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Coordenação Didático-Pedagógica

Stella M. Peixoto de Azevedo Pedrosa

Redação Pedagógica
Tito Ricardo de Almeida Tortori
Frieda Marti

Revisão
Alessandra Muylaert Archer

Projeto Gráfico
Fundamentos do direito público e privado : apostila 2 DPP /
Romulo Freitas
coordenação didático-pedagógica: Stella M. Peixoto de Azevedo Pedrosa ;
Diagramação redação pedagógica: Tito Ricardo de Almeida Tortori, Frieda Marti ; revisão:
Luiza Serpa Alessandra Muylaert Archer ; projeto gráfico: Romulo Freitas ; coordenação
de conteudistas: Fernando Velôzo Gomes Pedrosa ; conteudistas:
Coordenação de Conteudistas Anvalgleber Souza Linhares, Francisco Cezar Magalhães Saavedra ; revisão
Fernando Velôzo Gomes Pedrosa técnica: Otávio Bravo ; produção: Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro ; realização: EsIE – Escola de Instrução Especializada [do]
Conteudistas Exército Brasileiro. – Rio de Janeiro : PUC-Rio, CCEAD, 2013.
Anvalgleber Souza Linhares
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais – CHQAO.
Francisco Cezar Magalhães Saavedra
40 p. : il. (color.) ; 21 cm.
Revisão Técnica Inclui bibliografia.
Otávio Bravo 1. Direito público - Brasil. 2. Direito privado – Brasil. I. Pedrosa,
Stella M. Peixoto de Azevedo. II. Tortori, Tito Ricardo de Almeida. III.
Produção Marti, Frieda IV. Linhares, Anvalgleber Souza V. Saavedra, Francisco
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Cezar Magalhães. VI. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Coordenação Central Educação a Distância. VII. Brasil. Exército. Escola
Realização de Instrução Especializada.
EsIE – Escola de Instrução Especializada
CDD: 342
Exército Brasileiro
CHQAO
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais

FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO


Unidade 3
DIREITO INTERNACIONAL HUMANITÁRIO
APRESENTAÇÃO
O Curso de Habilitação ao Quadro de Auxiliar de Oficiais (CHQAO),
conduzido pela Escola de Instrução Especializada (EsIE), visa habilitar os
subtenentes à ocupação de cargos e ao desempenho de funções previstas
para o Quadro Auxiliar de Oficiais.

A disciplina Fundamentos do Direito Público e Privado, possui carga


horária total de 90 horas.

Os objetivos gerais desta disciplina são:

• Conhecer conceitos constitucionais relacionados às instituições do


direito público e privado.

• Analisar o papel do cidadão diante da Constituição Federal, de fatos


relacionados à administração das instituições de direito público e
privado.

• Diferenciar atos e fatos jurídicos das instituições de direito público e


privado associados às noções de direito na administração pública.

• Descrever o Direito Internacional Humanitário e fornecer elementos


para identificação de sua problemática.

• Identificar as principais regras e convenções relacionadas ao Direito


Internacional Humanitário.

• Conhecer as principais regras da legislação penal militar brasileira.

• Conhecer as principais regras da legislação processual penal militar


brasileira.

• Empregar de maneira correta a legislação vigente.

Será apresentada agora a Unidade III – Direito Internacional Huma-


nitário, cujos objetivos – que acompanham o especificado no PLADIS –
estarão especificados por capítulo.

Boa leitura!
conteudistas

Anvalgleber Souza Linhares é bacharel em Ciências Militares pela Acade-


mia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e em Direito pelo Centro Universitário
de Barra Mansa (UBM). Possui mestrado em Direito pelo Centro Universitário
Salesiano de São Paulo e em Operações Militares pelo Departamento de Ensino
e Pesquisa do Exército (DEP). Concluiu os cursos de atualização em Direito Civil
Constitucional pela PUC/MG e em Direito Internacional de Conflitos Arma-
dos (DICA) pela Escola Superior de Guerra. Na Academia Militar das Agulhas
Negras (AMAN) é docente da Cadeira de Direito e membro do corpo editorial
da Revista Científica Anuário. É membro do Colegiado do Curso de Direito no
Centro Universitário de Barra Mansa, onde ministra as disciplinas Direito das
Obrigações, Contratos, Direito das Relações de Consumo e Iniciação Científi-
ca. Foi chefe da Assessoria Jurídica da Academia Militar das Agulhas Negras
(AMAN) e adjunto do Gabinete Pessoal do Presidente da República. Como
advogado, atua com ênfase em Direito Civil, do Consumidor e Família.

Francisco Cezar Magalhães Saavedra é bacharel em Ciências Militares


pela Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) e em Direito pela Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Possui mestrado em Ciências
Militares pela Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). É docente da
Cadeira de Direito da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), sendo
coordenador, conteudista e professor das disciplinas Ética Profissional Militar,
Direitos Humanos, Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Or-
dem e em Ações Subsidiárias e Direito Internacional dos Conflitos Armados/
Direito Internacional Humanitário.
Índice

1. Introdução ao Direito Internacional Humanitário 11


1.1 Conceito e natureza jurídica 13
1.2 Fontes do Direito Internacional 15
1.3 Evolução histórica 17
1.4 Relação entre Direito Internacional Humanitário stricto 20
sensu e o Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH)

2. Princípios do Direito Internacional Humanitário 25


2.1 A Cláusula Martens 25
2.2 Princípios do DIreito internacional dos conflitos armados 26
2.3 A distinção fundamental entre civis e combatentes 28
2.4 Proibição de causar males supérfluos 31
e sofrimento desnecessário
2.5 A independência do Jus in bello (direito na guerra) 32
em relação ao Jus ad bellum (direito de ir à guerra)

3. O Brasil e o DIH: panorama das ratificações dos principais 35


instrumentos do jus in bello

4. Bibliografia 39
1 Introdução ao Direito
Internacional Humanitário

Objetivos específicos

• Apresentar o Direito Internacional Humanitário e fornecer elementos


para identificação de sua problemática.
• Refletir sobre a relação do Direito Internacional Humanitário e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos.

O ser humano, historicamente, apresenta na relação entre grupos sociais con-


frontos ditados por interesses que, comumente, exteriorizam-se por meio da
violência. A progressiva organização desses grupos levou-os a se estruturarem
politicamente em países, com um governo e com forças militares de defesa.

Os confrontos entre as nações passaram, quando traduzidos por meios violentos,


a se efetivar pelo seu braço armado constitucionalmente reconhecido: as Forças
Armadas. A partir disso, convulsões internas podem propiciar embates violentos
entre grupos com interesses distintos que tentam legitimar-se pela força.

A dimensão desses conflitos, sejam externos ou internos, pode atingir níveis


de violência muito além das necessárias aos respectivos objetivos, causando,
frequentemente, sofrimentos excessivos, brutais e desnecessários aos militares
em combate e à população civil não envolvida.

A própria sociedade, entretanto, vem desenvolvendo mecanismos legais para


restringir a níveis razoáveis os efeitos desses confrontos. Este é o tema maior
desta Unidade Didática: o estudo do ramo do Direito que tutela os combaten-
tes, seus meios de combate e a população civil envolta nesses conflitos.

A preponderância dos tempos de guerra sobre os tempos de paz é uma verdade


histórica. Os terríveis efeitos dos conflitos armados sobre os povos causaram,
com o passar do tempo, a necessidade de se criar uma disciplina jurídica, cuja
finalidade seria dar à guerra, mesmo envolta em um contexto de violência gene-
ralizada e negação do Direito, um mínimo de humanidade (PALMA, 2010).

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FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
O Comitê Internacional da O Direito Internacional Humanitário (DIH), também denominado Direito
Cruz Vermelha (CICV) ou In-
Internacional dos Conflitos Armados (DICA) ou Direito de Guerra surgiu
ternational Committee of the
Red Cross (ICRC) disponibi- como uma demanda de especialização do Direito Internacional Público (DIP).
lizou no seu portal em língua
inglesa cerca de 161 regras Do ponto de vista da terminologia, existe uma pluralidade de denominações
de costume internacional
para esse ramo do Direito. Inicialmente denominada de “Direito de Guerra”
que são fontes do DICA. Dis-
ponível em: <http://www. ou “Leis de Guerra”, essa expressão foi abandonada após a Segunda Guerra
icrc.org/customary-ihl/eng/ Mundial, quando o tratado internacional que criou a Organização das Nações
docs/v1_rul>
Unidas (ONU) – Carta de São Francisco – proibiu a guerra como política de con-
duta internacional. A guerra passou a ser ilegal, salvo nas hipóteses de legítima
defesa, do exercício do direito à autodeterminação dos povos e das interven-
ções militares autorizadas pelo Conselho de Segurança da ONU (PALMA, 2010).

