Você está na página 1de 21

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/237709139

A Figura do Tio Sam na Propaganda Política dos Estados Unidos em Guerra

Chapter · January 2004

CITATIONS READS

0 11

2 authors, including:

Fábio Chang de Almeida


Centro Universitário La Salle (Unilasalle)
14 PUBLICATIONS 46 CITATIONS

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

Os “Fabricantes de Mentiras”: notícias falsas e boatos na imprensa brasileira (1930 - 1939) View project

O Fascismo Latino-Americano: mapeamento e reflexões View project

All content following this page was uploaded by Fábio Chang de Almeida on 26 December 2020.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


Jovens Pesquisadores:
A Ciência e o Conhecimento do Mundo

Organizadoras Autores
Tânia Cruz Adriane Bell6-Klein
Marininha Aranha Rocha Alberto Vasconcellos Inda Junior
Antonio S. Takimi
Camila Bauer Brõnstrup
Orientadores Caroline Haas
Aldo Bolten Lucion Celso Rodrigues Frand
Carlos Alberto Bissani Charlis Raineki
Carlos P. Bergmann Charteris Santos dos Santos
César Leandro Schultz Clarissa dos Santos Ferreira
Cláudio Galleano Zettler Deborah Pinheiro Dick
Cl6vis Dias Massa Elvio Giasson
Jorge Rubio Elvis Carissimi
Marlise Gionanaz Fábio Chang de Almeida
Volnei Alves Corrêa Gustavo de Azambuja Pereira Filho
Janete Anselmo-Franci
Jaqueline Barp
LálU'Cn Batista Brondani
Luis Felipe Machado do Nascimento
Pf~()PFSO Marco Aurélio de Araújo
Maristela Fiess Camilo
Marta Knijnik Lucion
Miriarn Reichel
Norma Possa Marroni
Oscar Rafael Gadea Quinõnes
Shana Sabbado Flores
Sílvio José Gobbi
EDIT()RA Vicenzo da Cruz Piccoli
© dos autores
Direitos reservados desta edição:
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Capa: Carla M. Luzzato


Revisão: Luciana H. Balbueno
Editoração eletrônica: Luciane Delani
Ilustrações: fornecidas pelos autores

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pró-Reitoria de Pesquisa.


Jovens pesquisadores : a ciência e o conhecimento do mundo
/ organizado por Tânia Rodrigues Cruz e Marininha Aranha
Rocha. - Porto Alegre : Editora da UFRGS, 2004.

167 p. : il.

Inclui referências bibliográficas

} .Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2. Pesquisa -


Iniciação científica - Integração universitária - Estudante -
Universidade. 3. UFRGS - Pesquisa - Iniciação científica. I.
Universidade federal do Rio Grande do Sul. II. Pró-Reitoria
de Pesquisa. III Cruz, Tânia Rodtigues. IV. Rocha, Marininha
Aranha. V.Título.

CDU 061.4:001.891:378
Catalogação na publicação: Biblioteca Central da UFRGS
A FIGURA DO TIO SAM
,,,. NA PROPAGANDA
POLITICADOS ESTADOS UNIDOS
EM GUERRA
Charteris Santos dos Santos
Fábio Chang de Almeida
Marlise Giovanaz (orientadora)
Resumo:
Se olharmos para os modernos Estados Nacionais, podemos observar que a
grande maioria criou, adotou ou apropriou-se, durante o seu processo de
afirmação como nação, de uma variedade de símbolos que funcionam como
pontos de referência, evocação de sentimentos patrióticos, transmissores de
idéias. Um dos principais usuários desse "arsenal simbólico" são os órgãos
de Propaganda Política desses Estados. Nosso recorte temático, está centrado
nas representações do Tio Sam na propaganda política dos EUA em perio-
dos de guerra através de pôsteres.
Palavras-chave: Estados Unidos . Propaganda política . Segunda Guerra
Mundial.
Ahstract:
Ifwe look to the modern national states, we can observe that a great number
have created, adopted or appropriated, during their process of national
affirmation, a variety of symbols that worked as reference evocation of
patriotic feeling, conductors ofideas. One ofthe main users of this "symbolic
system" are the political propaganda agencies of these countries. Our theme
is centered on the representations of Tio Sam political propaganda in the
USA, in times of war through american propaganda posters.
Keywords: United States. Political propaganda . Second World War.

