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Anais do XV Encontro Estadual de História “1964-2014: Memórias, Testemunhos e Estado”,

11 a 14 de agosto de 2014, UFSC, Florianópolis

A propaganda nas entrelinhas: As particularidades do cinema hollywoodiano como


instrumento de propaganda estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial

Celso Fernando Claro de Oliveira1

Resumo: Quando os Estados Unidos se envolveram oficialmente na Segunda Guerra Mundial em


dezembro de 1941, o governo reconhecia a importância do emprego de uma propaganda eficiente
para a mobilização interna, contudo, havia uma série de polêmicas que tornavam tal questão
bastante delicada. Durante a Grande Guerra, o governo Woodrow Wilson valera-se amplamente
de uma propaganda coercitiva que, embora tenha em partes atingido seus objetivos, desembocou
em algumas ações violentas e fez com que a palavra “propaganda” se tornasse associada à ideias
como “manipulação da população” e “deturpação de informações” – uma imagem negativa que
foi apenas acentuada com a experiência traumática do conflito. Desse modo, o então presidente
Franklin Roosevelt estava bastante inseguro quanto ao uso de material propagandístico estatal
para a mobilização interna, pois temia uma reação negativa que prejudicasse o desempenho do
país na guerra: o presidente acreditava que a propaganda mais eficiente deveria ser convidativa,
subliminar, agradável e parecer “descolada” dos interesses do governo mas atrelada aos chamados
“valores americanos”; raciocínio compartilhado por alguns dos membros de sua equipe. Visando
a atingir esse objetivo, o governo Roosevelt buscou mobilizar os principais veículos de
comunicação estadunidenses em torno do Office of War Information, órgão responsável por
coordenar a difusão de informações e promover iniciativas para um entendimento comum sobre o
esforço de guerra, fundado em junho de 1942. Um dos meios de comunicação mais importantes
nessa empreitada era o cinema hollywoodiano, reconhecido por sua organização bem estruturada,
ampla penetração a nível nacional e capacidade de influenciar seus espectadores. Buscando um
relacionamento cordial, o governo propôs vantagens para a indústria cinematográfica em troca de
estabelecer as regras que deveriam direcionar as produções fílmicas durante o conflito, originando
um relacionamento bastante tumultuado, embora eventualmente bem-sucedido. O presente
trabalho visa a debater as particularidades e potencialidades do cinema hollywoodiano como
veículo de propaganda estatal estadunidense durante a Segunda Guerra Mundial, analisando a
partir do aporte da História Social do Cinema aspectos na produção e circulação dos filmes, bem
como, as especificidades da narrativa clássica hollywoodiana, o star system e o sistema de
gêneros como fator de identificação para o público.

Palavras-chave: Cinema hollywoodiano, propaganda, Segunda Guerra Mundial, recepção fílmica

O presente trabalho apresenta parte das discussões integrantes de uma tese de


doutorado que se encontra em fase de desenvolvimento, de modo que muitos dos resultados
apresentados aqui são parciais e podem sofrer alterações até a formatação final da pesquisa.
Neste trabalho, procuramos entender o papel do cinema como um instrumento de propaganda
a serviço do governo estadunidense e como um possível catalisador para a mobilização do
esforço doméstico no país durante a Segunda Guerra Mundial. É importante lembrar que,
desde sua popularização ao início do século XX, o cinema despertou o interesse de diferentes
governos ao redor do mundo, por ser considerado um meio de comunicação capaz de atingir a

1
Doutorando em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Busko
Valim. Bolsista Capes/DS. Membro do Núcleo de Estudos de História e Cinema da UFSC (NEHCINE/UFSC). E-mail:
celsooliveira88@gmail.com.
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um público heterogêneo de forma homogênea, difundindo ideias, modelos de comportamento


