperto, atento aos
detalhes e sem escrúpulos. Walter não sabia nem mesmo por onde começar a
procurar Lucille, então precisava envolver alguém mais capacitado. Dawson
seria capaz de a encontrar e a devolver para casa mesmo que tivesse cruzado
o oceano.
O industriário pediu que seu desjejum fosse servido no escritório e, assim
que o investigador chegou, o recebeu com uma pequena refeição e café.
Também havia uísque, para caso o assunto se tornasse de difícil digestão.
Pedindo que Dawson se sentasse, Walter explicou sobre o desaparecimento
de Lucille e pediu que ela fosse encontrada.
— Entendo que pense que ela foi sequestrada, senhor, mas precisa
considerar a possibilidade de fuga. Mulheres são criaturas muito impulsivas.
— Não quero pensar em hipóteses, Dawson, para isso estou te
contratando. Pouco me importam as possibilidades, apenas traga minha filha
de volta em até dez dias. Preciso que esteja aqui para o maldito noivado, não
achamos marqueses à venda em prateleiras. Sabe o quanto a influência do
futuro marido dela pode me fazer lucrar?
— Imagino que seja muito, senhor. Mas fique tranquilo, traremos sua
filha, não importa onde ela esteja. Para isso, precisarei de recursos.
— Tem todo dinheiro que precisar. — Walter Smith foi até um cofre que
ficava meio escondido atrás de sua mesa e o abriu, pegando um maço de
notas. Fez algumas contas mentalmente e colocou a quantia dentro de um
envelope. — Isso deve dar para começar. Assim que precisar de mais, ligue-
me e providencio a entrega.
George Dawson abriu o envelope e contou o dinheiro, satisfeito. Walter
sabia que era mais do que suficiente para contratar alguns homens e, caso
fosse preciso, comprar algumas informações. Lucille voltaria para casa,
mesmo que ele mesmo a buscasse.

O pandemônio comum na McFadden Garden se transformara em quase


silêncio absoluto naquele dia. Desde que alguns telegramas foram entregues
ao Conde de Cornwall e seus irmãos Isaac e Wilhelmina, informando que
uma tragédia se abatera sobre a família, eles se reuniram para confabular
planos e iniciaram os protocolos do luto em respeito a Emile McFadden.
O texto dos telegramas era o mesmo e não fazia sentido algum para eles.
As autoridades americanas informavam que Emile, o homem mais jovem da
família McFadden, fora assassinado pelo outro irmão, Nathaniel, mas
ninguém acreditava realmente naquilo. Nate era um fanfarrão que adorava a
vida noturna e só pensava em bebidas e mulheres, mas nunca fora um homem
cruel e, certamente, não era capaz de assassinar ninguém – quanto mais seu
próprio irmão mais novo.
Mesmo assim, algo devia ser feito. Emile estava morto e Nathaniel
acusado de um crime. Acostumados a agir sempre em favor da família, uma
reunião acontecia para decidir os próximos passos dos McFaddens.
— Eu vou para Nova Iorque. — Edward, o Conde de Cornwall, decidiu.
Em seu escritório em Londres estavam o irmão remanescente, Isaac, o
cunhado Grant Sawbridge, marido da única irmã, Wilhelmina, e o Duque de
Shaftesbury, o melhor amigo nobre do conde. — Pegarei o navio que parte
hoje e descobrirei o que está havendo.
— Há muitas implicações em sua ida, Edward. Nate dificilmente se abrirá
com você.
— Não me importa se ele se abrirá ou não, eu extrairei a verdade nem que
o obrigue a falar.
— Creio que seja disso que seu irmão esteja falando. — Sawbridge serviu
conhaque para todos. — Se algo grave aconteceu, agir como o irmão mais
velho e conde talvez não ajude a descobrir a verdade. Eu posso ir.
— Não, você se casou há pouco tempo e está com um bebê pequeno em
casa. Eu vou.
Isaac decidiu, virando um gole do uísque.
— Você também tem um bebê em casa.
As esposas de Sawbridge e Isaac deram à luz com menos de dois meses
de diferença, pois o segundo filho de Isaac nasceu prematuro. O parto foi
difícil e Caroline provavelmente não poderia mais ter filhos, já que seu útero
sofreu lesões, mas eles já tinham dois meninos saudáveis e lindos. Sawbridge
e Wilhelmina também tiveram um menino, que fora batizado de Joseph.
— Eu sou o melhor amigo de Nate, nós sempre fomos muito próximos.
Se tem alguém com quem ele falará, esse alguém sou eu. Precisamos trazer o
corpo de nosso irmão para ser enterrado em ao lado de nosso pai, Ed, e
precisamos salvar o outro da forca. Não quero perder os dois.
Dois minutos de silêncio significaram que os homens pensavam.
— Acha que consegue resolver isso sozinho?
— Sempre fui seu melhor administrador. — Isaac sorriu, mas por dentro
estava em agonia e isso era visível. — Sawbridge, posso pedir que Caroline
fique em sua casa com as crianças?
— Ela pode vir para cá também, Isaac. — O conde ofereceu.
— Claro que sim, mas Caroline não aceitará sair de casa sem um motivo.
Imagino que Sawbridge e Wilhelmina terão mais argumentos para a
convencer. Ah, não importa, contanto que ela não fique sozinha nesse tempo
em que eu estiver fora.
— Ela não ficará. — O duque, até então em silêncio, colocou a mão no
ombro de Isaac. — Nossa casa também está à disposição e tenho certeza de
que a duquesa ficará muito feliz em ter uma missão que não represente
fiscalizar crianças.
— Não temos culpa se vocês decidiram repovoar a Inglaterra, meu amigo.
— Edward fez uma piada, mas todos estavam tensos demais para rirem. —
Então está decidido, você irá para Nova Iorque, Isaac. O navio parte hoje,
será tempo suficiente para que arrume tudo e se despeça de sua família?
— Terá que ser. Caroline entenderá, ela também tem uma família grande
e faria qualquer coisa por eles. Sem contar que ainda precisamos descobrir o
envolvimento de Leonard Eckley nisso tudo – ele e Nate não estavam juntos?
— Estavam. Vou providenciar uma viagem a Kent para conversar com
Granville sobre isso. Boa viagem, meu irmão.
Edward levantou-se e abraçou Isaac por tempo suficiente para demonstrar
afeto sem que ambos chorassem. A perda de um McFadden estava sendo dura
demais e eles precisavam entender o que estava acontecendo. Estavam a
apenas um oceano de distância de descobrirem.
Capítulo sexto

O S CAVALOS NÃO CONSEGUIAM SEGUIR MUITO MAIS DO QUE QUATRO HORAS


sem se cansar. Os de Nathaniel percorreram várias milhas e só demonstraram
alguma exaustão depois de cinco horas de viagem – as cinco horas mais
demorada da vida de Lucille. O homem ao seu lado parecia uma rocha,
impenetrável e silencioso enquanto eles passavam por paisagens
maravilhosas e ouviam apenas o ruído dos cascos dos cavalos e do vento. Ela
sentiu frio, sentiu sede, sentiu fome e sono, mas ele não se mexeu nem
demonstrou qualquer desconforto.
Quando finalmente pararam à beira da estrada, ela não sabia se precisava
ficar em pé, deitar-se ou correr para um banheiro. Precisou escolher urinar
pela necessidade, pois ele não estava disposto a demorar-se por ali. Os
cavalos beberam água, comeram e descansaram por uma hora, enquanto eles
comeram alguns sanduíches e frutas. A comida talvez durasse quatro ou
cinco dias, mas Lucille era um acréscimo que fez com que o estoque de
alimentos desaparecesse na metade do tempo.
E Nathaniel continuou em silêncio pelas outras duas horas, até decidir
para outra vez.
— Aconteceu algo?
— Vamos parar por aqui, hoje. — Ele disse, encostando a carroça na
lateral de uma construção de aspecto bem mais agradável do que a do dia
anterior.
— Parar? Mas pensei que o senhor estivesse desesperado para chegar a
Norwalk e só fosse parar em Stamford.
— Eu estou. — Nathaniel pulou da carroça e a encarou. Era a primeira
vez que ele sequer a olhava naquele dia, e Lucille sentiu algo borbulhar
dentro de si. O homem tinha uma intensidade perturbadora, capaz de
desestabilizar qualquer alicerce que ela pudesse ter erguido durante o dia. —
Mas creio que tenha planejado mal o tempo e o trajeto. Zeus e Hades estão
exaustos e precisam de mais do que uma hora para se recuperarem.
A parada era um apoio para viajantes. Havia um pequeno comércio –
lojas com roupas pré-fabricadas, chapéus, meias e outros acessórios, um
estábulo e uma hospedaria. Construções sólidas de pedra, com tijolos
aparentes e avermelhados, e janelões de madeira. O ambiente era familiar,
com crianças brincando e mulheres à vista. Lucille sentiu-se mais segura ali e
agradeceu que, muito provavelmente, não passaria outra noite ao relento para
ser atacada por insetos.
— Espere-me na recepção. — Nathaniel ordenou. Ele já não estava mais
olhando em sua direção. — Deixarei os cavalos para que sejam tratados.
Ela deveria obedecer, mas não o fez. Permaneceu ali, observando-o
conduzir os garanhões ao estábulo para os entregar a um jovem que parecia o
encarregado das tarefas. Pelo tempo que Nathaniel levou conversando,
Lucille imaginou que ele estivesse dando orientações rígidas sobre como
lidar com os animais, que pareciam ter personalidades distintas. Um era
sombrio e distante como seu dono, o outro estava sempre tentando ganhar
carinho e atenção. Ele então entregou as rédeas dos cavalos ao rapaz e
acariciou a crina de Zeus e de Hades. A devoção que ele demonstrava pelos
cavalos era tocante – ao menos para ela. Lucille gostava de animais, porém
não estava acostumada a vê-los como algo além de um instrumento.
Quando Nathaniel virou-se, ela correu para dentro da recepção para fingir
que estivera ali o tempo todo. O hábito de transgredir permanecia nela, mas a
certeza da punição fazia com que a tentasse evitar.
— Preciso de dois quartos. — Ele passou por ela como se nem existisse e
se dirigiu ao atendente. Lucille já sabia que aquele não era um homem
educado e gentil, então não deveria esperar nada dele – mas acabou ansiando
por atenção. Aquilo dizia muito mais sobre ela e sobre uma carência que não
imaginava ser capaz de sentir.
— Lamento, senhor, estamos cheios. Não temos quartos disponíveis.
— Nenhum?
Lucille viu quando Nathaniel colocou algumas notas sobre a bancada e a
expressão do atendente foi de uma surpresa positiva. Provavelmente o
dinheiro o faria reconsiderar a negativa.
— Tenho como conseguir um, senhor. Há apenas uma cama, mas
podemos improvisar outra.
— Esse quarto com uma cama improvisada terá um chuveiro quente
privativo?
— Creio que os quartos nesse andar...
— Vamos lá, eu tenho certeza de que, com o incentivo certo, você
consegue um quarto com chuveiro privativo para mim.
O atendente arregalou os olhos quando Nathaniel entregou mais dinheiro
a ele e desapareceu por uma porta. Lucille decidiu aproximar-se e descobrir
qual era o plano, afinal. Ela se sentia coadjuvante da própria jornada e aquilo
era um pouco irritante. Mas, ao mesmo tempo, como mulher, acabou sendo
coadjuvante de sua vida inteira. Não lhe era permitido ter iniciativa nem
tomar as próprias decisões, mesmo com tanta evolução social.
— Algum problema em que possa ajudar?
— Não. Eles estão com todas as unidades ocupadas e pedi que
reconsiderassem e nos conseguissem um quarto.
— Acha que conseguirão dois?
— Não, senhorita, apenas um.
Lucille fez algumas contas mentais sabendo que a matemática não
fechava. Eles eram dois, um quarto faria com que dormissem juntos ou que
um deles dormisse na carroça, como na noite anterior. Ela estava certa de que
o diabo não seria indulgente por dois dias seguidos. O atendente retornou
segurando uma chave e olhou para os dois lados antes de a entregar a
Nathaniel.
— O quarto fica no terceiro andar, senhor. As camareiras estão
providenciando as conveniências que o senhor solicitou, preciso apenas do
cadastro.
— Pagarei adiantado – e dobrado – para não precisar de nenhuma
burocracia.
Mais dinheiro foi entregue ao pobre rapaz que não sabia mais o que fazer.
Aparentemente, cumprir as regras não era algo que Nathaniel McFadden
fazia com frequência e ele considerava que tudo podia ser conseguido por um
preço. Talvez estivesse certo, mas isso não o fazia diferente de seu pai.
Homens europeus ricos costumavam acreditar que o mundo estava aos pés de
suas riquezas – e quase sempre tinham razão.
Um jovem franzino apareceu para os ajudar com a bagagem, mas foi
dispensado. Lucille não tinha quase nada, Nathaniel viajava com apenas uma
mala. Subiram as escadas até o quarto trinta e cinco e aguardaram que ele
fosse devidamente arrumado. Assim que entraram, ele fechou a porta atrás de
si e ela sentiu seu coração disparar com uma ansiedade injustificada.
— Temos duas opções. Dormir aqui ou dormir lá fora. O que prefere?
Lucille olhou ao redor, escrutinando rapidamente o quarto. Era uma
habitação pequena, com uma cama de solteiro, uma lareira, dois móveis e
uma poltrona. Não havia mesa ou cadeiras, indicando que as refeições tinham
que ser feitas no salão. Tudo era muito simples, mas cheirava bem e era
limpo. Ela adoraria um banho quente e uma cama macia, mesmo sabendo que
deveria continuar seguindo, indo na direção norte, fugir o mais rapidamente
possível. Fugir do seu pai, fugir daquele demônio loiro de olhos argutos.
Nathaniel permanecia de braços cruzados no peito, observando-a. Ela se
sentiu observada o dia inteiro, mesmo quando ele parecia ignorá-la por
completo. A forma como ele acompanhava seus movimentos com olhos
semicerrados a deixava nervosa.
— Estarei segura em algum lugar?
— Não. — Ele sorriu. — Eu gostaria de dizer que a senhorita estará mais
segura dentro deste quarto, porém não costumo mentir. Decida pelo que lhe é
mais valioso preservar.
— Se estou decidindo entre minha virtude e minha integridade física,
creio que seja uma escolha fácil. — Ela girou ao redor do quarto e suspirou.
— Vou descer para comprar algumas roupas para trocar. Espero que tenham
algo que sirva em um rapaz de estatura menor que a média.
Com um aceno de cabeça, Lucille saiu e desceu as escadas
apressadamente. Sua respiração estava acelerada e seu coração disparou
quando se viu sozinha no quarto com seu companheiro de viagem, mesmo
que ele não tivesse sequer se aproximado dela. Para quem tinha fama de ser
um sedutor incorrigível, o Sr. McFadden se comportara muito
adequadamente com ela, até então, o que a fazia considerar se o problema
não estava em si própria. Não seria ela que o estava desejando além da
decência? Que o estava escrutinando e buscando oportunidades para estar
perto dele, desde o episódio em que fora rejeitada por ele?
Lucille carecia de mais força de vontade. Ela não precisava mais ser
arruinada por Nathaniel McFadden, então, entregar-se a ele não fazia mais
sentido. Ajeitou o colete e continuou a descer até chegar ao térreo. Ainda era
dia, o sol demoraria um pouco a se pôr, o que a permita explorar os arredores.
Tirando as construções contíguas da hospedaria e do pequeno comércio, tudo
ao redor eram árvores e mato. O rio estava perto e a estrada a apenas alguns
metros, mas não parecia haver nenhuma cidade por milhas e milhas. Fosse o
que o movesse, Nathaniel estava se esforçando para pegar caminhos bastante
ocultos e deixar o mínimo possível de rastros.
Uma senhora de cabelos grisalhos e aparência envelhecida a atendeu.
Lucille precisava se lembrar que estava se passando por um homem e agir
como um jovem rapaz em busca de roupas. Também não podia ostentar pois,
apesar de possuir algum dinheiro consigo, não saberia por quanto tempo ele
teria que durar. Tentando não conversar muito, escolheu duas camisas
brancas, um colete e uma calça que pudessem lhe servir. Levou linha e
agulha para costurar os ajustes que fossem necessários e pagou fingindo que
aquele era um gasto ostensivo para suas economias.
Antes de subir para o quarto, encontrou crianças brincando à frente da
hospedaria. Elas jogavam bola no estilo pall mall. Os tacos eram
improvisados, as bolas estavam um tanto irregulares e os arcos tinham sido
feitos com peças reaproveitadas – mas eles se divertiam bastante. Eram duas
meninas e três meninos, todos na faixa de oito a dez anos. Lucille costumava
acompanhar a mãe a visitas de caridade e sempre brincava com os órfãos,
mesmo sob protestos de Constance Smith. Quando ninguém estava prestando
atenção nela, participava das mais diferentes brincadeiras com as crianças.
Um dia, ela sonhou em ter as suas próprias. Quis uma casa ampla e pelo
menos uma dúzia de filhos, mas descobriu que a oferta de maridos estava
escassa. Os maridos bons, aqueles pelos quais ela poderia apaixonar-se, não
existiam a não ser nas histórias que a ama contava. Contos, fantasias que
serviam para iludir mulheres com o mito de um tal amor verdadeiro. Aquilo
não existia e ela queria assim mesmo. Na impossibilidade de conjugar o
casamento com seus desejos, o sonho dos filhos morreu.
— Vocês precisam de um parceiro? — Perguntou, aproximando-se das
crianças.
— O senhor sabe jogar? — Um dos meninos perguntou, desconfiado. Por
sorte, Lucille conseguira amansar os cabelos debaixo da boina e estava mais
acostumada com as roupas masculinas. Talvez um bando de moleques não
fosse colocar seu disfarce em risco.
— Um pouco. Posso me unir às meninas e fazemos dois trios, o que
acham?
As crianças se entreolharam e tentaram entender o que ela dissera.
Dificilmente eram letradas e provavelmente não sabiam fazer contas, mas,
com uma demonstração, Lucille mostrou o que queria dizer – dois times de
três pessoas. Os pequenos concordaram e, logo, ela estava aos gritos em um
jogo que a deixaria facilmente imunda e exausta.

Ele estava ficando completamente louco. Com aquela certeza, Nathaniel


arrancou as roupas e entrou debaixo do chuveiro. Não era uma boa ducha, a
água era fraca e o aquecimento precisava melhorar, mas era melhor do que se
lavar no rio. Mesmo que algumas pessoas insistissem em não tomar banhos
diários, ele não gostava de se sentir sujo. Enquanto relaxava debaixo da água
corrente, batia com a cabeça na parede azulejada do banheiro.
— Você não é burro, então deve ser estúpido, o que significa exatamente
a mesma coisa. — Dizia para si mesmo. Manter aquela fujona ao seu lado era
a maior bobagem que fizera e continuava fazendo. Ela era um problema com
o qual ele não tinha tempo para lidar, que o estava atrasando. Por causa
daquela maluca calculara mal o tempo de viagem, precisara parar cedo
demais e estava dividindo o quarto com o pecado – decidido a não pecar.
Fazia meses que Nathaniel desistira de resistir à tentação, mas ele estava lá,
respeitando a virtude de uma mulher que nem mesmo parecia preocupada em
mantê-la.
Saiu do banho e percebeu que ela ainda não retornara para o quarto.
Aquilo era, certamente, um sinal de alerta que não podia ignorar. Vestiu as
calças às pressas e abotoou uma camisa desajeitadamente. Abandonaria o
colete e qualquer outro acessório para descobrir as encrencas nas quais
Lucille deveria estar metida até ouvir risos e gritos do lado de fora.
Aproximou-se da janela, afastou a cortina e viu um grupo de crianças
brincando. Ele podia estar enganado, mas o rapaz de boina entre elas era a
sua fugitiva.
Nathaniel sentiu um alívio inesperado – e inconveniente – e voltou a se
vestir. Abotoou corretamente a camisa, escolheu um colete bordado que não
sabia por que estava em sua mala, manteve os punhos da camisa abotoados e
penteou os cabelos. Não seria naquela noite que faria a barba, talvez quando
chegassem à primeira cidade. Ainda não estava com a aparência tão
incivilizada que precisasse de uma intervenção, então desceu até onde Lucille
se divertia com os pequenos bastardos. Talvez um ou outro ali realmente
fosse um bastardo.
— A senhorita está segurando o taco incorretamente. — Ele disse,
recostando em uma pilastra de madeira. — Desse jeito, não consegue bater na
bola com muita força.
Lucille sorriu ao vê-lo, como se a sua presença causasse a ela qualquer
alegria. Claro que não, ele não era tão tolo a ponto de acreditar nisso – sabia
que era apenas um meio para um fim. Ela se apoiava nele porque Nathaniel
poderia ajudar a escapar de um casamento detestável. Mas ela estava então
caminhando em sua direção, vestida como um rapazote das docas do
Brooklin e ele se viu desejando a receber em seus braços para beijá-la. Céus,
ela era um homem, ao menos fingia que era um e ele devia evitar que o caos
em seus pensamentos transparecesse de alguma forma.
— A intenção é essa, senhor. — Ela piscou para ele e sussurrou. — Estou
jogando com crianças.
— Não acha que eles aprenderiam mais se não fosse condescendente com
eles?
— Isso não é condescendência, é respeito. — Lucille encerrou o sorriso e
olhou para o grupo, que a aguardava retornar e discutia sobre alguma coisa
enquanto esperava. — Usar minha superioridade física contra eles é injusto e
desleal, por isso encontrei uma forma de equilíbrio.
Nathaniel não queria sorrir, mas foi impossível evitar.
— A senhorita parece acostumada a lidar com crianças. Sobrinhos?
— Órfãos.
Aquela era uma surpresa e tanto. A família McFadden sempre esteve
envolvida com caridade, na Inglaterra. Edward, o irmão mais velho de
Nathaniel, e Conde de Cornwall, tinha o hábito de pagar salários muito acima
dos praticados, e sua família, juntamente com a do Duque de Shaftesbury,
zelava pelo sustento de uma vila inteira, pelo que sabia das raríssimas cartas
enviadas pelo outro irmão, Isaac. A caridade não era novidade em sua vida,
mas ele não esperava que aquela mulher se ocupasse de órfãos.
Ele julgava pessoas. Não apenas observava e tomava notas mentais sobre
tudo que elas faziam em seu raio de visão, Nathaniel julgava. E, em seu
tribunal, Lucille Smith deveria ser tão fútil e insossa como todas as outras
como ela. O problema – ela não era.
— Preciso fazer uma ligação. Encontro-a para o jantar?
— Sim, senhor. Vou apenas brincar um pouco mais com eles, estou
ensinando alguns truques.
— Apenas não se meta em novas confusões. E lembre-se, a senhorita é
um homem.
Talvez fosse ideal que sua companheira de viagem fosse, realmente, um
homem. Afastando as divagações sobre como o corpo de Lucille se
comportava debaixo das roupas masculinas, Nathaniel foi até a recepção e
pediu uma ligação para o clube. Tinha certeza que o Gênesis estava sob
controle com seu amigo cuidando de tudo, mais certeza ainda que os
devedores não fugiriam até seu retorno, mas precisava saber se já estavam em
seu encalço.
— Já achou seu irmão? — A voz cortada de Leo Eckley fez com que ele
se sentisse menos tenso. Algo familiar, depois de alguns dias pisando em solo
desconhecido.
— Eu mal saí de Nova Iorque, Leo, não me provoque. Passe-me um
relatório da situação.
— Você mesmo disse que mal saiu daqui, meu amigo. Nada aconteceu
que valha a pena ser reportado.
— Alguma notícia importante? Alguma comoção que possa sugerir meu
retorno precoce e apressado sem que tenha cumprido minha missão?
— Não, Nate, está tudo sob controle – meu, é claro. Mas o submundo está
um pouco agitado. Lembra-se da filha dos Smith? A que queria que você a
deflorasse?
Sim, ele lembrava – e bastante. Talvez porque ela estivesse a poucos
metros dele, tão próxima que podia ouvi-la gritar com um bando de
moleques.
— Não enrole, Leo. O que houve?
— A mulher desapareceu. O pai acha que foi sequestrada e colocou todo
mundo atrás dela.
— E ela foi sequestrada? Sabemos algo sobre isso?
— Não, e não pretendo me envolver. Se o chefe quiser que descubra algo,
obedecerei, mas não procurarei encrenca por livre vontade.
— Certo. Quando chegar a Stamford, entro novamente em contato. Não
me mande nenhum bilhete, sempre aguarde.
Nathaniel desligou e levou algum tempo digerindo a informação obtida
aleatoriamente por Leo. Tinha certeza que Walter Smith enlouqueceria ao
saber da fuga da filha – afinal, ela estava prometida a um marquês e isso era
motivo suficiente para ele ter uma apoplexia em desespero. Por mais rico que
fossem os Smith, a nobreza os encantava. Desagradar um marquês era tudo
que o filho da mãe não desejava. Mas ele pensava que ela fora sequestrada,
ou seja, não acreditava que sua solteirona virginal fosse capaz de montar um
ardil como aqueles.
Talvez isso fosse bom para Lucille. Se o pai a subestimava, ela poderia
estar sempre um passo à frente. Mas era péssimo para ele – que já tinha um
crime pairando sobre sua cabeça. Ser acusado de sequestro não era bem o que
desejava. O resultado era imprevisível, porém indesejado, qualquer que fosse.
Não adiantava ficar supondo, Nathaniel precisava decidir. Deveria livrar-
se dela o mais rapidamente possível, aquela era uma hospedaria de boa
reputação e não seria difícil conseguir uma carona mais adequada para
Boston. Porém, ao abrir a janela e ver o jogo de pall mall mais mal jogado de
toda a história do esporte e uma das herdeiras do império dos Smith girando
com uma menina negra nos braços, ele duvidou que pudesse fazer a coisa
certa.
A coisa certa não era livrar-se dela, mas livrá-la dele.
Sentou-se no bar e pediu um uísque. Se tivesse sorte, ficaria bêbado, mas
não estava se sentindo sortudo. Menos de meia hora depois, ela entrou pela
recepção adentro e parecia deslumbrada de alegria. Fazia tanto tempo que não
experimentava aquele sentimento que não entendia como pessoas poderiam
preferir embriagar-se com felicidade ao invés de malte.
— Vocês venceram? — Perguntou, notando a aproximação eufórica de
Lucille.
— Não, perdemos.
Ele ergueu o olhar e a fitou brevemente. Bochechas rosadas, lábios
vermelhos, peito subindo e descendo pela agitação. Não, ninguém podia
acreditar que ela era um homem.
— Parece animada demais para quem perdeu um jogo.
— Não era importante ganhar. E Gretha aprendeu novos movimentos, ela
joga melhor, agora.
— Fez amizade com as crianças? Espero que não lhes tenha dado seu
nome.
Lucille recostou na mesa e pegou seu copo de uísque, virando o conteúdo
em um só gole. As bochechas dela coraram ainda mais e precisou conter uma
crise de tosse causada pela garganta ardendo.
— Meu Deus, como vocês homens conseguem beber isso com tanta
naturalidade?
Nathaniel riu. Não sorriu, nem exibiu sua melhor expressão cínica e
debochada – ele realmente riu, soltando uma breve gargalhada sonora. Aquilo
era uma grande e assustadora novidade, pois não se lembrava da última vez
que rira ou achara graça de qualquer coisa.
— Você nunca bebeu uísque. — Foi uma constatação.
— Não, mas pensei que fosse algo masculino que eu deveria fazer.
Ele riu novamente e pediu que servissem outra dose.
— Tome um banho e me encontre aqui. Tenho novidades para você, creio
que gostará de saber.
Capítulo sétimo

F AZIA ALGUM TEMPO QUE L UCILLE NÃO SE DIVERTIA COM CRIANÇAS , ENTÃO
ela estava bastante feliz quando se despiu e entrou no banheiro. Não deveria
sorrir tanto ou mostrar tamanha empolgação, já que estava fugindo e não
sabia bem para onde ir, mas não conseguia evitar – era uma pessoa de bom-
humor recorrente e modos nem sempre femininos. A vantagem de passar-se
por homem era poder agir como um e experimentar a liberdade das botas, das
calças e da ausência de espartilho – ah, como ela detestava o espartilho.
Olhou-se no espelho e tentou se acostumar com o que via. Cabelos curtos e
alvoroçados, pele corada, seios enfaixados, a ausência de roupas íntimas
adequadas. Sentia-se estranhamente livre, mesmo enclausurada pela mentira.
Abriu o chuveiro e entrou, molhando a cabeleira e esperando que a água
quente a fizesse relaxar.
Depois de devidamente limpa e vestida, penteou os cabelos com cuidado,
tentou domá-los enquanto molhados e enfiou a boina na cabeça. Garantiu que
estava com a aparência adequada para sua nova realidade e desceu até o
térreo para se encontrar com seu aliado. E, contra toda a razoabilidade e
decência do mundo, entristeceu-se ao vê-lo flertando com uma garçonete.
Claro que ele estaria flertando com alguém, sua fama de canalha e libertino
não fora construída em cima de comportamentos castos. Nathaniel McFadden
era um mulherengo e ali estava uma das provas. Talvez ele pretendesse se
esconder com ela em alguma alcova e...
Lucille olhou para si mesma novamente e suspirou. Ela não o queria, mas
se incomodava que ele não a quisesse.
— Está muito bem vestida, senhorita.
Ele disse, dispensando a garçonete quando a viu. A mulher se afastou
dando risadinhas e Lucille lhe lançou um olhar de desprezo. Valorize-se,
mulher, afinal, homem algum se importa mesmo com você.
— Comprei roupas novas, poderei devolver sua camisa. Disse que queria
me falar?
— Sim, tenho novidades sobre Nova Iorque. Vamos jantar.
Nathaniel chamou o garçom e pediu qualquer coisa que estivessem
servindo aquela noite, além de uma garrafa de vinho tinto. Mulheres
geralmente tomavam vinho branco, mas ela não era uma, era? Não naquele
momento. Enquanto ele conversava com o garçom e olhava ao redor, agia
como se tudo ali lhe pertencesse. A arrogância daquele homem era intrigante,
porque ele não a tinha por ser nobre, mas por ser poderoso. E ela não sabia se
temia aquele poder ou se ele a excitava.
— O que está havendo em Nova Iorque, Sr. McFadden?
— Seu pai acredita que foi sequestrada. Meu amigo me informou que
todos os caçadores de recompensa da região estão procurando por seus
captores.
Aquela era uma notícia realmente ruim. Péssima. O vinho foi servido em
taças pouco limpas e ela virou um gole desajeitado, deixando escorrer um
pouco e sujando o colarinho. Nate estendeu um guardanapo para que se
limpasse.
— Isso significa que terei que ser mais rápida em desaparecer.
— Adoraria que fosse realmente rápida, Srta. Smith. Desde que nos
encontramos a senhorita só me atrasa.
— Não se preocupe, senhor. Amanhã nos separaremos, conseguirei outra
carona.
— Para que eu tenha que a salvar novamente?
Ele olhou para ela com divertimento, mas Lucille estava incomodada.
Não entendia por que ele a repelia e a mantinha perto, tudo ao mesmo tempo,
como se estivesse em um jogo bastante irritante.
— Não precisa me salvar, senhor. Não entendo ainda por que fez aquilo.
Nathaniel virou um gole do vinho e olhou para algum lugar, desviando-se
dela.
— Tenho uma irmã. Acho que gostaria de imaginar que um homem faria
por ela o que fiz pela senhorita. Não se engane, Srta. Smith, eu sou um
canalha egoísta. Tudo que faço é por mim e para meu próprio benefício. E o
melhor é realmente que nos separemos, ou acabarei sendo acusado de
sequestro.
Então era aquilo, ele concordava que não seguiriam mais viagem juntos.
Por um instante ela sentiu completo alívio de não precisar mais lidar com um
homem explosivo ao seu lado, mas a frustração logo a dominou. Lucille não
sabia o que era exatamente, mas parecia estar um pouco obcecada pelo Sr.
McFadden.
O jantar foi servido – sopa de vegetais e outros elementos
irreconhecíveis. Mesmo que o pão não fosse fresco e o vinho fosse barato, a
comida estava saborosa e nutritiva. Servia para mantê-la com energia
enquanto estivesse na estrada escapando de um destino horrível, e que ficaria
ainda pior se ela fosse descoberta. O silêncio a incomodou, mas era o que ele
parecia apreciar, então resignou-se e limitou-se a comer. Qual foi a sua
surpresa ao ouvi-lo retomar a conversa meia hora depois.
— Por que, dentre tantos canalhas em Nova Iorque, a senhorita me
escolheu?
Lucille ergueu o olhar e ele a estava encarando. Segurava a colher
suspensa no ar e esperava uma resposta enquanto exibia seus antebraços. O
que havia de errado com ela para admirar aquela parte específica do corpo
dele enquanto os botões do colarinho continuavam abertos, deixando parte do
seu peito à mostra? Aliás, qual era o problema daquele homem com o decoro
– por que ele parecia não ser capaz de manter-se minimamente vestido?
— Por sua fama, obviamente.
— Minha fama é de ser cruel, mas a senhorita não esperava crueldade de
mim.
— Falava da sua outra fama.
— Libertino?
— Essa também, mas a outra... aquela que diz que o senhor sabe... que o
senhor é capaz de...
Nathaniel dobrou o corpo por sobre a mesa e olhou para os lados,
sussurrando em seguida.
— Que eu sou o melhor amante de Nova Iorque, capaz de fazer mulheres
se sentirem incríveis na cama? Essa fama?
Sim, maldito fosse. Lucille sabia que o escolhera porque, se aquela fosse
sua única experiência íntima com um homem, queria ter boas memórias. Ela
não queria apenas ser arruinada, queria ser seduzida e arrebatada.
— Essa. — Ela baixou o olhar, o rubor quase a impedindo de falar. — E,
como o senhor é um maldito canalha egoísta, eu imaginei que não fosse se
sentir compelido a me desposar depois de...
— Imaginou corretamente, senhorita. — Ele sorriu, debochado, e serviu
mais vinho. — E a senhorita gostaria de descobrir se minha fama é real?
Lucille enfiou uma colherada de sopa na boca para não precisar responder
e o maldito canalha riu de seu constrangimento. Em poucos minutos ela
praguejara duas vezes e falara um monte de grosserias sobre seu em breve ex
companheiro de viagem. Aquele homem fazia surgir nela um lado desbocado
e malcriado que não existia – ou que ela sequer sabia que existia. Ele a
desorientava.
— Preciso lembrar que o senhor teve essa oportunidade e recusou? É
exaustivo que pareça me culpar por renunciar a prazeres que eu tenho certeza
de que pretendia experimentar – mas fui impedida.
O diabo finalmente deu as caras e ele exibiu o sorriso mais profano que já
existira. Nathaniel colocou mais vinho em sua taça – era o álcool que a estava
provocando a dizer coisas que não diria. Ele não falou mais nada, apenas
deixou suspenso no ar que talvez, e apenas talvez, estivesse arrependido de
não a ter deflorado naquela noite. Claro que estava, era um libertino cretino
que não podia ver uma mulher sem a tomar para si.
— Obrigada por sua ajuda até aqui, senhor. Amanhã deixarei de
atrapalhar sua busca por seu irmão.
O jantar terminou em silêncio. Apesar de ser o que queriam desde o
início, quando chegou o momento de separarem-se foi como se não o
quisessem mais. Ao menos ela, que deveria desejar distância do cretino à sua
frente.
— Há um salão de jogos por aqui. Quer me acompanhar até ele?
Nathaniel levantou-se e perguntou subitamente.
— Nunca joguei. Mulheres...
— Sim, mulheres decentes e corretas não jogam nem frequentam esses
lugares. Mas…
Ele indicou um espelho para que ela se visse e se percebesse como todos
a percebiam – um jovem rapaz. Mesmo que Lucille não conseguisse fingir
muito bem, para quem a visse, ela era um homem e sua presença não seria
estranhada em um salão de jogos. Determinada, decidiu seguir o demônio até
seu habitat natural – o inferno.
Ela desfilava com calças como se estivesse usando anáguas. Os quadris
mexiam para os lados e a pose perfeitamente ereta era característica de uma
dama. Mas ali, naquele lugar escondido do mundo, ela jamais seria notada
tempo o suficiente para que descobrissem que ela era uma mulher. Uma
mulher intrigante e muito falante que o estava enlouquecendo. A melhor
decisão seria pegar uma prostituta e encurralá-la nos fundos da hospedaria,
mas não era o que ele queria.
Maldição, por que diabos rejeitou Lucille Smith naquela noite? Ela estaria
arruinada e não teria se metido em sua viagem. Mas lá estava ela, sentada em
uma mesa de vinte e um sem nunca ter jogado uma partida sequer, pedindo
cartas como se entendesse o que estava fazendo. Ela tinha dinheiro e ele seria
facilmente tomado dela por aquelas águias que a devorariam em minutos –
mas não havia nada que ele pudesse fazer.
Nathaniel pegou outro uísque e foi tentar a sorte na roleta. Não gostava
muito da sorte, ela nunca lhe sorriu por tempo o suficiente, então aproveitava
uma vitória e mudava de mesa. No Gênesis ele não costumava jogar,
aprendera que não se misturava negócios com prazer. E, naquela noite, apesar
de sentir-se em casa com um copo de malte e um salão cheio de vícios, sua
atenção estava dispersa. Não, não estava. Seu foco em Lucille era excessivo e
aquilo era preocupante – porque mulheres nunca, em nenhuma hipótese, lhe
roubavam a atenção.
Ainda mais uma que só o atrapalhava. Perdeu duas rodadas na roleta e
uma nos dados até convencer-se que não deveria ter considerado jogar.
Sentou-se próximo a ela e passou a observá-la. Com o perfil sério e
concentrado, Lucille estudava todos na mesa e tentava obter alguma
informação sobre como estavam se saindo. Ela quase não tinha mais fichas,
mas continuava com a coluna esticada e observando tudo que acontecia –
desde a expressão nas faces dos jogadores até as cartas que eles pediam. De
vez em quando, movia os dedos na mesa, indicando que contava.
E ela perdeu todas as rodadas, como era de se esperar. Ao entregar suas
últimas fichas, não se intimidou pela algazarra de um jogador mais exaltado –
levantou-se, fez uma mesura e agradeceu pelas partidas.
— Aquilo foi muito divertido! — Ela tentou conter a empolgação quando
se aproximou de Nathaniel e tomou dele o uísque. — O senhor viu como
aquele homem ali joga bem? Ele quase sempre consegue um vinte ou vinte e
um!
Nathaniel pegou o copo de volta antes que ela bebesse.
— Vá devagar, não precisa mostrar que bebe para esses caras, eles sequer
a estão notando. E sim, ele joga bem porque conta cartas. A senhorita perdeu
todas, por que está tão exultante?
— Meu propósito ali não era ganhar, mas aprender algo novo.
Aquilo era, mais uma vez, inesperado. Ele não se lembrava de conhecer
alguém que valorizasse mais a aprendizagem do que a vitória. Vencer sempre
fora o desejo de todas as pessoas que entravam no Gênesis – e vencer viciava
a ponto de fazer com que perdessem tudo na busca de outra vitória.
— Então sabia que perderia, mas quis continuar jogando apenas para
aprender a jogar? Conseguiu seu objetivo, afinal?
— Duvido que tenha aprendido, porém sei um pouco mais agora do que
sabia antes. E o senhor, quase não jogou.
Ele girou o copo de bebida na mão e virou o conteúdo em um gole.
Lucille esperava uma resposta qualquer enquanto olhava com aquela
expressão vívida de novo. As pupilas dilatadas pela excitação, as bochechas
coradas, a boca vermelha. Subitamente, ele quis ser o motivo pelo qual o
corpo dela reagia daquela forma. Quis que ela estivesse excitada por ele,
enrubescida pelas obscenidades que ele falasse e com a boca vermelha do
beijo que ele daria.
— Estou disperso.
— Claro que sim, como estou sendo tola. O senhor está preocupado com
seu irmão. Mas, afinal, o que houve? Por que o acusam e por que acredita que
ele esteja vivo?
— A senhorita deveria estar preocupada também, já que seu pai está
mobilizando toda Nova Iorque atrás de seus supostos captores.
— Não mude de assunto. — Ela pegou o copo outra vez e virou o restante
do uísque. Fez uma careta e pediu mais para uma garçonete pouco vestida
que circulava as mesas no antro de jogatinas. — O senhor sempre tenta
desviar a conversa para outra coisa, mas eu gostaria de saber. O que houve?
Nem ele sabia, realmente. Foi tudo tão rápido, tão confuso e tão escuro
que acabou na mesma velocidade em que começou. Nate aceitou o drinque
que lhe fora servido e olhou para o líquido âmbar dentro do copo, tentando
decidir se contava ou não qualquer coisa para aquele bichinho curioso à sua
frente.
— Eu estava cobrando uma dívida. — A necessidade de falar qualquer
coisa sobre aquilo venceu a razão. — Meu irmão estava em Nova Iorque há
pouco tempo, mas ele não aceitava que eu estivesse trabalhando com... com o
Gênesis. Nós somos nobres, não nos envolvemos com esse tipo de atividade
ilegal, e Emile era... Emile é excessivamente moralista. Ele tentou me
dissuadir por várias vezes, até que discutimos. Naquela noite, ele foi atrás de
mim. Não sei de onde saiu aquela arma, só percebi que o devedor portava
uma pistola quando ouvi o tiro.
— O tiro acertou seu irmão.
— Ele entrou na minha frente. Depois, me atraquei com o devedor e
Emile cambaleou até a mureta, caindo dentro do oceano. Quis pular atrás
dele, mas estava escuro demais. A polícia apareceu em seguida.
— E o devedor?
A conversa terminaria ali. Nathaniel virou o uísque em um gole e se
levantou. Lucille era muito doce, inocente e imaculada para se contaminar
com a verdade. Ela não precisava saber tudo que ele fazia, não devia sequer
ter contado o que acontecera no Brooklin. Mas ela era, também, insistente, e
foi atrás dele. Segurou-o pelo braço e o fez parar.
— Espere. — Os olhos castanhos estavam avermelhados pela emoção. —
Sinto muito pelo que aconteceu. Eu espero que seu irmão esteja vivo.
A mão dela segurava seu braço com uma sutileza incomum. Lucille
parecia sincera, ela realmente estava tocada pelo que acontecera, pela história
que contara. Os olhos dele foram dos dedos que envolviam sua pele até a face
gentil da mulher e ele tomou uma decisão que lhe causaria muitos problemas.
Mesmo que ela se casasse ou encontrasse prazer em outras camas, ele seria o
primeiro a mostrar-lhe o que um homem era capaz de fazer com uma mulher.
Ela gostava de aprender coisas novas, Nathaniel estava então disposto a
ensiná-la.
Com um giro rápido, inverteu as posições e tomou a mão dela na sua,
mesmo que aquilo parecesse estranho aos olhos dos outros, conduzindo-a
apressadamente pelas escadas, enquanto Lucille murmurava perguntando o
que ele pretendia. Não sabia o que pretendia, ou sabia, mas não acreditava
que fosse realmente fazer aquilo. Ao chegarem ao terceiro andar, abriu a
porta do quarto e a empurrou para dentro, trancando-os em seguida.
— Mas o que deu no senhor? Viu algo suspeito lá embaixo?
Ele não respondeu, apenas encerrou qualquer distância entre os corpos e
puxou a boca dela até a sua.
Lucille preferia dizer que ficara escandalizada com as atitudes indecorosas do
homem que a sustentava com mãos firmes e a devorava com uma boca
devassa, mas era mentira. Surpresa, sim, arrebatada, certamente. Mas
escandalizada, não realmente. Ela não apenas desejava como ansiava por
aquele beijo. Não esperava ser beijada por Nathaniel McFadden, já que ele
deixou claro que não a queria, ou que não se envolveria com ela por causa de
seu pai, mas ele parecia ter mudado de ideia.
Desde o início, o toque foi suave e gentil. Uma das mãos dele apoiava sua
cabeça para possibilitar o encaixe perfeito entre as bocas, a outra estava
espalmada em suas costas, fazendo com que os corpos se unissem de forma
escandalosa. Os lábios dele acariciaram os dela delicadamente e ela sentiu os
joelhos falharem. Se não estivesse plenamente amparada naquele corpo
masculino vibrante, teria caído e se estatelado no chão como fruta madura.
Percebendo-a rendida, Nathaniel passou a ponta da língua no seu lábio
inferior e ela reagiu com um gemido despudorado. Ele se aproveitou e
aprofundou o beijo, explorando-a por lugares que sequer imaginava que
pudessem ser descobertos em um beijo.
Já era noite, logo eles iriam seguir seus caminhos em separado, então
aquela era uma despedida – e uma que tornava muito difícil despedir-se,
afinal. Ao contrário do que ela imaginava, o momento não era sôfrego ou
intenso, era suave, lento, elaborado como se ele soubesse que movimentos
bruscos poderiam assustá-la. Lucille nunca fora beijada daquela forma. Suas
experiências com homens não passaram de alguns toques pudicos de lábios –
nada envolvia língua ou corpos entrelaçados como estavam os deles.
Quando ele afastou a boca apenas alguns milímetros, ela quis protestar,
mas sua voz estava presa na garganta. Nathaniel colou a testa na dela e
inspirou profundamente. Mantinha-a cativa com os dedos embrenhados nos
cachos revoltos.
— Peça-me novamente. — Murmurou, a boca traçando os contornos do
seu maxilar tenso. — Peça para que eu a arruine, Srta. Smith.
Céus, aquele homem a confundia.
— Não posso, eu... — A mão dele deslizou por suas costas, o indicador
desenhando a linha de sua coluna. Aquela camisa não oferecia proteção
alguma e Lucille percebeu que ele estava prestes a liberar a faixa de tecido
que prendia seus seios. — Tenho algum amor próprio, senhor, e não pretendo
ser rejeitada outra vez.
Nathaniel grunhiu, beijando-a no pescoço e forçando os quadris contra os
dela. Lucille arregalou os olhos ao sentir a dureza da excitação masculina que
a provocava.
— Não parece que eu esteja apto a rejeitá-la, senhorita. Em verdade, devo
ter perdido o juízo porque eu estou prestes a jogá-la naquela cama antes que
possa perceber que eu sou uma péssima escolha.
Talvez ele fosse, mas ela o havia escolhido, afinal. De todos os homens
canalhas que ela já ouvira falar ou conhecera em Nova Iorque, ele era o mais
imoral a ponto de não recusar uma virgem para uma noite apenas. Com um
movimento de cabeça, ela respondeu o que as palavras se recusavam a dizer,
assentindo para que ele prosseguisse. Nathaniel voltou a beijá-la, daquela vez
com mais intensidade, conquistando sua boca como um desbravador toma
posse de um novo território, como os ingleses tomaram posse das Américas.
Lucille não sabia retribuir o beijo com a mesma proficiência, mas
conseguia demonstrar desejo. Agarrou-se à camisa dele para mantê-los
próximos enquanto Nathaniel tirava a dela de dentro das calças e embrenhava
as duas mãos para tocá-la de forma mais íntima. Arfou com o toque quente
dos dedos masculinos em sua carne trêmula e gemeu de alívio quando ele,
habilidoso, a libertou da prisão que escondia suas partes mais femininas.
Mas, antes que ele pudesse tocá-la ali, Nathaniel interrompeu-se. Abriu os
olhos e parou de beijá-la, mesmo que as bocas permanecessem unidas.
— Aconteceu...
— Shhh. — Ele a silenciou com um polegar substituindo os lábios e
ergueu completamente a cabeça. — Há algo estranho.
Ela não percebera nada além do seu coração martelando intensamente em
seu peito, mas Nathaniel estava alarmado. Soltou-a, caminhou até a porta e
encostou o ouvido na madeira. Lucille permaneceu ali, parada e observando
cada expressão da face dele. Os olhos semicerrados indicavam que estava
concentrado e as mãos em punhos diziam que estava preocupado. Ela
certamente não o podia conhecer bem depois de apenas dois dias, mas sentia
como se fosse muito familiar a todas as manifestações do corpo de Nathaniel
McFadden – e isso indicava que ela estava ficando louca.
Com passos vacilantes, aproximou-se e encostou-se na porta, tentando
descobrir o que atraíra a atenção dele para longe dela. Vozes alteradas e
outros sons davam a entender que havia uma briga nos andares mais baixos.
— O que é isso? — Ela sussurrou.
— Parece que os homens do seu pai nos encontraram.
O coração dela quase parou de bater quando o ar foi subitamente sugado
para fora de seus pulmões. Não podia acabar tão cedo, ela não podia ser
levada de volta naquele momento.
— O senhor tem certeza?
— Posso estar errado, mas não creio que queira esperar para descobrir. —
Nathaniel olhou ao redor e foi até a janela, debruçando-se para olhar o lado
de fora. — Vamos embora, temos como descer por aqui.
— Descer? Estamos no terceiro andar, como vamos...
— Srta. Smith, há um cano de calefação subindo por essa parede. Pegue o
dinheiro e venha, não podemos levar nada. A senhorita sabe cavalgar? — Ela
assentiu. — Então vamos, Hades e Zeus estão nos estábulos, podemos chegar
até lá sem sermos vistos.
Foi tudo muito rápido, mas ela confiou nele do início ao fim sem fazer a
menor ideia dos motivos que a levaram àquilo. Nathaniel passou os dedos
pelos cabelos e as mãos pelo corpo – garantindo que a pistola e a faca
estivessem ali onde ele sempre as mantinha. Depois, apagou as lamparinas e
pendurou-se na janela, desaparecendo na escuridão. Lucille se aproximou do
parapeito e o viu deslizar pelo cano grosso e enferrujado da calefação.
Quando aterrissou, estendeu os braços indicando que era a sua vez.
Ela estava nervosa, mas não seria pega. Respirou fundo e, confirmando
que estava com as roupas no lugar, agarrou-se no cano e começou a descer. O
ferro estava quente e ela quis soltá-lo várias vezes, mas manteve-se firme até
ser capturada pelas mãos de Nathaniel – e finalmente sentir-se segura. Sim,
ela perdera totalmente o juízo, mas não estava com tempo para questionar
suas péssimas decisões. Eles correram pelo descampado sob a total escuridão
da noite até chegarem à construção dos estábulos.
Nathaniel era silencioso como um fantasma, ela mal o ouvia mover-se
enquanto a puxava para dentro do galpão e tateava em busca de seus cavalos.
Ela se acostou com a escuridão esperando-o selar os animais e aceitou a ajuda
dele para subir em um deles.
— Esse é Hades. Ele é quieto e disciplinado, vai obedecer a todos os seus
comandos. Monte como um homem, Srta. Smith, essas selas não foram feitas
para propósitos femininos.
Com um impulso, Nathaniel a possibilitou cruzar as pernas ao redor de
Hades, que se mexeu ao receber o peso de seu corpo. O cavalo ergueu o
pescoço e foi acariciado por Nate, que logo subiu em Zeus. Ela o ouviu dizer
para segui-la e partiu. Antes que Lucille o pudesse atender, o cavalo tomou a
iniciativa e a conduziu para fora do estábulo.
Capítulo oitavo

A ESCURIDÃO SERVIA DE MANTO PARA A FUGA , MAS N ATHANIEL NÃO FAZIA A


menor ideia de para onde iriam. Voltar para a estrada não era uma opção,
portanto embrenhou-se na vegetação, procurando seguir o curso de água para
se afastar o máximo possível da hospedaria e do perigo que representavam os
homens de Walter Smith. Enquanto galopava em meio a árvores e não
enxergava nem um metro à frente, tentava garantir que Lucille estivesse logo
atrás de si.
Depois de meia hora de cavalgada, entendeu que não havia mais risco
imediato de que os descobrissem. Reduziu o galope até que Hades
emparelhasse com Zeus e ele pudesse conferir como ela estava. Assustada,
definitivamente, com mãos trêmulas segurando vacilante as rédeas, mas firme
sobre a sela. A luz pálida da lua quase não penetrava ali e eles iriam congelar
se não chegassem a algum lugar em que pudesse fazer fogo. As noites
naquela região eram sempre frias, nas florestas eram ainda mais.
— Vamos seguir, há abrigo adiante.
— Outra hospedaria?
— Não, uma cabana de caçadores.
— O senhor conhece bem demais essa região.
— Eu a mapeei enquanto esperava notícias do meu irmão. Pela direção
das correntes marinhas quando ele caiu no mar, teria sido trazido para cá –
então estabeleci as rotas possíveis e o que tinha no caminho.
Não foi possível ver a expressão de Lucille para saber se ela o
considerava inteligente ou louco, mas eles não tinham tempo para conversar.
Se ele não estivesse enganado sobre a direção, estavam há poucos metros de
uma clareira e uma cabana – que ele esperava estar abandonada. Não
pretendia dar mais nenhuma demonstração de quem ele era para a mulher que
o acompanhava, podia deixar que ela não soubesse de tudo que ele era capaz.
Quanto mais a noite avançava, mais ela tremia sobre o cavalo. Eles
saíram sem bagagem e ela não usava casaco, apenas uma camisa de tecido
barato. Por sorte, antes que Lucille congelasse completamente, seu destino
surgiu à frente. Uma pequena construção de madeira que lhes serviria de
abrigo até o amanhecer.
Nathaniel desceu do cavalo e o amarrou em uma vara na lateral da casa.
Ajudou Lucille a descer e segurou-a em seus braços por breves segundos,
sentindo o corpo frio escorregar pelo seu. Não era mais o momento de a
desejar, ele precisava garantir que ela sobrevivesse. Amarrou Hades ao lado
de Zeus, acariciou as crinas dos cavalos e abriu a porta empenada da cabana.
A madeira rangeu, mas não se rompeu. Do lado de dentro, mais escuridão – e
uma lareira que produziria calor o suficiente para aquecê-los. Sem pensar que
poderia assustá-la, Nate pegou uma cadeira empoeirada e a arremessou no
chão, fazendo com que se partisse em pedaços, e jogou os destroços na
lareira. Usou sua pederneira para acender a chama e esperou, ajoelhado, que
o fogo pegasse.
A luz avermelhada da lareira clareou a cabana e o possibilitou analisar o
lugar. Uma porta, duas janelas, uma pequena cozinha, uma cama, uma mesa
e, naquele momento, nenhuma cadeira. Tudo empoeirado e com teias de
aranha suficiente para garantir que estava abandonado há algum tempo.
Talvez no inverno fosse ocupada, mas estava vazia e serviria para seus
propósitos. Um espirro chamou a sua atenção e fez com que se virasse.
Lucille estava próxima da lareira, como se o fogo a atraísse, e espirrando.
— Muita poeira?
— Parece que sim. Mas é melhor espirrar a noite toda do que morrer de
frio.
Ele concordou, aproximando-se dela. Nada estava saindo como ele
planejara e Nathaniel detestava imprevistos. Programara viagens que não
faria e traçara rotas que não percorreria apenas para não ser surpreendido por
nada, até que uma maluca decidiu esconder-se em sua carroça e ele não
conseguia a deixar ir. Não deveria ter-se envolvido naquilo, poderia
simplesmente ter ido embora e a abandonado na hospedaria, mas só pensou
em fugir com ela, não dela. E, naquele momento, estava preocupado em
garantir que ela estivesse aquecida e não na quantidade de problemas que
representava.
Aonde ele estava com a cabeça quando incluiu uma doida em sua busca?
Nem podia dizer que estivera deixando o desejo dominar a razão pois, até
aquela noite, ele não desejava Lucille. Talvez ele a desejasse um pouco,
como todo homem cobiça uma mulher, mas não era intenso a ponto de fazê-
lo desviar de seus objetivos. Era algo facilmente substituível e efêmero – ele
não precisava de Lucille para se satisfazer. E então ele não conseguia pensar
em quase nada que não fosse o corpo dela se contorcendo debaixo do dele.
Maldição!
— Não há cobertas por aqui, talvez a senhorita precise dormir ao lado do
fogo.
Lucille olhou ao redor e deu uma risada nervosa. Não havia nada para ela
se recostar ali.
— Vou bater a colcha da cama do lado de fora, assim ela poderá ser
aproveitada.
— Deixe que faço isso. Mantenha-se aquecida.
Ele também não tinha um casaco e o vento frio da noite o fez estremecer.
O silêncio era quase absoluto, só era possível ouvir o ruído da água e alguns
insetos. Não, não era silêncio, era a ausência de movimentação humana.
Aquilo era bom, Nathaniel tinha certeza que não os encontrariam ali. Depois
de bater a colcha com um pedaço de madeira que encontrou na varanda da
cabana, fechou a porta e empurrou uma cômoda velha que estava recostada
em uma parede para obstaculizar a entrada de visitantes inesperados. Se
precisasse, eles escapariam por uma janela que ficaria aberta.
Pegou o relógio de bolso e conferiu que passava de meia-noite. Seu corpo
estava cansado, mesmo que ele ainda pudesse se manter alerta por um bom
tempo. Lucille, no entanto, dava claros sinais de exaustão. Ele pegou o
colchão, colocou ao lado da lareira e cobriu, indicando que ela deveria se
deitar.
— Durma um pouco. — Nate se sentou no estrado da cama e olhou ao
redor, um tanto arrependido de ter destruído a única cadeira.
— E o senhor, ficará aí?
— Não há outros móveis na cabana além desse colchão, senhorita.
Ela se sentou e começou a retirar as botas. Nathaniel a observou, os olhos
fixos no movimento das costas dela. Depois, ela olhou para o leito
improvisado e para ele, e passou as mãos pela colcha, baixando a cabeça.
— Li um livro, uma vez, que falava sobre um grupo de pessoas perdidas.
Quando fazia frio, eles se aqueciam ficando próximos uns dos outros, ao
redor do fogo. — Quando ela ergueu novamente a cabeça, os cílios longos
emolduravam os olhos castanhos mais expressivos que Nate já vira – e
aqueles queriam lhe dizer alguma coisa. — O senhor pode recostar aqui, se
desejar.
Ele desejava, mas não era apenas recostar-se. À luz fraca da lareira, o
tecido branco da camisa dela transparecia o que havia por baixo – e era o
suficiente para fazê-lo endurecer. Sem tirar os olhos dela, Nathaniel retirou
seus sapatos e o colete e se sentou no colchão ao lado dela. Enfiou uma
almofada encardida por baixo da colcha e recostou-se nela, puxando Lucille
para si. Ela se sobressaltou e olhou para a mão dele segurando a dela.
— Não era isso que você esperava quando me convidou para “recostar
aqui”?
— Era. — Ela sorriu. — Mas eu nunca me deitei com um homem, antes.
Principalmente um homem... assim, como o senhor.
Os olhos dela desviaram para a sua ereção e Nathaniel deu uma risada
baixa. Na posição em que ele estava, era impossível esconder a excitação de
seu corpo e ele não se envergonhava de sua virilidade. Era comum responder
a uma mulher bonita, principalmente uma mulher bonita cujo gosto ele já
provara – e aprovara.
— Prometo que não farei com a senhorita nada que não queira. Não
costumo precisar obrigar mulheres a se deitarem comigo.
— Que horror. — Ela fingiu desgosto. — E por que mudou de ideia em
relação a mim? O que fez o senhor me beijar, antes?
— O mesmo que me fará beijá-la novamente, desejo. — Nathaniel fez
com que ela deslizasse em sua direção, acomodando-a quase por cima de si.
Lucille apoiou os braços em seu peito. — Não faz mais diferença se eu a
possuir ou não, isso importa apenas a nós dois, agora. Se nos descobrirem,
sua reputação estará arruinada por mim, de qualquer forma. Então, melhor
que eu faça algo por merecer a fama.

