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MEDEIAZONAMORTA

Texto de Letícia Andrade1

1. Vitrine do casamento artificial


(Noiva Margarina, Noiva Esgotada, Voz do General)

Os espectadores entram num Galpão-Laboratório. Tempo Ficcional de Memória: o Ensaio do


Casamento. Noiva Esgotada e Noiva Margarina aprontam-se para o casamento. A Noiva
Esgotada é um homem e a Noiva Margarina é uma mulher. Narram a espera de cada uma.
São dois grandes ambientes. No primeiro ambiente, há estruturas e escadas de ferro. No
segundo ambiente, ao fundo, localiza-se o laboratório, que está fechado por uma porta de
vidro e ferro. Ainda no primeiro, temos um ambiente artificial: luzes azuladas e lilases.
Repartições com vidros transparentes: ambiente avermelhado em excesso, do tipo “brega” e
“fim de linha”. Inicia-se a trilha sonora de uma marcha do tipo grandiosa, que ressoa por
todo espaço. Duas escadas paralelas. Uma voz de homem também tece promessas, através
de um megafone, que, por vezes, emite a melodia romântica do filme Titanic. Silêncio. Hino
cívico. De costas para o público, a Noiva Margarina está posicionada em frente a uma
escada, e prepara-se para subir. Ela usa vestido branco belíssimo transparente e tem a pele
envolta por película fina transparente. Tem a singeleza e a cara de: “este é o dia mais feliz
da minha vida”. Enquanto isso, a Noiva Esgotada, com vestido excessivamente
espalhafatoso, repete uma promessa, ao descer as escadas. Ações simultâneas: a Noiva
Margarina sobe a escada e a Noiva Esgotada desce.

Noiva Esgotada – Eu, jandirapedofiliadinastiamarisguiaevalilith, eu


mãetiaavónetasobrinhalençoldocefátimaritacreuzanossasenhoradaconceiçãomariadasgraçaslu
zluziatrezedemaiodemilnoventosesetentaeseisvasosamambaiaprivadavassourapanelamóvelal
moçocaféjantafósforoestrumeperfumepropriedadeidolatriadinastiamulher, prometo-te amar,
respeitar-te mesmo quando
euvírginiavaríolarúbiarubéolatubereculosemalditamedéiabactériameduzadeusa perder minha

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juventudeviçomocidade. Te esperar toda noite com a buceta depilada e camisola
transparente.

Noiva Esgotada, Noiva Margarina e General tecem suas promessas. Polifonia: vozes
simultâneas.

Noiva Esgotada – Prometo Noiva Margarina – Eu, General – Eu,


te amar, mesmo quando noivavirgempura, garota generalanimalmasculinojo
você me deixar de amar. do sonho de valsa e séalfredoraimundostalinbu
Te ser fiel, mesmo propagandas de shaugustocésargetúliovarg
quando você me trair, me margarina, sabor crocante asalbertofuziliraqueforteca
deixar esperando na salgadinha cremosa, te cetetebombeiropolíciacong
fundamadrugada. Eu aceito, como meu fiel resssonacionalpentágonof
camilacaxumbacinderelasa esposo e prometo te alofutebolcachaçamulherp
ltoaventalgordurabanham respeitar, na alegria e na elada, prometo te trair na
urcha, prometo te perdoar tristeza, na saúde e na primeira oportunidade que
todos os dias, ser doença, até que a morte eu tiver. Te
passivaamigaaltiva a do nos separe. Eu, humilharamarrarmaltratar
lar quando você atrasar mulherindefesa, menina currarcuspir no seu arroz
pro jantar, vou requentar do sonho de valsa e empapado, no seu feijão
tua comida e tua cama. propagandas de sabão em sem tempero, te chutar o
Não chorar, quando você pó, com garantia de ventre quando eu estiver
me bater, engolir a raiva, origem e procedência, te bêbado. E se eu te trair,
quando você me cuspir na aceito, como meu fiel prometo chegar fedido em
cara, ou quando você me esposo e prometo te casa e te espancar só
for indiferente. Fingir que respeitar, na alegria e na porque não você não me
te olho nos olhos e abrir tristeza, na saúde e na olhou no olho e, por fim,
minhas pernas pra que doença, até que a morte te meter meu pau rijo.
você enfie seu pau mole nos separe.
em mim.

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Noiva Esgotada – Eu, nanãiemanjáiansãoxumoraieuieu, eu
santaefigênianossasenhoradaconceição, prometo te passar as roupas que você despirá para
qualquer vagabunda. E costurá-la quando a sirigaita rasgar. Cuidar dos nossos filhosvírus,
bactérias da carne, que consomem minha gordura, meus lipídios, meus ciclos naturais.
Noiva Margarina – Eu, submissacasta, rapariga do sonho de valsa e das propagandas de
sabonete luscofusco, hidratante, creme e loção para pele e cirurgias de lipoaspiração e
implantes de silicone, te aceito, como meu fiel esposo e prometo te respeitar, na alegria e na
tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe.

Intensificação do momento do “sim” do Casamento. Polifonia: vozes simultâneas.

Noiva Esgotada – Eu Noiva Margarina – General – Te prometo a


brancoluademeltapetevela (Chega no alto da escada, minha velhice, meus
convitecetimlírioflordelara ainda de costas par o cabelos brancos, minha
njeiraálbumfotografiavalsa público, senta-se, abre as barriga flácida, minha
casamento, prometo as pernas e simula uma impotênciaprepotênciaarro
varizes, a cesariana, os trepada). Vem, perfura gânciaignorância. Prometo
peitos murchos. (Ajoelha- minha carne lisa não te amar e te
se, começa a debater nas siliconada, essas pernas insultarcuspirfingirmentirdi
grades da escada). sedosas, minha pele ssimular por todos os dias
Prometo abrir mão dos perfeita, me reproduz, me da minha vida. O que o
meus sonhos, e introduz um varão de raça homem uniu, Deus não
frequentemente e pura, de primeira linha, separa. Sim, você me
religiosamente fingir meus me faz um filho... Sim, eu aceita.
orgasmos. Eu vou te amar aceito. (Enfia o véu no
por toda minha vida. Serei ventre)
muda. Não vou pedir
nada. Sim, eu aceito.