46
Introdução
Quando pensamos nos elementos que definem uma
nação, algumas idéias vêm à mente de praticamente todo
mundo: ela deve possuir um território definido, seus mem-
bros falam o mesmo idioma e uma identidade cultural
característica deve ser reconhecida pela maioria. Contu-
do, nem sempre as nações são formadas por grupos cul-
turalmente homogêneos, pois muitos países surgiram da
união ou anexação (às vezes com o uso da força) de dife-
rentes povos e etnias. As contradições internas são uma
ameaça à estabilidade das nações, tornando necessária
para as suas legitimações a definição de uma "cultura na-
cional" unificadora.
Se olharmos para os modernos Estados Nacionais,
podemos observar que a grande maioria construiu, adotou
ou apropriou-se, durante o seu processo de afirmação
como nação, de uma variedade de símbolos que funcio-
nam como pontos de referência, evocação de sentimen-
tos patrióticos, transmissão de idéias ou representação dos
"anseios" do país (anseios da elite dirigente). Um dos prin-
cipais usuários e difusores desse "arsenal simbólico" são
os órgãos de Propaganda Política desses Estados. 1
Nosso recorte temático, centrado nas representações
do Tio Sam na propaganda política dos EUA em perío-
dos belicosos, originou-se da nossa experiência com ou-
tra pesquisa, mais específica, acerca do período da Segun-
da Guerra Mundial. Nesse trabalho, identificamos uma
grande variedade de veículos utilizados nas campanhas
de propaganda da época, dentre os quais concedemos
preferência para os pôs teres.

1 É importante definirmos a palavra Propaganda, pois no português essa palavra tem seu
significado compartilhado com a palavra publicidade, diferentemente de outras línguas
como o inglês (propaganda x advertising), espanhol (propaganda X publicidad) e o fran-
cês (propagande X publicité). O termo Propaganda refere-se à transmissão de idéias e
conceitos, que podem ser religiosos ou políticos por meio de diversas técnicas, sempr:e com
o objetivo de moldar as opiniões do público alvo. Este debate é feito por Nelson Jahr
Garcia na apresentação do livro ''A Propaganda Política", de Jean-Marie Domenach. 47
Ao concentrarmos nosso foco neste meio de comu-
nicação, deparamo-nos com um volume muito grande de
imagens do personagem Tio Sam, tido como um dos prin-
cipais símbolos nacionais dos EUA. 2 Aprofundando o es-
tudo, percebemos que a utilização do personagem não
foi comum apenas durante a Segunda Guerra, 1nas em
praticamente todas as "campanhas de guerra" do gover-
no norte-americano nos séculos XIX e XX.

História do personagem
Não há consenso entre os historiadores a respeito
da história do personagem. Segundo a versão mais aceita
nos Estados Unidos, a tradição do Tio Sam surgiu a partir
de uma brincadeira entre soldados durante a guerra con-
tra a Inglaterra em 1812. Eles rccebia1n os suprimentos
alimentícios em barris que vinham com a inscrição "U .S. ",
sigla utili1.ada pelo exér-
cito e que significa
United States (Estados
Unidos). As letras foram
associadas ao nome de
u1n dos fornecedores do
governo, Samuel Wilson,
fabricante e co111ercian-
te de carne cm conserva.

Única foto conhecida do


verdadeiro Samuel Wilson.
Imagem obtida no site "The Old
'li mes"

Filho de imigrantes judeus, Wilson nasceu em


Arlington, Massachussets no dia 13 de setembro de 1766,
falecendo e1n 1854. A "brincadeira" dos soldados consistia

