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Minha adorável esposa
Sobre a autora
Copyright © 2019 Samantha Downing Todos os direitos reservados, incluindo o direito de reprodução
total ou parcial Edição publicada mediante acordo com Berkley, um selo da Penguin Publishing Group,
uma divisão da Penguin Random House LLC
Título original: My lovely wife
CONSELHO EDITORIAL Gustavo Faraon e Rodrigo Rosp CAPA E PROJETO GRÁFICO Luísa Zardo REVISÃO DA TRADUÇÃO Davi
Boaventura REVISÃO Raquel Belisario e Rodrigo Rosp FOTO DA AUTORA Jacqueline Dallimore
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
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D751m Downing, Samantha Minha adorável esposa / Samantha Downing ; trad. Hilton Lima. — Porto
Alegre : Dublinense, 2020.
384 p. ; 21 cm.
ISBN: 978-65-5553-001-8
1. Literatura Norte-Americana. 2. Romance Policial.
3. Romance Norte-Americano. I. Lima, Hilton. II. Título.
CDD 813.5
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Catalogação na fonte: Ginamara de Oliveira Lima (CRB 10/1204)
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Dublinense Ltda.
Av. Augusto Meyer, 163 sala 605
Auxiliadora • Porto Alegre • RS
contato@dublinense.com.br
Um
Ela está me olhando. Seus olhos azuis são cristalinos, descem rápido para a sua
bebida e se erguem de novo. Eu olho para a minha própria bebida e posso
sentir que ela olha para mim, querendo saber se estou tão interessado quanto
ela. Faço contato visual e dou um sorriso para mostrar que estou. Ela sorri de
volta. A maior parte do seu batom se foi, é agora uma mancha avermelhada na
borda do copo. Caminho até lá e sento no banco ao seu lado.
Ela brinca com os cabelos. São genéricos tanto na cor como no volume. Seus
lábios se movem, ela diz olá e seus olhos brilham. Eles parecem iluminados
por dentro.
Fisicamente, sou atraente para ela da mesma maneira que seria para a
maioria das mulheres neste bar. Estou com trinta e nove anos, em excelente
forma, com cabelos em profusão e um par marcante de covinhas, e meu terno
me serve como uma luva. É por isso que ela olhou para mim, por isso que ela
sorriu, por isso que ela está feliz por eu ter me oferecido para ser sua
companhia. Sou o homem que ela tanto deseja.
Eu deslizo meu telefone na bancada do bar até ela. Ele mostra uma
mensagem:
Olá. Meu nome é Tobias.
Suas sobrancelhas saltam para o alto, ela cobre a boca com uma mão e na
sua pele brota aquele tom rosado. O constrangimento parece igual em todo
mundo.
Ela balança a cabeça. Perdão, mil perdões. Ela não sabia.
Claro que não. Como você ia saber?
Ela sorri. Não é um sorriso completo.
Já não sou mais a imagem em sua cabeça, não sou mais o homem que ela
fantasiava, mas agora ela não sabe bem o que fazer.
Ela pega o meu telefone e digita uma resposta.
Eu me chamo Petra.
Petra diz que isso é uma coisa triste. Digo para ela que não é. Triste seria
encontrá-lo morto e ser obrigado a enterrar o bicho. Nunca precisei fazer algo
assim. Eu simplesmente concluí que ele foi para uma lagoa maior com mais
moscas.
Ela gosta do que falei e diz isso para mim.
Não conto a ela tudo sobre Sherman. Por exemplo, ele tinha uma língua
comprida que disparava tão rápido que eu mal conseguia ver, embora eu
sempre quisesse pegar. Eu costumava ficar sentado em frente à lagoa pensando
no quanto essa ideia era errada. Quão terrível seria tentar agarrar a língua de
um sapo? Ele iria se machucar? Se ele morresse, seria assassinato? Nunca
tentei pegar a sua língua e, de qualquer forma, provavelmente não conseguiria,
mas pensei no assunto. E esse pensamento fez eu me sentir como se não fosse
um amigo tão bom assim para Sherman.
Petra me conta sobre seu gato, Lionel, cujo nome é o mesmo do gato que ela
tinha na infância, também Lionel. Digo a ela que a coincidência é engraçada,
mas não tenho lá tanta certeza assim. Ela me mostra fotos. Lionel é um gato
bicolor, com o rosto dividido em preto e branco. Ele é corpulento demais para
ser bonitinho.
Ela continua a falar e muda a conversa para o seu trabalho. Ela cria a marca
de produtos e de empresas, e diz que é tanto a coisa mais fácil quanto a mais
difícil que existe. Difícil no começo, porque é complicado demais fazer as
pessoas se lembrarem de algo, mas, depois que mais pessoas começam a
reconhecer a marca, fica fácil.
— Em determinado momento, nem importa mais o que a gente está
vendendo. A marca se torna mais importante do que o produto — ela aponta
para o meu celular e pergunta se eu comprei o aparelho por causa do nome ou
porque gosto do telefone.
As duas coisas?
Verde-limão. Sorvete?
Tutti-frutti.
Sim.
Baunilha. Pizza?
De presunto.
Chega?
Quando retornei, meu sonho de viajar havia sido realizado, mas não substituído
por outro. Não até eu ver Millicent. Parecia que ela estava apenas começando o
seu próprio sonho. Naquele momento, eu quis fazer parte da história dela.
Naquela época, eu não pensei em todas essas coisas. Isso veio mais tarde,
quando eu tentava explicar a ela ou a qualquer outra pessoa por que a achei tão
atraente. Mas, lá atrás, eu segui para o meu próximo portão. Depois de viajar
por vinte horas, e com mais algumas por vir, eu não conseguia sequer reunir
coragem para falar com ela. Tudo o que eu podia fazer era admirar.
Acabou que nós estávamos no mesmo voo. Interpretei isso como um sinal.
A poltrona dela ficava ao lado da janela e a minha ficava no centro da fila do
meio. Foi preciso um pouco de argumentação, certo flerte com uma comissária
de bordo e uma nota de vinte dólares para eu mudar de lugar e sentar ao lado
de Millicent. Ela nem olhou quando eu me sentei.
Quando o carrinho das bebidas chegou, eu tinha preparado um plano. Pediria
o que quer que ela pedisse e, como eu já havia decidido que ela era alguém
especial, não podia imaginá-la pedindo uma bebida tão mundana quanto água.
Seria algo mais incomum, como suco de abacaxi com gelo, e, quando eu
pedisse o mesmo drinque, teríamos um momento de simetria, de simbiose, de
alegria fortuita — não importava o nome.
Considerando toda minha falta de sono, este plano soou plausível na minha
cabeça até Millicent dizer um “não, obrigada” para a comissária. Ela não queria
beber nada.
Eu disse a mesma coisa. Não teve o efeito que eu queria.
Mas, quando Millicent se virou para a comissária, eu vi seus olhos pela
primeira vez. A cor me lembrava dos campos abertos e majestosos que eu
encontrava por todo o Camboja. Não eram nem de perto tão escuros como eles
são agora.
Ela voltou a olhar pela janela. Voltei a olhar para ela, fingindo não olhar.
Eu disse para mim mesmo que eu era um idiota e que não deveria falar com
ela.
Eu disse para mim mesmo que havia algo errado comigo, porque pessoas
normais não agiam assim com uma garota que nunca tinham visto antes.
Eu disse para mim mesmo que não deveria ser um predador.
Eu disse para mim mesmo que ela era linda demais para mim.
Com trinta minutos faltando para a aterrissagem, eu falei: — Oi.
Ela se virou. Me encarou. — Oi.
Acho que foi aí que eu parei de prender a respiração.
Passaram-se anos até eu perguntar por que ela ficou encarando as janelas,
tanto no aeroporto quanto na aeronave. Ela disse que foi porque era sua
primeira viagem de avião. A única coisa com a qual ela sonhava era um pouso
seguro.
Três
Petra era a número um da lista, mas, agora que ela foi eliminada, eu parto para
a próxima, uma moça chamada Naomi George. Ainda não falei com ela.
À noite, dirijo até o Lancaster Hotel. Naomi trabalha como recepcionista no
Lancaster, um daqueles lugares do velho mundo que sobrevivem devido às
suas glórias passadas. O prédio é enorme e tem uma decoração tão imponente
que jamais poderia ser construído nos dias de hoje. Seria caro demais se
fizessem certo e brega demais se fizessem errado.
A fachada do hotel tem vidraças e painéis laterais, o que dá uma boa vista do
balcão da recepção. Naomi está em pé atrás dele usando o uniforme do
Lancaster, uma saia azul e um blazer, ambos com frisos dourados, e uma blusa
branca lisa. Ela tem um cabelo preto comprido e as sardas em seu rosto a fazem
parecer mais jovem do que é. Naomi tem vinte e sete anos. Provavelmente
ainda pedem sua identidade nos bares, mas ela não é tão inocente quanto
parece.
No fim da noite, eu já a observei sendo um pouco amistosa demais com mais
de um cliente. Todos eles eram homens desacompanhados, mais velhos e bem
vestidos, e nem sempre ela deixa o hotel quando o seu expediente termina. Ou
Naomi está ganhando um dinheirinho extra por fora ou ela tem uns encontros
sexuais meio suspeitos.
Por causa das mídias sociais, eu sei que sua comida favorita é sushi e que ela
não come carne vermelha. Na escola, jogou vôlei e teve um namorado
chamado Adam. Agora ela se refere a ele como O Cretino. O seu último
namorado, Jason, foi embora há três meses, e ela está solteira desde então.
Naomi está pensando em arranjar um animal de estimação, talvez um gato, só
ainda não fez nada em relação ao assunto. Ela tem mais de mil amigos online,
mas, pelo que pesquisei, Naomi tem só duas amizades íntimas. Três no
máximo.
Ainda não sei se ela serve. Preciso saber mais.
Millicent, porém, está cansada de esperar.
Ontem à noite, encontrei Millicent no nosso banheiro, parada em frente ao
espelho, limpando a maquiagem. Ela usava jeans e uma camiseta que a
exaltava como mãe de um estudante nota dez da sétima série. Jenna, não Rory.
— O que tinha de errado com ela? — perguntou. Millicent não usa o nome
de Petra porque ela não precisa usar. Eu sei a quem ela se refere.
— Ela não servia, só isso.
Millicent não me olhou através do espelho. Ela passou creme no rosto. — É
a segunda que você elimina.
— Ela tem que ser perfeita. Você sabe disso.
Ela fechou a tampa do seu tubo de hidratante com um estalo. Fui para o
quarto e me sentei para tirar os tênis. O dia havia sido longo e precisava ter um
fim, mas Millicent não queria deixar acabar. Ela me seguiu até o quarto e parou
na minha frente.
— Tem certeza de que ainda quer fazer isso? — ela perguntou.
— Sim.
Eu estava ocupado demais lidando com o remorso por ter dormido com outra
mulher para poder demonstrar qualquer tipo de entusiasmo. A culpa se alastrou
dentro de mim durante a tarde, quando vi um casalzinho de idosos; eles deviam
ter no mínimo noventa anos de idade e andavam de mãos dadas ao caminhar
pela rua. Casais assim não traem um ao outro. Ergui o olhar para Millicent e
desejei ter a possibilidade de fazer com que fôssemos assim.
Millicent se ajoelhou na minha frente e colocou uma das mãos em meu
joelho. — Nós precisamos fazer isso.
Seus olhos faiscaram, o calor da sua mão se espalhando enquanto ela subia
pela minha perna. — Você tem razão — eu disse. — Precisamos fazer isso.
Ela se inclinou mais perto e me deu um beijo demorado e profundo. Isso fez
com que eu me sentisse ainda mais culpado. E me deu vontade de fazer o que
estivesse ao meu alcance para deixá-la feliz.
Menos de vinte e quatro horas mais tarde, estou sentado em frente ao Lancaster
Hotel. O expediente de Naomi não se encerra antes das onze horas, e não posso
esperar do lado de fora do hotel durante as próximas três horas. Em vez de ir
para casa, pego uma comida e então me sento em um bar. É um lugar
conveniente para ir quando não há nenhum outro lugar.
O local que escolhi está parcialmente cheio, com um público composto, no
geral, por homens solitários. Não é tão bacana quanto o bar onde eu estive com
Petra. Os drinques custam a metade e os que estão usando terno já afrouxaram
a gravata. O piso de madeira é pontilhado por arranhões produzidos pelos
bancos e manchas circulares de copos decoram a bancada do bar. Este é um
local para quem bebe, feito por quem bebe, um local onde todo mundo está
inebriado demais para se importar com detalhes.
Eu peço uma cerveja e assisto um jogo de beisebol em uma televisão e as
notícias na outra.
É a parte de baixo da terceira entrada, com dois eliminados. Vai chover
amanhã, talvez, mas, como se fosse uma surpresa, também pode fazer sol.
Sempre faz sol aqui em Woodview, Flórida, um suposto enclave do mundo
real. Em menos de uma hora, podemos estar à beira do oceano, em uma reserva
natural ou em um dos maiores parques de diversões do mundo. Sempre
falamos da sorte que temos de morar aqui na Flórida central, principalmente
aqueles de nós que moram na subdivisão de Hidden Oaks. O “Oaks” é um
enclave dentro do enclave.
O jogo está na quarta entrada, com um eliminado. Ainda faltam duas horas
para o expediente de Naomi terminar e eu poder seguir seu rastro.
E, então, Lindsay.
Seu rosto sorridente olha fixo para mim da tela da televisão.
Lindsay, com seus olhos castanhos estreitos e cabelo loiro liso, seu
bronzeado de quem está sempre ao ar livre e seus grandes dentes brancos.
Ela desapareceu um ano atrás. Por uma semana, foi presença constante nos
telejornais e aí a notícia morreu. Sem familiares próximos para mantê-la na
tevê, ninguém prestou atenção. Lindsay não era uma criança desaparecida, não
era indefesa. Era uma mulher adulta, e foi esquecida em menos de sete dias.
Não por mim. Eu ainda me lembro da sua risada. Era contagiante o
suficiente para me fazer rir junto com ela. Vê-la de novo me faz lembrar o
quanto eu gostava dela.
Quatro
A primeira vez que falei com Lindsay foi durante uma caminhada. Em uma
manhã de sábado, eu a segui pelas trilhas acidentadas logo na saída da cidade.
Ela foi por uma trilha, eu fui por outra e uma hora depois acabamos nos
encontrando.
Quando Lindsay me viu, me cumprimentou e disse olá de um jeito que não
dava brecha para mais conversa. Eu acenei e disse olá com os lábios.
Inconscientemente, ela me lançou um olhar confuso, e eu entreguei a ela meu
celular para poder me apresentar.
Perdão, isso deve ter sido estranho! Olá, meu nome é Tobias. Eu sou surdo.
Fizemos.
Dessa vez, uma trilha diferente, mais para o norte e perto da floresta Indian
Lake. Ela trouxe puxa-puxa de novo. Eu trouxe um cobertor. Paramos para
descansar em uma área onde a luz do sol era bloqueada por uma densa
folhagem. Quando nos sentamos, dei um sorriso para ela, e foi verdadeiro.
— Você é bonitinho — ela disse.
Não, você que é bonitinha.
Vou do bar direto para casa. Millicent já está lá, sentada na varanda do jardim.
Ainda está com as roupas de trabalho, e seus característicos sapatos de couro
combinam com a cor da pele. Ela diz que eles fazem suas pernas parecerem
mais longas, e eu concordo. Sempre reparo quando ela usa esses sapatos,
mesmo agora.
Depois de trabalhar o dia inteiro e ainda ficar enfiado no carro observando
Naomi, percebo o quanto preciso de um banho. Mas Millicent nem vira o nariz
quando me sento ao seu lado. Antes que eu abra a boca, ela começa a falar.
— Isso não é um problema.
— Tem certeza? — eu pergunto.
— Absoluta.
Não sei se isso é verdade. A ideia era que nós dois resolvêssemos juntos esse
negócio de Lindsay, mas não foi o que aconteceu. E eu não tenho nem como
discutir sobre.
— Eu não entendo como...
— Isso não é um problema — ela diz novamente. Ela aponta para o alto,
gesticulando para o segundo piso da nossa residência. As crianças estão em
casa. Quero perguntar mais, mas não posso.
— Com a próxima, nós vamos ter que esperar — eu digo. — Não devemos
fazer nada agora.
Ela não responde.
— Millicent?
— Eu ouvi.
Quero perguntar a ela se entende, mas sei que sim. Ela apenas não gosta
disso. Está irritada que Lindsay foi descoberta agora, bem na hora em que
estávamos planejando outra. É como se ela estivesse viciada.
E não é a única.
Quando conheci Millicent no avião, não foi amor à primeira vista. Para ela, não
foi. Não foi sequer um leve interesse. Depois de dizer oi, ela virou o rosto e
continuou olhando para a janela. Eu voltei bem para onde havia começado.
Deitei minha cabeça no encosto da poltrona, fechei os olhos e me repreendi por
não ter a coragem de falar mais.
— Com licença.
Minhas pálpebras voaram para cima.
Ela estava olhando para mim, com seus grandes olhos verdes, sua testa
enrugada.
— Você está bem? — ela perguntou.
Eu concordei com a cabeça.
— Tem certeza?
— Tenho. Não entendi por que você...
— Porque você está batendo a cabeça nisso aqui — ela apontou para o
encosto da cabeça. — Você está balançando a poltrona.
Eu nem havia percebido que estava fazendo aquilo. Achei que toda a
repreensão mental fosse apenas isso: mental. — Desculpe.
— Tudo bem contigo então?
Eu me recompus o suficiente a ponto de perceber que a garota que eu estava
paquerando agora falava comigo. Ela até parecia preocupada.
Dei um sorriso.
— Estou bem, eu só estava...
— Batendo a cabeça. Eu faço a mesma coisa.
— Por qual motivo?
Ela deu de ombros. — Várias coisas.
Senti uma vontade enorme de saber tudo que fazia essa garota bater a cabeça
de frustração, mas o trem de pouso tinha acabado de ser acionado e não
tínhamos tempo. — Me diga uma.
Ela avaliou a minha pergunta, colocando até mesmo o dedo indicador nos
lábios. Eu segurei mais um sorriso, não apenas porque aquilo era bonitinho,
mas porque eu havia conquistado sua atenção.
Depois que o avião aterrissou, ela respondeu.
— Babacas — ela disse. — Babacas nos aviões que ficam dando em cima de
mim quando eu só quero ficar sozinha.
Sem pensar, sem nem ao menos perceber que ela falava de mim, eu disse: —
Eu posso te proteger deles.
Ela me encarou, perplexa. Ao perceber que eu falava sério, desatou em
gargalhada.
Quando percebi o motivo da risada dela, eu fiz a mesma coisa.
Assim que alcançamos a ponte de desembarque, não tínhamos apenas nos
apresentado um ao outro, nós também já tínhamos trocado os nossos números
de telefone.
Antes de ir embora, ela perguntou: — Como?
— Como o quê?
— Como você vai me proteger daqueles babacas dos aviões?
— Eu ia obrigar os caras a ficarem na poltrona do meio com os braços
amarrados e ia fazer neles um monte de cortes de papel usando o cartão das
instruções de emergência.
Ela riu novamente, uma risada mais longa e mais forte que a anterior. Ainda
não me cansei de ouvir a risada dela.
Aquela conversa se tornou um pedaço da gente. No primeiro Natal que
passamos juntos, dei a ela uma caixa enorme, grande o bastante para guardar
uma tevê gigante, uma caixa toda embrulhada e amarrada com um laço. A
única coisa dentro dela era um cartão com instruções de emergência.
Em todos os Natais desde então, tentamos inventar a referência mais criativa
para essa nossa piada interna. Uma vez, dei a ela um colete salva-vidas,
daqueles achados debaixo das poltronas. Tempos depois, ela redecorou nossa
árvore de Natal com máscaras de oxigênio.
Sempre que entro em um avião e vejo o cartão com instruções de
emergência, eu ainda dou um sorriso.
O estranho é que, se eu precisasse escolher um momento, o exato momento
em que tudo entrou em sintonia e nos levou para onde estamos agora, eu diria
que foi por causa de um corte de papel.
Aconteceu quando Rory estava com oito anos. Ele tinha amigos, mas não
muitos, era um garoto bem mediano na escala de popularidade, por isso foi
uma surpresa quando um menino chamado Hunter fez um corte de papel em
Rory. De propósito. Eles discutiam sobre qual super-herói era mais forte,
quando Hunter ficou bravo e cortou Rory. O corte foi na dobra entre o polegar
e o dedo indicador da sua mão direita. Foi doloroso o suficiente para fazer
Rory gritar.
Mandaram Hunter para casa pelo restante do dia e Rory foi ver a enfermeira,
que fez um curativo na sua mão e deu um pirulito sem açúcar para ele. A dor
foi esquecida bem depressa.
Naquela noite, depois que as crianças foram dormir, Millicent e eu
conversamos sobre o corte. Nós estávamos na cama. Ela tinha acabado de
fechar o seu notebook e eu desliguei a tevê. As aulas mal haviam começado, e
o bronzeado de verão de Millicent ainda não tinha desaparecido por completo.
Ela não jogava tênis, mas adorava nadar.
Millicent pegou minha mão e esfregou o filete de pele entre meu polegar e
meu dedo indicador. — Você já teve um corte aqui?
— Não. E você?
— Já. Dói pra diabo.
— Como foi que aconteceu?
— Holly.
Eu sabia muito pouco sobre Holly. Millicent quase nunca falava da irmã
mais velha. — Ela te cortou? — perguntei.
— A gente estava fazendo umas colagens com as nossas coisas preferidas,
recortando umas fotos de revistas e colando em folhas grandes de papel
colorido. Holly e eu fomos pegar a mesma folha ao mesmo tempo e — ela
encolheu os ombros — eu me cortei.
— Chegou a gritar?
— Não me lembro. Mas eu chorei.
Peguei a sua mão e beijei aquele corte há tanto tempo esquecido. — Quais
eram as coisas preferidas? — eu perguntei.
— O quê?
— Você disse que estavam recortando fotos das suas coisas preferidas. Que
coisas eram essas?
— Ah, não — ela disse, recolhendo a mão e apagando a luz. — Você não vai
transformar isso em mais uma loucura de Natal.
— Você não gosta da nossa loucura de Natal?
— Eu adoro. Mas não precisamos de outra.
Eu sabia que a gente não precisava. Estava tentando desviar o assunto de
Holly, porque Millicent não gostava de falar sobre ela. Foi por esse motivo que
eu perguntei sobre as tais coisas preferidas.
Eu devia ter perguntado sobre Holly.
Cinco
Lindsay domina as notícias. Ela é a única que foi encontrada, e a primeira
surpresa é onde o corpo dela foi localizado.
A última vez que eu vi Lindsay, nós estávamos no meio do nada. Millicent e
eu a levamos para as profundezas de um pântano perto de uma reserva
ecológica, esperando que a vida selvagem a achasse antes de qualquer outra
pessoa. Lindsay ainda estava viva e nós deveríamos matá-la juntos. Esse era o
plano.
Essa era a ideia por trás da coisa toda.
Isso não aconteceu, por causa de Jenna. Organizamos tudo para que nossos
dois filhos passassem a noite com os amigos; Rory estava com um colega
jogando videogame e deixamos Jenna em uma festa do pijama com meia dúzia
de meninas de doze anos. Quando o telefone de Millicent tocou, soou como um
gatinho. Era o toque de Jenna. Millicent atendeu antes do segundo miado.
— Jenna? O que foi que aconteceu?
Eu observei Millicent escutando a ligação, com meu coração batendo mais
rápido a cada gesto que ela fazia com a cabeça.
Lindsay estava atirada ao chão, com suas pernas bronzeadas abertas sobre a
terra. O remédio que usamos para derrubá-la já estava perdendo o efeito e ela
começava a se mexer um pouco.
— Querida, pode passar o telefone para a Sra. Sheehan? — Millicent disse.
Mais gestos com a cabeça.
Quando Millicent falou de novo, sua voz já havia mudado: — Entendi.
Muito obrigada. Eu já vou aí — ela desligou.
— O quê...
— Jenna passou mal. Uma virose ou talvez uma intoxicação alimentar. Faz
uma hora que ela está no banheiro — antes que eu pudesse responder, ela
completou: — Estou indo lá.
Eu sacudi a minha cabeça. — Eu faço isso.
Millicent não protestou. Ela olhou para Lindsay no chão e em seguida para
mim. — Mas...
— Eu faço isso — eu disse. — Eu pego Jenna e levo para casa.
— Eu posso cuidar dela — Millicent estava olhando para Lindsay. Ela não
estava falando da nossa filha.
— Claro que pode — eu nunca duvidei. Estava apenas decepcionado por não
ter como assistir.
Quando cheguei na porta da família Sheehan, Jenna ainda estava doente. No
caminho de casa, encostei o carro duas vezes para ela poder vomitar. Fiquei ao
lado dela durante a maior parte da noite.
Millicent voltou para casa pouco antes do amanhecer. Não perguntei se ela
havia mudado Lindsay de lugar, pois presumi que ela tinha enterrado o corpo
naquela área deserta. Não faço ideia de como Lindsay foi parar no quarto 18 do
motel Moonlite Motor.
O Moonlite fechou quando a nova rodovia foi construída há mais de vinte
anos. O motel ficou abandonado e entregue às intempéries, aos roedores, aos
andarilhos e aos viciados em drogas. Ninguém dava atenção a ele, porque
ninguém precisava passar de carro na frente. Lindsay foi encontrada por alguns
adolescentes, que chamaram a polícia.
O motel é um prédio estreito, de um andar só, com quartos perfilados em
ambos os lados. O quarto 18 fica atrás, no canto, e não é visível da estrada.
Enquanto vejo na tevê uma filmagem aérea do motel, tento imaginar Millicent
dirigindo pelos fundos do Moonlite e estacionando, saindo do carro, abrindo o
porta-malas.
Arrastando Lindsay pelo chão.
Eu me pergunto se ela teria força suficiente para carregar o corpo. Lindsay
era bastante musculosa de tanto praticar esportes. Talvez Millicent tenha usado
um apoio para transportá-la. Um carrinho, alguma coisa com rodas. Ela é
esperta o suficiente para fazer algo assim.
O repórter é jovem e determinado, fala como se cada palavra fosse
importante. Ele me diz que Lindsay foi embrulhada em plástico, enfiada no
armário e enrolada em um cobertor. Os adolescentes a descobriram porque,
embriagados, brincavam de esconde-esconde. Não sei quanto tempo ela ficou
no armário, mas o repórter diz que o corpo de Lindsay foi inicialmente
identificado pelos registros da arcada dentária. Os exames de DNA ainda estão
pendentes. A polícia não pôde usar as impressões digitais porque as de Lindsay
foram raspadas.
Tento não imaginar como Millicent fez isso, ou se ela chegou mesmo a fazer,
mas essa cena se torna a única coisa que eu consigo pensar.
As imagens na minha cabeça permanecem lá. Fotografias do rosto sorridente
de Lindsay, dos seus dentes brancos. Da minha mulher raspando as pontas dos
dedos de Lindsay. Ela arrastando o corpo para o quarto do motel e enfiando
Lindsay no armário. Todas essas coisas piscam na minha mente durante o dia,
durante a noite e também quando tento dormir.
Millicent, no entanto, parece normal. Parece a mesma pessoa quando volta
para casa do serviço e prepara uma salada, quando tira a maquiagem, quando
trabalha no seu computador antes de deitar. Se ela está escutando as notícias,
não deixa transparecer. Em mais de uma ocasião, eu sinto vontade de perguntar
por que e como Lindsay foi parar naquele motel.
Não vou adiante. Porque tudo o que consigo pensar é por que deveria
perguntar. Por que ela não me contou.
No dia seguinte, ela me chama no meio da tarde e a pergunta está na ponta
da minha língua. Também começo a imaginar se existe mais alguma coisa que
eu não sei.
— Não esqueça — ela diz —, vamos jantar com os Prestons hoje à noite.
— Não esqueci.
Eu esqueci. Ela sabe disso e me diz o nome do restaurante sem nem eu
perguntar.
— Sete horas — ela diz.
— Eu te encontro lá.
Andy e Trista Preston compraram sua casa com Millicent. Embora Andy seja
alguns anos mais velho do que eu, eu o conheço há décadas. Ele cresceu em
Hidden Oaks, frequentamos as mesmas escolas e nossos pais se conheciam.
Agora ele trabalha em uma empresa de software e ganha dinheiro suficiente
para pagar por aulas diárias de tênis, mas ele não paga — e é por isso que ele
esbanja uma barriga.
Sua esposa, porém, comparece às aulas. Trista também cresceu por esses
lados, mas ela é de outra parte de Woodview, não de Hidden Oaks. Nós nos
encontramos duas vezes por semana, e ela passa o resto do seu tempo
trabalhando em uma galeria de arte. Juntos, os Prestons ganham o dobro do que
nós ganhamos.
Millicent sabe quanto ganham os seus clientes, e a maioria ganha mais do
que nós. Preciso admitir que isso me incomoda mais do que incomoda a ela.
Millicent acha que é porque ela ganha mais do que eu. Ela está errada. É
porque Andy ganha mais do que eu, embora eu não diga isso para ela. Ela não
é de Hidden Oaks, não sabe como é crescer aqui e depois acabar trabalhando
na região.
Nosso jantar é em um restaurante de luxo onde todo mundo come salada e
frango ou salmão e bebe vinho tinto. Andy e Trista bebem a garrafa inteira.
Millicent quase não bebe e odeia quando eu resolvo beber. Nunca bebo perto
dela.
— Eu te invejo — Trista diz para mim. — Ia adorar ter o seu trabalho e ficar
ao ar livre o dia todo. Eu adoro jogar tênis.
Andy ri. Suas bochechas estão coradas. — Mas você trabalha em uma
galeria de arte. É praticamente a mesma coisa.
— Ficar ao ar livre o dia todo e trabalhar ao ar livre são coisas diferentes —
digo. — Eu ia adorar ficar sentado na praia o dia todo, sem fazer nada.
Trista torce seu nariz petulante. — Acho que seria chato, só ficar lá parado
desse jeito. Eu prefiro fazer alguma coisa.
Quero dizer a ela que frequentar aulas de tênis e ensinar a técnica são
mundos distintos. No trabalho, a agradável vida ao ar livre é o último
pensamento na minha cabeça. A maior parte do meu tempo é gasto tentando
ensinar tênis a pessoas que preferiam estar mexendo no celular, assistindo
televisão, se embebedando ou comendo. Nem preciso dos dedos da mão para
contar o número de pessoas que querem mesmo jogar tênis, muito menos as
pessoas que querem se exercitar. Trista é uma delas. Ela não adora tênis, na
verdade, ela adora estar bonita.
Mas eu fico calado, porque é isso que os amigos fazem. Não apontamos as
falhas uns dos outros, a não ser que nos peçam.
A conversa muda para o trabalho de Andy e eu me desligo, captando apenas
palavras-chave porque eu me distraio com o som dos talheres. Cada vez que
Millicent corta um pedaço de frango grelhado, penso nela matando Lindsay.
— Atenção — Andy diz. — É a única coisa que importa para as empresas de
software. Como vamos capturar sua atenção e como vamos manter isso? Como
fazer para você ficar sentado na frente do computador o dia todo?
Eu reviro os olhos. Quando Andy bebe, ele tende a pontificar. Ou palestrar.
— Qual é? — ele diz — Responda a pergunta. O que te segura na frente do
computador?
— Vídeos de gatos — eu digo.
Trista dá uma risadinha.
— Não seja babaca — Andy diz.
— Sexo — Millicent diz. — Tem que ser sexo ou então violência.
— Ou as duas coisas — eu digo.
— Na verdade, não precisa conter sexo — diz Andy. — Não sexo de
verdade. O que é necessário é a promessa de sexo. Ou de violência. Ou as duas
coisas. E uma história, tem que ter uma história. Não interessa se é real ou se é
falsa nem quem é que vai contar. Só é preciso que as pessoas fiquem
interessadas no que vai acontecer depois.
— E como você faz isso? — Millicent pergunta.
Ele sorri e desenha um círculo imaginário com o dedo indicador. — Sexo e
violência.
— Mas isso vale para qualquer coisa. Mesmo as notícias são fabricadas em
cima de sexo e de violência — eu digo.
— O mundo todo gira em torno de sexo e violência — Andy diz. Ele
novamente desenha o círculo com o dedo e se vira para mim. — Você sabe
disso, você é daqui.
— Claro que eu sei — oficialmente, Hidden Oaks é uma das comunidades
mais seguras do estado. Isso porque toda violência ocorre entre quatro paredes.
— Eu também sei — Trista fala para o marido. — Woodview não é tão
diferente assim.
É diferente, mas Andy não discute. Em vez disso, ele se inclina e dá um
selinho na boca da esposa. Quando seus lábios se encostam, ela toca a
bochecha dele com a palma da mão.
Eu sinto inveja.
Inveja das conversas banais. Inveja da bebedeira deles. Inveja das
preliminares simples e do sexo que vão fazer hoje à noite.
— Acho que todo mundo aqui entende — eu digo.
Andy pisca para mim. Eu olho para Millicent, que olha para a sua comida.
Ela acha que demonstrações de afeto em público são de mau gosto.
Quando a conta chega, tanto Millicent quanto Trista levantam da mesa e vão
para o banheiro. Andy apanha a conta antes que eu possa tentar qualquer coisa.
— Não adianta reclamar, deixa comigo — ele diz, olhando rápido para o
papel. — Vocês são uma companhia barata no final das contas. Nada de álcool.
Eu encolho os ombros. — É para não beber demais.
Andy balança a cabeça e sorri.
— O que foi? — eu pergunto.
— Se eu soubesse que você ia se transformar em um pai de família tão
chato, ia fazer você ficar muito mais tempo no Camboja.
Eu reviro os olhos. — Agora é você quem está sendo babaca — digo.
— Estou aqui para isso.
Antes que eu possa responder, nossas esposas retornam à mesa e paramos de
falar sobre bebidas. E sobre a conta.
Nós quatro saímos juntos e nos despedimos no estacionamento. Trista diz
que vai me ver na próxima aula. Andy diz que vai começar em breve. Trista vai
atrás dele, revirando os olhos e sorrindo. Eles entram no carro e vão embora,
deixando Millicent e eu sozinhos. Estamos em dois carros, porque nos
encontramos já no restaurante.
Ela se vira para mim. Sob as luzes da rua, ela nunca me pareceu tão velha.
— Tudo bem contigo? — ela pergunta.
Eu dou de ombros. — Tudo bem — não tenho outra opção.
— Você se preocupa demais — ela diz, olhando em direção ao oceano de
carros. — Está tudo tranquilo.
— Tomara.
— Confie em mim — Millicent estende o braço e põe a sua mão na minha. E
me pressiona os dedos.
Eu concordo com a cabeça e entro no meu carro, mas não vou direto para
casa. Em vez disso, passo pela frente do Lancaster Hotel.
Naomi está atrás do balcão da recepção. Seus cabelos escuros caem soltos
em volta dos seus ombros e, embora eu não possa ver as sardas do seu nariz,
acredito que posso enxergá-las dali. Estou aliviado em vê-la, em saber que ela
segue trabalhando atrás do balcão da recepção e que provavelmente ainda
pratica suas atividades extracurriculares. Não existe motivo para eu achar que
aconteceu alguma coisa com ela, pois concordamos em esperar. Confirmar se
Naomi está bem é irracional, mas eu o faço mesmo assim.
Essa não é a primeira vez que estou sendo irracional. Desde que descobriram
o corpo de Lindsay, eu não consigo dormir direito. Acordo no meio da
madrugada, com meu coração batendo forte, e é sempre por causa de algo
irracional. Tranquei a porta da frente? Paguei aquelas contas? Lembrei de fazer
todas as coisinhas que preciso fazer para que a casa não pegue fogo ou então
seja penhorada pelo banco e para que o carro não cause um acidente porque os
freios não foram revisados no tempo certo?
Todas essas questões mantêm Lindsay fora da minha cabeça. E também o
fato de que não posso fazer nada por ela agora.
Seis
Sábado de manhã, o jogo de futebol de Jenna. Estou sozinho porque Millicent
precisa mostrar uma casa. Sábado é o melhor dia da semana tanto para o
mercado imobiliário quanto para as aulas de tênis. Também é o melhor dia da
semana para os compromissos sociais dos nossos filhos. Millicent e eu nos
revezamos aos sábados com as crianças, e a última vez que estivemos todos
juntos foi há mais de um ano. Rory chegou à final de um torneio de golfe
infanto-juvenil. Ele joga golfe agora — eu o deixei no campo de manhã cedo
antes do jogo da irmã dele começar — e treina no mesmo clube onde eu dou
aula. Ele joga golfe porque não é tênis, e odeio isso exatamente da forma que
ele quer que eu odeie.
Até agora, Jenna não tem demonstrado a mesma rebeldia. Ela não tenta ser
difícil. Jenna faz a coisa porque ela quer fazer, não porque vai deixar alguém
irritado, e eu admiro essa qualidade nela. Ela também sorri muito, o que me faz
sorrir de volta e dar tudo o que ela quiser. Não faço ideia de onde estou errando
e, como não consigo descobrir, Jenna me assusta como o diabo.
Futebol não é meu jogo. Só aprendi as regras quando Jenna começou a jogar,
portanto não posso ajudar muito. Não posso dizer a ela o que fazer ou como
melhorar, como seria o caso se ela jogasse tênis. E é apenas por um golpe de
sorte que ela joga no gol, assim eu pelo menos sei que o trabalho dela é
impedir o outro time de marcar. Fora isso, tudo o que eu posso fazer é
incentivá-la.
— Você consegue!
— Boa!
— Que bola!
Eu sempre me pergunto se a deixo constrangida. Acho que sim, mas faço
assim mesmo, porque a única outra opção que eu tenho é assistir os jogos em
silêncio. Parece algo cruel. Prefiro ser constrangedor. Quando ela defende uma
bola que vai na direção do gol, eu fico louco. Ela sorri, mas gesticula com a
mão, me mandando calar a boca. Nesses momentos, não penso em mais nada a
não ser na minha filha e no seu jogo de futebol.
Millicent interrompe mandando uma mensagem de texto.
Não se preocupe.
Eu sinto vontade de sair correndo. Para onde, não sei. Não importa. Para o quê,
não faço ideia. Só quero correr para um lugar qualquer.
Mas não posso largar Jenna aqui, sozinha em um jogo de futebol sem
ninguém para torcer por ela. Não posso deixar a minha filha. Ou o meu filho.
Quando o jogo de Jenna termina, pego Rory no clube e nós três comemos a
nossa habitual pizza pós-esportiva com iogurte gelado na sequência. Tenho
dificuldades em acompanhar a conversa. Eles percebem, porque são meus
filhos — eles me veem todos os dias e sabem quando estou com problemas.
Imagino o que eles pensam de Millicent.
Só que ela nunca dá mostras de que algo está errado. Durante o último ano
ela tem se mostrado calma, mesmo para os padrões dela. Mencionou encontrar
a próxima mulher há um mês apenas.
Tudo passa a encaixar. Ela só começou a conversar sobre a próxima depois
de ter matado Lindsay.
Para mim, o último ano foi preenchido pelo trabalho, pelas atividades das
crianças, pelas tarefas domésticas, por discussões sobre as contas e a lavagem
do carro. Nada se destacou. Nenhum acontecimento, dia, memória, nada foi
relevante a ponto de ser uma lembrança daqui a vinte, trinta, ou quarenta anos.
O time de futebol da Jenna quase chegou às finais do municipal, mas ficou de
fora. Millicent teve mais um bom ano no trabalho. O preço da gasolina subiu e
depois baixou, uma eleição local começou e terminou, e minha lavanderia
preferida fechou e eu precisei procurar outra.
Ou talvez a lavanderia tenha fechado há dois anos. Essas coisas vão se
misturando na cabeça.
Durante esse tempo todo, Millicent manteve Lindsay viva. Manteve Lindsay
em cativeiro.
As imagens percorrendo a minha mente vão do perturbador ao bárbaro.
Visualizo o tipo de tragédia que ouço no noticiário, quando mulheres são
encontradas depois de anos sendo mantidas em cativeiro por algum homem
demente. Nunca ouvi falar de uma mulher que fizesse algo assim. E, como
homem, não consigo me imaginar fazendo isso.
Deixo as crianças em casa e vou até o imóvel onde Millicent está
trabalhando. Fica apenas a algumas quadras da nossa; a viagem de carro leva
poucos minutos. Dois veículos estão do lado de fora, o dela e um outro, uma
caminhonete.
Eu espero.
Vinte minutos depois, ela sai da casa com um casal mais jovem que a gente.
A mulher está com os olhos arregalados. O homem está sorrindo. Quando
Millicent aperta as mãos de ambos, ela me vê com o canto do olho. Posso
sentir seus olhos verdes caírem em mim, mas ela não hesita, não interrompe a
fluidez do seu movimento.
O casal caminha de volta para o carro deles. Millicent fica em frente ao
terreno, observando enquanto eles vão embora. Ela está vestindo azul-marinho
hoje, uma saia justa e saltos, e uma blusa listrada. Seu cabelo ruivo é liso e
cortado bem reto na altura do queixo. Era muito mais longo quando nos
conhecemos e tem ficado mais curto a cada ano, como se, em intervalos
regulares, ela estivesse determinada a reduzir dois centímetros dele. Não me
surpreenderia se eu descobrisse que é exatamente isso que ela tem feito. Não
sei mais se Millicent conseguiria me surpreender com alguma novidade agora.
Ela aguarda até a caminhonete ir embora antes de se virar na minha direção.
Eu saio do carro e caminho até a casa.
— Você está irritado — ela diz.
Eu olho fixo para ela.
Ela aponta para a casa. — Vamos entrar.
Nós entramos. A entrada é enorme, o pé-direito tem mais de seis metros de
altura. Construção nova, como a nossa, mas essa é ainda maior. A casa inteira é
aberta e espaçosa, e tudo leva a uma sala principal, que é para onde vamos.
— O que você fez com ela? Por um ano, o que você fez?
Millicent sacode a cabeça. Seu cabelo balança de um lado para o outro. —
Não podemos falar disso agora.
— Nós temos que...
— Aqui não. Eu tenho um compromisso.
Ela sai caminhando e eu vou atrás.