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Noiva Esgotada levanta-se e sobe as escadas novamente. Passagem. Noiva Margarina retira
seu véu do ventre simulando o nascimento de um bebê. O véu retorcido é o bebê. Ela o
segura. Rosto de gozo satisfeito. Ela se levanta e desce as escadas, agora de frente pro
público. Sorriso de propagada de “miss universo”. Desce as escadas de frente para o público.
Polifonia de vozes.

Noiva Margarina – Uma casa bela, três


quartos, arejada, com dependência de
empregada, jardim e cão de guarda.
Noiva Esgotada – Neste dia feliz,
Pronta para morar. (Para o público).
mergulharei nas profundezas do esgoto
Porque você é o grande amor da minha
humano, e procurarei, através dos
vida. Senhores e senhoras, por favor, me
artifícios da ciência, a água limpa e potável
acompanhem, o jantar será servido no
da vingança. A água incontrolável da
próximo salão. (Ela vai agradecendo a
minha vingança. Amém. Pode beijar a
presença) Obrigada por vir, obrigada pela
noiva. (Para o público). Por favor, podem
presença. Muitas felicidades, meus
acompanhar a mocinha.
queridos!

A noiva vai para o fundo, adentrando o segundo ambiente: Espaço-Laboratório. Ela conduz o
público. Faz os seus saltos ressoarem no vazio.

2. Ela afunda no seu esgotocorpo


(Hospedeira, corpos-bactérias instáveis)

Espaço-Laboratório. Tempo presente: decadência, abandono, solidão. Som metálico da


ventilação do teto. Hospedeira tem a aparência de homem, mas assume o ponto de vista
feminino. Ela desce do alto, sustentando o peso em hastes de ferro, pregadas na parede. Em
uma das extremidades do laboratório, estão duas mesas longas de metal, e, em cima delas,

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estão dois corpos cobertos. São as bactérias instáveis. Corpos em decomposição.
Organismos deteriorados. Em alguns momentos, soam vozes, cantos, vindos dos corpos.

Hospedeira – (Desce) Agora eu sou a sua hospedeira. É o orgulho que sustenta essa mulher.
Me salva da queda. A hospedeira afunda no seu esgoto, farejando as bactérias e
excrementos da indústriahumana, que ainda sobrevivem no lugarreservatório guardado,
procura sua memóriamansoléu (Olha o lugar, procura por vida). O tempo de agora é o do
presente, e os organismos que estão aqui expostos, estão mortos. Meu corpo é o traço de
vida, a cartilagemcartografia do lugar (Atravessa no corredor atrás do público. Realiza ações
de ligar máquinas, organizar tubos de ensaio, arrumar objetos no espaço). Espaço de
sistema de tratamento de esgoto por processos anaeróbios. Meu esôfagocano alimenta os
tubos de energiaraiva, com circulação de chorochorume. No alto, a caixa d’água, reservatório
de porra. Porosorifíciosedifícios, vidrosvenenos. Quem fez o homem? Quem? (Leva a
geladeira até o centro) Devo falar da criançabactériaresistente. Para se realizar o
experimento nascimento, é necessário tempo de maturação do espécime. O tempo dentro da
barrigatubodeensaio. Os enjôos, vômito, ciclos menstruais, azia, excrementos... Parto, abro
meu útero rasgado, casulo lambuzado dos filhos que gerei. Bactérias fágicas,
emocionamente instáveis. (Vai até a criança) Ainda não. Devo falar de mim? Eu quem?
Quem agora? (Lava as mãos) Tá frio, aqui. Eu, escremento de mulher, escarro de homem.
De quem se fala quando se fala de mim? Como vive nas ruínas de teu corpo,
mulhermemóriamorta. Mas ela vaivelha reviver seu passado, acompanhando seus ossosteias
nas paredespeles. Eu e minha viagem marítima, rastro de sangue. Os pedaços do irmão
sendo atirados ao mar... A imagem do pai, recolhendo o corpo do filho esquartejado, meu
irmão. E o mar... (Revive o passado) Sai do mar, meus filhos!!! (Mergulha no tanque, sai da
água) A hospedeira infiltra no esgoto do macho e torna a alma mais potável. (Lembra com
saudade) Meu corpo infância acorda (Sobe no tubo de ensaio. Contempla a beleza ao redor).
Eu, cheiro de terraestrumemolhada, vaginaúmida, orvalhoágua que jorra dos lençóis
alvejados da claridadedamanhã. (Gozo. Olha para o alto. Mergulha a mão na terra do tubo
de ensaio, para o público). Ela madeira de lei, quase extinta, quase... Árvore abatida,

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naturezamorta, ausente de úteroviço, perfuradaviolada pela mão do homem. Devo falar de
mim? Eu quem? (Desce do tubo de ensaio).

3. Bactérias jorram do útero


(Hospedeira, Noiva Aborto, Filhocão, General)

Tempo de Memória: os Nascimentos. Da Noiva Aborto, do Filhocão e do General.

Hospedeira – (Descobre os corpos-bactérias e direciona-se à fêmea) Eu volto ao princípio. O


tempo de agora é o da minha memória. Do retorno ao útero. Dou vida às bactérias. Retorno
ao início da minha genealogia. (Bactérias movem-se). Comida cozida em minhas entranhas.
Esfriando na hora do jantar? Eu, panela de pressão. Nove meses cultivando os organismos.
Abro meu útero rasgado. E resgato das bactérias fágicas, emocionalmente instáveis,
artificialmente controláveis, os filhos que gerei.

Busca o corpo-bactéria da fêmea, envolto em plástico transparente, manchado de vermelho.


Desliza-a na bancada branca. Retira todo o plástico e analisa o corpo. Nasce. É uma menina.

Hospedeira – Até que no momento exato, mamãe... perfeito, uma fêmea, cinco dedos em
cada mão, coxas bem torneadas, pele lisa, perfeito... criatura das minhas entranhas. Quem
pariu o homem? Quem pariu quem? (Enfia o plásticoplacenta debaixo do seu vestido,
configurando uma barriga). Já vem recheada. Recomeça o ciclo. (Leva a menina para
debaixo da torneira. Abre-a. Molha a sua cabeça. Mergulha. Batiza a criatura. A menina
treme de frio. Ela grita de dor). Eu te batizo
joanaclaradinastialilithjoanad’arcclaradosanjospandora como a fêmea escolhida para
procriação e reprodução involuntária. As bactérias são os organismos vivos que mais tem
variações emocionais. Não podemos esperar nada delas. A mesa póstuma, talheres, copos...
Minha oferta, o melhor de mim, o banquete está servido. (Prenuncia a vingança) O amor me
armava as mãos.

