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Minha adorável esposa
Sobre a autora
Copyright © 2019 Samantha Downing Todos os direitos reservados, incluindo o direito de reprodução
total ou parcial Edição publicada mediante acordo com Berkley, um selo da Penguin Publishing Group,
uma divisão da Penguin Random House LLC
Título original: My lovely wife
CONSELHO EDITORIAL Gustavo Faraon e Rodrigo Rosp CAPA E PROJETO GRÁFICO Luísa Zardo REVISÃO DA TRADUÇÃO Davi
Boaventura REVISÃO Raquel Belisario e Rodrigo Rosp FOTO DA AUTORA Jacqueline Dallimore
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
_______________________________________________
D751m Downing, Samantha Minha adorável esposa / Samantha Downing ; trad. Hilton Lima. — Porto
Alegre : Dublinense, 2020.
384 p. ; 21 cm.
ISBN: 978-65-5553-001-8
1. Literatura Norte-Americana. 2. Romance Policial.
3. Romance Norte-Americano. I. Lima, Hilton. II. Título.

CDD 813.5
_______________________________________________
Catalogação na fonte: Ginamara de Oliveira Lima (CRB 10/1204)
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Dublinense Ltda.
Av. Augusto Meyer, 163 sala 605
Auxiliadora • Porto Alegre • RS
contato@dublinense.com.br
Um
Ela está me olhando. Seus olhos azuis são cristalinos, descem rápido para a sua
bebida e se erguem de novo. Eu olho para a minha própria bebida e posso
sentir que ela olha para mim, querendo saber se estou tão interessado quanto
ela. Faço contato visual e dou um sorriso para mostrar que estou. Ela sorri de
volta. A maior parte do seu batom se foi, é agora uma mancha avermelhada na
borda do copo. Caminho até lá e sento no banco ao seu lado.
Ela brinca com os cabelos. São genéricos tanto na cor como no volume. Seus
lábios se movem, ela diz olá e seus olhos brilham. Eles parecem iluminados
por dentro.
Fisicamente, sou atraente para ela da mesma maneira que seria para a
maioria das mulheres neste bar. Estou com trinta e nove anos, em excelente
forma, com cabelos em profusão e um par marcante de covinhas, e meu terno
me serve como uma luva. É por isso que ela olhou para mim, por isso que ela
sorriu, por isso que ela está feliz por eu ter me oferecido para ser sua
companhia. Sou o homem que ela tanto deseja.
Eu deslizo meu telefone na bancada do bar até ela. Ele mostra uma
mensagem:
Olá. Meu nome é Tobias.

Ela lê e enruga a testa, olhando de lá para cá entre o telefone e eu. Eu digito


outra mensagem.
Eu sou surdo.

Suas sobrancelhas saltam para o alto, ela cobre a boca com uma mão e na
sua pele brota aquele tom rosado. O constrangimento parece igual em todo
mundo.
Ela balança a cabeça. Perdão, mil perdões. Ela não sabia.
Claro que não. Como você ia saber?
Ela sorri. Não é um sorriso completo.
Já não sou mais a imagem em sua cabeça, não sou mais o homem que ela
fantasiava, mas agora ela não sabe bem o que fazer.
Ela pega o meu telefone e digita uma resposta.
Eu me chamo Petra.

É um prazer te conhecer, Petra. Você é russa?

Os meus pais eram.

Eu gesticulo com a cabeça e dou um sorriso. Ela gesticula com a cabeça e dá


um sorriso. Posso ver a mente dela se debatendo.
Ela preferia não estar comigo. Quer encontrar um homem que possa ouvir
sua risada e que não precise digitar as palavras.
Ao mesmo tempo, sua consciência a manda não discriminar. Petra não quer
ser a mulher superficial que recusa um homem por ele ser surdo. Ela não quer
me rejeitar como tantas outras fizeram.
Ou isso é o que ela acredita.
Sua luta interior é como uma peça de três atos que se desenvolve diante dos
meus olhos, e eu sei o final. Na maioria das vezes, pelo menos.
Ela fica.
Sua primeira pergunta é sobre minha audição, ou sobre a falta dela. Sim, sou
surdo de nascença. Não, nunca escutei nada — nem uma risada, nem uma voz,
nem o latido de um filhotinho ou um avião passando pelo céu.
Petra faz uma cara triste. Ela não percebe o quanto sua reação é
condescendente, e não digo nada para ela, porque ela está se esforçando.
Porque ela fica.
Ela pergunta se eu posso ler lábios. Eu concordo com a cabeça. Ela começa a
falar.
— Quando eu tinha doze anos, quebrei minha perna em duas partes.
Acidente de bicicleta — a boca dela se movimenta da forma mais exagerada e
grotesca. — Enfim, tive que usar gesso do pé até a coxa — ela para, desenha
uma linha na coxa, caso eu tenha dificuldade de entender. Eu não tenho, mas
aprecio a gentileza. E a coxa.
Ela continua: — Fiquei sem caminhar por seis semanas. Na escola, eu tive
que andar de cadeira de rodas, porque o gesso era pesado demais para eu usar
muletas.
Eu dou um sorriso, meio que imaginando a pequena Petra com um grande
gesso. Meio que imaginando onde esta triste conversa vai chegar.
— Não estou falando que eu sei como é viver numa cadeira de rodas, ou que
eu sei como é ter qualquer tipo de deficiência permanente. É que eu sempre
sinto como se... Bom, parece que eu tive um gostinho do que seria, entende?
Eu concordo.
Ela sorri aliviada, com medo de que sua história pudesse ter me ofendido.
Eu digito:
Você é muito sensível.

Ela encolhe os ombros. Fica radiante com o elogio.


Tomamos outro drinque.
Eu conto a ela uma história que não tem nada a ver com ser surdo. Falo do
meu animal de estimação na infância, um sapo chamado Sherman. Era um
sapo-boi que sentava na pedra mais alta da lagoa e devorava todas as moscas.
Nunca tentei domesticar Sherman; eu apenas o observava, e às vezes ele me
observava também. Nós dois gostávamos de nos sentar um do lado do outro, e
comecei a dizer que ele era meu animal de estimação.
— O que aconteceu com ele? — Petra pergunta.
Eu encolho os ombros.
Um dia não tinha ninguém na pedra. Nunca mais o vi.

Petra diz que isso é uma coisa triste. Digo para ela que não é. Triste seria
encontrá-lo morto e ser obrigado a enterrar o bicho. Nunca precisei fazer algo
assim. Eu simplesmente concluí que ele foi para uma lagoa maior com mais
moscas.
Ela gosta do que falei e diz isso para mim.
Não conto a ela tudo sobre Sherman. Por exemplo, ele tinha uma língua
comprida que disparava tão rápido que eu mal conseguia ver, embora eu
sempre quisesse pegar. Eu costumava ficar sentado em frente à lagoa pensando
no quanto essa ideia era errada. Quão terrível seria tentar agarrar a língua de
um sapo? Ele iria se machucar? Se ele morresse, seria assassinato? Nunca
tentei pegar a sua língua e, de qualquer forma, provavelmente não conseguiria,
mas pensei no assunto. E esse pensamento fez eu me sentir como se não fosse
um amigo tão bom assim para Sherman.
Petra me conta sobre seu gato, Lionel, cujo nome é o mesmo do gato que ela
tinha na infância, também Lionel. Digo a ela que a coincidência é engraçada,
mas não tenho lá tanta certeza assim. Ela me mostra fotos. Lionel é um gato
bicolor, com o rosto dividido em preto e branco. Ele é corpulento demais para
ser bonitinho.
Ela continua a falar e muda a conversa para o seu trabalho. Ela cria a marca
de produtos e de empresas, e diz que é tanto a coisa mais fácil quanto a mais
difícil que existe. Difícil no começo, porque é complicado demais fazer as
pessoas se lembrarem de algo, mas, depois que mais pessoas começam a
reconhecer a marca, fica fácil.
— Em determinado momento, nem importa mais o que a gente está
vendendo. A marca se torna mais importante do que o produto — ela aponta
para o meu celular e pergunta se eu comprei o aparelho por causa do nome ou
porque gosto do telefone.
As duas coisas?

Ela sorri. — Viu? Você já nem sabe mais.


Acho que não.

— O que você faz?


Contador.

Ela concorda com a cabeça. É a profissão menos excitante do mundo, mas é


sólida, estável e algo que um cara surdo pode fazer com facilidade. Os números
não falam com uma voz.
O barman se aproxima. Ele é limpo e com boa aparência, tem idade de
universitário. Petra se encarrega dos pedidos, e é porque eu sou surdo. As
mulheres sempre acham que eu preciso de cuidados. Gostam de fazer as coisas
para mim porque acham que sou fraco.
Petra garante mais duas bebidas para nós dois e um novo prato de petiscos, e
sorri como se estivesse orgulhosa de si. Isso me faz dar uma risada. Silenciosa,
mas ainda assim uma risada.
Ela se inclina na minha direção e põe a mão no meu braço. Deixa a mão ali.
Ela esqueceu que eu não sou o homem ideal para ela, e nosso futuro agora é
previsível. Não demora muito até irmos para a casa dela. A decisão é mais fácil
do que deveria ser, embora não por eu achá-la particularmente atraente. É a
escolha. Ela me dá o poder de decidir, e agora, neste momento, eu sou o
homem que diz sim.
Petra mora no Centro, perto do bar, no meio daqueles anúncios todos
exibindo promoções. A casa dela não é tão arrumada quanto eu imaginava.
Vejo bagunça por todos os lados: papéis e roupas e louças. Isso me faz pensar
que ela perde as chaves toda hora.
— Lionel está em algum lugar aqui. Provavelmente se escondendo.
Não saio procurando aquele gato gordo.
Ela anda rápido, largando a bolsa em um lugar e tirando os sapatos em outro.
Surgem duas taças, cheias de vinho tinto, e ela me leva para o quarto. Ela vira
o rosto para me olhar, sorrindo. Petra se tornou mais atraente — mesmo o seu
cabelo genérico parece cintilar. É o álcool, sim, mas também é a felicidade
dela. Tenho a sensação de que ela não se sente feliz assim há um tempo, e não
sei ao certo o porquê. Petra é atraente o bastante.
Ela se encosta em mim, com seu corpo quente, com seu hálito encharcado de
vinho. Pega a taça da minha mão e a coloca de lado.
Eu só termino de beber o vinho muito mais tarde, quando estamos no escuro
e a única luz é a do meu telefone. Digitamos de lá para cá, fazendo graça do
fato de não nos conhecermos.
Eu pergunto:
Cor predileta?

Verde-limão. Sorvete?

Tutti-frutti.

Tutti-frutti? Aquele azul?

Sim.

Quem é que responde isso?

Qual seu predileto?

Baunilha. Pizza?

De presunto.

Pra mim chega.

Chega?

Espera, ainda estamos falando de pizza?

Não estamos falando de pizza.


Mais tarde, ela pega no sono primeiro. Penso em ir embora e então em ficar,
e a ideia me martela por tanto tempo que acabo cochilando.
Quando acordo, ainda está escuro. Saio devagar da cama sem acordar Petra.
Ela dorme com o rosto para baixo, com uma perna de lado e o cabelo
espalhado pelo travesseiro. Não consigo decidir se gosto dela ou não, e assim
resolvo não tomar decisão alguma. Não preciso decidir.
Na mesa de cabeceira, os brincos dela. São feitos de vidro colorido, um
redemoinho de tons azuis, e são parecidos com seus olhos. Depois de me vestir,
guardo os brincos no meu bolso. Estou com eles para me lembrar de não fazer
isso de novo. Quase acredito que vai funcionar.
Caminho em direção à porta da entrada sem olhar para trás.
— Você é mesmo surdo?
Ela diz em voz alta, atrás de mim.
Eu a escuto porque não sou surdo.
E continuo caminhando.
Finjo que não escutei nada, vou direto até a porta e fecho ao sair, e depois
continuo até estar do lado de fora do prédio, no quarteirão em frente e
dobrando a esquina. Somente então eu paro e me pergunto como ela descobriu.
Eu devo ter cometido algum erro.
Dois
Meu nome não é Tobias. Uso esse nome apenas quando quero que alguém se
lembre de mim. Neste caso, o barman. Eu me apresentei e digitei o meu nome
quando entrei e pedi uma bebida. Ele vai se lembrar de mim. Ele vai lembrar
que Tobias é o surdo que saiu do bar com uma mulher que tinha acabado de
conhecer. O nome é para ajudar o barman, não para ajudar Petra. Ela vai se
lembrar de mim de qualquer jeito, afinal com quantos surdos ela já dormiu?
E se não tivesse cometido um erro, eu teria sido apenas uma estranha nota de
rodapé no histórico sexual dela. Mas agora ela vai se lembrar de mim como o
“falso surdo” ou o “provável falso surdo”.
Quanto mais eu penso, mais eu me pergunto o quanto me descuidei. Talvez
eu tenha paralisado quando ela me perguntou se eu era surdo. É possível,
porque é o que a gente faz quando escuta algo inesperado. E, se eu paralisei,
ela provavelmente viu. Ela deve saber que eu menti.
Voltando para casa de carro, tudo está desconfortável. O banco parece áspero
e machuca as minhas costas. O rádio arrebenta alto demais, quase como se o
mundo inteiro estivesse aos berros. Mas não posso só culpar Petra pelo meu
mau humor. Eu tenho andado meio irritável já faz um tempo.
Em casa, tudo está tranquilo. Minha esposa, Millicent, ainda está na cama.
Sou casado com ela há quinze anos, e ela não me chama de Tobias. Temos dois
filhos: Rory tem quatorze anos e Jenna é um ano mais nova.
Nosso quarto está escuro, mas consigo enxergar a silhueta de Millicent
debaixo das cobertas. Eu tiro meus sapatos e caminho na ponta dos pés até o
banheiro.
— E aí?
Millicent soa completamente acordada.
Eu meio que me viro e vejo a sua sombra apoiada sobre um cotovelo.
Aí está outra vez. A escolha. De Millicent, uma raridade.
— Não — eu digo.
— Não?
— Ela não serve.
O ar entre nós se congela. Só derrete depois de Millicent suspirar e deitar sua
cabeça no travesseiro de novo.

Ela se levanta antes de mim. No momento em que eu entro na cozinha,


Millicent está organizando o café da manhã, os lanches para a escola, o dia, as
nossas vidas.
Eu sei que deveria contar a ela sobre Petra. Não sobre o sexo — pois eu não
contaria algo assim para a minha esposa. Mas eu deveria contar que cometi um
erro e que Petra na verdade nos serve. Eu deveria fazer isso porque é um risco
deixar Petra solta lá fora.
No entanto, eu não digo nada.
Millicent olha para mim, a sua decepção tem o impacto de uma força física.
Seus olhos são verdes, muitos tons de verde, e parecem uma camuflagem.
Não são nada parecidos com os de Petra. Millicent e Petra não têm nada em
comum, com a exceção de terem dormido comigo. Ou com alguma versão
minha.
As crianças descem a escada aos trancos, já gritando uma com a outra,
brigando por causa de quem falou tal coisa sobre essa ou aquela pessoa ontem
na escola. Estão vestidas e prontas para a aula, da mesma forma que eu estou
vestido para o trabalho no meu uniforme branco de tenista. Não sou nem nunca
fui um contador.
Enquanto meus filhos estão na escola e minha esposa está vendendo casas,
estou lá fora na quadra, debaixo do sol, ensinando pessoas a jogar tênis. A
maioria dos meus clientes é de meia-idade e está fora de forma, com dinheiro e
tempo sobrando. Ocasionalmente, sou contratado por pais que acreditam que o
filho deles é um prodígio, um campeão, um futuro modelo para a sociedade.
Até então, todos eles erraram.
Mas, antes que eu possa sair para ensinar qualquer coisa para alguém,
Millicent nos obriga a sentarmos todos juntos durante, pelo menos, cinco
minutos. Ela chama isso de café da manhã.
Jenna revira os olhos, bate o pé, fica ansiosa para pegar o celular de novo.
Telefones não são permitidos na mesa. Rory é mais calmo que sua irmã. Ele
aproveita a maior parte dos nossos cinco minutos comendo o máximo possível,
e depois forrando os bolsos com o que não couber na sua boca.
Millicent se senta à minha frente, com uma xícara de café pousada nos
lábios. Ela está vestida para o trabalho com saia, blusa e salto-alto, e seu cabelo
ruivo está preso. O sol matinal faz os fios parecerem cobre. Nós temos a
mesma idade, mas ela parece melhor, sempre pareceu. Ela é a mulher que eu
não deveria ter conquistado.
Minha filha toca em meu braço em um padrão rítmico, como a batida de
uma canção, e continua até eu prestar atenção nela. Jenna não é parecida com a
mãe. Seus olhos, seus cabelos e o formato do rosto puxaram os meus, e às
vezes isso me deixa triste. Outras vezes não.
— Pai, você pode me levar pra comprar um tênis novo hoje? — ela
pergunta. E sorri, porque sabe que eu vou dizer sim.
— Sim — eu digo.
Millicent me chuta embaixo da mesa. — Aqueles seus tênis têm um mês de
uso — ela diz para Jenna.
— Mas já estão muito apertados.
Nem mesmo minha esposa consegue rebater essa.
Rory pergunta se pode jogar videogame por alguns minutos antes da escola.
— Não — Millicent diz.
Ele olha para mim. Eu deveria dizer não, mas sei que não posso, não depois
de ter falado sim para a sua irmã. Ele sabe disso, porque Rory é o mais esperto.
Ele também é o mais parecido com Millicent.
— Pode ir — eu digo.
Ele sai correndo.
Millicent bate a xícara de café na mesa.
Jenna pega o seu celular.
Estamos livres do café da manhã.
Antes de se levantar da mesa, Millicent me fuzila com os olhos. Ela se
parece exatamente igual à minha esposa e, ao mesmo tempo, não se parece
nada com ela.

Vi Millicent pela primeira vez em um aeroporto. Eu tinha vinte e dois anos e


voltava do Camboja, onde havia passado o verão com três amigos. A gente se
chapava durante o dia e se embebedava durante a noite, e nós nunca fazíamos a
barba. Saí do país como um garoto arrumadinho dos subúrbios e voltei um
homem barbudo e desgrenhado com um bronzeado chamativo e grandes
histórias para contar. Nenhuma delas comparável a Millicent.
Eu estava fazendo uma conexão, a minha primeira na volta ao país. Passei
pela alfândega e caminhava em direção ao terminal quando me deparei com
ela. Millicent estava sentada em uma área vazia próxima ao portão, sozinha,
com os pés apoiados na sua mala. Ela encarava as janelas panorâmicas em
frente à pista de decolagem. Seu cabelo ruivo estava amarrado em um coque
solto e ela usava uma camiseta, jeans e tênis. Eu parei para observá-la enquanto
ela olhava os aviões.
Foi o jeito que ela olhava para a janela.
Eu havia feito a mesma coisa ao partir para a minha viagem. Meu sonho
sempre foi viajar, conhecer lugares como Tailândia, Camboja e Vietnã, e foi o
que eu fiz. Agora eu estava de volta a um território familiar, de volta para
minhas origens, mas meus pais não estavam mais aqui. Embora eu nem saiba
dizer se eles algum dia estiveram. Não para mim, pelo menos.

Quando retornei, meu sonho de viajar havia sido realizado, mas não substituído
por outro. Não até eu ver Millicent. Parecia que ela estava apenas começando o
seu próprio sonho. Naquele momento, eu quis fazer parte da história dela.
Naquela época, eu não pensei em todas essas coisas. Isso veio mais tarde,
quando eu tentava explicar a ela ou a qualquer outra pessoa por que a achei tão
atraente. Mas, lá atrás, eu segui para o meu próximo portão. Depois de viajar
por vinte horas, e com mais algumas por vir, eu não conseguia sequer reunir
coragem para falar com ela. Tudo o que eu podia fazer era admirar.
Acabou que nós estávamos no mesmo voo. Interpretei isso como um sinal.
A poltrona dela ficava ao lado da janela e a minha ficava no centro da fila do
meio. Foi preciso um pouco de argumentação, certo flerte com uma comissária
de bordo e uma nota de vinte dólares para eu mudar de lugar e sentar ao lado
de Millicent. Ela nem olhou quando eu me sentei.
Quando o carrinho das bebidas chegou, eu tinha preparado um plano. Pediria
o que quer que ela pedisse e, como eu já havia decidido que ela era alguém
especial, não podia imaginá-la pedindo uma bebida tão mundana quanto água.
Seria algo mais incomum, como suco de abacaxi com gelo, e, quando eu
pedisse o mesmo drinque, teríamos um momento de simetria, de simbiose, de
alegria fortuita — não importava o nome.
Considerando toda minha falta de sono, este plano soou plausível na minha
cabeça até Millicent dizer um “não, obrigada” para a comissária. Ela não queria
beber nada.
Eu disse a mesma coisa. Não teve o efeito que eu queria.
Mas, quando Millicent se virou para a comissária, eu vi seus olhos pela
primeira vez. A cor me lembrava dos campos abertos e majestosos que eu
encontrava por todo o Camboja. Não eram nem de perto tão escuros como eles
são agora.
Ela voltou a olhar pela janela. Voltei a olhar para ela, fingindo não olhar.
Eu disse para mim mesmo que eu era um idiota e que não deveria falar com
ela.
Eu disse para mim mesmo que havia algo errado comigo, porque pessoas
normais não agiam assim com uma garota que nunca tinham visto antes.
Eu disse para mim mesmo que não deveria ser um predador.
Eu disse para mim mesmo que ela era linda demais para mim.
Com trinta minutos faltando para a aterrissagem, eu falei: — Oi.
Ela se virou. Me encarou. — Oi.
Acho que foi aí que eu parei de prender a respiração.
Passaram-se anos até eu perguntar por que ela ficou encarando as janelas,
tanto no aeroporto quanto na aeronave. Ela disse que foi porque era sua
primeira viagem de avião. A única coisa com a qual ela sonhava era um pouso
seguro.
Três
Petra era a número um da lista, mas, agora que ela foi eliminada, eu parto para
a próxima, uma moça chamada Naomi George. Ainda não falei com ela.
À noite, dirijo até o Lancaster Hotel. Naomi trabalha como recepcionista no
Lancaster, um daqueles lugares do velho mundo que sobrevivem devido às
suas glórias passadas. O prédio é enorme e tem uma decoração tão imponente
que jamais poderia ser construído nos dias de hoje. Seria caro demais se
fizessem certo e brega demais se fizessem errado.
A fachada do hotel tem vidraças e painéis laterais, o que dá uma boa vista do
balcão da recepção. Naomi está em pé atrás dele usando o uniforme do
Lancaster, uma saia azul e um blazer, ambos com frisos dourados, e uma blusa
branca lisa. Ela tem um cabelo preto comprido e as sardas em seu rosto a fazem
parecer mais jovem do que é. Naomi tem vinte e sete anos. Provavelmente
ainda pedem sua identidade nos bares, mas ela não é tão inocente quanto
parece.
No fim da noite, eu já a observei sendo um pouco amistosa demais com mais
de um cliente. Todos eles eram homens desacompanhados, mais velhos e bem
vestidos, e nem sempre ela deixa o hotel quando o seu expediente termina. Ou
Naomi está ganhando um dinheirinho extra por fora ou ela tem uns encontros
sexuais meio suspeitos.
Por causa das mídias sociais, eu sei que sua comida favorita é sushi e que ela
não come carne vermelha. Na escola, jogou vôlei e teve um namorado
chamado Adam. Agora ela se refere a ele como O Cretino. O seu último
namorado, Jason, foi embora há três meses, e ela está solteira desde então.
Naomi está pensando em arranjar um animal de estimação, talvez um gato, só
ainda não fez nada em relação ao assunto. Ela tem mais de mil amigos online,
mas, pelo que pesquisei, Naomi tem só duas amizades íntimas. Três no
máximo.
Ainda não sei se ela serve. Preciso saber mais.
Millicent, porém, está cansada de esperar.
Ontem à noite, encontrei Millicent no nosso banheiro, parada em frente ao
espelho, limpando a maquiagem. Ela usava jeans e uma camiseta que a
exaltava como mãe de um estudante nota dez da sétima série. Jenna, não Rory.
— O que tinha de errado com ela? — perguntou. Millicent não usa o nome
de Petra porque ela não precisa usar. Eu sei a quem ela se refere.
— Ela não servia, só isso.
Millicent não me olhou através do espelho. Ela passou creme no rosto. — É
a segunda que você elimina.
— Ela tem que ser perfeita. Você sabe disso.
Ela fechou a tampa do seu tubo de hidratante com um estalo. Fui para o
quarto e me sentei para tirar os tênis. O dia havia sido longo e precisava ter um
fim, mas Millicent não queria deixar acabar. Ela me seguiu até o quarto e parou
na minha frente.
— Tem certeza de que ainda quer fazer isso? — ela perguntou.
— Sim.
Eu estava ocupado demais lidando com o remorso por ter dormido com outra
mulher para poder demonstrar qualquer tipo de entusiasmo. A culpa se alastrou
dentro de mim durante a tarde, quando vi um casalzinho de idosos; eles deviam
ter no mínimo noventa anos de idade e andavam de mãos dadas ao caminhar
pela rua. Casais assim não traem um ao outro. Ergui o olhar para Millicent e
desejei ter a possibilidade de fazer com que fôssemos assim.
Millicent se ajoelhou na minha frente e colocou uma das mãos em meu
joelho. — Nós precisamos fazer isso.
Seus olhos faiscaram, o calor da sua mão se espalhando enquanto ela subia
pela minha perna. — Você tem razão — eu disse. — Precisamos fazer isso.
Ela se inclinou mais perto e me deu um beijo demorado e profundo. Isso fez
com que eu me sentisse ainda mais culpado. E me deu vontade de fazer o que
estivesse ao meu alcance para deixá-la feliz.

Menos de vinte e quatro horas mais tarde, estou sentado em frente ao Lancaster
Hotel. O expediente de Naomi não se encerra antes das onze horas, e não posso
esperar do lado de fora do hotel durante as próximas três horas. Em vez de ir
para casa, pego uma comida e então me sento em um bar. É um lugar
conveniente para ir quando não há nenhum outro lugar.
O local que escolhi está parcialmente cheio, com um público composto, no
geral, por homens solitários. Não é tão bacana quanto o bar onde eu estive com
Petra. Os drinques custam a metade e os que estão usando terno já afrouxaram
a gravata. O piso de madeira é pontilhado por arranhões produzidos pelos
bancos e manchas circulares de copos decoram a bancada do bar. Este é um
local para quem bebe, feito por quem bebe, um local onde todo mundo está
inebriado demais para se importar com detalhes.
Eu peço uma cerveja e assisto um jogo de beisebol em uma televisão e as
notícias na outra.
É a parte de baixo da terceira entrada, com dois eliminados. Vai chover
amanhã, talvez, mas, como se fosse uma surpresa, também pode fazer sol.
Sempre faz sol aqui em Woodview, Flórida, um suposto enclave do mundo
real. Em menos de uma hora, podemos estar à beira do oceano, em uma reserva
natural ou em um dos maiores parques de diversões do mundo. Sempre
falamos da sorte que temos de morar aqui na Flórida central, principalmente
aqueles de nós que moram na subdivisão de Hidden Oaks. O “Oaks” é um
enclave dentro do enclave.
O jogo está na quarta entrada, com um eliminado. Ainda faltam duas horas
para o expediente de Naomi terminar e eu poder seguir seu rastro.
E, então, Lindsay.
Seu rosto sorridente olha fixo para mim da tela da televisão.
Lindsay, com seus olhos castanhos estreitos e cabelo loiro liso, seu
bronzeado de quem está sempre ao ar livre e seus grandes dentes brancos.
Ela desapareceu um ano atrás. Por uma semana, foi presença constante nos
telejornais e aí a notícia morreu. Sem familiares próximos para mantê-la na
tevê, ninguém prestou atenção. Lindsay não era uma criança desaparecida, não
era indefesa. Era uma mulher adulta, e foi esquecida em menos de sete dias.
Não por mim. Eu ainda me lembro da sua risada. Era contagiante o
suficiente para me fazer rir junto com ela. Vê-la de novo me faz lembrar o
quanto eu gostava dela.
Quatro
A primeira vez que falei com Lindsay foi durante uma caminhada. Em uma
manhã de sábado, eu a segui pelas trilhas acidentadas logo na saída da cidade.
Ela foi por uma trilha, eu fui por outra e uma hora depois acabamos nos
encontrando.
Quando Lindsay me viu, me cumprimentou e disse olá de um jeito que não
dava brecha para mais conversa. Eu acenei e disse olá com os lábios.
Inconscientemente, ela me lançou um olhar confuso, e eu entreguei a ela meu
celular para poder me apresentar.
Perdão, isso deve ter sido estranho! Olá, meu nome é Tobias. Eu sou surdo.

Suas defesas foram embora.


Ela se apresentou, nós conversamos, daí nos sentamos para tomar água e ela
me ofereceu um lanchinho. Puxa-puxa. Tinha um punhado deles.
Lindsay revirou os olhos. — É terrível, né? Comer açúcar e fazer exercício?
Mas eu adoro isso aqui.
Eu também.

Era verdade. Eu não comia puxa-puxa desde a infância, mas adorava.


Ela me contou sobre seu cotidiano, sobre o trabalho, casa, e também hobbies
que eu já conhecia. Eu contei a ela as mesmas histórias que conto para todas
elas. Quando o sol da manhã começou a subir, decidimos completar a nossa
caminhada juntos. Ficamos em silêncio pela maior parte do caminho. Eu
gostei. Minha vida quase nunca era silenciosa.
Ela recusou meu convite para almoçar, mas anotamos o telefone um do
outro. Eu dei a ela o número de telefone que uso quando sou Tobias.
Lindsay me mandou uma mensagem dias depois da caminhada. Receber
notícias dela me fez sorrir.
Foi muito bom te conhecer semana passada, espero que a gente possa fazer uma caminhada juntos outra hora.

Fizemos.
Dessa vez, uma trilha diferente, mais para o norte e perto da floresta Indian
Lake. Ela trouxe puxa-puxa de novo. Eu trouxe um cobertor. Paramos para
descansar em uma área onde a luz do sol era bloqueada por uma densa
folhagem. Quando nos sentamos, dei um sorriso para ela, e foi verdadeiro.
— Você é bonitinho — ela disse.
Não, você que é bonitinha.

Ela mandou uma mensagem dias depois e eu ignorei. Naquela altura,


Millicent e eu havíamos concordado que Lindsay era a pessoa certa.
Agora, um ano depois, Lindsay está de volta na tevê. Eles a acharam.

Vou do bar direto para casa. Millicent já está lá, sentada na varanda do jardim.
Ainda está com as roupas de trabalho, e seus característicos sapatos de couro
combinam com a cor da pele. Ela diz que eles fazem suas pernas parecerem
mais longas, e eu concordo. Sempre reparo quando ela usa esses sapatos,
mesmo agora.
Depois de trabalhar o dia inteiro e ainda ficar enfiado no carro observando
Naomi, percebo o quanto preciso de um banho. Mas Millicent nem vira o nariz
quando me sento ao seu lado. Antes que eu abra a boca, ela começa a falar.
— Isso não é um problema.
— Tem certeza? — eu pergunto.
— Absoluta.
Não sei se isso é verdade. A ideia era que nós dois resolvêssemos juntos esse
negócio de Lindsay, mas não foi o que aconteceu. E eu não tenho nem como
discutir sobre.
— Eu não entendo como...
— Isso não é um problema — ela diz novamente. Ela aponta para o alto,
gesticulando para o segundo piso da nossa residência. As crianças estão em
casa. Quero perguntar mais, mas não posso.
— Com a próxima, nós vamos ter que esperar — eu digo. — Não devemos
fazer nada agora.
Ela não responde.
— Millicent?
— Eu ouvi.
Quero perguntar a ela se entende, mas sei que sim. Ela apenas não gosta
disso. Está irritada que Lindsay foi descoberta agora, bem na hora em que
estávamos planejando outra. É como se ela estivesse viciada.
E não é a única.

Quando conheci Millicent no avião, não foi amor à primeira vista. Para ela, não
foi. Não foi sequer um leve interesse. Depois de dizer oi, ela virou o rosto e
continuou olhando para a janela. Eu voltei bem para onde havia começado.
Deitei minha cabeça no encosto da poltrona, fechei os olhos e me repreendi por
não ter a coragem de falar mais.
— Com licença.
Minhas pálpebras voaram para cima.
Ela estava olhando para mim, com seus grandes olhos verdes, sua testa
enrugada.
— Você está bem? — ela perguntou.
Eu concordei com a cabeça.
— Tem certeza?
— Tenho. Não entendi por que você...
— Porque você está batendo a cabeça nisso aqui — ela apontou para o
encosto da cabeça. — Você está balançando a poltrona.
Eu nem havia percebido que estava fazendo aquilo. Achei que toda a
repreensão mental fosse apenas isso: mental. — Desculpe.
— Tudo bem contigo então?
Eu me recompus o suficiente a ponto de perceber que a garota que eu estava
paquerando agora falava comigo. Ela até parecia preocupada.
Dei um sorriso.
— Estou bem, eu só estava...
— Batendo a cabeça. Eu faço a mesma coisa.
— Por qual motivo?
Ela deu de ombros. — Várias coisas.
Senti uma vontade enorme de saber tudo que fazia essa garota bater a cabeça
de frustração, mas o trem de pouso tinha acabado de ser acionado e não
tínhamos tempo. — Me diga uma.
Ela avaliou a minha pergunta, colocando até mesmo o dedo indicador nos
lábios. Eu segurei mais um sorriso, não apenas porque aquilo era bonitinho,
mas porque eu havia conquistado sua atenção.
Depois que o avião aterrissou, ela respondeu.
— Babacas — ela disse. — Babacas nos aviões que ficam dando em cima de
mim quando eu só quero ficar sozinha.
Sem pensar, sem nem ao menos perceber que ela falava de mim, eu disse: —
Eu posso te proteger deles.
Ela me encarou, perplexa. Ao perceber que eu falava sério, desatou em
gargalhada.
Quando percebi o motivo da risada dela, eu fiz a mesma coisa.
Assim que alcançamos a ponte de desembarque, não tínhamos apenas nos
apresentado um ao outro, nós também já tínhamos trocado os nossos números
de telefone.
Antes de ir embora, ela perguntou: — Como?
— Como o quê?
— Como você vai me proteger daqueles babacas dos aviões?
— Eu ia obrigar os caras a ficarem na poltrona do meio com os braços
amarrados e ia fazer neles um monte de cortes de papel usando o cartão das
instruções de emergência.
Ela riu novamente, uma risada mais longa e mais forte que a anterior. Ainda
não me cansei de ouvir a risada dela.
Aquela conversa se tornou um pedaço da gente. No primeiro Natal que
passamos juntos, dei a ela uma caixa enorme, grande o bastante para guardar
uma tevê gigante, uma caixa toda embrulhada e amarrada com um laço. A
única coisa dentro dela era um cartão com instruções de emergência.
Em todos os Natais desde então, tentamos inventar a referência mais criativa
para essa nossa piada interna. Uma vez, dei a ela um colete salva-vidas,
daqueles achados debaixo das poltronas. Tempos depois, ela redecorou nossa
árvore de Natal com máscaras de oxigênio.
Sempre que entro em um avião e vejo o cartão com instruções de
emergência, eu ainda dou um sorriso.
O estranho é que, se eu precisasse escolher um momento, o exato momento
em que tudo entrou em sintonia e nos levou para onde estamos agora, eu diria
que foi por causa de um corte de papel.
Aconteceu quando Rory estava com oito anos. Ele tinha amigos, mas não
muitos, era um garoto bem mediano na escala de popularidade, por isso foi
uma surpresa quando um menino chamado Hunter fez um corte de papel em
Rory. De propósito. Eles discutiam sobre qual super-herói era mais forte,
quando Hunter ficou bravo e cortou Rory. O corte foi na dobra entre o polegar
e o dedo indicador da sua mão direita. Foi doloroso o suficiente para fazer
Rory gritar.
Mandaram Hunter para casa pelo restante do dia e Rory foi ver a enfermeira,
que fez um curativo na sua mão e deu um pirulito sem açúcar para ele. A dor
foi esquecida bem depressa.
Naquela noite, depois que as crianças foram dormir, Millicent e eu
conversamos sobre o corte. Nós estávamos na cama. Ela tinha acabado de
fechar o seu notebook e eu desliguei a tevê. As aulas mal haviam começado, e
o bronzeado de verão de Millicent ainda não tinha desaparecido por completo.
Ela não jogava tênis, mas adorava nadar.
Millicent pegou minha mão e esfregou o filete de pele entre meu polegar e
meu dedo indicador. — Você já teve um corte aqui?
— Não. E você?
— Já. Dói pra diabo.
— Como foi que aconteceu?
— Holly.
Eu sabia muito pouco sobre Holly. Millicent quase nunca falava da irmã
mais velha. — Ela te cortou? — perguntei.
— A gente estava fazendo umas colagens com as nossas coisas preferidas,
recortando umas fotos de revistas e colando em folhas grandes de papel
colorido. Holly e eu fomos pegar a mesma folha ao mesmo tempo e — ela
encolheu os ombros — eu me cortei.
— Chegou a gritar?
— Não me lembro. Mas eu chorei.
Peguei a sua mão e beijei aquele corte há tanto tempo esquecido. — Quais
eram as coisas preferidas? — eu perguntei.
— O quê?
— Você disse que estavam recortando fotos das suas coisas preferidas. Que
coisas eram essas?
— Ah, não — ela disse, recolhendo a mão e apagando a luz. — Você não vai
transformar isso em mais uma loucura de Natal.
— Você não gosta da nossa loucura de Natal?
— Eu adoro. Mas não precisamos de outra.
Eu sabia que a gente não precisava. Estava tentando desviar o assunto de
Holly, porque Millicent não gostava de falar sobre ela. Foi por esse motivo que
eu perguntei sobre as tais coisas preferidas.
Eu devia ter perguntado sobre Holly.
Cinco
Lindsay domina as notícias. Ela é a única que foi encontrada, e a primeira
surpresa é onde o corpo dela foi localizado.
A última vez que eu vi Lindsay, nós estávamos no meio do nada. Millicent e
eu a levamos para as profundezas de um pântano perto de uma reserva
ecológica, esperando que a vida selvagem a achasse antes de qualquer outra
pessoa. Lindsay ainda estava viva e nós deveríamos matá-la juntos. Esse era o
plano.
Essa era a ideia por trás da coisa toda.
Isso não aconteceu, por causa de Jenna. Organizamos tudo para que nossos
dois filhos passassem a noite com os amigos; Rory estava com um colega
jogando videogame e deixamos Jenna em uma festa do pijama com meia dúzia
de meninas de doze anos. Quando o telefone de Millicent tocou, soou como um
gatinho. Era o toque de Jenna. Millicent atendeu antes do segundo miado.
— Jenna? O que foi que aconteceu?
Eu observei Millicent escutando a ligação, com meu coração batendo mais
rápido a cada gesto que ela fazia com a cabeça.
Lindsay estava atirada ao chão, com suas pernas bronzeadas abertas sobre a
terra. O remédio que usamos para derrubá-la já estava perdendo o efeito e ela
começava a se mexer um pouco.
— Querida, pode passar o telefone para a Sra. Sheehan? — Millicent disse.
Mais gestos com a cabeça.
Quando Millicent falou de novo, sua voz já havia mudado: — Entendi.
Muito obrigada. Eu já vou aí — ela desligou.
— O quê...
— Jenna passou mal. Uma virose ou talvez uma intoxicação alimentar. Faz
uma hora que ela está no banheiro — antes que eu pudesse responder, ela
completou: — Estou indo lá.
Eu sacudi a minha cabeça. — Eu faço isso.
Millicent não protestou. Ela olhou para Lindsay no chão e em seguida para
mim. — Mas...
— Eu faço isso — eu disse. — Eu pego Jenna e levo para casa.
— Eu posso cuidar dela — Millicent estava olhando para Lindsay. Ela não
estava falando da nossa filha.
— Claro que pode — eu nunca duvidei. Estava apenas decepcionado por não
ter como assistir.
Quando cheguei na porta da família Sheehan, Jenna ainda estava doente. No
caminho de casa, encostei o carro duas vezes para ela poder vomitar. Fiquei ao
lado dela durante a maior parte da noite.
Millicent voltou para casa pouco antes do amanhecer. Não perguntei se ela
havia mudado Lindsay de lugar, pois presumi que ela tinha enterrado o corpo
naquela área deserta. Não faço ideia de como Lindsay foi parar no quarto 18 do
motel Moonlite Motor.
O Moonlite fechou quando a nova rodovia foi construída há mais de vinte
anos. O motel ficou abandonado e entregue às intempéries, aos roedores, aos
andarilhos e aos viciados em drogas. Ninguém dava atenção a ele, porque
ninguém precisava passar de carro na frente. Lindsay foi encontrada por alguns
adolescentes, que chamaram a polícia.
O motel é um prédio estreito, de um andar só, com quartos perfilados em
ambos os lados. O quarto 18 fica atrás, no canto, e não é visível da estrada.
Enquanto vejo na tevê uma filmagem aérea do motel, tento imaginar Millicent
dirigindo pelos fundos do Moonlite e estacionando, saindo do carro, abrindo o
porta-malas.
Arrastando Lindsay pelo chão.
Eu me pergunto se ela teria força suficiente para carregar o corpo. Lindsay
era bastante musculosa de tanto praticar esportes. Talvez Millicent tenha usado
um apoio para transportá-la. Um carrinho, alguma coisa com rodas. Ela é
esperta o suficiente para fazer algo assim.
O repórter é jovem e determinado, fala como se cada palavra fosse
importante. Ele me diz que Lindsay foi embrulhada em plástico, enfiada no
armário e enrolada em um cobertor. Os adolescentes a descobriram porque,
embriagados, brincavam de esconde-esconde. Não sei quanto tempo ela ficou
no armário, mas o repórter diz que o corpo de Lindsay foi inicialmente
identificado pelos registros da arcada dentária. Os exames de DNA ainda estão
pendentes. A polícia não pôde usar as impressões digitais porque as de Lindsay
foram raspadas.
Tento não imaginar como Millicent fez isso, ou se ela chegou mesmo a fazer,
mas essa cena se torna a única coisa que eu consigo pensar.
As imagens na minha cabeça permanecem lá. Fotografias do rosto sorridente
de Lindsay, dos seus dentes brancos. Da minha mulher raspando as pontas dos
dedos de Lindsay. Ela arrastando o corpo para o quarto do motel e enfiando
Lindsay no armário. Todas essas coisas piscam na minha mente durante o dia,
durante a noite e também quando tento dormir.
Millicent, no entanto, parece normal. Parece a mesma pessoa quando volta
para casa do serviço e prepara uma salada, quando tira a maquiagem, quando
trabalha no seu computador antes de deitar. Se ela está escutando as notícias,
não deixa transparecer. Em mais de uma ocasião, eu sinto vontade de perguntar
por que e como Lindsay foi parar naquele motel.
Não vou adiante. Porque tudo o que consigo pensar é por que deveria
perguntar. Por que ela não me contou.
No dia seguinte, ela me chama no meio da tarde e a pergunta está na ponta
da minha língua. Também começo a imaginar se existe mais alguma coisa que
eu não sei.
— Não esqueça — ela diz —, vamos jantar com os Prestons hoje à noite.
— Não esqueci.
Eu esqueci. Ela sabe disso e me diz o nome do restaurante sem nem eu
perguntar.
— Sete horas — ela diz.
— Eu te encontro lá.

Andy e Trista Preston compraram sua casa com Millicent. Embora Andy seja
alguns anos mais velho do que eu, eu o conheço há décadas. Ele cresceu em
Hidden Oaks, frequentamos as mesmas escolas e nossos pais se conheciam.
Agora ele trabalha em uma empresa de software e ganha dinheiro suficiente
para pagar por aulas diárias de tênis, mas ele não paga — e é por isso que ele
esbanja uma barriga.
Sua esposa, porém, comparece às aulas. Trista também cresceu por esses
lados, mas ela é de outra parte de Woodview, não de Hidden Oaks. Nós nos
encontramos duas vezes por semana, e ela passa o resto do seu tempo
trabalhando em uma galeria de arte. Juntos, os Prestons ganham o dobro do que
nós ganhamos.
Millicent sabe quanto ganham os seus clientes, e a maioria ganha mais do
que nós. Preciso admitir que isso me incomoda mais do que incomoda a ela.
Millicent acha que é porque ela ganha mais do que eu. Ela está errada. É
porque Andy ganha mais do que eu, embora eu não diga isso para ela. Ela não
é de Hidden Oaks, não sabe como é crescer aqui e depois acabar trabalhando
na região.
Nosso jantar é em um restaurante de luxo onde todo mundo come salada e
frango ou salmão e bebe vinho tinto. Andy e Trista bebem a garrafa inteira.
Millicent quase não bebe e odeia quando eu resolvo beber. Nunca bebo perto
dela.
— Eu te invejo — Trista diz para mim. — Ia adorar ter o seu trabalho e ficar
ao ar livre o dia todo. Eu adoro jogar tênis.
Andy ri. Suas bochechas estão coradas. — Mas você trabalha em uma
galeria de arte. É praticamente a mesma coisa.
— Ficar ao ar livre o dia todo e trabalhar ao ar livre são coisas diferentes —
digo. — Eu ia adorar ficar sentado na praia o dia todo, sem fazer nada.
Trista torce seu nariz petulante. — Acho que seria chato, só ficar lá parado
desse jeito. Eu prefiro fazer alguma coisa.
Quero dizer a ela que frequentar aulas de tênis e ensinar a técnica são
mundos distintos. No trabalho, a agradável vida ao ar livre é o último
pensamento na minha cabeça. A maior parte do meu tempo é gasto tentando
ensinar tênis a pessoas que preferiam estar mexendo no celular, assistindo
televisão, se embebedando ou comendo. Nem preciso dos dedos da mão para
contar o número de pessoas que querem mesmo jogar tênis, muito menos as
pessoas que querem se exercitar. Trista é uma delas. Ela não adora tênis, na
verdade, ela adora estar bonita.
Mas eu fico calado, porque é isso que os amigos fazem. Não apontamos as
falhas uns dos outros, a não ser que nos peçam.
A conversa muda para o trabalho de Andy e eu me desligo, captando apenas
palavras-chave porque eu me distraio com o som dos talheres. Cada vez que
Millicent corta um pedaço de frango grelhado, penso nela matando Lindsay.
— Atenção — Andy diz. — É a única coisa que importa para as empresas de
software. Como vamos capturar sua atenção e como vamos manter isso? Como
fazer para você ficar sentado na frente do computador o dia todo?
Eu reviro os olhos. Quando Andy bebe, ele tende a pontificar. Ou palestrar.
— Qual é? — ele diz — Responda a pergunta. O que te segura na frente do
computador?
— Vídeos de gatos — eu digo.
Trista dá uma risadinha.
— Não seja babaca — Andy diz.
— Sexo — Millicent diz. — Tem que ser sexo ou então violência.
— Ou as duas coisas — eu digo.
— Na verdade, não precisa conter sexo — diz Andy. — Não sexo de
verdade. O que é necessário é a promessa de sexo. Ou de violência. Ou as duas
coisas. E uma história, tem que ter uma história. Não interessa se é real ou se é
falsa nem quem é que vai contar. Só é preciso que as pessoas fiquem
interessadas no que vai acontecer depois.
— E como você faz isso? — Millicent pergunta.
Ele sorri e desenha um círculo imaginário com o dedo indicador. — Sexo e
violência.
— Mas isso vale para qualquer coisa. Mesmo as notícias são fabricadas em
cima de sexo e de violência — eu digo.
— O mundo todo gira em torno de sexo e violência — Andy diz. Ele
novamente desenha o círculo com o dedo e se vira para mim. — Você sabe
disso, você é daqui.
— Claro que eu sei — oficialmente, Hidden Oaks é uma das comunidades
mais seguras do estado. Isso porque toda violência ocorre entre quatro paredes.
— Eu também sei — Trista fala para o marido. — Woodview não é tão
diferente assim.
É diferente, mas Andy não discute. Em vez disso, ele se inclina e dá um
selinho na boca da esposa. Quando seus lábios se encostam, ela toca a
bochecha dele com a palma da mão.
Eu sinto inveja.
Inveja das conversas banais. Inveja da bebedeira deles. Inveja das
preliminares simples e do sexo que vão fazer hoje à noite.
— Acho que todo mundo aqui entende — eu digo.
Andy pisca para mim. Eu olho para Millicent, que olha para a sua comida.
Ela acha que demonstrações de afeto em público são de mau gosto.
Quando a conta chega, tanto Millicent quanto Trista levantam da mesa e vão
para o banheiro. Andy apanha a conta antes que eu possa tentar qualquer coisa.
— Não adianta reclamar, deixa comigo — ele diz, olhando rápido para o
papel. — Vocês são uma companhia barata no final das contas. Nada de álcool.
Eu encolho os ombros. — É para não beber demais.
Andy balança a cabeça e sorri.
— O que foi? — eu pergunto.
— Se eu soubesse que você ia se transformar em um pai de família tão
chato, ia fazer você ficar muito mais tempo no Camboja.
Eu reviro os olhos. — Agora é você quem está sendo babaca — digo.
— Estou aqui para isso.
Antes que eu possa responder, nossas esposas retornam à mesa e paramos de
falar sobre bebidas. E sobre a conta.
Nós quatro saímos juntos e nos despedimos no estacionamento. Trista diz
que vai me ver na próxima aula. Andy diz que vai começar em breve. Trista vai
atrás dele, revirando os olhos e sorrindo. Eles entram no carro e vão embora,
deixando Millicent e eu sozinhos. Estamos em dois carros, porque nos
encontramos já no restaurante.
Ela se vira para mim. Sob as luzes da rua, ela nunca me pareceu tão velha.
— Tudo bem contigo? — ela pergunta.
Eu dou de ombros. — Tudo bem — não tenho outra opção.
— Você se preocupa demais — ela diz, olhando em direção ao oceano de
carros. — Está tudo tranquilo.
— Tomara.
— Confie em mim — Millicent estende o braço e põe a sua mão na minha. E
me pressiona os dedos.
Eu concordo com a cabeça e entro no meu carro, mas não vou direto para
casa. Em vez disso, passo pela frente do Lancaster Hotel.
Naomi está atrás do balcão da recepção. Seus cabelos escuros caem soltos
em volta dos seus ombros e, embora eu não possa ver as sardas do seu nariz,
acredito que posso enxergá-las dali. Estou aliviado em vê-la, em saber que ela
segue trabalhando atrás do balcão da recepção e que provavelmente ainda
pratica suas atividades extracurriculares. Não existe motivo para eu achar que
aconteceu alguma coisa com ela, pois concordamos em esperar. Confirmar se
Naomi está bem é irracional, mas eu o faço mesmo assim.
Essa não é a primeira vez que estou sendo irracional. Desde que descobriram
o corpo de Lindsay, eu não consigo dormir direito. Acordo no meio da
madrugada, com meu coração batendo forte, e é sempre por causa de algo
irracional. Tranquei a porta da frente? Paguei aquelas contas? Lembrei de fazer
todas as coisinhas que preciso fazer para que a casa não pegue fogo ou então
seja penhorada pelo banco e para que o carro não cause um acidente porque os
freios não foram revisados no tempo certo?
Todas essas questões mantêm Lindsay fora da minha cabeça. E também o
fato de que não posso fazer nada por ela agora.
Seis
Sábado de manhã, o jogo de futebol de Jenna. Estou sozinho porque Millicent
precisa mostrar uma casa. Sábado é o melhor dia da semana tanto para o
mercado imobiliário quanto para as aulas de tênis. Também é o melhor dia da
semana para os compromissos sociais dos nossos filhos. Millicent e eu nos
revezamos aos sábados com as crianças, e a última vez que estivemos todos
juntos foi há mais de um ano. Rory chegou à final de um torneio de golfe
infanto-juvenil. Ele joga golfe agora — eu o deixei no campo de manhã cedo
antes do jogo da irmã dele começar — e treina no mesmo clube onde eu dou
aula. Ele joga golfe porque não é tênis, e odeio isso exatamente da forma que
ele quer que eu odeie.
Até agora, Jenna não tem demonstrado a mesma rebeldia. Ela não tenta ser
difícil. Jenna faz a coisa porque ela quer fazer, não porque vai deixar alguém
irritado, e eu admiro essa qualidade nela. Ela também sorri muito, o que me faz
sorrir de volta e dar tudo o que ela quiser. Não faço ideia de onde estou errando
e, como não consigo descobrir, Jenna me assusta como o diabo.
Futebol não é meu jogo. Só aprendi as regras quando Jenna começou a jogar,
portanto não posso ajudar muito. Não posso dizer a ela o que fazer ou como
melhorar, como seria o caso se ela jogasse tênis. E é apenas por um golpe de
sorte que ela joga no gol, assim eu pelo menos sei que o trabalho dela é
impedir o outro time de marcar. Fora isso, tudo o que eu posso fazer é
incentivá-la.
— Você consegue!
— Boa!
— Que bola!
Eu sempre me pergunto se a deixo constrangida. Acho que sim, mas faço
assim mesmo, porque a única outra opção que eu tenho é assistir os jogos em
silêncio. Parece algo cruel. Prefiro ser constrangedor. Quando ela defende uma
bola que vai na direção do gol, eu fico louco. Ela sorri, mas gesticula com a
mão, me mandando calar a boca. Nesses momentos, não penso em mais nada a
não ser na minha filha e no seu jogo de futebol.
Millicent interrompe mandando uma mensagem de texto.
Não se preocupe.

É só isso que ela diz.


No campo, as garotas estão gritando. O outro time tenta marcar um gol e a
minha filha precisa defender a bola de novo. Ela deixa passar.
Jenna se vira, com as costas para mim, as mãos nos quadris. Quero dizer a
ela que não tem problema, que todo mundo falha, mas seria justamente o
discurso mais errado possível. Todos os pais insistem nessa conversa e todas as
crianças odeiam. Eu odiava.
Jenna encara a grama. Uma colega de equipe chega e dá um tapinha no
ombro dela, fala alguma coisa. Jenna concorda com a cabeça e sorri, e eu fico
pensando no que a colega disse. Imagino que seja a mesma coisa que eu teria
dito, mas teve um significado maior.
O jogo recomeça. Eu olho para o meu celular. Millicent não disse mais nada.
Leio as notícias e fico boquiaberto.
O laudo do legista afirma que Lindsay estava morta há apenas algumas
semanas.
Em algum lugar, de algum jeito, Millicent a manteve viva por quase um ano.

Eu sinto vontade de sair correndo. Para onde, não sei. Não importa. Para o quê,
não faço ideia. Só quero correr para um lugar qualquer.
Mas não posso largar Jenna aqui, sozinha em um jogo de futebol sem
ninguém para torcer por ela. Não posso deixar a minha filha. Ou o meu filho.
Quando o jogo de Jenna termina, pego Rory no clube e nós três comemos a
nossa habitual pizza pós-esportiva com iogurte gelado na sequência. Tenho
dificuldades em acompanhar a conversa. Eles percebem, porque são meus
filhos — eles me veem todos os dias e sabem quando estou com problemas.
Imagino o que eles pensam de Millicent.
Só que ela nunca dá mostras de que algo está errado. Durante o último ano
ela tem se mostrado calma, mesmo para os padrões dela. Mencionou encontrar
a próxima mulher há um mês apenas.
Tudo passa a encaixar. Ela só começou a conversar sobre a próxima depois
de ter matado Lindsay.
Para mim, o último ano foi preenchido pelo trabalho, pelas atividades das
crianças, pelas tarefas domésticas, por discussões sobre as contas e a lavagem
do carro. Nada se destacou. Nenhum acontecimento, dia, memória, nada foi
relevante a ponto de ser uma lembrança daqui a vinte, trinta, ou quarenta anos.
O time de futebol da Jenna quase chegou às finais do municipal, mas ficou de
fora. Millicent teve mais um bom ano no trabalho. O preço da gasolina subiu e
depois baixou, uma eleição local começou e terminou, e minha lavanderia
preferida fechou e eu precisei procurar outra.
Ou talvez a lavanderia tenha fechado há dois anos. Essas coisas vão se
misturando na cabeça.
Durante esse tempo todo, Millicent manteve Lindsay viva. Manteve Lindsay
em cativeiro.
As imagens percorrendo a minha mente vão do perturbador ao bárbaro.
Visualizo o tipo de tragédia que ouço no noticiário, quando mulheres são
encontradas depois de anos sendo mantidas em cativeiro por algum homem
demente. Nunca ouvi falar de uma mulher que fizesse algo assim. E, como
homem, não consigo me imaginar fazendo isso.
Deixo as crianças em casa e vou até o imóvel onde Millicent está
trabalhando. Fica apenas a algumas quadras da nossa; a viagem de carro leva
poucos minutos. Dois veículos estão do lado de fora, o dela e um outro, uma
caminhonete.
Eu espero.
Vinte minutos depois, ela sai da casa com um casal mais jovem que a gente.
A mulher está com os olhos arregalados. O homem está sorrindo. Quando
Millicent aperta as mãos de ambos, ela me vê com o canto do olho. Posso
sentir seus olhos verdes caírem em mim, mas ela não hesita, não interrompe a
fluidez do seu movimento.
O casal caminha de volta para o carro deles. Millicent fica em frente ao
terreno, observando enquanto eles vão embora. Ela está vestindo azul-marinho
hoje, uma saia justa e saltos, e uma blusa listrada. Seu cabelo ruivo é liso e
cortado bem reto na altura do queixo. Era muito mais longo quando nos
conhecemos e tem ficado mais curto a cada ano, como se, em intervalos
regulares, ela estivesse determinada a reduzir dois centímetros dele. Não me
surpreenderia se eu descobrisse que é exatamente isso que ela tem feito. Não
sei mais se Millicent conseguiria me surpreender com alguma novidade agora.
Ela aguarda até a caminhonete ir embora antes de se virar na minha direção.
Eu saio do carro e caminho até a casa.
— Você está irritado — ela diz.
Eu olho fixo para ela.
Ela aponta para a casa. — Vamos entrar.
Nós entramos. A entrada é enorme, o pé-direito tem mais de seis metros de
altura. Construção nova, como a nossa, mas essa é ainda maior. A casa inteira é
aberta e espaçosa, e tudo leva a uma sala principal, que é para onde vamos.
— O que você fez com ela? Por um ano, o que você fez?
Millicent sacode a cabeça. Seu cabelo balança de um lado para o outro. —
Não podemos falar disso agora.
— Nós temos que...
— Aqui não. Eu tenho um compromisso.
Ela sai caminhando e eu vou atrás.

Poucos meses depois de nos casarmos, Millicent engravidou. Foi uma surpresa
de certa maneira, porque conversamos sobre esperar, mas não totalmente. Às
vezes não tomávamos cuidado com a proteção. Discutimos vários métodos
contraceptivos, mas a gente sempre voltava às camisinhas. Millicent não
gostava de tomar nada com hormônios. Eles a deixavam emotiva demais.
Quando a menstruação de Millicent atrasou, nós dois suspeitamos de que ela
estivesse grávida. Confirmamos com um teste em casa e outro no consultório.
Mais tarde naquela noite, eu não conseguia dormir. Ficamos sentados por um
tempo interminável, alojados no nosso sofá de segunda mão em nossa
dilapidada casa de aluguel. Eu me encolhi ao lado dela, com minha cabeça na
sua barriga, e comecei a me preocupar.
— E se a gente estragar tudo? — eu perguntei.
— Não vamos fazer isso.
— Precisamos de dinheiro. Como vamos...
— Vamos dar um jeito.
— Eu não quero só dar um jeito. Quero prosperar. Eu quero...
— Vamos prosperar.
Eu ergui minha cabeça para poder olhar para ela. — Por que você tem tanta
certeza?
— Por que você tem tantas dúvidas?
— Eu não tenho — eu disse. — Eu só estou...
— Preocupado.
— Isso.
Ela suspirou e gentilmente abaixou a minha cabeça de volta para a sua
barriga. — Deixe de bobagem — ela disse. — Vamos ficar bem. Vamos ficar
melhor do que bem.
Minutos antes, eu me sentia mais como uma criança do que como um futuro
pai.
Ela me deixou mais forte.
Percorremos um longo caminho desde aqueles primeiros anos quando não
tínhamos dinheiro nenhum. Eu havia voltado à faculdade para completar meu
MBA, mas estava na metade quando ela ficou grávida. A gente precisava de
dinheiro, portanto eu saí do curso e retornei àquilo que eu mais sabia fazer:
tênis. Era meu único talento, a coisa na qual eu conseguia ser melhor do que
qualquer outra pessoa com quem eu cresci. A quadra de tênis foi onde eu
brilhei. Não fui brilhante o bastante para me tornar profissional, mas era
brilhante o bastante para poder oferecer aulas particulares.
Quando conheci Millicent, ela tinha acabado de terminar um ano do curso
para trabalhar como corretora de imóveis e estudava para fazer a prova. Assim
que ela passou, ainda levou um tempo até começar a vender, mas ela
conseguiu, mesmo quando estava grávida, mesmo quando as crianças eram
bebês. E ela tinha razão: nós demos um jeito. Estamos melhores do que bem. E,
até onde eu sei, não estragamos tudo com as crianças ainda.
Sete
Agora, enquanto seguimos naquela casa vazia que ela tenta vender, Millicent
de fato não faz com que eu me sinta mais forte. Ela me faz sentir medo.
— Não está certo — digo. — Nada disso está certo.
Ela ergue uma sobrancelha. O que costumava ser bonitinho. — Agora você
tem uma consciência?
— Eu sempre tive...
— Não. Não acho que você tinha.
Ela está certa de novo. Nunca tive uma consciência quando o caso era tentar
fazê-la feliz.
— O que você fez com ela? — pergunto.
— Não interessa. Ela é passado.
— Não é mais.
— Você se preocupa demais. Nós estamos bem.
A campainha toca.
— O dever me chama — ela diz.
Eu caminho com ela até a porta. Ela me apresenta, conta a eles sobre minhas
habilidades no tênis. São tão jovens quanto o último casal e igualmente
perdidos.
Eu dirijo para casa, mas passo direto pela entrada.
Primeiro, vou para o Lancaster. Naomi está lá, atrás do balcão, com muitas
horas faltando ainda para o final do seu expediente.
Depois, vou para o clube. Penso em me distrair passando um tempo no salão,
conversando com meus clientes enquanto assisto os jogos. Novamente, não
paro.
Uma série de outros lugares passa pela minha cabeça: um bar, um parque, a
biblioteca, um cinema. Queimo quase meio tanque de combustível dirigindo a
esmo, tentando escolher um destino, antes de seguir para o inevitável.
Casa.
É para onde eu sempre vou.
Quando abro a porta, ouço os sons da minha vida. Minha família. A única
família de verdade que eu tive.
Rory está jogando videogame, aqueles tiros eletrônicos ressoando pela casa.
Jenna está no celular, falando, digitando e arrumando a mesa. O aroma do
jantar paira pela sala, frango e alho e alguma receita com canela. Millicent está
atrás do balcão, coordenando tudo, e ela sempre cantarola sozinha enquanto
prepara as refeições. Sua escolha musical é normalmente algo ridículo — a
trilha sonora de um programa de tevê, uma ária, a música pop do momento —,
e esta é outra de nossas piadas internas.
Ela ergue o olhar e sorri, e é real. Posso ver em seus olhos.
Todos nós nos sentamos e comemos juntos. Jenna diverte a mãe e enche o
saco do irmão com os grandes momentos do seu jogo de futebol. Rory se gaba
do seu resultado no golfe, que hoje foi o melhor entre os jogadores com menos
de dezesseis anos. Na maior parte dos dias, nossas refeições são assim. São
agitadas e barulhentas, cheias de histórias do cotidiano e com um sentimento
de paz, esse grupo que vive junto desde sempre.
Eu me pergunto quantas vezes fizemos isso enquanto Lindsay estava no
cativeiro.

Quando vou para a cama, fico surpreso ao ver que algumas horas se passaram
desde a última vez que pensei em Lindsay, na polícia, no que Millicent e eu
fizemos. A casa, e todos os benefícios que ela traz, possui esse efeito poderoso
sobre mim.
Não se pode falar o mesmo da minha infância. Ainda que eu tenha crescido
em uma família com pai e mãe na nossa bela casa em Hidden Oaks, com dois
carros, boas escolas e um monte de atividades extracurriculares, nós não
comíamos juntos como a minha própria família hoje come. Se por acaso
sentássemos todos ao mesmo tempo à mesa, nós ignorávamos uns aos outros.
Meu pai lia o jornal, minha mãe encarava o espaço com um olhar estático e eu
comia o mais rápido possível.
Eles vinham me ver jogar tênis apenas quando eu disputava um torneio e,
mesmo assim, só se eu chegasse às finais. Nenhum dos meus pais abria mão de
um sábado para qualquer coisa que fosse. A casa era um lugar para dormir, um
lugar para guardar minhas coisas, um lugar para sair o quanto antes. E foi o que
eu fiz. Saí do país assim que eu pude. Era impossível imaginar uma vida inteira
me sentindo uma decepção.
Embora eu não tenha certeza de que o problema era comigo, pelo menos não
no nível pessoal. Se fosse obrigado a adivinhar, diria que eu era aquele que
deveria consertar o casamento deles. Depois de passar anos pensando no
assunto, percorrendo toda a minha infância repetidas vezes, cheguei à
conclusão de que os meus pais me puseram no mundo para tentar consertar seu
casamento. Não funcionou. E a decepção deles se tornou o meu fracasso.
Eu retornei para Hidden Oaks apenas porque meus pais faleceram. Foi um
acidente bizarro, impossível de prevenir ou prever. Eles estavam dirigindo na
rodovia e um pneu saiu voando de um carro na frente deles. Ele entrou
estilhaçando o para-brisa do carro de luxo do meu pai, e os dois morreram.
Meus pais se foram, sem mais nem menos. Ainda juntos, ainda
indubitavelmente tristes.
Nunca cheguei a ver os corpos. A polícia disse que era melhor não ver.
No fim, meus pais tinham bem menos dinheiro do que fingiam ter. Ou seja,
voltei para uma casa afundada em hipotecas e somente com o dinheiro
necessário para pagar um advogado para acertar as burocracias e me livrar
daquilo. Meus pais não eram nem quem eu pensava que eles eram: eram
impostores. Não podiam bancar uma vida em Hidden Oaks, apenas fingiam
que podiam. Eu não tinha mais família e não sabia o que significava ter uma.
Millicent construiu nossa família. Digo que foi ela porque não poderia ter
sido eu. Eu não fazia ideia de como construir um lar ou sequer reunir todo
mundo para uma refeição. Ela sabia. Na primeira vez que Rory sentou em uma
cadeirinha, ela o colocou em frente à mesa e comemos nossas refeições juntos
desde então. Apesar do aumento de reclamações dos nossos filhos em idade de
crescimento, nós ainda comemos juntos.
Quando Millicent estava grávida de Jenna, ela criou as regras da família. Eu
chamei essa lista de Os Mandamentos de Millicent:
Café da manhã e jantar sempre em família.
Proibido brinquedos ou celulares na mesa.
As mesadas só estão garantidas após a realização de tarefas
domésticas.
Vamos ter a noite dos filmes uma vez por semana.
O açúcar ficará limitado a frutas, não a sucos, e a ocasiões
especiais.
Toda a comida vai ser orgânica, a depender do dinheiro.
Exercícios físicos são incentivados. Aliás, eles são obrigatórios.
O dever de casa deve ser feito antes da televisão ou do videogame.

A lista me fez rir. No entanto, ela me fuzilou com o olhar ao ver minha
risada e eu parei. Naquela altura, eu já sabia a diferença de quando ela fingia
estar brava e quando a raiva era genuína.
Uma de cada vez, Millicent instituiu suas regras. Em vez de transformar a
casa em uma prisão, ela deu estrutura à família. Nossos filhos praticam
esportes. Não ganham dinheiro a menos que tenham batalhado por ele. A gente
se reúne uma vez por semana para assistir um filme. Eles quase sempre comem
comida orgânica e pouquíssimos alimentos com açúcar. O dever de casa já está
pronto quando eu chego do trabalho. Tudo isso por causa de Millicent.
A mesma Millicent que manteve Lindsay viva durante um ano fazendo sabe-
se lá o que com ela.

Eu ainda não consigo dormir. Acordo para ver como estão as crianças. Rory
está esparramado na cama, com cobertores por todos os lados. Quando ele fez
quatorze anos, não queria mais dinossauros pintados nas paredes. Nós
reformamos o quarto, pintamos, remodelamos o mobiliário e agora ele tem
uma parede escura e três beges, um apanhado de pôsteres com bandas de rock,
um envernizado escuro nos móveis de madeira e cortinas blecaute para quando
ele dorme. Parece o sonho de uma criança para o que seria o quarto de um
adulto. Meu filho está se tornando um adolescente.
O quarto da Jenna ainda é laranja. Ela é obcecada pela cor praticamente
desde o nascimento. Acho que é por causa da cor do cabelo de Millicent. O
cabelo de Jenna é como o meu, castanho-escuro sem nenhum sinal de
vermelho. Ela tem pôsteres de jogadoras de futebol nas paredes e cartazes com
alguns grupos musicais e um ou outro ator. Não sei quem eles são, mas, sempre
que aparecem na tevê, Jenna e as amigas dão gritinhos agudos. Agora que ela
chegou à maturidade dos treze anos, todas as bonecas foram enfiadas no
guarda-roupa. Ela se interessa por moda, joias e maquiagem que ainda nem
está autorizada a usar, além de curtir alguns bichos de pelúcia e videogames.
Vou caminhando pela casa, verificando todas as portas e janelas. Vou até
mesmo à garagem, procurando sinais de roedores, insetos ou infiltrações. Saio
para o quintal e verifico o portão lateral. Faço a mesma inspeção no jardim da
frente e então volto para a casa de novo, trancando todas as portas pela segunda
vez.
Millicent costumava fazer isso, principalmente depois que Rory nasceu. Nós
morávamos naquela casa de aluguel dilapidada e toda noite ela caminhava
trancando as portas e as janelas. Ela se sentava por uns minutos e depois se
levantava para trancar tudo de novo.
— Esse bairro não é perigoso — eu disse a ela. — Ninguém vai arrombar.
— Eu sei — ela se levantou de novo.
No fim, decidi ir atrás dela. Eu segui seus passos e imitei cada movimento.
Primeiro, ela me fuzilou com o olhar, aquele de verdade.
Como eu não parei, ela me deu um tapa.
— Não tem graça — ela disse.
Fiquei atordoado demais para falar. Nunca havia levado um tapa de uma
mulher antes. Não tinha nem levado palmadas, nem de brincadeira. Mas, como
eu tinha acabado de debochar da minha esposa, dei o braço a torcer e pedi
desculpas.
— Você só pediu desculpas porque levou um tapa — Millicent disse. Ela se
virou, voltou para o quarto e trancou a porta.
Passei a noite pensando se ela ia me abandonar. Ela ia pegar meu filho e
simplesmente ir embora, porque eu tinha estragado tudo. Era exagerado, sim.
Mas Millicent não engole sapo, ponto final. Uma vez, quando estávamos
namorando, eu disse que ia ligar para ela em um determinado horário e não
liguei. Ela não falou comigo por mais de uma semana. Ela sequer atendia ao
telefone.
Ela voltou comigo naquela ocasião. Mas eu não tinha dúvida de que, se eu
irritasse Millicent o suficiente, ela iria embora e pronto. E ela fez isso uma vez.
Rory tinha um ano e meio, Jenna tinha seis meses e Millicent e eu
passávamos o dia inteiro, todos os dias, fazendo malabarismo com as crianças e
o trabalho. Um dia, eu acordei, exausto de novo, e percebi que eu tinha vinte e
sete anos, uma esposa, dois filhos e uma hipoteca novinha.
Tudo o que eu queria era um descanso. Um indulto temporário para toda
aquela responsabilidade. Saí com meus amigos e fiquei tão bêbado que eles
foram obrigados a me carregar até em casa. Quando acordei no dia seguinte,
Millicent tinha ido embora.
Ela não atendeu o celular. Não estava no escritório. Os pais dela disseram
que ela não estava lá. Millicent tinha apenas algumas amigas próximas, e
nenhuma delas teve qualquer notícia de minha esposa. Ela desapareceu e levou
meus filhos junto.
Depois de três ou quatro dias, eu estava telefonando para ela de hora em
hora. Mandei e-mails, mensagens, eu me tornei a minha versão mais insana de
todos os tempos. Não era porque eu estava preocupado com ela. Eu sabia que
ela estava bem, e sabia que meus filhos estavam bem. Fiquei louco porque
achei que ela, eles, que eles tinham ido embora para sempre.
Passaram-se oito dias. E então ela voltou.
Eu tinha dormido tarde, atirado em uma cama desarrumada repleta de caixas
de pizza e pratos, copos e embalagens de comidas variadas. Acordei em uma
cama sem lixo e com um cheiro de panquecas.
Millicent estava na cozinha, preparando o café da manhã. Rory estava à
mesa, sentado na cadeirinha, e Jenna estava no carrinho. Millicent se virou para
mim e me deu um sorriso. Era verdadeiro.
— Bem na hora — ela disse. — O café está quase pronto.
Eu corri até Rory e o peguei no colo, segurando no alto até ele dar um
gritinho. Beijei Jenna, que ficou me observando com seus olhos castanhos.
Sentei à mesa, com medo de falar. Eu temia estar em um sonho, e não queria
acordar.
Millicent trouxe uma pilha de panquecas para a mesa. Ao se sentar, ela se
inclinou na minha direção, perto o suficiente para sua boca se posicionar bem
ao lado do meu ouvido, e sussurrou: — Na próxima vez, nós não vamos voltar.
Passei todo nosso casamento sem nenhuma alternativa a não ser acreditar
nela. E ainda assim eu dormi com Petra.
E com aquela outra.
Oito
Quando volto para casa do trabalho, Millicent e as crianças estão lá. Rory está
deitado no sofá, jogando videogame. Millicent está em pé na frente dele, as
mãos nos quadris, o rosto severo. Atrás dela, Jenna mexe no celular para lá e
para cá, tentando tirar uma selfie diante da janela. A tela da tevê lança um
brilho sobre todos eles. Por um segundo, ficam paralisados, um retrato da vida
moderna.
O olhar de Millicent passa de Rory para mim. Seus olhos estão no mais
escuro tom de verde.
— Sabe — ela diz — o que o nosso filho fez hoje?
O boné de beisebol de Rory está com a aba para baixo, cobrindo os olhos e o
rosto. Não esconde por completo seu sorriso sacana.
— O que o nosso filho fez hoje? — pergunto.
— Fale para o seu pai o que você fez.
Jenna responde por ele. — Ele colou na prova usando o celular.
— Vá para o seu quarto — Millicent diz.
Minha filha sai. Ela dá risadinhas enquanto sobe a escada e bate a porta do
quarto.
— Rory — eu pergunto —, o que aconteceu?
Silêncio.
— Responda ao seu pai.
Eu não gosto quando Millicent diz ao nosso filho como agir comigo, mas
não digo nada.
Millicent arranca o controle das mãos de Rory. Ele suspira e enfim fala.
— Até parece que eu vou ser botânico. Se algum dia eu precisar saber de
fotossíntese, eu vou pesquisar, que nem eu fiz hoje — ele olha para mim, com
olhos arregalados, como quem diz silenciosamente: — Não é?
Eu quero concordar porque ele está mais ou menos certo. Mas eu sou o pai.
— Ele foi suspenso por três dias — Millicent diz. — Sorte dele que não foi
expulso.
Se ele fosse expulso do colégio particular, iria para a escola pública. Eu não
lembro Millicent disso enquanto ela distribui o castigo ao nosso filho.
— E nada de celular, nada de videogame, nada de internet. Você vai vir
direto para casa depois do colégio e, pode deixar, eu vou ficar de olho.
Ela se vira e sai batendo os sapatos pelo corredor rumo à garagem. Está
usando seus saltos cor de pele.
Depois que escuto o carro dela dar a partida, eu me sento perto do meu filho.
Ele tem o cabelo ruivo de Millicent, mas seus olhos são mais claros. Abertos.
— Por quê?
Ele dá de ombros. — Era mais fácil.
Eu entendo. Às vezes é mais fácil ir levando as coisas adiante. É mais fácil
do que pôr tudo abaixo e começar do zero.
— Você não pode enganar os outros — eu digo.
— Mas você engana.
— Do que é que você está falando?
— Eu escuto quando você sai escondido.
Ele está certo. Tenho saído às escondidas à noite porque não consigo dormir.
— Às vezes eu saio para dar uma volta de carro.
Rory dá uma risada. — Você acha que eu sou burro?
— Não.
— Pai, eu vi você sair escondido de casa usando um terno. Quem é que
coloca um terno só para dar uma volta de carro?
Eu não uso terno desde meu encontro com Petra.
— Você sabe que eu passo várias noites no clube. Criar uma rede de contatos
é parte do meu trabalho.
— Rede de contatos — ele diz com uma dose nada leve de ironia.
— Não estou traindo sua mãe — eu digo. E é quase verdade.
— Seu mentiroso.
Começo a dizer para Rory que não sou mentiroso, mas percebo o quanto é
inútil. Começo a negar que estou traindo a mãe dele, mas percebo que isso
também é inútil. Meu filho é esperto demais.
Queria poder explicar para ele, mas não posso. Então, eu me torno o
hipócrita.
— A questão aqui não é sobre mim — eu digo.
Ele revira os olhos, não fala nada.
— E eu nunca colei na escola. Quer dizer, e se um dia acontecer um
apocalipse zumbi e você escapar para uma ilha com uma civilização totalmente
nova e for obrigado a plantar? Você não acha que saber sobre fotossíntese seria
uma coisa útil aí?
— Eu realmente agradeço o esforço, pai. Principalmente quanto ao
apocalipse zumbi e tudo mais. Mas me deixa economizar o teu tempo aqui —
ele tira algo do bolso e põe na minha frente.
O vidro azul brilhante faz o meu queixo cair. Um dos brincos de Petra.
— Jenna não tem furo na orelha — ele diz. — E minha mãe nunca ia usar
algo tão brega assim.
Ele está certo. Millicent usa brincos de diamante. Diamantes de verdade, não
de vidro.
— Não temos muito o que falar sobre isso agora, né? — Rory diz.
Dois a zero. Não tenho nada a dizer.
— Não se preocupe. Jenna não sabe nada dessa sua amiga — o sorrisinho
sacana está de volta. — Ainda.
Leva um segundo para que eu perceba que o meu filho está tentando me
chantagear. Com uma evidência na mão.
Fico impressionado, por ele ser tão inteligente, e paralisado, porque a última
coisa que eu quero para os meus filhos, principalmente para a minha filha, é
que eles cresçam tendo um safado infiel como pai. É o tipo de situação que os
especialistas mandam evitar. Dizem que afetará os relacionamentos dela com
os homens para o resto da vida. Vi isso naqueles programas que passam à tarde
na tevê.
Jenna não pode saber, ela não pode sequer suspeitar que Rory descobriu essa
história. Qualquer outra solução parece ser menos assustadora.
Eu me viro para Rory. — O que você quer?
— Um jogo de videogame novo, Bloody hell.
— Sua mãe proibiu esses jogos aqui em casa.
— Eu sei.
Se eu discordar, ele vai contar a Jenna que estou traindo a mãe deles. Vai
fazer exatamente o que está ameaçando fazer.
Se eu concordar, meu filho de quatorze anos vai ter me chantageado com
sucesso.
Eu sinto que deveria ter previsto essa chantagem. Deveria ter previsto isso
no dia em que ele nasceu. Ele ficou tão quieto no primeiro momento que todos
acharam que ele estava morto. Quando ele finalmente chorou, o som foi tão
alto que fez os meus ouvidos gemerem.
Ou talvez eu devesse ter previsto isso no dia em que sua irmã nasceu e ele
fez o mesmo barulho, não para anunciar a sua chegada, mas para denunciar a
nossa falta de atenção com ele.
Depois, teve ainda aquele ano em que Jenna e Rory saíram pedindo doces no
Halloween e ele a convenceu de que todas as barras de chocolate tinham sido
envenenadas pelo psicopata que trabalhava no supermercado da região. O tal
psicopata era um homem enorme como um lenhador e gentil como um hamster,
mas ele assustava as crianças sem nem precisar de esforço. Jenna acreditou no
irmão e jogou fora todas as barrinhas supostamente envenenadas. Nem
Millicent nem eu sabíamos o que havia acontecido, não até Jenna ter pesadelos
por uma semana e aí encontrarmos uma pilha de embalagens de chocolate no
quarto de Rory.
Então agora, enquanto estou no meio de uma chantagem do meu próprio
filho, posso olhar para trás e dizer que eu deveria ter esperado um
comportamento assim. Mas, antes deste momento, eu não fazia ideia.
— Me responda uma pergunta — digo para ele.
— Beleza.
— Há quanto tempo você sabe disso? — tomo cuidado para não usar a
palavra traição. Como se isso importasse.
— Alguns meses. Na primeira vez, eu fui na garagem de manhã cedo pegar a
minha bola de futebol. Seu carro não estava lá. Aí eu comecei a prestar
atenção.
Eu concordo com a cabeça. — Vou comprar esse seu jogo amanhã. Não
deixe sua mãe descobrir.
— Não vou deixar. Também não deixe ela te ver sair escondido.
— Não vou mais fazer isso.
Ele sorri ao pegar o brinco e colocar de volta no seu bolso. Rory não acredita
em mim, mas é esperto o bastante para ficar calado quando está em vantagem.