Poucos meses depois de nos casarmos, Millicent engravidou. Foi uma surpresa
de certa maneira, porque conversamos sobre esperar, mas não totalmente. Às
vezes não tomávamos cuidado com a proteção. Discutimos vários métodos
contraceptivos, mas a gente sempre voltava às camisinhas. Millicent não
gostava de tomar nada com hormônios. Eles a deixavam emotiva demais.
Quando a menstruação de Millicent atrasou, nós dois suspeitamos de que ela
estivesse grávida. Confirmamos com um teste em casa e outro no consultório.
Mais tarde naquela noite, eu não conseguia dormir. Ficamos sentados por um
tempo interminável, alojados no nosso sofá de segunda mão em nossa
dilapidada casa de aluguel. Eu me encolhi ao lado dela, com minha cabeça na
sua barriga, e comecei a me preocupar.
— E se a gente estragar tudo? — eu perguntei.
— Não vamos fazer isso.
— Precisamos de dinheiro. Como vamos...
— Vamos dar um jeito.
— Eu não quero só dar um jeito. Quero prosperar. Eu quero...
— Vamos prosperar.
Eu ergui minha cabeça para poder olhar para ela. — Por que você tem tanta
certeza?
— Por que você tem tantas dúvidas?
— Eu não tenho — eu disse. — Eu só estou...
— Preocupado.
— Isso.
Ela suspirou e gentilmente abaixou a minha cabeça de volta para a sua
barriga. — Deixe de bobagem — ela disse. — Vamos ficar bem. Vamos ficar
melhor do que bem.
Minutos antes, eu me sentia mais como uma criança do que como um futuro
pai.
Ela me deixou mais forte.
Percorremos um longo caminho desde aqueles primeiros anos quando não
tínhamos dinheiro nenhum. Eu havia voltado à faculdade para completar meu
MBA, mas estava na metade quando ela ficou grávida. A gente precisava de
dinheiro, portanto eu saí do curso e retornei àquilo que eu mais sabia fazer:
tênis. Era meu único talento, a coisa na qual eu conseguia ser melhor do que
qualquer outra pessoa com quem eu cresci. A quadra de tênis foi onde eu
brilhei. Não fui brilhante o bastante para me tornar profissional, mas era
brilhante o bastante para poder oferecer aulas particulares.
Quando conheci Millicent, ela tinha acabado de terminar um ano do curso
para trabalhar como corretora de imóveis e estudava para fazer a prova. Assim
que ela passou, ainda levou um tempo até começar a vender, mas ela
conseguiu, mesmo quando estava grávida, mesmo quando as crianças eram
bebês. E ela tinha razão: nós demos um jeito. Estamos melhores do que bem. E,
até onde eu sei, não estragamos tudo com as crianças ainda.
Sete
Agora, enquanto seguimos naquela casa vazia que ela tenta vender, Millicent
de fato não faz com que eu me sinta mais forte. Ela me faz sentir medo.
— Não está certo — digo. — Nada disso está certo.
Ela ergue uma sobrancelha. O que costumava ser bonitinho. — Agora você
tem uma consciência?
— Eu sempre tive...
— Não. Não acho que você tinha.
Ela está certa de novo. Nunca tive uma consciência quando o caso era tentar
fazê-la feliz.
— O que você fez com ela? — pergunto.
— Não interessa. Ela é passado.
— Não é mais.
— Você se preocupa demais. Nós estamos bem.
A campainha toca.
— O dever me chama — ela diz.
Eu caminho com ela até a porta. Ela me apresenta, conta a eles sobre minhas
habilidades no tênis. São tão jovens quanto o último casal e igualmente
perdidos.
Eu dirijo para casa, mas passo direto pela entrada.
Primeiro, vou para o Lancaster. Naomi está lá, atrás do balcão, com muitas
horas faltando ainda para o final do seu expediente.
Depois, vou para o clube. Penso em me distrair passando um tempo no salão,
conversando com meus clientes enquanto assisto os jogos. Novamente, não
paro.
Uma série de outros lugares passa pela minha cabeça: um bar, um parque, a
biblioteca, um cinema. Queimo quase meio tanque de combustível dirigindo a
esmo, tentando escolher um destino, antes de seguir para o inevitável.
Casa.
É para onde eu sempre vou.
Quando abro a porta, ouço os sons da minha vida. Minha família. A única
família de verdade que eu tive.
Rory está jogando videogame, aqueles tiros eletrônicos ressoando pela casa.
Jenna está no celular, falando, digitando e arrumando a mesa. O aroma do
jantar paira pela sala, frango e alho e alguma receita com canela. Millicent está
atrás do balcão, coordenando tudo, e ela sempre cantarola sozinha enquanto
prepara as refeições. Sua escolha musical é normalmente algo ridículo — a
trilha sonora de um programa de tevê, uma ária, a música pop do momento —,
e esta é outra de nossas piadas internas.
Ela ergue o olhar e sorri, e é real. Posso ver em seus olhos.
Todos nós nos sentamos e comemos juntos. Jenna diverte a mãe e enche o
saco do irmão com os grandes momentos do seu jogo de futebol. Rory se gaba
do seu resultado no golfe, que hoje foi o melhor entre os jogadores com menos
de dezesseis anos. Na maior parte dos dias, nossas refeições são assim. São
agitadas e barulhentas, cheias de histórias do cotidiano e com um sentimento
de paz, esse grupo que vive junto desde sempre.
Eu me pergunto quantas vezes fizemos isso enquanto Lindsay estava no
cativeiro.
Quando vou para a cama, fico surpreso ao ver que algumas horas se passaram
desde a última vez que pensei em Lindsay, na polícia, no que Millicent e eu
fizemos. A casa, e todos os benefícios que ela traz, possui esse efeito poderoso
sobre mim.
Não se pode falar o mesmo da minha infância. Ainda que eu tenha crescido
em uma família com pai e mãe na nossa bela casa em Hidden Oaks, com dois
carros, boas escolas e um monte de atividades extracurriculares, nós não
comíamos juntos como a minha própria família hoje come. Se por acaso
sentássemos todos ao mesmo tempo à mesa, nós ignorávamos uns aos outros.
Meu pai lia o jornal, minha mãe encarava o espaço com um olhar estático e eu
comia o mais rápido possível.
Eles vinham me ver jogar tênis apenas quando eu disputava um torneio e,
mesmo assim, só se eu chegasse às finais. Nenhum dos meus pais abria mão de
um sábado para qualquer coisa que fosse. A casa era um lugar para dormir, um
lugar para guardar minhas coisas, um lugar para sair o quanto antes. E foi o que
eu fiz. Saí do país assim que eu pude. Era impossível imaginar uma vida inteira
me sentindo uma decepção.
Embora eu não tenha certeza de que o problema era comigo, pelo menos não
no nível pessoal. Se fosse obrigado a adivinhar, diria que eu era aquele que
deveria consertar o casamento deles. Depois de passar anos pensando no
assunto, percorrendo toda a minha infância repetidas vezes, cheguei à
conclusão de que os meus pais me puseram no mundo para tentar consertar seu
casamento. Não funcionou. E a decepção deles se tornou o meu fracasso.
Eu retornei para Hidden Oaks apenas porque meus pais faleceram. Foi um
acidente bizarro, impossível de prevenir ou prever. Eles estavam dirigindo na
rodovia e um pneu saiu voando de um carro na frente deles. Ele entrou
estilhaçando o para-brisa do carro de luxo do meu pai, e os dois morreram.
Meus pais se foram, sem mais nem menos. Ainda juntos, ainda
indubitavelmente tristes.
Nunca cheguei a ver os corpos. A polícia disse que era melhor não ver.
No fim, meus pais tinham bem menos dinheiro do que fingiam ter. Ou seja,
voltei para uma casa afundada em hipotecas e somente com o dinheiro
necessário para pagar um advogado para acertar as burocracias e me livrar
daquilo. Meus pais não eram nem quem eu pensava que eles eram: eram
impostores. Não podiam bancar uma vida em Hidden Oaks, apenas fingiam
que podiam. Eu não tinha mais família e não sabia o que significava ter uma.
Millicent construiu nossa família. Digo que foi ela porque não poderia ter
sido eu. Eu não fazia ideia de como construir um lar ou sequer reunir todo
mundo para uma refeição. Ela sabia. Na primeira vez que Rory sentou em uma
cadeirinha, ela o colocou em frente à mesa e comemos nossas refeições juntos
desde então. Apesar do aumento de reclamações dos nossos filhos em idade de
crescimento, nós ainda comemos juntos.
Quando Millicent estava grávida de Jenna, ela criou as regras da família. Eu
chamei essa lista de Os Mandamentos de Millicent:
Café da manhã e jantar sempre em família.
Proibido brinquedos ou celulares na mesa.
As mesadas só estão garantidas após a realização de tarefas
domésticas.
Vamos ter a noite dos filmes uma vez por semana.
O açúcar ficará limitado a frutas, não a sucos, e a ocasiões
especiais.
Toda a comida vai ser orgânica, a depender do dinheiro.
Exercícios físicos são incentivados. Aliás, eles são obrigatórios.
O dever de casa deve ser feito antes da televisão ou do videogame.
A lista me fez rir. No entanto, ela me fuzilou com o olhar ao ver minha
risada e eu parei. Naquela altura, eu já sabia a diferença de quando ela fingia
estar brava e quando a raiva era genuína.
Uma de cada vez, Millicent instituiu suas regras. Em vez de transformar a
casa em uma prisão, ela deu estrutura à família. Nossos filhos praticam
esportes. Não ganham dinheiro a menos que tenham batalhado por ele. A gente
se reúne uma vez por semana para assistir um filme. Eles quase sempre comem
comida orgânica e pouquíssimos alimentos com açúcar. O dever de casa já está
pronto quando eu chego do trabalho. Tudo isso por causa de Millicent.
A mesma Millicent que manteve Lindsay viva durante um ano fazendo sabe-
se lá o que com ela.
Eu ainda não consigo dormir. Acordo para ver como estão as crianças. Rory
está esparramado na cama, com cobertores por todos os lados. Quando ele fez
quatorze anos, não queria mais dinossauros pintados nas paredes. Nós
reformamos o quarto, pintamos, remodelamos o mobiliário e agora ele tem
uma parede escura e três beges, um apanhado de pôsteres com bandas de rock,
um envernizado escuro nos móveis de madeira e cortinas blecaute para quando
ele dorme. Parece o sonho de uma criança para o que seria o quarto de um
adulto. Meu filho está se tornando um adolescente.
O quarto da Jenna ainda é laranja. Ela é obcecada pela cor praticamente
desde o nascimento. Acho que é por causa da cor do cabelo de Millicent. O
cabelo de Jenna é como o meu, castanho-escuro sem nenhum sinal de
vermelho. Ela tem pôsteres de jogadoras de futebol nas paredes e cartazes com
alguns grupos musicais e um ou outro ator. Não sei quem eles são, mas, sempre
que aparecem na tevê, Jenna e as amigas dão gritinhos agudos. Agora que ela
chegou à maturidade dos treze anos, todas as bonecas foram enfiadas no
guarda-roupa. Ela se interessa por moda, joias e maquiagem que ainda nem
está autorizada a usar, além de curtir alguns bichos de pelúcia e videogames.
Vou caminhando pela casa, verificando todas as portas e janelas. Vou até
mesmo à garagem, procurando sinais de roedores, insetos ou infiltrações. Saio
para o quintal e verifico o portão lateral. Faço a mesma inspeção no jardim da
frente e então volto para a casa de novo, trancando todas as portas pela segunda
vez.
Millicent costumava fazer isso, principalmente depois que Rory nasceu. Nós
morávamos naquela casa de aluguel dilapidada e toda noite ela caminhava
trancando as portas e as janelas. Ela se sentava por uns minutos e depois se
levantava para trancar tudo de novo.
— Esse bairro não é perigoso — eu disse a ela. — Ninguém vai arrombar.
— Eu sei — ela se levantou de novo.
No fim, decidi ir atrás dela. Eu segui seus passos e imitei cada movimento.
Primeiro, ela me fuzilou com o olhar, aquele de verdade.
Como eu não parei, ela me deu um tapa.
— Não tem graça — ela disse.
Fiquei atordoado demais para falar. Nunca havia levado um tapa de uma
mulher antes. Não tinha nem levado palmadas, nem de brincadeira. Mas, como
eu tinha acabado de debochar da minha esposa, dei o braço a torcer e pedi
desculpas.
— Você só pediu desculpas porque levou um tapa — Millicent disse. Ela se
virou, voltou para o quarto e trancou a porta.
Passei a noite pensando se ela ia me abandonar. Ela ia pegar meu filho e
simplesmente ir embora, porque eu tinha estragado tudo. Era exagerado, sim.
Mas Millicent não engole sapo, ponto final. Uma vez, quando estávamos
namorando, eu disse que ia ligar para ela em um determinado horário e não
liguei. Ela não falou comigo por mais de uma semana. Ela sequer atendia ao
telefone.
Ela voltou comigo naquela ocasião. Mas eu não tinha dúvida de que, se eu
irritasse Millicent o suficiente, ela iria embora e pronto. E ela fez isso uma vez.
Rory tinha um ano e meio, Jenna tinha seis meses e Millicent e eu
passávamos o dia inteiro, todos os dias, fazendo malabarismo com as crianças e
o trabalho. Um dia, eu acordei, exausto de novo, e percebi que eu tinha vinte e
sete anos, uma esposa, dois filhos e uma hipoteca novinha.
Tudo o que eu queria era um descanso. Um indulto temporário para toda
aquela responsabilidade. Saí com meus amigos e fiquei tão bêbado que eles
foram obrigados a me carregar até em casa. Quando acordei no dia seguinte,
Millicent tinha ido embora.
Ela não atendeu o celular. Não estava no escritório. Os pais dela disseram
que ela não estava lá. Millicent tinha apenas algumas amigas próximas, e
nenhuma delas teve qualquer notícia de minha esposa. Ela desapareceu e levou
meus filhos junto.
Depois de três ou quatro dias, eu estava telefonando para ela de hora em
hora. Mandei e-mails, mensagens, eu me tornei a minha versão mais insana de
todos os tempos. Não era porque eu estava preocupado com ela. Eu sabia que
ela estava bem, e sabia que meus filhos estavam bem. Fiquei louco porque
achei que ela, eles, que eles tinham ido embora para sempre.
Passaram-se oito dias. E então ela voltou.
Eu tinha dormido tarde, atirado em uma cama desarrumada repleta de caixas
de pizza e pratos, copos e embalagens de comidas variadas. Acordei em uma
cama sem lixo e com um cheiro de panquecas.
Millicent estava na cozinha, preparando o café da manhã. Rory estava à
mesa, sentado na cadeirinha, e Jenna estava no carrinho. Millicent se virou para
mim e me deu um sorriso. Era verdadeiro.
— Bem na hora — ela disse. — O café está quase pronto.
Eu corri até Rory e o peguei no colo, segurando no alto até ele dar um
gritinho. Beijei Jenna, que ficou me observando com seus olhos castanhos.
Sentei à mesa, com medo de falar. Eu temia estar em um sonho, e não queria
acordar.
Millicent trouxe uma pilha de panquecas para a mesa. Ao se sentar, ela se
inclinou na minha direção, perto o suficiente para sua boca se posicionar bem
ao lado do meu ouvido, e sussurrou: — Na próxima vez, nós não vamos voltar.
Passei todo nosso casamento sem nenhuma alternativa a não ser acreditar
nela. E ainda assim eu dormi com Petra.
E com aquela outra.
Oito
Quando volto para casa do trabalho, Millicent e as crianças estão lá. Rory está
deitado no sofá, jogando videogame. Millicent está em pé na frente dele, as
mãos nos quadris, o rosto severo. Atrás dela, Jenna mexe no celular para lá e
para cá, tentando tirar uma selfie diante da janela. A tela da tevê lança um
brilho sobre todos eles. Por um segundo, ficam paralisados, um retrato da vida
moderna.
O olhar de Millicent passa de Rory para mim. Seus olhos estão no mais
escuro tom de verde.
— Sabe — ela diz — o que o nosso filho fez hoje?
O boné de beisebol de Rory está com a aba para baixo, cobrindo os olhos e o
rosto. Não esconde por completo seu sorriso sacana.
— O que o nosso filho fez hoje? — pergunto.
— Fale para o seu pai o que você fez.
Jenna responde por ele. — Ele colou na prova usando o celular.
— Vá para o seu quarto — Millicent diz.
Minha filha sai. Ela dá risadinhas enquanto sobe a escada e bate a porta do
quarto.
— Rory — eu pergunto —, o que aconteceu?
Silêncio.
— Responda ao seu pai.
Eu não gosto quando Millicent diz ao nosso filho como agir comigo, mas
não digo nada.
Millicent arranca o controle das mãos de Rory. Ele suspira e enfim fala.
— Até parece que eu vou ser botânico. Se algum dia eu precisar saber de
fotossíntese, eu vou pesquisar, que nem eu fiz hoje — ele olha para mim, com
olhos arregalados, como quem diz silenciosamente: — Não é?
Eu quero concordar porque ele está mais ou menos certo. Mas eu sou o pai.
— Ele foi suspenso por três dias — Millicent diz. — Sorte dele que não foi
expulso.
Se ele fosse expulso do colégio particular, iria para a escola pública. Eu não
lembro Millicent disso enquanto ela distribui o castigo ao nosso filho.
— E nada de celular, nada de videogame, nada de internet. Você vai vir
direto para casa depois do colégio e, pode deixar, eu vou ficar de olho.
Ela se vira e sai batendo os sapatos pelo corredor rumo à garagem. Está
usando seus saltos cor de pele.
Depois que escuto o carro dela dar a partida, eu me sento perto do meu filho.
Ele tem o cabelo ruivo de Millicent, mas seus olhos são mais claros. Abertos.
— Por quê?
Ele dá de ombros. — Era mais fácil.
Eu entendo. Às vezes é mais fácil ir levando as coisas adiante. É mais fácil
do que pôr tudo abaixo e começar do zero.
— Você não pode enganar os outros — eu digo.
— Mas você engana.
— Do que é que você está falando?
— Eu escuto quando você sai escondido.
Ele está certo. Tenho saído às escondidas à noite porque não consigo dormir.
— Às vezes eu saio para dar uma volta de carro.
Rory dá uma risada. — Você acha que eu sou burro?
— Não.
— Pai, eu vi você sair escondido de casa usando um terno. Quem é que
coloca um terno só para dar uma volta de carro?
Eu não uso terno desde meu encontro com Petra.
— Você sabe que eu passo várias noites no clube. Criar uma rede de contatos
é parte do meu trabalho.
— Rede de contatos — ele diz com uma dose nada leve de ironia.
— Não estou traindo sua mãe — eu digo. E é quase verdade.
— Seu mentiroso.
Começo a dizer para Rory que não sou mentiroso, mas percebo o quanto é
inútil. Começo a negar que estou traindo a mãe dele, mas percebo que isso
também é inútil. Meu filho é esperto demais.
Queria poder explicar para ele, mas não posso. Então, eu me torno o
hipócrita.
— A questão aqui não é sobre mim — eu digo.
Ele revira os olhos, não fala nada.
— E eu nunca colei na escola. Quer dizer, e se um dia acontecer um
apocalipse zumbi e você escapar para uma ilha com uma civilização totalmente
nova e for obrigado a plantar? Você não acha que saber sobre fotossíntese seria
uma coisa útil aí?
— Eu realmente agradeço o esforço, pai. Principalmente quanto ao
apocalipse zumbi e tudo mais. Mas me deixa economizar o teu tempo aqui —
ele tira algo do bolso e põe na minha frente.
O vidro azul brilhante faz o meu queixo cair. Um dos brincos de Petra.
— Jenna não tem furo na orelha — ele diz. — E minha mãe nunca ia usar
algo tão brega assim.
Ele está certo. Millicent usa brincos de diamante. Diamantes de verdade, não
de vidro.
— Não temos muito o que falar sobre isso agora, né? — Rory diz.
Dois a zero. Não tenho nada a dizer.
— Não se preocupe. Jenna não sabe nada dessa sua amiga — o sorrisinho
sacana está de volta. — Ainda.
Leva um segundo para que eu perceba que o meu filho está tentando me
chantagear. Com uma evidência na mão.
Fico impressionado, por ele ser tão inteligente, e paralisado, porque a última
coisa que eu quero para os meus filhos, principalmente para a minha filha, é
que eles cresçam tendo um safado infiel como pai. É o tipo de situação que os
especialistas mandam evitar. Dizem que afetará os relacionamentos dela com
os homens para o resto da vida. Vi isso naqueles programas que passam à tarde
na tevê.
Jenna não pode saber, ela não pode sequer suspeitar que Rory descobriu essa
história. Qualquer outra solução parece ser menos assustadora.
Eu me viro para Rory. — O que você quer?
— Um jogo de videogame novo, Bloody hell.
— Sua mãe proibiu esses jogos aqui em casa.
— Eu sei.
Se eu discordar, ele vai contar a Jenna que estou traindo a mãe deles. Vai
fazer exatamente o que está ameaçando fazer.
Se eu concordar, meu filho de quatorze anos vai ter me chantageado com
sucesso.
Eu sinto que deveria ter previsto essa chantagem. Deveria ter previsto isso
no dia em que ele nasceu. Ele ficou tão quieto no primeiro momento que todos
acharam que ele estava morto. Quando ele finalmente chorou, o som foi tão
alto que fez os meus ouvidos gemerem.
Ou talvez eu devesse ter previsto isso no dia em que sua irmã nasceu e ele
fez o mesmo barulho, não para anunciar a sua chegada, mas para denunciar a
nossa falta de atenção com ele.
Depois, teve ainda aquele ano em que Jenna e Rory saíram pedindo doces no
Halloween e ele a convenceu de que todas as barras de chocolate tinham sido
envenenadas pelo psicopata que trabalhava no supermercado da região. O tal
psicopata era um homem enorme como um lenhador e gentil como um hamster,
mas ele assustava as crianças sem nem precisar de esforço. Jenna acreditou no
irmão e jogou fora todas as barrinhas supostamente envenenadas. Nem
Millicent nem eu sabíamos o que havia acontecido, não até Jenna ter pesadelos
por uma semana e aí encontrarmos uma pilha de embalagens de chocolate no
quarto de Rory.
Então agora, enquanto estou no meio de uma chantagem do meu próprio
filho, posso olhar para trás e dizer que eu deveria ter esperado um
comportamento assim. Mas, antes deste momento, eu não fazia ideia.
— Me responda uma pergunta — digo para ele.
— Beleza.
— Há quanto tempo você sabe disso? — tomo cuidado para não usar a
palavra traição. Como se isso importasse.
— Alguns meses. Na primeira vez, eu fui na garagem de manhã cedo pegar a
minha bola de futebol. Seu carro não estava lá. Aí eu comecei a prestar
atenção.
Eu concordo com a cabeça. — Vou comprar esse seu jogo amanhã. Não
deixe sua mãe descobrir.
— Não vou deixar. Também não deixe ela te ver sair escondido.
— Não vou mais fazer isso.
Ele sorri ao pegar o brinco e colocar de volta no seu bolso. Rory não acredita
em mim, mas é esperto o bastante para ficar calado quando está em vantagem.
Eu deveria contar a Millicent sobre nosso filho. Penso nisso durante o jantar
enquanto Jenna se esforça ao máximo para debochar de Rory sem sofrer
retaliação. Penso nisso depois do jantar, quando Millicent confisca o celular de
Rory pelo resto da noite. Penso nisso até quando estamos somente minha
esposa e eu em nosso quarto, repassando nossa rotina noturna. Este é o
momento em que eu deveria contar a ela o que o nosso filho está aprontando,
mas não faço nada.
Não conto a ela porque contar vai criar mais perguntas do que posso
responder.
Passaram-se apenas duas semanas desde minha noite com Petra. Penso nela
somente no meio da madrugada, quando já estou acordado e não consigo voltar
a dormir. É quando eu me pergunto o que é que eu fiz para me denunciar. O
que será que a fez se perguntar se eu era mesmo surdo? Será que eu reagi a um
som, será que eu olhei para seus olhos ao invés de olhar para sua boca
enquanto ela falava, será que eu prestei atenção demais aos sons que ela fazia
na cama? Eu não sei. Não sei se alguma vez vou atuar como surdo novamente,
mas a dúvida ainda me mantém acordado à noite. Se tornou uma ponta solta
que preciso costurar.
A chantagem de Rory é a mesma coisa. Outro erro. Escorreguei e não
deveria ter deixado meu filho descobrir que eu andava saindo escondido à
noite. Millicent não vai gostar disso.
Portanto, eu não digo nada. Tanto Rory como Petra são segredos que não
conto para a minha esposa. Talvez porque ela tenha os seus próprios segredos,
mais até do que eu imaginava. Tanto Rory como Petra são riscos, cada um à
sua maneira, e ainda assim a minha boca continua fechada.
Não quero que ela saiba o tamanho da minha bagunça.
Nove
Não começou como algo ruim. Ainda acredito nisso.
Três anos atrás, no final de uma tarde de sábado em outubro, eu estava no
jardim com Rory e Jenna. Eles ainda eram jovens o bastante para estar ao meu
redor sem sentir vergonha, e nós três estávamos montando a decoração de
Halloween. A data era quase a preferida deles, só ficava atrás do Natal, e todos
os anos nós cobríamos a casa com teias, aranhas, esqueletos e bruxas. Se
pudéssemos comprar uns animatrônicos, também teríamos usado.
Millicent chegou depois de ter mostrado um imóvel. Vestida nas suas roupas
de trabalho, ela parou no caminho até a porta e sorriu, admirando nossa
arrumação. As crianças falaram que estavam com fome. Com um grande e
exagerado revirar de olhos, Millicent disse que ia preparar alguns sanduíches.
Ela estava sorrindo ao dizer isso. Acho que todos nós estávamos.
As coisas não eram perfeitas, no entanto. A casa que estávamos enfeitando
era nova para nós — estávamos morando lá há apenas seis meses — e a
hipoteca era imensa. Millicent sofria muita pressão para vender mais casas. Eu
sofria a mesma pressão, às vezes até cogitava arranjar um segundo emprego.
Também tínhamos questões pendentes com a mãe de Millicent. O pai dela
havia falecido fazia dois anos. Depois sua mãe foi diagnosticada com
Alzheimer e se iniciou aquele longo e vagaroso declínio que a doença traz.
Passamos muito tempo procurando por uma enfermeira particular. As duas
primeiras não deram certo, porque nenhuma delas se adequava aos padrões de
Millicent. A terceira estava funcionando, pelo menos até aquele momento.
Nossa família tinha seus problemas — vários —, mas, naquele dia,
estávamos todos sorrindo, até Millicent dar um grito.
Eu corri para dentro, com as crianças atrás de mim. Entrei na cozinha bem a
tempo de ver Millicent atirar o celular por cima dos eletrodomésticos. Ele se
estilhaçou contra a parede, partindo-se em pedaços e deixando uma marca na
pintura. Ela enterrou o rosto nas mãos e começou a chorar.
Jenna gritou.
Rory juntou os pedaços do celular quebrado.
Coloquei meus braços ao redor de Millicent enquanto seu corpo tremia com
soluços.
As duas coisas mais horrendas passaram pelo meu pensamento.
Alguém havia morrido. Talvez sua mãe. Talvez uma amiga.
Ou alguém estava morrendo. Uma doença terminal. Talvez fosse uma das
crianças. Talvez fosse minha esposa.
Só podia ser uma das duas coisas. Nada mais provocaria uma reação como
aquela. Não era dinheiro ou emprego ou mesmo a perda de um animal de
estimação que nós sequer tínhamos. Alguém devia estar morto ou prestes a
morrer.
Foi um choque descobrir que não era nada daquilo. Ninguém estava morto,
ninguém estava morrendo. Na verdade, era o contrário.
Vou de carro até a estação SunRail e pego o trem para Altamonte Springs, na
direção oposta de onde Petra mora. Tecnicamente, a cidade fica fora de
Woodview, mas ainda era parte do território de caça original de Owen.
Há mulheres por todos os lados. Jovens, velhas, altas, baixas, magras,
gordas. Estão em cada rua, cada loja, cada esquina. Não vejo homens, somente
mulheres, e sempre foi assim. Quando eu era jovem, não conseguia imaginar
essa história de escolher uma só. Não com tantas à disposição.
Obviamente, isso foi antes de Millicent.
Estou bem diferente agora. Eu ainda avalio todas as mulheres, apenas não da
mesma forma. Não as enxergo como possíveis parceiras, amantes ou
conquistas. Eu avalio essas mulheres com base no fato de se encaixarem ou não
no perfil de Owen. Primeiro eu meço cada uma com base na altura, em seguida
classifico de acordo com a maquiagem e as roupas.
Observo uma mulher jovem sair de uma lavanderia e subir para o
apartamento no andar de cima. De onde estou, não consigo ter certeza se ela é
alta demais ou não.
Uma segunda mulher sai de um prédio comercial. Ela é um tanto quanto
baixa, mas irritantemente acelerada, e a observo entrar em um carro melhor do
que o meu. Não sei se conseguiria me aproximar de alguém assim.
Vejo uma mulher em um café e pego uma mesa atrás dela. Ela está com um
notebook aberto, flanando por sites que se enquadram em duas categorias:
política e comida. Sei quase nada sobre isso e fico pensando no tipo de
conversa que teríamos. É o suficiente para me deixar curioso e acompanho seu
movimento até a saída, seguindo seu rastro para pelo menos poder anotar a
placa do carro.
Eu continuo pela calçada até ver uma pequena mulher que trabalha como
fiscal de estacionamento. Está escrevendo uma multa. Suas unhas são curtas,
assim como o seu cabelo. Não posso ver seus olhos por causa dos óculos
escuros, mas ela não está usando batom.
Passo por ela, perto o bastante para ler o nome no uniforme.
A. Parson Talvez seja ela, talvez não seja. Ainda não decidi. Quando ela não
está olhando, tiro algumas fotos.
Mais tarde naquela noite, Millicent está deitada na cama e estudando uma
planilha em seu computador. As crianças estão dormindo, ou deveriam estar.
Pelo menos, estão em silêncio. Não dá para exigir nada melhor do que isso nos
últimos dias.
Subo na cama ao lado de Millicent. — Olá, gatinha — eu digo.
— Oi — ela se mexe para o lado para me dar espaço, apesar de nossa cama
ser grande o suficiente.
— Fui às compras hoje.
— Meu Deus, tomara que você não tenha jogado dinheiro fora. Estou
olhando as nossas contas agora e não temos nenhuma reserva. Não agora que
essa lava-louça teve que ser trocada.
Dou um sorriso. — Não é esse tipo de compra — eu coloco meu celular na
frente dela, com uma foto de A. Parson na tela.
— Ah — Millicent diz. Ela dá um zoom na foto e aperta os olhos. — Que
uniforme é esse?
— Fiscal de estacionamento.
— Eu com certeza não ia achar ruim uma vingancinha contra essa gente.
— Eu também não — nós damos uma boa risada. — E ela se encaixa no
perfil de Owen.
— Se encaixa mesmo — Millicent fecha o computador e vira todo seu corpo
para mim. — Bom trabalho.
— Obrigado.
Nós nos beijamos, e todos os nossos problemas financeiros se derretem.
Quatorze
No início, não era nada sensual. Era aterrorizante.
Era para Holly ser o fim, não o começo. No dia seguinte à sua liberação do
hospital, Millicent abriu a porta da frente e encontrou Holly na varanda. Bateu
a porta na cara da irmã.
Holly escreveu uma carta e colocou o envelope na caixa de correspondência.
Millicent não respondeu.
Ela ligou. Millicent parou de atender o telefone.
Quando entrei em contato com o hospital psiquiátrico, não quiseram me
contar nada.
Holly começou a aparecer em lugares públicos, mantendo uma distância
segura, ainda que estivesse sempre presente. No supermercado, quando
Millicent fazia as compras. No estacionamento do shopping. Do outro lado da
rua quando nós saíamos para jantar.
Ela nunca ficava o tempo necessário para podermos chamar a polícia. E,
toda vez que nós tentávamos fotografá-la para ter uma prova, ela se virava e
fugia ou então se mexia para forçar um borrão na imagem.
Millicent não queria contar para a mãe. O Alzheimer já estava apagando
Holly da memória dela, e Millicent queria que continuasse assim.
Na internet, pesquisei as leis contra perseguição e fiz uma lista de todas as
datas em que Holly tinha aparecido até então. Quando mostrei para Millicent,
ela me disse que era inútil.
— Isso não vai ajudar — ela disse.
— Mas e se a gente...
— Eu conheço as leis contra perseguição. Ela não quebrou nenhuma, e não
vai quebrar. Holly é esperta demais para isso.
— Temos que fazer alguma coisa — eu disse.
Millicent ficou olhando para meu notebook e balançou a cabeça. — Acho
que você não entende. Ela transformou minha infância num inferno.
— Eu sei disso.
— Então você deveria saber que uma lista não vai ajudar.
Eu queria ir à polícia e contar o que estava acontecendo com a gente, mas a
única evidência física que tínhamos era a carta que Holly colocou na caixa de
correspondência. Ela não era ameaçadora. Como Millicent disse, Holly era
esperta demais para isso.
M,
Você não acha que nós precisamos conversar? Eu acho que sim.
H.
Em vez de ir à polícia, fui conversar com Holly. Falei para ela deixar
Millicent e minha família em paz.
Ela não deixou. Da próxima vez que nos encontramos, ela estava dentro da
minha casa.
Era uma terça-feira, mais ou menos na hora do almoço, e eu estava no clube
terminando uma aula e pensando no que iria comer. Meu celular tocou três
vezes seguidas, três mensagens de Millicent.
911
Vem pra casa AGORA
Holly
Desta vez ele não quer outro jogo. Ele quer dinheiro.
No dia seguinte, eu o encontro em casa depois do trabalho. Ele já está no
sofá, trocando de canal na tevê, digitando no celular e jogando videogame.
Millicent ainda não voltou. Jenna está lá em cima.
Eu me sento do seu lado.
Ele levanta o olhar, com suas sobrancelhas erguidas.
Essa operação é um erro. Eu devia ter contado tudo para Millicent. Podíamos
ter nos sentado com Rory e Jenna e explicado que não estava acontecendo
nada.
O pai gosta de dar longos passeios de carro no meio da noite.
Ocasionalmente, usando terno.
Dou o dinheiro para Rory.
Ele está tão ocupado contando o dinheiro que não presta atenção à tevê, onde
estão reexibindo os destaques da coletiva de imprensa no jornal. Rory não faz
ideia do verdadeiro motivo de seu pai estar na rua à noite. Bastava olhar para
frente e ele ia descobrir.
Temos tacos para o jantar, feitos com restos de frango, e estão deliciosos.
Minha esposa é ótima cozinheira e insiste em fazer o jantar todas as noites, mas
quanto mais rápido ela prepara a comida, melhor parece ficar.
Não digo isso a ela.
Para a sobremesa, pêssegos polvilhados com açúcar mascavo e um biscoito
de canela para cada um. Rory é o primeiro a revirar os olhos, embora Jenna o
acompanhe logo em seguida. Millicent sempre foi implacável em relação às
sobremesas.
Cada um na mesa come de um jeito diferente. Jenna lambe o açúcar mascavo
dos pêssegos, depois come o biscoito e então termina os pêssegos. Rory come
o biscoito primeiro, depois os pêssegos, ainda que essa ordem não seja lá muito
rigorosa, já que ele engole tudo tão rápido. Millicent alterna entre a fruta e o
biscoito, uma mordida em um e então uma mordida no outro. Eu esmago os
pêssegos junto com o biscoito e como tudo em colheradas.
Amanhã é nossa noite de cinema e discutimos o que vamos assistir. Semana
passada foi um filme com um animal falante. Rory sempre resmunga no início,
mas adora esses filmes tanto quanto qualquer outra pessoa. Nossas duas
crianças gostam de histórias de esportes, assim escolhemos uma comédia sobre
um time juvenil de beisebol tentando chegar ao campeonato mundial. Nós
votamos como se fosse uma eleição de verdade, e o de beisebol ganha fácil.
— Vou chegar em casa antes das cinco e meia — eu digo.
— O jantar é às seis — Millicent diz.
— Deu? Terminamos? — Rory pergunta.
— Quem é Owen Oliver Riley? — Jenna diz.
Tudo para.
Millicent e eu olhamos para Jenna.
— Onde você ouviu isso? — Millicent pergunta.
— Na tevê.
— Owen é um homem horrível que machucava as pessoas — eu digo. —
Mas ele nunca vai te machucar.
— Ah.
— Não se preocupe com Owen.
— Mas por que estão falando dele? — Jenna continua.
— Por causa daquela menina morta — Rory diz.
— Mulher — eu digo. — Por causa daquela mulher morta.
— Ah, aquela mulher — Jenna dá de ombros e olha para o celular. —
Terminamos então?
Millicent concorda e eles pegam os celulares, recolhendo a mesa enquanto
digitam. Eu limpo os restos dos pratos, Jenna coloca tudo na lava-louça e
Millicent descarta o que sobrou dos tacos.
Enquanto nos arrumamos para dormir, Millicent põe no noticiário local. Ela
assiste os destaques da coletiva de imprensa e se vira para mim. Sem dizer
nada, ela pergunta se eu tive alguma coisa a ver com aquilo.
Eu dou de ombros.
Ela ergue uma sobrancelha.
Eu pisco um olho para ela.
Ela sorri.
Às vezes, não precisamos dizer nada.
Nem sempre fomos assim. No início, passávamos noites inteiras
conversando, exatamente como jovens casais fazem quando estão apaixonados.
Contava a ela todas as minhas histórias. Quer dizer, não conseguia nem contá-
las com a devida cerimônia, porque eu tinha enfim encontrado alguém que
considerava essas histórias fascinantes. Que me considerava fascinante.
No final das contas, ela ficou sabendo de todas as minhas velhas histórias,
então a gente conversava apenas sobre as novas. Eu mandava mensagens no
meio da tarde para contar os menores detalhes do trabalho. Ela me mandava
uma foto engraçada mostrando como estava o seu dia. Eu nunca tinha
conhecido alguém tão bem, nunca tinha compartilhado a minha vida tão
completamente com outra pessoa. Esse nosso esquema continuou até a gente se
casar, e até mesmo um pouco depois, quando Millicent já estava grávida de
Rory.
Ainda me lembro da primeira coisa que não contei para ela. A primeira coisa
importante, quero dizer. Foi o carro. Nós tínhamos dois: o dela era o mais
novo, o meu era uma picape toda arrebentada onde eu guardava meu
equipamento de tênis. Quando Millicent estava grávida de oito meses, minha
picape estragou. Ela precisava de um conserto de mil dólares, uma grana que
nós não tínhamos. Todo nosso dinheiro da época já havia sido desviado, pouco
a pouco, para comprar um berço, um carrinho e as montanhas de fraldas de que
íamos precisar.
Eu não queria incomodá-la, não queria deixá-la preocupada, então tomei
uma decisão. Disse a ela que a picape estragou, mas não disse o quanto ia
custar. Para pagar o conserto, fiz um novo cartão de crédito somente no meu
nome.
Levou mais de um ano para quitar as prestações, e nunca contei para
Millicent. Também nunca contei a ela sobre as outras cobranças.
Esta foi a primeira grande coisa, mas nós dois paramos de falar sobre as
pequenas. Tivemos um bebê, depois outro, e os dias dela se tornaram mais
exaustivos do que engraçados. Ela não relatava mais cada pormenor da vida e
nem eu contava a ela todas as curiosidades sobre os meus clientes.
Nós dois paramos de perguntar, paramos de compartilhar as minúcias,
acabamos nos concentrando nos destaques do dia. Ainda fazemos isso.
Às vezes um sorriso e uma piscadela: é só isso que precisamos.
Dezesseis
Depois de vinte e quatro horas, o nome de Owen Oliver Riley está por toda
parte. Seu rosto está no noticiário local e pelos portais jornalísticos. Quem não
é daqui quer mais detalhes. Quem é daqui ainda não se decidiu se ele realmente
está de volta. Kekona, a fofoqueira local, está dividida entre os dois lados.
Embora tenha nascido no Havaí, ela está morando aqui há tempo suficiente
para conhecer todas as nossas lendas, mitos e moradores infames. Ela não
acredita que Owen Oliver está de volta. Nem por um segundo.
Nós estamos na quadra e Kekona trabalha o seu saque. Mais uma vez. Ela
acha que, se conseguir fazer um ace atrás do outro, não precisa jogar o restante
da partida. Na teoria, ela está certa. Na prática, ninguém consegue fazer isso. A
não ser que o adversário dela tenha cinco anos de idade.
— Owen poderia ir para qualquer lugar matar mais mulheres, e eles acham
que ele voltou logo para cá? — ela diz.
— Se com “eles” você quer dizer a polícia, então não, eles não falaram nada
sobre Owen Oliver. Foi só a pergunta do repórter.
— Pfff.
— Não sei o que isso quer dizer.
— Quer dizer que é ridículo. Owen escapou uma vez. Ele não tem nenhum
motivo para voltar.
Dou de ombros. — Não é porque aqui é a casa dele?
Kekona revira seus olhos castanhos. — A vida não é um filme de terror.
Ela não é a única que se sente assim. Todas as pessoas que não moravam
aqui na época acham patética essa história de retorno para casa. Elas enxergam
a possibilidade da mesma maneira que Kekona: como uma escolha que não faz
sentido racional.
Mas as pessoas que de fato moravam aqui, e que são velhas o suficiente para
se lembrar, acreditam que Owen voltou para casa. Especialmente as mulheres.
Elas se lembram bem de como era sentir medo sempre que estavam
sozinhas, independente do cenário, uma vez que Owen capturava suas vítimas
praticamente em qualquer lugar. Duas delas desapareceram dentro da própria
casa. Uma estava em uma biblioteca, a outra em um parque e pelo menos três
estavam em estacionamentos. Dois dos sequestros foram gravados por câmeras
de segurança. A imagem era velha e granulada. Owen parecia um grande
borrão vestido com roupas escuras e um boné de time de beisebol. Os vídeos
estão sendo repetidos no noticiário durante todo o dia, de novo e de novo.