2 A pcr11011agcm ·r.oSam foi oficialmente reconhecido como símbolo nacional cm 1961 pelo
48 Congrcs.~o dos E UA.
em simplificar o nome de Samuel Wilson para wfio Sam"
( Unc/,e Sa1n em inglis), e associá-lo à sigla gravada nos barris
de alimentos criando-se assim um personagem que, sen-
do o responsável pela alimentação das tropas, acabava por
representar a própria administraçãó federal.
Ainda no século XIX, o chargista Thomas Nast criou
um personagem baseado nessa história, já com suas rou-
pas características imitando a bandeira norte-americana,
para representar o governo dos EUA em seus cartuns.
A aparência com a qual nós estamos acostumados só
surgiu no início do século XX, quando o famoso ilustra-
dor James Montgomery Flagg utiJizou sua própria ima-
gem para desenhar
a fisionomia do per-
so na ge m, agora
com o tradicional
cavanhaque, no fa-
moso pôster de alis-
tam.e n to do exérci-
to de 1916, duran-
te a Primeira Guer-
ra Mundial.
Exemplo de representação
do Tio Sam feita por
Thomas Nast cm 1876.
Note que o personagem é
desenhado corno um
homem loiro, relativamen-
te jovem, de cartola negra e
ainda sem o cavanhaque.
1magem ohtiJa m, site
"Thc: Old limes".

Referencial teórico
Bronislaw Baczko, Pierre Bourdieu, e Sandra
Pesavento, alguns dos autores onde buscamos nosso
referencial teórico, estão ligados à corrente da historiografia
chamada "Nova História Cultural". Neste sentido, nossa
discussão historiográfica sobre o tema foi pautada e1n três
conceitos básicos: sistema simbólico, representação e ima-
ginário, tornando-se interessante neste mo1nento a apre-
sentação dessas idéias. 49
-~?=·~::.:::~.::::·~:::)::rt::=.;::::::::::;:\\fJ::::f:Jt}t::=:=:·::?·::·i~:::::::1:::;:::.:::::;:;'.;'.,::·:::;~:(:~_~~~:-:-❖~:::x:i~<~~..:-:-t.· :~
•• ,•• • • •••·• ...-..•• •••ui'•••· l',,._-,v,,.• •'. >

''.< ;;}'
r. -: :
..
1:
~

. :':}·: i '.
·•·:•::. '

1 _., _,_,,_ . ..;f;;~-, -!',


. FOR u. s.Alfllti .
,;s;}-~ 1~ ~!;!: .. .
1 ,

.. .............,. .

I Want You! O famoso pôster de James Montgomery Flagg. Imagem obtida no


site da Biblioteca da Universidade de Minnesota.)

Em qualquer grupo social, mesmo apresentando di-


ferenças err1 sua organização, encontramos uma variada
utilização de símbolos que são reconhecidos pelo grupo.
Estes sisten1as simbólicos são utilizados por exemplo, na
legitimação da ordem estabelecida, identificação do gru-
po e hierarquização social. A partir dessa idéia podemos
rec:onhecer a importância destas construções no mundo
social, pois segundo Pierre Bourdieu:

Os símbolos são instrumentos por excelência da integração social: enquanto


instrumentos de conhecimento e de comunicação (cf. a análise
durkheiminiana da festa), eles tornam possível o consensus acerca do senti-
do do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da
ordem social: a integração lógica é a condição da integração moral. (Bourdieu,
1998: 10)

O domínio e o largo emprego de símbolos pelos Es-


tados modernos, como bandeiras, hinos e brasões, de-
monstra que os governos percebem a importância deste
tipo de ferramenta em sua afirmação de identidade nacio-
50 nal ou campanhas de propaganda política.
Bourdieu afirma também que os símbolos só exer-
cem efeito quando o público alvo (povo), ignora a sua
imposição por parte do grupo dominante, daí a preocu-
pação dos propagandistas em assimilar personagens que
já fazem parte da cultura popular, caso do Tio Sam. A
partir do momento em que o símbolo ganha sentido para
o grupo, ele funciona con10 uma representação.
Entende-se por representação, algo que ao ser iden-
tificado pelo espectador o remete automaticamente a
outros objetos ou senti1nentos. A representação evoca a
ausência ou sugere a presença da realidade representada
(Ginzburg, 2001, p. 85). Por exemplo: uma bandeira não
é o país, mas ao ser vista em qualquer lugar do mundo
traz àqueles que a reconhecem, urna evocação da pátria
que ela representa. Também podem fazer este papel
evocador: 1núsicas, desenhos, bandeiras e uma variedade
imensa de outras construções.
Já por imaginário chamamos todas as construções
coletivas de interpretação e organização social a partir de
símbolos e representações (por exemplo, a deificação do
poder real garante a permanência deste "status"). O con-
junto das representações elaboradas pela sociedade (se-
jam elas criadas propositalmente ou sem um marco de
origem definido) formam o que entendemos por imagi-
nário social. E, segundo Pesavento,1995, p. 24, "o imaginá-
rio social se expressa por símbolos, ritos, discursos e re-
presentações alegóricas figurativas". (grifo nosso)
Com estas características, o domínio do imaginário
torna-se objeto de disputas e, como nos afirma Bronislaw
Baczko,