Direito Internacional Humanitário tem por objetivo regulamentar


a guerra, visando restringir meios e métodos de combate e pro-
teger quem não participa ou não mais participa das hostilidades.

O termo “guerra” também foi progressivamente abandonado, uma vez que,


Para conhecer mais sobre este devido à grande formalidade e complexidade inerentes ao estado de guerra
ramo do Direito leia o docu-
(necessidade de uma declaração formal, entre outras exigências), conflitos não
mento Violência e o uso da Força,
do Comitê Internacional da precedidos desses formalismos ficariam sem a tutela da regulamentação inter-
Cruz Vermelha (CICV), dispo- nacional. Em 1949, as Convenções de Genebra ampliaram o conceito para
nível no link: <http://www.
icrc.org/por/assets/files/ “conflitos armados”, de modo a abarcar a proteção internacional às vítimas de
other/icrc_007_0943.pdf> confrontos não formais. Esse entendimento deu origem à expressão Direito
Internacional dos Conflitos Armados (DICA), termo mais abrangente e
técnico, pois atende às necessidades de restrição de meios e métodos de com-
bate ao mesmo tempo em que protege as vítimas dos conflitos.

O surgimento do termo Direito Internacional Humanitário (DIH) é mais


recente e foi utilizado inicialmente pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha
(CICV), instituição de cunho humanitário e guardiã das normas de DIH. Esse
viés humanitário passou a ser dominante na doutrina, apesar do nome não
relembrar a necessidade de regulamentação dos meios e métodos de combate,
como ocorre no DICA (PALMA, 2010).

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Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
As três expressões – Direito da Guerra, DICA e DIH – são, por-
tanto, equivalentes. As Forças Armadas normalmente em-
pregam a expressão DICA, pois é mais completa e remete às
normas dirigidas aos combatentes de forma mais clara. Já no
meio acadêmico, a expressão DIH é dominante, mas represen-
ta o mesmo escopo de conhecimento.

O DICA, dentro de um quadro maior de tutela internacional para o emprego de


força militar, conjuga normas do Direito de Haia e do Direito de Genebra,
mais recentemente admitindo a figura do Direito Misto, com a finalidade
principal de limitar e proteger, dentro de um conflito armado em andamento.

1.1 Conceito e natureza jurídica

O DICA ou DIH pode ser definido como ramos do Direito Internacional Público,
que tem por objetivo regulamentar a guerra (PALMA, 2010). Possui normas
convencionais e [consuetudinárias], bem como princípios gerais de Direito que Consuetudinário:
diz-se do Direito que se
visam restringir meios e métodos de combate e proteger quem não partici-
baseia nos usos e costumes
pa ou não mais participa das hostilidades. de uma certa sociedade. Esse
tipo de instituto legal, por ser
Portanto, também é possível definir DICA como: aceito, a priori, não preci-
sa passar por um processo
[...] o conjunto de normas internacionais, de origem con- formal de criação de leis pelo
vencional ou consuetudinária, especificamente destinado poder legislativo.
a ser aplicado nos conflitos armados, internacionais ou
não-internacionais, e que limita, por razões humanitárias,
o direito das Partes em conflito de escolher livremente os
métodos e os meios utilizados na guerra, ou que protege
as pessoas e os bens afetados, ou que possam ser afeta-
dos pelo conflito (SWINARSKI, 1997, p. 18).

Tais conceitos estão alinhados com a percepção do Manual de Emprego do


Direito Internacional dos Conflitos Armados (MD34-M-03) de 2011,
elaborado pelo Ministério da Defesa, segundo o qual o DICA pode ser entendi-
do como um conjunto de normas de proteção de indivíduos e bens durante os
conflitos armados, disciplinando o comportamento dos Estados em relação a
métodos e meios de combate.

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FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
Este Direito, como legislação de tutela de Direitos Humanos, apresenta duas faces:

• Direito de Haia: regula a condução das hostilidades, sendo endereçada


aos combatentes.

• Direito de Genebra: regula o tratamento destinado às pessoas em


poder do inimigo, alcançando tanto militares quanto civis.

Manual de Emprego do Direi- Em termos pragmáticos, esses dois universos se fundiram a partir da elaboração
to Internacional dos Conflitos
das Convenções de Genebra pós-Segunda Guerra Mundial, tendo em vista
Armados (DICA) nas Forças
Armadas. Disponível no link: que tais instrumentos internacionais apresentam normas de limitação de meios
<http://www.ccopab.eb.mil. e métodos de combate e de proteção de pessoas fora de combate. A divisão
br/index.php/pt/ensino/
material-de-apoio-ao-ensino/ permanece, no entanto, no meio acadêmico, com o acréscimo de um terceiro
doc_download/128-1-manu- ramo de DIH, chamado, comumente, de Direito de Nova York, que abrangeria
al-de-dica-md-34-m-03>
novas normas relativas à proteção de civis durante os conflitos armados, consa-
grados na primeira conferência das Nações Unidas (daí a referência à cidade de
Nova York, onde se localiza a sede das Nações Unidas), especificamente dedica-
da ao tema dos Direitos Humanos e realizada em Teerã, 1968.

O DICA é dirigido especi- A finalidade do DICA não é impedir a ação de comando ou limitar a eficiência
ficamente aos combatentes
das partes em combate, mas evitar a ocorrência do “caos no caos”. É o que se
e vítimas, e corresponde ao
jus in bello, ou seja, ao direito compreende a partir das lições de Sassoli e Bouvie (apud PALMA, 2010, p. 10)
na guerra. quando afirmam que o DICA tem por objetivo “limitar a violência aos níveis es-
tritamente necessários para que se atinja o objetivo da batalha, que não deve
ser outro além do enfraquecimento do potencial militar do inimigo”. Palma,
além disso, afirma:

[...] para ganhar a guerra não é necessário matar todos


os soldados inimigos, basta capturá-los ou obrigá-los a se
render. Não é necessário também atacar os civis, somen-
te os combatentes podem ser alvos. Não é necessário
destruir o país inimigo, basta ocupá-lo. Não é necessário
destruir as infraestruturas civis, basta atingir os bens que
contribuem para o esforço militar (2010, p. 10).

Entretanto, apesar dessa tutela, o DICA não proíbe o uso da violência; não
consegue proteger todas as pessoas afetadas pelo conflito armado; não se
refere a quem faz a guerra justa ou às razões do conflito (denominado jus ad
bellum ou ao direito de ir à guerra); além disso, não pode proibir que uma das
partes triunfe sobre o inimigo; entre outras (PALMA, 2010).

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Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
Sobre a real possibilidade de regulamentação da guerra, considerando ou não Pensadores como Cícero (inter
armas silent leges – as leis silen-
que regras possam ser respeitadas dentro de um contexto de luta pela sobrevi-
ciam em tempo de guerra),
vência, coexistem duas correntes de pensamento: a realista e a normativa. Clausewitz e Von Liszt são ex-
poentes da corrente realista.
De acordo com a corrente realista, a guerra, pela sua essência, não
pode ser regulamentada, devido à anarquia e violência características dos
confrontos armados.

Já a corrente normativa admite que a guerra é um fenômeno social como O vídeo História de uma Ideia, do
qualquer outro e, por esse motivo, é passível de regulamentação jurídica. Segun- Comitê Internacional da Cruz
Vermelha (CICV) conta a his-
do essa linha de pensamento, existe um mútuo interesse das partes em conflito tória do nascimento da Cruz
no sentido de que, em função da reciprocidade, certas regras sejam respeitadas Vermelha. Disponível no link:
<http://www.youtube.com/
durante os combates. Se um contendor não quer sofrer determinado tipo de ata- watch?v=lhpsQZshEqI>
que ou tratamento, também não deve utilizá-lo contra o inimigo (PALMA, 2010).