Hoje tenho uma aula de tênis com Trista, a esposa de Andy, mas, ao
caminhar pela área social do clube, eu a vejo no bar. Ela está assistindo as
notícias em um dos telões. Como o marido, está com quarenta e poucos anos e
não poderia aparentar ter menos. As pontas dos seus cabelos são amarelas
demais, seus olhos estão sempre pintados de preto e ela tem um bronzeado
intenso e perturbadoramente natural. Ela está sozinha bebendo vinho tinto no
meio da tarde. A garrafa está descansando na mesa.
Acho que não vamos ter aula hoje.
De longe, eu a observo, sem saber se deveria me envolver. Às vezes, minhas
clientes me contam mais do que eu quero saber. Eu sou a cabeleireira do
exercício físico.
Mas, tenho que admitir, também pode ser interessante.
Caminho até Trista. — Olá.
Ela acena para mim e me aponta uma cadeira vazia, sem tirar os olhos da
tela em nenhum momento. Já a vi bebendo diversas vezes em festas e jantares,
mas nunca a vi daquele jeito.
No intervalo comercial, ela se vira para mim. — Vou cancelar a nossa aula
de hoje.
— Obrigado por avisar.
Ela dá um sorriso, mas ele não a faz parecer feliz. De repente imagino que
ela pode estar chateada com Andy. Talvez ele tenha feito algo errado, e eu não
quero me intrometer. Começo a me levantar da cadeira quando ela fala: —
Você lembra como era naquela época? — ela diz, apontando para a tevê. —
Quando ele estava matando?
— Owen?
— Quem mais?
— Claro. Todo mundo aqui lembra — eu dou de ombros e me sento
novamente. — Você chegou a ir no The Hatch? Minha turma costumava beber
lá no sábado à noite e a televisão ficava o tempo todo ligada no jornal. Acho
que foi lá que eu...
Ela respira fundo. — Eu conhecia ele.
— Quem?
— Owen Oliver. Eu conhecia ele — Trista pega a garrafa e enche sua taça.
— Você nunca me contou isso antes.
Ela revira os olhos. — Não é exatamente uma coisa para se orgulhar. Ainda
mais se você considerar que eu namorei com ele.
— Mentira.
— É sério.
Fico de queixo caído. Não é exagero.
— Andy sabe disso?
— Não. E ai de você se contar para ele.
Eu balanço a cabeça indicando que não, não vou contar. De jeito nenhum eu
contaria. Não estou disposto a ser o mensageiro desta notícia. — Mas como
você...
— Primeiro tome um gole disso aqui — Trista empurra a garrafa de vinho na
minha direção. — Você vai precisar.
Trista estava certa. O vinho amorteceu o terror da história toda que ela me
contou.
Ela conheceu Oliver quando ele tinha trinta e poucos anos. Ela era uma
década mais nova do que ele, formada em História da Arte e com um emprego
em uma agência de cobranças. Foi como eles se conheceram. Owen trabalhava
no setor financeiro do hospital Saint Mary’s. Quando as contas não eram pagas,
a agência de cobranças era acionada.
— Era um trabalho de pilantra — sua voz sai arrastada pela bebida. — Eu
ligava para pessoas doentes e exigia dinheiro delas. Essa era eu. Uma pilantra.
O dia inteiro me sentindo como uma pilantra que só fazia pilantragem.
Owen foi justamente quem a fez mudar de ideia. Primeiro, eles falaram
sobre uma mulher chamada Leann, que devia mais de dez mil dólares ao
hospital. Depois de ligar dezessete vezes para Leann, Trista se convenceu de
que o número estava errado. A única pessoa que atendia o telefone era um
homem com uma voz de alguém de noventa anos e que apresentava um caso
óbvio de demência. Leann era uma mulher de vinte e oito anos que morava
sozinha. Trista ligou para o departamento de cobranças do Saint Mary’s para
verificar o número do telefone. Ela não deveria contatar o hospital diretamente,
mas considerou que era o melhor a se fazer. Owen atendeu a ligação.
— Claro que eu tinha o número certo. Owen me disse que Leann era atriz —
Trista deu um longo suspiro. — Fiquei tão envergonhada que nem perguntei
como é que ele ficou sabendo disso.
Eles conversaram. Ela gostou da voz dele, ele gostou da risada dela, os dois
resolveram se encontrar. Trista namorou Owen por seis meses.
— A gente gostava de comer e de beber, e a gente preferia assistir os jogos
em vez de praticar. Com exceção do sexo. A gente fazia muito sexo. Era bom,
mas não era ótimo. Não era nenhuma loucura. Mas... — Trista ergue um dedo e
faz um rodopio no ar. — Nossa, ele fazia uns bolinhos de canela sensacionais.
Nem precisava ler a receita. Abria a massa, espalhava a manteiga e depois ele
colocava aquela mistura de açúcar com canela... — por um segundo, ela encara
o vazio. Demora um pouco para voltar. — Enfim, os bolinhos de canela eram
bons mesmo. Não tinha nada de errado com os bolinhos. Sei lá, no fundo
também não tinha nada de errado com Owen. Tirando o fato dele ser cobrador
de um hospital.
Trista desce os olhos para a mesa e dá um sorriso. Não é um sorriso
verdadeiro, é um sorriso cheio de repugnância e direcionado para si mesma.
Ela endireita a cabeça e me olha bem nos olhos. — Eu terminei com ele porque
eu nunca ia me casar com um cobrador de hospital de trinta e três anos de
idade. Nem morta. Se isso faz de mim uma esnobe, que seja, mas eu jamais ia
aceitar ser pobre o resto da minha vida — ela ergue as mãos, preparada para se
defender de qualquer insulto que eu talvez queira disparar contra ela.
Eu não digo nada. Pelo contrário, levanto minha taça, nós brindamos e
seguimos bebendo.
Trista ainda me fala sobre Owen Oliver Riley por mais quase duas horas.
Ele gostava de esportes. Hóquei era um dos seus favoritos, apesar do time
profissional mais próximo ficar a centenas de quilômetros daqui. Owen sempre
usava calça jeans. Sempre, a menos que estivesse no banho, na cama ou na
beira de uma piscina. Mas ele não sabia nadar. Trista desconfia que ele tivesse
medo de água.
Ele morava em uma casa na zona norte da cidade, na mesma região onde eu
e Millicent moramos logo no início do casamento. A zona norte não é uma
região ruim, mas é mais antiga e mais abandonada que o sudeste, onde Hidden
Oaks fica. Owen herdou a casa quando sua mãe morreu e Trista a descreve
como “bonitinha, mas quase um barraco”. Nenhuma surpresa aí, na verdade.
Várias casas na zona norte são chalezinhos com varandas, com esquadrias
elaboradas e pequenas janelas no telhado. Por dentro, a maioria é antiquada e
está caindo aos pedaços. A de Owen não era exceção.
O aquecedor não funcionava, a janela do quarto emperrava e o carpete
envelheceu até ganhar um tom verde-azulado pavoroso. O banheiro tinha uma
banheira clássica de que Trista gostava, mas a torneira pingava e o barulho a
deixava louca. Quando ela dormia lá, fechava a porta do banheiro. Do
contrário, ela escutava os pingos vindos do corredor. Quando faziam uma
refeição na casa dele, Owen usava a louça da sua mãe, com um desenho floral
na borda.
Depois de um tempo, Trista está bêbada e cansada demais para continuar,
então eu chamo um motorista do clube para levá-la até em casa. Digo que, se
ela quiser falar mais sobre Owen, eu vou escutar com muito prazer. E é
verdade.
Ela me forneceu exatamente o que eu precisava para a segunda carta a Josh.
Dezessete
Fazer planos nunca foi o meu forte. Nem a minha viagem para o exterior foi
planejada. Recebi um telefonema de um amigo meu e uma semana depois me
encontrei com ele no aeroporto de Orlando. Quando percebi que jamais seria
bom o bastante para me profissionalizar no tênis, eu não tinha um plano. No
dia em que Millicent me contou que estava grávida de Rory, eu não tinha
plano. Quando ela ficou grávida de Jenna, eu ainda não tinha um plano.
Somente esse meu segredo com Millicent é que me faz planejar.
Meu jogo é tênis, não xadrez. Eu jogo e ensino tênis, e geralmente isto é
tudo o que eu vejo pela frente: dois lados separados por uma rede, duas forças
opostas, um objetivo. Não é nada complicado. No entanto, aqui estou eu,
traçando um plano envolvendo várias pessoas, como se eu tivesse alguma coisa
para provar.
A atual versão do meu plano envolve três pessoas: Owen, Josh e Annabelle.
Com Millicent, são quatro, e eu até poderia incluir Trista na história. Ou pelo
menos a informação que Trista me passou.
Primeiro, vou mandar outra carta para Josh. Ela não vai apenas incluir
detalhes sobre a vida real de Owen — em específico, a casa da sua mãe —,
mas vai ter também a data em que outra mulher desaparecerá.
É uma jogada arriscada, eu sei. Talvez até desnecessária. Mas alcança nosso
objetivo em uma tacada só. Sim, Owen está de volta. Sim, ele é o responsável
por Lindsay e também pela próxima. Nada de jogos de adivinhação, nada
daquele vaivém entre a polícia e a mídia, todo mundo questionando se ele
realmente está de volta ou se é só uma imitação. A informação que Trista me
passou vai provar a eles que é tudo culpa de Owen. Ninguém vai ter dúvida
nenhuma quando a próxima desaparecer.
Vai ser Annabelle Parson, embora eu não inclua o nome dela na mensagem.
O lado negativo é que todo o departamento de polícia vai estar aguardando o
desaparecimento de uma mulher naquela noite, e vão procurá-la assim que
alguém informar o sumiço.
O lado positivo é que Annabelle tem pouquíssimos amigos. Ninguém vai
comunicar o seu desaparecimento até ela não aparecer no trabalho. É o
suficiente para nos dar dois dias de vantagem.
De todo modo, ainda temos que descobrir como vamos fazer para apanhar
Annabelle sem que ninguém nos veja, incluindo as câmeras de segurança, bem
numa noite em que todos esperam que uma mulher desapareça. E, enquanto a
polícia estiver procurando por Owen, eles vão ignorar Millicent
completamente.
O plano é tão simples que é quase brilhante.
Eu recapitulo tudo mais uma vez, começando com a carta para Josh e
terminando com o sequestro de Annabelle. Ao longo da revisão, vejo centenas
de buracos, pontas soltas e problemas em potencial.
É por isso que eu não planejo. É exaustivo. O que também é a grande razão
por trás de todo esse meu esforço. Tento montar um plano antes de falar com
Millicent. Mesmo depois de uma vida inteira juntos, eu ainda quero
impressioná-la.
E já faz um tempo desde a última vez. Impressionar Millicent não era fácil
quando ela era jovem. Hoje é quase impossível.
Mas nosso relacionamento não é unilateral. Ela também tentou me
impressionar algumas vezes. Millicent tentou me impressionar enfeitando
nossa árvore de Natal com máscaras de oxigênio. No nosso aniversário de
cinco anos de casamento, ela usou a mesma lingerie que usou na noite de
núpcias. E, para nosso aniversário de dez anos, ela planejou um belo de um
passeio.
Com dois filhos e uma casa maior na nossa lista de desejos, não tínhamos
dinheiro para tirar férias longas nem para um jantar fino. Millicent deu um
jeito.
Primeiro, ela apareceu lá nas quadras do clube. Millicent nunca me visita no
trabalho. Se ela por acaso vai ao clube, é para nadar ou para almoçar com
alguém, então, quando ela entrou na quadra, eu achei que era algum problema
sério. Mas minha esposa queria apenas me sequestrar.
Millicent foi de carro comigo até o meio do nada, parou e apontou para o
bosque.
— Ande — ela disse.
Eu andei.
Depois de nos distanciarmos algumas centenas de metros da estrada,
chegamos a uma clareira. Uma barraca já havia sido montada, bem ao lado de
uma fogueira cercada de pedras. Uma pequena mesa de piquenique estava
posta com pratos de plástico, copos e velas grossas.
Millicent me levou para acampar. Ela não é do tipo de pessoa que gosta de
atividades ao ar livre, mas, por uma noite, ela fingiu ser.
Os insetos foram um problema, porque ela se esqueceu de trazer o repelente.
As velas estavam protegidas, mas apagavam de repente e ela também não
pensou em trazer água extra para lavar os pratos ou escovar os dentes. Eu não
me estressei com nada. Nós sentamos em frente à nossa fogueira e comemos
sopa requentada, bebemos cerveja barata e fizemos um sexo realmente
indecente. Conversamos sobre o futuro, que, por conta das crianças, agora
parecia bem diferente do que imaginávamos antes. Não diferente no mau
sentido, apenas diferente no sentido das prioridades.
Evitamos falar sobre as coisas que costumávamos querer, mas que não
podíamos mais ter.
Depois da meia-noite, dormimos. Eu não ficava acordado tão tarde desde a
noite de Natal, quando tivemos que ficar de pé para esconder os presentes do
Papai Noel debaixo da árvore.
Na manhã seguinte, quando saí da barraca, Millicent estava lá parada, com
as mãos entrelaçadas em frente à boca. Saquearam nosso acampamento.
Tudo foi revirado, jogado para os lados, roubado. As embalagens de comida
foram levadas ou então rasgadas e abertas, e nossas mudas de roupa estavam
espalhadas pelo chão.
— Que bagunça — eu disse. — Provavelmente uns guaxinins, não acha?
Ela não respondeu. Estava puta demais para responder.
Millicent começou a recolher o que sobrou das nossas coisas.
— Ainda tem um pouco de café — eu disse, segurando um pequeno pote de
café instantâneo. — Podíamos fazer...
— Eu não acho que foram guaxinins.
Fiquei olhando para ela enquanto minha esposa juntava os restos de uma
mochila. — Então o que você...
— Pessoas destruíram nosso acampamento. Não foram bichos.
— Por que você acha isso?
Ela apontou para onde nós dormimos. — Não encostaram na barraca.
— Talvez eles só quisessem comida. Talvez não dessem muita bola para...
— Ou talvez fossem pessoas.
Eu parei de discutir. Saímos da floresta aos trancos e voltamos para o carro.
Até hoje, quando aquele acampamento vem à tona, ela fala sobre as pessoas
terríveis que saquearam as nossas coisas. Eu ainda acho que foi algum animal,
não pessoas, mas não discuto. Millicent enxerga razões ocultas em tudo.
Mas minha lembrança daquela viagem é bem diferente da dela. Na minha
memória, o importante mesmo foi Millicent ter planejado a viagem para me
impressionar.
Annabelle Parson nunca se atrasou ou faltou ao trabalho por doença, ela nunca
tirou mais de dois dias de folga em sequência e sempre cobre os colegas
quando alguém está doente. É o atestado de que ela não tem namorado.
Qualquer pessoa dentro de uma relação vai, ocasionalmente, perder o horário.
Casais também tiram férias de verdade, ainda mais quando não têm filhos, o
que é o caso de Annabelle. Para completar, como uma cereja perfeita no topo
de um sundae, Annabelle foi cinco vezes indicada como “Fiscal de
Estacionamento do Mês” e ela inclusive aparece no site do município.
Mostro minha pesquisa para Millicent, que lê tudo e diz: — Você tem razão.
Ela é perfeita.
— Também estou trabalhando na próxima carta para Josh, mas não vou
mostrar para você.
— Não vai?
— Quero que seja uma surpresa.
Ela dá um leve sorriso. — Confio em você.
Essa é a melhor notícia da semana.
Começo, então, a observar Annabelle da mesma forma que observei as
outras. Com a dedicação de sempre, claro.
Hoje, pego o trem de volta para onde ela trabalha, apenas para misturar um
pouco as coisas, caso ela reconheça o meu carro. É impossível segui-la quando
ela está trabalhando. Annabelle usa um veículo do estado para circular por aí,
procurando parquímetros vencidos e carros estacionados em áreas proibidas.
Ela para e segue em intervalos aleatórios.
Por um tempo, sento em um café na avenida principal. A cada vinte ou trinta
minutos, ela passa para checar os parquímetros. Enquanto espero, faço um
rascunho da próxima carta de Owen Oliver. Trabalho com a certeza de que a
carta será tão convincente que se tornará pública. Josh e a emissora onde ele
trabalha não vão ser capazes de resistir.
Só a citação do retorno de Owen já está deixando todo mundo em alerta. As
emissoras locais estão reproduzindo vídeos de arquivo, retrospectivas e perfis
até não poder mais. Owen esteve nas capas dos jornais nos últimos dias. Rory e
seus amigos até já transformaram o nome dele em verbo (“vou te owenizar”) e
o grupo pelos direitos das mulheres está pressionando para que o assassinato de
Lindsay seja declarado um crime de ódio.
Tento imaginar como a situação iria se exacerbar se o boato fosse
confirmado. Ou mesmo se as pessoas achassem que foi confirmado. É tudo que
realmente precisamos. Suposições. Se eu conseguir fazer a polícia acreditar nas
cartas, eles não vão procurar por ninguém a não ser por Owen.
Millicent pode ter dado o pontapé inicial, mas eu vou decidir esse jogo. Ela
vai ficar tão impressionada.
Dezoito
Se não fosse por Robin, nada disso teria acontecido. Nós não a procuramos. Ela
não foi escolhida do mesmo jeito que Lindsay foi. Robin simplesmente bateu
na nossa porta e mudou tudo.
Aconteceu em uma terça-feira. Eu tinha acabado de entrar em casa. Era hora
do almoço, não havia ninguém lá, e eu ainda podia aproveitar algumas horas
livres antes da minha próxima aula. Foi quase um ano depois de Holly, a vida
já retornava ao normal. O corpo dela estava desaparecido há tempos e
murchava em um pântano. Millicent e eu não falávamos sobre o assunto. Eu já
não esperava mais as sirenes da polícia. Meu coração não disparava toda vez
que o telefone ou a campainha tocava. Eu não ficava mais de prontidão quando
abria a porta.
A mulher na varanda tinha seus vinte e poucos anos, usava um jeans justo e
uma camisa de gola aberta. As unhas eram vermelhas, o batom era rosa e seus
longos cabelos eram cor de avelã.
Atrás dela, um pequeno carro vermelho estacionado na rua. O carro era
velho, meio parecido com um modelo clássico. Alguns minutos antes, eu o vi
diante de um semáforo não muito distante da nossa casa. Ela buzinou na hora,
mas eu não fazia a menor ideia de que aquela buzina era para mim.
— Pois não? — perguntei.
Ela empertigou a cabeça, me olhando de lado, e sorriu.
— Achei que era você.
— Oi?
— Você é amigo da Holly.
O nome dela me fez dar um pulo, como se eu tivesse enfiado o dedo em uma
tomada. — Holly?
— Vi você com ela.
— Acho que você me confundiu com outra pessoa.
Ela não me confundiu, é claro. Agora eu a reconhecia.
Quando o hospital liberou Holly, um dos médicos a ajudou a arranjar
emprego em um supermercado. Holly trabalhava meio turno reabastecendo as
gôndolas. Foi aonde eu fui para mandá-la ficar longe da gente, onde eu a
enfrentei para parar com essa história de assustar a minha família.
Nunca imaginei que fosse sair do controle.
Eu fui lá em uma segunda-feira de manhã, quando a loja estava com pouco
movimento e os funcionários ainda preparavam o lugar. Holly estava em um
dos corredores, enchendo uma prateleira com caixas de granola, e estava
sozinha. Quando caminhei pelo corredor em direção a ela, ela se virou para
mim. Seus olhos verdes cristalinos eram estonteantes.
Holly pôs as mãos nos quadris e ficou me olhando até eu parar bem ao lado
dela.
— O que foi? — ela perguntou.
— Acho que nós não fomos devidamente apresentados — estendi a mão e
esperei para que ela a apertasse de volta. Finalmente, ela apertou.
Disse a ela que lamentava ter que conhecê-la daquela forma — que, em
outro lugar, em outro momento, talvez pudéssemos ser como uma família. Mas
que, agora, isso era impossível, porque o seu comportamento estava assustando
a minha esposa e as minhas crianças. Meus filhos nunca fizeram nada para ela.
Não mereciam sofrimento nenhum. — Estou te pedindo — eu disse. — Você
pode deixar a minha família em paz?
Ela riu na minha cara.
Holly riu até lágrimas brotarem nos cantos dos seus olhos, e depois riu mais
um pouco ainda. Quanto mais aquilo continuava, mais humilhado eu me sentia.
E meu constrangimento só alimentava sua risada. Comecei a entender como ela
fazia Millicent se sentir, e isso me deu uma tonelada de raiva.
— Sua vagabunda — eu disse.
Ela parou de rir. Seus olhos quase brilhavam de revolta.
— Cai fora.
— E se eu não cair? E se eu ficar aqui e infernizar a sua vida? — minha voz
era muito mais alta do que deveria ser.
— Cai fora.
— Fique longe da minha família.
Holly ficou me encarando, ainda como uma estátua. Não vacilou naquele
instante, ela nunca vacilou.
Eu me virei para ir embora, me sentindo um tanto impotente. Não consegui
argumentar com Holly, não consegui fazer com que ela entendesse.
Robin estava no final do corredor, assistindo tudo.
Ela também trabalhava no supermercado. Usava a mesma camisa amarela e
o mesmo avental verde. Eu a vi, passei bem do seu lado e posso tê-la
cumprimentado com um gesto. Ou talvez não. Mas ela estava lá, ela me viu, e
agora estava parada na porta da minha casa.
— Não me enganei — ela disse. — Foi você quem eu vi naquele dia.
Eu não hesitei. — Desculpe... Você está falando com a pessoa errada — e
fechei a porta.
Ela bateu de novo.
Eu ignorei.
A voz de Robin passou pela porta. — Você sabe que ela sumiu, não sabe?
Ela nem pegou o último contracheque.
Eu abri a porta. — Olha, eu realmente lamento pela sua amiga, mas eu não
faço ideia...
— Entendi, entendi. Você é o cara errado. Não foi você. Tá bom. Agora que
eu sei quem você é, vou deixar a polícia resolver essa história.
Ela se virou e começou a sair.
Não deixei que ela fizesse isso.
Ninguém sabia que Holly estava desaparecida. Ninguém estava procurando
por ela, e eu não queria que começassem a procurar. Até porque Millicent e eu
nunca fomos especialistas em ciência forense ou DNA ou qualquer coisa do
gênero. Qualquer pessoa que cavasse lá no fundo ia acabar descobrindo todos
os nossos erros.
Perguntei se Robin queria entrar para conversar. Ela hesitou no primeiro
momento. Pegou o celular e segurou o aparelho na mão ao entrar em casa.
Fomos até a cozinha. Eu ofereci algo para beber. Ela recusou. No entanto,
pegou uma laranja da mesa e começou a descascá-la. Sem admitir nada, sem
nem mesmo me apresentar, eu perguntei o que é que aconteceu. Ela começou a
falar do supermercado, de Holly e de si mesma.
Ela me relatou a história de como foi trabalhar no supermercado, de quando
ela conheceu Holly e como elas ficaram amigas. Eu me levantei da mesa e fui à
geladeira pegar um refrigerante. Escondido pela porta aberta, mandei uma
mensagem rápida para Millicent. Usei a mesma linguagem que ela usou
quando Holly estava na nossa sala.
911 Vem pra casa AGORA
Parecia que horas haviam se passado antes do carro dela parar na frente de
casa. Naquela altura, Robin me perguntava o que deveríamos fazer para
resolver a nossa pequena situação. Ela não queria justiça para sua queridíssima
amiga Holly. Ela queria dinheiro, e não era pouco.
— Acho que isso pode ser vantajoso para todo mundo — ela disse. A porta
da frente se abriu, e a cabeça de Robin se virou. — Quem é?
— Minha esposa — eu disse.
Millicent apareceu na soleira da porta, ofegante, como se tivesse corrido.
Estava vestida para o trabalho com saia, blusa e salto alto. Seu blazer estava
aberto, ela não se deu ao trabalho de abotoá-lo. Olhou para mim, então para
Robin e depois para mim de novo.
— Essa aqui é a Robin — eu disse. — Ela trabalhava com uma mulher
chamada Holly.
Millicent ergueu uma sobrancelha para Robin, que acenou com a cabeça.
— É verdade. E eu vi o seu marido falando com ela. Chamou ela de
vagabunda.
A sobrancelha se voltou para mim.
Eu não disse nada.
Millicent tirou o blazer e o atirou sobre uma cadeira.
— Robin... — ela disse, caminhando pela cozinha. — Por que você não me
conta o que aconteceu?
Robin deu um sorrisinho para mim e começou a falar, iniciando pela parte
em que eu entrei no supermercado.
Atrás de mim, Millicent vasculhava a cozinha. Eu não conseguia ver o que
ela estava fazendo. Escutei os seus saltos baterem no chão quando ela voltou
para onde a gente estava. Robin torceu o rosto para ela, mas continuou falando.
Eu não vi a máquina de waffles na mão de Millicent até ouvir o estalo no
crânio de Robin. Ela desabou no chão com um ruído oco.
Millicent matou Robin da mesma forma que eu matei Holly. Sem hesitação.
Só instinto.
E foi muito sexy.
Dezenove
A ligação chega quando estou saindo do clube, no meu trajeto para vigiar
Annabelle. Millicent está ao telefone, dizendo que a nossa filha está doente.
— Peguei ela na escola.
— É febre? — eu pergunto.
— Não. Como está sua agenda?
— Posso ir para casa agora.
Todos os meus devaneios sobre Annabelle são interrompidos. Faço a volta
com o carro.
Em casa, Millicent está andando pelo corredor enquanto fala ao telefone. A
tevê está ligada na sala de estar, onde Jenna está no sofá de canto encasulada
em cobertores, com a cabeça deitada em uma pilha de travesseiros. Na mesa ao
lado, chá, uma pilha de bolachas de água e sal e uma grande bacia só para
garantir.
Eu me sento no sofá ao lado dela. — Sua mãe me disse que você está doente.
Ela concorda. Faz beiço. — Estou.
— Não está fingindo?
— Não — Jenna sorri um pouco.
Eu sei que ela não está fingindo. Jenna odeia ficar doente.
No jardim de infância, ela teve pneumonia e faltou a um mês de aula. Não
ficou doente o bastante para ser hospitalizada, mas ficou doente o bastante para
se lembrar de tudo. Assim como Millicent. Às vezes ela age como se Jenna
tivesse cinco anos de idade de novo. É um pouco exagerado agora que Jenna
tem treze, mas eu não discuto. Eu também me preocupo com Jenna.
— Assiste comigo — Jenna aponta para a tevê.
Eu tiro os sapatos e ponho os pés para cima. Assistimos um game show,
gritando as respostas antes que sejam reveladas.
Os saltos de Millicent batem pelo chão. Ela vem e para na frente da tevê.
Jenna põe no mudo.
— Como é que estamos? Estamos bem? — Millicent pergunta.
Jenna acena com a cabeça. — Estamos bem.
Millicent se vira para mim. — Quanto tempo você pode ficar?
— A tarde toda.
— Então eu ligo para você depois.
Millicent caminha até Jenna para tocar sua testa, primeiro com a mão e
depois com os lábios. — Ainda está sem febre. Me ligue se precisar de alguma
coisa.
Os saltos dela saem batendo pelo corredor. Jenna mantém a televisão no
mudo até a porta da frente se fechar. Voltamos a assistir o programa. No
intervalo comercial, Jenna põe a tevê de novo no mudo.
— Você está bem, pai? — ela pergunta.
— Eu? Não sou eu quem está doente.
— Não é o que eu quis dizer.
Eu sei que não. — Sim, estou bem. Só ando ocupado.
— Ocupado demais.
— É. Ocupado demais.
Ela não me pergunta mais nada.
Millicent liga duas vezes, primeiro interrompendo um programa de
entrevistas e depois uma novela adolescente. Rory chega por volta das três da
tarde e, depois dos resmungos iniciais, ele se junta à nossa maratona na tevê.
Às cinco horas, eu volto a ser pai.
— Dever de casa — eu digo.
— Não posso, estou doente — Jenna diz.
— Rory, dever de casa.
— Só agora você lembrou que eu vou para a escola também?
— Dever de casa — eu digo. — Você sabe as regras.
Ele revira os olhos e sobe as escadas.
Eu devia ter tocado no assunto mais cedo. Não foi porque eu me esqueci, foi
porque eu não conseguia me lembrar da última vez em que eu passei algum
tempo sozinho com os meus filhos.
Millicent chega uns quarenta e cinco minutos depois. Ela é ligeira com os
cumprimentos e um agito só na cozinha, colocando o jantar no forno antes
mesmo de trocar de roupa. A energia na casa é diferente quando ela está aqui.
Tudo aumenta um tom, pois as expectativas são maiores.
Hoje à noite, comemos sopa de macarrão com galinha e ninguém reclama. É
o que comemos quando alguém está doente.
As outras regras também são relaxadas. Já que Jenna está acomodada no
sofá, Millicent decide que é lá onde todos nós vamos comer. Sentamos diante
da televisão com os pratos em bandejas. Nessa hora, Millicent já trocou de
roupa e está de moletom, e Rory alega ter terminado o dever de casa.
Assistimos uma nova série de comédia que é horrorosa, seguida por um seriado
policial medíocre, e por algumas horas tudo parece bastante normal.
Depois que as crianças vão para a cama, Millicent e eu arrumamos a sala.
Embora eu tenha passado o dia inteiro deitado no sofá, me sinto exausto. Sento
à mesa da cozinha e esfrego os olhos.
— Perdeu muita coisa hoje? — Millicent pergunta.
Ela está falando do meu verdadeiro trabalho, que eu teria perdido de
qualquer forma porque eu planejava observar Annabelle.
Eu dou de ombros.
Ela fica atrás de mim e começa a massagear os meus ombros. É uma
sensação ótima.
— Eu é que deveria estar massageando os seus ombros — eu digo. — Foi
você quem trabalhou o dia inteiro.
— Cuidar de uma filha doente é mais estressante.
Millicent tem razão, embora Jenna estivesse mais indisposta do que doente.
— Ela vai ficar bem — eu digo.
— Claro que vai.
Ela segue massageando. Depois de um minuto, ela diz: — E o resto, como
está?
— Sua surpresa está quase pronta.
— Que bom.
— Vai ser bom.
Millicent para de massagear meus ombros. — Isso tem cara de promessa.
— Talvez seja.
Ela me pega pela mão e me leva até o nosso quarto.
Depois de Robin, nós não conversamos sobre ela. E não conversamos sobre
Holly. Millicent e eu retornamos às nossas vidas, nosso trabalho, nossos filhos.
A ideia de Lindsay — de uma terceira — começou há um ano e meio. Eu não
compreendia na época, não podia imaginar essa possibilidade de escolher,
perseguir e matar uma mulher. Foi só um conceito que apareceu por acaso no
shopping.
Eu estava lá com Millicent, só nós dois. Nós estávamos comprando
presentes de Natal para as crianças. Dinheiro era um problema maior do que de
costume. Millicent aguardava o fechamento da venda de duas casas, mas as
duas estavam pendentes devido a questões de financiamento. Faltava uma
semana para o Natal e nós estávamos sem presentes, sem dinheiro e sem limite
nenhum sobrando no cartão de crédito. Reduzimos o nosso orçamento de Natal
três vezes. Eu não estava nada contente com a situação. Não tínhamos que
comprar presentes apenas para as crianças. Também tínhamos que comprar
presentes para os amigos, colegas e clientes.
No shopping, Millicent só me dizia “não”. Tudo que eu pegava era caro
demais.
— Eles vão achar que nós estamos completamente pobres — eu disse.
— Você está fazendo drama.
— Eu cresci com essa gente.
Millicent revirou os olhos. — De novo isso?
— O que você quer dizer?
— Nada. Esquece.
Coloquei minha mão em seu braço. Ela usava uma camisa de manga
comprida, mas sem jaqueta, porque mesmo em dezembro a temperatura fica
em torno de quinze graus. — Não, sério, o que é que você quis dizer com
aquilo?
— Quis dizer que você está sempre falando “dessa gente”. A gente de
Hidden Oaks. Você insulta essas pessoas, mas depois se gaba de ser uma delas.
— Não mesmo.
Millicent não respondeu. Ela estava olhando para uma prateleira de castiçais.
— Eu não faço isso — eu disse.
— O que você acha desses aqui? — ela segurava um par feito de prata. Ou
de um material que parecia prata.
Eu torci o nariz.
Ela botou os castiçais de volta na estante com uma batida.
Eu já estava bem irritado. O cansaço veio em seguida. Nos últimos tempos,
nosso único assunto era dinheiro. Eu estava cansado de ouvir que não tínhamos
o suficiente, que eu não podia comprar tal coisa, que eu precisava escolher um
presente mais barato. Não podia nem dar para as minhas crianças o que elas
queriam no Natal.
Millicent continuava falando, martelando sem parar sobre as finanças e as
contas bancárias. Eu a ignorei. Não conseguia mais ouvir, não conseguia mais
pensar naquilo — e precisava de uma distração.
Por acaso, uma delas passou bem ao meu lado. Seus cabelos eram cor de
avelã.
— Oi? — Millicent estalou os dedos na frente do meu rosto.
— Estou aqui.
— Tem certeza? Porque...
— Ela me lembra um pouco a Robin — eu disse. — A amiga de Holly.
Millicent virou o rosto e observou a mulher desaparecer na multidão.
Quando ela se virou novamente, estava com uma sobrancelha levantada. —
Você acha?
— Acho.
— Que estranho.
Era estranho. Assim como era estranha a sensação que eu tinha ao reproduzir
o assassinato de Robin na minha cabeça. Toda vez que eu pensava na morte
dela, pensava no quanto aquele dia tinha sido fantástico, o quanto nós nos
unimos e fizemos o que precisava ser feito para nos proteger. Para proteger
nossa família. Foi incrível.
E foi tão sexy.
Aí eu contei para minha esposa o que exatamente estava passando pela
minha cabeça.
Vinte
A rotina de trabalho de Annabelle nunca muda. De segunda a sexta, das oito às
cinco, ela distribui multas por estacionamento em local proibido, aciona o
serviço de guinchos e é xingada por fazer o seu trabalho. As pessoas disparam
palavrões contra ela, fazem gestos grosseiros e a chamam dos mais variados
nomes. Será que ela realmente não se importa, será que ela não recorre à ajuda
de uma ou outra substância? Fico me perguntando qual a taxa de vício para
fiscais de estacionamento.
Suas noites também não são lá muito fáceis. Ela é uma mulher solteira que
gosta de sair, na medida do possível, e, sendo fiscal de estacionamento, o
salário não é dos maiores. Às quartas, ela janta com os pais, mas, fora esse
compromisso, suas noites não têm um padrão definido. Se eu precisasse assinar
um documento informando em qual noite ela sai com mais frequência, eu diria
que essa noite é a de sexta-feira.
Daqui a duas semanas teremos uma sexta-feira 13. É impossível ser mais
ridiculamente perfeito do que isso. Na sexta-feira 13, Annabelle vai
desaparecer.
Posso, então, completar a segunda carta de Owen para Josh. É digitada,
como a primeira, só que muito mais longa.
Prezado Josh, Não tenho certeza se você acredita que sou eu te escrevendo.
Ou talvez você acredite, mas a polícia não. Não sou uma imitação nem um
impostor. Sou eu, o mesmo Owen Oliver Riley que morava no número 4233 da
Cedar Crest Drive, naquela casinha velha com o carpete pavoroso. Eu não o
coloquei lá, diga-se de passagem. Essa escolha ruim foi de minha mãe.
Eu sinto que o que há entre nós é falta de confiança. É totalmente
compreensível, considerando que ninguém me viu ainda, nem falou comigo.
Bom, com exceção de Lindsay. Ela me viu e muito. E falamos várias e várias
vezes durante o ano em que ela foi minha.
Mas agora estou solitário e você não acredita em mim. Então vou te fazer
uma promessa. Daqui a duas semanas, outra mulher vai desaparecer. Vou até
te dizer a data exata: sexta-feira 13. Meio brega, né? Pois então. Também é
uma data fácil de lembrar.
E, Josh, você pode não confiar em mim agora, mas vai aprender que eu
sempre cumpro minha palavra.
— Owen
Josh vai receber a carta até terça-feira. Mais uma vez, eu borrifo o perfume
de caubói almiscarado antes de enviar. Essa carta obviamente será examinada
pela polícia, e sabe-se lá quantas discussões eles vão precisar até resolverem
divulgar o material. Quer dizer, pelo menos a parte sobre a sexta-feira 13.
Por enquanto, de volta para minha vida real. Cancelei aulas demais nas
últimas semanas. Minha agenda agora está cheia o dia todo, todos os dias, além
de todas aquelas coisinhas do cotidiano de sempre. Buscar as crianças, deixá-
las em casa, a passada rápida no supermercado para comprar o que estiver em
falta. Afogar minha rotina nos pequenos detalhes faz a minha vida parecer
normal. E isso quase faz sumir aquele tique nervoso que há tempos me
incomoda. Se Millicent não ficasse olhando para mim, fazendo tantas
perguntas com os olhos, eu já poderia ter me livrado dele.
As respostas dela chegam na quinta-feira à noite.
Millicent e eu estamos no clube, em uma festa de despedida para alguém do
conselho. Os eventos sociais da diretoria são extravagantes a ponto de serem
vulgares. A comida é abundante, o vinho é forte, e todos se parabenizam pelo
belo sucesso alcançado.
Nós vamos porque temos que ir, porque fazer contatos é parte dos nossos
trabalhos. Temos até um sistema. Depois de entrarmos juntos, nós nos
separamos. Eu vou para a esquerda, ela vai para a direita, e vamos abrindo
caminho pelo salão até nos encontrarmos de novo no meio. Trocamos de lados,
nos separamos novamente e depois voltamos a nos encontrar na entrada.
Millicent está usando um vestido amarelo intenso. Com seus cabelos ruivos,
ela parece uma fogueira. Do meu canto no salão, vejo lampejos de minha
esposa enquanto ela circula pela multidão, aquele vestido amarelo nunca se
afasta dos meus olhos. Eu a vejo rir, sorrir, mostrar preocupação ou prazer.
Quando seus lábios se movem, tento adivinhar o que ela está dizendo. Ela
segura uma taça de champanhe, mas nunca bebe. Ninguém jamais percebeu
essa sua tática.
Hoje à noite, seus olhos têm uma leveza que eu não via há tempos, como
uma folha fresca sob o sol. Eles se movem na direção dos meus. Millicent vê
que eu a observo.
Ela pisca.
Eu suspiro e continuo com a minha pequena rede de contatos.
Andy e Trista estão aqui, ambos com taças cheias de vinho. Andy bate na
barriga e diz que realmente precisa começar a malhar ou algo assim, o que é
verdade. Trista não diz muita coisa, mas ela me olha mais do que o necessário.
Deve se lembrar da nossa conversa sobre Owen, ou pelo menos se lembra de
partes.
Kekona também está na festa. Ela está com um jovenzinho, seu
acompanhante mais recente, e não faz questão nenhuma de apresentá-lo. Em
vez disso, ela fala sobre todo mundo — quem está bem vestido e quem não
está, quem fez plástica e quem precisa fazer. Sendo uma das sócias mais ricas
do clube, Kekona pode dizer o que quiser e as pessoas vão continuar a aceitá-
la.
Beth, uma garçonete do clube, passa com uma bandeja cheia de drinques e
me oferece um. Seu sotaque do Alabama se sobressai e faz com que ela sempre
pareça atrevida.
Eu balanço a cabeça.
— Hoje não.
— Beleza — ela diz.
Passo para um casal mais novo, os Rhineharts. Lizzie e Max recém se
mudaram para Hidden Oaks. Minha esposa vendeu a casa onde eles moram, e
já me encontrei com os dois em pelo menos uma ocasião. Max joga golfe, mas
Lizzie diz que costumava jogar tênis. Ela acha que deveria voltar a jogar. Seu
marido se cansa da conversa e muda de assunto para marketing, que é o seu
ramo. Max acha que pode trazer grandes investimentos para o Hidden Oaks
Country Club, embora ninguém tenha oficialmente falado com ele sobre
qualquer tipo de contrato.
Eu sigo em frente, pedindo para Lizzie me ligar caso queira retomar o tênis.
Ela promete que vai me procurar.
Millicent e eu nos encontramos no meio do caminho. Sua taça de champanhe
ainda está cheia. Ela derrama um pouco em uma planta qualquer.
— Você está bem? — ela pergunta.
— Estou.
— Mais uma rodada então?
— Vamos lá.
Nós nos separamos por uma segunda vez e eu vou para o outro lado do
salão, cumprimentando todos que ainda não vi. Parece que estou andando em
círculos, pois é isso mesmo que estou fazendo.
O anúncio chega antes do jornal das onze da noite. Não sei quem viu
primeiro ou quem é o primeiro a mencionar, mas vejo pessoas pegando os
celulares. Várias delas, todas de uma vez só.
Uma mulher sussurra perto de mim: — É ele.
E então eu sei.
Alguém liga as tevês do bar. Somos todos cercados por Josh, que está no seu
momento de ouro. Ele não parece tão jovem hoje à noite, e é possível que
sejam os óculos. São novos.
— Recebi esta carta nesta semana. Após debatê-la com a polícia e com a
diretoria da emissora, decidimos que, para o bem da segurança pública, não
tínhamos outra escolha a não ser divulgá-la ao público.
Uma imagem da carta aparece na tela. Todos nós acompanhamos, lendo as
palavras digitadas conforme Josh lê o texto em voz alta. Quando ele chega na
parte sobre uma mulher desaparecendo na sexta-feira 13, uma interjeição
coletiva de espanto surge nos convidados da festa.
Eu olho ao redor e encontro o vestido amarelo.
Millicent está olhando para mim, com um meio-sorriso e uma sobrancelha
levantada, como se me fizesse uma pergunta.
Eu pisco o olho.
Ela suspira.
Eu ganhei. O carro verde não é multado.
Nem é o meu carro, na verdade.
Eu não sei ao certo por que falei com Annabelle. Desta vez, eu não precisava
falar, eu não preciso saber mais sobre a sua vida ou onde ela mora ou quem
pode estar esperando por ela. Eu já tenho as respostas, mas falei mesmo assim.
Tudo parte do meu processo de seleção.
Na quarta-feira, vou vê-la de novo. Ela não sabe disso.
Ela hesita.
Eu aponto para um bar mais adiante na rua.