Ela já estava arruinada – e aquilo parecia totalmente coerente com o que ela
queria, mas não suficiente. Lucille se pegou subitamente desejando a ruína,
não apenas a aparência dela. Por esse motivo, não resistiu quando Nathaniel a
segurou com as duas mãos, uma de cada lado de sua face, e puxou a sua boca
até a dele. No instante em que os lábios se chocaram, ela se acomodou
melhor por sobre ele, envolvendo sua cintura com as pernas. Aquilo era
absurdamente inadequado, indecente e excitante.
Quando a língua dele penetrou sua boca, Lucille gemeu pela invasão
ansiada e agradeceu por estarem sozinhos. Uma das mãos de Nate desceu
pelas costas dela e entrou pela camisa, acariciando sua pele. Talvez ela fosse
capaz de dissolver com aquele toque, mesmo sendo tão indecoroso. O correto
seria que ela o estapeasse, fugisse, o mantivesse longe – mas Lucille queria
ser tocada por ele.
Com um movimento rápido e cuidadoso, Nathaniel inverteu as posições e
a colocou sob seu corpo rígido. Ela se viu subitamente presa debaixo de uma
massa de músculos bem definidos e quentes – e o frio passou
instantaneamente. O beijo ficou mais intenso e ele forçou seus quadris contra
os dela.
— Nunca fiquei com uma mulher de calças. — Nate riu, descendo os
beijos até o pescoço, parando no colarinho da camisa, pressionando sua
masculinidade contra ela e arrancando mais alguns gemidos constrangedores.
— Você por inteiro é uma experiência intrigante.
A barba que ele mantinha a arranhou quando os beijos desceram um
pouco além do colarinho. Lucille sequer percebeu quando ele abriu dois
botões de sua camisa, mas ele parecia determinado a livrar-se de todos.
E um estrondo do lado de fora fez com que o momento acabasse antes de
começar. Nathaniel ajoelhou rapidamente sobre Lucille e levou a mão até as
costas. Ela sabia que ele segurava a pistola, que parecia nunca sair daquele
lugar. De repente, uma chuva pesada começou a cair e os cavalos se agitaram.
Lucille sentou-se, apoiando nos braços, enquanto Nathaniel se recompunha.
— Preciso tirar os cavalos da chuva. Vou amarrá-los na varanda, espere
por mim aqui.
Como se ela tivesse algum lugar para ir. Antes de poder responder a ele
com uma frase espirituosa, o homem já estava do lado de fora da cabana. Era
comovente que ele cuidasse tão bem dos animais e que os cavalos
respondessem a ele como se o compreendessem. Lucille se deitou novamente
e passou os dedos pelos lábios. Provavelmente era aquele o motivo de
Nathaniel ser tão popular entre as mulheres, mesmo as tratando com aparente
desinteresse. A forma como ele as fazia sentir era única.
Recostou na almofada enquanto o ouvia conversar com os cavalos, do
lado de fora. Apesar da chuva, era possível ouvi-lo acalmar os animais e dizer
que logo amanheceria e eles teriam uma longa jornada pela frente. Pensando
em como fariam sem a carroça, sem provisões, sem roupas e quase um dia
atrasados, além dos capangas atrás de si, Lucille adormeceu antes que
Nathaniel retornasse para dentro.
Durante o sono, ela sonhou com ele. Era irrazoável sonhar com um quase
desconhecido – ou não, já que eles estavam muito conectados há alguns
poucos dias. Nathaniel se deitava ao lado dela, acariciava sua face, passava as
mãos por seu corpo e a beijava delicadamente no pulso, no pescoço, na
bochecha, na testa, até acomodar-se ao seu lado. O calor dele a manteve
aquecida durante a noite, mesmo que não fosse real e, apesar das condições,
Lucille dormiu tranquilamente.
Quando acordou, com a claridade penetrando pelos vidros embaçados, ela
o viu de pé, com o torso despido. A primeira reação foi colocar a mão no
próprio corpo e garantir que estava vestida. A segunda foi admirar o belo
espécime que cruzara seu caminho de forma tão inusitada. Nathaniel passava
um pano embebido em água pelo pescoço e ombros e sua camisa jazia
pendurada em uma viga.
— Não se preocupe, senhorita, não aconteceu nada que não saiba. Eu
prefiro minhas parceiras ativas, se me compreende.
Ela compreendia, mas isso não a impediu de ruborizar de vergonha.
— O senhor está de saída?
— Precisamos retomar a estrada, porém agora sabemos que os caçadores
de recompensa estão no caminho certo e devemos tomar mais cuidado.
— Devemos?
— Sim, senhorita. — Ele se virou para ela, com um sorriso canalha nos
lábios, e colocou o pano de volta dentro de uma bacia de água. Lucille sentiu
a boca secar ao vê-lo de frente e perceber que ele tinha um corpo notável.
Sem excessos, com o peito permeado de pelos bem distribuídos, que subiam
pelo tórax e iam na direção do pescoço, mas também desciam pela barriga e
morriam ao chegar ao cós da calça marrom que ele estava vestindo. Nathaniel
era o primeiro homem que ela via sem camisa, inteiramente sem camisa, e
não estava nem um pouco desapontada. — A não ser que prefira ser pega
pelos homens do seu pai.
— Céus, não. — Lucille levantou, cambaleando para trás, e notou que sua
camisa continuava meio aberta, permitindo que seus seios ficassem em
evidência. E ela não tinha mais a faixa, o que significava que estava com
vestimentas totalmente inadequadas. — Apenas pensei que o senhor seguiria
sua viagem e...
— E te deixaria aqui. — Ele completou a frase interrompida. — Depois
do trabalho que tive para tirá-la da hospedaria, não acha mesmo que faria
isso, acha? Venha, vamos logo porque nem comida temos. Precisamos chegar
a algum lugar.
Nathaniel pegou a camisa e vestiu novamente. Lucille quis perguntar se
ele dormira ao lado dela, se estivera seminu – ou até mesmo nu – durante
toda a noite. Quis saber se aquele corpo masculino estivera em contato com o
dela, se eles ficaram próximos o suficiente para que o cheiro dele se
impregnasse nela – mas não perguntou, nem falou nada. Manteve-se em
silêncio durante o tempo em que eles arrumaram as roupas e pegaram os
cavalos. Ela precisou montar novamente como um homem e adorou mais
aquela sensação de liberdade que sentiu em ter mais controle do cavalo e
mais equilíbrio.
Sua cabeça estava uma confusão e fazia tempo que Lucille não sabia o
que fazer. Sempre manteve planos e tentou executá-los, mesmo com as
dificuldades impostas pelo pai. Vinha juntando algum dinheiro para poder
estudar, mesmo que tardiamente – o mesmo dinheiro que estava usando para
fugir, pois livrar-se de um casamento desastroso parecia mais importante do
que outros projetos prévios. E, ao mesmo tempo, havia aquele homem
devasso, que torturava pessoas para ganhar a vida e que ela escolhera para
arruiná-la, mas que teve todas as oportunidades para isso e não o fez. E por
Deus, ela passara a querer muito que ele a arruinasse.
Sobre os cavalos, pegaram uma trilha por dentro da floresta até chegar à
estrada. Nathaniel ia à frente com Zeus e ela seguia com Hades, que se
portava como um lorde. Ela não conhecia nenhum homem que fosse tão
elegante quanto o garanhão preto. O silêncio se tornou inconveniente e ela se
aproximou, pareando com seu companheiro.
— Para onde vamos?
— Stamford. Preciso fazer uma ligação, precisamos de roupas e comida.
Você terá que aguentar até lá, se formos em um galope adequado,
chegaremos logo.
Lucille assentiu. Nathaniel não estava tão taciturno quanto no dia anterior,
havia certa leveza em sua postura corporal que a tranquilizou.
— O que levou o terceiro filho de um conde a se envolver com o
submundo?
As palavras pularam de sua boca, e isso era um defeito que ela
dificilmente conseguiria consertar. Lucille falava, era franca e raramente
evitava a verdade. Ele riu e levou algum tempo para responder.
— Eu agora sou o irmão do conde. Há tantos na linha de sucessão à
minha frente que eu precisaria viver três vidas para assumir o condado – o
que, definitivamente, nunca quis. E achei que já tivesse respondido a isso,
senhorita. Sempre fui um homem que preferiu bebidas e mulheres a trabalho.
Acabei encontrado minha degradação em ambas.
— O senhor está feliz?
Ele deu outro sorriso e virou-se para ela. A luz do dia refletiu o azul
daqueles olhos penetrantes, mas que não entregavam nada da alma por trás
deles.
— Depois de ontem, acredito que possa me chamar de Nate.
Lucille sentiu as bochechas arderem e entendeu que ele a mantinha em
um estado de constante rubor.
— É inadequado.
— Vamos determinar isso. A senhorita me viu sem camisa, eu quase a vi
sem camisa, estou agora mesmo vendo muito mais da senhorita do que
entendo ser saudável para um homem, nós nos beijamos e dormimos juntos.
Creio que essa conjugação de fatores autorize que nos tratemos pelos nomes
de batismo.
A cor nas bochechas de Lucille assumiu um tom de vermelho cereja.
— Nós dormimos juntos?
— Dormimos, senhorita. Infelizmente, foi tudo que aconteceu.
— Se eu o chamar de Nathaniel, o senhor deve fazer o mesmo. Meu
nome é Lucille.
— Muito bem, que assim seja. Diga-me, Lucille, por que foge do
casamento? Não me diga que está fugindo desse marquês especificamente,
pois, em sua idade, já deveria ter se casado. Há algo mais, não há?
Sim, havia muito mais. Ela não tinha objeções ao casamento, ao
contrário, mas queria tanto fazer outras coisas antes de se envolver
definitivamente com um homem que a tornaria propriedade. Se fosse casar,
queria alguém que a permitisse estudar, viajar, visitar as amigas, ser
independente – e não alguém que a transformasse em objeto de decoração.
Mas duvidava que Nathaniel fosse compreender aqueles motivos – ele era um
homem, afinal.
— Eu gostaria de fazer faculdade. — Ela contou o que achou razoável. —
O dinheiro que uso para a fuga estava sendo guardado para pagar meus
estudos.
— E por que seu pai não fez isso? Ele é mais rico que a Rainha.
— Ele acredita que minha única função na Terra é casar e parir os filhos
do meu marido, seus netos. — Lucille deu uma risada nervosa. — Nunca me
achou capaz de fazer nada além disso.
Nathaniel ficou em silêncio novamente. Ela podia seguir falando de sua
família, contaria todos os problemas que enfrentara desde que aprendeu a
andar, mas ele não parecia interessado em ouvir mais. A expressão do
homem endureceu e ele trincou o maxilar, formando uma linha tensa em seu
perfil bonito, e nada mais foi dito entre eles por longas horas. Pararam uma
vez para os cavalos descansarem e beberem água, um luxo que eles mesmos
não tinham, e depois retomaram o galope até quase anoitecer.
Ela não conseguia evitar se sentir culpada pelo que estavam passando –
sem roupas, sem comida e sem estrutura para a viagem. Afinal, se não fossem
os homens que seu pai mandou para resgatá-la, não teriam fugido sem suas
bagagens. Mas Nathaniel não reclamou – ele parecia imune aos
inconvenientes. Mesmo que a fome quase a derrubasse pelo final do dia, e a
sede a estivesse incapacitando, ele permanecia ereto e elegante sobre o
cavalo, como se nada o afetasse se ele assim não quisesse.
Quando Lucille estava prestes a desistir e desmaiar de exaustão e
fraqueza, eles avistaram a cidade de Stamford. Nathaniel reduziu o galope e
pegou um papel do bolso de seu colete – era um mapa, ou algo similar,
contendo anotações e rotas. Depois de examinar o conteúdo por alguns
minutos, indicou que ela deveria segui-lo. Transitando por vias de pouco
movimento e evitando aglomerações quando elas apareciam, eles pararam em
uma construção de tijolos com aparência de ser um hotel.
Era um prédio simples, porém charmoso. Cinco andares com janelas de
madeiras e beirais floridos, tijolos avermelhados e portas envidraçadas.
— Registre-nos em meu nome. Vou fazer uma ligação e te encontro no
refeitório. Pegue um quarto para cada um de nós.
Os cavalos foram amarrados nos fundos do estabelecimento, Lucille
desceu de Hades mas não se moveu, olhando para si mesma com algum
constrangimento. Ela se sentia quase nua, com aquela camisa fina não
cobrindo quase nada de seu corpo. Não era preciso ser observador para
entender que ela não era um homem. Nathaniel percebeu que ela hesitava e
tremia e se aproximou, segurando-a pelos braços no instante em que ela
desmaiou.
Capítulo nono

U M CHEIRO DELICIOSO DE CALDO DE CARNE FEZ COM QUE L UCILLE


despertasse e ela percebeu o quanto estava faminta. Não, ela já esteve faminta
antes, aquilo era diferente – ela estava há um dia inteiro sem comer, tão fraca
que mal conseguiu abrir os olhos e erguer o corpo para olhar ao seu redor. Só
se lembrava de ter colapsado nos braços de Nathaniel McFadden.
— Como está se sentindo?
O próprio Lúcifer apareceu à sua frente, segurando uma vasilha
fumegante. Com os cabelos úmidos e roupas limpas – e aparentemente novas,
mantinha a expressão séria que lhe era característica.
— Um pouco tonta. O senhor comprou roupas?
— Para mim e para você. E mandei trazerem o jantar. Sente-se, você
precisa comer.
Ela não ignorou que Nathaniel a tratava com informalidade. Sem
preocupar-se com o decoro, sentou-se ao lado dela na cama e esperou que se
ajeitasse. Lucille continuava com as roupas encardidas do dia e sabia que
precisava de um banho, mas mal conseguia segurar a colher que ele lhe
oferecera.
— Sopa?
— Você está muito fraca. Consegue fazer isso sozinha ou precisa que...
— Eu consigo. — Lucille ajeitou-se na cama e pegou a vasilha com a
comida, acomodando-a sobre as pernas. — Esse é meu quarto?
— Nosso. Duas camas, fique tranquila. Vou deixar que coma pois preciso
ligar para Nova Iorque. Deixei algumas roupas dentro daquela caixa ali — ele
apontou para uma mesa — para que vista depois que se lavar. Nos vemos
daqui a pouco.
Nathaniel levantou-se e saiu, fechando uma porta atrás de si. Ela cheirou
a sopa novamente e quase virou a vasilha para beber o conteúdo. Usou a
colher por puro condicionamento – ela fora treinada a ser educada, gentil,
extremamente servil. Depois de comer, sentiu-se melhor e capaz de tomar um
banho. Olhou ao redor, o quarto era amplo e mobiliado, significativamente
melhor do que o da hospedaria, mas ela não entendia por que o diabo não a
colocara para ficar em uma habitação separada. Cambaleando, Lucille foi até
a mesa e abriu a caixa que continha roupas para se surpreender outra vez.
Eram peças masculinas, refinadas e bem talhadas, mesmo tendo sido
compradas prontas. Havia também um pedaço de tecido com um bilhete
preso, rabiscado em uma letra apressada.
“É uma pena que tenha que escondê-los”, era o que estava escrito. Ela
sorriu olhando para tudo que ele arrumara para si e imaginando o que
significava. Cuidado? Não podia ser, aquele homem não cuidava de ninguém
além dele mesmo, mas ela não queria pensar demais sobre nada. Precisava
apenas manter-se no caminho da fuga e logo estaria livre de todos – inclusive
do canalha McFadden. Enfiou-se debaixo de um chuveiro de água quente e se
lavou das impurezas do dia. Enxugou-se e desejou vestir-se com roupas
femininas. Arrumar o cabelo, colocar rendas e saias, algo que a fizesse sentir
uma mulher.
Ela estava divagando, com tempo ocioso para pensar tolices. Pegou as
roupas que Nathaniel comprou e vestiu a roupa de baixo, colocou a faixa, a
camisa, a calça bege. Fechou todos os botões, garantindo que nada de sua
feminilidade ficasse exposto. Ajeitou os cabelos com um pente e os escondeu
dentro da boina, sabendo que ficariam amassados. Quando estava preparada
para qualquer coisa, ele retornou para o quarto.
— Ficaremos essa noite. Amanhã pegamos a estrada novamente até
Norwalk, minha pista me leva para lá. Vejo que as roupas ficaram boas.
— Eu preciso reembolsá-lo. E sim, ficaram ótimas, como se fossem sob
medida. Como conseguiu saber meu tamanho?
— Tenho boa memória e ontem eu tive a oportunidade de segurá-la me
meus braços. É o suficiente para eu me lembre bem de suas formas. Quer
descer para jantar? Há um restaurante próximo daqui cuja aparência é
satisfatória.
Ela ainda estava faminta, só restava concordar. Teria mais chance de
conversar com aquele homem intrigante que a fazia considerar se os boatos
sobre ele não eram todos infundados.
Tudo estava fora de seu controle. Nathaniel sabia quando o trem descarrilava
porque nada saía como o planejado – e ele nunca conseguia devolver o
maldito trem para os trilhos. Desde que fora abandonado para morrer, logo
depois de sua chegada a Nova Iorque, ele nunca se sentiu tão vulnerável
quanto naqueles dias. Mais precisamente, desde que aquela mulher louca
invadiu sua casa e pediu para ser seduzida. Ele negou, mas não significou que
não quisesse seduzi-la. Estava prestes a fazê-lo, se não fosse o maldito
sobrenome Smith.
Ele odiava Walter Smith, mas sabia que vingança não o levaria a lugar
algum. Nada daquilo importava, ou deveria importar, apenas Emile – então o
que diabos fazia admirando Lucille enquanto ela caminhava ao seu lado? A
mulher estava vestida como um homem, usando calças – que encaixavam
perfeitamente em seus quadris – e colete! O problema era que ele sabia o que
estava por baixo daquela roupa, sabia parte do que encontraria ali e queria
conhecer o resto.
Estava decidido – Nathaniel precisava levar Lucille para a cama e
resolver o problema. Quando sentia desejo por uma mulher, seduzia-a e a
angústia passava. O que o impedia de pensar racionalmente era aquela
lascívia que precisava ser satisfeita.
— Conte-me mais algo. — Ela capturou sua atenção, mas Nathaniel
acabou olhando demais para a boca dela em movimento. — Por que veio para
os Estados Unidos?
— Eu conto se me contar algo seu, também.
— Combinado. Você começa.
Ele detestava falar de si mesmo, não tinha nenhum interesse que as
pessoas o conhecessem ou soubessem qualquer coisa sobre seu passado.
Porém, estava curioso a respeito de Lucille e podia contar sem revelar muito.
Estavam já no restaurante, então chamou um garçom e pediu que lhe
servissem o prato do dia e uma garrafa de vinho.
— Vim para fazer negócios com um americano, o Sr. Carlisle. Ele
pretendia convencer meu irmão e meu cunhado a investirem com ele, mas
minha irmã ficou desconfiada de suas reais intenções. Meu irmão, o Conde
de Cornwall, não dá passos em falso. Edward é extremamente seguro, correto
e ridiculamente perfeito. Um conde, como pode ver.
— Mas o senhor não fez negócios com o Sr. Carlisle, fez?
Não, ele não fizera. Assim que chegara aos Estados Unidos fora
arrebatado por um estilo de vida muito diferente do londrino. E Leonard
Eckley não fora uma amizade muito inspiradora – juntos, eles eram capazes
de incendiar meia Nova Iorque.
— Descobrimos que Carlisle era tão correto como meu irmão – e
queríamos algumas aventuras.
— Queriam?
— Eu e meu amigo, Leo Eckley. Ele dirige o Gênesis comigo.
O jantar chegou e eles foram servidos. A sopa que Lucille comera
certamente não a satisfizera, por isso Nathaniel cuidou de pedir algo mais
substancial. Encheu as taças de vinho e prosseguiu.
— Nós fizemos investimentos com outras pessoas.
— E o conde concordou com isso?
— Edward ainda pensa que estamos produzindo aço. Eu mando para ele
relatórios falsos e dinheiro que seria do lucro da produção, que é parte do que
recebo no Gênesis.
Lucille bebeu um gole longo do vinho e levou algum tempo processando
a informação de que ele era, além de um canalha, um mentiroso. Que estava
enganando seu irmão conde, que fingia investir com um homem probo e
acima de qualquer suspeita quando, na verdade, geria um antro de jogos
ilegais, prostituição e realizava um bom número de atividades criminosas.
— Isso parece excitante. — Ela revelou, com um sorriso tímido.
— Viver no limite de cruzar vários limites não é excitante, Lucille, é
arriscado. Meu pescoço está cada dia mais perto da forca.
— E por que continua fazendo isso, se é tão perigoso, assim?
Ela o fitou por sobre o vidro da taça, escondendo sua boca desejável e
adotando uma aparência inocente que só servia para excitá-lo ainda mais. Se
ele continuasse olhando para ela daquela forma, todos achariam que estava
interessado em seduzir um homem.
— Uma vez que entramos nesse mundo, não tem como sair. É o que sou
agora, não há volta.
— Não acredito nisso. Você provavelmente gosta do que faz, gosta do
poder que empunhar essa faca e ameaçar as pessoas lhe dá.
A maldita tinha razão, ele gostava, mas também estava errada, pois ele
não fazia aquilo apenas pelo poder. Fazia porque ficou bom demais para
desperdiçar seu talento e porque o sofrimento que passou acabou por moldá-
lo diferente do que era. O chefe o ensinou a ser destemido, cruel e arrogante –
não tinha como deixar de ser nada daquilo. Não mais.
— Agora é sua vez. Diga-me algo, mas precisa ser tão sujo quanto a
minha história.
— Eu estou fugindo do casamento porque não acredito que ele valha a
pena. Meu pai é violento com minha mãe, que é omissa com a violência
contra seus filhos. Eu já o vi quase a matar e não pretendo perecer pelas mãos
de um homem como ele.
Ela disse aquilo com aparente calma, tudo de uma vez, sem fazer pausas.
Se não estivesse se acostumando a observá-la, pensaria que era tão fria e
cínica quanto ele – mas Nathaniel pode notar que a voz tremia e seus dedos
ao redor da taça vacilavam. Era uma verdade difícil, uma verdade quase
impossível de ser digerida sem mais um pouco de vinho. Sem moderação,
encheu a taça de Lucille e manteve-se em silêncio, esperando que ela
comesse e bebesse. Embebedá-la tinha duas vantagens – faria com que se
acalmasse e com que o aceitasse em sua cama. Bendita hora que decidiu
registrar apenas um quarto para ambos.
— Lamento saber isso. Meus pais se amavam. Meu pai faleceu cedo
demais, mas fui criado em uma família amorosa. Imagino que deva ser difícil
ver Walter Smith espancar sua mãe.
— Acabei me acostumando. Veja que curioso, eu cresci entre pessoas
violentas e nunca fiz mal a um inseto. Você cresceu em meio ao amor e
hoje...
E hoje ele cobrava dívidas para um criminoso. Ela não precisou
completar a frase para que ele soubesse o que pensava – e incomodou-o que
ela o julgasse. O que os outros pensavam dele nunca o importou, Nathaniel
ignorava completamente a opinião que tinham sobre si. Ignorou enquanto
morou em Londres, ignorava em Nova Iorque. Sua arrogância aristocrática o
fazia pensar que estava acima de algumas mesquinharias, mas ele não gostou
de ser censurado por Lucille. Por algum motivo que ele não sabia, a opinião
dela era diferente das demais.
— Desculpe-me. — Ela retomou sua fala. — Não quis ofendê-lo.
— Não deve haver mais nada que me ofenda, Lucille.
Provavelmente, nada. Aquele era o novo Nathaniel McFadden, um
homem que já cometera quase todos os pecados que um mortal poderia
cometer e não se arrependida de praticamente nenhum deles. Decidiu
permanecer em silêncio enquanto terminavam de comer, tomando cuidado de
manter as taças de vinho cheias até a garrafa acabar. Apesar de tudo, ele não
desistira de a levar para a cama – não havia nenhum decoro que o impedisse
de tomar a virgindade dela, se ela concordasse em lhe entregar.
No retorno para o hotel, ele quis lhe oferecer o braço, mas seria muito
estranho que dois homens caminhassem pelas ruas como um casal. A cidade
era pequena e pouco movimentada naquela região. Ele escolhera um hotel da
periferia, que tinha boa calefação e roupa de cama limpa, mas nada no centro
nem com poucas rotas de fuga. Talvez, se estivesse sozinho, ficasse em um
lugar mais luxuoso, mas não podia arriscar que Lucille fosse vista – nem que
ele fosse visto com ela. Ser acusado de sequestro não estava em seus planos.
Ao chegarem ao hotel, ele ainda precisava ligar para Leonard, já que sua
tentativa anterior fora frustrada – o amigo não estava no Gênesis e não tinha
telefone em casa. Precisava manter-se informado das novidades de Nova
Iorque e gostaria de ouvir uma voz familiar. Pediu que Lucille subisse para o
quarto e foi até a cabine telefônica. Daquela vez teve sorte, foi o próprio Leo
quem atendeu a ligação.
— Stamford? — O amigo perguntou, sempre preciso nos cálculos.
— Cheguei hoje, parto amanhã. Como estão as coisas? Alguma novidade,
outra pista de Emile?
— Não. Como eu disse, o submundo agora só pensa em ganhar a corrida
do ouro patrocinada por Walter Smith. Ninguém está procurando seu irmão,
Nate, lamento. Essa deve ser sua única pista.
— Terei sorte, ela será uma pista quente. Amanhã vou atrás do contato
indicado.
— Agora diga o que te incomoda.
— A incerteza me incomoda, Leo. Não saber se Emile está vivo ou
morto. Nada mais.
— Você mente bem, não para mim. Vamos, conte-me o que o está
fazendo me ligar mesmo quando não há nada para ser dito. Se eu te conheço,
Nathaniel William McFadden, você está precisando de um sermão.
Maldito Eckley. Nate odiava ser chamado por seu nome completo.
— Eu estou com a Smith fugitiva.
— Mas que diabo? — Leonard quase gritou no telefone. — Como assim
está? Você a sequestrou, Nate? Ficou louco?
Sim, com certeza, definitivamente. Se não fosse insanidade, ele talvez
estivesse doente.
— Fiquei, mas não a sequestrei. Ela se escondeu em minha carroça para
fugir.
— Livre-se dela.
— Já tentei, Leo, não consegui. Acho que não consigo, porém não faço
ideia do motivo.
— Você está com problemas. Não saia de Stamford, vou me encontrar
contigo amanhã cedo.
Era exatamente o que ele não precisava, de uma babá. Ao mesmo tempo,
se havia uma pessoa que poderia impedi-lo de fazer uma bobagem com
Lucille Smith, aquela pessoa era Leonard. E, ao mesmo tempo, ele queria
fazer uma bobagem com ela. Queria fazer todas as coisas impróprias que
sabia e ensinar a ela o que ninguém mais ensinaria.
— Não venha, isso nos trará problemas. O chefe não permitirá.
— Se eu disser que precisa de mim e prometer trazê-lo logo, ele
acreditará. Espere-me, Nathaniel. Em que hotel está?
— London’s Lounge.
— Escolha óbvia. Amanhã estou aí.
Leonard desligou o telefone e aquilo era sinal de que estaria se
preparando para pegar um trem até Stamford. Pela ferrovia, o trajeto era
significativamente menor e logo ele chegaria à cidade. A viagem estava
ficando mais complicada do que ele esperava e a culpa era integralmente sua.
Olhou ao redor e decidiu que precisava ficar por ali, mesmo. Recostou-se no
balcão da recepção e perguntou onde haveria uma casa de jogos. Na noite
anterior ele foi distraído, naquela ele pretendia ganhar alguns dólares.

Assim que Lucille subiu e fechou a porta do quarto, recostou-se nela e ficou
esperando seu coração se acalmar. A conversa durante o jantar se tornou um
pouco constrangedora, mas ela suspeitava que algo muito inapropriado
poderia acontecer assim que ambos estivessem trancados naquela habitação –
e sem ninguém para interromper, daquela vez. Era provável que ela desejasse
qualquer coisa imprópria que Nathaniel pudesse lhe fazer, porém sabia que,
em nome da decência, deveria resistir ao menos um pouco. Antes, ela
precisava ser deflorada, mas a fuga fez com que ela já estivesse arruinada o
suficiente.
Então, ela ficou nervosa. Seus ouvidos zumbiam como se um diabrete e
um anjo sussurrassem palavras de incentivo – um comandando que ela se
entregasse à devassidão, outro lembrando que ela era uma mulher cristã e que
deveria se afastar do pecado. Girou pelo quarto em passos miúdos até quase
ficar zonza e perceber que ele estava demorando demais. A ordem era para
que ficasse no quarto, ela deveria obedecer. Poderia tirar as roupas
masculinas e enfiar-se debaixo das cobertas, mas não sobraria nada para
vestir, então.
Girou mais um pouco pelo ambiente, desarrumando a cama,
reorganizando os itens no banheiro, ajeitando as toalhas perfeitamente
alinhadas, mexendo nos cabides vazios dos armários, esperando. E ele não
chegava. Vá dormir, Lucille, o anjo comandou. Vá atrás dele, Lucille, o
diabrete instigou. Como vinha se sentindo muito pouco santa há alguns dias,
ela garantiu que suas roupas estavam perfeitamente alinhadas e desceu
novamente para a recepção.
Interpelou o jovem recepcionista tentando fazer uma voz masculina – e
falhando.
— Boa noite, o senhor viu o cavalheiro que chegou comigo?
— Ele perguntou por um cassino, senhor. Não temos muitos por aqui,
mas indiquei a ele o Fallen Bridge, no final da rua.
Lucille agradeceu e decidiu que iria atrás de Nathaniel. Por qual motivo,
ela não sabia, mas sentia que deveria ir. Algo dentro dela borbulhava,
querendo impedir que ele se envolvesse em confusão ou com prostitutas.
Tentando não correr, seguiu na direção apontada pelo recepcionista até
visualizar um letreiro meio escondido, meio apagado, indicando que estava
na direção certa.
Vestida como um dos visitantes habituais do lugar, conseguiu entrar
facilmente. Estava escuro, ninguém notaria que tinha feições femininas ou
voz aguda demais. Estava com pouco dinheiro e não pretendia apostar, não
queria aprender nada, daquela vez – apenas resgatar o homem que,
provavelmente, não iria querer ser resgatado. Aos poucos, seus olhos se
acostumaram com a luz alaranjada e Lucille conseguiu distinguir as formas
ao seu redor e pode se mover com mais facilidade. Identificou um bar, com
homens bebendo uísque ou conhaque, e algumas mesas de jogos – cartas,
dados e roleta. Um arco largo em um canto indicava que havia outro
ambiente, provavelmente onde ficavam as prostitutas – e ela esperava que
fosse o pior que encontraria ali.
Nathaniel não parecia estar em lugar algum. Ela se sentiu patética estando
ali atrás dele, sabendo que nada lhe dava o direito, ou a prerrogativa, de o
procurar. Ainda assim, seus olhos não pararam de vagar e fixar em todas as
faces presentes até que ela conseguisse visualizá-lo em uma mesa de
carteado. Talvez ela não o reconhecesse se não estivesse tão focada. Nate
fumava um charuto, tinha uma garrafa de uísque de um lado e duas mulheres
um pouco animadas demais do outro. Os cabelos loiros, mais compridos do
que era adequado, já grudavam no pescoço pelo suor. Lucille não soube o que
sentir ao vê-lo, arrebatada por um misto de alívio e ciúmes que não faziam
sentido algum.
Mesmo concentrado no jogo, ele a viu. Os olhos de Nathaniel se
ergueram e a perceberam ali, olhando diretamente para os movimentos que
fazia, permanecendo inabalável. Sua expressão não poderia ser decifrada por
ninguém se ele não quisesse. Estava com os antebraços de fora e ela se pegou
definitivamente fissurada por aquela parte da anatomia dele. Com um suspiro
de resignação, Lucille aproximou-se da mesa enquanto ele sussurrava
qualquer coisa para uma das mulheres, a que estava em seu colo. A “dama”
levantou-se e desapareceu por entre as pessoas.
O jogo já começara e era uma variante de pôquer que ela não conhecia –
Lucille não tinha nenhum conhecimento válido sobre carteado, conhecia
pouco sobre baralho e só jogara algumas partidas de alguns tipos de jogos
quanto as amigas ainda eram solteiras e elas se reuniam para fazer tudo que
fosse proibido para as mulheres. Quase tudo. Nathaniel não olhou para ela
novamente, permaneceu concentrado em sua mão e olhando sutilmente para
os outros jogadores. Havia muitas fichas à sua frente e ela imaginou que ele
já tivesse ganhado alguma coisa.
Um jogador empurrou todas as suas fichas para o centro e bradou “all
in 1”. Um burburinho iniciou-se, alguns presentes elogiando a postura
arrojada, outros o considerando louco. Lucille conseguia ver as cartas desse
jogador e ele tinha um full house 2, que ela sabia ser uma mão muito boa. Dois
oponentes desistiram, baixando suas cartas e se retirando da partida.
Permaneceram três, que decidiram cobrir as apostas. Nathaniel tinha fichas
suficiente para que algumas sobrassem, mas, ainda assim, o valor em disputa
parecia bem elevado.
O crupiê solicitou que mostrassem suas cartas e o apostador principal
exibiu seu full house. O outro apostador atirou uma trinca de ases sobre o
feltro verde, levantando-se irritado. Nathaniel olhou para a mesa e para suas
cartas por longos segundos até virar, com uma elegância que ela não vira nele
ainda, um royal flush 3. A comoção foi generalizada – pelo visto, o homem
não estava acostumado a perder nem aceitaria a derrota pacificamente.
Enquanto a audiência murmurava e antecipava um confronto, o perdedor se
levantou e bateu na mesa de jogos, bagunçando as cartas e misturando as
fichas.
— O senhor certamente foi desonesto! — Esbravejou o homem, que tinha
uma aparência ébria e cabelos escuros encaracolados. — Ninguém teria
condições de bater esse full house!
Nathaniel manteve-se sentado e começou a organizar as fichas em uma
pilha. Eram todas dele, afinal.
— Há duas hipóteses para a certeza que o senhor possui. Uma, o senhor
estava fraudando o jogo e acreditava que sua mão era a melhor porque
comprou o crupiê. Outra, o senhor estava contando cartas – o que é fraude, da
mesma forma. — Ele ergueu os olhos azuis, que flamejavam à luz das velas.
— Qual das duas é a verdadeira, senhor?
O homem rosnou alguma coisa e retirou o casaco. Aquele era um sinal
claro de que pretendia brigar e a audiência se afastou, obrigando Lucille a
fazer o mesmo. Nate fez um gesto negativo com a cabeça, indicando que não
queria confusão, mas ela sabia que ele reagiria se fosse atacado. E, quando
reagisse, ele provavelmente causaria problemas. Lembrou da pistola que
ficava em sua cintura e rezou, silenciosamente, para que ele não decidisse
sacá-la.
Com um impulso, o homem se lançou sobre Nathaniel e, com os punhos
erguidos, lhe desferiu um soco. A plateia acompanhou o movimento como se
estivessem em um ringue e aquela fosse uma luta recreativa, mas Lucille
sabia das implicações drásticas daquela contenda – a polícia apareceria
naquele antro e todos eles estariam em apuros. Nate desviou do soco e se
afastou.
— Não quero brigar. Seja um bom perdedor e se afaste.
— Está com medo, forasteiro? — O homem provocou. — Acha que não
sabemos que é inglês? Com esse sotaque e essa arrogância fica evidente sua
origem. E não gostamos muito de ingleses por aqui.
Nathaniel balançou a cabeça novamente e esperou o ataque, que veio
rápido. Enquanto o homem se movia com impulsividade e velocidade, Nate
era sutil e leve como um predador cercando sua presa. Estava desarmado,
com as mãos nuas e o cabelo desfeito, mas parecia dominar tudo, como se
controlasse até mesmo o tempo. Outros socos voaram até que o homem se
atirou sobre ele e o acertou no nariz, fazendo-o cambalear para trás. Sangue
escorreu e pingou em sua camisa branca.
— Eu lhe dei uma chance. — Nathaniel pegou um lenço e limpou o
sangue. — O senhor poderia ter ido embora, ter me deixado ir embora, mas
preferiu brigar. Então, espero que esteja disposto a arcar com o resultado de
seus atos.
Retirando o casaco, Nathaniel fechou as mãos em punhos e desferiu um
contragolpe, antes de ser novamente acertado pelo seu agressor. O homem
gemeu e deu dois passos para trás, sendo novamente golpeado por mãos
firmes. Uma vez, duas vezes, três vezes, até cair ao chão. Tentou se levantar
novamente, mas foi impedido pela bota de Nate, que o manteve com as costas
grudadas no solo. A plateia estava muda.
— Eu agora sairei daqui com meu dinheiro, se não for incômodo para os
senhores.
Lucille estava assustada e extasiada. A forma como Nathaniel abateu o
agressor, limpou o sangue que ainda vertia de seu nariz e recolheu suas
fichas, enfiando-as nos bolsos, a deixou sem fôlego. Ela o seguiu à distância,
mantendo algum afastamento como todos com quem cruzavam – um
verdadeiro corredor se abria a cada passo que Nate dava. Depois de trocar as
fichas por dinheiro, aproximou-se dela e, segurando-a pelo braço, arrastou-a
para fora do cassino.
Talvez ela devesse se incomodar em ser tratada como um saco de batatas,
ou reclamar que ele não poderia a tratar daquela forma – agarrando-a,
carregando-a dos lugares, mas não conseguiu. Estava absorta no perfil duro e
masculino, cujos maxilares travados indicava que ele estava irritado. Não era
por esse motivo que Lucille se silenciara, ela não temia a irritação dele –
apesar de parecer razoável que o fizesse depois de vê-lo abater mais um
homem que tinha o dobro de sua altura. Ela estava fascinada por Nathaniel e
pela sua forma de agir, como se o mundo estivesse aos seus pés, como se ele
tivesse todo o poder dos cinco continentes dentro de seus olhos.
Era arrogante, definitivamente insolente, porém era irresistível. Lucille
nunca conhecera um homem que se portasse com tanta certeza de ser superior
aos demais, e suspeitava que toda aquela empáfia se tratava de uma proteção.
Nathaniel se protegia de algo, talvez daquilo que o transformara em um
desalmado, em um cobrador de dívidas sem escrúpulos. Ainda assim,
enquanto tudo indicava que ela deveria correr para bem longe dele, pegou-se
desejando que, depois de ser arrastada para fora do cassino, fosse jogada em
uma alcova qualquer e arrebatada por outro beijo.
Capítulo décimo

S E ELE PRETENDIA PASSAR AQUELA VIAGEM SEM ARRUMAR CONFUSÃO , ESTAVA


falhando miseravelmente. Não podia colocar a culpa em Lucille daquela vez,
já que ela não fizera nada para atrapalhá-lo ou desconcentrá-lo, tanto que
estava com os bolsos cheios de dinheiro. Também não podia atribuir a ela a
briga com um homem em um cassino, mas podia dizer que, por causa dela,
ele não puxou uma faca, não sacou a pistola, nem matou seu oponente de
pancadas.
Não queria que ela o visse em seu estado mais puro, nem queria que a
polícia chegasse e colocasse a fuga dela em risco. Era suficientemente
estranho que estivesse preocupado em frustrar os planos de Lucille, mas
estivesse disposto a sacrificar os seus próprios.
Assim que eles chegaram ao maldito hotel, ela estava assustada como um
passarinho que caíra do ninho. Ao menos era o que ele acreditava, já que
Lucille arfava, com o peito subindo e descendo pela respiração acelerada que
se tornava ainda mais agitada à medida em que eles subiam as escadas.
Quinto andar – por que diabos um quarto tão alto?
— Aonde a senhorita estava com a cabeça para se meter em um cassino,
sozinha?
Ele rosnou, soltando-a assim que fechou a porta atrás deles e a colocou
em alguma segurança. Isso se pudesse considerar Lucille segura estando ao
seu lado.
— Não estava sozinha, eu fui encontrar você. Diga-me, arruma confusão
em todo lugar que vai, Sr. McFadden?
Ela estava rindo, aquela mulher irritante. Rindo dele, enquanto ele
pensava que estivesse apavorada, aterrorizada em o ver envolvido novamente
em uma contenda. Daquela vez não houve muito sangue derramado.
— Aquele homem não me deixaria sair sem que eu o derrubasse.
Infelizmente, vencer costuma nos colocar em situações complicadas.
— Parece-me que o senhor está acostumado a vencer.
— Eu nunca jogo, Lucille. Diga, o que foi fazer lá?
— Nunca joga? E dirige um antro de jogatina? Como isso funciona?
— Funciona exatamente porque eu não jogo. Por que foi até o cassino?
— Céus, não seja irritante. Eu fui atrás de você, Nathaniel McFadden, já
que me deixou sozinha esperando.
— Não a deixei esperando – pretendia que dormisse antes de meu
retorno.
— Pois não dormi. Deixe-me cuidar de seu ferimento.
Ela entrou no banheiro e retornou com uma bacia com água e uma toalha.
Indicou a cama para que ele deitasse e Nate não conseguiu evitar dar uma
gargalhada alta. Quem era aquela mulher e por que ela acreditava que lhe
podia dar ordens? Talvez porque ele já demonstrara que as obedeceria.
— Não estou ferido.
— Posso ter alguns defeitos, mas a falta da visão não é um deles. Deite-
se, não seja orgulhoso. Vou apenas limpar o sangue e ver se não houve
fratura.
— É médica, por acaso?
— Adoraria estudar medicina. — Ela confessou, impassível, esperando
que ele a obedecesse. — Toda oportunidade que tive de ler livros a esse
respeito, aproveitei. Vamos, Sr. McFadden, não tenho paciência para
teimosos. Se me permitir lhe tratar, podemos jogar pôquer.
Uma oferta e ela então tinha toda a sua atenção. Nathaniel não jogava
porque ele era bom, porque ele usualmente ganhava e porque costumava
arrancar todo o dinheiro que seus oponentes levavam. Sua vida atual era
resultado de suas habilidades nas cartas, então preferia simplesmente abster-
se das mesas de jogos. Mas nada o impedia de fazer uma aposta com uma
mulher pela qual estava louco de desejo – principalmente se ela o permitisse
adicionar alguns extras naquela partida.
Ele cedeu e se deitou. Lucille sentou-se ao seu lado, embebeu a toalha em
água fria e passou por seu rosto. Sentiu dor quando ela se aproximou do
nariz, porém não demonstrou.
— Sabe jogar, Srta. Smith?
— Não. Acho que nunca havia visto um baralho completo até jogar vinte
e um naquela hospedaria. O senhor pode me ensinar, se quiser.
— Ensinarei, mas podemos incluir uma aposta para tornar o jogo mais
interessante.
— Não tenho dinheiro para apostar. — Lucille dobrou-se por sobre ele
para examinar o nariz, fazendo com que seus corpos estivessem muito mais
em contato do que a decência permitia. Ela não parecia tão audaciosa antes, o
que mudara desde que se conheceram? — Preciso de tudo que guardei para
conseguir comprar minha passagem para a Inglaterra.
— Se queria ir para a Inglaterra, por que não embarcou em Nova Iorque,
mesmo? Por que essa aventura para chegar até Boston enquanto o porto
novaiorquino...
— Preciso desaparecer antes, Nate. — Ela disse, chamando-o pelo
apelido pela primeira vez. A forma como as letras soaram em sua boca o
fizeram endurecer. Como ele era patético! — Meu pai não pode saber que
mudei de continente ou não estarei a salvo. Preciso fugir, fingir que sou outra
pessoa, e então ir embora definitivamente.
— Parece-me que tem tudo sob controle.
E ele pensava que ela estava perdida, sem direção, desorientada. Talvez
estivesse, no início, e aqueles planos foram traçados durante a fuga.
— Qual seria a aposta?
O sorriso malicioso nos lábios dela indicava que estava interessada em
um pouco de perversão mundana.
— Cada partida ganha valerá um ponto. Cada ponto representa uma peça
de roupa que o adversário deverá retirar.
Lucille arregalou os olhos e o fitou. Nathaniel conseguiu ver suas
bochechas corarem em um tom tão absurdo de vermelho que deveria receber
outro nome. Ela colocou a toalha dentro da bacia e observou a água
transparente se tingir de sangue antes de piscar algumas vezes e o encarar.
— Certo, mas parece que o senhor me terá nua, então.
— Na verdade, eu espero que a senhorita ganhe algumas partidas, assim
eu não ficarei em desvantagem.
Ela era uma mulher inteligente para compreender as implicações da
brincadeira. Nathaniel a queria, sim, nua, para que pudesse fazer com ela o
que Lucille desejava antes daquela viagem malsucedida. Sem dizer nada,
levantou-se, levou a bacia até o banheiro, enxugou as mãos passou os dedos
pelos cabelos.
— Tudo bem, Sr. McFadden. Ensine-me a jogar pôquer.
Ele embaralhava as cartas da forma como o demônio deveria fazer no
inferno. A personificação de Hades tinha dedos habilidosos que manipulavam
o baralho com se ele fizesse parte de seu corpo. O olhar semicerrado que
escondia parcialmente o azul sombrio daqueles olhos diabólicos indicavam
que Nathaniel estava confortável – aquilo era como estar em casa, para ele.
Estavam sentados ao redor de uma pequena mesa redonda, com todas as
peças de vestuário intactas, até mesmo os sapatos. Ele não permitiu que ela
retirasse nada, alegando que isso abreviaria sua vitória – e o jogo.
— A premissa é simples. Eu distribuirei as cartas e você deve fazer uma
aposta. Depois de ver suas cartas, pode trocar até três delas por outras três do
monte remanescente, e manter ou aumentar a aposta.
— Pensei que não iríamos jogar por dinheiro.
— Não vamos. A aposta é simbólica, apenas para dar a chance de blefar.
O blefe é a parte mais importante do pôquer, até mesmo do que ter uma mão
cheia de cartas boas.
— E vou saber o que significa uma mão cheia de cartas boas?
Nathaniel riu e espalhou as cartas pela mesa, gastando algum tempo para
ensiná-la sobre as variáveis que a conduziram à vitória. Partes, trincas, mãos
cheias, straights flushs, e outros nomes que a confundiram. Lucille não
lembraria daquelas sequências na primeira vez, mas se divertiria no processo
de tentar. O problema é que ela acabaria nua antes de lembrar como um
coringa funcionava no jogo.
Os dedos treinados de Nathaniel McFadden distribuíram as cartas e ela
olhou rapidamente o que tinha em mãos. Um par de três, nada muito
importante em um jogo de ases, reis e rainhas. Manteve sua expressão
impassível e colocou uma nota de um dólar no pote – aquela era a aposta
mínima, mas todo valor seria devolvido depois. Pediu as três cartas a que
tinha direito, ele pediu apenas uma e subiu a aposta para três dólares. Já que
estava jogando, Lucille decidiu cobrir, mesmo que ela mantivesse o simples
par de três. Ao exibirem suas mãos, Nathaniel tinha uma trinca de ases.
— Não é possível que você tenha tanta sorte. — Ela resmungou.
— Um dos motivos por que eu nunca jogo no Gênesis é exatamente esse
– eu sempre ganho. Creio que eu tenha direito de observá-la retirando uma
peça de sua roupa.
Lucille se ergueu e deu uma risada nervosa, mas retirou as botas.
Nathaniel embaralhou as cartas novamente e as distribuiu, e daquela vez ela
conseguiu uma mão mais satisfatória. Mesmo assim, perdeu para um straight
flush de cinco até nove – e foi compelida a retirar as meias. Na terceira
partida, ela tirou o colete. Na quarta, conseguiu uma quadra de valetes e
venceu, o que rendeu alguns gritos eufóricos e pulinhos pelo quarto. Não que
desejasse mostrar tanto entusiasmo assim, ainda mais para aquele canalha
devasso, mas a sensação da vitória foi realmente inebriante – o que a fez
compreender parte do que Nate lhe contara, antes, sobre o que fazia os
jogadores do Gênesis retornarem sempre ao cassino.
— Agora o senhor me deve uma peça de roupa, Sr. McFadden.
Ele riu e levou as mãos aos botões de sua camisa manchada de sangue.
Lucille sentiu a boca secar imediatamente, não acreditando que ele faria
aquilo – que retiraria a camisa mesmo estando ainda com os sapatos. Mas ele
fez. Levantou-se, terminou de abrir os botões, e deixou a camisa deslizar por
seus ombros e braços até jazer no chão, em uma pilha de tecido. Aquilo não
parecia justo, afinal, ela ficaria bastante distraída do jogo enquanto aquele
homem seminu estivesse à sua frente, a um braço de distância.
Era exatamente aquela a intenção dele, fazê-la prestar mais atenção
naquele peito definido do que nas cartas. E ele conseguiu, pois ela perdeu a
partida seguinte para outro straight flush.
— Estou começando a crer que o homem no cassino tinha razão – o
senhor joga sujo.
— Ofensas e formalidade não a impedirão de cumprir sua aposta, minha
querida. — Ele a olhou de cima embaixo. — E creio que não haja muito mais
para me enrolar.
Não havia, ela estava apenas com as calças, a camisa e as roupas íntimas,
que representavam nada mais do que uma ceroula horrível e uma faixa
cobrindo os seios. O jogo certamente seria encerrado antes que aquelas peças
tivessem que sair. Lucille se levantou e abriu os botões da calça, já que a
camisa era comprida e as ceroulas lhe garantiriam alguma proteção ao olhar
escrutinador de Nathaniel. Ele a observava atentamente, nunca desviando os
olhos de seus movimentos enquanto retirava a calça, uma perna depois a
outra, e se sentava novamente para continuar a partida.
— Essa é a última mão. — Lucille determinou. — Se eu perder, não
tirarei mais do que a camisa.
Ele não disse sim ou não, não concordou nem discordou, apenas
embaralhou e distribuiu as cartas. Ela se animou ao constatar que saiu com
uma trinca e poderia fazer uma boa mão. Apostou um dólar e pediu duas
cartas, vendo sua boa mão transformar-se em um full house. Seus olhos
certamente entregaram sua empolgação. Se estivessem jogando a dinheiro,
Nathaniel teria notado a reação e retiraria sua aposta, ou não a aumentaria.
Ao final, ele tinha apenas um par de cincos e ela saiu vitoriosa da partida,
obrigando-o a livrar-se de dos sapatos, daquela vez.
Mesmo sabendo que não conseguiria se concentrar no jogo novamente,
Lucille desejou secretamente que ele fizesse o mesmo movimento arriscado
de antes e retirasse as calças. Mas, se ela o visse apenas com as roupas de
baixo, ficaria bastante distraída.
— Como você não perdeu, podemos jogar mais uma. — Ele distribuiu
novamente as cartas. — Afinal, eu não ligo de tirar as roupas.
Claro que ele não ligaria, era um libertino, além de um canalha. Lucille
manteve sua expressão desinteressada, mas sua mão veio péssima e Nathaniel
venceu e exibiu um sorriso debochado que a fez desejar o esmurrar com suas
próprias mãos e beijá-lo, ao mesmo tempo. Então era aquilo, ele a forçaria a
despir-se quase completamente para ele. Não, não forçaria, ela estava fazendo
tudo de livre vontade. Por mais desonesto, violento e mau caráter que
Nathaniel fosse, ele não a obrigara a absolutamente nada desde que se
conheceram. Ele apenas removia todas as suas barreiras e filtros sociais,
deixando-a crua como uma tela em branco.
Lucille levou as mãos aos botões da camisa, mas ele balançou a cabeça.
— Não. — O comando fez com que ela parasse subitamente o que fazia.
— Retire a faixa.
— Mas a faixa está por baixo da camisa.
— Sim, eu percebo isso. Mas gostaria de vê-la sem a faixa. Faça isso por
mim.
Ela deveria dizer não, afinal não devia nada a ele. Mas, ao mesmo tempo,
retirar a faixa era menos constrangedor do que a camisa, já que ela não se
sentiria nua. Era uma escolha que a favorecia, então Lucille aceitou. Colocou
as mãos por dentro da camisa e desamarrou a faixa de tecido, que começou a
se soltar até ficar frouxa o suficiente para que ela a puxasse. Seus seios se
libertaram e ela não resistiu a um gemido de alívio. Mantê-los confinados
estava sendo uma experiência dolorida e Lucille estava prestes a agradecer à
Nathaniel pela sugestão quando notou a forma como ele a olhava.
Um leão rodeando uma gazela – e ele estava próximo demais para que ela
fugisse. Os olhos dele foram de suas pernas semi despidas até os dois botões
abertos de sua camisa e Nathaniel umedeceu os lábios com a língua, fazendo
com que ela sentisse sede.
— Era o que você queria? — Lucille perguntou, com a voz trêmula.
Provocá-lo era uma ideia ruim, mas ela o fazia assim mesmo.
— Não.
Antes que Lucille pudesse se ressentir por não ser capaz de seduzir nem
mesmo um canalha notório, Nathaniel passou pela mesa e, com dois passos,
estava sobre ela, confinando-a entre seus braços e consumindo-a com sua
boca.
Ela não negaria para si mesma que desejou aquele beijo. Ela não apenas
desejou como antecipou o momento que aconteceria outra vez e para onde a
levaria. Da forma como Nathaniel a possuía com lábios e língua,
provavelmente o beijo a levaria para a ruína absoluta – se, depois de tudo,
ainda lhe sobrasse alguma virtude para ser salva. De olhos fechados, Lucille
era apenas sensações enquanto aquele homem a mantinha cativa em seus
braços e a devorava com a língua. Era mais intenso do que fora antes, ele
tinha o aroma de uísque e tabaco pungente e seu corpo estava mais quente.
Não, era o contato pele com pele que a confundia, porque, sem camisa, havia
muito dele para a envolver, muito dele para tocar, muito dele para sentir sob
as pontas dos dedos.
As mãos de Nathaniel entraram por dentro da camisa e acariciaram suas
costas, enquanto ele mordiscava seu lábio inferior, descia a boca para o
pescoço, passava a língua pela pele sensível atrás da sua orelha. Lucille
soltou um gemido constrangedor quando ele deslizou as mãos para a frente e,
com um repuxão, estourou os botões que ainda restavam fechados na camisa
branca imaculada que vestia.
— Céus! — Ela gemeu novamente e levou as mãos até o tecido, tentando
cobrir-se. Sem a faixa, estava completamente exposta. Ele se afastou alguns
centímetros, apenas o suficiente para olhar para ela, e inspirou
profundamente.
— Estou cansado de vê-los sem poder tocá-los.
Nathaniel não esperou que ela reagisse ou protestasse ou sequer
compreendesse o que ele dizia – levou as mãos espalmadas até seus seios e os
segurou, acariciando a pele fina com suas palmas calejadas. Lucille não teve
tempo de pensar por que o terceiro filho de um conde teria calos nas mãos, as
sensações que o toque despertou nela foram arrebatadoras demais. A boca
dele voltou para seu pescoço, espalhando calor por partes que ela não ousava
nomear em voz alta, enquanto ele acariciava suavemente os seios e
pressionava os mamilos entre os dedos.
Dor e prazer a confundiram até o instante em que ele se dobrou sobre ela
e passou a língua pela extensão de sua aréola. Lucille arfou e seus joelhos
amoleceram quando ele capturou o mamilo na boca e o sugou. Não, aquilo
não estava certo, mas era tão bom que não podia ser errado. Era errado, era
pecado, ela arderia no inferno com ele por entregar-se tão futilmente aos
prazeres carnais, por arquear as costas e expor-se ainda mais para que ele
pudesse tocá-la melhor.
Quando o diabo reclamou sua boca outra vez, puxou-a pelos quadris e a
fez sentir toda a extensão de sua excitação. Sim, aquela brincadeira iria
conduzi-la à total degradação.
— Nate...
— Diga, Lucy.
Ela deu uma risada nervosa ao ouvir seu apelido naquela boca devassa. O
homem a desorientava e a deixava no limite da perdição.
— Eu não posso fazer isso.
— Fazer o que? — Ele a segurava com uma mão nas costas e ela sentia o
corpo mole, como se seus ossos tivessem se transformado em pudim.
Nathaniel colou os lábios nos dela outra vez. — Isso? — Afastou-se e passou
a língua por seu pescoço. — Isso? — Desceu a boca até os seios e os lambeu.
— Ou isso?
— Meu Deus, nada disso. — Ela tentou se soltar, mas não queria mesmo
que ele a deixasse ir. Seus esforços em parecer casta, íntegra e decorosa não
eram muito veementes. — Eu não quero perder...
— Preocupa-se com sua virgindade agora?
Ele continuava a beijá-la, a boca e a língua passeando por toda pele que
podia tocar.
— Sempre me preocupei. O que houve antes foi uma questão de
necessidade, e agora...
— Você não necessita mais dos meus préstimos. — Foi uma constatação,
mas a forma como ele pressionou seus quadris contra os dela e a sensação da
masculinidade rígida em contato com suas partes femininas a fez gemer
novamente. — Parece-me que você está equivocada, Lucy. Ainda precisa de
mim, não é mesmo?
Ah, ela precisava, ela desejava, ela queria. Mas era errado. Se ela
sucumbisse e pecasse, nenhum homem a iria querer novamente e ela perderia
quaisquer chances de se casar. Céus, como estava confusa, e ele não a
ajudava a pensar claramente. Lucille não queria casar-se, mas também não
pretendia perder todas as chances de fazê-lo, se não precisasse.
— Não importa, nós não devemos.
Nathaniel passou os dedos por seus cabelos e beijou-a no pescoço outra
vez, subindo a boca até capturar a dela.
— Há formas de aplacar essa agonia sem tocar em sua virgindade, Lucy.
Você gosta de aprender coisas novas, deixaria que eu te mostrasse como?
Permita-me demonstrar como ganhei a minha fama.
— De canalha?
— Não, a outra.
Ele tinha um sorriso malicioso, diabólico, nos lábios, e sabia bem como a
provocar. Lucille era curiosa, realmente gostava de aprender e ouvira coisas
impressionantes sobre as habilidades do canalha McFadden – sobre tudo que
ele podia fazer com uma mulher. Sentiu-se tentada a experimentar, muito
tentada.
— Continuarei virgem?
— Sim. — Ele falava enquanto mantinha a boca sobre ela, beijando-a, e
as mãos no corpo dela, tocando-a onde ninguém tocara, ainda. — Mas estará
completamente arruinada, no sentido real da palavra.
Arruinada ela já estava há tempos. Estaria se ficasse em Nova Iorque e se
submetesse a um casamento com aquele marquês. Estaria se ele tivesse dito
sim na noite em que fora à sua casa e pedido que se deitasse com ela. Depois
de fugir e compartilhar um quarto com um devasso, de participar de
jogatinas, vestir-se como homem e beber uísque, não havia como negar que
sua alma estava além da salvação. Então, por que negar a si mesma um prazer
que poderia nunca mais sentir?
Com um movimento de cabeça, ela sutilmente, quase
imperceptivelmente, disse sim. Sim para a devassidão, para a perdição, para o
que ele estivesse decidido a fazer consigo. Os olhos de Nathaniel estavam
escurecidos pelo desejo e Lucille não conseguiu evitar sentir-se orgulhosa de
despertar naquele homem algum sentimento que não fosse ira ou desprezo.
Ele capturou sua boca com calma e suavidade, segurou-a pelas nádegas com
as duas mãos e a ergueu do chão, levando-a até a cama – qualquer uma delas
– e a depositando sobre o colchão. Inesperadamente, o canalha era delicado e
seu toque, apesar da pele grosseira de suas mãos, só despertava prazer.
Com os dedos, ele seguiu afastando o tecido da camisa e beijando o que
não alcançava, antes. Lucille fechou os olhos e se entregou às sensações.
Nate traçava, com a língua, uma linha tortuosa descendente até segurar a
calçola que vestia e puxá-la para baixo. Ela deu um sobressalto, assustada, e
arregalou os olhos, apoiando-se nos cotovelos e o encarando. Percebendo-a
desconfortável, Nate a fitou.
— Você prometeu que não... que minha virgindade...
— Permanecerá intocada, senhorita. — O demônio sorriu. — O que farei
aqui não ultrapassará sua barreira. Confie em mim, Lucy, eu sou bom no que
faço.
Contra todas as possibilidades, ela confiava nele mais do que deveria.
Ainda assim, permaneceu observando enquanto ele retirava o restante de suas
roupas e a deixava nua. Sentiu uma vergonha repentina e o impulso de
agarrar alguma coisa para se cobrir, mas ele segurou suas duas mãos e fez um
movimento de negação com a cabeça. Depois, levou os dedos até o triângulo
entre suas pernas e acariciou os pelos que cobriam sua feminilidade.
— Você é muito bonita, Srta. Smith. — Deslizando pela cama, Nathaniel
posicionou-se entre as pernas dela, abrindo suas coxas com as duas mãos
firmes. Lucille engoliu o ar, nervosa e constrangida pela forma como ele a
estudava com os olhos. Soltou um gemido estridente quando ele baixou a
cabeça e beijou sua intimidade. — E macia. — Beijou mais abaixo, levando
dois dedos a abri-la ainda mais. A vergonha a fez deitar novamente, querendo
evitar que ele a olhasse nos olhos. — Ah, o maior afrodisíaco que existe é
esse, o cheiro feminino.
Para quem falava pouco, Nate parecia bastante eloquente com ela,
naquela noite. Depois de tanto silêncio e das tentativas de Lucille em o
provocar, em fazer com que ele contasse histórias de sua vida e a distraísse
durante a viagem, ele finalmente estava decidido a conversar – e em uma
ocasião bastante inoportuna, ela considerava. Ou não. Afinal, a voz dele a
divertia e seduzia ao mesmo tempo e os elogios quase a faziam acreditar que
era especial.
Sobressaltou-se novamente quando Nathaniel passou a língua por sua
feminilidade. Daquela vez ele a segurou pelos quadris e a manteve firme
enquanto beijava, languidamente, suas partes íntimas. Lábios macios e
quentes encontraram e envolveram o centro de prazer que nunca fora antes
tocado. Lucille ouvira amigas comentarem sobre lugares em uma mulher que
causavam sensações extremamente prazerosas, mas não as procurou para
confirmar a verdade daquelas fofocas. No momento em que Nate fechou a
boca sobre aquele feixe de nervos e chupou, ela viu estrelas.
Agarrada nos lençóis, Lucille tentou acalmar seu corpo para concentrar-se
apenas em sentir. Não fora preparada para aquilo, para nada daquilo. A ama
era muito inteligente e a deixava estudar sobre tudo, mas também era muito
moralista e tratava homens e fornicação com rigor. Nenhum deles era digno,
estavam sempre atrás do pecado, e fornicar era um deles. Enquanto Nate a
lambia e beijava como se ela fosse uma deliciosa sobremesa, as palavras da
ama foram ignoradas, esquecidas em um canto empoeirado onde Lucille
guardava memórias inúteis.
Ela subitamente quis mais dele, e ele deu – mesmo que ela não tivesse
verbalizado. Um dedo a penetrou delicadamente, esticando as paredes de seu
sexo, tocando-a em lugares que ela sequer sabia que existiam. Não foi
suficiente, ele penetrou outro dedo e os moveu para dentro e para fora.
Lucille gemeu e murmurou o nome dele.
— Nate.
Ele ergueu os olhos e passou a tocá-la com os dedos, mantendo uma
fricção deliciosa em seu ponto mais sensível.
— Lucy. — Sorriu novamente, beijando-a na barriga e retornando para o
meio de suas pernas. — Entregue-se, não resista. Quando sentir que está
prestes a cair de um precipício, jogue-se.
O exemplo a assustou, mas a boca dele em sua feminilidade a distraiu
outra vez. Nathaniel não estava mais lento ou delicado, as investidas de sua
língua se tornaram rápidas, intensas e cadenciadas. Logo, ela entendeu por
que ele falava em precipícios. Seus músculos contraíram e Lucille sentiu uma
agonia dominá-la, um crescendo em seu ventre que a fez querer gritar. Ela
gemeu o nome dele enquanto arqueava as costas e pressionava a cabeça no
travesseiro. Ao perceber que ela estava chegando em algum lugar, Nathaniel
introduziu os dedos novamente em sua abertura e ela saltou.
Capítulo décimo primeiro