O controle do imaginário, de sua reprodução, de sua difusão e de seu


gerenciamento assegura, em degraus variáveis, um impacto sobre as condu-
tas e atividades individuais e coletivas, permite canalizar energias, influen-
ciar as escolhas coletivas nas situações surgidas tanto incertas quanto
imprevisíveis. (Baczko, 1987, p. 312)

Hoje se reconhece a importância que o imaginário


tem corno elemento da construção e da organização da
produção historiográfica. Segundo Sandra]. Pesavento:
51
O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e signifi-
cado, jogo de espelhos onde o 'verdadeiro' e o aparente se mesclam, estra-
nha composição onde a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e
difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um se-
gredo, é buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a
representação do ser e parecer. Não será este o verdadeiro caminho da His-
tória? Desvendar um enredo, desmontar uma intriga, revelar o oculto, bus-
car a intenção? (Pesavento, 1995, p. 24)

O personagem Tio Sam é um dos símbolos mais re-


conhecidos dos Estados Unidos e o governo daquele país
utilizou sua representação em diferentes veículos de co-
municação, principalmente durante os períodos de guer-
ra. São estas representações e seus contextos de produ-
ção e difusão que nossa pesquisa busca analisar.

As técnicas de propaganda política


Analisando os documentos coletados, foi possível
identificar algumas das técnicas utilizadas pelo governo
dos EUA em suas campanhas de propaganda. Uma práti-
ca comument.e empregada baseia-se na chamada "lei da
unanirnidade" ou bandwagon. 1
Podemos dizer que tal lei consiste no princípio cot.i-
dianamente representado através da expressão "Maria vai
com as outras", ou seja, a intenção do propagandista é
arn1igar no público a idéia de que determinada atitude
ou pensamento está sendo tomada pela maioria da popu-
lação. Dessa forma, quem não quiser ser anormal, deve
seguir a tendência "natural", intuitivamente ditada pela
campanha de propaganda. Esta tendência "natural" pode
existir efctiv<1mente e, neste caso, a propaganda serve ape-
nas para reforçá-la. Todavia, se a tal tendência é apenas
desejada mas ainda não existe, a propaganda serve para
fabricá-la no imaginário popular. Em outras palavras, a
técnica do bandwagon é usada para criar, ou reforçar, o
sentimento de unidade, de pertencer a um gn1po expres-
sivo, forte e coeso. Um pôster da época da II Guerra Mun-
dial, disponível no site" Snapshots of the Pasf', exemplifica

1 Diversas técnicas de propaganda, incluindo aquelas conhecidas como handwagon e plain


52 fdks, são didaticamente descritas no site "Propaganda Cntic,,.
bem a intenção de criar-se uma atmosfera de unidade em
um grupo forte e coeso. Nele um sério Tio Sam presta
continência para trabalhadores civis enquanto o letreiro
adverte: "Nós estamos todos no exército agora! Vamos
todos trabalhar para vencer!".
Ao mesmo tempo procura-se criar o sentimento de
mal-estar para quem fica excluído do grupo. Segundo
Jean-Marie Domenach:

A unanimidade é ao mesmo tempo uma demonstração de força. Um dos


alvos essenciais da propaganda é manifestar a onipresença dos adeptos e a
superioridade deles sobre o adversário. Os símbolos, as insígnias, as ban-
deiras, os uniformes, os cantos, constituem um clima de força indispensável
à propaganda. Trata-se de mostrar que 'estamos lá' e que 'somos os mais
fortes' . (Domenach, A Propaganda Política. Livro eletrônico e-book dis-
ponível no site "F.books Brasil")

Pôster da época da I Guerra Mundial, que caracteriza a tentativa de criar um


sentimento de mal estar naqueles que não pertencem ao grupo. Observem a
expressão (digna de pena) do cidadão intimidado por um severo Tio Sam que
pergunta: "Onde está o seu button do bônus da liberdade?" E abaixo o cartaz
avisa: "Seu dinheiro deve vencer a guerra". Imagem disponível no site
"Snapshots of the Past".)