e valores. Nesse sentido, muitos dos estudos de propaganda à época consideravam o cinema –
assim como os demais meios de comunicação existentes – como um instrumento que deveria
ser utilizado pelas classes dominantes para manter a ordem social e as relações de poder
vigentes.
Entre os principais pensadores que defendiam esses ideais, podemos destacar Walter
Lippman, Edward Bernays e Harold Lasswell. Mesmo produzindo obras com objetivos
diferenciados, esses autores afirmavam que os membros das sociedades democráticas da
época poderiam ser divididos entre “elites esclarecidas”, conscientes de sua importância e
conhecedoras do funcionamento da ordem social; e a “massa”, termo utilizado para se referir
ao restante da população, uma amálgama instável de pessoas que agia por impulsos e que era
considerada um perigo para os regimes democráticos. Frente ao que os estudiosos
acreditavam se tratar de uma realidade demasiado complexa e estratificada, era necessário que
as “elites esclarecidas” se valessem dos meios de comunicação de massa para direcionar e
orientar a “massa”, especialmente, em períodos de crise. Desse modo, o processo
comunicacional era compreendido como uma espécie de propaganda2.
Apesar da popularidade de tais trabalhos, o termo “propaganda” era considerado
delicado pelos círculos políticos estadunidenses, uma vez que o emprego de táticas de
propagandas coercitivas pelo governo Woodrow Wilson durante a Primeira Guerra Mundial
havia desembocado em ações violentas, instaurando uma espécie de “estado de alerta” na
população quanto a tentativas de manipulação por parte do governo3. O trauma da experiência
na Grande Guerra fez com que o país ingressasse em um período de forte isolacionismo, em
que a preocupação com problemas internos recebia prioridade e o raio de ação no cenário
mundial se dava de forma limitada4. Tal postura foi reforçada com a Grande Depressão, que

2
Para mais informações, conferir: LIPPMANN, Walter. The Public Opinion. Nova Brunswick: Transaction Publishers,
1998; BERNAYS, Edward. Crystallizing Public Opinion. Nova Iorque: Liverlight Publishing Corporation, 1961;
BERNAYS, Edward. Propaganda. Nova Iorque: Horace Liverlight, 1928; LASSWELL, Harold D. Propaganda technique
in the World War. Nova Iorque: Peter Smith, 1938. Considerado um dos mais influentes autores da área de comunicação,
Lasswell desenvolveu a partir de suas ideias um modelo de processo comunicacional que se tornou bastante popular à época,
caracterizado pelo domínio dos emissores de mensagens e pela subordinação dos receptores. Inspirado em trabalhos da
corrente behaviorista, o ensaísta argumenta que as mensagens passam por canais controlados pelos emissores, de modo que
atinjam os receptores de forma mais ou menos homogênea, suscitando reações mais ou menos esperadas pelos emissores.
LASSWELL, Harold D. The structure and function of communication in society. In: LYMAN, Bryson (ed.). The
communication of ideas. Nova Iorque: Institute for Religious and Social Studies, 1948, p. 37-44.
3
Para uma discussão problematizada do assunto, ver: KIMBLE, James J. Mobilizing the home front: War bonds and
domestic propaganda. College Station: Texas A&M University Press, 2006, p. 13-37.
4
É importante destacar que utilizamos o conceito de isolacionismo trabalho por Cristiana Soreau Pecequilo, definido como
“um padrão de engajamento estreito, limitado e pontual em seu caráter, escopo e intensidade” por parte dos Estados Unidos
no cenário mundial. Isto posto, salientamos que, apesar do afastamento dos debates políticos levantados na Europa, os
Estados Unidos mantiveram sua política intervencionista na América Latina, bem como, buscaram implementar sua atividade

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levou o presidente Franklin Roosevelt a concentrar o foco de seu primeiro mandato em


