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1) Espelho do mundo

“Saia do meu caminho/Eu prefiro andar sozinho/Eu preciso saber da


minha vida”
Belchior olhou sem fronteiras, não tinha como parar, o pai nunca
entendeu, nem a madrinha. Um jeans, duas camisetas, pasta de dentes,
esqueceu o espelho, quase a carteira, não fosse a foto da mãe. Passagem no
bolso, o tempo todo dele e imenso para o Sul, tocaria em Vacaria. Levou chapéu
comprado no Brás. Coração cheio, vão gostar da música nova? Percebe no
movimento das mãos da plateia, a primeira fila é dos que chegam cedo. Só quer
cantar a música nova. O público do circo é austero, alguns pedem “Canta
Galopeira, tchê!” Belchior canta até o fim, sem dar bis. Vai tomar uma água e
não volta.

2) Num piscar dos cílios

“Quem entender o que ele diz/No giz do gesto o jeito pronto/Do piscar
dos cílios/Que o convite do silêncio/Exibe em cada olhar/Guardei/Sem ter
porquê”
Nando Reis no silêncio da presença, o olhar sem indagar, o tempo dado
sem ver a si mesmo.
Mas não.
Tiradas inteligentes e populares, o outro como espelho plano não se dá
conta. Participa de um stand up coletivo sem trégua, não, você não é amado.
Dorian Gray fez um pacto, sempre dândi e jovem – até o revertério da história -
seríamos objeto dos planos de um vampiro. Avalanche de imagens, vende-se o
que se quer consumir, desde bolsas de viagem com zíperes milagrosos na parte
de baixo para guardar de tudo, até sprays que esterilizam as roupas de cama.
Deformados pela escassez do silêncio e automatizados, ao tirarmos selfies em
shows falamos de nós mesmos, o artista é pano de fundo, bastaria uma imagem
dele no telão. Acertamos rímel e cor do batom, a luz do aparelho e invertemos a
câmera para nosso melhor sorriso, sem cantar junto. O tempo da delicadeza
ficou pelo caminho, saiu da canção e não resistiu.

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Bônus – foto de Dorian Gray no teatro, com maquiagem e cenário criados


por Burle Marx, num suplemento da Folha de S. Paulo.

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