Este argumento, o da reciprocidade, é o que faz valer o DICA perante as


partes em conflito e é o que fundamenta a existência desse ramo jurídico. O
temor de ser retaliado faz com que o respeito às normas da guerra exista na
prática. De qualquer modo, normas na guerra sempre existiram de fato. Atual-
mente, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) se destaca como
instituição mantenedora e protetora do DICA. O CICV é uma organização
humanitária que tem como finalidade proteger e assistir as vítimas da guerra e
de outros conflitos armados.

O DICA possui três funções básicas que caracterizam sua importância nos Conheça as ações da Cruz
dias atuais: Vermelha Internacional vi-
sitando o portal do Comitê
• Jurídica - Submete os atos de violência às normas. Internacional da Cruz Ver-
melha - CICV. Disponível em:
• Organizadora - Regula as ações durante o conflito. <http://www.icrc.org/por/
index.jsp>
• Protetora - Visa proteger as pessoas e os bens afetados pelos combates.

1.2 Fontes do Direito Internacional


Positivação: positivação
O direito não nasce pronto. Toda norma jurídica cuja [positivação] esteja é a forma com que as normas
expressa em texto legal aprovado por órgão competente existe a partir de uma jurídicas são disponibiliza-
das para o conhecimento de
origem. Esses elementos formadores, de onde o Direito provém ou de onde toda a sociedade, seja aos
surgiu a sua essência, são denominados de fontes do Direito. cidadãos, leigos e letrados,
seja aos juristas e aplicadores
O artigo 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça discrimina como da lei. Em direito, refere-se
ao ato de fazer uma norma
fontes principais do Direito Internacional para a solução das controvérsias constar, expressamente, do
jurídicas entre Estados: texto da lei.

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FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
Soft law: soft law, droit • Convenções internacionais;
doux ou soft norm significam
direito flexível e designa o • Costume internacional;
texto do Direito Interna-
• Princípios gerais de Direito Internacional.
cional Público que não tem
caráter jurídico em relação Como fontes auxiliares, são listadas, por exemplo:
a seus signatários. Refere-se,
então, às normas facultati- • Decisões judiciais nacionais ou da Corte Internacional de Justiça
vas, em oposição às normas
cogentes, também denomi- (jurisprudência);
nadas de hard law.
• Ensinamentos de doutrinadores de Direito Internacional;

• Equidade.

Atualmente, ainda são reconhecidas mais três fontes de Direito Internacional


que não se encontram no artigo 38 do Estatuto da CIJ: os atos unilaterais das
pessoas de Direito Internacional, as decisões das Organizações Internacionais
Intergovernamentais e a [“soft law”].

Para obter mais informações Ao DIH também se aplicam as mesmas fontes formais, visto que é uma ciência
sobre o Estatuto da Cor-
jurídica componente do Direito Internacional Público.
te Internacional de Justiça,
visite o site <http://www.
direitoshumanos.usp.br/
O núcleo do DICA é formado pelo conjunto formado pelas quatro Conven-
index.php/Corte-Interna- ções de Genebra de 1949 mais o Protocolo Adicional I (PA I) e o Protocolo
cional-de-Justi%C3%A7a/
Adicional II (PA II), ambos de 1977.
estatuto-da-corte-internacio-
nal-de-justica.html>.
Os costumes, no Direito Internacional, atuam como fontes primárias, poden-
do, dependendo da hipótese, revogar ou serem revogados por normas con-
vencionais. São fundamentais na interpretação das normas ou na definição de
responsabilidades dos Estados que não ratificaram as convenções de DICA.

Conheça mais sobre esse tema Os princípios gerais de Direito também são citados como fontes do DICA,
a partir do livro digital Direito
posto que são proposições normativas que inspiram e orientam o surgimento
Internacional Humanitário de Mi-
chel Deyra. Disponível em: de novas normas. No caso do DICA, alguns dos princípios mais relevantes são:
<http://direitoshumanos.
gddc.pt/pdf/DIHDeyra.pdf> • Humanidade;

• Necessidade militar;

• Proporcionalidade;

• Distinção entre objetivos civis e militares;

• Proibição de causar males supérfluos ou sofrimento desnecessário


(PALMA, 2010).

As fontes auxiliares ou não formais do DICA, correspondem à doutrina, juris-


prudência e resoluções do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) .

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Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
1.3 Evolução histórica

Sempre existiram regras na condução das hostilidades durante a evolução


da arte da guerra. Cerca de 1.000 a.C. já existiam normas costumeiras sobre
métodos e meios de condução dos combates. Tratados de paz, acordos de
capitulações, rendições, armistícios, entre outros, também continham regras
consuetudinárias (SWINARSKI, 1997). Porém, somente no século XIX iniciou-se
efetivamente a positivação de regras para o combate em convenções interna-
cionais. O esforço nesse sentido se originou após a Batalha de Solferino, travada
em 1859, no norte da Itália, entre franceses e piemonteses contra os austríacos.

O empresário suíço Henri Dunant, ao testemunhar o abandono, ao final do com-


bate, de cerca de quarenta mil mortos e feridos no local do enfrentamento, sem
nenhum socorro, publicou a obra intitulada Lembranças de Solferino, enviando-
-a a diversos chefes de Estado à época, na tentativa de que algo fosse feito para
minimizar o sofrimento das vítimas dos campos de batalha (PALMA, 2010).

Essa medida deu origem a diversas iniciativas, destacando-se:

• Criação da Cruz Vermelha em 1863, que deu origem às Federações Na-


cionais da Cruz Vermelha, dentro dos Estados e ao Comitê Internacional
da Cruz Vermelha, com sede em Genebra, Suíça.

• Adoção da Convenção Internacional para a Melhoria da Sorte dos Mili-


tares Feridos nos Exércitos em Campanha, em 1864, a primeira do DIH e
também uma das pioneiras como convenção multilateral na história do
Leia a História de uma Ideia, ilus-
Direito Internacional.
trada por Moebius, que conta
a hjistória do Movimento In-
Durante o desenrolar do século XIX, outros esforços codificadores das leis de ternacional da Cruz Vermelha
guerra foram assinalados, inspirados pelo pioneirismo da Convenção de 1864. e do Crescente Vermelho des-
de 1859 até os dias atuais. Dis-
Dentre eles, podem ser citados: ponível em: <http://www.
icrc.org/por/assets/files/
• Código Lieber (1863);
other/icrc_007_0939.pdf>
• Conferência de Bruxelas (1874) que promoveu uma declaração referente
a leis e costumes da guerra;

• Publicação do Manual de Oxford (1880) pelo Instituto de Direito Inter-


nacional, com a finalidade de regular a conduta de forças militares
em confronto.

O maior impulso ao Direito Internacional Humanitário ocorreu em 1899 com a


primeira Conferência Internacional de Paz que reuniu 26 Estados em Haia, na

15
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
O Código Lieber foi criado du- Holanda, e deu origem a três convenções, versando sobre a solução pacífica de
rante a Guerra de Secessão dos
conflitos, e o direito de guerra terrestre e marítima.
EUA, visando regular o com-
portamento dos exércitos em
campanha, e elaborado por
Em 1907 ocorreu a segunda Conferência Internacional de Paz, também em
determinação do presidente Haia, onde se reuniram representantes de 44 Estados, inclusive o Brasil, des-
Abraham Lincoln ao professor
tacando-se a figura de Rui Barbosa como nosso representante. Nesta Confe-
de direito Francis Lieber.
rência, as convenções de 1899 foram atualizadas, enquanto outras dez novas
foram criadas e versavam, em sua maioria, sobre guerra marítima.

Da Segunda Conferência de Haia pode-se destacar a IV Conven-


ção e seu regulamento, que versam sobre leis e costumes da
guerra terrestre. Esses documentos possuem normas que estão
em vigor até o presente e tratam de métodos e meios de comba-
te proibidos, além de cuidar da ocupação do território inimigo.

Posteriormente, surgiu a necessidade de se aprovar em Genebra (1929) −


como decorrência da enorme quantidade de prisioneiros de guerra da Primeira
Guerra Mundial (1914 – 1918) − uma convenção específica para regular o
tratamento dispensado a eles (PALMA, 2010).

A Segunda Guerra Mundial, pelos seus efeitos devastadores, deu origem a um


novo ciclo de codificação do DIH. Em 1949, foram adotadas quatro conven-
ções internacionais em Genebra (CG), por iniciativa do CICV:

• Convenção I - trata da melhoria da sorte dos feridos e enfermos dos


exércitos em campanha.