Outra técnica por nós identificada é conhecida como


plain folks ("gente comum"). Normalmente ela é utiliza-
da por políticos que desejam se aproximar das pessoas
mais simples e despolitizadas através de atitudes populistas.
A idéia é "fazer o que as pessoas comuns fazem".
Nos casos por nós estudados, a técnica não é utiliza-
da para promover candidatos políticos, mas sim para trans-
formar o próprio Tio Sam em uma pessoa comum, que 53
tem hábitos típicos do cidadão estadunidense. A inten-
ção é "naturalizar" a imagem do personagem, transfor-
mando-a em uma encarnação mais representativa da iden-
tidade norte-americana. Assim, Unc/,e Sam acorda uma hora
mais cedo durante o esforço de guerra, em um pôster do
período da Primeira Guerra Mundial, fabricado pela
United Cigar Stores Company, e obtido no site da Biblioteca da
Universidade de Minnesota. Nele temos um Tio Sam so-
nolento, acordando e vestindo um pijama estrelado en-
quanto o letreiro adverte: "Tio Sam, seus inimigos já le-
vantaram e estão trabalhando na hora extra de luz do dia.
Quando você vai acordar? Adiante o relógio uma hora e
vença a guerra!". Em outros exemplos Tio Sam,joga basebaJl
ou trabalha nas fábricas, usando o característico boné de
operário norte-ameri-
cano (pôster de
McClelland Barclay, do
período da Segunda
Guerra Mundial, distri-
buído pela National
Association of Manu-
Jacturers, obtido no site
da Biblioteca da Uni-
versidade de Minne-
sota).
Pôster do período da l Guerra
Mundial, criado pelo "Publicity
Committee : Citizens Get in lhe Game
Preparedness Association",
mostrando o Tio Sam jogando
Witb Unc·le .Sam
baseball. Imagem obtida no site
da Biblioteca da Universidade
de Minnesota.)

A própria encarnação da nacionalidade


estadunidense na figura de um velho com roupas extra-
vagantes evidencia uma terceira técnica empregada pelos
órgãos de propaganda estadunidenses, baseada na "lei da
simplificação". Como o próprio nome sugere, a lei con-
siste basicamente em apresentar como simples algo que é
54 naturalmente complexo.
Um exemplo do emprego da técnica da simplifica-
ção em cartazes pode ser visto em um pôster da Federal
Fuel Administration Conservation Division, que faz parte de
uma campanha de racionamento e economia de combus-
tível, disponível no site da Biblioteca da Universidade de
Minnesota. Ainda do período da Primeira Guerra Mun-
dial, o cartaz resume em uma frase a complexidade do
conflito: Are you working for Unc/,e Sam or the Kaiser? (Você
está trabalhando para o Tio Sam ou para o Kaiser?).
Pela técnica da simplificação, basta uma frase; um
estímulo sonoro ou visual para despertar determinado
sentimento previsto para o receptor. Esta técnica, (não
por acaso), tem raízes na teoria dos reflexos condiciona-
dos de Pavlov, onde um estímulo planejado desperta uma
reação . desejada
. em um indivíduo previamente condicio-
nado. E a técnica dos símbolos por excelência. Cabe res-
saltar que a simplificação da Nação na figura do Tio Sam
é apenas um ( talvez o mais emblemático), dos exemplos
de criação e condicionamento de símbolos norte-ameri-
canos. Nos contextos de guerra, normais para os EUA,
(visto que anormais são os períodos de paz), são estimu-
ladas também a imagem da bandeira nacional, (com as
representativas estrelas e listras), o hino nacional ( The Star-
Spangkd Banner), a Estátua da Liberdade, (mais ainda após
os atentados de 11 de setembro de 2001), a Colúmbia
(encarnação feminina da Nação, e mais antiga do que o
Tio Sam), a canção Yankee Dood/,e, a águia (ave nacional) e
outros símbolos, normalmente associados às palavras "li-
berdade" e "democracia". 1
Na verdade, a técnica da simplificação é largamente
usada em propaganda política. Não foram apenas os Es-
tados Unidos da América que buscaram representar em
símbolos a própria Nação ou o esforço de guerra. Duran-
te a Segunda Guerra Mundial a Inglaterra criou o "V" da
vitória, além de explorar a figura popular de Sir Winston
Churchil e do mal encarado buldogue. A URSS imprimiu
à exaustão cartazes com a imagem de Stalin e o símbolo
foice-martelo. Na Alemanha nazista o culto ao líder causava