Eu deveria contar a Millicent sobre nosso filho. Penso nisso durante o jantar
enquanto Jenna se esforça ao máximo para debochar de Rory sem sofrer
retaliação. Penso nisso depois do jantar, quando Millicent confisca o celular de
Rory pelo resto da noite. Penso nisso até quando estamos somente minha
esposa e eu em nosso quarto, repassando nossa rotina noturna. Este é o
momento em que eu deveria contar a ela o que o nosso filho está aprontando,
mas não faço nada.
Não conto a ela porque contar vai criar mais perguntas do que posso
responder.
Passaram-se apenas duas semanas desde minha noite com Petra. Penso nela
somente no meio da madrugada, quando já estou acordado e não consigo voltar
a dormir. É quando eu me pergunto o que é que eu fiz para me denunciar. O
que será que a fez se perguntar se eu era mesmo surdo? Será que eu reagi a um
som, será que eu olhei para seus olhos ao invés de olhar para sua boca
enquanto ela falava, será que eu prestei atenção demais aos sons que ela fazia
na cama? Eu não sei. Não sei se alguma vez vou atuar como surdo novamente,
mas a dúvida ainda me mantém acordado à noite. Se tornou uma ponta solta
que preciso costurar.
A chantagem de Rory é a mesma coisa. Outro erro. Escorreguei e não
deveria ter deixado meu filho descobrir que eu andava saindo escondido à
noite. Millicent não vai gostar disso.
Portanto, eu não digo nada. Tanto Rory como Petra são segredos que não
conto para a minha esposa. Talvez porque ela tenha os seus próprios segredos,
mais até do que eu imaginava. Tanto Rory como Petra são riscos, cada um à
sua maneira, e ainda assim a minha boca continua fechada.
Não quero que ela saiba o tamanho da minha bagunça.
Nove
Não começou como algo ruim. Ainda acredito nisso.
Três anos atrás, no final de uma tarde de sábado em outubro, eu estava no
jardim com Rory e Jenna. Eles ainda eram jovens o bastante para estar ao meu
redor sem sentir vergonha, e nós três estávamos montando a decoração de
Halloween. A data era quase a preferida deles, só ficava atrás do Natal, e todos
os anos nós cobríamos a casa com teias, aranhas, esqueletos e bruxas. Se
pudéssemos comprar uns animatrônicos, também teríamos usado.
Millicent chegou depois de ter mostrado um imóvel. Vestida nas suas roupas
de trabalho, ela parou no caminho até a porta e sorriu, admirando nossa
arrumação. As crianças falaram que estavam com fome. Com um grande e
exagerado revirar de olhos, Millicent disse que ia preparar alguns sanduíches.
Ela estava sorrindo ao dizer isso. Acho que todos nós estávamos.
As coisas não eram perfeitas, no entanto. A casa que estávamos enfeitando
era nova para nós — estávamos morando lá há apenas seis meses — e a
hipoteca era imensa. Millicent sofria muita pressão para vender mais casas. Eu
sofria a mesma pressão, às vezes até cogitava arranjar um segundo emprego.
Também tínhamos questões pendentes com a mãe de Millicent. O pai dela
havia falecido fazia dois anos. Depois sua mãe foi diagnosticada com
Alzheimer e se iniciou aquele longo e vagaroso declínio que a doença traz.
Passamos muito tempo procurando por uma enfermeira particular. As duas
primeiras não deram certo, porque nenhuma delas se adequava aos padrões de
Millicent. A terceira estava funcionando, pelo menos até aquele momento.
Nossa família tinha seus problemas — vários —, mas, naquele dia,
estávamos todos sorrindo, até Millicent dar um grito.
Eu corri para dentro, com as crianças atrás de mim. Entrei na cozinha bem a
tempo de ver Millicent atirar o celular por cima dos eletrodomésticos. Ele se
estilhaçou contra a parede, partindo-se em pedaços e deixando uma marca na
pintura. Ela enterrou o rosto nas mãos e começou a chorar.
Jenna gritou.
Rory juntou os pedaços do celular quebrado.
Coloquei meus braços ao redor de Millicent enquanto seu corpo tremia com
soluços.
As duas coisas mais horrendas passaram pelo meu pensamento.
Alguém havia morrido. Talvez sua mãe. Talvez uma amiga.
Ou alguém estava morrendo. Uma doença terminal. Talvez fosse uma das
crianças. Talvez fosse minha esposa.
Só podia ser uma das duas coisas. Nada mais provocaria uma reação como
aquela. Não era dinheiro ou emprego ou mesmo a perda de um animal de
estimação que nós sequer tínhamos. Alguém devia estar morto ou prestes a
morrer.
Foi um choque descobrir que não era nada daquilo. Ninguém estava morto,
ninguém estava morrendo. Na verdade, era o contrário.

Alguns meses depois de começarmos a namorar, Millicent e eu fazíamos o que


chamávamos de Noite das Perguntinhas. Comprávamos pizza e vinho e íamos
para o minúsculo apartamento dela. A sala de estar era tão pequena que ela só
tinha um sofá de dois lugares e uma mesinha de café e, por isso, a gente se
sentava no chão. Ela acendia velas, colocava as fatias em pratos de verdade e
servia vinho em taças de champanhe, porque aquilo era tudo o que ela tinha.
Passávamos a noite fazendo perguntas. Sem limites, nada era tabu: era o
nosso compromisso. As primeiras perguntas eram bastante inofensivas; como
nós ainda estávamos sóbrios demais para falar de sexo, então a gente falava
sobre todo o resto. Filmes, música, comidas favoritas, cores favoritas.
Perguntei até se ela tinha alguma alergia. Ela tem. Colírios.
— Colírios? — eu disse.
Ela confirmou, tomando outro gole de vinho. — Aquele para tirar a
vermelhidão. Ele faz os meus olhos incharem até eu não conseguir mais
enxergar.
— Igual ao Rocky.
— Exatamente igual ao Rocky. Eu descobri quando tinha dezesseis anos e
fiquei chapada. Tentei esconder dos meus pais e acabei no hospital.
— Ahá — eu disse. — Você era uma menina levada então?
Ela desconversou. — E você? Tem alguma alergia?
— Só de mulheres que não se chamam Millicent.
Eu pisquei para mostrar que estava brincando. Ela chutou meu pé e revirou
os olhos. No fim, ficamos bêbados o suficiente para fazermos as perguntas
indiscretas. A maioria envolvia sexo e relacionamentos antigos.
Eu me cansei de ouvir sobre o ex-namorado dela, por isso perguntei sobre a
sua família. Sabia de onde ela era e que seus pais ainda estavam casados, mas
não ia nada além disso. Ela nunca havia mencionado outros parentes.
— Você tem irmãos ou irmãs?
Estávamos bastante inebriados naquela altura, ou pelo menos eu estava, e
continuei brincando com a cera que pingava da vela na nossa frente. Ela havia
se acumulado no pires de apoio e eu espremia essa cera entre meus dedos,
fazendo uma bola e então achatando tudo de novo. Millicent ficou me
observando em vez de responder a pergunta.
— Oi? — eu falei.
Ela tomou um gole de vinho. — Uma irmã. Holly.
— Mais nova ou mais velha?
— Ela era mais velha. Agora não está mais entre nós.
Eu larguei a cera e estendi os braços, colocando minha mão na sua, fechando
os dedos em volta da sua taça de champanhe.
— Sinto muito — eu disse.
— Tudo bem.
Eu esperei para ver se ela ia falar algo mais. Como ela não falou, eu
perguntei: — Como foi que aconteceu?
Ela se reclinou contra a parede. O álcool e as velas faziam o lugar inteiro
flamejar, incluindo seus cabelos ruivos. Por uma fração de segundo parecia que
brasas quentes caíam dele.
Ela virou o rosto para o lado ao falar: — Ela tinha quinze anos, era dois anos
mais velha do que eu. Não tinha nada que Holly queria mais do que dirigir.
Estava louca para tirar a carteira de motorista. Aí um dia nossos pais não
estavam em casa. Usaram o carro do nosso pai e deixaram o da nossa mãe.
Holly disse que nós tínhamos que pegar. Só para dar uma volta pelo quarteirão.
Ela disse que ia andar bem devagar — Millicent se virou para mim e deu de
ombros. — Ela não andou devagar. E morreu.
— Meu Deus. Eu realmente sinto muito.
— Tudo bem. Holly era minha irmã, mas ela não era... Uma pessoa boa.
Nunca foi.
Eu queria perguntar mais, e poderia, porque era a Noite das Perguntinhas,
mas não perguntei. Em vez disso, perguntei quando foi a primeira vez que ela
ficou bêbada.
Não se falou mais em Holly até eu ir em um jantar na casa dos pais dela. Eu
já os conhecia de antes, de um restaurante quando eles estavam na cidade, mas
desta vez nós viajamos de carro durante três horas até a casa deles. Os pais de
Millicent moravam em uma casa grande mais ao norte, perto da fronteira com a
Geórgia, no meio do nada. O pai dela, Stan, tinha inventado uma isca artificial
de pesca, patenteou o negócio e depois vendeu para uma empresa de
equipamentos esportivos. Eles não eram ricos, mas também não precisavam
mais trabalhar. Stan, na época, passava o tempo observando aves, pescando e
esculpindo casas de pássaros na madeira. A mãe de Millicent, Abby, tinha sido
professora e, quando não estava cuidando do jardim, escrevia para um blogue
educativo. Eles eram mais ou menos como hippies, com a diferença que
plantavam coentro em vez de maconha.
Millicent se parecia com o pai, até nos olhos de múltiplos tons, mas na
personalidade ela puxava mais à mãe. Abby era ainda mais organizada que
Millicent.
Não vi a foto até o jantar terminar. Ajudei a recolher a mesa e levei meus
pratos para a cozinha. A foto estava no peitoril da janela sobre a pia, era apenas
uma coisa minúscula parcialmente escondida por uma planta. O cabelo ruivo
da foto me chamou a atenção. Quando peguei o papel para olhar, percebi que
eram Millicent e sua irmã, Holly. Até aquele momento, eu não tinha reparado
na falta de retratos pela casa. Havia fotos dos pais de Millicent, e de Millicent,
mas esta era a única de Holly.
— Não deixe ela ver isso.
Eu levantei a cabeça. A mãe de Millicent estava parada na minha frente.
Seus calorosos olhos castanhos quase pareciam implorar.
— Você sabe o que aconteceu com Holly?
— Sim. Millicent me contou.
— Então você sabe que isso a incomoda — ela pegou a foto da minha mão e
colocou de volta atrás da planta. — Nós escondemos as fotos quando ela vem
aqui. Millicent não gosta de ser lembrada dela.
— O acidente a incomoda. Perder Holly desse jeito deve ter sido difícil.
Ela me lançou um olhar estranho.
Não entendi aquele olhar até o dia em que o celular tocou e Millicent deu o
grito.
Dez
A caixa do Bloody hell VII é tão explícita que vem coberta com um grande
adesivo amarelo. No verso, tem outro adesivo vermelho falando sobre o jogo
em si.
Não tenho certeza se isso é algo que eu quero na minha casa.
Mas eu compro mesmo assim.
Rory, ainda na sua suspensão de três dias da escola, está em casa. Sua mãe
confiscou seu computador, mudou a senha da internet e, apesar de desistir na
metade do caminho, tentou desconectar a antena da televisão. Rory está no sofá
da sala de estar, zapeando.
Eu atiro o jogo no sofá ao lado dele.
— Obrigado — ele me diz. — Mas você poderia melhorar essa sua atitude
aí.
— Nem comece.
Ele dá um sorrisinho e pega o jogo, arrancando o adesivo amarelo da frente.
A foto antes coberta revela dezenas de corpos empilhados uns sobre os outros.
Uma feia criatura com chifres, supostamente o diabo, está em pé por cima dos
cadáveres todos.
Rory olha para mim, com os olhos verdes brilhando. Pergunta onde está o
console. Eu hesito e então aponto para a cristaleira na sala de jantar.
— Atrás da bandeja de prata. Não quebre nada.
— Pode deixar.
— E guarde depois.
— Eu guardo.
— Não vai fazer coisa errada de novo, vai? — eu pergunto.
Ele revira os olhos. — Tal pai, tal filho.
Nossa conversa é atravessada pela televisão. O anúncio de uma notícia de
última hora interrompe um programa de entrevistas sensacionalistas.
A vinheta do telejornal local aparece. É logo substituída por aquele repórter
jovem e determinado que acompanha a história de Lindsay. O nome dele é
Josh, e eu o assisto todos os dias desde que o corpo de Lindsay foi encontrado.
Hoje, ele parece um pouco cansado, mas seus olhos estão injetados.
A delegacia de polícia finalmente revelou como Lindsay foi morta.
— Estamos aqui hoje à noite com o Dr. Johannes Rollins, ex-legista do
condado de DeKalb, na Geórgia — diz Josh. — Obrigado pela presença, Dr.
Rollins.
— Não por isso — esse Dr. Rollins parece mais velho do que todas as
pessoas que eu conheço juntas e ainda lembra o Papai Noel, com as roupas
erradas. Ele está vestindo uma camisa xadrez abotoada e uma gravata azul sem
estampas.
— Dr. Rollins, o senhor acompanhou o pronunciamento da polícia hoje.
Levando em conta a sua experiência na área, o que o senhor pode nos dizer
sobre o caso?
— Ela foi estrangulada.
— Sim, sim. É o que temos aqui no laudo. Asfixia provocada por
estrangulamento.
O Dr. Rollins confirma: — Foi o que eu falei. Ela foi estrangulada.
— E mais alguma coisa que o senhor possa nos informar?
— Bom, ela ficou inconsciente em alguns segundos e morreu dentro de
poucos minutos.
Josh espera para ver se o Dr. Rollins tem mais alguma coisa a acrescentar.
Ele não tem. — Certo, é isso. Agradecemos a sua presença, Dr. Rollins. Muito
obrigado. A câmera se aproxima de Josh e ele toma fôlego. Sua reportagem
oficial é sempre seguida de uma reportagem extraoficial, pois Josh é ambicioso
e parece ter fontes por todas as partes.
— Bom, não é só isso que nós temos para vocês. Como sempre, o Canal 9
tem mais notícia que todos os concorrentes e você não vai encontrar essa
informação no pronunciamento da polícia ou em qualquer outra emissora.
Minhas fontes me garantiram que as marcas no pescoço de Lindsay indicam
que ela provavelmente foi estrangulada com uma corrente. Ou seja, alguém se
posicionou atrás dela e apertou a corrente contra a sua traqueia até ela
morrer.
— Legal — Rory diz.
Eu me sinto nauseado demais para repreendê-lo, porque estou imaginando
sua mãe, minha esposa, como a assassina que Josh descreve.
Tudo está muito nítido na minha mente, em parte porque eu conheço, ou
conheci, as duas mulheres. Posso ver a expressão de terror no rosto de Lindsay.
Também posso ver o rosto de Millicent, embora o semblante mude a todo
instante. Ela está aterrorizada, está aliviada, está extasiada. Está sorrindo.
Rory começa a ligar o videogame.
— Tudo bem com você? — ele pergunta.
— Tudo ótimo.
Ele não responde. Bloody hell VII está carregando.
Eu saio, porque preciso ir a uma aula de tênis. Já cancelei aulas demais
recentemente.
Mais adiante na rua, em frente ao clube, uma mulher de meia-idade aguarda
por mim. Ela tem cabelos negros lisos, um bronzeado intenso e sotaque.
Kekona é havaiana. E, quando fica frustrada, pragueja em dialeto.
Kekona é uma viúva aposentada, o que significa que ela tem muito tempo
livre para prestar atenção no que os outros estão fazendo. E fofoca sobre isso.
Por causa de Kekona, eu sei quem está dormindo com quem, quais casais estão
se separando, quem está grávida e os adolescentes que estão se metendo em
encrenca. Às vezes, é mais do que quero saber. Às vezes, só quero ensinar
tênis.
Hoje, por exemplo, descubro que uma das professoras de Rory pode estar
tendo um caso com o pai de um aluno. É perturbador, mas pelo menos a
professora não está tendo um caso com o aluno. Ela também traz novidades
sobre o divórcio do casal McAllister, que está tramitando há mais de um ano,
junto com um boato sobre uma possível reconciliação. Ela logo rotula esse
boato como “provavelmente duvidoso, mas nunca se sabe”.
Após trinta minutos de aula, ela menciona Lindsay.
Isso é incomum, porque Lindsay não foi encontrada na nossa pequena
comunidade de Hidden Oaks nem era sócia do clube. Lindsay vivia, trabalhava
e foi encontrada a trinta quilômetros de distância, o que é fora do raio de
fofocas de Kekona. Na maioria das vezes ela se concentra em Hidden Oaks,
permanecendo dentro dos portões da comunidade, onde ela mora em uma das
maiores casas. Ela mora a menos de uma quadra de onde eu cresci e conheço
bem a casa de Kekona. Ou conhecia, pelo menos. Minha primeira namorada
morava lá.
— Tem algo estranho sobre essa garota do motel — Kekona diz.
— Não tem algo estranho em todos os assassinatos?
— Na verdade, não. Assassinato é quase um passatempo nacional. Mas,
ainda assim, garotas normais simplesmente não aparecem mortas em motéis
abandonados.
Kekona coloca em palavras o que eu estive pensando esse tempo todo.
O motel ainda me deixa perplexo. Não entendo por que Millicent não a
enterrou ou levou o corpo de Lindsay umas centenas de quilômetros para
dentro do bosque, ou para qualquer outro lugar, menos aqui, perto de onde nós
dois moramos, em um prédio onde ela certamente seria encontrada no fim das
contas. Não faz sentido.
A menos que Millicent quisesse ser pega.
— Garotas normais? — pergunto a Kekona. — O que é uma garota normal?
— Assim, uma que não seja drogada ou prostituta. Não é alguém que viva
nas margens da sociedade. Essa garota era normal. Tinha emprego e um
apartamento e provavelmente pagava os impostos. Normal.
— Você assiste muitos desses seriados policiais?
Kekona dá de ombros. — Claro. Quem não assiste?
Millicent não assiste. Mas ela lê os livros.
Mando uma mensagem para a minha esposa:
Precisamos de uma noite romântica.

Millicent e eu não temos uma noite romântica de verdade há mais de dez


anos. A frase é nosso código, porque em algum momento nós nos sentamos e
bolamos um código. Noite romântica significa que precisamos falar sobre
nossas atividades extracurriculares. Uma conversa de verdade, não apenas
sussurros às escuras.

Entre a mensagem e a noite romântica, temos a suspensão de Rory. Ele ficou


sozinho em casa o dia todo e, nas fantasias de Millicent, o filho dela está lendo
um livro para exercitar sua mente. Em vez disso, ele está jogando videogame,
por cortesia minha. Não há sinal do jogo quando entro em casa, no entanto.
Rory arruma a mesa em silêncio.
Ele olha para mim e pisca. Pela primeira vez, não gosto da pessoa que meu
filho está se tornando. E a culpa é minha.
Eu subo as escadas para tomar um banho rápido antes do jantar. Quando
desço, Jenna aparece. Ela está debochando de Rory.
— Todo mundo estava falando de você hoje — ela diz. Jenna digita no
celular enquanto fala. Ela sempre faz isso. — Falaram que você é tão burro que
teve que pesquisar como se escreve o próprio nome. É por isso que você colou.
— Rá, rá — diz Rory.
— Falaram que você é burro demais para ser mais velho do que eu.
Rory revira os olhos.
Millicent está na cozinha. Ela trocou a roupa de trabalho e agora está usando
leggings, um moletom comprido e meias listradas. Seu cabelo está empilhado
no topo da cabeça, amarrado com uma presilha gigante. Ela sorri e me estende
uma tigela de salada para eu colocar na mesa.
As crianças continuam se alfinetando enquanto preparamos o jantar.
— Você é tão burro — Jenna diz. — Falaram que só eu herdei inteligência
na família.
— Beleza com certeza você não herdou — Rory responde.
— Mãe!
— Chega — Millicent diz. Ela se senta à mesa.
Rory e Jenna calam a boca. Colocam os guardanapos nas pernas.
Tudo é tão normal.
Quando terminamos de comer, Millicent pede para Jenna e eu cuidarmos da
louça. Ela quer conferir o dever de casa de Rory para ter certeza de que ele fez
tudo hoje.
Eu vejo o pânico nos olhos dele.
Vai ser uma noite longa para Rory. Posso ouvir da cozinha enquanto Jenna e
eu limpamos os pratos. Eu tiro os resíduos, ela organiza a lava-louça e
conversamos um pouco.
Jenna está tagarelando sobre futebol, entrando em detalhes que não consigo
entender de jeito nenhum. Não é a primeira vez que eu me pergunto se deveria
me envolver mais e me voluntariar para ser assistente do técnico ou algo assim.
Aí eu me dou conta de que simplesmente não tenho tempo para isso.
Ela continua falando, e minha mente se perde em Millicent. Na nossa noite
romântica.
Quando a louça está lavada e Rory esgota o acervo de desculpas, a casa se
acalma pelo restante da noite. Rory vai para o seu quarto terminar a lição de
casa que não fez antes. Jenna conversa e fala e digita no celular, tudo ao
mesmo tempo. Quando é hora de ir para a cama, Millicent confisca os
computadores dos dois. Ela recolhe os aparelhos todas as noites em
determinado horário para que eles não fiquem acordados conversando com
estranhos na internet depois de irmos deitar. Eu acho que é fácil encontrar
estranhos pela internet em qualquer horário do dia, mas não discuto com ela a
respeito.
Assim que as crianças vão para a cama, Millicent e eu vamos para a garagem
ter a nossa noite romântica.
Onze
Nós nos sentamos no carro de Millicent. Ela dirige um modelo mais
sofisticado, um híbrido de luxo, porque volta e meia leva os clientes de carro
por aí ao mostrar as casas. Os bancos de couro são confortáveis, o carro é
espaçoso e, com as portas fechadas, as crianças não conseguem bisbilhotar.
A minha mão descansa entre nós dois, no console central, e ela põe a sua
sobre a minha.
— Você está nervoso — ela diz.
— E você não?
— Eles não vão achar nada para nos incriminar.
— Como é que você sabe? Você pensou que eles iam encontrar o corpo?
Ela dá de ombros. — Talvez eu não tenha dado tanta importância assim.
Minha sensação é que aquilo que eu sei caberia na minha mão e tudo que eu
não sei encheria a casa. Tenho tantas perguntas, mas não quero saber as
respostas.
— As outras nunca foram encontradas — eu digo. — Por que Lindsay?
— Lindsay — ela diz o nome devagar. A cena faz com que eu pense no
nosso primeiro encontro com ela. Fizemos isso juntos. Procuramos,
escolhemos. Eu participei de todas as decisões.
Depois da minha segunda caminhada com Lindsay, contei a Millicent que
ela era a pessoa certa. Foi quando desenvolvemos o nosso código, a nossa noite
romântica especial, com a diferença que não nos encontramos na garagem.
Enquanto um vizinho cuidava das crianças, Millicent e eu saímos para tomar
iogurte gelado. Ela comprou um de baunilha, eu tomei um de nozes, e a gente
passeou pelo shopping, onde tudo estava fechado menos o cinema. Paramos na
frente de uma sofisticada loja de itens para cozinha e olhamos a vitrine. Era
uma das lojas preferidas de Millicent.
— Então — ela disse —, me conte.
Eu olhei para os lados. As pessoas mais próximas estavam a centenas de
metros, na fila do cinema. Mesmo assim, eu baixei a voz. — Acho que ela é
perfeita.
Millicent ergueu as sobrancelhas, surpresa. E feliz. — Mesmo?
— Se nós vamos fazer isso, sim. Ela é a número um — ela não era a única,
era a terceira. Lindsay era diferente porque era uma estranha que escolhemos
pela internet. Nós a selecionamos em meio a um milhão de outras opções. As
duas primeiras nós sequer selecionamos. Elas vieram até nós.
Millicent provou uma colherada do iogurte de baunilha e lambeu a colher. —
Você acha que nós deveríamos então? Deveríamos fazer?
Algo em sua expressão me fez desviar o olhar. Em certas ocasiões, Millicent
me faz sentir como se eu não pudesse respirar. Aconteceu ali, naquela hora,
enquanto estávamos parados no shopping decidindo o destino de Lindsay.
Desviei o olhar do rosto de Millicent para a loja fechada. Todo aquele
equipamento novo e brilhante me encarou de volta, zombando de mim com a
sua inatingibilidade. Não podíamos pagar por tudo que queríamos do lugar.
Não que alguém pudesse, mas eu ainda me incomodava com isso.
— Sim — eu disse para Millicent. — Com certeza devemos fazer.
Ela se aproximou e me deu um beijo gelado de baunilha.
Nunca falamos nada sobre manter Lindsay em cativeiro.
Agora, estamos sentados na garagem tendo outra noite romântica. Sem
iogurte gelado, só com um pacote de salgadinhos no porta-luvas. Ofereço a
Millicent, e ela torce o nariz.
Resolvo voltar à razão pela qual estamos sentados dentro do carro. — Você
devia saber que Lindsay ia ser encontrada.
— Eu sabia.
— Mas por quê? Por que você ia querer que ela fosse encontrada?
Ela olha pela janela do carro para as pilhas de bacias plásticas cheias de
brinquedos velhos e enfeites de Natal. Quando ela se vira novamente para mim,
sua cabeça está inclinada para o lado e ela meio que sorri. — Porque é o nosso
aniversário.
— Nosso aniversário de casamento foi há cinco meses.
— Não esse aniversário.
Eu tento lembrar, sem querer estragar tudo, pois deveria saber. Deveria me
lembrar dessas coisas.
Do nada, eu lembro. — Nós pegamos Lindsay há um ano. Quando
decidimos.
Millicent fica radiante. — Sim. Um ano do dia em que nós encontramos ela.
Sigo olhando para a minha esposa. Ainda não faz sentido.
— Por que você ia querer...
— Já ouviu falar em Owen Riley? — ela pergunta.
— Quem?
— Owen Riley. Você sabe quem ele é?
O nome não soa familiar de imediato. Então, eu lembro.
— Você diz Owen Riley? O serial killer?
— É assim que vocês chamavam ele?
— Owen Oliver Riley. A gente chamava só de Owen Oliver, na verdade.
— Então você sabe o que ele fez?
— Claro que eu sei. Não tinha como morar aqui e não saber.
Ela sorri para mim e, como às vezes acontece, estou perdido. — Não é só o
nosso aniversário, é o de Owen também — ela diz.
Eu penso no passado, vasculhando a minha mente atrás de eventos que
aconteceram quando eu mal era um adulto. Owen Oliver apareceu no verão
logo depois da minha formatura do colégio. Ninguém prestou atenção quando
uma mulher desapareceu, e ninguém prestou atenção quando a segunda
desapareceu. Só foram notar alguma coisa quando uma delas foi encontrada
morta.
Eu me lembro de estar em um bar com uma identidade falsa, cercado de
amigos da minha idade. Nós estávamos bebendo cerveja vagabunda e destilado
barato enquanto assistíamos o primeiro corpo sendo descoberto. Nunca
aconteceu nada em Woodview. Certamente nada como o assassinato de uma
simpática mulher chamada Callie, que trabalhava como gerente em uma loja de
roupas. Ela foi achada dentro de uma área de descanso abandonada, ao lado da
rodovia. Um caminhoneiro encontrou o corpo.
No início, era apenas o assassinato macabro de uma mulher. Passei aquele
verão assistindo, vidrado, enquanto a imprensa, a polícia e a comunidade
tentavam encontrar um motivo.
“Um andarilho” passou a ser a resposta mais aceitável. Todos se sentiram
melhor acreditando que o assassino não era um morador local, mesmo quando
isso significava dizer que esse estranho tinha sequestrado Callie e a mantido
viva durante meses antes de matá-la. Ainda assim, nós acreditamos. Até eu
acreditei.
Quando aconteceu uma segunda vez, todo mundo se sentiu traído. Só podia
ser alguém da comunidade.
Ninguém sabia que era Owen Oliver Riley. Ainda não. Nós apenas o
chamávamos de O Assassino de Woodview.
Depois de nove mulheres mortas, ele foi capturado. Owen Oliver Riley era
um homem de trinta e poucos anos, com cabelo loiro que parecia palha, olhos
azuis e uma barriga em estágio inicial. Dirigia um sedã prateado, frequentava
um bar que passava esportes na televisão e realizava trabalho voluntário na sua
igreja. As pessoas o conheciam, falavam com ele, vendiam produtos e serviços
para ele e até acenavam quando se deparavam com ele pela rua. Fiquei olhando
para a sua foto na tevê, pensando que não podia ser aquele cara. Ele parecia tão
normal. E era, tirando o fato de ter matado nove mulheres.
Owen Oliver foi inicialmente acusado de um assassinato só. As demais
acusações ficaram pendentes devido à falta de evidências. A fiança foi negada.
Owen Oliver ficou preso durante três semanas, até ser liberado por causa de um
detalhe técnico. O mandado para obter sua amostra de DNA não tinha sido
assinado até o momento em que a polícia esfregou a parte interna da sua
bochecha. Até o defensor público podia deitar e rolar com essa displicência. E
foi o que ele fez.
Com o DNA descartado, a polícia não tinha nada. Ainda estavam correndo
atrás de evidências quando Owen Oliver saiu da cadeia. A aparência dele era
tão normal que logo ele se misturou à sociedade e desapareceu.
Quando ele foi libertado, eu estava no exterior e ainda assim fiquei sabendo
da notícia. Foi uma das poucas vezes que conversei com meus pais antes da
morte deles. Depois do acidente, voltei para casa, mas não tinha planos de
ficar, até conhecer Millicent. Naquela época, quando ela concordou em sair
comigo pela primeira vez, presumi que fosse porque ela era nova na região e
não conhecia mais ninguém.
Às vezes eu ainda penso isso.
Quando voltei para casa, Owen Oliver já tinha ido embora há tempos. Mas
todo ano, no aniversário do dia em que ele foi solto, seu rosto volta às notícias.
Ao longo dos anos, Owen foi se tornando o nosso monstro local, o bicho-
papão, o grande psicopata. Por fim, ele se tornou um mito, grande demais para
a própria vida.
— Deve fazer dezessete anos desde a última vez que ele matou alguém — eu
digo.
— Dezoito, na verdade. Nesse mesmo mês, dezoito anos atrás, a última
vítima dele desapareceu.
Eu balanço a cabeça, tentando encaixar as peças no meu cérebro. Como
sempre, Millicent faz isso por mim.
— Você se lembra quando Lindsay desapareceu? Quando ficaram
procurando por ela? — ela pergunta.
— Claro.
— E o que você acha que vai acontecer quando mais uma mulher
desaparecer? Uma das mulheres na nossa lista, por exemplo?
Pouco a pouco, as lacunas começam a ser preenchidas. Se outra mulher
desaparecer, a polícia começará a pensar que existe um serial killer por aí.
Millicent ressuscitou Owen para poder culpá-lo pelo nosso trabalho.
Ela está planejando o nosso futuro.
— É por isso que você deixou Lindsay viva por todo esse tempo — eu digo.
— Você estava copiando Owen.
Millicent concorda com a cabeça. — Sim.
— E ele estrangulava as vítimas, não era?
— Isso.
Eu suspiro. É tanto físico quanto psicológico. — Foi tudo uma armação.
— Claro que foi. Quando a polícia começar a procurar, e eles vão fazer isso,
eles vão atrás de Owen.
— Mas por que você não me contou? Por um ano?
— Eu queria surpreender você — ela diz. — Por causa do nosso aniversário.
Fico olhando para ela. Minha adorável esposa.
— Isso é uma loucura completa — eu digo.
Ela ergue uma sobrancelha. Antes que ela possa falar, coloco meu dedo
contra os seus lábios.
— E é brilhante — eu digo.
Millicent se inclina e me beija na ponta do nariz. Seu hálito está com o
cheiro da sobremesa que comemos hoje à noite. Não é baunilha desta vez.
Sorvete de chocolate com cereja.
Ela desliza sobre o console central, subindo em cima de mim no banco do
passageiro. Quando ela tira o moletom, a presilha se solta e o cabelo dela cai.
Ela olha para mim, com os olhos escuros como um pântano.
— Você não achou que a gente ia parar, achou?
Não. Nós não podemos parar agora.
Eu na verdade nem quero que isso aconteça.
Doze
No começo, foi por causa de Holly. E foi porque nós precisávamos daquilo.
Quando o celular tocou naquele dia fresco de outono, o nosso mundo se
despedaçou. A ligação dizia respeito a Holly. Ela seria liberada de um hospital
psiquiátrico.
Eu não estava escutando direito. Foi como me senti quando Millicent contou
pela primeira vez que sua irmã não havia morrido em um acidente de carro aos
quinze anos de idade. Ela tinha sido internada em um hospital psiquiátrico.
Já era mais tarde naquela noite de sábado, depois que as crianças se
acalmaram, jantaram e foram para a cama. Millicent e eu sentamos na sala de
estar, no novo sofá que continuávamos pagando no cartão de crédito, e ela me
relatou a verdadeira história de Holly.
A primeira vez foi com o corte de papel. Eu já conhecia essa história, de
como elas faziam colagens com suas figuras preferidas.
— Ela fez de propósito — Millicent disse. — Agarrou a minha mão e cortou
com o papel. Bem aqui — ela apontou para a pele entre o polegar e o dedo
indicador. — Ela convenceu os nossos pais de que foi um acidente.
Um mês se passou e Millicent, com seus seis anos de idade, quase se
esqueceu do machucado. Até acontecer de novo. As duas estavam no quarto de
Holly, envolvidas em uma brincadeira que chamavam de Reino Lilás. Millicent
e a irmã criavam um mundo próprio, usando bonecas, bichos de pelúcia e
cavalos de plástico, e o chamavam de Reino Lilás. O nome era uma referência
à cor do quarto de Holly. O quarto dela era todo lavanda, o de Millicent era
amarelo.
Enquanto estavam no Reino, Holly a cortou novamente. Dessa vez ela usou
um pedaço afiado de plástico, arrancado de um brinquedo.
O corte foi na perna de Millicent, perto do calcanhar. Ela gritava e o sangue
pingava no carpete. Holly apenas observou a cena até a mãe delas entrar no
quarto. E então ela começou a gritar junto com Millicent.
O incidente foi tratado como outro acidente.
Nos anos seguintes, no entanto, Millicent sofreria uma série de outros
acidentes. O seu pai achava que ela era muito desastrada. Sua mãe a mandava
ser mais cuidadosa.
Holly ria dela.
Quanto mais Millicent me contava, mais horrorizado eu ficava. Muito do
que eu via nela agora fazia sentido.
A mordida no braço, atribuída ao cachorro. Duas pequenas marcas
desbotadas que nunca desapareceram.
Um dedo quebrado, esmagado pela porta. Ainda estava um pouco torto.
Uma pequena lasca em um dos dentes incisivos da arcada inferior, depois de
tropeçar e cair contra o batente da porta.
O longo e profundo corte na panturrilha produzido por um caco de vidro na
rua. A cicatriz ainda é visível. Um talho comprido de quase quinze centímetros.
A lista continuou por um tempo que pareceu horas. E, conforme as irmãs
ficaram mais velhas, piorou.
Quando Millicent tinha dez anos, Holly a empurrou escada abaixo. Millicent
quebrou o braço. Seis meses mais tarde, Holly atropelou Millicent com sua
bicicleta. Depois disso, Millicent caiu de uma árvore no quintal.
Seus pais acreditavam que era tudo acidente. Ou enxergavam o que queriam
enxergar. Pai nenhum quer admitir que a sua filha é um monstro.
Uma parte de mim conseguia entender essa lógica. Nada me faria acreditar
que Rory e Jenna pudessem agir com tamanha crueldade. Simplesmente não é
possível, não é verossímil. E tenho certeza de que os pais de Millicent sentiam
o mesmo em relação a Holly.
Não que essa constatação me deixasse menos enfurecido. Enquanto escutava
todo o martírio que Millicent teve que passar durante a infância, eu não
conseguia deixar a raiva de lado.
O tratamento — ou melhor, a tortura — continuou até a pré-adolescência
delas. Na época, Millicent já havia desistido há muito tempo de ser amável
com a irmã, na esperança de que ela pararia. Pelo contrário, ela tentou revidar
machucando Holly.
A primeira e única vez que ela tentou machucar Holly de verdade foi quando
as duas estavam no finalzinho do Ensino Fundamental. Quando o sinal tocou,
elas foram para a porta do colégio com as outras crianças, em direção à fila de
pais que aguardavam para buscar os filhos. Elas caminhavam juntas, lado a
lado, e Millicent colocou o pé na frente da irmã.
Holly caiu de cara no chão.
A coisa toda durou um segundo, mas foi vista por metade da escola. As
crianças riram, os professores correram para ajudar e, por dentro, Millicent
sorria sozinha.
— Parece doentio — Millicent disse. — Mas eu achei mesmo que tinha
acabado. Eu achei que, se eu machucasse ela, ela ia parar de me machucar.
Ela estava errada.
Horas depois, Millicent acordou no meio da madrugada. Seus pulsos
estavam atados e amarrados à cabeceira da cama. Holly começava a pôr uma
mordaça na boca de Millicent.
Holly não falou nada para ela. Apenas ficou sentada no canto, encarando
Millicent até o sol nascer. Pouco antes dos seus pais acordarem, Holly a
desamarrou e tirou a mordaça de sua boca.
— Nunca mais tente me machucar — ela disse. — Da próxima vez eu vou te
matar.
Millicent não a machucou mais. Continuou sofrendo os maus tratos
enquanto procurava uma maneira de provar que não era desastrada e que não
estava se machucando em acidentes. Holly era esperta demais para ser flagrada
por uma câmera, inteligente demais para ser descoberta por qualquer pessoa.
Até hoje, Millicent está convencida de que o flagelo teria continuado se não
fosse pelo carro.
O tal acidente de carro de fato aconteceu. Holly tinha quinze anos, Millicent
tinha treze e Holly realmente decidiu dar uma volta com o carro da mãe. Ela
mandou Millicent acompanhá-la no passeio e então jogou o carro de propósito
contra uma cerca, batendo o lado do passageiro primeiro.
Seria classificado como um acidente se não fosse o vídeo.
Duas câmeras de segurança registraram a batida por ângulos diferentes. A
primeira mostrava o carro seguindo reto pela rua quando uma virada brusca
para a direita o faz partir para cima da cerca. A segunda mostrava o lado do
motorista do carro. Holly estava atrás da direção e parecia girar o volante de
maneira deliberada.
A polícia a interrogou e concluiu que o acidente não foi acidente coisa
nenhuma.
Depois de muitos depoimentos de Millicent, de Holly e de seus pais, os
investigadores perceberam que havia algo muito errado com Holly. Também
acreditavam que ela estava tentando matar a irmã mais nova.
Em vez de ver a filha ser acusada por tentativa de homicídio, os pais de
Millicent concordaram em submetê-la a uma hospitalização psiquiátrica de
prazo indeterminado. E os médicos a mantiveram por lá.
Vinte e três anos depois, ela foi liberada.
Holly foi a primeira.
Depois da nossa noite romântica, pesquiso sobre Owen Oliver Riley. Se o
nosso plano é ressuscitar o bicho-papão da região, então preciso revisar os
fatos, analisando especificamente o tipo de mulher que ele escolhia como alvo.
Não me lembro de muita coisa sobre isso. O que eu lembro é que ele deixou
todas as mulheres da região apavoradas, o que facilitava ou dificultava muito
para você arranjar uma namorada. Ou elas me olhavam como se eu pudesse ser
o próprio Assassino de Woodview ou então avaliavam as minhas chances de
lutar contra ele.
Essas garotas, na época, tinham mais ou menos a minha idade, entre dezoito
e vinte anos, embora essa não fosse a faixa etária preferida de Owen Oliver. Ele
gostava de mulheres um pouco mais velhas, entre vinte e cinco e trinta e cinco.
Loira ou morena, não importava. Owen Oliver não tinha essa preferência.
Ele tinha outras, no entanto. As mulheres eram um pouco baixas, nenhuma
passava muito de um metro e sessenta. Era mais fácil para carregá-las de um
lugar para o outro. E bem mais fácil para Millicent.
Todas elas moravam sozinhas.
Muitas trabalhavam à noite. Uma delas era até prostituta.
O último pré-requisito de Owen, por outro lado, foi o descuido que o
entregou. Em um momento ou outro da vida, todas as suas vítimas foram
pacientes do hospital Saint Mary’s Memorial. Às vezes, uma internação de
muitos anos antes. Uma delas teve as amígdalas retiradas no Saint Mary’s;
outra teve pneumonia e passou dois dias em tratamento intravenoso. Owen
trabalhava no departamento de cobranças. Sabia tudo sobre os procedimentos
médicos realizados, além de saber a idade, o estado civil e o endereço dessas
mulheres.
O Saint Mary’s era o único nó que conectava todas as vítimas. Por um longo
período, esse dado foi ignorado, porque todo mundo vai ao Saint Mary’s. É o
único hospital de grande porte da região. O segundo mais próximo fica a uma
hora de distância.
Eu pulo a maioria dos detalhes sobre o que ele fazia com as vítimas
enquanto elas estavam em cativeiro. Muita informação que não preciso, muitas
imagens mentais que não quero.
O único detalhe que me chama a atenção diz respeito às impressões digitais.
Owen raspava os dedos de todas as suas vítimas. Assim como Millicent raspou
as de Lindsay.
Em seguida, vou descendo a barra de rolagem pelas fotos das mulheres que
ele matou. Eram jovens, sorridentes e felizes. É como as vítimas sempre se
parecem nessas fotos. Ninguém quer ver a foto de uma jovem melancólica,
mesmo se ela estiver morta.
Eu reparo em mais algumas coisas. Todas as mulheres eram bastante
comuns. Não usavam muita maquiagem nem roupas chamativas. Um visual
bem simples, na maioria delas: cabelo normal, jeans e camiseta, nada de batom
em tons escuros, nada de unhas pintadas. Lindsay se encaixava nesse perfil, e
ela também se encaixava no requisito de altura de Owen.
Naomi era mais simples do que glamorosa, mas era alta demais.
Até agora, eu nunca tinha escolhido uma mulher com base neste perfil. O
meu critério girava em torno de quantas pessoas sairiam atrás dela, o quão
rápido a polícia seria notificada e quanto tempo seria gasto pelas autoridades na
tentativa de encontrar uma mulher adulta.
Todo o resto era arbitrário. Escolhi Lindsay porque ela se encaixava em
todos os critérios importantes, e porque Millicent não ia largar do meu pé até
eu escolher a próxima.
Com Petra foi diferente. Por eu ter dormido com ela, ou por ela ter
suspeitado que eu não era surdo. Talvez as duas coisas. Ela ainda está lá fora,
ainda é um risco, mas não se encaixa nem um pouco neste nosso novo perfil.
Petra é alta demais e muito exuberante; ela usa saia e salto alto, e até as unhas
dos seus pés são pintadas de vermelho.
Preciso encontrar outra. Nossa número quatro.
Era assim que Owen Oliver trabalhava. Ele sempre capturava a próxima
vítima depois da última ser encontrada.
Enquanto vasculho as redes sociais, posso sentir a adrenalina se espalhando
pelo meu corpo. Não é bem uma explosão, ainda não é, mas vai ser. Millicent e
eu vamos trazer Owen de volta juntos.
E eu estou ansioso por isso.
Treze
Nós não selecionamos as primeiras duas mulheres. Lindsay foi a primeira que
escolhemos, e nós a descobrimos nas redes sociais. Mas isso foi quando não
tínhamos um perfil pré-definido ou uma exigência de altura. A maioria das
pessoas não descreve suas características físicas nas redes sociais, e nas
páginas não existem categorias para você indicar sua altura exata ou peso ou
cor dos olhos. Eis uma dificuldade para minha primeira busca pela número
quatro.
De todo modo, achei um lugar onde a altura precisa, sim, ser cadastrada:
sites de namoro. Mas uma breve busca por algumas dessas páginas é
desanimadora. No dia seguinte, peço para Millicent se encontrar comigo no
início da tarde. Compramos um café e nos sentamos no parque do outro lado da
rua. O dia está lindo, o céu está com um azul imaculado, baixa umidade do ar,
e o parque é perto o bastante para usarmos o wi-fi da cafeteria.
Eu explico nossos novos requisitos de perfil e mostro o que encontrei online.
Ela avalia as mulheres listadas no site e então olha para mim.
— Todas têm um jeito tão... — ela balança a cabeça negativamente enquanto
sua voz se perde.
— Falso?
— Sim. Como se tentassem ser o que os homens querem e não o que elas
são de verdade.
Eu aponto para uma delas, que diz que os seus hobbies são windsurf e festas
na beira da praia. — E pode ser que elas tenham amizades demais.
— Algumas delas têm, com certeza.
Ela continua pulando de um perfil para outro, com uma expressão grave no
rosto. — Não temos como selecionar a partir de um site de namoro.
Eu não digo nada, e ela se vira para mim. Eu estou sorrindo.
— O que foi? — ela pergunta.
Tenho outra ideia.
Ela relaxa, bem menos preocupada, e ergue uma sobrancelha. — Agora você
tem, é?
— Tenho.
— Diga.
Eu lanço um olhar pelo parque, com os meus olhos finalmente pousando em
uma mulher sentada lá em outro banco, lendo um livro. Eu aponto. — Que tal
ela?
Millicent olha, analisa a mulher e sorri. — Você quer procurar alguém no
mundo real?
— No início, sim. Pra ver se a gente encontra alguém que se encaixe no
perfil físico. Aí vamos pesquisar online pra ter certeza que vai funcionar com
ela.
Os olhos de Millicent se voltam para mim. São tão brilhantes. Ela põe a sua
mão na minha. Seu toque se espalha por todo o meu corpo, é uma sensação de
estar sendo recarregado. Até o meu cérebro parece se aquecer.
Ela concorda com a cabeça, e os cantos da sua boca se dobram para o alto
quando ela sorri. Só consigo pensar em beijá-la. Em derrubar Millicent no meio
do parque e arrancar as suas roupas.
— Eu sabia que tinha um motivo para eu ter me casado com você —
Millicent finalmente diz.
— Porque eu sou inacreditavelmente brilhante?
— E humilde.
— Também não sou tão feio assim — eu digo.
— Se fizermos isso certo — ela diz —, a polícia não vai nem pensar em
procurar um casal. Vamos ter liberdade pra fazer o que quisermos.
Há algo aí que me deixa ainda mais entusiasmado. O mundo está repleto de
coisas que não posso fazer e que não posso comprar, de casas a carros a
utensílios de cozinha, mas isso, isso, é como nós podemos ser livres. Isso é a
única coisa que é nossa, que controlamos. Graças a Millicent.
— Sim — eu digo a ela.
— Sim pro quê?
— Sim pra tudo.

Vou de carro até a estação SunRail e pego o trem para Altamonte Springs, na
direção oposta de onde Petra mora. Tecnicamente, a cidade fica fora de
Woodview, mas ainda era parte do território de caça original de Owen.
Há mulheres por todos os lados. Jovens, velhas, altas, baixas, magras,
gordas. Estão em cada rua, cada loja, cada esquina. Não vejo homens, somente
mulheres, e sempre foi assim. Quando eu era jovem, não conseguia imaginar
essa história de escolher uma só. Não com tantas à disposição.
Obviamente, isso foi antes de Millicent.
Estou bem diferente agora. Eu ainda avalio todas as mulheres, apenas não da
mesma forma. Não as enxergo como possíveis parceiras, amantes ou
conquistas. Eu avalio essas mulheres com base no fato de se encaixarem ou não
no perfil de Owen. Primeiro eu meço cada uma com base na altura, em seguida
classifico de acordo com a maquiagem e as roupas.
Observo uma mulher jovem sair de uma lavanderia e subir para o
apartamento no andar de cima. De onde estou, não consigo ter certeza se ela é
alta demais ou não.
Uma segunda mulher sai de um prédio comercial. Ela é um tanto quanto
baixa, mas irritantemente acelerada, e a observo entrar em um carro melhor do
que o meu. Não sei se conseguiria me aproximar de alguém assim.
Vejo uma mulher em um café e pego uma mesa atrás dela. Ela está com um
notebook aberto, flanando por sites que se enquadram em duas categorias:
política e comida. Sei quase nada sobre isso e fico pensando no tipo de
conversa que teríamos. É o suficiente para me deixar curioso e acompanho seu
movimento até a saída, seguindo seu rastro para pelo menos poder anotar a
placa do carro.
Eu continuo pela calçada até ver uma pequena mulher que trabalha como
fiscal de estacionamento. Está escrevendo uma multa. Suas unhas são curtas,
assim como o seu cabelo. Não posso ver seus olhos por causa dos óculos
escuros, mas ela não está usando batom.
Passo por ela, perto o bastante para ler o nome no uniforme.
A. Parson Talvez seja ela, talvez não seja. Ainda não decidi. Quando ela não
está olhando, tiro algumas fotos.

Mais tarde naquela noite, Millicent está deitada na cama e estudando uma
planilha em seu computador. As crianças estão dormindo, ou deveriam estar.
Pelo menos, estão em silêncio. Não dá para exigir nada melhor do que isso nos
últimos dias.
Subo na cama ao lado de Millicent. — Olá, gatinha — eu digo.
— Oi — ela se mexe para o lado para me dar espaço, apesar de nossa cama
ser grande o suficiente.
— Fui às compras hoje.
— Meu Deus, tomara que você não tenha jogado dinheiro fora. Estou
olhando as nossas contas agora e não temos nenhuma reserva. Não agora que
essa lava-louça teve que ser trocada.
Dou um sorriso. — Não é esse tipo de compra — eu coloco meu celular na
frente dela, com uma foto de A. Parson na tela.
— Ah — Millicent diz. Ela dá um zoom na foto e aperta os olhos. — Que
uniforme é esse?
— Fiscal de estacionamento.
— Eu com certeza não ia achar ruim uma vingancinha contra essa gente.
— Eu também não — nós damos uma boa risada. — E ela se encaixa no
perfil de Owen.
— Se encaixa mesmo — Millicent fecha o computador e vira todo seu corpo
para mim. — Bom trabalho.
— Obrigado.
Nós nos beijamos, e todos os nossos problemas financeiros se derretem.
Quatorze
No início, não era nada sensual. Era aterrorizante.
Era para Holly ser o fim, não o começo. No dia seguinte à sua liberação do
hospital, Millicent abriu a porta da frente e encontrou Holly na varanda. Bateu
a porta na cara da irmã.
Holly escreveu uma carta e colocou o envelope na caixa de correspondência.
Millicent não respondeu.
Ela ligou. Millicent parou de atender o telefone.
Quando entrei em contato com o hospital psiquiátrico, não quiseram me
contar nada.
Holly começou a aparecer em lugares públicos, mantendo uma distância
segura, ainda que estivesse sempre presente. No supermercado, quando
Millicent fazia as compras. No estacionamento do shopping. Do outro lado da
rua quando nós saíamos para jantar.
Ela nunca ficava o tempo necessário para podermos chamar a polícia. E,
toda vez que nós tentávamos fotografá-la para ter uma prova, ela se virava e
fugia ou então se mexia para forçar um borrão na imagem.
Millicent não queria contar para a mãe. O Alzheimer já estava apagando
Holly da memória dela, e Millicent queria que continuasse assim.
Na internet, pesquisei as leis contra perseguição e fiz uma lista de todas as
datas em que Holly tinha aparecido até então. Quando mostrei para Millicent,
ela me disse que era inútil.
— Isso não vai ajudar — ela disse.
— Mas e se a gente...
— Eu conheço as leis contra perseguição. Ela não quebrou nenhuma, e não
vai quebrar. Holly é esperta demais para isso.
— Temos que fazer alguma coisa — eu disse.
Millicent ficou olhando para meu notebook e balançou a cabeça. — Acho
que você não entende. Ela transformou minha infância num inferno.
— Eu sei disso.
— Então você deveria saber que uma lista não vai ajudar.
Eu queria ir à polícia e contar o que estava acontecendo com a gente, mas a
única evidência física que tínhamos era a carta que Holly colocou na caixa de
correspondência. Ela não era ameaçadora. Como Millicent disse, Holly era
esperta demais para isso.

M,
Você não acha que nós precisamos conversar? Eu acho que sim.
H.

Em vez de ir à polícia, fui conversar com Holly. Falei para ela deixar
Millicent e minha família em paz.
Ela não deixou. Da próxima vez que nos encontramos, ela estava dentro da
minha casa.
Era uma terça-feira, mais ou menos na hora do almoço, e eu estava no clube
terminando uma aula e pensando no que iria comer. Meu celular tocou três
vezes seguidas, três mensagens de Millicent.
911
Vem pra casa AGORA
Holly

Isso foi menos de uma semana depois da minha visita a Holly.


Não parei para responder as mensagens de Millicent. Quando cheguei em
casa, ela me encontrou na porta. Seus olhos estavam molhados, com as
lágrimas ameaçando correr pelas bochechas. Minha esposa simplesmente não
chora por qualquer coisa.
— Mas que diabo...
Antes que eu pudesse terminar, ela agarrou minha mão e me levou para a
sala de estar. Holly estava lá no fundo, sentada no sofá. Assim que ela me viu,
se levantou.
— Holly estava aqui quando eu cheguei — Millicent disse. Sua voz tremeu.
— O quê? — Holly disse.
— Bem aqui, bem na nossa sala de estar.
— Não, não foi bem assim...
— Eu esqueci a minha câmera — Millicent disse. — Eu tinha que fotografar
a casa da família Sullivan hoje, aí eu voltei para casa e ela estava bem aqui.
— Espere...
— Encontrei ela sentada no nosso sofá — as lágrimas finalmente vieram,
com força, e Millicent cobriu o rosto com as mãos. Coloquei meu braço em
volta dela.
Holly parecia uma mulher normal de trinta e poucos anos vestida com calça
jeans, camiseta e sandálias. Seu cabelo curto estava penteado para trás e ela
usava um batom intenso. Holly respirou fundo e ergueu as duas mãos como se
tentasse me mostrar que estavam vazias. — Espere aí, não é...
— Pare de mentir — Millicent berrou. — Você sempre mente.
— Não estou mentindo!
— Parem com isso — eu disse, dando um passo à frente. — A gente precisa
se acalmar aqui.
— Isso — Holly disse. — Vamos fazer isso.
— Não, eu não vou me acalmar — Millicent apontou para a janela do canto,
que dá para o lado da casa. As cortinas estavam fechadas, mas vidro quebrado
se espalhava pelo chão. — Foi assim que ela entrou. Ela quebrou a janela para
entrar na nossa casa.
— Não quebrei!
— Então entrou aqui como?
— Eu não...
— Holly, pare com isso. Pare agora. Você não vai enganar meu marido do
jeito que enganou a mãe e o pai.
Millicent estava certa quanto a isso.
— Ai, meu Deus — Holly disse. Ela cruzou os dedos das mãos em cima da
cabeça e fechou os olhos, como se tentasse bloquear o mundo. —
Aimeudeusaimeudeusaimeudeus.
Millicent deu um passo para trás.
Eu me aproximei. — Holly — eu disse. — Tudo bem contigo?
Ela continuou. Era como se ela não pudesse me ouvir. Quando ela acertou o
lado da sua cabeça com sua mão aberta, olhei para trás na direção de Millicent.
Ela olhava fixo para Holly e parecia estar assustada demais para se mexer.
Millicent estava paralisada.
Eu levantei a voz: — Holly.
Sua cabeça fez um movimento brusco para o alto.
Ela abaixou as mãos.
O rosto de Holly se contorceu em algo raivoso, uma expressão quase
animalesca. A sensação era que eu estava de fato testemunhando o que causava
tanto medo em Millicent.
— Você tinha que ter morrido naquele acidente — ela disse a Millicent. A
frase veio como um rugido.
Millicent se aproximou, usando meu corpo como escudo, e apertou meu
braço. Eu me virei parcialmente para mandá-la chamar a polícia, mas ela falou
primeiro. Sua voz mal era um sussurro. — Graças a Deus as crianças não estão
aqui para ver isso.
As crianças. Uma imagem delas relampejou na minha mente. Eu vi Rory e
Jenna ocupando o lugar que seria meu e de Millicent na sala. Senti o mesmo
medo que elas sentiriam caso estivessem na frente desta mulher insana.
— Holly — eu disse.
Ela não podia me ouvir. Não podia ouvir ninguém. Seus olhos estavam fixos
em Millicent, que tentava se esconder atrás de mim.
— Sua cadela — Holly disse.
E ela então se jogou em cima de mim.
Na direção de Millicent.
Naquele momento, não tomei uma decisão racional. Não medi todas as
opções ao meu alcance, considerando as vantagens e desvantagens, usando a
lógica para definir o melhor plano de ação. Se eu tivesse parado para pensar,
Holly ainda estaria viva.
No entanto, eu não pensei, não racionalizei. O que eu fiz em seguida veio de
algum lugar muito mais profundo. Era biologia, autopreservação. Instinto.
Holly era uma ameaça à minha família, logo ela era também uma ameaça a
mim. Estendi a mão para o objeto mais próximo. Estava bem ali do meu lado,
encostada contra a parede.
Uma raquete de tênis.
Quinze
Alguns dias de calmaria até alguém na tevê perguntar sobre Owen Oliver Riley.
Josh, o meu dedicado jovem Josh, citou o nome do serial killer durante uma
coletiva de imprensa. Desde que Lindsay foi encontrada, a polícia tem feito
coletivas de imprensa quase todos os dias. São realizadas no final da tarde para
dar tempo dos destaques serem preparados para o noticiário da noite.
A pergunta de Josh vai ser o destaque de hoje.
— Já ocorreu a vocês que Owen Oliver Riley pode ter voltado?
O detetive a cargo da investigação, um homem de cinquenta anos que está
perdendo os cabelos, não se mostrou surpreso com a pergunta.
Josh é jovem demais para lembrar qualquer detalhe sobre Owen Oliver, mas
é um repórter inteligente e ambicioso, capaz de navegar pela internet na
velocidade da luz. Ele só precisava que alguém indicasse um ponto de partida
para sua pesquisa.
Portanto, voltei a alguns dos mais famosos serial killers. Vários se
comunicavam com a imprensa, às vezes até mesmo com a polícia, e isso foi
muito antes do e-mail ser inventado. Mas, considerando como é fácil rastrear
qualquer coisa eletrônica, decidi não usar e-mail. Resolvi imitar a velha guarda.
Owen nunca escreveu cartas para ninguém, então tudo que eu precisei fazer
foi criar algo suficientemente plausível para ser real. Depois de várias
tentativas, de extensas a curtas, poéticas a delirantes, cheguei a uma única
linha:
É bom estar em casa.
— Owen

Usei luvas cirúrgicas enquanto manuseava o papel, o envelope e o selo.


Quando a carta estava selada e pronta para ser enviada, borrifei o envelope com
um desses perfumes baratos de farmácia. Ficou com cheiro de caubói
almiscarado.
Um truquezinho só para brincar um pouco com Josh.
Depois, atravessei a cidade de carro e larguei a carta em uma caixa de
correio. Três dias depois, Josh citou Owen em uma coletiva de imprensa, mas
não a mensagem. Talvez Josh esteja guardando o segredo para si mesmo, ou
talvez a polícia tenha pedido a ele para não mencionar nada.
Por ora, estou satisfeito em esperar para ver, porque preciso resolver uma
pendência no caminho. Ontem à noite, eu observava o apartamento de
Annabelle Parson. Finalmente. A fiscal de estacionamento dos meus sonhos foi
mais difícil de achar do que as outras. Tanto Lindsay quanto Petra, só precisei
procurar os seus nomes na internet. Annabelle era mais esperta do que isso,
sem dúvida para poder se esconder de toda aquela gente enraivecida que
recebeu uma multa dela. Para saber onde ela morava, tive que segui-la até em
casa uma noite. Foi um pouco irritante.
Ontem à noite, esperei em frente ao seu apartamento para ver se ela ia voltar
para casa sozinha ou se estava saindo com alguém. Por volta da meia-noite,
recebi uma mensagem do meu filho.
Saindo de novo? Isso vai ter um preço.

O que você quer?

Quer dizer — quanto eu quero?

Desta vez ele não quer outro jogo. Ele quer dinheiro.
No dia seguinte, eu o encontro em casa depois do trabalho. Ele já está no
sofá, trocando de canal na tevê, digitando no celular e jogando videogame.
Millicent ainda não voltou. Jenna está lá em cima.
Eu me sento do seu lado.
Ele levanta o olhar, com suas sobrancelhas erguidas.
Essa operação é um erro. Eu devia ter contado tudo para Millicent. Podíamos
ter nos sentado com Rory e Jenna e explicado que não estava acontecendo
nada.
O pai gosta de dar longos passeios de carro no meio da noite.
Ocasionalmente, usando terno.
Dou o dinheiro para Rory.
Ele está tão ocupado contando o dinheiro que não presta atenção à tevê, onde
estão reexibindo os destaques da coletiva de imprensa no jornal. Rory não faz
ideia do verdadeiro motivo de seu pai estar na rua à noite. Bastava olhar para
frente e ele ia descobrir.
Temos tacos para o jantar, feitos com restos de frango, e estão deliciosos.
Minha esposa é ótima cozinheira e insiste em fazer o jantar todas as noites, mas
quanto mais rápido ela prepara a comida, melhor parece ficar.
Não digo isso a ela.
Para a sobremesa, pêssegos polvilhados com açúcar mascavo e um biscoito
de canela para cada um. Rory é o primeiro a revirar os olhos, embora Jenna o
acompanhe logo em seguida. Millicent sempre foi implacável em relação às
sobremesas.
Cada um na mesa come de um jeito diferente. Jenna lambe o açúcar mascavo
dos pêssegos, depois come o biscoito e então termina os pêssegos. Rory come
o biscoito primeiro, depois os pêssegos, ainda que essa ordem não seja lá muito
rigorosa, já que ele engole tudo tão rápido. Millicent alterna entre a fruta e o
biscoito, uma mordida em um e então uma mordida no outro. Eu esmago os
pêssegos junto com o biscoito e como tudo em colheradas.
Amanhã é nossa noite de cinema e discutimos o que vamos assistir. Semana
passada foi um filme com um animal falante. Rory sempre resmunga no início,
mas adora esses filmes tanto quanto qualquer outra pessoa. Nossas duas
crianças gostam de histórias de esportes, assim escolhemos uma comédia sobre
um time juvenil de beisebol tentando chegar ao campeonato mundial. Nós
votamos como se fosse uma eleição de verdade, e o de beisebol ganha fácil.
— Vou chegar em casa antes das cinco e meia — eu digo.
— O jantar é às seis — Millicent diz.
— Deu? Terminamos? — Rory pergunta.
— Quem é Owen Oliver Riley? — Jenna diz.
Tudo para.
Millicent e eu olhamos para Jenna.
— Onde você ouviu isso? — Millicent pergunta.
— Na tevê.
— Owen é um homem horrível que machucava as pessoas — eu digo. —
Mas ele nunca vai te machucar.
— Ah.
— Não se preocupe com Owen.
— Mas por que estão falando dele? — Jenna continua.
— Por causa daquela menina morta — Rory diz.
— Mulher — eu digo. — Por causa daquela mulher morta.
— Ah, aquela mulher — Jenna dá de ombros e olha para o celular. —
Terminamos então?
Millicent concorda e eles pegam os celulares, recolhendo a mesa enquanto
digitam. Eu limpo os restos dos pratos, Jenna coloca tudo na lava-louça e
Millicent descarta o que sobrou dos tacos.

Enquanto nos arrumamos para dormir, Millicent põe no noticiário local. Ela
assiste os destaques da coletiva de imprensa e se vira para mim. Sem dizer
nada, ela pergunta se eu tive alguma coisa a ver com aquilo.
Eu dou de ombros.
Ela ergue uma sobrancelha.
Eu pisco um olho para ela.
Ela sorri.
Às vezes, não precisamos dizer nada.
Nem sempre fomos assim. No início, passávamos noites inteiras
conversando, exatamente como jovens casais fazem quando estão apaixonados.
Contava a ela todas as minhas histórias. Quer dizer, não conseguia nem contá-
las com a devida cerimônia, porque eu tinha enfim encontrado alguém que
considerava essas histórias fascinantes. Que me considerava fascinante.
No final das contas, ela ficou sabendo de todas as minhas velhas histórias,
então a gente conversava apenas sobre as novas. Eu mandava mensagens no
meio da tarde para contar os menores detalhes do trabalho. Ela me mandava
uma foto engraçada mostrando como estava o seu dia. Eu nunca tinha
conhecido alguém tão bem, nunca tinha compartilhado a minha vida tão
completamente com outra pessoa. Esse nosso esquema continuou até a gente se
casar, e até mesmo um pouco depois, quando Millicent já estava grávida de
Rory.
Ainda me lembro da primeira coisa que não contei para ela. A primeira coisa
importante, quero dizer. Foi o carro. Nós tínhamos dois: o dela era o mais
novo, o meu era uma picape toda arrebentada onde eu guardava meu
equipamento de tênis. Quando Millicent estava grávida de oito meses, minha
picape estragou. Ela precisava de um conserto de mil dólares, uma grana que
nós não tínhamos. Todo nosso dinheiro da época já havia sido desviado, pouco
a pouco, para comprar um berço, um carrinho e as montanhas de fraldas de que
íamos precisar.
Eu não queria incomodá-la, não queria deixá-la preocupada, então tomei
uma decisão. Disse a ela que a picape estragou, mas não disse o quanto ia
custar. Para pagar o conserto, fiz um novo cartão de crédito somente no meu
nome.
Levou mais de um ano para quitar as prestações, e nunca contei para
Millicent. Também nunca contei a ela sobre as outras cobranças.
Esta foi a primeira grande coisa, mas nós dois paramos de falar sobre as
pequenas. Tivemos um bebê, depois outro, e os dias dela se tornaram mais
exaustivos do que engraçados. Ela não relatava mais cada pormenor da vida e
nem eu contava a ela todas as curiosidades sobre os meus clientes.
Nós dois paramos de perguntar, paramos de compartilhar as minúcias,
acabamos nos concentrando nos destaques do dia. Ainda fazemos isso.
Às vezes um sorriso e uma piscadela: é só isso que precisamos.
Dezesseis
Depois de vinte e quatro horas, o nome de Owen Oliver Riley está por toda
parte. Seu rosto está no noticiário local e pelos portais jornalísticos. Quem não
é daqui quer mais detalhes. Quem é daqui ainda não se decidiu se ele realmente
está de volta. Kekona, a fofoqueira local, está dividida entre os dois lados.
Embora tenha nascido no Havaí, ela está morando aqui há tempo suficiente
para conhecer todas as nossas lendas, mitos e moradores infames. Ela não
acredita que Owen Oliver está de volta. Nem por um segundo.
Nós estamos na quadra e Kekona trabalha o seu saque. Mais uma vez. Ela
acha que, se conseguir fazer um ace atrás do outro, não precisa jogar o restante
da partida. Na teoria, ela está certa. Na prática, ninguém consegue fazer isso. A
não ser que o adversário dela tenha cinco anos de idade.
— Owen poderia ir para qualquer lugar matar mais mulheres, e eles acham
que ele voltou logo para cá? — ela diz.
— Se com “eles” você quer dizer a polícia, então não, eles não falaram nada
sobre Owen Oliver. Foi só a pergunta do repórter.
— Pfff.
— Não sei o que isso quer dizer.
— Quer dizer que é ridículo. Owen escapou uma vez. Ele não tem nenhum
motivo para voltar.
Dou de ombros. — Não é porque aqui é a casa dele?
Kekona revira seus olhos castanhos. — A vida não é um filme de terror.
Ela não é a única que se sente assim. Todas as pessoas que não moravam
aqui na época acham patética essa história de retorno para casa. Elas enxergam
a possibilidade da mesma maneira que Kekona: como uma escolha que não faz
sentido racional.
Mas as pessoas que de fato moravam aqui, e que são velhas o suficiente para
se lembrar, acreditam que Owen voltou para casa. Especialmente as mulheres.
Elas se lembram bem de como era sentir medo sempre que estavam
sozinhas, independente do cenário, uma vez que Owen capturava suas vítimas
praticamente em qualquer lugar. Duas delas desapareceram dentro da própria
casa. Uma estava em uma biblioteca, a outra em um parque e pelo menos três
estavam em estacionamentos. Dois dos sequestros foram gravados por câmeras
de segurança. A imagem era velha e granulada. Owen parecia um grande
borrão vestido com roupas escuras e um boné de time de beisebol. Os vídeos
estão sendo repetidos no noticiário durante todo o dia, de novo e de novo.
Hoje tenho uma aula de tênis com Trista, a esposa de Andy, mas, ao
caminhar pela área social do clube, eu a vejo no bar. Ela está assistindo as
notícias em um dos telões. Como o marido, está com quarenta e poucos anos e
não poderia aparentar ter menos. As pontas dos seus cabelos são amarelas
demais, seus olhos estão sempre pintados de preto e ela tem um bronzeado
intenso e perturbadoramente natural. Ela está sozinha bebendo vinho tinto no
meio da tarde. A garrafa está descansando na mesa.
Acho que não vamos ter aula hoje.
De longe, eu a observo, sem saber se deveria me envolver. Às vezes, minhas
clientes me contam mais do que eu quero saber. Eu sou a cabeleireira do
exercício físico.
Mas, tenho que admitir, também pode ser interessante.
Caminho até Trista. — Olá.
Ela acena para mim e me aponta uma cadeira vazia, sem tirar os olhos da
tela em nenhum momento. Já a vi bebendo diversas vezes em festas e jantares,
mas nunca a vi daquele jeito.
No intervalo comercial, ela se vira para mim. — Vou cancelar a nossa aula
de hoje.
— Obrigado por avisar.
Ela dá um sorriso, mas ele não a faz parecer feliz. De repente imagino que
ela pode estar chateada com Andy. Talvez ele tenha feito algo errado, e eu não
quero me intrometer. Começo a me levantar da cadeira quando ela fala: —
Você lembra como era naquela época? — ela diz, apontando para a tevê. —
Quando ele estava matando?
— Owen?
— Quem mais?
— Claro. Todo mundo aqui lembra — eu dou de ombros e me sento
novamente. — Você chegou a ir no The Hatch? Minha turma costumava beber
lá no sábado à noite e a televisão ficava o tempo todo ligada no jornal. Acho
que foi lá que eu...
Ela respira fundo. — Eu conhecia ele.
— Quem?
— Owen Oliver. Eu conhecia ele — Trista pega a garrafa e enche sua taça.
— Você nunca me contou isso antes.
Ela revira os olhos. — Não é exatamente uma coisa para se orgulhar. Ainda
mais se você considerar que eu namorei com ele.
— Mentira.
— É sério.
Fico de queixo caído. Não é exagero.
— Andy sabe disso?
— Não. E ai de você se contar para ele.
Eu balanço a cabeça indicando que não, não vou contar. De jeito nenhum eu
contaria. Não estou disposto a ser o mensageiro desta notícia. — Mas como
você...
— Primeiro tome um gole disso aqui — Trista empurra a garrafa de vinho na
minha direção. — Você vai precisar.