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Carrega a menina para a geladeira. Passagem. Menina agora é a Noiva Aborto e Hospedeira,
o Filhocão. Noiva Aborto enfia o Filhocão em suas entranhas. Filhocão enfia-se debaixo do
seu vestidopanobranco. Vai nascer. Noiva Aborto grita. Quer expelir a coisa de si.

Noiva Aborto – (Suave, frágil) Meu homem nem esperou esfriar o vestido, meu leito de
prazer, e já largou sua semente aqui dentro. Uma coisa viva dentro do meu útero. (Horror do
parto) Ele já se mexia revoltado nas minhas entranhas. (Violenta) Eu não sou obrigada a te
amar. (Noiva Aborto pare o Filhocão. Gritos. Urros. O menino se agarra à mãe e não quer
soltá-la. Essa se desespera. Ele cai no chão). Eu não aguento seu peso, leva esse cão daqui!
Filho da puta é aquele que não quer nascer... Eu lavo as minhas mãos, assim como entrego
esse enjeitado ao mundo do cão.

Morde o plásticoplacenta. Passagem para o Espaço-Rua. Filhocão rasteja. Homens cantam


“Mãezinha do céu, eu não sei rezar...”. Noiva Aborto e Filhocão caminham perdidos em volta
da geladeira.

Filhocão – O primeiro contato com o chão frio da sarjeta. Fareja comidaconfortoquentura.


Rastejo pelos becos numa procissão, sem velas e rezas. Farejando a mãe que o abandonou.
Abandonado como animal raivoso, deficiente.

Noiva Aborto – Devo falar de mim? Uma noiva aborto, que foi roubada do seu leito de
prazer? Eu nasci mulher, eu não nasci pra segurar criança no colo, eu não nasci pra verter
leite dos meus seios e entregá-lo para qualquer um. (Ela está perdida, dá voltas em torno da
geladeira – Espaço da Rua) Que lugarbeco é este? Que rua é essa? Não sabia se ia pra
direita ou para esquerda. Tava perdida. Queria voltar para casa, pedir perdão para os pais.
(O cão sarnento a ataca) Sai vira-lata! Bicho nojento. Sai cão sarnento, sai daqui. Volta pra
sarjeta que é o seu lugar. (Acha a casa de seus pais. Quer voltar para casa. Abre a geladeira.
Noiva Aborto entra dentro da geladeira. Ela se fecha) Ela abre a porta da casa dos pais e

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entra. E pede que a deixem em paz por um momento. (Grita dentro da geladeira) Me deixa
em paz! Me deixa em paz!

Filhocão quer voltar para o útero da mãe. Avança para geladeira. Fúria.

Filhocão – Mãe, abre as portaspernas da sua casaútero! Abre a porta dessa


escolaigrejahospital para mim! (Para o Público) Ele tinha culpa de engolir oxigênio. (Para a
mãe) Não sou carne exposta no açougue! Eu queria que você me amasse, me amamentasse.

Enquanto isso, a Noiva Aborto de dentro da geladeira descreve uma receita de bolo.
Passagem para outra figura.

Noiva Aborto – Três xícaras de farinha de trigo, quatro ovos, duas xícaras de açúcar, duas de
leite, duas colheres de sopa de manteiga, uma colher de café de fermento e quatro colheres
de sopa de chocolate em pó. Bata bem os ingredientes até formar uma massa lisa e despeje
numa forma untada de margarina e farinha de trigo. Leve ao forno, por aproximadamente
quarenta minutos.

Filhocão denuncia a mãe. Dimensão pública.

Filhocão – Eu não sou obrigado a ser o que eu sou: um cão. Ele escolho descer desse ônibus
lotado. Pára esse carroputa que me pariu. Esse trânsitofiladebanco congestionado. Não
acreditar em falsos deuses. Porque eu sou frágil e de carne e osso. Sou sua imagem e
semelhança. Eu não sou Filhocão. (Filhocão se lança geladeira-útero. Ela não se abre.
Desiste). É inútil, esta coisa fria, seca, gelada não me aquece mais. (Ator abre a geladeira de
uma vez. Barulho estrondoso). Ela toma meu lugar.

Ator/Hospedeira – Ator assume o ponto de vista e o corpo da Hospedeira.


Atriz/Putinha da Zona – A atriz sai de dentro da geladeira e agora é a Putinha da Zona.

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Hospedeira – Pouca bunda, pouca carne, pouca estria, pouca celulite... perfume barato.
Putinha da Zona – Filho homem é mais difícil de criar. Eu troquei as suas fraldas. Eu curei o
seu umbigo. Acorda homem, seja forte. Vem nascer para a vida.
Hospedeira – E você por que não se levanta? Vem comandar seu exército? Acorda homem!
Vem conquistar seu território. (O corpo não se mexe) Depósito de porra, bagaço de laranja.
Eu já escrevi teus discursos, verborragia de lixo. O Planalto te espera. Se quer ser general,
levanta soldado!

Hospedeira vai buscar o corpo do homem e a Putinha da Zona simultaneamente realiza a


mesma ação, só que busca um boneco que está na parte inferior da mesa de metal.
Hospedeira carrega o homem em suas costas e a Putinha da Zona carrega o boneco. Putinha
da Zona repete as palavras da Hospedeira.

Putinha da Zona/Hospedeira – Filho homem sempre dá mais trabalho. Quantas vezes eu te


gerei? Durante oitentaanos, oitentaquilos carregados nas minhas costas. (Pausa). Quem fez
o Homem?

Depositam os corpos dentro da geladeira. Hospedeira e Putinha da Zona fazem o General


nascer. Espelho. Duas Medéias.

Hospedeira – Seu hálito, um fedor de cama alheia. Dentro da minha própria casa!? Levanta,
filha. O corpo viçoso, sem rugas.
Putinha da Zona – Elas geralmente são tão solidárias.
Hospedeira – Solitárias.
Putinha da Zona – Hilárias.
Hospedeira – Otárias. Filha ?!...
Putinha da Zona – Ela sabe o que deve fazer.
Hospedeira – Todo homem já nasce casado.

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Dentro da geladeira. Ele é frágil. Estado de corpo perdido, saco vazio.
Hospedeira/Ator – A Hospedeira vê a Putinha da Zona levar o General para o tanque. Ela irá
iniciá-lo. Batizá-lo. Dentro da sua própria casa.