Annabelle olha para o seu relógio. Fico surpreso quando ela diz que sim. Ela
deveria dizer não, principalmente com toda essa questão do Owen Oliver, mas
Annabelle é ainda mais solitária do que eu imaginava.
A pergunta não é apenas para jogar conversa fora. Estou realmente curioso.
Annabelle dá de ombros. — Não conheci ninguém ainda?
Eu balanço a cabeça.
Muito genérico.
Ela demora um pouco. Estou supondo que ela esteja prestes a me contar que
o seu último namorado era um babaca. Que ele tinha outra. Que ele estava
sempre saindo com os amigos. Que ele era um safado egoísta.
— O meu último namorado foi morto — ela diz.
O choque quase me faz falar em voz alta.
Que coisa horrível. Como foi que aconteceu?
— Motorista bêbado.
Lembro vagamente de Annabelle ter postado algo na internet sobre uma
arrecadação de fundos para conscientização contra o álcool no volante. Não
havia nenhuma indicação de que era pessoal.
Pergunto a ela mais coisas sobre ele. Seu nome era Ben, e Annabelle o
conheceu no trabalho. Ben era policial. Fazia aulas de direito criminal à noite e
queria subir na carreira até chegar a detetive, e depois a sargento.
Ela não mantém mais nenhuma foto dele no celular, pois decidiu que não era
muito saudável ficar olhando para elas.
Essa declaração é tão triste que sou obrigado a desviar o olhar.
— Ei — Annabelle diz. Ela toca no meu braço, me pedindo para virar para
ela. — Me desculpe. Esse assunto todo é muito sério.
Não, tudo bem. Eu que perguntei.
— Bom, uma mulher que não sair com você porque você é surdo não vale a
pena.
Eu dou um sorriso. Suas palavras são genéricas, mas, partindo dela, soam
genuínas. Isso me faz pensar no que ela diria se eu lhe contasse a verdade.
Então, eu decido. Não vou dormir com ela.
Em vez disso, mudo de assunto e paramos de falar sobre nós dois. Falamos
sobre livros, filmes, atualidades. Nada pessoal, apenas uma conversa aleatória
que não causa dor nenhuma. Quando eu paro de flertar, ela para também. O ar
entre nós dois não é mais o mesmo.
Eric volta à nossa parte do bar e pergunta se queremos mais uma bebida.
Não pedimos mais nada.
Ela não quer que eu a acompanhe até em casa. É compreensível, mas eu
insisto para que Eric chame um táxi. Ela aceita, e tenho certeza de que é por
causa de Owen Oliver. Antes dela ir embora, peço o seu número. Ela me diz, e
eu dou a ela o número do telefone descartável.
Annabelle agradece pelo drinque com um aperto de mão. É, ao mesmo
tempo, formal e carinhoso. Eu a observo saindo do bar.
Não vou mandar mensagens para ela. Tenho certeza disso.
Também tenho certeza de que Annabelle não serve. Ela não vai desaparecer
na sexta-feira à noite.
É por causa do seu namorado. Assim que ouvi a história, eu soube que não
seria ela.
Talvez por ser tragédia demais para uma vida tão jovem. Perder uma pessoa
querida em um acidente violento e depois ser assassinada.
Não é justo. Nosso sistema de escolha foi desenvolvido, em parte, por Owen,
mas a forma como o colocamos em prática foi arbitrária. Eu simplesmente vi
Annabelle passando naquele dia. Poderia ser qualquer uma.
Agora, estou de volta ao Lancaster Hotel, observando Naomi. Ela ainda é
um pouco alta demais para o perfil de Owen. Eu a conheço apenas pelo
computador e pelas portas envidraçadas do Lancaster. Nunca falei com ela,
nunca ouvi o som da sua voz.
Mas eu quero. Quero ouvi-la rir, quero ver como ela fica depois de uns
drinques. Quero saber se ela realmente tem uma queda por homens mais velhos
ou se só precisa do dinheiro. Quero saber se gosto dela, se não gosto dela ou se
não sinto nada por ela. Mas não vou fazer isso. Não posso correr o risco de
descobrir um detalhe qualquer que me faça querer deixá-la viva.
Portanto, não entro no hotel, continuo distante. Quando seu expediente
termina, eu a vejo sair. Ela trocou o uniforme por calça jeans e camiseta. Fala
no telefone ao caminhar até seu carro, uma coisa minúscula na cor verde-limão.
Às onze e quinze de uma noite de quarta-feira, sua única parada é no drive-thru
de uma lanchonete. Minutos depois, ela chega em casa, caminha para o
apartamento com um pacote de comida em uma mão e o uniforme na outra.
Naomi mora no térreo de um prédio pacato, um prédio voltado para pessoas
que não ganham muito. O jardim da entrada está crescido demais, com arbustos
frondosos perto da porta.
Perfeito. Temos muitas opções para a sexta-feira 13, do estacionamento do
hotel até o prédio de Naomi.
Agora só preciso contar a Millicent que mudei de ideia.
Vinte e três
Às seis da manhã a voz do locutor do rádio explode no meu ouvido e é alta o
bastante para me fazer dar um pulo. Millicent gosta desse rádio-relógio. É um
modelo antigo, daqueles com números que viram como páginas de calendário e
um revestimento imitando madeira, e me irrita até o fundo da alma. O rádio é a
sua maneira de deixar o assento da privada levantado.
— Bom dia. Hoje é quinta-feira, 12 de outubro, e vocês têm mais um dia
antes de se trancarem dentro de casa, minhas jovens senhoras. Owen Oliver
está vindo para pegar uma mocinha bonita e...
O rádio fica mudo. Eu abro os olhos e vejo Millicent parada na minha frente.
— Desculpe — ela diz. — Esqueci de desligar.
Ela se vira e volta ao banheiro. Seu cabelo ruivo, sua bermuda de algodão e
sua regata se dissolvem em um longo rabo-de-cavalo escuro e aí surge um
uniforme azul com detalhes em dourado.
Eu estava sonhando com Naomi quando o rádio tocou. Ela estava atrás do
balcão lá no Lancaster, conversando com um homem tão velho que fazia um
chiado ao falar. Naomi jogou a cabeça para trás e riu. A risada soou como o
cacarejo de uma bruxa em um conto de fadas. Então, ela virou o rosto para
mim e piscou. As sardas ao redor do seu nariz começaram a sangrar. Acho que
eu estava prestes a dizer algo quando o rádio me interrompeu.
Millicent mentiu, ela não se esqueceu de desligar o alarme coisíssima
nenhuma. Ela ainda está um pouco chateada comigo. Não porque tivemos que
de repente voltar a Naomi, mas porque tomei essa decisão sem consultá-la.
Ontem à noite, tivemos outra noite romântica na garagem. Ela imaginava
que seria uma última sessão de planejamento para revisarmos tudo antes do
grande dia. E a intenção original era essa, pelo menos até eu contar a ela que
Annabelle não servia.
— Não entendi — ela disse.
— Acho que temos que voltar para Naomi.
— Naomi é alta demais. Ela não se encaixa no perfil.
— Eu sei, mas Annabelle é...
— É o quê?
Tomei a decisão de mentir numa fração de segundos. — Ela começou a sair
com um cara.
— Um namorado?
— Se ele ainda não é, vai ser. Ele vai chamar a polícia na mesma hora —
esse é o tipo de cenário que preferimos evitar.
Millicent balançou a cabeça. Deve ter até mesmo praguejado por entre os
dentes. — Não acredito que só agora fomos descobrir isso.
— Sempre ficamos de olho nela no trabalho.
— Nem sempre.
Deixei isso passar. Não era hora de questionar Millicent sobre o que ela tinha
esquecido de me contar. Não quando eu estava mentindo.
— Pois então — eu disse. — Naomi.
Millicent suspirou. — Naomi.
Não falamos mais em Annabelle.
Eu não quero trabalhar, mas não tenho escolha. Meu dia é preenchido por uma
aula atrás da outra e, quando elas enfim acabam, pego as crianças na escola e
levo os dois ao dentista. Por sorte, ambas as consultas caíram na quinta-feira
12. Millicent marca as revisões delas com bastante antecedência, a cada seis
meses, sem nunca errar a data.
Quando chegamos ao consultório, Jenna e Rory tiram pedra-papel-e-tesoura
para ver quem vai primeiro. É uma das poucas vezes que os dois falam ao
mesmo tempo.
— Pedra, papel, tesou-rá!
Rory perde, Jenna debocha e a inabalável verdade passa despercebida pelos
dois: ambos ainda terão que fazer uma limpeza nos dentes.
Na sala de espera, eu verifico as notícias no celular e sou bombardeado por
fotos das vítimas de Owen. Nosso jornal local colocou todas na primeira
página, e todos esses retratos foram tirados quando elas ainda estavam vivas e
sorridentes. A mensagem não é nada sutil. Se você se parece com essas
mulheres, amanhã você estará em risco. Owen pode estar vindo te pegar. Não
há nenhuma indicação de que alguém seja capaz de reagir ou escapar, e a única
maneira de sobreviver é não ser escolhida. É um pouco ofensivo, creio eu, que
as mulheres sejam tratadas como se fossem tão indefesas. O autor desse artigo
certamente nunca conheceu a minha esposa.
Depois do dentista, sorvete. Millicent nos encontra para esta bizarra tradição
familiar. Fui eu que comecei, na época em que as crianças eram muito mais
novas e eu queria fazê-las pararem de chorar no dentista. A promessa de
sorvete funcionou e agora elas não esquecem mais.
Cada um tem o seu predileto. Millicent pede baunilha, eu peço chocolate e
Rory pede chocolate com nozes. Jenna é a mais experimental. Ela sempre pede
o especial do dia. Hoje é de mirtilo com flocos de chocolate, e ela adora. Eu
acho nojento.
Depois que os dentes estão todos limpos e os cérebros devidamente
congelados, nós nos separamos. Millicent leva as crianças para casa e eu volto
ao trabalho. No caminho para o clube, encontro com Trista. Ela cancelou nossa
última aula, e eu na verdade não a vejo direito desde aquele dia embriagado
quando ela me contou sobre seu relacionamento com Owen Oliver. Sou muito
agradecido a ela por aquilo, mas ela não sabe. Ela não sabe de muita coisa no
momento. Ela olha para mim com o olhar morto de uma bêbada, mas não é por
causa do álcool. Ela está tomando remédios, provavelmente analgésicos, e
tomando em larga quantidade. É um vício comum entre os frequentadores do
clube.
Mas nunca imaginei que fosse acontecer com ela.
— E aí? — eu estendo a mão e toco seu braço. — Você está bem?
— Perfeita — ela pronuncia a palavra com força, como se ela estivesse
qualquer coisa menos isso.
— Você não parece bem. Quer que eu ligue para o Andy?
— Não, não quero que você ligue para o Andy.
Eu acho que deveria ligar, porque, se fosse comigo, eu gostaria de saber que
minha mulher está por aí chapada até os cabelos. Pego o meu telefone.
Trista olha para mim. — Uma mulher vai desaparecer amanhã. E aí ela vai
morrer.
Quero dizer a ela que talvez não seja essa tragédia, que talvez capturem
aquele psicopata, mas não digo, porque é uma mentira. A polícia não vai nos
descobrir. Eles nem sabem da nossa existência.
— Pois é — eu digo. — Alguém provavelmente vai desaparecer.
— Owen é um canalha — Trista parece vazia, mas não está. Por trás dos
remédios existe uma fagulha nela que se recusa a desaparecer. Um sentimento
de raiva.
— Ei, pare com isso. Você não pode se culpar por esse idiota.
Ela se irrita.
— Você não vai estar sozinha amanhã, vai? — digo isso porque estou
realmente preocupado com ela. O comportamento de Trista é autoviolência
pura.
— Andy vai estar em casa — ela olha a televisão, onde mais um jornal
mostra imagens de quando Owen foi preso há quinze anos. Trista treme. —
Tenho que ir.
— Espere, eu te dou uma carona até em casa.
— Eu não vou para casa.
— Trista.
— Vejo você depois, está bem? Diga a Millicent que eu vou ligar para ela —
e sai caminhando em direção ao vestiário feminino, mas vira para trás. — Não
conte para o Andy, certo?
Eu não contei nada para ele quando vi Trista bêbada, e também não contei
sobre o passado de sua esposa com Owen Oliver. Mais uma omissão não vai
fazer essa traição maior do que já é.
— Não vou, pode deixar.
— Obrigada.
Ela se lança em direção ao vestiário e eu fico olhando para ela, pensando no
que nós fizemos. Trazer Owen de volta afetou mais do que uma simples
investigação policial.
Meu último cliente no dia também toca no assunto. Ele é um homem
simpático com três filhas, e duas delas estão na idade certa para Owen. Todas
ainda moram na região. Mas essas duas filhas são solteiras e moram sozinhas, e
ele está tão preocupado que se ofereceu para mandá-las para outra cidade
durante o fim de semana. Ele não morava aqui quando Owen apareceu pela
primeira vez, mas já ouviu mais do que o suficiente.
Apesar do sorvete à tarde, o jantar continua sendo às seis. Jenna diz que todo
mundo na escola passou a semana inteira falando sobre Owen. Uma das suas
amigas tem uma irmã mais velha que está totalmente convencida de que Owen
irá pegá-la. Rory desdenha dela e diz que isso não vai acontecer, que as duas
são feias demais, mesmo para o padrão de um serial killer. Jenna joga um
pãozinho no irmão, e Millicent manda os dois pararem com aquela bagunça.
Eles, no entanto, continuam a se xingar baixinho de um lado para o outro à
mesa.
— Eu mandei parar.
Millicent não gosta de repetir, e com isso eles param. Por um minuto. Jenna
se contorce quando Rory a chuta por baixo da mesa. Tenho certeza de que
Millicent está vendo, mas ela não diz nada, pois quando termina o jantar ela de
repente anuncia uma noite de cinema. Às vezes quando eles brigam demais, ela
inventa uma atividade para eles passarem mais tempo juntos. É a sua maneira
de garantir que os dois tentem resolver o problema em vez de cada um se
mandar para um canto.
Eles discutem por vinte minutos sobre qual filme vão assistir. Nem Millicent
nem eu interferimos. Na verdade, nós nem prestamos atenção. Estamos na
cozinha, terminando de lavar a louça, quando ela pergunta se eu vou sair de
novo hoje à noite.
— Vou.
— Tem certeza de que é uma boa ideia?
— É tranquilo.
Meu tom de voz sai mais grave do que eu queria. Ouvir sobre Owen o dia
todo não melhorou meu nível de estresse. Encontrar Trista também não foi
muito útil. Algo nela, no que ela está fazendo consigo mesma, me incomoda.
Tudo que acontecer amanhã vai acontecer por minha causa. Eu escrevi a
carta para Josh, eu escolhi a data, eu prometi que outra mulher iria desaparecer.
E fui eu quem trocou Annabelle por Naomi ainda na noite passada. Sou eu
quem precisa garantir que ela sirva.
Um cara ou coroa decide qual será nosso filme esta noite, e é sobre um
golfinho. Rory e Jenna sentam juntos no chão com uma bacia nos braços e até
que não ficam jogando pipoca um no outro. Millicent e eu sentamos no sofá
com nossa própria pipoca. Ela passa mais tempo olhando as crianças do que o
filme, e seus olhos parecem dez tons mais claros. Eles sempre ficam assim
quando ela olha as crianças.
Ela segue calada até o filme terminar e as crianças subirem para a cama, com
o clima entre elas bem mais leve e a conversa girando em torno dos golfinhos.
Eu começo a me levantar quando minha esposa põe a mão no meu joelho e me
aperta.
— Não se atrase, tá? — ela diz.
Ela dá a impressão de que a ideia foi dela, e isso me irrita.
— É verdade — eu digo. — Tenho que sair logo daqui.
— Você tá bem?
Olho para ela, para minha esposa com seus olhos claros tão diferentes dos
olhos de Trista. Tudo em Millicent é o oposto da esposa de Andy.
Eu dou um sorriso, agradecido por não ter casado com Trista.
Vinte e quatro
Eu não pretendia usar um terno, porque falar com Naomi não estava nos meus
planos, mas no último minuto eu vesti o que Millicent mais gosta. É azul-
marinho com um colarinho costurado à mão, e é caro demais. Mas, já que ele
está no meu armário, não custa nada usar.
Quando fico em frente ao espelho e coloco a minha gravata, Millicent
aparece atrás de mim. Ela se encosta na parede, com os braços cruzados, e me
observa. Sei que ela quer me perguntar alguma coisa, porque eu nunca uso esse
terno sem ela. Foi ela quem comprou.
Continuo arrumando a gravata, calço os sapatos, pego a carteira, o celular e
as chaves. Meu telefone descartável não entra em casa.
Quando olho, ela ainda está lá, ainda na mesma posição.
— Acho que já vou — eu digo.
Ela concorda com a cabeça.
Eu espero uma resposta, mas ela fica em silêncio. Passo na frente dela e
desço as escadas. Quando chego na porta da garagem, eu escuto aquela voz
adolescente.
— Pai.
Rory está na porta da cozinha com um copo d’água. Ele estende a outra mão
e esfrega o polegar e o dedo indicador. Quer mais dinheiro.
Não é como se por acaso ele estivesse na cozinha. Ele estava realmente me
esperando.
Eu concordo e saio.
No clube, tenho uma rara aula ao sábado com Kekona, nossa fofoqueira oficial
de Hidden Oaks. Acho que ela marcou nessa data porque quer falar sobre
Owen, sobre o que pode ter acontecido na noite anterior, e nossa aula confirma
minha suspeita. Owen é o único assunto do dia.
— Cinquenta e três mulheres. O jornal disse que cinquenta e três mulheres
foram dadas como desaparecidas entre ontem à noite e hoje de manhã — ela
balança a cabeça. Os longos cabelos negros de Kekona estão enrolados num
coque na altura da nuca.
— Owen não sequestrou cinquenta e três mulheres ontem à noite — eu digo.
— Não, não sequestrou. Pode não ter sequestrado ninguém. Mas cinquenta e
três famílias acham que ele sequestrou.
Eu concordo com a cabeça, absorvendo suas palavras, processando toda essa
dor alheia na minha mente. Eu me sinto distante, como se essa loucura não
tivesse nada a ver comigo.
Vinte e seis
Deixamos que as pessoas descubram por elas mesmas o que aconteceu.
Quando o jornal começa, Millicent pisca para mim. Quando alguém menciona
Owen, lanço um olhar que só ela entende. É uma coisa nossa, a coisa que nos
separa de todos os outros.
A primeira vez que senti isso foi depois de Holly. Senti novamente depois de
Robin e, por fim, depois de Lindsay. Depois de cada mulher, Millicent e eu
temos esse momento no qual somos as únicas pessoas no planeta. A mesma
sensação de quando subimos naquela árvore. E é essa a sensação agora, depois
de Naomi.
Millicent e eu estamos totalmente acordados enquanto todos os outros estão
dormindo.
Pode até parecer que nunca tenho coragem de enfrentar Millicent, mas isso não
é verdade. Não acontece com frequência, mas também não é um fenômeno
inédito. Aconteceu uma vez pelo menos, e eu me lembro muito bem. Não dava
para simplesmente baixar a cabeça naquela disputa.
Rory tinha seis anos, Jenna tinha cinco e Millicent e eu não tínhamos tempo
nem para respirar. Eu acumulava dois empregos. Além de dar aulas de tênis,
trabalhava em uma academia. Millicent tentava vender imóveis. As crianças
estavam matriculadas em duas escolas diferentes — no jardim de infância e na
primeira série — e sempre estávamos levando ou buscando uma delas.
Tínhamos dois carros, mas parecia que um estava sempre no conserto. Mesmo
assim, conseguíamos garantir a comida, um teto e dinheiro suficiente para as
necessidades. Todo o resto era só uma encheção de saco.
Certo dia, a sorte bateu na nossa porta. Uma coisa meio estranha e
inesperada. Havia uma ação coletiva contra um antigo patrão, de um emprego
que eu tive quando ainda estava na escola, deu ganho de causa para nosso
grupo depois de mais de dez anos de litígio. Bom, talvez não fosse tanta gente
assim no processo, ou talvez os advogados fossem melhores do que a média,
mas minha indenização era de dez mil dólares. Eu nunca tinha recebido tanto
dinheiro de uma vez só.
Millicent e eu nos sentamos à mesa da cozinha e ficamos olhando para o
cheque. As crianças estavam na cama, a casa estava em silêncio e, por um
momento, sonhamos com todas as coisas que poderíamos pagar com aquele
dinheiro. Uma semana no Havaí ou um mês nas montanhas. Uma viagem à
Europa. O anel de noivado que Millicent merecia ganhar. Tomamos uma taça
de vinho, e nossos sonhos se tornaram mais ridículos. Roupas de alfaiate. Um
sistema de som na sala. Luxuosas rodas cromadas para nossos dois carros
velhos. Dez mil dólares não era nenhuma fortuna, mas fingíamos que era.
— Agora, sério — ela disse, terminando o que restava do vinho. — A
faculdade das crianças.
— Muito prudente.
— Temos que ser.
Ela tinha razão. A faculdade era cara, e não custava nada economizar.
Exceto pelo fato de que, sim, custava muito. Custava nossa energia e o nosso
futuro, um futuro que poderia tornar tudo mais leve para todo mundo. — Tenho
uma ideia melhor — eu disse.
— Melhor que a educação dos nossos filhos?
— Escuta essa.
Sugeri que usássemos o dinheiro para investir em nós dois. No acumulado
de casamento e dois filhos, nossa situação econômica não tinha melhorado
muito. Nem nossas carreiras. Millicent estava estagnada vendendo
apartamentos em condomínios e casas baratas. Os corretores com mais
experiência pegavam todas as vendas de alto padrão. Minhas aulas de tênis
eram dadas em quadras públicas no parque, e os clientes não eram lá muito
regulares. Eu propus que nós fizéssemos algo para resolver aquele marasmo.
No início, soou como um dos nossos sonhos ridículos. A festa de Natal do
Hidden Oaks Country Club custava dois mil e quinhentos dólares por pessoa.
Mas a festa não era apenas uma celebração qualquer, era um portal para
endinheirados que não conheceríamos em nenhum outro lugar. Uma nova
geração morava em Hidden Oaks. A maioria deles nunca conheceu meus pais e
tampouco a mim. E eles eram as pessoas que podiam pagar por aulas
particulares de tênis e casas caras. Essas pessoas é que pagariam pela educação
dos nossos filhos.
— Que loucura — Millicent disse.
— Você não está me ouvindo.
— Não estou mesmo — ela descartou a minha ideia abanando a mão.
A arrogância dela me fez bater o pé.
Brigamos por uma semana. Ela me chamou de criança, e eu disse que ela
não pensava grande. Ela me chamou de alpinista social e eu disse que ela não
tinha imaginação. Ela parou de falar comigo, e eu dormi no sofá. Mesmo
assim, eu não desisti. Ela desistiu.
Millicent alegou estar cansada daquela briga idiota. Eu acho que ela ficou
curiosa. Acho que ela queria me testar.
Gastamos a metade do dinheiro com os ingressos e então compramos um
vestido e sapatos novos para ela, um smoking e um par de sapatos para mim, e
alugamos um carro de luxo para aquela noite. Millicent também foi no salão e
fez um penteado, as unhas e a maquiagem. Quase não sobrou dinheiro para
pagarmos a babá.
Valeu cada centavo. Seis meses depois, me ofereceram um emprego como o
profissional de tênis do clube. Millicent conheceu seus primeiros clientes ricos
na festa e começou a subir no mundo dos imóveis. Em uma noite, pulamos pelo
menos cinco anos de batalha para chegar ao topo. Foi como automaticamente
passar de fase em um videogame.
Nós não somos ricos, não como nossos clientes, mas naquela noite
chegamos um pouco mais perto.
E até hoje Millicent sabe que foi por minha causa. Porque eu decidi o que
fazer com o dinheiro. Eu faço questão de lembrá-la disso todos os anos quando
nos arrumamos para a festa anual, ainda que, para ser sincero, ela não pareça se
importar muito com essa minha pequena vitória.
Vinte e oito
No começo, foi impressionante ver Rory descobrir uma maneira de me
chantagear. Eu reconheço. Fiquei mais irritado comigo mesmo por ter sido
pego do que com ele por me pegar.
Mas agora ele está começando a encher meu saco.
Estou no quarto dele. Ele está sentado à sua mesa. O computador está ligado,
e Naomi está olhando para mim. Quarenta e oito horas se passaram desde que
ela foi identificada como a única mulher desaparecida na região. Seu rosto está
em todo lugar, no noticiário e nas redes sociais.
— Por que você está olhando esse negócio? — pergunto, gesticulando para o
seu computador.
— Você está mudando de assunto.
Ele tem razão. Estou evitando o fato de que ele acabou de me pedir cem
dólares para ficar de boca fechada sobre a minha suposta amante. Ou minha
transa casual, por assim dizer, porque, né, eu realmente dormi com Petra.
— Até quando você vai fazer isso? — eu pergunto.
— Até quando você vai? Eu vi você sair escondido ainda na semana
passada.
É impossível pensar em Rory como uma criança quando ele fala assim.
Apesar do seu cabelo desarrumado e de suas roupas folgadas, ele não parece ter
quatorze anos. Ele parece uma cópia minha.
— Vou fazer um trato com você — eu digo. — Eu te dou o dinheiro, e nós
dois paramos. Você nunca mais vai me ver sair escondido.
— E se você sair?
— Se eu sair de novo, eu te pago o dobro.
A cara de jogador de pôquer de Rory se desmancha quando as suas
sobrancelhas disparam para o alto. Ele tenta disfarçar a sua surpresa coçando o
queixo, fingindo considerar minha oferta. — Vou ficar de olho — ele diz.
— Eu sei.
Ele se mexe na cadeira, pensa, e então recusa a proposta: — Tenho outra
ideia.
Já estou sacudindo a minha cabeça para ele, irritado. Antes eu estava no
limite e agora passei dele. — Eu não vou te dar mais...
— Eu não quero dinheiro.
— O que é então?
— Da próxima vez que você sair escondido, não quero dinheiro. Não quero
nada — ele diz. — Mas eu vou contar para Jenna.
— Você vai mesmo contar para a sua irmã?
Ele suspira. Não é um suspiro de velho, aquele suspiro cheio de cansaço e
impaciência. É o suspiro de uma criança, do tipo que vem acompanhado de
lábios trêmulos. — Para com isso, pai — ele diz. — Para de trair a minha mãe.
Agora sou eu quem está surpreso. O impacto brutal do que ele falou se
espalha por mim um centímetro de cada vez até eu conseguir enxergar todo o
cenário ao meu redor.
Ele é uma criança. A vida adulta ainda está a anos de distância, e ele não está
nem perto dela. Neste momento, na verdade, ele se parece mais jovem do que
nunca. Parece mais jovem do que na primeira vez em que eu menti para ele,
mais jovem do que na noite da segunda e da terceira mentira. Parece mais
jovem que no dia em que eu o ensinei a segurar uma raquete de tênis e mais
jovem do que no dia em que ele a rejeitou e escolheu o golfe. Rory parece mais
jovem do que ontem. Ele ainda é só um garotinho.
Nunca foi por causa do dinheiro ou dos jogos de videogame ou mesmo pela
adrenalina da chantagem.
Foi por causa do que ele pensa que eu estou fazendo. Ele acha que estou
saindo às escondidas para trair a mãe dele. E ele quer que eu pare.
Quando percebo sua angústia, parece que tomei um tiro de espingarda na
barriga.
Ou pelo menos é como eu imagino que deve ser. É muito mais forte do que
um soco. Nem sei o que dizer ou como dizer.
Eu concordo e estendo a minha mão para ele.
Nós fechamos o negócio.
O trabalho deveria ser uma válvula de escape, mas não é. Todos estão falando
sobre Naomi, sobre Owen, sobre o lugar em que ela pode estar e se algum dia
ela será encontrada. Kekona está no salão do clube. Ela não tem aula, mas está
lá de qualquer jeito, fofocando com um grupo de mulheres no qual todas têm
idade suficiente para ser a mãe de Naomi. Os homens sentados no bar olham
para a tevê, olham para a bonita mulher desaparecida que eles adorariam ter
conhecido. Ninguém fala nada sobre as atividades de Naomi no Lancaster. Ela
se tornou a filha, a irmã, a saudosa vizinha.
É assustador como isso aconteceu tão rápido.
As outras não foram assim, principalmente Holly. Ninguém jamais a
procurou, porque ninguém nunca comunicou o seu desaparecimento.
Millicent e eu tomamos aquela decisão juntos. Nunca discutimos o que fazer
depois da morte de Holly, nunca nem me passou pela cabeça. Eu estava
ocupado demais pensando em um jeito de não ser descoberto para ainda ter que
imaginar o que aconteceria depois. Dias mais tarde, a mãe de Millicent ligou.
Seu Alzheimer ainda não havia alcançado o estágio no qual ela esquecia
quantas filhas tinha. Nunca contamos a ela da liberação de Holly, mas ela sabia
mesmo assim. Ela tinha telefonado para o hospital.
Naquela noite, tivemos a nossa primeira noite romântica. Nunca tínhamos
feito uma antes. Costumávamos fazer piada do termo, até ele se tornar útil.
Quando contei a Millicent que sua mãe havia ligado, a expressão no seu
rosto não mudou. O jantar mal tinha acabado, as crianças assistiam televisão e
nós ainda estávamos na mesa. Hambúrgueres vegetarianos com tomate e queijo
orgânico, batata-doce frita e salada. Eu ainda estava comendo as batatas,
mergulhando os pedacinhos na pseudomaionese condimentada.
— Achei que isso ia acontecer — ela disse.
Eu olhei de relance para trás, para ter certeza de que as crianças não estavam
ali. Naqueles dias, eu me assustava com a minha própria sombra. Não estava
acostumado a infringir a lei, muito menos a matar uma pessoa. Portanto, cada
barulhinho significava que nós seríamos presos. A sensação era de que eu
envelhecia um ano a cada dia.
— Não devíamos falar sobre isso aqui — eu disse.
— Claro. Mais tarde, quando as crianças estiverem dormindo.
Até isso me deixava nervoso.
— Devíamos ir lá fora. Ou na garagem. Podemos ficar sentados no carro ou
algo assim.
— Perfeito.
Nossa primeira noite romântica aconteceu depois que Rory, com onze anos,
e Jenna, com dez, subiram para dormir. Millicent deixou a porta de casa
entreaberta, só para o caso deles precisarem da gente.
Imaginei que contaríamos à mãe dela que não tínhamos visto Holly. Eu
estava errado.
— Não podemos dizer que ela está desaparecida — Millicent disse. — Eles
vão procurar por ela.
— Mas ela não vai encontrar...
— Não, não vai. Mas vai procurar sem parar até não conseguir mais se
lembrar de que está procurando.
— Então vamos mentir para a sua mãe? Falamos para ela que Holly está
aqui e que está tudo bem?
Ela balançou a cabeça para os lados. Millicent encarava o painel do carro,
perdida nos seus pensamentos. Finalmente, ela disse: — Não tem outro jeito.
Eu esperei calado, com medo de parecer idiota outra vez.
Quando Millicent disse que queria fingir que Holly ainda estava viva, eu me
lembro de pensar o quão inviável era essa ideia. Depois de tudo que fizemos, e
depois de termos aparentemente nos livrado de todos os perigos, este seria o
erro que iria nos arruinar. Não tínhamos avaliado essa saída com o cuidado
necessário. Nunca tínhamos sequer discutido o assunto.
— Não vai funcionar — eu disse. — Mais cedo ou mais tarde, sua mãe vai
querer falar com ela, vai querer ver sua irmã. Eles vão vir aqui ou então vão
tentar entrar em contato com ela — eu divaguei, listando todas as razões pelas
quais aquela ideia não iria dar certo. Não podíamos ser as únicas pessoas com
quem Holly fez contato depois de deixar o hospital.
— Eu acho que Holly quer fugir — Millicent disse. — Provavelmente por
minha causa, porque eu lembro a ela do que ela fez e do motivo dela ter sido
internada.
Comecei a entender. — Se fosse eu, e se eu quisesse começar do zero, talvez
eu até saísse do país.
— Eu com certeza sairia do país — ela disse.
— Você mandaria um e-mail para a sua mãe?
— Uma carta. Comprida, para que a minha mãe saiba que eu estou bem, que
eu só preciso de um tempo para resolver tudo.
Ela enviou a carta quase uma semana depois de Holly morrer. Holly contou
para a mãe que ia para a Europa se tratar, que ia em busca do seu novo eu, ia
trilhar seu próprio caminho no mundo, mas que ia manter contato
regularmente. Sua mãe respondeu, dizendo que compreendia. Holly até
mandou uma foto junto. Veio do meu telefone, de quando eu tirei uma foto de
Holly na frente do colégio das crianças. Essa carta fechou seu ciclo de vida
com louvor no dia em que a mãe delas mostrou o envelope para Millicent
durante uma visita.
Quando minha sogra faleceu, ela não se lembrava mais de filha nenhuma.
Trinta
Eu vejo a reportagem primeiro no celular, quando estou no meu carro em frente
a uma cafeteria. Estou entre minha casa e o trabalho, voltando para o clube
após buscar as crianças na escola, e parei para pegar um café. A notificação das
notícias de última hora soa no telefone.
O fim de semana é uma enxurrada de conversas sérias: com a família toda, com
Jenna sozinha, com Rory sozinho, com os dois juntos e apenas com Millicent.
São incontáveis conversas sérias com Millicent. No domingo à noite, nós já
temos um novo conjunto de regras, que basicamente consistem em eliminar as
notícias das nossas vidas. Todos os noticiários estão proibidos, incluindo aí os
jornais impressos. Vamos assistir filmes no streaming e evitar o máximo
possível a programação ao vivo na tevê. Nada de rádio. Mas tudo isso é fácil se
compararmos com o problema chamado internet. As crianças usam a internet
para a escola, para diversão e para comunicação.
Millicent tenta assim mesmo, começando com o bloqueio da senha.
Ninguém vai poder se conectar a não ser que ela também se conecte.
Temos um motim.
— Então eu não posso morar aqui — Rory arrisca todas as suas armas já em
sua declaração inicial.
Jenna concorda com o irmão. É um raro momento de solidariedade.
Eu, no entanto, concordo com as crianças. Millicent propôs uma solução que
é impraticável, insustentável. Absurda.
Mas não digo nada.
Rory olha para mim e depois para a sua mãe, farejando nossa fraqueza. Ele
lista todos os motivos pelos quais o sistema de senha não tem como funcionar,
a começar pela longa jornada de trabalho de Millicent.
Jenna finalmente levanta a voz. — Eu vou piorar em inglês.
É o suficiente.
Inglês tem sido uma disciplina difícil para ela neste ano. Ela tem trabalhado
em dobro para poder ficar entre as melhores da turma, e pensar em Jenna sendo
reprovada faz Millicent mudar de ideia. Ela recua para um conjunto de regras
um pouco mais leves.
Filtros de controle de conteúdo, notebooks na sala de estar, remoção de
todos os aplicativos de notícias dos telefones. É mais psicológico do que
prático, mas todos nós entendemos a proposta. Só não faço ideia se Jenna vai
seguir essas novas regras.
Uma cabeleireira tenta salvar o que sobrou do cabelo de Jenna. Agora que o
cabelo tem um corte mais definido, não parece tão feio — apenas diferente.
Millicent compra vários tipos de chapéus e bonés caso ela queira disfarçar
melhor. Ela põe todos sobre a mesa da sala de jantar, e Jenna experimenta um
de cada vez. No final das contas, ela dá de ombros.
— Legal — ela diz.
— Tem algum favorito? — Millicent pergunta.
Jenna dá de ombros mais uma vez. — Não sei se vou precisar de chapéu.
A postura de Millicent se contrai um pouco. Ela está mais preocupada com o
cabelo de Jenna do que com Jenna. — Ok — ela diz, juntando todos os
chapéus e bonés. — Vou deixar isso aqui no seu quarto.
Antes de dormir, vou falar com Rory. Ele está na cama lendo uma revista em
quadrinhos. Ele esconde o exemplar debaixo do travesseiro, e eu finjo não ver.
— O que foi? — ele diz. Irritação por todos os lados.
Eu sento na sua mesa. Livros, cadernos, carregadores. Um pacote cheio de
salgadinhos e um desenho de uma figura que parece ser metade monstro e
metade herói. — Não é justo, eu sei — eu digo. — Essa história não é culpa
sua, mas você vai ter que conviver com isso do mesmo jeito.
— Tenho que ir para o sacrifício pelo bem do time. Entendi.
— O que você acha? — pergunto.
— Do quê?
— Da sua irmã.
Ele ameaça abrir a boca. Posso perceber naqueles olhos verdes que ele vai
bancar o espertinho.
Mas ele desiste. Hesita. — Não sei — ele diz. — Ela anda meio obcecada
com esse negócio.
— Owen.
— Isso. Tipo, mais obcecada do que o normal. Você sabe como ela fica.
Ele está se referindo à habilidade que Jenna tem de se concentrar totalmente
em um tópico, seja futebol ou fitas ou pôneis. Rory chama essa característica
de obsessão porque com ele é bem diferente.
— Como ela está na escola? — pergunto.
— Tudo tranquilo, até onde eu sei. Ela ainda é popular.
— Você me conta se alguma coisa mudar?
Ele pensa, talvez considerando pedir alguma coisa em troca.
— Conto — ele diz.
— E não seja muito pé no saco com ela.
— Mas é meu trabalho. Eu sou o irmão dela — Rory está sorrindo.
— Eu sei. Só não seja muito bom nisso.
Não faço ideia de quando ela mandou a mensagem. Não chega no telefone
até eu ligar o aparelho, mas ela pode ter enviado há uma semana. Bom, pelo
menos uma semana se passou desde que eu o verifiquei pela última vez.
Eu penso em responder a mensagem, nem que seja para dizer que eu não a
ignorei de propósito.
Meu carro ainda está sendo lavado. Então, vou descendo a barra de rolagem
das mensagens para passar o tempo. Antes da mensagem de Annabelle,
encontro uma mensagem de Lindsay. Aquela que eu ignorei. Ela já tem quinze
meses.
Me diverti muito naquele dia, Tobias. Até mais!
Tobias. Ele nunca deveria ter uma personalidade própria. E não deveria
dormir com ninguém.
Millicent e eu o inventamos juntos. Foi durante uma rara noite gelada na
Flórida, quando a temperatura chegou perto de zero grau. Entre uma xícara de
chocolate quente e uma porção de sorvete, Tobias nasceu.
— Você não pode mudar demais a sua aparência — ela me disse. — Quer
dizer, você vai precisar de uma peruca ou de uma barba postiça.
— Eu não vou usar peruca.
— Então vai precisar de alguma outra coisa.
Foi ideia minha fingir ser um homem surdo. Poucos dias antes, eu tinha dado
aula para um adolescente surdo e usamos celulares para nos comunicar. Aquilo
me marcou, e veio daí a sugestão.
— Brilhante — Millicent disse. Ela me beijou bem do jeito que eu gosto.
Depois, discutimos o meu nome. Tinha que ser um nome memorável, mas
não podia ser um nome estranho. No final, sobraram dois na lista: Tobias e
Quentin. Eu queria o último por causa do apelido. Quint era melhor do que
Toby.
Debatemos as vantagens e as desvantagens dos dois nomes. Millicent até
pesquisou as origens de ambos.
— Tobias vem do nome hebraico Tobiah — ela disse, lendo da internet. —
Quentin vem do nome romano Quintus.
Eu encolhi os ombros. Nenhuma origem me significava coisa alguma.
Millicent continuou: — Quentin vem da palavra “quinto” em latim. Tobias é
um nome bíblico.
— O que ele fez na Bíblia?
— Espera aí — Millicent clicou, desceu a barra de rolagem e disse: — Ele
matou um demônio para salvar Sara e aí se casou com ela.
— Quero ser Tobias — eu disse.
— Tem certeza?
— Quem não quer ser o herói?
Naquela noite, Tobias nasceu.
Mas poucas pessoas conheceram Tobias. Somente um ou outro barman e
algumas poucas mulheres. Nem mesmo Millicent o conheceu. Tobias é quase o
meu alter ego. Ele tem até os seus próprios segredos.
Eu não respondo à mensagem de Annabelle me convidando para beber.
Desligo o celular e o coloco de volta no porta-malas.
Trinta e quatro
Natal, seis anos atrás. Rory tinha oito anos, Jenna tinha sete, e ambos
começaram a me perguntar por que eles conheciam apenas um avô e uma avó.
Eu não costumava falar sobre meus pais, nunca disse nada sobre quem eles
eram ou como morreram. Mas as perguntas dos meus filhos me fizeram pensar
no que eu poderia dizer. No que eu deveria dizer.
Uma noite, desci até a cozinha, esperando que depois de fazer um lanche o
meu estômago me deixasse sonolento o bastante para superar aquela insônia.
Comi o resto de um feijão direto da panela. Frio, mas bem melhor do que eu
imaginava. Eu ainda estava comendo quando Millicent entrou na cozinha. Ela
pegou uma colher e se sentou ao meu lado.
— O que aconteceu? — ela perguntou. Millicent deu uma grande colherada
na panela e me olhou, esperando. Eu nunca acordava no meio da noite para
comer. Ela sabia disso.
— As crianças estão perguntando sobre os meus pais.
Millicent ergueu as sobrancelhas, sem dizer nada.
— Se eu mentir e falar para eles que os avós eram maravilhosos, eles vão me
odiar se ficarem sabendo da verdade, certo?
— Provavelmente.
— Mas pode ser que eles me odeiem de qualquer jeito.
— Por um tempo — ela disse. — Acho que toda criança passa por essa fase
em que a culpa é sempre dos pais.
— Quanto tempo essa fase dura?
Ela encolheu os ombros. — Uns vinte anos?
— Eu espero que até lá as coisas já tenham se acalmado.
Eu sorri. Ela sorriu.
Eu poderia dizer para as crianças que meus pais abusaram de mim.
Mentalmente. Fisicamente. Até sexualmente. Poderia dizer que eles batiam em
mim, que me amarravam, que me queimavam com cigarros e que me faziam
subir as piores ladeiras a pé para ir e voltar da escola. Mas eles não fizeram
nada disso. Cresci em uma boa casa num ótimo bairro, e ninguém nunca tocou
em mim de um jeito inapropriado. Meus pais eram pessoas refinadas e
discretas, que poderiam recitar todas as regras de etiqueta até durante o sono.