Trista estava certa. O vinho amorteceu o terror da história toda que ela me
contou.
Ela conheceu Oliver quando ele tinha trinta e poucos anos. Ela era uma
década mais nova do que ele, formada em História da Arte e com um emprego
em uma agência de cobranças. Foi como eles se conheceram. Owen trabalhava
no setor financeiro do hospital Saint Mary’s. Quando as contas não eram pagas,
a agência de cobranças era acionada.
— Era um trabalho de pilantra — sua voz sai arrastada pela bebida. — Eu
ligava para pessoas doentes e exigia dinheiro delas. Essa era eu. Uma pilantra.
O dia inteiro me sentindo como uma pilantra que só fazia pilantragem.
Owen foi justamente quem a fez mudar de ideia. Primeiro, eles falaram
sobre uma mulher chamada Leann, que devia mais de dez mil dólares ao
hospital. Depois de ligar dezessete vezes para Leann, Trista se convenceu de
que o número estava errado. A única pessoa que atendia o telefone era um
homem com uma voz de alguém de noventa anos e que apresentava um caso
óbvio de demência. Leann era uma mulher de vinte e oito anos que morava
sozinha. Trista ligou para o departamento de cobranças do Saint Mary’s para
verificar o número do telefone. Ela não deveria contatar o hospital diretamente,
mas considerou que era o melhor a se fazer. Owen atendeu a ligação.
— Claro que eu tinha o número certo. Owen me disse que Leann era atriz —
Trista deu um longo suspiro. — Fiquei tão envergonhada que nem perguntei
como é que ele ficou sabendo disso.
Eles conversaram. Ela gostou da voz dele, ele gostou da risada dela, os dois
resolveram se encontrar. Trista namorou Owen por seis meses.
— A gente gostava de comer e de beber, e a gente preferia assistir os jogos
em vez de praticar. Com exceção do sexo. A gente fazia muito sexo. Era bom,
mas não era ótimo. Não era nenhuma loucura. Mas... — Trista ergue um dedo e
faz um rodopio no ar. — Nossa, ele fazia uns bolinhos de canela sensacionais.
Nem precisava ler a receita. Abria a massa, espalhava a manteiga e depois ele
colocava aquela mistura de açúcar com canela... — por um segundo, ela encara
o vazio. Demora um pouco para voltar. — Enfim, os bolinhos de canela eram
bons mesmo. Não tinha nada de errado com os bolinhos. Sei lá, no fundo
também não tinha nada de errado com Owen. Tirando o fato dele ser cobrador
de um hospital.
Trista desce os olhos para a mesa e dá um sorriso. Não é um sorriso
verdadeiro, é um sorriso cheio de repugnância e direcionado para si mesma.
Ela endireita a cabeça e me olha bem nos olhos. — Eu terminei com ele porque
eu nunca ia me casar com um cobrador de hospital de trinta e três anos de
idade. Nem morta. Se isso faz de mim uma esnobe, que seja, mas eu jamais ia
aceitar ser pobre o resto da minha vida — ela ergue as mãos, preparada para se
defender de qualquer insulto que eu talvez queira disparar contra ela.
Eu não digo nada. Pelo contrário, levanto minha taça, nós brindamos e
seguimos bebendo.
Trista ainda me fala sobre Owen Oliver Riley por mais quase duas horas.
Ele gostava de esportes. Hóquei era um dos seus favoritos, apesar do time
profissional mais próximo ficar a centenas de quilômetros daqui. Owen sempre
usava calça jeans. Sempre, a menos que estivesse no banho, na cama ou na
beira de uma piscina. Mas ele não sabia nadar. Trista desconfia que ele tivesse
medo de água.
Ele morava em uma casa na zona norte da cidade, na mesma região onde eu
e Millicent moramos logo no início do casamento. A zona norte não é uma
região ruim, mas é mais antiga e mais abandonada que o sudeste, onde Hidden
Oaks fica. Owen herdou a casa quando sua mãe morreu e Trista a descreve
como “bonitinha, mas quase um barraco”. Nenhuma surpresa aí, na verdade.
Várias casas na zona norte são chalezinhos com varandas, com esquadrias
elaboradas e pequenas janelas no telhado. Por dentro, a maioria é antiquada e
está caindo aos pedaços. A de Owen não era exceção.
O aquecedor não funcionava, a janela do quarto emperrava e o carpete
envelheceu até ganhar um tom verde-azulado pavoroso. O banheiro tinha uma
banheira clássica de que Trista gostava, mas a torneira pingava e o barulho a
deixava louca. Quando ela dormia lá, fechava a porta do banheiro. Do
contrário, ela escutava os pingos vindos do corredor. Quando faziam uma
refeição na casa dele, Owen usava a louça da sua mãe, com um desenho floral
na borda.
Depois de um tempo, Trista está bêbada e cansada demais para continuar,
então eu chamo um motorista do clube para levá-la até em casa. Digo que, se
ela quiser falar mais sobre Owen, eu vou escutar com muito prazer. E é
verdade.
Ela me forneceu exatamente o que eu precisava para a segunda carta a Josh.
Dezessete
Fazer planos nunca foi o meu forte. Nem a minha viagem para o exterior foi
planejada. Recebi um telefonema de um amigo meu e uma semana depois me
encontrei com ele no aeroporto de Orlando. Quando percebi que jamais seria
bom o bastante para me profissionalizar no tênis, eu não tinha um plano. No
dia em que Millicent me contou que estava grávida de Rory, eu não tinha
plano. Quando ela ficou grávida de Jenna, eu ainda não tinha um plano.
Somente esse meu segredo com Millicent é que me faz planejar.
Meu jogo é tênis, não xadrez. Eu jogo e ensino tênis, e geralmente isto é
tudo o que eu vejo pela frente: dois lados separados por uma rede, duas forças
opostas, um objetivo. Não é nada complicado. No entanto, aqui estou eu,
traçando um plano envolvendo várias pessoas, como se eu tivesse alguma coisa
para provar.
A atual versão do meu plano envolve três pessoas: Owen, Josh e Annabelle.
Com Millicent, são quatro, e eu até poderia incluir Trista na história. Ou pelo
menos a informação que Trista me passou.
Primeiro, vou mandar outra carta para Josh. Ela não vai apenas incluir
detalhes sobre a vida real de Owen — em específico, a casa da sua mãe —,
mas vai ter também a data em que outra mulher desaparecerá.
É uma jogada arriscada, eu sei. Talvez até desnecessária. Mas alcança nosso
objetivo em uma tacada só. Sim, Owen está de volta. Sim, ele é o responsável
por Lindsay e também pela próxima. Nada de jogos de adivinhação, nada
daquele vaivém entre a polícia e a mídia, todo mundo questionando se ele
realmente está de volta ou se é só uma imitação. A informação que Trista me
passou vai provar a eles que é tudo culpa de Owen. Ninguém vai ter dúvida
nenhuma quando a próxima desaparecer.
Vai ser Annabelle Parson, embora eu não inclua o nome dela na mensagem.
O lado negativo é que todo o departamento de polícia vai estar aguardando o
desaparecimento de uma mulher naquela noite, e vão procurá-la assim que
alguém informar o sumiço.
O lado positivo é que Annabelle tem pouquíssimos amigos. Ninguém vai
comunicar o seu desaparecimento até ela não aparecer no trabalho. É o
suficiente para nos dar dois dias de vantagem.
De todo modo, ainda temos que descobrir como vamos fazer para apanhar
Annabelle sem que ninguém nos veja, incluindo as câmeras de segurança, bem
numa noite em que todos esperam que uma mulher desapareça. E, enquanto a
polícia estiver procurando por Owen, eles vão ignorar Millicent
completamente.
O plano é tão simples que é quase brilhante.
Eu recapitulo tudo mais uma vez, começando com a carta para Josh e
terminando com o sequestro de Annabelle. Ao longo da revisão, vejo centenas
de buracos, pontas soltas e problemas em potencial.
É por isso que eu não planejo. É exaustivo. O que também é a grande razão
por trás de todo esse meu esforço. Tento montar um plano antes de falar com
Millicent. Mesmo depois de uma vida inteira juntos, eu ainda quero
impressioná-la.
E já faz um tempo desde a última vez. Impressionar Millicent não era fácil
quando ela era jovem. Hoje é quase impossível.
Mas nosso relacionamento não é unilateral. Ela também tentou me
impressionar algumas vezes. Millicent tentou me impressionar enfeitando
nossa árvore de Natal com máscaras de oxigênio. No nosso aniversário de
cinco anos de casamento, ela usou a mesma lingerie que usou na noite de
núpcias. E, para nosso aniversário de dez anos, ela planejou um belo de um
passeio.
Com dois filhos e uma casa maior na nossa lista de desejos, não tínhamos
dinheiro para tirar férias longas nem para um jantar fino. Millicent deu um
jeito.
Primeiro, ela apareceu lá nas quadras do clube. Millicent nunca me visita no
trabalho. Se ela por acaso vai ao clube, é para nadar ou para almoçar com
alguém, então, quando ela entrou na quadra, eu achei que era algum problema
sério. Mas minha esposa queria apenas me sequestrar.
Millicent foi de carro comigo até o meio do nada, parou e apontou para o
bosque.
— Ande — ela disse.
Eu andei.
Depois de nos distanciarmos algumas centenas de metros da estrada,
chegamos a uma clareira. Uma barraca já havia sido montada, bem ao lado de
uma fogueira cercada de pedras. Uma pequena mesa de piquenique estava
posta com pratos de plástico, copos e velas grossas.
Millicent me levou para acampar. Ela não é do tipo de pessoa que gosta de
atividades ao ar livre, mas, por uma noite, ela fingiu ser.
Os insetos foram um problema, porque ela se esqueceu de trazer o repelente.
As velas estavam protegidas, mas apagavam de repente e ela também não
pensou em trazer água extra para lavar os pratos ou escovar os dentes. Eu não
me estressei com nada. Nós sentamos em frente à nossa fogueira e comemos
sopa requentada, bebemos cerveja barata e fizemos um sexo realmente
indecente. Conversamos sobre o futuro, que, por conta das crianças, agora
parecia bem diferente do que imaginávamos antes. Não diferente no mau
sentido, apenas diferente no sentido das prioridades.
Evitamos falar sobre as coisas que costumávamos querer, mas que não
podíamos mais ter.
Depois da meia-noite, dormimos. Eu não ficava acordado tão tarde desde a
noite de Natal, quando tivemos que ficar de pé para esconder os presentes do
Papai Noel debaixo da árvore.
Na manhã seguinte, quando saí da barraca, Millicent estava lá parada, com
as mãos entrelaçadas em frente à boca. Saquearam nosso acampamento.
Tudo foi revirado, jogado para os lados, roubado. As embalagens de comida
foram levadas ou então rasgadas e abertas, e nossas mudas de roupa estavam
espalhadas pelo chão.
— Que bagunça — eu disse. — Provavelmente uns guaxinins, não acha?
Ela não respondeu. Estava puta demais para responder.
Millicent começou a recolher o que sobrou das nossas coisas.
— Ainda tem um pouco de café — eu disse, segurando um pequeno pote de
café instantâneo. — Podíamos fazer...
— Eu não acho que foram guaxinins.
Fiquei olhando para ela enquanto minha esposa juntava os restos de uma
mochila. — Então o que você...
— Pessoas destruíram nosso acampamento. Não foram bichos.
— Por que você acha isso?
Ela apontou para onde nós dormimos. — Não encostaram na barraca.
— Talvez eles só quisessem comida. Talvez não dessem muita bola para...
— Ou talvez fossem pessoas.
Eu parei de discutir. Saímos da floresta aos trancos e voltamos para o carro.
Até hoje, quando aquele acampamento vem à tona, ela fala sobre as pessoas
terríveis que saquearam as nossas coisas. Eu ainda acho que foi algum animal,
não pessoas, mas não discuto. Millicent enxerga razões ocultas em tudo.
Mas minha lembrança daquela viagem é bem diferente da dela. Na minha
memória, o importante mesmo foi Millicent ter planejado a viagem para me
impressionar.
Annabelle Parson nunca se atrasou ou faltou ao trabalho por doença, ela nunca
tirou mais de dois dias de folga em sequência e sempre cobre os colegas
quando alguém está doente. É o atestado de que ela não tem namorado.
Qualquer pessoa dentro de uma relação vai, ocasionalmente, perder o horário.
Casais também tiram férias de verdade, ainda mais quando não têm filhos, o
que é o caso de Annabelle. Para completar, como uma cereja perfeita no topo
de um sundae, Annabelle foi cinco vezes indicada como “Fiscal de
Estacionamento do Mês” e ela inclusive aparece no site do município.
Mostro minha pesquisa para Millicent, que lê tudo e diz: — Você tem razão.
Ela é perfeita.
— Também estou trabalhando na próxima carta para Josh, mas não vou
mostrar para você.
— Não vai?
— Quero que seja uma surpresa.
Ela dá um leve sorriso. — Confio em você.
Essa é a melhor notícia da semana.
Começo, então, a observar Annabelle da mesma forma que observei as
outras. Com a dedicação de sempre, claro.
Hoje, pego o trem de volta para onde ela trabalha, apenas para misturar um
pouco as coisas, caso ela reconheça o meu carro. É impossível segui-la quando
ela está trabalhando. Annabelle usa um veículo do estado para circular por aí,
procurando parquímetros vencidos e carros estacionados em áreas proibidas.
Ela para e segue em intervalos aleatórios.
Por um tempo, sento em um café na avenida principal. A cada vinte ou trinta
minutos, ela passa para checar os parquímetros. Enquanto espero, faço um
rascunho da próxima carta de Owen Oliver. Trabalho com a certeza de que a
carta será tão convincente que se tornará pública. Josh e a emissora onde ele
trabalha não vão ser capazes de resistir.
Só a citação do retorno de Owen já está deixando todo mundo em alerta. As
emissoras locais estão reproduzindo vídeos de arquivo, retrospectivas e perfis
até não poder mais. Owen esteve nas capas dos jornais nos últimos dias. Rory e
seus amigos até já transformaram o nome dele em verbo (“vou te owenizar”) e
o grupo pelos direitos das mulheres está pressionando para que o assassinato de
Lindsay seja declarado um crime de ódio.
Tento imaginar como a situação iria se exacerbar se o boato fosse
confirmado. Ou mesmo se as pessoas achassem que foi confirmado. É tudo que
realmente precisamos. Suposições. Se eu conseguir fazer a polícia acreditar nas
cartas, eles não vão procurar por ninguém a não ser por Owen.
Millicent pode ter dado o pontapé inicial, mas eu vou decidir esse jogo. Ela
vai ficar tão impressionada.
Dezoito
Se não fosse por Robin, nada disso teria acontecido. Nós não a procuramos. Ela
não foi escolhida do mesmo jeito que Lindsay foi. Robin simplesmente bateu
na nossa porta e mudou tudo.
Aconteceu em uma terça-feira. Eu tinha acabado de entrar em casa. Era hora
do almoço, não havia ninguém lá, e eu ainda podia aproveitar algumas horas
livres antes da minha próxima aula. Foi quase um ano depois de Holly, a vida
já retornava ao normal. O corpo dela estava desaparecido há tempos e
murchava em um pântano. Millicent e eu não falávamos sobre o assunto. Eu já
não esperava mais as sirenes da polícia. Meu coração não disparava toda vez
que o telefone ou a campainha tocava. Eu não ficava mais de prontidão quando
abria a porta.
A mulher na varanda tinha seus vinte e poucos anos, usava um jeans justo e
uma camisa de gola aberta. As unhas eram vermelhas, o batom era rosa e seus
longos cabelos eram cor de avelã.
Atrás dela, um pequeno carro vermelho estacionado na rua. O carro era
velho, meio parecido com um modelo clássico. Alguns minutos antes, eu o vi
diante de um semáforo não muito distante da nossa casa. Ela buzinou na hora,
mas eu não fazia a menor ideia de que aquela buzina era para mim.
— Pois não? — perguntei.
Ela empertigou a cabeça, me olhando de lado, e sorriu.
— Achei que era você.
— Oi?
— Você é amigo da Holly.
O nome dela me fez dar um pulo, como se eu tivesse enfiado o dedo em uma
tomada. — Holly?
— Vi você com ela.
— Acho que você me confundiu com outra pessoa.
Ela não me confundiu, é claro. Agora eu a reconhecia.
Quando o hospital liberou Holly, um dos médicos a ajudou a arranjar
emprego em um supermercado. Holly trabalhava meio turno reabastecendo as
gôndolas. Foi aonde eu fui para mandá-la ficar longe da gente, onde eu a
enfrentei para parar com essa história de assustar a minha família.
Nunca imaginei que fosse sair do controle.
Eu fui lá em uma segunda-feira de manhã, quando a loja estava com pouco
movimento e os funcionários ainda preparavam o lugar. Holly estava em um
dos corredores, enchendo uma prateleira com caixas de granola, e estava
sozinha. Quando caminhei pelo corredor em direção a ela, ela se virou para
mim. Seus olhos verdes cristalinos eram estonteantes.
Holly pôs as mãos nos quadris e ficou me olhando até eu parar bem ao lado
dela.
— O que foi? — ela perguntou.
— Acho que nós não fomos devidamente apresentados — estendi a mão e
esperei para que ela a apertasse de volta. Finalmente, ela apertou.
Disse a ela que lamentava ter que conhecê-la daquela forma — que, em
outro lugar, em outro momento, talvez pudéssemos ser como uma família. Mas
que, agora, isso era impossível, porque o seu comportamento estava assustando
a minha esposa e as minhas crianças. Meus filhos nunca fizeram nada para ela.
Não mereciam sofrimento nenhum. — Estou te pedindo — eu disse. — Você
pode deixar a minha família em paz?
Ela riu na minha cara.
Holly riu até lágrimas brotarem nos cantos dos seus olhos, e depois riu mais
um pouco ainda. Quanto mais aquilo continuava, mais humilhado eu me sentia.
E meu constrangimento só alimentava sua risada. Comecei a entender como ela
fazia Millicent se sentir, e isso me deu uma tonelada de raiva.
— Sua vagabunda — eu disse.
Ela parou de rir. Seus olhos quase brilhavam de revolta.
— Cai fora.
— E se eu não cair? E se eu ficar aqui e infernizar a sua vida? — minha voz
era muito mais alta do que deveria ser.
— Cai fora.
— Fique longe da minha família.
Holly ficou me encarando, ainda como uma estátua. Não vacilou naquele
instante, ela nunca vacilou.
Eu me virei para ir embora, me sentindo um tanto impotente. Não consegui
argumentar com Holly, não consegui fazer com que ela entendesse.
Robin estava no final do corredor, assistindo tudo.
Ela também trabalhava no supermercado. Usava a mesma camisa amarela e
o mesmo avental verde. Eu a vi, passei bem do seu lado e posso tê-la
cumprimentado com um gesto. Ou talvez não. Mas ela estava lá, ela me viu, e
agora estava parada na porta da minha casa.
— Não me enganei — ela disse. — Foi você quem eu vi naquele dia.
Eu não hesitei. — Desculpe... Você está falando com a pessoa errada — e
fechei a porta.
Ela bateu de novo.
Eu ignorei.
A voz de Robin passou pela porta. — Você sabe que ela sumiu, não sabe?
Ela nem pegou o último contracheque.
Eu abri a porta. — Olha, eu realmente lamento pela sua amiga, mas eu não
faço ideia...
— Entendi, entendi. Você é o cara errado. Não foi você. Tá bom. Agora que
eu sei quem você é, vou deixar a polícia resolver essa história.
Ela se virou e começou a sair.
Não deixei que ela fizesse isso.
Ninguém sabia que Holly estava desaparecida. Ninguém estava procurando
por ela, e eu não queria que começassem a procurar. Até porque Millicent e eu
nunca fomos especialistas em ciência forense ou DNA ou qualquer coisa do
gênero. Qualquer pessoa que cavasse lá no fundo ia acabar descobrindo todos
os nossos erros.
Perguntei se Robin queria entrar para conversar. Ela hesitou no primeiro
momento. Pegou o celular e segurou o aparelho na mão ao entrar em casa.
Fomos até a cozinha. Eu ofereci algo para beber. Ela recusou. No entanto,
pegou uma laranja da mesa e começou a descascá-la. Sem admitir nada, sem
nem mesmo me apresentar, eu perguntei o que é que aconteceu. Ela começou a
falar do supermercado, de Holly e de si mesma.
Ela me relatou a história de como foi trabalhar no supermercado, de quando
ela conheceu Holly e como elas ficaram amigas. Eu me levantei da mesa e fui à
geladeira pegar um refrigerante. Escondido pela porta aberta, mandei uma
mensagem rápida para Millicent. Usei a mesma linguagem que ela usou
quando Holly estava na nossa sala.
911 Vem pra casa AGORA
Parecia que horas haviam se passado antes do carro dela parar na frente de
casa. Naquela altura, Robin me perguntava o que deveríamos fazer para
resolver a nossa pequena situação. Ela não queria justiça para sua queridíssima
amiga Holly. Ela queria dinheiro, e não era pouco.
— Acho que isso pode ser vantajoso para todo mundo — ela disse. A porta
da frente se abriu, e a cabeça de Robin se virou. — Quem é?
— Minha esposa — eu disse.
Millicent apareceu na soleira da porta, ofegante, como se tivesse corrido.
Estava vestida para o trabalho com saia, blusa e salto alto. Seu blazer estava
aberto, ela não se deu ao trabalho de abotoá-lo. Olhou para mim, então para
Robin e depois para mim de novo.
— Essa aqui é a Robin — eu disse. — Ela trabalhava com uma mulher
chamada Holly.
Millicent ergueu uma sobrancelha para Robin, que acenou com a cabeça.
— É verdade. E eu vi o seu marido falando com ela. Chamou ela de
vagabunda.
A sobrancelha se voltou para mim.
Eu não disse nada.
Millicent tirou o blazer e o atirou sobre uma cadeira.
— Robin... — ela disse, caminhando pela cozinha. — Por que você não me
conta o que aconteceu?
Robin deu um sorrisinho para mim e começou a falar, iniciando pela parte
em que eu entrei no supermercado.
Atrás de mim, Millicent vasculhava a cozinha. Eu não conseguia ver o que
ela estava fazendo. Escutei os seus saltos baterem no chão quando ela voltou
para onde a gente estava. Robin torceu o rosto para ela, mas continuou falando.
Eu não vi a máquina de waffles na mão de Millicent até ouvir o estalo no
crânio de Robin. Ela desabou no chão com um ruído oco.
Millicent matou Robin da mesma forma que eu matei Holly. Sem hesitação.
Só instinto.
E foi muito sexy.
Dezenove
A ligação chega quando estou saindo do clube, no meu trajeto para vigiar
Annabelle. Millicent está ao telefone, dizendo que a nossa filha está doente.
— Peguei ela na escola.
— É febre? — eu pergunto.
— Não. Como está sua agenda?
— Posso ir para casa agora.
Todos os meus devaneios sobre Annabelle são interrompidos. Faço a volta
com o carro.
Em casa, Millicent está andando pelo corredor enquanto fala ao telefone. A
tevê está ligada na sala de estar, onde Jenna está no sofá de canto encasulada
em cobertores, com a cabeça deitada em uma pilha de travesseiros. Na mesa ao
lado, chá, uma pilha de bolachas de água e sal e uma grande bacia só para
garantir.
Eu me sento no sofá ao lado dela. — Sua mãe me disse que você está doente.
Ela concorda. Faz beiço. — Estou.
— Não está fingindo?
— Não — Jenna sorri um pouco.
Eu sei que ela não está fingindo. Jenna odeia ficar doente.
No jardim de infância, ela teve pneumonia e faltou a um mês de aula. Não
ficou doente o bastante para ser hospitalizada, mas ficou doente o bastante para
se lembrar de tudo. Assim como Millicent. Às vezes ela age como se Jenna
tivesse cinco anos de idade de novo. É um pouco exagerado agora que Jenna
tem treze, mas eu não discuto. Eu também me preocupo com Jenna.
— Assiste comigo — Jenna aponta para a tevê.
Eu tiro os sapatos e ponho os pés para cima. Assistimos um game show,
gritando as respostas antes que sejam reveladas.
Os saltos de Millicent batem pelo chão. Ela vem e para na frente da tevê.
Jenna põe no mudo.
— Como é que estamos? Estamos bem? — Millicent pergunta.
Jenna acena com a cabeça. — Estamos bem.
Millicent se vira para mim. — Quanto tempo você pode ficar?
— A tarde toda.
— Então eu ligo para você depois.
Millicent caminha até Jenna para tocar sua testa, primeiro com a mão e
depois com os lábios. — Ainda está sem febre. Me ligue se precisar de alguma
coisa.
Os saltos dela saem batendo pelo corredor. Jenna mantém a televisão no
mudo até a porta da frente se fechar. Voltamos a assistir o programa. No
intervalo comercial, Jenna põe a tevê de novo no mudo.
— Você está bem, pai? — ela pergunta.
— Eu? Não sou eu quem está doente.
— Não é o que eu quis dizer.
Eu sei que não. — Sim, estou bem. Só ando ocupado.
— Ocupado demais.
— É. Ocupado demais.
Ela não me pergunta mais nada.
Millicent liga duas vezes, primeiro interrompendo um programa de
entrevistas e depois uma novela adolescente. Rory chega por volta das três da
tarde e, depois dos resmungos iniciais, ele se junta à nossa maratona na tevê.
Às cinco horas, eu volto a ser pai.
— Dever de casa — eu digo.
— Não posso, estou doente — Jenna diz.
— Rory, dever de casa.
— Só agora você lembrou que eu vou para a escola também?
— Dever de casa — eu digo. — Você sabe as regras.
Ele revira os olhos e sobe as escadas.
Eu devia ter tocado no assunto mais cedo. Não foi porque eu me esqueci, foi
porque eu não conseguia me lembrar da última vez em que eu passei algum
tempo sozinho com os meus filhos.
Millicent chega uns quarenta e cinco minutos depois. Ela é ligeira com os
cumprimentos e um agito só na cozinha, colocando o jantar no forno antes
mesmo de trocar de roupa. A energia na casa é diferente quando ela está aqui.
Tudo aumenta um tom, pois as expectativas são maiores.
Hoje à noite, comemos sopa de macarrão com galinha e ninguém reclama. É
o que comemos quando alguém está doente.
As outras regras também são relaxadas. Já que Jenna está acomodada no
sofá, Millicent decide que é lá onde todos nós vamos comer. Sentamos diante
da televisão com os pratos em bandejas. Nessa hora, Millicent já trocou de
roupa e está de moletom, e Rory alega ter terminado o dever de casa.
Assistimos uma nova série de comédia que é horrorosa, seguida por um seriado
policial medíocre, e por algumas horas tudo parece bastante normal.
Depois que as crianças vão para a cama, Millicent e eu arrumamos a sala.
Embora eu tenha passado o dia inteiro deitado no sofá, me sinto exausto. Sento
à mesa da cozinha e esfrego os olhos.
— Perdeu muita coisa hoje? — Millicent pergunta.
Ela está falando do meu verdadeiro trabalho, que eu teria perdido de
qualquer forma porque eu planejava observar Annabelle.
Eu dou de ombros.
Ela fica atrás de mim e começa a massagear os meus ombros. É uma
sensação ótima.
— Eu é que deveria estar massageando os seus ombros — eu digo. — Foi
você quem trabalhou o dia inteiro.
— Cuidar de uma filha doente é mais estressante.
Millicent tem razão, embora Jenna estivesse mais indisposta do que doente.
— Ela vai ficar bem — eu digo.
— Claro que vai.
Ela segue massageando. Depois de um minuto, ela diz: — E o resto, como
está?
— Sua surpresa está quase pronta.
— Que bom.
— Vai ser bom.
Millicent para de massagear meus ombros. — Isso tem cara de promessa.
— Talvez seja.
Ela me pega pela mão e me leva até o nosso quarto.

Depois de Robin, nós não conversamos sobre ela. E não conversamos sobre
Holly. Millicent e eu retornamos às nossas vidas, nosso trabalho, nossos filhos.
A ideia de Lindsay — de uma terceira — começou há um ano e meio. Eu não
compreendia na época, não podia imaginar essa possibilidade de escolher,
perseguir e matar uma mulher. Foi só um conceito que apareceu por acaso no
shopping.
Eu estava lá com Millicent, só nós dois. Nós estávamos comprando
presentes de Natal para as crianças. Dinheiro era um problema maior do que de
costume. Millicent aguardava o fechamento da venda de duas casas, mas as
duas estavam pendentes devido a questões de financiamento. Faltava uma
semana para o Natal e nós estávamos sem presentes, sem dinheiro e sem limite
nenhum sobrando no cartão de crédito. Reduzimos o nosso orçamento de Natal
três vezes. Eu não estava nada contente com a situação. Não tínhamos que
comprar presentes apenas para as crianças. Também tínhamos que comprar
presentes para os amigos, colegas e clientes.
No shopping, Millicent só me dizia “não”. Tudo que eu pegava era caro
demais.
— Eles vão achar que nós estamos completamente pobres — eu disse.
— Você está fazendo drama.
— Eu cresci com essa gente.
Millicent revirou os olhos. — De novo isso?
— O que você quer dizer?
— Nada. Esquece.
Coloquei minha mão em seu braço. Ela usava uma camisa de manga
comprida, mas sem jaqueta, porque mesmo em dezembro a temperatura fica
em torno de quinze graus. — Não, sério, o que é que você quis dizer com
aquilo?
— Quis dizer que você está sempre falando “dessa gente”. A gente de
Hidden Oaks. Você insulta essas pessoas, mas depois se gaba de ser uma delas.
— Não mesmo.
Millicent não respondeu. Ela estava olhando para uma prateleira de castiçais.
— Eu não faço isso — eu disse.
— O que você acha desses aqui? — ela segurava um par feito de prata. Ou
de um material que parecia prata.
Eu torci o nariz.
Ela botou os castiçais de volta na estante com uma batida.
Eu já estava bem irritado. O cansaço veio em seguida. Nos últimos tempos,
nosso único assunto era dinheiro. Eu estava cansado de ouvir que não tínhamos
o suficiente, que eu não podia comprar tal coisa, que eu precisava escolher um
presente mais barato. Não podia nem dar para as minhas crianças o que elas
queriam no Natal.
Millicent continuava falando, martelando sem parar sobre as finanças e as
contas bancárias. Eu a ignorei. Não conseguia mais ouvir, não conseguia mais
pensar naquilo — e precisava de uma distração.
Por acaso, uma delas passou bem ao meu lado. Seus cabelos eram cor de
avelã.
— Oi? — Millicent estalou os dedos na frente do meu rosto.
— Estou aqui.
— Tem certeza? Porque...
— Ela me lembra um pouco a Robin — eu disse. — A amiga de Holly.
Millicent virou o rosto e observou a mulher desaparecer na multidão.
Quando ela se virou novamente, estava com uma sobrancelha levantada. —
Você acha?
— Acho.
— Que estranho.
Era estranho. Assim como era estranha a sensação que eu tinha ao reproduzir
o assassinato de Robin na minha cabeça. Toda vez que eu pensava na morte
dela, pensava no quanto aquele dia tinha sido fantástico, o quanto nós nos
unimos e fizemos o que precisava ser feito para nos proteger. Para proteger
nossa família. Foi incrível.
E foi tão sexy.
Aí eu contei para minha esposa o que exatamente estava passando pela
minha cabeça.
Vinte
A rotina de trabalho de Annabelle nunca muda. De segunda a sexta, das oito às
cinco, ela distribui multas por estacionamento em local proibido, aciona o
serviço de guinchos e é xingada por fazer o seu trabalho. As pessoas disparam
palavrões contra ela, fazem gestos grosseiros e a chamam dos mais variados
nomes. Será que ela realmente não se importa, será que ela não recorre à ajuda
de uma ou outra substância? Fico me perguntando qual a taxa de vício para
fiscais de estacionamento.
Suas noites também não são lá muito fáceis. Ela é uma mulher solteira que
gosta de sair, na medida do possível, e, sendo fiscal de estacionamento, o
salário não é dos maiores. Às quartas, ela janta com os pais, mas, fora esse
compromisso, suas noites não têm um padrão definido. Se eu precisasse assinar
um documento informando em qual noite ela sai com mais frequência, eu diria
que essa noite é a de sexta-feira.
Daqui a duas semanas teremos uma sexta-feira 13. É impossível ser mais
ridiculamente perfeito do que isso. Na sexta-feira 13, Annabelle vai
desaparecer.
Posso, então, completar a segunda carta de Owen para Josh. É digitada,
como a primeira, só que muito mais longa.

Prezado Josh, Não tenho certeza se você acredita que sou eu te escrevendo.
Ou talvez você acredite, mas a polícia não. Não sou uma imitação nem um
impostor. Sou eu, o mesmo Owen Oliver Riley que morava no número 4233 da
Cedar Crest Drive, naquela casinha velha com o carpete pavoroso. Eu não o
coloquei lá, diga-se de passagem. Essa escolha ruim foi de minha mãe.
Eu sinto que o que há entre nós é falta de confiança. É totalmente
compreensível, considerando que ninguém me viu ainda, nem falou comigo.
Bom, com exceção de Lindsay. Ela me viu e muito. E falamos várias e várias
vezes durante o ano em que ela foi minha.
Mas agora estou solitário e você não acredita em mim. Então vou te fazer
uma promessa. Daqui a duas semanas, outra mulher vai desaparecer. Vou até
te dizer a data exata: sexta-feira 13. Meio brega, né? Pois então. Também é
uma data fácil de lembrar.
E, Josh, você pode não confiar em mim agora, mas vai aprender que eu
sempre cumpro minha palavra.
— Owen
Josh vai receber a carta até terça-feira. Mais uma vez, eu borrifo o perfume
de caubói almiscarado antes de enviar. Essa carta obviamente será examinada
pela polícia, e sabe-se lá quantas discussões eles vão precisar até resolverem
divulgar o material. Quer dizer, pelo menos a parte sobre a sexta-feira 13.
Por enquanto, de volta para minha vida real. Cancelei aulas demais nas
últimas semanas. Minha agenda agora está cheia o dia todo, todos os dias, além
de todas aquelas coisinhas do cotidiano de sempre. Buscar as crianças, deixá-
las em casa, a passada rápida no supermercado para comprar o que estiver em
falta. Afogar minha rotina nos pequenos detalhes faz a minha vida parecer
normal. E isso quase faz sumir aquele tique nervoso que há tempos me
incomoda. Se Millicent não ficasse olhando para mim, fazendo tantas
perguntas com os olhos, eu já poderia ter me livrado dele.
As respostas dela chegam na quinta-feira à noite.
Millicent e eu estamos no clube, em uma festa de despedida para alguém do
conselho. Os eventos sociais da diretoria são extravagantes a ponto de serem
vulgares. A comida é abundante, o vinho é forte, e todos se parabenizam pelo
belo sucesso alcançado.
Nós vamos porque temos que ir, porque fazer contatos é parte dos nossos
trabalhos. Temos até um sistema. Depois de entrarmos juntos, nós nos
separamos. Eu vou para a esquerda, ela vai para a direita, e vamos abrindo
caminho pelo salão até nos encontrarmos de novo no meio. Trocamos de lados,
nos separamos novamente e depois voltamos a nos encontrar na entrada.
Millicent está usando um vestido amarelo intenso. Com seus cabelos ruivos,
ela parece uma fogueira. Do meu canto no salão, vejo lampejos de minha
esposa enquanto ela circula pela multidão, aquele vestido amarelo nunca se
afasta dos meus olhos. Eu a vejo rir, sorrir, mostrar preocupação ou prazer.
Quando seus lábios se movem, tento adivinhar o que ela está dizendo. Ela
segura uma taça de champanhe, mas nunca bebe. Ninguém jamais percebeu
essa sua tática.
Hoje à noite, seus olhos têm uma leveza que eu não via há tempos, como
uma folha fresca sob o sol. Eles se movem na direção dos meus. Millicent vê
que eu a observo.
Ela pisca.
Eu suspiro e continuo com a minha pequena rede de contatos.
Andy e Trista estão aqui, ambos com taças cheias de vinho. Andy bate na
barriga e diz que realmente precisa começar a malhar ou algo assim, o que é
verdade. Trista não diz muita coisa, mas ela me olha mais do que o necessário.
Deve se lembrar da nossa conversa sobre Owen, ou pelo menos se lembra de
partes.
Kekona também está na festa. Ela está com um jovenzinho, seu
acompanhante mais recente, e não faz questão nenhuma de apresentá-lo. Em
vez disso, ela fala sobre todo mundo — quem está bem vestido e quem não
está, quem fez plástica e quem precisa fazer. Sendo uma das sócias mais ricas
do clube, Kekona pode dizer o que quiser e as pessoas vão continuar a aceitá-
la.
Beth, uma garçonete do clube, passa com uma bandeja cheia de drinques e
me oferece um. Seu sotaque do Alabama se sobressai e faz com que ela sempre
pareça atrevida.
Eu balanço a cabeça.
— Hoje não.
— Beleza — ela diz.
Passo para um casal mais novo, os Rhineharts. Lizzie e Max recém se
mudaram para Hidden Oaks. Minha esposa vendeu a casa onde eles moram, e
já me encontrei com os dois em pelo menos uma ocasião. Max joga golfe, mas
Lizzie diz que costumava jogar tênis. Ela acha que deveria voltar a jogar. Seu
marido se cansa da conversa e muda de assunto para marketing, que é o seu
ramo. Max acha que pode trazer grandes investimentos para o Hidden Oaks
Country Club, embora ninguém tenha oficialmente falado com ele sobre
qualquer tipo de contrato.
Eu sigo em frente, pedindo para Lizzie me ligar caso queira retomar o tênis.
Ela promete que vai me procurar.
Millicent e eu nos encontramos no meio do caminho. Sua taça de champanhe
ainda está cheia. Ela derrama um pouco em uma planta qualquer.
— Você está bem? — ela pergunta.
— Estou.
— Mais uma rodada então?
— Vamos lá.
Nós nos separamos por uma segunda vez e eu vou para o outro lado do
salão, cumprimentando todos que ainda não vi. Parece que estou andando em
círculos, pois é isso mesmo que estou fazendo.
O anúncio chega antes do jornal das onze da noite. Não sei quem viu
primeiro ou quem é o primeiro a mencionar, mas vejo pessoas pegando os
celulares. Várias delas, todas de uma vez só.
Uma mulher sussurra perto de mim: — É ele.
E então eu sei.
Alguém liga as tevês do bar. Somos todos cercados por Josh, que está no seu
momento de ouro. Ele não parece tão jovem hoje à noite, e é possível que
sejam os óculos. São novos.
— Recebi esta carta nesta semana. Após debatê-la com a polícia e com a
diretoria da emissora, decidimos que, para o bem da segurança pública, não
tínhamos outra escolha a não ser divulgá-la ao público.
Uma imagem da carta aparece na tela. Todos nós acompanhamos, lendo as
palavras digitadas conforme Josh lê o texto em voz alta. Quando ele chega na
parte sobre uma mulher desaparecendo na sexta-feira 13, uma interjeição
coletiva de espanto surge nos convidados da festa.
Eu olho ao redor e encontro o vestido amarelo.
Millicent está olhando para mim, com um meio-sorriso e uma sobrancelha
levantada, como se me fizesse uma pergunta.
Eu pisco o olho.

— Brilhante — Ela diz. Você é brilhante.


Millicent está deitada na cama, nua, com o vestido amarelo jogado sobre
uma cadeira.
— Acha que todo mundo acredita agora? — eu sei que eles acreditam. Mas
quero que ela diga.
— Claro que acreditam. Todos eles acreditam.
Estou parado ao pé da cama, também nu, sorrindo, e me sentindo como se eu
tivesse roubado o tesouro do inimigo.
Millicent estende os braços para cima, agarrando-se à cabeceira.
Eu caio de costas ao seu lado na cama.
— Todo mundo vai sair atrás de Owen.
— Com certeza.
— Não vão ver mais nada.
Millicent toca no meu nariz. — Por sua causa.
— Mentira.
— É verdade.
Eu balanço a cabeça. — Temos que parar de nos exibir.
— Amanhã.
Os próximos dias são melhores do que nunca. A forma como Millicent sorri
estufa o meu coração. Eu fico até com uma postura melhor.
Ela está no mesmo ritmo. No dia seguinte à festa, ela me mandou uma
mensagem e assinou como Penny. É o único apelido que eu já dei para ela. Não
o uso há anos.
Eu o inventei durante um encontro, naquele intervalo entre já termos
dormido juntos e não sermos oficialmente um casal. Nós não tínhamos muito
dinheiro, então a maior parte da nossa programação era bem simples: longas
caminhadas, matinês com desconto e buffets fora do horário de pico.
Eventualmente, usávamos a criatividade. Nessa noite em específico, dirigimos
por quinze quilômetros para comer pizza barata e jogar videogame num
antiquado fliperama. Ganhei dela nos jogos de esportes, mas apanhei feio em
qualquer coisa que envolvesse armas.
Na rua em frente ao fliperama, havia um parquinho com uma fonte. Ela
pegou um penny, uma moeda de um centavo, fez um desejo, e a atirou na água.
Assistimos a moeda afundar, pousando sobre várias outras. A água era tão clara
que eu ainda podia ver as palavras na base da moeda: One Cent.
— Eu devia chamar você assim — eu disse. — Penny.
— Penny?
— Millicent.
— Ah, meu Deus.
— Além disso, você tem cabelo ruivo. Lembra cobre — eu disse.
— Penny? Você está falando sério?
Eu dei um sorriso. — Penny.
Ela sacudiu a cabeça.
Eu estava apaixonado, completa e indubitavelmente apaixonado, mas não
havia falado isso em voz alta. Em vez disso, eu a chamei de Penny. Em algum
momento depois, nós nos declaramos de verdade e eu parei de chamá-la assim.
Agora, ela trouxe o apelido de volta, e não sou eu quem vai recusar esse
capricho.
Vinte e um
Segunda-feira, dia 9, Annabelle está no trabalho. O dia está lindo, um dia de
muito sol, mas não está tão quente. Está quase fresco, na verdade. Annabelle
estacionou o carro dela no fim da quadra e caminha pela rua checando as
placas dos veículos e verificando os parquímetros. Seu cabelo curto aparece
por baixo do boné que ela usa para fazer sombra aos olhos. Ela está com um
fone no ouvido direito, com o fio branco serpenteando pelo seu peito, entrando
pela camisa e desembocando no bolso direito frontal da calça. Seu uniforme
azul é absolutamente unissex.
Eu observo do outro lado da quadra, esperando. Quando ela chega ao carro
verde, começa a apertar os botões da sua leitora portátil.
Eu corro pela quadra, parando a alguns metros dela. Levanto as mãos como
se pedisse para ela esperar.
Annabelle me olha como se eu fosse louco.
Eu pego meu celular, digito e entrego para ela.
Perdão, não quis assustar você! Meu nome é Tobias. Eu sou surdo.

Ela lê. Seus ombros relaxam, e ela concorda com a cabeça.


Eu aponto para o carro e então para mim.
Ela aponta para o parquímetro vencido.
Eu entrelaço as mãos embaixo do queixo, como se estivesse implorando. Ou
rezando.
Ela ri. Annabelle tem uma risada legal.
Eu dou um sorriso, mostrando as covinhas.
Annabelle balança o dedo em riste para mim.
Eu entrego a ela o meu celular.
Eu prometo que nunca mais vou fazer isso...

Ela suspira.
Eu ganhei. O carro verde não é multado.
Nem é o meu carro, na verdade.
Eu não sei ao certo por que falei com Annabelle. Desta vez, eu não precisava
falar, eu não preciso saber mais sobre a sua vida ou onde ela mora ou quem
pode estar esperando por ela. Eu já tenho as respostas, mas falei mesmo assim.
Tudo parte do meu processo de seleção.
Na quarta-feira, vou vê-la de novo. Ela não sabe disso.

A foto de Owen está por toda parte. Especialistas em computação gráfica o


envelheceram, teorizando sobre a sua aparência nos dias de hoje. Eles até
especulam os possíveis disfarces. Sou bombardeado por essas fotos. Elas estão
no noticiário, no jornal impresso, na internet. Cartazes são afixados a postes de
telefone. Owen de barba, de bigode, cabelo escuro, careca, gordo, magro.
Owen com cabelo comprido e curto, óculos escuros, lentes de contato, com
costeletas, um cavanhaque. Owen se parece com todos os homens e não se
parece com nenhum.
Eu provoquei essa confusão.
Bom, quer dizer, Millicent provocou. Ou começou a provocar. Mas eu
também ajudei.
Não alcancei muita coisa na vida — com certeza nada de extraordinário —,
mas, por minha causa, todos agora estão procurando por Owen Oliver Riley.
Eu sempre quis ser mais do que meramente acima da média.
Primeiro, foi o tênis. Meu pai jogava, minha mãe fingia jogar e com sete
anos de idade bati na minha primeira bola de tênis. Foi o primeiro esporte pelo
qual me interessei, então eles pagaram um técnico para mim, compraram
minha primeira raquete e deixaram que eu me virasse. Poucos anos depois, eu
já era o melhor jogador juvenil do clube. Ainda não recebia a devida atenção
deles, não da forma que eu desejava, mas a negligência deles apenas me
estimulava mais. Eu não fazia ideia da quantidade de raiva que eu tinha até
bater naquela bolinha amarela.
Eu não era mediano na época, não era uma decepção para ninguém a não ser
para meus pais. Fui melhor do que todos, até não ser mais. Depois, não sabia
mais como ser mediano e fui para o exterior, longe dos meus pais, em busca de
um lugar onde eu poderia ser acima da média, melhor que uma decepção. Com
Millicent, eu sou.
É horrível dizer isso, mas minha vida tem sido muito melhor desde que meus
pais morreram.
E desde que Millicent entrou na minha vida. Ela faz com que eu me sinta
melhor do que todos os outros. E ela está bem impressionada com a minha
carta. Na cama, ela logo toca no assunto.
— Eu queria poder recortar o jornal e colar na geladeira.
Eu dou risada e faço um carinho na sua perna. Ela está atirada sobre a minha
daquele jeito preguiçoso. — As crianças podem achar estranho.
— Elas nem iam notar.
Ela tem razão. Nossa geladeira é uma bagunça de fotos grudadas com fita,
armadas e coladas umas às outras em uma espécie de álbum de família. Os
detalhes são tão confusos que nada se destaca. — Você tem razão — eu digo.
— Não iam mesmo.
Millicent rola na cama e põe o seu rosto perto do meu. Ela sussurra: —
Tenho um segredo.
Meu coração treme um pouco, e não de um jeito agradável.
— Qual? — eu pergunto. Não é um sussurro.
— Eu observei ela.
— Ela quem?
— Annabelle — ela pronuncia o nome com a boca, sem fazer ruído. Meu
coração relaxa um pouco. Fizemos isso da outra vez: observamos Lindsay e
trocamos informações.
— E aí? — eu pergunto.
— Ela vai ficar perfeita na tevê.
As luzes no nosso quarto estão apagadas, mas não estamos na escuridão
total. Nosso quarto fica no segundo andar e a janela dá para a frente da casa. A
luz de um poste brilha nos cantos das cortinas. Muitas vezes fiquei olhando
para eles, para os cantos das cortinas, desde que nos mudamos para esta casa.
O quadrado de luz dourada parece muito antinatural.
— Penny — eu digo.
Ela ri. — O quê?
— Eu te amo.
— Eu também te amo.
Eu fecho meus olhos.
Às vezes, falo primeiro. Outras vezes, ela fala. Gosto desse esquema, porque
parece equilibrado. Mas ela falou primeiro. Quero dizer, originalmente. Ela foi
a primeira a dizer que me amava.
Levou três meses. Três meses de quando nos conhecemos no avião até o
momento em que ela disse que me amava. Nesses três meses, eu já a amava por
pelo menos dois meses e meio, mas não falei nada. Não até ela falar. Quando
aconteceu, estávamos literalmente no topo de uma árvore. Éramos jovens, sem
dinheiro, e estávamos procurando alguma coisa para fazer. Assim, subimos em
uma árvore.
Como é de se esperar, há árvores em Woodview. Temos um parque cheio de
carvalhos gigantes, perfeitos para você escalar. Mas, naquele dia, Millicent e eu
estávamos em cima de um bordo. Eu devia saber que, quando Millicent disse
querer subir em uma árvore, ela escolheria aquela que iria exigir algum tipo de
transgressão.
A árvore ficava em uma propriedade privada, diante de uma casa algumas
centenas de metros mais ao fundo. A única coisa entre a rua e a porta da frente
era um gramado verde e aquele bordo gigante.
Era meados de agosto, o pico do calor do verão, e olhamos para a árvore de
dentro do meu carro com ar-condicionado. Tínhamos estacionado mais adiante
na quadra, num lugar com boa visibilidade do terreno, e esperamos todas as
luzes da casa se apagarem. Apenas uma restava, no segundo piso à direita.
Millicent agarrou a minha mão, como se ela estivesse na beira de um
precipício.
— Quer mesmo subir naquela árvore? — eu perguntei.
Ela se virou para mim, com os olhos brilhando. — Você não quer?
— Nunca pensei nisso antes.
— E agora?
— Agora eu quero muito subir nessa árvore desgraçada.
Ela sorriu. Eu sorri. A luz finalmente se apagou.
Eu girei a chave, desligando o ar-condicionado. Imediatamente ficou mais
quente dentro do carro. Millicent saiu primeiro. Ela segurou a maçaneta ao
fechar a porta, fazendo o mínimo de barulho possível. Eu saí e fiz a mesma
coisa.
Olhei para o bordo, que de repente me pareceu aberto demais, exposto
demais, e me perguntei se a pena por invasão de domicílio incluía algum tempo
na prisão.
Millicent saiu em disparada. Ela atravessou correndo a rua, atravessou o
gramado e desapareceu por trás do tronco da árvore. Se ela fez algum barulho,
eu não ouvi.
Eu percorri o mesmo caminho. Meus pés pareciam pesados, arrastados,
como se cada passo meu retumbasse pela vizinhança inteira. Continuei
correndo até alcançar Millicent. Quando cheguei na árvore, ela me puxou para
perto dela e me beijou. Com força. Tive que recuperar o fôlego quando ela me
soltou.
— Pronto para subir? — ela perguntou.
Antes que eu pudesse responder, ela ergueu o corpo apoiada em uma grande
deformação no tronco. De lá, estendeu a mão para agarrar o galho mais baixo e
depois subiu mais ainda. Eu a observei, esperando alguém acender uma luz na
casa. Ou esperando ela cair para que eu pudesse pegá-la. Nenhuma das duas
coisas aconteceu.
— Vem — ela sussurrou.
Millicent estava sentada em um galho alto e olhando para mim lá de cima. A
luz da lua a transformava em uma silhueta de si mesma. Eu podia ver seus
cabelos longos balançando na brisa, e seus pés pendurados nos dois lados do
galho. Todo o resto parecia uma sombra.
Subi na árvore, o que foi muito mais difícil do que eu imaginava, e
novamente os meus grunhidos e a minha respiração ofegante soaram altos o
bastante para acordar qualquer um num raio de dez quilômetros. Ainda assim, a
família na casa lá ao fundo continuou dormindo. Os quartos permaneceram no
escuro.
Quando alcancei Millicent, eu já derretia de suor. A noite estava uma
fornalha. O ar parecia mais abafado na árvore. Cheirava a suor, musgos e
cascas.
Millicent agarrou minha camiseta, me puxando para perto dela, afogando a
minha boca na sua. Juro que o gosto dela era de xarope de bordo. Ela enterrou
o rosto no meu pescoço, como se tentasse se fundir em mim, com seu hálito
quente na minha pele.
— Ei — eu disse.
Ela ergueu a cabeça e olhou para mim. Uma mecha de cabelo úmido ficou
colada na sua testa.
— Eu te amo — ela disse.
— Eu te amo.
— Verdade? Verdade mesmo?
— Claro que é verdade.
Ela colocou a mão na minha bochecha. — Jure.
— Eu juro.
Vinte e dois
As máquinas automáticas de café são uma das invenções mais convenientes já
feitas. Nada de baristas, nada de leite integral no lugar do semidesnatado, nada
de sabores em falta. Só preciso organizar minhas preferências, escolher a
variedade do café, o leite, a quantidade, posso definir até mesmo a temperatura,
e então aperto o botão verde. Meu café sai pronto. E é barato.
O ponto negativo é que essas máquinas elaboradas, que na verdade são bem
simples, só estão disponíveis nas lojas de conveniências dos postos de gasolina.
Cafeterias de verdade não têm máquinas de autoatendimento.
Minha máquina preferida fica na loja de um posto a três quilômetros de
Hidden Oaks. Mesmo quando estou sem tempo, dou um pulo lá. A moça do
caixa é a simpática Jessica. Ela é do tipo que está sempre sorrindo e que
encontra alguma coisa agradável para dizer a todo mundo. Talvez ela seja o
motivo que me faça dirigir por três quilômetros até o posto. Ou não. A questão
é que o posto é parte da minha rotina. E todo mundo tem uma rotina.
Annabelle com certeza tem.
Todas as quartas-feiras à noite, ela e os seus pais jantam no mesmo
restaurante italiano. Meu palpite é que eles pedem a mesma comida, as mesmas
bebidas e talvez até a mesma sobremesa. O jantar começa às seis e meia e
termina por volta das oito. Annabelle gosta de caminhar e leva onze minutos a
pé do restaurante até o seu apartamento, a não ser que pare em alguma loja,
atenda o telefone ou encontre alguém que conheça. Como eu, por exemplo.
Enquanto Annabelle confere seu celular, eu caminho bem na sua direção.
Ela ergue o olhar para mim, meio surpresa. E, então, o reconhecimento.
— Olá — ela diz.
Ela está usando mais maquiagem do que costuma usar durante o dia. Seu
batom é mais escuro, os olhos estão pintados. Seus cabelos curtos fazem o
rosto parecer ainda mais atraente.
Eu pego o meu celular.
Mas veja se não é a melhor fiscal da cidade :)

Ela revira os olhos. — Como você está?


Eu aceno com a cabeça e aponto para ela.
Ela faz sinal de positivo.
O que você está fazendo aqui sozinha? Não sabe que tem um assassino à solta?

Ela sorri ao ler. — Estou indo para casa agora.


Quer tomar alguma coisa antes?

Ela hesita.
Eu aponto para um bar mais adiante na rua.
Annabelle olha para o seu relógio. Fico surpreso quando ela diz que sim. Ela
deveria dizer não, principalmente com toda essa questão do Owen Oliver, mas
Annabelle é ainda mais solitária do que eu imaginava.

O barman, Eric, me cumprimenta com uma espécie de mímica. Já estive aqui


várias vezes, sempre sozinho, sempre esperando Annabelle passar pela frente
do bar na sua volta para casa depois do jantar com os pais. Eric me conhece
como Tobias. Eu ensinei para ele tudo que eu sei sobre língua de sinais. Ele
sabe soletrar meu nome e a minha bebida, gim-tônica.
Annabelle pede o mesmo.
— Com bastante tônica — ela diz.
Ela não confia em mim, e eu não posso culpá-la por isso. Eu sou apenas um
cara que implorou para que ela não aplicasse uma multa. Um cara surdo
provavelmente muito legal e pouco ameaçador.
— Você conhece ele, então? — Annabelle fala com Eric enquanto aponta
para mim.
— Claro, com certeza. Tobias bebe pouco e dá umas gorjetas bem boas. Mas
não é de falar muito — ele pisca, mostrando a ela que está brincando.
Ela ri, e é um som agradável. Começo a me imaginar na cama com ela. Isso
me faz pensar quanto tempo falta para ela me convidar para seu apartamento.
Já sei que ela vai fazer isso, e sei que o apartamento dela não fica muito longe
daqui. O poder de saber tanto e escolher o que vai acontecer depois, bom, é
disso que eu gosto.
— Vocês são uma dupla — ela diz, gesticulando para Eric e para mim.
Annabelle toma cuidado para sempre me olhar quando fala. Ela não esquece
que eu sou surdo.
Depois de tomarmos os primeiros goles das nossas bebidas, Eric some no
outro lado do bar. Somos só eu e Annabelle, e ela me conta muitas coisas que
eu sei e até algumas que eu não sei. Por exemplo, não sabia que ela havia
jantado linguine com cogumelos hoje à noite. Mas agora eu sei que é isso que
ela come nas noites de quarta.
Conto a ela minha história de Tobias. Sou contador, divorciado, não tenho
filhos. Amava muito minha esposa, mas nos conhecemos ainda no colégio e
nos casamos muito cedo. Acontece.
Annabelle é boa ouvinte e gesticula em todos os momentos certos.
E você? Namorado?

Ela balança a cabeça. — Já faz um tempo que não tenho namorado.


Eu sei que não deve demorar muito agora. Espero que o convite venha
depois do drinque número dois e antes do drinque número três.
Por que não tem namorado?

A pergunta não é apenas para jogar conversa fora. Estou realmente curioso.
Annabelle dá de ombros. — Não conheci ninguém ainda?
Eu balanço a cabeça.
Muito genérico.

Ela demora um pouco. Estou supondo que ela esteja prestes a me contar que
o seu último namorado era um babaca. Que ele tinha outra. Que ele estava
sempre saindo com os amigos. Que ele era um safado egoísta.
— O meu último namorado foi morto — ela diz.
O choque quase me faz falar em voz alta.
Que coisa horrível. Como foi que aconteceu?

— Motorista bêbado.
Lembro vagamente de Annabelle ter postado algo na internet sobre uma
arrecadação de fundos para conscientização contra o álcool no volante. Não
havia nenhuma indicação de que era pessoal.
Pergunto a ela mais coisas sobre ele. Seu nome era Ben, e Annabelle o
conheceu no trabalho. Ben era policial. Fazia aulas de direito criminal à noite e
queria subir na carreira até chegar a detetive, e depois a sargento.
Ela não mantém mais nenhuma foto dele no celular, pois decidiu que não era
muito saudável ficar olhando para elas.
Essa declaração é tão triste que sou obrigado a desviar o olhar.
— Ei — Annabelle diz. Ela toca no meu braço, me pedindo para virar para
ela. — Me desculpe. Esse assunto todo é muito sério.
Não, tudo bem. Eu que perguntei.

— Estou cansada de falar sobre mim. E você? Namorada?


Eu balanço a cabeça negativamente.
— Sua vez. Por que não?
Tem sido difícil voltar a namorar. Fui casado por dez anos. E sendo surdo... Fica mais difícil, acho.

— Bom, uma mulher que não sair com você porque você é surdo não vale a
pena.
Eu dou um sorriso. Suas palavras são genéricas, mas, partindo dela, soam
genuínas. Isso me faz pensar no que ela diria se eu lhe contasse a verdade.
Então, eu decido. Não vou dormir com ela.
Em vez disso, mudo de assunto e paramos de falar sobre nós dois. Falamos
sobre livros, filmes, atualidades. Nada pessoal, apenas uma conversa aleatória
que não causa dor nenhuma. Quando eu paro de flertar, ela para também. O ar
entre nós dois não é mais o mesmo.
Eric volta à nossa parte do bar e pergunta se queremos mais uma bebida.
Não pedimos mais nada.
Ela não quer que eu a acompanhe até em casa. É compreensível, mas eu
insisto para que Eric chame um táxi. Ela aceita, e tenho certeza de que é por
causa de Owen Oliver. Antes dela ir embora, peço o seu número. Ela me diz, e
eu dou a ela o número do telefone descartável.
Annabelle agradece pelo drinque com um aperto de mão. É, ao mesmo
tempo, formal e carinhoso. Eu a observo saindo do bar.
Não vou mandar mensagens para ela. Tenho certeza disso.
Também tenho certeza de que Annabelle não serve. Ela não vai desaparecer
na sexta-feira à noite.

É por causa do seu namorado. Assim que ouvi a história, eu soube que não
seria ela.
Talvez por ser tragédia demais para uma vida tão jovem. Perder uma pessoa
querida em um acidente violento e depois ser assassinada.
Não é justo. Nosso sistema de escolha foi desenvolvido, em parte, por Owen,
mas a forma como o colocamos em prática foi arbitrária. Eu simplesmente vi
Annabelle passando naquele dia. Poderia ser qualquer uma.
Agora, estou de volta ao Lancaster Hotel, observando Naomi. Ela ainda é
um pouco alta demais para o perfil de Owen. Eu a conheço apenas pelo
computador e pelas portas envidraçadas do Lancaster. Nunca falei com ela,
nunca ouvi o som da sua voz.
Mas eu quero. Quero ouvi-la rir, quero ver como ela fica depois de uns
drinques. Quero saber se ela realmente tem uma queda por homens mais velhos
ou se só precisa do dinheiro. Quero saber se gosto dela, se não gosto dela ou se
não sinto nada por ela. Mas não vou fazer isso. Não posso correr o risco de
descobrir um detalhe qualquer que me faça querer deixá-la viva.
Portanto, não entro no hotel, continuo distante. Quando seu expediente
termina, eu a vejo sair. Ela trocou o uniforme por calça jeans e camiseta. Fala
no telefone ao caminhar até seu carro, uma coisa minúscula na cor verde-limão.
Às onze e quinze de uma noite de quarta-feira, sua única parada é no drive-thru
de uma lanchonete. Minutos depois, ela chega em casa, caminha para o
apartamento com um pacote de comida em uma mão e o uniforme na outra.
Naomi mora no térreo de um prédio pacato, um prédio voltado para pessoas
que não ganham muito. O jardim da entrada está crescido demais, com arbustos
frondosos perto da porta.
Perfeito. Temos muitas opções para a sexta-feira 13, do estacionamento do
hotel até o prédio de Naomi.
Agora só preciso contar a Millicent que mudei de ideia.
Vinte e três
Às seis da manhã a voz do locutor do rádio explode no meu ouvido e é alta o
bastante para me fazer dar um pulo. Millicent gosta desse rádio-relógio. É um
modelo antigo, daqueles com números que viram como páginas de calendário e
um revestimento imitando madeira, e me irrita até o fundo da alma. O rádio é a
sua maneira de deixar o assento da privada levantado.
— Bom dia. Hoje é quinta-feira, 12 de outubro, e vocês têm mais um dia
antes de se trancarem dentro de casa, minhas jovens senhoras. Owen Oliver
está vindo para pegar uma mocinha bonita e...
O rádio fica mudo. Eu abro os olhos e vejo Millicent parada na minha frente.
— Desculpe — ela diz. — Esqueci de desligar.
Ela se vira e volta ao banheiro. Seu cabelo ruivo, sua bermuda de algodão e
sua regata se dissolvem em um longo rabo-de-cavalo escuro e aí surge um
uniforme azul com detalhes em dourado.
Eu estava sonhando com Naomi quando o rádio tocou. Ela estava atrás do
balcão lá no Lancaster, conversando com um homem tão velho que fazia um
chiado ao falar. Naomi jogou a cabeça para trás e riu. A risada soou como o
cacarejo de uma bruxa em um conto de fadas. Então, ela virou o rosto para
mim e piscou. As sardas ao redor do seu nariz começaram a sangrar. Acho que
eu estava prestes a dizer algo quando o rádio me interrompeu.
Millicent mentiu, ela não se esqueceu de desligar o alarme coisíssima
nenhuma. Ela ainda está um pouco chateada comigo. Não porque tivemos que
de repente voltar a Naomi, mas porque tomei essa decisão sem consultá-la.
Ontem à noite, tivemos outra noite romântica na garagem. Ela imaginava
que seria uma última sessão de planejamento para revisarmos tudo antes do
grande dia. E a intenção original era essa, pelo menos até eu contar a ela que
Annabelle não servia.
— Não entendi — ela disse.
— Acho que temos que voltar para Naomi.
— Naomi é alta demais. Ela não se encaixa no perfil.
— Eu sei, mas Annabelle é...
— É o quê?
Tomei a decisão de mentir numa fração de segundos. — Ela começou a sair
com um cara.
— Um namorado?
— Se ele ainda não é, vai ser. Ele vai chamar a polícia na mesma hora —
esse é o tipo de cenário que preferimos evitar.
Millicent balançou a cabeça. Deve ter até mesmo praguejado por entre os
dentes. — Não acredito que só agora fomos descobrir isso.
— Sempre ficamos de olho nela no trabalho.
— Nem sempre.
Deixei isso passar. Não era hora de questionar Millicent sobre o que ela tinha
esquecido de me contar. Não quando eu estava mentindo.
— Pois então — eu disse. — Naomi.
Millicent suspirou. — Naomi.
Não falamos mais em Annabelle.

Eu não quero trabalhar, mas não tenho escolha. Meu dia é preenchido por uma
aula atrás da outra e, quando elas enfim acabam, pego as crianças na escola e
levo os dois ao dentista. Por sorte, ambas as consultas caíram na quinta-feira
12. Millicent marca as revisões delas com bastante antecedência, a cada seis
meses, sem nunca errar a data.
Quando chegamos ao consultório, Jenna e Rory tiram pedra-papel-e-tesoura
para ver quem vai primeiro. É uma das poucas vezes que os dois falam ao
mesmo tempo.
— Pedra, papel, tesou-rá!
Rory perde, Jenna debocha e a inabalável verdade passa despercebida pelos
dois: ambos ainda terão que fazer uma limpeza nos dentes.
Na sala de espera, eu verifico as notícias no celular e sou bombardeado por
fotos das vítimas de Owen. Nosso jornal local colocou todas na primeira
página, e todos esses retratos foram tirados quando elas ainda estavam vivas e
sorridentes. A mensagem não é nada sutil. Se você se parece com essas
mulheres, amanhã você estará em risco. Owen pode estar vindo te pegar. Não
há nenhuma indicação de que alguém seja capaz de reagir ou escapar, e a única
maneira de sobreviver é não ser escolhida. É um pouco ofensivo, creio eu, que
as mulheres sejam tratadas como se fossem tão indefesas. O autor desse artigo
certamente nunca conheceu a minha esposa.
Depois do dentista, sorvete. Millicent nos encontra para esta bizarra tradição
familiar. Fui eu que comecei, na época em que as crianças eram muito mais
novas e eu queria fazê-las pararem de chorar no dentista. A promessa de
sorvete funcionou e agora elas não esquecem mais.
Cada um tem o seu predileto. Millicent pede baunilha, eu peço chocolate e
Rory pede chocolate com nozes. Jenna é a mais experimental. Ela sempre pede
o especial do dia. Hoje é de mirtilo com flocos de chocolate, e ela adora. Eu
acho nojento.
Depois que os dentes estão todos limpos e os cérebros devidamente
congelados, nós nos separamos. Millicent leva as crianças para casa e eu volto
ao trabalho. No caminho para o clube, encontro com Trista. Ela cancelou nossa
última aula, e eu na verdade não a vejo direito desde aquele dia embriagado
quando ela me contou sobre seu relacionamento com Owen Oliver. Sou muito
agradecido a ela por aquilo, mas ela não sabe. Ela não sabe de muita coisa no
momento. Ela olha para mim com o olhar morto de uma bêbada, mas não é por
causa do álcool. Ela está tomando remédios, provavelmente analgésicos, e
tomando em larga quantidade. É um vício comum entre os frequentadores do
clube.
Mas nunca imaginei que fosse acontecer com ela.
— E aí? — eu estendo a mão e toco seu braço. — Você está bem?
— Perfeita — ela pronuncia a palavra com força, como se ela estivesse
qualquer coisa menos isso.
— Você não parece bem. Quer que eu ligue para o Andy?
— Não, não quero que você ligue para o Andy.
Eu acho que deveria ligar, porque, se fosse comigo, eu gostaria de saber que
minha mulher está por aí chapada até os cabelos. Pego o meu telefone.
Trista olha para mim. — Uma mulher vai desaparecer amanhã. E aí ela vai
morrer.
Quero dizer a ela que talvez não seja essa tragédia, que talvez capturem
aquele psicopata, mas não digo, porque é uma mentira. A polícia não vai nos
descobrir. Eles nem sabem da nossa existência.
— Pois é — eu digo. — Alguém provavelmente vai desaparecer.
— Owen é um canalha — Trista parece vazia, mas não está. Por trás dos
remédios existe uma fagulha nela que se recusa a desaparecer. Um sentimento
de raiva.
— Ei, pare com isso. Você não pode se culpar por esse idiota.
Ela se irrita.
— Você não vai estar sozinha amanhã, vai? — digo isso porque estou
realmente preocupado com ela. O comportamento de Trista é autoviolência
pura.
— Andy vai estar em casa — ela olha a televisão, onde mais um jornal
mostra imagens de quando Owen foi preso há quinze anos. Trista treme. —
Tenho que ir.
— Espere, eu te dou uma carona até em casa.
— Eu não vou para casa.
— Trista.
— Vejo você depois, está bem? Diga a Millicent que eu vou ligar para ela —
e sai caminhando em direção ao vestiário feminino, mas vira para trás. — Não
conte para o Andy, certo?
Eu não contei nada para ele quando vi Trista bêbada, e também não contei
sobre o passado de sua esposa com Owen Oliver. Mais uma omissão não vai
fazer essa traição maior do que já é.
— Não vou, pode deixar.
— Obrigada.
Ela se lança em direção ao vestiário e eu fico olhando para ela, pensando no
que nós fizemos. Trazer Owen de volta afetou mais do que uma simples
investigação policial.
Meu último cliente no dia também toca no assunto. Ele é um homem
simpático com três filhas, e duas delas estão na idade certa para Owen. Todas
ainda moram na região. Mas essas duas filhas são solteiras e moram sozinhas, e
ele está tão preocupado que se ofereceu para mandá-las para outra cidade
durante o fim de semana. Ele não morava aqui quando Owen apareceu pela
primeira vez, mas já ouviu mais do que o suficiente.
Apesar do sorvete à tarde, o jantar continua sendo às seis. Jenna diz que todo
mundo na escola passou a semana inteira falando sobre Owen. Uma das suas
amigas tem uma irmã mais velha que está totalmente convencida de que Owen
irá pegá-la. Rory desdenha dela e diz que isso não vai acontecer, que as duas
são feias demais, mesmo para o padrão de um serial killer. Jenna joga um
pãozinho no irmão, e Millicent manda os dois pararem com aquela bagunça.
Eles, no entanto, continuam a se xingar baixinho de um lado para o outro à
mesa.
— Eu mandei parar.
Millicent não gosta de repetir, e com isso eles param. Por um minuto. Jenna
se contorce quando Rory a chuta por baixo da mesa. Tenho certeza de que
Millicent está vendo, mas ela não diz nada, pois quando termina o jantar ela de
repente anuncia uma noite de cinema. Às vezes quando eles brigam demais, ela
inventa uma atividade para eles passarem mais tempo juntos. É a sua maneira
de garantir que os dois tentem resolver o problema em vez de cada um se
mandar para um canto.
Eles discutem por vinte minutos sobre qual filme vão assistir. Nem Millicent
nem eu interferimos. Na verdade, nós nem prestamos atenção. Estamos na
cozinha, terminando de lavar a louça, quando ela pergunta se eu vou sair de
novo hoje à noite.
— Vou.
— Tem certeza de que é uma boa ideia?
— É tranquilo.
Meu tom de voz sai mais grave do que eu queria. Ouvir sobre Owen o dia
todo não melhorou meu nível de estresse. Encontrar Trista também não foi
muito útil. Algo nela, no que ela está fazendo consigo mesma, me incomoda.
Tudo que acontecer amanhã vai acontecer por minha causa. Eu escrevi a
carta para Josh, eu escolhi a data, eu prometi que outra mulher iria desaparecer.
E fui eu quem trocou Annabelle por Naomi ainda na noite passada. Sou eu
quem precisa garantir que ela sirva.
Um cara ou coroa decide qual será nosso filme esta noite, e é sobre um
golfinho. Rory e Jenna sentam juntos no chão com uma bacia nos braços e até
que não ficam jogando pipoca um no outro. Millicent e eu sentamos no sofá
com nossa própria pipoca. Ela passa mais tempo olhando as crianças do que o
filme, e seus olhos parecem dez tons mais claros. Eles sempre ficam assim
quando ela olha as crianças.
Ela segue calada até o filme terminar e as crianças subirem para a cama, com
o clima entre elas bem mais leve e a conversa girando em torno dos golfinhos.
Eu começo a me levantar quando minha esposa põe a mão no meu joelho e me
aperta.
— Não se atrase, tá? — ela diz.
Ela dá a impressão de que a ideia foi dela, e isso me irrita.
— É verdade — eu digo. — Tenho que sair logo daqui.
— Você tá bem?
Olho para ela, para minha esposa com seus olhos claros tão diferentes dos
olhos de Trista. Tudo em Millicent é o oposto da esposa de Andy.
Eu dou um sorriso, agradecido por não ter casado com Trista.
Vinte e quatro
Eu não pretendia usar um terno, porque falar com Naomi não estava nos meus
planos, mas no último minuto eu vesti o que Millicent mais gosta. É azul-
marinho com um colarinho costurado à mão, e é caro demais. Mas, já que ele
está no meu armário, não custa nada usar.
Quando fico em frente ao espelho e coloco a minha gravata, Millicent
aparece atrás de mim. Ela se encosta na parede, com os braços cruzados, e me
observa. Sei que ela quer me perguntar alguma coisa, porque eu nunca uso esse
terno sem ela. Foi ela quem comprou.
Continuo arrumando a gravata, calço os sapatos, pego a carteira, o celular e
as chaves. Meu telefone descartável não entra em casa.
Quando olho, ela ainda está lá, ainda na mesma posição.
— Acho que já vou — eu digo.
Ela concorda com a cabeça.
Eu espero uma resposta, mas ela fica em silêncio. Passo na frente dela e
desço as escadas. Quando chego na porta da garagem, eu escuto aquela voz
adolescente.
— Pai.
Rory está na porta da cozinha com um copo d’água. Ele estende a outra mão
e esfrega o polegar e o dedo indicador. Quer mais dinheiro.
Não é como se por acaso ele estivesse na cozinha. Ele estava realmente me
esperando.
Eu concordo e saio.

Naomi está no balcão de recepção, fazendo o check-in dos hóspedes,


atendendo o telefone, resolvendo os problemas de todo mundo que aparece lá
com um problema. Hoje à noite, não fico sentado do lado de fora. Estou no
saguão.
Ele é grande e luxuoso, com móveis estofados de cores escuras e tecidos
grossos. Cortinas de veludo descem pelas paredes, cheias de frisos dourados
como os uniformes do Lancaster. Há franjas e pompons por toda parte.
Posso me esconder neste saguão, oculto em meio à decoração requintada.
Sou apenas mais um hóspede desconhecido trabalhando no computador e
tomando uma bebida, pois não aguento ficar nem mais um minuto lá no meu
quarto — o que é quase verdade. Não aguento ficar nem mais um minuto no
meu carro do lado de fora do hotel. Se Naomi é a escolhida, eu me sinto
forçado a me aproximar dela.
Mas não para conversar. Decidi não falar com ela. Simplesmente não há
tempo. Não depois da mudança de última hora. Estou estressado demais,
preocupado demais. De repente, ressuscitar Owen Oliver se tornou bem mais
complicado do que eu imaginava. Talvez por causa da mídia, talvez por causa
de Trista, mas também porque meus filhos não param de falar nele.
Com Lindsay foi tudo muito diferente. Éramos apenas Millicent e eu,
ninguém mais, nem mesmo nas proximidades.
Véspera de ano-novo, Millicent e eu fomos a uma festa no clube. Jenna tinha
doze anos, Rory já com treze, e foi a primeira vez que deixamos os dois
sozinhos no dia 31 de dezembro. Eles ficaram extasiados com a liberdade, e
nós também. Passar o ano-novo com adultos era algo que não acontecia desde
que as crianças haviam nascido.
Menos de um mês antes, eu tinha visto aquela mulher no shopping, aquela
que se parecia com Robin. Millicent e eu transamos naquela noite. Não uma
transa qualquer, transa de gente casada que quer logo se ver livre da tarefa.
Fizemos o sexo que fazíamos quando começamos a namorar, quando não
conseguíamos ficar longe um do outro. Um sexo incrível.
No dia seguinte, no entanto, essa empolgação já era passado. O sexo, o
clima, o sentimento. Voltamos a discutir sobre dinheiro — o que podíamos e o
que não podíamos pagar. E essa discussão incluía a festa de ano-novo.
Era uma festa à fantasia. Millicent e eu nos vestimos como se fôssemos da
década de 20, um gângster com sua melindrosa namorada. Meu terno era de
risca de giz e, além de um chapéu fedora, eu estava com uns sapatos
magníficos. Millicent usava um vestido de paetê violeta e uma faixa com
plumas na cabeça, e os seus lábios estavam pintados de vermelho-escuro.
Eu sempre achei que festas à fantasia eram meio deprimentes. Elas me
davam a sensação de estar cercado por pessoas que sonhavam em ser qualquer
um, menos quem realmente eram.
Naquela noite, porém, nós estávamos diferentes. Bem diferentes dos outros,
bem diferentes de qualquer outra pessoa naquela festa. Millicent e eu
conversamos sobre repetir a dose. Sobre matar uma mulher. Falamos sobre o
que faríamos com ela. Se faríamos. Por que faríamos.
— Que tal ela? — Millicent perguntou, apontando para uma mulher cujos
seios eram tão grandes que beiravam o grotesco. Eram falsos, e todos nós
sabíamos, porque ela contou para todo mundo quanto haviam custado.
Eu dei de ombros. — A gente não vai conseguir afogá-la.
— Tem razão.
— E ela? — eu disse, gesticulando com a cabeça na direção de uma loira
com jeito praiano, uma mulher acompanhada de um homem tão velho que
poderia ser seu avô.
Millicent sorriu, com os dentes brancos contrastando com o vermelho-rubi
dos seus lábios. — Seria um ato de misericórdia. Com esse bronzeado, ela vai
acabar tendo câncer de pele.
Eu segurei uma gargalhada. Millicent deu uma risadinha. Estávamos sendo
terríveis, falando mal dos outros da forma mais perversa possível, mas era só
conversa fiada. Durante a maior parte da noite, conversamos apenas um com o
outro.
Considerando que era nossa primeira noitada após um longo período de
reclusão, eu estava preparado para ficar até mais tarde na rua e tinha até
tomado um energético antes de sair. Mas não ficamos até tarde. Cinco minutos
depois da meia-noite, estávamos a caminho de casa.
Em menos de quinze minutos, nossas fantasias da década de 20 já estavam
abandonadas no chão do nosso quarto.
Eu não fazia ideia se estávamos começando algo ou continuando, eu só não
queria que aquilo terminasse.

No saguão do Lancaster, eu olho para o meu relógio, verifico o celular e


navego na internet. Puro fingimento para ninguém perceber que estou
observando Naomi. Ela não repara em mim. A noite é muito mais
movimentada do que o normal, em parte porque amanhã é sexta-feira 13. As
pessoas vieram à cidade para ver o que Owen vai fazer, quem é que ele vai
raptar e matar. Alguns desses hóspedes trabalham em legítimos veículos de
imprensa, os outros são pessoas aleatórias que vão atrás de espetáculos e
eventos que possam ser gravados e transmitidos online.
Um grupo dos aleatórios se senta perto de mim no saguão. São jovens em
idade universitária que procuram formas de ganhar dinheiro fácil, e eles
especulam sobre o tamanho da grana que eles talvez consigam levantar aqui. A
conta deles é baseada no quão explícito será o vídeo, embora gravar o
verdadeiro rapto de uma mulher seja o prêmio máximo. Claro, desde que eles
mantenham a câmera estável durante a filmagem.
Quando eles por fim vão embora, partindo em busca dos locais
provavelmente frequentados por serial killers, posso voltar a me concentrar em
Naomi. Procuro pelo detalhe certo para contar a Millicent, qualquer informação
que possamos compartilhar. Quero que a gente sinta aquela mesma sensação de
antes.
Naomi está sorrindo e seguiu sorrindo a noite inteira. É incrível, realmente
admirável. A maioria das pessoas que chega ao seu balcão está irritada ou
precisa de alguma coisa, mas ela nunca deixa de ser gentil. Ela sorri mesmo
quando alguém a chama de idiota.
Começo a pensar que ela é uma espécie de Poliana, alguém que é simpática
e feliz não importa o que aconteça. Não gosto desse tipo de comportamento.
Millicent e eu não vamos poder falar mal dela à noite.
Então eu vejo — a falha na máscara açucarada de Naomi. Quando um
hóspede particularmente rude vira as costas, Naomi mostra o dedo para ele.
Eu dou um sorriso.
Hora de ir para casa e contar a Millicent.
Vinte e cinco
Eu acordo no silêncio. Falta uma hora para o nascer do sol, e o mundo está
escuro como um veludo negro.
É sábado, dia 14.
Millicent ainda não chegou em casa.
A decisão de nos dividirmos no trabalho ocorreu mais tarde na noite de
quinta-feira, depois que eu voltei do Lancaster. O plano era manter Naomi viva
por um tempo, exatamente como Lindsay. Precisava ser assim, porque essa era
a tática de Owen.
Eu apenas não gostei da ideia. Não queria ver.
Uma parte de mim sabia que eu deveria ajudar, porque não era justo deixar
Millicent fazer tudo sozinha. Tentei imaginar como seria trancar Naomi no
cativeiro e ficar lá mantendo-a viva, alimentar essa nossa refém, dar água para
ela, e torturá-la. Só de pensar me dá um embrulho no estômago.
Não acho que consigo, tão perto e tão pessoal.
Essa repulsa me impede de conversar com Millicent sobre o lugar onde ela
manteve Lindsay presa e sobre onde ela vai manter Naomi. Já pensei em
perguntar, mas nunca o fiz. Às vezes me sinto um pouco mal em relação a isso,
mas não mal o bastante. Na maioria das vezes, eu simplesmente fico aliviado.
— Eu posso fazer — Millicent disse.
Estávamos sozinhos em casa na sexta-feira pela manhã. As crianças estavam
na escola. Sentamos na cozinha para tomar outra xícara de café e discutir
nossos planos.
— Você não deveria fazer tudo sozinha — eu disse.
— Eu já fiz isso antes — Millicent se levantou e levou sua caneca para a pia.
— Mesmo assim — eu falei. Meus protestos eram frágeis, e eu sabia que
eles eram frágeis. De qualquer forma, eu me sentia um pouco melhor quando
falava.
— Mesmo assim nada — Millicent disse. — Eu cuido dela. Você cuida do
repórter.
— Pode deixar. Uma hora ou outra eu vou ter que fazer contato com ele de
novo.
— Exatamente.
Ela se virou para mim e sorriu, iluminada pelo sol da manhã que entrava
pela janela.
Nosso plano estava pronto. Era o mesmo plano que usamos com Lindsay.
Preparamos cada detalhe, do jeito que Millicent sempre faz. Primeiro, o
medicamento. Lindsay, e agora Naomi, precisava estar inconsciente para que
pudéssemos levá-la para um lugar afastado. Acontece que clorofórmio não é
essa droga milagrosa que derruba qualquer um como os filmes fazem parecer.
Nossa pesquisa nos levou a alguns lugares sombrios e assustadores da internet,
onde tudo está à disposição por um preço. Uma criptomoeda, um e-mail
anônimo e uma caixa postal particular podem comprar qualquer coisa,
incluindo um tranquilizante forte e rápido o suficiente para derrubar um
dinossauro.
Como tínhamos que derrubar apenas uma mulher de sessenta quilos, não
precisávamos de muito.
Millicent comprou um notebook cuja existência só nós dois sabíamos. Nós o
usávamos para pesquisar os medicamentos. E também para encontrar Lindsay.
E Petra.
E Naomi.
Na sexta à noite, pegamos Naomi juntos. Exatamente como fizemos com
Lindsay.
No estacionamento atrás do hotel, Millicent acenou para Naomi quando a
nossa recepcionista estava indo embora de carro. Elas estavam fora do raio das
câmeras de segurança. Eu observei enquanto Millicent se inclinava perto da
janela do motorista, falando rápido como se precisasse de ajuda porque seu
carro estava com problemas. Então vi o derradeiro movimento do seu braço ao
injetar Naomi com a droga. Millicent empurrou o corpo de Naomi para o lado
ao assumir o banco do motorista e saiu dirigindo.
Eu acompanhei a cena de longe, sorrindo. Depois de tanta procura,
planejamento e conversa, adorei presenciar uma execução tão perfeita.