programa de assistência social e recuperação econômica. Assim, mesmo quando as tensões
políticas e militares começaram a se alastrar pela Europa e Roosevelt demonstrou interesse
em conduzir uma intervenção pacífica, seus planos foram frustrados pelo Congresso, por
diversas instituições sociais e veículos de comunicação, que defendiam que os Estados
Unidos deveria se preocupar com seus próprios problemas em vez de se envolver em uma
“guerra estrangeira”5.
Essa posição começou a mudar lentamente em 1939, com o início oficial do conflito e
recebeu maior apoio com a queda da França em 1940, porém, os Estados Unidos só tomaram
parte na guerra após o ataque a Pearl Harbor. Reconhecido como um político temeroso que
buscava o apoio de diferentes grupos para levar adiante seus projetos mais ambiciosos,
Roosevelt buscou o apoio de diversos setores sociais, incluindo facções antagônicas e
conflitantes, para conduzir o país durante o conflito6. A participação em uma “guerra total”
exigia a mobilização de toda a população e a conversão para uma economia de guerra,
todavia, os Estados Unidos ainda enfrentavam uma série de problemas advindos da Grande
Depressão, de modo que não estavam econômica, militar e psicologicamente preparados para
se envolver em um conflito armado de grandes proporções7.
Considerando esse cenário, era essencial mobilizar os meios de comunicação de massa
como forma de estabelecer um esforço nacional coeso, uma vez que, conforme indicavam os
estudos sobre propaganda supracitados, eles serviriam não apenas informar o público e
propagandear as ações do governo, mas também para difundir imagens positivas dos Aliados
e negativas do Eixo, veicular mensagens sobre a importância da mobilização para o esforço de
guerra, associar a necessidade da vitória à preservação dos chamados “valores americanos”,
enfim, modelar o comportamento e as ideias da população a respeito do conflito, objetivando
canalizar os esforços para as iniciativas de interesse do governo. Entretanto, Roosevelt era
bastante receoso quanto aos efeitos de uma mobilização muito direta ou que fosse entendida
pelo público como uma tentativa de controle, de modo que acreditava que a melhor maneira

comercial com todas as regiões do globo. PECEQUILO, Cristina Soreanu. A política externa dos Estados Unidos. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2011, p. 30-31.
5
KIMBALL, Warren F. The juggler: Franklin Roosevelt as wartime statesman. Princeton: Princeton University Press, 1991,
p. 10.
6
GOODWIN, Doris Kearns. No ordinary time: Franklin and Eleanor Roosevelt. The home front in World War II. Nova
Iorque: Simon & Schuster, 2008, p. 137
7
Para um amplo panorama do context interno estadunidense durante a participação na Segunda Guerra Mundial, conferir:
ADAMS, Michael C. C. The best war ever – America and World War II. Baltimore: The John Hopkins University Press,
1994.

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de envolver a população seria por meio de uma propaganda convidativa e agradável, que
parecesse descolada dos interesses do governo8.
Nesse sentido, o cinema hollywoodiano oferecia uma série de vantagens para difundir
esse tipo de propaganda, pois, conforme afirmam Leif Isaakson e Folke Furhammar, os filmes
de propaganda se assemelham em muito ao formato do cinema hollywoodiano, de modo que
as produções estadunidenses foram bastante estudadas após a Primeira Guerra Mundial para
encontrar maneiras de refinar os filmes de propaganda, tornando-os mais atraentes para os
espectadores9. Algumas dessas particularidades já haviam sido apontadas, não sem certo
exagero, por Bernays em 1928:

O filme estadunidense é o maior veículo inconsciente de propaganda no mundo


atual. É um grande distribuidor de ideias e opiniões. O filme pode padronizar as
ideias e hábitos de uma nação. Devido ao fato de que são produzidos para suprir
demandas de mercado, eles refletem, enfatizam e até mesmo exageram amplas
tendências populares, em vez de estimular novas ideias e opiniões. O filme se vale
somente de ideias e fatos em voga. Da mesma forma que o jornal busca prover
notícias, o cinema busca prover entretenimento10.

Em primeiro lugar, devemos considerar que, ao longo dos anos 1920, Hollywood não
mediu esforços para se firmar como uma indústria lucrativa e respeitável que produzia uma
arte de alto valor estético, a qual deveria ser utilizada para entreter e educar, bem como,
visava a estabelecer os “padrões de qualidade” para o cinema de modo geral. Ao início da
década de 1930, Hollywood era uma indústria organizada e monopolista, na qual os oito
maiores estúdios, chamados de majors – 20th Century-Fox, Metro-Goldwyn-Mayer (MGM),
Paramount, RKO Radio Pictures, Warner, Columbia, Universal e United Artists –
controlavam todos os aspectos da produção, divulgação, circulação e exibição dos filmes,
incluindo o gerenciamento das principais salas de cinema do país. Empreendendo um cartel
semicompulsório, os estúdios estipulavam medidas protecionistas para obter maiores lucros,
impedir intervenções governamentais e barrar a ascensão de pequenos produtores, enquanto
reduziam ao máximo qualquer tipo de concorrência entre si. Esse monopólio ficou conhecido
como studio system11.