4. Porque toda traição deve ser um ato público


(General, Putinha da Zona, Hospedeira)

Memória da traição. Putinha da Zona leva o General para o tanque. Ele nasce. Passagem.
Hospedeira, ao fundo, próxima às mesas de metal, narra as ações dos dois. Putinha seduz
General.

Putinha da Zona – Vem, filhinho, tá na hora de nascer... Vem, segura a mão da mamãe. Vem
que eu te ensino tudo que você precisa saber. Entra nesse quartinho escuro e você não se
arrependerá. Isso, toma seu lugar no ringue. Olha no olho do adversário. Protege o rosto.
Levanta a guarda. Quero ver seu cruzado de direita. Isso, cruza a direita, cruza a esquerda!
Umdoistrêsquatrocincoseisseteoito... Nocaute!!!

Hospedeira – (Degusta a imagem com sedução) Ela estende a mão para ele. Ela era roliça,
lânguida, cruzava as pernas, gazela, calcinha no rego, sutiã furado, com o bico do seio à
mostra. Um jeitinho de sonsa e dissimulada... propaganda de margarina. Mas sabia como
fazer a manutenção de suas armas. Cuidava bem dele com jeito: perfumava, lavava,
desinfetava, dava apoio e reconhecimento. Vai reprodutor! Vem pra mim de A a Z, de zero a
dez. (Descobre a traição) Mas não era ela. Não era eu. Era outra. Uma Putinha da Zona. Ela,
mais rodada que fechadura. Foi dentro da minha própria casa. Agora vejo o filme na minha
frente: estão ofegantes, entram num banheiro fodidofedido, e torcem para que alguém
vejam e me denunciem esta cena lamentável. (Dimensão Pública. Protesto. Difamação.
Direciona-se para a plateia) Porque toda traição deve ser um ato público. Revelada para todo
mundo. A traição pra ser legitimada, deve deixar o traído humilhado. Exposto. Porque eu sou
a protagonista deste filme. Eu olho a cena, olho muito, até gastar minhas pupilas, minhas

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entranhas de ódio. Eu sinto com todos os meus suoresporos, minhas ancas de mulher
grossa. Mas sem mim, eles não traem ninguém. (Eles chegam num gozo doloroso). É a
mulher que come o homem!

Elas se aproximam do General. Elas Narram.

Hospedeira – Elas sobem suas calças.


Putinha da Zona – Ele, o covarde.
Hospedeira – Ele desce do tanque.

Elas dialogam com General.

Putinha da Zona – Levanta, homem, seu tempo já acabou.


Hospedeira – Bota as calças, meu general!
Putinha da Zona – O Potro já nasce andando.
Hospedeira – Calça as botas! (Entra trilha sonora do filme Rock, o lutador)
Putinha da Zona – Gozado! A natureza é sábia, ela ampara os animais.
Hospedeira – As pernas bambas do gozo.
General – Na beira do precipício ele desce do ringue amparado pela sua derrota.
Putinha da Zona – Sua dona vê seu cavalo campeão.
General – Que mulher vai receber em seus braços um fracassado?
Putinha da Zona – Mais de trintaetrês dentes:
General – Saco de pancadas.
Putinha da Zona – duros, rijos, brancos.
General – Horas de treinamento, musculação.
Putinha – Patas largas, casco duro. Pelagem brilhante. Pode levar qualquer coisa nas costas.
General – Proteínas, Ferro, Cálcio, Lipídios. Na testa dele pesa o letreiro “Eu sou um
covarde”. (Avista a escada). Medo de dar o primeiro passo.

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Hospedeira – Pé direito, pé esquerdo. Homem não chora. Conquista o mundo, soldado.
Quantas medalhas você quer?
Putinha – Vai, potrão! Vai ganhar o mundo!

As mulheres levam o homem até às grades de uma plataforma. Ele sobe com dificuldade.
Ergue-se, ganha território. Passagem para o Espaço-Casa.

General – (Começa a subir) Homem não chora. Lá no alto o topo do mundo, o lugar mais
alto do podium, palanque, púlpito, planalto. (Da parte mais alta da escada). De cima ele
pode ver em quantas cabeças deseja pisar, contemplar o território da sua conquista, traçar
estratégias e planos. O barulho da água. Pranto das mulheres que deixei para trás, fortalezas
que destruí. Na minha testa, pesa o letreiro “Eu sou um covarde”. (Entra na plataforma. Em
voz de comando). Alça o primeiro lugar. O palanque. Lá em cima, ele é forte! Vejo as
cabeças dos fracos daqui de cima. Vejo o inimigo que entra no quartel! Sabe que lá suas
palavras são lei. Tropas, avante.

5. Programa de irmãos nas fuças da mamãe


(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)

Tempo da família: hábitos, vícios e obsessões. A falta do pai. A culpa da mãe. A plataforma é
a laje da casa. General faz passagem para Filhopai e Hospedeira para Filhocão. Filhocão e
Filhopai brincam de exército. Dimensão pública. Filhocão sobe na laje.

Filhopai – Soldados avante! Tropas! Atenção, todos os homens devidamente uniformizados


em suas posições!
Filhocão – Sim senhor! (Muda de idéia) Vamos brincar de menino de Rua? (Dimensão
Pública) Extra! Extra! Mulher mata marido a facadas na hora do jantar! Menino cai da laje
empurrado pelo próprio pai! Criança frita no micro-ondas.

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Filhopai – Não! Tenho do meu lado a autoridade soberana. O perigo é claro. Chegamos
enfim no tempo das calamidades e contaminações. Soldado! Meia volta volver! Preparado
para carregar as armas?
Filhocão – Sim, capitão.

Os meninos cheiram produto tóxico. Meninos começam o “programa de irmãos”. Sacanagem


lúdica.

Filhocão – Vamos brincar de papai e mamãe? (Passagem para um espaço imaginário dos
meninos: bordel, quarto de motel)
Filhopai – Quando ficavam sozinhos em casa, os dois subiam no telhado pra brincar de
trepar que nem papai e mamãe...
Filhocão – O menino trepa na laje.
Filhopai – Ele espera ansioso no quarto.
Filhocão – O menino espera uma prostituta.
Filhopai – Os dois se preparavam minuciosamente para o momento do encontro.
Filhocão – Ele colocava as roupas da mãe, a puta.
Filhopai – Ele calçava, as botas do pai, o cliente.
Filhocão – Ela bate na porta.