Nós nos separamos no bosque. Eu peguei o carro de Naomi e me livrei dele


enquanto Millicent saiu dirigindo o meu automóvel com a nossa vítima ainda
inconsciente. Quando cheguei ao carro de Millicent, estacionado a uma quadra
do Lancaster, voltando depois para casa, já era mais de meia-noite. Em Hidden
Oaks, as luzes das varandas estavam todas acesas, incluindo a luz da nossa
entrada.
As crianças continuavam acordadas. Estavam fazendo exatamente o que eu
teria feito na idade delas: assistir filmes de terror. Os dois acamparam na sala
de estar com seus telefones, tablets e uma pilha de porcarias para comer. Eu me
juntei a eles.
Eles achavam que eu estava lá fora patrulhando a vizinhança, ajudando a
proteger Hidden Oaks de Owen Oliver. Temos segurança particular na região,
mas, na noite passada, um grupo de moradores decidiu ajudar na vigia. Eu
obviamente não era um deles.
Meus filhos já sabiam que Millicent só voltaria para casa de manhã. Falamos
para elas que minha esposa ficaria com um grupo de amigas porque elas
estavam com medo e resolveram se juntar. Nenhum dos dois se importou. Não
sei se Owen Oliver é real para eles. Ele é o bicho-papão na tevê, o psicopata
dos filmes. Não passa pela cabeça deles que qualquer mulher — uma
professora, uma vizinha ou mesmo a própria mãe — possa estar em risco.
Meus sentimentos em relação a isso são conflituosos. Quero que meus filhos se
sintam seguros. Também quero que eles saibam o quanto o mundo é perigoso.
Ainda deitado na cama, começo a pensar sobre o lugar para onde Millicent
levou Naomi, e também no que acontecerá com ela. No que já pode estar
acontecendo. Para me conter um pouco, eu me levanto e ligo a tevê. Canal de
esportes. Enquanto ouço os resultados do beisebol de ontem, faço café. O
jornal bate contra a porta da frente, e eu o deixo por lá mesmo. Na sequência,
bebo meu café e assisto desenhos até as crianças acordarem. Desligo a tevê
antes delas descerem. Rory é o primeiro a ir para a cozinha. Ele pega o controle
remoto e põe nas notícias.
— E aí, quem foi que levou a marretada? — ele tira uma tigela do armário e
a enche de cereal.
— Acho que você podia usar umas palavras mais bonitas, hein?
Ele revira os olhos. — Tá bom, quem é que foi assassinada?
Jenna aparece na soleira da porta. Ela olha para Rory e depois para mim. —
Aconteceu? Owen voltou?
Rory aumenta o volume da tevê. Não é Josh no comando da reportagem. É
uma jovem loira que parece se encaixar muito bem no perfil preferido de
Owen.
— A polícia nos informou que por enquanto não temos nenhuma novidade
oficial. Considerando a preocupação da noite passada, foram recebidas muitas
ligações sobre mulheres que não atenderam seus telefones ou que não
contataram seus familiares. Não sabemos se alguma dessas mulheres está de
fato desaparecida, e a polícia levará um tempo até esclarecer toda essa
situação...
— A polícia é idiota — Rory diz. Ele se vira para Jenna e cutuca o braço
dela. — Que nem você.
Ela revira os olhos. — E eu com isso?
Eles param de falar em Owen. Não ouço o nome dele até estarmos no carro,
a caminho do jogo de futebol de Jenna. Durante um intervalo entre as músicas,
o locutor diz que a polícia recebeu mais de mil ligações de pessoas alegando
terem visto Owen Oliver na noite de sexta-feira.
Millicent ainda não deu sinal de vida, então eu minto para as crianças
dizendo que ela está em um brunch com as amigas. E na verdade nem parecem
se importar.
No jogo, começo a olhar meu telefone com mais frequência.
Alguns pais falam sobre as notícias, especulando sobre Owen e a tal carta da
sexta-feira 13 e todo mundo se perguntando se essa história não é só uma farsa.
Um dos pais diz que só pode ser fraude, mas as mulheres não têm lá tanta
certeza. Quando ele ri, uma mãe pergunta o que ele acha de tão engraçado em
dizer que uma mulher seria assassinada na sexta-feira 13.
Eu olho meu telefone. Nada ainda.
O time de Jenna está ganhando de um a zero. Faço sinal de positivo com o
polegar para ela. Ela sorri e revira os olhos ao mesmo tempo. Termino me
questionando se o sinal de positivo com o polegar não é uma coisa de velho.
Então eu a vejo. Ela está atrás de Jenna, perto do estacionamento, e caminha
ao redor do campo. Seus cabelos ruivos estão soltos, dançando enquanto ela se
move. Ela usa jeans, tênis e uma camiseta com a estampa de um leão, o
mascote da escola. Ela sempre tenta ficar parecida com as outras mães da
torcida, mas nunca consegue. Millicent sempre se destaca.
Chegando mais perto, ela sorri. É um sorriso grande e largo que se abre até
os cantos dos seus olhos. O alívio corre nas minhas veias. Somente agora eu
percebo como estava nervoso. Que bobo. Já devia saber que não tenho motivos
para duvidar de Millicent.
Eu estendo minha mão para ela. Ela desliza o braço ao redor da minha
cintura e se inclina para me beijar. Seus lábios estão quentes, e seu hálito tem
cheiro de canela e café.
— Como Jenna está? — Millicent pergunta, virando-se para o campo. Não
consigo parar de olhar para ela.
— Ganhando de um a zero.
— Perfeito.
Ela se afasta de mim e dá oi para alguns dos outros pais. Conversam sobre o
jogo, sobre o lindo dia e, ocasionalmente, sobre Owen.
Quando o jogo termina, tenho que trabalhar. É o sábado de Millicent levar as
crianças para almoçar, e temos apenas um breve momento para nós dois no
estacionamento. As crianças estão no carro, com os cintos afivelados e
discutindo como sempre. Ficamos em pé entre nossos carros.
— Está tudo bem?
— Tudo perfeito — ela diz. — Nenhum problema.
Cada um segue seu caminho e, ao dirigir para o clube, eu me sinto mais do
que feliz. Nas nuvens, talvez. Como se estivesse flutuando.

No clube, tenho uma rara aula ao sábado com Kekona, nossa fofoqueira oficial
de Hidden Oaks. Acho que ela marcou nessa data porque quer falar sobre
Owen, sobre o que pode ter acontecido na noite anterior, e nossa aula confirma
minha suspeita. Owen é o único assunto do dia.
— Cinquenta e três mulheres. O jornal disse que cinquenta e três mulheres
foram dadas como desaparecidas entre ontem à noite e hoje de manhã — ela
balança a cabeça. Os longos cabelos negros de Kekona estão enrolados num
coque na altura da nuca.
— Owen não sequestrou cinquenta e três mulheres ontem à noite — eu digo.
— Não, não sequestrou. Pode não ter sequestrado ninguém. Mas cinquenta e
três famílias acham que ele sequestrou.
Eu concordo com a cabeça, absorvendo suas palavras, processando toda essa
dor alheia na minha mente. Eu me sinto distante, como se essa loucura não
tivesse nada a ver comigo.
Vinte e seis
Deixamos que as pessoas descubram por elas mesmas o que aconteceu.
Quando o jornal começa, Millicent pisca para mim. Quando alguém menciona
Owen, lanço um olhar que só ela entende. É uma coisa nossa, a coisa que nos
separa de todos os outros.
A primeira vez que senti isso foi depois de Holly. Senti novamente depois de
Robin e, por fim, depois de Lindsay. Depois de cada mulher, Millicent e eu
temos esse momento no qual somos as únicas pessoas no planeta. A mesma
sensação de quando subimos naquela árvore. E é essa a sensação agora, depois
de Naomi.
Millicent e eu estamos totalmente acordados enquanto todos os outros estão
dormindo.

Na segunda-feira, a polícia reduziu a lista de desaparecidas a dois nomes.


Todas as outras foram encontradas ou voltaram para casa. Escuto a notícia no
carro a caminho do trabalho, e me surpreende. Não imaginava que levaria tanto
tempo para que eles descobrissem quem desapareceu. Eu quase tenho vontade
de mandar outra carta para Josh, para dizer a ele que foi Naomi.
Quase. Mas, quanto mais tempo eles gastarem tentando descobrir quem está
desaparecida, menos tempo vão gastar tentando encontrá-la. A polícia nem
sabe quem procurar.
Lá pela metade do dia, recebo uma ligação da diretora da escola. Isso é
estranho, porque a escola sempre liga primeiro para Millicent, mas a diretora
diz que minha esposa não está atendendo o telefone. Ela também me diz que
houve um incidente na escola e que eu preciso estar lá imediatamente.
Pergunto se foi Rory.
— É a sua filha — ela diz. — Tivemos um problema com Jenna.
Quando chego na escola, Jenna está sentada em um canto na sala da diretora.
Nell Granger está há uma eternidade na diretoria e não mudou nada. Parece
uma vovó querida que aperta as suas bochechas até machucá-las.
Jenna encarando o chão e sequer levanta a cabeça.
Nell gesticula para que eu me sente, e é o que faço. Então eu vejo a faca.
Lâmina de quinze centímetros, aço inoxidável. Cabo artesanal de madeira.
Veio da nossa cozinha, e agora está na mesa de Nell.
Nell toca sua unha pintada de rosa na faca. — Sua filha trouxe isso para a
escola hoje.
— Não entendi — eu digo. E não tenho muita certeza se quero entender.
— Uma professora viu na mochila dela quando ela abriu para pegar um
caderno.
Jenna se senta contra a parede, de frente para nós, mas sua cabeça segue
abaixada. Ela não diz nada.
— Por que você resolveu trazer isso pra escola? — eu pergunto.
Ela balança a cabeça. Continua em silêncio.
Nell se levanta e gesticula para que eu a acompanhe. Nós saímos da sala e
ela fecha a porta.
— Jenna não disse uma palavra — Nell diz. — Eu esperava que você, ou
então sua esposa, pudesse convencê-la a nos contar por que é que ela está com
essa faca.
— Eu mesmo gostaria de saber.
— Então isso não é algo que você...
— Jenna nunca foi violenta — eu digo. — Ela não é de mexer com facas.
— E mesmo assim... — Nell não termina a frase e, na verdade, nem precisa.
Eu volto para a sala sozinho. Jenna não parece ter se movido nem um mísero
centímetro. Eu puxo uma cadeira para perto dela e me sento.
— Jenna — eu digo.
Nada.
— Você pode me falar sobre essa faca?
Ela encolhe os ombros. É um começo.
— Você ia machucar alguém?
— Não.
Sua voz é forte, inabalável, e me deixa assustado.
— Certo — eu digo. — Se você não queria machucar ninguém, por que
trouxe uma faca para a escola?
Ela ergue o olhar. Seus olhos não parecem tão intensos quanto sua voz. —
Para me proteger.
— Alguém está fazendo bullying com você?
— Não.
Faço tudo o que posso para evitar agarrá-la pelos ombros e sacudir minha
filha até arrancar as respostas dela. — Jenna, me diga, por favor, o que
aconteceu. Alguém te ameaçou? Te machucou?
— Não. Eu só queria...
— Queria o quê?
— Eu só não queria que ele me machucasse.
— Ele quem?
Ela sussurra o nome dele: — Owen.
O soco em meu estômago é chocante. Doloroso. Nunca me ocorreu que
Jenna teria medo de Owen.
Coloco meus braços em volta dela. — Owen nunca vai te machucar. Nem
em um milhão de anos, um trilhão de anos.
Ela dá uma risadinha. — Você é burro.
— Eu sei. Mas não nesse ponto. Eu sei bem que Owen não vai te machucar.
Jenna recua e olha para mim, com os olhos não tão abertos agora. — Foi por
isso que eu trouxe a faca. Eu não ia machucar ninguém.
— Eu sei.
Ela espera do lado de fora enquanto eu falo com Nell, que concorda com a
cabeça e meio que sorri quando explico para ela o medo que Jenna sente de
Owen Oliver. Digo que ele tem aparecido no noticiário já há algumas semanas,
seu rosto está por toda parte na internet, na tevê e até nos cartazes em frente ao
supermercado. — Alguma coisa assim era provavelmente inevitável — eu
digo, apontando para a faca. — Agora, pensando melhor, isso não me
surpreende nem um pouco. A mídia não parou de falar de Owen desde que ele
voltou.
Nell ergue uma sobrancelha. — Você acha que ele voltou?
A sensação é como se eu tivesse treze anos de novo e estivesse coberto de
terra e de machucados, com um pouco de sangue no canto da boca. Minha
briga com Danny Turnbull tinha terminado muito bem, pelo menos do meu
ponto de vista, fora o fato de que fui mandado para a sala da coordenação.
Quando contei à diretora que Danny havia começado a briga, ela me deu o
mesmo olhar que Nell Granger está me dando agora.
— Não sei se ele voltou — eu digo. — Mas obviamente a minha filha acha
que sim.
— É o que ela diz.
— Você tem algum motivo para duvidar dela? Porque eu não tenho.
Nell balança a cabeça. — Não, motivo nenhum. Jenna sempre foi uma boa
menina — ela não diz “até agora”, mas não é preciso.
— Posso levá-la para casa agora?
— Pode. Mas vou ter que ficar com a faca.
Eu não discuto.
Jenna é dispensada pelo resto do dia, então nós almoçamos juntos. Vamos a
uma cadeia de restaurantes com um cardápio de dez páginas, que oferece desde
um café da manhã gorduroso a costelas com molho barbecue, passando por
todo tipo de mistura no meio. Já fomos centenas de vezes nesse restaurante, e
Jenna sempre pede um queijo quente com tomate ou um sanduíche de frango.
Hoje, ela pede uma salada com molho à parte, e não pede refrigerante, só uma
água.
Quando eu pergunto se ela está bem, Jenna diz que sim.
Quero falar com Millicent. Quero contar a ela sobre nossa filha. Mas minha
esposa ainda não está atendendo o telefone.
Ela deve estar com Naomi. Elas provavelmente estão em um quarto
subterrâneo ou em algum lugar com paredes de concreto, igual a como
acontece nos filmes, e é por isso que ela não atende o telefone. Ele não toca no
subsolo dos prédios.
Ou talvez ela só esteja ocupada.
Mando uma mensagem, dizendo que está tudo bem, ainda que eu não tenha
certeza disso. Depois de enviar, ouço o som familiar do plantão de notícias.
Do outro lado da nossa mesa, há uma copa com múltiplos televisores, e
Naomi me encara em todas elas. Ela parece transcender a vida naquelas telas
gigantes. Uma legenda na parte de baixo da imagem diz:
MULHER DA REGIÃO SEGUE DESAPARECIDA
— Foi ela, não foi? — Jenna também está olhando para as telas. — Foi ela
que Owen pegou.
— Eles ainda não sabem — eu digo.
— Ela vai morrer, não vai?
Eu não respondo. Por dentro, estou sorrindo. Pelo menos uma parte de mim
está.
A outra parte está preocupada com Jenna.
Vinte e sete
Naomi. Naomi com o cabelo solto, com o cabelo preso, sem maquiagem, com
os lábios pintados de rosa-choque. Naomi com seu uniforme de trabalho, com
jeans, com um vestidinho verde de madrinha de casamento. Naomi virou uma
figura onipresente, ela está em todos os canais, na internet inteira e também na
boca de todo mundo. Dentro de poucas horas, suas três amigas se
multiplicaram. De repente, todos a conhecem e ficam mais do que contentes
em contar aos repórteres tudo que eles sabem sobre a sua querida amiga
Naomi.
Estamos em casa na noite de segunda-feira, e a tevê está ligada. Millicent
está aqui. Ela dá apenas uma vaga explicação para seu sumiço à tarde. Em
troca, dou a ela uma vaga explicação do que aconteceu na escola de Jenna.
Faço parecer bem menos alarmante do que foi.
— Basicamente, foi um grande mal-entendido — eu digo.
Millicent encolhe os ombros. — Tem certeza?
— Tenho.
O jornal está no ar. Jenna está obcecada, mas Rory vai seguir entediado a
menos que alguém traga novas informações. Ele a manda mudar de canal. Ela
se recusa.
Não imaginei o quanto Owen Oliver afetaria os nossos filhos. Holly e Robin
nunca tiveram esse tipo de cobertura da mídia. Agora, estão falando há
semanas sobre Owen. Jenna talvez continue falando de Naomi por toda a
eternidade.
Esse revés faz com que os bons sentimentos que eu tinha comecem a
desaparecer.
Saio para o quintal. Em um canto, temos um grande carvalho. O antigo
playground das crianças fica no outro lado. E está se decompondo há anos. Até
me esqueci que ele estava aqui, mas agora só consigo ver o quanto ele está
desgastado, o quanto o plástico está quebradiço e o quanto ele deve ser
perigoso. Volto para casa, entro na garagem e pego minha caixa de ferramentas.
É importante, talvez até crucial, que eu desmonte o troço e me livre dele antes
que alguém se machuque.
Os parafusos continuam bem apertados, ainda que sejam apenas grandes
pedaços de plástico à prova de crianças. Quebro um deles com um martelo.
— O que você está fazendo?
A voz de Millicent não me assusta. Na verdade, eu estava esperando por ela.
— O que parece?
— Parece que você pode deixar isso para depois.
— Mas eu quero fazer agora — não posso ouvi-la suspirar, mas sei que ela
está fazendo isso. Ela fica parada atrás de mim e me vê quebrar outro parafuso
de plástico. — Vai ficar me olhando a noite inteira? — eu pergunto.
Ela volta para dentro de casa. A porta de deslizar é fechada com força.
Menos de uma hora depois, estou suado de tanto trabalhar e acumulei uma
pilha de plástico. Saio do quintal com uma aparência pior do que antes.
Ninguém na sala. Eu escuto os barulhos do andar de cima: alguém está no
banheiro, e outra pessoa anda pelo corredor. Sento na frente da tevê. Uma
comédia meia-boca está no ar, e a família da série é muito parecida com a
minha, com um casal e dois filhos, mas eles são muito mais divertidos do que a
gente. Os problemas deles não envolvem uma filha de treze anos levando facas
para a escola ou um filho chantageando os pais.
Durante o intervalo comercial, exibem uma prévia do jornal, e eu troco de
canal para colocar em outro programa, aí mudo de novo, e fico fazendo isso até
Millicent entrar na sala e tirar o controle remoto da minha mão. Ela se inclina e
sussurra no meu ouvido.
— Levanta essa bunda daí. Agora — ela atira o controle remoto do outro
lado do sofá e sai da sala.

Pode até parecer que nunca tenho coragem de enfrentar Millicent, mas isso não
é verdade. Não acontece com frequência, mas também não é um fenômeno
inédito. Aconteceu uma vez pelo menos, e eu me lembro muito bem. Não dava
para simplesmente baixar a cabeça naquela disputa.
Rory tinha seis anos, Jenna tinha cinco e Millicent e eu não tínhamos tempo
nem para respirar. Eu acumulava dois empregos. Além de dar aulas de tênis,
trabalhava em uma academia. Millicent tentava vender imóveis. As crianças
estavam matriculadas em duas escolas diferentes — no jardim de infância e na
primeira série — e sempre estávamos levando ou buscando uma delas.
Tínhamos dois carros, mas parecia que um estava sempre no conserto. Mesmo
assim, conseguíamos garantir a comida, um teto e dinheiro suficiente para as
necessidades. Todo o resto era só uma encheção de saco.
Certo dia, a sorte bateu na nossa porta. Uma coisa meio estranha e
inesperada. Havia uma ação coletiva contra um antigo patrão, de um emprego
que eu tive quando ainda estava na escola, deu ganho de causa para nosso
grupo depois de mais de dez anos de litígio. Bom, talvez não fosse tanta gente
assim no processo, ou talvez os advogados fossem melhores do que a média,
mas minha indenização era de dez mil dólares. Eu nunca tinha recebido tanto
dinheiro de uma vez só.
Millicent e eu nos sentamos à mesa da cozinha e ficamos olhando para o
cheque. As crianças estavam na cama, a casa estava em silêncio e, por um
momento, sonhamos com todas as coisas que poderíamos pagar com aquele
dinheiro. Uma semana no Havaí ou um mês nas montanhas. Uma viagem à
Europa. O anel de noivado que Millicent merecia ganhar. Tomamos uma taça
de vinho, e nossos sonhos se tornaram mais ridículos. Roupas de alfaiate. Um
sistema de som na sala. Luxuosas rodas cromadas para nossos dois carros
velhos. Dez mil dólares não era nenhuma fortuna, mas fingíamos que era.
— Agora, sério — ela disse, terminando o que restava do vinho. — A
faculdade das crianças.
— Muito prudente.
— Temos que ser.
Ela tinha razão. A faculdade era cara, e não custava nada economizar.
Exceto pelo fato de que, sim, custava muito. Custava nossa energia e o nosso
futuro, um futuro que poderia tornar tudo mais leve para todo mundo. — Tenho
uma ideia melhor — eu disse.
— Melhor que a educação dos nossos filhos?
— Escuta essa.
Sugeri que usássemos o dinheiro para investir em nós dois. No acumulado
de casamento e dois filhos, nossa situação econômica não tinha melhorado
muito. Nem nossas carreiras. Millicent estava estagnada vendendo
apartamentos em condomínios e casas baratas. Os corretores com mais
experiência pegavam todas as vendas de alto padrão. Minhas aulas de tênis
eram dadas em quadras públicas no parque, e os clientes não eram lá muito
regulares. Eu propus que nós fizéssemos algo para resolver aquele marasmo.
No início, soou como um dos nossos sonhos ridículos. A festa de Natal do
Hidden Oaks Country Club custava dois mil e quinhentos dólares por pessoa.
Mas a festa não era apenas uma celebração qualquer, era um portal para
endinheirados que não conheceríamos em nenhum outro lugar. Uma nova
geração morava em Hidden Oaks. A maioria deles nunca conheceu meus pais e
tampouco a mim. E eles eram as pessoas que podiam pagar por aulas
particulares de tênis e casas caras. Essas pessoas é que pagariam pela educação
dos nossos filhos.
— Que loucura — Millicent disse.
— Você não está me ouvindo.
— Não estou mesmo — ela descartou a minha ideia abanando a mão.
A arrogância dela me fez bater o pé.
Brigamos por uma semana. Ela me chamou de criança, e eu disse que ela
não pensava grande. Ela me chamou de alpinista social e eu disse que ela não
tinha imaginação. Ela parou de falar comigo, e eu dormi no sofá. Mesmo
assim, eu não desisti. Ela desistiu.
Millicent alegou estar cansada daquela briga idiota. Eu acho que ela ficou
curiosa. Acho que ela queria me testar.
Gastamos a metade do dinheiro com os ingressos e então compramos um
vestido e sapatos novos para ela, um smoking e um par de sapatos para mim, e
alugamos um carro de luxo para aquela noite. Millicent também foi no salão e
fez um penteado, as unhas e a maquiagem. Quase não sobrou dinheiro para
pagarmos a babá.
Valeu cada centavo. Seis meses depois, me ofereceram um emprego como o
profissional de tênis do clube. Millicent conheceu seus primeiros clientes ricos
na festa e começou a subir no mundo dos imóveis. Em uma noite, pulamos pelo
menos cinco anos de batalha para chegar ao topo. Foi como automaticamente
passar de fase em um videogame.
Nós não somos ricos, não como nossos clientes, mas naquela noite
chegamos um pouco mais perto.
E até hoje Millicent sabe que foi por minha causa. Porque eu decidi o que
fazer com o dinheiro. Eu faço questão de lembrá-la disso todos os anos quando
nos arrumamos para a festa anual, ainda que, para ser sincero, ela não pareça se
importar muito com essa minha pequena vitória.
Vinte e oito
No começo, foi impressionante ver Rory descobrir uma maneira de me
chantagear. Eu reconheço. Fiquei mais irritado comigo mesmo por ter sido
pego do que com ele por me pegar.
Mas agora ele está começando a encher meu saco.
Estou no quarto dele. Ele está sentado à sua mesa. O computador está ligado,
e Naomi está olhando para mim. Quarenta e oito horas se passaram desde que
ela foi identificada como a única mulher desaparecida na região. Seu rosto está
em todo lugar, no noticiário e nas redes sociais.
— Por que você está olhando esse negócio? — pergunto, gesticulando para o
seu computador.
— Você está mudando de assunto.
Ele tem razão. Estou evitando o fato de que ele acabou de me pedir cem
dólares para ficar de boca fechada sobre a minha suposta amante. Ou minha
transa casual, por assim dizer, porque, né, eu realmente dormi com Petra.
— Até quando você vai fazer isso? — eu pergunto.
— Até quando você vai? Eu vi você sair escondido ainda na semana
passada.
É impossível pensar em Rory como uma criança quando ele fala assim.
Apesar do seu cabelo desarrumado e de suas roupas folgadas, ele não parece ter
quatorze anos. Ele parece uma cópia minha.
— Vou fazer um trato com você — eu digo. — Eu te dou o dinheiro, e nós
dois paramos. Você nunca mais vai me ver sair escondido.
— E se você sair?
— Se eu sair de novo, eu te pago o dobro.
A cara de jogador de pôquer de Rory se desmancha quando as suas
sobrancelhas disparam para o alto. Ele tenta disfarçar a sua surpresa coçando o
queixo, fingindo considerar minha oferta. — Vou ficar de olho — ele diz.
— Eu sei.
Ele se mexe na cadeira, pensa, e então recusa a proposta: — Tenho outra
ideia.
Já estou sacudindo a minha cabeça para ele, irritado. Antes eu estava no
limite e agora passei dele. — Eu não vou te dar mais...
— Eu não quero dinheiro.
— O que é então?
— Da próxima vez que você sair escondido, não quero dinheiro. Não quero
nada — ele diz. — Mas eu vou contar para Jenna.
— Você vai mesmo contar para a sua irmã?
Ele suspira. Não é um suspiro de velho, aquele suspiro cheio de cansaço e
impaciência. É o suspiro de uma criança, do tipo que vem acompanhado de
lábios trêmulos. — Para com isso, pai — ele diz. — Para de trair a minha mãe.
Agora sou eu quem está surpreso. O impacto brutal do que ele falou se
espalha por mim um centímetro de cada vez até eu conseguir enxergar todo o
cenário ao meu redor.
Ele é uma criança. A vida adulta ainda está a anos de distância, e ele não está
nem perto dela. Neste momento, na verdade, ele se parece mais jovem do que
nunca. Parece mais jovem do que na primeira vez em que eu menti para ele,
mais jovem do que na noite da segunda e da terceira mentira. Parece mais
jovem que no dia em que eu o ensinei a segurar uma raquete de tênis e mais
jovem do que no dia em que ele a rejeitou e escolheu o golfe. Rory parece mais
jovem do que ontem. Ele ainda é só um garotinho.
Nunca foi por causa do dinheiro ou dos jogos de videogame ou mesmo pela
adrenalina da chantagem.
Foi por causa do que ele pensa que eu estou fazendo. Ele acha que estou
saindo às escondidas para trair a mãe dele. E ele quer que eu pare.
Quando percebo sua angústia, parece que tomei um tiro de espingarda na
barriga.
Ou pelo menos é como eu imagino que deve ser. É muito mais forte do que
um soco. Nem sei o que dizer ou como dizer.
Eu concordo e estendo a minha mão para ele.
Nós fechamos o negócio.

Eu escondo toda essa armação de Millicent, exatamente como eu já estava


fazendo. Também não conto a ela que Rory está lendo sobre Naomi na internet.
Tanto faz, na verdade, hoje em dia as crianças têm acesso a toda e qualquer
informação. Está em todo lugar.
Josh ainda está cobrindo o caso e aparece na tevê o dia inteiro, tanto no
plantão de notícias quanto no telejornal da noite. Ele ainda é bastante jovem e
determinado, mas ele agora parece estar cansado e precisa de um corte de
cabelo.
Nos últimos dois dias, ele rodou de um lado para outro com a polícia
enquanto verificavam as áreas de descanso na beira das estradas. Era onde
Owen costumava manter suas vítimas, em alguma área de descanso
abandonada, onde ele então abria buracos na edificação e transformava o lugar
em um inferno. A polícia está fazendo uma busca em todas elas, assim como
está vasculhando qualquer construção que possa servir de esconderijo. Não
encontraram coisa alguma.
Hoje à noite, Josh está em uma estrada deserta, com uma frota de viaturas da
polícia atrás dele. Ele está soterrado em uma jaqueta e um boné, o que o faz
parecer ainda mais jovem, e diz que a polícia está verificando mais um possível
cativeiro. Eles vêm realizando buscas cada vez mais distantes, chegando até às
proximidades do Parque Estadual Goethe.
É porque Naomi ainda está viva.
Josh não diz isso. A polícia também não diz. Mas todo mundo sabe que, se
Owen ainda está vivo, Naomi também está. Ele sempre prolonga o sofrimento
das vítimas e faz coisas terríveis com elas. Coisas sobre as quais ninguém fala
na tevê. Coisas sobre as quais eu não quero nem pensar, porque é o que
Millicent está fazendo agora.
Quer dizer, suponho que ela esteja fazendo. Acredito que Naomi ainda esteja
viva, embora eu não tenha perguntado nem tenha ideia de onde Millicent
escondeu nossa recepcionista. As buscas policiais só aumentam minha
curiosidade.
Na manhã seguinte, quando estou dando ré em frente à garagem, Millicent
sai de casa. Ela ergue a mão, me mandando parar. Vejo minha esposa caminhar
até a porta do meu carro. Ela está usando calças justas e uma blusa branca com
bolinhas.
Millicent se inclina na janela. Seu rosto está tão perto do meu que posso ver
as pequenas linhas nos cantos dos seus olhos — ainda não são rugas
propriamente ditas, mas estão chegando lá. Quando ela põe a mão na beirada
da porta, vejo arranhões no seu antebraço. Como se ela tivesse se enroscado
com um gato.
Ela vê que estou olhando e abaixa a manga. Observo os olhos dela. No sol
da manhã, eles quase parecem como costumavam ser.
— O que foi? — eu digo.
Ela põe a mão no bolso e tira um envelope branco.
— Achei que isso poderia ser útil.
O envelope está lacrado. — O que é isso?
Ela pisca. — Para a sua próxima carta.
Esse pequeno gesto me anima. Eu não escrevo cartas, mas Owen escreve.
— Com isso aí eles vão se convencer — Millicent diz.
— Você é quem manda, meu amor.
Ela põe a mão no meu rosto e o toca com o polegar. Acho que ela vai me
beijar, mas não beija, não aqui fora, na entrada da garagem, onde o vizinho
pode nos ver. Em vez disso, ela volta para dentro com a mesma naturalidade de
antes, como se tivesse acabado de me lembrar para comprar leite no caminho.
Eu passo o meu dedo pela dobra do envelope e abro o cantinho.
Dentro, uma mecha do cabelo de Naomi.
Vinte e nove
Apesar da ideia de Millicent, não consigo decidir o que fazer a respeito da
mecha de cabelo. Passo o tempo inteiro me perguntando se uma carta iria
melhorar ou piorar a situação. Embora Jenna não esteja mais carregando uma
faca na mochila, até onde eu sei pelo menos, ela também não está comendo
muito. Ela escolhe a comida e fica remexendo o pirê no seu prato. Não fala
quase nada durante o jantar. Não ouvimos mais os melhores momentos dos
seus treinos de futebol ou as fofocas da escola.
Não gosto disso. Quero a minha Jenna de volta, a que sorri para mim, a que
me pede algo só para que eu possa dizer sim para ela. A única coisa que Jenna
me pede agora é licença para deixar a mesa.
Se eu enviar uma carta para Josh, confirmando que Naomi é a vítima de
Owen, a busca apenas vai se intensificar. A polícia irá vasculhar todas as
construções num raio de incontáveis quilômetros na esperança de localizá-la, e
a mídia vai acompanhar cada momento desse circo.
Mas talvez seja pior não enviar a carta. Talvez seja pior deixar todo mundo
se perguntando se Owen está ou não com Naomi, talvez para sempre. Porque,
se for assim, Jenna vai saber que o desaparecimento de uma pessoa pode nunca
ser solucionado. É a maior verdade, mas talvez ela não precise receber essa
bomba na cara. Não agora, pelo menos.
Mais uma vez, Millicent está certa. A mecha de cabelo é útil.
Faço vários rascunhos para a carta. O primeiro é elaborado demais. O
segundo ainda está muito longo. O terceiro não passa de um mero parágrafo.
Então percebo que Owen não precisa dizer nada.
O cabelo vai dizer o suficiente.
Eles vão fazer o exame de DNA e vão descobrir que pertence a Naomi. Eu
só preciso embrulhar o cabelo em uma folha de papel e assinar embaixo:
— Owen
O toque final é o perfume barato.
Eu largo a mecha em cima da minha carta. Cinquenta fios, cem — não sei
quantos são, mas os fios têm alguns centímetros de comprimento. Numa ponta,
o cabelo está esfiapado, com pequenas diferenças de tamanho. A outra ponta
foi cortada em uma linha tão reta que eu quase posso ouvir o estalo da tesoura.
Não me permito pensar nem um segundo a mais no assunto. Não quero
imaginar a expressão de Naomi quando a tesoura apareceu na sua frente, não
quero imaginar o alívio que ela sentiu quando só o seu cabelo foi cortado.
Em vez disso, dobro o papel em volta do cabelo, coloco o embrulho em um
novo envelope e uso uma esponja para lacrar a aba. Só tiro minhas luvas depois
que a carta já está na caixa do correio.
Assim que eu a deposito lá dentro, sinto um pico de adrenalina no corpo.

O trabalho deveria ser uma válvula de escape, mas não é. Todos estão falando
sobre Naomi, sobre Owen, sobre o lugar em que ela pode estar e se algum dia
ela será encontrada. Kekona está no salão do clube. Ela não tem aula, mas está
lá de qualquer jeito, fofocando com um grupo de mulheres no qual todas têm
idade suficiente para ser a mãe de Naomi. Os homens sentados no bar olham
para a tevê, olham para a bonita mulher desaparecida que eles adorariam ter
conhecido. Ninguém fala nada sobre as atividades de Naomi no Lancaster. Ela
se tornou a filha, a irmã, a saudosa vizinha.
É assustador como isso aconteceu tão rápido.
As outras não foram assim, principalmente Holly. Ninguém jamais a
procurou, porque ninguém nunca comunicou o seu desaparecimento.
Millicent e eu tomamos aquela decisão juntos. Nunca discutimos o que fazer
depois da morte de Holly, nunca nem me passou pela cabeça. Eu estava
ocupado demais pensando em um jeito de não ser descoberto para ainda ter que
imaginar o que aconteceria depois. Dias mais tarde, a mãe de Millicent ligou.
Seu Alzheimer ainda não havia alcançado o estágio no qual ela esquecia
quantas filhas tinha. Nunca contamos a ela da liberação de Holly, mas ela sabia
mesmo assim. Ela tinha telefonado para o hospital.
Naquela noite, tivemos a nossa primeira noite romântica. Nunca tínhamos
feito uma antes. Costumávamos fazer piada do termo, até ele se tornar útil.
Quando contei a Millicent que sua mãe havia ligado, a expressão no seu
rosto não mudou. O jantar mal tinha acabado, as crianças assistiam televisão e
nós ainda estávamos na mesa. Hambúrgueres vegetarianos com tomate e queijo
orgânico, batata-doce frita e salada. Eu ainda estava comendo as batatas,
mergulhando os pedacinhos na pseudomaionese condimentada.
— Achei que isso ia acontecer — ela disse.
Eu olhei de relance para trás, para ter certeza de que as crianças não estavam
ali. Naqueles dias, eu me assustava com a minha própria sombra. Não estava
acostumado a infringir a lei, muito menos a matar uma pessoa. Portanto, cada
barulhinho significava que nós seríamos presos. A sensação era de que eu
envelhecia um ano a cada dia.
— Não devíamos falar sobre isso aqui — eu disse.
— Claro. Mais tarde, quando as crianças estiverem dormindo.
Até isso me deixava nervoso.
— Devíamos ir lá fora. Ou na garagem. Podemos ficar sentados no carro ou
algo assim.
— Perfeito.
Nossa primeira noite romântica aconteceu depois que Rory, com onze anos,
e Jenna, com dez, subiram para dormir. Millicent deixou a porta de casa
entreaberta, só para o caso deles precisarem da gente.
Imaginei que contaríamos à mãe dela que não tínhamos visto Holly. Eu
estava errado.
— Não podemos dizer que ela está desaparecida — Millicent disse. — Eles
vão procurar por ela.
— Mas ela não vai encontrar...
— Não, não vai. Mas vai procurar sem parar até não conseguir mais se
lembrar de que está procurando.
— Então vamos mentir para a sua mãe? Falamos para ela que Holly está
aqui e que está tudo bem?
Ela balançou a cabeça para os lados. Millicent encarava o painel do carro,
perdida nos seus pensamentos. Finalmente, ela disse: — Não tem outro jeito.
Eu esperei calado, com medo de parecer idiota outra vez.
Quando Millicent disse que queria fingir que Holly ainda estava viva, eu me
lembro de pensar o quão inviável era essa ideia. Depois de tudo que fizemos, e
depois de termos aparentemente nos livrado de todos os perigos, este seria o
erro que iria nos arruinar. Não tínhamos avaliado essa saída com o cuidado
necessário. Nunca tínhamos sequer discutido o assunto.
— Não vai funcionar — eu disse. — Mais cedo ou mais tarde, sua mãe vai
querer falar com ela, vai querer ver sua irmã. Eles vão vir aqui ou então vão
tentar entrar em contato com ela — eu divaguei, listando todas as razões pelas
quais aquela ideia não iria dar certo. Não podíamos ser as únicas pessoas com
quem Holly fez contato depois de deixar o hospital.
— Eu acho que Holly quer fugir — Millicent disse. — Provavelmente por
minha causa, porque eu lembro a ela do que ela fez e do motivo dela ter sido
internada.
Comecei a entender. — Se fosse eu, e se eu quisesse começar do zero, talvez
eu até saísse do país.
— Eu com certeza sairia do país — ela disse.
— Você mandaria um e-mail para a sua mãe?
— Uma carta. Comprida, para que a minha mãe saiba que eu estou bem, que
eu só preciso de um tempo para resolver tudo.
Ela enviou a carta quase uma semana depois de Holly morrer. Holly contou
para a mãe que ia para a Europa se tratar, que ia em busca do seu novo eu, ia
trilhar seu próprio caminho no mundo, mas que ia manter contato
regularmente. Sua mãe respondeu, dizendo que compreendia. Holly até
mandou uma foto junto. Veio do meu telefone, de quando eu tirei uma foto de
Holly na frente do colégio das crianças. Essa carta fechou seu ciclo de vida
com louvor no dia em que a mãe delas mostrou o envelope para Millicent
durante uma visita.
Quando minha sogra faleceu, ela não se lembrava mais de filha nenhuma.
Trinta
Eu vejo a reportagem primeiro no celular, quando estou no meu carro em frente
a uma cafeteria. Estou entre minha casa e o trabalho, voltando para o clube
após buscar as crianças na escola, e parei para pegar um café. A notificação das
notícias de última hora soa no telefone.

OWEN FAZ CONTATO NOVAMENTE


No vídeo, Josh fala sobre a última carta de Owen. Pela primeira vez desde o
estouro das investigações, ele não parece cansado. Está parado em frente à
delegacia de polícia. Suas bochechas estão rosadas, e seus olhos estão
arregalados por causa do seu entusiasmo, e não por causa da cafeína. Depois de
passar uma semana acompanhando a polícia durante a revista de galpões
abandonados e áreas de descanso vazias, ele parece mesmo um novo homem.
Uma foto da carta aparece por um instante na tela. O nome de Owen é
claramente visível.
— Este bilhete não é a única coisa que recebi do homem que alega ser Owen
Oliver Riley. Enrolada nesta folha de papel, havia uma mecha de cabelo. Não
sabemos a quem pertence, por enquanto. Não sabemos nem mesmo se o cabelo
é de um homem ou de uma mulher. Os testes de DNA estão sendo realizados
pelas autoridades neste exato momento, mas, assim que tivermos qualquer
novidade, vocês vão ser os primeiros a saber.
Josh então nos apresenta uma mulher jovem que diz ser amiga de Naomi,
embora ele reforce o lembrete de que nós na verdade não sabemos o que
aconteceu com a recepcionista. A amiga não me parece familiar. Não me
lembro de vê-la com Naomi nem na vida real nem na internet. Essa mulher tem
uma voz nasalada que me desespera, e a sensação é de que estou trancado
dentro do carro com ela. Ela diz que Naomi é “querida, mas não melosa, é uma
grande amiga, mas também é independente, é esperta, mas não é uma
sabichona”, e eu não faço ideia do que isso significa.
Ela sai do quadro. A câmera volta para Josh e depois recua. Um homem está
em pé ao seu lado. É um homem grande, com um bigode que o deixa parecido
com uma morsa. Josh diz que ele é o gerente adjunto no Lancaster e trabalhou
com Naomi. Josh não pede para que ele defina Naomi em uma única palavra,
mas ele define.
— Se eu tivesse que definir Naomi em uma palavra só, essa palavra seria
“gentil”. Ela era gentil com todo mundo, com todos os hóspedes e com todos
os colegas de trabalho. Ela estava sempre disposta a ajudar. Se um hóspede
precisava de alguma coisa no quarto e o serviço de quarto estava ocupado, ela
se oferecia para ajudar. Se alguém ficava doente, ela cobria. Nunca pedia
nada. Nunca pediu nada para mim, pelo menos. Não posso falar pelos outros.
Uma batida na janela do meu carro me faz dar um pulo.
Trista.
Eu a vejo, e também seu reflexo no vidro. Na última vez que a vi, ela estava
drogada e quase entrando em coma. Como eu prometi, nunca contei nada para
Andy.
Trista está sorrindo, gesticulando para que eu abaixe o vidro. Quando
abaixo, ela se inclina para me beijar na bochecha. Seu batom cor de pêssego é
um tanto quanto grudento.
— Olha só, olá — eu digo.
Ela ri. A risada a faz parecer mais jovem, assim como essa viseira com
estampa de margaridas na sua cabeça. — Desculpa, estou de bom humor.
— Dá para ver — saio do carro e olho para ela. Os olhos de Trista estão
claros, as pupilas não estão grandes nem pequenas demais. Sua pele está com
um leve tom rosado, como se ela tivesse passado o dia anterior na praia. —
Você está ótima.
— Eu sou ótima.
O alívio vem à tona, fazendo com que eu perceba o quão estressado fiquei
por causa dela.
— Que bom saber disso. Eu estava preocupado com você.
— Eu larguei o Andy — ela diz.
— Largou onde? — olho atrás dela, achando que ele está na cafeteria. Não
estou brincando.
— Não, eu quis dizer que nós não estamos mais juntos.
Não consigo esconder o espanto. Andy e Trista se casaram pouco tempo
depois de Millicent e eu. Nós fomos ao casamento deles. Nenhum dos dois
jamais deu indícios de problemas, nem para mim e nem para Millicent. Ela
teria dito alguma coisa.
— Ele não contou para você? — Trista pergunta.
— Não.
— Bom, estou contando então. Terminei com ele.
Quero dizer a ela que lamento pelo casamento ter terminado, porque eu
realmente lamento. Porque eles são meus amigos. Mas ela parece tão feliz que
eu não digo uma palavra sequer.
Trista revira os olhos.
— Está tudo bem, relaxe. Não precisa dizer nada. Mas quer saber? Eu nunca
amei ele de verdade. Não do jeito que você ama Millicent — ela sorri, sem
qualquer constrangimento. — É verdade. Eu me casei com Andy porque ele
preenchia todos os pré-requisitos. Nossa, parece que eu sou terrível, não é?
Tudo bem, pode falar. Eu sou terrível.
— Eu nunca disse que você é terrível.
— Mas está pensando. Só pode estar pensando... Você é amigo de Andy.
— Sou seu amigo também.
Ela encolhe os ombros. — Vou ter que parar com as aulas. Desculpe, mas
não posso continuar frequentando o clube com Andy aqui.
— Sim, entendo.
— Você sabe que você me ajudou de verdade, não é? — ela diz. — Aquele
dia que nós conversamos me ajudou a resolver tudo.
A conversa também me ajudou. Por causa de Trista, eu soube de coisas a
respeito de Owen que eu nunca poderia saber de outra forma e fui capaz de
escrever uma carta convincente para Josh. Mas não é isso que ela quis dizer.
— Eu não fiz nada —digo. Talvez para me convencer de que não acabei com
o casamento da minha amiga.
— Se você não tivesse me escutado daquele jeito, eu nunca ficaria falando
sem parar sobre Owen. Ninguém quer ouvir aquilo tudo. Só querem que ele
seja um monstro.
— E ele não é?
Ela pensa na resposta enquanto suga um canudinho. — Ele é. E também não
é. Você se lembra que eu falei para você que o sexo era bom? Não ótimo, mas
bom?
Eu concordo com a cabeça.
— Mentira. Era ótimo. Era fantástico, na verdade. Owen era, ele era... — sua
voz se perde. Ela fica olhando para o estacionamento em frente à cafeteria,
perdida em memórias que não posso ver. É meio desconfortável olhar para ela
agora, mas seria ainda mais desconfortável falar, por isso não digo nada.
— Eu amava ele — ela diz.
— Owen?
Ela concorda e então balança a cabeça. — É uma frase terrível, eu sei. Não
quero dizer que eu vou largar tudo para ficar com ele ou qualquer coisa assim.
Até porque não faço a menor ideia de onde ele está. Ai, meu Deus, nem sei do
que é que estou falando — ela se rende, desistindo da explicação. — Desculpa.
É que é tudo muito estranho.
— Não, é... — não consigo pensar em outra palavra.
— Estranho.
Eu dou de ombros. — Bom, é, é estranho — e horrível.
— Amar um monstro não é ruim?
— Você não sabia que ele era um monstro quando você se apaixonou por
ele, sabia?
— Não.
— E você não se apaixonou por ele porque ele era um monstro, não é?
Agora ela é quem dá de ombros. Sorri. — Como é que eu vou saber?
Não tenho uma resposta.
Trinta e um
Uma igreja chamada Comunhão da Esperança se tornou um ponto de encontro
para quem quiser falar de Naomi, rezar por ela ou acender uma vela. Começou
com seus amigos e colegas de trabalho, talvez incentivados por aquele sujeito
com cara de morsa ou pela amiga chata da voz nasalada, e agora toda a nossa
comunidade está envolvida.
Eu não entrei na igreja, mas parei em frente a caminho do trabalho e
observei as pessoas saindo e entrando. Algumas ficam lá por um tempo, outras
ficam apenas por alguns minutos. Reconheço algumas delas do clube, e aposto
que ninguém ali conhecia Naomi. Não é o tipo de gente que sai com
recepcionistas de hotel.
A notícia chega a Millicent, talvez por um de seus clientes, e ela decide que
a nossa família deve ir à igreja na sexta-feira.
Na data marcada, estamos todos com pressa. Eu chego atrasado em casa e
vou direto para o chuveiro. Rory foi para a casa de um amigo depois da escola,
mas se esqueceu do horário, e Millicent vai de carro buscá-lo. Jenna está se
arrumando no seu quarto. Não temos tempo para jantar em casa, por isso
vamos comer na rua depois da nossa visita à igreja. Millicent manda uma
mensagem no grupo da família para saber em qual restaurante queremos ir.
Rory quer comida italiana, Millicent quer mexicana e, para mim, tanto faz.
Quando o carro entra na garagem, eu chamo Jenna.
— Vamos cair na estrada — eu digo. Jenna sempre me diz que eu pareço um
tiozão quando falo isso.
Agora, ela não diz nada.
— Jenna?
Quando ela não responde pela segunda vez, subo e bato na porta do seu
quarto. Ela mantém uma pequena lousa branca na porta. Ela é decorada com
fitas nas cores do arco-íris, e as palavras Sai daqui, Rory estão escritas com sua
caligrafia arredondada.
Lá embaixo, a porta da garagem se abre e Millicent grita: — Todo mundo
pronto?
— Quase — eu digo, batendo novamente na porta.
Jenna não responde.
— O que está acontecendo aí? — Millicent pergunta.
A porta está destrancada. Abro alguns centímetros. — Jenna, está tudo bem?
— Sim — um som baixinho. Vem do banheiro.
Na nossa casa, ninguém tem somente um quarto. Temos suítes, todas com
seu próprio banheiro. Quatro quartos, quatro banheiros e meio. É como as
casas de Hidden Oaks são construídas.
— Anda logo! — Rory grita.
Millicent está subindo as escadas.
Eu atravesso o quarto de Jenna, desviando de brinquedos infantis, roupas,
sapatos e o jogo de maquiagem de uma jovem pré-adolescente. A porta para o
banheiro está aberta. Assim que olho para dentro, Millicent aparece no
corredor que dá para o quarto da nossa filha.
— O que está acontecendo? — ela pergunta.
Jenna está parada no piso de azulejos brancos com os pés cercados por
mechas de cabelo escuro. Ela olha para mim, e seus olhos parecem maiores do
que nunca. Jenna cortou todo o cabelo. Raspou até aparecer o couro cabeludo,
não sobrou mais do que milímetros de cabelo.
Atrás de mim, Millicent solta uma interjeição de espanto. Ela passa correndo
por mim, por Jenna, e segura a cabeça de nossa filha com ambas as mãos. — O
que você fez? — ela pergunta.
Jenna olha para ela, sem piscar.
Eu não digo nada, embora eu saiba a resposta. Eu sei o que Jenna fez. Mas
compreender a situação só me faz congelar; meu corpo afunda no tapete
marrom do quarto de Jenna.
— Mas que... — Rory está no quarto agora, olhando para a irmã, para o
cabelo no chão do banheiro.
Jenna se vira para mim e diz: — Agora ele não vai mais me pegar, vai?
— Jesus — Rory diz.
Jesus, não.
Owen.

Não vamos à igreja. Nem sequer saímos.


— Um médico — Millicent diz. — A nossa filha precisa de um médico.
— Eu conheço um médico — digo. — É um cliente meu.
— Ligue para ele. Não, espera. Talvez não seja uma boa ideia usar um de
seus clientes. Talvez a gente nem queira que eles saibam, não é?
— Saibam o quê?
— Que a nossa filha precisa de ajuda.
Nós nos encaramos, sem a mínima ideia do que fazer. A palavra surreal não
é suficiente.
Eis um problema totalmente inédito. A resposta para qualquer situação pode
ser encontrada nos livros sobre educação infantil. Millicent tem todos. Se a
criança está fisicamente mal, levar ao médico. Se ela não está se sentindo bem,
um período de repouso. Se a criança está fingindo, mandar para a escola.
Problema com outra criança, ligar para os pais. Se ela estiver fazendo birra, dar
um tempo para ela se acalmar.
No entanto, não existe literatura para este problema. Os livros não dizem o
que fazer quando sua filha está com medo de um psicopata assassino.
Principalmente um serial killer como Owen.
Estamos no nosso quarto, falando baixinho. Jenna está lá no sofá da sala,
assistindo tevê com um boné de beisebol na cabeça. Rory está com ela.
Pedimos para ele não perder a irmã de vista. Também pedimos para ele não
debochar dela. Desta vez, ele obedece.
Millicent resolve ligar para o médico da família. Dr. Barrow não é um
cliente. É apenas um clínico geral que consultamos há alguns anos. Ele atende
casos de garganta inflamada e queimação no estômago, examina ossos
quebrados e possíveis concussões, mas não acho que ele vá ser útil nesta
situação. Ele é um homem muito mais velho, que talvez nem acredite na
existência de transtornos mentais.
— É tarde — eu digo para Millicent. — Ele não vai atender.
— O hospital vai ligar para ele. Sempre tem um jeito de contatar um médico.
— Talvez a gente devesse...
— Eu vou ligar — ela diz. — Temos que fazer alguma coisa.
— Sim. Eu acho que sim.
Millicent me encara enquanto pega o telefone. É raro eu não conseguir
decifrar o significado do seu olhar, mas agora é uma dessas ocasiões. Se eu
fosse obrigado a adivinhar, diria que talvez seja um olhar quase de pânico.
Desço para conferir o estado de Jenna. Tanto ela quanto Rory estão no sofá.
Estão assistindo televisão e comendo sanduíches com salgadinhos de batata
dentro do pão. Jenna olha para mim. Eu dou um sorriso para ela, tentando
transmitir a mensagem de que está tudo bem, que o mundo é seguro e que
ninguém irá machucá-la. Ela desvia o olhar e dá outra mordida no sanduíche.
Fracassei em transmitir toda e qualquer mensagem.
De volta para o andar de cima, Millicent está no telefone. Sua voz é
excessivamente calma e monótona ao explicar para o hospital que, sim, é uma
emergência e, sim, ela precisa falar com Dr. Barrow hoje à noite. Ela desliga o
telefone, espera cinco minutos e tenta de novo.
O Dr. Barrow finalmente retorna a ligação. Millicent parece afobada ao
explicar o que aconteceu, o que nossa filha fez. E mesmo assim as palavras não
saem de sua boca na velocidade que ela queria.
É uma crise para ela, para nós, para a nossa família. Meu papel é ser um
intermediário.
Jenna é a pessoa que está passando pela crise.
Millicent é a pessoa que está tomando uma atitude a respeito.
Rory é a pessoa que não está se metendo no assunto, que está longe do fogo
cruzado.
E eu sou a pessoa que sobe e desce as escadas, que pergunta como todo
mundo está e que não toma nenhuma decisão. Estou novamente empacado bem
no meio da coisa.
Trinta e dois
O Dr. Barrow recomenda um psicólogo infantil, que concorda em nos receber
no sábado pelo dobro do preço que ele normalmente cobra. Tudo no seu
consultório é bege, do carpete ao teto, e a sensação é de que estamos dentro de
uma tigela de aveia.
O psicólogo tem especialização neste tipo de ocorrência, que é, sim, uma
dificuldade real das pessoas, e ele diz que Jenna não se sente segura. Ele
desconfia que ela tem algum tipo de ansiedade induzida por redes sociais,
embora o nome verdadeiro seja irrelevante. Assim como são irrelevantes os
motivos para ela estar se comportando tão mal, uma vez que os motivos
realmente não importam, porque eles sequer fazem sentido. A razão não tem
lugar neste consultório.
— Você pode explicar para Jenna que ela está segura até que ela termine
repetindo isso durante o sono, mas não vai fazer diferença.
Millicent está sentada em frente ao doutor, o mais perto possível. Ela passou
a noite no quarto de Jenna, mal dormiu, e está destruída. Eu estou mais ou
menos do mesmo jeito. Jenna dormiu bem ontem à noite. Cortar o cabelo
parece ter trazido algum tipo de paz para ela. Quando tento repassar essa
informação ao sujeito, ele ergue a mão.
— Falso.
— Falso — eu digo. Tento imitar sua entonação, mas a arrogância é
inimitável.
— A paz é provavelmente temporária, até aparecer outra notícia para tirá-la
dos trilhos de novo — ele diz. Ele passou a última hora com Jenna, parte da
sessão de emergência da manhã de sábado acertada pelo Dr. Barrow. Somos a
segunda parte.
— O que a gente faz? — Millicent pergunta.
Ele tem algumas ideias para fazer Jenna se sentir segura. Primeiro, duas
consultas por semana. São duzentos dólares cada uma, ele não aceita convênios
e o pagamento é somente em dinheiro ou cartão de débito. Segundo, cumprir
todas as promessas que nós fizermos para ela. Jamais decepcionar Jenna.
Jamais deixá-la pensar que não estaremos ao seu lado.
— Mas nós estamos do lado dela — eu digo. — Nós sempre...
— Sempre? — ele pergunta.
— Pelo menos noventa por cento das vezes — Millicent diz. — Talvez
noventa e cinco.
— Cheguem a cem por cento.
Millicent concorda com a cabeça, como se pudesse mexer uma varinha e
fazer essa mágica acontecer.
— Por último, mas de jeito nenhum menos importante — ele diz. — Não
deixem que ela chegue perto do noticiário, desse serial killer, das reportagens
sobre a vítima. Eu entendo que estou pedindo o impossível, principalmente nos
dias de hoje, mas tentem fazer o máximo que vocês conseguirem. Não assistam
o jornal em casa. Não falem sobre Owen ou qualquer coisa relacionada a ele.
Tentem agir como se ele não tivesse nada a ver com a família de vocês.
— Ele não tem — eu digo.
— Claro que não.
Assinamos um cheque gordo para o doutor e saímos. Jenna está na sala de
espera. A tevê na parede está passando desenhos. Ela está grudada no seu
telefone.
Millicent faz uma careta.
Eu dou um sorriso e tento fazer o meu melhor. — Quem quer tomar um belo
café da manhã, hein?

O fim de semana é uma enxurrada de conversas sérias: com a família toda, com
Jenna sozinha, com Rory sozinho, com os dois juntos e apenas com Millicent.
São incontáveis conversas sérias com Millicent. No domingo à noite, nós já
temos um novo conjunto de regras, que basicamente consistem em eliminar as
notícias das nossas vidas. Todos os noticiários estão proibidos, incluindo aí os
jornais impressos. Vamos assistir filmes no streaming e evitar o máximo
possível a programação ao vivo na tevê. Nada de rádio. Mas tudo isso é fácil se
compararmos com o problema chamado internet. As crianças usam a internet
para a escola, para diversão e para comunicação.
Millicent tenta assim mesmo, começando com o bloqueio da senha.
Ninguém vai poder se conectar a não ser que ela também se conecte.
Temos um motim.
— Então eu não posso morar aqui — Rory arrisca todas as suas armas já em
sua declaração inicial.
Jenna concorda com o irmão. É um raro momento de solidariedade.
Eu, no entanto, concordo com as crianças. Millicent propôs uma solução que
é impraticável, insustentável. Absurda.
Mas não digo nada.
Rory olha para mim e depois para a sua mãe, farejando nossa fraqueza. Ele
lista todos os motivos pelos quais o sistema de senha não tem como funcionar,
a começar pela longa jornada de trabalho de Millicent.
Jenna finalmente levanta a voz. — Eu vou piorar em inglês.
É o suficiente.
Inglês tem sido uma disciplina difícil para ela neste ano. Ela tem trabalhado
em dobro para poder ficar entre as melhores da turma, e pensar em Jenna sendo
reprovada faz Millicent mudar de ideia. Ela recua para um conjunto de regras
um pouco mais leves.
Filtros de controle de conteúdo, notebooks na sala de estar, remoção de
todos os aplicativos de notícias dos telefones. É mais psicológico do que
prático, mas todos nós entendemos a proposta. Só não faço ideia se Jenna vai
seguir essas novas regras.
Uma cabeleireira tenta salvar o que sobrou do cabelo de Jenna. Agora que o
cabelo tem um corte mais definido, não parece tão feio — apenas diferente.
Millicent compra vários tipos de chapéus e bonés caso ela queira disfarçar
melhor. Ela põe todos sobre a mesa da sala de jantar, e Jenna experimenta um
de cada vez. No final das contas, ela dá de ombros.
— Legal — ela diz.
— Tem algum favorito? — Millicent pergunta.
Jenna dá de ombros mais uma vez. — Não sei se vou precisar de chapéu.
A postura de Millicent se contrai um pouco. Ela está mais preocupada com o
cabelo de Jenna do que com Jenna. — Ok — ela diz, juntando todos os
chapéus e bonés. — Vou deixar isso aqui no seu quarto.
Antes de dormir, vou falar com Rory. Ele está na cama lendo uma revista em
quadrinhos. Ele esconde o exemplar debaixo do travesseiro, e eu finjo não ver.
— O que foi? — ele diz. Irritação por todos os lados.
Eu sento na sua mesa. Livros, cadernos, carregadores. Um pacote cheio de
salgadinhos e um desenho de uma figura que parece ser metade monstro e
metade herói. — Não é justo, eu sei — eu digo. — Essa história não é culpa
sua, mas você vai ter que conviver com isso do mesmo jeito.
— Tenho que ir para o sacrifício pelo bem do time. Entendi.
— O que você acha? — pergunto.
— Do quê?
— Da sua irmã.
Ele ameaça abrir a boca. Posso perceber naqueles olhos verdes que ele vai
bancar o espertinho.
Mas ele desiste. Hesita. — Não sei — ele diz. — Ela anda meio obcecada
com esse negócio.
— Owen.
— Isso. Tipo, mais obcecada do que o normal. Você sabe como ela fica.
Ele está se referindo à habilidade que Jenna tem de se concentrar totalmente
em um tópico, seja futebol ou fitas ou pôneis. Rory chama essa característica
de obsessão porque com ele é bem diferente.
— Como ela está na escola? — pergunto.
— Tudo tranquilo, até onde eu sei. Ela ainda é popular.
— Você me conta se alguma coisa mudar?
Ele pensa, talvez considerando pedir alguma coisa em troca.
— Conto — ele diz.
— E não seja muito pé no saco com ela.
— Mas é meu trabalho. Eu sou o irmão dela — Rory está sorrindo.
— Eu sei. Só não seja muito bom nisso.

Millicent e eu estamos finalmente sozinhos no fim da noite de domingo. Estou


exausto. Preocupado. Eu me apavoro só de pensar em qual vai ser a próxima
notícia sobre Owen, Naomi ou Lindsay.
Naomi. Pela primeira vez em dois dias, me dou conta de que Millicent não
saiu do nosso lado. Ela esteve com Jenna, comigo, conosco, desde a noite de
sexta. Começo então a me perguntar onde é que está Naomi, se ela ainda está
viva. Ela deve ter água. Não dá para sobreviver sem água.
Eu realmente nunca quis saber onde é que Naomi está, como é que ela foi
amarrada, qual a aparência do cativeiro. Eu me obriguei a não pensar neste
assunto. Mesmo assim, as imagens chegam. Aquelas imagens que todo mundo
fala por aí: um buraco subterrâneo ou um porão, o quarto à prova de som em
uma casa comum. As amarras. Penso nelas também. Correntes e algemas,
feitas de aço para que não possam ser quebradas.
Mas pode não ser assim. Talvez ela apenas esteja trancada em um quarto e
livre para se movimentar. Pode ser que seja um quarto normal com uma cama,
um armário, um banheiro e talvez uma geladeira. Confortável e limpo. Não
precisa ser uma câmara de horrores e tortura ou coisa parecida. Talvez ela
tenha até uma tevê.
Ou não.
Eu me viro para Millicent, que está sentada na cama com o tablet,
pesquisando sobre crianças que desenvolvem fobias a partir do que elas
escutam na televisão.
Novamente, penso em perguntar sobre Naomi. Quero saber onde e quais são
as condições do seu cativeiro, mas tenho medo do que poderá vir com essa
informação.
Não acho que eu conseguiria me controlar.
Se eu souber onde ela está, eu vou querer vê-la. Vou ser obrigado a falar com
ela. E se for o pior cenário possível? E se ela estiver acorrentada a um
aquecedor num porão em algum lugar vagabundo, coberta de sujeira e
sangrando por causa das torturas? Porque é o que imagino, e eu não sei o que é
que eu faria a respeito.
Talvez eu matasse Naomi. Talvez eu deixasse Naomi ir embora.
Portanto, eu não pergunto nada.
Trinta e três
Trazer Owen de volta cumpriu seu propósito. Ninguém duvida que foi ele
quem sequestrou e matou Lindsay, ninguém duvida que é ele quem está com
Naomi. Agora é hora dele desaparecer. A única maneira é cortar o contato:
chega de cartas, chega de mechas de cabelo. Chega de mulheres desaparecidas.
Chega de corpos.
Precisamos de uma rota de fuga. Jenna precisa.
No clube, ainda estão falando de Owen. Eu me recuso a entrar na conversa.
Saio do salão, vou para longe da boataria, longe até mesmo de Kekona. Ainda
temos nossas duas aulas por semana, mas ela na verdade frequenta o clube
todos os dias. Eu passo o dia inteiro na quadra, às vezes com um cliente, às
vezes esperando pelo próximo. Depois das últimas semanas, e da semana que
acabou de passar, o dia é quase normal demais. Com certeza vai acontecer
alguma coisa para romper isso.
Tenho uma aula com um casal que mora em Hidden Oaks desde os
primórdios da região. Eles se movimentam muito devagar, mas o fato deles
ainda conseguirem se mexer é algo significativo.
Quando terminamos, nós três caminhamos juntos para a loja de material
esportivo. Quero pegar um café e dar uma olhada na minha agenda da semana.
O caminho mais curto até a loja é pelo salão do clube, que é onde eu vejo
Andy.
A última vez que eu o vi foi antes de Trista terminar com ele. Naquela
época, ele estava com a mesma aparência de sempre: uma barriguinha, cabelo
ficando ralo e uma pele ruborizada de todo aquele vinho.
Agora, ele parece completamente desorientado. Está inclinado sobre o bar,
usando uma calça de moletom que parece ter um século de uso. Por outro lado,
sua nobre camisa de algodão é novíssima, ainda com umas marquinhas das
dobras, como se ele tivesse acabado de comprá-la na loja de material esportivo,
vestindo em seguida. Ele fez a barba, mas seu cabelo está um caos. A bebida na
sua mão é marrom e pura, sem nenhuma mistura ou sequer umas pedras de
gelo.
Caminho até ele porque ele é meu amigo. Ou era até eu começar a esconder
coisas dele.
— E aí? — eu digo.
Ele se vira na minha direção, mas não parece feliz. — Olha só se não é o
profissional. O profissional de tênis, digo. A não ser que você seja outro tipo de
profissional.
— Quais as novidades?
— Ah, acho que você sabe bem quais são as novidades.
Eu balanço a cabeça. Dou de ombros. Ajo como se eu não fizesse ideia do
que está acontecendo. — Tudo bem com você?
— Não, na verdade não. Mas talvez você tenha que perguntar isso para a
minha mulher. Você conhece ela súper bem, não é?
Antes que ele tenha a chance de dizer mais uma bobagem, eu o pego pelo
braço.
— Vamos tomar um ar — eu digo. Felizmente, ele não reclama. Não diz
nada que possa me causar algum problema no trabalho.
Caminhamos pelo salão do clube e saímos pela porta da frente. Paramos em
uma curva da trilha ecológica. Trepadeiras se espalham por cima, pelos lados e
por baixo do outro lado. Em uma direção, vejo a loja de artigos esportivos. Na
outra, o estacionamento.
Eu paro e olho para Andy. — Cara, eu não sei...
— Você está dormindo com a minha esposa?
— Credo. Não.
Ele fica me encarando, indeciso.
— Andy, eu jamais iria dormir com a sua mulher. Jamais.
Seus ombros caem um pouco quando a raiva o abandona. Ele acredita em
mim. — Mas ela está apaixonada por outra pessoa.
— Só sei que não sou eu — não tenho nenhuma intenção de contar a ele
quem é.
— Mas você vê minha mulher toda hora. Duas vezes por semana, certo? Ela
não faz aulas de tênis contigo?
— Já faz alguns anos. Você sabe disso. Mas ela nunca mencionou estar
tendo um caso.
Andy olha para mim apertando os olhos. — Você tá falando a verdade?
— Cara, há quanto tempo a gente se conhece?
— Desde que a gente era criança.
— E você acha que eu vou ser mais leal com Trista do que contigo?
Andy dá o braço a torcer. — Eu sei lá. Ela ficou muito perturbada com essas
garotas que desapareceram. Não queria mais nem assistir o jornal — ele olha
para baixo e remexe o pé no piso que imita cascalho. — Jura que não sabe de
nada?
— Eu juro.
— Certo então. Desculpa — ele diz.
— Tudo bem. Quer comer um sanduíche ou alguma outra coisa? — não
menciono tomar uma bebida.
— Agora não. Vou para casa.
— Tem certeza?
Ele acena com a cabeça e sai caminhando. Andy não volta para o salão do
clube, ele vai em direção ao estacionamento. Começo a dizer que ele não pode
dirigir, mas nem termino a frase. Os manobristas vão resolver essa questão.
Responsabilidade legal e toda aquela história.

Minhas aulas continuam. Nenhuma notícia surpreendente. Nenhuma ligação ou


nova interrupção. Nada até eu sair do trabalho e parar no lava a jato a caminho
de casa.
Eu normalmente confiro o meu telefone — o descartável — pelo menos a
cada dois dias, mas desta vez violei a minha própria regra. Havia muita loucura
acontecendo, muitos outros problemas para lidar.
O telefone está escondido no estepe dentro do porta-malas. No lava a jato, eu
tiro tudo lá de trás para que o carro possa ser aspirado, pegando o telefone
junto com o resto. Quando o carro entra na lavagem, eu ligo o celular. O som
de nova mensagem me assusta. Tanto o toque quanto o telefone são antigos e
antiquados. Não é sequer um smartphone, é apenas um telefone pré-pago mais
pesado do que parece.
Comprei em uma loja de usados anos atrás. Demorei para decidir. Não
quanto ao telefone em si, já que naquele tempo todos os telefones pré-pagos
pareciam iguais. Demorei para decidir se eu compraria um, na verdade. Uma
vendedora simpática apareceu e perguntou se podia ajudar. Ela parecia velha
demais para entender de eletrônicos, mas no fim das contas sabia de tudo. E ela
foi muito paciente, muito gentil, ela me fazia uma pergunta atrás da outra. As
respostas nem importavam. Eu não me interessava pelos aspectos técnicos.
Estava tentando decidir se queria um segundo telefone, do tipo descartável, e
acho que no fim acabei comprando um porque me pareceu em determinado
momento que não levar nada seria uma grosseria. Eu já tinha desperdiçado
muito tempo dela.
Estou com essa coisa desde então. Annabelle é apenas o último registro na
lista de contatos.
Não pensei mais nela desde que decidi que ela não seria a escolhida. Não me
surgiu nenhum motivo para pensar em Annabelle, não antes dela ligar. Ou
mandar mensagem, na verdade. Não pega nada bem ligar para um surdo.
Olá, estranho, vamos sair para beber em breve? Ah, é Annabelle :)

Não faço ideia de quando ela mandou a mensagem. Não chega no telefone
até eu ligar o aparelho, mas ela pode ter enviado há uma semana. Bom, pelo
menos uma semana se passou desde que eu o verifiquei pela última vez.
Eu penso em responder a mensagem, nem que seja para dizer que eu não a
ignorei de propósito.
Meu carro ainda está sendo lavado. Então, vou descendo a barra de rolagem
das mensagens para passar o tempo. Antes da mensagem de Annabelle,
encontro uma mensagem de Lindsay. Aquela que eu ignorei. Ela já tem quinze
meses.
Me diverti muito naquele dia, Tobias. Até mais!

Tobias. Ele nunca deveria ter uma personalidade própria. E não deveria
dormir com ninguém.
Millicent e eu o inventamos juntos. Foi durante uma rara noite gelada na
Flórida, quando a temperatura chegou perto de zero grau. Entre uma xícara de
chocolate quente e uma porção de sorvete, Tobias nasceu.
— Você não pode mudar demais a sua aparência — ela me disse. — Quer
dizer, você vai precisar de uma peruca ou de uma barba postiça.
— Eu não vou usar peruca.
— Então vai precisar de alguma outra coisa.
Foi ideia minha fingir ser um homem surdo. Poucos dias antes, eu tinha dado
aula para um adolescente surdo e usamos celulares para nos comunicar. Aquilo
me marcou, e veio daí a sugestão.
— Brilhante — Millicent disse. Ela me beijou bem do jeito que eu gosto.
Depois, discutimos o meu nome. Tinha que ser um nome memorável, mas
não podia ser um nome estranho. No final, sobraram dois na lista: Tobias e
Quentin. Eu queria o último por causa do apelido. Quint era melhor do que
Toby.
Debatemos as vantagens e as desvantagens dos dois nomes. Millicent até
pesquisou as origens de ambos.
— Tobias vem do nome hebraico Tobiah — ela disse, lendo da internet. —
Quentin vem do nome romano Quintus.
Eu encolhi os ombros. Nenhuma origem me significava coisa alguma.
Millicent continuou: — Quentin vem da palavra “quinto” em latim. Tobias é
um nome bíblico.
— O que ele fez na Bíblia?
— Espera aí — Millicent clicou, desceu a barra de rolagem e disse: — Ele
matou um demônio para salvar Sara e aí se casou com ela.
— Quero ser Tobias — eu disse.
— Tem certeza?
— Quem não quer ser o herói?
Naquela noite, Tobias nasceu.
Mas poucas pessoas conheceram Tobias. Somente um ou outro barman e
algumas poucas mulheres. Nem mesmo Millicent o conheceu. Tobias é quase o
meu alter ego. Ele tem até os seus próprios segredos.
Eu não respondo à mensagem de Annabelle me convidando para beber.
Desligo o celular e o coloco de volta no porta-malas.
Trinta e quatro
Natal, seis anos atrás. Rory tinha oito anos, Jenna tinha sete, e ambos
começaram a me perguntar por que eles conheciam apenas um avô e uma avó.
Eu não costumava falar sobre meus pais, nunca disse nada sobre quem eles
eram ou como morreram. Mas as perguntas dos meus filhos me fizeram pensar
no que eu poderia dizer. No que eu deveria dizer.
Uma noite, desci até a cozinha, esperando que depois de fazer um lanche o
meu estômago me deixasse sonolento o bastante para superar aquela insônia.
Comi o resto de um feijão direto da panela. Frio, mas bem melhor do que eu
imaginava. Eu ainda estava comendo quando Millicent entrou na cozinha. Ela
pegou uma colher e se sentou ao meu lado.
— O que aconteceu? — ela perguntou. Millicent deu uma grande colherada
na panela e me olhou, esperando. Eu nunca acordava no meio da noite para
comer. Ela sabia disso.
— As crianças estão perguntando sobre os meus pais.
Millicent ergueu as sobrancelhas, sem dizer nada.
— Se eu mentir e falar para eles que os avós eram maravilhosos, eles vão me
odiar se ficarem sabendo da verdade, certo?
— Provavelmente.
— Mas pode ser que eles me odeiem de qualquer jeito.
— Por um tempo — ela disse. — Acho que toda criança passa por essa fase
em que a culpa é sempre dos pais.
— Quanto tempo essa fase dura?
Ela encolheu os ombros. — Uns vinte anos?
— Eu espero que até lá as coisas já tenham se acalmado.
Eu sorri. Ela sorriu.
Eu poderia dizer para as crianças que meus pais abusaram de mim.
Mentalmente. Fisicamente. Até sexualmente. Poderia dizer que eles batiam em
mim, que me amarravam, que me queimavam com cigarros e que me faziam
subir as piores ladeiras a pé para ir e voltar da escola. Mas eles não fizeram
nada disso. Cresci em uma boa casa num ótimo bairro, e ninguém nunca tocou
em mim de um jeito inapropriado. Meus pais eram pessoas refinadas e
discretas, que poderiam recitar todas as regras de etiqueta até durante o sono.
Eles também eram pessoas terrivelmente frias, que não deveriam ter tido um
filho. Deveriam ter tido inteligência suficiente para saber que um bebê não
pode consertar a vida de ninguém.
A gota d’água veio quando eu estava no exterior. Quando contei a eles que
queria trancar a faculdade e viajar, eles até me deram algum dinheiro. Comprei
uma passagem e um mochilão, e aproveitei para encher a cara. Andy e mais
dois amigos decidiram me acompanhar. Fizemos, então, um planejamento
meia-boca e marcamos uma data. Não contei para eles, nem para ninguém, que
eu estava apavorado.
Algumas horas antes do voo, eu ainda estava arrumando as malas, ainda
tentava decidir quais camisetas eu levaria, ou se precisava levar um casaco de
inverno. Entusiasmado, claro. Estava louco para cair fora de Hidden Oaks.
Louco para fugir do meu quarto de criança, onde as paredes eram pintadas para
dar a impressão de que eu estava no céu, cercado de estrelas. Estava cansado de
apenas sonhar com o mundo lá fora, e queria ver com meus próprios olhos.
Só que eu também não fazia a menor ideia do que iria acontecer. Fracassei
no tênis, e fracassei em entrar em uma boa faculdade. Um tenista mediano,
com notas medianas. O que aconteceria se eu também fosse mediano na
estrada? Nem ideia. Mas eu acreditava que seria melhor do que seguir com
aquele sentimento de que eu não deveria ter nascido.
Minha esperança era que eu não precisasse voltar, não queria nunca mais ver
aquelas paredes pintadas em azul-celeste de novo.
Meus pais nem me levaram ao aeroporto. Chamaram um táxi, porque eu
fiquei constrangido demais para pedir uma carona para os pais de meus
amigos. Era uma manhã de quarta-feira, meu voo era cedo e o dia começava a
amanhecer. Minha mãe com sua xícara de café, meu pai já vestido: a família
toda reunida no corredor, sobre o piso reluzente, cercada por espelhos. O vaso
no centro da mesa estava repleto de crisântemos laranjas. O sol nascente bateu
no lustre de cristal por cima das nossas cabeças, jogando um arco-íris nas
escadas.
O táxi buzinou. Minha mãe me beijou na bochecha. Meu pai apertou minha
mão.
— Pai, eu quero...
— Boa sorte — ele disse.
Não consegui lembrar o que eu iria dizer, então peguei meu rumo. Foi a
última vez que eu vi meus pais.
No fim, não menti para as crianças. Disse que seus avós morreram num
acidente de carro bizarro muitos anos atrás.
Não contei tudo para elas, mas cheguei perto. Isso foi por causa de Millicent.
Nós decidimos juntos o quanto iríamos falar. Para tornar o mais oficial
possível, convocamos uma reunião de família. Rory e Jenna eram realmente
novinhos. Talvez não fosse muito justo com eles, mas continuamos com o
protocolo.
Nós nos sentamos na sala de estar. Jenna estava com seu pijama amarelo
com estampas de balões. Ela adorava balões, e Rory adorava estourá-los. Os
cabelos escuros de Jenna estavam cortados na altura do queixo, e ela tinha uma
franja na testa. Seus olhos castanhos espiavam por baixo dos fios.
Rory usava uma camiseta azul e calça de moletom. Quando ele fez sete anos,
se declarou velho demais para usar pijama. Millicent e eu decidimos que havia
coisas mais importantes para nos preocuparmos, e ela parou de comprá-los.
Foi difícil olhar para seus rostinhos confiantes e contar para eles que às
vezes é melhor as pessoas não terem filhos.
— Nem todo mundo deveria ser pai ou mãe — eu disse. — Assim como
nem todo mundo é uma boa pessoa.
Jenna foi a primeira a falar. — Eu já sei que não é para conversar com
estranhos.
— Nem todo mundo na nossa família é uma boa pessoa. Ou foi uma boa
pessoa.
Rostos contorcidos. Confusão.
Eu falei por dez minutos. Somente o tempo necessário para dizer aos meus
filhos que seus avós não eram os melhores pais do mundo.
A ironia do nosso gesto só foi me impactar anos mais tarde, depois de Holly
e de todas as outras. Um dia, Rory e Jenna podem ter uma conversa com seus
filhos e talvez eles digam a mesma coisa sobre Millicent e eu.
Trinta e cinco
Eu imaginava que o exame de DNA do cabelo de Naomi levaria mais do que
uma semana para ficar pronto. Talvez por ser tão rápido nos filmes, imaginei
que esse prazo devia ser falso. Que um exame de DNA de verdade demoraria
meses. E aparentemente demora, mas não os exames preliminares. E não
quando a polícia está tentando encontrar uma mulher que ainda pode estar viva.
Os exames indicaram com noventa e nove por cento de certeza que aquele
cabelo pertencia a Naomi.
Kekona é quem me dá essa informação. Nossa tradicional aula de tênis se
torna uma aula de ciência forense, pois o novo passatempo dela são aquelas
reportagens e documentários sobre crimes reais. Mulheres desaparecidas e/ou
mortas são comuns nesses programas.
— Sempre jovens, lindas e basicamente inocentes — ela diz, enumerando as
características das vítimas uma a uma. Ela está com um copo de café, e acho
que não é o primeiro. — Embora eventualmente tenha algum caso sobre uma
prostituta, como se fosse uma advertência.
— E depois? — eu pergunto.
— Como assim?
— Digo, depois que essa mulher jovem, linda e basicamente inocente
desaparece, o que acontece?
Kekona põe as mãos para o alto, como se tentasse acalmar uma plateia
barulhenta. — Opção um: o namorado, porque é ciumento e possessivo. Ou o
ex-namorado, porque é ciumento e possessivo.
— Isso tudo é uma opção só?
— Sim, é uma opção só. Preste atenção. Opção dois: um estranho, ou muito
provavelmente um estranho. Essa é a opção do
psicopata/predador/sociopata/doente mental/serial killer. A pessoa que é pelo
menos uma dessas coisas, ou talvez mais do que uma.
Kekona não está me contando nenhuma novidade. Eu também assisto
televisão. Mas não nos últimos dias, porque o noticiário ainda está proibido
dentro de casa. Senti falta da reportagem de Josh sobre os resultados do exame
de DNA, e faço uma anotação mental para me lembrar de pesquisar na internet.
— Os finais possíveis? — Kekona fala isso como se eu tivesse perguntado,
mas eu não perguntei. — Morte. Estupro e morte. Tortura e estupro e morte.
Não tenho muito o que falar depois dessa sentença.
— Às vezes uma consegue escapar — ela diz.
— Mas não acontece com frequência.
Kekona balança a cabeça negativamente. — Nem na ficção.
Voltamos a jogar tênis. De repente, tenho outra pergunta para ela. — Por que
você acha que isso é tão popular? A história da mulher desaparecida?
— Porque quem resiste a uma donzela em apuros?