8
KOPPES, Clayton R.; BLACK, Gregory D. Hollywood goes to war: How politics, profits, and propaganda shaped World
War II movies. Los Angeles: University of California Press, 1990, p. 50; SCHATZ, Thomas. Boom and bust: The American
cinema in the 1940’s. Nova Iorque: Charles Scribner’s Sons, 1997, p. 139.
9
FURHAMMAR, Leif; ISAAKSON, Folke. Cinema e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976, p. 12-13.
10
Tradução livre do autor. BERNAYS, 1928, p. 156.
11
BALIO, Tino. Mature oligopoly. In: BALIO, Tino. The American film industry. Madison: The University Wisconsin
Press, 1985, p. 253.

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Além dessa organização que garantiu poder político e econômico para os estúdios,
Hollywood contava ainda com a assessoria da Motion Pictures Producers and Distributors of
America (MPDDA), instituição responsável por consolidar e difundir uma imagem respeitável
da indústria cinematográfica, bem como, estabelecer negociações com o governo quando isso
se mostrasse necessário. Parte importante dessa imagem positiva estava relacionada com a
aplicação do Production Code, um código de censura que regulava questões relacionadas a
violência, sexualidade, comportamento, entre outros elementos, sendo um dos principais
responsáveis por dotar aos filmes hollywoodiano de um profundo moralismo cristão. A
Producers Code Administration (PCA), uma junta de censores, avaliava as produções e dava
o aval para a exibição pública dos filmes ou, caso contrário, indicava os ajustes necessários
para que uma nova avaliação fosse realizada12.
Vale lembrar que Hollywood se desenvolveu em conjunto com seu público, criando e
popularizando fórmulas e padrões, concomitantemente, aprendendo a conhecer e explorar os
interesses dos espectadores. Parte significativa do apelo do cinema estadunidense se deve à
fórmula da narrativa clássica hollywoodiana, um “modelo de contar estórias” estruturado na
década de 1910 e que foi dominante até meados dos anos 1960, sendo que suas influências
ainda hoje são observáveis nas produções fílmicas estadunidenses. O termo “clássico” está
associado a uma série de características que definem esse cinema – elegância, unidade,
harmonia e circulação mainstream –, que é guiado por normas ético-sociais-políticas
derivadas de valores clássicos – como romance heterossexual, família nuclear, religiosidade
cristã, entre outras13. Todavia, não se trata de um sistema de regras totalmente fechado, mas
de um modelo: há disposições básicas a serem que seguidas que podem ser, ocasionalmente,
omitidas ou retrabalhadas, desde que não conduzam a uma ruptura brusca no sistema de
produção e no conteúdo das obras fílmicas14.
Para David Bordwell, a narrativa clássica hollywoodiana foca na continuidade e na
não-ambiguidade, privilegiando uma trama “lógica”, clara e acessível aos mais variados
públicos, sendo, desse modo, capaz de transcender fronteiras de classe. Além disso,
privilegia-se a ideia de progressão da estória, que se desencadeia a partir de relações de causa-
e-efeito, geralmente apresentadas em dois fios condutores. O fio condutor central compreende
uma estória que comumente se desenvolve nos seguintes moldes: de início, o público é

12
DOHERTY, Thomas Patrick. Pre-code Hollywood: Sex, immorality, and insurrection in American cinema, 1930-1934.
Nova Iorque: Columbia University Press, 1999, p. 5-7.
13
BORDWELL, David. The classic Hollywood style, 1917-1960. In: BORDWELL, David; STAIGER, Janet; THOMPSON,
Kristin. The classical Hollywood cinema: Film style & mode of production to 1960. Londres: Routledge, 1988, p. 3.