V IRGENS ERAM GERALMENTE IRRITANTES E PUDICAS . N ATHANIEL NÃO GOSTAVA


de as levar para a cama porque muitas delas não se entregavam aos prazeres
da carne e lamentavam o defloramento, depois. Prometera para si mesmo que
não iria mais querer virgens em seus intercursos sexuais, mas lá estava ele
com uma em seus braços. Mais precisamente, estava no meio das pernas de
uma enquanto lhe proporcionava um prazer que ela nunca sentira.
Mas Lucille, como esperava, não era uma mulher comum. Suas atitudes e
vocabulário dificilmente pertenciam a uma senhorita casta e ingênua como
aquelas pelas quais mantinha restrições. Ela resistiu a ele porque era o que o
decoro exigia, porque fora criada para não se entregar sem que estivesse
abençoada pelos laços do matrimônio, mas apenas o suficiente para o
provocar – não para o afastar.
Foi uma experiência excepcional proporcionar a ela um orgasmo – o
primeiro orgasmo, ele apostaria todo o dinheiro que ganhara no cassino nisso.
Quando percebeu que ela estava perto, fez de tudo para que o momento
chegasse e, sem medo, ela se atirou em direção a ele. Isso fez com que a
desejasse ainda mais, mas prometera que preservaria a virgindade dela.
Maldição, se ele abrisse as calças e montasse sobre ela, certamente seria
recebido de bom grado. Rendida como Lucille estava, ela não faria objeções
imediatas ao ato sexual. Depois, talvez, ela o odiasse para sempre.
Ele não queria ser odiado por ela e isso era bastante curioso. Além disso,
Nathaniel McFadden não precisava trapacear para estar dentro das mulheres –
em algum momento, Lucille pediria por ele, que estaria ali para atender seus
desejos.
Dolorido e com uma ereção aprisionada, ele deslizou por sobre ela,
deitou-se de costas na cama e a puxou para si. Não costumava aconchegar
mulheres depois do sexo, mas ela era uma virgem, por Lúcifer. Ele deveria,
ao menos, dar a ela algo em que se agarrar até as sensações do orgasmo se
tornarem menos arrebatadoras.
— Isso foi... — ela pausou a fala e ofegou. — Entendo agora por que
metade de Nova Iorque já esteve em sua cama e a outra metade queria estar.
Lucille beijou sua pele bem ali onde estava recostada e enrolou os dedos
na cobertura de pelos do seu peito. Com uma das pernas por sobre a dele, ela
estava embolada com ele de uma forma que tornava difícil voltar a um estado
de normalidade. Se continuasse ali, não resistiria em possuí-la.
— Creio que esteja exagerando, mas entendo a sensação. — Ele deu uma
risada e moveu-se, querendo levantar-se. Lucille ergueu a cabeça e o fitou.
— Aonde vai?
— Para a outra cama. Entendo que concordamos que sua virgindade
permaneceria intocada, portanto...
Nathaniel desvencilhou-se dela e saiu da cama já querendo retornar.
— E não há nada que possa fazer para... — ela mirou diretamente naquela
parte de sua anatomia que estava destacada pela excitação. Duro como
granito, Nate não tinha como esconder sua ereção nem se colocasse um
travesseiro na frente. — para satisfazê-lo?
Meu Deus, ele não podia nem pensar nas várias formas em que aquela
mulher linda poderia satisfazê-lo.
— Já viu um homem nu, Lucille?
Ela arregalou os olhos, aturdida. Ele era realmente bom em assustá-la.
— Você quer dizer completamente despido?
— Sim, certamente. Não sabia que havia mais de uma interpretação para
a nudez.
— Nunca vi um. — Lucille riu, nervosa. — Você pretende me mostrar?
— Se for o seu desejo...
As bochechas dela coraram, tão vermelhas quanto se eles estivessem em
pleno ato sexual. Aquela profusão de cores o deixava ainda mais duro, pois
era como se as tolices ingênuas de Lucille despertassem nele mais desejo de
possuí-la. Tímida, ela balançou a cabeça para cima e para baixo, assentindo.
— Olhe para mim. — Nate provocou. — Mantenha seus olhos em mim
enquanto eu faço isso.
Ela obedeceu, mas as mãos que seguravam um lençol sobre seu corpo
feminino estavam trêmulas. Nathaniel levou as mãos aos botões de sua calça
e os abriu, fazendo com que o tecido se embolasse aos seus pés. Como não
usava nenhuma roupa por baixo, sua ereção saltou no instante em que se viu
livre, clamando por alguma atenção. Lucille arregalou ainda mais os olhos.
— É impressionante. — Murmurou.
— Mais impressionante é o que ele pode fazer com você. — Nathaniel
voltou para a cama, engatinhando na direção dela como um felino. — Mas
combinamos que não faremos isso hoje. Ainda assim, você o quer tocar?
— To-tocar? — Lucille engasgou-se. — Com as mãos?
— Por enquanto, sim.
Ele se sentou ao lado dela e ajeitou as pernas para frente. Depois,
arrancou o lençol de sua mão e a puxou por sobre si, fazendo com que as
pernas de Lucille o envolvessem pelos quadris. Era uma posição erótica, uma
de suas favoritas, mas ele não a penetraria. Não descumpriria sua promessa.
Mesmo tentando manter os olhos nos dele, ela não conseguiu evitar notar
como a ereção se acomodou perfeitamente entre os dois corpos.
Nate a beijou, tomando a boca que ainda estava vermelha dos beijos
anteriores, fazendo-a relaxar e desejar mais. Lucille apoiou as mãos no peito
dele e o acariciou nos ombros. Mantendo sua boca sobre a dela, segurou-a
pelos dedos e os desceu até seu membro pulsante. Ela estremeceu ao tocar a
pele lisa e macia de sua masculinidade, mas não se afastou – ao contrário,
envolveu-o nos dedos e fez com que ele soltasse um gemido baixo.
Ele a guiou, demonstrando como gostava de ser tocado. Lucille desviou o
olhar para espiar o que estava fazendo e Nathaniel quase chegou ao clímax só
por vê-la tão absorta e maravilhada com sua anatomia. Acostumado à nudez,
à devassidão e a corpos suados, ele não se chocava com nada. Mas ela era
uma senhorita imaculada. Antes dele, sequer fora beijada da forma correta –
com paixão e volúpia. Para ela, a experiência era única – e talvez fosse, pois,
se ela se casasse com um homem íntegro e insosso, dificilmente repetiria
aquele ato.
À medida em que ela compreendia o ritmo que o fazia gemer de prazer,
Nathaniel pode soltar suas mãos e concentrar-se em tocá-la. Beijou-a outra
vez e acariciou os seios, que eram lindos e macios. Desde que os percebeu,
dias atrás, ele quis saber se cabiam em sua mão, que textura e gosto teriam
em sua língua. Pressionou os mamilos entre o indicador e o polegar e ela
choramingou, movendo os quadris em busca de mais contato. A reação dela
ao seu toque potencializou o desejo de Nate.
— Lucy. — Ele murmurou o nome dela. — Mais rápido.
Mesmo distraída e perdida em seus beijos lascivos, ela o entendeu. As
mãos pequenas, que o envolviam com delicadeza, subiam e desciam por seu
membro cada vez mais rígido, cada vez mais próximo de uma explosão. Sem
conseguir se segurar mais, ele a cobriu com suas mãos, acelerou ainda mais a
fricção e se entregou ao alívio.

Nathaniel não sabia os protocolos do depois, porque, para ele, o depois


representava vestir-se e ir embora. Quando seduzia uma mulher e a levava
para casa, não era para a sua cama – assim, garantia que poderia dormir
tranquilamente em seus aposentos. Quando o encontro acontecia onde ela
escolhesse, assim que o intercurso terminava, ele se despedia com uma
desculpa qualquer e desaparecia. Todas as mulheres sabiam que Nate não
ficava para o dia seguinte, nem servia para conversar ou beber um brandy
depois de fazer amor.
Claro, ele não fazia amor. A satisfação corporal era uma necessidade
física, não tinha envolvimento com as coisas do coração – e ele preferia
manter assim. Mas, naquela noite, ele estava preso em um mesmo quarto de
hotel com Lucille, tendo cometido o erro de seduzi-la. Não era um erro,
afinal, ele a desejava. Mas não sabia o que fazer com ela depois de espalhar
sua semente por entre eles, em uma atividade bastante erótica e intrigante.
— Eu vou me lavar.
Lucille tomou a iniciativa, levantou-se enrolada no lençol e foi até o
banheiro. Ele permaneceu deitado, com os braços cruzados atrás da cabeça,
sentindo-se física e emocionalmente satisfeito. Fazia algum tempo que o
intercurso sexual não lhe concedia paz e ele sequer deveria estar tranquilo –
havia homens perseguindo sua companheira de viagem e um irmão
desaparecido, talvez falecido, para encontrar. Ouviu-a ligar o chuveiro e o
barulho da água caindo o relaxou ainda mais. Não devia dormir, ainda,
precisava limpar-se, vestir-se, mudar de cama. Mesmo assim, acabou
fechando os olhos e se entregando ao cansaço.
Despertou com o toque delicado da mão úmida de Lucille. Estava coberto
por um lençol e ela vestida com uma ceroula masculina e uma camisa branca.
No dia seguinte ele lhe compraria uma camisola, assim poderia dormir com
uma vestimenta adequada. Não, no dia seguinte eles iriam para Norwalk e ele
não compartilharia outro quarto com ela.
— Já é de manhã?
— Não. — Ela riu. — A água está bem quente, se quiser um banho.
Nathaniel afastou o lençol e exibiu sua nudez apenas para vê-la corar.
Entrou debaixo da água, limpou os resíduos de sua semente que estavam ali
para mostrar que aquela virgem pura não era mais tão pura, nem tão virgem,
quanto antes. Suas barreiras continuavam intactas, nenhum homem
suspeitaria que ela esteve com ele – mas ele sabia quem fora seu primeiro.
O primeiro. Havia alguma glória em deflorar uma mulher, mas ele nunca
se importou sinceramente com isso. E, com Lucille, ele se importava. Pegou-
se sorrindo debaixo do chuveiro por saber que foram seus dedos e sua língua
que concederam prazer a ela pela primeira vez. Que, até suas investidas, ela
nunca fora tocada em sua feminilidade e desconhecia o potencial de seu
corpo.
Quando retornou para o quarto, ela estava deitada de lado, com as mãos
unidas debaixo de sua cabeça. Contra seus hábitos, Nathaniel vestiu uma
ceroula e se deitou junto com ela. Na mesma cama, colocando um braço por
sobre ela. Lucille virou-se e o fitou por alguns segundos, até acomodar-se em
seu abraço e fechar os olhos.

Lucille sonhou outra vez com Nathaniel ao seu lado. Ele fora bastante gentil
no sonho anterior, apenas abraçando-a para que o frio passasse. Naquele, no
entanto, ele mostrava sua verdadeira face – devasso e indecente, seduzindo-a
com beijos intensos e libidinosos. Despertou suada, um pouco agitada, para
descobrir que, na verdade, não estivera sonhando – ao menos em parte.
Estava com o nariz no peito despido de Nathaniel e ele a mantinha cativa com
braços e pernas.
Ambos meio vestidos, o que revelava que não acontecera nada. Mais
nada, pois o que aconteceu antes foi o suficiente para a desorientar por
completo. Ela fechou os olhos novamente e inspirou o cheiro de pele
masculina e sabão. Para ele, aquilo não simbolizava nada – Nate era um
homem promíscuo e sem apego emocional com mulher alguma. Se as outras
famas dele eram verdadeiras, aquela deveria ser, também. Mas Lucille estava
bastante afetada. Nunca fora beijada como ele a beijara, nem tocada como ele
a tocara. Ele descobriu partes dela que estavam escondidas e a apresentou a
experiências incríveis. Como poderia ser tudo igual depois daquela noite?
Não poderia. E, ainda assim, ela não deveria entregar-se a nenhuma
dúvida, pois as dúvidas a conduziriam a um abismo irracional do qual não
saberia fugir. Lucille tinha planos – fugir, escapar, tornar-se outra pessoa,
realizar sonhos. Ela mal sabia quais eram esses sonhos, mas pretendia
descobri-los. Associar-se a Nathaniel McFadden era bom pois ele a ajudaria
na fuga, e nada mais. Nenhuma outra aliança poderia ser forjada entre eles.
— Bom dia. — A voz dele ecoou no fundo de sua alma. O movimento
daquele corpo masculino a abalou e Lucille precisou abrir os olhos e afastar-
se um pouco. — Que horas são?
— Não teria como saber, o senhor está me mantendo presa à cama.
Ele riu, a risada reverberando dentro dela. Nathaniel se ajeitou na cama e
Lucille sentiu a exuberância da ereção pressionar sua barriga.
— É por isso que não durmo com mulheres. — Ele se virou e a
enclausurou debaixo daquele corpo pesado. Lucille estava zonza e a
proximidade excessiva entre eles não a estava ajudando. — Não é divertido
acordar sentindo essa necessidade de alívio, Lucy.
Os quadris dele a pressionaram contra o colchão e ela gemeu quando a
boca dele a possuiu. Não seria capaz de livrar-se daquela ameaça porque ela o
desejava, ela continuava desejando mesmo depois do que fizeram na noite
anterior. Batidas a porta a salvaram de encontrar a ruína.
— Nate?
A voz de um homem assustou Lucille e Nathaniel se ergueu, sentando-se
na cama.
— Maldição, é Leonard.
— Seu amigo? — Ela arregalou os olhos e puxou qualquer coisa que
pudesse cobri-la mais. Entregara-se ao diabo e vendera a sua alma para o
inferno, mas apenas um homem poderia vê-la seminua. — O que ele está
fazendo aqui?
— Tentando evitar que eu me meta em confusão. Acho que chegou tarde.
— Nate, abra a porta. Precisamos sair daqui.
Havia um tom de alerta na voz do desconhecido, então algo estava errado.
Nathaniel saltou da cama e foi abrir a porta, enquanto Lucille escolheu
qualquer coisa que pudesse vestir e fechou-se no banheiro. Seu coração
disparou, as batidas estavam tão aceleradas e altas que talvez pudessem ser
ouvidas no quarto vizinho. O que ela estava fazendo?
Recostou as costas na porta e jogou a cabeça para trás, fechando os olhos
e respirando profundamente. Deveria acalmar-se para não demonstrar
nenhuma fragilidade desnecessariamente. Viu sua imagem no espelho que
ficava à frente e não conseguiu se reconhecer imediatamente. Os cabelos
emaranhados e curtos, a boca vermelha e inchada, uma marca arroxeada no
pescoço e outras que deveriam estar espalhadas por partes menos pudicas.
Suas mãos ainda tremiam e ela sequer sabia se era pela tensão ou pelo esforço
de mantê-las longe de Nathaniel.
Seu coração ainda martelava nas costelas quando ouviu a voz alterada dos
homens do lado de fora.
— Há homens perguntando pela Srta. Smith na estação de trem. Temos
que ir, não podemos ser associados a ela ou acabaremos acusados de
sequestro.
— Eu acabarei acusado, Leo. — Nathaniel rosnou. — O quão grave é a
situação?
— Havia pelo menos quatro homens atrás dela. Walter Smith não é tolo,
ele deve considerar todas as possibilidades e não está economizando. Prefere
pagar capangas ao eventual resgate da filha. O melhor a fazermos é
abandonarmos a mulher e seguirmos até Norwalk.
O silêncio a incomodou, mas durou apenas alguns segundos.
— Não, eu não a deixarei. Lucille seguirá conosco até Norwalk.
— Lucille? Ela te garantiu intimidade para tratá-la pelo nome de batismo?
Ah, ela garantiu a ele uma intimidade muito maior e isso a estava
consumindo. Culpa e desejo passaram a conviver dentro dela desde que
conheceu Nathaniel McFadden e ela não sabia qual venceria o duelo.
Terminou de vestir-se, garantiu que a faixa estivesse bem ajustada e saiu do
banheiro para encontrar o seu canalha também vestido como um lorde e o
outro – o amigo Eckley. Como não o conhecia, manteve uma expressão de
desinteresse e fragilidade, aquela que todas as mulheres apresentavam
quando conheciam um homem.
Os dois viraram-se para ela. Nathaniel sorriu – e ela odiou ter gostado
tanto daquele sorriso. O Sr. Eckley a fitou dos pés à boina que escondia
parcialmente os cabelos.
— Bom dia, senhores.
— Lucille, esse é Leonard Eckley. — Ela foi apresentada, como exigia o
decoro, mesmo que nenhuma outra regra da decência estivesse sendo
observada naquela fuga. — Ele vai conosco até Norwalk.
O Sr. Eckley olhou para Nathaniel e para ela novamente, demonstrando
incompreensão.
— Céus, esse é o pior disfarce que já vi. — Ele girou ao redor de Lucille
e continuou observando-a. — Vocês não estão enganando ninguém.
— Estamos enganando quem precisa ser enganado. As pessoas veem o
que querem, Leo. Vamos, precisamos ir embora, mas temos que comer
primeiro. Você deve estar com fome, Lucy.
Nathaniel disse aquilo olhando diretamente para ela e com uma imensa
carga de sedução na voz, fazendo-a sentir as bochechas arderem de tanta
vergonha. Seria difícil seguir adiante com seus planos se ele decidisse que ela
deveria ser seduzida – porque Lucille não tinha certeza se estaria apta a
refutá-lo. Talvez a presença do Sr. Eckley fosse bem-vinda, afinal.
— Vou alugar um cavalo. Encontro vocês em meia hora nos estábulos?
— Não comerá nada?
— Já comi meu desjejum na estação.
O Sr. Eckley assentiu e saiu pela porta, deixando-os para trás. Lucille
estava mais lenta do que o seu normal, bastante zonza pelo despertar confuso
e pela presença de outra pessoa em sua fuga. Pressentindo seu desconforto,
Nathaniel levou a mão até seu queixo e fez com que olhasse para ele.
— Ele é de confiança. — Disse, com uma expressão indecifrável. —
Vamos, não podemos perder tempo aqui. Somos procurados.

A chegada de Leo Eckley era um freio para sua libido, mas Nathaniel
entendia que era melhor ter alguém para o controlar. Em Norwalk ele
descobriria sobre a pista que o levaria a Emile e Lucille seguira seu caminho
para Boston. Era uma pena que ele não tivesse a oportunidade de mostrar
para ela a potência de um amante, mas os momentos compartilhados foram
suficientes. Não, não foram suficientes e, por isso mesmo, Leo seria de
grande valia – ou ele acabaria devassando Lucille Smith no primeiro arbusto
que encontrasse na estrada.
Depois de um café da manhã um tanto constrangedor, em que ela ficou
em silêncio quase todo o tempo, os dois foram aos estábulos para buscar os
cavalos. Estavam descansados, o que os permitiria viajar direto até Norwalk e
pelas vias mais difíceis de acesso – o que poderia dificultar a perseguição dos
caçadores de recompensa. Depois de montados, encontraram Leonard os
esperando na via de acesso – mas que também os conduziria para fora da
cidade, subindo para o norte.
Lucille não parecia confiar em Leo como Nate confiava. Apesar de ele ser
um grande mentecapto, era seu amigo – e fora quem o mantivera são durante
o mês que ficaram confinados naquela prisão, esperando pelo abate.
Nathaniel não queria pensar naquilo, não precisava reviver memórias de um
ano atrás, nem relembrar os motivos que o tornaram um canalha. Também
não precisava preocupar-se com mais nada, já que, em poucas horas, cada um
seguiria seu caminho.
A viagem fora silenciosa, a princípio. Leonard observava, provavelmente
intrigado pela interação íntima demais entre o amigo e a fugitiva. Nate
apreciava não ter que conversar, assim não enfrentaria novos interrogatórios
de Lucille. E ela estava visivelmente constrangida. Suas bochechas
permaneciam com aquele rubor indecente que fazia Nathaniel salivar e
endurecer ao mesmo tempo, mesmo que ele precisasse, com todas as suas
forças, manter-se concentrado. Não podia se deixar excitar por qualquer
suspiro que ela dava. Nem pelas imagens da mulher nua que sua mente
insistia em mostrar.
Por uma hora, eles se estranharam e se reconheceram. A paisagem era
constante – os black birches 1 com suas folhas exuberantes sombreando a
estrada, vegetação rasteira, uma trilha bem demarcada com saibro e o ruído
indicando que estavam próximos de um curso de água. Todas as estradas,
fossem elas muito ou pouco frequentadas, seguiam os rios. Tudo que se ouvia
eram os cascos dos cavalos e os pássaros que farfalhavam as folhas com em
seus voos e gritos.
— O que diz a pista do seu irmão? — Lucille aproximou-se dele,
emparelhando os cavalos.
— Que um homem com suas características foi encontrado na praia,
bastante ferido. Mas pode não ser ele.
— E pode ser. Espero que seja.
Ela sorriu. A sinceridade em sua alegria o desarmou. Nathaniel não estava
mais acostumado a pessoas francas. Todos que o cercavam eram jogadores –
e estavam sempre blefando, ou homens de moral e dignidade duvidosas – e
estavam sempre dissimulando ou mentindo. Aquela mulher era honesta em
tudo, principalmente nos seus sentimentos, e não parava de surpreendê-lo.
— A pessoa que deu a informação vai o encontrar em Norwalk?
Leonard olhou para trás, provavelmente estranhando a interação entre
eles. Nate era conhecido por seu humor sombrio e raramente gostava de
conversar. Não respondia questionamentos, os fazia. Seu agir com Lucille era
significativamente diferente do seu agir com as demais pessoas e isso
certamente causou estranheza em seu amigo.
— Não, Lucy, eu sequer sei quem passou a pista. A informação veio
anônima e teremos que chafurdar a cidade atrás de alguma coisa. Por isso
trouxe uma fotografia de Emile, assim poderei perguntar se ele foi visto.
— Tem uma foto de seu irmão? Ela não ficou na carroça?
— Jamais deixaria Emile em uma carroça. Está no bolso interno do meu
casaco.
Lucille sorriu novamente e aproximou mais os cavalos. Sussurrou alguma
coisa na orelha de Hades e soltou o arreio, levando a mão até os botões do
casaco de Nathaniel. Antes que ele pudesse reclamar pela intromissão, ela os
abriu e buscou o bolso interno, encontrando a fotografia. Estava curiosa sobre
Emile e demonstrava um desprendimento que não era saudável. Ninguém
podia sentir-se tão à vontade na presença de Nate, ele era intimidante e não
gostava que o tocassem sem autorização. Mas ela ignorava aqueles alertas ou
sentia que podia fazer qualquer coisa que outras pessoas não pudessem.
— Ele é tão jovem!
— Fez vinte e seis anos. É o McFadden mais jovem, se contarmos apenas
os irmãos. Eu acredito que ele esteja vivo porque Emile é um sobrevivente.
Nasceu prematuro e o médico o entregou para mamãe segurar dizendo que
ele não passaria daquela noite. Ela nunca acreditou nisso, já havia parido três
filhos e sabia como cuidar de outro bebê. Apesar de ter desafiado os médicos,
Emile sempre foi frágil. Tinha pulmões ruins, nunca brincava conosco e
tomava muitos tônicos. E, um dia, pouco depois do acidente de Isaac, ele
decidiu que precisava se curar. Não sei o que fez Emile mudar, mas ele
passou um ano na faculdade, formou-se e voltou para casa outro homem,
forte como um touro.
Ele também não sabia o que o fizera abrir seu coração daquela forma.
Não, Nathaniel não abria nada, menos ainda o coração que era duro como
pedra. Estava contando uma história para distrair Lucille porque ela gostava
de ouvi-lo e estava curiosa. Ainda com um sorriso, ela colocou novamente a
foto no bolso do casaco e deslizou a mão pelo braço dele, até segurar seus
dedos e os levar até a boca. Em um ato bastante espontâneo – e indecoroso,
ela beijou os nós de seus dedos com lábios quentes e macios, para então
retornar a segurar as rédeas do seu cavalo.
Era um gesto gentil e Nate detestava gentilezas. Desde que chegara em
Nova Iorque, toda gentileza direcionada a si era interessada – sempre queriam
mais dele, ou havia coisas que deveria fazer para merecer que fossem
educados consigo. Tudo se resumia em uma troca, em o que alguém poderia
fazer para receber algo. Não havia atos abnegados, o discurso altruísta era
uma grande bobagem.
A conversa os distraiu o suficiente para não perceberem o tempo passar.
Depois de mais algumas milhas percorridas, a cidade de Norwalk despontou
à frente. Era cedo o suficiente para que fossem diretamente procurar
informações sobre Emile, o que levou Nathaniel a emparelhar o cavalo com o
baio alugado de Leonard para traçar estratégias.
— Vamos nos separar para cobrir uma área maior. Temos alguns pontos
de interesse para perguntar sobre meu irmão.
— Estação de trem, agência postal, hospital, parque público. Há um
parque público em Norwalk?
— Sim, e tenho tudo mapeado.
Nate tirou do bolso, o mesmo onde estava a foto, um papel com as
localizações dos pontos principais onde poderiam interrogar pessoas sobre
Emile. A maioria ficava em zona de encosta.
— Sua organização continua impecável, apesar da enorme distração que
arrumou para si. — Leonard olhou para trás. — Deixe-me andar com ela um
pouco, você precisa de foco, meu amigo.
— O que o faz pensar que não estou focado?
— O fato de ter dormido com ela essa noite?
Maldição, era óbvio que Leo descobriria – não que ele estivesse fazendo
questão de esconder seu envolvimento com Lucille.
— Não dormimos juntos.
— Só havia uma cama desarrumada quando cheguei.
— Isso nunca me atrapalhou a fazer meu trabalho, Leo.
— Prometo cuidar dela. Vamos ao hospital, sabe que mulheres são muito
mais sensíveis para essas tarefas.
Nathaniel respirou fundo. Aquele diálogo era absurdo. Lucille não era
dele para que tomasse decisões a seu respeito nem para que se importasse
com sua segurança. Bem, ele se importava, mas confiava em Leo. E sim, ela
certamente era bem mais sensível do que os dois juntos.
— Mas ela não é uma mulher, é um homem, para todos os fins. Converse
com ela, não é minha essa decisão.
Leonard assentiu e os cavalos prosseguiram até a entrada da cidade. A
facilidade de viajar por estradas secundárias era, além da privacidade e do
silêncio, a possibilidade de chegar sem ser notado – isso permitiu que se
aproximassem sorrateiramente de uma pensão para viajantes. Nathaniel
entrou para registrar quartos a fim de permitir que passassem a noite e deixou
que os outros dois conversassem sobre o desenrolar do restante do dia.
Capítulo décimo segundo

E LA SUSPEITAVA QUE L EONARD E CKLEY NÃO GOSTAVA DELA , MESMO QUE ELES
sequer se conhecessem. Era a forma como ele a olhava, ou porque
conversava com Nathaniel sempre na intenção de separá-los de alguma
maneira. Quando ele se aproximou de Lucille, depois que os cavalos foram
entregues a um cavalariço, foi para questionar suas intenções.
— Srta. Smith, creio que precisarei de sua ajuda hoje. Importaria de me
acompanhar até o hospital e à agência postal?
O sorriso do Sr. Eckley era bem mais aberto e talvez mais encantador que
o de Nathaniel. Era como se ele não usasse máscaras nem subterfúgios e não
se escondesse atrás de nenhum papel. Mas Lucille não era tola, ela sabia que
homens não eram confiáveis e que aquele homem deveria ser menos
confiável que os outros.
— Em que poderia ajudar?
— O hospital da cidade é um lugar horrível, cheio de moribundos,
cuidado pelas freiras. A senhorita teria muito mais acesso do que eu ou Nate.
Lucille olhou para si própria e depois encarou o Sr. Eckley. Ele mantinha
o sorriso galanteador. Mesmo precisando de dois ou três minutos, ela
compreendeu o que ele queria.
— Então o senhor sugere que eu me vista de mulher, novamente?
— Sim, sugiro. Não se preocupe, senhorita, os capangas que a procuram
não irão a um hospital.
— Não tenho roupas femininas.
— Providenciaremos uma. Há lojas por aqui.
A ideia era tentadora por dois motivos. Primeiro, ela não aguentava mais
as faixas e as calças, por mais libertadoras que fossem, esquentavam o meio
de suas pernas. O motivo do calor poderia ser outro, provavelmente estaria
relacionado a um homem loiro, um par de olhos azuis e mãos provocadoras.
Mas, ainda assim, ela gostaria de usar vestidos novamente – afinal, foram
vinte e sete anos com saias e calçolas abertas, então as ceroulas a estavam
enlouquecendo. E o segundo motivo era querer ajudar Nathaniel a encontrar
seu irmão. Ele falou de Emile com tanto sentimento que a fez perceber que
era real, ele amava o irmão.
Se fosse de alguma utilidade, ela arriscaria ser reconhecida.
— Tudo bem, Sr. Eckley. Vamos.
— Perfeito. Avisarei Nathaniel que estamos indo e nos encontraremos
aqui ao final da investigação.
Lucille olhou ao redor enquanto esperava. Havia muita gente pelas ruas e
qualquer uma daquelas pessoas poderia a estar procurando, da mesma forma
que eles procuravam por Emile. Não sabia se caçadores de recompensa eram
barulhentos e anunciavam sua chegada. Era mais provável que andassem
pelas sombras e isso ampliava o risco. O Sr. Eckley retornou logo e a
conduziu para um conjunto de pequenos estabelecimentos comerciais que
ficava em outra quadra. Entraram em uma loja de roupas femininas pré-
prontas, do estilo que ela nunca usou – porque uma Smith sempre se vestia
com exclusividade.
A vendedora a conduziu para uma sala fechada e entregou diversas peças
para que experimentasse. Lucille pediu de tudo, desde roupas íntimas até
sapatos. Separou um conjunto de seda e fitas lilases e pensou se Nathaniel
gostaria deles. Depois, vestiu as meias pretas e bordadas e o imaginou
passando a mão por cima delas. Uma jovem a ajudou a fechar o espartilho e
Lucille desejou que fossem as mãos dele puxando as fitas. Depois de se
enfiar em um lindo vestido branco com corpete e mangas de renda e babado
na frente, ela ainda podia sentir como se fora Nate que a vestira. Estava
completamente fora de si e sequer sabia se era efeito do que compartilharam
na cama.
Tentando afastar as imagens tentadoras do homem que a estava
enlouquecendo, gostou do que viu no espelho. Lindos botões perolados
formavam pequenas flores bordadas pela parte superior e a gola era
delicadamente fechada no pescoço. Com um chapéu pequeno para o dia e um
ajuste nos cachos curtos, Lucille estava como uma mulher comum, porém
bem vestida.
— Agora sim, a senhorita encantará as freiras.
— Sorte a sua, Sr. Eckley, que eu costumava visitar o orfanato com
minha mãe. Conversar com freiras é quase uma especialidade minha.
Leonard Eckley ofereceu a ela o braço. Se estava vestida novamente
como uma mulher, era adequado que caminhasse pela cidade acompanhada –
e aquela companhia parecia segura o suficiente. Ele usava um traje completo
mais elegante que o de Nathaniel e tinha um porte mais altivo, como se não
carregasse o mundo sobre as costas. Pegaram um coche de aluguel até o
hospital e pediram para conversar com a diretora.
Foram recebidos em uma sala pequena. As instalações do hospital
assustaram Lucille – precárias e muito diferentes do que havia em Nova
Iorque. Talvez aquele não pudesse ser classificado como um hospital, mas
como um mero depósito de pessoas enfermas cujas doenças dificilmente
seriam curadas. Permitindo que ela falasse, Leonard Eckley entregou a foto
de Emile e manteve-se de pé, afastado.
— A senhorita está procurando este senhor? — A diretora colocou um
par de óculos pendurado na ponta do nariz — E acha que ele estaria aqui?
— Na verdade, senhora, eu não imagino onde ele poderia estar. Na última
notícia que tivemos dele, estava ferido e com risco de morte. Ele é meu primo
e minha tia está desolada.
— Entendo. Se a senhorita aguardar um minuto, levarei essa fotografia
para as salas dos enfermos e verei se ele se encontra entre eles. Também verei
se alguma enfermeira se lembra dele, mas não tenho muitas esperanças. Um
homem bonito assim seria difícil de esquecer.
Lucille sorriu e agradeceu. Ela também entendia a freira – era quase
impossível parar de pensar em Nathaniel. Se o irmão fosse parecido com ele,
também teria carisma suficiente para ser memorável. Mas havia esperança,
ele poderia estar inconsciente.
Esperaram por quase meia hora em um corredor no primeiro andar, de
onde podiam ver o pouco movimento no térreo. Quando a freira retornou, não
trouxe boas notícias.
— Infelizmente, nenhuma de nossas enfermeiras o viu. Ele também não é
um dos enfermos, nenhum dos que está aqui tem ferimentos, apenas doenças
do corpo e da alma.
— Agradeço sua atenção. — Lucille segurou as duas mãos da mulher. —
Posso deixar um telefone com a senhora? Assim, se meu primo aparecer por
aqui ou se a senhora ficar sabendo dele, poderia me contatar?
— Será um prazer ajudar.
Ela foi até Leonard Eckley e pediu que ele anotasse o telefone do
Gênesis. Não diria para a freira que era de um clube de jogos ilícitos e um
antro de prostituição, mas precisava dar a ela alguma forma de contato.
Afinal, era possível que notícias de Emile ainda chegassem aos seus ouvidos.
Depois de deixar o telefone com seu nome anotado, saiu rindo da composição
que fizera. Se era prima do desaparecido, achou por bem manter o sobrenome
dele – e se tornou Lucille McFadden.
Era cômico que usasse o sobrenome do homem pelo qual estava
ligeiramente encantada. Aquilo a fez rir de nervoso, deixando o Eckley
ligeiramente confuso. Depois de saírem do hospital, foram à agência postal,
onde havia um grande tráfego de pessoas. Lucille ficou nervosa ao chegar,
temendo que ali houvesse algum homem à sua procura. Manteve o chapéu de
lado e o rosto virado na direção do Sr. Eckley, evitando que a olhassem
diretamente.
— Não precisa preocupar-se. — Ele sussurrou próximo a ela. — Se tiver
algum caçador de recompensas por aqui, saberei.
Lucille não duvidou, aqueles homens pareciam ter um senso aguçado de
preservação que os permitia perceber tudo ao redor. Sentindo-se ainda
insegura, ela tentou se portar como era esperado de uma mulher – servindo de
decoração. Leonard Eckey circulou pelo lugar mostrando a foto de Emile a
diversas pessoas, fazendo perguntas, enquanto ela segurava na dobra de seu
cotovelo e mantinha a expressão amável. A agência postal era pequena,
portanto, passaram a circular pelas ruas, onde havia um pequeno comércio.
Viraram algumas esquinas, perguntaram a lojistas, até que pararam
subitamente.
— Há um burburinho estranho por aqui. Não somos apenas nós que
estamos procurando alguém.
— Como sabe?
O Sr. Eckley olhou para o lado e indicou, com um movimento de seu
maxilar quadrado, algumas pessoas que conversavam alguns metros distante.
Eram homens que mostravam um papel para algumas mulheres,
possivelmente uma fotografia. Lucille sentiu seu coração disparar, dominada
pelo medo.
— Mantenha a calma. Vamos sair daqui e voltar para a pensão.
Ela o seguiu, tentando não demonstrar seu nervosismo. Suas mãos
suavam dentro das luvas, que ela não usava há dias, e seus pés deslizavam
dentro dos sapatos. Esperava que o estado de sua alma não estivesse visível
para ninguém, pois ela estava bastante confusa. Tão logo saíram da frente dos
supostos caçadores de recompensa, entraram em um carro de aluguel e
rumaram para seu destino. A busca por Emile fora interrompida, mas Lucille
estava começando a suspeitar que o irmão de Nathaniel não estava por perto
para ser encontrado.

Em quatro horas, Nathaniel percorreu praticamente toda Norwalk em busca


de Emile. Estava a cavalo, fora a todos os pontos em que seu irmão poderia
ter sido visto, inclusive nas encostas e lugares de baixíssima classe. Os
Estados Unidos não eram diferentes do Reino Unido – o elevado
desenvolvimento econômico que o país estava experimentando produzia os
mesmos problemas de seu país natal, todos em torno da pobreza. Nada que
afastasse Nate de sua busca, pois lidar com bandidos e prostitutas não era
nenhuma adversidade.
Mas o irmão não estava em lugar algum, nem fora visto por ninguém.
Mais da metade da cidade coberta e não se sabia de um jovem loiro, ferido,
que viera trazido pelo oceano. Não reconheciam a foto, não lembravam de
um caso parecido, nada que o fizesse acreditar que Emile estivesse por ali. O
dia estava findando e ele sentia fome, já que apenas comera seu desjejum.
Também queria saber se Leo e Lucille tiveram mais sorte do que ele,
cobrindo a outra metade da cidade, então voltaria para a pensão.
Em verdade, ele queria ver Lucille. Não pensara nela durante todo o
tempo em que esteve entrevistando estranhos para saber se a pista que lhe
ofereceram era verdadeira. Concentrava-se em Emile e no que precisava fazer
para o encontrar. Mas, depois de exausto e frustrado por retornar de mãos
vazias, seus pensamentos começaram a trai-lo. Não queria, não devia pensar
em Lucille. Assim que se determinasse se Emile estaria ou não pelos
arredores, ele se despediria dela. Nunca se apegara a uma mulher antes, por
que escolhera se importar justo com uma bastante complicada?
As dificuldades se intensificaram quando chegou à pensão e os viu.
Sentados em uma mesa, no pequeno restaurante que ficava à esquerda da
recepção, bebendo vinho e comendo algo que parecia o jantar. Retirou o
relógio do bolso, ainda eram cinco da tarde – eles deveriam tomar chá, não
vinho. Estavam rindo de qualquer coisa que Leo tenha falado, pois ele
adorava ser o engraçado do grupo de amigos. Mas o que fez com que
Nathaniel paralisasse no lugar foi ver Lucille usando um vestido.
Vestido. Renda, babado, fitas, laços, pérolas e saias. Os cabelos dela
estavam arrumados, presos por grampos também perolados, e sobre seu colo
estava um chapéu. Era provável que, em um dia comum, Nathaniel nunca a
notasse. Não, ele a notaria, mas não a convidaria para uma valsa ou um
passeio, não se interessaria por ela em um evento e definitivamente não a
cortejaria. Lucille Smith talvez fosse uma mulher comum, e ele era arrogante
demais para se interessar por elas.
Ele era, pois, naquele momento, pegou-se fascinado. E irritado,
suficientemente irritado porque ela vestira aquela roupa para Leonard, estava
bebendo vinho com Leonard e rindo para Leonard como se eles fossem
amigos. Ao vê-lo, as bochechas dela coraram e ela se escondeu atrás da taça
de vinho.
— Teve sorte, Nate?
Demorou alguns minutos para responder Leo, o olhar vagando dele para
Lucille e de Lucille para ele. O que diabos estava acontecendo?
— Não. Ninguém viu uma pessoa como Emile por esses dias, nem em dia
nenhum. Ou toda Norwalk está mentindo em uma conspiração para esconder
meu irmão ou ele não esteve em nenhum dos lugares onde o procurei. Pelo
visto, vocês também não o encontraram.
— Tivemos um imprevisto. — Lucille recuperou a voz. — Homens
enviados por meu pai nos obrigaram a fugir.
Nathaniel puxou uma cadeira e se sentou. Imediatamente, uma atendente
com roupas indecentes demais para ser chamada de garçonete trouxe uma
taça e um prato de sopa.
— Então amanhã precisaremos de outra estratégia. Vestir-se com essas
roupas foi uma péssima ideia.
— Parecia adequado para irmos ao hospital. Uma mulher poderia
conseguir melhores informações de outras mulheres, não acha?
Ela tinha razão, o plano era razoável, mas ele não pretendia o aceitar. Não
fora elaborado por si, colocara Lucille em risco e não teve nenhum resultado
prático. Concordou com a cabeça para não parecer mal-humorado demais, o
que despertaria desconfiança em Leonard. Bebeu um gole de vinho, tomou
algumas colheradas da sopa e mastigou um pãozinho enquanto seus
companheiros de mesa se silenciaram.
— Não precisam parar de conversar porque cheguei. Vocês pareciam
estar se divertindo.
— O Sr. Eckley estava me contando sobre o clube Gênesis.
— Interessada no antro de perdição e pecados? — Ele a fitou e ela
enrubesceu novamente. Pelo menos ainda mantinha parte da vergonha.
— Não tenho interesse nem em perdição nem em pecados, mas o Sr.
Eckley me contava histórias engraçadas.
— Nada engraçado acontece no Gênesis.
— Muita coisa engraçada acontece, Nate. — Leonard bebeu um gole de
seu vinho. — É que você nunca está prestando atenção.
— Talvez porque alguém precise fazer o trabalho sujo enquanto você se
diverte, Leonard. — Nathaniel bufou. Tomou mais um pouco da sopa, virou
um gole de vinho e pegou um pãozinho. — Se me dão licença, estou exausto
e preciso de um banho.
Levantando-se, saiu da mesa e subiu as escadas, indo para o quarto que
reservara para si. Daquela vez, tomou o cuidado de alugar quartos separados
para evitar conflitos e escapadas para a cama alheia. Trancou-se, arrancou a
roupa sem muita sutileza, deixando as peças espalhadas pelo chão, e entrou
no cubículo que era chamado de chuveiro. A água não estava quente o
suficiente, o espaço era apertado e a ducha, fraca – o que apenas amplificou
seu mau humor.
O problema era a falta de notícias de Emile. Por esse motivo estava mais
irritável do que usualmente, mais volátil. Aquela jornada resumia-se em
procurar pelo irmão e tudo saiu do planejado desde o início, deixando-o
frustrado e decepcionado. Fechou o chuveiro e estava prestes a retornar para
o quarto quando ouviu batidas na porta.
— Amanhã conversamos, Leo.
Nate gritou, desejando que o amigo fosse embora. Geralmente, ele
sentaria e beberia um ou dois uísques com Leo, conversaria sobre o dia,
planejaria outra investida para descobrir pistas sobre Emile. Naquele
momento, precisava ficar sozinho.
— Sou eu, Lucille.
— Tanto faz, apenas não desejo companhia essa noite.
— Certo, mas eu não sairei dessa porta até que me atenda. Então,
dormirei aqui no corredor e estarei com muita dor nas costas, amanhã.
Ela provavelmente estaria blefando, mas Nathaniel se recordou que ela
não sabia fazer aquilo. Provavelmente passaria a noite batucando no chão e
fazendo com que ele não dormisse, pensando nela ali. Precisava acrescentar
teimosa à lista de características surpreendentes de Lucille Smith. Sem muita
paciência e pretendendo livrar-se rapidamente da visitante indesejada, abriu a
porta para ser escrutinado por seus olhos arregalados.
— Eu o esperaria vestir-se, não precisava abrir a porta...
— Estou de roupão, Lucy. Ele certamente cobre mais do que minhas
ceroulas, e você já viu tudo que há aqui de baixo. Não precisa bancar a tímida
comigo.
— Não estou bancando a tímida. — Ela estava irritada e entrou no quarto
pisando com um pouco de força demais no assoalho de madeira. — Relevarei
sua atitude porque sei que está sofrendo, então...
— Sofrendo? — Ele deu uma risada e olhou ao redor, desejando um
uísque. Maldita pensão de segunda categoria, que não tinha bebida no quarto.
— Srta. Smith, eu não sofro por absolutamente nada. Estou irritado por me
sentir enganado por quem me deu uma pista fria.
— Tratar-me com formalidades não me afastará, Nate. — Lucille se
aproximou e colocou a mão no braço dele. Foi um toque gentil, decoroso,
possível entre um homem e uma mulher que se tornaram amigos. Havia um
porém, eles não eram amigos. O desejo que ele sentia por ela confirmava
isso. — Pode convencer as pessoas de que é um desalmado cruel, e talvez
você seja bem cruel, mesmo. Eu o vi esfaquear um homem e quebrar o nariz
de outro, mas, no primeiro, você estava me defendendo. No segundo, estava
se defendendo. — Ela levou a mão até sua face, contornou a marca em seu
nariz e passou o polegar por suas pálpebras, que estavam ainda arroxeadas.
— Eu vejo um homem com questões a resolver, mas não vejo um homem
ruim.
— Mas você deveria. — Nathaniel segurou a mão dela e a afastou. — Eu
sou perigoso, Lucy, e ainda mais para você.
— Você não me fará mal, eu me sinto segura ao seu lado.
— Assim como se sentiria com qualquer homem.
— Definitivamente, não. — Ela puxou a mão e se soltou. — Nate, o dia
não foi como esperava, eu entendo. Não tivemos sucesso em descobrir nada
sobre seu irmão e sei que está amargurado por isso. Estamos apenas nós dois
agora, não precisa fingir que é um homem forte e inabalável. É aceitável que
sofra por perder seu irmão.
Nathaniel a encarou com os lábios apertados em uma linha fina. Abriu a
boca para dizer algo, mas desistiu em seguida. Ela era a mulher mais abusada
que ele já conhecera – ninguém, absolutamente ninguém falava com ele
daquela forma. Não diziam que ele podia parar de fingir, porque todos
sabiam que ele não fingia – ele era inabalável. Também não ousavam lhe dar
comandos, ou dizer o que ele deveria fazer. Mas Lucille, ela não parecia se
afetar pelo poder dele. Era como se fosse imune às barreiras que ele erguera
com tanto cuidado e simplesmente arrancasse as máscaras que ele usava,
expondo sua alma nua.
Ele não gostava daquela nudez. Todos podiam ver o seu corpo, não a sua
alma ou seu coração. Mas ela o desarmava, reduzia suas defesas a pó. Nate
virou de costas e suspirou.
— Recuso-me a aceitar que Emile se foi. Eu ainda o encontrarei, vivo.
— Já se passaram muitos dias, Nate. Se ele não emergiu e foi encontrado
e tratado por alguém, não há mais chances de...
— Você não sabe o que está falando! — As mãos dele fecharam em
punhos e ele quis bater em algo – ou alguém. Mesmo que ela estivesse certa,
que Lucille estivesse completamente certa, ele não estava pronto para desistir.
— Há coisas que fogem de nosso controle, como pode ter certeza?
— Eu não tenho certeza. Apenas gostaria que você....
Lucille interrompeu sua fala e colocou uma das mãos no ombro dele, que
fechou os olhos. Nathaniel não queria que ela fosse sensível nem se
compadecesse dele. Não queria que ninguém sentisse pena ou fosse solidário
ao seu sofrimento, porque ele não sofria, não sentia dor, não sentia nada.
No fundo, ele sentia. Virou-se para ela e a segurou nos braços, um tanto
atarantado, nervoso até. Abraçou-a como se aquilo pudesse apagar o dia
horrível sem despertar nele o desejo intenso de seu corpo por ela. Lucille
passou os braços ao redor dele e recostou a cabeça em seu peito, fazendo com
que ele compreendesse o quanto aquele impulso poderia ter consequências
desastrosas. Com os dedos dobrados, acariciou-a no queixo e ergueu a cabeça
dela até que os olhares se encontrassem – e ele pudesse levar sua boca à dela.
Capítulo décimo terceiro