A proibição do noticiário dentro de casa sempre foi um tanto quanto falsa, já


que todos nós temos internet nos celulares. Todo mundo sabe os resultados do
DNA. Depois do jantar, Millicent me leva à garagem. Uma noite romântica de
improviso.
Ela quer discutir a evolução do caso de Jenna. Faz menos de uma semana
desde o incidente do cabelo, mas Jenna tem se mostrado bem desde então. Até
mesmo feliz. Millicent, no entanto, está preocupada que ela possa ter uma
recaída. O que seria essa recaída, eu não sei dizer. Começo a pensar que Jenna
na verdade está sendo proativa, não paranoica. Quem é que vai querer ser
sequestrado por um psicopata/predador/sociopata/serial killer? Minha filha
certamente não.
Quando nos sentamos dentro do carro, Millicent descreve seu plano para
abordarmos o assunto. Nós não queremos deixá-la perturbada, mas também
não queremos ignorar as notícias. Não queremos ser condescendentes, mas
também não podemos ser amiguinhos. Nós queremos analisar o problema e não
jogar um sermão em cima dela, dar conforto e não mimar. Millicent fica
usando a palavra nós, como se esse plano fosse nosso e não dela.
— Como ela está? — eu pergunto.
— Agora parece bem. Mas na semana passada ela também parecia bem, e
aí...
— Não estou falando de Jenna.
Ela inclina a cabeça, confusa. Irritada. E então ela entende.
— Estamos falando de Naomi — ela diz.
— Ela ainda está viva?
— Está.
Quero retirar essa pergunta. Quero dizer alguma coisa que faça Millicent rir,
que faça a minha adrenalina correr, que melhore nosso humor.
Minha mente está em branco.
Nós ficamos olhando um para o outro, seus olhos tão escuros que parecem
buracos. Olho para ela até ser obrigado a parar ou perguntar onde está Naomi.
Eu desvio meu olhar.
Millicent suspira.
Eu a sigo de volta para casa. Na sala de estar, nós nos sentamos no sofá,
onde Jenna e Rory assistem tevê. Rory é o primeiro a perceber que estamos
olhando para eles, não para a tevê. Ele não fica para a conversa.
Dá tudo certo, eu acho. Jenna escuta, concorda em silêncio e sorri. Quando
Millicent pergunta se ela tem alguma dúvida, Jenna balança a cabeça. Quando
eu pergunto como ela está, ela diz “ótima”.
— Você está com medo? — Millicent pergunta.
Jenna ergue a mão e toca o seu cabelo curto. — Não.
— Owen não vai te machucar.
— Eu sei.
O tom irritado é reconfortante. Sua voz está normal e seu rosto também, com
exceção do cabelo.

Mais tarde, Millicent e eu estamos no nosso quarto. Ela está organizando suas
coisas, caminhando de um lado para o outro entre o quarto e o closet, jogando
alguns papéis fora e separando o material necessário para o dia seguinte. Ela
deixa tudo pronto antes de dormir para que as manhãs sejam mais tranquilas.
Ritmo frenético não é com ela. Nem se atrasar.
Eu apenas observo. Seus cabelos ruivos estão soltos, desarrumados, e ela
fica ajeitando para trás com uma das mãos. Ela está vestindo ceroulas, daquelas
bem folgadas, antigas, e umas meias listradas. Suas roupas de dormir são os
itens menos atraentes de seu armário, e eu já comentei com ela como essas
roupas são cafonas. Mas não digo nada hoje à noite. Em vez disso, atravesso o
corredor para conferir como Jenna está.
Ela está dormindo, aninhada entre os lençóis laranjas debaixo do edredom
branco. Seu rosto está relaxado, em paz. Ela não está com medo.
De volta ao nosso quarto, Millicent acabou de deitar na cama, e vou para o
seu lado. Ela olha para mim e acho que ela vai mencionar a conversa na
garagem. No entanto, ela apaga a luz, como se nossa noite romântica tivesse
sido irrelevante.
Eu espero até sua respiração diminuir, e então me levanto para ver
novamente como Jenna está.
Nesta segunda vez, não faço questão de voltar para a cama. Ao longo da
noite, eu monitoro Jenna mais três vezes. Nos intervalos, assisto televisão. Por
volta das duas da manhã, pego no sono assistindo um filme antigo. Quando
acordo, vejo o rosto de Owen. Um documentário sobre ele está passando na
tevê.
Vários desses programas foram produzidos com diferentes graus de
detalhamento sobre os crimes de Owen. Eu consegui evitá-los, da mesma
forma que evitei ler sobre o que Owen fez com suas vítimas. Desta vez, no
entanto, eu não consigo, porque acordo exatamente na hora errada. Assim que
vejo o rosto de Owen na tela, o programa muda de cena. A imagem seguinte é
o quarto onde ele mantinha suas vítimas.
Era um vídeo preparado para o julgamento de Owen, que nunca aconteceu.
Já tem quinze anos e foi filmado com uma câmera de mão que treme demais.
Owen revirou do avesso uma área de descanso abandonada na beira da estrada,
derrubando a parede entre os banheiros masculino e feminino. Os azulejos
podem ter sido brancos um dia, mas agora estavam com um tom marrom
acinzentado. Uma privada sobreviveu, junto com uma pia, um colchão e uma
mesa. Canos subiam e desciam pelas paredes esburacadas; começavam nas
profundezas do chão e atravessavam o teto, saindo pelo outro lado e retornando
ao piso de cimento. Eram do tamanho perfeito para você apoiar umas algemas.
Um par continuava preso a um dos canos, inclusive.
O vídeo balança de repente e a imagem se aproxima do piso. O sangue não
era visível num enquadramento mais aberto. Agora, vejo poças de sangue em
um dos lados, alguns pingos do outro. As manchas avermelhadas estão por toda
parte, como se alguém tivesse sacudido um pincel com tinta vermelha no chão.
A câmera se movimenta pelo piso, chegando a um canto do quarto. Uma
quantidade maior de sangue mancha a parede. É uma mancha na parte de
baixo, a centímetros do chão, como se a pessoa que tivesse sangrado estivesse
agachada.
O enquadramento muda novamente, indo em direção ao colchão. Imagino
Naomi deitada ali.
Eu mudo de canal.
Trinta e seis
Só fico sabendo de Trista dois dias mais tarde. Millicent é quem me conta.
É sábado de manhã. Rory está lá em cima, e Jenna vai dormir na casa de
uma amiga. Assim que eles saem de cena, eu me jogo no sofá e coloco os pés
sobre a mesa. Isso não é permitido — nem para mim, nem para as crianças —,
mas, quando Millicent se senta perto de mim, ela não fala nada.
O silêncio dela me faz tirar os pés sem que ela peça. Pois é, é estranho assim
mesmo. — O que aconteceu? — eu pergunto.
Ela põe a mão sobre a minha, e agora estou preocupado. Até mesmo em
pânico. — Millicent, diga...
— É a Trista — ela diz.
— Trista?
— A irmã dela me ligou mais cedo. Andy está muito abalado e não quer
falar com ninguém.
— A irmã dela? Mas por que ela ia...
— Ela se suicidou.
Eu balanço a cabeça como se meus ouvidos não estivessem funcionando.
Como se ela não tivesse acabado de dizer que Trista se matou.
— Eu nem sei o que falar — Millicent diz.
Percebo que não é uma brincadeira e isso me deixa sem ar.
— Não estou entendendo.
— Pelo que ela falou, ninguém entende. Principalmente Andy.
— Como é que foi?
— Ela se enforcou no cano do chuveiro.
— Meu Deus.
— Eu sabia que eles tinham problemas, mas não fazia ideia que ela estava
tão infeliz.
Millicent não imagina qual é o verdadeiro motivo porque eu nunca contei a
ela sobre Trista, nunca mencionei o namoro dela com Owen. E que ela ainda o
amava.
O jantar parece cavar um buraco no meu estômago. Corro até o banheiro
para vomitar. Millicent fica na porta, perguntando se estou bem. Digo que sim,
mesmo quando começo a ofegar.
— Comi demais — eu digo a ela.
Ela se abaixa e toca a minha testa. Não está quente. Eu me sento no chão
contra a parede e faço um sinal com a mão, dizendo a ela que estou bem.
Ela sai. Eu fecho meus olhos e a ouço na cozinha, mexendo na geladeira.
Está caçando a comida que me fez passar mal.
Quero dizer a ela que a culpa é nossa. Temos uma filha que levou uma faca
para a escola e que cortou todo o cabelo. Agora uma mulher está morta. Não
Naomi, uma outra mulher.
Por causa de Owen. Por minha causa. Eu escrevi aquelas cartas para Josh.
Millicent volta para o banheiro com uma garrafinha de remédio para o
estômago.
Eu bebo tudo e passo mal de novo.

O velório é realizado na Funerária Alton, o mesmo lugar em que Lindsay foi


velada. Eu não fui na cerimônia dela, mas li a respeito. Lindsay teve um
velório de caixão fechado, por causa do que Millicent fez com ela. O caixão de
Trista está aberto.
Andy ainda é o marido dela e organizou tudo. A sala é espaçosa e todas as
cadeiras estão ocupadas. Acho que Trista ficaria satisfeita em saber que seu
funeral teve lotação máxima. Todos estão aqui, vestidos com as suas melhores
roupas pretas, alguns para prestar suas homenagens, outros sem conseguir
acreditar. Eu estou aqui porque eu me sinto responsável.
Millicent está comigo, embora ela não faça ideia do porquê Trista se matou.
É um mistério para todo mundo. Durante vários dias, as pessoas no clube
falaram sobre o fim do casamento, sobre depressão e problemas financeiros. A
depender do momento, ela poderia ser uma viciada em drogas, uma alcoólatra,
uma ninfomaníaca. Estava grávida, ou esteve grávida, mas perdeu o bebê.
Talvez estivesse morrendo de qualquer jeito, uma doença terminal ou um tumor
no cérebro.
Ninguém parecia se lembrar, ou mesmo saber, que ela namorou Owen Oliver
Riley há cerca de vinte anos.
Sua irmã está no velório. É uma versão mais corpulenta e morena de Trista.
Diz que Trista costumava tomar conta dela enquanto seus pais trabalhavam.
Ela preparava o jantar e lavava as roupas da irmã.
— Nós crescemos do outro lado da cidade. Nem sempre ela morou em
Hidden Oaks.
Parece um insulto. A irmã mais nova de Trista ainda mora do outro lado da
cidade.
Ela não menciona Andy.
Em seguida, vem uma amiga mais recente de Trista. É magra e loira como
ela, e nos conta uma história sobre como Trista estava sempre disposta a ouvir,
ajudar e contribuir quando podia.
A última pessoa a falar é Andy. Ele cortou o cabelo desde a última vez que
eu o vi e está usando um terno preto em vez da calça de moletom. Ele fala
sobre como conheceu Trista. Ela era voluntária em um museu e ainda
procurava por um trabalho que estivesse à altura da sua graduação em História
da Arte. Ele estava lá participando de um coquetel beneficente, e seus
caminhos se cruzaram em frente a uma escultura. Ela deu uma aula para ele.
— Fiquei encantado. Com ela, com o jeito que ela falava e com o que ela
disse, e até com o tom da sua voz. Não consigo pensar numa palavra melhor.
Trista era simplesmente encantadora.
Andy desaba no choro ao terminar de falar. Primeiro lágrimas, e então
soluços.
Ninguém se mexe.
Eu desvio o olhar. O desespero de Andy faz com que eu me sinta mal mais
uma vez.
O irmão de Andy caminha até ele e sussurra alguma coisa no seu ouvido.
Andy respira fundo e se recompõe. Ele continua a falar. Eu não escuto. Estou
pensando naquela palavra.
Encantadora.
Quando ele termina, temos uma chance de caminhar ao lado do caixão, para
darmos nosso último adeus a Trista. Quase todos entram na fila. Apenas uns
poucos continuam sentados. Millicent e eu vamos lá nos despedir.
O caixão é feito de uma madeira tão escura que parece preta, e o interior
possui um tom claro de pêssego. Não é tão feio quanto poderia ser. A cor
complementa o cabelo loiro e o batom cor de damasco. Ela ficava muito bem
nessa cor e fico contente que alguém conseguiu perceber isso.
Mas sua roupa é o oposto completo. É uma roupa azul-escura sem estampas
e com mangas longas. Um colar de pérolas bem modesto envolve seu pescoço,
e ela tem brincos também perolados nas orelhas. É um estilo bem diferente do
dela. Parece que alguém comprou a roupa ontem, por achar que Trista deveria
ser enterrada com uma roupa pomposa e não com uma que ela teria gostado.
Esse desleixo me incomoda, de um jeito antinatural. Não gosto de pensar em
Trista passando a eternidade inteira dentro de uma roupa que ela odeia. Espero
que a alma dela não esteja lá de cima olhando para este funeral.
— Ela está linda — Millicent diz.
Se eu ainda pudesse conversar com Trista, eu pediria desculpa. Desculpa
pelas roupas, por perguntar sobre Owen, por trazer Owen de volta.
Eu também diria a ela que Andy está certo. Ela era encantadora. Eu sei disso
porque entendo exatamente o que Andy quis dizer.
Millicent é encantadora. E é exatamente assim que eu a descreveria. Ela foi
encantadora quando eu a conheci, e ela continua encantadora agora. Se ela
morresse e eu tivesse que falar no seu funeral, meu discurso seria igual ao de
Andy. Se eu precisasse descrever o quão encantadora ela foi, sabendo ao
mesmo tempo que jamais estaria com ela de novo, eu iria praguejar contra os
céus. Ou contra a pessoa responsável por arruinar minha vida.
No caso de Andy, eu fui essa pessoa. O grande amigo dele.
Trinta e sete
O homem na tevê é obeso e com uma aparência pouco saudável, é um morto-
vivo aos cinquenta anos de idade. Ele tem uma barriga flácida e redonda, o
começo de uma papada, e cabelos grisalhos brotando ao redor da sua cabeça.
Conheço bem o tipo. Meus clientes são como ele, ou pelo menos costumavam
ser.
Josh entrevista o sujeito em frente ao Lancaster. Este homem é o primeiro a
dizer, ou talvez o primeiro a insinuar, que Naomi não era exatamente essa
mocinha inocente que estão todos dizendo por aí.
— Não estou falando que ela fez alguma coisa errada — ele diz. — Eu só
acho que, se nós queremos achá-la, temos que ser sinceros em relação a quem
ela era.
Ele era um cliente frequente do Lancaster e vinha à cidade duas vezes por
mês a trabalho. Falou com Naomi diversas vezes, além de ter conversado com
outros hóspedes. — Vamos apenas dizer que ela nem sempre agia de forma
estritamente profissional com alguns dos clientes do hotel.
— O senhor poderia explicar isso melhor? — Josh pede.
— Acho que eu não preciso, né? As pessoas são inteligentes o suficiente
para descobrir por conta própria.
É a primeira vez que alguém menciona as atividades extracurriculares de
Naomi. Também não é a última.
Alguns colegas falam, alegando conhecer a verdade sobre Naomi. Ela
dormia com uma série de homens. Alguns eram clientes do hotel. Mas ninguém
menciona dinheiro, apenas sexo. Ela não era prostituta. Naomi era uma mulher
de vinte e sete anos que por acaso fez sexo com mais de um hóspede do
Lancaster.
O primeiro dos seus amantes a assumir o pecado não revela sua identidade.
Na tevê, ele aparece como uma silhueta e sua voz é modificada.
— Você já se hospedou no hotel Lancaster?
— Sim, já.
— E conhecia uma recepcionista chamada Naomi?
— Conhecia.
— E você fez sexo com ela?
— Fico envergonhado de dizer, mas fiz.
Então ele diz que Naomi é que foi a errada na história. A iniciativa foi dela.
Aí outro homem surge no enredo. E depois mais outros. Mais sombras, mais
vozes modificadas. Todos continuam anônimos. Nenhum dos homens que
dormiu com Naomi revela sua identidade. Não é porque eles são casados, pois
pelo menos dois dos amantes se identificam como solteiros ou divorciados.
Eles só não querem admitir que estão na lista dos homens de Naomi.
Ou na lista de conquistas. Alguém na tevê inventa esse nome.
No clube, a conversa começa a mudar. As pessoas param de dizer que aquilo
tudo é um absurdo e uma vergonha. Alguns até param de dizer que Owen é um
monstro. Em vez disso, as pessoas começam a se perguntar como é que Naomi
poderia ter se resguardado. Como é que ela poderia ter evitado ser a vítima.
Kekona é uma delas. As histórias sobre Naomi confirmam sua crença de que
a doença chega para aqueles que a procuram. E, na mente dela, sexo conta
como doença.
Nos jornais, não param de falar da vida pessoal de Naomi. Josh é o sistema
propulsor de todas as matérias, pois todos os amantes de Naomi conversam
com ele primeiro. Quanto mais eu assisto, mais hipnotizado fico. A imagem de
Naomi muda radicalmente em um piscar de olhos.
A primeira vez que tenho uma chance de discutir essa reviravolta com
Millicent é depois de termos levado Jenna para uma nova consulta no
psicólogo. Nós a deixamos de volta na escola, já que ela ia se encontrar com as
amigas para enfeitar o ginásio para um evento beneficente. Millicent então me
leva para o clube, onde o meu carro está estacionado. Ela liga o rádio e as
notícias explodem nos nossos ouvidos. O locutor diz que mais um homem, que
permanece anônimo como os outros, alega ter dormido com Naomi enquanto
estava hospedado no Lancaster. Já são sete agora.
— Fantástico — Millicent diz.
— Fantástico?
— Enquanto eles estiverem falando dela, ou de Owen, a gente não tem com
o que se preocupar.
Quero trazer Jenna para a conversa e discutir o quanto essa histeria pode
afetá-la. Ainda que meu maior desejo seja ver minha filha virgem para o resto
da vida, até eu posso perceber o quanto esse plano não é lá muito saudável.
Millicent estende sua mão e aperta a minha. — Você tinha razão em trocar.
Com Annabelle não seria a mesma coisa.
Isso é verdade. E faz com que eu aperte a sua mão também.
Eu subo para o quarto de Jenna para dar boa noite. Ela está deitada na cama,
lendo um livro de verdade, pois seu notebook está lá embaixo. Seu cabelo está
um pouquinho maior agora, e começa a ficar bastante estiloso, de acordo com
meus critérios. Ela me olha por cima do livro, perguntando sem perguntar o
que eu quero.
Eu me sento na ponta da cama.
— Você quer conversar, não é? — ela diz.
— Você está ficando muito mais esperta do que eu.
Jenna aperta os olhos. — Por que você está me elogiando?
— Viu? Muito mais esperta do que eu.
Ela abaixa o livro com um suspiro. Isso faz com que eu me sinta estúpido, o
que é muito comum quando estou perto dos meus filhos.
— Como você está? — eu pergunto.
— Bem.
— É sério. Pode falar comigo.
Ela dá de ombros. — Estou bem.
— Você gosta do médico?
— Acho que sim.
— Você não está mais com medo de Owen, né?
Outro encolher de ombros.
Nas últimas semanas, nossas conversas têm sido assim. Costumavam ser
diferentes. Jenna costumava me contar sobre as amigas e os professores — o
que essa fez ou o que aquela outra falou. Ela seguia tagarelando sem parar se
eu não a interrompesse.
Sei até da sua primeira paixão. Ele se senta na frente dela na aula de Inglês,
um dos motivos para Inglês ter se tornado a disciplina mais difícil para ela.
Agora ela não quer falar nada, e é por causa do psicólogo. Acho que ela está
cansada de falar.
Eu me inclino para beijar minha filha na testa. Quando abaixo o corpo,
alguma coisa brilha no canto do meu olho. Entre a cama e a mesa de cabeceira,
embaixo do colchão, um objeto pontiagudo. Eu reconheço da nossa cozinha.
Minha filha pegou outra faca e a escondeu embaixo do colchão.
Eu não digo nada.
Apenas dou boa noite e saio, fechando a porta sem fazer nenhum barulho.
Ao caminhar pelo corredor, passo pelo quarto de Rory e o escuto no telefone.
Estou prestes a entrar e mandá-lo dormir, mas então percebo que ele está
falando sobre Naomi.
É impossível manter as notícias longe desta casa.
Trinta e oito
Eu escondi algumas coisas de Millicent. Como a caminhonete quebrada de
vários anos atrás. E Trista. Não contei a ela que Trista namorou com Owen
Oliver Riley. Nunca mencionei que esse foi o motivo para ela ter largado Andy,
que esse foi o motivo para ela cometer suicídio.
E Petra. Seria pura idiotice mencionar Petra agora, a única mulher que
suspeitou da minha surdez. Realmente não vejo razão nenhuma para falar dela.
E Rory. Não mencionei a chantagem de Rory, porque isso levaria a Petra.
E, depois, temos Crystal.
Millicent nunca quis qualquer tipo de ajuda em casa — ela não confiava que
alguém fosse fazer a faxina do jeito que ela queria, assim como também não
queria uma estranha cuidando dos nossos filhos. A única vez que contratamos
uma pessoa foi para levar e buscar as crianças da escola para as suas diversas
atividades. Aconteceu há alguns anos, quando Millicent e eu estávamos tão
ocupados com o trabalho que simplesmente não conseguíamos dar conta do
serviço sem o mínimo de auxílio.
Isso foi logo depois de Holly ser morta. Mas antes do resto.
Crystal foi a pessoa que contratamos para transportar nossos filhos de um
lado para outro. Ela era uma jovem simpática que chegava sempre no horário e
tratava bem as crianças. Trabalhou para nós até Millicent decidir que não
precisávamos mais dela.
Antes da demissão, no entanto, ela me beijou.
Millicent estava em Miami para um congresso com um colega de trabalho
chamado Cooper. Nunca gostei dele.
Durante os três dias em que Millicent esteve fora, Crystal precisou trabalhar
mais do que o normal. Ela pegava as crianças na escola e fazia o jantar para
elas em casa. Uma tarde, nós dois estávamos sozinhos, e foi quando aconteceu.
Por volta do meio-dia, fui para casa almoçar e ela estava lá sozinha, porque
ainda não era hora das crianças voltarem da escola. Ela preparou alguns
sanduíches e comemos juntos enquanto conversávamos sobre a sua família.
Nada de muito animador, nada de extraordinário. Nada que me fizesse pensar
que ela estava flertando comigo. Depois de terminarmos de comer, esbarramos
um no outro no momento em que eu caminhava para a geladeira e ela seguia
para a pia.
Ela não se afastou.
E nem eu, para ser sincero. Talvez eu quisesse ver o que ela ia fazer.
Ela me beijou.
Eu me afastei. Naquela época, eu nunca tinha traído minha esposa. Sequer
pensava na possibilidade. Estava pensando em Millicent lá em Miami com seu
colega de trabalho.
Antes que eu pudesse falar qualquer coisa com Crystal, ela se desculpou e
saiu. Acho que nunca mais ficamos sozinhos em algum lugar.
Até encontrar com Millicent no aeroporto de Orlando, eu planejava contar
para ela. Mas decidi não correr o risco.
Estou pensando nisso agora porque acho que não sou o único escondendo
histórias por aqui. Acho que Millicent tem mentido para mim. A suspeita me
apareceu pela primeira vez quando Jenna ficou doente. Eu tinha acabado de
chegar em casa do trabalho e estava atrasado — precisávamos ir para uma festa
organizada por uma associação de corretores de hipotecas. Millicent estava
correndo, tentando se aprontar, Rory jogava videogame e Jenna vomitava no
banheiro.
Millicent foi à festa sozinha naquela noite. Eu fiquei em casa com Jenna.
Nós já levamos Jenna ao médico por causa do estômago antes. O médico da
família diz que eu me preocupo demais. Segundo ele, as crianças ficam mal do
estômago o tempo inteiro. Mas agora ela passa mal com uma frequência muito
maior, os seus problemas estomacais pioraram desde que Owen foi
ressuscitado. E essa reincidência me faz acreditar que o medo dela não está
melhorando. Pelo contrário, está deixando minha filha fisicamente doente.
Eu abro o calendário do meu telefone e tento descobrir quantas vezes ela
passou mal nos últimos meses. Um episódio que nunca me esqueço foi bem na
noite em que nós estávamos com Lindsay, quando deixei Millicent sozinha
com ela para cuidar de Jenna.
Desde que o corpo de Lindsay foi encontrado, eu penso naquela noite, no
que aconteceria se Jenna não tivesse ficado doente. Será que iríamos em frente,
será que mataríamos Lindsay já naquela noite? Ou será que Millicent iria me
contar seu plano de esconder Lindsay em um cativeiro?
E como foi que ela arranjou tempo para cuidar da própria vida? Ela fugia
bem no meio do trabalho? Como foi que ela vendeu todas aquelas casas e ainda
conseguiu manter Lindsay viva por um ano inteiro?
Muitas perguntas que eu não sei responder. Eu tenho segredos. Por que ela
não teria?
Minha primeira ideia foi realmente estúpida. Achei que poderia seguir
Millicent para descobrir o que ela estava fazendo, talvez até descobrir onde ela
está escondendo Naomi. Mas, assim que me convenço do plano, me dou conta
de que é impossível. Ela conhece muito bem o meu carro, ela inclusive sabe
qual é minha placa. Ela iria me reconhecer num segundo.
Além disso, preciso trabalhar. Meu trabalho é flexível, não é facultativo.
Mas, na verdade, eu não preciso ficar correndo atrás de Millicent, porque a
tecnologia pode fazer isso por mim. Cinco minutos de pesquisa na internet me
mostram que perseguir uma pessoa funciona exatamente como nos filmes.
Compro um rastreador com uma caixa imantada, aperto o botão de ligar e fixo
na parte de baixo do seu carro. Só preciso me conectar ao aplicativo no meu
telefone para ver onde o carro está. O aplicativo também registra os endereços
onde ela para, portanto não preciso acompanhar a movimentação vinte e quatro
horas por dia. Todo o sistema é inacreditavelmente barato, mesmo com a taxa
extra para as informações em tempo real. Espionar uma pessoa nunca foi tão
fácil.
Quer dizer, eu dou a impressão de que é fácil, e tecnicamente é, mas o
verdadeiro custo é o meu estado de espírito. E meu casamento.
Mesmo depois de comprar o aparelho, demoro um tempo com ele ainda
lacrado. Fica no porta-malas do meu carro, cavando um buraco no fundo da
minha mente. Não quero explodir o meu casamento nem minha família, que é o
que vai acontecer se Millicent descobrir essa minha pequena travessura.
Não quero vigiar minha esposa, mas quero saber o que ela anda fazendo.
Quando eu volto do trabalho, Millicent já está em casa e seu carro está na
garagem. Leva apenas um segundo para grudar o rastreador.
Mais tarde naquela noite, me ocorre que talvez exista alguma maneira dela
localizar um rastreador instalado no seu próprio carro. Toda tecnologia enfrenta
uma tecnologia contrária — pelo menos é o que me parece —, e por isso passo
uma hora no meu telefone investigando quais as chances de Millicent me
descobrir. E eu estou certo: ela pode me descobrir. Mas, primeiro, ela precisaria
ter alguma suspeita de que está sendo vigiada.
Olho para ela. Ela está sentada com Rory na mesa da sala de jantar e eles
estão preparando fichas para ajudá-lo a memorizar a matéria da aula de
História. Ele nunca foi um aluno exemplar porque, de acordo com os seus
professores, ele não se esforça o suficiente. Millicent concorda com eles, e
algumas vezes durante a semana ela o ajuda a estudar. Nada de telefones, nada
de distrações, nada além da lição de casa e da sua mãe. Nem mesmo eu sou
autorizado a interromper quando Millicent está estudando com Rory.
Depois de alguns minutos, ela sente que estou olhando para ela. Ela ergue o
olhar e pisca o olho. Eu pisco de volta.
Mais tarde naquela noite, eu retiro o rastreador do seu carro.
Na manhã seguinte, eu coloco de volta.
Trinta e nove
Quando estou observando alguma pessoa presencialmente, a sensação é de
intimidade. Elas não fazem ideia de que estão sendo observadas, por isso não
ficam reservadas ou constrangidas. Consigo aprender como elas caminham e
como é que elas mexem o corpo, seus cacoetes e gestos. Às vezes consigo até
prever qual movimento elas vão fazer depois.
Usar um rastreador é bem diferente, porque não estou observando Millicent.
Estou observando um pontinho azul se movendo em um mapa.
O aplicativo me informa para onde ela vai — o endereço, a latitude e a
longitude. Sei quanto tempo ela fica no lugar, com qual velocidade ela dirige,
sei exatamente onde ela estaciona. O aplicativo dispara tabelas e gráficos e
então me diz quanto tempo ela gasta dirigindo, sua velocidade média e o tempo
médio em cada localidade. Tento imaginar Millicent atrás do volante, vestida
para o trabalho, talvez falando ao telefone ou ouvindo uma música. Eu me
pergunto se ela tem alguma mania secreta. Talvez ela cante quando está
sozinha. Ou talvez fale sozinha. Nunca a vi fazendo essas coisas, mas não é
possível que ela não faça. Todo mundo faz alguma coisa diferente quando fica
sozinho.
No primeiro dia, ela larga as crianças na escola e vai para o escritório. Ela
trabalha em uma imobiliária, mas não passa muito tempo sentada em frente a
uma mesa. Logo em seguida, ela vai até Lake Circle, em um endereço
residencial ainda dentro de Hidden Oaks. E, no decorrer das próximas oito ou
nove horas, ela visita onze imóveis, todos à venda. Eu verifico cada um. Ela
busca as crianças, para em uma loja e volta para casa.
A grande surpresa é onde ela parou para almoçar. Em vez de pegar uma
salada, um sanduíche ou mesmo um fast-food, Millicent almoçou em uma
sorveteria.
Pelo resto da tarde, fico me perguntando se ela pediu uma casquinha ou uma
taça completa.
Nosso jantar é peru assado com chouriço e batata-doce. Rory evita falar
sobre a nota da sua prova de História contando uma interessante fofoca sobre
um garoto que foi pego fumando e saiu correndo antes que alguém pudesse
identificá-lo. Jenna ouviu a mesma história, mas a amiga de uma amiga disse
que o cara era o filho do diretor-assistente e que foi por isso que ele saiu
correndo.
— É mentira — Rory diz. — Ouvi falar que foi Chet.
Jenna torce o nariz. — Ele é um babaca.
— Chet Allison? — Millicent pergunta. — Eu vendi a casa da família
Allison.
— Não. Chet Madigan.
— Tem dois Chets na sua escola? — ela pergunta.
— Três — Jenna diz.
Temos um silêncio na conversa. Eu pondero sobre a abundância de Chets
enquanto espio o jantar de Millicent. O prato tem no momento uma fatia grossa
de peru, uma porção de chouriço e uma batata-doce minúscula. É um jantar de
tamanho normal para os seus padrões. A sobremesa são frutas com biscoito de
gengibre. Nada de sorvete.
De repente me vejo fascinado pelos hábitos alimentares da minha esposa. Eu
me pergunto se o seu almoço sempre determina o que vamos comer no jantar
ou na sobremesa, ou em ambos.
Sigo o ponto azul de novo no dia seguinte.
Millicent deixa as crianças, mas a carona da volta é minha, e nesse meio-
tempo ela fica dentro de uma casa no condomínio fechado Willow Park. Hoje
ela ainda vai ao escritório, mas não sai para o almoço. Ela mais uma vez passa
o dia dentro de um pequeno raio de ação, concentrada em áreas e subdivisões
onde ela vende a maioria de suas casas.
Em contraste, a polícia ampliou sua busca. À noite, depois de Millicent
dormir, eu assisto o jornal no meu celular dentro do banheiro, porque se eu for
à garagem meu filho vai pensar que ainda estou traindo a mãe dele.
Josh agora começa suas reportagens anunciando o número de dias desde o
desaparecimento de Naomi. Ele chama isso de “A Contagem”, e atualmente
está em vinte e dois. Vinte e dois dias se passaram desde a sexta-feira 13 e Josh
ainda está acompanhando a polícia em prédios abandonados, galpões e
depósitos. Um especialista diz que essa estratégia das autoridades é
provavelmente inútil, pois Owen está acompanhando as notícias e, portanto,
Naomi não deve estar trancafiada em um prédio, galpão ou depósito
abandonado. Sem falar que na realidade é possível manter uma mulher presa
em qualquer lugar. Um quarto, um contêiner. Um guarda-roupa.
A reportagem termina em poucos minutos. Costumava ocupar metade do
noticiário da noite. Mas a história começa a perder força porque nada de novo
aconteceu e Naomi não é mais a garota que todos conhecem. Ela foi
desmoralizada. Os espectadores perderam a paciência.
E eu fiquei hipnotizado pelo ponto azul. Em todos os meus anos de casado,
nunca me perguntei quanto tempo leva para Millicent mostrar uma casa para
um cliente ou quanto tempo ela leva para almoçar ou quantas casas ela visita
por dia. Agora que eu posso vigiá-la, toda sua rotina se tornou uma grande
interrogação.
Eu verifico o aplicativo a cada oportunidade que tenho. Antes e depois das
aulas de tênis, quando estou no meu carro, no salão do clube, no vestiário.
Nenhum sinal de Naomi. Millicent não visita nenhum prédio incomum ou
algum estabelecimento abandonado, e suas casas ainda estão à venda. Ela vai
ao mercado, vai à escola e também ao banco para fechar um financiamento.
Depois de quatro dias, começo a me perguntar se Naomi já não está morta.
Por mais perturbadora que seja essa perspectiva, acho que pode ser o melhor
cenário.
Se ela estiver morta, sem chance de ser ouvida ou encontrada, Owen pode
desaparecer junto com ela. E, quando ele sumir do noticiário, será como se ele
nunca tivesse retornado.
Trista continuará morta. Não há nada que possa ser feito quanto a isso. Mas
Jenna não vai mais sentir medo. Ela vai parar de pensar em Owen Oliver.
E então, daqui a um ano, Owen voltará ao noticiário. O aniversário do
evento será marcado com documentários, reportagens especiais e
reconstituições dramáticas, mas eles não vão ter nada de novo para noticiar.
Vamos ouvir as histórias sobre Naomi e sobre os homens nas sombras com
suas vozes distorcidas.
Mais uma vez, Owen vai desaparecer. Naomi irá com ele.
Jenna estará um ano mais velha e falando sobre garotos. Seu cabelo já vai ter
crescido, e ela não estará com uma faca guardada embaixo do colchão.
Enquanto os dias passam, começo a pensar que tudo isso já é uma realidade.
Que Naomi não está mais viva e que Millicent não está torturando a nossa
recepcionista, que minha esposa nunca mais fez nenhuma visita inesperada a
ela. A polícia ainda não descobriu nada. Todos os nossos crimes vão
gradualmente desaparecer até todo mundo se esquecer por completo.
Com um sorriso, eu observo o ponto azul. Millicent passa em casa à tarde,
deixa as crianças e então sai outra vez. Ela para em uma cafeteria, e eu sei que
ela está pedindo café com leite e baunilha. Talvez com uma dose extra de
baunilha, mas é difícil saber tendo só um pontinho no mapa.
Estou tão ocupado seguindo Millicent que perco o plantão de notícias na
televisão. Uma mulher alega que Owen Oliver Riley a atacou.
Quarenta
A primeira vez que ouço falar nessa mulher é quando estou na loja de
conveniência. Eles têm uma televisão em cima da máquina de refrigerante,
visível a todos na loja, inclusive pelos espelhos de segurança. O aviso de
Notícia Urgente ocupa boa parte da tela, mas não presto atenção até Josh
aparecer na tela. Ele diz que uma mulher resolveu se pronunciar com a
alegação de que foi atacada por Owen Oliver Riley.
Ela não aparece na tevê, nem mesmo nas sombras. Por enquanto, ela é
apenas um depoimento colhido pela polícia. O texto aparece na tela, e uma
repórter o lê em voz alta.

Na noite de terça-feira, eu me tornei a última vítima de Owen Oliver Riley,


mas pela graça de Deus consegui escapar. Sou uma cabeleireira e, depois do
trabalho, fomos todos ao outro lado da rua para beber alguma coisa. Mais
tarde naquela noite eu estava em um bar lá na Mercer Road, mas resolvi ir
embora, porque tinha que trabalhar no dia seguinte. Isso foi por volta das onze
da noite e eu me lembro disso porque alguém falou o horário e eu achei que
era melhor ir embora logo, por isso eu resolvi voltar para casa. Estacionei o
carro nos fundos, e sequer estava escuro por causa das luzes, a lua estava até
muito clara, talvez fosse lua cheia, mas eu não olhei. Era claro o suficiente
para andar sozinha, então foi o que eu fiz. Sinceramente, eu nem pensei em
Owen. Ele nem passou pela minha cabeça.
Bom, eu estava a alguns metros do meu carro quando senti uma coisa me
puxar. Parecia que minha bolsa tinha ficado presa em algum lugar, a alça. Não
foi forte, não me assustou, eu só parei e puxei de volta, e definitivamente ela
tinha ficado presa em algo. Então eu me virei.
Ele estava lá parado, segurando a alça da minha bolsa. Foi isso que a
prendeu. A mão de Owen.
Eu sabia que era ele, mesmo ele estando com um boné com uma aba tão
baixa que cobria metade do rosto. Porque eu ainda conseguia ver a boca dele.
O sorriso dele. Todo mundo conhece aquele sorriso, está toda hora no
noticiário, porque ele sorriu na foto da polícia, e foi como eu soube que era
definitivamente ele. E foi por isso que eu larguei a bolsa e saí correndo.
Não consegui ir muito longe antes dele me derrubar. Foi como eu fiquei com
esses arranhões todos, tentando sair de baixo dele. Mas eu não conseguia,
porque ele era forte demais e, toda vez que eu tentava me mexer, ele me
segurava com mais força.
Eu só estou viva por causa do meu telefone. Meu irmão ligou, e eu sabia que
era ele por causa do toque. Eu personalizo todos os meus toques porque eu
gosto de saber quem está ligando, entende? O toque do meu irmão é como uma
explosão, porque ele é meio assim, uma grande explosão. Sua vida parece que
está sempre explodindo e, quando isso acontece, ele me liga. Mas não posso
mais reclamar porque a vida maluca dele e aquele toque são os motivos de eu
estar aqui. O som da explosão foi tão alto que fez Owen dar um pulo. Sua
cabeça balançou para os lados, e acho que ele pensou que alguma coisa
realmente tivesse explodido.
Aí eu fiz força para me levantar e fui correndo direto para o bar, e ainda
bem que ele não me seguiu.
Acho que ele não percebeu que não teve explosão nenhuma. Talvez ele ainda
pense que foi alguma coisa que eu fiz.

Este é o fim da declaração, ou pelo menos é a única parte que foi lida no
jornal. As palavras desaparecem da tela, e Josh retorna. Ele está em pé no
estacionamento atrás daquele bar na Mercer Road. Eu tinha uns vinte anos na
última vez que eu fui nesse bar. Naquele tempo, eles eram conhecidos por não
pedir identidade.
Josh parece sério. Triste. Ele está melhorando, porque já não fica mais tão
arrebatado diante de uma tragédia. Ele chama a tal mulher de vítima anônima.
— Com licença.
Uma senhora mais velha passa por mim. Eu ainda estou parado em pé na
loja de conveniência, bem ao lado da máquina de refrigerante, olhando para a
televisão. A única pessoa assistindo, além de mim, é o cara do caixa. Não é
Jessica desta vez, a caixa com quem eu normalmente converso. Este cara tem
uma cabeça toda lisa, que brilha sob as luzes fluorescentes.
Ele olha para mim e balança a cabeça, como quem diz “Que coisa horrível,
não é? Que absurdo, não é?”.
Eu concordo em silêncio ao comprar o meu habitual café e um pacote de
batatinhas sabor churrasco.
É assim que a vida com Millicent sempre foi. A vida segue do jeito que deveria
ser, um passeio geralmente tranquilo com um solavanco ou outro lá no meio do
caminho. E então de repente o chão se abre e estamos olhando para um abismo
grande o bastante para engolir o mundo inteiro. Às vezes o que está lá embaixo
é bom, às vezes é até ótimo. Outras vezes é um pouco mais complicado.
Isso aconteceu quando ela me disse que Holly estava viva. Aconteceu
quando ela bateu na cabeça de Robin com a máquina de waffles. E de novo
quando ela ressuscitou Owen.
Esses são os eventos gigantescos, onde o abismo se torna maior do que a
própria terra. Nem todos os nossos abismos foram tão grandes assim. Às vezes
o abismo só é grande o bastante para me engolir, como na vez em que ela foi
embora com as crianças e desapareceu por oito dias depois de me ver voltando
para casa bêbado.
E temos ainda as rachaduras. Quando o chão se abre, surgem fissuras.
Algumas são maiores do que outras, como Jenna colocando uma faca embaixo
do colchão. Ou o suicídio de Trista. Todas têm tamanhos diferentes — curtas,
compridas, uma variedade de larguras —, mas se derivam do mesmo abismo.
A primeira rachadura se abriu no dia do nosso casamento.
Millicent e eu nos casamos na casa dos pais dela, em um campo cercado de
coentro, alecrim e orégano. Ela usou um vestido branco de renda que ia até
seus tornozelos e na cabeça tinha uma grinalda feita em casa, enfeitada com
narcisos e lavanda. Eu usei uma calça cáqui enrolada até os calcanhares e uma
camisa social branca para fora da calça, e nós dois estávamos descalços. Foi
perfeito, até não ser mais.
Oito pessoas foram ao nosso casamento. Os três amigos com quem viajei
para o exterior estavam lá, incluindo Andy. Trista não estava. Eles já estavam
namorando, mas ainda não estavam casados, e Andy não se sentia preparado
para dar ideias a ela. Abby e Stan, os pais de Millicent, estavam lá, e também
uma amiga de colégio de Millicent. Os dois últimos eram vizinhos nossos.
A cerimônia foi apenas isso: um ato, um ritual. Nem eu nem Millicent
éramos religiosos, nós íamos nos casar no civil na segunda-feira seguinte, na
prefeitura de Woodview. Poucos dias antes da data marcada, nós fingimos nos
casar, com o pai de Millicent assumindo o papel de padre. Stan parecia muito
sério e oficial com uma camisa xadrez abotoada até o pescoço e seus ralos
cabelos grisalhos penteados com gel. Ele ficou em frente ao seu jardim com um
livro nas mãos. Não era a Bíblia, era apenas um livro normal, e ele quase disse
as palavras certas.
— Senhoras e senhores, esse rapaz quer se casar com a minha filha hoje, e
eu acho que ele precisa provar o seu valor — Stan fingiu me olhar atravessado.
— Então vamos ouvir o que ele tem a dizer.
Eu tinha escrito e reescrito meus votos uma dezena de vezes, sabendo que eu
precisaria falar aquelas palavras em voz alta. As outras pessoas não me
incomodavam nem um pouco. Eu estava nervoso era de ler para Millicent.
Respirei fundo.
— Millicent, não posso lhe prometer o mundo. Não posso prometer que vou
comprar uma mansão, um carro de luxo ou um anel de diamante gigante para
você. Não posso nem prometer que sempre teremos comida na mesa.
Ela ficou me olhando, sem piscar. Sob o sol intenso, seus olhos pareciam
cristais.
— Espero poder te dar todas essas coisas, mas não faço ideia se isso será
possível. Não sei o que estará no nosso futuro, mas sei que vamos estar juntos.
É o que eu posso lhe prometer sem hesitar, sem medo algum de estar mentindo.
Sempre vou estar aqui para você, com você, perto de você — dei um pequeno
sorriso, porque vi uma lágrima no seu olho. — E espero que a gente tenha o
que comer.
Oito pessoas riram. Millicent apenas acenou com a cabeça.
— Muito bem — Stan disse, virando-se para a filha. — Acho que agora é
sua vez. Nos convença que este é o homem certo para você.
Millicent ergueu a mão e tocou meu rosto. Ela se inclinou, pôs os lábios bem
ao lado do meu ouvido e sussurrou: — É melhor você se preparar.
Quarenta e um
No jantar, ninguém menciona o noticiário ou a tal vítima anônima. Ela está
entre nós, mas não reconhecemos sua presença. Então falamos sobre uma
celebridade que foi internada em uma clínica de reabilitação. De novo.
Falamos sobre um jogo de futebol americano que eu não acompanhei.
Falamos sobre qual filme vamos assistir na noite de cinema. Rory quer ver
uma comédia de universitários e Jenna prefere uma comédia romântica.
A única notícia cotidiana que discutimos é um tiroteio em um shopping num
estado próximo.
— Muito louco — Rory diz.
Jenna aponta para ele com o garfo. — É você quem gosta de jogo de tiro no
videogame.
— A palavra-chave é “videogame”.
— Mas você gosta.
— Cala a boca.
— Cala a boca você.
— Acabou essa conversa — Millicent diz.
Silêncio.
Quando o jantar termina, os dois sobem e se retiram para seus quartos.
Millicent e eu olhamos um para o outro. Ela aponta para mim, pronunciando
as palavras com a boca em silêncio: — Foi você?
Ela está perguntando se eu fui a pessoa que atacou a vítima anônima. Eu
balanço a cabeça e aponto para a garagem.
Depois de lavar a louça e colocar as crianças para dormir, saímos e nos
sentamos dentro do carro. Millicent traz o que sobrou dos doces de Halloween,
e dividimos uma garrafa de água com gás. Ela está usando uma brilhosa blusa
azul com mangas curtas. Acho que é nova, porque naquele dia mais cedo eu vi
que ela parou o carro no shopping.
— Você não teve nada a ver com essa mulher? — ela pergunta.
— Absolutamente nada. Eu não faria uma coisa dessas sem contar para você
— pelo menos eu acho que não faria.
— Tomara.
— E não faria nada que fosse deixar Jenna mais assustada.
Millicent concorda: — Eu não precisava perguntar.
— Talvez seja mentira dessa mulher — eu digo.
— É possível. Ou talvez ela tenha sido atacada por um cara qualquer e achou
que fosse Owen. Nós não sabemos o que ela viu.
— Existe uma terceira opção — eu digo.
— Existe?
Eu abro um chocolate, quebro a barra em dois pedaços e dou metade para
ela. — E se ele voltou de verdade?
— Owen?
— Claro. E se tiver sido ele?
— Não foi.
— Como você sabe que não foi?
— Porque seria burrice. Por que é que ele ia voltar logo quando está todo
mundo atrás dele?
— Bem pensado.

Estou de volta ao consultório bege, esperando Jenna terminar a sessão com o


psicólogo. O doutor ligou depois de ouvir falar sobre a vítima anônima,
dizendo que recomendava uma sessão extra. Ele está preocupado que este novo
ataque possa fazer Jenna regredir. Não sei se ela progrediu o suficiente para
regredir, mas eu a levo na consulta mesmo assim. Millicent diz que não pode ir,
por isso fico sentado na sala de espera observando o pontinho azul. Minha
mulher está em uma casa na Danner Drive, uma casa que está à venda por
quase meio milhão de dólares.
Depois ela vai até uma padaria.
Às vezes ela sai para almoçar com os clientes, mas nunca aconteceu do
destino ser uma padaria.
Millicent está apenas a alguns minutos do consultório, mas não passa aqui.
Ela vai à padaria, e ainda está lá quando a porta do consultório se abre e Jenna
sai. Minha filha não parece nem feliz nem triste, que é mais ou menos como ela
estava quando entrou.
É sua vez de esperar enquanto eu falo com o doutor. Dr. Bege. Para mim ele
é sempre o Dr. Bege. O nome não é nem justo nem correto, porque apenas seu
consultório é bege. Sua personalidade não é. O doutor é um babaca colorido e
arrogante. Jamais conheci um doutor que fosse diferente.
— Que bom que eu pedi para Jenna vir aqui — ele diz. — Esse novo ataque
foi uma surpresa e tanto.
O Dr. Bege não diz que Jenna ficou surpresa, mas é o que ele quer dizer. É
assim que ele distorce o sigilo médico-paciente. — Foi mesmo uma surpresa
— eu digo.
— O importante é deixar claro para ela que nada mudou. Que ela está
segura.
— Ela está segura.
— Claro.
Nós nos encaramos.
— O senhor percebeu qualquer mudança no comportamento dela? — ele
pergunta. — Qualquer tipo de mudança.
— Na verdade, eu queria lhe perguntar uma coisa. Jenna tem tido alguns
problemas estomacais. Geralmente uma náusea.
— E isso começou quando?
— Não faz muito tempo, e tem piorado. É possível que isso esteja
relacionado?
— Ah, sem dúvida nenhuma. O estresse mental com certeza pode se
manifestar em problemas físicos. Houve mais alguma coisa?
Eu finjo pensar, então balanço a cabeça e digo: — Não, acho que não.
Eu me pergunto se ele consegue notar que eu estou mentindo. Não falei para
ninguém da faca debaixo da cama.
Nossa conversa termina quando meu celular vibra. Millicent.
Desculpa por não poder estar aí, como foi?

Seu ponto azul está saindo da padaria.


Jenna está na sala de espera, rabiscando em um caderno enquanto assiste um
programa de entrevistas. Seu cabelo curto faz seus olhos parecerem enormes, e
ela está usando uma camiseta de mangas longas com uma calça jeans e tênis.
Digo a ela que vamos comer alguma coisa antes de buscar seu irmão. Ela sorri.
A Joe’s Deli fica a sete minutos de carro segundo minhas estimativas.
Quando entro no estacionamento, Millicent já saiu há tempos. A padaria é um
lugar que certamente já teve dias melhores, talvez por conta da localização. Ela
fica na parte mais antiga da cidade, que vem perdendo a batalha contra as áreas
mais novas e reluzentes.
Lá dentro, o salão é iluminado de um jeito que vemos os arranhões na
bancada e no vidro do balcão sem dificuldade nenhuma. Os frios, os queijos e
as saladas prontas parecem um tanto quanto deformados. Somos os únicos na
padaria, e o ambiente fica em silêncio até Jenna girar o expositor de
salgadinhos, que range, talvez por causa da ferrugem. Uma mulher aparece,
como se estivesse sentada e de repente precisasse pular para se levantar. Ela é
corpulenta, loira e parece cansada, mas, quando ela sorri, todo seu rosto se
ilumina.
— Bem-vindos à Joe’s — ela diz. — Meu nome é Denise.
— Prazer, Denise — eu digo. — É a primeira vez que a gente vem aqui.
Qual a especialidade da casa?
Ela ergue o dedo, pedindo para que eu espere, e desaparece atrás do balcão.
Sua mão desliza dentro de um dos balcões envidraçados e ela pega um prato de
frios fatiados. Ela põe na nossa frente.
— Peito de peru caramelado com pimenta. Um pouquinho açucarado, um
pouquinho apimentado. Nada exagerado.
Eu olho para Jenna.
— Legal — ela diz.
Pedimos dois sanduíches, o dela em um pão de sete grãos, o meu em um pão
cervejinha, ambos somente com alface e tomate. — Vocês têm que poder sentir
o gosto do peru — a mulher diz.
A Joe’s Deli tem um pátio ao lado, que não é visível do estacionamento. Eles
mantêm algumas mesas espalhadas em uma área murada ao ar livre. É limpo e
arrumado, mas sem personalidade. Depois de um minuto, não importa mais,
porque o peito de peru é realmente muito bom. Até Jenna está comendo.
— Você achou esse lugar na internet? — Jenna pergunta.
— Não. Por quê?
— Parece o tipo de coisa que você faria. Procurar lanchonetes estranhas.
— Não é estranha. É gostosa.
— Minha mãe ia odiar — ela diz. — Não é orgânico.
— Não conte para ela que a gente veio aqui.
— Você quer que eu minta?
Eu ignoro sua pergunta. — O que você acha do doutor? Ele tem ajudado?
Ela dá de ombros. — Acho que sim.
— Ainda está assustada?
Jenna aponta. Pela porta lateral da padaria, ela consegue ver a televisão por
cima do balcão de vidro. A mulher loira está sentada em uma cadeira perto da
caixa registradora, assistindo o noticiário. A chamada do jornal diz que a
vítima anônima vai participar de uma entrevista coletiva amanhã.
Quarenta e dois
Millicent e eu estamos parados no estacionamento vazio do shopping Ferndale.
O único ruído vem da rodovia atrás da gente. É noite de sexta-feira, e Jenna
está em uma festa do pijama enquanto Rory foi jogar videogame com um
amigo.
A entrevista coletiva da vítima anônima terminou há uma hora. Millicent e
eu assistimos em um restaurante popular, que também funciona como barzinho,
anexo ao shopping. A coletiva foi transmitida em todos os canais. A última
reviravolta no nosso novelão policial se tornou um evento social de sexta-feira
à noite, com direito a frango frito e cerveja. Assistimos com outro casal, os
Rhineharts, e eles acreditam em cada palavra que a suposta vítima disse.
Millicent está encostada no carro, com os braços cruzados sobre o peito, uma
mecha de cabelo flutuando por causa da brisa. Ela sempre escolhe a roupa certa
para cada ocasião, mesmo que essa ocasião não seja mais do que um encontro
tenso no bar. Sua calça jeans preta combina muito bem com sua camiseta, onde
se lê WOODVIEW UNIDA, um slogan que surgiu desde o desaparecimento de Naomi. O
seu cabelo está preso em uma trança, com exceção daquela única mecha.
Ela sacode a cabeça. — Não gosto dela — ela diz. — Não gosto da história
dela.
Penso em Lindsay no cativeiro. Talvez Millicent também não gostasse dela.
— Não importa — eu digo.
— Nós não sabemos ainda se importa ou não.
— E daí...
— Nós temos que saber mais — ela diz.
— Você não está pensando...
— Não estou pensando em nada.
Ficamos em silêncio por um segundo até Millicent se virar e abrir a porta do
meu carro. Apenas observo enquanto ela se senta no banco do passageiro. Ela
fecha a porta e olha para mim. Continuo paralisado. Quase posso ouvir seu
suspiro quando ela abre a porta e sai do carro de novo. Ela está usando sapatos
com saltos de borracha, e eles não fazem nenhum barulho apesar dos seus
passos rápidos na minha direção.
Colocando as mãos no meu peito, ela me olha nos olhos.
— Ei — ela diz.
— Ei.
— Está tudo bem?
Dou de ombros.
— Quer dizer que não está — ela diz.
É minha vez de suspirar. Ou bufar. Respirar com força. Alguma coisa. —
Nós estragamos tudo, você sabe disso — eu digo.
— Estragamos?
— Acho que sim.
— Me explica então.
Não sei nem por onde começar: a situação está absolutamente confusa, e não
quero falar alguma coisa errada. Como Petra, que eu nunca mencionei. Ou a
chantagem de Rory. Ela sabe sobre Jenna, mas não sabe de tudo. O suicídio de
Trista. O rastreador no seu carro. A Joe’s Deli.
Millicent não sabe da metade. E, ainda assim, eu me sinto como se nosso
abismo estivesse em pleno movimento de expansão.
— Esse negócio de Owen — digo enfim. — Saiu do controle.
— Não acho.
— E quanto a Jenna?
— Eu devia ter percebido isso antes.
Sua resposta me surpreende. Não é toda hora que ela comete um erro, muito
menos admite. Por causa disso, eu resolvo não contar a ela o que o Dr. Bege
disse. Não parece ser um bom momento para dizer que toda essa história está
deixando Jenna fisicamente mal.
Somos iluminados pelos faróis de um carro que dobra a esquina do
shopping. Quando ele se aproxima, vejo que não é um carro de verdade. Os
veículos usados pelos seguranças do shopping são carrinhos de golfe, e este
carrinho em particular é dirigido por uma mulher de meia-idade. Ela para e nos
pergunta se está tudo bem.
Millicent acena para ela. — Sim, tudo certo aqui. Meu marido e eu só
estamos conversando sobre as notas do nosso filho.
— Ah, eu entendo. Eu tenho três.
— Então você realmente entende bem.
A segurança concorda com a cabeça. Ela e minha mulher trocam sorrisos
como se alguma grande compreensão maternal atravessasse as duas.
— Mas infelizmente vocês precisam sair, tá? O shopping já fechou.
— Sim, claro, obrigada. Nós já vamos embora — Millicent diz.
A segurança espera enquanto nós entramos no carro e saímos. Quando
paramos em um sinal vermelho, Millicent põe a mão no meu braço. — Estava
pensando em matricular Jenna em uma aula de defesa pessoal. Acho que isso
vai dar mais autoconfiança para ela.
— É uma boa ideia — e é mesmo.
— Pode deixar, vou ver isso amanhã.

A parada de Millicent na Joe’s Deli não é um fato isolado. Ela vai novamente
no dia seguinte, na hora do almoço, e fica quarenta minutos antes de sair para
mostrar uma casa. Nenhuma das outras paradas é fora do seu roteiro habitual.
Ela até procura por duas escolas de artes marciais para Jenna e me fala sobre
elas depois do jantar, quando estamos sozinhos no quarto.
— Uma das escolas ensina taekwondo competitivo. Eles têm torneios e
equipes, e competem por medalhas. Mas tem outra no Centro, de krav maga. É
um pouco mais cara, mas é mais voltada para defesa pessoal.
— Ela podia experimentar as duas, vamos deixá-la escolher qual ela gosta
mais.
Millicent se aproxima e me beija no nariz.
— Você é tão esperto.
Eu reviro os olhos. Ela dá uma risadinha.
Ela não menciona a padaria ou a loira corpulenta com seu grande sorriso.
Tento descobrir uma maneira de falar sobre o que ela comeu no almoço sem
necessariamente perguntar, do nada, “o que você comeu no almoço hoje?”.
Mas não sou tão esperto quanto Millicent diz porque, quando começo a
tagarelar sobre como o meu almoço estava bom, ela não morde a isca. Apenas
concorda com gestos e sorri enquanto se apronta para a cama, agindo como se
tivesse interesse no meu longo monólogo sobre um almoço fictício. Vamos
dormir sem falar nada sobre a Joe’s Deli.
No meio da noite, eu me levanto e desço até a biblioteca. Chamamos de
biblioteca porque enchemos essa saleta de estantes, livros e uma grande mesa
de mogno, mas só entramos ali para ligações telefônicas mais delicadas.
Também comecei a usar a sala para navegar na internet com alguma
privacidade.
A Joe’s Deli abriu há vinte e dois anos. O negócio teve dois donos, sem
nenhuma relação de parentesco um com o outro, e a padaria sempre funcionou
no mesmo prédio. Um edifício alugado, não comprado. Eles nunca tiveram
nenhum problema a não ser um processo de um homem que escorregou e caiu
e alegou que o chão estava molhado. Essa ação foi resolvida com um acordo
extrajudicial. Fora isso, nenhum outro crime, denúncia ou séria violação das
regras da vigilância sanitária. A Joe’s Deli é exatamente o que se parece: uma
padaria genérica. O fato de ser tão normal faz a coisa toda parecer suspeita.
Millicent não tinha motivo nenhum para ir lá uma vez, muito menos duas.
Os mapas de satélite da área mostram um prédio localizado no que
costumava ser uma via muito mais movimentada. Atravessando a rua, há uma
pequena revenda de automóveis. Ao lado dela, uma loja de material hidráulico
e, mais à frente, uma oficina mecânica.
Se ela tivesse parado lá apenas uma vez, poderia ter sido algo aleatório. Um
lugar fora de mão que alguém indicou e ela resolveu experimentar, mas que ela
logo percebeu não fazer o seu tipo. E eu até estaria disposto a acreditar que ela
parou na Joe’s porque estava com sede e aquele era o único lugar aberto, ainda
que ficasse a quilômetros da sua área de trabalho. Eu acreditaria em
praticamente qualquer motivo isolado que justificasse aquela primeira parada
na Joe’s. Se ela não tivesse voltado lá dois dias depois.
Ela tem algum outro motivo para ir à padaria. No início, achei que fosse
Naomi — talvez ela estivesse escondida naquela região —, mas Millicent não
parou em nenhum outro lugar por perto. Não há prédios abandonados ou
empresas fechadas naquela área, nenhum lugar para onde ela pudesse ir a pé do
estacionamento da Joe’s.
Não faz nenhum sentido. A não ser que ela tenha passado a gostar de
sanduíches vagabundos e sem ingredientes orgânicos.
E eu sei que não foi isso que aconteceu.
Quarenta e três
Depois de Holly, nunca me ocorreu que teríamos outra. Até Robin aparecer na
porta da nossa casa ameaçando arruinar tudo se a gente não pagasse um bom
dinheiro para ela.
Depois de Robin, nunca me ocorreu que teríamos mais uma. Até eu querer
fazer de novo.
A ideia esteve circulando por um tempo, primeiro na festa de ano-novo,
quando Millicent e eu falamos sobre outras mulheres. A conversa continuou ao
longo dos meses seguintes, a ponto de procurarmos possíveis vítimas na
internet. A atividade se tornou o nosso melhor afrodisíaco.
Discutíamos sobre como iríamos matar todas aquelas mulheres e como nós
iríamos escapar sem correr risco nenhum, e aquelas noites sempre acabavam
com um sexo incrível. Sexo selvagem. Em qualquer lugar que conseguíssemos
fazer, desde que as crianças não estivessem por perto. Quando elas estavam em
casa, a gente se esforçava para não fazer barulho.
Era quase como subir uma escada. A gente brincava com o assunto e
fantasiava sobre, depois escolhia o alvo e vinha a fase do planejamento. Cada
vez que a gente subia um degrau, a gente pisava de leve no próximo. E então
um de nós sugeriu fazer de verdade. Fui eu.
Falei quando nós estávamos na cozinha. Era perto do meio-dia, e estávamos
pelados em cima dos azulejos frios. Tínhamos acabado de encontrar Lindsay na
internet. Nós dois concordamos que ela era perfeita.
— A gente deveria fazer de novo — eu disse.
Millicent riu. — Mas acabamos de fazer.
— Não isso. Bom, sim, isso também, mas não foi o que eu quis dizer.
— Você quis dizer que a gente deveria matar Lindsay.
Eu hesitei. — Acho que sim. É, eu quis dizer exatamente isso.
Millicent olhou para mim com um misto de surpresa e alguma coisa a mais.
Na hora, eu não consegui decifrar. Agora, acho que foi interesse. Ou
curiosidade. Mas não era aversão. — Eu me casei com um psicopata? — ela
disse.
Eu ri. Ela também.
A decisão estava tomada.
Millicent nunca me jogou aquela conversa na cara, nunca disse que foi
minha ideia. Nunca disse que foi minha culpa. Mas eu sei que foi. Se não fosse
por mim, não haveria Lindsay, Naomi, e Owen não estaria de volta. Nossa filha
ainda teria cabelos compridos e sedosos e não teria uma faca escondida
debaixo do colchão.
Ou talvez tenha sido Millicent. Talvez ela tenha me manipulado o tempo
todo.
Já não sei mais.
Mas, alguns dias mais tarde, eu fui novamente lembrado da nossa decisão. E
das consequências indesejadas do que nós fizemos.
A escola de artes marciais deixou Jenna assistir uma aula de iniciantes para
ver se ela gostava. Primeiro, fomos ao taekwondo. Meia hora depois, Jenna fez
que não com a cabeça e saímos. Ela não quer participar de competições nem
ganhar medalhas ou troféus. Jenna só quer se defender de Owen.
Na tarde seguinte, levei minha filha ao krav maga. Ao contrário do
taekwondo, a escola de krav maga não exige uniformes ou faixas, e Jenna
gostou muito mais disso do que do quimono branco que todos no taekwondo
eram obrigados a usar. Jenna preferiu usar sua calça de moletom e uma
camiseta.
Nunca imaginei que ela machucaria seu parceiro de treino, muito menos que
ela iria nocauteá-lo.
Tudo aconteceu tão rápido que ninguém viu. Nem mesmo eu, e olha que eu
estava bem próximo assistindo Jenna de uma fileira de cadeiras reservadas aos
pais. Em determinado momento, ambos estavam de pé e o garoto mostrava
para ela como desferir corretamente um golpe. Na sequência ele já estava caído
no chão, gritando de dor.
Algumas gotas de sangue pingaram no tatame, e todo mundo se apavorou.
— Mas o quê...
— Como é que...
— Aquilo ali é uma pedra?
Uma mãe de macacão turquesa apontou para Jenna.
— Foi ela. Ela bateu nele com uma pedra.
Um pandemônio tomou conta do lugar, com muito mais gritos e acusações
graves.
Demorou algumas horas para resolver, em parte porque a mãe do garoto
chegou e começou a gritar, perguntando por que ninguém tinha chamado uma
ambulância ainda. Isso fez com que alguém chamasse. E chamasse também a
polícia.
Dois policiais fardados chegaram e perguntaram o que é que estava
acontecendo. A mãe do garoto apontou para Jenna e disse: — Ela bateu no meu
filho.
Como era de se esperar, os policiais ficaram confusos, pois estávamos em
uma escola de krav maga, onde as pessoas batem umas nas outras com
frequência. Eles também acharam um pouco engraçado um garoto apanhar de
uma menina. O senhorzinho que era dono da escola não achou nem um pouco
engraçado.
No fim, o menino estava bem. O sangue saiu de um pequeno corte na boca e
na verdade foram apenas alguns pingos. Ninguém foi para o hospital e
ninguém foi preso, mas Jenna e eu não éramos mais bem-vindos na escola de
krav maga.
No decorrer da tarde, a mãe do garoto prometeu mais de uma vez nos
processar. E ainda por cima fui obrigado a cancelar várias aulas de tênis,
irritando pelo menos um de meus clientes.
Assim que ficamos sozinhos no carro, eu perguntei: — Tá, por quê?
Jenna ficou olhando pela janela.
— Você deve ter tido algum motivo — eu disse.
Ela encolheu os ombros. — Não sei. Talvez para ver se eu conseguia.
— Se conseguia bater nele com uma pedra?
— Se eu conseguia derrubar ele.
Não apontei o óbvio. Ela não o derrubou. Tudo o que ela fez foi cortar o
lábio dele.
— Você vai contar para a mãe? — Jenna perguntou.
— Vou.
— Sério?
Na verdade, eu não sabia se iria contar ou não. Naquele momento, eu não
conseguia nem olhar para a minha filha.
Ela nunca me lembrou Millicent. Quando Rory nasceu, ele já tinha pequenos
tufos de cabelo ruivo. Jenna, por outro lado, nasceu careca. Quando o cabelo
dela finalmente começou a crescer, era da mesma cor que o meu: castanho-
escuro sem qualquer traço de vermelho. Seus olhos também eram iguais aos
meus.
Fiquei realmente decepcionado.
Não era nada pessoal. Não era nada que Jenna tivesse feito ou deixado de
fazer. Eu só queria uma garotinha ruiva para combinar com o meu garoto e a
minha mulher de cabelos cor de fogo. Era a imagem na minha cabeça, a
imagem que eu tinha quando fantasiava o que seria minha família. A
verdadeira Jenna não se encaixava, porque se parecia com a minha mãe e não
com a dela.
A primeira vez que ela me lembrou Millicent foi quando ela atingiu aquele
garoto com uma pedra. Ela parecia exatamente como Millicent quando acertou
Robin na nossa cozinha.
O que eu achei sexy na minha esposa foi aterrorizante na minha filha.
Quarenta e quatro
É fim de noite. Millicent e eu estamos no seu escritório. Ela trabalha na
imobiliária Abbott, um pequeno lago onde ela tem sido um peixe grande há
anos. O escritório fica em uma galeria de lojas, ensanduichado entre uma
academia e um restaurante chinês. Dentro, é vazio e silencioso, pois ninguém
procura imóveis a essa hora. O ponto negativo é a fachada de vidro, o que
significa que qualquer um pode ver o interior do lugar. A disposição espaçosa
das mesas também não oferece muita proteção, por isso deixamos as luzes
apagadas e nos sentamos bem no fundo do escritório. Se as circunstâncias
fossem diferentes, poderia ser até romântico.
Millicent já sabe sobre Jenna. Uma amiga contou para ela antes que eu
pudesse falar qualquer coisa, e isso a deixou furiosa. Ela ligou e berrou alto a
ponto de fazer meu tímpano vibrar, gritando que eu deveria ter ligado quando
ainda estávamos lá na escola de artes marciais. Ela tem razão.
Agora Jenna está segura em casa, dormindo na sua cama, sem jogar pedras
em ninguém. Sem vomitar. Sem cortar o que sobrou do seu cabelo. Millicent
está mais calma. Ela até trouxe um doce, uma solitária bombinha de chocolate.
Ela corta a bomba em dois pedaços, e as metades são exatamente iguais. Dou
uma mordida na minha e ela dá uma mordida na dela, e eu limpo o chocolate
do seu lábio superior.
— Ela não está bem — Millicent diz.
— Não está.
— Precisamos falar com o médico dela. Eu posso ligar...
— Ela é parecida com Holly? — pergunto.
Millicent larga o doce como se ele estivesse prestes a explodir.
— Com Holly?
— Talvez seja a mesma coisa. A mesma doença.
— Não é.
— Mas...
— Não é. Holly começou a torturar insetos quando tinha dois anos de idade.
Jenna não é nem um pouco parecida com ela.
De acordo com essa comparação, ela está certa. Jenna grita sempre que vê
um inseto. Não consegue nem matar uma aranha, muito menos torturar. —
Então a culpa é nossa — eu digo. — Nós temos que nos livrar de Owen.
— Estamos tentando.
— Acho que essa caçada por Naomi precisa acabar — eu digo. — Devíamos
deixar que ela seja encontrada.
— Como isso vai ajudar...
— Porque vamos poder nos livrar de Owen de uma vez por todas — quando
Millicent ameaça responder o óbvio, eu levanto a minha mão. — Eu sei, eu sei.
É difícil se livrar de alguém que nem está aqui, não é isso?
— Bom, é uma maneira de dizer.
— Ele foi uma grande ideia, não vou negar. Mas nós já causamos problemas
demais.
— Problemas demais?
— Jenna. As pessoas nessa cidade. As mulheres todas estão com muito
medo — tomo cuidado para omitir o que ela não sabe, como Trista.
Millicent concorda com a cabeça. — Nunca quis fazer mal a Jenna.
— Eu sei que não — eu me inclino na minha cadeira, mais próximo de
Millicent agora, para que ela não deixe escapar o que eu estou dizendo. —
Seria difícil, talvez impossível, fingir a morte dele sem um corpo. Falando
sério, a única maneira seria se ele se afogasse no mar ou em um lago e nunca
mais fosse encontrado. Mas aí a dúvida ia continuar para sempre. E para que
fosse mais ou menos plausível nós íamos precisar de alguém para contar essa
história.
— Alguém como Naomi — Millicent diz.
— E quais são as chances de deixar Naomi fazer isso?
— São negativas.
— Então talvez Owen não morra. Talvez ele só vá embora — eu hesito aqui,
esperando uma reação. Quando ela não diz nada, eu continuo falando. — Owen
tem um ego tão grande que escreveu uma carta para um repórter para que todo
mundo soubesse que ele tinha voltado, e ele disse até a data em que ele ia
sequestrar uma nova vítima. Então por que ele não contaria para todo mundo
que ele vai embora? Ele é o tipo de pessoa que certamente iria se vangloriar.
Ele ia dizer: “Falei pra vocês exatamente o que eu ia fazer e quando é que eu ia
fazer e, mesmo assim, vocês não conseguiram me pegar. Agora vocês nunca
mais vão me achar”.
Millicent acena com a cabeça discretamente, como se estivesse considerando
minha ideia.
— Eu sei que não é ideal — eu digo. — Mas, se Owen for embora, todo
mundo vai parar de falar nele e talvez Jenna não fique mais assustada.
— Só se for tudo sincronizado — ela diz. — Eles precisam encontrar Naomi
antes de você mandar outra carta.
— Sim, realmente, sem dúvida.
— Vou cuidar disso primeiro.
— Talvez a gente devesse fazer isso juntos.
Ela olha para mim, com a cabeça inclinada para o lado. Por um momento,
penso que ela vai sorrir, mas não é o que acontece. É um assunto sério demais
agora. Já ultrapassamos a fase de usar essas conversinhas como preliminares.
— Eu cuido de Naomi — ela diz. — Você pode se concentrar na carta. Você
tem que fazer todo mundo acreditar que Owen foi mesmo embora.
Quero discutir e seguir com a minha ideia, mas, em vez disso, eu concordo.
A ideia dela faz mais sentido.
Ela dá um leve suspiro. — Espero que dê certo.
— Eu também.
Estendo o braço e deslizo a minha mão sobre a dela. Ficamos sentados assim
até ela pegar o que sobrou da minha bomba de chocolate para dar uma
mordida. Eu pego a dela e faço o mesmo. Um pequeno sorriso aparece no seu
rosto. Eu aperto sua mão.
— Nós vamos ficar bem — eu digo.
Millicent já me disse essa mesma frase antes. Disse quando nós éramos
jovens e precisávamos nos dividir em vários com um bebê no berço e outro a
caminho. Ela disse quando compramos nossa primeira casa e depois quando
compramos nossa segunda, que era uma casa bem maior.
Ela também me disse essa frase depois de Holly, quando o corpo de sua irmã
estava tombado na nossa sala de estar, com a cabeça arrebentada por uma
raquete de tênis.