Eles também eram pessoas terrivelmente frias, que não deveriam ter tido um
filho. Deveriam ter tido inteligência suficiente para saber que um bebê não
pode consertar a vida de ninguém.
A gota d’água veio quando eu estava no exterior. Quando contei a eles que
queria trancar a faculdade e viajar, eles até me deram algum dinheiro. Comprei
uma passagem e um mochilão, e aproveitei para encher a cara. Andy e mais
dois amigos decidiram me acompanhar. Fizemos, então, um planejamento
meia-boca e marcamos uma data. Não contei para eles, nem para ninguém, que
eu estava apavorado.
Algumas horas antes do voo, eu ainda estava arrumando as malas, ainda
tentava decidir quais camisetas eu levaria, ou se precisava levar um casaco de
inverno. Entusiasmado, claro. Estava louco para cair fora de Hidden Oaks.
Louco para fugir do meu quarto de criança, onde as paredes eram pintadas para
dar a impressão de que eu estava no céu, cercado de estrelas. Estava cansado de
apenas sonhar com o mundo lá fora, e queria ver com meus próprios olhos.
Só que eu também não fazia a menor ideia do que iria acontecer. Fracassei
no tênis, e fracassei em entrar em uma boa faculdade. Um tenista mediano,
com notas medianas. O que aconteceria se eu também fosse mediano na
estrada? Nem ideia. Mas eu acreditava que seria melhor do que seguir com
aquele sentimento de que eu não deveria ter nascido.
Minha esperança era que eu não precisasse voltar, não queria nunca mais ver
aquelas paredes pintadas em azul-celeste de novo.
Meus pais nem me levaram ao aeroporto. Chamaram um táxi, porque eu
fiquei constrangido demais para pedir uma carona para os pais de meus
amigos. Era uma manhã de quarta-feira, meu voo era cedo e o dia começava a
amanhecer. Minha mãe com sua xícara de café, meu pai já vestido: a família
toda reunida no corredor, sobre o piso reluzente, cercada por espelhos. O vaso
no centro da mesa estava repleto de crisântemos laranjas. O sol nascente bateu
no lustre de cristal por cima das nossas cabeças, jogando um arco-íris nas
escadas.
O táxi buzinou. Minha mãe me beijou na bochecha. Meu pai apertou minha
mão.
— Pai, eu quero...
— Boa sorte — ele disse.
Não consegui lembrar o que eu iria dizer, então peguei meu rumo. Foi a
última vez que eu vi meus pais.
No fim, não menti para as crianças. Disse que seus avós morreram num
acidente de carro bizarro muitos anos atrás.
Não contei tudo para elas, mas cheguei perto. Isso foi por causa de Millicent.
Nós decidimos juntos o quanto iríamos falar. Para tornar o mais oficial
possível, convocamos uma reunião de família. Rory e Jenna eram realmente
novinhos. Talvez não fosse muito justo com eles, mas continuamos com o
protocolo.
Nós nos sentamos na sala de estar. Jenna estava com seu pijama amarelo
com estampas de balões. Ela adorava balões, e Rory adorava estourá-los. Os
cabelos escuros de Jenna estavam cortados na altura do queixo, e ela tinha uma
franja na testa. Seus olhos castanhos espiavam por baixo dos fios.
Rory usava uma camiseta azul e calça de moletom. Quando ele fez sete anos,
se declarou velho demais para usar pijama. Millicent e eu decidimos que havia
coisas mais importantes para nos preocuparmos, e ela parou de comprá-los.
Foi difícil olhar para seus rostinhos confiantes e contar para eles que às
vezes é melhor as pessoas não terem filhos.
— Nem todo mundo deveria ser pai ou mãe — eu disse. — Assim como
nem todo mundo é uma boa pessoa.
Jenna foi a primeira a falar. — Eu já sei que não é para conversar com
estranhos.
— Nem todo mundo na nossa família é uma boa pessoa. Ou foi uma boa
pessoa.
Rostos contorcidos. Confusão.
Eu falei por dez minutos. Somente o tempo necessário para dizer aos meus
filhos que seus avós não eram os melhores pais do mundo.
A ironia do nosso gesto só foi me impactar anos mais tarde, depois de Holly
e de todas as outras. Um dia, Rory e Jenna podem ter uma conversa com seus
filhos e talvez eles digam a mesma coisa sobre Millicent e eu.
Trinta e cinco
Eu imaginava que o exame de DNA do cabelo de Naomi levaria mais do que
uma semana para ficar pronto. Talvez por ser tão rápido nos filmes, imaginei
que esse prazo devia ser falso. Que um exame de DNA de verdade demoraria
meses. E aparentemente demora, mas não os exames preliminares. E não
quando a polícia está tentando encontrar uma mulher que ainda pode estar viva.
Os exames indicaram com noventa e nove por cento de certeza que aquele
cabelo pertencia a Naomi.
Kekona é quem me dá essa informação. Nossa tradicional aula de tênis se
torna uma aula de ciência forense, pois o novo passatempo dela são aquelas
reportagens e documentários sobre crimes reais. Mulheres desaparecidas e/ou
mortas são comuns nesses programas.
— Sempre jovens, lindas e basicamente inocentes — ela diz, enumerando as
características das vítimas uma a uma. Ela está com um copo de café, e acho
que não é o primeiro. — Embora eventualmente tenha algum caso sobre uma
prostituta, como se fosse uma advertência.
— E depois? — eu pergunto.
— Como assim?
— Digo, depois que essa mulher jovem, linda e basicamente inocente
desaparece, o que acontece?
Kekona põe as mãos para o alto, como se tentasse acalmar uma plateia
barulhenta. — Opção um: o namorado, porque é ciumento e possessivo. Ou o
ex-namorado, porque é ciumento e possessivo.
— Isso tudo é uma opção só?
— Sim, é uma opção só. Preste atenção. Opção dois: um estranho, ou muito
provavelmente um estranho. Essa é a opção do
psicopata/predador/sociopata/doente mental/serial killer. A pessoa que é pelo
menos uma dessas coisas, ou talvez mais do que uma.
Kekona não está me contando nenhuma novidade. Eu também assisto
televisão. Mas não nos últimos dias, porque o noticiário ainda está proibido
dentro de casa. Senti falta da reportagem de Josh sobre os resultados do exame
de DNA, e faço uma anotação mental para me lembrar de pesquisar na internet.
— Os finais possíveis? — Kekona fala isso como se eu tivesse perguntado,
mas eu não perguntei. — Morte. Estupro e morte. Tortura e estupro e morte.
Não tenho muito o que falar depois dessa sentença.
— Às vezes uma consegue escapar — ela diz.
— Mas não acontece com frequência.
Kekona balança a cabeça negativamente. — Nem na ficção.
Voltamos a jogar tênis. De repente, tenho outra pergunta para ela. — Por que
você acha que isso é tão popular? A história da mulher desaparecida?
— Porque quem resiste a uma donzela em apuros?
Mais tarde, Millicent e eu estamos no nosso quarto. Ela está organizando suas
coisas, caminhando de um lado para o outro entre o quarto e o closet, jogando
alguns papéis fora e separando o material necessário para o dia seguinte. Ela
deixa tudo pronto antes de dormir para que as manhãs sejam mais tranquilas.
Ritmo frenético não é com ela. Nem se atrasar.
Eu apenas observo. Seus cabelos ruivos estão soltos, desarrumados, e ela
fica ajeitando para trás com uma das mãos. Ela está vestindo ceroulas, daquelas
bem folgadas, antigas, e umas meias listradas. Suas roupas de dormir são os
itens menos atraentes de seu armário, e eu já comentei com ela como essas
roupas são cafonas. Mas não digo nada hoje à noite. Em vez disso, atravesso o
corredor para conferir como Jenna está.
Ela está dormindo, aninhada entre os lençóis laranjas debaixo do edredom
branco. Seu rosto está relaxado, em paz. Ela não está com medo.
De volta ao nosso quarto, Millicent acabou de deitar na cama, e vou para o
seu lado. Ela olha para mim e acho que ela vai mencionar a conversa na
garagem. No entanto, ela apaga a luz, como se nossa noite romântica tivesse
sido irrelevante.
Eu espero até sua respiração diminuir, e então me levanto para ver
novamente como Jenna está.
Nesta segunda vez, não faço questão de voltar para a cama. Ao longo da
noite, eu monitoro Jenna mais três vezes. Nos intervalos, assisto televisão. Por
volta das duas da manhã, pego no sono assistindo um filme antigo. Quando
acordo, vejo o rosto de Owen. Um documentário sobre ele está passando na
tevê.
Vários desses programas foram produzidos com diferentes graus de
detalhamento sobre os crimes de Owen. Eu consegui evitá-los, da mesma
forma que evitei ler sobre o que Owen fez com suas vítimas. Desta vez, no
entanto, eu não consigo, porque acordo exatamente na hora errada. Assim que
vejo o rosto de Owen na tela, o programa muda de cena. A imagem seguinte é
o quarto onde ele mantinha suas vítimas.
Era um vídeo preparado para o julgamento de Owen, que nunca aconteceu.
Já tem quinze anos e foi filmado com uma câmera de mão que treme demais.
Owen revirou do avesso uma área de descanso abandonada na beira da estrada,
derrubando a parede entre os banheiros masculino e feminino. Os azulejos
podem ter sido brancos um dia, mas agora estavam com um tom marrom
acinzentado. Uma privada sobreviveu, junto com uma pia, um colchão e uma
mesa. Canos subiam e desciam pelas paredes esburacadas; começavam nas
profundezas do chão e atravessavam o teto, saindo pelo outro lado e retornando
ao piso de cimento. Eram do tamanho perfeito para você apoiar umas algemas.
Um par continuava preso a um dos canos, inclusive.
O vídeo balança de repente e a imagem se aproxima do piso. O sangue não
era visível num enquadramento mais aberto. Agora, vejo poças de sangue em
um dos lados, alguns pingos do outro. As manchas avermelhadas estão por toda
parte, como se alguém tivesse sacudido um pincel com tinta vermelha no chão.
A câmera se movimenta pelo piso, chegando a um canto do quarto. Uma
quantidade maior de sangue mancha a parede. É uma mancha na parte de
baixo, a centímetros do chão, como se a pessoa que tivesse sangrado estivesse
agachada.
O enquadramento muda novamente, indo em direção ao colchão. Imagino
Naomi deitada ali.
Eu mudo de canal.
Trinta e seis
Só fico sabendo de Trista dois dias mais tarde. Millicent é quem me conta.
É sábado de manhã. Rory está lá em cima, e Jenna vai dormir na casa de
uma amiga. Assim que eles saem de cena, eu me jogo no sofá e coloco os pés
sobre a mesa. Isso não é permitido — nem para mim, nem para as crianças —,
mas, quando Millicent se senta perto de mim, ela não fala nada.
O silêncio dela me faz tirar os pés sem que ela peça. Pois é, é estranho assim
mesmo. — O que aconteceu? — eu pergunto.
Ela põe a mão sobre a minha, e agora estou preocupado. Até mesmo em
pânico. — Millicent, diga...
— É a Trista — ela diz.
— Trista?
— A irmã dela me ligou mais cedo. Andy está muito abalado e não quer
falar com ninguém.
— A irmã dela? Mas por que ela ia...
— Ela se suicidou.
Eu balanço a cabeça como se meus ouvidos não estivessem funcionando.
Como se ela não tivesse acabado de dizer que Trista se matou.
— Eu nem sei o que falar — Millicent diz.
Percebo que não é uma brincadeira e isso me deixa sem ar.
— Não estou entendendo.
— Pelo que ela falou, ninguém entende. Principalmente Andy.
— Como é que foi?
— Ela se enforcou no cano do chuveiro.
— Meu Deus.
— Eu sabia que eles tinham problemas, mas não fazia ideia que ela estava
tão infeliz.
Millicent não imagina qual é o verdadeiro motivo porque eu nunca contei a
ela sobre Trista, nunca mencionei o namoro dela com Owen. E que ela ainda o
amava.
O jantar parece cavar um buraco no meu estômago. Corro até o banheiro
para vomitar. Millicent fica na porta, perguntando se estou bem. Digo que sim,
mesmo quando começo a ofegar.
— Comi demais — eu digo a ela.
Ela se abaixa e toca a minha testa. Não está quente. Eu me sento no chão
contra a parede e faço um sinal com a mão, dizendo a ela que estou bem.
Ela sai. Eu fecho meus olhos e a ouço na cozinha, mexendo na geladeira.
Está caçando a comida que me fez passar mal.
Quero dizer a ela que a culpa é nossa. Temos uma filha que levou uma faca
para a escola e que cortou todo o cabelo. Agora uma mulher está morta. Não
Naomi, uma outra mulher.
Por causa de Owen. Por minha causa. Eu escrevi aquelas cartas para Josh.
Millicent volta para o banheiro com uma garrafinha de remédio para o
estômago.
Eu bebo tudo e passo mal de novo.
Este é o fim da declaração, ou pelo menos é a única parte que foi lida no
jornal. As palavras desaparecem da tela, e Josh retorna. Ele está em pé no
estacionamento atrás daquele bar na Mercer Road. Eu tinha uns vinte anos na
última vez que eu fui nesse bar. Naquele tempo, eles eram conhecidos por não
pedir identidade.
Josh parece sério. Triste. Ele está melhorando, porque já não fica mais tão
arrebatado diante de uma tragédia. Ele chama a tal mulher de vítima anônima.
— Com licença.
Uma senhora mais velha passa por mim. Eu ainda estou parado em pé na
loja de conveniência, bem ao lado da máquina de refrigerante, olhando para a
televisão. A única pessoa assistindo, além de mim, é o cara do caixa. Não é
Jessica desta vez, a caixa com quem eu normalmente converso. Este cara tem
uma cabeça toda lisa, que brilha sob as luzes fluorescentes.
Ele olha para mim e balança a cabeça, como quem diz “Que coisa horrível,
não é? Que absurdo, não é?”.
Eu concordo em silêncio ao comprar o meu habitual café e um pacote de
batatinhas sabor churrasco.
É assim que a vida com Millicent sempre foi. A vida segue do jeito que deveria
ser, um passeio geralmente tranquilo com um solavanco ou outro lá no meio do
caminho. E então de repente o chão se abre e estamos olhando para um abismo
grande o bastante para engolir o mundo inteiro. Às vezes o que está lá embaixo
é bom, às vezes é até ótimo. Outras vezes é um pouco mais complicado.
Isso aconteceu quando ela me disse que Holly estava viva. Aconteceu
quando ela bateu na cabeça de Robin com a máquina de waffles. E de novo
quando ela ressuscitou Owen.
Esses são os eventos gigantescos, onde o abismo se torna maior do que a
própria terra. Nem todos os nossos abismos foram tão grandes assim. Às vezes
o abismo só é grande o bastante para me engolir, como na vez em que ela foi
embora com as crianças e desapareceu por oito dias depois de me ver voltando
para casa bêbado.
E temos ainda as rachaduras. Quando o chão se abre, surgem fissuras.
Algumas são maiores do que outras, como Jenna colocando uma faca embaixo
do colchão. Ou o suicídio de Trista. Todas têm tamanhos diferentes — curtas,
compridas, uma variedade de larguras —, mas se derivam do mesmo abismo.
A primeira rachadura se abriu no dia do nosso casamento.
Millicent e eu nos casamos na casa dos pais dela, em um campo cercado de
coentro, alecrim e orégano. Ela usou um vestido branco de renda que ia até
seus tornozelos e na cabeça tinha uma grinalda feita em casa, enfeitada com
narcisos e lavanda. Eu usei uma calça cáqui enrolada até os calcanhares e uma
camisa social branca para fora da calça, e nós dois estávamos descalços. Foi
perfeito, até não ser mais.
Oito pessoas foram ao nosso casamento. Os três amigos com quem viajei
para o exterior estavam lá, incluindo Andy. Trista não estava. Eles já estavam
namorando, mas ainda não estavam casados, e Andy não se sentia preparado
para dar ideias a ela. Abby e Stan, os pais de Millicent, estavam lá, e também
uma amiga de colégio de Millicent. Os dois últimos eram vizinhos nossos.
A cerimônia foi apenas isso: um ato, um ritual. Nem eu nem Millicent
éramos religiosos, nós íamos nos casar no civil na segunda-feira seguinte, na
prefeitura de Woodview. Poucos dias antes da data marcada, nós fingimos nos
casar, com o pai de Millicent assumindo o papel de padre. Stan parecia muito
sério e oficial com uma camisa xadrez abotoada até o pescoço e seus ralos
cabelos grisalhos penteados com gel. Ele ficou em frente ao seu jardim com um
livro nas mãos. Não era a Bíblia, era apenas um livro normal, e ele quase disse
as palavras certas.
— Senhoras e senhores, esse rapaz quer se casar com a minha filha hoje, e
eu acho que ele precisa provar o seu valor — Stan fingiu me olhar atravessado.
— Então vamos ouvir o que ele tem a dizer.
Eu tinha escrito e reescrito meus votos uma dezena de vezes, sabendo que eu
precisaria falar aquelas palavras em voz alta. As outras pessoas não me
incomodavam nem um pouco. Eu estava nervoso era de ler para Millicent.
Respirei fundo.
— Millicent, não posso lhe prometer o mundo. Não posso prometer que vou
comprar uma mansão, um carro de luxo ou um anel de diamante gigante para
você. Não posso nem prometer que sempre teremos comida na mesa.
Ela ficou me olhando, sem piscar. Sob o sol intenso, seus olhos pareciam
cristais.
— Espero poder te dar todas essas coisas, mas não faço ideia se isso será
possível. Não sei o que estará no nosso futuro, mas sei que vamos estar juntos.
É o que eu posso lhe prometer sem hesitar, sem medo algum de estar mentindo.
Sempre vou estar aqui para você, com você, perto de você — dei um pequeno
sorriso, porque vi uma lágrima no seu olho. — E espero que a gente tenha o
que comer.
Oito pessoas riram. Millicent apenas acenou com a cabeça.
— Muito bem — Stan disse, virando-se para a filha. — Acho que agora é
sua vez. Nos convença que este é o homem certo para você.
Millicent ergueu a mão e tocou meu rosto. Ela se inclinou, pôs os lábios bem
ao lado do meu ouvido e sussurrou: — É melhor você se preparar.
Quarenta e um
No jantar, ninguém menciona o noticiário ou a tal vítima anônima. Ela está
entre nós, mas não reconhecemos sua presença. Então falamos sobre uma
celebridade que foi internada em uma clínica de reabilitação. De novo.
Falamos sobre um jogo de futebol americano que eu não acompanhei.
Falamos sobre qual filme vamos assistir na noite de cinema. Rory quer ver
uma comédia de universitários e Jenna prefere uma comédia romântica.
A única notícia cotidiana que discutimos é um tiroteio em um shopping num
estado próximo.
— Muito louco — Rory diz.
Jenna aponta para ele com o garfo. — É você quem gosta de jogo de tiro no
videogame.
— A palavra-chave é “videogame”.
— Mas você gosta.
— Cala a boca.
— Cala a boca você.
— Acabou essa conversa — Millicent diz.
Silêncio.
Quando o jantar termina, os dois sobem e se retiram para seus quartos.
Millicent e eu olhamos um para o outro. Ela aponta para mim, pronunciando
as palavras com a boca em silêncio: — Foi você?
Ela está perguntando se eu fui a pessoa que atacou a vítima anônima. Eu
balanço a cabeça e aponto para a garagem.
Depois de lavar a louça e colocar as crianças para dormir, saímos e nos
sentamos dentro do carro. Millicent traz o que sobrou dos doces de Halloween,
e dividimos uma garrafa de água com gás. Ela está usando uma brilhosa blusa
azul com mangas curtas. Acho que é nova, porque naquele dia mais cedo eu vi
que ela parou o carro no shopping.
— Você não teve nada a ver com essa mulher? — ela pergunta.
— Absolutamente nada. Eu não faria uma coisa dessas sem contar para você
— pelo menos eu acho que não faria.
— Tomara.
— E não faria nada que fosse deixar Jenna mais assustada.
Millicent concorda: — Eu não precisava perguntar.
— Talvez seja mentira dessa mulher — eu digo.
— É possível. Ou talvez ela tenha sido atacada por um cara qualquer e achou
que fosse Owen. Nós não sabemos o que ela viu.
— Existe uma terceira opção — eu digo.
— Existe?
Eu abro um chocolate, quebro a barra em dois pedaços e dou metade para
ela. — E se ele voltou de verdade?
— Owen?
— Claro. E se tiver sido ele?
— Não foi.
— Como você sabe que não foi?
— Porque seria burrice. Por que é que ele ia voltar logo quando está todo
mundo atrás dele?
— Bem pensado.
A parada de Millicent na Joe’s Deli não é um fato isolado. Ela vai novamente
no dia seguinte, na hora do almoço, e fica quarenta minutos antes de sair para
mostrar uma casa. Nenhuma das outras paradas é fora do seu roteiro habitual.
Ela até procura por duas escolas de artes marciais para Jenna e me fala sobre
elas depois do jantar, quando estamos sozinhos no quarto.
— Uma das escolas ensina taekwondo competitivo. Eles têm torneios e
equipes, e competem por medalhas. Mas tem outra no Centro, de krav maga. É
um pouco mais cara, mas é mais voltada para defesa pessoal.
— Ela podia experimentar as duas, vamos deixá-la escolher qual ela gosta
mais.
Millicent se aproxima e me beija no nariz.
— Você é tão esperto.
Eu reviro os olhos. Ela dá uma risadinha.
Ela não menciona a padaria ou a loira corpulenta com seu grande sorriso.
Tento descobrir uma maneira de falar sobre o que ela comeu no almoço sem
necessariamente perguntar, do nada, “o que você comeu no almoço hoje?”.
Mas não sou tão esperto quanto Millicent diz porque, quando começo a
tagarelar sobre como o meu almoço estava bom, ela não morde a isca. Apenas
concorda com gestos e sorri enquanto se apronta para a cama, agindo como se
tivesse interesse no meu longo monólogo sobre um almoço fictício. Vamos
dormir sem falar nada sobre a Joe’s Deli.
No meio da noite, eu me levanto e desço até a biblioteca. Chamamos de
biblioteca porque enchemos essa saleta de estantes, livros e uma grande mesa
de mogno, mas só entramos ali para ligações telefônicas mais delicadas.
Também comecei a usar a sala para navegar na internet com alguma
privacidade.
A Joe’s Deli abriu há vinte e dois anos. O negócio teve dois donos, sem
nenhuma relação de parentesco um com o outro, e a padaria sempre funcionou
no mesmo prédio. Um edifício alugado, não comprado. Eles nunca tiveram
nenhum problema a não ser um processo de um homem que escorregou e caiu
e alegou que o chão estava molhado. Essa ação foi resolvida com um acordo
extrajudicial. Fora isso, nenhum outro crime, denúncia ou séria violação das
regras da vigilância sanitária. A Joe’s Deli é exatamente o que se parece: uma
padaria genérica. O fato de ser tão normal faz a coisa toda parecer suspeita.
Millicent não tinha motivo nenhum para ir lá uma vez, muito menos duas.
Os mapas de satélite da área mostram um prédio localizado no que
costumava ser uma via muito mais movimentada. Atravessando a rua, há uma
pequena revenda de automóveis. Ao lado dela, uma loja de material hidráulico
e, mais à frente, uma oficina mecânica.
Se ela tivesse parado lá apenas uma vez, poderia ter sido algo aleatório. Um
lugar fora de mão que alguém indicou e ela resolveu experimentar, mas que ela
logo percebeu não fazer o seu tipo. E eu até estaria disposto a acreditar que ela
parou na Joe’s porque estava com sede e aquele era o único lugar aberto, ainda
que ficasse a quilômetros da sua área de trabalho. Eu acreditaria em
praticamente qualquer motivo isolado que justificasse aquela primeira parada
na Joe’s. Se ela não tivesse voltado lá dois dias depois.
Ela tem algum outro motivo para ir à padaria. No início, achei que fosse
Naomi — talvez ela estivesse escondida naquela região —, mas Millicent não
parou em nenhum outro lugar por perto. Não há prédios abandonados ou
empresas fechadas naquela área, nenhum lugar para onde ela pudesse ir a pé do
estacionamento da Joe’s.
Não faz nenhum sentido. A não ser que ela tenha passado a gostar de
sanduíches vagabundos e sem ingredientes orgânicos.
E eu sei que não foi isso que aconteceu.
Quarenta e três
Depois de Holly, nunca me ocorreu que teríamos outra. Até Robin aparecer na
porta da nossa casa ameaçando arruinar tudo se a gente não pagasse um bom
dinheiro para ela.
Depois de Robin, nunca me ocorreu que teríamos mais uma. Até eu querer
fazer de novo.
A ideia esteve circulando por um tempo, primeiro na festa de ano-novo,
quando Millicent e eu falamos sobre outras mulheres. A conversa continuou ao
longo dos meses seguintes, a ponto de procurarmos possíveis vítimas na
internet. A atividade se tornou o nosso melhor afrodisíaco.
Discutíamos sobre como iríamos matar todas aquelas mulheres e como nós
iríamos escapar sem correr risco nenhum, e aquelas noites sempre acabavam
com um sexo incrível. Sexo selvagem. Em qualquer lugar que conseguíssemos
fazer, desde que as crianças não estivessem por perto. Quando elas estavam em
casa, a gente se esforçava para não fazer barulho.
Era quase como subir uma escada. A gente brincava com o assunto e
fantasiava sobre, depois escolhia o alvo e vinha a fase do planejamento. Cada
vez que a gente subia um degrau, a gente pisava de leve no próximo. E então
um de nós sugeriu fazer de verdade. Fui eu.
Falei quando nós estávamos na cozinha. Era perto do meio-dia, e estávamos
pelados em cima dos azulejos frios. Tínhamos acabado de encontrar Lindsay na
internet. Nós dois concordamos que ela era perfeita.
— A gente deveria fazer de novo — eu disse.
Millicent riu. — Mas acabamos de fazer.
— Não isso. Bom, sim, isso também, mas não foi o que eu quis dizer.
— Você quis dizer que a gente deveria matar Lindsay.
Eu hesitei. — Acho que sim. É, eu quis dizer exatamente isso.
Millicent olhou para mim com um misto de surpresa e alguma coisa a mais.
Na hora, eu não consegui decifrar. Agora, acho que foi interesse. Ou
curiosidade. Mas não era aversão. — Eu me casei com um psicopata? — ela
disse.
Eu ri. Ela também.
A decisão estava tomada.
Millicent nunca me jogou aquela conversa na cara, nunca disse que foi
minha ideia. Nunca disse que foi minha culpa. Mas eu sei que foi. Se não fosse
por mim, não haveria Lindsay, Naomi, e Owen não estaria de volta. Nossa filha
ainda teria cabelos compridos e sedosos e não teria uma faca escondida
debaixo do colchão.
Ou talvez tenha sido Millicent. Talvez ela tenha me manipulado o tempo
todo.
Já não sei mais.
Mas, alguns dias mais tarde, eu fui novamente lembrado da nossa decisão. E
das consequências indesejadas do que nós fizemos.
A escola de artes marciais deixou Jenna assistir uma aula de iniciantes para
ver se ela gostava. Primeiro, fomos ao taekwondo. Meia hora depois, Jenna fez
que não com a cabeça e saímos. Ela não quer participar de competições nem
ganhar medalhas ou troféus. Jenna só quer se defender de Owen.
Na tarde seguinte, levei minha filha ao krav maga. Ao contrário do
taekwondo, a escola de krav maga não exige uniformes ou faixas, e Jenna
gostou muito mais disso do que do quimono branco que todos no taekwondo
eram obrigados a usar. Jenna preferiu usar sua calça de moletom e uma
camiseta.
Nunca imaginei que ela machucaria seu parceiro de treino, muito menos que
ela iria nocauteá-lo.
Tudo aconteceu tão rápido que ninguém viu. Nem mesmo eu, e olha que eu
estava bem próximo assistindo Jenna de uma fileira de cadeiras reservadas aos
pais. Em determinado momento, ambos estavam de pé e o garoto mostrava
para ela como desferir corretamente um golpe. Na sequência ele já estava caído
no chão, gritando de dor.
Algumas gotas de sangue pingaram no tatame, e todo mundo se apavorou.
— Mas o quê...
— Como é que...
— Aquilo ali é uma pedra?
Uma mãe de macacão turquesa apontou para Jenna.
— Foi ela. Ela bateu nele com uma pedra.
Um pandemônio tomou conta do lugar, com muito mais gritos e acusações
graves.
Demorou algumas horas para resolver, em parte porque a mãe do garoto
chegou e começou a gritar, perguntando por que ninguém tinha chamado uma
ambulância ainda. Isso fez com que alguém chamasse. E chamasse também a
polícia.
Dois policiais fardados chegaram e perguntaram o que é que estava
acontecendo. A mãe do garoto apontou para Jenna e disse: — Ela bateu no meu
filho.
Como era de se esperar, os policiais ficaram confusos, pois estávamos em
uma escola de krav maga, onde as pessoas batem umas nas outras com
frequência. Eles também acharam um pouco engraçado um garoto apanhar de
uma menina. O senhorzinho que era dono da escola não achou nem um pouco
engraçado.
No fim, o menino estava bem. O sangue saiu de um pequeno corte na boca e
na verdade foram apenas alguns pingos. Ninguém foi para o hospital e
ninguém foi preso, mas Jenna e eu não éramos mais bem-vindos na escola de
krav maga.
No decorrer da tarde, a mãe do garoto prometeu mais de uma vez nos
processar. E ainda por cima fui obrigado a cancelar várias aulas de tênis,
irritando pelo menos um de meus clientes.
Assim que ficamos sozinhos no carro, eu perguntei: — Tá, por quê?
Jenna ficou olhando pela janela.
— Você deve ter tido algum motivo — eu disse.
Ela encolheu os ombros. — Não sei. Talvez para ver se eu conseguia.
— Se conseguia bater nele com uma pedra?
— Se eu conseguia derrubar ele.
Não apontei o óbvio. Ela não o derrubou. Tudo o que ela fez foi cortar o
lábio dele.
— Você vai contar para a mãe? — Jenna perguntou.
— Vou.
— Sério?
Na verdade, eu não sabia se iria contar ou não. Naquele momento, eu não
conseguia nem olhar para a minha filha.
Ela nunca me lembrou Millicent. Quando Rory nasceu, ele já tinha pequenos
tufos de cabelo ruivo. Jenna, por outro lado, nasceu careca. Quando o cabelo
dela finalmente começou a crescer, era da mesma cor que o meu: castanho-
escuro sem qualquer traço de vermelho. Seus olhos também eram iguais aos
meus.
Fiquei realmente decepcionado.
Não era nada pessoal. Não era nada que Jenna tivesse feito ou deixado de
fazer. Eu só queria uma garotinha ruiva para combinar com o meu garoto e a
minha mulher de cabelos cor de fogo. Era a imagem na minha cabeça, a
imagem que eu tinha quando fantasiava o que seria minha família. A
verdadeira Jenna não se encaixava, porque se parecia com a minha mãe e não
com a dela.
A primeira vez que ela me lembrou Millicent foi quando ela atingiu aquele
garoto com uma pedra. Ela parecia exatamente como Millicent quando acertou
Robin na nossa cozinha.
O que eu achei sexy na minha esposa foi aterrorizante na minha filha.
Quarenta e quatro
É fim de noite. Millicent e eu estamos no seu escritório. Ela trabalha na
imobiliária Abbott, um pequeno lago onde ela tem sido um peixe grande há
anos. O escritório fica em uma galeria de lojas, ensanduichado entre uma
academia e um restaurante chinês. Dentro, é vazio e silencioso, pois ninguém
procura imóveis a essa hora. O ponto negativo é a fachada de vidro, o que
significa que qualquer um pode ver o interior do lugar. A disposição espaçosa
das mesas também não oferece muita proteção, por isso deixamos as luzes
apagadas e nos sentamos bem no fundo do escritório. Se as circunstâncias
fossem diferentes, poderia ser até romântico.
Millicent já sabe sobre Jenna. Uma amiga contou para ela antes que eu
pudesse falar qualquer coisa, e isso a deixou furiosa. Ela ligou e berrou alto a
ponto de fazer meu tímpano vibrar, gritando que eu deveria ter ligado quando
ainda estávamos lá na escola de artes marciais. Ela tem razão.
Agora Jenna está segura em casa, dormindo na sua cama, sem jogar pedras
em ninguém. Sem vomitar. Sem cortar o que sobrou do seu cabelo. Millicent
está mais calma. Ela até trouxe um doce, uma solitária bombinha de chocolate.
Ela corta a bomba em dois pedaços, e as metades são exatamente iguais. Dou
uma mordida na minha e ela dá uma mordida na dela, e eu limpo o chocolate
do seu lábio superior.
— Ela não está bem — Millicent diz.
— Não está.
— Precisamos falar com o médico dela. Eu posso ligar...
— Ela é parecida com Holly? — pergunto.
Millicent larga o doce como se ele estivesse prestes a explodir.
— Com Holly?
— Talvez seja a mesma coisa. A mesma doença.
— Não é.
— Mas...
— Não é. Holly começou a torturar insetos quando tinha dois anos de idade.
Jenna não é nem um pouco parecida com ela.
De acordo com essa comparação, ela está certa. Jenna grita sempre que vê
um inseto. Não consegue nem matar uma aranha, muito menos torturar. —
Então a culpa é nossa — eu digo. — Nós temos que nos livrar de Owen.
— Estamos tentando.
— Acho que essa caçada por Naomi precisa acabar — eu digo. — Devíamos
deixar que ela seja encontrada.
— Como isso vai ajudar...
— Porque vamos poder nos livrar de Owen de uma vez por todas — quando
Millicent ameaça responder o óbvio, eu levanto a minha mão. — Eu sei, eu sei.
É difícil se livrar de alguém que nem está aqui, não é isso?
— Bom, é uma maneira de dizer.
— Ele foi uma grande ideia, não vou negar. Mas nós já causamos problemas
demais.
— Problemas demais?
— Jenna. As pessoas nessa cidade. As mulheres todas estão com muito
medo — tomo cuidado para omitir o que ela não sabe, como Trista.
Millicent concorda com a cabeça. — Nunca quis fazer mal a Jenna.
— Eu sei que não — eu me inclino na minha cadeira, mais próximo de
Millicent agora, para que ela não deixe escapar o que eu estou dizendo. —
Seria difícil, talvez impossível, fingir a morte dele sem um corpo. Falando
sério, a única maneira seria se ele se afogasse no mar ou em um lago e nunca
mais fosse encontrado. Mas aí a dúvida ia continuar para sempre. E para que
fosse mais ou menos plausível nós íamos precisar de alguém para contar essa
história.
— Alguém como Naomi — Millicent diz.
— E quais são as chances de deixar Naomi fazer isso?
— São negativas.
— Então talvez Owen não morra. Talvez ele só vá embora — eu hesito aqui,
esperando uma reação. Quando ela não diz nada, eu continuo falando. — Owen
tem um ego tão grande que escreveu uma carta para um repórter para que todo
mundo soubesse que ele tinha voltado, e ele disse até a data em que ele ia
sequestrar uma nova vítima. Então por que ele não contaria para todo mundo
que ele vai embora? Ele é o tipo de pessoa que certamente iria se vangloriar.
Ele ia dizer: “Falei pra vocês exatamente o que eu ia fazer e quando é que eu ia
fazer e, mesmo assim, vocês não conseguiram me pegar. Agora vocês nunca
mais vão me achar”.
Millicent acena com a cabeça discretamente, como se estivesse considerando
minha ideia.
— Eu sei que não é ideal — eu digo. — Mas, se Owen for embora, todo
mundo vai parar de falar nele e talvez Jenna não fique mais assustada.
— Só se for tudo sincronizado — ela diz. — Eles precisam encontrar Naomi
antes de você mandar outra carta.
— Sim, realmente, sem dúvida.
— Vou cuidar disso primeiro.
— Talvez a gente devesse fazer isso juntos.
Ela olha para mim, com a cabeça inclinada para o lado. Por um momento,
penso que ela vai sorrir, mas não é o que acontece. É um assunto sério demais
agora. Já ultrapassamos a fase de usar essas conversinhas como preliminares.
— Eu cuido de Naomi — ela diz. — Você pode se concentrar na carta. Você
tem que fazer todo mundo acreditar que Owen foi mesmo embora.
Quero discutir e seguir com a minha ideia, mas, em vez disso, eu concordo.
A ideia dela faz mais sentido.
Ela dá um leve suspiro. — Espero que dê certo.
— Eu também.
Estendo o braço e deslizo a minha mão sobre a dela. Ficamos sentados assim
até ela pegar o que sobrou da minha bomba de chocolate para dar uma
mordida. Eu pego a dela e faço o mesmo. Um pequeno sorriso aparece no seu
rosto. Eu aperto sua mão.
— Nós vamos ficar bem — eu digo.
Millicent já me disse essa mesma frase antes. Disse quando nós éramos
jovens e precisávamos nos dividir em vários com um bebê no berço e outro a
caminho. Ela disse quando compramos nossa primeira casa e depois quando
compramos nossa segunda, que era uma casa bem maior.
Ela também me disse essa frase depois de Holly, quando o corpo de sua irmã
estava tombado na nossa sala de estar, com a cabeça arrebentada por uma
raquete de tênis.
Mais um dia se passa, depois mais outro, e Josh volta a anunciar a contagem de
dias desde o sumiço de Naomi. Eu o assisto no meu celular o tempo inteiro,
aguardando pelo grande plantão de notícias que vai revelar o corpo da nossa
recepcionista. Mesmo quando acordo no meio da noite, sinto uma vontade de
checar o movimento dos portais. Na internet, as notícias aparecem a qualquer
momento. Normalmente, isso não é um problema. Mas, agora que estou
esperando novidades, é bastante revoltante. E inconveniente.
Eu desço as escadas e saio para o quintal, onde olho meu telefone. As
notícias são as mesmas de quando fui para a cama. Nada de urgente, nada
acontecendo, é como uma reprise entediante.
Mas não estou cansado. Às duas da manhã, o ar está tranquilo, assim como
nossa vizinhança. Ninguém em Hidden Oaks faz festas até tarde da madrugada,
ninguém toca música alta por aí. Não vejo sequer uma luz acesa em nossas
quase mansões.
Queria poder dizer que essa é a casa dos nossos sonhos, que nós a olhamos
uma vez e soubemos que era o lugar onde queríamos morar, o lugar que
trabalhamos tanto para conquistar. Mas não seria verdade. Nossa casa dos
sonhos fica em uma área mais restrita de Hidden Oaks, onde as casas se tornam
verdadeiras mansões. Um círculo reservado para investidores e cirurgiões.
Nós moramos no círculo do meio, mas apenas por causa de um divórcio
complicado, que levou a um congelamento de bens e uma execução de
hipoteca pelo banco. Como Millicent negociou uma série de contratos com
aquela gerência, conseguimos comprar uma casa que normalmente não
teríamos os recursos para comprar. É por isso que moramos nesta área de
Hidden Oaks. Deveríamos estar no círculo externo, mas, novamente, dei um
jeito de me acomodar bem no meio.
Então o som de arbustos se mexendo me faz dar um pulo. É uma noite
completamente sem vento.
O barulho vem do lado de casa. Se tivéssemos um cachorro, eu ia supor que
o culpado era ele, mas não temos nenhum animal. É difícil até encontrar
veados nessa região.
O barulho soa outra vez, seguido de um estalo.
Com o celular na mão, eu saio para investigar. Nossa varanda dos fundos
tem mais ou menos a metade do comprimento da casa, da cozinha até o canto.
No escuro, eu ando até o parapeito do outro lado. O caminho ao redor da casa
está parcialmente iluminado por um poste de luz da rua, e não vejo ninguém
ali. Nenhum animal, nenhum ladrão, nenhum serial killer.
Um leve ruído de um pé raspando na parede vem do nosso segundo andar.
Olho para o alto bem a tempo de ver Rory entrando às escondidas pela sua
janela.
Eu sequer tinha percebido que ele não estava em casa.
Quarenta e seis
Festas, drogas, garotas. Ou simplesmente porque ele estava a fim.
Esses são os motivos para Rory sair de casa escondido. São os mesmos de
todos os outros adolescentes. A primeira vez que eu saí escondido foi para
fumar maconha. Depois, saí escondido porque deu certo da primeira vez. E em
algum momento começou a ser por causa de Lily. Meus pais nunca ficaram
sabendo. Ou, o mais provável, nunca se importaram.
E, ainda assim, mesmo quando Rory viu que eu saía escondido de casa,
nunca me passou pela cabeça que ele poderia estar fazendo a mesma coisa.
Este é meu nível de distração nos últimos tempos.
Em vez de enfrentar Rory no momento do flagra, espero pelo dia seguinte.
Quero investigar se deixei algo passar, algo que eu deveria saber antes de ter
essa conversa com ele.
O seu quarto está uma bagunça, como sempre, com exceção da mesa. É
quase obsessivo-compulsivo, embora não oficialmente, porque ele não é
metódico com mais nada. Ele não se importa se suas roupas ficam pelo chão ou
se seus livros estão empilhados, mas a sua mesa está sempre em ordem. Talvez
porque ele nunca usa.
Normalmente, eu nunca vasculharia o seu quarto. Nunca fiz isso antes. Mas
também nunca o vi sair escondido antes. Meu filho tem segredos, e, no meu
manual, essa é a hora de uma investigação.
Rory está na escola. Ele levou o celular, e não tem permissão para manter
um computador no seu quarto. Minha busca então acontece no mundo
analógico. A mesa de cabeceira vem primeiro, depois sua escrivaninha, o
armário e o banheiro. Olho até debaixo da cama, debaixo do guarda-roupa e no
fundo da sua gaveta de meias.
A busca é uma decepção só.
Não encontro pornografia, porque ele olha na internet. Não encontro nenhum
recadinho amoroso, porque os adolescentes agora namoram por mensagens de
texto. Não encontro fotos, porque estão todas no seu telefone. Nada de drogas
ou bebidas alcoólicas, porque, se ele está consumindo, não é estúpido de
esconder no seu quarto. O que deve ser um bom começo, suponho eu. Sinal de
que meu filho não é idiota.