S UA INTENÇÃO DE IR AO QUARTO DE N ATHANIEL NÃO ERA SER BEIJADA POR


ele, mas Lucille não podia negar que adorava o sabor daquela boca masculina
na sua. Céus, aquilo era totalmente inadequado, ela simplesmente precisava
parar. Precisava colocar as duas mãos no peito dele e se afastar, voltar para
seu quarto e trancar a porta, mas não conseguiu fazer nada daquilo. Ao
contrário, suas mãos acabaram deslizando para cima, os braços envolvendo o
pescoço dele e o puxando para mais perto. Se não era loucura, ela perdera
totalmente o rumo de sua vida.
Nathaniel a beijava lentamente, como fora da primeira vez. Lábios macios
que envolviam os dela com suavidade, molhados, com gosto de vinho tinto e
uma língua morna que tinha a textura do veludo e explorava sua boca com a
calma de quem tinha todo o tempo do mundo para fazê-lo. Talvez ela
estivesse correta e ele sofria, por isso fora tão mal-humorado antes e o
sofrimento estava sendo descarregado naquele beijo. As duas mãos dele,
espalmadas em suas costas, estavam trêmulas.
— Você não pode andar por aí vestida assim. — Disse, murmurando no
ouvido dela, depois de trilhar seu pescoço com a língua. — Eu vou matar
Leonard por te colocar em risco.
— Não estive em risco nenhum minuto ao lado dele.
Lucille sentia os joelhos moles enquanto Nathaniel a beijava no pescoço,
no maxilar, prendia o lóbulo da orelha entre os dentes.
— Ouso duvidar. Amanhã você vem comigo.
— Toma decisões por mim agora, Sr. McFadden?
Ele riu. Ela pode sentir a boca dele esticar em contato com sua pele e, em
instantes, estava sobre a dela novamente para outro beijo. Aquele foi sôfrego
e sensual. O tipo de beijo que a conduziria a outro estágio de contato físico –
um para o qual ela ainda não estava preparada.
E pode ter sido apenas sorte que tenham batido à porta naquele momento,
pois Lucille provavelmente não conseguiria dizer não.
— Nate?
Era a voz de Leonard Eckley. Nathaniel interrompeu o beijo e praguejou
em baixa voz, apoiando a testa na dela. Afastando-se, olhou-a como que para
confirmar se todas as peças de roupa estavam no lugar e suspirou,
caminhando até a porta.
— Seja lá o que for, não me interessa saber.
O Sr. Eckley entrou e examinou cuidadosamente o que via. Não havia
nada para alarmá-lo, Lucille tinha o vestido impecável, os cabelos arrumados
e o corpete no lugar. Mas, se ele fosse observador como Nathaniel, perceberia
sua boca vermelha e inchada, seu coração martelando as costelas, suas mãos
tremendo e suando.
— Há um prêmio pela Srta. Smith. — Ele ignorou o que disse Nathaniel.
— Parece-me que seu pai decidiu aumentar o interesse por sua busca e está
oferecendo cinco mil dólares para quem a devolver para casa ou oferecer uma
pista que leve ao seu resgate.
Lucille arregalou os olhos, assombrada.
— É um valor ridiculamente alto. — A voz dela saiu estridente demais.
— Pensei que meu pai queria evitar publicidade.
— O suficiente para tornar a sua fuga muito difícil, senhorita. E seu pai
está evitando publicidade, eu só sei essa informação porque meus contatos
entre os caçadores de recompensa ainda são muito úteis. A sociedade, aquela
para quem sua honra importa, não faz ideia do que está acontecendo.
— Amanhã vamos partir. — Nate, que ouvia com atenção, decidiu. —
Vamos subir para o norte, andando pelo litoral, até Boston. De lá, Lucille
conseguirá embarcar para a Grã-Bretanha.
— Vamos? — O Sr. Eckley pareceu confuso pela decisão do amigo. —
Desistiu de procurar por Emile?
— Claro que não, por que acha que vamos pelo litoral? Lucy tem razão, a
possibilidade de ele ainda não ter sido encontrado é mínima. Talvez em outra
cidade. Você retornará para Nova Iorque, Leo. Precisamos que continue
gerindo o Gênesis e que cuide de tudo por lá.
— Nate, você está obcecado. — Leonard Eckley colocou as duas mãos
nos ombros do amigo, ignorando a presença de Lucille. — Tanto pela busca
ao seu irmão quanto pela fuga dela. Veja bem, você a chama por um apelido!
Nunca o vi assim, tão desorientado. Volte comigo para Nova Iorque, ela não
é responsabilidade nossa. Não temos que...
Nathaniel se afastou, livrando-se das mãos do amigo. Seus olhos vagaram
até Lucille, que baixara a cabeça constrangida com a situação. Ela nunca se
sentira muito bem-vinda nos lugares, mas com ele era diferente. Nathaniel a
acolhia como nunca ninguém fizera antes. Talvez fosse por isso que ela o
achava tão fascinante. Além de suas próprias qualidades, ele a enxergava
além.
— Posso estar obcecado, mas permaneço racional. Ainda não encerrarei
minhas buscas – eu esperava passar dez dias em viagem e persistirei no
plano. Quanto a Lucille, ela pode não ser minha responsabilidade, mas não
posso simplesmente a abandonar. Amanhã nos separamos, Leo, é a coisa
certa a se fazer. Cuide das coisas em Nova Iorque.
O sorriso do Sr. Eckley indicava que ele acatava, mas não concordava
com a decisão. Não cabia a ele, porém, ainda assim, Lucille teve a impressão
de que nenhum dos dois homens tinha o menor interesse em renunciar ao
controle. De qualquer forma, ela se sentiu bem ao saber que Nathaniel a
escolhera – que, de alguma forma, ele decidira a escoltar em sua fuga
completamente caótica.
Despediram-se e Lucille foi para o quarto reservado para si. Fechou a
porta com a chave e arrastou uma cadeira para escorar a maçaneta. Ainda
assim, não se sentia protegida o suficiente. Estavam atrás de si, havia um
preço por sua cabeça e muita gente certamente seria capaz de vender a alma
para devolvê-la para casa. Arrancou o vestido, toda a roupa feminina que a
fizera sentir-se bem durante o dia e colocou debaixo da cama, desejando não
a ver nunca mais. Tomou um banho quente e enfiou-se debaixo das cobertas,
suspeitando que não conseguiria fechar os olhos naquela noite.
Assim que o sol nasceu, batidas à porta a fizeram sobressaltar.
— Espero você na recepção. Vista-se.
A voz de Nathaniel a fez sentir alívio. Ele decidira sair cedo,
provavelmente para despistar os possíveis perseguidores. Como não dormira
praticamente nada, Lucille tinha uma aparência horrível. Ajeitou os cabelos
debaixo da boina, manteve todos os botões da camisa fechados, o colete bem
ajustado e, parecendo um homem que passara a noite bebendo e jogando,
desceu as escadas, levando nada além de seu corpo cansado.
Nathaniel estava exuberante. A cada dia que ela o via, ele parecia melhor.
Mais forte, mais masculino, mas poderoso. Ele tinha a expressão séria
enquanto pagava a conta ao recepcionista. O Sr. Eckley não estava em
nenhum lugar que pudesse ser visto. Ao vê-la, Nate exibiu um sorriso curto e
entregou um pequeno embrulho de papel, contendo um sanduíche. Aquilo
indicava que eles não comeriam, que a fartura se encerrara e eles retornariam
à errância.
Foi incômodo não ser recebida com um bom dia, ou com uma expressão
calorosa. Ele estava seco, duro e inexpressivo como quando o conhecera, no
início da viagem e Lucille não sabia o que aquilo significava. Seguiu-o até os
estábulos para perceber que ele também providenciara uma nova carroça, o
que permitiria que viajassem com provisões novamente. Ao menos não
passariam fome e ficariam sem abrigo durante o trajeto – e deu a ela a
oportunidade de empacotar as roupas novas e algumas bobagens que
adquirira naquela fuga.
Sentada ao lado dele, enquanto a carroça ganhava a estrada na direção do
litoral, Lucille viu um mapa na mão de Nathaniel. Várias cidades estavam
marcadas, todas costeiras. Eles iriam até New Haven, depois New London,
Newport, New Bedford, Wareham, Plymouth e, por fim, Boston. A viagem
parecia ter dobrado de tamanho e eles levariam muito tempo para chegar ao
destino que a interessava, onde ela poderia, em desespero, pegar um navio
para reiniciar sua vida. Quase não tinha mais dinheiro, não haveria mais nada
até Boston.
— Talvez eu deva pegar um trem. Chegarei em Boston antes que possam
saber, então...
— Se eu a estivesse perseguindo, já a teria capturado. — Nate disse,
olhando diretamente para frente. — E só não o fizeram ainda porque você
estava comigo. Esses homens são profissionais. No instante em que pisar em
um trem, eles a encontrarão. Mas a decisão é sua, se quiser posso te deixar na
estação ferroviária.
Ele parecia bastante seguro do que dizia, apesar da expressão séria. Como
ela não disse que sim, que desejava ser conduzida à estação, a carroça
continuou seguindo. Foram muitos minutos, tempo demais sem uma palavra
trocada, sem conversa. Por algum motivo, ela suspeitou que superaram
aquele silêncio desconfortável e se tornaram próximos. Mas Lucille estava
sendo ingênua. Nathaniel McFadden não se aproximaria dela, não criaria
nenhum tipo de laço com uma mulher cuja presença servia apenas para
atrasá-lo.
Passou-se uma hora até que a exaustão a fez acomodar-se no fundo da
carroça e cochilar. Lucille esperava que, depois que tudo aquilo acabasse, ela
conseguisse dormir novamente longe daquele homem – pois parecia que
apenas na presença dela seu corpo se permitia descansar.

A viagem para Nova Iorque seria melancólica, Isaac tinha certeza. Partira no
dia seguinte ao recebimento do telegrama que informava o falecimento de seu
irmão e mal tivera a oportunidade de despedir-se adequadamente de sua
esposa e filhos. Assim que entrou na embarcação sucumbiu à realização de
que perdera Emile e que estava na iminência de perder Nathaniel, também.
Não podia aceitar aquilo, não podia permitir que as Américas lhe levassem
dois irmãos. Acabou permanecendo trancado em sua cabine por dois dias,
saindo apenas no terceiro.
Por sorte, a riqueza de seu irmão podia financiar uma longa viagem na
primeira classe em um navio moderno. Todas as facilidades estavam à sua
disposição, inclusive uma área para cavalheiros, com mesas de jogos e bar.
Sentou-se em uma mesa e observou o ir e vir de homens que não conhecia. A
maior parte dos viajantes era composta por burgueses que tinham negócios
frequentes nos Estados Unidos e americanos retornando para casa. Pediu um
conhaque a um garçom bem-vestido e continuou observando até ver uma face
conhecida. Lorde Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Isaac ergueu o copo em cumprimento ao colega. Thaddeus estudara com
ele na faculdade e se formara com honras. Era um homem extremamente
inteligente e responsável, mas quase não frequentava Londres – preferia
viajar e conhecer o mundo.
— Oras, se não é meu maior adversário de xadrez. — O marquês se
sentou na cadeira vazia à frente de Isaac.
— É um prazer revê-lo, Thad. Não tive como expressar pessoalmente
minhas condolências pelo súbito falecimento de seu pai.
— Foi tudo muito rápido. — Thaddeus pediu um conhaque para si. —
Papai era um homem forte, apesar da idade. Não esperávamos que ele fosse
nos deixar por agora. Ao menos teve uma vida regada dos maiores prazeres
que um homem pode desejar.
Isaac ergueu o copo novamente, daquela vez propondo um brinde
póstumo.
— Que ele descanse em paz. O que o leva aos Estados Unidos?
— A salvação do marquesado. Meu pai não nos deixou em boas
condições financeiras, estimo que estejamos falidos.
— Lamento ouvir isso. Está com negócios em Nova Iorque, então?
— Meu pai tinha um negócio fechado que eu precisarei assumir. Se o
fizer, receberei dinheiro o suficiente para saldar as dívidas e permitir que o
marquesado prospere, além de resolver o problema que gira em torno da
necessidade de produzir um herdeiro.
— Não creio que tenha compreendido.
Thaddeus riu, bebendo seu conhaque em um gole só.
— Meu pai estava noivo. Iria casar-se com uma jovem americana, filha
de um industriário riquíssimo, com um dote obsceno.
A informação não chocou Isaac. Aquela ainda era uma das práticas mais
comuns, por mais que ele a condenasse. Nobres falidos, com títulos
importantes, casando-se com americanas, ou casando suas filhas com
americanos sedentos por fazer parte da nobreza.
— E você pretende assumir o lugar de seu pai nesse casamento?
— Não parece muito difícil, afinal o pai dela só tem interesse no título.
Não importa se o marquês tem sessenta ou trinta anos, não é mesmo?
— Creio que a jovem gostará mais de desposá-lo, milorde. A não ser que
ela estivesse apaixonada por seu pai.
A risada sonora de Thaddeus ecoou pelo bar. Claro que ela não estava. O
velho marquês, que Deus o tivesse, era um homem desagradável, rude e que
costumava cuspir ao falar. Dificilmente uma jovem se casaria com ele por
amor, mulheres não gostavam de ser maltratadas.
— Você tem sorte de ser o segundo filho, Isaac. — A voz do novo
marquês estava, então, cheia de ressentimento e mágoa. — Por mim, passaria
o título e seus encargos para meu irmão, ele é mais preparado para assumir o
marquesado do que eu. As obrigações que precisamos assumir para cumprir
nossos deveres são, às vezes, muito custosas.
— Não fique assim, meu caro. — Isaac colocou a mão no ombro de
Hertford. — A jovem pode ser uma boa moça, você pode acabar sendo muito
feliz.
Mesmo sem saber se era possível encontrar felicidade no casamento sem
amor, o desejo era sincero. Isaac se casou com a mulher que amava, mas seu
irmão conde também o fez. Mesmo que o casamento de Edward, no início,
parecesse um arranjo conveniente, já que ele arruinara a irmã de seu melhor
amigo em um jardim, Isaac sabia que ele sempre nutriu sentimentos por
Agatha. E eles, mesmo depois de seis anos, eram o exemplo de um casal
feliz.
Os dois colegas continuaram bebendo e contando suas histórias. Isaac
achou melhor evitar o assunto referente aos seus irmãos, já que nem ele
mesmo sabia o que acontecera. A viagem ainda duraria alguns dias e talvez a
presença de Thaddeus o ajudasse a passar o tempo fora de sua cabine.

New Haven era uma cidade maior do que Norwalk. Sua área costeira
impressionava e, naquela época do ano, as pessoas também ocupavam as
praias locais. Não eram prazeres aos quais Nathaniel poderia se render, então
ele ignoraria a compulsão que o litoral sempre lhe causava. Nascido em
Thanet, as praias sempre o atraíram sobremaneira. Mas havia uma missão a
cumprir, ele precisava focar nela como não fizera nos dias anteriores.
Leonard estava certo, Lucille o distraia. Não era culpa dela, nada que a
mulher fizesse ou deixasse de fazer o ajudaria a recuperar a sanidade. Se ela
se entregasse a ele totalmente, ele iria passar o tempo desejando mais. Se ela
desaparecesse de sua vida, o que aconteceria em breve, ele permaneceria com
sua memória assombrando-o. Saberia lidar com isso, mas não podia negar
que lhe causava uma dispersão inconveniente dos pensamentos.
Ao invés de irem a um hotel, daquela vez ele partiria para a busca direta
de Emile. Guiou a carroça pela cidade, indo até uma área comercial próxima
à costa. O cheiro de maresia quase o deixou embriagado.
— Vamos comer e investigar. — Ele decidiu, depois de estacionar a
carroça em um pátio destinado a esse fim. — Pretendo deixar a cidade ainda
hoje.
— Nada mais de hotéis, restaurantes e jogatinas, então? — Ela fez uma
piada. Lucille sorria sutilmente e não demonstrava irritação com ele, mesmo
depois de a ter ignorado durante toda a viagem.
— Se não quisermos ser capturados, teremos que mudar de estratégia.
Essa é uma fuga, Lucy, não um passeio de férias.
Ela concordou e pulou da carroça, já demonstrando habilidade em agir
como um homem. Vestida daquela forma e com atitudes mais masculinas, ela
enganaria olhos menos desavisados e não seria reconhecida por qualquer um.
A segurança do disfarce parecia mantê-la mais tranquila. Nathaniel
certamente estava, ele não imaginava como Leo fora tão imprudente no dia
anterior.
Comeram e interrogaram pessoas, caminhando lado a lado por várias
ruas. Perguntaram sobre Emile, sobre um homem ferido vindo pelo mar,
sobre homens com ferimentos de bala. Havia um hospital beneficente como
em Norwalk, simples e precário, que não recebia um baleado há meses.
Aquele tipo de ferida atraía o corpo policial porque precisava ser reportado às
autoridades. Homens baleados dificilmente procuravam tratamento em
hospitais públicos, mesmo que fossem pobres e não pudessem pagar por
médicos de qualidade.
A frustração fez com que Nathaniel se irritasse. Se estivesse em Nova
Iorque, iria a um ringue socar alguns narizes ou arrumaria novos devedores
para torturar. Sua dor passava com a dor alheia. Quando ele fazia alguém
sangrar por suas mãos sentia um sofrimento menor. Era como se, ao
despedaçar outras pessoas, ele os colocasse em posição de igualdade.
Pararam para dormir na beira da estrada, um pouco mais distante do curso
de água, daquela vez. Não haveria banho ou refeição quente naquela noite,
nem camas macias ou uma boa dose de uísque para o acalmar. Ao menos fora
cuidadoso de adquirir uma barraca grande o suficiente para que não
precisasse dormir por cima de Lucille – ou ele não dormiria.
Naquele dia ela pareceu disposta a lhe conceder paz. Não insistiu em uma
conversa amigável, nem fez perguntas que Nathaniel não desejaria responder.
Manteve-se distante. Observando-o, mas distante, respeitando seu espaço
individual. Todo aquele comedimento não parecia condizente com o espírito
dela, então o fazia apenas por ele. Para preservá-lo, reconhecendo sua
decepção, o desgosto de não obter êxito em sua busca.
Por isso, Nate montou a barraca sozinho, sem pedir a ajuda dela, sem
solicitar uma proximidade com a qual não saberia lidar. Só não conseguiu
parar de olhar para ela. Enquanto cavava, enfiava estacas ou estendia a lona,
observava-a conversar com Hades. O cavalo, que não gostava de ninguém,
gostava dela. Inclinava a cabeça para frente e apoiava a fronte no peito de
Lucille, mesmo que ela fosse bem menor em estatura. Agitava as patas
quando ela falava algo, relinchava. Zeus disputava atenção com o irmão
equino, mas isso não surpreendia Nathaniel. Sua fascinação se dava por ela
ter tanta habilidade em conquistar o puro-sangue mais arredio que ele
conhecera.
Era aquilo que ela estava fazendo com ele. Não, não podia ser. Ele não se
abria para ninguém, não importava quem fosse. Ele não deixava ninguém
entrar, as portas de sua alma eram trancadas e Nathaniel não fazia ideia de
onde estavam as chaves. Os cacos de seu coração ficavam guardados e
ninguém tinha o direito de sequer pensar em os remendar. Lucille Smith era
uma distração temporária e ele não podia, de jeito algum, encantar-se por ela.

Ele precisava de um tempo, ela se manteria afastada. Fisicamente presente,


pois não tinha para onde ir, mas espiritualmente distante. Durante o dia,
Lucille deixou que Nathaniel se fechasse em seu silêncio e se distraiu
imaginando uma nova vida, bem longe de tudo que conhecia. Seria feliz
afastada de casa, seria feliz distante do pai violento e da mãe indolente, que
não fazia nada para encerrar o ciclo de abuso em sua família. Viveria feliz,
mesmo que solteira até seus últimos dias, mesmo que não encontrasse paixão
e amor em sua próxima jornada.
Amor ela encontraria, sabia disso. O amor de um homem, tinha dúvidas.
Nem sabia se era capaz de apaixonar-se por um, quanto mais amar. Mas,
olhando para o perfil cansado de Nathaniel, naquele segundo dia depois da
partida de New Haven, ela suspeitava que já estivesse apaixonada.
Céus, como era tola. De todas as piores escolhas masculinas pelas quais
poderia se apaixonar, aquele homem estava no topo de qualquer lista. O mais
canalha, o mais libertino, o mais devasso, o mais cruel. E, ainda assim, tão
inteligente, obstinado e, quem diria, zeloso com ela. Nathaniel cuidava dela
como ninguém cuidara, ainda. Ele a permitia tomar decisões estúpidas, a
deixava beber uísque, respeitava suas escolhas ruins e se oferecia para a
ensinar coisas que ela só sabia que existiam por histórias ouvidas das amigas
casadas.
Mas ele carregava muito sofrimento dentro de si e, enquanto não lhe
contasse tudo, ela duvidava que melhorasse. Não que ela fosse alguma
solução. Se ouvisse as confissões da alma tortuosa daquele homem, que tipo
de conforto poderia lhe proporcionar? Que ajuda? Porém ele precisava falar
com qualquer pessoa. Lucille sabia que era preciso dar vazão aos
sentimentos, ou, em algum momento, a represa que os segurava iria ruir. Se
isso acontece com Nathaniel, que sentimentos verteriam dessa represa
rompida?
Então, naquele dia ela voltaria a ser ela mesma e a provocar reações.
Falaria, conversaria, perguntaria.
— Talvez estejamos com uma estratégia incorreta. — Ela disse, por fim,
já exausta de se conter. Passavam o dia viajando, chegariam a New London à
noite. — E se seu irmão não tiver sido encontrado por nenhum branco?
Nathaniel não demonstrou nenhum impacto pela pergunta, mas virou o
pescoço e a fitou.
— Prossiga.
— A região possui diversas tribos indígenas, ainda. Algumas não tão
dispostas a interagir conosco, não vamos abordá-los nas cidades.
Ele não respondeu, continuou conduzindo os cavalos pela via enquanto o
sol se punha ao lado deles. A luminosidade do dia que findava fazia com que
os cabelos dele assumissem um tom de dourado e sua pele, um pouco mais
bronzeada do que deveria ser a de um aristocrata, parecia feita de bronze. Por
sua posição inabalável, Nathaniel quase podia ser confundindo com uma
estátua. Ela quis estender a mão para o tocar, afinal, estavam sozinhos. Mas
não podia se permitir tanta intimidade.
— Pode ser que você tenha razão. Vamos subir procurando nas cidades.
Depois que eu te deixar em Boston, descerei buscando informações nas
comunidades indígenas. Isso deve acelerar nosso tempo de viagem.
Mesmo que ele não estivesse olhando, ela se forçou a sorrir. Precisava
confirmar para si mesma que a viagem teria um fim, que, em poucos dias,
eles estariam em Boston. Nathaniel pegou o mapa em seu bolso novamente e
conferiu algumas informações. Continuaram em silêncio até a chegada a New
London, hospedaram-se em uma pensão à beira da estrada e ficaram em seus
quartos durante toda a noite. Não houve nenhum contato amistoso entre eles
desde o beijo interrompido por Leonard, desde que ela insistira para que ele
abrisse seu coração para ela, que expressasse seu sofrimento.
No dia seguinte, Nate saiu e deixou um bilhete para Lucille, explicando
que faria cartazes e pregaria pela cidade, informando o telefone do Gênesis.
Preferiu que ela ficasse na pensão para não correr riscos, mas ela sabia que a
estava evitando. Tão logo ele retornou, por volta do meio dia, encerrou a
estadia e eles pegaram estrada novamente em direção a Newport.
O silêncio a estava enlouquecendo. Horas se passavam sem que eles não
cruzassem com ninguém, como se nenhuma pessoa mais utilizasse aquelas
estradas. Por vezes, um fazendeiro passava por eles e os cumprimentava com
um aceno do chapéu. Fora isso, Lucille nada tinha para fazer além de esperar
e olhar para Nathaniel – cada dia mais familiar e menos fácil de entender. Até
que ela não aguentou, mais. Já estavam chegando ao destino quando pararam
para acampar, exaustos, e cuidar dos cavalos, que também precisavam de um
descanso urgente. Daquela vez ela o iria encurralar e fazê-lo falar alguma
coisa. Qualquer coisa.
Depois de montada a barraca, Nathaniel informou, com um movimento
de cabeça, que iria se lavar. O barulho da água estava próximo. Lucille
esperou alguns minutos até não ouvir mais seus passos, foi até os cavalos e
sussurrou nos ouvidos de Hades.
— Se alguém aparecer, relinche. Vou ter uma conversa séria com seu
dono.
O animal se agitou, indicando que a compreendia. Lucille sorriu e afagou
a crina preta lustrosa para, depois, ir atrás de Nathaniel. Lentamente, pisando
com suavidade para não o alertar de sua chegada, ela espreitou para
confirmar que não o pegaria em nenhuma situação constrangedora. Bem, um
homem despido, enfiado em um rio até metade do tórax, era uma situação
constrangedora suficiente, mas ela já vira coisa pior. Naquele momento, era
adequado.
— Nate. — Ela chamou e ele se virou com calma demais. Passou as mãos
molhadas pelos cabelos e ameaçou sair. — Não saia. Fique aí. Eu apenas... eu
quero falar com você.
— E esperou que eu tirasse as roupas para isso?
— Achei que, assim, você me ouviria. Não tem para onde correr, tem?
Nathaniel deu uma risada e ela adorou aquele som. Preferia vê-lo sorrir,
mesmo que fosse puro sarcasmo. Preferia que ele implicasse com ela, fosse
malvado com ela, falasse coisas desagradáveis para ela – ao menos eles
estariam interagindo de alguma forma. O silêncio machucava mais que as
palavras.
— Lucy, se acha que a sua presença me impedirá de sair dessa água, você
realmente não me conhece.
— Não conheço. — Ela se sentou no meio da relva. — E adoraria
conhecer, mas você dificulta muito minhas pretensões. Por que têm me
evitado?
Ele mergulhou e emergiu novamente, com cabelos totalmente molhados.
— Não a tenho evitado. Apenas não costumo falar muito.
— Está mentindo. — Ela cruzou os braços. — Você está estranho e
pensei que homens como você não ficassem constrangidos com nada.
— Dê-me o sabão, por favor. — Nate pediu, indicando os itens de higiene
que estavam à beira do rio. — Ou eu posso sair para pegar, claro.
Lucille arregalou os olhos e se apressou em atender ao pedido dele. Era
bem tolo que ela sentisse as bochechas arderem por apenas pensar que ele
pudesse sair da água, um deus dourado sem roupas e molhado, com água
escorrendo por aquele corpo masculino que a deslumbrava. Nathaniel
ensaboou-se enquanto ela o observava, depois mergulhou de novo.
— Eu não fico encabulado, Lucy. Mas não vamos ganhar nada se nos
aproximarmos mais. Em dois dias você estará livre, embarcando para a
Inglaterra, e eu retomarei as buscas para meu irmão. Nunca mais nos veremos
outra vez e gostar de você tornará as coisas muito difíceis.
Ele disse aquilo enquanto esfregava os cabelos, de costas para ela. Se
estivessem frente a frente, as palavras teriam sido as mesmas? Nathaniel teria
dito que era possível que ele gostasse dela, ou que separar-se dela seria
difícil? E ela teria acreditado, se olhasse dentro daqueles olhos azuis que
continham a porta da sua alma?
Porque ela não acreditava nele, apesar de saber que dizia a verdade.
Desde que soube que se casaria com um velho que tinha idade para ser seu
pai, Lucille sabia que precisava fazer qualquer coisa para evitar aquilo. Ela
podia suportar muitas coisas, mas havia limites que ela não pretendia cruzar.
E, naquele momento, no exato momento em que Nathaniel virou-se para ela,
cheio de espuma e com um sorriso triste nos lábios, ela soube que o deixar
seria quase impossível.
— Não precisa gostar de mim. Eu sei ser bastante desagradável.
Sarcasmo não serviu para aliviar o momento. Nathaniel mergulhou uma
última vez e livrou-se de todo o sabão.
— Vire-se, Lucy. Eu vou sair.
Ela obedeceu e seu coração disparou. Para garantir que não veria nada,
fechou os olhos e se permitiu apenas ouvir o ruído da água se movendo, os
passos na vegetação, o tecido da toalha deslizando pela pele molhada, a
respiração ritmada e masculina, o som das roupas sendo vestidas. Mesmo
sabendo que era seguro respirar, Lucille permaneceu estática, imaginando
toda a cena em sua cabeça. De repente, um arrepio lhe percorreu o corpo
inteiro e ela sentiu o calor da presença de Nathaniel em suas costas. O hálito
morno em seu pescoço, as mãos ao redor de seus braços. Ele estava ali, mas
não a tocou nem disse nada.
Quando o homem passou por ela e, com passos largos, foi até onde eles
acampavam, seus joelhos fraquejaram e não conseguiram mais a sustentar de
pé.
Capítulo décimo quarto

E RA POR ISSO QUE ELE PASSARA QUASE DOIS DIAS SEM ABRIR A BOCA –
porque acabava falando todo tipo de bobagem na presença de Lucille. Ela o
instigava, provocava, desafiava e ele sempre era capturado na sua rede.
Contou mais do que deveria sobre sua história de vida e acabara de dizer que
poderia gostar dela. Gostar. Nathaniel não gostava nem de si próprio, como
poderia gostar de alguém?
Mas havia mais entre ele e Lucille do que simples luxúria. Se fosse
apenas isso, ele já a teria seduzido. O que o impedia de ir além era mais do
que respeito pelo pedido dela, era medo. O invencível, imbatível e inabalável
Nathaniel McFadden estava com medo de sentir qualquer coisa que fosse por
aquela mulher. Não era um temor irracional. Ela era um pouco perturbada,
com toda aquela vitalidade e aquele desejo de conhecimento. Também era
curiosa demais, falante demais, sempre se intrometendo em assuntos
masculinos. Além de não se importar em perder, o que era imperdoável. Nate
jamais poderia tolerar envolver-se com alguém que apreciava mais o jogo do
que a vitória, ele tinha certeza.
Depois de sair da água e precisar de uma força sobre humana para afastar-
se dela, Nathaniel começou a duvidar de sua sanidade. Aquela viagem
precisava acabar antes que ele não conseguisse mais finalizá-la. Precisava,
também, manter-se mais tempo em silêncio, mesmo que isso significasse
magoar Lucille. Era preferível que ela não gostasse dele, também. Que ela o
desprezasse, o achasse arrogante e mal-educado. Quanto menos a companhia
dele ela quisesse, melhor para ambos.
A viagem seguiu até Newport, onde não tiveram nenhum sucesso
procurando por Emile. Passaram por mais duas cidades até chegarem a
Plymouth. Aquela seria a última parada antes de Boston. Quando chegassem
à cidade destino, Nathaniel garantiria que Lucille estivesse em um navio e,
então, retornaria para casa. Ainda não sabia se faria mesmo a peregrinação
esperada por aldeias indígenas ou se esperaria o irmão contatá-lo. Suas
esperanças se esvaíam a cada milha percorrida, a cada não recebido, e sua
vitalidade estava se esgotando.
Ela percebeu, claro. Lucille era muito observadora e a frustração de
Nathaniel a estava contagiando. Quanto mais sombria sua alma ficava, mais a
dela escurecia.
Plymouth era uma cidade costeira muito escolhida por pescadores e
turistas. Pessoas que queriam descansar à beira-mar, famílias que queriam um
tempo afastadas da loucura que as grandes cidades estavam se tornando. O
perigo continuava rondando, mas Lucille quis ver a praia e ele não conseguiu
impedi-la. Bem, Nathaniel sabia que não a conseguiria impedir de nada, já
que ela era adulta e livre para fazer o que desejasse. Mas não fora até ali para
permitir que ela se colocasse em risco, o que significava que a acompanharia.
— Nunca foi à praia? — Ele perguntou, vendo-a retirar os sapatos e
dobrar a bainha da calça. Pés femininos e delicados tocaram a areia fina – e
provavelmente gelada, fazendo com que Nate suspirasse.
— O litoral aqui é intrigante, eu nunca viajei tão para o norte. Você não
gosta de praias, Sr. McFadden?
— Cresci em uma vila litorânea, minha vida foi à beira-mar.
— Oras, uma história. — Ela sorriu, ajeitando alguns cachos soltos para
dentro da boina. — Conte-me.
Ele não queria contar, mas acabaria falando tudo que ela desejava ouvir.
Seguiu-a até onde as ondas arrebentavam, mantendo distância segura para
não molhar mais do que pretendia.
— A propriedade preferida do meu pai era Greenwood Park, que fica na
vila de Thanet, em Kent. Quando eu era moleque, a vila era muito pequena e
nós aterrorizávamos os habitantes. Eu e Isaac éramos terríveis.
— Quem é Isaac?
— Meu irmão, ele é apenas um ano mais velho. Somos muito próximos.
Éramos. Desde que vim para Nova Iorque nós não nos falamos muito. Agora,
provavelmente não nos falaremos nunca.
Nathaniel sentou-se na areia úmida. Pensar em Isaac o fez desmoronar
por dentro e não podia permitir que Lucille percebesse. Ela abandonou o que
estava fazendo e se sentou ao lado dele, interessada na abertura que concedeu
depois de dias.
— Não diga isso. Ele saberá que você não é culpado pelo que aconteceu
com Emile.
— Se eu me sinto culpado, Lucy, por que ele não acharia o mesmo?
Havia algumas pessoas perambulando pela praia, o que impediu Lucille
de tocá-lo. Pela forma como ela ergueu a mão e depois a recolheu, Nathaniel
entendeu que ela estava se controlando para não fazer nada que colocasse seu
disfarce em risco e os expusesse. Como viajavam bem devagar, era provável
que os caçadores de recompensa estivessem sempre à frente.
— O sol vai se por. — Ele continuou. — Devemos voltar para o hotel.
Amanhã é um grande dia, você estará livre.
— Nate. Diga o que aconteceu com você. Conte para mim, já que
estamos nos nossos últimos momentos juntos. O que houve quando vocês
desistiram de negociar com o Sr. Carlisle?
Ele respirou fundo e a olhou. Talvez se contasse toda a verdade, isso a
assustasse o suficiente para fazê-la se afastar.
— Nós nos envolvemos com contrabando. Bebidas, charutos, seda, tudo
que pudesse ser contrabandeado e que rendesse dinheiro. Mas não levou um
mês para que o contrabando nos conduzisse aos jogos ilegais. Nos acusaram
de jogar sujo, porque eu conto cartas. Pensei que fosse esperto e que não
perceberiam, mas perceberam. Eu não tinha dinheiro para pagar a dívida,
Leonard não tinha, então fomos capturados por cobradores de dívidas. Eles
nos surraram todo dia, eles nos bateram e praticaram todo o tipo de tortura
que eu nem sabia que existia. Quase não temos marcas no corpo, mas eles
conseguiram nos destruir por dentro. Depois de algum tempo, o chefe
apareceu. Ele disse que pagara nossa dívida e que poderíamos pagar a ele
com trabalho.
Lucille não pareceu muito chocada.
— Quem era o chefe? Vocês o conheciam?
— Não. Ele é o dono do Gênesis e nós nos tornamos seus homens de
confiança. Aprendemos a transformar nosso trauma em outra coisa, e isso é o
que eu sou agora.
Nathaniel abriu os braços como se quisesse mostrar a ela a dimensão do
que ele representava.
— Quem era o credor?
— Isso não importa, Lucy.
— Claro que importa. Quem mandou torturarem vocês?
— Seu pai. — Ele a fitou de soslaio. — Walter Smith, foi para ele que
ficamos devendo. Mas nada disso importa mais, já paguei a dívida.
Tranquilize-se, pois amanhã estará livre. De mim, de toda essa vida.
O sorriso nos lábios dela era sincero e triste. Ele pensou que a
proximidade da liberdade a deixaria exultante, mas não era alegria o
sentimento que os envolvia naquela última parte da viagem. Seguiram sem
continuar a conversa até o pequeno hotel que os abrigaria naquela noite, uma
pequena indulgência que ele estava disposto a fazer por ela. Estava sendo
uma viagem bem pouco custosa e Lucille, cujas economias ele recusava toda
as vezes, não gastava com absolutamente nada. Sendo mulher, ele esperava
que ela fosse desejar roupas ou outras bobagens, mas ela estava
suficientemente empenhada em sua fuga.
— Vamos nos encontrar para o jantar? — Ela perguntou, antes de abrir a
porta de seu quarto.
— Não, eu jantarei aqui mesmo. Boa noite, Lucy.
Saber que a estava desapontando causava a mesma dor de um punhal
cravado no peito, ainda assim ele não conseguia evitar. Fechou a porta atrás
de si e recostou-se na madeira por um longo tempo, colocando os
pensamentos no lugar. Leonard tinha razão, sempre teve, a garota era uma
grande distração, mas ela também o afastava do abismo que o engolia pelo
desaparecimento de Emile. No dia seguinte, tudo acabaria e ele voltaria a ser
o homem taciturno e cruel que sua profissão exigia.
Tomou um banho, pediu o jantar e se deitou para esperar a comida
chegar. Seu corpo doía pelos dias sentados na carroça desconfortável, pela
falta de exercício físico e pelo esforço para não sair e ir atrás de Lucille.
Fechou os olhos e cochilou, até ser despertado por três batidas sutis na porta
– o jantar chegara.
Mas, ao girar a maçaneta a mesma imagem de dias atrás o fez reviver o
momento em que tudo começara. Lucille entrou, sem pedir licença, vestindo
um roupão. Ela tinha os cabelos penteados, cheirava a almíscar e sabão, e seu
olhar era determinado.
— O que houve, Lucy?
— Amanhã eu parto para a minha nova vida. Eu vou me lançar em uma
jornada sem saber o que há do outro lado do caminho, Nate, e mentiria se
dissesse que não estou com medo. Mas nunca tive tantas certezas em minha
vida, e devo muito disso a você.
— Você não me deve absolutamente...
Ela levou o indicador até os lábios dele e o silenciou.
— Deixe-me terminar, ou não conseguirei fazer isso. — Ela deu dois
passos para trás e sorriu. — Com você eu vivi experiências incríveis em tão
pouco tempo. E é com você que eu quero viver isso, também. — Lucille
puxou o laço que prendia seu roupão e o veludo caiu ao chão. Ela não estava
de roupas íntimas daquela vez, mas completamente nua. — Eu quero que
você faça amor comigo.

Quando eles retornaram ao hotel e Nathaniel despediu-se dela, Lucille


entendeu que não queria aquilo. Ela não chegara até ali para que dessem as
mãos e seguissem seus caminhos. Claro que era o que aconteceria, mas não
seria suficiente se fosse apenas aquilo. Ela queria algo mais, qualquer coisa
com a qual pudesse se lembrar dele para sempre.
Porque ela sabia que Nathaniel seria para sempre. Desde que decidira que
ele era o escolhido para a ajudar a livrar-se do casamento inoportuno, seus
destinos foram selados e atrelados de forma que ela jamais conseguiria
separá-los. Eles não ficariam juntos, mas as marcas que ele cravou em sua
alma eram indeléveis. Milly diria que ela estava louca. Quando tivesse a
oportunidade de contatar a amiga sem que isso representasse risco para sua
fuga, elas ririam daquilo tudo.
Mas, antes, ela precisava acalmar a inquietação de seu espírito – e sabia
exatamente o que precisava fazer. Ela precisava que ele terminasse o que
começara. Então, fez o mesmo de várias noites atrás, quando sofreu a maior
humilhação de sua vida – mas sabia que não receberia outro não. Despiu-se,
banhou-se demoradamente, passou a colônia de almíscar que comprara em
Norwalk com o Sr. Eckley, ajeitou os cabelos na frente do espelho e,
sentindo-se feminina o suficiente, enrolou-se em um roupão de veludo para
bater à porta de Nathaniel McFadden.
Quando ele abriu, ela colocou logo os dois pés dentro do quarto. Para não
ser vista, não correr o risco de que ele não a deixasse entrar, não desistir. E,
então, ela pediu que ele a amasse.
Claro que Nathaniel não a amaria, não no sentido literal. Ele a possuiria e
a faria plenamente satisfeita naquela noite – mas, para ele, aquela era uma
atividade carnal. Lucille não acreditava que o mesmo se aplicaria a ela. Ainda
assim, tinha certeza do que queria – e suas certezas se intensificaram quando
ele, saindo do estado de torpor que a pergunta dela o colocou, segurou-a em
seus braços e a beijou.
Lucille quase derreteu naquele beijo. De tudo que ela sabia que ele podia
fazer com ela, o contato dos lábios era o mais intenso. Eles se encaixavam tão
bem – era tão perfeito que ela chegou a pensar que sua boca existia para ser
beijada por Nathaniel. Como se ela não pesasse nada, ele a ergueu do chão e
a levou para a cama, acomodando-a nos colchões.
— Você tem certeza disso, Lucy? Porque, uma vez que acontecer, não
terá como voltar atrás.
— Por favor, não seja um cavalheiro. Não agora, não tenha uma recaída.
— Ela suplicou, puxando-o para perto, mantendo-o conectado a si. — Não
me coloque dúvidas, não pretenda que eu desista. Não importa o que
acontecer daqui para frente, eu quero que seja você.
Ele a beijou novamente, tomando seus lábios com posse resoluta. Era
aquilo, ela era dele – a partir daquele momento e para sempre. Mesmo que
houvesse outros, eles seriam apenas os outros. Talvez ela conhecesse alguém
com quem se casasse, mas a sua primeira paixão seria sempre a única.
Com cuidado reverencial, ele desceu a boca pela extensão de seu corpo,
saboreando suas curvas e sua pele, passando a língua por entradas e
reentrâncias que despertavam nela sensações ainda não experimentadas.
Nathaniel a beijou até a ponta dos dedos do pé e voltou, explorando a carne
macia de suas pernas até parar ali, onde ela o aguardava. A nudez não era
algo que ela enfrentaria sem embaraços, mesmo que ele fizesse tudo parecer
tão natural. Ainda assim, não resistiu em manter os olhos abertos enquanto
ele acariciava delicadamente seus pelos íntimos.
— Eu vou fazer você me desejar, Lucy. Muito, mais do que você será
capaz de suportar. Você vai me querer aqui — deslizando um dedo para
dentro de suas dobras femininas, Nathaniel provocou sua entrada com
investidas suaves. — e vai implorar para que eu a preencha.
Sim, ela iria, porque já estava implorando. Não fazia ideia de como
aquela dinâmica funcionava, apenas sabia que eles se encaixariam de alguma
forma. Com um sorriso devasso, Nathaniel acomodou-se entre suas pernas e
beijou seu sexo. Abriu espaço para sua língua com os polegares e a lambeu,
exatamente naquele ponto cheio de nervos que clamava por um toque. Ela
estremeceu e forçou o corpo para trás, afundando a cabeça no travesseiro. Ele
já fizera aquilo, antes, e ela já se sentira completamente arrebatada, antes.
Mas, daquela vez, ele não tornaria nada mais fácil. Como um gato, Nate
deslizou para cima e passou a língua pelos seios expostos. Tomou um mamilo
na boca, sugou, fez o mesmo com o outro. Desceu, voltou a explorar sua
feminilidade com carícias ritmadas e intensas. Lucille cravou as unhas no
colchão quando ele capturou sua pérola intumescida entre os lábios e chupou,
enquanto um dedo a penetrava cuidadosamente.
— Céus. — Ela choramingou, sem conseguir conter os espasmos de seu
corpo indócil. — Quando ouvi dizer que você era cruel, imaginei uma coisa
bastante diferente.
Nathaniel deu uma risada. Ele achava graça por submetê-la àquela tortura
deliciosa enquanto Lucille acreditava que poderia explodir de desejo.
— Eu darei o que você quer. — Ele acariciou seus seios. — E você
gritará meu nome, Lucy.
O miserável arrogante se levantou, ficou de pé ao lado da cama e puxou a
camisa para cima, fazendo-a sair pelo pescoço. Ela abriu os olhos para
apreciá-lo se despir no instante em que aqueles dedos habilidosos
desabotoaram a calça, que caiu ao chão. Nathaniel talvez não fosse o homem
mais bonito que existia, mas ele era glorioso em sua virilidade
inquestionável. Mantinha nos lábios o sorriso indecente de quem sabia que
fazia a coisa certa, que estava na iminência de a enlouquecer.
— Você quer tocá-lo, Lucy?
Ela hesitou, olhando fixamente para a ereção que a desafiava. Sim, ela
queria, mas precisava de outra coisa, naquele momento. Balançou a cabeça
para um lado e para o outro, negando tacitamente.
— Eu quero que ele me toque.
As bochechas coraram imediatamente, ela não sabia se pelo calor da
excitação ou pela vergonha de dizer coisas tão indecorosas. Era impossível
manter um comportamento minimamente decente na presença de Nathaniel
McFadden.
— Onde, Lucy?
Os olhos dela se arregalaram, mas ele parecia esperar que ela indicasse
exatamente o que queria que fizesse. Com dedos trêmulos e vacilantes, ela
tocou sua intimidade.
— Aqui.
— Então será aqui. — Ele riu, divertindo-se da sua timidez. — Mas,
antes, eu garantirei que esteja pronta para o receber.
Nathaniel voltou a se acomodar entre suas pernas e a sutileza se encerrou.
Com uma boca faminta, ele a abocanhou, lambeu e chupou com vigor até
arrancar-lhe gemidos embaraçosos. Lucille não conseguiria impedir que seu
corpo sucumbisse ao êxtase, ela estava muito próxima do precipício quando
ele simplesmente parou. A sensação de vazio durou um segundo. Logo, a
boca dele estava sobre a dela e o membro rígido pressionava sua entrada.
Ela pensou que ele diria alguma coisa, que a provocaria novamente com
palavras indecentes, mas Nathaniel apenas investiu, firme e profundamente,
contra ela. Lucille soltou um lamento que foi capturado pelos lábios
cuidadosos, sentindo-se expandir à medida em que ele a penetrava.
— Relaxe. — Ele murmurou em seus ouvidos, passando a língua por seu
pescoço e retornando para sua boca. — Logo vai passar.
Lucille não soube imediatamente o que iria passar, se a agonia de o ter
dentro de si, se as pontadas de dor que a faziam desejar expulsá-lo, se a
incoerência de seu desejo, que a impulsionava a erguer os quadris para o
receber por completo. Tudo fazia parte da mesma experiência, então ela não
queria que nada passasse. Queria tudo, queria mais, queria intensamente.
Sem parar de beijá-la, Nate moveu os quadris e se retirou, voltando em
seguida. Foi um movimento lento e delicado, que ele repetiu algumas vezes
até que ela sentisse sua pelve perfeitamente encaixada na dela. Daquele
momento em diante, ele não se conteve, mais. Ergueu o corpo, segurou-a
pelas nádegas, levantou-a parcialmente do colchão e investiu
cadenciadamente, entrando e saindo, provocando-a a sentir uma comichão
ainda desconhecida em seu ventre.
Ela o quis tocar, então cravou os dedos nas coxas masculinas, contraídas
pelos movimentos. Nathaniel parecia perdido no momento, com os olhos
fechados e a cabeça pendida para trás. Lucille gemeu quando ele levou o
polegar até seu clitóris e o circulou, aumentando todas as sensações que ela
pudesse sentir. Não demorou para que o êxtase a consumisse, fazendo com
que ela, involuntariamente, gritasse o nome dele.
— Meu Deus, Lucille. — Ele não parou, continuou entrando e saindo,
entrando e saindo, enquanto ela delirava pelas sensações incríveis que o
movimento dos quadris lhe proporcionava. Depois de mais duas ou três
estocadas, Nathaniel retirou-se dela soltou um gemido gutural, um som de
prazer e abandono que ela jamais esqueceria enquanto vivesse.
Quando Nathaniel viajou para os Estados Unidos, ele tinha algumas certezas
na vida. Uma delas era que seus irmãos eram uns tolos. Eram ainda jovens e
livres quando se apaixonaram e se deixaram capturar pelo casamento.
Entendia Edward, o conde, pois ele tinha a responsabilidade de gerar um
herdeiro, de dar continuidade à linhagem dos McFaddens. Mas Isaac... o
irmão tinha vinte e cinco anos quando se envolveu com uma libertina e
passou a viver em função da mulher. Não existia ninguém mais apaixonado e
dedicado do que seu irmão, e Nate só sabia que não queria ficar como ele.
Sua vida era, sim, cheia de paixões, mas elas vinham sempre no plural.
Ele amava mulheres, várias delas, muitas delas, todas elas. Suas emoções
eram efêmeras, passageiras, e ele se orgulhava de nunca as desejar por mais
de uma noite. Nenhuma mulher compartilhara sua cama mais de uma vez.
Havia um número inatingível de damas e viúvas e solteironas que precisavam
experimentar os prazeres carnais que ele lhes podia proporcionar, e Nate
sempre soube que morreria cedo – não tinha, portanto, tempo a perder.
Mas algo estava errado. Primeiro, ele não morrera tão cedo quanto
esperava – sua vida estava durando mais tempo do que deveria, para muita
gente. Segundo, ele soube, naquele momento, que desejaria Lucille pelo resto
de sua vida – e talvez a continuaria desejando em uma vida depois daquela.
Então, ele estava muito confuso enquanto permanecia ali, deitado, com ela
em seus braços. Não tinha nada a ver com a virgindade – Lucille não era a
sua primeira virgem. Nathaniel não tinha nenhuma moral que o impedisse de
deflorar as mocinhas que caíam em sua lábia.
Era ela. Aquela mulher em sua cama era especial – e isso significava que
ele estava ferrado como nunca tivera, antes.
Quando acordou no dia seguinte, depois de dormir ao lado de Lucille em
uma cama apertada demais para os dois e não se incomodar com isso, decidiu
que não poderia a deixar ir. Não naquele dia, não quando ele ainda não estava
preparado para lidar com o buraco que outra ausência causaria em sua alma,
já completamente destroçada. Com cuidado, desvencilhou-se dos braços dela,
vestiu-se apressadamente, garantindo apenas que os botões estivessem todos
fechados, e desceu para a cabine telefônica. Precisava falar com Leo e o
avisar que ainda demoraria mais alguns dias até poder retornar.
— Já chegou a Boston? — O amigo perguntou como de costume, sem
sequer o cumprimentar.
— Ainda estou em Plymouth, hospedado no Queen’s Shore e preciso
contar com sua ajuda por mais alguns dias.
Leonard bufou do outro lado.
— Devo pegar o próximo trem?
— Não, claro que não. Quero você o mais longe possível, mas preciso
que continue me cobrindo no Gênesis. Eu vou retardar a partida de Lucille
em pelo menos um dia.
— Retardar? Por que raios, ela está em perigo?
— Não, Leo, mas quero passar mais tempo com ela.
Outra bufada fez Nathaniel entender que a perspectiva de que ele
efetivamente gostasse de Lucille incomodava o amigo. Se fosse o contrário,
ele estaria incomodado, também.
— Cristo, Nate. Você está fora de si. Entenda uma coisa, essa mulher é
pura encrenca. Ela está fugindo de um pai perigoso e milionário e é noiva de
um marquês poderoso, apesar de falido. Existem dúzias de mulheres como
ela aqui em Nova Iorque, deixe essa em paz.
— Não existe nem uma como ela no mundo inteiro, Leo. — Nate deu
uma risada nervosa. — Cada mulher é única, e Lucille é especial. Não sei por
que diabos estou te dando satisfações. Se não quiser me cobrir, avise ao chefe
que desertei.
— Certo, você está completamente louco. A morte de Emile afetou seu
juízo.
— Tchau, Leo, vejo você em uma semana.
Nathaniel não ficaria ouvindo desaforos de um homem com mais pecados
do que ele. Leonard era o seu porto seguro desde a chegada em Nova Iorque,
mas também a razão de todos os seus problemas. Se não fosse ele, nunca
teriam se envolvido naquele negócio e não teriam sido largados para morrer
em um prédio em ruínas. Estava confuso, em júbilo pela consciência dos
sentimentos inesperados por Lucille e em frangalhos pelo desalento de, a
cada dia, ter menos chances de encontrar o irmão com vida. Agarraria a
esperança de o encontrar em alguma aldeia ou vila isolada pelo interior, ou
não teria mais motivos para seguir vivendo. Se a morte de Emile pesasse em
suas costas, ele trataria de apressar sua chegada ao inferno.
Subiu para encontrar seu quarto vazio. Olhou ao redor, agitado, mas
encontrou um pequeno bilhete sobre a cama antes de entrar em pânico pelo
desaparecimento de Lucille. Ela dizia que estava em seu quarto se preparando
para o desjejum.
— Posso entrar? — Perguntou, à porta dos aposentos dela. Lucille
apareceu e girou a maçaneta, recebendo-o com um sorriso. — Gostaria de
conversar com você.
Ela saiu da frente e deixou que entrasse. Nathaniel era ruim com palavras.
Não, ele era ótimo com elas, era péssimo apenas com sentimentos – e os que
ele sentia, naquele momento, eram bastante assustadores. Mas ele não tinha
medo de nada. Praticamente nada. Certamente, de nada.
— Estamos para sair?
— Não. Quero dizer, na verdade, eu gostaria de lhe propor um adiamento.
— Adiamento? — Ela estava ajeitando o cabelo dentro da boina e virou-
se para ele. Vestia-se como o homem que ela não foi durante todo o tempo de
viagem, com aquelas vestes masculinas que a deixavam mais sensual e mais
exótica. — Não entendo, não vamos hoje para Boston?
— Pensei que, talvez, você quisesse passar mais algum tempo aqui.
— Aqui, em Plymouth?
— Aqui, comigo.
Ela conteve outro sorriso. Os olhos eram castanhos claros, às vezes
cintilavam à luz do dia, às vezes pareciam escuros e tempestuosos. Lucille
olhou para baixo por alguns segundos, intermináveis segundos, até voltar-se
para ele novamente.
— Você tornará isso bastante difícil, não é? Ir embora?
— Eu não sei, Lucy. Mas eu acabo de dizer para Leonard que ficaria mais
um dia na cidade, então eu detestaria me passar por mentiroso.
— Entendo. Eu também não estou preparada para dizer adeus.
Nathaniel deu cinco passos até chegar a ela, segurá-la em seus braços e a
beijar. Ainda era cedo, precisavam tomar o desjejum, ela certamente estava
dolorida e não poderia deitar-se com ele, ainda, mas não importava. Bastava
senti-la nos lábios, bastava explorá-la com a língua. E ela se rendeu
deliciosamente, tornando-se macia sob suas mãos, flácida enquanto ele a
segurava com intensidade exagerada. Também não estava preparado para a
deixar ir mesmo sabendo que não poderia adiar o momento para sempre.
Não podia.
— Vamos comer. — Nate se afastou um centímetro. — Depois, podemos
caminhar pela cidade e retornar para o hotel. Ainda há algumas coisas que
gostaria de te ensinar.
Capítulo décimo quinto

L EONARD OLHOU PARA O TELEFONE COM DESALENTO . N ATHANIEL ESTAVA


completamente louco, apaixonando-se pela filha de Walter Smith. Com tantas
mulheres no mundo inteiro, escolhera justo a menos disponível, a mais
perigosa.
— O que houve, Eckley?
O chefe entrou na sala enquanto Leo ainda mantinha sua expressão
confusa. Tinha de fazer algo para recolocar o amigo nos trilhos, apenas não
imaginava o que.
— Nate precisa de uma intervenção. Acho que terei de ir até ele outra
vez.
— Conte-me do início.
Quando se sentava na sala de Leonard, o chefe indicava que queria uma
história – e deveria ser uma boa história. Não era costume esconder nada do
homem que os salvara da morte e os transformara em figuras importantes e
temidas, em homens ricos. Então, Leo contou o que ele pedira – tudo o que
sabia, desde o momento em que Lucille Smith buscara a ruína na casa de
Nathaniel, até a última ligação recebida do amigo, indicando que ele estava
inegavelmente apaixonado.
— Por isso, preciso ir até ele resgatá-lo. Nathaniel é um McFadden,
afinal, e todos são muito passionais.
— Certo, você pode partir, mas terá que fazer isso amanhã. Hoje preciso
de você no clube, amanhã me organizo para que possa buscar nossa ovelha
desgarrada.
— Tudo bem. Ele me garantiu que ficará em Plymouth, hoje. Amanhã
talvez esteja na estrada, mas consigo o alcançar em Boston.
Sorrindo, o chefe se levantou e pegou um charuto da caixa fechada que
ficava sobre sua mesa. Levou ao nariz e cheirou, satisfeito.
— Você é um bom amigo, Eckley. Tenho certeza de que Nathaniel
compreenderá suas atitudes.