Mãe Aborto penetra na cena pela porta do fundo. Esquiva. Esquisita. Perdida. No plano
baixo, Mãe Aborto arruma a casa. Ela instaura a cozinha. Estado de Comissária de Bordo.
Organizar a casa e assar a própria carne para oferecer à família. Esperar o marido, que
nunca chega. Pressente a brincadeira dos meninos, mas finge não saber. Procura em uma
prateleira um tubo de película transparente e começa a se embalar para se assar. Obsessão
de que tudo seja saborosíssimo.

Mãe Aborto – Mãe Aborto penetra na cena.


Filhopai – Vem, pode entrar, docinho.

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Filhocão – Ela abre a porta e entra no quarto.
Mãe Aborto – O tempo é o da família: a falta do pai. A culpa da mãe. Os meninos perdidos.
Filhopai – A boca rosada, pele branquinha, meiga e sensual.
Filhocão – Cintura fina, coxa firme, pouca bunda, pouca estria. Ela se faz de inocente.
Mãe Aborto – A casa estava toda desarrumada. Ela acordou de manhã e já tinha convidados
para o almoço. Ela espera o marido que nunca chega.
Filhopai – Safada... Ele se aproxima dela, toca sua mão direita e a conduz pelo corpo dele.
Mãe Aborto – O marido bebeu a noite inteira. Eles dançaram por horas a fio até ela ficar
exausta.
Filhocão – Não faz assim, que eu sinto cócegas.
Mãe Aborto – Quando ele bebia assim, ficava na cama até o meio dia.
Filhopai – Vem, que eu vou te levar pra cama. Pode ficar deitada, que eu faço tudo. Posso
tirar sua camisa?
Mãe Aborto – Ela podia fazer tudo sozinha.
Filhocão – Tira. Apaga a luz... eu tenho vergonha.
Filhopai – Sem vergonha! Os seios, a barriga. Danadinha, ela...
Mãe Aborto – Tudo no lugar. Isso não está no lugar (Coloca a geladeira no centro do salão)
Filhocão – Prepara-se para ser devorada. O meu perfumetempero aguça o faro do macho.
Mãe Aborto – A comida. É preciso preparar a comida. (Desejo por si mesma. Começa a se
preparar como uma comida).
Filhopai – Atiradinha... Apressadinha, ela. A carne tenra, suculenta. Um banquete servido na
cama. Posso tirar sua calça? (Tira a calça). O que é isso? Que pedaço de carne é esse no
meio das suas pernas?

Filhopai percebe que o que ele achava ser uma garota, é um travesti.

Filhopai – Veado, filho da puta, sai daqui!


Filhocão – Filho? O que é isso? Querido, o que é isso? Tá nervoso, é?

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Filhopai – Agora é o garoto, que cobra sua grana. Você vai pagar! Vou cobrar minha dívida é
no dente, veado, filho da puta.
Filhocão – O que isso, o que? Não gostou do recheio, queridinho? Os ovos e a linguiça?
Filhopai – Você me enganou! Eu não gosto de homem!!
Filhocão – É sempre a mesma cena, vocês fingem não saber, mas é isso que procuram! Vem,
pega. Só têm nos dois aqui. Você gosta, eu sei que gosta...
Filhopai – Tira a mão! Eu não tô brincando... Parei de brincar com você.
Filhocão – Pega aqui.
Filhopai – E assim? Tá gostoso? E se eu apertar mais um pouco! Ovos estralados, mexidos?
Você gosta?
Filhocão – Pára. Você está me machucando! Ai!!! Solta! Não estou mais brincando. Parei de
brincar.
Filhopai – Solta, solta o meu cabelo! Não vou mais brincar.
Filhocão – Agora eu quero fazer o homem.
Filhopai – Acabou a brincadeira. Chega. Desce. Sai do meu quarto!
Mãe Aborto – Pele tenra, macia. Carne dourada por hora num molho de ervas finas. Uma
pitada de sal, uma pitada de açúcar para tirar o azedo. Tudo preparado com muito carinho.
Regue a carne com um bom vinho para amaciá-la e leve ao forno. O forno deve ser pré-
aquecido na temperatura de centoevintegraus. Não! Na temperatura de duzentosgraus. Não,
mais quente ainda, trezentosessentagraus! Na minha casa ninguém fica com fome. Coloque
a carne para assar por trinta minutos. Não abra o forno antes disso, se não você estraga
tudo.

Mãe Aborto se fecha na geladeira. Filhocão e Filhopai descem, entram na casa. Passagem da
brincadeira. Os meninos descobrem a caixa de ferramentas. Os meninos vão brincar com os
objetos do pai, abrem os armários e remexem nas ferramentas. Essas se transformam em
armas. Posicionam-se para atacar. Escondem-se atrás das portas dos armários. Expectativa.
Brincam de Casamento.

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Filhopai – Eu te recebo como minha legítima esposa.
Filhocão – Eu te aceito como meu marido.
Filhopai – E prometo te amar e respeitar.
Filhocão – Na alegria e na tristeza.
Filhopai – Na saúde e na doença.
Filhocão – Por todos os dias da minha vida.
Filhopai – Até que a morte nos separe!
Filhocão – Até que a morte nos separe! O menino rasteja pelo chão da cozinha.
Filhopai – Ele sobe na estante.

Os meninos veem a mãe dentro da geladeira e agora brincam de matá-la. Falta do pai. Culpa
da mãe.

Filhopai – Como sempre, parada no meio da cozinha.


Filhocão – Falta do pai.
Filhopai – Culpa da mãe.
Filhocão – Pálida.
Filhopai – Fria.
Filho cão – Calculista.
Filho pai – Não me aquece mais.
Filhocão – Insensível.
Filho pai – Só pensa em utilidadesfutilidades domésticas.
Filhocão – No preço da carne. (Miram a Mãe Aborto. Preparam. Atiram imaginariamente.) No
três: um, dois.
Filhocão – Pou-Pou! Te matei mãe!
Filhopai – Não! No três! Um, dois, três! Pou-pou!
Filho pai – No carnê para pagar.
Filhocão – Pou-pou! Te matei! Morre, mãe!

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Mãe Aborto – (Abre a geladeira) Pronto! A comida está pronta! Ao ponto!