Enquanto fiquei paralisado em cima de Holly, lutando contra o que eu havia


acabado de fazer, Millicent foi direto ao trabalho.
— Ainda temos aquela lona na garagem? — ela perguntou.
Demorou um segundo para eu processar. — Lona?
— Daquela vez que tivemos uma goteira.
— Acho que sim.
— Vá pegar.
Eu hesitei, pensando que deveríamos chamar a polícia. Porque é o que as
pessoas fazem quando matam alguém em legítima defesa. Elas chamam a
polícia e explicam o que aconteceu, já que não fizeram nada de errado.
Millicent leu meu pensamento.
— Você acha que a polícia vai acreditar que Holly era uma ameaça para
você? — ela disse.
Eu, o atleta. Eu, com a raquete de tênis quebrada.
Holly, sem qualquer tipo de arma.
Eu não discuti. Fui à garagem e revirei as estantes e recipientes de plástico
até achar uma lona azul enrolada. Quando retornei à sala de estar, o corpo de
Holly já estava preparado — suas pernas foram endireitadas e os braços
estavam retos ao lado do tronco.
Estendemos a lona no chão e juntos enrolamos o cadáver como se fosse uma
múmia.
— Vamos levá-la para a garagem — Millicent disse.
Era quase como se ela estivesse funcionando no automático.
Segui suas instruções, e Holly acabou no porta-malas do meu carro. Levei o
corpo para o bosque e a enterrei por lá enquanto Millicent limpava o sangue.
Quando as crianças voltaram da escola, não existia mais nenhum sinal de
Holly.
Usamos esse mesmo protocolo com Robin, com a diferença de que ela não
foi enterrada na terra. Seu corpo e seu pequeno carro vermelho acabaram no
fundo de um lago.
Millicent tem razão. Nós sempre damos um jeito.
Agora é a minha vez de garantir a nossa tranquilidade.

As duas metades da bomba de chocolate foram devoradas e Millicent põe os


farelos no cesto de lixo. Nós nos levantamos para ir embora, caminhando pelo
escritório escuro e depois até o carro. Já entramos pela madrugada. Até o
restaurante chinês está fechado, mas a academia fica aberta vinte e quatro
horas. Ela se destaca como um desolado holofote contra o céu escuro.
Antes de dar a partida no carro, eu me viro para Millicent. Ela está olhando o
seu celular. Eu estendo a mão e faço um carinho no seu rosto, da mesma forma
que ela me tocou tantas vezes. Isso faz com que ela me olhe nos olhos, um
pouco surpresa.
— Então, tudo combinado? — eu pergunto.
Ela sorri até as orelhas. — Com certeza.
Quarenta e cinco
O barulho desapareceu. Pela primeira vez, por mais improvável que pareça, as
respostas chegam de uma tacada só. Até ver Jenna acertar aquele garoto, eu
não tinha reparado que Millicent e eu estávamos fazendo muito mais do que
nós percebíamos. Estávamos destruindo a nossa própria família.
A última carta de Owen é a mais fácil de escrever. Tenho um novo objetivo
agora — me livrar de Owen — e a sensação é de que eu sei como conseguir
isso.
Embora vá enviar para Josh, como sempre faço, a carta é na verdade
endereçada ao público em geral. Digo a eles que são idiotas.

Eu dei uma chance para vocês. Tentei ajudá-los a me prender ao revelar o


dia exato em que eu faria minha próxima vítima. Dei até mesmo duas semanas
para que vocês se preparassem, para que vocês se planejassem. Mesmo assim,
vocês fracassaram. Não me impediram, não conseguiram me encontrar e, por
causa de vocês, Naomi está morta. Portanto, não se enganem: a morte dela
não foi culpa minha. A culpa é toda de vocês.
Ela sabia. Naomi viu as mesmas reportagens que vocês, ela leu minha carta
mais recente, e mesmo assim ela ainda ficou sozinha na rua naquela sexta-
feira 13. Naomi reconhecia a própria estupidez. Mas ela tinha fé. Fé que vocês
iriam procurá-la, fé que vocês iriam encontrá-la. Ela quase acertou.
Com um pouco mais de tempo disponível, eu contaria a vocês tudo o que eu
fiz com ela. Cada marca, cada corte, cada machucado. Mas seria redundante.
Vocês já estão com o corpo de Naomi.
Então, realmente, não há mais nada a ser dito. Nós jogamos um jogo, e
vocês perderam. Naomi perdeu. Todo mundo perdeu, menos eu. E, agora, eu
terminei. Voltei e cumpri minha meta. Não tenho mais nada a provar. Nem
para vocês, nem para mim.
Adeus.
Finalmente.
Assim que a versão final é concluída, eu conto para Millicent. Ela precisa
passar no clube para buscar Rory, que jogou golfe depois da escola e terminou
antes de mim. Millicent para na quadra de tênis, onde estou esperando pelo
meu próximo cliente. Seus saltos cor de pele batem contra o cimento enquanto
ela caminha na minha direção com um sorriso.
Passaram-se alguns dias desde a nossa conversa tarde da noite. Agora que a
Vítima Anônima veio a público, ela tem dado entrevistas para qualquer um
com um microfone. Era impossível evitá-la até a Vítima Anônima nº 2 aparecer
ontem à noite.
Em vez de dar uma coletiva à imprensa, ela fez uma live na internet, e o
noticiário local retransmitiu. A mulher é mais jovem do que as outras, talvez
ainda esteja na faculdade, e tem cabelos escuros, pele clara e lábios que
parecem pintados com sangue. A Vítima nº 2 é quase o oposto das vítimas
típicas de Owen, mas ela contou quase a mesma história da Vítima nº 1.
Apenas o estacionamento era diferente, além de alguns toques dramáticos. Esta
vítima diz que Owen bateu no seu rosto, e ela mostrou um machucado azulado
na bochecha.
Assim que a live terminou, meu velho amigo Josh apareceu na tevê. Nos
últimos tempos, Josh tem se mostrado muito mais sério, mas na última noite
ele soou quase sarcástico. Ele não foi direto ao ponto e acusou a Vítima nº 2 de
ser uma mentirosa, mas chegou bem perto. Não consigo imaginar que alguém
acreditou nela. Eu pelo menos não acreditei.
O problema é que mulheres como ela estão mantendo Owen nas principais
manchetes dos telejornais. Não preciso lembrar Millicent disso quando ela
entra na quadra.
— Pode falar — eu digo.
Os óculos escuros escondem seus olhos, tanto do sol quanto de mim, mas ela
parece animada. — Boa tarde pra você também.
— Mil perdões — eu me inclino para beijá-la na bochecha. Ela está com
cheiro de limão. — Olá.
— Olá. A carta está pronta?
— Você quer ler? — quero que ela diga que sim, quero que ela leia a carta,
mas ela apenas balança a cabeça negativamente.
— Não precisa. Eu confio em você.
— Sim, claro. Foi só por perguntar.
Ela sorri e me beija na bochecha.
— Te vejo em casa. Jantar às seis.
— Como sempre.
Eu a observo ir embora.
Ela não passa na Joe’s Deli hoje. O dia de hoje é somente de trabalho, seja
no escritório, seja visitando casas à venda.
Ainda acompanho o rastreador, ainda verifico para onde ela vai, mas não é
porque quero saber sobre Naomi. Eu já sei. Se ela não estiver morta, ela vai
estar em breve.
Eu acompanho o rastreador porque gosto de observar Millicent.

Mais um dia se passa, depois mais outro, e Josh volta a anunciar a contagem de
dias desde o sumiço de Naomi. Eu o assisto no meu celular o tempo inteiro,
aguardando pelo grande plantão de notícias que vai revelar o corpo da nossa
recepcionista. Mesmo quando acordo no meio da noite, sinto uma vontade de
checar o movimento dos portais. Na internet, as notícias aparecem a qualquer
momento. Normalmente, isso não é um problema. Mas, agora que estou
esperando novidades, é bastante revoltante. E inconveniente.
Eu desço as escadas e saio para o quintal, onde olho meu telefone. As
notícias são as mesmas de quando fui para a cama. Nada de urgente, nada
acontecendo, é como uma reprise entediante.
Mas não estou cansado. Às duas da manhã, o ar está tranquilo, assim como
nossa vizinhança. Ninguém em Hidden Oaks faz festas até tarde da madrugada,
ninguém toca música alta por aí. Não vejo sequer uma luz acesa em nossas
quase mansões.
Queria poder dizer que essa é a casa dos nossos sonhos, que nós a olhamos
uma vez e soubemos que era o lugar onde queríamos morar, o lugar que
trabalhamos tanto para conquistar. Mas não seria verdade. Nossa casa dos
sonhos fica em uma área mais restrita de Hidden Oaks, onde as casas se tornam
verdadeiras mansões. Um círculo reservado para investidores e cirurgiões.
Nós moramos no círculo do meio, mas apenas por causa de um divórcio
complicado, que levou a um congelamento de bens e uma execução de
hipoteca pelo banco. Como Millicent negociou uma série de contratos com
aquela gerência, conseguimos comprar uma casa que normalmente não
teríamos os recursos para comprar. É por isso que moramos nesta área de
Hidden Oaks. Deveríamos estar no círculo externo, mas, novamente, dei um
jeito de me acomodar bem no meio.
Então o som de arbustos se mexendo me faz dar um pulo. É uma noite
completamente sem vento.
O barulho vem do lado de casa. Se tivéssemos um cachorro, eu ia supor que
o culpado era ele, mas não temos nenhum animal. É difícil até encontrar
veados nessa região.
O barulho soa outra vez, seguido de um estalo.
Com o celular na mão, eu saio para investigar. Nossa varanda dos fundos
tem mais ou menos a metade do comprimento da casa, da cozinha até o canto.
No escuro, eu ando até o parapeito do outro lado. O caminho ao redor da casa
está parcialmente iluminado por um poste de luz da rua, e não vejo ninguém
ali. Nenhum animal, nenhum ladrão, nenhum serial killer.
Um leve ruído de um pé raspando na parede vem do nosso segundo andar.
Olho para o alto bem a tempo de ver Rory entrando às escondidas pela sua
janela.
Eu sequer tinha percebido que ele não estava em casa.
Quarenta e seis
Festas, drogas, garotas. Ou simplesmente porque ele estava a fim.
Esses são os motivos para Rory sair de casa escondido. São os mesmos de
todos os outros adolescentes. A primeira vez que eu saí escondido foi para
fumar maconha. Depois, saí escondido porque deu certo da primeira vez. E em
algum momento começou a ser por causa de Lily. Meus pais nunca ficaram
sabendo. Ou, o mais provável, nunca se importaram.
E, ainda assim, mesmo quando Rory viu que eu saía escondido de casa,
nunca me passou pela cabeça que ele poderia estar fazendo a mesma coisa.
Este é meu nível de distração nos últimos tempos.
Em vez de enfrentar Rory no momento do flagra, espero pelo dia seguinte.
Quero investigar se deixei algo passar, algo que eu deveria saber antes de ter
essa conversa com ele.
O seu quarto está uma bagunça, como sempre, com exceção da mesa. É
quase obsessivo-compulsivo, embora não oficialmente, porque ele não é
metódico com mais nada. Ele não se importa se suas roupas ficam pelo chão ou
se seus livros estão empilhados, mas a sua mesa está sempre em ordem. Talvez
porque ele nunca usa.
Normalmente, eu nunca vasculharia o seu quarto. Nunca fiz isso antes. Mas
também nunca o vi sair escondido antes. Meu filho tem segredos, e, no meu
manual, essa é a hora de uma investigação.
Rory está na escola. Ele levou o celular, e não tem permissão para manter
um computador no seu quarto. Minha busca então acontece no mundo
analógico. A mesa de cabeceira vem primeiro, depois sua escrivaninha, o
armário e o banheiro. Olho até debaixo da cama, debaixo do guarda-roupa e no
fundo da sua gaveta de meias.
A busca é uma decepção só.
Não encontro pornografia, porque ele olha na internet. Não encontro nenhum
recadinho amoroso, porque os adolescentes agora namoram por mensagens de
texto. Não encontro fotos, porque estão todas no seu telefone. Nada de drogas
ou bebidas alcoólicas, porque, se ele está consumindo, não é estúpido de
esconder no seu quarto. O que deve ser um bom começo, suponho eu. Sinal de
que meu filho não é idiota.
Eu não conto para Millicent, porque ela tem muito o que fazer ainda.
Ela não sabe dessa saidinha. Se soubesse, Rory já estaria de castigo para o
resto da vida. Mas ela não sabe porque à noite ela não escuta nada. Millicent
dorme como uma pedra. Eu nem sei se o alarme de incêndio seria capaz de
acordá-la.
É quase hora do almoço quando termino aquela investigação inútil, e aí vou
para a escola. O secretário manda uma mensagem para o professor de Rory,
que o manda para a secretaria. Embora meus filhos estudem em uma escola
particular, o colégio não exige uniformes. Há um manual de etiqueta, no
entanto, e todo dia Rory usa calça cáqui e uma camisa abotoada. Hoje a camisa
é branca. Sua mochila está pendurada num ombro só e o seu cabelo ruivo
precisa de um corte. Assim que me vê, ele ajeita a franja na testa.
— Tudo certo? — ele pergunta.
— Tudo ótimo. Só achei que poderíamos passar a tarde juntos.
Ele ergue as sobrancelhas, mas não discute. Por enquanto, estar comigo é
melhor do que estar nas aulas da tarde.
O almoço é no restaurante preferido de Rory, onde ele pede o bife que
Millicent nunca faz para ele. Ele não questiona nada até a garçonete trazer um
refrigerante, que também não compramos em casa. Ele sabe que tenho alguma
coisa para contar. Assim, não é nenhuma surpresa quando ele pergunta: —
Qual é a novidade, pai? — Mas é um choque quando ele segue com: — Você e
a mãe vão se divorciar?
— Divórcio? Mas por que diabos você me pergunta logo uma coisa dessas?
Ele encolhe os ombros.
— Porque isso é o tipo de coisa que você faria se precisasse me contar um
problema mais pesado.
— Você acha mesmo?
— Acho — ele diz como se todo mundo já soubesse.
— Tá, mas sua mãe e eu não vamos nos divorciar.
— Tá bom, então.
— É verdade, a gente não vai.
— Já ouvi.
Dou um gole no meu chá gelado, e ele faz o mesmo com seu refrigerante.
Ele não fala mais nada, o que me obriga a começar.
— Como estão as coisas?
— Tudo certo, pai. Como estão as coisas com você?
— Tudo ótimo. Tem alguma novidade?
Rory hesita. A nossa comida chega, o que dá mais tempo para ele pensar no
que estou perguntando de fato.
Quando a garçonete sai, ele sacode levemente a cabeça.
— Na verdade, não.
— Na verdade, não?
— Pai?
— Hmmm? — dou uma mordida no meu bife.
— Diga logo por que estamos aqui.
— Eu só quero saber das coisas novas e interessantes que estão acontecendo
na sua vida — eu digo. — Porque deve ser novo e interessante para você sair
de casa bem no meio da madrugada.
As mãos de Rory ficam paralisadas ao cortar o bife. Quase posso enxergar as
opções de resposta disparando pelo seu cérebro.
— Foi só uma vez — ele diz.
Eu não digo nada.
Rory suspira e larga os talheres. — Daniel e eu saímos. A gente queria ver se
ia se safar.
— E ele se safou?
— Até onde eu sei, sim.
— E o que vocês dois fizeram?
— Na verdade, nada. Fomos no campo, jogamos bola. Andamos por aí.
Plausível. Aos quatorze anos, não estar em casa à meia-noite por si só já é
emocionante. Mas não acho que foi a primeira vez que ele entrou no seu quarto
pela janela.

Ele não sai escondido na noite seguinte. Não é exatamente uma surpresa, agora
que ele foi flagrado. Mas não estou prestando atenção apenas durante a noite,
estou prestando atenção a todos os detalhes que foram ignorados antes.
À noite, eu observo enquanto ele digita no celular, quando seu telefone vibra
e ele olha para ver quem é. Na noite de cinema, eu observo enquanto ele
mantém o celular escondido, checando de tempos em tempos. Uma hora, o
celular toca, mas o som não é rock nem barulho de videogame. É uma música
que eu não reconheço, a voz de uma mulher rouca, que canta como se estivesse
na beira de um precipício.
Quando busco as crianças na escola, chego lá cedo o suficiente para ter uma
vista frontal das portas. É quando vejo a garota que está obviamente deixando o
meu filho louco.
Ela é uma loira baixinha de lábios rosados, pele clara e cabelos que caem na
altura do queixo. Ela joga o penteado para trás enquanto eles conversam e
muda o apoio de um pé para o outro. A garota está tão nervosa quanto ele.
Há quanto tempo, eu me pergunto. Há quanto tempo ele tem essa namorada,
ou quase namorada. Se eu não tivesse descoberto sua fuga na noite passada, eu
nunca saberia. Talvez eu seguisse a minha vida sem saber dessa loirinha por
quem meu filho está apaixonado.
Será que houve outras garotas — loiras ou morenas ou ruivas — que
deixaram meu filho tão louco quanto essa? Será que deixei passar a primeira, a
segunda e a terceira? A essa altura, não tenho como saber. Ele não me contaria
se eu perguntasse. Ele sequer me contou sobre a atual.
E eu não percebi, não fazia ideia, até me esforçar. Do contrário, esse
romance de Rory teria passado batido bem na minha frente.
Eu me pergunto se é o que aconteceu com meus pais. Eles nunca se
esforçaram, e eu passei batido bem na frente deles.
Quarenta e sete
Durante o jantar, todos os nossos telefones estão perfilados no balcão atrás de
Millicent. Estamos comendo risoto de cogumelos, com alho-poró e cenouras de
acompanhamento, quando meu telefone toca alto como uma buzina.
Notificação de notícia importante.
Millicent estende a mão para trás e põe o telefone no silencioso.
— Desculpa — eu digo. — É um aplicativo de esportes.
Ela me olha atravessado. Os celulares devem ficar no silencioso durante o
jantar.
A notificação teoricamente pode ser sobre qualquer assunto, mas eu sei que
não é. O meu aplicativo de notícias tem um filtro para os nomes de Naomi e
Owen e para as palavras corpo encontrado. A tecnologia é uma coisa incrível.
Também é uma coisa terrível, porque agora eu preciso engolir a ansiedade
durante o jantar inteiro até poder ler a notícia. O jantar seria muito mais
tranquilo se o aplicativo não tivesse apitado.
Quando finalmente terminamos, eu apanho o meu telefone no balcão
enquanto as crianças saem da mesa.

CORPO DE MULHER ENCONTRADO


Eu levanto o olhar para Millicent. Ela está atrás da pia, usando um moletom
velho, calças pretas de ginástica e um par de meias. Chamo sua atenção em
silêncio e aponto para o meu telefone.
Ela dá um leve gesto afirmativo com a cabeça e um sorriso.

Não vejo o resto da reportagem antes da louça ser lavada e das crianças se
sentarem para assistir tevê. Com tudo no seu devido lugar, eu subo, entro no
banheiro e assisto o noticiário.
É perfeito.
O corpo de Naomi foi encontrado dentro de uma lixeira atrás do Lancaster.
Ela foi vista pela última vez naquele mesmo estacionamento, não muito
distante da tal lixeira, depois de sair do trabalho na sexta-feira 13. A última
imagem de Naomi foi gravada por uma câmera de segurança enquanto ela
atravessava o estacionamento em direção ao seu carro. As câmeras apenas
registraram parte do lugar. Tanto o carro de Naomi como a lixeira estavam em
pontos cegos.
Josh está no outro lado da rua, em frente ao hotel, bem onde eu costumava
estacionar e observar Naomi. Ele parece turbinado pela cafeína, ou pela
adrenalina, ou por ambos, e é bom vê-lo desse jeito outra vez. As vítimas
anônimas, em especial a segunda, pareciam deprimir meu jovem repórter.
Agora ele está acelerado, cheio de insinuações e especulações, já que as
autoridades divulgaram muito pouca coisa. A única informação confirmada até
o momento é que uma mulher morta muito parecida com Naomi foi encontrada
em uma lixeira quando o contêiner foi esvaziado pela companhia de limpeza
urbana. Chamaram a polícia, toda a área foi isolada e uma coletiva de imprensa
pode ou não acontecer hoje à noite, embora Josh acredite que vá acontecer.
O passado de Naomi, no entanto, é a grande ausência da reportagem. Agora
que ela está morta em vez de desaparecida, falar mal dela seria no mínimo
perverso.
No fim, Josh ainda encontra tempo para nos lembrar de que não temos
notícias de Owen Oliver Riley faz algumas semanas.
Eu dou um sorriso.
A carta está endereçada para a emissora de tevê, e está marcada como Aos
cuidados de Josh — Confidencial. Quando ela chegar, imagino que a expressão
no seu rosto será orgástica, mesmo que ele não fique muito contente em saber
que esta será a última carta de Owen. As cartas tornaram Josh um astro, pelo
menos no âmbito local, e há até um boato de que ele foi sondado por um canal
de tevê a cabo. Ele vai se dar bem em um trabalho mais desafiador. Josh é tão
sério e determinado que me vejo pressionado a torcer por ele.
Meu jovem repórter é um dos poucos que terá uma vida melhor por causa de
Owen.
Trista não terá.
A pobre e falecida Trista nunca será reconhecida como uma vítima. E ela foi,
mesmo que tenha tirado a própria vida. Eu me sinto mal de verdade por ela,
principalmente porque ela se sentia tão arrasada por causa das outras. É difícil
não gostar de alguém com tanta empatia.
O melhor que posso fazer agora é evitar que isso aconteça de novo.
Eu desço as escadas e entro na sala, onde as crianças estão discutindo o que
é que vão assistir agora. Millicent ameaça mandá-las ler um livro no quarto se
elas não chegarem a um acordo, e de repente a sala fica em silêncio. A música
de abertura de uma novela adolescente começa a tocar. É o programa preferido
de Jenna, e por algum milagre divino Rory consegue não dar um gemido.
Desconfio que seja por causa da loirinha. Ela deve assistir os mesmos
programas que Jenna.
Millicent gesticula para mim, e nós caminhamos pela cozinha em direção à
sala de jantar formal que usamos apenas para datas comemorativas e jantares
com os amigos.
— Eles acharam? — ela sussurra.
O meu rosto me denuncia. — Acharam. Estão esperando a confirmação
oficial.
— Agora você...
— Vou pôr no correio amanhã.
— Perfeito.
Eu dou um sorriso. Ela me beija na ponta do nariz.
Voltamos para a sala de estar e nos juntamos às crianças, mas, como estamos
assistindo a programação normal do canal, é impossível evitar Naomi. O
telejornal é anunciado durante um intervalo e é tão rápido que não temos nem
tempo para mudar de canal.
O telefone de Rory se ilumina. Ele pega e começa a digitar.
Jenna não reage. Ela olha para a televisão como se ainda assistisse o seu
programa, e não as notícias de uma mulher morta.
— Quem quer sorvete? — Millicent pergunta.
Rory ergue o dedo. — Eu.
— Jenna?
— Quero.
— Uma bola?
— Três.
— Claro, querida — eu digo, me levantando do sofá.
Millicent ergue a sobrancelha para mim e me segue até a cozinha. Eu pego
quatro taças, e todo mundo ganha três bolas. Ela começa a falar alguma coisa, e
eu a interrompo.
— Não vamos discutir sobre o açúcar hoje. Vai ficar pior antes de melhorar
— e é verdade. Naomi estará no noticiário todas as noites, e eles vão abordar
cada detalhe de como ela foi encontrada e de como ela foi morta. Vai ficar pior
quando Josh receber a minha carta, porque aí os jornais vão passar horas
debatendo se Owen foi embora mesmo ou se está apenas esperando para
baixarmos a guarda outra vez.
No fim, o burburinho vai desaparecer. Alguma outra coisa vai ocupar o seu
lugar, e Owen irá embora para sempre.
Mas, até lá, três bolas de sorvete.
Voltamos à sala de estar e a novela adolescente terminou. Rory muda de
canal e assistimos o final de um programa para podermos esperar pelo
próximo. E de repente surge um plantão de notícias. Antes que Millicent
consiga pegar o controle, Josh está dentro da nossa casa. Ele repete a mesma
informação que ouvimos em outro canal.
Quando ele termina de falar sobre a descoberta do corpo, Rory se vira para a
irmã. — Você acha que ela foi torturada?
— Acho.
— Mais ou menos torturada que a última?
— Ei — eu digo. Porque não sei mais o que dizer.
— Mais — Jenna responde.
— Quer apostar?
Ela dá de ombros. Os dois combinam a aposta.
Millicent se levanta e sai da sala.
Eu levo minha taça para a cozinha. A bateria do meu celular está quase no
fim, e eu reviro nossa gaveta de bugigangas em busca de um carregador. Estão
sempre jogados por ali, mas nunca quando eu preciso, e não encontro nenhum
na gaveta. Em seguida, tento procurar na despensa, pois coisas estranhas às
vezes aparecem por lá. Quando Jenna era mais nova, eu costumava achar os
seus bichinhos de pelúcia entre os pacotes de biscoitos, como se protegessem a
comida. Agora, acho aparelhos eletrônicos.
Quer dizer, hoje não acho nenhum carregador. Mas na prateleira mais baixa,
atrás das latas de sopa, encontro um pequeno frasco de colírio.
Do tipo que Millicent é alérgica.
Quarenta e oito
Quando vejo o colírio, penso em Rory. Se Millicent usou o remédio para
disfarçar o fato de estar chapada, então com certeza outros adolescentes já
tentaram essa mesma ideia. Talvez seja isso que ele esteja fazendo quando sai
escondido à noite. Talvez ele e a namoradinha estejam fumando maconha.
Bom, podia ser pior. Muito pior.
A despensa não é um local óbvio para guardar colírios, mas eu imagino que
ele simplesmente jogou o frasco ali. Talvez ele tenha chegado chapado em casa
e escondido de última hora. Ou talvez ele tenha achado que ninguém fosse
olhar na prateleira de baixo, muito menos atrás das latas de sopa.
Ou não, poderia ser Jenna. Talvez seja ela quem esteja fumando.
Não, não faz sentido. Jenna não prejudicaria os seus pulmões. Ela dá muita
importância ao futebol e não seria tão irresponsável.
Eu levo o frasco comigo. A caminho do clube, me pergunto o que causaria
vermelhidão nos olhos além de fumaça, poeira ou sei lá que substância.
Alergias e cansaço talvez, mas nenhuma das duas opções precisa de disfarce.
Talvez ressacas. Talvez uma droga nova da qual eu nunca ouvi falar.
Quando Kekona chega para a aula, estou sentado em um banco olhando fixo
para o frasco de colírio.
Kekona está tão entusiasmada com as fofocas que vem dando pulinhos como
se tivesse seis anos de idade em vez de sessenta. Assim que entra na quadra,
ela começa a falar, porque precisa desembuchar tudo antes da sua viagem.
Todo ano Kekona volta para o Havaí e fica um mês por lá, e a data já está
chegando. Ela lamenta tudo o que vai perder, agora que o corpo de Naomi foi
encontrado.
— Estrangulada — ela diz. — Igual às outras.
— Eu soube.
— E a tortura. Todos aqueles cortes de papel.
Meu coração dispara. — Cortes de papel?
— A polícia disse que ela estava cheia de cortes de papel. Tinha cortes até
nas pálpebras — ela treme como se estivesse com frio.
Cortes de papel.
Eu fecho os olhos, tentando não imaginar Millicent fazendo isso. Tentando
apagar a ideia dela ter transformado nossa brincadeira pessoal em algo tão
doentio.
São apenas onze horas da manhã. Mais cedo, as autoridades disseram que as
digitais do cadáver haviam sido raspadas, mas que a polícia tinha o registro da
arcada dentária de Naomi. Era ela mesma.
— A polícia disse isso dos cortes? — eu pergunto.
— Não oficialmente. São fontes anônimas — Kekona diz. — Mas, se você
quer saber, o estranho é o tempo — ela hesita.
Então eu pergunto: — Estranho por quê?
— Bom, a última mulher ficou um ano presa. Mas Naomi? Um mês e meio.
— Talvez Owen tenha se cansado de ficar esperando a polícia correr atrás
dele.
Kekona sorri para mim. — Você está meio atrevido hoje, hein?
Eu dou de ombros e mostro uma bola de tênis para ela, indicando que está na
hora de jogar, já que é para isso que ela me paga. Kekona faz um aquecimento
rápido e balança a raquete para os lados.
— Se fosse um filme, essa diferença de tempo não seria descartada tão
rápido — ela diz.
Ela está certa, mas pelos motivos errados. — Não é você quem diz que a
vida não é um filme de terror?
Kekona não responde.
— Pode sacar — eu digo.
Ela dá dois saques. Eu não devolvo, porque ela ainda não quer dar voleios.
Ela quer conseguir um ace.
— Também disseram que ela foi queimada — Kekona diz.
— Queimada?
— Foi o que eles disseram. Tinha queimaduras por todo o corpo, como se
tivesse sido escaldada.
Eu estremeço com a possibilidade dela ter sido escaldada acidentalmente.
No entanto, sei que Millicent fez isso de propósito.
— Eu sei, isso também me deixa revoltada — Kekona diz. Ela saca
novamente e para. — Hoje de manhã disseram que pode ser que ele esteja
tentando recriar os seus antigos crimes. Ele queimou uma das suas vítimas,
uma tal de Bianca ou Brianna, não sei. Alguma coisa assim. Mostraram uma
foto dela hoje de manhã e ela é muito parecida com Naomi.
Eu perdi a festa inteira. Não poder assistir o jornal em casa pode ser um
problema. — Que estranho — eu digo. — Pode sacar.
Ela saca, e eu conto mais nove saques antes dela interromper o jogo de novo.
Mas desta vez ela não quer falar sobre Owen.
Ela fala sobre Jenna.
— Me contaram da sua filha — ela diz.
Não me surpreende que Kekona tenha ouvido falar do incidente na escola de
krav maga. Era exatamente sobre esse tipo de coisa que costumávamos fofocar.
Apenas não envolvia a minha família.
— Pois é — eu digo, tentando pensar em como vou me explicar, que
justificativa vou dar para a minha filha ter acertado um garoto com uma pedra.
Ela teve um dia ruim, foi mal na prova, esqueceu de tomar o seu remédio?
Péssimas desculpas. Todas parecem dizer que a minha filha não tem
autocontrole nenhum.
Kekona se aproxima e toca no meu braço. — Não se preocupe — ela diz. —
Sua filha vai ser casca grossa.
Eu dou uma risada. E espero que ela esteja certa. Prefiro que Jenna seja
casca grossa do que as outras opções disponíveis no mercado.

Quando a aula de Kekona termina, eu posso enfim ler as notícias. Ela tem
razão quanto à semelhança das vítimas. Bianca e Naomi são mesmo parecidas.
As duas tinham cabelos escuros e aquela aparência genérica de alguém que
pode ser sua vizinha. Bianca também foi escaldada, só que não com água.
Foi com azeite.
Essa semelhança faz a mídia tratar Lindsay com mais atenção, e agora
recuperaram uma vítima mais antiga que também tinha cabelo loiro e liso.
Acho que eles estão forçando a barra. A mídia precisa de assunto para
comentar e, sem nenhuma informação concreta, inventaram umas conexões
inexistentes. Até porque, se Millicent quisesse recriar um crime específico, os
detalhes não seriam apenas parecidos. Eles seriam exatos.
Essa notícia me incomoda um pouco. No caminho para o trabalho, enviei a
carta para Josh. Era realmente cedo e o estacionamento do correio estava vazio,
então ninguém viu as luvas cirúrgicas nas minhas mãos quando depositei a
carta na caixa. Mas, se eu tivesse visto as notícias antes, teria mudado a carta.
Eu diria a Josh que a mídia está bastante equivocada e que eles estão, como de
costume, inventando história. As vítimas antigas não estão sendo recriadas,
então parem de falar sobre as diversas formas de torturas que elas sofreram.
Minha filha não precisa ouvir essas porcarias.
Mas eu não vi as notícias, não ouvi falar em Bianca e agora é tarde demais.
No salão do clube, Josh aparece em múltiplos televisores, com uma
aparência às vezes exausta, às vezes eufórica. Ele segue em frente ao Lancaster
Hotel. A luz do dia quase faz o prédio parecer brega.
— Ainda que seja do nosso conhecimento que Naomi George foi de fato a
mulher encontrada em uma lixeira atrás deste hotel, nenhuma das outras
informações recebidas até o momento foi confirmada. No entanto, as nossas
fontes nos informaram que Naomi George morreu apenas um dia antes de ser
encontrada.
Os dados do GPS de Millicent não mostram nada de incomum naquele dia.
Ela sequer foi à Joe’s Deli. Ela passou na escola para deixar as crianças, no
escritório, em diversas casas à venda, no supermercado e em um posto de
gasolina. Não encontro nenhuma indicação de onde Naomi estava escondida. A
menos que tenha sido em uma das casas abertas à visitação, o que parece
improvável, considerando que as pessoas entram e saem dessas residências o
dia inteiro.
Não que importe neste momento, porque Naomi já foi encontrada. E amanhã
Josh receberá a minha carta.
Ele não vai esperar para ler a mensagem no ar. Da última vez, eu imaginava
que a polícia iria pelo menos passar mais tempo examinando o material, mas a
notícia veio a público quase que de imediato. Eles devem seguir o mesmo
protocolo agora. Esta carta é exatamente igual à anterior, elas têm o mesmo
cheiro e até o papel vem do mesmo pacote. Ninguém vai duvidar que ela veio
da mesma pessoa que escreveu as outras. Se eu fosse um jogador, apostaria que
essa carta vai ocupar todo o noticiário antes mesmo de Millicent e eu
chegarmos em casa do trabalho.
Mas eu não sou um jogador. Em trinta e nove anos de idade, eu me tornei um
estrategista. Talvez até um estrategista competente.
Quarenta e nove
Difícil dizer se ganhei ou perdi minha aposta imaginária. É uma questão de
detalhes, ou neste caso, uma questão de horas.
Minha expectativa era que Josh entraria ao vivo com a carta logo antes do
telejornal da noite, assim ela estaria em todos os canais quando as pessoas
estivessem jantando. Mas ela chega várias horas mais cedo, enquanto Jenna e
eu estamos no consultório do Dr. Bege. Ele acha que ela precisa de terapia mais
vezes na semana. Eu acho que ela precisa de outro médico. Desde que Jenna
começou a se consultar com ele, ela foi de cortar os cabelos a ficar mal do
estômago e acertar alguém com uma pedra.
Millicent e eu dividimos as consultas agora. Nenhum dos dois pode sair do
trabalho três vezes por semana, que é o que o Dr. Bege recomenda depois do
incidente no krav maga. Hoje é minha vez na sala de espera, onde as minhas
opções de entretenimento são histórias terapêuticas em quadrinhos, revistas
educativas ou televisão. Eu sou a única pessoa do lugar, com exceção de uma
recepcionista de rosto severo e com uma peruca preta, que me ignora. Eu
coloco em um programa de perguntas e respostas e participo do jogo
mentalmente.
A notícia surge mais ou menos dez minutos depois de Jenna entrar no
consultório. Josh aparece na tela e, após uma breve introdução, começa a ler a
carta de Owen em voz alta.
A recepcionista olha para a tela.
Enquanto Josh lê as palavras que eu escrevi, um arrepio percorre as minhas
costas. Quando ele chega ao fim, no derradeiro adeus de Owen, tenho que me
segurar para não rir. Owen realmente parece um cretino arrogante nessa carta.

Adeus.
Finalmente.

Josh relê a carta mais duas vezes antes de Jenna sair do consultório do Dr.
Bege. Ela parece entediada.
O doutor está atrás dela. Ele parece satisfeito.
— Troca — ela diz. É a minha vez de entrar no consultório, para que o Dr.
Bege possa me empurrar goela abaixo uma tigela da sua imbecilidade cor de
aveia.
Hoje, eu me recuso. — Desculpe, mas nós estamos sem tempo. Eu poderia
ligar para o senhor mais tarde?
O doutor não parece muito feliz comigo.
Eu não me importo.
— Podemos combinar assim — ele diz. — Se eu não puder atender a
ligação, deixe um...
— Ótimo. Muito obrigado.
Eu estendo minha mão e ele leva um segundo para apertá-la.
— Bom, então, boa tarde.
— Boa tarde.
Assim que chegamos ao estacionamento, Jenna olha atravessado para mim.
— Você está estranho — ela diz.
— Mas eu não sou sempre estranho?
— Mais estranho do que o normal.
— Isso é muito estranho.
— Pai! — ela cruza os braços sobre o peito e olha para mim.
— Quer um cachorro-quente?
Jenna olha para mim como se eu tivesse sugerido tomar uma bebida com ela.
— Um cachorro quente?
— Isso. Você sabe como é, um tubinho de carne, num pãozinho com
mostarda...
— Minha mãe não deixa a gente comer cachorro-quente.
— Vou dizer para ela vir com a gente.
Acho que a cabeça de Jenna explodiu um pouco com essa ideia, mas ela
entra no carro sem dizer mais nada.

O Top Dog serve trinta e cinco variedades de cachorros-quentes, incluindo um


feito com tofu. É o que Millicent pede. E ela não diz uma palavra sequer
quando Rory pede dois cachorros-quentes completos com molho picante.
Parece uma comemoração e, na verdade, é. Owen foi embora para sempre. A
notícia está por toda parte nas tevês suspensas sobre as nossas cabeças. Hoje
tudo saiu conforme o planejado e a mesa inteira parece sentir isso.
— A casa pode voltar ao normal agora? — Rory pergunta.
Millicent sorri. — Defina “normal”.
— Sem blecaute. De volta à civilização.
— Você quer assistir o jornal? — eu pergunto.
— Eu não quero ser proibido de assistir o jornal.
Jenna revira os olhos. — Você só quer impressionar a Faith.
Então, do nada, fico sabendo que a amiga loira de Rory se chama Faith.
— Quem é Faith? — Millicent pergunta.
— Ninguém — Rory diz.
Jenna dá uma risadinha. Rory belisca a irmã, e ela grita.
— Para — ela diz.
— Cala a boca.
— Cala a boca você.
— Espera aí, vocês estão falando de Faith Hammond? — Millicent pergunta.
Rory não responde, o que significa que sim. Também significa que Millicent
conhece os pais de Faith, provavelmente porque vendeu a eles a casa onde
moram agora.
— Por que não pegaram ele? — Jenna pergunta. Ela está olhando para a tevê
no alto.
Talvez a gente ainda não esteja totalmente de volta ao normal.
— Já pegaram ele antes — Rory diz. — E ele se mandou.
— Então não podem pegar ele?
— Vão pegar. Gente assim não fica solta pra sempre — eu digo.
Rory abre a boca para me contradizer, mas Millicent resolve a situação com
um simples olhar.
Tudo o que eu penso em falar soa estúpido na minha cabeça, então eu fico
calado. Até mesmo Rory está em silêncio. Ninguém diz nada até Jenna falar
alguma coisa.
— Não estou me sentindo muito bem — ela passa a mão na barriga. Jenna
comeu um cachorro-quente de churrasco com cebola, que era quase tão grande
quanto o meu de chili com queijo. Não acho que seja o estresse que esteja
atacando o seu estômago hoje.
Millicent me lança um olhar áspero.
Ainda calado, eu reconheço o erro. Sim, é culpa minha ter sugerido os
cachorros-quentes.
Millicent pega sua bolsa e nos apressa para irmos embora. Ela até levou o
negócio dos cachorros-quentes na esportiva, considerando que não planejamos
a saída antecipadamente, e eu pego a sua mão. Seguimos as crianças na direção
do estacionamento.
— E como está o seu estômago? — ela pergunta.
— Perfeito. E o seu?
— Nunca esteve tão bem.
Eu me aproximo para beijá-la. Ela vira o rosto.
— Você está com um bafo nojento.
— E o seu tem cheiro de tofu.
Ela ri e eu também, mas o meu estômago está longe de estar tão bem quanto
eu imagino. Assim que chegamos em casa, Jenna e eu estamos passando muito
mal. Ela sobe para o banheiro, mas eu não consigo chegar a tempo. Acabo
usando o lavabo do corredor.
Millicent corre de um lado para o outro, trazendo chá e compressas geladas.
— Eles estão morrendo! — Rory grita. Ele dá risada e, por dentro, eu dou
risada junto com ele.
Hoje à noite, tudo é engraçado, mesmo quando estou passando mal no chão
do banheiro. Hoje à noite, parece que soltei o ar represado no meu pulmão.
Eu nem tinha percebido que estava segurando o fôlego.
Cinquenta
Aquele cachorro-quente me manteve acordado a noite inteira. Por isso, durmo
mais um pouco na manhã seguinte. Quando saio de casa, é tarde demais para
passar na loja de conveniência. Em vez disso, vou numa cafeteria logo na saída
de Hidden Oaks. É daquele tipo que serve um café de cinco dólares e tem um
barista de barba odiosa que fica olhando o tempo todo para a tevê. Ele sacode a
cabeça negativamente para a tela ao me servir uma xícara pequena de café.
— Tenho que parar de ver o jornal — ele diz.
Eu concordo em silêncio, compreendendo seu desânimo mais do que ele
imagina. — Só serve para deprimir.
— Pode crer.
Eu não sabia que as pessoas ainda falavam “pode crer” de verdade, mas esse
grandalhão barbudo fala isso como se fosse a coisa mais séria do mundo.
Eu saio sem perguntar sobre o telejornal. Ainda estão debatendo se Owen foi
mesmo embora ou não, mas não divulgaram nenhuma notícia nova. Nenhuma
atualização. Apenas novas formas de repetir o que está ficando velho.
E Owen já começa a desaparecer. Ele ainda é a reportagem principal, mas
não domina mais todo o noticiário.
Bem como eu imaginava.
E agora meus pensamentos podem se voltar para a minha família, para os
meus filhos. Para a namorada de Rory, que eu ainda não conheci. Descobri que
os Hammonds moram na quadra ao lado. Ou seja, se Rory cortar caminho pelo
meio da rua, ele leva nada menos que sessenta segundos para ir da nossa casa
até a casa deles. Eu já deveria ter essa informação, deveria saber que Rory
estava saindo escondido, mas estava ocupado demais com as minhas próprias
escapadas à noite. Agora estou tentando tirar o atraso.
Jenna está com um fascínio renovado por maquiagem. Começou ainda na
semana passada, talvez porque ela não esteja mais tentando se esconder de
Owen. Certa manhã, eu inclusive me deparei com ela secretamente passando
brilho nos lábios antes de irmos para a escola, e Millicent me disse mais tarde
que um ratinho andava se divertindo pelo nosso banheiro.
E ela ainda está com aquela faca debaixo do colchão. Começo a me
perguntar se ela não se esqueceu que o negócio continua lá.
Eu estaria perdendo todas essas novidades se ainda estivesse distraído com
Owen, Naomi, Annabelle e Petra. Nem lembro quando foi a última vez que eu
recarreguei o telefone descartável.
E Millicent. Nós conversamos sobre ter uma noite romântica de verdade.
Ainda não aconteceu, mas, quando acontecer, não vamos falar de Holly, ou de
Owen, ou de qualquer outro assunto desse tipo. Por enquanto, ela apenas
iniciou uma cruzada na internet contra os cachorros-quentes da cidade.
Retirei o rastreador do carro dela. Agora, quero olhar para a minha esposa,
não para um ponto azul que a representa no mapa.
Até o trabalho está de vento em popa. Tenho dois novos clientes, já que a
minha agenda não é mais tão errática. A maior parte do meu dia se passa no
clube e, quando não estou dando aula, tenho tempo para fazer contatos.
E, bom, Andy. Não falei com ele desde que ele se mudou de Hidden Oaks.
Ele foi embora logo depois de Trista morrer — colocou a casa à venda e não
encontrei mais com ele. Andy também não frequenta mais o salão do clube. Eu
sei, não me parece correto deixá-lo desaparecer da minha vida. Por um lado, a
distância aconteceu por causa da minha agenda. Mas é muito mais por causa de
Trista.
Eu ligo para ver como ele está. Andy não atende e não retorna a ligação.
Faço uma tentativa pouco inspirada de procurá-lo na internet, para tentar
descobrir onde ele está morando agora, mas desisto depois de alguns minutos.
E ainda guardo aquele frasco de colírio, embora não tenha tido evidências de
que Rory, ou qualquer outra pessoa da minha família, esteja usando algum tipo
de droga. Até agora não entendi qual o motivo para esse colírio ter aparecido
na minha casa, muito menos na minha despensa. Não existe razão para alguém
ter que esconder um colírio.

Kekona viajou para o Havaí e vai ficar lá por um mês, então minha primeira
cliente do dia é a Sra. Leland. Ela não gosta de falar sobre crimes, Owen, ou
qualquer coisa parecida. A Sra. Leland é uma jogadora séria, que só conversa
sobre tênis.
Depois que a aula dela termina, tenho um minuto entre os clientes, apenas o
tempo suficiente para ver uma mensagem de texto de Millicent.
?
Não sei o que isso significa ou o que ela está perguntando, então mando de
volta:
O quê?

No meio da minha aula com um aposentado chamado Arthur, Millicent


manda o link de uma notícia. A manchete não faz sentido.

OWEN ESTÁ MORTO


Eu leio a matéria pela primeira vez, depois mais uma vez e, na terceira vez,
parece mais inacreditável do que na primeira.

Há quinze anos, Owen Oliver Riley foi acusado de homicídio e liberado por
um detalhe técnico. Ele desapareceu sem deixar rastros até pouco tempo atrás,
quando o corpo de uma jovem mulher foi encontrado e alguém alegando ser
Riley enviou uma carta para um repórter da região, assumindo a autoria do
assassinato e prometendo matar outra mulher, citando até mesmo o dia em que
ela desapareceria. Quando o corpo de uma segunda mulher foi encontrado, a
impressão foi a de que ele cumpriu sua promessa. A próxima carta alegava que
seus dias de assassinato haviam terminado e que agora ele iria embora para
sempre. Mas Owen chegou a estar aqui alguma vez?
“Não”, diz Jennifer Riley. A irmã de Owen entrou em contato com a polícia
na última semana e, na sequência, emitiu um comunicado para a imprensa.
Em uma reviravolta tão impressionante que quase não parece real, ela
afirma que quinze anos atrás, depois de Owen Riley ter sido solto, tanto ela
quanto o irmão se mudaram para a Europa. Nenhum deles retornou aos
Estados Unidos, nem mesmo para visitas, de acordo com o seu comunicado.
Eles também mudaram de nome e viveram em anonimato.
Cinco anos atrás, seu irmão foi diagnosticado com câncer no pâncreas e,
após diversas doses de radioterapia, finalmente sucumbiu à doença e acabou
falecendo. O corpo foi cremado, garante a irmã de Owen.
O obituário de Riley não apareceu em nenhum jornal dos Estados Unidos.
Foi publicado apenas em um jornal da Inglaterra tendo o nome falso como
referência, segundo Jennifer Riley. Ela apresentou um exemplar do jornal à
polícia, juntamente com uma certidão de óbito. As autoridades trabalham para
verificar a informação.
Jennifer Riley disse à polícia que, até pouco tempo atrás, não fazia ideia de
que o irmão “estava de volta” para a região onde eles cresceram. Ela concluiu
dizendo: “Não queria me envolver de jeito nenhum com isso. Depois de deixar
esse lugar há tantos anos, eu não queria me envolver de jeito nenhum. Porém,
uma velha amiga minha entrou em contato e me aconselhou a falar, pois a
polícia estava convencida de que o novo assassino era Owen”.
“Vou falar do jeito mais claro possível: os assassinatos recentes dessas duas
mulheres são trágicos e desoladores. No entanto, preciso esclarecer que meu
irmão não teve nada a ver com isso”.
Cinquenta e um
Meu telefone está caído no cimento da quadra, com a tela quebrada. Não me
lembro de ter deixado cair. Ou talvez eu mesmo tenha arremessado.
Sinto uma mão no meu braço. Arthur, meu cliente, está me olhando. Seus
olhos estão escondidos debaixo de grossas sobrancelhas grisalhas, e estão
crispados. Preocupados. — Você está bem? — ele pergunta.
Não. Não estou nada bem. — Desculpa. Eu preciso correr. É que a minha
família...
— Claro. Corre.
Eu pego o telefone e minha mochila e deixo a quadra. A caminho do
estacionamento, ouço pessoas me cumprimentando, mas não enxergo rosto
nenhum. Só consigo ver aquela manchete na minha frente:
OWEN ESTÁ MORTO
No carro, com o motor já ligado, me dou conta de que não faço a menor
ideia de onde Millicent está. Não tenho mais como saber sem o rastreador.
Pela tela quebrada, eu mando uma mensagem.

Noite romântica

E a resposta dela é:
Almoço romântico. Agora.

Então eu me mando do estacionamento na mesma hora.


As crianças estão na escola, por isso nos encontramos em casa. Seu carro
está estacionado na rua e ela está lá dentro, marchando pela sala de estar. Hoje
seus sapatos exalam um azul-marinho intenso, e não fazem barulho nem
quando ela pisa mais forte no chão. Seu cabelo está mais curto, picotado logo
acima dos ombros, pois ela não quer que Jenna seja a única garota na família
com cabelo curto.
Quando eu entro, ela para de andar e nós nos olhamos. Nada a dizer.
Porque só existe uma frase possível para este momento: estragamos tudo.
Ela sorri um pouco. Não é um sorriso feliz. — Não esperava por essa.
— Nós não tínhamos como esperar.
Estendo as mãos na sua direção, e ela vem até mim, para os meus braços.
Meu coração está pulsando mais rápido do que o normal, e ela inclina a cabeça
nele.
— Vão começar a procurar o verdadeiro assassino — eu digo.
— Vão — ela afasta a cabeça e olha para mim.
— Podemos simplesmente cair fora daqui.
— Como assim?
— A gente pode se mudar. Não precisamos morar aqui. Não precisamos nem
morar neste estado. Posso dar aula de tênis em qualquer lugar. Você pode
vender imóveis em qualquer lugar — essa ideia me aparece do nada, enquanto
estou aqui parado com Millicent. — Escolha um lugar.
— Você não tá falando sério.
— Por que não?
Ela se afasta de mim e começa a caminhar novamente pela sala. Posso vê-la
criando listas na sua cabeça, tentando pensar em tudo que precisa ser feito. —
O ano escolar está na metade.
— Eu sei.
— Eu nem sei que lugar escolher.
— Podemos decidir juntos.
Ela fica quieta.
Eu repito o óbvio. — Eles vão procurar o verdadeiro assassino.
É um problema totalmente novo na nossa vida. Nenhum corpo tinha sido
encontrado, até Lindsay aparecer. Antes dela, ninguém sequer suspeitava de
que havia um assassino por aí. Não estavam procurando por ninguém.
Agora estão. E sabem que é alguém tentando se passar por Owen.
— Nunca vão desconfiar da gente — ela diz.
— Nunca?
Millicent continua em negação. — Sei lá, acho que não tem como. Nós
basicamente dividimos tudo. Eu nunca nem encostei nas cartas...
— Mas no lugar que você escondeu Naomi...
— Nem meu marido descobriu onde era. E você? Alguém viu você com...
— Não. Eu nunca falei com Naomi — eu digo.
— Nunca? — Millicent fica em silêncio por um segundo. — Bom, pelo
menos um ponto positivo. Ninguém viu você com ela.
— Estamos tranquilos nisso aí.
— E Lindsay?
Tento disfarçar minha reação. Lindsay e eu conversamos ao caminhar pela
trilha. — Não, tudo tranquilo, ninguém me viu com Lindsay.
— Ótimo.
— E Jenna? — eu pergunto. — Às vezes eu acho que a gente deveria se
mudar por causa...
— Vamos pelo menos esperar para ter certeza de que essa história é verdade.
Que não é uma armação.
Eu dou um sorriso. A ironia é óbvia demais. — Como as cartas de Owen.
Uma armação.
— Sim. Como as cartas.
O alarme no meu celular começa a tocar. Meu próximo cliente é daqui a
quinze minutos. Ou saio agora ou cancelo.
— Vai — ela diz. — Não podemos fazer mais nada, a não ser esperar.
— Se for verdade...
— Vamos ter que discutir isso de novo.
Vou até ela e dou um beijo na sua testa.
Ela põe a mão no meu rosto. — Nós vamos ficar bem.
— Nós sempre ficamos bem.
— Sim, a gente dá um jeito.

As crianças já ouviram as notícias. Nós tínhamos planejado contar a elas hoje à


noite no jantar, mas elas já sabiam. A internet e suas amizades são bem mais
rápidas do que a gente.
Se Rory se preocupa com essa reviravolta, ele não demonstra. Sua mão está
grudada ao telefone, sua linha vital de comunicação com a namorada.
O rosto de Jenna está impassível como uma pedra. Seus olhos, normalmente
tão expressivos, estão perdidos em um horizonte inatingível. Ela não está
ouvindo, ela não está nem mesmo aqui na sala com a gente. Não sei onde ela
está. Jenna não fala nada até Millicent e eu terminarmos de dizer a ela o que
estamos tentando dizer há semanas: você está segura.
Acho que ela não acredita no nosso discurso. Nem eu tenho certeza de que
acredito. Tudo o que ela imaginava ser verdade está se revelando um equívoco.
Owen nunca esteve aqui. Sempre foi outra pessoa, e ninguém faz ideia de
quem seja.
Não posso culpá-la por se desligar. Eu também quero me desligar.
Quando encerramos a conversa, Rory dá um pulo e vai em direção às
escadas, já digitando no seu celular.
Jenna continua com o olhar perdido.
— Querida? — eu digo, estendendo o braço para tocar sua mão. — Tudo
bem com você?
Ela se vira para mim, com o olhar concentrado. — Então é tudo mentira. O
assassino não foi embora.
— Nós não sabemos ainda — Millicent diz.
— Mas pode ser que ele continue aqui.
Eu concordo com a cabeça. — Bom, pode ser que sim.
Passa-se um minuto, depois outro.
— Tá bom — ela diz, tirando sua mão de baixo da minha. Ela se levanta. —
Eu vou lá pra cima.
— Você está se sentindo...
— Estou me sentindo bem.
Millicent e eu a observamos sair da sala.
Passo o resto da minha noite na internet, pesquisando um novo lugar para
minha família morar. Vou pulando de uma página para outra, lendo sobre
clima, escolas e custo de vida, e então de volta para as notícias.
É uma sensação estranha não saber o que vai acontecer depois. Desde que
escrevi a primeira carta para Josh, a maioria das notícias não me surpreendeu.
Eu já sabia o que as cartas iam dizer e conseguia adivinhar como os
especialistas iriam analisá-las. Nem o corpo de Naomi foi uma surpresa. Eu
desconhecia os detalhes, mas sabia que ele seria encontrado.
Minha única surpresa foi realmente a parte dos cortes de papel.
Agora, não estamos mais na zona de conforto, não sabemos mais o que
esperar. Não gosto disso.
Cinquenta e dois
Eu vejo as reportagens se desenrolarem na tevê como se eu não estivesse
envolvido. Como se eu fosse apenas mais um espectador. E, já que não tenho
mais nenhum poder para mudar o curso da história, eu torço. Cada vez que
assisto as notícias, eu torço para que a irmã de Owen seja uma mentirosa. Mas
numa certa noite, quando estou sentado lá fora na varanda dos fundos
esperando pelo noticiário das onze horas, não é exatamente isso o que Josh me
conta.
Ele está no estúdio hoje, usando paletó e gravata, e parece que alguém
raspou sua barba minutos antes do programa começar. Josh realmente soa
como um repórter sério quando diz que Jennifer Riley vai retornar ao país. Ela
quer limpar o nome do irmão.
A vontade de atirar meu telefone longe outra vez é interrompida pelo som de
arranhões ao lado de casa. Eu me levanto e olho.
É Rory.
Só mesmo Rory para continuar saindo escondido logo depois de ser
descoberto.
Ou melhor, só mesmo Rory para continuar se sentindo no direito de sair
escondido logo depois de ser descoberto. Eu me pergunto quantas vezes ele já
saiu e eu não percebi.
Ele me vê assim que seus pés tocam o chão. Rory estava prestes a sair, não a
voltar.
— Ah — ele diz. — E aí?
— Vai sair para respirar o ar fresco da noite?
Ele encolhe os ombros, sem admitir nada.
— Vem aqui — eu digo.
Em vez de nos sentarmos na varanda, vamos mais adiante no quintal. Temos
uma mesa de piquenique com um guarda-sol no canto, entre o grande carvalho
e o parquinho desmontado.
Rory começa: — Você não tem muita moral pra conversar comigo sobre sair
escondido.
Dias atrás, quando Owen deveria ter sumido para sempre, esse comentário
não iria me incomodar. Eu estava ansioso para falar com o meu filho sobre sua
primeira namorada. Mas, agora, tocar neste assunto não parece mais do que
uma obrigação.
Eu aponto para um dos bancos: — Senta. Essa. Bunda. Na. Cadeira.
Ele senta.
— Em primeiro lugar — eu digo —, você deve ter percebido que a sua irmã
está passando por um momento difícil. E eu prefiro acreditar que você, o irmão
dela, não quer que ela se sinta pior, não é mesmo?
Ele balança a cabeça negativamente.
— Claro que não quer. Então eu também sei que você não vai contar para ela
essa sua teoria maluca de que eu estou traindo sua mãe.
— E é uma teoria?
Eu o encaro em silêncio.
Ele balança a cabeça de novo. — Não, não vou dizer nada.
— E eu sei que você não vai comparar as minhas saídas com as suas. Porque
você tem menos da metade da minha idade. Você não está nem perto de ser
adulto. Você não pode simplesmente ficar saindo escondido por aí.
Ele concorda com a cabeça.
— O quê? — eu pergunto.
— Não. Eu não vou comparar as minhas saídas com as suas.
— E eu também sei que, se eu te perguntar o motivo de você sair à noite,
você não vai me dizer que é para passear com Daniel, vai? Porque não é o que
você anda fazendo, né?
— Não.
— Você está saindo para ver Faith Hammond.
— Sim.
— Perfeito. Que bom que a gente esclareceu isso.
O telefone de Rory vibra. Seus olhos vão e voltam, ele não sabe se olha para
mim ou para o telefone, mas no fim ele não mexe no celular.
— Vá em frente — eu digo.
— Não precisa.
— Não deixe Faith esperando.
Ele pega o telefone e manda uma mensagem enquanto tira aquele cabelo
ruivo dos olhos. Faith responde imediatamente e ele manda mais uma. A
conversa continua, e espero calado até ele pôr o telefone de volta na mesa.
Com a tela virada para cima.
— Desculpa — ele diz.
Eu dou um suspiro.
Não estou chateado com Rory. Ele é só um garoto descobrindo que, no final
das contas, as garotas não são tão ruins assim. Ele costumava dizer que as
meninas da escola eram “horrendas e imundas e, principalmente, feias”. A
frase é de um livro que ele leu e sempre me fez rir. Eu me virava para Millicent
e dizia: “Nem olhe para mim, você é quem levava os dois para a biblioteca toda
semana”. Se por acaso a gente estivesse na cozinha, ela me batia com o pano
de prato. Uma vez, bateu tão forte que chegou a abrir um corte no meu braço.
O machucado foi superficial, mal rompeu a pele, mas Rory ficou
impressionado com a mãe. E um pouco menos impressionado comigo.
E agora ele sai tarde da noite para ver uma loirinha chamada Faith.
— Ela também sai escondido? — eu pergunto. — Vocês se encontram em
algum lugar?
— Às vezes. Mas eu posso subir até o quarto dela.
Quero proibi-lo de sair de casa, colocar um cadeado na sua janela e chamar
os pais de Faith para dizer que eles são jovens demais e que é muito perigoso.
Owen está morto, e temos um assassino à solta.
Ainda que não seja verdade. Só preciso fingir que é. Assim como sou
obrigado a fingir que não me lembro mais da minha primeira namorada.
— Vocês têm que parar com isso — eu digo. — Você viu as notícias. É
perigoso demais pra vocês dois saírem sozinhos à noite.
— Sim, eu sei, mas...
— E você realmente precisa parar de sair escondido. Se eu contar para sua
mãe, ela vai trancar a sua janela e colocar câmeras na casa inteira.
As sobrancelhas de Rory pulam para fora do rosto. — Mas ela não sabe?
— Se ela soubesse, você ia estar de castigo até a faculdade. E a sua
namorada também.
— Tá bom, a gente vai parar.
Dou um longo suspiro. Só porque estou bravo não significa que eu seja
irresponsável. — E, já que você tem uma namorada, você tem prote...
— Pai, eu sei comprar camisinha.
— Ótimo, perfeito. Então à noite você fala com ela pelo celular, tá certo?
Que tal se encontrar com ela só durante o dia?
Ele faz que sim com a cabeça e se levanta rápido, como se estivesse com
medo que eu fosse mudar de ideia.
— Mais uma coisa — eu digo. — E me responda sem enrolação.
— Tá.
— Você está usando drogas?
— Não.
— Não fuma maconha?
Ele balança a cabeça. — Juro que não.
Eu o deixo ir. Não tenho tempo agora para descobrir se ele está mentindo ou
não.
Mais tarde, quando o jornal já terminou, só consigo pensar no que mais não
notamos. Todos os caminhos que podem nos incriminar, todas as curiosidades
forenses que fiquei sabendo pelo noticiário. DNA, vestígios, fibras — toda essa
ficção científica passa pela minha cabeça como se fizesse algum sentido para
mim, mesmo que não faça, até porque eu sei que não é meu nome que vai
surgir primeiro. Nunca conversei com Naomi, sequer toquei nela. Qualquer
evidência que encontrarem apontará para Millicent.

A primeira vez que vejo a irmã de Owen é na televisão. Owen tinha trinta e
poucos anos quando cometeu os assassinatos — agora ele teria em torno de
cinquenta. Jennifer parece um pouco mais nova, com quarenta e poucos. Ela
tem os mesmos olhos azuis, mas seu cabelo é um tom de loiro mais escuro. Ela
é tão magra que a clavícula chama a atenção, assim como as veias no seu
pescoço. Dizem que a câmera engorda cinco quilos, então, se isso for verdade,
Jennifer deve ter uma aparência cadavérica ao vivo.
Ela está em todos os televisores do salão do clube, onde a turma do almoço
pediu mais um drinque para poder assistir a coletiva de imprensa. É a primeira
vez que o público vê a irmã de Owen.
O comissário de polícia está ao seu lado, e o legista está do outro. Um tem
cabelo, o outro não tem, e suas barrigas são do mesmo tamanho.
Jennifer diz que ela é a irmã de Owen Oliver Riley e que nós estamos
completamente equivocados a respeito dos assassinatos.
— Posso provar que Owen não matou ninguém nos últimos cinco anos. Fiz
toda essa viagem até aqui para garantir que todos entendam que o meu irmão
está morto — Jennifer ergue uma folha de papel e diz que é a certidão de óbito
de Owen, assinada por um legista na Grã-Bretanha e carimbada com um selo
oficial. E ela repete sua declaração anterior: — Ele está morto.
O legista vem ao microfone e confirma o que Jennifer disse.
— Morto.
Em seguida vem o comissário, que não para de falar sobre como era
inevitável que o departamento de polícia focasse a investigação em Owen, mas
que, sim, eles foram enganados. Ele também confirma a declaração de Jennifer.
— Morto.
Agora os pratos estão limpos na mesa. Todo mundo acredita nela. Owen está
morto, e a polícia vai recomeçar a investigação para descobrir o que é que eles
deixaram passar.
Mas, antes, Jennifer tem mais uma coisinha para dizer: — Lamento muito
pelas famílias. Lamento que tenham desperdiçado tanto tempo se
concentrando em meu irmão em vez de procurar o verdadeiro assassino. Uma
velha amiga me ligou para contar o que estava acontecendo em Woodview. E,
quando ela me implorou para que eu voltasse, eu precisei fazer a coisa certa.
Jennifer gesticula para alguém lá atrás, e o legista abre espaço. A câmera se
aproxima da amiga.
Minha cabeça gira tão rápido que eu quase perco a consciência.
A mulher que trouxe Jennifer Riley de volta é loira e corpulenta, e tem um
sorriso que brilha na tela.
Denise. A mulher de trás do balcão da Joe’s Deli.
Cinquenta e três
O rastreador está em cima do painel do meu carro. Eu giro o aparelhinho de um
lado para o outro, e depois começo tudo outra vez. É o mesmo carrossel que
tenho feito na minha cabeça depois que a mulher da Joe’s Deli, a lanchonete
preferida de Millicent, apareceu na tevê.
Denise. A mesma mulher que me atendeu naquele dia.
É uma coincidência. Precisa ser. O fato de Owen estar morto não ajuda
Millicent e eu. Ele nos prejudica.
No entanto, mais lamentável ainda é saber que, se a Joe’s fosse um bistrô
orgânico servindo rosbife de vacas criadas em pasto ecológico, eu jamais iria
suspeitar que, na verdade, não é uma coincidência. Para minha sorte, a Joe’s
não é esse paraíso. É uma padaria onde orgânico é uma palavra de outro
idioma.
Se eu pudesse perguntar a Millicent sobre esse seu novo gosto por
sanduíches baratos, eu perguntaria. Mas eu não deveria saber disso. É uma
informação que adquiri espionando minha esposa.
Eu nunca tinha feito isso antes. Pensei em fazer, mas não fiz. Nem no tempo
em que Millicent trabalhava com um homem que claramente queria ser mais do
que um mero colega de trabalho. Deu para notar no exato momento em que eu
conheci o cara. Cooper. O festeiro da faculdade que nunca se casou e nem
queria se casar. O que ele queria era transar com Millicent.
Cooper foi quem acompanhou Millicent na conferência em Miami. Naquele
mesmo fim de semana em que Crystal me beijou.
Naquela época, eu estava realmente convencido de que Cooper tinha beijado
Millicent também.
Quando eles voltaram da viagem, essa minha certeza quase me fez vigiar os
dois. Não vigiei. Pelo menos não minha esposa. Cooper, por outro lado, eu
observei tempo o suficiente para perceber que ele queria dormir com todas as
mulheres. Não era só com Millicent.
E, bom, até onde eu sei, eles não dormiram juntos.
Agora que já espionei a minha esposa, percebo o problema disso. Não posso
fazer nada com as informações. O rastreador está no painel do carro e estou
sentado no estacionamento do clube olhando para o aparelho, porque espionar
gera apenas mais espionagem. Se eu soubesse que era um círculo tão vicioso,
jamais teria começado.
Enquanto fico ali remoendo, Millicent me manda uma mensagem.
Sopa de frango para o jantar?

É uma boa.

Espero por outra mensagem, uma que diga noite romântica ou que faça
alguma referência às notícias de hoje, mas meu telefone segue sem notificação
nenhuma.

Quando chego em casa, o carro de Millicent já está na garagem. Penso em


colocar o rastreador de novo, mas acabo desistindo.
Ela está preparando a sopa na cozinha. Eu começo a ajudá-la, fatiando
legumes enquanto ela acrescenta cebola e gengibre fresco ao caldo.
As crianças não estão por perto.
— Lá em cima — ela diz antes de eu perguntar. — Dever de casa.
— Você viu as notícias?
Ela comprime os lábios e acena com a cabeça. — Ele está morto.
— Só disseram isso umas mil vezes.
Eu dou um leve sorriso. Ela também. Não podemos mudar o fato de que
Owen está morto.
Ficamos quietos por alguns minutos, preparando o jantar, e eu tento
descobrir um jeito de trazer Denise à tona. As crianças, no entanto, aparecem
antes que eu tenha alguma ideia.
E então eu me esforço para convencê-las de que não devem prestar atenção
no noticiário: — Nada vai acontecer com vocês.
É um comentário que contradiz diretamente o que falei para Rory poucos
dias atrás, quando eu disse para ele que era perigoso demais sair à noite. Mas
Rory não está batendo em garotos com pedras. É Jenna quem está.
Mesmo assim, ele percebe. Revira os olhos com tudo que eu digo. Não
trocamos muitas palavras desde a nossa pequena reunião no quintal. Ainda não
sei dizer se ele está irritado por eu ter barrado suas escapadas ou se está irritado
por eu ter perguntado se ele usava drogas. Provavelmente as duas coisas.
Quando ninguém tem mais nada para falar sobre Owen, a conversa muda
para o sábado. Rory vai jogar golfe. Jenna tem uma partida de futebol, e é a vez
de Millicent acompanhá-los. Eu estarei no trabalho. E vamos todos nos
encontrar para almoçar.
Owen só volta para o centro do palco mais tarde, depois do jantar terminar,
quando a louça já está lavada e as crianças foram para a cama. Millicent está no
banheiro do nosso quarto, preparando-se para dormir, enquanto eu assisto o
noticiário e espero por ela. Millicent vem se deitar usando uma das minhas
camisetas do clube e uma calça de moletom, com o rosto brilhando de
hidratante. Ela espalha o creme nas mãos enquanto encara a tevê.
Josh está em frente ao Lancaster, onde Jennifer Riley está hospedada. Ele
fala sobre a coletiva de imprensa e então corta para um vídeo.
— Eu não tinha visto isso — Millicent diz.
— Não?
— Não. Só li a reportagem na internet.
Eu aumento o volume. O programa mostra trechos da coletiva de imprensa,
incluindo todas as vezes em que alguém disse a palavra morto. Ninguém disse
que Owen “faleceu”, nem mesmo sua irmã.
Quando Denise aparece na tela, olho para Millicent.
Ela inclina a cabeça para o lado.
Eu espero.
Quando o vídeo termina, ela diz: — Que estranho.
— Como assim?
— Eu conheço essa mulher. Ela é minha cliente.
— É mesmo?
— É a dona de uma padaria. É bem-sucedida, inclusive. Ela quer comprar
uma casa.
Millicent volta ao banheiro.
Por dentro, eu respiro aliviado. Denise é uma cliente. Nunca me ocorreu que
ela teria dinheiro suficiente para comprar uma casa — pelo menos não as casas
que Millicent vende — e, ainda assim, eis a novidade: ela tem dinheiro.
Sou tão idiota.
Ainda que eu esteja aliviado em saber que tudo isso foi uma inusitada
coincidência, largamente causada pela minha espionagem, nosso problema não
foi eliminado. Ele piorou. Owen está morto, e a polícia está atrás do verdadeiro
assassino.
O comissário diz que o caso vai mudar de detetive. Essa pessoa virá de outra
delegacia e vai revisar toda a investigação com um novo olhar. Eu deveria ter
olhado para Denise com um novo olhar.
Quando Millicent sai do banheiro, a tevê e as luzes já estão apagadas. Ela
entra na cama, e eu viro o meu rosto para ela, embora esteja escuro demais para
ver qualquer coisa.
— Não quero me mudar — ela diz.
— Eu sei.
Ela põe sua mão na minha. — Estou preocupada.
— Com Jenna? Ou com a polícia?
— As duas coisas.
— E se a gente sair da cidade? — eu pergunto.
— Mas eu acabei de dizer...
— Não, eu digo no sentido de sairmos de férias.
Ela fica em silêncio. Na minha cabeça, mastigo todos os motivos pelos quais
não poderíamos viajar. Nossos filhos iam faltar à escola. Não temos dinheiro
sobrando. Ela tem várias vendas pendentes. Eu não deveria cancelar aulas com
os meus clientes outra vez. Os mesmos motivos devem estar rodopiando pelo
cérebro dela.
— Vou pensar nisso — ela diz. — Vamos ver como ficam as coisas.
— Beleza.
— Tudo certo então.
— A sopa estava ótima — eu digo.
— Você é um bobo mesmo.
— Ainda que a gente não tire férias agora, nós deveríamos viajar quando
essa história toda acabar.
— Vamos fazer isso.
— Me prometa.
— Eu prometo — ela diz. — Agora vá dormir.
Cinquenta e quatro
Uma mulher é a nova detetive responsável pela investigação. Seu nome
completo é Claire Wellington, um nome que soa como se a sua família
estivesse aqui desde os tempos do Mayflower, o que realmente não deve ser o
caso. Não que sua árvore genealógica seja importante na atual situação.
Claire é uma mulher de rosto severo com um cabelo castanho curto, pele
clara e um batom marrom. Veste um terninho sisudo, de tons escuros, e nunca
sorri. Sei disso porque ela está na tevê o tempo inteiro. Aparentemente, ela
acha que seu trabalho de detetive consiste em pedir ajuda ao público.
— Sei que alguém nessa comunidade viu alguma coisa, mesmo que essa
pessoa ainda não saiba direito o que é. Talvez tenha sido na noite do
sequestro. Todo mundo estava em alerta naquela noite, e todo mundo sabia que
alguma coisa ia acontecer. Ou talvez tenha sido quando o corpo de Naomi
George foi abandonado atrás do hotel Lancaster. Então, por favor, tentem
relembrar aquela noite, tentem relembrar o que vocês estavam fazendo, com
quem estavam, o que vocês viram. Vocês podem ter visto alguma coisa e essa é
a peça que falta no nosso quebra-cabeça.
Criaram um e-mail para as pessoas enviarem informações. Ou elas podem
permanecer anônimas e ligar para um disque-denúncia exclusivo para questões
envolvendo Lindsay e Naomi.
Esse desdobramento todo me assusta. É impossível prever que tipo de
informação vai aparecer por conta da atuação de Claire como relações públicas.
Josh já está inclusive relatando que a polícia trabalha agora com dezenas de
novas pistas.
— Para ampliar seus esforços, a polícia tem ainda utilizado um inovador
programa de computador, desenvolvido no campus de Sarasota, da
Universidade da Flórida, onde os alunos programaram um algoritmo que
varre todas as denúncias e seleciona as palavras que são usadas
repetidamente. As denúncias são então classificadas, da mais útil à menos útil.
Tudo isso acontece dentro de alguns dias após a chegada de Claire. Já é ruim
o bastante ter que vê-la na tevê. Toda. Hora. Agora também preciso escutar o
quanto ela é inovadora e eficiente. Mesmo em casa ela se torna inevitável.
Ainda que Millicent insista para não assistirmos tevê à noite, porque Claire
sempre aparece nos intervalos, as emissoras da região começaram a transmitir
anúncios de utilidade pública sobre o disque-denúncia durante toda a
programação.
Então, sem o barulho da tevê, resolvemos jogar. Millicent busca um baralho
e um conjunto de fichas de plástico, e ensinamos nossos filhos a jogar pôquer,
pois até o vício em apostas deve ser melhor do que assistir a Claire.
Rory já sabe jogar. Ele tem um aplicativo de pôquer no telefone.
Jenna aprende rápido, porque ela aprende rápido qualquer coisa. Ela também
é ótima blefando. Acho que é até melhor do que Millicent.
Meu estilo de jogo, por outro lado, é terrível, e eu perco todas as mãos.
Enquanto jogamos, Rory menciona que convocaram uma assembleia para
amanhã na escola. Millicent contrai a testa e depois volta ao normal. Ela está
tentando travar menos o rosto por causa das rugas.
— Não recebi nenhum comunicado sobre essa assembleia — ela diz.
— Aquela detetive vai na escola — Jenna acrescenta.
— Isso, a madame — Rory diz.
Millicent enruga a testa de novo.
— Por que essa mulher vai na escola de vocês? — eu pergunto.
Rory encolhe os ombros. — Provavelmente para perguntar se alguém viu
alguma coisa. A mesma coisa que ela anda fazendo na tevê. Daniel disse que
ela vai visitar todas as escolas.
Jenna concorda como se tivesse ouvido a mesma informação.
— Ela é chata — Rory diz. — Mas pelo menos a gente não vai precisar
assistir aula.
Millicent olha para ele. Ele finge não ver e segue analisando suas cartas.
— Ué, eu gosto dela — Jenna diz.
— Você gosta da detetive, é? — eu pergunto.
Ela concorda com a cabeça. — Ela parece corajosa. Como se ela fosse
mesmo pegar o assassino.
— Ah, eu também acho — Rory diz. — Parece que ela está obcecada ou
alguma coisa assim.
É bem significativo: a mulher que pode nos prender também faz com que
Jenna se sinta melhor. — Todo mundo confia muito nela — eu digo.
— Tomara que eu consiga falar com a detetive — Jenna diz.
— Ela é muito ocupada.
— Eu sei que é. Eu só falei por falar.
A escola de Jenna e Rory não faz assembleias no ginásio. Eles têm um
auditório especial, batizado com o nome do doador que pagou pela obra.
Quando eu chego, o auditório está lotado de alunos, professores e pais. Com a
quantidade de vezes que Claire apareceu no noticiário, ela é quase uma
celebridade.
Ela é mais alta do que eu esperava, e intimida mesmo em um auditório
abarrotado de gente. Claire não quer falar sobre si mesma, sobre seu passado
ou sua experiência. Ela já começa dizendo às meninas da plateia que elas estão
todas seguras.
— Quem matou essas mulheres não está atrás de vocês. Ele está procurando
por mulheres mais velhas, mulheres já adultas. O mais provável é que vocês
jamais vão passar na frente da pessoa que matou Naomi e Lindsay.
Jenna está sentada com suas amigas à direita do palco. Apesar de estar bem
no fundo, posso vê-la se inclinar para frente, tentando não perder uma palavra.
Rory está no meio, sentado ao lado da namorada, e pode ou não estar
prestando atenção. É difícil saber.
— No entanto, peço a atenção de vocês — Claire diz. — Pode ser que vocês
passem na frente desse assassino e nem saibam quem ele é. Pode ser que vocês
tenham visto alguma coisa e nem saibam que é importante. Então, muito
cuidado. Qualquer coisa incomum, ou que chama a atenção de vocês, pode ser
importante para a polícia.
Ela na verdade fala a mesma ladainha que falou na televisão, mas com
palavras mais fáceis e frases mais curtas. Ela termina o discurso dizendo que
vai estar à disposição se alguém quiser conversar. É por isso que estou aqui.
Em primeiro lugar, para garantir que Jenna tenha uma chance de conhecer
Claire. Em segundo lugar, para eu mesmo conhecê-la.
As amigas de Jenna estão ao seu lado e, portanto, ela não me abraça.
Esperamos todos juntos para falar com Claire. Uma fila confusa se formou na
sua frente e, quando chega a nossa vez, eu me aproximo da detetive e me
apresento. Ela é, de fato, alta a ponto de nossos olhos estarem na mesma altura.
Na tevê, seus olhos parecem totalmente castanhos. De perto, vejo as manchas
douradas.
— Esta aqui é minha filha, Jenna — eu digo.
Em vez de perguntar a Jenna que idade ela tem ou em que série está, Claire
pergunta se ela quer ser detetive.
— Eu ia adorar! — Jenna diz.
— Então a primeira coisa que você precisa saber é que tudo é importante.
Mesmo aquelas coisinhas que parecem que não significam nada, tá bom?
Jenna mexe a cabeça para indicar que entendeu. Seus olhos estão brilhando.
— Pode deixar comigo.
— Pois eu sabia que podia confiar em você — Claire se vira para mim. —
Sua filha vai ser uma ótima detetive.
— Ela já é, eu acho.
Nós sorrimos um para o outro.
Ela segue para a próxima pessoa, ficando de costas para nós dois.
Jenna está saltitando na ponta dos pés. — Você acha que eu posso mesmo
ser uma detetive?
— Você pode ser o que você quiser ser, querida.
Ela para de saltitar. — Pai, você parece uma propaganda de manteiga.
— Desculpe, mas é verdade. E acho que você seria uma grande detetive.
Ela suspira e se vira para as amigas, que estão acenando. Ela me afasta
quando eu tento abraçá-la. — Estou atrasada!
Eu vejo a minha filha correr para suas amigas, que reagem às suas novidades
com muito mais entusiasmo do que eu.
Fracasso paternal número 79.402, e ela só tem treze anos.
Tenho vontade de agradecer a Claire, pelo esforço de fazer as crianças se
sentirem mais seguras. Ela deixou Jenna feliz de um jeito que eu não via há
muito tempo.
Mas isso ainda não me faz gostar dela. Na verdade, agora que a gente se
conhece, eu me sinto livre para odiá-la.
Cinquenta e cinco
Antes que eu tenha a chance de pesquisar sobre nossa nova detetive, Jenna já
pesquisou. No jantar, somos agraciados com a história de vida de Claire
Wellington, de acordo com a internet. Nascida em Chicago, ela fez faculdade
em Nova Iorque e seu primeiro emprego foi no Departamento de Polícia de lá.
Ela depois se mudou para o meio-oeste rural, onde se tornou detetive e integrou
uma força-tarefa antidrogas. Claire então trocou as cidades pequenas por uma
maior, sendo afinal promovida para o Departamento de Homicídios. Ela
também fez parte de uma equipe que investigou uma série de assassinatos
conhecida como os Assassinatos de River Park. Prenderam o assassino dois
meses após o início da investigação.
Claire acabou se tornando uma das melhores detetives do seu departamento,
tanto que sua taxa de resolução de crimes era cinco por cento maior que a de
todos os outros.
Ela é tão formidável quanto parece ser.
No entanto, não sou o único do casal a conhecer Claire. Millicent também a
conheceu. Claire precisava de um lugar para alugar, pois ficar hospedada em
um hotel é caro demais para o orçamento da polícia. Assim, ela ligou para a
imobiliária procurando um imóvel para alugar. Pequeno, simples e mobiliado,
com pagamento mensal. Millicent não trabalha com aluguéis, mas estava no
escritório quando Claire passou por lá.
Domingo de manhã cedo, quando estamos sozinhos na cozinha e as crianças
ainda estão dormindo, pergunto a Millicent o que ela acha de Claire
Wellington.
— Ela é bem alta.
— Ela é esperta — eu digo.
— E nós não somos?
Trocamos um sorriso.
Millicent acabou de voltar de uma corrida. Ela está em pé diante da pia, com
roupas de ginástica, e eu aprecio a vista. Ela me flagra bem no meio do ato e
ergue uma sobrancelha.
— Quer voltar para a cama? — pergunto.
— Quer me mostrar o quanto você é esperto?
— Quero.
— Mas eu preciso tomar um banho.
— Quer companhia?
Ela quer.