Quando entrou no quarto de Nathaniel, naquela noite, Lucille pretendia


apenas conquistar algumas lembranças. Escolheu-o, mas não imaginava que
fosse querer mais do que recebera. Não era possível ter mais depois do que
aconteceu na cama dele. Ela se entregou por inteiro, ele também. Tudo que
havia para dar, tudo que havia para receber, foi compartilhado entre eles. E,
então, ele entrou no quarto dela e pediu que não partisse.
Se ela não fosse embora naquele instante, não iria mais. Se não fosse
embora naquele dia, partiria com sequelas que não se curariam, mas Lucille
arriscou e decidiu ficar. Cedeu a ele e concordou em passar mais um dia na
companhia do maior canalha de Nova Iorque – que, ao seu lado, não se
parecia tanto com um canalha, assim. Ela sabia que ele era perigoso, cruel,
que destruiria seu coração se ela deixasse, mas não se importou em permitir
que ele a levasse para um passeio, mesmo que, vestida de homem, eles nem
pudessem se tocar.
Voltaram para o hotel depois de um dia agradável – mesmo que tivessem
perguntado por Emile durante boa parte dele. O amanhã seria de despedidas,
mas a noite seria novamente deles, sem máscaras, fantasmas ou qualquer
outra coisa que os pudesse atrapalhar. Ela levou suas poucas coisas para o
quarto de Nathaniel e decidiu se lavar ali mesmo, se ele permitisse.
— Enquanto você se prepara, descerei e pedirei o jantar.
Ele lhe beijou os lábios rapidamente, com uma intimidade que ela nem
mesmo lhe concedeu. Aproveitou a água quente para um banho longo, vestiu
apenas a camisa, sem a faixa, e parou na frente do espelho para pentear os
cabelos. Examinou-se por alguns segundos, tentando descobrir o que estava
diferente, se algo estava diferente. Sempre se perguntou se mulheres
defloradas tinham uma expressão única, se era possível notar em suas faces
que se entregaram ao pecado. Considerou que não parecia, mas estava
mudada. Não foi por causa da noite anterior, mas desde sua decisão de tomar
sua vida em suas mãos.
Barulho no quarto chamou sua atenção e Lucille saiu do banheiro
esperando encontrar-se com Nathaniel. Seu estômago borbulhava de
ansiedade e aquela reação de seu corpo não parecia ser normal. Era normal
desejar tanto ser tocada novamente por um homem como Nate? Era normal
uma donzela que perdera a virgindade um dia antes estar tão ávida por repetir
todos aqueles atos libidinosos e ainda aprender outros? Talvez não fosse e
aquele maldito canalha a tivesse enfeitiçado com qualquer coisa que ele
fizesse para seduzir as mulheres para a sua cama.
Mas, ao adentrar no quarto, deparou-se com quatro homens
desconhecidos. Eles tinham uma aparência desgrenhada e portavam armas.
Dois deles empunhavam uma pistola e reviravam o quarto. Ao vê-la, um
homem correu em sua direção e o outro fechou a porta. Lucille se viu cercada
e começou a gritar.
— Saiam daqui! Esse é o quarto de uma mulher, os senhores não têm
respeito? — Tentou disfarçar que não entendia a presença daqueles
brutamontes, mas suspeitava que eram homens enviados por seu pai.
— Sabemos bem, Srta. Smith. Viemos resgatá-la.
— Não preciso de resgate.
— Lamento, mas não importa. Levaremos a senhorita assim mesmo.
O homem mais próximo a segurou com os dois braços. Lucille estava sem
suas calças, usando apenas uma camisa e as ceroulas, mas não teve tempo de
sentir vergonha ou de apelar para o decoro. Continuou a gritar, debater-se,
espernear. Não se entregaria pacificamente. Chutou o homem, acertando-o na
região da cintura, forçando-o a soltá-la. Sabia que eles não a machucariam,
não gravemente, ou não receberiam a recompensa prometida por seu pai.
Lucille só era valiosa se estivesse viva e imaculada, pois ela precisava se
casar com um marquês. Outro homem a agarrou por trás, fazendo com que
suas pernas balançassem no ar. Naquele momento, Nathaniel entrou no
quarto, já com a pistola na mão.
Ela sentiu o coração falhar uma batida quando o viu. Lindo, loiro, com
aqueles dois botões abertos no colarinho e um olhar assassino.
— Soltem-na. — Comandou. Os homens deram uma risada, outro
apontou a pistola para ele.
— Vamos. — O homem que a segurava disse, se movendo. Nathaniel
armou a pistola e a manteve na direção dele. — Sairei com a mulher, vocês
cuidem do sequestrador.
A realização de que os homens matariam Nathaniel desabou sobre ela
como um raio em dia de tempestade. Eram criminosos, não havia motivo para
mantê-lo vivo. E, depois do que ela o vira fazer, duvidava que fosse permitir
que a levassem sem lutar bastante, antes.
— Ele não é um sequestrador. — Ela gritou. — Levem-me, mas deixem-
no em paz. Deixem-no!
Ninguém parecia ouvi-la. Um tiro foi disparado enquanto ela era
arrastada, mas teve tempo de ver um dos homens cair ao chão. Outro se
lançou sobre Nathaniel e eles começaram a lutar. Lucille gritou mais, pessoas
ocuparam os corredores enquanto ela era carregada pelo mais forte deles. Já
quase não tinha mais voz quando olhou para trás e o viu correndo em sua
direção.
— Nate! — Gritou mais. — Atrás de você!
O último homem mirou e atirou em Nathaniel pelas costas. Lucille berrou
um sonoro “não” ao vê-lo cair, enquanto se afastava cada vez mais. Quando
ela foi maltratada na estalagem à beira da estrada, eram três homens
desarmados – e ele não se incomodou em acabar com todos de uma vez. Mas,
ali, aqueles capangas estavam preparados, como se tivessem sido alertados
que ela estava na companhia de um lutador. Não haveria chance de escapar,
mas ela não parou de gritar, espernear e chorar enquanto era suspensa no ar e
jogada dentro de uma carruagem.
— Pelos céus, precisamos amarrá-la. A mulher parece um gato selvagem.
— O homem disse, para o condutor. — Dê-me cordas e vamos.
— Aonde estão os outros?
— Lá dentro, espero que vivos. Eles conseguem sair dessa sozinhos,
precisamos levar a fujona para seu pai e receber a recompensa.
— Fujona? Não foi um sequestro?
— Como eu nunca vi uma vítima tão relutante em ser libertada, duvido
muito que seja o caso. Mas fique de boca fechada, não estamos sendo pagos
para arruinar a reputação da mulher, apenas para a restituir à sua família.
Lucille foi amarrada com uma corda e amordaçada com um lenço. Seus
braços, presos às costas, e suas pernas atadas, tornando impossível que
continuasse lutando contra seus captores. Aquele era o fim de sua jornada,
não haveria mais fuga para a Inglaterra, não haveria mais vida livre, estudos,
ou trabalhar em algum comércio para ganhar a vida honestamente. As
lágrimas vinham em profusão, a ponto de a afogar. Mesmo sabendo que não
deveria se entregar, que poderia pensar em outra forma de escapar do
casamento trágico que a esperava – e do castigo que seu pai infligiria, que
seria cruel o suficiente para que se lembrasse todos os dias de sua vida,
Lucille não conseguiu evitar chorar.
E, enquanto a carruagem andava pelas ruas irregulares de Plymouth, com
os pés de um homem sobre seu corpo, mantendo-a presa ao chão, ela também
não conseguiu evitar pensar nele, em Nathaniel. O homem que a rejeitou, a
ajudou, a salvou de tantas maneiras que ela passaria todos os seus dias
agradecendo em silêncio por seus caminhos terem se cruzado. Parte de suas
lágrimas era por si, outra parte era por ele. A agonia de não saber, o
desespero de pensar que ele poderia ter deixado o mundo sem cumprir sua
missão – encontrar o irmão, tudo fazia com que ela chorasse ainda mais.
Foi chorando que ela acabou nocauteada pelas emoções. Não viu que seus
captores a tiraram da carruagem e a enfiaram em um vagão de trem, o que a
conduziu, durante toda a noite, de volta para Nova Iorque. Quando despertou,
novamente, assustada, estava em casa. Os dois homens que a conduziam a
mantiveram amarrada e amordaçada durante todo o trajeto para a residência
dos Smith e a fizeram entrar pela porta dos fundos, diante dos empregados
assustados. Lucille caminhou voluntariamente até seu quarto, rendida,
sabendo que não era possível mudar seu destino naquele instante. Que novos
planos poderiam ser traçados, mas não naquele dia. Não até que seu espírito
se recuperasse do trauma de perder tudo.

No primeiro dia, Lucille ficou trancada em seu quarto sem ver ninguém, o
que considerou uma sorte. Estava profundamente ferida em sua alma, tendo
perdido a chance de escapar para sempre de um destino infeliz. Também
estava profundamente triste por causa de Nathaniel McFadden, o homem que
a salvou e a levou ao inferno em apenas um dia. A imagem que se repetia em
sua mente era ele caído ao chão depois de ser alvejado por um de seus
captores. Deitada de lado na cama, abraçada com os joelhos no peito, ela
chorou por horas sem se preocupar em ser ouvida ou interrompida.
No segundo dia, o pai apareceu. Ele segurava uma toalha e ela já sabia o
que aquilo significava. Sem dizer nada, embebeu a toalha em água e mandou
que ela se levantasse. Lucille desobedeceu, pois não faria diferença. Ele a
espancaria não importava em que posição estivesse, portanto não lhe daria
mais o sabor de a controlar. Walter Smith poderia ser o dono de seu corpo,
mas jamais comandaria sua alma. Quando confirmou que ela não faria o que
mandava, o pai arrancou as cobertas que estavam sobre ela, sem se importar
com qualquer regra de decoro, e bateu com a toalha até a exaustão. Aquele
era o limite de Walter Smith – ele só parava quando estivesse cansado.
Lucille também sabia que aquele castigo não deixava marcas. Ela o vira
bater muitas vezes na mãe – sempre que planejava uma surra, fazia de forma
que ninguém percebesse a violência. A dor, no entanto, era quase
insuportável, mas ela não gritou. Não deu a ele o prazer de saber que a
machucara, mesmo que suas pernas tenham fraquejado ao final e ela tenha
terminado no chão – o lugar onde ficou o restante do dia.
No terceiro dia, a mãe a visitou. Lucille não comia nada desde que
retornara para casa, o que significava que morreria de fome ou ficaria doente
até seu noivo importante chegar da Inglaterra – o que aconteceria em breve.
Um dia? Talvez dois, e o Marquês de Hertford estaria em Nova Iorque para a
reivindicar como esposa.
— Você precisa se alimentar. — A mãe se sentou na cama, segurando
uma tigela de sopa. — Está pálida e com uma aparência adoentada, Lucy.
Ela manteve o silêncio. Estava de costas para a mãe, deitada de lado, sem
conseguir se concentrar em nada que não sua própria miséria. Precisava de
forças para fugir, para planejar outra forma de escapar do casamento
indesejado.
— Se não comer, terei que chamar o doutor.
— Não se preocupou com minha saúde quando o permitiu entrar e me
espancar. — Lucille disse, sem virar-se. — Não finja que se preocupa, agora.
Constance apoiou a tigela na mesa de cabeceira.
— O que pretendia que eu fizesse, Lucille? Ele é seu pai, você fugiu de
casa para o desafiar. Fez com que ele passasse uma enorme vergonha e...
— Cale-se, mamãe. — Ela se virou, sentando-se na cama. O corpo doía
como se ela tivesse sido atropelada por uma carruagem em alta velocidade.
— Não fiz nada, absolutamente nada, com ele. O homem que responde por
meu pai me vendeu como mercadoria barata para um nobre falido sem nunca
se importar comigo. Ele a trata pior que aos cavalos e você ainda o justifica?
Sempre permitiu que ele a agredisse e agredisse seus filhos.
— Há coisas que uma mulher não pode evitar, Lucille.
— Bem, eu não acredito nisso. Não aceito me casar com o Marquês de
Hertford e prefiro morrer tentando ser livre a aceitar passivamente esse
destino.
Virando novamente de lado, Lucille desejou apenas que a mãe se fosse,
mas ela permaneceu ali, sentada, em silêncio. As lágrimas encheram seus
olhos, mas ela as conteve, não pretendendo dar a ninguém o prazer de a ver
chorando.
— Se eu pudesse ajudar, faria algo.
— Você pode, se quiser.
— Algum novo plano para fugir e fingir seu próprio sequestro?
— Eu não fingi. — Lucille desistiu de resistir e se sentou. — Mamãe,
você entregaria um bilhete a Millicent?
A mãe endireitou a coluna e passou as mãos pela saia, demonstrando
nervosismo.
— Se pai ordenou que ficasse incomunicável.
— Se fosse para cumprir as ordens dele, não precisaria de sua ajuda. É
apenas um bilhete, eu preciso falar com ela. Milly não sabia dos meus planos,
não contei nada a ninguém.
— Certo, escreva o bilhete que providenciarei que ela o receba.
Com dificuldade, Lucille levantou-se da cama e se sentou à escrivaninha.
Seu coração batia acelerado e ela mal conseguia respirar. Se falasse com
Millicent, poderia saber notícias de Nathaniel e poderia ter uma chance de
fugir novamente – mesmo que fugir parecesse uma péssima estratégia. Mas,
daquela vez, embarcaria em Nova Iorque mesmo, e iria para o lugar mais
distante que pudesse – talvez as Índias.

Milly, estou presa em casa. Fugi, papai descobriu, me trouxe de volta


e me mantém prisioneira até que o marquês chegue. Preciso que
procure o Sr. McFadden no clube Gênesis. Se não conseguir falar
com ele, procure o Sr. Eckley. Não tente entender esse bilhete, apenas
faça o que peço. Lucy.

Depois de escrever, leu rapidamente as palavras para ter certeza que seu
pedido ficara compreensível. Não ficou, talvez nem ela mesmo se entendesse,
mas não podia arriscar dar informações muito precisas. Apenas mencionar o
nome dos homens já os colocava em risco e tudo dependia do quanto sua mãe
estava disposta a agir por ela. Constance Smith nunca fizera nada para livrar
os filhos das punições do pai, aquela seria a primeira vez e Lucille estava
cética. Mas não havia outra forma de fazer chegar sua mensagem a Milly, os
criados não se arriscariam tanto.
Dobrou o bilhete, colocou dentro de um envelope e entregou à mãe.
— Você o lerá? — Perguntou, sincera.
— Não está endereçado a mim. Sairei hoje para visitar o orfanato e para o
clube de leitura. Antes, passarei na casa da Srta. Ryan.
O coração de Lucille continuava disparado, ribombando em suas costelas
e aumentando a dor pelas lesões que sofrera. Se Millicent recebesse o bilhete
e a ajudasse, talvez houvesse mais uma chance de escapar. Por um instante,
ela quis abraçar a mãe. Não era uma pessoa ruim, insensível – Lucille sempre
se considerou bem afetuosa. Mas não conseguiu. O mal que sofreu não foi
culpa de Constance, mas não conseguia perdoá-la por ser conivente.
Sozinha novamente, deitou-se na cama e se permitiu dormir um pouco
pela primeira vez em muito tempo. Dentro de si, acreditava que Nathaniel
estivesse vivo e sonharia em ser resgatada por ele – mesmo que ele não fosse
nenhum príncipe encantado e ela não estivesse nem um pouco interessada em
um.

Ele nunca sucumbia, essa era uma das únicas certezas que Nathaniel
McFadden tinha. Depois do que vivera no mês seguinte à sua chegada aos
Estados Unidos, sabia que não viera ao mundo para ser abatido. Talvez uma
doença tropical ou uma besta selvagem o atacasse e ele morresse se
contorcendo em uma dor terrível, mas homem nenhum o derrubaria. Mesmo
depois de ter sido atingido pelas costas, ele se levantou e atacou seu agressor,
usando a faca no bolso de seu colete para o subjugar. Os outros dois estavam
já feridos dentro do quarto, ambos alvejados por sua pistola. Ele arrastou o
terceiro para lá, trancou a porta e correu atrás de Lucille.
Era noite e a escuridão começou a engoli-lo. Nathaniel desceu as escadas
freneticamente, gritando por ela, sob os olhares assustados dos hóspedes,
empregados e gerentes do hotel. O tempo que gastou para livrar-se dos seus
agressores custou caro – Lucille não estava em nenhum lugar para ser vista.
Maldição! Era tudo sua culpa, se não tivesse sido tão egoísta e a mantido
em Plymouth para que pudesse passar outra noite ao lado dela, Lucille não
teria sido encontrada. A imagem dela sendo arrastada por um homem
qualquer fez a bile amargar sua boca, até ele perceber que era seu sangue
escorrendo pelos lábios. Talvez Nathaniel não sucumbisse, mas, outra vez,
ele não conseguiria salvar alguém que deveria proteger e carregaria aquela
culpa para sempre.
A escuridão finalmente o derrotou e Nate desmontou no meio da rua. Os
joelhos dobraram, o corpo não resistiu aos ferimentos e ele caiu ao chão
inconsciente. Não havia dor física, não havia nada além do vazio de saber que
Lucille sofreria as consequências de sua estupidez. Por muito tempo, era
apenas aquilo, um hiato em que nada acontecia, nenhum som poderia ser
ouvido, nenhuma luz poderia ser sentida. Ele permaneceu ali, caído, imóvel,
lamentando miseravelmente a dor de sua alma, sem nem mesmo conseguir
dar um fim à própria vida. Seria fácil demais, ele merecia sofrer pelo que
causara aos outros.
E, então, ele caiu em um precipício e permaneceu em queda por um longo
tempo, até uma mão segurar a sua. Nathaniel ergueu a cabeça e se viu
olhando dentro dos olhos castanhos de Lucille. Ela sorria e estendia os braços
para ele, no instante em que acordou.
— Oh. — Uma voz feminina, que não era a dela, soltou uma interjeição
espantada. — Ele despertou, doutor.
— Isso é muito bom. — Um homem de cara redonda e bigodes se
aproximou de onde Nathaniel estava. — Como se sente, Sr. McFadden?
Antes de responder, ele quis olhar ao redor. Estava de bruços, sentindo o
peso de dois cavalos em suas costas. Não estava mais no hotel onde se ferira,
estava em Nova Iorque, em seus aposentos no Gênesis. Se voltara para a
cidade, isso significava que pelo menos um dia se passara desde que Lucille
fora capturada pelos capangas de seu pai, ou seja, que ela estava sob as garras
de um homem ruim.
— Por quanto tempo fiquei desacordado?
— O senhor estava sedado com láudano e morfina. — O homem, que fora
chamado “doutor”, começou a mexer em um curativo que estava em suas
costas. — Está em uma posição desconfortável, portanto...
— Quanto. Tempo.
Nathaniel repetiu a pergunta, trincando os dentes ao sentir a dor de mil
espadas perfurando seu corpo quando o médico descobriu o ferimento e
passou alguma substância no local.
— Três dias, senhor, mas foi necessário. O senhor foi transportado
inadequadamente de Plymouth para cá e teve uma hemorragia interna,
portanto...
— Recoloque o curativo, doutor. — Nathaniel virou o pescoço e encarou
o médico, que não soube como reagir à ordem. — Se não fizer isso agora,
levantarei sem.
— O senhor não deve se levantar, ainda precisa repousar. O ferimento...
— Vou morrer?
— Ainda há riscos, senhor.
— Certo. Recoloque o curativo, por favor. E, enquanto isso, conte-me
como diabos cheguei até aqui.
O médico não estava acostumado a receber ordens de pacientes, mas
Nathaniel não era um paciente comum – era indisciplinado e acostumado a
comandar. Depois de fazer uma limpeza no local da cirurgia, enfaixou
novamente o ombro enquanto explicava o que lhe fora pedido.
— Não sei dizer como chegou até aqui, Sr. McFadden. Mas fui chamado
para o tratar e o senhor estava em péssimas condições.
— Quem o chamou?
— Seu amigo, o Sr. Eckley.
Nathaniel se sentou. Ao menos, tentou se sentar, apoiando as duas mãos
no colchão e erguendo o corpo com alguma dificuldade. Sentiu uma pontada
aguda no braço esquerdo, jogou o peso para o direito e tombou de lado no
colchão. A enfermeira que os acompanhava tentou o ajudar e recebeu um
olhar fulminante que a preveniu de aproximar-se. A dor era excruciante.
— Sr. McFadden, se tentar se levantar, irá sangrar e não poderei fazer
nada para ajudar. Por favor, ouça minhas recomendações e fique deitado.
Precisa que chamemos o Sr. Eckley?
Ele concordou, relutante, apenas assentindo com a cabeça. Deixou o
corpo pender novamente para frente e caiu de bruços, sentindo o ombro
latejar. Como ele estava em posição vulnerável, a enfermeira sentiu-se segura
de aproximar e ofereceu láudano para que bebesse. Qualquer coisa que
fizesse aquela dor horrível passar seria bem-vinda, mas Nathaniel não queria
apagar. Precisava conversar com Leonard porque precisava de notícias de
Lucille.
Permaneceu ali, um pouco desorientado, lamentando seus infortúnios,
enquanto ouvia a enfermeira andar, o médico fechar a porta e então o
silêncio. Enquanto esperava, podia pensar no que fazer dali em diante.
Provavelmente sabiam que era ele quem estava com a filha de Walter Smith,
mas isso seria abafado para evitar o escândalo. Ninguém deveria supor que a
mulher fora sequestrada ou fugiu, todo o processo de resgate foi tratado pelos
criminosos mais sorrateiros de Nova Iorque. O pai de Lucille precisava
garantir que a sua classe social não soubesse de nada, para que nada chegasse
aos ouvidos do futuro marido da filha.
Então, Nathaniel não estava particularmente em risco, mas ele fora levado
para o Gênesis, não para sua casa. Aquilo também significava que seu amigo
não confiava que Walter Smith não fosse tentar retaliar. Eles tinham um
histórico de desavenças passadas, era de se esperar cautela de ambos os
lados.
Mas a possibilidade de deixar Lucille para trás era simplesmente absurda.
Ele não a abandonou nenhuma das vezes em que teve a oportunidade, bem
antes de se envolverem. Se ela não quisesse casar-se com o tal marquês, se
isso ainda não acontecera, ele a ajudaria a cumprir seu plano. Talvez fosse o
sentimento de culpa que o movesse – se não tivesse deixado a luxúria
conduzir suas ações, nada daquilo teria acontecido.
Tempo passou sem que ele percebesse. Deitado em uma posição
incômoda, um minuto tinha a duração de duas horas. A porta do cômodo
onde ele estava alojado se abriu e algumas lamparinas foram acesas. A luz do
dia se esvaía quando a figura taciturna de Leonard ajoelhou ao seu lado. Os
olhos escrutinadores o observaram.
— Você está péssimo.
— Preciso sair daqui, tenho que falar com ela.
Nathaniel tentou usar os braços para erguer o corpo outra vez, sem
sucesso. Sua força se esvaíra e seus músculos não obedeciam a seus
comandos – era efeito do ópio. O maldito láudano, ele precisava parar com
ele.
— Nate, não seja imbecil. Não está em condições nem se se alimentar
sozinho, quanto mais de falar com alguém.
— O que sabe dela? Você tem notícias de Lucille, Leo? Ela já... o noivo
dela já...
— O navio de Londres ainda não atracou, ela deve estar sendo mantida
em casa. O pai não arriscará outra fuga. Vou pedir que preparem um caldo,
você precisa comer alguma coisa.
Leonard saiu e Nathaniel quis gritar. Se estivesse de pé, chutaria alguns
móveis, socaria a parede e se sentiria melhor. Talvez saísse e quebrasse a cara
de algum devedor, mas não podia fazer nada daquilo. Aliás, desde que
Lucille se metera em sua vida ele não pode mais esfolar nem esmurrar
ninguém. Por isso nunca se deixava abater, pois não aguentava ficar em
posição de vulnerabilidade. O amigo retornou algum tempo depois e arrastou
uma cadeira para o lado da cama. Segurava um prato com um aroma
delicioso de qualquer coisa – com a fome que estava, não haveria comida
ruim.
— Coma. — Leo levou uma colherada do caldo à sua boca. Pela posição,
uma parte escorreu, precisando ser contida por um guardanapo. — Isso será
um desastre, mas precisamos continuar tentando.
A insistência de Leonard demonstrava que ele era um bom amigo para
Nathaniel. Os dois compartilhavam um trauma recente que poderia os ter
destruído para sempre e isso os fez bastante unidos. O Eckley tinha uma
compreensão bastante peculiar sobre certo e errado, mas isso nunca os
colocou em confronto direto. Naquele momento, agradeceu por tê-lo ao seu
lado. Quando já estava finalizando a sopa, tendo ingerido pelo menos metade
do líquido, a porta do quarto se abriu novamente e o um empregado do clube
chamou Leonard para cochichar alguma coisa.
— Não sou um inválido. O que está havendo?
— Alguém deseja me ver. — Leo apoiou o prato na mesa de cabeceira e
se levantou. — Deve ser algum problema no salão, já retorno.
Capítulo décimo sexto

A CULPA QUE ESMAGAVA O PEITO DE L EONARD E CKLEY ERA RESPONSÁVEL POR


aquele agir tão cauteloso. Nathaniel estava bem, mas não conseguia sair de
perto do amigo. Deveria ter sido mais inteligente, mas nunca fora muito
esperto em lidar com o chefe. Era Nate quem o enfrentava, quem discutia as
decisões. Leonard não, ele apenas acatava e obedecia, como um soldado. E
sua tolice fez com que o amigo quase perdesse a vida.
Porque Leonard tinha certeza que fora o chefe quem contara sobre o
paradeiro de Lucille Smith para os homens que a resgataram. Por que ele fez
aquilo? Ainda precisaria descobrir, mas, primeiro, teria de garantir que Nate
estivesse bem.
Percorreu alguns corredores por onde se ouvia o barulho da jogatina e
outros ruídos menos decentes. Estava pronto para encerrar qualquer discussão
rapidamente, mas surpreendeu-se ao ver uma jovem mulher usando uma capa
escura. Não era nem uma prostituta, nem um frequentador do clube. Ela tinha
grandes olhos verdes e olhava ao redor como se tivesse acabado de entrar no
inferno. Bem, aquele era o Gênesis, talvez fosse o mais próximo que a
humanidade conhecesse daquele conceito.
— Sr. Eckley? — Ela perguntou, assim que o viu.
— Sim, sou eu. E a senhorita é...
— Millicent Ryan. — A mulher estendeu a mão para que ele a
cumprimentasse. Leonard a segurou entre as suas e beijou os nós dos dedos,
fazendo com que ela se assustasse. As americanas nunca paravam de diverti-
lo. — Eu... eu preciso falar com o Sr. McFadden. Foi por ele que chamei.
— O Sr. McFadden não está disponível, senhorita.
— Então terei que falar com o senhor.
— E sobre que assunto poderíamos conversar às sete da noite, em um
antro de jogatina? A senhorita sabe que está em um clube masculino, não
sabe?
— Sim, eu estou bastante ciente de onde estou, senhor. Ainda assim,
gostaria de conversar.
Leonard a olhou de cima embaixo. Era uma jovem bonita, simples,
bastante diferente do tipo que costumava frequentar a cama de Nathaniel.
Não deveria ser uma de suas conquistas amorosas, então ele teria de a ouvir
para saber o que desejava.
— Certo, senhorita. Vamos conversar, siga-me.
Leo conduziu a mulher até o seu escritório e chamou um empregado para
pedir que servisse chá. Depois, indicou uma poltrona para que ela se sentasse
e esperou que a Srta. Ryan dissesse alguma coisa.
— Eu venho a pedido da Srta. Smith. Lucille Smith.
O nome fez com que ele se engasgasse mesmo sem ter bebido nada. Uma
das ajudantes da cozinheira trouxe o chá e se assustou com a crise de tosse de
Leonard, apressando-se para servir a bebida e se retirar. A Srta. Ryan
entregou um bilhete amassado para ele, que, tentando se recuperar, o leu.
— Por que ela pediu que nos procurasse?
— Creio que ela deseje notícias do Sr. McFadden. Não sei exatamente o
que houve nesses dias em que minha amiga ficou desaparecida, Sr. Eckley,
pois ela não me atualizou de seus planos. Porém, imagino que os senhores
estiveram envolvidos em sua fuga.
— Não posso comentar sobre isso, Srta. Ryan. E, sinceramente, não sei
como poderia ajudar a sua amiga.
— Bem, se o senhor não sabe... ao menos eu poderia conversar com o Sr.
McFadden? Pelo menos um dos pedidos de Lucy eu gostaria de atender.
— Como eu disse, o Sr. McFadden não está disponível.
— Mas ele está bem?
— Não, eu não estou bem.
A voz de Nate ecoou pelo escritório e fez com que Leonard se levantasse
em um pulo. Ele vinha sem camisa, com o curativo mal amarrado e se
recostando pela parede, mal conseguindo ficar de pé. A Srta. Ryan arregalou
os olhos, assustada, mas correu para ajudar.
— Meu Deus, Nate, você enlouqueceu? O que faz fora da cama?
— Sua conversa estava demorando demais, suspeitei que havia algo
errado. E estava certo. Por que diabos não levou a amiga de Lucy
imediatamente para falar comigo, Leo?
— Você não pode se preocupar com isso agora, Nate. Desde que
conheceu essa mulher, você...
— Lucille. — As letras foram bem demarcadas nos lábios de Nathaniel.
— Essa mulher tem nome, mas você deve se referir a ela como Srta. Smith.
Depois de conseguirem o fazer sentar-se em uma poltrona, Leonard lhe
serviu um uísque. Millicent Ryan já deveria estar assustada o suficiente com
um homem ferido e quase nu à sua frente, mas não demonstrou nenhum
descontrole.
— Sr. McFadden, sou Millicent, amiga de Lucille Smith. Ela demonstra
preocupação com o senhor.
— Como ela está? A senhorita falou com ela?
— Não, sua mãe me entregou um bilhete. A informação oficial é que ela
está doente, mas eu sei que o pai a mantém presa. Ele é um homem ruim,
apesar de que Lucille sempre me escondeu a real dimensão dessa maldade.
— Preciso ir até ela.
Nathaniel tentou levantar-se novamente, sendo impedido por Leonard. O
comportamento do McFadden não era coerente, ele nunca agira com tanta
imprudência em relação a nada. E ali estava, colocando sua vida em risco
por... uma mulher?
— Você não vai a lugar algum, ferido assim. Veja, o curativo está todo
ensanguentado e o doutor deu recomendações...
— Leo, você não é minha mãe. Nem meu irmão, o Conde de Cornwall,
toma decisões por mim. Sou livre nesse maldito país, portanto, se eu digo que
vou tirar Lucille daquela casa, é porque irei.
A Srta. Ryan ajoelhou-se à frente de Nathaniel e apoiou as duas mãos nos
joelhos dele. Aquelas duas mulheres eram bem pouco atentas às regras de
decoro, pois não pareciam desconfortáveis tocando homens em lugares
inadequados.
— Sr. McFadden, eu o entendo. Lucy tem esse efeito sobre nós,
acabamos todos gostando dela mais do que deveríamos. Ela é boa, abnegada,
gentil, trata todos com respeito e é muito destemida. Mas o senhor deveria
ouvir seu amigo. Não está em boa forma para enfrentar Walter Smith, isso só
colocaria Lucy em perigo.
— E a senhorita acredita que ela esteja à salvo em casa, Srta. Ryan? —
Leo perguntou, temendo a resposta. Esperava que ela dissesse que sim,
certamente, mas suspeitava que estivesse enganado.
— Não, Sr. Eckley. Para a mãe ter interferido, imagino que ela esteja
sofrendo.
— Então, nem a Rainha poderá me impedir de tirá-la daquele lugar.
Quando Nathaniel tomava uma decisão, ele seguia com ela até desistir ou
morrer. Não havia como dissuadi-lo de resgatar Lucille Smith,
principalmente porque Leonard estava certo, o amigo estava apaixonado.
Podia negar o sentimento, e provavelmente o fazia, mas agia conforme as
emoções o afogavam. Que os deuses pagãos que protegiam aquelas terras os
protegessem, pois ele tinha certeza de que Nate ainda arrumaria muita
confusão.

O espelho não costumava mostrar hematomas decorrentes das surras de


Walter Smith, mas a dor ainda a deixava desconfortável. Talvez fosse algo
mais grave e ela provavelmente precisaria ver um médico – mas não
permitiria que ninguém a visse fragilizada. Ainda, estava nervosa demais para
autopiedade, esperando ansiosa uma resposta de Millicent.
Não sabia o que ela conseguiria com aquele bilhete confuso, mas
esperava que fosse qualquer coisa. Esperava, ainda, que Nathaniel
entendesse o que ela não disse. A ausência de notícias dele apenas piorava
uma situação já bastante ruim. Provavelmente, estava sendo tola, mais uma
vez. Nada indicava que aquele canalha teria algum interesse nela, que ele
fosse realmente se importar com qualquer coisa que acontecesse com ela.
Lucille foi um obstáculo no caminho de Nate e ele estava certamente
desesperado para livrar-se dela. Ainda assim, ela precisava saber se ele ficou
bem depois do que aconteceu – não acreditava que pudesse ter morrido. A
força vital de Nathaniel McFadden não poderia ter se extinguido tão cedo no
mundo.
Vestiu-se com uma saia e uma blusa simples, sem espartilho, e debruçou
sobre a janela. Seu quarto ficava no segundo andar, com um pouco de
coragem ela poderia simplesmente pular e se libertar novamente. Mas parecia
simples demais – um plano pouco elaborado certamente estaria fadado ao
fracasso, já que seu pai era um homem bastante poderoso. Enquanto
observava o lado de fora e pensava em como fugir do destino, a porta de seu
quarto se abriu e a mãe entrou.
O coração de Lucille disparou. Constance trazia um papel dobrado e tinha
uma expressão confusa, ambígua, aquela que não permita uma leitura clara de
seus sentimentos.
— Sua amiga respondeu.
Ela estendeu o bilhete e Lucille se esticou para o pegar. O choque ao
reconhecer a letra de Nathaniel fez com que precisasse se sentar para o ler. A
mensagem continha apenas duas frases, poucas palavras.

Lucy, estou chegando. Esteja pronta hoje à noite.

A simplicidade do escrito a confundiu e ela olhou para a mãe, que a fitava


com os olhos brilhantes. Era como se ela estivesse se esforçando para não
demonstrar emoções.
— Você leu? — Constance balançou a cabeça negativamente, indicando
que respeitara sua privacidade. Aproximou-se de Lucille e indicou que ela
deveria se levantar.
— Não sei o que sua amiga planeja, mas espero que ela consiga. Você
não é como eu, Lucille. Pensei que pudesse aceitar esse casamento e ir para
longe dele, ir embora. Na Inglaterra você seria livre.
— Como eu poderia ser livre me casando com um velho que me trata
como um produto em uma prateleira?
— Ele provavelmente não exigiria muito de você. Logo, morreria e a
deixaria amparada por uma boa quantia, o que a permitiria uma vida tranquila
bem longe daqui. Bem longe de seu pai.
— O que você não entende, mãe, é que eu apenas trocaria de prisão.
Hoje, pertenço ao meu pai, se me casar, pertencerei a meu marido. A não ser
que esse homem esteja disposto a me respeitar e a me tratar com dignidade, o
quão diferente ele será de Walter Smith?
Constance sorriu, passou as mãos pelos cabelos ainda curtos, com pontas
irregulares, e se afastou novamente.
— Pensei que vocês não sofreriam com ele se eu me mantivesse
obediente e servil. Não peço que me perdoe por não ter a sua coragem,
Lucille, mas estou disposta a dar a você as chances que não tive. Você confia
nesse Sr. McFadden?
— Sim, eu confio.
— Certo. Então eu espero que ele mereça essa confiança.
A mãe saiu e fechou a porta atrás de si, deixando Lucille confusa e muito
mais nervosa do que antes. Seu coração martelava, causando dor nas costelas
feridas, porque Nathaniel estava vivo e estava indo resgatá-la. Não sabia o
que ele planejava, mas certamente era arriscado. Também não sabia o que
podia fazer para o ajudar, e a impotência a estava enlouquecendo.
A empregada entrou com seu almoço e deixou sobre a mesa. Ao invés de
sair, a jovem permaneceu de pé, olhando para Lucille que se aproximava da
comida com algum desinteresse. Não tinha fome nem vontade de comer
desde que retornara para casa. Suas roupas já estavam frouxas e ela estava
fraca, mas também não conseguia dormir nem descansar. Sentou-se à frente
do prato que lhe fora servido e segurou os talheres com as mãos trêmulas. A
sopa tinha um aroma delicioso de caldo de carne e ela se forçou a tomar um
pouco.
— Está do seu agrado, senhorita?
— Sim, Anna, está muito saboroso. Você pode ir, não precisa me esperar.
— Certo, senhorita. Apenas... apenas gostaria de dizer que nenhum de
nós concorda com o que está acontecendo. Se houver algo que possamos
fazer para ajudar... podemos deixar portas abertas, ou trancadas, se a
senhorita precisar.
Ela olhou para a expressão corajosa de Anna e entendeu que não podia
continuar se acovardando. Era uma mulher adulta, bastava sair andando
daquela casa sem olhar para trás. O pai faria o que, a mataria? Talvez, mas
Lucille não deveria ter medo de morrer.
— Obrigada, Anna. Hoje à noite, se virem algum movimento suspeito,
peço que não falem nada nem avisem a ninguém.
— Não vamos, senhorita.
Com um meio sorriso, Anna deixou o quarto. Lucille encarou a sopa e
decidiu que, mesmo indisposta, precisava comer. Afinal, se havia um plano
de resgate para acontecer naquela noite, precisava estar pelo menos apta a
caminhar com seus próprios pés. Depois, preparou uma pequena mala com
algumas roupas fáceis de vestir e que não amarrotariam muito, deixou
escondida em um canto do quarto e se deitou. Acabou cochilando um pouco,
mais pela exaustão absoluta do que por sono, enquanto esperava o anoitecer.

Pistolas não eram sua arma favorita, mas era a escolha mais segura. Pelo que
Millicent o informou, havia dois seguranças permanentes cuidando da casa
dos Smith e ambos estavam armados. Neutralizá-los não seria difícil, mas
Nathaniel não queria derramamento desnecessário de sangue. Por isso, pediu
ajuda a Leonard Eckley para o acompanhar e ajudar com os trâmites.
O plano era simples – eles entrariam na casa e tirariam Lucille de lá. Pela
porta da frente, ignorando qualquer regra de convivência social que pudesse
existir. Se o acusaram de sequestro, antes, então ele agiria como um
sequestrador. A diferença era que a vítima não faria nenhuma oposição a ir
com ele – ao menos era o que esperava. Nathaniel não tinha certeza se Lucille
o acompanharia. Ela poderia não ter coragem o suficiente, mesmo que
duvidasse disso. Ela poderia simplesmente ter mudado de ideia. Mas, se
tivesse, teria mandado o bilhete?
— Você sabe que está arrumando problemas maiores do que poderá lidar.
— Leonard escondeu a pistola no cós da calça e ajeitou o colete.
— Sim, eu sei.
— E sabe que, quando o chefe descobrir, teremos que explicar por que a
filha de Walter Smith foi trazida para cá.
— Leo. — Nate fechou os botões de seu colete, depois de garantir que
seu curativo não estava machado de sangue. — Nenhuma dessas questões me
importa. Se não quiser se envolver, diga-me logo pois terei de conseguir
outra ajuda.
— Claro que vou “me envolver”. Jamais perderia um sequestro-resgate na
casa mais bem protegida dessa cidade. Apenas quero me certificar que está
fazendo isso consciente de todas as implicações.
— Eu nunca ajo inconscientemente.
Duas facas foram adicionadas ao colete, a arma preferida dele. Conferiu
no relógio, passava de meia-noite. Aquele era o horário de maior movimento
no Gênesis e os dois gerentes se ausentariam, secretamente, para cometer um
crime. Não que fosse a primeira vez, eles já fizeram aquilo antes – mas fora
sempre para cumprir ordens, nunca por decisão própria. Cavalgaram até a
residência dos Smith porque era a forma mais fácil de fugir, depois. Nathaniel
sentiu dor, bastante dor, enquanto o cavalo galopava pelas ruas irregulares,
mas a adrenalina o entorpecia – nenhum ferimento seria capaz de desviá-lo
do caminho.
Pararam os animais na lateral da casa vizinha e os amarraram com nós
frouxos. Aquela era uma região muito movimentada durante o dia, mas já
estava tarde demais para o trânsito de pessoas. Uma ou outra carruagem
transitavam, levando os endinheirados para festas, clubes e cassinos, e
ninguém prestaria atenção neles.
— A Srta. Ryan disse que os seguranças ficam dentro da casa.
Provavelmente, temos um em cada porta. Eu vou pela frente.
— E os empregados?
— Espero que estejam do nosso lado, ou que temam nossas armas.
Leonard assentiu, mas estava visivelmente preocupado. Nathaniel nunca
fazia nada sem ter um planejamento extremamente detalhado. Aquele resgate
levaria pelo menos cinco dias para ser organizado, contando com auxílio de
mercenários, suborno dos empregados, estabelecimento de uma rota de fuga
– e ele não pensou em nada daquilo. Tudo que faria seria entrar na casa e
levar Lucille embora.
A porta estava trancada, obrigando-o a arrombar. Usando um grampo de
cabelo, outro objeto que costumava carregar nos bolsos internos, destrancou a
fechadura e empurrou a porta com cuidado, esperando que a escuridão lhe
servisse de manto protetor. Seria ideal que não houvesse confronto, mas ele
estava com muita vontade de bater em alguém. Assim que botou os dois pés
na casa, viu a sombra de um homem se mover e escondeu-se, esperando que
viesse o procurar. Vestido com casaco preto e com uma pistola na mão,
aquele era certamente um segurança contratado por Walter Smith.
Nathaniel pulou sobre ele e colocou a faca encostada no pescoço do
homem, que se assustou e disparou um tiro para trás. Aquele era o alerta que
apressaria a missão. Com um golpe certeiro, ele derrubou a pistola e, em
seguida, derrubou o segurança, pisando sobre sua garganta para garantir que
ele não gritasse. Nenhuma lamparina foi acesa e Leonard apareceu, com os
cabelos desgrenhados e uma corda nas mãos, que jogou para Nathaniel.
— Amarre-o.
— E o outro?
— Tivemos ajuda. Quando entrei, ele estava derrubado com uma ferida
na cabeça. Dois criados bem grandes estavam próximos, vigiando, e me
auxiliaram a amarrar o homem.
— A Srta. Ryan tinha razão, Lucille é adorada por todos. — Nathaniel
deu dois nós para garantir que o homem ficaria imobilizado, com as mãos
para trás e os punhos amarrados nos tornozelos. — Fique aqui, vou encontrar
o quarto dela.
— Não precisa de cobertura?
— Fique de olho no corredor, então.
Os homens subiram as escadas e não enfrentaram nenhuma resistência.
Segundo informações colhidas com Millicent Ryan, o quarto de Lucille
ficava no terceiro andar, virando à esquerda no corredor. Para o quarto dos
pais, a suíte de Walter Smith, bastava virar à direita. Não havia nenhuma
lamparina acesa, eles contavam apenas com a iluminação precária da avenida,
que entrava por uma única janela no final do corredor.
Por não desejar arriscar a integridade física de ninguém, Nathaniel tinha
pressa. Pisou firme pelo piso de madeira, indo na direção indicada, chamando
por Lucille em baixa voz. Leonard ficou de guarda observando qualquer
movimento suspeito. De repente, uma das portas se abriu e ela surgiu no
corredor. Usava um vestido escuro e carregava uma pequena mala – foi tudo
que ele conseguiu ver.
— Nate.
Lucille vagou em sua direção e ele a recebeu nos braços, aliviado. Beijou-
a na testa e indicou que deveriam ir embora, mas o resgate não sairia sem
dificuldades. Quando já estavam no térreo, chegando ao salão de entrada,
lamparinas foram acesas e uma voz masculina gritou nos andares superiores.
— O que diabos está havendo aqui?
Era Walter Smith. Nate teve certeza ao ver como Lucille arregalou os
olhos ao ouvi-lo.
— Vá para a porta. Leonard espera lá fora.
— Nate…
— Prometo que não vou matá-lo.
Ele precisava prometer aquilo, ou não saberia se conseguiria confrontar o
Smith sem acabar-lhe com a vida. Como um tigre saltando sobre a presa,
Nathaniel encurralou o pai de Lucille descendo a escada e o derrubou no
chão, colocando a pistola apontada para sua testa. O homem arregalou os
olhos e tentou gritar, mas Nate apenas balançou a cabeça indicando que era
melhor que não o fizesse.
Poderia dizer que sonhou com aquela oportunidade, com a chance de
meter uma bala na cabeça de Walter Smith, mas não poderia fazê-lo. Piscou
algumas vezes e desarmou o gatilho.
— Não tente pegar sua filha de volta. Ela só retorna para essa casa se
quiser. Venha atrás dela e eu arrancarei sua pele e pendurarei para secar no
Central Park.
Como planejado, Nathaniel saiu pela porta da frente e encontrou Lucille e
Leonard com os cavalos. Era o máximo de afronta possível, apenas
lamentava que Nova Iorque inteira não fosse ver. Se um dia Nathaniel temeu
envolver-se com aquele homem, se ele desejou não ter nenhum confronto
com ele, antes, não se importava mais com aquilo.
— Vamos nos separar. — Disse, para Leonard. — Pegue o caminho pela
Quarta e eu sigo pelo Central Park.
O amigo concordou. Nathaniel segurou a mão de Lucille, que
demonstrava bastante entusiasmo em o seguir. Fez com que ela subisse em
Zeus, o cavalo que escolhera para a fuga, e montou logo em seguida. Um tiro
foi disparado no vazio, vindo da mansão dos Smith. Por sorte seu inimigo não
era um bom atirador, ou ele seria alvejado pelas costas novamente.
Zeus era rápido e Lucille precisou agarrar-se com força ao colete de
Nathaniel para manter-se equilibrada. Ele sentiu dor, sentiu o ferimento
latejar, mas não podia parar de correr.
— Para onde estamos indo? — Ela perguntou, erguendo a face para olhá-
lo.
— Para o Gênesis. É o único lugar onde posso oferecer segurança a você.
— Ele virá atrás de mim.
— Ele não ousará, eu deixei bem claro o risco que ele correria se viesse.
Apesar do que sentia, do que preferia não sentir, do que seu coração, duro
e frio como pedra, gritava, ele manteria o plano que ela traçara, antes. Se
Lucille queria fugir para a Inglaterra, ele lhe concederia aquela oportunidade.
Como uma demonstração de alívio, ela afundou a face em seu peito e o
envolveu com os dois braços.
Quando chegaram ao Gênesis, foram direto para a parte dos fundos.
Aquele era o território de Nathaniel, ele nunca seria afrontado em sua própria
casa. Ajudou Lucille a descer, entregou o cavalo para o empregado que
cuidava das montarias e a levou para o quarto andar, pela escada secreta de
acesso. Apenas eles conheciam aquele caminho e ninguém, além deles,
possuía as chaves.
O corpo foi vencido pelo ferimento assim que chegaram aos aposentos de
Nathaniel. Ele mal terminou de subir as escadas e desabou ao chão.
Capítulo décimo sétimo