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apresentado a uma situação idílica, ocorre uma perturbação dessa condição, causada por um
“vilão” ou algum acontecimento inesperado, e os “mocinhos” buscam restabelecer a ordem
inicial, culminando no sucesso do final feliz. Já o fio condutor secundário serve para reforçar
o principal e geralmente está relacionado a algum elemento importante da trama central, como
o romance entre os protagonistas. Para manter a atenção do público, os eventos importantes
têm um timing mais ou menos correto para “acontecer”, enquanto elementos de edição e
narração são utilizados para enfatizar e relacionar ideias15.
O autor também assinala que todos os aspectos técnicos (som, edição, música,
fotografia, cenários, etc) estão presentes para confirmar a narrativa, torná-la mais
compreensível – o que torna o cinema hollywoodiano, nas palavras do autor, “excessivamente
óbvio”.. Essa redundância visa a envolver emocionalmente os espectadores, tornando-os
participantes no processo narrativo, fornecendo informações que lhes ofereçam a
oportunidade de formar expectativas e opiniões a respeito dos personagens16. A fotografia e a
cenografia contribuem para criar um espaço de ação harmônico captado, geralmente, a partir
de enquadramentos centralizados nos elementos humanos, enquanto os personagens são
apresentados como os responsáveis por “desenvolver” a trama. Nesse sentido, protagonistas e
antagonistas são facilmente identificáveis pelo espectador, pois suas ações, falas, gestos, etc,
corroboram seus papéis na estória. Essa condição serve tanto para contribuir para a orientação
do público quanto para apresentar modelos de comportamento aceitáveis dentro das regras
sociais e morais vigentes. Assim, Bordwell define que a narrativa clássica também é
caracterizada pelo uso bastante regrado das técnicas cinematográficas e pode ser considerado
um cinema altamente antropocêntrico17.
A predominância dos personagens dentro da narrativa levou ao surgimento de um
novo mercado dentro da indústria do cinema, o qual consistia em explorar o potencial
financeiro dos principais atores e atrizes de cada estúdio – as chamadas “estrelas” – não
somente por seus trabalhos frente às câmeras, mas também por suas vidas pessoais. Tal
prática recebeu o nome de star system e resultou em uma hierarquização entre os profissionais
de atuação. A importância da imagem de uma “estrela” perante ao público era considerada tão
importante que, após consolidada, dificilmente mudava, de modo que os atores passaram a ser
associados a certos tipos de papéis e gêneros cinematográficos, levando à constituição de

14
BORDWELL, Op. Cit., p. 4.
15
BORDWELL, Op. Cit., p. 16.
16
BORDWELL, Op. Cit., p. 7-8.
17
BORDWELL, Op. Cit., p. 5.

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estereótipos que favoreciam a identificação pelo espectador. Além disso, a preocupação com a
vida pessoal das “estrelas” estava relacionada à possibilidade das mesmas servirem como
modelos para o público, de modo que os estúdios buscavam apresenta-las como pessoas
comuns apesar do glamour hollywoodiano18.
Buscando se aproveitar da estrutura e da tradição do cinema hollywoodiano, o governo
estadunidense buscou estabelecer uma relação de troca de favores com os estúdios: as majors
se envolveriam na mobilização nacional com a produção de filmes de ficção e documentários
a para a mobilização interna; enquanto Washington garantiria benefícios à indústria
cinematográfica ao classificá-la como fundamental para o esforço doméstico de guerra;
comprometeu-se a não interferir com as atividades monopolistas ou no esquema de censura
vigente e prometeu apoio para melhorar os rendimentos provenientes da América Latina e da
Ásia19. Além disso, os sindicatos de profissionais da indústria cinematográfica se
comprometeram a evitar greves e perturbações durante a guerra20. O Bureau of Motion
Pictures (BMP), criado em 1942, tornou-se o órgão responsável por manter o diálogo entre
Hollywood e Washington, fornecendo orientações para o estúdios quanto à produção de
filmes de ficção e coordenando a produção curta-metragens informativos, de treinamento e de
propaganda, muito embora esse último termo fosse preterido em favor de equivalentes como
“educação” e “informação”21.
Buscando criar uma uniformidade quanto à produção dos filmes de guerra, o BMP
criou uma cartilha especializada, o Government Information Manual for the Motion Picture
Industry (GIMMPI). Dividido em uma introdução e seis seções, o documento objetivava
potencializar o envolvimento dos estúdios no processo de mobilização fomentando a
produção de filmes que ajudariam a “vencer a guerra”. Assim, o material oferecia sugestões
de temas a serem abordados, orientações para a construção de tramas e personagens, alertava
sobre a linha tênue que separava os filmes de propaganda dos filmes de “entretenimento
informativo”, entre outras questões. Em sintonia com o moralismo da censura hollywoodiana
e com os anseios do governo de encontrar uma forma de propaganda diluída em meio a uma