Eu não conto para Millicent, porque ela tem muito o que fazer ainda.
Ela não sabe dessa saidinha. Se soubesse, Rory já estaria de castigo para o
resto da vida. Mas ela não sabe porque à noite ela não escuta nada. Millicent
dorme como uma pedra. Eu nem sei se o alarme de incêndio seria capaz de
acordá-la.
É quase hora do almoço quando termino aquela investigação inútil, e aí vou
para a escola. O secretário manda uma mensagem para o professor de Rory,
que o manda para a secretaria. Embora meus filhos estudem em uma escola
particular, o colégio não exige uniformes. Há um manual de etiqueta, no
entanto, e todo dia Rory usa calça cáqui e uma camisa abotoada. Hoje a camisa
é branca. Sua mochila está pendurada num ombro só e o seu cabelo ruivo
precisa de um corte. Assim que me vê, ele ajeita a franja na testa.
— Tudo certo? — ele pergunta.
— Tudo ótimo. Só achei que poderíamos passar a tarde juntos.
Ele ergue as sobrancelhas, mas não discute. Por enquanto, estar comigo é
melhor do que estar nas aulas da tarde.
O almoço é no restaurante preferido de Rory, onde ele pede o bife que
Millicent nunca faz para ele. Ele não questiona nada até a garçonete trazer um
refrigerante, que também não compramos em casa. Ele sabe que tenho alguma
coisa para contar. Assim, não é nenhuma surpresa quando ele pergunta: —
Qual é a novidade, pai? — Mas é um choque quando ele segue com: — Você e
a mãe vão se divorciar?
— Divórcio? Mas por que diabos você me pergunta logo uma coisa dessas?
Ele encolhe os ombros.
— Porque isso é o tipo de coisa que você faria se precisasse me contar um
problema mais pesado.
— Você acha mesmo?
— Acho — ele diz como se todo mundo já soubesse.
— Tá, mas sua mãe e eu não vamos nos divorciar.
— Tá bom, então.
— É verdade, a gente não vai.
— Já ouvi.
Dou um gole no meu chá gelado, e ele faz o mesmo com seu refrigerante.
Ele não fala mais nada, o que me obriga a começar.
— Como estão as coisas?
— Tudo certo, pai. Como estão as coisas com você?
— Tudo ótimo. Tem alguma novidade?
Rory hesita. A nossa comida chega, o que dá mais tempo para ele pensar no
que estou perguntando de fato.
Quando a garçonete sai, ele sacode levemente a cabeça.
— Na verdade, não.
— Na verdade, não?
— Pai?
— Hmmm? — dou uma mordida no meu bife.
— Diga logo por que estamos aqui.
— Eu só quero saber das coisas novas e interessantes que estão acontecendo
na sua vida — eu digo. — Porque deve ser novo e interessante para você sair
de casa bem no meio da madrugada.
As mãos de Rory ficam paralisadas ao cortar o bife. Quase posso enxergar as
opções de resposta disparando pelo seu cérebro.
— Foi só uma vez — ele diz.
Eu não digo nada.
Rory suspira e larga os talheres. — Daniel e eu saímos. A gente queria ver se
ia se safar.
— E ele se safou?
— Até onde eu sei, sim.
— E o que vocês dois fizeram?
— Na verdade, nada. Fomos no campo, jogamos bola. Andamos por aí.
Plausível. Aos quatorze anos, não estar em casa à meia-noite por si só já é
emocionante. Mas não acho que foi a primeira vez que ele entrou no seu quarto
pela janela.
Ele não sai escondido na noite seguinte. Não é exatamente uma surpresa, agora
que ele foi flagrado. Mas não estou prestando atenção apenas durante a noite,
estou prestando atenção a todos os detalhes que foram ignorados antes.
À noite, eu observo enquanto ele digita no celular, quando seu telefone vibra
e ele olha para ver quem é. Na noite de cinema, eu observo enquanto ele
mantém o celular escondido, checando de tempos em tempos. Uma hora, o
celular toca, mas o som não é rock nem barulho de videogame. É uma música
que eu não reconheço, a voz de uma mulher rouca, que canta como se estivesse
na beira de um precipício.
Quando busco as crianças na escola, chego lá cedo o suficiente para ter uma
vista frontal das portas. É quando vejo a garota que está obviamente deixando o
meu filho louco.
Ela é uma loira baixinha de lábios rosados, pele clara e cabelos que caem na
altura do queixo. Ela joga o penteado para trás enquanto eles conversam e
muda o apoio de um pé para o outro. A garota está tão nervosa quanto ele.
Há quanto tempo, eu me pergunto. Há quanto tempo ele tem essa namorada,
ou quase namorada. Se eu não tivesse descoberto sua fuga na noite passada, eu
nunca saberia. Talvez eu seguisse a minha vida sem saber dessa loirinha por
quem meu filho está apaixonado.
Será que houve outras garotas — loiras ou morenas ou ruivas — que
deixaram meu filho tão louco quanto essa? Será que deixei passar a primeira, a
segunda e a terceira? A essa altura, não tenho como saber. Ele não me contaria
se eu perguntasse. Ele sequer me contou sobre a atual.
E eu não percebi, não fazia ideia, até me esforçar. Do contrário, esse
romance de Rory teria passado batido bem na minha frente.
Eu me pergunto se é o que aconteceu com meus pais. Eles nunca se
esforçaram, e eu passei batido bem na frente deles.
Quarenta e sete
Durante o jantar, todos os nossos telefones estão perfilados no balcão atrás de
Millicent. Estamos comendo risoto de cogumelos, com alho-poró e cenouras de
acompanhamento, quando meu telefone toca alto como uma buzina.
Notificação de notícia importante.
Millicent estende a mão para trás e põe o telefone no silencioso.
— Desculpa — eu digo. — É um aplicativo de esportes.
Ela me olha atravessado. Os celulares devem ficar no silencioso durante o
jantar.
A notificação teoricamente pode ser sobre qualquer assunto, mas eu sei que
não é. O meu aplicativo de notícias tem um filtro para os nomes de Naomi e
Owen e para as palavras corpo encontrado. A tecnologia é uma coisa incrível.
Também é uma coisa terrível, porque agora eu preciso engolir a ansiedade
durante o jantar inteiro até poder ler a notícia. O jantar seria muito mais
tranquilo se o aplicativo não tivesse apitado.
Quando finalmente terminamos, eu apanho o meu telefone no balcão
enquanto as crianças saem da mesa.
Não vejo o resto da reportagem antes da louça ser lavada e das crianças se
sentarem para assistir tevê. Com tudo no seu devido lugar, eu subo, entro no
banheiro e assisto o noticiário.
É perfeito.
O corpo de Naomi foi encontrado dentro de uma lixeira atrás do Lancaster.
Ela foi vista pela última vez naquele mesmo estacionamento, não muito
distante da tal lixeira, depois de sair do trabalho na sexta-feira 13. A última
imagem de Naomi foi gravada por uma câmera de segurança enquanto ela
atravessava o estacionamento em direção ao seu carro. As câmeras apenas
registraram parte do lugar. Tanto o carro de Naomi como a lixeira estavam em
pontos cegos.
Josh está no outro lado da rua, em frente ao hotel, bem onde eu costumava
estacionar e observar Naomi. Ele parece turbinado pela cafeína, ou pela
adrenalina, ou por ambos, e é bom vê-lo desse jeito outra vez. As vítimas
anônimas, em especial a segunda, pareciam deprimir meu jovem repórter.
Agora ele está acelerado, cheio de insinuações e especulações, já que as
autoridades divulgaram muito pouca coisa. A única informação confirmada até
o momento é que uma mulher morta muito parecida com Naomi foi encontrada
em uma lixeira quando o contêiner foi esvaziado pela companhia de limpeza
urbana. Chamaram a polícia, toda a área foi isolada e uma coletiva de imprensa
pode ou não acontecer hoje à noite, embora Josh acredite que vá acontecer.
O passado de Naomi, no entanto, é a grande ausência da reportagem. Agora
que ela está morta em vez de desaparecida, falar mal dela seria no mínimo
perverso.
No fim, Josh ainda encontra tempo para nos lembrar de que não temos
notícias de Owen Oliver Riley faz algumas semanas.
Eu dou um sorriso.
A carta está endereçada para a emissora de tevê, e está marcada como Aos
cuidados de Josh — Confidencial. Quando ela chegar, imagino que a expressão
no seu rosto será orgástica, mesmo que ele não fique muito contente em saber
que esta será a última carta de Owen. As cartas tornaram Josh um astro, pelo
menos no âmbito local, e há até um boato de que ele foi sondado por um canal
de tevê a cabo. Ele vai se dar bem em um trabalho mais desafiador. Josh é tão
sério e determinado que me vejo pressionado a torcer por ele.
Meu jovem repórter é um dos poucos que terá uma vida melhor por causa de
Owen.
Trista não terá.
A pobre e falecida Trista nunca será reconhecida como uma vítima. E ela foi,
mesmo que tenha tirado a própria vida. Eu me sinto mal de verdade por ela,
principalmente porque ela se sentia tão arrasada por causa das outras. É difícil
não gostar de alguém com tanta empatia.
O melhor que posso fazer agora é evitar que isso aconteça de novo.
Eu desço as escadas e entro na sala, onde as crianças estão discutindo o que
é que vão assistir agora. Millicent ameaça mandá-las ler um livro no quarto se
elas não chegarem a um acordo, e de repente a sala fica em silêncio. A música
de abertura de uma novela adolescente começa a tocar. É o programa preferido
de Jenna, e por algum milagre divino Rory consegue não dar um gemido.
Desconfio que seja por causa da loirinha. Ela deve assistir os mesmos
programas que Jenna.
Millicent gesticula para mim, e nós caminhamos pela cozinha em direção à
sala de jantar formal que usamos apenas para datas comemorativas e jantares
com os amigos.
— Eles acharam? — ela sussurra.
O meu rosto me denuncia. — Acharam. Estão esperando a confirmação
oficial.
— Agora você...
— Vou pôr no correio amanhã.
— Perfeito.
Eu dou um sorriso. Ela me beija na ponta do nariz.
Voltamos para a sala de estar e nos juntamos às crianças, mas, como estamos
assistindo a programação normal do canal, é impossível evitar Naomi. O
telejornal é anunciado durante um intervalo e é tão rápido que não temos nem
tempo para mudar de canal.
O telefone de Rory se ilumina. Ele pega e começa a digitar.
Jenna não reage. Ela olha para a televisão como se ainda assistisse o seu
programa, e não as notícias de uma mulher morta.
— Quem quer sorvete? — Millicent pergunta.
Rory ergue o dedo. — Eu.
— Jenna?
— Quero.
— Uma bola?
— Três.
— Claro, querida — eu digo, me levantando do sofá.
Millicent ergue a sobrancelha para mim e me segue até a cozinha. Eu pego
quatro taças, e todo mundo ganha três bolas. Ela começa a falar alguma coisa, e
eu a interrompo.
— Não vamos discutir sobre o açúcar hoje. Vai ficar pior antes de melhorar
— e é verdade. Naomi estará no noticiário todas as noites, e eles vão abordar
cada detalhe de como ela foi encontrada e de como ela foi morta. Vai ficar pior
quando Josh receber a minha carta, porque aí os jornais vão passar horas
debatendo se Owen foi embora mesmo ou se está apenas esperando para
baixarmos a guarda outra vez.
No fim, o burburinho vai desaparecer. Alguma outra coisa vai ocupar o seu
lugar, e Owen irá embora para sempre.
Mas, até lá, três bolas de sorvete.
Voltamos à sala de estar e a novela adolescente terminou. Rory muda de
canal e assistimos o final de um programa para podermos esperar pelo
próximo. E de repente surge um plantão de notícias. Antes que Millicent
consiga pegar o controle, Josh está dentro da nossa casa. Ele repete a mesma
informação que ouvimos em outro canal.
Quando ele termina de falar sobre a descoberta do corpo, Rory se vira para a
irmã. — Você acha que ela foi torturada?
— Acho.
— Mais ou menos torturada que a última?
— Ei — eu digo. Porque não sei mais o que dizer.
— Mais — Jenna responde.
— Quer apostar?
Ela dá de ombros. Os dois combinam a aposta.
Millicent se levanta e sai da sala.
Eu levo minha taça para a cozinha. A bateria do meu celular está quase no
fim, e eu reviro nossa gaveta de bugigangas em busca de um carregador. Estão
sempre jogados por ali, mas nunca quando eu preciso, e não encontro nenhum
na gaveta. Em seguida, tento procurar na despensa, pois coisas estranhas às
vezes aparecem por lá. Quando Jenna era mais nova, eu costumava achar os
seus bichinhos de pelúcia entre os pacotes de biscoitos, como se protegessem a
comida. Agora, acho aparelhos eletrônicos.
Quer dizer, hoje não acho nenhum carregador. Mas na prateleira mais baixa,
atrás das latas de sopa, encontro um pequeno frasco de colírio.
Do tipo que Millicent é alérgica.
Quarenta e oito
Quando vejo o colírio, penso em Rory. Se Millicent usou o remédio para
disfarçar o fato de estar chapada, então com certeza outros adolescentes já
tentaram essa mesma ideia. Talvez seja isso que ele esteja fazendo quando sai
escondido à noite. Talvez ele e a namoradinha estejam fumando maconha.
Bom, podia ser pior. Muito pior.
A despensa não é um local óbvio para guardar colírios, mas eu imagino que
ele simplesmente jogou o frasco ali. Talvez ele tenha chegado chapado em casa
e escondido de última hora. Ou talvez ele tenha achado que ninguém fosse
olhar na prateleira de baixo, muito menos atrás das latas de sopa.
Ou não, poderia ser Jenna. Talvez seja ela quem esteja fumando.
Não, não faz sentido. Jenna não prejudicaria os seus pulmões. Ela dá muita
importância ao futebol e não seria tão irresponsável.
Eu levo o frasco comigo. A caminho do clube, me pergunto o que causaria
vermelhidão nos olhos além de fumaça, poeira ou sei lá que substância.
Alergias e cansaço talvez, mas nenhuma das duas opções precisa de disfarce.
Talvez ressacas. Talvez uma droga nova da qual eu nunca ouvi falar.
Quando Kekona chega para a aula, estou sentado em um banco olhando fixo
para o frasco de colírio.
Kekona está tão entusiasmada com as fofocas que vem dando pulinhos como
se tivesse seis anos de idade em vez de sessenta. Assim que entra na quadra,
ela começa a falar, porque precisa desembuchar tudo antes da sua viagem.
Todo ano Kekona volta para o Havaí e fica um mês por lá, e a data já está
chegando. Ela lamenta tudo o que vai perder, agora que o corpo de Naomi foi
encontrado.
— Estrangulada — ela diz. — Igual às outras.
— Eu soube.
— E a tortura. Todos aqueles cortes de papel.
Meu coração dispara. — Cortes de papel?
— A polícia disse que ela estava cheia de cortes de papel. Tinha cortes até
nas pálpebras — ela treme como se estivesse com frio.
Cortes de papel.
Eu fecho os olhos, tentando não imaginar Millicent fazendo isso. Tentando
apagar a ideia dela ter transformado nossa brincadeira pessoal em algo tão
doentio.
São apenas onze horas da manhã. Mais cedo, as autoridades disseram que as
digitais do cadáver haviam sido raspadas, mas que a polícia tinha o registro da
arcada dentária de Naomi. Era ela mesma.
— A polícia disse isso dos cortes? — eu pergunto.
— Não oficialmente. São fontes anônimas — Kekona diz. — Mas, se você
quer saber, o estranho é o tempo — ela hesita.
Então eu pergunto: — Estranho por quê?
— Bom, a última mulher ficou um ano presa. Mas Naomi? Um mês e meio.
— Talvez Owen tenha se cansado de ficar esperando a polícia correr atrás
dele.
Kekona sorri para mim. — Você está meio atrevido hoje, hein?
Eu dou de ombros e mostro uma bola de tênis para ela, indicando que está na
hora de jogar, já que é para isso que ela me paga. Kekona faz um aquecimento
rápido e balança a raquete para os lados.
— Se fosse um filme, essa diferença de tempo não seria descartada tão
rápido — ela diz.
Ela está certa, mas pelos motivos errados. — Não é você quem diz que a
vida não é um filme de terror?
Kekona não responde.
— Pode sacar — eu digo.
Ela dá dois saques. Eu não devolvo, porque ela ainda não quer dar voleios.
Ela quer conseguir um ace.
— Também disseram que ela foi queimada — Kekona diz.
— Queimada?
— Foi o que eles disseram. Tinha queimaduras por todo o corpo, como se
tivesse sido escaldada.
Eu estremeço com a possibilidade dela ter sido escaldada acidentalmente.
No entanto, sei que Millicent fez isso de propósito.
— Eu sei, isso também me deixa revoltada — Kekona diz. Ela saca
novamente e para. — Hoje de manhã disseram que pode ser que ele esteja
tentando recriar os seus antigos crimes. Ele queimou uma das suas vítimas,
uma tal de Bianca ou Brianna, não sei. Alguma coisa assim. Mostraram uma
foto dela hoje de manhã e ela é muito parecida com Naomi.
Eu perdi a festa inteira. Não poder assistir o jornal em casa pode ser um
problema. — Que estranho — eu digo. — Pode sacar.
Ela saca, e eu conto mais nove saques antes dela interromper o jogo de novo.
Mas desta vez ela não quer falar sobre Owen.
Ela fala sobre Jenna.
— Me contaram da sua filha — ela diz.
Não me surpreende que Kekona tenha ouvido falar do incidente na escola de
krav maga. Era exatamente sobre esse tipo de coisa que costumávamos fofocar.
Apenas não envolvia a minha família.
— Pois é — eu digo, tentando pensar em como vou me explicar, que
justificativa vou dar para a minha filha ter acertado um garoto com uma pedra.
Ela teve um dia ruim, foi mal na prova, esqueceu de tomar o seu remédio?
Péssimas desculpas. Todas parecem dizer que a minha filha não tem
autocontrole nenhum.
Kekona se aproxima e toca no meu braço. — Não se preocupe — ela diz. —
Sua filha vai ser casca grossa.
Eu dou uma risada. E espero que ela esteja certa. Prefiro que Jenna seja
casca grossa do que as outras opções disponíveis no mercado.
Quando a aula de Kekona termina, eu posso enfim ler as notícias. Ela tem
razão quanto à semelhança das vítimas. Bianca e Naomi são mesmo parecidas.
As duas tinham cabelos escuros e aquela aparência genérica de alguém que
pode ser sua vizinha. Bianca também foi escaldada, só que não com água.
Foi com azeite.
Essa semelhança faz a mídia tratar Lindsay com mais atenção, e agora
recuperaram uma vítima mais antiga que também tinha cabelo loiro e liso.
Acho que eles estão forçando a barra. A mídia precisa de assunto para
comentar e, sem nenhuma informação concreta, inventaram umas conexões
inexistentes. Até porque, se Millicent quisesse recriar um crime específico, os
detalhes não seriam apenas parecidos. Eles seriam exatos.
Essa notícia me incomoda um pouco. No caminho para o trabalho, enviei a
carta para Josh. Era realmente cedo e o estacionamento do correio estava vazio,
então ninguém viu as luvas cirúrgicas nas minhas mãos quando depositei a
carta na caixa. Mas, se eu tivesse visto as notícias antes, teria mudado a carta.
Eu diria a Josh que a mídia está bastante equivocada e que eles estão, como de
costume, inventando história. As vítimas antigas não estão sendo recriadas,
então parem de falar sobre as diversas formas de torturas que elas sofreram.
Minha filha não precisa ouvir essas porcarias.
Mas eu não vi as notícias, não ouvi falar em Bianca e agora é tarde demais.
No salão do clube, Josh aparece em múltiplos televisores, com uma
aparência às vezes exausta, às vezes eufórica. Ele segue em frente ao Lancaster
Hotel. A luz do dia quase faz o prédio parecer brega.
— Ainda que seja do nosso conhecimento que Naomi George foi de fato a
mulher encontrada em uma lixeira atrás deste hotel, nenhuma das outras
informações recebidas até o momento foi confirmada. No entanto, as nossas
fontes nos informaram que Naomi George morreu apenas um dia antes de ser
encontrada.
Os dados do GPS de Millicent não mostram nada de incomum naquele dia.
Ela sequer foi à Joe’s Deli. Ela passou na escola para deixar as crianças, no
escritório, em diversas casas à venda, no supermercado e em um posto de
gasolina. Não encontro nenhuma indicação de onde Naomi estava escondida. A
menos que tenha sido em uma das casas abertas à visitação, o que parece
improvável, considerando que as pessoas entram e saem dessas residências o
dia inteiro.
Não que importe neste momento, porque Naomi já foi encontrada. E amanhã
Josh receberá a minha carta.
Ele não vai esperar para ler a mensagem no ar. Da última vez, eu imaginava
que a polícia iria pelo menos passar mais tempo examinando o material, mas a
notícia veio a público quase que de imediato. Eles devem seguir o mesmo
protocolo agora. Esta carta é exatamente igual à anterior, elas têm o mesmo
cheiro e até o papel vem do mesmo pacote. Ninguém vai duvidar que ela veio
da mesma pessoa que escreveu as outras. Se eu fosse um jogador, apostaria que
essa carta vai ocupar todo o noticiário antes mesmo de Millicent e eu
chegarmos em casa do trabalho.
Mas eu não sou um jogador. Em trinta e nove anos de idade, eu me tornei um
estrategista. Talvez até um estrategista competente.
Quarenta e nove
Difícil dizer se ganhei ou perdi minha aposta imaginária. É uma questão de
detalhes, ou neste caso, uma questão de horas.
Minha expectativa era que Josh entraria ao vivo com a carta logo antes do
telejornal da noite, assim ela estaria em todos os canais quando as pessoas
estivessem jantando. Mas ela chega várias horas mais cedo, enquanto Jenna e
eu estamos no consultório do Dr. Bege. Ele acha que ela precisa de terapia mais
vezes na semana. Eu acho que ela precisa de outro médico. Desde que Jenna
começou a se consultar com ele, ela foi de cortar os cabelos a ficar mal do
estômago e acertar alguém com uma pedra.
Millicent e eu dividimos as consultas agora. Nenhum dos dois pode sair do
trabalho três vezes por semana, que é o que o Dr. Bege recomenda depois do
incidente no krav maga. Hoje é minha vez na sala de espera, onde as minhas
opções de entretenimento são histórias terapêuticas em quadrinhos, revistas
educativas ou televisão. Eu sou a única pessoa do lugar, com exceção de uma
recepcionista de rosto severo e com uma peruca preta, que me ignora. Eu
coloco em um programa de perguntas e respostas e participo do jogo
mentalmente.
A notícia surge mais ou menos dez minutos depois de Jenna entrar no
consultório. Josh aparece na tela e, após uma breve introdução, começa a ler a
carta de Owen em voz alta.
A recepcionista olha para a tela.
Enquanto Josh lê as palavras que eu escrevi, um arrepio percorre as minhas
costas. Quando ele chega ao fim, no derradeiro adeus de Owen, tenho que me
segurar para não rir. Owen realmente parece um cretino arrogante nessa carta.
Adeus.
Finalmente.
Josh relê a carta mais duas vezes antes de Jenna sair do consultório do Dr.
Bege. Ela parece entediada.
O doutor está atrás dela. Ele parece satisfeito.
— Troca — ela diz. É a minha vez de entrar no consultório, para que o Dr.
Bege possa me empurrar goela abaixo uma tigela da sua imbecilidade cor de
aveia.
Hoje, eu me recuso. — Desculpe, mas nós estamos sem tempo. Eu poderia
ligar para o senhor mais tarde?
O doutor não parece muito feliz comigo.
Eu não me importo.
— Podemos combinar assim — ele diz. — Se eu não puder atender a
ligação, deixe um...
— Ótimo. Muito obrigado.
Eu estendo minha mão e ele leva um segundo para apertá-la.
— Bom, então, boa tarde.
— Boa tarde.
Assim que chegamos ao estacionamento, Jenna olha atravessado para mim.
— Você está estranho — ela diz.
— Mas eu não sou sempre estranho?
— Mais estranho do que o normal.
— Isso é muito estranho.
— Pai! — ela cruza os braços sobre o peito e olha para mim.
— Quer um cachorro-quente?
Jenna olha para mim como se eu tivesse sugerido tomar uma bebida com ela.
— Um cachorro quente?
— Isso. Você sabe como é, um tubinho de carne, num pãozinho com
mostarda...
— Minha mãe não deixa a gente comer cachorro-quente.
— Vou dizer para ela vir com a gente.
Acho que a cabeça de Jenna explodiu um pouco com essa ideia, mas ela
entra no carro sem dizer mais nada.
Kekona viajou para o Havaí e vai ficar lá por um mês, então minha primeira
cliente do dia é a Sra. Leland. Ela não gosta de falar sobre crimes, Owen, ou
qualquer coisa parecida. A Sra. Leland é uma jogadora séria, que só conversa
sobre tênis.
Depois que a aula dela termina, tenho um minuto entre os clientes, apenas o
tempo suficiente para ver uma mensagem de texto de Millicent.
?
Não sei o que isso significa ou o que ela está perguntando, então mando de
volta:
O quê?
Há quinze anos, Owen Oliver Riley foi acusado de homicídio e liberado por
um detalhe técnico. Ele desapareceu sem deixar rastros até pouco tempo atrás,
quando o corpo de uma jovem mulher foi encontrado e alguém alegando ser
Riley enviou uma carta para um repórter da região, assumindo a autoria do
assassinato e prometendo matar outra mulher, citando até mesmo o dia em que
ela desapareceria. Quando o corpo de uma segunda mulher foi encontrado, a
impressão foi a de que ele cumpriu sua promessa. A próxima carta alegava que
seus dias de assassinato haviam terminado e que agora ele iria embora para
sempre. Mas Owen chegou a estar aqui alguma vez?
“Não”, diz Jennifer Riley. A irmã de Owen entrou em contato com a polícia
na última semana e, na sequência, emitiu um comunicado para a imprensa.
Em uma reviravolta tão impressionante que quase não parece real, ela
afirma que quinze anos atrás, depois de Owen Riley ter sido solto, tanto ela
quanto o irmão se mudaram para a Europa. Nenhum deles retornou aos
Estados Unidos, nem mesmo para visitas, de acordo com o seu comunicado.
Eles também mudaram de nome e viveram em anonimato.
Cinco anos atrás, seu irmão foi diagnosticado com câncer no pâncreas e,
após diversas doses de radioterapia, finalmente sucumbiu à doença e acabou
falecendo. O corpo foi cremado, garante a irmã de Owen.
O obituário de Riley não apareceu em nenhum jornal dos Estados Unidos.
Foi publicado apenas em um jornal da Inglaterra tendo o nome falso como
referência, segundo Jennifer Riley. Ela apresentou um exemplar do jornal à
polícia, juntamente com uma certidão de óbito. As autoridades trabalham para
verificar a informação.
Jennifer Riley disse à polícia que, até pouco tempo atrás, não fazia ideia de
que o irmão “estava de volta” para a região onde eles cresceram. Ela concluiu
dizendo: “Não queria me envolver de jeito nenhum com isso. Depois de deixar
esse lugar há tantos anos, eu não queria me envolver de jeito nenhum. Porém,
uma velha amiga minha entrou em contato e me aconselhou a falar, pois a
polícia estava convencida de que o novo assassino era Owen”.
“Vou falar do jeito mais claro possível: os assassinatos recentes dessas duas
mulheres são trágicos e desoladores. No entanto, preciso esclarecer que meu
irmão não teve nada a ver com isso”.
Cinquenta e um
Meu telefone está caído no cimento da quadra, com a tela quebrada. Não me
lembro de ter deixado cair. Ou talvez eu mesmo tenha arremessado.
Sinto uma mão no meu braço. Arthur, meu cliente, está me olhando. Seus
olhos estão escondidos debaixo de grossas sobrancelhas grisalhas, e estão
crispados. Preocupados. — Você está bem? — ele pergunta.
Não. Não estou nada bem. — Desculpa. Eu preciso correr. É que a minha
família...
— Claro. Corre.
Eu pego o telefone e minha mochila e deixo a quadra. A caminho do
estacionamento, ouço pessoas me cumprimentando, mas não enxergo rosto
nenhum. Só consigo ver aquela manchete na minha frente:
OWEN ESTÁ MORTO
No carro, com o motor já ligado, me dou conta de que não faço a menor
ideia de onde Millicent está. Não tenho mais como saber sem o rastreador.
Pela tela quebrada, eu mando uma mensagem.
Noite romântica
E a resposta dela é:
Almoço romântico. Agora.
A primeira vez que vejo a irmã de Owen é na televisão. Owen tinha trinta e
poucos anos quando cometeu os assassinatos — agora ele teria em torno de
cinquenta. Jennifer parece um pouco mais nova, com quarenta e poucos. Ela
tem os mesmos olhos azuis, mas seu cabelo é um tom de loiro mais escuro. Ela
é tão magra que a clavícula chama a atenção, assim como as veias no seu
pescoço. Dizem que a câmera engorda cinco quilos, então, se isso for verdade,
Jennifer deve ter uma aparência cadavérica ao vivo.
Ela está em todos os televisores do salão do clube, onde a turma do almoço
pediu mais um drinque para poder assistir a coletiva de imprensa. É a primeira
vez que o público vê a irmã de Owen.
O comissário de polícia está ao seu lado, e o legista está do outro. Um tem
cabelo, o outro não tem, e suas barrigas são do mesmo tamanho.
Jennifer diz que ela é a irmã de Owen Oliver Riley e que nós estamos
completamente equivocados a respeito dos assassinatos.
— Posso provar que Owen não matou ninguém nos últimos cinco anos. Fiz
toda essa viagem até aqui para garantir que todos entendam que o meu irmão
está morto — Jennifer ergue uma folha de papel e diz que é a certidão de óbito
de Owen, assinada por um legista na Grã-Bretanha e carimbada com um selo
oficial. E ela repete sua declaração anterior: — Ele está morto.
O legista vem ao microfone e confirma o que Jennifer disse.
— Morto.
Em seguida vem o comissário, que não para de falar sobre como era
inevitável que o departamento de polícia focasse a investigação em Owen, mas
que, sim, eles foram enganados. Ele também confirma a declaração de Jennifer.
— Morto.
Agora os pratos estão limpos na mesa. Todo mundo acredita nela. Owen está
morto, e a polícia vai recomeçar a investigação para descobrir o que é que eles
deixaram passar.
Mas, antes, Jennifer tem mais uma coisinha para dizer: — Lamento muito
pelas famílias. Lamento que tenham desperdiçado tanto tempo se
concentrando em meu irmão em vez de procurar o verdadeiro assassino. Uma
velha amiga me ligou para contar o que estava acontecendo em Woodview. E,
quando ela me implorou para que eu voltasse, eu precisei fazer a coisa certa.
Jennifer gesticula para alguém lá atrás, e o legista abre espaço. A câmera se
aproxima da amiga.
Minha cabeça gira tão rápido que eu quase perco a consciência.
A mulher que trouxe Jennifer Riley de volta é loira e corpulenta, e tem um
sorriso que brilha na tela.
Denise. A mulher de trás do balcão da Joe’s Deli.
Cinquenta e três
O rastreador está em cima do painel do meu carro. Eu giro o aparelhinho de um
lado para o outro, e depois começo tudo outra vez. É o mesmo carrossel que
tenho feito na minha cabeça depois que a mulher da Joe’s Deli, a lanchonete
preferida de Millicent, apareceu na tevê.
Denise. A mesma mulher que me atendeu naquele dia.
É uma coincidência. Precisa ser. O fato de Owen estar morto não ajuda
Millicent e eu. Ele nos prejudica.
No entanto, mais lamentável ainda é saber que, se a Joe’s fosse um bistrô
orgânico servindo rosbife de vacas criadas em pasto ecológico, eu jamais iria
suspeitar que, na verdade, não é uma coincidência. Para minha sorte, a Joe’s
não é esse paraíso. É uma padaria onde orgânico é uma palavra de outro
idioma.
Se eu pudesse perguntar a Millicent sobre esse seu novo gosto por
sanduíches baratos, eu perguntaria. Mas eu não deveria saber disso. É uma
informação que adquiri espionando minha esposa.
Eu nunca tinha feito isso antes. Pensei em fazer, mas não fiz. Nem no tempo
em que Millicent trabalhava com um homem que claramente queria ser mais do
que um mero colega de trabalho. Deu para notar no exato momento em que eu
conheci o cara. Cooper. O festeiro da faculdade que nunca se casou e nem
queria se casar. O que ele queria era transar com Millicent.
Cooper foi quem acompanhou Millicent na conferência em Miami. Naquele
mesmo fim de semana em que Crystal me beijou.
Naquela época, eu estava realmente convencido de que Cooper tinha beijado
Millicent também.
Quando eles voltaram da viagem, essa minha certeza quase me fez vigiar os
dois. Não vigiei. Pelo menos não minha esposa. Cooper, por outro lado, eu
observei tempo o suficiente para perceber que ele queria dormir com todas as
mulheres. Não era só com Millicent.
E, bom, até onde eu sei, eles não dormiram juntos.
Agora que já espionei a minha esposa, percebo o problema disso. Não posso
fazer nada com as informações. O rastreador está no painel do carro e estou
sentado no estacionamento do clube olhando para o aparelho, porque espionar
gera apenas mais espionagem. Se eu soubesse que era um círculo tão vicioso,
jamais teria começado.
Enquanto fico ali remoendo, Millicent me manda uma mensagem.
Sopa de frango para o jantar?
É uma boa.
Espero por outra mensagem, uma que diga noite romântica ou que faça
alguma referência às notícias de hoje, mas meu telefone segue sem notificação
nenhuma.
Eu subo para dar boa noite às crianças. A luz de Rory está apagada, mas ele
está acordado e usando seu telefone.
Antes que eu faça qualquer comentário, ele diz: — Sim, eu estou falando
com Faith. E com Daniel. E também jogando.
— Está conseguindo fazer alguma dessas coisas direito?
Ele abaixa o telefone e me lança aquele olhar. O mesmo olhar de Millicent.
— E não estou fumando maconha.
— Como vai a namorada? — eu pergunto.
— Faith.
— Como vai Faith?
Ele suspira. — Ainda é minha namorada.
— Você não está saindo escondido à noite, está?
— Só se você não estiver saindo também.
— Rory.
— Sim, papai? — sua voz transborda de petulância. — Qual é a lição que o
senhor vai me passar hoje?
— Boa noite.
Fecho a porta antes que ele possa me responder. Não quero ouvir. Hoje não.
Jenna acabou de deitar na cama, e eu me sento para falar com ela. Os dois já
sabem sobre a igreja e sobre o porão dos horrores, pois no mundo de hoje eles
ficam sabendo de tudo com uma velocidade que nem a luz alcança. Queria
descobrir um jeito de protegê-la de tanta informação, porque ela ainda é uma
criança. Jenna não é mais tão jovem a ponto de dormir com bichinhos de
pelúcia na cama, mas é jovem o bastante para manter todos os brinquedos por
perto. Ainda assim, para uma pré-adolescente, ela sabe mais do que deveria
sobre esse tipo de coisa. Garotas são presas e torturadas em livros, filmes,
séries, e na vida real. É impossível que ela não veja, e ela viu.
— Elas foram acorrentadas lá embaixo, não foram? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça. — A gente ainda não sabe.
— Não mente, pai.
— Provavelmente foram.
Ela acena com a cabeça e se vira para o lado, em direção à mesa de
cabeceira. A luminária em cima da mesinha tem uma cúpula no formato de
uma flor. Laranja, é claro.
— Como está seu estômago? — eu pergunto.
— Bem.
— Que bom.
— Por que alguém machuca uma pessoa desse jeito?
Eu encolho os ombros. — Tem gente com algo errado na cabeça. Essas
pessoas acham que fazer o mal é uma coisa boa.
— Aposto que Claire vai pegar ele.
— Aposto que você está certa.
Ela dá um leve sorriso.
Espero que ela esteja errada.
Cinquenta e oito
As primeiras fotos do porão são surpreendentes. Ele não se parece com o
calabouço medieval que eu construí na minha cabeça.
Pelo contrário, parece apenas o porão inacabado de um prédio antigo. Piso
de terra batida, estantes de madeira nas paredes, uma velha escadaria. Somente
a parede mais distante das escadas é diferente, pois é a única que indica o que
pode ter acontecido naquele porão. A parede foi coberta de tijolos e revestida
com reboco. Um emaranhado de correntes e algemas está espalhado no chão ao
lado.
Claire apresenta as fotos em uma coletiva de imprensa à noite, que assisto
em um bar. É o mesmo bar onde eu estava quando o corpo de Lindsay foi
descoberto.
Eu tomo uma cerveja e me sento em uma mesa com vista para a janela da
frente. Do outro lado da rua está o First Street Bar & Grill, onde servem
hambúrgueres gigantes para acompanhar as cervejas artesanais da casa, com o
benefício de ser mais barato do que a concorrência. Millicent não é muito fã de
hambúrguer nem de cerveja, por isso só vamos em um lugar assim para
encontrar clientes ou participar de alguma festa.
Claire mostra cada foto do porão e descreve os detalhes. Há closes de
manchas nas paredes e no chão de terra. Parece ferrugem, mas ela diz ser
sangue.
O barman balança a cabeça. Ninguém fala nada. Estão ocupados demais
bebendo e assistindo.
Não consigo imaginar Millicent deixando tanto sangue para trás, se é que
aquilo é mesmo sangue. Claire pode estar mentindo. Seus olhos encaram a
câmera de um modo que ela parece estar olhando diretamente para mim. Ou
para o cara sentado ao meu lado. Ou até para o barman. É desconcertante.
Odeio os terninhos de Claire. Hoje é azul-marinho combinando com uma
blusa cinza. Ela sempre parece estar preparada para um velório.
Claire está em um púlpito perto da igreja, embora o enquadramento não nos
deixe ver nada do lugar a não ser as árvores. Não dá para ver nem mesmo o
campanário. O comissário e o prefeito estão do seu lado, e um cavalete
completa a cena. Eles apoiaram as ampliações das fotos nesse cavalete, e
alguns policiais fardados trocam as imagens enquanto Claire explica cada uma.
— Já estamos examinando as amostras de sangue, comparando com o que
temos, tanto de Naomi quanto de Lindsay. Também descobrimos traços de
saliva, e vamos agora investigar esse material.
Ela não abre para perguntas. A coletiva inteira dura cerca de vinte minutos, o
que dá aos jornalistas e comentaristas o suficiente para uma noite inteira de
debates inúteis. Claire não disse nada sobre a mensagem na parede, e também
não mostrou nenhuma foto dela.
O barman troca de canal para as notícias esportivas. Eu peço mais uma
cerveja e quase não encosto no copo.
Quarenta minutos depois, eu o vejo. Do outro lado da rua, Josh entra no First
Street Bar & Grill. É o seu restaurante favorito.
Consegui essa informação por acaso, enquanto passava de carro por esta rua
algumas noites atrás. Ao parar num sinal vermelho, avistei Josh saindo do seu
carro e caminhando em direção ao restaurante. Na noite seguinte, passei
novamente pela frente e vi seu carro estacionado. Na terceira noite, a mesma
coisa. Então eu caminhei pela calçada e vi meu repórter favorito sentado no
bar, sozinho, bebendo cerveja e assistindo seus colegas na tevê.
Agora, atravesso a rua e me sento a alguns bancos de distância de Josh.
Como já jantei, peço somente uma dose de uísque e uma cerveja. O mesmo que
ele.
Olho para Josh e desvio o olhar. Depois olho de novo, como se o
reconhecesse.
Sem nem me olhar de volta, ele diz: — Isso, eu sou aquele cara do jornal.
— Achei que era você mesmo. Vejo você na televisão quase todas as noites
— eu digo. Josh parece bem diferente ao vivo. Seu rosto não parece tão liso. A
textura da sua pele é irregular. Seu nariz é avermelhado, assim como seus
olhos. Uma pena que eu não trouxe o colírio.
Ele suspira e finalmente se vira na minha direção. — Obrigado pela
audiência.
— Não, eu que te agradeço pelas reportagens. Você tem sido a grande
referência naquele caso, não é? O das mulheres assassinadas?
— Eu fui.
— Você ainda é. Parece que você descobre tudo até antes da polícia.
Josh bebe um terço da sua cerveja em um gole só. — Você é um daqueles
malucos que só querem saber de crimes terríveis?
— De jeito nenhum. Só alguém que quer ver aquele safado preso.
— Legal.
Eu gesticulo para o barman, pedindo mais um uísque. — Ei, cara — digo
para Josh. — Deixa que eu pago uma pra você.
— Sem querer ofender, mas eu não sou gay.
— Não ofendeu. Eu também não sou.
Josh aceita a dose. O barman traz mais duas cervejas para acompanhar.
Juntos, assistimos o canal de esportes, falando sobre um time ou outro. Pago
mais algumas doses, mas derramo a minha no pote de petiscos quando ele não
está vendo. Josh bebe a sua e pede mais duas.
Quando um jogo de futebol começa, ele acena com a cabeça para a tela. —
Eu aposto nos Blazers. E você?
— Também — mentira.
— Você joga? Você tem cara de quem joga.
Eu dou de ombros. — Na verdade, não.
Ele bebe o resto da sua cerveja e gesticula pedindo mais duas. — Eu jogava
num time de futebol chamado Marauders. Nós éramos uma porcaria, mas
mesmo assim tinham medo da gente. Isso era meio incrível.
— Parece mesmo.
Durante um intervalo publicitário, o anúncio de um noticiário local mostra a
coletiva de imprensa que aconteceu hoje. Claire Wellington está mais uma vez
na tela.
Josh sacode a cabeça e olha para mim. Seus olhos não têm a mesma clareza
que tinham quando eu entrei. — Quer uma informação privilegiada? — ele
pergunta.
— Claro.
Ele aponta para a tevê. — Ela é uma vaca.
— Você acha?
— Não é porque ela é mulher. Sério, não tem nada a ver com isso. Mas o
problema de ter uma mulher no comando é que elas precisam mudar tudo.
Precisam mostrar trabalho, entendeu? E não é culpa delas terem que fazer isso,
eu entendo a situação. Só queria que elas não estragassem o negócio todo.