— N ATHANIEL ! — E LA GRITOU AO VÊ - LO CAIR . E NTROU EM DESESPERO ,


pensando que fora atingido pelo pai, mas depois lembrou que ele já estava
ferido. A fuga foi tão rápida e frenética que ela sequer teve tempo de
perguntar sobre sua saúde. Uma mancha vermelha tingia a manga da camisa e
ela notou que o colete estava ensopado de sangue.
Por sorte, Leonard apareceu em seguida. Com Millicent. Lucille não
entendeu o que a amiga fazia ali, mas descobriria depois. Não conseguia
pensar em mais nada que não fosse o homem que a salvara não apenas uma,
mas várias vezes durante aquela jornada.
— O que houve?
— Ele caiu, está sangrando.
— Ele é teimoso, eu avisei que não deveria ir. Vamos, ele precisa ir para
a cama.
Nathaniel não estava desmaiado, apenas parcialmente consciente.
Balbuciava alguma coisa e parecia em um estado febril. Leonard o ergueu e
as duas mulheres ajudaram a conduzi-lo para uma cama grande e coberta com
uma colcha estampada. O lugar parecia um pequeno apartamento, com uma
escrivaninha, cadeira, estante com livros e enfeites, uma mesa redonda para
refeições rápidas, lareira e a cama.
Ela levou as mãos aos botões dele e começou a abri-los. Millicent e
Leonard conversaram alguma coisa que não conseguiu ouvir, pois estava
distraída e concentrada nos cuidados com o homem ferido. Depois de o livrar
da camisa, retirou a bandagem e expôs o ferimento – com pelo menos dois
pontos rompidos. As bordas estavam avermelhadas, era uma ferida recente.
Ele não deveria bancar o cavaleiro de armadura para resgatá-la estando
naquelas condições.
— Vou chamar o médico. — Leonard disse, por fim. — Vocês duas, não
saiam daqui. Esse lugar é restrito, vocês ficarão trancadas. Entendem o que
digo?
As duas balançaram a cabeça e Millicent trouxe uma bacia com água e
uma toalha. Lucille agradeceu, em silêncio, e começou a limpar o ferimento.
A cada vez que levava novamente a toalha para a bacia, a água ficava
vermelha de sangue e precisava ser trocada.
— Milly, o que faz aqui?
— Esperava por você. Queria ter certeza que ficaria bem, que o plano
deles daria certo.
— Não foi um plano, foi quase um suicídio. — Lucille estava aborrecida.
Ele não podia se colocar em risco daquela forma, ela não merecia aquele
sacrifício. — Mas obrigada por ser uma amiga tão boa.
Depois de limpo, o ferimento parecia melhor. Nate, no entanto,
continuava quente. Ela passou os dedos pelos cabelos loiros, grudados de
suor no pescoço e nas têmporas, e percebeu que eles estavam ainda maiores.
A barba por fazer era uma característica que ele parecia cultivar, também.
Deslizou a mão pelo braço flácido e dobrou o corpo para beijá-lo. Pela
posição de bruços, apenas tocou a boca suavemente na bochecha dele, mas
notou que os lábios de Nathaniel se esticaram em um sorriso.
Millicent a observava com assombro.
— O que há entre vocês?
Lucille se levantou e foi até o lavabo, que ficava depois de uma porta.
Colocou a bacia e a toalha sobre a pia, apoiou as duas mãos no lavatório e
baixou a cabeça. Ela não sabia responder àquela pergunta.
— Eu não sei, Milly.
— Como não sabe? É difícil assim?
— É. Eu acho que... eu tenho quase certeza que estou apaixonada por ele.
Como era esperado, a revelação fez com que Millicent tivesse um acesso
de tosse. Ela mesma, que tivera três dias em cativeiro para lidar com aquela
informação, chocou-se por sua capacidade de dizê-la em voz alta. Não
parecia um absurdo, uma jovem inexperiente como ela, apaixonar-se pelo
homem que lhe apresentou o mundo. Mas não se tratava de um homem
qualquer – elas estavam falando do diabo.
A amiga a empurrou para dentro do lavabo e fechou a porta, como se
aquilo as isolasse do mundo e tornasse as verdades difíceis um pouco mais
possíveis.
— Pelos deuses, Lucy. Não era para isso ter acontecido, era apenas para
se livrar do tal marquês.
— Eu sei, Milly. Acha que acordei um dia determinada a me apaixonar
pelo maior canalha que conhecemos? Mas há algo nele... algo que só se você
o conhecer poderá compreender.
— E você o conhece?
— O suficiente.
Barulho de madeira e vozes masculinas ecoaram pelo quarto, fazendo
com que elas saíssem do lavabo com a conversa inacabada. Leonard retornara
com um homem de bigodes, que estava debruçado por sobre Nathaniel
enquanto balançava a cabeça para um lado e para o outro.
— Vou refazer os pontos, mas o senhor precisa ficar de repouso, Sr.
McFadden. Por favor, tente não sair da cama por pelo menos até amanhã.
Nate rosnou alguma coisa incompreensível. O médico começou a
trabalhar no ferimento e Leonard arrastou as mulheres para a escrivaninha.
Serviu-se de um uísque e pegou um relógio para conferir a hora.
— Srta. Ryan, a senhorita dormirá aqui, também?
— Não, eu preciso voltar para casa. — Milly o olhou com espanto. —
Meus pais são bastante tolerantes, mas há limites que não devo ultrapassar.
— Certo, eu a escoltarei até sua residência. Já passa de uma hora da
manhã, as ruas estão perigosas demais nesse horário. Srta. Smith, consegue
lidar com tudo até meu retorno?
Lucille olhou para Nathaniel deitado, para o seu entorno, para Leonard.
Há dias não se sentia tão protegida. Concordou com um movimento de
cabeça e os dois amigos deixaram o quarto. Ficou implícito, na despedida de
Millicent, que elas ainda tinham assuntos pendentes. A porta ficou aberta até
o doutor terminar o serviço.
— Ele está semi consciente. — Disse. — Refiz os pontos, coloquei um
emplastro e enfaixei o ombro, mas não posso fazer mais nada se ele insistir e
levantar e descumprir minhas orientações.
— Eu o manterei na linha.
O homem despediu-se dela e Lucille fechou a porta. Havia uma chave na
fechadura e ela a girou duas vezes até travar. Aproximou-se da janela,
entreaberta, e observou que estava muito escuro e silencioso. Não havia
movimento na rua, mal se podia ver a rua. E eles estavam no quarto andar, a
possibilidade de alguém entrar pela janela era ínfima. Com um movimento
rápido demais, fechou as cortinas e se confinou dentro daquele espaço de
quatro paredes.
Ela estava com medo. Não queria que soubessem ou percebessem, mas
estava assustada. Olhou para o homem estirado na cama e o quis estapear ao
mesmo tempo que o quis beijar. Estava confusa e prestes a ter um ataque de
nervos quando ele a chamou.
— Lucy.
A voz rouca e baixa atraiu sua atenção. Lucille tirou os sapatos e subiu na
cama ao lado dele.
— Você é louco, Nate. Por que fez isso, por que foi lá me buscar se
estava tão ferido?
— Prometi que a ajudaria a fugir. Eu cumpro minhas promessas, Lucy.
Maldito fosse aquele canalha que tinha, no fundo, alguma honra para
preservar. Ela tremia quando ele ergueu o braço e segurou suas mãos na dele.
Mãos grandes, masculinas, com as palmas calosas, que empunhavam uma
pistola e seguravam um punhal com a mesma elegância que as acariciavam
e... Lucille não queria pensar no que ele fazia com aquelas mãos porque
estava irritada com ele. Agradecida pela salvação, mas muito aborrecida por
ele ter feito aquilo estando tão machucado.
— Onde eu vou ficar? — Ela perguntou, cedendo aos carinhos que ele
fazia em seus braços.
— Aqui está bom? — Ele virou o corpo de lado para olhá-la. — A cama é
grande o suficiente.
Ela não resistiu. Levantou-se, apagou as lamparinas, deixando apenas o
fogo rarefeito da lareira para iluminá-los, e se deitou ao lado dele, perdendo-
se em um abraço quente e adormecendo. Foi a primeira noite que dormiu
inteira desde que fora capturada pelos capangas de seu pai, a primeira noite
em que se sentiu segura, mesmo sabendo que, na manhã seguinte, Nova
Iorque inteira a estaria procurando.
Quando despertou, Nathaniel estava ao seu lado. Ela não sabia se ele
dormia ou estava sob efeito dos opiáceos, mas pode gastar algum tempo
observando-o. De bruços, sem camisa, com as costas lisas e construídas por
músculos bem definidos, ele era uma figura esplêndida. Ela o admirou por
longos segundos. A forma como a respiração ressonante fazia o tórax subir e
descer, a boca entreaberta e as pálpebras pesadas escondendo os olhos azuis –
tudo nele parecia feito para a provocar e ela não podia se perder naquele
homem por mais tempo.
Foi até o lavabo arrumar-se. Os raios de sol tentavam penetrar pela
cortina pesada que ela fechara à noite e aquele seria um dia decisivo. Prendeu
os cabelos que estavam frouxos, retirou o vestido, ficou apenas com suas
roupas íntimas – um conjunto de seda branca com detalhes em verde - e
pegou uma toalha para se refrescar. Não havia um chuveiro, mas seria
suficiente que pudesse passar um pano embebido em água fresca pelo corpo.
Havia um espelho grande em frente ao lavatório e Lucille pode ver
quando ele entrou. Não que ela tivesse colocado algum obstáculo para
impedir que Nathaniel a interceptasse no banheiro, mas teve a impressão de
que ele respeitaria sua privacidade. Claro que não, ele não tinha pudor algum.
Sem dizer nada, Nate pegou a toalha de sua mão e a passou pelo pescoço
exposto. Lucille sentiu os lábios quentes que a beijaram no mesmo lugar.
— Vejo que despertou melhor. — Ela provocou, sentindo-o, encaixar-se
por trás dela. As mãos deslizaram pelos braços até que ele recolocasse a
toalha dentro de uma bacia.
— Nem tanto. Preferia que estivesse na cama, comigo.
— Lembro-me que o senhor disse que não gostava de dormir com
mulheres.
Nathaniel pressionou o corpo contra o dela, espalmando as mãos na parte
frontal do espartilho.
— Parece-me que tenho um problema com a senhorita, especificamente.
A boca dele voltou para seu pescoço. O homem tinha tentáculos como um
polvo, envolvendo-a, encapsulando-a, estimulando-a em todos os lugares que
ele sabia que a fariam gemer. Ela se virou para protestar, para dizer que ele
estava convalescendo e precisava voltar para a cama, mas o movimento
serviu apenas para conceder-lhe mais acesso. Nathaniel a segurou pela cabeça
e a beijou com urgência e paixão. Passou a língua por seus lábios, buscando
espaços para um beijo que ela não queria compartilhar com nenhum outro.
Nunca mais, em nenhuma ocasião. Estava arruinada, sim, mas não naquele
sentido cruel que a sociedade considerava. Estava arruinada porque sabia que
não seria capaz de sentir-se daquela forma com mais ninguém.
Ela o tocou, segurando-o pelos quadris, com medo de feri-lo ainda mais.
Deveria ter consciência e o obrigar a voltar para a cama, mas precisava
daquele toque – desde que fora tomada dele, pensando que estivesse morto, e
suportara dias de ausência e incerteza. Nathaniel afrouxou seu espartilho e
livrou-se da peça com habilidade única. Depois, ergueu-a do chão e a fez
sentar sobre o aparador onde estavam seus itens de toalete. As mãos
deslizaram da cintura para o centro de suas pernas, encontrando a abertura
conveniente da roupa íntima.
— Molhada. — Ele disse em seu ouvido, obsceno e indecente. — Pronta
para mim?
Sim, totalmente pronta. Lucille não sabia o que ela queria dele, apenas
que era mais. Desde que decidiu despir-se e buscar a ruína com aquele sem-
vergonha, ela quis cada vez mais – um toque, um beijo, uma mão atrevida. A
cada descoberta, ela não se contentava com o que tivera antes. Daquela vez
ele foi bruto, quase rude. No instante em que ela assentiu, silenciosa,
entregando sua boca para outro beijo, ele apenas levou as mãos até suas
calças, desabotoou-as e a penetrou.
Ela gemeu, sentindo-se expandir pela dureza e grossura do membro
masculino.
— Machuco você?
Lucille balançou a cabeça indicando que não. Era curioso como eles
invertiam os papéis durante aquele ato – ela se perdia nas palavras e ele as
encontrava, tornando-se bastante eloquente. Mas a intensidade do momento
fez com que ninguém estivesse apto a conversar. Nathaniel investiu contra
ela, aprofundando a penetração a cada estocada, e a beijou, tocando os seios
por cima da seda fria. Os quadris dele a empurraram contra o espelho, as
mãos dele deslizaram para suas coxas, acariciaram a carne macia e circularam
o seu ponto de prazer, fazendo com que ela gemesse o nome dele. Era como
uma oração – Nate, Nate, Nate – enquanto ele se movia com força e
intensidade dentro dela.
Ela não teve vergonha de se entregar ao prazer, daquela vez. Assim que
sentiu o êxtase se aproximar ela o agarrou e permitiu que ele a arrebatasse,
forçando-a a arquear o corpo e cruzar as pernas ao redor dos quadris de
Nathaniel. Ele permaneceu imóvel dentro dela e a tomou em um beijo
lânguido. Todas as suas energias estavam concentradas em uma única parte
do seu corpo, aquela que se encolhia ao redor do membro masculino com
toda força que ela não tinha.
Depois que os espasmos reduziram, ele voltou a estocar. Nathaniel
segurou-a pelos quadris e se moveu intensamente, murmurando seu nome até
desencaixar-se dela com um urro gutural.
— Por que você sai? — Ela perguntou, abraçada a ele, tocando seu ombro
com cuidado e observando que o curativo estava intacto. Ele demorou alguns
segundos para a responder.
— Você sabe o que significaria se eu ficasse?
Não, ela não sabia. Apesar do desprendimento de conversar sobre
indecências com suas amigas, elas não se aprofundavam em nada referente ao
coito. O ato sexual era um mistério, e as casadas, que o conseguiram
desvendar, não explicavam absolutamente nada para as solteiras.
— Não.
— Se eu derramasse minha semente em você, Lucy, você poderia
engravidar.
Nathaniel era sempre rude, objetivo, sem meias palavras. Ele não a
tratava como uma completa idiota, explicava sem floreios qualquer coisa que
ela quisesse ou precisasse saber. Ela não se chocou pela ausência de pudor,
mas pela informação em si. Claro que ela sabia que o sexo era como homens
e mulheres procriavam, mas o seu desconhecimento sobre a mecânica do ato
a constrangeu.
— E não queremos arriscar um filho bastardo. — Ele beijou sua orelha.
— Isso acabaria com sua vida.
Aquilo sim seria a ruína absoluta. Crianças bastardas eram párias na
sociedade, mesmo que seus pais as quisessem reconhecer. Se uma criança
fosse concebida fora dos votos sagrados do patrimônio, ela nasceria e
morreria em pecado – e ela não seria capaz de fazer aquilo. Respirou aliviada
por saber que ele era consciente a ponto de não a submeter a um risco tão
grande.
— O que faremos agora?
— Nos lavaremos. Acho que precisamos, depois disso.
Ela deu uma risada espontânea.
— Perguntei sobre o dia. Meu pai não deixará de me procurar, ele vai
revirar Nova Iorque do avesso.
— Ficaremos aqui, no Gênesis. Parte do meu plano é que todos saibam
que você está aqui comigo e que nós fugimos juntos, antes.
— Céus, Nate! — Lucille arregalou os olhos, verdadeiramente surpresa.
— Mas isso...
— Isso garantirá que a sua reputação esteja na lama. Nenhum homem em
Nova Iorque vai querer se casar com você, Lucille Smith, e poderá embarcar
para a Inglaterra, para sua nova vida.
Ele estava absolutamente consciente da presença de Lucille. Acordou
precisando dela e a possuiu sem nenhuma vergonha, sem se importar nem
mesmo de perguntar se ela o desejava. Pela forma como reagia ao seu toque,
Lucille o queria tanto quanto ele a queria. Não, Nathaniel precisava de um
novo vocabulário. Ele não queria ou desejava Lucille Smith, ele necessitava
dela. E estava fazendo planos para que ela fosse embora para sempre de sua
vida.
Depois que conseguiram lavar-se satisfatoriamente, pediu que a
cozinheira do clube preparasse um desjejum para duas pessoas. O clube era
um lugar movimentado e todos os empregados eram totalmente leais a
Nathaniel e Leonard, o que lhes garantia proteção suficiente. Também
dispensava formalidades, o que o agradava bastante – assim que a comida foi
entregue, eles voltaram a ficar sozinhos, sem criados, empregados ou
interferências.
— Leonard nos manterá informados sobre todos os eventos do dia. — Ele
disse, servindo-se de café preto. — O navio vindo de Londres deve chegar
hoje, então você poderá embarcar amanhã mesmo.
— Não sei como farei isso. — Ela mordiscou um bolinho e olhou para a
xícara de chá, parecendo incomodada. — Não trouxe dinheiro comigo, Nate.
— Isso não será problema. Separei alguns fundos para você.
Lucille ergueu os olhos e o fitou como se ele tivesse dois chifres.
— Como assim separou fundos? Você pretende me dar dinheiro, é isso?
— É só dinheiro, Lucy. Eu tenho mais do que posso gastar.
— Não posso aceitar. Pedirei a Millicent que me empreste alguns dólares,
poderei pagar a ela quando começar a trabalhar.
— Por que a Srta. Ryan pode emprestar-lhe dinheiro e eu não?
— Porque acabamos de... porque nós dois... porque parece que estou
recebendo por favores...
Ela não conseguiu completar a frase, mas Nathaniel entendeu o que
queria dizer. Lucille sentia-se como uma prostituta ao receber dinheiro dele.
Estava equivocada, ele jamais a veria como uma. Ainda assim, ela ficou
desconfortável com a oferta e Nate não sabia como resolver aquilo – era a
primeira vez em muito tempo que mais dinheiro não seria a solução de um
problema.
Antes que pudesse responder, tentar uma forma de explicar sem ofender,
a maçaneta da porta girou, seguida de batidas nada sutis na madeira. Ele se
levantou e destrancou a fechadura para receber Leonard Eckley, que trazia
alguns papéis e novidades sobre o clube.
— Você quer conhecer o Gênesis, Lucy? — Nathaniel perguntou.
— Não é perigoso?
— Aqui é o lugar mais seguro de Nova Iorque.
— Então sim, eu gostaria. Ouço falar desse lugar como se fosse o Tártaro.
É tão ruim, assim?
— Creio que seja pior, senhorita. — Leo deu uma risada. — Mas estará
segura conosco, ninguém ousará importuná-la na nossa casa.
Eles terminaram o desjejum e desceram para o salão. Nathaniel sentia-se
bem, apesar do ombro repuxar e de não poder vestir um casaco para não
arriscar romper mais pontos. O Gênesis funcionava durante o dia todo, mas o
salão de jogos só abria a partir das cinco da tarde. Aproveitou para explicar a
Lucille como tudo funcionava, para mostrar a ela as mesas, os jogos, as
passagens secretas. Ela pareceu maravilhada com tudo, sem se chocar com a
ausência de sutileza de um clube masculino. Leonard não os acompanhou
durante todo o tempo, ele precisava resolver questões administrativas e
financeiras.
O dia transcorreu em uma normalidade estranha. Desde que conhecera
Lucille nada fora exatamente normal e, ainda assim, tudo acontecera como
deveria. Ela conversou com empregados, visitou a cozinha, brincou com o
gato – que nunca permitia ninguém se aproximar, e demonstrou um
desprendimento que ele já conhecia. Ao mesmo tempo, manteve-se distante
dele, olhando de soslaio, evitando conversar.
Depois de almoçarem e passarem bastante tempo vagando pelo clube,
Nathaniel retornou com ela para o quarto. Seu corpo estava exausto e
dolorido, ele precisava trocar o curativo e tomar sua morfina. Ela o fez
companhia, mas seu espírito não estava ali. Quis perguntar o que a
incomodava, por que a proximidade da conquista de sua liberdade a estava
entristecendo, mas não o fez. Nathaniel seguia uma regra – nunca se importar
– que ele já ignorara por tempo demais. Estava na hora de parar de agir como
um homem educado, como o cavalheiro que ele não era.
Capítulo décimo oitavo

P ASSAVA DE SEIS HORAS DA NOITE QUANDO N ATHANIEL DESPERTOU . E RA


noite, o quarto estava na escuridão quase total – apenas o fogo alaranjado da
lareira o iluminava. Ao seu lado, estava Lucille, também adormecida. Ela
tinha um sono agitado, tremia e balbuciava palavras que não faziam sentido,
mas permanecia dormindo. Eles acabaram adormecendo durante a tarde e
perderam a hora.
Sentou-se na cama e a olhou por vários minutos. Ele não sabia o que
estava fazendo, mas sabia que era errado. Não podia manter Lucille presa a
ele porque não havia futuro para os dois. Ao mesmo tempo, ele estava
irremediavelmente ferrado. Aquela era a primeira vez que Nathaniel William
McFadden fazia sexo duas vezes com a mesma mulher. Ela era a única com
quem ele dormira depois do sexo. Não, ela era a única com quem ele dormira
sem fazer sexo. E não era sexo - Lucille chamou de “fazer amor”. Maldição,
ela dava ao momento uma conotação diferente dele. A cópula, para Lucy,
significava alguma coisa a mais do que a mera junção de corpos suados.
E ele estava muito perto de concordar com ela.
Acendeu algumas lamparinas, ajeitou suas roupas e decidiu descer para o
salão. Aquele ainda era um horário fraco, havia poucos homens
desperdiçando o patrimônio nas mesas de carteado. Os que preferiam
prostitutas também costumavam chegar mais tarde. Perambulou pelo corredor
e encontrou Leonard em seu escritório, analisando alguns relatórios. Entrou
sem pedir licença e serviu-se de um uísque. Ele precisava beber.
— O navio aportou. — Leonard disse, sem tirar os olhos dos documentos.
— Pedi que nos avisassem assim que acontecesse, então, não demorará até
que o marquês vá até a casa dos Smith.
— Lucille disse que o homem é idoso, então deve ir direto para um hotel.
Sabe se a notícia foi devidamente espalhada?
— Com certeza. Pagamos muito bem para que as pessoas erradas
fofocassem às pessoas certas sobre a indiscrição de Lucille Smith.
Nathaniel sentou-se em uma poltrona e girou a bebida em suas mãos.
— Então está feito. Quando vierem atrás dela, amanhã, eu já terei
garantido seu embarque.
Um empregado do clube bateu à porta aberta e se anunciou.
— Sr. McFadden, o senhor tem uma visita.
— Não estou recebendo ninguém, Newton.
— Eu disse isso, senhor, mas o visitante insiste. Ele afirma que é seu
irmão.
Nathaniel deu um pulo da poltrona e pôs-se de pé em velocidade
incompatível com sua condição física. Sem dizer nada, praticamente passou
por cima de móveis e outros objetos para sair do escritório e seguir o
empregado até onde os dois seguranças impediam o visitante de ultrapassar
uma linha invisível que eles criaram.
Isaac.
Fazia muito tempo que ele não via Isaac. Eles eram muito próximos, os
melhores amigos, e se afastaram pela distância desde que Nathaniel chegara a
Nova Iorque. Comunicaram-se por cartas, mas o irmão tinha muitas
atribuições em Londres e ele passou algum tempo não desejando falar com
ninguém. Era esperado que alguém aparecesse, que a notícia da morte de
Emile fosse reportada ao irmão conde, mas Nate tinha certeza que seria
Edward que viria até ele.
Com nenhuma sutileza, passou pelos seguranças, olhou para o irmão por
breves segundos e o abraçou. Quando Isaac o apertou em seus braços, Nate
não se incomodou com a dor repentina do contato com seu ferimento, apenas
quis sentir o carinho que lhe faltara por tanto tempo.
— Meu Deus, o que houve com você? — Isaac disse, afastando-se e
percebendo que Nathaniel estava com a camisa malvestida e o ombro
enfaixado.
— Um pequeno incidente com uma pistola, mas não foi nada demais.
Céus, Isaac, o que você está fazendo aqui?
— Você não está me perguntando isso. — Isaac tirou do bolso do casaco
um telegrama meio amassado. — Nate, você mora em um clube de
cavalheiros?
— Não, eu tenho minha residência.
— Mas não vai muito lá, vai? O seu mordomo disse que você não aparece
em casa há dias.
A farsa acabara. Ele preferia receber o irmão em casa, mentir para ele
sobre seus negócios, deixar que Isaac acreditasse que ele ainda era uma boa
pessoa, pelo menos por mais um tempo. Parecia cruel revelar que, além de
ser responsável pelo desaparecimento de Emile, Nathaniel se tornara um
canalha, um homem que caminhava no limiar da lei. Mas as circunstâncias
não estavam a seu favor.
— Tem razão, eu não vou. Venha comigo, vamos conversar em um lugar
com mais privacidade. Eu explicarei tudo que quiser saber.
Não podia levar o irmão para seus aposentos, pois Lucille estava
dormindo lá, então subiu com Isaac até o escritório de Leonard, que ainda
cuidava dos documentos. Ao ver Isaac, levantou-se para cumprimentar o
amigo.
— Ora vejam, meu primo Isaac McFadden. Como andam as coisas com
Caroline? E suas crianças?
— Leonard, é um prazer revê-lo. Estamos todos muito bem. Caroline é...
Caroline. — Isaac sorriu. Ele sempre ficava um pouco tolo quando falava da
esposa. — E os meninos estão todos saudáveis.
— Não esperava que você viesse. — Nate confessou.
— Edward queria vir, sabe como ele é controlador. Mas sabemos que
Londres precisava mais de um conde do que de mim. E nós... nós sempre
fomos mais amigos do que irmãos.
O Eckley serviu mais uísque para todos.
— E sua bagagem?
— Deixei em sua casa, não sabia o que fazer. Vocês me contarão o que é
esse lugar? Por que parece que estou no Riderhood em sua versão nova-
iorquina?
— Porque você está. — Outra confissão. — Esse é o clube Gênesis, o
maior antro de jogos ilegais, apostas, prostituição e outras depravações do
norte dos Estados Unidos.
— E vocês são os donos desse clube? — Isaac arriscou.
— Não, somos os gerentes. Eu venho mentindo para vocês desde que
cheguei aqui. Nunca produzimos aço. Acho que nunca fizemos um negócio
lícito nesse ano inteiro que estivemos em Nova Iorque.
Leonard deu uma risada cínica e Nathaniel continuou encarando o tapete.
Era difícil ser um canalha olhando diretamente para o lorde perfeito, Isaac
McFadden. Não existia ninguém mais educado, gentil e correto que seu
irmão, que se decidira se manter virgem para o casamento. Em toda a sua
vida, Isaac teve apenas uma mulher em sua cama e estava feliz com isso.
Nenhum ser humano vivente poderia alcançar o nível de perfeição que seu
irmão mais velho atingira.
— Meu Deus. Foi por isso que Emile morreu?
— Ele não está morto. — Nate disparou as palavras como uma flecha.
— Como assim, não está morto? E esse telegrama?
Ele explicou ao irmão suas teorias sobre a suposta morte de Emile,
incluindo a parte em que iniciara uma jornada para tentar descobrir pistas
sobre o paradeiro do McFadden mais novo. Leonard não concordava com
nada e não fazia nenhuma questão de esconder sua opinião. Isaac estava
boquiaberto, cético em relação ao que Nathaniel dizia.
— Você também não acredita em mim. — Constatou.
— Parece-me difícil crer, Nate. Veja o que está falando: Emile teria de
sobreviver a um tiro, a uma queda e a um afogamento. Mesmo que um desse
não o matasse, o outro...
— Continuarei a procurar. Você me ajudará?
— Eu preciso de um tempo para entender tudo isso que está me dizendo,
Nate. E preciso enviar uma carta para o conde, explicando o que encontrei
aqui. Creio que você, Leo, deva fazer o mesmo – escreva para seu irmão e
conte você mesmo que estão mentindo a tanto tempo. Foi a providência
divina que me fez oferecer para vir até Nova Iorque, não imagino o que
Edward faria se tivesse de te buscar em uma casa de jogos.
— Como se Edward fosse imaculado. Você é um santo, Isaac, o conde,
não.
— Senhores, por que não saímos para jantar? — Leonard sugeriu. — Há
vários restaurantes ótimos em Nova Iorque, assim podemos colocar os
assuntos em dia.
— Não posso sair. — Nathaniel virou outra dose de uísque, mesmo
sabendo que estava exagerando. — Não deixarei Lucille sozinha.
— Quem é Lucille? — Isaac perguntou.
— Eu pedirei que busquem a amiga, a Srta. Ryan. Você não pode cercar a
mulher como se ela fosse sua, Nate.
O pronome possessivo causou um estalo dentro de Nathaniel. Como se
fosse o engatilhar de uma pistola, o empunhar de uma espada, o estalar de um
chicote. Ela era dele. Não importava o que diabos fosse acontecer, Lucille
Smith fora, e sempre seria, dele. Ainda assim, Leonard estava correto – e era
irritante que o amigo estivesse, invariavelmente, certo. Ele tinha muito o que
conversar com Isaac e ficar ali, com ela, o distrairia.
— Certo, então. O que acha da sugestão, Isaac?
— Quem é Lucille, Nate?
— É uma donzela que estamos ajudando a se livrar de um problema.
— Donzela? — Leonard riu e Nathaniel deu dois passos na direção dele,
com as mãos fechadas em forma de punhos.
— Mantenha a boca fechada, combina mais com você.
Isaac levantou-se e serviu-se de outra dose de uísque.
— Estou muito confuso, porém faminto. Vamos jantar, depois tento
entender essa nova dinâmica que desenvolveram aqui.
Leonard saiu e começou a dar ordens pelos corredores. Nathaniel foi até
seu quarto e encontrou-a desperta, sentada na cama, olhando para a janela.
Ao perceber sua chegada, Lucille se virou e passou as mãos pelo vestido para
ajeitá-lo.
— Meu irmão chegou de Londres.
Ela se levantou, sobressaltada, olhando ao redor.
— Ele viajou com meu... com o marquês?
— Provavelmente sim, mas não conversamos sobre isso. Ele quer saber
de Emile, vamos sair para jantar. Devo retornar em duas horas, você se
importa em esperar aqui?
— Por que deveria me importar, Nate? — Lucille sorriu e suas bochechas
enrubesceram. — Eu ficarei bem se me permitir remexer seus livros.
— Vamos pedir à sua amiga, Srta. Ryan, que faça companhia a você. E
pode remexer nos meus livros à vontade. Se achar algo interessante, me conte
depois.
Espontaneamente, Nathaniel a tomou nos braços e a beijou. Foi suave e
delicado, muito diferente do que estava acostumado. Um beijo que não
representava um prelúdio do sexo. Um beijo que carregava algum
sentimento. Ele nunca beijara ninguém com tanta frequência nem tanto
significado – e Lucille Smith não o rejeitou nenhuma vez.
Se Lucille achava que seu mundo havia virado de ponta-cabeça quando
decidiu fugir, não fazia ideia do que poderia acontecer depois. Nada a
preparara para Nathaniel McFadden nem pela possibilidade remota de
apaixonar-se por ele. Pela primeira vez em sua vida, ficou sem saber o que
dizer para Milly porque ela mesma não entendia o que se passava consigo.
As duas estavam trancadas nos aposentos de Nate, aproveitando um jantar
leve preparado especialmente para elas, enquanto esperavam – a noite passar,
o dia chegar, os homens retornarem.
— Toda Nova Iorque já sabe da sua ruína. — Milly disse, tomando
coragem para abordar aquele assunto. — A história foi muito bem contada,
seu canalha é bastante esperto.
— Ele não é meu canalha.
No entanto, era. A quem Lucille queria enganar?
— Ainda assim, é esperto. Sorte sua que lhe falta honradez para assumir
as consequências desse escândalo. Seu pai deve estar bastante irritado.
— Por que diz que tenho sorte?
— Oras, você quer fugir e ser livre. Se essa ruína fabricada pesasse na
consciência do Sr. McFadden, ele poderia negociar com seu pai e a tomar
como esposa.
Um arrepio percorreu o corpo de Lucille ante a mera possibilidade de se
tornar esposa de Nathaniel. Ela não soube se era por medo, repulsa ou por
ansiar que aquilo viesse a acontecer. Ela não estaria disposta a desistir de seus
planos antigos por alguns poucos dias de perdição, estaria? Certamente que
não.
— Não diga essa bobagem, Millicent! E minha ruína não é fabricada, ela
é real.
— Claro que é... você foi raptada por um homem. Mas sabemos que não é
pelo rapto em si que você está sendo considerada desonrada, mas pelo que
acham que ele fez...
— Mas é isso que estou dizendo. — Lucille dobrou o corpo para falar
mais próximo do ouvido da amiga, como se as paredes pudessem se
escandalizar com a conversa. — Ele fez.
Millicent arregalou os olhos e a encarou, assustada.
— Por Cristo, Lucy. Vocês dois... você teve coragem de... céus, me conte.
A fama dele é verdadeira?
— Todas elas, pelo que pude confirmar.
A amiga se engasgou com o vinho branco que bebia e precisou da ajuda
de Lucille para se recuperar. Depois que voltou a falar, não parou mais de
perguntar tudo sobre qualquer coisa relacionada a Nathaniel – ela também
estava fascinada pelo homem, assim como Lucille esteve, quando o
conheceu. Por volta das nove horas a porta do quarto se abriu e ele chegou,
mas não estava sozinho. Outro homem, também loiro e de olhos ainda mais
azuis, lindo como o Paraíso deveria ser, o acompanhava.
Aquele era o contraste perfeito – céu e inferno, o anjo e o diabo.
Enquanto Nathaniel era diabolicamente lindo, o outro homem carregava a
perfeição da divindade em seu sorriso. O irmão.
— Boa noite, senhoritas. Foram bem tratadas na minha ausência?
— Bem o suficiente.
Lucille respondeu, enquanto Millicent encarava os dois homens com uma
curiosidade pela qual se sentia culpada. Ela não deveria ter contado nada para
a amiga, mas não aguentava mais guardar para si todos os novos eventos de
sua vida.
— Esse é meu irmão, Isaac McFadden. Ele veio de Londres para resgatar
o filho pródigo.
Isaac balançou a cabeça e cumprimentou as duas mulheres. Exibia um
sorriso sincero e cortês quando segurou a mão de Millicent e a beijou. Fez o
mesmo com a mão de Lucille. Hábitos de um verdadeiro cavalheiro, um
homem nobre, de sangue azul. Todos deveriam ser educados daquela forma,
mas ela duvidava que fossem sempre tão lindos.
— Preciso descer para cuidar de alguns negócios. — Nathaniel disse,
aproximando-se dela e falando como se apenas Lucille devesse ouvi-lo. —
Levarei meu irmão comigo. Se sua amiga quiser passar a noite, podem ficar
em meus aposentos.
— E se quisermos conhecer o cassino?
— Está fora de cogitação.
— Nunca conheci um cassino, antes. — Milly demonstrou empolgação
com a possibilidade.
— Vocês duas não descerão para o cassino. Ele está cheio, agora, com
homens depravados e de péssima reputação. Não é um ambiente que donzelas
devem frequentar.
— Posso fazer-lhes companhia, Nate. — Isaac provocou. — Sou casado,
portanto, respeitável. E acostumado a acompanhar mulheres em antros de
jogatina.
Aquela história Lucille precisaria ouvir. O sorriso de Isaac permaneceu,
enquanto Nathaniel assumiu uma expressão ranzinza e rosnou.
— O senhor terá que explicar essa afirmativa, Sr. McFadden. — Lucille
riu.
— Ele é casado com uma ex-libertina. — A voz de Nathaniel continuava
soando como um rosnado. — O lugar preferido da mulher dele é um clube de
cavalheiros.
As mulheres arregalaram os olhos em excitação.
— O lugar preferido dela não deve ser mencionado para duas donzelas.
— Isaac provocou mais e Lucille decidiu que gostava dele. Qualquer pessoa
que tornasse desconfortável o inabalável Nathaniel era um amigo que ela
cativaria.
— Certo, façam o que quiserem. Eu preciso me trocar, se me dão licença.
Por “dar licença”, Nate queria dizer que todos deveriam sair. Não havia
um vestíbulo que lhe concedesse alguma privacidade, portanto Isaac
conduziu as mulheres para fora, mais precisamente para o escritório de
Leonard. Ao chegarem lá, encontraram-no com outro homem. Era um
homem jovem, por volta dos trinta anos, com cabelos ondulados e escuros e
uma aparência muito familiar para Lucille. Sentiu um déjà vu quando o viu,
porém não imaginava em qual baile, sarau ou evento social poderia o ter
encontrado.
Leonard enrijeceu na cadeira quando o escritório foi subitamente
invadido. Foi uma sutil mudança de comportamento, uma reação que sugeria
que ele preferia que o homem ali não estivesse ciente da presença de tantos
convidados no Gênesis.
— Oras, vejo que Nate recebeu algumas visitas.
O homem olhou para Leonard e esperou. O Eckley se ergueu e tentou
parecer indiferente ao constrangimento do momento.
— Isaac é irmão de Nate. Ele chegou hoje de Londres. As senhoritas
são... bem, talvez você deva perguntar ao maldito McFadden, pois eu ainda
não faço ideia de como introduzi-las.
— Lucille Smith. — Ela decidiu que não agiria como uma donzela tola.
Não combinava mais com a mulher que ela se tornou. — Sou amiga do Sr.
McFadden, ele está me ajudando em alguns negócios.
Com um sorriso largo, o homem segurou a mão estendida de Lucille e
beijou os nós dos dedos.
— É um prazer finalmente conhece-la, Srta. Smith. Leonard disse que a
senhorita acompanhou Nate durante sua viagem para o norte. Meu nome é
Nolan Fitzgerald, sou o proprietário do Gênesis.
Isaac também cumprimentou o homem que Nathaniel chamava de
“chefe”, mas Lucille sentiu alguma coisa estranha depois que ele se
apresentou. Como se dizer o nome em voz alta representasse uma forma de
ameaça. A reação de Leonard ao episódio como um todo apenas confirmou
para si que algo impactante acabara de acontecer – mas ela não fazia ideia do
que era.
Depois que o chefe deixou o escritório e os homens iniciaram uma
conversa masculina que capturou a atenção da sempre muito curiosa
Millicent, Lucille retornou para o quarto dele, de Nathaniel. Não sabia bem o
que faria ali, apenas se sentia arrastada para ele como se houvesse uma força
que a atraísse, algo que a puxasse para perto dele. Bateu duas vezes na
madeira e girou a maçaneta, entrando em seguida. Se a porta não estava
trancada, ele não se importaria com sua presença.
Nathaniel estava sem camisa e sem calças. Vestia apenas as ceroulas,
absurdamente justas em seus quadris firmes, e tentava, sem muito sucesso,
ajustar o curativo. Ela deu uma risadinha e o fez olhar para si. A expressão
ranzinza continuava em sua face bonita, franzindo suas sobrancelhas e
enrijecendo seu maxilar.
— Deixe-me fazer isso. — Ela se aproximou e tomou a faixa mal
ajustada da mão dele. — Sente-se na cama, eu vou ver como estão as coisas.
Ele obedeceu sem discutir, sem dizer uma palavra. Aquele homem
silencioso era mais condizente com a personalidade do canalha que fora
descrito para ela tantas vezes, mas Lucille sabia que ele também podia ser
falante e divertido. Ele a divertia. Depois de terminar de tirar a faixa,
examinou o ferimento e conferiu que as bordas não estavam mais vermelhas
e os pontos permaneciam intactos. Foi até o lavabo, pegou um pano úmido e
passou pela extensão do corte, garantindo que estivesse seco em seguida. Por
fim, passou a faixa de tecido pelo ombro e tórax de Nathaniel, garantindo que
estivesse bem presa.
— Você vai me contar o restante do plano? Porque estou me sentindo um
pouco alienada do meu próprio destino, Nate.
— O plano é seu, Lucille. — Ele sorriu, mas ela viu tristeza nos lábios
que se esticaram. — Pegar um navio, viajar para a Inglaterra, fazer algo mais
da sua vida.
— Claro, é o meu plano.
— O navio que chegou hoje retorna amanhã, para Londres. Isaac enviará
uma correspondência para nossa irmã Wilhelmina, ela a receberá no porto e
garantirá que chegue ao destino que escolheu.
— Por que esse esforço todo? — Ela ajoelhou à frente dele, ajudando-o a
abotoar a camisa branca. — Por que tanto empenho em me ajudar?
— Não sei responder a isso.
Nathaniel deixou que ela fechasse os botões da camisa antes de levantar-
se. Como sabia que ele gostava, os dois primeiros ficaram abertos, revelando
um pouco mais de pele masculina do que o decoro autorizava.
— Preciso trabalhar.
— Você está ferido.
— Não farei nada que arruine seu belo curativo. — Ele sorriu. — Tem
certeza que quer descer até o cassino agora? Os frequentadores do Gênesis
não são homens corretos e honrados, Lucy.
— Pensei que você também não era, e veja aonde estamos.
Ele passou o polegar por seu queixo e abriu a porta para que saíssem.
Lucille não sabia exatamente o que ela queria nem porque decidira passar a
noite entre jogadores e homens que desafiavam os limites da decência, mas
sentia-se estranhamente confortável ali, no mundo de Nathaniel. E ela
precisava conhecer mais daquele mundo para tomar as decisões de sua vida –
afinal, ele parecia suficientemente tendencioso a respeitar suas vontades.
Capítulo décimo nono

O G ÊNESIS ERA SEU IMPÉRIO , MESMO QUE NÃO LHE PERTENCESSE . E LE SEMPRE
se sentiu como um rei naquele castelo que ocupara com autorização do dono.
E, com os braços cruzados olhando para o salão, soube que encontrara sua
rainha. Lucille girava com a amiga, Millicent, por entre as mesas e parava
para assistir os mais estranhos tipos de jogos. Alguns homens as olhavam de
forma lasciva e Nathaniel quis pular sobre seus pescoços e quebrar-lhes os
narizes todas as vezes, mas sabia que, de alguma forma, elas estavam
seguras. Não era permitido prostituição no cassino - para isso havia o
segundo andar.
Isaac parou ao seu lado, segurando um copo de uísque na mão. Ele não se
lembrara de ver o irmão beber tanto, mas precisava aceitar que Isaac estava
confuso e ele não ajudara em nada a estabelecer alguma paz de espírito
depois da chegada de Londres. Durante o jantar, conversaram sobre Emile,
sobre sua esperança de o encontrar vivo, e o irmão não pareceu compartilhar
de seu otimismo. Nem ele estava mais tão crente em suas convicções, mas, se
não fossem elas, o que restaria?
— Ela me lembra Caroline. — Isaac disparou, bebendo um gole do seu
melhor malte.
— Ela não tem nada a ver com Caroline.
— Ah, meu irmão, você conhece muito pouco da minha esposa. Caroline
é muito mais do que uma libertina que joga, fuma charuto e bebe uísque. Ela
possui um espírito indomado, uma alegria constante, um jeito especial de nos
colocar as rédeas e nos guiar pelo caminho que ela deseja seguir.
— Ela é uma Eckley.
— Integralmente. — Isaac sorriu. — Sua Lucille também é assim.
— Ela não é minha, achei que isso já estivesse estabelecido.
Sim, era. Nathaniel já decidira aquilo, mas não tinha coragem de dizer a
ela, ou a qualquer outra pessoa. Mesmo que ela fosse embora - o que
aconteceria no dia seguinte, continuaria sendo dele enquanto ele existisse.
— Parece-me que você conhece bem pouco da natureza dos McFaddens,
também. Você é meu irmão, Nate. Mesmo que tenha se desviado totalmente
do caminho, ainda é o meu melhor amigo e eu te conheço bem o suficiente
para saber que você está apaixonado por ela.
— Você bebeu demais. — Nathaniel pegou o copo da mão do irmão e
colocou sobre o balcão do bar.
— Pode tentar se enganar e inventar desculpas para que a verdade seja
menos verdadeira. Eu também demorei um pouco a admitir que amava
Caroline.
— Você? — Ele deu uma risada. — Nunca vi um homem tão facilmente
capturado pelo amor, meu irmão. Você é honesto demais, sincero demais,
para se enganar por qualquer coisa.
— E quanto a você, o que o impede de ficar com ela?
— Não sou o homem certo para ela.
— Por que não acredito nisso?
Nathaniel virou-se para o irmão, os braços novamente cruzados no peito.
Ele e Isaac tinham praticamente a mesma altura, apenas um ano os separava
em idade, e, ainda assim, eram tão diferentes fisicamente. Isaac era como
uma pintura renascentista, um anjo loiro e de olhos tão azuis quanto o oceano
das Américas. Ele era perfeito, por fora e por dentro.
— Isaac, eu não me tornei um homem honrado. Eu fui treinado para ser
um soldado e minha missão não é lutar por meu país - não que eu ache
guerras de alguma utilidade. Eu sou um cobrador de dívidas e os devedores
me pagam por bem ou por mal. Meu dinheiro é sujo, cheira a sangue. Eu
matei meu irmão. O que acha que eu posso oferecer para uma mulher como
ela?
Os dois se viraram para onde Lucille estava. Ela vibrava porque
Millicent, que sentara em uma mesa de carteado, ganhou algumas fichas. A
maluca nem tinha dinheiro para fugir, mas estava apostando. Pelo menos,
estava ganhando. E, se perdesse para a casa, o dinheiro certamente retornaria
para ela.
Como se atendesse a um chamado silencioso, Lucille ergueu a cabeça e
olhou para eles. Seus olhos encontraram os dela e a sensação era de
reconhecimento. Familiaridade.
— Eu não a conheço o suficiente. Mas não deveria perguntar o que ela
quer?
Talvez ele devesse. Isaac estava sempre certo e aquilo era bastante
irritante, mas Nathaniel estava muito feliz que o irmão estivesse ali.
Acostumou-se a ter a família longe e perdera Emile na primeira oportunidade.
Não acreditava que pudesse perder Isaac.
— Ela tem planos. Sonhos. Amanhã eu garantirei que ela embarque em
um navio e alcance seus objetivos.
— Certo. Não vou insistir, Nate, mas eu te amo e não quero vê-lo sofrer.
Você poderia perguntar se, apesar dos planos e sonhos que Lucille tem, ela
não gostaria de realizá-los ao seu lado.
— Você nunca para de falar, não é mesmo?
— Não, é por isso que sou um ótimo administrador e as mulheres da
família me adoram. Mas agora estou exausto. Eu dormirei aqui, no meio do
vício e da promiscuidade, ou você me levará para sua casa?
— A escolha é sua, mas não posso tirar Lucille daqui. Fora do Gênesis eu
não garanto a sua proteção.
— Pegarei um carro e irei para sua casa. Converse com a mulher, se não
por você, mas por respeito a ela.
Isaac virou-se e descruzou os braços de Nathaniel para poder abraçá-lo. O
irmão não se importava em demonstrar sentimentos, mesmo que fizesse
aquilo à custa de sua masculinidade. Depois de o ver sair pela porta,
Nathaniel recostou em uma pilastra e voltou a observar as mulheres jogando.
Se soubesse que encontraria uma mulher como Lucille, ele nunca teria
tomado as decisões erradas que tomou. Nem teria se desviado tanto da
moralidade e da decência quanto fizera naquele ano.
Mas ele era um homem quebrado, amaldiçoado e não a submeteria à sua
vida de degradação. Por ela, ele gostaria de ser um homem melhor, mas não
era.

Sentada em uma poltrona, escovando os cabelos que cresciam a cada dia,


Lucille tentou imaginar o que faria quando chegasse à Inglaterra. Ela
pretendia trabalhar e estudar, ter uma vida digna e independente. Aquilo
garantira que ela pudesse fazer suas próprias escolhas e tomar as decisões que
desejasse - pelo menos enquanto fosse solteira e não se importasse com sua
honra. Porque mulheres solteiras e livres eram, em todo o mundo, mulheres
desonradas.
Olhou-se no espelho e não reconheceu a imagem que viu no reflexo.
Aquela pessoa olhando para si e repetindo todos os seus gestos não era a
mesma de duas semanas atrás. Aquela não era a Lucille Smith, aquela era a
Lucille de Nathaniel. Céus, por que ela o culpava por toda a sua
transformação? Por que creditava a ele seu novo corte de cabelo, sua
teimosia, sua petulância e sua falta de vergonha? Ela sempre fora daquela
forma, apenas não podia se expressar, não tinha liberdade o suficiente para
ser ela mesma.
— Dormirei com Leo.
A voz dele a sobressaltou. Lucille não se lembrava de o ter ouvido entrar
- o homem era silencioso como um fantasma.
— A cama aqui é grande o suficiente.
— Não sei se é uma boa ideia dormirmos juntos, Lucy.
Ela virou-se e sorriu, tentando entender o que se passava naquela cabeça
confusa.
— Você não pode estar preocupado com algum decoro, agora.
— Não estou preocupado com decoro, apenas…
Nathaniel suspirou e não terminou sua frase. O azul daqueles olhos
flamejava e Lucille não sabia se o compreendia. Precisaria de uma vida
inteira para entender um homem que escondia tão bem sua alma - e ela tinha
apenas algumas horas.
— Então eu durmo em outro lugar. Um sofá, sobre o tapete. Você está
ferido, nada me obrigará a ficar nessa cama para você ficar mal acomodado.
Levantando-se, Lucille se aproximou e tocou o ombro esquerdo, por cima
da camisa. A mão retornou seca, não havia manchas de sangue nem umidade.
— Como está se sentindo?
— Pronto para o que for preciso que eu faça.
Ele a fitava com o semblante rígido, as sobrancelhas unidas, a testa
franzida - e estava ainda mais lindo. O cabelo estava cortado, mas havia uma
sombra de barba para fazer que ele provavelmente cultivava por dois dias.
Lucille gostava da aparência dele agora, assim como gostou antes. Subiu a
mão e acariciou os fios soltos, meio grudados no pescoço, roçou os dedos
pelo maxilar rígido e salpicados de pelos, passou o polegar pelo lábio inferior
até arrancar dele um suspiro.
— Entende por que não podemos dormir juntos? — Ele a segurou nos
braços firmes e a beijou. — Porque eu não consigo resistir a você. Não mais.
— Outro beijo, daquela vez mais rápido e urgente, fez com que os seus
joelhos cedessem.
— Aí não seria dormir. Vamos, eu vou te ajudar a trocar as roupas e
depois vamos nos deitar - e prometo obrigá-lo a se comportar.
Nathaniel a presenteou com um sorriso, mas havia alguma tristeza em seu
olhar, em seu semblante. Por trás da devassidão, ele escondia algo que ela
não conseguira alcançar.

Batidas à porta fizeram com que Nathaniel saltasse da cama segurando sua
pistola. Lucille continuava dormindo ao seu lado, enrolada nos lençóis. Se
houvesse um caderno de anotações de primeiras vezes, ele poderia tomar nota
de todas as vezes que aquela mulher tirara dele a virgindade e a virilidade.
Não podia afirmar que fora uma noite casta - ele a beijou até à exaustão, até
quase cansar-se da boca dela. Pensou que poderia arrancar Lucille de si à
força, esgotando-a, mas os beijos serviram apenas para o fazer desejá-la ainda
mais.
— Quem é?
— Sr. McFadden, o chefe pediu que fosse até seu escritório.
— Avise-o que estou descendo.
— Ele insistiu que fosse rápido.
O chefe sempre queria tudo em seu tempo. Esperava que não fosse
nenhum problema grave com devedores insubordinados, pois, apesar de ter
dito a Lucille que estava pronto para qualquer desafio, ele ainda se sentia
dolorido demais para enfrentar homens com seus punhos. Pretendia manter-
se afastado das cobranças por pelo menos mais uma semana.
Enfiou-se em suas calças, vestiu uma camisa branca e um colete cinza,
escovou os dentes, lavou o rosto com água fria e penteou os cabelos.
Parecendo-se demais com um McFadden, considerou que mandaria alguém
buscar seu irmão para que pudessem passar o dia juntos. Apesar do cuidado
para não acordar Lucille, ela despertou antes que conseguisse sair do quarto.
— Já vai trabalhar? — Aquela voz rouca, de quem acabara de acordar,
fez com que o corpo dele reagisse.
— O chefe precisa falar comigo, vou ao escritório dele. Continue
dormindo.
Ele não se virou para olhá-la, nem a cumprimentou adequadamente. Se
fizesse aquilo, não conseguiria sair do quarto, não conseguiria atender o chefe
no tempo exigido. A presença disponível de Lucille fazia com que ele
continuasse a desejando, mesmo sabendo que estava prestes a desistir dela.
Abriu a porta sem bater, sabendo que era aguardado, e parou subitamente
ao ver um rosto bastante conhecido - e totalmente inesperado. Sentado em
uma poltrona, bebendo o melhor conhaque do chefe, estava Thaddeus
Pinkterton, o herdeiro do Marquês de Hertford.
— O que diabos está havendo aqui?
Ele disse, sem se preocupar em cumprimentar ninguém. Gostava de Thad,
eles eram amigos e passaram bons momentos juntos, na juventude. Mas
Nathaniel não era mais o mesmo homem e não sabia se Lorde Pinkerton
também o era.
— Sente-se, Nate. Temos assuntos a tratar.
O chefe indicou uma cadeira, mas Nathaniel apenas segurou o encosto
com as duas mãos. Observando os dois homens, uma realização o atingiu
como um raio em dia de tempestade - o marquês de Lucille era Hertford. O
pai de Thad, que era viúvo há anos, e poderia perfeitamente estar à beira da
falência. Todas as informações condiziam com a história contada por Lucille,
e Hertford era realmente desagradável.
— É um prazer revê-lo, Nate. — Pinkerton ergueu a mão para
cumprimentá-lo, mas ele permaneceu imóvel. — Meus sentimentos por seu
irmão. Emile era um ótimo homem.
— O que você está fazendo aqui, Thad? Por que fui convocado para essa
reunião?
— Bem, percebo que você não está interessado em conversar. Então,
vamos aos negócios. Eu vim buscar minha noiva.
As sobrancelhas de Nathaniel se uniram sobre o nariz e ele fitou o amigo
por longos segundos. As palavras não eram críveis o suficiente para que ele
as compreendesse.
— Não faço a menor ideia do que esteja falando.
— Meu pai faleceu há dois meses. Deixou dívidas praticamente
impagáveis. Se eu quiser recuperar o marquesado, precisarei vender
praticamente todas as propriedades alienáveis e isso nos colocará em ruína
absoluta - pois não haverá nada mais para produzir lucro.
Nathaniel caminhou lentamente até o armário de bebidas e serviu-se de
uma generosa dose de conhaque.
— E você decidiu assumir o contrato de casamento de seu pai.
— Parece ser a alternativa mais razoável. Ela é jovem e carrega um dote
absurdo.
Ele olhou para o chefe, que se mantinha expectador até aquele momento.
— O que você tem a ver com isso? Por que está se envolvendo? Aliás,
como diabos você sabia que ela estaria aqui, Thad?
— Toda Nova Iorque sabe, Nate. — O chefe disse, mas Nathaniel sabia
que ele mentia. Toda Nova Iorque podia saber, mas não era aquele o motivo
de Thaddeus Pinkerton estar em sua sala. — Você garantiu que a reputação
dela estivesse definitivamente arruinada.
— Mas, pelo visto, não o suficiente para que Thad desista dela.
— Aonde ela está?
O marquês deu dois passos na direção de Nathaniel e ele sentiu que um
confronto se aproximava. Nunca vira Thaddeus resolver nada com os punhos
ou suas armas, o homem sempre fora um diplomata nato. Não se alterava,
não elevava o tom de voz, não desafiava. Mas ali, naquele momento, o peso
das acusações fez com que os dois homens se estranhassem.
Não que Nathaniel fosse se incomodar com aquilo. Ele poderia destruir
Thad com uma mão nas costas, mesmo que não quisesse ferir o amigo.
— Em algum lugar.
— Você não quer mesmo brigar comigo, Nate. — Thad colocou as duas
mãos no colarinho meio aberto de Nathaniel e fingiu que ajeitava o tecido,
mas todos sabiam que o toque significava uma ameaça. — Sabe que eu
sempre fui melhor lutador que você.
— Isso foi antes de eu me tornar o melhor cobrador de dívidas de Nova
Iorque, Thad.
Nathaniel respondeu à provocação, disposto a atacar primeiro. Mas, antes
que pudesse mandar o novo marquês para o inferno, a porta do escritório
abriu-se novamente e Leonard entrou, junto com Lucille. Ele fechou os olhos
e praguejou internamente. Tudo que não precisava era que ela estivesse ali.
Com os olhos vagueando entre as faces dos homens presentes, Lucille se
aproximou dele e o tocou no ombro. Nathaniel se controlou para não a
envolver nos braços e afastá-la do olhar de Thad, que permanecia ao seu lado
e escrutinava a mulher como se ela fosse um objeto raro em exposição. Mas
não podia fazer aquilo. Primeiro, porque as decisões sobre os homens de
Lucille deveriam ser dela própria. Segundo, porque ele precisava considerar
que Thaddeus Pinkerton seria um marido perfeito.
Ao invés de deixar seus ciúmes irracionais o controlarem, Nate pegou a
mão dela de seu ombro e, olhando sempre em seus olhos castanhos e
confusos, beijou os nós dos dedos.
— Lucille, o navio que trouxe meu irmão ontem também trouxe seu
noivo de Londres.
Ela piscou várias vezes, como se precisasse clarear a visão.
— Você me disse isso, ontem. Mas seu olhar me faz pensar que há uma
novidade em relação a essa informação.
— A novidade é que estávamos enganados. O homem com quem seu pai
tratou previamente era o Marquês de Hertford, mas ele faleceu há dois meses.
Os olhos de Lucille se arregalaram e ela o encarou com surpresa, talvez
alívio. Ninguém interferiu na conversa dos dois porque qualquer um ali sabia
do que Nathaniel era capaz para defender algo com que ele se importasse - e
certamente era bastante óbvio para seus amigos que ele se importava com
aquela mulher.
— Então, como ele veio de Londres?
— O novo Marquês de Hertford veio negociar para assumir o lugar de seu
pai. Ele é o homem que está de pé ao seu lado, segurando um copo de
conhaque.
Ele se forçou a sorrir, garantindo que ela se sentisse segura para virar a
cabeça e olhar.

O pescoço de Lucille virou para a direita e ela precisou de uma força que não
sabia que tinha para evitar que sua boca se abrisse. O homem que estava de
pé, ao seu lado, prestando atenção excessiva na sua conversa com Nathaniel
era jovem, talvez por volta dos trinta anos, com cabelos escuros como os dela
e olhos tão azuis quanto o céu na primavera. Ele tinha feições masculinas,
sobrancelhas grossas e lábios desenhados. Tão lindo quanto o Paraíso deveria
ser.
Lucille sentiu-se zonza quando seus olhares se encontraram. O marquês
bebeu seu conhaque e sorriu. Nathaniel hesitou, mas soltou a mão dela e deu
alguns passos para trás. Ela entendeu que ele a deixaria se apresentar ao seu
futuro ex-noivo, ao homem a quem não sabia que estava prometida.
— É um prazer finalmente conhecê-la, Srta. Smith. — Ele segurou sua
mão, que ela não lembrava ter estendido, e beijou. Lucille sentiu um arrepio
em sua coluna. — Sou Thaddeus Pinkerton, o Marquês de Hertford.
Ela enrijeceu ao olhar diretamente para o azul transcendental dos olhos do
marquês.
— Você não deveria ter trazido Thad aqui. — Leonard rosnou para o
chefe.
— Claro que eu deveria. Nathaniel precisa resolver essa questão e
entregar logo essa mulher antes que ele perca a cabeça de uma vez.
— Não falem de Lucille como se ela não estivesse aqui. — Nate também
rosnou. A relação entre eles não parecia de hierarquia. — E eu não vou
entregar ninguém, ela não é minha para que eu a mantenha.
— Mas você deseja mantê-la, esse é o problema. — O chefe insistiu.
— Isso não deveria ser um problema seu.
— Passou a ser quando você a trouxe para meu clube.
— Se o problema é esse, então vamos embora. Você traiu minha
confiança.
— Eu? Deveria conversar com Leonard sobre isso, afinal, como acha que
os capangas de Walter Smith a encontraram?
Lucille afastou-se da conversa e observou o que acontecia. Leonard
passou o braço na testa, limpando suor que se acumulou ali. Nathaniel o fitou
com fúria assassina, como se a confirmação daquela informação pudesse o
levar a matar o melhor amigo.
— O que isso significa?
— Eu não contei nada a Walter Smith. — Leonard murmurou, mas algo
em sua voz indicava que ele mesmo acreditava em sua traição.
— Contou a quem?
— A mim. — O chefe disse. — Ele se preocupa com você, assim como
eu. Tive de me envolver ou você acabaria causando mais confusão. Deixe-a ir
com o marquês, Nathaniel.
Ele deu alguns passos na direção do chefe e se colocou na frente dele,
agarrando-o pela camisa. Pela forma como Leonard o olhou, não esperava
aquela reação. Apesar da falta de hierarquia, havia respeito - ou medo - que
os mantinha em uma posição de resignação com tudo que o chefe fazia. Mas
as mãos de Nathaniel estavam no colarinho perfeitamente engomado de
Nolan Fitzgerald e ele quase ergueu o homem do chão. Para um homem
esguio como Nate, Lucille não achava que ele seria tão forte.
— Não diga que você contou a Walter Smith onde estávamos. Não diga
que você colocou a vida dela em risco em quase me matou, Nolan!
Outra reação surpresa de Leonard - como se falar o nome do chefe, gritar
com ele ou ameaçá-lo de, de qualquer forma, fosse mais grave do que torturar
pessoas. Lucille e o marquês apenas observavam a contenda, ela bastante
nervosa com o desenrolar dos fatos.
— Não direi, se preferir assim.
— Você é um maldito! Por que diabos fez isso? Por que ajudar aquele
animal que nos largou para morrer?
— Ele não é um animal, Nathaniel! — O chefe se soltou e ajeitou a
camisa. — Ele é um visionário e nosso principal investidor.
— Investidor? — Foi Leonard a se surpreender.
— Sim. Walter Smith empenhou muito dinheiro no Gênesis. Que pai não
teria orgulho de um filho de sucesso, como eu?
A palavra “pai” poderia ter sido mal compreendida, ou poderia se perder
entre outras, mas pareceu atingir Nathaniel como se fosse outra bala
disparada. Ele deu dois passos para trás, cambaleando, e olhou para o chefe
por longos segundos até desaparecer pela porta. Lucille quis correr atrás dele,
mas seus pés estavam fincados no chão como se tivessem criado raízes.
— Você sabe que acaba de o perder, não sabe? Que diabo é isso? Como
você pode ser filho de Walter Smith?
Leonard não pareceu importar-se em discutir aquilo na frente deles. O
marquês permaneceu em silêncio, observando.
— É um risco que precisava correr. Vocês achavam que estão vivos
porque eu enfrentei Smith? Vocês ficaram vivos porque eu pedi e ele me
permitiu mantê-los. Nunca esqueça a quem deve sua vida, Leonard.
Lucille piscou mais algumas vezes, como se o ato pudesse melhorar sua
audição.
— O que o senhor disse?
Sorrindo, o chefe se aproximou.
— Sabe de onde acha que me conhece, Srta. Smith? Se procurar nas
caixas de recordações de sua mãe, talvez descubra. Dizem que filhos
bastardos nascem muito parecidos com seus pais porque, assim, eles
carregam a lembrança constante do pecado que os gerou.
Lucille desabou na poltrona que, por sorte, estava próxima de si. As
novas verdades que foram reveladas para ela acabaram sendo intensas
demais, chocantes demais.
— Então o senhor é meu irmão. — Ela repetiu. — Sempre soubemos que
meu pai era infiel à minha mãe, mas…
— Não fiz o que fiz por mágoa de Walter Smith. — O chefe explicou. —
Não guardo nenhuma. Na verdade, esses dois só estão vivos porque eu os
quis alistar para o Gênesis - nosso pai sabe e se orgulha de meus negócios.
Ele não pode me reconhecer por uma questão legal, mas sempre disse que
sou o filho que ele gostaria de ter ao seu lado.
Certamente era. O irmão mais velho de Lucille era um homem sensível e,
quando teve a oportunidade de ir embora de casa, desapareceu praticamente
sem deixar vestígios. Ela soube que ele estava no sul, mas nunca recebera
uma carta dele e sabia que o pai o deserdara depois do casamento.
Aquele homem ali era tudo que Walter Smith desejava em um herdeiro -
força, determinação e nem uma gota de arrependimento por suas ações.
Leonard passou pela porta como um tornado e a deixou sozinha com dois
desconhecidos - nos quais ela não sabia se podia confiar. Mas sentir medo
não era uma opção.
— Milorde, eu lamento que nos conheçamos nessas condições, com
tantas revelações para perturbar esse encontro. Mas eu preciso dizer que não
tenho intenção de honrar o acordo que meu pai fez com o seu.
Lorde Pinkerton sorriu, devastadoramente lindo. Havia algo nele que a
atraía, fazia com que seus olhos se fixassem em seu rosto perfeito.
— E eu não tenho intenção de arrastá-la à força, Srta. Smith. Mas ficarei
em Londres por mais alguns dias e gostaria de ter a oportunidade de lhe fazer
a corte.
Com extrema gentileza, o marquês segurou novamente sua mão e a
beijou, permitindo que ela sentisse o calor de seus lábios, e saiu.
Capítulo vigésimo

L EONARD O ENCONTROU EM SEU LUGAR FAVORITO - N ATHANIEL CHAMAVA DE


sala de tortura. Era para onde ele levava os devedores que precisavam de um
incentivo para pagar suas dívidas. O lugar era sombrio, escuro e parecia um
museu da Inquisição, mas Nathaniel sentia uma estranha paz de espírito ali
dentro. Não era o melhor lugar para o desafiarem, mas Leo foi esperto. Isaac
estava com ele.
— Eu não traí você. — Ele disse, depois de alguns minutos de silêncio.
— Ao menos, não conscientemente. O chefe, ele… eu jamais imaginaria que
ele fosse ligado ao Smith.
— Não quero conversar agora, Leo.
— Você precisará enfrentar isso uma hora ou outra. O chefe é filho do
canalha do Smith!
Nathaniel girou em seu eixo e encarou os dois homens, que tiveram a
sensatez de deixar a porta aberta. Claro que ele precisaria conversar sobre
esse assunto, mas palavras só viriam depois que ele compreendesse o que
aquilo significava. O chefe colocou sua vida em risco. Mentiu para eles.
Nunca houve um dia de verdade em toda a sua estadia nos Estados Unidos.
— E eu não tenho condições de lidar com um homem que coloca seu ódio
pelo pai acima de tudo.
— Ele não o odeia. Se tivesse ficado até o final, ouviria que ele o admira.
Tudo que fez, até agora, foi para agradar o Smith.
— Eu também não sabia que a noiva que Thad mencionou era sua
mulher.
Isaac disparou, interferindo.
— Ela não é minha, pelos deuses! Lucille não pertence a ninguém, ela é
uma mulher livre.
— Mas você está apaixonado por ela. — Isaac insistiu. — Tenha pelo
menos a decência de assumir seus sentimentos e contar a ela.
— Não sou um homem decente há mais de um ano. Acho que nunca fui
um.
— Auto depreciação não combina com você, Nate.
Ele não aguentava mais ouvir ninguém falar. Sua cabeça estava latejando
desde que descobrira que o homem para quem Lucille estava prometido era
um verdadeiro nobre. Digno, honesto, correto, educado, e um dos mais
requisitados amantes que ele já ouvira falar. Tudo que alguém pudesse dar a
Lucille, Thad poderia dar melhor - e em dobro. Com exceção da riqueza, pois
o marquesado estava falido - porém, Nate sabia que ela não era presa a bens
materiais.
Se, antes, ele poderia pedir que ela ficasse, poderia voltar atrás em sua
promessa de a ajudar a fugir e pedir que ela permanecesse com ele, a situação
estava de repente mais complicada. Thad não desistiria facilmente de sua
noiva e ela não estaria mais segura na Inglaterra. Em verdade, ele acreditava
até mesmo que Lucille deveria reconsiderar a decisão e casar-se com o novo
Marquês de Hertford. Juntos, eles conquistariam a Grã-Bretanha.
— Preciso de ar.
— Aonde você vai? — Leonard tentou bloquear sua passagem, mas ele
sabia bem que não deveria.
— Cuide de Isaac.
Passando pelo amigo e pelo irmão, Nathaniel cruzou o salão do Gênesis e
saiu porta afora. A luz do dia quase feriu seus olhos e a dor em seu ombro se
intensificou. O que ele queria, naquele momento, era bater em alguém, em
alguma coisa. Se entrasse em uma briga, poderia se machucar muito e Lucille
não o perdoaria. Talvez fosse ideal que ela se irritasse com ele, mas não era
isso que Nathaniel precisava. Virou a esquina, com passos apressados, e
entrou na academia do Sr. Dawson.
Ali ele também encontrava paz. Um saco de areia era uma excelente
companhia, pois poderia assumir várias formas - a face de qualquer desafeto.
Quando ele enfaixou as mãos, tirou a camisa e começou a socar, a primeira
imagem que se formou no couro foi a de Walter Smith. Ele queria matar,
esfolar, arrancar a cabeça do pai de Lucille depois de fazê-lo sofrer os
maiores horrores que um homem poderia sofrer. Ele já o odiava antes, mas o
odiava ainda mais depois que ele colocou sua filha em uma posição de não
escolha.
Depois, ele socou Thaddeus Pinkerton, o maldito marquês e seu nariz
perfeito, seus cabelos macios, seus olhos azuis como os de Isaac. Nathaniel
não era o McFadden mais bonito - todos os seus irmãos eram tão belos que
ofuscavam o nascer do sol em Thanet. Para disputar espaço com eles,
precisou ser o mais libertino. Aquele que sempre sabia satisfazer as mulheres.
Que trocava de cama três, quatro vezes por noite. Então, ele sabia que,
mesmo não sendo mais bonito que Thad, conseguiria satisfazer Lucille.
Só que o maldito marquês também era um homem por quem toda mulher
suspirava. Então, ele queria esmurrar aquele rosto bonito até reduzi-lo a uma
massa disforme, porque Thad não tinha o direito de vir a Nova Iorque
disputar a sua mulher.
Maldição! E, por fim, Nathaniel estava surrando a si mesmo, porque a sua
estupidez era sem limites.
— McFadden! — A voz de Dawson ecoou pela academia. O instrutor de
boxe segurou o saco de areia e o encarou com uma expressão irritada. —
Você está sangrando, já sujou todo o meu chão. O que diabos pensa que está
fazendo?
Nathaniel passou a mão pelo ombro e sentiu o líquido quente escorrendo
por suas costas.
— Mande limpar e me envie a conta.
— Faz semanas que você não aparece aqui. O que houve aí?
— Uma bala, mas estou bem.
— Percebo que sim. Devo chamar o médico?
— Não, retornarei ao Gênesis.
Dawson jogou uma toalha sobre ele.
— Vá tomar um banho.
Rosnando como um cão raivoso, Nathaniel recusou. Usou a toalha para
estancar o sangramento e saiu bufando pela porta.