• Convenção II - trata da melhoria da sorte dos feridos, enfermos e náu-


fragos das Forças Armadas no mar.

• Convenção III - trata dos prisioneiros de guerra.

• Convenção IV - trata da proteção das pessoas civis em tempo de guerra.

Apesar das quatro Convenções tratarem de conflitos arma-


dos internacionais (entre pelo menos dois Estados), apenas o
artigo 3º versa sobre conflitos armados não-internacionais (ex:
guerra civil).

16
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
Em 1954, foi também aprovada uma Convenção e um Protocolo, em Haia, ver-
sando sobre a proteção de bens culturais durante os conflitos armados.

A partir da década de 60, e durante os anos 70, proliferaram conflitos internos


como as guerras de libertação colonial ou conflitos apoiados pelas potências que
capitaneavam o confronto ideológico conhecido como Guerra Fria. Em decor-
rência desse contexto, foram adotados em 1977 dois importantes Protocolos
Adicionais às Convenções de Genebra de 1949:

• Protocolo Adicional I (PA I) - que versa sobre conflitos armados


internacionais;

• Protocolo Adicional II (PA II) - que versa sobre conflitos de natureza


não internacional.

A partir dessa evolução histórica, pode-se facilmente perceber que a constru-


ção do DICA foi e continua sendo dependente da evolução da arte da guerra.
A cada ampliação da letalidade, alcance e efeitos dos conflitos armados, cor-
responde uma ou mais novas convenções de DICA, que visam limitar a barbá-
rie e levar os conflitos armados a níveis humanamente aceitáveis.

Sob essa perspectiva histórica, pode-se afirmar, resumidamen-


te, que o coração normativo do DICA é formado pelas quatro
Convenções de Genebra de 1949 e os protocolos adicionais PA
I e PA II de 1977.

Além desse núcleo normativo, podem ser citados diversos outros instrumentos
de DICA que limitam a utilização de armas em conflitos, tais como:

• Convenção sobre a Proibição de Desenvolvimento, Produção e Estocagem


de Armas Biológicas e à base de toxinas e sobre a sua destruição (1972);

• Convenção sobre a Interdição ou a Limitação de Emprego de certas


armas que podem ser consideradas excessivamente lesivas ou gerado-
ras de efeitos indiscriminados (1980) e seus protocolos adicionais que
versam sobre estilhaços não-localizáveis (1980), minas terrestres (1980),
armas incendiárias (1980) e armas cegantes a laser (1995);

17
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
• Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção, Estoca-
gem e Uso de Armas Químicas e sobre a destruição de armas químicas
existentes no mundo (1993);

• Convenção sobre a Proibição do Uso, Armazenamento, Produção e


Transferência de Minas Antipessoal e sobre a sua destruição (1997)
(PALMA, 2010).

1.4 Relação entre Direito Internacional


Humanitário stricto sensu e o Direito
Internacional dos Direitos Humanos (DIDH)

O conceito de Direitos Humanos, segundo o Manual de Emprego do Direito


Internacional dos Conflitos Armados (MD34-M-03), está ligado à relação entre
Estado e indivíduo, tratando de direitos civis, sociais, políticos e econômicos e
limitando o arbítrio do Estado diante da pessoa em qualquer tempo e lugar. O
DICA ainda pretende disciplinar a relação entre Estados, aplicando-se apenas
em relação aos métodos e meios usados no caso de conflitos armados. Existe,
entretanto, o fundamento em comum do respeito à dignidade humana e à sua
integridade física e moral.

O DICA foi concebido para garantir o mínimo de humanidade


em situações limite, ao passo que o DIDH foi concebido para
tempos de paz.

É importante perceber que, tendo o Direito Internacional dos Conflitos Armados


(DICA) o objetivo de minimizar ou aliviar as calamidades da guerra, suas normas
Normas inderro- são [inderrogáveis]. Nesse aspecto, se diferencia do Direito Internacional dos
gáveis: são as normas que
Direitos Humanos (DIDH), que pode ter algumas de suas normas revogadas à
não podem ser revogadas
(alteradas). medida que a crise vai se desenvolvendo, como, por exemplo, a limitação da
liberdade de imprensa, de reunião, além de outras restrições individuais e coleti-
vas que podem ser impostas no caso dos estados de defesa e de sítio.

Quanto mais grave a crise, maior será a influência das normas de


DICA e menor as de DIDH.

18
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
Contudo, com base nos tratados internacionais de DIDH ratificados pelo
Estado ou nas normas de [jus cogens], existe um limite abaixo do qual não se Jus cogens: de acordo
admite mais derrogações de Direitos Humanos. O Pacto Internacional sobre com o artigo 53 da Conven-
ção de Viena sobre o Direito
os Direitos Civis e Políticos (1966), que faz parte da Carta Internacional dos Tratados de 1969, jus
dos Direitos Humanos, contempla no item 2 do artigo 4º Direitos Humanos congens é a “norma imperati-
va de direito internacional
essenciais e inderrogáveis, mesmo em situações de crise. Entre esses valores geral”,“aceita e reconhecida
essenciais podemos citar: pela comunidade interna-
cional dos Estados no seu
• Direito à vida; conjunto como norma à qual
nenhuma derrogação é per-
• Direito de não ser submetido à tortura; mitida e que só pode ser mo-
dificada por uma nova norma
• Direito de não ser submetido à escravidão;
de direito internacional geral
• Direito de liberdade de pensamento, de consciência e de religião. com a mesma natureza”.

Sob essa perspectiva histórica, pode-se afirmar, resumidamen-


te, que o coração normativo do DICA é formado pelas quatro
Convenções de Genebra de 1949 e os protocolos adicionais PA I
e PA II de 1977.

A forte relação conceitual existente entre essas duas espécies de Direito − re-
presentadas pelo DICA e o DIDH − deu origem a três concepções doutrinárias:
a integracionista, a separatista e a complementarista.

• Concepção integracionista: entende que um dos ramos do Direito A Revista do Instituto Brasi-
leiro dos Direitos Humanos
internacional englobaria o outro por conta do objeto em comum dos
proporciona acesso aos exem-
mesmos, qual seja a proteção do ser humano. Majoritariamente, essa plares da publicação eletrônica
corrente entende que o DIDH conteria o DICA. No entanto, os dois através do link <http://ibdh.
org.br/ibdh/revistas.asp>
ramos, por possuírem princípios e regras diferentes, constituir-se-iam em
uma integração forçada, por serem de naturezas distintas.

• Concepção separatista: aceita que não há justaposição entre os dois


ramos, pois há incompatibilidade de normas, com objetos distintos e
naturezas específicas, sendo considerada uma corrente obsoleta.

• Concepção complementarista: para essa concepção, os dois ramos


guardam a distinção por princípios, mas há pontos em comum que
devem ser considerados tendo em vista ampliar a proteção do indivíduo.
Desse modo, as lacunas no DICA poderiam ser reguladas por normas do
DIDH e vice-versa.

19
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
A tendência atual é o já evidenciado no Estatuto de Roma,
que criou o Tribunal Penal Internacional, onde são penalizados
crimes de guerra, ligados ao DICA, e crimes contra a humani-
dade, ligados ao DIDH, aproximando os dois institutos.

A tendência atual é o já evidenciado no Estatuto de Roma, que criou o Tri-


bunal Penal Internacional, onde são penalizados crimes de guerra, ligados
ao DICA, e crimes contra a humanidade, ligados ao DIDH, aproximando os
dois institutos.

O Estatuto de Roma criou o No caso do Brasil, a diferença entre essas abordagens é bastante relevante,
Tribunal Penal Internacional,
“instituição permanente com
pois, segundo a tese integracionista, o DICA pode ser considerado parte do
jurisdição sobre as pessoas DIDH em sentido amplo. Nesse sentido, o DICA se tornaria passível de posicio-
responsáveis pelos crimes de namento hierárquico constitucional por força do § 3º do artigo 5º da CF/88 e
maior gravidade com alcance
internacional, de acordo com isso, consequentemente, aumentaria substancialmente a sua importância. No
o presente Estatuto, e será entanto, esse parágrafo foi criado pela Emenda Constitucional 45/2004 e não
complementar das jurisdições
penais nacionais” (Preâmbulo se refere especificamente ao DICA (PALMA, 2010).
do Tratado de Roma).
O quadro 1 mostra, de forma resumida, algumas das principais diferenças
entre DICA e DIDH stricto sensu:

Direito Internacional Humanitário

Direitos humanos Direito à vida, a não ser submetido à tortura, escravidão e a


essenciais liberdade de pensamento, consciência e religião.