— Verdade?
— Cem por cento verdade.
O jovem e determinado repórter que eu tanto assisti não é a mesma pessoa
que ele é na tevê. Talvez eu tenha sido um pouco inocente aí.
Peço mais algumas doses. Josh bebe a sua e bate o copo com força na
bancada do bar.
— Uns dias atrás, eu divulguei uma informação que uma fonte me passou.
No outro dia, me liga de novo e diz que eu não posso mais falar naquele
assunto. Tecnicamente, os policiais podem ser demitidos por falar com a
imprensa. Parece que ela resolveu aplicar a regra — ele joga as mãos para o
alto, como se estivesse descrevendo uma monstruosidade. — Mesmo se eles
falarem comigo. E eu trabalhei com a polícia quando recebi aquelas cartas de
Owen. Ou de quem mandou aquilo. Eu não precisava fazer isso. Eu podia
simplesmente ter lido as cartas no ar e nem falar com a polícia.
— E o que isso quer dizer? — pergunto. — Suas fontes não vão contar mais
nada para você?
— Ah, eles ainda me contam algumas coisas. Eu só não posso dar a notícia
no jornal. Bom, acho que eu poderia, mas eu sou um cara bonzinho. Não quero
que ninguém perca o emprego, principalmente alguém que eu vou precisar
depois. Aquela vaca não vai ficar aqui pra sempre.
Antes que eu possa responder, seu telefone vibra. Ele dá uma olhada e revira
os olhos. — Viu, é disso aqui que eu estou falando. Eu recebo uma informação
de uma fonte, e é a segunda vez que eu escuto essa história, mas não posso
fazer nada com ela. S-P-S-O, diz aqui. “Somente Para Seus Olhos” — ele dá
um grande e barulhento suspiro. — Pior acrônimo do mundo.
— Isso é uma droga mesmo.
— Nem me fale.
Eu espero. Fico olhando para a televisão, sem dizer nada, torcendo para
passar a impressão de que nada disso importa para mim. Quanto menos eu
falar, maior é a chance dele me contar.
É preciso mais uma dose para meu repórter abrir seu coração.
— Tá, eu preciso contar para alguém — ele diz, arrastando a voz. — Mas, se
você repassar a informação, vou negar até a morte. Pelo menos até eles
tornarem isso público.
— Você acha que eles vão fazer isso?
— Eles não têm como esconder.
Josh desliza o telefone na minha direção. O texto está na tela, enviado por
alguém chamado J. Um segredinho que me faz lembrar da minha época como
Tobias.
Até eu ler o texto.
S-P-S-O:
Encontraram corpos enterrados embaixo da igreja.
Cinquenta e nove
Eu achava que a mensagem seria sobre o suposto recado na parede. Mas é
sobre corpos enterrados. — E daí? — eu pergunto.
— E daí? — Josh rebate.
— Aquela igreja tem mais de cem anos. Provavelmente deve ter um
cemitério inteiro de gente enterrada lá.
— Com certeza tem. Mas não é disso que ele está falando — Josh se inclina
e fala um pouco mais baixo. O cheiro daquele álcool todo explode no meu
rosto. — Você já foi lá?
Eu quase digo que sim, mas então lembro que não sou um daqueles malucos
correndo atrás de crimes terríveis.
— Não, nunca fui.
— Eles montaram uma tenda enorme, atrás de um monte de árvores. É para
lá que eles estão levando os corpos.
— Você continua falando em corpos. Que corpos, cara?
— Os corpos no porão não são de cem anos atrás — ele diz. — São de
mulheres que foram assassinadas recentemente.
— Mentira.
— Verdade. E eu não posso divulgar a informação no jornal.
Josh divaga, queixando-se mais uma vez de Claire e de suas fontes. Não
estou mais prestando atenção.
Naomi e Lindsay já foram encontradas, sobrando então Holly e Robin. Holly
morreu no meio do nada, na floresta, e nós a enterramos lá mesmo.
Robin foi morta na nossa cozinha. Tanto o carro quanto seu corpo estão no
fundo de um lago perto daqui.
Eu interrompo Josh: — Você sabe quando vão liberar essa informação?
— Em breve, com certeza. Eles não podem esconder esses corpos para
sempre.
Ele segue falando, mas só penso em Claire Wellington. Em menos de um
minuto ela vai aparecer na porta da minha casa, perguntando sobre a irmã de
Millicent, Holly.
E por que vocês nunca comunicaram o desaparecimento dela?
Porque achamos que ela tinha se mudado.
Porque tanto faz se ela está desaparecida ou não.
Porque ela costumava torturar a minha esposa.
Porque ela era louca.
Eu mando uma mensagem para Millicent.
Precisamos de uma noite romântica.
Leio sua resposta mais três vezes antes de deixar dinheiro na bancada do bar
e sair do First Street Bar & Grill sem dizer uma palavra sequer para Josh. Ou
talvez eu tenha dito que precisava ir. Não faço a menor ideia do que aconteceu.
Millicent me liga bem na hora que estou tentando ligar para ela. Ela fala
rápido, e eu andei bebendo, por isso só consigo pegar os destaques da história.
Rory. Sala de emergência. Caiu da janela.
Nem entro no carro, pois estou perto o bastante para correr. O hospital fica a
três quadras, e, quando chego lá, encontro Millicent perambulando pelo
corredor.
Assim que eu vejo minha esposa, eu sei.
Rory está bem. Ou Rory vai ficar bem.
As mãos de Millicent estão fechadas, os lábios estão tensos e parece ter uma
corrente elétrica saindo que nem um raio da sua cabeça. Se Rory tivesse
realmente se machucado, ela estaria preocupada, chorando ou talvez em
choque. Mas nada disso, ela está estourando de raiva.
Ela põe as mãos em mim e me dá um abraço. É rápido e violento, e então ela
se afasta por causa do meu hálito.
— Cerveja — eu digo. — O que aconteceu?
— Nosso filho saiu de casa para ver a namorada. Ele caiu tentando subir até
a janela do quarto dela.
— Mas ele está bem?
— Está. Achamos que ele tinha quebrado o pulso, mas foi só uma entorse
feia. Vai ter que usar uma tipoia...
— Por que você não me chamou quando isso aconteceu? — eu pergunto.
— Eu chamei. Mandei uma mensagem.
Eu pego o telefone. Lá está, bem no meio da tela rachada. Dependendo do
ângulo, é meio difícil de ler. — Ah, meu Deus, me desculpa...
— Esquece. Você está aqui agora. O importante é que ele está bem — a raiva
de Millicent retorna, se é que alguma vez ela foi embora. — Ele só vai ficar de
castigo por um século inteiro.
Alguém dá uma risadinha.
No canto, Jenna está sentada na sala de espera. Ela acena. Eu aceno de volta.
Millicent me indica uma máquina de café. É amargo e queima a minha língua,
e é exatamente o que eu preciso. Ele me faz relaxar e não o contrário, pois o
meu coração está batendo forte demais pela corrida, pelo álcool e também por
meu filho estar no hospital.
Millicent desaparece rumo à sala de exames para ficar lá com Rory. Quando
eles saem, ele está com uma tala no pulso e uma tipoia no braço. A raiva dela
diminuiu, ao menos por enquanto.
Rory não me olha no rosto. Talvez ainda esteja bravo comigo, ou talvez
saiba o tamanho da sua encrenca. É difícil dizer, pois neste momento estou
dividido entre dar um cascudo nele ou abraçá-lo até sufocar. No fim, eu só
bagunço o seu cabelo.
— Se você não queria jogar golfe, era só dizer — eu digo.
Ele não sorri. Adora golfe.
Chegamos em casa depois da meia-noite. Dou uma conferida em Rory
alguns minutos depois dele ir para o quarto. Ele realmente apagou.
Em seguida, eu sento na minha cama, exausto.
Meu carro ainda está no First Street Bar & Grill.
E encontraram corpos enterrados embaixo da igreja.
— Millicent — eu digo.
Ela sai do banheiro, está seguindo sua rotina de sempre antes de dormir. —
O que foi?
— Eu tomei uma cerveja com Josh hoje à noite. O repórter.
— Por que você...
— Ele me disse que a polícia encontrou alguns corpos enterrados naquele
porão da igreja.
— Corpos?
Eu faço que sim com a cabeça, e a observo. Sua surpresa parece verdadeira.
— Ele disse de quem eram os corpos? — ela pergunta.
— Suponho que sejam de Holly e Robin.
— Elas não estão nem perto daquela igreja. Você sabe disso — ela se afasta,
voltando ao banheiro.
Eu vou atrás. — Você com certeza não sabe de nada sobre esses corpos
enterrados lá?
— Absolutamente nada.
— Pois então tem uma pilha de corpos aleatórios no porão de uma igreja.
— Nossa, eu sei lá. Esse é o mesmo repórter que falou que tinha uma
mensagem na parede. Cadê essa mensagem?
É uma boa pergunta.
Talvez Josh tenha se equivocado. Ou talvez alguém esteja alimentando a
imprensa com mentiras para manter os urubus longe da verdade.
Os policiais dos filmes fazem isso o tempo todo. E pode ser que Claire seja
tão esperta quanto eles.
Sessenta
Agora que Millicent descobriu que Rory tem uma namorada e que está saindo
escondido para vê-la à noite, ela quer se encontrar com os pais de Faith para
discutir a situação. O casal Hammond é cliente dela, e prontamente
concordaram em sairmos todos para jantar. Quer dizer, nem Rory nem Faith
foram convidados.
Estamos a caminho do restaurante, um local tradicional com toalhas brancas
e um cardápio de pratos caseiros. Uma escolha deles, e não de Millicent.
— Eles são pessoas razoáveis — Millicent diz.
— Com certeza são — eu digo.
Quando chegamos, os Hammonds já estão nos aguardando na mesa. Hank
Hammond é baixo e loiro, como a filha. Corinne Hammond não é baixa e seu
cabelo não é loiro natural. Ambos vestem roupas clássicas e exibem sorrisos
educados. Vamos direto à comida. Ninguém pede vinho.
A voz de Hank é duas vezes maior que seu corpo.
— Faith é uma ótima menina. Ela nunca saiu sem nos avisar até conhecer o
filho de vocês — ele diz.
Quase posso ver a bola quicar do nosso lado da quadra. Millicent sorri,
educada e melosa. — Bom, eu poderia dizer o mesmo sobre a sua filha, mas
procurar culpados não vai nos levar a nada.
— Eu não estou falando em culpa. Estou falando em não deixar os dois perto
um do outro.
— Você quer proibir Rory e Faith de se verem?
— Faith já está proibida de ver o seu filho em qualquer lugar que não seja a
escola — Hank diz. — Acho que isso sim é impossível de evitar.
— Você pode providenciar uma escola dentro da sua própria casa —
Millicent diz. — É o melhor jeito deles nunca se verem.
Eu ponho a mão no braço de Millicent. Ela me afasta.
— Talvez seja o seu filho quem precisa aprender umas coisinhas em casa —
Hank diz.
Corinne concorda com a cabeça.
— Você acha mesmo que proibir os dois de se verem vai fazer com que eles
realmente parem de se ver? — Millicent pergunta.
— Nossa filha vai fazer o que mandarmos — Hank diz.
Posso sentir Millicent engolindo a própria língua, pois eu sou obrigado a
fazer a mesma coisa.
Corinne quebra a tensão. A sua voz é mais forte do que eu esperava. — É
para o bem de todos — ela diz.
Millicent desvia o olhar para Corinne e hesita um segundo antes de dizer: —
Não tenho o hábito de criar proibições para os meus filhos.
Mentira.
— Acho que esta é a nossa diferença — Hank diz.
— Talvez seja melhor voltarmos para o ponto central da questão — eu digo.
— Acho que não precisamos discutir aqui as nossas filosofias de como alguém
deve educar os filhos.
— Ótimo — Hank diz. — É só não deixar o seu filho perto da minha filha e
estamos resolvidos.
A conta chega e Millicent pega o papel antes que Hank invente de querer
pagar. Ela entrega para mim e diz: — Pode deixar com a gente.
O jantar termina com uma despedida sucinta.
Millicent fica em silêncio a caminho de casa.
Rory já está nos esperando em frente à porta quando saímos do carro. Ele
está com o pulso lesionado, não pode jogar golfe e está de castigo. Faith é a
única coisa que ele tem, ou que ele acha que ele tem. Não estou lá muito
ansioso para contar a ele as novidades.
Mas não falamos nada. Millicent se aproxima de Rory e põe a mão no rosto
dele. — Tudo certo, meu bem — ela diz.
— Tudo certo? Mesmo?
— É só não sair escondido de novo.
— Eu prometo.
Rory dispara atrás do telefone para falar com Faith, que deve ter recebido
uma mensagem um pouco diferente dos seus pais.
Millicent pisca o olho para mim.
Eu me pergunto se é assim que as garotas aprendem a ser ardilosas. Com as
mães dos outros.
No dia seguinte, recebemos uma ligação da escola. É sobre Jenna, e não Rory.
E desta vez não é a respeito de uma arma ou de seus problemas estomacais.
Agora são suas notas.
Ela sempre foi uma das primeiras da turma, mas suas notas pioraram muito
no último mês. Ela inclusive deixou de entregar um trabalho cujo prazo
terminava justamente hoje. Jenna sequer tentou inventar uma desculpa para a
professora.
Nem eu nem Millicent tínhamos a menor ideia do que estava acontecendo.
Como Jenna sempre foi uma ótima aluna, eu nem me dou o trabalho de
verificar os relatórios de desempenho que a escola publica toda semana na
internet. Então, depois de uma enxurrada de mensagens e ligações, resolvemos
falar com ela logo após o jantar.
Millicent começa contando a ela sobre o telefonema da escola e aí completa
com: — Fale pra gente o que está acontecendo, querida.
Jenna não tem uma resposta de verdade, no máximo um gemido aqui e ali e
uma sacudida com a cabeça.
— Não estou entendendo — Millicent diz. — Você sempre foi uma
excelente aluna.
— Pra quê? — Jenna diz. Ela se levanta da cama e caminha pelo quarto. —
Se alguém pode me trancar num porão e me torturar, pra que que eu vou me
esforçar?
— Ninguém vai te trancar num porão — eu digo.
— Aposto que aquelas mulheres que morreram também acreditavam nisso.
Mais um golpe no estômago. E esse parece ter sido com um furador de gelo.
Millicent respira fundo.
Depois de ter conhecido Claire, Jenna deu vários sinais de melhora. Ela
falava o tempo todo em se tornar uma detetive. Mas tudo isso parou com a
descoberta da igreja.
Na verdade, estamos andando em círculos com ela, tentando usar a lógica
para eliminar o medo. É uma tentativa inútil. Só o que conseguimos é uma
vaga promessa de que ela não será reprovada em nenhuma disciplina.
Quando estamos para sair do quarto de Jenna, vejo o notebook aberto na sua
cama. Ela está pesquisando quantas mulheres são sequestradas e assassinadas a
cada ano.
E aí Millicent gruda no telefone, tentando encontrar outro terapeuta.
Toda essa agitação acontece no terceiro dia sem novas informações sobre a
igreja. Nada mudou, Claire continua conduzindo diariamente uma entrevista
coletiva para repetir o que já sabemos.
Antes de sair, desligo o rastreador, mas fico com o aparelho na mão. Por
enquanto ela vai se perguntar se ainda estou em casa. Ou talvez não. Já nem sei
se eu realmente conheço minha esposa.
Dou a partida no carro e saio dirigindo pela rua, destino desconhecido.
Um prédio abandonado, um motel na beira da estrada, um estacionamento?
O pântano, o bosque, as trilhas? Não faço ideia, mas estar em um lugar com o
qual não estou familiarizado não me parece uma decisão inteligente. Preciso de
um lugar quieto, algum lugar onde eu possa pensar. Algum lugar onde ninguém
vai me incomodar pelas próximas horas.
Uma completa falta de opções e de originalidade me levam ao clube.
Por ser empregado, tenho uma chave do escritório, que eu nunca uso, e
também da sala de equipamento e do acesso às quadras. Faço uma parada
rápida na loja para comprar uma sacola de comida, me enchendo de gordura, e
sumo do radar até depois das nove horas. É quando desligam as luzes das
quadras de tênis e os seguranças trancam as grades pelo resto da noite.
É para onde vou, então. Para as quadras. O clube tem câmeras nas áreas
internas. Mas nunca instalou nenhuma nas quadras.
Sessenta e três
Tudo nas quadras de tênis me é familiar. Eu cresci aqui, nestas quadras. Foi
onde eu aprendi a jogar tênis, e onde na verdade eu aprendi muito da minha
vida. Meu técnico me fazia correr voltas e voltas nessas quadras para me
colocar em forma. Conquistei troféus e apanhei dos adversários, às vezes tudo
no mesmo dia.
Aqui era o meu abrigo, era onde eu vinha para fugir dos meus amigos, da
escola e, principalmente, dos meus pais. No início, eu vinha aqui para ver se
eles sairiam para me procurar. Quando entendi que eles nunca iam se mexer na
minha direção, usei as quadras como esconderijo. Até meu primeiro beijo
aconteceu neste lugar.
Lily. Ela era um ano mais velha e muito mais experiente do que eu, ou pelo
menos parecia que era. Na noite de Halloween, há mais ou menos um milhão
de anos, eu e meus amigos nos vestimos de piratas. Ela e as amigas se vestiram
de bonecas. Enquanto pedíamos doces pela rua, um grupo esbarrou no outro
em algum lugar de Hidden Oaks, e Lily disse que eu estava bonito.
Obviamente deduzi que o elogio só apareceu porque ela me amava, e acho que
ela me amava mesmo.
Um comentário levou a outro, e então a outro, e não demorou muito até eu
perguntar se ela queria conhecer um lugar legal. Ela disse que sim.
Bom, “legal” pode ter sido um exagero, mas, quando eu tinha treze anos,
achava que era legal estar na rua à noite, com uma garota. Lily pelo jeito
também não achou tão ruim assim, porque terminou me beijando. Ela tinha
gosto de chocolate e bala de alcaçuz, e eu adorei.
Por um segundo, fico tão arrebatado por essa memória que minha noite
parece até estar tranquila. Não está. Estou nesta quadra de tênis porque a
polícia está atrás de mim e eu não posso voltar para casa.
Mas pensar em Lily me faz perceber que eu ainda tenho outros lugares para
ir.
O despertador do meu telefone me acorda às cinco horas da manhã. Eu me
levanto, pego minhas coisas e entro no meu carro. Tentar dormir num banco ao
lado da quadra me deu bastante tempo para arquitetar um plano. E a internet
me ajudou a torná-lo melhor. Eu não imaginava, mas existem dezenas de sites
que explicam como desaparecer, como sair da rede do governo e também como
despistar a polícia, o seu chefe ou sua esposa furiosa. Todo mundo quer escapar
de alguma coisa.
Eu saio da cidade, pego a rodovia e não paro por pelo menos uma hora.
Finalmente, estaciono em um posto de gasolina, ligo o rastreador e instalo o
aparelho na parte de baixo de um caminhão. Depois de tirar a bateria do meu
telefone, entro na loja de conveniência do posto e compro um celular
descartável barato.
Então volto para Hidden Oaks.
A internet não recomenda esta parte, mas a internet não tem filhos. Se eu não
tivesse, continuaria dirigindo, mudaria minha placa ou até me livraria do carro.
Pegaria ônibus de um estado para o outro até chegar ao México.
Mas fugir não é uma opção. Não enquanto Jenna e Rory ainda estiverem
com minha esposa.
Na metade do caminho, paro para encher o porta-malas com compras do
supermercado. Olho todos os jornais, buscando minha foto, mas não me
encontro em nenhum deles. As manchetes se resumem a duas palavras:
TOBIAS SURDO
Enquanto dirijo de volta para casa, eu me pergunto se não estou sendo idiota
mais uma vez.
Acordo pensando que estou em casa. Fico tentando ouvir Millicent lá embaixo,
voltando da sua corrida, preparando o café da manhã. A rotina de hoje se
desenrola no meu pensamento, minha primeira aula é somente às nove horas.
Eu me viro e caio no chão feito uma pedra.
Não estou em casa. Dormi no sofá da sala de Kekona. O seu sofá verde de
canto é enorme, mas eu ainda caio ao me virar. A realidade me atinge junto
com o piso de madeira.
A tevê é ligada, a cafeteira de cápsulas começa a passar o café, o
computador é inicializado. Quase virei a noite de ontem preparando listas. O
que eu sei, o que eu não sei, o que eu preciso saber. Como conseguir certas
informações. A última lista é um pouco curta, porque não sou nem hacker nem
detetive. O que eu realmente sei é que existem duas maneiras de proceder:
provar que ela matou aquelas mulheres ou provar que eu não matei. O ideal é
que as duas abordagens atuem em conjunto.
Na noite em que Naomi desapareceu, fui para casa e fiquei com as crianças,
deixando Millicent sozinha com ela. A mesma coisa com Lindsay: fiquei com
Jenna, porque ela estava doente. As crianças são meus álibis, mas não me
ajudam muito. Como elas foram dormir cedo, não podem confirmar que eu
continuei em casa.
Mas posso provar que Millicent matou as mulheres? Tanto quanto posso
provar que não matei.
O tablet de Millicent, aliás, é um problema maior do que eu imaginava.
Embora exista um programa para resetar a senha, ele só pode ser usado se eu
estiver conectado com o e-mail registrado no tablet. Outra senha que não tenho
e nem consigo imaginar. No meio da noite, passo a acessar fóruns de hackers,
um ambiente repleto de adolescentes buscando a mesma coisa que eu.
Não é possível que não exista um jeito. Deve existir. Mas talvez eu precise
convencer alguém a me ajudar.
Passo metade da manhã me perguntando se é melhor pedir ajuda agora, antes
que meu rosto esteja no noticiário, ou depois da polícia começar a me procurar.
Tento imaginar uma pessoa aparecendo na minha casa em busca de ajuda, uma
pessoa que pode ou não ser um psicopata. Será que eu ajudaria essa pessoa ou
bateria a porta e chamaria a polícia?
A resposta é a mesma. Depende.
E minhas opções são limitadas. Meus amigos são os mesmos de Millicent,
nós compartilhamos os grupos. Tenho muitos clientes, mas a maioria deles não
é mais do que um contato profissional. Apenas uma possibilidade surge na
minha cabeça, a única pessoa que cumpre os dois critérios: capacidade e
disposição para ajudar.
Andy.
Sessenta e quatro
O Golden Wok é um buffet de comida chinesa a trinta minutos de Hidden
Oaks. Almocei nele uma vez, a caminho de algum outro lugar, e se parece com
todos os buffets de comida chinesa que já vi na vida. Chego cedo e encho o
meu prato de frango xadrez, porco agridoce, yakisoba e rolinhos primavera. No
meio da minha refeição, Andy Preston entra e anda até minha mesa.
Eu me levanto e ofereço a mão. Ele ignora e me dá um abraço.
Andy não é mais o mesmo homem que conheci antes de Trista se suicidar.
Ele não é sequer o homem que eu vi no funeral. O peso extra na sua barriga
sumiu e agora ele está quase magro demais. Não está saudável. Digo para ele
pegar um prato.
O restaurante chinês foi escolha de Andy. Ele foi embora de Hidden Oaks
depois da morte de Trista, e Kekona me disse que ele largou o emprego e passa
o dia na internet, incentivando estranhos a desistirem do suicídio. É bem
provável que seja isso mesmo.
Andy se senta na cadeira e me dá um sorriso. Parece vazio.
— E então, quais as novidades? — eu pergunto. — Como você está?
— Não muito bem, mas podia estar pior. Sempre pode piorar.
Eu concordo com a cabeça, impressionado que ele diga algo assim depois de
tudo que aconteceu. — Você tem razão, pode.
— E você? Como vai Millicent?
Eu limpo a garganta.
— Ih — ele diz.
— Preciso de ajuda.
Ele me olha. E não me faz nenhuma pergunta, pois ainda é meu amigo,
mesmo que eu não venha sendo um amigo para ele.
Durante toda a manhã, não parei de remoer na cabeça o quanto eu contaria a
Andy sobre minha situação. Primeiro, o tablet. Eu tiro da minha mochila e
entrego para ele por cima da mesa laminada. — Você pode me ajudar a entrar
nisso aqui? Tem uma senha, e eu não faço ideia qual é.
Andy olha para o tablet e depois para mim. Seus olhos parecem um pouco
mais alertas.
— Qualquer criança de oito anos consegue entrar nisso aqui.
— Não posso pedir para os meus filhos.
— Então é de Millicent.
Eu concordo. — Mas não é o que você pensa.
— Não?
— Não — eu aponto para o prato. — Termine de comer. Depois eu explico
tudo para você.
Digo “tudo”, mas é da boca para fora.
Depois de terminarmos a comida, vamos até o carro dele. É uma picape
velha que não tem nada a ver com o carro esportivo que ele costumava ter.
— O que você fez? — ele pergunta.
— Por que você acha que eu fiz alguma coisa?
Ele me olha meio torto. — Você está com uma cara terrível, tem um novo
número de telefone e quer entrar no computador da sua mulher.
Por mais que eu queira contar tudo para alguém, não posso. Não importa o
tempo de amizade, alguns limites não podem ser ultrapassados. Assassinato é
um deles. Assim como guardar segredos sobre a esposa de um amigo.
— Eu traí Millicent — digo.
Ele não parece surpreso.
— Meu palpite é que isso não foi uma boa ideia.
— Pra dizer o mínimo.
— Então ela botou você pra fora e agora quer tudo pra ela? A casa, o plano
de aposentadoria, a poupança das crianças pra faculdade?
Seria tão mais fácil se ela só quisesse os bens. — Não exatamente — eu
digo. — Millicent quer um pouco mais do que isso.
— Não me surpreende — ele hesita por um segundo, balançando a cabeça.
— Agora que você já estragou tudo, posso contar a verdade.
— Que verdade?
— Eu nunca gostei de Millicent. Ela sempre me pareceu um pouco fria.
Sinto vontade de rir, mas não me parece lá muito adequado. — Ela está
tentando me incriminar em coisas que eu não fiz. Coisas muito ruins.
— Coisas ilegais? — ele pergunta.
— Sim. Sem dúvida nenhuma.
Ele ergue uma das mãos, como se quisesse me impedir de dizer algo mais.
— É verdade, então. Ela é fria.
— Você decifrou Millicent muito bem.
Andy não diz nada por alguns minutos. Ele esfrega sua mão pelo volante, o
tipo de coisa que alguém faz sem nem perceber, porque está ocupado demais
pensando. E o melhor que posso fazer agora é manter minha boca fechada,
deixá-lo decidir o quão maluco eu sou.
— Se você só precisa entrar nesse tablet, por que me contou o resto?
— Porque eu e você somos amigos há muito tempo. Eu te devo a verdade.
— E?
— E porque eu devo aparecer no jornal em breve.
— No jornal? Mas o que é que ela está fazendo contigo?
— Você é a primeira pessoa que me viu desde ontem — eu digo. — Por
favor, não conte pra ninguém.
Ele olha pela janela, na direção da placa de neon do restaurante. — É melhor
eu não saber mais nada, não é?
Eu balanço a cabeça negativamente.
— Então esse é o favor de verdade — ele diz. — Ficar quieto.
— É por aí. Pois é. Mas eu preciso mesmo entrar nisso aqui — eu digo,
apontando para o tablet de Millicent. Está em cima do painel do carro. — Você
me ajuda?
Novamente, ele fica quieto.
Andy vai me ajudar. Ele pode não ter percebido ainda, mas ele decidiu me
ajudar quando a gente ainda estava na mesa. Porque, se ele não quisesse me
ajudar, já teria ido embora a essa altura. E, pelo jeito que ele me olha, pode ser
que Andy esteja precisando disso tanto quanto eu.
— Você sempre foi um pé no saco — ele diz. — E que fique registrado: suas
aulas de tênis são caras demais.
Dou um leve sorriso. — Registrado. Mas você me acusou de ter dormido
com sua mulher. Você me deve uma.
Ele me ignora. — Me passe o tablet.
Eu entrego para ele.
O pior é a espera. É como saber que uma bomba vai explodir, sem saber
quando ou onde. Ou em quem. Passo o dia seguinte na sala de tevê da casa de
Kekona. Ela tem uma tela de cinema quase do tamanho da parede, e poltronas
reclináveis de couro desgastado. Fico ali vendo Josh falar de Tobias sem parar.
Ele chega a conversar com especialistas sobre como é ser surdo.
No entanto, tenho que admitir que uma parte da informação é interessante.
Teria sido útil saber de certos detalhes quando precisei interpretar meu
personagem.
A vinheta do plantão de notícias interrompe minhas reflexões. A imagem na
tela faz meu coração disparar.
Annabelle.
A doce Annabelle, a fiscal de estacionamento cujo namorado foi morto por
um motorista bêbado.
Ela está viva.
E ainda continua fascinante, com seu cabelo curto e seus traços delicados,
mesmo que não esteja sorrindo. Ela não fica nem um pouco feliz quando Josh a
apresenta como a “mulher que conheceu o surdo chamado Tobias”.
Não me surpreende que Annabelle seja a primeira a vir a público. Ela não
conseguiu salvar o namorado, então tenta salvar todas as outras pessoas do
mundo.
Annabelle conta a nossa história, começando com o momento em que ela
quase deu uma multa para o carro que era supostamente meu. Ela explica como
nos encontramos por acaso na rua e como eu a convidei para tomar uma
bebida. Ela diz até o nome do bar. Se Eric, o barman, ainda não se pronunciou,
ele vai.
Annabelle não omite nada, nem mesmo a mensagem que ela me enviou. A
polícia agora tem aquele número de telefone.
Será que Millicent vai atender quando a detetive ligar?
Por último, mas não menos importante, Annabelle diz que passou a manhã
com um retratista. O retrato falado é revelado logo após o fim da reportagem
de Josh.
Parece exatamente comigo e, ao mesmo tempo, é completamente diferente.
Imagino Millicent assistindo e criticando o desenho, dizendo que o nariz está
muito grande e que talvez os olhos estejam muito pequenos. Ela vai dizer que
esqueceram um sinal próximo da minha orelha, e que o tom da minha pele é
diferente. Ela vai notar todas as inconsistências, porque ela sempre nota.
E, na verdade, não vai demorar muito para eu ser identificado, até porque
algumas pessoas já devem estar procurando por mim. A diretoria do clube, por
exemplo. Millicent deve estar atuando em ritmo frenético, fingindo para todo
mundo que acabei de desaparecer sem explicação nenhuma.
Jenna e Rory — quem é que consegue saber o que aquelas crianças estão
pensando?
Passo o resto do dia dentro de casa, com medo de sair enquanto ainda está
claro lá fora.
Isso me faz lembrar do dia em que me casei com Millicent, na casa dos seus
pais no meio do nada. Posso vê-la com seu vestido simples, com o cabelo
penteado para cima e repleto de pequenas flores, como se ela fosse uma fada
ou uma ninfa que veio de outro mundo. Ela era assim, tudo em Millicent era
transcendental. Acho que ainda é.
Também penso no que ela me disse naquele dia, pois não poderia ser mais
adequado agora.
É melhor você se preparar.
Um telefone tocando atravessa meu pânico. O único que tem meu novo número
é Andy.
— É você — ele diz. Ele não menciona o desenho da polícia e nem precisa.
Eu faço gestos para o telefone, como se ele pudesse me ver. — É o que eu
estava dizendo para você — eu digo. — Ela está tentando me incriminar.
— Sim, eu entendi essa parte. Mas você não conseguiu me transmitir a
magnitude da raiva dela.
— Eu disse que você não ia querer saber. Eu avisei.
— Mas como é que ela está fazendo isso?
Novamente, quero contar a ele, mas não posso. Também não tenho uma boa
resposta para dar. — Se eu soubesse, eu contaria para a polícia.
Ele suspira. Logo antes de desligar, ele diz: — Que desgraça.
E ele ainda está com o tablet de Millicent.
Durante o resto do dia, eu assisto as notícias, vasculho meu computador e
pesquiso meus filhos na internet. Minha busca não revela nada de novo, apenas
algumas matérias antigas no jornal local sobre o time de futebol de Jenna ou
Rory em um torneio de golfe.
Olho as fotos que eu trouxe de casa. Parece que foram tiradas há cem anos,
quando eu tinha uma vida que agora mais parece um sonho.
Nós nos encontramos em outro estacionamento, não dava para ser de novo no
Golden Wok. Meu disfarce é um boné e óculos escuros, e estou há dois dias
sem fazer a barba. Não é muito, eu sei, mas ninguém está atrás de mim dentro
da caminhonete de Kekona. Saio dirigindo pelo portão dos fundos de Hidden
Oaks para evitar os guardas.
Já está escuro, pois não posso mais sair durante o dia. Também não vou
deixar Andy ver o modelo ou a placa, por isso o carro fica estacionado a duas
quadras de distância e eu caminho até o estacionamento. Ele está parado
próximo da sua caminhonete com o tablet de Millicent nas mãos. Não há outros
carros por perto, não há luzes acesas. O estacionamento pertence a uma
concessionária fechada.
Andy está com uma postura um pouco melhor do que da última vez que nos
encontramos. Seu queixo parece mais firme.
— O país inteiro está te procurando — ele diz.
— Pois é, eu percebi.
Andy se vira e põe o tablet no capô, mantendo o aparelho apoiado com a
mão.
— Se você me disser que não conseguiu, não vou mais acreditar que você é
um gênio — eu digo.
— Eu sempre consigo. Mas não sei se alguma coisa aqui vai ser útil — ele
desliza o dedo na tela, ativando um teclado numérico. — Nova senha. Seis,
três, sete, quatro. Primeiro, a má notícia. Ela deve saber que você levou isso,
porque ela apagou tudo da nuvem.
— Claro que ela apagou.
— Mas não se preocupe, tenho uma boa notícia. Ela tinha alguma
informação armazenada na memória. Ela não conseguiu apagar isso.
Ele me mostra algumas fotos. Fotos das crianças, fotos de casas à venda e
uma foto de uma lista de compras.
Eu balanço a cabeça. É tudo muito mundano para ser útil.
— Ela gostava de jogos — Andy diz. Ele abre alguns jogos de raciocínio
lógico e palavras-cruzadas.
Qualquer esperança que eu tinha é soprada ao vento como uma folha seca.
Claro que não vamos descobrir nada no tablet. Millicent jamais seria tão
estúpida.
— Eu também encontrei algumas receitas — ele diz, abrindo alguns
arquivos em PDF.
— Cogumelos recheados, hein?
— Esse húmus de espinafre parece bom.
Eu suspiro. — Você é um sacana.
— Ei, é a sua esposa — ele diz. — Por último, as buscas que ela fez na
internet e os sites que ela visitou. Ela apagou o histórico, mas eu consegui
recuperar, caso seja útil.
Nada de excepcional. Mais receitas, artigos médicos sobre lesões no pulso e
problemas estomacais, o calendário escolar e uma série de sites de imobiliárias.
— Nada que possa me animar — eu digo.
— Parece que não.
Eu dou um suspiro. — Não é culpa sua. Obrigado por tentar.
— Você me deve essa por toda a eternidade — ele diz.
— Se eu não for preso para o resto da vida.
Ele me abraça antes de sair dirigindo a sua caminhonete velha.
Estou sozinho de novo, sem nenhuma pressa de voltar para a casa de
Kekona. Mesmo uma mansão pode parecer sufocante.
Em vez de voltar, acesso o tablet, abrindo de novo aqueles sites de
imobiliárias que ela visitou. Ninguém é perfeito, eu digo para mim mesmo.
Nem mesmo Millicent. Em algum momento, em algum lugar, ela cometeu um
erro.
Meus olhos quase começam a sangrar quando eu descubro.
Sessenta e seis
O site que Millicent mais visitou é um banco de dados de imóveis. Ela
acessava o site todos os dias, verificando os cadastros de vendas e
transferências, que na verdade são informações públicas. Seu navegador
registrou todos os endereços que ela pesquisou.
Um deles é um prédio comercial no número 1121 da Avenida Brownfield.
Seis meses atrás, um homem chamado Donald J. Kendrick vendeu o prédio por
cento e sessenta e dois mil dólares. O prédio existe há mais de vinte anos e teve
apenas um inquilino com contrato de longa duração.
Joe’s Deli.
Donald vendeu o prédio para uma empresa, que pertencia a outra empresa,
que repassou o imóvel para uma terceira empresa. No final das contas, o prédio
agora é propriedade da RJ Empreendimentos Ltda.
Rory. Jenna.
É uma artimanha típica de Millicent, porque ela não classificaria essa jogada
como um erro. Nossos filhos nunca são um erro. O nome é proposital.
E aí eu entendo, tentando me lembrar dos últimos seis meses: a compra do
prédio foi logo após ela ter vendido três casas em sequência. Com certeza ela
tinha muito dinheiro para gastar.
Denise nunca foi cliente de Millicent.
Ela é uma inquilina. Uma inquilina que por acaso é amiga da irmã de Owen.
Conhecendo Millicent, sei que ela passou horas pesquisando a história de
Owen: sua família, onde eles moravam, onde eles estudavam. Ela foi à caça até
descobrir que Owen estava na verdade morto e encontrou alguém que podia
confirmar essa informação. A irmã de Owen. Ela só precisava trazer a mulher
de volta ao país.
E quem melhor do que uma velha amiga para te convencer a retornar? Ainda
mais uma velha amiga que precisa lidar com a exigente proprietária do imóvel
onde seu negócio funciona. Uma velha amiga que se sentiu obrigada a
conversar com Jennifer Riley e implorar para ela se pronunciar a respeito da
morte de Owen.
Millicent. Foi tudo Millicent. E tudo nos últimos seis meses.
Agora entendo sua reação sobre as vítimas anônimas. Millicent sabia muito
bem que elas estavam mentindo, e não é à toa que ela insistiu em dizer que o
verdadeiro Owen não tinha retornado. Ela já sabia que ele estava morto.
Sua dedicação em me arruinar seria admirável se não fosse tão doentia.
Ainda assim, não tenho nenhuma prova concreta. Só uma empresa e um
prédio comercial, que até um advogado ruim pode argumentar que se trata de
um investimento, e não de uma conspiração para incriminar um marido por
assassinato.
Volto para Hidden Oaks entrando pelo portão traseiro, usando o controle de
Kekona para me liberar o acesso. Uma vez lá dentro, sinto uma vontade
esmagadora de passar pela frente da minha casa. O sol está nascendo e me
pergunto se as crianças ainda estão dormindo. Ou se elas conseguiram dormir.
Se nós morássemos em qualquer outro lugar, elas estariam cercadas de
repórteres. Mas não em Hidden Oaks. O público não tem como entrar em nossa
pequena comunidade.
Bom, no fim, desisto de passar na minha casa. Seria uma estupidez.
Em vez disso, volto para a casa de Kekona e ligo sua tela de cinema.
Eu. Eu sou a grande notícia dos jornais.
Agora que eu fui identificado, todos têm uma fofoca minha para contar, e
contam bem diante das câmeras. Antigos clientes, colegas de trabalho,
conhecidos, todo mundo desanda a falar agora que meu nome está envolvido
na investigação. Meu status de “desaparecido” também não me ajuda muito.
— Cara simpático. Um pouco escorregadio demais, talvez, mas o que a
gente pode esperar de um professor de tênis?
— Minha filha tinha aulas com ele, e agora eu dou graças a Deus por ela
estar viva.
— Costumava ver esse homem no clube. Sempre atrás de cliente.
— Eu e a minha esposa os conhecemos há anos. Nunca poderíamos ter
imaginado isso. Nunca.
— Logo aqui em Hidden Oaks? É inacreditável. Realmente inacreditável.
— Aterrorizante.
Josh também é entrevistado por outros repórteres, pois sua conversa comigo
o transformou em parte da história.
Meu chefe diz que eu fui o melhor profissional de tênis que ele já contratou,
e que é uma pena descobrir que eu sou um demente.
E Millicent. Ela não aparece na câmera, e eles não mostram nenhuma foto
dela, mas minha esposa emite uma declaração para a imprensa:
Eu e meus filhos pedimos a vocês que respeitem nossa privacidade durante
este período de inimaginável dificuldade. Estou colaborando totalmente com a
polícia e não tenho mais nada a acrescentar no momento.
Ela nem me passou pela cabeça. Agora que estou avaliando a situação toda,
percebo que eu deveria ter imaginado, mas eu não via Crystal há mais de um
ano. Não tivemos qualquer tipo de contato desde que ela parou de trabalhar
para nossa família.
Será que Millicent sabia do beijo? Será que ela matou Crystal por causa de
ciúme? Ou será que Crystal foi apenas um efeito colateral, uma parte menor do
grandioso plano de Millicent?
Acho que nunca vou descobrir. De todas as perguntas que eu quero fazer
para Millicent, esta não está nem entre as dez primeiras.
Meu palpite é que Crystal contou para Millicent. Ou melhor, minha esposa
deve ter torturado Crystal até ela contar.
Uma cena que eu prefiro expulsar do meu pensamento.
A coletiva de imprensa continua, e Claire apresenta um homem cujo nome
reconheço de um documentário sobre Owen. Ele é um especialista em perfis de
criminosos que, depois da fama e da aposentadoria, agora atua como consultor
independente e escreve vários livros sobre crimes hediondos. Este homem —
este homem alto, magro e de aparência decrépita — sobe ao púlpito e afirma
nunca ter encontrado um serial killer como eu.
— Ele mata mulheres que conhece de maneira periférica, como essa
operadora de caixa, a primeira vítima identificada, e é importante notar que
ele também criou uma personalidade diferente, um homem surdo chamado
Tobias, que ele utiliza para selecionar novas vítimas. A variedade de métodos
pode ser o que impediu este criminoso de ser descoberto por tanto tempo.
Ou talvez seja tudo mentira. Mas, na coletiva, ninguém comenta essa
possibilidade.
Pedaço por pedaço, minha vida é toda destruída, como se nunca tivesse
existido. Como se ela não fosse mais do que uma simples fileira de peças de
dominó, um dominó montado por Millicent. E, diante da velocidade em que as
peças estão caindo, não parece muito provável que eu consiga me livrar da
armadilha.
Ainda assim, eu continuo assistindo.
Assisto até meus olhos ficarem embaçados e minha cabeça ameaçar
desmoronar em cima do meu pescoço.