Nós começamos no chuveiro e passamos para a cama. Nosso sexo é


aconchegante e familiar, em vez de apaixonado e furtivo. Não é um sexo ruim.
Quando Rory acorda, ainda estamos deitados. Eu sei que é Rory porque,
além dele não conseguir fechar uma porta sem bater, seus passos são pesados
quando ele desce à cozinha. Pouco tempo depois, Jenna acorda e segue a
mesma rotina — banheiro e depois cozinha —, mas tudo é mais suave.
Millicent está encolhida ao meu lado. Está nua e quente.
— A cafeteira está ligada — ela diz. — Vão querer saber onde a gente está.
— Uma hora eles descobrem — não tenho nenhuma intenção de me levantar
da cama, a não ser que seja obrigado a isso. Eu me espreguiço e fecho os olhos.
Alguém liga a tevê, o volume está alto. As crianças provavelmente estão
contentes que não estamos lá embaixo. Quase não assistimos televisão nas
manhãs de domingo, então é um divertimento para elas. Elas trocam de canal
entre desenhos e um filme com explosões.
— Aposto que estão comendo cereal — Millicent diz.
— Nós temos cereal?
— Orgânico. Sem açúcar.
— Temos leite?
— De soja.
Eu não digo “eca” em voz alta, mas penso em dizer. — Não é um problema
então.
— Acho que não.
Ela se aninha um pouco mais perto de mim.
A vida antes de Holly era exatamente assim. Tudo se movia um pouco mais
devagar, menos frenético, sem muito agito.
Os dias se misturavam, emparedados entre grandes acontecimentos. Nossa
primeira casa que era tão pequena, mas que parecia enorme, pelo menos até o
tamanho não nos servir mais. E depois, a primeira venda maiúscula de
Millicent, o primeiro dia de aula de Jenna, nossa casa maior e a hipoteca maior.
O corte de papel na mão de Rory.
Quando Jenna tinha quatro, ela ficou doente por causa de um resfriado e esse
resfriado virou uma bronquite. Ela só conseguia dormir por mais ou menos
uma hora até ser acordada pela tosse. Millicent e eu passamos três noites
dormindo no seu quarto, eu no chão e Millicent na caminha de Jenna. Com esse
esforço conjunto, Jenna acabou dormindo até mais do que a gente.
E quando ensinei Rory a andar de bicicleta. Ele jamais vai admitir, mas usou
rodinhas por um extenso período. O equilíbrio não era o seu forte. Ainda não é.
Nada disso era extraordinário, não naquela época. Eram rotinas e
responsabilidades, com um sorriso ou até uma risada ocasional. Momentos de
felicidade seguidos por longos períodos de dias confusos e repetitivos.
Agora, quero tudo aquilo de volta. Talvez eu já tenha tido minha cota de
adrenalina, ou talvez isso seja excitante demais, mas, seja lá o que for, não é o
que quero para minha vida.
— Ei — Millicent diz. Ela senta na cama, coberta pelo lençol. Seus cabelos
ruivos estão embaraçados. — Ouviu isso?
Lá embaixo, a música do plantão de notícias retumba na televisão. Ela é
interrompida quando uma das crianças muda de canal para um desenho.
Eu reviro os olhos. — Boletins de notícias a cada cinco minutos — puxo
Millicent para a cama, de volta para meus braços, sem nenhuma intenção de
sair, a não ser que a polícia arrombe a porta. — Provavelmente alguma
celebridade foi presa.
— Ou morreu.
— Ou um político foi pego traindo a mulher — eu digo.
— Isso nem é notícia mais.
Eu dou uma risada e me enterro fundo debaixo dos cobertores.
Minha esperança é que tenham detido alguém pelos assassinatos. Claro, não
seria o assassino de Naomi e Lindsay, mas seria alguém que cometeu crimes
terríveis, que merece ser trancafiado antes que machuque alguém. Eu o
imagino como um homem desgrenhado e desleixado, com uma expressão
insana no rosto.
— Certo, vamos parar com isso — Millicent diz. — Vou levantar — ela tira
todas as cobertas de uma vez só, como aquele velho truque para tirar um
curativo. Funciona. A cama não é aconchegante sem ela.
Ela põe um roupão e desce. Eu entro no chuveiro antes de sair do quarto.
As crianças estão no sofá, assistindo um programa de adolescentes sobre
alienígenas. Suas tigelas vazias estão na mesinha de café, e me surpreendo ao
ver que Millicent ainda não limpou a sala inteira. Eu encontro minha esposa na
cozinha, parada diante da cafeteira. Sua xícara está virada, e o café está
escorrendo pelo lado do balcão até cair no chão. Ela sequer está olhando. Seus
olhos estão focados na pequena televisão que ela mantém na cozinha.
Josh está na tela. Ele está parado em uma área verde tão cheia de mato que
não consigo ver o prédio atrás dele, somente um campanário por cima das
árvores. Não conheço este lugar nem sei onde fica. A placa de madeira na
frente da igreja está castigada pelas intempéries e meio apagada. A boca de
Josh está se mexendo, mas não escuto o som. O volume está muito baixo.
Eu não preciso ouvir, no entanto. A notícia está emplastrada na parte de
baixo da tela, em vermelho:
CASA DO SENHOR OU CASA DOS HORRORES?

CALABOUÇO SUBTERRÂNEO ENCONTRADO EM IGREJA ABANDONADA


Cinquenta e seis
Por um segundo, cheguei a acreditar que Millicent ficou nervosa porque a
notícia era mesmo horrível, porque era chocante, porque não tinha nada a ver
com a gente. Ou talvez eu queira pensar que acreditei na sensibilidade de
minha esposa.
Mas, passando esse segundo, eu entendi. A igreja foi onde ela levou Lindsay
e Naomi.
— Uma igreja?
Estamos de volta ao segundo andar, trancados no quarto, mas o clima mudou
consideravelmente. Não há nada sensual em um calabouço dentro de uma
igreja.
Nossa família não vai à igreja, e nunca foi. Millicent é agnóstica de criação.
Eu sou católico e deixei de praticar muito cedo. A igreja é onde vamos para
casamentos, velórios e almoços beneficentes. E sou obrigado a dizer que esse
esconderijo é uma das escolhas mais perturbadoras que Millicent poderia ter
feito. O único lugar pior seria uma pré-escola.
Millicent não está mais chocada com a descoberta, nem amedrontada. Ela
agora está na defensiva. — Eu precisava de um lugar. Um lugar onde ninguém
ia procurar.
— Fale baixo — as crianças estão lá na sala assistindo tevê, mas tenho medo
de que elas possam escutar.
— Ninguém descobriu, não é? Quando elas estavam vivas?
— Não, não descobriram. Ninguém achou a igreja até Claire aparecer na
cidade — de acordo com Josh, eles encontraram o cativeiro por causa de uma
denúncia. Alguém viu um carro no que costumava ser o estacionamento do
lugar, quando não deveria ter nada lá, a não ser mato.
Millicent fica parada na minha frente, com as mãos nos quadris. Ela ainda
está de roupão.
Atrás dela, a tevê do nosso quarto continua ligada. Não permitiram a entrada
da imprensa na igreja, nem liberaram fotos. Assim, Josh apenas repete o que
suas fontes anônimas disseram.
— Uma cena abominável... Correntes presas às paredes... Algemas
ensopadas de sangue... Até mesmo um policial veterano ficou com lágrimas
nos olhos... Como se fosse a cena de um filme.
Millicent abana a mão, afastando as palavras. — Não estão ensopadas de
sangue. Aquele lugar não é uma catacumba. É um porão. E a igreja deve ter
uns cem anos de idade. Quem vai saber o que aconteceu lá?
— Mas você limpou?
Ela aperta os olhos. — Essa pergunta é séria?
Eu levanto minhas mãos como resposta.
Millicent caminha até mim e seu rosto fica mais perto do que quando
estávamos na cama, mas agora não vejo nada aconchegante ou caloroso nela.
— Não venha duvidar de mim. Não neste momento.
— Eu não estou...
— Está sim. Pare.
Seu roupão açoita o ar quando ela se vira e desaparece no banheiro.
Eu consigo entender a sua raiva. Ela está irritada porque a igreja foi
descoberta e irritada por eu questioná-la. Mas eu não deixaria uma gota de
sangue sequer naquele porão. Todo o lugar seria lavado com amoníaco, água
sanitária ou qualquer outro composto químico que eliminasse sangue, fluídos e
o menor vestígio de DNA. Talvez eu até largasse um cigarro aceso no chão e
deixasse a igreja pegar fogo, fazendo parecer um acidente.
Nunca tive a chance de sugerir nada disso, porque não sabia sobre a igreja.
Nunca tive coragem de perguntar.

Millicent resolve que devemos ir ao cinema hoje à tarde. Dadas as


circunstâncias, a sugestão é absurda, mas digo a mim mesmo que deve ser
melhor do que assistir o noticiário o dia inteiro. Sim, é uma boa ideia sair de
casa. Sair de dentro da minha cabeça. Ficar longe de Josh. Repito isso enquanto
me arrumo, tentando deixar de lado aquela igreja e aquele porão. Quase
funciona.
— Não estou me sentindo muito bem — para enfatizar, coloco a mão na
barriga.
Millicent me olha com aquele olhar. — Talvez pipoca resolva seu problema.
— Não, não, vocês podem ir. Divirtam-se.
Eles me deixam em casa.
Eu não assisto as notícias. Em vez disso, vou de carro até a igreja.
A televisão não é suficiente. Quero ver com meus próprios olhos esse lugar
onde Millicent escondeu Lindsay e Naomi.
Fica ao lado de uma rodovia afastada no meio do nada. As únicas
construções nos arredores são um bar destruído, um posto de gasolina caindo
aos pedaços e um sítio vazio bem no fim de uma estrada secundária. É por isso
que eu nunca vi a igreja no GPS. O sítio está à venda, e o endereço apareceu no
rastreador várias vezes. Ela podia sair pela porta dos fundos do sítio e estar na
igreja em questão de minutos. Ninguém conseguiria vê-la da estrada.
A área está transbordando de carros, furgões de emissoras de tevê e curiosos.
Coloco uma jaqueta e um boné, e tento me misturar à multidão.
Os repórteres estão espalhados em frente à igreja, e o campanário aparece no
alto atrás deles todos. A plateia é contida por uma fita amarela, que é protegida
por policiais fardados. Alguns têm rosto de bebê. Outros são inchados e estão
muito próximos da aposentadoria.
Nunca estive tão perto de Josh, nunca o vi em nenhum lugar que não fosse a
televisão. Ele é mais baixo e mais magro do que eu imaginava.
Uma mulher mais velha está ao meu lado, com os olhos pulando de um
repórter para outro.
— Com licença, sabe dizer se eles têm alguma novidade? — eu pergunto.
— Desde quando? — a sua voz tem uma rouquidão de fumante. É uma
mulher de cabelos brancos e olhos amarelados.
— Uma meia hora, mais ou menos.
— Não, você não perdeu nada.
Atrás da densa aglomeração de árvores, vejo o topo de uma tenda branca.
Parece exatamente igual às que são usadas em casamentos e festas de crianças.
— O que é aquilo ali?
— A polícia montou assim que chegaram. Chamam de “base de operações”.
— O comissário está lá também — diz um homem parado atrás de mim.
Tudo nele é descomunal, e o sujeito é muito maior do que eu, tanto na altura
quanto na largura.
— Eles querem ter certeza.
— Certeza do quê?
— Certeza de que eram só aquelas duas mulheres — ele diz. — E que não
vão ter que desenterrar mais nenhuma.
— Deus me livre — a mulher diz.
Havia duas outras, é claro — Holly e Robin —, mas nenhuma delas foi
mantida no porão.
Não que eu saiba, pelo menos.
Uma luz intensa brilha na nossa cara assim que Josh entra ao vivo. Mais uma
vez, ele cita suas incontestáveis fontes, todas anônimas.
Elas deram a ele mais informações sobre a masmorra embaixo da igreja, e
ele diz que a polícia encontrou uma pista. Na parede, escondida em um canto,
parece que uma das vítimas tentou deixar uma mensagem.
Cinquenta e sete
Por um segundo, penso em perguntar a Josh se ele tem mais alguma
informação. Nós nunca conversamos, eu nunca me comuniquei com ele fora
das cartas, mas este boato sobre uma mensagem escondida me fez entrar em
pânico. Ou quase.
No fim, ao invés de cometer uma estupidez, como várias vezes no passado,
eu recuo. Reflito. Avalio. E chego a uma conclusão: bobagem. Essa história é
uma grande bobagem.
As fontes de Josh estão erradas. Se a polícia demorou menos de um dia para
encontrar essa suposta mensagem, é impossível que Millicent tenha deixado
passar. Ela pode não saber que seu filho está saindo escondido à noite, mas ela
consegue enxergar poeira nos móveis mesmo a muitos metros de distância. Ela
não deixaria de ver uma mensagem na parede.
E que tipo de mensagem Naomi ou Lindsay escreveria? Socorro? Estou
presa aqui?
Convenhamos, pensar que Millicent pode ter revelado seu verdadeiro nome
para uma das duas é quase uma piada. Se elas conseguiram escrever alguma
coisa, com certeza não foi a identidade de minha esposa.
A mensagem oculta deve ser uma mentira plantada por Claire, uma
estratégia para nos induzir ao erro. Qualquer pessoa que assiste filmes de
suspense sabe que a polícia gosta de inventar umas mentirinhas. Portanto, não
tenho mais nada a fazer aqui. Está na hora de ir para casa, conversar com
Millicent.
Quando chego, a casa está vazia. Eu ligo a televisão e zapeio até chegar nas
notícias. Josh ainda está falando sobre essa possível mensagem, mas não
descobriu mais nenhum detalhe. Em outro canal, um repórter apenas repete o
que Josh falou. Uma terceira repórter é quem finalmente nos apresenta a
história daquela igreja.
A Igreja Cristã Pão da Vida começou com uma única família e cresceu até
virar uma congregação com cerca de cinquenta pessoas. Fotos antigas mostram
um grupo de aparência austera com rostos desgastados e roupas esfarrapadas.
Nos primeiros anos, no entanto, o grupo parece ter prosperado, talvez até com
certa abundância de pão: os integrantes engordaram bastante, e alguns até
sorriam nas fotos. O auge da igreja aconteceu nos anos 50 e, depois de um
longo processo de retração, ela foi extinta na década de 80. Desde então, até
onde se sabe, a sede da igreja estava abandonada. Como é domingo, a planta
baixa do departamento de planejamento urbano da cidade não está disponível,
mas historiadores locais suspeitam que o porão fazia parte da construção
original. Pode ter abrigado uma câmara frigorífica.
E ali estou eu, zapeando entre os canais, esperando alguma novidade.
Millicent e as crianças só chegam em casa depois das cinco. Passaram a tarde
no cinema e no shopping, onde Jenna comprou mais um par de tênis e Rory
descolou outro moletom com capuz. Os dois sobem correndo, deixando
Millicent e eu na sala.
— Está se sentindo melhor? — ela pergunta, sarcástica.
— Na verdade, não.
Ela ergue uma sobrancelha.
A tevê está desligada. Não faço ideia do quanto ela está por dentro das
notícias.
— Estão falando de uma mensagem — eu digo.
— Uma o quê? — Millicent entra na cozinha para preparar o jantar. Eu a
acompanho.
— Uma mensagem na parede. Que uma das mulheres escreveu.
— Impossível.
Fico olhando para ela. Millicent desmancha um pé de alface para fazer uma
salada. — Foi o que eu pensei — eu digo.
— Termine isso aqui pra mim — ela me passa a tigela e a alface. — Estava
pensando em esquentar um atum hoje.
— Eu comi o atum no almoço.
— Tudo?
— Quase tudo.
Atrás de mim, a porta da geladeira se abre. Ela não diz nada, mas posso
escutar sua raiva.
A porta é fechada com força.
— Acho que dá para fazer uma berinjela recheada ou algo assim — ela diz.
— Perfeito.
Nós trabalhamos em dupla: ela fatia a berinjela e eu ralo o queijo para
finalizar a receita. Quando a comida enfim vai ao forno, Millicent vira para
mim. Seus olhos estão mais escuros do que nunca.
— Desculpe ter feito aquilo antes — ela diz.
— Tudo bem. Nós dois estamos no limite, com Claire, essa igreja e tudo
mais.
— Você está com medo?
— Acho que não.
— Sério? — ela parece surpresa.
— Você está?
— Não.
— Então estamos bem, é isso?
Ela desliza os seus braços ao redor do meu pescoço. — Estamos muito bem.
A sensação é de que estamos mesmo muito bem.

Eu subo para dar boa noite às crianças. A luz de Rory está apagada, mas ele
está acordado e usando seu telefone.
Antes que eu faça qualquer comentário, ele diz: — Sim, eu estou falando
com Faith. E com Daniel. E também jogando.
— Está conseguindo fazer alguma dessas coisas direito?
Ele abaixa o telefone e me lança aquele olhar. O mesmo olhar de Millicent.
— E não estou fumando maconha.
— Como vai a namorada? — eu pergunto.
— Faith.
— Como vai Faith?
Ele suspira. — Ainda é minha namorada.
— Você não está saindo escondido à noite, está?
— Só se você não estiver saindo também.
— Rory.
— Sim, papai? — sua voz transborda de petulância. — Qual é a lição que o
senhor vai me passar hoje?
— Boa noite.
Fecho a porta antes que ele possa me responder. Não quero ouvir. Hoje não.
Jenna acabou de deitar na cama, e eu me sento para falar com ela. Os dois já
sabem sobre a igreja e sobre o porão dos horrores, pois no mundo de hoje eles
ficam sabendo de tudo com uma velocidade que nem a luz alcança. Queria
descobrir um jeito de protegê-la de tanta informação, porque ela ainda é uma
criança. Jenna não é mais tão jovem a ponto de dormir com bichinhos de
pelúcia na cama, mas é jovem o bastante para manter todos os brinquedos por
perto. Ainda assim, para uma pré-adolescente, ela sabe mais do que deveria
sobre esse tipo de coisa. Garotas são presas e torturadas em livros, filmes,
séries, e na vida real. É impossível que ela não veja, e ela viu.
— Elas foram acorrentadas lá embaixo, não foram? — ela pergunta.
Eu balanço a cabeça. — A gente ainda não sabe.
— Não mente, pai.
— Provavelmente foram.
Ela acena com a cabeça e se vira para o lado, em direção à mesa de
cabeceira. A luminária em cima da mesinha tem uma cúpula no formato de
uma flor. Laranja, é claro.
— Como está seu estômago? — eu pergunto.
— Bem.
— Que bom.
— Por que alguém machuca uma pessoa desse jeito?
Eu encolho os ombros. — Tem gente com algo errado na cabeça. Essas
pessoas acham que fazer o mal é uma coisa boa.
— Aposto que Claire vai pegar ele.
— Aposto que você está certa.
Ela dá um leve sorriso.
Espero que ela esteja errada.
Cinquenta e oito
As primeiras fotos do porão são surpreendentes. Ele não se parece com o
calabouço medieval que eu construí na minha cabeça.
Pelo contrário, parece apenas o porão inacabado de um prédio antigo. Piso
de terra batida, estantes de madeira nas paredes, uma velha escadaria. Somente
a parede mais distante das escadas é diferente, pois é a única que indica o que
pode ter acontecido naquele porão. A parede foi coberta de tijolos e revestida
com reboco. Um emaranhado de correntes e algemas está espalhado no chão ao
lado.
Claire apresenta as fotos em uma coletiva de imprensa à noite, que assisto
em um bar. É o mesmo bar onde eu estava quando o corpo de Lindsay foi
descoberto.
Eu tomo uma cerveja e me sento em uma mesa com vista para a janela da
frente. Do outro lado da rua está o First Street Bar & Grill, onde servem
hambúrgueres gigantes para acompanhar as cervejas artesanais da casa, com o
benefício de ser mais barato do que a concorrência. Millicent não é muito fã de
hambúrguer nem de cerveja, por isso só vamos em um lugar assim para
encontrar clientes ou participar de alguma festa.
Claire mostra cada foto do porão e descreve os detalhes. Há closes de
manchas nas paredes e no chão de terra. Parece ferrugem, mas ela diz ser
sangue.
O barman balança a cabeça. Ninguém fala nada. Estão ocupados demais
bebendo e assistindo.
Não consigo imaginar Millicent deixando tanto sangue para trás, se é que
aquilo é mesmo sangue. Claire pode estar mentindo. Seus olhos encaram a
câmera de um modo que ela parece estar olhando diretamente para mim. Ou
para o cara sentado ao meu lado. Ou até para o barman. É desconcertante.
Odeio os terninhos de Claire. Hoje é azul-marinho combinando com uma
blusa cinza. Ela sempre parece estar preparada para um velório.
Claire está em um púlpito perto da igreja, embora o enquadramento não nos
deixe ver nada do lugar a não ser as árvores. Não dá para ver nem mesmo o
campanário. O comissário e o prefeito estão do seu lado, e um cavalete
completa a cena. Eles apoiaram as ampliações das fotos nesse cavalete, e
alguns policiais fardados trocam as imagens enquanto Claire explica cada uma.
— Já estamos examinando as amostras de sangue, comparando com o que
temos, tanto de Naomi quanto de Lindsay. Também descobrimos traços de
saliva, e vamos agora investigar esse material.
Ela não abre para perguntas. A coletiva inteira dura cerca de vinte minutos, o
que dá aos jornalistas e comentaristas o suficiente para uma noite inteira de
debates inúteis. Claire não disse nada sobre a mensagem na parede, e também
não mostrou nenhuma foto dela.
O barman troca de canal para as notícias esportivas. Eu peço mais uma
cerveja e quase não encosto no copo.
Quarenta minutos depois, eu o vejo. Do outro lado da rua, Josh entra no First
Street Bar & Grill. É o seu restaurante favorito.
Consegui essa informação por acaso, enquanto passava de carro por esta rua
algumas noites atrás. Ao parar num sinal vermelho, avistei Josh saindo do seu
carro e caminhando em direção ao restaurante. Na noite seguinte, passei
novamente pela frente e vi seu carro estacionado. Na terceira noite, a mesma
coisa. Então eu caminhei pela calçada e vi meu repórter favorito sentado no
bar, sozinho, bebendo cerveja e assistindo seus colegas na tevê.
Agora, atravesso a rua e me sento a alguns bancos de distância de Josh.
Como já jantei, peço somente uma dose de uísque e uma cerveja. O mesmo que
ele.
Olho para Josh e desvio o olhar. Depois olho de novo, como se o
reconhecesse.
Sem nem me olhar de volta, ele diz: — Isso, eu sou aquele cara do jornal.
— Achei que era você mesmo. Vejo você na televisão quase todas as noites
— eu digo. Josh parece bem diferente ao vivo. Seu rosto não parece tão liso. A
textura da sua pele é irregular. Seu nariz é avermelhado, assim como seus
olhos. Uma pena que eu não trouxe o colírio.
Ele suspira e finalmente se vira na minha direção. — Obrigado pela
audiência.
— Não, eu que te agradeço pelas reportagens. Você tem sido a grande
referência naquele caso, não é? O das mulheres assassinadas?
— Eu fui.
— Você ainda é. Parece que você descobre tudo até antes da polícia.
Josh bebe um terço da sua cerveja em um gole só. — Você é um daqueles
malucos que só querem saber de crimes terríveis?
— De jeito nenhum. Só alguém que quer ver aquele safado preso.
— Legal.
Eu gesticulo para o barman, pedindo mais um uísque. — Ei, cara — digo
para Josh. — Deixa que eu pago uma pra você.
— Sem querer ofender, mas eu não sou gay.
— Não ofendeu. Eu também não sou.
Josh aceita a dose. O barman traz mais duas cervejas para acompanhar.
Juntos, assistimos o canal de esportes, falando sobre um time ou outro. Pago
mais algumas doses, mas derramo a minha no pote de petiscos quando ele não
está vendo. Josh bebe a sua e pede mais duas.
Quando um jogo de futebol começa, ele acena com a cabeça para a tela. —
Eu aposto nos Blazers. E você?
— Também — mentira.
— Você joga? Você tem cara de quem joga.
Eu dou de ombros. — Na verdade, não.
Ele bebe o resto da sua cerveja e gesticula pedindo mais duas. — Eu jogava
num time de futebol chamado Marauders. Nós éramos uma porcaria, mas
mesmo assim tinham medo da gente. Isso era meio incrível.
— Parece mesmo.
Durante um intervalo publicitário, o anúncio de um noticiário local mostra a
coletiva de imprensa que aconteceu hoje. Claire Wellington está mais uma vez
na tela.
Josh sacode a cabeça e olha para mim. Seus olhos não têm a mesma clareza
que tinham quando eu entrei. — Quer uma informação privilegiada? — ele
pergunta.
— Claro.
Ele aponta para a tevê. — Ela é uma vaca.
— Você acha?
— Não é porque ela é mulher. Sério, não tem nada a ver com isso. Mas o
problema de ter uma mulher no comando é que elas precisam mudar tudo.
Precisam mostrar trabalho, entendeu? E não é culpa delas terem que fazer isso,
eu entendo a situação. Só queria que elas não estragassem o negócio todo.
— Verdade?
— Cem por cento verdade.
O jovem e determinado repórter que eu tanto assisti não é a mesma pessoa
que ele é na tevê. Talvez eu tenha sido um pouco inocente aí.
Peço mais algumas doses. Josh bebe a sua e bate o copo com força na
bancada do bar.
— Uns dias atrás, eu divulguei uma informação que uma fonte me passou.
No outro dia, me liga de novo e diz que eu não posso mais falar naquele
assunto. Tecnicamente, os policiais podem ser demitidos por falar com a
imprensa. Parece que ela resolveu aplicar a regra — ele joga as mãos para o
alto, como se estivesse descrevendo uma monstruosidade. — Mesmo se eles
falarem comigo. E eu trabalhei com a polícia quando recebi aquelas cartas de
Owen. Ou de quem mandou aquilo. Eu não precisava fazer isso. Eu podia
simplesmente ter lido as cartas no ar e nem falar com a polícia.
— E o que isso quer dizer? — pergunto. — Suas fontes não vão contar mais
nada para você?
— Ah, eles ainda me contam algumas coisas. Eu só não posso dar a notícia
no jornal. Bom, acho que eu poderia, mas eu sou um cara bonzinho. Não quero
que ninguém perca o emprego, principalmente alguém que eu vou precisar
depois. Aquela vaca não vai ficar aqui pra sempre.
Antes que eu possa responder, seu telefone vibra. Ele dá uma olhada e revira
os olhos. — Viu, é disso aqui que eu estou falando. Eu recebo uma informação
de uma fonte, e é a segunda vez que eu escuto essa história, mas não posso
fazer nada com ela. S-P-S-O, diz aqui. “Somente Para Seus Olhos” — ele dá
um grande e barulhento suspiro. — Pior acrônimo do mundo.
— Isso é uma droga mesmo.
— Nem me fale.
Eu espero. Fico olhando para a televisão, sem dizer nada, torcendo para
passar a impressão de que nada disso importa para mim. Quanto menos eu
falar, maior é a chance dele me contar.
É preciso mais uma dose para meu repórter abrir seu coração.
— Tá, eu preciso contar para alguém — ele diz, arrastando a voz. — Mas, se
você repassar a informação, vou negar até a morte. Pelo menos até eles
tornarem isso público.
— Você acha que eles vão fazer isso?
— Eles não têm como esconder.
Josh desliza o telefone na minha direção. O texto está na tela, enviado por
alguém chamado J. Um segredinho que me faz lembrar da minha época como
Tobias.
Até eu ler o texto.
S-P-S-O:
Encontraram corpos enterrados embaixo da igreja.
Cinquenta e nove
Eu achava que a mensagem seria sobre o suposto recado na parede. Mas é
sobre corpos enterrados. — E daí? — eu pergunto.
— E daí? — Josh rebate.
— Aquela igreja tem mais de cem anos. Provavelmente deve ter um
cemitério inteiro de gente enterrada lá.
— Com certeza tem. Mas não é disso que ele está falando — Josh se inclina
e fala um pouco mais baixo. O cheiro daquele álcool todo explode no meu
rosto. — Você já foi lá?
Eu quase digo que sim, mas então lembro que não sou um daqueles malucos
correndo atrás de crimes terríveis.
— Não, nunca fui.
— Eles montaram uma tenda enorme, atrás de um monte de árvores. É para
lá que eles estão levando os corpos.
— Você continua falando em corpos. Que corpos, cara?
— Os corpos no porão não são de cem anos atrás — ele diz. — São de
mulheres que foram assassinadas recentemente.
— Mentira.
— Verdade. E eu não posso divulgar a informação no jornal.
Josh divaga, queixando-se mais uma vez de Claire e de suas fontes. Não
estou mais prestando atenção.
Naomi e Lindsay já foram encontradas, sobrando então Holly e Robin. Holly
morreu no meio do nada, na floresta, e nós a enterramos lá mesmo.
Robin foi morta na nossa cozinha. Tanto o carro quanto seu corpo estão no
fundo de um lago perto daqui.
Eu interrompo Josh: — Você sabe quando vão liberar essa informação?
— Em breve, com certeza. Eles não podem esconder esses corpos para
sempre.
Ele segue falando, mas só penso em Claire Wellington. Em menos de um
minuto ela vai aparecer na porta da minha casa, perguntando sobre a irmã de
Millicent, Holly.
E por que vocês nunca comunicaram o desaparecimento dela?
Porque achamos que ela tinha se mudado.
Porque tanto faz se ela está desaparecida ou não.
Porque ela costumava torturar a minha esposa.
Porque ela era louca.
Eu mando uma mensagem para Millicent.
Precisamos de uma noite romântica.

Ela recusa meu convite.


Impossível. Estou no hospital.

Leio sua resposta mais três vezes antes de deixar dinheiro na bancada do bar
e sair do First Street Bar & Grill sem dizer uma palavra sequer para Josh. Ou
talvez eu tenha dito que precisava ir. Não faço a menor ideia do que aconteceu.
Millicent me liga bem na hora que estou tentando ligar para ela. Ela fala
rápido, e eu andei bebendo, por isso só consigo pegar os destaques da história.
Rory. Sala de emergência. Caiu da janela.
Nem entro no carro, pois estou perto o bastante para correr. O hospital fica a
três quadras, e, quando chego lá, encontro Millicent perambulando pelo
corredor.
Assim que eu vejo minha esposa, eu sei.
Rory está bem. Ou Rory vai ficar bem.
As mãos de Millicent estão fechadas, os lábios estão tensos e parece ter uma
corrente elétrica saindo que nem um raio da sua cabeça. Se Rory tivesse
realmente se machucado, ela estaria preocupada, chorando ou talvez em
choque. Mas nada disso, ela está estourando de raiva.
Ela põe as mãos em mim e me dá um abraço. É rápido e violento, e então ela
se afasta por causa do meu hálito.
— Cerveja — eu digo. — O que aconteceu?
— Nosso filho saiu de casa para ver a namorada. Ele caiu tentando subir até
a janela do quarto dela.
— Mas ele está bem?
— Está. Achamos que ele tinha quebrado o pulso, mas foi só uma entorse
feia. Vai ter que usar uma tipoia...
— Por que você não me chamou quando isso aconteceu? — eu pergunto.
— Eu chamei. Mandei uma mensagem.
Eu pego o telefone. Lá está, bem no meio da tela rachada. Dependendo do
ângulo, é meio difícil de ler. — Ah, meu Deus, me desculpa...
— Esquece. Você está aqui agora. O importante é que ele está bem — a raiva
de Millicent retorna, se é que alguma vez ela foi embora. — Ele só vai ficar de
castigo por um século inteiro.
Alguém dá uma risadinha.
No canto, Jenna está sentada na sala de espera. Ela acena. Eu aceno de volta.
Millicent me indica uma máquina de café. É amargo e queima a minha língua,
e é exatamente o que eu preciso. Ele me faz relaxar e não o contrário, pois o
meu coração está batendo forte demais pela corrida, pelo álcool e também por
meu filho estar no hospital.
Millicent desaparece rumo à sala de exames para ficar lá com Rory. Quando
eles saem, ele está com uma tala no pulso e uma tipoia no braço. A raiva dela
diminuiu, ao menos por enquanto.
Rory não me olha no rosto. Talvez ainda esteja bravo comigo, ou talvez
saiba o tamanho da sua encrenca. É difícil dizer, pois neste momento estou
dividido entre dar um cascudo nele ou abraçá-lo até sufocar. No fim, eu só
bagunço o seu cabelo.
— Se você não queria jogar golfe, era só dizer — eu digo.
Ele não sorri. Adora golfe.
Chegamos em casa depois da meia-noite. Dou uma conferida em Rory
alguns minutos depois dele ir para o quarto. Ele realmente apagou.
Em seguida, eu sento na minha cama, exausto.
Meu carro ainda está no First Street Bar & Grill.
E encontraram corpos enterrados embaixo da igreja.
— Millicent — eu digo.
Ela sai do banheiro, está seguindo sua rotina de sempre antes de dormir. —
O que foi?
— Eu tomei uma cerveja com Josh hoje à noite. O repórter.
— Por que você...
— Ele me disse que a polícia encontrou alguns corpos enterrados naquele
porão da igreja.
— Corpos?
Eu faço que sim com a cabeça, e a observo. Sua surpresa parece verdadeira.
— Ele disse de quem eram os corpos? — ela pergunta.
— Suponho que sejam de Holly e Robin.
— Elas não estão nem perto daquela igreja. Você sabe disso — ela se afasta,
voltando ao banheiro.
Eu vou atrás. — Você com certeza não sabe de nada sobre esses corpos
enterrados lá?
— Absolutamente nada.
— Pois então tem uma pilha de corpos aleatórios no porão de uma igreja.
— Nossa, eu sei lá. Esse é o mesmo repórter que falou que tinha uma
mensagem na parede. Cadê essa mensagem?
É uma boa pergunta.
Talvez Josh tenha se equivocado. Ou talvez alguém esteja alimentando a
imprensa com mentiras para manter os urubus longe da verdade.
Os policiais dos filmes fazem isso o tempo todo. E pode ser que Claire seja
tão esperta quanto eles.
Sessenta
Agora que Millicent descobriu que Rory tem uma namorada e que está saindo
escondido para vê-la à noite, ela quer se encontrar com os pais de Faith para
discutir a situação. O casal Hammond é cliente dela, e prontamente
concordaram em sairmos todos para jantar. Quer dizer, nem Rory nem Faith
foram convidados.
Estamos a caminho do restaurante, um local tradicional com toalhas brancas
e um cardápio de pratos caseiros. Uma escolha deles, e não de Millicent.
— Eles são pessoas razoáveis — Millicent diz.
— Com certeza são — eu digo.
Quando chegamos, os Hammonds já estão nos aguardando na mesa. Hank
Hammond é baixo e loiro, como a filha. Corinne Hammond não é baixa e seu
cabelo não é loiro natural. Ambos vestem roupas clássicas e exibem sorrisos
educados. Vamos direto à comida. Ninguém pede vinho.
A voz de Hank é duas vezes maior que seu corpo.
— Faith é uma ótima menina. Ela nunca saiu sem nos avisar até conhecer o
filho de vocês — ele diz.
Quase posso ver a bola quicar do nosso lado da quadra. Millicent sorri,
educada e melosa. — Bom, eu poderia dizer o mesmo sobre a sua filha, mas
procurar culpados não vai nos levar a nada.
— Eu não estou falando em culpa. Estou falando em não deixar os dois perto
um do outro.
— Você quer proibir Rory e Faith de se verem?
— Faith já está proibida de ver o seu filho em qualquer lugar que não seja a
escola — Hank diz. — Acho que isso sim é impossível de evitar.
— Você pode providenciar uma escola dentro da sua própria casa —
Millicent diz. — É o melhor jeito deles nunca se verem.
Eu ponho a mão no braço de Millicent. Ela me afasta.
— Talvez seja o seu filho quem precisa aprender umas coisinhas em casa —
Hank diz.
Corinne concorda com a cabeça.
— Você acha mesmo que proibir os dois de se verem vai fazer com que eles
realmente parem de se ver? — Millicent pergunta.
— Nossa filha vai fazer o que mandarmos — Hank diz.
Posso sentir Millicent engolindo a própria língua, pois eu sou obrigado a
fazer a mesma coisa.
Corinne quebra a tensão. A sua voz é mais forte do que eu esperava. — É
para o bem de todos — ela diz.
Millicent desvia o olhar para Corinne e hesita um segundo antes de dizer: —
Não tenho o hábito de criar proibições para os meus filhos.
Mentira.
— Acho que esta é a nossa diferença — Hank diz.
— Talvez seja melhor voltarmos para o ponto central da questão — eu digo.
— Acho que não precisamos discutir aqui as nossas filosofias de como alguém
deve educar os filhos.
— Ótimo — Hank diz. — É só não deixar o seu filho perto da minha filha e
estamos resolvidos.
A conta chega e Millicent pega o papel antes que Hank invente de querer
pagar. Ela entrega para mim e diz: — Pode deixar com a gente.
O jantar termina com uma despedida sucinta.
Millicent fica em silêncio a caminho de casa.
Rory já está nos esperando em frente à porta quando saímos do carro. Ele
está com o pulso lesionado, não pode jogar golfe e está de castigo. Faith é a
única coisa que ele tem, ou que ele acha que ele tem. Não estou lá muito
ansioso para contar a ele as novidades.
Mas não falamos nada. Millicent se aproxima de Rory e põe a mão no rosto
dele. — Tudo certo, meu bem — ela diz.
— Tudo certo? Mesmo?
— É só não sair escondido de novo.
— Eu prometo.
Rory dispara atrás do telefone para falar com Faith, que deve ter recebido
uma mensagem um pouco diferente dos seus pais.
Millicent pisca o olho para mim.
Eu me pergunto se é assim que as garotas aprendem a ser ardilosas. Com as
mães dos outros.

No dia seguinte, recebemos uma ligação da escola. É sobre Jenna, e não Rory.
E desta vez não é a respeito de uma arma ou de seus problemas estomacais.
Agora são suas notas.
Ela sempre foi uma das primeiras da turma, mas suas notas pioraram muito
no último mês. Ela inclusive deixou de entregar um trabalho cujo prazo
terminava justamente hoje. Jenna sequer tentou inventar uma desculpa para a
professora.
Nem eu nem Millicent tínhamos a menor ideia do que estava acontecendo.
Como Jenna sempre foi uma ótima aluna, eu nem me dou o trabalho de
verificar os relatórios de desempenho que a escola publica toda semana na
internet. Então, depois de uma enxurrada de mensagens e ligações, resolvemos
falar com ela logo após o jantar.
Millicent começa contando a ela sobre o telefonema da escola e aí completa
com: — Fale pra gente o que está acontecendo, querida.
Jenna não tem uma resposta de verdade, no máximo um gemido aqui e ali e
uma sacudida com a cabeça.
— Não estou entendendo — Millicent diz. — Você sempre foi uma
excelente aluna.
— Pra quê? — Jenna diz. Ela se levanta da cama e caminha pelo quarto. —
Se alguém pode me trancar num porão e me torturar, pra que que eu vou me
esforçar?
— Ninguém vai te trancar num porão — eu digo.
— Aposto que aquelas mulheres que morreram também acreditavam nisso.
Mais um golpe no estômago. E esse parece ter sido com um furador de gelo.
Millicent respira fundo.
Depois de ter conhecido Claire, Jenna deu vários sinais de melhora. Ela
falava o tempo todo em se tornar uma detetive. Mas tudo isso parou com a
descoberta da igreja.
Na verdade, estamos andando em círculos com ela, tentando usar a lógica
para eliminar o medo. É uma tentativa inútil. Só o que conseguimos é uma
vaga promessa de que ela não será reprovada em nenhuma disciplina.
Quando estamos para sair do quarto de Jenna, vejo o notebook aberto na sua
cama. Ela está pesquisando quantas mulheres são sequestradas e assassinadas a
cada ano.
E aí Millicent gruda no telefone, tentando encontrar outro terapeuta.
Toda essa agitação acontece no terceiro dia sem novas informações sobre a
igreja. Nada mudou, Claire continua conduzindo diariamente uma entrevista
coletiva para repetir o que já sabemos.

O dia quatro começa com um cachorro latindo. Há vários na vizinhança,


portanto é impossível dizer qual deles me acorda às cinco da manhã e se recusa
a parar de latir.
Eu me sento na cama, me perguntando por que essa ideia nunca me ocorreu
antes.
Um cachorro.
Um que seja grande o bastante para que Jenna se sinta segura, e que faça o
máximo de barulho quando alguém estiver lá fora. Alguém mais ou menos
como Rory, quando ele tenta sair escondido de casa.
Sinto vontade de me chutar por não ter pensado em um cachorro antes. Um
cachorro já teria resolvido a maioria dos nossos problemas.
Pela primeira vez, acordo antes de Millicent. Quando ela desce vestindo sua
roupa de corrida, estou tomando café e pesquisando cães na internet. Ela fica
paralisada ao me ver.
— Será que é melhor eu perguntar por que você...
— Olha — digo, apontando para a tela. — Esse aqui está num abrigo, é uma
mistura de boxer com rottweiler.
Millicent pega a xícara de café da minha mão e toma um gole. — Você quer
um cachorro.
— Para as crianças. Para proteger Jenna e para Rory não sair de casa.
Ela olha para mim e concorda com a cabeça. — O pior é que é mesmo uma
bela ideia.
— Às vezes eu acerto.
— Você vai cuidar desse cachorro?
— As crianças vão cuidar.
Ela sorri. — Se você está dizendo.
Eu interpreto isso como um sim.
Durante uma pausa entre aulas, eu passo no abrigo. Uma mulher simpática
me mostra o lugar enquanto eu explico o que procuramos. Ela me recomenda
alguns cachorros diferentes, e um deles é aquele com a mistura de boxer com
rottweiler. O nome dele é Digger. Ela verifica a papelada e diz que ele vai ser
uma boa companhia para a família, mas que as crianças precisam passar no
abrigo para conhecê-lo antes que eles permitam a adoção. Prometo à mulher
que vou retornar.
O cachorro me deixa um pouco otimista.
Então eu paro num drive-thru para comprar um café gelado e um sanduíche.
Enquanto estou sentado na janela de retirada aguardando o meu pedido,
enxergo uma tevê lá dentro. Claire Wellington está dando mais uma coletiva.
As palavras na parte de baixo da tela fazem meu coração disparar:
MAIS CORPOS SÃO DESCOBERTOS NA IGREJA
Quando a atendente da lanchonete abre a janelinha para me alcançar a
comida, ouço a voz de Claire.
— Os corpos de três mulheres jovens foram encontrados, enterrados no
porão.
Eu escuto o resto da coletiva no estacionamento, no rádio do carro.
Três mulheres. Todas foram assassinadas recentemente.
Não dá para acreditar que a polícia esteja certa em relação às datas dos
assassinatos. É impossível que alguém tenha enterrado três corpos na igreja
enquanto Lindsay estava sendo...
— Pelo menos dois dos três crimes aconteceram há pouco tempo e os
legistas que analisaram o caso conseguiram inclusive identificar a causa das
mortes. Assim como as outras duas vítimas, elas foram estranguladas. Também
encontramos sinais de tortura nos corpos.
Não consigo tomar fôlego porque Claire não para de falar.
— Por fim, encontramos ainda palavras escritas na parede do porão, atrás
de uma estante. Ainda que os resultados do exame de DNA não estejam
prontos, o tipo sanguíneo corresponde ao tipo sanguíneo de Naomi George.
Quando Claire lê as palavras na parede, o meu coração explode.
Tobias.
Surdo.
Sessenta e um
Naomi não poderia ter escrito o nome de Tobias. Ela jamais o conheceu.
Fico remoendo isso na minha cabeça, tentando entender o que aconteceu.
Lindsay conheceu Tobias. Ela sabia que ele era surdo.
Mas seu corpo foi encontrado antes de Naomi desaparecer. Elas não falaram
uma com a outra, é impossível que tenham trocado uma informação assim.
Millicent é a única conexão entre elas.
Só que não faz sentido. É completamente absurdo.
Depois de pegar minha comida, eu saio dirigindo e ligo o rádio para ouvir o
resto da coletiva. Quando ela termina, os radialistas continuam falando.
Repetem as palavras da parede sem parar.
Tobias.
Surdo.
Naomi não sabia quem era Tobias.
Lindsay sabia.
E Millicent.
Eu encosto o carro. Minha mente está tão embaralhada que não consigo
pensar e dirigir ao mesmo tempo.
Tobias.
Surdo.
Eu desligo o rádio e fecho os olhos. Só consigo ver Naomi no porão da
igreja, acorrentada na parede. Tento expulsá-la da minha cabeça, para ver se
consigo pensar com um pouco mais de clareza. Mas eu ainda a vejo, encolhida
em um canto, suja e coberta de sangue.
Não demora e eu começo a passar mal. A bile sobe pela minha garganta,
sinto aquele gosto horrível na boca. Saio do carro sentindo náuseas, e o
telefone toca.
Millicent.
Ela já está falando quando atendo a ligação.
— Pneu furado? — ela pergunta.
— Oi?
— Você está parado no acostamento.
Eu olho para cima, como se um drone ou uma câmera estivesse me filmando
do alto, mas o céu está totalmente limpo. Não vejo nem mesmo um pássaro. —
Como você sabe onde eu estou?
Ela suspira. Um grande e exasperado suspiro, e odeio quando ela faz isso. —
Olhe debaixo do seu carro — ela diz.
— O quê?
— Debaixo. Do. Carro.
Eu me ajoelho e olho. Um rastreador. Exatamente igual ao que eu coloquei
no carro dela.
Foi por isso que eu nunca fiquei sabendo da igreja.
Ela sabia da minha espionagem.

A percepção do que está acontecendo explode como uma bomba na minha


cabeça.
Somente uma pessoa poderia ter escrito aquela mensagem usando o sangue
de Naomi. Eu entendi imediatamente quando ouvi a coletiva, só que estava
tentando me enganar com alguma outra explicação mirabolante.
Não existe essa explicação.
— Você armou pra cima de mim — eu digo. — Com todas elas. Lindsay,
Naomi...
— E as outras três. Não se esqueça delas.
Minha mente é inundada com imagens de Millicent, sozinha, matando várias
mulheres e me incriminando pelos assassinatos.
Agora eu sei o que ela fazia enquanto eu estava em casa com Jenna quando
minha filha se revirava doente por tantos dias e noites.
E o futuro se estende na minha frente como um tapete vermelho
ensanguentado.
Eu desligo o motor. Fecho os olhos, reclino a cabeça e penso em todas as
evidências que Millicent poderia usar para me incriminar. Todo o DNA que ela
tem acesso. Tudo que ela poderia plantar, que poderia entregar à polícia. E esse
material gigantesco nem inclui as pessoas que me conheceram atuando como
um surdo chamado Tobias.
Annabelle. Petra. Até mesmo quem trabalhava no bar.
Essas pessoas vão se lembrar.
Eu sou o destino para onde todos os dedos apontam.
Minha consciência luta contra essa ideia. Fico dando voltas, mapeando uma
solução, seguindo o fio até o final, percebendo que nunca vai funcionar. Todos
os caminhos estão bloqueados, todas as ideias já foram desmontadas por
Millicent. Parece um grande labirinto sem saída. Não sou um estrategista, no
final das contas, não como a minha esposa.
Eu caminho sem parar ao redor do carro. Minha cabeça parece receber um
choque atrás do outro.
— Millicent, por que você fez isso?
Ela ri. Parece uma mordida. — Abra o porta-malas.
— O quê?
— O porta-malas do carro — ela diz. — Abra.
Eu hesito, imaginando o que pode estar ali dentro. Pensando no quanto isso
pode piorar.
— Abra logo — ela diz.
Eu abro o porta-malas.
Não encontro nada lá dentro, a não ser o meu equipamento de tênis. Nem
uma raquete fora de lugar. — O que você...
— O estepe — ela diz.
Meu telefone, o descartável. Aquele com mensagens de Lindsay e de
Annabelle. Coloco a mão pela parte interna do pneu, mas ele não está lá. Em
vez do telefone, encontro outra coisa.
Puxa-puxa.
Lindsay.
A primeira com quem eu dormi.
Aconteceu depois da nossa segunda caminhada.
Você é bonitinho. Foi o que Lindsay disse.
Não, você que é bonitinha.
A voz de Millicent me traz de volta para o presente. — Olha, é realmente
incrível o que as pessoas te contam quando ficam presas um ano.
— O que você...
— Ela viu você na noite que nós levamos ela. Lindsay estava meio que
acordando logo antes de você ir embora. Ela ficou bastante surpresa quando
soube que você não era surdo, na verdade.
Sou atingido por um surto de náusea. Por causa do que eu fiz. Por causa do
que a minha esposa fez.
— O engraçado — ela diz — é que Lindsay achou que a tortura era por ela
ter dormido contigo. Tentei dizer que não era por isso, pelo menos não no
início, mas acho que ela não acreditou em mim.
— Millicent, o que você fez?
— Eu não fiz nada — Millicent diz. — Você fez. Você fez tudo isso.
— Não sei o que você acha que aconteceu...
— Não tente bancar o senhor superior, não combina com você.
Eu engulo a minha língua até engasgar. — Desde quando você está
planejando isso?
— Isso é importante?
Não. Não é mais.
— Posso explicar? — eu pergunto.
— Não.
— Millicent...
— O que foi? Você quer pedir desculpa, aconteceu, não significou nada, meu
amor?
Agora eu mordo a minha língua. Literalmente.
— Então, o que você vai fazer? — ela pergunta. — Vai fugir e se esconder
ou vai ficar e lutar?
Nenhuma das duas opções. Ambas. — Por favor, não faça isso.
— Viu? Esse é o seu problema.
— Qual?
— Você sempre se concentra nas coisas erradas.
Eu começo a perguntar que coisas erradas são essas, mas me seguro. Eu iria
apenas confirmar o seu argumento.
Ela ri.
E desliga o telefone.
Sessenta e dois
Eu deveria estar passando mal. Deveria estar vomitando até a última comida do
meu estômago, porque se a sua esposa, com quem você é casado há quinze
anos, incrimina você pelo assassinato de múltiplas mulheres, o normal é que
você veja seu estômago completamente destruído. No entanto, parece que meu
corpo inteiro recebeu uma injeção de narcóticos.
Não é uma sensação ruim, porque eu posso pensar em vez de sentir.
Fugir e se esconder. Ficar e lutar.
Nenhuma das duas opções é atraente. Assim como a prisão também não é,
ou a pena de morte, ou a injeção letal.
Fugir.
Primeiro, preciso me preparar. Carro, meio tanque de gasolina, sanduíche,
metade de um café gelado e mais ou menos duzentos dólares em dinheiro. Não
posso usar os cartões de crédito, porque Millicent vai estar de olho.
Será que tenho tempo para fazer um saque no banco?
O problema é que depois minhas chances se reduzem consideravelmente.
Não posso manter o carro por muito tempo, a não ser que eu me livre da placa,
e ainda assim preciso definir para onde ir. O Canadá é longe demais. Quando
eu atravessar a fronteira, minha foto já vai estar em toda parte no noticiário.
O México é a única opção por via terrestre, e mesmo o México parece ser
uma aposta muito alta. Depende de quão rápido a confusão se instalar. Até
porque meu nome e minha foto podem ser revelados ao público em questão de
horas.
Eu posso sair do país de avião, mas vou precisar do meu passaporte para o
embarque. E eles vão saber qual meu destino. De fato, em nenhum momento
me preparei para esse tipo de fuga.
Millicent sabe disso.
Fugir vai fazer com que eu seja preso.
Também significa deixar meus filhos. Com Millicent.
Agora, sim, eu passo mal. No acostamento, atrás do meu carro, eu esvazio o
estômago. Só paro quando não tenho mais nada no corpo.
Fugir e se esconder. Ficar e lutar.
Começo a avaliar uma terceira opção. E se eu entrar em uma delegacia e
contar tudo?
Não. Millicent pode até ser presa, mas eu também vou ser. Alegar inocência
não é uma opção, porque não é uma opção verdadeira.
Preciso descobrir uma saída, no entanto. Um jeito de implicar somente
Millicent e não eu, porque eu nunca matei ninguém. Um acordo pode ser
negociado com o advogado certo, o promotor certo, a prova certa. Mas eu não
tenho nada que me sirva de barganha. Ao contrário de Millicent, não passei os
últimos meses incriminando por assassinato a pessoa com quem me casei.
Você sempre se concentra nas coisas erradas.
Talvez ela tenha razão, talvez o porquê não tenha importância. Mas terá. O
porquê é o que vai me assombrar, o que vai me revirar à noite quando eu
estiver deitado na cama. Se eu estiver deitado em uma cama. Talvez esteja em
um colchonete de prisão. Ela tem razão quanto ao porquê. É a coisa errada para
me concentrar.
Fugir e se esconder. Ficar e lutar.
As opções se repetem sem parar, como as palavras escritas na parede do
porão. Millicent me jogou essas opções como se fossem as únicas do planeta.
Como se elas fossem um dilema.
Ela está errada. As opções estão erradas.
Primeiro, eu vou ficar. Abandonar os meus filhos é algo que não vai
acontecer.
E, se eu vou ficar, preciso me esconder. Pelo menos até achar uma maneira
de fazer a polícia acreditar em mim quando eu denunciar Millicent.
Isso significa que eu tenho que lutar.
Ficar, me esconder, lutar. A primeira parte é fácil. Nada de fugir.
A polícia. Eu posso ir à polícia e contar tudo, contar para eles...
Não. Eu não posso me entregar. Tenho sangue nas mãos, e mesmo um
estagiário é capaz de me destruir com as acusações. Se não posso ir à polícia,
então preciso evitá-la.
Dinheiro. Tenho duzentos dólares na minha carteira, e essa grana não vai
durar muito. Vou direto ao banco e saco a maior quantidade possível de
dinheiro sem acionar um alarme na Receita. Millicent logo vai descobrir meu
primeiro passo, porque o rastreador ainda está no meu carro.
Millicent. Há quanto tempo ela sabe? Há quanto tempo ela vem me
rastreando? Quando é que ela começou a planejar essa loucura? As perguntas
são infinitas, mas são impossíveis de responder.
Por tudo que passamos, por tudo que fizemos juntos, não consigo aceitar que
ela não tenha falado comigo, não tenha me feito perguntas, que ela não tenha
nem mesmo me concedido o benefício da dúvida. Pelo contrário, eu não tive
nenhuma chance, nenhuma oportunidade de defesa.
É uma reação meio desequilibrada.
E desoladora.
Mas não tenho tempo para pensar nessas coisas. Em menos de uma hora,
minha vida foi reduzida ao nível mais básico do ser humano: sobrevivência.
Até agora não estou sobrevivendo muito bem. Millicent continua sabendo
onde eu estou, e eu não tenho ideia de qual é o próximo passo no meu plano.

Casa. Ainda é para onde eu sempre vou.


Pego o que consigo: roupas, itens de higiene pessoal, meu computador. O
notebook que usamos para procurar as vítimas não está mais lá, provavelmente
destruído, mas encontro o tablet de Millicent e o carrego comigo. E fotos.
Arranco da parede algumas fotos dos meus filhos. Também mando uma
mensagem para eles.
Não acreditem em tudo que ouvirem. Eu amo vocês.

Antes de sair, desligo o rastreador, mas fico com o aparelho na mão. Por
enquanto ela vai se perguntar se ainda estou em casa. Ou talvez não. Já nem sei
se eu realmente conheço minha esposa.
Dou a partida no carro e saio dirigindo pela rua, destino desconhecido.
Um prédio abandonado, um motel na beira da estrada, um estacionamento?
O pântano, o bosque, as trilhas? Não faço ideia, mas estar em um lugar com o
qual não estou familiarizado não me parece uma decisão inteligente. Preciso de
um lugar quieto, algum lugar onde eu possa pensar. Algum lugar onde ninguém
vai me incomodar pelas próximas horas.
Uma completa falta de opções e de originalidade me levam ao clube.
Por ser empregado, tenho uma chave do escritório, que eu nunca uso, e
também da sala de equipamento e do acesso às quadras. Faço uma parada
rápida na loja para comprar uma sacola de comida, me enchendo de gordura, e
sumo do radar até depois das nove horas. É quando desligam as luzes das
quadras de tênis e os seguranças trancam as grades pelo resto da noite.
É para onde vou, então. Para as quadras. O clube tem câmeras nas áreas
internas. Mas nunca instalou nenhuma nas quadras.
Sessenta e três
Tudo nas quadras de tênis me é familiar. Eu cresci aqui, nestas quadras. Foi
onde eu aprendi a jogar tênis, e onde na verdade eu aprendi muito da minha
vida. Meu técnico me fazia correr voltas e voltas nessas quadras para me
colocar em forma. Conquistei troféus e apanhei dos adversários, às vezes tudo
no mesmo dia.
Aqui era o meu abrigo, era onde eu vinha para fugir dos meus amigos, da
escola e, principalmente, dos meus pais. No início, eu vinha aqui para ver se
eles sairiam para me procurar. Quando entendi que eles nunca iam se mexer na
minha direção, usei as quadras como esconderijo. Até meu primeiro beijo
aconteceu neste lugar.
Lily. Ela era um ano mais velha e muito mais experiente do que eu, ou pelo
menos parecia que era. Na noite de Halloween, há mais ou menos um milhão
de anos, eu e meus amigos nos vestimos de piratas. Ela e as amigas se vestiram
de bonecas. Enquanto pedíamos doces pela rua, um grupo esbarrou no outro
em algum lugar de Hidden Oaks, e Lily disse que eu estava bonito.
Obviamente deduzi que o elogio só apareceu porque ela me amava, e acho que
ela me amava mesmo.
Um comentário levou a outro, e então a outro, e não demorou muito até eu
perguntar se ela queria conhecer um lugar legal. Ela disse que sim.
Bom, “legal” pode ter sido um exagero, mas, quando eu tinha treze anos,
achava que era legal estar na rua à noite, com uma garota. Lily pelo jeito
também não achou tão ruim assim, porque terminou me beijando. Ela tinha
gosto de chocolate e bala de alcaçuz, e eu adorei.
Por um segundo, fico tão arrebatado por essa memória que minha noite
parece até estar tranquila. Não está. Estou nesta quadra de tênis porque a
polícia está atrás de mim e eu não posso voltar para casa.
Mas pensar em Lily me faz perceber que eu ainda tenho outros lugares para
ir.
O despertador do meu telefone me acorda às cinco horas da manhã. Eu me
levanto, pego minhas coisas e entro no meu carro. Tentar dormir num banco ao
lado da quadra me deu bastante tempo para arquitetar um plano. E a internet
me ajudou a torná-lo melhor. Eu não imaginava, mas existem dezenas de sites
que explicam como desaparecer, como sair da rede do governo e também como
despistar a polícia, o seu chefe ou sua esposa furiosa. Todo mundo quer escapar
de alguma coisa.
Eu saio da cidade, pego a rodovia e não paro por pelo menos uma hora.
Finalmente, estaciono em um posto de gasolina, ligo o rastreador e instalo o
aparelho na parte de baixo de um caminhão. Depois de tirar a bateria do meu
telefone, entro na loja de conveniência do posto e compro um celular
descartável barato.
Então volto para Hidden Oaks.
A internet não recomenda esta parte, mas a internet não tem filhos. Se eu não
tivesse, continuaria dirigindo, mudaria minha placa ou até me livraria do carro.
Pegaria ônibus de um estado para o outro até chegar ao México.
Mas fugir não é uma opção. Não enquanto Jenna e Rory ainda estiverem
com minha esposa.
Na metade do caminho, paro para encher o porta-malas com compras do
supermercado. Olho todos os jornais, buscando minha foto, mas não me
encontro em nenhum deles. As manchetes se resumem a duas palavras:
TOBIAS SURDO
Enquanto dirijo de volta para casa, eu me pergunto se não estou sendo idiota
mais uma vez.

Existem dois portões em Hidden Oaks. O da frente é onde os guardas ficam,


você precisa passar por eles para entrar.
Mas Hidden Oaks é enorme, considerando que abriga inclusive um campo
de golfe completo, além de centenas de casas, e temos, portanto, um portão
traseiro. Ou melhor, dois portões traseiros. Um deles requer um código de
acesso; o segundo, um controle remoto como aqueles de garagem, sem nenhum
guarda por perto. É por ali que eu entro.
Uma vez lá dentro, passo pelas casas menores, pelas construções de médio
porte e finalmente chego a uma casa que é o dobro da nossa. Tem seis quartos,
quase a mesma quantidade de banheiros e uma piscina nos fundos. A casa de
Kekona está vazia, pois ela ainda está no Havaí.
Essa é a parte mais brilhante do meu plano. Ou a mais idiota. Não tenho
como saber até tentar entrar.
Esta é a casa onde Lily morava. Naquela noite de Halloween, ela se tornou a
minha primeira namorada. Por várias noites seguidas, saí escondido da minha
casa e vim visitá-la bem aqui. Exatamente como meu filho agora faz com sua
namorada.
Muitos anos se passaram desde meu primeiro namoro, e a casa foi pintada,
remodelada e modernizada. As fechaduras provavelmente foram trocadas
várias vezes, é um costume bem comum com os novos moradores de um
imóvel. As pessoas sempre mudam o segredo da porta da frente e dos fundos.
Mas estou apostando que o segredo das portas duplas da sacada jamais foi
trocado. A fechadura daquelas portas nunca trancava direito. Elas costumavam
ficar meio abertas.
Escalar até a sacada não é assim tão fácil com a minha idade, mas não estou
preocupado em ser visto. A casa de Kekona fica bem no meio de Hidden Oaks,
na zona endinheirada onde todos os terrenos têm mais área do que o necessário.
Os vizinhos mais próximos mal podem ser vistos da frente, muito menos dos
fundos.
No final das contas, consigo escalar sem cair e, mesmo sem chegar perto das
portas, vejo que tirei a sorte grande. Pintaram as portas, talvez tenham até
refeito a vedação, mas a fechadura é a mesma. Dou um sorriso pela primeira
vez em vinte e quatro horas.
Minutos depois, estou dentro da casa e desço para a garagem. Kekona tem
somente um carro, uma caminhonete, então sobra espaço para eu poder guardar
o meu.
Eu levo as compras para a cozinha, tomo um banho e me instalo na casa. De
repente, sinto que tenho uma chance. Uma chance do quê, não sei, mas pelo
menos não estou mais dormindo em uma quadra de tênis.
Quando abro meu computador, no entanto, surge o problema número um: a
senha do wi-fi.
Kekona removeu a etiqueta com o código da parte de baixo do modem, por
isso não tenho como descobrir a senha logo de cara. Levo realmente uma
eternidade até perceber que a etiqueta está bem na porta da geladeira.
Depois de conectado, busco uma forma de acessar o tablet de Millicent. Ele
pede uma senha de quatro dígitos. E eu não preciso ser gênio para saber que ela
jamais usaria uma data genérica de aniversário. Minha única alternativa é
continuar apertando os números até acertar.
No noticiário, não param de falar na coletiva de imprensa, em Tobias, nas
três mulheres na igreja.
Eu tento descobrir quem elas são, quem é que Millicent escolheu. Mulheres
da nossa lista? Mulheres que eu rejeitei, como Annabelle ou Petra? Espero que
não seja Annabelle. Ela não fez nada para merecer Millicent.
Não, isso não faz sentido. Alguém precisa estar vivo para identificar um
surdo chamado Tobias. Ela não pode simplesmente matar todo mundo que
encontrou com ele.
Talvez Millicent tenha escolhido pessoas desconhecidas, mulheres que eu
nunca vi, com quem eu nunca falei. Ou talvez essa tática seja aleatória demais
para ela.
No fim, minha única conclusão é: eu realmente preciso parar. Minha mente
está andando em círculos e não está chegando a lugar nenhum.
Então sigo mexendo no tablet, tentando descobrir a senha. Quando o sol se
põe, não cheguei nem perto de conseguir acessar o sistema.
São seis horas, e eu deveria estar em casa para o jantar. Hoje é noite de
cinema, e não estou lá com meus filhos. Se minha mensagem ainda não fez
Rory e Jenna perceberem que alguma coisa está errada, minha ausência vai
oficializar a questão.

Acordo pensando que estou em casa. Fico tentando ouvir Millicent lá embaixo,
voltando da sua corrida, preparando o café da manhã. A rotina de hoje se
desenrola no meu pensamento, minha primeira aula é somente às nove horas.
Eu me viro e caio no chão feito uma pedra.
Não estou em casa. Dormi no sofá da sala de Kekona. O seu sofá verde de
canto é enorme, mas eu ainda caio ao me virar. A realidade me atinge junto
com o piso de madeira.
A tevê é ligada, a cafeteira de cápsulas começa a passar o café, o
computador é inicializado. Quase virei a noite de ontem preparando listas. O
que eu sei, o que eu não sei, o que eu preciso saber. Como conseguir certas
informações. A última lista é um pouco curta, porque não sou nem hacker nem
detetive. O que eu realmente sei é que existem duas maneiras de proceder:
provar que ela matou aquelas mulheres ou provar que eu não matei. O ideal é
que as duas abordagens atuem em conjunto.
Na noite em que Naomi desapareceu, fui para casa e fiquei com as crianças,
deixando Millicent sozinha com ela. A mesma coisa com Lindsay: fiquei com
Jenna, porque ela estava doente. As crianças são meus álibis, mas não me
ajudam muito. Como elas foram dormir cedo, não podem confirmar que eu
continuei em casa.
Mas posso provar que Millicent matou as mulheres? Tanto quanto posso
provar que não matei.
O tablet de Millicent, aliás, é um problema maior do que eu imaginava.
Embora exista um programa para resetar a senha, ele só pode ser usado se eu
estiver conectado com o e-mail registrado no tablet. Outra senha que não tenho
e nem consigo imaginar. No meio da noite, passo a acessar fóruns de hackers,
um ambiente repleto de adolescentes buscando a mesma coisa que eu.
Não é possível que não exista um jeito. Deve existir. Mas talvez eu precise
convencer alguém a me ajudar.
Passo metade da manhã me perguntando se é melhor pedir ajuda agora, antes
que meu rosto esteja no noticiário, ou depois da polícia começar a me procurar.
Tento imaginar uma pessoa aparecendo na minha casa em busca de ajuda, uma
pessoa que pode ou não ser um psicopata. Será que eu ajudaria essa pessoa ou
bateria a porta e chamaria a polícia?
A resposta é a mesma. Depende.
E minhas opções são limitadas. Meus amigos são os mesmos de Millicent,
nós compartilhamos os grupos. Tenho muitos clientes, mas a maioria deles não
é mais do que um contato profissional. Apenas uma possibilidade surge na
minha cabeça, a única pessoa que cumpre os dois critérios: capacidade e
disposição para ajudar.
Andy.
Sessenta e quatro
O Golden Wok é um buffet de comida chinesa a trinta minutos de Hidden
Oaks. Almocei nele uma vez, a caminho de algum outro lugar, e se parece com
todos os buffets de comida chinesa que já vi na vida. Chego cedo e encho o
meu prato de frango xadrez, porco agridoce, yakisoba e rolinhos primavera. No
meio da minha refeição, Andy Preston entra e anda até minha mesa.
Eu me levanto e ofereço a mão. Ele ignora e me dá um abraço.
Andy não é mais o mesmo homem que conheci antes de Trista se suicidar.
Ele não é sequer o homem que eu vi no funeral. O peso extra na sua barriga
sumiu e agora ele está quase magro demais. Não está saudável. Digo para ele
pegar um prato.
O restaurante chinês foi escolha de Andy. Ele foi embora de Hidden Oaks
depois da morte de Trista, e Kekona me disse que ele largou o emprego e passa
o dia na internet, incentivando estranhos a desistirem do suicídio. É bem
provável que seja isso mesmo.
Andy se senta na cadeira e me dá um sorriso. Parece vazio.
— E então, quais as novidades? — eu pergunto. — Como você está?
— Não muito bem, mas podia estar pior. Sempre pode piorar.
Eu concordo com a cabeça, impressionado que ele diga algo assim depois de
tudo que aconteceu. — Você tem razão, pode.
— E você? Como vai Millicent?
Eu limpo a garganta.
— Ih — ele diz.
— Preciso de ajuda.
Ele me olha. E não me faz nenhuma pergunta, pois ainda é meu amigo,
mesmo que eu não venha sendo um amigo para ele.
Durante toda a manhã, não parei de remoer na cabeça o quanto eu contaria a
Andy sobre minha situação. Primeiro, o tablet. Eu tiro da minha mochila e
entrego para ele por cima da mesa laminada. — Você pode me ajudar a entrar
nisso aqui? Tem uma senha, e eu não faço ideia qual é.
Andy olha para o tablet e depois para mim. Seus olhos parecem um pouco
mais alertas.
— Qualquer criança de oito anos consegue entrar nisso aqui.
— Não posso pedir para os meus filhos.
— Então é de Millicent.
Eu concordo. — Mas não é o que você pensa.
— Não?
— Não — eu aponto para o prato. — Termine de comer. Depois eu explico
tudo para você.
Digo “tudo”, mas é da boca para fora.
Depois de terminarmos a comida, vamos até o carro dele. É uma picape
velha que não tem nada a ver com o carro esportivo que ele costumava ter.
— O que você fez? — ele pergunta.
— Por que você acha que eu fiz alguma coisa?
Ele me olha meio torto. — Você está com uma cara terrível, tem um novo
número de telefone e quer entrar no computador da sua mulher.
Por mais que eu queira contar tudo para alguém, não posso. Não importa o
tempo de amizade, alguns limites não podem ser ultrapassados. Assassinato é
um deles. Assim como guardar segredos sobre a esposa de um amigo.
— Eu traí Millicent — digo.
Ele não parece surpreso.
— Meu palpite é que isso não foi uma boa ideia.
— Pra dizer o mínimo.
— Então ela botou você pra fora e agora quer tudo pra ela? A casa, o plano
de aposentadoria, a poupança das crianças pra faculdade?
Seria tão mais fácil se ela só quisesse os bens. — Não exatamente — eu
digo. — Millicent quer um pouco mais do que isso.
— Não me surpreende — ele hesita por um segundo, balançando a cabeça.
— Agora que você já estragou tudo, posso contar a verdade.
— Que verdade?
— Eu nunca gostei de Millicent. Ela sempre me pareceu um pouco fria.
Sinto vontade de rir, mas não me parece lá muito adequado. — Ela está
tentando me incriminar em coisas que eu não fiz. Coisas muito ruins.
— Coisas ilegais? — ele pergunta.
— Sim. Sem dúvida nenhuma.
Ele ergue uma das mãos, como se quisesse me impedir de dizer algo mais.
— É verdade, então. Ela é fria.
— Você decifrou Millicent muito bem.
Andy não diz nada por alguns minutos. Ele esfrega sua mão pelo volante, o
tipo de coisa que alguém faz sem nem perceber, porque está ocupado demais
pensando. E o melhor que posso fazer agora é manter minha boca fechada,
deixá-lo decidir o quão maluco eu sou.
— Se você só precisa entrar nesse tablet, por que me contou o resto?
— Porque eu e você somos amigos há muito tempo. Eu te devo a verdade.
— E?
— E porque eu devo aparecer no jornal em breve.
— No jornal? Mas o que é que ela está fazendo contigo?
— Você é a primeira pessoa que me viu desde ontem — eu digo. — Por
favor, não conte pra ninguém.
Ele olha pela janela, na direção da placa de neon do restaurante. — É melhor
eu não saber mais nada, não é?
Eu balanço a cabeça negativamente.
— Então esse é o favor de verdade — ele diz. — Ficar quieto.
— É por aí. Pois é. Mas eu preciso mesmo entrar nisso aqui — eu digo,
apontando para o tablet de Millicent. Está em cima do painel do carro. — Você
me ajuda?
Novamente, ele fica quieto.
Andy vai me ajudar. Ele pode não ter percebido ainda, mas ele decidiu me
ajudar quando a gente ainda estava na mesa. Porque, se ele não quisesse me
ajudar, já teria ido embora a essa altura. E, pelo jeito que ele me olha, pode ser
que Andy esteja precisando disso tanto quanto eu.
— Você sempre foi um pé no saco — ele diz. — E que fique registrado: suas
aulas de tênis são caras demais.
Dou um leve sorriso. — Registrado. Mas você me acusou de ter dormido
com sua mulher. Você me deve uma.
Ele me ignora. — Me passe o tablet.
Eu entrego para ele.

O pior é a espera. É como saber que uma bomba vai explodir, sem saber
quando ou onde. Ou em quem. Passo o dia seguinte na sala de tevê da casa de
Kekona. Ela tem uma tela de cinema quase do tamanho da parede, e poltronas
reclináveis de couro desgastado. Fico ali vendo Josh falar de Tobias sem parar.
Ele chega a conversar com especialistas sobre como é ser surdo.
No entanto, tenho que admitir que uma parte da informação é interessante.
Teria sido útil saber de certos detalhes quando precisei interpretar meu
personagem.
A vinheta do plantão de notícias interrompe minhas reflexões. A imagem na
tela faz meu coração disparar.
Annabelle.
A doce Annabelle, a fiscal de estacionamento cujo namorado foi morto por
um motorista bêbado.
Ela está viva.
E ainda continua fascinante, com seu cabelo curto e seus traços delicados,
mesmo que não esteja sorrindo. Ela não fica nem um pouco feliz quando Josh a
apresenta como a “mulher que conheceu o surdo chamado Tobias”.
Não me surpreende que Annabelle seja a primeira a vir a público. Ela não
conseguiu salvar o namorado, então tenta salvar todas as outras pessoas do
mundo.
Annabelle conta a nossa história, começando com o momento em que ela
quase deu uma multa para o carro que era supostamente meu. Ela explica como
nos encontramos por acaso na rua e como eu a convidei para tomar uma
bebida. Ela diz até o nome do bar. Se Eric, o barman, ainda não se pronunciou,
ele vai.
Annabelle não omite nada, nem mesmo a mensagem que ela me enviou. A
polícia agora tem aquele número de telefone.
Será que Millicent vai atender quando a detetive ligar?
Por último, mas não menos importante, Annabelle diz que passou a manhã
com um retratista. O retrato falado é revelado logo após o fim da reportagem
de Josh.
Parece exatamente comigo e, ao mesmo tempo, é completamente diferente.
Imagino Millicent assistindo e criticando o desenho, dizendo que o nariz está
muito grande e que talvez os olhos estejam muito pequenos. Ela vai dizer que
esqueceram um sinal próximo da minha orelha, e que o tom da minha pele é
diferente. Ela vai notar todas as inconsistências, porque ela sempre nota.
E, na verdade, não vai demorar muito para eu ser identificado, até porque
algumas pessoas já devem estar procurando por mim. A diretoria do clube, por
exemplo. Millicent deve estar atuando em ritmo frenético, fingindo para todo
mundo que acabei de desaparecer sem explicação nenhuma.
Jenna e Rory — quem é que consegue saber o que aquelas crianças estão
pensando?
Passo o resto do dia dentro de casa, com medo de sair enquanto ainda está
claro lá fora.
Isso me faz lembrar do dia em que me casei com Millicent, na casa dos seus
pais no meio do nada. Posso vê-la com seu vestido simples, com o cabelo
penteado para cima e repleto de pequenas flores, como se ela fosse uma fada
ou uma ninfa que veio de outro mundo. Ela era assim, tudo em Millicent era
transcendental. Acho que ainda é.
Também penso no que ela me disse naquele dia, pois não poderia ser mais
adequado agora.
É melhor você se preparar.