Stricto sensu: aplicado ao DICA DIDH [stricto sensu]


direito significa dizer que se
deve fazer uma interpretação Apenas em tempo de conflito
literal, em sentido estrito, do armado. Direito de exceção,
termo a que se refere. Como Em qualquer tempo
Aplicação de urgência, que atua na
se pode identificar no texto ou lugar.
ruptura da ordem jurídica
que se segue, o DIDH, em internacional.
sentido amplo, figura como
gênero de cuja espécie o Especificamente as pessoas
DIDH stricto sensu se constitui. afetadas por um conflito As pessoas em qualquer
armado: população civil, situação: direitos civis,
Proteção
feridos, doentes, prisioneiros econômicos, sociais e
de guerra, pessoal médico/ culturais.
sanitário, etc.

20
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
O Supremo Tribunal Federal
Direito Internacional Humanitário decidiu, em posição majori-
tária, que os tratados de Di-
Contra infrações graves de
Dos indivíduos de viola- reitos Humanos ratificados
instituições do próprio Estado
Defesa ções de agentes de seu pelo Brasil antes da EC 45/04
ou de outros Estados em con- têm natureza supraconstitu-
próprio Estado.
flitos armados internacionais. cional e não pertencem ao
”bloco da constitucionalida-
Apenas alguns direitos
de”. Ver a respeito, o Acórdão
(liberdade de imprensa
do Recurso Extraordinário
Inderrogabilidade Nunca pode ser suspenso ou ou de circulação) podem nº 349.703-1/RS, julgado
(Revogabilidade) derrogado. ser suspensos durante em 3 de dezembro de 2008,
a vigência do estado de disponível em: <http://re-
sítio. dir.stf.jus.br/paginadorpub/
paginador.jsp?docTP=AC
Salvaguardar e manter os &docID=595406>.
Garantir aos indivíduos,
direitos fundamentais das
em tempo de paz, o res-
Função vítimas, combatentes ou não
peito pelos seus direitos e
combatentes em conflitos
pelas suas liberdades.
armados.

Quadro 1 – Principais diferenças entre DICA e DIDH

21
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
2 Princípios do Direito
Internacional Humanitário

Objetivo específico

• Oferecer embasamento teórico para a compreensão dos fundamentos


do Direito Internacional Humanitário.

Como já foi visto, os princípios constituem-se em normas de elevada hierarquia


que especificam um dever ser, uma ação a ser executada, cujo descumprimen-
to faculta uma sanção da mesma forma que as regras jurídicas.

Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello, um princípio é por definição:

(...) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro


alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre
diferentes normas, compondo-lhes o espírito e servindo
de critério para sua exata compreensão e inteligência exa-
tamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema
normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido
harmônico (MELLO, 2000, p. 747-748).

O DICA apresenta inúmeros princípios, dos quais os mais importantes serão


apreciados a seguir.

As quatro Convenções de Genebra de 1949, e seus Protocolos Adicionais I e II,


constituem o corpo jurídico principal do DICA. Desses textos, é possível des-
tacar uma cláusula de aplicação geral e cinco princípios fundamentais com os
quais todos os procedimentos em campanha e os planejamentos operacionais
devem estar alinhados, em todos os níveis de comando.

2.1 A Cláusula Martens

A Cláusula Martens é a cláusula presente na Convenção de Genebra e em


seus Protocolos Adicionais, com o objetivo de aplicar o princípio residual da
humanidade a lacunas porventura existentes nos referidos instrumentos de DIH.

23
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
Os principais Instrumentos e A Cláusula Martens (MD-34-M-03, 2011, p. 14 – 15) foi desenvolvida no pa-
Textos Universais do Direito
rágrafo 2° do artigo 1° do Protocolo Adicional I de 1977. Originariamente foi
Internacional Humanitário
podem ser acessados no link: criada pelo professor de Direito russo Fyodor Martens, durante a Primeira Con-
<http://www.gddc.pt/direi- ferência Internacional de Paz de 1899, e introduzida em versão mais atualizada
tos-humanos/textos-interna-
cionais-dh/universais.html> no texto do PA I e no preâmbulo do PA II em 1977:

Nos casos não previstos pelo presente Protocolo ou por


outros acordos internacionais, as pessoas civis e os com-
batentes ficarão sob a proteção e autoridade dos princí-
pios do direito internacional, tal como resulta do costume
estabelecido, dos princípios humanitários e das exigências
da consciência pública.

Segundo seu conteúdo, as partes não estão livres para decidir a seu modo na
escolha de meios e métodos de combate e no tratamento de pessoas em seu
poder durante os conflitos armados. Em outras palavras, a Cláusula Martens
afirma que “o que não é proibido também não está permitido” (PALMA, 2010).

Conforme o artigo 1º, inciso II, do PA I de 1977, a Cláusula


Martens atua como cláusula de exclusão e complementar às
demais normas de DICA. Seu objetivo é aplicar o princípio
residual da humanidade às lacunas porventura existentes nos
diversos tratados que regulam o assunto.

2.2 Princípios do Direito internacional


dos conflitos armados

A função do Manual de Emprego do Direito Internacional dos Conflitos Ar-


mados (DICA) reside em limitar e aliviar, dentro do possível, as calamidades da
guerra, a partir da adequação das necessidades militares, determinadas pela
situação tática e o objetivo da missão, com as demandas associadas pelos prin-
cípios humanitários envolvidos.

Assim, além da Cláusula Martens, há outros importantes princípios orientado-


res do DIH que as forças militares em conflitos armados devem seguir:

a. Princípio da limitação

A escolha dos meios e métodos de combate para atacar o inimigo não é


ilimitada e as pessoas fora de combate sob o poder da Parte Adversa devem
ser respeitadas. Também se relaciona com a aplicação da Cláusula Martens.

24
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
b. Princípio da humanidade

É proibido provocar sofrimento às pessoas e destruição de propriedades,


se esses atos não forem necessários para forçar o inimigo a se render. São
proibidos ataques exclusivamente contra civis, considerando que even-
tualmente ocorram vítimas civis, devendo-se, porém, empregar todas as
precauções para que esses efeitos não ocorram. Inclui elementos de morali-
dade, Direitos Humanos e humanitarismo (respeito à dignidade humana). É
aplicado residualmente através da Cláusula Martens.

c. Princípio da necessidade militar

Traduz-se como a “capacidade de realizar atos tidos como indispensáveis


em relação ao objetivo individual de vencer o adversário” (PALMA, 2010,
p. 30). É um princípio que deve ser utilizado com a máxima cautela, pois
sua má interpretação pode levar ao cometimento de crimes de guerra. A
necessidade militar pode levar à derrogação de normas humanitárias pre-
vistas nas Convenções de Genebra e seus Protocolos. O princípio da neces-
sidade militar só deve ser utilizado para justificar a imperiosa necessidade
de restringir o DICA diante de outra necessidade, a da sobrevivência estatal.
Pode-se citar, como exemplo: a suspensão do deslocamento de pessoal de
socorro, nos termos do artigo 71 do PA I, em caso de “necessidade militar
imperiosa”, como a passagem do ataque para o aproveitamento do êxito,
pois, se o ímpeto da ação ofensiva for interrompido para que o socorro
faça seu trabalho, toda a operação pode vir a fracassar (vide artigo 57, item
3 do PA III às Convenções de Genebra).

d. Princípio da proporcionalidade

Representa o equilíbrio entre a necessidade militar e a humanidade. O meio


ou forma de ataque proporcional é o adequado ou razoável, capaz de
atingir o fim visado mediante o menor dano possível (eficiência). Segundo
o inciso III do artigo 57 do PA I, “quando for possível escolher entre vários
objetivos militares para obter uma vantagem militar equivalente, a escolha
deverá recair sobre o objetivo cujo ataque seja suscetível de apresentar o
menor perigo para as pessoas civis ou para os bens de caráter civil” (vide
artigos 51, item 5, alínea b, e 57, item 2, alínea a, número iii, do PA III às
Convenções de Genebra).