— Ele quer me cortejar. E o dono desse clube é meu irmão bastardo.


Lucille disparou a informação sobre sua amiga. Millicent chegou ao
Gênesis no final da manhã e foi recebida com duas granadas atiradas em sua
direção. Mas ela estava nervosa, muito nervosa, e precisava falar com
alguém. Estavam sentadas nos aposentos de Nathaniel e ela não fazia ideia de
para onde ele fora.
— Comece do início. Quem quer te cortejar, o Sr. McFadden?
Antes fosse.
— Não, o marquês.
Lembrando que Millicent não sabia que o marquês, seu prometido, era
um jovem lindo e absurdamente charmoso, explicou à amiga os
acontecimentos da manhã. A cada frase, a boca de Milly abria um pouco
mais, até o momento que a colher que usava para mexer o chá caiu no chão.
O homem que a queria desposar era lindo, poderoso e educado. Não
cheirava a tabaco e uísque, mas a sândalo e sabão de barbear. Tinha a pele
lisa e mãos que não carregavam nenhuma marca de esforço. E o homem que
Nathaniel chamava de chefe era seu irmão. Ela não sabia lidar com nenhuma
daquelas informações, não fazia ideia de como enfrentar sua nova realidade.
Não que seus sentimentos tivessem mudado. Mas, ainda assim, era muito
para entender.
— Lucy, sua vida está muito confusa. — Millicent segurou-a pelas duas
mãos. — E agora, o que fará? Ainda está disposta a fugir? Ou vai se casar,
como deseja seu pai?
— Não vou me casar. — Ela sacudiu a cabeça como um cão sacode as
pulgas. — Continuo querendo fazer algo da minha vida, não ser uma esposa
figurativa que salvará um marquesado da ruína.
— Então, precisa tomar decisões. Se você quiser ficar alguns dias na
minha casa, podemos protegê-la. Meu pai não permitirá que o seu te leve
embora se você não quiser ir.
— Não quero causar problemas para vocês. Há muito acontecendo, queria
apenas um tempo para refletir sobre tudo.
A porta do quarto se abriu e Nathaniel entrou, suado, imundo e cheirando
a sangue. A camisa estava manchada de vermelho e o semblante de quem
poderia devastar uma cidade inteira apenas com o olhar a assustou. Ela nunca
o vira daquele jeito, nem quando surrou os brutamontes que a agrediram ou o
homem no cassino.
— Céus, Nate. Você está sangrando de novo? O que houve?
— Precisava pensar, então fui à academia de boxe.
— Homens são engraçados. — Millicent ponderou. — Pensam com os
punhos, não com a cabeça.
— Socar as coisas ajuda a clarear a mente, Srta. Ryan. Preciso de um
banho, mas também preciso conversar com você, Lucille.
Ele colocou um papel sobre a escrivaninha. O envelope estava tingido de
vermelho, do sangue que escorria do ferimento nas costas, e continha um
bilhete de embarque. Ela conferiu que data, horário e destino. Como
prometera, ele lhe comprara uma passagem para a Inglaterra, no mesmo
navio luxuoso em que seu irmão viajara, para a manhã seguinte. Aquela era a
sua carta de alforria, a liberdade para ir embora de Nova Iorque de uma vez e
buscar fazer tudo aquilo que desejou e não conseguiu.
Não eram muitas coisas. Lucille queria estudar, trabalhar, ser útil, ajudar
pessoas. Ela não se importava com riqueza material - sempre teve muito
dinheiro e ele nunca lhe trouxe felicidade. Aquele bilhete de embarque
poderia ser o início da realização de um sonho.
— Você já sabe o que isso significa. — Nathaniel se apoiou na parede,
deixando uma marca de sujeira e sangue no papel de parede adamascado. Ele
parecia exausto e com dor. — Se quiser seguir o plano, prepare suas coisas.
Mas eu acho que você deveria aceitar a proposta de Thad.
— Acha que eu devo me casar com o marquês? — A voz dela saiu mais
estridente do que esperava.
— Ao menos converse com ele. Deixe que ele te leve para um
piquenique, uma cavalgada, um passeio - sei lá que tipo de bobagem significa
fazer a corte atualmente.
— O senhor não tem nenhuma objeção de que o marquês corteje Lucille,
Sr. McFadden? — Millicent questionou. Lucille virou para ela, desejando
esganar a amiga por fazer aquela pergunta.
— Por que teria? — Ele continuava encarando-a com a mesma expressão
de antes. — Lucille deve tomar suas decisões sem a necessidade da minha
intervenção. Ela já mostrou que consegue fazer isso. Apenas sugiro que
considere todas as opções, antes.
Ela se sentou e passou os dedos pelo bilhete de embarque.
— A passagem é reembolsável? Pode ser remarcada?
— Só haverá outro navio em duas semanas. Não se importe com o valor
gasto nesse bilhete, Lucy. O que você quer fazer?
Erguendo os olhos, ela o fitou demoradamente. Queria beijá-lo. Colocá-lo
em uma banheira, ajudá-lo a se lavar e, depois, beijá-lo novamente. Queria
olhar todos os livros daquela estante para procurar uma história que
pudessem ler juntos. Queria ficar ali, naquele quarto, por uma semana inteira,
até se sentir forte o suficiente para enfrentar o mundo novamente.
Mas ele não queria nada daquilo. Provavelmente, Nathaniel estava louco
para livrar-se dela de uma vez e poder retornar à sua vida normal. Se não, por
que estaria sendo tão diligente em mandá-la para a Inglaterra?
— Quero falar com o Marquês de Hertford.
Ele moveu a cabeça assentindo e Millicent deixou escapar uma interjeição
de surpresa.
— Certo, então vamos embora daqui.
— Embora?
— Sim. Não confio no homem que se apresentou com seu irmão e que eu
chamava de chefe. Esse maldito não pensou duas vezes em te entregar para o
Smith, Lucy, ou em trazer Hertford aqui. Não ficaremos mais no Gênesis.
— Vamos para a sua casa?
Nathaniel se desencostou da parede e abriu a porta novamente, indicando
que elas deveriam sair.
— Parece-me que sim, vamos para a minha casa.
Lucille pegou a mala que trouxera de sua casa e seguiu pela porta,
acompanhada de Millicent. Não sabia se aquela era a decisão mais adequada,
mas ela lhe dava mais tempo na companhia do homem que ainda não estava
preparada para deixar.

Era incomum que Nathaniel preferisse uma banheira a um chuveiro, mas,


naquele início de tarde, era o que precisava. Mergulhado em água morna e
sais de banho, estava com a cabeça recostada para trás e os olhos fechados
pensando nos muitos desdobramentos das suas últimas decisões. Deixar o
Gênesis o assustava, mas o chefe se mostrou um homem de honestidade
questionável. Como fora tolo, confiando tão cegamente em Nolan Fitzgerald
mesmo sem o conhecer. Em sua defesa, Nathaniel acreditava que o
conhecesse, que não havia segredos obscuros entre eles.
A partir daquele momento, ele não tinha mais emprego nem um lugar
para servir-lhe de referência. O seu mundo particular estava abalado,
arrasado, tornado em pedaços à sua frente - e ele podia apenas assistir, com
as mãos atadas.
Seus ouvidos captaram o abrir da porta do quarto, depois do banheiro.
Captaram os passos suaves sobre o tapete e as narinas sentiram o cheiro
feminino de almíscar que preencheu o ar assim que ela entrou. A mão
delicada e macia de Lucille tocou seus cabelos.
— Você se feriu outra vez. — Ela deixou os dedos correrem pelos fios
úmidos e o acariciou na face. — Eu sinto muito por tudo que está
acontecendo, Nate. A traição é uma dor difícil de superar.
— Apenas antecipei o que aconteceria inevitavelmente. Quando voltar a
procurar Emile, não terei tempo para me dedicar ao clube e só pretendo parar
de procurar meu irmão quando o encontrar.
Ela o empurrou e fez com que desencostasse da banheira. Pegou uma
esponja e começou a esfregar-lhe as costas, tocando suavemente no
ferimento.
— Acredito que mentir bem não seja parte dos seus talentos. — Lucille
deu uma risada baixa. — Mas aprendi que você não lida bem falando de
sentimentos. Com tudo isso acontecendo, talvez seja melhor desistir de falar
com o marquês.
Sim, por favor, desista e fique aqui indefinidamente - era o que ele queria
dizer, mas não disse. O silêncio respondeu à pergunta não feita de Lucille.
— Ele virá jantar conosco, hoje. Convidei-o para facilitar para você.
— Você está parecendo meu pai. — Ela passou os dedos pelos pontos e
ele os sentiu espetarem sua carne. — Empurrando-me para um homem que
nem conheço.
— Quero apenas isso, que o conheça.
— Por quê?
— Por que Thaddeus é honrado e será um excelente marido. Você pode
fazer o que quiser da sua vida, Lucy, mas com o apoio de um homem, tudo
ficará mais fácil.
Era mais fácil dizer todas aquelas bobagens se ela estivesse de costas para
ele. Muito mais fácil não precisar olhar dentro de suas orbes castanhas,
sempre tão aptas a revelar tudo o que ela sentia.
— E por que precisa ser agora, com esse homem? Por que não pode ser
você?
Maldição. A mão de Lucille parou sobre seu ombro, os dedos envolvendo
a pele sensível. Ela respirava tão próxima a ele que Nathaniel pensou que ela
fosse tomar a iniciativa de o beijar. Aquele era o momento perfeito, o
momento que ele esperava. Ela estava tão vulnerável, tão frágil enquanto
esperava que ele a quisesse, que qualquer coisa que dissesse poderia quebrar
seu coração em pedaços. Naquilo ele era bom, Nathaniel sempre foi bom em
machucar pessoas.
Ele se levantou da banheira, nu, sem se importar que ela fosse se chocar.
Enrolou-se em uma toalha, secou-se com outra, sacudiu a cabeça para
espalhar água por todo o banheiro, deixou que Lucille o observasse, esperasse
por ele, ansiasse pelo que iria dizer ou fazer. Depois, aproximou-se dela,
olhando diretamente em seus olhos como se ele realmente pudesse fazer
aquilo sem destruir-se no processo.
— Porque eu não quero, Lucy. — Ele passou os nós dos dedos pelo
queixo dela, mantendo-a presa em seu olhar. — Eu sou livre demais para me
envolver com seus planos. Não serei companheiro nem marido em sua
jornada, se me entende.
Nathaniel pode ouvir e sentir o soluço que veio do fundo da alma dela. Os
olhos castanhos cintilavam com lágrimas que não derramaria, com a sombra
da frustração e da traição que sentia naquele momento.
— Entendo, certamente. — A voz de Lucille estava trêmula. — Quando o
senhor me recebeu em sua cama, o senhor o fez porque não dispensa uma
mulher.
— Por certo. E a senhorita estava disponível. Assim como esteve outras
vezes.
— E o senhor… — Ela tentou baixar a cabeça e ele permitiu. Nem
Nathaniel conseguiria continuar com aquela farsa se continuasse dentro
daqueles olhos tristes. — O senhor tem me ajudado porque é altruísta?
— Não. Eu cumpro promessas, por isso sou temido. Eu lhe prometi ajuda
e venho tentando fazer isso da melhor forma que sei.
Ela se forçou a esticar os lábios, fingindo um sorriso. Passou as mãos
úmidas pela saia, tentando esconder o nervosismo, enquanto ele se mantinha
impassível, pingando água pelo corpo.
— Bem, então vou me arrumar para o almoço. Obrigada por ser tão
sincero, e por sempre cumprir suas promessas.
Ela saiu. A porta do quarto bateu delicadamente e ele caiu de joelhos no
chão, sentindo o ar ser sugado para fora de seus pulmões. Se aquela conversa
não fosse suficiente para manter Lucille longe dele, Nathaniel poderia pensar
em formas mais cruéis de feri-la, mas ele não saberia se conseguiria.
Imaginar que a fizera sofrer já o estava matando por dentro, causando mais
dor do que a bala quando lhe dilacerou a carne.
Mas que outra solução havia? Ela não seria feliz ao lado dele. Ele não
tinha perspectiva ou futuro. O que melhor sabia fazer era causar mal às
pessoas. Possuía muito dinheiro, mas de nada adiantaria ser rico se não
tivesse aptidão para o trabalho honesto. Nathaniel continuaria sendo um
criminoso e ela não ganharia nada estando com ele. Lucille merecia um
homem bom, alguém que pudesse lhe ajudar a conquistar o mundo - e essa
pessoa era Thaddeus Pinkerton.
Ele não servia para aquela mulher cheia de sonhos e planos. A melhor
forma de mostrar que se importava com ela era permitindo que ela fosse de
outro.

Se o defloramento não estava estampado em seus olhos, se a devassidão que


se apoderara dela desde que se deitara na cama de Nathaniel McFadden pela
primeira vez não pode ser notada por ninguém, a decepção não era tão fácil
de esconder. Bastou Lucille pisar no salão para que Millicent a fitasse com
uma expressão de quem sabia que alguma coisa estava errada com ela.
A casa de Nathaniel era cavernosa, quase tão sombria quanto a parte de
sua alma que ele deixava transparecer. Havia pesadas cortinas e móveis
escuros, muitos tapetes espalhados e pouca luz do sol penetrando em seu
interior. Era uma residência de tamanho modesto, com apenas quatro quartos,
uma sala de jantar e um salão para receber pessoas, mas Lucille suspeitou que
ele não ficava muito por ali. Tinha um mordomo, que pareceu bastante
entusiasmado em finalmente servir pessoas, e uma cozinheira.
Era uma residência que tinha a alma de seu proprietário. Mas que
recebera uma rajada de vida e luz com a chegada de visitantes - o irmão, ela,
e os amigos que estavam ali para fazer companhia pelo dia.
O tempo passou lentamente até o jantar, como se ali ocorresse um
velório. Talvez ela pudesse fazer alguma coisa, qualquer coisa, nas não
conseguia nem mesmo se concentrar na leitura. Leonard e Millicent estavam
conversando em voz baixa, com uma proximidade que ela estranhou, e Isaac,
que passara o dia fazendo ligações, tentando descobrir pistas sobre Emile e
como estavam as investigações do caso, se recolheu para seus aposentos a
fim de se preparar.
— Sr. Eckley. — O mordomo apareceu no salão. — O convidado chegou,
mas o Sr. McFadden ainda não desceu.
— Traga-o até aqui, Thad é um velho amigo.
Com uma reverência, o mordomo se afastou. Lucille não era acostumada
ao gestual da nobreza para compreender por que eles sempre pareciam estar
na presença da Rainha.
Quando o marquês foi anunciado, a sua chegada se assemelhou ao nascer
do sol em um dia de inverno. Thaddeus Pinkerton carregava um sorriso
devastador, olhos absurdamente claros e estava vestido como a realeza, com
uma gravata branca perolada e um traje de noite impecável. Se aquele homem
precisava de dinheiro para recuperar seus negócios, escondia muito bem a
falência da vista de todos.
Sua primeira ação foi se aproximar de Lucille, segurar-lhe a mão e beijar
seus dedos. Ela demorou a reagir, embevecida pela beleza do homem à sua
frente.
— Seja bem-vindo, Thad. — Leonard o cumprimentou, distraindo-a com
sua voz de barítono. — Vou deixar que conversem para achar onde se
escondeu o anfitrião.
— Não precisa. Estou aqui.
Ele entrou pela porta e Lucille pisou algumas vezes para confirmar se não
estava delirando. Nathaniel vinha com os cabelos penteados, um traje de
noite e gravata. Ela não o vira vestir nada além das camisas de botões abertos
e mangas dobradas, mas, daquela vez, ele parecia o que era - o terceiro filho
de um conde. A sua chegada obnubilou o restante de tudo que estava ali.
Não, Nathaniel não era lindo como o marquês, mas Lucille nem
conseguiu se lembrar que havia outros homens no salão. O único que a
importava era o que não a desejava.
Precisava tomar uma decisão. Iria embora, deixaria Nova Iorque por bem
e se refugiaria na Inglaterra, vivendo em paz em uma vila isolada, ou se
tornaria a Marquesa de Hertford.
Os homens se estranharam e se cumprimentaram, depois todos se
reuniram no salão de jantar. A mesa era bem menor que a da casa de Lucille,
o que fez os convidados sentarem todos muito próximos. A comida foi toda
servida em bandejas - não havia criados para aquele evento, também. Cada
um deveria preparar seu próprio prato com o que desejasse.
— Estive com seu pai, hoje. — Hertford disse, depois de um longo e
constrangedor silêncio. Na arrumação dos assentos, ele ficou ao lado dela - o
que era significativamente conveniente. — Ele pediu que retornasse para
casa.
— Oh, Walter Smith pediu? Tenho certeza de que milorde está
amenizando alguma ordem que ele tenha dado.
Hertford sorriu.
— Sim, certamente. Ele ameaçou vir buscá-la, mas eu interferi e solicitei
que me permitisse convencê-la a voltar para casa. Não é adequado que uma
mulher solteira se hospede na casa de um homem também solteiro.
— Faz algum tempo que não me preocupo com adequações, milorde.
Lucille cortou um pedaço da carne de cordeiro que estava em seu prato,
mas não tinha apetite. Seu estômago protestava, desejando comida, porém
faltava o desejo de colocar o alimento na boca e mastigar.
— Entendo. Então a senhorita pretende continuar aqui, enquanto nos
conhecemos?
— Na verdade, não. Eu pretendo tomar uma decisão até amanhã.
Dependendo do que for, vou me hospedar na casa de minha amiga Millicent.
— Esse arranjo é mais satisfatório.
A conversa prosseguiu com o tópico principal sendo as buscas por Emile
McFadden, o irmão que poderia estar vivo, mas provavelmente estava morto.
Isaac contou sobre os progressos do dia, que foram poucos, e os homens
discutiram outras estratégias. Nathaniel, no entanto, manteve-se em silêncio
durante todo o tempo. Enquanto comia, ele olhava para todos na mesa como
se sentisse raiva - principalmente quando sua atenção estava voltada para o
marquês.
Depois da deliciosa refeição, todos se reuniram no salão novamente e o
mordomo retornou para informar que alguém esperava por Nathaniel na
entrada.
— Sr. McFadden, o senhor tem visitas.
— Estou com convidados, Burton. Mande embora, seja quem for.
— Creio que não possa fazer isso, senhor. É o delegado.
Isaac levantou-se e olhou para o irmão imediatamente após ouvir o
anúncio. Nathaniel, no entanto, terminou de beber seu cálice de vinho do
porto e só então se moveu para atender à autoridade.
Todos permaneceram em seus lugares por dois minutos. Impaciente, Isaac
foi até a porta para ouvir a conversa, o que fez Lucille se unir a ele. O
delegado só iria atrás de Nathaniel por dois motivos - o crime contra Emile e
o seu sequestro. Mas o pai sabia que ela não fora sequestrada, ela jamais
deporia contra Nate.
— Sr. McFadden, recebemos uma denúncia de que o senhor está
mantendo uma donzela cativa em sua casa.
Ele deu uma risada alta e tranquila.
— Eu não tenho nenhuma donzela aqui, senhor. Bem, na verdade, há a
Sra. Millicent Ryan, mas creio que não é dela que trata a denúncia.
— Não, estamos procurando a Srta. Lucille Smith.
— Ela não está cativa.
— Mas está aqui?
— Sim.
— E não é uma donzela?
Outra risada fez com que as bochechas dela corassem. Detestou
imediatamente que Nathaniel falasse dela daquele jeito, mas acabou
entendendo que toda a encenação servia para corroborar a mentira que ele
contara e garantir sua ruína pública. Não parecia ser mais necessário, mas
Nathaniel continuava envolvido em seu papel.
— Diga logo o que quer, delegado.
— Levar a Srta. Smith de volta para casa.
— Só sobre meu corpo estirado nesse chão.
— Sr. McFadden, o senhor já tem um homicídio sobre suas costas. Sabe
que, se for preso, dessa vez, não será solto sob fiança.
— Faça seu melhor, delegado.
Lucille quase passou por cima de Isaac e Leonard para ver o que estava
havendo. Não correu para a porta porque foi impedida pelo amigo canalha.
Nathaniel virou de costas e juntou as mãos, oferecendo-se para ser levado.
Um agente, que acompanhava o delegado, colocou as algemas nos punhos
dele e ela abriu a boca para gritar, mas nenhum som saiu.
Nate moveu a cabeça dizendo para que não falasse nada. Aqueles olhos
azuis se comunicavam melhor do que suas palavras. Uma lágrima correu pela
bochecha de Lucille quando ele deu uma ordem simples para Isaac e
Leonard.
— Protejam-na.
Capítulo vigésimo primeiro

E LA NÃO PODIA PERMITIR QUE AQUILO ACONTECESSE . N ATHANIEL JÁ SE


sacrificara por ela o suficiente, não deixaria que fosse preso por um crime que
não cometeu - ela não fora sequestrada, não estava ali contra a sua vontade. O
delegado não estava preocupado em resgatá-la, ou teria entrado na casa com
uma ordem para conduzi-la até sua casa. Aquilo era vingança, provavelmente
obra de seu pai para causar mal ao homem que o desafiou dentro de sua
própria casa.
Desvencilhando-se dos braços de Leonard, que a mantinha firme o
suficiente para evitar que ela corresse pela porta atrás de Nathaniel, Lucille
foi até o marquês, que acompanhava curioso os acontecimentos.
— Milorde, você precisa o ajudar.
Lorde Pinkerton bebeu o restante de seu uísque em um gole, apenas.
— Não sei se eu devo, senhorita. Nate era meu amigo, mas o que ele fez
foi desonroso. Se fosse na época de meu pai, estaríamos duelando nesse
momento.
Lucille resistiu à vontade de agarrar o marquês pelo colarinho e sacudi-lo.
— A culpa não é dele. Eu pedi ajuda, eu fugi em sua carroça, eu pedi que
ele me tirasse da casa de meu pai. Walter Smith é violento e ficou muito
irritado com minha fuga. Tudo que Nate fez foi defender-me, ajudar-me.
— Seu pai tocou na senhorita?
Uma sobrancelha erguida na testa do marquês fez com que Lucille
entendesse que conseguira sua atenção.
— Ele me espancou, milorde. Nathaniel apenas cuidou de mim durante
todo esse tempo, ele não tem nenhuma responsabilidade por nada. Eu… eu
estou pronta para tomar minha decisão. Ajude-o e eu me casarei com
milorde.
A audiência não pareceu concordar com a proposta. Isaac passou os
dedos nervosos pelos cabelos loiros e Leonard soltou uma imprecação em
voz baixa. Millicent piscou várias vezes e balançou a cabeça negativamente,
provavelmente considerando-a tola. Talvez ela fosse, sim, tola, ao acreditar
que poderia fugir daquele casamento. Mulheres não faziam seus destinos,
conformavam-se com eles. Por que com ela seria diferente?
Ao menos o marquês não era um homem horrível que a submeteria à
degradação moral e física. E ele sabia o que acontecera entre ela e Nathaniel
sem parecer importar-se tanto. Não a ponto de impedir o casamento.
— Não sei se posso fazer algo, senhorita. Como crê que eu consiga ajudar
Nathaniel?
— Meu pai só se importa que eu me case. Se milorde disser que eu estava
na casa a seu pedido, que isso faz parte da corte, que milorde propôs, ele vai
acreditar e retirar a queixa. Não havendo rapto, não há crime. Não posso
deixar que ele fique na cadeia.
— Importa-se tanto assim com ele?
Sim, claro que ela se importava! Ela o amava, pelos céus! Não suportaria
o imaginar ferido e preso por sua culpa. Por mais que Nathaniel se achasse
indigno e não merecedor de nada, ela o considerava um homem fenomenal.
Toda aquela força, aquele poder, o olhar de quem dominava o mundo e que
tinha tudo sob seu próprio controle a seduziam mais do que as carícias e
indecências que ele se propôs a fazer com ela. Não disse nada daquilo para o
marquês, preferiu fingir - afinal, ela estava decidida a casar-se com o homem
para livrar aquele que amava.
— Ele esteve comigo quando precisei. Sim, importo-me e não desejo que
ele seja julgado por um crime inexistente.
— Srta. Smith, sei que está decidida a resolver esse problema, mas creio
que eu possa fazê-lo. — Isaac, o irmão, aproximou-se dela. Só então Lucille
percebeu o quanto estava tensa, prendendo a respiração. — Irei agora para a
delegacia, a senhorita ficará com o Sr. Eckley.
— Você quer apenas proteger seu irmão, meu caro Isaac. — O marquês
colocou uma mão no ombro dele. — Mas sabe que não adiantará, a senhorita
está prometida para mim. Vamos deixá-la decidir e respeitar o que ela quer.
— O que ela quer é salvar Nathaniel, Thad, e parece disposta a qualquer
coisa para isso. Você está tão desesperado assim a ponto de rebaixar-se tanto
e casar-se com uma mulher claramente apaixonada por outro homem?
Lorde Pinkerton deu uma risada nervosa e Lucille fechou os olhos. Não
era para que todo mundo soubesse, mas ela falhara em esconder seus
sentimentos, assim como falhara em outras coisas em sua vida. Sentindo o
coração dilacerado, sabia que o marquês tinha razão.
— Sr. McFadden, entendo sua preocupação, mas estou tomando essa
decisão conscientemente. Sairei agora com meu noivo para a casa de meu pai
e, depois, providenciaremos a soltura de Nathaniel.
Leonard Eckley colocou-se à frente da porta.
— Não posso permitir que vá. Prometi a ele que a protegeria.
— Estou protegida, não estou, milorde?
Ela olhou para Lorde Pinkerton tentando não transparecer a agonia e o
desespero em voltar para o domínio de Walter Smith depois de tudo que
fizera.
— Ele não lhe fará nenhum mal, senhorita, ou terá que se entender
pessoalmente comigo. E eu garanto que o seu pai não gostará de me
enfrentar.
Talvez não devesse confiar nele, mas a certeza na voz do marquês a
tranquilizou. Nathaniel disse que ele era honrado, que era um homem bom.
Não estaria tão desesperado a ponto de permitir que ela fosse ferida, então o
pai se comportaria já que o casamento aconteceria. Leonard também pareceu
confiar nele, pois saiu da frente da porta e, mesmo com uma expressão de
discordância, permitiu que eles passassem.
— Se algo acontecer a ela, eu mesmo o matarei. — Ele disse, segurando o
braço do marquês antes que eles se afastassem totalmente.
Millicent passou pelos homens e colocou-se ao lado de Lucille. Ela a
acompanharia e talvez dormisse com ela para ajudar a garantir sua segurança.
Se tudo desse certo, Nathaniel seria solto no dia seguinte e ela se tornaria
uma esposa em poucos dias.

— Não retirarei a queixa, o maldito McFadden raptou minha filha e me


ameaçou. Ninguém entra na minha casa e me desafia, milorde.
Walter Smith estava irredutível. Lucille exigira participar da conversa e
seu noivo autorizara. Parecia que nenhum dos Smith estava interessado em
desagradar o marquês, portanto ela estava ali, sentada no escritório, fingindo-
se muda e surda, enquanto os homens decidiam o futuro de Nathaniel.
— Sr. Smith, entendo sua indignação, mas vamos deixar o passado no
passado. Sua filha está bem, retornou para casa e em breve estará casada
comigo. E, acredite, se o senhor mantiver a queixa, eu deporei em favor dele,
do McFadden.
— Por que milorde faria isso? Ele raptou sua noiva!
— Nenhum mal foi feito, Sr. Smith. Não pretendo fazer da vingança uma
meta em minha vida, não começarei agora com um amigo.
O pai girou em seu próprio eixo algumas vezes, pensativo. Enrolava o
bigode nas pontas dos dedos e resmungava em voz baixa, como se falasse
consigo mesmo. As mãos de Lucille tremiam desde o momento em que ela
vira Nathaniel ser levado preso. Sentia frio, um frio incontrolável, e seu
estômago borbulhava como se o jantar estivesse prestes a sair por onde
entrara.
— Certo, milorde, eu farei isso. Mas entenda que não estou de acordo,
apenas decidi conceder-lhe esse pedido. O senhor fica me devendo.
— Da forma como puder pagar, senhor.
— Eu tenho uma ideia. Quero que se casem logo.
— Será em breve. Voltaremos para a Inglaterra em doze dias e…
— Não, milorde. Por logo eu quero dizer aqui, em Nova Iorque, amanhã,
se possível.
Lucille sentiu a boca secar e uma súbita onda de enjoo. Ergueu os olhos
para prestar atenção na conversa dos homens e admirou a postura de Lorde
Pinkerton. Seu noivo. Ele era bonito, mais do que seria aceitável para um
homem que ela pretendia não gostar. Talvez fosse aceitável que ela, em um
futuro, desenvolvesse afeição por ele. E a forma como ele se mantinha de pé,
íntegro, com uma postura impecável, cumprindo sua palavra, a atordoava.
Poucas pessoas se dispuseram a protegê-la durante a vida, e o marquês
parecia disposto a se tornar uma delas.
— Precisamos de tempo para os proclamas. E eu preferia me casar na
Capela São Jorge, como é a praxe da nobreza britânica. O que você prefere,
Srta. Smith?
Ela preferia não se casar, mas forçou-se a sorrir.
— Eu adoraria casar-me na Capela São Jorge. É um lugar magnífico.
— Então, Sr. Smith, eu gostaria de atender aos desejos de sua filha.
Trocarei nossas passagens para outro navio. O Splendida está vindo do Brasil
e aportará em Nova Iorque em dois dias, embarcamos nele e vamos para
Londres - creio que isso atende a todos os anseios.
Enrolando novamente o bigode nos dedos, Walter Smith concordou
silenciosamente com o plano do marquês. Aquilo dava a Lucille um pouco
mais de tempo para ficar em Nova Iorque e, esperava ela, para ver Nathaniel
livre. Apesar da dor que uma despedida causaria, não podia simplesmente
embarcar sem lhe dizer nada - ela queria explicar por que tomara aquela
decisão e garantir que estava bem consigo mesma.
Quando o pai ameaçou sair do escritório, Lucille segurou impulsivamente
a manga do casaco do marquês e o fez olhar para si. Seus olhos certamente
entregavam sua agonia, mas ela não se importava mais.
— Milorde, não o deixe dormir na cadeia.
— Falarei com seu pai, mas está tarde, senhorita. É melhor aguardarmos.
Nathaniel é forte, ele não sucumbirá por uma noite de desconforto. Tranque
sua porta quando for dormir.
Lorde Pinkerton segurou sua mão entre as dele e a beijou delicadamente.
Talvez Nate não se importasse, mas ela sofreria durante toda a madrugada
esperando pela hora em que ele seria libertado.

Ele podia ouvir o burburinho de vozes. Havia alguma comoção na delegacia,


pessoas conversando, falando alto, metal batendo em metal, homens se
enfrentando. Deitado na primeira cela, porque todas as outras estavam vazias,
Nathaniel fitava as formas que o sol fazia no teto escuro. O cheiro de urina
era insuportável, mas ele já nem se importava mais - tinha certeza de que
merecia estar preso. Leonard nunca o deveria ter libertado, da vez anterior.
Culpa o arrebatou. Estivera tão envolvido com Lucille que deixara as
buscas por Emile, parara de o procurar quando seu objetivo principal - talvez
seu único objetivo! - era encontrar o irmão desaparecido. E, ainda assim, se
pudesse voltar no tempo, provavelmente faria tudo novamente. Ele a ajudaria,
a manteria consigo e a amaria da mesma forma.
Talvez Emile o perdoasse. O mais jovem dos homens McFadden sempre
fora romântico, o mais parecido com Isaac. Escrevia poesias, declamava-as
para prostitutas, conquistava o coração das mulheres perdidas de Londres.
Acreditava naquela bobagem de amor à primeira vista, amor eterno, almas
gêmeas e outras tolices que os românticos acreditavam. Se soubesse que
Nathaniel deixou-o em segundo plano por causa da mulher que derrubou as
muralhas erguidas ao redor de seu coração e fincou ali sua bandeira de
conquistadora, ele o perdoaria.
— McFadden. — A voz do agente ecoou sobre sua cabeça. — Você tem
uma visita.
Nathaniel sentou-se, sentindo dor no pescoço, e encarou o homenzarrão
que parecia ter o cérebro do tamanho de uma ervilha. Por trás dele, surgiu
Nolan Fitzgerald.
— O que você quer aqui? Veio rir da minha desgraça?
O chefe recostou em uma pilastra de pedra e o fitou. Nathaniel pôs-se de
pé. Ele jamais falaria com outro homem em posição de vulnerabilidade.
— Não, vim dizer que darei alguns dias para que se recupere e retorne ao
trabalho. Investi muito em você para aceitar que deixe o Gênesis.
— Você me traiu. Não é diferente do maldito Smith, então finja que não
existo mais e desapareça da minha frente.
— Creio que não tenha entendido, Nate. Você não tem opção. Eu preciso
de um cobrador e não pretendo me resignar com essa sua decisão absurda.
Assim que sair dessa cela, você terá dois ou três dias para cumprir o luto da
morte de seu irmão e retornará ao trabalho.
Nathaniel agarrou as barras da cela e ficou face a face com o homem que
passara de salvador a tirano. O homem que ele admirava e respeitava e
passara a desprezar.
— Vá para o inferno, Nolan. Você me treinou bem demais para saber que
meu ódio não aceita perdões.
— Veremos.
Nolan afastou-se e o homenzarrão abriu a cela, indicando que Nathaniel
deveria sair. Ele uniu as sobrancelhas, confuso, e manteve-se no lugar.
— O senhor está livre, pode sair. — Disse o agente de polícia.
— Deve ser um engano.
— Não é. Retiraram a queixa, você não será mais acusado.
O agente escancarou a porta, esperando que ele saísse correndo e não
olhasse para trás - mas ele nunca fazia isso. Nunca corria de nada,
principalmente do seu destino.
— Quem retirou a queixa?
— O pai da vítima. Ele veio aqui e disse que foi tudo um engano. Estava
com um janota de sangue azul, esse seu tipo. Vamos, desapareça daqui.
Alguma coisa estava errada. Walter Smith jamais retiraria a queixa,
jamais permitiria que ele fosse liberado - a não ser que estivesse do lado de
fora da delegacia o esperando com uma pistola em punho. O homem podia
ser covarde o suficiente para sujar as mãos, mas tinha dinheiro para contratar
quem precisasse para livrar-se de Nathaniel para sempre.
— O que diabos você fez, Nolan?
— Eu? Nada. Meu pai tomou essa decisão sem minha interferência, mas
eu quis vir aqui garantir que você soubesse que esperarei seu retorno.
Nathaniel marchou para fora da cela e passou pelo chefe como se ele
fosse feito de ar. Não retornaria para o Gênesis nem trabalharia mais para
aquele traidor, mas lidaria com aquele problema depois - algo errado estava
acontecendo. Walter Smith não poderia ter tomado sozinho aquela decisão.
Então, se estava solto, se o homem que mais odiava se dera ao trabalho de
libertá-lo, era porque tivera um bom motivo. Sem querer criar hipóteses sobre
o que Walter Smith estaria tramando, Nathaniel foi para casa. Ele não
caminhou por Londres, praticamente correu até sua residência, sem se
importar com os limites de seu corpo, sem se incomodar com o ferimento,
que começava a latejar. Algo dizia para si que Lucille era a razão de sua
liberdade e ele não estava preparado para descobrir se aquilo era ou não
verdade.
O mordomo abriu-lhe a porta. Isaac estava em seu escritório, escrevendo
uma carta, e se levantou quando o viu chegar. Caminhou até ele e o abraçou,
aliviado.
— Aonde ela está?
— Nate, como você está? — Isaac fingiu ignorar a pergunta abrupta. —
Vou pedir que preparem uma bandeja com comida e sirvam aqui, precisamos
conversar.
— Aonde está Lucille, Isaac? — Ele insistiu. O irmão tocou a sineta sem
respondê-lo e deu ordem ao mordomo que trouxesse comida.
— Ela voltou para casa.
— E você permitiu? — Nathaniel berrou, afastando-se do irmão com as
mãos fechadas em punhos. — Como assim ela voltou para casa? Depois de
tudo? Como vocês podem a ter deixado fazer isso? Aonde está Leonard, eu
preciso falar com ele.
— Leonard a tentou impedir. — Isaac sentou-se próximo à lareira e
comandou Nate a fazer o mesmo. — Mas foi a Srta. Smith quem tomou a
decisão. Ela aceitou casar-se com Thad para que ele convencesse o pai a
retirar a queixa contra você.
Ele sabia que a mulher aprontara alguma. Não podia a deixar um minuto
sozinha que ela fazia bobagem, que ela se colocava em risco. Baixou a
cabeça até tocar os joelhos com a testa, sentindo-se impotente. Havia poucas
coisas que Nathaniel detestava menos do que não poder controlar uma
situação.
— Ainda assim, vocês não deveriam ter permitido.
— Pensei que você quisesse respeitar as decisões dela, Nate. Não pode
apoiá-la só quando ela diz o que você quer ouvir, ou faz o que você quer que
ela faça.
— Não se trata disso. Lucille corre risco dentro da casa daquele homem.
— Thad garantiu que isso não aconteceria. Não confia nele? Aliás, não
foi você que insistiu para que a mulher conversasse com ele? Que acreditava
que ela deveria casar-se com ele? Pois ela está fazendo exatamente o que
você quer. A não ser que você não queira nada disso e esteja fingindo.
Nathaniel odiava quando Isaac dizia a coisa certa, quando ele era um bom
amigo e irmão. Isso o fazia lembrar do quanto ele era péssimo e do quanto
dependia do irmão para tomar as melhores decisões. Desde que se afastaram,
tudo que Nate fez foi desonrar a família, quase morrer uma centena de vezes,
e ser preso pelo menos duas.
O mordomo chegou com o desjejum e Nathaniel decidiu comer - porque
ele pretendia beber muito e ficar bêbado até esquecer que ela fora embora.
— Então acabou.
— O que acabou? — Isaac foi pego de surpresa, crendo que a conversa se
encerrara.
— Nada importante. Preciso de um ou dois dias, depois recomeçaremos
as buscas por nosso irmão. Quando retorna para Londres?
— No próximo navio. Teremos tempo.
O irmão colocou uma mão solidária em seu ombro, talvez
compreendendo o sofrimento de sua alma. Era improvável, no entanto, que
Isaac o entendesse. Ele nunca perdera a mulher que amava.
Depois de comer, Nathaniel foi para seu quarto com uma garrafa de
conhaque. Quando aquela garrafa acabou, ele pegou outra. Quando a luz do
dia se extinguiu, ele já estava bêbado, mas pegou a terceira garrafa depois de
despejar o conteúdo de seu estômago no sanitário. Isaac tentou entrar no
quarto, Leonard tentou entrar no quarto, o chefe apareceu em sua casa - e isso
quase o fez armar a pistola e matá-lo, mas não daria a ele o prazer da morte
rápida.
No dia seguinte, ele continuava ébrio. O sol nasceu sem cor, sua cabeça
latejava e o corpo parecia destruído por um lutador de boxe. Olhou para a
garrafa de conhaque e bebeu mais um pouco, sentindo a bile amargar a boca.
Ele não tinha motivos para estar irritado ou zangado, fora ele próprio
quem empurrou Lucille para cima de Hertford - se não, eles nem estariam em
Nova Iorque naquela noite. Tentou feri-la, tentou afastá-la, mas a mulher,
ainda assim, aceitou casar-se para que Thad interferisse em seu favor.
Ela provavelmente queria casar-se. Quando pediu que ele resguardasse
sua virgindade, sabia que precisava dela para ser aceita por um marido. No
fundo, Lucille queria companhia, mesmo que também quisesse realizar seus
sonhos. Ela não se parecia com ele, não era uma solitária. Uma mulher
fantástica como ela merecia um homem fantástico. Quase arrependeu-se de
tê-la deflorado - quase.
Mas, se ele tinha tanta certeza de que fizera a coisa certa, por que raios
doía? Por que ele lutava internamente entre a necessidade de se embebedar, a
vontade de esmurrar alguém e o desejo de sair correndo atrás dela e a trazer
de volta para casa?
Desinteressado em buscar respostas, arremessou a garrafa de bebida na
parede, observando o vidro explodir em estilhaços e derramar malte por todo
o tapete. Vestiu-se precariamente e saiu de casa, pronto para resolver suas
pendências com o chefe.

Nolan Fitzgerald o recebeu com os braços cruzados no peito e fez uma


expressão de desgosto ao vê-lo desgrenhado, despenteado e cheirando a
bebida. Seu malte mais caro, inteiramente desperdiçado.
— Você não está pronto para retornar.
— Não vim aqui para isso. Vim comprar minha liberdade.
Nathaniel colocou uma maleta de couro e uma chave sobre a mesa de
Nolan Fitzgerald. O homem franziu as sobrancelhas e abriu a maleta,
surpreendendo-se com o conteúdo.
— O que isso significa?
— Dinheiro, Nolan. Pensei que reconhecesse notas de cem dólares
quando as via.
— Eu as reconheço, mas não entendo por que estão sobre minha
escrivaninha.
— São suas. Aí tem tudo que eu guardava em casa. A chave é do meu
cofre no banco, você encontrará mais que o dobro dessa quantia.
— Não quero seu dinheiro. — O chefe fechou a maleta. — Quero sua
lealdade e seu trabalho duro.
— Você perdeu a lealdade quando me traiu. Não trabalharei mais para
você, retornarei para Londres com meu irmão quando ele se for. Fique com
esse dinheiro maldito, sujo de sangue, pelas despesas que lhe dei. A partir de
agora, estamos quites.
Nolan levantou-se, caminhou até Nathaniel e o fitou. Apesar da ausência
de hierarquia, do tratamento informal entre ele, Leonard e o chefe, nenhum
dos dois ousava o enfrentar. Olhar nos olhos era algo que nunca fizeram.
Mas, naquele instante, Nathaniel manteve a cabeça erguida e seu semblante
sugeria que ele não fora ali para discutir.
— Então é isso que você deseja? Renunciar a toda essa vida de poder e
glória por causa de uma mulher que vai se casar com outro?
Nathaniel segurou o chefe pelo colarinho, quase o erguendo do chão. Um
dos seguranças que montava guarda no escritório sacou uma pistola, mas
Nolan ergueu uma mão, pedindo que não intervisse.
— Veja bem, seu miserável, eu direi isso apenas mais uma vez. Você me
traiu. Desde o início, quando nos resgatou das garras de Walter Smith, fez
isso sabendo quem ele era e nunca nos contou. Você nos manipulou. Eu não
sou dado a perdão, Nolan. Espero nunca mais ver a sua cara. Pode haver um
império aos seus pés, mas apenas um de nós sabe matar em silêncio. Fique
com o dinheiro e me esqueça.
O chefe soltou-se das garras de Nathaniel e ajeitou a camisa, que estava
certamente arruinada. O segurança guardou a pistola e ele rompeu pela porta
do escritório como um trovão. Não precisava, nem queria mais o dinheiro
sujo recebido das mãos imundas de Nolan Fitzgerald. Por muito tempo,
pensara que viveria para sempre sobre o jugo daquele homem misterioso que
lhe salvara a vida e lhe dera um motivo para seguir adiante. Mas havia limites
que ele não aceitava que cruzassem, entre eles estava a traição.
Nathaniel não tinha moral, mas não traía ninguém nem admitia ser
enganado. Aquela fase em sua vida estava encerrada para sempre.
A residência dos Smith nunca fora tão pacífica. Quando o pai estava satisfeito
por ter seus desejos atendidos, ele até parecia uma pessoa agradável. Sorria e
conversava com Lucille e Constance como se elas fossem pessoas reais. Não
chegava ao ponto de tratá-las com respeito, mas não as ofendia nem agredia
ou as considerava estorvos em sua vida perfeita.
Lucille viu o marquês uma vez depois da decisão tomada, quando ele fora
até ela dizer que Nathaniel estava livre das acusações. Foi atencioso da parte
dele considerar os sentimentos dela sem a julgar. Saber que Nate poderia ter
razão e que o marquês pudesse ser um bom marido aquecia seu coração, pois
ela precisava agarrar-se a alguma esperança.
Quis ir até a residência do McFadden, mas desistiu. Precisava despedir-se
dele, mas sabia que não teria coragem de o deixar, se o fizesse. Se ela visse
Nathaniel outra vez, talvez se jogasse em seus braços e pedisse para não sair
de lá nunca mais. Tão patética, apaixonada por um homem que claramente só
a vira como outra conquista, como uma forma de aquecer a cama durante
uma viagem. Ele jamais se comprometeria por ela.
— Senhorita. — Anna bateu à porta e entrou. — Sua mãe pediu para
avisar que a Srta. Ryan veio vê-la. E eu trouxe Elise para começarmos a
arrumar as malas.
Ela sorriu e desceu as escadas como se caminhasse pelos vales da morte.
Encontrou-se com Milly e a mãe sentadas na biblioteca, tomando chá. Por
sorte, o pai era sempre ocupado demais durante o dia e nunca ficava em casa,
o que lhes conferia algumas horas de liberdade.
— Fique sabendo que vocês partem amanhã. — Milly pareceu acusá-la
de omitir a informação. — Vim despedir-me e dizer que você ainda pode
desistir.
— Não vou desistir, mas estou feliz que tenha vindo.
— Ela ficará melhor indo embora de Nova Iorque, Millicent. —
Constance constatou, bebericando seu chá. — Se pudesse, eu mesma iria.
Um silêncio de cinco segundos precedeu à ideia súbita de que a mãe
deveria acompanhá-la naquela viagem. Walter Smith não merecia uma
família, então, que ele perdesse o pouco que lhe sobrara. Se Constance
desaparecesse pela Inglaterra, ele jamais poderia a encontrar.
— Venha comigo. — Lucille disparou. — Fuja comigo.
— Céus, Lucy, você só pensa em fugir?
— Considerando as alternativas, sim, fugir parece-me sempre a melhor.
Venha, mãe. Tenho certeza de que o marquês não se importará em escondê-la
conosco até que eu possa arrumar um lugar para você viver feliz, longe dele.
Constance fitou a xícara de chá.
— Eu não teria dinheiro nem um objetivo. Nunca fiz nada, apenas fui a
esposa de Walter Smith e atuei socialmente como uma boa anfitriã.
— Tudo isso pode ser ajustado. Você disse que gostaria de ter a minha
coragem, então, venha.
O sorriso triste da mãe e um balançar de cabeça encerraram a conversa.
Constance não tinha realmente a coragem de escapar das garras daquele
homem horrível. Lucille não acreditava que teria, também, mas ficou cada dia
mais forte desde que se despira e fora até a casa de Nathaniel pedir para que
ele a deflorasse.
A tristeza a derrotou. Não conseguiria salvar-se, não conseguiria salvar a
mãe, estaria presa a um casamento sem amor. Por melhor que o marquês
pudesse ser, por mais gentil e carinhoso que ele fosse, ela sabia que não
poderia amá-lo. Talvez desenvolvesse afeto por ele, mas Lucille tinha certeza
de que aquele sentimento que a corroía por dentro só acontecia uma vez na
vida.
— O navio parte que horas?
— Amanhã ao meio-dia. Minhas malas estão sendo arrumadas, nem sei
como conseguirão levar tanta coisa para o porto.
— Seu pai dará um jeito, ele conseguiu tudo que quis, até agora. —
Millicent provocou.
— Não me julgue, Milly. Você faria o mesmo pelo homem que amasse.
Constance apoiou a xícara no pires e ergueu o olhar para a filha, curiosa.
— Você ama o marquês?
— Eu nem conheço o marquês, mamãe. Ele é um homem lindo que
parece um príncipe de contos de fadas, mas troquei apenas algumas palavras
com ele.
— Então, de quem está falando?
Lucille não conseguiu dizer em voz alta o nome dele. Escondeu-se atrás
da xícara de chá enquanto olhava para o tapete, acovardando-se.
— Do Sr. McFadden, Sra. Smith. — Millicent contou. Havia mágoa em
sua voz, ela não concordava com as decisões de Lucille. — Sua filha está
apaixonada pelo homem que foi preso por seu sequestro. Para evitar que ele
responda por um crime que não cometeu, concordou em casar-se com o seu
prometido.
— Oh, entendo.
Ela não entendia. Ou talvez entendesse. Tudo que Lucille sabia do
passado da mãe era que ela se casou cedo demais e só conheceu violência da
parte do marido. Teria Constance um amor em sua juventude? Um homem
que precisou abandonar, de quem teve que desistir quando se casou com
Walter Smith?
Fosse o que fosse, os dados estavam lançados. Lucille não sabia jogar,
seria muito difícil que a sorte lhe sorrisse e ela conseguisse ganhar as fichas
apostadas. Ela costumava gostar de aprender coisas novas e nunca se
importava se venceria ou não, então aceitou a derrota antecipada e se
resignou - ela teria uma nova vida em pouco mais de uma semana.
Capítulo vigésimo segundo

N ATHANIEL ACORDOU SUADO DEPOIS DE UM PESADELO HORRÍVEL . S EUS


ouvidos zuniam como se estivesse cercado por abelhas, preso em um enxame
delas. Os lençóis estavam ensopados, sua cabeça latejava e seu corpo dava
sinais de exaustão, mesmo depois de uma noite inteira de sono.
Não, não fora uma noite de sono, mas de tormenta. Durante as infindáveis
horas, ele viu Lucille morrer de todas as formas possíveis - e, em todas elas,
esteve a um braço de distância de ajudá-la, mas nada podia fazer para evitar
que ela perecesse. A agonia se repetia vez após vez, fazendo com que ele
gritasse, se jogasse na direção dela, mas nunca conseguindo a alcançar.
Nathaniel não acreditava em premonições ou no sobrenatural, mas o sonho
fora tão real que o deixou atordoado mesmo depois de despertar.
Estava na hora de deixar de lamentar e voltar a ser um homem. Entrou no
chuveiro quente e deixou que a água lavasse os vestígios do pesadelo. Vestiu-
se sem conseguir colocar o curativo e encontrou Isaac na sala de refeições,
lendo o jornal.
— Oras, você decidiu descer. Pensei que precisaria arrombar a porta - o
que eu faria hoje, se não saísse daquele quarto.
— Vá para o inferno, Isaac.
Nathaniel sentou-se à mesa e serviu um café preto. Talvez a bebida
servisse para tirar dele aquela sensação de quem bebera toda a adega do
Gênesis. Enquanto encarava a xícara fumegante, pensou que sua vida estava
desmoronando. Ele não tinha mais nenhuma referência - perdera o clube, o
dinheiro, a mulher, tudo. Fora traído pelo chefe, o homem que considerava
responsável por sua vida - e que, então, descobrira ser responsável por sua
quase morte. Estava com o peito repleto de ódio e, ao mesmo tempo, morto
por dentro.
— Sabe, há um navio partindo hoje para a Inglaterra.
Isaac o fez erguer o olhar e o fitar. O irmão tinha a expressão divertida e
ele queria esmurrá-lo por estar aparentemente feliz com qualquer coisa.
— Impossível. O navio já partiu, ele agora retorna em semanas.
— Não é um navio que faz o trajeto direto - ele vem do Brasil. Splendida.
— Por que está me dizendo essa bobagem?
— Porque sua Lucille estará nesse navio. É sua última chance de fazer a
coisa certa, Nate.
Ele fechou os olhos e inspirou profundamente. Não esperava que ela
fosse embora tão cedo. A ideia de perdê-la definitivamente fez com que o ar
paralisasse em seus pulmões - até aquele momento, talvez esperasse que um
milagre o ajudasse. Que os céus se abrissem e ele recebesse uma bênção não
merecida. Mas isso não aconteceria.
— Eu fiz a coisa certa, não acredita que tenha feito?
O irmão fechou o jornal.
— Não, seu imbecil, não fez. Você fez a coisa fácil, que foi desistir dela.
Está sofrendo e bebendo há dois dias e não consegue enxergar o tamanho da
sua estupidez?
— Acha que desistir da mulher que eu amo foi fácil? Você ficou louco?
O sorriso que brotou nos lábios de Isaac fez com que Nathaniel cobrisse a
própria boca com a mão. Por Lúcifer, ele disse aquilo em voz alta e parecia
tão correto que ele mesmo não acreditou que pudesse soar tão bem. Ele
amava Lucille - e, mesmo que soubesse, não estava bem certo se seria capaz
de admitir para ninguém.
— Quando você disse mesmo que parte esse navio?
Nathaniel se ergueu, quase derrubando a cadeira. Bateu o joelho na mesa
de madeira e fez com que a porcelana tilintasse.
— Eu não disse. Ele parte ao meio-dia. Você ainda consegue encontrá-la
em casa.
Sim, ele conseguiria. E ele faria, não deixaria que ela fosse embora. Que
o inferno o recebesse, mas ele não podia desistir de Lucille. Mesmo que isso
significasse arrastá-la para seu mundo sombrio, para sua vida incerta, ele
precisava ao menos dar a ela a chance de escolher - se preferia a segurança do
casamento com Thad ou se o aceitava com todas as suas imperfeições.
Ele não pensou em se arrumar. Estava com o colarinho meio aberto, as
mangas dobradas, o colete desajustado e a camisa saindo parcialmente de
dentro das calças.
— Isaac! — Chamou, antes de sair correndo pela porta. — Preciso que vá
ao gabinete do prefeito e use todo o seu charme para conseguir uma
permissão extraordinária para casamento.
— E poderia me dizer como eu conseguirei isso?
— Confio em você, irmão.
Nathaniel não pegou seu chapéu, apenas foi aos fundos da casa, selou
Hades e disparou pelas ruas de Nova Iorque até a casa dos Smith. Talvez
fosse expulso de lá ou recebesse uma bala no meio da testa, mas não haveria
morte mais dolorosa do que aquele vazio deixado por Lucille.