As notícias começam a aparecer com mais frequência, o que não é exatamente


uma surpresa. Deram comida suficiente à audiência e em troca o público
fornece mais informações.
A segunda pessoa que alega conhecer Tobias é um barman, mas não é Eric.
Esse rapaz trabalha no bar onde eu conheci Petra. Josh, embora esteja
superexcitado com todas as novidades, parece um pouco decepcionado com
ele, pois o rapaz não lembra o dia exato e nem o horário que conheceu Tobias.
Ele lembra tão pouco na verdade que é quase constrangedor, pelo menos para
ele. Para completar, o barman ainda erra a bebida. Tobias nunca pediu vodca
com tônica.
Quase me sinto ofendido com tamanho descaso. Sempre acreditei que Tobias
fosse ter um lugar melhor na lembrança das pessoas.
Ou talvez o barman seja apenas um imbecil.
Quando nada de novo acontece, tudo é repetido. Vejo a entrevista de
Annabelle várias e várias vezes: eles repetem as melhores partes com uma
frequência tão grande que até eu sou capaz de memorizá-las. Durante os
intervalos comerciais, me pergunto se meus filhos estão assistindo o mesmo
canal.
Sei que Millicent está. Posso vê-la sentada no sofá, assistindo Annabelle na
nossa tevê. Na minha cabeça, Millicent sorri. Ou está de cara amarrada. Ou as
duas coisas.
Quando começa o noticiário da noite, Eric aparece, mas em outro canal. Josh
não conseguiu essa entrevista. A repórter que conversa com ele é uma mulher
de meia-idade, uma das mais famosas celebridades da nossa região. Até agora
ela não tinha participado da cobertura deste caso — não participou quando
Owen voltou a atacar e não participou quando a irmã revelou que ele estava
morto. O fato dela ter se envolvido me incomoda. Uma caçada de verdade está
prestes a começar, ou já começou, e todos estarão procurando por mim.
Eric se lembra mais do que o último barman, a começar pelo drinque: gim-
tônica. Ele descreve o meu terno e o tipo de gravata que eu estava usando. Ele
se lembra da cor dos meus olhos, do meu bronzeado, ele se lembra até do
tamanho do meu cabelo.
Cada nova revelação embrulha o meu estômago. De alguma forma, consegui
encontrar o único barman da cidade com memória fotográfica.
Minutos depois, as outras emissoras já estão repetindo o que Eric disse. Eu
me sinto um pouco mal de ouvir Josh repetir todas aquelas informações
pessoais a meu respeito. Eu queria ter descoberto antes o ser humano horrível
que ele é. Se eu soubesse, nunca teria escrito as cartas para ele.
Embora eu não seja exatamente a melhor pessoa para julgar quem é horrível
e quem não é.
As horas vão se empilhando uma em cima da outra, noite adentro, mais um
pouco e teremos filmes antigos e programas de televenda na tevê. Abro o meu
notebook e vasculho os sites com notícias de crimes reais. O retrato falado está
em todos os lugares, junto com as mesmas entrevistas que acabei de assistir, e
aproveito para verificar as páginas de comentários. Meu nome ainda não está
lá, nem deveria estar. Pelo menos não por enquanto.
Sessenta e cinco
Não consigo dormir por muito tempo. Já estou acordado há uma hora e as
emissoras se preparam para uma coletiva de imprensa com Claire Wellington.
O café me dá um embrulho no estômago enquanto eu aguardo o começo. Claire
ainda não disse nada muito animador, e sei que não vai ser agora que isso vai
mudar.
Colocaram um púlpito na delegacia de polícia. É ladeado pela bandeira dos
Estados Unidos e do estado, e cercado por microfones, câmeras e flashes. Dez
minutos depois da hora marcada, Claire sobe ao púlpito. Ela não está usando
um terninho. Hoje ela está usando uma saia azul-marinho com um blazer
combinando, uma roupa muito parecida com as de Millicent, com a diferença
de não ser tão justa. Não sei como, mas sei que isso é um mau sinal.
Claire começa retomando o retrato falado e pede para a comunidade espalhar
a imagem no comércio, nas escolas e em prédios públicos, assim como nos
blogues de moradores da região. Tudo bem que quem ainda não viu o desenho
é porque não tem nem tevê nem internet. Ou então é porque está em coma.
Mas este não é o objetivo da coletiva. É somente a abertura. A atração
principal vem a seguir.
— Agora, trago uma atualização sobre as três mulheres que encontramos no
porão da igreja. Tentar identificá-las é um processo meticuloso, considerando
os variados graus de decomposição dos corpos. Suas impressões digitais
também foram removidas.
Ela faz uma pausa, e toma fôlego: — Apesar das dificuldades, o médico-
legista de Woodview e os investigadores forenses realizaram aqui um trabalho
espetacular. A primeira dessas mulheres foi positivamente identificada, e já
entramos em contato com a família da vítima. Graças ao trabalho duro de
muitos profissionais, essa jovem garota pode enfim descansar.
Antes dela dizer o nome da mulher, uma foto aparece na tela.
Eu conheço aquele rosto.
Jessica.
A caixa da loja de conveniência onde eu compro meu café. Ela foi embora
não faz muito tempo. O cara que a substituiu no trabalho disse que ela tinha se
mudado para estudar em outro estado. Fico chocado por saber que Millicent a
conhecia. Millicent não compra café nem qualquer outra coisa naquela loja.
Ela deve estar me seguindo por muito mais tempo do que eu imagino. Talvez
Millicent sempre tenha observado minhas atividades. E com quem eu converso.
Essa ideia faz meu coração bater rápido demais. Eu coloco o café na mesa.
Na tela, um quadro dividido em dois mostra Jessica de um lado e Claire do
outro. A detetive segue falando, explicando que as outras mulheres ainda não
foram identificadas.
De repente, eu entendo o que Millicent fez. Ela matou mulheres que eu
conheço, mulheres que podem estar ligadas a mim. Talvez isso seja parte da
sua armação.
Ou talvez ela pense que eu estou dormindo com todas elas.
Talvez ela tenha aplicado a tática da terra arrasada, destruindo qualquer
pessoa que pudesse ser uma ameaça.
Minha mente dá verdadeiras piruetas tentando descobrir quem são as outras
duas. Não são minhas clientes. Nenhuma delas desapareceu recentemente e, se
tivessem desaparecido, eu saberia. Gente rica não some sem que alguém saia
procurando por elas.
Eu penso em todas as mulheres que conheço, particularmente as mulheres
jovens que se encaixam no perfil de Owen. Uma parte delas trabalha no clube,
são garçonetes, caixas de lojas e recepcionistas de bar. Conheço todas de vista
e quase sempre as cumprimento. Algumas estão lá há mais tempo que outras. A
maioria ainda está lá, não estão mortas no porão de uma igreja.
Com exceção de uma.
Beth.
A atrevida Beth do Alabama, uma garçonete do clube. Nunca tivemos um
caso. Ela era apenas uma jovem simpática, e às vezes a gente conversava
enquanto eu lanchava no salão do clube. E só.
Pouco tempo atrás, ela pediu demissão devido a uma emergência familiar em
Mobile, sua cidade natal. O gerente do restaurante me contou isso. Ninguém
questionou. Ninguém desconfiou que alguma coisa pudesse ter acontecido com
ela. Ninguém veio procurar Beth.
Talvez, se continuar sem notícia nenhuma, sua família apareça reclamando.
Eu me levanto e começo a caminhar, primeiro ao redor da sala de tevê e
depois por toda a casa. No andar de cima, no andar de baixo, dentro de todos os
quartos e andando em círculos.
Mais uma.
Millicent matou uma terceira mulher. Ninguém mais desapareceu — não que
eu saiba —, por isso me pergunto se poderia ser Petra. Com Annabelle e todos
os barmen podendo reconhecer Tobias, por que não se livrar logo dela?

Um telefone tocando atravessa meu pânico. O único que tem meu novo número
é Andy.
— É você — ele diz. Ele não menciona o desenho da polícia e nem precisa.
Eu faço gestos para o telefone, como se ele pudesse me ver. — É o que eu
estava dizendo para você — eu digo. — Ela está tentando me incriminar.
— Sim, eu entendi essa parte. Mas você não conseguiu me transmitir a
magnitude da raiva dela.
— Eu disse que você não ia querer saber. Eu avisei.
— Mas como é que ela está fazendo isso?
Novamente, quero contar a ele, mas não posso. Também não tenho uma boa
resposta para dar. — Se eu soubesse, eu contaria para a polícia.
Ele suspira. Logo antes de desligar, ele diz: — Que desgraça.
E ele ainda está com o tablet de Millicent.
Durante o resto do dia, eu assisto as notícias, vasculho meu computador e
pesquiso meus filhos na internet. Minha busca não revela nada de novo, apenas
algumas matérias antigas no jornal local sobre o time de futebol de Jenna ou
Rory em um torneio de golfe.
Olho as fotos que eu trouxe de casa. Parece que foram tiradas há cem anos,
quando eu tinha uma vida que agora mais parece um sonho.

É noite. Estou no quintal ao lado da piscina, caminhando em volta dela. Se


Kekona tivesse vizinhos, eles pensariam que eu sou louco, o que talvez não
esteja muito longe da verdade. Mas ela não tem vizinhos. Como não vejo
ninguém por perto, pulo na piscina, com roupa e tudo, e fico submerso até não
conseguir mais. O ar me faz sentir um choque quando volto à superfície. E o
choque tanto me desperta como me acalma.
Saio da piscina e fico deitado no pátio, olhando para o céu, tentando não
pensar no quanto minha situação pode piorar.
Uma explosão foi detonada na minha vida, e eu deveria ficar com raiva.
Acho que a raiva está lá, borbulhando por baixo da superfície, misturada com a
tristeza e a desolação, com a culpa, com a vergonha e o pavor. Todos esses
sentimentos uma hora vão vir à tona, e vão me sobrecarregar, mas por enquanto
não. Não até eu descobrir como sair dessa bagunça.
E como resgatar os meus filhos. Eu adormeço pensando neles. Apenas eu,
Rory e Jenna, nada de Millicent.
O sol e os pássaros me acordam. É tão tranquilo aqui na casa de Kekona, tão
fácil de fingir que o resto do mundo não existe. Entendo o motivo dela
raramente sair de Hidden Oaks. Por que alguém de boa vontade trocaria essa
calmaria pela realidade? Eu não trocaria, se não fosse obrigado.
Finalmente, entro na casa e ligo a tela de cinema.
Eu.
Eu estou na parede, olhando para mim. Minha foto enche a tela e meu nome
aparece embaixo, junto com uma legenda:
PROCURADO
Mesmo que eu estivesse esperando por esse momento, ainda assim fico
destruído.
Tão rápido. Toda minha vida desabou em menos de uma semana. Se não
estivesse acontecendo justamente comigo, eu não acreditaria que pudesse ser
possível.
A voz de Josh me faz erguer o olhar. Ele está falando, sempre falando, mas
hoje ele não é o repórter. Como nós nos conhecemos no First Street Bar &
Grill, ele é o entrevistado do jornal. A grande estrela.
A maior parte do que ele diz é mentira, e uma mentira pela metade ainda por
cima. Eu o abordei. Perguntei sobre o caso. Implorei para que ele revelasse o
nome das suas fontes. Ele obviamente não conta que ficou bêbado, que chamou
Claire Wellington de vaca e que reclamou de ter uma informação,
compartilhada comigo, que não podia divulgar no jornal.
— Entendo que a polícia esteja se referindo a esse homem como uma figura
importante para a investigação, e talvez ele seja mesmo a pessoa que todo
mundo deve procurar. Eu só posso dizer a vocês o que eu senti. Sabem aquela
sensação que você tem quando alguma coisa está errada? Como se um
alarmezinho disparasse dentro da sua cabeça, mandando você se afastar? Foi
como eu me senti com esse cara.
Seu comentário é assustador o suficiente para que eu pareça culpado para o
público, mesmo que, na verdade, Josh não estivesse em condições de sentir
coisa nenhuma quando nós nos conhecemos.
Quero pôr a bateria de volta no meu telefone de verdade. Para ver se as
crianças mandaram mensagens, se estão preocupadas, se elas acreditam no que
está sendo dito a meu respeito. Ou para verificar quantas vezes a polícia me
ligou.
Em vez disso, estou sozinho, preso na linda casa de Kekona sem poder falar
com ninguém.
Até o telefone tocar. Andy.
Eu atendo, mas não digo uma palavra. Ele já sai falando.
— Esses assassinatos deixaram Trista muito perturbada. Eu quase agradeço
por ela não poder saber da quantidade total de vítimas.
Se Trista ainda estivesse viva, ela saberia que Owen não assassinou essas
mulheres. E não teria motivo para se matar. Eu não trago essa informação para
a conversa.
— Eu sei — eu digo. — Ela me falou do estresse dela lá no clube.
— Mas a culpa não é sua.
— Não, eu não matei essas mulheres — verdade. Só matei Holly, e ninguém
a encontrou.
— Se eu descobrir que você está mentindo para mim...
— Chame a polícia — eu digo. — Pode me entregar.
— Não, na verdade eu mesmo vou te matar.
Eu respiro fundo. — Estamos combinados.
— Eu consegui acessar o tablet. Você pode me dizer onde você está?
— Para o seu bem, você...
— Não vou querer saber — ele diz. — Entendi.

Nós nos encontramos em outro estacionamento, não dava para ser de novo no
Golden Wok. Meu disfarce é um boné e óculos escuros, e estou há dois dias
sem fazer a barba. Não é muito, eu sei, mas ninguém está atrás de mim dentro
da caminhonete de Kekona. Saio dirigindo pelo portão dos fundos de Hidden
Oaks para evitar os guardas.
Já está escuro, pois não posso mais sair durante o dia. Também não vou
deixar Andy ver o modelo ou a placa, por isso o carro fica estacionado a duas
quadras de distância e eu caminho até o estacionamento. Ele está parado
próximo da sua caminhonete com o tablet de Millicent nas mãos. Não há outros
carros por perto, não há luzes acesas. O estacionamento pertence a uma
concessionária fechada.
Andy está com uma postura um pouco melhor do que da última vez que nos
encontramos. Seu queixo parece mais firme.
— O país inteiro está te procurando — ele diz.
— Pois é, eu percebi.
Andy se vira e põe o tablet no capô, mantendo o aparelho apoiado com a
mão.
— Se você me disser que não conseguiu, não vou mais acreditar que você é
um gênio — eu digo.
— Eu sempre consigo. Mas não sei se alguma coisa aqui vai ser útil — ele
desliza o dedo na tela, ativando um teclado numérico. — Nova senha. Seis,
três, sete, quatro. Primeiro, a má notícia. Ela deve saber que você levou isso,
porque ela apagou tudo da nuvem.
— Claro que ela apagou.
— Mas não se preocupe, tenho uma boa notícia. Ela tinha alguma
informação armazenada na memória. Ela não conseguiu apagar isso.
Ele me mostra algumas fotos. Fotos das crianças, fotos de casas à venda e
uma foto de uma lista de compras.
Eu balanço a cabeça. É tudo muito mundano para ser útil.
— Ela gostava de jogos — Andy diz. Ele abre alguns jogos de raciocínio
lógico e palavras-cruzadas.
Qualquer esperança que eu tinha é soprada ao vento como uma folha seca.
Claro que não vamos descobrir nada no tablet. Millicent jamais seria tão
estúpida.
— Eu também encontrei algumas receitas — ele diz, abrindo alguns
arquivos em PDF.
— Cogumelos recheados, hein?
— Esse húmus de espinafre parece bom.
Eu suspiro. — Você é um sacana.
— Ei, é a sua esposa — ele diz. — Por último, as buscas que ela fez na
internet e os sites que ela visitou. Ela apagou o histórico, mas eu consegui
recuperar, caso seja útil.
Nada de excepcional. Mais receitas, artigos médicos sobre lesões no pulso e
problemas estomacais, o calendário escolar e uma série de sites de imobiliárias.
— Nada que possa me animar — eu digo.
— Parece que não.
Eu dou um suspiro. — Não é culpa sua. Obrigado por tentar.
— Você me deve essa por toda a eternidade — ele diz.
— Se eu não for preso para o resto da vida.
Ele me abraça antes de sair dirigindo a sua caminhonete velha.
Estou sozinho de novo, sem nenhuma pressa de voltar para a casa de
Kekona. Mesmo uma mansão pode parecer sufocante.
Em vez de voltar, acesso o tablet, abrindo de novo aqueles sites de
imobiliárias que ela visitou. Ninguém é perfeito, eu digo para mim mesmo.
Nem mesmo Millicent. Em algum momento, em algum lugar, ela cometeu um
erro.
Meus olhos quase começam a sangrar quando eu descubro.
Sessenta e seis
O site que Millicent mais visitou é um banco de dados de imóveis. Ela
acessava o site todos os dias, verificando os cadastros de vendas e
transferências, que na verdade são informações públicas. Seu navegador
registrou todos os endereços que ela pesquisou.
Um deles é um prédio comercial no número 1121 da Avenida Brownfield.
Seis meses atrás, um homem chamado Donald J. Kendrick vendeu o prédio por
cento e sessenta e dois mil dólares. O prédio existe há mais de vinte anos e teve
apenas um inquilino com contrato de longa duração.
Joe’s Deli.
Donald vendeu o prédio para uma empresa, que pertencia a outra empresa,
que repassou o imóvel para uma terceira empresa. No final das contas, o prédio
agora é propriedade da RJ Empreendimentos Ltda.
Rory. Jenna.
É uma artimanha típica de Millicent, porque ela não classificaria essa jogada
como um erro. Nossos filhos nunca são um erro. O nome é proposital.
E aí eu entendo, tentando me lembrar dos últimos seis meses: a compra do
prédio foi logo após ela ter vendido três casas em sequência. Com certeza ela
tinha muito dinheiro para gastar.
Denise nunca foi cliente de Millicent.
Ela é uma inquilina. Uma inquilina que por acaso é amiga da irmã de Owen.
Conhecendo Millicent, sei que ela passou horas pesquisando a história de
Owen: sua família, onde eles moravam, onde eles estudavam. Ela foi à caça até
descobrir que Owen estava na verdade morto e encontrou alguém que podia
confirmar essa informação. A irmã de Owen. Ela só precisava trazer a mulher
de volta ao país.
E quem melhor do que uma velha amiga para te convencer a retornar? Ainda
mais uma velha amiga que precisa lidar com a exigente proprietária do imóvel
onde seu negócio funciona. Uma velha amiga que se sentiu obrigada a
conversar com Jennifer Riley e implorar para ela se pronunciar a respeito da
morte de Owen.
Millicent. Foi tudo Millicent. E tudo nos últimos seis meses.
Agora entendo sua reação sobre as vítimas anônimas. Millicent sabia muito
bem que elas estavam mentindo, e não é à toa que ela insistiu em dizer que o
verdadeiro Owen não tinha retornado. Ela já sabia que ele estava morto.
Sua dedicação em me arruinar seria admirável se não fosse tão doentia.
Ainda assim, não tenho nenhuma prova concreta. Só uma empresa e um
prédio comercial, que até um advogado ruim pode argumentar que se trata de
um investimento, e não de uma conspiração para incriminar um marido por
assassinato.
Volto para Hidden Oaks entrando pelo portão traseiro, usando o controle de
Kekona para me liberar o acesso. Uma vez lá dentro, sinto uma vontade
esmagadora de passar pela frente da minha casa. O sol está nascendo e me
pergunto se as crianças ainda estão dormindo. Ou se elas conseguiram dormir.
Se nós morássemos em qualquer outro lugar, elas estariam cercadas de
repórteres. Mas não em Hidden Oaks. O público não tem como entrar em nossa
pequena comunidade.
Bom, no fim, desisto de passar na minha casa. Seria uma estupidez.
Em vez disso, volto para a casa de Kekona e ligo sua tela de cinema.
Eu. Eu sou a grande notícia dos jornais.
Agora que eu fui identificado, todos têm uma fofoca minha para contar, e
contam bem diante das câmeras. Antigos clientes, colegas de trabalho,
conhecidos, todo mundo desanda a falar agora que meu nome está envolvido
na investigação. Meu status de “desaparecido” também não me ajuda muito.
— Cara simpático. Um pouco escorregadio demais, talvez, mas o que a
gente pode esperar de um professor de tênis?
— Minha filha tinha aulas com ele, e agora eu dou graças a Deus por ela
estar viva.
— Costumava ver esse homem no clube. Sempre atrás de cliente.
— Eu e a minha esposa os conhecemos há anos. Nunca poderíamos ter
imaginado isso. Nunca.
— Logo aqui em Hidden Oaks? É inacreditável. Realmente inacreditável.
— Aterrorizante.
Josh também é entrevistado por outros repórteres, pois sua conversa comigo
o transformou em parte da história.
Meu chefe diz que eu fui o melhor profissional de tênis que ele já contratou,
e que é uma pena descobrir que eu sou um demente.
E Millicent. Ela não aparece na câmera, e eles não mostram nenhuma foto
dela, mas minha esposa emite uma declaração para a imprensa:
Eu e meus filhos pedimos a vocês que respeitem nossa privacidade durante
este período de inimaginável dificuldade. Estou colaborando totalmente com a
polícia e não tenho mais nada a acrescentar no momento.

Curto, grosso e escrito por Millicent. Provavelmente ditado por um


advogado, talvez um de seus clientes. Alguém que costumava ser meu amigo
também.
Agora eu só tenho Andy e, se ele souber a verdade, vai me matar.
Penso em Kekona, me pergunto se ela é minha amiga, se ela ia acreditar em
mim caso estivesse em Hidden Oaks. Nós nos conhecemos há pelo menos
cinco anos e nossas aulas terminam sendo uma grande risada. Sem falar que,
mesmo quando ela falta a uma aula, ela ainda me paga, e, quando dá uma festa,
ela sempre nos convida. Posso considerá-la uma amiga? Já não sei mais.
Não estou acostumado a ficar tão sozinho assim. Durante dezessete anos,
Millicent esteve comigo e, na maior parte do tempo, as crianças também. Eu
tinha uma família para me preocupar, uma família para se preocupar comigo.
Nos primeiros anos depois do meu retorno a Hidden Oaks, meus velhos amigos
começaram a se casar, eles se mudaram, formaram suas próprias famílias. Mas
a ausência deles não me parecia um problema. Eu já estava ocupado o
suficiente.
Agora reconheço meu erro. Manter o foco apenas na minha família me
deixou isolado e sozinho, com a exceção de um único amigo de longa data que
jamais poderá saber a verdade.

A minha festa de lamentações é interrompida por Claire Wellington, que


provavelmente deve odiar festas. Ela deve ser aquela figura que olha o relógio
sem parar, que bebe somente um copo d’água e espera o melhor momento para
fugir. Não tenho como descobrir se essa imagem é real, mas essa seria minha
aposta.
Ela dá outra coletiva de imprensa às cinco da tarde, na hora certa para
garantir a melhor repercussão no noticiário da noite. Hoje sua roupa é um
terninho cinza horroroso, como se fosse um terninho de flanela, ainda que não
seja, pois estamos na Flórida e usar um terno de flanela seria uma ideia
ridícula. Seu cabelo está opaco, assim como sua pele. Claire não está dormindo
o suficiente e com certeza deveria reduzir seu ritmo de trabalho.
— Como todos vocês sabem, temos uma grande equipe trabalhando para
identificar as mulheres encontradas no porão da igreja. Jessica Sharpe, de
vinte e três anos, foi a primeira vítima a ser identificada. Nos últimos dias,
também conseguimos identificar as outras duas.
Ela respira fundo, e eu também.
Ela está com um cavalete de cada lado. Ambas as fotos estão cobertas, e um
policial revela a primeira.
Eu acertei. É Beth.
Ela não está de maquiagem e o cabelo está penteado para trás, preso em um
rabo de cavalo. É uma foto que faz Beth parecer ter doze anos de idade.
— Beth Randall tinha vinte e quatro anos, era natural do Alabama e
trabalhava como garçonete no Hidden Oaks Country Club. Há pouco tempo,
seus pais receberam uma carta que pensaram ser dela. No texto, a suposta
Srta. Randall contava aos seus pais que estava de mudança para Montana,
onde trabalharia em uma fazenda.
Millicent. Eu reconheço seu senso de humor em qualquer lugar. A única
coisa que ela odiava mais do que barcos de pesca eram fazendas.
— Ao mesmo tempo, o empregador da Srta. Randall recebeu uma carta
dizendo que ela teve uma emergência familiar e precisava voltar ao Alabama o
quanto antes. Nenhum dos dois destinatários desconfiou que as cartas eram
falsas.
Claire para por um momento enquanto as câmeras enquadram a foto de
Beth. Então, ela se vira para o outro cavalete. Ainda acho que deve ser Petra.
Não consigo me lembrar de ninguém que tenha desaparecido ou se mudado. E
não escuto falar de Petra há muito tempo. Quer dizer, não que eu estivesse
realmente procurando por ela.
O policial revela a foto.
E, desta vez, eu erro. Não é Petra.
É Crystal.
A mulher que dirigia para as crianças.
Aquela que me beijou.

Ela nem me passou pela cabeça. Agora que estou avaliando a situação toda,
percebo que eu deveria ter imaginado, mas eu não via Crystal há mais de um
ano. Não tivemos qualquer tipo de contato desde que ela parou de trabalhar
para nossa família.
Será que Millicent sabia do beijo? Será que ela matou Crystal por causa de
ciúme? Ou será que Crystal foi apenas um efeito colateral, uma parte menor do
grandioso plano de Millicent?
Acho que nunca vou descobrir. De todas as perguntas que eu quero fazer
para Millicent, esta não está nem entre as dez primeiras.
Meu palpite é que Crystal contou para Millicent. Ou melhor, minha esposa
deve ter torturado Crystal até ela contar.
Uma cena que eu prefiro expulsar do meu pensamento.
A coletiva de imprensa continua, e Claire apresenta um homem cujo nome
reconheço de um documentário sobre Owen. Ele é um especialista em perfis de
criminosos que, depois da fama e da aposentadoria, agora atua como consultor
independente e escreve vários livros sobre crimes hediondos. Este homem —
este homem alto, magro e de aparência decrépita — sobe ao púlpito e afirma
nunca ter encontrado um serial killer como eu.
— Ele mata mulheres que conhece de maneira periférica, como essa
operadora de caixa, a primeira vítima identificada, e é importante notar que
ele também criou uma personalidade diferente, um homem surdo chamado
Tobias, que ele utiliza para selecionar novas vítimas. A variedade de métodos
pode ser o que impediu este criminoso de ser descoberto por tanto tempo.
Ou talvez seja tudo mentira. Mas, na coletiva, ninguém comenta essa
possibilidade.
Pedaço por pedaço, minha vida é toda destruída, como se nunca tivesse
existido. Como se ela não fosse mais do que uma simples fileira de peças de
dominó, um dominó montado por Millicent. E, diante da velocidade em que as
peças estão caindo, não parece muito provável que eu consiga me livrar da
armadilha.
Ainda assim, eu continuo assistindo.
Assisto até meus olhos ficarem embaçados e minha cabeça ameaçar
desmoronar em cima do meu pescoço.
E então eu sei muito bem do que eu preciso: uma prova irrefutável. Uma
amostra de DNA impregnada na arma do crime, ou um vídeo de Millicent
matando uma dessas mulheres.
Mas eu simplesmente não tenho nada.

O telefone me acorda. Enquanto assistia o meu apocalipse pessoal, peguei no


sono. As poltronas da sala de tevê de Kekona são confortáveis demais.
Pego meu telefone e escuto a voz de Andy.
— Ainda está respirando?
— Não muito, na verdade.
— Não acredito que ainda não te encontraram.
— Você subestima a minha inteligência — na tevê, estão mostrando uma
foto minha durante meu baile de formatura.
— Parece mais uma sorte de principiante — ele diz.
Além de tudo, há a culpa. Andy acredita em mim porque não sabe nem
metade da história.
No jornal, outro especialista em perfis de criminosos é o entrevistado do
momento. Ele tem um sotaque bizarramente nasalado, que me dá vontade de
trocar de canal. Mas não troco.
— O nível de tortura pode estar diretamente relacionado ao nível de raiva
que o assassino sentia pela vítima. Por exemplo, as queimaduras de Naomi
George indicam que o assassino estava furioso com ela por algum motivo. É
impossível saber se a raiva vem de algo que ela fez ou de alguém que ela trazia
para a lembrança do criminoso. Provavelmente não saberemos até que ele seja
capturado.
Agora eu troco de canal. E vejo um fantasma. O meu fantasma.
Petra.
Sessenta e sete
Ela não só está viva, ela também parece diferente. Sem tanta maquiagem e com
menos pompa. Mais sofisticada, como se tivesse passado os últimos dias
repaginando seu estilo. Seus olhos azuis estão atentos e concentrados, e seus
cabelos, que antes eram comuns, agora estão sedosos e estilosos.
Lembro do seu apartamento, da sua cama. Do gato chamado Lionel. Ela
gosta de verde-limão e de sorvete de baunilha, e não acreditou que eu gostava
de presunto na pizza. Pois é, eu não gosto.
Também me lembro do som da sua voz enquanto ela me perguntava se eu
era realmente surdo. A mesma voz que ela revela agora na tevê. Desconfiada.
Acusatória. Um pouquinho magoada.
— Conheci Tobias em um bar.
Quando o repórter pergunta por que ela esperou tantos dias para vir a
público, Petra hesita antes de responder.
— Porque eu dormi com ele.
— Você dormiu com ele?
Ela concorda e abaixa a cabeça, envergonhada. Por ter feito sexo ou por ter
me escolhido, não sei qual das duas opções. Talvez ambas.
No início, a mídia me retratou como um psicopata doentio e perverso. Agora
eu sou um psicopata doentio e perverso que trai a esposa.
Como se as pessoas precisassem de mais um motivo para me odiar.
Se soubessem onde eu estou, meus vizinhos fariam fila empunhando tochas
e pedaços de pau. Mas ninguém sabe de nada, por isso posso ficar aqui sentado
assistindo tevê, comendo porcaria e esperando que alguém me encontre ou que
Kekona entre por aquela porta. O que acontecer primeiro.
Petra vai de lugar nenhum para todos os lugares. Ela mente em certas coisas,
fala a verdade em outras. A cada entrevista, a história se torna um pouco mais
detalhada e eu afundo um pouco mais em minha depressão.
Ainda tenho momentos de brilho, quando acho que posso ter alguma chance.
Então fico horas mexendo naquele tablet idiota como se uma evidência
incontestável fosse brotar na minha frente. Talvez um vídeo de Millicent no
porão ou uma lista de mulheres a serem assassinadas.
Quando não estou fazendo algo inútil, eu sou um inútil. Um punhado de
autodepreciação e autopiedade, me perguntando onde é que eu estava com a
cabeça para inventar de me casar. Desejando nunca ter visto Millicent, muito
menos ter sentado ao lado dela naquele avião. Eu não teria me transformado
em quem eu sou agora se não fosse por ela.
E, quando não estou afundando na areia movediça da melancolia, eu me
divirto com o noticiário. Finjo que essa história não é minha, que são os
problemas de outra pessoa.
Com frequência, eu me pergunto o quanto meus filhos vão me odiar. E o que
o Dr. Bege está falando de mim. Aposto que está dizendo para Jenna que sou a
raiz de todos os seus problemas. Nunca foi Millicent, nunca foi Owen, a culpa
sempre foi minha. Até porque não poderia ser ela mesma.
Andy liga de novo.
— Vi sua mulher — ele diz.
— Viu o quê?
— Millicent. Fui na sua casa e encontrei com ela — ele diz.
— Por quê?
— Olha, eu estou tentando te ajudar. Ficar numa mesma sala com aquela
mulher não é exatamente algo que eu queira fazer — ele diz. — Pois então, eu
liguei pra ela. Millicent e eu temos muito em comum. Nós dois perdemos a
pessoa com quem casamos.
Com a exceção de que eu não estou morto. — Os meus filhos estavam lá?
— Sim, eu vi os dois. Estão bem. Talvez um pouco inquietos, por estarem
presos dentro de casa. Tem a mídia e tudo mais.
— Falaram alguma coisa de mim?
Uma pausa. — Não.
Isso provavelmente é uma boa notícia, mas ainda assim me machuca.
— Olha, independente do que você quer fazer, é melhor você fazer rápido —
Andy diz. — Millicent disse que quer pegar as crianças e ir embora daqui por
um tempo.
É uma decisão razoável para uma esposa que acabou de descobrir que seu
marido é um serial killer. Também é uma decisão razoável para uma serial
killer que acabou de incriminar o marido. — Ela não disse para onde ela vai,
disse?
— Não, ela não disse.
— Imaginei que não.
— Mais uma coisa — ele diz.
— O quê?
— Se eu não tivesse conversado com você antes de tudo isso acontecer, não
sei se eu ia acreditar na sua história. É meio difícil de acreditar depois de ver
Millicent daquele jeito.
— Que jeito?
— Completamente destruída.
A última parte é a que mais me incomoda. Ninguém vai acreditar em uma
palavra do que eu disser. Não enquanto eu continuar sem nenhuma prova para
apresentar.

Conforme as horas vão passando, eu me afundo ainda mais na poltrona de


Kekona. As imagens na tevê flutuam diante dos meus olhos: Lindsay, Naomi,
eu, Petra, Josh. Ele está falando, sempre falando, e repete toda a história de
novo. Autópsia. Estrangulada. Torturada. Josh deve ter falado essa última
palavra um milhão de vezes.
Na milionésima primeira vez, eu endireito a minha postura.
Estou em pé agora, correndo pela casa de Kekona, revirando minhas roupas
e até meu lixo, e só vou parar quando encontrá-lo.
O tablet de Millicent.
Em sites médicos, ela pesquisou informações sobre os problemas de saúde
dos nossos filhos, mas talvez eles possam me dizer mais alguma coisa. Talvez
eu tenha deixado algo passar.
Porque, se eu fosse torturar uma pessoa, sem chegar ao ponto de matá-la, eu
precisaria pesquisar os métodos primeiro. E começaria justamente pesquisando
em sites médicos sobre como provocar lesões no corpo humano.
Sim, existe uma chance remota. Uma chance muito remota.
Por mais idiota que eu me sinta, por acreditar que a resposta dos meus
sonhos vai simplesmente aparecer no tablet, o que me faz continuar é imaginar
o quão imbecil eu vou me sentir se depois alguém me falar que estava lá o
tempo todo.
Acho o tablet na sala de jantar de Kekona, esquecido em uma mesa capaz de
acomodar dezesseis pessoas. Parece o lugar ideal para me sentar e vasculhar o
tablet outra vez. Eu verifico cada site, buscando toda e qualquer linha de texto
que fale sobre tortura e estrangulamento. Procuro por queimaduras com água
quente, queimaduras com azeite, hemorragias internas, cortes nas pálpebras.
Procuro até por queimaduras com cigarros, o que é meio absurdo, porque
Millicent se recusa a chegar perto de cigarro.
E não encontro nada.
Ela pesquisou quanto tempo leva para uma pessoa se recuperar de uma
torção no pulso. Também pesquisou uma série de informações sobre problemas
estomacais — as causas, os sintomas e os tratamentos.
E acabou.
Nada sobre tortura, nada de útil. Como era de se esperar.
Empurro o tablet para longe, e ele derrapa pela mesa. Minha reação imediata
é conferir se a madeira não está arranhada. Não que isso importe, mas eu me
preocupo mesmo assim. Eu me levanto e avalio a situação, esfregando o meu
dedo sobre a superfície do móvel, quando alguma coisa no tablet me chama a
atenção.
Ainda está na página sobre problemas estomacais. No lado direito, o site
destaca uma lista de possíveis causas. Uma delas está em roxo em vez de azul,
pois o link já foi visitado.
Colírio.
Sessenta e oito
Tetraidrozolina é o princípio ativo nos colírios que eliminam a vermelhidão dos
olhos. Ingerir uma grande quantidade pode causar sérios problemas para a
saúde de um indivíduo. O colírio baixa a pressão sanguínea e pode induzir ao
coma. Pode inclusive matar.
Mas tomar uma pequena quantidade causa dor de estômago e vômitos. Não
causa febre.
O colírio pertence a Millicent.
Ela está dando o colírio para Jenna.
Não.
Impossível.
Esse pensamento me deixa fisicamente mal. Jenna é nossa menina, nossa
filha. Ela não é Lindsay ou Naomi. Ela não é alguém para torturar.
Ou talvez seja. Talvez Jenna não seja diferente. Não para Millicent.
Minha filha não tem um problema estomacal recorrente.
Ela tem uma mãe que a envenena.

Eu quero matar Millicent. Quero ir até a minha casa, matar minha mulher,
quero acabar com essa agonia. Estou explodindo de raiva.
Mas é um sentimento diferente. Antes, eu nunca pensei “quero matar uma
mulher” ou até mesmo “quero matar aquela mulher específica”. Meu desejo
não era tão claro, tão sucinto. Estava mais ligado a Millicent, a nós dois, e o
que eu queria retirar da experiência era algo mais complexo.
Agora é simples. Quero que minha esposa morra.
Por isso disparo para a porta da frente sem boné, sem disfarce, não estou
sequer carregando uma arma. Estou com raiva e revolta, e não ligo a mínima se
não tenho um plano. Minha mão já está na maçaneta da porta quando percebo
como estou sendo idiota. Como continuo sendo um idiota.
Eu provavelmente posso atravessar Hidden Oaks sem ser visto. A maioria
dos moradores pensa que estou foragido, e não escondido na minha própria
vizinhança. E, depois de cruzar todo o trajeto até a minha casa, também não
vou ter problemas para entrar, pois tenho a chave. Tudo isso, claro,
considerando que não estou sendo vigiado.
Do outro lado, no entanto, minha esposa. Que eu sei que é um monstro.
Exatamente como o verdadeiro Owen.
E também meus filhos. Eles estão em casa, e os dois acreditam que o
assassino sou eu, e não ela. Eu sou o monstro. E, neste momento, só consigo
mesmo é imaginar a reação das crianças ao me virem matar a mãe delas.
Portanto, eu não abro a porta.
E não preciso apenas de um plano. Preciso de evidências, de provas. Porque,
na televisão, as evidências que me incriminam estão sendo exibidas para todo
mundo ver.
O meu DNA, por exemplo. Não era para ser exatamente uma surpresa, mas
Millicent sempre me impressiona. Venho falando isso desde que nós nos
conhecemos.
Ela conseguiu espalhar meu DNA por toda a igreja. Meu suor é encontrado
na maçaneta da frente, no cadeado da entrada do porão e até no corrimão da
escada. Aparentemente, ela pegou um frasco do meu suor e espalhou em cada
canto do lugar.
Um pouco do meu sangue é encontrado nas estantes alinhadas à parede.
Mais suor nas algemas.
Sangue nas correntes e na terra.
Ela dá a impressão de que eu limpei a maior parte dos vestígios, mas que me
esqueci de alguns locais muito específicos.
Claire participa de uma coletiva de imprensa ao meio-dia para anunciar a
descoberta. Fui oficialmente promovido e agora respondo como suspeito do
crime. O único suspeito.
Ela até diz que eu estou “provavelmente armado” e que sou “certamente
perigoso”.
Depois de horas assistindo o ritual de crucificação celebrado pelos
especialistas, repórteres e antigos amigos, eu finalmente pego o carro e saio de
casa. Parto de Hidden Oaks em direção ao mundo, onde alguém poderá ou não
me reconhecer.
Atravessando a cidade, passo em frente à loja de conveniência onde eu
costumava comprar café. Em vez de parar, dirijo por mais dezesseis
quilômetros na rodovia até outra loja de conveniência, que tem a mesma
máquina automática. Com um boné na cabeça e quase uma semana sem fazer a
barba, entro e me sirvo um copo.
O rapaz do caixa mal ergue os olhos do seu celular. É quase um anticlímax.
Mas também me dá um pouco mais de coragem. Não são todas as pessoas do
mundo que estão atrás de mim. Eu provavelmente posso almoçar em um
restaurante, fazer compras no shopping e ver um filme no cinema antes que
alguém me reconheça. Eu só não acho que seja uma boa ideia.
Assim que volto a Hidden Oaks, não resisto e passo na frente da minha casa.
O jardim está sem brinquedos e a placa de Bem-Vindo não está mais lá no seu
lugar na porta. As persianas estão fechadas e as cortinas também.
Eu me pergunto se Millicent comprou outro frasco de colírio. Ou se
procurou o frasco antigo.
Também me pergunto se Jenna é a única pessoa que ela envenenou.
Eu passei mal algumas vezes. Se Millicent pode deixar a própria filha
doente, ela é capaz de envenenar qualquer outra pessoa.
Bom, de novo, não entro em casa. Ainda não. Volto para a casa de Kekona.
A polícia não está me esperando, e eu também não fui seguido. Lá dentro, a
sala segue na mesma calmaria.
Quase deixo a televisão desligada agora, para dar um tempo, mas não
consigo.
Praticamente todos estão falando do DNA, e a única exceção é Josh. Ele
volta a ser repórter e está entrevistando um patologista criminal. A voz deste
homem não é tão irritante, mas ele é um tanto quanto chato, falando naquele
tom professoral, e a entrevista só fica realmente interessante quando ele
começa a falar dos cortes de papel em Naomi.
— A localização dos cortes de papel é importante para determinarmos o
que os provocou. Nós falamos ‘cortes de papel’ por causa do tipo de corte,
mas temos que considerar que existem também diferentes tipos de papéis. Por
exemplo, Naomi tinha cortes superficiais na pele mais dura, como a sola dos
pés, e cortes mais profundos em áreas mais macias, como a parte de baixo do
braço. Isso indica que o mesmo papel foi utilizado nos ataques, mas não
poderia ser uma folha de papel comum. Tinha que ser uma folha resistente o
suficiente para poder cortar o calcanhar de um pé.
Dou um pulo no sofá como se tivesse recebido um choque. E, de certa
forma, recebi. Eu sei o que Millicent usou para fazer esses cortes.
Sessenta e nove
Raramente Millicent faz alguma coisa por acidente. Tudo tem um motivo por
trás, mesmo que seja só para se divertir um pouco.
Como nesta situação.
Começou há muitos anos, quando ela me perguntou como eu ia protegê-la
dos babacas que tentavam dar em cima dela em aviões.
Eu ia obrigar os caras a ficarem na poltrona do meio com os braços
amarrados e ia fazer neles um monte de cortes de papel usando o cartão das
instruções de emergência.
O cartão das instruções de emergência. O que eu dei para ela no nosso
primeiro Natal. Ela nunca jogou fora.
No seu apartamento antigo, estava colado no espelho do banheiro.
O primeiro lugar onde moramos juntos foi uma casa pequena, de aluguel, e o
cartão ficou na porta da geladeira preso por um ímã bizarro que era um rosto
cheio de olhos.
Quando compramos nossa primeira casa, ela prendeu o cartão na moldura de
um espelho na parede.
E, na nossa casa maior e mais cara, temos dois filhos que não gostam da
nossa piada. Eles acham brega. Por isso Millicent leva o cartão com ela, preso
no quebra-sol do seu carro. Quando o sol bate nos seus olhos, ela abaixa o
cartão. E sempre acaba rindo.
O cartão é o que ela usou para fazer aqueles cortes. Tenho absoluta certeza.

Hidden Oaks não é um lugar fácil para você se esconder. As pessoas sempre
reparam em novos carros, em especial os que simplesmente aparecem e
estacionam. Mas elas não reparam nos corredores ou em quem faz caminhadas.
As pessoas estão sempre começando e interrompendo suas rotinas de
exercícios, então, em um dia qualquer, andando na rua, às vezes você encontra
dez pessoas, às vezes você não encontra nenhuma. Alguns moradores sempre
saem, como Millicent, mas a maioria vai e vem.
Com o mesmo boné, mais barba, calças de moletom folgadas e uma camiseta
tamanho GG — graças a Kekona, que tem uma quantidade extraordinária de
roupas gigantes —, saio pelos fundos do meu esconderijo, pulo a cerca e vou
correndo pela rua.
Faz mais de uma semana desde que eu desapareci e a imprensa continua
vigiando. É impossível para Millicent e as crianças levarem uma vida normal
agora. Ela não pode trabalhar e as crianças não podem ir à escola, mas preciso
descobrir se Millicent está saindo de casa em algum momento. Vai ser bem
mais fácil pegar aquele cartão de instruções se ela por acaso tirar o carro da
garagem e estacionar em algum lugar mais acessível.
As chances da minha ideia dar errado são gigantescas. Talvez ela tenha feito
uma limpeza minuciosa do cartão e não tenha sobrado nenhum DNA nele —
nem dela, nem das mulheres. Ou talvez ela tenha se livrado do cartão, talvez
tenha jogado fora ou queimado.
Pelo bem do meu futuro, espero que não.
Posso não saber tudo o que ela faz, ou tudo o que ela fez, mas sei quem ela é
por dentro. Ela guarda aquele cartão para lembrá-la do nosso casamento. E para
lembrá-la do que ela fez com aquelas mulheres. Millicent realmente gosta da
violência. Agora eu consigo entender minha esposa melhor.
Será que a polícia vai acreditar em mim se eu levar o cartão para eles? Será
que a polícia vai acreditar em mim se o DNA no cartão for de alguma das
mulheres mortas, ou de todas, e de Millicent, mas não o meu? Provavelmente
não.
Será que vão acreditar em mim se eu também contar a eles sobre o prédio
que Millicent comprou através de três empresas diferentes, se eu contar sobre
Denise e a irmã de Owen, se eu mostrar para eles minha agenda nas datas dos
sequestros? Eu estava sempre em casa. E não faço ideia do que as crianças vão
dizer sobre aquelas noites.
Não, eles não vão acreditar em mim. Com meu DNA no porão e diversas
pessoas me identificando como Tobias, sem falar na performance de Millicent,
eles não vão acreditar que sou inocente nem por um segundo. Mas podem
acreditar que Millicent e eu matamos aquelas mulheres juntos, o que pelo
menos manteria meus filhos a salvo.
É minha única chance. Não apenas para me salvar, mas para colocá-la onde
ela merece. Na cadeia ou no inferno, qualquer um dos dois me serve, desde que
seja longe dos meus filhos.
Corro pelo quarteirão paralelo à minha casa, na esperança de ver o carro de
Millicent estacionado nas ruelas entre as residências. Na segunda volta, eu
corro pela rua onde ela dobraria para ir à escola.
No entanto, nada do carro.
Ao longo do dia, verifico de novo, mas não a vejo sair nenhuma vez. O
problema é que não consigo ter certeza. Seria muito mais fácil se eu tivesse
deixado o rastreador no seu carro. Ainda assim, tento, porque preciso. De
repente, corridas e caminhadas se tornaram meus novos passatempos. É uma
pena que eu não tenha adotado aquele cachorro do abrigo de animais. Ter um
cachorro seria incrivelmente útil agora.
Ligo para Andy. Ele parece surpreso ao me ouvir. Talvez surpreso por eu
ainda estar vivo.
— Só tenho uma pergunta — eu digo.
— Manda.
Pergunto se Millicent alguma vez saiu de casa. — Eu suponho que ela não
tem saído nem para trabalhar — eu digo.
Ele hesita antes de responder. — Acho que não. Os vizinhos estão levando
comida todos os dias. É muita gente ao redor. Acho que eles estão entocados,
evitando a mídia.
— Foi o que eu imaginei.
— Por quê? — ele pergunta.
— Não importa. Obrigado mais uma vez. Você não faz ideia do quanto eu
valorizo a sua ajuda.
Ele limpa a garganta.
— Que foi? — eu pergunto.
— Vou ter que pedir para que você não me ligue de novo — quando eu não
digo nada, ele segue falando. — É o DNA. Essa coisa toda ficou muito maior
do que...
— Eu entendo. Não se preocupe.
— Eu acredito em você — ele diz. — Eu só não posso...
— Eu sei. Não vou ligar de novo.
Ele desliga.
A única surpresa é ele ter permanecido ao meu lado durante todo esse tempo.
Não mereço essa amizade. Não depois do que aconteceu com Trista.
O sol começa a se pôr, e resolvo passar pela minha casa uma última vez
antes de me preparar para a invasão noturna. Eu só preciso entrar na garagem e
no carro de minha esposa, mas precisa ser depois de Millicent dormir.
Ter as chaves certas é realmente uma vantagem.

Quinze minutos depois, passo pela quadra paralela à procura de elementos fora
do lugar. Como um carro de polícia sem pintura, por exemplo, pois Claire pode
estar esperando que eu faça exatamente o que estou prestes a fazer. Mas tudo
tranquilo. Nenhum carro incomum, nenhum caminhão a serviço. Nada que eu
não reconheça na vizinhança. Eu sou o único elemento estranho, o barbudo que
está sempre correndo. É surpreendente que ninguém tenha me parado ainda.
Eu volto para a casa de Kekona usando ruas diferentes. É um caminho mais
longo, mas eu usei o caminho mais curto hoje cedo. Quando chego perto da
rotatória que leva até a mansão, fico paralisado.
Um táxi está parado na frente.
O taxista tira bagagens do porta-malas.
Eu escuto a voz da passageira. Kekona voltou de viagem.
Setenta
Ela vai descobrir. Todo mundo vai descobrir.
Em pouquíssimos segundos, Kekona vai perceber que alguém estava na casa
dela. Mais alguns segundos e a polícia vai saber quem era essa pessoa. Meu
carro está na garagem. Minhas digitais estão por todos os lados. Assim como
meu DNA, e o tablet de Millicent que está bem em cima da mesa.
Ah, e minha carteira. Não levei a carteira comigo na corrida. Também está
sobre a mesa.
Volto por onde eu vim e faço correndo todo o trajeto até as casas mais
baratas de Hidden Oaks. Aqui temos uma pequena área verde, na saída do
parquinho infantil. Paro ao lado de um conjunto de árvores e finjo me alongar.
Não tenho para onde ir. Não tenho Andy para ligar, e me esqueci do telefone
na casa de Kekona. Não tenho dinheiro, não tenho amigos, não tenho quase
nenhuma esperança. Mas tenho as chaves. É tudo que eu encontro no meu
bolso.
De qualquer jeito, hoje já seria a noite, a noite para entrar na garagem e
pegar o cartão. Meu plano continua igual, nada mudou. O que mudou é que
preciso de um lugar para me esconder até que Millicent esteja dormindo.
Minha primeira ideia é o clube. Várias saletas e armários que podem me
abrigar até altas horas da madrugada. Sair e entrar é o problema. Câmeras
demais.
O campo de golfe, por outro lado, fica vazio à noite, mas é cheio de espaços
abertos que são visíveis da rua.
E eu nunca vou encontrar um carro destrancado, pelo menos não aqui em
Hidden Oaks. Aqui todo mundo tem carros de última geração, do tipo que tem
sistemas computadorizados que controlam cada pecinha do veículo, inclusive
as travas das portas.
Por um momento avalio a possibilidade de me esconder debaixo de um
carro. Desisto por causa do medo de alguém entrar e sair dirigindo.
Logo depois, ouço sirenes. Estão vindo nesta direção, mas não estão atrás de
mim. Estão indo para a casa de Kekona.
Minhas opções estão diminuindo, e preciso me mexer. Não posso ficar nesta
pequena área verde para sempre. A não ser que eu me enterre no gramado.
De repente, estou pensando até em me esconder no meu próprio quintal. E é
exatamente o que eu faço.

Tudo parece diferente aqui do alto. A vizinhança, os carros, o céu. Minha casa.
Minha cozinha, onde a luz está acesa.
Millicent.
Foi ela quem me convenceu a subir em uma árvore pela primeira vez. Nunca
imaginei que fosse repetir essa façanha, mas aqui estou eu, escondido no
grande carvalho nos fundos do nosso quintal. Para minha sorte, é longe o
bastante da casa, então ninguém escutou as folhas se mexendo enquanto eu
escalava os galhos.
Millicent está limpando a cozinha. Ela está muito distante para que eu possa
enxergar qualquer outro detalhe nela além dos cabelos ruivos e das roupas
pretas. Aposto que ela passa o dia inteiro usando preto agora, principalmente
quando a polícia aparece. De luto por aquelas mulheres, pelo seu marido e pela
destruição da sua família.
Meu sentimento é duplo: estou impressionado e ao mesmo tempo enojado.
Rory entra na cozinha e vai direto para a geladeira. Não mexe o braço
direito, imagino que ainda esteja com a tipoia. Ele pega uma comida e fica lá
por alguns minutos, falando com Millicent.
Jenna não aparece na cozinha em nenhum momento, mas tenho que acreditar
que ela está bem. Que não está doente. Millicent não tem motivo nenhum para
envenená-la hoje.
Minhas pernas começam a sofrer com câimbras e me ajeito um pouco, mas
não faz diferença, porque não posso descer. A luz da cozinha se apaga, mas as
luzes dos quartos continuam acesas. Ainda é cedo demais para dormir.
Ao meu redor, a vizinhança fica em silêncio porque todo mundo já está
dentro de casa. Há poucos carros na rua. É noite de terça-feira, uma noite
pouco popular para grandes eventos sociais. Eu reclino minha cabeça contra o
tronco da árvore e aguardo.
Por volta das dez horas, todos já devem estar na cama. Às onze, eu quase
desço, mas espero mais trinta minutos. Às onze e meia, desço e caminho pelo
limite do jardim, grudado na cerca, percorrendo toda a extensão até a casa.
Quando me dirijo à porta lateral da garagem, olho para o alto.
A luz do quarto de Rory está apagada, a janela está fechada.
Quase nunca usamos essa porta lateral da garagem. Estou um pouco exposto,
pois ela fica bem em frente ao portão do quintal. Coloco a chave na fechadura e
ela abre com um estalo. O barulho parece muito mais alto do que
provavelmente é, e fico paralisado por um segundo antes de entrar.
Agora estou parado dentro da garagem, próximo à porta, e espero meus
olhos se acostumarem para não precisar acender a luz.
O contorno do carro de Millicent entra em foco. Seu híbrido de luxo está
estacionado no centro da garagem, porque deixar espaço para o meu carro não
é mais uma necessidade aqui. Caminho então em volta do veículo, contente
pela janela do motorista estar aberta. Não vou nem precisar abrir a porta.
Apenas estendo a mão e abaixo o quebra-sol. Alguma coisa cai no banco.
Eu passo a mão pelo assento, mas não encontro o cartão das instruções, nem
tampouco algum objeto que se pareça com um cartão. Abro a porta do carro.
De imediato a luz interna se acende, e vejo algo sobre o banco de couro bege.
Um brinco de vidro azul.
Petra.
Ela sabia. Millicent sabia das duas mulheres com quem eu dormi.
Rory nunca contou para Jenna. Ele contou para a mãe.
É a minha derrota. Quer dizer, a palavra derrota não é capaz de descrever meu
estado. Devastado. Estou simplesmente devastado.
Por fim, acabo me deitando no chão de cimento, curvado em posição fetal.
Não tenho nenhuma vontade de me levantar, muito menos de correr. É mais
fácil ficar aqui e esperar até que a polícia me encontre.
Eu fecho meus olhos. O chão está frio, quase gelado, e o ar é uma
combinação de poeira, óleo e um pouco de fumaça. Não é reconfortante, não é
agradável. E, mesmo assim, eu não me mexo.
Uma hora se passa, ou duas. Não faço ideia. Talvez tenham sido apenas
cinco minutos.
Meus filhos são os grandes motivos que me fazem levantar.
E o que Millicent pode fazer com eles.
Setenta e um
A casa não está totalmente escura. A luz dos postes na rua e do luar penetra
pelas janelas, permitindo que eu veja o suficiente para não tropeçar. Para não
fazer barulho. Ainda que eu saiba que serei preso muito em breve, não posso
ser preso agora.
No pé da escada, eu paro para escutar. Ninguém no segundo piso está se
mexendo. Eu subo.
O quinto degrau range um pouco. Talvez eu soubesse disso, ou talvez eu
nunca tenha prestado atenção.
Continuo subindo.
O quarto de Jenna está à esquerda, seguido pelo quarto de Rory e, no final
do corredor, o quarto principal.
Começo pela minha filha.
Ela está deitada de lado, virada para a janela, e sua respiração é regular, bem
tranquila. Seu edredom branco enorme está amontoado em cima dela, como se
Jenna estivesse mergulhada em uma nuvem. Quero tocar em minha filha, mas
sei que é uma péssima ideia. Então eu apenas observo, memorizando tudo. Se
me colocarem na prisão para o resto da vida, é assim que quero me lembrar da
minha garotinha. Segura. Confortável. Saudável.
Depois de vários minutos, eu saio e fecho a porta.
Rory está atirado na cama, espalhado por todos os lados. Praticamente um
polvo. O braço com a tipoia é a única parte do corpo mais protegida. Ele dorme
com a boca aberta, mas não ronca, o que não deixa de ser estranho. Eu observo
Rory da mesma forma que observei Jenna, memorizando tudo. Torcendo para
que meu garotinho se torne um homem melhor do que seu pai. Torcendo para
que ele jamais conheça uma mulher como Millicent.
Não posso culpá-lo por contar para a sua mãe. Porque a culpa é minha. Por
Petra, por levar os brincos. Por tudo que nos aconteceu.
Saio do seu quarto, fecho a porta em silêncio e sigo pelo corredor. Imagino
Millicent na cama, encurvada debaixo dos cobertores, com o cabelo ruivo
espalhado pelo travesseiro branco. Posso ouvir sua respiração mais pesada
quando ela está em sono profundo. E posso ver o choque nos seus olhos
quando ela acorda e sente minhas mãos em sua garganta.
Porque, sim, eu vou matar minha esposa.
Quando Millicent descobriu minha traição, ela estourou o limite dela.
Hoje à noite, eu estourei o meu.
Eu me aproximo da porta fechada do quarto e me inclino, escutando.
Silêncio total. Quando abro a porta, a primeira coisa que eu vejo é a cama.
Vazia.
O primeiro instinto é olhar atrás da porta. Talvez por saber que Millicent
pode me esfaquear pelas costas.
Nada.
— Já estava na hora.
Sua voz vem do outro lado do quarto. Vejo uma sombra, a sua silhueta.
Millicent está sentada perto da janela, no escuro. De vigia, esperando por mim.
— Eu sabia que você ia aparecer — ela diz.
Dou um passo à frente. Mas é um passo curto. — É mesmo?
— Claro. É o que você faz.
— Voltar para casa?
— Você não tem mais nenhum lugar para ir.
A verdade me atinge como um tapa. O pior é que eu posso ouvir seu sorriso.
Está escuro demais para enxergar até ela acender a luz e se levantar.
Millicent está usando sua longa camisola de algodão. É branca e rodopia ao
redor dos seus pés. Eu não estava preparado para encontrá-la acordada. Eu nem
trouxe uma arma.
Mas ela trouxe.
O revólver em sua mão está ao lado do seu corpo, apontado para o chão. Ela
não está me apontando a arma. Mas também não está escondendo.
— É esse o seu plano? — eu pergunto, apontando para o revólver. — Me
matar em legítima defesa?
— Não é o que você veio fazer aqui? Me matar?
Levanto as minhas duas mãos. Vazias. — Não parece.
— Você está mentindo.
— Estou? Talvez eu só queira conversar.
Ela ri. — Você não pode ser tão estúpido assim. Se você fosse, eu não teria
casado contigo.
A cama está entre nós. É uma cama king size, e me pergunto se consigo
pular por cima do colchão antes que Millicent levante a arma e atire em mim.
Provavelmente não.
— Não encontrou o cartão de emergência, não é? — ela pergunta.
Não digo nada.
— Rory me deu aquele brinquinho barato — ela diz. — Ele achou que você
estava me traindo, mas agora ele já entendeu que você saía de madrugada para
matar aquelas mulheres. É até engraçado pensar que ele não faz a menor ideia
do quanto estava certo.
Eu balanço a cabeça, tentando absorver o impacto. — Por quê...
— Deixei aquela mulher viva pra todo mundo saber do traidor safado que
você é — ela diz.
Petra.
Petra ainda está viva porque fez sexo comigo. E ela nunca vai saber disso.
— Você imagina — Millicent diz — a quantidade de terapia que o nosso
filho vai ter que fazer?
Não consigo compreender o tamanho da sua loucura, o delírio dos seus
métodos. A quantidade atordoante de paciência. De disciplina. — Por que você
simplesmente não pediu o divórcio? — eu pergunto. — Por que fazer tudo
isso?
— Fazer o quê? Montar nossa casa, cuidar das crianças, organizar nossa
vida? Controlar os gastos, preparar o jantar? Ou você está falando de Owen?
Porque o plano original era trazer Owen de volta. Porque era uma coisa nossa
— ela dá um passo se aproximando da cama, mas continua do outro lado do
colchão.
— Millicent...
— E você estava tão disposto. Eu quase não precisei fazer nada. Não fui eu,
você foi quem matou Holly.
— Ela ameaçou você. Ameaçou a nossa família.
Millicent joga a cabeça para trás e ri. De mim.
Fico olhando para ela, lembrando todas as histórias que Millicent um dia me
contou sobre a irmã. Os machucados, os acidentes, os medos. O corte na sua
mão, entre o polegar e o dedo indicador. As peças agora se encaixam do jeito
certo, como se antes o quebra-cabeça estivesse montado todo fora de ordem.
Millicent provocou o caos. Holly apenas levou a culpa.
— Meu Deus — eu digo. — Holly nunca foi uma ameaça, foi?
— Minha irmã não era nada além de uma menina chorona, que mereceu tudo
que eu fiz para ela.
— Ela bateu o carro porque você torturava ela — eu digo. — Não foi o
contrário.
Millicent sorri.
Tudo me atinge de uma vez só. É forte o bastante para me deixar tonto.
Millicent incriminou a irmã da mesma maneira que me incriminou.
Ela sempre torturou pessoas. Sua irmã. Lindsay. Naomi.
Jenna. Talvez me manter distante não tenha sido o único motivo para ela
envenenar a própria filha.
E a pessoa com quem ela se casou. É bem possível que ela seja a culpada por
vários itens do meu histórico de doenças.
Porque Millicent gosta de machucar as pessoas.
— Você é monstruosa — eu digo.
— Engraçado, porque a polícia está dizendo a mesma coisa sobre você.
O olhar em seu rosto é triunfante e, pela primeira vez, vejo como ela é feia.
Não consigo acreditar que um dia eu achei Millicent bonita.
— Descobri o colírio — eu digo. — Aquele na despensa.
Seus olhos faíscam.
— Você está envenenando a nossa filha — eu digo.
Ela não esperava por essa. Não achou que eu ia descobrir isso.
— Você é realmente louco — ela diz. Com um pouco menos de convicção
agora.
— Eu sei que é verdade. Você está envenenando ela desde o início.
Ela balança a cabeça. Pelo canto do olho, vejo algo se mover. E me viro para
a porta.
Jenna.
Setenta e dois
Ela está parada na soleira da porta usando seu pijama favorito, aquele laranja e
branco. Seu cabelo está espetado para os lados e seus olhos estão arregalados.
Acesos. Ela está encarando sua mãe.
— Você me envenenou? — ela pergunta. Sua voz é tão baixa que parece a
voz de uma menininha. Uma menininha de coração partido.
— Claro que não, meu bem — Millicent diz. — Se alguém te envenenou,
esse alguém foi o seu pai.
Jenna se vira para mim. Seus olhos estão ficando cheios de lágrimas.
— Pai?
— Querida, eu não fiz nada. Não fui eu.
— Ele está mentindo — Millicent diz. — Ele te envenenou, e ele ainda
matou aquelas mulheres.
Eu encaro Millicent, sem reconhecer a mulher com quem eu me casei. Ela
me encara também. Eu falo para minha filha: — Ela colocou colírio na sua
comida para fazer você passar mal.
— Você é louco — Millicent diz.
— É só você se lembrar, querida — eu digo para Jenna. — Todas aquelas
vezes que você ficou doente, quem preparou sua comida? Quantas vezes eu
cozinhei?
Jenna fica me olhando, e então seus olhos migram de volta para sua mãe.
— Querida, não escute seu pai — Millicent diz.
— O que está acontecendo?
Tomamos um susto com a nova voz.
É Rory.

Ele caminha por trás de Jenna. Seus olhos estão sonolentos e ele esfrega o rosto
enquanto olha para mim, para sua mãe e para sua irmã, parecendo confuso.
Meus filhos viram a própria vida implodir no decorrer da semana. O pai deles
foi acusado de ser um serial killer e a mãe deles deve ter feito de tudo para
garantir que eles acreditassem na história. Não sei em quem as crianças vão
confiar agora.
— Pai? — ele diz. — Por que você está aqui?
— Eu não fiz o que eles estão dizendo, Rory. Você tem que acreditar em
mim.
— Pare de mentir — Millicent diz.
Jenna olha para seu irmão. — O pai disse que a mãe me envenenou.
— Envenenou mesmo — eu digo.
— É mentira dele — Millicent diz. — Ele só sabe mentir.
Rory olha para ela e pergunta: — Você já chamou a polícia?
Ela sacode a cabeça. — Ainda não consegui. Ele acabou de entrar no quarto.
— E você estava com uma arma na mão assim do nada? — eu pergunto.
Os olhos de Rory ficam arregalados quando ele vê a arma ao lado de
Millicent. A mão dela por enquanto continua abaixada.
— Ela estava esperando a hora que eu ia aparecer — eu digo. — Para ela me
matar e dizer que eu ataquei ela.
— Cala a boca — Millicent diz.
— Mãe? — Jenna diz. — Ele tá falando a verdade?
— O seu pai veio aqui para me matar.
Eu balanço a cabeça. — Isso não é verdade. Eu vim aqui para resgatar vocês
— eu digo. E vou ainda mais longe, porque eles precisam saber: — Sua mãe
está tentando me incriminar. Eu não matei aquelas mulheres.
— Espera aí — Rory diz. — Não dá para entender...
— O que está acontecendo? — Jenna grita.
— Chega — Millicent diz. Sua voz é seca e severa.
Todos nós calamos a boca, como a gente sempre faz quando ela diz “chega”.
O quarto entra em um silêncio brutal a ponto de um poder ouvir a respiração do
outro.
— Crianças — Millicent diz. — Saiam daqui agora. Vão lá para baixo.
— O que você vai fazer? — Jenna pergunta.
— Lá para baixo.
— Meu pai não tem uma arma — Rory diz.
De novo eu levanto as minhas mãos vazias. — Não tenho nem um celular.
Rory e Jenna se viram para a mãe.
Millicent me fuzila com o olhar ao passar por eles e levantar a mão. Ela
aponta a arma para mim.
— Mãe! — Jenna grita.
— Parem com isso — Rory pula na minha frente, se colocando bem no meio
de nós dois. Ele tira o braço da tipoia e joga ambos os braços para o alto.
Millicent não abaixa a mão. Ela levanta a outra e segura o revólver com as
duas mãos. A arma agora está apontada para o nosso filho.
— Sai da frente — ela diz.
Ele sacode a cabeça.
— Rory, você tem que sair daqui — eu digo.
— Não. Larga a arma, mãe.
Millicent dá um passo para frente. — Rory.
— Não.
Posso ver a raiva nos olhos dela, a raiva que inclusive consome seu rosto.
Sua pele já está mudando para um tom de vermelho que não é muito natural.
— Rory — ela diz. — Sai.
Sua voz é um rosnado. Eu vejo Jenna ter um pequeno sobressalto.
Rory não se mexe. Eu levanto a mão, com a intenção de pegar seu braço e
tirá-lo da minha frente. Exatamente neste momento, Millicent mira e dispara
um tiro. A bala vai direto na nossa cama.
Jenna grita.
Rory fica paralisado.
Millicent dá mais um passo na nossa direção.
Ela perdeu o controle. Posso ver o desequilíbrio nos seus olhos, escuros
como breu. Se for preciso, ela vai atirar em Rory.
Vai atirar em todo mundo aqui.
Eu pulo para frente e derrubo Rory, cobrindo o seu corpo com o meu. Assim
que caímos no chão, vejo uma mancha laranja com bolinhas atravessando o
quarto. E um brilho de metal no meio desta mancha.
Jenna. Ela está com a faca que vivia escondida debaixo da sua cama. Eu
sequer a vi em sua mão.
Ela corre na direção de Millicent, com a faca levantada, e se choca contra a
mãe. As duas imediatamente caem para trás na cama.
A arma dá um segundo disparo.
Mais um grito.
Eu me levanto de qualquer jeito. Rory está logo atrás de mim. Ele pega a
arma, que caiu da mão de Millicent. Eu agarro Jenna e afasto minha filha do
colchão. A faca vem junto com ela. Estava dentro do corpo de Millicent.
E aí o sangue.
Muito sangue.
Millicent está no chão agora, com as mãos apertando o abdômen. O sangue
está escorrendo.
Atrás de mim, Jenna grita e eu me viro para ver se ela está machucada. Rory
olha para mim balançando a cabeça e aponta para a parede. A segunda bala
está alojada lá, bem longe da minha filha.
— Tira ela daqui — eu digo.
Rory tira Jenna do quarto à força. Ela está histérica e não para de gritar pelo
corredor, largando a faca ensanguentada na entrada do quarto.
Eu me viro para Millicent.
Ela está deitada no chão, me encarando. Sua camisola branca está se
tornando vermelha bem diante dos meus olhos. Ela se parece exatamente com a
minha esposa e, ao mesmo tempo, completamente diferente.
Ela abre a boca e tenta falar. Sai sangue. Millicent olha para mim com olhos
loucos. Ela não deve durar muito. Alguns minutos, alguns segundos, e ela sabe
disso. Ela continua tentando dizer alguma coisa.
Pego a faca que Jenna deixou cair e cravo com força, afundando a lâmina no
peito da minha esposa.
A última palavra neste quarto não vai ser de Millicent.
Epílogo
Três anos depois
O mapa na parede mostrava o mundo inteiro, da Austrália às Américas, do
Polo Norte ao Polo Sul. Resolvemos não usar alfinetes, pois agora nós todos
temos aversão a objetos de metal com extremidades pontiagudas. Em vez
disso, colocamos em prática aquele antigo jogo de prender o rabo no burro e
colamos adesivos nos rabos feitos de tecido. Vendados, cada um tentou uma
vez. Jenna foi a primeira, seguida por Rory. Eu fui o último.
Dei um suspiro de alívio quando dois dos primeiros rabos grudaram na
Europa. Tanto o Ártico quanto a Antártida nunca me pareceram muito
convidativos.
Penduramos então um mapa da Europa e jogamos novamente, e seguimos
repetindo o processo até termos um novo lugar para morar: Aberdeen, Escócia.
Nossa decisão foi tomada.
Isso foi há dois anos e meio, logo depois de eu finalmente ser liberado pela
polícia. Não achei que seria. Na verdade, achei que Millicent seria considerada
mais uma das minhas vítimas. Ninguém soube que Jenna a esfaqueou, até
porque eu limpei a faca para que as únicas digitais fossem as minhas. E eu
também confessei. Disse à polícia que matei minha esposa em legítima defesa,
porque ela era a verdadeira assassina. Nunca imaginei que alguém fosse
acreditar.
E, de fato, eles não teriam acreditado se não fosse por Andy, que
testemunhou a meu favor. Eu nem sabia usar um tablet, ele disse, então como é
que eu iria matar tantas mulheres sem ser descoberto?
Kekona também me ajudou, garantindo para as autoridades que eu mentia
muito mal e jamais poderia ser um serial killer. Ela ainda mencionou que eu era
um excelente professor de tênis.
E meus filhos. Jenna contou à polícia que escutou a discussão e que sua mãe
admitiu ter tentado me incriminar. Rory disse para eles que foi legítima defesa,
porque sua mãe estava prestes a atirar nele. Nenhum dos dois contou à polícia
o que realmente aconteceu. Eles acharam melhor ignorar certos detalhes.
E seria ótimo dizer que a polícia acreditou em todos que me apoiaram, que
as autoridades sabiam que eu não poderia ser um assassino. Mas foi o DNA.
Todas as evidências coletadas no porão da igreja passaram por rigorosos testes
no laboratório do FBI, localizado em Quantico, Virgínia. O resultado
confirmou o que todo mundo já sabia: com certeza o DNA era meu.
As amostras vieram de duas fontes: suor e sangue. E me salvaram. Ou
melhor, a falta de conhecimento de Millicent me salvou. Os testes do FBI
revelaram que todas as amostras de sangue e suor tinham exatamente a mesma
quantidade de decomposição química. Parece que Millicent coletou os meus
fluidos em apenas uma ocasião e em seguida borrifou o material pela igreja
inteira, tudo ao mesmo tempo. O laudo, portanto, indicou que eu só poderia ter
estado naquele porão uma única vez, pois o DNA foi depositado todo no
mesmo dia. Uma impossibilidade, já que eu supostamente matei aquelas
mulheres em períodos diferentes.
É uma pena que Millicent nunca vai saber o quanto ela foi descuidada.
Assim que fui inocentado, vendemos a casa e fomos embora de Hidden
Oaks. O primeiro desafio foi nos acostumarmos com o frio. E com a neve.
É a primeira vez que moramos em um lugar com neve, mas agora ela toma
toda a paisagem. No início, é leve e fofa, como um algodão-doce. Quando ela
encobre a cidade, o ambiente parece realmente sereno. É como se Aberdeen
subisse aos céus.
No dia seguinte, ela fica suja e lamacenta, e a cidade inteira parece coberta
de cinzas.
Nosso terceiro inverno está chegando, e já estou um pouco mais acostumado
com as condições climáticas. Rory ainda não se acostumou. Ainda ontem, ele
me mostrou o site de uma faculdade na Geórgia.
— Muito longe — eu disse.
— Nós estamos na Escócia. Tudo é longe.
Ele tem certa razão. Mas essa é a razão: ficar longe da nossa antiga vida.
Nós estamos bem. Posso dizer isso sem nenhum medo de errar.
Jenna frequenta um novo terapeuta e toma alguns medicamentos. Acho
incrível que ela consiga ser uma adolescente funcional, considerando o que
Millicent fez para ela. Rory tem seu próprio terapeuta, assim como eu. De vez
em quando, participamos de uma sessão em grupo, e ainda não nos agredimos.
Não conto a eles que sinto falta dela. Às vezes. Sinto falta da família que ela
construiu, da estrutura, da forma como ela nos mantinha organizados. Mas não
o tempo todo. Agora nós não temos tantas regras, mas ainda temos algumas.
Sou eu que decido, então posso fazer o que eu quiser com elas. Posso inclusive
quebrá-las. Ninguém está por perto para me dizer se estou certo ou errado.
Hoje estou em Edimburgo, uma cidade maior do que Aberdeen. Vim
conversar com meu advogado tributário. Uma mudança para outro país é um
negócio complicado. Os impostos devem ser pagos em diversos lugares,
dependendo de onde o dinheiro está guardado. Mas nossa casa em Hidden
Oaks foi vendida por uma boa quantia, estamos mais do que confortáveis no
momento. Eu também dou aulas de tênis. É um esporte muito forte na Escócia,
embora na maior parte do tempo seja jogado em quadras cobertas.
Quando minha reunião com o advogado termina, ainda tenho um tempo
antes de pegar o próximo trem para Aberdeen. Paro em um pub perto da
estação e gesticulo para o barman pedindo cerveja tipo ale, que sai direto da
torneira. Ele enche uma caneca com um líquido escuro e encorpado, diferente
de qualquer cerveja que já bebi na Flórida.
A mulher ao meu lado tem cabelos escuros e pele clara. Ela está vestida
como quem acabou de sair do trabalho e está tomando uma bebida antes de ir
para casa. Posso sentir o seu alívio pelo dia estar quase terminando.
Depois de meia bebida, ela olha para mim e sorri.
Eu também dou um sorriso.
Ela desvia o olhar e depois me olha outra vez.
Pego meu celular, digito a mensagem e deslizo o telefone na direção dela
pela bancada do bar.
Olá. Meu nome é Quentin.
Agradecimentos
Assim que me sentei para escrever este negócio aqui, percebi que não fazia
ideia por onde começar. Nunca escrevi agradecimentos antes, mas o que eu
com certeza sei é que muitas e muitas pessoas trabalharam duro para levar este
livro às suas mãos. Nunca vou conseguir agradecer a elas do jeito certo, mas
nada me impede de tentar.
Minha agente, Barbara Poelle. Sem ela, Minha adorável esposa não seria um
livro publicado. Parece que ela é tão perturbada quanto eu (talvez mais) e é
louca o bastante para dar uma chance a uma ninguém como eu.
Minha editora, Jen Monroe. Ela deixou este livro melhor, pegou todos os
meus erros e não permitiu que eu simplesmente fugisse da batalha. Meu
coração dispara toda vez que vejo o nome dela na minha caixa de mensagens,
mas isso é uma coisa boa.
Todos na Berkley. Sou muito grata a vocês por terem resolvido publicar este
livro e por todo o tempo e recursos que dedicaram a ele.
Meus amigos, parceiros de crítica e colegas escritores, sem os quais eu não
estaria em lugar algum. Começando por Rebecca Vonier, que não me deixou
desistir deste livro. Eu jamais teria terminado se não fosse por ela, e ele
também nunca seria publicado. Marti Dumas, que apontou todos os problemas
com a história e os personagens e sempre teve razão. Laura Cherry, que
reparou em cada coisinha mínima e me avisou. E Hoy Hughes, que deu início
ao grupo de escritores onde conheci todas essas pessoas maravilhosas.
Há muitos, muitos outros que se deram o trabalho de ler e expressar opiniões
sobre o meu texto (com críticas geralmente negativas). Nem me arrisco a citar
cada uma dessas pessoas, pois vou acabar me esquecendo de alguém, mas
vocês sabem quem vocês são.
Todos os blogueiros, escritores, resenhistas e cada pessoa que teve este livro
nas mãos. Antes de mais nada, sou uma leitora. Agradeço pela alegria que os
livros já me trouxeram e agradeço por qualquer pessoa que queira ler as minhas
palavras.
Não posso deixar de citar ainda a minha chefe no trabalho e minha amiga de
longa data, Andrea, que sempre me apoiou.
E por último, mas definitivamente não menos importante, a minha família.
Minha mãe, que sempre está ao meu lado, não importa em qual aventura louca
eu me jogue. E meu irmão, que me fez ser mais forte.
Sobre a autora
Samantha Downing vive em Nova Orleans, onde está furiosamente digitando
seu próximo thriller.
Este livro foi elaborado pela
TAG — Experiências Literárias em
parceria com a editora Dublinense.

Composto em DANTE e impresso


na SANTA MARTA, em PÓLEN SOFT
2
80g/m , em MAIO de 2020.
Table of Contents
Créditos
Minha adorável esposa
Sobre a autora
Table of Contents
Créditos
Minha adorável esposa
Sobre a autora

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