25
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
e. Princípio da distinção

Aplicado a pessoas e bens, deriva do princípio da limitação. Segundo esse


princípio, somente os objetivos militares podem ser alvejados. Para tal, é
necessário distinguir população civil de combatentes, bens de caráter civil
de objetivos militares. De acordo com o artigo 48º do PA I, deduzem-se três
obrigações básicas:

• Proibição de ataque ou represália a pessoas e bens civis;

• Proibição de ataque indiscriminado ou represália que cause danos cola-


terais a pessoas e bens civis;

• Proibição de ataque indiscriminado que cause danos excessivos, passí-


veis de colateralidade.

2.3 A distinção fundamental entre civis e combatentes

A necessidade de distinguir civis de combatentes é essencial para a judiciosa


aplicação do DIH. Se alguém, que não seja combatente, for capturado por
forças oponentes, tomando parte das hostilidades, não será objeto da prote-
ção dessa espécie de Direito Internacional, estando sujeito à legislação penal
da Potência que o capturou, podendo ser considerado espião, mercenário,
combatentes irregulares etc.

O combatente legalmente reconhecido é aquele que tem direito de partici-


par das hostilidades, nos termos do artigo 43 (2) do Protocolo Adicional I,
da I Convenção de Genebra (G P I, 43º (2), e recebe o tratamento previsto
no Estatuto do Prisioneiro de Guerra (PG) se cair nas mãos do inimigo.
Observe-se que não está isento de cometer crimes de guerra ou crimes contra
a humanidade durante as operações, conforme eventual tipo penal previsto
em legislação internacional específica.

Segundo o MD34-M-03 (2011, p. 19) e PALMA (2010) é considerado comba-


tente regular para os efeitos do DICA aquele que se enquadrar em uma das
três categorias a seguir:

a. Membros das forças armadas das partes em conflito, exceto o pessoal


sanitário e religioso, que possui um estatuto próprio.

b. Membros das milícias e corpos de voluntários que fizerem parte das


forças armadas.

26
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
c. Membros de milícias, corpos de voluntários e movimentos de resistência
organizados não pertencentes às forças armadas das partes em conflito,
que estejam atuando dentro ou fora de seu próprio território (mesmo
que este esteja ocupado), desde que satisfaçam, segundo o artigo 4 (2)
da III Convenção de Genebra III, as condições a seguir:

• Sejam comandados por pessoa responsável pelos subordinados


(relação de comando);

• Possuam sinal distintivo fixo e passível de reconhecimento à distância;

• Transportem armas à vista;

• Respeitem as leis e costumes do DICA.

São equiparados aos combatentes, inclusive com direito ao status de Pri- Sobre a distinção entre com-
batentes e terroristas, ver o
sioneiro de Guerra (PG), por não terem como missão a participação direta nos
texto Why Terrorists aren’t Soldiers,
combates, as seguintes categorias: de Wesley K. Clark e Kal Raus-
tiala, publicado em 2007, na
a. Pessoas que acompanham as Forças Armadas sem fazer parte delas (civis seção Opinion do New York
tripulantes de aeronaves militares e navios mercantes, correspondentes Times. <http://www.nyti-
m e s. c o m / 2 0 0 7 / 0 8 / 0 8 /
de guerra, fornecedores, trabalhadores encarregados do bem-estar dos opinion/08clark.html?_r=0>
militares), desde que autorizados, bem como os tripulantes civis da avia- OBS: Caso tenha dificuldade
ção civil e marinha mercante, caso não se beneficiem de disposição mais na leitura em inglês, sugere-
-se o recurso do tradutor on-
favorável por outros tratados internacionais; -line. Embora a tradução não
b. Membros da população de território não ocupado que, à aproximação seja perfeita, pode contribuir
para que se perceba o sentido
do inimigo, em levante e massa, peguem espontaneamente em armas do texto.
para combater os invasores, sem que haja tempo de se estabelecer e
organizar como tropa regular, desde que ostentem as armas à vista e
respeitem as leis e costumes referentes ao DICA.

No caso da não ocorrência de um legítimo levante popular dessa espécie, po-


dem surgir os chamados “combatentes irregulares” (PALMA, 2010), que são
civis armados, não enquadrados ou não pertencentes ao levante contra o inimi-
go. Essas pessoas, se capturadas, não ostentam a condição de combatentes e
não têm direito ao regime de proteção dado aos PG. Podem responder criminal-
mente por terem participado irregularmente do conflito. Contudo, ainda assim,
merecem as garantias previstas no artigo 75 do Protocolo I da I Convenção de
Genebra, de tratamento, no mínimo, “com humanidade” e da proteção, “sem
distinção alguma de caráter desfavorável baseada na raça, sexo, idioma, religião
ou crença, opiniões políticas ou de outro gênero, origem nacional ou social,
fortuna, nascimento ou contra condição ou qualquer outro critério análogo”.

27
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
Por exclusão, os civis são aqueles não considerados combatentes. Na história
das convenções de DICA, inicialmente a situação dos civis não era regulada, pois
eram considerados como “fora da guerra” (CICV, 1992). A IV Convenção de
Haia, de 1907, começou a tratar da proteção aos civis, mas somente nos casos
de ocupação militar inimiga e de forma muito sucinta. Com o passar do tempo,
o desenvolvimento de novas armas, o aumento do raio de ação das forças em
combate e o seu aprofundamento reforçaram a ideia de que, em verdade, os ci-
vis estão dentro da guerra, expostos a perigos ainda maiores do que os militares.

Finalmente, em 1949, a IV Convenção de Genebra passou a tratar especifica-


mente da proteção aos civis, sem abolir as disposições da IV Convenção de Haia.

Assim, no que tange aos civis em geral, esta Convenção procurou garantir o
respeito à dignidade humana “em caso de guerra declarada ou de qualquer
outro conflito armado que possa surgir entre duas ou mais das Altas Partes con-
tratantes, mesmo se o estado de guerra não for reconhecido por uma delas”.

Proibiu, ainda, atentados à vida e à integridade corporal, como torturas e


tratamentos cruéis, tomada de reféns, deportações, atentados à dignidade das
pessoas, tais como tratamentos humilhantes, discriminatórios por raça, cor, na-
cionalidade, religião, sexo, entre outros; sentenças e execuções ditadas sem o
devido processo legal e por julgadores ilegítimos ou sem as garantias judiciais
cabíveis, compatíveis com os povos civilizados. Proíbe inclusive o saque
ou pilhagem (artigo 33).

Segundo PALMA (2010), a IV Convenção de Genebra somente protege os civis


que estejam em poder de uma das partes em conflito ou de uma potência
ocupante da qual não sejam nacionais. Ou seja, os civis do próprio Estado, em
tempo de guerra, apenas estarão protegidos pelos instrumentos normativos,
domésticos e internacionais, de proteção aos Direitos Humanos.

Os artigos 13 a 22 tratam da proteção a enfermos, inválidos, mulheres grávi-


das, criação de zonas e localidades sanitárias de segurança, proteção de ido-
sos, mães de crianças menores de sete anos e outros, bem como a criação de
zonas neutras. O reagrupamento familiar deve ser facilitado (artigo 25º - 26º).

Além destes e de outros dispositivos, a G IV trata, especificamente, do Direito


da Ocupação, anteriormente estudado, e do internamento de civis.

28
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
Mulheres (artigo 76) e crianças (artigo 77) são especialmente protegidos nos
termos do G P I. Jornalistas são considerados civis e são protegidos pela G IV, 79.
Correspondentes de guerra terão tratamento diferenciado, sendo considerados
prisioneiros de guerra se forem capturados (G III, 4 (4)).

De modo geral, o artigo 75 do G P I garante a proteção mínima em qualquer


caso, espelhando os Direitos Humanos inderrogáveis em caso de conflito armado,
aplicando-se a todos, inclusive os não protegidos pelas Convenções de Genebra.

2.4 Proibição de causar males supérfluos


e sofrimento desnecessário

Prejuízos e sofrimento, quando forem maiores que o ganho militar esperado,


caracterizam o não atendimento ao princípio da proporcionalidade citado
anteriormente. A proibição de causar males supérfluos e sofrimento desne-
cessário pode ser considerada como uma aplicação desse princípio. É possível
identificar essa proibição na limitação da crueldade e do excesso encontrados
em diversas convenções reguladoras do emprego de armas, como, por exem-
plo, a Declaração de São Petersburgo. O artigo 35 da G PA I, ao seu turno,
apresenta tal vedação como uma de suas normas fundamentais:

1. Em todo conflito armado, o direito das Partes em


conflito à escolha dos métodos ou meios de combate não
é ilimitado.