1 No site do Departamento de Estado dos EUA encontramos a descrição dos principais


símbolos que representam os Estados Unidos da América. 55
comoção nacional, e são incontáveis os exemplos de car-
tazes, cartões postais, war stamps, e filmes que exploravam
a imagem de Adolf Hitler, além da suástica e da águia
nazista.
Justamente nesta comparação percebemos que, se
por um lado as leis da propaganda política usadas no
mundo em guerra se parecem, de outro notamos que para
os Estados Unidos faltava a figura de um grande e popu-
lar líder político. Ainda tomando o período da II Guerra
corno referencial, percebemos que enquanto a Inglater-
ra tinha Churchill, a URSS tinha Stalin e a Alemanha ti-
nha Hitler, os EUA careciam de um elemento aglutinador
que personificasse os anseios populares. Durante a II
Guerra Mundial foram feitas tentativas de utilização em
larga escala da figura dos presidentes Franklin Delano
Roosevelt e Harry Trurnan, e generais como Dwight D.
Eisenhower, mas sem grande retorno em termos de iden-
tificação popular. O Tio Sam preencheu (e ainda preen-
che) essa lacuna.
Também é possível perceber a preocupação dos ór-
gãos de propaganda com a individualização do inimigo.
Segundo Domenach, "uma boa propaganda não visa a
niais de um objetivo de cada vez. Trata-se de concentrar o
tiro em um só alvo durante dado período". Assim, perce-
bemos que durante algumas campanhas de propaganda
yankee na II Guerra, os "tiros" disparados pelos propagan-
distas norte-americanos foram concentrados em alvos
nazistas.
Em outras, os alvos passaram a ser japoneses. Especi-
almente nos cartazes onde o Tio Sam interage com a "ame-
aça japonesa", notamos uma surpreendente semelhança
com a propaganda segregacionista da Alemanha nazista.
Isso por conta das representações racistas e estereotipa-
das do inimigo japonês. Imagem obtida no site da Biblio-
teca da Universidade de Minnesota.. Nestes casos foram
explorados antigos preconceitos com relação aos povos
asiáticos, acentuando-os e direcionando-os contra o Japão.
Trata-se de outra conhecida técnica de propaganda, a
chamada "lei da transfusão". De acordo com Domenach:
56
Jamais acreditaram os verdadeiros propagandistas na possibilidade de se
fazer propaganda a partir do nada e impor às massas não importa que idéia,
em não importa que momento. A propaganda - em regra geral - age sempre
sobre um substrato preexistente, seja uma mitologia nacional (a Revolução
Francesa, os mitos germânicos), seja simples complexo de ódios e de pre-
conceitos tradicionais: chauvinismos, fobias ou filias diversas ...
(DOMENACH, A Propaganda Política. Livro eletrônico e-book dispo-
nível no site "Ebooks Brasil")

·:;:~i . .. . '''!l,~
'/h~,
.
..:il·:::i

Um dos mais famosos exemplos de


pôster anti~aponês da II Guerra
Mundial, criado por James
Motgomery Flagg. Imagem
disponível no site "Snapshots of the
Past,').