O relógio marcava dez da manhã quando o motorista dos Smith anunciou que
o carro estava pronto para levá-la ao porto. O pai não estaria presente para
despedir-se, pois os negócios eram sempre mais importantes do que a família,
mas disponibilizou o carro, um de seus bens mais preciosos, para conduzi-la
para o primeiro dia do resto de sua vida. Claro que ele não estava pensando
nela, ou em seu conforto, senão em exibir-se para o Marquês de Hertford.
As bagagens foram colocadas em uma carruagem, que já se dirigira para
o porto, e ela encontraria o marquês no lugar que fora previamente
combinado. Antes de sair de casa, Lucille olhou-se no espelho e quase não se
reconheceu. Em tão poucos dias ela se transformou - deixou de ser uma
mulher resignada e conformada com a vida para se tornar uma mulher que
trilhava seu próprio caminho. Mesmo que o caminho escolhido fosse, na
verdade, a ilusão de uma escolha.
Talvez mulheres nunca tivessem uma escolha real. Talvez homens
também não tivessem, afinal, Hertford estava se casando com ela apenas
porque precisava de seu dinheiro. Ao menos ele era totalmente honesto
quanto a isso e também cumpria suas promessas. A vida ao lado dele poderia
não ser tão ruim.
Mas, se fosse escolher, Lucille sabia que preferia uma vida com amor.
Não esperava se apaixonar nem se preocupava com isso quando decidiu
fugir. Só que o amor caiu em sua cabeça e a derrubou, passou-lhe uma
rasteira e a jogou no chão. O problema era que ela amava sozinha, o homem
que roubou seu coração não sentia o mesmo por ela.
— Vamos? — A mãe a despertou de seus pensamentos.
— Sim, vamos, claro. Ainda tem sua oportunidade de ir conosco, mãe.
Constance sorriu e segurou a mão da filha, sem responder à pergunta não
feita. As duas caminharam para o veículo como se se dirigissem a um velório,
mesmo que Lucille tentasse demonstrar alguma altivez. Ela não queria que
Hertford a percebesse tão desolada. Não queria começar uma vida ao lado
dele estando tão decepcionada, carregando um sentimento de perda tão
intenso.
E, quando o viu parado no ponto de encontro, ela sorriu. O marquês era
devastadoramente lindo, mas não fazia seu coração saltar batidas, nem ateava
chamas no seu corpo. Esperava que, com o tempo, isso acontecesse. Durante
a viagem poderiam conhecer-se melhor.
— É um prazer revê-las! — Hertford abriu a porta do carro e ofereceu a
mão para que Constance descesse. Fez o mesmo com Lucille, cujos dedos
teve o cuidado de beijar antes de os soltar. — Já ordenei que embarquem as
bagagens. Vocês querem subir para conhecer as cabines?
— Poderei entrar?
— Claro, um oficial de comando pode nos escoltar. Eu sou um marquês,
a maioria das pessoas está acostumada a fazer todas as vontades de um nobre
titulado.
Ele piscou para Lucille, que sorriu novamente. Sim, as pessoas faziam as
vontades dos nobres. Mãe e filha acompanharam Hertford até a rampa e
embarcaram no Splendida. Constance seria conduzida para fora quando o
navio estivesse prestes a zarpar, mas faltavam duas horas ainda para que isso
acontecesse. Teriam tempo o suficiente para passear pelo monstro da
arquitetura naval - mas Lucille acabou pedindo para ficar um pouco ali, na
proa, respirando o ar marinho.
No fundo, ela esperava que algo acontecesse e que ela não fosse obrigada
a viajar. Queria deixar Nova Iorque, queria deixar o pai e aquela casa para
sempre, mas não naquelas condições. Recostada no deque, observava a
multidão que ia e vinha na esperança de que seus desejos não verbalizados se
realizassem.

— Como assim ela não está? — Nathaniel repetiu a frase dita pelo mordomo
dos Smith.
— Ela já foi para o porto, senhor. A Srta. Smith vai embora para a
Inglaterra hoje.
— Mas faltam duas horas para a partida do navio!
— Sim, senhor, mas ela já foi. O carro saiu daqui há vinte minutos, mais
ou menos.
Nathaniel não se despediu, apenas montou novamente em Hades e
galopou na direção do porto. Todas as coisas ruins que fez em sua vida
apontavam o dedo para ele, dizendo que não era digno de ter uma mulher
como Lucille. Os homens que torturou estavam rindo dele naquele momento.
Emile, ah, Emile… o irmão certamente diria que ele era um idiota de onde
estivesse. O irmão, que não concordava com sua profissão de cobrador de
dívidas, que achava que ele era melhor do que aquilo, certamente diria que
ele também merecia a felicidade. E que sua estupidez custaria caro demais,
pela segunda vez.
Ele já o perdera. A quem queria enganar, Emile estava morto. E estava
perdendo Lucille. Hades pareceu entender a agonia de sua alma e galopou
com toda velocidade que podia, desviando de carros, carruagens e pessoas
que transitavam por aquele horário. Mas, ao chegar ao porto, a aglomeração
fez com que ele precisasse frear e reduzir o galope para um trote bastante
lento.
O navio despontava gigante à sua frente. O nome Splendida, cravado em
letras douradas, chamava à atenção de quem o olhasse. Nathaniel olhou ao
redor e começou a procurar por Lucille. Aqueles cabelos lindos e cacheados,
que a tornavam ainda mais única, também a destacariam na multidão. Ela era
como o navio - impossível de não ser notada, mesmo entre todas aquelas
outras mulheres.
Depois de muitos minutos, ele não a encontrou. Pegou o relógio e
confirmou que já eram quase onze horas e os passageiros se amontoavam na
rampa para o embarque. Teria ela embarcado tão cedo? Era possível, já que
chegara com larga antecedência ao porto. Hertford, o maldito, estava mesmo
com pressa de voltar para a Inglaterra - e de roubar-lhe a mulher. O sangue de
Nathaniel ferveu por imagina que Thad poderia dizer para Lucille as palavras
que eram dele, que poderia seduzi-la e satisfazê-la quando era ele, apenas ele,
que tinha o direito de vê-la nua sobre uma cama.
O vento marinho soprou em seus cabelos e Nathaniel ergueu os olhos
para o navio. Como se anjos sussurrassem em seus ouvidos, seu olhar foi
conduzido para cima até fixar-se na mulher recostada no deque, olhando
fixamente para o horizonte.
Lucille.
Ele percebeu que estava sem respirar desde que saíra da residência dos
Smith. Uma lufada grossa de ar invadiu seus pulmões e o atordoou enquanto
tudo que ele conseguia fazer era olhar para ela. Sem sua ordem, Hades trilhou
o caminho para mais perto, tão perto que as patas do cavalo encostaram na
mureta de madeira e ferro que separava o solo do mar. O cheiro de maresia
era forte.
— Lucy! — Nathaniel gritou, mas ela não o ouviu. — Lucy! — Gritou
mais alto, porém o vento estava soprando em outra direção e o burburinho
das pessoas impedia que sua voz chegasse até ela.
Em um movimento arriscado, e provavelmente idiota, Nathaniel ficou de
pé sobre Hades. O cavalo manteve-se imóvel enquanto suportava o peso todo
de seu corpo. Apoiado em um pequeno guindaste que conduzia baús e caixas
para o navio, ele se ergueu e gritou com todos os seus pulmões.
— Lucille Smith, olhe para mim.
E ela olhou. Primeiro, Lucille enrijeceu as costas como se tivesse sido
atingida por uma rajada de vento frio. Depois, ela virou o pescoço e o viu ali.
Assim que seus olhos se encontraram ela sorriu. Nathaniel quase desabou
sobre a sela pela potência daquele sorriso.

Ele estava ali. O maldito canalha que a seduzira e a conquistara apenas para
despedaçar seu coração estava parado sobre um cavalo preto, gritando no
meio do porto. Chamando por ela - que não conseguiu evitar sorrir. Mesmo
que suspeitasse que ele fora apenas se despedir, Lucille ficou grata por poder
vê-lo uma última vez. Poder olhar para aquele homem desgrenhado, cujas
roupas estavam longe de se parecer com as de um cavalheiro, com seus
cabelos emaranhados pelo vento.
As pessoas começaram a parar para ver a cena e não entendiam o que
estava acontecendo. Nem ela mesma entendia, então debruçou-se no deque
para perguntar-lhe o que aquela cena significava.
— O que está fazendo aqui, Nate?
— Eu vim buscar você.
Claro que ela entendera errado, portanto, precisou perguntar de novo.
— O que?
— Eu vim buscar você, Lucy! Não me importa se sou um maldito egoísta,
eu não vou deixar que você se case com Hertford. Você é minha.
As palavras a atingiram como flechas, dilacerando a pele. E, ainda assim,
eram tudo que ela precisava ouvir. Mas ele as estava gritando no meio de
tanta gente e aquilo parecia perigoso. Perigoso e excitante.
— Ficou louco?
— Talvez. Você vem comigo?
Até o inferno, ela pensou. E se houvesse algum lugar pior que o inferno,
ela o seguiria através dele, também. Por mais seguro e adequado que fosse o
casamento que ela antes desprezara, descobriu que não queria nada daquilo.
Lucille queria a excitação que apenas Nathaniel conseguia proporcionar a ela.
Ele era instável, arriscado e imoral, mas ela talvez o amasse porque, apesar
disso, ele era também um homem que dava a ela o que sempre desejou -
liberdade, uma vida além da sobrevivência.
— Preciso desembarcar.
Ela disse mais para si mesma. Nathaniel manteve-se ali, esperando por
ela, enquanto as pessoas ao redor pareciam esperar que ela tomasse uma
atitude. Mas, quando suas pernas obedeceram a suas ordens e se puseram a
caminhar, viu Hertford e sua mãe se aproximando. Sua hesitação chamou a
atenção de Nathaniel, que percebeu a chegada dos dois.
— Hades, espere aqui.
Lucille o ouviu dizer para o cavalo e agarrar-se a uma corda. Com
habilidade fora do comum, Nathaniel pegou uma faca em seu colete e cortou
um cabo que mantinha a corda presa. Aquele movimento o arremessou na
direção do navio como a flecha que saía de uma besta. Ela soltou um grito
abafado pelas duas mãos por vê-lo agarrar na rede presa ao casco e começar a
escalar. Algumas vozes diziam que ele se mataria, outras que ele estava
louco.
O marquês e sua mãe se aproximaram, mas ela não conseguiu prestar
atenção se eles falavam alguma coisa com ela. Estava debruçada no deque,
quase caindo do navio, acompanhando os movimentos do homem que, com
um felino, subia pelo navio até ela.
E, quando terminou sua subida, Nathaniel passou as duas pernas pela
proteção do deque e aterrissou no piso de madeira como se tivesse acabado
de chegar a um baile ou um sarau. Colocando-se entre ela e Hertford, ainda
empunhando a faca, Nate garantiu que ela ficasse protegida atrás de seu
corpo.
— McFadden, você enlouqueceu?
— Sim, eu enlouqueci no dia em que deixei que Lucille acreditasse que
eu não a queria o suficiente para que ela lutasse por nós. Enlouqueci no dia
em que permiti que você sequer olhasse para ela como se pudesse tê-la,
Hertford. Preciso informá-lo, você não pode tê-la.
Lucille sentiu os joelhos fraquejarem. Ele percebeu e virou-se, segurando-
a nos braços e amparando-a em seu peito duro e quente.
— Desculpe-me. Eu vim aqui para dar a você uma escolha, mas estou
fazendo tudo errado de novo. Antes de decidir se continua nesse navio e
segue para a Inglaterra com ele, você precisa saber toda a verdade.
— E qual é a verdade?
Ela se afastou um pouco, desvencilhando-se do abraço firme e o fitou nos
olhos - azuis, intensos, carregados de informações novas que ela ainda não
percebera neles.
— A verdade é que eu a amo, Lucille Smith. Eu quis me livrar de você
todas as vezes e falhei, eu quis te mostrar que eu não sou bom o suficiente,
mas eu não consegui, porque eu sou um canalha egocêntrico que não a quer
perder. — Ele respirou profundamente. — Desde que você apareceu na
minha porta eu venho tentando lidar com os sentimentos, mas sou muito ruim
com eles. E entendi que te afastar fosse melhor para você, mas eu a amo. Não
posso permitir que se vá sem saber disso.
Lucille não conseguia piscar. Ela apenas olhava para Nathaniel sem
conseguir crer nas palavras que ele proferia. Mas ele ainda não acabara.
— Eu não posso lhe dar nada. Perdi o Gênesis, perdi meu irmão, não
tenho um emprego honesto, nem dinheiro, nem um título. Hertford está
falido, mas seu dote o ajudará a recuperar suas propriedades e ele tem muitas
delas. O marquês poderá te oferecer tudo que você nem imaginou precisar, eu
só posso oferecer meu amor. Mas, maldito seja, eu sou um McFadden, e os
McFaddens só sabem amar se for intensamente. Se você ficar comigo, eu a
amarei até o último dos meus dias da forma como ninguém mais vai
conseguir lhe amar.
Uma lágrima anuviou seu olhar e Lucille quis livrar-se dela piscando
rapidamente. Uma multidão de pessoas acompanhava aquela declaração.
Havia gente no porto olhando para o navio, gente no navio olhando para eles,
e todos pareciam em suspensão, aguardando que ela dissesse alguma coisa. A
mãe parecia perplexa, cobrindo a boca com as duas mãos. Hertford baixara a
cabeça e ela entendeu aquilo como uma demonstração de resignação. Não
havia nada que ele pudesse fazer para disputar com Nathaniel.
Porque não havia disputa. Ela entregara seu coração àquele canalha e não
havia nada que pudesse fazer quanto àquilo.
— Você é um idiota. — Ela disse, sentindo que seu coração poderia saltar
fora do peito.
— Sim, eu sou. Você não é a primeira pessoa que me diz isso, hoje. Eu
sou um idiota, um imbecil, um imoral, um egoísta, mas eu ainda assim amo
você o suficiente para estar aqui.
— Eu poderia ter ido para Londres! Eu poderia ter me casado com ele!
— Não deixaria isso acontecer.
— Você não poderia saber! — Ela se projetou na direção dele, colidindo
com o corpo masculino que lhe despertava sensações mesmo enquanto estava
irritada, tentando odiá-lo. — Eu quero bater em você, Nathaniel McFadden.
— Então bata. — Ele abriu os braços, dando dois passos para trás e
oferecendo-se para que ela o acertasse com os punhos. — Bata-me, dê o seu
melhor, eu mereço. Mas, depois, desça desse navio comigo.
Maldito fosse aquele homem. Com as mãos fechadas em punhos, Lucille
se aproximou outra vez e ele fechou os olhos, esperando o contato que não
veio. Ela pressionou seu corpo contra a parede de músculos, passou os braços
ao redor do pescoço.
— Eu amo você demais para lhe ferir, seu tolo.
E colou os lábios nos dele.
Assim que percebeu o que ela fazia, Nathaniel a segurou pela nuca,
puxou seus quadris contra os dele e aprofundou o beijo. Ela se abriu para ele,
ansiosa por ser arrebatada e consumida por lábios vorazes. O burburinho
transformou-se em expressões de surpresa e reprovação. Algumas palmas,
algumas interjeições de horror. Lucille não se importava - tudo que ela queria
estava ali, exatamente em seus braços.

Hertford não parecia satisfeito com a cena que presenciara. Nathaniel não
podia se importar menos, mas ele se sentiu no dever de oferecer-lhe
satisfações, pelo bem de Lucille. Depois de a beijar como se aquela fosse a
última vez, ele a protegeu atrás de si e se aproximou do marquês, que os
encarava com os braços cruzados no peito.
— Nós vamos desembarcar.
— Parece-me que eu devo resistir e tentar impedir que isso aconteça.
— Não há nada que possa fazer para me impedir de descer com minha
mulher desse navio, Hertford. Encerremos isso como dois cavalheiros, aceite
a derrota. Sei que precisa salvar seu marquesado, mas Lucille merece mais
que isso, não acha?
O marquês assentiu. Claro que ela merecia e ele sabia que não poderia
oferecer a ela tudo que ela queria. Nem Nathaniel.
— Espero que saiba o que está fazendo. Não tem medo de a destruir?
— Sim, eu tenho.
E ele gastaria todos os seus dias lutando contra a escuridão para garantir
que Lucille só tivesse luz em sua vida. Esperava que o amor que sentia fosse
suficiente para mantê-lo no rumo. Segurando-a pela mão, com os dedos
entrelaçados, ele a conduziu pelo navio sob o escrutínio de Hertford e de
todos os passageiros já embarcados, enfrentou o assombro dos passageiros
subindo a rampa e o alvoroço da multidão no porto.
Hades permanecia imóvel onde fora deixado. Ele montou e ofereceu a
mão para que Lucille o acompanhasse. Assim que ela subiu no cavalo, que
demonstrou sua satisfação com um relincho, Nathaniel a segurou em seus
braços e a beijou outra vez.
— Para onde vamos, agora?
— Para casa. Minha casa. Nossa casa.
— O que o fez mudar de ideia? — Ela se acomodou no espaço entre seus
braços e deitou a cabeça em seu ombro.
— Eu nunca mudei de ideia, Lucy. Sei que, no final, não permitiria que se
casasse com nenhum outro que não eu. O que eu disse antes era mentira. Fiz
para lhe magoar, para que me odiasse e se afastasse de mim.
— E se tivesse dado certo?
— Você poderia viver feliz do lado de Hertford. — Era uma constatação
que ele se recusava a admitir.
— Não viveria, não. — Ela o beijou no pescoço e Nathaniel quase parou
o cavalo e a arrastou para uma alcova qualquer. — Eu jamais seria feliz em
um casamento sem amor. E eu jamais poderia amar o marquês porque seria
incapaz de parar de te amar, Nathaniel McFadden.
Ele sorriu. O sabor da vitória era agridoce, mas Nate queria saboreá-lo
assim mesmo. Amá-la era glorioso, ser amado por ela era como ser alçado ao
Paraíso.
— Meu pai virá atrás de mim.
— Não virá. Resolveremos esse problema hoje mesmo.
— Arruinar-me publicamente outra vez é um plano ruim. — Ela riu e o
beijou novamente, exatamente ali onde seu coração pulsava.
— Não pretendo a arruinar, pretendo torná-la minha esposa.
Lucille ergueu a cabeça e o fitou.
— Mas ninguém consegue casar-se tão rapidamente.
— Bem, o segundo e o terceiro filhos de um conde que tem excelentes
negócios espalhados pela Europa, que fornece peças de navio para duas
empresas americanas e que está prestes a investir uma grande soma de
dinheiro na cidade de Nova Iorque, conseguem coisas que poucas pessoas são
capazes de obter. Tenho certeza de que, assim que chegarmos, Isaac estará
segurando uma permissão de casamento.
— Céus, isso é muito romântico.
Ela deu uma risada sincera. Hades trotava para casa, daquela vez sem
pressa, e eles podiam conversar. Era o que faziam melhor até aquele
momento - discutir durante viagens.
— Tem razão, não posso apenas dizer que vamos nos casar. Preciso fazer
a proposta adequadamente.
Nathaniel puxou o arreio e Hades parou no meio da Quinta Avenida.
Apeou do cavalo e desceu Lucille, segurando-a pela cintura. Garantindo que
não corriam o risco de ser atropelados por uma carruagem ou carro que
passasse, ajoelhou-se à frente dela, segurando uma mão entre as suas.
Algumas pessoas pararam para ver o que faziam.
— Qual é seu nome do meio?
— Amelia.
— Certo. Lucille Amelia Smith, você aceitaria tornar-se minha esposa?
Por favor, não seja razoável ou decente, diga sim.
Ela deu uma gargalhada sonora, jogando a cabeça para trás. Era a mulher
mais fantástica que ele já tivera a oportunidade de conhecer e tudo que ela
fazia o encantava. Faria qualquer coisa para vê-la rir todo dia. Aquela era a
maldição dos enamorados, adorar e venerar cada detalhe da pessoa amada.
— Qual é o seu nome do meio?
— William.
— Então sim, Nathaniel William McFadden. Eu aceito casar-me com
você, principalmente se for hoje ainda.
Capítulo vigésimo terceiro

H AVIA UM PADRE ESPERANDO POR ELES NA CASA DE N ATHANIEL . I SAAC E


Leonard estavam ansiosos, girando pelo salão, e um homem de Deus
aguardava, segurando uma Bíblia e demonstrando pouca compreensão do que
acontecia. Quando o dono da casa entrou pela porta principal, os homens se
acalmaram ao vê-lo trazendo Lucille pela mão.
— Ainda bem que chegaram. — Isaac caminhou na direção deles. —
Precisei exigir, subornar e ameaçar para conseguir esse papel — Ele
chacoalhou um documento na frente do casal. — E arrastar o padre? Por certo
que Edward terá que fazer uma enorme doação para a Igreja Católica local.
— Você não ameaçou ninguém, ameaçou? — Lucille perguntou, um
pouco assustada.
— Ele não, eu fiquei com essa parte. — Leonard sorriu.
— Bem, então não vamos perder tempo. — Nathaniel virou-se para ela e
segurou suas mãos nas dele. — Lucy, eu pretendo te dar um casamento
decente, algum dia. Mas hoje, eu preciso livrá-la de Walter Smith. Se nos
casarmos imediatamente, nem Deus, nem o Diabo, levam você de mim. Não
mais.
Ela deu uma risada tímida, estranhamente feliz por vê-lo agir de forma
tão possessiva. Já fazia algum tempo que desejava que Nathaniel tomasse
posse dela. Aquele momento finalmente chegou.
— Eu não preciso de um casamento decente se estou me casando com o
homem certo. — Lucille entrelaçou os dedos nos dele. — Vamos, antes que o
padre desista de esperar pela noiva.
Isaac olhou ao redor e pegou um arranjo de flores frescas que estava
sobre um aparador. A casa de Nathaniel parecia uma residência abandonada,
mas, desde que o irmão chegara, era como se a vida tivesse retornado ao
lugar. Ele então bateu o excesso de água dos caules e entregou a Lucille.
— Toda noiva precisa ter um buquê.
— Oh, Sr. McFadden. Isso é muito atencioso de sua parte.
— Chame-me Isaac. Parece que nos tornaremos irmãos muito em breve.
E sou casado com uma dama muito pouco convencional, digamos que sou eu
quem presta atenção nos pequenos detalhes.
O sorriso dele era franco e honesto. Lucille gostara de Isaac McFadden
desde o primeiro momento em que o vira - e sabia que adoraria Emile,
também, se o conhecesse. Aquela era uma família verdadeira, não um grupo
de pessoas que se evitava o máximo de tempo possível. Ali havia amor, algo
ao que ela não estava muito acostumada.
O padre pigarreou e os noivos se colocaram à frente dele.
— Se o senhor puder pular todas as partes e ir logo para os votos, padre,
eu ficaria grata.
Isaac deu uma risada que tentou abafar. Nathaniel cruzou os braços no
peito inflado, demonstrando orgulho. No final, ela também não era muito
romântica. O padre ficou desolado por não poder sequer realizar um sermão -
o que eles, provavelmente, precisariam bastante, mas não demonstrou seu
abalo.
— Bem, os senhores ao menos possuem as alianças?
Leonard estendeu uma caixa de madrepérola para Nathaniel, que
agradeceu silenciosamente com um olhar.
— Parece-me que sim, padre.
— Então, repitam comigo os benditos votos, enquanto entregam as
alianças um para o outro.
Aquele certamente seria o casamento menos tradicional de todos. Lucille
não quis imaginar como conseguiram a permissão nem as alianças, que eram
a joia mais linda que ela já tivera a oportunidade de usar. Também não se
incomodou por trajar um conjunto de saia e blusa de viagem, sem nenhum
glamour. Ou porque seu noivo, em breve marido, sequer tiver a decência de
cobrir os antebraços.
Em toda a sua vida, ela viveu à sombra do pai abusivo, da mãe cujo
drama ela não compreendia, do irmão e das irmãs que se livraram cedo do
controle de Walter Smith. Durante todos os seus vinte e sete anos, ela viveu
pela metade, vendo as amigas alçarem voo, as mulheres realizando feitos,
mesmo que mundanos, mesmo que pequenos, enquanto ela apenas observava.
Desde que se vira afrontada pelo horror de um casamento tão ruim quanto o
que seus pais tinham, ela se libertou.
Não foi uma libertação exterior - Lucille encontrou-se dentro de si
mesma, emancipou-se. Sua transformação foi interna - ela passou a saber o
que queria, o que desejava. Entendeu que não aceitaria menos do que realizar
seus pequenos desejos. E, naquele momento, trocando olhares com Nathaniel,
ela soube que já começara a alcançá-los.
De todos os homens que ela poderia escolher, o menos ortodoxo era o que
lhe serviria. Ele não a limitava, não a reduzia e a protegia com a própria vida.
Quando ela descobriu que o amava a ponto de arriscar a própria felicidade
por ele, pouca coisa mais importou.
— Eu os declaro marido e mulher. O senhor pode beijar a sua esposa.
A frase final da cerimônia precedeu o sorriso malicioso e profano de
Nathaniel. Ele a segurou nos braços e a beijou com devassidão, invadindo-a
com a língua enquanto ajeitava sua cabeça para permitir um encaixe melhor.

Ele estava nervoso. Fizera tudo errado desde o início, tentando acertar e
permitir que Lucille tivesse escolhas - e ela o escolheu. Naquela noite, ele a
tornaria sua mulher, mesmo que já tivesse feito isso dias atrás. No fundo,
quando concordou, nos termos dela, em fazer amor naquele hotel, ele sabia
que estaria para sempre ligado a Lucille Smith.
Não, ele a livrara daquele sobrenome horrível. Ela era, para tudo que
importava, Lucille McFadden. E estava linda, sentada em frente à lareira,
escovando os cabelos cacheados. Vestia um roupão de seda emprestado, pois
todas as roupas dela ficaram no navio. Não desembarcaram nada,
absolutamente nada, e ela, ainda assim, parecia feliz. Ela estava feliz, o
sorriso nos lábios dela indicava isso.
Naquele momento ele realmente não se importava que ela não tivesse
roupas. Pretendia passar pelo menos uma semana sem que ela sequer se
lembrasse do que era cobrir aquele corpo lindo, que tanto o seduzia, com
tecido.
Com cuidado para não a assustar, aproximou-se, tomou-lhe as escova das
mãos e se ajoelhou ao lado dela, assumindo a tarefa da escovação. Depois de
um minuto, abandonou a escova e colocou as mãos nos ombros dela,
massageando-os.
— Mandei um bilhete para a casa Smith avisando que estou casada. —
Ela disse, rendida aos carinhos.
— Isso foi bastante audacioso da sua parte. — Ele beijou-a no pescoço.
— Gostaria de olhar a cara de meu pai quando ele soubesse que seus
planos deram errado definitivamente. Mas prefiro não ter que vê-lo
novamente. Espero que minha mãe esteja bem.
— Se ela não estiver, resolveremos isso. Mas não hoje. Hoje eu vou
cuidar de você.
— Por que até uma frase simples parece devassa quando você a
pronuncia?
— Porque eu sou devasso. — Ele desenhou a linha da coluna dela com o
indicador, levou as mãos até o laço do roupão e o desfez. Beijou novamente o
pescoço e deslizou a seda pelos ombros de Lucille, descobrindo-os. — E eu
pretendo fazer coisas bem devassas com você, agora.
— Mais do que você já fez?
— Talvez sim, talvez não. Mas ainda há muito que você precisa aprender,
Lucy.
— Então me ensine.
Ah, ele iria ensiná-la. Segurando-a pelos ombros, Nathaniel a ergueu e
virou para si, enquanto o roupão caiu completamente no chão do quarto.
Lucille ruborizou ao se ver totalmente nua à luz de tantas lamparinas, mas ele
não pretendia apagar nenhuma. Queria olhar para ela quando a beijasse,
quando a penetrasse, quando ela chegasse ao clímax gritando seu nome.
Queria vê-la, por completo, em todas as suas camadas.
Lucille levou os dedos nervosos aos botões de sua camisa e começou a
abri-los. Toda vez que a pele dela roçava na sua, Nathaniel soltava uma
imprecação baixa, tamanha a excitação que aquele gesto simples lhe
proporcionava. Suas partes baixas já estavam duras como granito e ele quase
não aguentava mais a prisão que suas calças representavam. Depois que ela
desabotoou a camisa, os dedos continuaram seu caminho e se amoldaram ao
redor de sua ereção.
— Esse é o tamanho do meu desejo por você. — Ele provocou, abrindo
os botões que mantinham a calça no lugar e livrando seu membro dolorido do
confinamento. Ela se assustou com o contato da pele rígida, lisa e quente,
mas envolveu-o em seus dedos. — A culpa é sua se fico assim quase o tempo
todo quando estamos juntos.
— Acho que estou orgulhosa de despertar um desejo tão grande.
Ela também sabia provocar. Nathaniel segurou-a pelos dois lados da face
e a beijou ternamente, os lábios sobre os dela, a língua procurando espaço até
penetrá-la suavemente, saboreando o gosto da boca que ele adorava.
Excitada, Lucille moveu os dedos para cima e para baixo e acariciou a cabeça
lisa de seu membro, fazendo com que ele gemesse e precisasse se esforçar
para não gozar antes da hora. Nunca aquilo lhe acontecera, seria uma
humilhação terrível.
Desinteressado em esperar, Nathaniel segurou a esposa nos braços e a
levou para a cama. Jogou-a sobre os colchões, terminou de livrar-se da calça
e juntou-se a ela, cobrindo o corpo feminino com o seu.
— Eu vou te dar tudo que você quiser e precisar, hoje. — Ele murmurou
em seu ouvido com uma voz rouca que a fez arder por dentro. — Mas, agora,
eu preciso estar dentro de você.
Ela também precisava dele e já estava um pouco ansiosa esperando-o
acomodar-se entre suas pernas e penetrá-la profundamente. Lucille arfou ante
a intrusão e gemeu pela sensação deliciosa de preenchimento. Apesar da
urgência, ele era delicado e se moveu suavemente sobre ela, aprofundando o
contato entre os corpos e estimulando-a com um roçar de quadris que a fez
ver estrelas sem precisar olhar para o céu.
Com um beijo intenso, Nathaniel levou uma das mãos até onde os corpos
se uniam e a tocou em sua feminilidade. Lucille sentiu calor subir por seu
ventre, uma agonia intensa arrebatando-a como as ondas de uma tormenta.
Ele a excitava por todos os lados - a boca na sua, a língua como veludo a
saboreá-la, os dedos hábeis estimulando-a onde ele sabia que ela gostava, e o
movimento dos quadris que a enlouqueceria se ela já não estivesse
acostumada a saltar.
Daquela vez, quando o êxtase a atingiu, levou Nathaniel consigo. Ela
pode sentir quando ele aumentou a intensidade das estocadas, trincou o
maxilar e a segurou pelas coxas com força e a penetrou profundamente em
uma última arremetida.
— Céus. Eu amo você. — Ele murmurou, febril, deixando que o corpo
repousasse do lado dela. Lucille virou-se para ele e o beijou no peito suado.
Percebeu, para sua satisfação, que continuavam encaixados.
— Pode ser que me acostume com isso.
— Espero que nunca. — Ele a puxou para si, acomodando-a e ajeitando
os lençóis na cama. — Porque assim eu terei motivos para te mostrar coisas
novas todo dia.

Eles adormeceram logo depois, exaustos. Durante a madrugada, Nathaniel


acordou Lucille para fazê-la gritar seu nome mais uma vez, mas deixou que
ela voltasse a dormir. Ele se sentia intoxicado pelo cheiro, pelo sabor, pelo
som da risada dela. Não imaginou que estivesse tão apaixonado até quase
perdê-la. Quando o dia amanheceu, acomodou-a nos travesseiros, tomou um
banho longo e quente e desceu para encontrar-se com Isaac.
Teria que dizer ao irmão que eles precisavam se conformar com a morte
de Emile. Que, caso ele estivesse vivo, já teria sido encontrado. Não
adiantava mentir para si mesmo - Emile morrera por sua culpa, porque ele
fora negligente a ponto de não cuidar suficiente do irmão mais novo. E
arcaria com as consequências eternas do remorso sobre suas costas.
Mas Isaac não estava em lugar algum da casa. Nem no salão, nem na sala
de jantar. Nathaniel voltou ao quarto destinado ao irmão e o encontrou
também vazio.
— Burton! — Chamou o mordomo, que apareceu em poucos segundos.
— Aonde foi meu irmão?
— O Sr. McFadden saiu, senhor. Recebeu uma correspondência e não
tomou nem seu desjejum.
— Uma correspondência? De quem?
— Um entregador particular, senhor. Devo preparar o desjejum para o
senhor e sua senhora?
— Sim, prepare comida suficiente para quatro pessoas. Estou faminto.
O mordomo fez uma mesura e desapareceu na direção da cozinha.
Nathaniel podia estar enganado, mas ele parecia bastante satisfeito por ter
tanto movimento na casa. Intrigado com o que movera Isaac para fora da
casa, voltou para seu quarto e encontrou Lucille acordada, sentada na cama.
Linda, como uma ninfa entre sedas e algodão.
— Você não pode se levantar antes de mim. — Ela deu uma risadinha. —
Eu me assustei, pensei que tivesse sonhado.
— Meu amor, se acordasse do meu lado teria certeza de que foi um
pesadelo.
Lucille gargalhou e Nathaniel soube que não precisaria se esforçar muito
para arrancar risadas dela. Dobrou-se sobre a cama e a beijou, puxando-a para
cima e arrancando-a dos colchões para envolvê-la em um abraço. Estava
pensando em arrancar as roupas e fazer amor com ela outra vez quando a
porta subitamente se abriu e Isaac entrou, agitado e arfante, gritando seu
nome.
— Pelos céus, Isaac! — Nathaniel protegeu Lucille com seu corpo. Ela
estava rindo. — Não pode entrar no quarto de recém-casados dessa forma.
O irmão corou e baixou o olhar. Isaac devia ser o único homem na face
da terra que enrubescia.
— Desculpem-me, mas eu tenho notícias que não podem esperar.
— Certo, vamos descer. Burton está preparando o desjejum. Você nos
encontra lá, Lucy?
— Em alguns minutos, preciso apenas me vestir - e não tenho muitas
opções.
— Não se preocupe, compraremos toda Nova Iorque para você, hoje
ainda.
— Nate, bajule sua esposa depois. — Isaac chamou, aflito. — O que
tenho é bastante importante.
Certo de que mataria Isaac se tivesse que morar mais uma semana com o
irmão, Nathaniel o empurrou para fora do quarto e pela escada, levando-o até
o escritório. Percebeu que ele segurava alguns papeis nas mãos trêmulas.
— O que raios é mais importante do que minha satisfação carnal, Isaac?
— Veja você mesmo.
O irmão estendeu os papeis para Nathaniel. Eram cinco fotografias e uma
declaração escrita à mão. Decidiu ler primeiro - tratava-se do depoimento de
um pescador que descobrira um homem à beira da morte próximo do Lago
Montauk. O relato indicava que se tratava de um homem estrangeiro, usando
traje completo, porém danificado por uma perfuração de bala. E dizia que o
homem estava ferido na cabeça, inconsciente.
Nathaniel desabou sobre a poltrona que estava próxima à lareira ainda
apagada. As fotos pareciam tiradas à distância, e quem as tirou não queria ser
visto. Eram de uma jovem nativa, de longos cabelos escuros e vestes
tradicionais dos Shinnecock. Ele não conhecia muito das tribos indígenas que
se espalhavam e se escondiam pelo estado de Nova Iorque, mas sabia que
elas tinham sido quase dizimadas e aculturadas.
— O que isso significa?
— Pistas, Nate.
— Pistas do que, Isaac?
— Eu contratei um detetive particular assim que me contou sobre a
possibilidade de Emile estar vivo. Você estava tão ocupado com seus
próprios dramas que decidi agir e fazer alguma coisa. Esse detetive me
chamou, hoje, e fui até ele. O pescador reconheceu Emile da foto que
entreguei.
— E a mulher?
— Segundo o pescador, ela levou o homem ferido para a sua tribo. Eles
vivem recolhidos em uma região pouco favorecida, na divisa com
Connecticut.
A porta do escritório se abriu e Lucille entrou, vestida com as roupas do
dia anterior, apenas mais feliz.
— Por que estão escondidos aqui? Vamos comer.
Nathaniel estendeu a ela as fotografias e a fitou por longos segundos.
Céus, ele acabara de se casar e já estava prestes a pedir que sua noiva se
envolvesse em mais uma caçada pelo irmão que talvez estivesse morto. O que
podia fazer se, contrariando a sua resignação anterior, o dia trouxera uma
nova centelha de esperança?
— Essa mulher pode ter encontrado Emile.
— E quem é ela?
— Uma nativa, vivendo em uma tribo próxima do lago Montauk. Alguém
reconheceu nosso irmão por uma fotografia.
— Meu Deus! Então eu estava certa? Ele foi mesmo encontrado por
indígenas?
— Parece-me que sim, meu amor.
— Excelente! — O sorriso dela se ampliou e ela lhe devolveu as fotos. —
Então, vamos comer e partir!
— Partir? — Isaac não entendeu.
— Claro… nós vamos seguir essa nova pista, não vamos?
Levantando-se, Nate colocou tudo que tinha nas mãos sobre a
escrivaninha e passou os dedos pelos cabelos da esposa. Ela brilhava como a
luz do sol, radiante e tão cheia de vida.
— Não posso pedir que faça isso, que se envolva em mais uma de minhas
aventuras em busca de algo que pode nem existir. Essa também pode ser uma
pista falsa, Lucy.
— Mas pode não ser! — Ela repetiu o gesto dele, acariciando-o nos
cabelos. — Nate, eu me apaixonei por você em uma aventura. Eu me
apaixonei por você exatamente porque é o único que pode me proporcionar
aventuras. Acha mesmo que eu perderia a oportunidade de outra viagem de
carroça, com cavalos cheios de personalidade e banhos nos rios?
Isaac moveu os ombros indicando que não podia fazer nada - ela tomava
as próprias decisões e estava ficando cada vez mais acostumada a escolher
seu destino.
— Tudo bem, então. Vamos tomar nosso desjejum e planejar nossa
viagem de lua de mel.
Excitada pela possibilidade de mais um passeio pelas paisagens mais
selvagens do interior do estado, Lucille saiu rodopiando do escritório, indo na
direção da sala de jantar. Nathaniel pegou as fotografias e as guardou dentro
de um envelope - eles precisariam delas para identificação. Depois, passou o
braço pelo ombro de Isaac e o conduziu para fora do escritório.
Havia sol entrando pelas frestas das cortinas que estavam mal fechadas. A
claridade fez com que ele conseguisse ver as cores cintilantes dos tapetes e
papéis de parede que ornamentavam os corredores da casa que ele nunca
realmente aproveitou, desde que chegara a Nova Iorque.
Nathaniel tinha apenas uma certeza naquela manhã agitada - depois de
Lucille, ele nunca mais deixaria de ver as cores novamente.
Epílogo #1

H URIT APRENDERA A VIVER UM DIA APÓS O OUTRO , MESMO QUE SUA


impaciência sempre a fizesse ouvir sermões do pai. Filha do chefe da tribo,
ela era uma espécie de princesa para os Shinnecock, na linguagem dos
colonizadores. E, naquele dia, ela desafiou todos os limites que tinha
autorização de ultrapassar ao levar um homem branco para a tribo.
Os homens estavam fora e as mulheres se aglomeraram ao redor de sua
tenda para espiar o que acontecia.
— Seu pai ficará insatisfeito, Hurit. — A mãe reclamou, enquanto
ajudava a filha a despir o forasteiro. — Onde encontrou esse branco? Por que
não o deixou para seu próprio povo cuidar?
— Não é da minha natureza empurrar meu destino para outros, ókas 1. Ele
foi trazido até mim por Paumpágussit 2, o que eu deveria fazer?
— Que Keihtán 3 esteja com você quando os homens voltarem. Vamos
ver se podemos salvar o corpo desse aqui. Vocês, espreitadoras, entrem e
ajudem.
Duas mulheres entraram na tenda para auxiliar nos cuidados com o
desconhecido. Enquanto retiravam a roupa encharcada do homem e
preparavam emplastros para cuidar dos ferimentos aparentes, Hurit se
surpreendia com os traços bonitos e bem desenhados que apareciam a cada
camada de tecido removida. Era como se Nashauanit 4 o tivesse esculpido
com suas próprias mãos.
— Ele foi vítima da crueldade dos seus. — A mãe identificou o ferimento
de chumbo que perfurara a lateral do tórax e vazara nas costas. — Perdeu
muito sangue, Hurit. Talvez não haja nada que possamos fazer.
— Talvez, ókas. Mas garantiremos, ao menos, que seu espírito ache o
caminho para a luz.
A mãe balançou a cabeça, mas continuou a cuidar do estrangeiro.
Amonute era uma das enfermeiras da tribo, ela sempre tratava das doenças e
ferimentos do seu povo - Hurit sabia que ela era a única esperança daquele
moribundo.
Depois que Amonute terminou seu ritual, expulsou as outras mulheres da
tenda e deixou Hurit sozinha com o forasteiro inconsciente. Deitado sobre
uma cama improvisada, com linho enrolado para esconder-lhe as partes
baixas, ele estava pálido e exangue. A mãe provavelmente tinha razão, o
homem morreria ainda naquele dia. Mas a beleza dele a desorientou. Seria
um desperdício se a terra tragasse aquele corpo tão bonito.
Certa de que ninguém entraria na tenda para surpreendê-la, Hurit passou
as pontas dos dedos pela cavidade dos olhos, pelo nariz e pelos lábios
grossos, que estavam sem cor, sem vida. Deslizou o indicador pela
protuberância da clavícula, pelo peito rígido e pelos mamilos descolorados.
Abriu as duas mãos sobre o ferimento e, sem tocá-lo, fez uma oração. Se
Paumpágussit lhe entregara aquele homem para cuidar, não podia o tomar
dela antes mesmo que tentasse.
Não, Hurit estava decidida a manter aquele forasteiro vivo, mesmo que
isso custasse seu bem-estar com o restante da tribo.
Epílogo #2

A QUELE ERA O TERCEIRO DIA DE VIAGEM . C ONSTANCE OLHAVA PARA O


horizonte e tudo que via era água, um oceano que se colocava entre ela e
Walter Smith. A brisa marinha do final de tarde estava fria, mas ela se
acostumara a passar horas admirando o pôr do sol.
— Sra. Smith? — A voz masculina e grave do Marquês de Hertford
atraiu a sua atenção. — O comandante convidou todos os passageiros da
primeira classe para um jantar no salão especial. A senhora nos
acompanhará?
Ela se virou e encarou o homem que a estava ajudando a fugir de uma
vida de violência. Alto, esguio, com cabelos escuros e olhos azuis como o
mar, apresentava-se diante dela com um traje de noite completo, gravata
cinza e alfinete perolado. Hertford era mais do que bonito, ele transcendia os
conceitos mundanos de beleza.
E ela estava velha demais para achar rapazes de trinta anos bonitos. Ainda
mais para desejar que eles segurassem sua mão e lhes beijassem os dedos,
como o marquês fazia sempre que a encontrava.
— Creio que não seja apropriado. Eu me sinto muito mal usurpando o
lugar de minha filha nesse navio.
— Oras, não estamos cometendo nenhum crime. A passagem foi paga, e
o nome que consta nela é Srta. Smith. Apenas um equívoco quanto aos
pronomes de tratamento, não acha?
O marquês sorriu e iluminou o deque com seus dentes brancos e
perfeitamente alinhados. Ofereceu o braço para que Constance o
acompanhasse e ela aceitou. Não havia motivo algum para não aproveitar os
momentos que viveria naquela viagem - tinha certeza de que, ao chegar em
Londres, seria perseguida e presa. O marido não permitiria que ela fugisse
dele, ele nunca renunciava a suas posses.
— O senhor é um homem bom, milorde. Minha filha merece ser feliz.
Lamento apenas que não possa o ajudar com seu marquesado, eu não tenho
dinheiro nem para pagar um teto para mim.
— Seremos dois sem dinheiro, senhora. Mas eu vou me recuperar. Terei
que vender as propriedades alienáveis, mas isso não me desanimará. Com o
crescimento da indústria, tenho certeza de que logo meus novos negócios
darão bons frutos.
Os dois caminharam pelo deque até a frente do navio, conversando. Não
era a primeira vez que faziam aquilo, Hertford era bastante eloquente para um
inglês.
— A senhora tem algum plano para quando chegar a Londres?
— Não, milorde. Minha filha me revelou sobre um balneário que acolhe
mulheres solteironas e divorciadas, mas não sei se tenho condições de ir para
esse lugar.
— Entendo. Bem, até chegarmos a senhora pode decidir, mas gostaria
que considerasse minha oferta de hospedar-se em minha residência. Minha
irmã mais nova mora comigo, não haverá risco para sua reputação.
Constance riu e percebeu que fazia muito tempo que ela não ria, não
achava graça de nada.
— Ah, milorde, eu estou fugindo do meu marido. Por que me preocuparia
com isso? Mas não sei se devo aceitar, não pretendo ser um fardo para
milorde.
— Deixemos de tanta formalidade, não precisa reverenciar meu título. —
Hertford auxiliou-a a subir as escadas e a entrar no salão, onde aconteceria o
jantar. — Pode me chamar Pinkerton ou Hertford. Ainda não estou
acostumado em ser o marquês, fico mais confortável ouvindo meu próprio
nome.
— Tomarei o cuidado de manter nossas conversas o mais informais
possíveis. Sinta-se confortável para me chamar Constance.
Hertford baixou a cabeça e beijou os nós de seus dedos, fazendo-a sentir
o calor de seus lábios mesmo por sobre a luva de cetim. Constance assustou-
se pela sensação de familiaridade e pelo desejo de que aquela boca encostasse
em outros lugares de seu corpo. Estava sendo tola. Um homem como aquele
já tivera todas as mulheres que quisera, jamais desejaria uma matrona como
ela. E ela ainda era legalmente casada com Walter Smith, que homem a
levaria a sério?
Mas algo fez com que Constance passasse a prestar mais atenção no
marquês, naquela noite. Talvez fosse a forma como ele a observava, ou como
falava próximo demais ao seu ouvido, ou como segurava-a pela cintura
durante uma valsa que parecia interminável.
Eles ainda teriam cinco dias de viagem pela frente e ela precisaria de
bastante resistência para suportar a presença constante de um homem que
fazia despertar nela sentimentos nunca conhecidos. Esperava que não
precisasse resistir a nenhum deles.

Walter Smith não podia acreditar que sua filha se casara com um pária. Ele a
prometera a um marquês, ele investira uma fortuna na criação da maldita e
ela o traíra pelas costas, apunhalando-o da forma mais vil e cruel que poderia
existir. E ainda tivera a coragem de enviar-lhe um bilhete, uma nota
informando seu casamento com o tal McFadden.
Ele sabia que aquele homem era um problema desde que o trancara
dentro daquela cela para morrer. Ninguém tão resistente à dor e à tortura
poderia ser boa coisa. Mas o filho se encantara por ele. Dizia que poderia
transformá-lo em um soldado. Em alguém que lhe daria lucro. Se Walter
Smith tivesse simplesmente matado o maldito, não estaria passando por
aquele tormento.
Sentou-se em sua mesa, sentindo aquela ardência no peito. Já eram vários
dias com uma fermentação estranha no estômago e uma dor constante que
irradiava pelo braço. O médico disse que era indigestão, passou um tônico,
mas a dor não melhorara. Tivera certeza, naquele momento, que a filha o
estava matando. E Constance, a esposa sempre servil e inútil, desaparecera.
Provavelmente estava acompanhando a desgraçada nos festejos do
casamento.
Serviu-se de uma dose de conhaque e examinou o bilhete mais uma vez.
Ele não toleraria aquela ofensa. Nenhum homem poderia desafiar Walter
Smith daquela forma - ele mataria o maldito, mesmo que isso fosse
desagradar seu filho. Pegou o telefone para ligar para seu capanga preferido.
Alguém que pudesse matar causando o máximo de dor possível, alguém que
pudesse fazer o McFadden pagar.
Não conseguiu levar o telefone ao ouvido. O aparelho caiu ao chão e a
dor se intensificou. Precisava de outro médico e de tônicos melhores.
Levantou-se para tocar a sineta e chamar os empregados, mas não deu dois
passos antes de desabar sobre o tapete persa. A cada respiração, a sensação de
ardência aumentava até que ele não conseguiu mais respirar. Quando o ar
desapareceu de seus pulmões, a escuridão o envolveu.
Walter Smith teria a sua vingança, mesmo que levasse algum tempo. Ele
veria o McFadden no inferno.
Notes

9. Capítulo nono
1 Quando um jogador aposta todas as suas fichas em uma rodada.
2 Full house é uma mão do pôquer composta por uma trinca e um par, representando que todas as
cartas pontuam. É uma das melhores mãos na maioria das variáveis de pôquer, geralmente ficando atrás
do five of a kind (quatro quartas iguais, uma de cada naipe, e um coringa), do straight flush (uma
sequência de cinco cartas do mesmo naipe), e do four of a kind (um quarteto de cartas iguais, uma de
cada naipe).
3 Royal flush é um straight flush (sequência de cinco cartas de um mesmo naipe) iniciando pelo às e
terminando no dez.

11. Capítulo décimo primeiro


1 Árvores típicas da vegetação do nordeste estadunidense, com caule de coloração que simula o preto e
branco.

Epílogo #1
1 Mãe, no idioma tradicional dos Algonquinos.
2 Oceano, Deus dos mares.
3 Deus dos Deuses.
4 O espírito do criador.
Agradecimentos

Eu não poderia ter escrito e finalizado esse livro sem algumas pessoas
importantes que me ajudaram muito.
Minhas betas, Daiane, Fran, Verona, Maria Beatriz e Nariane, foram
de grande relevância no desenvolvimento desse livro. Quando surtei pelos
finais de semana com meus áudios enormes e outros escândalos sobre o plot
desse livro, e as conexões com o livro 6, vocês me ouviram e me ajudaram a
encontrar o caminho certo.
Minhas amigas Karina Heid e Sarah Summers, que tornam tudo no
universo literário mais divertido. Quando eu queria gritar, me esgoelar e
desabafar, elas sempre estiveram dispostas a me ouvir e abrir uma garrafa de
espumante rosé!
Para minhas leitoras, em especial aquelas que me seguem desde o livro 1
e que apostaram em mim para escrever romances de época. Cada vez que eu
vejo vocês tão envolvidas com a história e tão satisfeitas pelo que entrego a
cada capítulo, sinto-me com mais vigor e vontade de escrever sempre mais e
melhor.
Escrever para mim é diversão e terapia. Vocês fazem parte disso comigo.
Sobre a autora

Tatiana Mareto é sagitariana, gosta de se comunicar, adora transformar sentimentos em palavras. Mora
em Cachoeiro de Itapemirim, é professora e advogada e começou a escrever aos doze anos, sendo
autora de diversos textos não acabados, muitas poesias não publicadas e alguns originais empoeirados.
Inspira-se com música e tem uma trilha sonora para todos os capítulos – das suas histórias e da sua
vida. Se apaixona com facilidade pelos próprios personagens e coleciona crushes literários.
Um Duque para Chamar de Meu

Elizabeth Collingworth está fugindo de Londres com seus dois filhos


pequenos. Eles tentam escapar dos riscos de uma epidemia de Escarlatina e
são ajudados pela bondosa Lady Agatha, uma jovem dama aristocrata que
não se encaixa muito nos moldes da sociedade inglesa da época.
O Duque de Shaftesbury precisa de uma mulher em sua vida. Ele deve se
casar, mas acaba decidindo contratar outra governanta para administrar os
criados e a casa. Com a mãe doente sempre reclusa e a irmã mais nova
precisando de orientações de uma mulher experiente, ele está com poucas
opções quando seu caminho cruza o daquela linda dama de cabelos dourados
que... desmaia em seus braços.
Mas ela não é uma dama. Ela pode parecer a solução de seus problemas,
mas acabará se tornando outra tormenta em sua vida. Quando o Duque tiver
que escolher entre seu dever e seu coração, descobrirá se os nobres também
podem se casar por amor.

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Um Conde para Curar meu Coração

A jovem Lady Agatha Trowsdale não gosta de frequentar as temporadas


sociais em Londres e não está muito preocupada em conseguir um marido.
Mesmo correndo o risco de se tornar uma solteirona, ela decidiu viajar para
as Américas logo após o casamento de seu irmão para passar algum tempo
conhecendo o mundo, mas retornou meses depois com um segredo que estava
acabando com sua paz e sua sanidade.
Enquanto isso, o Conde de Cornwall foi abandonado por sua noiva, que
rompeu o noivado para aceitar a proposta de casamento de um nobre francês.
Irritado e desapontado, o conde estabeleceu que vai se casar por
conveniência, que é mais seguro negociar uma esposa do que arriscar ser
humilhado novamente.
Os dois se reencontram em um jantar na Trowsdale House e, depois de
muita bebida, se envolvem em um escândalo de proporções inimagináveis.
Lady Agatha tem a opção de aceitar um casamento arranjado e às pressas
para salvar sua reputação e não arruinar definitivamente suas chances de
conseguir um bom marido.
No segundo livro da série Amores em Kent, Lady Agatha e o conde
Edward McFadden são confrontados por suas decisões equivocadas e
precisam aprender a lidar com os problemas sem se matarem no processo.

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Lady Caroline Eckley não segue nenhuma das convenções de sua época. É
livre, não guardou sua castidade para seu marido, não deseja casar e prefere
passar as noites nos clubes de cavalheiros, jogando. Sobrinha do falecido
Marquês de Granville, foi criada entre seis homens e não possui quase
nenhum trato social feminino. E ela pretende ensinar a outras mulheres a
serem como ela.
Até ser procurada pelo lindo e intrigante Lorde Isaac McFadden com uma
proposta - quase - irrecusável. Ele precisava dela, e dos seus conhecimentos,
para livrá-lo do grande fardo da... virgindade. Mas Caroline recusa e Isaac
decide, então, seduzi-la.
No terceiro livro da série Amores em Kent, a primeira declarada libertina
de Londres precisa fugir das investidas cavalheirescas e românticas do
encantador, lindo e mais cobiçado solteiro de Londres. Em um jogo de gato e
rato, Caroline e Isaac se estranham e se entendem em uma sequência de
eventos que culminará no confronto dos seus projetos de vida.

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Wilhelmina McFadden é a irmã mais jovem do Conde de Cornwall. Tendo


quatro irmãos, foi criada com excessiva proteção e cuidado por eles. É uma
dama perfeita: bem educada, bem nascida, com um dote significativo e muito
bonita. Mas Wilhelmina já está na sua terceira temporada e não conquistou
um pretendente. Isso porque todos os homens que se aproximam dela
desejam apenas seu dote ou seu sangue azul, mas não oferecem nada
interessante em troca.
Tendo convivido com suas cunhadas revolucionárias, ela aprendeu a
desejar um pouco mais de um casamento. Mesmo consciente de que se trata
de um negócio, ela quer retribuição. Não precisa ser amor - porque ela sabe
que poderá nunca se apaixonar por seu marido. Wilhelmina já conheceu o
amor, ela é apaixonada pelo filho de um arrendatário, mas sabe que ele não
será seu esposo.
Uma noite, uma festa e um escândalo. Wilhemina é vista em uma posição
comprometedora com um cavalheiro misterioso. Nas sombras, ele está de
costas e não é reconhecido. O homem desaparece e a deixa só e arruinada
para lidar com a família.
Ao descobrir o problema, Grant Sawbridge bola um plano. Ele é um
milionário industriário que já conquistou um império, mas não tem herdeiros.
Temendo ficar velho demais para se casar, deseja desesperadamente
conseguir uma esposa - e ali está uma mulher nobre que pode o alavancar
socialmente. Sawbridge é íntegro e honesto, mas é conhecido por seus
amigos como um homem sem coração. Mas não pode perder aquela
oportunidade - e oferece a Wilhelmina uma proposta de casamento.

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