6. Mesa póstuma
(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)

Memória da vingança da mãe. Atrai as presas pelo olfato. Manipula os dois como se fossem
cães atraídos pela comida.
Mãe Aborto – A comida está pronta meus garotos, vejam que delícia! Dourada. Cheirosa.
Podem sentir o cheiro? Não mandei descer! É para olhar de longe. Desçam daí, agorinha,
meus meninoscães! No chão! Meus cachorrinhos! Vejam como a mamãe está gostosa. Não
mandei chegar perto! Vem, magrelo! Você fica, grandão! Isso, magrelo, sente o cheiro
gostoso da mamãe, lambe, isso lambe. Agora, você, grandão! Cachorrão bobo da mamãe.
Meus garotosabortos podem se servir, se fartar, venham... O jantar está na mesa! Na minha
casa, ninguém fica com fome!

Ela os obriga a elogiar a comida e pede para eles dizerem o quanto ela é boa para eles.
Passagem para opressão e violência.

Mãe Aborto – Quem cuida vocês? Cozinha para vocês? Limpou a bunda de vocês? E o que
mais que eu faço?
Meninoscães – Você, mãe! Faz frango assado no domingo! Encapa meus cadernos e me
ajuda a fazer o para casa!

7. Naufrágio
(Filhocão, Filhopai e Mãe Aborto)

Os meninos querem fugir. A mãe coloca os meninos dentro da geladeira.

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Mãe Aborto – Os meninos começam a escorregar do seu colo. O barco da mulher está
afundando. Meus garotos, meus dois abortos, meus esgotos, estão escorrendo das minhas
entranhas. Quem fez o Homem?
Filhopai – Eu te recebo como minha legítima esposa.
Filhocão – Eu te aceito como meu marido.
Filhopai – E prometo te amar e respeitar.
Filhocão – Na alegria e na tristeza.
Filhopai – Na saúde e na doença.
Filhocão – Por todos os dias da minha vida.
Filhopai – Até que a morte nos separe!
Filhocão – Até que a morte nos separe! Pode beijar a noiva.
Filhopai/Ator – O garoto agora assume o ponto de vista do pai, o General que vai botar
ordem na zona desta casa!

Memória da partida do pai. Filhopai assume agora o ponto de vista do General, homem que
deixa a mulher. Filhopai fala do pai e diz que vai embora. O Filhopai se rebela e decide ir
embora. Ele recolhe suas coisas. Ela não aceita. Discussão. Filhocão narra a discussão da
Mãe e do Pai.

Filhocão – (Sentado na porta da geladeira). Os dois gritavam. Todos os dias, meu pai
desafiava que ia embora e nunca ia, mas hoje, ele tomou o seu lugar. Eu me escondia nos
lugares mais improváveis.
MãeAborto – Onde é que você pensa que vai? Você não pode me abandonar!
Filhopai – Eu parto. Eu não sou ignorante. Eu tenho escolha e a decisão é minha. Eu escolho
não acreditar em falsos deuses! Se disser alguma coisa, eu te estouro os miolos, te quebro
os dentes. Mulher seca, imunda, asquerosa. Eu te desprezo, te enjeito, te devolvo ao mundo
do cão. (Filhopai vai embora, levando sua mala).
Filhocão – (Para a mãe) Terra oca de amor, culpamãe. Puta mãe, puta pátria, que me pariu.

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Filhocão se fecha dentro da geladeira, narrando. Ela fica sozinha.

8. Ela jorra do seu esgotocorpo


(Mãe Aborto)

Memória do abandono. Abre uma torneira e começa a lavar as mãos, nervosamente,


murmura, balbucia.

Mãe Aborto – Meu orgulho me sustenta, me salva da queda. Quem fez o homem? Antes
disso, devo falar de mim? (Para o público) Quem eu? Quem agora? Que tempo é este? Minha
memória? Meu presente? Meu esôfagocano alimenta os tubos de energiaraiva. Porque eu
sou a protagonista deste filme. Eu sinto com todos os meus suoresporos, minhas garras,
minhas ancas de mulher abandonada. Eu parto. Eu tomo o seu lugar. (Para o público) Devo
falar de quem? De quem se fala quando se fala de mim? A única saída de uma mulher
abandonada é virar puta. Uma autêntica puta da zona. Eu parto.

9. Eu voltei pra zona, agora é pra ficar


(Putinha da Zona, Hospedeira e General)

Passagem. A Mãe Aborto agora é Putinha da Zona. Memória do resgate da puta. Espaço-
Bordel. Ambiente de boteco copo sujo mal iluminado. Uma música de amor, melhor, de amor
largado, de amor traído. Está em frente a uma porta imaginária.

Putinha da Zona – Ela enxerga a porta da zona: Rua Guaicurus, centoeoitentaesete, fundos.
Uma porta verde, singela. Ela hesita por alguns instantes, tem medo de entrar mais uma vez
naquele lugar. (Ela sobe as escadasgavetas, atravessa a bancada e visualiza um corredor de
um Puteiro). Até que finalmente... Ela bate o ponto às oitoecinquentaecinco (Abre-fecha a
gaveta) e entra. Religiosamente. Na sua frente um corredor interminável, onde ela gosta de
ir num “vai em vem” constante. Entra no corredor, estreito, úmido. No fundo do corredor, o

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seu quarto, o quarto cor de rosa, onde um abajur com uma luz vermelha deixa tudo muito
mais pesado (Mergulha no esgoto). O seu corpo se contorce, ela rasteja por esse esgoto
escuro e pequeno como uma bactéria emocionalmente instável. Penetra no seu quartinho.
(Encontra o boneco, que simula um cliente). Sai daí, tem outro na sua frente, a sua hora já
acabou. (Livra-se do boneco. Deita na cama). Ela deita na cama e espera, uma longa espera
de intermináveis nove meses. E lá, aguarda os clientes. (Putinha realiza movimentos
sensuais). Ensaiando poses, posições, estratégias do seu ofício. Do sexo, da trepa, da “foda”
de todo dia. Sente o cheiro do homem que se aproxima, um cheiro acre e forte.

Enquanto isso, General desce pelas grades do alto, sugerindo entrar em um ônibus.

General – Nesse dia, ele entrou no ônibus lotado e se perdeu, como ninguém. Ele, um
joãoninguém. Ele, um lutador, fim de linha. Parou no centro sujo e penetrou num no boteco
copo sujo. Bebeu todas pra tomar coragem. Prepara-se para o primeiro round.
Putinha da Zona – Ela sentia o cheiro de macho se aproximando perto dela. Detrás da porta.
General – Entrou no puteiro às cinco da madrugada. Bateu na porta. (Som de bater de
porta)
Putinha da Zona – A puta da Zona disse: “Entra, vem, docinho”.
General – Ele entrou, constrangido, como na primeira trepa. “Oi, quanto é o serviço?”.