Cartaz de 1942 estereotipando os


japoneses) 57
Outra técnica clássica de propaganda políúca baseia-
se na prática da orquestração. Apesar de ter sido sistema-
tizada no século XX pelo propagandista nazista Joseph
Goebbels, esta técnica é muito mais antiga, baseando-se
no princípio fundamental da repeúção. Para que uma
can1panha de propaganda seja efetiva, ela deve ser repeti-
da à exaustão. Mas a repetição deve ocorrer de diferentes
formas, variando os meios, para não se ton1ar enfadonha.
Diz Jean-Marie l)omenhach que:

uma grande campanha de propaganda tem êxito quando se amplifica em


ecos indefinidos, quando consegue suscitar um pouco por toda a parte a
retomada do mesmo tema e que se estabelece entre os seus promotores e os
seus transmissores verdadeiro fenômeno de ressonância, cujo ritmo pode
ser seguido e ampliado. (D omenach, A Propag-c1nda Política. Livro eletrô-
nico e-book disponível no site "F:hooks Brasi l")

Nossa pesquisa procura analisar principalmente as


representações visuais do Tio Sam na propaganda norte-
a1nericana. Em função disso, fundamentamos nosso tra-
balho em documentação iconográfica, em sua essência
cartazes de guerra. Entretanto, cntra1nos em contato com
outras formas de representação visual do personagem
Unde Sam, que evidenciam a utilização de processos de
orquestração no estabelecimento da relação de condicio-
namento entre a população estadunidense e o velho ca-
valheiro de cartola estrelada.
Essa documentação alternativa é, em geral, n1enos
freqüente em nossas fontes, mas não por isso menos inte-
ressante. São normalmente nesses outros documentos que
percebemos representações visuais totalmente diferentes
daquelas encontradas nos cartazes. Imagens interessan-
tes podem ser vistas em cartões e selos postais, war stamps,
cartuns, quadrinhos (arte seqüencial), d esenhos anima-
dos, brinquedos infantis, etc. Um dos motivos pelos quais
não nos detivemos nesta documentação passa pelo fato
de que as mesmas - na maioria das vezes - não podem ser
consideradas como propaganda oficial do governo dos
EUA (configurando-se exceções os selos postais). Apesar
de possuírem claramente um fundamento ideológico pa-
triótico, moldando-se ao contexto em que foram produ-
58 zidas, estas fontes são resultado de iniciativas da socieda-
de civil. Po~uem fundamento nacionalist.a, é verdade, mas
regram-se pelas leis do mercado,. pois geralmente são re-
sultado de produ-
tos voltados ao
público consumi-
dor. fAEEIJ . . 1

...,.....
l li .w-...- ,

' -;

Capa da revista em
quadrinhos "Freedom
Fíghters 11 n.0 l de 1976,
da DC Comics, onde o
super-herói Uncle Sam
era uma das persona-
gens principais. A
"Frecdom Fightcrs" foi apenas uma das diversas revistas em quad rinhos que já
acolhemm o Tio sam em ·suas páginas).