2. É proibido o emprego de armas, projéteis, materiais


e métodos de combate de tal índole que causem males
supérfluos ou sofrimentos desnecessários.

3. É proibido o emprego de métodos ou meios de


combate que tenham sido concebidos para causar, ou
dos quais se pode prever que causem, danos extensos,
duradouros e graves ao meio ambiente natural.

A Declaração de São Petersburgo foi um tratado internacio-


nal celebrado na segunda metade do século XX, pelo qual se
procurou regular métodos e meios de combate, proibindo a
utilização de armas que inutilmente agravam o sofrimento de
militares fora de combate e tornam sua morte inevitável.

29
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
2.5 A independência do Jus in bello (direito na guerra)
em relação ao Jus ad bellum (direito de ir à guerra)

O Direito aplicado aos conflitos armados seguiu uma evolução histórica bas-
tante peculiar. O mais relevante, nas guerras antigas, era a justiça da guerra, ou
seja, a guerra justificada pelos seus motivos. A partir do final do século XIX, a
ideia de guerra justa cede seu lugar à justiça na guerra, buscando-se um míni-
mo de regulamentação dos meios e métodos de combate com a consequente
diminuição dos inúteis sofrimentos impostos a combatentes e não combaten-
tes. Com o passar do tempo, o viés humanitário foi se desenvolvendo, a ponto
de quase absorver a regulamentação especificamente voltada aos combatentes.

A expressão jus ad bellum (direito de ir à guerra) representa um esforço jurídico


internacional inicial no sentido de definir em que condições seria lícito o uso da
força entre os Estados. O direito da guerra era tão somente o “direito à guerra”
ou “direito de fazer a guerra”, onde o fundamento era a exclusão do uso abusi-
vo da guerra como meio de solução de controvérsias internacionais, tornando o
uso da força militar algo legítimo (CANÇADO TRINDADE; PEYTRIGNET; RUIZ DE
SANTIAGO, 1996).

Jus ad bellum representa o esforço jurídico internacional no


sentido de definir em que condições seria lícito o uso da força
entre os Estados; diz respeito ao “direito de ir à guerra”.

A Carta das Nações Unidas de 1945 declarou a ilegalidade da guerra, com


algumas exceções, tais como:

• As ações militares de segurança coletiva (uso da força contra Estados


que representem ameaça à paz ou segurança internacionais, com o aval
do Conselho de Segurança da ONU);

• Guerras de legítima defesa (direito de defesa contra agressão armada) e

• Guerras de libertação nacional (direito à autodeterminação dos povos,


excluindo-se guerras internas de cunho revolucionário) (CANÇADO TRIN-
DADE; PEYTRIGNET; RUIZ DE SANTIAGO, PEYTRIGNET, 1996).

Para PALMA (2010), desde 1945, o jus ad bellum passou a ser tutelado
pela ONU, encarregada de manter a paz mundial. Com a Carta das Nações
Unidas, o uso da força passou para a ilegalidade, excetuando-se os motivos
já mencionados, surgindo o jus contra bellum, ou o direito contra a guerra,
segundo alguns autores. Com virtual desaparecimento do jus ad bellum, o que

30
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
resta do antigo direito de guerra está consubstanciado nos grupos de normas
tendentes a tornar o conflito armado um ilícito internacional, numa situação de
fato mais humana: o direito de Haia e o direito de Genebra (SWINARSKI, 1997).

Já o jus in bello (direito na guerra) se manteve independente em relação ao jus


ad bellum (ou jus contra bellum) na medida em que não cabe ao DIH determi-
nar quem teve as mais justas razões no conflito. Ao DIH interessa que, uma vez
deflagrado o confronto armado, seja qual for a causa, as partes respeitem as
normas de jus in bello (PALMA, 2010).

Jus in bello configura-se no direito internacional que limita os


meios e os métodos de combate e regula a condução da guerra.

Se houvesse subordinação do DIH ao direito de fazer a guerra, as partes em


conflito − cada uma entendendo que sua causa é a mais justa − não teriam
o menor estímulo em respeitar as normas restritivas e protetivas desse direito.
Isso poderia levar a uma espiral abusiva de brutalidade e seria inconcebível que
multidões de vítimas de conflitos armados ficassem esperando, desprotegidas,
o julgamento de qual parte beligerante é de fato possuidora dos motivos mais
justos (PALMA, 2010).

Na atualidade, o jus in bello abarca as duas vertentes principais do DIH:


• O direito de Haia limita meios e métodos de combate (dirigido aos com-
batentes e destinado a regular a condução da guerra);

• O direito de Genebra, destinado à proteção das vítimas da guerra


(CANÇADO TRINDADE; PEYTRIGNET; RUIZ DE SANTIAGO, 1996).

Pode-se ainda afirmar que o princípio geral norteador do DICA


é traduzido pelo seguinte mandamento: “as partes em confli-
to não infligirão aos seus adversários males desproporcionais
ao objetivo da guerra”, considerando que este objetivo será
sempre destruir ou debilitar o potencial militar do inimigo.

No direito de Haia, “o direito das partes em eleger os métodos e meios de


guerra não é ilimitado”. No direito de Genebra, o princípio reitor é: “as pessoas
fora de combate, ou que não participam das hostilidades, serão respeitadas,
protegidas e tratadas humanamente” (CANÇADO TRINDADE; PEYTRIGNET;
RUIZ DE SANTIAGO, 1996, p. 136).

31
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
3 O Brasil e o DIH: panorama das ratificações
dos principais instrumentos do jus in bello

Objetivo específico

• Conhecer a situação brasileira face às fontes convencionais do DIH e


mensurar a importância deste ramo do Direito Internacional para o Brasil.

Ratificação: ato pelo O Brasil apresenta uma tradição de busca de soluções pacíficas para as con-
qual, após a aprovação legis-
trovérsias internacionais, consubstanciada atualmente na Constituição Federal
lativa, o Chefe de Estado con-
firma a aceitação do acordo (artigo 4º, VII). Observa-se um permanente apoio da política externa brasi-
internacional celebrado em leira às iniciativas defensoras dos princípios humanitários. Esta circunstância
seu nome pelos seus repre-
sentantes e promete fazê-lo predispõe o país à [ratificação] dos tratados que envolvem o DICA. No plano
cumprir. É a partir da ratifi- interno, todavia, existe uma grande defasagem entre a legislação em vigor e os
cação (e não da assinatura)
atos internacionais (JARDIM, 2006).
que, via de regra, o Estado se
obriga no plano internacio-
nal pelo cumprimento de um O artigo 146 da IV Convenção de Genebra, de 1949, já determinava medi-
acordo internacional. das no sentido de prever em suas legislações penais as sanções adequadas às
pessoas que porventura houvessem violado ou mandado violar as prescrições
convencionais aos Estados partes. Em outras palavras, no caso do Brasil, isso
serviria para que fosse satisfeita a exigência constitucional da anterioridade da
lei penal (PALMA, 2010).

Sobre a matéria, ver o estágio Os crimes militares previstos no Código Penal Militar de 1969, particularmente
do atual PL nº 4.038 de 2008, os elencados no Livro II (em tempo de guerra) privilegiam a manutenção da
bem como o artigo A implemen-
tação do Estatuto do Tribunal Penal In- eficiência militar, não possuindo o viés humanitário como prioritário.
ternacional, o caso Lubanga e a trans-
posição ao âmbito interno brasileiro, É fundamental a atualização da legislação penal brasileira referente ao assun-
de Pablo Rodrigo Alflen da
to, principalmente diante do aumento da participação brasileira em missões de
Silva, disponível em: <http://
jus.com.br/artigos/12344/a- paz, quando podem ocorrer conflitos armados. Nesses casos, o mandato da
-implementacao-do-estatuto- ONU não é suficiente para amparar o soldado brasileiro empenhado, devendo
-do-tribunal-penal-interna-
cional-o-caso-lubanga-e-a- ser observada também as normas oriundas dos tratados de DICA. Consideran-
-transposicao-ao-ambito-in- do, principalmente, ainda, que o Brasil ratificou o Estatuto de Roma do Tri-
terno-brasileiro>
bunal Penal Internacional, o assunto toma mais importância, pois se o Estado
brasileiro não processar e punir determinada pessoa por crime de guerra ou

33
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
contra a humanidade, previsto no Estatuto citado, pelo princípio da comple-
mentaridade, esta pode ser submetida ao julgamento pelo TPI, o que configu-
raria grave lesão à reputação da Justiça brasileira (PALMA, 2010).