Do lado oposto, numa cama de metal, o General, deseja levar a moça para uma boa vida.
Ele abre a mala e retira um ramalhete de flores de plástico. Entrega as flores para ela, ela
recusa. Ele pega na mão dela e ela foge, diz que “conversar” é mais caro.

Putinha da Zona – (Para o público) A Putinha da Zona gostava do lugar, não queria ser outra
coisa na vida do que puta. (Para o General) Quinhentos paus, a noite inteira. Cada beijo de
língua custa dez paus.
General – Eu quero conversar.

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Putinha da Zona – (Para o público) Ela era uma puta de qualidade, com várias
especialidades. Mais rodada, que fechadura.
General – Vem deixa eu te levar dessa vida. Vem, me dá sua mão.
Putinha da Zona – (Para o General) Oral e anal, só com adicional e proteção extra! (Para o
General) Vem, vai, me fode, que nem os outros. Fala menos e faz mais, potrão!
General – Eu não quero te fuder, eu quero que você goste de mim.
Putinha da Zona – Vem, perfura minha carne lisa siliconada, essas pernas sedosas, minha
peleplástico perfeita, me reproduz, me introduz um varão de raça pura, de primeira linha.
Fala menos e come mais! Que a janta já tá esfriando, docinho!
General – Eu quero é te fazer feliz, porque você é o grande amor da minha vida. E o
General vai levar essa mulher perdida, abandonada, pra casa dele pra fazer dela sua mulher.
(Dimensão pública) Vejam! O homem vai salvar a mulher da zona, da lama, da difamação.
Você será a mulher mais feliz do mundo. Eu vou chegar com flores, de todas as espécies e
qualidades. Nós sairemos daqui e atravessaremos essa praça, e eu lhe comprarei o museu
dessa praça. De mármore branca, que nem essa bancada. Mandarei esculpir sua imagem na
pedra para toda eternidade. (Abre os armários) Eu te darei os faqueiros importados, de prata
e ouro. (Abre a torneira) Água limpa, potável, leite longa vida, longa vida pros filhos, espuma
jorrando, uma banheira de hidromassagem. Eu te darei também a empregada ideal (A
geladeira se abre, e a Hospedeira inicia seu lamento).
Hospedeira – Ama teus filhos? O teatro da minha morte.
General – Nós teremos filhos perfeitos saudáveis,
Hospedeira – Chama-se: “água o que me queima a pele”.
General – Com dentes fortes e rijos, com mais de trintaetrês dentes.
Hospedeira – É preciso expelir o tumor, fazer a assepsia e desinfetar...
General – Lindos, belos e arianos.
Hospedeira – Vomitar a comida estragada, que um dia foi seu banquete.
General – Sem problemas de colesterol e depressão.
Hospedeira – Ela chora a lembrança do pai, o irmão esquartejado.
General – Terão livros didáticos, com bons textos e, sobretudo, com figuras coloridas.

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Hospedeira – Sua terra, a pátria que traiu por amor a esse homem.
General – E a nossa empregada terá também filhos, não tão felizes quanto os nossos, mas
decentes e limpos. Utilitários.

Pega o megafone. Vai saindo pela porta do fundo. Voz longínqua. Vai sumindo.

General – Todos os anos iremos a uma viagem de férias. Caribenovayorkpequimbangladesh,


vou proibir o tsunami, dvdtelaplana, microondasportátilcomputadorizado. Te comprarei
carroimportado, bmwconversível, jipe quatroporquatro...

Entra trilha sonora do filme Titanic. Polifonia das vozes da Putinha da Zona e Hospedeira.

Putinha da Zona – Foi quando a putinha Hospedeira – Estamos no tempo de agora,


começou a sonhar com uma casa limpa, em que minha carne é devorada pelos
cheirosa, bem arrumada. Um casamento abutres e vermes, vírus, bactérias, fungos.
perfeito. Uma casa bela, três quartos, Você me chamado de puta, e eu de meu
arejada, com dependência de empregada, amor. O canto nupcial chegou aos meus
jardim podado e cão de guarda. Pronta ouvidos, essa árvore não vai crescer pra
para morar. cima de mim. Ama teus filhos? Quer tê-los
novamente? Feridas e cicatrizes dão um
bom veneno.

10. Finalmente a hora do sim


(Hospedeira, General, Noiva Margarina)

Memória e Presente: revivem o casamento e ao mesmo tempo renovam os votos. Passagem


da Putinha da Zona para Noiva Margarina. Hospedeira dispõe frascos químicos pelo chão, de

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forma geométrica. Noiva Margarina coloca em cada frasco flores coloridas: roxas, brancas e
rosas. Polifonia.

Hospedeira – (Pega o primeiro vidro de Noiva Margarina – (Vai colocando as flores


laboratório e vai colocando os frascos no nos vidros espalhados) No dia do
chão) Sobre teu corpo, escrevo agora meu casamento, a igreja enfeitada de flores.
espetáculo. Iansãoxossioxum, ora, eiueiu. Muitas flores! Ela se casará na primavera.
Rancor, ira, mágoa, orgulho, entrega, Porque ela crê no feminino, no belo, na
perda, traição, vingança. O teatro da terra fértil. Nas flores, que singelas, mas
vingança. Estamos no dia, em que meu fortes, nascem da aspereza da vida. Flores
corpo é consumido pelo casamento e pelos brancas, roxas, vermelhas. Enfeitando o
tapas na cara. Até que, enfim, chegará o chão que iluminará o dia mais feliz. O dia
dia no qual você me abandonará. Em cada que ela pacientemente esperou por toda
frasco, minha vingança (Entrega o vestido sua vida. (Sobe numa pequena escada e
para a Noiva Margarina). Aí está você, desce, visualizando a Igreja. Hospedeira
Noiva, dos sonhos das propagandas de coloca o véu nela) A noiva tem um baú
Margarina. Meu vestido de noiva, toma que ela compõe com esmero, desde dos
como presente para tuas núpcias (Para o seus oito anos de idade. Um enxoval de
público). Quero fazer a noiva em tocha linho branco, imaculado. Sua mãe disse
nupcial. O amor me arma as mãos. Vem, que é preciso preparar o enxoval, não
filha (Para o General). Tens ouvidos para importa o que aconteça (Desce da escada
os gritos? É preciso fechar as portas, e atravessa o salão. Para o público).
proibir a entrada do homem. Porque você é o grande amor da minha
vida.