Conclusão
O material por nós estudado po~ui um valor docu-
mental bastante significativo, e seu potencial enquanto
fonte historiográfica é muito grande. As representações
do Tio Sam nos cartazes, selos, revistas em quadrinhos,
cartões postais e outros meios revelaram-se ricas em deta-
lhes merecedores de uma análise mais atenciosa. Por
exemplo, em um cartaz de 1918 (" Side úy side - Britannia".
Pôster obtido no site da Biblioteca da Universidade de
Minnesot.a), te1nos as representações nacionais dos EUA
e da Inglaterra caminhando lado a lado, de braços dados,
trocando olhares afetuosos. Ela carrega um tridente, sím-
bolo do poderio naval do Império Britânico, e faz-se acom-
panhar de um leão, outro símbolo inglês tradicional. Ele 59
en1punha uma espada, simbolizando o poder terrestre do
exército dos EUA e faz-se acompanhar da águia america-
na.
Interessante perceber que, ern tempos de Guerra no
Iraque, o pôster pintado por James Montgomery Flagg
há 86 anos permanece mais atual do que nunca. Em 2004,
podemos imaginar um pôster pós-moderno, onde George
W. Bush e Tony Blair mantêm aquecido esse antigo ro-
mance.
Ainda hoje o personagem Tio Sam é utilizado como
representação do Estado norte-americano em revistas de
histórias em quadrinhos, charges, pôsteres, selos, desenhos
animados, ilustrações da internet e diversos outros meios de
comunicação. Sua imagem, ou simplesmente a pronúncia do
seu nome, não perdeu a capacidade de evocar os Estados
Unidos da América, fato comprovado pelas várias aparições
do personagem em revistas, jornais e "gibis" após os atenta-
dos ten~oristas de 11 de setembro de 2001.
Entretanto a imagem do velho cavalheiro está
desgastada. Após quase dois séculos de batalhas, a figura
do Tio Sam é hoje habilmente manipulada pelos gn1pos
de oposição ao governo norte-americano, muitas vezes
utilizando os antigos cartazes da I e II Guerras Mundiais,
adulterando-lhes os dizeres. Dessa forma, basta uma rápi-
da busca na internet para perceber que a maioria das ima-
gens do Tio Sam disponíveis na web não se relacionam
mais com a propaganda política do governo, mas sim com
a contra-propaganda.
Mesmo assim, Uncle Sa1n dá mostras de vitalidade.
Em 2002, aproveitando a Guerra contra o Terror e a inva-
são do Afeganistão, a editora Marvel reformulou o perso-
nagem Capitão América. Em sua nova fase ele auxiliou
no resgate às vítimas do WfC e caçou terroristas. As capas
da sua nova revista foram inspiradas em antigos pôsteres
do l'io Sarn.
Mas será que o Tio Sam ainda tem fôlego para con-
quistar multidões? Qual será o seu poder de persuasão
no século XXI? As respostas a essas perguntas resultarão
da História militar, política e econômica dos EUA no novo
século. Neste início de milênio, seqüências de interven-
60 ções bélicas além de suas fronteiras, fraudes eleitorais,
coação econômica e arrogância governamental estão preju-
dicando a imagem do Tio Sam. Paradoxalmente, os ataques
sofridos em 2001 re-
novaram as forças
deste símbolo norte-
americano. Enquan-
to essa História é es-
cri ta, o mito persiste. . ; ; /

•, >A,,)~;;•""''
.,:'.)f·
: •/ . ..,.
......- '

·. . . . . .

Exemplo de cartum pós-11 de setembro de 2001, utilizando o Tio Sam como


representação da nação norte-americana. Disponível no site "The Autentic
History Center".

,,~
:e.UY WAB B·ONDS .
•............. ,-. ............. . ... ..,, ... .;..,..... . .. . ........v.-.v.~

Note a semelhança entre a capa da revista Captain América n.0 1, de junho de


2002, e o pôster da II Guerrc1 Mundial (ohtido no site da Biblioteca da Universi-
dade de Minnesota). 61
Referências
BACZKO, Bronislaw. Les imag;,naires sociaux. Paris: Payot, 1987.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1998.
CHARTIER, Rogcr. Cultural History: bctwcen pratices and
rcpresentalion. Ncw York, Corncll Prcss, 1991.
DOMENACH, Jean-Marie. A propaganda política. ebook, disponível cm:
http:/ /www.cbooksbrasil.com/
FERRO, Marc. 1-Iistória da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Ática,
1995.
GINZBURG, Cario. Olhos de Madeira. Nove reflexões sobre a distância.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1984.
HOBSBAWN, Eric. A ~ra dos Extremos: o breve século XX 1914-1991.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
PESAVENTO, Sandra J. Em busca de uma outra Hütória: Imagi,nando o
imagi,nário. ln. Revista Brasileira de História, v. 15, n.º 29. São Paulo:
1995.
TEIXEIRA, Francisco C'..arlos. Os Fascismos. ln: REIS FILHO, Daniel
et al. O Século XX. Vol 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Primeira Guerra Mundial. Porto Ale-
gre: Editora da Universidade/UFRGS, 1996.
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. Segunda Guerra Mundial. 4. cd. Porto
Alegre: Editora da Univcrsidadc/UFRGS, 1996.
YAPP, Nick. 1940s the Hulton Gctty picture collcction. Londres, Ingla-
terra: Kõnc1nann, 1998.

62

View publication stats

Você também pode gostar