O Estado brasileiro tem demonstrado, ao longo da História, compromisso com


essa matéria, pelo menos no âmbito internacional (PALMA, 2010). O quadro a
seguir lista os atos internacionais que tratam do DICA e de desarmamento dos
quais o Brasil faz parte, com as respectivas datas de ratificação ou adesão, a
partir de quando seus efeitos jurídicos se manifestam para o Estado, em ordem
cronológica (JARDIM, 2006).

O Manual MD-34-M-03 é um dos documentos de referência


para o profissional militar em operações. Além da consulta aos
tratados internacionais, consubstancia a doutrina básica mili-
tar de DICA no Brasil e resume as regras de conduta previstas
nos Direitos de Haia e Genebra.

Data de Ratificação
Ato Internacional
ou Adesão

Declaração sobre a proibição do uso de certos


projéteis em tempo de guerra (Declaração de Adesão em 23/10/1869
São Petersburgo - 1868).

IV Convenção de Haia de 1907 sobre as leis


e costumes da guerra terrestre e seu anexo
Ratificação em 05/01/1914
(Regulamento sobre as leis e costumes da
guerra terrestre).

Convenção sobre a repressão ao crime de


Ratificação em 15/04/1952
genocídio (Paris, 1948).

I Convenção de Genebra de 1949 (proteção


aos feridos e doentes das Forças Armadas Ratificação em 29/06/1957
em campanha).

II Convenção de Genebra de 1949 (proteção


aos feridos, doentes e náufragos das Forças Ratificação em 29/06/1957
Armadas no mar).

III Convenção de Genebra de 1949 (prote-


Ratificação em 29/06/1957
ção aos prisioneiros de guerra).

IV Convenção de Genebra de 1949 (prote-


Ratificação em 29/06/1957
ção à população civil).

34
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
Data de Ratificação
Ato Internacional
ou Adesão

Convenção e Protocolo sobre a proteção de


bens culturais em caso de conflito armado – Ratificação em 12/09/1958
Haia, 1954.

Tratado para a proscrição das armas nucleares


Ratificação em 29/01/1968
na América Latina e no Caribe – México, 1967.

Tratado sobre a não proliferação de armas


Adesão em 18/09/1998
nucleares – 1968.

Convenção sobre a proibição do desenvol-


vimento, produção e estocagem de armas
bacteriológicas (biológicas) e à base de to- Ratificação em 27/02/1973
xinas e sua destruição – Londres, Moscou,
Washington, 1972.

Convenção sobre a interdição de utilizar


técnicas de modificação do meio ambiente
Ratificação em 12/10/1984
para fins militares ou outros fins hostis –
Nova York, 1976.

Protocolo Adicional I às Convenções de Ge-


nebra de 1949 (proteção às vítimas de con- Adesão em 05/05/1992
flitos armados internacionais) – 1977.

Protocolo Adicional II às Convenções de Ge-


nebra de 1949 (proteção às vítimas de con- Adesão em 05/05/1992
flitos armados não internacionais) – 1977.

Convenção sobre a interdição ou a limitação


de emprego de certas armas convencionais
que podem ser consideradas excessivamente Adesão em 03/10/1995
lesivas ou geradoras de efeitos indiscrimina-
dos – Genebra, 1980.

Protocolo I à Convenção de 1980 sobre ar-


mas convencionais (fragmentos não detectá- Adesão em 03/10/1995
veis) – Genebra, 1980.

Protocolo II à Convenção de 1980 sobre ar-


mas convencionais (interdição ou limitação
Adesão em 03/10/1995
do emprego de minas, armadilhas e outros
artefatos) – Genebra, 1980.

Protocolo III à Convenção de 1980 sobre


armas convencionais (interdição ou limita-
Adesão em 03/10/1995
ção do emprego de armas incendiárias) –
Genebra, 1980.

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FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
Data de Ratificação
Ato Internacional
ou Adesão

Convenção Internacional sobre a proibição


do desenvolvimento, produção, estocagem e
uso de armas químicas e sobre a destruição Ratificação em 13/03/1996
das armas químicas existentes no mundo –
Paris, 1993.

Protocolo IV à Convenção de 1980 sobre


armas convencionais (relativo às armas ce- Adesão em 04/10/1999
gantes a laser) – Genebra, 1995.

Protocolo II (modificado) à Convenção de


1980 sobre armas convencionais (interdição
Adesão em 04/10/1999
ou limitação do emprego de minas, armadi-
lhas e outros artefatos) – Genebra, 1996.

Convenção sobre a proibição do uso, arma-


zenamento, produção e transferência de
Ratificação em 30/04/1999
minas antipessoal e sobre a sua destruição –
Oslo, Ottawa, 1997.

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Interna-


Ratificação em 20/06/2002
cional – Roma, 1998

Segundo Protocolo relativo à Convenção para


a proteção dos bens culturais em caso de Adesão em 23/09/2005
conflito armado – Haia, 1999.

Protocolo Facultativo referente à Convenção


sobre os direitos da Criança, relativo ao en-
Ratificação em 27/01/2004
volvimento de crianças em conflitos armados
– Nova York, 2000.

Quadro 2 – Participação do Brasil nos Atos Internacionais que tratam do DICA

36
Curso de Habilitação ao Quadro Auxiliar de Oficiais
4 Bibliografia

Referências Bibliográficas

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; PEYTRIGNET, Gérard; RUIZ DE


SANTIAGO, Jaime. As três vertentes da proteção internacional dos
direitos da pessoa humana. São José, Costa Rica: Mundo Gráfico, 1996.

CICV. Direito internacional relativo à condução das hostilidades.


Genebra: CICV, 2001.

CICV. Normas Fundamentais das Convenções de Genebra e de seus


protocolos adicionais (PA I, PA II e PA III). Genebra: CICV, 1983.

JARDIM, T. Dal Maso. O Brasil e o direito internacional dos conflitos


armados. 2ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2006.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12ª


ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.

MINISTÉRIO DA DEFESA: Manual de Emprego do Direito Internacional


dos Conflitos Armados (MD 34-M-03) – Brasília: EGGCF, 2011.

PALMA, Najla Nassif. Direito Internacional Humanitário e Direito Penal


Internacional. Rio de Janeiro: Fundação Trompowsky, 2008.

SWINARSKI, Christopher. Introdução ao direito internacional humanitário.


Porto Alegre: CICV, 1997.

Bibliografia complementar

GUELFF, Richard; ROBERTS, Adam. Documents on the laws of war. 3ª ed.


New York: Oxford University, 2000.

MINISTÉRIO DA DEFESA: Operações de Manutenção da Paz (C95-1) –


Brasília: EGGCF, 2008.

37
FUNDAMENTOS DO DIREITO PÚBLICO E PRIVADO - u3
CCEAD – Coordenação Central de Educação a Distância

Coordenação Geral
Gilda Helena Bernardino de Campos

Coordenação de Avaliação e Acompanhamento


Gianna Oliveira Bogossian Roque

Coordenação de Criação e Desenvolvimento


Claudio Perpetuo

Coordenação de Design Didático


Sergio Botelho do Amaral

Coordenação de Material Didático


Stella Maria Peixoto de Azevedo Pedrosa

Coordenação de Tecnologia da Informação


Renato Araujo

Gerente de Projetos
José Ricardo Basílio

Equipe CCEAD
Alessandra Muylaert Archer
Alexander Arturo Mera
Ana Luiza Portes
Angela de Araújo Souza
Camila Welikson
Ciléia Fiorotti
Clara Ishikawa
Eduardo Felipe dos Santos Pereira
Eduardo Quental
Frieda Marti
Gabriel Bezerra Neves
Gleilcelene Neri de Brito
Igor de Oliveira Martins
Joel dos Santos Furtado
Luiza Serpa
Luiz Claudio Galvão de Andrade
Luiz Guilherme Roland
Maria Letícia Correia Meliga
Neide Gutman
Romulo Freitas
Ronnald Machado
Simone Bernardo de Castro
Tito Ricardo de Almeida Tortori
Vivianne Elguezabal

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