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Noiva Margarina – Senhores e senhoras, obrigada por vir, obrigada pela presença. Ela entra
na limusine branca (Entra na geladeira). Daqui quinze minutos, ela estará na Igreja e
receberá os cumprimentos (Ela se fecha na geladeira).
Hospedeira – (Fecha os armários da bancada branca, com fúria) Planta na carne uma selva
de facas. Hoje é dia de pagamento. Quem fez o homem?

General – (Descendo a escada de ferro. Feliz. Traz flores nas mãos.) O homem penetra no
esgotocorpo da mulher hospedeira. Veio fincar o mastro da sua bandeira no último território
a ser conquistado. Nessa terra, não há exílio para mulher que não respeita a autoridade do
chefe da família. Elas são assim: nada lhes falta, se o leito conjugal é respeitado, mas se eles
recebem, algum dia, o menor golpe e vão à nocaute, elas desprezam os votos de amor.
Hospedeira – Você conseguiu, chegou até o topo, meu generalsenadorpresidentetirano. Veio
buscar os mortos ou os vivos?
General – Se eu pudesse ter de outra maneira os filhos, não precisaria das mulheres, e nós,
homens, estaríamos livres dessa praga!
Hospedeira – Nas ruínasescombros de uma tragédia, difícil é definir quem são os mortos,
quem são os vivos.
General – (Subindo a escada da plataforma). É a vida dos meus filhos que vim salvar!
Pedaço da minha carne, semente que fiz germinar e reguei com meus fluidos. Deixei-os sob
os seus cuidados, em conserva, para que um dia pudesse levá-los até a glória das minhas
novas conquistas, quero tê-los ao meu lado, em meu palanque. Dividir com eles a vitória, o
primeiro lugar do podium.
Hospedeira – Foi maior o amor que a lucidez. Minha propriedade é a imagem dos mortos.
Chegou tarde, homem da guerra. Os filhos dessa pátria, já estão mortos. Sempre estiveram.
General – Mortos? Sempre estiveram. Sim, agora, finalmente recupero minha razão, perdida
no dia que te trouxe de sua terra e te instalei nessa casa limpa, solo fértil, em que se
plantando tudo dá, hoje, transformado num enorme reservatório de excrementos, terra
cagada. Você sempre a traidora da própria pátria.
Hospedeira – (Para público) Ouviram? Ouviram o grito do Ipiranga?

2
General – Foi este o seu começo.
Hospedeira – Puta pátria que nos pariu. “Que símbolo ostentas estrelado”. Covarde. Ela
deseja partir a humanidade em duas agora, e se lançar em queda livre.
General – (Desce a escada de ferro.) Ele se lança no mais fundo poço para resgatar a parte
que lhe falta. Os filhos sempre estiveram mortos.
Hospedeira – Mas não posso. Minha morte não tem outro corpo que o teu. É meu homem,
ainda sou tua mulher.
General – (Em cima da geladeira). Numa tragédia difícil é saber quem são os mortos e quem
são os vivos. (Abraçando a geladeira. Ele entrega os pontos, renovam os votos. Começa
juramento em polifonia com Hospedeira). Eu, generalanimalmasculino
presidentecoronelcomandantechefedonopatrãoferropedragáspetróleodinheirobomba prometo
te trair na primeira oportunidade que eu tiver, prometo de chutar o ventre só porque você
não me olhou no olho, prometo de amarrarapertarmorderchutarcuspircurrar... (Começa uma
curra com a geladeira). Te prometo a minha velhice, meus cabelos brancos, minha barriga
flácida, minha impotênciaprepotênciaarrogânciaignorância... (Chega ao gozo). Ah... ah...
Sim, eu aceito.

Hospedeira – Eu,
mãetiaavónetasobrinhalençoldocefátimanossasenhoradaconceiçãomariadasgraçasluzluziatrez
edemaiodemilnovecentosestentaeseisprivadaalmoçocaféjantafósforoestrumeperfumepropried
adeidolatriadinastiamulher, eu prometo te amar, mesmo quando você deixar de te amar. Te
ser fiel, mesmo quando você me trair. Prometo te perdoar todos os dias, quando você
atrasar pro jantar, vou requentar tua comida e tua cama. Abrir minhas pernas e enfiar
minhas unhas na tua pele. Prometo te passar as roupas que você despirá para qualquer
vagabunda. E costurá-la quando a sirigaita rasgar. Prometo também cuidar do teu cheiro de
fumo e perfume barato de mulher. Sim, eu aceito.
General –(Abre a porta da geladeira, lá dentro a noiva morta) Cinzas das minhas núpcias
(Coloca-a nos ombros). Ruínas do incêndio final, água que queima a pele (Vagando pelo

2
espaço, sem rumo, indo em direção à saída). Ele comandante sem armas, coronel sem
soldados, lutador sem ringue, perdido. Batalha sem tanques.
Hospedeira – (No alto da plataforma) Eu te espero. Pacientemente. Sentada na cadeira em
frente à porta. A porta estará sempre aberta. E você terá a chave. O meu olhar vai dar uma
festa. Eu vou te amar por toda minha vida. Na hora que você chegar.
General – Eu, subúrbios, favelas, periferias. Entre escombros e entulhos, eu.
Hospedeira – Nosso amor, um nó molhado. Minhas lágrimas desaguando. Eu esperando
noites a fio. Doce, cativa. Sim, eu espero. Por toda vida. Com a porta aberta (Grita no tubo
de ventilação do teto e sai). Eu vou te amar...
General – Devo falar de mim? Eu, quem? De quem se fala, quando se fala de mim? Eu.
Quem agora? (Sai) Eu. Eu. Eu, quem?
Hospedeira – (Volta para cena e declara para o público) Estão esperando o quê? Podem ir...
A porta da rua é serventia da casa.
FIM.

1
Letícia Andrade é atriz, dramaturga, professora e integrante da Maldita Cia de Investigação Teatral. Mestre em
Teoria Literária, leciona no Centro de Formação Artística do Palácio das Artes e no Departamento de Artes da
UFOP. Atua no espetáculo Suba na vida, e já escreveu mais de dez dramaturgias, dentre elas: Estamos
trabalhando para você, Arriscamundo, Prato do dia e Cara Preta.

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