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Uau, Miriam, que belo conto!

Tão diferente de tudo o que você já escreveu e, mesmo assim,


tão coeso, original e provocativo, como você não costuma ser. Um tom entre irônico e
confessional, um pouco autoirônico também, reflexões bem feitas e tudo tendendo ao
reflexivo. Você conseguiu não ser nada artificial e criar uma personalidade meio louca e meio
sã, com esse lance incrível da unha.
Tem um caminho aí e penso que você deveria explorá-lo melhor. Fique bem surpresa,
positivamente!
E curiosa em saber como esse texto foi construído. Será que você também virou o casaco do
avesso?
beijo e parabéns,
Noemi

Miriam Mermelstein abril 2023

Não vou mentir

Difícil localizar quando decidi virar a chave e me por do avesso, como o forro ensebado
de um casaco lindo por fora, e desejei saber o que se passa atrás das portas, atrás dos sorrisos.
Sei que a pedra me deu coragem, como um amuleto.
Parece uma mini morsa, marrom clara, sem cabeça. Estava coberta de barro quando a
ponta do meu tênis esbarrou nela. Tinha chovido na estrada entre Gonçalves e São Francisco
Xavier, por onde eu passava com o grupo da excursão e, não sei por que, me agachei para
pegar aquele troço. Joguei um pouco de água do meu cantil e esfreguei meus dedos retesados
de asco na superfície lisa e fria que se concretizou em uma pedra nas minhas mãos.
Não me separei dela enquanto praticava, cada vez com técnicas mais sofisticadas, um
ângulo solene do meu ser. Roubar. Não fica chocada, não. Foi o jeito que encontrei de palpitar.
A pedra ficava na minha bolsa junto ao celular, dois pulmões necessários para minha
sobrevivência. Quando chegava em casa do trabalho, a colocava sobre a pia e chamava a Lola
(que encontrei há um ano numa caixa de sapato na porta da garagem e, com a mesma recusa,
o mesmo travo que senti com a pedra, a levei para casa, cuidei, ofereci leite morno e minhas
mãos se entregaram ao seu peso). Preparava o jantar sem vontade. Às vezes trazia do mercado,
na bolsa, um pedaço de salame ou uma fatia de queijo. Não tinha preferências, roubava o que
estivesse mais à mão no momento. O que seria menos notado.
Isso começou depois que minha mãe morreu.
Senti alívio, não vou mentir. Fiquei ao seu lado durante todo o dia sussurrando
segredos (que nem a mim confessava) enquanto uma compaixão visceral emergia. Uma
compaixão inaugural, efêmera, porque o planeta continuou circulando e eu tive que tomar
atitudes práticas. A respiração dela falhava enquanto eu tentava medir o tempo entre cada
suspiro, até se instalar o silêncio.
No início, a ausência me surpreendia, não liguei para mamãe, será que dormiu bem?
Precisa de alguma coisa? Me acostumei. Depois de um tempo, fiz essa viagem de caminhada
entre as montanhas da Serra da Mantiqueira, onde encontrei a pedra morsa. No grupo tinha
um cara, um mágico, não de profissão, mas de talento. Brincava com nossos bonés que
apareciam nas mochilas e com a mini morsa que desaparecia da minha mão para aparecer no
bolso do casaco dele. Sei, claro, são truques, mas fiquei seduzida pela serotonina que ele
exalava.
Desde então, trambiquei. Designei a mini morsa como a santa protetora, um seguro.
Descobri prazer em roubar pequenas coisas, um sabonete ou uma caixa de fósforos. Roubar
me fez bem e me fez mal, essa combinação dava um barato que não conseguia sentir de outro
jeito. Dopamina na veia, mobilização em forma de tensão e ansiedade. Não tentava resistir.
Perdia o fôlego para, em seguida, reencontrar. Me senti verdadeira, sem fingir estar bem. Todos
fingem, mentem, você sabe e eu também, é parte do manual de sobrevivência. Como admitir a
injustiça sem culpa? Como enxergar ao redor sem artifícios? Como ter coragem de desapontar
o outro? Mais fácil colocar máscaras, como dizem os poetas. Paguei o preço de ser singular, da
vitalidade, da pulsação. Tudo é relativo.
Eu não me separava da mini morsa até quando decidi mexer em uns guardados de
minha mãe amontoados em sacos plásticos. Os móveis, roupas, sapatos e louças já haviam sido
doados, restou o miúdo, o que não ficava exposto.
Encontrei milhares de papeizinhos, pedaços de guardanapos, cartões de lojas, papéis
de embrulho de pão, todos preenchidos, com a letra dela, de receitas culinárias.
“Sopa Paraguaia” tirada de um programa do canal 7; “Esfiha árabe” do programa do
Daniel Bork; “Molho Madeira” da Palmirinha; “Galinhada” do Edu Guedes e outros e outros
até que, no meio desse mar de papéis, encontro um pedaço de unha côncava. Reconheci ser
dela.
Deve ter pulado do cortador para seu colo e, enquanto ela manuseava as receitas para
preparar um jantar, o naco de unha se escondeu no meio da papelada.
O que eu posso te dizer ao ver um pedaço do que foi uma vida se oferecendo como
recordação? Que minha mãe aprontou comigo, deixou esse pedaço dela para eu nunca mais
me desvencilhar. Se eu fingisse diria que agora tenho o amuleto verdadeiro para garantir minha
felicidade.
Hoje a mini morsa me ajuda de outra forma, é o peso que mantém meus livros abertos
quando interrompo a leitura (tenho me debruçado em Fernando Pessoa). Já não levo comigo.
O pedaço de unha, de uma morbidez e concretude fascinantes, eu joguei no lixo.
Parei de roubar.

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