E então eu sei muito bem do que eu preciso: uma prova irrefutável. Uma
amostra de DNA impregnada na arma do crime, ou um vídeo de Millicent
matando uma dessas mulheres.
Mas eu simplesmente não tenho nada.
Eu quero matar Millicent. Quero ir até a minha casa, matar minha mulher,
quero acabar com essa agonia. Estou explodindo de raiva.
Mas é um sentimento diferente. Antes, eu nunca pensei “quero matar uma
mulher” ou até mesmo “quero matar aquela mulher específica”. Meu desejo
não era tão claro, tão sucinto. Estava mais ligado a Millicent, a nós dois, e o
que eu queria retirar da experiência era algo mais complexo.
Agora é simples. Quero que minha esposa morra.
Por isso disparo para a porta da frente sem boné, sem disfarce, não estou
sequer carregando uma arma. Estou com raiva e revolta, e não ligo a mínima se
não tenho um plano. Minha mão já está na maçaneta da porta quando percebo
como estou sendo idiota. Como continuo sendo um idiota.
Eu provavelmente posso atravessar Hidden Oaks sem ser visto. A maioria
dos moradores pensa que estou foragido, e não escondido na minha própria
vizinhança. E, depois de cruzar todo o trajeto até a minha casa, também não
vou ter problemas para entrar, pois tenho a chave. Tudo isso, claro,
considerando que não estou sendo vigiado.
Do outro lado, no entanto, minha esposa. Que eu sei que é um monstro.
Exatamente como o verdadeiro Owen.
E também meus filhos. Eles estão em casa, e os dois acreditam que o
assassino sou eu, e não ela. Eu sou o monstro. E, neste momento, só consigo
mesmo é imaginar a reação das crianças ao me virem matar a mãe delas.
Portanto, eu não abro a porta.
E não preciso apenas de um plano. Preciso de evidências, de provas. Porque,
na televisão, as evidências que me incriminam estão sendo exibidas para todo
mundo ver.
O meu DNA, por exemplo. Não era para ser exatamente uma surpresa, mas
Millicent sempre me impressiona. Venho falando isso desde que nós nos
conhecemos.
Ela conseguiu espalhar meu DNA por toda a igreja. Meu suor é encontrado
na maçaneta da frente, no cadeado da entrada do porão e até no corrimão da
escada. Aparentemente, ela pegou um frasco do meu suor e espalhou em cada
canto do lugar.
Um pouco do meu sangue é encontrado nas estantes alinhadas à parede.
Mais suor nas algemas.
Sangue nas correntes e na terra.
Ela dá a impressão de que eu limpei a maior parte dos vestígios, mas que me
esqueci de alguns locais muito específicos.
Claire participa de uma coletiva de imprensa ao meio-dia para anunciar a
descoberta. Fui oficialmente promovido e agora respondo como suspeito do
crime. O único suspeito.
Ela até diz que eu estou “provavelmente armado” e que sou “certamente
perigoso”.
Depois de horas assistindo o ritual de crucificação celebrado pelos
especialistas, repórteres e antigos amigos, eu finalmente pego o carro e saio de
casa. Parto de Hidden Oaks em direção ao mundo, onde alguém poderá ou não
me reconhecer.
Atravessando a cidade, passo em frente à loja de conveniência onde eu
costumava comprar café. Em vez de parar, dirijo por mais dezesseis
quilômetros na rodovia até outra loja de conveniência, que tem a mesma
máquina automática. Com um boné na cabeça e quase uma semana sem fazer a
barba, entro e me sirvo um copo.
O rapaz do caixa mal ergue os olhos do seu celular. É quase um anticlímax.
Mas também me dá um pouco mais de coragem. Não são todas as pessoas do
mundo que estão atrás de mim. Eu provavelmente posso almoçar em um
restaurante, fazer compras no shopping e ver um filme no cinema antes que
alguém me reconheça. Eu só não acho que seja uma boa ideia.
Assim que volto a Hidden Oaks, não resisto e passo na frente da minha casa.
O jardim está sem brinquedos e a placa de Bem-Vindo não está mais lá no seu
lugar na porta. As persianas estão fechadas e as cortinas também.
Eu me pergunto se Millicent comprou outro frasco de colírio. Ou se
procurou o frasco antigo.
Também me pergunto se Jenna é a única pessoa que ela envenenou.
Eu passei mal algumas vezes. Se Millicent pode deixar a própria filha
doente, ela é capaz de envenenar qualquer outra pessoa.
Bom, de novo, não entro em casa. Ainda não. Volto para a casa de Kekona.
A polícia não está me esperando, e eu também não fui seguido. Lá dentro, a
sala segue na mesma calmaria.
Quase deixo a televisão desligada agora, para dar um tempo, mas não
consigo.
Praticamente todos estão falando do DNA, e a única exceção é Josh. Ele
volta a ser repórter e está entrevistando um patologista criminal. A voz deste
homem não é tão irritante, mas ele é um tanto quanto chato, falando naquele
tom professoral, e a entrevista só fica realmente interessante quando ele
começa a falar dos cortes de papel em Naomi.
— A localização dos cortes de papel é importante para determinarmos o
que os provocou. Nós falamos ‘cortes de papel’ por causa do tipo de corte,
mas temos que considerar que existem também diferentes tipos de papéis. Por
exemplo, Naomi tinha cortes superficiais na pele mais dura, como a sola dos
pés, e cortes mais profundos em áreas mais macias, como a parte de baixo do
braço. Isso indica que o mesmo papel foi utilizado nos ataques, mas não
poderia ser uma folha de papel comum. Tinha que ser uma folha resistente o
suficiente para poder cortar o calcanhar de um pé.
Dou um pulo no sofá como se tivesse recebido um choque. E, de certa
forma, recebi. Eu sei o que Millicent usou para fazer esses cortes.
Sessenta e nove
Raramente Millicent faz alguma coisa por acidente. Tudo tem um motivo por
trás, mesmo que seja só para se divertir um pouco.
Como nesta situação.
Começou há muitos anos, quando ela me perguntou como eu ia protegê-la
dos babacas que tentavam dar em cima dela em aviões.
Eu ia obrigar os caras a ficarem na poltrona do meio com os braços
amarrados e ia fazer neles um monte de cortes de papel usando o cartão das
instruções de emergência.
O cartão das instruções de emergência. O que eu dei para ela no nosso
primeiro Natal. Ela nunca jogou fora.
No seu apartamento antigo, estava colado no espelho do banheiro.
O primeiro lugar onde moramos juntos foi uma casa pequena, de aluguel, e o
cartão ficou na porta da geladeira preso por um ímã bizarro que era um rosto
cheio de olhos.
Quando compramos nossa primeira casa, ela prendeu o cartão na moldura de
um espelho na parede.
E, na nossa casa maior e mais cara, temos dois filhos que não gostam da
nossa piada. Eles acham brega. Por isso Millicent leva o cartão com ela, preso
no quebra-sol do seu carro. Quando o sol bate nos seus olhos, ela abaixa o
cartão. E sempre acaba rindo.
O cartão é o que ela usou para fazer aqueles cortes. Tenho absoluta certeza.
Hidden Oaks não é um lugar fácil para você se esconder. As pessoas sempre
reparam em novos carros, em especial os que simplesmente aparecem e
estacionam. Mas elas não reparam nos corredores ou em quem faz caminhadas.
As pessoas estão sempre começando e interrompendo suas rotinas de
exercícios, então, em um dia qualquer, andando na rua, às vezes você encontra
dez pessoas, às vezes você não encontra nenhuma. Alguns moradores sempre
saem, como Millicent, mas a maioria vai e vem.
Com o mesmo boné, mais barba, calças de moletom folgadas e uma camiseta
tamanho GG — graças a Kekona, que tem uma quantidade extraordinária de
roupas gigantes —, saio pelos fundos do meu esconderijo, pulo a cerca e vou
correndo pela rua.
Faz mais de uma semana desde que eu desapareci e a imprensa continua
vigiando. É impossível para Millicent e as crianças levarem uma vida normal
agora. Ela não pode trabalhar e as crianças não podem ir à escola, mas preciso
descobrir se Millicent está saindo de casa em algum momento. Vai ser bem
mais fácil pegar aquele cartão de instruções se ela por acaso tirar o carro da
garagem e estacionar em algum lugar mais acessível.
As chances da minha ideia dar errado são gigantescas. Talvez ela tenha feito
uma limpeza minuciosa do cartão e não tenha sobrado nenhum DNA nele —
nem dela, nem das mulheres. Ou talvez ela tenha se livrado do cartão, talvez
tenha jogado fora ou queimado.
Pelo bem do meu futuro, espero que não.
Posso não saber tudo o que ela faz, ou tudo o que ela fez, mas sei quem ela é
por dentro. Ela guarda aquele cartão para lembrá-la do nosso casamento. E para
lembrá-la do que ela fez com aquelas mulheres. Millicent realmente gosta da
violência. Agora eu consigo entender minha esposa melhor.
Será que a polícia vai acreditar em mim se eu levar o cartão para eles? Será
que a polícia vai acreditar em mim se o DNA no cartão for de alguma das
mulheres mortas, ou de todas, e de Millicent, mas não o meu? Provavelmente
não.
Será que vão acreditar em mim se eu também contar a eles sobre o prédio
que Millicent comprou através de três empresas diferentes, se eu contar sobre
Denise e a irmã de Owen, se eu mostrar para eles minha agenda nas datas dos
sequestros? Eu estava sempre em casa. E não faço ideia do que as crianças vão
dizer sobre aquelas noites.
Não, eles não vão acreditar em mim. Com meu DNA no porão e diversas
pessoas me identificando como Tobias, sem falar na performance de Millicent,
eles não vão acreditar que sou inocente nem por um segundo. Mas podem
acreditar que Millicent e eu matamos aquelas mulheres juntos, o que pelo
menos manteria meus filhos a salvo.
É minha única chance. Não apenas para me salvar, mas para colocá-la onde
ela merece. Na cadeia ou no inferno, qualquer um dos dois me serve, desde que
seja longe dos meus filhos.
Corro pelo quarteirão paralelo à minha casa, na esperança de ver o carro de
Millicent estacionado nas ruelas entre as residências. Na segunda volta, eu
corro pela rua onde ela dobraria para ir à escola.
No entanto, nada do carro.
Ao longo do dia, verifico de novo, mas não a vejo sair nenhuma vez. O
problema é que não consigo ter certeza. Seria muito mais fácil se eu tivesse
deixado o rastreador no seu carro. Ainda assim, tento, porque preciso. De
repente, corridas e caminhadas se tornaram meus novos passatempos. É uma
pena que eu não tenha adotado aquele cachorro do abrigo de animais. Ter um
cachorro seria incrivelmente útil agora.
Ligo para Andy. Ele parece surpreso ao me ouvir. Talvez surpreso por eu
ainda estar vivo.
— Só tenho uma pergunta — eu digo.
— Manda.
Pergunto se Millicent alguma vez saiu de casa. — Eu suponho que ela não
tem saído nem para trabalhar — eu digo.
Ele hesita antes de responder. — Acho que não. Os vizinhos estão levando
comida todos os dias. É muita gente ao redor. Acho que eles estão entocados,
evitando a mídia.
— Foi o que eu imaginei.
— Por quê? — ele pergunta.
— Não importa. Obrigado mais uma vez. Você não faz ideia do quanto eu
valorizo a sua ajuda.
Ele limpa a garganta.
— Que foi? — eu pergunto.
— Vou ter que pedir para que você não me ligue de novo — quando eu não
digo nada, ele segue falando. — É o DNA. Essa coisa toda ficou muito maior
do que...
— Eu entendo. Não se preocupe.
— Eu acredito em você — ele diz. — Eu só não posso...
— Eu sei. Não vou ligar de novo.
Ele desliga.
A única surpresa é ele ter permanecido ao meu lado durante todo esse tempo.
Não mereço essa amizade. Não depois do que aconteceu com Trista.
O sol começa a se pôr, e resolvo passar pela minha casa uma última vez
antes de me preparar para a invasão noturna. Eu só preciso entrar na garagem e
no carro de minha esposa, mas precisa ser depois de Millicent dormir.
Ter as chaves certas é realmente uma vantagem.
Quinze minutos depois, passo pela quadra paralela à procura de elementos fora
do lugar. Como um carro de polícia sem pintura, por exemplo, pois Claire pode
estar esperando que eu faça exatamente o que estou prestes a fazer. Mas tudo
tranquilo. Nenhum carro incomum, nenhum caminhão a serviço. Nada que eu
não reconheça na vizinhança. Eu sou o único elemento estranho, o barbudo que
está sempre correndo. É surpreendente que ninguém tenha me parado ainda.
Eu volto para a casa de Kekona usando ruas diferentes. É um caminho mais
longo, mas eu usei o caminho mais curto hoje cedo. Quando chego perto da
rotatória que leva até a mansão, fico paralisado.
Um táxi está parado na frente.
O taxista tira bagagens do porta-malas.
Eu escuto a voz da passageira. Kekona voltou de viagem.
Setenta
Ela vai descobrir. Todo mundo vai descobrir.
Em pouquíssimos segundos, Kekona vai perceber que alguém estava na casa
dela. Mais alguns segundos e a polícia vai saber quem era essa pessoa. Meu
carro está na garagem. Minhas digitais estão por todos os lados. Assim como
meu DNA, e o tablet de Millicent que está bem em cima da mesa.
Ah, e minha carteira. Não levei a carteira comigo na corrida. Também está
sobre a mesa.
Volto por onde eu vim e faço correndo todo o trajeto até as casas mais
baratas de Hidden Oaks. Aqui temos uma pequena área verde, na saída do
parquinho infantil. Paro ao lado de um conjunto de árvores e finjo me alongar.
Não tenho para onde ir. Não tenho Andy para ligar, e me esqueci do telefone
na casa de Kekona. Não tenho dinheiro, não tenho amigos, não tenho quase
nenhuma esperança. Mas tenho as chaves. É tudo que eu encontro no meu
bolso.
De qualquer jeito, hoje já seria a noite, a noite para entrar na garagem e
pegar o cartão. Meu plano continua igual, nada mudou. O que mudou é que
preciso de um lugar para me esconder até que Millicent esteja dormindo.
Minha primeira ideia é o clube. Várias saletas e armários que podem me
abrigar até altas horas da madrugada. Sair e entrar é o problema. Câmeras
demais.
O campo de golfe, por outro lado, fica vazio à noite, mas é cheio de espaços
abertos que são visíveis da rua.
E eu nunca vou encontrar um carro destrancado, pelo menos não aqui em
Hidden Oaks. Aqui todo mundo tem carros de última geração, do tipo que tem
sistemas computadorizados que controlam cada pecinha do veículo, inclusive
as travas das portas.
Por um momento avalio a possibilidade de me esconder debaixo de um
carro. Desisto por causa do medo de alguém entrar e sair dirigindo.
Logo depois, ouço sirenes. Estão vindo nesta direção, mas não estão atrás de
mim. Estão indo para a casa de Kekona.
Minhas opções estão diminuindo, e preciso me mexer. Não posso ficar nesta
pequena área verde para sempre. A não ser que eu me enterre no gramado.
De repente, estou pensando até em me esconder no meu próprio quintal. E é
exatamente o que eu faço.
Tudo parece diferente aqui do alto. A vizinhança, os carros, o céu. Minha casa.
Minha cozinha, onde a luz está acesa.
Millicent.
Foi ela quem me convenceu a subir em uma árvore pela primeira vez. Nunca
imaginei que fosse repetir essa façanha, mas aqui estou eu, escondido no
grande carvalho nos fundos do nosso quintal. Para minha sorte, é longe o
bastante da casa, então ninguém escutou as folhas se mexendo enquanto eu
escalava os galhos.
Millicent está limpando a cozinha. Ela está muito distante para que eu possa
enxergar qualquer outro detalhe nela além dos cabelos ruivos e das roupas
pretas. Aposto que ela passa o dia inteiro usando preto agora, principalmente
quando a polícia aparece. De luto por aquelas mulheres, pelo seu marido e pela
destruição da sua família.
Meu sentimento é duplo: estou impressionado e ao mesmo tempo enojado.
Rory entra na cozinha e vai direto para a geladeira. Não mexe o braço
direito, imagino que ainda esteja com a tipoia. Ele pega uma comida e fica lá
por alguns minutos, falando com Millicent.
Jenna não aparece na cozinha em nenhum momento, mas tenho que acreditar
que ela está bem. Que não está doente. Millicent não tem motivo nenhum para
envenená-la hoje.
Minhas pernas começam a sofrer com câimbras e me ajeito um pouco, mas
não faz diferença, porque não posso descer. A luz da cozinha se apaga, mas as
luzes dos quartos continuam acesas. Ainda é cedo demais para dormir.
Ao meu redor, a vizinhança fica em silêncio porque todo mundo já está
dentro de casa. Há poucos carros na rua. É noite de terça-feira, uma noite
pouco popular para grandes eventos sociais. Eu reclino minha cabeça contra o
tronco da árvore e aguardo.
Por volta das dez horas, todos já devem estar na cama. Às onze, eu quase
desço, mas espero mais trinta minutos. Às onze e meia, desço e caminho pelo
limite do jardim, grudado na cerca, percorrendo toda a extensão até a casa.
Quando me dirijo à porta lateral da garagem, olho para o alto.
A luz do quarto de Rory está apagada, a janela está fechada.
Quase nunca usamos essa porta lateral da garagem. Estou um pouco exposto,
pois ela fica bem em frente ao portão do quintal. Coloco a chave na fechadura e
ela abre com um estalo. O barulho parece muito mais alto do que
provavelmente é, e fico paralisado por um segundo antes de entrar.
Agora estou parado dentro da garagem, próximo à porta, e espero meus
olhos se acostumarem para não precisar acender a luz.
O contorno do carro de Millicent entra em foco. Seu híbrido de luxo está
estacionado no centro da garagem, porque deixar espaço para o meu carro não
é mais uma necessidade aqui. Caminho então em volta do veículo, contente
pela janela do motorista estar aberta. Não vou nem precisar abrir a porta.
Apenas estendo a mão e abaixo o quebra-sol. Alguma coisa cai no banco.
Eu passo a mão pelo assento, mas não encontro o cartão das instruções, nem
tampouco algum objeto que se pareça com um cartão. Abro a porta do carro.
De imediato a luz interna se acende, e vejo algo sobre o banco de couro bege.
Um brinco de vidro azul.
Petra.
Ela sabia. Millicent sabia das duas mulheres com quem eu dormi.
Rory nunca contou para Jenna. Ele contou para a mãe.
É a minha derrota. Quer dizer, a palavra derrota não é capaz de descrever meu
estado. Devastado. Estou simplesmente devastado.
Por fim, acabo me deitando no chão de cimento, curvado em posição fetal.
Não tenho nenhuma vontade de me levantar, muito menos de correr. É mais
fácil ficar aqui e esperar até que a polícia me encontre.
Eu fecho meus olhos. O chão está frio, quase gelado, e o ar é uma
combinação de poeira, óleo e um pouco de fumaça. Não é reconfortante, não é
agradável. E, mesmo assim, eu não me mexo.
Uma hora se passa, ou duas. Não faço ideia. Talvez tenham sido apenas
cinco minutos.
Meus filhos são os grandes motivos que me fazem levantar.
E o que Millicent pode fazer com eles.
Setenta e um
A casa não está totalmente escura. A luz dos postes na rua e do luar penetra
pelas janelas, permitindo que eu veja o suficiente para não tropeçar. Para não
fazer barulho. Ainda que eu saiba que serei preso muito em breve, não posso
ser preso agora.
No pé da escada, eu paro para escutar. Ninguém no segundo piso está se
mexendo. Eu subo.
O quinto degrau range um pouco. Talvez eu soubesse disso, ou talvez eu
nunca tenha prestado atenção.
Continuo subindo.
O quarto de Jenna está à esquerda, seguido pelo quarto de Rory e, no final
do corredor, o quarto principal.
Começo pela minha filha.
Ela está deitada de lado, virada para a janela, e sua respiração é regular, bem
tranquila. Seu edredom branco enorme está amontoado em cima dela, como se
Jenna estivesse mergulhada em uma nuvem. Quero tocar em minha filha, mas
sei que é uma péssima ideia. Então eu apenas observo, memorizando tudo. Se
me colocarem na prisão para o resto da vida, é assim que quero me lembrar da
minha garotinha. Segura. Confortável. Saudável.
Depois de vários minutos, eu saio e fecho a porta.
Rory está atirado na cama, espalhado por todos os lados. Praticamente um
polvo. O braço com a tipoia é a única parte do corpo mais protegida. Ele dorme
com a boca aberta, mas não ronca, o que não deixa de ser estranho. Eu observo
Rory da mesma forma que observei Jenna, memorizando tudo. Torcendo para
que meu garotinho se torne um homem melhor do que seu pai. Torcendo para
que ele jamais conheça uma mulher como Millicent.
Não posso culpá-lo por contar para a sua mãe. Porque a culpa é minha. Por
Petra, por levar os brincos. Por tudo que nos aconteceu.
Saio do seu quarto, fecho a porta em silêncio e sigo pelo corredor. Imagino
Millicent na cama, encurvada debaixo dos cobertores, com o cabelo ruivo
espalhado pelo travesseiro branco. Posso ouvir sua respiração mais pesada
quando ela está em sono profundo. E posso ver o choque nos seus olhos
quando ela acorda e sente minhas mãos em sua garganta.
Porque, sim, eu vou matar minha esposa.
Quando Millicent descobriu minha traição, ela estourou o limite dela.
Hoje à noite, eu estourei o meu.
Eu me aproximo da porta fechada do quarto e me inclino, escutando.
Silêncio total. Quando abro a porta, a primeira coisa que eu vejo é a cama.
Vazia.
O primeiro instinto é olhar atrás da porta. Talvez por saber que Millicent
pode me esfaquear pelas costas.
Nada.
— Já estava na hora.
Sua voz vem do outro lado do quarto. Vejo uma sombra, a sua silhueta.
Millicent está sentada perto da janela, no escuro. De vigia, esperando por mim.
— Eu sabia que você ia aparecer — ela diz.
Dou um passo à frente. Mas é um passo curto. — É mesmo?
— Claro. É o que você faz.
— Voltar para casa?
— Você não tem mais nenhum lugar para ir.
A verdade me atinge como um tapa. O pior é que eu posso ouvir seu sorriso.
Está escuro demais para enxergar até ela acender a luz e se levantar.
Millicent está usando sua longa camisola de algodão. É branca e rodopia ao
redor dos seus pés. Eu não estava preparado para encontrá-la acordada. Eu nem
trouxe uma arma.
Mas ela trouxe.
O revólver em sua mão está ao lado do seu corpo, apontado para o chão. Ela
não está me apontando a arma. Mas também não está escondendo.
— É esse o seu plano? — eu pergunto, apontando para o revólver. — Me
matar em legítima defesa?
— Não é o que você veio fazer aqui? Me matar?
Levanto as minhas duas mãos. Vazias. — Não parece.
— Você está mentindo.
— Estou? Talvez eu só queira conversar.
Ela ri. — Você não pode ser tão estúpido assim. Se você fosse, eu não teria
casado contigo.
A cama está entre nós. É uma cama king size, e me pergunto se consigo
pular por cima do colchão antes que Millicent levante a arma e atire em mim.
Provavelmente não.
— Não encontrou o cartão de emergência, não é? — ela pergunta.
Não digo nada.
— Rory me deu aquele brinquinho barato — ela diz. — Ele achou que você
estava me traindo, mas agora ele já entendeu que você saía de madrugada para
matar aquelas mulheres. É até engraçado pensar que ele não faz a menor ideia
do quanto estava certo.
Eu balanço a cabeça, tentando absorver o impacto. — Por quê...
— Deixei aquela mulher viva pra todo mundo saber do traidor safado que
você é — ela diz.
Petra.
Petra ainda está viva porque fez sexo comigo. E ela nunca vai saber disso.
— Você imagina — Millicent diz — a quantidade de terapia que o nosso
filho vai ter que fazer?
Não consigo compreender o tamanho da sua loucura, o delírio dos seus
métodos. A quantidade atordoante de paciência. De disciplina. — Por que você
simplesmente não pediu o divórcio? — eu pergunto. — Por que fazer tudo
isso?
— Fazer o quê? Montar nossa casa, cuidar das crianças, organizar nossa
vida? Controlar os gastos, preparar o jantar? Ou você está falando de Owen?
Porque o plano original era trazer Owen de volta. Porque era uma coisa nossa
— ela dá um passo se aproximando da cama, mas continua do outro lado do
colchão.
— Millicent...
— E você estava tão disposto. Eu quase não precisei fazer nada. Não fui eu,
você foi quem matou Holly.
— Ela ameaçou você. Ameaçou a nossa família.
Millicent joga a cabeça para trás e ri. De mim.
Fico olhando para ela, lembrando todas as histórias que Millicent um dia me
contou sobre a irmã. Os machucados, os acidentes, os medos. O corte na sua
mão, entre o polegar e o dedo indicador. As peças agora se encaixam do jeito
certo, como se antes o quebra-cabeça estivesse montado todo fora de ordem.
Millicent provocou o caos. Holly apenas levou a culpa.
— Meu Deus — eu digo. — Holly nunca foi uma ameaça, foi?
— Minha irmã não era nada além de uma menina chorona, que mereceu tudo
que eu fiz para ela.
— Ela bateu o carro porque você torturava ela — eu digo. — Não foi o
contrário.
Millicent sorri.
Tudo me atinge de uma vez só. É forte o bastante para me deixar tonto.
Millicent incriminou a irmã da mesma maneira que me incriminou.
Ela sempre torturou pessoas. Sua irmã. Lindsay. Naomi.
Jenna. Talvez me manter distante não tenha sido o único motivo para ela
envenenar a própria filha.
E a pessoa com quem ela se casou. É bem possível que ela seja a culpada por
vários itens do meu histórico de doenças.
Porque Millicent gosta de machucar as pessoas.
— Você é monstruosa — eu digo.
— Engraçado, porque a polícia está dizendo a mesma coisa sobre você.
O olhar em seu rosto é triunfante e, pela primeira vez, vejo como ela é feia.
Não consigo acreditar que um dia eu achei Millicent bonita.
— Descobri o colírio — eu digo. — Aquele na despensa.
Seus olhos faíscam.
— Você está envenenando a nossa filha — eu digo.
Ela não esperava por essa. Não achou que eu ia descobrir isso.
— Você é realmente louco — ela diz. Com um pouco menos de convicção
agora.
— Eu sei que é verdade. Você está envenenando ela desde o início.
Ela balança a cabeça. Pelo canto do olho, vejo algo se mover. E me viro para
a porta.
Jenna.
Setenta e dois
Ela está parada na soleira da porta usando seu pijama favorito, aquele laranja e
branco. Seu cabelo está espetado para os lados e seus olhos estão arregalados.
Acesos. Ela está encarando sua mãe.
— Você me envenenou? — ela pergunta. Sua voz é tão baixa que parece a
voz de uma menininha. Uma menininha de coração partido.
— Claro que não, meu bem — Millicent diz. — Se alguém te envenenou,
esse alguém foi o seu pai.
Jenna se vira para mim. Seus olhos estão ficando cheios de lágrimas.
— Pai?
— Querida, eu não fiz nada. Não fui eu.
— Ele está mentindo — Millicent diz. — Ele te envenenou, e ele ainda
matou aquelas mulheres.
Eu encaro Millicent, sem reconhecer a mulher com quem eu me casei. Ela
me encara também. Eu falo para minha filha: — Ela colocou colírio na sua
comida para fazer você passar mal.
— Você é louco — Millicent diz.
— É só você se lembrar, querida — eu digo para Jenna. — Todas aquelas
vezes que você ficou doente, quem preparou sua comida? Quantas vezes eu
cozinhei?
Jenna fica me olhando, e então seus olhos migram de volta para sua mãe.
— Querida, não escute seu pai — Millicent diz.
— O que está acontecendo?
Tomamos um susto com a nova voz.
É Rory.
Ele caminha por trás de Jenna. Seus olhos estão sonolentos e ele esfrega o rosto
enquanto olha para mim, para sua mãe e para sua irmã, parecendo confuso.
Meus filhos viram a própria vida implodir no decorrer da semana. O pai deles
foi acusado de ser um serial killer e a mãe deles deve ter feito de tudo para
garantir que eles acreditassem na história. Não sei em quem as crianças vão
confiar agora.
— Pai? — ele diz. — Por que você está aqui?
— Eu não fiz o que eles estão dizendo, Rory. Você tem que acreditar em
mim.
— Pare de mentir — Millicent diz.
Jenna olha para seu irmão. — O pai disse que a mãe me envenenou.
— Envenenou mesmo — eu digo.
— É mentira dele — Millicent diz. — Ele só sabe mentir.
Rory olha para ela e pergunta: — Você já chamou a polícia?
Ela sacode a cabeça. — Ainda não consegui. Ele acabou de entrar no quarto.
— E você estava com uma arma na mão assim do nada? — eu pergunto.
Os olhos de Rory ficam arregalados quando ele vê a arma ao lado de
Millicent. A mão dela por enquanto continua abaixada.
— Ela estava esperando a hora que eu ia aparecer — eu digo. — Para ela me
matar e dizer que eu ataquei ela.
— Cala a boca — Millicent diz.
— Mãe? — Jenna diz. — Ele tá falando a verdade?
— O seu pai veio aqui para me matar.
Eu balanço a cabeça. — Isso não é verdade. Eu vim aqui para resgatar vocês
— eu digo. E vou ainda mais longe, porque eles precisam saber: — Sua mãe
está tentando me incriminar. Eu não matei aquelas mulheres.
— Espera aí — Rory diz. — Não dá para entender...
— O que está acontecendo? — Jenna grita.
— Chega — Millicent diz. Sua voz é seca e severa.
Todos nós calamos a boca, como a gente sempre faz quando ela diz “chega”.
O quarto entra em um silêncio brutal a ponto de um poder ouvir a respiração do
outro.
— Crianças — Millicent diz. — Saiam daqui agora. Vão lá para baixo.
— O que você vai fazer? — Jenna pergunta.
— Lá para baixo.
— Meu pai não tem uma arma — Rory diz.
De novo eu levanto as minhas mãos vazias. — Não tenho nem um celular.
Rory e Jenna se viram para a mãe.
Millicent me fuzila com o olhar ao passar por eles e levantar a mão. Ela
aponta a arma para mim.
— Mãe! — Jenna grita.
— Parem com isso — Rory pula na minha frente, se colocando bem no meio
de nós dois. Ele tira o braço da tipoia e joga ambos os braços para o alto.
Millicent não abaixa a mão. Ela levanta a outra e segura o revólver com as
duas mãos. A arma agora está apontada para o nosso filho.
— Sai da frente — ela diz.
Ele sacode a cabeça.
— Rory, você tem que sair daqui — eu digo.
— Não. Larga a arma, mãe.
Millicent dá um passo para frente. — Rory.
— Não.
Posso ver a raiva nos olhos dela, a raiva que inclusive consome seu rosto.
Sua pele já está mudando para um tom de vermelho que não é muito natural.
— Rory — ela diz. — Sai.
Sua voz é um rosnado. Eu vejo Jenna ter um pequeno sobressalto.
Rory não se mexe. Eu levanto a mão, com a intenção de pegar seu braço e
tirá-lo da minha frente. Exatamente neste momento, Millicent mira e dispara
um tiro. A bala vai direto na nossa cama.
Jenna grita.
Rory fica paralisado.
Millicent dá mais um passo na nossa direção.
Ela perdeu o controle. Posso ver o desequilíbrio nos seus olhos, escuros
como breu. Se for preciso, ela vai atirar em Rory.
Vai atirar em todo mundo aqui.
Eu pulo para frente e derrubo Rory, cobrindo o seu corpo com o meu. Assim
que caímos no chão, vejo uma mancha laranja com bolinhas atravessando o
quarto. E um brilho de metal no meio desta mancha.
Jenna. Ela está com a faca que vivia escondida debaixo da sua cama. Eu
sequer a vi em sua mão.
Ela corre na direção de Millicent, com a faca levantada, e se choca contra a
mãe. As duas imediatamente caem para trás na cama.
A arma dá um segundo disparo.
Mais um grito.
Eu me levanto de qualquer jeito. Rory está logo atrás de mim. Ele pega a
arma, que caiu da mão de Millicent. Eu agarro Jenna e afasto minha filha do
colchão. A faca vem junto com ela. Estava dentro do corpo de Millicent.
E aí o sangue.
Muito sangue.
Millicent está no chão agora, com as mãos apertando o abdômen. O sangue
está escorrendo.
Atrás de mim, Jenna grita e eu me viro para ver se ela está machucada. Rory
olha para mim balançando a cabeça e aponta para a parede. A segunda bala
está alojada lá, bem longe da minha filha.
— Tira ela daqui — eu digo.
Rory tira Jenna do quarto à força. Ela está histérica e não para de gritar pelo
corredor, largando a faca ensanguentada na entrada do quarto.
Eu me viro para Millicent.
Ela está deitada no chão, me encarando. Sua camisola branca está se
tornando vermelha bem diante dos meus olhos. Ela se parece exatamente com a
minha esposa e, ao mesmo tempo, completamente diferente.
Ela abre a boca e tenta falar. Sai sangue. Millicent olha para mim com olhos
loucos. Ela não deve durar muito. Alguns minutos, alguns segundos, e ela sabe
disso. Ela continua tentando dizer alguma coisa.
Pego a faca que Jenna deixou cair e cravo com força, afundando a lâmina no
peito da minha esposa.
A última palavra neste quarto não vai ser de Millicent.
Epílogo
Três anos depois
O mapa na parede mostrava o mundo inteiro, da Austrália às Américas, do
Polo Norte ao Polo Sul. Resolvemos não usar alfinetes, pois agora nós todos
temos aversão a objetos de metal com extremidades pontiagudas. Em vez
disso, colocamos em prática aquele antigo jogo de prender o rabo no burro e
colamos adesivos nos rabos feitos de tecido. Vendados, cada um tentou uma
vez. Jenna foi a primeira, seguida por Rory. Eu fui o último.
Dei um suspiro de alívio quando dois dos primeiros rabos grudaram na
Europa. Tanto o Ártico quanto a Antártida nunca me pareceram muito
convidativos.
Penduramos então um mapa da Europa e jogamos novamente, e seguimos
repetindo o processo até termos um novo lugar para morar: Aberdeen, Escócia.
Nossa decisão foi tomada.
Isso foi há dois anos e meio, logo depois de eu finalmente ser liberado pela
polícia. Não achei que seria. Na verdade, achei que Millicent seria considerada
mais uma das minhas vítimas. Ninguém soube que Jenna a esfaqueou, até
porque eu limpei a faca para que as únicas digitais fossem as minhas. E eu
também confessei. Disse à polícia que matei minha esposa em legítima defesa,
porque ela era a verdadeira assassina. Nunca imaginei que alguém fosse
acreditar.
E, de fato, eles não teriam acreditado se não fosse por Andy, que
testemunhou a meu favor. Eu nem sabia usar um tablet, ele disse, então como é
que eu iria matar tantas mulheres sem ser descoberto?
Kekona também me ajudou, garantindo para as autoridades que eu mentia
muito mal e jamais poderia ser um serial killer. Ela ainda mencionou que eu era
um excelente professor de tênis.
E meus filhos. Jenna contou à polícia que escutou a discussão e que sua mãe
admitiu ter tentado me incriminar. Rory disse para eles que foi legítima defesa,
porque sua mãe estava prestes a atirar nele. Nenhum dos dois contou à polícia
o que realmente aconteceu. Eles acharam melhor ignorar certos detalhes.
E seria ótimo dizer que a polícia acreditou em todos que me apoiaram, que
as autoridades sabiam que eu não poderia ser um assassino. Mas foi o DNA.
Todas as evidências coletadas no porão da igreja passaram por rigorosos testes
no laboratório do FBI, localizado em Quantico, Virgínia. O resultado
confirmou o que todo mundo já sabia: com certeza o DNA era meu.
As amostras vieram de duas fontes: suor e sangue. E me salvaram. Ou
melhor, a falta de conhecimento de Millicent me salvou. Os testes do FBI
revelaram que todas as amostras de sangue e suor tinham exatamente a mesma
quantidade de decomposição química. Parece que Millicent coletou os meus
fluidos em apenas uma ocasião e em seguida borrifou o material pela igreja
inteira, tudo ao mesmo tempo. O laudo, portanto, indicou que eu só poderia ter
estado naquele porão uma única vez, pois o DNA foi depositado todo no
mesmo dia. Uma impossibilidade, já que eu supostamente matei aquelas
mulheres em períodos diferentes.
É uma pena que Millicent nunca vai saber o quanto ela foi descuidada.
Assim que fui inocentado, vendemos a casa e fomos embora de Hidden
Oaks. O primeiro desafio foi nos acostumarmos com o frio. E com a neve.
É a primeira vez que moramos em um lugar com neve, mas agora ela toma
toda a paisagem. No início, é leve e fofa, como um algodão-doce. Quando ela
encobre a cidade, o ambiente parece realmente sereno. É como se Aberdeen
subisse aos céus.
No dia seguinte, ela fica suja e lamacenta, e a cidade inteira parece coberta
de cinzas.
Nosso terceiro inverno está chegando, e já estou um pouco mais acostumado
com as condições climáticas. Rory ainda não se acostumou. Ainda ontem, ele
me mostrou o site de uma faculdade na Geórgia.
— Muito longe — eu disse.
— Nós estamos na Escócia. Tudo é longe.
Ele tem certa razão. Mas essa é a razão: ficar longe da nossa antiga vida.
Nós estamos bem. Posso dizer isso sem nenhum medo de errar.
Jenna frequenta um novo terapeuta e toma alguns medicamentos. Acho
incrível que ela consiga ser uma adolescente funcional, considerando o que
Millicent fez para ela. Rory tem seu próprio terapeuta, assim como eu. De vez
em quando, participamos de uma sessão em grupo, e ainda não nos agredimos.
Não conto a eles que sinto falta dela. Às vezes. Sinto falta da família que ela
construiu, da estrutura, da forma como ela nos mantinha organizados. Mas não
o tempo todo. Agora nós não temos tantas regras, mas ainda temos algumas.
Sou eu que decido, então posso fazer o que eu quiser com elas. Posso inclusive
quebrá-las. Ninguém está por perto para me dizer se estou certo ou errado.
Hoje estou em Edimburgo, uma cidade maior do que Aberdeen. Vim
conversar com meu advogado tributário. Uma mudança para outro país é um
negócio complicado. Os impostos devem ser pagos em diversos lugares,
dependendo de onde o dinheiro está guardado. Mas nossa casa em Hidden
Oaks foi vendida por uma boa quantia, estamos mais do que confortáveis no
momento. Eu também dou aulas de tênis. É um esporte muito forte na Escócia,
embora na maior parte do tempo seja jogado em quadras cobertas.
Quando minha reunião com o advogado termina, ainda tenho um tempo
antes de pegar o próximo trem para Aberdeen. Paro em um pub perto da
estação e gesticulo para o barman pedindo cerveja tipo ale, que sai direto da
torneira. Ele enche uma caneca com um líquido escuro e encorpado, diferente
de qualquer cerveja que já bebi na Flórida.
A mulher ao meu lado tem cabelos escuros e pele clara. Ela está vestida
como quem acabou de sair do trabalho e está tomando uma bebida antes de ir
para casa. Posso sentir o seu alívio pelo dia estar quase terminando.
Depois de meia bebida, ela olha para mim e sorri.
Eu também dou um sorriso.
Ela desvia o olhar e depois me olha outra vez.
Pego meu celular, digito a mensagem e deslizo o telefone na direção dela
pela bancada do bar.
Olá. Meu nome é Quentin.
Agradecimentos
Assim que me sentei para escrever este negócio aqui, percebi que não fazia
ideia por onde começar. Nunca escrevi agradecimentos antes, mas o que eu
com certeza sei é que muitas e muitas pessoas trabalharam duro para levar este
livro às suas mãos. Nunca vou conseguir agradecer a elas do jeito certo, mas
nada me impede de tentar.
Minha agente, Barbara Poelle. Sem ela, Minha adorável esposa não seria um
livro publicado. Parece que ela é tão perturbada quanto eu (talvez mais) e é
louca o bastante para dar uma chance a uma ninguém como eu.
Minha editora, Jen Monroe. Ela deixou este livro melhor, pegou todos os
meus erros e não permitiu que eu simplesmente fugisse da batalha. Meu
coração dispara toda vez que vejo o nome dela na minha caixa de mensagens,
mas isso é uma coisa boa.
Todos na Berkley. Sou muito grata a vocês por terem resolvido publicar este
livro e por todo o tempo e recursos que dedicaram a ele.
Meus amigos, parceiros de crítica e colegas escritores, sem os quais eu não
estaria em lugar algum. Começando por Rebecca Vonier, que não me deixou
desistir deste livro. Eu jamais teria terminado se não fosse por ela, e ele
também nunca seria publicado. Marti Dumas, que apontou todos os problemas
com a história e os personagens e sempre teve razão. Laura Cherry, que
reparou em cada coisinha mínima e me avisou. E Hoy Hughes, que deu início
ao grupo de escritores onde conheci todas essas pessoas maravilhosas.
Há muitos, muitos outros que se deram o trabalho de ler e expressar opiniões
sobre o meu texto (com críticas geralmente negativas). Nem me arrisco a citar
cada uma dessas pessoas, pois vou acabar me esquecendo de alguém, mas
vocês sabem quem vocês são.
Todos os blogueiros, escritores, resenhistas e cada pessoa que teve este livro
nas mãos. Antes de mais nada, sou uma leitora. Agradeço pela alegria que os
livros já me trouxeram e agradeço por qualquer pessoa que queira ler as minhas
palavras.
Não posso deixar de citar ainda a minha chefe no trabalho e minha amiga de
longa data, Andrea, que sempre me apoiou.
E por último, mas definitivamente não menos importante, a minha família.
Minha mãe, que sempre está ao meu lado, não importa em qual aventura louca
eu me jogue. E meu irmão, que me fez ser mais forte.
Sobre a autora
Samantha Downing vive em Nova Orleans, onde está furiosamente digitando
seu próximo thriller.
Este livro foi elaborado pela
TAG — Experiências Literárias em
parceria com a editora Dublinense.