18
McDONALD, Paul. The star system: Hollywood's production of popular identities. Londres: Wallflower Press, 2005, p.
5-11.
19
SCHATZ, Op. Cit., p. 155.
20
SCHATZ, Op. Cit., p. 164.
21
DOHERTY, Thomas. Projections of war: Hollywood, American culture and World War II. Nova Iorque: Columbia
University Press, 1999, p. 43-44; KOPPES; BLACK, Op. Cit., p. 58-59; SCHATZ, Op. Cit., p. 139-140.

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atividade de lazer, o GIMMPI incentivava à divulgação de uma imagem idealizada dos


Estados Unidos22.
Apesar de o GIMPPI ser inicialmente bem recebido pelos estúdios, o relacionamento
entre Hollywood e Washington se tornou bastante conturbado após a majors encontrarem
formas bastante próprias de seguir o manual. Isso desagradou os diretores do BMP, pois
consideravam que as produções cinematográficas acabavam por diluir demais as orientações
da cartilha, tirando o impacto de questões importantes. O BMP procurou fazer intervenções,
porém, quando os filmes modificados aos moldes da instituição se mostraram um fracasso de
crítica e bilheteria, os estúdios passaram a atacá-la. Mesmo estando diretamente ligado ao
governo federal, o Bureau não tinha poderes políticos ou econômicos efetivos, uma vez que
estava inserido na caótica burocracia do governo Roosevelt, que visava a manter um
equilíbrio de poderes e atribuições entre os diferentes apoiadores, a qual frequentemente
gerava uma imobilidade por parte de diversos órgãos. Com poderes reais, os estúdios
conseguiram levar adiante a sua visão do material oficial, tornando o BMP um fracasso23.
Entretanto, muitos filmes sobre o esforço de guerra fizeram sucesso, trazendo grandes
lucros para Hollywood e consolidando-a como uma indústria estável e politicamente
influente. Como explicar esse cenário? Defendemos que os estúdios se valeram de suas
próprias experiências para melhor aproveitar as oportunidades oferecidas pela aproximação
com o Estado durante a guerra, produzindo filmes que estavam em sintonia com os gostos do
público de cinema ao mesmo tempo em que evitavam uma propaganda que pudesse ser
classificada como coercitiva ou exagerada. Além disso, as majors empreenderam técnicas
para burlar as dificuldades econômicas de produção e distribuição dos filmes, mantendo o
mercado constantemente aquecido. Por fim, salientamos que Hollywood levou adiante um
processo de mobilização que ia além da produção fílmica, envolvendo o alistamento de seus
profissionais, a prestação de serviços voluntários por algumas das estrelas, entre outras
iniciativas que consolidaram uma imagem patriótica da indústria cinematográfica
estadunidense, a qual perdura até hoje.

Referências bibliográficas

ADAMS, Michael C. C. The best war ever – America and World War II. Baltimore: The
John Hopkins University Press, 1994.
22
BUREAU of Motion Pictures. Government information manual for the motion picture industry. Disponível em:
http://bl-libg-doghill.ads.iu.edu/gpd-web/historical/gimmpi/gimmpiintro.pdf. Acesso em: 09 mar. 2013.
23
DOHERTY, 1999b, p. 46; KOPPES; BLACK, Op. Cit., p. 84; SCHATZ, Op. Cit., p. 141.

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